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As Palavras Das Personagens: Tessituras Mnemônicas Nos Romances de Maria Valéria Rezende

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AS PALAVRAS DAS PERSONAGENS: TESSITURAS MNEMÔNICAS NOS

ROMANCES DE MARIA VALÉRIA REZENDE

Camila Torres (UFMS-CPTL) 1


Ricardo M. Bulhões (UFMS-CPTL)2
Resumo: A questão memorial se apresenta fortemente na escrita de Maria Valéria Rezende, ora
por meio do relato, ora por meio do diário, ora por meio da lembrança. O traço da memória é
tomado como recurso para que as narrativas sejam postas ao público. A escolha por este recorte
memorialístico é importante, pois entende-se que é a partir dele que as narrativas se reconhecem
na contemporaneidade, não somente pela data de publicação, mas pela inserção do bios das
personagens atrelado ao bios da autora, que sustentam as ficções. Assim, este texto fará uma
leitura dos romances de Maria Valéria, a partir do traço da memória e de como esta se configura
na contemporaneidade.
Palavras-chave: Memória; Contemporâneo; Personagens.

Tessituras epistêmicas – uma introdução


Pela mediação da literatura, do texto alheio, o crítico entrega-se
a uma ilusão romanesca, ao ser levado pela sedução das leituras
a se imiscuir nos textos e não se afastar do demônio da
subjetividade. Entre essas personagens e o crítico, instaura-se
um elo de semelhanças, ao construírem ficções que reportam às
suas vivências.
SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cult. p. 122
No elo significativo das leituras, o convite as experenciar vivências outras se impõe
de maneira subjetiva. O reconhecer-se na história do outro é um dos ganhos da literatura,
de forma que conquista o leitor pelos olhos, na tessitura das letras. Pode-se dizer que
Maria Valéria Rezende conquista seus leitores, porque é possível reconhecer-se nessas
histórias. Como leitora, é impossível não me deixar levar pelo deleite da sua narrativa,
até porque, tal como Eneida Maria de Souza pontua nessa epígrafe, há um reconhecimento
biográfico que torna a aproximação leitor x obra algo significativo.
A autora paulista possui muitas obras publicadas, em vários gêneros, para vários
públicos, mas algo permanece como essência: o estilo em relato das narrativas é revisitado
pelas suas personagens. Na invenção da escrita, precedida pelo ato de ficcionalizar e a
presença desses personagens percebe-se que a realidade é mediada pela influência da
Paraíba. Na escrita poética encontram-se traços das histórias de cordel; o sertão
nordestino torna-se cenário, muitas vezes; em outras o que leva o leitor até o Nordeste
são as memórias de personagens que passaram pela miséria e fome. Vivendo na fronteira
lindeira Brasil-Paraguai-Bolívia, ouso dizer que o sentimento de impotência em relação

1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras – UMFS/ CPTL camilatoorres@gmail.com
2
Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Letras – UFMS/ CPTL ricardoufms1@gmail.com

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aos problemas cotidianos são os mesmos. Neste momento, então firma-se o elo de
semelhanças trazido por Eneida na epígrafe.
Outro elo que nos envolve é a vida de professora. Professora eu, professora ela. A
vida de educadora, alfabetizadora comprometida com a aprendizagem de crianças, jovens
e adultos de lugares recônditos perpassa o pacto biográfico a que estamos condicionadas.
Por fim, há também a influência pela vocação celibatária, oração, mistério, espera. Esse
ponto místico trazido pela autora, em muitos momentos, é visto como a única forma de
sobrevivência em meio ao caos da vida contemporânea.
Se por um lado, encontramo-nos no processo transferencial da leitura, não há como
não perceber que o laço da transferência acontece primeiro no processo da ficção
operacionalizado por Maria Valéria. A presença do bios em seus textos é latente, de
maneira que a subjetividade intertextual abarca esta relação transferencial entre vida e
obra, que perpassa pela maioria dos textos da escritora. De forma singular, o bios é trazido
à tona pelo efeito causado nas personagens, durante a narrativa, quando estas evocam as
suas memórias. Ainda trazendo os pensamentos de Eneida Maria de Souza, a teórica
mineira diz que esse efeito da memória que impacta o leitor é causado pelo
entrecruzamento de momentos textuais com os vividos e é ele quem
permite ampliar a noção de texto, que não mais se circunscreve à palavra
escrita, mas alcança a dimensão de outros acontecimentos interpretados como
parte do universo simbólico. Neste sentido a intertextualidade [...] além de se
referir ao diálogo entre textos, desloca o texto ficcional para o texto da vida.
(SOUZA, 2007, p. 116)

Assim, ao eleger a memória como artifício para a criação literária, ocorre a força
intertextual que marca, tanto o lado da autoria, como o leitor que em muitos momentos
se reconhece na cena, ou se torna empático a ela, já que a mesma é recorrente nos espaços
contemporâneos.
Deste modo, a cena contemporânea acontece na relação distante e ao mesmo tempo
próxima dos olhos do leitor, de maneira que a memória se torna uma força capaz de
transformar e descontruir a prática intertextual. Isso porque, como será discutido mais à
frente, o câmbio do texto, enquanto palavra por palavra, pela experiência transferencial
da vida ressignifica os elementos da narrativa.
De acordo com Eneida “[...] a grande transformação operada pela prática
intertextual reside na desconstrução – para usarmos o termo de Jacques Derrida – do lugar
ocupado pelo sujeito no texto, seja configurado pelas imagens do autor e do escritor, seja

55
pela sua encenação como narrador personagem e leitor” (SOUZA, 2007, p. 117).
Tomando tal articulação teórica, o texto em questão visa trabalhar três pontos de destaque
nas obras e que configuram o olhar do crítico em relação à obra.
Primeiramente, abordar-se-á a contemporaneidade. Pensar a partir do
contemporâneo não significa falar somente na data de publicação dos textos, mas em toda
a articulação contida nele. Em seguida serão trabalhados alguns aspectos do que é o
personagem na contemporaneidade. Neste ponto, não se visa trabalhar as categorias
destinadas ao personagem, de modo que esse elemento da narrativa será trabalhado a
partir da perspectiva contemporânea e do ganho que ele obteve ao deixar de ser tomado
como marionete pelo narrador e “tomar a palavra sobre si”. Por fim, o aspecto que se
arremata à contemporaneidade e que está intrinsecamente ligado ao personagem é a
memória. A questão memorial se apresenta fortemente na escrita de Maria Valéria
Rezende, ora por meio do relato, ora por meio do diário, ora por meio da lembrança, o
traço da memória é tomado como recurso para que as narrativas sejam postas ao público.
A fim de ilustrar tal situação, foram eleitas para este trabalho três obras da autora,
todas elas romances. A saber, O voo da guará vermelha (2014), Quarenta dias (2014) e
Outros cantos (2016). O que chama a atenção nas três obras é que as personagens ao
ganharem a palavra sobre si, relatam suas experiências. Não se sabe dizer há quanto
tempo as situações aconteceram, de maneira que se percebe que a memória não seria um
instrumento que busca explorar o passado temporal, mas essa torna-se cenário, onde a
experiência contada é revivida como forma de garantir, a partir da palavra, a vida naquele
instante. Passo então à leitura proposta neste introdução.

Entre representação e presentificação


Ao trazer à baila o cenário da contemporaneidade é obrigatória a leitura de autor
Giorgio Agamben (2009), que discorre a partir do questionamento “O que é o
contemporâneo?”, partindo dos postulados de Nietzsche. O autor italiano traça uma série
de indagações ao redor do tema e postula que o contemporâneo é aquele que consegue se
deslocar do seu tempo, a fim de conseguir captá-lo e enxergá-lo. Para o autor não significa
que este deslocamento do tempo seja vagar pelo passado ou pelo futuro. Para explicar
melhor esta ideia, ele se vale da metáfora facho de trevas.

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A metáfora chama atenção primeiramente, porque trata-se de um termo paradoxal,
visto que a ideia de “facho” remete à luz, enquanto que o termo “trevas” remete à
escuridão. Mas é por meio do paradoxo que se busca compreender tal momento. Nas
palavras de Agamben:
Contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele
perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles
experimenta contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é justamente
aquele que sabe ver essa obscuridade, que capaz de escrever mergulhando a
pena nas trevas do presente. (AGAMBEN, 2009, p. 62-63)

Ao enxergar no escuro, ativam-se habilidades outras de percepção, que só se


manifestam na escuridão, sendo assim, mais aguçadas e preparadas para encararem os
perigos. Desta forma, estar no escuro, para aquele que está num momento contemporâneo
é ter uma percepção mais apurada do ambiente ao que se encontra e nesse sentido a
metáfora se estende, como uma forma de enxergar as minorias.
Sabe-se que na literatura o discurso marginal, num primeiro momento foi abarcado
pela palavra representação. O conceito foi desenvolvido por Roland Barthes (1966) e,
grosso modo, sinalizou que o escritor era aquele que falava no lugar de outro, falava pelo
outro. Desta forma, a palavra representação ganhou força na cena literária. Falar pelo
outro, falar no lugar de outro era talvez a única de forma de trazer a vozes silenciadas à
baila. No decorrer do tempo, a literatura se encarregou de traduzir estas vozes,
representando-as por meio dos textos, em que o autor, por ser alguém imbuído de
confiança e poder, assumia para si a voz dos marginalizados, falando assim, em nome
daqueles que não tinham espaço.3
Com o tempo, a representação não conseguiu se resumir apenas em ser honesto na
busca pelo olhar do outro, ou assumir respeito pelas suas peculiaridades
(DALCASTGNÈ, 2012, p. 18), como outrora aconteceu na história. Isso porque o que
está em questão já não é mais como o outro percebe, mas sim como a representação
passou monopolizar o lugar de fala das minorias. Assim, representação não conseguia
mais abarcar as novas vozes que surgiam.
Um dos ganhos do pensar contemporâneo foi entender que o acesso à voz legitima
o discurso. Isso porque ter voz significa realizar uma tomada de consciência em relação

3
Esse resgate histórico na teoria da literatura é importante para consigamos compreender como mais a
frente a personagem conquista o poder da palavra. Não se trata de uma comparação, mas de pontuar a
evolução que as personagens obtiveram ao longo do espaço temporal.

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aos desdobramentos políticos e sociais. De forma que, no fazer literário, a representação
da voz das minorias por uma voz dominante significa que os considerados menores seriam
incapazes de assumir o poder de suas vidas. É neste sentido que o pensamento
contemporâneo, marcado por uma séria de questionamentos colocou em cena tais
discursos, como o livro Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, ou Olhos D’água,
de Conceição Evaristo. Estas obras são significativas, pois estas mulheres, negras, que
passaram pela pobreza, conseguiram tornar o conceito de representatividade mais
democratizado.
Compreender essa transformação, que gera a diversidade do fazer literário, é
também compreender que não se trata apenas de uma nova estética. Regina Dalcastagnè
(2012) escreve que “essa preocupação com a diversidade de vozes não é um mero eco de
modismos acadêmicos, mas algo com importância política.” (2012, p. 47). Neste sentido
o escritor assume uma nova função. Ao invés de representar o outro, este passa a
contaminar o olhar do outro , de forma que na contemporaneidade o que se percebe é
que além de haver um escritor comprometido com o seu tempo, há também a exigência
de um leitor compromissado, segundo Dalcastagnè, esses escritores contemporâneos
“sugerem, ainda, um leitor mais desconfiado do que lê, mais atento aos preconceitos
embutidos no texto” (DALCASTAGNÈ, 2012. p. 47).
E se o contemporâneo é marcado por uma tomada de consciência das personagens,
ele também é marcado por uma urgência. Em depoimento, Marcelino Freire disse:
De fato, escrevo curto, e sobretudo, grosso. Escrevo com urgência. Escrevo
para me vingar. E esta vingança tem pressa. Não tempo para nhenhenhéns.
Quero logo dizer o que quero e ir embora. (FREIRE apud
SCHØLLHAMMER, 2009, p. 10)

Percebe-se que fala de Marcelino é atravessada pelo tom de raiva, de desespero em


revelar o que se tem a dizer, tão pronto as letras caibam no papel. Talvez como forma de
extravasar, talvez como forma de registro, talvez só por se vingar mesmo. O fazer literário
contemporâneo é o que tem a necessidade de mostrar a consciência de si.
É assim que o interdiscurso memória e identidade que os escritores recebem como
herança são ficcionalizados numa tessitura epistêmica a fim de revelar as inúmeras vozes
provenientes de vários lugares que constroem a cena discursiva contemporânea. A fala de
Marcelino Freire corrobora com a escrita de Maria Valéria Rezende, porque o que se
percebe, assim como em outros autores da contemporaneidade, é que as palavras que

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tecem o discurso ao passo que são eleitas com cuidado e revelam o trabalho estilístico do
autor, também assinalam a escrita como um jorrar.
Na obra Quarenta Dias, a personagem Alice ao encontrar seu caderno com capa da
Barbie olha para ele e pensa “dei de olho na Barbie e soube logo em quem vou descarregar
tudo isso” (REZENDE, 2014, p. 13) Observe que a palavra de descarregar é imbuída de
uma força de sentimentos que traduzem a escrita deste autor contemporâneo. É como se
o escritor contemporâneo só conseguisse enxergar na literatura a saída para denunciar a
realidade em que vive. No compreender de Karl Erik Schøllhammer
Podemos entender que a urgência é expressão sensível da dificuldade de lidar
com o mais próximo e atual, ou seja, a sensação, que atravessa alguns
escritores, de ser anacrônico em relação ao presente , passando a aceitar que a
sua “realidade” mais real só poderá ser refletida na margem e nunca enxergada
de frente ou capturada diretamente (SCHØLLHAMMER, 2009, p. 11)
É nesse sentido que o autor busca pontuar que a urgência de que carece o escritor
contemporâneo é marcada pelo realismo da literatura brasileira, que não é mais visto
como um retorno às formas da época, mas como uma consciência de que há uma
dificuldade em lidar com a memória histórica, bem como com a realidade social e coletiva
do país. Acredita-se que essa dificuldade está atravessada, num geral, pela América
Latina.
Assim, se antes a literatura era marcada pela representação, na contemporaneidade
ela é marcada pela presentificação, o conceito discutido por Schøllhammer, leva à
compreensão de que a presentificação vem carregada de imediatismo, da ansiedade em
despejar o presente, de forma estética.
Por esse motivo a escrita contemporânea tem uma pulsão mais anacrônica e se
concatena à brevidade. Porque não tendo um compromisso com a história, com uma
estética, com uma formalidade, o contemporâneo além de ser compromissado com a sua
realidade também está ligado ao prazer de dizer.

Construções mnemônicas – as personagens


A escrita breve é uma das características da escrita de Maria Valéria Rezende. Não
significa que não haja descrições. Há e muitas. A urgência fica marcada pelo desenrolar
das cenas, bem como pela não pontuação das frases, que sinalizam o fluxo de pensamento
do narrador, das personagens, que conseguem concatenar uma vida em flashs de memória
ao longo das tramas. Maria Valéria tem como peculiaridade algumas construções que

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parecem ser, grosso modo, caricaturadas, mas que estando no facho de trevas, o leitor
contemporâneo é obrigado a enxergar melhor.
Tal como sinalizado na introdução, as obras escolhidas como recorte deste texto,
têm-se alguns pontos em comum. Esses traços em comum que encontramos nas obras,
revelam-se para o leitor como estilo da autora, que trabalha em torno de uma estética que
abarca figuras estereotipadas e marginalizadas. Assim como Rosálio e Irene,
protagonistas da obra O voo da guará vermelha (2014).
A narrativa inicialmente é contada por uma terceira voz, um narrador onisciente
que fica encarregado de apresentar as duas personagens, bem como de contar como se dá
o encontro dessas duas personagens. Deste modo, o narrador inicia contando primeiro
apresentando Rosálio e, em seguida, Irene. O primeiro é pedreiro e que Irene é uma
prostituta, infectada com Aids.
O que chama a atenção da apresentação de Rosálio para a apresentação de Irene é
que no primeiro o narrador descreve como se estivesse observando de fora, já na segunda,
parece estar na mente da personagem. A repetição das palavras sinaliza o tempo como se
fosse presente, no ato do acontecimento e Irene estivesse relatando a situação.
A história de fato começa quando Rosálio revela que não pode pagar pelo programa
feito por Irene e a mulher num ato de fúria desfere palavras e agressões físicas contra e
em seguida cai no choro, nesse momento, Irene é amparada por Rosálio, que na ânsia de
acalmá-la, a toma pelo corpo num abraço e começa a contar suas histórias. É neste instante
que a narrativa ganha novo rumo, já que a voz do narrador passa a ser abafada pela voz
de Rosálio, que toma as rédeas na narrativa, ao evocar suas lembranças para contar a
Irene.
A narrativa Quarenta dias (2014) apresenta uma configuração diferente pois o livro
é composto de 31 (pequenos) capítulos, em que todos apresentam epígrafes, dos mais
variados autores, dentre eles: Samuel Beckett, Mario de Andrade, Elvira Vigna, Marília
Arnaud, dentre outros. Além das epígrafes, há no final de vários capítulos a reprodução
de panfletos encontrados pelo caminho, imagens, colagens, tudo contribuindo para que
se tenha a ideia de um diário, a bricolagem de sentimentos fica exposta, pois na narrativa
a personagem principal chama-se Alice. A mulher é uma professora aposentada, que vive
pacatamente em João Pessoa, em meio às suas leituras e convívio com os vizinhos
próximos e tem uma filha chamada Norinha, também professora, porém universitária, que

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vive em Porto Alegre. As duas são muito diferentes, ao passo que Alice não encontra
problemas em viver na simplicidade, Norinha tem apreço por artigos luxuosos e uma vida
mais agitada.
Em suas férias Norinha vai para a casa da mãe e sinaliza que já está na hora de Alice
ser avó.
Lembro que o susto e a alegria foram tamanhos que fiquei um momento parada,
olhando pra expressão misteriosa dela, depois pra barriga, querendo perceber
algum sinal de gravidez. Então era isso. Estava explicado o sentimentalismo
dos últimos dias. Acontece. Eu disse feliz, Ainda não se nota nada, filha. Pra
quando vai ser? Ela se mexeu inquieta, hesitou e finalmente respondeu Vai
depender da senhora, Mãínha. (REZENDE, 2014, p. 26)

O desejo de Norinha se expunha, levar a mãe para Porto Alegre para Norinha e
Umberto, seu esposo, também professor Universitário, pudessem ter um filho e deixar
sob a responsabilidade de Alice.
Eu, de cara, disse não, eu não queria me mudar pra Porto Alegre, aquele frio
danado!, [...]
Foi pelas cicatrizes que ela me pegou e não largou mais, chantageando: por
minha culpa ela tinha crescido praticamente sozinha, eu me ausentava, só
pensando em trabalhar pra esquecer a tragédia da minha juventude [...] fui eu
quem nem tive a coragem de recomeçar a vida, de lhe dar um novo pai [...]
(REZENDE, 2014, p. 27)
Sem ter para onde correr Alice se vê obrigada a realizar a mudança, devido à
chantagem da filha. Além disso, a prima Elizete, familiar mais próxima da protagonista,
também força a viagem só de ida da aposentada. Chegando ao lugar de repulsa, Alice cai
em tremenda depressão, até que um dia, recebe um telefonema de Elizete, em que esta
pedia que a futura avó encontre um rapaz, filho de uma conhecida que não o via há anos
e que estaria na capital gaúcha a trabalho, mas que perdeu o contato com a mãe.
É com a desculpa de encontrar o conterrâneo que Alice resolve sair às ruas de Porto
Alegre obstinada a encontrar o filho da desconhecida. No entanto, a paraibana sai sem
dar notícias a ninguém e só volta depois de quarenta dias. As peripécias vividas por ela,
são despejadas para Barbie, capa do único caderno que lhe restou, a quem ela confia seus
segredos
Já na narrativa Outros cantos (2016), a história também é contada por uma
narradora-personagem: Maria, que está dentro de um ônibus, cruzando o sertão, não se
sabe de início para quê, mas o entrar e descer de passageiros, a personagem vai deixando-
se mostrar uma observadora.

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Partindo do observar de cada uma das figuras sertanejas que adentram ao ônibus, a
narradora passa a também se recordar de outras figuras tão parecidas quanto às que entram
no veículo, ao passo rememora a sua própria vida. Assim, a cada pinga-pinga do ônibus,
de cidade em cidade percorrido pelo longo trajeto, Maria constrói, pelos flashs de sua
lembrança, como um arconte, os cenários pelos quais o leitor vai conhecendo a partir da
fala da professora
Os faróis deste carro velho são tão fracos que não mostram nada do caminho,
nada me distrai das imagens que voltam da minha primeira tarde naquele outro
sertão. Deixo divagar a minha memória enquanto todo o resto, o caubói, o
ônibus, a caatinga, a estrada, mergulha na escuridão. (REZENDE, 2016, p. 10)

O trecho chama a atenção por marcar para o leitor como se dá o fluxo de


pensamento da personagem. A professora conta que chegou ao nordeste com o objetivo
de ensinar e que foi enviada (ao que parece, pelas pistas do texto, pelo governo) a uma
cidade chamada Olhos d’Água. Lugar intitulado por ela como exílio, mas que ainda
naquele momento sinalizavam esperança. O vai e vem de pensamentos antigos e novos
é uma constante na história. Ao passo que o ônibus anda, anda também a história
memoriada pela protagonista que conta como foi sua primeira experiência no sertão, suas
amizades, as pessoas que conheceu, os lugares em que trabalhou. Fica claro no texto que
a personagem é uma espécie de peregrina, conhecedora de muitos países, pois ela faz
muitas referências, com vocabulários e costumes a outras culturas.
A partir daqui, percebe-se que as narrativas se entrecruzam. A primeira terá a voz
a de uma personagem que vai ganhar a palavra sobre si, na maior parte da história, na
segunda e na terceira têm-se personagens que também são a narradoras e nas três histórias
a memória é ponto alto para que se flua o fazer literário.
Nas três narrativas, as cenas acontecem em dois planos, o primeiro é o plano da
realidade, daquilo que se está acontecendo e que no caso de O voo da guará vermelha por
vezes é mediado pelo narrador, já nas outras obras há algum objeto que as faz “voltar” do
transe da memória; o segundo é o plano da memória, evocado pelos personagens, que
sendo detentoras de suas memórias, são chamadas ao discurso para narrarem suas
experiências.
No caso de Rosálio, as experiências a serem narradas não seguem necessariamente
uma ordem cronológica, pois as suas memórias ocorrem pela mediação de Irene. Ocorre
que Rosálio tem um baú, que por vezes é trazido à cena como caixa. No baú, encontra-se

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a herança que ele recebeu, livros de histórias que ele ouvia quando era criança e carregava
consigo na esperança de um dia aprender a lê-los, no entanto, a maioridade chegou e a
vida, não tão fácil não o permitiu aprender, de maneira que Irene, passa a ensinar o rapaz
a tarefa, em troca de que ele lhe conte o que sabe. A troca neste caso é afetiva. Rosálio
tem a vontade de aprender a ler, quanto Irene se sente mais feliz tendo com quem dividir
na sinceridade as suas noites. Assim os dois fazem da metáfora do analfabetismo um
recurso para das asas à memória de Rosálio.
Já com Alice, em Quarenta dias, o elemento que permite que suas memórias
ressurjam é o caderno com a capa da Barbie, na verdade o caderno é só um pretexto para
que a professora aposentada consiga contar o que de fato houve com ela durante os
quarenta dias em que ela permaneceu nas ruas clandestinamente a procura do filho de
uma desconhecida, mas que no fundo serviu para que a paraibana procurasse a si mesma.
Fato é que não somente o telefonema de Elizete pedindo auxílio para a Alice foi o
que a motivou a ir para as ruas, assim que ela chegou à Porto Alegre, sua filha Norinha
decidiu que ela e o marido iriam passar um tempo fora do país. Ao contar o adiamento da
gravidez e a viagem internacional, a narradora conta do seu sentimento de impotência e
como viu em sua filha o sentimento de crueldade para com a mãe, já que não havia como
a filha não saber da viagem, por isso a fuga, e sem ter para quem contar despeja tudo o
que viveu nos dias nas ruas para Barbie, a única em quem pode confiar.
No caso de Maria, em Outros Cantos, o plano da memória se dá de maneira
consciente e como ponto de fuga. No balançar no ônibus velho, enquanto a insônia se faz
presente, resta trazer à baila o traço das lembranças, como forma de esquecimento do
perrengue da viagem. Diferente de Rosálio, as memórias de Maria fazem parte de um
momento específico de sua vida, a primeira vez que chegou ao sertão, por este motivo o
processo de recordação de Maria ocorre cronologicamente.
Assim a narrativa vai se alternando com alguns pequenos espaços que sinalizam
que houve a troca de planos. Ora no ônibus, ora em suas memórias. No caso de Rosálio a
troca de planos fica marcada pela troca de fontes presente no livro, na reprodução do
texto, optou-se por destacar com o recurso itálico, a fim de ilustrar que tal troca é
proposital.
A estratégia de que se vale a autora está ligada ao movimento, de forma que essas
sinalizações indicam ora afastamento, ora proximidade com o objeto. Logo a memória do

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outro, e nesse caso o outro é o personagem, entra como componente da cena
contemporânea, no lugar de o narrador somente roubar a memória do outro e repassá-la,
entrou-se em cena o próprio possuidor da memória evocando-as ao público, alterando-se
a configuração do exercício da narrativa, pois entende-se que
O exercício da memória alheia, ao ser incorporado à experiência literária,
desloca e condensa lugares antes reservados ao autor, à medida que se dilui a
concepção de texto original e de autenticidade criativa. [...] Aceitar esse jogo
de faz-de-conta significa negar o excesso de subjetivação e optar pela
diferença, pela alteridade e pelo estranho hóspede, que, ao negá-la, afirma a
sua familiaridade. (SOUZA, 2002, p. 123 – 124)

Neste sentido, é possível se compreender que tendo o (narrador)personagem a voz


na cena literária altera-se o lugar não somente do narrador, mas do autor, bem como do
leitor. Pois este ao memoriar suas histórias, encontra-se ligado à imaginação pessoal, já
que no caso de Rosálio, Irene pede que as histórias sejam contadas e o homem atende,
pois consegue atender à satisfação pessoal, bem como consegue firmar o pacto de
amizade revelado pelos dois. Já Alice e Maria, ao darem continuidade ao ato de lembrar,
também se mostram conduzidas pela imaginação pessoal, na falta de alguém para
partilhar aquele momento de fuga, em que somente a mente pode ser considerada um
refúgio.
Essas construções conduzidas pelo fio memorialístico constroem o fazer literário
de maneira que no reproduzir dessas histórias
[...] penetra-se no jogo infinito da ficção, impulsionando o relato e rompendo
os limites intersubjetivos. O distanciamento do narrador diante do material
ficcional que lhe é transmitido desempenha a função de um procedimento
retórico, com o objetivo de reforçar o sentido da narrativa como embuste a e
artifício. (SOUZA, 2002, p. 126)

Mas além de ser um artifício que remexe o passado, o efeito mnêmico


ganha o espaço de palco. Tal como no teatro, é como se a cena se refizesse a cada vez que
é contada pelo enunciador, de modo que o que se percebe é que sendo uma espécie de
palco (NOUZEILLES, 2011, p. 133) a personagem cria uma condição de existência. No
início desta seção falava-se em personagens que quase beiram a caricatura. Ocorre que
estas personagens dialogam com a necessidade que a contemporaneidade tem de traduzir
a realidade. E na realidade ainda tem muitos analfabetos, prostitutas que, como Irene,
morrem violentadas, professores que vivem de promessas.
Entende-se que a opção por Maria Valéria trazer ao bojo da literatura é uma
forma de marcar o espaço da resistência, e dar voz a esses seres significa inseri-los no

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espaço do poder. Logo, ao voltarem-se ao passado, essas personagens estão tentando
firmar os seus presentes, porque, ainda que sejam detentoras do discurso, da palavra, do
poder, percebe-se que eles precisam da memória enquanto garantia de existência, porque
nem eles mesmos conseguem se reconhecer na realidade. Há no éthos de seus discursos
o não reconhecimento de si.
Por isso o revisitar o passado é somente uma forma de conseguir não perder
de vista o presente. Como as personagens só conseguem suas identidades pela lembrança,
a sequência do biografar suas vidas é uma forma de se manterem reconhecidos no
presente. De maneira que o que se pode entender é que o tempo destas narrativas é o
presente, pois é nele que as personagens encontram um sentido para a “vida”.
Neste sentido, fica perceptível que a ficção é composta pelo encontro de
diversos discursos que se cruzam a medida em que caminha a cena narrativa
contemporânea. Esta por sua vez é um amálgama de construções subjetivas conduzidas
pelo fio mediador da memória, que se encarrega de tecer.

Referências
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinicius
Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009.

DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: um território


contestado. Vinhedo, Editora Horizonte, 2012.

NOUZEILLES, Gabriela. Os restos do político ou as ruínas do arquivo. In: SOUZA, E.


M.; MIRANDA, W. M. (Orgs). Crítica e coleção. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

RESENDE, Beatrriz; FINAZZI-AGRÓ, Ettore (Orgs.). Possibilidades da nova escrita


literária no Brasil. 1ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2014.

REZENDE, Maria Valéria. O voo da guará vermelha. 1ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva,
2014.

REZENDE, Maria Valéria. Outros cantos. 1ª ed. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016.

SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2009.

SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

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LITERATURA CONTEMPORANEA E TRADIÇÃO: RELAÇÕES
INTERTEXTUAIS ENTRE CONTOS DE CÍNTIA MOSCOVICH E CLARICE
LISPECTOR

Eduarda Cristina Lima(UFG)1

Resumo: O objetivo deste estudo é pesquisar a relação que a contística da escritora brasileira
contemporânea Cíntia Moscovich estabelece com a obra de Clarice Lispector. Para isso, serão
analisados os contos “O Telhado e o Violinista” e “Os Laços e os nós, os brancos e os azuis”, de
Arquitetura do arco-íris (2004), para observar como a autora trata as questões judaicas em sua
obra e como é construído o diálogo que ela estabelece com os contos de Lispector, “Uma
Galinha” e “Os Laços de Família”, de Laços de Família (1960). Dessa forma, o cotejo entre a
obra das duas escritoras contribuirá para a compreensão das tendências estéticas da literatura
brasileira contemporânea.
Palavras-chave:Literatura Contemporânea; Cíntia Moscovich; Tradição; Clarice
Lispector.

Introdução

O objetivo deste estudo é compreender a contística de Cíntia Moscovich a partir


da análise das questões judaicas representadas nos contos “O Telhado e o Violinista” e
“Os Laços e os nós, os brancos e os azuis”, de Arquitetura do arco-íris (2004). Como a
escritora porto-alegrense estabelece um intertexto entre os contos selecionados e os
contos de Clarice Lispector, procuraremos entender a ligação existente entre as duas
contísticas. Levando em consideração a ideia de tradição e como ela se reflete na escrita
de autores contemporâneos, entendemos que há certa intencionalidade na recuperação
que o escritor faz quando retoma o texto anterior. A ideia de trazer de volta textos que já
foram escritos revela uma tomada de postura da literatura produzida na
contemporaneidade, como mostra Tânia Franco Carvalhal, em seu livro Literatura
Comparada, quando reflete sobre os porquês de retomar textos do passado:

Além disso, sabemos que a repetição (de um texto por outro, de um fragmento
em um texto, etc. nunca é inocente.) [...] Toda repetição está carregada de uma
intencionalidade certa: quer dar continuidade ou quer modificar, quer
subverter, enfim, quer atuar com relação ao texto antecessor. (CARVALHAL,
2006, p.53)

1
Graduanda em Letras Português – Licenciatura pela Universidade Federal de Goiás (UFG) – E-mail:
eduarrdalima@outlook.com

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Levando em conta essas aproximações entre a tradição2 e as manifestações
contemporâneas na literatura é indispensável observar a incidência de escritores que se
apropriam de questões fundamentais pertencentes a obras publicadas anos atrás. Esses
escritores apresentam uma consciência crítica ao retomarem a obra de escritores já
consagrados, o que confere um matiz próprio às novas narrativas que têm sido publicadas
nas últimas décadas. Karl Erik Schøllhammer (2011), em Ficção Brasileira
Contemporânea, a partir dos estudos de Giorgio Agamben, considera que “O escritor
contemporâneo parece estar motivado por uma grande urgência em se relacionar com a
realidade histórica, estando consciente, entretanto, da impossibilidade de captá-la na sua
especificidade atual, em seu presente.” (SCHOLLHAMMER, 2011, p.10).

Paulo Roberto Tonani do Patrocínio (2013), em seu ensaio “Passageiro do fim do


dia, de Rubens Figueiredo: Um olhar sobre o naturalismo”, reflete sobre esse movimento
de refacção que a literatura contemporânea propõe ao retomar temas do passado, trazendo
outras perspectivas que permitam uma maior compreensão de traços culturais e sociais
do presente, como acontece na obra de Moscovich quando a escritora retrata o judaísmo,
ou sobre as relações interpessoais entre as personagens. Patrocínio aponta:

O movimento de acréscimo, [...] revela que estamos diante de algo que


reproduz em diferença uma ação já realizada. Nesses termos, o novo não é
explicitamente original, assim como o elemento que fora o objeto do resgate
retorna com rasuras. Resulta desta construção um complexo jogo de
percepções e interpretações que busca compreender os mecanismos sociais,
políticos, culturais que tateiam o presente com os olhos voltados para o
passado. (PATROCÍNIO, 2013, p.261)

Segundo o que diz Giorgio Agamben em O que é contemporâneo? E outros


ensaios, não há possibilidade de ser contemporâneo o escritor que adere sem nenhum
desacordo com seu próprio tempo. A partir do conceito de intempestividade de Friedrich
Nietzsche, ele vai construindo sua concepção acerca do assunto, refletindo como os
contrastes podem constituir sentidos complementares.

A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo,


que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente,

2
Pelo lugar de projeção que Clarice Lispector ocupa na literatura brasileira, criando uma genealogia de
escritores que seguem de maneiras distintas o seu percurso, este estudo entende tradição como um percurso
de uma escritora consagrada, que permanece no cânone da literatura brasileira, e que com sua obra gerou a
continuidade da tendência narrativa que ela praticou.

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essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um
anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em
todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque,
exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre
ela (AGAMBEN, p.59).

Dessa forma, Cíntia Moscovich em seus contos ressignifica os temas, situações,


personagens, motivações da obra de Lispector. Por meio dessa, é possível observar as
tomadas de posição de Moscovich, tanto do ponto de vista temático quanto formal, em
relação a uma conhecida escritora da literatura brasileira que também era judia e se
debruçou, mesmo que de forma mais velada, sobre questões judaicas. Nesse sentido, essa
pesquisa retratará as questões do judaísmo relacionadas à família, às tradições que são
manifestadas entre pais, filhos, avós, por meio da comida, de festas da cultura judaica,
além da forma como se comunicam entre si, muitas vezes trazendo palavras na língua
ídiche e mostrando por meio de como agem em determinadas situações a influência de
valores da tradição judaica. Muitos desses aspectos foram discutidos por Berta Waldman
(2016) em “Comida, família e escritura na ficção de Cíntia Moscovich”.

Posto isto, será feito, então, um estudo bibliográfico comparativo entre os contos
“O Telhado e o Violinista e “Os Laços e os nós, os brancos e os azuis”, de Moscovich, e
“Uma Galinha” e “Os Laços de Família”, de Lispector. A obra das autoras escolhidas
para a análise se relacionam em aspectos abordados em sua escrita, como as questões do
judaísmo, tratadas de maneira mais evidente em Cíntia e de forma mais sutil em Clarice.

Sobre Cíntia Moscovich e Clarice Lispector

Moscovich é uma escritora gaúcha que publicou sua primeira obra em


1996. Reino das Cebolas é uma coletânea de contos que foi indicada ao Prêmio Jabuti.
Em 2006, com a publicação de Arquitetura do Arco-íris, ganhou o terceiro lugar na
categoria de contos e crônicas desse renomado prêmio da literatura brasileira. A autora
procura abordar temas importantes dentro de relações familiares e do dia a dia. As
personagens principais de seus contos, em sua maioria mulheres, transgridem algumas
normas antes muito consolidadas em uma sociedade patriarcal. Esse teor crítico sobre as
relações íntimas e sociais também pode ser observado em alguns textos também de
Lispector.

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A segunda autora escolhida, Clarice Lispector, é ucraniana naturalizada brasileira,
começou seu trabalho como tradutora e teve sua primeira obra publicada em 1943, Perto
do Coração Selvagem. Da mesma forma que Moscovich, muitas personagens de Clarice
são mulheres, assim como as personagens dos contos que serão analisados adiante. As
personagens clariceanas normalmente passam por situações em que uma nova ligação
com o mundo se estabelece, o que estabelece uma relação com a obra de Cíntia
Moscovich, principalmente ao desnudar o comportamento da mulher em situações
cotidianas envoltas por temas familiares, além de ambas retomarem motivos e símbolos
da cultura judaica.

O telhado e o violinista e Uma galinha: Um diálogo entre a contemporaneidade e a


tradição

A construção do conto “O telhado e o violinista”, presente na obra Arquitetura do


arco-íris (2004), de Cíntia Moscovich, mostra um diálogo com “A galinha” de Clarice
Lispector, da obra Laços de família (1960) em vários aspectos. Já de início, embora o
foco narrativo seja em primeira pessoa no primeiro e em terceira pessoa no segundo conto,
há a recuperação de um olhar voltado para personagens femininas. Em ambos os contos
uma menina, ainda criança, que mora com sua da família, evita que uma galinha seja
morta para ser servida no jantar.

“O telhado e o violinista” traz uma narradora já adulta, casada, mãe de uma filha
pequena, que relata um episódio de sua infância, quando tinha 9 anos, e sente as dores de
ser agredida por ser judia. Após ser chamada de “judia suja”, frase impactante que dá
início ao conto, ela vai até a avó contar o que ocorreu. Aqui já é possível perceber o
cenário construído por Moscovich: uma situação do dia-a-dia familiar, em que se insere
uma circunstância impactante como a intolerância religiosa.

Após esse episódio, passa-se a outro dia, em que mais um acontecimento cotidiano
da família nos é apresentado: a avó havia trazido em uma tarde uma galinha viva e ao
estar prestes a prepará-la para o jantar, a menina pensa que se a avó matasse a galinha ela
seria “indiferente ao terror” (MOSCOVICH, 2004, p.22). Depois dessa reflexão, a menina
convence a avó a não matar a galinha, que é salva devido a essa intervenção e recebe o
nome de Hortênsia.

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Portanto, uma análise mais atenta das questões judaicas no conto, permite
entender que há uma continuação das tradições, passadas de geração para geração,
representada principalmente pela figura da avó. Enquanto que a avó vivenciou a história
dos cossacos e da violência, os pais e principalmente a filha vivenciam essas lembranças
na forma do preconceito ainda sofrido em ações como as de Paula no conto.

O conto “A galinha”, de Clarice Lispector, apresenta um tratamento temático


próximo do conto de Moscovich. Como em “O telhado e o Violinista”, o conto de Clarice
também apresenta um acontecimento cotidiano. A narrativa tem início numa manhã de
domingo, em que a família faria galinha para o almoço. Porém, em um descuido da
cozinheira, a galinha foge e é perseguida pelo dono da casa, pelos telhados vizinhos.
Como em Moscovich, o animal recebe características humanas: “Sozinha no mundo, sem
pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada.” (LISPECTOR, 1960, p.31). Depois
desse episódio, a galinha é capturada, mas ao chegar em casa, ela bota um ovo. A menina
da família, admirada com o acontecido, se exalta e pede para que a mãe não mate a
galinha, já que agora ela pôs um ovo e assim começa a ser tratada com o cuidado que a
maternidade, na sua ótica, exigiria.

O tempo se passou, o conto caminha para o fim mostrando que a cabeça vazia da
galinha continuava a mesma, “na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho
– era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos”
(LISPECTOR, 1960, p.33). Contudo, o conto de Lispector traz a figura da galinha se
aproximando a da mulher, que apesar de livre sofre com as pressões sociais, A autora faz
uma crítica quanto a isso e permite uma reflexão sobre o contexto social em que a mulher
é nascida para ser mãe e tem que se render a uma sociedade patriarcal.

Posto isto, e levando em consideração o destaque às questões judaicas no conto


de Moscovich além de tratar da figura feminina, podemos ver as diferenças existentes
entre os contos das autoras. Em “Uma galinha”, Lispector faz uma crítica social em que
traz a galinha metaforicamente representando o papel da mulher, mostrando a condição
de inferioridade do animal que não tinha identidade pessoal ou consciência de si. A
análise de “O telhado e o violinista” revela que Moscovich não apenas procura repetir
motivos e temas retirados do conto de Lispector. Há uma revitalização do conto
clariceano, enriquecendo os sentidos existentes por meio do intertexto. Ambas as autoras
tocam em pontos delicados, como a construção da imagem da mulher na sociedade

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patriarcal e a sobrevivência da agressão por intolerância religiosa, incitando o leitor a
alargar o olhar para o outro construído nos contos.

Relações entre mãe e filha em Os laços e os nós, os brancos e os azuis e Os laços de


família

O conto de Cíntia Moscovich “Os laços e os nós, os brancos e os azuis”, também


publicado em Arquitetura do arco-íris (2004), é narrado por um narrador em terceira
pessoa, assim como “Laços de família” de Lispector. Os dois contos são ambientados
novamente no seio familiar. A protagonista do conto de Moscovich, Raquel, dedicada a
fazer com que a organização da casa e da rotina estivessem sempre muito impecáveis,
recebe a mãe para uma visita de duas semanas. O conto se inicia já no dia em que dona
Anita está de partida, numa manhã em que a filha acorda muito antes de todos para
arrumar de forma minuciosa a mesa do café da manhã, assim como passar as camisas do
marido, até que ele e a mãe acordassem para a primeira refeição do dia. Nessa atividade,
o capricho é o maior destaque: “Sempre fora boa passadeira, camisa de homem exigia
paciência, e, satisfeita com sua perícia e com o cheiro avivado do sabão em pó [...]”
(MOSCOVICH, 2004, p.126).

Já esperando o táxi para levar a mãe de volta, Raquel vendo a se queixar de não
lembrar se tinha deixado algo para trás, pensa em sua fragilidade e em como quando era
pequena dona Anita “lhe parecia alta, uma mulher potente e bonita, boa esposa, boa dona
de casa, ordenando o universo de empregadas, marido, três filhas.” (MOSCOVICH,
2004). Para ela, a mãe ensinava-lhe o mundo com sabedoria e agora constrangida pensava
que a senhora era vulnerável e falível.

O modo como Raquel se porta diante da situação da mãe mostra a relação de


distanciamento existente entre elas que foi sendo construída ao longo do tempo, chegando
em um momento em que ambas, desconcertadas com a presença uma da outra, já não
sabiam como agir. Dentro do táxi, o carro freia bruscamente dando fim a esse tempo em
que nem mesmo o contato físico era significativo, as duas se tocam e não se afastam
depois de o carro retomar o curso normal: “Era uma intimidade de corpos de que elas
sequer se lembravam, uma intimidade esquecida, vinda do tempo em que se tem pai e
mãe ou do tempo em que os filhos são pequenos.” (MOSCOVICH, 2004). Após esse
contato, Raquel percebera que jamais tivera um contato realmente verdadeiro com a mãe.

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Ao chegar ao aeroporto, a mãe pergunta novamente à Raquel se não havia
esquecido alguma coisa e a filha diz que pode lhe enviar o objeto esquecido caso ela tenha
realmente deixado alguma coisa para trás. Assim, dona Anita olha profundamente nos
olhos da filha e com um carinho não mencionado até então, beija-a e diz: “Qualquer coisa,
você me manda depois. Filha amada da mãe.” (MOSCOVICH, 2004, p.136). As palavras
de afago trazem à tona um sentimento há muito esquecido: “Raquel teve a impressão de
que refaziam um trato; talvez mais do que mera impressão, a lucidez do momento era
escandalosa, e ela só podia ter certezas. Desmoronou e ficou ali, porque era bom
(MOSCOVICH, 2004, p.136)

“Os laços e os nós, os brancos e os azuis” é construído de maneira a apresentar


uma situação inicial, um instante em que a personagem principal passa por um momento
significativo com a visita da mãe e por fim há a retomada da situação inicial. No caso de
Raquel, a sua vida de esposa dedicada à casa e ao marido e distanciada das relações
afetivas com a mãe, retornam no fim do conto, mesmo que ela tenha passado por um
momento de regeneração positiva desse relacionamento, trazendo além da rotina uma
sensação de plenitude diferentemente do que acontece ao final do conto de Lispector em
o leitor não sabe se essa plenitude é alcançada.

A construção do conto de Moscovich se assemelha em vários aspectos ao conto


“Os laços de família” de Clarice Lispector, deixando claro que a retoma da escrita
clariceana faz parte do projeto estético da autora porto alegrense. Desse modo, o conto de
Lispector já se inicia dentro do táxi, em que Catarina, a filha, está levando a mãe, que
veio visitar a família, à estação de trem.

O primeiro aspecto de grande afinidade nas relações interpessoais existentes entre


os contos está relacionado ao trato afetivo entre as personagens mãe e filha. O que mostra
a narradora ao longo do conto é o modo distanciado do relacionamento de Catarina e
Severina. Assim como em Moscovich, a mãe mostra-se vulnerável ao perguntar por várias
vezes à filha se não estaria se esquecendo de nada. E quando o táxi freia bruscamente
lembrando a cena de “Os laços e os nós, os brancos e os azuis”, há um contato que há
muito não acontecia entre mãe e filha, tirando a ordem das malas, e do que habitualmente
seria uma ligação entre elas: “Não esqueci de nada..., recomeçou a mãe, quando uma
freada súbita do carro lançou-as uma contra a outra e fez despencarem as malas.”
(LISPECTOR, 1960, p.96). O habitual distanciamento entre as personagens é quebrado
com a parada brusca do táxi: “Catarina fora lançada contra Severina, numa intimidade de

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corpo há muito esquecida, vinda do tempo em que se tem pai e mãe.” (LISPECTOR,
1960, p.96).

Karl Erik Schøllhammer, em Ficção Brasileira Contemporânea, procura entender


as tendências estéticas da ficção brasileira contemporânea de maneira a desnudar as
continuidades, assim como as rupturas produzidas pelos escritores contemporâneos: “Em
um ponto, entretanto, parecem comparáveis, na liberdade exercida de modo muitas vezes
irreverente, mas não superficial, na coragem de se arriscar em um caminho próprio,
criando uma escrita desabusada que aposta na fabulação”. (SCHOLLHAMMER, 2009,
p.147)

Embora a estrutura dos dois contos seja muito parecida, não é apenas nela que
deve-se ater as atenções no andamento da análise. Há uma grande semelhança entre as
personagens de Cíntia Moscovich e de Clarice Lispector. Dona Anita e Severina, Raquel
e Catarina são as protagonistas dos contos, que têm relacionamentos de mãe e filha
complicados entre si, e essa intertextualidade que a autora porto alegrense faz com a
narrativa de Lispector aponta que, apesar dessas semelhanças, Raquel e Catarina ainda
assim conseguem ser diferentes. Enquanto que a primeira é extremamente ligada aos
afazeres da casa e ao marido, e volta do aeroporto imediatamente para sua rotina, a
segunda, diferentemente, procura se libertar dessa condição e das obrigações há muito
sustentadas por ela sem pontos de escape. Logo, Catarina procura uma mudança de
postura com relação ao filho levando-o para passear. Saindo somente os dois naquele
sábado, ela encurta o distanciamento que possa existir entre eles, almejando não cometer
o mesmo descuido do relacionamento com sua mãe. A frustração do marido é despertada
nessa ocasião, o que evidencia que ele seria um empecilho para essa aproximação e para
uma relação mais afetiva entre mãe e filho:

Mas ele os olhara da janela, vira-se andar depressa de mãos dadas com o filho,
e dissera-se: ela está tomando o momento de alegria – sozinha. Sentira-se
frustrado porque há muito não poderia viver senão com ela. E ela conseguia
tomar seus momentos – sozinha. Por exemplo, que fizera sua mulher entre o
trem e o apartamento? Não que a suspeitasse mas inquietava-se. (LISPECTOR,
1960, p.102)

À vista disso, podemos entender a escrita de Moscovich inserida no cenário da


contemporaneidade como uma espécie de equilíbrio entre ganhos e perdas mas que
principalmente se propõe a renovar o passado sem negá-lo, encontrando novos caminhos
que de fato enriqueçam sua produção. Acerca disso, Flávio Carneiro em seu livro “No

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país do presente” (2005) comenta sobre o romance de Silviano Santiago “Em Liberdade”
(1981), que resgata aspectos da obra de Graciliano Ramos e diz que o que acontece de
fato é uma suplementação do moderno pelo pós-moderno e não a negação dele:

Silviano coloca na ficção sua concepção teórica de que o pós-moderno não é a


negação mas a suplementação do moderno, entendendo por suplemento, via
conceituação de Derrida, algo que se acrescenta àquilo que já é um todo. Não
se trata, portanto, de levantar bandeiras contra adversários, estéticos ou
políticos, mas de reescrever o passado, buscando acrescentar-lhe o que pode
haver de novidade, de inovação, no âmbito do presente. (CARNEIRO, 2005,
p.26)

Voltando o olhar para o objeto dessa pesquisa, é possível trazer essas afirmações
para o que propomos no estudo. Cíntia Moscovich se compromete então a reescrever o
passado e, por meio dos contos de Clarice Lispector, desenvolve uma continuação que
enriquece os motivos abordados nos contos clariceanos.

Portanto, os contos de Cíntia Moscovich, inseridos em um cenário


contemporâneo, mostram além de uma inovação de percepções, um diálogo com os
contos de Clarice Lispector, e no caso de “Os laços e os nós, os brancos e os azuis” e “Os
Laços de Família” esse diálogo está ligado também a uma perspectiva da família
patriarcal, em que nos é apresentada uma relação de laços rígidos entre mãe e filha pelas
cobranças sociais acerca da figura da mulher. No conto de Moscovich a filha percebe que
sua mãe já envelhecida não tem mais a pujança de antes e, por isso, tem com ela uma
atitude solidária ao longo da narrativa, o que apenas acontece em um momento no conto
de Lispector. Catarina diz que sua mãe lhe doía. O que nos leva a pensar também sobre o
embate existente entre as gerações. Dona Anita, ao contrário de Raquel, tinha tempo de
cuidar da casa, filhos e do marido. Para Raquel, o casamento era ainda uma questão de
prioridade e orgulho.

As mãos envoltas de espuma, percebeu que as horas voavam, fora assim que
ela se tornara uma mulher sem tempo, a mãe a vida inteira sendo a única a ter
tempo para as coisas, mas para ela, a filha, o tempo não rendia, cuidava de casa
e marido sozinha, tanto por fazer sempre, e isso reprisada à mãe e às irmãs ao
telefone dentro de uma espécie de orgulho, quase uma vitória, não tendo tempo
para nada, mesmo que a mãe sequer precise que se cuide dela, e é por isso,
agora que o pai está morto, que ela tem que morar com as outras filhas , no
Rio, uma semana na casa de cada uma. (MOSCOVICH, 2004, p 130)

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Apesar desses embates ainda há uma certeza de reconciliação entre mãe e filha
quando dona Anita diz palavras de carinho à Raquel e assim se esquecem das dores
causadas no passado, enquanto que no conto de Clarice isso parece inviável já que
Severina vai embora sem que haja essa reaproximação. Outra observação acerca desses
aspectos é que embora Raquel viva de certa forma uma rotina, cuide da casa, do marido
e de suas roupas, ao final do conto percebemos uma sensação de plenitude, e não de
aprisionamento no casamento. Já em “Os laços de família” essa sensação de liberdade da
mulher, da esposa, dos laços estreitos e rígidos do matrimônio não fica clara, o que a
autora põe em dúvida quando Catarina sai ao final, o narrador não explica se a
personagem voltará e ficamos apenas com o pensamento do marido do que aconteceria
quando ela e o filho retornassem para casa.

Considerações finais

Depois de apontadas as relações intertextuais existentes entre os quatro contos


aqui analisados e entre as autoras escolhidas para a presente pesquisa, além dos estudos
acerca da literatura contemporânea alicerçadas por teóricos da área, é possível enxergar
particularidades da escrita de Cíntia Moscovich.

Há uma complementação das acepções tratadas no passado, na escrita da autora


de Arquitetura do arco-íris, de forma a acrescentar-lhe novidades pertinentes ao momento
em que está inserida. Percebemos dessa forma que os contos de Moscovich aqui
analisados apresentam a tendência de se aproximar ao que a literatura contemporânea
propõe, recuperando traços do cânone para avolumar e complementar os sentidos já
existentes.

A observação das relações entre os contos aqui propostos possibilitou um olhar


mais analítico voltado para as autoras, principalmente para Cíntia Moscovich e sua
escrita, a partir da leitura, análise e cotejo com a contística de Clarice Lispector. Os contos
“O telhado e o violinista” e “Os laços e os nós, os brancos e os azuis” abordam, por meio
de um trabalho estético refinado, questões judaicas, as relações familiares e os
pormenores observados na obra de Moscovich, o que a coloca em um patamar relevante
de escrita contemporânea.

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Dessa maneira, é possível além de enxergar semelhanças entre os contos das duas
escritoras, como a trajetória das personagens e a situação enfrentada por elas, também ver
esse diálogo de Moscovich com o passado como uma suplementação do que escreveu
Lispector, como uma ampliação que permite ressignifcar os sentidos que já existiam nos
contos da autora. Nesse sentido, Moscovich acrescenta à sua obra um novo olhar ao que
já foi feito, dando aos contos uma nova acepção.

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Digital de Estudos Judaicos da UFMG, Belo Horizonte, 2011

77
TEMPO E NARRATIVA EM CADERNO DE UM AUSENTE,
DE JOÃO ANZANELLO CARRASCOZA

Eduardo da Rocha Marcos (UPM)1

Resumo: Este trabalho tem como objetivo investigar a articulação entre o tempo e a narrativa
no romance Caderno de um Ausente, de João Anzanello Carrascoza. Na obra, prevalece o efeito
pendular do tempo, constituído por uma série de anacronias, que criam o efeito hipotético da
ausência. Com o subsídio teórico da teoria de Gerard Genette, este estudo estabelece ainda um
diálogo com a filosofia, a partir do conceito de tempo de Santo Agostinho. Busca entender a
articulação entre tempo e memória, já que este mesmo narrador cria as bases de um sentimento
transitivo, interiorizado, que, isolado na história, remete ao nível discursivo da ausência.

Palavras-chave: tempo; narrativa; memória

Introdução
Caderno de um Ausente, segundo romance do escritor paulista, João Anzanello
Carrascoza, foi lançado em 2014 numa edição publicada pela Editora Cosac-Naif. Em 2017, o
autor apresentou ao público a sua Trilogia do Adeus, editada pelo selo Alfaguara. Na nova
configuração, Caderno de um Ausente, primeiro romance da trilogia, ganhou a companhia de
mais dois volumes: Menina Escrevendo com Pai e A Pele da Terra.
A trilogia, de uma maneira geral, escrita em prosa poética, tem como temática o
relacionamento no núcleo familiar, as perdas, a memória, o desejo e o tempo como elementos de
destaque. Neste estudo, o enfoque é dado ao Caderno de um Ausente, sobretudo na questão
temporal e de como ela é construída pelo narrador.
Inicialmente, a temporalidade chama atenção porque é através dela que o narrador almeja
compartilhar suas experiências. Seu relato permite ao narrador-personagem retroceder no
tempo, em busca de sua herança familiar, da tradição, do passado vivido e aprendido, bem como
projetar no futuro aquilo que ele receia não poder experimentar e vivenciar. Portanto, a questão
temporal se torna proeminente num romance em que a memória e a expectativa estruturam a
narrativa.
O tempo
Caderno de um Ausente foi escrito na forma de um caderno e em tom memorial, e dá voz
a João, que na casa dos 50 anos, narra, em primeira pessoa, o nascimento de sua segunda filha,
Beatriz, fruto de seu segundo casamento. João já tem um filho, Mateus, do primeiro matrimônio
com Rosa.

1
Doutorando em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM-SP). Contato:
ed_marcos@terra.com.br

78
O formato caderno, por si só, revela uma comunicação assíncrona, em que, tudo o que é
dito, será lido num tempo posterior, pertencente ao futuro dela, Bia. É esse caderno que abrigará
as memórias do narrador, que serão presentificadas no enunciado, ora como positivas (como
uma doce recordação familiar), ora como um momento de dor, revivendo o drama de algum
ente.
A ideia do caderno materializa ainda uma outra função que é preencher a suposta
ausência do narrador, originada a partir de suas convicções e de sua visão de mundo. Na
perspectiva de João, o fato de ser um pai temporão colabora para diminuir a sua expectativa de
acompanhar o crescimento e desenvolvimento da filha. É a partir desse pensamento, quase que
obsessivo, que o narrador-personagem se dirige à Bia, com o intuito de deixar a ela uma herança
para um tempo em que ele estará ausente.

[...] eu farei parte, pra sempre, só do início de tua história; não há outro jeito,
mesmo com a maior das esperanças, de te ver crescer como vi o teu irmão e
continuarei a vê-lo até se tornar adulto [...] Mas tu, não. Vens com esta
marca, de minha ausência, a envolver inteiramente a tua vida.
(CARRASCOZA, 2017, p.10)

O ausente do título remete inicialmente à impossibilidade da presença do narrador num


tempo futuro, reafirmada logo no primeiro capítulo do romance.
A obsessão com a questão temporal, e mais especificamente, com o futuro, porém, já se
revela logo na primeira epígrafe da narrativa, quando o autor dialoga com a filosofia do tempo
engendrada por Santo Agostinho, em suas Confissões (2017, p.320): “De que modo ensinais as
coisas futuras, ó Senhor, para quem não há futuro?” (apud CARRASCOZA, 2017, p.7).
A citação, cuidadosamente pinçada da obra de Agostinho, converge com o problema
angustiante a ser resolvido pelo narrador, que é poder deixar um legado para a sua filha, e a
impossibilidade de testemunhar que Bia desfrute de seu espólio afetivo, materializado no
caderno.
A partir de Santo Agostinho, pode-se tomar contato com as questões filosóficas,
implícitas ao romance, e que servirão como leitmotiv para o desenvolvimento da narrativa. Ao
abordar a questão, Santo Agostinho divide o problema do tempo em duas categorias: o tempo da
eternidade, que é o tempo de Deus, e o tempo dos homens, que é a temporalidade.
O eterno é apontando como uma força superior, celestial, criadora e suprema: “O
presente, se fosse presente e não tornasse passado, não seria presente, e sim eternidade”
(AGOSTINHO, 2017, p.315).
A temporalidade é abordada na clássica indagação do filósofo: “O que é o tempo, então?
Se ninguém me perguntar, eu sei; mas, se quiser explicar a alguém que me pergunte, não sei.”
(AGOSTINHO, 2017, p.315).

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Por estar inserido na temporalidade, se torna impossível responder o que é o tempo e
como ele pode ser medido, uma vez que Santo Agostinho, em sua reflexão, se volta para o
tempo interior, psíquico, articulado pela memória, o tempo da alma, e não o tempo físico. Este,
medido em passado, presente e futuro, acaba sendo uma ilusão do sentido real da temporalidade.
Santo Agostinho expõe então a sua visão sobre a divisão do tempo:

Contudo, o que por ora é claro e límpido é que tanto o que é futuro quanto o
que é passado não é, e não se diz propriamente: os tempos são três, passado,
presente e futuro, mas talvez se devesse dizer propriamente: os tempos são
três, o presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro.
Esses três, de fato, estão na alma, de alguma maneira, e não os vejo em outro
lugar: a memória do presente do passado, a visão do presente do presente, a
expectativa do presente do futuro. (AGOSTINHO, 2017, p.320)

Essa concepção filosófica reafirma a importância da memória e da expectativa como


máximas dentro da problematização temporal, e estão presentes ao longo de Caderno de
Ausente, servindo como pontos de recorrência do narrador-personagem na construção da trama
e desenvolvimento da narrativa.
Por outro lado, na análise estrutural da narrativa, é possível também observar essa
dinâmica em que a oscilação entre passado, presente e futuro é uma constante. Esse
deslocamento foi denominado neste estudo como tempo pendular, pois permite ao narrador
alternar-se entre memórias, recordações e aconselhamentos. Essas marcas temporais estão
presentes desde o início da narrativa, como no exemplo a seguir:

Filha, acabas de nascer, mal eu te peguei no colo, e pronto, já chega, disse a


enfermeira, e te recolheu de mim, foi apenas pra gravarmos uma cena, agora
os pais assistem ao parto, e tudo é filmado, antes não havia nada disso, eu
nasci das mãos de uma parteira, já na época do teu irmão — um meio-irmão,
de quinze anos, é bom que logo saibas —, a moda era o registro fotográfico,
outro dia ele se viu numa foto comigo, logo que veio à luz, e sorriu, e, em
seguida, silenciou, e então eu imagino o que ele, como um rio rumo à foz, leu
nas águas daquele momento inicial, e, agora, eu também só concordei com a
filmagem pelo mesmo motivo, pra que te vejas, no futuro, junto a mim, eu te
recebendo nesta hora primeira, dando-te as boas-vindas, se assim se pode
dizer, vais descobrir por ti mesma que este é um mundo de expiação, embora
haja ocasionalmente umas alegrias, não há como negar — as verdadeiras vêm
travestidas, é preciso abrir os olhos dos teus olhos pra percebê-las.
(CARRASCOZA, 2017, p.9-10)

Ao adentrar no campo da análise temporal, segundo a teoria proposta por Gerárd Genette,
é importante que se faça uma explanação sobre a terminologia adotada pelo crítico francês, para
que se tenha um entendimento pleno da proposta aqui engendrada.
Genette, em Discurso da Narrativa, inicia sua metodologia fazendo a diferenciação entre
narração (o ato de narrar) e a narrativa (aquilo que é narrado). Aos conceitos de narração e

80
narrativa, acrescenta o de história, entendido como o significado da narrativa. As relações entre
narrativa e história, história e narração e narrativa e narração é que proporcionam a análise do
discurso narrativo, dentro da perspectiva genettiana.

Proponho, sem insistir nas razões aliás evidentes da escolha dos termos,
denominar-se história o significado ou conteúdo narrativo (ainda que esse
conteúdo se revele, na ocorrência, de fraca intensidade dramática ou teor
factual), narrativa propriamente dita o significante, enunciado, discurso ou
texto narrativo em si, e narração o ato narrativo produtor e, por extensão, o
conjunto da situação real ou fictícia na qual toma lugar. (GENETTE, 2017,
p.85)

Deve-se observar ainda a distinção entre o Tempo Narrativo, relativo à história (diegese),
e o Tempo Discursivo, sobre a narração. A partir dessas premissas, Genette estabelece as classes
fundamentais de determinação, onde encontramos:
1) a categoria do tempo (que remete às relações temporais entre narrativa e diegese). No
campo da análise temporal, a proposta de Genette estabelece como elementos de análise a
ordem, que se refere à sucessão dos acontecimentos na diegese, à duração dos acontecimentos
ou segmentos diegéticos, e à frequência, que explora a capacidade de repetição da história na
narrativa.
2) a categoria dos modos da narrativa (que remetem às modalidades da “representação”
narrativa, e a categoria da voz (que relaciona o sujeito da enunciação). Nela, os elementos de
análise estão relacionados à distância expressa no discurso e às funções do narrador.
3) e a categoria da instância narrativa (em que os elementos de análise são constituídos da
voz narrativa, dos tempos da narração e da perspectiva narrada).
Neste estudo, o recorte adotado para a análise limitou-se às categorias do tempo e da
instância narrativa, uma vez que o tempo é ditado pelo narrador, como afirma Paul Ricoeur: “A
especulação sobre o tempo é uma ruminação inconclusiva cuja única réplica é a atividade
narrativa” (RICOEUR, 2016, p.16).
Tendo ao fundo a teoria genettiana como apoio, iniciamos a análise pela categoria do
tempo da narração, que, nesta abordagem, ficou restrita à ordem e à duração. Para Christian
Metz, a narrativa é constituída de uma sequência duplamente temporal:

A narrativa é uma sequência duplamente temporal (...): há o tempo da coisa-


contada e o tempo da narrativa (o tempo do significado e o tempo do
significante). Essa dualidade é não somente o que torna possíveis todas as
distorções temporais que observamos de um modo geral nas narrativas (três
anos da vida do herói resumidas em uma ou duas frases de um romance, ou
em poucos planos de uma montagem “frequentativa” de cinema, etc) mas,
fundamentalmente, ela nos convida a constatar que uma das funções da
narrativa é monetizar um tempo num outro tempo. (METZ apud GENETTE,
2017, p.91)

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É a partir dessa definição que Genette (2017) se apropria para o estudo das narrativas,
pois, segundo ele, o estudo da ordem é a confrontação “da disposição dos acontecimentos ou
segmentos temporais no discurso narrativo com a ordem de sucessão desses mesmos
acontecimentos ou segmentos temporais na história” (GENETTE, 2017, p.93).
O teórico francês coloca como exemplo dessa confrontação entre história e narrativa a
variação temporal produtora das anacronias. Quando elas são coincidentes, tem-se então o
chamado grau zero, que é um tempo, nas palavras de Genette, “mais hipotético que real”.
As anacronias, portanto, são as diferentes formas entre a ordem da história e a ordem da
narrativa. Quando ocorre, por exemplo, uma retrospecção ou uma lembrança do passado, temos
então o acontecimento de uma analepse. Quando o movimento se dá em sentido oposto, ou seja,
uma antecipação de algum episódio, temos uma prolepse.
A proposta deste estudo parte do princípio que a narrativa de Caderno de um Ausente
está estruturada no movimento pendular do tempo, que quando oscila por entre as analepses,
predispõe a abordagem de lembranças e memórias, e as prolepses, que são as oportunidades em
que a narrativa antecipa conselhos e recomendações de João à filha. Em outros momentos ainda,
a narrativa é presentificada, uma vez que se trata de um texto destinado a um caderno, para ser
lido no futuro, mas que é escrito simultaneamente ao desenvolvimento de vários episódios no
tempo calêndrico de quase um ano.
Desta forma, retomamos o mesmo trecho inicial, agora com as marcas temporais para
observar a dinâmica do movimento na modalização adotada pelo autor:

Filha, acabas de nascer (1), mal eu te peguei (2) no colo, e pronto, já chega,
disse a enfermeira, e te recolheu (2) de mim, foi apenas pra gravarmos uma
cena, agora os pais assistem (1) ao parto, e tudo é (1) filmado, antes não
havia (2) nada disso, eu nasci (2) das mãos de uma parteira, já na época do
teu irmão — um meio-irmão, de quinze anos, é bom que logo saibas —, a
moda era (2) o registro fotográfico, outro dia ele se viu (2) numa foto
comigo, logo que veio à luz, e sorriu (2), e, em seguida, silenciou (2) , e então
eu imagino (1) o que ele, como um rio rumo à foz, leu (2) nas águas daquele
momento inicial, e, agora, eu também só concordei (2) com a filmagem pelo
mesmo motivo, pra que te vejas (3), no futuro, junto a mim, eu te recebendo
nesta hora primeira, dando-te as boas-vindas, se assim se pode dizer, vais
descobrir (3) por ti mesma que este é (1) um mundo de expiação, embora
haja (3) ocasionalmente umas alegrias, não há como negar — as verdadeiras
vêm (2) travestidas, é preciso abrir (1) os olhos dos teus olhos pra percebê-las
(1). (CARRASCOZA, 2017, p.9-10)

Na transcrição acima foram adicionados números para indicar o tempo predominante em


que a ação verbal ocorre, sendo o número (1) para as ações no presente, o número (2) para
acontecimentos no passado e o número (3) para os episódios que são projetados no futuro.

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Em “Filha, acabas de nascer” temos uma narrativa primeira que serve como marcador
temporal que irá determinar as anacronias que ocorrerão a partir deste ponto, como ocorre logo
na sequência, com “mal eu te peguei no colo”. Na sequência, o narrador utiliza um advérbio
“pronto”, acompanhado de “já chega”, para enfatizar a maneira abrupta com que a filha lhe é
retirada dos braços. Acrescenta ainda o “e te recolheu de mim”, para finalizar o momento inicial
de abertura do romance.
Este trecho, poderia, num olhar reducionista, ser encarado como uma simples sequência
de ações, mas na escritura de Carrascoza, revela-se muito mais profundo e complexo. Esta
primeira prolepse de tempo já revela um caráter metafórico da narrativa, em que a ação do
tempo é tão rápida como inesperada, uma representação, como o narrador mostrará na
continuidade da obra, do lado imponderável da vida e da existência humana, que se depara,
segundo a segundo, exposta aos seus dramas, às suas angústias e à incerteza com o futuro.
Na sequência, o narrador volta a presentificar o que é narrado numa comparação com a
época em que ele nasceu, e conduz a acareação com o nascimento do filho, mantendo ação no
passado, explicando como era o costume na época em que o filho nasceu, trazendo novamente a
comparação para o campo do presente no passado (ele se vendo grande ao lado do pai)
justificando tal atitude, dizendo, num novo tempo, agora futuro, que aquele registro será
guardado para a posteridade, quando a filha, no momento em que for crescida, poderá
contemplar o instante de sua gênese.
Num simples trecho, ponto inicial do romance, já se verifica uma presentificação da ação,
interrompida por memórias distantes, alocadas no passado e detalhadas (analepses), justificadas
e projetadas no futuro da pequena Beatriz (prolepse), que deve ser alertada sobre o mundo da
expiação (volta à narrativa primeira).
Este começo da narrativa é extremamente significativo pois já permite ao leitor ter uma
ideia de como a estruturação da narrativa se constrói, a partir das variações e oscilações
temporais. Tal estratégia se repete em vários momentos da narrativa.
No capítulo 5, por exemplo, verifica-se a ocorrência de outra anacronia:

Eu ia te ensinar como desviar das trilhas tortas que vão se colar na sola de
tuas sandálias, e como te manter em calmaria quando os ventos acusatórios te
açoitarem, eu ia te ensinar a fugir das circunstâncias que nos arrastam aos
abismos, ia te treinar a distinguir os diferentes verdes da paisagem, eu ia te
explicar por que a chuva lavra a pele do solo e revolve as profundezas, eu ia
te ensinar a aceitar as vicissitudes como aceitamos a curvatura dos planaltos,
o curso sinuoso dos rios, a consistência do ferro e a sua vocação pra ferrugem
[...] (CARRASCOZA, 2017, p.33)

83
Neste caso, pode-se observar um efeito distinto, em que a narrativa é estruturada na
formação do pretérito imperfeito, mas que apresenta o sentido do futuro do pretérito e indica
uma ação que deveria ocorrer no futuro, mas que é improvável que seja concretizada.
O verbo auxiliar ir, na estrutura “eu ia”, é encontrado ao longo de todo o capítulo. Trata-
se de uma analepse proléptica, em que, a volta ao passado cria um efeito de antecipação da
realidade. Logo, “Eu ia te ensinar”, “ia te treinar”, “ia te explicar” concretizam no texto a
ausência pressentida no início da narrativa, e se relacionam diretamente com o título do
romance “Caderno de um ausente”. A impossibilidade da presença de João no futuro de Bia é
materializada na linguagem, mais uma vez, com o arranjo temporal criado pela proposta
narrativa de Carrascoza.
Neste caso, a projeção tem um alcance indefinido, permeado pela linguagem metafórica,
lírica e atemporal, com uma amplitude também incerta, interrompida apenas com a volta ao
presente, o porto-seguro do narrador: “filha, eu só posso te garantir, agora que chegaste, a
certeza da despedida” (CARRASCOZA, 2017, p.37).
Duração
Além da ordem, que nos revela a estrutura temporal pendular, e que propicia, a partir de
suas anacronias, a imersão num encadeamento de recordações, lembranças, antecipações,
previsões e aconselhamentos, outra categoria analisada na elaboração do tempo na abordagem
genettiana é a duração narrativa.
A duração constitui-se do estudo das anisocronias, isto é, da análise da diferença entre o
tempo narrativo e o tempo histórico, ou entre o tempo da diegese e o tempo do discurso.
As anisocronias possuem relação direta com a velocidade atribuída à narrativa. São,
portanto, um processo de modificação do ritmo da narrativa, a partir de recursos denominados
resumos ou sumários, elipses, pausas e cenas.
Os sumários caracterizam-se pelas formas de resumo da história, de tal modo que o tempo
dela apareça reduzido, no discurso, a um lapso durativo. Implicam num distanciamento do
narrador, com o objetivo de desvalorização do que é narrado em relação ao narrador.
Dentre a função dos sumários, destacam-se a ligação entre episódios, a sinopse de
acontecimentos secundários e a rápida preparação para ações relevantes. Nos sumários,
portanto, o tempo da narrativa é menor que o tempo da história.
As elipses são um segmento nulo da narrativa e correspondem a toda forma de supressão
de lapsos temporais alargados. A forma mais comum são as elipses explícitas, que são
manifestadas no discurso (expressões como “dois anos depois”, “meses antes”).
As pausas dizem respeito à suspensão do tempo da história, em benefício do tempo o
discurso, interrompendo, ainda que momentaneamente, o desenvolvimento da história.

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Comumente, são utilizadas quando o narrador se entrega a reflexões ou descrições que, assim
que concluídas, desencadeiam uma ação narrada.
Finalmente, nas cenas temos a coincidência entre o tempo da narrativa e o tempo da
história. Nelas, a figura do narrador diminui ou desaparece. No texto, são expressas através dos
diálogos.
Em Caderno de um Ausente, a articulação entre a categoria da ordem, expressa pelas
anacronias, em conjunto com a duração, manifestada pelas formas do movimento narrativo
(sumário, cena, pausa e elipse) proporcionam condições perfeitas para a idealização de uma
narrativa que necessite de velocidades distintas quando se faz preciso a interrupção do ritmo em
prol do aprofundamento em episódios cruciais dentro da história.
Tomemos por exemplo o Capítulo 6, quando João, a partir de um relato, faz para a filha a
apresentação de sua família paterna. É a oportunidade em que o narrador, além da exposição
sobre nomes de antepassados que ela não conheceu, tecer comentários sobre os familiares. A
partir da ativação da memória, ele exibe para a filha os entes que ela não conheceu, destacando
a ocupação e atividade dos principais dele, dentre os quais destaca-se a pausa abaixo:

[...] o teu avô, era fácil perceber, gostava de decantar as palavras — ele quem
me ensinou que elas, as palavras, servem pra abrir e fechar; se bem
combinadas, estreitam latifúndios e alargam veredas —, o teu avô as
degustava como a um vinho, antes de pronunciá-las, ele as inundava com
saliva, quando não as besuntava de silêncio, e era por isso, certamente, igual
se azeita uma fechadura, que as palavras dele nos abriam sorrisos, nos abriam
os olhos, nos devassavam a memória de fora a fora, e era justamente por essa
habilidade, que, na via contrária, não raras vezes, as suas palavras nos
fechavam a boca, nos encarceravam no espanto, zipavam a nossa ingenuidade
[...] (CARRASCOZA, 2017, p.42-43)

Pouco antes deste trecho, o narrador se põe a falar do avô, num momento de digressão.
Relata que ele veio de Granada, fugindo do franquismo, foi agricultor, e pedreiro. Só então é
possível notar a importância da pausa para a narrativa e o momento digressivo, pois o narrador,
que fala de um tempo passado, traz ao leitor características essenciais para entendimento da voz
e dos interesses deste narrador-personagem. O avô, André, era um especialista com as palavras.
Foi ele quem o ensinou que “as palavras, servem pra abrir e fechar”. Esse mesmo avô fazia com
que as palavras abrissem sorrisos, ou fossem capaz de devassar a memória, ou ainda de fazer
“fechar a boca”.
Em uma outra digressão, uma das mais importantes do romance, o narrador conta a
história de um homem que se casou, teve um filho, se separou por causa de um novo amor, e viu
sua vida completamente modificada por esse episódio. Este homem errático passou a
experimentar “prazeres e pesares (sobretudo pesares)” sobre a vida, o que revela um certo

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arrependimento. Esse trecho, escrito em tom confessional, e com final epifânico, revela à filha,
na verdade, o passado dele, narrador:

e, pra que eu seja honesto até a medula, tu precisas saber que houve um que
encontrou uma boa mulher, filha de lavradores italianos, também imigrantes
que aportaram na mesma região onde teus bisavôs espanhóis cumpriram o
destino deles, e com quem ele teve um filho bom, nem gênio nem tolo (que
esses exigem um amor ilimitado e, por isso mesmo, doentio), apenas um
homem, dentro das medições normais e, sendo assim, pedindo só um amor
justo, um homem, ainda rapaz, pra quem talvez ele não seja um pai padrão,
embora o ame com todas as suas forças, este, é preciso dizer, traiu essa boa
mulher com uma jovem aluna que o levou primeiro ao paroxismo sexual e
depois ao remorso, e o fez virar as costas para a ordem familiar e o confinou
a tardes de encontros fortuitos em motéis, e nele despertou o talento,
certamente inato, à espera só do fósforo, pra espalhar longos rastilhos de
mentira, e a cometer tantos erros, mais do que todos até então cometidos em
sua vida inteira, e também a experimentar prazeres e pesares (sobretudo
pesares) desconhecidos, e em tal voltagem que, por vezes, pareceu lançá-lo a
uma existência superior, dotando-o de uma percepção que conduziu sua
consciência às alturas, e, assim, o fez perder a companhia diária do filho, que
antes havia sido alegre e divertida, pois ele teve de se mudar pra um pequeno
apartamento e viver apartado da lavoura que cultivara com tanto ardor no
início, julgando-a, pra sempre, o seu único esteio, e ruminar dias e noites de
solidão, descrente de que lhe seria oferecida uma prova de reparação, mas a
segunda chance veio sob a figura dessa mulher toda perdão, apta a um
entendimento além do que os fatos só parcialmente revelam, embora nem ela,
e nem qualquer outra pessoa, tenha conseguido retirar dele a cruz que lhe
segue pregada aos ombros, nem eliminar de suas pernas os vestígios de seus
passos erráticos, nem lavar de seus braços as recordações dos desejos que
entre eles foram saciados, e este, este, que um dia, talvez percebas se espraiar
inteiramente em teu espírito, solapando todos os outros aqui citados, que
desaparecem lá no fundo do espelho retrovisor, e te insuflando a cometer
algum desvario, este, Bia, este sou eu. (CARRASCOZA, 2017, p.96-98)

A forma como o enunciador capta a atenção do enunciatário é de extrema contundência,


pois é o ponto em que é revelado muito da personalidade do narrador, de sua história, de suas
angústias pessoais, de seu passado, de como ele chegou até ali e muito de sua visão de mundo.
O tempo da narrativa é suspenso para que o narrador conte sobre o seu passado,
deixando no enunciado as marcas de seus traumas e expectativas, que terão fundamental
magnitude para o entendimento do significado da ausência, que não é uma ausência apenas de
presença física ou narrativa.
Instância Narrativa
Abordadas as categorias relativas ao tempo da narração, é necessário se debruçar sobre a
instância narrativa, que nesta análise envolve os elementos da voz narrativa e da perspectiva
narrativa.
Desta forma, quanto à diegese, segundo a teoria de Genette em Discurso da Narrativa
(2017), temos um narrador autodiegético (comumente denominado pela crítica literária de

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narrador-personagem), que narra em primeira pessoa uma ação que ocorre em torno de si,
acumulando a categoria de personagem principal (protagonista). “O narrador da história relata
as suas próprias experiências como personagem central dessa história.” (REIS; LOPES, 2000, p.
118).
Esse narrador comumente aparece no texto com as características do monólogo interior,
quando a narração é simultânea, em que o sujeito da narração coincide com o sujeito do
enunciado.
Em Caderno de um Ausente, desde o início do romance é possível verificar as marcas de
um narrador em primeira pessoa, como por exemplo em:

Acabas de nascer e eu tenho de te explicar, como se já pudesses entender, e,


da mesma forma, estou dizendo a mim, que não vamos passar muito tempo
juntos, que deves te preparar pra viver mais longe de mim do que perto — eu
farei parte, pra sempre, só do início de tua história; (CARRASCOZA, 2017,
p.10)

O narrador, em primeira pessoa, fixa a história no presente e começa a preparar seu


interlocutor para os dilemas que o futuro da narrativa lhe propiciará num tempo que ainda não é
o seu. Indo além, o narrador já deixa manifestado na narrativa sua ausência, provocando, desde
o início do romance, um efeito de expectativa em relação a um fato que não é, mas que no
enunciado, ganha contornos e força para tornar-se realidade, gerando desde o princípio, uma
tensão narrativa, que é realçada pelo “Ausente” do título do romance.
Essa tensão é realçada no final do capítulo em: “eu te peço perdão, filha, por não ser o
anfitrião ideal, por te recepcionar com estas palavras rascantes, mas não há como esconder a
morte ante a estreia de uma vida” (CARRASCOZA, 2017, p.14). O narrador autodiegético,
aquele que tem a consciência do tempo, se desculpa, para logo em seguida reafirmar e ponderar
o sentido de sua antecipação discursiva.
Antecipação essa, que, se manifesta em vários momentos da obra, com o intuito seguro de
alertar Bia e acelerar, dada a presunção da falta de tempo, os caminhos, sinuosos e tortuosos que
estarão em sua trajetória.

A tua vida, filha, é um texto que há tempos começamos a escrever, mas,


daqui em diante, também te cabe pegar esta tinta e delinear o teu curso, tome
só cuidado com o que retiras do nada e trazes à superfície, é comum borrar ou
rasurar um trecho, mas é impossível apagá-lo. (CARRASCOZA, 2017, p.14)

O tom de advertência do narrador autodiegético também diz respeito a um


autoconhecimento adquirido num outro tempo, e que é presentificado como um conselho e
alerta para a vivência no futuro, assim como a impossibilidade do erro.

87
A Perspectiva Narrativa
Junto à voz, é possível analisarmos também a perspectiva narrada, que vai tratar da visão
do narrador diante da história. Conhecido também como ponto de vista (visão anglo-americana),
foco narrativo (enfoque brasileiro), foco de narração (C. Brooks e R.P Warren), visão (Pouillon
e Todorov), ângulo visual, ou perspectiva narrada, Genette (2017) a classificará como
‘focalização’.
Quanto à focalização da narrativa, em Caderno de Ausente, temos João como um
narrador de focalização externa (visão “de fora” para Pouillon), ou seja, aquele que narra apenas
aquilo que é observável. Portanto, na primeira obra da Trilogia temos, um narrador
autodiegético em que prevalece a focalização interna. Observemos o trecho a seguir:

Para que conheças o que é uma dor e, sobretudo, para que saibas desde já
que, em todos os teus dias, manifestas ou à espreita, as dores estarão lá, eu te
conto, Bia, que a gravidez de tua mãe foi de máximo risco, a partir do sexto
mês ela vivia em repouso, eu despertava sempre às seis, eu via a manhã
saindo, aos poucos, da membrana da noite, e ela, sem se mover, os olhos no
duplo escuro (das pálpebras e da penumbra), horas e horas no quarto fechado,
enquanto o sol envelhecia lá fora e, filtrado pelas frestas da janela, instaurava
uma era de paciência e resignação, até que eu retornava do trabalho e, de
novo, me deitava ao lado dela, exausto pelo longo expediente na
universidade, e lhe dava a mão, imaginando o que ela pensava de si e do
universo à medida que te fabricava, lentamente, Bia, e, às vezes, eu podia
sentir, na imobilidade dela, o mecanismo da vida funcionando naquele ventre
em relevo, parecia haver um perigo próximo, a todo momento — tão diversa
havia sido minha experiência com o teu irmão, ele, destemido, estufando a
barriga da mãe e esmagando com naturalidade tudo o que o impedia de
nascer [...] (CARRASCOZA, 2017, p.75-76)

O narrador personagem, protagonista, revela o seu ponto de vista sobre a narrativa. Ele
conta a história, com um enunciado repleto de subjetividade. A narrativa se revela
homodiegética, porque o narrador participa da diegese e relata para a filha os pormenores de
como foi a gestação da mãe, e, em seguida, faz uma comparação com o período pré-natal do
irmão. A mãe de Bia, no olhar de João, com “os olhos no duplo escuro (das pálpebras e da
penumbra), horas e horas no quarto fechado, enquanto o sol envelhecia lá fora e, filtrado pelas
frestas da janela, instaurava uma era de paciência e resignação”. Já na comparação com um
outro tempo, o tempo do irmão, João descreve o episódio do pré-nascimento de Mateus como
“ele, destemido, estufando a barriga da mãe e esmagando com naturalidade tudo o que o
impedia de nascer”. Apenas em um pequeno trecho temos a confrontação de duas visões do
narrador-protagonista. Além da focalização homodiegética, temos uma escrita, neste caso, não
tendendo para o monólogo interior, que é a característica principal desse tipo de texto, mas o
romance em tom epistolar, que também abarca essas características da narrativa. Nessa

88
modalidade de focalização, evidencia-se uma enorme distância também entre o eu narrador e o
eu narrado, em que a manifestação duplamente temporal, no caso das duas comparações,
realçam a questão cronológica.
Por fim, merece destaque ainda no quesito da focalização, o modo como o narrador
personagem apresenta na narração a epifania, pouco antes das últimas linhas do romance,
revelando o deslocamento da tensão criada entre narrador e narratário:

E o que tenho a te dizer, filha, é que, ao mirar cada coisa por duas vezes,
agora, no rol das pessoas, pras quais tu deves dedicar teu segundo olhar, há
mais uma, tão minha e tua conhecida, justo seria se fosse eu — que comecei
este caderno convicto de que não te veria crescer —, mas é a tua mãe, filha, é
a tua mãe que agora lá está. Se nós a perdemos, ela ganhou o silêncio do
mundo inteiro. Daqui em diante, nesta casa, e a caminhar na rota escaldante
da vida, seremos apenas tu, Beatriz, e eu. Tu e eu — e toda a ausência dela,
pra sempre, em nós. (CARRASCOZA, 2017, p.125-127)

No trecho, o narrador autodiegético realça a partir da ausência e do silêncio, a primeira


grande perda da Trilogia. Através da epifania, o autor, que construiu a narrativa centrando a
perda no autodiscurso do narrador, a desloca, ressignificando o romance e elevando ao mesmo
tempo o nível interpretativo e discursivo da história. Bia e João são agora preenchidos pela
metáfora da morte, transmutada pela ausência da mãe. Desta forma, o fim do romance ganha,
em poucas linhas, nova cor, tonalidade e sentido, criando um novo lastro para a construção de
uma outra narrativa, que se dará num novo tempo, o tempo da voz narrativa de Bia, com nova
focalização sobre a relação filha e pai, concretizada em Menina Escrevendo com Pai, segundo
romance da trilogia.

Referências
CARRASCOZA, João Anzanello. Trilogia do Adeus. São Paulo: Alfaguara, 2017.
__________________________ Caderno de um Ausente. São Paulo: Alfaguara, 2017
__________________________ Menina Escrevendo com Pai. São Paulo: Alfaguara, 2017.
__________________________ A Pele da Terra. São Paulo: Alfaguara, 2017.
GENETTE, Gérard. Figuras III. São Paulo: Estação Liberdade, 2017
REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ática,
1988.
RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Tomo I. Trad. Constança Marcondes, Campinas: Papirus,
2011.
SANTO AGOSTINHO. Confissões. Trad. Lorenzo Mammi. São Paulo: Companhia das Letras,
2017.

89
A POESIA COMO MÉTODO

Kaio Carmona (UFMG/IFMG) 1


RESUMO: o artigo busca demonstrar não só o constante interesse do poeta mineiro Affonso
Ávila pela forma e pelo explícito diálogo com a tradição, mas também analisar como a forma e
os procedimentos de construção se constituem como elementos potencializadores de sentidos na
compreensão dos textos do poeta, desde o seu primeiro livro, O açude e sonetos da descoberta,
até a última obra, Égloga da maçã, publicada no ano mesmo de sua morte, em 2012.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura Brasileira; Poesia Contemporânea; Affonso Ávila

Na cena literária brasileira, Affonso Ávila é uma dessas vozes merecedoras de


maior atenção por parte da crítica e dos estudos acadêmicos na contemporaneidade. Na
construção de sua literatura, o poeta, com um compromisso tenaz, soube atuar com rigor
na investigação crítica, sobretudo no estudo do Barroco; conseguiu participação
fundamental na vida pública e cultural do país; construiu uma obra poética singular e ao
mesmo tempo vária. À medida que cresce o interesse de diferentes pesquisadores sobre a
sua obra, mais o reconhecimento de seu trabalho e o alcance de seus escritos avultam no
meio crítico – de diferentes áreas – e seu nome figura como um dos mais importantes
intelectuais de boa parte do século XX e ainda do século XXI. Sua poesia apresenta um
recorte único, um trabalho intenso e transformador como um fazer crítico, uma constante
experimentação linguística, em uma exploração múltipla dos recursos visuais no diálogo
semiótico com a forma. Nesse sentido, o leitor de Affonso Ávila facilmente percebe um
poeta atento às transformações sociais, históricas e culturais, colocando a palavra poética
sempre em um primeiro plano de reflexão, como condição humana, como
questionamento, como apreensão das dinâmicas e tensionamentos de seu tempo,
problematizando o diálogo entre a tradição e a renovação, em constante consciência
crítica diante da criação artística.
Benedito Nunes atribui a Affonso Ávila o epíteto de “antitradicionalista”, detentor
de uma rebelde e saudável vontade de desviar os caminhos já conhecidos e repisados da
poesia brasileira e, ao promover essa empreitada, expressa um trabalho com a palavra
que, segundo o crítico, poderíamos chamar de “uma poética do despojamento”. (NUNES,
2008: 25). O poeta, desde cedo, revelou pendor para lidar com um espírito do passado,

1
Pós-Doutorando em Poéticas da Modernidade pela UFMG. Professor Visitante do IFMG, campus Santa
Luzia. Contato: kaiocarmona@hotmail.com

90
seja pela tomada tardia de um simbolismo em seus versos de O Açude, seja pela retomada
consciente do projeto modernista para o barroco mineiro, recuperado e ampliado em
muito por suas mãos. Mas junto a essa preocupação com o passado, há também a
atualização do presente, que reconfigura nova cena literária, nos moldes em que Borges
coloca a transformação de um cânone a partir do surgimento de certos autores.
Desde os primeiros textos, a poesia de Affonso Ávila traz a marca de um autor
consciente das particularidades encontradas em sua terra, bem como o diálogo com a
literatura nacional, talhados em constante esforço de transformação, reavaliação e
superação da própria forma poética. O subtítulo do livro de ensaios, O poeta e a
consciência crítica: uma linha de tradição, uma atitude de vanguarda, talvez defina de
certa forma toda uma trajetória de sua poesia, do primeiro até o seu último livro publicado,
égloga da maçã, em 2012.
Égloga da maçã realiza, a partir mesmo da indicação de seu título, uma
reconstrução de uma narrativa da história da maçã que se confunde com a história da
própria humanidade. Por meio de sua simbologia, a obra reconfigura a ideia de maçã que
a égloga sugere, recupera uma longa tradição, inserindo-a na contemporaneidade de modo
inventivo e vário. Como bem disse Aurora Bernardini, na quarta capa do livro, em uma
“composição musical leve e sonora, a visão da maçã percorre o tempo e chega, através
dos séculos, pela voz do poeta, ao nosso mundo, como bem-vinda eva doce ou astuta/
appassionata sábia fruta.” Ou como observa Rogério Barbosa, “Écloga da maçã atualiza
o gênero no século XXI, inserindo-o no espaço urbano e no contexto da dispersão do
sujeito em nossa pós-modernidade”. Se há a maçã primeva, fundadora de um pensamento
cristão, há também a maçã tecnológica, a maçã dos motéis, a maçã contemporânea, a
maçã identificada ao longo do tempo pela memória e pela poesia. Se em outros livros de
sua obra, e especialmente em A lógica do erro, de 2002, o leitor percebe que a memória,
mediada pela subjetividade poética, não marca apenas uma individualidade, mas um eu
que se expande, um “self-universo”, na expressão de Jacó Guinsburg, em Égloga da maçã
essa dimensão se amplia ainda mais e presentifica todo um mosaico da imagem/maçã
redimensionado pelo discurso poético. Configura-se aí uma vez mais a relação entre
memória individual e história coletiva na obra de Affonso Ávila, uma das forças já
apontada pela crítica na leitura de sua poesia.

91
Já no título é possível reconhecer o projeto calculado e executado do poeta. Écloga
é um poema ambientado na natureza, que apresenta na maioria das vezes, a forma de um
diálogo entre pastores ou o solilóquio de um só pastor, de tal modo que pode ser
representado como uma pequena peça de teatro. O termo "écloga" deriva do grego
eklogē (ἐκλογή), que em tradução significa "seleção, poesia escolhida", através do latim
ecloga. Há, porém, uma variação no termo no título da obra, Ávila grafa égloga, g no
lugar de c. Esses termos são formas divergentes - formas distintas com mesma origem
etimológica. Desde aí há um interesse declarado pela tradição e pela forma, mas se a
écloga, ou égloga, é um diálogo entre pastores, o poeta coloca em uma só voz o eco de
todos outros pastores e dá ao leitor mais uma vez a oportunidade de lidar com uma
condição coletiva, um gesto plural.
Passando do título a epígrafe de Clarice Lispector escolhida em A Maçã no
Escuro, “Como se agora, estendendo a mão no escuro e pegando uma maçã, ele
reconhecesse nos dedos tão desajeitados pelo amor uma maçã”, Ávila também reconhece
pela maçã o amor, não apenas tateando, mas conduzindo pela mão o leitor em um caminho
lírico pela história da maçã/amor e, consequentemente, daquilo que é significativo e
representativo do humano na própria construção da humanidade. Os primeiros versos já
sintetizam tanto o procedimento quanto o caminho tomado pelo livro: a maçã recupera
no presente o mito bíblico, em adão e eva. O gesto é inaugurador, o verbo infinitivo,
comer a maçã se revela como destino, como sina, como percurso único e essencial da
humanidade. Ao transpor o oceano Atlântico, os versos recuperam a travessia do
pensamento cristão ao lado de uma tradição da poesia europeia ocidental e a narrativa
caminha na transformação do tempo e do espaço. Esse destino é inaugurado em novas
terras e ainda na viagem recupera imagens de toda uma construção literária da tradição
no ocidente (e após o vogar de eva atlântica/ corpo sereia em canto e trama). As imagens
se misturam a outras referências: a sereia de um tempo mítico, o mar de pendor lusitano,
todos como pontos de contato construídos e reconfigurados pela poesia, talhados em uma
longa tradição e agora potencializados na voz de Affonso Ávila. Misturando essas
imagens, o poeta amplia as referências sobre as quais se afirma. A “eva atlântica” em seu
“corpo sereia” inicia a trajetória que se dá tanto no passado quanto no presente, em “canto
e trama” traçados por uma escrita já conhecida e que se vê anunciada e revestida agora

92
de nova trama, nova roupagem no tecido do texto, nos versos que Affonso Ávila irá
construir ao longo de sua obra, nessa “voga de eva atlântica”.
A obra se assenta, barrocamente, entre opostos que constroem novos sentidos de
maneira a caminhar o texto e ao mesmo tempo que dá ao leitor metáfora única, motivo de
deleite e análise, desdobramentos dos desdobramentos. (mar e rio, doce e sal, mal e bem)
e aponta ainda para o próprio texto na consciente prática da metalinguagem, que se coloca
– a partir dos textos poéticos – ao leitor como algo inusitado e reflexivo, instigando-o a
desvendar os seus versos, ou como Roland Barthes nos coloca, a metalinguagem que é a
“retenção do espetáculo” (BARTHES, 1978, p. 38). Nesse sentido,

De um lado o poema começa a tomar como seu objeto a própria poesia;


o ato de poetar, a crise ou a possibilidade mesma do poema, tal como
se o poeta estivesse assumindo em seu ofício o dilema hegeliano e
marxiano, perguntando-se sobre a morte ou o devir da poesia; trata-se
de uma poesia que tematiza a poiesis até no seu sentido etimológico
[...]. De outro lado, a linguagem da poesia vai ganhando cada vez mais
em especificidade, vai-se emancipando cada vez mais da estrutura
discursiva da linguagem referencial, vai eliminando os nexos, vai
cortando os elementos redundantes, vai-se concentrando e reduzindo ao
extremo [...]. (CAMPOS, 1997, 255).

Parece-nos sintomática a insistência desse tema em momento específico da poesia


brasileira. Momento esse em que as soluções poéticas não estão mais atreladas de maneira
normativa a escolas literárias ou estilo de criação. Parece mesmo que a singularidade de
cada escrita tenha tomado um primeiro plano e daí a busca consciente de uma definição
de estilo próprio de cada autor, por meio da reflexão metalinguística. Essa singularidade
da palavra poética faz parte do que Alfredo Bosi chama de “relação entre palavra e
realidade vital” (BOSI, 2000, p. 132) e que pertence aos elementos comuns a grandes
textos poéticos. Nas palavras desse autor:

A linguagem da poesia é mais singularizada que a da não-poesia. A


existência, enquanto ainda não repartida e limitada pela divisão do
trabalho mental (que produz o código das ideias abstratas), apresenta-
se na sua variadíssima concreção de aspectos, formas, sons, cores. A
palavra poética recebe uma espécie de efeito mágico do seu convívio
estreito com o modo singular, pré-categorial, de ser de qualquer um
desses aspectos. (BOSI, 2000, p. 132)

93
Além da consciência do próprio fazer poético por meio da metalinguagem, a
égloga de Affonso Ávila também apresenta a visão da maçã ao longo dos tempos
assentada em um evidente pendor erótico, tema amplamente trabalhado na obra do autor
e que levou Antônio Sérgio Bueno a dizer que Affonso Ávila apresenta em seu projeto
poético um “crescente atrevimento no tratamento da questão do erotismo. Em Égloga da
maçã isso se dá de maneira intensa e frequente e lembra a conhecida e necessária
passagem de Octavio Paz sobre o tema:
A relação entre erotismo e poesia é tal que se pode dizer, sem
afetação, que o primeiro é uma poética corporal e a segunda uma
erótica verbal. Ambos são feitos de uma oposição complementar. A
linguagem – som que emite sentido, traço material que denota ideias
corpóreas – é capaz de dar nome ao mais fugaz e evanescente: a
sensação; por sua vez, o erotismo não é mera sexualidade animal –
é cerimônia, representação. O erotismo é sexualidade transfigurada:
metáfora. A imaginação é o agente que move o ato erótico e o
poético. É a potência, que transfigura o sexo em cerimônia e rito e a
linguagem em ritmo e metáfora. A imagem poética é abraço de
realidades opostas e a rima é cópula de sons; a poesia erotiza a
linguagem e o mundo porque ela própria, em seu modo de operação,
já é erotismo. E da mesma forma o erotismo é uma metáfora da
sexualidade animal. O que diz essa metáfora? Como todas as
metáforas, designa algo que está além da realidade que lhe dá
origem, algo novo e distinto dos termos que a compõem (PAZ,
1994;12)

De fato, no livro de Affonso Ávila, o erotismo se mostra em sua operação pulsante,


tal como diz Octavio Paz, realiza metaforicamente o jogo próprio do erotismo que se dá
entre o que se mostra e o que se esconde, entre o explícito e a sugestão. Como a imagem
da maçã, brilhante e rubra por fora, convidativa à fome, à mordida, mas que também se
recusa, pela dureza da casca; pela dúvida que se coloca entre o macio e doce e o amargo
e áspero de seu corpo. No livro, a maçã – ou a maçã/amor –, é aos poucos desvelada,
desvendada, observada de um lado e de outro, por dentro e por fora, na sua vida biológica
e simbólica. Aos poucos, se retira a casca da maça, como as poucos se retira os véus da
amada, para descobrir o sabor do cio, mas não de forma crua e direta, mas à maneira do
próprio ser do erotismo que se mostra, mas também esconde, se revela por aquilo que não
é, ou o desejo de ser. A oposição complementar de que fala Paz, participante da
construção desse erotismo, também se deixa ver nos versos de Affonso Ávila, em
praticamente todos os textos de Égloga da maçã, em a oposição se estabelece não para
sobrepor uma e outra imagem, mas como fazer dialético da história da maçã e do amor.

94
Os versos se assentam em pares opostos, mas que longe de se anularem criam em
movimento novos símbolos e sentidos para o texto
comer a maçã é sina adâmica
e após o vogar de eva atlântica
corpo sereia em canto e trama
luzir de olhar prístina chama
peixe e fulgir em surto de água
reversa ao mar rio em deságua
onde confluem doce e sal
a escuma cor de bem e mal
o gosto nácar da procura
do que é de sol mangue e cesura

A arquitetura do livro é exata: cada página contém uma décima, estrofe de 10


versos, todos octossílabos, mesmo que em alguns versos encontramos nove sílabas ou
redondilha maior, de sete sílabas, com um esquema rímico emparelhado, sem pontuação,
o que contribui para o fluxo contínuo, encadeado, dos versos. São 40 décimas, ou quarenta
peças de um longo poema, estrofes de um longo poema de 400 versos.
Aliada às questões que refletem um interesse crítico do poeta com os projetos
políticos e sociais de seu tempo, a poesia de Affonso Ávila sempre demonstrou uma forte
propensão para o jogo, a dimensão lúdica do texto, operando níveis semânticos de uma
abstração extremamente elaborada, em constante reavaliação de seus procedimentos
poéticos. Nesse sentido, o trabalho consciente com a forma que potencializa sentidos na
leitura de seus poemas é fundamental para a compreensão de um percurso na obra do
poeta mineiro. Esse interesse e pesquisa estética sobre a forma é anunciado por Cláudio
Nunes de Morais:

(...) Affonso Ávila explorava a forma, preocupava-se com a forma,


trabalhava a forma, pois, como já afirmamos, ele gostava da forma,
ele valorizava a forma, sempre, sempre valorizou a forma nas suas
construções poéticas – desde a escolha do vocabulário (nada
sobrando, nada faltando no poema), e passando por outros detalhes,
até a escolha da própria forma do texto (MORAIS, 2013, p.17)

O interesse estético pelas formas da tradição, renovando-as e transformando-as, a


ressemantização da palavra poética por meio da construção e ampliação de sentidos da
forma é percebido em toda a obra de Affonso Ávila, em diferentes perspectivas de
experimentação e se manifesta também em Égloga da maçã.

95
e vinde vede a casca rubra
recamando o alvéolo a que cubra
de sabor degustante a cio
alfa de gozo ou precipício
a uma trasmontante demanda
de apetite e escapante vianda
que foge fugaz ao algo assédio
e refuga o dente ou intermédio
enquanto não madura a tez
e do agora assezonou a vez

O trabalho com a métrica, com a rima, não só atribui ao texto melodia e sonoridade, como
também lança o leitor a um jogo de palavras e repetições de sons criando uma atmosfera
sedutora, convidando ao prosseguimento da obra que exibe nos demais textos o
procedimento recorrentemente. O exercício de recuperação e renovação das formas
clássicas inseridas em uma nova linguagem, ou linguagens, permite observar uma poesia
atenta a um percurso próprio construído na literatura brasileira, mas que, longe de ser
passadista, imprime ao texto a reflexão sobre o seu tempo e espaço, considerando a forma
como elemento sintetizador de imagens e construções poéticas que constroem o seu
próprio mundo, tal como se observa no poema transcrito:

e deglutido o sumo leve


derrotada a ternura breve
impostada de voz de orgasmo
ácido de eflúvio e de pasmo
descartar os grãos ao delírio
ao ai ai rumor de cacto e lírio
e deixá-los brotar semeados
ao acaso do campo e dos fados
indecifrável imagem mítica
genes barro de insídia ofídica
(ÁVILA, 2012, p. 13)

Até seu último livro de poemas, Égloga da maçã, publicado no ano de sua morte,
Affonso Ávila permanece fiel a uma ideia de poesia como fazer crítico, que pressupõe o
embate do poeta frente à linguagem, uma relação tensa com aquilo que constitui a
referência imediata para o artista: a memória, as artes, e com a sociedade de seu tempo.

96
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGUIAR, Melânia Silva de. Fortuna crítica de Affonso Ávila. Belo Horizonte: Secretaria
de Estado de Cultura de Minas Gerais e Arquivo Público Mineiro, 2006.

ÁVILA, Affonso. Égloga da maçã. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2012.

______. Homem ao termo: poesia reunida (1949-2005). Belo Horizonte: Editora UFMG,
2008.

______. Depoimento. In: BUENO, Antônio Sérgio (Org.) Affonso Ávila. Belo Horizonte:
Centro de Estudos Literários/UFMG, 1993. p.17-50.

______. O lúdico e as projeções do mundo barroco. 2.ed. São Paulo: Perspectiva, 1980.

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

BUENO, Antônio Sérgio. Affonso Ávila. Belo Horizonte: Centro de Estudos


Literários/UFMG, 1993.

______. Affonso Ávila e a geração de Tendência. Scripta. Belo Horizonte: PUC Minas,
v.1, n. 1.p. 53-59, jan.1997.

CAMPOS, Haroldo de. Poesia e modernidade: da morte do verso à constelação; O poema


pós-utópico. In: ______. O arco-íris branco. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

MORAIS, Cláudio Nunes de. “A forma na poesia de Affonso Ávila”. In: SCRIPTA, Belo
Horizonte, v. 17, n. 33, p. 215-222, 2º sem. 2013

97
PAZ, Octavio. A dupla chama: amor e erotismo. Tradução de Wladir Dupont. 5 ed. São
Paulo: Siciliano, 1994.

SILVA, Rogério Barbosa. O signo da invenção na poesia concreta e noutras poéticas


experimentais: uma análise da poesia brasileira e portuguesa dos anos 1950-2000. 2005.
304 f. Tese (Doutorado em Estudos Literários) – Faculdade de Letras, Universidade
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2005.

98
LITERATURA PERIFÉRICA: POR UMA OUTRA REPRESENTAÇÃO DAS
MARGENS

Mercia de Lima Amorim (UNEB)1

Resumo: Este trabalho reflete sobre periferia’s enquanto espaços de lutas e de resistencias e a
cena cultural da produção literária periférica brasileira, a fim de descrevê-la e compreender suas
intencionalidades e objetivos, bem como investigar como os movimentos periféricos se
consolidam e se inserem na Literatura Brasileira Contemporânea. Para isso, o percurso
metodológico escolhido foi a pesquisa bibliográfica, por ter se baseado em registros disponíveis,
decorrente de pesquisas anteriores em torno do tema estudado. Desta maneira, esta investigação
apoia-se no referencial teórico sustentado por, Dalcastagné (2012), Durham (1986), Nascimento
(2009), Hollanda (2013, 2015), Reys (2013), entre outros.
Palavras-chave: Representação. Espaço Periférico. Literatura Periférica.

Periferia: Fina flor da malandragem de um povo lindo e inteligente


O termo “periferia” origina-se do latim peripheriae. Enquanto espaço geográfico
refere-se àquilo que está ao redor de uma determinada localização central. Nota-se,
então, que periferia, desde seu conceito denotativo, força-nos a pensar em algo que está
“à margem”, fora do centro.
E de fato está. De maneira estereotipada ou não, o termo “marginalidade”, tanto
social quanto cultural, relaciona-se aos espaços periféricos, porque estes, geralmente,
são lugares marcados pela carência e/ou ausência de bens materiais e culturais. Há certa
homogeneidade no sentido de que todas as periferias se aproximam, já que, nestes
espaços, é comum a presença de irregularidades, como a falta de saneamento básico, as
ruas “sem calçamento nem iluminação, desprovidos de redes de esgoto, sem escolas e
postos de saúde, com transporte difícil e caro” (DHURAM, 1986, p. 2).
Atualmente, porém, essas semelhanças não são tão definitivas quando se fala nas
periferias brasileiras, pois já se pode notar uma melhoria dos equipamentos estruturais
necessários, como a existência de sistema de esgotamento sanitário, calçamento de ruas,
moradia, serviços de educação e saúde em alguns bairros, além de muitas
especificidades culturais e históricas. Contribui para essas mudanças, as mobilizações
de alguns escritores periféricos, que nasceram e vivem nas periferias e escrevem em
seus textos o que vivenciam.

1
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens – PPGEL/UNEB, Campus I. E-
mail: merciaamorim.92@gmail.com. Esta pesquisa é incentivada pela CAPES e é orientada pela
professora Dra. Luciana Sacramento Moreno Gonçalves – UNEB.

99
Entretanto, isso não significa dizer que estão supridas todas às necessidades deste
espaço e de seus sujeitos. Embora a noção de periferia esteja sendo reavaliada por
alguns estudiosos e pela própria sociedade, a visão mais comum que se tem deste
espaço ainda é sinônimo de:

[...] espaço da carência, que reúne a população marginalizada social e


culturalmente, e faz emergir produtos culturais como a música rap e a
literatura marginal-periférica; que organiza a produção literária e a atuação
dos escritores, e valida a construção de suas imagens associadas ao adjetivo
marginal [...] diferente do "centro" que é um espaço de moradia das classes
médias e altas, de melhores condições de vida e de concentração das práticas
culturais “cultas” e “legitimadas”. (NASCIMENTO, 2006, p.76)

O espaço periférico é onde também se concentra a população que compõem a


classe trabalhadora que faz as cidades funcionarem e são ao mesmo tempo os lugares
onde vivem os excluídos, os marginalizados, aqueles considerados “de baixo” de uma
sociedade tão desigual e injusta. Lugar onde a violência física e simbólica é vista com
frequência, fazendo parte dos dias destes. Entretanto, é também um espaço onde flui a
solidariedade para com o próximo, a criatividade na tentativa de suprir as necessidades
estruturais e culturais enfrentadas, a esperança por um amanhã melhor. E com o
objetivo de alcançar esse amanhã, a resistência e a rebeldia são as melhores formas de
lutar em seu favorecimento. Alejandro Reyes sintetiza esta reflexão quando nos
acrescenta dizendo que:

As perifas se estendem em espaços a perder de vista em volta das cidades,


caótico emaranhado de casas barracos malocas com ruas becos vielas
malcheirosas que abrigam os sonhos e a correria das crianças, na teimosia de
empinar pipa, fazer traquinagens, brincar de esconde-esconde com as balas
perdidas e, às vezes, segurar arma na fantasia de ser. Lá, a violência é coisa
de todos os dias, como a morte, a humilhação, os desastres, as enchentes, a
frustação, a miséria, a fome, na cotidiana labuta, na luta de cotidiano existir.
Mas é também espaço da camaradagem solidária... da conversa parceira na
troca de anseios compartilhados, território tecido com a multiplicidade de
histórias de vida dureza firmeza de criatividade e perseverança. E espaço,
também, de luta, resistência, consciência, rebeldia, organização, esperança.
(REYES, 2013, p. 14)

Foi e é deste espaço social e político que surgiu no fim do século passado e cada
vez mais está brotando das calçadas periféricas, em sua maioria “malcheirosa”, como
diz Reys (2013), um movimento literário identificado por alguns escritores de literatura
marginal, periférica, entre outras expressões. Tal cena literária nos faz refletir sobre os
aspectos da realidade social, ligados à carência e marginalidade, às vivências, com

100
condições precárias, da maioria dos habitantes de periferias, devido a problemas de
infraestrutura, dificuldade de acesso à escolarização, ao mercado de trabalho e ao
consumo de bens culturais e materiais.

Literatura periférica: Produto de resistência e representação


O cenário contemporâneo da produção cultural e literária das periferias brasileiras
é movimentado pela articulação de artistas e escritores periféricos, como é o caso de
Sérgio Vaz, Ferréz, Marcelino Freire, Sacolinha, Fágio Mandingo e vários outros. Estes
intencionam fomentar espaços de exposição e visibilização das vozes periféricas –
vozes essas que foram silenciadas durante todo o processo histórico – bem como da
ascensão dos sujeitos da periferia e, consequentemente, de tais espaços, tendo como
resultado a ressignificação e a criação de uma perspectiva positiva desses espaços.
A partir do momento que temos consciência da literatura enquanto representação
– espaço onde interesses e perspectivas sociais interagem e se entrechocam, não
podemos deixar de questionar quem afinal é esse “outro” e que posição na sociedade lhe
é reservada. É devido a esses questionamentos que os estudos literários em específico os
brasileiros estão se preocupando com os problemas ligados ao acesso a voz e as
representações dos múltiplos grupos sociais, grupos estes marginalizados, que de acordo
com Melissa Williams (1998, apud, DALCASTAGNÈ, 2012, p.17) “são todos aqueles
que vivenciam uma identidade coletiva, que recebem valoração negativa da cultura
dominante –, que sejam definidos por sexo, etnia, cor, orientação sexual, posição nas
relações de produção, condição física ou outro critério”.
O termo representação sempre foi um conceito crucial dos estudos literários, mas
agora é visto com mais amplitude. De acordo com Hanna Pitkin (1967, apud
DALCASTAGNÈ, 2012, p. 17) “representação é uma palavra que participa de vários
contextos – literatura, artes visuais, artes cênicas, política, direito – e sofre um processo
permanente de contaminação de sentido”. Porém, o que está em questão não é mais
apenas o fato de que a literatura fornece determinadas representações da realidade, mas
que essas representações não são tratadas com a mesma relevância, assim dentro das
perspectivas de um contexto social.
Dalcastagné (2012) afirma que olhando pelo âmbito da narrativa brasileira
contemporânea é marcante a ausência de representantes legitimados das classes
populares. É possível descrever essa literatura como sendo a classe média que visa à

101
classe média. Entretanto, vale enfatizar que não se quer aqui desprivilegiar a literatura
voltada a este público, mas, ressaltar que há outro lado. É importante lembrar que
infelizmente “as classes populares possuem menor acesso a todas as esferas de produção
discursiva: estão sub-representadas no parlamento (e na política como um todo), na
mídia, no ambiente acadêmico” (DALCASTAGNÉ, 2012, p. 18), e não apenas na esfera
literária. É válido frisar que isto não é apenas mais uma coincidência e sim índices de
suas condições subalternas.
Devido a essa ausência perde-se a diversidade, a multiplicidade, a pluralidade das
perspectivas sociais atreladas às esferas literárias. De acordo com Iris Marion Young
(2006, p. 162) a “perspectiva social”, reflete no fato de que “pessoas diferentemente
posicionadas [na sociedade] têm diferentes experiências, histórias e compreensões
sociais, derivados daquele posicionamento”. Assim, pessoas diferentes vão se expressar
de formas distintas no mundo. E, mesmo que existam pessoas sensibilizadas a
representarem as diversidades, estas pessoas nunca viverão as mesmas experiências de
vida, pois estarão olhando apenas com um olhar do outro, um olhar de fora, enxergarão
dessa forma, com um olhar diferente, às vezes preconceituoso, distante da realidade do
outro.
Contudo, mesmo em uma sociedade desigual, numa tentativa de democratização,
ainda é possível pensar em uma solução. A literatura é uma grande contribuinte disso,
porém, precisa dar legitimidade e autoridade aos escritores de grupos minoritários que
estão surgindo na contemporaneidade. Isso se dá, por exemplo, quando lemos estas
narrativas como textos literários e não apenas testemunhais ou sociológicos, por mais
que estas escrituras estejam distante da considerada literatura erudita, realizada por
escritores elitistas “intelectuais”. Até porque, do “ponto de vista literário, ela oferece
novos desafios no contexto da história da literatura brasileira: pelo conteúdo, pela
forma, pela linguagem e, sobretudo, pelo lugar da enunciação” (REYS, 2013, p. 15).
Caso contrário, o que acontece é simplesmente uma representação do outro sem
legitimidade. E levando em consideração que a existência desse outro está sujeita à
vontade de um observador, sem a qual não chegaria até nós, este por sua vez, “não
existe senão em função das nossas preocupações, dos nossos fantasmas” (MOURALIS,
1982, p.110).
Vale salientar que a questão que envolve a representação com legitimidade e
autoridade não diz respeito ao que se refere apenas ao “olhar de dentro” de quem fala,

102
mas também às variadas percepções que há no mundo, percepções estas que precisam
dar acessibilidade à voz. Infelizmente esta necessidade não é suprida por aqueles que,
ainda que cheios de boa vontade, falam mesmo com um “olhar de fora” pelo outro. A
representação mais adequada nesse caso seria aquela que progressivamente interpreta de
maneira mais correta os diferentes grupos sociais que compõem o corpo de cidadãos.
Aos poucos esta representatividade literária está acontecendo graças a alguns
novos escritores periféricos, marginalizados que surgiram e cada vez mais está surgindo
na contemporaneidade, estes seriam os autores de dentro, que escrevem de acordo com
suas vivências não tendo apenas um olhar observador, de quem está de fora da
realidade. Para Hollanda essa nova cultura da periferia que acontece na virada do século
XX para o XXI, impõe-se,

[...] como um dos movimentos culturais de ponta no país, como feição


própria, uma indisfarçável dicção proativa e, claro, projeto de transformação
social. Esses são apenas alguns dos traços inovadores nas práticas que
atualmente se desdobram no panorama da cultura popular brasileira, uma das
vertentes mais fortes de nossa tradição cultural. (HOLLANDA, 2009, p. 04)

Este fenômeno das produções literárias periféricas, estão se alastrando pelo Brasil.
A “palavra” surge em altíssimo e bom som,“a palavra não apenas como expressão ou
comunicação, mas também a palavra como recurso. Recurso educativo, recurso
econômico, recurso de inclusão cultural e social” (HOLLANDA, 2015, p. 3). Isso é
muito gratificante e significativo, pois é através das produções literárias e artísticas
produzidas pelos periféricos que os mesmos não são mais vistos como vítimas passivas
diante da violência tanto física quanto simbólica. “Trata-se de uma literatura que não
propõe só um novo escritor, mas também um novo leitor. De um poeta que sai do casulo
e se alia à sua comunidade, seu município e ao seu país. Um artista-cidadão”
(HOLLANDA, 2015, p. 3).
Reys (2013) qualifica este fenômeno da literatura periférica como insólito,
original, seguramente pelo fato desta movimentação partir de um espaço
tradicionalmente excêntrico quando se trata de produção cultural e escrita literária.
Além disso, acrescenta ainda que esta literatura é também combativa, rebelde e criativa
podendo esta leva literária ser definida como:

[...] uma literatura de autorrepresentação, com uma dimensão política e social


importante – a enunciação de realidades invisibilizadas, feita por setores
sociais que historicamente têm tido um acesso mínimo à palavra escrita, em
um contexto no qual a língua, sobretudo escrita, tem servido como

103
mecanismo de dominação desde os tempos coloniais. São obras que se
colocam intencionalmente fora do cânone literário: pela temática, pelo lugar
de onde se fala desta temática, pela utilização de uma linguagem híbrida
carregada da oralidade popular, pelos meios de produção e distribuição, que
muitas vezes consistem em publicações artesanais e/ou independentes e
venda de mão em mão nas ruas, bares e saraus, assim como a veiculação por
meio de blogs e páginas da internet. (REYS, 2013, p.14 e 15)

Se pararmos para pensar nas temáticas que esses autores trazem em suas obras,
veremos que não é algo de um todo desconhecido, pois autores que não fazem parte
dessa produção específica, já haviam falado sobre alguns dos temas retratados na
contemporaneidade. Em suma, a diferença se dá pelo fato de que, nas obras em que os
escritores não são periféricos, a exemplo de Fernando Bonassi e Rubens Fonseca, as
personagens marginalizadas – como negro, mulher, pobre etc. – não têm voz e não são
representadas de forma igual as outras personagens de característiscas diferenciadas.
Estas só eram vistas como empregados subalternos e marginais, no sentido jurídico da
palavra, ou seja, como bandidos.
Já nas produções literárias periféricas, escritas por autores moradores de
periferias, as personagens ganham ascensão, voz. É agregada no texto a voz de quem
vivencia tal realidade e não apenas de a quem observa de fora ou apenas ouve falar.
“Olhar com um olhar de dentro” é de extrema importância para o entendimento das
produções literárias periféricas. Ainda na tentativa de compreendermos esta criação
literária a percepção e definição do escritor periférico Sérgo Vaz transfigura-se precisa e
decisiva, já que ao nos advertir que a literatura grega é feita pelos gregos, deixa-nos
claro e evidente que a literatura periférica é aquela realizada pelos sujeitos periféricos.
O poeta afirma:

Aliás, o que é literatura periférca? Me pergunta um jovem. O que é literatura


grega? Respondo com outra pergunta. Ora, feito pelos gregos. Sapecando a
resposta. Então, literatura periférica é feita por pessoas que moram na
periferia, simples assim. Ah, então quer dizer que se eu tivesse nascido num
bairro nobre não poderia escrever literatura periférica?... Poder pode... Só que
não vai ficar bom. (VAZ, 2013)

O poeta da periferia, Sérgio Vaz, vê a literatura como via de acesso ao


empoderamento do sujeito periférico pela linguagem e, ao consequente acesso aos
direitos e bens materiais e/ou culturais. Sinaliza também uma esperança, um caminho
rumo a um futuro melhor para os periféricos, não que estes precisem sair da periferia em
busca deste “algo melhor”, mas que tragam para ela esse “algo melhor”. Para o poeta:

104
“É disso que a literatura de periferia fala, da luta e da busca de um mundo maravilhoso
para todos nós” (VAZ, 2013). A maior intenção de Vaz e da maioria dos escritores
periféricos não é revolucionar o mundo, mas como diz Hollanda (2015) é garantir que
sua comunidade e os sujeitos periféricos tenham acesso à leitura e aos privilégios
sociais que esta nos proporciona.
Como já mencionado, as periferias não são mais apenas espaços que representam
pobreza, falta, carência. Não são mais apenas locais onde as pessoas desprivilegiadas
não têm opção de escolha e são obrigadas a fixar moradia. Ela transforma-se também
em espaço com sujeitos interessados em educação e que investem nela, buscam ter
acesso aos bens culturais, sobretudo, àquilo que é associado à elite – a literatura. Vaz
(2011, p. 35), ao declarar que “a literatura é uma dama triste que atravessa a rua sem
olhar para os pedintes famintos por conhecimento”, está justamente fazendo uma crítica
a essa literatura sacralizada pelas elites, que não olha para as margens, ou melhor, não
considera a produção artística e cultural gestada nos espaços periféricos, fomentando o
estereótipo de que tais espaços são desprovidos de arte e cultura.
Engana-se quem não quer ver. A periferia produz e consome muita arte e cultura.
A literatura periférica se contrapõe à visão equivocada que os periféricos não leem ou
são maus leitores. Até porque, atualmente, “essa mesma poesia que há tempos era
tratada como uma dama pelos intelectuais, hoje, vive se esfregando pelos cantos dos
subúrbios à procura de novas emoções” (VAZ, 2011, p. 46). Pode-se perceber isso com
os movimentos culturais, como vários saraus da Cooperifa, que, segundo o próprio Vaz
(2011, p. 164) “ficou pequeno para tantas vozes”. Existem também em outros lugares,
até mesmo em outras cidades. Os escritores realizam oficinas em escolas, colocam
murais com poesias nas ruas “da quebrada”, distribuem postais. Tudo isso para
aproximar a literatura deste leitor periférico. Ainda seguindo essa vertente, Vaz diz que:

A literatura na periferia não tem descanso, a cada dia chegam mais livros. A
cada dia chegam mais escritores e, por consequência disso, mais leitores. Só
os cegos não querem enxergar este movimento que cresce a olho nu, neste
início de século. Só os surdos não querem ouvir o coração deste povo lindo e
inteligente zabumbando de amor pela poesia. (VAZ, 2011, p. 46)

O interessante disso é o fato de perceber que, dentro das periferias, estão surgindo
autores construtores de suas próprias histórias, despertando, dessa forma, através dos
relatos de suas experiências, o interesse dos demais moradores da localidade para o

105
hábito da leitura e da escrita. Estes não mais se acomodam diante das faltas e carências
por eles vivenciadas. Esses novos autores de suas próprias histórias não se vitimizam
por não terem acesso aos bens necessários e lutam para suprir essas “faltas”, mostrando
àqueles que estão de fora que a periferia também é um lugar de cultura e riquezas, pois,
como diz Nascimento (2006, p. 60) “os escritores da periferia encontram na atividade
literária uma possibilidade de reverter a própria condição de marginalidade social”.
De fato, estes novos escritores periféricos tentam e conseguem, por meio dos seus
relatos sociais e problemas que os atingem, dar um novo significado à periferia,
valorizando sua cultura com o estímulo à produção, ao consumo dessas produções e à
circulação desses bens culturais. Contudo, vale ratificar que não se quer aqui excluir o
que chamamos de “clássico” ou “canônico”, ou seja, a literatura sacralizada pelas elites,
escrita por aqueles que confirmam os padrões traçados por críticos e teóricos da
literatura. A ideia é incluir esta outra vertente da literatura brasileira, geralmente
excluída dos espaços do saber acadêmico e da educação formal, por exemplo, porque
ela pode se configurar num dos caminhos mais proficientes para formar leitores capazes
de aguçar o próprio senso crítco e se tornar seres autônomos. Até porque um dos
grandes motivos dos fracassos que ocorrem nas escolas, no que se refere à formação do
leitor literário, é querer incluir hábitos e valores que fogem da realidade dos nossos
alunos moradores de periferias.

Literatura periférica e marginal: Um olhar para as nomenclaturas


Até o momento tratamos da Literatura Periférica sem levar em consideração aos
questionamentos que giram em torno desta e de outras expressões que nomeiam as
produções dessa leva literária. Exemplo destas denominações têm-se intitulações como,
literatura periférica, na qual nos apoiamos para a presente abordagem, literatura
marginal, entre outras. Devido a isto, é válido trazer a tona uma problematização que
abrange estas duas específicas terminologias, já que ao nos aprofundarmos vemos que
há todo um contexto no qual poderíamos chegar à conclusão de que o termo literatura
periférica seja também sinônimo do termo literatura marginal e assim inversamente,
porém com suas preferências e especificidades.
Uma justificativa plausível para a escolha da denominação literatura periférica e
não literatura marginal se dá pelo contexto em que o termo “marginal” está inserido. Ele
carrega em sua terminologia sentido ambíguo já que está associado tanto aos indivíduos

106
que estão em condição de marginalidade perante a lei quanto à sociedade, referindo-se
aos sujeitos que são vítimas dos processos de marginalização social, a exemplo dos
pobres, desempregados, negros.
Ao que tange ao campo literário, esta expressão adquiriu diferentes significados.
O estudioso Gonzaga (1981) considera o termo marginal associado a três pontos
importantes, o primeiro estaria ligado às obras que estão à margem do mercado
editorial; o segundo as aquelas obras que possuem uma linguagem distinta da
considerada tradicionalista e institucionalizada pelos valores literários de determinada
época; e em terceiro estariam autores que refletem em suas obras situações vivenciadas
por sujeitos marginalizados e oprimidos socialmente.
A expressão literatura marginal ainda pode ser associada a obras que não são
consideradas cânones e clássicas e, portanto, não estão incluídas nas listas de leituras
obrigatórias para vestibulares, ou também pode remeter-se a escritores que pertencem a
grupos minoritários sociologicamente como mulheres, homossexuais e negros (as) e que
estão excluídos do âmbito social, econômico e literário.
Outro aspecto considerável que gira em torno da expressão literatura marginal é o
que acontece no território brasileiro na época da Ditadura Militar. Durante este período
especificamente na década de 1970, surgiram grupos de poetas intelectuais da classe
média e alta, estudantes de universidades públicas, associados às atividades
cinematográficas, teatrais e musicais, que por sua vez alguns deles já haviam tido obras
publicadas em 1960, mas que não iam de acordo com os movimentos vanguardistas
daquele tempo, como por exemplo, o concretismo, a poesia-práxis, e a poesia processo,
e outros que começaram a publicar somente em 1970.
Estas obras têm como características a ironia por meio de uma linguagem
coloquial e apreciadora dos palavrões, seus temas versavam sobre sexo, drogas, e o
cotidiano das classes privilegiadas, médias e altas da época e para divulgação destes
textos que em sua maioria eram poemas, utilizavam-se muito do apelo visual por meio
de desenhos, fotos e quadrinhos. Por retratar o cotidiano das classes sociais mais
favorecidas, estas obras também eram destinadas principalmente a este público, não
abrangendo de imediato do mesmo modo as classes populares.
Diferente da literatura marginal setentista, no final dos anos 90 do século passado
à primeira década deste século, outro conjunto de escritores similarmente se apossa
desta locução. Esse grupo por sua vez é formado pelas classes populares, moradores ou

107
ex-moradores de periferias urbanas brasileiras em sua maioria do sexo masculino e do
estado de São Paulo, expõem em suas obras não só, mas em sua maioria, temáticas
voltadas para os sujeitos que compõem este espaço geográfico e socialmente periférico.
As produções dos novos escritores estão inteiramente interligadas a um contexto social
marginalizado, pois vivem à margem do mercado editorial, dos meios de produção e de
consumo tanto de bens culturais quanto econômicos e à margem ao que tange ao espaço
geográfico em que residem.
Esta literatura voltada para a nova visão do termo “marginal” tem seu auge em
2001, com a publicação da revista intitulada Literatura Marginal: a cultura da
periferia, organizada por Ferréz. Porém, mesmo tendo seu apogeu em 2001, Ferréz um
pouco antes já havia se apossado desta expressão quando lançou seu livro Capão
Pecado, publicado pela editora Labortexto, em 2000. Ferréz explica o porquê do uso da
expressão literatura marginal.

Eu sempre fui chamado de marginal pela polícia e quis fazer como o pessoal
do hip hop que se apropriou de termos que ninguém queria usar. Já que eu ia
fazer a minha revista maloqueira, quis me autodenominar marginal. Eu fiz
como as rappers, que para se defenderem da sociedade, aceitam e usam os
termos ‘preto’ e ‘favelado’ como motivos de orgulho. (FERRÉZ, apud,
NASCIMENTO, 2006, p. 16).

Ferréz, apesar de assumir o termo “marginal" com a intenção de subvertê-lo,


sempre o associa a ideia da cultura de periferia, ou seja, ele objetivamente faz um
recorte para os leitores não terem dúvida de que margem ele trata, que não é apenas a
margem editorial, temática ou linguística, mas é, sobretudo a margem social, política, de
acesso aos bens culturais e de produção.
Desta forma, para que um escritor se encaixe dentro dos parâmetros da literatura
periférica (ou marginal) dessa nova geração o autor deve ter vivenciado ou estar em
condições de alguma situação de marginalização, ter morado ou morar em periferias e
escrever textos de cunhos literários. Na verdade estes escritores relatam nas obras, em
sua maioria, suas próprias condições de marginalidade. A partir de tais critérios, por
exemplo, foram organizados os grandes números de escritores que participou das
edições da revista Literatura Marginal: a cultura da periferia, citada acima.
Aqueles intelectuais dos anos 70 estavam marginalizados apenas ao que alude ao
mercado editorial, à margem da produção e veiculação do mercado, já que pertenciam a
classes privilegiadas e “se opunham ao circuito oficial de editoração” (NASCIMENTO,

108
2006, p. 20). Entretanto, alguns escritores das periferias, os marginalizados em todos os
aspectos, sejam eles, sociais, econômicos e geográficos, cobiçam em fazer parte de
editoras de grande porte e que tenha um reconhecimento diante da sociedade.
Por não trazer a ambiguidade de sentidos em sua terminologia, tanto no sentido
jurídico e social, e não querer que sua literatura seja confundida com o movimento
poético da década de 70, alguns escritores, a exemplo do escritor Sérgio Vaz, optam
pela expressão literatura periférica, pois deixa claro o fato de que esta literatura é
realizada por escritores (as) que nasceram, vivem, ou viveram em periferias urbanas
brasileiras e escrevem literariamente sobre o que vivenciam em suas narrativas.

Para fim de conversa: Algumas considerações


Para finalizar, a perspectiva da Literatura Periférica é que ela é aquela que
enfatiza questões referentes aos espaços e sujeitos que são marginalizados em todos os
aspectos, transformando dessa maneira o objeto de suas escritas em sujeito do discurso.
Dessa forma, os escritores periféricos dessa geração possuem a necessidade de romper
com a hegemonia dos cânones e abranger todos os espaços e sujeitos que geralmente
encontram-se excluídos das produções literárias tratadas como clássicas ou legítimas,
tanto como autores quanto como personagens.
Têm-se indicações de que a periferia produz e consome muita arte e cultura e que
a Literatura Periférica se contrapõe à visão equivocada que os periféricos não leem ou
são maus leitores, já que esse fenômeno das produções literárias periféricas está se
alastrando pelo Brasil. As temáticas que esses autores trazem em suas obras, não é algo
de um todo desconhecido, pois autores que não fazem parte dessa produção específica já
haviam falado sobre esses temas. Em suma, a diferença se dá pelo fato de que, nas obras
em que os escritores não são periféricos as personagens marginalizadas são silenciadas,
e não são representadas de forma igual às outras personagens de características
diferenciadas. Essas só eram vistas como empregadas subalternas, marginais no sentido
jurídico da palavra, ou seja, como bandidos. Desta forma, eram apenas retratados com
um olhar de quem está de fora, o olhar do “outro”, que, por muitas vezes, configurava-
se em um olhar estereotipado.
Já nas produções literárias periféricas, escritas por autores moradores de
periferias, as personagens ganham ascensão, e suas vozes são ecoadas. É agregada no
texto a voz de quem vivencia tal realidade e não apenas a de quem observa de fora ou

109
apenas ouve falar. As periferias não são mais apenas espaços que representam pobreza,
falta, carência. Ela transforma-se também em espaço com sujeitos interessados em
educação e que investem nela, buscam ter acesso aos bens culturais, sobretudo, aquilo
que é associado à elite - a Literatura.

Referências
DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: um território
contestado. Vinheto, Editora Horizonte/ Rio de Janeiro, Editora da UERJ, 2012.

DURHAM, Eunice Ribeiro. A sociedade vista da periferia. São Paulo, 1986.


Disponível em:
<http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:Y4FL9uSKe8sJ:www.anpocs
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%3D316%26Itemid%3D290+&cd=3&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br>.

GONZAGA, Sérgius. Literatura marginal. In: FERREIRA, João Francisco (org.).


Crítica literária em nossos dias e literatura marginal. Porto Alegre, Editora da
Universidade/ UFRGS, 1981.

HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Sobre livros, leituras, palavras & afins. 18 de
dezembro de 2015. Disponível em:
<http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/sobre-livros-leituras-palavras-afins/>.
Acesso em 22 de Jun. de 2018, às 15h00min.

MOURALIS, Bernard. As contraliteraturas. Trad. de António Filipe Rodrigues


Marques e João David Pinto Correia. Coimbra: Almedina, 1982.

NASCIMENTO, Érica Peçanha do. “Literatura marginal”: os escritores da perifeira


entram em cena. São Paulo. 2006. Disponível em:
<http://www.edicoestoro.net/attachments/057_LITERATURA%20MARGINAL%20-
%20OS%20ESCRITORES%20DA%20PERIFERIA%20ENTRAM%20EM%20CENA.
pdf>.

REYS, Alejandro. Vozes dos Porões: a literatura periférica/ marginal do Brasil. Rio de
Janeiro: Aeroplano, 2013.

YOUNG, Iris Marion. Representação política, identidade e minorias. Lua Nova, São
Paulo, 67: 139-190, 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ln/n67/a06n67>.

VAZ, Sérgio. Literatura, pão e poesia. São Paulo: Global, 2011.

VAZ, Sérgio. O que é Literatura Periférica? Disponível em:


<https://www.facebook.com/poetasergio.vaz2/posts/461452470600842>. Publicado em
05 de maio de 2013.

110
A POESIA NOS CADERNOS NEGROS: O TEMPO E A FORMAÇÃO DO
LEITOR

Gustavo Tanus Cesário de Souza (UFRN)1

Resumo: As artes afro-brasileiras, em suas linguagens e formas, são táticas de resistência,


modo como as alteridades étnicas resistem ao poder do discurso oficial, frente às vozes
hegemônicas. São também meio como essas “minorias majoritárias” resistem e intentam
preservar suas vidas e culturas. O Quilombhoje vem, desde 1978, publicando os Cadernos
Negros, antologia de escritores consagrados e outros recém-ingressos na seara das letras
literárias. Nossa proposta é analisar o tempo e a formação do leitor, nos mais recentes volumes
de poesia, 39 e 41 (2016 e 2018), analisando, também, as imagens, as temáticas. Acreditamos
que essas publicações têm contribuído para a formação e consolidação de um público leitor
negro de literatura afro-brasileira.
Palavras-chave: Cadernos negros; Poesia negra; Literatura afro-brasileira; Tempo espiralar;
Formação do leitor.

Os coletivos e o tempo
Estes tempos têm sido de grandes incertezas. Temos presenciado um
desvelamento do conservadorismo; de modo que reaquece no Brasil, já em grande parte
sem o verniz civilizatório, a agenda reacionária embasada na procura por manter
privilégios, como fossem direitos. Nessa movimentação, tomam corpo o ranço do Brasil
colonial e uma raiva de quem deseja a manutenção das desigualdades, estas embasadas
no racismo e preconceito que estruturam a sociedade brasileira. Assim, as conquistas
recentes no que diz respeito ao acesso de mulheres e homens negros aos lugares sociais
que desejam, e mais, no que diz respeito ao iniciar a ainda pequena redução das
desigualdades das últimas décadas, ou ainda as importantes ações afirmativas têm sido
pontos de uma crítica sem argumentos, baseada tão somente na opinião, de pouca
profundidade, característica do modo de vida e pensamento médio.
Aos atuais barões e baronesa do século XXI, que sempre tramaram golpes, e sua
corte, capitães do mato, a quem urge praticá-los ou mesmo defendê-los, caberá, como
uma questão, o crivo da história? Ao lado daqueles das pontas menos privilegiadas das
linhas nunca coube esperar pela justiça dentro das linhas da narrativa oficial da nação,
por isso, a luta. Nas margens da “nação pedagógica”, sempre existiram coletivos

1
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. Licenciado e graduado em Letras/Português;
Graduado em Letras/Edição (UFMG), Mestre em Teoria da Literatura e Literatura Comparada (UFMG),
Doutorando em Literatura Comparada (UFRN). Orientadora: Dra. Marta Aparecida Garcia Goncalves.
Contato: gustavotcs@gmail.com.

111
descontentes das políticas, dos aparelhos oficiais (ideológicos). Esses coletivos
constituíram-se em redes discursivas responsáveis pelo debate e criação de táticas de
resistência frente às vozes hegemônicas. As artes, em suas diversas linguagens e formas
(desde o Samba; o RAP; o Hip Hop; Literaturas, oral e escrita etc.) são também as
linguagens dessas táticas, e o modo como as minorias resistem frente ao poder do
discurso oficial, e intentam preservar vidas, culturas, histórias.
Dentro do campo literário existe uma produção literária que tem convulsionado o
sistema editorial, pela publicação de autores e autoras negras, pela visibilização da
produção e, por sua vez, pelo grande interesse por parte do público leitor. Tal agito diz
respeito ao número de escritores e escritoras negros e suas publicações frente a um
mercado editorial que “autoriza” uma autoria cujo perfil é, ainda hoje, muito parecido
com o novecentista: masculino, branco, heterossexual, ligado às classes média e alta;
contorno obtido pela pesquisa de Regina Dalcastagnè (2012). Entre essa produção negra
há coletivos de escritores, dentre eles, o Quilombhoje, que tem a mais duradoura
publicação coletiva no Brasil: os Cadernos negros.
Desde o final do século XIX, vários foram os movimentos criados com o objetivo
de promover a integração dos afrodescendentes; no âmbito da literatura, a reunião de
escritores que partilhavam interesses comuns, idealizou, em 1978, a referida série, e
juntaram-se sob o nome Quilombhoje em 1980. (ANTÔNIO, 2005; CORREIA, 2010).
O coletivo vem publicando, desde 1978, livros de prosa e poesia afro-brasileira,
juntando escritores consagrados e outros recém ingressos nas sendas das letras.
Os objetivos alinhavados, segundo o próprio grupo, é o de realizar a discussão e
aprofundar a experiência afro-brasileira na literatura (QUILOMBHOJE), com uma
proposta de incentivo ao hábito da leitura e fomento da difusão de conhecimentos, isto
é, incentivo e promoção da leitura, do livro, das interações, que favorecem o
compartilhamento e a circulação de ideias, afetos. Nos diversos caminhos de
ressignificação da afro-brasilidade, possibilitados também pela arte, é nosso objetivo,
com este ensaio, apresentar os Cadernos Negros, a mais duradoura publicação coletiva
brasileira, que vem lançando, como já dissemos, há 40 anos, initerruptamente uma
coletânea de textos, com o compromisso de um livro por ano, sendo os volumes pares
dedicados à prosa e os volumes ímpares, à poesia. Para esta análise, destacamos os mais
recentes de poesia, volumes 39 e 41.

112
Fiando o tecido: o tempo e a formação do leitor
As publicações desses volumes enlaçam mentes e trabalhos que vieram antes,
trazendo à roda, do tempo e do espaço: os primeiros insurgentes do passado, com suas
histórias de vida e literatura; os autores e as autoras que começaram nos primeiros
volumes e já romperam as barreiras do cânone e do mercado editorial; os mais recentes
destes últimos cadernos; e também os leitores, em formação. Tal sistema dessa literatura
contribui para a desconstrução da lógica linear de um tempo vazio e homogêneo, numa
ideia de progresso cuja marcha privilegia a manutenção do status quo dominante.
Os Cadernos negros ingressam numa dinâmica de transformação em que os
tempos recorrem, numa espiral do “tempo espiralar”, de que tratou a pesquisadora Leda
Martins, em que “Tudo vai e tudo volta” (MARTINS, 2001, p. 84). Em cada girar,
recentes escritoras e escritores, antes leitores, integram o movimento da roda, essa
dança, e são, ali, recebidos pelos mais calejados – Ngangas, griôs, contadores e
cantadores, por assim dizer. Em cada revolução, vão enredando novos leitores nessa
roda, fazendo-a continuar em movimento. Assim, as publicações tem contribuído tanto
para a formação de leitores quanto para a consolidação desse público leitor negro de
literatura e, com isso, tal ação se faz presente, projetando-se para o tempo futuro. Isso
pode ser constatado pela renovação de escritores publicando nos Cadernos negros, pelo
aumento de leitores e declamadores participantes nos saraus, pela vendagem dos livros
recém editados e os reeditados em nova edição, também pelo crescente volume de
estudos2, de venda dos livros, e pela consolidação de editoras negras e fundação de
outras novas.

2
Pelo levantamento realizado na base de dados de teses e dissertações do IBICT, observando estudos, já
defendidos, que trabalham os Cadernos negros como objeto de estudo, encontramos estes trabalhos:
Cadernos Negros: esboço de análise (Tese, Letras, Unicamp, 2005), de Fausto Antônio; Cadernos
Negros: tramas entre políticas públicas, juventudes, relações étnico-raciais e formações em psicologia
(Tese, Psicologia, UFRGS, 2018), de Júlia de Carvalho; Corpo e erotismo em Cadernos Negros: a
reconstrução semiótica da liberdade (Dissertação, Letras, USP, 2007), de Silvia Regina de Castro; A
mulher negra nos Cadernos Negros: autoria e representações (Dissertação, Letras, UFMG, 2009), de
Fernanda Rodrigues de Figueiredo; Vozes femininas nos Cadernos Negros: representações de insurgência
(Dissertação, Letras, UFBA, 2010), de Francineide Santos Palmeira; Vozes femininas no “Quilombo da
Literatura”: a interface de gênero e raça nos Cadernos Negros (Dissertação, UnB, Letras, 2014), de
Adélia Regina da Silva Mathias; Cadernos negros na escola: leitura literária de contos afro-brasileiros
(Dissertação em Letras, UFS, 2016), de Gilvan da Silva Jesus; Cadernos negros: entre a arte literária e a
luta pelos direitos da população negra brasileira (1978-1988) (Dissertação, História, UFRPE, 2017), de

113
Entre nós: de embaraços a enlaces
Uma das ditas importâncias da literatura é pensá-la como herança e como
“notícias de nós”3. Para além de recebê-lo, tal legado deve ser discutido, debatido, em
uma análise que busque relativizar as imagens que são trazidas. Tomemos o que Homi
Bhabha (1998) dissera sobre a formação da nação, esta que é baseada na estruturação da
ideia do “muitos como um” (BHABHA, 1998, p. 219), com vistas a uma unidade, que,
de fato, não corresponde à realidade; uma unidade nacional, pela criação de uma
identidade da qual origina o brasileiro. Essa noção de unidade se sustém mormente pela
ideologia da miscigenação, esta que tende a apagar as diferenças culturais,
desvalorizando e apagando a cultura do menor em detrimento da cultura do dominante.
Neste modo de pensar a cultura, a literatura do passado, esse legado que “deve” ser
mantido, traz, nas malhas de sua fábrica e nos modos de oferta de seus tecidos, a
construção da representatividade de um Mesmo entre seus pares, como notícias de um
“nós entre nós” (em que podemos ler: eles entre eles], baseia-se, portanto, numa lógica
da semelhança, e não da diferença. Ela não informa sobre “nós”, com vistas a um
projeto de comunidade fundado na diversidade.
Podemos verificar isso confrontando estas nossas reflexões com os resultados da
pesquisa de Regina Dalcastagnè (2012), de que a representação das personagens e o
perfil dos escritores, desde o século XIX até bem pouco, quase nada se modificou.
Nessa pesquisa, os romances publicados pelas principais editoras brasileiras, em um
período de 15 anos (de 1990 a 2004); 73% eram homens; 90% brancos, homogeneidade
racial; 60%, moradores do eixo Rio/São Paulo; com profissões que abarcam espaços
privilegiados de produção de discurso: meios jornalístico e acadêmico. Tal quadro, que
é representativo da realidade do sistema literário baseado nas grandes editoras, sói
modificar-se, pelo fortalecimento das editoras negras brasileiras, que têm publicado
autores e autoras afro-brasileiras, suas ficções e poesias, e pela constituição e
fortalecimento de um público leitor negro.
Da forma como entendemos, a literatura das grandes editoras tem trazido, desde
sempre, notícias de “nós”, estes como um substantivo, como um nome, porque mostra

Lenivaldo Idalino de Oliveira Junior; entre outros, que utilizam os livros como aporte para pesquisas
sobre autores que publicaram na antologia, ou relacionados à leitura e ao ensino de literatura.
3
Cf. Perrone-Moisés trata disso em seu livro. A literatura do passado nos daria uma forma de
“conhecimento especial”, e a literatura contemporânea nos forneceria um conhecimento sobre nós
mesmos, p. 74.

114
que não é representativa da diversidade de escritores e escritoras. Já as literaturas das
alteridades, a negro-brasileira assim como outras literaturas (indígena, LGBT) têm
criado redes e fortalecido seus laços, transformando esse substantivo em pronome.
Trazem, em suas temáticas e questões, também os “nós” substantivos, mas como pontos
críticos de uma representação/representatividade problemática, como o que está ausente
no projeto de comunidade nacional (que é também ausência em um projeto de literatura
nacional), como abordado por Tanus (2018).
Longe de ser uma simples recusa desse legado cultural do passado – pois são
como “Arcos do Triunfo”4, construídos com suor e sangue de etnias que ainda hoje
estão de fora das políticas públicas − o que está visível, a nosso ver, nos discursos das
alteridades (inclusive no literário), trata-se das “musculaturas” desses monumentos, isto
é, às formas de representação de seus povos, aos modos de ser e estar na cultura, modos
de existir/resistir diante das estratégias de silenciamento, da aniquilação, frente à
violência da miscigenação (como efeito e como desejo), que apaga a cultura das
alteridades, legando a elas a via para a aculturação. E esses modos de existir/resistir
usam de diferentes estratégias de linguagem, entre modos de expressão próprios da
literatura maior, e os que temos buscado observar.
As possibilidades abertas pela literatura afro-brasileira contemporânea aparecem
como uma perspectiva estética que pode ser caracterizada por estes dois caminhos
indissociáveis: um estético e um político, este como modo de recortar o tempo e o
espaço. O caminho político em seu recorte sobre o mundo, que não envolve apenas
considerações e direcionamentos dados pelo tema, nem só o estabelecimento de um
ponto de vista, ou mesmo somente a busca por uma linguagem. Longe também de
serem apenas índices da presença do negro, de suas culturas, a estética e a política
literária se dá numa relação tal entre essas instâncias, dentro de um modo de trabalho de
pensar/agir/criar projetos: literário, de vida, de vida literária, que apontam para
comunidades leitoras, o que tem modificado a relação entre literatura e ensino de
literatura.

4
Referimo-nos ao livro As musculaturas do Arco do Triunfo [1975], do poeta mineiro Adão Ventura.
Livro de poesia vencedor do prêmio Cidade de Belo Horizonte, trata, por prosa poética, ciclos de
existência/convivência entre coletivos que gestaram “arcos do triunfo”, monumentos erigidos em
comemoração da vitória, isto é, da exploração, colonização, aniquilação do outro e sua alteridade.

115
É esse ponto que as literaturas das alteridades, diferem-se das outras literaturas,
porque, acreditamos, elas têm tensionado e questionado, em suas tessituras (malhas do
texto, nos modos de enlaces das comunidades leitoras), o que Barthes apontou como
uma “antinomia profunda e irredutível entre a literatura como prática e a literatura como
ensino” (1988, p. 58). Num processo de “formação”, ressignificado por uma outra
concepção de arte literária, que experimentam outros caminhos estéticos, outros ritmos.
Utilizam-se da pavimentada língua oficial e as sendas de outras línguas do país,
discutindo as encruzilhadas da linguagem. Em alguns textos, realizam inventários, em
outros, discutem documentos, imprimindo a força dos muntuês. Revelam a consciência,
guardam o corpo, e colocam em discussão os problemas humanos e sociais, contando
outras histórias (histórias do Outro) que são proibidas e veladas, diante de um
imaginário oficial aparentemente inexorável.
Vemos que nos Cadernos negros há um desenvolvimento de uma consciência de
pertencimento a uma comunidade – a uma comunidade de leitores, que compartilham
leituras, afetos, projetos de vida comum. Assim a experiência dessas literaturas está em
reconhecer, reconhecer-se e construir um projeto coletivo. E como um fenômeno da
literatura contemporânea, passam a gestar maneiras de identificação e reconhecimento
de uma minoria, sendo um modo de organização do que chamamos de “modos de
resistir/existir” frente às estratégias do poder dominante, que são táticas de
enfrentamento e modos para uma vida em comunidade baseada na diversidade.
Falando dos Cadernos negros
Os volumes estudados trazem à roda uma constelação de autores e autoras.
Organizados por Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa, os poemas que compõem o livro
foram escolhidos por um colegiado composto por pessoas de vários segmentos:
escritores; professores; pedagogos; pesquisadores com especialidades em arte, literatura,
poesia, educação, história, edição; e, também leitores, totalizando 37 especialistas.
Foram selecionados, no total, 316 poemas, de um total de 65 poetas, entre os que
publicaram em apenas um volume e os que publicaram nos dois. No volume 39, a
divisão de gênero mostra que as mulheres são maioria: 17 homens, 19 mulheres; já no
41, 20 homens e 23 mulheres.
Os organizadores, no prefácio, afirmam que os cadernos são um dos caminhos
para a literatura negra. A feita da reunião desses poetas, cada qual com sua expressão,

116
formas visíveis que a poesia negra demonstra/aponta/revela. Esses Cadernos negros de
muitas vozes que avançam no tempo têm permitido que essas vozes, suas poéticas,
construam caminhos de reflexão, afeto e felicidade, para serem trilhados coletivamente,
múltiplas formas individuais de percepção do mundo e de senti-lo, em um projeto que
observa a história, a sabedoria, a cultura e literatura dos ancestres, e expande-se como
um lugar de reflexão sobre questões humanas.
Em relação aos poemas, podemos perceber que ora são mais descritivos, ora
elaboram uma espécie de inventário de lugares, de onde serão cantados/narrados na
história dos negros, ou de nomes de heroínas e heróis negros. Outros são uma espécie de
crônica-poesia. Há alguns textos de uma força autoafirmativa, outros reconstroem uma
relação com os ancestrais históricos e idealizados, construindo uma biografia de heróis e
heroínas do povo. Quando não realizam autobiografias – que são bastante comuns na
literatura, sobretudo a contemporânea, e buscam nelas reelaborar a experiência de ser
negro no Brasil.
Há muitos poemas metalinguísticos, cuja expressão recai nas dificuldades de
escrever, e ter a escrita como elemento chave da existência. Ressaltam-se diversos
questionamentos sobre o mercado editorial, sobre as impossibilidades de acesso à
publicação. Ainda em relação à construção identitária alguns poemas trabalham os jogos
rítmicos de outras formas poéticas, não ocidentais como os orikis, ou trazem para as
malhas do poema as sonoridades de sambas-canção.
Outros poemas tratam de ressignificações em geral, como, por exemplo a dos
cabelos crespos, que passam de marca de uma inferioridade dada pela sociedade
preconceituosa, para um símbolo da mudança. Tratam sobre o apagamento, a
invisibilização, a aniquilação de suas culturas, a autoflagelação, como se fossem eles
próprios a causa dos problemas. Observado isso, apontam a solução, construída em
coletivo. Alguns poemas tratam sobre os modos de ser, estar, permanecer vivos;
também sobre o racismo e o preconceito, esses “valores” estruturantes da sociedade
brasileira, sobre o projeto de grande duração de exterminar os jovens negros e também
dos que ultrapassam o tempo da juventude, vencendo as pontes e obstáculos. Esses
questionamentos: alvos, mercado editorial, projeto de extermínio dos jovens negros e,
também dos que conseguem ultrapassar o tempo de juventude, vencendo pontes e
obstáculos, como podemos ver nos versos de Esmeralda Ribeiro:

117
O mundo não me fez promessas.
Bem que o mundo poderia ter feito promessas
De me dar para eu prender
Minha juventude com as mãos e,
Apesar da melanina,
Ajudar a enganar os olhos dos outros [...]

Poderia revestir de couraça


A pele de jovens negros,
Assim, sob proteção, nenhuma bala
Poderia lhes ferir.
Que chorássemos somente de emoção por algo
Que tocasse os nossos corações. [...]
(RIBEIRO, 2018, p. 103-104).

A voz poética termina na indagação de que o tempo, este que se preencheu com os
passos dela, pesa-lhe, no corpo; porém, ela, por mais que insista na questão da perda de
forças, continua leve, atravessando pontes e barreiras diárias, rompendo-as, por meio de
uma “escrevivência”5 que transita os tempos e permite a construção de um outro futuro,
construído em coletivo. Há, ainda, questionamentos sobre os alvos preferenciais da
polícia, sobre as violências contra as populações negras, contra corpos e mentes negras.
Nesse sentido, os poemas “Genocida” e “Ditadura branca”, de Lande Onawale
que tratam da violência contra o negro, como um projeto de nação. Que nos digam os
tantos Amarildo Dias de Souza, Rafael Braga e Cláudia Silva Ferreira deste país.
Vamos aos textos:
Genocida
a polícia sabe onde atirar
não é no alvo...
a mira é um ponto preto
colado na própria retina.
(Lande Onawale, 2016, p. 205).

Ditadura branca
no Brasil, a ditadura
nunca se extinguiu
para gente de pele escura:
a antilei
o falso indício
o sumiço
a tortura.
(Lande Onawale, 2016, p. 206).

5
Conceito e modo de existir/resistir por meio de um projeto de vida e literatura, criado pela escritora
Conceição Evaristo, que permeia seu pensamento, sua obra, num fortalecimento para construção de si, em
observância da cultura do coletivo do qual a poeta é parte.

118
Nesse sentido, há a discussão sobre as negatividades costuradas à pele escura em
tramas complexas, de silêncio, de violência, de dor, que ela vai cantando, percebendo a
urdidura, a força do arremate, os pontos da linha branca. Há diversos poemas que tratam
da construção da imagem de si, contraposta com uma imagem de “nós”, como um
coletivo.
O amor, o sexo, os impedimentos para a ação, ser mãe, filha e mulher negras são
também temáticas dos poemas. Por fim, o ponto de união que atravessam os poemas é a
formação de comunidade consciente das suas questões. De modo geral, os textos
indicam a formação de um coletivo de escritores e leitores, diferente de outros modos de
organização, em comunidades produtoras e leitoras, nesses quilombos editoriais
contemporâneos.
Ponto miúdo, de muitas formações
Os Cadernos negros, por conta dos olhares sobre o tempo, sobre o espaço, em
seus diversos traços, tessituras, enlaces poéticos são um rumo político. Este se faz, tanto
pelo fato de darem corpo à representação, de imagens, temáticas, a partir de um sujeito
poético negro, em suas estéticas, quanto pelo fato das poesias, do próprio livro,
agregarem novos escritores em suas primeiras publicações. O lançamento do novo
volume é um acontecimento, em fins do ano corrente, com grande participação dos
escritores e público leitor, onde são realizadas falas de escritores, performances de
leitura. Assim, tal conexão direta, que podem parecer pouco, conectam diretamente o
livro com seu público leitor, que conhece um pouco mais sobre a vida literária de seus
autores e autoras, o que deve contribuir para o enlace de novos autores, que antes eram
leitores.
A temática parte da vivência dos autores, como cidadãos, como leitores, isto é,
construídas pelo ponto de vista e olhar, numa perspectiva única de olhar o presente, os
pensamentos de longa duração, tais quais o racismo e o preconceito, e seus modos de
reproduzir-se, a aproximar-se de ações desse coletivo, de quizila a poesia. Assim, como
dito, os volumes contribuem para a formação e consolidação de leitores de poesia, e
também para a apresentação de novos e novas escritoras.
Esse “resistir” dos Cadernos negros é um de seus êxitos de maior alcance, tendo
em vista que a publicação é regular dentro da sua periodicidade anual desde sua
fundação, nestes 41 anos; e pela importância de seus textos, de estéticas afrocentradas,

119
afirmativas, que revelam a diversidade do negro, marcando sua presença, reclamando
seu espaço, como dissera o já falecido poeta Arnaldo Xavier, nesse “Brasiloyro”, que
prima, todavia, pela miscigenação. Dito isto, esses volumes valem tanto pelo incentivo
ao hábito de leitura, de leitura literária, quanto pelo fomento à difusão de conhecimentos
e informações, desenvolvendo e incentivando a arte, os estudos e as pesquisas sobre
literatura e cultura negras.
Os Cadernos negros relacionam, das frinchas nessa cerâmica da literatura
nacional o pensamento, a arte, a cultura e a literatura negras. Criam, portanto, os “nós”,
vistos de maneira inclusiva, como possíveis enredamentos de uma sociedade, sem
racismo, mais justa, visando uma comunidade nacional diversa. A partir de tais
perspectivas, os poemas reunidos nesses volumes coletivos constroem outras imagens,
que estilhaçam o imaginário da miscigenação como fim, propondo a afirmação do
sujeito negro, seus modos de expressão e culturas. Ritmos, em diversas frequências,
feridas, cicatrizes, literatura dos ancestres, revelações que, como um lugar de memória,
são o olhar contemporâneo sobre o tempo e suas questões.
Referências
ANTÔNIO, Carlindo Fausto. Cadernos Negros: esboço de análise. Tese (Doutorado
em Teoria Literária) – Unicamp, Campinas, 2005.

BHABHA, Homi. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de


Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.

CORREIA, Severino do Ramo. Quilombhoje: um tambor expressando as vozes


literárias negras. Dissertação (Mestrado em Literatura e Interculturalidade) –
Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande, 2010.

DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: um território


contestado. Vinhedo; Rio de Janeiro: Horizonte; Editora da Uerj, 2012.

MARTINS, Leda. Oralitura da memória. In: FONSECA, Maria Nazareth Soares (Org.).
Brasil afro-brasileiro. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Mutações da literatura no século XXI. São Paulo:


Companhia das Letras, 2016.

QUILOMBHOJE. Missão. Disponível em: <


http://www.quilombhoje.com.br/site/quilombhoje/>. Acesso em: 21 jun. 2019.

RIBEIRO, Esmeralda; Barbosa, Márcio (Org.). Cadernos Negros 39: poemas afro-
brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, 2016.

120
RIBEIRO, Esmeralda; Barbosa, Márcio (Org.). Cadernos Negros 41: poemas afro-
brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, 2018.

SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de reexistência: culturas e identidades no


movimento Hip Hop. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem) - Universidade
Estadual de Campinas, 2009.

TANUS, Gustavo. Entre nós, a representação e a representatividade: imagens, literatura


e arquivo afro-brasileiros. In: OLIVEIRA, Aciomar de; COSTA, Antonio Carlos (Org.).
Relações étnicas: conexões possíveis. Ibirité: Poesias Escolhidas Editora, 2018. p. 115-
126.

121
MOVIMENTOS PARA DESCOLONIZAR O IMAGINÁRIO: LENDO A
LITERATURA AFRO-BRASILEIRA

Maria Aparecida Cruz de Oliveira (UnB)1

Resumo: A literatura de autoria negra confronta as narrativas que se pretendem hegemônicas e


questiona as fronteiras culturais criadas pelos sistemas de representações ocidentais.
Consequentemente, ela amplia o campo de representações ao interpelar os discursos coloniais e
colocar em evidência outras possibilidades de discursos, outras bases epistêmicas, e mesmo a
razão subalterna. Com base nessas considerações, propõem-se as seguintes questões: o que a
literatura afro-brasileira oferece ao leitor como possibilidade de movimento ou postura
decolonial/descolonial? Que movimento estético/poético ela realiza para propor a descolonização
do imaginário do leitor?

Palavras-chave: autoria negra; descolonização; Clarice Lispector; Ana Maria Gonçalves;


Conceição Evaristo.

Penso o objeto literário não apenas como uma produção estética, mas também
como uma arte que traz aspectos teórico/crítico (epistêmico). Então começo este texto
fazendo menção às obras literárias que sinalizam a problematização de algumas questões,
como o lugar onde é possível produzir teoria e o lugar no qual é apenas admissível
produzir cultura, arte. Com isso não estou afirmando que a literatura é um texto teórico
no seu sentido mais duro, mas que ela mimetiza uma crítica para desconstruir a ideia única
de ciência/epistemologia. Assim, acredito que o texto literário também pode questionar a
própria literatura e a visão colonizadora da crítica/teoria literária tradicional, que aponta
um caminho universal para a criação literária. Desse modo, discuto textos literários que
postulam uma atitude crítica decolonial.
Sigo com o exemplo de Clarice Lispector, em A paixão segundo G.H., publicado
em 1964, o qual vai explicitar que nada impede que um corpo branco entenda como a
colonialidade opera nos corpos negros, desde que esteja ciente de que, “compreendê-los
consiste em uma tarefa racional e intelectual e não experiencial” (MIGNOLO, 2017, p.
27). O texto abre para o leitor um caminho para a discussão do pensamento decolonial, o
qual considera que todo pensamento é localizado, embora haja a tendência de aceitar o
pensamento construído a partir da história da experiência europeia como deslocalizada,

1
Doutora em Literatura (UnB). Contato: maricruzdeoliveira@gmail.com.

122
ou seja, universal, o que significa que a experiência europeia tem servido de modo
equivocado como base de leitura para todas as outras culturas. A ideia de começar este
texto apresentando uma escritora branca é justamente para levantar o debate acerca da
localização: pensando a colonialidade sob a perspectiva da escritora branca e a
perspectiva das escritoras negras.
Considero o texto da Clarice Lispector importante para a discussão porque ele traz
uma empregada doméstica, que tem sua existência/experiência anulada por sua patroa.
Na trama, a narradora, G. H., reconhece a invisibilidade da sua empregada, a Janair. A
patroa admite não lembrar do rosto de Janair, mas apesar disso, a empregada torna-se a
“primeira pessoa realmente exterior de cujo olhar” (LISPECTOR, 2009 [1964], p. 40) G.
H. tomava consciência. Mesmo reconhecendo a existência de Janair, o lugar dela é
marcado pela expressão “realmente exterior”, e essa exterioridade é colocada em relação
ao lugar de superioridade que a patroa pensa estar. É a partir de sua localização social que
ela determina qual é o lugar da empregada.
Há aí um sentido discursivo de que a empregada não pertence ao mesmo espaço
social de G.H. O lugar de exclusão de Janair fica mais evidente quando a narradora lembra
de como era a sua empregada doméstica: “rosto preto e quieto... E suas roupas? Não era
de surpreender que eu a tivesse usado como se ela não tivesse presença: sob o pequeno
avental, vestia-se sempre de marrom escuro ou de preto, o que a tornara toda escura e
invisível” (2009 [1964], p. 40). A escuridão das roupas de Janair figura a invisibilidade
de uma subclasse, a empregada doméstica, mas também a invisibilidade mais geral da
mulher brasileira, especialmente a negra e pobre. A narrativa nos permite refletir sobre a
ausência da mulher negra (digo mulher negra porque sabemos quem, na maioria das
vezes, é a empregada doméstica no contexto social brasileiro) e pobre na história nacional,
assim como na história da literatura brasileira ou mesmo sua presença controversa.
Ao considerarmos os aspectos alegóricos da roupa de Janair como representativos
de invisibilidade, é possível uma comparação com as personagens Sinhá Ana Felipa e
Kehinde de Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves. Diferente de G.H., que só
percebe Janair por sua ausência, Sinhá Ana Felipa tinha consciência da presença de
Kehinde. O que não quer dizer que isso não signifique incômodo e mal-estar. Há, ali, uma
percepção da escravizada como alguém que tentava usurpar o seu lugar de esposa, não o
da mulher/criança que era violentada e perseguida por um homem branco agressor.

123
A construção das personagens G.H. e Sinhá Ana Felipa suscita uma questão: para
tomar consciência do outro não seria necessário ter a consciência de si mesmo? G.H.
adquire consciência de Janair quando reconhece que a desconhecida era na verdade ela.
Assim, sua identidade é revelada com elementos da identidade do Outro, a Janair. O
mesmo não ocorre com a Sinhá. Esta permanece sentada em um trono de superioridade
que não existe; de olhos fechados, não vê a si mesma, nem o Outro e nem as relações
identitárias que poderiam ligá-la à menina escravizada que ela tanto despreza, uma vez
que para ter a identidade de “sinhá”, é preciso criar a identidade de “escrava”.
As narrativas levam-nos a pensar sobre o desconhecimento do Primeiro Mundo
em relação ao Terceiro Mundo, sobre o desconhecimento da elite acerca dos
trabalhadores, do branco sobre o negro, do Ocidente em relação ao Oriente. Neste último
caso, a questão é visível quando consideramos que “a cultura europeia ganhou em força
e identidade comparando-se com o Oriente como uma espécie de identidade substituta e
até mesmo subterrânea, clandestina” (SAID, 1990 [1978], p. 15), isto é, posicionou-se
com superioridade em relação ao Oriente, denominando-se como uma história global e
colocando as demais como locais na tentativa de inferiorizá-las. E essa mesma narrativa
começa a dar sinais do declínio de uma estrutura social que se acha superior e digna de
nomear o outro, pois na trama, a vida de G. H. desmorona, representação da decadência
de uma estrutura elitista que não se sustenta mais, é a queda das “sinhazinhas”, de uma
identidade construída à base da opressão do Outro, opressão que não tem mais força de
coerência:

G.H. vivia no último andar de uma superestrutura, e, mesmo construído no ar,


era um edifício sólido, ela própria no ar, assim como as abelhas tecem a vida
no ar. E isto havia séculos vinha acontecendo, com as variantes necessárias ou
casuais, e dava certo. Dava certo – pelo menos nada falou e ninguém falou,
ninguém disse que não; não era certo, pois... O acúmulo de viver numa
superestrutura tornava-se cada vez mais pesado para se sustentar no ar ...
porque a força da coesão está lentamente se desassociando (LISPECTOR,
2009 [1964], p. 67).

O aviso da queda da estrutura que dá poder para homens e mulheres brancas é


realizado por Clarice Lispector de modo crítico, mas não podemos concordar com sua
narradora quando ela diz que a estrutura permanecia, entre tantas razões, porque
“ninguém falou” que isso “não era certo”. Talvez ela estivesse fazendo referência a
alguém com privilégios sociais para garantir que a denúncia fosse ouvida. Isso porque, ao
revisarmos a história da literatura brasileira, vimos a autora negra Maria Firmina dos Reis,

124
já em 1859, no romance Úrsula, denunciando essa superestrutura, e, bem depois do livro
de Lispector, em 2006, Ana Maria Gonçalves traz a voz de uma negra que fala por si
mesma e de como não concorda com o domínio da elite branca brasileira, da possibilidade
de o negro escrever sua própria história, ter autonomia e conquistar sua liberdade. Então
a questão não é a ausência de alguém para falar de uma estrutura social opressora, mas a
presença de alguém para ouvir essas vozes silenciadas. Clarice Lispector acerta quando
cria uma Janair invisível, pois essa é a condição da população negra brasileira, seja a
empregada doméstica ou a artista. Essa é a condição da literatura e da ciência produzida
pelos negros no Brasil e no mundo. É só compararmos o lugar de Clarice Lispector,
escritora branca, e das escritoras negras Ana Maria Gonçalves e Conceição Evaristo, na
história da literatura brasileira, por exemplo. Há uma diferença importante, e ela advém
da colonialidade.
Parece que tratar da invisibilidade da empregada doméstica é uma recorrência em
Clarice Lispector, pois no conto “A mineira calada”, do livro A descoberta do mundo
(1984), a temática se repete. A empregada Aninha, que a patroa teima em chamar de
Aparecida, é caracterizada como uma “aparição muda”. Ela é representativa de uma
classe trabalhadora de mulheres, em sua maioria negras, que além de serem invisíveis e
caladas (pela perspectiva das patroas), não são vistas pelo que são (o que é notório na
troca de nomes), nem tampouco é presumível um reconhecimento intelectual, uma vez
que não se concebe a ideia de escritores(as)/leitores(as) advindos de espaços sociais
marginalizados. Isso fica latente quando a escritora e patroa se nega a emprestar um de
seus livros considerando a incapacidade da empregada para ler textos literários:

De repente - não, não de repente, nada é de repente nela, tudo parece uma
continuação do silêncio. Continuando, pois, o silêncio, veio até a mim a sua
voz: “A senhora escreve livros?” Respondi um pouco surpreendida que sim.
Ela me perguntou, sem parar de arrumar e sem alterar a voz, se eu podia
emprestar-lhe um. Fiquei atrapalhada. Fui franca: disse-lhe que ela não ia
gostar de meus livros porque eles eram um pouco complicados. Foi então que,
continuando a arrumar, e com voz ainda mais abafada, respondeu: “Gosto de
coisas complicadas. Não gosto de água com açúcar” (LISPECTOR, 1999
[1984], p. 47).

A situação de inferioridade em que a personagem Aninha é colocada pela patroa


traz uma reflexão importante, porque se nesse contexto de colonialidade, a mulher pobre
e negra não é percebida como sujeito capaz de ser leitora de textos literários, imagina ser
reconhecida como uma escritora. Esse trecho da crônica serve como uma metáfora do

125
lugar que as produções de escritores (as) negros (as) são colocados: o lugar da
incapacidade, da invisibilidade.
Sua produção não é sequer reconhecida como literária. Em uma postura de
resistência, escritores afro-brasileiros vêm mostrando a força e a importância de sua
escrita, como suas literaturas não têm nada de “água com açúcar”, para usar a expressão
de Aninha. Mostram em suas narrativas que “toda experiência social produz e reproduz
conhecimento e ao fazê-lo, pressupõe uma ou várias epistemologias” (SANTOS, 2009,
p. 9), isto é, eles apontam para uma diversidade que não é alcançada pela crítica que pensa
a partir da monocultura da ciência moderna. É essa diversidade de pensamentos e de
epistemologias que torna alguns textos exemplos de narrativas que repensam a crítica e a
teoria. Não necessariamente são textos teóricos no formato que concebemos, mas de
qualquer forma já podemos afirmar que no mínimo esses textos nos fazem repensar a
teoria.
A trama de Clarice Lispector aponta para uma estrutura de poder em declínio; no
entanto, vemos na literatura de autoria negra, como nos fatos sociais, que a colonialidade
de poder permanece, embora por outras configurações. A escritora é bem-intencionada e
traz debate importante e raro para sua época, acerca da invisibilidade da empregada
doméstica, mas ainda é uma história da empregada doméstica contada pela patroa. Não
sabemos o que essa empregada pensa a respeito dessa narrativa e tampouco da própria
patroa.
Diante disso, a proposta é trazer um pouco de como escritoras negras contam suas
histórias e o que as diferenciam das narrativas de escritoras brancas, mesmo que essas
sejam engajadas e críticas como as de Clarice Lispector.
Sobre essas diferenças, a observação inicial é que a mulher negra em suas
narrativas sai da posição de objetificação, deixa de ser fonte de investigação empírica e
passa a ser a produtora de conhecimento, criadora de suas próprias narrativas, uma escrita
marcada pelo corpo. Evaristo fala dessas diferenças, por exemplo, em dois poemas
publicados no livro Poemas da recordação e outros Movimentos: “Carolina na hora da
estrela” e “Clarice no quarto de despejo” (2017 [2008], p. 93-95). A autora faz um
intertexto com Clarice Lispector (Hora da estrela e Laços de família e a protagonista
Macabéa) e com Carolina Maria de Jesus (Diário de Bitita e Quarto de despejo). Em
“Carolina na hora da estrela”, Conceição Evaristo mostra que a Macabéa agora está sendo

126
escrita por uma Macabéa, sem a interferência da voz do outro; apresenta a dificuldade da
mulher negra para escrever sua própria história e como a narrativa das Macabéas são
diferentes das histórias dos privilegiados:

No meio da noite
Carolina corta a hora da estrela.
Nos laços de sua família um nó
– a fome
...
E lá se vai Carolina
Com os olhos fundos,
Macabeando todas as dores do mundo...
Na hora da estrela, Clarice nem sabe
Que uma mulher cata letras e escreve:
“De dia tenho sono e de noite poesia”.

(EVARISTO, 2017 [2008], p. 93. Meus grifos)

No poema “Clarice no quarto de despejo” (2017 [2008], p. 94-95), Conceição


Evaristo continua problematizando o sacrifício que a mulher negra tem de fazer se quer
escrever literatura: “Onde estiveste de noite, Carolina? /Macabeando minhas agonias,
Clarice.../ De mim, escrevo não só a penúria do pão, cravo no lixo da vida, o desespero,
/Uma gastura de não caber no peito, / E nem no papel” (2017 [2008], p. 94). Há aí, a
sinalização de que a história da mulher negra é observada/contada pela mulher branca a
partir de um olhar distanciado: “No meio do dia/ Clarice entreabre o quarto de despejo/
pela fresta percebe uma mulher” (p. 94). A fresta restringe a possibilidade de ver a mulher.
As experiências da escritora negra é o que diferencia sua escrita da escritora branca:

E ajustando o seu par de luvas claríssimas


Clarice futuca um imaginário lixo
E pensa para Carolina:
“a casa poderia ser ao menos de alvenaria”
E anseia ser Bitita inventando um diário.
Páginas de jejum e de saciedade sobejam.
A fome nem em pedaços
Alimenta a escrita clariceana

(EVARISTO, 2017 [2008], p. 94-95).

A invisibilidade da escritora negra é lamentada pelo eu-lírico: “Mas ninguém me lê,


Clarice, / para além do resto. / Ninguém decifra em mim/ a única escassez da qual não
padeço, / – a solidão” (EVARISTO, 2017 [2008], p. 94). Assim entendemos que há uma
diferença em ser Clarice e ser uma Carolina em um país racista.

127
Pontuadas essas diferenças, entendo a necessidade de mobilizarmos outras
categorias de análise da narrativa para realizar a leitura de obras que partem de uma
perspectiva negra e especialmente feminina: a categoria “corpo”. A leitura a partir da
categoria “corpo negro” é fundamental para acessar de modo decolonial o texto das
mulheres negras. Esse corpo não pode desaparecer. Ele que nos guiará no processo para
ampliar nosso imaginário sobre quem é a mulher negra brasileira, quem escreve acerca
dessa mulher negra e até mesmo como representam as mulheres negras. Para fazer essa
leitura decolonial: permitir a descolonização do imaginário dos leitores e das produções
de autoria negra é preciso compreender o processo de criação desses textos.
“Escrevo para registrar o que os outros apagam quando falo, para reescrever as
histórias mal escritas sobre mim, sobre você”, diz Gloria Anzaldúa (2000 [1981], p. 234),
escritora e teórica cultural estadunidense de origem mexicana, em seu ensaio/carta
direcionada às escritoras do Terceiro Mundo. A carta expressa uma justificativa da autora
em relação aos motivos pelos quais as mulheres subalternizadas escrevem. Para ela,
escrever é um ato de confronto e resistência perante o silêncio perpetrado às mulheres:
“escreverei sobre o não dito, sem me importar com o suspiro de ultraje do censor e da
audiência” (2000, p. 232). E é nesse ato que reside a “nossa sobrevivência, porque uma
mulher que escreve tem poder” (2000, p. 234). Assim, o ato de escrever é o de se fazer
existir e o de suprir as ausências, trazer as vozes silenciadas. Nessa direção, a autora
apresenta o fazer literário das mulheres como resultado de suas experiências: “não é no
papel que você cria, mas no seu interior, nas vísceras e nos tecidos vivos – chamo isto de
escrita orgânica” (2000. p. 234). E convoca as escritoras para se afastarem dos discursos
e regras hegemônicas do fazer literário, porque para a escrita feminina “alcançar mais
pessoas, deve-se evocar as realidades pessoais e sociais — não através da retórica, mas
com sangue (...) e suor” (2000. p. 235), pois o significado e valor da escrita está na sua
localização social e histórica, nas marcas do corpo da mulher escritora.
No conto metapoético, “Sabela”, Parte III (2017 [2016], p. 102-103), publicado
em 2016 no livro Histórias de leves enganos e parecenças, Conceição Evaristo dialoga
com essa perspectiva de Gloria Anzaldúa ao encenar o que entende ser a poética das
escritoras negras com perspectiva decolonial.
Por ser uma escrita da memória, o processo criativo não começa com a palavra,
ele tem início com um olhar para a narrativa do corpo negro, das marcas que esse corpo

128
carrega, das experiências negras: “a história que Sabela nos contou, e que eu reconto a
partir da palavra-vivência dela, é um relato constituído de nossos corpos, tanto os que
foram salvos, como os que perdidos na água ficaram. Em nossos corpos, memória e água”
(EVARISTO, 2017 [2016], p. 102). Na narrativa, a diferença da escrita da mulher negra
em relação a outras criações literárias consiste nesse processo, pois enquanto em algumas
tradições literárias o princípio do processo criativo é o verbo, para a criação feminina e
negra tudo começa pela palavra-corpo: “e o meu princípio que me foi dado a conhecer foi
a palavra-corpo de Mãe. Das entranhas-mater a origem de minha fala e a compreensão
primeira que tirei das águas” (p. 102). Não é qualquer corpo, é o corpo negro marcando
sua existência na palavra. Dessa forma, em outras literaturas, a escrevivência também
pode ser uma opção para a criação literária, mas ela não virá acompanhada do sujeito
autoral negro, do corpo negro, do seu existir e re-existir.
A leitura do conto ainda traz a denúncia de que havia uma mordaça que objetivava
diluir a voz negra no silêncio, imposto desde criança: “todos do meu tempo, ainda
pequenos, esqueceram o som e a fala”. Não havia o direito de fala, mas a mulher negra
burla essa imposição ao se autoavaliar e se autodenominar como sujeito pensante e
falante, escritora: “na fala naveguei, na fala, minha salvação” (2017 [2016], p. 85). Falar
é um movimento de libertação e é nele que as mulheres negras se veem como poetas,
donas da palavra, livres: “A cada palavra-movimento que eu executava, me livrara
recentemente do meu afogamento interior, a antiga mudez” (2017 [2016], p. 87). Como
já exemplificado no início deste texto, o que vemos na escrita das escritoras negras
brasileiras é o soar de vozes que traduzem as escrevivências que dão sentido às palavras
da poeta: “se minha boca é rasgada, minha memória não” (2017 [2016], p. 87). A escrita
como ato político de resistência é o que paira sobre o fazer literário das mulheres negras.
A crescente fortuna crítica das obras de Conceição Evaristo e de Um defeito de
cor, de Ana Maria Gonçalves, vem mostrando que a poética das escritoras negras
brasileiras está marcada pela presença do corpo negro, um corpo que é apresentado em
situação de colonialidade e um corpo que se quer livre e luta por isso. Maria Aparecida
Andrade Salgueiro (2004), em Escritoras negras contemporâneas, diz que uma das
questões relevantes nas obras de Conceição Evaristo é a reflexão sobre a diferença do
preconceito por gênero: “para as mulheres o racismo é uma experiência muito mais
forte, ligada principalmente ao corpo, na medida em que marca uma dupla

129
discriminação (...) A questão racial é uma questão de corpo” (SALGUEIRO, 2004, p.
125). Além disso, ressalta que “os elementos criativos, afirmativos e subversivos
expressos em suas obras são formas de resistência, destinados a combater o racismo e
o sexismo” (2004, p. 125).
Já a pesquisadora Fabiana Carneiro da Silva (2017, p. 18-19), em sua tese de
doutorado Maternidade negra em Um defeito de cor: história, corpo e nacionalismo
como questões literárias, compreende o corpo negro como um território de linguagem
e experiências de um coletivo de mulheres negras. A narrativa de Ana Maria Gonçalves
“destaca-se, então, por performatizar, em vários níveis, o corpo da mulher negra de
maneira que se conecta à genealogia da autoria negra-brasileira e se contrapõe à
ausência dessa representação no conjunto canônico de obras do sistema nacional”.
A “escrevivência” enquanto estética literária não contempla apenas as obras de
Conceição Evaristo e Ana Maria Gonçalves, mas toda uma “geração de escritoras
negras que imprimem em seus textos o desejo de que as marcas da experiência étnica,
de classe ou gênero estejam realmente representadas no corpo do texto literário
(CÔRTES, 2016, p. 52).

Referências
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do terceiro mundo”. Revista Estudos Feministas. Universidade Federal de Santa Catarina.
Florianópolis, v. 8, n. 1, p. 229-236, 1º sem.

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sociológica do pensamento feminista negro. Tradução de Juliana de Castro Galvão.
Revista Sociedade e Estado, v. 31, n. 1, jan. /abr.

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______, Cristiane; PEREIRA, Maria do Rosário A. (Orgs.). Belo Horizonte: Ideia, p. 51-
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e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê. p. 93.

130
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recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê. p. 94-95.

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Ocidente. Tradução de Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras.

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globais a uma ecologia de saberes. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES,
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SILVA, Fabiana Carneiro (2017). Maternidade negra em Um defeito de cor: história,


corpo e nacionalismo como questões literárias. Tese (Doutorado em Literatura). São
Paulo: Universidade de São Paulo.

131
SILÊNCIOS E SILENCIAMENTOS NO ENSINO DE LITERATURA PARA
ALUNOS SURDOS

Mirian Theyla Ribeiro Garcia (UnB)1

Resumo: O tema do ensino de literatura na Escola Básica é um desafio antigo. Há muito tempo ele
inquieta professores, pesquisadores acadêmicos e todos aqueles que não se conformam com a ideia do
distanciamento que insiste em separar a literatura e os estudantes. Este tema possui desdobramentos
igualmente preocupantes. Um deles diz respeito às dificuldades no ensino e aprendizagem de literatura
junto a alunos com NEE (Necessidades Educativas Especiais). Um exemplo representativo da
ineficácia do ensino de literatura em relação a este tipo específico de aluno é o dos surdos, como será
demonstrado no presente artigo.

Palavras-chave: Ensino de literatura; Educação literária; Letramento literário inclusivo; Surdos;


Inclusão.

O tema do ensino de literatura na Escola Básica é um desafio antigo. Há muito tempo


ele inquieta professores, pesquisadores acadêmicos e todos aqueles que não se conformam
com a ideia do distanciamento que insiste em separar a literatura e os estudantes. Neste
campo, multiplicam-se problemas e, até o momento, poucas são as propostas efetivamente
eficazes para a reversão do lastimável e extenso quadro de ineficiência de práticas de ensino
de literatura e de formação de leitores literários nas escolas.
Como se não fosse suficientemente negativo, este tema assume ares ainda mais críticos
quando se pensa em seus desdobramentos. Um deles diz respeito às dificuldades presentes no
ensino e aprendizagem da escrita e leitura (competências/habilidades fundamentais para o
desenvolvimento da leitura literária) de alunos com NEE.
Estes alunos testemunham no cotidiano de suas salas de aula não apenas os problemas
de natureza estrutural que restringem a qualidade da educação que lhes é ofertada. Os alunos
com NEE sofrem, ainda, com problemas relativos ao atendimento de suas demandas,
interesses e especificidades.
No fim das contas, tanto as falhas estruturais quanto as de natureza específica resultam
em um mesmo fim: o da perpetuação de muitas dimensões de exclusão social. Em vista de
sua natureza nociva, tais problemas precisam ser conjuntamente combatidos em todas as
esferas de atuação e, no caso das escolas, precisam ser solidariamente rechaçados por

1
Professora da SEEDF (Secretaria de Educação do Distrito Federal) e doutora em Literatura e Práticas
Sociais pela Universidade de Brasília (UnB). Contato: mtheyla@gmail.com

132
professores de todas as disciplinas e níveis de ensino. O ensino de literatura, como será
demonstrado a seguir, pode contribuir com este embate.

Os alunos com NEE


A expressão Necessidades Educativas Especiais (NEE) é usada para referir as
condições sensoriais, físicas ou intelectuais que, isoladamente ou combinadas, possam causar
dificuldades específicas de aprendizagem devidas a fatores orgânicos ou ambientais. Em
razão destas especificidades, tais indivíduos “podem necessitar de apoio de serviços de
educação especial durante todo ou parte do seu percurso escolar, de modo a facilitar o seu
desenvolvimento acadêmico, pessoal e socioemocional” (CORREIA, 2008, p, 23).
O conceito de NEE costumeiramente é associado às pessoas com deficiência física e/ou
mental, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação e, de fato, os
abrange. No entanto, por sua ampla significação, esta nomenclatura inclui ainda sujeitos em
situação de rua ou de trabalho precoce, oriundas de populações remotas ou nômades,
membros de minorias linguísticas, étnicas ou culturais e integrantes de áreas de conflitos ou
grupos desfavorecidos ou marginalizados (UNESCO, 1994).
Independentemente de sua etiologia ou tipificação, os alunos com NEE por vezes são
desconsiderados ou percebidos ocasionalmente quando se aborda o problema estrutural do
ensino e aprendizagem da leitura e da escrita em ambiente escolar e isto representa duplo
prejuízo para a sua formação. Duplo prejuízo porque, como já mencionado, estes sujeitos,
além das dificuldades costumeiramente referidas como estruturais na educação, precisam
lidar também com outras, inerentes ao atendimento de suas especificidades.
As idiossincrasias dos estudantes podem tornar mais complexa a tarefa de ensinar
leitura e escrita e, juntamente com estas habilidades, estimular o desenvolvimento de leitores
literários nas escolas. No entanto, as adversidades oriundas deste processo não podem ser
encaradas como barreiras intransponíveis. Sobretudo porque o aprimoramento da
competência leitora dos sujeitos-discentes é garantidor do sucesso educativo e também claro
fator de inclusão social nas sociedades contemporâneas hiper e pluri letradas.
Um exemplo representativo da ineficácia do ensino de literatura em relação a este tipo
específico de aluno é o dos surdos, que, conforme apontam Müller (2016) e Apolinário
(2005), há muito tempo são acusados de serem maus leitores, ou ainda, de não gostarem de
ler. Esta concepção, problemática e parcial por diversas razões, demonstra que o ensino de

133
literatura para os surdos tem sido tratado superficialmente e, não raro, taxativamente. Isso
porque ela confunde consequência com causa e não leva em conta importantes elementos
condicionantes. Alguns destes elementos serão referidos a seguir.

Os surdos e a leitura: dilemas e desafios


Anteriormente, mencionou-se que, com considerável frequência, aos alunos surdos são
atribuídas características que mesclam tons de inverdade, preconceito e estereotipação. Entre
elas, a presumida imperícia linguística e o afastamento deliberado destes indivíduos com
relação às práticas de leitura, a exemplo da literária.
Entendimentos como os referidos, parciais e estigmatizadores, não levam em
consideração o fato de ser “escasso o acesso que tais educandos, comumente, têm aos textos
literários” (PEREGRINO et al, 2010, p. 69). Além disso, atribuir aos surdos a exclusiva
responsabilidade por uma situação a que eles não deram causa e da qual são os maiores
prejudicados é profundamente inadequado. Sobretudo porque desconsidera outro fator
agravante. Trata-se da dissociação existente entre as práticas de ensino que objetivam
apresentar aos estudantes o universo da literatura e o “exercício efetivo da linguagem”
(SOUZA, 1998, p. 23) — isto é, da vivência, significativa e aprofundada, da experiência
literária.
Ainda de acordo com Apolinário (op. cit.), em contextos tão pouco estimulantes como
os referidos, não se questiona o porquê da prática de leitura ser tão desagradável para os
surdos, “ainda mais a leitura literária”. Além disso, não se leva em consideração que os alunos
surdos vêm sendo mantidos em contextos de “exclusão linguística” (SCHEMBERG et al,
2009, p. 267). Tal exclusão ocorreria, entre outros fatores, porque há escolas em que os surdos
são predominantemente ensinados com a utilização da língua brasileira de sinais (Libras) e,
em oposição a estas, há aquelas em que as aulas ocorrem baseadas, exclusivamente, em textos
escritos em língua portuguesa.
Quando ocorrem isoladamente, as duas propostas apontam para um mesmo resultado: a
restrição do alcance da aprendizagem de seus educandos. O prejuízo ocorreria porque os
surdos precisam das duas modalidades linguísticas em sua formação enquanto sujeitos
leitores e letrados. Além disso, há de se considerar que, em muitos casos, os surdos não
dominam nenhuma das duas línguas, o que dificulta, ainda mais, sua formação escolar.

134
Mas há, ainda, outro aspecto que contribui para o afastamento do surdo em relação à
literatura. Trata-se da utilização da leitura literária tão somente como auxiliar ao trabalho
pedagógico, focando-se apenas na dimensão linguística dos textos. Esse expediente coopera
com a diminuição do alcance da formação escolar oferecida aos estudantes surdos porque
percebe a leitura, e por consequência a literatura, exclusivamente “como ferramenta ou
recurso didático para o ensino da língua na modalidade escrita” (PEREGRINO et al, 2010, p.
69) sem atentar para suas outras dimensões de significação possível. Nesses casos, a formação
dos surdos fica comprometida porque, para eles, “os processos de escolarização não estão
voltados à formação de sujeitos letrados”, mas tão somente alfabetizados2 (BOTELHO, 2010,
p. 65).
Como resultante de um cenário assim, a perda pedagógica é evidente. No entanto, a
despeito do prejuízo que pode vir a causar, tal sistemática ainda é uma realidade conhecida
nas escolas. Tal situação diz respeito à ocorrência de práticas como a referida por Karnopp
(2010, p. 66), que relata como usual a dispensa dos alunos surdos da participação de
atividades que envolvam a leitura ou escrita de textos literários. De acordo com a autora, a
dispensa ocorreria tendo em vista uma presumida dificuldade/incapacidade que esses alunos
teriam de assimilar ou produzir textos mais “difíceis”.
Esse tipo de ação, independentemente da boa-fé de seus propósitos, é contraproducente.
Ela não leva em conta, por exemplo, que se o estudante surdo não é um leitor literário
razoavelmente competente por não dominar de modo aprofundado a língua portuguesa, ele
não superará esta condição se continuar tendo pouco contato com a leitura literária. Isso
porque “crescemos como leitores quando somos desafiados por leituras progressivamente
mais complexas” (COSSON, 2012, p. 35).
Interpretações como essa estão presentes em diversos dispositivos legais balizadores da
educação. É o caso, por exemplo, dos Parâmetros Curriculares Nacionais, que advertem não
ser possível formar (ou estimular a formação de) leitores competentes ― notadamente entre
os que estão iniciando suas leituras literárias; disponibilizando aos estudantes apenas textos
que sejam pouco desafiadores ou estimulantes. Outrossim, a crença acerca de uma suposta e
intrínseca falha na competência leitora do surdo é refutada pelo fato de o mesmo tipo de

2
É importante destacar que, embora não se questione a ligação, conceitual e prática, existente entre
linguística e literatura e nem se objetive, com este artigo, promover (ainda que incidentalmente) a
dissociação entre campos do saber em íntima relação, é relevante chamar a atenção para a pouca oferta e
profunda necessidade de estudos específicos que oxigenem as práticas de letramento literário dos alunos
surdos. A rigor, entende-se que tal renovação representa relevante conquista para as duas áreas referidas.

135
dificuldade ocorrer, também, com os alunos não-surdos que não praticam a leitura em
ambiente escolar.
Nesse caso, não haveria o que se justificar em termos de especificidades fisiológicas.
Então, conforme ressalta Botelho (2010), se há problemas na formação literária ofertada aos
surdos nos ambientes escolares, eles não se devem à condição surda em si. Eles resultam,
entre outros fatores, de processos de escolarização que não estão voltados para a constituição
de sujeitos letrados e nos quais há pouco acesso aos textos literários.
Desta maneira, o que parece afastar o aluno, surdo ou não, da leitura de literatura na
escola não é apenas a sua suposta imperícia linguística. O ponto crítico da questão diz respeito
também à ineficiência das práticas de letramento literário que busquem a promoção de
contato significativo entre alunos-leitores e obras e possibilitem o diálogo entre eles.
Nesse cenário, além de evidente prejuízo pedagógico, é grande a chance de perpetuação
dos processos de exclusão desses sujeitos. Isso porque a necessidade de tutelamento
(institucional ou não) do surdo perdurará enquanto ele não adquirir preparo suficiente para
tornar-se independente. Tal autonomia deve possibilitar ao surdo transitar sem embaraço por
todos os campos ou situações que tenham relação com a língua escrita e com a tradição
literária (cf. RAMOS, 2001).
Como alternativa a atitudes como a mencionada por Karnopp (2010), sugere-se como
adequada a imersão dos alunos surdos em práticas de leitura gradativamente mais complexas
e estimulantes e para as quais é essencial o contato com textos e obras literárias. Essa sugestão
está baseada no entendimento segundo o qual, sem o aperfeiçoamento da experiência leitora
pelo letramento literário, será profundamente difícil para estes (ou quaisquer outros)
estudantes, apenas pela prática individual, o desenvolvimento de estruturas discursivas mais
elaboradas.

Os surdos e o direito à literatura


Para Abrahão e Pereira (2015), a educação literária é um processo tão relevante à
formação humana que constitui uma prerrogativa essencial, um direito inalienável nos
espaços formais de educação. Ao apontar o acesso à literatura como um conteúdo a ser
garantido aos estudantes, os autores mencionados fazem referência ao ensaio de autoria do
sociólogo e crítico literário Antonio Candido intitulado “O direito à literatura“ (CANDIDO,
1995),

136
Neste ensaio, Candido defende que a literatura não é um artigo de luxo. Para ele, a
literatura é uma expressão cultural e artística cuja natureza polissêmica e plurissignificativa
atua em diferentes esferas de significação, como a psicológica, emocional, criativa,
sociocultural e educativa. Tal particularidade revestiria a literatura de funcionalidades que a
tornariam um relevante instrumento para o conhecimento de si próprio e do mundo.
Em razão de sua importância, o acesso a esse tipo de produção cultural configuraria-se
como um direito básico do ser humano. Isso porque a literatura é e “tem sido um instrumento
poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como
equipamento intelectual e afetivo” (op. cit., p. 261).
Consoante essa perspectiva, a leitura e o estudo das mais diversas obras literárias
constituiriam matéria de patente interesse à formação das pessoas, o que justificaria o ensino
de literatura como disciplina escolar elementar em todo o país e para todos os estudantes.
Além disso, o ensino de literatura nas escolas seria importante porque “ninguém nasce
sabendo ler literatura, esta habilidade, como qualquer outra, precisa ser aprendida” (LAJOLO,
2008, p. 7).
Ao deslocar essa reflexão para o caso específico dos surdos, Abrahão e Pereira (op. cit.)
defendem ainda que o estudo de leitura constitui uma importante ferramenta a serviço não
apenas de um, mas de dois enfrentamentos de questões normalmente relacionadas a esses
sujeitos. O primeiro diz respeito os processos de exclusão, marginalidade ou invisibilidade
que os próprios estudantes surdos sofrem dentro e fora da escola.
Esses processos caracterizam-se pelo desconhecimento e a desconsideração das
particularidades e potencialidades das pessoas surdas. Tais formas de (não) perceber o ser
surdo são estruturalmente danosas porque auto-alimentam uma sucessão de mal-entendidos,
concepções equivocadas e preconceitos que dificultam a inclusão (social e pedagógica) destes
indivíduos.
Curiosamente, embora fortemente atuantes, os processos de invisibilidade da condição
surda ainda não têm sido discutidos e estudados com a frequência, destaque e
aprofundamento com que a questão merece ser abordada. A respeito deste tema e seus
desdobramentos correlatos, preponderam silêncios incômodos e potencialmente danosos,
sobretudo porque resultam em silenciamentos da condição surda.
O segundo enfrentamento, em grande parte decorrente do anterior, refere-se ao resgate
e (re)valorização do já mencionado lugar acessório ocupado pela literatura nas práticas de

137
ensino e aprendizagem dos alunos surdos. Tal proceder é importante porque a limitação das
práticas de leitura literária dos surdos compromete o alcance e a qualidade da formação que
lhes é oferecida nas escolas.
Dito isso, entende-se como oportuno e necessário o diálogo entre a literatura e os surdos
por meio das práticas de letramento. A natureza da contribuição desta linguagem é importante
para a formação escolar plena desses sujeitos porque o contato aprofundado com a literatura
contribui para o aprimoramento da competência leitora, essencial para a inserção social. De
mais a mais, esse aprimoramento também possibilita a participação no universo cultural
permeado pela leitura literária.
Deste modo, ressalta-se a urgência do estabelecimento de discussões e estudos
especializados a respeito de aspectos relevantes à oferta e aprimoramento das práticas de
letramento literário tendo em vista a oferta mais efetiva da educação literária aos alunos
surdos. A relevância de tais reflexões é evidente haja vista que os alunos surdos têm sido,
conforme já referido, sistematicamente impedidos de desenvolver habilidades junto a esse
campo do saber.
Em vista disso, corrobora-se a tese segundo a qual propiciar o ensino de literatura
focado, entre outros aspectos, na formação do leitor literário surdo é mais que uma discussão
curricular. Assegurar esse tipo de conhecimento é um caminho possível para efetivar um
compromisso ético evidente, pois torna possível ao surdo não apenas aprimorar sua
competência leitora, mas também apropriar-se do seu direito à literatura.

Estudos (multi) Culturais: uma contribuição possível


Uma contribuição possível para o aprimoramento da educação literária oferecida nas
escolas, sobretudo aos surdos, encontra-se na associação das concepções de correntes teóricas
como a teoria dos Multiletramentos e do Multiculturalismo. Essas abordagens são
mencionadas como relevantes porque, entre outros aspectos, consideram o leitor, suas práticas
sociais e seus modos de recepção como partes atuantes e intercambiáveis na elaboração de
sentidos dos textos lidos e elementos importantes para o desenvolvimento de práticas
educativas mais significativas e eficazes. Alinhados às proposições destas correntes teóricas,
estão alguns dos preceitos essenciais da corrente teórica conhecida como Estudos Culturais.
Os Estudos Culturais surgiram originalmente na Inglaterra e foram desenvolvidos por
teóricos como Richard Hoggart, Raymond Willians, E. P. Thompson e, posteriormente por

138
Stuart Hall, entre outros. Esses intelectuais fundaram, em 1964, o CCCS (Centre for
Contemporary Cultural Studies), departamento vinculado à pós-graduação do Departamento
de Inglês da Universidade de Birmingham, na Inglaterra. Nesse centro, em uma perspectiva
inovadora para a época, foram desenvolvidos estudos de inspiração marxista que buscavam
investigar as relações entre a cultura contemporânea e a sociedade.
Ainda que propostos há mais de 50 anos, os Estudos Culturais ainda constituem um
vasto campo metodológico e conceitual internacionalmente reconhecido e referido. Isso
ocorre porque este ordenamento conceitual está aberto, entre outras propostas, ao
desenvolvimento de leituras mais dispostas a trabalhar com pontos de vista, conformações e
significações mais diversificadas. Isso inclui considerar as mais diferentes manifestações
culturais populares como expressões imbuídas de valor e importância.
O reconhecimento de produções pertencentes à cultura popular, antes ignoradas e que
passaram a ser consideradas como manifestações representativas e válidas para estudos
especializados, estruturou um fenômeno. Tal fenômeno ficou conhecido como Virada
Cultural (cf Hall, 1997, p. 27). De acordo com as orientações desta nova perspectiva, os
acontecimentos ou fenômenos de ocorrência global (independentemente da esfera, como a
política, econômica, climática, sociológica etc.) não ocorrem de forma isolada. Eles seriam
significados e ressignificados pelas pessoas. Tal dinâmica possibilita entender os eventos,
vivências e situações como elementos que alteram e exercem influência nas formas de pensar,
sentir e agir. Sendo assim, diferentes situações podem ser entendidas como processos
culturais e discursivos (cf. CRUZ, 2006, p. 71).
Na esteira das propostas da Virada Cultural, emerge o entendimento de que toda
expressão de cultura possui lógica, valores e complexidade simbólica que merecem ser
conhecidas e respeitadas. De acordo com essa interpretação, cabe ao receptor da obra (ou seu
crítico) incorporar seus significados, posicionar-se contra eles ou reelaborá-los, apropriando-
se de seus sentidos. Esta interpretação evidencia uma das características mais marcantes dos
Estudos Culturais: o convite à substituição da recepção isolada ou do olhar teórico
excessivamente técnico por uma postura crítica de natureza mais política.
Linhas de pensamento como a dos Estudos Culturais são apontadas como relevantes
para o tema do ensino da literatura para surdos porque possibilitam entender que um estado
mais equilibrado de convivência humana não é o da igualdade absoluta. A rigor, esses estudos
argumentam que interpretações como as que defendem a incondicionalidade absoluta de

139
conceitos como a igualdade apenas despersonalizam os sujeitos e abrem espaço para práticas
de sujeição individuais ou coletivas.
Além disso, os Estudos Culturais promovem uma concepção da identidade inserida na
proposta da resistência cultural, o que estimula o entendimento da obra literária como espaço
privilegiado para o questionamento e o confronto de manipulações de diversas naturezas. Por
extensão, esse tipo de entendimento permite perceber a leitura e o estudo da literatura como
agentes fomentadores de intervenções concretas na realidade com vistas a superar
desigualdades derivadas dos mais diversos processos de submissão ou exclusão.
Tal interpretação retoma e contextualiza os preceitos da escola inglesa clássica dos
Estudos Culturais. Isso porque considera como válida a questão do pertencimento identitário
dos alunos constitui um claro elemento de resistência cultural em se tratando de práticas de
ensino esvaziadas de sentido. Essa resistência, quando pensada em articulação com o caso dos
surdos e de outras minorias linguísticas e culturais, é natural e benéfica.
Neste ponto, é importante destacar que a adoção desta perspectiva não pode ser
confundida com imposição forçada da alteridade (o que apenas significaria a mera alternância
entre atores em uma mesma sistemática de sujeição a um ponto de vista). Tal proposta estaria
mais voltada ao esforço pelo estabelecimento e disseminação de uma consciência crítica
coletiva que teria força suficiente para questionar e até desestabilizar ideologias
predominantes e estruturas internas de relações de poder historicamente construídas,
culturalmente estabelecidas e marcadas pelo signo da exclusão.

EM DEFESA DE UM LETRAMENTO LITERÁRIO INCLUSIVO


Anteriormente, sugeriu-se que uma forma de desarticular e combater práticas de ensino
marcadas por silêncios e silenciamentos de coletividades e de diferenças culturais e
identitárias seria o desenvolvimento de um novo nível de conscientização que estimularia
novas formas de pensar e agir. Quando considerada pelo viés da educação literária, esta
mudança envolve, entre outros aspectos, o desenvolvimento de aulas de literatura mais
abertas ao conhecimento e convivência com a diferença. Tal (re)orientação do caráter, outrora
meramente historiográfico e técnico, dos conteúdos corriqueiramente associados a esta
disciplina demanda o desenvolvimento de aulas de literatura em perspectiva mais inclusiva.
Isso significa que, quando pensada em termos de ensino de literatura a alunos com
NEE, a abertura ao conhecimento e convivência pacífica com a diferença deve ter um

140
elemento norteador essencial. Para tanto, no caso específicos dos surdos, é preciso entender a
surdez não como “incapacidade” de ouvir, isto é, como emblema de uma falta. A surdez deve
ser percebida como marca cultural e questão identitária que, como tais, precisam ser
permanentemente recriadas no curso das relações humanas.
Por essa perspectiva, lecionar para alunos surdos envolveria mais que o esforço
cotidiano em transmitir conteúdos curricularmente previstos. Implicaria, também, na
responsabilidade de refletir (e levar os alunos a refletir) sobre as intrincadas dinâmicas
interacionais e subjetivas que envolvem o ser surdo em um mundo predominantemente
estruturado em função das pessoas não-surdas.
Neste caso, a contribuição dos Estudos Culturais para a promoção de práticas
educativas é evidente. Sobretudo porque esta abordagem teórica, entre outros aspectos,
defende que “o lugar da leitura é um espaço para formação de cidadãos conscientes da
diferença como uma possibilidade cultural de relacionamento” (GOMES, 2009, p. 2).
Entendimentos desta natureza, de acordo com Souza (2015), estariam em harmonia
com os preceitos essenciais da educação inclusiva enquanto projeto de oferta de educação de
qualidade e de natureza mais abrangente. A amplitude de tal proposta é evidente pois envolve
o compromisso com a formação integral de todos os estudantes indiscriminadamente e o
esforço para a valorização dos interesses e demandas de diferentes indivíduos com múltiplas
visões de mundo e com conformações (biológicas ou culturais) diversas das referidas em
padronizações tidas como predominantes.
Sendo assim, reitera-se uma das maiores contribuições dos Estudos Culturais para a
educação (literária ou não). Trata-se do esforço pela sensibilização de estudantes,
profissionais da educação e pesquisadores, para a promoção de práticas de ensino mais
articuladas e sensíveis à interação com as múltiplas experiências de vida e às intensas relações
sociais das quais todos fazem parte.
A pertinência da colaboração das propostas dos Estudos (multi) Culturais para a
reflexão sobre as práticas de letramento literário para alunos surdos é, portanto, evidente e
desejável. Sobretudo se for levada em consideração a importância de temas relativos à cultura
e à identidade surdas.
Tendo em vista o entendimento desta orientação como pertinente e válida, encerra-se o
presente artigo reiterando-se o entendimento acerca da necessidade e urgência do
fortalecimento das práticas de letramento literário em termos gerais e, também, em

141
perspectiva mais inclusiva. Esta proposta busca intensificar o potencial da formação escolar
dos estudantes (com ou sem NEE) pela combinação entre a oferta de conteúdos tradicionais e
os de natureza estética, humanística e social, sem os quais há, seguramente, empobrecimento
da formação escolar oferecida.

Referências
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literatura: por uma Educação literária multimodal. Revista Philologus, Ano 21, n. 63 — Supl.
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Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos (CiFEFiL), setembro/dezembro de 2015.

APOLINÁRIO, Andréa Aléssio. O que os surdos e a literatura têm a dizer? Uma reflexão
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em Estudos Literários). Maringá: Universidade Estadual de Maringá, 2005.

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educativas especiais. Brasília: Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora
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143
PIQUENIQUE LITERÁRIO: A POESIA COMO ALIMENTO NA SALA DE
AULA

Sue Helen da Silva Vieira (UFRJ)1

Resumo: Este trabalho pretende expor uma maneira diferenciada de levar a poesia
dentro da sala de aula, através da realização do piquenique literário. Inicialmente as
pesquisas foram feitas individualmente com a orientação do professor e, em seguida, as
turmas foram divididas em duplas, a fim de produzirem suas antologias e elaborarem
artesanalmente os livros que seriam apresentados e expostos no dia do evento. O
letramento literário possibilitou o enriquecimento das leituras e ampliou a reflexão feita
pelos alunos.
Palavras-chave: poesia; educação; letramento.

Nos recantos da sala de aula, a poesia constitui-se como um dos gêneros literários
menos prestigiados no fazer pedagógico, e a pergunta de Alfredo Bosi no posfácio é: “a
poesia é ainda necessária?” (BOSI, 2015, p. 259). A resposta é sim, e tornou-se ainda
mais imprescindível nos dias de hoje. Diante disso, por que então existe a dificuldade de
professores utilizarem esse recurso? Quais são as complexidades que envolvem essa
situação? Este artigo pretende expor algumas razões para essa questão, mas, sobretudo,
mostrar uma maneira diferenciada de levar a poesia, expondo um projeto literário que
foi feito em uma escola, cujo nome é piquenique literário.
O trabalho envolvendo a poesia na sala de aula precisa ser valorizado e planejado
com atenção e bastante cuidado, para que esse gênero não seja usado de maneira
equivocada e sem o devido zelo que a linguagem precisa. No entanto, o que se tem visto
pelos recantos da sala de aula são alunos desinteressados pela poesia e docentes
desestimulados em atuar com estes textos, normalmente os professores dão maior
importância a textos em prosa, deixando a poesia de lado. Outro ponto relevante é que
muitos apresentam dificuldades em compreender alguns versos e preferem não levar
adiante essa dificuldade, que talvez fosse sanada se o profissional se dispusesse a ler
mais os textos e tratá-los com um pouco mais de intimidade.

1
Graduado em Letras (UFRJ), Mestre em Literatura Brasileira (UFRJ), Doutoranda em Literatura
Brasileira (UFRJ) Contato: suehelen.mestra@yahoo.com.br

144
Como se isso não fosse o suficiente, há certas abordagens do poema que se
aplicam apenas ao nível técnico e estrutural, professores que cobram de seus respectivos
alunos dados tais como “quantas estrofes há no poema?” ou “qual é o tipo de rima?”.
Isso reduz o rico material em detalhes que em nada refletem os aspectos significativos e
ricos da poesia. A forma mecânica e sistemática de abordar o texto não engrandece a
aula e permite que o aluno associe a poesia à sua estrutura, esquecendo-se de fazer
emergir relatos de vivência, percepção de seu significado e sua musicalidade.
É importante que o docente realize pesquisa e leitura antes de oferecer algo tão
rico e capaz de ampliar as experiências de seu aluno-leitor. Acredita-se que atualmente a
pergunta não seja mais “por que estudar poesia?” e sim “como oferecer a poesia”? ou
“de que maneira posso fazer isso?”. Este artigo tem como finalidade demonstrar o
trabalho feito com alunos do ensino fundamental nas séries finais na escola
Municipalizada Paineira na cidade em São Pedro da Aldeia, com aproximadamente
103.000 habitantes, no interior do Rio de Janeiro. A proposta inicial foi inserir a leitura
e reflexão de poemas no ambiente escolar e que de forma gradativa se aprofundasse na
apreciação dos textos de modo que ficasse o mais interessante possível para os alunos.
Então, cada aula os alunos recebiam um poema e mostravam suas impressões, mesmo
que tímidas, aos colegas de classe, e essa aproximação do texto com o leitor teve que
iniciar bem tranquilamente, a fim de haver um reconhecimento das composições e sua
linguagem expressiva. Aos poucos, os poemas foram apresentados aos discentes em sala
de aula com maior frequência e, após algumas aulas, foi proposta a ideia do piquenique
literário.
A idealização do projeto literário seguiu o princípio da pretensão de ser feita uma
experiência criativa da poesia com o aluno com a escolha de um local agradável e fora
do ambiente habitual da sala de aula, à beira da lagoa de Araruama, cartão postal da
cidade, que fica próximo à escola e permitiu que os alunos fossem caminhando em
direção ao destino. Com o apoio integral, a direção da escola comunicou aos pais dos
alunos o evento e pediu a colaboração com os alimentos que deveriam ser levados ao
piquenique, além disso, foi requisitado que os responsáveis acompanhassem a produção
dos livros artesanais com a antologia dos poemas selecionados por cada dupla. A
professora de língua portuguesa após sucessivas abordagens separou os alunos em
duplas e sorteou um grupo seleto de poetas consagrados. A ideia teve grande

145
receptividade por parte dos pais e dos alunos que tão logo se animaram para produzir
seus livros e participar do piquenique.
Por meio dessa experiência, o intuito era firmar o compromisso da apreciação
efetiva dos textos literários, de modo que a escolarização dos textos poéticos não
fossem ações simulacras de si mesma, mas que fizessem sentido para os alunos. É
sabido que ninguém nasce sabendo ler literatura e esse aprendizado precisa começar o
quanto antes na escola. Além disso, é essencial frisar que o ensino literário deve
proporcionar a função primordial de reelaborar a palavra que torna o leitor mais humano
e capaz de refletir sobre diversas questões. Segundo Rildo Cosson em Letramento
literário, “ler implica troca de sentidos não só entre o escritor e o leitor, mas também
com a sociedade onde ambos estão localizados, pois os sentidos são resultado de
compartilhamentos de visões do mundo entre os homens no tempo e no espaço”
(COSSON, 2018, p. 27). Portanto, através da leitura e do conhecimento dos textos
poéticos se apresenta aos alunos novas maneiras de explorar o conhecimento para o
sentido e possibilitar novas aprendizagens.
O professor assume o papel de intermediário entre o livro e o aluno, logo se torna
essencial que ele tenha uma bagagem literária que permita a seus alunos ter uma
pluralidade de experiências e noções de meditação sobre a obra lida. No entanto,
infelizmente, o que se têm ouvido nos corredores das escolas é que poesia é difícil de
ser compreendida e, portanto, muitos colegas se excluem de participar ativamente da
inclusão do gênero na escola, criando barreiras invisíveis para a poesia. Para além do
desânimo, o que se vê é um atrofiamento intelectual dos profissionais da educação que
se limitam em apresentar algo raso nos colégios, de modo que demonstram não apenas
despreparo, como também desinteresse por esse tipo de trabalho. Como transformar o
aluno em leitor de poesia, se o professor não as lê? Logo, parte-se da premissa que a
leitura de poesia necessita ser uma realidade que seja comum ao profissional da
educação, a fim de que haja proximidade com o gênero.
A proposta do piquenique literário começou por meio da seleção dos poetas que
seriam lidos pelos alunos e essa escolha se baseou no cânone brasileiro, com a exceção
do poeta português Fernando Pessoa, que não podia ficar de fora, como representante
mais ilustre da poesia portuguesa. O estudo a partir do cânone assegura o conhecimento
da herança cultural e segundo Cosson,

146
Dessa maneira, têm razão os que afirmam que não se pode pensar em
letramento literário abandonando-se o cânone, pois este traz preconceitos
sim, mas também guarda parte de nossa identidade cultural e não há maneira
de se atingir a maturidade de leitor sem dialogar com essa herança, seja para
recusá-la, seja para reformá-la, seja para ampliá-la (COSSON, 2018, p. 34).

Dentre esse e outros argumentos, o papel do professor é partir daquilo que o aluno
já vivencia para algo desconhecido, com o propósito de impulsionar o desenvolvimento
através da abertura de seus horizontes de leitura. A partir disso, os autores selecionados
foram:
1. Olavo Bilac
2. Augusto dos Anjos
3. Gilka Machado
4. Oswald de Andrade
5. Manuel Bandeira
6. Cecília Meireles
7. Carlos Drummond de Andrade
8. Vinicius de Moraes
9. João Cabral de Melo Neto
10. Ferreira Gullar
11. Fernando Pessoa
12. Ana Cristina Cesar
13. Ana Martins Marques
As reações foram as mais diversas, alguns não faziam ideia quem era o autor que
havia recebido, outros queriam escolher determinados poetas, alegando que já tinham
lido algo a respeito, como foi o caso de Cecília Meireles, Vinicius de Moraes e Manuel
Bandeira. Cada pesquisa os chamava atenção, pois a partir dali conheciam quem
realmente deveriam estudar e os assuntos que era mais interessantes.
A metodologia utilizada seguiu o seguinte critério: duas turmas, o sétimo e o
oitavo anos do ensino fundamental, com média de 30 alunos em cada classe, foram
separadas em duplas. Para que não houvesse tumulto, foram separados dias diferentes
para cada série. A professora realizou o sorteio dos poetas que cada dupla ficaria
responsável e, após isso, os alunos deveriam se planejar para ler os textos, selecionar
um poema para análise mais completa, preparar a apresentação oral de suas conclusões

147
acerca da leitura e montar uma antologia, que deveria ser manuscrita e encadernada,
com a seleção dos poemas feita exclusivamente por eles. Ficaram acordados também
quais os alimentos e bebidas que deveriam ser levados ao piquenique, a fim de que
fossem saboreados ao final da programação.
Em sala de aula, a docente ficou com a responsabilidade de trazer alguns poemas
dos autores selecionados para que os alunos pudessem superar as dificuldades iniciais
que o texto poético poderia causá-los. Assim sendo, tornou-se necessário que a
atividade de leituras de textos literários em sala de aula fosse constante, uma vez que os
alunos não tinham contato com os textos fora do ambiente escolar. Não foi uma tarefa
fácil, visto que as complexidades da leitura por parte da classe estavam ligadas à
ausência de habilidade com o texto e também à incompreensão da obra.
A maneira como o poema diz ou mostra sua experiência possibilita uma junção
íntima entre o leitor e a obra que estimulará suas emoções e sua emotividade. A poesia
não deve ser estudada apenas como conhecimento da língua de uma maneira
pragmática, porquanto ela se revela como linguagem mais expressiva e enriquece a
vivência de seus leitores.
Após algumas semanas analisando os textos poéticos, os alunos deveriam elaborar
sua pesquisa em casa ou na biblioteca da escola, que possui um acervo bastante
considerável. Alguns deles recorreram à internet e em outros casos a docente teve que
emprestar algumas obras que não faziam parte dos livros da sala de leitura. Combinou-
se uma data para realização do evento e, neste dia, os discentes deveriam estar prontos
para trazer o livro confeccionado artesanalmente, a poesia a ser lida em voz alta e
analisada e uma pequena introdução sobre a vida do autor e o contexto histórico a que
ele pertence.
Segundo Helder Pinheiro em Poesia na sala de aula, “O professor não deverá
ficar apenas na leitura de antologias. Há que ir além, mergulhar fundo na obra de seus
poetas preferidos, conhecer seu estilo, seus temas, seu modo particular de assimilação
lírica do real” (PINHEIRO, 2018, p.37). Tomando como base essa premissa, o
piquenique literário tornou-se uma abordagem inovadora e lúdica de proporcionar aos
alunos uma maneira enriquecedora com o texto poético, bem como viabilizar o
letramento literário como resultado das práticas do poder da humanização.

148
As práticas na rotina escolar devem contemplar o processo de letramento literário
não com a mera leitura das obras, mas fazer com que o texto tenha um real sentido na
vida do aluno e, para que isso ocorra, é imprescindível que haja uma troca de sentidos
entre o escritor e o leitor. O piquenique culminou em um processo que foi iniciado aos
poucos em sala de aula, de sorte que o compartilhamento de visões acerca da leitura foi
abrindo as portas para um raciocínio que ultrapassasse as linhas dos versos, isto posto a
finalidade do letramento literário seria a construção de uma comunidade de leitores que
saibam abordar os textos literários segundos seus próprios interesses.
No dia do evento, a professora notou que alguns pontos precisariam ser revistos,
poucos alunos apresentaram dificuldades em expor oralmente o que entenderam sobre o
poema escolhido, talvez pela timidez ou pela falta de compreensão. Com paciência, a
professora precisou conversar em particular para averiguar o que realmente estava
acontecendo. Vagarosamente foi auxiliando os alunos como um diálogo e pediu que
eles falassem sobre algo que mais os impactaram durante a pesquisa e pode acompanhar
a evolução de suas conclusões na frente dos colegas. Outro ponto desconcertante foi que
determinados alunos não conseguiram entregar o livro com as antologias, porém não
foram impedidos de participarem da atividade e apresentarem suas observações acerca
de suas leituras.
Diante do exposto, algumas considerações devem ser pontuadas, entre elas
observou-se: a) a empolgação dos alunos foi tremenda diante do fato de realizarem uma
atividade em que eles fossem os personagens principais, ao tomarem ciência de que
deveriam apresentar suas impressões sobre os poemas lidos e uma parte da biografia dos
poetas, eles se dedicaram com afinco, a fim de realizar um bom trabalho; b) o início das
leituras dos poemas em sala de aula foi bem difícil, não entendiam o formato dos textos
e colocaram as dificuldades em alerta; c) o trabalho com a leitura e interpretação dos
poemas precisou ser feito repetidas vezes até que fosse constatado que poderiam fazer
isso sozinhos; d) alguns profissionais da educação se anularam da realização do projeto
alegando muito trabalho e que “perderiam tempo” para expor os conteúdos do currículo
mínimo; e) o apoio da comunidade escolar foi fundamental para que o piquenique fosse
um sucesso, sem a presença da família e da direção da escola seria mais difícil para
idealização do projeto; f) no dia da apresentação do trabalho foi estupendo ver os alunos
que se dedicaram a pesquisar o período histórico em que os poetas viveram e uma aluna

149
em especial se apaixonou completamente pela poesia de Ana Cristina Cesar; g) ao final
do projeto, a professora constatou que não poderia ficar apenas neste.
Portanto, é possível concluir este artigo com as palavras de Murilo Mendes, “a
poesia [...] é o pão cotidiano de todos, uma aventura simples e grandiosa de espírito”
(MENDES, 1994, p. 834).

Referências
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 2. ed., 7ª reimpressão, São


Paulo: Contexto, 2018.

MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. São Paulo: Nova Aguilar, 1994.

PINHEIRO, Hélder. Poesia na sala de aula. 1 ed., São Paulo: Parábola, 2018.

150
AS OBSESSÕES DO ESCRITOR NUNO RAMOS

Luis Eduardo Veloso Garcia (UENP)1

Resumo: O trabalho em questão intenciona trazer discussões sobre três eixos que se apresentam
como verdadeiras obsessões e que se repetem constantemente nas obras literárias de Nuno Ramos:
o confronto com a linguagem; a constante representação de restos e detritos; e o conflito com os
limites dos gêneros literários. Tal exercício interpretativo se debruçará nas percepções da fortuna
crítica do autor que se apresenta, atualmente, como um dos mais premiados da literatura brasileira
contemporânea.
Palavras-chave: Nuno Ramos; Literatura contemporânea; literatura brasileira.

Apesar de ser mais conhecido pela repercussão de seu trabalho nas artes plásticas
e, também, na composição de canções com parceiros como Romulo Fróes e Rodrigo
Campos, não se pode negar a qualidade alcançada na literatura de Nuno Ramos, com
diversas indicações entre os finalistas do Prêmio Jabuti e dois Prêmio Portugal Telecom
de Literatura em categorias diferentes – melhor obra do ano de 2009 por Ó (2008), e
melhor livro de poesia de 2012 por Junco (2011).
No entanto, ao se debruçar nas obsessões que se apresentam na obra literária,
podemos facilmente encontra-las nas percepções de suas outras produções artísticas,
principalmente nos eixos que tratam do conflito com a linguagem e a representação de
restos e detritos.
Entre os três caminhos que o autor repete de modo obsessivo em sua obra, o
primeiro ponto observado será o modo que Ramos se arma no confronto com a linguagem
através da possibilidade de uma recosmogonia.
A outra obsessão do autor que iremos refletir está na preocupação em transformar
o que poderia ser considerado restos e detritos sem importância literária visualmente em
fundo primordial de seus escritos.
A última obsessão discutida no trabalho refere-se a dificuldade de classificar tais
obras do autor conforme um gênero pré-estabelecido, afirmando o valor de uma alta
bagagem de conhecimento sobre a atividade artística que exerce.
Sua produção literária é vasta, constituída pelos livros Cujo (1993), Balada (1995),
O Pão do Corvo (2001), Ensaio Geral: projetos, roteiros, ensaios, memórias (2007), Ó
(2008), O Mau Vidraceiro (2010), Junco (2011), Sermões (2015), Adeus, cavalo (2017)

1
Graduado em Letras (UENP), Mestre em Estudos Literários (UEL) e Doutor em Estudos Literários
(UNESP-Araraquara). Contato: luis.garcia@uenp.edu.br

151
e Verifique se o mesmo (2019), o que chama ainda mais a atenção para as repetições
temáticas mesmo com tanta obra lançada.

Confronto com a linguagem


Segundo a autora Leyla Perrone-Moisés no texto intitulado “A Literatura
Exigente”, publicado no caderno Ilustríssima, da Folha de São Paulo de 25 de março de
2012, a literatura brasileira contemporânea exibe um traço recorrente em seus autores,
traços estes que ela busca teorizar através deste conceito da literatura exigente. Nesta
literatura, além do nome de Nuno Ramos como um dos destaques, encontram-se também
outros escritores desta geração como Carlos de Brito e Mello, Evandro Nascimento,
André Queiroz, Julián Fuks e Alberto Martins.
Dentro do conceito de literatura exigente encontramos possíveis leituras das
obsessões de Nuno Ramos em sua obra literária. O confronto com a linguagem é o
primeiro que nos debruçamos analiticamente.
Este confronto é baseado no signo da desconfiança, no qual os autores
contemporâneos “Desconfiam do sujeito como "eu", do narrador, da narrativa, das
personagens, da verdade e das possibilidades da linguagem de dizer a realidade”
(PERRONE-MOISÉS, 2012).
Nesta desconfiança com o “eu”, com a narrativa e com a história, observa-se o
quanto “desconfiam da literatura como instituição e repetição de fórmulas” e,
principalmente, como “desconfiam da escrita como representação” (PERRONE-
MOISÉS, 2012).
Se na afirmação de Leyla Perrone-Moisés esta desconfiança geral passa por autores
que “desconfiam do sujeito como "eu", do narrador, da narrativa, das personagens, da
verdade e das possibilidades da linguagem de dizer a realidade”, nas obras de Nuno
Ramos o inimigo declarado de sua desconfiança é claro: a linguagem e todo o peso de
ordem que ela carrega.
Para o autor, a linguagem aparece aqui como o peso de uma tradição, algo que
“impregna as palavras de sentidos antigos, gastos”, aproximando-se da fala de Stuart Hall
em A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, no capítulo “Nascimento e Morte do
Sujeito Moderno”, no qual o autor aponta cinco acontecimentos responsáveis pelo
descentralizamento do sujeito moderno - pensamento marxista, inconsciente de Freud,

152
linguística de Saussure, filosofia de Foucault e feminismo -, neste caso especifico com as
palavras, aparecendo na analise sobre Saussure:

O significado das palavras não são fixos... as palavras são multimoduladas.


Elas sempre carregam ecos de outros significados que elas colocam em
movimento, apesar de nossos melhores esforços para cerrar o significado... o
significado é inerentemente instável: ele procura o fechamento (a identidade),
mas ele é constantemente perturbado (pela diferença). Ele está constantemente
escapulindo de nós. (HALL, 2004, p. 40)

Por isso, os textos de Nuno Ramos são carregados do exercício de buscar na


cosmogonia (termo utilizado para determinar uma ou mais teorias sobre a formação do
nosso universo) as origens de hábitos que são considerados domesticadores pelo narrador,
como a criação de túmulos, a relação do ser humano com a morte, a tecnologia, o tempo,
a arquitetura urbana, as manias, a televisão, e, principalmente, a linguagem,
aproximando-se esta última da visão do crítico francês Roland Barthes no livro Crítica e
Verdade, que relaciona tal embate como o mais importante serviço da literatura, pois

“é com essa primeira linguagem [a linguagem original da comunicação


humana], esse nomeado, esse nomeado demais, que a literatura deve debater-
se: a matéria-prima da literatura não é o inominável, mas pelo contrário o
nomeado“ (BARTHES, 2007, p. 22).

Numa entrevista para a Revista Cult, Nuno Ramos explica qual o valor dessa
cosmogonia para a obra, reafirmando sua desconfiança com o peso da linguagem:

Todo esse clima do que era antes dos homens e do que era antes da linguagem,
toda a evocação das matérias, das pedras, dos animais. Mas depois, também, o
mundo da lei, da forma como os homens se organizam. Uma recosmogonia.
(RAMOS, 2010, online)

Essa recosmogonia, parte do princípio já conhecido por nós, para redefinir seu valor
através do confronto do narrador com a não aceitação destes costumes, desconfiando da
linguagem por sua atuação no decorrer dos tempos capaz de controlar o homem de seus
impulsos reais.
A própria escolha dos títulos de suas obras é relacionada a este conflito com a
linguagem, como o caso de Cujo, definido em sua força de indefinição na orelha do livro

153
da seguinte maneira: “Cujo: qualquer pessoa, indeterminada ou de quem não se quer dizer
o nome” (RAMOS, 1993, s/n).
Também se vê essa repetição na escolha do título de Ó, por ser esta uma expressão
que carrega inúmeras significações, mesmo sem ter uma definição completa como uma
palavra fechada. É o poder inominável desta expressão que valoriza a desconfiança do
autor contra a linguagem como um meio opressor de significados para as palavras.
A escolha do título Adeus, Cavalo remete, diretamente, ao filme de Jean-Luc
Godard intitulado Adeus à Linguagem (2014), e também discute esse confronto e tentativa
de vencê-la a qualquer custo. Um exemplo que tiramos deste livro é o seguinte trecho:

“Terão de continuar respirando. Andando para lá e para cá. Sonhando.


Acordando. Pedindo desculpas. Engolindo a saliva. Destilando uma enzima.
Terão de ver o dia nascer [...] e as folhas das árvores caírem. Elas terão de ficar
amarelas e depois tombar uma a uma, bem na frente de vocês. Será
necessariamente assim, todos os dias. Não há nada que vocês possam fazer
para evitar isso [...] Tudo canta, dispersivo e sem batuque, procurando público,
levando a vida a cantar. Corpos cuspidos do trilho seguro para o barranco e o
muro, amor emparedado, filhos que não nasceram, pequenos poemas que
viraram grito, matéria sonora sem ordem nem retorno, tudo isso formou uma
massa invencível, um peso sem contraponto numa balança que ninguém vê.
Lutamos contra isso, mas perdemos, diariamente perdemos, e não podemos
denunciar, nem mesmo nos queixar a ninguém." (RAMOS, 2017, p.62-69)

Conflito com os limites dos gêneros literários


Leyla Perrone-Moisés destaca a dificuldade de classificar tais obras conforme um
gênero pré-estabelecido, afirmando o valor de uma alta bagagem de conhecimento destes
autores sobre a atividade artística que exercem:

São obras de gênero inclassificável, misto de ficção, diário, ensaio, crônica e


poesia. São livros que não dão moleza ao leitor; exigem leitura atenta, releitura,
reflexão e uma bagagem razoável de cultura, alta e pop, para partilhar as
referências explícitas e implícitas. A linhagem literária reivindicada por esses
autores é constituída dos mais complexos escritores da alta modernidade:
Joyce, Kafka, Beckett, Blanchot, Borges, Thomas Bernhard, Clarice Lispector,
Pessoa...
Os autores dessas novas obras nasceram quase todos por volta de 1960, a
maioria passou por ou está na universidade, como pós-graduando ou professor,
o que lhes fornece boa bagagem de leituras e de teoria literária; alguns são
também artistas plásticos, o que acentua o caráter transgenérico dessa
produção. (PERRONE-MOISÉS, 2012)

154
A obra de Nuno Ramos está diretamente ligada ao confronto com os limites do
gênero, sendo este o principal destaque da fortuna crítica referente a seus livros, que são
considerados difíceis de classificar.
Em Ó, por exemplo, vemos em seu formato estruturas de conto, ensaio, crônica,
sem deixar espaço para conseguir delimitar qual gênero predomina.
Em Cujo, temos recortes que lembram anotações sobre o trabalho de artista plástico,
mas que conseguem cumprir, também, estruturas de contos e micro-ensaios.
Em Sermões, apesar do título induzir a estrutura clássica dos sermões (tão
devidamente explorada na literatura brasileira graçao padre Antônio Vieira), vemos
poemas, listas, ensaios e crônicas que, apesar de cumprirem possibilidade de
ensinamentos de sermões, passam longe do gênero em questão.
Em Adeus, cavalo, gêneros baseados na estrutura de diálogos como o gênero
dramático e a entrevista se misturam em uma estrutura que o próprio autor acaba por
nomear como romance.
Entre alguns dos pontos que dificultam a tarefa de definir o gênero, Alexandra
Lucas Coelho aponta em entrevista com o próprio autor para a Revista Ipsilon que uma
obra como Ó “não é um romance, mas tem uma espécie de protagonista do começo ao
fim, e não é um livro de contos, mas está dividido em capítulos que se podem ler
separados”.
Nuno Ramos reafirma essa dificuldade para definir sua produção destacando seu
hibridismo – característica esta, também, muito forte em qualquer área de atuação de
Nuno –, como podemos perceber em sua fala numa entrevista para o portal O Globo:
“Funciono por hibridismo em tudo o que faço como artista plástico ou escritor. [...] a
incapacidade de ficar em um gênero só cria uma certa estranheza, uma incompatibilidade
que são interessantes” (RAMOS, 2009, online).
José Antônio Pasta também reafirma este princípio de incapacidade de definição de
gênero em Ó no texto escrito para a orelha deste livro. Segundo o autor, a confluência de
gêneros e hipóteses que marcam a obra são inúmeras, como podemos perceber em sua
definição:

“De fato, olhando bem, os textos que compõem em sua unidade tão estrita
quanto desatada não são contos, nem poemas em prosa, nem crônicas, nem
ensaios, nem crítica, nem romance, nem autobiografia etc., sendo, no entanto,
tudo isso e mais uma coisa incerta e não-sabida, que o leitor nomeará. Uma

155
vasta fantasia antropológica? Uma crítica da percepção? Um De senectude
precoce? Uma meditação sobre a ruína? Uma reflexão espectral da forma-
mercadoria? O transe brasileiro no seu limite? Epifania negativa? Uma Carta
ao pai, que dói e estala em toas as suas juntas? Uma tese de doutoramento
impossível, apresentada a um Departamento de Filosofia do Além? De novo,
nenhuma dessas coisas e, ao mesmo tempo, todas elas e mais algumas etc.”
(PASTA, 2008, s/n)

Representação de restos e detritos


Outra característica comum está na preocupação em transformar o que poderia ser
considerado restos e detritos sem importância literária visualmente em fundo primordial
com “textos que, em vez de descrever grandes paisagens, concentram-se frequentemente
em coisas minúsculas: restos, resíduos, cantos, cacos, lixo” (PERRONE-MOISÉS, 2012).
Para a autora, quem mais se destaca na literatura brasileira contemporânea por este
viés são os escritores envolvidos com as artes plásticas, caso de nosso autor estudado aqui
Nuno Ramos e Alberto Martins, demonstrando-se “mais sensíveis ao apelo sensorial
desses detritos” (Idem, ibidem, 2012). Tal sensibilidade para os detritos é gerada nas
seguintes bases:

Perpassam, nessas enumerações de restos e detritos, tanto a preocupação


ecológica quanto a memória de tantas ruínas históricas e culturais sobrevoadas
pelo anjo de Klee (via Benjamin), familiar a todos esses escritores. Mas as
preocupações apenas perpassam, porque eles também não acreditam na
literatura de mensagem, na literatura engajada. Apenas registram, com lucidez
e desgosto, o estado lamentável de nossa "civilização” (PERRONE-MOISÉS,
2012)

De todo os esforços do detrito transformado em literatura, o que fica como


“resultado dessa atenção é poesia” (PERRONE-MOISÉS, 2012).
No caso das obras de Nuno Ramos temos algumas obsessões temáticas que se
baseiam diretamente em objetos e imagens que podem ser considerados como restos e
detritos, principalmente se encarados como o ponto central de textos. Na lista destes
objetos temos pedra, areia, pele, juncos, sal, piche, cachorros mortos, corvos, vidros e
paredes, objetos estes que aparecem de algum modo em todos os textos de Nuno Ramos.
Para ilustrar como o autor explora tais objetos, podemos começar com o primeiro
trecho de seu primeiro livro intitulado Cujo:

156
"Pus todos juntos: água, alga, lama, numa poça vertical como uma escultura,
costurada por seu próprio peso. Pedaços do mundo (palavras principalmente,
palavras) refletiam-se ali e a cor dourada desses reflexos dava uma impressão
intocada de realidade. O som horrível de uma serra saía de dentro da poça e
completava o ritual, como uma promessa (pela qual eu esperava, atento) que
fosse conhecimento e revelação. Foi então, como se suasse, que algumas gotas
apareceram em sua superfície e escorreram, primeiro lentas e depois aos goles,
numa asfixia movediça que trouxe o interior à superfície e desfez em pedaços
a suspensão e a paralisia. E feita sujeira, aos meus pés, era uma lamento do que
eu tinha visto e perdido". (RAMOS, 1993, p. 9)

O mistério da matéria ganha significação ao focar suas reflexões nos restos e


detritos. Em Junco esse exercício vai ainda mais além, pois com a
estrutura baseada em sua montagem duas imagens que aparecem em 18 fotos e 43
poemas: um pedaço de árvore jogado na beira do mar e um cão morto estendido no asfalto.
No decorrer das interpretações subjetivas que os poemas geram destas duas imagens
(com a contemplação das fotos entrecortando os poemas para que o leitor as ressignifique
do seu modo também), encontra-se um eu-lírico baseado no exercício visto no poema
“Máquina do Mundo”, de Carlos Drummond de Andrade: através das duas imagens
confrontadas, como chama a atenção Flora Sussekind (2011) na orelha do livro, ocorre
“à busca do sentido do mundo, à “total explicação da vida” que espantosamente se abre
aos olhos de um caminhante solitário, ainda que para se recolher, logo em seguida, e sem
desfazer o enigma, como no poema de Drummond”.
Encerramos este trabalho com a ilustração do diálogo com a máquina do mundo de
Drummond e os restos e detritos de Nuno Ramos trazendo o poema que ele abre este
livro:

Cachorro morto num saco de lixo


areia, sargaço, cacos de vidro
mar dos afogados, mar também dos vivos
escuta teu murmúrio no que eu digo.

Nunca houve outro sal, e nunca um dia


matou o seu poente, nem a pedra
feita de outra pedra, partiu o mar ao meio.
Assim é a matéria, tem seu frio

e nunca vi um animal mais feio


nem pude ouvir o seu latido.
Por isso durmo e não pergunto
junto aos juncos.
(RAMOS, 2011, p. 11)

157
Referências

BARTHES, Roland. Crítica e Verdade. São Paulo: Perspectiva, 2007.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. DP&A, Rio de Janeiro:2004.


PASTA, José Antonio. Apresentação a Ó. In: RAMOS, Nuno. Ó. São Paulo: Iluminuras,
2009.

PERRONE-MOYSÉS, Leyla. “A literatura exigente”. Folha de São Paulo. Caderno


Ilustríssima, 25 de março de 2012.

RAMOS, Nuno. Adeus, cavalo. São Paulo: Iluminuras, 2017.

RAMOS, Nuno. Balada. São Paulo: Editora 34, 1995.

RAMOS, Nuno. Com ó, nuno ramos vence prêmio portugal telecom 2009. Disponível
em: http://oglobo.globo.com/cultura/com-nuno-ramos-vence-premio-portugal-telecom-
de-literatura-3160260. Entrevista concedida a Marcia Abos.

RAMOS, Nuno. Cujo. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.

RAMOS, Nuno. E Nuno Ramos criou o mundo. Disponível em:


http://ipsilon.publico.pt/livros/entrevista.aspx?id=252364. Entrevista concedida a
Alexandra Lucas Coelho.

RAMOS, Nuno. Ensaio Geral: projetos, roteiros, ensaios, memórias. São Paulo: Editora
Globo, 2007.

RAMOS, Nuno. Junco. São Paulo: Iluminuras, 2011.

RAMOS, Nuno. Nuno Ramos: entre a matéria e a linguagem. Disponível em:


http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/entrevista-com-nuno-ramos/. Entrevista
concedida a Ivan Marques.

RAMOS, Nuno. O mau vidraceiro. São Paulo: Editora Globo, 2010.

RAMOS, Nuno. O pão do corvo. São Paulo: Editora 34, 2001.

RAMOS, Nuno. Ó. São Paulo: Iluminuras, 2009.

RAMOS, Nuno. Sermões. São Paulo: Iluminuras, 2015.

RAMOS, Nuno. Verifique se o mesmo. São Paulo: Todavia, 2019.

158



DE O QUARTO DE BARBA-AZUL PARA A CÂMARA SANGRENTA:
o enfoque feminista de Angela Carter presente no sistema literário brasileiro

Anna Olga Prudente de Oliveira (UFPR)1

Resumo: Este trabalho, informado pelos Estudos Descritivos da Tradução, realiza uma análise
preliminar de reescritas da obra da autora inglesa Angela Carter no sistema literário brasileiro,
com foco no conto The Bloody Chamber, elaborado a partir do conto La Barbe Bleue (O Barba
Azul) de Charles Perrault, escritor francês do século XVII. Serão abordadas duas edições
brasileiras com traduções do conto de Carter: O quarto do Barba-Azul (Rocco, 1999), tradução
de Carlos Nougué, e A câmara sangrenta e outras histórias (TAG/Dublinense, 2017), tradução
de Adriana Lisboa.
Palavras-chave: Estudos Descritivos da Tradução; reescritas feministas de contos de fadas; O
Barba Azul; tradução da obra de Angela Carter no Brasil.

Introdução
Este trabalho, informado pelos Estudos Descritivos da Tradução, realiza uma
análise preliminar de reescritas da obra da autora inglesa Angela Carter no sistema
literário brasileiro, com foco no conto The Bloody Chamber, elaborado a partir do conto
La Barbe Bleue (O Barba Azul) de Charles Perrault. Esse conto do escritor francês do
século XVII foi publicado na obra Histoires ou Contes du temps passé avec des
Moralités ou Contes da ma Mère l’Oye (Histórias ou Contos do tempo antigo com
Moralidades ou Contos de Mamãe Gansa), juntamente aos seguintes contos: La Belle
au bois dormant, Le Petit Chaperon rouge, Le Maitre Chat ou Le Chat botté, Les Fées,
Cendrillon ou La petite pantoufle de verre, Riquet à la houppe e Le Petit Poucet (A Bela
Adormecida no bosque, O Chapeuzinho Vermelho, O Mestre Gato ou O Gato de Botas,
As Fadas, Cinderela ou A sapatilha de vidro, Riquete do Topete e O Pequeno Polegar).
Ao unir histórias populares tradicionais da oralidade à escrita literária, caracterizada
pelas Moralidades em verso ao final das histórias narradas em prosa, dentre outros
elementos textuais, os contos de Perrault expressam valores e concepções literárias de
sua época, tornam-se célebres na corte francesa e, posteriormente, clássicos da literatura
que passou a ser designada como infantojuvenil.
Uma vez que os contos de fadas surgem de uma tradição da oralidade, do contar
histórias, e são constantemente reformulados de acordo com as culturas em que se
inserem, muitas vezes em um processo de apropriação das histórias, uma questão que se

1
Doutora e Mestre em Letras/Estudos da Linguagem (PUC-Rio), Graduada em Letras (PUC-Rio) e em
Artes Cênicas (UNIRIO). Atualmente realiza pesquisa de pós-doutorado na UFPR. Contato:
annaolga@terra.combr

159



coloca é: como esses contos podem ser (ou foram) recriados de modo a refletir valores
distintos? E, considerando o sistema literário brasileiro como um sistema meta que
seleciona, reescreve e publica contos de literaturas estrangeiras, que traduções ou
adaptações têm sido feitas de obras que recriam ou reelaboram os contos de fadas
tradicionais?
Questionamentos e teorizações acerca das funções dos contos de fadas têm sido
feitos em diversas áreas, desde a psicologia, muito influenciada pela análise de Bruno
Bettelheim (2012 [1976]), passando pela perspectiva formalista de Vladimir Propp
(2006 [1928]), até a abordagem multiculturalista trazida por pesquisadores
contemporâneos como Donald Haase (1999), o qual aponta questões de gênero já desde
a institucionalização dos contos de fadas literários na França do século XVII,
distinguindo a escrita de Perrault da escrita de mulheres — as conteuses — como
Madame d’Aulnoy. Em seu “Prefácio” a Fairy Tales and Feminism (2004), Haase
comenta que há mais de três séculos mulheres utilizam os contos de fadas de modo a
abordar questões de gênero, criando contos que são escritos de modos distintos aos
elaborados por homens. Partindo das questões suscitadas por Haase, considero que se
faz necessário o estudo de autoras que tenham reescrito os contos sob uma perspectiva
feminina ou feminista, que proponham novas imagens para essas histórias tão
conhecidas por todos, adultos e crianças, imagens que possam refletir concepções de
mundo e de literatura contemporâneas. Por isso, volto-me para a obra The Bloody
Chamber and other stories de Angela Carter e suas reescritas brasileiras, buscando
compreender que imagens da obra da escritora inglesa são apresentadas ao público leitor
no sistema literário brasileiro.

As reescritas de contos de fadas por Angela Carter


Autora de contos inspirados em contos de fadas, além de tradutora dos contos de
Perrault, Angela Carter propõe novas leituras de narrativas tradicionais, alterando
enredos e paradigmas de representação das personagens femininas nos contos de fadas.
A autora inglesa

(...) via Perrault como o mediador de uma tradição popular de contar


histórias, realizada por amas e velhas senhoras, que podiam ser adaptadas
infinitamente para novos públicos e novas propostas. Enquanto tradutora de
Perrault, Carter por sua vez se inseriu nessa cadeia de transmissores, cuja

160



atividade se coadunava com sua própria noção de uma prática feminista
responsável e significativa. Enquanto autora ela própria, Carter pode celebrar
de modo mais completo e autoconsciente o conto de fadas como arte literária.
(Hennard, 2013, p.10)

Tendo abraçado o gênero ainda estigmatizado a sua época, Angela Carter tem um
papel relevante para uma nova leitura dos contos de fadas e da obra de Perrault em
língua inglesa, tanto com sua tradução The Fairy Tales of Charles Perrault, publicada
em 1977, voltada ao público infantil, quanto com a obra de sua autoria The Bloody
Chamber and other stories, publicada em 1979, contendo dez histórias: The Bloody
Chamber, The Courtship of Mr Lyon, The Tiger’s Bride, Puss-in-Boots, The Earl-King,
The Snow Child, The Lady of the House of Love, The Werewolf, The Company of
Wolves e Wolf-Alice. Com o projeto de tradução dos contos de Perrault para crianças e o
projeto de criação de novas histórias inspiradas em contos de fadas para um público
adulto tendo sido realizados na mesma época, podemos considerar a atividade tradutória
uma espécie de laboratório de criação no qual Carter “conduziu seus experimentos
literários, e o qual forneceu um novo impulso e direção a sua escrita” (Hennard, 2013,
p.2). Como a própria escritora diz, “a leitura é uma atividade tão criativa quanto a
escrita e grande parte do desenvolvimento intelectual depende de novas leituras de
textos antigos” (Carter, “Notes from the front line”, p.37 apud Hennard, 2013, p.2).
Nesse sentido, Carter utiliza-se dos enredos ou de algumas partes mais conhecidas de
alguns contos de fadas para criar suas próprias histórias, em narrativas que alteram os
papeis e os lugares usualmente ocupados pelas personagens femininas nos contos.
Vejamos aqui o conto que dá título ao livro. No conto La Barbe Bleue (O Barba
Azul) de Perrault, o título designa o personagem masculino que assassinava as mulheres
com que casava. Já na história de Carter, o Barba Azul transforma-se em um rico e
poderoso Marquês, e o título do conto ressalta a “obra” desse homem assassino: The
Bloody Chamber, a câmara sangrenta, que tal como uma galeria de arte apresenta os
corpos das mulheres mortas expostos cada qual junto a seu aparato de tortura. O mundo
das artes é trazido à cena como símbolo de reificação da mulher, cujo corpo é exposto
como objeto a ser contemplado pelos olhos do observador, o homem que detém o
controle sobre a vida e a morte das mulheres. A história de Carter se passa na França fin
de siècle, período do decadentismo e simbolismo nas artes, o qual é representado por
artistas e obras presentes na narrativa. Assim, por exemplo, obras de Félicien Rops

161



aparecem como símbolo da relação do Marquês com suas mulheres, como vemos na
menção à gravura “Ma fille, Monsieur Cabanel”, em que uma menina é oferecida nua
pela mãe.
As obras de arte também podem simbolizar o destino da esposa do Marquês,
como o quadro com a imagem de Santa Cecília. Inicialmente, a obra, que fora um
presente de casamento para a jovem, representa a imagem do que ela “talvez tivesse
desejado ser” (Carter, 2017, p.26), com a santa elegante de cabelos ondulados ao lado
de seu órgão celestial. Depois, após descobrir a câmara sangrenta e intuir o destino que
lhe aguardava, a mesma imagem inspira o terror da jovem que procura se lembrar “qual
tinha sido a natureza do martírio de Santa Cecília” (p.51). E, por fim, o próprio Marquês
chama a esposa para o sacrifício: “Quer que eu vá até o céu buscá-la e trazê-la aqui para
baixo, Santa Cecília?” (p.64), revelando o seu jogo de símbolos e a forma como
pretende matar a mulher.
Angela Carter situa sua história em um contexto no qual pode ressaltar a
misoginia tanto pelas relações existentes na sociedade do final do século XIX como
pelas representações artísticas, nas quais a mulher é o objeto a ser possuído pelo
homem. Desse modo, a perspectiva da mulher que conta sua própria história torna-se
mais representativa do desejo de romper com o domínio masculino em uma sociedade
em que a mulher é o objeto a ser dominado e contemplado pelo homem. Assim, o conto
de Carter é narrado em primeira pessoa pela própria jovem, e ao final da história, em
vez de ser salva pelos irmãos como ocorre no conto de Perrault, ela é salva pela mãe,
uma mulher destemida que chega ao castelo a tempo, subvertendo a relação de poder;
ao vê-la, o Marquês fica petrificado, “imóvel, como se ela fosse uma Medusa, a espada
ainda erguida sobre sua cabeça como naqueles quadros animados do Barba Azul que
podemos ver em caixas de vidro nas feiras” (Carter, 2017, p.67). Ao final, tendo
herdado enorme riqueza, a jovem passa a viver com a mãe e com o afinador de pianos,
que a ajudara a se livrar de seu trágico destino. O homem que a ajudou, e com quem
passa a viver, é cego, simbolizando a possibilidade de uma relação não pautada pelo
domínio do visual, e que deste modo não perpetua as usuais relações de domínio do
homem sobre a mulher. A jovem sobreviveu para contar a sua história e passou a ser
livre do olhar masculino que a enquadrava como objeto sob a perspectiva de seu dono e
observador.

162

As edições brasileiras de The Bloody Chamber


No Brasil, há duas edições da obra The Bloody Chamber and other stories que
serão analisadas em minha pesquisa. A seguir, apresento as obras e algumas
observações preliminares acerca dos paratextos dos livros, com o objetivo de
compreender as imagens propostas pelos reescritores das obras de Angela Carter.
A primeira edição foi publicada pela Rocco em 1999, com tradução de Carlos
Nougué. Intitulada O quarto do Barba-Azul, a obra apresenta os seguintes contos: O
quarto do Barba-Azul, A corte do Sr. Lyon, A noiva do tigre, O gato-de-botas, O Rei
dos Elfos, A garota de neve, A senhora da casa do amor, O lobisomem, A companhia
dos lobos e Alice-Lobo. Além da tradução dos dez contos da obra de Carter, o livro
contém um Prefácio de Vivian Wyler, intitulado “Altos vôos, quedas livres”, e uma
Biografia da autora. No prefácio, Vivian Wyler faz uma cronologia da vida de Carter
com foco em sua produção literária e em questões sobre seu estilo de escrita, abordando
o feminismo da autora como “uma das ideias que percorre [su]a literatura” (Carter,
1999, p.xiii). Wyler traz a leitura de Margaret Atwood para apresentar O quarto do
Barba-Azul, considerando ser “um livro que procura entender o que separa a mulher boa
da mulher má e tenta descobrir se os critérios que delimitam essa diferença são iguais
para machos e fêmeas da espécie humana” (p.xiv-xv). A prefaciadora ressalta também o
posicionamento polêmico de Carter em uma época em que as feministas estavam em
plena marcha contra a pornografia. Nos contos do livro, assim como no ensaio The
Sadeian Woman and the ideology of pornography (1978), Carter traz à cena “uma
mulher que escolhe o lugar certo de colocar seu desejo, que desvincula sexo de amor,
que pode até aceitar o sadomasoquismo se esta for uma troca negociada entre os
parceiros” (p.xv). Assim, no conto criado a partir de O Barba-Azul de Perrault, vemos
uma personagem feminina que é inocente, por sua falta de experiência, mas não
ingênua, e que usa a vivência com o marido como uma forma de conhecer o mundo,
para saber lidar com o que se apresenta; ela não teme a arte erótica ou pornográfica,
mas aprende com ela.
A edição mais recente de The Bloody Chamber and other stories publicada no
Brasil intitula-se A câmara sangrenta e outras histórias, um projeto editorial da
TAG/Dublinense de 2017 realizado exclusivamente por mulheres, tendo Marina

163



Colasanti como curadora da edição e Adriana Lisboa como tradutora e prefaciadora da
obra. A edição contém um suplemento literário com informações sobre a curadora, a
autora, a obra, e a editora Virago, voltada para a publicação de obras de mulheres como
Angela Carter. Os elementos paratextuais apresentam a questão feminista como ponto
central de abordagem da obra e da autora. A própria proposta do projeto editorial
realizado por mulheres enfatiza a perspectiva feminista de Carter. No prefácio, a
tradutora Adriana Lisboa observa: “Algumas feministas de sua época dedicavam-se a
denunciar a misoginia dos contos de fadas tradicionais: Carter subverteu-os, fazendo
com que as mulheres de suas histórias abraçassem a própria sexualidade e tomassem as
rédeas de seu próprio destino” (Carter, 2017, p.8). É isso o que vemos nos contos da
obra, a passividade característica de heroínas dos contos de fadas tradicionais deixa de
existir e dá lugar a mulheres ou meninas que adentram o obscuro das histórias,
vivenciando as perversões latentes nas narrativas criadas pela autora inglesa.
Em relação à tradução de Carlos Nougué, em um macronível, observa-se que
todos os contos da obra de Carter são traduzidos; nos títulos, apenas o primeiro conto
apresenta uma modificação mais significativa sendo suprimida a imagem da “câmara
sangrenta” com a escolha do título O Quarto do Barba Azul. Em linhas gerais, a
tradução desse conto mantém os elementos textuais comentados: a narração em primeira
pessoa feita pela jovem esposa, as referências às obras de arte, e o enredo em que a
personagem é salva pela mãe. Assim como na tradução de Nougué, a tradução de
Adriana Lisboa também mantém as caraterísticas da obra de Carter quanto ao ponto de
vista fornecido pela personagem feminina, às menções a obras e artistas ao longo do
conto, bem como ao enredo com seu final em que a mãe salva a filha. O título mantém a
imagem trazida desde o início por Carter. Os títulos dos contos são A câmara
sangrenta, O sr. Lyon faz a corte, A noiva do tigre, O gato de botas, O rei dos elfos, A
filha da neve, A senhora da casa do amor, O lobisomem, A companhia dos lobos e A
loba Alice. Os aspectos textuais das traduções serão analisados posteriormente.
A partir das observações dos elementos paratextuais das edições brasileiras, pode-
se concluir que a imagem de escritora feminista que transforma os contos de fadas
tradicionais é apresentada em ambas as edições. No primeiro caso, o prefácio de Vivian
Wyler apresenta uma visão mais abrangente do percurso de Carter, enquanto o prefácio
de Adriana Lisboa enfoca mais especificamente os contos do livro.

164

Referências

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Tradução: Arlene Caetano.


27a reimpressão. São Paulo: Paz e Terra, 2012.

CARTER, Angela. A Câmara Sangrenta e outras histórias. Título original: The Bloody
Chamber. Tradução e prefácio: Adriana Lisboa. Ilustrações: Adriana Lisboa. Porto
Alegre: Dublinense, 2017.

________. O quarto do Barba-Azul. Título original: The Bloody Chamber. Tradução:


Carlos Nougué. Prefácio: Vivian Wyler. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

HAASE, Donald. “Yours, Mine, or Ours? Perrault, Brothers Grimm, and the Ownership
of Fairy Tales”. In: TATAR, Maria (ed.). The Classic Fairy Tales. New York/London:
Norton, 1999. p. 353-364.

________. (ed.) Fairy Tales and Feminism: New Approaches. Detroit: Wayne State
University Press, 2004.

HENNARD DUTHEIL DE LA ROCHÈRE, Martine. Reading, Translating, Rewriting:


Angela Carter’s Translational Poetics. Detroit: Wayne, 2013.

PROPP, Vladimir. Morfologia do conto maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense


Universitária, 2006.

165
O EROTISMO DE GILKA MACHADO E JUDITH TEIXEIRA; A
TRANSFORMAÇÃO NA POESIA DE AUTORIA FEMININA
Camila Paiva da Silva (UERJ)1

Resumo: O presente trabalho visa demonstrar que Gilka Machado e Judith Teixeira foram de
extrema importância para a luta das mulheres em prol de um lugar na sociedade durante o
século XX. Visto que a poesia destas autoras marcava um novo olhar para a poesia de autoria
feminina, porque abordava assuntos ainda tabus nas sociedades brasileira e portuguesa. As
temáticas do erotismo da mulher na poesia de Gilka e do homoerotismo na poesia de Judith vão
chocar a sociedade e a crítica literária. São esses temas que aproximam as duas poetas, que na
mesma época, mas em países diferentes, tiveram coragem para enfrentarem o julgamento da
crítica literária e assim transgredirem no fazer poético.

Palavras-chave: Gilka Machado, Judith Teixeira, poesia, erotismo

O lugar das escritoras no final do século XIX e início do XX


O século XIX foi crucial para os grandes avanços da humanidade, inclusive no
que diz respeito às lutas das mulheres, no entanto, as conquistas femininas foram
pequenas e as lutas continuaram ao longo do século XX. A crítica literária brasileira e
portuguesa deste momento por ser formada por homens não evidenciava as escritoras
que surgiam, embora estas fossem muitas e produzissem grande material literário.
As mulheres começam a utilizar subterfúgios para exporem sua escrita, como usar
pseudônimo masculino a fim de não serem descobertas e preteridas.
Ao passo que o mundo vai se modernizando e que as mulheres vão lutando e
ganhando novos lugares na sociedade, as escritoras passam a participar mais da vida
intelectual das cidades e, consequentemente, passam a produzirem. Todavia, para que
possam se inserir nessa sociedade mais moderna, ainda é preciso lutar de diversas
maneiras.
Dessa maneira, de maneira marcante ou não as escritoras deste tempo
estabeleceram através da poesia um paralelo com suas indagações pessoais. As
angústias, as dúvidas, as dores, todas as questões acerca de um momento que
privilegiava o homem e excluía a mulher podem ser evidenciadas em suas obras.
Com isso, as escritoras do final do século XIX e início do XX, enfrentaram
barreiras para se estabelecerem. O tema a ser abordado por escritora, também era

1
Mestre em Literatura Portuguesa (UERJ), doutoranda em Literatura Portuguesa (UERJ). Email:
paivadasilva.camila@gmail.com

166
determinante para sua aceitação ou não no meio literário. Para que uma mulher fosse
aceita nesse meio era preciso que ela falasse dos assuntos considerados inerentes ao
mundo feminino, a educação dos filhos, e o cuidado com a casa e o marido, por
exemplo. Um exemplo do tipo de escrita que era destinada às mulheres vemos na coluna
“De mulher para mulher” escrita por Gabriela Castelo Branco no Diário de Notícias,
órgão da imprensa de Lisboa. Assim, em relação à literatura, Gabriela Castelo Branco
afirma que:
cultiva[va] já uma mão quasi varonil, ela pode ser a paladina dos valores
ideais, da moralidade, da perseverança e da fé num melhor futuro. Ela deve
dar à literatura esse "graal" subtil e feminino que se semelha ao perfume
duma flor. Sobretudo ser mulher no pudor, na abstenção do materialismo, no
cultivo das nobres aspirações (BRANCO, p. 2, 1925).

No Brasil não era diferente, as escritoras precisaram lutar bravamente para


escreverem e expressarem suas angustias e aflições com os novos tempos. Segundo
Zahíde Muzart, em “Uma espiada na imprensa das mulheres no século XIX”, mesmo
que as escritoras brasileiras só tenham começado a serem evidenciadas no século XX,
era profícua a escrita de mulheres no Brasil do século XIX. Todavia, elas acabaram
sendo esquecidas pela historiografia brasileira.
Além da produção em jornais, elas publicaram muitos livros, uma produção,
ainda que desaparecida, nada desprezível. Estranhamente, tudo isso foi sendo
colocado de escanteio a partir do século XX, e somente com algumas
pioneiras – como Josefina Álvares de Azevedo, Corina Coaracy, Carmem
Dolores e, principalmente, já no século XX, com a precursora obra de Gilka
Machado, ou a de feministas como Maria Lacerda de Moura – é que a mulher
foi conseguindo firmar pé na literatura e na cultura brasileiras (MUZART,
2003, p. 226).

Zahíde Muzart ainda afirma que esse apagamento da historiografia brasileira se


deu muito por conta de quem a escreveu, os homens, e que os nomes ausentes
comumente são os das mulheres que se impuseram com mais veemência contra o
poderio destes homens.
Na verdade, o esquecimento de escritoras do século XIX é um esquecimento
político. Pois não só porque mulheres escritoras são esquecidas; são
esquecidas sobretudo as mais atuantes, as feministas, em uma palavra. Posso
adiantar, das brasileiras, Josefina Álvares de Azevedo, Ana Aurora do
Amaral Lisboa, Ildefonsa Laura César e Maria Firmina dos Reis foram
bastante atuantes. Das que foram louvadas em sua época há um exemplo
marcante: Júlia Lopes de Almeida, a Dona Júlia. Mulher de vida impecável,
para quem a literatura ficava em segundo plano depois do atendimento ao
marido e aos filhos, a casa, o jardim, foi muitíssimo respeitada e louvada em
sua época. Todos a elogiavam como modelo de mãe, em primeiro lugar. Não

167
foi uma feminista militante, embora em sua obra, nas entrelinhas, haja muita
ideia ‘forte’ escondida. Mas concluindo essa digressão: as senhoras foram
louvadas, tiveram grande apoio da crítica masculina em sua época. Outras,
como Délia (Maria Benedita Bormann), de ideias muito mais livres,
sobretudo em relação ao sexo como o apoio ao divórcio, foram totalmente
apagadas. Porém, no cômputo geral, todas ficaram esquecidas, militantes ou
colaboracionistas, senhoras ou cortesãs! (MUZART, 2003, p. 227).

Portanto, sabemos que as mulheres encontravam limitações para se expressarem


através da escrita, todavia, as que conseguiram contribuíram de maneira efetiva em prol
da luta das mulheres por espaços na sociedade e no meio literário.

Gilka Machado e Judith Teixeira, poesia e transgressão


As autoras Gilka Machado e Judith Teixeira são expoentes na poesia de seus
países, Brasil e Portugal. Ambas fizeram da escrita uma maneira de confrontar o poder
masculino e de arma contra a opressão que sofriam na sociedade. Contudo, antes de
analisarmos a recepção crítica das escritoras supracitadas em seus países, faz-se
necessário compreender como o corpo e o erotismo feminino tornaram-se
“pecaminosos”.
Em vista disso, Pierre Bourdieu em A dominação masculina (2005) trata de como
o gênero feminino tornou-se inferior em relação ao gênero masculino. Isso porque, essa
relação foi estabelecida através de discursos que justificavam a fraqueza de um e a
grandeza de outro biologicamente. Ora, se o homem era mais
forte fisicamente e psicologicamente, ele tinha o direito de exercer sua força e seu poder
sobre a mulher:
A força particular da sociodiceia masculina lhe vem do fato de ela acumular e
condensar duas operações: ela legitima uma relação de dominação
inscrevendo-a em uma natureza biológica que é, por sua vez, ela própria
uma construção social naturalizada (BOURDIEU, 2012, p.33). (Grifos do
autor)

O poderio masculino é assim um constructo social, que se perpetuou pela


concepção de que a natureza deu aos homens atributos que os propiciavam dominar e às
mulheres características frágeis e suscetíveis à submissão.
O corpo e seus movimentos, matrizes universais que estão submetidos a um
trabalho de construção social, não são nem completamente determinados em
sua significação, sobretudo sexual, nem totalmente indeterminados, de modo
que o simbolismo que lhes é atribuído é, ao mesmo tempo, convencional e

168
“motivado”, e assim percebido como quase natural (BOURDIEU, 2012,
p.20).

Desta maneira, a sociedade durante muitos séculos fora totalmente dominada


pelo poder masculino. Conforme veremos com Bourdieu, a mulher não tinha lugar na
sociedade, a não ser o espaço do lar, pois o poder sobre todos os âmbitos públicos
pertencia aos homens, assim, eles ditavam as regras a serem seguidas.
As regularidades da ordem física e da ordem social impõem e incalculam as
medidas que excluem as mulheres das tarefas mais nobres (conduzir a
charrua, por exemplo), assinalando-lhes lugares inferiores (a parte baixa da
estrada ou do talude), ensinando-lhes a postura correta do corpo (por
exemplo, curvadas, com os braços fechados sobre o peito, diante dos homens
respeitáveis), atribuindo-lhes tarefas penosas, baixas e mesquinhas... enfim,
em geral tirando partido, no sentido dos pressupostos fundamentais, das
diferenças biológicas que parecem assim estar à base das diferenças sociais
(BOURDIEU, 2012, p.34).

Consequentemente, a fragilidade do corpo feminino tinha a ver com sua natureza,


pois, este corpo fora projetado para conceber filhos e satisfazer os homens. O natural era
a desculpa para a arbitrariedade e a violência contra as mulheres. O corpo e o desejo da
mulher eram reprimidos por ditadores do certo e do errado, do bem e do mal.
A ideia de que a mulher era inferior física e cognitivamente ao homem e que o sexo
biológico definia os papéis na sociedade durou séculos.
O discurso religioso era muito forte e por muito tempo impregnou a cabeça das
pessoas com a ideia de que a mulher e seu corpo eram frutos do mal. O discurso
machista que surge com o judaísmo cristão é embasado no “episódio bíblico da
legitimação do poder de nomeação dos animais atribuído por Deus a Adão”
(FONSECA, 2017, p.16). Vemos em Gênesis há a corroboração da “condição
secundária” da mulher, pois Deus criou o homem e depois criou a mulher por meio de
uma de suas costelas, ora, seria então a mulher menos que o homem e sempre inferior a
ele.
Sobre isto Fonseca atesta que a “história da misoginia” e sua “correlação
femifóbica” estão presentes “na mentalidade e na cultura ocidentais, não só como uma
construção herdada da antiguidade clássica, mas também, e principalmente, como uma
formação do pensamento judaico-cristão desenvolvido na Idade Média” (FONSECA,
2017, p. 21).

169
Retomando a analise das poetas Gilka Machado e Judith Teixeira, e de suas obras
observaremos como esses discursos são frequentes nos campos sociais que ambas
emergem.
Sobre Gilka Machado, é sabido que a autora lutou contra a opressão do
patriarcado de diversas formas, tanto na literatura como na vida.
Antes mesmo de publicar Cristais Partidos em 1915, a menina Gilka já havia
ganhado os três primeiros lugares de um concurso de poesia do jornal A Imprensa,
dirigido por José do Patrocínio Filho. Nessa ocasião a poeta recebeu olhares espantados
por parte dos patrocinadores do jornal. Eles não acreditavam que aqueles poemas
pudessem ter sido escritos por uma menina, dado o tom erótico deles. Portanto,
notaremos que desde muito cedo Gilka Machado terá sua vida literária e comum
tomadas de críticas que a subjugavam por ser uma mulher sempre à frente de seu tempo.
Gilka é filha de Thereza Christina Moniz da Costa, atriz de teatro e rádio-teatro.
Sua família era composta de poetas e músicos, como seu bisavô Francisco Moniz
Barreto, um repentista baiano, e seu avô do lado materno, o violinista português
Francisco Pereira da Costa. Gilka casa-se com o poeta, jornalista e crítico de arte
Rodolfo Machado. Mas fica viúva depois de treze anos de casada, passando a cuidar
sozinha de seus dois filhos, Heros e Hélios.
Diferente de algumas autoras de seu tempo, que de certa maneira precisaram se
camuflar ou camuflar seus versos com amenidades e estereótipos do mundo tido como
feminino; Gilka Machado se desnuda e desenvolve um eu lírico que não tem medo de
revelar-se puro e autenticamente sensual. Seus poemas chocavam a crítica literária e
essa crítica a tinha como uma mulher de conduta imoral. A autora recebeu represaria até
mesmo do modernista Mário de Andrade e segundo Duarte (2012) “foi veementemente
combatida pelos escritores modernistas, especialmente por Mário de Andrade (1893-
1945), que a considerava por demais escandalosa” (DUARTE, 2012, p. 337).
Gilka sofreu perseguição de diversas formas. Como o rótulo de “matrona imoral”
(MACHADO, 2017, p. 14), que a transformou em uma mulher malfadada socialmente,
e uma caricatura em um jornal do Rio de Janeiro, em que aparecia uma mulher com a
saia levantada e com o verso “Sinto que nasci para o pecado”, a fim de atacá-la.
A poeta sempre se ressentiu pelo desprestígio sofrido. Isso nos fica claro em seus
dados biográficos, quando afirma que sonhou “ser útil a humanidade. Não consegui,
mas fiz versos...” (GILKA, 2017, p. 17). No entanto, sua poesia cortante causou uma

170
verdadeira transformação na maneira de se conceber os versos de autoria feminina. Sua
poesia conforme Soares tem um “pioneirismo na abertura de espaços contra o
paradigma masculino dominante” (SOARES, 1999, p. 93). Em 1933 ela é eleita “a
maior poetisa do Brasil” em um concurso da revista O Malho.
Judith Teixeira nasceu em 1880 em Viseu, Portugal. Filha de pai desconhecido e
de Maria do Carmo. Foi perfilhada posteriormente por Francisco dos Reis Ramos.
Casou-se duas vezes, primeiro com Jaime Levy Azancot e depois com Álvaro Vírgilio
de Franco Teixeira. Lançou seu primeiro livro Decadência em 1923. Este mesmo livro
foi apreendido pelo governo português por ser considerado imoral. Judith Teixeira
encerra sua carreira literária bem cedo, em 1927 com Satânia. Novelas sua única obra
de ficção.
Judith Teixeira causou polêmica logo que lançou seu livro Decadência em 1923,
pois a temática do livro não era a que costumava ser abordada pelas escritoras nesse
momento. Sua inquietação exterior transbordava em sua poesia e isso a relegou ao
esquecimento por anos, visto que a crítica nunca a compreendeu enquanto grande
escritora que foi.
A autora era uma mulher de seu tempo, mas que visava o moderno, ela
acompanhava a poesia iniciada na França e seus versos passaram a reverberar os novos
acontecimentos do mundo e seus anseios. A estranheza ao seu poetizar se deve também
pela constatação de uma mulher à frente de seu tempo e que, de certa maneira, rompe
com a poesia clássica e a poesia realizada pelas mulheres tradicionais da sociedade
portuguesa.
Comprovamos sua inquietação com o mundo moderno e com seu lugar na
sociedade no livro Judith Teixeira: poesia e prosa, com organização e estudos
introdutórios de Cláudia Pazos Alonzo e Fábio Mário da Silva:
A sociedade portuguesa (a burguesia, que é para quem a autora
escreve) está ligada, através de uma certa tradição, a uma conceção
estática da vida e da arte, a estados contemplativos da alma. Judith
vive no século da invenção (o automóvel, o avião, o cinema, o
telefone, encurtam as distâncias), das revoluções politicas e
partidárias, período de ânsias e justaposições de movimentos de
‘‘realização, de liberdade, em rajadas de vertigens’’. (Alonso e Silva,
2015, p. 272)

A vida de Judith Teixeira é costumeiramente confundida com seu eu lírico. Jaime


Levy Azancot divorcia-se de Judith Teixeira em 1913, o mesmo alegou que a esposa o

171
teria traído e abandonado o lar. Em 1914, Judith Teixeira casa-se com Álvaro Virgílio
de Franco Teixeira, que era oito anos mais novo que a escritora. Esses acontecimentos
não são bem vistos pela sociedade e pela crítica literária portuguesa.
Antes de assinar seus poemas com seu verdadeiro nome, Judith Teixeira publicou
em vários jornais com o pseudônimo de Lena de Valois. Ela só assume seu nome de
batismo quando publica Decadência em 1923.
Na estreia de seu livro, alguns jornais demonstram apreciar a inovação poética de
Judith, no entanto, este prestígio dura pouco e Teôtonio Pereira e a Liga de Acção dos
Estudantes de Lisboa começam a atacar a autora e a fazer de tudo para destruir
exemplares de Decadência. Foram recolhidos também obras de António Botto e Raul
Leal. As obras destes autores foram recolhidas e queimadas pelo Governo Civil de
Lisboa.
Havia uma verdadeira campanha contra algumas obras consideradas contra a
moral portuguesa. Logo, diversos autores tiveram suas obras apreendidas. Contudo, o
caso de Judith Teixeira era o mais grave, pois ela era mulher e isso a colocava num
lugar de inferioridade aos outros autores. Fernando Pessoa e Raul Leal fazem panfletos
e manifestos contra a censura deste momento, porém, em nenhum desses panfletos e
manifestos há uma linha em favor de Judith.
É a autora que fala sobre a censura sofrida e sobre não receber ajuda dos escritores
seus contemporâneos, em sua conferência De Mim. Conferência em que se explicam as
minhas razões sobre a vida sobre a estática sobre a moral. Como vemos em Alonso e
Silva 2015), Judith estava sozinha e tinha se tornado alvo da crítica literária de seu
tempo.
Teixeira tornou-se, efectivamente, um bode expiatório para a
desordem social coletivamente imaginada, tida como
monstruosamente visível. Entretanto, Livro de «Soror Saudade», a
segunda coletânea de Florbela Espanca publicada também no início de
1923, escapou à censura apesar de também desafiar preconceitos
vigentes acerca da sexualidade feminina, talvez porque parecesse
menos ameaçadora para as normas sociais instituídas que a
representação do desejo de cariz homossexual verbalizado por Judith
Teixeira (ALONSO e SILVA 2015, p. 21e 22).

Mas é através da obra poética, que Judith expõe seu desejo de transformação
daquela sociedade conservadora e patriarcal que a relegava ao não lugar de escritora.
Sua poesia erótica diz muito sobre o desejo feminino e o desejo de ser poeta. Suas obras

172
poéticas causaram uma transformação no modo de se conceber poesia de autoria
feminina na sociedade portuguesa, não que ela fosse a única a escrever poesia erótica,
mas havia uma certa atitude crítica que a diferenciava. A poeta publicou os livros
Decadência, Castelo de Sombras, Nua. Poemas de Bizâncio e Esparsos; Cláudia de
Pazos Alonso e Fábio Mário da Silva adicionaram poemas inéditos da escritora na
publicação de Prosa e Poesia – Judith Teixeira (2015).
Analisando seus poemas vemos o erotismo feminino sendo expresso por meio de
seu eu lírico. Vemos este eu lírico falando de um erotismo lésbico que evidenciamos em
vários poemas de Decadência. Esse erotismo lésbico é além de uma expressão dos seus
sentimentos, é também uma manifestação crítica de uma poeta e de uma mulher em
busca de um lugar no meio literário e na sociedade.
Judith Teixeira e Gilka Machado tiveram grande importância para a literatura de
língua portuguesa, bem como foram muito significativas na luta da mulher por um papel
social diferente ao que lhe era imposto. Elas gritaram através de seus poemas por um
lugar na sociedade e no campo literário. Se não conseguiram ser reconhecidas
merecidamente em vida, agora estão sendo resgatadas e revisitadas nos estudos
contemporâneos.

Gilka Machado, Judith Teixeira e as femme fatales


Charles Baudelaire publica As flores do mal em 1957, e seus poemas atingem a
sociedade burguesa ascendente, colocando em foco os problemas sociais que os novos
ricos fingiam não ver.
Seus personagens retratavam os tempos modernos e evidenciavam questões
ofuscadas pelas luzes, cafés e todo luxo da belle époque parisiense.
Assim, encontramos em sua obra o dandy, homem decadente que cultivava
prazeres aristocráticos e se distanciava dos princípios morais da sociedade burguesa e a
femme fatale representada pelas prostitutas e pelas lésbicas por exemplo.
O mito da mulher fatal pode ser encontrado ao longo da história através de muitos
discursos misóginos, que colocavam a mulher no lugar de devoradora de homens. Ainda
hoje é possível encontrar discursos semelhantes, que colocam a mulher como possível
salvação ou destruição do homem. No entanto, a femme fatale a partir de Baudelaire vai
ressignificar o papel da mulher e do próprio poeta neste contexto, a mesma definição
que é exposta por Dominique Mangueneau em sua obra Feminin Fatal. Maingueneau

173
fala sobre a correlação entre a imagem da mulher na arte e a reflexão que a própria arte
faz através da mesma. A femme fatale reflete o papel da mulher e do artista nesta
sociedade.
A arte não representa somente a imagem de uma mulher, mas a incerteza de
qualquer arte que, para ser realizada, obriga a colocar a mulher em imagens:
questionando-se sobre suas próprias imagens, a arte é tomada como uma
reflexão sobre o feminino; ao questionar o feminino, ela é pega em uma
reflexão sobre seus próprios poderes e seus próprios limites
(MAINGUENEAU, p. 14, 1999).²

O artista, portanto, se utiliza da femme fatale e de outros personagens para fazer


uma metalinguagem e mostrar as contradições do mundo moderno.
A abordagem da femme fatale nos revela as transformações sociais, culturais,
artísticas e literárias que acontecem durante o século XIX. A mulher fatal é, também, o
poema, a pintura, o teatro e toda a cultura que é bela, porém corta a sociedade de
maneira cruel, fazendo refletir os problemas que a afligem. Por conseguinte, a figura da
mulher aqui levanta abordagens ainda tabus, a mulher fatal exerce o poder de sedução,
por isso seu desejo é alvo desta cena. O desejo é a libertação desta mulher fatal é através
dele que ela se impõe. Portanto, é a femme fatale encontrada nos versos de Gilka e
Judith que nos dará a dimensão da transformação que as autoras provocaram na escrita
de autoria feminina.
Gilka Machado transgride através de seu poetizar. Notamos a figuração da femme
fatale nas poesias de Gilka através do erotismo feminino latente. O eu lírico vai se
demonstrando cada vez mais sensual nos versos da autora, logo, é essa sensualidade que
evidenciamos como marca da femme fatale.
O desnudamento dos sentidos está presente por toda a poesia de Gilka, ela
representa o desejo das mulheres e a repressão desse desejo, imposta socialmente ao
longo da história da humanidade. Podemos constatar isso em seu poema Sensual. Na
primeira estrofe vemos claramente a constatação da repressão do desejo feminino, em
seus versos: “Quando, longe de ti, solitaria, medito/ neste affecto pagão que
envergonhada occulto,/ vem-me ás narinas, logo, o perfume exquisito/ que o teu corpo
desprende e ha no teu próprio vulto” (MACHADO, p. 79, 2017).
Em outro poema de Gilka, ela revela o erotismo feminino através da metáfora da
gata e de seu corpo macio e peludo. Felina parece retratar a descoberta da mulher com
________________________
² Tradução nossa.

174
seu próprio corpo. A alegoria da “felina” nos apresenta o que de sedutora tem essa
mulher, como uma gata, envolve e seduz. A “felina” é ao mesmo tempo a mulher e
sua vagina. A “animada boa de veludo” examina com interesse “a serpente de frouxel”
(MACHADO, p. 231, 2017).
Além de parecer retratar o corpo da mulher e seu autoconhecimento, há a
constatação da relação que as mulheres têm com a sociedade, que as torna reféns de
padrões conservadores, obrigando-as a atuarem, sendo assim, somente possível se
“desnudar” a sós. Isso nos fica claro nos versos: “Tens muito de mulher, nesse teu
mundo,/ lírico ideal que a vida te emaranha, pois meu ser interior vejo desnudo/ se te
investigo a mansuetude e a sanha” (MACHADO, p. 231, 2017).
Nos versos finais vemos como a “felina” representa o contato da mulher com seu
corpo: “Guardas, ó tato corporificado! A alta ternura e a cólera daninha do meu amor
que exige ser amado!” (MACHADO, p. 231, 2017).
No caso de Judith Teixeira, seus poemas evocam um sentimento lésbico. Esse
erotismo lésbico figurará a mulher como responsável por seu próprio prazer e também
passível de ser responsável pelo prazer de outras mulheres. Ora, o homem e seu falo não
teriam mais papel principal nas relações sexuais, portanto, não representariam mais a
subjugação do sexo feminino.
Tendo em vista a representação da femme fatale como a própria representação do
erotismo feminino, analisamos o poema A minha amante que se encontra no livro
Decadência de 1923.
Nos primeiros versos do poema ficamos com a impressão de que o eu lírico está
se comunicando com essa amante que pode ser real ou imaginária. Os versos “Eles
sabem lá o que há de sublime/ Nos meus sonhos de prazer…” (TEIXEIRA, 1996, p. 62-
63), sugerem que o eu lírico não se importa com a opinião da sociedade, que não
entendia a maneira que elas (as amantes) se relacionavam.
Ao passo que vamos avançando a leitura do poema, somos tomados pela força de
seus versos. O eu lírico feminino está embriagado pelo desejo que a amante lhe
proporciona.
Há quem me tenha ouvido gritar/ Pelo teu nome/ Dizem — e eu não protesto
—/ Que seja qual for o meu aspecto/ tu estás na minha fisionomia e no meu
gesto!. E momentos de delírio: Dizem que eu me embriago toda em cores/
Para te esquecer…/ E que de noite pelos corredores/ Quando vou passando
para te ir buscar,/ Levo risos de louca, no olhar! (TEIXEIRA, 1996, p. 62-
63).

175
O verso “Levo risos de louca, no olhar” chama-nos atenção por demonstrar a
intensidade do amor que beira ao desatino. Mas que também retoma a questão do
machismo estrutural que estereotipou de louca ou promíscua às mulheres que se
atreveram a viver um amor fora dos padrões conservadores.
Ainda nos versos de A minha amante, notamos como a femme fatale aparece
diluída em forma de sensualidade feminina. Ela aparece figurada como o “pecado”, a
“perdição” e o “gênio do mal”, isso porque a sociedade tem medo do poder desta
mulher, uma mulher que não se esconde e que libera seus desejos sem se preocupar com
as regras sociais. A mulher fatal não é uma mulher promíscua, que tem o poder de
destruir amantes, mas sim é uma mulher que enfrenta o patriarcado e não se curva às
vontades dos homens. Aqui nos versos de Judith Teixeira é a mulher que encanta o eu
lírico e que o mantém vivo.
Não entendem dos meus amores contigo—/ Não entendem deste luar de
beijos…/ —Há quem lhe chame a tara perversa,/ Dum ser destrambelhado e
sensual!/ Chamam-te o génio do mal—/ O meu castigo…/ E eu em sombras
alheio-me dispersa…/ E ninguém sabe que é de ti que eu vivo…/ Que és tu
que doiras ainda,/ O meu castelo em ruína…/ Que fazes da hora má, a hora
linda/ Dos meus sonhos voluptuosos—/ Não faltes aos meus apelos
dolorosos/ —Adormenta esta dor que me domina! (TEIXEIRA, 1996, p. 62-
63).

Portanto, notamos que a poesia erótica de Gilka e Judith vai causar espanto nos
campos literários brasileiro e português, porque toca nas questões mais profundas em
relação a liberdade das mulheres, com isso questiona o poder masculino. É a figuração
da femme fatale, que através do corpo e da expressão de sua sensualidade, rompe com
os pressupostos moralistas e representa a mulher que estava à margem da sociedade e
também o poeta.

Referências:

BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

___________________. Obras estéticas Filosofia da imaginação criadora. São Paulo:


Vozes, 1993.

_____________________. As Flores do Mal. Livro online:


www.4shared.com/Asfloresdomalpdf.com.br. Acesso em: 20/03/2018.

BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Trad. Maria Helena Kühner, 11ª Ed. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

176
DUARTE, Constância Lima. Os anos de 1930 e a literatura de autoria feminina. In:
Literatura brasileira 1930 / Andréa SirhalWerkema... [et al.] (organizadores) – Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2012.

FONSECA, Pedro Carlos Louzada. Mulher e misoginia, na visão dos padres da Igreja e
do seu legado medieval. Goiânia: Editora da Puc, 2017.

GABRIELA, Castilho Branco. A missão da mulher portuguesa na Literatura, na arte e


no Lar. Diário de Notícias. Lisboa, 14 de dez. de 1925. De mulher pra mulher. p. 2.

MACHADO, Gilka. Poesia Completa. São Paulo: V. de Moura Mendonça – Livros,


2017. (Selo Demônio Negro).

MAINGUENEAU, Dominique. Féminin Fatal. Paris: Descartes e Cie, 1999.

MUZART, Zahidé. Uma espiada na imprensa das mulheres no século XIX. In: Revista
Estudos Feministas. Florianópolis: UFSC, 11(1): 336, jan-jun/2003.

SOARES, Angélica. A paixão emancipatória: vozes femininas de liberação do


erotismo na poesia brasileira. Rio de Janeiro: DIFEL, 1999.

TEIXEIRA, Judith. Poemas. Lisboa: & Etc, 1996.

______________ Poesia e Prosa. Organização e estudos introdutórios de Cláudia Pazos


Alonso e Fabio Mario da Silva. Lisboa: Dom Quixote, 2015.

177
A(S) IDENTIDADE(S) DA MULHER ENTRE O BRASIL E OS ESTADOS
UNIDOS: UMA ANÁLISE DE SAMBA DREAMERS, ROMANCE DE
KATHLEEN DE AZEVEDO (2006)

Caroline Nascimento Fernandes-Caetano (UnB)1

Resumo: Nesse trabalho, investigamos a(s) identidade(s) da mulher deslocada entre o Brasil e
os Estados Unidos na obra Samba Dreamers de Kathleen de Azevedo (2006). Com base em
teorias sobre mobilidade e identidade (LUIS, 1997; RUSHDIE, 1999), bem como teorias sobre
literatura brazuca e brasileiro-americana (TOSTA, 2005-2013), buscamos entender os desafios
que as personagens femininas nesse romance enfrentam ao estarem em espaços identitários
entre Brasil e EUA. Analisaremos as personagens Carmen, imigrante brasileira nos Estados
Unidos, e Rosea, filha de Carmen nascida e criada nos EUA, afim de abordar a questão da
mulher como sujeito deslocado em busca de um espaço para si entre dois imaginários diferentes
e as dificuldades que tal descolamento promove.

Palavras-chave: Literatura brasileiro-americana; Literatura e mobilidade; Gênero

Embora a história do Brasil o revele como um país de inúmeras migrações e muita


mobilidade, não havia nele uma “tradição de emigração para o estrangeiro” (ASSIS,
2002, p. 9). Outrora destino para imigrantes de todos os continentes, o Brasil “deparou-
se com o inverso da situação” (p.9) quando essa emigração se consolidou no final do
século XX. Segundo Gláucia Assis (2002), isso “tornou-se uma questão relevante
quando o que era um movimento esporádico […] transformou-se num fluxo migratório”
(p. 10). A maioria dos émigrés, termo novo no vocabulário brasileiro, tinha como
destino o nordeste dos Estados Unidos, onde encontra-se hoje a mais densa comunidade
brasileira no exterior. De acordo com o relatório do Ministério das Relações Exteriores
(MRE), mais de 1,4 milhão de brasileiros estão nos Estados Unidos, dos cerca de três
milhões que moram no estrangeiro (BRASIL, 2015, p. 2-6). Apenas na cidade de
Boston, localizada na costa atlântica estadunidense, há aproximadamente 336.000
brasileiros (ASSUNÇÃO, 2012, p. 67). Os números, porém, não sugerem destaque
desse povo, considerado até recentemente uma “minoria invisível” nos Estados Unidos
(MARGOLIS, 2009).
Segundo António Ladeira (2010) em seu artigo Literaturas da Diáspora Lusófona
nos Estados Unidos da América e Canadá, apesar da imigração brasileira aos Estados

1 Graduada em Letras Inglês e Português (Universidade de Brasília), Mestra em Literatura (Universidade


de Brasília). Contato: carol.n.fernandes@hotmail.com.

178
Unidos ser relativamente recente, já é possível “notar-se sinais de uma expressão
literária nascente” (p. 11). Antonio Tosta (2005), crítico literário que tem estudado o
tema extensivamente, chama esta expressão literária de literatura brazuca,
“emprestando um termo comumente utilizado para designar os brasileiros morando e
trabalhando - geralmente ilegalmente - no exterior” (p. 715). De acordo com Tosta
(2005), a literatura “se tornou uma das maneiras pelas quais os imigrantes brasileiros
‘documentaram’ suas experiências nos EUA” (p. 715) e que “a experiência brazuca é
uma ocasião de auto-consciência” (p. 717, grifo meu), ilustrada no momento em que o
sujeito discorre sobre sua identidade, sobre o outro com quem entra em contato e sobre
seu lugar no mundo. A literatura brazuca ganha visibilidade na década de 1980 e a
“maioria [de suas obras] fora escrita em português e publicada no Brasil por residentes
temporários nos Estados Unidos” (p. 715).
Hoje, aproximadamente três décadas depois da massificação da imigração
brazuca, já é possível encontrar também obras escritas pela segunda geração de
imigrantes, não mais considerada literatura brazuca e sim literatura Brazilian-American,
ou brasileiro-americana, a qual traz à tona as contemplações e os questionamentos do
descendente do imigrante brasileiro. Para Tosta (2013), a principal diferença entre estas
obras é a perspectiva, pois a literatura brazuca refere-se a um estrangeiro brasileiro em
um novo país enquanto a brasileiro-americana refere-se a um nativo estadunidense que
busca conhecer mais sobre a cultura dos seus pais brasileiros. O teórico explica que “os
autores brasileiro-americanos escrevem como estadunidenses com uma forte herança
brasileira, um legado que eles tem entusiasmo em compartilhar na sua escrita” (p. 317).
Muitas vezes, indica Tosta (2013), eles não dominam o português brasileiro e não
podem ser considerados “autoridades de cultura brasileira” (p. 317). Seus textos, embora
apresentem o Brasil aos leitores norte-americanos, paradoxalmente revelam uma
distância da cultura brasileira e sublinham a identidade estadunidense de seus autores
(p. 317). Ademais, autores como Kathleen de Azevedo escrevem sobre “temas mais
universais e, “quando suas obras focam a herança ou experiência brasileira, sua
identidade é transmitida como verdadeiramente bicultural” (p. 317).

179
Samba Dreamers, escrito por Kathleen de Azevedo em 2006, foi o primeiro
romance brasileiro-americano a ser escrito em língua inglesa e publicado nos Estados
Unidos. Nele, a autora desenvolve um texto original à luz da experiência dos imigrantes
brasileiros e seus descendentes nos Estados Unidos e traz à tona temas importantes para
reflexões sobre essa comunidade. Um desses temas é o sentimento comum aos
personagens no romance de ter familiaridade com os espaços onde vivem ao mesmo
tempo que “não se sentem em casa” neles (LIMA JÚNIOR, 2015, p. 159), implicando
uma dinâmica de distanciamento e aproximação com respeito a esses espaços. Nessa
oscilação de “dois pra lá e dois pra o cá”, considerada por William Luis (1997) como
uma dança entre culturas, os personagens se veem em um desenquadramento cultural e
identitário onde, por meio de constantes reformulações e negociações de quem eles
eram/são, “suas identidades [são] entrelaçadas” (OLIVEIRA e SCHNEIDER, 2012, p.
5). O romance também ilustra a negociação da identidade desses brasileiros nos Estados
Unidos, construída a partir dessa dança e por meio das interações com as outras pessoas
nesses espaços. A autora demonstra como é complexo articular uma identidade baseada
no olhar alheio, principalmente quando tal olhar elege e propaga imagens superficiais
sobre a brasilidade. Nessa análise, destaco duas personagens que representam a vivência
feminina dentro dessa mobilidade, com foco na identidade que elas constroem para si
nesse contexto. Por meio das interações que as persongens Carmen e Rosea tem com
o(s) outro(s) em seus respectivos meios, a autora traz à tona questionamentos sobre o
que significa ser brasileira fora do Brasil, sobre carregar a herança de um país tão
grande e diversificado e sobre as representações que são (im)postas às brasileiras que se
inserem na sociedade estadunidense. Azevedo (2006) retrata as tentativas das brasileiras
de se identificarem nesse contexto, aceitando e rejeitando algumas representações, a fim
de estabelecer seus próprios espaços no melting pot dos Estados Unidos.
Carmen: aceitação de uma identidade imposta
A personagem Carmen Socorro, baseada na figura real de Carmen Miranda, é uma
imigrante pioneira nos Estados Unidos que chegou ao país ainda na primeira metade no
século XX, antes da onda migratória do fim do século. Ao contrário de outros
imigrantes que encontram nos EUA uma comunidade étnica já estabelecida, como por

180
exemplo os mexicanos, os porto-riquenhos, os judeus, não há para Carmen uma grupo
com o qual poderá compartilhar sua identidade e suas vivências. Sozinha em seu
desenquadramento como brasileira na sociedade estadunidense, ela é a primeira a tentar
uma identificação para si mesma e para as brasileiras e os brasileiros ali. No romance,
Carmen Socorro, assim como Carmen Miranda na vida real, se apropria de algumas
ideias já presentes no imaginário estadunidense sobre o Brasil para construir uma
identidade para si. Quanto mais ela se apresenta como a caricatura brasileira, mais fama
e espaço ela ganha no país anfitrião. Azevedo (2006) faz dela uma fabuladora de um
Brazil utópico e americanizado, que utiliza e aumenta imagens que já permeavam o
imaginário estadunidense e ao fazê-lo transfigura-se em um mito em ambos os países.
Ao apresentar o Brasil como tropical, frutífero e alegre, Carmen se vê cada vez mais
obrigada a incorporar tais características à sua própria vida e logo se encontra
prisioneira em suas próprias invenções. Azevedo (2006) problematiza essa figura ao
justapor imagens como a do chapéu de Carmen, cheio de frutas coloridas e apetitosas,
com cenas onde essas mesmas frutas estão apodrecendo, rodeadas por moscas e com
mau cheiro. A autora também não hesita em expor os desconfortos que Carmen sofria
quando vestia seu figurino extravagante, sem poder abaixar a cabeça para ver seus pés e
ainda servir-se da ajuda de um colar cervical para carregar seus torturantes chapéus
pesados: ela “havia se transformado em uma lenda mas não conseguia controlar sua
vida real, nem mesmo o tamanho de seus chapéus” (p. 50). A escolha de Carmen
Socorro, assim como a de muitos brasileiros que se mudam pros Estados Unidos, é de
aceitar o que já é fato sobre o Brasil e tentar se encaixar nessa identidade já
estabelecida. Curiosamente, o brasileiro no Brasil não aceita essa identidade,
demonstrado no romance no episódio em que Carmen retorna ao país de origem para
visitar familiares e é rejeitada de forma violenta e tratada como estrangeira, trazendo a
personagem a uma auto-reflexão onde ela compreende que “estava há tanto tempo em
Hollywood que se esquecera que os outros brasileiros vestiam roupas normais” (p. 130).
Assim, vemos como Carmen “se sentiu sozinha em sua estrangeiridade” (p. 130) tanto
no Brasil, quando tentou retornar às origens, quanto nos Estados Unidos onde não

181
encontrou um espaço melhor que o de “tucano em uma mesa de chá”, fetichizada,
exposta e sem poder de decisão sobre quem seria.
Rosea: rejeição de identidades impostas
Rosea, filha de Carmen Socorro, também se sente “sozinha em sua
estrangeiridade” (AZEVEDO, 2006, p. 130), tendo nascido nos Estados Unidos mas
criada com uma herança cultural brasileira. Iniciamos o romance com sua saída da
prisão, o que traz ainda mais uma camada na temática sobre desenquadramento e
marginalização para essa personagem. Assim como sua mãe, Rosea busca uma
identidade para si mas tem mais resistência em aceitar as ideias já estabelecidas.
Embora ela se aproveite da imagem de tropicalidade e sexualidade associadas ao Brazil
para conseguir alguns trabalhos, Rosea tem dificuldade com essa identidade,
principalmente quando lembra dos sofrimentos da mãe como artista que incorporava
essa figura. Ela não esquece por exemplo de como Carmen lamentava “pelo próprio
cabelo que tinha que manter contido dentro de um turbante, assegurado e silenciado sob
toneladas de fruta e fru-fru” (p. 46). Rosea considera isso uma “maravilhosa
camuflagem brasileira” e que, ao vesti-la, sua “mãe era apenas uma tola fantasiada” (p.
220). Rosea, que se enxerga como uma “amazonense de dois metros [que] era demais”
para os Estados Unidos, mesmo tendo nascido e sido criada nele, se vê obrigada a
constantemente lidar com esse legado deixado por sua mãe, vivendo “sob a sombra de
Carmen” (BESERRA, 2007) e sendo sempre alvo de “adoração que nem lhe
pertencia” (AZEVEDO, 2006, p. 45). Numa tentativa de sair dessa identidade imposta,
Rosea tenta se aproximar dos latinos, mas percebe que ali também não é exatamente seu
lugar. Ela ainda namora com um antropólogo estadunidense estudioso da Amazônia
certa de que ele a compreenderia em toda sua singularidade. Eles se casam mas logo
esse relacionamento literalmente acaba em chamas: Rosea põe fogo em toda a coleção
de artefatos brasileiros do marido ao perceber que ela era apenas mais um objeto da
coleção dele. Por muitas vezes, vemos Rosea se frustrando dessas formas, simplesmente
por não se “encaixar”, palavra que representa essa personagem na medida em que a
autora sempre a descreve como uma mulher muito grande, muito alta e desengonçada
que literal e fisicamente não encaixa em lugar nenhum, trazendo uma metáfora que

182
destaca como os descendentes de brasileiros também não se encaixam em lugar
nenhum. É importante salientar que Rosea não tem problema com sua herança
brasileira: ela ama o Brasil e expressa um interesse genuíno em conhecer mais o país. A
complexidade de Rosea, contudo, é que ela não quer ser obrigada a aceitar imposições
sobre como ser brasileira, especialmente se tais imposições vem de fora do Brasil. Ela
também não quer ser um artefato brasileiro, não quer ser uma caricatura, não quer ser
um estereótipo: ela quer se entender e quer ser entendida.
Reflexos inventados
O que Kathleen de Azevedo (2006) nos traz nesse romance, além da representação
de uma comunidade outrora “invisível” (MARGOLIS, 2009), é um retrato de como a
identidade do imigrante é complexa e está em constante movimento. Ademais, a autora
nos revela como a identidade da segunda geração de imigrantes está intimamente e
sobretudo associada a identidade da primeira geração, exemplificado por meio das
personagens de Carmen e Rosea. Como vemos no romance, o vínculo com o Brasil,
estreito para Carmen, é diferente para Rosea, pois para ela “o país de origem de [sua
mãe] é uma memória distante” (LUIS, 1997, p. xi). A segunda geração de imigrantes
brasileiros representada por Rosea, embora herde a brasilidade de seus progenitores, só
tem interação com o Brasil por interesse e intermédio destes. Sendo assim, o que sabem
e vivenciam no tocante ao país de origem é modelado a partir do relacionamento com
seus pais, pois é através deles que a brasilidade é comunicada. Dessa maneira, a
compreensão que Rosea tem do Brasil se dá por representações e recortes, e ela é
“obrigada a lidar com espelhos quebrados” (RUSHDIE, 1991, p. 10-11) e inventados
por sua mãe. No romance, os “espelhos” (p. 10-11) que revelam pedaços do Brasil para
Rosea são criações de sua mãe que, em sua solidão e estrangeiridade, criou um Brazil
para si quando se viu entre dois mundos. O livro expõe por exemplo que, “enquanto
Carmen penteava e enrolava o cabelo de Rosea no seu próprio cabelo, ela contava como
as mulheres amazonenses se escondiam nas árvores e esperavam camufladas pelo seus
inimigos” (AZEVEDO, 2006, p. 46), entre outras histórias. O que Rosea sabe sobre o
país, portanto, é limitado e indissociável da memória de sua mãe e do contexto
estadunidense no qual criações e ilusões de um Brazil a la Carmen foram estabelecidas.

183
Mistura confusa
Como vimos, ambas Carmen e Rosea se encontravam em um outro espaço entre o
Brasil e os Estados Unidos pois não conseguiam se identificar nem com o de lá, nem
com o de cá. Para Rosea, essa espaço também incluía elementos fictícios trazidos pela
nostalgia e sonhos utópicos de sua mãe, a qual não só contava histórias de um Brazil
mas o construiu fisicamente em sua casa juntamente com elementos estadunidenses.
Anos depois da morte da mãe, Rosea, que perambulava pelos Estados Unidos frustrada
e perdida, retorna à casa de Carmen e visita o seu jardim, numa episódio marcante do
romance:
A varanda ainda estava ali, a mesma de onde sua mãe olhava para além dos
montes […][No jardim de Carmen Socorro, Rosea] tateou por entre as
árvores, agarrando um galho mais baixo, e depois outro. Ela quebrava os
galhos furiosamente, os jogando de lado, impaciente com a idiotice de como
aquilo tudo era, uma mistura confusa, as plantas estadunidenses e as
tropicais, os carvalhos e as palmeiras, a gralha azul competindo com os
periquitos desorientados que voavam nos arbustos, a machucar seus
pequenos corpos amarelos nos galhos tortos e vermelhos […] Os odores
imaginários voltaram a Rosea: folhas cujos cheiros eram como o perfume de
sua mãe e café e azeite de dendê e laranjas, sândalos, cera de carnaúba, coco.
[…] Rosea cobriu a cabeça e se abaixou. Ela recuperou o fôlego. Era demais.
(AZEVEDO, 2006, p. 140-141)

A “mistura confusa” (AZEVEDO, 2006, p. 140) ilustrada pelo jardim plantado por
Carmen pode ser compreendida também como a situação da própria Rosea como
personificação do encontro entre a identidade brasileira e a estadunidense. Rosea desde
o nascimento carrega consigo a identidade dupla e simultânea e consequentemente
“confusa”, composta por brasilidades e americanidades. Como o jardim de Carmen, que
reúne plantas e animais brasileiros e estadunidenses no mesmo tempo e espaço, a
personagem de Rosea também exibe traços simultaneamente brasileiros e
estadunidenses, o que evidencia e reforça a identidade de descendentes como ela como
“verdadeiramente bicultural” (TOSTA, 2013, p. 317). Assim, diferentemente da
narrativa de Carmen que retrata a experiência de solidão na sua estrangeiridade, tanto
no Brasil quanto nos EUA, da nostalgia e saudade de uma pátria imaginária (RUSHDIE,
1999), a narrativa de Rosea e outros descendentes expressa “as aspirações, desilusões e
o sentimento de aceitação ou rejeição” como estadunidenses descendentes de migrantes
brasileiros (LUIS, 1997, p. ix). Seus traços bi-culturais são estranhos e inéditos e podem
até parecer impossíveis à primeira vista, como quando Rosea percebe que não cabe

184
dentro dos padrões estadunidenses: “um corpo amazonense de dois metros de altura era
muito para este mundo” (AZEVEDO, 2006, p. 20). Não havendo precedentes para
encontros como esse, os próprios descendentes são “obrigados a se auto-
definirem” (RUSHDIE, 1991, p. 124), se diferenciando tanto dos seus pais quanto do
mundo que lhes cerca: “[Rosea] não seria a Carmen Socorro de ninguém. Ela não
tentaria ser o que não era. […] Se no mundo não havia espaço para Rosea Socorro Katz,
então que se dane!” (AZEVEDO, 2006, p. 265).

Referências
ASSIS, G. Estar Aqui, Estar Lá: uma cartografia da vida entre o Brasil e os Estados
Unidos. Campinas: Núcleo de Estudos de População/UNICAMP, 2002. 170p.

ASSUNÇÃO, Viviane Kraieski. Circulating Food and Relationships: the movement of


food (and other things) between Brazilians in Boston and Brazil. International Review
of Social Research, Bucareste, v. 2, n. 1, p. 65-76, 2012.

AZEVEDO, K. Samba Dreamers. The University of Arizona Press: Tucson, Arizona,


2006. 306 p.

BESERRA, B. Sob a sombra de Carmen Miranda e do carnaval: brasileiras em Los


Angeles. Cadernos Pagu (UNICAMP), Campinas, v. 28, p. 313-344, 2007.

BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Relatórios consulares: estimativas


populacionais das comunidades. Brasília: MRE, 2015.

LADEIRA, A. Literaturas da Diáspora Lusófona nos Estados Unidos da América e


Canadá. Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, série 128, n. 1-12, p. 112-121,
2010.

LIMA JÚNIOR, I. C. A dupla instância temporal do estranho: Heidegger à luz de Stefan


George e Rilke. In: SEMINÁRIO DOS ESTUDANTES DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
FILOSOFIA DA UFSCAR, 2015, São Carlos, Anais… São Carlos: Departamento de
Filosofia, UFSCar, 2015, p. 151-168.

LUIS, W. Dance Between Two Cultures: Latino Caribbean Literature Written in the
United States. Nashville: Vanderbilt University Press, 1997. 376p.

MARGOLIS, M. An invisible minority: Brazilians in New York City. Edição revisada e


expandida. Gainesville, Florida: University Press of Florida, 2009, 151p.

185
OLIVEIRA, M.L.L.; SCHNEIDER, L.. Revisitando conceitos de identidades e
fronteiras na literatura chicana. 2012, Campina Grande: UEPB/UFCG, 2012.

RUSHDIE, S. Imaginary Homelands. New York: Penguin Books, 1992. p. 9-21.


Tradução nossa.

____. Between Heaven and Hell: Perceptions of Brazil and the United States in Brazuca
Literature. Hispania, Estados Unidos, v. 88, n.4, p. 713-725, 2005. Tradução nossa.

____. The Other as Self or Other? Latinidade and the Politics of Identification in
Brazuca Novels. Gávea-Brown, v. XXXIV-XXXV, p. 301-322, 2013.

186
PARTIR É IGUAL A FICAR - A RESSIGNIFICAÇÃO DA ESPERA DE
PENÉLOPE NA POESIA CONTEMPORÂNEA

Eva Maria Testa Teles (UFMS)1

Resumo: Ana Martins Marques e Mônica de Aquino apresentam em sua poesia uma releitura da
espera da personagem mitológica Penélope. A espera pelo homem amado é revisitada nos poemas
analisados, uma releitura que estabelece convergências e divergências com a obra original e propõe
uma nova interpretação, na qual a espera é ressignificada como uma busca de si mesma, sendo o ato
de tecer e desfazer o tecido uma preparação interna, subjetiva de sua própria jornada. Propõe-se,
dessa forma, uma reflexão sobre a ressignificação da espera de Penélope e sobre todas possibilidades
que se apresentam para ela na contemporaneidade, elementos fundamentais na constituição da
identidade dessas personagens, a Penélope de antes e as de agora.
Palavras-chave: Poesia; Penélope; Ana Martins Marques; Mônica de Aquino.

Resumen: Ana Martins Marques y Mónica de Aquino enseñan en su poesía una relectura de la espera
del personaje mitológico Penélope. La espera por el hombre amada es revisitada en los poemas
analizados, una relectura que establece convergencias y divergencias con la obra original y propone
una nueva interpretación, en la cual la espera es resignificada como una búsqueda de uno mismo,
donde el acto de tejer y deshacer la tela es una preparación interna, subjetiva de su propia jornada.
Propone se, de esta manera, una reflexión sobre la resignificación de la espera de Penélope y sobre
todas las posibilidades que se presentan para ella en la contemporaneidad, elemento fundamentales
en la constitución de la identidad de eses personajes, la Penélope de la tradición y las de ahora.
Palabras-llave: Poesía. Penélope. Ana Martins Marques. Mónica de Aquino.

Fundo Falso

Fundo falso, publicado em 2015, está dividido em sete séries de poemas: Memória
das mãos, A dor como método, Água forte, Quatro espelhos, Corpo em pausa, O efeito da
quebra e Matéria bruta. O primeiro capítulo, Memória das mãos, é composto por treze textos
que marcam, desde o título, a presença de Penélope, cada um deles carrega um adjetivo, ou
locução adjetiva, que específica Penélope (insone, mentirosa, secreta, paciente, assustada,
dentro da noite, etc.) e que vai servir como base para o processo de reescrita formal e
ideológica por que passa a personagem mitológica ao ser apresentada nas poesias de Mônica

1
Graduada em Letras (UNESP/Araraquara), Mestra em Educação (UFSCAR), Doutoranda em
Letras/Estudos Literários na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) – Três
Lagoas/MS. Contato: eva_teles@yahoo.com.br

187
de Aquino. A poeta mineira, mulher, escritora, apresenta uma Penélope que dialoga com a
tradição literária e, concomitantemente, manifesta particularidades, nesta primeira parte a
autora apresenta a nova Penélope, aquela que no primeiro poema da série declara de forma
contundente “Ulisses, agora, sou eu.” e ao fazer essa afirmação a voz poética se coloca como
sujeito de sua própria jornada, declarando a natureza de sua espera.

Aquino declarou em uma entrevista concedida para revista a Leitura, em julho de


2016:

“Borges afirma, em O ofício do verso, que há séculos três histórias têm


bastado à humanidade: o Evangelho, a Ilíada e a Odisseia. A última, que
traz um dos principais motivos da literatura, a viagem, é também a história
de uma espera. Do papel legado à mulher por tanto tempo e que ainda está
presente no imaginário popular”.

A partir dessa compreensão, apresentada pela autora, a personagem mitológica é


revisitada em suas poesias e sua espera ressignificada como uma busca de si mesma, e o ato
de tecer e desfazer o que foi tecido é uma preparação interna, subjetiva de sua própria
jornada.

A vida submarina

No livro A Vida Submarina, seis poemas trazem a temática da Penélope, eles são
apresentados de forma despretensiosa, sendo apenas numerados e esparsos ao longo do livro.
Porém, em uma observação mais atenta, intui-se que a autora os numerou porque a ordem
de leitura é importante, ela é decisiva para a narrativa que vai sendo alinhavada entre os
poemas, a narrativa que Penélope faz da sua espera, que ao longo dos poemas pode-se
perceber com sutileza, mas que a voz poética declara com convicção no último poema “E
então se sentam/lado a lado/para que ela lhe narre/a odisseia da espera.”.

Marques apresenta em sua obra a viagem e a espera como duas faces de um mesmo
elemento, colocando a espera como ato que, por isso, exige atitude, atribuindo-lhe vida.
Nela, assim como em Aquino, Penélope atribui significado a sua espera, que está repleta de
experiências, vivências e reflexões que se tornaram possíveis com a partida de Ulisses.

188
O mito de Penélope

Penélope é uma personagem mitológica que está presente numa das primeiras obras
escritas no Ocidente, a Ilíada e a Odisseia, obras atribuídas a Homero, que viveu por volta
do fim do século IX e início do século VIII a.C., textos pertencentes ao gênero Épico. No
livro Odisseia a personagem é a esposa de Ulisses, que foi combater na Guerra de Tróia.
Após alguns anos de sua partida, como seu destino era desconhecido e todos acreditavam
que estivesse morto, o pai de Penélope preocupado com o destino da filha passa a sugerir
que ela se case novamente. A filha diversas vezes recusou o conselho do pai, pois sua
vontade era esperar pelo retorno do esposo. Os anos começaram a pesar e, sabendo que não
conseguiria fazer valer o seu desejo, Penélope engendrou um plano, alegou que estava
tecendo uma mortalha e quando a obra estivesse pronta escolheria um de seus pretendentes.
Penélope tecia durante o dia e à noite, secretamente, desfazia o trabalho.

O mito de Penélope mostra uma das mais populares metáforas a um corrente conceito
de feminilidade. É apresentada pela tradição como esposa e mãe. Como mulher ela espera
por seu amado e enquanto espera, pacientemente, borda, tece, junta os fios e as cores. A
personagem é tão intrigante e ousada, que em uma sociedade feita para os homens, fez valer
a sua vontade, utilizando-se de atividades próprias de seu mundo e de sua condição de
mulher. Usou a tecelagem como arma e enfrentou as ordens dos homens, empregou a
inteligência e não a força, e venceu.

As Penélopes da poesia de Ana Martins Marques e de Mônica de Aquino contam


essa outra batalha, a que uma mulher travou contra os homens que queriam dela obediência,
e, mais importante, que ela travou consigo mesma para descobrir o que amava e qual era,
realmente, o objeto de sua espera.

Penélope na contemporaneidade

Jaime Ginzburg reflete sobre o papel do narrador na obra literária, explica que a
presença de narradores descentrados é uma marca forte e recorrente na literatura de fins do
século XX e início do XXI:

“Na literatura recente, alguns escritores têm desafiado essa tradição,


priorizando elementos narrativos contrários ou alheios à tradição patriarcal
brasileira. As percepções de um prisioneiro, de um pai desafiado pela

189
situação do filho, de uma africana no século XIX, de um espaço religioso
em que aflora a homoafetividade e de um perseguido político levam a
pensar sobre o país e suas perspectivas. Trata-se de um desrecalque
histórico, de uma atribuição de voz a sujeitos tradicionalmente ignorados
ou silenciados.” (GINZBURG, 2012, p. 200)

Para o autor “grupos sociais historicamente oprimidos elaboram, em novos autores,


em narradores ficcionais, as condições para a presença dos excluídos. [...] É nas conexões
textuais entre formas e temas que as mudanças se tornam visíveis.” (GINZBURG, 2012, p.
203). Dessa forma, quando as autoras se propõem a reescrever, a partir do seu lugar de fala
de mulher do século XXI, uma personagem feminina da tradição literária, mostrando uma
face dela que nunca foi explorada, ao atribuir significado à espera, colocando em relevo sua
decisão de esperar, rompe o estereótipo de passividade com o qual foi apresentada a vida de
Penélope, e propõe uma série de questionamentos acerca da condição das mulheres ao longo
dos milênios que separam as personagens.

Toda a transformação da personagem mitológica é apresentada numa série de


poemas construídos com a sutileza da poesia e a assertividade de palavras carregadas de
conteúdo com a força necessária para narrar a odisseia da espera. Compreender os gêneros
textuais que sustentam essas personagens, suas diferenças e pontos de convergência podem
trazer luz para a análise dos poemas estudados, que, no nosso entendimento, trazem em seu
bojo a narrativa da espera.

Para refletirmos sobre os gêneros textuais recorremos ao teórico Rosenfeld:

“Pertencerá à Lírica todo poema de extensão menor, na medida em que


nele não se cristalizarem personagens nítidos e em que, ao contrário, uma
voz central – quase sempre um “Eu” – nele exprimir seu próprio estado de
alma. Fará parte da Épica toda obra – poema ou não – de extensão maior,
em que um narrador apresentar personagens envolvidos em situações ou
eventos.” (ROSENFELD, 1985, p. 17)

Após definir brevemente os gêneros épico, em que foi escrita a Odisseia, e o lírico, que traz
a Penélope da contemporaneidade, o autor explica que “não há poema lírico que não
apresente ao menos traços narrativos ligeiros [...]” (ROSENFELD, 1985, p. 17). E nessa
explicação apoiamo-nos para fazermos uma leitura que nos permita perceber que embora o
lirismo prevaleça, as Penélopes de Marques e Aquino assumem em alguns momentos o papel

190
de personagem, o eu-lírico assume função de narrador e ora apresenta a Penélope, ora é a
própria Penélope que “narra” a história de sua espera, por meio da expressão de seu estado
emocional.

Nos versos de Ana Martins Marques apresenta-se a ideia da espera como atividade,
tal qual a viagem, porém as diferenças são pontuadas e ganham relevo, pois são elas a matéria
da espera.

Penélope (V)
A viagem pela espera
é sem retorno.
Quantas vezes a noite teceu
a mortalha do dia,
quantas vezes o dia
desteceu sua mortalha?
Quantas vezes ensaiei o retorno –
o rito dos risos,
espelho tenro, cabelos trançados,
casa salgada, coração veloz?
A espera é a flor que eu consigo.
Água do mar, vinho tinto – o mesmo copo.
(MARQUES, 2009 p. 140)

Penélope (VI)
E então se sentam
lado a lado
para que ela lhe narre
a odisseia da espera.
(MARQUES, 2009, p. 142)

O poema Penélope (V) traz a ideia dos opostos que se complementam ao mesmo
tempo que se distanciam, o dia e a noite, a partida e o retorno, a viagem e a espera. Tais
elementos são apresentados como duas faces da mesma moeda, e na relação entre estes
opostos está o eu-lírico, que se constrói a partir da união desses contrários, como expressa
no penúltimo verso “A espera é a flor que eu consigo”. A metáfora da flor para descrever a
espera é significativa, pois ela tem um ciclo de vida que é lembrado por sua beleza, leveza,
perfume, remete à primavera, que é época fecunda, ou seja, o eu-lírico, apresenta, ao fazer
tal analogia, sua espera como um período de plenitude, o que é confirmado no poema
Penélope (VI) quando, sentados lado a lado, Penélope irá narrar sua odisseia, a sua aventura
e todas as singularidades vividas durante a espera.

191
Enquanto Marques traz em seus poemas, por meio da escolha das palavras, a leveza
e sutileza dos versos, a espera como período de autocriação, de construção interna, nos
poemas de Aquino, a espera aparece de forma enérgica, decidida, como criação pulsante,
urgente, que se constrói e precisa de respostas sobre seu processo criativo e sobre si mesma.

Penélope Insone
Completar a urdidura do dia
saber do manto o desenho exato
saciar toda fome de geometria
conhecer o trabalho, no limite dos olhos.
Recriar-se inexata sem simetria
até terminar o diagrama de escolhas.
só então destruir, com agulha e tesoura
cada amor imaginado.
Conservar apenas a memória das mãos
sobre o tecido, o percurso do fio
a desfazer o possível antes da aurora.
Penélope dissolve-se na hipótese:
quer conhecer, em detalhes, o manto
que a separa do outro.
Tece o pano com quem toca
o corpo de um homem, de cem homens
desfaz a mortalha como se destruísse um véu.
Fere a carne do pano, fere o dedo na pressa
e mancha, com sangue, a colcha de promessas.
Mas ante isso:
recusa o passado seus retalhos
prefere o que ainda não aconteceu
enquanto pensa: Ulisses, agora, sou eu.
(AQUINO, 2017, p. 20)

Penélope Paciente
Com muita disciplina de gestos
faz da espera um projeto abstrato
resistência, desafio dos dias.
O que há de concreto é a luta
entre fio tesoura pano
entre planos e recusa de escolhas
Ulisses vira uma ideia.
É a si que Penélope espera.
(AQUINO, 2017 p. 24)

Penélope Secreta
Um homem chegou no dia
em que não havia espera.
Na porta, somente o cão
guardava o tempo.
E o tempo era correr
atrás do rabo

192
O homem tomou o castelo,
a cama, o arco.
Agora, dorme ao meu lado
descansa da travessia.
Não sabe seu gosto de mar
Não sabe que traz, na pele, a alma
do mar.
Preciso partir para esse lugar
de onde o homem voltou
(o amor agora é o mar).
Comecei a tecer uma rede
de pesca.
Comecei a tramar
certo corpo de barco.
Agora tranço os cabelos
olho a janela.
É quando ele desperta
desfaz a cama, desfia os planos
desata a trança e pisa na rede
onde sinto, de novo, o mar.
De repente, partir é igual
a ficar.
(AQUINO, 2017, p. 26)

O capítulo Memória das Mãos tem início com o poema Penélope Insone. Nele
Aquino apresenta uma Penélope que irá, ao longo do capítulo, recriar-se constantemente,
numa busca de si e do verdadeiro objeto de sua espera, dado que com a partida de Ulisses
foi-lhe aberto um leque de possibilidades que antes, quando seu papel na sociedade e para si
mesma era determinado, não existiam, ou um dia diagrama de escolhas: “Recriar-se inexata
sem simetria/até terminar o diagrama de escolhas.” (AQUINO, 2017, p. 20), ciente dessas
possibilidades e da necessidade de atuar como sujeito de sua própria história, no verso final
do poema o eu-lírico compartilha sua reflexão “pensa: Ulisses, agora, sou eu.” (AQUINO,
2017, p. 20)

O segundo poema apresentado acima, Penélope Paciente, foi escolhido porque tem
como tema central a espera, que a princípio é descrita como um projeto abstrato, como
resistência, como desafio e finaliza com a conclusão de que Penélope espera por si mesma.
Esse poema dialoga, ainda mais diretamente, com os poemas de Marques, nos quais
Penélope se percebe como motivo fundamental da espera, e a partir dessa constatação Ulisses
deixa de ser o elemento central, objetivo de sua vida, do seu tecer. E partimos dessa
conclusão, para, por fim, analisar o último poema escolhido Penélope Secreta. Nesse poema,

193
cujo título remete diretamente à personagem da mitologia, pois aquela também tinha um
segredo, Penélope descobre um novo amor.

O poema inicia contando sobre uma chegada no dia que não havia espera, o artigo
indeterminado - “Um homem chegou/no dia que não havia espera” - indica que este homem
pode não ser Ulisses.

Na sequência de poemas sobre Penélope, o cão é figura recorrente, o animal, que


comumente é associado à fidelidade, chama a atenção por ser um animal selvagem que foi
domesticado, tal como a fidelidade, sugerindo que ela não é natural, é um processo que foi
aprendido, mas que guarda em si a possibilidade de manifestação de seu instinto natural.
Somada a esta ideia, ainda a partir da imagem do cão, temos o tempo cíclico, ou seja, a
suspensão do tempo linear pela indicação da atividade que se repete continuamente, numa
aproximação ao mito.

A partir da indicação de que um homem chegou, são enumeradas uma série de ações
atribuídas a esse homem “tomou o castelo, a cama, o arco.” (AQUINO, 2017, p. 25)
Indicando que sua presença preencheu a casa, incluindo a cama de Penélope e o arco que
representa Ulisses, e esta presença ocupa, agora, toda a vida de Penélope, suscitando nela
sentimentos até então desconhecidos. Penélope apresenta, em primeira pessoa do singular,
uma inquietude, o gosto de mar que ela provou na pele do homem suscita nela o desejo pela
viagem, e ela declara que seu novo amor é o mar. A figura do mar como objeto de seu amor
demonstra que Penélope está apaixonada pelo mistério, pelo que é profundo e capaz de
mostrar-lhe novos mundos, de levá-la a qualquer lugar. A partir dessa descoberta Penélope
passa a se preparar para a viagem e começa a tecer uma rede de pesca, um barco, trançar os
cabelos enquanto olha pela janela, numa atitude reflexiva de olhar para fora, de buscar algo
fora de si. Porém, quando o homem desperta, ele desfaz os planos da viagem, o ato de
desmanchar o trabalho realizado não é mais secreto, ela já não precisa se esconder, e quando
estão juntos, ela sente o gosto do mar que ficou tatuado na pele do homem e percebe que,
embora tenha a possibilidade da viagem, já não precisa partir, pois sente que neste momento
de completude “partir é igual/ a ficar.” (AQUINO, 2017, p. 26).

194
REFERÊNCIAS

ANDRADE, Fernando. Entrevista com a poeta Mônica de Aquino. Ambrosia. Disponível


em: <https://ambrosia.com.br/literatura/entrevista-com-a-poeta-monica-de-aquino/>.
Acesso em: 25 de setembro de 2018.
AQUINO, Mônica de. Fundo Falso. Belo Horizonte: Miguilim, 2017
GINZBURG, Jaime. O narrador na literatura brasileira contemporânea. Tintas. Quadeni
di letterature iberiche e iberoamericane, Milão, n.2, p. 199-221, 2012.
HOMERO. Ilíada. 5. ed. Tradução em versos de: NUNES, C. A. Rio de Janeiro: Ediouro,
2005.
HOMERO. Odisseia. 6. ed. Tradução de: NUNES, C. A. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
MARQUES, Ana Martins. A vida submarina. Belo Horizonte: Scriptum, 2009
Revista Leitura V.2 nº 57 – jul/dez 2016 – Poesia e História
O instante alinhavado em versos – Autor/a: Letícia Malloy | André Tessaro Pelinser | Vitor
Cei - p. 264 - 281. 269
ROSENFELD, Anatol. Gêneros e traços estilísticos. IN: O teatro Épico. São Paulo:
Perspectiva, 1985, p.15-26.

195
ESCRITORAS EM TRÂNSITO II: REFLEXÕES INICIAIS SOBRE A CRÍTICA
FEMINISTA E A HISTÓRIA LITERÁRIA DO RELATO DE VIAGEM

Flora Schroeder Garcia (PUC-SP)1

À Carla Cristina Garcia,


que me ensina a desobedecer2

Resumo: Nesta comunicação, a partir da Política de Localização, teorizada por autoras como
Adrienne Rich e Donna Haraway, estabeleço, em um primeiro momento, diálogo com Gloria
Anzaldúa e Virginia Woolf e, em seguida, realizo uma abordagem preliminar do modo como as
instituições acadêmica, histórica e literária fundaram narrativas cujos fios condutores compõem-
se pela sucessão cronológica de nomes de homens, excluindo assim da tradição nomes de
mulheres. O foco dessa abordagem recai sobre a questão da viagem e do relato de viagem.
Palavras-chave: Crítica feminista; História literária; Relato de viagem

Em 2018, no XV Congresso Internacional ABRALIC, expus a comunicação


“Escritoras em trânsito: relações entre o pensar, o escrever, o viajar e a constituição da
subjetividade feminina”, na qual apresentei minha pesquisa à época em estágio inicial.
O seu corpus era constituído por Letters Written in Sweden, Norway, and Denmark,
escrito no século XVIII pela inglesa Mary Wollstonecraft (1759-1797), além de
Itinerário de uma viagem à Alemanha e Três anos na Itália seguidos de uma viagem à
Grécia, escritos no século XIX pela brasileira Nísia Floresta (1810-1885). Abordei,
então, a divisão sexual da mobilidade e as relações entre a liberdade espacial, a
liberdade intelectual e a liberdade artística. Esse texto está disponível nos Anais do
Congresso.
Pretendia hoje abordar essas obras, buscando considerar em que medida a viagem
seria imbuída de sentidos específicos, configurados a partir da inserção das autoras em
seus respectivos contextos sociais, históricos e geográficos.
Entretanto, ao longo de todo percurso, há os percalços, os desvios. E, assim, entre
a inscrição no Congresso e a sua realização, o corpus da minha pesquisa passou a ser
composto apenas pela obra de Mary Wollstonecraft. Decidi, então, que abordaria o
gênero textual do relato de viagem no século XVIII. Gostaria de me sentar aqui e ler

1
Graduada em Letras (USP), Mestranda em Psicologia Social (PUC-SP). Contato:
sgarciaflora@gmail.com
2
Agradeço à Profa. Dra. Letícia de Souza Gonçalves (UFG) e à Profa. Dra. Talita Annunciato Rodrigues
(FATEC), coordenadoras do Simpósio “A viagem na literatura de autoria feminina: Deslocamento e
construção da identidade”, assim como às pessoas nele presentes, pelo modo como acolheram essa fala.

196
novamente um texto já bem pensado, estruturado, afirmativo. E, no entanto, não tenho
afirmações a fazer. Ou não muitas.
Mas acredito que o papel do feminismo acadêmico é também o de tirar do eixo a
máquina acadêmica e o de desestabilizar o espaço literário. Máquina essa que, como nos
lembrou Virginia Woolf (2008), não foi construída para nós, mulheres. Espaço esse cujo
acesso, como nos lembraram Virginia Woolf (1980; 2008) e Gloria Anzaldúa (2012), ou
é imensamente dificultado ou é simplesmente obstruído. De fato, esse espaço é mais
inacessível para umas do que para outras. Não somos, afinal, todas iguais.
Ontem, como fazia Maya Angelou, encerrei-me em um quarto de hotel para
escrever. Tenho o privilégio do espaço e do tempo: um quarto para mim; horas só
minhas. Posso tecer a escrita em minha vida.
Em uma mão, tinha o coração, sede do espírito, dos pensamentos e dos
sentimentos. Na outra, o lápis, esse instrumento que permite traçar, destraçar e retraçar
caminhos. Perambulava pelo quarto, buscando dar ritmo ao pensamento. Lembrei-me,
novamente, de Virginia Woolf, que descobriu que, para escrever uma resenha sobre o
romance de um homem famoso, teria de combater um fantasma. “E o fantasma”, ela
escreveu,

era uma mulher e, quando eu a conheci melhor, dei-lhe o nome da heroína de


um famoso poema, O Anjo do Lar. Era ela que se intrometia entre mim e
meus papeis quando eu estava escrevendo resenhas. Era ela que me
incomodava, desperdiçava meu tempo e me atormentava tanto que,
finalmente, eu a matei. (WOOLF, 1980, p. 58. Trad. minha)

Em legítima defesa, portanto, cometeu o assassinato de tão dócil criatura.

Se eu não a tivesse matado, ela teria matado a mim. Ela teria arrancado o
coração da minha escrita. Pois, como percebi assim que pus a caneta no
papel, não se pode resenhar sequer um romance sem que se tenha uma mente
própria, sem que se expresse o que se acredita ser a verdade sobre as relações
humanas, a moral, o sexo.” (WOOLF, 1980, p. 59. Trad. e grifo meus)

E a inescapável tarefa não foi fácil ou rápida: “Ela custou a morrer. Sua natureza
fictícia lhe era de grande ajuda. É muito mais difícil matar um fantasma do que a
realidade.” (WOOLF, 1980, p. 60. Trad. minha)
Tenho também meus fantasmas. Tenho, como ela, um fantasma mulher. Terá
retornado o Anjo do Lar? Ou será uma parente mais jovem? Mas tenho também um
fantasma homem. Dei-lhe o nome de Mestre. Acima de pilhas de livros e artigos

197
acadêmicos, cada uma dessas pilhas três vezes mais alta do que eu, ele paira com seu
olhar condescendente, seu riso de escárnio e suas duas mãos direitas.
Uma batida na porta me desperta. A camareira do hotel precisa trocar as toalhas.
Releio a carta de Anzaldúa e encontro essa passagem:

Como é difícil para nós pensar que podemos escolher tornar-nos escritoras,
muito mais sentir e acreditar que podemos! O que temos para contribuir,
para dar? Nossas próprias expectativas nos condicionam. Não nos dizem a
nossa classe, a nossa cultura e também o homem branco, que escrever não é
para mulheres como nós?

O homem branco diz: Talvez se rasparem o moreno de suas faces. Talvez se


branquearem seus ossos. Parem de falar em línguas, parem de escrever com
a mão esquerda. Não cultivem suas peles coloridas, nem suas línguas de fogo
se quiserem prosperar em um mundo destro.

[...]

Penso, sim, talvez se formos à universidade. Talvez se nos tornarmos


mulheres-homens ou tão classe média quanto pudermos. Talvez se deixarmos
de amar as mulheres sejamos dignas de ter alguma coisa para dizer que valha
a pena. Nos convencem que devemos cultivar a arte pela arte.
Reverenciarmos o touro sagrado, a forma. Colocarmos molduras e
metamolduras ao redor dos escritos. Nos mantermos distantes para ganhar o
cobiçado título de “escritora literária” ou “escritora profissional”. Acima de
tudo, não sermos simples, diretas ou rápidas. (ANZALDÚA, 2000, p. 230)

Mulher branca, de classe média, releio a carta de Anzaldúa sabendo que não foi
escrita para mim. Teria sido escrita antes para a camareira cearense de quem agora me
despeço. E busco aprender essa lição. Mas, mulher do terceiro mundo, releio-a também
como se tivesse sido escrita para mim. E busco aprender sua lição. Pois, como
Anzaldúa, “Ainda não desaprendi as tolices esotéricas e pseudo-intelectualizadas que a
lavagem cerebral da escola forçou em minha escrita.” (ANZALDÚA, 2000, p. 229).
Desatado o nó do espartilho, a caixa torácica, que guarda o coração e os pulmões,
permanece aleijada. Não pode ainda se expandir à sua plena capacidade. Depois de
tanto tempo constritos, o coração e o pulmão devem se acostumar à nova amplitude. O
fôlego deixará de ser curto e o sangue fluirá com maior liberdade. Mas é preciso tempo.
É preciso audácia.
Assim, com coragem, escrevi este texto - que é, antes de tudo, uma tentativa, um
experimento. Proponho-me a abordar este espaço etimologicamente. “Congresso”, do
latim congressus, pode significar um encontro - amigável ou hostil -, uma assembleia,
uma conferência, uma conversação ou uma entrevista. Entre esses sentidos escolho

198
“conversação”. Não é a afirmação categórica, fechada que me interessa. Hoje,
especialmente, interessa-me a indagação, a troca. Pois, além dos meus fantasmas, uma
pergunta me ronda.
É possível abordar as inúmeras viajantes que existiram na história do Ocidente
desde a Antiguidade, sem incorrer em anacronismos? É possível abordar um relato de
viagem escrito no século XVIII, século em que as bases para o movimento político
feminista apenas começavam a ser estabelecidas, sob uma perspectiva feminista sem
incorrer em anacronismos? A essas duas questões, respondo que sim e sigo. Como fazê-
lo? Aqui encontro a encruzilhada.
A medievalista Ria Lemaire começa seu artigo “Repensando a história literária”,
publicado originalmente em 1987, afirmando:

A história literária, da maneira como vem sendo escrita e ensinada até hoje na
sociedade ocidental moderna, constitui um fenômeno estranho e anacrônico.
Um fenômeno que pode ser comparado com aquele da genealogia nas
sociedades patriarcais do passado: o primeiro, a sucessão cronológica de
guerreiros heroicos; o outro, a sucessão de escritores brilhantes. Em ambos os
casos, as mulheres, mesmo que tenham lutado com heroísmo ou escrito
brilhantemente, foram eliminadas ou apresentadas como casos excepcionais,
mostrando que, em assuntos de homem, não há espaço para mulheres
“normais”. Tanto a genealogia quanto a história literária revelam a tendência
masculina de justificar seu poder atual por meio do recuo às origens e do
mapeamento de uma evolução, factual ou hipotética, até o presente. Desta
forma, o poder político e cultural masculino passa a ser entendido como
apenas um momento de uma tradição venerável e secular. (LEMAIRE, 1994,
p. 58)

A genealogia e a história literária constituem, portanto, tradições apresentadas


como únicas e ininterruptas, compostas por uma sucessão de nomes masculinos
entendidos como os augustos antecessores e os merecedores herdeiros de um patrimônio
político-cultural e excluem quaisquer indivíduos que não se adequem ao sistema
construído (LEMAIRE, 1994, p. 59).

Elas implicam negação, ou, no mínimo, depreciação das circunstâncias


econômicas, sociais e políticas, dos jogos de poder e dos conflitos de
interesse e respectivas ideologias, que possibilitaram a esses heróis – nas
sociedades em que viveram – a oportunidade de expressão, propagação e
realização de suas ideias. De um lado, os conceitos básicos da história
literária, como o gênio, o autor, o herói, o personagem e o tema, e por outro,
tradição, unidade, originalidade e criatividade (todos geralmente definidos
em sua relação com o cânone das obras escritas) estão intimamente
relacionados com a negação básica do impacto das estruturas sociais tanto em
obras individuais como na tradição literária. Essa negação dissimula as
complexas relações entre uma sociedade e sua literatura, impedindo assim a
percepção do papel das ideologias nas obras literárias e na sociedade, bem

199
como a inter-relação de suas funções. Estes conceitos básicos são também os
pressupostos (geralmente) ocultos da crítica tradicional, que, na maior parte
das vezes, reforça as perspectivas ideológicas das obras literárias em vez de
promover instrumentos que possam detectá-las e criticá-las. (LEMAIRE,
1994, p. 59)

De fato, o fenômeno assinalado por Lemaire acontece também em relação à


história da literatura de viagem, nas obras escritas por Charles L. Batten (1978), por
Percy G. Adams (1983), por Eric Leed (1991) e, mais recentemente, por Peter Whitfield
(2011). Em Travel. A Literary History, cujo título indica a pretensão de abarcar a
literatura de viagem por todo o globo, do início ao fim dos tempos, Whitifield
menciona, para o período que vai até o século XVIII, apenas três mulheres viajantes.
A primeira menção é a Egeria:

Talvez a mais antiga e prototípica narrativa de peregrinação seja Peregrinatio


ad terram sanctam (“Peregrinação à Terra Santa”), que apareceu sob o nome
de Egeria, embora nada seja sabido de sua autora exceto que ela era membro
de uma ordem religiosa e que seu texto toma a forma de uma carta para as
suas irmãs dessa ordem. Ela pode ter vivido em qualquer momento entre o
século IV e o século VI e até mesmo a sua nacionalidade é incerta.
(WHITFIELD, 2011, pp 13-14).

A segunda menção é a Jeanne Barret (1740-1807), que, disfarçada de Jean-Pierre


Barret, alistou-se na expedição comandada por Louis Antoine de Bougainville e que
teria sido a primeira mulher a circum-navegar o globo. Não tendo escrito relatos de
viagem, ela é mencionada a título de curiosidade.
A última menção é a Lady Mary Wortley Montagu: “Uma das primeiras mulheres
viajantes foi a brilhante, mercurial Mary Wortley Montagu, a proeminente figura
feminina no mundo masculino das cartas inglesas augustanas.” (WHITFIELD, 2011,
pp. 172-173). Para o conforto de Whitfield, Montagu viajou à corte turca
acompanhando o marido embaixador e, por isso, não poderia obter o título de primeira
viajante solo.
As mulheres podem ocupar, portanto, três lugares: o da incerteza – Teriam
existido de fato? As obras a elas atribuídas teriam de fato sido escritas por mulheres?
etc. -, o da anedota e o da exceção - insigne, mas volátil, emocionalmente instável.
O lapso de Whitfield ao atribuir o posto de uma das primeiras viajantes mulheres
à Lady Montagu (1689-1762), mesmo tendo mencionado Egeria que a antecedeu em, no
mínimo, onze séculos, denuncia a insistência de colocar as mulheres, suas experiências
e suas obras no lugar da exceção ou no lugar da curiosidade sem importância, de modo

200
a reforçar o domínio masculino na história, na cultura e na literatura. Isso quando
colocá-las no não-lugar do esquecimento não é possível.
Segundo Marilyn Butler,

Parte do problema é que as antigas “história literária” e “história da arte”


construíram uma narrativa contínua com a pretensão, que agora parece
extraordinariamente frágil, de explicar de onde a arte se originou.
Considerava-se que figuras poderosas no mundo da arte detinham a
influência de déspotas. Para entender artistas mais jovens era suficiente
mostrar quem eles copiavam e contra quem reagiam. A história cultural é
evidentemente muito mais impessoal do que isso. Ela também registra tipos
de eventos e de mudanças históricas cuja importância é considerada como
secundária pela história literária, como a aprovação ou revogação de leis
relativas à censura estatal ou ao copyright e os dois ou três principais avanços
na tecnologia da produção de livros. Durante o século XVIII, uma
combinação de fatores legais, financeiros e industriais produziu uma imensa
expansão no volume a na influência da cultura impressa, operando uma
daquelas transformações que realmente merece o termo “revolucionária”. No
entanto, o século em que ela ocorreu é notório por ser um dos mais
silenciosos no registro histórico-literário. (BUTLER, 2003, p. 120. Trad.
minha)

A história cultural também registra as ausências e as omissões, como as políticas


discriminatórias de divulgação, arquivo e preservação de documentos, obras artísticas,
entre outros. E é por isso que devemos olhar para os espaços vazios partindo do
pressuposto de que não seja necessariamente ausências, mas que possam ser lacunas. No
caso da história das mulheres, lacunas essas já em muitos casos preenchidas pelos
esforços de pesquisadoras feministas.
Por fim, embora esteja se referindo à escrita literária, podemos aprender, com
Anzaldúa, que

O perigo ao escrever é não fundir nossa experiência pessoal e visão do


mundo com a realidade, com nossa vida interior, nossa história, nossa
economia e nossa visão. [...] O perigo é ser muito universal e humanitária e
invocar o eterno ao custo de sacrificar o particular, o feminino e o momento
histórico específico. (ANZALDÚA, p. 233)

201
Referências

ADAMS, Percy G. Travel Literature and the Evolution of the Novel. Lexington: The
University Press of Kentucky, 1983.

ANZALDÚA, Gloria. Borderland/ La Frontera. The New Mestiza. San Francisco,


EUA: Aunt Lute Books, 2012 [1ª ed., 1987].

________________. “Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do


terceiro mundo”. Revistas Estudos Feministas, Florianópolis, v. 8, n. 1, p. 229-236, 1º
sem. 2000.

BATTEN, Charles L. Pleasurable Instruction: Form and Convention in Eighteenth-


century Travel Literature. Berkeley e Los Angeles, USA: University of California
Press, 1978.

BUTLER, Marilyn. “Culture’s medium: the role of the review” in CURRAN, Stuart
(Ed.) The Cambridge Companion to British Romanticism. Cambridge, UK: Cambridge
University Press, 2003 [1ª ed., 1993], pp. 120-147.

LEED, Eric J. The Mind of the Traveler (From Gilgamesh to Global Tourism). Basic.
New York: Basic Books, 1991.

LEMAIRE, Ria. “Repensando a história literária”. Trad. Heloísa Buarque de Hollanda


in HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.) Tendências e impasses. O feminismo como
crítica da cultura. Rio de Janeiro, RJ, Rocco, 1994, pp. 58-71.

LEWIS, Charles T.; SHORT, Charles. A Latin Dictionary. Disponível em:


<http://www.perseus.tufts.edu/hopper/resolveform?redirect=true&lang=Latin>. Acesso
em: jul. 2019

SHOWALTER, Elaine. “A crítica feminista no território selvagem”. Trad. Deise


Amaral in HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.) Tendências e impasses. O
feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro, RJ, Rocco, 1994, pp. 23-57.

WHITFIELD, Peter. Travel. A Literary History. Oxford: Bodleian Library, University


of Oxford, 2011.

WOOLF, Virginia. A Room of One’s Own in A Room of One’s Own and Three Guineas.
Oxford, UK: Oxford University Press, 2008, pp. 3-149. [Publicações originais,
respectivamente: 1929; 1938]

______________. "Professions for Women" in BARRETT, M. (Ed.) Virginia Woolf.


Women and writing. Remarkable pieces on the writing life of women. New York, USA:
Hartcourt, 1980, pp. 57-63.

202
A RAINHA DO IGNOTO: A VIAGEM COMO REALIZAÇÃO FEMININA
1
Gabriela RAMOS Souza (UFC)

Resumo: ​O presente artigo pretende observar de que forma a viagem é meio de realização
feminina no romance ​A Rainha do Ignoto ​(1899), da escritora cearense Emília Freitas. A
narrativa se desenvolve em dois espaços: uma sociedade patriarcal, aos moldes do final do
século XIX; e a Ilha do Nevoeiro, onde uma rainha e suas paladinas vivem uma sociedade
secreta feminina. Por meio de três navios, elas percorrem em missões pelo Brasil e pelo mundo
para praticarem o “bem”. Para discutir a realização feminina na ficção, trazemos Duarte (2003),
que entende a Ilha como espaço idealizado; Todorov (1993), que apresenta a viagem como
mudança interior; e Santos e Oliveira (2001), que consideram o sujeito e o espaço interligados.

Palavras-chave: ​A Rainha do Ignoto; Viagem; Feminino.

A Rainha do Ignoto: romance psicológico​, de 1899, romance da escritora


cearense Emília Freitas2, se desenvolve por meio de dois espaços: uma sociedade
patriarcal, aos moldes da sociedade brasileira do final do século XIX; e uma sociedade
secreta comandada por mulheres. A obra foi ignorada pela crítica durante décadas,
sendo reeditada apenas em 1980, pelo pesquisador Otacílio Colares, e em 2003, pelas
pesquisadoras Constância Lima Duarte e Alcilene Cavalcante.
Além de ser uma obra de autoria feminina, traz uma abordagem original para a
época, destacando-se pela atmosfera fantástica-maravilhosa3 e pela criação de uma
sociedade secreta em que mulheres assumem profissões impensadas para o sexo
feminino no Brasil do período de publicação. Além da rainha, a protagonista do
romance, há médicas, maquinistas, comandantes de navio, maestrinas, advogadas,
dentre outras.

1
​Doutoranda em Literatura Comparada (UFC), mestre em Estudos Literários (UFMG) e graduada em
Comunicação Social - Jornalismo (UFC). Contato: gabiramossouza@gmail.com.
2
Emília Freitas foi uma jornalista e escritora cearense, autora do livro de poemas ​Canções do lar (1891).
Atuou em jornais do Ceará, do Pará e do Amazonas - províncias onde viveu. Era abolicionista e foi
responsável por difundir a doutrina no Ceará e no Pará.
3
Conforme COLARES (1980), trata-se de um romance que tem base regional e que parte para os
domínios do fantástico (p. 9). De acordo com DUARTE (2003), é um dos primeiros romances fantásticos
no Brasil. Porém, CAVALCANTE (2008) destaca o trabalho de Goretti Moreira Soares (1994), em que a
pesquisadora afirma que o romance teria mais traços do maravilhoso.

203
Narrada em terceira pessoa, a história parte da curiosidade do advogado
Edmundo Lemos, recém-chegado à Passagem das Pedras, no interior do Ceará, em
descobrir a história de uma moça misteriosa, chamada de Funesta pelos moradores da
localidade. Segundo as lendas da região, haveria na gruta do Areré, às margens do rio
Jaguaribe, uma moça, tida como bruxa, a qual teria pacto com Satanás. O citadino -
bacharelado pela faculdade de Direito do Recife, conhecida por difundir ideais
positivistas - é cético em relação às histórias. Porém, fica surpreendido ao ver a moça
misteriosa pela primeira vez, sentindo-se encantado e seduzido pelo mistério que a
envolve. Loura e bonita, com vestes e pedrarias de alta classe, toca harpa e canta,
acompanhada em uma embarcação por King, um orangotango, e por Terra-Nova, um
cão. Nesse primeiro momento da narrativa, a atmosfera fantástica é predominante4.
A historiadora Norma Telles (1997), no texto ​Escritoras, escritas, escrituras​,
destaca que o discurso do que seria a natureza feminina, formulado a partir do século
XVIII, compreende à mulher, “quando maternal e delicada, como ​força do bem​, mas
quando ‘usurpadora’ de atividades que não lhe eram culturalmente atribuídas, como
potência do mal​” (p. 403). Esse contraponto é uma constante entre as personagens do
romance, sobretudo em relação à protagonista - evidente no tratamento dado no espaço
interiorano.
Essa mulher misteriosa se trata, porém, da rainha da Ilha do Nevoeiro que,
naquela localidade, disfarça-se como Diana, filha do caçador de onças. A Ilha - oculta
aos navios passantes por ser protegida por espíritos - na qual é rainha, é um lugar
secreto, próximo ao rio Jaguaribe. Na ocasião em que Edmundo tenta descobrir o
mistério, a rainha está em uma missão, que consiste em ajudar Virgínia, órfã tísica que
teve sua fortuna roubada pelos tios, e Carlotinha, uma jovem ingênua interiorana que
sofre de amores por Edmundo e é constantemente ridicularizada pelas primas citadinas
de Virgínia: Henriqueta e Malvina.
O pai de Diana, no caso, o caçador de onças, também é um disfarce. Trata-se de

4
Aline Sobreira de Oliveira (2014) destaca a mudança na narrativa, por meio da organização dos
capítulos, passando do fantástico e predominando a utopia. Segundo a pesquisadora, a primeira parte do
romance é marcada por “uma trama tipicamente fantástica” (p. 146). Nesse primeiro momento, conforme
ela, trata-se de um romance de costumes, com a tensão entre explicações distintas para um evento
extraordinário (p. 148).

204
Probo: funcionário da rainha que viaja com ela entre os dois mundos. Porém, é com a
colaboração dele que Edmundo se infiltra no mundo secreto das mulheres e viaja
durante anos, na tentativa de investigar as atividades dessa sociedade.
Na verdade, Probo não aprovava a vida na sociedade secreta. Tanto é que, na
segunda parte da narrativa, ao ajudar Edmundo a adentrar no mundo secreto, tem o
objetivo de destruir a rainha e revelá-la às autoridades da sociedade patriarcal. Porém,
ao contrário do que esperava, o jovem advogado passa a admirar ainda mais essa mulher
misteriosa.
A rainha vive com suas paladinas em uma sociedade utópica feminina,
localizada na Ilha do Nevoeiro, construída com base no ideal do projeto moderno
progressista, onde as ciências, a economia e as artes são bem desenvolvidas. Além
disso, elas mantêm riquezas que utilizam para colocarem em prática as missões as quais
estão encarregadas, com o intuito de praticarem o bem.
Para poderem realizar os projetos, a sociedade secreta possui três navios - Tufão,
Neblina e Grandolim - nos quais viajam de norte ao sul do Brasil, saindo do Ceará para
o Recife, Rio de Janeiro, Pará e Amazonas - além de possuírem conexão com o exterior.
Abaixo segue trecho em que o personagem Probo revela a Edmundo Lemos segredos do
que ele chama de “maçonaria de mulheres”:

Até agora nenhuma das Paladinas (...) pôde descobrir de quem descende esta
mulher [a rainha], onde aprendeu ciências de que dispõe, as artes que utiliza.
É de uma atividade, de uma energia portentosa! Tem agentes em todos os
países e em todas as capitais do Brasil, corresponde-se com cada um deles
com um nome diferente ou firma comercial, sendo preciso. E nenhum ainda
desconfiou da existência deste colosso de gênio! Em cada porto que chega
expede ordens, toma contas, age a seu modo, e tudo se passa no seio das
grandes cidades tão invisível como os fenômenos celestes nos espaços
desconhecidos! (sic) (FREITAS, 2003, p. 159-160).

Para transitarem no mundo comum, as paladinas se disfarçam como homens por


meio da hipnose. Desse modo, salvam mulheres abandonadas por seus amores, as
destinando ao matrimônio adequado; ajudam homens injustiçados por sua classe social;
e libertam escravos torturados por seus senhores.

205
Viagem interior
Constância Lima Duarte (2003), no texto ​A rainha do Ignoto ou a
impossibilidade da utopia​, destaca que a Ilha do Nevoeiro, representação de um espaço
idealizado, pode ser entendido como “não-lugar”, ou como único espaço possível para a
realização feminina (p. 19), numa tentativa de superação da “doxa patriarcal”.
A Ilha, porém, trata-se de uma das várias formas de realização dessas mulheres -
livres das imposições masculinas. É por meio das viagens, nas missões cujo intuito é a
prática do bem, que o ideal de uma bondade feminina é posto em prática.
Abolicionistas, republicanas e contra as hipocrisias sociais e a interferência da Igreja,
alinham-se a um projeto idealizado de uma sociedade moderna, em que as mulheres
teriam papel crucial. Esse ideal de atitude feminina, da prática do bem, só é possível por
meio da sociedade secreta porque, na ambiente patriarcal, às mulheres restavam apenas
o casamento e a subordinação doméstica.
Os pesquisadores Luis Alberto Brandão Santos e Silvana Pessôa de Oliveira, em
Sujeito, tempo e espaço ficcionais​, afirmam que o sujeito e o espaço acham-se
intimamente interligados. Eles dizem o seguinte:

“O espaço da personagem em nossa narrativa seria, desse modo, um quadro


de ​posicionamentos relativos, um quadro de coordenadas que erigem a
identidade do ser exatamente como identidade relacional: o ser ​é porque se
relaciona, a personagem existe porque ocupa espaços na narrativa.
Percebemos a individualidade de um ente à medida que o localizamos. Só
compreendemos que algo ​é ao descobrirmos onde, quando, como – ou seja:
em relação a quê – esse algo ​está”​ (BRANDÃO; OLIVEIRA, 2001, p. 68).

Pode-se inferir, portanto, que a rainha e as paladinas, ao não poderem exercer


suas identidades na sociedade patriarcal, têm nas viagens e missões, por meio dos
disfarces, a realização de suas identidades. É interessante perceber, inclusive, as
mudanças de nomes e formas como se apresentam na transição entre os mundos. A
rainha se passa por Diana, Bladina Malta, Zuleica Neves, Zélia, dentre tantos outros
disfarces5 para realizar seu projeto de propagar o bem, em diferentes regiões do país.
Além dela, suas paladinas, em determinadas ocasiões, também precisam se disfarçar,

5
O rosto da rainha é desconhecido e, em todas as ocasiões, inclusive diante das paladinas, ela usa uma
máscara.

206
inclusive como homens - utilizando, para isso, da técnica da hipnose.
A pesquisadora Cecília Maria Cunha (2008), no texto ​Emília Freitas: máscara e
utopia​, ressalta que é possível perceber um duplo sentido nas viagens, inclusive quando
se trata do personagem Edmundo. O deslocamento funciona não apenas como conquista
de novos lugares, mas, também, como “busca de conhecer-se, de encontrar-se, numa
auto-identificação” (p. 133). Ela diz o seguinte: “(...) o mar, elemento líquido, território
masculino por excelência, é campo de novas experiências para as paladinas e
possibilidade de realização de suas proezas” (CUNHA, 2008, p. 130).
Podemos remeter também a Tzvetan Todorov (1991), em ​A viagem e a
narrativa. ​Ao entender a viagem no espaço como símbolo da passagem do tempo, como
mutação interior, percebemos as mudanças nas mulheres e em Edmundo durante o três
anos que viaja com a rainha. Em uma ocasião, por exemplo, ele acaba descobrindo a
desilusão amorosa que causou na vida de uma jovem seduzida por ele, que, até então,
não tinha consciência dos efeitos devastadores de suas atitudes.
A viagem - meio utilizado por desbravadores na conquista de terras e
normalmente protagonizada por homens - ganha contornos diferentes no romance ao ser
liderada pela rainha. Disfarçado de Odete - uma jovem que, após uma decepção
amorosa, perdeu a fala e passou a se vestir de templário - Edmundo viaja apenas como
testemunha, e não como agente, na tentativa de entender os propósitos da rainha. Ao se
aproximar do universo feminino, acaba repensando sua própria atitude como
galanteador. A experiência não permitiu, porém, que pudesse compreender os
propósitos humanitários da líder do grupo.
Entendemos, portanto, que o deslocamento das personagens no romance é muito
mais um meio de realização feminina do que masculina, em que o projeto da maçonaria
de mulheres pode ser exercido. Todorov diz o seguinte:

O deslocamento no espaço é signo primeiro, o mais fácil, da mudança: ora,


quem diz vida diz mudança. Também a narrativa se alimenta de mudança;
neste sentido, viagem e narrativa implicam-se mutuamente. A viagem no
espaço simboliza a passagem do tempo, o deslocamento físico, a mutação
interior. (TODOROV, 1991, p. 93)

207
Outro aspecto importante do romance é o desfecho da protagonista com o
suicídio. O fato evidencia que, mesmo integrada a uma sociedade ideal, a rainha
mantinha uma insatisfação existencial, trazendo características de uma personagem
complexa. O suicídio é apresentado juntamente com a execução da ópera ​La forza del
destino​, de Giuseppe Verdi. Para Alcilene Cavalcante (2008), em análise que estabelece
relação com a ópera, a morte da rainha não se trataria de uma punição, “mas um traço
irônico de Emília Freitas para caracterizar a personagem como transgressora” (p. 120).
Após o suicídio, no entanto, a Ilha do Nevoeiro desaparece.
A historiadora Norma Telles (1997) - que observa a construção dos sentidos do
feminino nas sociedades patriarcais ao tratar das escritoras - diz o seguinte: “Demônia
ou bruxa, anjo ou fada, ela é mediadora entre o artista e o desconhecido, instruindo-o
em degradação ou exalando pureza. É musa ou criatura, nunca criadora” (p. 403). Essa
limitação de lugar social da mulher fica evidente, também, na nota de abertura do
romance, assinado por Emília Freitas:

Meu livro não tem padrinho assim como não teve molde. Tem a feição que
lhe é própria sem atavios emprestados do pedantismo charlatão. (...) é antes a
cogitação íntima de um espírito observador e concentrado, que (dentro dos
limites de sua ignorância) procurou, numa coleção de fatos triviais estudar a
alma da mulher, sempre sensível e muitas vezes fantasiosa.
Tenho a certeza de que alguns ou quase todos os que lerem este livro hão de
achar sua protagonista demasiadamente extravagante. Mas, se considerarem
nos gênios, que são verdadeiras aberrações da natureza, seja o desvio para
sumo bem ou sumo mal, verão que ​a Rainha do Ignoto não é na realidade
um gênio impossível, é simplesmente um gênio impossibilitado que,
passando para o campo da ficção encontrou os meios de realizar os caprichos
de sua imaginação raríssima e da propensão bondosa de seu extraordinário
coração. (FREITAS, 2003, p. 29, grifo meu)

Desse modo, percebemos que, além da viagem, a escolha de personagens


femininas exercendo papéis sociais impensáveis para época fazem do romance lugar de
realização na ficção, como sugeriu Duarte (2003). Com todos os espaços de poder
dominados por figuras masculinas na sociedade patriarcal, a Ilha do Nevoeiro e os
navios Tufão, Neblina e Grandolim foram os meios que possibilitaram a realização de
um “gênio impossibilitado”. É possível notar, portanto, as escolhas conscientes da
escritora, ao desenhar, na narrativa, um universo feminino inovador e original.

208
Referências bibliográficas

CAVALCANTE, Alcilene. ​Uma Escritora na Periferia do Império​: vida e obra de


Emília Freitas (1855-1908). Santa Catarina: Ed. Mulheres, 2008.

CUNHA, Cecília Maria. Emília Freitas: máscaras e utopia. In: ​Além do Amor e das
Flores​: Primeiras Escritoras Cearenses. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2008.

DUARTE, Constância Lima. A Rainha do Ignoto ou a impossibilidade da utopia. In: ​A


Rainha do Ignoto​: ​romance psicológico. 3. ed. Florianópolis: Ed. Mulheres; Santa Cruz
do Sul: EDUNISC, 2003.

FREITAS, Emília. ​A Rainha do Ignoto​: ​romance psicológico. 3. ed. Florianópolis: Ed.


Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2003.
TELLES, Norma. Escritoras, escritas, escrituras. In: PRIORE, Mary Del (Org.).
História das mulheres do Brasil​. São Paulo: Contexto, 1997.

SANTOS Luís Alberto Brandão; Oliveira, Silvana Pêssoa. ​Sujeito, tempo e espaço
ficcionais​: introdução à teoria da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

OLIVEIRA, Aline Sobreira de. ​A Rainha do Ignoto, de Emília Freitas​: do fantástico à


utopia. Em Tese (Belo Horizonte. Online), v. 20, p. 140-153, 2014. Disponível em:
<​http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/emtese/article/view/6847/7085​>.

TODOROV, Tzvetan. A viagem e a narrativa. In: ​As morais da história​. Tradução de


Helena Ramos. Portugal: Publicações Europa-América, 1991.

209
GÊNERO E DESLOCAMENTO: O ESPAÇO PÚBLICO COMO AMEAÇA EM
“A PEQUENA GOVERNANTA” DE KATHERINE MANSFIELD

Letícia de Souza Gonçalves (UFG)1

Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar o conto “A pequena governanta”, presente da


coletânea Bliss & other stories (1919), observando o trato do gênero, o deslocamento, as
representações das personagens masculinas e femininas, e o uso dos símbolos como elementos de
ligação abstrata e ideológica. O conto apresenta os obstáculos de uma governanta inglesa viajando
sozinha para a Alemanha em meio a homens dominadores e rudes. Vivenciando os percalços
pelos quais a mulher passa nessa aventura de cruzamento de fronteiras e desbravamento de
espaços, Mansfield desconstrói preconceitos e princípios e abre novas possibilidades de enxergar
o mundo e a mulher que se aventura no espaço público.
Palavras-chave: Literatura de autoria feminina; Katherine Mansfield; A pequena governanta;
deslocamento.

Pensar na questão do gênero sempre implicou um rol de apontamentos teóricos


provenientes do campo biológico, psicológico, linguístico, filosófico, literário, cultural e
feminista. À medida que o homem descobre-se um ser em transformação em um ambiente
regido pela alternância de ideologias e por construções de subjetividades, a questão do
gênero adquire novas perspectivas não só no meio acadêmico, como também na prática
social. Estudos na área têm posto à tona o ser humano e seu meio em referência à
diferenciação biológica, ao comportamento social, à construção de discursos, à voz
narrativa ficcional, à orientação sexual, à prática dos direitos humanos, entre outros.
Definir gênero pressupõe uma série de afirmações epistemológicas engajadas com setores
sociais que, em detrimento de interesses peculiares, isolam o geral humano, impondo-lhe
atributos categorizantes.
Anteriormente sinônimo de “sexo” e relacionado a aspectos biológicos do corpo, o
gênero adquiriu novas denominações conforme as evoluções da crítica feminista. Os
estudos sobre ele e o pareamento com tais movimentos da crítica serviram tanto para
aproximá-lo a favor das causas feministas hegemônicas, como distanciá-lo contra o papel
da mulher na sociedade.
A historiadora estadunidense Joan Scott (1995) reforça que existem diferenças entre
os corpos sexuados, e que, no entanto, o que rege a diferenciação de gênero entre os seres
são os significados culturais a eles atribuídos. Ela afirma ainda que “gênero”, em uma de

1
Doutora em Letras pela Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Assis. Atualmente,
professora adjunta de língua inglesa no Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação – CEPAE – UFG.
Contato: lesogoncalves@ufg.br.

210
suas últimas acepções, é sinônimo de “mulheres”, uma vez que “gênero” traz consigo
uma vertente sociológica, enquanto “mulheres” enfatiza o caráter político de movimentos
feministas. Além disso, o termo “gênero” também sugere que informações sobre as
mulheres estão intimamente relacionadas às informações sobre os homens, ou seja, um
depende do outro, um caminha com o outro, um só existe pelo outro.
Considerando “gênero” como um vínculo socialmente construído, Scott propõe sua
desconstrução por meio da ruptura de práticas sociais inerentes aos corpos sexuados,
afirmando que “temos necessidade de uma rejeição do caráter fixo e permanente da
oposição binária, de uma historicização e de uma desconstrução genuínas dos termos da
diferença sexual” (1995, p. 84).
Há convenções sociais, normas, costumes que são gerais, usuais, habituais de todos
em um determinado grupo que obedece a uma hierarquia social. Gênero é posto como
algo em conjunto, uma sucessão de características que, reiteradas, materializam-se
inconscientemente no sistema cultural e compõem o paradoxo da agregação segregada.
Agregando objetividades tem-se a segregação de subjetividades e a construção de
contextos contra os quais os movimentos feministas sempre lutaram, como a hegemonia
paternalista, a discriminação da mulher, a marginalização da literatura de autoria
feminina, a reserva da mulher ao espaço privado etc.
Aborto, bulimia, depressão, bissexualidade, tuberculose, solidão na infância,
comportamento impulsivo, vida sentimental desordenada são alguns dos dísticos que
sumarizam os breves, porém intensos, 34 anos de Katherine Mansfield (1888 – 1923).
Vivendo e sobrevivendo com condutas que iam de encontro aos padrões sociais de sua
época, Mansfield ultrapassou as fronteiras normativas e mostrou-se uma mulher com
várias personalidades. Adotar máscaras tanto na Arte como na vida foi sua marca
principal, o que possibilitou o desenvolvimento da perceptível maestria criativa em seus
escritos ficcionais. Mansfield detinha um olhar perspicaz perante as situações cotidianas
e, por isso, tecia cenários literários e transitava por eles com cadência discursiva e
minuciosidade descritiva.
Com histórias que margeiam o universo feminino e trazem à tona o papel da
mulher na sociedade na virada de um século decisivo ao equilíbrio da gangorra de gênero,
Mansfield aborda, concomitantemente, questões datadas e universais das relações de
gênero e do que é ser homem e ser mulher. Logo, abordamos, neste trabalho, o conto “A

211
pequena governanta”, presente na coletânea Bliss & other stories (1919), e a questão de
gênero e deslocamento da mulher no início do século XX.
A anônima de “A pequena governanta” caminha de encontro ao padrão de
feminilidade proposto pelo título. O conto introduz os obstáculos de uma governanta
inglesa viajando sozinha para a Alemanha em meio a homens dominadores e rudes. Antes
da viagem, a protagonista é alertada por uma senhora do Escritório de Governantas com
algumas recomendações a fim de evitar situações típicas de mulheres sozinhas no
universo masculino, tais como permanecer no compartimento “Ladies Only” para sua
segurança pessoal, não sair de seu vagão, assegurar-se de trancar a porta do lavatório
enquanto estiver nele, desconfiar de todos antes que lhes provem o contrário etc. A
conselheira ainda conclui dizendo: “It sounds rather hard but we’ve got to be women of
the world, haven’t we2” (MANSFIELD, 1998, p. 135).
Ambas tinham consciência do contexto opressor em que as mulheres viviam e, em
decorrência dessa hegemonia masculina no ambiente público, uma mulher viajando
sozinha por países diferentes representava uma situação anormal e, de certa forma,
desafiadora para os papéis sociais tradicionalmente construídos da época. Mesmo
reconhecendo o desequilíbrio da balança dos gêneros, a pequena governanta assume sua
condição de apenas viajante, ignorando o fato de ser mulher e de supostamente precisar
de auxílio devido à sua fragilidade, como ela afirma em: “I don’t want a porter. I want to
carry it myself” e “I can look after myself – of course I can3” (MANSFIELD, 1998, p.
136 – 137).
Em “A pequena governanta”, Mansfield confronta a inocência com a sagacidade,
uma vez que introduz a minoria inexperiente em meio à maioria versada nas artimanhas
do poder, de modo que aquela tenta reverter a situação enquanto é consumida por esta.
Apesar da aparente independência da mulher perante os homens sugerida na narrativa, o
narrador suscita um desfecho inverso quando a aproximação dela aos personagens
masculinos torna-se inevitável.
Dentre os personagens masculinos, um se destaca. Herr Regierungsrat, um senhor
aparentemente solícito e simpático, que lhe oferece companhia até o hotel em Munique,

2
“Isso parece um tanto difícil, mas temos de ser mulheres do mundo, não temos?” (tradução minha)
3
Eu não quero um carregador. Eu mesma quero carregá-la; Eu posso cuidar de mim mesma – é claro que
eu posso” (tradução minha)

212
apresenta-se à pequena governanta como uma figura cordial e inofensiva. Chamando-o
de “charming old grandfather”, a inocente jovem manifesta grande afeição por aquele
senhor mau intencionado que poderia ser o avô perfeito como os dos livros: “[...] and it
was while she munched the berries that she first thought of the old man as her
grandfather. What a perfect grandfather he would make! Just like one out of a book!”4
(MANSFIELD, 1998, p. 141).
Como a pequena governanta estava sedenta, o senhor lhe presenteia com uma
cesta de morangos durante a viagem. Os morangos trazem uma conotação paradoxal à
narrativa, uma vez que simbolizam simultaneamente a exaltação da feminilidade e da
paixão e a retomada da masculinidade e da ameaça. À medida que os morangos são
consumidos, cria-se uma suposta intimidade entre a jovem e o senhor. De acordo com
Morrow, (1993, p. 67), no entanto, à medida que a governanta é socialmente consumida
pelos homens ao longo do caminho, ela consome os morangos que o senhor havia lhe
dado no trem.
A feminilidade representada pelos morangos é anulada no decorrer da noite,
enquanto ela come as frutas, e a masculinidade, na presença do sol, desponta no dia
seguinte como sempre foi: “The sun came out, the pink clouds in the sky, the strawberry
clouds, were eaten by the blue5” (MANSFIELD, 1998, p. 141). Luz e sombra alternam-
se conforme as circunstâncias em que o feminino ou o masculino imperam, originando
um ciclo de autoridades e, por conseguinte, uma alternância entre situações seguras e
perigosas.
Embora oscilando entre o temor e a coragem, a pequena governanta é a
personagem mais politizada da coletânea Bliss & other stories. Viajando sozinha da
Inglaterra para a Alemanha, essa moça anônima de “A pequena governanta” é a expressão
do pensamento feminista de sua época e a síntese da desconstrução dos valores
historicamente moldados. O fato de Mansfield não lhe dar um nome já evidencia seu
caráter universal sem amarras sociais e títulos categorizantes. Com a jovem governanta,
a autora coloca em prática seus ideais de libertação e ultrapassa definitivamente as
barreiras do gênero, porém com um desfecho infeliz. Pode-se afirmar que Mansfield

4
[...] e foi enquanto ela mastigava os morangos que primeiro pensou no velho como seu avô. Que avô
perfeito ele seria! Assim como um de um livro! (tradução minha).
5
“O sol apareceu, as nuvens cor de rosa no céu, as nuvens de morango, foram comidas pelo azul” (tradução
minha).

213
reconta a história de Chapeuzinho Vermelho (The Little Red Riding Hood) em “A
pequena governanta”, atualizando os elementos morais da fábula ao universo cruel do
real trânsito de mulheres no espaço público.
Embora o título pressuponha uma história sobre mulheres, por já indicar o gênero
feminino na palavra “governess” e por deixar subentendido o papel social de uma
governanta, o conto inicia-se com uma contravenção, ou seja, com a discordância da
protagonista no que se refere à viagem noturna: “Oh, dear, how she wished that it wasn’t
night-time. She’d have much rather travelled by day, much much rather6” (MANSFIELD,
1998, p. 135). Uma governanta, conhecida tradicionalmente pelo envolvimento com
assuntos domésticos, cruzando fronteiras à noite, em um trem, era um acontecimento não
muito “natural” para aquela sociedade ainda presa às construções moralistas.
A pequena governanta é a única personagem de Bliss & other stories que está,
de fato, sozinha em deslocamento espacial e, portanto em um entre-lugar. Enquanto os
deslocamentos das demais narrativas da coletânea são simbólicos, o espaço principal do
conto em questão é um trem. Logo, Mansfield aplica a técnica cinematográfica, criando
um efeito travelling7 na exibição das cenas e das personagens em trânsito. É a partir desse
entre-lugar que a governanta fala e manifesta seu engajamento ideológico por meio de
pequenos gestos corriqueiros que se encontram arraigados às convenções sociais e de
gênero, tais como o ato de evitar as viagens diurnas, de preferir vagões femininos, de
carregar a própria mala e de dar uma gorjeta abusiva ao carregador.
Dentro dessa sucessão de hábitos sociais, encontram-se os discursos gendrados e
as categorias comportamentais implícitas que podem ser elencadas como: 1) discrição, ou
seja, a mulher deve ser discreta e não chamar a atenção em locais públicos, onde, afinal,
ela nem deveria estar; 2) resguardo do corpo, ou seja, evitando vagões públicos, a mulher
pode proteger-se de certas atitudes “naturais” masculinas, pois, afinal, nessa visão
preconceituosa, homens possuem instintos; 3) fragilidade, ou seja, carregar a própria mala
não é uma atividade para mulheres, já que sua estrutura anatômica frágil impossibilita tal
ação; e 4) submissão, ou seja, dar a gorjeta abusiva ao carregador implica aceitar as
exigências do mundo masculino, mesmo que este seja injusto. Esses são apenas alguns

6 “Oh céus! – como ela desejava que não fosse noite! Preferia mil vezes viajar de dia – mil vezes!” (tradução
minha).
7
Deslocamento da câmera cinematográfica feito geralmente em um suporte móvel sobre trilhos.

214
dos discursos historicamente construídos que envolvem a hierarquia de gênero presentes
implicitamente na narrativa.
Vale ressaltar que Mansfield já propõe a revisão de tais valores no início do século
XX, quando os movimentos feministas ainda baseavam-se na emergência das
peculiaridades biológicas femininas como razão da diferenciação. Até os dias atuais, tais
valores ainda fazem-se presentes no inconsciente das pessoas e regem comportamentos e
modos de vida. Isso demonstra o quanto esse processo de desconstrução é lento e o quanto
alguns movimentos feministas estão equivocados no trato da igualdade política e social
dos seres humanos. “A pequena governanta”, embora seja uma metáfora do contexto
feminino do início do século XX, retrata uma situação passível de acontecer a qualquer
mulher do século XXI. É possível que Mansfield tenha criado a pequena governanta
baseada em dados autobiográficos, uma vez que a autora já esteve sozinha nessa situação
de trânsito, tanto da Nova Zelândia para a Inglaterra, quanto da Inglaterra para a
Alemanha.
Vivenciando os percalços pelos quais a mulher passa nessa aventura de
cruzamento de fronteiras e desbravamento de espaços, Mansfield desconstruiu
preconceitos e princípios e abriu novas possibilidades de enxergar o mundo e o ser
humano em “A pequena governanta”. A dificuldade em desapegar de certos valores
sociais gera uma sucessão de obstáculos na viagem da governanta, inserindo-a em um
meio público tradicionalmente masculino, onde ela via-se desprotegida, apesar de sua
autoconfiança.
Tendo isso em vista, vejamos a simbologia do trem, que representa o elemento de
ligação entre contextos, espaços, histórias e vidas. Segundo o Dicionário de Símbolos
(2009, p. 896 – 7), o trem é a imagem “da vida coletiva, da vida social, do destino que
nos carrega” e representa o “veículo da evolução”, ou seja, uma “evolução psíquica, uma
tomada de consciência que prepara a uma nova vida”. Isso quer dizer que o trem é o
veículo da mudança, mesmo que tal mudança seja lenta e difícil. Por mais que a viagem
seja breve e as distâncias espaciais sejam curtas, não sabemos qual a duração dessa
viagem simbólica rumo à desconstrução dos papéis de gênero.
Além do trem, o espelho surge novamente como símbolo elementar de análise da
personagem em seu processo de auto caracterização e duplicidade, como no trecho:

215
As she stood up to feel if the dress-basket was firm she caught sight of herself
in the mirror, quite white, with big round eyes. She untied her ‘motor veil’ and
unbuttoned her green cape. ‘But it’s all over now,’ she said to the mirror face,
feeling in some way that it was more frightened than she.8 (MANSFIELD,
1998, p. 137).

A jovem governanta vê naquela outra pessoa que se mostra no espelho a


duplicação de um eu que ela não deseja incorporar, já que se apresenta assustada e acuada.
Ela enxerga suas reais emoções naquele reflexo, ou seja, o pânico iminente diante da
entrada no espaço público e do inevitável enfrentamento da sociedade com seus moldes
e padrões. Mostrando-se mais assustada do que ela própria, a imagem refletida da
protagonista é o seu subconsciente que lhe impulsiona a seguir até o fim e a provar que o
lugar da mulher é onde ela quiser.
No desfecho, contudo, aquele medo disfarçado de coragem vem à tona e aquela
imagem do início ressurge como uma repreensão por ela ter se aventurado daquela
maneira. A jovem governanta, em pânico, vê-se sem saída diante do rol de categorizações
que o simples fato de “ser mulher” constrói no espaço público e, portanto, sente na pele
o peso que carrega ao longo da viagem, representado não apenas pela bagagem, mas sim
por toda a imagem da mulher na sociedade.

Referências

CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos,


costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Trad. Vera da Costa e Silva [et al.]. 24
ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.

MANSFIELD, K. The Little Governess. In: MANSFIELD, K. Bliss & other stories.
Hertfordshire: Wordsworth, 1998.

MANSFIELD, K. The Katherine Mansfield notebooks: complete edition. Edited by


Margaret Scott. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2002.

MORROW, P. D. Katherine Mansfield’s Fiction. Bowling Green: Bowling Green State


University Popular Press, 1993.

8 “Quando se ergueu para verificar se a mala estava firme, a jovem governanta se viu no espelho, muito
branca, os olhos redondos muito abertos. Desamarrou o véu de automobilista e desabotoou a capa verde.
‘Mas agora está tudo terminado’, disse ela para a figura do espelho, sentindo de algum modo que aquela
cara estava mais assustada do que ela própria” (tradução minha).

216
O’SULLIVAN, V.; SCOTT, M. (ed.) The Collected Letters of Katherine Mansfield.
Vol. 4. London: Oxford University Press, 1996.

SCOTT, J. W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade.
Porto Alegre. vol. 20, n. 2, jul./dez. 1995.

217
VIAJAR É PRECISO: A RECONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
N A S P R O TA G O N I S TA S D E “ T H E L I T T L E G O V E R N E S S ” E
“ A PA R T I D A D E T R E M ”

Maria Alice Sabaini de Souza Milani (UNIR)1

Resumo: A presente comunicação tem por objetivo comparar os contos “The Little Governess”
e “A partida de trem”, analisando como as viagens realizadas pelas protagonistas interferem na
(re)constituição das identidades delas. Vale ressaltar que em ambos os contos a viagem a que as
protagonistas são submetidas se efetua tanto por meio de um deslocamento interior quanto
territorial, com o intuito de que essas personagens analisem e redefinam suas identidades e a
condição delas no mundo em que vivem.
Palavras-chave: Autoria feminina; Viagens; Identidade; Contos; Protagonista.

Os contos de Katherine Mansfield e Clarice Lispector apresentam uma linguagem


voltada para a emoção e para o afeto de maneira a conceder ao texto um caráter intimista.
A presente comunicação tem por objetivo comparar os contos “The Little Governess” e
“A partida de trem”, analisando como as viagens realizadas pelas protagonistas de cada
um dos contos interferem na (re)constituição das identidades delas, uma vez que para Hall
(1999) não há uma manutenção da identidade ao longo da vida do indivíduo seja ele
fictício ou não. Assim, tal estudioso esclarece que:
A identidade é definida historicamente e não biologicamente. O sujeito assume
identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são
unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades
contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas
identificações estão sendo continuamente deslocadas (HALL, 1999, p. 13).

Esta citação, além de propor a identidade como algo passível de mudança a partir
dos momentos vivenciados por cada um, também considera que tal conceito não está
vinculado e não pode ser constituído somente com base no âmbito biológico do ser que,
de maneira geral, se conceitua como masculino ou feminino, atribuindo para cada um dos
sexos determinados posicionamentos, comportamentos e papéis a serem desenvolvidos
em determinada sociedade. Ao propor uma mutabilidade da identidade relacionada a
vivência, Hall (1999) avança na definição de tal conceito e reconhece que o indivíduo
pode assumir diferentes possibilidades identitárias de acordo com o momento histórico
no qual está inserido.

1
Graduado em Letras (UEM), Mestre em Estudos Literários (UEM) e Doutora em Letras (UNESP).
Contato: marialiceprbr@gmail.com.

218
Bauman (2005), por sua vez, constata que a identidade é decorrente da decisão de
um eu que, pela autodeterminação, decide assumir por si mesmo diferentes maneiras de
se comportar ou reagir perante algo com base em suas experiências. Deste modo, para
ambos os estudiosos, a identidade é muito mais algo construído pelo ser do que algo
adquirido em decorrência de uma hereditariedade ou de um posicionamento referente ao
sexo que cada um possui. No entanto, é importante distinguir que a questão sexual está
relacionada a composição biológica do ser e não ao gênero, uma vez que este tem a ver
com os papéis desempenhados por um indivíduo a partir da identidade que este assume
para si diante de determinada situação. A respeito da relação identidade e gênero Butler
(2003) escreve:
A identidade de gênero pode ser concebida como uma história pessoal/cultural
de significados recebidos, sujeitos a um conjunto de práticas imitativas que se
referem lateralmente a outras imitações e que, em conjunto, constroem a ilusão
de um eu de gênero primário e interno marcado pelo gênero, ou parodiam o
mecanismo dessa construção (BUTLER, 2003, p. 197).

Com base neste fragmento, a autora nos apresenta duas perspectivas a respeito da
identidade de gênero, a saber: ou ela pode buscar a reprodução através de práticas
imitativas, ou pode ter a função de parodiar tais práticas, questionando-as e analisando-
as por um viés mais crítico. Tal criticidade é que possibilita novas perspectivas para a
constituição da identidade, enquanto algo particularizado.
Outro ponto a ser discutido em relação a identidade de gênero é a questão do direito
à fala e da manifestação tanto expressiva, quanto identitária sobretudo das personagens
femininas em uma sociedade patriarcal, na qual cabe ao homem exercer uma relação de
domínio sobre as atitudes, deslocamentos e expressividade da mulher com a qual habita
ou com a qual interage.
Para ter assegurado o direito de falar, enquanto o outro é silenciado, o sujeito
que fala se investe de um poder advindo do lugar que ocupa na sociedade,
delimitado em função de sua classe, de sua raça e, entre outros referentes, de
seu gênero, os quais o definem como o paradigma do discurso proferido.
Historicamente, esse sujeito imbuído do direito de falar é de classe média-alta,
branco, e pertencente ao sexo masculino (ZOLIN, 2009, p. 106).

Essas reflexões nos permitem reconhecer que tanto Katherine Mansfield como
Clarice Lispector, por terem escrito em uma época em que o patriarcalismo imperava,
produziram obras que hoje podem ser consideradas precursoras de uma nova perspectiva
em relação ao gênero e a identidade, uma vez em suas produções literárias priorizam as
personagens femininas, dando-lhes poder de expressividade e de análise a respeito de suas

219
condições no mundo, bem como das constituições de suas identidades enquanto sujeitos
sociais que não apenas reproduzem discursos e comportamentos atribuídos a elas por
homens. Contudo, essa força identitária advém abruptamente, mas sim de um processo
no qual o deslocamento territorial favorece a viagem interior e intimista, além de
reveladora. Esse processo só é possível porque, ao viajarem, as protagonistas se deparam
como o outro e, a partir do outro, podem enxergar a si próprias e as suas condições não
somente social de subjulgamento como também podem vislumbrar, ainda que
timidamente, ações, falas e reflexões que as projetam como sujeitos de identidades em
constante modificação e reconstituição. Sobre esse aspecto Seixo (1998, p. 24) comenta
que “na viagem há a indagação da identidade, que o sentido de perda na articulação com
as diferenças do outro veio acentuar”.
A personagem de Mansfield, a pequena governanta inglesa viaja da França para
Munique na intenção de trabalhar. Contudo, antes de embarcar ela recebe um conselho
que a alerta a respeito dos perigos com os quais poderia se deparar durante tal trajeto. A
ingênua governanta se amedronta diante dos homens que encontra antes do embarque,
porém o senhor que senta próximo a ela não lhe provoca nenhum temor, tanto que eles
começam a conversar e ele insiste em lhe mostrar Munique quando chegassem. Diante da
aceitação da protagonista, eles passeiam por Munique e ele a leva para seu apartamento,
onde tenta assediá-la antes que ela tome a atitude de fugir ao perceber as verdadeiras
intenções do anfitrião.
No conto de Clarice Lispector, dona Maria Rita e Ângela, se encontram numa
viagem de trem e aparentemente, os pequenos diálogos entre elas são sobre assuntos
superficiais e sem possibilidade de continuidade. Entretanto, conforme o trem avança e o
tempo passa, o narrador revela ao leitor a essência dessas personagens, seus anseios e
diferenças e, ao mesmo tempo, demonstra pelas características atribuídas a cada uma das
personagens que, apesar de aparentemente diferentes, elas eram iguais, pois estavam
sozinhas e queriam ser amadas.
O intimismo, proveniente do fluxo de consciência e do monólogo interior, não é a
única forma de as protagonistas analisarem e avaliarem a sua existência, a sua condição
no mundo e, até mesmo a sua identidade. Além da viagem íntima a que essas personagens
são submetidas, há também o deslocamento territorial vivenciado por ambas. A respeito
da simbologia da viagem Chevalier (1998, p.951) comenta “O simbolismo da viagem,

220
particularmente rico, resume-se, no entanto, na busca da verdade, da paz, da imortalidade,
da procura e da descoberta de um centro espiritual” e acrescenta que “seria preciso
concluir que a única viagem válida é a que o homem faz ao interior de si mesmo”
(CHEVALIER, 1998, p. 252).
Feitas essas considerações sobre a questão da identidade e da simbologia e
significado da viagem, passemos para a análise dos contos. O primeiro conto já se inicia
com a protagonista recebendo instruções acerca da primeira viagem que faria de trem.
Sua provável mentora sugere que ela viaje durante a noite e que ocupe a cabine só para
senhoras. Tal precaução deve-se ao fato de essa narrativa se passar no início do século
XX, época em que o patriarcalismo dominava e criava na mentalidade feminina a
impressão de que as mulheres só estariam seguras se em companhia de outras mulheres
ou de homens que pertencessem a sua família. No entanto esse não era o caso da
protagonista que iria viajar sozinha.
É melhor você tomar o barco noturno e depois, no trem, viajar na cabine ‘só
para senhoras’ [...]. “Bem, eu sempre digo às minhas meninas que, no início, é
melhor desconfiar das pessoas do que confiar nelas, e é mais seguro suspeitar
de má intenção das pessoas do que esperar delas boas intenções...Parece uma
atitude um tanto dura, mas somos mulheres com o pé no chão, não somos? [...].
Tudo estava muito agradável na cabine das senhoras (MANSFIELD, 2000, p.
51-52)2.

Este fragmento não demonstra apenas o cuidado da senhora com a pequena


governanta, mas também a desconfiança desta em relação as pessoas, independente do
sexo. No entanto, para a protagonista, o fato de ela estar em uma cabine só para mulheres
já lhe tranquiliza. Essa tentativa em obedecer a sua mentora demonstra, no entanto, que a
pequena governanta estava com receio de que algum homem se aproximasse dela. Esse
receio é retratado já no primeiro contato que a protagonista tem como sexo oposto durante
o trajeto.
Mas eu não quero um carregador!” Que homem horrível! “Não quero um
carregador. Eu mesma levo a minha mala”.[...]. “Ah, não! Vinte centavos!
Você se enganou. Tome-os de volta. Eu quero um franco”. Tremendo de terror,
ela encolheu-se, estendeu a mão gelada e pegou o dinheiro, fechando-o dentro
da mão. “pois é tudo que vai ter disse ela” (MANSFIELD, 2000, p. 53-54).

Nesta citação, percebe-se certa possibilidade de afirmação da viajante como sujeito


de sua própria ação, na medida em que ela se opõe ao fato de o carregador querer carregar

2
Neste artigo, será utilizada a tradução de Julieta Cupertino do conto “A pequena governanta” escrito por
Katherine Mansfield.

221
as malas dela e de dar-lhe uma quantia maior do que ela considerava justo. Contudo, a
descrição do narrador a respeito do tremor e das mãos gélidas da governanta evidenciam
que a segurança demonstrada era apenas aparente, apesar de já indicar um indício de uma
autonomia da personagem ao agir e ao falar. Nesse sentido, sua identidade sofre uma
pequena alteração, já que ela se fortalece e se torna mais ativa diante do fato de ela estar
sozinha e precisar se defender por si só.
Com a personagem estabelecida para iniciar a viagem, novamente a personagem se
encontra com um homem. Entretanto, este parece não a incomodar por ser um velho e
não oferecer nenhum perigo aparente, mesmo diante do fato de ele ter se sentado em uma
cabine que era só para mulheres e de ter permanecido nela, ainda que a protagonista o
tenha alertado sobre tal equívoco. Essa permanência do senhor em uma cabine
inapropriada demonstra a ingenuidade da personagem e indicia a verdadeira intenção do
velho que a seduz sem que ela perceba, já que inicialmente tenta agradá-la oferecendo um
jornal para que ela possa se distrair, enquanto ele observa sua beleza.
[...] ela sentiu-se deveras alegre de ter aquele velho no mesmo carro. [...] –
aquele velho tinha faces tão rosadas e o bigode tão branco.[...]. “Então talvez
a senhorita gostasse de ver alguns jornais ilustrados,” disse o velho, curvando-
se com graça. “Muito obrigada”. Com que simpatia o velho a observava do seu
lugar. [...]. Nem mesmo as roupas feias e escuras conseguiam disfarçar sua
beleza suave (MANSFIELD, 2000, p. 57).

A maneira supostamente gentil com a qual o velho lhe trata faz com que a
protagonista abandone gradativamente sua insegurança em relação aos homens e comece
a confiar nele a ponto de contar-lhe que era a primeira vez que ela viajava para fora de
seu país. Essa espécie de confidência é significativa, pois demonstra uma maior
proximidade e intimidade entre eles. Esses sentimentos se tornam evidentes quando ela
aceita os morangos que ele lhe oferece, reconhecendo nele um avô perfeito, enquanto este
se oferece para lhe mostrar Munique tão logo o trem chegasse ao seu destino.
“Se a senhorita me der a honra de aceitar...” “O quê! Para mim?” Mas ela
afastou-se e fez um gesto de defesa, como se ele estivesse prestes a colocar em
seu colo um gatinho selvagem.
“Ah, muitíssimo obrigada”- ela gaguejou. [...]. Os morangos eram tão grandes
que ela tinha que comê-los em dois bocados e o suco escorria-lhe por entre os
dedos. E foi ao mastigá-lo que ela pensou no velho como um avô pela primeira
vez. Que avô perfeito seria! (MANSFIELD, 2000, p. 61).

Neste excerto, nota-se que em alguns momentos a protagonista parece ter breves
momentos em que seu instinto de defesa aflora e a consciência de um provável perigo a
aflige, no entanto, esses momentos são como lampejos passageiros e ela volta a sua

222
ingenuidade e come morangos perto do velho. Esse episódio é descrito pelo narrador
insinuando certo erotismo pelo prazer com que a pequena governanta degusta as frutas.
Esse contentamento se estende para o momento em que, já em Munique, o velho transita
com ela pelas ruas lhe oferecendo tudo que ela quiser, inclusive sorvete que novamente é
sorvido com prazer pela personagem, denotando certo erotismo pela forma como o
narrador descreve as longas lambidas que a protagonista dava por baixo do sorvete. Todos
esses comportamentos são observados pelo velho com certo desejo de possuí-la para si.
Ela queria correr, queria pendurar-se nos braços dele, queria gritar a todo
minuto: “Ah, como estou espantosamente feliz!” Ele a guiava pelas ruas,
ficava quieto enquanto ela “olhava”, e seus olhos gentis sorriam para ela
e ele dizia “tudo o que você quiser” [...] “E estará. Depois do sorvete, eu
a porei num carro e você poderá chegar lá sem problemas”. Ela estava de
novo feliz. O sorvete de chocolate derretia-se e ela o apanhava por baixo
em longas lambidas (MANSFIELD, 2000, p. 64).

Após o passeio pelas ruas da cidade, nas quais ela parece se sentir livre e protegida
pela presença do velho, este a convida para conhecer a casa dele. Neste momento, porém,
ela se lembra de suas responsabilidades, pois ela precisava retornar para o hotel onde
alguém a estaria esperando para conduzi-la rumo ao seu novo emprego. Essa lembrança
a relembra do real motivo de sua viagem e a retira desse muito de divertimento e inocência
de sua parte para projetá-la em um mundo de responsabilidades e de maturidade. Essa
projeção permite reconhecer um despertar de sua identidade pueril e descomprometida
para uma mais madura e autônoma que ela deveria assumir a partir de então, lá que
passaria a responder por seus atos, palavras e pelos rumos que sua vida tomaria a partir
do momento que se separasse daquele senhor aparentemente simpático.
Contudo, ao adentrar o apartamento do velho algo acontece que modifica
totalmente a perspectiva da protagonista em relação as pessoas sobretudo aquelas que
aparentemente parecem oferecer-lhe ajuda despretensiosa e ela pode perceber o quando
alguns podem ser oportunistas e dissimulados para adquirirem o que desejam. Ela
finalmente percebe que todas as atitudes do velho tinham o propósito de seduzi-la e fazer
com que ela confiasse nele a ponto de não perceber seu verdadeiro intento. Ele não queria
somente seduzi-la, mas sim desejava assediá-la sexualmente e por isso a havia trazido até
o lar dele, mediante diversas manobras premeditadas de sedução que ela, ingênua e
encantada pelo suposto avô não era capaz de perceber até o momento em que ele tenta
beijá-la a força.

223
Era um sonho! Não podia ser verdade! Aquele não era o mesmo velho, em
absoluto! Que coisa horrível! A pequena governanta o encarava, horrorizada.
“Não, não, não!” – ela balbuciava lutando para se soltar das mãos dele. “Um
beijinho. Um simples beijo, não custa nada. Apenas um beijo, querida
Fraulien.
“Nunca, nunca! Como o senhor pode fazer isso?” Ela deu um salto, mas ele
foi muito esperto, e prensou-a contra a parede, apertando-a com seu rígido
corpo de velho e seus joelhos trêmulos e, embora ela movesse sem parar a
cabeça de um lado para o outro, desesperada, ele beijou-a no boca.
Ela correu, correu, descendo pela rua, até encontrar uma avenida ampla com
linhas de bonde, [...] (MANSFIELD, 2000, p. 67).

Este é o momento em que a máscara do velho se desfaz e a protagonista pode ver


quem ele era de fato e quais eram suas reais intenções desde o início. Esse processo de
revelação por parte do senhor, possibilita que a protagonista reconstitua sua identidade de
uma mulher dependente, insegura, desprotegida, inocente e sem malícia, assumindo,
diante da circunstância que colocava em risco sua dignidade, uma nova postura identitária
consolidada pela necessidade de ser forte, determinada, ousada, independente, madura e
responsável por sua vida e por seu destino. Ele se torna dona de si e a confiança em si
mesma como sujeito permite que ela tenha força e consciência de que ela precisava
libertar-se daquele que tanto mal lhe fizera tirando-lhe a confiança na bondade das
pessoas e fazendo-a despertar para um novo posicionamento diante da vida e de quem ela
era capaz de se tornar.
Tal crescimento da personagem se consuma em um espaço fechado, ou seja, dentro
da casa do velho. Esse dado é interessante porque em uma sociedade patriarcal o lugar
destinado à mulher é a casa em decorrência do trabalho atribuído à ela, enquanto dona do
lar. Tanto que a protagonista estava sendo contratada para ser governanta, ou seja, para
se dedicar a organização da casa de seu patrão. Nesse sentido, o espaço destinado a ela
enquanto mulher era uma cabine de trem na qual ela havia viajado, o quarto do hotel no
qual deveria esperar até que viessem buscá-la.
A rua era então, um lugar que ela deveria evitar quando estivesse sozinha, pois ela
estava desprotegida. No entanto, a dinâmica do conto parece ser opor a essa lógica
espacial, já que na rua diante dos olhos dos outros o velho não a força a nada, mas buscar
realizar todos os desejos da pequena governanta, ao passo que no trem e no lar dele, ele
a seduz, inicialmente, para posteriormente assediá-la quando estão a sós. O que ele não
esperava era que uma jovem aparentemente indefesa pudesse assumir uma identidade
madura, atenta e consciente das reais intenções dele e que aquela jovem doce fosse agir
como uma mulher.

224
Já no segundo conto “A partida de trem”, presente na coletânea clariciana Onde
estivestes de noite, publicada em 1974, também há o deslocamento territorial das
passageiras do trem Ângela e Maria Rita, a diferença de idade entre as personagens e a
reconstituição de suas identidades ao logo da viagem que as leva a refletir sobre suas
vivências, suas relações com o namorado, no primeiro caso, e com os filhos no segundo,
ainda que não haja a presença de nenhum desses homens ao longo da viagem. Entretanto,
tais homens são recuperados pelos pensamentos e falas dessas personagens. Essas
reflexões colaboram para que o deslocamento não seja somente físico, mas também
possibilita um deslocamento íntimo na busca por definir quem as personagens são de fato.
Ângela Pralini pagou o táxi e pegou sua pequena valise. Dona Maria Rita
Alvarenga Chagas Souza Melo desceu do Opala da filha e encaminharam-se
para os trilhos. A velha bem vestida e com jóias. Das rugas que a disfarçavam
saía a forma pura de um nariz perdido na idade [...]. Começa uma nova raça.
Uma velha não pode comunicar-se. Quando a locomotiva se pôs em
movimento, surpreendeu-se um pouco: não esperava que o trem seguisse nessa
direção e sentara-se de costas para o caminho (LISPECTOR, 1974, p. 24).

Esta citação com a qual o conto se inicia, apresenta ao leitor o nome das duas
personagens que viajarão de trem e o modo como elas chegam á estação: a primeira chega
de táxi, enquanto a personagem mais idosa está acompanhada pela filha. Esse detalhe é
significativo porque apesar de não estar sozinha, a idosa não consegue estabelecer um
diálogo com a sua filha, acreditando que essa impossibilidade seja decorrente do fato de
ela pertencerem a gerações diferentes. Nota-se, por meio desse fragmento, que ambas as
passageiras estavam sozinhas com seus pensamentos antes que elas se encontrassem no
trem.
Ângela Pralini percebeu-lhe o movimento e perguntou-lhe:
- A senhora deseja trocar de lugar comigo?
- É por causa de mim que a senhorita deseja trocar de lugar?
Ângela Pralini disse que não, surpreendeu-se, a velha se surpreendeu pelo
mesmo motivo: não se recebe favor de uma velhinha. Ela sorriu um pouco
demais e os lábios cobertos de talco se partiram em sulcos secos: ela estava
encantada. E um pouco agitada:
- Que amabilidade a sua, disse-lhe, que gentileza (LISPECTOR, 1974, p. 25).

Ao se acomodarem frente a frente no trem as duas passageiras iniciam um processo


de interação aparentemente conturbado, pois diante da pergunta de Ângela a senhora se
ofende ao pensar que a senhorita queria trocar de lugar porque estava incomodada com a
presença dela. No entanto, diante da negativa de Ângela, D. Maria Rita se surpreende e
expressa certo contentamento pela forma como a jovem se comporta diante dela. Nesse
momento, o narrador permite que o leitor saiba que a máscara de uma senhora austera e

225
comedida de D. Maria Rita começa a ruir quando ela sorri diante de Ângela e o talco que
cobria a sua pele começa a rachar, tal como a sua identidade de uma senhora séria e
inexpressiva.
Após esse entrosamento inicial, as duas mulheres se calam, ficam a sós com os seus
pensamentos e, nós leitores ficamos sabendo que a personagem mais jovem estava
fugindo de alguém ou de alguma situação sem que ninguém soubesse o seu paradeiro.
Desse modo, a narradora nos dá indícios de que Ângela estava em um processo não só de
deslocamento, mas também de autoconhecimento. Ao posso que D. Maria Rita estava,
por meio do mesmo deslocamento, tentando inicialmente ser vista e tornar-se conhecida
por sua companheira no trajeto do trem.
Por isso, há no texto a interrupção dos pensamentos de Ângela para que D. Maria
Rita possa ser apresentar para a jovem e tentar resgatar o diálogo. No entanto, o fim dessa
conversa evidencia uma consciência de certo modo trágica, por parte da idosa em relação
a sua condição de vida em decorrência de sua idade avançada e do modo como era tratada
pelos seus, sobretudo pela sua filha que a fazia sentir-se não mais como uma pessoa com
vida e independência, mas sim como um objeto, sem motivações e sem consciência para
enxergar e refletir acerca de sua dura realidade.
Ninguém sabe onde estou, pensou Ângela Pralini, e isso assustava-a um pouco,
ela era uma fugida.
—Meu nome é Maria Rita Alvarenga Chagas Souza Melo—Alvarenga Chagas
era o sobrenome do meu pai, acrescentou em pedido de desculpa por ter que
falar tantas palavras só em dizer seu nome. Chagas, acrescentou com modéstia,
eram as Chagas de Cristo. Mas pode me chamar de dona Maria Ritinha. E o
seu nome? A sua graça qual é?
—Meu nome é Ângela Pralini. Vou passar seis meses na fazenda de meus tios.
E a senhora?
—Ah, eu vou para a fazenda de meu filho, vou ficar lá para o resto da vida,
minha filha me trouxe até o trem e meu filho me espera com a charrete na
estação. Sou como um embrulho que se entrega de mão em mão (LISPECTOR,
1974, p. 27-28).

É interessante notar que a dinâmica na qual o texto se desenvolve favorece a


fragmentação e a reconstituição da identidade das duas personagens, na medida em que
ao intercalar momentos de interação das protagonistas com os pensamentos delas, o
narrador possibilita que suas falas correspondam a identidade e a condição que a
sociedade lhes impõe, ou seja, suas expressões, por meio da linguagem, corresponderiam
a suas identidades aparentemente consolidadas. No entanto, seus pensamentos sugerem a
existência de uma identidade mais autêntica, na medida ao refletirem acerca de si e de sua

226
existência elas podem se libertar do julgo da sociedade que reconhece seu valor apenas
como um objeto diante dos desejos do homem com o qual se relaciona. Por isso, a
mentalidade de D. Maria Rita não reconhece mais o seu valor enquanto sujeito. Uma vez
que ela é viúva e velha, ela tenta retornar a condição de sujeito por meio de suas posses
ou em decorrência do contato com outro homem, no caso o filho. Além dessas
possibilidades ela se considera uma pessoa invisível para a sociedade, ou como um
embrulho. Em ambos os casos, ela se vê como alguém vazia e, portanto, sem uma
identidade própria.
Já Ângela, numa visão mais consciente de si mesmo, busca a não aceitação de uma
identidade imposta a mulher de acordo com o papel que o homem que ela realize. Nesse
sentido, ao perceber que seu namorado estava lhe tirando o direito de ter a sua própria
identidade, ela decide fazer o caminho inverso ao de Dona Maria Rita ao se afastar do
sexo oposto para ser livre e manter-se lúcida a ponto de deixar de olhar somente para si e
reconhecer-se enquanto sujeito que age sobre sua vida e realiza seus desejos de maneira
autônoma e que decide viver longe de um homem que a oprimia.
Ela aproveitava o apito gritado do trem para que ele fosse o seu próprio grito.
Era um berro agudo, o seu, só que virado para dentro. Era a mulher que mais
bebia uísque no grupo de Eduardo. [...] eu precisava fugir de Eduardo, antes
que ele me arruinasse totalmente com sua lucidez: lucidez que iluminava
demais e crestava tudo. [...]. Desde que descobrira—mas descobrira realmente
com um tom espantado—que ia morrer um dia, então não teve mais medo da
vida, e, por causa da morte, tinha direitos totais: arriscava tudo. [...]. Eduardo
a transformara: fizera-a ter olhos para dentro. Mas agora ela via para fora. Eu
estou fugindo do meu suicídio, Eduardo. Desculpe, Eduardo, mas não quero
morrer (LISPECTOR, 1974, p. 31-32).

Dona Maria Rita pensava: depois de velha começara a desaparecer para os


outros, só a viam de relance. Velhice: momento supremo. Estava alheia à
estratégia geral do mundo e a sua própria era parca. Perdera os objetivos de
maior alcance. Ela já era o futuro. [...].
A velha sempre fora um pouco vazia, bem, um pouquinho. Morte? era
esquisito, não fazia parte dos dias. E mesmo “não existir” não existia, era
impossível não-existir. Não existir não cabia na nossa vida diária. A filha não
era carinhosa. Em compensação o filho era tão carinhoso, bonachão, meio
gordo. A filha era sequinha como seus beijos rápidos, a “public relations”. A
velha tinha certa preguiça de viver. A monotonia, porém, era o que a sustentava
(LISPECTOR, 1974, p. 32-33).

A comparação de Dona Maria Rita com um móvel antigo na casa da filha reforça a
ideia de que a vida desta senhora já não fazia o menor sentido para aquela que ela havia
gerado, ou seja, a velhice da mãe lhe esvazia a vida, uma vez que esta não era mais útil,
além de retratar de maneira crítica o distanciamento entre as pessoas do mesmo seio

227
familiar. Entretanto, D. Maria Rita descobre, ao longo do trajeto de trem, que além de
velha ela era solitária. Essa consciência, no entanto, não a impulsiona a modificar o
sentido de sua vida, funcionando apenas como um lampejo de uma possibilidade de
mudança comportamental que não ocorre em decorrência da crença de que ela possuía
em relação a velhice e a estagnação que lhe acompanhava. Diante de pensamentos tão
conturbado e de uma consciência atormentada pelo medo de ficar sozinha, D. Maria Rita
esvazia-se de qualquer pensamento angustiante e mergulha no nada de sua ínfima
existência, fazendo o oposto de Ângela que ao assumir a identidade autônoma e
independente liberta-se de si mesma e de sua interioridade para ao vislumbrar o mundo,
poder agir sobre ele.
Dona Maria Rita era tão antiga que na casa da filha estavam habituados a ela
como a um móvel velho. Ela não era novidade para ninguém. Mas nunca lhe
passara pela cabeça que era uma solitária. Só que não tinha nada para fazer.
Era um lazer forçado que em certos momentos se tornava lancinante: nada
tinha a fazer no mundo. [...]. Não fazia nada, fazia só isso: ser velha
(LISPECTOR, 1974, p. 34).

A velha, como se tivesse recebido uma transmissão de pensamento, pensava:


que não me deixem sozinha. Que idade mesmo eu tenho? Ah já nem sei.
Logo em seguida ela esvaziou seu pensamento. E era tranquilamente nada. Mal
existia. Era bom assim, muito bom mesmo. Mergulhos no nada (LISPECTOR,
1974, p. 42).

Ângela, neste sentido, ao olhar para fora de si se depara com a pessoa mais próxima
dela, no caso, D. Maria Rita e percebe o quanto ela era capaz de amar aquela senhora
como uma mãe que ela perdera quando tinha apenas nove anos. Por isso, o momento de
sua descida do trem e de separação da velha que dormia lhe é tão angustiante, pois ao
longo dessa viagem ambas se descobrem necessitadas de afeto e compreensão, apesar de
pertenceram a classes sociais e faixas etárias diferentes.
É interessante observar que nos dois contos nota-se uma reconstrução das
identidades das personagens femininas, em virtude de um deslocamento geográfico que
ora faz com que elas convivam com o perigo do assédio, no primeiro conto, e ora faz, no
caso do segundo conto, com que elas possam descobrir-se a partir do outro.
Em ambos os casos, o percurso percorrido pelas personagens femininas possibilita
que elas reconstruam suas identidades. Nesse sentido, as protagonistas jovens ganham
nova dimensão e passam, ainda que timidamente, a agirem como sujeitos, na medida em
que a pequena governanta abandona a inocência e adquire amadurecimento e autonomia
diante de suas ações e de sua vida quando esta corre perigo. Ângela, por sua vez, faz a

228
viagem justamente porque não é mais ingênua em relação ao seu aprisionamento em
virtude de sua relação com Eduardo que aniquilava sua identidade, impondo-lhe certos
comportamentos e, de certo modo, moldando-a com base nos anseios dele.
Nesse sentido, o deslocamento territorial possibilitou o deslocamento das três
personagens femininas a respeito de suas existências e a respeito da ressignificação de si,
possibilitando a reconstituição de suas identidades, ainda que no caso de D. Maria Rita
essa reconstituição seja tímida e momentânea.
Referências:
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Acessado em: 07/06/2019.

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TRAVESSIAS: UM ESTUDO SOBRE A NOÇÃO DE DESLOCAMENTO E
VARIANTES A PARTIR DO FILME QUE HORAS ELA VOLTA? E DO
ROMANCE ALGUM LUGAR

Mônica dos Santos Melo Figueiredo (UFPE)1

Resumo: Este artigo tem como objetivo traçar um paralelo entre a obra da escritora argentina
radicada no Brasil Paloma Vidal, em especial o seu primeiro romance, Algum Lugar (2009), e
o filme Que horas ela volta? (2015), de Anna Muylaert, com vistas à exploração de questões
como deslocamento, desterritorialização, vidas fronteiriças. A reboque do que discutem
intelectuais como Édouard Glissant, Edward Said, Néstor García Canclini e Beatriz Sarlo.
Palavras-chave: Deslocamento; Desterritorialização; Exílio; Língua

Introdução
Uma espécie de expressão guarda-chuva, o termo deslocamento destaca-se, no
escopo da discussão suscitada por este artigo, por algo que vai além dos vários sentidos
que abriga. Talvez se revele como a palavra que mais consegue sintetizar a natureza dos
fenômenos que ora persistem ou se acentuam no século 21. A era da Revolução Digital
ainda protagoniza dinâmicas discriminatórias que tentam por à margem populações e
categorias sociais. E, se por um lado, é palco de expressivos fluxos migratórios atraídos
por ricas experiências internacionais, por outro, testemunha a crise dos refugiados, o
drama, sob vários aspectos, de exilados e desterritorializados.
Problematizar a noção de deslocamento, na perspectiva plural aqui adotada,
pressupõe atravessar questões ensejadas pelas ideias de fronteiras, limites, outridade,
mudanças, conflitos (de toda ordem). Em sintonia com o caráter multifacetado desta
análise, optou-se por se trabalharem duas obras, uma cinematográfica e outra literária.
Trata-se do filme brasileiro Que horas ela volta? (2015), de Anna Muylaert, a ser
desdobrado em paralelo com o romance, Algum Lugar (2009), da escritora argentina
radicada no Brasil Paloma Vidal, também professora universitária.
Vidal veio para o Brasil aos 2 anos de idade, com os pais, perseguidos pela
ditadura na Argentina. Passou a infância e a juventude no Rio de Janeiro, sem jamais se
naturalizar brasileira. O teor autobiográfico e a problematização quanto à condição do
viver entre-fronteiras vêm marcando tanto a construção de seus textos ficcionais, como
os acadêmicos. Antes de fazer a conexão Rio-Los Angeles com esse seu primeiro

1
Doutoranda em Teoria da Literatura no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal
de Pernambuco (PPGL – UFPE). Contato: monicasantosmelo@gmail.com.

230
romance, Algum Lugar (2009), a autora já ambientara seus personagens entre Rio de
Janeiro e Buenos Aires, na coletânea de contos A duas mãos (2003), e ilustrara viagens
traumáticas nas pequenas narrativas de Mais ao Sul (2008).
A experiência e condição da Paloma Vidal de se encontrar entre culturas e entre
línguas se repetem quando a escritora segue para Los Angeles com o objetivo de estudar
para o doutorado. Algo que se confunde mesmo com o enredo de Algum Lugar (2009),
engatilhado durante esse período. Na obra, a protagonista se muda para Los Angeles
para desenvolver sua tese de doutorado, mas se mostra indiferente ao desconhecido. No
seu isolamento, não avança no trabalho acadêmico nem no relacionamento amoroso.
Deslocada, desiste da tese e regressa ao Rio de Janeiro, cidade de origem, onde também,
após a experiência, não se reconhece.
Já em Que horas ela volta? (2015), a configuração assumida pela ideia
de deslocamento ganha outros contornos, a serem esmiuçados ao longo do artigo. O
filme retrata a vida da empregada doméstica vivida por Regina Casé, Val, egressa do
interior de Pernambuco, que se muda para São Paulo com o objetivo de buscar melhores
condições de vida, muito em função de sua filha, Jéssica, deixada no Nordeste.
Trabalha, há anos, em uma casa de família de classe média, em aparente equilíbrio,
ameaçado com a vinda de Jéssica à cidade para prestar vestibular.
A partir dessas obras ficcionais, as particularidades subjacentes à noção de
deslocamento exploradas neste trabalho serão tratadas com base nas abordagens teóricas
de estudiosos como Glissant, Said, Canclini, Bhabha. Também virão à baila nuances
levantadas por Clifford, Stuart Hall, Bhabha, Jameson, Sarlo e Risério.

De opção a condição: deslocamentos, desterritorialização e exílio


Em um primeiro momento, é possível que se tenda a pensar que o filme Que
horas ela volta? consiste em mais uma obra nacional de ficção a explorar os velhos
clichês da desventura e desassossego (bem como, outras construções e imagens
pasteurizadas) da vida de uma retirante, que deixa para atrás as mazelas do Nordeste
brasileiro na tentativa de galgar uma vida mais bem estruturada em um grande centro
urbano. No desenrolar da trama, ao ser costurada a vinda para São Paulo da filha de Val,
que, sem a mãe saber, manteve igualmente o filho na terra-natal, essa ideia, inclusive,
vem a se reforçar. A jovem predestinada a repetir os passos da mãe. Talvez, a própria

231
roteirista e diretora tenha sido tentada a enveredar por esse caminho. Talvez também é
que possa ter, em sintonia com o cenário social brasileiro das últimas décadas, se
decidido por explorar um vislumbre de mudança por meio do provável ingresso da
moça em uma das universidades mais concorridas do País.
Nesse sentido, a singularidade da película poderia parecer residir justamente nesse
desvio de abordagem. No entanto, desvela-se como o trunfo do filme a forma sutil e
profunda com que a cineasta conduz justamente os aparentes lugares-comuns. Terá a
sociedade brasileira superado, efetivamente, esses supostos estereótipos? É difícil
conceber que, sim, faz-se ainda hoje bastante presente a discriminação contra
determinadas ocupações de trabalho, classes sociais, gênero e lugares de origem? Sim,
embora a Região Nordeste do Brasil tenha se tornado atrativa em termos de
investimento e profissionais, sugerindo o movimento no sentido oposto, o fluxo de
nordestinos seduzidos pelo Centro do País ainda é considerado expressivo?
A história da empregada doméstica Val é flagrante quanto à questão da
desterritorialização no sentido do exposto por Canclini (2011, p.288), como processo de
“perda da relação ‘natural’ da cultura com os territórios geográficos e sociais”. O
deslocamento vivenciado pela protagonista do filme adquire, contudo, contornos que
superam o sentido físico, espacial. Val se vê ocupando um lugar pré-delimitado,
insinuado por fronteiras invisíveis (?), que a segregam com relação à vida gozada pelos
patrões de classe média. Com a vinda de Jéssica a São Paulo para prestar vestibular,
várias nuances que envolvem a dinâmica da casa são questionadas. Sobretudo, porque o
vínculo de caráter profissional mantidos pelos patrões junto a Val é sempre por eles
relativizada.
Teoricamente, a personagem de Regina Casé era considerada “praticamente da
família”, mas a presumida informalidade da relação não impedia Val de reconhecer ali
um distanciamento tácito. A sensação de outridade é internalizada pela protagonista,
resignada à condição subalterna. Jéssica é, então, a figura responsável por contestar a
relação de poder e os valores incorporados pelos donos da casa e naturalizados pela
empregada. A chegada da jovem também leva a um rearranjo interior quanto à postura
do marido e mulher no funcionamento da casa. Fica claro, então, que é o Dr. Carlos o
responsável financeiro pela casa, a personalidade apática do patrão dá vez a um
galanteador culto e a aproximação ensaiada, em tão pouco tempo, junto a Jéssica é

232
sugestiva, por vezes, de um comportamento do típico aproveitador que assedia, mas
também de um interesse sincero.
A escritora Paloma Vidal igualmente trabalha, na sua obra de ficção, personagem
levada a vivenciar o simulacro do deslocamento no sentido da desterritorialização, bem
como, a nível de abstração, como conflito de ordem interna. Traz uma brasileira que
tenta, na companhia do marido, forçar uma adaptação em Los Angeles. A protagonista
resiste, porém, ao modo de vida naquela cidade. Para a personagem, a Los Angeles
faltava concretude. “Vamos de casa para a biblioteca, da biblioteca para casa. A cidade
se tornou, rapidamente, um pano de fundo. É quase como se não existisse e seu
apagamento nos ampara na tarefa que viemos cumprir” (VIDAL, 2009, p.37). Revela-se
como um espaço amorfo, impenetrável, inapreensível e disperso. Mesmo com todo um
horizonte por ser descoberto, explorado, a personagem se sentia isolada.
“Constato que se não tenho um espaço meu do lado de fora, meus pensamentos
não me pertencem” (VIDAL, 2009, p.21). A protagonista necessitava de se reconhecer
em algum lugar. O próprio reconhecimento de si disso dependia. O reconhecimento de
si também como sujeito no mundo. Ao se encontrar em uma cidade cosmopolita,
populosa e multicultural, ela vivencia um estado de confusão, em função da sensação de
deslocamento, sem saber precisar o uso de uma linguagem em um determinado
contexto.
Há poucas pessoas no ônibus, as usual. Um grupo de adolescentes conversa e
ri. [...]. Um dos meninos diz “te fuiste, te fuiste” e elas [duas meninas] riem,
respondendo em inglês com desaforo.
No último banco, uma mendiga [...]. Há vários homeless como ela nas
redondezas do apartamento. [...] A maioria são negros e falam um inglês
cheio de gírias que eu compreendo mal (VIDAL, 2009, p.28).

A personagem vivencia um “jogo de linguagem”, a exemplo do que esmiúça, em


sua obra, o filósofo Wittgenstein, para o qual a linguagem está associada a uma forma
de vida, contexto, história. A protagonista está, como sujeito em meio a diferentes
culturas, mergulhada em dois universos distintos e sente a necessidade de elaborar o
pensamento, transmitir suas ideias, em duas línguas simultaneamente. A pluralidade
experimentada no contexto e internalizada por ela é refletida em sua linguagem.
Condição a ser acentuada tendo em vista o caráter de mudança, e não de uma simples
viagem, daquela estadia em Los Angeles.

233
Clifford (2000, p.75), no seu Culturas Viajantes, ressalta que, ao se colocar “o
viajar em primeiro plano como prática cultural, então, o morar precisa ser também
reconcebido – não mais como a simples base de partida e de retorno da viagem”. Nesse
sentido, o etnógrafo se inclina para a ideia de habitus, como um “conjunto de práticas e
disposições, parte das quais poderia ser lembrada, articulada em contextos específicos”
(CLIFFORD, 2000 p.75), em referência direta a Bourdieu (2011). Sujeito diaspórico, a
protagonista de Algum Lugar leva consigo algo de seu lugar anterior, passível de
manutenção, passível igualmente de transformação.
Na volta ao Rio de Janeiro, a personagem principal é, do mesmo modo que em
Los Angeles, tomada pela sensação de inadequação.

Quando voltei de Los Angeles, experimentei alguns passeios, como se fosse


preciso reconhecê-la. [...] Andava então pelas ruas como se nelas fosse
recuperar algo que se perdeu. Só que elas se mostravam indiferentes à minha
busca. Simplesmente estavam ali, como se o tempo não tivesse passado. [...]
O mesmo acontecia com a cidade: ela não exigia nada de mim. Não queria
nada novo. Era eu quem buscava nela uma justificativa para a inadequação
do retorno. Quando percebi que ela não cederia, que não se deixaria
transformar num álibi, as errâncias das primeiras semanas cessaram.
(VIDAL, 2009, p. 126-127).

A referência ao mundo anterior à experiência do deslocamento é evidenciada pela


mãe da personagem, mas em condição distinta. Trata-se de uma argentina expatriada.
Curioso é que, ao ter oportunidade de visitar a cidade-natal, Buenos Aires, ela passa,
então, a se reportar todo tempo ao Rio, onde mora.

Agora, andando por lugares aos quais tantas vezes fazia referência, é como se
visse tudo espelhado: de um lado, Buenos Aires, do outro, o Rio,
complementares, uma inexistente sem a outra. Esta aqui é como se fosse a
Visconde de Pirajá, diz referindo-se a uma avenida comercial de Palermo;
aqui é o nosso Aterro; esta é nossa Confeitaria Colombo e esta avenida é
como se fosse a Rio Branco. [...]. Todos os sentidos precisam se deslocar
para essa outra geografia da qual não consegue mais se desprender, como se
não lhe fosse mais possível ver, só comparar (VIDAL, 2009, p.168).

A matéria de que trata o livro evoca, em parte, a trajetória pessoal da autora. No


caso, o Brasil foi o destino dela e dos pais, argentinos alvos de repressão política, no
contexto do cenário político de 1960, 1970, na América Latina, envolvendo as ditaduras
militares. A literatura praticada por Vidal representa um eco desse período, em sintonia
com o que observa Said (2003, p.54), para quem as produções literárias e intelectuais se

234
destacam como algumas das formas através das quais um exilado, esboçando um novo
mundo, tentaria contrabalançar a perda desconcertante.

Cada um protagoniza a viagem à sua maneira: há aqueles que mudam de país,


que mudam de nacionalidade, há aqueles que vão mais longe e aqueles que se
perdem, mas todos invariavelmente viajam. O exílio é mais uma dessas
viagens, que em muitos casos se uma torna uma viagem escrita (VIDAL,
2004, p.52).

Em suas produções intelectuais, tanto o pensador palestino como a escritora


argentina radicada no Brasil enfatizam o caráter angustiante da condição do exílio, do
desarraigamento do lar. Talvez o sentimento de não-pertencimento a outro lugar seja
uma forma de reivindicação das raízes do exilado, de declaração ao coletivo, mas
principalmente para si, de que ele também possui uma origem, um passado. Essa busca
pelas raízes não necessariamente se enfraquece com o passar das gerações, podendo ser
transmitido como herança.
A circunstância do exílio, contudo, adquire mesmo um viés filosófico. Quem, em
algum momento, não chegou a se sentir cindido, perdido, deslocado? Quem nunca se
reconheceu ilhado e sem perspectiva de resgate? Refere-se, dessa forma, à própria
condição precária do homem. Inclusive, no romance, a protagonista vivencia também
algo nesse sentido. Perdera o referencial do casamento. Embora acompanhada do
marido no estrangeiro, nunca se mantiveram tão distantes. Tinha se mudado para Los
Angeles a fim de levar a cabo o doutorado, mas pouco conseguia avançar.
Circunstâncias-limite como as apontadas até aqui terão outras nuances desdobradas no
próximo tópico.

Vidas fronteiriças: sobre limites velados, naturalizados e diluídos


Entre as questões exploradas pelo filme Que horas ela volta?, destaca-se como a
mais relevante a relação travada, a partir de uma fronteira simbólica, entre os patrões e a
empregada Val. Embora a doméstica pareça ter sido, de maneira terna, incorporada à
rotina da casa e de seus membros, situações e elementos refletem o olhar depreciativo
dispensado ao papel de Val naquela família. As práticas cotidianas representativas de
uma relação desigual de poder haviam, inclusive, sido naturalizadas pela empregada.

235
A experiência vivida pela personagem de Regina Casé é elucidativa quanto aos
limites demarcados historicamente a partir da prática da escravidão. Refere-se a um
quadro que reflete as raízes escravocratas do trabalho doméstico no Brasil, cujo
processo foi marcado, entre outros aspectos, pela exploração e informalidade da relação
patrão-empregada.
De um modo geral, os países da América Latina de bases escravocratas, em
virtude da colonização, protagonizaram, mesmo no período pós-abolição, relações
envolvendo paternalismo e escravidão (paternalista, de mando senhorial) junto às
domésticas. Essa fronteira (in)visível que delimita um lugar de submissão e já
naturalizado pela empregada representa um rescaldo dessa origem na escravidão
doméstica. Elas viviam sob exploração, disfarçada de proteção e favor.
O pesquisador Maciel Silva (2017) resgata, em sua produção acadêmica,
experiências de trabalhadoras domésticas do Recife e de Salvador na escravidão e no
pós-abolição e acompanha o despertar de uma consciência quanto à situação de
exploração vivida e o vislumbre de um sentimento de classe. O paternalismo dá margem
a cenários de aproveitamento e abusos e, levando-se em consideração o contexto atual,
embora já seja possível se contar com um aparato legal em prol do tratamento
profissional do trabalho doméstico no Brasil, como aquela se refere a uma prática
entranhada na cultura do País, pode levar tempo para ser superada.
A protagonista do romance Algum lugar também vivencia uma experiência
intervalar, fronteiriça. No caso dela, destacando-se como a referência direta ao sujeito
que a Pós-Modernidade projeta, o qual encontra representação nesse entre-lugar, no
sentido de assumir um perfil híbrido.

Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos,
lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e
pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades
se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e
tradições específicos e parecem ‘flutuar livremente’ (HALL, 2006, p.75).

Nessa conformação de múltiplas identidades, as particularidades culturais


resistentes dialogam, negociam. Essas diferenças não suplantam umas às outras,
fazendo-se pronunciar em conexão. Em sintonia com o fenômeno postulado por
Glissant como Crioulização, no qual elementos culturais heterogêneos, “equivalentes
em valor”, relacionam-se, resultando em algo diferente, inesperado, imprevisível. O

236
filósofo martinicano foca, no caso, não necessariamente no indivíduo, mas, de um modo
mais abrangente, atém-se às culturas do mundo quando colocadas em contato umas com
as outras. Nesse sentido, a personagem do livro se encontra em um panorama cultural
irreversível, de âmbito mundial.
A inquietude experimentada pela protagonista de Algum lugar está relacionada a
vivência em torno do que Glissant (2005, p.98) denomina de Caos-mundo, isto é, “[...] o
choque, o entrelaçamento, as repulsões, as atrações, as conivências, as oposições, os
conflitos entre as culturas dos povos na totalidade-mundo contemporânea [...]”.
O tal sujeito fragmentado, concebido por Hall (2006, p.12) como dotado de
múltiplas identidades, às vezes até “contraditórias ou não resolvidas”, protagoniza o
fenômeno da tradução, seguindo Homi Bhabha (1998). Conceito ligado àqueles
indivíduos que mantêm laços com as tradições dos lugares de onde se originaram, mas
sem a pretensão de uma volta ao passado, e se veem expostos a dialogar com as novas
culturas onde se encontram, sem meramente serem absorvidas por elas.

As hifenações híbridas enfatizam os elementos incomensuráveis [...] como a


base das identificações culturais. O que está em questão é a natureza
performativa das identidades diferenciais: a regulação e negociação daqueles
espaços que estão continuamente, contingencialmente, se abrindo, retraçando
as fronteiras, expondo os limites de qualquer alegação de um signo singular
ou autônomo de diferença – seja ele classe, gênero ou raça. Tais atribuições
de diferenças sociais – onde a diferença não é nem o Um nem o Outro, mas
algo além, intervalar - encontram sua agência em uma forma de um ‘futuro’
em que o passado não é originário, em que o presente não é simplesmente
transitório. Trata-se [...] de um futuro intersticial, que emerge no entre-meio
entre as exigências do passado e as necessidades do presente (BHABHA,
1998, p.301).

Dentro da perspectiva da Relação, alicerçada por Glissant, da capacidade de se


manter aberto ao contato intercultural, em direção ao diverso, ao outro, fundamenta-se a
noção de “identidade-rizoma”. A imagem glissantiana faz referência à abstração de
Deleuze e Guattari em Mil Platôs (2004). A abordagem rizomática se contrapõe à ideia
de identidade como raiz única e diz respeito aos vários entrelaçamentos multidirecionais
construídos a partir da interação com o diverso. Nesse sentido, Glissant contesta a:

[...] concepção sublime e mortal que os povos da Europa e as culturais


ocidentais veicularam no mundo; ou seja, toda identidade é uma identidade
de raiz única e exclui o outro. Essa visão da identidade se opõe à noção hoje
“real”, nas culturas compósitas, da identidade como fator e como resultado de

237
uma crioulização, ou seja, da identidade como rizoma, da identidade não
mais como raiz única mas como raiz indo ao encontro de outras raízes
(GLISSANT, 2005, p.27).

É possível afirmar que a personagem criada por Vidal no romance analisado


personifica esse processo, muito ligado a um sentido e conjuntura de coletividade. A
protagonista possui, por exemplo, ascendência argentina, vive no Brasil e se muda para
Los Angeles, onde traça relações com americanos e hispanohablantes e se insere nesse
cotidiano, bem como convive com indivíduos das mais diversas procedências.
Um dos atuais desafios, apontados por Glissant (2005, p. 108), é justamente de
que se reflita sobre como cada um experiencia a sua identidade, da importância de se
adotar o imaginário do Todo-o-mundo, que envolve a capacidade de se viver em seu
lugar estando em relação com a totalidade-mundo. Mais do que ser interessa o estar em
uma rede de relações, com o outro e as outras culturas. A Totalidade-Mundo, ideia que
se contrapõe à noção de sistema e universalidade ou universal generalizante, consiste,
segundo o pensador, numa imbricação cultural, um contato de interdependência em que
todos têm necessidade de todos.

Entre enlevos e relevos: Contornos da paisagem pela mídia e pela experiência


individual
A famigerada Pós-Modernidade está imbricada com o ritmo acelerado de
consumo, com a fase pronunciada do capitalismo transnacional. A expressão é aplicada
aqui em concordância ao que defende Jameson:

[...] ele não é apenas mais um termo para a descrição de determinado estilo. É
também, pelo menos no emprego que faço dele, um conceito de periodização
cuja principal função é correlacionar a emergência de novos traços formais na
vida cultural com a emergência de um novo tipo de vida social e de uma nova
ordem econômica – chamada, frequente e eufemisticamente, modernização,
sociedade pós-industrial ou sociedade de consumo, sociedade dos mídia ou
do espetáculo, ou capitalismo multinacional (JAMESON, 1985, p.17).

Nesse contexto no qual se destaca o consumo exacerbado hoje, nunca é demais


evidenciar o papel de protagonismo exercido pela mídia. Muito da relação da sociedade
com o mundo é costurada por ela. A “realidade” a que se tem acesso, por vezes, é
justamente através dos meios de comunicação. Assim sendo, nem sempre o resultado

238
proveniente de uma experiência direta com algo, não-mediada, corresponde ao que fora
imaginado a partir do exposto sobre isso pela mídia.
Sarlo (2014) traz o exemplo das expectativas dos viajantes criadas a partir das
imagens e descrições dos destinos turísticos em conteúdo publicado nos guias
especializados. O meio produz, nesse sentido, uma cidade imaginária para quem não a
conhece. Por meio de determinados itinerários estrategicamente montados a fim de
proporcionar uma certa experiência do lugar ao turista, predominantemente, positiva, o
visitante pode reforçar a ideia pré-concebida sobre tal destino. Embora esse tipo de
vivência do local, ressalta Sarlo (2014, p.179), constitua uma “realidade”, o viajante
pode conceber o excepcional como particularidades típicas da localidade.
Assim sendo, uma cidade pode parecer ser, de um modo geral, segura, sem
congestionamento, organizada, promissora, limpa, quando, efetivamente, foram
escolhidos determinados trechos da localidade, visitados em horários específicos. Em
outras palavras, a experiência vivenciada pelo turista e/ou a impressão tida do destino a
partir do veiculado na mídia representa algo peculiar que, em geral, difere daquilo
sentido por quem possui uma relação rotineira (faz uso por trabalho, estudos) com o
local, por isso, mais exposto às suas adversidades.
Dado o exposto, torna-se compreensível a configuração que assumem, no
imaginário coletivo, centros urbanos importantes do ponto de vista financeiro e de
entretenimento, como São Paulo e Los Angeles, nos casos em estudo, e o fascínio que
são capazes de exercer sobre as pessoas.
No contexto do filme analisado, a personagem Jéssica, na ida a São Paulo,
surpreende-se ao saber que, mais de 10 anos depois, a mãe, Val, ainda não tinha
adquirido casa própria e morava no quartinho dos fundos da residência dos patrões.
Além disso, ao precisar sair da casa deles, somente foi possível a Val estabelecer
moradia em um quarto de periferia. A São Paulo de business magazines, das
oportunidades de trabalho, emprego, negócios e prosperidade também se revelava a
Jéssica como uma cidade permeada pela desigualdade social acentuada. Risério (2012)
expõe, em detalhes, como o processo de transformação de São Paulo, nas primeiras
décadas do século XX, e de outras cidades, em busca da modernização, ocorreu de
forma desequilibrada e segregacionista, gerando ou acentuando contrastes.

239
Do mesmo modo, a empregada doméstica ainda guardava com relação à terra-
natal, um interior de estado nordestino, visão já muito disseminada, de atraso da Região,
talvez, de certo modo, correspondente somente à época de sua partida. Assim é que ela
orienta a filha a fazer a inscrição no vestibular quando estivesse na capital paulista e se
admira ao saber que a filha já fizera, ainda em casa, pela internet.
Também a Los Angeles de Algum Lugar é um espaço com contornos muito
projetados pela mídia. Evidenciada, com frequência, nas telas de cinema, passa a
sensação de familiaridade, aprazibilidade. Algo confessado pela protagonista do
romance:
Em breve, estaremos atravessando a cidade. O que veremos será bastante
próximo de um cenário onde os contornos entre realidade e ficção se
desmancham. A imaginação nesse caso não terá trabalhado sozinha, daí essa
sensação de que tudo já foi visto em algum outro lugar fora daqui. [...] me
fará abrir a janela para me entregar à paisagem transparente que a cidade
oferece, seduzindo-me com uma familiaridade simulada, de casas baixas e
palmeiras, lojas e marcas conhecidas, de longas avenidas sob um céu
perfeitamente azul. Deixarei que ela me seduza com sua geometria
cinematográfica [...] (VIDAL, 2009, p. 17).

Já estabelecida na cidade, porém, passa a conhecer determinados aspectos


destoantes das imagens hollywoodianas. Identifica uma mendiga e “vários homeless
como ela nas redondezas do apartamento” (VIDAL, 2009, p.28). Como flâneur,
experiencia a cidade e a percebe, então, como um lugar amorfo, amplo, aberto, de difícil
apreensão e disperso.
Efetivamente, se a cidade fosse outra, poderia andar até lá. É uma linha reta,
constato no mapa, mas o que significa nessa cidade uma linha reta entre um
ponto e outro? Sabe-se lá quantos viadutos, avenidas impossíveis de
atravessar, ruas sem calçada haverá entre o apartamento e a entrada do museu
(VIDAL, 2009, p.38).

A título de conclusão
As questões desdobradas neste trabalho referem-se a algo que toca de forma
profunda a todos. Perpassa a questão do eu, da alteridade, da vida em sociedade, do
estar e se relacionar no mundo. Isso. Mais do que “ser”, hoje, em especial, importa o
“estar”, que sugere movimento, fluidez, transformação. Deslocado, deslocar-se,
deslocar. A viagem pode ser interna, um se mover para longe ou o ato de afastar o outro,
excluir. Encontros e desencontros. Contato, barreiras, conflitos, trocas, relação. Parar
para refletir sobre tudo que está subjacente à palavra deslocamento leva a

240
questionamentos do tipo “Para onde estamos indo?”. O vislumbre pode ser tanto de algo
inspirador quanto de algo preocupante. Servindo-se de lições glissantianas, seria
construtivo pensar que, mais do que conhecimento, esse horizonte depende da postura
de cada um, de todos, frente ao mundo. É o estar aberto, o se dispor, o deixar fluir.
Referências
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wittgenstein/. Acesso em: 13 julho 2017.

241
VIVER ENTRE CULTURAS: A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE EM MAR
AZUL, DE PALOMA VIDAL

Patricia Mariz da Cruz (UFF)1

Resumo: Mar azul (2012), de Paloma Vidal, é um romance tecido pela voz de uma narradora
idosa, oriunda da Argentina e exilada no Brasil desde a década de 1970. Com a leitura dos
diários paternos, os quais foram deixados como herança, ela relembra a sua infância e
juventude, transitando entre as culturas argentina e brasileira. O olhar para o passado, em meio à
vivência no presente, evidencia que a identidade é um processo histórico, construída mediante o
contato com o outro que, na história, desdobra-se na nova cultura. Assim, sob a luz de Hall
(2011), Said (2003) e Kristeva (1994), este trabalho propõe uma reflexão acerca da construção
da alteridade mediante o trânsito cultural vivido pela personagem feminina.
Palavras-chave: Identidade; Estrangeiro; Entre-lugar

Beatriz Resende (2008), no artigo “Paloma Vidal: o trânsito de culturas”,


defende que as vozes de autoria feminina são as que mais produzem discursos com
propriedade, devido à marginalidade conferida a elas na história. O olhar observador e
atento aos detalhes consegue captar e dizer algo que ainda não foi dito pelo cânone
tradicional masculino.
Essa marginalidade da voz, defendida por Resende, também pode ser encontrada
na figura do estrangeiro. Apesar de a literatura brasileira ser baseada no viajante e em
seu olhar de fora (SÜSSEKIND, 1990), ele teve sua voz apagada por não ser
considerado representativo das características nacionais, principalmente durante o
Romantismo2. No entanto, na contemporaneidade, o olhar crítico do imigrante é
reconsiderado e, frequentemente, podemos observar que diversas produções literárias
contêm o estrangeiro – o qual pode ser aquele que entra ou sai do Brasil - como
personagem principal.
A partir dessas duas figuras marginalizadas, o romance de Paloma Vidal, Mar
azul (2012), descortina-se para o leitor: ele é tecido pela voz de uma narradora idosa
nascida na Argentina, mas que, no presente, vive na cidade do Rio de Janeiro. A partida

1
Licenciada em Letras Português/Literaturas (UFRRJ), Mestra em Estudos Literários (UNIFESP) e
Doutoranda em Literatura Comparada (UFF). Bolsista CAPES. Contato: patricia.marizcruz@gmail.com
2
Em “Nacional por subtração” (1987), Roberto Schwarz afirma que que o Romantismo, ao tentar
delimitar um marco fundador da literatura, desconsiderou a influência do estrangeiro, pois acreditava que
somente assim era possível encontrar a nossa essência.

242
da terra natal foi motivada pelo desaparecimento da melhor amiga, Vicky, que era
militante na luta contra o regime ditatorial argentino. A história se desvela mediante a
leitura dos diários paternos, deixados como herança, os quais suscitam as memórias do
passado, da juventude e da terra natal, ratificando o entre-lugar3 vivido pelo estrangeiro,
que não consegue viver o presente de forma plena, ficando preso ao país de origem e às
lembranças do tempo pretérito.
A leitura dos cadernos íntimos do pai revela que a protagonista tem a
necessidade de conhecê-lo, já que fora abandonada aos dez anos de idade. Ele partiu
rumo ao Brasil para trabalhar na construção de Brasília, mantendo contato com ela
apenas por cartas e, por isso, a figura paterna se caracteriza por seu desconhecimento. O
diário, então, representa o instrumento que pode auxiliar no entendimento do pai,
enquanto a escrita das impressões dessa leitura, pela protagonista, pode viabilizar a
compreensão de si.
Assim, a narrativa de Paloma Vidal legitimiza a voz de duas figuras
marginalizadas: a mulher e o estrangeiro. Através de uma narradora feminina e de seu
olhar deslocado e crítico, que, segundo Edward Said (2003) acontece devido à sua
condição de estrangeiridade, ela busca o entendimento de si. Essa compreensão somente
se torna possível a partir do (re)conhecimento do outro – o qual na narrativa, configura-
se como o pai ausente e também como a terra estrangeira -, ratificando os pressupostos
de Stuart Hall (2011) acerca da identidade na contemporaneidade: ela é entendida como
um processo histórico, formada por meio do convívio social e cultural. Diante disso,
este trabalho, a partir da análise de Mar azul, busca uma reflexão sobre a construção
identitária na atualidade através do olhar da personagem estrangeira e da sua
experiência com as culturas brasileira e argentina.

3
Tomo de empréstimo a expressão utilizada por Silviano Santiago, em “O entre-lugar discurso
latinoamericano” (2000). Para o autor, a América Latina se encontra em um “entre-lugar” devido ao seu
passado colonial e ao contato com a Metrópole. Tal posição ocupada não se configura como um espaço
vazio, mas, sim, um lugar que permite uma reflexão crítica sobre a sua realidade e a influência provocada
pelo ex-colonizador. Ainda de acordo com Santiago, esse conceito também se aplica ao escritor
latinoamericano, que vive “entre a assimilação do modelo original, isto é, entre o amor e o respeito pelo já
escrito, e a necessidade de se produzir um novo texto que afronte o primeiro e muitas vezes o negue”
(p.23). Neste trabalho, além do que é trabalhado pelo autor, abordarei o “entre-lugar” a partir do
estrangeiro, que se situa entre duas culturas: a de origem e aquela onde ele se encontra.

243
A alteridade e o outro: vestígios e rupturas
A leitura dos cadernos paternos suscita, na narradora, as lembranças de seu
passado na terra natal e a necessidade de escrever sobre as impressões deixadas por
esses escritos. Para ela, o pai é considerado um estranho: todas as fases de sua vida
foram marcadas pela ausência dele e os diários são vistos como uma maneira de
conhecê-lo melhor, possibilitando a compreensão e a aproximação parental, mesmo
após morte dele, conforme a própria narradora observa: “será que estes cadernos são o
mais perto que já estive do meu pai?” (VIDAL, 2012, p.130). Os escritos, no entanto,
não revelam somente a possibilidade de conhecimento paterno, pois ter acesso à
intimidade dele pode também auxiliar na compreensão da protagonista sobre ela
própria. Isso porque, segundo Eurídice Figueiredo, no artigo “A narrativa de filiação de
escritores judeus brasileiros” (2016), a história familiar influencia na constituição da
identidade individual, já que “o conhecimento de si passa pela compreensão da vida do
pai, da mãe e dos avós” (p.81-82). Na narrativa, podemos ver isso quando a narradora
reflete sobre a utilidade dos escritos paternos: “(...) os cadernos foram um espelho para
ele e são agora para mim?” (VIDAL, 2012, p.135). Desse modo, pode-se compreender
que, o pai, ao escrever, além de transformar os diários em um confidente - já que se
sentia solitário - poderia se entender melhor, vendo-se refletido nas linhas dos seus
escritos4. Posteriormente, a personagem feminina, ao ter contato com os cadernos dele,
poderia entendê-lo um pouco mais e também a si mesma, ao considerarmos a afirmativa
de Figueiredo.
Além disso, a sensação de aproximação com o pai não acontece somente devido
ao acesso à intimidade dele por meio dos diários. Assim como a narradora, ele também
era um estrangeiro no Brasil, pois saiu de seu país natal rumo a Brasília, a fim de
trabalhar na construção da futura capital. Ao contrário dela - que, com uma preparação
prévia, adaptou-se rapidamente à cultura local -, ele demonstra ter dificuldade em sua
adaptação, mostrando-se resistente aos novos costumes e à nova língua, a quem ele
atribui a culpa de sua doença que o faz esquecer das palavras e de suas memórias e, em
consequência, de si mesmo e de sua identidade. Vemos, a partir disso, que, para o pai da
protagonista, a sua alteridade está vinculada ao idioma materno. Para ele, o pouco

4
Phillipe Lejeune, em “Um diário todo seu” (2014), afirma que a escrita de si permite que o homem se
olhe com distanciamento, semelhante a um espelho.

244
contato com a língua pode ocasionar o esquecimento, representando a perda de sua
identidade e, dessa maneira, a rememoração torna-se fundamental, pois é por meio dela
que ele teria contato com a sua cultura e a sua origem. O diário, então, seria utilizado
como um suporte da memória, que o ajudaria a se salvar do esquecimento de si e do
idioma materno: “Meu pai decidiu anotar o que estava perdendo nestes cadernos, que
hoje são a minha herança. A memória precisava se tornar um armazenamento visível”
(VIDAL, 2012, p.42).
O ponto de vista do pai da narradora de Mar azul acerca da constituição de sua
alteridade vai ao encontro da concepção iluminista, a qual propunha que a identidade de
um indivíduo fosse definida a partir do momento de seu nascimento, sendo, portanto,
unificada e centrada, permanecendo do mesmo modo até a sua morte. Stuart Hall, em A
identidade cultural na pós-modernidade (2011), afirma que o sujeito do Iluminismo era
dotado da capacidade de raciocínio e de pensar e, por isso, era considerado único e
singular. Assim, para os iluministas, a identidade:

consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o
sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo
essencialmente o mesmo – contínuo ou “idêntico” a ele – ao longo da
existência do indivíduo. O centro essencial do eu era a identidade de
uma pessoa (...) essa era uma concepção muito “individualista”do
sujeito e de sua identidade (p.11).

Em Mar azul, no entanto, não podemos verificar tal concepção de alteridade na


personagem feminina. Isso porque, já em sua adolescência, a amiga Vicky observa a
complexidade da sua constituição identitária. Para a amiga, a protagonista muda o seu
comportamento de acordo com o relacionamento com as pessoas. A narradora, então,
era composta por distintas identidades:

Vicky ria da minha capacidade de autoengano (...) você está sempre


querendo ser outra pessoa. Eu me sentia mesmo outra pessoa a cada
vez, com cada um. Com ela, alguém frágil e silenciosa, porque ela me
permitia que assim fosse, como uma maneira de não só de ser ela que
estava ali para me servir de escudo, mas de ser também quem podia
enxergar algo tão evidente para os outros, já que meus silêncios às
vezes pareciam eloquentes (VIDAL, 2012, p.50-51).

Dessa forma, torna-se possível compreender que a constituição identitária da


narradora não pode ser entendida da mesma maneira daquela que é concebida por seu
pai. Com a análise do romance de Paloma Vidal, percebe-se que esses dois indivíduos, o

245
iluminista e o contemporâneo, podem ser representados pelo pai e pela filha,
respectivamente. Enquanto ele considera a sua identidade como fixa, definida no
momento de seu nascimento e, consequentemente, por sua cultura natal, a personagem
feminina se entende por sua multiplicidade, em que a sua alteridade é influenciada pelo
relacionamento com o outro e pelo seu presente, sendo, portanto, mutável.
A distinção desse ponto de vista pode encontrar a explicação em Beatriz
Resende. No artigo “Paloma Vidal e o trânsito de culturas” (2005), a teórica afirma que,
em comparação à visão masculina, o olhar feminino é mais aguçado e, por isso,
consegue perceber e compreender melhor os detalhes, tendo uma visão mais ampla do
que lhe cerca. Ainda de acordo com Resende, tal percepção detalhista é uma herança da
marginalização conferida às mulheres ao longo da história:

Filha do feminismo, jovem no século XXI, Paloma Vidal pode falar


de um lugar que, não sendo mais marginal, ainda guarda todo o
“esquisito” que só a literatura das mulheres consegue ter, ou seja,
utiliza-se tudo aquilo que um ouvido peculiar apreende e que talvez
não seja perceptível ao aparelho auditivo masculino. É assim que a
voz feminina aparece (...): como uma opção, uma escolha, função-
autor que revela intencionalmente e que acompanha um olhar
(também feminino) que espreita, observa a partir de um deslocamento,
um à margem, que seria impossível à centralidade masculina
(RESENDE, 2005, p.110).

Ainda em relação à questão da identidade na contemporaneidade, podemos


encontrar em Hall a explicação para as diversas facetas observadas pela narradora em
sua alteridade: de acordo com o teórico, o indivíduo atual é atravessado por múltiplas e,
por vezes, conflituosas identidades, que variam de acordo com a situação. Assim,
diferentemente de seu pai, a protagonista consegue perceber que a sua constituição
identitária não é estável, assumindo distintos posicionamentos, os quais dependem do
contexto nos quais ela se insere. Ao considerarmos o que Resende afirmou sobre a
literatura de Paloma Vidal, compreendemos que a percepção crítica da narradora a
respeito de sua constituição identitária é oriunda de seu olhar deslocado, que, mesmo
sendo estrangeira como seu pai, difere-se dele pelo lugar marginal ocupado pelas
mulheres durante muito tempo.
Voltando à questão dos diários paternos, como vimos, a leitura deles suscita as
lembranças da narradora sobre o seu passado, a sua infância e adolescência, a relação
com o pai, com a melhor amiga e a mãe dela, fazendo com que ela e o leitor
identifiquem as sofridas ao longo de sua vida. Esse olhar crítico da protagonista pode

246
ser explicado por sua condição de estrangeira, conforme veremos mais adiante. A
comparação do tempo pretérito com o presente faz com que observemos as alterações
na identidade da personagem feminina: idosa, no Rio de Janeiro, ela não é a mesma que
foi durante a sua juventude, na Argentina. Com isso, torna-se possível entender que a
alteridade é construída através das experiências com o outro e com o mundo exterior.
Essa concepção da constituição da alteridade vai ao encontro dos pressupostos de Hall
(2011), o qual afirma que, atualmente, a identidade “torna-se uma „celebração móvel‟
formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos
representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (...)” (p.13),
sendo definida, portanto, pela história do indivíduo e não por um fator biológico.
Essa mudança na concepção da identidade fez com que conceitos como
identidade e nação, que no século XIX eram considerados fixos, fossem abalados,
questionando-os e, com isso, houve a desestabilização das sociedades atuais. Diante
disso, o indivíduo atual sente-se deslocado, tanto de si quanto de sua cultura, resultando
em uma crise de identidade. Na narrativa, esse deslocamento, sentido por pai e filha, é
exacerbado por conta da saída da terra natal, gerando a necessidade do
(re)conhecimento próprio, da compreensão íntima, o que pode ser verificado em ambas
as personagens. E, dessa forma, a compreensão de si e do outro não acontece somente
devido ao distanciamento do país de origem, pois ambos encontram nos diários íntimos
um modo de conhecimento próprio, diminuindo, talvez, a sensação de deslocamento
vivido por eles.
Dessa maneira, podemos compreender, através de Hall, que a concepção atual de
identidade está relacionada à história de vida do indivíduo e às suas experiências com o
exterior, sendo, portanto, um processo histórico, distinguindo-se, assim, daquela que era
concebida pelo Iluminismo, a qual definia a identidade do indivíduo por sua
imutabilidade, sendo única durante toda a sua vida. Em Mar azul, podemos ver as duas
concepções exemplificadas na narradora e em seu pai. Ela, ao lembrar o passado,
vivencia a passagem de algumas fases de sua vida, percebendo que a sua alteridade é
composta por suas experiências sociais e culturais. O mesmo, entretanto, não acontece
com a personagem masculina, que ainda se mostra apegada à cultura natal e à ideia de
que a sua identidade permaneceu a mesma durante a sua vida toda, sendo fixa, definida
pela terra de origem e pela língua materna. Em comum, para ambas, há a escrita que,
diante do deslocamento para a nova cultura, configura-se como uma confidente e

247
também como um instrumento que permite olhar-se com distanciamento,
compreendendo a si mesmo e também ao outro, ratificando, por isso, a alteridade como
uma construção social e cultural.

O entre-lugar do estrangeiro
O deslocamento sentido por pai e filha, exposto nos diários dele, refere-se à
condição de estrangeiro vivenciada por eles. As memórias, tanto do pai quanto as que
são suscitadas na narradora mediante a escrita dele, mais do que pertencentes às
características do gênero diário5, são naturais ao imigrante. Este demonstra estar preso
ao passado, ainda que esteja adaptado à nova cultura, e também à terra natal e, por isso,
ocupa um entre-lugar, já que vive, paralelamente, em tempos e espaços distintos.
Podemos observar isso nas personagens de Paloma Vidal: a narradora e o seu pai, por
meio das lembranças, vivem entre o presente e o passado, o Brasil e a Argentina e a
velhice e a juventude.
Em Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, Edward Said (2003) afirma que a
partida da terra de origem é considerada uma ruptura, que afetará para sempre a relação
do estrangeiro com o lugar onde ele nasceu, considerado por ele como o seu verdadeiro
lar. Para ele “o exílio jamais se configura como o estado de estar satisfeito, plácido ou
seguro” (2003, p. 60). Assim, ao considerarmos a narrativa, vemos que, por mais
adaptada que a protagonista esteja ao Brasil, a Argentina ainda é considerada por ela
como um local seguro e é devido a isso que, tanto ela quanto seu pai, vivem presos ao
passado, pois, nesse tempo, eles podem encontrar a segurança que somente a terra natal
possui.
Esse retorno ao passado faz com que o romance de Paloma Vidal ganhe um
maior caráter de transitoriedade, pois há a evocação da adolescência da narradora. Essa
fase é cercada de significativas transformações identitárias e corporais e foi durante esse
período que ela saiu da Argentina. Dessa maneira, a intensificação da sensação de
deslocamento vivida pela protagonista foi provocada não somente pelo trânsito cultural,
mas também por ser adolescente, conforme aponta Stefania Chiarelli, no artigo
“Forasteiras: Adriana Lisboa e Paloma Vidal, percursos itinerantes na ficção

5
Em “O diário íntimo e a narrativa”(2005), Maurice Blanchot afirma que o gênero tem como função a
salvação do esquecimento, servindo como um suporte da memória. Conforme já vimos anteriormente,
narradora de Mar azul afirma que o pai utilizava os diários como um instrumento em que guardava as
suas reminiscências.

248
contemporânea” (2017), ao fazer uma análise comparativa de Mar azul e Azul corvo, de
Adriana Lisboa:

A transição não se refere somente à faixa etária, mas também ao


trânsito entre países e línguas, o que potencializa esses efeitos nas
narrativas. O espanto diante das experiências vividas se dá de forma
paralela ao refazer da identidade em meio a outra cultura (p.160)

Além disso, para Julia Kristeva (1994), essa vivência melancólica do


estrangeiro, que se encontra dividido, ao estar preso ao passado, pode ser explicada
porque ele não quer se fixar no novo país, já que isso simbolizaria criar raízes, traindo a
terra natal. Com isso, vemos que a adaptação da narradora não pode ser considerada
completa, pois, mesmo estando no Brasil, ela revela, em diversos momentos, que ainda
conserva costumes da cultura argentina. O fato de estar presa às lembranças do passado
também colabora para isso.
Desse modo, o novo país é considerado pelo estrangeiro como um lugar
inseguro. Kristeva compara o sentimento que ele tem à orfandade, ao luto materno, e,
por mais que o novo país seja considerado um recomeço – como podemos ver na
narradora de Mar azul ˗, o imigrante sempre se sentirá deslocado por não ser
pertencente àquela cultura e por ser lembrado de sua condição pelos nativos. Algo
sempre o denunciará: seu sotaque, a sua cor ou até mesmo o conhecimento de seu
passado. Essa situação acontece com a narradora que, ao sair de seu apartamento,
encontra o porteiro que lhe mostra uma notícia sobre a sua terra natal:

Depois o dia ainda teria outras surpresas muito mais inquietantes, pois
quando cheguei à portaria, Seu José me esperava com o jornal aberto
sobre a mesa na página das notícias internacionais. Perguntou se era
meu país e eu respondi que sim. Na manchete, a frase traduzida na
outra língua, que me pus mentalmente a retraduzir como se a simples
leitura não me fosse capaz de entendê-la (VIDAL, 2012, p.16).

Assim, o estrangeiro será sempre considerado um forasteiro, um intruso pelos


habitantes da outra cultura. Tal fato exarceba a sua solidão, que também é motivada
pelo fato de a experiência do exílio ser subjetiva, isto é, cada imigrante sente de uma
maneira, não podendo, por isso, ser compartilhada. Diante disso, podemos entender que
os escritos da narradora e de seu pai se tornam fundamentais para eles, pois são
considerados companheiros de escuta, amenizando a dor da solidão provocada pelo
exílio.

249
Apesar de seus aspectos negativos como a solidão, a melancolia e o sentimento
de deslocamento, a experiência de exílio, segundo Said (2003), pode apresentar um lado
positivo, que é o desenvolvimento, no imigrante, de uma visão crítica, a partir da sua
vivência em duas ou mais culturas. O estrangeiro desenvolve um olhar comparativo e o
sua terra natal sempre será utilizada como o ponto de comparação. Isto pode ser
observado nas personagens de Mar azul: tanto a protagonista quanto o pai comparam as
culturas brasileira e argentina, refletindo sobre a língua, os costumes e até mesmo o
comportamento dos nativos, conforme podemos ver no trecho abaixo:

Não me lembrou ninguém conhecido, mas senti familiaridade. Depois


me dei conta de que tinha a ver com uma desfaçatez que durante anos,
desde que cheguei, me remetia à outra cultura, até que terminei
tornando natural uma gentileza que no início me parecia forçada.
Creio que também foi assim para ele. Num dos poucos momentos em
que meu pai fala sobre esse tipo de diferença, escreve: Somos
violentos, frontales y toscos. Pienso en el uso que hacen acá de los
diminutivos (VIDAL, 2012, p.149, grifos da autora).

Vemos, dessa maneira, que a saída da terra natal influenciará para sempre na
vida do estrangeiro. Para ele, a nova cultura é a representação da insegurança, do medo
e da sensação de deslocamento e, somente voltando ao passado e ao país de origem, é
possível sentir-se novamente seguro. No entanto, apesar de toda melancolia e tristeza
que tal experiência traz, o imigrante desenvolve um olhar crítico e comparativo devido à
vivência em mais de uma cultura. Todos esses aspectos abordados por Said e Kristeva
podem ser encontrados na narradora de Mar azul: o seu olhar deslocado permite a
comparação das culturas brasileira e argentina. Isso demonstra que, mesmo estando há
muito tempo no Brasil, a personagem ainda se encontra presa ao tempo pretérito e às
lembranças dele, ratificando o seu entre-lugar, mas é também por meio disso que ela
consegue se conhecer melhor.

Considerações finais
A leitura do romance de Paloma Vidal auxilia na reflexão da identidade na
contemporaneidade: a volta ao passado, por meio das lembranças da adolescência na
Argentina, pela narradora, nos permite perceber que a identidade é uma construção
inacabada, constituída mediante o convívio com o mundo exterior e com as pessoas. A
pouca vivência com o pai, que partiu da terra natal quando ela ainda era uma criança,
influenciou a vida da protagonista e os diários paternos, além de suscitarem as

250
reminiscências, permitiram que houvesse alguma possibilidade de conhecimento do pai
ausente, mesmo após a morte dele. Esse conhecimento mostrou-se relevante para ela,
pois a auxiliou em uma maior compreensão de si, ratificando a afirmativa de Figueiredo
(2016) acerca da identidade: para a teórica, a alteridade é composta também pela
história de família. Assim, vemos que, para a narradora de Mar azul, os escritos
paternos não somente possibilitaram alguma compreensão do pai, através do acesso à
intimidade dele, mas também ajudaram no entendimento dela própria, por meio do
resgaste de alguns fatos familiares que eram, até então, desconhecidos para ela.
Ainda em relação à concepção contemporânea de identidade, pressuposta por
Hall (2011), a narrativa, ao transitar pelo passado da protagonista, faz com que ela volte
à sua adolescência, fase caracterizada por diversas mudanças corporais e identitárias.
Essas mudanças se acentuam porque é também neste período que a personagem sai de
sua cultura de origem rumo ao Brasil, devido à ditadura militar argentina. Ao olhar para
esse momento de sua vida, a narradora transita entre passado e presente, mostrando que
a sua alteridade está em constante construção, mudando de acordo com o que acontece
em sua história individual.
Além disso, o retorno ao tempo pretérito também descortina outra questão: a do
entre-lugar ocupado pelo estrangeiro que, preso ao passado e à cultura de origem,
encontra a segurança necessária em suas reminiscências. O deslocamento para uma
nova cultura faz com que ele se sinta deslocado e essa lhe parece insegura: ele sempre
será um intruso, ele não pertence a ela, ainda que esteja adaptado. Dessa maneira, a
partir de Said (2003), percebemos que o exílio se configura como uma fratura incurável
no indivíduo, modificando, para sempre, a sua vida.
O viver entre culturas, apesar de ter muitos aspectos negativos, permite que o
estrangeiro desenvolva um olhar crítico, por meio da comparação entre os países. A
vivência intercultural faz com que o indivíduo enxergue o mundo com uma visão mais
apurada. Em Mar azul, no entanto, essa visão se aguça mais ainda por causa do olhar
deslocado de uma voz feminina, voz, esta, que foi por muito tempo marginalizada. Com
isso, podemos compreender que o romance de Paloma Vidal consegue refletir sobre a
alteridade na contemporaneidade, a partir de um ponto de vista mais amplo, enxergando
além da centralidade do cânone masculino e, assim, dá voz a duas figuras
marginalizadas na nossa literatura e na nossa sociedade: a mulher e o estrangeiro.

251
Referências
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Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 270-278.

CHIARELLI, Stefania. “Forasteiras - a prosa de Adriana Lisboa e Paloma Vidal”. In:


DAFLON, Claudete; GÁRBERO, Maria Fernanda; DEMETRIO, Matildes (org).
Agentes do contemporâneo. 1a ed. Niterói: EDUFF, 2017.

DALCASTAGNÈ, Regina. “A construção do feminino no romance”. In:


http://gelbcunb.blogspot.com/2015/07/a-construcao-do-feminino-no-romance.htm.
Acesso em 18 de março de 2019.

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CHIARELLI, Stefania e NETO, Godofredo de Oliveira (org). Falando com estranhos:
o estrangeiro e a literatura brasileira. 1a ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da


Silva; Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2011.

KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Tradução Maria Carlota Carvalho
Gomes. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

LEJEUNE, Phillipe. “Um diário todo seu”. In: ______. O pacto autobiográfico.
Tradução Jovita Maria Gerheim Noronha; Maria Inês Coimbra Guedes. 2a ed. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2014.

RESENDE, Beatriz. “Paloma Vidal e o trânsito entre as culturas”. In: ______.


Contemporâneos: expressões da literatura brasileira no século XXI. Rio de Janeiro:
Casa da Palavra: Biblioteca Nacional, 2008.

SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Tradução de Pedro Maia
Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

SANTIAGO, Silviano. “O entre-lugar do discurso latinoamericano”. In: ______. Uma


literatura nos trópicos: ensaios sobre a dependência cultural. 2 edição. Rio de Janeiro:
Rocco, 2000.

SCHWARZ, Roberto. “Nacional por subtração”. In: ______. Que horas são? – Ensaios.
São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.

252
VIDAL, Paloma. Mar azul. Rio de Janeiro: Rocco, 2012.

253
FLANÂNCIAS NO FEMININO: DESLOCAMENTO E CONSTRUÇÃO DA
IDENTIDADE EM QUARENTA DIAS (2014), DE MARIA VALÉRIA REZENDE

Raquel Mariane da Silveira (UFSCar)1

Resumo: O romance Quarenta dias (2014), de Maria Valéria Rezende, é narrado por Alice, uma
professora aposentada que compulsoriamente abandona a cidade de João Pessoa (PB), no seu
estado natal, para viver em Porto Alegre (RS); onde, em função de uma reviravolta familiar, passa
a viver em situação de rua ao longo de quarenta dias. A partir deste trabalho, pretende-se analisar
o exílio e o sentimento de estraneidade (CANCLINI, 2016) experienciados pela narradora que,
como um narrador trapeiro (GAGNEBIN, 2009), utiliza-se de resíduos coletados em suas
perambulações para reconstituir a sua trajetória pela metrópole gaúcha, narrando as fraturas da
urbe e, enquanto sujeito fora do lugar (SAID, 2003), também as suas.
Palavras-chave: Literatura brasileira contemporânea; Espacialidade narrativa; Deslocamento;
Identidade; Gênero.

Introdução

Je voyage pour connaître ma géographie.2

A narrativa de Quarenta dias (2014), de Maria Valéria Rezende, é ambientada em


Porto Alegre (RS), onde Alice, uma professora aposentada, passa a viver após deixar a
cidade de João Pessoa (PB). O deslocamento da protagonista, caracterizado como uma
“migração forçada” (REZENDE, 2014, p.99), é resultado dos caprichos de sua filha,
Aldenora (Norinha), que vive na capital gaúcha, onde estuda e planeja uma futura
gravidez – exigindo, assim, os cuidados da mãe. No entanto, após a chegada de Alice à
cidade gaúcha, Norinha revela o adiamento de seus planos, pois fará um intercâmbio de
seis meses na Europa. Deixada a mercê de uma cidade em que não se reconhece e
instalada em um apartamento requintado que pouco diz a seu respeito, a protagonista parte
em busca de Cícero Araújo, filho de uma conhecida sua da Paraíba, desparecido após
mudar-se para Porto Alegre a fim de trabalhar em uma construtora. Em busca do
paraibano, a narradora-protagonista acaba por viver quarenta dias em situação de rua e,
assim, passa a conviver com a alteridade: pessoas que fazem das ruas, locais de trânsito,
local permanente e de acolhimento precário (RESENDE & DAVID, 2016).

1
Graduada em Letras (UFSCar) e Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura
(PPGLit/UFSCar). Contato: silveira.raquelm@gmail.com.
2
“Eu viajo para conhecer a minha geografia” (tradução minha). Anotação de um louco, recolhida por
Manuel Réja, L’Art chez le fous, Paris, 1907.

254
Todas as impressões acerca da “quarentena” de Alice são registradas com caneta
esferográfica em um caderno brochura com a boneca Barbie na capa, com quem a
protagonista dialoga ao longo do relato: “Pronto, ‘my friend’, viu que promovi você a
‘friend’, Barbie?” (REZENDE, 2014, p.65). A escrita de suas reminiscências ocorre
imediatamente após o retorno ao seu apartamento e, além de utilizar o caderno para
circunscrever as memórias resgatadas de seu trajeto por Porto Alegre, Alice também
utiliza-o para guardar os “retalhos de papel, tickets de compras, guardanapos roubados,
folhetos de publicidade recebidos nas esquinas ou catados no chão da cidade”
(REZENDE, 2014, p.23), materiais coletados na rua e que resultam na inserção de
diversas figuras na obra; muitas delas mostram-se significativas diante da trama
apresentada.

Figura 1

É evidente a conotação irônica apresentada pela Figura 1, por exemplo, uma vez
que a expressão “doce lar” remete ao conforto do espaço doméstico, contrapondo-se
completamente à noção de “sem teto”, vivenciada por Alice ao longo de quarenta dias. A
propaganda contrasta ainda com a completa ausência do sentimento de pertencimento
vivenciada por Alice no apartamento que passa habitar na capital gaúcha, sensação
também experienciada no apartamento de Nora e seu genro, Umberto. Além do conteúdo
semântico apresentado pela figura, é importante ressaltar que o posicionamento de tais
elementos gráficos no romance não é arbitrário, uma vez que muitas destas imagens
dialogam com o relato da paraibana. A referida imagem, por exemplo, é incorporada ao
romance na página que sucede o relato da primeira noite de Alice ao léu.
Santini (2018) denomina o processo de escrita de Alice de “escrita de resíduos”,
uma vez que a “balbúrdia de imagens” (REZENDE, 2014, p.13) trazida da rua pela
personagem, mais tarde acaba por se configurar como um conjunto de detritos “que

255
passam a atuar na organização mnemônica do relato e na composição material da
narrativa” (SANTINI, 2018, p.56). Além das imagens mencionadas, as trinta e quatro
epígrafes que abrem os capítulos ou fragmentos de escrita da obra compõem este conjunto
de resíduos, uma vez que se tratam de excertos extraídos de livros comprados em sebos
ao longo das perambulações de Alice, que marcaram a sua experiência nas ruas.
Deste modo, Alice, enquanto responsável pela voz narrativa do relato, pode ser
entendida através da figura do “narrador trapeiro”3 (GAGNEBIN, 2009) que, como um
catador de sucata, através de resíduos coletados, reconstrói fragmentos do real
relacionados à vivência do pobre na metrópole contemporânea. O fato de a escrita da
narradora organizar-se de modo residual explica a organização não-linear do relato e
reflete a ambiguidade da própria figura de Alice. Embora, no nível extradiegético, a
narradora busque estabelecer uma ordem aos eventos por ela vivenciados às margens
gaúchas, do ponto de vista formal, o seu relato evidencia a fragmentação por meio da qual
a personagem apreendeu sua experiência, no nível intradiegético.
Neste sentido Alice, enquanto personagem e narradora da obra, desdobra-se em
duas: de um lado e no plano intradiegético caracteriza-se como Alice-flâneuse, à qual cabe
a possibilidade de adentrar nas rachaduras e fraturas da urbe, estabelecendo contato com
a alteridade; de outro e na extradiegese, caracteriza-se como Alice-escritora, à qual, por
sua vez, cabe a tarefa de documentar e avaliar as perambulações da primeira. E é a partir
desta dupla faceta apresentada pela narradora-protagonista que se constitui o seu relato,
o qual é materializado por meio da escrita.

A experiência exílica
O modo como constrói-se a espacialidade no romance deve-se, em grande medida,
ao deslocamento forçado ao qual Alice é submetida, podendo ser entendido como o
principal desencadeador da peculiar percepção que guiará o olhar da narradora em relação
a cidade que passa a habitar. O deslocamento realizado pela paraibana é o resultado de
um “embate de forças conflitantes entre mãe e filha” (SANT’ANA, 2017, p.2212) que, à
luz de Stuart Hall (2003), configura-se como uma relação de poder; afinal, estando

3
Conforme estabelece Santini (2018), a figura do narrador trapeiro ou catador de sucata construída por
Jeanne Marie Gagnebin (2009) é discutida a partir dos ensaios “O narrador” e “Experiência e pobreza”, de
Walter Benjamin (1994). (SANTINI, 2018, p.57)

256
aposentada e vivendo uma vida confortável em João Pessoa, a única razão que leva a ex-
professora de francês a deslocar-se geograficamente é o capricho de sua única filha.
A paraibana é submetida à uma série de imposições, que despontam desde a
abertura do romance, as quais colocam em xeque o seu estilo de vida e modo de se
inscrever no mundo: “Sei, agora, por que cismei de trazer na bagagem este caderno velho
vazio, trezentas folhas amareladas, com essa Barbie na capa de moldura cor-de-rosa
(REZENDE, 2014, p.7)”, o qual era destinado ao “monte de velharias, quase lixo”
(REZENDE, 2014, p.7) a serem vendidas na “garage sale” organizada por sua prima
Elizete; que culminou na dissolução do antigo lar da paraibana.
A imagem do lar de Alice em ruínas, na cidade de João Pessoa, pode ser
compreendida à luz do conceito de cronotopo, postulado por Mikhail Bakhtin (1998),
uma vez que através da construção de tal imagem tem-se a “interligação fundamental das
relações temporais e espaciais, artisticamente assimiladas em literatura” (BAKHTIN,
1998, p.211). Afinal, o esfacelamento do ambiente doméstico que outrora pertencia à
protagonista, não sinaliza puramente a destruição de um espaço físico, mas, em um
sentido mais amplo, aponta para a deterioração de um tempo que forçosamente teve de
ser abandonado.
Tendo em vista a pressão acometida a paraibana nos meses que precederam o seu
deslocamento, a qual foi orquestrada pela filha, mas encorajada também por sua prima,
entende-se que se desde João Pessoa Alice sentia-se infeliz diante das circunstâncias
impostas, em Porto Alegre seu descontentamento intensifica-se. Tendo abdicado de seus
“velhos” pertences a fim de mergulhar na sua “nova” vida, o apartamento montado por
Nora na capital do Rio Grande do Sul passa a materializar o desajustamento de Alice:

Entrei neste apartamento – ainda não consigo dizer “em casa”, tento, mas não
há jeito – agora há pouco, exausta, carregando um furdunço no peito, sem saber
onde despejar essa balbúrdia de imagens, impressões, sentimentos acumulados
por quarenta dias, dei com o olho na Barbie e soube logo em quem vou
descarregar tudo isso. (REZENDE, 2014, p.13, grifo meu)

É compreensível, portanto, como afirma Santini (2018) à luz do filósofo Gaston


Bachelard, que Alice não consiga chamar o imóvel de casa, “o que significa dizer que ele
não representa um lar que abriga e acolhe ou cria ‘ilusões de estabilidade’” (SANTINI,
2018, p.38). O sentimento de desprezo da personagem em relação ao novo apartamento é
evidenciado na descrição espacial por ela tecida, através de seu relato, sobre momento

257
em que adentra o imóvel pela primeira vez. A abundante adjetivação presente na
descrição realizada por Alice estabelece a oposição entre os elementos que lhes são
impostos, impessoais e alheios, e os seus poucos pertences que, deslocados e
encabulados, contrastam com o novo cenário. A contradição demarca o vazio instaurado
pelo compulsório abandono de seus antigos pertences que, de modo simbólico, sinalizam
o abandono de outro espaço e de outro tempo:

Fui tangida por entre poltronas e sofás brancos atulhados de terríveis almofada
de todos os tons entre o rosa-bebê e o roxo-quaresma, grandes cubos,
paralelepípedos, prateleiras, tudo branco ou preto, por cima de um tapete
branco e felpudo. Custei a reconhecer, numa prateleira preta, parte de meus
velhos livros deslocados e encabulados naquele cenário emergente de novela
de televisão, entre coisas impessoais, aqui e ali a mancha cor de jerimum ou
vermelho-sangue de algum objeto igualmente geométrico e sem sentido, sem
história nem nexo, coisas espalhadas a esmo ou segundo uma intenção
inteiramente alheia e incompreensível pra mim. Será que minha filha contratou
um decorador modernoso, daqueles que as próprias lojas de móveis
“planejados” oferecem? (REZENDE, 2014, p.40-41, grifos nossos)

É importante salientar que “diferentes tempos, espacialidades e experiências estão


alinhavadas na estruturação da voz e da focalização que, no caso de Quarenta dias, soma-
se à autoconsciência da escrita” (SANTINI, 2018, p.38-39). Considerando a estraneidade4
vivida pela personagem, conjugada pelo seu desajuste e perda da identidade em que antes
se reconhecia (CANCLINI, 2016, p.62), cujo estopim é o seu deslocamento espacial,
compreendemos que “outros espaços” e outros tempos perpassam toda a narrativa, afinal
“a demarcação de um ‘aqui’ que situa o lugar de fala de Alice no ‘Sul’ projeta também
um lá que, nesse caso, é o Nordeste do Brasil” (SANTINI, 2018, p.38).
O “lá” desdobra-se em dois diferentes espaços e aponta para duas migrações
internas vivenciadas por Alice. A primeira se refere ao descolamento entre João Pessoa e
Porto Alegre realizado uma semana antes do início de sua quarentena, caracterizando-se
como o mote da narrativa de Rezende e expresso diretamente através do relato da
paraibana, através do qual João Pessoa é configurado como o “lá”, um outro espaço que
se contrapõe ao “aqui” da ação narrativa e, nesse caso, ao Sul. O munício é articulado à

4
O termo estraneidade (do latim extraneus) remete à situação jurídica de pessoa que se encontra ou reside
em país estrangeiro, onde ele não é nascida e não goza de cidadania. A incorporação do termo neste trabalho
tem por base a discussão realizada por Nestor Canclini no texto O mundo inteiro como um lugar estranho,
em que o autor se debruça sobre as estraneidades geradas por deslocamentos contemporâneos.

258
narrativa em conjunto com a ilustração de todo um contexto temporal que é
compulsoriamente abandonado pela personagem, por causa do seu deslocamento.
A segunda migração descrita por Alice remete às origens da personagem e ao seu
passado mais longínquo, tendo deixado o distrito de Boi Velho5 e migrado para João
Pessoa a fim de constituir uma vida ao lado do seu parceiro, Aldenor. Trata-se do tempo
em que foi contrariada pela família por conta de sua relação amorosa com o “galego”, o
que é sinalizado através da fala de Tia Brites, em tempos de Boi Velho, reportada para o
diário: “Vê lá se um galalau bonito desses, louro, alto, de olho azul, filho de comerciante
vai nada casar com você, matuta, pescoço curto, baixinha que mal chega no ombro dele!,
perto dele você é quase preta, e ele vai achar outra bem mais conforme, lá na
Universidade.” (REZENDE, 2014, p.19).
Para além de demarcar um outro espaço, a passagem oferece também a descrição
física de Alice, construída em contraposição à figura de Aldernor. A discrepância
estabelecida entre o aspecto físico da paraibana e o de sua filha atua na manutenção deste
contraste, afinal, desde menina já se notava que era “Igualzinha ao pai, vejam só. Só pode
mesmo se chamar Aldenora! Galeguinha, alvinha feito ele, de olho azul (...)” (REZENDE,
2014, p.19). No entanto, é com a chegada de Alice a capital do Rio Grande do Sul que o
caráter contrastante de sua imagem física se intensifica.
A configuração de Alice como uma migrante nordestina no Sul resulta em uma
perspectiva e um modo de apreensão específicos em relação ao novo espaço, os quais
englobam, ainda, o contato com outras identidades, seja ele estabelecido com sulinos ou
nordestinos. Ainda que a narradora da obra efetue um movimento interno, uma vez que
este é tomado como um deslocamento forçado, podemos defini-lo como o desencadeador
do sentimento de perda e dos traumas da paraibana, os quais mostram-se semelhantes
àqueles causados pelo deslocamento forçado de indivíduos para territórios estrangeiros
(SANT’ANA, 2017, p.2205); o que guiará seus passos na nova metrópole. Neste sentido,
faz-se necessário sublinhar que, uma vez inserida em uma experiência exílica, Alice
caracteriza-se como um sujeito fora do lugar, afinal o exílio configura-se como “uma

5
Segundo dados do IBGE, o distrito de Boi Velho foi criado pela Lei Estadual nº803, de 16/10/1952, e
passou a se chamar Ouro Velho por meio da Lei Estadual nº1147, de 16/02/1955, recebendo a categoria de
município em 1962. No último censo, Ouro Velho contava com território de 162 quilômetros quadrados e
população de 2928 habitantes. (Cf. https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/paraiba/ourovelho.pdf)
(SANTINI, 2018, p.43)

259
fatura incurável entre um ser humano e um lugar natal, entre o eu e seu verdadeiro lar:
sua tristeza essencial jamais poderá ser superada” (SAID, 2003, p.46).

A queda de Alice
É importante salientar que inúmeras associações ao clássico Alice no país das
maravilhas (1865) de Lewis Carroll – elemento intertextual presente desde o nome da
personagem – despontam na narrativa, as quais ilustram as vivências de Alice: “cenas e
episódios tipo país das maravilhas cruéis” (RESENDE & DAVID, 2014, p.157-8). Por
esse motivo é constante sua referência a imagem de buracos, que remetem ao clássico,
mas também ao fato de a narradora abdicar de sua realidade para viver a realidade de
tantos outros sujeitos que vivem na “geena”6 (REZENDE, 2014, p.18). E a cada referência
que a narradora faz ao profundo buraco que configura a capital gaúcha, a personagem se
mostra cada vez mais perdida nas profundezas deste abismo e, do mesmo modo, a própria
narrativa que esta apresenta torna-se narrativa em abismo, configurando a mise en abyme,
ou a matadiegese de função temática:

Imagine, Barbie, até um suposto enfeite, de louça, na forma de um peão de


xadrez, branco, enorme, mais de trinta centímetros de altura, estava lá,
servindo de apoio pra os livros. Cheguei a rir por dentro da ironia, lembrando-
me das aventuras de minha xará, imaginando se aquilo era uma mensagem pra
mim. Quem seria a Rainha desse jogo em que eu estava metida? (REZENDE,
2014, p.41)

O fragmento em que Alice narrativiza o anúncio de Nora acerca do intercâmbio que


faria é antecedido por uma epígrafe extraída do clássico de Carroll e remete à queda de
Alice: “... tão de repente que Alice nem teve tempo de tentar parar antes de despencar no
que parecia ser um poço muito fundo.” (CARROLL apud REZENDE, 2014, p.73); o que
conota a “queda” da personagem de Rezende. O fato de o episódio ser narrativizado cerca
de setenta páginas após o início do relato, configuram-no como um trauma, dada as
dificuldades de Alice, enquanto indivíduo traumatizado, em narrar o evento traumático

6
São inúmeras as referências a “geena” (inferno) no romance de Maria Valéria Rezende que, ao lado de
outras simbologias presentes na narrativa, podem ser entendidas como uma influência de sua carreira
religiosa. O próprio título da obra é um exemplo disto: “O tempo de duração – quarenta dias – que dá título
ao romance sugere o tempo de purgação da personagem. O número 40 simboliza a reclusão, a provação ou
a preparação. Na Bíblia, esse número (associado a dias, meses ou anos) aparece nas intervenções divinas
na vida de várias personagens como Noé, Moisés e Jesus. Na simbologia, a quarentena sempre aparece com
o significado de passagem, que leva à mudança do sujeito envolvido (CHEVALIER; GHEERBRANT,
2009).” (RESENDE & DAVID, 2016, p.14)

260
vivido; e mostra-se emblemático diante da extensão da narrativa, uma vez que altera a
ordem natural dos fatos.
Tal episódio poderia, por si só, caracterizar-se como o estopim da quarentena que
mais tarde é deflagrada. No entanto, soma-se a ele um telefonema recebido por Alice, no
qual a sua prima Elizete relata o desaparecimento de Cícero Araújo, que há dois anos
havia migrado para Porto Alegre a fim de trabalhar na construção civil e que há quase um
ano não entrava em contato com a sua mãe, Socorro. Munida somente dos nomes do rapaz
e o do bairro em que residia na capital gaúcha – Vila Maria Degolada –, Alice incumbe-
se da tarefa de encontrar Cícero, o seu Coelho Branco:

Um rumo vago. Que eu seguiria se quisesse. Talvez tenha sido o nome estranho
do lugar que me despertou a letargia. Talvez tenha sido, sem que eu percebesse,
a dor da outra mãe tomando o lugar da minha, um alívio esquisito, uma
distração, e eu quis, sim, sair por aí, à toa, por ruas que não conheço atrás do
rastro borrado de alguém que nunca vi. (REZENDE, 2014, p.92)

Atrás do rastro borrado de Cícero, Alice inicia o seu deslocamento, geográfico e


existencial, que a leva a viver como uma andarilha em meio às ruas da capital gaúcha ao
longo de quarenta dias, em constante contato com a alteridade. É a partir do mergulho da
personagem em uma realidade que não integra, que ela tem acesso ao dado ilegível desta
metrópole, ao passo que tem contato com a massa de migrantes nordestinos que ocupam
as áreas marginalizadas de Porto Alegre que, conforme estabelece Santini (2018): “são
responsáveis por parte da organização do espaço urbano – já que trabalham construindo
prédios – e, também relacionam-se com a cidade de um modo específico, deixando
marcas ou rastros que guiarão os passos de Alice” (SANTINI, 2018, p.26).
É através de sua quarentena, “estratégia de resistência ao processo de dominação a
que se viu submetida e frente a dor de ter tido sua vida recortada” (SANT’ANA, 2017,
p.2212-2213), que a paraibana constrói algum sentido para a sua nova realidade: o que se
concretiza no encontro com outros nordestinos localizados na capital gaúcha e na busca
por Cícero Araújo. Neste sentido, o trajeto percorrido por Alice em meio a um novo
espaço geográfico, social e cultural mostra-se paradoxal, uma vez que, ao mesmo tempo
que se perde durante a sua quarentena, é neste mesmo período temporal em que ela se
encontra. A ambivalência de tal experiência reflete o caráter igualmente paradoxal da
própria personagem, que vivencia duas configurações distintas ao longo de sua trajetória
exílica. Neste sentido, para além de demarcar o dilúculo de sua quarentena, o que

261
denominamos como a “queda de Alice” configura uma ruptura que demarca a linha
divisória estabelecida entre as condições de sujeito e de outro, ambas vivenciadas pela
protagonista.
Além disso, é imprescindível demarcar a configuração de Alice como uma mulher
e que, a partir de sua quarentena, constrói-se a representação do deslocamento de um
corpo feminino pelo espaço. Neste sentido, tal trajetória é complexificada, uma vez que
é marcada pelas problemáticas subjacentes à questão de gênero. Tomando por base a
expressão literária referente aos séculos XIX e XX em que o ato da flanância designava
uma atividade masculina, imanente à figura do flâneur., constata-se que o flâneur como
um sujeito feminino e, neste caso, a flâneuse, foi ignorada pela tradição (WOLFF, 1985),
uma vez que o espaço urbano era destinado ao uso dos homens, enquanto às mulheres era
incumbido o dever de cuidar de seus lares e famílias (MONNET, 2013). Conclui-se,
portanto, que a partir de Quarenta dias, Rezende afirma a possibilidade do deslocamento
de corpos femininos, o que é demarcado pela experiência urbana vivenciada por Alice,
atestada rebeldia em relação ao papel de mãe e avó que lhe foi pré-determinado.

As flanâncias: últimas considerações


Com exceção do relato do primeiro e segundo dia da quarentena vivida por Alice,
que obedecem a uma cronologia e demarcações geográficas muito bem definidas – afinal,
nestes primeiros dias, a paraibana vivenciava um processo de apropriação do sistema
topográfico (CERTEAU, 1998, p.) e, por conta disso, “tinha de estar alerta e atenta a
tudo” (REZENDE, 2014, p.102) –, a narração do trajeto por ela percorrido é conjugada
por fragmentos de memórias. Alice tem consciência do embaralhamento do qual o seu
relato é acometido e afirma: “Já não sou capaz de reproduzir assim, detalhadamente, em
sequência quase exata, os caminhos que percorri depois que me soltei de uma vez, à deriva
de corpo e alma.” (REZENDE, 2014, p.102). Tal embaralhamento pode ser explicado
pelo fato de a narrativa ser tecida por meio da memória e a partir da junção de resíduos:

Os relatos de lugares são bricolagens. São feitos com resíduos ou detritos de


mundo. Mesmo que a forma literária e o esquema actancial das “superstições”
respondam a modelos estáveis, cujas estruturas e combinações de uns trinta
anos para cá foram bem estudadas, o material (todo o detalhe retórico da
“manifestação”) é-lhe fornecido pelos restos de denominações, taxonomias, de
predicados heroicos ou cômicos etc., ou seja, por fragmentos de lugares
semânticos dispersos. (CERTEAU, 1998, p.188)

262
A bricolagem realizada pela narradora por meio de sua “escrita de resíduos”, a partir
da qual apodera-se de “detritos de mundo” a fim de tecer o relato de sua experiência
urbana na cidade de Porto Alegre obedece a duas lógicas: a primeira diz respeito ao exílio
de Alice e à sua configuração como migrante nordestina, dado reforçado pelo seu
encontro com inúmeros nordestinos; a segunda, diz respeito à sua configuração como
moradora de rua e, portanto, como outro, que se constitui através de seu contato com a
alteridade em meio à metrópole. Neste sentido, é possível afirmar que os fragmentos de
memória acerca da quarentena vivenciada pela protagonista são costurados ao seu relato
por meio destes dois fios condutores, que dizem respeito à construção de sua identidade.
Em relação à experiência exílica vivenciada por Alice, posto que esta configura-se
como uma migrante nordestina no Sul, pode-se afirmar que tal dado opera na quarentena
da protagonista a partir da relação estabelecida entre a paraibana e toda a sorte de
migrantes nordestinos no Sul: alagoanos, baianos, cearenses, pernambucanos, entre
outros. Nesta chave, destaca-se a ida de Alice à Vila Quede, episódio narrado nas ultimas
páginas do seu relato e no qual a questão identitária se apresenta de forma agudizada. Na
referida região, “em que um campo de futebol [Campo da Tuca] funcionava como ponto
de encontro de muitos imigrantes” (SANTINI, 2018, p.66), a protagonista trava relação
com inúmeros nordestinos, a fim de encontrar Cícero Araújo. Tratam-se de sujeitos com
histórias semelhantes à da paraibana, que vivem em meio à fratura da cidade, uma vez
que compõem a parcela anônima do espaço urbano, a exceção ou a rasura diante da
organização estratégica do espaço urbano. Neste ponto, é importante salientar que os
indivíduos que habitam regiões periféricas de Porto Alegre pouco se diferem daqueles
que fazem das ruas – em essência um espaço de trânsito – o seu lar. Em ambos os casos,
tratam-se de sujeitos marcados pela invisibilidade, configurando-se como o dado ilegível
de um espaço regido pela lógica excludente.
Deste modo, o encontro de Alice e Lola e, mais tarde, o seu encontro com o
argentino Arturo, “que vivia sob os viadutos, fugindo da perseguição política na
Argentina” (SANTINI, 2018, p.97), são emblemáticos. É através de tais encontros,
somados ao contato com os “brasileirinhos”7 que habitam as vielas gaúchas, que a

7
Após ser chamada de “brasileirinha” pelo porteiro do prédio do Sul em que passa a viver, Alice lança mão
de tal expressão em seu relato para designar a si e a outros migrantes nordestinos que encontra em Porto
Alegre.

263
protagonista obtém a dimensão identitária sobre si, ao passo que, tendo em vista as
condições de vida que lhes são reservadas durante os seus quarenta dias ao léu, além de
migrante e moradora de rua, Alice é resíduo, como aqueles que encontra pelo caminho e
posteriormente passam a povoar o seu relato. À luz de Doreen Massey (2013), que
concebe uma articulação entre espaço e identidade, considerando a dimensão social de
que um determinado espaço é imbuído, e tendo em vista a construção da identidade de
Alice através de sua quarentena, constata-se que é a partir de uma mudança de
perspectiva, quando passa enxergar o mundo de “baixo pra cima”, que a nordestina é
capaz de ler o texto urbano escrito pela capital do Rio Grande do Sul.

Referências

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Paulo: Martins Fontes, 1993.

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética (a teoria do romance). 4.ed.


São Paulo: Editora da UNESP, 1998.

CANCLINI, Néstor García. O mundo inteiro como lugar estranho. In: _____. O mundo
inteiro como lugar estranho. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2016.
p.55-72.

CARROLL, Lewis. Alice no país das maravilhas. 2.ed. São Paulo: Editora Sol, s/a.

CERTEAU, Michel de. Práticas de espaço. In: _____. A invenção do cotidiano: artes de
fazer. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1998. p.167-217.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória, história, testemunho. In: _____. Lembrar


esquecer escrever. 2.ed. São Paulo: Ed.34, 2009. p.49-57.

GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. Lisboa: Vega Universidade, 1979.

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diáspora. Identidades e Mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, p.
25-48.

MASSEY, Doreen. Uma política relacional do espaço. In: _____. Pelo espaço: uma nova
política da espacialidade. 4.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013. p.211-274.

MONNET, Nadja. Flanâncias femininas e etnografia. Revista Dobra, n. 11, p. 218-234.


Salvador: Edufba, 2013. Disponível em: http://www.redobra.ufba.br/?page_id=109.
Acesso em: 27/11/2018.

RESENDE, Beatriz V. de; DAVID, Nismária A. A cidade e a escrita do corpo em


Quarenta dias. In: Vitória, n.30, 2016/2.

264
REZENDE, Maria Valéria. Quarenta dias. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.

SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio. In: _____. Reflexões sobre o exílio e outros
ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p.46-60.

SANT’ANA, Renata Cristina. Os sem-lar: uma leitura do sujeito deslocado na obra


Quarenta Dias, de Maria Valéria Rezende. XV Congresso Internacional Abralic, 2017.

SANTINI, Juliana. Sobre palavras e restos: narração, deslocamento e a representação


do nordestino em dois romances de Maria Valéria Rezende. 2018. 110 f. Tese (Livre‐
docência) ‐ Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, Universidade Estadual
Paulista, Araraquara, 2018.

WOLFF, Janet. The Invisible Flaneuse: Women and the Literature of Modernity. Revista
Theory, Culture & Society, n.2, p. 37-46, 1985.

265
A FIGURA FEMININA NA ESCRITA DE JANE AUSTEN E JÚLIA ALMEIDA
Rebecca Falcão Serrão (UFPA)1

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar comparativamente os romances Razão e
Sensibilidade (1811), escrito por Jane Austen, e Memórias de Marta (1888), escrito por Julia
Lopes de Almeida, com foco na construção compositiva de suas protagonistas: Marianne
Dashwood e Marta. A partir dos apontamentos de Vasconcelos (1995) e Zardini (2012), discute-
se como tema central das obras acima mencionadas a representação ficcional dessas figuras
femininas. Para tanto, se torna de grande relevância fazer uma breve contextualização da vida das
autoras e o período em que viveram, com a finalidade de evidenciar como esse fato pode ter
contribuído na escolha da temática por elas abordadas em seus livros.
Palavras-chaves: Século XIX, romance oitocentista, figuras femininas.

A Revolução Industrial foi a transição da manufatura para o processo de


mecanização das atividades, desenvolvendo dessa forma, o capitalismo. No século XIX,
houve a era de ouro na Europa; os burgueses estavam inseridos no centro da sociedade
durante aquele período. “De acordo com Hobsbawn (1979), esse processo econômico
mudou o mundo tendo consequências também no Brasil, que passou por esse processo
posteriormente” (SERRÃO, 2018, p. 10).

Nesse período, houve o ápice do Romantismo, movimento literário caracterizado


pela ênfase na emoção e no individualismo. Esse movimento foi em parte considerado
como uma reação à Revolução Industrial. Como afirma Sandra Nitrini (NITRINI 1997,
p. 140),

Com o romantismo, a ideia de originalidade foi adquirindo um caráter


cada vez mais individualista. Nos séculos XIX e XX, verifica-se a
tendência em se ver na “marca própria” o reflexo não somente do
esforço criador pessoal do poeta, mas de toda a sua personalidade
individual. Quanto mais for ele mesmo, tanto mais será original. Na
busca incessante de sua individualidade, ele se oporá à sociedade de seu
país e de sua época. Como sabemos, isso não passa de uma ilusão
romântica, pois o escritor do século XIX ou XX sofre as influências do
meio e do tempo tanto quanto o do século XVI ou XVII. Mas a grande
diferença e também a causa de muita confusão é que, no romantismo,
valoriza-se extremamente o termo “original”, certamente por causa do
cultivo do indivíduo.

1
Graduada em Língua inglesa (UFPA); Mestranda em Estudos literários (UFPA). Contato:
refalcao7@gmail.com

266
Na Inglaterra, a autora Jane Austen apareceu nesse cenário sendo considerada
como uma mulher à frente de seu tempo e isto está diretamente relacionado com a maneira
como a autora escrevia seus livros. Para (SERRÃO, 2018, p. 10), “ela criticava as classes
sociais inglesas dos séculos XVIII e XIX, retratando como mecanismos de padrão social
influenciavam a realidade das pessoas”.

No Brasil, se destaca a escritora Julia Lopes de Almeida que também foi


considerada uma mulher revolucionária e isto está diretamente relacionado com a
identificação do padrão de dominação masculino no século XIX evidenciado por ela em
sua obra.

Sendo o objetivo principal desta pesquisa comparar a temática na escrita de duas


autoras que escreveram no século XIX, Jane Austen e Júlia Lopes de Almeida,
respectivamente, será realizada uma contextualização da vida das autoras. E o período em
que viveram será apresentado, o foco, portanto estará na análise da vida das escritoras e
como esse fato pode ter influenciado a escrita de suas obras. Dessa forma, pretendemos
colaborar para uma visão crítica da figura feminina, a partir dos elementos por elas
utilizados. Então, a representação da figura feminina do século XIX será discutida,
incluindo comportamento e atitudes das mulheres diante da sociedade daquele período.
Por fim, pretendemos atingir o foco dessa pesquisa estabelecendo a semelhança nos temas
utilizados pelas autoras, discutindo alguns elementos acima mencionados.

Nesse estudo, utilizamos a pesquisa bibliográfica como estratégia metodológica


para possibilitar um estudo comparativo entre as duas escritoras, possibilitando assim o
diálogo historiográfico da pesquisa (BARROS, 2009). Depois de finalizar a análise
comparativa dessas duas obras, pretendemos contribuir com os diversos trabalhos sobre
a literatura do século XVIII e XIX, especialmente aqueles que possuem relação com a
representação feminina e o padrão social evidenciado naquele período, possibilitando
assim a valorização aos trabalhos das escritoras Jane Austen e Júlia Lopes de Almeida.

A partir do que foi exposto, é possível perceber que as autoras, apesar de se


distanciarem em nacionalidade e período, se aproximam em seus projetos literários nos
quais defenderam uma sociedade mais justa e igualitária para as mulheres. Em uma época
na qual o direito à expressão para o gênero feminino era limitado, as autoras utilizavam-

267
se de uma linguagem moderada para que seus trabalhos fossem publicados e
consequentemente lidos. Dessa forma, seus trabalhos foram fundamentais para a
construção do pensamento da igualdade entre gêneros.

Nitrini (1997), em seu livro Literatura Comparada, aborda conceitos referentes a


características e autores diferentes. Ela discute acerca de uma das características da
originalidade, a qual está relacionada à submissão em relação à época e ao lugar onde os
escritores viveram. De acordo com Nitrini, o conceito de influência para Aldridge
ajudaria a expor por quais razões ou motivos um escritor manifesta pensamentos ou
sentimentos de uma maneira determinada. Nesse caso, as duas autoras em foco, Jane
Austen e Júlia Lopes de Almeida, expressam pensamentos relacionados a não aceitação
aos padrões sociais nos quais viveram. Nitrini (1997 apud ALDRIDGE, 1963). “A
literatura comparada é um ramo da história literária: é o estudo das relações espirituais
entre as nações” Carvalhal (2006 apud CARRÉ, 1956).

Não existe comprovação de que Julia Lopes de Almeida tenha lido as obras de
Jane Austen, o que se pode afirmar é que as ideias delas caminharam lado a lado, mesmo
estando tão distantes. Nitrini complementa relatando a importância do valor sentimental
nessa relação:

O problema da influência, para Valéry, reduz-se ao estudo de uma


misteriosa afinidade espiritual entre dois espíritos ou temperamentos. O
essencial desta relação é o caráter emocional. Ele próprio fazia questão
de sublinhar que este misterioso processo de influência não se limita a
simples modificações intelectuais. De modo que, para ele, o estudo de
influências é a pesquisa de semelhanças escondidas, de parentescos
secretos entre duas visões de mundo (NITRINI, 1997, p. 10).

De acordo com Nolasco (2016):


A literatura comparada é a arte metódica, pela busca de ligações de analogia,
de parentesco e de influência, de aproximar a literatura dos outros domínios da
expressão ou do conhecimento, ou então os fatos e os textos literários entre
eles, distantes ou não no tempo e no espaço, contanto que eles pertençam a
várias línguas ou várias culturas participando de uma mesma tradição, a fim de
melhor descrevê-los, compreendê-los e apreciá-los (NOLASCO apud PERRONE-
MOISÉS, 1990).

A partir do que foi mencionado, é de relevância que as obras dessas autoras sejam
revisitadas, tendo em vista que elas foram marcos no aspecto relacionado à luta de direitos
das mulheres. Revelando assim, a influência que seus trabalhados foram capazes de

268
alcançar e o quanto suas obras puderam revelar sobre os padrões sociais nos contextos
em que elas viveram. E principalmente a importância de vivenciar os direitos que por elas
foram requeridos antes, hoje foram alcançados.

As escritoras Jane Austen e Júlia Lopes de Almeida

Na Inglaterra, a autora Jane Austen apareceu nesse cenário sendo considerada


como uma mulher à frente de seu tempo e isto está diretamente relacionado com a maneira
como a autora escrevia seus livros. Ela criticava as classes sociais inglesas dos séculos
XVIII e XIX, retratando como mecanismos de padrão social influenciavam a realidade
das pessoas (SERRÃO, 2018). Dessa forma, ironia refinada e crítica são elementos
presentes em suas obras, pois, naquela época, já que os poderes sociais e políticos
destinados às mulheres eram ausentes, a única ferramenta que a autora possuía na batalha
por influência era sua voz e persuasão. (DINKLER, 2004).

Jane Austen, em suas obras, criticou a maneira como muitas mulheres eram
tratadas, dando voz a elas em uma sociedade extremamente patriarcal. A escritora deu
poder a suas personagens femininas, utilizando-se de ironia implícita para estimular o
desenvolvimento do pensamento crítico (SERRÃO, 2018).

A autora inglesa nasceu em 16 de dezembro de 1775 em Steventon, onde morou


com os pais e irmãos. Sabemos que Jane Austen viveu de forma similar às heroínas por
ela descritas; enquanto seus irmãos estudavam matemática, história, entre outros tópicos,
Austen e sua irmã eram limitadas a aprender habilidades domésticas, consideradas
essenciais para esposas. Talvez esta seja uma das razões de a autora criticar a sociedade
inglesa e os padrões de convenção da época, mostrando a busca da mulher pelo casamento
perfeito como única forma de ascender socialmente (SERRÃO, 2018). Para Dinkler
(2004), a autora utiliza ironia por meio do equilíbrio entre o silêncio e o discurso. De
acordo com Zardini (2012), a autora teve educação limitada, entretanto, ela lia bastante
em casa e aprendeu muito na biblioteca de seu pai.

A presença da literatura inglesa, mais especificamente do romance, tem sido


objeto de estudos recentes. Sandra Vasconcelos aparece nesse contexto evidenciando a
recorrência e importância do romance. Em seus trabalhos, afirma que a ascensão desse
gênero na Europa ocorreu nos séculos XVIII e XIX e foi se expandindo, sendo que no

269
Brasil destacou-se sobretudo no século XIX. Sabe-se também que desde esse período a
presença de escritos francesas era bastante relevante no Brasil e esse fator foi decisivo na
mediação de produtos da cultura inglesa, sendo o Rio de Janeiro seu mercado principal.

Para estudiosos da História do Livro e da Leitura, não há como negar a vasta


difusão da leitura de romances no período mencionado, que foi, portanto, tendência nos
países europeus e também no Brasil.

Se a ampla difusão da leitura de romances no final do século XVIII e início do


século XIX é amplamente reconhecida nos países europeus não se sabia, até
há pouco tempo que, também no Brasil fosse forte o interesse pela prosa de
ficção em época tão recuada. (ABREU, VASCONCELOS, VILLALTA,
SCHANPOCHIK, 2005, p.17).

Seguindo nessa linha de pensamento, Pereira (2005, p. 50), relata que com a vinda
da família real para o Brasil em 1808 a circulação de romances aqui se intensificou. Ela
revela também a influência sofrida no Brasil, a partir de escritores ingleses:

Vários escritores ingleses com seus romances circularam pelas nossas


bibliotecas e gabinete de leitura nos séculos XVIII e XIX despertando no
público leitor brasileiro o interesse pela leitura dessa narrativa. Além do
público leitor, nossos ficcionistas brasileiros também foram leitores desse novo
gênero. Podemos observar que em alguns trechos de seus romances que o
escritor lança mão da presença de personagens leitores para divulgar a leitura
dessas obras inglesas, revelando assim, a significativa influência desse gênero
na formação literária dos escritores brasileiros do século XIX.

Portanto, é possível perceber que alguns países, mais especificamente a Inglaterra,


deixou um valioso legado, em se tratando de romancistas mulheres no século XIX como
Virginia Woolf (1882-1941), Mary Shelley (1797-1851), as irmãs Bronte - Charllote
(1816-1855), Emily (1818-1848) e Anne (1820-1849) - entre outras. No Brasil, a presença
de romancistas mulheres no século XIX é bastante tímida se compararmos à Inglaterra,
tendo se tornado mais ampla no século posterior com nomes como Albertina Bertha
(1880-1953), Narcisa Amália (1856-1924) e Julia Lopes de Almeida (1862-1934). Dentre
elas, destaca-se a escritora Julia Lopes de Almeida, que foi considerada a escritora mulher
mais importante do Brasil e apontada como a maior romancista da época posterior a
Machado de Assis (LUCA, 1999). Nesse contexto, é pertinente estudar as obras dessas
duas grandes escritoras, Jane Austen na Inglaterra e Julia Lopes de Almeida no Brasil,
que possuem semelhanças em seus trabalhos.

270
A escritora Júlia Lopes de Almeida se destacou como romancista no Brasil nos
séculos XIX e XX. Suas obras possuem maior visibilidade na atualidade, uma vez que no
século XIX os escritores de romance do sexo masculino ficavam mais em evidência. Os
recursos estilísticos utilizados pela autora que abordava temáticas do universo feminino,
muitas vezes contrárias ao casamento, podem ser tomados como um elemento bastante
inovador no contexto em que foram escritas e publicadas suas obras.

Júlia Lopes de Almeida nasceu no dia 24 se setembro de 1862 no Rio de Janeiro.


Sobre sua carreira, sabe-se que começou a trabalhar aos 19 anos na Gazeta de Campinas,
em uma época na qual a participação das mulheres no âmbito intelectual era bem rara.
Assim iniciou, e criou diversos outros trabalhos, o que possibilitou que a escritora fosse
reconhecida fora do Brasil. A autora defendia a educação feminina, o divórcio, entre
outros temas, em suas obras. Para SILVA (2014, apud BATISTA, 2012) o que se esperava
ao ler suas obras era identificar o conformismo diante da sociedade e do padrão de
dominação masculino, entretanto, ela defendia os direitos das mulheres brasileiras à
formação educacional. É possível perceber, analisando vida e obra da autora, a temática
feminina no interior dos limites sociais estabelecidos naquela época. Júlia Lopes de
Almeida utilizava intervenções pouco agressivas em seus livros, garantindo assim que
eles fossem lidos por um grande público.

A figura feminina no século XIX e sensível mudança de padrão

De acordo com Shteir (1986), autores dos séculos XIX e XX proporcionaram


elementos substanciais relacionados à vida das mulheres na história e também na
literatura. A principal função da mulher era cuidar da casa e dos filhos, portanto elas
deveriam ser mulheres do lar. Para Hughes (2014), o fato de o gênero feminino possuir
grande influência em casa, foi utilizado como argumento para não lhes dar o direito ao
voto.

De acordo com Serrão (2018), o papel da mulher limitava-se à esfera domiciliar,


portanto, a mulher deveria ser a cuidadora da casa. As habilidades desejáveis para as
mulheres, nesse período, eram relacionadas ao conhecimento que elas podiam utilizar no
âmbito familiar, tais como línguas estrangeiras, música, desenho, pintura, costura e dança.
Para Vasconcelos (1995, p. 90), “uma educação sólida era considerada desnecessária e

271
acima da capacidade feminina e, de modo geral, pensava-se que as mulheres podiam
passar muito bem com as poucas prendas que lhes eram ensinadas nos internatos (...)”.

Como é possível perceber, as mulheres eram treinadas para o matrimônio desde


que eram pequenas. Sendo assim, o que pensamos sobre esse período é que o papel da
mulher era a submissão à figura masculina. Primeiramente, a subordinação ao pai e depois
do casamento, ao marido. Entretanto, de acordo com Fraisse e Perrot (1991, p. 9),

Seria, porém, errado pensar que essa época é apenas o tempo de uma
longa dominação, de uma absoluta submissão das mulheres. De facto,
esse século [XIX] assinala o nascimento do feminismo, palavra
emblemática que tanto designa importantes mudanças estruturais
(trabalho assalariado, autonomia do indivíduo civil, direito à instrução)
como o aparecimento colectivo das mulheres na cena política.

Sabemos que movimentos históricos causaram significativas mudanças e que


transformações causadas a partir da Revolução industrial, como mencionado
anteriormente, afetaram vários setores, como o econômico e o social, afetando também a
esfera domiciliar. De acordo com Watt (2010) com a transformação econômica sofrida já
não eram mais necessários os trabalhos de dona de casa, pois muitos artigos passaram a
ser manufaturados. “Uma nova sociedade em ascensão exigia novos hábitos, valores e
reforma de instituições como o casamento, e dava às mulheres um novo papel”
(VASCONCELOS, 1995, p. 92).

O casamento possuía um papel de extrema importância na vida das mulheres, à


medida em que elas eram treinadas desde cedo para se tornarem donas de casa e mães.
Mas não só, de acordo com Vasconcelos (1995), estavam em jogo também interesses
econômicos. Para Zardini (2012), da mulher do século XIX, esperava-se que esta seguisse
as diversas regras de acordo com os padrões sociais.

Dessa forma, é possível perceber a importância de revisitar a obra de autoras que


tiveram um papel fundamental em revelar e criticar a sociedade do final do século XVIII
e do século XIX, possibilitando assim a relevância da temática da representação da
mulher na literatura comparada entre esses países.

272
Comparação entre Marianne Dashwood e Marta

As personagens Marianne e Marta possuem muitas semelhanças que vão sendo


construídas ao longo das narrativas. Podemos perceber que ambas perdem os pais muito
cedo e como consequência disso precisam se adequar aos novos padrões sociais, mudança
de casa, entre outros. As duas protagonistas se apaixonaram por rapazes que não iriam
propor casamento, então quando há a descoberta sofrem desiludidas com o amor e
posteriormente vem a aceitação do casamento com homens que não eram o estereotipo
desejado no período. Aliado a isso, as personagens também possuem contrastes, como a
diferença de idade, a forma de renúncia ao casamento arranjado daquela época, a
diferença entre o tipo de relação que surge com o tempo: o amor e o conformismo e
dedicação aos estudos que tem finalidade e tempo diferentes.

O desenrolar das personagens possui várias semelhanças. Marianne no início da


narrativa possui 17 anos e “era uma moça sensata e inteligente, mas ansiosa em tudo: suas
angústias e alegrias não tinham moderação” (AUSTEN, 2015, p. 11).

Já Marta, conta suas memórias iniciando quando tinha 13 anos. Não há muitos
indícios sobre sua aparência ou personalidade, já que é a própria protagonista narrando
sua história. “O mundo de cada um é limitado pelo que abrangem os raios de sua
capacidade visual ou pelo que lhe sugere sua imaginação. Esta em mim sempre foi de
folego curto” (ALMEIDA, 1888, p. 5). A autora se preocupou em dar voz à mulher e
mostrar sua importância social (SOUZA, 2010).

É possível perceber que se trata de duas escritoras femininas, escrevendo sobre


personagens femininas que possuem comportamentos muitas vezes não condizentes ao
que era esperado e de certa forma permitido às mulheres, no período em questão. Para
(TABAK e GUIMARÂES. 2011, p. 40):

Estereótipos femininos eram construídos e repetidos por meio do imaginário


dos romances escritos por homens, para determinar e controlar espaços e
papéis esperados das mulheres. Consequentemente, a linguagem torna-se
objeto em que se instaura e se manifesta o poder, uma vez que, repetida
exaustivamente, é usada para solidificar estereótipos discursivos em um
determinado tempo, configurando-os como uma construção histórico-cultural.

Outra semelhança entre as duas personagens, é o fato da mudança radical na vida


familiar após a morte dos mantenedores da casa. Em Razão e Sensibilidade, a família

273
recebeu a herança de um tio que faleceu, mas pouco tempo depois o próprio Mr.
Dashwood se foi. “Mas a fortuna, que havia demorado tanto a chegar, foi sua somente
por apenas um ano. Ele sobreviveu pouco tempo ao se tio; e dez mil libras, incluídos os
legados do falecido, foi o que restou para sua viúva e suas filhas” (AUSTEN, 2015, p. 9).
Nessa ocasião Mr. John Dashwood, o filho de Mr. Dahswood foi chamado e recebeu as
súplicas de seu pai para que cuidasse de sua esposa e filhas, entretanto,

nem bem havia terminado o funeral de seu pai, quando Mrs. John Dashwood,
sem ter encaminhado nenhum aviso sobre sua intenção para sua sogra, chegou
com seu filho e seus empregados. Ninguém poderia discutir seu direito de vir;
a casa pertencia a seu marido a partir do momento da morte de seu pai
(AUSTEN, 2015. p. 10).

Consequentemente, ele e sua esposa se estabeleceram como senhores de Norland


e dessa forma tornaram Mrs. Dashwood e suas filhas simples visitantes e reduziram a
quantia que receberiam. Alguns meses depois elas decidem então se mudar, passando a
viver em lugar bem simples, completamente diferente do luxo com o qual estavam
acostumadas.

Como residência, Barton Cottage, embora pequeno, era confortável e


compacto; mas como um cottage deixava a desejar, pois a construção era
comum, com teto de telhas; (...). Um corredor estreito levava diretamente da
casa ao jardim pelos fundos (...) em comparação com Norland, era pequena e
pobre! (AUSTEN, 2015, p.39).

Em Memórias de Marta, a família formada por três pessoas tinha uma vida boa e
confortável, mas o pai de Marta perdeu muito dinheiro em uma viagem, na qual
trabalhava como caixeiro. O dinheiro era da empresa, então precisaram vender tudo o que
possuíam para pagar a dívida:

Vendemos tudo que tínhamos, mas o que se apurou não foi suficiente para
saldar a dívida. Foi então que passamos para a rua de Sta. Ana. A casa da
Casuarina... e do papel chinês... (...) onde me vi reduzida a ter por criada uma
negra velha, que ainda assim fazia todo o trabalho doméstico. (ALMEIDA,
1888, p. 61).

Pouco tempo depois, o pai de Marta faleceu após contrair febre amarela. Assim,
restaram apenas mãe e filha. A mãe começou a trabalhar para sustentar a casa.

274
Quando enviuvei pensei em viver da costura, mas não foi possível. Aprendi à
custa de muitas queimaduras nos braços e nos dedos o oficio de engomadeira
que mal tem dado para pagar o quarto e o resto...Enquanto Deus me der forças,
vai tudo muito bem. (ALMEIDA, 1888, p. 62).

Podemos perceber que a família mudou drasticamente após a morte do pai de Marta.
A família precisou se mudar e levar uma vida bem diferente, pois o dinheiro do ofício de
engomadeira era muito pouco.

A viúva de um ladrão não podia continuar na mesma classe de que a memória


do marido arrancara. Não era só uma mulher pobre, era uma mulher
vilipendiada. Estávamos bem no cortiço: só aquele lugar é que nos competia...
(ALMEIDA, 1888, p. 63).

A partir dos trechos supracitados, podemos perceber algumas semelhanças entre as


protagonistas Marianne e Marta, que surgiram a partir de escritoras femininas no século
XIX. É possível identificar a mudança sofrida pelas famílias após a perda da figura
masculina, detentor das responsabilidades financeiras do lar, já que as mulheres não
trabalhavam. O contexto social e local das personagens era diferente, Inglaterra e Brasil.
Entretanto, mesmo existindo essa distância é possível identificar diversas semelhanças
entres as obras.

Considerações finais

O presente estudo procura alcançar o objetivo principal desta pesquisa, o de


fornecer um estudo comparativo entre as personagens Marianne e Marta, através da
análise dos livros Razão e Sensibilidade e Memórias de Marta, respectivamente. O
desenvolvimento deste estudo nos permitiu uma compreensão específica do tema até o
presente momento.

O papel social da mulher em uma sociedade patriarcal foi um elemento importante


que nos ajudou a compreender as funções e limitações da mulher no século XIX na
Inglaterra e no Brasil. As escritoras Jane Austen e Julia Almeida viveram nesse período,
observando o comportamento das pessoas e escrevendo sobre esses tópicos em suas obras
através das injustiças que presenciavam e sofriam, possivelmente. Dessa forma, elas
possuíam um olhar em alerta à figura da mulher, evidenciando as discordâncias com os
padrões sociais da época. Por estas razões, as autoras supracitadas são consideradas
mulheres revolucionárias.

275
No século XIX surgiu o movimento feminista, o qual tinha por objetivo garantir
às mulheres os mesmos direitos que os homens possuíam. Assegurar direitos sociais,
políticos, econômicos etc.

De forma geral, analisando as descobertas iniciais podemos perceber que as


personagens possuem uma aproximação considerável, em se tratando de personalidade,
atitudes, escolhas, decepções e etc.

Esta pesquisa dá seus primeiros passos, mas as intenções são pretenciosas de


compreender a relação de aproximação entre personagens femininas, de escritoras
femininas que se aproximam nas representações sociais e se distanciam no espaço e no
tempo. E após isso tentar acrescentar contribuições relevantes aos estudos sobre tópicos
do gênero feminino e sobre escritoras Jane Austen e Julia Almeida.

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Caminhos do romance; FASESP, 2005.
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planejamento da pesquisa. V.11, n 2, 2009, p. 1044-106.
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2006.

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power in Jane Austen’s Sense in Sensibility. Jane Austen society of North America, v.
25, n. 1, p.1-6, 2004.
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4: O Século XIX. Porto: Edições Afrontamento, 1991.

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Imperialismo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1979, p. 143-159.
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LUCA, Leonora. O “feminismo possível” de Júlia Lopes de Almeida (1862-1934).
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NITRINI, Sandra. Literatura Comparada. São Paulo: Edusp, 1997.

276
NOLASCO, Edgar. Literatura comparada hoje: estudar literatura brasileira é estudar
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PEREIRA, Rosamaria. A presença inglesa no Brasil e sua influência nas obras de


escritores brasileiros do século XIX. 2005. Dissertação de Mestrado – UFPA. Pará.
2005.
SERRÃO, Rebecca. The sense and the sensibility: the contrast between the main female
characteres in Jane Austen’s book. 2018. 43f. Trabalho de conclusão de curso – UFPA.
Pará. 2018.

SILVA, Cristiane. A condição feminina nas obras de Júlia Lopes de almeida


publicadas de 1889 a 1914. Disponível em: http://www.uespi.br/mestradoemletras/wp-
content/uploads/2015/07/A-CONDI%C3%87%C3%83O-FEMININA-NAS-OBRAS-
DE-J%C3%9ALIA-LOPES-DE-ALMEIDA-PUBLICADAS-DE-1889-A-1914.pdf
Acesso em 28.04.2018.
SOUZA, Samantha. Memórias de Marta. Uma narrativa ficcional de Júlia Lopes de
Almeida. 2010.

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writings by MARY ASTELL. 1986.
Elfi Kurten Fenske. Templos Culturais Delfos. 2017 Disponível em:
http://www.elfikurten.com.br/2014/05/julia-lopes-de-almeida.html Acesso em
27.09.2018.
TABAK, Fani e GUIMARÃES, Alex. Memórias de Marta: historiografia, gênero e
literatura em Julia Lopes de Almeida. Diadorin, Rio de Janeiro, Vol. 9, p. 37- 49. 2011.
VASCONCELOS, Sandra. Construções do feminino no romance Inglês do século
XVIII. 1995.
WOLLSTONECRAFT, Mary; HUNT, Eilleen (Ed.). A vindication of the rights of the
woman. Yale University, 2014.
ZARDINI, Sandra. O universo feminino nas obras de Jane Austen. 2011. Vol. 17, p 1-
14. Minas Gerais.

277
DO BANCO DA PRAÇA: MEMÓRIA DE MULHER E URBE NAS
NARRATIVAS DE VIAGEM DE MARÍA MORENO

Samara Heringer Coelho do Nascimento (UFRJ)1

Resumo: Banco a la Sombra (2007) é uma obra autoficcional e autobiográfica de María


Moreno, jornalista e escritora argentina, na qual se aventura a narrar, através de um conjunto de
dez crônicas, viagens ao redor do mundo. O que todas têm em comum? A praça. A partir deste
ponto central da cidade, a narradora observa e absorve as narrativas que a urbe conta e as
entrelaça com suas memórias pessoais. O presente trabalho objetiva, portanto, refletir sobre o
papel da memória na narrativa de viagem e como se constrói seu diálogo com a cidade na
presente obra.
Palavras-chave: Urbe; Crônica; María Moreno; Praça

Seja lá uma viagem ao centro da terra proposta por Julio Verne ou apenas
viagens na minha terra, realizadas por Almeida Garret, o importante é que, “se partires
um dia rumo à Ítaca, faz votos de que o caminho seja longo, repleto de aventuras,
repleto de saber” como sugere Constantino Kavafis.
Esse velho ato de deslocamento empreendido pelo ser humano, desde sempre
trouxe consigo descobertas, avanços, conexões. Muitas áreas do conhecimento humano
foram desenvolvidas a partir das primeiras grandes viagens realizadas na humanidade.
Os relatos produzidos a partir destas expedições fertilizaram nosso conhecimento de
mundo e ampliaram o conhecimento sobre nós mesmos. Foi através deles que, por
exemplo, Todorov pôde teorizar a existência da viagem material e a viagem espiritual e,
a partir desta, podemos hoje perceber que tipo de viajantes somos: o que se contenta
apenas em narrar o périplo ou que se dedica a construir uma utopia. É também através
das viagens e seus relatos que podemos teorizar sobre a politização do espaço por onde
se passa, e como essas frequentes travessias influenciaram e ainda influenciam na
expansão de limites físicos e a constante reconfiguração do mapa do mundo (Montaldo,
1999).
Foi através dos relatos de viagem então, nas suas variadas formas - cartas,
relatórios, diários - que o mundo tomou forma. Pelos olhos daqueles que foram, outros
puderam ver o inalcançável. No entanto, por muito tempo, esses olhos que viam eram
masculinos, afinal, neste velho mundo patriarcal, eram eles o que se lançavam às
viagens sem contas a prestar. Às mulheres, cabia apenas ler. Houve, porém, as que

1
Graduada em Letras (UFRJ), mestranda em Literaturas Hispânicas (UFRJ). Contato:
samaraheringer@hotmail.com.

278
inverteram a lógica de sua época. Partiram, viram, experimentaram e escreveram. Seus
relatos surgem antagonizando e relativizando uma visão de mundo masculina
dominante. É através de estudos como o de Sara Mills (1991), levantados por Franco
(2017) que conseguimos identificar as diferenças de relatos, sendo os homens
imperialistas na sua narrativa enquanto que as mulheres “adotavam uma escrita mais
experimental e menos imperativa, descrevendo indivíduos, e não estamentos e raças”
(Franco, 2017: s/p), apreciando “de forma menos autoritária o ‘outro’ marginalizado”
(Franco, 2017: s/p).
É através da mulher, então, que o ato de viajar e relatar ganha novas formas e
significados. Através delas se faz possível o relato de experiência com memórias
pessoais de uma forma mais humana. Seu relato se compõe através da humanização dos
encontros sucedidos durante a viagem, observações não-colonizadoras das pessoas e dos
lugares, em oposição à velha tradição de viagens etnográficas e colonizadoras e relatos
categorizadores masculinos. Essa outra forma de olhar modificou a própria forma do
gênero, gerando, na pós-modernidade, obras como Banco a la Sombra, que apresento
neste trabalho.
Publicada em 2007, Banco a la Sombra foi escrita por María Moreno, escritora e
jornalista argentina contemporânea. A obra traz um conjunto de nove crônicas e um
poema. Através de suas páginas, Moreno nos leva a uma, duas, dez viagens e, em cada
uma destas, somos convidados a sentar-nos em um banco de praça em diferentes
cidades. Neste lugar panóptico, observamos os passos, os movimentos e entramos,
através de sua narrativa, em um modo mais sensível de percepção, nos distanciando, em
muitos pontos da narrativa, de um olhar turístico explorador e nos aproximando do
olhar viajante observador que atenta a detalhes e pessoas invisibilizados pelo ritmo da
cidade.
A narrativa ocorre em primeira pessoa. Narradora e personagem coincidem com
a voz da autora, e os textos nos brindam detalhes biográficos de Moreno. A narradora,
em companhia de um amigo, senhor Plaza, começa o percurso por uma praça de sua
própria cidade, Miserere, na Argentina, lugar que, segundo ela, levou anos para
apropriar-se, mas finalmente, ao sentar-se aí na grama, recupera um espaço público que
era seu por direito. É então que, nas crônicas seguintes, ela começa a ressignificar esses
espaços urbanos.

279
A viajante aparece na crônica seguinte em sua primera para internacional: a
praça Borda, em Taxco, no México. A movimentação da cidade imediatamente a
atravessa. É Día de los Muertos e ela enfrenta a recente morte do seu pai. A narrativa
neste momento entrelaça a experiência mexicana da morte e a da viajante, “o espaço
urbano refrata e agiganta a experiência subjetiva da observadora.” (Biancotto, 2010: 8).
Na viagem seguinte, em Barcelona, na praça Catalunya, o “eu” dá um novo giro
sobre si mesmo, e se coloca em um lugar mais periférico da narrativa, em um processo
de identificação com o outro, a narradora dedica sua crônica com o título “Suplicantes”
aos pedintes da cidade. E assim, a viajante ressignifica a presença daquelas pessoas na
praça. “Moreno lê a resistência na mendicância” (Biancotto, 2010: 7). Seu olhar atento,
faz com uma banal pose de uma jovem pedinte romena ao dormir na calçada a faça
lembrar da peça A morte do cisne interpretada de Jorge Luz e, desse modo, faz
transcender o cotidiano invisibilizado da cidade. A narradora faz dos mendigos um
“quadro vivo” e através dessa imagem do outro que traça a sua própria ao dizer no final
da narrativa: “eu não estava tão limpa como os mendigos da Praça Catalunya” (Moreno,
2007: 63 apud Biancotto, 2010: 7). A viajante reafirma assim que ver arte no cotidiano
só é possível quando o olhar está atento e descentralizado. Sua narrativa faz da cidade
um palco, onde todos estão sob holofotes.
Através não só dessas, mas de todas as crônicas que compõem a obra, nota-se
que a autora, narradora e personagem se posiciona como um sujeito viajante da pós-
modernidade que, nesses espaços urbanos, se encontra constantemente deslocado em
um campo de batalha de diferenças e multiculturalidade. A viajante é:

“alguém que, se sabendo estrangeiro, renúncia a qualquer pretensão


de totalidade, de completude, uma vez que já não há mais nem centro nem
periferia fixos e delimitados, mas um campo de batalha onde fervilham
diferenças e traços multiculturais.” (Santos; Oliveira, 2001: 88-89)

Refletindo o homem moderno, ela se entende como uma unidade em um todo


multifacetado, multiétnico e multicultural compreendendo que “os signos da diferença
cultural não podem ser unitários, porque sua contínua implicação em outros sistemas
simbólicos os deixa sempre incompletos, constantemente abertos à tradução.” (Santos;
Oliveira, 2001: 88-89). O que ela faz então é não categorizar, mas traduzir. Traduzir a

280
cidade, o movimento, a cultura, os rituais não em um sentido de adaptar ou modificar
aquilo que realmente é, mas em uma tentativa de encaixar-se como um pequeno pedaço
naquela cidade multiforme.
Isto nos levar a um fator importante ao analisar a obra de Moreno: a
espacialidade do lugar. Para isso resgatamos a teoria de De Certeau (1998 [1990]),
entendendo o lugar como a forma como os elementos se distribuem nas relações de
coexistência, o concreto que vemos, a disposição das coisas ao nosso redor; e o espaço,
como “vetores de direção”, “um cruzamento de móveis” (Santos; Oliveira, 2001: 88),
um lugar praticado e, por isso, fonte constante de ressignificações. Pensar em espaço
nos faz pensar em seus efeitos produzidos. Um lugar em constantes conflitos, direções
diversas e muitas vezes opostas que constantemente se cruzam. A praça, e num sentido
mais amplo, a cidade, é, ao mesmo tempo, esse lugar e espaço. É, por assim dizer, um
“tabuleiro de xadrez em que identificações e movimentos emergentes se cruzam”
(Santos; Oliveira, 2001: 88).
Como espaço, a praça é “testemunho de uma vivência e memória coletiva, um
espaço que suporta um conjunto de práticas sociais.” (Barbini; Ramalhete, 2012: 237),
um ambiente que já nasce com um objetivo: o de ser habitável sem escolher seus
frequentadores. É, assim, um lugar de aglomeração, de expressão, geralmente
democrático e heterogêneo. A praça “potencializa a noção de identidade urbana que,
dificilmente, o lazer na esfera da vida privada poderia proporcionar” (Quiroga, 2001
apud Viero; Barbosa Filho, 2009: 1-2) uma vez que permite esse encontro interpessoal
público e, através dele, se dê as mais diversas interações sociais como manifestações,
festejos, reuniões etc. Esse lugar se torna, portanto, uma fonte de narrativas, e é onde a
narradora de Banco a la Sombra se detém propositalmente para remendar essas histórias
que diariamente se tecem no tecido urbano com suas histórias pessoais, unindo a
viagem material à espiritual.
A memória é também fator fundamental na narrativa de María Moreno. Esta
aparece conjugada à imaginação e é essa combinação que traz riqueza à narrativa das
viagens empreendidas, uma vez que a personagem existe em um universo
constantemente rearranjado pela memória e pela imaginação (Santos; Oliveira, 2001:
83). García Canclini (1999) defende que a interação do homem com a cidade não se dá
apenas através de uma singela experiência física, mas também da relação imaginária

281
que resulta da passagem deste pelo espaço urbano, que tem sempre dois patrimônios: o
visível, que são os elementos materiais, e o invisível, constituído de imagens, lendas e
mitos. Cada indivíduo seleciona fragmentos de relatos formados nesse imaginário da
cidade e o combina com seu imaginário pessoal, com sua própria pessoa, para assim
formar uma visão que nos faça estar mais conformados, tranquilos e localizados dentro
da cidade (García Canclini, 1999). É o que faz, por exemplo, um lugar tão simples e
fúnebre como um cemitério em uma praça parisiense ser a deixa perfeita para que
Moreno lembre de amigos escritores mortos na ditadura, imagine diálogos para as
estátuas dos defuntos e observe uma estátua deitada que, para ela, parecia mais uma
pose erótica. Em uma viagem que é também de autodescoberta, a narradora viajante
descobre maneiras para sentir-se confortável diante da morte e também diante de um
lugar desconhecido.
Nesta mesma praça, Moreno ainda se detém para ler os signos desenhados por
outros usuários nas lápides, entendendo-os como leituras que estes fizeram desse
mesmo espaço. Nesse ato, ela reconhece também no seu percurso o direito que os
habitantes, e não só os viajantes têm, de interpretar o espaço urbano. Nesta mesma
praça, ainda como ato de respeito e reconhecimento do outro, faz questão de seguir
rituais populares como esfregar a mão em uma estátua para ter sorte, pactuando com o
imaginário social local, reafirmando seus mitos e superstições ainda que ela mesma não
os tenha.
Banco a la Sombra tem uma complexidade e profundidade narrativa que
demonstram a força da escrita de María Moreno e sua genialidade. Por exemplo, ao
chegarmos à sétima crônica do livro, intitulada Veneza sem mim, María Moreno deixa
algo a sugerir. Ao lermos a crônica não encontramos a resposta para tal inscrição, a
narradora segue mais um percurso como todos os outros, brindando ao leitor riqueza de
detalhes sobre a cidade, a Piazza San Marco e suas experiências. No entanto, cinco anos
após o lançamento de Banco a la Sombra, Moreno pública Subrayados (2013), e nele se
delata: “Uma vez escrevi sobre uma viagem a Veneza. Contei a muitos: jamais estive lá.
Não fiz mais que homenagear a tradição de cronistas viajantes sem viagens como o Fray
Mocho de No mar austral.” (Moreno, 2013: 136 apud Havas, 2016: s/p).
María Moreno afirma, em realidade, não ser uma viajante por excelência. Banco
a la Sombra é mais um de seus truques que ela mesma chama de “persuasão

282
autobiográfica”, consistindo na escrita que leva o leitor a acreditar em tudo o que lê como
biográfico, até que se lança um dado inverossímil e o joga abruptamente dentro da ficção. Isto,
no entanto, não invalida a viagem, nem as experiências, ao contrário, nos faz aceitar um outro
tipo de viagem e a aceitar que a memória dela está ali, mas não todo o tempo, e que a
imaginação e, como a própria Moreno afirma, sua biblioteca e leituras pessoais, também estão
contidas naquela narrativa. Apresenta assim, uma outra faceta da mulher viajante, a literária,
que constrói cidades, praças, pessoas, experiências a partir de sua formação como leitora.
Segundo Santos e Oliveira, na narrativa contemporânea, o espaço constrói-se a
partir do cruzamento de variados planos espaço-temporais experimentados pelo sujeito,
apresentando uma dimensão múltipla e um caráter aberto (Santos; Oliveira, 2001).
Sendo assim, podemos entender que os espaços descritos na narrativa de Moreno não
são necessariamente aqueles que conhecemos no mundo real, mas um conjunto de
planos espaço-temporais reais e ficcionais que formam a imagem que ela nos faz ver.
Enfim, ao chegarmos ao fim de Banco a la Sombra, a conclusão que temos é que
devemos voltar a lê-lo do início. Não só pela peça que nos prega a autora com “Veneza
sem mim”, fazendo-nos desconfiar de todos os outros relatos de viagens, mas também
pelas várias camadas de interpretação possíveis da obra. Assim, para finalizar com
alguma definição do que é Banco a la Sombra, diríamos que é um ato de apropriação.
Se à mulher não lhe era facultado o viajar, restando a ela ser leitora dos relatos de
outrem, hoje, com seu livre arbítrio de ir e vir, transforma a sua pena em novos
percursos. Se apodera de todas as formas de viagem, das estradas à caneta e papel. Sua
bagagem é sua memória, experiências, fantasmas, obsessões pessoais. Se há tantos
percursos possíveis a percorrer, porque não percorrer, primeiro, a viagem que nasce
dentro si?

Referências

BARBINI, F; RAMALHETE, F. A praça: intervenções contemporâneas em espaços de


património. Urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, v. 4, n. 2, p. 233-244, jul./dez.
2012. Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=193124832006. Acessado
em: 05 de maio de 2019.

283
DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Editora Vozes,
1998[1990], 3ª ed.

FRANCO, Stella. Viagem e gênero: tendências e contrapontos nos relatos de viagem de


autoria feminina. Cadernos pagu (50), Campinas, 2017. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/cpa/n50/1809-4449-cpa-18094449201700500016.pdf.
Acessado em: 05 de maio de 2019.

HAVAS, Teresa O. Crónica de crónicas: teoría y práctica del género en los textos de
María Moreno. La Chronique en Amérique latine XIXe-XXIe siècle, vol.2, p. 49, 2016.
Disponível em: https://journals.openedition.org/america/1745. Acessado em: 06 de
maio de 2019.

MERINO, X. A. D. O que é uma cidade? In: GUBERMAN, M; PEREIRA, D. A. (org.)


Provocações da cidade. Rio de Janeiro: UFRJ, 2009, p. 255-271.

MORENO, María. Banco a la Sombra. Buenos Aires: Sudamericana, 2007.

SANTOS, L.A.B; OLIVEIRA, S. P. Sujeito, tempo e espaço ficcionais: introdução à


Teoria da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

TOROROV, Tzvetan. A viagem e seu relato. Revista Letras, São Paulo, v.46, n.1,
p.231-244, jan./jun, 2006. Disponível em:
https://periodicos.fclar.unesp.br/index.php/letras/article/viewFile/50/44. Acessado em:
07 de maio de 2019.

VIERO, V.C. et al. Praças públicas: origem, conceitos e funções. In: Jornada de
Pesquisa e Extensão, ULBRA, Santa Maria, p. 1-3, 2009.

284
IMAGENS DE PORTUGAL: UM ESTUDO DAS CRÔNICAS DE VIAGENS DE
CECÍLIA MEIRELES
Tainara Dantas da Silva1

Resumo: Esta pesquisa propõe um estudo das crônicas que retratam as viagens da escritora
Cecília Meireles por Portugal, país com o qual manteve profundas relações familiares, afetivas e
literárias. O trabalho objetiva formular interpretações a partir das impressões do olhar que a
viajante lança sobre a paisagem, cultura, memória e identidade do povo português. Para isso, foi
escolhido o viés da Imagologia, que é tradicionalmente, o nome dado a uma área de pesquisa, cujo
objeto de estudo precípuo são as imagens de países criadas e veiculadas pela literatura.

Palavras-chave: Crônicas; Imagologia; Literatura de viagem.

A crônica é um gênero literário híbrido que associa características do texto


informativo e literário, misturando jornalismo, literatura, poesia, humor e realidade de
maneira sútil e agradável. Antonio Candido em seu ensaio A vida ao rés-do-chão (2003),
exprime que a crônica é construída por meio dos acontecimentos naturais do dia a dia e
por se abrigar em um veículo tão efêmero como os jornais, não tem a pretensão de durar,
ainda para este teórico:
Ora, a crônica está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer a
dimensão das coisas e das pessoas. Em lugar de oferecer um cenário
excelso, uma revoada de adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo
e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade
insuspeitadas. Ela é amiga da verdade e da poesia nas suas formas mais
diretas e também nas suas formas mais fantásticas, - sobretudo porque
quase sempre utiliza o humor (CANDIDO, 2003, p. 89).

Ou seja, de maneira simples, humorada e poética o cronista proporciona ao leitor


um espaço de diversão e sobretudo de reflexão. E usando de uma linguagem mais leve e
com mais poesia pôde penetrar mais adentro no cotidiano do leitor brasileiro, sendo no
decênio de 1930 que a crônica moderna se definiu e consolidou no Brasil. No trecho
abaixo, Redmond expõe algumas características da crônica brasileira:
A crônica brasileira explora uma linguagem lírica, irônica, casual, ora
precisa, ora vaga, amparada por um diálogo rápido e certeiro. Registra
o circunstancial e o efêmero; o real é recriado com engenho e arte.
Cultiva a função poética da linguagem, imprime leveza ao discurso,
revela e valoriza, na visão do autor, a crítica de um momento histórico,
atenuando o vínculo de temporalidade que eterniza o texto
(REDMOND, 2008, p. 21).

1
Mestranda em Letras (UNIFESSPA). Contato: tainara-dantas@hotmail.com

285
Neste campo, Cecília Meireles obteve muito destaque. A escritora não se dedicou
somente a poesia, o território da prosa também foi bastante explorado por ela. Escreveu
diversos artigos, ensaios, conferências e crônicas que tiveram notoriedade nos principais
jornais brasileiros entre as décadas de 30 e 60. Suas primeiras colaborações foram entre
1929 e 1930 para o exemplar de O Jornal (RJ); entre 1930 e 1933 foi diretora da “Página
de Educação” do Diário de Notícias (RJ), onde colaborou ativamente para a
disseminação de um movimento educacional renovador, denominado Escola Nova.
Na década seguinte escreveu crônicas para os jornais carioca A Manhã, Folha
Carioca; os paulistas Folha da Manhã, Correio Paulistano, Jornal de Notícias, Folha da
Noite e também para o Folha do Norte de Belém-PA. Da mesma forma, colaborou com
suas crônicas para a Revista Rio e foi editora da revista Travel in Brazil, financiada pelo
Departamento de Imprensa e Propaganda do Governo Vargas.
Além das crônicas voltadas para a temática da educação, Cecília produziu outras
com temas sobre o folclore brasileiro; infância; literatura; viagens. Utilizando de uma
linguagem leve e intensamente poética, boa parte das crônicas ceciliana são carregadas
de ritmo, aliterações, paralelismos, anáforas, ou seja, recursos estilísticos da poesia que
agregam um estilo lírico à prosa desenvolvida pela escritora. A poesia é tão evidenciada
em suas crônicas, que ao fazermos a leitura destes textos, parece que estamos
experenciando um poema, tamanho é o lirismo característico do exercício cronístico de
Cecília.
As inúmeras viagens realizadas por Cecília Meireles nos deixaram um conjunto
de crônicas que revelam o seu olhar sobre o mundo. Inicialmente suas impressões destas
viagens foram relatadas através de crônicas produzidas para os jornais e revistas já
elencados acima e que, depois de sua morte, foram reorganizadas e reunidas no projeto
editorial composto de três volumes intitulado Crônicas de Viagem.
Gínia Maria Gomes em seu artigo Cecília Meireles na Itália (2001), evidencia
que as crônicas de viagem de Cecília Meireles são permeadas por este olhar de viajante,
que procura estabelecer uma relação de afeto com tudo o que vê, que se conserva sem
pressa em cada coisa, muitas vezes destacando objetos e/ou circunstâncias que certamente
não atrairiam o olhar do turista.
Cecília, a poeta viajante, contempla intensamente a natureza, as construções, os
objetos, na tentativa de captar a essência de todas as coisas como uma maneira de
compreendê-las para assim compreender a si mesma. Com uma escrita repleta de
subjetividade, ao descrever espaços reais, a poeta usa de simbologias e metáforas para

286
expressar sentimentos humanos, como podemos ver no trecho de “Evocação lírica de
Lisboa”, crônica que relata a sua chegada a esta cidade portuguesa:
Dizem-te: LISBOA. Não podes ainda ver claramente. São tudo espumas
de aurora. Mas de repente o sol atira certeira uma chispa de ouro. E
sentes um brilho súbito de nácar descoberto. Repetem-se: LISBOA.
Percebes à beira do rio aquele caramujo enrodilhado, que vai ficando
cintilante, poliédrico, de ouro, de vidro, de límpido e úmido azulejo. É
um caramujo quieto, à cuja sombra o rio inventa e desmancha líquidos
jardins de muitas cores. É um caramujo de outros tempos, que escutou
muitas fábulas, que guarda dentro de si uma vasta memória marinha e
em seus dédalos interiores, de sucessivos espelhos, vê passarem reis,
cortejos, martírios, intermináveis navegações (MEIRELES, 2016,
p.199).

“Espumas de aurora”; “chispa de ouro”; “brilho súbito de nácar descoberto” foram


imagens escolhidas por Cecília para descrever de forma lírica a chegada da escritora no
porto da cidade de Lisboa, com um olhar atento à realidade, a autora descreve a imagem
de um caramujo que, ao ser colocado à beira do rio Tejo, pode-se inferir que é a própria
representação da cidade, vista de várias formas e cores esplendorosas pela viajante; um
caramujo quieto que, outrora já desbravou o mundo através do rio e conquistou seu
império através das águas, hoje vive de suas memórias, ou seja, a Lisboa retratada por
meio da simbologia marítima representando aquilo que é efêmero, passageiro, similar à
circunstância do viajante contemplando aquela natureza, mas que em instantes deverá
partir.

Como já dito anteriormente, Cecília percorreu inúmeras cidades e países por


várias partes do mundo e em seu exercício cronístico externou suas experiências de
viajante por estes lugares. Como exposto anteriormente, neste trabalho, o foco de
exploração do campo da prosa ceciliana, será concentrado nas crônicas escritas enquanto
esteve viajando por Portugal.

Um estudo das imagens

Num momento em que se discutem diferentes modos de ver, analisar e lidar com
o “outro” e com o “diferente”, a Imagologia surge como um campo de pesquisa e reflexão
de estudo das relações entre os seres. A Imagologia é, tradicionalmente, o nome dado a
uma área de pesquisa, cujo objeto de estudo precípuo são as imagens de países criadas e
veiculadas pela literatura. Para Tânia Carvalhal (2004), a Imagologia literária
corresponde ao estudo das imagens/miragens que uma determinada nação faz de outra e
de como isso se inscreve nas diversas literaturas.

287
Para Álvaro Manuel Machado (2004), a Imagologia é uma linha de investigação
da Literatura Comparada que lida, essencialmente, com questões de análise
predominantemente culturalista do texto e do próprio estatuto social do autor, sem
esquecer, por outro lado, a sua dimensão mítica.
Paul Hazard (1878-1944) foi um estudioso que deu o impulso vital à pesquisa da
imagologia comparada. Celeste H.M. Ribeiro de Sousa em sua obra Do cá e do lá:
introdução à imagologia (2004), expõe um breve retrospecto sobre os estudos
imagológicos e salienta que, para Hazard, ocupar-se da literatura comparada é observar a
ação profunda exercida por um pensamento estrangeiro em um pensamento nacional, é
observar a renovação das formas de expressão, motivada por aquelas vindas de fora, é
observar as modificações efetuadas pelo gênio de um povo, a partir do gênio do povo
vizinho. Ainda sobre as ideias de Hazard, Sousa considera que:
Hazard, dentro da literatura comparada, preocupa-se com a literatura de
viagens e, por conseguinte, com as imagens de outros países. Os
viajantes alargam seu horizonte cultural, colecionam experiências e
aventuras. Eles exportam os produtos literários de seus países e
importam as imagens de outros países, carregadas de exotismo e
fantasia. O estudo da literatura de viagens deve, pois, incidir sobre a
história das relações intelectuais da exportação e importação de
imagens entre povos- a representação que um país faz do país vizinho
(SOUSA, 2004, p. 46-47).

Corroborando com a ideia de Hazard, Mendes (2000) afirma que o corpus de


análise dos estudos imagológicos continua a ser constituído preferencialmente por textos
narrativos, pela ficção em geral e pelas crônicas de viagem, uma vez que são discursos
que se prestam mais facilmente às diferentes vertentes da análise semiológica, do
processo narrativo, da construção das personagens e da sua relação com os componentes
espacio-temporais.
Segundo Sousa (2004), a imagem seria, a revivescência ou a representação de uma
sensação/percepção ou de um conjunto de sensações/percepções, que se encontram
arquivados na memória e, que, portanto, acontecem na ausência do objeto que as
provocou. A imagem seria, assim, uma configuração simbólica do real, efetuada no
âmbito do cérebro, passível de ser mediatizada por um código (com todas as suas
implicações). Complementando, a autora expõe que:
As imagens são assim, provenientes da memória, e afloram à
consciência através de um processo, denominado imaginativo, ou seja,
através da imaginação, e podem ser visuais, acústicas, tácteis, olfativas,
palatáveis, etc. conforme a tipologia das sensações (SOUSA, 2004, p.
84).

288
Compreendendo que a imagem é uma representação de uma percepção, um outro
pressuposto da imagologia a ser considerado é que ela não se atém em certificar a
realidade da imagem, pois, “sendo representação, a imagem é necessariamente falsa”
(MACHADO & PAGEAUX, 1988, p. 59). Porém, conforme os autores, é dever do
comparativista saber quais as mentalidades e as ideias que sustentam essa imagem, não
devendo ele levar em conta apenas a obra literária, mas também todo o conjunto de
influências que estão por trás do texto.
Retomando a ideia de Machado e Pageaux (1988), de que a imagem do estrangeiro
deve ser estudada como um elemento inserido em um contexto mais amplo e complexo:
o imaginário social, e, situado dentro deste, a representação do outro, Sousa (2004)
explica que o imaginário confere à imaginação a abertura, a novidade e a ideia de infinito
que ela carrega. O imaginário seria um repositório de todo o tipo de imagens, através das
quais conferimos identidade às coisas num processo mimético. Por outra forma, o
imaginário social é um conjunto de símbolos, conceitos, memória e imaginação, seja do
autor ou do grupo em que está inserido, as quais sempre podem ser atualizadas, pois estão
ligadas ao passado e ao futuro de um determinado grupo.
Portanto, compreender a imagem equivale também a compreender o mundo.
“Descobrir, desvendar e desvelar a imagem é equivalente a descobrir, desvendar e
desvelar o próprio universo. A imagem é um enigma que tão logo seja decifrado é capaz
de decifrar também o enigma da vida, do ser, do mundo” (LABRES, 2002, p. 135). Por
isso, uma investigação direcionada à interpretação das imagens e das relações entre
imagens no texto literário, e ao delineamento do imaginário de cada autor, pode
configurar como um caminho para entender as formas, por meio das quais o autor
evidencia a sua visão de mundo.
Claudia Labres (2002), afirma que a produção poética de Cecília Meireles se
constrói a partir de uma percepção da realidade através dos sentidos, gerando uma
transfiguração do real que motiva uma viagem interior em que a transitoriedade das coisas
é a chave para a sua compreensão do mundo.
Cecília Meireles faz poesia como quem pinta um quadro: escolhe cores,
texturas, imagens. Seus textos são marcados por um caráter sensorial,
sinestésico. Desse modo, sua poesia é percebida através dos sentidos,
sentidos esses que permitem a visualização de imagens que, aos poucos,
vão sendo construídas. Seus textos formam a partir de uma sintaxe
imagética ou simbólica que faz com que imagens vão se ligando umas
às outras de modo a criar uma rede de imagens que dará múltiplos
significados à sua obra. Nessa perspectiva, a obra ceciliana é
intraduzível devido ao excesso de significados gerados pela imagem

289
que se torna um meio de conjugar contrários sem aniquilá-los
(LABRES, 2002, p. 133).

A obra de Cecília Meireles se constrói em imagens, imagens que se sobrepõe


expondo as diferentes faces da realidade. Suas crônicas, mesmo escritas em prosa e
voltadas para os acontecimentos simples do cotidiano, são carregadas de elementos que
lhe conferem características próprias à poesia, tais como a metáfora, a polissemia, a
sonoridade, que dão a elas a tônica lírica e subjetiva, duas marcas do estilo de Cecília
Meireles. Além disso, é interessante destacar, que nas crônicas que serão analisadas, há a
possibilidade de o leitor reconhecer nelas alguns sinais biográficos resultante do seu olhar
de contemplação em relação aos lugares visitados. Iniciaremos esta análise com as
imagens sobre a cidade do Porto, apresentadas nos textos de viagem de Cecília Meireles.

Imagens do Porto
A crônica “A casa e a estrela” trata da passagem de Cecília pela cidade do Porto,
na região norte de Portugal. O texto inicia-se com dois questionamentos, que reforçam
uma intensa sensação de incerteza, não somente em relação ao caminho que está sendo
percorrido, mas um sentimento de alguém que, ao refletir sobre suas próprias
inquietações, busca o encontro consigo mesmo.

Para onde vou, que o dia se me afigura tão leve, e a paisagem mais bela
que nunca? Ao encontro de quem vou, para que meu coração se adapte
a um novo ritmo, e o mundo, dentro de mim, seja, mais do que nunca,
um forte contraste de amargura e alegria? (MEIRELES, 2016, p. 170).
No parágrafo seguinte, a cidade do Porto vai se apresentando comparada a cidade
de Lisboa:
A cidade do Porto não tem, aos meus olhos, essas doçuras límpidas de
Lisboa. Não é tanto uma aquarela, de suaves manchas nacaradas- mas
uma gravura enérgica, no ímpeto de suas ladeiras, na dureza das suas
pedras. Nem o Douro é, como o Tejo, rio de ninfas douradas, mas um
caminho de água, poderoso e ativo, todo rastreado pela mastreação dos
barcos e pelas sombras do trabalho humano (MEIRELES, 2016, p.
170).

Neste trecho temos o contato com as primeiras imagens sensoriais da crônica.


Através da associação de palavras que ao serem combinadas geram sensações diferentes
numa só impressão, como, por exemplo, em “doçuras límpidas” que realçam os sentidos
do paladar e da visão; “ rio de ninfas douradas” e “suaves manchas nacaradas” que
realçam os sentidos do tato e da visão, e estas sensações, aos olhos da narradora, só podem
ser vivenciadas em Lisboa, já que a cidade do Porto não possui doçuras límpidas, não é

290
tanto uma aquarela, o rio Douro não é como o Tejo e suas ruas “não me afiguram nunca
bastante descansadas” (MEIRELES, 2016, p. 170), então, o que faria a narradora
permanecer em um lugar com tantas negativas quando comparado a Lisboa?
O tom de incerteza da crônica continua quando a narradora se questiona qual o
real motivo de estar presente naquela cidade que não possui os mesmos encantos da
capital portuguesa, “Que venho fazer nesta cidade, de paisagem um pouco turbulenta, e
por que procuro não aquelas vistas que, de outras vezes, têm sido o meu enlevo?”
(MEIRELES, 2016, p.170). E a resposta vem no parágrafo seguinte:
Ah, porque eu venho visitar uma sombra. Um fantasma, que, se fosse
vivo, teria mais de duzentos anos. [...] Venho visitar “um triste pastor”.
Um triste pastor arcádico. De outros campos. De outras ovelhas. Com
os olhos perdidos por lugares estranhos, e a vida despedaçada, por
forças sobrenaturais (MEIRELES, 2016, p.171).

A viajante vai em busca de uma sombra. É sabido que sombra, na maioria das
vezes, indica algo negativo, visto que aparece relacionada a temáticas como a morte e a
temporalidade e, quando aliada ao termo “fantasma”, “triste” “sobrenaturais” dão ao
trecho um ar soturno. Neste fragmento, não fica claro ao leitor quem é esta sombra, afinal,
sabe-se que é alguém que, se estivesse vivo, teria duzentos anos e que em vida foi triste
e teve uma vida despedaçada. Adiante, Cecília evidencia ao leitor que estaria em busca
de uma casa. “Estamos pensando numa casa em Miragaia. Numa casa que encontraremos-
embora sem o seu único habitante imortal. E essa escolha que o destino exibe vai
alimentando o nosso pensamento com a sua seiva de mistério”. (MEIRELES, 2016, 171).
Miragaia é uma antiga freguesia portuguesa do concelho do Porto onde nasceu o poeta
Tomás Antônio Gonzaga, a quem podemos conferir sua condição de imortal devido às
liras da obra Marília de Dirceu e das Cartas Chilenas, o que nos leva a inferir que a autora
vai em busca das imagens do menino Tomás em sua terra natal.
Nesse percurso, a narradora descreve o caminho que segue à beira do Douro, em
direção a Miragaia.
E assim, passo a passo, vencendo quadros de vigoroso realismo, com
tipos humanos profundamente expressivos, avançamos por estes lugares
rústicos, de onde se levanta o cheiro violento das atividades ribeirinhas.
O sol não penetra, apenas ilumina estes recantos úmidos, a curva destas
arcadas grossas e antigas, o degrau, a corda, o barril, a água densa e
oscilante, que lhe desagrega ora uma chispa amarela, ora uma chispa
encarnada (MEIRELES, 2016, p. 171).

Por meio do trabalho criativo com a linguagem, Cecília Meireles reinventa o


mundo a sua volta. Através do seu olhar, capta o poético a partir de fatos aparentemente

291
corriqueiros, fazendo com o que o leitor perceba a beleza escondida por detrás de imagens
que passariam despercebidas. Esse trecho da crônica, exemplifica este pensamento e a
ideia de Labres, citada anteriormente, de que Cecília escreve poesia como quem pinta
quadros. Nesta passagem, o espaço narrado pela poeta é real, de fato ela está indo em
direção a cidade de Miragaia, mas, através da sua linguagem sinestésica ela recria este
espaço e oferece ao leitor uma nova perspectiva, para isso, utiliza um léxico que faz alusão
às cores e percepções físicas de umidade como “ilumina estes recantos úmidos”, o efeito
antagônico visual provocado pela distribuição de luz e sombra em “desagrega ora uma
chispa amarela, ora uma chispa encarnada”, faz referência à sensações olfativas como
“cheiro violento das atividades ribeirinhas”, e até mesmo as sinuosidades das curvas das
arcadas de pedras encontradas pela narradora como “curva destas arcadas grossas e
antigas”, também faz uso do emprego da vírgula em “o degrau, a corda, o barril, a água
densa e oscilante” para dar realce a estes objetos que unidos nesta composição literária
dão a impressão ao leitor de que ele está diante da pintura de um quadro, tamanho o efeito
pictural produzido pela linguagem empregada por Cecília

Imagens de Leiria
Leiria, também despertou o interesse de Cecília. O pinhal, o castelo e a poesia de
D. Dinis não passaram despercebidos pela poeta. Segundo Mendes (2010), a crônica “Até
Lisboa”, refere-se a essa terceira viagem de Cecília a Portugal, fruto de um dos passeios
de carro desde Salamanca (Espanha) até Lisboa na companhia do casal de amigos Diogo
de Macedo e Eva Arruda. Passando por várias cidades, ao longo de um trajeto de mais de
400 km, a narradora vai descrevendo nesta crônica as cidades de Guarda, Coimbra e
Leiria que estão neste percurso. Abaixo, um trecho da passagem da cronista por Leiria:
Assim correremos até Leiria, cujo famoso castelo já se vai sombreando
com a inclinação do sol. O inimigo que perseguimos é o tempo. “Lisboa
é longe”, como diz o Alberto de Serpa, - e temos de lá chegar ainda hoje.
Assim, pois, adeus, também, ao castelo e ao pinhal de D. Diniz (“ Ai,
flores do verde pino!...”); tempos das pastoras “ben talhadas” (“De que
morredes, filha, a do corpo velido?”); tempos das auroras claras e da
roupa lavada nos rios (“Levantou-s’ a velida, / levantou-s’ alva...”). Tudo
isso vai saindo do pinhal de Leiria, que o crepúsculo aponta (MEIRELES,
2016, p. 94).

Aqui, as palavras “correremos”, “perseguimos”, “chegar”, dão um ritmo acelerado


ao trecho, além disso, a narradora faz menção à obra do poeta português Alberto de Serpa
“Lisboa é longe” para corroborar com esta ideia de que o grande inimigo desta viagem,

292
naquele momento, é o tempo. Mas, apesar da pressa, o olhar plástico da narradora viajante
capta, nos instantes passageiros da viagem, cenários que a encantam e os transpõe para o
seu texto. Cecília encontra na cultura ancestral histórica e literária portuguesa, como as
cantigas trovadorescas de D. Dinis, o castelo e a paisagem natural do pinhal sua imagem
afetiva de Leiria. É interessante salientar, como os trechos das cantigas de D. Dinis
utilizados pela cronista, sugerem uma dualidade entre um tempo campestre de “flores do
verde pino” e “tempos das pastoras ben talhadas” e um tempo moderno e apressado em
que vive a cronista.

Imagens de Coimbra
Como já dito, em “ Até Lisboa”, Cecília faz o relato de suas passagens por algumas
cidades portuguesas que estão no percurso entre Salamanca e Lisboa. Embora a narradora
esteja de passagem, não deixa de ressaltar a beleza da paisagem que, para a autora, já era
muito conhecida, considerando que esteve presente anteriormente na cidade proferindo
conferências na Universidade. Adiante, um trecho desta crônica, em que a narradora exibe
sua passagem por Coimbra:

Já são três e meia, - e, se tudo correr bem, em duas horas passaremos em


Coimbra. Será como se atravessássemos uma velha gravura, que nos
parecerá um pouco modernizada. Amaremos essa luz delicadamente
recortada em múltiplos pormenores a encantada e decantada cidade dos
estudantes. Acharemos, talvez, o Mondego muito curto das águas. Que é
feito das ondas de todos estes rios do mundo? Onde estão as espelhantes
curvas do Mondego que há tempos conheci? Recordo-as agora, e, nos
seus “saudosos campos”, os formosos olhos daquela “que depois de ser
morta foi rainha” (MEIRELES, 2016, p. 94).

O excerto inicia com uma marcação temporal bem acentuada “já são três e meia”,
“em duas horas passaremos em Coimbra”, que ajudam a reforçar a sensação de incerteza
do tempo e das coisas, os verbos utilizados no futuro do presente como “passaremos”,
“amaremos”, “acharemos” também são utilizados para expressar esta incerteza. Do
mesmo modo, a narradora, apesar das incertezas, evidencia que, apesar de estar saindo da
cidade de Guarda, que é uma cidade com aspecto medieval, certamente ainda se encantará
pelos lugares que já fazem parte do seu imaginário, como a Universidade, o rio Mondego
e os famosos campos que levam o seu nome.
Além dos pensamentos de incerteza com as descobertas que “a encantada e
decantada cidade dos estudantes” poderá lhe proporcionar, a narradora se põe a questionar
se a modernidade teria afetado as paisagens naturais de Coimbra, estaria o rio Mondego
como outrora ou estaria “muito curto das águas”? E os campos batizados pelo seu nome

293
ainda estariam da mesma forma que foram vistos por Inês de Castro? Rainha, esta,
lembrada pela narradora ao citar trechos que fazem referência direta ao Episódio de Inês
de Castro do clássico português Os Lusíadas de Camões.
Em sua composição sobre Coimbra, Cecília proporciona uma escrita carregada de
incertezas e inquietudes, aliadas aos elementos poéticos que compõe Os Lusíadas,
valorizando a ótica histórica e literária do lugar.

Considerações finais

Cecília Meireles foi dona de uma vasta produção literária tanto na poesia quanto
na prosa. Nesta pesquisa foi possível perceber que a estética lírica esteve fortemente
presente nestes textos em prosa, mais especificamente, em suas crônicas de viagem. Com
base na leitura e pesquisa destas crônicas, foi possível perceber, que mesmo sendo textos
criados a partir de experiências de viagens reais e escritos para serem publicados em
jornais, Cecília Meireles produz crônicas poéticas através de uma linguagem abarrotada
de lirismo e carregadas com uma riqueza intertextual que traz influências de textos dos
mais variados campos do conhecimento, como por exemplo, textos sobre gastronomia,
literatura trovadoresca, ritmos musicais, enfim, são crônicas que apesar do suporte em
que estão fixadas não se apoiam somente em narrar a realidade circunstancial de uma
viagem, mas trazem uma perspectiva bastante subjetiva da narradora Cecília.
A crônica como um gênero literário híbrido mostra que é um espaço propício para
a abordagem de temáticas subjetivas e Cecília faz um magnífico uso literário deste gênero
para transpor assuntos que sempre foram debatidos em sua obra, como a efemeridade da
vida, a fugacidade das coisas, diferenças culturais, compreensão do outro e, acreditamos
que neste trabalho foi possível compreender essa construção textual da crônica de viagem
ceciliana que oferece ao leitora uma literatura que aborda os problemas e acontecimentos
do cotidiano de maneira simples, leve, bem humorada, mas ao mesmo tempo com uma
evidente carga reflexiva.

294
Referências
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Ansgar (Ed.). Cultural Memory Studies: An International and Interdisciplinary
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Imagens na Narrativa de Viagens - II Imagologia literária: contornos históricos e
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REDMOND, William Valentine. (Org.). A crônica na literatura brasileira. Rio de


Janeiro: Editora Galo Branco, 2008. 

SOUSA, Celeste H. M. Ribeiro de. Do cá e do lá: introdução à imagologia. São


Paulo, Humanitas/Fapesp, 2004.

295
VIAGEM E RESISTÊNCIA: UMA LEITURA SOBRE O CONCEITO DE
VIAGEM NO IMAGINÁRIO COLETIVO DAS MULHERES MARROQUINAS
NA OBRA DE FATIMA MERNISSI
Vanessa Aparecida Kramer(UFSCar)1

Resumo: O presente trabalho analisa como a viagem é representada simbolicamente pelo


imaginário feminino na autobiografia da escritora marroquina Fatima Mernissi. Assim,
procuramos entender como a narrativa de Nasci num harém: As mil noites de Xerazade(2001)
estabelece formas de representação da viagem que insurgem como um ato de resistência à
realidade reprimida de mulheres inseridas em uma sociedade estritamente normativa Desse
modo, analisamos os sentidos que o conceito de viagem produz na ficção e a relevância desse
imaginário coletivo para a resistência de mulheres ao atuar como um mecanismo de contestação
às imposições patriarcais e religiosas que predominam nas sociedades islâmicas do oriente.
Palavras-chave: Cultura marroquina; Gênero; Literatura de resistência; Viagem.

Ao realizar uma leitura epistemológica da obra Nasci num harém: As mil noites
de Xerazade de Fatima Mernissi, consideramos os pressupostos de Maria Cardeira da
Silva(2008, p. 142), nos quais a autora defende que os estudos sobre mulheres no
contexto islâmico se desenvolveu, basicamente, numa estrutura dicotômica, de modo
que “a mera revalorização do privado e do doméstico continuou, afinal, a acantonar
ainda a mulher perpetuando a sua marginalização num espaço estrito e estandardizado”
Portanto, ressaltamos que essa noção de público/homens e privado/mulheres
torna-se fundamental quando nosso objetivo é, justamente, tratar de viagens de
mulheres, no entanto, mais do que reforçar afirmações estereotipadas, pretendemos
partir da relação hierárquica de gênero com a finalidade de entender como o texto
literário de Mernissi torna latente a pluralidade de identidades femininas dinâmicas e
ativas diante das conjunturas sociais do sistema patriarcal e como elas resistem a tais
imposições e logram desvencilhar-se desses espaços circunscritos.
Ao pensar o conceito de viagem atrelado ao empoderamento feminino, vale
ressaltar que viajar foi, historicamente, uma prática considerada exclusivamente
masculina. Tendo em vista os riscos de se expor perante o diverso e os perigos
mundanos existentes fora do ambiente doméstico, a viagem era considerada inadequada
para o público feminino. Contudo, mesmo se configurando uma ação restrita aos

1
Graduada em Letras (UNICENTRO), Mestre em Letras (UNICENTRO), Doutoranda em Estudos de
Literatura (UFSCar). Contato: vanessa-kramer@hotmail.com.

296
homens, muitas mulheres atravessaram fronteiras e registraram suas experiências nos
lugares mais remotos e de difícil acesso.
A viagem pode ser considerada um elemento essencial para a literatura ao
fornecer uma conjuntura para grandes feitos heróicos, seja o caminho ao exilado ou tão
somente a ambientação de uma realização pessoal. Ela foi o cenário de obras literárias
fundantes como A Odisseia de Homero, Eneida de Virgílio e Os Lusíadas de Camões.
Além de configurar uma infinidade de relatos de viagens os quais podem ser
classificados na atualidade como um gênero literário específico, também passou a ser
conteúdo de narrativas de mulheres escritoras, a exemplo disso, podemos citar
Alexandra David-Néel; Mary Kingsley; Anna Maria Falconbridge; Rose Freycinet;
Jemina Kindersley; Elizabeth Macquarie, dentre tantas outras.
Diante disso, torna-se relevante pensar a representatividade da mulher na
literatura e a complexa rede que engloba o universo feminino ao levar em conta fatores
sociais, históricos, políticos, culturais e institucionais. De acordo com as afirmações de
Rita Felski(2013), além de analisar os discursos que tratam de mulheres, faz-se
necessário pensar também a representatividade dos corpos nesses discursos, pois,
certamente, as mulheres protagonizaram a literatura canônica desde sempre, no entanto,
trata-se de obras que foram escritas por homens, na maioria das vezes, brancos e que
pertenciam a uma classe social privilegiada, uma vez que “até meados do século XX, a
possibilidade de ‘o segundo sexo’ se afirmar em domínios que não o doméstico era,
praticamente, inaceitável” (ZINANI, 2010, p. 151).
Historicamente, a mulher é descrita em textos literários pela percepção
masculina num mecanismo de perpetuação do sistema patriarcal e que, apesar de todo o
engajamento e lutas que garantiram inúmeros direitos e um modo de vida libertário às
mulheres, esse mecanismo perdura com a demarcação de espaços marginais para o
“sexo frágil”. Nesse sentido, Felski (2013, p. 6) propõe o contra-mito que consiste no
projeto de que a crítica feminista deve levar “a sério as próprias compreensões passadas
de mulheres e de homens de suas posições dentro dos processos históricos e sociais”, e
adquirir propriedade “como um meio de abordar a história do moderno através de uma
investigação dos diversos modos pelos quais a modernidade tem ela mesma sido
representada” (FELSKI, 2013, p. 6).

297
A desigualdade de gênero sempre esteve impregnada na história das mulheres e
vem atuando como um elemento estrutural na constituição das sociedades de um modo
geral, isso porque o patriarcalismo é um sistema que vem se perpetuando no tempo e no
espaço, sendo um mecanismo de normatização de inúmeras sociedades em diferentes
pontos geográficos, tornando-se, portanto, global. Desde os escritos bíblicos, a mulher
foi designada ao desempenho de ações subalternas ao homem, considerada de boa
índole ao se portar de modo servil e profana caso esta se rebelasse.
Dessa forma, a etiqueta dita à mulher que ela é designada ao confinamento
doméstico e à obediência patriarcal para que jamais fique desamparada por uma
proteção masculina. Disciplinada desde pequena pelas instituições sociais, a menina
recebe uma doutrinação completa sobre como se portar no mundo para exercer com
eficácia o seu papel de filha e mais tarde o de esposa e religiosa, uma vez que é
impelida ao matrimônio e a sustentação do lar, pois, esse era o único caminho que lhe
permitia constituir a sua vida adulta dentro de uma moralidade social.
Assim, a mulher teve, por muito tempo, espaços públicos negados. Trata-se de
um corpo que teve seus discursos reprimidos e que só passou a ter legitimidade
mediante atos de resistência de grupos de mulheres através de um posicionamento
crítico e luta constante ao longo do tempo e que, por conseguinte, vem se acentuando na
atualidade. Portanto, essa realidade reprimida também ocupou o imaginário ficcional e
artístico em diversas culturas, ora imitando a realidade, ora estabelecendo uma ruptura.
Fatima Mernissi (Fez, 1940 - Rabat, 2015) foi uma escritora marroquina muito
comprometida com as problemáticas do seu tempo, doutora em sociologia, professora
universitária e feminista, lutou pelo direito das mulheres na Arábia, inclusive defendeu
essa causa no contexto Islâmico. Como mérito de seu trabalho de denúncias acerca das
desigualdades de gênero no patriarcado mulçumano, foi vencedora do prêmio Príncipe
de Asturias em 2003.
A autora deixou como legado uma vasta obra, dentre as publicações mais
relevantes, citamos Beyond the Veil(1975); Dreams of Trespass(1994); Islam and
Democracy(2010); The forgotten queens of Islam(1993); Women's rebellion & Islamic
memory(1996); dentre outras e a que elegemos como objeto de análise deste trabalho se
intitula Scheherazade Goes West - Different Cultures, Different Harems, na versão
original e foi traduzido para o português por Maria Adelaide Cervaens Rodrigues.

298
Nasci num harém: As mil noites de Xerazade é um texto de cunho
autobiográfico em que a protagonista, Fatima, narra as memórias de sua infância, a qual
passou junto da família em um harém na cidade de Marrocos. O relato se estende até a
vida adulta, quando ela se torna uma escritora reconhecida no mundo todo e além de
contar a sua história, a protagonista descreve os costumes marroquinos desde a década
de 40 e faz um resgate da literatura oriental a fim de problematizar a situação da mulher
no contexto daquela época. Por intermédio da narrativa literária, Mernissi abre as portas
do harém e narra os fatos pelo ponto de vista de uma mulher que nasceu e cresceu neste
espaço.
Daí que a representatividade de gênero discutida por Felski nos permite pensar a
relevância da conjuntura externa da obra, uma vez que esta foi escrita por uma mulher
oriental, que por sua vez, denuncia as problemáticas do seu tempo e no plano da
estrutura interna por se tratar de uma história narrada em 1ª pessoa, dotada de
estratégias narrativas significativamente utilizadas na literatura de resistência
contemporânea, o que faz com que o texto flua de acordo com o entendimento e as
impressões de mundo da protagonista, podendo assim, revelar ao leitor as informações
mais íntimas e peculiares que somente poderiam ser contadas pelo ponto de vista desta.
Compreender as especificidades do gênero textual nos auxilia nas discussões
sobre a problemática da mulher marroquina sem reproduzir os estereótipos
generalizantes acerca da figura da mulher, uma prática que, muitas vezes, é recorrente
na própria sociedade como forma de controle institucional. Isso porque o texto
autobiográfico permite que o eu que está com a palavra conte as suas experiências com
riqueza de detalhes e uma singularidade e legitimidade únicas, afinal, ele vivenciou o
que está sendo narrado.
Philippe Lejeune(2008) define o texto autobiográfico como uma “narrativa
retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando
focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade”
(LEJEUNE, 2008, p. 14). Ainda de acordo com o teórico, o autor do texto
autobiográfico estabelece um pacto com o leitor o que consiste na mesma identidade
entre autor, narrador e personagem.
Todavia, analisar uma autobiografia “não se trata de buscar, aquém, uma
inverificável semelhança com uma pessoa real, mas sim de ir além, para verificar, no

299
texto crítico, o tipo de leitura que ela engendra, a crença que produz” (LEJEUNE, 2008,
p. 47), portanto, não se trata de verificar dados reais da vida da autora no texto literário,
mas de analisar como os fatos estão ordenados textualmente e os sentidos que isso
produz, seria o que no conceito aristotélico entende-se por verossimilhança. É essa
compreensão que nos permite analisar textualmente a problematização de questões
relacionadas à mulher marroquina inserida em um contexto social específico.
Desse modo, verificamos que ao contar a sua história pessoal, a
narradora/personagem amplia a perspectiva narrativa quando descreve todo o modo de
vida do seu povo; como eram constituídos os haréns, os costumes da família, as
vestimentas, as atividades que mantêm as mulheres ocupadas, a hierarquia instaurada
entre homens, mulheres e crianças, as leis que regiam a vida em sociedade e para além
da realidade, ela evoca a cultura islâmica e a fabulação que agrega o imaginário coletivo
das mulheres da família e da civilização oriental como um todo.
Assim, a protagonista descreve como a ficção por meio da literatura oral ou
escrita, do teatro, da pintura e até mesmo dos sonhos, preenche a lacuna na vida das
mulheres prisioneiras do sistema patriarcal e então é possível observar que a viagem se
apresenta como um componente predominante desse imaginário. Nas palavras de
Serrano, a viagem pode até mesmo significar um estado de espírito que surge a partir do
momento em que o indivíduo entra em conflito com a sua realidade desejando mudá-la
e isso é o suficiente para gerar uma atmosfera moral de uma viagem.
É, precisamente, este recorte que norteará a nossa análise a fim de compreender
como a viagem se configura no imaginário coletivo das personagens femininas, uma vez
que a trama toda é perpassada por uma representação simbólica da noção do que seria
ser livre, uma vez que a infância da protagonista se passa no pátio de um harém, onde
crianças e mulheres compartilham das mesmas fabulações e devaneios acerca da
liberdade, uma liberdade que é negada culturalmente às mulheres do oriente
mulçumano.
A fim de teorizar a contextualização sócio-histórica da obra, tomamos como
referência as afirmações de Fatima Sadiqi(2008) ao afirmar que a sociedade marroquina
estabelece uma categorização de gênero com o objetivo de padronizar os mecanismos
sociais de modo que a normatização “é construída sobre uma distribuição de papéis
claramente determinados para homens e mulheres (SADIQI, 2008, p. 21). Ainda em

300
conformidade com a estudiosa, isso decorre porque a história escrita de Marrocos é,
ainda na atualidade, um ofício que pertence aos homens, portanto, não há como ter
acesso a registros oriundos da percepção feminina, além do mais, existe uma série de
fatores que arquitetam a marginalização das mulheres marroquinas, dentre eles o
sistema político; a geografia; o islamismo, a oralidade, o multilinguísmo, dentre outros.
As censuras vão desde as mais veladas até as mais explícitas e brutais, uma vez
que as mulheres são excluídas dos espaços públicos, “pela sanção de todas as formas de
violência física e moral contra elas nestes espaços. A liberdade das mulheres é vista
como desafio à fábrica social e ao status quo masculino” (SADIQI, 2008, p. 21). Em
uma sociedade em que o homem é considerado superior, as mulheres são vítimas de
todo tipo de agressão ao serem apontadas como seres de mentes limitadas, incapazes e
até mesmo símbolo de mau agouro, “as mulheres marroquinas são vistas como
‘demasiado emocionais’, ‘demasiado fracas’, ‘demasiado más’, ‘trabalhadoras’,
‘pacientes’ e ‘obedientes’” (SADIQI, 2008, p. 24).
Com isso, vemos que a sociedade oriental marroquina dispõe de um acentuado
conservadorismo patriarcal e religioso sendo que os homens cumprem severamente com
suas funções de provedor do lar, exatamente o papel exercido pelo pai de Fatima, o qual
é descrito por ela como um homem correto e justo, obediente ao corão e à manutenção
tradicional do harém. Nas palavras de Sadiqi, “a estrutura familiar marroquina
geralmente é encabeçada pelo pai e pela linhagem masculina do lado paterno e é
legalmente baseada nas relações de sangue; a filiação natural” (SADIQI, 2008, p. 21).
Outro fator que influencia na questão de gênero é a economia de Marrocos,
tendo em vista que as riquezas da comunidade provem da agricultura, desse modo, o
poder aquisitivo está relacionado ao cultivo da terra e isso influencia o imaginário
cultural da sociedade, a qual se baseia no princípio da permanência no lugar de origem.
É notório esse posicionamento conservador na conduta do pai da protagonista que ao
presenciar o deslumbramento da família diante dos livros, chama a atenção para a
realidade e para a terra, “não devemos impressionar-nos demasiado com os intelectuais.
É melhor ser fellah como nós, que amamos a terra e a admiramos e depois nos
educamos” (MERNISSI, 2001, p. 79).
Enquanto que o homem representa a razão e a manutenção dos costumes, a
mulher luta para subverter as leis preestabelecidas, uma vez que exerce o papel do outro

301
reprimido – o que obviamente, não significa afirmar uma uniformidade de pensamento
feminino, pois é possível notar uma contradição de opinião entre as próprias mulheres.
Dentre as personagens femininas, há aquelas defendem a emancipação das mulheres e
há aquelas que se circunscrevem na tradição – daí que o texto problematiza o embate
entre o tradicional e a ruptura de uma forma complexa e heterogênea.
Enquanto que o pai atua em nome da ordem, a mãe de Fatima nutre ideais
libertários acerca da condição das mulheres marroquinas. Ao considerar que a sua
geração foi sacrificada pelo sistema patriarcal e pela cultura mulçumana, ela cuida para
que a filha tenha um futuro diferente do seu e dentre as preocupações da mãe estão
questões como a alforria do véu, uma boa educação, a preparação para torná-la uma
mulher forte diante de situações difíceis que o mundo poderia oferecer-lhe, dentre
outras. Nas palavras de Fatima, mesmo que a mãe tenha passado toda a vida em um
harém, ela conquistou seus direitos, como por exemplo, tomar o seu café da manhã
solitária quando as leis diziam que a refeição deveria ser realizada em família.
Tendo em vista a rigidez das condições de vida das mulheres marroquinas ao
não dispor da liberdade de sair para espaços públicos sem estarem acompanhadas de um
nmahram, ou quando são obrigadas a usar roupas que escondam inteiramente seus
corpos, inclusive o rosto, é possível compreender como essas questões fazem com que
pequenos detalhes do dia a dia se tornem causas de combate, pois precisam ser
conquistados. A restrição de liberdade desperta fantasias com peculiaridades bem
demarcadas no imaginário das mulheres orientais, se comparado ao ocidente e se os
sentidos da cruel realidade são escassos, a produção de sentidos simbólicos emerge
profundamente fecunda.
Como viviam limitadas aos muros do harém, as mulheres buscavam alternativas
para não serem consumidas pela monotonia diária e para isso era necessário reinventar
um sentido para suas vidas completamente restringidas. Apesar de toda censura, é
possível notar que elas não eram passivas diante das imposições instauradas, uma vez
que violavam regras e agiam clandestinamente. Além das subversões que realizavam
efetivamente, muitas alegorias povoavam a imaginação feminina com símbolos,
geralmente, relacionados aos elementos da natureza com vastos campos os quais
permitem mover-se por espaços não demarcados, e o pássaro, é um elemento simbólico

302
que é retomado inúmeras vezes na narrativa com ênfase em suas asas, descrita pela
protagonista como mágicas.
Como precisavam manter seus dias ocupados, as mulheres e as crianças se
reuniam para encenar peças teatrais e estas, geralmente, tinham um teor crítico acerca
da opressão com cenas que davam a elas a liberdade que não tinham de fato. Desse
modo, o espetáculo exercia a função de expelir os maus sentimentos, “Asmahan
montava a cavalo [...] para ela, a libertação significava correr. Ser livre era estar em
movimento. Correr velozmente, mesmo sem meta, fazia-a feliz; mover-se pelo puro
prazer de o fazer” (MERNISSI, 2001, p. 95).
Com o objetivo de demonstrar como essas metáforas são exteriorizadas pelas
personagens de Mernissi, mencionamos uma das tarefas habituais entre as mulheres do
harém que corresponde ao bordado. Nas palavras da narradora/protagonista, bordar era
um ofício que possibilitava às mulheres um posicionamento crítico diante do mundo,
pois a estampa poderia ser clássica ou inovadora e algumas mulheres ousavam fazer
desenhos emblemáticos que causavam estranhamento e revolta às conservadoras:
Naquele dia a tia Habiba estava completamente só a coser um pássaro verde
de asas douradas. Os pássaros grandes com asas abertas chamativas não eram
os desenhos clássicos, e se Lalla Mani visse aquele, diria que era uma
inovação horrível, uma inovação que indicava que o seu autor não estava no
seu perfeito juízo (MERNISSI, 2001, p. 124).

Por se tratar de uma expressão artística, o bordado carregava consigo gostos,


sonhos e desejos do seu criador, por isso ele era considerado um objeto que revelava os
pensamentos e a personalidade de quem o fazia. Fatima afirma era uma prática habitual
a criação artesanal de pássaros, mas geralmente estes eram muito pequenos e
imobilizados, assim como as mulheres eram aprisionadas nos haréns.
A tia Habiba, que aparentava “muito serena ante as exigências de um mundo
exterior severo” (MERNISSI, 2001, p.124) lograva alçar vôo e encontrar sentidos para
prosseguir através de suas fabulações e bordados, ela sempre dizia que “uma mulher
podia ser completamente impotente, e apesar disso dar sentido à sua vida sonhando
voar” (MERNISSI, 2001, p.124). Com isso, é possível afirmar que a realidade de muitas
mulheres era sustentada por elementos alegóricos justamente por figurarem uma
violação às regras pré-estabelecidas.
Essas estratégias estão presentes em todos os planos do texto de Mernissi, uma
vez que além da história em si, a narrativa engendra uma intertextualidade com obras

303
literárias canônicas e mitos populares da cultura oriental, de modo que, discursos de
outras mulheres fortes que tomaram decisões e moldaram o seu destino se somam a sua.
Uma dessas vozes é a de Xerazade, protagonista de As Mil e Uma Noites, que através de
suas histórias, salva a si mesma e milhares de outras mulheres condenadas à morte pelo
rei Xariar.
Com a finalidade de aprofundar nossa discussão acerca das representações
simbólicas, tomamos como referência os conceitos defendidos por Jean
Chevalier(1991), ao compreender o pássaro como o símbolo da relação entre o céu e a
terra. Nas palavras do teórico, justamente por figurar o desprendimento terreno, os
“imortais adotam a forma de aves para significar a leveza, a liberação do peso terrestre”
(CHEVALIER, 1991, p. 687). Nesse sentido, a ave representa o desatar da alma para
além do corpo através do conhecimento. Ainda de acordo com o estudioso, no Corão a
inteligência está estritamente relacionada à espiritualidade, ou seja, a liberdade é algo a
ser conquistada através da sabedoria espiritual e esta, por sua vez, define o destino de
quem a conquistar.
Tendo em vista as afirmações de Chevalier, podemos considerar que a ficção
oriental acerca do imaginário feminino e em específico o fabuloso imaginário das
personagens de Mernissi, estabelecem uma relação do universo feminino com as
habilidades do pássaro, dando àquela o poder deste para que se desvencilhe do peso
terrestre no que diz respeito às normas que lhe faz prisioneira, para que transcenda as
barreiras:
Vendo Chama atuar, jurei a mim própria que, quando fosse mais velha e tão
alta como ela, me dedicaria ao teatro. Deslumbraria as multidões árabes que
me contemplariam ordenadamente sentadas em filas e explicar-lhes-ia o que
significava ser uma mulher embriagada de sonhos numa terra que esmaga
tanto os sonhos como os sonhadores (MERNISSI, 2001, p. 97) (grifo nosso).

A protagonista narra toda a sua infância demarcada por sonhos para o futuro até
a fase adulta, quando todos os seus projetos se tornam realidade com a carreira de
escritora reconhecida mundialmente. Fatima logra se desvencilhar de muitos
paradigmas sociais e faz inúmeras viagens a trabalho, inclusive para o ocidente. Num
tom confidencial ela revela que viajar não é uma tarefa fácil e que até mesmo depois de
ser uma viajante experiente ela sente-se insegura e receosa ao atravessar uma fronteira.
Em suas palavras, viajar é um jogo de poder diante do qual o viajante precisa
saber se posicionar e encontrar mecanismos para camuflar o medo e não vacilar diante

304
do “adversário”. Houve uma ocasião em que ela não se sentia confiante, mas “graças à
enorme pulseira berbere de prata que eu levava no braço e aos lábios pintados com
bâton Chanel vermelho vivo, ninguém se apercebeu da minha ansiedade durante essa
viagem de promoção” (MERNISSI, 2001, p. 206).
Ao relatar as suas experiências enquanto mulher viajante, a protagonista vai ao
encontro da afirmação que Serrano faz em seu livro sobre viagens, a qual diz que viajar
também é perder a inocência, uma vez que o viajante precisa deixar o conforto da terra
natal, logo, todas as suas referências primeiras de mundo para adentrar, solitário,
espaços desconhecidos e relacionar-se com pessoas e culturas distintas. Se viajar já é
uma tarefa complexa por excelência, as dificuldades se acentuam na medida em que
consideramos o fato da protagonista ser uma mulher, pois esta precisa enfrentar
inúmeras eventualidades que não sucederiam a um homem viajante, por exemplo:
Mas então recordei mais uma vez as palavras da avó Yasmina: viajar não é
uma oportunidade para se divertir, mas sim para aprender, atravessar
fronteiras, superar o medo dos estrangeiros, fazer o esforço para compreender
outras culturas e através disso adquirir poder. As viagens ajudam-nos a
compreender quem somos, e até que ponto somos condicionados pela nossa
própria cultura (MERNISSI, 2001, p. 264).

Nas palavras de Chevalier, as asas que permitem aos pássaros alçar vôo, estão
relacionadas à liberação da alma, no entanto, elas só podem ser obtidas a quem faça jus
a tê-las, pois são “conquistadas mediante uma educação iniciática e purificadora por
vezes longa e arriscada” (CHEVALIER, 1991, p. 90). Portanto, esses símbolos estão
estritamente ligados à resistência das mulheres, que através do conhecimento, criam
estratégias de sobrevivência em meio à desigualdade de gênero e reescrevem seus
destinos. No caso da protagonista, vemos que ela buscou estratégias que a fortalecessem
para atravessar fronteiras, ou seja, conquistou suas asas para só então poder “voar”.
Chegando às nossas palavras finais, podemos dizer que com as reflexões feitas
acerca do conceito de viagem relacionado às discussões de gênero com a finalidade de
problematizar a representatividade da mulher marroquina na obra de Mernissi, é
possível compreender que o que ganha relevância para o imaginário feminino é a
atmosfera simbólica que antecede a viagem, uma vez que a ênfase está justamente na
idealização de liberdade das mulheres no contexto oriental e na complexidade da
preparação que antecede a viagem em si. Dessa maneira, a viagem é vista como um

305
projeto e uma miragem que se configura mediante a restrição do modo de vida das
mulheres no sistema patriarcal de Marrocos.
Se os homens atuam em nome da razão e a conservação da ordem, visto que a
sociedade marroquina se organiza em detrimento da legitimação do discurso masculino,
confere às mulheres a busca de mecanismos para subverter as normas e libertar-se das
convenções a elas designadas. Portanto, a viagem se apresenta como um propósito
maior e uma essência que alimenta a resistência feminina diante do patriarcado como
um todo, já que para se tornar uma viajante, as mulheres orientais precisam enfrentar
uma série de restrições que se encontram atreladas as suas realidades mesmo nos
espaços privados.
É possível compreender que nesse contexto social a complexidade consiste em
enfrentar barreiras específicas do gênero, pois elas precisam criar artifícios para
desvencilhar-se das censuras preestabelecidas e como não são livres para fazer suas
próprias escolhas ao ter que se limitar a espaços circunscritos, elas respondem a essa
realidade completamente restritiva encontrando maneiras de resistir que sejam discretas
e invisíveis aos olhos da lei, ou seja, criando estratégias para conquistar novos espaços e
formas de vida.
Nesse sentido, a literatura e a arte, de um modo geral, atuam como um elemento
de instrução e fonte de conhecimento, as quais permitem a elas questionar a realidade e
transformá-la. Assim sendo, a viagem é retratada como uma miragem que povoa o
imaginário feminino, num ritual de estratégias que antecede o ato de partir, de modo
que, o que ganha relevância é a preparação para enfrentar mundos desconhecidos,
realidades nunca antes vividas. Com isso, o imaginário coletivo dessas mulheres dá
conta de resolver esses impasses através da arte como uma metáfora da vida e então
vemos que a ficção preenche os vazios existenciais e a literatura resolve simbolicamente
os impasses da realidade reprimida.
Com isso, consideramos que a autobiografia de Mernissi também se insere na
mitologia de resistência feminina e contribui para o empoderamento das mulheres, visto
que corresponde à expressão de uma mulher marroquina que além de ser uma viajante,
problematiza temáticas que englobam a realidade das mulheres orientais. Ao relatar suas
experiências individuais, pelo seu ponto de vista narrativo, percebemos que o horizonte
se acresce para o coletivo, de modo que outras mulheres também ganham voz. Portanto,

306
Nasci num harém: As mil noites de Xerazade é uma obra de grande relevância para
estudos comprometidos com o feminismo e temáticas de gênero discutidas na
contemporaneidade.

Referências
CANDIDO, Antonio. Direitos Humanos e literatura. In: A.C.R. Fester (Org.) Direitos
humanos E… Cjp / Ed. Brasiliense, 1989.

CHEVALIER, Jean. GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos,


costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). Trad. Vera da Costa e Silva. 5. ed.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.

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em: https://pt.scribd.com/document/150967457/O-Genero-da-Modernidade-Rita-Felski-
Traducao-Introducao-Mitos-do-Moderno-Joana-Pupo. Acesso em 10 Nov 2018.

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Org. Jovita Maria


Gerheim Noronha. Trad. Jovita Maria Gerheim, Maria Inês Coimbra Guedes. Belo
Horizonte: UFMG, 2008.

QUEIRÓS, Luís Miguel. Morreu a feminista marroquina Fatema Mernissi. Disponível


em: https://www.publico.pt/2015/11/30/culturaipsilon/noticia/morreu-a-feminista-
marroquina-fatema-mernissi-1716055. Acesso em 20 Nov 2018.

MERNISSI. Fatima. Nasci num harém: As mil noites de Xerazade. Trad. Maria
Adelaide Cervaens Rodrigues. Alfragide: Edições ASA II, S.A., 2001.

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Scarinci. cadernos pagu (30), janeiro-junho de 2008:11-32. Disponível em:
https://www.researchgate.net/publication/250045858_Estereotipos_e_mulheres_na_cult
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SERRANO, Sónia. Mulheres Viajantes. Lisboa: Tinta-da-China, 2017.

SILVA, Maria Cardeira da. As mulheres, os outros e as mulheres dos outros:


feminismo, academia e Islão. cadernos pagu (30), janeiro-junho de 2008:137-159.
Disponível em:
file:///C:/Users/OEM/Downloads/As_mulheres_os_outros_e_as_mulheres_dos_outros_f
em.pdf. Acesso em 24 Abr 2019.

ZINANI, Cecil Jeanine Albert. História da literatura: questões contemporâneas. Caxias


do Sul: EDUCS, 2010.

307
“VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA” ANUNCIANDO “CÂNTICO DA
MANHÃ FUTURA”

Andréia Maria da Silva (UFMT) 1

Resumo: Esta pesquisa tem por objetivo apresentar um estudo comparado entre o poema “Vou-
me embora pra Pasárgada”, do poeta brasileiro Manuel Bandeira e o poema “Passaporte para
Pasárgada”, do poeta cabo-verdiano Osvaldo de Alcântara. Trata-se de uma pesquisa
eminentemente bibliográfica, na qual, a partir do mito de Pasárgada, criado pelo poeta
brasileiro, em “Vou-me embora pra Pasárgada”, poema publicado na obra Libertinagem (1930),
estabelecemos um diálogo entre Brasil e Cabo Verde na reflexão do gesto de “reinvenção”
poética adotado por Osvaldo de Alcântara, no poema “Passaporte para Pasárgada”, publicado na
obra O cântico da manhã futura (1946).
Palavras-chaves: Manuel Bandeira, Osvaldo de Alcântara, Brasil, Cabo Verde, diálogos
literários.

Assim, partindo do pressuposto de que “todo produto é resultante de várias tradições,


implicando sua constituição matérias diversas que se imbricam. Logo, um produto de natureza
híbrida [...]” (ABDALA JUNIOR 2002, p.14), procuramos mostrar que o diálogo
estabelecido entre o Modernismo Brasileiro e a literatura nacional de Cabo Verde, por
meio da escrita poética de Manuel Bandeira e Osvaldo de Alcântara, é resultado dos
constantes diálogos que essas literaturas mantêm entre si. E, seguindo esse
direcionamento nossa pesquisa insiste em dizer que os aspectos em comum na poesia de
Manuel Bandeira e Osvaldo de Alcântara não se explicam simplesmente pelo fato
dessas culturas terem processos de luta pela conquista da independência política e
territorial parecidos, ou que a literatura nacional cabo-verdiana é mera reprodução do
Modernismo Brasileiro. Os traços que aproximam essas literaturas são consequências
do tão chamado “macrossistema” de língua portuguesa, no qual a produção literária
também pode ser considerada, um produto mesclado. E, diante às inúmeras diferenças
identificadas entre os poemas mencionados nesta pesquisa, podemos considerá-las
responsáveis pela a individualização de cada um desses sistemas literários, quando
compreendidas como fatores que particularizam e enriquecem uma dada produção
artística ou literária, dentro da representatividade mundial.
A literatura nacional de Cabo Verde surgiu, segundo Baltasar Lopes em seu
depoimento na segunda edição da revista Claridade – revista de artes e letras,
publicada em 1936, data em que se comemora o quinquagésimo ano de publicação do

1
Graduada em Letras (ENEMAT), Mestre em estudos da linguagem na área de Literatura pela
Universidade Federal de Mato Grosso. Contato: anduniverso@gmail.com.

308
primeiro volume da revista, com o objetivo de mostrar para o mundo “que Cabo Verde
possuía uma personalidade autónoma bem caracterizada e diferenciada, que merecia um
tratamento e um atendimento específico”. (LOPES 1986, p. XIV).
A revista “Claridade”, portanto, seria a voz que cantaria a tradição cabo-verdiana
e toda a problemática presente no contexto cotidiano da gente do arquipélago, questões
estas que, por muito tempo, foram silenciadas, um projeto que ultrapassou os limites
literários se tornando também manifesto de reivindicação da independência política,
pois “pela militância, expressa ou latente nas suas páginas, a acção da revista, e com ela,
do grupo, configura-se bem como um movimento precursor da independência política
[...]”. (LOPES 1986, p V). Ou seja, “Claridade” foi ao mesmo tempo grito e voz: grito
em prol da independência cultural/intelectual e também política, uma maneira
encontrada para expressar o povo e a cultura cabo-verdiana na sua individualidade e não
como continuidade do modelo europeu e voz que anunciou tempos melhores, a partir do
próprio título “[...] Claridade: luz que nasce, luz nova que alumina, que se rasga diante
dos nossos olhos, e rasgando-se diante dos olhos desnuda as coisas novas, as coisas
nunca vistas porque oculta na opacidade do lado de lá”. (FERREIRA 1986, p. LXV).
O desejo de transformação e o espírito revolucionário tomou conta dos jovens
fundadores da revista, porém lhes faltava algo, a experiência, os ideias estavam postos,
mas o grupo operante não sabia ao certo como os desenvolver, nesse momento surgiu a
necessidade de buscar apoio em outros sistemas culturais, e assim o fizeram,
procuraram amparo em outras literaturas de vários países, inclusive em autores da
literatura brasileira e, sobretudo nas propostas do movimento do modernismo brasileiro
para a construção da literatura nacional cabo-verdiana.
Esse despertar para a literatura do modernismo brasileiro foi um dos fatores que
marca fortemente o surgimento da literatura nacional em Cabo Verde. Os precursores
do novo projeto literário cabo-verdiano objetivavam a recuperação e valorização da
identidade do povo e da cultura das ilhas, e encontraram nos brasileiros exemplos de
como fazer. Nessa nova roupagem literária, Cabo Verde passou a ser cantado “[...]
como o espaço e o ambiente onde as árvores morrem de sede, os homens, de fome, e a
esperança nunca morre [...].” (FONSECA E MOREIRA 2012, p.05).
Seja na estrutura, na temática ou na valorização da linguagem popular, de fato, o
modo de escrita da produção literária dos modernistas brasileiros colaborou
significantemente para a nova literatura de Cabo Verde, e em gesto de solidariedade, os

309
escritores cabo-verdianos em torno de Claridade não se intimidaram em demonstrar
tamanho apreço e gratidão a tão importante colaboração. E a partir desse momento
diálogos entre Brasil e Cabo Verde começam a ser observados, como é o caso da
correspondência entre Manuel Bandeira e Osvaldo de Alcântara, a qual dedicamos de
agora em diante através da leitura do poema “Vou-me embora pra Pasárgada” de
Manuel Bandeira e também do poema “Passaporte Para Pasárgada” de Osvaldo de
Alcântara.
Já de início é importante ressaltarmos que Pasárgada em diferentes contextos ou
de um modo geral, se inscreve enquanto simbologia da liberdade, essa é uma assertiva
que pode ser confirmada com base nas palavras de Santilli, quando a autora assegura
que “[...] Pasárgada, signo do prazer sem sombras, o império ideal arquiteta-se por
rarefação de compulsões: dos éditos da lógica e dos decretos da ética; dos espartilhos
políticos e dos contrapesos sociais”. (SANTILLI 1994, p. 114).
Assim, em “Vou-me embora pra Pasárgada” observamos que Pasárgada surge
enquanto campo de refúgio, um espaço criado no imaginário que concilia também
temporalidades opostas, uma poesia que se constrói com imagens da rejeição de um
presente hostilizado, de um passado feliz e de um futuro acolhedor.

Vou-me embora pra Pasárgada


Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei

Pasárgada, além de “lugar amável”, é também campo de libertação. Evadir-se para


Pasárgada significa a fuga de regras e convenções, a exemplo, podemos citar o sexo,
pois através do discurso apresentado na estrofe acima, observa-se que a maneira de ter o
sexo nessa cidade rompe com todos os tabus construídos tanto pela sociedade
conservadora quanto pelas leis divinas, uma vez que mulheres e camas se encontram na
mesma condição de fácil acesso. “Vou-me embora pra Pasárgada” é portanto, um grito
que expressa o desejo de diversas formas de liberdade.
Pasárgada é terreno sem regras e sem limites, porém, trata-se de um universo
particularizado com existência apenas no imaginário, isso é o que pode afirmar diante
do discurso do eu poético na última estrofe do poema.

E quando eu estiver mais triste


Mas triste de não ter jeito

310
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.

Essa estrofe inverte completamente o discurso da estrofe inicial. Quando o eu


poético confessa o desejo de fuga para Pasárgada em momentos de extrema tristeza, que
atinge o ponto de querer tentar contra a própria vida, fica confirmada a ideia de que esse
lugar só existe no imaginário de um sujeito em inconformidade com a vida no “aqui” e
no “presente”. E quando esse estado de inconformidade atinge as linhas do limite, a
vontade de fugir para Pasárgada é despertada como maneira de compensação das
frustações desse sujeito. E assim, Pasárgada, o “lugar amável” e campo de libertação
que tanto desperta desejos se inscreve como mito. Podemos dizer mito porque segundo
Mircea Eliade,

[...] o mito nunca desapareceu por completo: faz-se sentir nos sonhos,
nas fantasias e nostalgias do homem moderno, e a imensa literatura
psicológica habituou-nos a reencontrar a grande e a pequena mitologia
na actividade inconsciente e semiconsciente de cada indivíduo [...].
(1957, p. 18).

Observa-se que o mito é um fenômeno que tem se manifestado e atravessado toda


a história da existência humana. Eliade pontua que o mito se inscreve como forma de
comportamento humano e elemento civilizatório, segundo o autor, o mito “[...]
representa um certo modo de estar no mundo [...]”. Enquanto prática humana, o mito,
por assim dizer, é uma das motivações que conduz o homem a continuar existindo no
mundo.
Dialogando com Mircea Eliade, Abdala Junior assegura que o mito,

[...] é manifestação, assim de um continuum, que envolve


historicidade e psiquismo humano. Todo mito, além de manifestar
essa vontade de história, é também expressão de um drama humano
condensado. E é por isso que todo mito pode facilmente servir de
símbolo de situações dramáticas que constituem paradigmas culturais.
(ABDALA JUNIOR 2003, p.14).

Conforme as palavras de Abdala Junior, observamos que o mito tem se tornado


um importante fenômeno que impulsiona e desperta o desejo do homem para

311
continuação da vida futura e também como forma de libertação dos anseios que
impedem o indivíduo de se realizar enquanto sujeito de sua própria história. Em relação
ao espaço criado em “Vou-me embora pra Pasárgada”, podemos dizer que este se revela
como mito do paraíso. O grito “Vou-me embora para Pasárgada” anuncia o desejo de
fuga para outro lugar, assim como também o desejo de fuga da própria realidade. O
desejo de ir embora para Pasárgada se inscreve, portanto, como utopia da vida humana,
ou como aquilo que Abdala Junior conceitua como sendo o “sonho diurno”, uma vez
que,

É o sonho de quem procura novos horizontes, um princípio de


juventude – diremos, como em Ícaro, que revela a potencialidade
subjetiva dos indivíduos. É olhando para a frente, sonhando com o
futuro (o projeto intermediando o presente e o futuro), que se torna
possível concretizar objetivos. (ABDALA JUNIOR 2003, p. 18).

Na fala do autor, nota-se que é a partir da utopia, na idealização de projetos


futuros que a vida humana acontece. No caso de “Vou-me embora para Pasárgada”, é o
desejo da vida futura e promissora na terra distante que ameniza a tristeza e o
sofrimento vivenciados no “aqui” e “agora”. É o sonho de querer sempre recuperar a
melhor fase da vida, libertando-se de regras, limites, privações e opressões que mantém
o homem vivo. Assim “[...] temos em “Pasárgada”, um poema que é, ao mesmo tempo,
particular e universal, que fala do anseio de evasão e também do eterno desejo de
evasão do ser humano, da volta ao paraíso perdido, a uma idade de ouro [...]”.
(JARDIM 2007, p. 128). O grito de desabafo que Manuel Bandeira expressou, por meio
de um eu poético, se tornou um paradigma instaurado do incessante desejo humano de
realização enquanto sujeito em outro lugar.
E é o espaço mítico de libertação, o desejo e o sonho contínuo em busca da
realização do ser em outro lugar apresentados em “Vou-me embora pra Pasárgada”
alguns dos fatores que fizeram o poema ganhar dimensão, tornando-se mote de criação
para outros sistemas literários, como é o caso dos poemas do cabo-verdiano Osvaldo de
Alcântara que trazem o evasionismo como tema, que veremos adiante
Osvaldo de Alcântara e a matéria de sua poesia
“Passaporte para Pasárgada” é o poema introdutório do capítulo intitulado
Itinerário de Pasárgada que constitui a da obra Cântico da manhã futura (1986). Do
mesmo modo que “Vou-me embora pra Pasárgada”, o poema tem como mote o desejo

312
de fuga para o lugar distante como forma de sair do lugar indesejado e das frustações de
um “aqui” opressor.

Pasárgada não é lugar comum.


Lá quem manda é o Rei,
que é amigo dos horizontes
e ouve as cantigas que os meninos cantam
na Rua Direita e na Rua do Sol.

Quem tem ouvidos e oiça, que vá.

Os surdos não entram em Pasárgada.


Os surdos, entrego-os na misericórdia de Cristo,
que os há-de aperfeiçoar para a próxima reincarnação.
Nesta não entram em Pasárgada.
Já propus ao Rei que não concedesse o visto
a quem não foi à pedreira
arrancar uma pedra para Pasárgada.

Os surdos não entram em Pasárgada.

Oh! Rei! Pela tua magnificência,


concede mãos aos homens
para poderem ser cidadãos de Pasárgada.
Dá-lhes o martelo e a marreta das catedrais,
Para que a Poesia nasça das suas mãos!

O poema retoma o topos Pasárgada de Manuel Bandeira, mantendo


principalmente o tema da evasão. O desejo de fuga para outro lugar nesse poema de
Osvaldo de Alcântara também é decorrente da recusa do “aqui” e do “agora”.
Na primeira estrofe do poema, o eu poético apresenta Pasárgada, deixando claro
que o território “não é lugar comum”. Trata-se de uma cidade específica e governada
por um rei que se revela amigo da liberdade, e também daqueles que ecoam suas vozes
em prol de novos ideais.
O interessante é que, nesse contexto, o “passaporte” se inscreve como objeto de
ironia. Pensar o passaporte enquanto documento oficial emitido por um órgão público
formal, o qual permite um visto para a movimentação de pessoas em territórios
internacionais, como condição para a entrada em Pasárgada se torna uma situação um
tanto cômica, porque se estabelece a obrigatoriedade de ter em mãos esse documento,
como exigência para entrada numa cidade que não existe.
Observa-se que essa “Pasárgada” passa ainda por processo de construção. O canto
dos meninos da “Rua Direita e da Rua Sol” funcionam como uma espécie de
chamamento, para que a futura cidade possa ser erguida, trata-se de um canto que vem a

313
ser um manifesto estritamente relacionado à luta de uma coletividade pelos mesmos
ideais, semelhante ao “grito do galo” apresentado no poema “Tecendo a manhã” de João
Cabral de Melo Neto, que podemos observar abaixo.

Um galo sozinho não tece uma manhã:


ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

Nesse poema, o grito do galo se inscreve como forma de manifesto lançado com
intencionalidade de convocação de um coletivo de galos para que juntos tornem
possível o amanhecer. Nessa causa ocorre a necessidade da mobilização de outros galos,
porque o grito de apenas um galo não promove mudanças. O galo surge no contexto
desse poema como metáfora do homem, é o homem que necessita sempre de outros
homens em práticas conjuntas para transformar realidades ou até mesmo para continuar
existindo.
O convite em prol da construção da nova nação chega em forma de canto. Assim,
no contexto desse poema, é importante que se discuta também a respeito do canto.
Segundo Chevalier o canto é “símbolo da palavra que une a potência criadora à sua
criação, no momento em que esta última reconhece sua dependência de criatura,
exprimindo-a na alegria, na adoração ou na imploração [...]”. (CHEVALIER;
GUEERBRANT 2000, p. 176). Podemos dizer que no poema o canto é o artifício que
une o homem ao projeto de construção.
As vozes dos meninos cantores evocam a construção de uma nova nação, um
espaço a ser arquitetado com bases principalmente na liberdade e na pureza, uma vez
que o menino ou a criança é, segundo Chevalier e Gueerbrant (2000, p. 302), a
simbologia da inocência, a criança, de acordo com autor, é espontânea e não carrega
pensamentos dissimulados, e essas são características que carecem ser levadas em
consideração no planejamento da nação futura.
O discurso do poema também se encarrega de restringir a futura Pasárgada
somente para aqueles que se permitam a ouvir e aceitar as propostas cantadas, pois
segundo lemos:

314
Os surdos, entrego-os na misericórdia de Cristo,
que os há-de aperfeiçoar para a próxima reincarnação.
Nesta não entram em Pasárgada.

Nesses versos percebemos que a ironia com que os modernistas brasileiros


estavam habituados a utilizar em suas construções também foi adotada por Osvaldo de
Alcântara, são versos que atacam ironicamente os sujeitos que se mostram indiferentes
às ideias que visam promover mudanças. Pensar os surdos apresentados no discurso
desses versos é dizer sobre os indivíduos que permaneceram inertes durante a criação de
projetos ou políticas desenvolvidas com o objetivo de libertar Cabo Verde das amarras
do colonialismo, assim a falta de espírito colaborativo faz com que a cidadania em
Pasárgada não seja concedida para esses sujeitos ditos “surdos”.
A ideia de criação de uma nova nação vem acompanhada da proposta de
nacionalização da literatura cabo-verdiana, uma literatura livre das interferências da
metrópole colonizadora e capaz de dialogar com a realidade do homem cabo-verdiano,
atingindo assim os ideais criados pelos intelectuais do arquipélago que se reuniram em
torno do projeto da revista Claridade. Dessa forma, a habitação em Pasárgada deve ser
concedida somente para aqueles que se filiam a empreitas cujo objetivo é a criação. Os
merecedores de residência na nova cidade são os sujeitos que ajudaram a construí-la.
Nos três versos finais da terceira estrofe, é apresentada uma proposta para a
cidadania em Pasárgada, nela está estabelecida a regra essencial para que se tenha em
mãos o desejado visto.

Já propus ao Rei que não concedesse o visto


a quem não foi à pedreira
arrancar uma pedra para Pasárgada.

É interessante pensar no fato de que é o eu poético quem estabelece a regra


necessária para a cidadania em Pasárgada e não o rei, e assim surge a proposta de que o
visto para Pasárgada não seja entregue para os indivíduos que não enfrentaram o
trabalho árduo na pedreira.
Desse modo, compreende-se que o passaporte para Pasárgada é a vontade ou o
próprio desejo de trabalhar conjuntamente para a construção desse novo espaço, e só
entra em Pasárgada aqueles que tiverem em mãos uma pedra que foi arrancada por meio
do trabalho árduo. Pasárgada nasce do exercício com as mãos. Segundo Chevalier e

315
Gueerbrant (2000, p. 589), mãos exprime ideia de trabalho, desse modo, a cidade futura
cantada nessa poesia é o resultado de todo um processo de lapidação que transforma a
pedra bruta em matéria de utilização. Isso é o que se observa quando lemos os versos
abaixo:

Oh! Rei! Pela tua magnificência,


concede mãos aos homens
para poderem ser cidadãos de Pasárgada.
Dá-lhes o martelo e a marreta das catedrais,
Para que a Poesia nasça das suas mãos!

Pasárgada surge das mãos que dominam os martelos e as marretas da mesma


forma como a poesia nasce das mãos dos poetas por meio do trabalho e manuseio com
as palavras. Isso implica dizer que o espaço Pasárgada a ser construído é também o
espaço da nova poesia e da nova literatura proposta por Alcântara e os demais autores
que se filiaram à revista Claridade. Construir Pasárgada significa criar uma poesia e
uma literatura que sirva de objeto para transformação da conscientização do homem
cabo-verdiano, fazendo com que esse povo desperte o espírito revolucionário e passe a
reagir contra as imposições do colonizador. Por meio da poesia, da literatura os poetas
se tornaram vozes que reclamaram os direitos do povo colonizado, são vozes que
transformaram a poesia enquanto manifesto de liberdade, como podemos ler nos versos
abaixo:

Dá-lhes o martelo e a marreta das catedrais,


Para que a Poesia nasça das suas mãos!

Nessa estrofe temos o recurso da metalinguagem funcionando de maneira precisa,


pois o discurso apresentado no último verso da estrofe discute sobre o fazer poético dos
cabo-verdianos, clamando para a existência de uma poesia que se torne manifesto de
resistência. A nova nação só pode ser criada pelo povo consciente, o povo que cria a
poesia e a transforma em espaço também de libertação.
Como observado ao longo dessa discussão, não é somente a rejeição ao “aqui” e
“agora” e a utopia de viver numa nação livre de opressões que aproximam a
“Pasárgada” de Osvaldo de Alcântara da “Pasárgada” de Manuel Bandeira, mas também
o modo de construção da poesia nacional, porém, o poeta cabo-verdiano atribui uma

316
nova roupagem para cidade “perfeita” e propõe a existência de um lugar bastante
adverso ao apresentado pelo poeta brasileiro.
Pasárgada, nesse contexto, não é uma cidade pronta e acabada como a de Manuel
Bandeira, não se trata de outra civilização, ela passa a ter existência no “aqui” e no
tempo presente. Diferente do que acontece em Manuel Bandeira, o desejo de fuga para
Pasárgada não é a vontade de um único indivíduo, “Passaporte para Pasárgada” é
justamente um grito de resistência contra o individualismo cantado por Manuel
Bandeira, quando o sonho da fuga para a terra distante atinge a coletividade.
Pasárgada será levantada sobre duas ruas a “Direita” e a do Sol. Trata-se de um
espaço que se pretende construir livre de opressão, e para ser cidadão, nesse novo lugar,
não basta apenas ser amigo de um rei que tudo permite, como acontece em Manuel
Bandeira, a cidadania nesse novo espaço depende necessariamente de esforço e
trabalho. Ir embora pra Pasárgada significa reconstruir a própria nação cabo-verdiana, é
fazer parte de um coletivo movido pelo desejo de transformação, é tornar-se cidadão
consciente da realidade que o envolve e promover mudanças como fizeram os escritores
que desenvolveram o projeto da revista Claridade na intenção de reagir ao
colonialismo. E, é nessa mesma esteira, que se encontra o segundo poema da coletânea.
A partir das análises apresentadas neste capítulo, percebemos que Osvaldo de
Alcântara, por meio de seus versos, nos direciona para o contexto histórico do
arquipélago cabo-verdiano com toda a sua problemática, enfatizando principalmente as
consequências resultantes do regime colonialista instaurado em Cabo Verde. Na
verdade ir para Pasárgada, em Alcântara, é como Ferreira (1989) assegura ao dizer que
não se trata de um evasionismo com pretensão de fuga, mas remete a uma questão bem
mais complexa em virtude da situação colonial. O pasargadismo, dito por Ferreira
(1989) aponta para gestos de “protesto”, “desdém”, fuga da “erosão colonial” de modo a
não se voltar contra a caboverdianidade.
O poema busca um diálogo com a construção da Pasárgada de Manuel Bandeira e
assim aponta para novas possibilidades de construção, não somente do espaço cabo-
verdiano, mas também para a nova literatura nesse arquipélago. Trata-se de uma
proposta de construção sobre uma nação com emergência de transformação, construção
poética que se revela como utopia de uma nação pós-colonial e que suscitam a
importância do trabalho coletivo na execução de projetos revolucionários.

317
Nesse sentido, entendemos que os traços de semelhanças entre literaturas distintas
de um mesmo sistema linguístico é algo inevitável, devido aos contatos que mantém
umas com as outras. Nesse direcionamento, podemos dizer que os aspectos em comum
na poesia de Manuel Bandeira e Osvaldo de Alcântara não se explicam simplesmente
pelo fato dessas culturas terem processos de luta pela conquista da independência
política e territorial parecidos. Os traços que aproximam essas literaturas são
consequências do tão chamado “macrossistema” de língua portuguesa, no qual a
produção literária também pode ser considerada como um produto mesclado.
E, no que diz respeito às diferenças encontradas, é importante considerá-las como
responsáveis pela individualização de cada uma dessas literaturas. As diferenças já
discutidas anteriormente devem ser compreendidas como elementos que particularizam
e enriquecem uma dada produção artística, dentro da representatividade universal.

REFERENCIAS

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Paulo: Ateliê Editorial, 2003.

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José Olympio, 1986.

319
A MULHER NEGRA E AS RELAÇÕES DE PODER EM MARIANA, DE
MACHADO DE ASSIS

Andressa dos Santos Vieira (UFES)1

Resumo: Abordar as relações de poder existentes durante a vigência da escravidão envolve


levantar um misto de questões que enredam a situação do negro inserido em um ambiente
escravocrata marcado por um amplo domínio da elite branca em uma sociedade pautada pelas
regras do patriarcalismo oitocentista brasileiro. Analisar a situação de Mariana, personagem
principal do conto de Machado de Assis publicado em 1871, expõe as diferentes formas como
essas relações de poder podem ser causadoras de uma condição de dependência capaz de interferir
na vida tanto da mulher negra e escrava, em situação de privação da liberdade, quanto de seus
senhores, permitindo perceber a maneira como o negro vem representado na obra machadiana.
Palavras-chave: Machado de Assis; Escravidão; Mulher negra; Relações de poder.

Considerações iniciais
A vastidão da obra de Machado de Assis permite que seus leitores sejam
contemplados com a presença de dois contos intitulados Mariana. O primeiro deles foi
publicado inicialmente no Jornal das Famílias em janeiro de 1871, em setembro do
mesmo ano ocorreria a promulgação da Lei do Ventre Livre, e foi posteriormente incluído
na seção Contos Avulsos da Obra Completa da Nova Aguilar, enquanto o segundo deles
foi publicado inicialmente na Gazeta de Notícias em outubro de 1891 e foi posteriormente
incluído no livro de contos Várias Histórias.
A escolha do conto de 1871 para compor este artigo ocorreu devido à estreita
relação que ele estabelece com as questões envolvendo as marcas deixadas pela
instituição da escravidão, por explorar as relações de poder estabelecidas entre senhores
e escravos durante o período escravocrata brasileiro do século XIX, pautado pelo
patriarcalismo, e por apresentar diversas possibilidades de pensar na maneira como se deu
a presença da mulher negra no conto machadiano.
O conto Mariana apresenta como protagonista uma mulher negra e escrava,
homônima ao título, que vive na casa de seus senhores e que costuma receber um
tratamento diferenciado dos demais escravos da família, pois aprende a ler, escrever,
costurar e a falar francês. Certo dia, Coutinho, jovem integrante da família e um dos
senhores de Mariana, reencontra Macedo, velho amigo que retorna ao país após viver na
Europa durante quinze anos, e reúne-se com ele e mais dois amigos do passado para um

1
Mestranda em Letras (UFES), Bolsista FAPES. Contato: andressa.sv@hotmail.com.

320
almoço. Durante a reunião, Coutinho assume a narração e decide contar aos amigos a
história do amor que a jovem escrava nutriu por ele, deixando os mesmos espantados ao
revelar que nunca se sentiu tão amado por uma mulher, nem mesmo por sua prima e antiga
noiva, como por essa moça tida como uma “cria da casa”.
Coutinho enfatiza que ao apaixonar-se por ele e perceber que tal amor seria
impossível de se concretizar, uma vez que o jovem era branco e estava noivo de sua prima
Amélia, Mariana, que recentemente havia superado uma grave doença, decide ir embora
de casa pela primeira vez, causando irritação na família e fazendo com que o jovem fique
encarregado de ir atrás dela a fim de levá-la de volta. Pouco tempo depois, ela vai embora
de casa mais uma vez, causando um forte sentimento de indignação na família que passa
a tê-la como uma ingrata. Novamente o rapaz fica encarregado de procurá-la, mas só
consegue encontrar a jovem, que estava escondida em um hotel, dias após seu
desaparecimento. Diante da ordem de retorno e consciente de que sua situação de escrava
a impossibilitaria de viver o amor que nutria pelo jovem senhor, Mariana decide suicidar-
se bebendo um frasco de veneno que levava escondido na roupa e que guardava para o
dia do casamento do rapaz.
Percebe-se a força desse conto na singularidade de Machado ao abordar diferentes
formas de violência sofridas por escravos, marcas da escravidão brasileira, ao apresentar
sua personagem principal na figura de uma jovem mulher negra e escrava que, apesar de
viver na casa de seus senhores, saber ler, escrever e supostamente não ser obrigada a
realizar trabalhos forçados, acaba por identificar-se com outros negros escravizados por
encontrar-se em condição permanente de privação de sua liberdade e pelo fato de ser,
constantemente, vista e tratada como uma propriedade.

O papel da mulher negra e as relações de poder na sociedade escravocrata


Ao ganhar voz na narrativa do amigo Macedo, Coutinho faz uso de seu discurso
para caracterizar sua família como extremamente benevolente na apresentação que faz de
Mariana: “[...] era uma gentil mulatinha nascida e criada como filha da casa, e recebendo
de minha mãe os mesmos afagos que ela dispensava às outras filhas” (MACHADO DE
ASSIS, 2015, p. 980). No entanto, acaba por deixar transparecer o enorme abismo social
estabelecido entre os senhores e escravos quando afirma: “Não se sentava à mesa, nem
vinha à sala em ocasião de visitas, eis a diferença; no mais era como se fosse pessoa livre,

321
e até minhas irmãs tinham certa afeição fraternal” (MACHADO DE ASSIS, 2015, p.
980).
Através desse discurso, Coutinho enfatiza que o lugar de Mariana, da mulher negra
e escrava, é aquele fora da mesa de jantar e longe das visitas, evidenciando a existência
de um enorme distanciamento entre a classe social composta por senhores e aquela
composta por negros e escravos. Essa é uma forte característica das relações de poder
comumente utilizada pela família do jovem e pela sociedade oitocentista, uma vez que a
superioridade do branco sempre necessitou da afirmação de seu poder a partir da negação
do sentimento de igualdade ao negro, partindo daí a necessidade do jovem de afirmar que
a moça era tratada “como se fosse pessoa livre” e que recebia “certa afeição fraternal”, a
fim de confirmar sua eterna condição de pessoa “quase livre” e “quase amada”, afinal a
sensação de plenitude era destinada apenas aos brancos.
Além da privação da liberdade e da negação do sentimento de igualdade, a jovem
precisava lidar com a exigência contínua de exprimir sua gratidão aos seus senhores. Esse
aspecto fica evidente em outra fala do jovem: “Mariana possuía a inteligência da situação,
e não abusava dos cuidados com que era tratada. Compreendia bem que na situação que
se achava só lhe restava pagar com muito reconhecimento a bondade de sua senhora”
(MACHADO DE ASSIS, 2015, p. 980). A certeza de não poder abusar tanto da atenção
quanto dos cuidados recebidos consiste em evitar punições provenientes da ingratidão,
colocando a escrava num lugar subalterno em uma sociedade pautada por uma busca pelo
reconhecimento de sua bondade, mas que não hesita em desfrutar da subsistência
proporcionada através da exploração do outro.
Sidney Chalhoub (2003, p. 97) afirma que “a ideologia paternalista dos senhores e
as relações de dependência provocam situações de violência e humilhação” e despertam
em dependentes como Mariana a certeza de que “não há perspectivas e que serão sempre
lembrados de sua situação de inferioridade social”, uma vez que o enredo do conto leva
“à imbricação entre escravidão e “liberdade” em situação de dependência, mostrando que
havia uma e somente uma lógica hegemônica de reprodução das hierarquias e
desigualdades sociais”.
Diante desse cenário, é possível afirmar que a ideia de aproximar o escravo da
liberdade não se fazia presente numa sociedade predominantemente patriarcal e
escravocrata:

322
A aproximação entre escravidão e liberdade, para enfatizar a precariedade e os
limites de qualquer experiência de liberdade numa sociedade paternalista,
organizada em torno da reprodução dos laços e dependência pessoal, politiza
eficazmente o drama do processo de emancipação dos escravos, então em
evidência. Escravidão e paternalismo, cativeiro e dependência pessoal,
pareciam duas faces da mesma moeda (CHALHOUB, 2003, p. 98).

A relação de dependência entre senhores e escravos e sua capacidade de provocar


situações de violência e humilhação ao dependente ficam evidentes no momento em que
“ao mostrar desenvoltura e sentimentos próprios, impróprios na visão dos senhores,
Mariana, torna-se [...] presa potencial da rapacidade sexual do senhor moço e até do tio
João Luís, pai de Amélia, sempre interessado em colocar aquela ‘flor peregrina’ sob sua
‘proteção’” (CHALHOUB, 2003, p. 97), fato evidenciado na constante indagação do tio
ao sobrinho: “Por que diabo está tua mãe guardando aqui em casa esta flor peregrina? A
rapariga precisa tomar ar” (MACHADO DE ASSIS, p. 980).
A cor de sua pele e a sua posição de inferioridade na sociedade não foram
suficientes para impedir que tio e sobrinho a enxergassem como objeto sexual, condição
à qual muitas mulheres negras, especialmente as escravas, eram frequentemente
submetidas. O interesse sexual do sobrinho fica explícito na afirmação: “[...] entrei a olhar
para ela com outros olhos. A rapariga tornara-se interessante para mim, e qualquer que
seja a condição de uma mulher, há sempre dentro de nós um fundo de vaidade que se
lisonjeia com a afeição que ela nos vote. Além disto, surgiu em meu espírito uma ideia
que a razão pode condenar, mas que nossos costumes aceitam perfeitamente”
(MACHADO DE ASSIS, 2015, p. 984). A partir da afirmação de Coutinho sobre Mariana
é possível perceber que “a razão, já impregnada das ideias de liberdade individual,
condena que ele se aproprie sexualmente da escrava, embora pelo costume da sociedade
brasileira a apropriação sexual representasse tão somente a continuação lógica do
cativeiro” (HAPKE, 2010, p. 105).
Outro momento que destaca esse interesse que Coutinho nutre pela escrava está
exposto na descrição que ele faz da moça, mesmo passados muitos anos entre o fato e o
seu resgate memorialístico:

Como tinha inteligência natural, todas estas coisas lhe foram fáceis. O
desenvolvimento do seu espírito não prejudicava o desenvolvimento de seus
encantos. Mariana aos dezoito anos era o tipo mais completo de sua raça.
Sentia-se-lhe o fogo através da tez morena do rosto, fogo inquieto e vivaz que
lhe rompia dos olhos negros e rasgados. Tinha os cabelos naturalmente

323
encaracolados e curtos. Talhe esbelto e elegante, colo voluptuoso, pé pequeno
e mãos de senhora. É impossível que eu esteja a idealizar esta criatura que há
tanto me desapareceu dos olhos; mas não estarei muito longe da verdade
(MACHADO DE ASSIS, 2015, p. 980).

O fato de Mariana estar sujeita aos abusos proporcionados pelas relações de poder
e imersa nesse ambiente que rechaça todos os direitos aos negros acaba contribuindo para
ela se apaixonar pelo senhorzinho, alcançando o ponto de não conseguir disfarçar sua
tristeza diante da confirmação do noivado dele com a prima e fazendo com que Josefa,
irmã do rapaz, desconfie que essa profunda tristeza nutrida pela jovem seja fruto de algum
namoro. Tal ideia faz com que Coutinho deixe claro, mais uma vez, o lugar da mulher
negra e a dimensão da desigualdade social da época ao afirmar que ela só poderia estar
envolvida com o copeiro ou o cocheiro por ocuparem posição semelhante e uma vez que
“tais sentimentos contrastavam com a fatalidade da sua condição social” (MACHADO
DE ASSIS, 2015, p. 983) subalterna e limitadora.
Diante da impossibilidade de viver seu amor e da proximidade da realização do
casamento do rapaz, Mariana decide sair de casa, causando um misto de consternação e
indignação em seus senhores que passam a vê-la como uma ingrata, uma vez que

A ruptura na ordem escravocrata, então, começa no momento em que a escrava


deixa de ser apenas um objeto inteiramente dominável. [...] Mariana se
constitui como sujeito. Os seus senhores não conseguem apropriar-se
inteiramente da personalidade e da alma da jovem cativa. Ao atuar segundo o
seu desejo, Mariana não só perturba a ordem escravocrata, mas também inverte
os papéis masculinos e femininos da sociedade do século XIX, que reservou
um lugar passivo para as mulheres (HAPKE, 2010, p. 104).

O posicionamento da família busca afirmar seu poder de dominação, especialmente,


quando Coutinho sugere que todos os esforços necessários deveriam ser feitos para
“capturá-la, e uma vez restituída à casa, colocá-la na situação verdadeira do cativeiro”
(MACHADO DE ASSIS, p. 984), deixando evidente a intenção de restituir, a qualquer
custo, a propriedade da família e da necessidade de demonstrar esse poder através dos
castigos físicos próprios da situação de cativeiro no retorno da escrava fugida que, a partir
de então, não teria mais acesso aos ditos privilégios de outrora.
O rapaz busca ajuda da polícia e mesmo assim não consegue encontrar a escrava
desaparecida, o que força seu retorno de mãos vazias. Mais tarde, naquele mesmo dia, ele
resolve sair novamente e acidentalmente iria encontrá-la na rua e prontamente procura

324
lembrá-la de sua subalternidade: “[...] mas por que saíste de casa, onde eras tão bem
tratada, e donde não tinhas o direito de sair, porque és cativa?”. A resposta da escrava, de
que saiu porque sofria muito, causa indignação no jovem que busca impor sua autoridade:
“[...] hás de voltar já, e já, para casa. Sofrerás as consequências da tua ingratidão.
Vamos...” (MACHADO DE ASSIS, 2015, p. 985).
Mesmo diante da pressão exercida por Coutinho, Mariana afirma que não pode
voltar devido ao amor que nutre por ele e que não pode ser amada por ser uma “infeliz
escrava” pronta para carregar as “consequências” desse amor, deixando claro que tem
consciência de seus sentimentos e de sua situação social, desse modo a escrava rompe
com a relação de poder estabelecida por seus senhores ao mostrar “desenvoltura e
sentimentos próprios” (CHALHOUB, 2003, p. 97), comumente negados aos negros.
Após retornar para casa e ter Coutinho como seu defensor, diante da fúria exprimida
pela mãe do rapaz, Mariana vai dormir e no outro dia surge com “os olhos inchados”, o
que causa certa satisfação no jovem: “a situação da rapariga interessara-me bastante, que
era natural, sendo eu a causa indireta daquela dor profunda” (MACHADO DE ASSIS,
2015, p. 986). Passados alguns dias desde seu retorno, Mariana volta a sair de casa, quatro
dias antes do casamento do jovem. A notícia foi dada em meio às comemorações do natal,
causando um forte sentimento de indignação em toda a família: “este segundo ato de
rebeldia da mulatinha produziu furiosa impressão em todos. Da primeira vez houve
alguma mágoa e saudade de mistura com a indignação. Desta vez houve indignação
apenas” (MACHADO DE ASSIS, 2015, p. 987).
Novamente, Coutinho fica incumbido de ir atrás da escrava, contudo, fica claro que
dessa vez ela não escaparia da punição diante do enorme sentimento de indignação que
tomou conta da família: “Ficou assentado que se procuraria a fugitiva e se lhe daria o
castigo competente. Deixei que esse movimento de cólera se consumasse, e levantei-me
para ir procurar Mariana” (MACHADO DE ASSIS, 2015, p. 987). Alguns dias depois,
ocasionalmente, ele acaba por encontrá-la em um hotel e a moça rapidamente se lança em
seus braços no que o rapaz logo esclarece a situação enquanto busca lembrá-la de sua
condição: “Não venho aqui para receber-te abraços [...] venho pela segunda vez buscar-
te para casa, donde pela segunda vez fugiste” (MACHADO DE ASSIS, 2015, p. 988).

325
Diante do aparente sofrimento que sua fala causa em Mariana, o rapaz busca
justificar sua ação, mas acaba deixando transparecer a frieza do homem branco diante da
percepção da presença de humanidade no negro:

A palavra fugiste escapou-me dos lábios; todavia, não lhe dei importância
senão quando vi a impressão que ela produziu em Mariana. Confesso que
devera ter alguma caridade mais; mas eu queria conciliar os meus sentimentos
com os meus deveres, e não fazer com que uma mulher não se esquecesse de
que era escrava. Mariana parecia disposta a sofrer tudo dos outros, contanto
que obtivesse a minha compaixão. Compaixão tinha-lhe eu; mas não lho
manifestava, e era esse todo mal (MACHADO DE ASSIS, 2015, p. 988).

Ao deparar-se com essa dura confirmação de sua situação de cativa, diante do


sentimento de propriedade provocado pela palavra “fugiste”, Mariana constata que não
há outra saída para essa conjuntura que não seja a morte, afinal

[...] nessas condições, nunca deixaria de ser escrava de uma família, a ponto de
anulá-la como ser humano com vontades próprias, tornando-se mais uma
vítima sem perspectivas de mudança de sua situação de inferioridade na
sociedade. O escravo não estava ali para amar ou demonstrar qualquer
sentimento, mas sim a fim de funcionar como uma máquina de trabalho [...]
(BIM, 2010, p. 119).

Perante a decisão tomada, Coutinho tenta persuadir Mariana a desistir da fuga para
voltar com ele, mas a moça permanece resoluta dizendo estar disposta a tudo, fazendo
com que o rapaz suspeite de sua verdadeira intenção e a questione se estaria disposta até
mesmo a tirar a própria vida, no que ela finalmente esclarece: “[...] confesso-lhe até que
a minha intenção era morrer na hora do seu casamento, a fim de que fôssemos ambos
felizes, nhonhô casando-se, eu morrendo” (MACHADO DE ASSIS, 2015, p. 988). Diante
da situação, ele tenta convencê-la a desistir, mas a jovem escrava opta por cometer
suicídio ingerindo veneno.
A forma dramática como ocorre a morte de Mariana provoca imensa indignação na
mãe do rapaz que só aceita conceder um perdão póstumo após seu filho lhe contar os
motivos reais que levaram a moça a esse ato desesperado. Essa revolta diante do suicídio
de uma escrava nada mais é do que a certeza de que, “ao tomar a decisão de suicidar-se,
ela livra-se da ditadura senhorial e decide por sua vida ou morte, levando ao extremo a
morte social que ela sofre numa sociedade que não a quer reconhecer como indivíduo
com vontade própria” (HAPKE, 2010, p. 106), pois assim Mariana “personifica a

326
subalternidade feminina e afrodescendente punida de modo trágico a partir do momento
em que relação de mando/obediência é afetada pelo desejo ou pela paixão” (DUARTE,
2009, p. 264).
Coutinho encerra sua narração reafirmando aos amigos que nenhuma mulher o
havia amado mais do que a jovem escrava Mariana. Seu amigo Macedo retoma a frente
da narração ao afirmar que todos ouviram com tristeza as palavras proferidas pelo amigo,
mas que logo trataram de sair para se divertir: “[...] daí a pouco saímos pela rua do
Ouvidor fora, examinando os pés das damas que desciam dos carros, e fazendo a esse
respeito mil reflexões mais ou menos engraçadas e oportunas. Duas horas de conversa
tinha-nos restituído a mocidade” (MACHADO DE ASSIS, 2015, p. 989).
Para Eduardo de Assis Duarte (2009, p. 264), Machado de Assis utiliza o “artifício
narrativo [...] de dissimular seu posicionamento, dando a palavra ao homem branco, para
que ele mesmo se exponha e torne explícita a insensibilidade e o descaso com que trata
os afrodescendentes”. O que, para ele, viria a se tornar umas das “marcas registradas” do
escritor, pois além da ironia presente ao longo desse conto também pode ser identificado
o “tom absolutamente sarcástico com que o mesmo se encerra e que revela o
distanciamento do autor em relação ao discurso burguês bon vivant encarregado da
narração” (2009, p. 264), pois isso se dá através do uso da narrativa em primeira pessoa
que “confere ao texto um sentido de relato de experiência” (2009, p. 264), uma vez que
representa o posicionamento da classe dominante da época que não hesita em desmerecer
o sofrimento da escrava que tira a própria vida por amor ao dar mais importância aos pés
de algumas senhoras que descem dos carros na rua.

Considerações finais
Fica claro que Machado de Assis trata de maneira singular da temática da
escravidão ao longo de Mariana, mesmo sendo um texto pouco conhecido que não
chegou a ser selecionado para publicação em livro e que ficou disponível somente em sua
publicação no jornal e ao ser incluído na obra completa da Nova Aguilar. A importância
desse conto para os estudos sobre a presença do negro na obra machadiana é inegável,
pois nele é possível perceber a marca da afrodescendência deixada pelo escritor, uma vez
que “nos escritos machadianos não se veem em nenhum momento palavras de apoio,
mesmo que implícito ou subentendido, à escravidão. Nem se encontram os estereótipos

327
recorrentes cujo foco é a desumanização dos afrodescendentes” (DUARTE, 2009. p.
252).
Para Chalhoub (2003, p. 98), esse texto carrega consigo, além das marcas de uma
sociedade escravista e do ponto de vista machadiano, um valor histórico que o transforma
em documento sobre “um impasse histórico, visão ou interpretação de uma crise que
mobilizava a sociedade inteira. Ainda que não haja no conto uma identificação precisa do
tempo da narrativa, há a postulação de duas historicidades tramadas, constituintes da fala
de Coutinho”. Isso tudo atrelado ao fato de sua publicação ter ocorrido em janeiro de
1871, durante as discussões sobre a Lei do Ventre Livre, no momento em que a
emancipação despontava como principal assunto no país.

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“Mariana”. In: BERNARDO, G.; MICHAEL, J.; SCHÄFFAUER, M. (Orgs.). Machado
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ensaio e notas: Eduardo de Assis Duarte. 2. ed. Rio de Janeiro: Pallas; Belo Horizonte:
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328
DENÚNCIA E RESISTÊNCIA: UMA POSSÍVEL LEITURA DO CONTO
SHIRLEY PAIXÃO, DE CONCEIÇÃO EVARISTO

Celiomar Porfírio Ramos (UNEMAT)1


Rosineia da Silva Ferreira (UNB)2

Resumo: Propomos realizar uma leitura analítica do conto Shirley Paixão, inserido na coletânea
de contos intitulada Insubmissas Lágrimas de Mulheres (2016), da autora mineira Conceição
Evaristo, com a finalidade de discutir acerca da violência doméstica sofrida pelas mulheres
negras. Para isso, iremos refletir sobre os aspectos gênero, raça e classe social que corroboram
com silenciamento da personagem protagonista, que representa, muitas vezes, as mulheres que
vivem em situação similar e, muitas vezes, não tem a quem recorrer. Além disso, faremos uma
reflexão sobre a capacidade de resistência e superação das mulheres vítimas de violência
doméstica e luta em torno de um ideal: contra a opressão masculina pela sua sobrevivência.
Palavras-chave: Mulher Negra; Violência; Resistência; Superação.

Quando propomos discutir um tema relacionado a gênero devemos considerar


alguns elementos que são essenciais para refletir sobre o assunto, sendo um deles o fato
de que não podemos discorrer sobre as ditas minorias, aqui nos propomos a tratar sobre
as mulheres, como se elas estivessem todas num mesmo patamar, pois como afirma
Piscitelli (2009, p. 124) “hoje em dia, ser mulher […] varia muito de acordo com o lugar,
a classe social, o momento histórico”.
Entendemos que a mulher negra é duplamente subalternizada primeiramente por
ser mulher e, não menos importante, em virtude de sua raça. Estabelecendo diálogo com
o exposto, a filósofa Judith Butler (2017) fomenta que se alguém “é” uma mulher isso
não é tudo, pois o gênero, por não se representar de maneira coerente no que diz respeito
ao contexto histórico, estabelece diálogo com outros aspectos, dentre eles podemos citar
os raciais, classisistas, étnicos, sexuais e regionais.
Sendo assim, “se tornou impossível separar a noção de ‘gênero’ de interseções
políticas e culturais em que invariavelmente ela é produzida e mantida” (BUTLER, 2017,
p. 21). É pensando no entrelaçamento, sobretudo, na relação gênero e raça e classe social,
que propomos tratar sobre as mulheres negras inseridas em uma sociedade patriarcal e
a(s) violência(s) perpetrada(s) contra elas, problematizando desde a violência simbólica
até a violência física que elas estão sujeitas e a resistência e superação dessas mulheres.

1
Doutorando em Estudos Literários (UNEMAT), Mestre em Estudos de Linguagem (UFMT), graduado
em Letras e Comunicação Social – habilitação em Jornalismo (UFMT). Contato:
celiomarramoss@hotmail.com
2
Mestranda em Literatura pelo programa de pós-graduação em Literatura – Póslit da Universidade de
Brasília (UnB). Contato: rosineia.ferreira@gmail.com

329
Para isso, tomamos como objeto de análise o conto Shirley Paixão, um dos 13 contos que
constitui a obra Insubmissas Lágrimas de mulheres, da escritora minera Conceição
Evaristo. Vale ressaltar que todos os contos que constituem essa obra são marcados,
exclusivamente, por vozes femininas.
Essa autora traz como protagonista em sua produção – romance, contos e poemas –
na maior parte das vezes as mulheres e reflete sobre o(s) lugar(es) que elas ocupam na
sociedade, voltando seu olhar especialmente à mulher negra. Sendo seus escritos feitos
“como um ato de luta, recusando o silêncio e confrontando a cultura dominante, que
minimiza as diversas formas de violência sofridas por mulheres” (TONDO, 2018, p. 18).
Conceição Evaristo pondera que sua produção literária é constituída a partir da
escrevivência. O neologismo em questão direciona, em certa medida, ao significado do
termo: uma escrita pautada na vivência da autora. Alguns elementos interferem na
elaboração da escrevivência, principalmente, o fato de que quem escreve, Conceição
Evaristo, ser uma mulher negra oriunda de uma classe menos favorecida, ou seja, aspectos
referentes a gênero, raça e classe social somam-se e influem no processo criativo da
autora.
Campos e Duarte (2011) afirmam que a escrevivência articula o projeto literário e
existencial de Conceição Evaristo e demonstra o engajamento literário da autora com
questões relacionadas aos aspectos sociais, étnicos e de gênero:

Com sua ‘escrevivência’ – termo que costuma demarcar sua produção textual
-, Conceição Evaristo articula seus projetos literário e existencial: a uma longa
e persistente militância social, étnica e de gênero agrega-se a atuação
acadêmica e a criação poética e narrativa. Põe em cena, sob uma perspectiva
feminina a afro-identificada, problemas do cotidiano de mulheres negras,
conectando sua literatura às raízes étnicas. Centrados na temática afro-
brasileira, seus escritos consubstanciam sua resistência ao sexismo, ao racismo
e aos demais preconceitos e formas correlatas de exclusão. (2011, p.213).

A partir da escrevivência autora traz para o protagonismo em sua produção as


pessoas e temas – violência, sexismo, o racismo a subjugação da mulher negra - que, até
então, eram pouco tratados e quando mencionados não era visto sob a perspectiva de uma
mulher negra.
Tal proposição se consolida quando a autora, em entrevista a Eduardo Assis Duarte,
abordando sobre a escrevivência, pondera que:

330
O ponto de vista que atravessa o texto e que o texto sustenta é gerado
por alguém. Alguém que é o sujeito autoral, criador/a da obra, o sujeito
da criação do texto. E, nesse sentido, afirmo que quando escrevo sou
eu, Conceição Evaristo, eu-sujeito a criar um texto e que não me
desvencilho de minha condição de cidadã brasileira, negra, mulher,
viúva, professora, oriunda das classes populares, mãe de uma especial
menina, Ainá etc., condições essas que influenciam na criação de
personagens, enredos ou opções de linguagem a partir de uma história,
de uma experiência pessoal que é intransferível (DUARTE, 2011, p.
115).

O exposto demonstra que a autora se coloca, em sua construção literária, como


objeto e sujeito de sua escrita. A respeito disso, Melo e Godoy (2016, p. 37) afirmam,
considerando o exposto por Duarte (2016, p. 37), que “[...] as frases, as imagens, os sons
são afirmados como parte da escritora, mas, mais que isso, seu corpo é distribuído sobre
vários dentes-do-tear nos quais enrosca e tece sua escrevivência”.
Apesar de ser mencionado em diferentes estudos – artigos, dissertações e teses - e,
também, pela própria autora, Conceição Evaristo, que sua escrita é pautada na
escrevivência, ou seja, no eu-sujeito, marcado por sua condição de cidadã brasileira,
negra, mulher, viúva, professora, oriunda das classes populares. Acreditamos que
enquanto estudiosos de sua produção que algo deve ser sempre pontuado e ressaltado:
Conceição Evaristo é, além de escritora, uma pesquisadora da área da literatura –
graduada em Letras, mestre e doutora em literatura – e, por isso, além da vivência, a
produção dessa autora é marcada, ora de forma direta ora de forma velada, por pesquisas
que diz respeito a violência, a raça, a gênero e a lutas de classes, entre outros temas. Isto
posto, podemos afirmar que é a partir de pesquisas, de sua experiência pessoal e de sua
vivência que a autora constrói sua escrita.
Dado o exposto, acreditamos que pensar a representação da mulher negra a partir
da autoria feminina afro-brasileira é relevante, pois as escritoras afro-brasileiras buscam
contestar as representações vigentes reestruturando-as, uma vez que a representação é
uma construção histórica e social (CAMBRAIA; LOUSADA, 2016, p. 5).
Se considerarmos a perspectiva de Spivak (2010), em sua obra Pode o subalterno
falar?, podemos compreender que a autora em questão empresta sua voz para uma parte
da sociedade - às mulheres – que foram silenciadas ao longo dos anos, para que essas
possam, por meio de sua escrita, ter voz, ou seja, nas palavras de Evaristo “da voz outra,
faço a minha, às histórias também” (EVARISTO, 2016, p. 8).

331
Tal proposição se confirma, em especial, se olharmos o livro Insubmissas Lágrimas
de mulheres. Nele a autora nomeia os 13 contos que compõem a obra com nomes de
mulheres e apresenta elementos textuais que demonstram o ato dela emprestar a voz
àquelas que foram silenciadas. No conto que propomos analisar, Shirley Paixão, por
exemplo, temos: “Foi assim – me contou Shirley Paixão (...)” (EVARISTO, 2016, p. 8)
e, posteriormente, continua o conto em primeira pessoa, com a personagem protagonista
narrando sua história, dando ênfase a uma cena de estupro.
Shirley Paixão tem 5 filhas, sendo duas delas biológicas e 3 do marido. O conto é
narrado em primeira pessoa pela personagem protagonista Shirley que revive um
momento doloroso de sua vida, que sua filha mais velha, Seni, é vítima do estupro, sendo
o agressor o pai. Além disso, relata que durante alguns anos de casamento, segundo
Shirley, o marido e ela tiveram uma vida comum, com desentendimentos corriqueiros
como qualquer casal. Todavia, ela pressentia haver algo errado, mesmo sem nunca
constatar nada.
Ao longo do enredo é dada especial atenção à filha mais velha, Seni, em virtude de
ela ter sido vítima de violência sexual. Quando a menina chegou a casa de Shirley era
sempre arredia e calada, porém Shirley acreditava que isso era consequência da “saudades
contidas e incompreensão diante da morte da mãe” (EVARISTO, ano, p.29).
Essas características e o silêncio da personagem Seni tem muito a dizer, pois
representa um silêncio-grito perante a violência sexual que sofria durante longos anos,
pois segundo conto, ela era vítima de tal atrocidade desde que sua mãe faleceu, fato até
então desconhecido por Shirley.
Em uma reunião na escola de Seni a professora orienta Shirley a buscar auxílio
psicológico para a filha, pois havia observado que a criança tinha mania de perfeição e
uma autocensura muito grande. Ao relatar a orientação ao seu companheiro, este tem um
acesso de raiva e, por pouco não agride a filha, só não cometeu tal ato em virtude de
Shirley o impedir.
Já tarde da noite, quando o homem retorna a casa, ele entra no quanto de Seni e a
leva para os fundos da casa. A menina, após anos de silêncio, sendo vítima de violência
sexual perpetrada pelo pai desde que perdera a mãe biológica, naquela noite “para sua
salvação, fez do medo, do pavor, coragem. E se irrompeu em prantos e gritos”
(EVARISTO, 2016, p. 31).

332
Ao ouvir os gritos a protagonista levanta e se depara com a cena, custando acreditar
no que vê, após algum tempo, reconhece o marido e para salvar a filha do “animal”,
desferindo uma pancada com uma barra de ferro na cabeça do agressor, conforme é
possível verificar no conto:

O homem não estava morto. Recuperou a vida na cadeia. Eu vivi ainda


tempos de minha meia-morte, atrás das grades, longe de minhas filhas
e de toda a minha gente, por ter quase matado aquele animal. Sei que
não se pode e nem deve fazer justiça com as próprias mãos, mas o meu
ato foi o de livrar minha filha. Não tinha outro jeito (EVARISTO, 2016,
p. 34)

O conto apresenta alguns elementos relevantes que merecem ser ressaltados, dentre
eles o silêncio-grito da personagem feminina ao longo do enredo. Quando afirmamos que
a mulher é silenciada, muitas vezes, isso acontece em virtude de ela não ter oportunidade
de fala no âmbito social e, em outros casos, em virtude de sua fala ser abafada em meio a
violência que a cerca, sendo que este silêncio é, na realidade, um silêncio-grito, no qual
a mulher pede socorro por meio de suas ações, como é o caso de Seni.
Entendemos que o homem na sociedade patriarcal em que vivemos, muitas vezes,
compreende a mulher como um objeto, inclusive sexual, que se encontra a sua disposição.
A união das mulheres em um ato feminista, ou seja, na luta para conseguir seus direitos
enquanto mulher respeitados, em certa medida, desestrutura este paradigma e,
consequentemente, abala as estruturas da supremacia masculina que foi solidificada ao
longo dos anos.
A compreensão de que a mulher é uma propriedade do homem é firmada em
diversos segmentos da sociedade, no âmbito familiar isso é bem evidente. Muitas vezes,
na tentativa de romper com esse paradigma, as mulheres se unem. No conto em questão,
mesmo que de forma inconsciente, as mulheres se unem em uma confraria, como se a
protagonista já previsse a necessidade de se juntar para uma batalha:

Mãe me tornei de todas. E assim seguia a vida cumplicidade entre nós.


Eu, feliz, assistindo as cinco meninas crescendo. Uma confraria de
mulheres. Às vezes, o homem da casa nos acusava, implicando com o
nosso estar sempre junto. Nunca me importei com as investidas dele
contra a feminina aliança que nos fortalecia. Não sei explicar, mas, em
alguns momentos, eu chegava a pensar que estávamos nos fortalecendo
para um dia enfrentarmos a uma luta. Uma batalha nos esperava e, no

333
centro do combate, o inimigo seria ele. Mas como? Por que ele? Até
que o tempo me deu a amarga resposta (...) (EVARISTO, 2016, p. 28).

No fragmento acima podemos observar elementos relevantes que nos levam a intuir
que o homem, em virtude da confraria de mulheres, da feminina aliança se sente
ameaçado e, por isso, muitas vezes, pode utilizar-se da violência para a manutenção do
seu poderio.
No conto podemos identificar alguns tipos de violências praticadas contra a mulher,
dentre elas a violência simbólica (BOURDIEU, 2017) que vai tomando proporções
maiores até chegar a violência física.
Duarte (2016), compreende que, muitas vezes há ausência de textos de autoria
feminina que abordem sobre a violência física e simbólica perpetrada contra as mulheres,
apesar de pouco frequente, segundo a autora, é mais comum encontrarmos textos expondo
a violência simbólica. Após isso, questiona: “Em que livros estão as marcas literárias do
espancamento, do estupro e do aborto a que cotidianamente as mulheres são submetidas,
e os jornais não cansam de noticiar?” (2016, p. 147).
E, então, conclui que a obra Olhos d’água aborda de forma satisfatório sobre a
violência física contra a mulher. Entendemos que não só a obra em questão, mas a
produção de Conceição Evaristo, de modo geral, evidencia tanto a violência física quando
simbólica, a exemplo disso, podemos mencionar a obra Insubmissas Lágrimas de
Mulheres e, mais especificamente o conto em análise, Shirley Paixão.
A violência simbólica é identificada no texto, entre outros elementos, quando o
homem de forma sutil apresenta seu descontentamento perante a união das mulheres em
sua casa. No conto em questão é possível verificar a “evolução” da violência simbólica
que gradativamente vai tomando dimensões maiores, chegando em uma quase agressão
física e, no caso de Seni, a filha mais velha, culminando na violência física e sexual.
É válido mencionar que Seni e o pai, neste contexto, representam, respectivamente,
mulheres e homens, segundo a leitura realizada. Seni representa as mulheres vítimas de
uma sociedade patriarcal, marcada e demarcada pela supremacia masculina, em que a
mulher é subjugada ao homem. Enquanto o pai simboliza o homem, ser supremo que as
ações, muitas vezes, são justificadas em virtude, apenas, de ser homem e ter poder/direito
garantidos socialmente.

334
Ao final do conto a narradora protagonista anuncia que está revivendo uma
memória “hoje, quase trinta anos depois desses dolorosos fatos, continuamos vivas”
(EVARISTO, 2016, p. 34) e demonstra que apesar das marcas indeléveis deixadas, há
elementos que caracterizam a superação por parte de Shirley e de suas filhas, dando
especial atenção à superação diária de Seni, ao mencionar:

Das meninas, três já me deram netos, estão felizes. Seni e a mais nova
continuam morando comigo. A nossa irmandade, a confraria de
mulheres, é agora fortalecida por uma geração de meninas netas que
desponta. Seni continua buscando formas de suplantar as dores do
passado. Creio que, ao longo do tempo vem conseguindo. Entretanto,
aprofunda, a cada dia, o seu dom de proteger e de cuidar da vida das
pessoas. É uma excelente médica. Escolheu o ramo da pediatria.

A necessidade de resistir, sobreviver e suplantar as dores é algo que acontece


diariamente não é algo restrito apenas a Seni, mas a todas as mulheres inseridas numa
sociedade patriarcal que estão sujeitas, a cada segundo, a serem vítimas de violência e,
por isso, se faz necessário a confraria de mulheres, para que essas se unam em prol de um
ideal: a luta diária contra a violência – simbólica e física - e, não menos importante, contra
a opressão masculina.

Referências

ABDALA JUNIOR, Benjamim. Literatura: história e política. São Paulo: Editora


Ática, 1989.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 4º Edição. Rio de Janeiro: BestBolso,


2017.

CAMBRAIA, Cláudia; LOUSADA, Isabel. A voz silenciada da literatura brasileira.


Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013.
ISSN 2179-510X.

CAMPOS, Maria Consuelo C.; DUARTE, Eduardo de A. Conceição Evaristo. In:


DUARTE, Eduardo de A. Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica.
v. 4 (Humanistas). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. p. 207-26.

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9ª Edição. Rio de Janeiro: Ouro Nobre


Azul, 2006.

335
DUARTE, E. A. e FONSECA, M. N. (org.) Literatura e afrodescendência no Brasil:
antologia crítica. Belo Horizonte: UFMG, 2011. p. 103-116.

DUARTE, Constância Lima. Marcas da violência no corpo literário feminino. In:


DUARTE, Constância Lima; CORTÊS, Cristiane; PEREIRA, Maria do Rosário.
Escrevivências: identidade, gênero e violência na obra de Conceição Evaristo. Belo
Horizonte: Idea, 2016. p. 147-57.

EVARISTO, Conceição. Insubmissas lágrimas de mulheres. Rio de Janeiro: Malê,


2016

MELO, Henrique Furtado; GODOY, Maria Carolina de. Escrevivência e produção de


subjetividades: reflexões em torno de “Olhos d’água”, de Conceição Evaristo.
Revista Signótica. v. 28, n. 1 (2016).

PISCITELLI, Adriana. Gênero: a história de um conceito. In: BUARQUE DE


ALMEIDA, H.; SZWAKO, J. (org.). Diferenças, igualdade. São Paulo: Berlendis &
Vertecchia, 2009. pp. 116-148.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar?/ Tradução de Sandra Regina


Goulart Almeida, Marcos Perreira Feitosa, André Pereira Feitosa. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2010.

TONDO, Marlei Castro. A violência contra as personagens femininas nos contos de


Olhos d'Água da Escritora afro-brasileira Conceição Evaristo. Dissertação
(Mestrado). Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Programa de Pós-Graduação
em Letras. Pato Branco, PR, 2018.

336
ENTRE O ESQUECIMENTO E A LEMBRANÇA" - TEREZA DE BENGUELA,
A NARRATIVA ORAL E A CONSTRUÇAO DA IDENTIDADE DE UM POVO

Epaminondas de Matos Magalhães (IFMT)1

Resumo: O presente artigo parte do pesquisa “Entre o esquecimento e a lembrança” –


Tereza de Benguela, a narrativa oral e a construção da identidade de um povo (IFMT),
apresentado no ABRALIC (2019), buscou recolher as narrativas orais em torno da figura
ícone de Tereza de Benguela, rainha negra, que comandou o quilombo do Quariterê em
Vila Bela da Ss. Trindade, a fim de perceber em que medida essas narrativas ficcionam a
história factual, dando a essa figura contornos míticos e simbólicos. Assim, buscou-se,
nesse ínterim, também, analisar como essa figura, com contornos míticos e simbólicos,
dimensiona a identidade de um povo, que só pode ser construída pelas narrativas,
nascendo com isso uma comunidade imaginada, a partir do que é contado de geração a
geração.

Palavras-chave: Vila Bela, cultura, narrativa oral

O sentido do que somos depende das histórias que contamos a


nós mesmos (...), das construções narrativas nas quais cada um
de nós é, ao mesmo tempo, o autor, o narrador e o personagem
principal. (Jorge Larrosa)

Tereza de Benguela, comandou o quilombo do Quariterê, em Vila Bela da Ss.


Trindade, durante o século XVIII. Existem poucas referências acerca da imagem dessa
figura ícone, e essas referências podem ser encontradas, a exemplo, nos Anais de Vila
Bela (de 1734-1789), de Janaína Amado e Leny Caselli Anzai, contudo existem inúmeras
histórias que circulam sobre sua atuação como rainha, sua prisão e morte, que estão
contidas nas memórias de determinados grupos sociais, que merecem ser recolhidas, a
fim de que essas narrativas orais possam ser transpostas para o papel.

Na concepção de Micea Eliade (1992), a memória, ou as lembranças do adulto


fazem o passado e o futuro se presentificarem, eternizarem em momentos poéticos de
descoberta e redescoberta, de invenção e inovação.

1
Doutor em Letras pela PUCRS. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ensino (PPGEn/IFMT) e
do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (UNEMAT). Contato:
Epaminondas.magalhaes@plc.ifmt.edu.br

337
Seguindo os fios da memória “lembrar é tecer fios do passado que não foram
tecidos, mas que podem ser retecidos no presente, reatualizando e resgatando o
histórico que não se realizou.”
O aspecto mítico reacende no leitor a sua memória e o faz reviver ou
rememorar figuras e momentos por meio de imagens desenhadas ou pintadas. Este ato
de recordar, segundo Bosi (1999: p. 13), só é possível “porque a imagem possui um
passado que a formou e um presente que a revive constantemente”.
De acordo com Ecléa Bosi (1996, p. 21), a memória é o grande tesourou da
velhice, pois é nela que estão guardados os mais célebres momentos da vida. Nesse
sentido, destacamos o fato de que para compreender o aspecto mítico que envolve a
figura de Tereza de Benguela tornou necessário ouvir, por meio de pesquisa de campo,
entrevistas abertas aos habitantes com maior idade de Vila Bela da Ss. Trindade, que
de certa forma, se contrapõe fortemente aos anais de Vila Bela, que trazem uma
imagem mais negativa dessa figura, que na memória dessa população, se desenha
como um mito fundacional de uma heroísmo que transcende os tempos.
Eliade (1992) aponta que repetir/relembrar o passado, presentificando-o,
através da poética ou da narrativa é eternizar os grandes momentos vividos, que são
revestidos pela espontaneidade e pelas imagens fantasiosas que recobrem as lacunas
deixadas pelo tempo. Ou transformar figuras em mitos fundacionais, regionais ou
nacionais, caso típico da figura Tereza de Benguela.
Esse tempo interliga passado, presente e futuro, uma vez que temos o presente
determinado pelo passado, pois o passado, a certa altura, desencanta o futuro, ou até
mesmo vemos um passado determinado pelas correntes do tempo presente
preenchendo as lacunas deixadas por este. “O protagonista, enquanto se lembra do
passado, acrescenta nele novas vivências no presente da enunciação”2.

2
OLIVEIRA, Edson Santos. O tear da memória em infância. Trabalho
apresentado no curso Memorialismo e Autobiografia (Doutorado- 2º semestre de
1987- UFMG), ministrado pelo Prof. Dr. Wander Melo Miranda

338
De acordo com Bosi (1996), a lembrança é a sobrevivência do passado. O
passado aflora a consciência e um mundo vasto de imagens. À medida que avançamos
na vida, as lembranças do passado se alargam e se organizam, formando uma história,
e este isto é reconstituída pela palavra. Assim, ao ouvir as memórias que foram
recontadas, recriadas e ressignificadas ao longo do tempo, Tereza de Benguela, além
de se manter viva, vem ganhando contornos míticos ao longo do tempo.
Essas narrativas orais são formas encontradas pela população para a representação
de si e da comunidade, que trazem a memória e a resistência de uma cultura
afrodescendente, que, pela opressão e pela dor, perpetuam sua história de luta por meio
dessas narrativas orais, assim, essas narrativas constroem uma comunidade imaginada,
ou seja, constroem e projetam a identidade de um povo, uma vez que essas narrativas,
mesmo em torno de um figura real, ganham contornos míticos e simbólicos, ou seja, a
comunidade em torno de uma figura ícone pode ficcionar a própria história.

É importante destacar que essa memória de luta e resistência, presente nas


narrativas orais em torno de Tereza de Benguela produzem um efeito de resistência e luta,
ou seja, a imagem de uma mulher, em pleno século XVIII, que luta pelo seu povo, institui
para que esse povo resista e persista. Assim, acreditamos que as narrativas orais tem papel
fundante nesse processo, uma vez que:

a carga simbólica da cultura autóctone, permitindo-se a sua manutenção


e contribuindo para que esta mesma cultura possa resistir ao impacto
daquela outra que lhe foi imposta pelo dominador branco-europeu e que
tem na letra a sua mais forte aliada. A milenar arte da oralidade difunde
as vozes ancestrais, procura manter a lei do grupo, fazendo-se, por isso,
um exercício de sabedoria (PADILHA, 2007, p. 35).

A respeito dessa história singular no estado de Mato Grosso, emerge no cenário,


Vila Bela da Ss. Trindade fundada em 19 de março de 1752 as margens do rio Guaporé,
pelo então capitão-general da capitania de Mato Grosso, Dom Rolim de Moura. A
estratégia da projeção de uma cidade na divisa com outros lugares era garantir a posse
das terras brasileiras a Portugal e erguer a capital da capitania de Mato Grosso. Nesse
sentido, Vila Bela da Ss. Trindade passou a ser então sede do governo, algo ainda presente
nas ruínas e no palácio dos capitães generais. Assim que fundada, Vila Bela da Santíssima
Trindade passou a receber a corte portuguesa, altos chefes de Estado e demais

339
representantes da elite em Mato Grosso, por configurar-se como capital da capitania.
Nesse sentido, estamos ainda inseridos em um período, cuja escravatura ainda é a forma
de alicerce econômico e cultural, uma vez que sua abolição só decorrerá em 1888.

No século XVIII, a rainha negra Tereza de Benguela, junto com seu conselheiro,
que nas narrativas orais vem sobreposto como esposo, fundam o quilombo do Quariterê,
as margens do rio Piolho, aproximadamente 60 km da sede da capitania de Mato Grosso.
Nesse sentido, a população de Vila Bela constrói um imaginário mítico dessa figura,
principalmente, no entorno a sua morte, no ano de 1770.

Ainda, temos que destacar que com a corte portuguesa, começam a chegar em
Vila Bela da Ss. Trindade, para as atividades braçais, os escravos, que fugiam para o
quilombo, sob a governância de Tereza de Benguela, com sua morte, efetivamente, o
quilombo ainda tenta resistir por mais algumas décadas, sendo posteriormente extinto.

Em 24 de outubro de 1808, Vila Bela da Ss. Trindade tem seu nome alterado
para Matto Grosso, sendo devolvido o nome origem somente em 29 de novembro de
1978.

Em 1835, exatamente em 25 de agosto, através da Lei 19 a sede da capital é


oficialmente transferida a Cuiabá após uma série de movimentos desde 1820 para que sua
transferência fosse efetivada. Após a transferência da capital para Cuiabá, aos poucos os
habitantes de origem portuguesa (brancos) foram sendo transferidos para a nova sede da
capitania de Mato Grosso. Ficando, poucos brancos, ao ponto do historiador João de
Oliveira Mens (apud Bandeira, 1988, p. 61), declarar que no final do século XIX a
população de Vila Bela da Ss. Trindade, nesse momento com a nomenclatura de Mato
Grosso, era ( ... ) “toda preta, excepção feita de umas quatorze pessoas de cores”.
Acreditamos que pessoas de cores referem-se as pessoas pardas ou diferentes dos negros.
As comunidades afloram dentro de um sistema de narrativas, ou seja, toda nação
é uma comunidade imaginada, projetada e construída, a partir das narrativas que nos são
contadas, as histórias que nos são recontadas de geração a geração, seja, por meio
impresso ou oral. No caso específico de comunidades pequenas, cuja marcação histórica
se dá pela presentificação da narrativa oral, algo que desde o início dos tempos, se faz
presente em qualquer geração, é a mola propulsora para a construção da identidade de um
determinado povo. Segundo Heller:

340
há certas histórias que narramos só por alguns dias ou semanas depois
que aconteceram e logo as esquecemos. Quanto a outras, gostamos de
repeti-las inúmeras vezes vida afora. Por vezes uma história
desconhecida nos aborrece, ao passo que, noutras prestaremos a
máxima atenção ao ouvir a mesma história tantas vezes repetida

As pessoas pesquisadas, moradores de Vila Bela, acima de 70 anos, oriundos das


famílias mais tradicionais, constituem-se como narradores e não contadores de histórias.

A diferença principal entre o contador de histórias e o narrador está no


fato de que o primeiro é um ator, que tem por objetivo principal a
interpretação; o segundo é um membro da comunidade narrativa que
está compartilhando experiências. Para o narrador, a potencialidade de
materialização do texto é menos significativa do que a mensagem que
ele visa comunicar. (FERNANDES, 2007, p. 329)

De forma geral, há uma construção narrativa e simbólica em torno da figura mítica


de Tereza de Benguela. Tão ícone essa figura, que o carnavalesco Joãozinho Trinta, em
19943, trouxe Tereza de Benguela - Uma rainha negra no pantanal como tema da escola
de samba Viradouro do Rio de Janeiro. A composição temática do samba da escola foi
elaborada por Cláudio Fabrino, Paulo César Portugal, Jorge Baiano e Rico Medeiros,
vejamos um trecho:

(...) “Amor, amor, amor... Sou a viola de cocho dolente, vim da Pérsia,
no Oriente para chegar ao Pantanal, pela Mongólia eu passei, atravessei
a Europa medieval nos meus acordes vou contar a saga de Tereza de
Benguela, uma rainha africana escravizada em Vila Bela (...).

Percebe-se que tanto o carnaval como outras construções são narrativas, que
constroem um ideal em torno de uma dada figura, que repercute na construção da
identidade de um povo.

Considerando que identidade e memória são construções coletivas, que


uma dá suporte à outra, é importante saber como o negro vilabelense
está disposto a reconstruir esse passado a seu favor, no confronto com

3 Em 1994, a Viradouro ficou em 3º lugar no carnaval do Rio de Janeiro. Fazia 3 anos que
Joãozinho Trinta estava afastado do carnaval.

341
o “outro”, reinventando para si uma legítima territorialidade.
(MACHADO, 2008, p. 50)

Assim, acreditamos que a construção de uma identidade ocorre por meio do que
é narrado as gerações. A noção de identidade é apresentada pelo dicionário Houaiss como:

1- estado que não muda, do que fica sempre igual (...)2- consciência da
persistência da própria personalidade (...) 3- o que faz que uma coisa
seja a mesma (ou da mesma natureza) que outra (...) 4- conjunto de
características e circunstâncias que distinguem uma pessoa ou uma
coisa e graças às quais é possível individualizá-la (2001, p. 1565)

Segundo o Aurélio, a identidade está associada: 1-Qualidade de idêntico. 2-


caracteres próprios e exclusivos duma pessoa: nome idade, estado, profissão, sexo, etc..
3- Reconhecimento duma coisa ou dum indivíduo como os próprios (2004, p. 400).
Cometeríamos um engano se encarássemos a identidade como um vocábulo
estável como foi apresentado pelo Houaiss e o Aurélio, tendo em vista que a noção de
identidade cultural na pós-modernidade não é tão previsível, mas os sentidos se tornam
dinâmicos dentro deste novo cenário. As certezas são postas em xeque quando lidamos
com a identidade cultural no contexto global em que nos encontramos inseridos, as velhas
identidades não explicam o mundo que nos cerca.
Hall (2000) defende que a identidade é construída e constituída no interior de
certos discursos e estas não nascem do vazio, mas são gestadas e transformadas no interior
de cada representação social, cultural e literária de um povo. Segundo Santos (1994), as
identidades culturais são mutáveis e se transformam de acordo com as novas exigências
sociais e, por mais que tendamos a acreditar que as identidades são sólidas e imutáveis
elas sofrem jogos de sentidos e de poder, ou seja, as identidades estão em constante
transformação.
A identidade precisa ser entendida, aqui, como experiência e cultura de um povo,
que se materializa das diversas formas, entre elas, a narrativa literária. Nesse sistema de
construção da identidade regional, que dá suporte a identidade nacional a literatura atua
como ponto central.
As nuances do processo identitário que se formam a partir das narrativas literárias,
segundo Hall (2000), constituem-se em três momentos distintos: a do sujeito iluminista,

342
a do sujeito sociológico e a do sujeito pós-moderno. A construção da identidade nacional
parte do princípio da identidade sociológica em que o “eu” só adquire a noção de si, no
dialogismo com o outro, portanto a identidade nacional só poderá ser formada a partir da
visão.
Neste aspecto, é interessante apontarmos o princípio da alteridade, que aflora
justamente no campo das diferenças, pois só assim é possível definir o outro e torná-lo
identificável. Portanto, quando queremos discutir o conceito de identidade, devemos
antes pensar nas diferenças. À medida que classificamos e ressaltamos as diferenças,
afirmamos a identidade do sujeito, a do grupo, das especificidades culturais.
O “eu” só existe e só pode afirmar sua identidade quando entra em contato com
as diferenças do outro, pois só assim percebe que é único, diferente. Portanto, os discursos
são construídos sob o olhar do outro. Este eu encontrará neste outro peculariedades que o
identifica e o define.
A identidade é o resultado da identificação do eu com o outro, seja nas
positividades ou negatividades. O outro só se constitui na fala e no discurso do eu, que
também se constitui como outro sob o olhar deste novo eu. Portanto, o discurso sobre a
identidade assume uma forma plástica, pois há um processo de reciprocidade em relação
ao eu e ao outro. O sujeito, neste sentido, não poderá jamais ser sintetizado ou terminado,
pois necessita sempre do outro para se constituir.
As identidades culturais nascem a partir da desintegração das soberanias dos
Estados-Nações, em que surgem ou ressurgem identidades locais múltiplas e é neste
prisma que a identidade regional ganha destaque, visto que há certo sentimento íntimo
que se liga ao interior de uma estrutura cultural macro, desenvolvendo microestruturas
com certa independência e com valores distintos. Assim, diferentes comunidades
culturais “convivem e tentam construir uma vida em comum, ao mesmo tempo em que
retêm algo de sua identidade ‘original’”. (HALL, 2003, p. 52) Essas discussões acerca
dos Estados-Nações emergem juntamente com os embates ideológicos acerca da
modernidade e da pós-modernidade.
A globalização é um fenômeno que fez com que os territórios isolados se
unificassem, as diferenças fossem abolidas, fazendo com que o mundo sofresse a

343
homogeneização cultural, termo cunhado por Hall (2003, p. 76) para explicar esse
fenômeno.
Neste prisma, as noções de Estados-Nações não abarcam mais as diversas
identidades que agora passam a ser universais e modernizadoras. Percebemos, no
contexto global, uma dualidade fortemente marcada pelo processo colonizador. De um
lado, existem as grandes potências que dominaram e dominam o cenário econômico e,
por outro, as que trazem em seu contexto histórico o processo colonizador.
Os Estados-Nações nessa era de globalização entram em declínio, dado que o
nacionalismo gerado ou pensado por esta entidade busca, nas nações envolvidas nesta a
coletividade, um senso de passado comum. Essas nações se associam a esta coletividade
desde o nascer e se expande ou retrai sem qualquer tendência histórica.
A desintegração dos Estados-Nações no emergente século XXI deve-se
principalmente às estabilizações de novos padrões sociais e às políticas expansionistas
como a tecnológica, especialmente as ligadas à comunicação, e ao número cada vez mais
crescente de movimentos ou grupos que assumem novos paradigmas para esta sociedade.
A noção de identidade cultural na pós-modernidade está intimamente ligada ao
contexto da globalização, tendo em vista que este novo cenário quebra certos padrões e
faz surgir novos modelos de produção e consumo que levam o sujeito a produzir novas
identidades. Assim, “nenhuma identidade é fixa, imutável, permanente e dada numa
essência, embora elas apareçam desse modo no senso comum e, mais claramente ainda,
nas ideologias marcadas pelo radicalismo sectário”. (DAMATTA, 2004, p. 25)
As identidades, neste sentido, são múltiplas e só possuem significados para os
próprios sujeitos envolvidos. Também há as identidades construídas sob a égide de
instituições dominantes, como afirma Castells(1942). Quando as identidades são
construídas a partir dessas instituições, é necessário que os sujeitos envolvidos
internalizem as condições necessárias para que as identidades sejam organizadas.
A cultura e as identidades culturais, por mais próximos que estes conceitos possam
estar, apresentam algumas diferenças que precisam ser levadas em consideração. A
primeira está relacionada ao fato de que a cultura não necessita da consciência da
identidade para existir, “ao passo que as estratégias de identidade podem manipular e até

344
modificar uma cultura que não terá então quase nada em comum com o que ela era
anteriormente”. (CUCHE, 1999, p. 176)
A identidade é encarada por muitos estudiosos como um processo narrativo, tendo
em vista que o homem narra a si e o território que o cerca. As narrativas que surgem no
contexto da globalização buscam, de certa forma, a representação da “nação”.
Como já mencionamos, as identidades são construídas sobre um arcabouço
discursivo, o que implica necessariamente pensar a relação entre o eu e o outro, pois como
afirma Moita Lopes (2003, p. 306) “o que somos, nossas identidades sociais, portanto,
são construídas através de nossas práticas discursivas com o outro”. Vê-se, portanto, que
toda identidade é construída sob a égide discursiva que estabelece uma relação direta
entre o discurso do eu e o outro. A identidade cultural estabelece uma rede de significados
não somente para o “eu” que discursa, mas, e especialmente, para o outro.
A identidade cultural criada a partir do princípio da alteridade tem como fonte as
culturas nacionais, uma vez que a identidade não está impressa geneticamente no homem,
mas é construída pela cultura e pela nação. A nação, entendida como comunidade
simbólica, tem o poder de gerar sobre o eu e sobre o outro um sentimento de identidade.
Ao compreendermos que as nações são comunidades simbólicas o fazemos porque
toda nação se constrói sob símbolos e representação, como afirma Hall (2000). Ainda
segundo o autor:

As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre a nação, sentidos com


os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos
estão contidos na estórias que são contadas sobre a nação, memórias que
concentram seu presente com seu passado e imagens que dela são
construídas. (Hall, 2000, p. 51)

Dessa forma, a figura de Tereza de Benguela está envolta a inúmeros mitos, pois
se construiu a imagem de uma mulher guerreira, que se contrapõe a visão apresentada nos
anais de Vila Bela. Assim, temos a imagem do branco colonizador em contraponto a
figura mítica de uma rainha negra, que sai das terras de África, para ser escrava no Brasil,
em especial, nas terras de Mato Grosso.
Assim, o que temos segundo Abbagnano (2000, p. 675) é que o mítico, nunca
apresenta uma situação real e concreta, “mas opõe-se a ela, no sentido de que a sua

345
representação é embelezada, corrigida e aperfeiçoada.” Assim, a figura de Tereza de
Benguela, entre a história oficial foi revestida dentro das narrativas orais, por um
embelezamento, não que tal figura não tenha ou não possa ter tido, contudo, se
contrapõe a esses dois universos o factual, através da descrição do branco colonizador
e das narrativas orais, colhidas através da memória dos mais velhos residentes de Vila
Bela.

1. REFERENCIAS BIBLIOGRÀFICAS

BHABHA, Homi. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima
Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003
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346
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Culturais. Petrópolis-RJ : Vozes, 2000.
VIRADOURO, G.R.E.S Unidos de. Tereza de Benguela - Uma Rainha Negra No
Pantanal. http://www.letras.com.br/gres-unidos-do-viradouro/viradouro-1994-tereza-
de-benguela-uma-rainha-negra-no-pantanal pesquisa realizada em 26/09/2011 às
14h40min.

347
A ESCRITA DE ILDÁSIO TAVARES E A LIMINARIDADE COMO
CONDIÇÃO

Henrique Vieira (UFBA)1

Resumo:

Analisa-se a produção do escritor brasileiro Ildásio Tavares, cuja atuação na cena cultural baiana
e brasileira, notadamente na segunda metade do século XX, foi marcada pelo trânsito entre
diferentes espaços discursivos. Tendo como ponto de partida o LP Os Orixás (1978), feito em co-
autoria com Luís Berimbau, e do libreto de Lídia de Oxum: Uma Ópera Negra (1995) – musicado
por Lindembergue Cardoso –, reflete-se acerca dos efeitos políticos-identitários provocados pelo
uso artístico do repertório linguístico dos terreiros de candomblé nessas obras, verificando-se
como essa estratégia se insere no projeto intelectual desse escritor, que conjugou a criação artística
em diferentes linguagens (literatura, música e dramaturgia), a atividade docente em universidades
e os cargos religiosos no Candomblé.

Palavras-chave: Ildásio Tavares; Cultura Afro-Brasileira; MPB; Dramaturgia.

Nós não somos do século d’inventar as palavras.


As palavras já foram inventadas. Nós somos do século
d’inventar outra vez as palavras que já foram inventadas.
Nós e as palavras
José de Almada Negreiros

[...] O pai de santo da Casa de Mesquista, Pai Vicente Bankolê, marido da mãe de santo
Tia Pequena, era africano. Ele fez santo na África, era de Xangô. E foi para a Bahia.
Ele falava português arrastado, que a gente conseguia entender, mas ele era nagô.
Naquela época tudo que era de orixá vinha para Mesquista direto da África. Pai Vicente
ia no porto buscar as coisas que vinham de navio. [...] Era um intercâmbio. Mandavam
muita coisa. E na hora era muita coisa pra separar, pra preparar axé, ele fazia aqueles
atim, um pó, que a gente chama de atim. Pai Vicente chamava a mim e a Railda, que é
de Oxum também e fez santo no Opô Afonjá. Ela é uma mãe de santo pioneira em
Brasília, está lá há mais de 40 anos. Railda era criança, a mãe dela vendia doce e ela
ficava na casa de candomblé. Nós fomos criadas juntas, somos amigas de infância.
Então ele chamava nós duas. Tinha várias crianças, mas ele escolheu nós dias. Nós não
sabíamos. Naquela época ninguém dizia nada. Mas hoje a gente vê que é porque nós
seríamos as duas ialorixás. Ele estava preparando a gente pra isso. Ensinando e
preparando. Ele botava as ervas e era a gente que ia misturar. Pegava uma coisa e
pegava outra, a gente botava ali num socador de ferro, socava e cantava uma coisa e
trocava língua, falava nagô. Eu e ela, a gente não entendia nada e ficava rindo e
debochando dele.
Mas ele tinha que falar, ele estava abençoando o negócio, estava preparando os atim e
preparando nós duas. A gente ficava cheia de pó, cheia de axé. Éramos nós, sempre.[...]
Na conversa a gente até entendia o que ele falava. Era meio embolado, mas a gente
entendia. Ele estava rezando em iorubá (como se diz agora), ou em nagô. Ele estava
trocando língua, ele estava conversando em nagô, com aquilo tudo que a gente estava
fazendo.
E a gente não entendia nada. “Meu compadre tá maluco, não tá não?” “É, minha irmã?”
A gente criança, contava: “Mãe, meu compadre chamou a gente, mas eu acho que ele
tá maluco, ele falou uma porção de coisa que a gente não entende”. E minha mãe
“Uhum! Ele tá maluco? Um dia você vai entender”.

1
Graduado em Letras Vernáculas (UFBA), Mestre em Literatura e Cultura (UFBA). Contato:
hjvieira2@gmail.com.

348
Ele estava trocando língua porque ele estava abençoando o que ele estava fazendo. E
passando pra gente. A gente ouve, não é burra. Criança é ótimo. A gente ria, mas
gravava.
E isso foi mais de uma vez. Foram várias vezes porque estava sempre chegando coisa
da África. Obi, orobô, muita folha pra fazer atim, muita coisa, sementes, raízes.
Constantemente ele estava fazendo aquilo, e éramos nós. Então a gente ouvia sempre.
(D’OXUM, 2014, p. 329-331)

Com a seleção destas duas epígrafes para este texto, gostaria de destacar
intencionalmente duas diferentes posturas diante da linguagem. A primeira, do poeta
português José de Almada Negreiros, ícone da irreverência do modernismo lusitano e da
relação dialógica – e não menos antagônica do modernismo com a tradição cultural e o
establishment. A segunda, Mãe Meninazinha D’Oxum, do Ilê Omolu Oxum (Rio de
Janeiro), por ocasião do II Seminário História Social da Língua Nacional: Diáspora
Africana, realizado na Fundação Casa de Rui Barbosa, em 201, recordando-se, com
reverência e simpatia, da língua “nagô” falada pelo pai de santo quando ela era criança.
Naquele, o ímpeto de ressignificação das palavras e das representações por uma geração
que colocou em xeque o alcance da linguagem poética diante do Real, nesta, o
reconhecimento da palavra como elo com o sagrado e com a ancestralidade.
Menciono essas duas atitudes linguísticas – aparentemente antagônicas -, pois é
nesse espaço intervalar, nesse ínterim, nesse ponto de disjunção que se pode situar os
trânsitos linguísticos português-iorubá na escrita de Ildásio Tavares. Entre o
(re)conhecimento da língua iorubá como elemento de coesão social e de transmissão do
conhecimento na comunidade-terreiro e, a partir disso, o uso poético desse saber ancestral
no contexto do mass media, um outro contexto de circulação para essas palavras e
expressões.
Ildásio Tavares avulta-se na cena cultural do século XX como um verdadeiro
polígrafo. Com uma intensa participação na vida intelectual da capital baiana, esteve
presente no domínio da cultura – literatura, música popular brasileira, teatro, tradução –,
da universidade – como Professor de Literatura Portuguesa da UFBA – e da religião –
como Ogã de Oxum e Otum Obá de Xangô do Ilê Axé Opô Afonjá. Foi um intelectual
inquieto no que diz respeito às matrizes culturais que constituem o Brasil, à realidade
vivenciada pelo seu povo e às fronteiras linguísticas e culturais construídas pelo homem
em sociedade2.

2
Nascido na região cacaueira baiana de Gongogi, na cidade de Ubaitaba, Ildásio Tavares (1940-2010) era
Bacharel em Direito (1962) e em Letras (1969) pela Universidade Federal da Bahia, mestre em Literatura

349
A ilusão da totalidade que nos é dada pelo conhecimento da vida de uma
personalidade literária, dos seus manuscritos, de sua inserção no campo literário, cai por
terra quando se desloca o autor de um lugar apriorístico para a interpretação do texto
literário. Nesse sentido, a crítica literária passa a ocupar um outro lugar no circuito
interpretativo de uma obra, capaz de estabelecer conexões entre textos, documentos,
entrevistas, depoimentos, objetos pessoais, etc, sem uma pretensão totalizante ou de se
buscar uma explicação do texto. Segundo Eneida Maria de Souza (2011), a crítica
biográfica – diferentemente do biografismo (“vida e obra”) dos séculos XIX e XX –
direciona-se a essas textualidades concernentes à atuação de um escritor, observando
nelas as diferentes representações do eu e os seus entrecruzamentos em temas, épocas ou
situações afins.
Consiste ainda na liberdade de montar perfis literários que envolvam relações
entre escritores, encontros ainda não realizados, mas passíveis de aproximação,
afinidades eletivas resultantes de associações inventadas pelo crítico ou
escritor. Esses perfis exercem, em geral, papel importante na elucidação de
propostas literárias, questões teóricas e contextuais. (SOUZA, 2011, p. 21)

Da mesma forma se dá o modo como construímos a cada um de nós, isto é, ao


processo de subjetivação. A esse respeito, Deleuze e Guattari, em Mil Platôs, tratam dos
segmentos3 e das linhas que constituem cada um de nós. Assim como as instituições

de Língua Inglesa (1971) pela Southern Illinois University, e doutor em Literatura Portuguesa pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (1984). Realizou, ainda, pós-doutoramento na Universidade de
Lisboa. Com uma atuação vigorosa na cena cultural nacional e internacional, Ildásio Tavares foi professor
universitário, poeta, romancista, dramaturgo, compositor, ensaísta, produtor cultural, tradutor e cronista.
Durante sua residência nos Estados Unidos, foi professor de Literatura Brasileira da Southern Illinois
University entre 1970 e 1971. Já na Universidade Federal da Bahia, Ildásio Tavares lecionou Literatura
Portuguesa de 1975 a 1997, dando significativas contribuições para o ensino e a pesquisa da história e
culturas portuguesa e afro-brasileira. Em sua atuação religiosa, era Obá de Xangô e Ogã de Oxum do Ilê
Axé Opô Afonjá (Salvador), o que, certamente, se destaca como um traço marcante dos seus trânsitos
culturais e discursivos, entre o Terreiro, a Universidade e a cena cultural.
3
“Somos segmentarizados por todos os lados e em todas as direções. O homem é um animal segmentário.
A segmentaridade pertence a todos os estratos que nos compõem. Habitar, circular, trabalhar, brincar: o
vivido é segmentarizado espacial e socialmente. A casa é segmentatizada conforme a destinação de seus
cômodos; as ruas, conforme a ordem da cidade; a fábrica, conforme a natureza dos trabalhos e das
operações. Somos segmentarizados binariamente, a partir de grandes operações duais: as classes sociais,
mas também os homens e as mulheres, os adultos e as crianças, etc. Somos segmentarizados circularmente,
em círculos cada vez mais vastos, em discos ou coroas cada vez mais amplos, à maneira da “carta” de
Joyce: minhas ocupações, as ocupações de meu bairro, de minha cidade, de meu país, do mundo... Somos
segmentarizados linearmente, numa linha reta, em linhas retas, onde cada segmento representa um episódio
ou um “processo”. [...] Ora os diferentes segmentos remetem a diferentes indivíduos ou grupos, ora é o
mesmo indivíduo ou o mesmo grupo que passa de um segmento a outro. Mas sempre estas figuras de

350
sociais e os aspectos da natureza, também somos por diferentes linhas – ora linhas duras,
ora linhas de fuga – e caberia a nós, segundo Deleuze e Guattari, buscar a nossa própria
linha de fuga.

Indivíduos ou grupos, somos atravessados por linhas, meridianos, geodéscias,


trópicos, fusos, que não seguem o mesmo ritmo e não têm a mesma natureza.
São linhas que nos compõem, diríamos três espécies de linhas. Ou, antes,
conjuntos de linhas, pois cada espécie é múltipla. Podemos nos interessar por
uma dessas linhas mais do que pelas outras, e talvez, com efeito, haja uma que
seja, não determinante, mas que importe mais do que as outras... se estiver
presente. Pois, de todas essas linhas, algumas nos são impostas de fora, pelo
menos em parte. Outras nascem um pouco por acaso, de um nada, nunca se
saberá por quê. Outras devem ser inventadas, traçadas, sem nenhum modelo
nem acaso: devemos inventar nossas linhas de fuga se somos capazes disso, e
só podemos inventá-las traçando-as efetivamente, na vida. As linhas de fuga –
não será isso o mais difícil? (DELEUZE; GUATTARI, 2011, vol. 3, p. 83)

Desse modo, o devir minoritário de cada pessoa, o interesse pelo que escapa, pelo
que não se deixa totalizar nem estratificar, não é apenas uma forma de agenciamento
molar, isto é, social, macroestrutural, macropolítico, mas também molecular – individual,
micropolítico –, da ordem da subjetividade. Por isso, as diversas linhas de fuga – de
natureza religiosa, sociocultural, linguística, econômica, de gênero ou sexualidade – que
constitui cada pessoa chega a compor algo muito próximo a uma estética da existência,
conforme o conceito historicizado por Michel Foucault, a algo que se encontra na ordem
da construção.
De antemão, somos levados a pensar na situação de língua minorizada que o iorubá
passou a ocupar da história sociolinguística do Brasil, haja vista as relações assimétricas
de poder entre as línguas e as comunidades linguísticas em nosso país. Todavia, o
linguista Xoan Carlos Lagares (2018) faz a importante ressalva de que, no trato das
políticas linguísticas, falar de “minoria” não necessariamente é falar de um indicador
numérico, antes, trata-se de uma posição, de uma relação assumida. Nota-se, em seu
pensamento, uma evidente compreensão foucaultiana do poder como uma força
relacional, um efeito resultante das posições. Disso decorre a predileção do linguista pelo
termo “língua minorizada” (que sofre o efeito de...) e “língua em situação de minoria”
(LAGARES, 2018, p. 121) – posto que um mesmo idioma pode ser, num mesmo recorte
temporal, minorizada ou hegemônica em diferentes contextos ou grupos e comunidades

segmentaridade, a binária, a circular, a linear, são tomadas umas nas outras, e até passam umas nas outras,
transformando-se de acordo com o ponto de vista.” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, vol. 3, p. 92)

351
linguísticas distintas. A língua portuguesa, por exemplo, ocupa uma posição de
hegemonia no território brasileiro e português, entretanto, na Europa Ocidental, não
adquire o mesmo status social de outras como o Inglês, o Espanhol e o Francês.
Situação parecida pode ser vista com o iorubá na Nigéria, onde é uma das línguas
nacionais, e no Brasil, onde adquire, no século XX, o status de uma língua minorizada –
ou em situação de minoria. Desde o século XIX, com o fim do tráfico transatlântico de
pessoas escravizadas, houve uma gradativa redução do número de africanos falantes de
iorubá e de outras línguas africanas. Consequentemente, o que se viu na realidade
linguística de cidades como Salvador (BA) e Rio de Janeiro (RJ) foi uma progressiva
passagem de uma situação de bilinguismo – como foi ilustrada no relato de Mãe
Meninazinha D’Oxum – para a condição de língua especial. Em outras palavras, o idioma
sofreu a redução da sua estrutura sintática (frástica), sendo utilizados itens lexicais nas
cerimônias religiosas e ao vocabulário do dia a dia dos terreiros de candomblé, exceto no
caso de rezas, cantigas, itans (mitos) e preceitos ditos exclusivamente em iorubá.
Todavia, uma língua em situação de minoria guarda consigo uma espécie de energia
potencial, uma força de disrupção ao código linguístico hegemônico, que pode vir a se
transformar / a se realizar. É o que se apresenta no LP Os Orixás e no libreto de Lídia de
Oxum: Uma Ópera Negra.
Nas doze composições de Os Orixás, a primazia da língua portuguesa, língua de
Estado e signo linguístico de nosso processo de colonização, é suplementada pelos
aportes lexicais de origem africana, utilizados pelas comunidades-terreiro de Candomblé,
para se cantar as histórias dos onze orixás escolhidos por Ildásio Tavares e Luís Berimbau.
A sequência das faixas tenta reproduzir a sequência dos orixás de um xirê, sem
contemplar outros orixás, não menos importantes, cultuados no Brasil: Exu, Ogun,
Omulu, Oxossi, Logun Edé, Nanan, Oxum, Yansan, Yemanjá, Xangô, Oxalá (grafia e
acentuação adotadas pelo LP); por último, uma composição ao Axé Opô Afonjá4.
Trago, como exemplo, a terceira composição. Omulu, o “velho”, o Senhor das
doenças, da terra e dos alimentos que nela são fecundados, é a divindade a que louva a

4
A seguir, apresento transcrições das músicas, considerando a ortografia apresentada no glossário feito
por Didi Axipá (Deoscóredes Maximiliano dos Santos) para o long-play. As informações apresentadas a
respeito dos orixás condizem com o meu grau de iniciação no candomblé – ao que vi, ouvi, vivi, senti e li
– e não tem uma pretensão totalizante a respeito de cada divindade. Por isso, o conhecimento
apresentado nesse texto, naturalmente, pode vir a ser ampliado a cada ano e a cada obrigação.

352
terceira composição. Reza a tradição que, em cerimônia na qual dançavam todos os
orixás, nenhum deles quis dançar com Omulu, que andava coberto com a palha da costa
dada pelo seu irmão Ogum, devido ao seu corpo estar coberto de chagas. Somente Yansan
se aproximou e dançou com Omulu, motivo pelo qual foi agraciada com o controle dos
espíritos (eguns). Sua saudação é “Atotô!”. Era o orixá de cabeça de Ildásio Tavares,
sendo, por essa razão, chamado de “Babá” – alcunha geralmente atribuída ao orixá Oxalá
ou, como abreviação, aos espíritos dos antepassados (Babá Egun) – e de “senhor da minha
cabeça”.
03. Omulu
Se a terra fosse de ouro,
de ouro seria meu pai,
mas como a terra era lama,
da lama brotou meu pai

Atotô Ajiberô
Atotô Ofanran Kurin
Atotô Ajiberô
Atotô Ofanran Kurin

Dono da minha cabeça,


Babá é dono de mim
por isso Senhor da Terra
lhe digo Ofanran Kurin
(BERIMBAU; TAVARES, 1978, faixa 3, lado A)

Já no libreto de Lídia de Oxum, os termos em nagô provêm do nome dos orixás,


cerimônias, saudações a divindades e saudações no espaço público. A primeira ocorrência
se dá no Primeiro Ato, Cena I, quando o diálogo do jovem Lourenço de Aragão 5, recém-
chegado ao Engenho Corrente, retornando do período de estudo na Faculdade de Direito
de Coimbra (Portugal), e sua mãe é interrompido pelo toque do alujá vindo da senzala. O
alujá é o toque sagrado do orixá Xangô, divindade da justiça, o Senhor do fogo (Obá
Inan) e da justiça.
Lourenço – Antes de tudo, um bom banho,
(Ainda escuto batucar)
Ouvem vocês o batuque
Que nos chega pelo ar?

Lourenço – Pois eu por ali passei


Antes de vir ao meu lar

5
“Dramatis Personae. Lourenço de Aragão: Filho de um poderoso Barão da cana de açúcar, vai estudar
Direito em Coimbra e volta à Bahia contaminado com as ideias libertárias do final do Século XIX – chega
no auge de uma rebelião dos escravos e abraça-lhes a causa pois transformou-se em abolicionista e
republicano. De raiz ou de tintura? Não nos cabe dizer.” (TAVARES, 1995, p. 7)

353
Mãe - Que estás a dizer, meu filho?
Que é que foste me arranjar?

Lourenço – Ora, mamãe, não foi nada,


Depois quero conversar.

Coro – Alujá

(Saem os três abraçados, o som aumenta de intensidade e o balé se recompõe


à vista, bem mais agressivo e com ele se fecha a cena). (TAVARES, 1995, p.
13-14)

Na Cena IV do Primeiro Ato, Romão e Lourenço seguem para o Engenho


Esperança, quando ocorria a cerimônia do Olubajé. Ao chegarem, são interpelados pela
voz de um guarda, que pergunta em iorubá “Quem é” (Taniê?). Romão responde “Eu
venho para me abrigar” (Emi Iji Lodê mi). Com a permissão de entrar no Engenho, Romão
pede licença para entrar na “roça” (Agô. Agô n’ilê), ao que é respondido positivamente
(Agô ya).

De repente Romão pára e detém Lourenço, ficando à escuta. Faz sinal de


silêncio com o dedo sobre a boca. Ouve-se ao longe um rumor de atabaques
cadenciados. Uma voz diz: Voz – Taniê?
Romão – Emi Iji Lodê mi.
Voz – Kileí ojarê?
Romão – Agô. Agô n’ilê
Voz – Agô ya
(TAVARES, 1995, p. 21)

Valho-me, aqui, do que pensam Gilles Deleuze e Félix Guattari sobre a capacidade
de língua e literatura menores traçarem linhas de fuga aos centros de poder e às suas
palavras de ordem: A unidade de uma língua é, antes de tudo, política. Não existe língua-
mãe, e sim tomada de poder por uma língua dominante, que ora avança sobre uma grande
frente, ora se abate simultaneamente sobre centros diversos (DELEUZE; GUATTARI,
2011, vol. 2, p. 49). O que é analisado a respeito de uma “literatura menor” diz respeito
às modulações do estilo que um escritor realize em sua própria língua, arrastando-a para
os seus limites, para territórios linguísticos e, portanto, culturais desconhecidos. O
ostensivo poder da tradição literária e de sua afeição à norma culta da língua é corroído
em suas bases pelas ramificações, bifurcações, rasuras feitas por um escritor menor.
É pertinente, de tal modo, o salto teórico realizado pelo crítico Henrique Freitas
(2016) às reflexões de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Identificando a produtividade

354
epistêmica do pensamento rizomático para se compreender a literatura e a cultura negra,
Freitas, em seu assertivo experimentalismo teórico, chega às noções “literatura-terreiro”
e “afrorrizomas”:
Na literatura-terreiro, uma dimensão ética/estética negro-diaspórica e
de diálogo encruzilhado com uma produção literária canônica se imbricam,
desafiando os oris a incorporarem outros paradigmas ao som de alujás,
opanijés e outros rit(m)os, enquanto os atabaques-palavras dobram na
repetição, na incisão letra a letra no texto produzido desde o corpo como
afrorrizomas.
Os afrorrizomas relacionam-se com a torção dos rizomas deleuzianos
para se pensar no processo de dispersão, pluralidade e invenção das tradições
negras que envolveram a diáspora africana, recusando a teleologia. A África,
nesta perspectiva, não é nem bloco monolítico nem origem estática ou destino.
(FREITAS, 2016, p. 57)

À medida que o iorubá (língua de santo) extrapola a porteira do egbé (do terreiro)
e adentra a música popular brasileira (Os Orixás) e a criação dramatúrgica (Lídia de
Oxum: Uma Ópera Negra), pretende-se dar um novo status a esse repertório linguístico.
Então, de língua especial utilizada com uma “função religiosa”6 e “grupal”7 no terreiro,
passe-se a uma língua de “função literária”8 (STEWART, 1968; COOPER, 1997),
adquirindo, conforme o jogo de valores operacionalizado pela literatura, capital simbólico
diferenciado.
Nesse sentido, o uso poético que Ildásio Tavares faz do iorubá nos anos 70 e 90 não
se justifica somente pelas implicações mercadológicas desse recurso, diante da abertura
do mercado para esse filão. A postura de um escritor diante da linguagem de seu tempo
é, sobremaneira, também uma forma de construir a si mesmo no universo da linguagem.
É também uma recusa a um caminho, a uma ortodoxia, a uma relação unívoca com a
linguagem e as línguas.
Katharsis

Não hei de me curvar


ante a linguagem do meu tempo.

6
“A função religiosa diz respeito ao uso do idioma nos rituais de uma determinada religião. Cooper (1997:
141) propõe considerar três subfunções: exortação, conversão e instrução religiosa; conhecimento dos
textos sagrados e pregação política. A relação linguística entre cada uma dessas ações pode se dar de formas
diferentes em cada denominação religiosa.” (LAGARES, 2018, p. 68)
7
“A função social grupal diz respeito às línguas de grupos culturais ou étnicos, como uma comunidade
indígena ou um grupo de imigrantes estrangeiros” (LAGARES, 2018, p. 64)
8
“Ao falar da função literária, o uso de uma língua para a literatura ou a academia, Cooper (1997: 140)
ressalta a importância que os movimentos nacionalistas minoritários atribuem a esse tipo de escrita em vista
de angariar legitimidade para suas línguas. [...] Normalmente, é essa língua literária que acaba servindo de
base para a construção de uma ‘língua comum’, logo padronizada e convertida em modelo de referência
para todos os falantes.” (LAGARES, 2018, p. 67-68)

355
Hei de sobrenadar o seu lixo.,
restos de angústia, gula, desespero
e caos (sem todavia perder
a piedade), emergir
em busca de ar; de ar; de luz;
de paz de compreender (decidir)
o que me perder; o que me salvar.

Não. Não hei de enveredar-me


entre os dejetos;
não hei de me deter ante os escombros.

Seguirei meu caminho; e vou catando


lenha – é preciso acender o fogo;
arrebentar o espelho;
enxugar as lágrimas –
purificar a linguagem do meu tempo.

Ildásio Tavares. 50 poemas escolhidos pelo autor (2006).

Segundo Evelina Hoisel (2006), a escritura de uma obra é, certamente, uma escrita
de si mesmo, sendo, por isso, toda escritura uma “escritura biográfica”. A biografia, antes
de ser entendida como um gênero textual, revela a sua potência como um aspecto próprio
da escrita. Para isso, é preciso deslocar o Autor como instância da qual se pode chegar a
um sentido totalizante, uma explicação, uma justificativa da própria obra, pois, nesse
caso, escritor e obra, sujeito e escritura se fazem mutuamente:

Se se concebe a literatura como espaço onde se grafam através da linguagem


as mais diversas performances do sujeito que a produz, fazendo-o emergir e
renascer nos mais variados modos de fingimento, pode-se então defini-la como
uma escritura biográfica. É esta consciência da literatura como biografia, vida
grafada, que justifica esse olhar constante do poeta a se autocontemplar nos
labirintos da linguagem, onde irrompem as feições mais inesperadas,
desconhecidas, imponderáveis de sua fisionomia (HOISEL, 2006, p. 47)

De pai do texto e do logos que rege a sua organização ideológica, o escritor passa a
ser um efeito de sua escritura, modulado nas diversas representações do eu projetadas
pelos signos textuais:
A estrutura de uma obra, seja ela artística ou científica, corresponde à estrutura
de quem a concebe. É sempre, portanto, bio-grafia, vida grafada. É o
delineamento desse campo teórico que permite a depreensão do caráter
biográfico da escritura. (HOISEL, 2006, p. 54)

A esfera acadêmica e o mundo letrado, tão somente, não foram o único repertório de
que partiu Ildásio Tavares para tecer a sua escrita e as suas diversas linhas de fuga, de
deslizamentos. Além das “técnicas de si” (FOUCAULT, 1994) de que dispõe o sujeito

356
ocidental para construir a sua própria existência, Ildásio Tavares – um sujeito cindido
entre o repertório ocidental e o afro-brasileiro – constrói o seu projeto intelectual no
espaço liminar entre esses dois territórios culturais e epistêmicos. Para isso, a construção
dessa estética da existência não se dá, tão somente, com o repertório literário e o
conhecimento do Candomblé por meio das leituras do ambiente acadêmico, mas de sua
inserção e vivência na comunidade-terreiro do Ilê Axé Opô Afonjá (São Gonçalo,
Salvador/BA), como Ogã da casa de Oxum e Otum Obá de Xangô. Ultrapassando a
ligação do Ocidente com a linguagem escrita como fonte de saber, Ildásio Tavares
apropriou-se do repertório adquirido através da oralidade, que se trata do elo de coesão
social no Candomblé e de transmissão de valores, preceitos, códigos e ensinamentos para
a comunidade9.
Desse modo, os trânsitos linguísticos efetivados na escrita de Ildásio Tavares são
rastros, linhas, inscrições de uma memória linguística e cultural construída pelo saber –
visto, ouvido, vivido, lido – adquirido nos anos de convivência no axé10. Refiro não
somente a um saber enciclopédico, acumulado da riqueza de mitos, rezas, preceitos,
danças, ritmos e cantigas do universo afro-brasileiro, mas a um saber de si, a uma
experiência com a linguagem que diz da construção de sua grande obra: a sua vida. Esse
entrelugar da língua na escrita tavariana é também o entrelugar de uma subjevidade em
trânsito por territórios culturais, epistêmicos e geográficos distintos: a universidade e o
terreiro; a região cacaueira da Bahia e a cidade de Salvador; a cultura erudita e a cultura
popular.
O processo de subjetivação a partir de valores civilizatórios afro-brasileiros resulta
em identidades produtoras de diferença em relação aos crivos socioculturais
hegemônicos. Esses crivos deram as bases para a criação de um sujeito universal, pensado
pelo e para o Ocidente e o homem ocidental, no entanto esses dispositivos de controle se

9
“A resistência para tratar de questões relativas às línguas africanas no Brasil começa, antes de tudo, pelo
prestígio atribuído à escrita em detrimento da oralidade, a partir de uma pedagogia, vigente no mundo
ocidental, que sempre privilegiou o ler e o escrever diante da não menos importante e antiga arte do falar e
do ouvir. [...] em consequência do parâmetro que se colocou para os povos que conhecem uma forma de
escrita literária e povos que se valem da tradição oral, os últimos terminaram sendo vistos, por mais essa
razão infundada, como se fossem portadores de uma cultura inferior ou até mesmo desprovidos de qualquer
tipo de cultura. Esse argumento absurdo, que serviu, entre outros, aos propósitos colonialistas europeus no
mundo, é uma presunção evolucionista ainda veiculada em nossos livros didáticos, com base naquela
suposta inferioridade cultural do povo banto face aos oeste-africanos ou “sudaneses” no Brasil.” (CASTRO,
2005, p. 65)
10
Cf. Freud, Sigmund. Uma nota sobre o “bloco mágico” (1925). In: ______. Obras psicológicas
completas de Sigmund Freud (Vol. 19, pp. 253-262). Rio de Janeiro: Imago, 1996.

357
deparou – se forcarmos somente na construção do sujeito nacional e do que é considerado
um brasileiro – com sujeitos da diferença, como nações indígenas, africanas e
imigrantes.11 Na vida prática, os revérberos disso foram a acentuação de formas de
violência cada vez mais ramificadas no tecido social, como analisa Sueli Carneiro:
A imposição de um sujeito universal ao qual todos os seres humanos seriam
redutíveis obscureceu, ao longo do tempo, as ideologias discricionárias que
promovem as desigualdades entre os sexos, as raças, as classes sociais, as
religiões, etc. São elas: o patriarcalismo que, ao instituir como natural a
hegemonia do sexo masculino, justifica todas as formas de controle, violência
e exclusão social da maioria dos seres humanos que pertencem ao sexo
masculino; o elitismo classista determinado por modos de produção que
instituem classes minoritárias abastadas, que submetem e exploram maiorias
despossuídas; homofobia decorrente da imposição da heterossexualidade e
condenação arbitrária, muitas vezes violenta, do relacionamento entre pessoas
do mesmo sexo; fundamentalismo religioso responsável por grande parte dos
martírios ocorrido na história da humanidade em geral, em que cada
denominação religiosa, ao busca impor o seu Deus aos outros, transformam-
no, paradoxalmente, em uma das principais fontes de intolerância no mundo;
racismo que, ao eleger que um grupo racial é superior ao outro, provoca a
desumanização de grupos humanos, justificando as formas mais abjetas de
opressão, tais como a escravidão, os holocaustos e genocídios e de
discriminação étnica e racial. (CARNEIRO, 2018, p. 135).

A reconfiguração da yorubanidade na diáspora e formação do Candomblé no Brasil


levou a formação de comunidades litúrgicas no seio de uma sociedade urbana como a
nossa. Tendo como pilares o culto aos ancestrais e aos orixás, as comunidades litúrgicas
de Candomblé principiam um processo de subjetivação calcado em outros valores
civilizatórios, que não o individualismo moderno e o culto à interioridade. Muniz Sodré,
em recente obra, deslinda, de modo bastante assertivo, a construção da subjetividade nagô
na diáspora:
[...] inaugura uma experiência inédita no interior de um ordenamento social
hegemônico, implica um tipo novo de subjetivação, em que ocupam um
primeiro plano a experiência simbólica do mundo, o primado rítmico do
existir, o poder afetivo das palavras e ações, a potência de realização das
coisas, as relações interpessoais concretas, a educação para a boa vida e para
a boa morte, o paradigma comunitário, a alegria frente ao real e o
reconhecimento do aqui e do agora da existência. (SODRÉ, 2017, p. 100,
grifos do autor)

Considerando essas implicações de natureza linguística, cultural e discursiva dos trânsitos


linguísticos, culturais e epistêmicos da escrita de Ildásio Tavares, podem ser levantadas

11
É de se ressaltar o lugar ambíguo ocupado pelo imigrante na construção da nacionalidade, entre o desejo
de assimilá-lo no projeto de embraquecimento da nação e, ao mesmo tempo, assimilá-lo à cultura nacional
e aos símbolos da brasilidade.

358
ainda outras reflexões que enriquecem a leitura de sua produção artística e situam a
interpretação da literatura e da cultura nas bases do saber autocrítico e autorreflexivo que
marcam, notadamente, a contemporaneidade: quais são os impasses, de ordem religiosa,
de se levar o iorubá utilizado como língua especial da convivência comunitária e das
cerimônias do Candomblé para a esfera literária (o potencial de energia (axé) que reside
sobre os itens lexicais de origem africana e a sua transmutação como signo literário)? De
que forma o lugar de fala de Ildásio Tavares, no Candomblé e na universidade, fornece-
lhe subsídios para estabelecer conexões entre repertórios tão distintos? De quais
privilégios dispôs a obra literária e dramatúrgica de Ildásio Tavares, a partir do lugar
social por ele ocupado? A liminaridade como condição da escrita tavariana se desdobra
em três vertentes, linhas, segmentos: a cultura e a personalidade; a oralidade a escrita; e
a presença de diferentes classes sociais no Candomblé.
Em primeiro lugar, havemos de ressaltar que, pelo menos, desde o século XX,
estudiosos se debruçam sobre as representações culturais, buscando verificar nelas o que
seria motivado socialmente pela cultura e o que seria de natureza individual. Ruth
Benedict, traçando paralelos entre a antropologia e a psicologia para analisar povos
indígenas da América do Norte, levanta questões teóricas pertinentes acerca do poder da
cultura sobre a formação da personalidade e, pari passu, a influência da personalidade na
construção da cultura. Segundo a etnóloga, as culturas se comportariam como projeções
ampliadas da psicologia individual e, dessa maneira, seriam formadas a partir de seleções
de traços, comportamentos, ícones, as quais, passo a passo, produziriam representações
de um dado sistema cultural.
O que nos interessa em seu modelo teórico é, sobremaneira, a notabilidade
conferida ao indivíduo frente ao sistema cultural. Apesar de defender que uma certa
configuração cultural se faz de tendências majoritárias socialmente convencionadas, Ruth
Benedict não deixa de reconhecer também que certos indivíduos tiveram a possibilidade
de inscrever o seu traço de diferença em certos padrões, comportamentos e convenções:
“[...] se tivéssemos material, poderíamos sem dúvida traçar a influência de indivíduos
talentosos que curvaram a cultura na direção de suas próprias capacidades” (BENEDICT,
2015, p. 208).
Edward Sapir, por sua vez, vai além das considerações de Ruth Benedict.
Buscando estabelecer relações entre a antropologia e a psicologia social, o linguista

359
indagou os estudiosos de seu tempo sobre a possibilidade de se pensar a noção de Cultura
sem levar em consideração como as pessoas apropriam-se da cultura individualmente e,
do mesmo modo, de que forma a cultura12 é experienciada na / pelas relações
interpessoais. O objetivo de Sapir era, certamente, colocar em questão o discurso das
ciências humanas acerca de povos e comunidades não europeias, notadamente na
pretensão totalizante e objetiva com a qual a etnologia estudou algumas dessas
populações.

Apesar da impessoalidade frequentemente variada da cultura, a humilde


verdade continua a ser que vastos âmbitos de cultura, longe de estar em algum
sentido “carregados” por uma comunidade ou um grupo como tais, só podem
ser descobertos como a propriedade peculiar de certos indivíduos, que não
podem senão conferir a esses bens culturais a marca de sua própria
personalidade. (SAPIR, 2015, p. 118-119)

Nesse sentido, o linguista polonês endossa a opinião de que a cultura não deve ser
entendida como um sistema abstrato de relações que existe separadamente às relações
sociais e interpessoais. Sapir dá destaque ao lugar ocupado por alguns “indivíduos-chave”
em uma dada cultura e de que forma eles imprimem as marcas de subjetividade na
dinâmica cultural. E completa: “Com o desaparecimento desses ‘indivíduos-chave’, a
cultura firme, ‘objetificada, afrouxa-se de imediato e acaba por ser vista como uma
conveniente ficção mental” (SAPIR, 2015, p. 119).
Dessa maneira, é incontornável retornar à questão levantada nas seções anteriores
sobre a construção da própria identidade por sujeitos cindidos entre os valores
civilizatórios das comunidades-terreiros e o Ocidente. A produção intelectual tavariana
opera nesse ínterim entre territórios linguísticos e culturais, apropriando-se de referências
culturais advindas de diferentes matrizes culturais. Além disso, se nos voltarmos ao
contexto afro-brasileiro, podemos perceber com facilidade a pertinência dessa assertiva.
Na reorganização do culto aos Orixás e aos ancestrais, como não pensar em indivíduos
chave como as Iyalorixás do Terreiro da Barroquinha, às matricarcas da Casa Branca,
Mãe Aninha, Obarayì (Balbino de Xangô), Mãe Stella de Oxóssi, Mãe Menininha e Mãe
Carmem do Gantois, Mestre Didi Axipá, dentre tantos(as) outros(as) que se devotaram a

12
A “cultura” completa, impessoalizada, do antropólogo de fato pode ser pouco mais que um ajuntamento
ou uma massa de sistemas de ideias e ações frouxamente superpostos que, por força de hábito verbal, talvez
seja levado a assumir a aparência de um sistema fechado de comportamento. (SAPIR, 2015, p. 118)

360
preservar a Tradição, ao mesmo tempo que imprimiram a sua personalidade no trato com
seus filhos e filhas de santo, na lida com o egbé e com a sociedade civil?
Em segundo lugar, a escrita tavariana agencia uma liminaridade entre a oralidade e
a escrita. Sabe-se que os preceitos e códigos de convivência no Candomblé são
transmitidos, em sua maioria, através da oralidade, especialmente no diálogo entre os
mais velhos e os mais novos da roça. De tal modo, o uso poético de um saber ancestral,
materializado em palavras e construções frásticas em yorubá, com uma finalidade
artístico-literária, coloca em tensão os limites do que pode ser dito e cantado fora do egbé
e, especialmente, fora das cerimônias, festividades e rituais do Candomblé. Seria possível
retomar ainda outra questão de ordem mais específica, a ortografia da língua em textos
de base lexical portuguesa, assim como as variações tonais e morfológicas de palavras,
feitas por seus falantes como língua especial nas cerimônias litúrgicas do candomblé.
E, por fim, a escrita tavariana evidencia a relação entre indivíduos de origens
socioeconômicas distintas na comunidade-terreiro, igualados lesse orixá, aos pés do
santo, e dos ancestrais. Surgido entre os negros no século XIX, o Candomblé como se
conhece logo viu a entrada de membros das classes média e alta. As estudiosas Lisa Earl
Castillo (2010) e Luciana Duccini (2016) desenvolveram, na UFBA, estudos
significativos sobre a inserção desses estratos sociais e suas relações com o egbé. A
primeira, focando a presença da intelectualidade nos séculos XIX e XX, notadamente
como ogãs dos terreiros – como o Ilê Axé Opô Afonjá a partir dos anos 30, ou apenas
visitantes; a segunda, voltada para os séculos XX e XXI, analisa o perfil de integrantes
de Candomblé pertencentes à classe média, sejam eles rodantes, ogãs ou ekedes. A
presença de membros das classes médias e alta – sejam eles brancos ou negros que não
tiveram uma formação familiar dentro do Candomblé – é justificada, de modo bastante
assertivo, por Sueli Carneiro como uma amostra da falência do estilo de vida burguês e
patriarcal:
A crescente adesão de outros segmentos sociais no candomblé parece coincidir
com a crise de valores por qual passa a sociedade burguesa patriarcal. A
importância da psicanálise, ao colocar questões como repressão sexual,
inibição do corpo, complexos de toda ordem; a revolução dos anos 60, as lutas
de emancipação da mulher, a questão homossexual e a questão negra, trazem
a necessidade de repensar os grupos étnicos e segmentos sociais que, por
viverem marginalizados socialmente, se organizam segundo outras leis e
outros valores que os da “boa sociedade”. (CARNEIRO, 2018, p. 87)

361
As palavras e expressões de origem iorubana presentes em sua obra tecem a sua
escrita de si, isto é, tratam-se de rastros autobiográficos que se inscrevem no corpo do
texto, trazendo à cena da escrita uma memória que é linguística, cultural, física,
espiritual... O iorubá na escrita de Ildásio Tavares é uma “escritura biográfica” (HOISEL,
2006), que não se dá pela ficcionalização de aspectos factualmente vividos, mas pela
dimensão autobiográfica da própria escrita, que arrasta consigo – consciente e
inconscientemente – os diversos signos da cultura e as referências do que foi lido, visto,
ouvido, vivido.

REFERÊNCIAS

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Ruth; MEAD, Margaret; SAPIR, Edward. Cultura e personalidade. Organização Celso
Castro; tradução Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2015, pp. 66-109.

CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida. Prefácio Conceição Evaristo, Apresentação


Djamila Ribeiro. Belo Horizonte: Letramento, 2018.

CASTILLO, Lisa Earl. Entre a oralidade e a escrita: a etnografia nos candomblés da


Bahia. Salvador: EDUFBA, 2010.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. 2a. ed.
Tradução de Ana Lúcia de Oliveira, Aurélio Guerra Neto e Celia Pinto Costa. São Paulo:
Editora 34, 2011-2012. 5 volumes.

D’OXUM, Ialorixá Mãe Meninazinha de. A língua nagô no terreiro. In: LIMA, Ivana
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DUCCINI, Luciana. Diplomas e decás: identificação religiosa de membros da classe


média no candomblé. Salvador: EDUFBA, 2016.

FOUCAULT, Michel. As técnicas de si. Technologies of the self. (Université du


Vermont, outubro, 1982; trad. F. Durant-Bogaert). In: Hutton (P.H.), Gutman (H.) e
Martin (L.H.), ed. Technologies of the Self. A Seminar with Michel Foucault. Anherst:
The University of Massachusetts Press, 1988, pp. 16-49. Traduzido a partir de

362
FOUCAULT, Michel. Dits et écrits. Paris: Gallimard, 1994, Vol. IV, pp. 783-813, por
Karla Neves e Wanderson Flor do Nascimento. Disponível em:
<https://cognitiveenhancement.weebly.com/uploads/1/8/5/1/18518906/as_tcnicas_do_si
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FREITAS, Henrique. O arco e a arkhé: ensaios sobre literatura e cultura. Salvador:


Ogum’s Toques Negros, 2016.

HOISEL, Evelina. Grande Sertão Veredas: uma escritura biográfica. Salvador:


Assembleia Legislativa do Estado da Bahia; Academia de Letras da Bahia, 2006.

LAGARES, Xoán Carlos. Qual política linguística: desafios glotopolíticos


contemporâneos. São Paulo: Parábola, 2018.

NEGREIROS, José de Almada. Poesia É Criação: Uma Antologia. Org. Fernando


Cabral Martins, Silvia Laureano Costa. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2015.

SAPIR, Edward. A emergência do conceito de personalidade em um estudo de culturas.


In: BENEDICT, Ruth; MEAD, Margaret; SAPIR, Edward. Cultura e personalidade.
Organização Celso Castro; tradução Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar,
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SODRÉ, Muniz. Pensar Nagô. Petrópolis: Vozes, 2017.

SOUZA, Eneida Maria de. Janelas indiscretas: ensaios de crítica biográfica. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2011.

TAVARES, Ildásio; BERIMBAU, Luis. Os Orixás. Intérprete: Eloah. São Paulo: Som
Livre Cultura, 1978, 1 disco sonoro.

TAVARES, Ildásio. Lídia de Oxum: Uma Ópera Negra. Salvador: Fundação Casa de
Jorge Amado, 1995.

363
SONHO E MEMÓRIA NA OBRA A SOCIEDADE DOS SONHADORES
INVOLUNTÁRIOS, DE JOSÉ EDUARDO AGUALUSA.
João Gabriel Pereira Nobre de Paula (UNESP)1

Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar de que modo José Eduardo Agualusa e vale
das instâncias da memória e do sonho em seu romance A sociedade dos sonhadores
involuntários. Nossa hipótese é de que há uma mescla entre várias acepções do sonho, como
comunicabilidade com deuses, imaginação, utopia, enquanto a relação com a memória aparece
ao revisitar temas e acontecimentos caros aos povos africanos, a fim de deixar o estatuto de
acontecimentos traumáticos para tornarem-se pilares de uma nação independente e próspera. Em
seguida, insira as palavras-chave (no mínimo 3, no máximo 5, separadas por ponto e vírgula).

Palavras-chave: Sonho; Memória; José Eduardo Agualusa; A sociedade dos sonhadores


involuntários

Sonho e memória são instâncias que sempre estiverem em pauta dentro das
inquietações do homem, seja por seu caráter misterioso, seja por tangenciar questões
práticas e profundas do humano.
Nas palavras da professora de Teoria Literária Adélia Bezerra de
Menezes(2000), em seu artigo intitulado O sonho e a literatura. Mundo grego, o sonho
teve referido a si, ao longo dos séculos, uma gama vasta de funções , dentre as quais
convêm destacar o sonho como forma de conhecimento, como predição de
acontecimentos futuros, veículo de comunicação com os deuses, espaço onde se
manifestam elementos simbólicos. Benjamin Abdalla Junior(2013,p.18) em sua obra De
voos e ilhas: literatura e comunitarismos, traz uma interessante contribuição do
entendimento das diferentes acepções do sonho e da forma como este, na condição
metafórica de esperança, permite vislumbrar uma nova constituição social.
[...] o sonho, numa direção oposta à Freud,é diurno.
Não é noturno e nem vem de frustrações. É o sonho de quem
procura novos horizontes, um princípio de juventude. [...] É
olhando para frente, sonhando com o futuro [...] que se torna
possível concretizar objetivos. Essa atitude é mais adequada
que aquela que poderia advir do sonho noturno, que teima
obsessivamente em olhar para trás, melancolicamente
contemplando ruínas (ABDALLA JR.,2013,p.18)

No período paleolítico, em que o homem se valia de sua força e agia muitas das
vezes tomado pelo direcionamento instintivo, vemos que o sonho se configurava como

1
Aqui você pode colocar informações de formação acadêmica e o seu e-mail. Seja breve. Exemplo:
Graduado em Letras (UFF), Mestre em Literatura Comparada (UERJ). Contato: seuemail@gmail.com.

364
uma espécie de guia, instigando-lhe o pensamento e a sensibilidade para que tivesse
mais cuidado com a aproximação de um determinado animal ou a ele pudesse chegar
mais facilmente; no mundo grego, em que prevaleciam as crenças no determinismo
imposto pelas sentenças divinas proferidas pelos oráculos, o sonho figurava como
mecanismo por meio do qual o destino dos homens era selado.
Além do mundo greco-romano, encontramos em outra instância fundadora de
nossas concepções ocidentais marcas referentes ao sonho, carregando, de certo modo,
visões comunicantes às da antiguidade clássica. Dado seu caráter alegórico e profético,
o texto bíblico apresenta-se como fonte de passagens em que há clara menção ao sonho,
e estes, por sua vez, abrem-se em um leque de diferentes possibilidades, não apenas
interpretativas, mas de uso dentro do espaço religioso.
Santos e Silva(2014) , em seu artigo intitulado Os sonhos na Bíblia, destacam a
existência de um duplo caráter nos sonhos descritos no livro sagrado: por um lado,
figuravam como instrumento, meio de comunicação com as divindades, visto serem os
profetas verdadeiros intermediários das mensagens destinadas a todo o povo; por outro,
no que tange os sonhos destinados a pessoas comuns, deveriam ser tratados com
cuidado, parcimônia, não sendo, na maioria das vezes, recomendada a busca pela
interpretação das imagens oníricas. Possível ainda destacar a divisão que os autores
fazem entre os sonhos naturais, ligados a resquícios do que vivenciamos ao longo de
nossos dias, os sonhos inspirados por Deus, quase sempre a chamarem nossa atenção
para alguma modificação íntima, e os históricos, que localizam acontecimentos da
época no antigo testamento.
Na Idade Média, retoma-se a concepção de uma ligação com o espiritual, com o
divino, sendo o sonho uma ferramenta para o conhecimento da verdade. O século XIX,
por sua vez, marcado por uma postura de alta carga de cientificismo, sobretudo pelo
advento do Positivismo na Europa, com Augusto Comte e John Stuart Mill, procurou
retirar todo e qualquer resquício místico ou sobrenatural do estado onírico, buscando
tomá-lo sob uma perspectiva científica.
Na modernidade, Freud(1900) percebe que a consciência, valendo-se da
metáfora do iceberg, corresponderia apenas a parte superficial do que nos compõem
intimamente. O médico austríaco atribui grande parte dos processos psíquicos do
homem ao inconsciente, sendo os sonhos, quase sempre relacionados a satisfação dos

365
desejos.. Lacan, ao recuperar os estudos freudianos, aponta que os sonhos são formados
por uma duplicidade, um somatório entre um conteúdo manifesto, que pode ser
entendido como lembranças de ordem temporal mais recentes, e o conteúdo latente, a
que podemos exemplificar as lembranças infantis, que aparecem em estado de recalque
dentro da psique do indivíduo.
Já a memória , mais do que meras referências saudosistas, configura-se como a
busca pela recuperação de um elemento ao qual já não se tem mais acesso quando de
seu registro, misturando-se às impressões e subjetivações. Halbwachs, um dos mais
renomados estudiosos da memória, desenvolve o conceito de memória coletiva,
buscando entender determinadas situações como pertencentes a uma coletividade, como
acontece no caso dos países africanos de literatura portuguesa, povos que experenciaram
os horrores da guerra e que apenas recentemente buscaram-se desvencilhar dos grilhões
do colonialismo, guardando em si certa carga traumática.

A sociedade dos sonhadores involuntários: memórias da guerra, sonho de


uma nação
Ainda que não nos seja permitido adentrar o obscuro campo da intencionalidade
do autor, pois que este , vestido com a capa da ficcionalidade e a máscara do simulacro,
escolhe em seu íntimo somente aquilo que deseja ver fora de si, é possível recuperarmos
determinados fatos , elementos que emergem como importantes instâncias motivadoras
da escrita desta ou daquela obra.
Desta forma, é possível elencarmos alguns fatores preponderantes para a
elaboração de A sociedade dos sonhadores involuntários(2017), décimo quarto romance
escrito pelo angolano José Eduardo Agualusa. Romances anteriores, como O vendedor
de Passados(2004) e Teoria Geral do Esquecimento(2012) , apresentaram, de diferentes
formas, a perspectiva do fantástico e do onírico, aliando a esses elementos alto caráter
político. Entretanto, o contato e o deslumbramento com o trabalho do neurocientista
brasileiro Sidarta Ribeiro proporcionaram um maior engajamento do autor para com a
questão do sonho, transformando-o em ideal temático, fio narrativo e ferramenta
relacional entre as personagens apresentadas na obra. Não por acaso observamos a
inserção da personagem Hélio de Castro, um neurocientista brasileiro interessado pelas

366
questões do sonho e que deseja ser capaz de construir uma máquina que registre, em
forme de vídeos, os sonhos das pessoas.
É este engajamento político do autor, que por diversas vezes postou-se contrário
às diretrizes e encaminhamentos governamentais de Angola , acrescido de sua tendência
de revisitar acontecimentos históricos , o dínamo que faz com que Agualusa traga para
sua obra a prisão de jovens ativistas angolanos, conhecidos como “revus”no ano de
2015, acusados de conspiração ao governo de José Eduardo dos Santos, enquanto liam
e discutiam a obra “From Dictatorship to Democracy, de Gene Sharp. Tal
acontecimento político é matizado no romance pela atuação da filha de Daniel,
Karinguiri, presa por atentado ao presidente durante um pronunciamento em público.
Em A sociedade dos sonhadores involuntários somos apresentados a quatro
personagens que se ligam por meio da temática do onírico. No que concerne à forma, o
romance se estrutura em quarenta e dois capítulos(quarenta e um capítulos acrescidos de
um epílogo), mesclando-se ao longo da narrativa, as vozes responsáveis pela
perspectiva apresentada na trama, bem como os tipos de texto inseridos por José
Agualusa. Desta forma, temos, na maior parte dos capítulos, as enunciações do
jornalista Daniel Benchimol, Há capítulos, no entanto, que correspondem às memoriais
de Hossi , organizadas em diário, representativas do período de guerra que vivera, ou da
artista Moira Fernandes, com quem Daniel se correspondia através de cartas e e-mails.
Benchimol, protagonista da narrativa, pode figurar, a nosso ver, como uma das
primeiras instâncias da memória ao longo do romance. Explicamos. O jornalista fora
apresentado aos leitores de Agualusa em um romance anterior, Teoria Geral do
Esquecimento, dedicando-se , na referida obra, ao misterioso desaparecimento de um
boing.
Esta veia de inquietude é ,de certo modo, reaproveitada e aprofundada nesta
novo romance, ganhando contornos mais políticos. Daniel trabalhara durante certo
tempo como correspondente de um jornal português estabelecendo ponderações sobre
política e sociedade, fato este amplamente desaprovado pela figura do sogro, Homero,
homem influente que enriquecera misteriosamente nos últimos anos do partido único,
sendo extremamente conservador. Exemplo de tal feito dá- se em meio a uma acalorada
discussão durante um jantar de família em que um dos primos da esposa Lucrécia tenta
defender a liberdade expressiva de Daniel.

367
- Calma, tio. O Daniel tem direito a escrever o que quiser, e o
senhor tem direito a discordar. Estamos em democracia, e numa
democracia é saudável haver opiniões diferentes.
[...] – Tu, cala-te!- ordenou Homero. Ainda agora chegaste ao
país e já falas em democracia? Deus fez os leões e fez as
gazelas , e fez as gazelas para que os leões as comessem. Deus
não é democrático. (AGUALUSA, 2017, p.15)
Benchimol pode ser definido como um sonhador. A alcunha, que a um primeiro
momento poderia ligar-se ao caráter idealizador do jornalista, desejoso por ver florescer
uma nação angolana mais consciente, justa e próspera, refere-se também ao curioso fato
de que Daniel era capaz de sonhar com pessoas que não conhecia, mas que existiam.
Após separar-se da esposa, deixando a casa de Homero, Daniel segue em direção
a Cabo Ledo, e acabar por decidir hospedar-se em um hotel já conhecido, de nome Arco
Íris, propriedade de Hossi Kaley, um reformado militar que, durante o período de
guerras, possuía a estranha capacidade de ser visto nos sonhos de outrem, quase sempre
portando um casaco de coloração arroxeada. Esta peculiaridade fora , inclusive, alvo
das forças armadas, desejosas de a utilizarem como instrumento de persuasão. A
chegada do jornalista ao hotel, fato inicialmente visto com certa trivialidade, figura
como preâmbulo para significativas mudanças no romance, principiando pela
perspectiva do narrar: Se anteriormente o encadeamento das ações e o ponto de vista em
que as situações eram apresentadas ao leitor ficavam a cabo do jornalista , alternam-se,
aqui, capítulos encabeçados por Daniel e capítulos cuja voz narrativa é de Hossi, a
relatar suas memórias, sendo algumas destas dispostas como um diário em meio à
guerra.
Em meio a um dos diálogos com Daniel, Hossi diz ter morrido duas vezes, mas
deseja contar ao jornalista apenas a primeira. O fato por si só causa estranheza e parece
remeter-nos à inserção de um elemento fantástico na narrativa agualusiana.
É justamente no hotel de Rossi que outro fato, não menos estranho, faz a
narrativa caminhar e entrecruzar a história das personagens principais da trama. Em um
mergulho , Daniel encontra uma máquina fotográfica. Revelando o filme, o jornalista
assusta-se por encontrar feições semelhantes às da mulher dos cabelos de arco-íris com
quem tem sonhado por um longo tempo. Refinando as pesquisas, descobre que as
fotografias presentes no cartão são da artista plástica sul africana Moira Fernandes. Por

368
meio dos contatos de antigos colegas de trabalho, consegue, pois , o contato de Moira e,
por e-mail, decidem se encontrar para que ele possa devolver o aparelho. A visita à casa
da artista é reveladora, pois como adivinhara Moira, mais do que restitui-la do objeto
perdido, Benchimol desejava compartilhar as experiências relacionadas com o sonho, de
forma análoga ao que fizera com Hossi. A moça, então, confessa-lhe que as imagens
reproduzidas nos quadros , quase sempre composições que mesclavam retratos sem
vestimentas, animais e paisagens, tratavam-se, na verdade, dos sonhos da própria artista,
transpostos para as telas.
Daniel enamora-se por Moira, e o estreitamento dos laços e da convivência tem
por efeito também aumentar a ciência a respeito dos sonhos. Em um dos passeios que
realizem juntos, correspondendo à subida de um elevado monte, conhecem um
neurocientista brasileiro, de nome Hélio de Castro, cuja pesquisa mais recente versava
sobre o estudo dos sonhos, e que possuía ambição da construção de uma máquina que
fosse capaz de capturar, em filmes, os sonhos das pessoas.
Ao regressar para Angola, o jornalista tem a informação de que a filha ,
Karinguiri, fora presa por realizar um ataque à figura do presidente em um
pronunciamento público, juntamente com o sobrinho de Hossi, Sabino. Hossi acaba não
resistindo a um atentado e vem a falecer no hospital. Seu irmão gêmeo Jamba decide ,
então, juntamente com Daniel, arquitetar um plano para libertar os familiares. O plano
era composto parte por reivindicações nos arredores do palácio, parte pelo uso do manto
roxo que lembraria a figura do irmão, morto, como fantasma que viria cobrar justiça.
Conseguindo adentrar as dependências do palácio, Jamba encara o presidente,
degladiando-se com ele Com um golpe, parte-lhe ao meio, saindo de dentro outro
presidente, menor e não menos enérgico. Questionado o motivo pelo qual teria prendido
os revolucionários, temos uma resposta altamente alegórica:
-O ínfimo presidente rendeu-se:
Eles não tem medo!Esses miúdos não têm medo! Onde
já se viu?!São malucos, não mostram medo, e isso é uma
doença contagiosa.
-Isso, o senhor quer dizer, a coragem?
-São malucos. Você não percebe que são malucos?Se os
solto vão contagiar toda a gente. Vão destruir-me, a mim e à
minha família. Vão destruir tudo aquilo que nós construímos.
Não os posso soltar. (AGUALUSA, 2017,p.244).

369
A narrativa chega a cabo com a libertação dos jovens revolucionários em meio à
pressão popular , e o abandono do cargo por parte do presidente.
De posse do enredo, convêm nos determos em alguns aspectos de análise da
obra, os quais constituem elementos pré-textuais, como o título, bem como a análise de
algumas passagens envolvendo às questões do sonho e da memória. No tocante ao
título, vemos que uma rápida leitura poderia condicionar-nos à ideia de que tal
elaboração sintagmática cumpre apenas uma prerrogativa poético-mercadológica ,
visando atrair a curiosidade dos leitores. Entretanto, se lançarmos o olhar a outros
romances do autor, veremos configurar-se como uma característica de sua escrita a
nomeação de obras com certo lirismo, lirismo esse empregado a serviço de uma ampla
relação de significações. Antes de adentrarmos as significações supracitadas, cremos ser
possível estabelecermos certa relação intertextual entre o título do romance agualusiano
e uma obra cinematográfica produzida no ano de 1989, dirigida por Peter Weir: A
sociedade dos poetas mortos. Mais do que pela similaridade das construções textuais
que gerem os referidos nomes das obras, possível se faz aproximá-los por meio daquilo
que tencionam junto à sociedade. O filme de Weir materializa na figura do professor
interpretado por Robin Williams o desejo ao combate do pragmatismo, o estímulo à
reflexão, à crítica, ao equilíbrio entre a vida com intensidade aliada à necessidade de
responsabilidade; o livro de Agualusa evidencia a necessidade do sonho de uma Angola
diferente que, revisitando o passado, as chagas de sua condição colonial sociohistórica,
seja capaz de projetar um porvir venturoso.
É também nesse sentido que podemos entender o título dado à obra pelo escritor
angolano. O romance enquadra personagens que possuem peculiaridades relacionadas
ao onírico e que o fazem de modo inconsciente, como Hossi, capaz de adentrar os
sonhos de indivíduos que estejam próximos a ele, e Daniel Benchimol, que sonha com
personalidades reais mas com as quais nunca obtivera contato. No entanto, a nosso ver,
Agualusa deixa entrever no percurso da obra, a necessidade de um sonho voluntário,
acordado, do desejo de construir , por meio de ações conjuntas, engajadas, uma
condição que deixe os estatutos de distopia e de utopia para emergir como realidade.
Dando prosseguimento às nossas considerações, convêm destacarmos, agora,
algumas das passagens textuais do romance agualusiano, a fim de verificar de que modo

370
o sonho e a memória estabelecem relações de significação e de sentido dentro da
construção narrativa.
No tocante ao sonho, uma das questões mais pungentes tocadas por Agualusa
não apenas nesta obra, como em romances anteriores, dentre os quais citamos O
vendedor de passados, é o que poderíamos denominar de contradição entre o lugar
comum dos sonhos, tomado quase que ordinariamente como instância do irreal, visto
sua alta ligação com a imaginação, e a questão da realidade. Esta problematização ,a
nosso ver, guarda consigo certo resquício, herança de nossa matriz helênica, visto que
filósofos como Platão detinham-se sobre o estatuto de realidade e veracidade de nossas
vivências, opondo o mundo sensível, ligado à representatividade material das coisas, ao
mundo inteligível, relativo às ideias, a um caráter de essencialidade daquilo que
tomamos em cópia .
A primeira passagem a que nos remetemos diz respeito a uma ponderação da
personagem Daniel Benchimol , logo no início do romance, em que se questionava a
respeito dos sonhos que tinha , sua legitimidade, por parecerem tão ou mais reais do que
tudo que presenciava em seu cotidiano. “Nas entrevistas que fiz enquanto sonhava, os
entrevistados mostraram-se muitas vezes mais autênticos , sobretudo mais lúcidos , do
que em estado de vigília”.
Mais adiante no romance, a personagem Hossi, em diálogo com Daniel, põe-se a
levantar semelhante problematização, de modo poético, mas não menos assertivo.
Os sonhos, ah, os sonhos! Uma amiga disse-me uma vez que
sonhar é o mesmo que viver, mas sem a grande mentira que é a
vida. Talvez seja isso. Talvez seja o contrário disso. Nem sei.
Acontece-me , por vezes, acreditar numa determinada ideia e no
oposto dela com idêntica paixão, ou sem paixão nenhuma. Nos
últimos anos,aliás, venho perdendo os cabelos e paixão.
Também venho perdendo ideias e ideais. Talvez seja a velhice,
talvez seja o nirvana. O que você acha?(AGUALUSA,
2017,p.49)
A título de melhor exemplificação, trazemos uma passagem do romance O
vendedor de passados, a figurar como certo eco presente no romance em que analisamos
neste trabalho.
– Finalmente. – Disse, – há vários dias que sonhava com isto.
Queria vê-lo. Queria saber como era você. – Acha então que
esta conversa é real? – A conversa, certamente, as
circunstâncias é que carecem de substância. Há verdade, ainda
que não haja verossimilhança, em tudo o que um homem sonha.
Uma goiabeira em flor, por exemplo, perdida algures entre as

371
páginas de um bom romance, pode alegrar com o seu perfume
fictício vários salões concretos. Fui forçado a concordar. Às
vezes, por exemplo, sonho que voo. Ora, nunca voei com tanta
verdade, inclusive com tanta autoridade, quanto nos meus
sonhos. Voar de avião, na época em que eu voava de avião, não
me transmitia um idêntico sentimento de liberdade. Tenho
chorado a morte da minha avó, em sonhos, mais e melhor do
que a chorei desperto. Chorei, aliás, lágrimas mais autênticas
pela morte de alguns personagens literários do que pelo
desaparecimento de muitos amigos e
parentes.(AGUALUSA,2004,p.71)
Vemos, então, que o sonho é, por vezes, constituído, tecido e pintado com cores
mais realistas do que a própria realidade, transpondo os limites previamente impostos,
instalando-se no limiar das possibilidades e potencialidades.
Outro caráter explorado e apresentado pelo escritor com relação ao onírico diz
respeito a certo traço de comunicabilidade com os deuses, que como salientamos
anteriormente, estava presente na cultura grega por meio da figura dos oráculos,
representantes divinos na Terra, e na cultura africana, em que os indivíduos buscavam a
evocação de seus antepassados com intuito de pedirem conselhos e resoluções às
intempéries.
Sonhei com Deus e Deus era um cão velho, latindo na
escuridão. Deus era as aves vagando sem rumo num céu
remoto. Deus era as orquídeas no pequeno quintal da casa de
Moira. Disse-me Deus: “Conforta-te. Não haverá luzes
brilhando, nem um jardim que te receba. Ninguém te dará a
mão depois do fim”.
Moira não se mostrou impressionada:
-Ecos: Sonhos são sempre ecos de alguma coisa!-
comentou.(AGUALUSA, 2017,p.106)
Vemos nesse trecho a referência a uma instância divina que retoma a concepção
de onipresença e relação com todos os elementos do meio natural(cão, aves, orquídeas).
Entretanto, diferentemente da concepção bíblica de que o homem encontra em Deus a
salvação, de que há , posteriormente à morte, a salvação , o céu, o homem é alertado
pela própria divindade de que encontrar-se-á sozinho , lançado à sua própria sorte.
A última referência que elencamos liga-se à significação do sonho como desejo ,
utopia. A primeira passagem é um recorte do diálogo entre Daniel e Karinguiri. A
jovem, presa, fazia greve de fome, insurgindo-se novamente contra o regime. O pai,
ansioso por respostas, desejava ir ao Brasil.
-Vais onde?
-Ao Brasil, a trabalho.
-Que trabalho?

372
-Sonhos. Vou em busca de sonhos e de sonhadores.
-Não precisas ir tão longe, papá. Eu tenho tantos sonhos. As
outras presas, as mulheres-polícias, todas nós sonhamos muito.
Nem imaginas os sonhos que cabem dentro desta prisão.
(AGUALUSA, 2017,p.145)

Daniel rendeu-se à ideia do estudo dos sonhos de Hélio de Castro, e faria de tudo
para que pudesse ter novamente a companhia da filha. Karinguiri, no entanto, entende o
sonho em uma concepção mais próxima do desejo, dizendo ao pai que não seria
necessário empreender longo trajeto para que pudesse encontrar pessoas com sonhos
sinceros. Na referida noite, todos sonham o mesmo sonho: vislumbram Hossi, trajando
o casaco roxo, indo em direção ao palácio para a revolução.
A memória percorre todo o romance, seja na condição de relatos da experiência de
guerra de Hossi, seja nas memórias do próprio Daniel. A certa altura, Hossi lembra que
os combatentes já não se lembravam mais do motivo pelo qual estavam matando uns
aos outros, como se guardassem certo inconsciente de ações temíveis que já não mais
faziam sentido. Conta, então, a Daniel , que morre sua primeira morte se deu por meio
de um raio em uma noite chuvosa, quando um raio lhe acertou e lhe tirou as memórias.
Outro raio, porém, o trouxe a vida, marcando-o para sempre. Esta ação evoca certa
similaridade com o modo como a personagem Frankstein, de Mary Shelley, ganha vida,
tornando-se uma espécie de aberração, de monstruosidade que busca sua identidade no
contato alheio, nas leituras e observações de mundo.

Considerações Finais

Vemos que tanto a memória quanto o sonho presentes na narrativa agualusiana


corroboram tanto para a recuperação de sentidos construídos historicamente como
ligam-se à ponto de , revisitando o passado, projetar um novo futuro a países como
Angola, por meio da união, do sonho e não do esquecimento, mas da aceitação e do
trabalho.

373
Referências
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374
REFERÊNCIAS, IRREVERÊNCIAS E INTERFERÊNCIAS NA POESIA DE
HARRYETTE MULLEN
Marcos Aparecido Pereira (IFMT)1
Maria Rita Berto de Oliveira (IFRO)2

Resumo: Este trabalho busca discutir algumas das referências culturais presentes no texto Quality of
life, presente no livro Sleeping with the dictionary da poetisa afro-americana Harryette Mullen. Com
irreverência e em meio a uma miríade de elementos contemporâneos, a autora é capaz de envolver o
leitor num labirinto de reflexões e questionamentos sociais, políticos e identitários. Harryette Mullen
brinca com o sentido das palavras, joga com construções literárias enigmáticas e abre espaço em sua
arte para o enfrentamento de temáticas relevantes tanto ao universo social americano, quando a todas
as nacionalidades marcadas por uma construção fragmentada, descentrada e multifacetada. Desta
forma, ao mergulhar na composição poética dessa autora é possível perceber os anseios de um
sujeito buscando sua própria construção em meio às incertezas da contemporaneidade.
Palavras-chave: Literatura; Sociedade; Contemporaneidade.

Harryette Mullen é um poetisa complexa que trabalha com múltiplas referências da


cultura moderna a fim de, deliberadamente, moldar sua arte num objeto estético capaz de
suscitar vários tipos de reflexões e questionamentos que, geralmente, nos direcionam para
as problemáticas do sujeito no mundo moderno, globalizado, tecnológico, diverso,
múltiplo, mas, sobretudo, marcado pelas incertezas. Desta forma, mais do que respostas,
na leitura que se segue do poema, gostaríamos de deixar questionamentos prováveis,
dentre tantos possíveis de serem tecidos em Quality of life.
Traduzir o poema para a língua portuguesa seria uma impossibilidade, pois perderia
todo o jogo de significados proposto pela autora e, portanto, a expressividade desejada.
Logo, apenas alguns versos serão traduzidos com a intenção de examinar as partes do
texto. Os versos aparecerão, portanto, em meio aos apontamentos, na forma original, em
itálico. Desta forma, o foco deste trabalho está na realização de uma leitura aprofundada e
reflexões a fim de tentar compreender a narrativa por trás e em meio às construções
poéticas.
Assim, obviamente, o poema não se esgota e muitas outras leituras e interpretações
dos inúmeros símbolos do poema podem ser feitas sob diferentes ópticas. Afinal, a
irreverência do trabalho dessa escritora fazendo alusões a canções de ninar, jogos de
adivinhações, alimentos e personagens (humanos ou não) da cultura popular abre um
vasto campo de explanações intertextuais.
É preciso destacar que todas as pessoas nominalmente mencionadas no texto são
músicos afro-americanos. A autora possivelmente busca legitimar artistas negros que
algumas vezes padecem da doença da invisibilidade espalhada por uma cultura

1
Professor do IFMT; doutorando em Estudos Literários – PPGEL – UNEMAT; marcos.pereira@cas.ifmt.edu.br
2
Professora do IFRO; doutoranda em Estudos Literários – PPGEL – UNEMAT; maria.rita@ifro.edu.br

375
mercadológica e demarcada pelo racismo, muitas vezes, com ares diplomáticos. Desta
forma, ainda, não raro, artistas negros são segregados a um papel de coadjuvante na
cultura de países como EUA, mas não apenas neste país.
A crítica social de Mullen, entretanto, não se restringe ao movimento negro, o
poema levanta questionamentos sobre a mulher, a função da arte, a desigualdade social, os
movimentos pelos direitos da comunidade gays, a aceitação da realidade posta e a
artificialidade do ser humano numa sociedade que vive de aparências. Ou seja, sua poesia
suscita questões universais, ainda que partindo de elementos da cultura pop americana.
E ainda, deixando clara noção de que a arte, a literatura e a poesia são sociais
(CANDIDO, 2000), (ADORNO, 2012), Mullen não utiliza seus versos como um tipo
qualquer de escapismo, os constrói como armas (RUI, 2011) que expõem de forma
consciente as mazelas sociais e direciona-nos ao enfrentamento das problemáticas de
nosso tempo. O projeto estético dessa autora é um projeto de intervenção e interferência
no mundo. Afinal, “uma literatura nasce sempre frente a uma realidade histórica e,
frequentemente, contra essa realidade” (PAZ, 2015, p. 126) e Harryette Mullen sabe muito
bem disso. Ela é uma pensadora engajada que não foge das questões embaraçosas de seu
tempo, buscando promover a liberdade humana e conhecimento, cumprindo, portanto, seu
papel de poeta e daquilo que Said (2003) considera um intelectual, na obra
Representações do Intelectual.
Além disso, a autora desenvolve aquilo que Sartre (2004) chama de consciência de
classe, ou seja, tendo a capacidade de enxergar-se de dentro e de fora dela, afinal, “a
poesia coloca o homem fora de si e, simultaneamente, o faz regressar ao seu eu original:
volta-se a si” (PAZ, 2015, p. 50). Mullen consegue retratar “questões que envolvem a
formação de identidade cultural, incluindo a negritude, o gênero, a comodificação do
corpo negro, e os espaços públicos e privados” (AMORIM, 2010, p. 121). Isso sem contar
que, em entrevista, Mullen (1996) deixa explícito o desejo não de escrever para um único
povo, mas de fazer com que diferentes leitores possam comungar de sua arte, não pelo
rótulo da cor, mas pela marca de inovação presente em seus textos. Desta forma, a poesia
dessa escritora, pesquisadora e pensadora de nosso tempo tem a força de expandir a
percepção do leitor, estimulando a emancipação do pensamento, sem, contudo, perder em
criatividade, poeticidade e literariedade.
Harryette Mullen é professora da Universidade da Califórnia, Los Angeles. Seu
primeiro livro Tree Tall Woman (1981) já mostrava influências de seu engajamento em
movimentos pelos direitos civis e sociais. Além disso, Mullen é engajada na própria literatura

376
e no rompimento de barreiras técnicas e formais. Sua escrita busca o que a própria autora
chama de poesia significativa, permitindo, sugerindo ou insinuando significados possíveis.
Para tal, ela utiliza sempre inúmeras alusões a fim de tornar o poema "interessante e
complexo” (MULLEN apud BEDIENT, 1996).
Outra temática cara à autora em seu fazer poético é a quebra de paradigmas atribuídos à
escrita do autor negro e/ou a maneira como o autor negro deve expressar-se a fim de
reconhecido em uma comunidade artística “autenticamente” negra, seja do ponto de vista dos
negros ou dos brancos (AMORIM, 2010). Mullen, em entrevista a Calvin Bedient (1996),
explica que sua poesia é deliberadamente multi-vocal e que através dela procura expressar a
diversidade de sua própria experiência de vida em meio a diferentes culturas. A autora e sua
escrita são expressões plurais daquilo que Gadea (2013), ao falar de africanidade, menciona
como sendo multiplicação de experiências e afiliação de grupos.
Mullen ressalta a importância da miscigenação nos Estados Unidos e como isso
influenciou seu trabalho na direção de uma experimentação poética para além
de limites raciais e estéticos preestabelecidos. Em outras palavras, a
miscigenação não é, para ela, de modo algum incompatível com a noção de
experimentação (AMORIM, 2010, p. 124).

A poetisa Harryette Mullen tem a capacidade de jogar com o significado das palavras
construindo teias de sentidos, às vezes, difíceis de ser desemaranhadas. Seu trabalho poético,
de acordo com Amorim (2010), envolve formas poéticas experimentais que procuram de
forma deliberada a construção de uma poesia alusiva e elusiva. E, apesar da complexidade dos
segredos ocultos em seus versos, navegar pela articulação das imagens, dos vocábulos e,
sobretudo, pelas reflexões às quais somos guiados, torna-se uma fascinante jornada à medida
que vamos decifrando as inteligentes artimanhas de suas elaborações poéticas.
Mullen traz para sua poesia, muitas vezes difícil de categorizar (AMORIM, 2010), mas
que, comumente, é definida como poesia em prosa, inúmeras referências da cultura popular e
de cenários do cotidiano, como se o tempo presente estivesse eternizado. O leitor é
apresentado ao agora, ao mesmo tempo em que o passado se remodela à sua frente em
interligações que, por vezes, questionam acontecimentos, mas que, também, incita-o a
ponderar sobre o devir. Dotado de um intenso enfoque social, o poema que nos propusemos
analisar: Quality of life (Qualidade de vida) é parte integrante da obra Sleeping with the
dictionary, lançada em 2002, e abre espaço para o enfrentamento de temáticas caras ao mundo
contemporâneo e a cultura globalizada.
Logo no primeiro verso Does all dust turn grave in his nightmare of cloned sheep?
somos apresentados ao destino inevitável de todas as criaturas: a morte. O pó volta ao pó,

377
alusão, óbvia à passagem bíblica. Outro símbolo da Bíblia seria o da ovelha, exemplo de
mansidão e de sacrifício. Contudo, o poema apresenta a imagem de uma ovelha clonada,
ou seja, não é única, nem singular. É uma entre muitas com o mesmo pesadelo, um
pesadelo em que tudo se acaba. Que pesadelo seria esse?
Is Bo Peep losing sleep? O trecho possivelmente refere-se a uma canção de ninar
americana, apesar da personagem "Bo Peep" ser mais conhecida por causa da sequência
de filmes Toy Story. Na canção, a pastora perdeu o sono porque não consegue encontrar
suas ovelhas. Quem seriam as ovelhas perdidas?
A seguir o texto continua: Did the lamb march in? Eat the dandelions? Agora temos
a imagem do cordeiro, na verdade, uma “cordeira” como saberemos a seguir. Essa é a
filhote da ovelha atormentada pelo pesadelo do primeiro verso, certamente a mesma
criatura que tira o sono da pastora. Essa filha se põe em marcha, se vai, e come ervas
daninhas (dandelions), ou seja, passa momentos de dificuldade. Assim, imaginando que a
ausência da cordeira é o motivo do pesadelo da primeira ovelha marcada com o pronome
pessoal “his” (dele); e ainda, que esse é o motivo da pastora perder o sono, somos capazes
de unir esses três primeiros versos numa única imagem bastante representativa: a imagem
de uma família com uma filha que partiu. Um pai que tem pesadelos e uma mãe
(representada pela pastora, vigilante) que não consegue pegar no sono. Seríamos todos
famílias de ovelhas clonadas vivendo num mundo de Lobos-maus?
A seguir, o texto faz mais duas referências a personagens conhecidos. A primeira,
no trecho Is lamb chop an unnatural act? Lamb Chop foi uma personagem
antropomórfica de fantoche muito famosa nos EUA na década de 50. A ovelhinha de seis
anos, criada pela ventríloqua Shari Lewis gostava de falar verdades e fazer comentários
irônicos que misturavam inocência e obstinação em seus posicionamentos político-sociais.
Ao que podemos inferir que falar o que a sociedade não quer ouvir pode ser considerado
não-natural, incomum e até errado, especialmente para uma mulher, uma cordeira, ou pelo
menos alguém que, para a sociedade, deveria ter essa imagem.
A segunda é uma alusão à ovelha Dolly: Hello, Dolly, have you any wool? Serious,
serious, thick hats full of kinks. So don’t forget to pack your Polartec. A ovelha não tem
mais lã e os grossos chapéus cheios de dobras parecem sugerir que o inverno chegou. A
imagem dos chapéus cheios de dobras se opõe a imagem da ovelha tosquiada, lisa. Logo,
aqui há uma primeira insinuação às desigualdades sociais, sobretudo se nos perguntarmos:
De que seriam feitos esses chapéus? De lã?

378
Sem lã, a ovelha não deve esquecer sua Polartec, ou seja, seu agasalho de tecido
sintético. Novamente temos menção aos cuidados maternos: leve o agasalho. Neste caso,
Dolly possivelmente seria a cordeira que partiu (no verso anterior). Mais uma vez o texto
questiona nossa originalidade e singularidade enquanto seres, ao mesmo tempo em que o
tecido sintético sugere a artificialidade de nossa época. Até que ponto seríamos “únicos”?
Isso sem contar outras perguntas que surgem: Para onde teria ido essa ovelha? Com que
finalidade se desgarrou do “bando”, da família?
No próximo verso Last week we picked oranges, but the apple’s still chilling. há
referência ao final do outono e o começo do inverno, as laranjas foram colhidas, mas as
maçãs ainda estão congelando. “Chilling apple” também é o tempo necessário com
temperaturas abaixo de zero para que a macieira possa romper o período de dormência a
fim de que os botões se desenvolvam. Uma imagem bastante representativa e que dá sinais
de esperanças no caminho da ovelha.
O sujeito deste primeiro pedaço da narrativa só aparece de forma mais clara em: She
might not be the cruelest fool. Just a lame dame on a blip trip. Que pode ser
compreendido como: “Ela não deve ser a tola mais cruel. Apenas uma dama coxa numa
viagem 'blip'". BliP é uma plataforma digital que permite criar chatbots, ou seja,
atendentes virtuais que simulam o atendimento de um ser humano. No contexto, as
pessoas pensam que, de alguma forma, ela é uma tola cruel, mas na verdade ela é coxa,
indicando imperfeição e está numa jornada que imita uma viagem real. Portanto, é
possível inferir que os versos questionam a própria realidade e a figura do ser humano
nela. A imperfeição do ser humano e a ilusão da realidade suscitam reflexões clássicas da
filosofia. No contexto do poema é possível perguntar: Qual é sua viagem irreal? Para onde
ela foi? Cruel por que? Porque fala o que os outros não querem ouvir, talvez...
Her brain on spring break. Com o cérebro num descanso de primavera, isto, sem se
preocupar com o que há pela frente, pois tem a certeza de que o verão apontará a seu
tempo. O período de dormência passou e as flores podem surgir na primavera. E, enquanto
a primavera age, a vida segue: A trick vacation. A fake date. A fluke, or just a flake. Aqui o
recurso da aliteração e a ausência de verbos proporciona um efeito de rápida passagem de
tempo. “Uma viagem de truque. Um encontro falso. Um acaso, ou apenas um floco/ uma
lasca". Essa última pode, ao mesmo tempo, indicar a fragilidade da vida e de seus
acontecimentos cotidianos e também das pequenas partes que vão se soltando de nós
diariamente a medida que vivemos. Entretanto, as palavras: truque, falso, acaso, floco

379
podem sugerir mais uma vez as incertezas e/ou a fragilidade acerca das “verdades" da
realidade que nos cerca. Ou das verdades que nos são contadas.
Was there then but she was in the left at the wrong. Nothing to see but a strung
gallery of poetry inhibitions. Aqui os questionamentos brotam direcionados à personagem:
por que ela estava do lado errado? Qual seria o lado certo? Aquele que a sociedade queria?
Aquele que fosse “natural”, como em Chop Lamb? Além disso, pela primeira vez, no
poema, somos direcionados ao universo literário do escritor, mais propriamente do poeta:
há uma galeria de inibições poéticas trancada, o que sugere que há muitos assuntos que
não devem/deveriam ser discutidos, especialmente pela poesia. A crítica aqui é elaborada
sobre o próprio fazer poético. Neste ponto já é impossível não procurar relacionar a figura
da própria autora em seus versos: mulher, negra, americana, buscando seu espaço, indo
contra a realidade posta, ciente de todo um inverno de dificuldades, falando aquilo que
nem sempre é agradável, mas sempre acreditando que as macieiras florescerão após o
inverno. Ou seja, cumpre seu papel de artista e de intelectual (SAID, 2003).
Talvez, por estar do lado errado e dizer aquilo que estava trancado na galeria de
inibições, ninguém quer seu livro. Rejeição. Her book on the table. Noboby buying. Sua
arte é propositadamente ignorada. Neste ponto há praticamente uma narrativa de
acontecimentos encadeados: Luck was there to take her in. A friend with a new look, a
light blond bob. A friend tending to the dying. One who lends money for books. Who
shows her the neighborhood paper bag and circles all her haunts. Alguém, uma amiga
metaforicamente denominada de “Sorte”, auxilia a personagem do poema. A amiga é
loira, faz caridades aos mendigos e empresta-lhe dinheiro para os estudos (books), ao
mesmo tempo em que lhe mostra a vizinhança feita de sacos de papel, isto é, uma
sociedade construída de aparências. Além disso, a amiga circula todos os fantasmas delas,
ou seja, transmite-lhe a segurança necessária para seguir em frente. Aqui a amiga parece
ser a representação de uma “fada madrinha”, que em tempos modernos empresta dinheiro
e circula fantasmas como um psicólogo.
Dessa forma, é possível notar que há um retrato das diferentes classes sociais e da
situação de pobreza que parte da população vive: recebendo assistência social, pedindo
dinheiro nas ruas com as mãos esticadas na multidão e, ao mesmo tempo, contrastando
com a Wild Child Yoga, um programa educacional para crianças de famílias abastadas.
The mayor takes credit for the quality of life. Mention money on the street and a hand will
be extended. They stretch out in a crowd. They sign for the wild child of yoga.

380
Em seguida o imperativo demarca os próximos versos: Walk across the park form
Charlie Parker. Eat sweet potato pirogies in uppity cafe. Look at other merchandise. A
smattering of tribes. O fragmento faz alusão a Charlie Parker, saxofonista e compositor do
Harlem e pirogue é um prato polonês, possivelmente para indicar as muitas “tribos” que se
fazem presente na cultura americana. Indicação esta que continua em: Unheard of march
in which the men protest themselves. Callaloo and collards are equivalent. Or banana is
the same as "plata no es” (grifo meu). Callaloo é um prato característico das Antilhas,
possivelmente originário na africana ocidental, mas também é o nome do jornal onde a
autora trabalhou no começo de sua carreira (RYAN, 2010). Enquanto isso "plata no es"
refere-se a uma adivinha dos países de língua espanhola: "Oro parece, plata no es". A
duplicidade fica por conta da sonoridade da construção "prata não é" em espanhol e da
palavra "plátano" (banana na mesma língua). O excerto possivelmente indica mais uma
“tribo”: a dos latinos de fala hispânica residentes nos EUA, porém, é, ao mesmo tempo,
uma pista para que o nome Callaloo não seja lido de uma única maneira.
A poesia ao mesmo tempo apresenta-nos o hibridismo de povos e de línguas
marcando a formação múltipla das identidades americanas (e por que não mundiais?) no
mundo moderno. As identidades, no contexto em que estamos inseridos, partindo das
concepções de Stuart Hall (2000), são fragmentárias, se constroem e reconstroem
constantemente. Nesse sentido, é possível afirmar que também a identidade nacional foi
afetada por essa fragmentação do sujeito e de sua identidade cultural na modernidade,
constituindo, dessa forma, identidades híbridas multirreferenciais. Movimento este que
pode ser percebido também no uso das palavras dentro do poema.
Narrative never is mere entertainment. To entertain is knowing how to be a woman.
French theories suggest the best in women’s writing are the men. O poema volta à
literatura deixando claro que ela não é entretenimento, afirma que para entreter é preciso
saber como é uma mulher. Possivelmente, indicando que para entreter é necessário ser
inteligente, inovador e versátil, tal qual como a própria narrativa que jamais é mero
entretenimento. Em seguida, faz uma crítica ácida e bem-humorada às “teorias francesas”
nas quais a escrita das mulheres não é digna de mérito. Ou seja, nem a narrativa em si,
nem o que a mulher escreve são meros entretenimentos, a despeito de uma sociedade
ainda marcada pelo machismo que teima em não reconhecer a mulher como igual na
sociedade.
“These star-apple leaves along the sound of Sonny Rollins River”. As aspas na
primeira parte sugerem citação, apesar da ausência de comprovações de quem seria a

381
sentença. Ainda assim, temos a presença do saxofonista do jazz Sonny Rollins e da
gravadora Riverside Records, que lançou vários trabalhos do músico. O nome da fruta
abio (star-apple), nativa da América Central e da Mata Atlântica brasileira, talvez sugira a
empresa Apple que através de suas plataformas musicais tem disponibilizado os trabalhos
do artista afro-americano no formato de streaming. Ou seja, a arte de Rollins encontrou
uma nova maneira de ganhar os diferentes cantos do mundo.
Tina Turner set fire to her wigs so she could wear all burnt hair. De acordo com
Ryan (2010), o trecho refere-se ao fato de Tina Turner ter posto fogo em acessórios caros,
evidenciando o sacrifício imposto pelo mundo da moda, além disso, a cantora teria
comentado sobre a tendência de mulheres negras alisarem seus cabelos artificialmente. Os
questionamentos aqui ficam por conta do reconhecimento da identidade e das
características peculiares a cada povo.
Tourists flock to Strawberry Fields. Neste trecho há referência à música dos Beatles:
Strawberry Fields Forever que é considerada exemplo genial do rock psicodélico, escrita
por John Lennon. Misturando as memórias da infância com as lembranças dos períodos de
uso de drogas, a canção fala que “nada é real” e que “não há nada para se preocupar”.
Logo, se os turistas seguem em bando, como rebanho, para os “campos de morango”, é
provável que isso seja uma crítica à maneira pouco questionadora das pessoas, no geral.
São como turistas à passeio que não se perguntam sobre a verdadeira realidade à sua volta.
As reflexões sobre a realidade e sua percepção que vêm sendo tecidas até aqui ganham seu
clímax com essa intertextualidade.
Outro trecho, a seguir, reafirma essa ideia "viver sem questionar”. Ao dizer que
ninguém pega os panfletos, as propagandas políticas, dos vanguardistas: No one gets agit-
props from avant-garde. Indicando que as pessoas fecham os olhos para essas militâncias
artisticamente engajadas e não se importam com o engajamento da arte como forma de
conhecer e questionar a realidade.
Voltando aos “campos de morango", o texto diz: Where sheep grazed in erstwhile
Seneca Village. Aqui os “campos de morango” são onde as ovelhas pastam na antiga
Seneca Village. Obviamente, as ovelhas são as pessoas “inocentes” ou que buscam ignorar
sua realidade. É possível pensar que, talvez um dia a personagem do poema tenha sido
uma cordeira, mas, através da narrativa traçada no poema, muito aconteceu em sua vida e
ela não é mais a ovelha de antes. Talvez ela jamais tenha sido, haja vista que sempre foi
“não-natural”, inconformada.

382
Ainda é preciso destacar: “Vila Seneca”, que foi uma comunidade negra (em sua
maioria) que viveu onde hoje há parte do Central Park. Estima-se que em 1855, ao menos
260 pessoas viviam nessa comunidade e que desses 30 por cento eram europeus,
especialmente irlandeses que chegaram aos EUA na década de 40 fugindo da fome após
perda da colheita de batatas. Talvez por isso a referência irônica ao termo “sweet potato”.
As pessoas dessa comunidade foram despejadas de forma violenta de suas pobres
residências. Depois disso, pouco se soube sobre as pessoas que ali moravam, ou seja,
foram quase que completamente esquecidos perante um dos mais conhecidos pontos
turísticos do EUA.
A-Train from Caffe Reggio out of postcards. Caffe Reggio remete ao bairro onde,
ainda no século 19, houve manifestações pelos direitos civis, especialmente da
comunidade gay americana da época. O que explica por que “esse” Caffe Reggio não está
nos cartões postais da mesma maneira que a famosa cafeteria, inaugurada em 1927,
inaugurado pelo Domenico Parisi. Enquanto isso, “A-Train” é uma referência a letra de
Take the "A" Train (Pegue o Metrô “A”) do compositor Billy Strayhorn (RYAN, 2010). A
letra dessa canção diz para não perder o metrô “A” que logo você estará em Sugar Hill, no
Harlem. Sugar Hill era a área residencial dos afro-americanos mais ricos no Harlem.
Provavelmente mais uma vez destacando as desigualdades sociais e a despreocupação e
alguns frente a realidade de outros, neste caso que viviam nas áreas menos abastadas.
Hour and a half by subway to JFK. Bumpy return to port of lax security. O metrô
que leva ao JFK com certeza não se refere ao aeroporto, mas, sim, ao presidente
americano John Fitzgerald Kennedy, em cujo governo, na década de 60, houve a
consolidação do movimento dos direitos civis dos negros nos EUA. Contudo, o poema
adverte que esse é um “retorno instável à um porto se segurança frouxa”. Ou seja, o
racismo ainda existe, a discriminação ainda existe, o preconceito ainda existe e pode
voltar a qualquer hora.
E o último verso é rico em informações e manipulações dos sentidos. Once I get
that zip gun your reality Czech’s in the escargot. "Zip gun" é um tipo de arma feita a mão,
manufaturada, que aqui, pode sugerir a arte, a escrita e/ou os versos. "Reality Czech"
possivelmente não tem nada a ver com a nacionalidade tcheca, trata-se, apenas, de um
jogo de palavras homófonas. Portanto, teríamos "reality check", ou seja, a verificação de
realidade. E logo o verso ficaria aproximadamente: “uma vez que eu pegue essa 'arma',
sua realidade está[rá] num escargot”. Ou seja, a partir do momento em que a arte for
utilizada como força de resistência e questionamento da realidade posta, essa estará

383
protegida por uma frágil carapaça. As mentiras serão expostas e as pessoas poderão
enxergar o mundo com novos olhos, afinal é função da arte impulsionar à reflexão e a
conscientização, portanto, jamais à resignação e ao abrandamento. “Escrever é viver.
Escrever é lutar”, afirma Manuel Rui (2011, s/p.).
Agora é possível voltar ao título: Quality of Life. E perguntar-nos que qualidade de
vida é esta? Qualidade de vida para quem? Seria plena nossa qualidade de vida enquanto
outros sobrevivem em total desamparo? É possível ter qualidade de vida sem conhecer a
própria realidade? Ou aceitando a realidade posta? E ainda: existe qualidade de vida sem
arte? Haverá qualidade de vida enquanto nos comportarmos enquanto ovelhas clonadas?

Considerações
A poesia começa com um ponto de interrogação possivelmente indicando que tudo
começa com uma pergunta. Que devemos nos manter sempre alertas, como destaca Said
(2003) ao falar sobre as características dos intelectuais. Devemos fazer como Harryette
Mullen: manter-nos incansáveis questionadores da realidade a nossa volta, refletindo
sobre as mesmas questões apontadas por Paz (2015, p. 97, grifo do autor):
Uma descrição da superfície da sociedade contemporânea deveria abranger
traços menos perturbadores: o agressivo renascimento dos particularismos
raciais, religiosos e linguísticos ao mesmo tempo que a dócil adoção de
formas de pensamento e conduta erigidas em cânon universal pela
propaganda comercial e política, a elevação do nível de vida e a degradação
do nível de vida; a soberania do objeto e a desumanização daqueles que o
produzem ou utilizam; o predomínio do coletivismo e a evaporação da
noção de próximo.

Não somos isolados e são nossas interações com as diferentes culturas que nos
forma como seres humanos do mundo moderno. Constatando esse fato e defendendo o
hibridismo e a multiplicidade presente na formação do indivíduo, a autora insere nomes de
alimentos de diferentes nacionalidades como que para sugerir que “nos alimentamos” das
várias culturas com as quais temos contato e a partir delas construímos nosso eu,
lembrando a antropofagia de Oswald de Andrade. Logo, jamais somos uma coisa só,
somos negros, brancos, latinos, americanos, homens, mulheres, que vivem num complexo
processo de interdependência regido por nossas imperfeições, somos todos coxos. O anjo
torto de Carlos Drummond é o anjo de todos nós (ou pelo menos dos poetas), afinal: “o
homem é o inacabado, ainda que seja cabal em sua própria inconclusão; e por isso faz
poemas, imagens nas quais se realiza e se acaba, sem acabar-se nunca de todo” (PAZ,
2015, p. 109).

384
E, dia a dia nos colocamos em marcha, abandonamos nossos lares, nossas certezas e
partimos rumo a um inverno de dúvidas, um inverno necessário para que nossas sementes
saiam do estado de dormência. Porém, nessa jornada não andamos sozinhos, temos
amigos que se não emprestam dinheiro para os livros, às vezes sim também, ajudam-nos a
enfrentar os nossos fantasmas, afinal é só na interação com o outro que eu me formo, me
conheço e me venço. Além disso, “todo poema é coletivo” (PAZ, 2015, p. 117), todo
movimento de transformação da realidade, idem. A referência aos músicos expõe esse
pensamento, afinal, os músicos são também poetas e sua poesia em forma de canção só
alcança seu lugar devido quando cantada por muitos, só assim sua mensagem pode ser
ouvida cada vez mais alto e mais forte.
De forma bastante sutil o poema deixa implícito esse movimento que vai do eu ao
outro e que é capaz de movimentar a realidade. O poema começa na terceira pessoa (he,
she), mais especificamente na família, passa pela opinião dos outros, pela rejeição e pela
ajuda dos outros, que no meio do texto se tornam plural (they). Em seguida, o texto passa
para o imperativo, portanto, demarca a segunda pessoa, o interlocutor ensina exprime seus
pedidos; ensina: a andar, comer e depois a ver, talvez porque para enxergar as coisas com
propriedade é preciso experiência e para ter experiência, é preciso ter caminhado e
experimentado um pouco do que a vida oferece em seus muitos sabores do doce ao
amargo. Posteriormente, o texto traz à tona elementos da cultural e da mídia para indicar
que estamos inseridos numa sociedade marcada pela duplicidade do bom e do mau. Toda
história tem dois lados e a realidade nem sempre é aquela que nos é contada, portanto,
nossas certezas são frágeis e nossa segurança duvidosa. Mas o poema acaba em primeira
pessoa do singular, sugerindo que toda realidade vem do exterior, mas pouco a pouco se
forma no interior do eu. E, a partir desse momento, o “eu” é capaz de pegar arma-artística
e colocar toda a realidade em xeque.
O poema também deixa claro que é preciso movimentar-se, pôr-se em marcha, pois
só assim conseguiremos modificar a realidade, ganhar um descanso, que, ainda que não
pleno, é certamente melhor que a aceitação das mazelas do mundo. Outra imagem que o
poema apresenta mais de uma vez é a da rejeição àqueles que incomodam, que falam o
que os outros não querem ouvir: seja adjetivando de cruel, se afastando de seus livros ou
ignorando os panfletos; entretanto, a luta deve sempre seguir e esta talvez seja a principal
interferência que ela quer nos deixar com sua poesia; afinal, as ovelhas do poema somos
nós: perdidas, mansas, conformadas, apartadas, rebeldes. Qual delas você é?

385
Referências
About Harryette Mullen. Disponível em:
https://www.english.illinois.edu/maps/poets/m_r/mullen/about.htm Acesso em 20 jun.
2019.

ADORNO, Theodor W. Palestra sobre lírica e sociedade. In: Notas de Literatura I. São
Paulo, Editora 34, 2012.

AMORIM, Lauro Maia. A poesia negra de Harryette Mullen em tradução:


(des)encontros com o leitor. Cadernos de Literatura em Tradução, n. 11, p. 111-127.
Disponível em: www.revistas.usp.br/clt/article/download/49489/53573/+&cd=2&hl=pt-
BR&ct=clnk&gl=br Acesso em: 10 maio 2019.

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Publifolha, 2000.

GADEA, Carlos A. Negritude e pós-africanidade: crítica das relações raciais


contemporâneas. Porto Alegre: Sulinas, 2013.

MULLEN, Harryette. Sleeping with the dictionary. University of California Press, 2002.

PAZ, Octavio. Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 2015.

RUI, Manuel. Eu e o outro – o invasor ou em poucas três linhas uma maneira de pensar o
texto. Disponível em: http://negritudeeliteratura.blogspot.com/2011/01/manuel-rui-eu-e-o-
outro-o-invasor-ou-em.html. Acesso em: 20 jun. 2019.

RYAN, Jennifer D. Post-Jazz Poetics: A Social History. New York: Palgrave Macmillan,
2010.

SAID, Edward W. Representações do intelectual: as Conferências de Reith de 1993. São


Paulo: Companhia das Letras, 2003.

SAIN-BAIRD, Jessica. The Story of Seneca Village (2018). Disponível em


http://www.centralparknyc.org/about/blog/story-of-seneca-village.html

SARTRE, Jean-Paul. O que a literatura? São Paulo: Ática, 2004.


Seneca Village and the Making of Central Park. Disponível em:
https://www.nyhistory.org/seneca/village4.html Acesso em 10 mai. 2019.

Shari Lewis Biography. Disponível em: https://www.biography.com/performer/shari-lewis


Acesso em 10 mai. 2019.

386
REFLEXÕES SOBRE O PATRIARCADO: UMO POSSÍVEL LEITURA DA
SUBALTERNIDADE FEMININA EM AMERICANAH

Rosineia da Silva Ferreira (UnB) 1


Celiomar Porfírio Ramos (Unemat) 2

Resumo: O objetivo desta pesquisa é analisar a representação da subalternidade feminina sob a


perspectiva patriarcal na personagem Uju do romance Americanah (2010) de Chimamanda
Ngozi Adichie. A escolha da análise dessa personagem se justifica, pois ainda hoje a mulher é
posta em condição de subalternidade com relação ao homem e tal personagem apresenta a
abordagem de gênero como tradução de sistemas culturais. As bases teóricas que sustentarão
este trabalho são: o texto de crítica literária de Antonio Candido Literatura e Sociedade (2006);
Pode o subalterno falar? (2010) de Gayatri Spivak; Não sou uma Mulher? Revisitando a
interseccionalidade (2017) de Brah e Phoenix dentre outras obras que subsidiarão os diversos
aspectos propostos para análise.

Palavras-chaves: Patriarcalismo; subalternidade; Americanah.

Introdução
As teorias dos estudos pós-coloniais apresentam a situação de subalternidade de
várias classes de sujeitos, que são colocadas em situação marginal segundo a visão
eurocêntrica do mundo, tendo como base social o patriarcalismo. Tais sujeitos se tornam
sem voz e sem representatividade nos diversos espaços na sociedade. Nesse sentido as
teorias pós-coloniais têm como base os conceitos de subalternidade e não lugar, para
problematizar a situação dos sujeitos pós-coloniais que só têm voz por meio de
representantes que têm legitimidade para tal devido ao seu lugar de fala. Desta forma,
tais sujeitos colocados em condição de subalternidade vivem à sombra de outros sujeitos
que tomam para si a tarefa de representá-los.
Deve-se destacar que o sujeito pós-colonial não é único, ele é composto por várias
categorias de sujeitos, tais como os negros, os indígenas e as mulheres, esta última
categoria será a de destaque para este estudo porque ela será objeto de análise na obra
Americanah (2014) de Chimamanda Ngozi Adichie.
Portanto, compreende-se que a subalternidade feminina não é única, ela se
interseccionam com a subalternidade imposta por outras categorias como classe e/ou
raça, pó isso não deve ser posta de forma singular, pois as mulheres estão sujeitas a mais

1 Mestranda em Literatura pelo programa de pós-graduação em Literatura – Póslit da Universidade de


Brasília (UnB). Contato: rosineia.ferreira@gmail.com
2 Doutorando em Estudos Literários (UNEMAT), Mestre em Estudos de Linguagem (UFMT),
graduado em Letras e Comunicação Social – habilitação em Jornalismo (UFMT). Contato:
celiomarramoss@hotmail.com

387
de um tipo de subalternidade, levando-as a múltiplas condições de subalternidade.
Nas sociedades patriarcais, homens e mulheres são criados de forma binária, e
seus comportamentos são moldados conforme suas posições sociais de gênero. Essa
posição binária entre homens e mulheres muitas vezes torna opaca a condição de
dominação masculina, dificultando a percepção dessa situação.
Nesse cenário em que a mulher é subalternizada e silenciada, a teoria pós-colonial
busca espaço para as vozes periféricas, para que elas sejam ouvidas. Essa busca de
espaço para essas vozes não é restrita as às mulheres, mas sim a todos os grupos de
sujeitos que estão em situações críticas de representatividade, no entanto é essencial
destacar que a situação da mulher torna-se diferente de outros grupos, pois como já
citado a mulher é duplamente subalternizada.
Neste cenário, deve-se frisar que a escrita feminina tornou-se ao longo do tempo
um instrumento de resistência, a partir de um lugar de fala subalterno em que a escrita
feminina sempre está posta como gêneros menores, em comparação com a escrita
masculina. No entanto, mesmo com tamanho desprestígio, as mulheres não se negaram
ao direito de escrever e sempre estão a ocupar o espaço que supostamente não lhes
pertence. Devido a essa resistência ao longo da história, aos poucos as mulheres estão
galgando seu próprio espaço no meio literário.
Na atualidade temos grandes escritoras que não são apenas escritoras, mas são
escritoras engajadas na causa feminista. Dentre essas escritoras temos Chimamanda
Ngozi Adichie, que cada vez mais vem ocupando os espaços de resistência que cabe às
mulheres na literatura. Portanto, propõe-se para este estudo, uma análise crítica literária
da personagem Uju na obra Americanah (2014), sob a perspectiva pós-colonial de
subalternidade num contexto patriarcal.

Gênero e subalternidade

Na maioria dos países ocidentais a estrutura familiar e social existente é de base


patriarcal, essa estrutura pode ser definida a partir da centralização da autoridade na
figura do pai dentro de uma família, no entanto, tal estrutura vai além do ambiente
familiar e serve de matriz para diversos setores da sociedade, conforme afirma Barreto,
tal estrutura caracteriza-se

por uma autoridade imposta institucionalmente, do homem sobre mulheres e


filhos no ambiente familiar, permeando toda organização da sociedade, da
produção e do consumo, da política, à legislação e à cultura. Nesse sentido, o

388
patriarcado funda a estrutura da sociedade e recebe reforço institucional,
nesse contexto, relacionamentos interpessoais e personalidade, são marcados
pela dominação e violência. (2004, p. 64)

Desta maneira, percebe-se que a mulher é posta em posição social inferior aos
homens, ou seja, a mulher é subalternizada.
Ao observar os conceitos de subalternidade apresentados por Spivak e suas
concepções de sujeito e de identidade, pode-se afirmar que a mulher está inclusa na
categoria de pessoas subalternas. Segundo Spivak, os sujeitos subalternos pertencem “as
camadas mais baixas da sociedade, constituídas pelos modos específicos de exclusão
dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem
membros plenos no estrato social dominante” (SPIVAK, p. 12), assim ela também
considera que a “mulher como subalterna, não pode falar e quando tenta fazê-lo não
encontra meios para se fazer ouvir” (SPIVAK, p. 15).
Neste contexto, em que a mulher é subalternizada pode-se refletir sobre a escrita
de mulheres e, sobretudo acerca da escrita das mulheres negras que são duplamente
subalternizadas, pelo gênero e pela raça. Conhecer tais interseccionalidades é
importante, pois ajuda na compreensão do “que significa ser uma mulher em diferentes
circunstâncias históricas” (BRAH e PHOENIX, 2017, p. 662) para assim, relacionar os
efeitos dessas interseccionalidades no contexto da autora e da obra que se propõe
analisar.
Quando se propõe discutir um tema relacionado a gênero devemos considerar o
breve conceito apresentado por Costa que aponta como mulher a “categoria
heterogênea, construída historicamente por discursos e práticas variadas, sobre os quais
repousa o movimento feminista” (1998, p. 138), para que se tenha noção que a categoria
feminina é heterogênea e múltipla, por isso não podemos tratar sobre as mulheres, como
se elas estivessem todas num mesmo patamar.
Portanto, ser mulher é assumir uma identidade política, intrinsecamente ligada aos
aspectos sociais, culturais, geográficos, econômico, racial, sexual a partir do ponto de
vista feminino desses aspectos, que formam a identidade feminina ressignificando o
mundo a partir de sua perspectiva.
A partir da consciência das diferenças das mulheres e com o engajamento social
do movimento feminista na luta pelos direitos das mulheres estabeleceu-se a
epistemologia feminista, que busca dar voz às mulheres enquanto grupo subalternizado
pela visão eurocêntrica do mundo.

389
Mesmo com toda consciência política e todo engajamento dos movimentos
feministas, as mulheres permanecem em situação de subalternidade. Apesar das
inúmeras conquistas femininas em diferentes segmentos da sociedade, a subordinação
feminina no sistema patriarcal ainda vigora em diversas sociedades contemporâneas.
Portanto, quando se propõe uma discussão em torno das questões de gênero, a
subalternidade é sempre presente. Nesse sentido, Brah e Phoenix ao apresentar o ponto
de vista de Anne McClintock (1995) de que raça, gênero e classe “não são esferas
distintas e isoladas da experiência” chega a conclusão que “elas passam a existir por e
através de relações contraditórias e conflitantes entre si” (2017, p. 671). Assim, a
subalternidade feminina não deve ser vista de forma singular, pois as mulheres estão
sujeitas a mais de um tipo de subalternidade e a pior delas, pois “as mulheres sempre
foram tratadas como seres socialmente inferiores, exploradas de modo similar às formas
de escravidão” (FEDERICI, 2017, p. 27).
A partir dos apontamentos acerca do gênero e dos pilares patriarcais das
sociedades, que impõem às mulheres a condição de subalternas, propõe-se uma análise
da situação de subalternidade da Personagem Uju em Americanah (2014), como já
exposto.
Tendo por base a obra Literatura e Sociedade de Antônio Cândido é possível a
compreensão que a obra literária é fortemente influenciada pelo contexto a qual seu
autor está inserido, de modo que “o externo (no caso, o social) importa, não como
causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na
constituição da estrutura, tornando-se assim, interno” (CÂNDIDO, 2006, p. 14),
portanto entende-se que o escritor coloca em sua obra muito de sua realidade social.
A autora em questão é encontra-se inserida em um contexto patriarcal e também
vivenciou a situação de diáspora em seu país de forma profunda e assim por meio de sua
escrita, representa as mulheres que são subalternizadas por essa estrutura social e que se
tornam fortemente marcadas pela opressão e pela violência.
A escrita de Adichie pode ser definida como literatura de resistência, que contribui
para a conscientização política e social, e luta para combater a subalternidade, contra a
opressão e a exclusão da mulher. Por evidenciar em suas produções personagens que por
um longo período estiveram ausentes do cenário literário e quando apareciam estavam
em posição secundária, sem voz e na maioria das vezes estereotipados, como é o caso
das representações das mulheres negras.
Neste sentido, a literatura torna-se um instrumento que contribui para romper o

390
silenciamento imposto às mulheres e, sobretudo as mulheres negras que utilizam a
literatura como uma forma de romper com as mordaças que as silenciavam ao longo dos
anos.
Esta pesquisa não se tem como objetivo utilizar o texto literário como pretexto
para compreender aspectos históricos relacionados à mulher, mas como um instrumento
que possibilita estabelecer uma análise literária, considerando as premissas de Antonio
Candido em sua obra Literatura e Sociedade (2006), ao afirmar que para compreender
uma obra literária devemos considerar o texto e o contexto numa concepção dialética.

Subalternidade na personagem Uju

O romance Americanah narra a história de Ifemelu, uma jovem nigeriana que vai
para os Estados Unidos estudar devido as greves recorrentes em sua universidade na
Nigéria. A ida de Ifemelu é intermediada por sua tia que já estava lá. Embora Ifemelu
seja a protagonista do romance esta análise terá como foco Tia Uju, pelos motivos e
condições que a fizeram ir para a América.
Uju vivia uma vida muito confortável e quase luxuosa, em Lagos proporcionada
pelo seu relacionamento com o General Oga que dava tudo a ela. Uju vivia em uma
“(…) enorme casa rosa com a imensa antena satélite florescendo no telhado, o gerador
transbordando de diesel, o congelador repleto de carne (…) (ADICHIE, 2014, p. 86). O
general lhe proporcionava muito conforto, no entanto a mantinha sob seu controle,
principalmente financeiro, pois ele dava a ela muitos objetos e serviços, mas não lhe
dava muito dinheiro e nenhum bem estava em nome dela, como é possível perceber em
seu diálogo com Ifemelu, vejamos: “Você não tem dinheiro? Hum, tia, como você pode
não ter dinheiro? Oga nunca me dá muito dinheiro. Ele paga todas as contas e prefere
que eu peça tudo o que quiser. Alguns homens são assim.” (ADICHIE, 2014, p. 86).
Desta maneira, percebe-se no modo de agir do General que ele mesmo à distância
mantém o controle financeiro e social da vida de Uju, objetificando-a, pois embora ele
tenha arrumado trabalho para ela no hospital da cidade, ela nunca recebeu seus
proventos, mesmo trabalhando todos os dias e sua vida financeira fica toda tutelada ao
dinheiro e ao controle dele.
Uju se relaciona com um homem casado, cuja esposa também sofre as opressões
desse homem, pois a narrativa revela que sua esposa “era uma advogada que abrira mão
da carreira para criar os quatro filhos deles em Abuja” (ADICHIE, 2014, p. 94). Tal
situação demonstra as relações entre o patriarcalismo e o sistema colonial instaurado na

391
sociedade nigeriana, revelando que opressão sofrida pelas mulheres é vista com
naturalidade e sem apresentar conflitos éticos ou morais por isso.
Com o assassinato do general, Uju e seu filho Dike ficaram desamparados
financeiramente e sob ameaças violentas da família da esposa do General.

Alguém deu pancadas no portão. Dois homens e três mulheres, parentes do


General, haviam obrigado Adamu a abrir o portão e agora estavam diante da
porta da frente, gritando. Uju! Faça as malas e saia daí agora! Passe a chave
do carro para cá! Uma das mulheres era esquelética e estava agitada e com os
olhos vermelhos, gritando: “Sua vagabunda ordinária! Deus nos livre de
encostar na propriedade do nosso irmão! Prostituta! Nunca vai viver em paz
em Lagos!. (ADICHIE, 2014, p. 96)

Tal situação a obriga a fugir da Nigéria para os Estados Unidos às pressas, pois
além do medo da violência ela não tinha nenhum bem em seu nome.
A partida forçada de Uju da Nigéria e sua nova condição na América a colocam
em situação de diáspora. Na diáspora as mulheres enfrentam os mais diversos tipos de
problemas oriundos de sua condição financeira, como moradia, emprego,
competitividade, qualificação, exclusão, preconceito e racismo. É nesse contexto que ela
passa a viver uma vida muito diferente da que ela levava na Nigéria.
Na Nigéria, Uju trabalhava como médica em um hospital, já nos Estados unidos
“tinha três empregos, pois ainda não fora considerada qualificada para ser médica”
(ADICHIE, 2014 p. 110). Quando Ifemelu chega aos Estados Unidos ela percebe que
“havia algo de diferente nela. (…) o cabelo mal trançado, as orelhas sem brincos”
(ADICHIE, 2014, p. 115), “sua pele estava seca, seus olhos, sombrios, seu espírito,
pálido, sem cor” (ADICHIE, 2014, p. 120), Ifemelu encontra sua tia muito diferente da
que vivia na Nigéria, quando era vaidosa e bem cuidada.
As dificuldades financeiras a que Uju estava submetida eram visíveis em seu novo
visual e como observa Ifemelu em suas necessidades básicas também, pois “no
supermercado, tia Uju nunca comprava o que precisava; comprava o que estava em
promoção e se obrigava a precisar daquilo” (ADICHIE, 2014, p. 120). A subalternidade
de Uju, até então observada por Ifemelu ocorrera principalmente por questões
financeiras, como a perceptível vaidade que ela deixara na Nigéria. Mas Ifemelu
percebe a subalternidade de Uju na relação com as pessoas e o modo de se portar e se
comportar diferente diante de americanos. Em uma ida delas ao supermercado, seu filho
Dike pega o cereal de sua preferência, mas mais caro, e vai para o caixa:
Dike, ponha isso lá de volta”, disse tia Uju, com o sotaque anasalado e
escorregadio que usava quando falava com americanos brancos, na presença

392
de americanos brancos, ou onde pudesse ser ouvida por americanos brancos.
Junto com o sotaque, surgia uma nova personalidade, de alguém que pedia
desculpas, rebaixava-se. Ela foi solícita em excesso com a caixa. “Desculpe,
desculpe”, disse, procurando o cartão de débito na carteira. (ADICHIE, 2014,
p. 120)

Essa situação revela uma Uju subalterna diante dos nativos da cultura na qual ela
está inserida. Subalternidade esta que surge também das situações de dificuldade que ela
já enfrenta a mais tempo do que ela esperava, as sucessivas reprovações nos testes de
qualificação para a medicina, a dedicação aos estudos e os três empregos que
consumiam sua vida e a faziam sentir-se cansada

Nunca fui reprovada na vida. (…). Ela ficou de pé e foi para a cozinha.
“Estou cansada. Tão cansada. Achei que, a essa altura, as coisas iam estar
melhores para mim e para Dike. Não tinha ninguém para me ajudar e não
conseguia acreditar como o dinheiro ia embora rápido. Estava estudando e
tinha três empregos. Numa loja no shopping, trabalhando como assistente de
pesquisa e cheguei até a trabalhar algumas horas no Burger King. (ADICHIE,
2014, p. 121).

Ifemelu constata a nova realidade de sua tia ao comparar a sua nova conjuntura
com a antiga na Nigéria, essa comparação faz Ifemelu chegar a constatação de que “a
América a deixara submissa” (ADICHIE, 2014, p. 121).
Uju estava subalterna à sua condição de estrangeira passando por todas as
dificuldades impostas a uma mulher negra na diáspora e ainda intimamente ligada aos
preceitos patriarcais de sua cultura original, pois ao tentar um novo relacionamento
procurou um parceiro de seu país que fosse da mesma etnia. Tal opção carrega como
consequência a consciência de que ela estará se colocando na condição de
subalternidade existente na sociedade da qual se originam.
Assim, Uju começa um relacionamento com um nigeriano que também mora nos
Estados Unidos, Bartholomew. Nessa nova relação Uju novamente se submete aos
moldes patriarcais em um novo contexto. Ifemelu observa que ele se porta como se ele
fosse um prêmio para Uju e percebe nela um assujeitamento das ações dele. Segundo as
observações de Ifemelu “ele se comportava de forma pomposa, como um prêmio
especial que tia Uju tinha a sorte de ter ganhado, e ela não o contrariava (…) Tia Uju
assentia quando ele falava, concordando com tudo que dizia” (ADICHIE, 2014, p. 127).
Uju viu em Bartholomew sua última esperança de dar um pai a Dike e de ter outro
filho, como ela queria, e por isso se casou. Com o passar do tempo, ele cada vez mais
passa a assumir seu lugar de chefe da família nos moldes patriarcais. A essa altura,

393
depois de tudo que ela passou para sobreviver com seu filho, Uju não se resignaria a tais
imposições facilmente, e confidencia a Ifemelu sua insatisfação “nós dois trabalhamos.
Nós dois chegamos em casa no mesmo horário. E você sabe o que Bartholomew faz?
Senta na sala, liga a televisão e me pergunta o que vamos comer no jantar.” (ADICHIE,
2014, p. 236).
Além de persistir para Uju a típica dupla jornada imposta às mulheres que têm
carreiras profissionais, ela se vê diante de outra nuance do sistema patriarcal. Embora
no seu relacionamento com o general a matriz também fosse patriarcal nas questões
financeiras, em que ele tinha total controle do dinheiro e das finanças, não lhe faltava
nada e o dinheiro que ela usufruía era dele. Enquanto que seu novo marido, não a
sustentava e ainda queria controlar o dinheiro de seu trabalho, como mais uma vez ela
confidencia com Ifemelu:

Ele quer que eu dê meu salário para ele. Imagine! Diz que é assim que os
casamentos são e que ele é o chefe da família, que eu não devia mandar
dinheiro para meu irmão sem pedir permissão a ele, que eu devia usar meu
salário para pagar as prestações do carro dele. (...)
Tudo o que quer de mim é que entregue meu salário e faça moela apimentada
aos sábados enquanto assiste ao futebol europeu. Por que eu deveria dar meu
salário para ele? Por acaso ele pagava minhas mensalidades da faculdade de
medicina Fica querendo tomar minhas decisões de trabalho por mim. O que
um contador sabe de medicina? (ADICHIE, 2014, p. 237)

A insatisfação que Uju demonstra, já nos remete ao sujeito híbrido da pós-


colonialidade vivendo em situação de diáspora apresentado por Bhabha (2010), um
sujeito que já não é o mesmo, pois em um primeiro momento ela vê em Bartholomew a
possibilidade de formar uma família e aceita todas as suas excentricidades,
compreendendo que esse relacionamento se daria nos moldes culturais aos quais os dois
pertencem. Tal situação seria prontamente aceita por ela se eles estivessem na Nigéria.
No entanto, ela se revela um sujeito modificado ao questionar e não aceitar os
padrões de submissão que ela deveria aceitar por sua condição de mulher. Por isso, ela
consegue se desvencilhar desta relação sem traumas. Essa mulher passa a ter
consciência de sua condição e a contesta.
Consoante a isso Barreto (2004, p. 64) explicita que a inserção da mulher “no
mercado de trabalho remunerado abalou a legitimidade da dominação do homem
enquanto provedor da família e embora a discriminação legal tenha diminuído, a
violência interpessoal e o abuso psicológico se manifestam assustadoramente,
provocados pela ira masculina frente à perda do poder”.

394
Referências

ABDALA JUNIOR, Benjamim. Literatura: história e política. São Paulo: Editora


Ática, 1989.

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Americanah. Tradução: Julia Romeu. São Paulo:


Companhia das Letras, 2014

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2010.

BARRETO, Maria do Perpétuo Socorro Leite. Patriarcalismo e o feminismo: Uma


retrospectiva histórica. Revista Ártemis. Vol. 1 Dez. 2004. disponível em:
http://www.periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/artemis/issue/view/244. Acesso em: 20 nov
2018.

BRAH, Avtar. PHOENIX, Ann. Não sou uma mulher? Revisitando a


interseccionalidade. In: BRANDÃO, Izabel; CAVALCANTI, Ildney; COSTA, Claudia
de Lima e LIMA, Ana Cecília (orgs.). Traduções da cultura. Perspectivas críticas
feministas (1970-2010). Florianópolis: Mulheres, 2017.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.


(Cap. 1, pp. 17-60)

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9ª Edição. Rio de Janeiro: Ouro Nobre


Azul, 2006.

COSTA, Cláudia de Lima. O sujeito no feminismo: revisitando os debates. cadernos


pagu (19) 2002: pp. 59-90.

DALCASTAGNÈ, Regina. A auto-representação de grupos marginalizados: tensões


e estratégias na narrativa contemporânea. Letras de Hoje. Porto Alegre, v. 42, n. 4,
p. 1831, dezembro 2007.

FEDERICI, Sílvia. O calibã e a bruxa: Mulheres, corpo e acumulação primitiva.


Trad. coletivo Sycorax. São Paulo: Editora elefante, 2017.

RAMOS, Lissandra da França; ARAÚJO, Maria da Conceição Pinheiro. Autoria


afrofeminina e representação da mulher negra: revelações do eu-mulher. Anais do
II Colóquio internacional Literatura e Gênero: relações entre gênero, alteridade e poder.
FUESPI, Teresina, 2014

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? 1. ed. Trad. Sandra regina
Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa. Belo Horizonte:
editora da UFMG, 2010.

_______. Literatura. In BRANDÃO, Izabel; CAVALCANTI, Ildney; COSTA, Claudia


de Lima e LIMA, Ana Cecília (orgs.). Traduções da cultura. Perspectivas críticas
feministas (1970-2010). Florianópolis: Mulheres, 2017.

395
NIKETCHE: UMA HISTÓRIA DE POLIGAMIA: UMA PROPOSTA DE
DISCUSSÃO SOBRE OS FENÔMENOS DA HIBRIDIZAÇÃO CULTURAL
RUMO À CONSTRUÇÃO DE SUBJETIVIDADES FEMININAS
Sandra Maria Gonçalves da Silva (UNEMAT)1

Resumo: No romance Niketche: uma história de poligamia (2004), de Paulina Chiziane,


há claramente a discussão sobre a hibridização cultural em Moçambique, advinda do
período colonial bem como do processo de migração neste contexto. Por meio das
personagens femininas, a autora conclama as mulheres do seu país para ocuparem o seu
lugar de fala e tornarem audíveis suas vozes. Nessa perspectiva, buscaremos analisar
como as personagens femininas tornam-se protagonistas de suas decisões e fazem erigir
subjetividades autônomas.
Palavras-chave: Personagens femininas; hibridismo cultural; subjetividades femininas

Paulina Chiziane, como primeira escritora em Moçambique e ciente da condição da


mulher em seu país, elabora narrativas em que as personagens femininas se tornam o foco.
É visível em grande parte dos seus romances a construção de personagens que vivem
entre o desejo de se libertar da condição subalterna e, muitas vezes, o de permanecer neste
lugar, como se fossem incapazes de direcionar a sua própria vida. Por ser uma voz
feminina nativa falando da condição da mulher, neste contexto extremamente opressivo,
a escritora se torna uma subalterna que finalmente insere-se em um espaço de fala.
Diferente do intelectual, contestado por Gayatri Spivak (2004, p. 14), aquele que
julga poder falar pelo outro, reproduzindo as estruturas de poder e opressão, Paulina
Chiziane fala por si e, por ser uma mulher vivendo nesse espaço de silenciamento, por
extensão, fala também para aquelas que vivem em situação semelhante à sua. Spivak
considera subalterno aquele que não compõe os espaços hegemônicos dos grupos sociais
dominantes e acentua “o sujeito feminino subalterno está ainda mais profundamente na
obscuridade” (p. 85). Acrescenta ainda que “não há valor algum atribuído à ‘mulher’
como item respeitoso nas listas de prioridades globais. [...] A mulher intelectual como
uma intelectual tem uma tarefa circunscrita que ela não deve rejeitar com um floreio” (p.
165).
Entendemos, que Paulina Chiziane, embora esteja em uma situação privilegiada
por ser escritora, ainda encontra-se à margem, como mulher, nesta sociedade duplamente
patriarcal, pela tradição nativa e imposição da empreita colonial. Ainda assim, a escritora

1
Doutoranda em Estudos Literários, UNEMAT (Universidade do Estado de Mato Grosso), campus Tangará
da Serra. Contato: pnanag1@hotmail.com.

396
cumpre o seu papel como intelectual, pois grande parte dos seus romances tira do
silenciamento as vozes que persistem em ser ouvidas.
O romance Niketche: uma história de poligamia2, publicado pela primeira vez em
2002, pela editora Caminho, em Lisboa, faz uma abordagem, com base na poligamia,
sobre a condição da mulher em Moçambique, no período pós-colonial. A narrativa
engendra histórias de personagens femininas de várias regiões moçambicanas e, à medida
que elas vão se encontrando, temos uma visão ampla, por meio da ficção, das estruturas
sociais, que tentam impedir qualquer movimento de libertação do feminino. A diegese
em primeira pessoa dá indícios de uma perspectiva majoritariamente feminina pela voz
da personagem-protagonista Rami. Ela escuta um estrondo e tem a impressão de que a
guerra3 está voltando, fica sabendo, logo em seguida, que o seu filho quebrara o vidro de
um carro. O episódio torna-se o despertar da consciência da vida solitária que leva.
Embora seja casada, os filhos estão sendo criados sem a presença efetiva do pai. À medida
que ela tem contato com outras mulheres da comunidade, percebe que a sua história não
é individual, mas coletiva, pois elas “falam também dos maridos ausentes que nem
cuidam dos filhos” (CHIZIANE, 2004, p. 12).
A condição de mães solitárias naturaliza-se, dificultando a possiblidade de
reivindicarem os seus direitos de mulheres casadas. Enquanto isso, os maridos dividem a
cama com outras mulheres, repetindo uma prática antiga, denominada poligamia, porém
sem seguirem à risca as regras desse costume. Destaque-se o fato de que esse fenômeno
não é legalizado pelo estado, mas possui legitimidade entre alguns membros da família,
principalmente nas zonas rurais. Enquanto não se denominam polígamos, estes homens
vivem com suas amantes de forma clandestina, engravidam-na e pouca assistência lhes
dão. Sem recursos financeiros próprios para sobreviver, elas passam a viver em situação
de extrema pobreza e muitas vezes se prostituem para garantir o alimento para si e para
os filhos. O romance desmascara, por meio das personagens, essas práticas vigentes na
sociedade moçambicana. É o que veremos principalmente nas atitudes do personagem
Tony, casado com Rami.
Para amenizar a sensação de solidão, a personagem Rami confidencia seus
conflitos para o espelho. Percebe-se em uma imagem ambígua: vê nele, o que gostaria de

2
Neste texto usarei apenas Niketche para me referir ao livro de Paulina Chiziane.
3
Refere-se à guerra pela libertação de Moçambique das mãos de Portugal, que culminou na guerra civil
após a independência, estendendo-se até 1992.

397
ser, entretanto tem consciência de que o reflexo que se mostra não é a sua imagem real,
pois nele está feliz; em todo caso, o que vê parece despertar-lhe o desejo de Ser. A
pesquisadora, Cândida Rafael R. da Silva, observa que “A imagem projetada de Rami,
com quem a protagonista dialoga, é a de uma mulher que parece se distanciar das agruras
da vida. Uma mulher segura que dança e, pisando forte, enterra sua má sorte” (2013, p.
112). O reflexo de Rami que toma forma no espelho impulsiona-lhe a buscar essa mulher
ideal. Ela inicia a sua odisseia indo ao encontro das amantes de Tony, pois acredita que
dessa forma poderá salvar o seu casamento. À medida que os encontros acontecem, a
narradora-protagonista Rami vai tomando consciência de que suas rivais vivenciam a
mesma história que ela: a ausência de um homem que se faz presente somente para se
satisfazer sexualmente. Em diálogo com Julieta, a segunda mulher de Tony, Rami
constata: “— Estamos juntas nessa tragédia. Eu, tu, todas as mulheres [...]” (CHIZIANE,
2004, p. 25).
Esse entendimento leva Rami a buscar estratégias que possam conduzi-la a
resolução do seu problema. Procura uma conselheira do amor. Aqui se dão os primeiros
indícios de conflitos culturais na narrativa, pois a narradora-protagonista fora preparada
para o casamento nos rituais da cultura ocidentalizada, impossibilitando-a de ser
verdadeiramente uma mulher, segundo os preceitos da tradição. Esses conflitos se
intensificam quando Rami encontra cada uma das mulheres de Tony, já que umas são do
sul, outras, do norte, e cada uma dessas regiões têm as suas próprias culturas. Além disso,
Rami fora educada nos preceitos cristãos que admite apenas a monogamia como forma
de casamento.
Após ter entrado em contato com todas as amantes de Tony – não sem muito
conflito –, ela resolve reunir a família para solicitar o estatuto de marido polígamo para
ele, sem que ele soubesse. A atitude de Rami revela-se extremamente subversiva, pois
como uma família cristã, ela jamais poderia ter tido a ousadia de arquitetar tal empreitada.
Ao afrontar Tony, Rami desequilibra, por extensão, toda sociedade de estrutura patriarcal;
reivindica os direitos concedidos às mulheres pela poligamia e demonstra que a cultura
ocidental, pautada no casamento monogâmico, não satisfaz as demandas do feminino na
sociedade moçambicana.
Os conflitos culturais são ilustrados em vários capítulos do romance, de tal forma
que a voz da narradora-protagonista, por vezes, ecoa como a voz da própria autora, e a

398
narrativa ganha o estatuto de ensinamento, aproximando-se das narrativas de tradição
oral, como vemos no excerto abaixo:

Poligamia é o destino de todas as mulheres neste mundo desde os


tempos sem memórias. Conheço um povo sem poligamia: o povo
macua. Este povo deixou as suas raízes e apoligamou-se por influência
da religião. Islamizou-se. Os homens deste povo aproveitaram a ocasião
e converteram-se de imediato porque poligamia é poder, porque é bom
ser patriarca e dominar. Conheço um povo com tradição poligâmica: o
meu, do sul do meu país. Inspirado no papa, nos padres e nos santos,
disse não a poligamia. Cristianizou-se. [...] Tinha o poder e renunciou.
A prática mostrou que com uma só esposa não se faz um grande
patriarca. Por isso os homens deste povo hoje reclamam o estatuto
perdido e querem regressar às raízes. Praticam uma poligamia tipo
ilegal, informal, sem cumprir os devidos mandamentos (CHIZIANE,
2004, p. 92).

Além de desvelar um mundo cindido, percebe-se a pretensão de não vitimizar o


nativo, mas de torná-lo parte de um processo e de escolhas que proporcionaram novas
formas de cerceamento à mulher.
É fato que a condição de hibridismo cultural é vivenciada por todas as sociedades
do mundo, entretanto, em grande parte das sociedades colonizadas, isso se deu de forma
impositiva e com a tentativa do massacre às culturas e religiões locais. Nos territórios
colonizados pelos portugueses, o conflito cultural se faz presente até hoje. É visível, na
citação acima, que os povos colonizados, em especial, os homens foram se apropriando
de outras culturas, também, na tentativa de manter o seu império com relação às mulheres.
Vale ressaltar que, na narrativa aqui em estudo, as personagens femininas
reivindicam os seus direitos como mulheres de um homem polígamo, algo que já está
desgastado na cultura atual moçambicana, porém o faz para serem ouvidas, para saírem
do estado de silenciamento em que se encontram.
Ao discutir a situação das culturas pós-coloniais, Homi Bhabha afirma que tais
culturas “põem em campo o hibridismo cultural de suas condições fronteiriças para
‘traduzir’, e portanto reinscrever, o imaginário social tanto da metrópole como da
modernidade” (2014, p. 28). O autor ressalta ainda que

o trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com “o novo”


que não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria
uma ideia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa

399
arte não apenas retoma o passado como causa social ou
precedente estético; ela renova o passado refigurando-o como um
“entre-lugar” contingente, que inova e interrompe a atuação do
presente. O “passado-presente” torna-se parte da necessidade, e
não da nostalgia, de viver (p. 29).

Com base na citação acima, atestamos que Paulina Chiziane lança mão da cultura
tradicional para a partir daí traçar novos rumos para as mulheres de seu país, por meio
das personagens femininas. Não há espaço para a nostalgia, pois é preciso urgência na
elaboração de um devir que contemple o lugar da mulher. Essa ânsia fica cada vez mais
visível à medida que adentramos a narrativa. Como fica ilustrado quando Rami exige que
todas as mulheres sejam loboladas como mandam as regras da tradição, e que Tony se
submeta a todas as regras de visita para que as mulheres e crianças sejam assistidas de
acordo com o que determinam os rituais da poligamia. Quando propõe isso para as quatro
mulheres de Tony, como são de regiões diferentes, as “nortenhas espantaram-se. Queriam
dizer não por ser contra os seus costumes culturais. Mas envolve dinheiro e muito
dinheiro. [...] Quando se trata de benesses, qualquer cultura serve. Elas esqueceram o
matriarcado e disseram sim à tradição patriarcal” (CHIZIANE, 2004, p. 124-125).
Ironicamente a narrativa coloca o leitor diante de uma situação de estranhamento,
demonstrando que, nesse mundo cindido, surge algo novo com o objetivo de tornar as
mulheres seres visíveis na sociedade, mesmo que para isso, elas precisem abrir mão da
cultura tradicional de sua região, e se respaldem em algo que lhes garantam a subsistência.
Consideremos o fato de que o norte de Moçambique4 recebeu influências da
cultura islâmica, portanto seus costumes se diferenciam em parte da cultura do sul – que
foi influenciada pelo cristianismo. A aceitação do lobolo por parte das personagens
femininas do norte indica a possibilidade de união entre sul e norte para a reescrita da
história. Esse entrecruzamento de culturas proporciona uma nova roupagem ao feminino

4
José Luís Cabaço, em seu livro Moçambique: identidade, colonialismo e libertação, aborda as reflexões
de Jorge Dias e Margot Dias (1970, cap.III), os quais afirmam que o regime matrilinear e matrilocal se
destacavam no norte de Moçambique entre os Macondes. Cabaço salienta que entre norte e centro do país
residia a numerosa nação Macua, e que a partir do século XVIII intensificou-se entre os Macuas a influência
da cultura islâmica, que impregnou muitos aspectos de sua cultura. Enquanto que no sul houve intensa
influência do catolicismo, com relevante presença das missões protestantes (CABAÇO, 2009, p. 229).

400
que incide em um outro tempo e espaço. As estratégias subversivas vão tomando forma,
chegando a culminar na busca pela independência financeira, momento em que Rami
decide propor às quatro mulheres de Tony uma forma de obterem o seu próprio meio de
subsistência.
Passado e presente se tocam na narrativa, e, embora pareça revisitar o passado, o
romance convoca para um novo tempo já que as personagens femininas impõem o seu
lugar de fala e se fazem ouvir. A parceria entre elas, em uma situação que deveria ser de
rivalidade, proporciona mais legitimidade a luta, além disso torna a diegese um palco de
diferentes culturas, metaforizando vários regiões de Moçambique e agregado a isso
encontra-se também a cultura ocidental portuguesa. Dessa forma, o romance dá espaços
para vozes dissidentes e dissonantes e aponta para a emergência de tornar audível as
reivindicações do feminino. Por meio do hibridismo cultural, a narrativa expõe a
“deformação e o deslocamento inerentes a todos os espaços de discriminação e
dominação” (BHABHA, 2014, p. 185). Esse fator permite que as personagens femininas
se reconheçam como seres subalternos e silenciados e confere-lhes estratégias de se
sobressaírem, pois, ao perceber-se em um espaço híbrido em que a liberdade da mulher é
limitada em várias culturas, Rami encontra subterfúgios de sobrevivência.
Destaque-se o fato de que, geralmente, essas personagens se respaldam na cultura
tradicional para reivindicarem os seus direitos. É o que observamos ainda, no capítulo
dezoito, quando as mulheres de Tony descobrem que ele está lhes traindo e elas resolvem
se vingar. Cientes da proibição da nudez da mulher em algumas dessas culturas,
influenciadas por Saly – que é do norte de Moçambique - as cinco se despem diante de
Tony. A vingança acontece de fato no capítulo dezenove do romance. Tony

entra num violento silêncio. O mundo acaba de lhe cair nos ombros.
Nudez da mulher é mau agouro mesmo que seja de uma só esposa, no
acto da zanga. É protesto extremo, protesto de todos os protestos. É pior
que cruzar com um leão faminto na savana distante. É pior que o
deflagrar de uma bomba atómica. Dá azar. Provoca cegueira. Paralisa.
Mata (CHIZIANE, 2004, p. 144).

Para Mauá – também do norte de Moçambique - uma das mulheres de Tony, esse
episódio não passa de uma dança denominada niketche, “uma dança do amor, que as
raparigas recém-iniciadas executam aos olhos do mundo, para afirmar: somos mulheres.
Maduras como frutos. Estamos prontas para a vida” (CHIZIANE, 2004, p. 160). As

401
culturas são relativizadas, demonstrando que, por serem criadas por um determinado
grupo, podem ser aceitas ou não por outro, ou mesmo modificadas.
Esse acontecimento juntamente com uma suposta morte de Tony desencadeiam
um novo ritmo à narrativa. Rami recebe a notícia de que o marido havia morrido em um
acidente. Desvela-se assim a condição da mulher viúva nesse contexto, já que Rami perde
todos os seus bens materiais para os parentes de Tony. Eles alegam que ela e as outras
mulheres haviam-no matado ao dançarem nuas diante dele, pois isso se constitui um mau
agouro para o homem. Além disso, Rami também teria que se submeter ao ritual do
kutchinga, cerimônia em que a viúva terá que ser purificada sexualmente, mantendo
relação com um dos irmãos do morto. Paradoxalmente, a kutchinga, que deveria ser algo
repulsivo, torna-se para Rami uma forma de prazer, uma vez que, para ela, aquele
monumento – irmão mais velho de Tony – seria seu por pouco tempo, mas seu.
É visível que as culturas tradicionais já não se sustentam mais na sociedade pós-
colonial. Ao acessá-las, as personagens femininas demonstram que a cultura tida como
norma, que é produzida pelo homem, pode ser contestada, desvenda ainda que elas são
impostas e colocam a mulher em uma condição quão ínfima, todavia elas imprimem uma
nova ordem por meio da tomada de consciência. Elas metaforizam, portanto, as mulheres
moçambicanas; ademais dão indícios de que somente pela união construirão uma nova
forma de estar no mundo. A pesquisadora e crítica literária Ana Mafalda Leite alega que
o fato de Rami buscar respaldo na poligamia, não se configura uma defesa à tradição, mas
uma “tomada de consciência do estado de dependência do mundo feminino, hesitante
entre o (des)conhecimento das tradições, incitando-o à adequação e a mudança (2012, p.
199).
Acrescentamos às reflexões da pesquisadora, a necessidade premente, na
narrativa, em denunciar as atrocidades impostas à mulher nesse cenário. Ao frequentar
as aulas para se tornar uma boa amante, Rami percebe que tanto na cultura tradicional
moçambicana quanto na ocidental, as mulheres são educadas para viverem na
subalternidade imposta pela cultura hegemônica masculina. Isso é comprovado em sua
fala quando afirma “[...]ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. Ao citar o pensamento
da filósofa ocidental, Simone de Beauvoir, ainda que não se lembre exatamente onde
tinha ouvido tal máxima, Rami deixa claro que independente da cultura, o lugar da mulher
é demarcado para impedi-la de qualquer movimento de libertação.

402
Além disso, no diálogo com a conselheira, Rami constata que a submissão da
mulher está alicerçada também nas tradições culturais, tornando-a um ser que deve estar
para servir o homem, como vemos a seguir:

— Se queres um homem prenda-o na cozinha e na cama — diz ela. —


Há comidas masculinas e femininas. Na galinha, as mulheres comem as
patas, as asas e o pescoço. Aos homens servem-se as coxas de frangos.
A moela.
— A moela de galinha? No norte também? — pergunto eu, morta de
curiosidade.
— No norte também.
— Engraçado. Nunca tinha imaginado.
— No norte, a história da moela por vezes gera conflitos conjugais, que
terminam em violência e até divórcios.
— Não é possível! No sul também é assim. Essa tradição devia ser
combatida.
— Desafiar? Mudar? Para quê? Cá por mim devia ser mantida, porque
é uma boa isca. Um homem vence-se por sua gula. Se queres fazer uma
magia de amor, faça-a naquilo que eles mais gostam. A moela
(CHIZIANE, 2004, p. 44).

Do sul ao norte de Moçambique, essas práticas são regulamentadas pela tradição,


entretanto Rami as questiona. Sinaliza, assim, para a consciência de que as práticas
tradicionais devem e podem ser contestadas. Consideremos o fato de que como cristã, sua
formação está assentada na cultura ocidental portuguesa, todavia, do mesmo modo,
também coloca em xeque a igreja católica que, segundo Rami, tornou as práticas
religiosas locais uma heresia e tentou destruir um sistema que amparava todas as
mulheres: a poligamia.
Homi Bhabha discute a possibilidade de um hibridismo cultural como algo que
acolhe a diferença sem uma hierarquia imposta ou suposta, destaca que

o presente não pode mais ser encarado simplesmente como uma ruptura
ou um vínculo com o passado e o futuro, não mais uma presença
sincrônica: nossa autopresença mais imediata, nossa imagem pública,
vem a ser revelada por suas descontinuidades, suas desigualdades, suas
minorias (2014, p. 24).

É evidente a pretensão da autora Paulina Chiziane em fazer uma discussão sobre


as desigualdades vivenciadas principalmente pelas mulheres no cenário moçambicano.
Suas narrativas perpassam pelas esferas do que se pode considerar tabu para os

403
autóctones, no entanto, ela ousa desvelar as formas de subjugação pelas quais passam a
mulher nas esferas públicas e privadas.
Se os diálogos com o espelho tornou a personagem Rami mais consciente de sua
condição de mulher, casada com um homem polígamo, o contato com as outras mulheres
de Tony a fez reconhecer que a sua condição se perpetua em outras mulheres e que
somente por meio da união entre elas essa história poderia ter uma nova configuração.
Constatamos que, mais que Rami, Mauá, Saly, Ju e Lu conseguem delinear uma nova
história para si, pois rompem o relacionamento com Tony, contrariando as regras da
poligamia, do lobolo ou de qualquer tradição que as impeça de construir uma
subjetividade mais autônoma.
Em Niketche, as temáticas que dizem respeito ao universo tradicional
moçambicano são exploradas de tal forma que a autora insere a sua narrativa na senda
das escritas pós-coloniais, pois permite que a história não seja esquecida e torna as
práticas da cultura nativa, islâmica e ocidental cristã questionáveis. Os atos de resistência
se fazem, muitas vezes, lançando mão da cultura nativa e, paradoxalmente, contestando-
a. Reiteramos nossas reflexões com o que diz Inocência Matta, no ensaio intitulado
“Mulheres de África no espaço da escrita...”: “a obra de Paulina Chiziane actualiza um
discurso que inclui o questionamento e a denúncia, dando voz e criando reflexão ao
sujeito que é ‘silenciado’” (2007, p. 437). Matta assevera ainda que a escritora, ao recorrer
à diversidade do legado cultural para tal empreitada, “elabora um percurso pelas
diferenças, semelhanças, desejos, sentimentos e aspirações de diferentes mulheres
moçambicanas, nos diferentes âmbitos de intervenção quotidiana (p. 438).
Por meio do romance, a autora conclama a mulher moçambicana a uma mudança
que possa integrá-la ao meio de forma efetiva, bem como deixa claro que é preciso que
haja uma relação equânime entre homens e mulheres, do contrário todos serão vítimas da
relação hipócrita em que a mulher está sempre em condição subalterna. Evidencia a
necessidade de uma reconfiguração do país no pós-colonização, pois é impossível o
impedimento à autonomia daquelas que, por muito tempo, viveram sob o controle e jugo
masculino.
Novas subjetividades se erguem, na diegese, e para isso foi necessário que as
forças do sul e do norte abrissem mão de suas individualidades e lutassem de forma
coletiva para que outras formas de vidas surgissem, que dessem conta das diferenças

404
culturais. A obra aventa a possibilidade de as mulheres moçambicanas agirem como seres
que possam interferir, tomar decisões e construir a política local. Realça ainda que o
hibridismo cultural permitiu uma fenda em culturas que se pretendiam fixas, propiciando
uma nova moldura ao feminino na narrativa. Sinaliza a viabilidade de se repensar a
sociedade moçambicana pós-colonial e seus costumes. Entretanto, ao colocar como
protagonista uma personagem que alterna constantemente o seu ponto de vista, a autora
demonstra que as novas identidades não se pretendem fixas, mas móveis, maleáveis,
propensas a constantes mudanças.

Referência

MATTA, Inocência. Mulheres de África no espaço da escrita: A inscrição da mulher na


sua diferença. In: MATTA, Inocência; PADILHA, Laura Cavalcante (Orgs.). Mulheres
em África. Vozes de uma margem sempre presente. Lisboa: Colibri, 2007, p. 438.

BHABHA, Homi K. O local da cultura. 2. ed. Tradução de: Myriam Ávila; Eliana L. de
Lima Reis; Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.

CHIZIANE, Paulina. Niketche: uma história de poligamia. São Paulo: Companhia das
letras, 2004.

CABAÇO, José Luís. Moçambique: identidade, colonialismo, libertação. São Paulo:


Editora UNESP, 2009.

LEITE, Ana Mafalda. Oralidades e escritas pós-coloniais: estudos sobre literaturas


africanas. Rio de Janeiro, EdUERJ, 2012.

SILVA, Cândido Rafael Mendes da. Uma “Branca de Neve” às avessas ou Rami no país
da poligamia. In: MIRANDA, Maria Geralda de; SECCO, Carmen Lúcia Tindó (Orgs.).
Paulina Chiziane: vozes e rostos femininos de Moçambique. Curitiba: Editora Appris,
2013, p. 112.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar?. Tradução de: Sandra R. G.


Almeida; Marcos P. Feitosa; André P. Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

405
COMUNIDADE DE TERRITÓRIO : A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO
NACIONAL NA POESIA DE CRAVEIRINHA

Vanessa Pincerato Fernandes (UFMT)1


Marinei Almeida (UNEMAT/UFMT)

Resumo: A narratividade poética presente nos poemas de Craveirinha é marca de seus traços na
sua produção literária. Ao tratarmos da escrita poética em Craveirinha, tomamos a palavra oral
em Karingana ua Karingana, pois é através dela que a comunicação se estabelece entre os
grupos sociais e comunitários e se torna passível de ser feita a interpretação dos diferentes
momentos da sociedade ao longo da história. Nas sociedades humanas, o ser que fala, fala de si,
de algo e de alguém, fala da palavra falada que é transmitida por homens e mulheres de toda e
qualquer camada social. Temos, então, como principal veículo da nossa comunicação a palavra
falada, mesmo depois de aprendermos a linguagem escrita; é através e a partir dela que temos a
possibilidade de transmitir verdades, mentiras e até mesmo “criar mundos em forma de
linguagem” (NOA, 2005). É o que Craveirinha faz em Karingana ua Karingana.
Palavras-chave: Comunidade de território; Espaço; Subjetividade.

Ao tratarmos da escrita poética em Craveirinha, tomamos a palavra oral em


Karingana ua Karingana, pois é através dela que a comunicação se estabelece entre os
grupos sociais e comunitários e se torna passível de ser feita a interpretação dos
diferentes momentos da sociedade ao longo da história. Nas sociedades humanas, o ser
que fala, fala de si, de algo e de alguém, fala da palavra falada que é transmitida por
homens e mulheres de toda e qualquer camada social. Temos, então, como principal
veículo da nossa comunicação a palavra falada, mesmo depois de aprendermos a
linguagem escrita; é através e a partir dela que temos a possibilidade de transmitir
verdades, mentiras e até mesmo “criar mundos em forma de linguagem” (NOA, 2005).
É o que Craveirinha faz em Karingana ua Karingana.
A narratividade poética presente nos poemas de Craveirinha é marca de seus
traços na sua produção literária, dada pelos elementos e valores da terra, como a
presença de personagens e a organização espaço-temporal em ordem cronológica dos
poemas de Karingana ua Karingana. A seleção de personagens, nos poemas, junta-se à
configuração do espaço historicamente apresentado neles. É, pois, José Craveirinha
quem pela primeira vez projeta na área poética a imagem de uma “comunidade de
território”, pois, de acordo com Mendonça (2005, p. 56): “A comunidade de território

1
Graduada em Letras (UNEMAT), Mestre em Estudos de Linguagem (UFMT). Contato:
pinceratovanessa@gmail.com.

406
aparece em Craveirinha como o elemento fundamental de identificação nacional [...]”.
Veremos então que: “Com ele surge pela primeira vez na poesia moçambicana escrita a
afirmação nacionalista de comunidade de território [...]” (p. 55). De modo que há em
seus poemas a manifestação e a preocupação de assegurar um espaço considerável à
produção literária de seu país, pois, como afirma Mendonça, Craveirinha é o primeiro
escritor a apresentar o espaço geográfico moçambicano em termos de nação, de modo
que o elemento de afirmação nacional que vai aparecer em sua poética é constituído por
um real definido e marcado, possivelmente apreendido pelo poeta que limitou-se a
antecipar-se no tempo, assumindo uma posição de predizer ou adivinhar o futuro, ou
seja, de “fabricante de vaticínios infalíveis”, conforme Mendonça (2005, p. 54).
O estilo poético-narrativo, de acordo com Secco (2005), presente na obra
Karingana ua Karingana, resultante também da apropriação da linguagem-manifesto
modernista, abre espaço para restaurar o registo fragmentário típico da lírica. O efeito
de narratividade constrói-se agora através do papel que o escritor assume: o de
testemunhar e narrar às histórias e acontecimentos traumáticos, nos quais os
protagonistas são pessoas comuns, as suas vidas e corpos destroçados. Assim, é neste
espaço da poesia de Craveirinha, povoado pelo eu poético e pelos personagens
(pessoas), que temos a construção da narrativa de uma nação, onde os dramas
individuais reconstituem um único espaço partilhado ainda possível: a dimensão do
sofrimento.
Neste sentido, Craveirinha sai do subúrbio e passa uma parte de sua vida na
cidade de cimento. Essa transição de espaço pode ser observada em seus poemas como
lugar literário vital de tensão, o qual utiliza para denunciar as injustiças que a
colonização impõe em assuntos como: prostituição, miséria, fome, racismo, guerra,
contrastes entre cidade e subúrbio, entre outros temas. Podemos afirmar que é a partir da
“cidade do colonizado” que a poética de Craveirinha vem denunciar o colonialismo e
recriar o sentido de nacionalismo.

A literatura impõe-se como o espaço onde, de modo muito particular, nos


confrontamos com múltiplas e variadas configurações do imaginário utópico.
Afinal, ela é, per si, uma das formas mais elaboradas do imaginário utópico
enquanto aspiração da linguagem que se institui e funda mundos possíveis
ou, simplesmente, enquanto idealização da existência. (NOA, 2005, p. 69)

407
Reafirmamos com a citação de Noa (2005) o que Mendonça (2005) cita a
respeito do nativismo presente na poesia de Craveirinha, enquanto afirmação nacional,
confirmando nesta os traços de uma comunidade de território.
Por certo, de modo muito particular, a ficção moçambicana em termos de
construção literária, acaba por se aproximar ou distanciar do cânone ocidental, pois o
escritor moçambicano tem mostrado uma necessidade orgânica de interpelar o meio
circundante, reescrevendo as linguagens, os imaginários, os seres, os espaços e o tempo.
Nesse sentido, temos em Craveirinha um a representação da presentificação em seus
versos, apresentando espaços que territorializam os acontecimentos e um modo peculiar
de fazer mundos, uma profunda força simbólica, concentrado no imaginário coletivo e
privado que se faz presente nos poemas.
Dessa forma, no tocante à literatura nacional moçambicana, temos as
características próprias desta se desenvolvendo segundo moldes estéticos e linguísticos,
em que as diferenças linguísticas que a colonização acrescentou são características
próprias e estéticas que não influenciaram a produção de Craveirinha, mas deixaram
marcas em sua escrita. No entanto:

O elemento de afirmação nacional que emerge, desde o inicio, da poesia de


José Craveirinha, é pois gerado e produzido por um real definido e marcado,
porventura apreendido pelo poeta numa fase em que a sua configuração não é
perceptível a muitos: o poeta limitou-se a antecipar-se no tempo, captando e
prevendo, assumindo-se finalmente como o “fabricante de vaticínios
infalíveis”. (MENDONÇA, 2005, p.54)

Neste sentido, Octavio Paz (1996) afirma que “[...] a linguagem indica,
representa; o poema não explica nem representa: apresenta. Não alude à realidade;
pretende – e às vezes o consegue – recriá-la” (PAZ, 1996, p.50). Ou seja, temos na
poesia uma maneira de penetrar, um poder estar na realidade, configurada e construída
pela linguagem nos espaços geográficos e imaginários na escrita de Craveirinha.
Pessoas e espaços estão interligados semanticamente nessa poética, ao ponto de estes
elementos por meio de seus aspectos, adquirem o mesmo valor, o mesmo sentido. É
como se, ao falar das casas velhas, falassem também das pessoas que nelas vivem: pais,
mães e meninos velhos e contar a história destes (ALMEIDA, MAQUÊA, 2005, p. 18).
Pela imagem conferida pelas palavras: “O poeta decifra os signos da paisagem
que se projetariam na realidade social” (ABDALA JR, 2006, p.73). Neste sentido, a

408
poesia de Craveirinha apresenta o espaço nacional, ao som e ritmo populares no poema
“Quero ser Tambor”, que está na obra Karingana ua Karingana. Veremos como o poeta
fortalece essa realidade social neste espaço de figuração de processos da imaginação,
lembrando que a comunidade de território aparece em Craveirinha como elemento
fundamental de identificação nacional ao qual nos referimos no início.

Tambor está velho de gritar


ó velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
corpo e alma só tambor
só tambor gritando na noite quente dos trópicos.

E nem flor nascida no mato do desespero.


Nem rio correndo para o mar do desespero.
Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero.
Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero.

Nem nada!

Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra.


Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra.
Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra.

Eu!
Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala.
Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra.
Só tambor perdido na escuridão da noite perdida.

Ó velho Deus dos homens


eu quero ser tambor
e nem rio
e nem flor
e nem zagaia por enquanto
e nem mesmo poesia.

Só tambor ecoando como a canção da força e da vida


Só tambor noite e dia
dia e noite só tambor
até à consumação da grande festa do batuque!

Oh velho Deus dos homens


deixa-me ser tambor
só tambor!
(CRAVEIRINHA, 1995, p. 107. Grifos nossos)

O título do poema “Quero ser tambor” nos remete a imagem do tambor enquanto
instrumento de caracterização nacional. Aqui podemos dizer que é a representação do
chamamento contra a exploração anunciada nos versos poéticos.

409
O eu lírico inicia o poema reivindicando seu direito de ser moçambicano
expressado pelo anseio da voz: “Tambor está velho de gritar/ ó velho Deus dos
homens”. Nestes versos, o tambor é o objeto que, ao ser evocado, nos dá a possibilidade
de interpretação de um chamamento para a luta, para a guerra contra a exploração
colonial. Nesse sentido, o poema parte da evocação, anunciando mudanças futuras.
Nos versos “deixa-me ser tambor/ corpo e alma só tambor”, ao valer-se da
imagem do tambor, Craveirinha reforça a intenção de estabelecer um diálogo entre o eu
ser “só tambor” demonstrando a consciência do processo de desumanização que o
sistema colonial impunha. Assim, o adjetivo “só” nos leva a pensar que este é apenas
um, sem companhia, que remete a um espaço nacional e representa a imagem de
comunidade de território, pois o “tambor” (elemento cultural) e o adjetivo “só” estão
aqui unificados no espaço geográfico moçambicano, que, no poema, não estão, mas é
possível inferir, visto que o instrumento tambor é usado em Moçambique e o poeta é
moçambicano.
Após a afirmação e o grito do eu poético, vinculando-se ao tambor que está
“velho de gritar”. A imagem do espaço dominado pelo colonizador começa a ser
desenhado pelas palavras quando o poeta apresenta os aspectos físicos da “minha terra”,
por meio de elementos como: flor, rio, zagaia, lua, sol, troncos; contudo estes elementos
são precedidos da conjunção coordenativa “nem”, que serve para ligar palavras e
orações negativas. Afirmamos que no poema o resgate e o fato do eu poético trazer os
elementos da terra, é um apelo contra o colonialismo e a exploração de Moçambique.
Por outro lado, o poeta José Craveirinha, neste poema, faz referência da exaltação do
homem negro e valorização da cultura do homem africano, ao trazer estes elementos da
terra em consonância com o corpo do homem negro, como se a terra e o corpo fossem
apenas um só “corpo e alma só tambor”.
No poema a conjunção “nem” aparece como negação do eu poético diante da
vontade de ser flor, rio e poesia, ou seja, recusa a aparente estabilidade do sistema
colonial. O ato de negação representa para nós (não só para o eu poético, mas sua voz
aqui representa também o coletivo) a angústia, aflição e sofrimento, que é decorrência
da exploração colonial, podemos ver representada pelo uso recorrente da anáfora,
destacada no poema, pelo termo “nem” que aparece como negação do que está sendo
imposto.

410
Os versos seguintes continuam a comparar o desejo do eu poético com as
maravilhas de sua terra. Podemos dizer ainda que o eu poético eleva, nos versos do
poema, suas preces: “Ó velho Deus dos homens/ eu quero ser tambor/ e nem rio/ e nem
flor/ e nem zagaia por enquanto/ e nem mesmo poesia”, pelo desejo, vontade de ser
tambor e de exteriorizar um grito, que em certa medida, não se materializa em contraste
com elementos em que o eu poético não ambiciona se transformar. Esse mundo exterior,
representado pelos elementos naturais “rio”, “flor” e “zagaia” (instrumento de caça) nos
versos, são constituídos por sucessivas negações, que serão sintetizadas na estrofe
seguinte, por meio de seu único verso: “Nem nada!”.
Nesse desejo do sujeito subjugado em negar a vontade de ser flor, rio e poesia,
se liga implicitamente a denúncia as injustiças sociais, por meio da repetição das
palavras “do desespero”, dizendo novamente que tudo o que é negado faz parte de um
contexto de angústia, aflição e sofrimento.
Estes elementos da terra assim como os personagens, povoam o espaço dos
poemas de Craveirinha.

Dissemos que além da paisagem física, africana é também a paisagem


humana dos versos de Craveirinha. Com efeito, são homens, mulheres,
crianças, jovens e velhos negros que, quase exclusivamente, a povoam, o que
em boa parte é a resultante da escolha que o poeta fez. (BALTAZAR, 2005,
p. 95-6)

Como já foi dito anteriormente, ser tambor remete ao resgate sujeito explorado
referente à sua condição humana, ou melhor subumana. A construção do poema se dá
por meio da musicalidade, ritmos e sons que na cadência dos versos simulam o entoar
do tambor como se ressoasse em um espaço. Comparece nesse poema um forte desejo
de um sujeito que evoca sua filiação cultural, por meio do símbolo “tambor” e que
clama e até mesmo conclama um coletivo para uma mudança, mas sobretudo para união
de força na luta contra a situação de subjugação.
Neste poema, a negritude ganha ênfase como forma de exaltação à cultura
moçambicana, como porto de resistência contra o discurso colonizador, em que o desejo
do eu poético de ser tambor, de assumir sua moçambicanidade e sua incessante busca
pela afirmação de sua nacionalidade e a representação do lugar onde ele vive, como

411
podemos ver, ainda falando da anáfora, na incessante repetição do termo “Só tambor”,
que vem reafirmar sua origem.
O eu poético, após negar esta situação imposta pela condição colonialista, parte
para a exaltação não só de sua terra, mas também do homem africano em que a “lua
cheia” e a “pele” são metonímias do homem e o “sol” e “troncos duros” sugerem que
homem e terra estão unidos em um só corpo. De acordo com Munanga, o objetivo do
movimento da Negritude era “buscar o desafio cultural do mundo negro (a identidade
negra africana), protestar contra a ordem colonial, lutar pela emancipação de seus
povos” (MUNANGA, 1988, p. 40). De modo que a busca dos intelectuais se pautava
em restituir o orgulho de ser negro e do passado, em uma tentativa de afirmar os valores
de sua cultura, que estava sendo sufocada pela assimilação dos valores do colonizador.
Craveirinha insere sobremaneira nesse grupo de pensadores que, inconformados com a
situação de si e do outro, utiliza a poesia como arma de combate e conscientização.
Os versos enunciados pelo eu poético se concretizam no modo como a
linguagem do poema organiza os elementos sonoros, rítmicos e imagéticos. O som do
tambor foi pano de fundo para outros poemas presentes na obra Xibugo (1964). Nesta, o
eu poético se reencontra como elemento pertencente de sua cultura ao enunciar “Quero
ser tambor”, de modo que temos na poesia propriedades estilísticas que remetem ao som
e ritmo por meio da combinação das palavras no corpo textual.
Na verdade, Craveirinha registra os valores culturais moçambicanos e o sonho
da libertação do regime colonial, em que os tambores africanos ressoam forte e
encerram o poema de forma evocatória, que inicia com um pedido: “Oh velho Deus dos
homens/ deixa-me ser tambor”. O poeta reivindica o som ancestral dos tambores na
tentativa de incorporar-se o valor simbólico da poesia oral em sua escrita:

A um raciocínio mais leviano poderá espantar que Craveirinha sirva de guia


numa descida aos infernos: ele que habita entre nós, se bem que um pouco a
noroeste, onde as areias da Mafalala ameaçam romper os diques e invadir o
alcatrão; ele que agrimensura (para usar uma expressão querida ao poeta) os
mesmos espaços por nós percorridos nos quatro cantos da cidade; que veste
como nós; que lê os nossos jornais e os faz para nós; ele de quem muitos dos
que aqui estão só a cor da pele poderá distinguir, pois nossa é a sua língua, e
nossos os seus modelos de pensar. (BALTAZAR, 2005, p. 90-91)

Diante do que afirma Baltazar, vimos na produção poética de Craveirinha a ideia


de refletir a imagem da sociedade em que a força figurativa e a disposição para a

412
afirmação da identidade moçambicana, em busca de uma libertação nacional, é vincada
pelos elementos e valores da terra, que se constituem por meio do trânsito entre os
espaços dos subúrbios e da cidade cimento, a história de uma nação materializada em
versos poéticos e anunciando um devir independente.

Referências
ALMEIDA, Marinei. Maria, de José Craveirinha: a memória como patrimônio de
sofrimento e de afirmação. XI Congresso Luso Afro Brasileiro de Ciências Sociais:
Diversidades e (Des)Igualdades. Universidade Federal da Bahia. Campus Ondina.

________. MAQUÊA, Vera. José Craveirinha e Mia Couto: utopia e construção do


espaço nacional em África. Revista Ecos. Edição 003. Junho, 2005.

BALTAZAR, Rui. Sobre a Poesia de José Craveirinha. Via Atlântica, São Paulo, n.
5, 88-107, 2002.

CRAVEIRINHA, José. Obra poética. Direção de Cultura da UEM. Maputo, Setembro


de 2002.

_______. Antologia poética. Ana Mafalda Leite (org.). Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2010.

_______. Karingana ua Karingana. Associação dos escritores


moçambicanos/Instituto nacional do livro e do disco. Instituto Camões. 3º Edição, 1995.

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413
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414
A MORTE NO DIVÃ DO IMAGINADO: TRAVESSIAS DO DELÍRIO EM "UM
CÃO ANDALUZ" E "DISPERSÃO"

Amanda Ramalho de Freitas Brito (UFPB)1

De boca amarga e de alma triste


sinto a minha própria presença
num céu de loucura suspensa.
Cecília Meireles

Resumo:

Procuramos discutir em Dispersão (Sá-Carneiro) e no filme Um Cão Andaluz (1929 – Luis


Buñuel e Salvador Dali) o sonho como linguagem antitética do sentido inconsciente da morte,
consistindo em um delírio criativo para reinventar as dores do mundo. Sob essa óptica, o sujeito
da escrita toma para si, como objeto de ação, a transformação da dor insuportável de um
sentimento coletivo em torno de uma conjuntura de época, ou, de sentimentos de faltas forjados
pelas agruras do mundo externo. Embasamos a discussão crítica nos pressupostos teórico de
Freud (2018), Quinet (2009) e Nasio (2001).

Palavras-chave: Morte. Sonho. Delírio poético.

O tema da loucura na literatura e na arte expressam diferentes mecanismos de


representação postos no jogo dialético entre obra e sociedade, em que se mostram
inquietações do sujeito em espaços de aniquilamento do próprio Eu (ego). Nesse sentido
o louco é um personagem da trama excludente da razão, não tomando para si os papéis
sociais destinados pelo Outro, reencena a vida pelas luzes da ribalta, em que se
evidencia outro contínuo perceptivo, ou outra realidade, configuradora de uma possível
continuidade de um desejo censurado, um mecanismo de defesa derivado de uma dor
insuportável.
Para Antonio Quinet (2009) a dor humana é efeito do mal estar das relações
sociais. Assim, o discurso do psicótico ou do louco é uma perspectivação crítica sobre a

1
Doutora em Literatura e Cultura (UFPB). Professora Adjunta no campus I da Universidade Federal da
Paraíba. Contato: amandaramalhobrito@gmail.com

415
incapacidade do Outro2 de garantir a lei e o amor, uma vez que cria discursos de
controle perversos e excludentes. Pela razão edificam-se os discursos de controle dos
corpos e, consequentemente, dos desejos. Por isso os incluídos na sociedade são aqueles
que obedecem a estrutura demiurga do poder. Por outro lado, os foracluídos tecem o
discurso fora do discurso do mestre-significante. Em outros termos, “o eu expulsa para
fora uma ideia que se tornou intolerável para ele, por ser demasiadamente investida, e,
com isso, separa-se também da realidade externa da qual essa ideia é imagem psíquica.”
(NASIO, 2001, p.36).
Compreendemos a loucura, pois, como a crítica da razão, posto que desautomatiza
as verdades absolutas conduzidas pelo discurso de poder e saber que deploram os laços
sociais. No tocante a isso, a literatura enquanto linguagem prorrompe-se como “discurso
fora do discurso”, assemelhando-se à linguagem dos loucos, nos faz enxergar outras
realidades, acopladas às tensões subjetivas do eu em diálogo com a confusão da
sociedade. Nesse sentido, apreende-se a realidade pela fantasia criadora de um novo
espaço de percepção, o médium3, meio em que o sujeito se inscreve historicamente pela
linguagem, revelando-se a (s) diferença (s). Tanto o louco quanto a literatura nos
mostram a diferença.
A tematização da loucura na literatura, por vezes, reverbera a ironia dos atos
tirânicos da história da sociedade sobre todos aqueles que questionam a ordem
estabelecida através da totemização dos tabus, ou que não se enquadram na estrutura
canônica das ideologias de base. Lima Barreto apresenta a ótica da loucura pela da
exclusão no romance autoficcional Cemitério dos vivos:

os loucos são de proveniências as mais diversas, originam-se, em geral, das


camadas mais pobres da nossa gente pobre. São pobres imigrantes e outros
mais exóticos; são negros roceiros, que levam a sua humildade, teimando em
dormir pelos desvãos das janelas sobre uma esteira ensebada e uma manta
sórdida; são copeiros, são cocheiros, cozinheiros, operários e trabalhadores
braçais. (BARRETO, 2010, p.2005).

2
Termo lacaniano que designa o significante-mestre, em outros termos, o lugar simbólico do discurso de
poder que edifica a lei, a linguagem, o inconsciente. Normalmente representado pelas instituições
(políticas, científicas, religiosas etc). Ver Dicionário de Psicanálise (ROUDINESCO e PLOT, 1998,
p.558).
3
Termo usado por Walter Benjamin, no livro A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica,
para referir-se ao espaço histórico onde ocorre a percepção, ou seja, a partir de um contexto muda-se a
percepção da literatura enquanto estrutura de significante e significado.

416
O narrador-personagem, Mascarenhas, da obra de Lima Barreto, conduz um
discurso paródico crítico por meio de vários quadros irônicos sobre o espaço, o
cemitério dos vivos. Assim, os ditos loucos são pessoas que passaram pelo processo de
exclusão social. No caso específico do narrador, acrescenta-se à pobreza o elemento da
embriaguez. “O desacordo entre o sujeito e seu bem desemboca na melancolia quando a
falta de perspectivas, sociais ou individuais, leva o sujeito a recuar de sua via e adotar
uma atitude fatalista diante do conflito.”(KEHL, 2015, p.81). O discurso em primeira
pessoa, no romance citado, centra-se na desadaptação do sujeito frente a uma realidade
que escamoteia a sua significância enquanto agente-transformador.
No sentido inverso ao esmagamento da agência do sujeito, a literatura por meio da
reflexividade, traz o tema da loucura em conjunto com o desnudamento da invenção,
logo como motivadora da ação, o que em Cemitério dos Vivos emerge sobre o código da
autoficção. Em Dom Quixote o signo da identidade delirante surge da desmedida espera
de dois personagens diante de um mundo falido moral e materialmente, que preenche os
vazios pelas histórias experenciadas na fantasia e na contação. Jean Starobinski (2016,
p. 443) argui que no texto de Cervantes “a espera mobilizara a imaginação; a
imaginação sustentara a espera.”.
O crítico toma a obra espanhola para exemplificar a relação da melancolia com o
vazio e com a espera. Neste caso, a espera é um ato literário que transborda de quimeras
e monstros fantásticos a vida cerceada por limitações. Para a psicanálise o eu da psicose
pode aparecer no esquizofrênico, no paranoico, no autista e no melancólico. Essas
diferentes representações da foraclusão alucinam outra realidade em favor da reparação
da fissura estabelecida entre o Eu e o mundo exterior, como descreveu Freud (1924).
Com efeito “o eu da psicose divide-se em duas partes: uma rejeitada e perdida, como
pedaço arrancado, e outra que alucina esse pedaço como uma nova realidade (NASIO,
2001, p.37).
As perdas apontam para as inesgotáveis e intoleráveis dores do mundo, daí a
relação com a melancolia, que se estabelece na falta, na incapacidade de retorno ao
lugar ou ao agente de satisfação do eu. Em conformidade com Starobinski (2016),
entendemos que a melancolia reflete o caráter da falta a partir de uma visão contida que
se perdeu, resultando no espaço vazio, mas que implica o preenchimento das formas. O

417
que ocorre pela magia da palavra ou propensão à metáfora. Também como
presentificação da morte como recusa do laço social, cuja pulsão de destruição reflete
uma reestruturação do gozo, o esvaziamento aqui é da tensão. “É evidente que o sujeito
vai ser sempre confrontado com perdas ao longo de toda sua vida, e aí aparecerá a dor da falta.
E qual é a arma que o sujeito tem para dar conta dessa falta? O desejo, que é a manifestação da
falta em outra vertente.” (QUINET, 2009, p. 175).
Por essa ótica o sujeito psicótico alucina uma realidade centrada nas pulsões do
desejo do Id. Aqui se edifica a invenção da continuidade do desejo impedido pelo
mundo exterior ou pelos discursos de poder do mestre. Seguindo esse itinerário,
apreendemos o discurso surrealista do livro Dispersão (Mário de Sá Carneiro) e do
filme Um cão andaluz (Luiz Buñuel) como marca da evasão do desejo inconsciente que
desinterdita as barreiras do impedimento sob a flama das pulsões.
O Surrealismo surgiu em 1924 com a publicação do Manifeste du surréalisme, de
André Breton. Movimento de vanguarda, procurou a emancipação total do homem por
meio da sugestão de uma liberdade constituída pela revolução da linguagem. A respeito
disso, Eduardo Cañizal ratifica que o Surrealismo:

Baseia seus princípios na crença de que existe uma realidade superior, à qual
se chega por associações de coisas aparentemente desconexas ou, então,
pelos chamados processos oníricos, ou seja, da decifração dos significados
enigmáticos que se elaboram nos sonhos. Seguindo esse argumento e
admitindo ser a linguagem um fenômeno universal, em que, além das
chamadas línguas naturais, congregam-se todos os meios de que se servem os
humanos para se comunicar, pode-se dizer que o Surrealismo é, dentre os
movimentos principais das chamadas vanguardas históricas - Futurismo,
Cubismo e Dadaísmo -, aquele que com mais persistência se entrega ao
trabalho de liberar-se dos recalques com que as diversas deteriorações
sociais, frutos de conflitos bélicos e desigualdades entre os homens - para
citar tão-somente duas causas determinantes e interligadas - desvirtuam a
essência da linguagem e debilitam, consequentemente, sua competência
comunicativa no atinente à capacidade que ela tem de expressar, de maneira
entranhável, ideias, sentimentos e modos de comportamento. A firme vontade
de eliminar os efeitos mais nefastos desse tipo de deturpação assentava,
assim, os alicerces do culto dos surrealistas à expectativa de que o homem
também se libertaria de alguns dos fardos que o condenam a uma existência
degradada. (CAÑIZAL, 2006, p.143).

Desse ponto de vista, o Surrealismo manifesta criticamente o campo dos sonhos e


do delírio como instrução corrente do desejo inconsciente, pelo qual a pulsão de eros e
tânatos fusionam-se livremente para a reestruturação do sujeito. No delírio o desejo de
ser é reconfigurado a partir de satisfações substitutivas. De acordo com Sigmund Freud

418
(2018a, p.21) “ a ideia delirante ou é uma cópia ou o oposto da representação
rechaçada.” Perspectiva norteadora da poieses de Mário de Sá-Carneiro: “O meu destino
é outro – é alto e raro. /4Unicamente custa muito caro:/ A tristeza de nunca sermos
dois...” (Partida); “Pressinto um grande intervalo,/Deliro todas as cores,/Vivo em roxo
e morro em som...” (Inter-Sonho); “Luas d’oiro se embebedam,/ Rainhas desfolham
lírios;/Contorcionam-se círios,/ Enclavinham-se delírios/Listas de som enveredam...”
(Rodopio).
Nos versos citados anteriormente, a satisfação substituta da realidade é o próprio
corpo da poesia que personifica gestualmente a realização do desejo, como no caso de
Rodopio, cujas imagens fragmentadas apontam para as imagens antitéticas do
inconsciente, que despontam como uma única realidade. Por meio do uso estilístico do
anacoluto, as imagens saltam do poema como uma distorção do tempo-espaço. O delírio
é força poética da união de contrários para uma síntese total da diferença, tal como
surge em Partida, contra todas as mortes o delírio “de todas as cores.”.
A linguagem onírica de Dispersão (1914) antecede, no Modernismo Português, a
linhagem surrealista dos anos 1920, inclusive, edifica o pensamento de Fernando Pessoa
na corrente crítica intitulada Paulismo. O estilo paúlico advém da procura da sensação
pela relação entre ideias e coisas desconexas, por meio do culto ao vago e ao labiríntico,
por isso o poema manifesto do movimento é Pauis (pântano). No sentido inverso do não
sentido, recupera a cosmovisão complementar do todo. Sobre isso retificamos a
discussão feita por Freud no texto Sobre o sentido antitético das palavras primitivas
(1910):
Chama-nos especialmente a atenção o modo como o sonho se relaciona com
a categoria da oposição e da contradição. Ela simplesmente é ignorada. O não
parece não existir para o sonho. Oposições são preferencialmente combinadas
em uma unidade ou apresentadas como uma mesma coisa. (FREUD, 2018b,
p.258).

Em A interpretação dos sonhos (1900), Freud destaca que o sonho, comumente


pode representar o desejo como realizado, uma vez a negação não existe no campo
simbólico dos sonhos. Considerando o ensaio linguístico de K. Abel, o psicanalista
relaciona o comportamento dos sonhos à significação antitética das palavras primitivas
em algumas línguas, egípcia, indo-germânica e arábica. A peculiaridade dessas línguas

4
Símbolo (/) utilizado para identificar a separação dos versos no meio do parágrafo.

419
reside no fato de uma mesma palavra trazer consigo uma duplicidade de sentidos,
conduzindo simultaneamente oposições semânticas.
A importância antitética das imagens, sentidos e palavras nos sonhos distingue-se
por suspender a falta. Assim, o sonho “nos liberta da realidade, extingue nossa
lembrança normal dela, e nos situa em outro mundo e numa história de vida
inteiramente diversa.” (FREUD, 2018a, p.28). Essa liberdade fundada no sono replica o
desejo de dormir e distancia-se dos traumas postos pelas agruras da vida. Tanto a poesia
de Sá-Carneiro quanto o cinema surrealista de Buñuel projeta a fantasia da liberdade
interrompida na exegese antitética das imagens que reclamam para si o duplo (o tudo e
o nada), pois é essa ausência da totalidade a causadora do desânimo melancólico: “a
tristeza de nunca sermos dois”. (Partida).
Apresenta-se aqui a tríade do artista moderno desencantado frente às sociedades
das máquinas e do esmagamento bélico. Quais sejam: a negação, a fragmentação e a
ausência de sentido. Com essa arquiescritura5, sustém uma consciência em si de
linguagem que traduz a experiência subjetiva e engendra novos modos de percepção.
Trata-se da reflexividade da arte, que ao se voltar para si, desnuda as projeções
mortíferas do progresso e as relações grotescas forjadas pela violência nas primeiras
décadas do século XX. A lassidão atravessa as vivências do poeta e retorna à palavra
melancólica como ato de resistência. Ideia contida na carta trocada entre Sá-Carneiro e
Fernando Pessoa no dia 07 de janeiro de 1913:

Sinto muito bem a tragédia que me descreve, tragédia em que eu tanta vez
ando embrenhado. É uma coisa horrível! Um abatimento enorme nos esmaga,
o pensamento foge-nos e nós sentimos que nos faltam as forças para o
acorrentar. (...). E vamos dormindo o tempo. (SÁ-CARNEIRO, 2015, p. 285-
286).

A melancolia confessada na epístola já deixa as marcas do percurso onírico do


poeta que procura no sono a possibilidade de transgressão da fatalidade. O
adormecimento do tempo é a capacidade demiurga de expansão do eu, que ao subverter
o tempo histórico em tempo subjetivo, libera as amarras dos discursos de controle
social. “ A inclusão da dimensão temporal, sob forma subjetiva da espera de satisfação,

5
Conceito utilizado por Derrida para designar o novo na literatura como desconstrução do passado.

420
marca a origem do sujeito psíquico.” (KEHL, 2015 p.111). A estética do sonho é a
inclusão do desejo atuante em que os sentidos opostos tornam-se complementares.
Na poética de Sá-Carneiro a aproximação entre sonho e realidade no campo do
fingimento poético perfaz o mascaramento do sofrimento, oriundo da irrealização dos
desejos, procurando no plano onírico a solução de defesa contra realidade impalpável.
Em Dispersão os sonhos inscrevem-se no delírio criativo como chave de compreensão
de um subconsciente amalgamado às tessituras da morte. Perspectiva posta nos
seguintes versos: “nada tendo, decido-me a criar” (Escavação). A dispersão é o ato
poético que assemelha-se ao sonho ou à vontade de dormir, porque “ nos sonhos, a vida
cotidiana, com suas dores e seus prazeres, suas alegrias e mágoas, jamais se repete.”
(FREUD, 2018a, p. 25). Pelo contrário, mostra a diferença, as possibilidades de
preenchimento dos vazios, de ruptura com a realidade.
Sá-Carneiro aponta em uma das cartas escritas a Fernando Pessoa, em 1915, a
vida como uma terra impenetrável, cujas esquinas do afeto e da felicidade são meditadas
e vistas exclusivamente nos sonhos. Ideia implícita quando o autor fala sobre o conto de
sua autoria, O homem dos sonhos. (narrativa que conta história de um homem feliz, pois
criava a realidade desejada no plano onírico, desinibindo as limitações do desejo). Tal
perspectivação funda o lirismo delirante de Dispersão, como podemos interpretar no
poema Inter-sonho.

INTER-SONHO

Numa incerta melodia


Toda a minh’alma se esconde
Reminiscências de Aonde
Perturbam-me em nostalgia...
Manhã d’armas! Manhã d’armas!
Romaria! Romaria!
......................................................................
Tateio... dobro... resvalo...
......................................................................
Princesas de fantasia
Desencantam-se das flores...
......................................................................
Que pesadelo tão bom...
......................................................................
Pressinto um grande intervalo,
Deliro todas as cores,
Vivo em roxo e morro em som...

(SÁ-CARNEIRO,1995, p.43).

421
A conjunção do sonho com a instituição do sujeito desejante é reforçada pelo
signo “inter”, que ratifica a construção de uma vida psíquica desinibida da castração
(linguagem dos interditos), posto que configura uma (re)ocorrência do plano da evasão,
sugerindo o entrelaçamento de vários sonhos no poema: sonhos de gozo e de morte
(décimo e décimo terceiro verso). O signo inter-sonho ainda sugere uma interrelação
dos sonhos da humanidade, do Outro com o sonhos do eu. Revela-se a incerteza de tudo
menos pelo caráter efêmero da experiência e da visão contida do que da ideia de uma
incerteza centrada na natureza dupla da ação onírica. Assim, a morte é incerta porque
constrói um eco sob as desilusões da vida (último verso) e contrariamente a vida é
incerta porque traz consigo a sombra das frustrações e perdas, por isso o eu-lírico vive
“em roxo” (último verso).
O eu-lírico através do sonho realiza o movimento catártico da percepção diante do
sublime, do estranho, ou seja, frente às tessituras de uma morte que se apresenta em
romaria. O enquadramento, em um plano de montagem quase cinematográfico, une
elementos díspares para dizer o não dito das multidões esmagadas pela guerra, pela
distopia de uma sociedade marcada pela violência. Aqui se destaca o inter-sonho como
percurso dialógico de vozes, das quais o eu-lírico é o tradutor, e por isso mesmo, a
imagem da guerra sugerida simbolicamente é alcançada sinestesicamente como “um
pesadelo tão bom” (décimo verso).
O pesadelo, a imagem do caos, a morte (o sublime moderno) torna-se uma
experiência positiva porque é reestruturada criticamente pela linguagem onírica do
poema. Essa é a força do sublime na literatura moderna. “Experimenta-se a sensação do
sublime diante da escuridão, do gozo vazio da vida, da tempestade, de toda impressão
de quando se sente horror de algo que não pode nos possuir ou fazer mal.” (ECO, 2007,
p.77). Alcança-se o sublime na poética carneiriana pela atmosfera simbólica dos sonhos.
Por isso, Freud (2018) nos diz que o sonho é um passo à frente da experiência, que
pode representar os nossos temores, os nossos desejos ou instituir uma fonte de reflexão
sobre o mundo.
Um cão andaluz (1929), filme de Luis Buñuel, de maneira análoga à linguagem
de Inter-sonho, mostra uma polifonia de vozes amalgamadas às diferentes moções do
desejo do eu, captado pela multiplicidade de ações realizadas por um personagem que se
fragmenta em vários outros. “Nele, as ações imitam de maneira persistente o fluxo

422
desconexo dos sonhos e, por meio desse recurso, dilui-se o princípio de continuidade
espaço-temporal.” (CAÑIZAL, 2006, p. 152). Esse cinema surrealista é insubmisso na
medida em que desorganiza o tempo histórico das ocorrências sociais. Nele há uma
aprendizagem do tempo dormindo.
No filme a relação entre as imagens parece não suscitar sentido algum,
todavia é nessa desconexão que emerge o recurso criativo da montagem. Tudo é
sugestão, e a partir da collage dos diferentes quadros somos conduzidos à
interpretação dos desejos mais sombrios, da pulsão de eros e da pulsão de tânatos,
tal qual da tensão entre desejo realizado e culpa. Segue abaixo alguns fotogramas
para ilustrar a análise.

Figura 1-3: fotogramas retirados da película Um cão andaluz

As figuras 1 e 2 retomam imagens do prólogo da narrativa surrealista de Um cão


andaluz. A partir de uma câmera subjetiva somos inserido no ponto de focalização
onírica do personagem que revela a sua pulsão de destruição ao vislumbrar a nuvem
cortando a lua em diálogo com a navalha que corta o olho da mulher. A imagem
perturbadora suscita uma série de outras imagens desconexas, pelas quais desejo erótico
se confunde com pulsão de morte. “A interferência do inconsciente a céu aberto desse
sujeito se dá na pólis, ao desarranjar os costumes e desacomodar os hábitos da ordem
social. (...) As loucuras notívagas do sonho são vividas na rua em plena a luz do dia.”
(QUINET, 2009, p.47).
No filme o dia e a noite se confundem com o fluxo de consciência do personagem,
que aparece como barbeiro, rabino e pai dele mesmo. Compreendemos a primeira
aparição como força intuitiva de um desejo desinterditado. A navalha do barbeiro
simboliza, nessa contextura, os rastros da liberdade plena da pulsão tanática.

423
A presença da morte nas configurações do delírio onírico do personagem pode ser
entendida como recusa do laço social, apontando criticamente suas impossibilidades. O
que fica subtendido com a tensão posta com as outras duas aparições (pai e rabino),
constituintes do discurso do mestre. Em outros termos eles são a chave de compreensão
da interdição e da culpa. Esta última está representada na terceira figura, cujo rosto
morto desfigurado da besta repete a imagem desfigurada do olho cortado pela navalha.
A figura 3 é um recorte da cena em que o personagem carrega duas bestas, dois
rabinos, um piano e a tábua dos dez mandamentos, prefigurando a imagem da culpa.
Pois essa cena precede o plano em que o sujeito procura devorar sexualmente uma
mulher, além da devoração do corpo feminino pela vontade do assassínio forjada em
diferentes planos no decorrer da narrativa. Para Quinet (2009, p.175) a falta é subtraída
pela realização do desejo, mas quando o sujeito cede de seu desejo, a falta se transforma
em falta moral, e o que advém para ele é a culpa. (p.175). Essa tensão entre vontade e
culpa é reparada pelo sentido antitético dos sonhos. Dessa forma, tanto Buñuel quanto
Sá-Carneiro, colocaram no divã a morte imaginada como força propulsora do eu,
destituído de liberdade em tempos de censura e guerra. Não perdendo de vista, ainda, a
tensão estabelecida entre o discurso do mestre e a liberdade das moções dos desejos.

Referências

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2010.

CAÑIZAL, Eduardo Peñuela. “Surrealismo”. In: MASCARELLO, Fernando. História


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Ismael de Oiliveira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018a.

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Neurose, psicose e perversão. Tradução de Maria Rita Salzano Moraes. Belo
Horizonte: Autêntica, 2018b.

KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão: atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo,
2015.

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424
QUINET, Antônio. Psicose e laço social: esquizofrenia, paranoia e melancolia. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

SÁ-CARNEIRO, Mário de. Mário de Sá-Carneiro: antologia. organização de Cleonice


Berardinelli. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2015.

SÁ-CARNEIRO, Mário de. Mário de Sá-Carneiro: Obra completa. Introdução e


organização de Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1995.

STAROBINSKI, Jean. A tinta da melancolia: uma história cultural da tristeza.


Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

425
AS PRISOES DO MEDO: A VIDA DE CÁRCERE DA PERSONAGEM LUDO

Andressa Rayane de Brito Barbosa Costa (UFPB)1


Amanda Ramalho de Freitas Brito (UFPB)2

Resumo: A união medo-psicose compõe a narrativa da vida de Ludovica Fernandes Mano


(Ludo), personagem principal do romance “Teoria geral do esquecimento” (2012, Agualusa).
Ao ver-se sozinha, em Angola, rodeada por pessoas, cores, língua, animais, toda uma cultura
diferente levou Ludovica a se entregar a seus medos. À vista disso, esse trabalho intenciona
investigar as realizações do medo, a construção da figura psicótica que, em busca de defender a
si, inicia um processo de esquecimento social. Para isto, buscaremos as teorias de Bauman
(2008), Gagnebin (2006), Nasio (2001) e Nasio (2011).

Palavras-chave: Literatura; Psicanálise; Medo; Psicose.

O medo e a construção da psicose


A experimentação do medo é algo diário “é um sentimento conhecido de toda
criatura viva.” (BAUMAN, 2008, p. 07). O ser humano, no entanto, o vivencia de forma
intensa:

Os humanos, porém, conhecem algo mais além disso: uma espécie de medo
de “segundo grau”, um medo, por assim dizer, social e culturalmente
“reciclado”, ou (como o chama Hughes Lagrange em seu fundamental estudo
do medo) “medo derivado” que orienta seu comportamento (tendo
primeiramente reformado sua percepção do mundo e as expectativas que
guiam suas escolhas comportamentais), quer haja ou não uma ameaça
imediatamente presente. O medo secundário pode ser visto como um rastro
de uma experiência passada de enfrentamento da ameaça direta – um
resquício que sobrevive ao encontro e se torna um fator importante na
modelagem da conduta humana mesmo que não haja mais uma ameaça direta
à vida ou à integridade. (BAUMAN, 2008, p. 07).

A sensação de estar propenso aos perigos do mundo, essa insegurança que domina
o ser, vê no medo um casulo para a autopreservação. O medo objetiva a proteção,
entretanto, à medida que tenta, ele impede, paralisa o sujeito com medo, em casos
agravantes chega a isolar-se do seu objeto de pavor, que varia entre animais (ferozes ou
não), situações, pessoas etc. O ser que tem em si o medo acredita que o mundo na sua
amplitude representa o perigo:

1
Contato: andressabrito4@hotmail.com
2
Contato: amandaramalhobrito@gmail.com

426
O que mais amedronta é a ubiquidade dos medos; eles podem vazar de
qualquer canto ou fresta de nossos lares e de nosso planeta. Das ruas escuras
ou das telas luminosas dos televisores. De nossos quartos e de nossas
cozinhas. De nossos locais de trabalho e de do metrô que tomamos para ir e
voltar. De pessoas que encontramos e de pessoas que não conseguimos
perceber. De algo que ingerimos e de algo com o qual nossos corpos
entraram em contato. Do que chamamos “natureza” (pronta, como
dificilmente antes em nossa memória, a devastar nossos lares e empregos e
ameaçando destruir nossos corpos com a proliferação de terremotos,
inundações, furacões, deslizamentos, secas e ondas de calor) ou de outras
pessoas (prontas, como dificilmente antes em nossa memória, a devastar
nossos lares e empregos e ameaçando destruir nossos corpos com a súbita
abundância de atrocidades terroristas, crimes violentos agressões sexuais,
comida envenenada, água ou ar poluído). (BAUMAN, 2008, p. 09).

Viver com medo é viver com a sensação de uma constante ameaça. Em alguns
casos, esse demasiado medo está atrelado à psicose, distúrbio psíquico que pode ocorrer
em pessoas já doentes, ou em seres saudáveis que, por ventura, possuem o que Nasio
(2011) chama de “loucura passageira”, quando o eu com psicose se restringe a, apenas,
uma perspectiva singular da vida.
Essa perturbação psíquica, muita das vezes, é o efeito de um trauma causado na
infância, cujo não foi curado integralmente. Desta forma Nasio (2011, p. 09) aponta que
“a origem de uma psicose não é o trauma em si, é a reação ruim do eu contra o trauma”.
Assim, a psicose busca a defesa do eu frente à realidade traumática em que ele foi
exposto.

O estado psicótico é, Para Freud, uma doença da defesa; é a expressão


mórbida da tentativa desesperada que o eu faz para se preservar, para se livrar
de uma representação inassimilável, que, à maneira de um corpo estranho,
ameaça sua integridade. (NASIO, 2001, p. 36).

Essa união medo-psicose que busca a preservação do eu acaba atuando como uma
âncora puxando o ser para o profundo mar do perigo, instabilidade, vulnerabilidade que
é estar vivo.
Ludo e o estado psicótico
Ludovica Fernandes Mano, ou, simplesmente, Ludo, é a personagem principal da
obra Teoria Geral do Esquecimento, escrita pelo angolano José Eduardo Agualusa.
Nascida em Portugal viajou para Angola para lá viver junto de sua irmã e o cunhado. O
espaço da construção narrativa é uma Angola envolta a revoluções que relata o
desaparecimento de muitos personagens em razão das revoltas acontecidas no país. Em

427
meio a isto os únicos parentes de Ludo nesta terra desconhecida desaparecem deixando-
a sozinha em meio ao caos de um lugar estrangeiro a ela.
Quando a personagem central do romance compreende que está sozinha dá-se
então início ao seu processo de isolamento. Envolta por um medo que direciona seus
paços Ludo constrói uma capa de invisibilidade, uma redoma de vidro que envolve todo
o seu apartamento e a afasta do tenebroso “mundo lá fora”. Essa expulsão que a
personagem faz de uma parte de seu eu, isto é, a rejeição a realidade é uma marca do
distúrbio psicótico do eu doente da personagem.
Nesta tentativa desesperada de preservar-se Ludovica tranca as portas, fecha as
cortinas das janelas e conclui erguendo um mudo na frente da porta do seu apartamento.
Bloqueia o meio de ligação entre a casa e o mundo, entre ela e o outro, faz da casa,
lugar comum de proteção, tornar-se um espaço de confinamento, Ludo converte-se em
prisioneira de sua própria casa.

Meses antes, Orlando começara a construir no terraço uma pequena piscina.


A guerra interrompera as obras. Os operários haviam deixado sacos de
cimento, areia, tijolos, encostados aos muros. A mulher arrastou algum do
material para baixo. Destrancou a porta de entrada. Saiu. Começou a erguer
uma parede, no corredor, separando o apartamento do resto do prédio. Levou
a manhã inteira nisso. Levou a tarde toda. Foi apenas quando a parede ficou
pronta, após alisar o cimento, que sentiu fome e sede. Sentou-se à mesa da
cozinha, aqueceu uma sopa e comeu devagar. Deu um resto de frango assado
ao cão: Agora somos só tu e eu. (AGUALUSA, 2012, p. 25).

Ludo não tinha parentes nesta terra, mas tinha uma companhia viva um cachorro
que outrora ganhou do marido de sua irmã, batizou o animal de Fantasma. O nome
inusitado que deu ao bicho prenunciou o que a portuguesa se tornou nos trinta anos que
passou enclausurada no seu apartamento em Angola.
Enquanto Ludo construía uma realidade paralela, o mundo mudava. Quando ela
chegou a esta terra o seu prédio era um dos mais luxuosos hotéis de Luanda, pessoas de
muitas posses moravam por lá, entretanto, nos anos de revolução o hotel teve seu
declínio:

Os primeiros tiros assinalaram o início das grandes festas de despedida.


Jovens morriam nas ruas, agitando bandeiras, e enquanto isso os colonos
dançavam. Rita, a vizinha do apartamento ao lado, trocou Luanda pelo Rio de
Janeiro. Na última noite, convidou duas centenas de amigos para um jantar
que se prolongou até ao alvorecer. O que não conseguirmos beber deixamos
com vocês, disse, mostrando a Orlando a despensa onde se amontoavam

428
caixas com garrafas dos melhores vinhos portugueses: Bebam-nas. O
importante é que não fique nenhuma para os comunistas festejarem. Três
meses mais tarde o prédio estava quase vazio. (AGUALUSA, 2012, p. 32)

Estas novas pessoas não poderiam imaginar que posterior a uma parede de um
corredor qualquer do prédio vivam um cachorro, uma mulher e seus medos. Entretanto,
ainda que não soubessem da história, vez ou outra se ouvia barulhos vindos das paredes,
os vizinhos, desta forma, acreditavam, fielmente, que naquele prédio moravam
fantasmas que assombravam o lugar.

Sentou-se na cama, asfixiado, o coração aos saltos. Lembrou-se do tempo em


que permanecera enclausurado naquele mesmo quarto. Por vezes, escutava o
latido de um cão. Escutava a remota voz de uma mulher entoando canções
antigas. O prédio está assombrado, assegurou-lhe Papy. Bolingô: Tem esse
cão que ladra, mas nunca ninguém viu, tipo fantasma. Dizem que atravessa
paredes. [...] Pequeno Soba estranhava a arquitetura do prédio. Fazia-lhe
confusão a parede, interrompendo o corredor, situação que não ocorria nos
restantes andares. Deveria haver mais um apartamento naquele piso – mas
onde estava? Entretanto, a poucos metros dali, do outro lado da parede, Ludo
esforçava-se por avançar em direção à cozinha. A cada centímetro, sentia-se
mais longe de si mesma. (AGUALUSA, 2012, p. 256).

Ludovica passa anos na realidade paralela, no mundo particular, construído por


ela, metamorfoseia-se, então, em fantasma para os que estavam fora do seu universo.
Aprisionada nas paredes que circundavam o seu apartamento, lutando para sobreviver
durantes os anos de quase solidão, Ludovica não é a mesma de quando chegou a
Angola. O medo de Ludo é do outro, do novo, do desconhecido, entretanto, ao tornar-se
um fantasma, ela se torna o novo, o outro o desconhecido, ela provoca, de certa forma,
receio, medo nos seus vizinhos.
Fora em terras angolanas que Ludo vivenciou intensamente os seus medos,
contudo não fora lá que ela os conheceu. Ainda muito jovem a portuguesa foi
brutalmente abusada por um homem desconhecido, como fruto de tal ato gerou um
bebê, que, posteriormente foi dado para adoção. Esse fato de sua vida a conduziu a um
trauma, que, de acordo com Gagnebin (2006, p. 110) é compreendido como: “ferida
aberta na alma, ou no corpo, por acontecimentos violentos, violentos recalcados ou não,
mas que não conseguem ser elaborados simbolicamente, em particular sob a forma de
palavra, pelo sujeito.”. Este fato da sua vida, portanto, foi marco para o início de seu
cárcere.

429
Como já fora anteriormente mencionado as perturbações psíquicas, de acordo
com Nasio (2011) são resultados de um trauma que não possuiu os cuidados adequados
na infância. Assim a psicose surge como uma resposta negativa do eu em combate ao
trauma. A protagonista criada por Agualusa (2012) quando muito jovem foi apresentada
ao sua prisão. Neste trecho sua filha relata um pouco do ocorrido:

A minha mãe biológica entregou-me para adoção logo após o parto. Perplexa,
decidi investigar as razões de tal ato. Ludovica Fernandes Mano, que é como
se chama a minha mãe biológica, foi brutalmente violada por um
desconhecido, no verão de 1955, e engravidou. Desde esse trágico
acontecimento viveu sempre em casa de uma irmã mais velha, Odete, a qual
se casou, em 1973, com um engenheiro de minas, radicado em Luanda,
chamado Orlando Pereira dos Santos. (AGUALUSA, 2012, p. 228).

Esse episódio significativo do passado da protagonista a arrastou para uma vida de


temor ao desconhecido, memórias de um trauma moldaram o que viria a ser o futuro da
portuguesa. Ludovica convive diariamente com Fantasma, o seu cão, mas, mais que
isso, convive com fantasmas, imagens pessoas e sentimentos que constituíram seu
passado e a aterrorizam regularmente, prisões que são mais fortes que as paredes que
levantam seu apartamento. Os seus relatos de medo são constantes na obra, tal como
neste trecho:

Sinto medo do que está para além das janelas, do ar que entra às golfadas, e
dos ruídos que traz. Receio os mosquitos a miríade de insetos aos quais não
sei dar nome. Sou estrangeira a tudo, como uma ave caída na correnteza de
um rio. Não compreendo as línguas que me chegam lá de fora, que o rádio
traz para dentro de casa, não compreendo o que dizem, nem sequer quando
parecem falar português, porque esse português que falam não é meu.
(AGUALUSA, 2012, p. 31).

Desta forma, o diferente não mais possuía a mesma beleza de outrora, poderia,
agora, causar dor, gatilho que a transportava a memórias de impotência frente a uma
realidade traumática. Estar sozinha, envolta por toda uma cultura que distanciava da sua
deu forças a seus medos que a guiaram para a entrega absoluta aos seus monstros
particulares.
A vida de Ludo foi moldada pela (sobre)vivência frente ao caos interno, os anos
em Angola foram à intensificação de cada um de seus medos, vivia, então, beirando a
desumanidade. Os anos de quase total solidão deram a protagonista uma falsa sensação
de liberdade por não mais necessitar ficar exposta ao desconhecido.

430
Preferia morrer ali, prisioneira, porém livre, como vivera nos últimos trinta
anos. Livre? Muitas vezes, olhando para as multidões que se encarniçavam
de encontro ao prédio, aquele vasto clamor de buzinas e apitos, gritos e
súplicas e pragas, experimentava um terror profundo, um sentimento de cerco
e ameaça.(AGUALUSA, 2012, p. 102).

Esse conceito ilusório de uma liberdade a partir do isolamento deu a Ludo a


sensação de estar protegida, de sentir que, finalmente, após tantos anos, podia controlar
tudo, afinal, a rejeição do mundo a fez construir sua própria realidade ideal. Sobre este
fato Gagnebin (2006) afirma que ainda esse isolamento deixava marcas que não seriam
apagadas:

recolher-se em sua casa, em sua família, com seus filhos, sua mulher, seu
homem, seus bens, seu cachorro, seus livros etc, isto é, tentar
desesperadamente ainda imprimir sua marca – deixar seu rastro – nos
indivíduos próximos nos objetos pessoais; cultivar, assim, a ilusão da posse e
do controle de sua vida, quando esta escapou há tempos da determinação
singular de seu dono. (GAGNEBIN, 2006, p.115).

Na sua condição de fantasma, esquecida por todos, Ludo passou seus dias a
escrever, inicialmente nos cadernos encontrados no apartamento, posteriormente, com o
fim dos cadernos, relatava o seu íntimo nas paredes da casa, como narra Agualusa
(2012) nesta passagem: “Os dias deslizam como se fossem líquidos. Não tenho mais
cadernos onde escrever. Também não tenho mais canetas. Escrevo nas paredes, com
pedaços de carvão, versos sucintos.”.
Durante sua busca por ser esquecida, por tornar-se não mais que um fantasma que
vivia naquele prédio sem ser vista Ludovica, fez o oposto, enquanto escrevia eternizava
seus dias, já que, de acordo com Gagnebin (2006, p. 112) “a escrita foi, durante muito
tempo, considerada o rastro mais duradouro que um homem pode deixar uma marca
capaz de sobreviver à morte de seu autor e de transmitir sua mensagem”. Essa sua
parceira dos dias, foi, possivelmente, sua única aliada, a forma encontrada para tentar
uma libertação de seus medos, angústias, do que a encarcerava bem antes de chegar à
África, ainda que, enquanto isso os vivenciasse constantemente.
A partir de nossa análise é possível afirmar que o processo de medo-psicose da
personagem teve raízes no abuso que sofreu quando jovem que não curado passou a
nutrir um medo constante do desconhecido que resultou no ato psicótico. Quando se viu

431
só, envolta por todo um desconhecido, Ludo abriu as portas de seu cárcere interno,
passou a viver, literalmente, uma vida baseada no medo, o que a levou ao processo
intensificado do seu eu com psicose.
Ludo vivenciou seus medos mais profundos nos anos de cárcere em Angola.
Buscou ser esquecida, mas as suas escritas a eternizaram. Nós não esquecemos suas
histórias, Ludo segue viva nas memórias de cada leitor de suas histórias, jamais será
esquecida.

Referências:

AGUALUSA, José Eduardo. Teoria geral do esquecimento. Rio de Janeiro: Foz,


2012.

BAUMAN. Zygmunt. Medo líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

GAGNEBIN, Jeane Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006.

NASIO, J.-D. Os grandes casos de psicose. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

NASIO, J.-D. Os olhos de Laura: Somos todos loucos em algum recanto de nossas
vidas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011.

432
A METAFICÇÃO PSICÓTICA DO TERROR: AS TRAVESSIAS DO DELÍRIO
HOMICIDA EM EDGAR ALLAN POE E MACHADO DE ASSIS

Beatriz Rosendo (UFPB)1


Amanda Brito (UFPB)

Resumo: O objetivo deste artigo é realizar a análise comparativa entre os contos “O


coração denunciador” de Edgar Allan Poe e “O enfermeiro” de Machado de Assis,
percebendo em tais narrativas a construção psicótica e as manifestações no tecido
diégetico dos contos. Serão levadas em consideração questões socioculturais em relação
as obras literárias do século XIX no Brasil com o intuito de estabelecer a relação entre os
autores analisados, bem como exibir a contribuição da literatura fantástica para estes
contos.

Palavras-chave: Literatura; Psicanálise; Psicose.

A literatura fantástica é permeada de desafios, sobretudo, em sua definição. No


presente estudo, buscamos de forma comparativa analisar os contos “O coração
denunciador” de Edgar Allan Poe e “O enfermeiro” de Machado de Assis, uma vez que
foi observada a predominância de semelhanças na construção narrativa de ambos os
autores. Ao escolher duas obras situadas em contextos diferentes visto que Poe é um autor
americano, aclamado como “o pai do terror”, pertinente a narrativa fantástica e Machado
de Assis reconhecido como um autor realista, esta pesquisa leva em consideração a
harmonia na construção psicótica dos personagens que mais se destacam nos dois contos.
Para Todorov "a expressão ‘literatura fantástica’ refere-se a uma variedade da
literatura ou, como se diz comumente, a um gênero literário” (1981, p. 5), o pesquisador
afirma que “há um fenômeno estranho que pode ser explicado de duas maneiras, por tipos
de causas naturais e sobrenaturais. A possibilidade de vacilar entre ambos cria o efeito
fantástico” (TODOROV, 1981 p. 16). De forma a introduzir, a respeito da literatura
fantástica, uma de suas maiores características é o poder de hesitação o qual ela concebe
ao personagem e leitor o caráter de dúvida diante do fenômeno sobrenatural.
A literatura fantástica surge, de acordo com os estudos de Todorov em sua obra
Introdução à literatura fantástica (1981), com a publicação do célebre romance O
Castelo de Otranto, de Horace Walpole, em 1765. É pertinente destacar que as narrativas
fantásticas do século XVIII e século XIX estavam voltadas para o medo em seu estado

1
Contato: biarosendo@outlook.com.

433
físico, entretanto, ao longo do século XIX o fantástico adquire um viés psicológico, como
afirma o pesquisador David Roas (2014). É possível observar essa característica
psicológica, voltadas para o medo, as angústias e exacerbações da vida humana nos contos
de Poe.
Em se tratando de Machado de Assis, embora seja um autor realista, observa-se que
ele bebeu da narrativa fantástica, especialmente, dos escritos de Edgar Allan Poe para
compor suas narrativas insólitas oitocentistas. Como afirma
Machado de Assis sofreria influência também de Edgar Allan Poe, sem
procurar escondê-la, ou disfarçá-la. Não só traduziu a longa, obscura,
tenebrosa e impressionante poesia “O Corvo” [...] (Machado) foi,
também, um cultor do fantástico. Às vezes, de um fantástico mitigado,
que não ia além dos sonhos que temos não só adormecidos como
também ainda acordados; outras vezes de um macabro ostensivo e
despejado. Excepcionalmente, ia buscar na realidade, mais arrojada do
que a ficção, os temas de alguns desses contos macabros [...]. (JÚNIOR,
1973, p. 9)

Em terras brasileiras, o fantástico ainda se instalava, pois foi através da


publicação da obra Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo, publicada em 1855, que
temos a inauguração do gênero gótico no âmbito da literatura nacional. Comparada a
literatura fantástica da América-Latina, as narrativas do Brasil ainda engatinhavam. É
relevante destacar que, no Brasil, a literatura que não estivessem vinculadas a um caráter
realista eram marginalizadas, uma vez que o Brasil estava em uma fase de
reconhecimento identitário, saindo de um regime escravocrata.
Comparamos então, estes dois contos, sobre este viés: o homem passando pelas
contradições de personalidade – como observado nas produções fantásticas ao longo do
século XIX. Levando-se em consideração a influência de Edgar Allan Poe na construção
de algumas narrativas insólitas as quais Machado de Assis enveredou-se, a citar, a
compatibilidade entre os contos “O coração denunciador” e “O enfermeiro”.
O conto “O coração denunciador”, de Edgar Allan Poe, tem como paragrafo
introdutório uma espécie de confissão: “É verdade! Sempre fui e sou nervoso,
terrivelmente nervoso! Mas por que pretende o senhor que estou louco? A doença me
aguçou-me os sentidos, não os destruiu nem enfraqueceu.” (POE, 2017). Observa-se que
o narrador aponta a presença de uma doença que aguçou os seus sentidos. O personagem
principal do conto cuidara de um velho que, aparentemente, nunca lhe fizera mal, mas o
olho daquele senhor o incomodava. Era um olho diabólico (POE, 2017). O narrador

434
estava disposto a qualquer coisa para findar com o mal-estar que lhe estava sendo
causado:
A ideia de assassinar esse velho e, portanto, de me livrar para sempre
da sua presença. Agora, vejamos, O senhor julga-me doido. Os loucos
nada sabem. Mas o senhor deveria ter visto. Veria que prudência agi –
com que precaução, com que sagacidade e dissimulação pus mão à obra.
Nunca me mostrei tão amigo do velho quanto na semana anterior ao
assassinato.” (POE, 2017)

É importante destacar a forma meticulosa a qual o narrador realiza suas idas ao


velho:
“Todas as noites, pela meia-noite, dava volta à chave e abria a porta do
quarto dele – oh, bem de leve! Depois, sendo a abertura suficiente para
minha cabeça, introduzia uma lanterna furta-foto, de tal modo que não
se visse luz alguma, e depois enfiava a cabeça na fresta. Oh, o senhor
havia de rir, se visse com que habilidade eu enfiava a cabeça ali,
movendo-a lentamente, muito devagar, para não perturbar o sono do
ancião. Levava uma hora para introduzir toda a cabeça na abertura, a
fim de poder vê-lo deitado na cama. Ah! Um louco seria tão cauteloso?”
(POE, 2017)

Certa noite, “Destapei a lanterna com um brado e precipitei-me no quarto. Ele


soltou um grito – um só. Num instante eu o deitei ao chão, fazendo cair sobre ele a cama
pesada. Então, sorri alegremente; a proeza fora levada a cabo!” (POE, 2017). Embora o
ato cometido seja assustador, o narrador sente-se satisfeito ao dar fim aquilo que lhe
incomodava, não se tratava do velho, mas do seu olho maligno. Para o pesquisador Juan
David Nasio2:
“O estado psicótico é, para Freud, uma doença da defesa; é a expressão
mórbida da tentativa desesperada que o eu faz para se preservar, para
se livrar de uma representação inassimilável, que, à maneira de um
corpo estranho, ameaça sua integridade.” (NASIO, 2001, p. 36).
O incômodo é sentido pelo olho. O olho é um órgão de percepção visual, é
questionável o porquê de causar tanta aversão por parte do narrador. Existe uma frase,
inclusive, muito utilizada de Leonardo da Vinci que afirme que “os olhos são as janelas
da alma e espelho do mundo”, observando o olho como espelho, o narrador sente repulsa
no olho do velho, pois ele se enxerga. E enxerga a sua maldade interior. É mais fácil
transferir a sua maldade para um objeto específico do que se auto aceitar. De acordo com
o dicionário de símbolos, Jean Chevalier afirma:

2
Juan David Nasio, Psiquiatra, argentino que está colaborando nesta pesquisa a partir da sua teoria em Os
grandes casos de Psicose.

435
O olho, órgão da percepção visual é, de modo natural e quase universal,
o símbolo da percepção intelectual, tem por função a recepção da luz.
O olho do coração é o homem vendo Deus, mas também Deus vendo o
homem. È o instrumento da unificação de Deus e da alma, do Princípio
e da manifestação. (1996, p. 653-654).

Assim, após ter cometido tamanha atrocidade, os policiais chegam na casa do


velho, pois um vizinho ouve um grito certa hora da noite. O narrador, passada algumas
horas, começa a entrar em uma espécie de monólogo interior, pois acredita que os
policiais já saibam da verdade e estão ali, apenas para zombar de seu feito.
Oh, Deus! Que havia de fazer? Espumava... delirava... praguejava!
Apanhando a cadeira em que me sentara, arrastei-a nas tábuas, mas o
som sobrepujava tudo e continuava a aumentar. Tornava-se cada vez
mais forte, mais poderoso, mais retumbante! E os policiais
conversavam e sorriam, satisfeitos. Seria possível que eles não
ouvissem? Deus todo-poderoso! Não!... Não!... Eles ouviam,
suspeitavam, sabiam! (POE, 2017).

Na verdade, os policiais não ouviram nada. O personagem principal se entrega,


após ter matado o velho, ele o enterra com tábuas no chão e quando os policiais chegam
na cena do crime, o narrador entra em uma espécie de delírio, pois ele passa a ouvir as
batidas do coração do velho, assim, ele se entrega, pedindo para que os policiais retirem
as tábuas.
No conto “O enfermeiro”, de Machado de Assis, logo no início o narrador
prepara o leitor para que ele não seja visto como mal, pelo ato que viera cometer. Ele nos
conta sobre uma vez que trabalhou como enfermeiro para um senhor muito rico,
Felisberto, um senhor irritante, um dos motivos dos antigos enfermeiros pedirem
demissão: “Chegando à vila, tive más notícias do coronel. Era homem insuportável,
estúrdio, exigente, ninguém o aturava, nem os próprios amigos. Gastava mais enfermeiros
que remédios.” (ASSIS, 1994). Nos sete primeiros dias a convivência do enfermeiro com
o coronel foi pacifica, porém, no oitavo dia em diante: “Se fosse só rabugento, vá; mas
ele era também mau, deleitava-se com a dor e a humilhação dos outros. No fim de três
meses estava farto de o aturar; determinei vir embora; só esperei ocasião (ASSIS, 1994).
O enfermeiro foi arrumar a mala para despedir-se, mas Felisberto se desculpa e fazem as
pazes (por pouco tempo).
O enfermeiro, com sua volta, esperava que as coisas melhorassem, mas não foi
o que aconteceu:

436
Ele, que parecia delirar, continuou nos mesmos gritos, e acabou por
lançar mão da moringa e arremessá-la contra mim. Não tive tempo de
desviar-me; a moringa bateu-me na face esquerda, e tal foi a dor que
não vi mais nada; atirei-me ao doente, pus-lhe as mãos ao pescoço,
lutamos, e esganei-o. Quando percebi que o doente expirava, recuei
aterrado, e dei um grito; mas ninguém me ouviu. Voltei à cama, agitei-
o para chamá-lo à vida, era tarde; arrebentara o aneurisma, e o coronel
morreu (ASSIS, 1994)

Há dias o enfermeiro sofria com os insultos do coronel Felisberto. Em um


momento de fúria ele externa seus sentimentos e os põe em prática, como afirma Freud:
“O eu expulsa para fora uma idéia3 que se tornou intolerável para ele, por ser
demasiadamente investida, e, com isso, separa-se também da realidade externa da qual
essa idéia é a imagem psíquica.” (FREUD apud NÁSIO, 2001, p. 36).
Procópio, o enfermeiro, após o acontecido passa a delirar, uma vez que começa
a ver vultos pela casa e fica atordoado:
Era um atordoamento, um delírio vago e estúpido. Parecia-me que as
paredes tinham vultos; escutava umas vozes surdas. Os gritos da vítima,
antes da luta e durante a luta, continuavam a repercutir dentro de mim,
e o ar, para onde quer que me voltasse, aparecia recortado de
convulsões. Não creia que esteja fazendo imagens nem estilo; digo-lhe
que eu ouvia distintamente umas vozes que me bradavam: assassino!
assassino! (ASSIS, 1994)

É relevante destacar que, bem como o conto de Poe, o narrador do conto de


Machado decide resolver tudo com as próprias mãos, ter certeza de que ninguém
desconfiara do acontecido: “Queria ver no rosto dos outros se desconfiavam; mas não
ousava fitar ninguém.” (ASSIS, 1994). Surpresa maior estava por vir, quando Procópio
viaja para o Rio de Janeiro, recebe uma do vigário informando que o coronel havia
deixado um testamento para ele. Ele era o herdeiro universal: “Cogitei em recusar a
herança. Parecia-me odioso receber um vintém do tal espólio; era pior do que fazer-me
esbirro alugado. Pensei nisso três dias, e esbarrava sempre na consideração de que a
recusa podia fazer desconfiar alguma cousa 4.” (ASSIS, 1994).
No conto de Machado de Assis é possível observar, também, a presença do
monólogo interior. O enfermeiro questiona-se sobre o recebimento ou não da herança. E
para livrar-se do sentimento de culpa, cria várias ideias:

3
Preservamos a gráfica original do texto.

437
Considerei também que o coronel não podia viver muito mais; estava
por pouco; ele mesmo o sentia e dizia. Viveria quanto? Duas semanas,
ou uma; pode ser até que menos. Já não era vida, era um molambo de
vida, se isto mesmo se podia chamar ao padecer contínuo do pobre
homem... E quem sabe mesmo se a luta e a morte não foram apenas
coincidentes? Podia ser, era até o mais provável; não foi outra cousa.
Fixei-me também nessa idéia... (ASSIS, 1994).

Observa-se a mudança de interesse. Procópio estava disposto a doar os bens que


recebesse, mas essa ideia foi sendo modificada com o passar dos dias. Os vizinhos, por
não saber que o enfermeiro havia cometido tamanha atrocidade, também sentiram pena
dele, pois cuidava do coronel com apreço.

Vinham contar-me cousas dele (...) Eu, a princípio, ia ouvindo cheio de


curiosidade; depois, entrou-me no coração um singular prazer, que eu
sinceramente buscava expelir. E defendia o coronel, explicava-o,
atribuía alguma coisa às rivalidades locais; confessava, sim, que era um
pouco violento... Um pouco? (...) Os anos foram andando, a memória
tornou-se cinzenta e desmaiada. Penso às vezes no coronel, mas sem os
terrores dos primeiros dias. Todos os médicos a quem contei as
moléstias dele, foram acordes em que a morte era certa, e só se
admiravam de ter resistido tanto tempo (ASSIS, 1994).

Os contos destes dois autores, embora se encontrem em contextos diferentes, é


possível perceber a semelhança na construção da personalidade dos narradores uma vez
que em “O coração denunciador” observamos um ato premeditado, pensado de maneira
meticulosa para que ninguém viesse a perceber tamanha crueldade. No conto “O
enfermeiro” vemos uma atitude em um momento de fúria, entretanto, as formas de
esconder o crime são totalmente frias e articuladas para que ninguém descubra.
É importante também ressaltar, bem como trata-se de uma característica
machadiana, o autor coloca o personagem ao avesso, mostrando a crueldade imanente de
cada ser humano, até onde se pode chegar para conquistar aquilo que se almeja, seja uma
paz de espírito ou uma boa vivencia financeira. Sobre a perversidade Patrick Vignoles
afirma:
O crime cometido estética ou gratuitamente, [...] mostra que a
perversidade é fato de inteligência, talvez mesmo de uma inteligência
superior, que não se submete à lei comum, de um pensamento apto a
desafiar as leis universais e que não acompanha nenhuma vontade boa”.
(1981, p. 85).

438
Em ambos os contos há a presença do delírio, porém apresentadas de maneira
inversa. Em Poe, narrador personagem delira a partir do olho do velho, o homicídio é
apenas uma consequência para que a doença seja aguçada, afinal, como pode um olho
incomodar tanto? Em Machado, o delírio acontece após a morte do coronel, pois é após
o cometido que Procópio começa a ver coisas e idealizar atitudes, entretanto, de maneira
realista, Machado desmascara o caráter humano. Assim, Machado realiza uma
investigação da psique humana, verticalizando parte de seus personagens para exibir,
através de uma ironia fina, as mazelas humanas.

Bibliografia

CHEVALIER, Jean. Dicionário de Símbolos; tradução Vera da Costa e Silva; Rio de


Janeiro. 1996.José Olypio.

JÚNIOR, M. Machado de Assis contos fantásticos. Rio de Janeiro: Edições Bloch,


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Companhia das Letras, 2017.

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TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. Silvia Delpy (trad.) Premia,


1981.

439
ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA: A EMERGÊNCIA DO NOVO ESTRANHO
NO ESPAÇO DO APRISIONAMENTO
E O PRINCIPIAR DO DECLÍNIO DA CIVILIZAÇÃO

Claudia Carla Martins (UNEMAT)1

Resumo: O romance Ensaio sobre a cegueira (1995), do autor português José Saramago,
apresenta um mundo que vai sendo atingido, gradualmente, por uma cegueira branca coletiva,
produzindo a conversão dos novos cegos em outro absoluto. Como outrora os leprosos e os
loucos, as personagens contaminadas devem ser apartadas, aprisionadas no espaço maldito. Este
artigo objetiva oferecer uma breve arqueologia do manicômio, pôr em relevo práticas de poder
que eram exercidas em seu interior e que são recuperadas na obra em foco, bem como observar
a construção da figura do estranho. Também interessa-nos apontar como se efetua o princípio do
declínio da civilização no espaço do aprisionamento.

Palavras-chave: Manicômio; estranho; civilização

O romance Ensaio sobre a cegueira (1995), do autor português José Saramago,


efetua uma atualização da Alegoria da caverna, de Platão. A nova caverna é apresentada
de início por uma situação cotidiana, banal: uma parada obrigatória em um semáforo.
Assim nos é dado o espaço-tempo que será o cenário para ressignificação do texto
platônico: a pólis contemporânea. Personagens comuns, demarcadas e nomeadas pelos
seus papéis sociais são a encarnação coletiva dos antigos cegos. A epidemia da cegueira
branca toma gradualmente a cidade; a vida é arrancada de sua normalidade; todos -
exceto uma personagem, a mulher do médico - são atingidos pelo “mal branco” e
lançados em um mundo que se apresenta como um “mar de leite”. O ingresso paulatino
na cegueira é igualmente o ingresso no caos, na desordem que culmina na destruição de
todos os pilares que sustentam a civilização. Este é o panorama geral do romance.
Importante antes de avançarmos, apontarmos, brevemente, o que estamos
designando de civilização. Apoiamo-nos no pensamento de Sigmund Freud. O autor
concebe este termo como a soma de todas as realizações (técnicas e do plano das
ideias), bem como regulamentos, que nos elevaram acima de nossa condição animal.
Ela serve a dois propósitos: o de proteger o ser humano da natureza e de regular os

1
Doutoranda pelo Programa de pós-graduação em Estudos Literários (PPGEL), pela UNEMAT
(Universidade do estado de Mato Grosso). Contato: claugramp@hotmail.com

440
relacionamentos sociais (1996, p. 96). Diante de uma natureza ameaçadora, muito
superior a um corpo frágil, decadente, e tendo de confrontar-se com um outro que é
fonte de medo e perigo, o sujeito torna-se membro da comunidade humana e desenvolve
técnicas para dominar/subjugar a natureza, ergue a civilização (p. 84-85). Expressa
nossa filiação, sigamos.
Após o aparecimento dos primeiros cegos, a medida do governo é o isolamento.
Uma prática muito comum e antiga. Dentre as quatro opções que se descortinam para
este fim: um manicômio desativado, instalações militares, uma feira industrial, um
hipermercado em estado de falência, a escolha é pelo primeiro. Decide-se que os
“contaminados” e os que tiveram contato com eles devem ser levados para um
manicômio que anda “à espera de que se lhe dê destino” (SARAMAGO, 1995, p. 46).
Tal eleição não é fortuita, afinal, estes espaços, outrora denominados de malditos, são
marcados por uma história, há uma arqueologia a ser buscada, para ter-se uma
apreensão melhor do significado do aprisionamento das personagens neste lugar.
Com o desaparecimento da lepra, no final da Idade Média (XV), os espaços de
segregação, criados na tentativa de apartá-la do convívio, ficaram vazios, à espera de
novos inquilinos: “Desaparecida a lepra, apagado (ou quase) o leproso da memória,
essas estruturas permanecerão. Freqüentemente nos mesmos locais, os jogos da
exclusão serão retomados, [...] dois ou três séculos mais tarde” (FOUCAULT, 2010, p.
06). Não será de imediato que o louco personificará a nova encarnação do mal e reinará
absoluto neste lugar, isto ocorrerá somente no século XIX. Antes estabelecer-se-á um
parentesco incomum: doentes venéreos, mendigos, velhos indigentes, epiléticos,
deficientes, doentes variados, criminosos, dissipadores de fortuna, prostitutas, crianças
abandonadas, libertinos (dentre outros) e loucos comporão um mesmo rosto.
O século XVII viu ocorrer o Grande Internamento2. Como uma resposta à crise
crescente, passou-se a internar, de modo obrigatório, a população pobre, que vivia da
mendicância, juntamente com sujeitos que incomodavam, afetavam a normalidade da
cidade, pois transgrediam os caros preceitos católicos ou protestantes, bem como da
família burguesa. Anularam-se as diferenças, apagaram-se os traços singulares de cada
face, e os destoantes passaram a constituir uma massa uniforme de indesejáveis, que

2
Michel Foucault faz um estudo mais profundo da França, mas aponta que o mesmo deu-se em outros
países da Europa, como Alemanha e Inglaterra. Michel Foucault, A história da loucura, SP, Perspectiva,
2010.

441
precisava ser controlada, corrigida e punida. O internamento foi o modo encontrado
para imprimir e impor a ordem.
Na França, nomeado de Hospital Geral, e em todos os países da Europa nos quais
se proliferavam, estes estabelecimentos não tinham a função médica, mas a policial, “É
antes uma estrutura semijurírica, uma espécie de entidade administrativa que, ao lado
dos poderes já constituídos, e além dos tribunais, decide, julga e executa”
(FOUCAULT, 2010, p. 50). Embora, em alguns casos se aplicassem as sangrias,
banhos, purgações ou confissões como tratamento. Portanto, ele é um espaço de
imposição da lei, ordenamento, exclusão e punição, operando como casa de correição.
Lembremos que para a lógica imperante, são faces da mesma moeda: castigo/remédio,
gesto que pune/gesto que cura.
No século XVIII começa-se a separar os loucos dos demais, e casas são destinadas
somente a eles. Seus rostos passam a ganhar linhas, contornos, a diferenciar-se; as três
ou quatro categorias que eram usadas para classificá-los não são mais suficientes,
expandem-se. E no século XIX, a loucura ganha estatuto médico, assim como um viés
positivista, e o louco será o herdeiro, o inquilino único e por excelência, do espaço de
segregação, que outrora abrigara a lepra. Uma vizinhança mais compreensível, um
parentesco mais lógico do que aquele criado durante o Grande Internamento.
A prática do internamento funcionou como um mecanismo de controle social que
visava à imposição de uma moral, bem como o ordenamento e controle do mundo, da
crise e do resíduo humano produzido. Com isto evidenciaram-se sujeitos e formas de
vida discrepantes, a saída mais eficaz foi a segregação das peças dissonantes: os
associais: “[...] o sentido do internamento se esgota numa obscura finalidade social que
permite ao grupo eliminar os elementos que lhe são heterogêneos ou nocivos [...] seria
assim a eliminação espontânea dos „a-sociais‟ [...]” (FOUCAULT, 2010, p. 79).
Entretanto, com relação aos proclamados alienados, Foucault destaca um ponto
que vale nota sobre este gesto que procura o apartamento daquele que outrora fora um
rosto familiar.

Este gesto tinha, sem dúvida, outro alcance: ele não isolava estranhos
desconhecidos, durante muito tempo evitados por hábito; criava-os,
alterando rostos familiares na paisagem social a fim de fazer deles
figuras bizarras que ninguém reconhecia mais. Suscitava o Estrangeiro
ali mesmo onde ninguém o pressentira (2010, p. 81).

442
Michel Foucault introduz um grau de problematização para o processo de divisão
efetuado, afirma que não se trataria apenas de um banimento do estranho, daquele que
não é reconhecido como semelhante, mas a prática mesma do internamento teria
fabricado tal figura. Do conhecido, do habitual, erige-se um desconhecido, um outro
absoluto. Aqui é importante destacar a convergência do pensamento do filósofo com a
ideia apresentada por Freud no texto O “estranho”, de 1919. Neste trabalho, o fundador
da psicanálise coloca como é tentador apenas associar o estranho ao assustador e a tudo
que não é familiar, percebê-lo como aquilo que possui uma natureza desconhecida,
entretanto, ele avança seu pensamento e propõe uma abordagem para além do estranho
como o não familiar. Busca outros instrumentos, investiga o sentido da palavra heimlich
(familiar) em línguas diversas e traz diferentes autores. Em Schelling,, por exemplo,
encontra outro uso: “É tudo que deveria ter permanecido secreto, mas veio à luz”
(FREUD, p. 146, 2006). Nesta significação a palavra opera na direção da ambivalência
e chega a coincidir com seu oposto unheimlich (não familiar/ estranho). Obviamente
que Freud encaminhará para uma leitura psicanalítica desta categoria, mas o que, para
nós, é importante sublinhar, é que o estranho talvez seja algo secretamente familiar,
negado, submetido à repressão, mas que acaba sempre por voltar.
Embora Foucault afirme que houve uma época em que o louco era uma figura
familiar, acomodado na estrutura social, logo, pertencente, não nos esqueçamos de que
durante a Renascença, um objeto assombrou o imaginário europeu: a Nau dos loucos,
“esses barcos que levavam sua carga insana de uma cidade para outra. Os loucos tinham
então uma existência facilmente errante” (FOUCAULT, 2010, p. 09). Quando
aportavam, eram escorraçados, novamente expulsos, não pertenciam a nenhuma pátria,
seu lugar era o limiar.

É o Passageiro por excelência, isto é, o prisioneiro da passagem, e a


terra à qual aportará não é conhecida, assim como não se sabe, quando
desembarca, de que terra vem. Sua única verdade e sua única pátria
são essa extensão estéril entre duas terras que não lhe podem pertencer
(FOUCAULT, 2010, p. 12).

Condição de apátrida, de passageiro do limiar, condenado ao banimento e


exclusão, o louco figura como o absoluto outro, “é o outro em relação aos outros: o

443
outro – no sentido da exceção – entre os outros – no sentido do universal. [...] Entre o
louco e sujeito que pronuncia „esse aí é um louco‟, estabelece-se um enorme fosso [...]”
(FOUCAULT, 2010, p. 183). O gesto de colocá-lo neste lugar estabelece um
afastamento, uma diferenciação e uma desidentificação por parte daquele que o faz.
Cria-se, assim, a impossibilidade da comunicação e do conhecimento da alteridade, o
que se produz é a negação do rosto com o qual se depara.
Acreditamos que com a exposição feita acima, ficam claras as razões da escolha
de tal espaço para o confinamento dos cegos: ele aciona, de imediato, categorias como a
do banimento, segregação, coação, opressão, controle dos corpos, ordem e remete a
sujeitos que experimentam uma condição de associais, de estranhos, do outro absoluto.
Ora, após a vivência do assombroso mergulho em um “mar de leite”, as personagens
são confrontadas com outro assombro: a própria conversão em estranho. São elas o
rosto que passa a gerar o medo.
O lugar ocupado outrora pelos contaminados pela peste ou pelos insanos, no
romance, é reservado aos cegos, a nova encarnação do mal, pois carregam no corpo o
aterrador, o elemento que provoca medo, pois inexplicável. Portanto, devem ser
mantidos à distância, afastados dos demais. É neste espaço de clausura e segregação que
dar-se-á início ao declínio gradual da civilização, onde as personagens são defrontadas
com as maiores ignomínias, com o inumano, vivem a ruptura brutal da forma de vida
anterior e um mundo à parte, diverso de tudo que já experimentaram se cria.
Como no caso dos insanos, o que move os representantes da instância do poder
para efetuar o aprisionamento não é o intento medicamentoso, “[...] do que se tratava era
de pôr de quarentena todas aquelas pessoas [...] até ver” (SARAMAGO, 1995, p. 45). O
desejo movente é o do afastamento daquilo é desconhecido e ameaçador, e por isto deve
ser lançado numa zona limiar e lá permanecer suspenso por tempo indeterminado. A
expressão acima usada pelo ministro “até ver” é elucidada posteriormente pela voz do
mesmo: “Queria dizer que tanto poderão ser quarenta dias como quarenta semanas, ou
quarenta meses, ou quarenta anos, o que é preciso é que não saiam de lá” (p. 45). A
questão crucial, portanto, é promover o apartamento daqueles que se converteram em
estranho.
Para Freud, por não se possuir instrumentos cognitivos de compreensão, que
possibilitem a apreensão daquilo que se apresenta como desconhecido, como figura

444
bizarra, ocorre a produção do sentimento de estranhamento. É o que se passa com
relação aos novos cegos que rasgam a situação ordinária. Como não se conhece a razão
da cegueira branca e a forma de contágio, a medida preventiva é o enclausuramento,
porém sem nenhuma pretensão de tratamento. O medo é afeto preponderante para tal
decisão. Começa-se a construir a nova face do sujeito do limiar, do outro absoluto.
O aspecto policialesco não se apresenta de modo imediato, inicialmente não é à
força que os cegos são levados para o manicômio, portanto, há a expectativa de um
possível propósito de entendimento e tratamento da nova doença. Entretanto, esta
perspectiva logo começa a ficar embotada, e a voz do médico - após ouvirem, por meio
de um altifalante3, as instruções que todos devem seguir - demonstra uma compreensão
do completo isolamento em que se encontram: “As ordens que acabámos de ouvir não
deixam dúvidas, estamos isolados, mais isolados do que provavelmente já alguém
esteve, e sem esperança de que possamos sair daqui antes que se descubra o remédio
para a doença” (SARAMAGO, 1995, p. 51).
Já no primeiro dia de aprisionamento as personagens têm a dimensão da situação
de abandono e coação a que estão submetidas, tomam ciência das quinze instruções que
devem seguir, lhes é informado que não haverá intervenção das instâncias de poder, em
nenhum nível, no interior do manicômio: “[...] igualmente não deverão os internados
contar com nenhum tipo de intervenção do exterior na hipótese de vierem a verificar-se
doenças entre eles, assim como a ocorrência de desordens ou agressões”
(SARAMAGO, 1995, p. 50). Portanto, apenas atuarão na linha de separação entre o
interior e o exterior, garantindo o total isolamento dos contaminados pelo “mal branco”.
O estado de vigilância será uma constante; e a força, a medida: “[...] Abandonar o
edifício sem autorização significará a morte imediata” (p.51).
Um novo espaço se abre e as regras e normatizações devem ser construídas pelos
novos ocupantes, não se aplica nenhuma jurisdição interna via Estado. “[...] os internos
organizar-se-ão como melhor entenderem, desde que cumpram as regras anteriores”
(SARAMAGO, 1995, p. 50). Ou seja, eles têm a obrigação de cumprir somente os
ditames que os mantêm em isolamento, à distância. Perdem o estatuto de cidadãos,
transformam-se em corpos coagidos, vetados, marcados pela restrição.

3
Todos os dias, no mesmo horário são repetidas, por meio de um altifalante instalado no interior do
manicômio, as instruções que todos devem seguir. Esta medida de repetição é tomada para que cada
novo cego que chegue fique ciente dar regras estabelecidas.

445
Fica estabelecido que os cegos possuem apenas dois direitos: 1) o uso de um
telefone (cada camarata possui um) para solicitar produtos de higiene e limpeza, o que
logo se mostra um grande engodo; 2) o direito à comida, “[...] três vezes ao dia serão
depositadas caixas de comida na porta de entrada, à direita e à esquerda, destinadas,
respectivamente, aos pacientes e aos suspeitos de contágio” (SARAMAGO, 1995, p.
50). Todavia, desde o princípio este direito já se revela falho: “A comida tinha sido
calculada à justa para cinco pessoas” (p.70), sendo que já eram onze no segundo dia. Ao
longo da narrativa, conforme aumenta o número de proscritos, o alimento converte-se
em um dos grandes problemas e gerador de conflitos. Além disso, “Havia garrafas de
leite e bolachas, porém quem calculara as rações tinha-se esquecido dos copos, pratos
também não havia, nem talheres [...].” (p.70) O que indica o início material do declínio
da civilização, já que as personagens são obrigadas alimentarem-se sem estes artefatos
civilizatórios, decisivos para construção do distanciamento humano da animalidade.
Com relação ao discurso, o governo coloca-se como aquele que tem a obrigação
de proteger a coletividade, quando esta se vê em risco, mas deixa implícito que tem o
poder sobre os corpos, já que se posiciona como portador do direito de agir da maneira
que agiu: aprisionando. “O governo lamente ter sido forçado a exercer energicamente o
que considera seu direito e seu dever, proteger por todos os meios as populações na
crise que estamos a atravessar.” (SARAMAGO, 1995, p. 50) Também aciona termos
que convocam os atingidos pela cegueira para o cumprimento do seu dever civil: “[...]
desejaria poder contar com o civismo e a colaboração de todos os cidadãos para estancar
a propagação do contágio” (p. 50). Ou: “O governo e a nação esperam que cada um
cumpra o seu dever” (p.51). Apesar da perda do estatuto de cidadão, já que
transformam-se no outro absoluto, em sujeitos associais, lhes é exigido o cumprimento
espontâneo de deveres. Na verdade, não possuem alternativa, são corpos coagidos,
forçados a proceder conforme o que lhes é imposto pela força.
A morte também é contemplada nas instruções: “[...] em caso de morte, seja qual
for a sua causa, os internos enterrarão sem formalidades o cadáver na cerca” (p.51).
Neste tópico, temos expressa a ruptura violenta com um dos preceitos civilizatórios: a
obediência a uma conduta de respeito ao corpo humano sem vida, que deve ter
preservado o seu direito a um enterro cerimonioso. Este trato descuidado com o cadáver
sinaliza o que está por vir. De fato, logo as personagens se confrontam com a primeira

446
morte: a do cego ladrão, morto por um soldado movido pelo medo da figura do outro
absoluto. Posteriormente, mais nove cadáveres vêm a compor o cenário, e confirma-se o
que o que fora anunciado: elas têm de os enterrar na cerca.
Ocupam um lugar privilegiado, a limpeza e ordem, na escala valorativa dos
preceitos que definem a civilização. “A sujeira de qualquer espécie nos parece
incompatível com a civilização, da mesma forma estendemos nossa exigência de
limpeza ao corpo” (FREUD, 1996, p. 99). Foi por meio da observação da natureza, das
grandes regularidades astronômicas que a humanidade se muniu de um modelo para
introdução da ordem na sua vida. “A ordem é uma espécie de compulsão a ser repetida”
(p. 100), pois possibilita a utilização do espaço e do tempo da forma mais proveitosa
(p.100). Estes dois imperativos da civilização são os primeiros a serem atingidos no
romance.
O espaço ingressa em rápido estado de desordem, mas o desarranjo absoluto do
mesmo é deflagrado quando da chegada conjunta de mais de duzentos cegos - já no
quinto dia de confinamento dos outros, o que mostra a rapidez da ação da cegueira.
Cresce a degradação, evidenciada pela sujidade e pelo escatológico: acúmulo de lixo,
tapetes de excrementos, uma atmosfera putrefata e corpos imundos; agudiza-se a
percepção material da realidade. A gradação, neste caso, na narrativa é utilizada para
expressar o avolumar da precariedade.

[...] ocupados como se encontram todos os catres, duzentos e


quarenta, sem contar os cegos que dormem no chão, nenhuma
imaginação, por mais fértil e criadora que fosse em comparações,
imagens e metáforas, poderia descrever com propriedade o estendal de
porcaria que por aqui vai. Não é só o estado a que chegaram as
sentinas, antros fétidos, [...] é também a falta de respeito de uns ou
súbita urgência de outros que, em pouquíssimo tempo, tornaram os
corredores e outros lugares de passagem em retretes que começaram
por ser de ocasião e se tornaram de costume (SARAMAGO, 1995, p.
133, grifos nossos).

A composição de uma atmosfera carregada, nauseabunda, beirando ao


intolerável também auxilia a construção eficaz de um espaço degradante e altamente
precário, emparelhando espaço/personagens lança estas no mesmo processo de queda
que sofre o meio.

447
Alguns cegos estavam a remexer-se nos catres, como toda manhã
aliviavam-se dos gases, mas a atmosfera não se tornou por isso mais
nauseabunda, o nível de saturação já devia ter sido atingido não era só
o cheiro fétido que vinha das latrinas em lufadas, em exalações que
davam vontade de vomitar, era também o odor acumulado de duzentas
e cinquenta pessoas, cujos corpos, macerados no seu próprio suor, não
podiam nem saberiam lavar-se, que vestiam roupas em cada dia mais
imundas, que dormiam em camas onde não era raro haver dejecções
(SARAMAGO, 1995, p. 136).

O grotesco, como fenômeno estético, “é algo que ameaça continuamente


qualquer representação idealizada” (SODRE, 2002, p. 39), justamente porque se
constrói pela exaltação do ridículo, do disforme, daquilo que contraria o “belo”, o bom
gosto: “Pelo riso ou pela estranheza, pode descer ao chão tudo aquilo que a idéia eleva
alto demais” (p.39). A apresentação minuciosa da primeira grande degradação sofrida é
individual e ocorre justamente com o médico, aquele que seria o bastião da civilização.
Através do uso do escatológico, do sujo, efetiva-se o rebaixamento do humano.

Encaminhava-se já para a camarata quando sentiu uma forte


necessidade de evacuar. [...] O fedor asfixiava. Tinha a impressão de
haver pisado uma pasta mole, os excrementos de alguém que não
acertara com o buraco da retrete. [...] Vamos endoidecer de horror,
pensou. Depois quis limpar-se, mas não havia papel. [...] Sentiu-se
infeliz, desgraçado a mais não poder, ali com as pernas arqueadas,
amparando as calças que roçavam no chão nojento, cego, cego, cego,
e sem poder dominar-se, começou a chorar silenciosamente. [...] sê-
lo-ia realmente, um homem naquela figura, decomposto [...] sabia
que estava sujo, sujo como não se lembrava de ter estado alguma vez
na vida. Há muitas maneiras de tornar-se animal, pensou, esta é só a
primeira delas (SARAMAGO, 1995, p. 96-97, grifos nossos).

Ocorre na obra, a imposição de uma forte corporeidade, a obrigatória constatação


do corpo é incontornável e atinge graus elevadíssimos. São várias as passagens que
oferecem cenas grotescas, marcadas pelo escatológico e que mostram a natureza animal
do humano, provocando, assim, um desalojamento de tolas idealizações. Num estado de
precariedade, justamente o que salta à vista e impõe sua presença é o compacto corpo
com suas exigências e “indiscrições”.

[...] estas realidades sujas da vida também tem de ser consideradas em


qualquer relato, com a tripa em sossego qualquer um tem ideias,
discutir, por exemplo, se existe uma relação directa entre os olhos e
os sentimentos, ou se o sentido de responsabilidade é a conseqüência

448
natural de uma boa visão, mas quando a aflição aperta, quando o
corpo se nos desmanda de dor e angústia, então é que se vê o
animalzinho que somos (SARAMAGO, 1995, p. 242-243).

Percebe-se uma rápida assimilação da precariedade. Entretanto, cada vez mais


desencadeiam-se situações absurdas, com as quais as personagens têm de debater-se, e,
por seu intermédio, são convocadas a vivenciarem o limite da experiência.
Gradualmente adaptam-se como podem, é incontornável que se acomodem a cada nova
vivência degradante. Como expressa a voz do médico: “Estamos numa situação
insustentável, É insustentável desde que aqui entramos, e apesar disso vamo-nos
agüentando” (SARAMAGO, 1995, p. 144, grifo nosso).
Como já afirmamos, no romance, ocorre a emergência de um espaço de não-
jurisdição, de ruptura com o direito, pois as personagens são abandonadas a própria
sorte no interior do manicômio, o que faz com que se abra uma zona anômala que é
preenchida pelo imperativo da força bruta. A civilização surge justamente para regular
os relacionamentos sociais, se isto não ocorresse, estes “ficariam sujeitos à vontade
arbitrária do indivíduo, o que equivale a dizer que o homem fisicamente mais forte
decidiria a respeito deles no sentido de seus próprios interesses e impulsos instintivos”
(FREUD, 1996, p. 101). É o que ocorre quando da chegada dos mais de duzentos cegos.
Forma-se um grupo, composto por mais de vinte homens, denominado pelo narrador de
grupo dos malvados, que se apodera da comida e passa a espoliar os demais, estão em
vantagem por possuírem uma arma e um cego antigo, portanto, mais apto. Começa,
assim, a vigorar a lei do mais forte.
Uma das passagens mais violentas é a que traz o estupro coletivo de nove
mulheres grupo imperante. Como acabaram os bens materiais dos ocupantes das outras
camaratas, em troca de comida, eles exigem corpos femininos. A exposição à violência
brutal e à degradação do humano atinge o ápice neste episódio: “Durante horas haviam
passado de homem em homem, de humilhação em humilhação, de ofensa em ofensa,
tudo quanto é possível fazer a uma mulher deixando-a ainda viva” (SARAMAGO,
1995, p. 178).
Há uma insistência em repudiar que “os homens não são criaturas gentis que
desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo
contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma

449
poderosa cota de agressividade” (FREUD, 1996, p. 116). Em nome da civilização, os
instintos agressivos foram sufocados, contidos, no entanto, a besta selvagem não fora
domada, está sempre à espreita e manifesta-se em cenários propícios, como é o caso do
grupo masculino que impõe sua vontade bruta. Como a supremacia da força bruta
suplantara a do direito, eles querem ter garantida a satisfação de seus desejos mais
violentos. No trecho que segue, o estabelecimento de uma aproximação das personagens
violadoras ao universo da animalidade deixa expresso que a regência, no espaço
adensado da camarata do grupo, é a do instinto irrefreado.

[...] Ele devia ter ouvido os passos arrastados, deu um aviso, Já aí


vêm, já aí vêm. De dentro saíram gritos, relinchos, risadas. Quatro
cegos afastaram rapidamente a cama que servia de barreira à entrada,
Depressa, meninas, entrem, entrem, estamos todos aqui como uns
cavalos, vão levar o papo cheio, dizia um deles. [...] Rapaz, estas gajas
são mesmo boas. Os cegos relinchavam, davam patadas ao chão
(SARAMAGO, 1995, p. 175, grifos nossos).

A força bruta do desejo sobrepõe-se ao sentido do olfato, como destaca o


narrador: “[...] uma fila grotesca de fêmeas malcheirosas, com suas roupas imundas e
andrajosas, parece impossível que a força animal do sexo seja assim tão poderosa, ao
ponto de cegar o alfacto, que é o mais delicado dos sentidos [...]” (SARAMAGO,
19995, p. 174).
A degradação e a violência sofridas pelas personagens femininas atingem níveis
exacerbados. A começar pela “revista” a que são submetidas: “No meio da coxia, entre
as camas, as mulheres eram como soldados em parada, à espera de que lhe venham
passar revista” (SARAMAGO, 1995, p. 175). E é o que o chefe dos cegos faz: apalpa-
as, “por diante e por detrás, as nádegas, as mamas, o entrepernas” (p. 175), para a
escolha do corpo que mais lhe apraz e depreciação daquele que é sem valia: “A cega
começou aos gritos e ele empurrou-a, Não vales nada, puta” (p. 175-176). Sujeita-as a
uma condição de profunda humilhação. Em um estado no qual haja o império dos
instintos primitivo, para realização do desejo do “macho”, o uso do corpo da “fêmea”
deve ser feito de modo propiciar o escoamento de uma carga agressiva, em estado bruto
e afirmação da força: “As mulheres, todas elas, já estavam a gritar, ouviam-se golpes,
bofetadas, ordens. Calem-se, suas putas, estas gajas são todas iguais, sempre têm de
pôr-se aos berros, Dá-lhe com força que se calará [...]” (SARAMAGO, 1995, p. 176).

450
Estas experiências são potencializadas e intensificadas com a imposição da
clausura, do aprisionamento. Um aspecto formal do romance que manifesta a ideia de
que a experiência mais avassaladora tenha sido a do confinamento é a preferência do
narrador pelo que ocorreu neste espaço, pois sobre ele detém-se demoradamente. Se
observarmos a distribuição dos capítulos, são dezessete, apesar de não numerados,
divididos da seguinte maneira: 1) Os três primeiros trazem o início da cegueira, antes do
aprisionamento; 2) do quarto ao décimo segundo é representado o aprisionamento e 3)
do décimo terceiro ao décimo sétimo oferece-se a experiência fora do manicômio. Dada
a construção temos: TRÊS (Fora) / NOVE (Dentro) / CINCO (Fora). Se juntarmos os
capítulos referentes ao espaço de fora, ainda assim é inferior ao número dos relativos ao
dentro: OITO (Fora) – NOVE (Dentro). Concluímos que houve a eleição de uma
experiência como principal: a do aprisionamento. Nas palavras da mulher do médico, a
única que vê: “O mundo está todo aqui” (SARAMAGO, 1995, p. 102).
Por meio de um duplo movimento de construção, da figura do estranho, e
desconstrução, da civilização, Ensaio sobre a cegueira é um romance que convoca para
visão. É no espaço do aprisionamento que as personagens vivenciam o brutal da
experiência e sua conversão no outro absoluto, bem como é aí que uma forma de vida
começa a sofrer seu abalo, porém estes acontecimentos são aberturas que podem
possibilitar a emergência de um outro modo de ver.

Referências
FOUCAULT, Michel. A história da loucura: na idade clássica. Tradução de José
Teixeira Coelho Neto. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 2010.

FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão, O Mal-Estar na Civilização e outros


trabalhos (1927-1931). Tradução Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

________. O „estranho‟. Uma neurose infantil e outros trabalhos (1918-1919). Rio de


Janeiro: Imago, 2006.

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

451
AS NEURÓTICAS E AS MELANCÓLICAS D’A CIDADE ILHADA DE
HATOUM1

Cristiane de Mesquita Alves (UNAMA/CAPES)2

Resumo: O objetivo deste artigo é analisar nos contos Bárbara no inverno, Dois tempos e
Encontros na península como se manifestam a neurose e a melancolia nos comportamentos
femininos de três personagens hatounianas a partir do momento em que elas não admitem a
ruptura ou o cancelamento de uma relação amorosa de forma parcimoniosa para si; levando-as a
criarem um embotamento afetivo caracterizado pelas práticas de neurose e de melancolia. O
trabalho foi realizado por meio de procedimentos teórico- metodológicos com base na revisão
de literatura dos pressupostos da teoria freudiana, os quais alicerçaram a análise interpretativa
dos textos, assim como no de Literatura Comparada de Pichois e Rousseau (2011).
Palavras-chave: Mulheres; Neurose; Melancolia

Para introduzir

A Cidade ilhada (2009) é um livro de contos do escritor manauara Milton Hatoum


permeado em sua maioria, por figuras femininas no decorrer de suas catorze narrativas.
Dentre estas, há personagens que se caracterizam por tomar atitudes e assumir
comportamentos beirando às práticas de neurose, por não aceitarem e nem quererem
conduzir para a descarga motora uma moção pulsional poderosa do Isso ou de lhe barrar
o acesso ao objeto, ao qual elas desejam durante os relatos das histórias.
Nessas narrativas, elas não admitem a ruptura ou o cancelamento de uma relação
amorosa, levando-as a criarem em seu íntimo um estado para o Eu, o qual cria
automaticamente para si um novo mundo exterior e interior, “construído de acordo com
as moções de desejo do Isso, e que o motivo dessa ruptura com o mundo exterior foi um
grave e intolerável impedimento de desejo por parte da realidade.” (FREUD, 2016a, p.
273). Essa decepção responsável pelo embotamento afetivo, ou seja, pela perda da
participação do objeto em sua vida no plano real, torna-se a gênese das formações
delirantes presentes nas ações descontroladas das mesmas na ficção de Hatoum, fazendo
com que as demais personagens que contracenam com elas, promovam um afastamento

1
O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior- Brasil (CAPES)- Código de Financiamento 001. Portaria Nº 206, de 04 de Setembro de 2018.
2
Doutoranda em Comunicação, Linguagens e Cultura (PPGCLC-UNAMA/Bolsista Prosup/CAPES),
Universidade da Amazônia. Integrante do Grupo de Pesquisa Interfaces do Texto Amazônico (GITA). E-
mail: cris.mesquita28@hotmail.com

452
físico, um abandono, por as considerarem insanas ou não representarem um estado
emocional racionalizado, à maneira convencionalizada.
O afastamento do objeto contribui de forma negativa para a saúde psíquica dessas
mulheres hatounianas, pois as conduz não apenas a momentos de delírios e alucinações
mesclando irrealidades na realidade, mas também, possibilita a elas a criarem um estado
de melancolia em relação a esse compromisso amoroso, que em seu Eu, ainda não teve
fim. Nesse sentido, a melancolia caracterizada psiquicamente por um “desânimo
profundamente doloroso, por uma suspensão do interesse pelo mundo externo, pela
perda da capacidade de amar, pela inibição da capacidade para realização.” (FREUD,
2016, p. 100), acaba por fazer dessas mulheres, além de neuróticas, melancólicas.
Logo, diante dessa contextualização é que se articula o objetivo desta
investigação: analisar como se apresenta a neurose e a melancolia, a partir do recorte de
três personagens hatounianas que se dialogam e se intercruzam nessa discussão, com
base na teoria freudiana, e pelo método de Literatura comparada proposto por Pichois e
Rousseau (2011) baseado nos entrelaços discursivos de aproximação entre
características e temáticas afins presentes nos enredos das obras literárias. Sendo assim,
das mulheres ilhadas na cidade da ficção de Hatoum, para este trabalho, escolheu-se:
Bárbara (melancolia e neurose), do conto Bárbara no inverno; Dona Steinway (tom
melancólico) de Dois tempos e Victoria Soller (neurose) de Encontros na península.
Nesse cenário, estruturou-se este artigo em mais três partes, além da introdução:
na primeira seção, apresentou-se Bárbara – personagem contemplativa dos dois estados
psíquicos configurados por Freud: melancolia e neurose, a mais histérica das três
mulheres estudadas; na segunda parte do desenvolvimento do artigo, tem-se a Dona
Steinway, a professora pianista do narrador do conto, responsável por conotar na
narrativa um tom melancólico e triste, comovente e hesitante das demais personagens
do relato e por último, retratou-se o estranho quadro neurótico da hipocondríaca
Victoria Soller, com seu interesse mórbido e sagaz de querer conhecer personagens de
Machado de Assis, para ajudá-la a se vingar de seu amante. Depois, seguiu-se a alguns
apontamentos finais.

Bárbara e as barbaridades de neurose e melancolia

453
Bárbara é a protagonista do conto Bárbara no inverno. A narrativa se passa no
período da Ditadura Militar no Brasil, mais precisamente em Paris, pois Bárbara e seu
namorado refugiaram-se na França por serem perseguidos politicamente; na verdade,
“só Lázaro era exilado, só ele havia sido preso no Brasil, e isso Bárbara lembrou na
primeira reunião no quarto-e-sala da avenida Général Leclerc.” (HATOUM, 2009, p.
77). Como acompanhante do namorado, professor de português na França para um
grupo de executivos do Le Défense, ela trabalhava na redação da Rádio France
Internacionale. Ela não era militante, como Lázaro e seus amigos exilados e expatriados
da América Latina. Mas, “nas tardes de sábado, quando Lázaro se reunia com os
amigos, Bárbara chegava da redação da RFI com notícias sinistras da América Latina:
prisões, mortes, sequestros, tortura.” (HATOUM, 2009, p. 78). Bárbara demonstrava o
incômodo que sentia quando chegava a casa e encontrava Lázaro e o grupo de amigos,
também exilados políticos fumando, bebendo, discutindo política: “Essas reuniões são
uma farsa, pura nostalgia de parasitas, os únicos que valem uma amizade são Fabiana e
Marcelo, pelo menos trabalham” (HATOUM, 2009, p. 78), reclamações constantes que
aos poucos foram fazendo com que Lázaro se afastasse dela.
Com um tempo, ela começou a criar justificativas para compreender o
afastamento de Lázaro. Começou a observar as mulheres que frequentavam o
apartamento deles e a encontrar desesperadamente em alguma, uma amante para
explicar a frieza do namorado e agir de forma agressiva com ele, como se observa na
passagem que narra o dia do aniversário de Lázaro, e ela sai cedo, deixando para ele,
sozinho, fazer todas as atividades domésticas e sugerindo que ele chamasse aquelas que
ela imaginava amantes deles, a priori: “São teus companheiros, Laure é tua amigona,
Francine só anda sozinha e é uma oferecida; é saiu batendo a porta.” (HATOUM, 2009,
p. 80).
A partir dessa cena, percebe-se a mudança efetiva de comportamento de Bárbara,
refletindo-o como um quadro de neurose, pois ela apresenta o motivo evidente de suas
fantasias no mundo interno e principia a colocar em evidência no mundo externo,
começa a acusar Lázaro de traição e suas acusações acabam por afastá-lo
definitivamente dela. Ela passa a persegui-lo, procurá-lo em lugares outrora por eles
frequentados, e passa a um estado de adoecimento emocional que a leva a devanear
situações que ele deve ter vivido dentro do espaço amoroso que era deles e que ao

454
mesmo tempo, ele pudesse compartilhar com outras mulheres, e passa a se martirizar
por não ter ou não saber informações do seu objeto de desejo (Lázaro), e seu sofrimento
pode ser compreendido como a de um indivíduo que estava sadio enquanto sua
“necessidade amorosa estava sendo satisfeita por um objeto real no mundo exterior;
torna-se neurótico quando esse objeto lhe for subtraído, sem que se encontre um
substituto para ele.” (FREUD, 2016c, p. 72-73).
Esse estado de Bárbara, em partes, foi o responsável pelo abandono de Lázaro
“Ele disse que ela estava enlouquecendo: o ciúme que sentia de Francine era uma
invenção para confundi-lo e exasperá-lo.” (HATOUM, 2009, p. 83). Quando ele vai
embora, ela passa a se desapegar das coisas, passa a faltar o emprego, e vive como se
tivesse uma finalidade: reencontrar o objeto de desejo. Sua felicidade passa a depender
disso, e não aceita ter esse amor subtraído de si, “aqui, a felicidade coincide com saúde,
e infelicidade com neurose.” (FREUD, 2016c, p. 72).
A possibilidade de adoecimento de Bárbara como neurótica começa com o
impedimento dela de não ter mais Lázaro. Esse impedimento tem efeito patogênico
porque passa a maltratá-la, pois sua libido se torna represada, submetendo-a a uma
prova de quanto tempo ela pode tolerar esse aumento de pressão psíquica, e que
caminhos ela pode tomar para se livrar dele. Como ela não consegue encontrar passos
para se livrar dessa obsessão por ter de volta Lázaro, ela passa a se desviar da realidade,
“através do impedimento persistente, perdeu valor para o indivíduo, volta-se para a vida
de fantasia, na qual cria novas formações de desejo, e reanima os traços de formações
de desejo anteriores, esquecidas.” (FREUD, 2016c, p. 72-23), na tentativa de
reencontrar seu objeto de desejo perdido:

Agora chegava atrasada à redação da RFI, e as notícias sobre o Brasil e os


exilados e os militares a exasperavam. Começou a faltar às reuniões de pauta,
não falava com mais ninguém na redação, e foi advertida. Entrava nas
livrarias que ele frequentava, nos cafés dos exilados, e uma noite, perto da
Bastilha, julgou tê-lo visto na calçada, gritou o nome dele, viu Lázaro correr
e entrar num restaurante. Ela o seguiu, perguntou por ele, um garçom lhe
disse: Não sei de nada, não o conheço, e ela o chamou de mentiroso,
détraqu.é, ignóbil. Um policial expulsou-a e ameaçou prendê-la. Ela chorou.
Nessa época – uns sete meses depois do sumiço de Lázaro. (HATOUM,
2009, p. 85)

Esse estado de desconstrução em que Bárbara se encontra a leva também a um


estado de melancolia, entendido como “um extraordinário rebaixamento na autoestima

455
do Eu. [...], um grandioso empobrecimento do Eu.” (FREUD, 2016, p. 102), pois na
melancolia de Bárbara o Eu se tornou vazio e pobre. Pela passagem do conto, ao se
rebaixar gritando, correndo atrás de um vulto que ela supõe ser o homem que ela ama,
mendigando um amor que não é mais dela, ela se coloca além de condição de neurótica,
melancólica por descrever seu Eu indigno e moralmente desprezível, recriminando-se,
permitindo-se ser insultada em nome de um objeto que não é mais seu.
Para completar a desvalorização de seu Eu, ela recebe um cartão-postal de Lázaro,
assinado pelo endereço de Marselha. Por um tempo, ela se reanima, tenta recupera-se,
sente-se enganada de novo, mas depois descobre que Lázaro estava entre os nomes dos
anistiados e volta ao Brasil na procura dele. Quando ela chega ao Rio de Janeiro, vê
Lázaro com Fabiana, agora com o nome de Cláudia (aquela antes defendida por ela,
aquela que Bárbara acreditava estar apaixonada por Marcelo), e tem a certeza de sua
perda e Bárbara decide por tirar sua vida:

Então durou sete ou oito segundos: Lázaro escutou o choro ou a risada


diabólica antes de ver o rosto de Bárbara, e entendeu que era o fim. Ainda
teve tempo de correr, mas não de agarrá-la e evitar o salto. Ele ficou
debruçado na varanda, de olhos fechados, e quando virou a cabeça para a
sala, encontrou um rosto sem cor num corpo paralisado. Ele e Cláudia
ficaram assim por tempo, os dois imobilizados pelo pânico ou culpa, a voz de
Chico Buarque cantando baixinho: “E me vingar de qualquer preço”...
(HATOUM, 2009, p. 88)

A morte é a escolha que Bárbara faz para castigar quem a maltratou por todo
aquele tempo. Por mais que ela tenha, pela leitura sugerida, cometido suicídio, na frente
de Lázaro e naquela condição da morte, ele se sentiria culpado de qualquer jeito. Ela já
tinha se matado ou estava se matando dentro dela, em Paris desde que ele a abandonou,
de certo modo, no mundo interior dela, ela já tinha se matado por ele, agora, na frente
dele, foi só uma forma de se matar no mundo externo. Seu inconsciente se manifestou
mais forte que seu consciente.

Steinway em tons de melancolia

Se Bárbara se vê desmotivada e infeliz por não ter seu objeto de desejo ao seu
lado, Dona Steinway é outra personagem de Hatoum que não é diferente. A professora
de piano tem suas ressalvas se comparada a Bárbara, pois esta última ao não aceitar a

456
negação do amado, vai surtando no decorrer da narrativa, e este surto é visivelmente
observado pelas suas ações e comportamentos turbulentos. Steinway prefere se recolher
a sua dor da perda do objeto amado, vivendo seus dias de forma melancólica, aqui, a
melancolia é evidenciada como uma “reação à perda de um objeto amado; em outras
ocasiões é possível reconhecer que a perda é de natureza mais ideal.” (FREUD, 2016a,
p. 102). A escolha por essa definição de melancolia freudiana em relação à professora se
deve ao fato de não se ter no breve relato da narrativa de Dois tempos passagens que
comprovem a existência física de um relacionamento amoroso entre Steinway e o
Ranulfo, o tio Ran- tio do narrador da história, há apenas cenas que sugestionam que ela
seja mais um amor ou no caso do mulherengo personagem, um dos amores de tio Ran:
“um solteirão estabanado, que me levava para corricar no Paraná do Cambixe. Com ele
fui pela primeira vez ao Varandas da Eva e a outros balneários noturno. Não se zangava
quando me via sem farda, gazeteando aulas [...]”. (HATOUM, 2009, p. 62).
Ran é descrito como um homem desengonçado, atrapalhado, mulherengo, mas um
bom homem. É ele quem leva o sobrinho para o conservatório, para que ele possa
aprender canto com Steinway. Ela é apresentada pelo narrador como uma mulher com o
rosto “cheio de pontinhos pretos, ameaçando formar barba. As pernas eram cabeludas
como os braços, mas a voz, de inflexão melódica, me fazia esquecer tudo. O sorriso
bonachão e a generosidade extremada participavam dessa magia.” (HATOM, 2009, p.
63). Sua aparência física parece ser sanada por outros atributos, como o canto e tocar
piano.
Steinway não reage a situações adversas, por mais talento que possa ter, por mais
que seja uma boa professora, pessoa e uma excelente artista; seu Eu é habitado por um
desembotamento afetivo, que só através da música ela coloca para fora. Seu Eu é
reprimido, indigno, um Eu melancólico que se recrimina e se insulta timidamente com
medo de si mesma e dos outros, beirando a um Eu que “se humilha diante de qualquer
pessoa e sente pesar por seus familiares estarem ligados a uma pessoa tão indigna. Ele
não julga que uma mudança lhe aconteceu, mas estende sua autocrítica ao passado.”
(FREUD, 2016a, p. 103). Embora Steinway manifeste um comportamento tendendo à
melancolia, seu estado de perda é suprimido e sufragido para o mundo interno, e das
poucas vezes que externaliza suas perdas ou frustrações são por meio da música.

457
A melancolia de Steinway é formada por um “apaziguamento na exposição do
Eu.” (FREUD, 2016a, p. 104), como uma espécie de apagamento de si diante das
pessoas, dos relacionamentos e das situações da vida. Isso pode ser compreendido nas
passagens do conto em que ela diz ao narrador que conhecia a mãe dele, assim como
pergunta pelo tio dele. “A professora sabia que eu era órfão, [...]. Ficamos em silêncio
por alguns segundos: ela se levantou, me acompanhou até o portão, fez uma pergunta
como se fosse uma despedida: teu tio cuida bem de ti?” (HATOUM, 2009, p. 65).
Quando o narrador tenta estender essa conversa, ela cria uma situação de
distanciamento, como se quisesse esquecer ou ignorar uma parte do passado. Pelas
entrelinhas, o leitor atento, sabe que houve um relacionamento breve entre eles (Tio Ran
e ela), algumas passagens sugerem como: “Quando voltava de suas viagens
misteriosas.” (HATOUM, 2009, p. 62), o narrador falando do tio Ran e suas noitadas e
aventuras. “Então, numa segunda-feira, ele me levou ao conservatório. Ficou
observando as janelas fechadas do andar superior.” (HATOUM, 2009, p. 62), onde ela
possivelmente estava ou ficava.
Ran seria o objeto de desejo ideal de Steinway, que se ela teve acesso, não
conseguiu permanecer com ele por muito tempo. Como ela não se desfez desse tipo de
relacionamento, revivendo com ele em seu mundo interior, Steinway se tornou uma
mulher muito triste, de um Eu rebaixado. Mas, há uma passagem do conto, na qual
remeteria a uma sublimação do Eu recaído de Steinway, assim como ocorreu com
Bárbara quando recebeu um cartão-postal de Lázaro, um levantamento de sua
autoestima, capaz de fazer o Eu perdido feliz. Se para Bárbara foi o cartão-postal, para
Steinway foi o recital.

Pouco tempo depois, quando eu pensava em deixar a cidade, fui com tio Ran
ao Teatro Amazonas, onde dona Steinway daria um recital. [...] Quando o
pano de boca subiu, o piano preto do conservatório apareceu no centro do
palco. Depois ela entrou, aproximou-se da plateia, foi aplaudida com
entusiasmo. Da primeira fila eu podia ver o rosto em êxtase da pianista, a
alegria incontida, como se fosse uma grande noite. [...] a pianista piscou para
o meu tio. (HATOUM, 2009, p. 65-66)

Entretanto, esse lance afetivo passou tão repentino quanto aconteceu. E Steinway
voltou ao seu universo da música, como uma forma de compensar, por vezes, seu estado
de solidão, com tom melancólico definido como um “desacerto com o lugar em que

458
está, até o mais grave: a sensação da falta de sentido para o que faz, quando não da
própria vida – ela implica ter o mundo como um parceiro indiferente.” (LIMA, 2017, p.
59). Esse sentir o mundo como desconforme provoca em Steinway a sensação de perda
do desinteresse do objeto de desejo no mundo real, por isso, poucas vezes, manifesta
alguma reação ou luta por seu amado, como por exemplo, o piscar em direção a Ran no
Teatro.
No final do conto, Steinway assim como Bárbara encontram redenção – na morte.

Quando entrei, vi um homem velho e triste, curvado sobre o rosto da mulher


deitada, quieta, as mãos cruzadas. Levei um susto, tentei pronunciar o nome
dele, mas emudeci. Tio Ran parecia outro, tão diferente, ali em pé, as mãos
enleadas no cabelo da professora. Quase não vi o rosto da pianista, escondido
por outro, o do meu tio. Mas vi, observei, senti suas mãos que dedilharam o
teclado, agora silencioso, agora fechado sabe-se lá até quando. (HATOUM,
2009, p. 67)

Essas mulheres compartilham na narrativa hatouniana pulsões de adoecimento de


alma, de perdas irreversíveis de relacionamentos irreconciliáveis que as levaram a
adoecer psiquicamente “na tentativa de se adequar à realidade e de cumprir sua
exigência real, o que o faz deparar-se com dificuldades internas insuperáveis.”
(FREUD, 2016c, p. 73, grifo do autor), as quais são responsáveis por fazê-las de
melancólicas e neuróticas ou de apresentar algum distúrbio psíquico até mesmo de
psicose.

Victoria Soller: um caso de neurose à Machado

Victoria Soller é a terceira mulher ilhada na cidade de Hatoum. Assim como as


duas já apresentadas nesta análise, ela também se vê destituída do objeto de desejo que
lhe é retirado e não aceita de forma parcimoniosa essa perda. Ela protagoniza o conto
Encontros na península. É uma catalã que contrata o narrador do conto para que o
mesmo ensine português a ela a fim de que ela possa ler a obra de Machado de Assis e
se vingar de seu amante português Soares, leitor de Eça de Queirós.
No decorrer do relato, ao narrador e ao leitor são apresentados os motivos
inusitados que levaram a mulher, apreciadora da leitura de Machado de Assis, a querer
saber sobre as ações das personagens machadianas e utilizá-las na vida real na tentativa
de criar estratégias de vinganças.

459
No fim do outono, depois de ter lido e relido Dom Casmurro, ela comentou:
Já se vês que os narradores de Machado são terríveis, irônicos, geniais. E o
homem era de fato culto. Cultíssimo, verdad? O século XIX francês é
pródigo de grandes prosadores. Mas como Machado de Assis pode ter
surgido no subúrbio do mundo? (HATOUM, 2009, p. 105)

Era uma leitora dedicada à obra machadiana e sua causa pessoal. E, é justamente
por essa motivação pessoal que faz com que esta análise a aproxima da manifestação
neurótica. Ela mantém desejos amorosos interditados por seu amante e não aceita a
rejeição e passa a criar situações, mesmo no plano da irrealidade, que poderiam ajudá-la
a confrontar seu amante, como querer entender como agem os personagens e narradores
de Machado de Assis e começar a agir de acordo com eles. As atitudes de Soller são
estranhas, inclusive por parte do narrador – quem representa alguém de fora da situação
de neurose que ela vivencia.

Mas, por que tu te interessas tanto por Machado? Ela ficou séria e me
encarou com os olhos grandes, da cor de açafrão. Desviei meu olhar e
observei num relance os ombros quase nus, mas claros que o alçafrão. Queres
mesmo saber? Por causa de Soares, meu amante português. É professor de
literatura brasileira? Não, mas é louco por Eça de Queirós. Ele disse que
Machado foi pérfido ao criticar cruelmente dois romances do escritor
português. Não sei se isso é verdade; sei que Soares não se conforma com
essas críticas, e até ficou exaltado quando perguntou: porque a dor física e a
miséria são menos aflitivas que a moral? Ele não se cansa de afirmar que Eça
é muito superior à Machado, que é o maior escritor brasileiro. Por isso eu
quis ler no original o rival de Eça. Coisas de amantes. (HATOUM, 2009, p.
106)

Soller acreditava que se ela conseguisse ser ou agir conforme uma das
personagens machadianas, ela não só iria comprovar que o amante estava correto
(Machado melhor que Eça), assim como também iria aumentar a fúria no seu amado,
porque ela se transformaria naquilo que ele odiaria, ou seja, esta seria uma forma dela
ainda viver nele ou ele pensar nela, mesmo que fosse por meio do sentimento oposto ao
início do relacionamento: o ódio.
Esse comportamento tático e delirante de Soller beira aos princípios neuróticos
freudianos, pois de acordo com Freud (2016b) a neurose é um distúrbio psíquico
causado por um recalque imperfeito, de desejos censurados no inconsciente e que agora
procuram meios de se manifestar. Esses meios acabam sendo justificados pelos

460
sintomas neuróticos, que no caso de Soller, ela descarrega sua pulsão motora na leitura
obsessiva da obra de Machado de Assis, para lá buscar soluções para sua crise amorosa.
A leitura machadiana se torna então, em uma máscara para contornar os disfarces
dos distúrbios neuróticos de Soller. Na concepção freudiana, os sintomas neuróticos
ocorrem porque o ego (de Soller) é incapaz de lidar com seus desejos sem sofrer algum
tipo de reação, como se sentir desprezada, abandonada e no final da narrativa, ela ainda
saberá que Soares é casado e tem uma mulher idosa e doente. Dessa forma, ela não
aceita o rompimento e nem as condições de que foi deixada e/ou trocada pelo amante.
Quando surgem em sua consciência fragmentos dessas lembranças vividas de desejos
recalcados, ela traz à tona toda a sua frustração vivida, procurando assim, um meio de
resolver este problema – para ela – ainda não resolvido. Para isso, ela tenta fazer da obra
machadiana “mecanismo de recalcamento; o recalcado luta contra esse destino, cria para
si próprio – por caminhos sobre os quais o Eu não tem nenhum poder –, um substituto
que impõe ao Eu pela via do compromisso.” (FREUD, 2016b, p. 272), isto é, da feita
que ela dominasse o comportamento das personagens de Machado, saberia usá-las ao
seu favor.
Soller em seu mundo inconsciente ainda consegue criar um laço de afetividade
com a realidade, e embora, às vezes, tenta trazer do recalcamento desejos e vontades
aprisionadas ao seu Eu real, esse “Eu, [vai] descobrindo sua unidade ameaçada e
prejudicada por esse intruso, prossegue na luta contra o sintoma, tal como o fez com a
moção pulsional original, e tudo isso produz o quadro da neurose.” (FREUD, 2016b, p.
272), enquanto ela não se livrar desse intruso (marcado no texto por Soares), ela não
poderá encontrar descanso ou cura.
Diferente das outras mulheres que impulsionaram suas emoções do Isso mais
intensas do que do Ego, através da morte provavelmente natural em Steinway e do
suicídio em Bárbara, Soller não intenciona se matar ou morrer, sua salvação e cura
poderá vir por meio da vingança. Soller assim como todo neurótico que se vê subtraído
de seu objeto de desejo, passa por momentos de recalcamento e embotamento afetivo do
Eu, autorrecrimina-se por ver seu Eu rebaixado pela troca em outra mulher, em sua
vaidade feminina vista como inferior a ela. Assim como as demais mulheres dessa
pesquisa, a neurose está associada à doença e à infelicidade; está relacionada a
frustrações e perdas, entretanto, a neurose de Soller não se semelha a de adoecimento

461
profundo do Eu como de Bárbara, bem como a uma melancolia de perda de objeto ideal
de Steinway, pode-se até afirmar que se há melancolia profunda em Bárbara, tons de
melancolia em Steinway, em Soller há momentos breves de melancolia, quase já
tendenciando ao luto na visão freudiana de “o luto, via de regra, é a reação à perda de
uma pessoa querida ou de uma abstração que esteja no lugar dela, como a pátria, a
liberdade, um ideal etc.” (FREUD, 2016a, p. 100). Essa abstração no caso de Victoria
Soller é substituída pelo desejo de vingança.
Nesse sentido, depreende-se que essas mulheres são ilhadas e estrangeiras nos
lugares externos em que se encontram (Bárbara do Rio de Janeiro em Paris, Steinway
em Manaus e Soller catalã em Portugal), assim como também estrangeiras dentro de si
mesmas, pois não conseguem equilibrar o Isso do mundo interno com o ego e o
superego do mundo social. Nesse viés, observa-se que a mais atormentada seja Bárbara,
por isso, compreende-se o término que ela mesma dá para si, Steinway é a mais tímida
nessa demonstração de sentimentos recalcados e recolhidos, enquanto que Victoria
Soller é que mais se conecta com a realidade, embora tenha seus momentos de delírios
justificados por sua causa maior: se vingar de quem a fez sofrer.

Considerações finais

Após a leitura dessas três mulheres a partir da teoria de Freud sobre neurose e
melancolia, conclui-se que a personagem – que se fosse real – apresentaria o caso
clínico mais patológico seria Bárbara. Ela representa nessa análise o melhor exemplo de
neurose obsessiva, uma vez que seu desejo ou pensamentos recalcados pelo ciúme,
abandono e perdão não permanecem de forma constante no seu inconsciente, pelo
contrário, é nítido em todas as suas ações no conto.
Steinway equivaleria a mais introvertida. Não há nela uma melancolia profunda
como há em Bárbara, também não se poderia dizer que Steinway viveria seu estado de
luto. Ela não enterra e nem recalca sua perda de objeto de desejo no Isso de forma a
deixar sua frustração longe da consciência, por isso, não se pode analisar a perda de
Steinway como um caso de luto. Nesse caminho, Soller se encaixaria como a mulher
ilhada que mais almeja um propósito e uma saída para suas frustrações: pela vingança.
O grau que há de melancolia em Victoria Soller é comedido. Sua autorrecriminação se

462
caracteriza não por sua destruição e rebaixamento de seu Eu como sucede as outras
duas. É evidente salientar que mesmo que Victoria Soller seja por hora a mais próxima
do uso de suas racionalidades e seu laço com a realidade seja mais forte que Bárbara e
Steinway, suas atitudes de querer ser ou agir como as personagens machadianas para se
vingar de seu amante a coloca no quadro de neurótica.
Logo, o que se conclui nesse trabalho sobre a leitura desses três contos curtos é
que essas três mulheres, mesmo que não estejam de fato inseridas na Manaus de
Hatoum, como a professora Steinway, estão tão perdidas de si mesmas, como se
estivesse dentro da imensidão floresta amazônica – metaforizando a grandiosidade da
floresta, elas estão ilhadas dentro de si desde que perderam a âncora que as apoiavam,
personificada pela presença dos homens – alvos de seus objetos de desejos.

Referências

FREUD, Sigmund. A perda da realidade na neurose e na psicose (1924). In: Neurose,


psicose, perversão. Trad. Maria Rita Salzano Moraes. Obras Incompletas de Freud.
Vol. 5. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.

FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia (1917). In: Neurose, psicose, perversão. Trad.
Maria Rita Salzano Moraes. Obras Incompletas de Freud. Vol. 5. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2016a.

FREUD, Sigmund. Neurose e Psicose (1924). In: Neurose, psicose, perversão. Trad.
Maria Rita Salzano Moraes. Obras Incompletas de Freud. Vol. 5. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2016b.

FREUD, Sigmund. Sobre tipos neuróticos de adoecimento (1912). In: Neurose, psicose,
perversão. Trad. Maria Rita Salzano Moraes. Obras Incompletas de Freud. Vol. 5. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2016c.

HATOUM, Milton. A cidade ilhada. 7ª reimp. São Paulo: Companhia das Letras,
2009.

LIMA, Luiz Costa. Melancolia e Literatura. São Paulo: Editora Unesp, 2017.

PICHOIS, Claude & ROUSSEAU, André M. Para uma Definição de Literatura


Comparada. Trad. Monique Balbuena. In: CARVALHAL, Tania Franco; COUTINHO,
Eduardo de Faria (Org). Literatura Comparada. Textos Fundadores. 2ª ed. São
Paulo: Rocco, 2011.

463
A LETRA INSTÁVEL E O SIGNO PERTURBADO N’O TAMBOR, DE GÜNTER
GRASS

Eider Madeiros (UFPB)1

Resumo: Em O tambor (1959), Oskar Matzerath, narrador não-confiável, descreve


reminiscências enquanto aguarda julgamento por homicídio em um sanatório. De baixa estatura
por vontade própria em não mais crescer desde o seu aniversário de três anos e por um talento
em gritar agudamente até fazer vidros estilhaçarem, o protagonista carrega consigo um tambor
que é mantido consigo durante boa parte dos acontecimentos que vivencia e que faz do enredo
uma mescla de constantes improbabilidades. Se valendo de alguns contributos da psicanálise
lacaniana, o presente trabalho visa lançar reflexões sobre a psicose no espectro do autismo e as
estratégias narrativas das figuras de linguagem como lugar comum das narrativas de insanidade.
Palavras-chave: Figuras de linguagem. Psicanálise. Narrador não confiável. Literatura do pós-guerra.
Günter Grass.

O presente ensaio busca lançar a reflexão em torno da temática da desrazão


psicótica à luz da psicanálise lacaniana, a partir do que ela possibilita de contributivo à
noção de letra e lalíngua diante da análise da personagem e da narrativa não-confiável
de Oskar Matzerath, protagonista do romance O tambor (1959), do escritor
danziguense/polonês Günter Grass. Nascido em 16 de outubro de 1927, Günter Wilhelm
Grass foi um autor premiado com o Nobel de Literatura em 1999, e escreveu a obra a
qual nos debruçamos em um conjunto de trilogia juntamente com O gato e o rato
(1961) e Anos de cão (1963). Em Descascando a cebola (2006), nove anos antes de seu
falecimento, o autor envolve-se na polêmica autobiográfica, por relatar o rufar juvenil
entre-guerras na Europa e afirmar de sua participação na Waffen-SS, departamento da
Schutzstaffel de proteção pessoal de Adolf Hitler no início do partido nazista alemão.
Essa ambientação psicológica de uma certa juventude nazista permeia o espaço da
maior parte da narrativa, oferecendo horizontes de alusão e estratégias geniais de
confrontamento histórico com o que carrega de confuso, perturbado e instável a
trajetória de Oskar e da Alemanha e Polônia no período da Segunda Guerra Mundial.
A obra é dividida em três partes, privilegiando os ambientes familiares em um
primeiro momento; em seguida, contempla o período em que o narrador sai de casa e
ingressa em uma trupe de circo durante o Terceiro Reich; e, por fim, demarca o lugar de
onde a narração memorialística se ambientará cronologicamente em um terceiro
momento, quando Oskar descreverá sua história a partir do sanatório em que está

1
Mestrando em Letras (PPGL, UFPB). Contato: eidermadeiros@gmail.com.

464
internado. Cabe destacar que as duas primeiras foram traduzidas por Volker Schlöndorff
para o cinema em 1979, produção bastante aclamada pela crítica e premiada.
De modo a caracterizar a obra a partir de alguns elementos de sua estrutura, é
importante frisar o conjunto de personagens, em especial os parentais e afetivos, mas
também por em cena que a narrativa é iniciada, para tentar dar conta de um estilo
próximo da loucura, em um hospício no tempo cronológico de 1952-54, remetendo
psicologicamente a reminiscências prévias ao próprio nascimento do narrador, que
ocorre em 1924. Sua chegada ao mundo ocorre de modo clariaudente, de maneira que já
se questiona a confiabilidade do discurso da normalidade sequencial dos fatos esperado
em um Bildungsroman.
Oskar assevera que já nasce sabendo de muito, ouvindo e interpretando o mundo
ao seu redor de maneira consciente. Posto o registro de como se desenrolaria seu futuro
de filho nascido homem, o menino se apega ao relato de sua mãe, no momento imediato
ao parto, de que aos três anos ganharia um tambor, enquanto que “um de seus pais”
indica seu destino de vendedor comercial como um inevitável projeto de vida. De modo
coincidente, ou na medida em que estabelece uma reviravolta sobre o controle deste
projeto, ao receber seu presente de aniversário, o tambor, Oskar decide, ao se jogar do
alto da escada da adega, não mais crescer, instituindo já um ato alusivo de foraclusão ao
que se desprendeu da lei paterna em sua direção.
A lei paterna, ou os Nomes-do-pai de Lacan, serve como princípio significante na
implementação de uma ordem à linguagem do sujeito, para a psicanálise. Foracluir, ou
perfurar o significante fálico da lei paterna, é uma ação que desencadeia, pelo sujeito, a
uma passagem à dimensão psicótica, destituindo-o de uma capacidade de manter-se sob
a cadeia do recalcamento, via fundamental da relação ordenada dele para com o outro e
dissociativa dele desde o Outro. Deixar prescrever a entrada desta lei é tornar mais
complexa a ruptura fusional da identidade muito centrada em si mesma que dota a
psicose enquanto estrutura do inconsciente.
Há “dois pais” na narrativa de Oskar, estabelecidas pelas personagens de Alfred
Matzerath e Jan Bronski. Elas são por si mesmas enredadas por presunção ou
sobreposição, indicando uma nebulosidade na formação triangular de um teatro edípico,
por exemplo. A mãe suicida Agnes Koljaiczek, ou a matriarca avó Anna Koljaiczek
Bronski subsomem os possíveis papéis maternos e não determinam de maneira precisa

465
uma função de todo castradora. Assim, o teatro familiar é rarefeito e nos leva a observá-
lo como um cenário propício para a formação de um signo perturbado à constituição do
self de Oskar. Ainda que dada por arbitrária escolha, a incapacidade de entender a
dinâmica do mundo adulto no qual está inserido, faz com que o protagonista se
enclausure em outra dinâmica para si mesmo. Esse si de Oskar é, por vezes, descrito
como sendo o próprio tambor; objeto que supõe um apoio a essa conexão com o mundo
externo, seja lá como ele possa ser.
É por essas vias que lançamos a hipótese de que Oskar apresenta configurações de
um sujeito autista, habitante de um universo peculiar somente seu. Nessa esteira, se dá
um desafio em complementar o que traz a narratologia e a clínica psicanalítica no que
concerne a inscrição de um falasser ou de uma letra que parta da noção astuciosa de um
narrador em seu canal precário, pouco ou nada confiável, mas não menos relevante, de
contato com o que está no discurso neurótico civilizacional que resta para além de seu
mundo particular.
A compreensão junto ao autismo é complexa se levarmos em consideração sua
espectralidade diagnóstica nas psicopatologias e suas implicações no obstáculo para se
determinar o lugar desses sujeitos na formação de seus próprios eus. Segundo Soler:

A distinção entre a neurose que entra no discurso e a psicose fora do discurso


– estando ambos dentro da linguagem – corrobora a definição feita por
Lacan, a partir do Seminário 11, entre as duas operações de causação do
sujeito: a alienação e a psicose. À indagação sobre como situar essa segunda
distinção, alienação-separação, com respeito à distinção dentro-do-
discurso/fora-do-discurso, podemos responder de imediato que a inscrição
num discurso pressupõe a operação de separação. Se a inscrição num
discurso é condicionada por essa operação de separação, ela, por sua vez,
condicionada pelo Nome-do-Pai, cabe dizer que o fora-do-discurso da
psicose pode combinar com sua instalação no campo da alienação. A questão,
nesse caso, é a do autismo. Esclareço desde logo que não creio na existência
de um autismo puro; [...] o autismo é um pólo. Feita essa restrição, podemos
situar o autismo num aquém da alienação: uma recusa a entrar nela, um
“deter-se na borda”. (SOLER, 2007, p. 63).

Atendo-se, diríamos assim, a uma economia contingente de deter-se na borda da


linguagem, as posições autísticas que escapam de uma noção de pureza permitem que
observemos Oskar como um sujeito localizado nessa conjuntura, visto que elabora uma
dinâmica de comunicação a partir do tambor que ele toca em ocasiões que demandam
alguma significação, assim como usa de seu grito estridente para demarcar uma posição

466
de incômodo com a alteridade, invasora de praxe em toda e qualquer estruturação do
plano inconsciente.
Isso nos leva a pensar que, na medida em que se ausenta a figura paterna,
inclusive nesse processo de autoisolamento, o que funde Oskar a seu tambor e a seus
gritos é, justamente, a permanência nessa linha porosa de fronteira com a linguagem,
como se estivéssemos diante de uma dinâmica que nega a lei e se estaciona no que dela
se furou. Metaforicamente, o tambor que fura/é furado pelo uso incessante de Oskar em
sua relação simbiótica com este objeto, é sempre substituído, levando-nos a crer que até
o furo permanente, que enrijeceria a “pureza” psicótica, também lhe falta. Se observaria,
daí, uma retenção no “quase”, em um presque-je que, se não o fosse, se anunciaria em
um verbo, distanciando-se consideravelmente de sua posição confusa e fugidia. A
integração a um estado de unidade entre id (Es), ego (Ich) e superego (Überich), a um
número um (1) que se remetesse a solidez (+1) ainda que menos faltosa (-1) de um ego
(Ich em Freud, moi em Lacan) que não o lançasse ao dentro-fora, donde se reconheceria
o outro como todo, reduziria a linguagem autística de sua apropriação calculadamente
fria, cifrada e presa no limiar ardiloso da figuratividade sem filtro. Narra assim Oskar:

Acabo de reler o último parágrafo. Se não me satisfaz por completo, deveria


satisfazer ao menos à pena de Oskar, já que ela conseguiu, sem mentir
abertamente, enxergar concisa e brevemente, dar dos fatos um resumo
deliberadamente breve e conciso. [...]
Nunca, nem mesmo nesses dias de maior propensão à autoindulgência, posso
negar: foi meu tambor, não, fui eu mesmo. Oskar, o tambor, quem despachou
para a tumba primeiro minha pobre mãe, depois Jan Bronski, meu tio e pai.
(GRASS, 2017, p. 252-3).

Na contínua materialidade de sua narrativa, o protagonista de O tambor encontra


uma saída na inscrição pela letra, isto é, por aquilo que Lacan atribui ao ato de grafar o
que é do domínio de todo ente falante. O atribulado contexto do pós-guerra é
formidável para esta demarcação narrativa sutil entre realidade e escrita ficcional.
Oskar, narrador não-confiável, se mostra envolto em absurdas marcas e implicações
intersubjetivas próprias de seu estado de “quase” envolvimento com o que se passava na
Europa. A instabilidade dessa inscrição é notória pelos apegos a padrões e fragmentos,
pelo hiperfoco em elementos despretensiosos do cenário ao redor, repleto de tensões.
O espectro e a posição autistas encontram terreno de desafio categórico clínico ao
usar da letra para a condução ou aproximação à neurose através das figuras de

467
linguagem. Estes sintomas de Oskar nos parecem, até certo ponto, exemplos de que a
metonímia do inconsciente se alia, nos casos de autismo menos severo, à prosódia, a
sonoridades, à música, à lalíngua para romper seu completo isolamento.
Tomando a onomatopeia como um índice fundamental do conceito de lalíngua,
Lacan (1974) aproxima-o do trabalho de linguagem que nos dimensiona todos em um
terreno comum de partilha com a estruturação do inconsciente como uma linguagem. O
desafio do psicanalista, nessa substituição e remessa às cenas faltantes durante a análise
para com os sujeitos autistas, é o de reconhecê-los na alienação do fora-do-(per)discurso
psicótico, e de que a linguagem ecolálica (lalação derivativa da lalíngua arcaica e
familiar) pode servir como via material de alternativa comunicante, visto que, malgrado
o desafio, há ali um sujeito. “Não há letra sem lalíngua, é mesmo esse o problema,
como é que lalíngua pode precipitar-se na letra?” (LACAN, 1974, p. 95).
Uma cena peculiar que ilustra essa perspectiva pode ser observada na narração de
Oskar na última parte do livro, quando ele relata:

Durante os primeiros bombardeios aéreos de fins de janeiro, Matzerath e o


velho Heilandt ainda reuniam suas forças para transportar mamãe Truczinski
e sua cadeira para a adega. Mas depois, a pedido seu ou para evitar o
trabalho, começaram a deixá-la em sua casa, junto da janela. E depois do
grande bombardeio do centro da cidade Matzerath e Maria encontraram a
pobre anciã com o maxilar inferior pendente e um olhar tão convulso que
parecia que tinha se enfiado em seu olho um mosquito pegajoso. [...]
O velho queria fazer a coisa depressa e confeccionar uma simples caixa sem
estreitamento em direção aos pés. Oskar, porém, era partidário da forma
tradicional dos caixões e pôs tão resolutamente as tábuas debaixo da serra
que ele acabou se decidindo pelo estreitamento a que todo cadáver humano
tem direito.
Uma vez terminado, o caixão tinha muito bom aspecto. Lina Greff lavou o
corpo de mamãe Truczinski, cortou-lhe as unhas, pegou no armário uma
camisola limpa, arranjou e prendeu o coque com três agulhas de tricô, em
suma, fez todo o possível para que na morte mamãe Truczinski continuasse
parecendo uma ratinha cinzenta que em vida gostava muito de tomar café e
de comer purê de batata.
Mas como durante o ataque aéreo a ratinha sentada enrijecera e agora suas
pernas estavam dobradas e os joelhos levantados, o velho Heilandt,
aproveitando um momento em que Maria saiu do quarto com o pequeno Kurt
no colo, teve de fraturar-lhes as pernas, a fim de poder pregar a tampa.
Infelizmente não havia tinha preta, só amarela. Por isso é que a mamãe
Truczinski foi levada pelas escadas dentro de tábuas sem pintura, mas pelo
menos estreitando-se em direção aos pés. Oskar e seu tambor fechavam o
cortejo e eu podia contemplar a tampa do caixão em que se lia três vezes e a
intervalos regulares: Margarina Vitello, Margarina Vitello, Margarina
Vitello, o que vinha confirmar postumamente o gosto de mamãe Truczinski,
que em vida sempre preferira a margarina vegeral Vitello à melhor manteiga:
porque a margarina é saudável, se conserva fresca, alimenta e alegra o
coração. (GRASS, 2017, p. 396-397).

468
Os detalhes trazidos jogam com a ordinariedade das mortes na iminente queda do
nazismo, mas usam de uma técnica hiperfocada para destoar do que corroboraria uma
afetação ou comprometimento emocional diante da cena. Descrever caracteres da
mamãe Truczinski e do caixão artesanal exprime o registro da letra a partir de uma voz
narrativa concentrada em repetições e de um olhar figurativo da disposição da
linguagem.
Em certa medida, a abertura a um gozo “autístico” de fazer letra de sua história e
da concomitante figuratividade na linguagem do protagonista podem ser vistas como
um alheamento diante da tensa pressão do mundo em que ele vive, como uma fuga a um
universo paralelo, altamente introjetado em si mesmo, em um espectro de fechamento
ao reflexo e à diferença.
Tais ações se manifestam como meios apropriados de expressão tanto para o
narrador não-confiável como para um narrador autorreconhecidamente insano. Segundo
Biebuyck (2009, p. 335), “apesar das metáforas, metonímias, sinédoques e oximoros
operarem predominantemente dentro da estrutura de provocação, dominação e omissão,
elas também deixam espaço para um desvelamento máximo de reciprocidade e
intercâmbio.” Em “Alocução sobre as psicoses da criança” (2003), Lacan sugere que o
psicótico se impõe como o sinal, sinal como impasse, daquilo que legitima a referência
à liberdade.
O tambor e Oskar, nas linhas oximóricas da narrativa do protagonista que
constituem o romance, revelam que o que estaria para ser narrado acaba não sendo o
que termina por ser narrado. A direção dos discursos, inclusive o psicótico, não seria,
em maior ou menor grau, um entrelaçamento da voz tão menos objetivo? Como o
próprio protagonista divaga em uma dupla terceirização da pessoa verbal, após trocar
afetos com Maria, futura mãe de seu “filho” Kurt, e compará-la às musas clássicas.
“Estranhamente, eu esperava mais estímulos da literatura que da vida nua, real”.
(GRASS, p. 285).
Em seu disfarce maior como obra literária, as consequências do tamborilar e do
grito incessantes retratados na obra de Grass em volta do pós-guerra na memória, na
verdade e, principalmente, na escrita da história e das ficções que sacudiram a
subjetividade humana em virtude da Segunda Grande Guerra, lança-nos a pergunta: em

469
nome de que verdade descansa o limiar que separa o mal-estar da civilização de cada
neurótico em sociedade, daquela mazela coletiva da posição psicótica espectral de
simbolização que, em seus delírios, também possui a “sua verdade” convicta e
eliminatória, negadora da existência do outro?
A morte dos pais, em decorrência do capricho apegado ao tambor com Jan e a
devolutiva do broche com Alfred, pressupõe um deslizamento para com a ordem da lei
paterna que muito indica da ousadia em romper ao limite máximo da loucura, até a
capacidade de um sujeito autista, narrador não-confiável, de absorver a banalidade do
mal, por não temer as retaliações de uma castração no horizonte.
Por outro lado, o fechamento alheio ao mundo circundante, em contraste livre
com o delírio coletivo do Terceiro Reich, pode ser observado na figura alegórica da
morte, que Oskar denomina de A Bruxa Negra, para estabelecer uma fronteira entre
memória seletiva e a memória da barbárie. Se o enredo protagonizado por Oskar faz
bifurcar as representações da insanidade e de seus espectros na literatura alemã moderna
para outros rumos, não teríamos a mesma vulnerabilidade de deter-se nas bordas e, em
defesa de universos imaginados muito peculiarmente partilhados, degenerar a história
da humanidade em nome de desrazões das mais obscuras, pelas quais somos capazes de
fazer coro, entoar gritos de guerra, seguir em cortejo ressoando nossos tambores? A
marcha da história é repetitiva, e seu ritmo pressupõe um gozo pelo retorno que segue a
batida íntima e coletiva de muitos corações, tão instáveis e perturbados pelo rufar
daquela, que, por vezes, escolhem, em um brado retumbante, permanecerem apegadas
aos desvairos de suas eternas infantilidades.

Referências
BERNAERTS, Lars; HERMAN, Luc; VERVAECK, Bart. (org.). Madness in fiction.
Style, State College, PA, EUA, v. 43, n. 3, p. 283-et seq., fall 2009.

BIEBUYCK, Benjamin. Acting figuratively, telling tropically: figures of insanity in


Günter Grass's Die Blechtrommel. Style, State College, PA, EUA, v. 43, n. 3, p. 322-
340, fall 2009.

GRASS, Günter. O tambor. 23. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017.

LACAN, Jacques. Alla Scuola Freudiana. 1974. Disponível em: http://ecole-


lacanienne.net/wp-content/uploads/2016/04/30-03-1974.pdf. Acesso em: 13 mar. 2019.

470
LACAN, Jacques. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In:
LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 496-553.

LACAN, Jacques. Alocução sobre as psicoses da criança. In: LACAN, Jacques. Outros
escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 361-371.

LACAN, Jacques. Conferência em Genebra sobre o sintoma. Opção lacaniana, São


Paulo, n. 23, p. 6-16, 1998.

LACAN, Jacques. O estádio de espelho como formador da função do eu. In: LACAN,
Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 96-103.

PACHECO, Ana Laura Prates. Oskar: o astuto ignorante. A peste, São Paulo, v. 4, n. 2,
p. 93-97, jul./dez. 2012.

SOLER, Colette. Autismo e paranoia. In: SOLER, Colette. O inconsciente a céu aberto
da psicose. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. p. 63-80.

VIANA, Beatriz Alves; FURTADO, Luis Achilles Rodrigues; VIEIRA, Camilla Araújo
Lopes; STERVINOU, Adeline Annelyse Marie. A dimensão musical de lalíngua e seus
efeitos na prática com crianças autistas. Psicologia USP, São Paulo, v. 28, n. 3, p. 337-
345, 2017.

471
FLUXO DE CONSCIÊNCIA EM AFONSO CONTÍNUO, SANTO DE ALTAR: A
CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA POR MEIO DE ASPECTOS
PSICOLÓGICOS DA PERSONAGEM PRINCIPAL.

Gleice Reis (UFPA) 1

Resumo: A relevância de um estudo como este está na valorização de nossos autores amazônicos
que mesmo falando sobre sua terra desenvolveram em suas obras temas extremamente universais.
O objetivo geral deste artigo é analisar a construção da narrativa por meio de aspectos
psicológicos da personagem Afonso Romano sob os preceitos da crítica psicanalítica e a
perspectiva do fluxo de consciência buscando compreender as significações e os temas que podem
ser extraídos nesse processo de construção de uma consciência em conflito. Assim, sob esse
enfoque, no romance de Lindanor Celina, Afonso Contínuo, Santo de Altar, o assunto principal é
a consciência do narrador personagem.
Palavras-chave: Crítica psicanalítica; Fluxo de consciência; Lindanor Celina.

1. Introdução

Em prefácio ao romance Afonso contínuo, Santo de Altar, Bruno Palma nos dá


pistas sobre o fluxo de consciência sobre o qual é construída a narrativa de Lindanor
Celina:

O estilo de Lindanor Celina, como bem havia notado a crítica (Dalcídio


Jurandir, Rolmes Barbosa), se distingue pela fluência e a vivacidade. Seguindo
agora, em Afonso Contínuo, Santo de Altar, o fluxo da consciência (o cavalo
desembestado do pensamento), em que tempo, espaço, situações, se
desagregam e recompõem ao sabor de associações que seguem a “lógica” da
memória, seu texto flui naturalmente, sem divisão de capítulos, disposto em
parágrafos começados por minúsculas, num ritmo rápido, vivo, ofegante
mesmo às vezes. (IN: CELINA, 1986).

O objetivo geral deste artigo é analisar a construção da narrativa por meio de


aspectos psicológicos da personagem Afonso Romano sob os preceitos da crítica
psicanalítica e a perspectiva do fluxo de consciência, buscando compreender as
significações e os temas que podem ser extraídos nesse processo de construção de uma
consciência em conflito.
A relevância de um estudo como este está na valorização de nossos autores
amazônicos que mesmo falando sobre sua terra desenvolveram em suas obras temas
extremamente universais, pois conforme explicita Bruno Palma em prefácio ao livro

1
Mestranda em Letras. Contato: gleicereis25@gmail.com.

472
Afonso contínuo, Santo de Altar: “Lindanor Celina foge às armadilhas do regionalismo.
Embora o romance se passe em Belém do Pará, e o essencial da ação transcorra no
Tribunal de Justiça dessa cidade, isto é apenas uma ‘amostra do mundo’”.
Nesse sentido, Lindanor Celina equipara-se, em termos de técnicas literárias, com
grandes nomes da literatura universal como Virgínia Woolf e James Joyce ao utilizar a
técnica do fluxo de consciência. Assim, suas obras merecem um olhar atento a estas
técnicas como forma de valorização de seu trabalho.

2. A crítica psicanalítica e o fluxo da consciência.

De acordo com o E-dicionário de Termos Literários2, Freud diz ser a Literatura “a


melhor fonte de formação para a clínica psicanalítica do que os estudos médicos”. A partir
dessa constatação, verificamos a estreita ligação entre Literatura e Psicanálise. Assim
como a Psicanálise foi buscar na Literatura material para suas análises, a Literatura
absorveu da Psicanálise, bem como da Psicologia em geral, métodos e termos, como é o
caso da crítica psicanalítica e do fluxo de consciência.
De acordo com Eagleton (1983), a crítica psicanalítica “pode nos dizer alguma
coisa sobre a maneira pela qual os textos literários se formam, e revelar alguma coisa
sobre o significado dessa formação.” Ainda conforme Eagleton (1983), a crítica
psicanalítica pode ser dividida em quatro tipos dependendo do objeto de estudo, pois ela
pode se voltar para o autor da obra, para a construção formal, para o conteúdo ou para o
leitor. Comumente, os estudos críticos psicanalíticos têm-se voltado em sua grande
maioria para o autor da obra e para o conteúdo.
Neste trabalho, a análise é feita levando-se em consideração tanto a construção
formal quanto o conteúdo, pois para a compreensão da construção da narrativa por meio
do fluxo de consciência não há a possibilidade de separação destes dois aspectos. O termo
“fluxo de consciência”, cunhado pelo psicólogo William James foi absorvido pela
literatura, dos estudos da psicologia, para definir escritos que possuem como maior
característica a construção da narrativa por meio de aspectos psicológicos das

2
BELO, Maria. “Crítica psicanalítica”, E-Dicionário de Termos Literários (EDTL), coord. de Carlos
Ceia, ISBN: 989-20-0088-9, http://www.edtl.com.pt, consultado em 22-01-2019.

473
personagens. Trazido para a Literatura, o conceito de fluxo de consciência vai muito além
do que foi pensado e descrito por James nos estudos psicológicos, pois, conforme
Humphrey, em Literatura a:

“Consciência indica toda a área de atenção mental, do pré-consciente até os


níveis superiores, incluso o mais racional, comunicável e consciente. E conclui
que: Por ‘consciência', então, eu defino toda a área do processo mental,
incluindo o nível pré-discursivo especialmente. O termo ‘psique' uso como
sinônimo para ‘consciência' e, em alguns momentos, a palavra ‘mente' servirá
como outro sinônimo.” (HUMPHREY, 1976, p. 03)

Para Humphrey (1976) “podemos definir o fluxo de consciência ficcional como


um tipo de ficção no qual a ênfase básica está na exploração dos níveis de consciência
pré - discursivos, com o propósito, principalmente, de revelar o ser psíquico dos
personagens.” Sendo assim, o fluxo de consciência em Literatura, estaria muito mais
próximo dos estudos freudianos e da crítica psicanalítica, já que, conforme explicita
Oliveira 3:

A teoria da literatura se apropriou das palavras de James e as utilizou para


definir um tipo de ficção que considera a psique humana como tema central.
Esta proposta ficcional da literatura psicológica concilia a teoria de James aos
pressupostos freudianos na criação do que poderia ser a linguagem das
camadas mais profundas da mente quando transformadas em matéria
discursiva. O fluxo de consciência torna-se, então, algo que amplia a noção de
consciência e insere muito mais do que a atividade consciente, numa
modificação substancial no entendimento do fluxo e do que seja a própria
consciência, que se conforma a novos pressupostos.

Sendo assim, em virtude da abrangência do termo consciência, a análise do


método “fluxo de consciência” tem sido constantemente relacionada à psicanálise de
Freud bem como à filosofia de Bergson, pois ambos estudaram a fundo o processo
psíquico da consciência. Para Freud (1996), a consciência “é o resultado da renúncia
instintiva, ou que a renúncia instintiva [...] cria a consciência, a qual então exige mais
renúncias instintivas.”

3
OLIVEIRA, Ângela Francisca Almeida de. FLUXO DE CONSCIÊNCIA, PSICOLOGIA,
LITERATURA, TEATRO: UM INÍCIO DE CONVERSA. UFRGS: Cena em movimento. 2009. Edição
n. 1. Disponível em: https://seer.ufrgs.br. Acesso em: 22-01-2019.

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No livro Mal-estar na civilização (1996), Freud chama a atenção para os
sacrifícios que o homem precisa fazer para se viver em sociedade, ou seja, para as
renúncias à satisfação de algumas necessidades instintivas. Na Psicanálise de Freud, a
consciência não aparece como um conceito bem definido, ela é, sobretudo, um processo
em permanente construção e nela encontra-se uma luta constante entre desejo e renúncia,
satisfação e frustração, etc. Segundo Norman Brown (1974), “sob a nova perspectiva
freudiana, a essência da sociedade é a repressão do indivíduo, e a essência do indivíduo
é a repressão de si mesmo.”
Percebemos esse processo dual de uma consciência em conflito no romance
Afonso Contínuo, Santo de Altar de Lindanor Celina.

3. Fluxo de Consciência em Afonso Contínuo, Santo de Altar: A construção da


narrativa por meio de aspectos psicológicos da personagem principal.
O romance é ambientado na cidade de Belém, no estado do Pará e a narrativa se
desenrola quase toda dentro do Tribunal de Justiça. “Seu Afonso”, a personagem
principal, trabalha no tribunal como “contínuo”, espécie de “faz tudo”, assim, pode
conviver e conhecer todos os demais empregados do lugar. Por alguns possui elevada
estima, como D. Clara, já a outros tece duras críticas, como ao Consciença e à Dona
Merência.
Além desses sentimentos individuais, ou seja, uma forte subjetividade presente no
romance, percebemos um tom severamente crítico a alguns comportamentos sociais
representados, principalmente, por Consciença, “o padre lá de casa” e Merência.
Afonso fala com desaprovação sobre o comportamento de Consciença, o “Homem
Presidente” do Tribunal, constantemente, na manifestação de seus pensamentos, fala da
hipocrisia e da imoralidade, traços presentes tanto em Consciença, quanto no “padre lá de
casa”, o que observamos neste trecho da obra:

Consciença comunga todos os domingos, é o mais canção-de-fogo, parece que


fica é pior, dantes eram só os pecados do Purgatório (...) ainda sai espalhando
lambança, também acha quem ouça: Ô Afonso, me ensina um remédio pra
levantar o pau, arre que estou de pomba roxa!” (...) me diga, um Presidente que
chega e diz às suas subordinadas: Arre, meninas, que estou de pomba roxa!
(CELINA, 1986, p. 21)

475
Lindanor Celina, neste romance, construiu uma personagem bastante complexa
que por meio do foco narrativo centrado na onisciência seletiva 4 promove um fluxo de
consciência pelo meio do qual vai nos revelando sua vida, seus sentimentos,
ressentimentos e mágoas.
Afonso Romano de Sant’ana é órfão, sua mãe morreu no parto e esse fato desperta
nele uma comoção inexplicável, como ele próprio diz, dói ouvir essa história, rememorar,
mas ele gosta, é uma dor acalentadora ouvir sua madrinha contar a história:

Ah essa história eu amo, me dá que nem um choro por dentro, sei que vai doer,
mas é que quase como os porcos na laranja azeda, ou o menino no bico do peito
apimentado, dói, dói, mas eu quero, demais, dói, quem pode imaginar, nunca
vou poder desabafar, ninguém para eu contar, ninguém que se interesse
mesmo, se compadeça, chore comigo. (CELINA, 1986, p. 43)

Além disso, Afonso vive um drama de consciência ao se perguntar o tempo todo


se merece a alcunha de santo, conforme podemos verificar no trecho abaixo:

Mas eu queria tanto, antes de envelhecer de vez, ficar melhor do que sou. Não
estou contente com o que sou. Em toda a minha vida, fiz algum bem que
mereça relato? - É só quereres, te digo, tu és santo de altar, é só almejares isso
vivamente, de todo coração (...) – Mas com toda esta carga de pecados, Senhor
Bispo? – Senhor fala uma verdade ou está me experimentando ou quem sabe,
com perdão de vossa Reverendíssima, querendo tirar graça comigo? – Não,
Afonso Romano, te digo, eu que conheço a alma das gentes: tu és bom. ”
(CELINA, p. 61, 1986).

“Seu Afonso” é considerado por todos um homem bom, devotado, um santo,


porém ele vive se questionando se merece esta alcunha, já que se pergunta se realmente
já fez algo importante em sua vida que fosse uma atitude santificadora que merecesse esse
título. A personalidade de Afonso, seus sentimentos mais profundos, são apresentados ao
leitor com riqueza de detalhes, provocando-o a refletir a própria indagação da personagem
e o que diríamos afinal? Afonso Romano é mesmo um “Santo de Altar”?

4
Um dos métodos de “transmissão da história” ou foco narrativo segundo a classificação proposta por
Norman Friedman (1955, apud CARVALHO, 1981) em que “os fatos são apresentados não como o autor
os vê, mas como o personagem os sente, numa sequência cênica. ”

476
Na maioria das vezes essas contestações aparecem por meio dos pensamentos da
personagem principal, pois Lindanor Celina constrói por meio de sua narrativa, um fluxo
de consciência que leva o leitor a uma profunda reflexão de temas universais como a
hipocrisia, o preconceito, a diferença de classes, assim como dilemas existenciais, ou seja,
as dores próprias do ser humano.
Uma definição bastante importante feita por Robert Humphrey (1954) e que
permite-nos analisar a construção da personagem Afonso Romano por meio do fluxo de
consciência é a de que neste tipo de ficção “a ênfase principal é posta na exploração dos
níveis de consciência que antecedem a fala com a finalidade de revelar, antes de mais
nada, o estado psíquico das personagens.
Assim, sob essa perspectiva, no romance de Lindanor Celina, AFONSO
CONTÍNUO, Santo de Altar, o assunto principal é a consciência da personagem Afonso
Romano, como podemos constatar no trecho abaixo:

(...) que tu com tua língua do inferno, ô Afonso, mui malignamente apelidaste
de Purgatório: mulher que deseja ganho de causa na Justiça, tem de passar pelo
Purgatório, é o preço, bate na boca, Afonso, tu que pretendes ser íntegro, te
atreves a apontar culpas de quem, me diz! Eu sei, bato no peito, quero me
corrigir, mas cadê, não sou santo, santo de altar é que só tem boca e pensamento
limpo, eu não passo de um pecador, então me deixa, consciência, (...)
(CELINA, 1986, p. 10)

O fluxo de consciência no romance permite uma descontinuidade do momento


presente, em que se dá a cena, sendo possível a coexistência de tempos distintos, como
se vê no trecho abaixo:

-O senhor dava para padre, seu Afonso [...] – Morando com religioso, nunca
lhe deu assim uma vocação, um dia?
Como lhe dizer que justamente porque vivo com um certo padre é que me
enfarei de batina? [...] Esse que acabou de me criar, no começo ainda
disfarçava [...] quando elas telefonavam, fazia de conta que se tratava de outra
coisa. Nessas noites, pelas tantas, portão rangia, [...] ia tudo lá pra cima, [...] e
era mais de uma, quantas?, não sei, meu Deus, não devo julgar, mas aquilo
para mim era demais [...] (CELINA, 1986, p. 18, grifo meu)

Vê-se no trecho acima que por meio de uma memória relembrada durante uma
conversa entre a personagem principal e uma personagem secundária, a consciência de
Afonso traz uma explicação, aos olhos do leitor, do motivo que o teria levado a não seguir

477
a vocação religiosa, assim, a consciência agiu nessa ocasião com sua luz a iluminar
acontecimentos do passado da personagem que afetam diretamente em seu presente e de
certa forma justificam suas escolhas e até mesmo sua maneira de pensar, já que
constantemente, no romance, vê-se essa volta ao passado em busca de memórias que
afetam o presente de Afonso.
Percebemos durante a leitura do romance uma consciência atormentada entre o
prazer da satisfação dos instintos e a culpa por essa realização, fazendo com que a
personagem reprima alguns de seus desejos e não revele os atos que julga serem
“imundos” de acordo com as palavras da própria personagem, pois teme a desaprovação
da sociedade e a punição divina, como percebemos no trecho:

Reze, seu Afonso, o senhor é uma criatura de Deus, peça pelo meu filhinho”
[...] ela visse a cor da minha alma, negrinha, quando saio daquela casa. [...]
Isso é muito complicado, bom é quando escuto Padre Zefireli, aí tudo fica fácil,
até o remorso, a vergonha se apagam. [...] depois me emaranho todo, não sei
me livrar da tentação nem da culpa. (CELINA, p. 19, 1986).

Referências

BERGSON, Henri. Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. Lisboa: Edições


70, 1926.
CARVALHO, Alfredo Leme Coelho de. Foco narrativo e fluxo de consciência:
questões de teoria literária. São Paulo: Pioneira, 1981.
CELINA, Lindanor. Afonso contínuo, Santo de Altar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1986.
CULLER, Jonathan. Teoria Literária – uma introdução. São Paulo: Beca Produções
Culturais Ltda, 1999.
EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. São Paulo: Martins
Fontes, 1983.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. In: Obras psicológicas. Rio de Janeiro:
Imago, v. XXI, 1996.

478
HUMPHREY. Robert. O fluxo da consciência: um estudo sobre James Joyce, Virginia
Woolf, Dorothy Richardson, William Faulkner e outros. São Paulo: McGraw-Hill do
Brasil, 1976.
LEITE, Dante Moreira. Psicologia e Literatura. São Paulo: Editora Nacional, 1977.
MOISÉS. Massaud. A análise literária. São Paulo: Cultrix, 2008.

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QUANDO A PATERNIDADE PRECARIZA A CASTRAÇÃO:
Ruídos da Onipotência, em “Reunião de Família”, de Lya Luft

Heuthelma Ribeiro Braga Santos (Mestranda/ UFPB) 1


Orientador: Hermano de Franca Rodrigues (Doutor em Letras/ UFPB)2

Resumo: O presente trabalho, numa interface entre Psicanalise e Literatura, pretende analisar a
importância da função paterna na constituição do sujeito, observando o romance Reunião de
Família, da escritora Lya Luft, publicado em 1982. Ciente de que o ser humano se constitui na
relação com o Outro e que nessa instância o pai tem um papel fundamental, recorreremos aos
estudos da teoria psicanalítica, desenvolvidos por Sigmund Freud (1856-1939) e Jacques Lacan
(1901-1981).

Palavras-chave: Função Paterna; Literatura; Psicanálise.

1. Introdução

Na cultura ocidentalizada, a construção do saber evidencia uma tensão entre o


imaginário e o racional. Mitologia, Filosofia, Religião, Arte e Ciência representam
campos do saber que tecem fios condutores para construir conhecimento e explicar o
mundo. A construção desses fios que permitem entrelaçar áreas do saber em torno de um
mesmo objeto de pesquisa perpassa pela interface entre disciplinas.
A interdisciplinaridade é um terreno fecundo para germinar pesquisas que dão conta
de estabelecer um diálogo crítico e criativo entre Arte e a Ciência, em um único arcabouço
conceitual que entrelaça Literatura e Psicanálise. A interdisciplinaridade baseia-se na
estrutura comum ou mecanismos comuns das disciplinas e, inclusive, possibilita que
métodos comuns sejam recorrentes em saberes distintos.
Da oralidade ao texto escrito, a linguagem literária e os relatos psicanalíticos
encontram, no imaginário, no inconsciente, nas metáforas e nas imagens, dimensões
conceituais que dão conta de explicar o inconsciente através da consciência. Ao tratar dos
limites e admissões da interdisciplinaridade entre Psicanálise e Literatura, é importante
destacar a figura de Sigmund Freud, ao considerar que a literatura é um campo de análise
da subjetividade e a psicanálise é, nesse sentido, de natureza hermenêutica, ou seja, um
saber interpretativo.

1
Mestranda em Literatura e Psicanalise (UFPB) Contato: heuthelmabraga@hotmail.com
2
DrDoutor em Letras (UFPB) Contato: hermanorgmail.com

480
A partir de Freud, a ciência é direcionada para realizar uma nova análise em relação
ao sujeito, o inconsciente. Na busca pela construção da gênese estrutural do sujeito, Freud
extrapolou os limites conceituais e as amarras epistemológicas da ciência positivista, pois
seu interesse recaia nas ambivalências, desvios, disfarces, ocultamentos e revelações.
O presente trabalho, numa interface entre Psicanálise e Literatura, pretende analisar
a importância da função paterna para a constituição do sujeito, no romance Reunião de
Família, da escritora Lya Luft, publicado em 1982.
O sujeito se constitui na relação com o Outro, e nesse processo, o pai tem um papel
primordial, exercendo sua função de forma satisfatória, negligente, frágil ou severa. Na
obra que iremos analisar, o pai aparece numa postura autoritária, agressiva, com atitudes
que chegam a ser consideradas perversas.
Na ficção luftiana, o corpo familiar aparece, por vezes, envolto nas brumas dos
desajustes psíquicos, na impotência frente aos problemas, que conduzem os personagens
a assumirem rotas turvas, suscetíveis de apagarem suas responsabilidades. Tal conjectura
carreia-se por certo determinismo: filhos estilhaçados, emocionalmente, estabelecem, em
geral, vínculos rarefeitos; vivenciam experiências empobrecidas e sentem dificuldades de
manter uma diferenciação equilibrada.
Nesse romance, o núcleo filial pouco sabe sobre sua origem, a não ser aquilo que o
patriarca delibera, como, por exemplo, a morte da esposa e os dizeres protetorais da
empregada. O Pai, essa figura imponente, sem nome, é um velho professor autoritário e
retrógado, indiferente ao crescimento dos filhos e às suas carências. Sua postura
repressora é a razão da maioria dos traumas vividos por todos eles: Alice, Renato e
Evelyn, numa relação que se alicerça na simples obrigação, na disciplina rígida, a base de
castigos e sem qualquer liame mais contíguo. Ele, além de não ofertar acolhimento aos
seus, maltrata-os.
A diegese reverbera um estilo peculiar, em que os sentimentos humanos são
mimetizados de forma muito intensa, seja na vida ou mesmo nos enleios amorosos. É
característica dessa estética, personagens fragilizados, com “patologias” ou com
distorções emocionais. Não infrequentes, portam uma sexualidade ambígua, a partir da
qual passam a compreender a realidade que os cerca. Nesse cenário, os laços são
construídos em alicerces de dor e angústia, dos quais emanam impulsos sádicos e/ou
masoquistas, como se a forma privilegiada de convivência dependesse de uma dinâmica

481
polarizada entre o dominador e a vítima, o algoz e o mártir. Em geral, nas obras, a carência
dos filhos é imensa e se reflete nos adultos, os quais se transformam radicalmente,
tornando-se incapazes de amar inteiramente ou de serem generosos com o outro.
A família é, pois, celeiro de autoritarismo, desarmonia e desafeto, quando não de
rejeição, de modo a escancarar a precariedade do ser humano diante da existência e de si
próprio. No texto em tela, deparamo-nos com um enredo envolvente que faz emergir, de
maneira abrupta, os conflitos do cotidiano, dando ênfase, sobretudo, à dissimulação dos
sujeitos. Um pai tirânico e violento, carrasco que aplica castigos severos e, portanto,
odiado pelos filhos e pela empregada, constitui o jogo de forças que almejamos aqui
examinar. Para tanto, recorreremos aos estudos psicanalíticos, desenvolvidos por Freud
e Lacan .
A partir desse prisma, delineado em contornos metodológicos interdisciplinares da
Psicanálise com a Literatura, tem-se o objetivo principal de realizar uma análise literária
da obra Lya Luft (1982), Reunião de Família, com o suporte metodológico da Psicanálise,
para compreender os aspectos referentes aos ruídos da onipotência nas relações familiares
quando a paternidade precariza a castração.

2. Interface entre Psicanálise e Literatura

A interlocução entre Psicanálise e Literatura é relevante, uma vez que a Psicanálise


revela-se como contribuidora extensiva da criação artística. Além disso, como aponta
Freud, em vários de seus trabalhos, a Psicanálise é dotada da capacidade de intervir na
obra artística∕ literária e na cultura de modo geral, visto que ela recorre à linguagem
empregada pelo sujeito, para apreender seu sintoma.
Tomando o sujeito como questão do desejo, a Psicanálise mostra que o discurso
humano é comandado pelo discurso do inconsciente, que se manifesta através da
simbolização, dos sintomas, dos sonhos, atos falhos e dos chistes, recorrentes tanto na
estrutura discursiva quanto na produção artística. No entanto, nem tudo relacionado ao
sujeito com seu desejo é significante para apreender o objeto de desejo. Esse limite é
denominado por Lacan como objeto “a”, que indica uma falta e todo o resto não
simbolizável.

482
Por sua vez, na visão psicanalítica de Lacan, a falta está localizada na confluência
dos três registros interpostos que constituem o nó Borromeano. Estes registros
representam os três campos formadores da psique humana que são: o campo do real, do
simbólico e do imaginário.
Na obra artística, torna-se possível expor uma teoria da Literatura compatível com
os pressupostos teóricos e metodológicos da Psicanálise, através do estabelecimento de
uma relação entre sujeito e linguagem. Para isso, o ato analítico deve visar o sintoma, a
fim de tentar uma explicação para o ato poético que corresponde à forma de descrever a
letra, o sintoma, o significante do sujeito.
Dessa forma, a recorrência à psicanálise não se trata da “Psicanalização” da obra,
nem mesmo do autor. Trata-se de um meio de enriquecer a arte, uma vez que a psicanálise
auxilia o reconhecimento das singularidades e da universalidade no campo poético.

3 Castração e paternidade em Sigmund Freud

Para Freud (1908), a castração é um conjunto de consequências subjetivas,


principalmente inconscientes, determinadas pela ameaça de castração no menino e pela
ausência do pênis, na menina. Para o pai da psicanálise, complexo de castração exerce
uma função normalizante, ao fazer a menina entrar no Édipo, orientando-a assim, para a
heterossexualidade. Freud enfatiza as consequências patológicas do complexo de
castração. Na mulher, a inveja do pênis pode persistir indefinidamente, no inconsciente,
sendo fator de ciúme e depressão. No homem, a angústia de castração é o que constitui,
a miúde, toda atitude passiva, em relação ao pai, e, em geral, ao homem, conserva a
significação da castração e desencadeia uma revolta. Porém a revolta, ao comportar
imaginariamente a mesma sanção, não consegue ser levada a cabo, e o homem permanece
dependente, tanto na vida social como em relação à mulher.
Lacan (1958) define a castração como uma operação simbólica, que determina uma
estrutura subjetiva: aquele que já passou pela castração é normatizado em relação ao sexo.
A castração evidentemente, não se refere ao órgão real, refere-se a um objeto não real,
mas imaginário.

483
Na concepção psicanalítica de Freud, há três versões sobre o pai: Édipo, o Pai da
Horda e Moisés. Em cujas versões são relatadas o parricídio e, consequentemente, o pai
é o pai morto e o filho assume uma natureza de soluções para a mulher, enquanto que
para o homem o filho tem contornos de objeto fóbico, pois o pai se relaciona de forma
privilegiada com a castração.
Para Freud, o acesso à paternidade requer do homem a reatualização de seu Édipo,
colocando, mais uma vez, o seu desejo à prova e tornando latentes os conflitos
adormecidos. Tal percurso remete à noção de castração em função de perdas narcísicas.
No entanto, aqueles homens que suportam o primeiro impacto e sustentam o lugar de pai,
transmitem aos filhos muito mais do que a carga genética.
Cabe destacar que, em Freud, o complexo de Édipo constitui uma das problemáticas
mais relevantes à teoria e à clínica psicanalítica. Ora, o Édipo é o complexo nuclear das
neuroses, como também, o ponto decisivo da sexualidade humana. Para tanto, Freud
entrelaça Literatura e Psicanálise para a diferenciação entre os sexos e de seu
posicionamento frente à angústia de castração, pois sua teoria do complexo de Édipo
remete a autores e personagens clássicos da literatura mundial, tais como: Hamlet, de
Shakespeare e a trama do parricídio dos Irmãos Karamazov reencenaram o mito de Édipo
da tragédia de Sófocles.
A temática do pai aparece na psicanálise desde os primórdios da teoria, através de
Sigmund Freud. Três diferentes momentos podem ser destacados na produção freudiana
a respeito do pai, O Complexo de Édipo, O Totem e Tabu e o Monoteísmo.
Destarte, para Freud, em sua teoria clínica psicanalítica, o falo representa o único
significante da sexualidade humana. A angústia de castração favorece o declínio do Édipo
no menino e, contudo, representa a sua possibilidade de a menina entrar no drama edípico.
Para efeito de pesquisa, faz-se necessário evidenciar que interessa a relação do menino
com a castração e os possíveis efeitos dessa relação com a possibilidade da paternidade.
Freud afirmava que o agente da castração situa-se na relação do sujeito com o pai,
enquanto Lacan aborda a relação do sujeito com significante: “A atribuição da procriação
ao pai só pode ser o efeito de um puro significante, de um reconhecimento não do pai
real, mas daquele que a religião nos ensina a invocar como o nome-do-pai”. É esse o pai,
que em sua função simbólica de castração, instaura, na ordem da linguagem, o limite, o
corte e, ao mesmo tempo, a vetorização ou sentido da cadeia.

484
Lacan introduziu a função paterna através de dois eixos: um referente ao Nome- do-
Pai e outro referente aos registros de pai real, pai simbólico e pai imaginário. Ele propõe
explicar a função paterna como instauradora da lei simbólica, por uma escrita significante
fundada na escrita da metáfora. Chamaremos o pai concreto de pai real, o da realidade
familiar, aquele que possui suas particularidades, suas opções, mas também suas próprias
dificuldades.
A função do pai real não é de proferir a interdição, afinal resultante do predomínio
da linguagem sobre o sujeito humano, e que se organiza ao redor do Nome-do-Pai. O pai
simbólico é aquele ao qual a lei remete, sendo, na estrutura, o interdito sempre proferido
em Nome-do-Pai.

4. Lya Luft e os paradoxos da existência humana

Lya Luft, brasileira e gaúcha, é formada em Pedagogia e Letras, no início de sua


carreira como escritora, escrevia crônicas para jornais, a exemplo do jornal Correio do
Povo. Tornou-se professora universitária de Linguística. Trabalhou como tradutora de
autores renomados como Virgínia Woolf. Não parou nas crônicas, escreve também
poesias e romances.
Em entrevista, para o Templo Cultural Delfos, ao explicar seu entendimento sobre
a vida, ela diz: “Tento entender a vida, o mundo e o mistério e para isso escrevo. Não
conseguirei jamais entender, mas tentar me dá uma enorme alegria. Amo a vida, os
amigos, os filhos, a arte, minha casa, o amanhecer.” (site Templo Cultural Delfos Elfi
Kurten Fenske- Ano IX, 2019)

Sou dos que escrevem como quem assobia no escuro: falando do que me
deslumbra ou assusta desde criança, dialogando com o fascinante – às vezes
trevoso - que espreita sobre nosso ombro nas atividades mais cotidianas. Fazer
fixação é para mim, vagar à beira do poço interior observando os vultos no
fundo, misturados com minha imagem refletida na superfície (LUFT, 1996, p.
13).

Nas obras de Lya Luft, percebe-se a abordagem dos paradoxos da existência


humana, que desencadeiam um sentimento ambíguo, em que se entrelaçam, bem e mal,

485
amor e ódio, prazer e nojo, agressividade e passividade, enfim, uma reflexão acerca de
vida e da morte, cujos limites não são possíveis de traçar.
É característica marcante, em seus romances, personagens com patologias,
personagens que se irmanam na fragilidade, no desajuste emocional, na carência afetiva,
na sexualidade ambígua, mal resolvida, na dor de perdas insubstituíveis, na orfandade, no
autoritarismo ou violência, enfim, se unem por um laço único que enreda toda sua ficção.
Sobre o tema central de suas narrativas, ela diz: “A família – da qual incansavelmente
escrevo, por conhecer a sua importância e saborear o seu encanto – nos apresenta ternas
armadilhas. É lá [...], se cultiva a árvore da culpa e da indecisão” (LUFT, 2000, p.83).

4.1 As relações familiares nas narrativas de Lya Luft

A escolha consciente da instituição familiar como centro de sua criação leva-a a um


mundo de desajustes, incompreensões, dramas e fatalidades que acaba por traçar um
retrato desolador da família contemporânea. Nas suas narrativas, a Família aparece
sempre inserida numa estrutura desajustada, pela impotência diante dos problemas, que
leva os personagens a fugirem de suas responsabilidades; pela morte dos pais; pela
loucura de um ente familiar ou por traumas ocorridos na infância.
Os filhos, raramente, aparecem como a realização de um desejo maternal. São, na
maioria das vezes, como um fardo que se tem de carregar. Em algumas narrativas, há a
nítida preferência por um dos filhos; em outras, a indiferença ou a falta de afeto se estende
por toda a prole. Embora as narrativas de Lya Luft centralizem a figura da mulher, o
homem não aparece como mero coadjuvante; ele desempenha papeis de relevo, seja como
marido submisso, seja como autoritário.
As dinâmicas familiares, em geral, estão pautadas em relações de submissão ou
insubmissão, como se a forma de convivência dependesse de um elemento dominador e
outro dominado, numa total ausência de equilíbrio.

4.2 A obra Reunião de Família de Lya Luft e a figura dos pais

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O livro intitulado “Reunião de Família”, de Lya Luft, é uma obra contemporânea
publicada, em sua primeira edição, na década de 1980. A autora utiliza-se de um enredo
envolvente e consegue tratar de conflitos familiares comumente encontrados no
cotidiano. Como o próprio título do livro aponta, o enredo conta a história de Alice, pacata
dona de casa que deixa sua vida comum com marido e filhos, para passar um fim de
semana, na casa do pai, convocada pela cunhada Aretusa, a fim de se reunir com a família.
A viagem desencadeia, na protagonista, uma retomada ao passado, de lembranças
e sentimentos que a desequilibra, levando-a a questionar sua identidade. A finalidade
desse encontro seria tentar solucionar o problema de Evelyn, irmã de Alice que parece ter
enlouquecido após a morte, em um acidente, de seu único filho, Cristiano. Esta morte
causou-lhe danos.
A mãe não aceita a morte trágica da criança e age como se o menino ainda estivesse
vivo, segurando sempre nos braços um palhaço que era o brinquedo preferido da criança.
Outras personagens também participam do encontro: o pai, decrépito e senil, chamado de
Professor. Renato, irmão de Alice, que mais sofreu com os castigos paternos; Bruno,
marido de Evelyn, e a velha empregada, Berta, que vive com a família desde a morte da
esposa do Professor.
Na casa do pai, entre paredes mofadas e corredores sombrios, segredos são
revelados, lembranças rejeitadas começam vir à tona, assim como as raízes da árvore
decepada que insiste em brotar entre as lajes do pátio. Este reencontro acaba sendo o
momento ideal para que os personagens permitam que suas aflições sejam libertadas e
todas as mágoas que existem em cada um deles revele o avesso do que normalmente
aparentam ser, revelando sujeitos que dissimulam sua verdadeira identidade,
No decorrer desse encontro familiar, os discursos vêm à tona e os personagens vão
deixando aparecer lembranças sombrias, com a revelação de segredos e com a
desconstrução da imagem de Alice, a narradora-personagem.
Nesse sentido, o ambiente da casa do professor torna-se ainda mais confuso e
sufocante. Isto leva o leitor a questionar de onde estaria vindo todo aquele clima que agia
bruscamente sobre os personagens e o jogo de espelhos, que Alice costumava brincar
quando pequena, parecia estar se tornando realidade, pois ela imaginava existir outra
Alice destemida e corajosa. Criava um mundo de fantasias só dela. Mas uma rachadura

487
naquele espelho grande que ficava sobre a mesa da sala de jantar parecia estar deixando
aquelas pessoas, aqueles estranhos escaparem e se tornarem reais.
Os discursos que as personagens apresentam a respeito de Alice provocam, no
sentido metafórico, um estilhaçamento do espelho, pois Alice construiu para si uma
imagem que não correspondia à realidade. O momento mais tenso é quando todos se
revoltam e começam a discutir, colocando para fora tudo o que lhes incomodavam. Teria
aquela rachadura, deixado escapar o outro lado? Esta impressão é marcada pelo
pensamento de Alice que diz: “Espio rapidamente meu reflexo no espelho, aquela não é
a pacata dona- de- casa, é uma mulher má, cara cortada pela rachadura do vidro”. (LUFT,
1982, p.104)
A escritora usa metáforas, brinca com os sentidos em seu livro. A metáfora do
espelho é uma característica marcante na obra, faz referência ao verdadeiro “eu” que cada
um dos personagens esconde, sobretudo porque revela uma identidade escondida de
Alice, que preferia manter uma imagem moralista, mas o espelho revela a imagem de
um sujeito completamente diferente das aparências, anulando os efeitos da educação
rígida que teve no seio familiar para satisfazer os desejos do corpo através de
relacionamentos extraconjugais. Outro fato é o álamo decepado no quintal da casa que,
apesar de não possuir mais a copa, parecia ter suas raízes ainda mais vivas do que antes,
quebrando a calçada da casa. Ele faz referência direta ao menino morto, que também teve
parte de si decepado, o que dá a entender que ainda vive nas raízes da árvore.
Ao afastar-se da casa em que vive com o marido e os filhos, para reunir-se com
os irmãos e o pai, Alice admite sua dependência emocional do marido autoritário e
sucumbe a suas vontades próprias para não contrariá-lo. Seu marido representa uma
espécie de “salvador da pátria”, que a libertou da rudeza do pai. Ela até os compara para
mostrar que o marido, embora com todos os defeitos, é mais bem sucedido que seu
genitor: “Aos dezoito anos casei e fui construir minha vida com aquele que fora meu
primeiro namorado. Um rapaz quieto e bondoso, muito menos severo e exigente que meu
pai. Ela deixa escapar que tem consciência da relação de domínio que circunda sua vida
ao desabafar que, com o casamento, apenas “ trocou de dono”.
Na obra de Lya Luft, é comum fazer referência aos pais, como negligentes,
distantes, desapegados ou violentos. Todos os filhos , invariavelmente, apresentam
sequelas dessa ausência, sejam ocasionadas pela fragilidade, pelo descaso ou pela morte

488
da mãe; sejam provocadas pelo excesso de apego do pai à esposa, sejam pelo
autoritarismo ou pelo desprezo.
Alice registra a falta que fez a mãe morta tão cedo e mostra a indiferença e o
desapego ao pai. Ela fala:

Cresci sem mãe, sem avós, sem tias nem primas. Nosso pai não era ligado a
família, falava como se fosse sozinho no mundo. Nunca tive alguém
perfumado e doce para me abraçar; para ajeitar meu cobertor na hora de dormir,
ou contar historias, para me dar conselhos. Nem para cuidar de Evelyn que era
ainda um bebê quando nossa mãe morreu, e foi criada por Berta. Ou alguém
para ajudar meu irmão que só levava surras do nosso pai. (LUFT, 1982, p.20)

Para Alice, por sua vez, a narrativa evidencia que:

O professor não era um pai de verdade, desses que chega em casa no fim do
dia e a gente se alegra com a sua presença; desses que pegam no colo; ou os
levam para passear.... Todos chamavam meu pai de Professor. As vezes
também o tratávamos assim, e ele nunca reclamou. Nossa casa era a
continuação da escola, deveres e castigos, medo de errar. (LUFT, 1982, p.20)

4.3 Caracterização dos personagens: pais e filhos

Os filhos pouco sabem sobre a mãe, a não ser que morreu bem jovem e que
recomendou à empregada Berta que nunca os abandonasse. A figura da mãe é um espectro
que paira em volta do mistério de sua morte precoce, mas é significativa a sua ausência,
visivelmente assinalada pelos filhos, como uma ”falta que habita”. A memória dos filhos
falha, ao tentar resgatar lances de vida, obscurecendo a imagem.
O pai é um professor autoritário e retrógado, indiferente ao crescimento dos filhos
e às suas carências; pelo contrário, sua autoridade repressora é razão da maioria dos
traumas de todos eles: Alice, Renato e Evelyn, numa relação que se alicerça na simples
obrigação, sem qualquer liame afetivo. Além de não dar amor aos filhos órfãos, maltrata-
os. O velho é odiado, inclusive, pela empregada, Berta, que até o responsabiliza pela
morte precoce da patroa:
Lembra o dia que o senhor esfregou minha cara no mijo do chão, lembra? Falou
Renato em uma discussão... Naquela ocasião Berta me contou que minha mãe
morreu de desgosto, de solidão. Muitas pessoas comentavam isso, para ela, o
senhor também foi um carrasco. Falou Renato. Nunca deixei de ter medo do
meu pai, acho que todos temos. A um gesto seu, mais brusco, afastamos
insistentemente a cabeça como para fugir daqueles tapas de antigamente.
(LUFT, 1982, p.20)

489
Alice tinha quatro anos quando a mãe morreu e confessa não se lembrar dela. Não
tendo vivenciado a rejeição materna, mas a ausência da figura da mãe. Forma uma família
tradicional, mostra-se submissa ao marido e compenetrada na educação dos filhos, que
nunca lhe deram trabalho. Apresenta-se como acomodada e pacata dona de casa. Ela fala:
“eu tinha outros planos para minha vida, mas acabei sendo Alice, a coitada. De mãos
ásperas e coração agoniado. Troquei de dono quando casei, fui para um proprietário
menos exigente, menos violento – mas meu dono” (LUFT, 1982, p.110).
No início do romance, é uma dona de casa fiel e dedicada, no final do enredo, é
revelada como a mulher adúltera, inconformada, lésbica e sem amor, completamente
diferente do estereótipo de mulher moralista.
Renato, o único irmão, um homem fracassado, resignado e infeliz, aceita
passivamente o temperamento de sua esposa, Aretusa. Evelyn era bebê quando a mãe
faleceu e foi cuidada por Berta, a empregada. Em um acidente de carro, perdeu o único
filho, Cristiano. Ela não aceita a morte do menino e age como se a criança estivesse viva.

5. Considerações Finais

Ao usarmos a psicanálise como suporte teórico, recorremos basicamente a Freud e


Lacan. A interface entre Psicanálise e Literatura demonstrou ser um caminho plausível
para que algo em estado de arte, transforme-se em algo em estado de conceito. Desse
modo, a pesquisa deu conta de entrelaçar a trama descrita na narrativa de Lya Luft com
as teorias psicanalíticas de Lacan e Freud. A análise literária da obra, Reunião de Família
(1982), com o suporte metodológico da Psicanálise, permitiu concluir os aspectos
referentes aos ruídos da onipotência nas relações familiares, quando a paternidade
precariza a castração.
Portanto, da castração freudiana à função paterna em Lacan, a narrativa de Lya Luft
representa um terreno fértil para compreender a subjetividade dos personagens, inclusive,
analisar a construção subjetiva dos personagens, que para efeito de pesquisa destacou o
fenômeno da castração e da funçao paterna.

490
Referências Bibliográficas

CHEMAMA, Roland. Dicionário de psicanalise. Porto Alegre: Artes Medicas Sul, 1995.

FREUD, S. Interpretação dos sonhos. (J. Salomão, Trad.). Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas (Vol. IV e V, pp. 240-321). Rio de Janeiro: Imago,
1974a. (Originalmente publicado em 1900)

_____. A dissolução do complexo de Édipo. (J. Salomão, Trad.). Edição Standard


Brasileira das Obras Psicológicas Completas (Vol. XIX, pp. 215-226). Rio de Janeiro:
Imago, 1974b. (Originalmente publicado em 1924)

_____. As Teorias Sexuais Infantis. (J. Salomão, Trad.) Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas. (Vol. IX, pp 102). Rio de Janeiro: Imago, 1974.

GUERRA, Andrea M. C. A Psicose. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

JULIEN, Philippe. O Manto de Noé. Ensaio sobre a Paternidade. Rio de Janeiro:


Revinter, 1997

LACAN, Jacques. O seminário, livro 4: a relação de objeto. (D. Estrada, Trad.). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1995. (Trabalho original de 1956-1957).

_____. De los nombres del padre. (N. González, Trad.). Buenos Aires: Paidós, 2007.

LUFT, Lya. Reunião de Família. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

_____. O rio do meio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

_____. Histórias do Tempo. São Paulo: Mandarim, 2000.

491
AS LOUCURAS DE AMOR DESENHADAS POR NELSON RODRIGUES EM
GENI, DE TODA NUDEZ SERÁ CASTIGADA

Jhonatan Leal da Costa (UFPB)


Orientador: Prof. Dr. Hermano França Rodrigues (UFPB)

Resumo: Temos como principal objetivo, para esse trabalho, investigar de que modo as ações
da personagem Geni, do texto dramatúrgico Toda nudez será castigada, se aproximam ou se
distanciam dos movimentos erotômanos. Despossuídos da intenção de fechar qualquer tipo de
diagnóstico psíquico para a personagem, nos embasaremos nos estudos de Roland Gori (2004),
Antonio Quinet (2018), Darian Leader (2013), dentre outros, para compreendermos de que
modo a Geni criada ficcionalmente por Nelson Rodrigues pode dialogar com as pesquisas em
psicanálise.
Palavras-chave: Psicanálise; Erotomania; Nelson Rodrigues.

Introdução
Toda nudez será castigada teve a sua primeira montagem estreada em 21 de junho
de 1965, no Teatro Serrador do Rio de Janeiro, com direção de Ziembinski e Cleyde
Yaconis no papel de Geni, após várias atrizes – dentre elas Fernanda Montenegro –
terem recusado interpretar a personagem. A obra, décimo quinto texto dramatúrgico
escrito por Nelson Rodrigues, foi posicionada por Sábato Magaldi (2004, p. 159) no
grupo das “Tragédias Cariocas” escritas pelo recifense.1
Dividido em três atos, o texto abre com a chegada de viagem de Herculano, um
viúvo de 42 anos, conservador e de posses. Ao receber um embrulho da empregada,
logo identificado como uma gravação, ele se põe a ouvir o conteúdo do material que lhe
fora remetido. Trata-se de uma mensagem da esposa, Geni, a qual avisa ao marido que,
quando ele viesse escutar aquela fita, ela já estaria morta. “Partindo do presente, toda a
ação se resume a um grande flashback da narrativa de Geni, em que a história se
desnuda aos poucos para o público.” (MAGALDI, ibdem).
Geni, assim, conta para o marido tudo o que os envolvia e ele não sabia: que fora
Patrício, irmão de Herculano, quem a procurou no bordel em que era prostituta,
persuadindo-a a seduzir e casar com o viúvo rico; que chegou a gostar de Herculano de

1
Toda nudez será castigada já recebeu diversas montagens e, inclusive, adaptação para o cinema,
através do filme homônimo de Arnaldo Jabor, lançado em 1972.

492
verdade, mas não encontrou nele a reciprocidade afetiva que desejava, o que a levou a,
depois de casada, cometer adultério; que o próprio filho de Herculano, Serginho, a
convenceu a se tornarem amantes, para que vingassem o rancor e o ódio que sentiam do
mesmo homem; que Serginho havia fugido com o “ladrão boliviano”, o próprio
estuprador dele, ao descobrir-se homossexual; e que, em decorrência de todos esses
infortúnios, cometeria suicídio.
Em uma primeira leitura, uma das principais impressões deixadas por Geni é a da
passionalidade. Ela é uma mulher intensa. Impulsiva, exagerada, manipuladora,
manipulável, carente, espontânea, submissa, sedutora, de ações e sentimentos
extremados. Para Magaldi (2004, p. 163), “Geni não pode ser vista como a prostituta
convencional, se é que ela existe. Além da beleza, sobretudo dos bonitos seios, e de ter
cursado o científico, a primeira imagem que apresenta é a da recusa de novo sexo
grupal”, o que expõe tanto um traço de moralidade encontrada nessa meretriz, quanto a
ideia de que ela não é motivada por dinheiro, fator que será confirmado em outros
momentos do texto: “E não quero nada – ouve, Herculano, ouve! -, não quero nada
senão um prato de comida e um canto pra dormir!” (RODRIGUES, 2012, p. 78).
Diante da complexidade e ambivalência dessa personagem, a qual chega a assumir
posições que, para o senso comum, seriam consideradas antagônicas, como o fato de
uma prostituta não se motivar na relação afetivo sexual para com o outro,
principalmente, pelo dinheiro, questionamos: quais seriam as principais influências a
agirem por trás das escolhas feitas por Geni em Toda nudez será castigada, como a
decisão de vir a pôr um fim em sua própria vida? Como a loucura passional e amorosa
dessa personagem pode ser compreendida através da arquitetura do texto rodriguiano
proposto para estudo nesse trabalho?
Acreditamos, como Terry Eagleton (2006) e Jean Bellemim-Noël (1978), que a
psicanálise pode se apresentar como um método hermenêutico e investigativo promissor
para a análise de personagens ficcionais, visto que essa examina e reconhece tanto a
complexidade quanto o lado paradoxal das emoções humanas. Nesse sentido, norteados
pela fortuna crítica psicanalítica, partiremos da hipótese de que Geni pode apresentar
movimentos similares aos dos sujeitos erotômanos.
Reconhecemos que a protagonista criada por Nelson Rodrigues possui uma
densidade representacional subjetiva que a impossibilita de ser limitada a um único

493
traço psíquico. Apesar disso, em decorrência das limitações formais impostas pelo
suporte do artigo acadêmico, delimitamos, para essa oportunidade, apenas a
investigação de traços erotômanos na personagem em tela, sendo esse, portanto, o
objetivo principal dessa pesquisa.
Nosso texto está dividido em três partes. No primeiro tópico, conceituaremos, de
maneira breve, a erotomania, ao privilegiar, principalmente, as pesquisas em psicanálise
feitas por Roland Gori (2004) sobre essa temática. Teóricos como Freud (1986), Darian
Leader (2013), Antonio Quinet (2018) e Guy Rosolato (1999) também serão
convocados para contribuírem nessas explanações. Na segunda divisória, analisaremos
até que ponto a personagem de Geni se aproxima ou se distancia dos movimentos
erotômanos, sem jamais objetivarmos enquadrá-la em qualquer diagnóstico. E, por fim,
no terceiro seguimento, fecharemos essa oportunidade com as considerações, as quais
desembocam em temas como abandono, sentimento de vazio e solidão.

Erotomania, o delírio amoroso


Aquele que confessa que está apaixonado, sem o saber, admite uma disposição
para o sofrimento. “O determinante da paixão é sempre o mesmo desde que a palavra
existe: sofrer”, esclare Gori (2004, p. 27), que acrescenta: “A paixão faz o sujeito
sucumbir e enfraquecer, conduzindo-o a existir apenas para os vestígios, muitas vezes
derrisórios, de um objeto – humano ou coisa”. Como que preso à sua própria
decadência, o apaixonado age em benefício exclusivo daquilo que, sem piedade, o toma
como merecedor de suas ações e emoções. Nesse movimento, o apaixonado amoroso,
em simetria com a estrutura do melancólico, sabe quem ama, “mas não o que ama nela
ou nele.” (ibdem, p. 29, grifos do autor).
É assim que o amor pode vir a se transformar em loucura. Darian Leader (2013),
em O que é loucura?, argumenta que o tema apresentado no título de seu livro está
presente, de maneira um tanto silenciosa, no cotidiano de inúmeros sujeitos, sem que
esses ou os seus convivas venham a se dar conta da presença desse fenômeno psíquico,
típico da psicose.
Freud (1986, p. 63, grifos do autor) acreditava que a psicose se configurava como
uma espécie de defesa psíquica muito mais poderosa e bem-sucedida do que a neurose,
pois nela as representações mentais intragáveis para o sujeito eram banidas de sua

494
consciência junto com os afetos à elas relacionados, como se essas ideias, emoções e/ou
imagens jamais lhe tivessem ocorrido. “Mas a partir do momento em que isso é
conseguido, o sujeito fica numa psicose”. Essas representações tendem a ser rechaçadas
com tanta força pelos psicóticos que, invariavelmente, elas retornam de fora, geralmente
sendo atribuídas a terceiros.
Leader (2013, p. 52) ilustra o pensamento de Freud ao pontuar que, quando o
neurótico comete um “ato falho, sente-se envergonhado e responsável, pois reconhece
que o lapso provém dele. Na alucinação psicótica, entretanto, o elemento perturbador
vem de fora: não somos nós, é o Outro. Aquilo não vem de ‘dentro’, mas de ‘fora’”.
Esse mecanismo extremo de defesa psicótica, que veio a ser batizado por Freud
(1986) de Verwerfung (rejeição) e, por Lacan (1998), de foraclusão, não admite que o
elemento rejeitado faça parte do universo mental daquele que sofre, de modo que esse
material passa a ser tratado como algo inassimilável, que não pode ser, sequer, pensado.
Não tendo lugar “no inconsciente, permanece como um ponto vazio nos processos de
pensamento da pessoa, ou, em alguns casos, retorna de fora como uma alucinação, com
o desapego de qualquer sentimento de que pertença ao sujeito”, pontua Leader (2013, p.
53).
Nesse viés, o psiquiatra francês Gaëtan Gatian de Clérambault (1872/1934)
descreveu, com pioneirismo, sobre uma síndrome proveniente do espectro da psicose,
que viria a ser considerada uma espécie de “loucura amorosa”: a erotomania. Inserida
por Clérambault no quadro das psicoses passionais, a erotomania apresenta, em sua
forma pura, o que ele viria a chamar de “núcleo erotômano”.
O núcleo da erotomania, também tratado por Clérambault de Postulado
Fundamental, seria o delírio, no sujeito erotômano, de que ele foi amorosamente eleito
e é amado por outro – ainda que, em seu delírio, o outro não possa ou não esteja
devidamente pronto para confessar-lhe a paixão ou preparado para assumir a relação. O
erotômano parte do delírio de que esse outro depende afetivamente dele e, assim, ao
transformar-se em objeto de desejo do outro, esse outro passa a torna-se fundamental
para a sua existência enquanto sujeito. Geralmente, esse outro se figura como alguém
enxergado pelo erotômano em posição mais elevada, seja em níveis de intelecto, moral,
beleza, posição hierárquica, capital financeiro etc., o que aumenta seu fascínio e
admiração pelo sujeito que ele julga que lhe ama. (Cf.: GORI, 2004, p. 49).

495
Assim, o delírio erotômano se desenvolveria, conforme os postulados de
Clérambault, em três estágios: esperança, despeito e rancor. No estágio de esperança, o
erotômano crê de maneira inabalável que é amado pelo outro, sem que tal sentimento
nunca tivesse partido inicialmente dele próprio – foi o outro quem lhe demonstrou o
interesse amoroso inicial. E o sentimento que ele imagina que o outro direciona para ele
o conduz a se sentir orgulhoso. Com a dificuldade cada vez mais veemente dos delírios
do erotômano se confirmarem no plano da exterioridade, visto que a falta de
correspondência amorosa tende a se transformar em uma constante, o despeito, baseado
no orgulho ferido do erotômano, passa a inundá-lo de sentimentos conflitantes de
vingança e conciliação. No último estágio, porém, já frustrado com a impossibilidade da
união amorosa, o rancor invade o erotômano e ele pode passar a nutrir ódio pelo outro
que ele julgava que o amava, fase em que existe a possibilidade do erotômano vir a se
sentir ameaçado ou perseguido por esse outro. É quando os crimes passionais encontram
contexto nesse tipo de loucura. (Cf.: GORI, 2004, p. 50).
Para Gori (2004, p. 48, grifos do autor), portanto, toda paixão trata-se de uma
fixação passional. “A convicção ilusória de ser amado e o ardor na busca do objeto,
sedutor originário e paradoxal, constitui a base comum de todos os delírios passionais”.
De modo que, seja a paixão proveniente da neurose e desenvolvida como amor de
transferência, ou de origem psicótica e advinda do fundamento narcísico das psicoses,
“tem todas em comum o fato de possuírem um núcleo erotômano”.
O próprio Clérambault já havia destacado a falta de univocidade para a
erotomania, tanto é que dividiu a síndrome em dois grupos distintos: a erotomania pura
e a erotomania mista ou associada. (Cf.: BRESSANELLI, 2012).
Na erotomania pura, a ideia de ser amado pelo outro assume um tipo de
radicalidade, de modo que os delírios do erotômano podem chegar a situações
extremadas, em que ele, por exemplo, pode passar a ter a convicção de que pessoas que
nunca o viram estão, sim, apaixonadas por ele2. Nessa categoria, também há a
possibilidade do erotômano, quando se fixa em alguém do seu convívio, ignorar o fato
dele já ser comprometido ou possuir uma sexualidade diferente da sua. A crença
absoluta de que está em comunhão amorosa com outro e, principalmente, de que esse

2
Esse fenômeno é comum em casos de fãs que se apaixonam patologicamente por famosos e tem sido
verificado, também, em contextos virtuais, quando erotômanos julgam serem amados, sem de fato o
serem, por sujeitos que só conhecem através de páginas da internet e redes sociais.

496
outro o ama, configura-se como o núcleo estrutural puro desse delírio, e é a partir daí
que toda uma ramificação a respeito da suposta relação amorosa dará combustível para
a construção de interpretações, atos e comportamentos delirantes. (Cf.:
BRESSANELLI, 2012).
Já na erotomania mista, também chamada de associada, os enquadramentos da
erotomania pura não precisariam surgir de maneira clássica, uma vez que na
erotomania mista a elaboração e complexidade dos sintomas abririam margem para,
inclusive, fazê-los ser identificados, de maneira combinada ou não, ao lado de outras
psicopatologias. Nesse grupo, também estão os casos em que a erotomania surge como
um sintoma secundário ou proveniente de outros fenômenos psíquicos, como a histeria.
(Cf.: DIDI-HUBERMAN, 2015).
Após a postulação da síndrome erotômana por Clérambault, a psicanálise,
inicialmente através de Freud (2010), mais precisamente em sua análise do caso do
Presidente Schreber, traz a erotomania como uma das possibilidades da paranoia se
converter. Como, conforme já explicitamos, na psicose, as representações das quais o
sujeito não suporta são rejeitadas por ele e lhes retornam do plano da exterioridade, a
ideia, no erotômano, do “eu o amo”, sofreria uma denegação interna e, projetada3 fora
do sujeito, retornaria sob o molde do “ele me ama”. E, “se ele me ama, eu também
posso e devo amá-lo”, raciocina o erotômano.
O curioso é que, na erotomania, a consciência do sentimento amoroso não se
inicia através de uma percepção interna do erotômano, mas de uma percepção externa
de que se está sendo amado, percepção essa que não demora em se transformar em
firme convicção, e daí a onda delirante na qual ele se afoga.
Sendo assim, o que viria a separar o delírio da erotomania do amor apaixonado
seria justamente a certeza e a convicção que tem o erotômano de que é amado pelo
outro e de que o outro o elege como objeto de desejo, experiência que, na neurose, tende
a ser recalcada, transformando-se em condição de amor e de transferência. Quando esse
recalque falha, advém a foraclusão da psicose e, consequentemente, a “loucura de
amor”. (Cf.: GORI, 2004, p. 48).

3
“Essa "projeção" não consiste em imputar ao outro características que são próprias ao sujeito, mas em
fazê-las advir de fora, de um outro no qual o sujeito não se reconhece. A projeção na psicose diz
respeito a algo que retorna de fora, que está preso na foraclusão”. (BRESSANELLI, 2012).

497
Quinet (2018, p. 94, grifos do autor) corrobora o pensamento de Gori (2004), ao
acrescentar que a erotomania, cujo postulado “inclui o amor – O Outro me ama –, é um
tipo de amor que não contém a castração, sendo portanto distinto de amor erótico, do
amor transferencial que, como diz Freud, é o verdadeiro amor.” Se o neurótico
apaixonado se queixa por não conseguir ser amado como sujeito em sua integridade, o
erotômano grita a quem quiser ouvir que ele é o objeto do desejo de um outro,
paradoxalmente, porque ele permanece para sempre inconsolável por não poder ser
amado como sujeito pelo Outro. (Cf.: GORI, 2004, p. 82). E, na tentativa de lidar com
suas faltas, abandonos, e vazios, o erotômano enlouquece, como veremos, nas próximas
páginas, através da análise da personagem Geni, de Toda nudez será castigada.

Atravessamentos da loucura de amor em Geni


Quando Toda nudez será castigada inicia, Geni já está morta. Através das
gravações que ela deixa para Herculano, porém, podemos perceber, na linearidade da
narrativa que ela estrutura para ele que, quando ela veio a se relacionar com o futuro
marido, ela ainda morava e trabalhava, como prostituta, em um bordel. A escolha
profissional de Geni, no viés que delineamos para esse artigo, já diz muito de um
movimento erotômano: sua demanda enquanto prostituta visava o desejo que os seus
clientes direcionavam para ela. Assim, na mesma perspectiva do delírio das erotômanas,
as prostitutas não costumam eleger objetos relacionais, é eleita por eles. E, ainda que
nem toda prostituta seja, necessariamente, erotômana – e acreditamos que, de fato, essa
não precisa ser uma regra – em se tratando de Geni, a carreira na prostituição vem, sim,
coadunar mais um traço de similitude no painel sintomático da erotomania.
No prostíbulo, a rotina de Geni é quebrada com a chegada de Patrício, irmão de
Herculano, e o oferecimento trazido por ele, para ela, de uma nova demanda: casar-se
com Herculano, um viúvo rico, carente e deprimido. Após as persuasões de Patrício
para com Geni a esse respeito, é Herculano quem, também movido por manipulações do
irmão (Patrício deixa uma foto de Geni nua, ao lado de uma garrafa de bebida, na
cabeceira da cama do irmão), vai atrás da prostituta. Desse modo, é preciso frisarmos
que, as motivações de Geni, desde o começo da narrativa, se perfazem a partir das
demandas que lhe são requeridas, dos desejos alheios que lhe chegam e lhe reivindicam

498
posição, muito em acordo aos delírios erotomaníacos, os quais sempre partem da ideia
de que foram escolhidos.
Com a ida de Herculano ao bordel, a primeira noite de amor dele com Geni dura
horas a fio. Ele se demonstra inteiramente envolvido por ela, ainda que, após passar o
efeito do álcool, coloque – não necessariamente nesses termos – que o encontro dos dois
não voltará a se repetir, pois é um homem sério, pai de família, cheio de moral e bons
costumes. Geni se revolta, mas insiste que o elo estabelecido por eles não possui fôlego
para apenas uma noitada. E, de fato, Herculano volta a procurá-la.
Entre idas e vindas, Geni e Herculano firmam uma relação. Mas movida pela ideia
de Patrício de que ela deveria se casar com o seu irmão rico para arrancar dinheiro dele,
Geni impõe, para Herculano, a condição de que eles só voltariam a ficar juntos depois
que selassem o matrimônio. Herculano reluta. Argumenta que tem tias carolas que
moram com ele, relembra que seu filho, Serginho, lhe exigiu que seria fiel à esposa
morta, e que seu contexto social jamais admitira que ele viesse a estabelecer união com
uma mulher da zona. Geni, ofendida, desbocada, debochada e revoltada, mantém-se
firme na condição que delimitara: sem casamento, sem sexo.
Herculano, então, é rendido pelo desejo de ficar com Geni, ainda que, também, a
imponha uma condição: a de nunca mais voltar para o prostíbulo, a de nunca mais vir a
se prostituir. “Está bem. Não volto mais pra lá. Nunca mais. Não é isso que você quer?
Deixo tudo, roupa, deixo. [...] E você, casa comigo?” (RODRIGUES, 2012, p. 51).
O desejo que tem Geni de vir a atender as demandas de Herculano a faz topar e
deixar tudo, como ela bem emprega em palavras. Ao acreditar ter sido amorosamente
eleita, ao se sentir finalmente como alguém não apenas sexualmente desejada, mas
amada por outro sujeito, Geni se coloca como sendo capaz de qualquer coisa –
inclusive, a vir se transformar em uma nova mulher, totalmente diferente da que fora até
então. E aí está, pois, mais uma ação bastante aproximada da dos sujeitos erotômanos,
capazes de abrirem mão de quem são em nome da correspondência do que eles julgam
ser ideal para o outro.
Herculano e Geni se casam, mas como ele não tem coragem de se expor com a
nova esposa, a coloca para morar em uma casa isolada, distante, que ele possui longe do
centro da cidade. E, apesar de casados, Herculano não chega a viver, de fato, com a
esposa. Opta por fazer visitas esporádicas para ela, assim como o fazia quando ela

499
morava no bordel. A nova vida de mulher convencional, para Geni, logo a deixa
entediada. Não pelo casamento em si, mas, principalmente, pela solidão em decorrência
da ausência do marido, que sempre argumenta precisar dar atenção para o problemático
Serginho. “E me admira você! Um sujeito que só pensa no filho! E me abandona aqui
nesse fim de mundo! Uma semana sem aparecer!” (RODRIGUES, 2012, p. 62).
Herculano, no entanto, permanece indiferente quanto as acusações de abandono
proferidas por Geni. Situação que a teria motivado a dar início a uma relação de
adultério.
É Serginho quem procura Geni e a propõe vingança contra Herculano. Ele, por
odiar edipicamente o pai, ela, por se sentir preterida pelo marido. A vingança, nos
moldes delineados por Serginho, consistiria, pois, em ambos, enteado e madrasta, virem
a construir uma relação afetiva-sexual sem que, inicialmente, Herculano soubesse. E
Geni, ao seguir o padrão de comportamento que se manteve equivalente ao longo de
toda a narrativa, aceita a demanda daquele que agora se figura como o seu novo objeto
de desejo.
Uma vez que Herculano teve dificuldades em corresponder à idealização que Geni
havia feito dele, tendo se mostrado um marido ausente e sem intensidade afetiva, uma
lacuna se abrira entre eles, conferindo oportunidade para que outro objeto viesse a
ocupar, para Geni, o vazio que Herculano nunca preenchera, mas que o delírio dela já
não o era capaz de tamponar, em decorrência da solidão provocada por ele.
Quando Serginho procura Geni, não só prometendo vingança contra aquele que
frustrara as expectativas dela, como a elegendo ao posto de sua parceira afetiva-sexual,
ele não só assume uma importante posição nessa representação de delírio erotômano – o
outro me ama, o outro me deseja, o outro me tem como objeto – como dá condições
para que a raiva para com o frustrante objeto relacional anterior (Herculano) venha à
tona de maneira passional, como costuma acontecer em uma das fases clássicas da
erotomania, conforme expusemos na fundamentação teórica desse trabalho.
Mas, conforme já tecemos, o combustível para o delírio erotômano são
idealizações desancoradas da realidade. E, assim, é claro que, do mesmo modo como se
frustrara diante de Herculano, Geni também viria a se frustrar diante de Serginho.

500
Ao sentir que está diante de dois objetos que vacilam – Serginho e Herculano –
Geni se desespera, e dá sua última cartada em prol de seus objetos e em detrimento de si
mesma:
Geni: Faz, faz o que você quiser. Eu não me incomodo. (impulsiva) Mas você
precisa de mim, Herculano! [...] Ninguém me conhece, mas eu me conheço.
Herculano, eu preciso ter pena. O meu amor é pena. Eu estou morrendo de
pena. Juro, Herculano! Pena de ti e do teu filho! [...] Vou ser tua criada,
criada do teu filho! Vou lavar chão, mas não saio. Herculano! Não saio daqui,
até o fim da minha vida! E não quero nada – ouve, Herculano, ouve! -, não
quero nada senão um prato de comida e um canto pra dormir!

Herculano: - Você não me engana. Qual é o teu plano? Você tem um plano, e
qual é?

Geni (fanática): - Viver para você e pra Serginho! (RODRIGUES, 2012, p.


78).

Ao representar o mecanismo de defesa psicótica da rejeição, a personagem de


Geni parte da ideia de que não é ela quem precisa dos outros, mas são os outros quem
precisam dela. Desenvolve como convicção que o seu amor é pena, ao banir para fora
de sua psique as possíveis ideias insuportáveis de que, de fato, é ela quem necessita do
amor e da compaixão alheia: “Dorme comigo, dorme! Não sei dormir sozinha! Tenho
medo.” (RODRIGUES, 2012, p. 39).
Através do próprio texto rodriguiano, tomamos nota de que a vida de sua
protagonista fora permeada por traumas que afetaram, principalmente, a sua infância:

Foi minha mãe, quando eu tinha 12 anos. Um dia minha mãe me mandou
comprar não sei o quê. Nem me lembro. Eu me demorei. E quando cheguei,
minha mãe gritou: - “Tu vai morrer de câncer no seio!” Minha própria mãe
me disse isso. Você ainda se admira que eu tenha caído na zona? Toda
mulher já foi menina. Eu, não. Eu posso dizer de boca cheia que nunca fui
menina. (RODRIGUES, 2012, p. 32).

A intensidade do conflito entre Geni para com a mãe a fizera, em sua maturidade,
ter a compreensão de que, por causa da maneira como se relacionara com a sua genitora,
não tenha encontrado meios de seguir uma vida com escolhas que lhe garantissem mais
estabilidade emocional. Também em decorrência do modo rude como fora tratada em
sua infância, alega que nunca fora menina, discurso que, por si só, já expõe e denuncia,
na construção emocional dessa personagem, a rejeição psíquica de uma parte de sua
vida.

501
“Meu pai quando era vivo. Você pensa? Eu que me fizesse de tola. Meu pai me
metia a mão na cara!” (RODRIGUES, 2012, p. 47). Dentro desse contexto turbulento,
Geni, que não tivera uma infância nem pais que a conferissem a segurança, o afeto e a
estabilidade de que precisava para amadurecer enquanto mulher e sujeito, cresce
insegura, carente e sem forças emocionais para encarar seus próprios traumas e vazios,
daí a defesa inconsciente que constrói para si mesma de que são os outros que
necessitam de seu amor e de que é ela quem precisa sentir comiseração de alguém.
A realidade, no entanto, não tarda a “bater na porta” dos que sofrem da loucura
amorosa, convidando-os a confrontarem seus delírios de que são eleitos e intensamente
desejados com a indiferença e frieza daqueles por quem eles julgam serem amados
incondicionalmente. E, assim, Geni descobre que Serginho rompeu o laço afetivo que
mantinha para com ela, ao fugir com o homem que o estuprara em uma cela de cadeia, o
ladrão boliviano:

Teu filho fugiu, sim, com o ladrão boliviano. Foram no mesmo avião, no
mesmo avião. Estou só, vou morrer só. (num rompante de ódio). Não quero
nome no meu túmulo! Não ponham nada! (exultante e feroz) E você, velho
corno! Maldito você! Maldito o teu filho, e essa família só de tias. (num riso
de louca) Lembranças à tia machona! (num último grito) Malditos também os
seios! (RODRIGUES, 2012, p. 105).

Com essa última fala de Geni, expressa através da gravação deixada por ela para
Herculano, cai o pano e Toda nudez será castigada é encerrada. “Agora, ao matar-se,
Geni deseja apagar completamente sua passagem pelo mundo – nem quer o nome no
túmulo. E amaldiçoa Herculano, Serginho e toda a família,” sentencia Magaldi (2004, p.
164). Todos os objetos de amor que frustraram Geni e a fizeram se sentir menos sujeito
em sua existência foram amaldiçoados por ela em seu rompante final, inclusive os seios,
os quais remetem ao amor de sua mãe que tanto a frustrara e que são, para Freud (2016),
nosso primeiro e perdido objeto de desejo.

Considerações
As loucuras de amor desenhadas por Nelson Rodrigues em Geni, de Toda nudez
será castigada, foram constatadas na análise de nosso trabalho e aproximadas dos
movimentos dos sujeitos erotômanos. No delírio de que Herculano e Serginho
necessitavam de seu amor e na convicção de que era indispensável para eles, Geni, na

502
representação de uma estrutura similar a dos sujeitos psicóticos, construiu,
inconscientemente, uma defesa para os seus traumas, carências e vazios.
Ao assegurar ser importante para o outro, na medida em que colocava que o seu
amor era pena, Geni ignorava a necessidade que ela mesma tinha de ser amada, bem
como o seu desejo de possuir e seu temor de perder seus objetos relacionais. Sua
loucura amorosa era, portanto, uma tentativa fracassada de cura. Cura de seus medos,
inseguranças, conflitos paternais, traumas da infância e, consequentemente, faltas. Seus
estados de solidão a fazia confrontar-se com as lacunas de sua existência, e daí sua
necessidade de ter sempre outros preenchendo e dando sentido às fissuras de sua própria
subjetividade.
Sem os outros para cortinarem sua dor psíquica, Geni tinha suas feridas
escancaradas. E por isso os atos passionais, extremados, voluptuosos, ensandecidos, que
a fizeram por fim em sua própria vida. Por conseguinte, em conformidade ao
pensamento de Rosolato (1999, p. 144), “a morte vem apenas como uma violência
extrema para resolver uma tensão insuportável”. A tensão, para essa personagem,
proveniente da perda e da posse do objeto de desejo. Experiência mais do que comum
para uma prostituta, mulher e, acima de tudo, para todo e qualquer humano.

Referências

BELLEMIM-NOËL, Jean. Psicanálise e literatura. São Paulo: Editora Cultrix, 1978.

BRESSANELLI, Juliana. Erotomania: os impasses do amor e uma reposta psicótica.


Revista Ágora. Vol. 15. no.spe. Rio de Janeiro. Dezembro de 2012.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Invenção da histeria: Charcot e a iconografia


fotográfica da Salpêtrière. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto,
2015.

EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Tradução de Waltensir


Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

FREUD, Sigmund. “As neuropsicoses de defesa”. In: Primeiras publicações


psicanalíticas [1893-1899]. Traduzido do alemão e do inglês sob a direção geral de
Jayme Salomão. 2ª.ed. Rio de Janeiro: Imago, 1986. (Obras psicológicas completas de
Sigmund Freud, ed. Standard brasileira, volume 3).

503
______ . Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em
autobiografia (“O Caso Schreber”), artigos sobre técnica e outros textos [1911-
1913]. Tradução e notas de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
2010. (Obras completas, volume 10).

______ . Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma


histeria (“O Caso Dora”) e outros textos [1901-1905]. Tradução de Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. (Obras completas, volume 6).

GORI, Roland. Lógica das paixões. Tradução de Inesita Barcellos Machado. Rio de
Janeiro: Campo Matêmico, 2004.

LACAN, Jacques. “O estádio do espelho como formador da função do Eu, tal como nos
é revelada na experiência analítica”. In: Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de
Janeiro: Zahar, 1998.

LEADER, Darian. O que é loucura? Delírio e sanidade na vida cotidiana. Tradução de


Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

MAGALDI, Sábato. Teatro da obsessão: Nelson Rodrigues. São Paulo: Global, 2004.

RODRIGUES, Nelson. Toda nudez será castigada: obsessão em três atos. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2012.

ROSOLATO, Guy. A força do desejo – O âmago da psicanálise. Tradução de Procópio


Abreu. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

QUINET, Antonio. Teoria e clínica da psicose. Rio de Janeiro: Forense Universitária,


2018.

504
A CONSTRUÇÃO DA LOUCURA NO CONTO MIOPIA PROGRESSIVA

Joelma Correia da Silva (UNEAL)1


Ronaldo Gomes dos Santos (UNEAL)2
Amanda ramalho de Freitas Brito (UNEAL/UFPB)3

Resumo: A discussão sobre a loucura assume ao longo da história do ocidente diferentes


compreensões, passa da relação com a percepção de possessão demoníaca, seria para o homem
um castigo divino advindo das consequências de manias pecaminosas, às persecutórias atuantes
sobre pessoas que aparentemente mostrava um comportamento desviante das normas
estabelecidas. No final do século XIX a Psicanálise apresenta novos modelos de entendimento
da loucura sob a luz das três estruturas clínicas: neurose, psicose e perversão. Nesse sentido, a
loucura torna-se então um reflexo da subjetividade individual de cada pessoa. A luz das teorias
de Lacan e Foucault sobre a loucura, pensaremos ou discutiremos a construção do
personagem no conto Miopia Progressiva. Partindo desses pressupostos podemos
compreender a loucura como uma experiência sensível da humanidade, que busca se reconhecer
nos sentidos criados por si e para o mundo a sua volta, causando assim, rupturas do real e
imaginário. Para perceber essa experiência, usaremos as teorias de Lacan para analisar a
categoria personagem no conto Miopia Progressiva, que está inserido no livro Felicidade
Clandestina, de Clarice Lispector.

Palavras-chave: Loucura; Identificatória; Personagem-criança

Introdução

Tendo como objetivo principal entender a maneira como o discurso literário se


apropria da figura do louco no conto Miopia Progressiva. Nele, encontramos um tom
levemente otimista, na medida em que aponta para alguma alternativa de reaproximação
da autenticidade do sujeito alienado. No conto em questão, o encontro de si mesmo com
o mundo desejante familiar e a perda de contato com o si mesmo originário. Vemos um
garoto que se esforça por predizer o movimento de seus familiares em sua direção,
movimento esse que tem a atribuição de dizer quem ele é. “Num estado de permanente
incerteza”, continuamos a assistir o movimento alienante da constituição do eu, que se
resume no paradoxo: cabe aos outros dizer o que eu sou. Ele nunca conseguia mapear o
campo interpretativo familiar. Graças à instabilidade misteriosa dos outros de sua
família, ele se desentendia deles e de si mesmo. Não sabia o que era.

1
Mestranda em Letras (UNEAL). Contato: joelmaportugues1@gmail.com.
2
Mestrando em Letras (UNEAL). Contato: ronaldogomer123@gmail.com.
3
Doutora em Letras (UNEAL/UFPB). Contato: amandaramalhobrito@gmail.com.

505
Quando achava que tinha entendido o que nele provocava o movimento de
admiração de sua família, marcado por pontuações exclamativas “oh! que inteligente!”
imitava a si mesmo, repetia seu gesto, numa tentativa de apoderar-se de si mesmo. Mas
é repetidamente fracassado em suas tentativas de réplicas de si mesmo.
Para isso é necessário tratar a questão da loucura no conto sob uma perspectiva
crítica/discursiva. Esta perspectiva se debruça sobre os discursos de poder, retirando o
foco do que seria a alienação mental apontando a loucura como experiência sensível de
nova percepção sobre a realidade a partir do próprio símbolo da miopia.
A loucura passa ao longo dos tempos por algumas compreensões diferentes, passa
da relação com a percepção de possessão demoníaca, pelo qual seria para o homem um
castigo divino advindo das consequências de manias pecaminosas, para uma
compreensão psíquica natural do homem, como sendo um fundamento da constituição
humana. Dando-lhe um sentido próprio para vivência no mundo real emparelhada com a
realidade a sua volta. A loucura torna-se então um reflexo da subjetividade de cada
pessoa.
A diversidade na forma de apresentação da temática dá-se pelo modo como a
loucura, enquanto fenômeno humano tem sido conceituada e entendida em cada tempo e
em cada contexto. Desde a Antiguidade clássica as noções de normalidade e
anormalidade têm sofrido alterações e essas alterações serviram de base para expressões
da loucura na Literatura.
Na era Clássica greco-romana, a exclusão dos loucos, praticada socialmente,
também foi praticada literariamente. Uma das poucas referências à loucura aparece no
mito de Dionísio (Baco), como discutido por Souza (1973) em Dioniso em Creta e
outros ensaios.
Foucault (2004, p.163) busca nos mostrar o que era a loucura para a Idade
Clássica não como objeto natural do saber, mas enquanto estratégia que se operava
sobre os corpos: “a loucura não pode ser encontrada no estado selvagem. A loucura só
existe em uma sociedade, ela não existe fora das normas da sensibilidade que a isolam e
das formas de repulsa que a excluem ou capturam.”.
A atenção dada ao louco durante a Idade Média foi baseada na noção de loucura
da época que, vista como castigo de Deus ou uma forma de redenção, era explicada,
inclusive, a partir do discurso religioso.

506
A loucura possui momentos distorcidos contrapondo a uma oposição das formas
tidas como normais à vida cotidiana. Esse fato fortemente ressaltado pela crítica
envolveu as discussões de autores como Michel Foucault (2004), já citado
anteriormente, e Erving Goffman (2010) dispostos a observar a história e as práticas
sociais vigentes.
A Loucura também pode ser vista como objeto historicamente constituído em
Foucaut (2004), pois ao longo do livro, História da loucura, o autor deixa claro que a
loucura não é um objeto natural, existente desde a aurora dos tempos e esperando para
ser entendido pelo homem, mas uma criação do próprio homem. Não se “encontrou”
um portador de distúrbios mentais e se o descobriu como tal, mas se criaram a loucura e
o louco. Isso se deu a partir de tecnologias dos saberes sobre esse corpo específico, a
partir de múltiplas transformações no modo de ver esse corpo desviante, como
exemplificado a seguir:

Na Idade Média, e depois no Renascimento, a loucura está presente no


horizonte social como um fato estético ou cotidiano; depois, no século XVII
– a partir da internação – a loucura atravessa um período de silêncio, de
exclusão. Ela perdeu essa função de manifestação, de revelação que ela tinha
na época de Shakespeare e de Cervantes (FOUCAULT, 2004, p.163).

Nessa passagem, mostra-se que, ao conceito de loucura, já existente enquanto


experiências sensíveis da humanidade se foram subtraindo significações, numa
construção daquilo que modernamente conhecemos como doença mental.
Foucault (2004), afirma também que a “loucura não poderia ser encontrada no
estado selvagem, pois ela só existiria em uma sociedade, ela não existe fora das
normas”, essas normas seriam os principais motivos da exclusão, pois quando se foge
do padrão preestabelecido pela sociedade recebe-se uma marca negativa. A loucura
então é vista como sendo um instrumento de poder, pois é a partir do ideal que consiste
na exaltação da razão, que o louco acaba se tornando um sinal contrário. Nestes meios,
de modo que já não será tratado apenas como um mero erro, mas, também, como uma
ameaça à razão e a todos que o cerca.
Para Lacan (1998, p. 173) a loucura seria o passo do “desenvolvimento dialético
do ser humano”, o louco seria então um formador de sentido.

507
Partindo desses pressupostos podemos compreender a loucura como uma
experiência sensível da humanidade, que busca se reconhecer nos sentidos criados por si
e para o mundo a sua volta. Causando rupturas entre o real e o imaginário.

Tensões do delírio em Miopia Progressiva

O conto Miopia Progressiva, alvo de nossa análise, está inserido no livro


“Felicidade Clandestina”, de 1971, da autora Clarice Lispector. Onde há uma
caracterização da personagem-criança em busca de sua autoconfirmação.
Quando falamos do conto nos vem logo o pensamento das concepções da infância
em Clarice Lispector, pois observamos os movimentos da criança no caminho da
construção de sua subjetividade, a partir da relação com todos que o avaliam a todo o
momento. Os esboços identitários que sustentam o menino estão em ambientes
distintos, onde temos um processo alienante da inteligência que a personagem teria na
construção do “eu”, e que está num paradoxo, em que cabe ao outro dizer o que eu sou.

Se era inteligente, não sabia. Ser ou não inteligente dependia da


instabilidade dos outros. Às vezes o que ele dizia despertava de repente nos
adultos um olhar satisfeito e astuto. (...) Assim, pois quando era inteligente,
tinha ao mesmo tempo a inquieta sensação de inconsciência: alguma coisa
lhe havia escapado. A chave de sua inteligência também lhe escapava.
(LISPETOR, 1971).

Esse estado está relacionado como sendo normal, pois é a forma de


autoconhecimento identitário da criança, que gera uma negação ou aceitação do “eu”.
Portanto, o sujeito é formado no contato com os outros, que constitui uma dimensão
eminentemente social. Uma tentativa de autoconstrução, ou seja, a construção de “si”, e
passa para uma compreensão psíquica natural do homem, como sendo um fundamento
da constituição humana. Dando-lhe um sentido próprio para vivencia no mundo com
sua realidade. A loucura torna-se então um reflexo da subjetividade de cada pessoa.
As categorias de identidade que formam a subjetividade são formadas através de
práticas excludentes, que Foucault chama de práticas divisórias, que dividem o normal
do anormal. Normal se refere à maioria ou ao grupo dominante, portanto, aqueles que se
desviam desta norma são marginalizados. A personagem não é vista mais como

508
inteligente por seus familiares porque seu conhecimento tornou-se comum, e isso o
deixa a parte do meio.
A marginalização tem efeitos em nível material, por exemplo, menos
autoridade cultural para falar. As categorias normativas produzem efeitos
psicológicos, tais como opressão internalizada ou baixa autoestima. Elas
também têm efeitos materiais através de seu poder em definir e excluir. Por
isso a identidade pode ser uma importante fonte de empoderamento.
(MCLAREN, 2016,p.163).

A personagem (criança) é um sujeito social de momentos evolutivo e descentrado


de um “eu”. Verifica-se em suas ações ecos de diferentes aceitações sociais
caracterizando uma heterogeneidade própria à sua constituição. Correlatos a essa
heterogeneidade, contrastam o desejo, o poder e ao niilismo do sujeito ao considerar um
nada.
Se era inteligente, não sabia. Ser ou não inteligente dependia da instabilidade
dos outros. Às vezes o que ele dizia despertava de repente nos adultos um
olhar satisfeito e astuto. (LISPETOR, 1971, 11).

Como nos afirma Foucault (2004, p. 275), “o sujeito não é uma substância. É uma
forma, e essa forma nem sempre é, sobretudo, idêntica a si mesma. [...] Há,
indubitavelmente, relações e interferências entre essas diferentes formas do sujeito. Em
cada caso, se exercem, se estabelecem consigo formas de relação diferentes entre o
sujeito e o meio. E o que me interessa é, precisamente, a constituição histórica dessas
diferentes formas do sujeito. ”
O personagem do conto não sabia o que era, pois sua família o fazia duvidar de
sua suposta inteligência. As tentativas de se mostrar inteligente estava se desvaindo, e
agora ficava uma crise que o perturbava. Pois a inteligência não era dele, e sim da
intenção dos outros de achá-lo inteligente. Dependia sempre de juízos de comparação.
O valor atribuído a essa inteligência é sempre fálico, na medida em que o falo deve ser
entendido como a voz cêntrica de uma autoridade constituída sobre o corpo do outro. O
imaginário comporta então que todos se situem enquanto objetos comparáveis uns com
os outros, distribuíveis segundo uma escala.
Nestas situações desvendamos a atuação e de como a loucura se instaura na
autoconstrução dos sentimentos e encontros da personagem.
Assim, pois, quando era considerado inteligente, tinha ao mesmo tempo a
inquieta sensação de inconsciência: alguma coisa lhe havia escapado. A
chave de sua inteligência também lhe escapava. Pois às vezes, procurando
imitar a si mesmo, dizia coisas que iriam certamente provocar de novo o

509
rápido movimento no tabuleiro de damas, pois era esta a impressão de
mecanismo automático que ele tinha dos membros de sua família: ao dizer
alguma coisa inteligente, cada adulto olharia rapidamente o outro, com um
sorriso claramente suprimido dos lábios, um sorriso apenas indicado com os
olhos, "como nós sorriríamos agora, se não fôssemos bons educadores" - e,
como numa quadrilha de dança de filme de faroeste, cada um teria de algum
modo trocado de par e lugar. (LISPETOR, 1971, 11).

Essas situações são então caracterizadas como um assujeitamento ideológico, pois


ele não conseguia mapear o campo interpretativo familiar, o que Brandão (2004) define
como algo que consiste em fazer com que cada indivíduo (sem que ele torne consciência
disso, mas, ao contrário, tenha a impressão de que é senhor de sua própria vontade) seja
levado a ocupar um lugar, mesmo que não seja seu, a identificar-se ideologicamente
como grupos ou classes de uma determinada formação social. No caso do conto isto se
da quando a admiração a suposta inteligência da criança é questionada por ela mesmo.
Essa presença da Personagem-criança que ainda não descobriu a chave de sua
inteligência devido à instabilidade dos outros à sua volta é uma singularidade do conto.
Pois quando ele faz uma observação que é considerada inteligente, ao repeti-la em outro
momento, ele espera que ela acarrete uma reação parecida, porém o ato não se repete. O
que é considerado inteligente um dia, já não é mais em outro.
É então que surge sua miopia e progride, pois agora tudo havia perdido o sentido,
e ele mesmo tinha perdido o foco das coisas. O próprio garoto cria instabilidades nos
outros ao criar perspectivas instáveis de ralação do “eu” com o “outro”. Essas tensões
geram o delírio no menino, tornando-se então um reflexo de sua subjetividade, como
consequência da busca pelo autoconhecimento.

Um pouco nervoso, diziam (...). Mas “nervoso” era o nome que a


família estava dando à instabilidade de julgamento da própria família.
Outro nome que a instabilidade dos adultos lhe dava era o de “bem
comportado”, “dócil”. Dando assim um nome não ao que ele era, mas à
necessidade variável dos momentos. (LISPETOR, 1971, 12).

Quando lhe disseram que iria passar um dia com uma prima sem filhos, ele
colocou-se a planejar o dia da visita. Criando assim muita expectativa. Porém ele não
contava com um dente de ouro na boca de sua prima, o que o faz ficar desequilibrado,
criando mais tensões que acabam descontruindo toda construção antecipada por sua
mente.

510
Diante da instabilidade da aceitação de sua prima, o menino tem então um
momento de lucidez, e é partir desse momento epifânico que ele consegue perceber o
mundo com clareza, que o faz aceitar as relações de extremo impossível.
Mediante essa atenção com liberdade, sustentado por esse horizonte amoroso não
invasivo que a prima lhe oferece, o menino pela primeira vez vê claramente o mundo. A
visibilidade última estaria na não nitidez, no embaçamento míope, na cegueira, naquilo
que não tem contornos, que não se desenha.
O menino então decide aceitar a (loucura) instabilidade das coisas e o fato de que
nunca encontrará a chave da inteligência, pois não dependia do outro, e sim de sua
aceitação. O menino aprecia “sua” inteligência e descobre-se, e tem uma progressão ao
autoconhecimento. No entanto, não podemos negar a intencionalidade (marcas do
inconsciente, voz do outro), desconstruída diante do momento epifânico.
O conto se encerra com uma compreensão de que, não importa o quanto tentemos
manipular ou controlar nossas vidas, não há nada que possamos fazer em relação aos
aspectos representativos da loucura, apenas podemos investir nela como uma
possibilidade de reestabelecimento desse “eu”, estando ela atrelada a um processo de
construção da voz do sujeito na relação estabelecida com a família e com a sociedade,
reflexo de uma privação e de opressão mental, que ocasiona uma ação identificatória.
Vemos o garoto como um ser bastante desconfiado dos feedbacks que seu entorno
lhe oferecia. As lentes de seus óculos encarnam sua vontade de atribuir figurabilidade
estáveis aos outros e, por conseguinte a si mesmo.
É a partir desta análise que podemos perceber que pode haver a possibilidade de
um diálogo entre o louco e o “são”, em que não haveria interdições na linguagem do
louco.

Conclusão

Diante do exposto acima, pode-se dizer que os encontros entre loucura e a


Literatura ocorrem em função de contextos, em que a loucura foi de alguma forma
questionada, no sentido de se querer saber mais sobre ela, como no caso da investigação
no conto.
A mudança de foco, do louco ou da loucura, para aquele que o identifica e
determina, proporciona ao leitor enxergar a loucura por outro ângulo e assim entender

511
como os discursos são produzidos, como são revestidos de verdade e o real sentido
produzido para melhor sustentar o aparente status natural de convicções e opiniões
inalteráveis. Esse é o ponto de tensão da obra, uma vez que, a personagem não se
reconhece porque o delírio é a construção crítica da realidade
A Literatura como manifestação artística rompe com os dogmas que a sociedade
lhe impõe. Ao tematizar sobre os fatos humanos, sociais e históricos, ela busca conferir
um trato estético e verossímil para experimentação do mundo. Assim, quando o texto
literário se debruça sobre uma caricatura procura fazer dela loucura, não visando riso ou
deboche, mas procurando, a partir desta caricatura, fazer da loucura uma dúvida, ou
uma modalidade da obsessão, para então fazer dela crítica e reflexão. Já que a loucura
possui seu translado como uma oposição às formas ditas normais da vida cotidiana.

Referências

BRANDÃO, Helena Hathsue Nagamine. Introdução a analise do discurso. 2ª ed. São


Paulo: Editora UNICAM, 2004.

FOUCAULT, Michel. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 2004.

FOUCAULT, Michel. A Ética do Cuidado de Si como Prática da Liberdade. In:


MOTTA, Manoel Barros da. Ditos &Escritos V – Michel Foucault: Ética, Sexualidade,
Política. Tradução de Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2004. p. 264-287.

GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo: Perspectiva, 2010.

LACAN, Jacques (1946) Formulações sobre a causalidade psíquica. In: __. Escritos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

LISPETOR, Clarice. Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: 1ª ed. Rocco. 1971.

MCLAREN, Margaret A. .Foucault, feminismo e subjetividade. São Paulo: Intermeios,


2016.

SOUZA, Eudoro de. Dioniso em Creta e outros ensaios. São Paulo: Duas cidades,
1973. 333 p

512
AUSENTAM-SE OS AMORES, ALOJAM-SE AS FERIDAS: DESPOJOS DA
LOUCURA EM GUIMARÃES ROSA

Letícia Simões Velloso Schuler (UFPB)1

Resumo: Com o advento da psicanálise, no século XIX, a loucura ganha novos ornamentos.
Sigmund Freud, ao se debruçar sobre O caso Schreber (1911), elucidou mecanismos defensivos,
inconscientemente ativos, mobilizados pelo sujeito paranóico para lidar com as suas
instabilidades psíquicas. O presente trabalho, pretende examinar, no conto Sorôco, sua mãe, sua
filha, que compõe a coletânea Primeiras Estórias (1962), de João Guimarães Rosa, o modus
operandi dos personagens principais, cujas vidas são arquejadas pela loucura, a qual lhes
(des)figura o caráter. Na esteira de diálogo, aqui proposta, debruçaremos sobre os trabalhos de
Freud (1924), Foucault (1972), Nasio (2001) e Guerra (2010).

Palavras-chave: Guimarães Rosa; Psicanálise; Psicose

Introdução
De origem imprecisa, apesar de persistente, a loucura ergueu seus pilares nas mais
diversas estações da história, transformando homens e mulheres em bestas insanas ou
moribundos extraordinários. Michael Foucault, em sua História da loucura (1972), nos
oferece um mapeamento factual desse fenômeno, ao delinear o modo como as
perturbações da razão foram apreendidas pelas instituições, desde a Idade Média até a
modernidade. Durante o medievo, o louco passa a ocupar um lugar antes reservado aos
leprosos, pois, como estes, possuíam uma chaga a ser controlada, confinada, para
finalmente ser extinta. Assim, é nítido percebermos que o ostracismo e a repulsa foram
companheiros de longa jornada daqueles que comungavam da insanidade.
Ao resgatarmos o período da renascença, verificamos que o caráter ideológico sofre
mudanças e os “degenerados” são exilados em embarcações errantes, a nau dos loucos,
que, ao percorrer as águas da ignorância, naufragava em visões reducionistas e inócuas,
frente à complexidade do psiquismo humano. Já no século XVII, momento em que a
medicina higienista finca suas raízes, a loucura reclama, em definitivo, o internamento de
seus hospedeiros, e, dois séculos mais tarde, a relação entre a psiquiatria e o
ensandecimento se estabelece de forma mais intensa, o que ocasiona a proliferação dos
manicômios e uma mudança brutal, no “tratamento” dos pacientes.
Diante dessa breve retomada histórica, notamos que a marginalização desses
sujeitos permaneceu inalterável. Porém, é no século XIX, com o advento da psicanálise,

1
Mestranda em Letras (UFPB). Contato: leticiaschuler6@gmail.com

513
que a loucura sai desses terrenos obscuros e inscreve-se, a partir dos escritos de Sigmund
Freud, enquanto uma estrutura clínica.
Assim, partindo da interlocução entre a literatura e a psicanálise, e de modo a traçar
um diálogo entre essas e outras reflexões, selecionamos o conto “Sorôco, sua mãe, sua
filha”, escrito por João Guimarães Rosa, publicado na coletânea Primeiras Estórias
(1962). Na narrativa, pretendemos analisar, a partir daquilo que as personagens têm a nos
dizer, aquilo que Freud teorizou como psicose.

Reflexões teóricas
Temor, confinamento, marginalidade e atração foram situações e sentimentos que
sempre caminharam lado a lado da loucura. Ao se estabelecer enquanto estrutura clínica,
ao lado da neurose e da perversão, a psicose, denominação teórica, ganha novos
ornamentos e se revela como uma resposta diante da impossibilidade da linguagem dar
conta daquilo que concerne à experiência pulsional do sujeito.
A invenção de histórias, a alucinação de imagens que inexistem e o delírio,
compõem o funcionamento desse indivíduo, ou seja, essas características nos dizem da
forma como ele opera, ao passo que conferem a esse sujeito uma lógica interna, que,
naturalmente, não é partilhada pelos demais.
Sigmund Freud, ao se debruçar sobre “O caso Schreber”, publicado em 1911,
elucidou mecanismos defensivos, inconscientemente ativos, mobilizados pelo sujeito
paranoico para lidar com as suas instabilidades psíquicas. Numa tentativa desesperada de
proteção, o ego, na psicose, rejeita porções desagradáveis da realidade, impossíveis de
serem (re)integradas ao mundo interno, em virtude da impetuosa carga afetiva que
carregam. O resultado é a erupção de formações delirantes e alucinatórias, com vistas a
obturar as rachaduras impostas à mente.
É a partir deste caso que citamos anteriormente que o debate em torno das
estratégias de cura que podem ser construídas pelos psicóticos surge. O mestre vienense
se baseia na ideia de considerar o delírio não mais como um sintoma, mas como uma
tentativa de cura. Podemos pensar em um movimento desses sujeitos em direção a uma
solução ou estabilização. Porém, as contribuições freudianas, como bem podemos
observar em seus textos, não se direcionaram, de maneira muito delimitada, para essas
soluções subjetivas. Diferentemente daquilo que observamos nos escritos de Jacques

514
Lacan, que, em sua clareza estrutural, podemos encontrar uma via para conceber essa
“impossibilidade de a linguagem apreender a experiência com o corpo e com a realidade”
(GUERRA, 2010, p. 12).
Em seu texto “Neurose e psicose” (1924), Freud define, de maneira muito objetiva,
a diferença entre essas duas estruturas que dão título ao texto: “a neurose seria o resultado
de um conflito entre o Eu e o Id, enquanto a psicose seria o análogo desfecho de uma tal
perturbação nos laços entre o Eu e o mundo exterior” (FREUD, [1924] 2010, p. 159).
Ele nos apresenta a possibilidade de a psicose ser um resultado de um radical
mecanismo de defesa inconsciente. Considerando que nosso psiquismo é constantemente
alimentado pelo afeto, sendo este investido em representações, que por sua vez, são
aquelas que estão como registro em nosso inconsciente, devemos perceber que:

Lidamos com as representações de objeto ao falarmos e nos expressarmos.


Porém, nem sempre elas se encontram dispostas da maneira como acabamos
de explicar. A relação entre as representações conscientes e inconscientes do
objeto pode se dispor de outras maneiras. Freud nos explica que, na
esquizofrenia – um tipo clínico das psicoses –, as palavras podem ser tomadas
como se fossem coisas. Haveria um superinvestimento nas representações das
palavras como forma de suprir a não inscrição das representações das coisas
no inconsciente. Dessa feita, as palavras são tomadas como coisas. (GUERRA,
2010, p. 13).

Ao considerar que a representação daquilo que é hiperinvestido ocorre por meio da


associação com aquilo que a palavra que lhe corresponde representa, o psicanalista nos
revela que, no inconsciente, há apenas a representação da coisa do objeto, que, por sua
vez, é um ponto rejeitado na psicose. Assim, é lícito concluirmos que não há um
investimento das representações de palavras na psicose, pois, esse processo não compõe
a operação de rejeição. O que ocorre, na verdade, é uma tentativa inicial de
restabelecimento, que é dirigida a um resgate do objeto perdido.
Não há simbolização, as palavras são reais; não existe um escoamento de energia
que, ao viver uma situação traumática ou que demande uma intensa carga afetiva,
colabore para que todo esse excesso se transforme em uma ideia ou a uma representação.
O comportamento que esse sujeito psicótico apresenta é o de que a representação nunca
lhe ocorreu.
Se estabelecermos, mais uma vez, uma comparação com o neurótico, por exemplo,
perceberemos que, se algo o aflige, essa situação é recalcada. Dessa forma, há o retorno
desse recalque sob a forma de sintoma, que pode ser manifestado no corpo ou no

515
pensamento. Entretanto, é necessário considerarmos a existência de um laço simbólico
que liga a formação desse sintoma, àquilo que fora recalcado, o que não ocorre na psicose.
Aquilo que angustia ou é desagradável, ao ser rejeitado, ou é substituído pelo delírio.
Assim, a diferença entre aquilo que é pensado como o normal e aquilo que se equivale à
loucura, não está no rompimento com a realidade, mas, sim, no percurso escolhido para
que ela seja restaurada.
Essa rejeição a que nos referirmos, ocorrida na psicose, se estabelece enquanto uma
defesa que proporciona uma negação da realidade; de um fato desagradável, que encontra
no delírio, uma saída.

Vozes incompreensíveis da loucura


Considerando que o psicótico se apodera de seus delírios, criados a partir de sua
imaginação, e age de tal maneira que considera a lógica desse universo irreal como
verdadeira, é interessante perceber também que o escritor, de maneira semelhante,
constrói sua própria realidade na qual se aliena, mesmo que momentaneamente. Ele
arquiteta uma lógica ficcional no momento em que cria suas personagens e seus mundos.
Assim, o momento de criação também pode ser visto como uma ocasião em que o
inconsciente do artista se manifesta, que sua dimensão imaginária é posta em primeiro
plano durante esse estado passageiro e reversível.
Mas a psicose também é tema de grandes obras da literatura, já que esta se
estabeleceu enquanto grande palco para a manifestação de metáforas, de imagens, de
símbolos e de subjetividades. Esse diálogo entre o que seria o real e o que seria o
imaginário, relação básica encontrada no campo das psicoses, ganha destaque, por
exemplo, Dom Quixote de la Mancha, do escritor espanhol Miguel de Cervantes, que teve
sua primeira edição publicada no ano de 1605. Que narra as aventuras do personagem que
dá nome à obra quando este resolve viver as histórias que leu e que acredita serem reais.
Podemos citar, ainda, o grande clássico da literatura francesa Madame Bovary, de
Gustave Flaubert. Nele, somos apresentados à Emma, uma personagem melancólica, ou
seja, após uma leitura que busque entender suas subjetividades, percebemos que ela sofre
de uma psicose maníaco-depressiva.
João Guimarães Rosa (1908-1967), reconhecido escritor brasileiro, conta algumas
histórias em que a loucura das personagens norteia o enredo. No conto “O recado do

516
morro”, a formação de um recado, enviado inicialmente por Morro da Garça ao enxadeiro
Pedro Orósio, é o fato que desencadeia os fatos. O recado, que é, no início, escutado como
um grito, vai, paulatinamente, sendo organizado pela linguagem, ao passo em que é
alterado por outros sete recadeiros, todos eles vítimas da loucura. Em Primeiras Estórias,
nos deparamos com o conto “Sorôco, sua mãe, sua filha”, sobre o qual iremos nos
debruçar nas próximas linhas.
O corpus selecionado para análise tem sua narrativa construída a partir do momento
em que Sorôco conduz sua mãe e sua filha a um trem que acaba de chegar a cidade e que
tem como destino final um hospício localizado em Barbacena, conclusão esta que só se
torna possível, ao final da leitura. Um fato simples, mas essencial para a construção de
nossas reflexões e apontamentos. A cena inicial é marcada pela descrição do vagão que
irá acomodar as passageiras, nos dando as primeiras pistas do destino dos únicos parentes
de Sorôco, considerando ainda que seria “para longe e para sempre”.
Ao passo que esse espaço é descrito, percebemos sua real função, a de
encarceramento. Grades são vistas e a ideia de prisão vai sendo concretizada. Esse trem,
que remetia a um canoão seco e tinha suas pontas empinadas, nos leva a pensar na
possibilidade de que seria nada menos do que a nau descrita por Foucault, que levava
“sua carga insana de uma cidade para outra”; levando-os para a permanente exclusão. As
personagens estão indo para um embarque em um trem que as transportará em uma
viagem sem retorno, pois, “a navegação entrega o homem à incerteza da sorte; nela, cada
um é confiado a seu próprio destino, todo embarque é, potencialmente o último”.
(FOUCAULT, ANO, p.).
Há, na cena, pessoas “porfiando no falar com sensatez, como sabendo mais do que
os outros a prática do acontecer das coisas” (ROSA, 2016, p. 53). Ao recorrermos ao
dicionário, concluímos que o verbo “porfiar” tem seu significado atribuído ao ato de
“lutar por” ou “empenhar-se”, então, há um esforço para que o falar com sensatez ocorra
de maneira satisfatória. Esse fato também nos fornece indícios de suas subjetividades e a
razão pela qual a narrativa se encaminha para um desfecho tão particular e surpreendente.
O psicótico trata sua fantasia como uma verdade suprema, tenta falar com sensatez,
ao passo que permanece na tentativa de que as pessoas que estão ao seu redor também se
incluam em seu delírio, e o encarem, junto com ele, como sendo suas realidades.

517
Ao entrarem, finalmente, no vagão, as personagens começam a entoar um canto,
caracterizado como “aquela chirimia, que avocava”. Automaticamente, esse momento
nos direciona para um aspecto essencial e básico quando estamos lidando com psicóticos,
a sua relação com a linguagem.
Envolto pelo sentimento de solidão, Sorôco é tomado por um “excesso de espírito,
fora de sentido” e começa a cantar a mesma cantiga entoada anteriormente pelas duas
personagens. Em consequência, todos aqueles que estavam ao seu redor copiam o
comportamento e “todos caminhando, com ele, [...] e canta que cantando, atrás dele, os
mais detrás quase que corriam, ninguém deixasse de cantar.” (ROSA, 2016, p. 56). Fica
claro que a comunidade não se isenta da loucura, mas, sim, a incorpora e aquele canto
ressoa por toda a ambientação, nos revelando assim, que qualquer um é passível de ser
levado pela nau dos loucos.
A rejeição do fato da realidade e a posterior construção de uma saída diante da perda
da relação com esse mundo externo, se dá pelo delírio, ou seja, o psicótico repudia e tenta
substituir. Essa defesa estrutural, a psicose, baseia-se numa retirada da libido dos objetos,
esta, por sua vez, se dá pela negação do objeto, utilizando como defesa a entrada num
mundo psicótico.

Considerações finais
Desde as primeiras manifestações daquilo que antes recebia a denominação de
loucura, a exclusão daqueles que desse mal sofriam, era uma atitude constante e a
tentativa de curá-los também se fez presente.
Compreender a estrutura psicótica nos auxiliou a elucidar a diferença desses
sujeitos, e não sua deficiência, atitude que pode ser comumente observada ao voltarmos
no tempo. Essa insuficiência da linguagem em dar conta de uma experiência pulsional, é
uma constatação que norteou nosso percurso e nos auxiliou na aproximação entre aquilo
que os personagens de “Sorôco, sua mãe, sua filha” nos revelavam e a teoria psicanalítica.
Guimarães Rosa escreve para nós, leitores, uma narrativa em que a criação de uma
nova realidade por parte das personagens nos possibilita lançar um novo olhar para o
texto, a fim de tentar decifrar aquilo que está além do escrito. O vagão, as grades, o trem
que as levaria para longe, são elementos que dialogam com nosso entendimento do texto.

518
Além disso, o canto que é entoado é de extrema relevância para a efetivação de nossa
análise.
Porém, é necessário destacarmos, por fim, que os estudos que se voltam para as
psicoses atualmente, são resultado de uma considerável modificação. O olhar lançado
para os sujeitos que criam suas próprias realidades é outro. A internação dá lugar ao
tratamento e à possibilidade de cura.

Referências
BELLEMIN-NÖEL, Jean. Psicanálise e Literatura. São Paulo: Editora Cultrix, 1987.
FOUCALT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1972.
FREUD, Sigmund. Neurose, psicose, perversão. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2016.
GUERRA, Andréa Máris Campos. A psicose. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.

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AS INTEMPÉRIES DA RAZÃO: O CAOS E A MELANCOLIA EM A PINTURA
EM PÂNICO, DE JORGE DE LIMA

Luiz Felipe Verçosa da Silva (UNEAL)


José Antonio Santos de Oliveira (UNEAL)
Amanda Ramalho de Freitas Brito (UFPB)

Resumo: O presente trabalho busca analisar o livro de fotomontagens A pintura em pânico


(1943) de Jorge de Lima, verificando como o autor parte dos pressupostos da iconicidade
semiótica para reinventar o já dito e romper com as cartilagens do interdito, mesclando
elementos do campo da percepção visual com símbolos surreais, extrapolando a tessitura do
plano físico e flertando com o plano onírico de percepção espacial. Nesse sentido, observou-se
como a ótica do escritor permanece confinada à melancolia, que somadas pelas insubmissões às
questões históricas, configuram a relação com a “desrazão” do autor. Para embasar o trabalho,
utilizamos as discussões de Freud (1917) e Bataille (2014).

Palavras-chave: A pintura em pânico; Melancolia; Caos.

Introdução

Jorge de Lima (1885-1953) no projeto e construção estética das fotomontagens


em A pintura em pânico (1943), parte dos pressupostos da iconicidade semiótica para
reinventar o já dito e romper com as cartilagens do interdito, que está embutido no
subconsciente humano, mesclando elementos do campo da percepção visual com
símbolos surreais, extrapolando a tessitura do plano físico e flertando com o plano
onírico de percepção espacial das coisas e sentimentos do mundo para denunciar e
revelar o inconsciente coletivo. Nessa perspectiva, notam-se como as suas expressões
perpassam por temáticas que giram e miram na própria condição do homem na
sociedade, o que faz com que a obra passe a se tornar mais do que uma manifestação da
visão crítica do autor sobre o mundo que o cerca, e sim, uma extensão psíquica das
projeções mais tênues de seres conflituosos, que visualizaram apenas na montagem
gráfica e no surrealismo, o recurso essencial e pertinente para emoldurar, remodelar e
exprimir a ótica humana. Reiterando essa discussão, Bosi explica que:

A experiência da imagem, anterior à da palavra, vem enraizada no


corpo. A imagem é afim à sensação visual. O ser vivo tem a partir do
olho, as formas do sol, do mar, do céu. O perfil, a dimensão, a cor. A
imagem é um modo da presença que tende a supri o contato direto e a
manter, juntas, a realidade do objeto em si e a sua existência em nós.
O ato de ver apanha não só a aparência da coisa, mas alguma relação

520
entre nós e essa aparência: primeiro e fatal intervalo. (BOSI, 1977,
p.13).

Assim, ao analisar minuciosamente toda a obra, percebe-se o quanto a áurea


mística e religiosa vem abarcar a narrativa das fotomontagens de Jorge de Lima, que
contrariando todas as ordens ou alinhamentos metafísicos, traça de maneira sincrônica a
progressão dos fatos que deram origem a vida humana, notabilizando o caos e as suas
consequências (violência, libidinagem, guerra e melancolia) como o principal
responsável dos acasos e colapsos da criação, “objetivando a sua perplexidade em face
de um mundo desconjurado (sempre a obsessão do caos), que deve, porém, resgatar-se
em vista dos valores absolutos: Eros e Liberdade.” (BOSI, 2006, p. 449).
Seguindo a lógica científica e atribuindo a mística religiosa na narrativa desses
fatos, que para o autor é o fio propulsor para o pânico que contamina o mundo, pois a
sua essência já perpassa pelo cataclismo da desrazão. Sendo o ser humano nesse caso, o
fruto dessa desordem cósmica, que levada para o campo da crença cristã, pela qual
Jorge de Lima dá muita ênfase, surge a partir do momento em que Eva come por
influência da serpente o fruto proibido do Jardim do Éden, resultando posteriormente na
expulsão de Eva e Adão desse paraíso endêmico, resultando na cisão do sujeito nascido
desse “pecado original” que se instaurou na natureza dos seres vivos, que agora
desprovidos da perfeição divina, carregariam em seu cerne o peso desse pecado.
Com isso, o presente artigo visa analisar de que maneira as representações do
caos presentes nas fotomontagens do livro A pintura em pânico (1943) de Jorge de
Lima, afetam o subconsciente coletivo e revelam os anseios e as premissas que
perpassavam o âmago do homem no início do século XX, que rodeado de conflitos
internos e externos, como o apogeu das duas grandes Guerras Mundiais e todas as
transgressões notabilizadas pelos sentimentos de luto, melancolia e sexo, desconfiguram
a identidade desse ser.

Do pecado à desrazão: o caos em A pintura em pânico, de Jorge de Lima

Na fotomontagem da página 43, versificado como “e as primeiras fecundações


contra todas as ordens”, há a ratificação dessa discussão sobre a origem do caos que
cerca a natureza humana, que por mais desprovida da perfeição divina, carrega com si a
essência da vida, que simbolicamente está representada na figura nos contrastes que
formam as veias do corpo em maturação. Contrariando toda a ordem divina que projeta

521
as primeiras fecundações decorrentes da desobediência, o que consequentemente
emerge numa crise entre a vida e a morte.

Fig. 1 “e as primeiras fecundações (contra todas as ordens)”


In A pintura em pânico (1943), de Jorge de Lima.

Outro detalhe se encontra na posição em que essa forma anatômica em


construção está, onde submerso acima da atmosfera terrestre, visualizasse que abaixo
das nuvens, há uma explosão que nitidamente está abalando alguma região, remetendo
imediatamente a ações bélicas, que se levado para a historicidade da obra, faz alusão
diretamente aos conflitos que abalaram o mundo no início do século XX, entre eles a
Primeira Guerra Mundial. Com isso, o autor ressignifica semioticamente as
consequências do “pecado original” para denunciar a deterioração do ser humano, que
mesmo consciente da sua iluminação cósmica (por isso a figura traz na cabeça do corpo
a figura de um eclipse), só descontrói a sua natureza e razão, disseminando o ódio, a
ganância e o caos entre os seus semelhantes.
Numa perspectiva que fica em evidência pela confecção da fotomontagem, que
busca segmentar essa visão distópica da realidade mundana do autor, por meio de um
surrealismo onírico, unindo elementos fotográficos de planos concretos com fragmentos
de outras imagens, que a partir desse enlaçamento, possam produzir ou provocar um
sentido próximo daquilo que o autor projetou em sua montagem. Para melhor elucidar
essa observação, Eisenstein diz que:
Nesse caso, cada fragmento de montagem já não existe mais como
algo não-relacionado, mas como uma dada representação particular
do tema geral, que penetra igualmente em todos os fotogramas. A
justaposição desses detalhes parciais em uma dada estrutura da
montagem cria e faz surgir aquela qualidade geral em que cada
detalhe teve participação e que reúne todos os detalhes num todo, isto

522
é, naquela imagem generalizada, mediante a qual o autor, seguido pelo
espectador, apreende o tema. (EISENSTEIN, 2002, p.18).

Ainda na fotomontagem, algo salta aos olhos e desperta uma leitura que se faz
pertinente com os desdobramentos até então discutidos: numa das partes que formam o
corpo humano em exibição, a posição da mão esquerda aponta fixamente para baixo,
indicando uma desorganização do campo das ideias e da racionalidade do homem,
contrariando os grandes estudos filosóficos do mundo moderno e dialogando
conflituosamente com uma famosa pintura A Escola de Atenas, do pintor italiano de
Rafael Sanzio (1483-1520), que mostra em outras figuras da mitologia ocidental, as
imagens de Platão e Aristóteles, representando as duas faces da filosófica do mundo
clássico, onde Platão apontando para cima, representa a filosofia abstrata e teórica, que
está centrada no Racionalismo, corrente filosófica que prega que o homem já nasce com
o conhecimento e a razão, é a única fonte válida de acesso a esse conhecimento. Já
Aristóteles está com a mão indicando a algo ao seu redor, representando a filosofia
natural e empírica, pautada na corrente filosófica que prega que o homem não nasce
com o conhecimento, e sim, que ele vai adquirindo esse conhecimento ao modo em que
vai vivendo e acumulando experiências, que está relacionado diretamente com a
desobediência sugerida na pintura a partir do mito de fundação edênico, evidenciando
desse modo esse conflito surgido dessa relação do homem em lidar com a sua razão e
com as suas emoções.

Fig. 2 “A Escola de Atenas” Recorte (1509), de Rafael Sanzio.

Desse modo, pode-se deduzir que a fotomontagem está negando a ambas


correntes filosóficas, principalmente a racionalista, pois a figura ilustra o a inclinação da
mão sendo apontada para baixo, numa possível metáfora que diz que se o homem fosse
munido desses conhecimentos inatos ou empíricos, ele não se autodestruiria e colocaria

523
em risco a sua natureza e provando ainda mais a real condição do homem, que por mais
racional possível, não consegue se desprender da finidade de sua existência, o que
corrói a sua essência e o leva a certos estados de loucura, a qual Foucault atribui a um
aspecto individual de cada ser, já que:

A Loucura só existe em cada homem, porque é o homem que a


constitui no apego que ele demonstra por si mesmo e através das
ilusões com que se alimenta. A Philautia é a primeira das figuras que a
Loucura arrasta para sua dança, mas isto porque estão ligadas uma à
outra por um parentesco privilegiado: o apego a si próprio é o
primeiro sinal da loucura, mas é porque o homem se apega a si próprio
que ele aceita o erro como verdade, a mentira como sendo a realidade,
a violência e a feiura como sendo a beleza e a justiça. (FOUCAULT,
1978, p.30).

Sendo essa desconfiguração do estado psíquico do homem, a principal causa do


pânico de Jorge de Lima, que consciente dessas percepções, busca personificar e
reinventar os conceitos universais que povoam o mundo, por meio de colagens de
figuras que visualmente não fazem sentido à parte, mas juntas na fotomontagem,
exprimem a tessitura que forma a poesia icônica de multifacetado escritor alagoano,
perpassando pela interlocução de sentidos pelas quais a tradução intersemiótica produz,
já que como Plaza (2003) explica, no seu desejo de presentificar, tornar real o objeto
que pretende comunicar, o artista exacerba ou torna proeminentes os caracteres do meio
que utiliza, tornando-o autorreferencial. E essa passagem-tensão entre os meios que
querem comunicar, mas se autorreferenciam, toca na sua própria materialidade como
elemento detonador de seu sentido, como pura semelhança.
Nisso, surge então como consequência dessa intempérie que o caos provoca no
inconsciente, um sentimento de melancolia: uma perda do controle emocional e
psíquico em relação ao mundo e as ações do homem, ao qual o sujeito lírico não
consegue mais lidar. Deixando-o à deriva da sua própria incapacidade, tão vã que não o
instiga a enxergar alternativas para um futuro próspero.

Uma breve abordagem sobre a Melancolia

As perdas são inerentes à existência. Elas acompanham as diversas realidades do


ser humano, independentemente de sua classe social ou das suas convicções
ideológicas. Algumas mais intensas e emblemáticas que as outras, mas todas são

524
importantes para construção da individualidade do sujeito, enquanto pessoa. Essas
perdas também se manifestam de formas diferentes, materializando-se tanto na
melancolia, quanto no luto, uma vez que estes se configuram como as maneiras
específicas, pelas quais o ser externa suas percepções diante dos objetos perdidos, no
decorrer de sua vida. Freud (1917) aponta as distinções entre Luto e Melancolia, já que,
no primeiro caso, tem-se uma perda consciente do objeto amado junto à diminuição da
libido, o que não chega a interferir em como o sujeito se enxerga diante do mundo. No
caso da melancolia, Freud diz que,
Pode ser a reação à perda de um objeto amado; em outras ocasiões,
nota-se que a perda é de natureza mais ideal. O objeto não morreu de
verdade, foi perdido como objeto amoroso (o caso de uma noiva
abandonada, por exemplo), além disso, diferentemente do luto, no
caso da melancolia, o indivíduo não consegue definir sua perda, ou
seja, sua consciência não visualizada algum objeto perdido. (FREUD,
1917, p. 130).

Nessa perspectiva, a perda, típica da melancolia, não está ligada a ausência de


algum sujeito em especial, às vezes, o próprio indivíduo melancólico não sabe o que, de
fato, aflige o cerne do seu ser, aprisionando-o na tristeza, enraizada em uma ausência
que foge dos parâmetros da dita normalidade e, por não compreender o que lhe falta,
sua morbidez psíquica se acentua, de certa forma, mais irracional. Para Foucault,

A melancolia é uma loucura sem febre nem furor, acompanhada pelo


temor e pela tristeza. Na medida em que é delírio — isto é, ruptura
essencial com a verdade —, sua origem reside num movimento
desordenado dos espíritos e num estado defeituoso do cérebro.
(FOCAULT,1978, p. 294).

O ser melancólico, nesse caso, apresenta traços de uma das manifestações da


loucura, reafirmada na perda da autoestima do indivíduo, que se intensifica no
sentimento de tristeza, ao mesmo tempo em que gera uma certa instabilidade no sujeito.

As configurações da melancolia em A pintura em pânico, de Jorge de Lima

Na fotomontagem a seguir, a legenda/verso auxilia em seu entendimento


enigmático, quando o autor esteia para uma das volições mais recônditas do ser humano
- a de ter Paz. Esta, que nunca foi alcançada em toda extensão da palavra, durante os
séculos da existência humana. Estando ainda mais ausente no período das guerras
mundiais, com inúmeras vítimas de mortes ignominiosas e atrozes. A paz branca,

525
trazendo o símbolo desta, a fim de ratificar que o desejo coletivo/individual de obtê-la
em vários períodos da história soçobrou diante das ações humanas e, além disso, sua
ausência mostra-se responsável pelo desenvolvimento de conflitos internos do sujeito.
Nesse caso, a manifestação da melancolia se acentua na fotomontagem, no momento em
que o sujeito lírico “externa um abatimento doloroso, uma cessação de interesse pelo
mundo exterior, perda da capacidade de amar, inibição de toda atividade”. (FREUD,
1917, p. 128). Esses elementos são facilmente percebidos à medida que o receptor
correlaciona as várias nuances da montagem.

Fig. 4 “Pois sempre desejávamos a paz, a paz branca dentro de um saturno diário”
In A pintura em pânico (1943), de Jorge de Lima.

Desse modo, o verso concatena-se à fotomontagem no momento em que Jorge


de Lima pensa a paz dentro de Saturno, trazendo uma ponte dialógica com os deuses da
mitologia romana, já que Saturno, devido à sua arrogância e receio de perder seu trono,
ingere seus filhos. Esse ato de devorar os próprios filhos remete para a natureza corrente do
tempo. Ademais, recupera a própria simbologia do planeta. Levando em consideração,
que, segundo Scliar (2003, p. 74) “a melancolia está sob o signo de Saturno”. A
melancolia está relacionada na pintura com os conflitos do sujeito, o que é demarcado
inclusive pela ideia do diário. A guerra é a cisão, o apartamento que remete à solidão.
As mulheres estão distantes, simbolizando a separação, ideia que pode ser apontada se
entendermos a imagem à esquerda como feto, desligado da mãe, posto no jogo da
separação, por isso a falta.
No que se refere à perda de paz individual, liga-se a figura da orelha e das outras
duas pessoas olhando no fundo, uma vez que muitas opressões, causadas nos meandros
de uma sociedade, são produzidas em virtude daquilo que o sujeito ouve e de como este
mesmo ser se sente percebido pelo meio social, no qual faz parte. Dessa forma,
questionam-se como os interditos sociais são criados na sociedade, de modo que gera

526
uma instabilidade no sujeito, quando perde a liberdade de gozar de suas próprias
vontades.
Três elementos primordiais para catalisação de sentidos na próxima
fotomontagem são: Saturno, a mulher e o globo colocado em suas mãos. A obra, aqui
trazida a palco, sintetiza a percepção melancólica de Jorge de Lima e como o autor
compreendia a sociedade, os aspectos peculiares a ela, e o meio que o cercava,
ratificando uma perda significativa de projeções futuras em relação à poesia, que estava
em pânico diante das metamorfoses do século XX.

Fig. 5 “A poesia em pânico” in A pintura em pânico (1943), de Jorge de Lima.

Nesse contexto, a poesia, representada na figura da mulher, tem suas percepções


embasadas sob a ótica melancólica, tanto é que saturno está ligado à sua face, enquanto
encontra-se a pensar, estarrecida, sobre toda mutilação, violência e desastres provocados
pelo homem, arrogante e ganancioso. Em outras palavras, a poesia é o meio pelo qual o
sujeito pode questionar esses intemperes da razão humana, enraizados na forma como o
ser humano age, cuja consequência, para Jorge de Lima, é uma perda da capacidade de
ver as coisas boas do mundo, levando o artista a um estado de profunda melancolia.
Além disso, na caracterização da mulher, tem-se uma nítida referência a representação
da melancolia, uma vez que conforme Scliar:

A Melancolia não está voando. Está sentada imóvel, na clássica


posição dos melancólicos, com o rosto apoiado em uma das mãos que
deve ter inspirado Baudelaire em versos que também evocam a acédia:
... La Mélancolie, à midi, quand tout dort/ le menton dans la main... A
Melancolia, ao meio-dia, quando tudo dorme/ o queixo na mão... A
cabeça lhe pesa, cheia como está de mórbidas fantasias. Os músculos
da nuca, que deveriam manter erguida aquela cabeça, de há muito
cansaram. (SCLIAR, 2003, p. 82).

527
De fato, A poesia em pânico limiana é descrita dessa maneira apontada por
Scliar, de modo que se verifica uma espécie de personificação da melancolia, de como o
poeta enxergava seu fazer poético no momento de sua produção, já que Jorge de Lima
atrela sua poesia aos elementos presentes em um contexto proporcionado pelos avanços
científicos da modernidade e, ao mesmo tempo, como em outras obras do artista, os
aspectos religiosos também auxiliam nessa construção imagética, o que desencadeia um
senso paradoxal de aceitabilidade e repulsa desses aspectos, porque fazem parte da
realidade do poeta, mas também são responsáveis por causar esse estarrecimento,
gerador da melancolia, pois as ocasiões para formação desta no ser humano “abrangem
todas as situações de ofensa, menosprezo e decepção, em que uma oposição de amor e
ódio pode ser introduzida na relação”. (FREUD, 1917, p. 135).
Nesse sentido, observa-se que essa fotomontagem e outras de A pintura em
pânico encontram sua gênese em uma percepção fragmentada do sujeito, demasiadas
vezes, ocultada ou, simplesmente, interditada por certos padrões, já que a sociedade,
apesar de tantas situações conflituosas, prefere mascarar seus conflitos, mostrando
somente aquilo dito como “belo” e proveitoso para o ser humano, o que, nem sempre,
conversa com as inquietações individuais do ser. Por essa razão, causa-se estranheza,
quando um artista resolve externar tais mutilações por meio da arte, sendo, considerado,
por conseguinte, como louco, por mostrar em suas anormalidades, as mais autênticas
manifestações dos acontecimentos reais da sociedade.
Dessa forma, para Francoia (2005) o conceito de loucura está coadunado à
época, visto que, se outrora era tida como um castigo dos deuses ou uma possessão
demoníaca, em algumas reflexões contemporâneas é apontada por uma perda da
realidade, o que não impede de dizer “que o sujeito dá um sentido próprio para o mundo
em que vive, um sentido todo particular sem reconhecer que esse sentido é uma
interpretação sua da realidade, conhecendo a sua maneira o mundo circundante”.
(FRANCOIA, 2005, p. 48).
Dessa maneira, pode-se dizer que Jorge de Lima, em A pintura em pânico,
reinterpreta sua realidade, de modo que a atribui os sentidos oriundos de sua visão de
mundo nas fotomontagens, já em suas estruturas, nascidas em períodos de instabilidade
social.

528
Fig. 06 “Eis o cálice do fel” in A pintura em pânico (1943), de Jorge de Lima.

Essa fotomontagem, diferentemente das mencionadas logo acima, mostra-se, de


certa forma, diferenciada. Isso porque a construção melancólica, nesse caso, está
diretamente ligada ao eu, deixando alhures os acontecimentos fatídicos do século, a fim
de externar a carga melancólica de um sujeito, a seu ver, condenado, pois a salvação
angariada por Cristo já lhe fora perdida. De acordo com Freud (1917, p. 130) o
melancólico “descreve seu Eu como indigno, incapaz e desprezível; recrimina e insulta
a si mesmo, espera rejeição e castigo”. É perceptível como essa reflexão de Freud
conversa com a fotomontagem de Jorge de Lima, quando se verifica a perda da
autoestima sugerida pela imagem da morte devoradora, fazendo com que, o sujeito
lírico, tão indigno e incapaz, nem como o sacramento da comunhão seria capaz de
granjear a almejada salvação, levando à rejeição de si próprio, cuja única solução é
entregar-se aos seus demônios interiores.
Além disso, podem-se perceber os opostos a construir sentidos imagéticos, cuja
tensão é a principal propagadora de efeitos sugestivos. Em primeiro lugar, a imagem do
sacerdote encontra-se em total congruência com a legenda, que pelo jogo com as
palavras, faz referência à santa missa, mesmo que a palavra fé tenha sido substituída
pelo termo fel, que situa o leitor frente ao gosto amargo de pagar pelos pecados e que
possibilita a construção da ideia de condenação, uma vez que o cálice com o de sangue
de Cristo está sendo entregue a uma alma, possivelmente, já condenada e abraçada pela
morte, representada pelo ser obscuro atrás. Scliar (2003, p.75) traz um pensamento
lógico sobre essa relação entre a divindade e o homem, condicionadora de melancolia,
uma vez que “o fenômeno da melancolia só podia ser entendido como um misterioso e
incompreensível ‘abandono’ de Deus — a perda do gosto da vida e a perda do gosto de

529
Deus (acédia) confundem-se —, ou como castigo de uma falta, em suma, como um
pecado”.
No caso da fotomontagem estudada, tem-se, de fato, essa relação de abandono,
mas é o homem que abandona seu redentor no plano espiritual, pois, mesmo recebendo
fisicamente a eucaristia, em virtude das faltas cometidas pela carne do sujeito lírico, o
ser perde o gosto transcendente de Deus, cuja consequência se acentua simbolicamente
nessa disparidade entre o alimento espiritual (hóstia) e o alimento carnal, as vivências
sexuais do homem, despido de suas vestes e inclinado ao mal, como se abandonar-se ao
pecado fizesse parte de sua natureza humana.
Portanto, de costas ao sacramento da comunhão, por traz das figuras centrais,
encontra-se um homem de cabeça baixa, aparentemente sofrendo pelos seus delitos, que
são transmitidos pela cara de pânico do sujeito, perdido pelos seus pecados. É possível
que o que tenha levado a construção dessa fotomontagem seja a percepção limiana
frente aos desregramentos da sexualidade em meio à dicotomia: bem e mal, uma vez
que o olho está localizado na genitália do homem, assim como em outra fotomontagem,
pelas formas do corpo, verificava-se um olho também na vagina de uma mulher ao lado
dos personagens bíblicos Abel e Caim. Isto ratifica a ideia de como os desejos eróticos
impulsionam os conflitos internos do sujeito lírico, advindos da relação entre desejo e
impedimento, ou seja, interdito e transgressão.

Considerações finais

A lírica limiana inclina-se à melancolia, aos sentimentos de um eu fragmentado


diante da conjuntura nefasta do século XX e, consequentemente, externa uma ótica
melancólica de um sujeito mutilado devido aos intemperes da própria racionalidade,
cuja consequência dessa fragmentação é uma poesia repleta de dualidade, que no cerne
das suas fotomontagens, percorre os caminhos de um ser melancólico, revelando pouco
a pouco, os dramas vivenciados pelo indivíduo, já subjacentes nos livros anteriores.
As fotomontagens que compõem o livro A pintura em pânico, escrito em 1943,
perpassavam por vários caminhos de representação dos signos semióticos, atrelados a
elementos da montagem gráfica para construir de modo icônico percepções oníricas de
um ser altamente sensitivo com a natureza física e mística que o cerca, que incomodado
com o frenesi pela qual a humanidade vem se desenvolvendo, expõe por uma ótica

530
artística, as idiossincrasias do caos na sociedade, que ramificados pelos aspectos
melancólicos oriundos dos anseios sociais, moldam e traçam o perfil do homem do
início do século XX, além de revelar os sentimentos internos e externos que pairavam
pelo subconsciente coletivo da época, ambientado pelas guerras e transformações nas
culturas universais.
Por isso em A pintura em pânico, o sujeito lírico se mostra em pânico frente às
evoluções científicas da modernidade, dadas pela ausência da paz em virtude do período
de guerra, que marca a produção do livro vanguardista, a hipocrisia humana ao impor
valores a serem obedecidos socialmente, mesmo descumprindo-os às obductas e,
decerto, uma perda da vontade de lutar pelos valores morais, percebidos nos três
primeiros livros publicados pelo autor, consequentemente, confinando o sujeito lírico a
um estado de vazio, típico da melancolia, por sentir-se perturbado/condenado devido às
suas inclinações intensas ao erotismo. Intempéries que abalaram o inconsciente coletivo
de uma época e revelaram os anseios de uma cultura, tão marcada pela ação caótica que
os conflitos da razão x emoção desencadearam na sociedade.

Referências bibliográficas

BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte:


Autêntica Editora, 2014.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, Ed. da Universidade de
São Paulo, 1977.
EISENSTEIN, Sergei. O sentido do filme. Tradução de Teresa Ottoni. Rio de Janeiro:
Zahar, 2002.
FREUD, Sigmund. “Luto e Melancolia”. In: Introdução ao narcisismo: ensaios de
metapsicologia e outros textos. Paulo César de Souza (tradução). São Paulo:
Companhia das Letras, 2010.
FOUCALT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Perspectiva, 1978.
LIMA, Jorge de. A pintura em pânico. Rio de Janeiro: Tipografia Luso-Brasileira,
1943.
MENDES, Murilo. “Poesia em pânico.” In: PICCHIO, Luciana Stegagno (ORG.).
Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003.
STAROBINSKI, Jean. A tinta da melancolia: uma história cultural da tristeza. Rosa
Freire d’Aguiar (tradução). São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

531
A IMITAÇÃO DA ROSA: TEXTURAS DE DESEJO E LOUCURA

Maria Genecleide Dias de Souza (UFPB)1

Resumo: O presente artigo procura analisar o processo de foraclusão local, conceito atribuído
ao psicanalista Nasio. A imitação da Rosa é um conto da escritora Clarice Lispector na qual
teceremos reflexões sobre as representações da subjetividade da personagem Laura, uma mulher
em busca de si, que inicia um diálogo interno consigo mesmo, eivada sobre o devaneio da
beleza do ramalhete de rosas, bem como, os entrelaçamentos de desejo e loucura precipitando a
ruptura psicótica.
Palavras-chave: Loucura; Psicanálise; Literatura

Desde os tempos primevos, o ser humano sempre se constituiu a partir do outro e


das experiências extraídas diante desse convívio. O modo como expressamos a nossa
personalidade, conversa como a nossa psiquê percebe, figurativa, metafórica e
metonimicamente, as configurações do mundo externo para o mundo interno,
construindo e desencadeando para o indivíduo novas instâncias de significado e sentidos
no adorno das suas subjetividades.
A incompreensão de um comportamento socialmente ―desviante‖ assume para o
expectador uma narrativa sombria de um processo ―patologizante‖, a psicose. De acordo
com os pressupostos do psicanalista argentino Nasio (2011), somos suscetíveis à
loucura e, em algum momento da vida, ela ressoará. O sujeito que já mantêm laços
frágeis com a realidade envereda por uma travessia barulhenta e, até mesmo, mais
duradoura. Ou no indivíduo estruturalmente neurótico, os sintomas aparecem de forma
modesta, não deixando transparecer nitidamente, além de ser momentânea ou
circunstancial.
Dessa forma, o presente artigo discorrerá sobre o conto A imitação da rosa, de
Clarice Lispector, o qual faz parte da coletânea de Contos: Laços de Família. Lançado
em 1960, aborda os aspectos e representações da constituição da subjetividade da
personagem Laura, uma mulher em busca de si, descobrindo sua identidade. Reflete
sobre a condição do feminino no contexto familiar; sua subalternização diante da figura
do marido; e sobre a rotina dos acontecimentos e a solidão. Tendo em vista, também, a

1
Mestranda pelo programa de pós-graduação em Letras (PPGL–UFPB). Contato:
genecleidecz@hotmail.com

532
construção do enredo. Este se ambienta no espaço da casa a partir do diálogo interno de
Laura consigo mesmo, eivada sobre o devaneio da beleza do ramalhete de rosas.
Logo, analisaremos neste artigo, as feições do desencadeamento psicótico,
instituídas como foraclusão local, desenhadas a partir dos contornos do desejo e do
sofrimento percebidos na protagonista Laura. Como sugere Nasio (2011) o indivíduo
pode não enxergar a realidade tal como aparece, mas submete, esta realidade aos
impulsos fantasísticos de uma ideia fixa. Isto, por sua vez, provoca um embaçamento na
realidade que o psicótico atua, fazendo–lhe com que tenha comportamentos socialmente
dissonantes com o meio.

Caminhos da psicose: as marcas das (des)conexões na foraclusão

O conto Clariceano, A imitação da rosa, traz a figura feminina de Laura como


protagonista, e a partir das suas narrativas internas, ela se debruça a conversar e
problematizar com ela mesma questões do dia a dia, simulando internamente uma
conversa com a amiga Carlota. Laura sairia com o marido Armando para um jantar na
casa de sua amiga. Antes disto ocorrer, resolveu enviar um ramalhete, mas quando olha
para as rosas, começa a perceber uma beleza que ela ainda não tinha notado.
Neste instante, desenlaça o conflito de estilhaçamento transitório do real, havendo
um comportamento excessivo de dúvidas em ofertar ou não as rosas ao Outro. Agindo
de maneira desproporcional, responsabiliza Carlota pelo seu sofrimento. Percebe-se, no
bojo dessa contística lispectoriana, o colorido das relações tecidas a partir da dualidade:
o (in)aceitável e o (des)conexo. O sofrimento momentâneo, experimentado por Laura, é
explicado como uma loucura efêmera. Nasio (2011, p.10) evoca o conceito de
foraclusão local, que seria a ―anestesia das sensações e, portanto, da consciência do que
é percebido. Percebo o acontecimento perturbador, mas não sinto nada nem reconheço a
violência que ele significa. Percebo sem saber o que percebo.‖.
Conforme, explica o psicanalista, este conceito, reflete o estatuto do entre-lugar. O
ser humano, na sua multiplicidade, (des)encontra-se no processo de transição na
produção de sentido. Não existe sujeito ―são‖ que não possa, momentaneamente,
foracluir uma experiência, bem como, um psicótico vivenciar os eventos da vida, ―de

533
maneira saudável‖, e, sem a presença dos distúrbios psicóticos, como: o delírio, a
alucinação ou a despersonalização.
Dessa maneira o psicanalista Argentino tece a seguinte reflexão sobre a loucura:
―Estar louco é ir obstinadamente atrás da sua ideia, uma ideia fixa e falsa que irrompe
sempre nas mesmas circunstâncias, toma conta de nós e nos impele a agir. Estar louco é
não ouvir mais nada além do que se quer ouvir.‖ (NASIO, 2011. Pag. 85). Depreende-se
a partir das palavras do autor a dificuldade que o indivíduo tem de aceitar outras
possibilidades de experiência no real.
É possível perceber em Laura essa ideia fixa da necessidade que a personagem
sente em ficar com as rosas. Recriando uma fala interna, ensaiando uma justificativa
que daria para Maria, ajudante de sua casa, responsável por deixar as rosas na casa de
Carlota.

E, sinceramente, nunca vi na minha vida coisa mais perfeita. Bem, mas agora
ela já falara com Maria e não teria jeito de voltar atrás. Seria então tarde
demais? assustou-se vendo as rosinhas que aguardavam impassíveis na sua
própria mão. Se quisesse, não seria tarde demais... Poderia dizer a Maria: "ô
Maria, resolvi que eu mesma levo as rosas quando for jantar!" E, é claro, não
as levaria... E Maria nunca precisaria saber. E, antes de mudar de roupa, ela
se sentaria no sofá por um instante, só por um instante, para olhá-las. E olhar
aquela tranquila isenção das rosas. Sim, porque, já tendo feito a coisa, mas
valia aproveitar, não seria boba de ficar com a fama sem o proveito. Era isso
mesmo o que faria. (LISPECTOR, 2016. P.172).

A protagonista por apresentar os sentidos desfocados sofre em demasia pelo


ramalhete, ela padece ao submeter a realidade as inclinações das suas percepções.
―Como uma viciada, ela olhava ligeiramente ávida a perfeição tentadora das rosas, com
a boca um pouco seca olhava-as.‖ (LISPECTOR, 2016. P.173). Desse modo o
foracluído não consegue representar no psiquismo o trauma, e esta falta de inscrição,
retorna como um fenômeno sensorial mórbido, a princípio deslocado da realidade. Mas
que cumpre aos comandos de uma narrativa interna, tornando o cognitivo extremamente
sensitivo.
Desde o caso Schreber em 1911, Freud discute que o delírio na psicose pode ser
uma tentativa de cura. O psicótico pode procurar um caminho para a estabilização.
Freud explica que o sujeito ao constituir seus mecanismos de defesas, organiza as
relações de dentro e fora no campo do real e do simbólico, ―o que foi abolido dentro
reaparece fora‖.

534
De forma contínua Lacan evoca o enunciado ―do que é recusado pelo simbólico
reaparece no real‖. Lacan utiliza a palavra foraclusão tomando por empréstimo o termo
do campo jurídico. A expressão que a princípio significa, excluído, aos poucos vai
ganhando novos contornos e cadeias de significações. Agora o seu significado é excluir
alguém ou alguma coisa do lado de fora de um corpo, de uma lei, ou simplesmente,
excluir do lado de fora das leis da linguagem.
Na contemporaneidade outros psicanalistas debatem sobre o termo foraclusão e
suas dimensões na constituição da subjetividade do sujeito, como por exemplo,
Zimerman (2010) baseado nos postulados freudianos ele aponta que a foraclusão é a
forma extrema de negação e, portanto, o sujeito se torna incapaz de simbolizar. Já para
Quinet (2009) o sujeito tem uma maneira própria, singular e individualizada para
registrar a falta inscrita na subjetividade. Foracluir consiste, pois, em expulsar alguém
para fora das fronteiras da linguagem (RABINOVITCH, 2001). Para o psicanalista
Soler (2007) ele recupera o pensamento Lacaniano explicando que o sujeito possui uma
ausência no nível do outro, que consiste na falta de um significante chamado ―Nome-
do-Pai‖, que recai sobre as implicações dos seus efeitos metafóricos.
O ser humano apresenta-se na vida cotidiana pelo véu de múltiplos papéis sociais,
agindo e se comportando de formas diferenciadas em cada papel que assume. Essas
múltiplas folhagens que compõe aspectos da vida do sujeito inscreve subjetivamente
como o indivíduo expressa as dimensões do desejo, angústia, a lei, o medo, bem como,
outras composições de texturas vivenciais.
Tendo em vista uma interpretação analítica é possível recuperar pela voz do
narrador, a ênfase em relação ao dia-a-dia de uma mulher comum, que vai aos pouco se
ajustando de volta ao ambiente da sua casa, ansiando o retorno da sua antiga rotina de
afazeres, mas principalmente de interação com o marido.

Antes que Armando voltasse do trabalho a casa deveria estar arrumada e ela
própria já no vestido marrom para que pudesse atender o marido enquanto ele
se vestia, e então sairiam com calma, de braço dado como antigamente. Há
quanto tempo não faziam isso? Mas agora que ela estava de novo "bem",
tomariam o ônibus, ela olhando como uma esposa pela janela, o braço no
dele, e depois jantariam com Carlota e João, recostados na cadeira com
intimidade. (LISPECTOR, 2016, P.159).

535
Nota-se a importância que é ofertada a Laura em se ajustar, novamente, a vida,
recuperando a sua antiga rotina, aos seus costumes e pequenos rituais que ela se
debruçava, juntamente, com o marido. Tinha um gosto imprescindível pelo método,
nomeava mentalmente item por item como uma lista de afazeres que ela calmamente se
debulharia para concretizá-los como forma de fazer o tempo render.
Laura costumeiramente traça comparações com a amiga Carlota. ―O que devia
fazer, mexendo-se com familiaridade naquela íntima riqueza da rotina — e magoava-a
que Carlota desprezasse seu gosto pela rotina." (LISPECTOR, 2016, p. 165). Em outro
momento fica claro a comparatividade delineada pela voz do narrador. ―A reação das
duas sempre fora diferente. Carlota ambiciosa e rindo com força: ela, Laura, um pouco
lenta, e por assim dizer cuidando em se manter sempre lenta; Carlota não vendo perigo
em nada. E ela cuidadosa.‖ (LISPECTOR, 2016, p. 160).
De forma contunde percebe-se como a imagem construída de Laura é algo frágil,
que precisa de cuidados, enquanto de Carlota é altiva e forte. A primeira se encontra na
fronteira do desamparo, e de estilhaçamento em relação ao mundo, agindo sempre
comedida evitando excessos, no intuito de resguardar-se frente ao um despedaçamento
de sua vida psíquica, tendo em vista que agora ela estava novamente em casa e
sentindo-se ―bem‖. A segunda possui uma personalidade desprendida, e insolente com
ideais subversivos em relação a natureza calma da protagonista. Essa diferenciação nas
personalidades é nítida, mas a comparação feita por Laura se torna corrosiva para a
personagem.
A natureza submissa de Laura fica novamente, explícita, nesse diálogo:

Quando lhe haviam dado para ler a "Imitação de Cristo", com um ardor de
burra ela lera sem entender mas, que Deus a perdoasse, ela sentira que quem
imitasse Cristo estaria perdido — perdido na luz, mas perigosamente perdido.
Cristo era a pior tentação. E Carlota nem ao menos quisera ler, mentira para a
freira dizendo que tinha lido. (LISPECTOR, 2016, P. 161).

Essa citação ressalta, mais uma vez, a obediência de Laura em contraposição ao


comportamento transgressor da sua amiga. É perceptível uma analogia com o livro
Imitação de Cristo, com o título do conto em análise, A imitação da rosa. Bem como,
os contornos que tecem os encadeamentos subjetivos das duas personagens.

536
A Imitação de Cristo é um livro de um monge, Tomás de Kempis, publicado no
século XV e é uma das obras mais difundidas da literatura cristã. É considerado uma
pedagogia da religião, tratando de reflexões para conduzir o cristão a uma vida
espiritual junto a Cristo.
Assim como o livro, identificamos que Laura segue liturgicamente as
recomendações do médico em beber o copo de leite diário e organiza a vida, tal como,
um guia de orientações e práticas devocionais que cercam sobre a sua rotina. Ela não
consegue se desvencilhar das ordens da freira, ler o livro mesmo não o compreendendo.
Já Carlota subverte essa lógica mentindo para freira. Estas configurações nos mostra
como diametralmente cada indivíduo constitui subjetivamente seus laços sociais e a
partir das suas ações de como elas enxergam a dor e a violência da realidade que as
circundam, agindo polarizadas: obediência ou desobediência; lenta ou altiva; submissa
ou transgressora.
Desse modo, acreditamos que a condição subjetiva de Laura está metaforicamente
entrelaçada com o título do conto. A rosa necessita de cuidados, é frágil, tem muita
beleza, mas possui pouco tempo irradiando as tonalidades da vida. Igualmente, a
protagonista é uma mulher de personalidade frágil, passou um período internada
cuidando da saúde psíquica, além dos cuidados do marido. A rosa também possuía a
tranquilidade que Laura sempre se propunha encontrar.
A beleza das rosas é percebida pelo o olhar do outro. E ao se deparar com a beleza
delas, Laura fica espantada, ao passo que também sente um embaraço de ser
reconhecida. Então, começa a se destinar mais atenção, no entanto o simples fato de
admirar as rosas se transforma em suave prazer. ―Laura espantou-se um pouco: porque
as coisas nunca eram dela. Mas estas rosas eram. Rosadas, pequenas, perfeitas: eram.
Olhou-as com incredulidade: eram lindas e eram suas. Se conseguisse pensar mais
adiante, pensaria: suas como nada até agora tinha sido.‖ (LISPECTOR, 2016, P. 171). A
personagem começa a sofrer pelo fato de ter que doar o ramalhete, pois de acordo com o
seu pensamento ela não possui nada tão perfeito quanto estas rosas. Agora possuía uma
angústia de ter que oferta-las.
Neste instante a personagem desenlaça a partir da sua vertigem a foraclusão local.
As rosas desperta nela a beleza que ela acredita não possuir. E ao notar tanta beleza, ela
se coloca como um sujeito desejante, - eu percebo e quero ser percebida. Ela possui o

537
desejo de ser percebida por Carlota, por Armando, pelo meio social que transita. Nas
palavras de Nasio (2009, p.82) ―a foraclusão é perceber uma realidade mais que
desagradável, traumática, não representá-la e ver essa não inscrição se manifestar
imediatamente ou mais tarde por um fenômeno sensorial mórbido.‖.
Portanto o que acompanha a protagonista é o sentimento de falta. ―No seu
coração, aquela rosa, que ao menos poderia ter tirado para si sem prejudicar ninguém no
mundo, faltava. Como uma falta maior. Na verdade, como a falta.‖ (LISPECTOR, 2016,
P. 175). Torna-se difícil para o sujeito elaborar a falta e expressá-la discursivamente, na
tentativa de se locupletar.
Por fim, a personagem por não saber elaborar com palavras, imagens e emoções à
violência que o ramalhete representa, corrobora para que ela mergulhe na confusão,
despertando o sentimento da falta. Dessa maneira, o entrelaçamento entre desejo e
loucura é uma linha tênue tecido fio a fio, de tal modo, que havendo uma rigidez sobre o
objeto de desejo, este, pode desencadear a ruptura psicótica.

Referências bibliográficas

FREUD, Sigmund. (1911) Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um


caso de paranóia (Dementia Paranoides). In Edição standard brasileira das obras
completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987, v.XII.

GUERRA, A. M.C. A psicose. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

LISPECTOR, Clarice. Todos os contos. Org. Benjamin Moser. Rio de Janeiro: Rocco,
2016.

NASIO. J.-D. Os grandes casos de psicose. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

NASIO. J.-D. Os olhos de Laura Somos todos loucos em algum recanto de nossas vidas.
Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

QUINET, Antônio. Psicose e laço social: esquizofrenia, paranóia e melancolia. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar . 2ª Ed. 2009.

RABINOVITCH, Solal. A foraclusão: presos do lado de fora. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar Ed., 2001.

SOLER, Colette. O inconsciente a céu aberto da psicose / tradução, Vera Ribeiro;


consultoria, Marco Antônio Coutinho Jorge. — Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Ed., 2007.

538
ZIMERMAN, D. E. Fundamentos psicanalíticos teoria, técnica e clínica: uma
abordagem didática. Porto Alegre: Artmed, reimpressão, 2010.

539
LITERATURA NEGRA E HIP HOP : UM DIÁLOGO PROMISSOR EM UMA
TURMA DA EJA

Maria Hosana Ribeiro da Silva- UFPB1

Resumo: A literatura ensinada apenas sob a perspectiva historiográfica das escolas literárias e
da análise estrutural dos textos torna-se enfadonha e sem sentido. Porém, quando o professor a
concebe como um direito “inalienável” (CANDIDO, 1998), é possível e provável a sua
adequada escolarização. Nessa conjuntura, este trabalho objetiva relatar uma experiência
pedagógica, baseada no diálogo entre a literatura negra e o hip- hop, com alunos da 4ª fase da
educação de Jovens, Adultos e Idosos de uma escola municipal localizada em Goiana - PE.
Essas duas vertentes se entrecruzaram nas aulas de língua portuguesa e no contexto dos alunos
da referida escola.
Palavras-chave: Produção de autoria negra; Letramento literário; Relato de experiência.

O ensino da literatura baseado apenas na historiografia das escolas literárias e na


análise estrutural dos textos literários em geral torna-se algo cansativo e sem sentido.
Mas quando o professor a concebe como um direito humano inalienável - termo usado
por Antonio Candido - ( 1998), e algo inerente ao ser humano, já que, segundo o autor,
“não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de
entrar em contato com alguma espécie de fabulação...” (CANDIDO, 1998, p. 174); e a
relacionamos a questões dialéticas, seu ensino torna-se consistente e prazeroso.
Relacionar literatura a contextos reais parece algo contraditório, visto que é tida
como ficção, porém, segundo Candido (1998), é possível vivê-la dialeticamente.
Nessa conjuntura, este trabalho objetiva relatar uma experiência pedagógica,
baseada no diálogo entre a literatura negra e o hip- hop, com alunos da 4ª fase da
educação de Jovens, Adultos e Idosos de uma escola municipal em Goiana. Essas duas
vertentes se entrecruzaram nas aulas línguas de Língua portuguesa e no contexto dos
alunos da referida escola. E para fundamentar teoricamente nosso relato, trouxemos
Antonio Candido (1998), Conceição Evaristo (2009), Cosson (2006) e Lopes e Souza
(2010).
Acreditamos na relevância dessa proposta porque perpassa o contexto social do
aluno da EJA, que é constituído em sua maioria por negros que sentem diariamente,
segundo relato deles, o duro preconceito por sua identidade étnico-racial. Esses

1
Mestranda pelo Profletras e professora de Língua Portuguesa da secretária de Educação de Pernambuco.

540
estudantes que carregam consigo a herança de séculos de exploração estavam desejosos
para falar de si e por si. Eles queriam ser os protagonistas na contação de sua história.
Eis o grande mérito desse trabalho.
Este estudo se desenvolveu em quinze dias letivos e contou com a participação de
vinte e um alunos da Educação de Jovens, Adultos e idosos. Como metodologia
utilizamos a sequência Básica de Rildo Cosson para o trabalho com os textos e a batalha
de hip hop, que consiste no enfrentamento de dois grupos através, de rimas sobre um
tema estabelecido, para a culminância do projeto.
O trabalho foi bastante exitoso, pois, a partir dele, observamos uma maior
confiança e orgulho por parte do aluno negro ao contar suas histórias, angústias e
revoltas, como também um respeito, apoio e até certa empatia por parte dos discentes
não negros, que se identificam porque suas condições financeiras causa uma
equiparidade em termos de exclusão social. No entanto o aluno negro e pobre sofre uma
dupla exclusão, por ser pobre e negro.
A EJA e seus autores
A educação escolar, considerada como caminho para ascensão social,
historicamente é almejada por uma grande parcela da população. E os que não tiveram
oportunidades de instrui-se, sistematicamente, na idade certa2 apresentam grandes
dificuldades para desfrutar dos bens econômicos, sociais e culturais produzidos pela
sociedade. Nessa conjuntura e visando oportunizar a população adulta e carente,
inclusive educacionalmente, a inserir-se na sociedade e usufruir dos bens de consumo
produzido por esta, foi instituído no país a Educação de Jovens e Adultos.
Tendo suas raízes no processo de colonização do Brasil, a educação de adultos
tinha como finalidade principal a doutrinação religiosa. Era preciso ensinar o povo
recém - dominado a ler e escrever para que pudesse participar do catecismo, “salvar”
suas almas e assim, como ‘ovelhas apascentadas’, servir de mão de obra a seus
senhores. Segundo Lopes e Souza (2010), a alfabetização de adultos tinha como
objetivo principal, “ instrumentalizar a população, ensinando-a a ler e escrever. Essa
concepção foi adotada para que os colonos pudessem ler o catecismo e seguir as ordens
e instruções da corte” ( LOPES;SOUZA, 2010, p.3).

2
Tomando como base a emenda constitucional nº 59 de 11 de Novembro de 2009.

541
Essa categoria de ensino apresentava-se bastante frágil em relação a objetivos
pedagógicos e sua seguridade. Apenas nas décadas de 30 e 40 houve iniciativas políticas
na tentativa de fortalecer o ensino da EJA no país. Na década de 50 houve denúncias
sobre a ineficiência do ensino da EJA, sendo questionada a metodologia utilizada para
essa modalidade. Chegou - se à conclusão que ensinar esses sujeitos a ler e escrever não
era suficiente.
Nesse contexto, Paulo Freire se apresenta como um divisor de águas na história da
educação brasileira, principalmente a popular, da qual deriva a EJA. O autor propõe
uma ruptura de paradigmas na maneira de pensar e fazer educação no Brasil;
defendendo uma prática assumidamente ideológica, com a proposta de um ensino
reflexivo que desenvolvesse a criticidade dos sujeitos, conduzindo-os a uma possível
autonomia e consequentemente à liberdade.
Nesse panorama, de avanços e retrocessos, a EJA em 2003 é anunciada como
prioridade para o governo federal e é criado o programa Brasil Alfabetizado, que
objetivava uma assistência mais direcionada à alfabetização desses sujeitos e à
formação dos docentes que atuam nessa área; entretanto essa modalidade educacional
chega ao século XXI reclamando uma educação que verdadeiramente habilite os
discentes a se constituírem como cidadãos com voz e vez na sociedade.
Serafim e Silva (2005), Apesar da Educação de Jovens, Adultos e Idosos ainda ser
frequentada basicamente por pessoas que carregam consigo traços de toda uma vivência
marcada pela exclusão, nas últimas décadas está havendo uma mudança no perfil do
aluno da EJAI. Essa modalidade vem recebendo um público cada vez mais
heterogêneo tanto em relação à faixa etária quanto a condições de vida e interesses
educacionais. E entre esses interesses educacionais está a exigência de uma
aprendizagem consistente que o fortaleça como cidadão. E pensamos que o ensino de
literatura, ainda tão tímido na Educação de Jovens, Adultos e idosos, pode fortalecer a
formação desse cidadão com voz e vez na sociedade.
Entretanto é notória a pouca relevância que se dá a esse eixo do ensino da Língua
Portuguesa. No nível Fundamental a literatura é vista de maneira lúdica ou pelo víeis da
forma, da estrutura; e no ensino Médio é reduzida à história de autores e época. E a
verdadeira literatura, aquela que nos faz pensar, refletir, sonhar e dialogar com o mundo

542
em que vivemos parece que se tornou direito de poucos. Mas, afinal, quem tem direito à
literatura?
O direito à literatura, quem o tem?
Os Titãs (1987) gritavam: “a gente não quer só comida. A gente quer comida,
diversão e arte.”. Antonio Candido (1998, p. 191) afirma que “Uma sociedade justa
pressupõe o respeito dos direitos humanos e a fruição da arte e da literatura em todas as
modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável.”
Comungando com as ideias acima, pensamos que é preciso que a literatura sejam
incorporadas à vida das pessoas como um direito fundamental tanto quanto o direito à
comida, moradia, saúde, entre outros que dizem respeito ao ser humano. A teoria que
popularmente está associada aos direitos humanos é a de que eles estão associados às
necessidades fundamentais para a sobrevivência do indivíduo. De forma que a garantia,
em qualquer nível, de moradia, alimentação, saúde, educação, segurança, entre outros,
configura-se como cumprimento desses direitos. Entretanto a preservação real dos
direitos humanos extrapola tal teoria. Antonio Candido assevera que: “[...] pensar em
direitos humanos tem um pressuposto: reconhecer que aquilo que consideramos indispensável para nós é
também indispensável para o próximo”( CANDIDO, 1998 , p.172).
A defesa do direito à educação, visto como direito humano, deve passar por esta
perspectiva. E a percepção de que a qualidade da educação no país é medida pelo nível
da população a qual será direcionada, nos deixa atônitos e cada vez mais persuadidos de
que o que é considerado direito para uma classe é visto como privilégio para outra.
Por que a oferta de ensino para uns é promissora, qualificada, consistente e para
outros é apenas um faz de conta? Seria porque os anseios das classes são diferentes e,
portanto, a oferta educacional deve atender apenas a interesses socialmente pré-
estabelecidos? Sem ousar responder a esse questionamento, mas tomados pela
experiência pedagógica, enquanto professor de escola pública, temos a convicção de
que a camada mais pobre da sociedade ainda sofre por não ser oferecido um ensino-
aprendizagem que a fortaleça a atuar na sociedade como cidadãos com voz e vez. E
nessa camada, devemos incluir a Educação de Jovens, Adultos e idosos, modalidade da
qual esse trabalho se ocupa. Podemos afirmar quer esse nível educacional sofre as
consequências da pouca qualidade do ensino que lhes é direcionado. Uma educação que
não habilita seus discentes a alcançar os desejos que os fizeram voltar aos bancos
escolares.

543
Nesse sentido, reiteramos nosso questionamento: será que a preservação do
direito à educação tido com inalienável, é medida pela classe social a qual o sujeito
ocupa? E Antonio Candido nos responde quando assegura que:

[...] o fato é que cada época e cada cultura fixam os critérios de


incompressibilidade, que estão ligados à divisão da sociedade em classes,
pois inclusive a educação pode ser instrumento para convencer as pessoas de
que o que é indispensável para uma camada social não o é para outra,
(CANDIDO, 1998, p. 173)

Diante do explicitado, nos indagamos também sobre a quem teria direito à


literatura? Ela seria um direito também inalienável? Ou sua oferta seria supérflua, sendo
destinada apenas aos que têm talentos literários? E Antonio Cândido (1998) resolve este
dilema quando afirma que o direto à arte e à literatura é tão essencial quanto o direito à
moradia, à alimentação, a saúde, etc. Segundo o autor, algo se configura como
necessidade básica quando a sua falta provoca uma desorganização pessoal ou
frustração mutiladora. E a literatura, desde as produções mais simples como folclore e
lendas a composições mais complexas, é uma manifestação de todos os homens em
todos os tempos e sua ausência é incompatível com a condição humana. Antonio
Candido afirma que ninguém pode viver sem literatura. Vejamos:

Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a
possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação. Assim
como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte e
quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado. O
sonho assegura durante o sono a presença indispensável deste universo,
independentemente da nossa vontade. E durante a vigília a criação ficcional
ou poética, que é a mola da literatura em todos os seus níveis e modalidades,
está presente em cada um de nós, analfabeto ou erudito, como anedota, causo,
história em quadrinhos, noticiário policial, canção popular, moda de viola,
samba carnavalesco. (CANDIDO, 1998, p.174)

Em fim, a literatura é algo inerente ao ser humano e se manifesta em todos os


tempos, classes sociais; e, portanto, se constitui como uma necessidade universal,
devendo ser vista como um direito. Outro aspecto importante que faz da literatura um
direito é o fato dela não servir apenas para sonhar, fabular, mas também para refletir,
intervir e mudar realidade.
Antonio Cândido (1998) afirma que os valores que a sociedade aceita ou rejeita
estão presentes nas diversas manifestações literárias e levam o sujeito a pensar
dialeticamente; conforme podemos observar nas palavras do autor:

544
A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apóia e combate, fornecendo
a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. E que por vezes
traz reflexões conturbadoras da ordem social imposta por isso o livro nas
mãos do leitor pode ser fator de risco e por isso a condenação de algumas
produções quando veicula noções ou oferecem sugestões que as
conveniências sociais gostariam de esconder ou proscrever. (CANDIDO,
1998, p.175)

Nesse contexto, a literatura se configura como direito humano devendo, portanto,


ser garantida a todo e qualquer indivíduo. Mas a literatura que aqui se exige é aquela
formativa, que faça o sujeito sonhar, mas também refletir, agir e transformar realidades
pré- existentes.
O hip - hop e a literatura negra: duas vertentes que se entrelaçam nas
práticas sociais do aluno da EJA
O hip - hop surgiu na década de 70 nos subúrbios negros e latinos de Nova York.
Esses lugares enfrentavam muitos problemas sociais, como a violência, a pobreza,
tráfico de drogas, falta de infraestrutura e educação, sendo comum o confronto de
gangues pelo domínio territorial. O movimento foi criado pelo disc- jockey Afrika
Bambaata e tinha como objetivo a invocação da paz, união e diversão. Sua filosofia
estabelecia quatro pilares essenciais: o rap, o djing, o breakdance e o graffitti e tinha
como proposta a disputa com base na criatividade artística e não recorrendo à violência
e às armas.
Como seus membros pertenciam a um bairro bastante carente e as ruas eram o
único espaço de lazer, elas se tornaram o palco principal de exposição da arte hip-hop.
Era comum as avenidas daquele bairro serem tomadas por disputas de gangues e festas
conduzidas por equipamentos de som muito potentes. Entretanto, esse cenário foi
cedendo lugar às manifestações artísticas, a começar pelo rap, estilo de música com
batidas bem fraseadas e rimas bem feitas, às vezes bastante politizadas, outras comuns e
sexuais.
As gangues foram vendo naquelas manifestações uma maneira de minimizar a
violência em que viviam imersos e começaram a ir às festas para dançar break e
competir com passos de dança e não mais com armas. A partir daí as festas começaram
a ser regadas a muitas rimas que retratavam a vida da comunidade e as batalhas
violentas entre gangues cederam lugar a competições artísticas.

545
De acordo com estudiosos, entre eles, Tricia Rose (1194) do movimento, a
essência dele estaria em seu caráter multidimensional em que ocorre a fusão de muitos
elementos (música, dança, poesia, pintura) que para ser compreendido é necessário
inseri-lo em seu contexto social, no caso, marginal e cheio de problemas de ordem
social.
Em outra vertente, mas com pontos de encontros, é a literatura negra ou afro-
brasileira que é uma tentativa do negro poder colocar em textos literários sua voz e suas
experiências. O negro na literatura sempre foi descrito pelo olhar do branco elitizado.
Nos cânones literários, eles são apresentados estereotipados, desprovido de beleza e
linguagem, servindo apenas de mão de obra ou para satisfazer desejos sexuais.
Felizmente, há algum tempo que estudiosos, no Brasil, discutem a possibilidade
de haver um grupo, que por imprimir em suas produções, uma subjetividade construída
a partir de sua vivência e experiência de homem e mulher negra, constituiria o que se
chama atualmente de literatura negra. Essas pessoas, em suas produções impingem
marcas que destoam do discurso vigente na literatura canônica, como podemos observar
na fala de Evaristo,2009:
Entretanto, com bem menos visibilidade, existe, no interior mesmo da
literatura brasileira, uma gama de produções que vêm se afirmando, aos
poucos, como um discurso diferenciado ao compor personagens negras e seus
enredos. Discurso que subverte não só o sistema literário brasileiro, mas
também contesta a história brasileira que prima em ignorar eventos relativos
à trajetória dos africanos e seus descendentes no Brasil. (EVARISTO, 2009,
p. 24)

Porém existem críticas de muitos escritores que defendem uma arte universal e
que não acreditam que essas experiências das pessoas negras possam caracterizar um
modo de fazer um texto literário. Todavia Conceição Evaristo, mulher negra e escritora
reconhecida defende categoricamente a existência desse grupo literário no país: “é a
partir do exercício de pensar a minha própria escrita, venho afirmando não só a
existência de uma literatura afro- brasileira, mas também a presença de uma vertente
negra feminina.” (EVARISTO, 2009, p. 18)
A autora, em seu artigo, Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade,
questiona o porquê de símbolos de resistência negra como o samba, a capoeira, a
culinária, heranças religiosas, e entidades folclóricas serem aceitas como referências
negras; e quando se trata da literatura, surge um impasse ou mesmo a negação. Evaristo
sugere que esse impasse seria porque as produções de literatura afro-brasileira, aos

546
construírem suas personagens e histórias o faz destoando do previsto pela literatura
canônica. Vejamos:
Pode-se dizer que um sentimento positivo de etnicidade atravessa a
textualidade afro-brasileira. Personagens são descritos sem a intenção de
esconder uma identidade negra e, muitas vezes, são apresentados a partir de
uma valorização da pele, dos traços físicos, das heranças culturais oriundas
de povos africanos e da inserção/exclusão que os afrodescendentes sofrem na
sociedade brasileira. Esses processos de construção de personagens e enredos
destoam dos modos estereotipados ou da invisibilidade com que negros e
mestiços são tratados pela literatura brasileira, em geral. (EVARISTO, 2009,
p. 19)

Essa busca incessante para tornar o negro invisível na literatura e em ouros setores
da sociedade é histórica e evidente. Basta observar a pouca presença de personagens
negros na literatura brasileira ou os papéis estereotipados que lhes são conferidos. Cuti
(2002, p. 32 apud EVARISTO, 2009, p. 20) assevera que “a literatura brasileira é
abusivamente branca, em seu propósito de invisibilizar e estereotipar o negro e o
mestiço.”
Apesar das inúmeras tentativas de apagamento do negro na literatura, sempre
houve vozes negras desejosas de falar por si e de si e, na década de 70, esse desejo
ganha força e uma nova consciência política sob a inspiração de movimento Negro
brasileiro; como podemos observar a seguir:
Amplia-se então um discurso negro, orientado por uma postura ideológica
que levará a uma produção literária marcada por uma fala enfática,
denunciadora da condição do negro no Brasil e igualmente afirmativa do
mundo e das coisas culturais africanas e afro-brasileiras, o que a diferencia de
um discurso produzido nas décadas anteriores, carregados de lamentos,
mágoa e impotência. (EVARISTO, 2009, p.25)

Como representante dessa implantação de uma literatura negra no país, podemos


citar Lima Barreto, Cruz e Souza, Machado de Assis, entre outros. Na
contemporaneidade temos os Cadernos negros, que constituem uma afirmação coletiva
de vozes negras; a própria Conceição Evaristo, que na condição de mulher negra,
imprime em suas obras experiências singular; e porque não elencar nessas tentativas de
construção de uma literatura afro- brasileira, o hip- hop, movimento artístico em que o
negro da periferia impinge a sua voz ao retratar suas vivências.
Resultados e discussões de uma experiência pedagógica
Conduzidos pelas teorias acima, segue um relato de uma aula que estava prevista
para durar uma noite (2h/a) e se estendeu por quinze dias. A instituição onde ocorreu o

547
intento relatado a seguir é uma escola municipal situada em Goiana-PE, que funciona
em três turnos, oferecendo as modalidades de ensino Infantil, Fundamental I e a
Educação de Jovens, Adultos e Idosos. Trata-se de uma unidade frequentada por alunos
que apresentam semelhanças tanto no perfil socioeconômico, como no étnico-racial.
A aula que deu origem a este trabalho ocorreu na 4ª fase da Educação de Jovens,
Adultos e Idosos (doravante EJA). Essa turma possuía trinta e quatro alunos
matriculados dos quais frequentam assiduamente vinte e um. Caracterizada por uma
heterogeneidade etária e cognitiva, a turma é bastante participativa.
Com a proximidade do dia da Consciência negra e buscando atender ao pedido da
gestão sobre produzir atividades que atendessem à data, promovi na sala um debate
livre com o tema: o que é ser negro numa sociedade preconceituosa como a nossa?
Achei o assunto pertinente tanto para o momento (dia da consciência negra) como para
o público já que a maioria da sala é negra e sofre na pele as consequências de tal
condição racial.
No início, penso que mais pelo desconforto de falar sobre algo que lhe traz
algumas dificuldades, que por vergonha, a turma ficou um tanto silenciosa, coisa rara,
por sinal. Entretanto esse silêncio foi quebrado quando um aluno gritou do meio da
sala: “Ser negro no Brasil é ser tratado como o Capeta. Tudo de ruim é o cara que faz”
(Fala do aluno 9). Seguido por risos e gargalhadas esse comentário fez a turma se
manifestar e expor suas opiniões. Entre as falas, a masculina prevaleceu tanto na
quantidade como na força das expressões. Paradoxalmente ao que eu pensava, parece
que eles são os que mais sofrem o preconceito por sua identidade étnico-racial.
A discussão seguiu no perfil das reclamações e revoltas dos estudantes que se
declararam negros e dos contra- argumentos de estudantes que, destoando da aparência,
não se consideravam da raça. O discurso mais frequente da parte masculina foi
relacionado à forma violenta com que sempre são abordados pela polícia, (boa parte da
turma são jovens com passagens pela justiça) “Os homi num pode ver a gente na rua
que já vem pra cima.” (fala do aluno19). “Verdade. Eles chegam com tudo. Parece que
a gente é bicho selvagem.” (fala do aluno 7). “Só porque a gente é nego acha que a
gente é bandido. Tem tanto bandido branco e eles nem ligam.” (Fala do aluno 12).
Por parte das mulheres negras, a reclamação que mais apareceu foi em relação
ocupação profissional. Elas disseram que a sociedade já define a ocupação delas pela

548
cor. “o povo só pensa que a gente é empregada doméstica ou gari. “Eu mesma tenho
meu comércio, mas o povo pensa que eu sou a empregada.” (Fala da aluna 2). “Uma vez
eu cheguei numa mulher que faz empréstimo e ela disse que não tava fazendo para
doméstica. Mas eu não sou domestica eu trabalho na Narciso.” ( Fala da aluna 6)
O debate prosseguiu de forma bastante animada e as falas refletiam todo o
preconceito que permanece encravado na sociedade. “Isso nunca vai mudar,
professora.” (Fala do aluno 5). E na tentativa de amenizar aquela dor falei: As coisas
estão mudando, gente. A sociedade estar evoluindo. Não é mais assim do jeito que
vocês falam. Diante da minha fala um jovem aluno do fundo da sala retrucou: “A
senhora diz isso porque não é negra.” (Fala do aluno 8) E diante da minha confirmação
de ser negra sim, ele respondeu: “ É negra mas não é muito e além do mais tem
dinheiro. Por isso acha que é mentira nossa.”
Esse rápido diálogo me fez refletir e fazer com que aquela aula se tornasse um
grande evento. Apesar das palavras daquele aluno contradizer a minha realidade, pois
sou negra e não tenho dinheiro, não essa é a visão que eles têm de mim. Eles me veem,
como uma pessoa superior e que não tem ideia do que passam e, portanto, não pode
falar por eles. Essa conclusão me entusiasmou, pois é algo que acredito e defendo.
Depois de algumas falas, o sinal tocou e encerrei o debate. Fui para casa exausta,
afinal trabalho os três turnos, mas feliz por perceber que meus alunos negros da EJAI
querem falar de si e por si. Isso me fez lembrar a literatura afro- brasileira e resolvi que
daria voz a meu aluno negro para falar de si.
Iniciei a aula seguinte falando levemente sobre a literatura negra e trouxe o poema
“Conversa”, de Solano Trindade. Tendo como base a sequência didática de Cosson
(2014), busquei, despertar o interesse dos alunos pelo texto que leríamos e fiz,
oralmente, questionamentos sobre o título e o autor do texto. Perguntei entre outras
coisas, se eles já tinham ouvido falar sobre o escritor. Instiguei- os sobre o assunto do
poema; se imaginavam sobre o que trataria. Em seguida falei. um pouco sobre Solano
Trindade, poeta negro, recifense e defensor do folclore e da cultura brasileira.
Conversamos também sobre a escolha do poema e partimos para a leitura. Dividimos
cada estrofe com uma dupla, formando tipo um jogral e a seguir fizemos uma leitura
coletiva. Depois dessas etapas, a interpretação e discussão do texto foram muito
proveitosas. Os alunos observaram que o dia a dia do negro era realmente como descrito

549
no poema: cada negro com sua obrigação, buscando sobreviver. Concluíram que essas
atividades desempenhadas pelos negros sempre geraram lucro para o branco. Muitos
também disseram que hoje as coisas permanecem assim. “A gente trabalha, trabalha
para dar lucro o branco.” (Fala do aluno 9). “E ainda dizem que a gente né gente” (Fala
do aluno 14).
Dali em diante, durante os dias de Novembro, uma vez na semana líamos e
discutíamos alguns textos de escritores negros. Trouxemos os poemas Sou negro e o
poema Autobiográfico, de Solano Trindade, Vozes- mulheres, de Conceição Evaristo e,
a música Todo Camburão tem um pouco de Navio Negreiro do grupo O Rappa. Entre os
textos lidos, este último promoveu uma discussão bastante acalorada. Penso que foi pelo
fato da música trazer um retrato da realidade de muitos da sala. Ao final da leitura
desses textos, chegamos à conclusão que ninguém melhor do que o próprio negro para
cantar e escrever sua realidade, suas experiências, suas dores e sofrimentos. O branco
pode e deve participar dessa discussão, mas o lugar de protagonista dessa história é do
negro.
E sabendo do gosto que muitos da sala tem pelo hip-hop, resolvemos organizar
uma batalha onde o tema seria as consequências de ser negro na cidade de Goiana. As
batalhas de hip- hop consistem na disputa, através de rimas sobre um tema pré-
estabelecido, entre dois grupos e no final os juízes consagram um vencedor.
A batalha aconteceu no dia vinte e sete de Novembro, no pátio da escola, com
torcida e tudo mais. As letras falavam da dificuldade de ser negro na metropolitana,
porém, pacata cidade de Goiana. Atestavam a difícil relação com a polícia: “os homens
caem em cima de mim porque eu carrego a noite na minha pele”; e à desconfiança no
olhar das pessoas quando eles entram nas lojas: “ As moças vira minha sombra quando
entro nas lojas bacana.” As rimas falavam também da falta de emprego, dos baixos
salários e da exploração que sofrem no trabalho: “ patrão pensa que neguinho é
máquina de fabricação e trata nós no ritmo da escravidão.”
Importante ressaltar que participaram dessa batalha não só pessoas negras, mas
também alunos brancos que, mesmo não negros, falaram com bastante propriedade
sobre o tema; revelando que a realidade cantada não faz parte do contexto apenas do
negro, mas de toda classe menos favorecida, sendo, porém, mais frequente na vida de
pessoas negras.

550
A noite foi encerrada com uma rodada de pizza para o grupo vencedor e um
lanche especial para toda comunidade escolar. E deixou a lição que os alunos da EJA
têm muito a dizer e é preciso deixá-los falar.
Considerações finais
O estudo acima nos fez perceber que o direito à literatura precisa ser garantido em
todos os níveis de ensino, pois se trata de uma atividade inerente ao ser humano. A arte
e a literatura devem ser incorporadas à vida das pessoas como um direito fundamental
tanto quanto o direito à comida, moradia, saúde, entre outros que dizem respeito ao ser
humano. Entretanto é preciso que todos os estudantes, inclusive os da EJAI, tenham a
oportunidade de viver uma literatura que não apenas sirva aos sonhos, fantasia, mas
também os estimule a refletir, intervir e mudar contextos, pois isso também é a função
da literatura. Porém, o que ficou de mais relevante nesse relato é o fato de que, quando
se dá voz ao aluno, ele fala, grita e contesta sua realidade e que preciso deixá-lo falar
por si, sem intermédio de porta voz.
Referências
CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários escritos. São Paulo: Duas
Cidades, 1995.

COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006.

EVARISTO, Conceição. Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade.

FREIRE, Paulo. Educação como Prática de Liberdade. 31ª ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2008.

LOPES, Selva Paraguassu; SOUZA, Luiza Silva. EJA: Uma Educação Possível ou
Mera Utopia. CEREJA 2010. Disponível em <http: // www. cereja.org. br/pdf/revista_
v/ Revista_ selvaPLopes.pdf> Acesso em :18 de Dez. 2018.

SERAFIM, Cássio E.R; SILVA, Marluce Pereira. O aluno da EJA num mundo
letrado e globalizado. Interface. Natal/RN. V.2 . N.2. jul./dez. 2005.

Sites consultados

A origem do hip hop. Disponível em < Http://origemdascoisas.com/a-origem-do-hip-


hop/ > Acesso em 16/ 01/ 19 ás 00: 15.

HIP HOP. Disponível em <Https// pt . Wikipédia. Org. wiki Hip_hop> – Acesso em


16/ 01/ 19 às 01: 43.

551
DA QUEDA DA INFÂNCIA À EMERGÊNCIA DA ALTERIDADE: A PRECIPITAÇÃO
FANTASMAGÓRICA EM ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS, DE LEWIS
CARROLL
1
Mariana Pinheiro Ramalho (UFPB)
2
Hermano de França Rodrigues (PPGL-UFPB)

Resumo: ​A fim de aprender as engrenagens linguageiras, debruçar-nos-emos sobre ​Alice no


País das Maravilhas​, escrito por Lewis Carroll, pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson,
publicado em 1865. A narrativa conta a história de Alice, que, ao seguir um Coelho Branco,
vestido de colete e carregando um relógio de bolso, mergulha numa aventura inusitada por um
mundo desconhecido. A protagonista é levada para uma ambientação nova, repleta de animais e
objetos antropomórficos, que proporcionam à Alice experiências não somente divertidas, mas
que confrontam o impossível, fazendo a garota questionar tudo que aprendeu até ali. A pesquisa
recorrerá às bases psicanalíticas desenvolvidas por autores freudianos e pós-freudianos, para dar
conta da estética ​non sense​ da obra em questão.

Palavras-chave:​ Literatura; loucura; psicanálise.

Introdução
Diante de tanta confusão acerca de si e do outro, o ser humano acaba por ficar
imensamente perdido frente à diversas respostas para “simples” perguntas, que desde os
primórdios, os filósofos tentavam responder incessantemente, sem obter nada de
objetivo ou concreto nas respostas que obtiam. No decorrer do tempo, a literatura surge
com o papel de trazer respostas mais vívidas para aquilo que constantemente se busca
no desafio diário: o autoconhecimento. Trazendo, na ficção, elementos narrativos que
fazem o leitor sentir-se identificado com o que está sendo dito, o mundo literário
conseguiu respostas ​mais aceitáveis para a dúvida e o dilema do ser humano de ser ele
mesmo. Jean Bellemin-Noël (1978) traz em seu texto ​Psicanálise e Literatura que é
apenas com o literário que o homem é capaz de interrogar sobre si mesmo, sobre seu
destino, sua história e seu papel em sociedade3. Ninguém melhor do que o próprio
escritor para trazer esses questionamentos à tona, fazendo com que o ser humano
desperte para certas sensações que ainda não tinham sido levadas em consideração, ou,

1
​Mestranda da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: ​ramalhomari@hotmail.com
2
​Professor Doutor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: ​hermanorgs@gmail.com
3
​BELLEMIN-NOËL, 1978, p. 12.

552
se tinham, acabaram por passarem despercebidas, em comparação com tantas coisas que
são vividas diariamente.
Diante da criação do poeta e dessa importância ao levantar questionador feito
pela Literatura, Sigmund Freud (1908), em seu artigo ​O poeta e o fantasiar​, compara a
criação literária com uma brincadeira de criança e diz que o escritor “cria um mundo de
fantasia que leva a sério, ou seja, um mundo formado por grande mobilização afetiva,
na medida em que se distingue rigidamente da realidade”4. O leitor, se deparando com a
obra de Lewis Carroll (2018), ​Alice no País das Maravilhas​, vê muito mais do que uma
menina que delira e tenta se desprender da realidade; Coelho Branco vestido de terno e
desesperado pelo atraso; um chapeleiro e uma lebre que nunca saem da eterna festa do
chá; um gato que sorri, aparece e desaparece; uma Rainha de Copas imersa num poder
inacabável, e em sua vontade incessante de cortar cabeças. Enxerga, acima de tudo, um
mundo no qual a fantasia e a realidade se confrontam e se misturam, levantando os
questionamentos que evitamos fazer com medo das respostas que podemos escutar.

1. A teoria kleiniana e os mecanismos esquizo-paranóides


A loucura, mesmo com todos os seus prós e contras, acaba tendo em si uma
carga considerável de curiosidade. Durante o século XV, a necessidade da sociedade em
fugir e esconder-se de uma espécie de loucura coletiva permaneceu pelas ruas durante
tempo o suficiente para que resoluções viáveis pudessem surgir, visando resolver o
“problema” da sociedade. Sendo considerada como um dos maiores medos do homem
— ao lado da própria morte ​— ​a loucura já foi colocada como um elemento contingente
da humanidade, despertando o interesse de tantos em desvendar os mistérios que
permeiam a psicose. Segundo Andréa Guerra (2010), a loucura, “ao ser transformada
em objeto de estudo pela psiquiatria, perdeu a dimensão de expressão da vida humana e
5
reduziu-se à doença mental, transformando-se negativamente em patologia”. Porém,
mesmo com essa redução da definição de ​louco ​e ​loucura​, algumas pessoas ainda
tinham em si a vontade de decifrar os mistérios surgidos a partir da psicose.

4
​FREUD, 2018, p. 54.
5
​GUERRA, 2010, p. 7.

553
Entra em cena, então, a ciência psicanalítica, na qual a loucura ​— ​denominada
teoricamente de psicose ​— ​teve suas reflexões e questionamentos levantados pelo
mestre vienense Sigmund Freud, que, mesmo contra-indicando o tratamento
6
psicanalítico das psicoses , realizou um extenso estudo acerca dessa estrutura clínica,
sendo iniciado pelo caso do presidente Schreber, de 1911, abrindo sua discussão sobre
quais estratégias de cura os psicóticos poderiam vir a construir. Freud, neste artigo,
afirma que, ao contrário do que ocorre nas neuroses, o delírio seria tratado como
tentativa de cura​, no lugar de ser colocado como um sintoma da estrutura clínica. Sendo
7
assim, “há um movimento psicótico em direção à estabilização”.
Em seus primeiros rascunhos sobre a paranóia, o pai da psicanálise a considera
como ​um modo patológico de defesa e coloca a psicose no lugar de um mecanismo de
defesa inconsciente. Ou seja, o psicótico concebe a psique como sendo alimentado pelo
afeto, investido nas representações e, então, as representações seriam aquilo que se
encontra registrado no inconsciente do indivíduo. Freud, então, explica que, na psicose,
o investimento das representações de palavras é retido, já que ele não faz parte da
operação de rejeição. O psicótico, na verdade, tenta fazer um restabelecimento que se
direcione à recuperação do objeto perdido. Para que o psicótico chegue ao seu
propósito, acaba por escolher um caminho que o leve ao objeto pela parte verbal, se
sentindo satisfeito com palavras no lugar de coisas.
Assim, por exemplo, um paciente psicótico, paranóico, que deseja ser
um homem direito, com a missão de resgatar a honestidade perdida no
delírio que tem acerca de sua família, candidata-se a uma vaga
universitária de um curso de direito. Não há dialética, não há
simbolização. Para ser um homem direito, ele precisa cursar direito.
(GUERRA, 2010, p. 14)

E, assim, chega-se à grande diferença da psicose para com as outras estruturas


clínicas, a neurose e a perversão. Aquilo que é vivido com intensidade afetiva ou
traumática pelo sujeito psicótico não recebe uma vinculação do acontecimento com um
objeto, uma representação. As palavras, então, são ​reais​. O mestre vienense nos diz que
“o eu rejeita a representação incompatível juntamente com seu afeto e se comporta

6
​Freud afirmava que, nas psicoses não se estabelece o laço transferencial com o analista, essencial para
uma análise. (GUERRA, 2010, p. 7-8)
7
​GUERRA, 2010, p. 12.

554
como se a representação jamais lhe tivesse ocorrido. Mas, a partir do momento em que
8
isso ocorre, temos uma psicose”. Na psicose, um pequeno pedaço desagradável da
realidade é rejeitado e substituído pelo delírio; o sujeito nega a realidade, e a rejeição
atinge a própria situação real, que nunca precisou se tornar consciente. A formação do
delírio, então, seria uma tentativa de restabelecimento com o real, que é constantemente
negado pelo indivíduo psicótico.
Na psicose, a realidade é remodelada, o psicótico a repudia e tenta
substituí-la, transformando-a a partir de precipitados psíquicos de
antigas relações com ela. Assim, na psicose, o substituto tenta
colocar-se no lugar ​da realidade, enquanto na neurose liga-se a um
fragmento dela, conferindo-lhe uma importância especial e um
significado secreto, simbólico porque substitutivo, sintomático
(GUERRA, 2010, p. 25)

Após as considerações freudianas sobre a psicose, em 1946, a psicanalista


austríaca Melanie Klein publica seu artigo de título ​Notas sobre alguns mecanismos
esquizóides​, no qual tratará “da importância dos mecanismos e ansiedades arcaicos de
9
natureza paranóide e esquizóide” . Após iniciar sua análise com Sándor Ferenczi, Klein
dedica-se ao atendimento das crianças, classificando-as como “pequenos adultos”. A
teoria kleiniana baseia-se, primeiramente, na certeza da existência de um mundo
interno, que se forma a partir das percepções do mundo externo, colorido com as
ansiedades do mundo interno. O seio materno ​— ​primeiro objeto de relação da criança
com o mundo externo ​— ​adquire duas percepções: colocado como ​seio bom no mundo
interno, quando este amamenta a criança; e ​seio mau​, quando não alimenta o bebê na
hora que ele deseja. Como é impossível satisfazer todos os desejos da criança, esta,
invariavelmente, possui os dois registros desse seio, um positivo e outro negativo. Essa
10
cisão, portanto, “resulta numa separação entre o amor e o ódio” .
Afirma, então, que os primeiros momentos da vida do bebê externa ao útero será
o que definirá boa parte de sua estrutura psíquica. Certos impactos como o contato com
o mundo externo, sua relação com a mãe e as suas etapas de desenvolvimento para a
pronta adaptação colocam o recém-nascido num ambiente ativo e cheio de estímulos.

8
​GUERRA, 2010, p. 14.
9
​KLEIN, 1946, p. 20.
10
​Ibid, p. 21.

555
Melanie Klein afirma que “a relação com o primeiro objeto implica sua introjeção e
projeção e, por isso, desde o início as relações de objeto são moldadas por uma
11
interação entre introjeção e projeção, e entre objetos e situações internas e externas” , e
deixa claro sua crença na existência de um ​medo de aniquilamento​, que, acompanhado
de uma carga de ansiedade, é provocado pelo instinto interno do bebê. Nas causas
externas, então, o nascimento age como a fonte inicial de ansiedade. Durante a interação
entre mãe-bebê, Klein utiliza-se do termo ​objetal ​para classificar a relação parcial que é
construída entre o seio e o recém-nascido, na qual o seio materno terá como função
desempenhar estímulos libidinais e orais-destrutivos, sendo visto como totalidade pelo
bebê.
A psicanalista descreve, sobre a vida emocional do bebê, alguns processos como
a atuação do ego que ​integra e permite a coesão, promovendo, assim, a divisão e a
inibição dos sentimentos. Já as relações objetais moldadas pelo libido e agressão, pelo
amor e pelo ódio e, posteriormente, pela angústia e tranquilidade, são provenientes da
idealização do objeto. A projeção e introjeção inseridas na fantasia e nas emoções do
bebê propiciam o desenvolvimento do superego. Já, no desenvolvimento do ego, o bebê
passa a lidar melhor com a ansiedade e, com isso, ele modifica suas formas de defesa,
proporcionando um ascendente no sentido de realidade, que foram aguçadas pelas
relações de interesse e gratificação, além das relações objetais.
Em seu artigo de 1946, Klein deixa claro que é, na primeira infância, que
surgem as ansiedades, que são características nos quadros psicóticos, forçando o ego a
desenvolver mecanismos de defesa específicos para essa estrutura. Por causa disso, as
ansiedades, os mecanismos e as defesas do ego, quando fazem parte do sujeito
psicótico, influenciam diretamente todos os aspectos relacionados ao desenvolvimento
do bebê, atingindo também as desenvolturas do ego, superego e das relações objetais.
Desde o início ​— ​sendo o seio materno a primeira relação objetal do bebê com o mundo
externo ​—​, os impulsos destrutivos provenientes da cisão entre seio bom e seio mau são
voltados contra o objeto em questão, expressando-se primeiramente em “fantasias de

11
​KLEIN, 1946, p. 21.

556
ataques sádico-orais ao seio materno, os quais logo evoluem para violentos ataques
12
contra o corpo materno com todos os meios sádicos” . Klein chega à conclusão de que:
Os medos persecutórios decorrentes dos impulsos sádico-orais do
bebê, de assaltar o corpo materno e retirar os conteúdos bons, bem
como dos impulsos sádico-orais de pôr dentro da mãe os próprios
excrementos (inclusive o desejo de introduzir-se em seu corpo, para de
dentro controlá-la), são de grande importância para o desenvolvimento
da paranóia e da esquizofrenia. (KLEIN, 1946, p. 21)

A fase persecutória, posteriormente chamada de ​posição paranóide​, precede a


posição depressiva. Se o bebê for dotado de medos persecutórios muito intensos e não
puder elaborar a posição esquizo-paranóide, automaticamente, a elaboração da posição
depressiva será impedida. Esse fracasso pode resultar num reforço regressivo dos medos
persecutórios, fortalecendo, assim, os pontos principais para o desenvolvimento das
psicoses graves.
Com relação à cisão em conexão com a projeção e a introjeção, Melanie Klein
irá recuperar a definição de Sigmund Freud acerca da projeção, a qual tem sua origem
na deflexão da pulsão de morte para fora, e a psicanalista acrescenta que essa projeção
13
“ajuda o ego a superar a ansiedade, livrando-o de perigo e de coisas más” . Quanto à
cisão, Klein faz uma relação com a idealização, afirmando que ambos estão diretamente
ligados. Sendo assim, a idealização é a verdadeira fonte do medo persecutório, e busca
uma gratificação ilimitada, criando a imagem de um seio ideal, que seria sempre
generoso e abundante. Então, é na gratificação alucinatória infantil que se pode
encontrar um exemplo dessa cisão, que volta os sentimentos amorosos ao seio bom, ao
passo de que sobram apenas ódio, frustração e ansiedade persecutória para o seio mau.
Consequentemente, na gratificação alucinatória, ocorrem dois processos, relacionados
entre si: “a invocação onipotente do objeto e da situação ideais e a igualmente
14
onipotente aniquilação do objeto mau persecutório e da situação de dor” .

12
​Ibid., p. 21.
13
​KLEIN, 1946, p. 25.
14
​Ibid., p. 26.

557
15
A identificação projetiva , por sua vez, o psicótico projeta suas ansiedades
sentidas como algo insuportável. Na sua fantasia, o bebê vai lançar para dentro do corpo
da mãe excrementos nocivos e destrutivos, além de sugar o seio até exauri-lo. Partes
específicas do ego são projetadas para dentro da mãe, e estes excrementos terão como
objetivo controlar e tomar posse do corpo desta. Uma vez contendo partes do ​self mau, a
mão agora é sentida como o próprio ​self mau. O psicótico trata, muitas vezes, a fantasia
como realidade, e a realidade como fantasia e tentará romper a ligação com o mundo
externo, temendo essa reentrada no objeto externo. O afastamento dessa realidade é uma
ilusão decorrente do uso da identificação projetiva contra o princípio da realidade.
Porém, esta fantasia torna-se um fato para o psicótico. A realidade odiada é fragmentada
e projetada para fora, e estes objetos expelidos são sentidos como se tivessem vida
própria, estando, então, o psicótico cercado por objetos bizarros.

2. O delírio psicótico em ​Alice no País das Maravilhas


Charles Lutwidge Dodgson (1832-1898), conhecido por seu pseudônimo Lewis
Carroll, nasceu em Daresbury, na Inglaterra, e foi influenciado pelo pai ​— ​por ser um
clérigo ​— ​a ter uma formação voltada para os princípios religiosos. Fugindo dos planos
feitos pelo seu genitor, Carroll seguiu para a Universidade de Oxford, licenciando-se em
1854, ensinando na mesma universidade entre os anos de 1855 e 1888, ocupando o
cargo de professor de matemática.
Em 4 de julho de 1862, passeando de barco pelo rio Tâmisa, contou uma história
de improviso, juntamente com seu amigo Robinson Duckworth, para entreter as filhas
do vice-chanceler da Universidade de Oxford, Loriny, Edith e Alice. A maior parte das
aventuras inventadas foram baseadas e influenciadas em pessoas, situações e edifícios
de Oxford. Com diversas modificações, ajustes e acréscimos de palavras feitos por
Carroll e outros mais experientes na área literária, no dia 4 de julho de 1865 ​— ​três anos
após o passeio de barco ​— ​Alice no País das Maravilhas ​foi publicada na versão que
conhecemos hoje em dia.

15
​Identificação projetiva é um mecanismo de defesa que se manifesta por um processo inconsciente, no
qual aspectos do próprio sujeito são negados e atribuídos a outro.

558
O livro é dividido em doze capítulos que contam a história de Alice, uma
menina curiosa, que segue um Coelho Branco de colete e relógio de bolso,
mergulhando, sem pensar, na sua toca. A protagonista, então, é levada para um novo
mundo, cheio de animais e objetos antropomórficos, que falam e se comportam como
seres humanos. No País das Maravilhas, Alice se transforma, vive aventuras e é
confrontada com o absurdo, o impossível, que faz a garota questionar tudo que aprendeu
até aquele momento.
Podemos perceber, durante o decorrer da narrativa, que o mundo no qual Alice
está prestes a se inserir e, depois, se insere, não é tratado pela menina como nada
anormal ou inesperado. Logo na primeira página, que dá início ao capítulo denominado
“Madrigueira abaixo”, Alice vê o Coelho branco apressado, vestindo roupas humanas e
falando, e nada vê de estranho naquilo, como se encontrar um coelho com
características antropomórficas fosse comum no dia-dia da personagem.
Não havia nada de ​muito extraordinário naquilo; e Alice não achou
muito inusitado ouvir o Coelho dizer para si mesmo: “Minha nossa!
Minha nossa! Vou me atrasar demais!” (quando ela voltou a pensar
nisso mais tarde, lhe ocorreu que deveria ter ficado espantada com
aquilo, mas na hora tudo pareceu muito natural) (CARROL, 2018, p.
7)

Ainda no início da história, Alice passa por uma experiência peculiar: cai dentro
de um buraco imenso que parece não ter fim. Depara-se com uma pequena porta, que
não poderia passar, por causa do seu imenso tamanho, e encontra também dois objetos
comestíveis, sendo o primeiro uma garrafa com um líquido indefinido, contendo uma
etiqueta com a ordem “beba-me”, e o sendo um bolo, que tinha como cobertura as letras
dizendo “coma-me”. Fazendo uma ponte com os outros capítulos, podemos perceber a
presença forte de uma dualidade, não apenas nesses alimentos que fazem crescer e
diminuir. Além deles, os irmãos gêmeos idênticos também aparecem como figuras
duplas, e a menina sempre se vê diante de escolhas que só contém duas opções.
Podemos relacionar essa dualidade à mesma dicotomia que Melanie Klein faz do ​seio
bom ​e do ​seio mau​, sendo, em Alice, algo que não se difundiu e permaneceu separado,
mesmo depois de passar da fase da primeira infância.

559
A menina, perante tantas situações fora do seu comum, começa a acostumar-se
com o mundo e as ocasiões novas, “pois, veja você, tantas coisas inusitadas haviam
acontecido nos últimos tempos que Alice começara a achar que de fato pouquíssimas
16
coisas eram realmente impossíveis” . Compara, portanto, com os acontecimentos
comuns do seu mundo real, e começa a se questionar se realmente vale a pena viver
uma vida tão chata, sem nenhuma aventura, nada novo a descobrir e novos personagens
— ​no sentido inusitado da palavra ​— ​para conhecer. Alice fica, a todo tempo,
preferindo adentrar na fantasia e permanecer nela, do que voltar para a realidade da sua
escola, dos seus amigos e dos aprendizados com a irmã, que pareciam não ter fim.
Logo, o novo passa a ser a preferência, pois, “Alice agora já havia se acostumado tanto
a esperar que apenas coisas inusitadas acontecessem que parecia entediante e maçante
17
que a vida seguisse dessa maneira tão comum” .
O psicótico, tendo o delírio como mecanismo de defesa, tenta a todo custo
afastar-se da realidade, que para ele é tão dolorosa. No entanto, a grande ironia da obra
em questão é que o real é inerente à personagem, ou seja, mesmo dentro de suas
fantasias psicóticas, Alice permanece ligada ao mundo em que vive, sem conseguir se
desvencilhar da sua realidade e, mais do que isso, transformando a sua fantasia em uma
“realidade adaptada”, na qual o sofrimento seria, de alguma forma, diminuído. Por não
ter sucesso na separação do dia-dia e do espaço criativo ​non sense​, Alice faz diversas
comparações com aqueles que convivem com ela fora da sua cabeça, e sua gata Dinah é
pioneira nesses pensamentos.
— Que estranho que é — falou Alice para si mesma — receber uma
incubência de um coelho! Só falta agora Dinah querer me dar ordens!
— E começou a imaginar o tipo de coisa que ia acontecer: “Senhorita
Alice! Venha já até aqui, e prepare-se para o seu passeio!” “Estou
indo, ama! Mas tenho de ficar de olho nessa toca de camundongo até
Dinah voltar, e garantir que o camundongo não saia dali.” — Só que
não acho — prosseguiu Alice — que eles deixariam a Dinah ficar lá
em casa se ela começasse a dar ordens nos outros desse jeito!
(CARROLL, 2018, p. 32)

16
​CARROLL, 2018, p. 11
17
CARROL, 2018, p. 13

560
Porém, a presença da realidade no mundo criado por Alice não implica dizer que
a presença dos delírios é diminuta. Mesmo com as comparações e até incisões da
realidade, a narrativa conta com o uso de artefatos da literatura fantástica — que seria o
objeto ou a situação que não se enquadram e não podem ser realizados no que
chamamos de realidade e norteiam toda a lógica da narrativa — que não deixam de se
enquadrar como sendo os momentos delirantes da personagem Alice. O ambiente, com
todos os seus elementos que contribuem para a criação de situações inusitadas, conta
não só com uma floresta repleta de figuras inesperadas, mas também com ilusões da
cabeça de Alice, que até os próprios personagens questionam e ficam se perguntando se
realmente a menina está passando bem. Mais uma ironia presente na obra: os próprios
personagens, que já são frutos da ilusão de Alice, começam a indagar se ela não está
sendo fantasiosa demais. Até a própria psicose tem as suas dúvidas quanto aos delírios
criados pela garota. Um dos momentos mais interessantes de delírio da protagonista se
dá quando ela esquece qual lado do cogumelo faz crescer e qual lado faz diminuir.
Diante do ditado “melhor prevenir que remediar”, Alice come um pedaço de cada lado e
fica crescendo e diminuindo sem parar.
Como parecia impossível que ela levasse as mãos à cabeça, tentou
levar a cabeça às mãos, e ficou encantada ao descobrir que seu
pescoço podia se dobrar com facilidade em qualquer direção, como
uma serpente. Alice tinha acabado de fazer um ziguezague gracioso
com o pescoço, e ia mergulhar por entre as folhas, que descobriu
serem as copas das árvores por onde estava vagando, quando um silvo
agudo a fez se afastar com pressa: um pombo enorme havia voado
bem no rosto dela, e batia violentamente nela com as asas.
(CARROLL, 2018, p. 44)

No entanto, dois personagens chamam a atenção na formação da narrativa de


Alice no País das Maravilhas​. O Gato de Cheshire e a Lagarta formam, explicitamente,
a consciência de Alice acerca dos acontecimentos, das aventuras, da vida e dela mesma.
Essa dupla faz o leitor questionar se o País das Maravilhas não seria a resposta para
todas as perguntas feitas pela menina, que nunca são respondidas pelos personagens em
questão. Tanto o Gato quanto a Lagarta não têm respostas porque a própria Alice não
tem as respostas para as perguntas que ela faz, e, por eles serem sua consciência, fazem
com que ela chegue às suas conclusões à medida que vai desenvolvendo seu

561
pensamento, como um fluxo de consciência. A Lagarta faz Alice questionar quem ela é,
e a resposta dela é bem simples: “— Receio que não possa ​me ​explicar, senhor —
18
retrucou Alice — por que não sou eu mesma, sabe” . Já o Gato, por sua vez, faz a
menina questionar-se sobre sua sanidade, conversando diretamente com a pergunta feita
pela Lagarta e deixando Alice sem nenhuma resposta concreta, tendo que caminhar com
as próprias pernas.
(...) — Todos somos malucos. Eu sou maluco. Você é maluca.
— Como você sabe que eu sou maluca? — indagou Alice.
— Só pode ser — replicou o Gato — Caso contrário, não teria vindo
para cá.
Alice não achou que aquele argumento provava nada; no
entanto, prosseguiu:
— E como você sabe que você mesmo é maluco?
— Para começo de conversa — disse o Gato —, um cachorro não é
maluco. Concorda?
— Presumo que não — respondeu Alice.
— Bem, então, sabe, um cachorro rosna quando está com raiva, e
abana o rabo quanto está satisfeito. E eu rosno quando estou satisfeito,
e abano o rabo quando estou com raiva. Portanto, sou maluco.
(CARROLL, 2018, p. 54)

No final, não fica claro se o que Alice viveu foi realmente um sonho, ou se ela
começou a imaginar tudo acordada, escutando os ensinamentos de sua irmã. De frente à
tantos acontecimentos que fazem Alice questionar a si, ao mundo e a realidade, a
narrativa de Lewis Carroll tem a capacidade de fazer até o mais são de seus leitores
começar a se questionar se realmente a vida tem tanta graça sem as criações que a mente
é capaz de proporcionar.

Considerações finais
A obra de Lewis Carroll, ​Alice no País das Maravilhas​, contém diversos
questionamentos que fazem o leitor ficar de frente com o ser humano no mais íntimo do
seu ser. A literatura como um todo, seja ela de caráter ​non sense ou não, traz à tona o
grande questionamento: o que seria, de fato, real? Aquilo que é colocado como certo ou
errado, colocado como uma dicotomia entre bom e mau, seria mesmo tudo isso
inquestionável e obrigado a ser tratado como uma verdade absoluta? A existência do

18
​CARROLL, 2018, p. 39

562
elemento fantástico na narrativa escolhida para análise sai do teor psicanalítico e não
fica apenas com interpretação baseada no que seria criativo da mente psicótica de Alice
e o que não seria. Transcende à essa discussão, como a verdadeira literatura traz como
papel principal, sendo não o enredo ou as palavras que possuem o papel principal, mas,
sim, a vida.
Mesmo sendo um texto pertencente à segunda metade do século XIX, a história
de Alice perpassa pelas gerações e encanta não só o público infanto-juvenil, como
também os adultos, que batem de frente com a realidade na história, recheada de
indagações que fazemos a nós mesmos diante das diversas situações que enfrentamos no
dia-dia. Diante de uma sociedade que esquece de olhar com bons olhos a vida alheia e
faz questão de esquecer dos próprios problemas de forma errônea, a Duquesa, uma das
personagens mais peculiares da narrativa de Carroll, traz para o leitor uma crítica e uma
reflexão: “​— Se cada pessoa cuidasse da própria vida — falou a Duquesa com um
19
rugido rouco —, o mundo giraria muito mais rápido do que gira” .

Referências bibliográficas

BELLEMIN-NOËL, Jean. ​Psicanálise e Literatura​. São Paulo: Editora Cultrix, 1978.


CARROLL, Lewis. ​Alice no País das Maravilhas​. São Paulo: Ciranda Cultural, 2018.
FREUD, Sigmund. ​O poeta e o fantasiar (1908)​. In: Arte, literatura e os artistas. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2018.
FREUD, Sigmund. ​Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado
em autobiografia : (“O caso Schreber”) : artigos sobre técnica e outros textos
(1911-1913)​. São Paulo : Companhia das Letras, 2010.
GUERRA, Andréa Máris Campos.​ A psicose​. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
KLEIN, Melanie (1991). ​Notas sobre alguns mecanismos esquizóides​. In: Inveja e
gratidão e outros trabalhos (p. 17-43). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original
publicado em 1946).

19
​CARROLL, 2018, p. 50

563
564
DO OLHAR SUSSURANTE À PERSEGUIÇÃO PARANOICA: O GOZO
PSICÓTICO EM “O CORAÇÃO DENUNCIADOR”, DE EDGAR ALLAN POE

Orientando: Matheus Pereira de Freitas

Orientador: Hermano de França Rodrigues

Resumo No decurso histórico, mais precisamente no final do século XIX, a ciência


psicanalítica rompe, com Sigmund Freud (1893), a tradição médica vigente. Enveredando
pelos mares tortuosos do inconsciente e, buscando os vestígios naufragados da
subjetividade, o mestre vienense nos conduz à dinâmica psíquica, cujo funcionamento
obedece às leis do desejo. Diante dessas elucubrações teóricas, pretendemos analisar o
conto O Coração Denunciador, escrito em 1843, por Edgar Allan Poe (1809 – 1849), um
dos mestres da literatura fantástica. Para tanto, utilizaremos, além do arsenal
psicanalítico, os estudos de Tzvetan Todorov (1970) e de Vladimir Propp (2002).
Palavras-chave: Psicanálise; Literatura; Psicose

Introdução
“Assim, com a queda da primeira ordem social das coisas, cuja memória
conservamos, a da escravidão e a da mitologia, a literatura fantástica surgiu, como o sonho
de um moribundo, em meio às ruínas do paganismo” (NODIER, ano). Ao tentar
circunscrever as origens desse gênero, Charles Nodier (1780-1844), em seu ensaio Do
fantástico em literatura, parte em defesa das construções estéticas do romantismo alemão
em pleno século XIX, argumentando que as criações fantásticas, ali encontradas, nada
mais são do que descendentes diretos das obras magnas de Homero, Ovídio, Dante e
Cervantes. Nessa trajetória, onde os elementos do Maravilhoso fomentam uma nova
apreensão do mundo, o movimento romântico surge como solo profícuo para o florescer
do fantástico, permitindo-nos contornos mais visíveis, já que, debruçar-se sobre o “eu” é
estar sujeito ao (ir)real que nos habita. Nodier (ANO) vislumbra, então, que a literatura
dita fantástica desenvolvera-se entre os auspícios das lendas e narrativas do Maravilhoso,
desgarrando-se e confundindo-se com sua gênese.
Para o crítico e filósofo Todorov (1970), as origens da estética fantástica,
consagrada nos contos do mestre do terror americano, Edgar Allan Poe (1809-1849),
remontam à trajetória literária europeia. Fora pela narrativa do escritor polaco Jan Potocki
(1761-1815), em Manuscrito encontrado em Saragoça (1805), que, primeiramente, o

565
efeito do fantástico prosperou na sua atmosfera sortida e nebulosa, própria da que viria a
ser consagrada nos grandes nomes do gênero. Segundo Todorov (1970), o estatuto do
fantástico se daria pelo seu efeito de ambiguidade, uma balança que sustém a realidade e
o sobrenatural, cujo (des)equilíbrio se daria pela própria dúvida, seja ela criação dos
personagens, seja ela do leitor1. Desse movimento, pende-se: o a) Maravilhoso: próprio
do universo mitológico de Homero e Ovídio, em que os deuses e suas crias celestes
caminhavam (des)conjuntados sobre a terra. Por essas veredas, a fantasia caminha sem
limites, misturando-se com a própria realidade; e b) O Estranho: gênero que se consagra
a partir dos maiores avanços científicos do século. A obra Frankstein, da inglesa Mary
Shelly (1818), é quem coroa uma estilística elucidativa, em que o sobrenatural é
destruído/criado pela mão científica do homem (TODOROV, 1970).
Nas territorialidades confeccionadas pela consagração da fantasia incerta, o
leitor/personagem faz-se refém dos contos magistrais do francês Théophile Gautier
(1811-1872). Em sua obra de maior destaque, A morte amorosa (1836), acompanhamos
Romualdo, um jovem padre recém ordenado que cai nas tentações da bela Clarimunda,
numa narrativa entrelaçada pelo sonho e realidade. A partir de então, o noviço vive numa
dicotomia, ora vive pelos vícios da carne, ora pelas virtudes divinas. Nesta dualidade,
percebemos a utilização “perfeita” dos mecanismos estéticos do fantástico (CALVINO,
2004). A atmosfera do conto gautiniano reflete o estertor alucinante de Guy de
Maupassant (1850-1893), outro grande difusor do fantástico francês, cujas construções
fantasísticas beiram o sobrenatural e o delírio psicótico. Em o Horla (1887), presenciamos
essas confecções, num refinado relato do protagonista, provável vítima de sua própria
perturbação psíquica.
Contudo, é o escritor alemão E. T. A. Hoffmann (1776-1822) quem ascende como
principal nome do fantástico alemão e, posteriormente, iria influenciar diretamente os
escritos do americano, Edgar Allan Poe. Hoffmann, além de consagrar o fantástico em
sua estética singular, permitiu a Sigmund Freud (1856-1939) conjecturar e desenvolver
sua teorização acerca do inquietante, Das Unheimlich (1919), a partir da análise da obra
de maior destaque do escritor alemão, O homem de areia (1817), numa explícita
interlocução entre as descobertas psicanalíticas e à literatura. Assim, recorremos aos

1
“O fantástico implica, pois, uma integração do leitor com o mundo dos personagens; define-se pela
percepção ambígua que o próprio leitor tem dos acontecimentos relatados” (TODOROV, 1970);

566
postulados freudianos, para nortear nossos itinerários analíticos pelos meandros do conto
O coração denunciador (1843) de Edgar Allan Poe.

Teoria (dá um título)


De fato, o elo entre a literatura e a psicanálise erigira-se na mesma pena que criou
a ciência do inconsciente. Sigmund Freud, ao validar sua teoria (em pleno nascimento)
com a arte da palavra, presente desde a aurora das civilizações, amparava o dito
psicanalítico nas narrativas da experiência humana. Desse modo, o dizer literário
resguardava um (des)conhecimento subjetivo análogo ao do sujeito debruçado no divã,
saberes ocultados por seus próprios criadores. Como assinala o teórico Jean Bellemin-
Noel (1978), em sua obra Psicanálise e literatura, “Compete-nos assinalar que ler com
os óculos de Freud é ler numa obra literária – como atividade de um ser humano é como
resultado desta atividade – aquilo que ela diz sem o revelar, porque o ignora” (1978, p.19).
Atravessando essas veredas, o mestre vienense encadeou conceitos alicerçados em
verdadeiros clássicos da literatura ocidental. Dentre eles, o Inquietante (1920) destaca-se
pelo vínculo entre o dizer freudiano e a estética do fantástico.
Num primeiro momento, o psicanalista vienense investiga a acepção
epistemológica da palavra Unheimlich – equivalente, no português, a estranho,
inquietante, infamiliar. Os termos dão nome ao texto freudiano, com maior desacordo
entre os tradutores. Ao examinar as contingências semânticas do infamiliar, Freud
percebe a ambiguidade que a palavra resguarda; aquilo que é familiar também é da ordem
do infamiliar. Como o próprio psicanalista argumenta, “o uso da língua permitiu que o
familiar deslizasse para seu oposto, o infamiliar, uma vez que esse infamiliar nada tem de
realmente novo ou de estranho” (FREUD, 1919, p.85). Na verdade, o que o infamiliar
resguarda são as reminiscências, marcas que se inscrevem dentro e fora do nosso corpo e
que habitam o inconsciente, já que, na lógica do neurótico, o insuportável de nós mesmos
fora recalcado, expulso da consciência. São, nas peregrinações em O Homem de Areia de
E. T. A. Hoffmann, que Freud começa sua discussão acerca do curioso sentimento de
estranhamento que a narrativa alemã sustenta. No enredo, deparamo-nos com as
angústias de Nathaniel, um jovem que, desde sua infância, é atormentado com a lenda do
homem de areia, uma figura que toma para si os olhos das crianças que não querem

567
dormir. Nesse cenário, o protagonista projeta a imago de seus terrores no amigo de seu
pai, o advogado Coppelius, figura que sempre lhe causou desconforto.
Seguindo os itinerários do psiquiatra Jentsch (1867-1919), que iniciara os estudos
do infamiliar e sua relação dialética com sua antítese, Freud orquestra um alargamento
das considerações linguístico-epistemológicas do infamiliar e, entrelaçando com a
narrativa hoffminiana, transmuta a discussão do termo para o campo psicanalítico.
Entendemos, então, como os mecanismos do recalque atuam para contornar o medo da
castração, experimentado por Nathaniel ao vislumbrar o Homem da Areia, este, por
excelência, é aquele que rouba o olhar, logo, o próprio desejo. Nessa articulação, o pai da
psicanálise expõe de que maneira o universo fantasístico incorpora-se ao infamiliar, na
medida em que este se estabelece a partir de um desejo infantil, há muito recalcado
(FREUD, 1919, p.59). Nesse âmbito, a psicanálise já escancarara o papel da fantasia
como rota de acesso ao desejo, principalmente na dinâmica psíquica infantil, em que as
fantasias, mais do que nunca, superam os interditos paternos, algozes do desejo.2
Embebida pelo narcisismo, o qual se alia às fantasias de onipotência (chamadas
de onipotência de pensamento), a criança dilapida um outro dele mesmo, um duplo. Com
o desenvolvimento infantil, esse outro é cada vez mais incorporado ao ego fragmentado
do sujeito, até que, sorrateiramente, é escamoteado ao inconsciente. Contudo, por muitas
vezes, há um retorno dessa figura estranha, inóspita, que há muito fora familiar. Essas
articulações, na teoria do infamiliar, interligam-se magistralmente com o conto William
Wilson (1839), de Edgar Allan Poe, além de outras narrativas fantásticas como o
Estudante de Praga, de H. H. Ewers (1913), que o próprio Freud articula em seu texto
(FREUD, 2019 [1919]). O interessante é perceber, na tessitura literária do fantástico, os
elos com o discurso psicanalítico, cristalizados a partir da subjetividade humana, que
ambas buscam escavar. A palavra freudiana dar-nos o amparo para esse pensamento:
propriamente, algo que tem o efeito de infamiliar frequente e facilmente
alcançado quando as fronteiras da fantasia e realidade são apagadas, quando
algo real, considerado como fantástico, surge diante de nós, quando um
símbolo assume a plena realização e o significado do simbolizado e coisas
semelhantes (FREUD, 2019 [1919], p.93)

2
Esses caminhos iluminam-se intensamente com as considerações de Melanie Klein (1952), e seus estudos
no concernente ao mundo externo e interno do bebê.

568
Desse modo, as confecções do fantástico, sobretudo no século XIX, aparece-nos
infestadas de criaturas insólitas, delírios macabros, possessões demoníacas, sonhos
inexpugnáveis, que escondem um dizer íntimo da realidade, algo que não pôde ser
presenciado ordinariamente pelo simbólico. É, então, que o notável infamiliar apresenta-
se numa atmosfera sortida, impulsionada por nossas fantasias arcaicas que buscam
reafirmar os espaços que ocupavam dentro de nós. O duplo tornou-se então “uma imagem
do horror, tal como os deuses, que após a queda de suas religiões tornam-se demônios”
(FREUD, 2019 [1919], p.73) (lembremo-nos, aqui, da fala de Nodier, e das origens
homéricas do fantástico). O infamiliar advém de uma força irresistível, da ordem
repetitiva, a pulsão thanática. Percebemos, então, que as teorizações do infamiliar
prenunciam o texto responsável por instituir a segunda tópica da teoria freudiana, Além
do princípio do prazer (1920).
Até o momento, nossas considerações teóricas confeccionaram-se sob as pontes
analíticas da estética fantástica e da teoria psicanalítica. Voltemos, agora, nosso olhar para
um dos conceitos fundantes da teoria psicanalítica, a instância psíquica do supereu.
Quando Sigmund Freud, em sua interpretação dos sonhos (1900), tracejou o fim do
complexo de édipo – momento do desenvolvimento infantil em que a criança cede, não
plenamente, ao seu desejo incestuoso, a fim de introduzir-se na esfera cultural e recalcar
sua angústia de castração paterna – inferiu a obtenção de um valioso presente psíquico,
o supereu. Para o mestre vienense, essa instância psíquica estaria intimamente interligada
com nossa pretensão social para a censura, após atravessarmos anáguas da história no
mito da Horda Primitiva3 (FREUD, 1913). Segundo o dicionário psicanalítico, “o supereu
mergulha suas raízes no isso e, de uma maneira implacável, exerce as funções de juiz e
censor em relação ao eu” (ROUDINESCO, 1997, p.744). Vale ressaltar que esses
horizontes teóricos se desenvolveram no texto de 1923, O Eu e o Id e no Mal-estar na
civilização (1930). Posteriormente, seguindo os passos do precursor da ciência
psicanalítica, Jacques Lacan (1901-1981) alargará as discussões do supereu freudiano.
Em seu entendimento do inconsciente enquanto estruturado como uma linguagem, o

3
Teoria desenvolvida por Freud em 1913, Totem e tabu, que seguindo uma lógica primitiva, na aurora dos
tempos tribais os desejos do Urvater (pai supremo) eram plenos, até o momento de ser destronado por sua
prole, numa lógica cíclica. Nessa lógica, tivemos que estabelecer um símbolo totêmico para o pai morto,
um protótipo da religião, numa forma de confeccionar interdito, caminhávamos para o futuro da civilização;

569
psicanalista entenderá essa instância psíquica sob a égide do significante dos Nomes-do-
pai, uma metáfora paterna propriamente dita.
Contudo, enveredando por outros itinerários, a austríaca Melanie Klein orquestrara
uma verdadeira revolução do pensamento freudiano, principalmente no que se diz
respeito ao supereu, sem deixar de respeitar seus fundamentos. Com o avanço de sua
técnica, Klein (1932) enveredou-se nas dinâmicas objetais dos primeiros tempos. Ela
pôde, então, averiguar que a trama edípica entra em cena logo nas primícias da existência
e adquire feitura mais consistente após o desmame, colorindo os primórdios de nossa
economia psíquica. Neste percurso, o bebê, impossibilitado de obter o seio materno em
sua totalidade fantasiada, em confluência com as frustações uretrais e anais ocasionadas
pelas prerrogativas de higiene, sofre com as angústias persecutórias e temores intensos,
gerados pelas pulsões destrutivas. Nas palavras da psicanalista francesa M.-C. Thomas:
[o medo] é um produto da formação do supereu e da incorporação: a criança,
em sua fantasia, faz desse mecanismo um teatro de horrores em que, cortada e
separada da mãe, ela quer recuperá-la, mordendo-a, devorando-a, retalhando-
a para lhe roubar o seio, o pênis do pai, suas fezes etc. Ela se sente culpada por
lhe ter feito mal e teme, por retaliação, uma punição idêntica da mãe
introjetada: o supereu, por seu turno, morde, retalha e quer se apropriar do
corpo da criança. (NASIO, 1994, p.149)

Afetado por esse cenário atroz de negação e, impelido pelas pulsões destrutivas,
o bebê manipula seu arsenal aterrador, a fim de fustigar o corpo materno. A par destas
observações clínicas, Klein (1957) estabeleceu duas posições subjetivas que dão
contornos à dinâmica psíquica, não apenas das crianças, mas também, das outras fases do
desenvolvimento humano. São essas as posições: esquizo-paranóide e depressiva. Na
primeira configuração subjetiva, para o infante, não há distinção entre ele e sua mãe; há
uma relação simbiótica que entrelaça o filho ao seio materno – expressão das experiências
gratificadoras e nefastas, a depender dos cuidados ofertados pelo objeto de desejo.
Quando o contato é suficientemente satisfatório, o bebê mergulha no prazer do néctar
materno, acompanhado de seu acalanto amoroso; por outro lado, se a relação ocorre em
meio a frustrações prementes, o lactante também experimenta o terror de aniquilação
perante a ausência do seio. Assim, a criança recorre à clivagem como mecanismo de
defesa, dividindo a fonte de sua angústia entre um seio bom e outro mal, bem como o
próprio self. Como corolário, geram-se dois mecanismos psíquicos interligados, a
introjeção e a projeção. À medida que a maturação progride, o “jogo” fantasístico de
internalizar e expulsar os objetos torna-se menos violento, aproximando-se cada vez mais

570
da realidade, o que favorece uma “mudança da mais alta importância: de uma relação com
objetos parciais e disjuntos — “bons” e “maus” —, o sujeito passa para a relação com seu
objeto fundamental e prevalente: a mãe como um todo” (NASIO, 1994, p.161). Superada
essa etapa, prenunciamos os efeitos da posição depressiva.
Nesse segundo momento, a criança compreende a unidade que é a mãe.
Doravante, seus ataques, antes submersos à polarização, atingem um objeto que coaduna,
ao mesmo tempo, a virulência do seio mal e a generosidade do seio bom. Assim, impelido
por um sentimento de culpa e reparação ao objeto amado, a posição depressiva refreará
o frenesi dos ataques da posição esquizo-paranóide, permitindo um desenvolvimento
afetivo que tende a refração da inveja e ingratidão.
Será, majoritariamente, na posição esquizo-paronoide que o “psicótico” operar-
se-á com o universo que o constitui. Melanie Klein não desenvolveu uma unidade teórica
acerca das psicoses, seu grande levante na ciência psicanalítica fora o de entender o
funcionamento psíquico em duas posições regidas por mecanismos. Assim, no teatro
psíquico de nós mesmos, oscilamos nas engrenagens depressivas e esquizo-paranoides,
estas, apesar de serem superadas no desenvolvimento psíquico mais aceito culturalmente,
nunca as abandonamos. O psicótico, na verdade, apropria-se ostensivamente desses
mecanismos; na lógica de seus surtos, parte o mundo escolhendo de qual lado gozarão.
Serão, por esses arsenais que o narrador de O coração denunciador, denunciará a sua
confissão a si mesmo e a nós leitores.

ANÁLISE (dá um título)


Diante do alvorecer da narrativa fantástica, Edgar Allan Poe integrou, em sua
estética gótica, o mesmo vigor que Hoffmamm empreendeu nas raízes do gênero
fantástico. Poe, além de ser responsável por fazer florescer as ramificações do fantástico
na américa, também é reverenciado como o grande renovador da narrativa curta. Para o
autor, o gênero conto seria detentor de um efeito paradigmático, já que, por se diferenciar
da maioria dos romances em amplitude, a sua estrutura permite uma leitura única, sem as
pausas que infectam o impacto da obra. Por esse viés, o autor deveria ser sempre
consciente do fim da narrativa e esta, por sua vez, deveria ser responsável por um grande
efeito catártico. Nas palavras do próprio escritor, “No conto breve, ao contrário [do
romance], permite ao autor desenvolver plenamente seu propósito [...] Durante a hora da

571
leitura, a alma do leitor permanece submissa à vontade daquele” (POE, 1844). O conto
que analisaremos a seguir é filho deste mesmo resultado singular.
“Com efeito! — nervoso — tenho andado terrivelmente nervoso, ando com os
nervos à flor da pele; mas por que insistis que estou louco? A doença, acima de tudo,
aguçou o sentido da audição. Escutei todas as coisas no céu e na terra” (POE, 1843, p.
84). Atentando-nos para sua audição clarividente, o protagonista, direcionando-se para
seus interlocutores, inicia seu estranho relato com a certeza irrevogável de que a “doença”
que lhe perseguia, apenas ajudou-o na empreitada de seu crime, o homicídio do seu
vizinho. O motivo de sua ação, fora uma característica peculiar da vítima, um de seus
olhos, cristalino em decorrência de sua catarata, assemelhava-se com o de um abutre. O
narrador descreve:
É impossível dizer em que momento a ideia penetrou em meu cérebro; porém,
uma vez concebida, perseguiu-me dia e noite. Objetivo, não havia. Furor, não
havia. Eu gostava do velho. Nunca me fizera mal. Nunca me ofendera. De seu
ouro nunca tive desejo algum. Acho que era seu olho! sim, era isso! Um de
seus olhos parecia o de um abutre — um olho azul-claro, velado pela catarata.
Sempre que pousava sobre mim, meu sangue gelava; e assim, pouco a pouco
— muito gradualmente —, tomei a decisão de tirar a vida do velho, e desse
modo me livrar daquele olhar para sempre (POE, 1843).

O olhar, para a psicanálise, é de uma importância estruturante e inigualável para a


etiologia do sujeito; é a via principal para o querer e, por consequência, um dos cernes de
nossa angústia primordial, o medo da castração. Contudo, que sentidos ocultos estariam
velados no olhar de um abutre? Sigmund Freud, em seu estudo de 1910 sobre Uma
lembrança de infância de Leonardo d´Vinci, interpreta uma memória infantil do grande
pintor renascentista, na qual consistia em “estando no berço, que um abutre vinha até mim
e abrisse minha boca com sua cauda e muitas vezes me batesse com a cauda nos lábios”
(FREUD, 1910, p. 94). O psicanalista vienense interpretara essa fantasia a partir dos
significados que o abutre incorpora, deste modo, ao buscar as fontes no Egito antigo,
depara-se com a deusa Mut, a mãe terra por excelência. A divindade era representada por
uma mulher com um abutre acima da cabeça. Isto posto, “ficamos sabendo que o abutre
era o símbolo da maternidade, porque se acreditava que havia apenas abutres fêmeas e
nenhum macho nesse tipo de pássaro” (FREUD, 1910, p.101). Com isso, o mestre
vienense compreende o relato de Leonardo sugar a cauda do abutre, o pênis materno, uma
forma de Leonardo fantasiar sua homossexualidade, impossível de ser vivenciada
abertamente na época.

572
Por meio dessas elucubrações teóricas, podemos enxergar a figura do abutre como
uma representação materna extremamente devastadora que, no furor de seu voo soturno,
invoca angústias persecutórias e o horror da castração. Nessa tessitura, vemos as
construções do supereu arcaico aos moldes kleinianos, em que o horror da aniquilação
está resguardado numa mãe detentora de todos os arsenais destrutivos, inclusive do pênis
paterno. Lembremo-nos de que a própria natureza do abutre é ser um arauto da morte e
um devorador de carnificinas, semblantes que o supereu arcaico se recobrirá. Para Klein,
“esse superego primitivo é muito mais rigoroso e cruel do que o da criança mais velha ou
do adulto, literalmente esmagando o frágil ego da criança pequena" (KLEIN, 1933,
p.286). Nesse cenário, o medo domina a relação do ego, extremamente fragmentado, com
o supereu arcaico. A sobrevivência do bebê dependerá da manutenção de seu ego, atacar
o corpo materno e cindindo-o em objetos bons e maus, na clivagem, bem como lançar-se
e recolher-se no outro, na identificação projetiva. Ambas são mecanismos de defesa
desses primeiros tempos, esperanças de conservar e internalizar um ego multiplicado
pelas experiências e fantasias da gênese infantil. Em algum recanto de nossas vidas,
partilhamos da mesma perseguição devastadora; alguns alçam para a posição depressiva,
utilizando minimamente dos mecanismos primevos no futuro de suas relações. Contudo,
alguns sujeitos mantêm-se fiéis nas primeiras formas de interação objetais, incapazes de
se defender com as vias depressivas.
Por esses caminhos, podemos constatar como o funcionamento psíquico do
protagonista opera-se na lógica dos mecanismos esquizo-paranoides. O que o atormenta
não é seu vizinho, mas sim, o olho de abutre clivado de sua face, o olhar castrador que
habita seu inconsciente. Não por acaso, durante “sete noite e sete dias”, o narrador adentra
no quarto de sua vítima para observá-lo, buscando a oportunidade de agir, mas, por buscá-
lo em seu momento de repouso, o olho permanece cerrado, faltando-lhe o impulso de
cometer o homicídio. Até que, na oitava noite de sua peregrinação soturna, o protagonista
derruba a chave de estanho, acordando o velho de seu sono. Nessas atitudes podemos
vislumbrar as artimanhas do inconsciente, a chave teria que cair e trovoar sobre o chão
para que seu desejo fosse concretizado. É, nesse momento, que a oportunidade surge e,
ao incidir a luz da lamparina exatamente no olho de abutre, desperta-lhe o furor necessário
para o assassinato. O autor relata o instante: “O olho estava aberto — aberto, arregalado
— e senti a fúria crescer dentro de mim ao fitá-lo. [...], mas nada mais podia eu enxergar

573
do rosto do velho ou de sua pessoa: pois dirigira o facho como que por instinto
precisamente sobre o ponto maldito” (EDGAR, 1843). Assim, instigado pelas batidas do
coração de sua vítima, vertendo a cama pesada sobre ela, o protagonista concretiza o
assassinato e, num gozo irremediável, certifica-se deque o coração, o mesmo que lhe
impulsionara para o crime, esteja inerte.
Para livrar-se do corpo, o narrador serra os membros do velho e esconde debaixo
do assoalho. Na manhã seguinte, a polícia adentra sua casa já que os vizinhos relataram
um grito na madrugada soturna. O protagonista convida os agentes para investigar cada
canto de sua casa e, convencido de que os enganara, dispõe cadeiras abaixo do cadáver.
Até este momento, o narrador manipulara a situação num verdadeiro teatro perverso,
brincando e execrando da própria Lei. Contudo, em meio aos risos e cordialidades dos
seus convidados, o homicida escuta um som abafado, similar ao de um “relógio revestido
de algodão”, que aumenta sua angústia e o leva ao delírio. É nesta agonia encolerizada
que o autor encerrará sua denuncia
Era possível que não estivessem escutando? Deus Todo-Poderoso! — não,
não! Eles escutavam! — eles suspeitavam! — eles sabiam! — estavam
escarnecendo de meu horror! — isso foi o que pensei então, e isso é o que
penso agora. Mas qualquer coisa era melhor do que aquela agonia! Qualquer
coisa era mais tolerável do que aquela zombaria! Eu não podia suportar aqueles
sorrisos de hipocrisia por mais tempo! Senti que tinha de gritar ou morrer! —
e então — outra vez! — escutai! mais alto! mais alto! mais alto! mais alto! —
‘Patifes!’, urrei, ‘basta de dissimulações! Admito o que fiz! — arrancai as
tábuas! — aqui, aqui! — é o batimento de seu odioso coração!’ (POE, 1843).

O nefasto coração do velho, estimulante do crime e, talvez por isso seu delator,
persegue o protagonista mesmo na morte. Presenciamos o centro do delírio paranoico
que, outrora revestido no olhar cristalino de abutre, trafegara nas veias do ancião até
alcançar seu coração, mais precisamente em seu rufar metódico. É, nessa travessia
corporal, que o órgão revela-nos a verdade, os objetos internalizados pelo narrador,
distanciam-no da sua realidade externa. Aquilo que o personagem escuta é o rufar de seu
próprio coração, ritmado pelas angústias persecutórias. Incapaz de dialogar com os
objetos mortíferos que habitam seu ego, por meio da identificação projetiva, o
protagonista lança-se no outro na tentativa de matar o que é seu. Recorrendo ao delírio, o
personagem despe-se da realidade pungente que o invalida de si mesmo. É, então, que
nos deparamos com o mecanismo estético de Edgar Allan Poe, descrito por Cortázar em
sua Valise de cronópio (1974): “compreendeu que a eficácia de um conto depende da sua
intensidade como acontecimento puro”. Na mesma medida que o coração delata, o

574
personagem, também o faz com o leitor, nas últimas linhas. O conto coroa este efeito
catártico.

Considerações Finais
Na trilha da literatura fantástica, culminada na obra de Edgar Allan Poe, podemos
inferir uma filiação com o saber psicanalítico. O infamiliar é próprio do fantástico, já que,
na sua proposta de (des)conjecturar a realidade, acaba por espelhar fantasias e suspeitas
de um mistério há muito esquecido pela consciência, mas, permanentemente inscrita no
inconsciente, preceitos da infância. Esse entrelaçamento pôde ser vislumbrado em nossa
análise. Em O coração delator, percebemos os fantasmas do superego arcaicos,
angariados e contidos no olhar circundante do abutre. Diante de tal horror, o personagem
só conseguiu sucumbir à força do delírio, culminando no assassinato. O ato orquestrado
pela epiderme de seu desejo, apenas durou o bastante para um gozo. O supereu arcaico
nunca deixou de o habitar e, longe de desvencilhar de sua arquitetura psíquica, o
tamborilar do coração delata a persistência desse registro.
Por fim, é necessário desgarrar-se do preceito todoroviano de que “a psicanálise
substituiu (e por isso mesmo voltou inútil) a literatura fantástica” (TODOROV, 1970, p.
120). A psicanálise nunca matara o fantástico. Nossa pesquisa apenas declara que os
preceitos analíticos, iniciados por Freud, revelam um saber já discutido nas anáguas do
discurso fantástico. A psicanálise traduz essa estética, não a extingue.

Referências

NODIER, Charles. Du fantastique en littérature. Paris: Chimères, 1989 [Barbe bleue,


collection dirigée par David Gravier, Anne Wickers], pp.9-38.
FREUD, Sigmund; Arte, Literatura e os artistas, 1910; Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2017;
FREUD, Sigmund; O infamiliar [Das Unheimliche], 1919; Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2019;
Klein, Melanie. O desenvolvimento inicial da consciência na criança [1933], 1996b,
p.286-7

575
NASIO, J.-D (Org.). Introdução às obras de Freud, Ferenczi, Groddeck, Klein,
Winnicott, Dolto, Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
POE, Edgar Allan. Histórias Extraordinárias,1859; São Paulo: Tordesilhas, 2013
TODOROV, T. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara C. Castello. São
Paulo: Perspectiva, 1975.

576
A RUÍNA PSICÓTICA DE NARCISO: MOLDURAS (DES)ESTRUTURANTES
DO ABANDONO EM "O ANÃO", DE LYA LUFT

1
Thiago Guilherme Calixto (UFPB)

Resumo: ​Esta pesquisa busca discorrer acerca das múltiplas faces da psicose expostas no conto
O Anão, que conto narra os (des)encontros de uma família incapaz de lidar com o nanismo do
seu filho mais jovem. O garoto descreve as agruras do seu não-encaixe em um mundo cercado
por impossibilidades, além de carregar a pesada culpa dos recorrentes desentendimentos entre
seus pais, que, na maioria das vezes, orbitam em torno do seu nanismo. Obra da escritora
gaúcha, Lya Luft. Propomos elaborar uma interlocução entre os fundamentos psicanalíticos
desenvolvidos por Freud (1923) e os estudos pós-freudianos, fomentados pelo psicanalista
francês Jacques Lacan (1985) a partir das interpretações do psicanalista J-D Nasio (2009).

Palavras-chave:​ Literatura; Psicanálise; Lya Luft.

Introdução
Por meio da literatura o ser humano pode tomar consciência da sua própria
humanidade, percebendo suas ambivalência e identificando-se em vários ​outros​. A
literatura possibilita esse processo de espelhamento, no qual nós podemos enxergar as
virtudes e mazelas de um ​outro ​que não se encerra nele mesmo, mas pode sua imagem
refratada em nós, causando identificações e/ou estranhamentos.
A literatura excede o texto como também nós extrapolamos a consciência. O
texto literário é o receptáculo desses excessos e dessa (in)consciência. O sujeito tecido
pela literatura escapa, por vezes, da “normalidade” esbarrando em “anomalias” que os
constituem subjetivamente. Nesse mar a psicanálise navega de forma distinta,
percorrendo áreas antes não conhecida, e revelando novas possibilidades de
compreender com esse “anormal”.
Buscando discorrer acerca das múltiplas faces da psicose expostas no conto ​O
Anão, obra da escritora gaúcha, Lya Luft, propomos elaborar uma interlocução entre os
fundamentos psicanalíticos desenvolvidos por Freud (1923) e os estudos pós-freudianos,

1
​Mestre em Letras (UFPB). Contato: ​thiagoguilhermecalixto@gmail.com

577
fomentados pelo psicanalista francês Jacques Lacan (1985) a partir das interpretações
do psicanalista J-D Nasio (2009).

O local da foraclusão

O que faz alguém ser considerado “louco”? Quais as condutas que diferenciam
os “loucos” dos “sãos”? Segundo Nasio (2009, p.7) “Somos todos loucos em algum
recanto das nossas vidas”. De fato, paulatinamente, torna-se cada vez mais movediço
traçar uma barreira visível entre os considerados socialmente ​são e os ​insanos​. Essa
barreira, que outrora aparentava ser extremamente fixa, foi se desfazendo com o passar
dos séculos, de modo que, atualmente, podemos enxergá-la cada vez mais tênue.
Os estudos pós-freudianos se debruçam sobre a loucura, de maneira a fazer
algumas ponderações significativas para esse campo, entre elas, a de que “a loucura não
se trata necessariamente de uma conduta bizarra ou perigosa” (NASIO, 2009, p.8), e
que está atrelada, essencialmente, à falta da dúvida, que é profusa nos indivíduos
neuróticos. Desse modo, ser louco é despir-se de qualquer incerteza e mergulhar em um
mar de total certeza, possuindo uma “certeza cega do que pensa e do que faz.” (NASIO,
2009, p.8).
Assim, Nasio (2009) apresenta o conceito de foraclusão local, na qual o
indivíduo neurótico passa a exprimir, em algum aspecto da sua vida, traços psicóticos.
Esse novo conceito, introduzido pelo estudioso, recebeu contribuições direta da clínica,
onde Nasio (2009, p.81) pode observar que:

um distúrbio psicótico, por exemplo um surto delirante ou uma alucinação,


sobrevém em pacientes neuróticos que, apesar da gravidade de tal distúrbio,
não têm uma estrutura psicótica; e, inversamente, pacientes diagnosticados
como psicóticos apresentam, fora de seu delírio e às vezes no próprio momento
do delírio, comportamentos plenamente normais. (NASIO, 2009, p.81).

Desse modo, a foraclusão local (resposta inconsciente a um trauma) tenderia a


(des)estruturar uma parte delimitada do indivíduo, podendo, o mesmo sujeito, em outras
áreas, elaborar respostas lúcidas e equilibradas. Para construir tal conceito, Nasio (2009)
teve por base a teoria lacaniana, que concebe a foraclusão, palavra oriunda do

578
vocabulário jurídico, enquanto fissura psíquica que impede o sujeito de identificar
aquilo que ele observa. A sensorialidade está presente, no entanto a representação
psíquica dos objetos tangenciado não acontece.
Essa resposta, chamada foraclusão, demonstra a incapacidade de reelaboração
do sujeito. Tal alternativa surge como um modo de afastar-se do que seria intragável,
passando a negar aquilo que sensorialmente lhe é atestado. Assim, “o sujeito que
foraclui a realidade é um sujeito que ​não pode ​reconhecer o que, no entanto, está diante
dele.” (NASIO, 2009, p.82). Isso não equivale a uma tentativa de esquecimento, não
existe recalque; floracluir uma situação traumática é rejeitar, por completo, tudo o que
isso pode significar. É um estado de absoluta inércia.
Nasio (2009) esmiúça o processo de floracluir ao expor o caso de um jovem
psicótico, que, ao longo da sua vida, sempre foi muito apegado ao pai, e que, ao receber
a notícia de seu falecimento, demonstra apenas indiferença. Diferente de todos os
outros, ele continuaria fazendo a atividade que estivesse desenvolvendo, seja brincando,
vendo TV ou até dando gargalhada. Pois, “a foraclusão é uma anestesia das sensações e,
portanto, da consciência do que é percebido.” (NASIO, 2009, p.83).
Esse evento traumático outrora não reconhecido pode desencadear,
posteriormente, uma série de sintomas de natureza psicótica (como delírios, alucinações
e também a despersonalização), tendo em vista que o indivíduo não saberá lidar com a
rachadura aberta pela foraclusão. Esse tipo de defesa psíquica causa uma violência
devastadora ao eu que, diferente do recalque, no qual o indivíduo admite a existência da
agressão e adiante procura esquecê-lo, na foraclusão o trauma não reconhecido se firma
como um grande vazio, uma falha psíquica, no qual o sujeito se encontra incapaz de
sentir e por consequência de reelaborar o fato traumático. Acerca desse processo Nasio
(2009) afirma:

Certamente, o trauma inicial foi uma violenta agressão para a criança, mas a
defesa foraclusiva com que seu eu ainda imaturo tenta negar a agressão é mais
violenta ainda. A defesa contra o mal é mais nociva que o mal que ela pretende
combater: incapaz de sentir e de reconhecer o trauma, o eu se fratura
inevitavelmente (NASIO, 2009, p.84)

579
O conceito de foraclusão local, cunhado por Nasio (2009), estrutura-se a partir
de um postulado que está no cerne da sua concepção, qual seja: que todo indivíduo
molda-se por meio de uma “pluralidade de pessoas psíquicas, ou seja, uma
multiplicidade de estados subjetivos, sadios e doentes, coexistindo.” (NASIO, 2009,
p.85). Dessa forma, nossa constituição, enquanto sujeito, acontece a partir desse
entrelaçamento antagônico, em que nossos “vários eus” se interpõem. Nasio (2009)
expõe essa ideia a partir do ​sujeito folheado​, ​formado por uma miscelânea de folha
sobrepostas que fazem parte de um único plano.
Esse conceito foi a resposta dada a uma questão inquietante, sobre a qual o
estudioso se debruçou, consistia em:

explicar por que um psicótico grave, por exemplo, conserva regiões saudáveis
em seu psiquismo; ou, ao contrário, por que um indivíduo perfeitamente
normal nos seus relacionamentos cotidianos pode ficar circunstancialmente
delirante​ ​(NASIO, 2009, p.85).

A coexistência entre a “sanidade” e a “loucura” foi apresentada por Freud no


texto ​Moisés e o monoteísmo: três ensaios​. Neste, o precursor da psicanálise afirma que:

Cada indivíduo é normal apenas medianamente normal, seu Eu se aproxima


daquele psicótico nesse ou naquele ponto, em extensão maior ou menor, e o
grau de distanciamento de um extremo da série e de aproximação ao outro será
para nós, provisoriamente, uma medida dessa “alteração do Eu”, tão
imprecisamente definida (FREUD, 2018, p.96).

Dessa forma, Freud já postulava que mesmo os sujeitos considerados “normais”


podem, por vezes, sofrer momentos de “loucura”, pois todo nós temos um laço
psicótico, que pode vir à tona. Esse laço, considerando uma possível foraclusão
localizada, pode habitar um espaço sensível das nossas vidas, seja a vida financeira, a
familiar, os relacionamentos amorosos, a vida acadêmica. Assim, estamos diante de um
aspecto particular e localizável em que o indivíduo perde o ponto fundamental da razão.
Em suma, o processo da foraclusão consiste num emperramento das
engrenagens da máquina simbólica, como Nasio (2009) assevera, quando afirma que “​A
foraclusão não é uma rejeição, mas a abolição de uma passagem que deveria ter

580
ocorrido. Que passagem? A passagem de um significante do conjunto (S2) para o
lugar (S1) em que estava sendo esperado.​” (NASIO, 2009, p. 98).

Um anão na casa dos gigantes

Lya Luft, durante o ano de dois mil e oito, lançou um livro de contos intitulado
por ​O silêncio dos amantes. ​A obra é composta por vinte contos, entre eles, ​O anão.
Este conto narra os (des)encontros de uma família incapaz de lidar com o nanismo do
seu filho mais jovem. O garoto de dez anos descreve as agruras do seu não-encaixe em
um mundo cercado por impossibilidades, além de carregar a pesada culpa dos
recorrentes desentendimentos entre seus pais, que, na maioria das vezes, orbitam em
torno do seu nanismo. Como podemos observar abaixo:

- Você tem que aceitar a realidade, mulher! Seu filho é anão. Ele não
vai crescer, não vai ser o rapaz bonito que você queria. Eu também
queria, mas não vai acontecer. Sonhar desse jeito não ajuda. É preciso
ser realista.
- Ele é seu filho também, você podia pelo menos ter um pouco de
compaixão.
As brigas deles quase sempre giram em torno de mim (LUFT, 2008,
p.24).

Sua mãe, extremamente protetora, tenta amenizar, ao máximo, as dificuldades


encontradas pelo garoto. Aparece, sempre, muito desejosa de que um dia seu filho possa
crescer novamente. Ela utiliza desse subterfúgio para conseguir lidar com um filho
indesejado, que nunca correspondeu às suas perspectivas. Desse modo, passa a
vislumbrar uma futura mudança que não corresponde à realidade, nesse momento, o fato
é privado de se estabelecer enquanto inscrição psíquica. Como descreve o garoto:

Minha mãe a meu lado quer me agradar e prepara meu pão com geléia, quer
cortar em pedacinhos como se eu, além de anão, fosse incapaz. Me serve leite
com chocolate e uma fruta. Junto do prato, sempre as pedrinhas coloridas que
são meus comprimidos. Muito remédio para ser saudável e para crescer. Mas
eu não vou crescer. Minha mãe ainda tem esperança (LUFT, 2008, p.24).

581
Em um outro extremo dessa relação aparece o pai do pequeno protagonista que,
diferente da sua esposa, ignora em absoluto esse filho. O fato de enxergarmos o pai pela
ótica do filho, demonstra como aquele menino interpreta a dura falta do pai, que deixa
em seu lugar um vácuo insuportável. Ao descrever essa relação tão precária, o pequeno,
afirma: “Ele me gerou, portanto é o responsável. Nunca lhe peço nada. Procuro até
evitar que me note, porque sempre tem para mim uma palavra dura, um gesto de
desprezo, um olhar gelado.” (LUFT, 2008, p.23).
O sentimento de frustração diante de tal cenário parece ser o único ponto de
consonância entre esse pai e seu filho. Essa quebra de expectativa desdobra-se sobre um
já primitivo desejo edípico de morte do pai, sendo verbalizado pelo menino, quando
afirma: “Se eu estourar, todo mundo morre. Meu pai também.” (LUFT, 2008, p.23). Do
mesmo modo, o pai estabelece a todo momento um silêncio mortífero que traga toda
possibilidade de construção de um diálogo paterno com o filho, cerceando a palavra que
como um engodo volta ao não-dito. Pode ser notada quando o protagonista discorre:

No café da manhã reina silêncio. Meu pai deve pensar no trabalho, minha irmã
no namorado,e minha mãe e eu pensamos em mim. E quando alguém começa a
conversar, meu pai diz que ali é lugar de comer, não de falar (LUFT, 2008,
p.27).

Quando um diálogo mínimo é estabelecido, seu pai habitualmente lhe dirige “uma
palavra dura, um gesto de desprezo, um olhar gelado” (LUFT, 2008, p.28), negando por
meio da palavra a paternidade indesejada, sua mãe lhe cerca de um amor sufocante,
buscando minimizar as lesões causadas por um não-pai agressivo, que, a todo momento,
tenta matar simbolicamente esse filho malquisto. As diferenças entre os dois (pai e
filho) são bem definidas ao longo do conto, ocupam pontas de um fio que parece não se
tocar, isso fica evidenciado na descrição física dos dois presentes no conto, sendo:

Não sou apenas um menino que não vai crescer. Sou aqueles anões feiosos,
vivo sobre perninhas muito curtas, bamboleio ao caminhar. Nada em mim é
bonito. Não gosto do jeito que estão ficando minhas mãos, gordas e com dedos
muito curtos; meu rosto é escavado acima do nariz, a boca de lábios grossos
meio abertos, a testa abaulada, a cabeça enorme: ela tem tamanho normal. Meu
corpo, não (LUFT, 2008, p.25)

582
E sobre o pai:
Meu pai é a pessoa maior de todas. E não gosta de mim - na verdade acho que
sente horror e repugnância. Não aceita que alguém como ele, tão alto,
poderoso, importante, que cuida da saúde, faz ginástica e corre nos fins de
semana, tenha produzido um filho desses. Sempre que levanto os olhos e vejo
que está me encarando, sinto que gostaria de me apagar. De me deletar da
paisagem como se faz no computador: deletar, e acabou-se. Minha única
colaboração é ser tão pequeno, ocupar pouco espaço, dentro destes limites
apertados que me sufocam. Mesmo assim, eu sei que ofendo os outros. Só
porque existo, ofendo os outros. (LUFT, 2008, p.26)

De fato, os dois mantêm uma relação destrutiva, que tem dilacerado instâncias
sensíveis da constituição do sujeito. “Deletar”, “acabar” e “destruir” são palavras que
fazem parte de um mesmo campo semântico, e verbalizam esse relacionamento. Do
mesmo modo, esta fragilidade se desdobra, também, sobre o cotidiano escolar do
garoto, que se sente estranho em meio a outros alunos. O que, também, é reforçado por
seus colegas por meio de xingamentos, como o que foi dito por um de seus colegas:
“Você não foi parido, foi cagado!” (LUFT, 2008, p.23).
O garoto encontra-se diante de dois pólos, aparentemente, difusos em que se
encontram o pai e a mãe, esses “extremos” tocam-se no que tange à negação desse filho,
que não é aquilo que estavam. Essa negações percorre direções distintas, enquanto a
mãe busca reverter a disfunção do menino, por não aceitá-lo , o pai renega, claramente,
esse filho. Como pode ser observado quando o garoto afirma:

- Você precisa tratar esse menino de outro jeito, ele está mimado, não tem
modos, é um chorão, vai ficando cada vez pior!
Quando está zangado, o que é quase todo o tempo, ele nunca diz nosso filho,
sempre seu filho, como se eu fosse só dela. A filha é dele; o porco é dela.
Assim é a minha vida (LUFT, 2008, p.30).

Tal situação, de fato, pode ser o desembrulhar de um retrato remotamente fixado


sobre a parede da sala, no qual existe uma mãe profusamente castradora, que
superprotege o filho, não dando espaço para que o pai apareça e corte, por meio da
demonstração de afeto, essa relação. Desse modo, o pai não aparece, o processo de

583
identificação não se estabelece. O filho gruda nessa mãe, em meio a uma relação
psicotizante, e essa mãe tem seus outros papéis apagados diante do papel de mãe do
anão.
Certamente, esse imbróglio familiar, capitaneado por pais que constroem um
ambiente psicotizante, repercute diretamente na estruturação psíquica do filho, de
maneira que o anão físico pode vir gerar o anão psíquico. Como podemos notar nos
últimos desenlaces do conto:

Na mesa do almoço derramei feijão na toalha porque teimei em me servir


sozinho, embora seja muito difícil alcançar as travessas, e minha mãe quer
fazer tudo por mim. E quando ainda por cima deixei escapar um pouco de
comida da boca e ela escorregou sobre minha roupa, meu pai teve um acesso
de fúria. [...] E gritou de novo que sou porco, sou um porco e nunca vou me
corrigir.
- A culpa é sua! Além de me parir essa coisa, você o trata como se fosse um
príncipe. Que família, nós somos, que família?
Saiu pisando ódio, bateu a porta da copa, bateu a porta de casa, bateu a porta
do carro e arrancou ainda furioso. Ele bate em tudo porque não pode bater em
mim. Sou pequeno demais. Sou um pobre anãozinho encolhido na sua cadeira
(LUFT, 2008, p.32).

Embora o garoto, como todo indivíduo, queria desenvolver um mínimo de


autonomia e realizar atividades básicas sozinho, as limitações físicas que carrega não
permite que isso aconteça. De modo que esse estado de dependência e por efeito
dedicação da mãe ressoa nos vínculos dessa mulher com a filha e o marido. Toda essa
tessitura causa repulsa no pai, que culpa sua esposa também por essa situação, por não
poder culpar apenas o garoto, que surge como o grande “empecilho” para que sejam
uma família como este pai acredita que deva ser.
O desfecho do conto demonstra o quanto esse ambiente psicotizante reflete
nessa família, observe:

Quando minha mãe, que tinha corrido atrás do marido tentando acalmá-lo,
voltou e se abaixou para ver o que eu estava fazendo, levantei os olhos para
ela, sacudindo meu rabinho retorcido, contente porque achei que ela ia me
pegar no colo. Mas ela, boca muito aberta, só gritava, meu filhinho, meu
filhinho!
Então saí em disparada pela casa, esbarrando nos móveis, nas pernas das
pessoas atônitas, guinchando feito louco.
Pelo espanto, agora eu era poderoso (LUFT, 2008, p.32).

584
De fato, o garoto se tornou aquilo que pai afirmava, agora pela primeira vez ele
era “poderoso” e veloz, saia “em disparada pela casa” deixando todos à sua volta
surpresos. A linguagem torna-se ato, e esse pai que “arrancou ainda furioso”
objetivando distanciar-se dessa realidade, deixa pra trás um filho-porco que busca por
esses pais em meio a essa casa, tendo em vista que, também como seu pai, sua mãe “só
gritava” ao contrário de acolher esse filho no colo, como ele ansiava.
Por conseguinte, esses pais não conseguem reelaborar o nanismo do filho, de
modo que tentam afastar-se desse tensionamento insuportável. Essa situação cria uma
rachadura de ordem psíquica na qual no floracluir se estabelece localmente, assim como
NASIO (2009) afirma ao longo do seu estudo. Esse tecido familiar é tensionado todas as
vezes em que filho-anão vêm a tona, essa localidade é evidenciada ao longo de todo o
conto. A culminação acontece quando esse garoto morfonatiza-se num porco, por meio
do que NASIO (2009) classifica enquanto alucinação, que seria um sintoma de natureza
psicótica.

Considerações finais

O conto da Lya Luft reflete alguns nuances da subjetividade humana que são
abordadas por meio da psicanálise. A descrição dos sujeitos que compõem essa família
por meio do olhar do pequeno garoto fornece ao leitor uma visão ímpar desse contexto.
No qual, os pais não fornecem ao seu filho a capacidade de lidar com as adversidades de
um meio social tão hostil às diferenças. O filho-anão sofre diante de um estado de total
negação.
As questões presentes em ​O anão são temáticas caras à psicanálise. Por meio do
olhar freudiano que forjou o Complexo de Édipo e as estruturas clínicas psicanalíticas,
tais conceitos auxiliaram a construção da presente interpretação. Os estudos
pós-freudianos também foram fundamentais, tendo em vista que tomamos como ponto
de partida teórico o conceito de foraclusão cunhado por Lacan e discutido por Nasio na
atualidade.

585
Referências

BELLEMIN-NOËL, Jean. ​Psicanálise e literatura​. São Paulo: Editora Cultrix, 1978.


FREUD, Sigmund. ​Obras completas, volume 19: ​Moisés e o monoteísmo: Compêndio
de psicanálise e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
______. ​Obras incompletas de Freud: ​arte, literatura e os artistas. Belo Horizonte:
Editora Autêntica, 2017.
LUFT, Lia. ​O silêncio dos amantes. ​São Paulo: Editora Record, 2008.
NASIO, J. D. ​Os olhos de laura: ​somos todos loucos em algum recanto de nossas
vidas. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
ZIMERMAN, David E. ​Fundamentos Psicanalíticos: teoria, técnica e clínica. São
Paulo: Artmed, 2004.

586
Narradores do Xingu: Memória e Identidade do povo Beradeiro do Médio Xingu

Fernanda Souza Pereira (Unicamp)1

Resumo: Com o intuito de mapear a construção da identidade cultural dos Beradeiros que
moram na cidade e nas margens do rio Xingu no município de São Félix do Xingu- PA, bem
como compreender as relações de ocupação da Amazônia Paraense, procura-se nesta
comunicação analisar as narrativas orais e escritas desse povo. A identidade Beradeira surge de
novas tradições, novos costumes, novos hábitos, de pessoas oriundas de diversas regiões do país
que plasmaram novas relações sociais e que, portanto, constituíram os elementos fundamentais
para formação desses ribeirinhos. Desse modo, as narrativas orais apresentam-se como uma
forma de alicerçar na memória desses habitantes os aspectos que deram origem a esse povo.

Palavras-chave: Beradeiros, Memória, Identidade, Narrativas orais

Para se compreender o processo de formação da identidade do povo Beradeiro do


Xingu, torna-se imprescindível contextualizar parte da história (cultural, social e
política) do Sul e Sudeste do Pará no século XX. De acordo com Marianne Schmink e
Charles H. Wood (2012)
Com a descoberta da borracha ao longo do Xingu, os vários grupos de
kayapó viram suas novas terras serem invadidas pelos seringueiros. A
primeira rota terrestre para o Xingu, partindo de Conceição do Araguaia, foi
aberta em 1908 e as hostilidades contra os gorotire começaram naquele
mesmo ano. Os seringueiros liderados por Antônio Firmino atacaram duas
vezes e, na segunda tentativa, conseguiram destruir uma aldeia kayapó.
Consta que os caçadores de índios do Araguaia lançaram suas vítimas
ensanguentadas num rio próximo, que ficou conhecido como rio Vermelho.
Foi através dos seringueiros que os guerreiros kayapó adquiriram suas
primeiras armas de fogo. Os kayapó passaram a realizar ataques anuais aos
habitantes ao longo dos rios Xingu, Araguaia e Fresco, geralmente
capturando mulheres e crianças. (SCHMINK; WOOD, 2012, p 333)

Nesse período, a migração na Amazônia foi incentivada pelo Estado brasileiro,


que fomentava a ideia da região como fronteira agrícola a ser ocupada (ou colonizada).
Kayapós e seringueiros viveram constantes e sangrentos conflitos, nesta que foi “a era
da borracha” no médio Xingu.
A partir dos anos 30, segundo Deyvesson Israel Gusmão, “o governo Vargas
tinha como meta povoar a região com famílias de agricultores que se dispusessem a sair
de suas terras no Nordeste do país, periodicamente abaladas pelas constantes faltas de
chuva, para trabalharem na Amazônia (GUSMÃO, 2008, p.11)”. Essa iniciativa também
impulsionou o aliciamento de vários trabalhadores rurais que, ao chegarem à região,

1
Graduada em Letras (Unifesspa), Mestranda em Teoria e História Literária (Unicamp). Contato:
fernandapereira.s.pereira@gmail.

587
eram sujeitados a péssimas condições de trabalho e moradia. Neste início de ocupação
territorial, a maior parte da população era proveniente do Norte e Nordeste do Brasil.
Nos anos 40, durante a Segunda Guerra Mundial, a região do Médio Xingu passou
a fornecer borracha vegetal para os Estados Unidos. Com o aumento da produção e da
extração do produto, a comercialização passou a ser controlada pelo Estado. Para tal
demanda “foi criada a ‘Batalha da Borracha’, através da qual, homens eram recrutados
para trabalharem na produção gomífera” (GUSMÃO, 2008, p.11). Em virtude desse
acontecimento, surgiram os “soldados da borracha” que aceleraram o processo
migratório para a Amazônia, o que ocasionou um grande fluxo populacional para a
região do Médio Xingu.
Seu Romano, morador da região do Médio Xingu, recrutado como “soldado da
borracha”, recorda esse momento de ocupação territorial:
Minha avó quando veio em 1914, veio de Fortaleza, isso enviado para vir
cortar, porque eram os soldados da borracha, cearense, pernambucano,
alagoano, sergipano e maranhense. Foi o que Deus deixou para eles
colocarem. (Romano de Oliveira Torres, 69 anos, 2016)
Tanto os trabalhadores aliciados por funcionários de confiança dos donos dos
barracões aviadores2, quanto os chamados “soldados da borracha” (presentes na região
devido à ampla propaganda governamental) forame vieram com o objetivo (diga-se, a
“ilusão”) de enriquecer através da exploração das riquezas naturais, a saber: a borracha,
o caucho3, o ouro, o diamante, a cassiterita, a ruflamita (pedra preta), a madeira
(principalmente o mogno), a castanha-do-pará e, por fim, o couro de animais silvestres.
O conflito social, como destaca Marianne Schmink e Charles Wood, torna-se um marco
na disputa por esses diferentes interesses:
Conflito social é uma característica inerente à sociedade de classes. No caso
da Amazônia, conflitos ocorreram primariamente devido às disputas entre as
reivindicações sobre recursos valiosos, tais como terra, ouro e madeira. No
choque dos diferentes interesses operando na fronteira, pode-se delinear uma
distinção bastante útil entre as disputas internas ao próprio grupo social e as
disputas que envolveram resistência e grupos dominantes. Entendemos
conflitos internos como aqueles que ocorreram entre membros de um mesmo
estrato, tais com as disputas sobre os depósitos de ouro entre garimpeiros

2
O Aviador recolhia a borracha e a remetia à casa aviador em Belém, figura central do sistema da
borracha. As grandes casas de comércio que subiram em poder em proeminência durante o auge recebiam
borracha de estradas remotas, financiando a vasta rede de fornecimento, recrutando mão de obra e
expandindo as atividades de coleta de borracha em novas áreas para cobrir a demanda. As casas dos
aviadores vendiam a borracha para casa de exportação em Belém, geralmente controlada por estrangeiros,
que trabalhavam em nome de compradores de borracha. SCHMINK, Marianne; WOOD, Charles H.
Conflitos sociais e a formação da Amazônia. Belém: ed.ufpa, 2012. p. 84.
3
Árvore da família das moráceas, cujo látex dá uma borracha de qualidade inferior.

588
e índios (ambos subordinados). Resistência, por outro lado, ocorre quando
membros do grupo subordinados desafiam as tentativas do estrato dominante
em apropriar recursos ou impor a maneira pela qual os recursos seriam
explorados. O conflito entre fazendeiros e camponeses pelo acesso à terra e o
bloqueio às tentativas das companhias mineradoras em impor assalariamento
aos garimpeiros autônomos são exemplos de resistência. (Schmink e Wood,
2012, p.52)
Ao descrever as atividades e a rotina de trabalho, seu Benedito, um dos primeiros
moradores do município, destaca as práticas, saberes e transformações que ocorreram
no decorrer desse processo:
O verão era de maio a outubro, final de outubro, ai eles já saiam de dentro da
mata. Aqueles que escapavam dos índios vinham embora. Acabou o caucho
[...] porque aquela árvore derrubada não nascia mais. A seringa não, a
seringa, eles aprenderam que deviam cortar com moderação, para não
apodrecer o pau, para ficar para todo tempo, todo ano então parava em
outubro. Ela encascava direitinho de novo, cortava com uma faca de seringa,
tinha aqueles golpezinho, embaixo colocava uma tigelinha de alumínio para
juntar o leite, para fazer aquela pelota de borracha. Foi muitos anos
trabalhando nisso no tempo da guerra mundial, segunda guerra. Foi indo,
veio o marisco do gato [...] onça, ariranha, mucura da água. Tudo isso dava
dinheiro [...] depois veio o mogno, o jaborandi, depois veio a pedra preta,
ruflamita [...] (Benedito Ribeiro Coelho, 80 anos, 2016)

Neste início de ocupação territorial, a maior parte da população era proveniente do


Norte e Nordeste do Brasil. A partir dos anos 40, a prática da pecuária e a exploração da
folha de jaborandi trouxeram cidadãos de outras regiões do país, como do Centro-Oeste,
Sul e Sudeste. Quanto mais trabalhadores chegaram, mais os cidadãos enfrentaram
graves problemas de ordem social como a resistência dos índios e os constantes casos
de abusos sexuais contra as mulheres. Além disso, são relatadas diversas doenças
tropicais típicas da região, que contribuíram para transformar o processo de ocupação
territorial (e de formação cultural) num cenário adverso e complexo.
Os migrantes chegavam com a intenção de explorar, enriquecer e ir embora para
suas terras de origem. A riqueza, portanto, era o fim que justificaria os meios de
ocupação territorial; em outras palavras, era de uma forma ou de outra, o leitmotiv das
manifestações culturais insipientes.
A miscigenação ocorreu de forma acelerada marcando a fisionomia cultural e
étnica do município. Ela acontecia entre pessoas de diferentes estados e, também entre
brancos e indígenas, como conta o senhor Benedito:

Foi chegando em São Félix os desbravadores eram maranhenses, piauiense,


porque sabia lá, que o pessoal aqui estava financiando aqueles seringalistas,
caucheiro, dono de muita coisa. Financiando o povo para trabalhar para tirar
o caucho, a seringa para vender, ai teve gente naquela época veio de pé.

589
Vinha até Conceição do Araguaia, vinha sair aqui numa aldeia com o nome
Gorotire, ainda não era aldeia nesse tempo. De Gorotire pegava uma canoa e
vinha embora para cá, daqui ia subindo o Xingu, então veio maranhense,
muitos maranhenses e aqueles maranhenses foram chamando atenção dos
outros. Ai depois veio goiano [...] quem chegou por último foi os gaúchos.
Os gaúchos não gostavam muito de caucho. Os maranhenses eram pessoas
destemidas, que não tinham medo de nada, andavam de remo, subiam o rio
acima, dez, doze dias de remo [...] passavam o verão todinho [...] Na ilha era
mais difícil os índios atacarem, porque tinham que atravessar nadando, eles
pereciam muito e os seringueiros tinham canoa. Ai tinham preferência as
ilhas, não tinha colônia assim não. Cada família morava em uma ilha, na
beira do rio assim, cada um para botar uma rocinha assim para ter uma
comida, fazer a farinha, tirar a mandioca para cozinhar, para comer [...]
(Benedito Ribeiro Coelho, 80 anos, 2016)

Podemos afirmar que esse processo foi marcado pela alteração das sociabilidades,
fazendo com que os moradores fixos da região padecessem por constantes mudanças. A
identidade Beradeira surge de novas tradições, novos costumes, novos hábitos, de
pessoas oriundas de diversas regiões do país que plasmaram novas relações sociais e
que, portanto, constituíram os elementos fundamentais para formação do povo
Beradeiro. Desse modo, as narrativas orais apresentam-se como uma forma de alicerçar
na memória desses habitantes os aspectos que deram origem a esse povo. Quando seu
Benedito menciona que os maranhenses eram pessoas destemidas, nessa narrativa
percebemos os valores que norteiam a relação do homem com o meio, bem como os
traços essenciais para a constituição de um tipo desbravador e heroico, não à toa muitas
narrativas analisadas acentuam esse caráter predominante dos homens que habitavam as
margens do rio Xingu.
Extratos da memória cultural Beradeira
Por meio de fragmentos de duas produções4de Francisco Viana5 e uma narrativa
registrada por Wilson Nunes6 é possível pensar um pouco mais a respeito desse
processo sócio-histórico-cultural de integração, modernização ou formação da
Amazônia paraense.
A lenda da Serra encontrada e a Ilha do Laborão

No alto Rio Xingu, nos cafundós, acima da Cachoeira Comprida, está a ilha
do “Laborão”, mais acima, talvez a um quilômetro, existem duas lindas serras
calçadas de rochas, contendo capim agreste e árvores do campo, pequi, oiti,

4
Como as duas produções não possuem títulos, será feita a marcação por poema I e II. A segunda
produção teve para sua elaboração contou com a participação de Casimiro Soares Barro e Manoel da
Silva Barros.
5
Ex-pesquisador da folha de jaborandi
6
Ex-seringueiro

590
sambaiba e outras. As duas pontas que se cruzam na água passando uma
ponta pela outra, passa o canal do Grande Rio Xingu, de longe tem-se a
impressão, de duas mãos cruzadas, parecendo que o rio se fechou, numa
visão maravilhosa!
Os antigos desbravadores deram o nome de “Serra Encontrada”, entre a
cachoeira carreira comprida e as duas serras está a ilha do Laborão, no meio
de um poção que também é conhecido como poço do Laborão. Nesta ilha
morava uma velha de nome Vitalina, nós dialogávamos sobre as belezas do
Lendário Xingu, depois de horas fez-se uma pausa quando me perguntou se
eu sabia da história do Laborão, uma cobra encantada. Conta-se que era um
índio dos antigos do Xingu, não sabemos se era Juruna ou Kaiapó, certo é
que várias histórias levam a um único final, mas continuando, ela disse que o
Laborão era um índio de formosura sem igual, por causa de seus dotes e sua
inteligência, era perseguido pelos guerreiros da tribo. Sua mãe era curandeira
e Pajé na aldeia, sabendo a velha senhora que no poço da serra existia uma
grande fortuna, em forma de uma cabeça de abacaxi em ouro. Certo dia, a
velha disse ao filho que aquela fortuna só lhe pertenceria quando ele soubesse
nadar para o fundo daquele poço.
Então o índio, que jamais esqueceu o que a mãe tinha e o que havia
revelado, ao crescer e se tornar rapaz aprendeu a nadar, e certo dia o índio,
que se chamava Patoví foi ao rio tomar banho, não retornando jamais. Dizem
que se transformou em uma grande cobra e lhe deram o nome de Laborão,
que dorme em cima da grande fortuna.
Dizem que são três as cabeças de abacaxi, mas isso cabe a nós descobrir.
(NUNES, 2003, p.19)

É perceptível que a narrativa se constitui pela relação intrínseca entre o espaço de


vivência (a região do rio Xingu) e o espaço de construção ficcional (o universo mítico
de acesso à riqueza). Por esse motivo, a história se passa no rio Xingu, acima da
cachoeira chamada de Carreira Comprida, em uma ilha conhecida pelo nome de
“Laborão” – próxima a duas serras revestidas de rochas, contendo capim agreste e
árvores do campo.
A partir de uma perspectiva distanciada, as rochas passam a impressão de serem
duas mãos cruzadas, motivo pelo qual os primeiros moradores da região deram-lhe o
nome de Serra Encontrada. A narrativa se organiza no momento em que os personagens
são apresentados, a saber: o pajé (pai), a curandeira (mãe) e o filho (Patoví), esse por
sua vez possui papel de destaque.
A ação se inicia a partir do momento em que a velha senhora (mãe) demonstra
saber que no poço existiria uma grande fortuna. O clímax ficcional é percebido no
momento da revelação que a mãe faz ao filho sobre a fortuna no fundo do poço, e o
desfecho é instaurado quando o jovem índio desaparece no poço e transforma-se em
uma grande cobra encantada. O tempo da narrativa é retratado de maneira cronológica
numa ordem linear. Há uma preocupação em descrever o espaço onde ocorre a trama. O
tipo de discurso predominante é o discurso indireto-livre.

591
Ao analisar a narrativa é possível fazer uma relação entre o personagem Patovi e
os Beradeiros que vieram para Amazônia em busca de riqueza, pois, assim como
Patovi, nunca conseguiram alcançar a fortuna almejada. Oposto a isso, ficaram reféns de
constantes explorações e grandes atrocidades: chacinas e raptos de mulheres dos
trabalhadores, as quais serviam como moeda de troca.
Pode-se afirmar que as narrativas orais (ainda vistas com desconfiança e pouco
estudadas dentro do âmbito acadêmico) são de grande importância para a construção da
identidade do povo Beradeiro, pois esses ribeirinhos foram capazes de, além de se
expressarem, também de se compreenderem por meio de suas próprias narrativas. Nelas,
o leitor/ouvinte encontra a força das representações simbólicas e o poder das imagens
metafóricas para a sociabilidade cultural deste povo.
Assim como o índio, em busca de riqueza, transformou-se em cobra ao mergulhar
no poço, os migrantes que chegaram à região, e que de forma semelhante ansiavam
explorar as potencialidades financeiras desse território, transformaram-se em um
elemento identitário novo: o rio foi capaz de transformar o índio em cobra e o migrante
em Beradeiro.
Poema I
Eu não sou contra o desenvolvimento
mas a saudade me transpassa coração
quando eu me lembro que talvez fosse atrasado
mas não tinha tamanha devastação

Sinto saudades das velhas castanheiras,


E das veredas a onde eu andava a pé,
Tinha fartura e uma vida de abundancia,
De muitos peixes no Rio Xingu e Igarapés.

Das seringueiras também eu sinto saudades,


Tudo era festa, tudo era animação,
Nunca pensei que este campo de trabalho,
Fosse acabar com esta civilização.

Não vejo nada que retribua as saudades,


Das passaradas cantando nos arvoredos,
As águas limpas e o ar puro aqui eu respirava,
Foi predileto hoje só tem é, mau cheiro.

Com tudo isso dava para me conformar,


Se as seringueiras e castanheiras estivessem vivas,
Para que pudéssemos utilizar seus leites,
Para que não sabe: elas foram nossas vidas.

592
Vamos zelar do pouquinho que nos resta,
Desta floresta que é o pulmão da humanidade,
Do Rio Xingu e todos seus afluentes de,
São Félix nossa querida cidade.

No poema de Francisco Viana, o eu lírico ao narrar suas memórias, mesmo


tentando exprimir uma postura que não se contrapõe ao desenvolvimento, deixa insurgir
o seu real pensar ao lembrar com saudade de um tempo ausente do “progresso” em que
a paisagem da mata ainda não havia sido degradada e viviam da extração do látex e da
castanha. Mas que tudo isso se transformara com o processo de modernização da
Amazônia, vista por ele como um progresso que marcou de maneira negativa, já que
com a “civilização” a mata foi devastada, em que as seringueiras e castanheiras, que
antes serviam de subsistência, já não vivem mais. As águas se tornaram escassas de
peixes e sujas pelos dejetos despejados pelos garimpos. E nenhum progresso irá
compensar o que foi perdido.
Segundo Marshall Berman (1986), ao mesmo tempo em que a modernidade anula
fronteiras sejam elas geográficas, raciais, de religião e ideologia, ela desenvolve uma
unidade sem coesão, que nos joga em um “turbilhão de permanente desintegração e
mudança, de luta e contradição de ambiguidade e angustia” (BERMAN, 1986, p.16). A
integração em um mundo modernizado faz surgir no eu enunciador do poema um
sentimento de vazio imposto por esse ajustamento, em que vê seu espaço de vivencia
destruído para se integrar em uma inventada civilização, que tem por potencialidade a
destruição e a construção, sem levar em consideração qualquer sofrimento humano.
Para Francisco Foot Hardman

O drama da modernidade constitui-se precisamente no choque que


interrompe o fluxo da experiência tradicional, na destruição sistemática
desses espaços tempos insulados, no esquecimento produzido pelo
desencontro de linguagens, na lógica desestruturante das identidades
comunitárias, na violência como apanágio legal do Estado (HARDMAN, F.
F, 2009. p.173)

Efetivamente, a modernidade consiste nesse jogo de ambiguidades, que de


maneira violenta, por assentimento do estado, anula o individuo e grupos sociais, em
que suas histórias são apagadas, tornando as experiências individuais e coletivas
reduzidas, forjando uma identidade compatível com o um progresso substancialmente
excludente e destruidor. Ainda seguindo Foot (1998), a ideia de progresso é fatal já que
um dos seus aspectos constitutivos é a barbárie, na qual se tornou uma prática cotidiana

593
e secular. Em suma, a modernização (tão proclamada por diversos autores modernistas
brasileiros, que esqueceram de incorporar nas suas produções a sua dimensão trágico-
dramática) foi responsável pelo arrasamento de populações, de culturas e por uma
imigração forçosa de milhões de pessoas, que ficaram a margem da sociedade, como é
possível reiterar por meio desse fragmento:
Poema II

O Deus, pai onipotente,


Peço, me tire daqui,
A mata é fria demais,
Não posso mais resistir,
Se a malária me errar,
Não quer mais trabalhar,
Na folha do jaborandi.

A folha de jaborandi,
É famosa no dinheiro,
É tirada no Pará,
Levada para o estrangeiro,
Dar seis remédios aprovados,
Que até hoje tem curado,
Gente do mundo inteiro.
[...]
Na disputa da riqueza,
Lutaram noite e dia,
Pisavam no mais pequeno,
As vezes com tirania,
Depois de virar barão,
Estão debaixo do chão,
Coberto com terra fria.

Muitos filhos inocentes,


Por aqui também ficaram,
Muitos vieram de longe,
Com trabalho, melhoraram,
E por ser grande a violência,
Talvez até de doença,
Eles nunca regressaram.
[...]

Como se pode notar esse povo vivia sujeitos a todo tipo de perigo e barbárie, em
uma terra completamente desconhecida. O processo de “ocupação”, “integralização”,
“modernização” da Amazônia sempre foi marcado pelos vários tipos de violência e
diversos conflitos territoriais que ainda hoje refletem na região. De acordo com
Marshall Berman (1986) a modernização é puro retrato da crueldade e brutalidade em
que varreram da face da terra diversas formas de vidas, não sendo possível pensar a
criação do novo mundo com mãos limpas, pois lamentavelmente “a morte e o
sofrimento humano é que abrem caminho” (BERMAN, 1986, p.67).

594
Conforme apresentado, esse estudo teve como intenção desvelar a história dessa
população ribeirinha que mora às margens do rio Xingu, os quais foram recrutados
como “soldados da borracha” nos anos de 1942 (durante a Segunda Guerra Mundial) 7.
O início do processo de povoamento da região contribuiu para o surgimento de
trânsitos culturais8que formaram uma identidade própria conhecida como Beradeira.
Essa identidade produziu narrativas orais que instituíram universos simbólicos
preciosos, repletos de fatos e eventos contados por meio de narrativas que, juntas,
compõem uma “poética da vida social” 9. Assim, a cada leitura e a cada releitura,
evidencia-se a importância desta identificação cultural, uma vez que essas mesmas
narrativas desempenharam funções relevantes para a organização comunitária desse
povo, que ficou sujeito a todo tipo de violência.
Com efeito, é possível ainda conjecturar que as mesmas narrativas lhes
serviam/servem de mecanismo para dar sentido e para compreender o mundo à sua
volta. Ao fazer essa constatação, lembramo-nos da importância social concedida à
literatura por Antonio Candido (1970) e da valorização das formas simples por André
Jolles (1976). Ficamos cada vez mais convencidos de que o homem não pode viver sem
essas produções, pois a literatura [oral ou escrita] corresponde a uma necessidade
universal, tanto em culturas letradas quanto nas culturas iletradas, em que passado pode
ser contado a partir das experiências vividas.
Bia Bedran (2012) ao tratar da literatura oral, afirma que a narrativa é um recurso
vital que o homem vem se utilizando para contar a sua própria história e a do mundo
que o cerca. Nesse sentido fica explícita que, mesmo banida do cânone literário nacional
e vista com desconfiança pela Teoria e Crítica literária, a importância da tradição oral
(tanto nas relações coletivas quanto nas relações individuais) para o povo aqui estudado.

7
Destacamos no texto, também, que fora a campanha nacional da ‘batalha da borracha’ que trouxera as
pessoas de várias regiões: Nordeste, Centro-Oeste, Sul e Sudeste, o que propiciou a miscigenação de
forma acelerada mudando a fisionomia cultural e étnica da região.
8
[...] tanto as populações descendentes dos primeiros habitantes da Amazônia, como daqueles oriundos
dos colonizadores já vivendo na região há alguns séculos, assim como os nordestinos que para a região
migraram no ultimo século e meio, desenvolveram todo um saber, todo um conhecimento na sua
convivência com os ecossistemas amazônicos que, sem duvida, constituiu um enorme acervo cultural,
importantíssimo como base para qualquer processo de desenvolvimento que queira fazer num espaço que,
em grande parte, é mais misterioso para os de fora que para os que nele vivem. GONÇALVES, Carlos
Walter Porto. Amazônia Amazônias. São Paulo: contexto, 2015.p.22

9
Temo usado por Ney Clara Lima (2003)

595
Referências bibliográficas
BEDRAN, Bia. A arte de cantar e contar histórias: narrativas orais e processos
criativos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da


modernidade. [1982]. São Paulo: Boitempo, 2015.

CANDIDO, Antonio. Direito a literatura. In:_______Vários escritos. Caderno de


análise literária. Rio de Janeiro: Editora Ouro sobre Azul, 2011.

GUSMÃO, Deyvesson Israel. Entre mundos:História oral com soldados da borracha.


169f. Dissertação (Dissertação em geografia) – UNIR. Rondônia, 2008.

HARDMAN, F.Foot (Org.). Morte e progresso: Cultura brasileira como apagamento


de rastros. São Paulo: Ed. Unesp, 1998.

_______. Algumas fantasias de Brasil: O modernismo paulista e a nova naturalidade


da nação. In: De DECCA, E, S. LEMAIRE, R. (Org.) Pelas margens: outros caminhos
da história e da literatura. Campinas: Unicamp; Porto Alegre: Ed. UFRGS. 2000.

_______.A vingança da Hiléia Euclides da Cunha, Amazônia e a literatura moderna.


São Paulo: Ed. Unesp, 2009.

JOLLES, As Formas simples. São Paulo: Cultrix. 1976

LIMA, Ney Clara. Narrativas orais: Uma poética da vida social. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2003.

NOGUEIRA, Carlos. Poesia oral tradicional e funcionalidade. Trabalhos de


Antropologia e Etnologia, 2016, volume 56.

NUNES, Wilson da Silva. Lendas e Contos do Xingu. Belém: Gráfica Ipuã, 2003.

SCHMINK, Marianne; Wood, Charles H. trad. Noemi Miyasaka Porro e Raimundo


Moura. Conflitos Sociais e a Formação da Amazônia. Belém: ed.ufpa, 2012.

596
597
O MOVIMENTO DA FORMA

Allaidy da Silva Barbosa Gonçalves (PUC-GO)1

Resumo

Este trabalho tem como objetivo, a partir das acepções teóricas advindas da Semiótica, e
por um percurso metodológico de revisão bibliográfica, refletir sobre como o processo de
semiose é fomentado pela própria estrutura do conto e, como em contos de Miguel Jorge, o
autor constrói suas personagens, enquanto categoria narrativa, utilizando-as como promotoras
desse processo. A intenção deste artigo é buscar demonstrar como a estrutura do conto afeta o
processo de semiose e como, especificamente suas personagens, pela forma como são
construídas, promovem, acrescem, aceleram e estabelecem o processo de semiose, enriquecendo
assim, o enredo.
Palavras-chave: Conto; Personagem; Semiose.

Tendo uma natureza simbólica, o ser humano reconhece sentidos nos fenômenos
que se lhe apresentam e os transforma em linguagens. São várias as formas de
linguagem utilizadas pelo homem, construídas em diferentes sistemas de signos. O
sistema verbal é um deles e a Narrativa, uma forma (gênero) natural de manutenção e
construção da cultura (narrativa oral) e também de criação ficcional, principalmente
quando ela é arquitetada com características estéticas, nas quais o arrombamento do
código é propriedade de acréscimo do poder de semiose.
O conto é uma forma narrativa de menor extensão, um relato simples destinado a
ocupar os momentos de lazer. Um contador de histórias narra a um auditório reduzido e
familiar um episódio considerado interessante. Os constrangimentos de tempo, a
simplicidade do auditório e as limitações da memória impõem que a ‘história’ seja
curta. Essas mesmas circunstâncias determinam a limitação do número de personagens,
a sua caracterização vaga e estereotipada, a redução e imprecisão das referências
espaciais e temporais, bem como a simplificação da ação. Entre as principais
características do conto estão: a concisão, a precisão e a densidade. Por ser uma
narrativa curta e simples, apresenta uma economia de meios, concentração da ação, do
tempo e do espaço.

1
Graduada em Letras (PUC-GO), Especialista em Docência Universitária (UEG). Mestranda do Programa
de Mestrado em Letras-Literatura e Crítica Literária da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, sob
orientação da Profª. Dra. Custódia Annunziata Spencieri de Oliveira. Contato: allaidyb123@gmail.com.

598
O hábito de contar histórias sempre se fez presente na história da humanidade.
Por meio de narrativas curtas e orais essas histórias eram contadas pelos chamados
shanachies, que caminhavam entre as comunidades reunindo em volta do fogo as
pessoas, a fim de transmitir às gerações conhecimentos que repassassem valores
religiosos e morais, para manter viva a cultura daquele povo. Com o passar do tempo,
segundo Kiefer “a passagem da forma oral à escrita levou a humanidade a uma maior
intelectualização [...], e a memória liberada do esquematismo necessário ao
arquivamento mental, pôde dedicar-se a complexificação artística”. (KIEFER, 2004, p.
138). Nesse sentido, o conto, enquanto gênero artístico, não se resume apenas em se
contar algo, mas como contá-lo. Todorov (2011, p. 220) salienta que a obra literária
pode ser ao mesmo tempo uma história e um discurso; ela é história porque traz ao leitor
certa realidade; ela também é um discurso, pois exibe uma forma organizada
ficticiamente por um narrador que conta a história; o leitor a percebe. A partir desse
momento, não importam os acontecimentos relatados, mas a maneira como a história se
mostra ao leitor e como ele a enxerga a partir da obra, criando, ele mesmo, uma outra
história.
Foram inúmeras as teorias criadas para se tentar demonstrar como se constrói o
conto. Propp, formalista russo, foi um dos grandes teóricos do conto, e
organizou/selecionou cerca de 150 elementos que compõem o conto e 31 funções
constantes. Ao comparar diversos contos, percebeu que o que muda são os nomes
(atributos, como ele diz) e as particularidades, mas não suas funções; logo, as funções
são partes constitutivas e fundamentais do conto; salienta também, que cada
acontecimento não pode ser visto de forma isolada da participação dos personagens.
Eikhenbaum (apud GOTLIB, 1995 p. 40), afirma que entre o conto e o romance
existe uma diferença de princípio, determinada pela extensão da obra. “Tudo no conto
tende para a conclusão. O conto termina no clímax, já no romance, o clímax aparece
antes do final”. O contista deve ter um cuidado especial ao elaborar o início da
narrativa, pois será este o ponto de partida pelo qual o leitor se interessará ou não pela
obra. O objetivo do autor é prender o leitor do início ao fim do texto. Sem prolongar
muito a história, nem entediar o leitor, a narrativa conduz, rapidamente, ao desfecho. O
conto é uma forma breve. Esta afirmação, dita por Poe aparece na obra de Cortázar.

599
Refiro-me à narrativa curta, cuja leitura atenta requer de meia a uma ou duas
horas. Dada sua extensão, o romance comum é criticável [...] como não pode
ser lido de uma só vez, se vê privado da imensa força que deriva da
totalidade, pois o que dilui o efeito no romance é a extensão, o
prolongamento. O conto breve, ao contrário, permite ao autor desenvolver
plenamente seu propósito [...] durante a hora da leitura, a alma do leitor
permanece submissa à vontade daquele [...] inventará os incidentes,
combinando-os da maneira que melhor o ajude a conseguir o efeito
preconcebido. (CORTÁZAR, 2008, p. 121). Grifo meu

Observa-se, assim, que a própria forma do conto é elemento de significância


como produção de efeito.
O interesse por esse estudo surgiu de uma inquietação frente à obra “A Fuga da
Personagem” de Miguel Jorge e, principalmente, frente ao conto que leva o mesmo
nome, para alcançar o motivo do título da obra e do conto. Peirce afirma que, frente a
qualquer fenômeno, a primeira pergunta que se faz, é: o que isto quer dizer? Estaria
Jorge estabelecendo nova reflexão para a percepção da personagem, vez que sua obra
como um todo é altamente intersemiótica e sua formação acadêmica em Letras o
estimularia a tal posicionamento? Talvez por isso, pelo fato de o fenômeno, quando se
apresenta, ser imediatamente posto à interpretação e, em seguida organizar-se em
pensamento, é que o título da obra, repetido no conto, estimulou a hipótese levantada.
Buscar-se-á refletir sobre como a estrutura do conto afeta o processo de semiose
e como, especificamente suas personagens, pela forma como são construídas,
promovem, acrescem, aceleram e estabelecem este processo, enriquecendo o enredo e o
envolvimento do leitor. As reflexões foram conduzidas a partir dos teóricos Propp,
Cortázar, Barthes e Todorov; em seguida, demonstrar-se-á uma possível teoria criada
em linguagem literária, que dialoga com Barthes e traz reflexões sobre questões como
morte do autor x nascimento da personagem x leitor, metalinguagem e o ser da
linguagem. As bases teóricas que darão suporte à pesquisa são os semioticistas:
Suassure (s/d); Eco (2012); Barthes (2011); Kristeva (1969). Teóricos do gênero conto:
Todorov (2006); Propp (1978); Cortázar (2008) e da personagem: Antônio Candido;
Anatol Rosenfeld, Décio de Almeida Prado e Paulo Emílio Salles Gomes (1998) e
Fernando Segolin (1978). Espera-se que este estudo possibilite aprofundar sobre essa

600
problemática, na tentativa de compreender como a estrutura do conto e como a categoria
personagem, criadas de forma estética, promovem o processo de semiose e podem
acrescer de movimento e possibilidades o diálogo com o leitor.

1.1 O processo de semiose no conto

A partir do momento em que o conto perde sua característica de oralidade


desenvolvida pelos shanachies e assume-se como gênero literário, a sua forma, a sua
estrutura de construção passa a ser elemento de semiose, pois se estabelece como signo
e, por suas próprias características, conduz este processo. No mundo tudo é signo. É
impossível ao homem realizar suas atividades sem a vivência dos signos, pois o homem
pensa pela linguagem. Só por meio de signos expressa suas experiências e só por meio
de signos interpreta o mundo, pois cria um todo articulado por diferentes unidades de
significação para engendrar sentido. Esse homem, que se constitui pelo ato gerador de
significar, supera a recepção e a percepção e se instaura como um sujeito semiótico.
Resultante da organização discursiva do texto, ele desenvolve uma percepção crítica,
que só é possível através de uma atitude semiótica, a de dar sentido às coisas.
Poe (apud GOTLIB, 1995, p. 32) relaciona a extensão do conto à reação (efeito)
que o conto pode provocar no leitor. A unidade de efeito é um ponto de grande
importância, pois causa no leitor um estado de ‘excitação’. Para que essa excitação não
seja diluída, é necessário que o texto não seja longo demais ou breve demais, havendo
uma preocupação com essa extensão e equilíbrio. Faz-se um conto “obedecendo” uma
estrutura em busca do “efeito único”2. Em “Coração Delator”, escrito por Poe, o efeito
único se dá através do olhar do velho, o que esse olhar provoca no narrador
(considerado como louco), e o envolve até o momento da concretização do crime. O
efeito único se dá por meio de uma ação que envolve o objeto, o signo, e os
interpretantes, conquistando o interesse do leitor.
Em “The philosophy of composition” (1846), Poe diz que o comprimento, a
unidade de efeito e um método lógico são considerações importantes para a boa escrita.
Assim, ele rejeita o conceito de intuição artística, afirmando que a escrita é um processo

2
A teoria do efeito único, criada por Poe, indica que o efeito deve ser natural e gerar prazer: uma
linguagem carregada de significados.

601
metódico e analítico e não espontâneo, confirmando a ideia de que a organização
mesma do texto é promotora de sentidos. Acreditava que todas as obras, com exceção
do romance, devem ser curtas. Considerava o conto uma forma superior ao romance,
pois segundo Cortázar, Poe descobriu imediatamente a maneira de construir um conto,
de diferenciá-lo de um capítulo de romance, dos relatos autobiográficos, das crônicas
romanceadas do seu tempo. Compreendeu que a eficácia de um conto depende da sua
intensidade como acontecimento puro, isto é, que todo comentário ao acontecimento em
si (e que em forma de descrições preparatórias, diálogos marginais, considerações a
posteriori alimentam o corpo de um romance ruim) deve ser radicalmente suprimido do
conto. Cada palavra deve confluir, concorrer para o acontecimento, para a coisa que
ocorre; e esta coisa que ocorre deve ser só acontecimento e não alegoria. “Um conto é
uma verdadeira máquina literária de criar interesse” (CORTÁZAR, 2008 p. 122). Esse
interesse surge não apenas da história em si, mas devido, também, à intensidade de
estímulos que a estrutura do conto provoca no leitor, sendo capaz de promover, em alta
escala, o processo de semiose. Esse gênero destaca sua intensidade, desconcerta o leitor,
surpreende-o, mas ao mesmo tempo, o atrai. O conto é capaz de provocar atitudes
incompreensíveis a partir da força que lança ao processo de semiose. Sua provocação
deve ser intensa.
Segundo Cortázar (2008, p. 123) “um coração vivo palpita, um palpitar é um
coração que vive”. A intensidade do conto é esse palpitar da sua substância. Portanto,
um conto não deve, obrigatoriamente, conter acontecimentos exageradamente
intrincados. A estrutura do conto é uma forma narrativa arbitrária, detentora de
características específicas para promover em alto grau o processo de semiose.
Acrescente-se a isso que esta estrutura carrega uma forma de conteúdo organizada em
literariedade e, portanto, estética, o que acresce o processo de significação. Sua força é
tão densa e móvel que produz a sensação de uma “esfera”, como afirma Cortázar
(2008). A esfera tem um interior adensado que não a deixa estática. Movimenta-a para
uma explosão exterior que lhe dá energia e a constitui. E é essa forma esférica que, pela
concisão, movimenta em intensidade para o clímax, o conto. A metáfora da esfera,
usada por Cortázar, representa bem a forma do conto, pois é uma narrativa que
apresenta uma densidade interior tanto na forma como no conteúdo e que promove

602
pleno movimento de seu volume, de maneira a atingir, integralmente, o leitor. Não é
uma narrativa circular; ela é esférica. O círculo é plano, acabado em si mesmo, não
proporciona à circunferência o caráter de movimento, tão característico do conto.
Cortázar (2008) ainda sobre a forma narrativa conto, complementa usando a metáfora
“caracol da linguagem”; forma envolta em movimento extrínseco possibilita, com maior
eficácia, essa movimentação e rapidez para se alcançar o clímax.
Para Cortázar, (2008, p. 227-228), um conto breve, bem escrito, que possui esse
efeito de esfericidade apresenta-se ao mundo como uma “criatura viva, organismo
completo, que respira”. “A narrativa não tem interesse senão para o pequeno ambiente
das tuas personagens, das quais pudesse você, espectador ou leitor ter sido uma das
personagens”. Quando Cortázar cria a metáfora da “esfera”, cria-a para afirmar que a
estrutura do conto, por si só, já produz um processo de semiose.

O sentimento da esfera deve preexistir de alguma maneira ao ato de escrever


o conto, como se o narrador, submetido pela forma que assume, se movesse
implicitamente nela e a levasse à sua extrema tensão, o que faz precisamente
a perfeição da forma esférica. (CORTÁZAR, 2008, p. 228). Grifo meu.

Assim sendo, a forma do conto, é por si mesma um signo, pois promove a


semiose a partir de sua própria organização, superando a história narrada e, até,
influenciando-a. A estrutura do conto promoverá na história narrada uma organização
esférica capaz de produzir outros significantes; no momento em que o leitor percebe a
“alquimia” do conto, sente a manifestação da significação produzida por este signo. Por
ser breve e conciso, o conto consegue atingir sua totalidade. Sua organização ou sua
“alquimia”, como o sugere Cortázar (2008), provoca no leitor o processo de semiose,
produzindo movimentos de significação que ultrapassam e interferem na história
narrada. Essa construção domina o leitor de dentro da própria narrativa. O conto se
forma como uma estrutura/signo que abarca a história narrada e vai para além dela. Por
meio do “efeito único” essa construção invade o leitor e sendo uma forma narrativa
altamente produtora de sentido - e para atribuir sentido, todo e qualquer ser humano
ativa em si o processo de semiose, o processo de dar significação a algo – ela ativa nele
toda uma ação de interpretantes, em movimento de reconstrução de sentidos.

603
Estar no mundo como indivíduos sociais constitui os seres humanos como seres
simbólicos, seres de linguagem. E é essa capacidade de linguagem que permite ao leitor
atribuir significações a todo sistema de produção de sentido. Sendo seres simbólicos -
uma vez que seres de linguagem - eles se duplicam: descrevem, narram, explicam,
retratam, reajustam, alteram, transfiguram, metamorfoseiam, transmutam e se
reconstituem na e pela própria linguagem.

É a linguagem que fala, não é o autor; escrever é, através de uma


impessoalidade prévia... Atingir aquele ponto em que só a linguagem actua,
<<performa>>, e não <<eu>>[...] (BARTHES, 1984. p. 50)

O autor é aquele que está na capa do livro; o que vem depois é texto, entidade
discursiva que se faz no leitor. Todo texto é criado no aqui e no agora, não pelo autor,
mas pelo leitor. O discurso, a forma que se apresenta é apenas signo promotor de
significação. Eco (1988), em “Obra Aberta” estabelece essa ideia, pois segundo ele,
toda obra de arte é aberta, porque não comporta apenas uma interpretação. Além de toda
obra possibilitar várias interpretações, a obra aberta, apresentando-se como um
organismo em construção, abre-se a várias possibilidades de recriação.
A arbitrariedade do signo em relação ao referente, seu caráter cultural e ativo
também promovem sua produtividade. Barthes(1984, p.52) afirma que “o texto é um
tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura”, ou seja, nenhum texto é construído
unicamente por uma pessoa. É uma estrutura que se tece na escrita. A malha textual vai
se formando a partir das diversas leituras, dos diversos contextos vividos, das vozes que
entremeiam o tecido cultural de cada ser social. O texto é esse amálgama de
significantes que transbordam em significações várias. O texto estético, mais que todos,
cuida de estabelecer-se nesta possibilidade de processo e abertura. Abre-se a várias
interpretações e relações inferidas pelo leitor, em uma ação de semiose que produzirá
interpretantes os quais atribuirão significações a uma estrutura construída por
determinado autor. Carregada de elementos expressivos, ela promoverá o jogo em que
circulará uma massa de significantes em movimento de construção sem fim.

604
1.2 O estatuto da personagem no conto

A arte da narrativa revela as nuances da personagem que se apresenta ao


leitor em seu status de criatura e, a partir do desdobramento da obra, o leitor consegue
construir o verdadeiro rosto da personagem que se mascara. Entre a personagem e a
pessoa humana existe uma estreita relação, ativada por um processo de mimese. A obra
é a representação do mundo e a personagem aparece como reflexo da pessoa humana,
pois se apresenta como um signo dentro do processo narrativo.

Este mundo fictício ou mimético, que frequentemente reflete momentos


selecionados e transfigurados da realidade empírica exterior à obra, torna-se
portanto, representativo para algo além dele, principalmente além da
realidade empírica, mas imanente à obra. (ROSENFELD,1998, p. 15).Grifo
meu.

É por meio da personagem que a ação se constrói e o conto é tecido; a


personagem é signo do indivíduo, representado na narrativa; não uma pessoa em si, não
é um ser real, mas sim a representação dele, sua imitação3. Substituição da coisa na sua
ausência.
A personagem pode apresentar-se sob várias formas; a criação das personagens
sob vários prismas é uma característica de autores contemporâneos. Miguel Jorge4 lança
mão dessas várias possibilidades ao criar suas personagens; tece-as de forma a envolver
o leitor na construção desse ser.

[...] é difícil ignorar a existência de toda uma tendência da literatura na qual as ações
não existem para servir de “ilustração” à personagem, mas onde, pelo contrário, as
personagens estão submetidas à ação; e onde, por outro lado, a palavra
“personagem” significa coisa bem diversa de coerência psicológica ou de uma
descrição de caráter [...]. (TODOROV, 2006, p. 120)

A obra ficcional, aqui, especificamente o conto, apresenta uma organização de


aspectos estéticos; as palavras recebem conotações peculiares e encadeamentos

3
Mesmo em textos biográficos, as personagens não são as pessoas, mas o texto sobre elas.
4
Miguel Jorge é um poeta, teatrólogo, romancista e contista goiano com vasta obra publicada e
reconhecida nacionalmente.

605
inusitados, o que possibilita, por meio dessa estrutura muito bem concatenada e
elaborada, ao leitor perceber os raios de significância que a palavra, em organização
estética, emite. Isso possibilita que o leitor entre no jogo da enunciação/narrativa,
porque os recursos intencionais que o autor usa podem vir a se constituir como
realidade ficcional.
Este objeto não se encerra, porque é formador de um processo semiótico e os
emaranhados sígnicos promovem novas descobertas vindas dentro da estrutura do
conto, instruídas, também, (e principalmente) a partir da constituição das personagens.
A incapacidade de domínio, de controle do efeito que a narrativa gera é uma forte
característica em Jorge, uma vez que os seres e mundos que ele constrói, são
“puramente intencionais”. “É através da personagem que a camada imaginária se adensa
e se cristaliza [...]”. (ROSENFELD 1998, p. 19-21). [...] “Em vão tentei fazê-la retornar
às páginas do meu livro e lá permanecer. Mas qual! Maria Paula criou asas, desafiou-me
a tocá-la, a forçá-la a ser simplesmente personagem [...]”. (JORGE, 2016, p. 165).

Conclusão
A natureza simbólica do homem leva-o a construir signos, a produzir
significados que engendram novos significantes em um movimento construtivo sem
limites. É isto que dá humanidade ao homem. É isso que o faz relacionar-se com o
mundo e com a sociedade e fez dele um ser cultural.
A organização inusitada desses signos faz do homem, artista - provocador de
significâncias. A consciência dessas questões (existentes e já postas) trazidas pela
ciência da Semiótica foi de suma importância para que se criasse, intencionalmente, o
jogo de sentidos que se estabelece no dialogismo entre autor/leitor. Observar como
essas estruturas são tecidas fornece elementos para se poder jogar.

Referências

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Fronteira, 1990.
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607
DA HISTÓRIA À LITERATURA: UMA ANÁLISE DE “APENAS UM
VIOLÃO”, DE BERNARDO ÉLIS.
Cassia Lemes Gondim.1

Resumo: A relação entre História e Literatura pode ser considerada uma das primeiras
comparações sobre diferentes sistemas de linguagem do mundo Ocidental. Dessa forma, a ficção
não está descolada da realidade, o que difere um historiador do poeta é que o historiador diz o que
sucedeu e o poeta diz o que poderia suceder, tal relação continua a ser debatida. Devido às intensas
e qualificadas discussões já realizadas sobre os liames entre esses dois discursos, este artigo não
pretende apenas abordar esse ponto, mas também acrescentar o caráter de apropriação e
transcriação do discurso histórico pelo literário, na obra Apenas um violão, de Bernardo Élis.
Palavras-chave: História e Literatura. Memória e Bernardo Élis. Transcriação.

História e Literatura
Sempre houve e sempre haverá uma relação entre Literatura e História, o primeiro
pensador a argumentar sobre essa temática foi Aristóteles, sendo assim, para intentar o
diálogo entre a arte literária e ciência histórica, faz-se necessário voltar a alguns séculos
e observar o que a arte Poética de Aristóteles expunha, há 23 séculos, sobre tragédia e
epopeia.
É possível observar que o filosofo começa afirmando que o ato de imitar é inerente
ao ser humano, pois o homem como ser que interage com o mundo de modo diferente dos
animais irracionais, imitam, imitam, portanto, a realidade e adquirem os primeiros
conhecimentos através da imitação. A tarefa do poeta, portanto, não é dizer o que de fato
aconteceu, mas o que é possível e poderia ter ocorrido segundo a verossimilhança e a
realidade. Sendo assim, a ficção não está descolada da realidade.
A poética de Aristóteles é marcada por leis rígidas e permanentes para a construção
das obras literárias, pois havia uma crença da possibilidade de disciplinar força criativa
interior. Certos conceitos aristotélicos podem servir de fonte para reflexões nos dias de
hoje, um deles é a diferença, que o próprio Aristóteles estabelece entre o poeta e o
historiador: o primeiro trata de coisas que podem vir a acontecer de forma universal
contendo mais filosofia e circunspecção. E o segundo, faz um relato dos fatos que
realmente aconteceram de forma particular. Para Aristóteles, incidirá em erro o poeta
épico que proceder como um historiador, visto que, o relato de fatos que não se ligam a
um objeto comum, apenas distorce o propósito da obra. Ou seja, o critério fundamental

1
Graduada em Letras(UFG), Mestranda em Crítica Literária(PUC-GO).Contato:
cassiagondim@gmail.com

608
do conceito aristotélico de mimese é a verossimilhança, o objeto de representação do
poeta não é o que de fato acontece, mas, o que é possível acontecer.
A redescoberta da literatura pela história é marcada pela articulação do imaginário
(construções sociais) e história, neste sentido, a historiadora Sandra Jatahy Pesavento, em
seu texto História e literatura: uma velha-nova história, discuti o diálogo da história com
a literatura, como caminho que se percorre na trilha do imaginário, na visão da autora, o
imaginário tem como referente a realidade. ”A história é um romance verdadeiro,
verdadeiro porque aconteceu, mas romance porque cabe ao historiador explicar o como”
(PESAVENTO,2006). Com base nesta asserção, percebe-se que a história é baseada mais
em versões e possiblidades do que certezas, pois a visão de cada um é diferente, têm-se
várias versões de um mesmo fato, e o trabalho do historiador, portanto, assemelha-se com
o de escritor de ficção, nesta perspectiva, os discursos literário e histórico são formas
diferentes de dizer o real.
Hayden White no capítulo O texto histórico como artefato literário, que faz parte
do seu livro “Trópicos do discurso”, discursa sobre este assunto e posiciona-se dizendo
que uma das marcas do bom historiador profissional é a firmeza com que ele lembra a
seus leitores a natureza puramente provisória das suas caracterizações dos
acontecimentos, dos agentes e das atividades encontradas no registro histórico sempre
incompleto. (WHITE,2001, p.98).
Conforme este autor, o mesmo fato da história pode ser construído no modelo de
um drama de transcendência romântica ou em forma de tragédia irônica, e isto não
significa que um teve mais conhecimento do que o outro, mas concepções diferentes do
tipo de estória que quadrava melhor aos fatos que conheciam. Em outras palavras, os fatos
são os mesmos, porém os tipos de estórias a contar são diferentes ou podem perseguir
tipos diferentes de fatos porque tinham tipos diferentes de histórias para contar e isso
acontece porque os historiadores partilham com seus públicos, preconcepções em
resposta a ideologia, em resposta aos imperativos que eram extra-históricos, estéticos ou
míticos.
O modo como uma determinada situação histórica deve ser configurada
depende da sutileza com que o historiador harmoniza a estrutura específica de
enredo com o conjunto de acontecimentos históricos aos quais deseja conferir
um sentido particular. Trata-se essencialmente de uma operação literária, vale
dizer criadora da ficção (WHITE, p.102, 2001).

609
De acordo com o historiador, dizer que a história é uma operação literária não
deprecia as narrativas históricas como fornecedoras de um tipo de conhecimento, uma
narrativa histórica não se limita a reprodução dos acontecimentos nela relatados, mas
também um complexo de símbolos que nos fornece direções para encontrar um ícone da
estrutura desses acontecimentos em nossa tradição literária. O conhecimento que se tem
do passado pode aumentar de maneira crescente, mas a sua compreensão não. Tal como
a literatura, a história se desenvolve por meio da produção de clássicos, cuja natureza é
tal que não se pode invalidá-las ou negá-las. Esse elemento não negável é a sua forma, a
forma que é a sua ficção.
Segundo White, as obras dos historiadores são traduções do fato em ficções, elas
nunca devem ser lidas como signos inequívocos dos acontecimentos que relatam, mas
como estruturas simbólicas, metáforas de longe alcance, que não fornece uma descrição
ou ícone da coisa que representa, porém nos diz que imagem procurar nas experiências
culturalmente codificadas. Assim sendo, as histórias não são apenas sobre
acontecimentos, mas também sobre os conjuntos de relações possíveis que esses
acontecimentos representam de maneira suscetível.
O historiador do século XIX não entendia que os fatos não falam por si mesmos,
mas que o historiador fala por eles, fala em nome deles, e molda os fragmentos do passado
num todo cuja integridade é na sua representação puramente discursiva. Para White, os
modos míticos são identificados mais facilmente no texto historiográfico do que no texto
literário, visto que os autores de ficção trabalham com uma bagagem cognitiva bem
particular, poética, ao passo que os historiadores são tendenciosos a tratar a linguagem
como se fosse um veículo transparente da representação. Ademais, White considera que
qualquer historiador que só descreve um conjunto de fatos para extrair dele implicações
ideológicas explícita, deveria ser rotulado de pensador doutrinário. Logo, o que distingue
os grandes historiadores e filósofos da história de seus semelhantes é a sensibilidade
linguística através do uso de metáforas, metonímia, sinédoque e ironia. Sem as figuras de
linguagem White acredita que o discurso em si é impossível.
Há uma relação entre Literatura e História que perpassa os séculos, alguns a negam
e outros não a veem separadas, dessa forma a historiografia tem encontrado na literatura
uma fonte de informações que ora contribui, ora se torna um intrigante objeto de estudo.
O primeiro teórico que discutiu a relação entre Literatura e História foi György Lukács.

610
O jovem Lukács percorreu sozinho toda filosofia clássica alemã, ele foi Kantiano na
primeira fase, na segunda fase, segue a estética hegeliana no seu livro A teoria do
romance, para ele, nessa segunda fase, o romance, como gênero épico da modernidade,
toma da epopeia clássica a sua finalidade de configuração artística, portanto, sensível e
individual, da totalidade extensiva da vida, mas também pode se desenvolver como uma
forma oposta à epopeia clássica. Nesse momento, os indivíduos pouco se diferenciam
entre si e do coletivo, de modo que o herói pode encarnar em sua busca, sem prejuízo da
naturalidade aparente de suas ações, a busca e o destino de todo o povo. O romance, neste
sentido, tem a função de recriar a totalidade perdida. Seu objeto é a luta contra a falta de
essência no mundo e a impossibilidade de ação da alma.
Na fase adulta de Lukács, ele pretende no seu livro Romance Histórico realizar uma
investigação da interação entre o espírito histórico e a literatura que retrata a totalidade
da história, em relação a literatura burguesa. Segundo ele, o Romance Histórico é a
continuação de uma preocupação com a forma da vida, e Lukács discorre que a forma
não é a própria realidade, mas o nexo estabelecido com ela: a interação ou a ação recíproca
entre história e forma por meio da qual uma universalidade concreta é apreendida na
história e não posta exclusivamente pelo sujeito do conhecimento. Neste sentido, ele irá
abranger a interação entre história e literatura nos romances de Walter Scott dentro de
uma perspectiva Marxista, refletindo sobre a literatura que retrata a história, buscando o
momento de convergência entre sentido e experiência, retratando a totalidade da história
desmistificada.
Lukács também defende que o Romance histórico traz o passado para perto de nós
e o torna realidade vivenciável, ou seja, o laço entre literatura e história se estreita no
Romance Histórico, tornando-o o retrato artístico fiel de uma época histórica concreta.
Fredric Jameson, crítico literário e teórico marxista, em uma conferência na
Universidade da Califórnia tentou ser fiel à visão global de Lukács, embora oferecendo
uma periodização diferente dentro dela, ele considera que Lukács está certo ao considerar
Walter Scott o fundador do romance histórico realista e sua forma clássica, porém ele
prefere considerá-lo como inventor do drama de costumes, cuja forma narrativa é
melodramática e se organiza em torno do dualismo ético do bem e do mal. Jameson
acredita que as expressões artísticas de Scott estão mais as óperas do que ao realismo.

611
Segundo Jameson, para que um romance histórico se classifique como tal, é
necessário não apenas um período de transição histórica, mas eventos como a guerra que
sempre devem estar no centro. Ele nos apresenta George Eliot como uma escritora que
busca neutralizar o dualismo bem e mal e avança em relação a visão da história, um traço
de originalidade de Eliot é como lida com suas personagens femininas em relação ao
modelo de Scott, além da interiorização do vilão e herói, constrói-se uma nova abordagem
para o romance histórico. Essa nova abordagem pode ser examinada em Guerra e Paz,
pois Tolstói reflete sobre a história criando como vilão a figura de Napoleão e um herói,
com uma simplicidade rústica e com sabedoria popular.
Jameson nos conduz a perceber que a estrutura do romance histórico deve mostrar
a interseção entre o indivíduo e o acontecimento histórico, ele não será a representação
de eventos históricos grandiosos, nem a história das vidas de indivíduos comuns em
situações de crises extremas, e nem a história privada das grandes figuras históricas, e por
isso, pode-se incluir esses aspectos desde que sejam organizados entre um plano público
ou histórico e um plano existencial ou individual que são as personagens. A arte do
romance histórico consiste na habilidade e engenhosidade com que sua interseção é
configurada e exprimida, trata-se de uma invenção única.

Memória e Bernardo Élis

Apenas um violão é uma novela com traços ficcionais, porém histórico-narrativo,


escrita por Bernardo Élis. O autor goiano, retrata em sua obra o período de transição da
capital Vila boa para Goiânia. Élis, traduz e recria o ambiente da cidade de Vila Boa
através da ficção a partir dos olhos de uma criança que vai se tornando um jovem durante
a narrativa. Essa criança é como se fosse o narrador observador das atitudes e vivências
do seu avô.
A História de Vila Boa, hoje Cidade de Goiás, é resgatada pelo escritor goiano de
forma a compreender o que significou para aquela capital o deixar de sê-la, o resgate
memorialista de Élis através do olhar de uma criança e através dos sentimentos do seu
avô, leva o leitor a caminhar por espaços que traziam orgulho aos moradores daquela,
então, capital do estado. Orgulho que veio a se desfazer com a mudança da capital para
Goiânia, a cidade Vila Boa, a partir daí, passa a ser uma cidade sem valor, sem referência,

612
com inúmeras casas abandonadas, outras que se tornaram bares, cafés, bordéis, bem no
centro da cidade, diante dos poucos moradores que restaram, ela tenta sobreviver e
reerguer sem saber em que se apoiar.
Bernardo Élis escreveu Apenas um violão em 1984, décadas depois de Vila Boa não
ser mais a capital, mas como ele mesmo disse em A vida são as sobras: “o processo
criativo é longo, daí chama-lo de “bola de neve”, a partir de um grão de areia, pela
agregação de novas partículas, o bolo vai caminhando e engrossando até o desfecho final”
(ÉLIS,2000, p.109). E assim, a partir das suas vivências e memórias foi-se “re-
construindo” a história, uma constituição de sentido, como nos diz Haroldo de Campos:
“ não se traduz apenas o significado, traduz-se o próprio signo, ou seja, sua fisicalidade,
sua materialidade”, (CAMPOS, 2013, p.9). Na visão do autor, a tradução aqui é a tradução
da vivência do real, guardadas na memória décadas antes e transformadas em forma e
conteúdo de maneira onisciente, linear, objetiva, mimética, aproveitando o coloquial
regional goiano bem como a paisagem natural, com verismo realista e assim incluir a
cidade de Goiás ou melhor Vila Boa, como é utilizada por Bernardo em Apenas um violão,
no antes e depois da sua História como capital.
O discurso literário traz a possibilidades de interpretações diferentes para o mesmo
fato, Vila Boa da noite para o dia deixa de ser a realização dos sonhos dos goianos que
moravam lá para se transformar em uma cidade vazia “ Aquilo não podia ser verdade. A
mudança era uma loucura, era um capricho de Pedro Ludovico para fugir ao prestígio do
caiadismo” (ÉLIS,1984, p.139). Nesse trecho, temos a fala do personagem que é o avô
do nosso narrador, percebe-se a incredulidade do personagem diante da possibilidade de
uma mudança da atual capital do estado, negando-a completamente, vendo a mudança
como se fosse apenas um capricho político, não uma necessidade como os historiadores,
as revistas as teses nos apresentam. Goiânia tornou-se um projeto arrojado, um símbolo
de desenvolvimento e uma aposta a longo prazo, a possibilidade de negócios, a forte
especulação imobiliária, a potencialidade de desenvolvimento regional, atrairia grandes
investidores que apostavam no crescimento da nova capital, e Goiás Velho, na opinião
dos líderes do governo, não comportaria a valoração dessa aposta.
Goiânia deslumbrou o povo goiano, segundo Bernardo Élis, esse impacto foi maior
que a mudança da capital para Brasília. Em entrevista no livro “Vida em obras”
(WOLNEY,2005) Élis diz que seu avô achava que era um absurdo a mudança da capital,

613
chegava a corar quando via o futuro grandioso que ele imaginava para a cidade de Goiás
relegado a nada. Vê-se aqui a relação que existe entre a obra e a vida do autor, a produção
artística está amalgamada com a perspectiva histórica e social (TEIXEIRA,2017); há um
forte indício de que a memória do autor está, não só ligada a fatos históricos como também
a sua própria vivência.

Transcriação

Haroldo de Campos no texto Da tradução como Criação e Como Crítica, cria um


horizonte teórico para delimitação do conceito de transcriação, mesmo não usando ainda
esta palavra, as bases teóricas usadas por ele podem ser definidas a partir da concepção
dos autores Albercht Fabri, como base para a teoria da literatura, Max Bense, como base
para a teoria da informação e Ezra Pound, como base para a teoria da tradução.
Na concepção de Fabri, o texto literário não possui ou apresenta outra realidade a
não ser a sua própria, ou seja, não comunica nada além da sua própria forma, o conteúdo
é ou constitui na própria forma, sendo assim, ela não poderia ser traduzida, “a tradução
supõe a possibilidade de se separar sentido e palavra” (TÁPIA,2013, p.1) “não se traduz
o que é linguagem num texto, mas o que é não linguagem” (TÁPIA,2013, p.2). Para Fabri,
a necessidade ou a possibilidade de tradução consiste na alienação que há entre signo e
significado. De acordo com Ricardo Gessner, no artigo Transcriação, transconceituação
e poesia, mesmo a arte sendo ausência de linguagem é impossível atingir este fato de
forma absoluta, é nesse escape que o processo de tradução entra na interpretação, sendo
assim, o processo de tradução também é crítico.
A ideia de trans+criar já indica que não se trata mais de conduzir (“-duzir; do latim
ducere) para algum lugar, pois agora se trata de criar algo em outro ponto, num processo
de profundo diálogo poético e crítico, segundo Guilherme Gontijo Flores, em Da
tradução em sua crítica: Haroldo de Campos e Henri Meschonnic. Dessa forma, o
processo de transcriação além de crítico é criativo.
De acordo com o dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, o prefixo “trans“
apresenta o seguinte significado:
Trans- ( tra-, tras-, tres- ) prfe., do lat. trans- deriv. Da prep.. trans através de.
para além de. que se documenta em vocs. Eruditos e/ou semi-eruditos
formados no próprio latim como transcendēre → transcender, transcrĭbĕre→

614
transcrever etc. O lat. tran- reduz-se a trã- em ocs. Iniciado por consoante,
como tradṹcĕre→ traduzir, entre outros. Em português além de vocs. iniciados
por trans- e tra-, documentam-se, ainda formações em tra- ( traspassar) e em
tres- ( tresnoitar). Convém assinalar que nos textos antigos portugueses há
grande flutuação no emprego do prefixo latino: traladar (séc XII) / trasladar
(séc. XVI); traspassar (séc. XIII)/ trespassar (séc. XV). (CUNHA, 1982)
Criar vb.’ Dar existência a, gerar, formar’ XII. Do lat. creãre / cocriar vb. ‘
criar ao mesmo tempo’ / -crear 1844/ Do lat. com- creãre / cria s.f. ‘ animal
que ainda mama’ XVI . Dev. de criar / criação / -com XII, -çõ XIV etc./ Do
lat. creãtĩõ – õnis/ criado adj. sm. ‘que se criou’ ‘ empregado em serviço
doméstico’ XII criador XIII Do lat. creãtor – õris/ criança sf. ‘ ser humano de
pouca idade, menino ou menina’ XIII // cri ANÇ`ADA 1899 // cri ANC`ICE
1899 // cri ATIVO X // criAT ` ÓRIO XX // criatura XII. Do lat. creãturã //
crioulo adj. sm. ‘ cria ` escrao’ ‘ ext. negro nascido na América XII. De cria,
deerbal de criar, com uma terminação difícil de explicar // RE criação/ - com
X / Do lat. recreātiō –õnis // RE criar 1438. Do lat. re-creăre. ( CUNHA, 1982)

Desta entrada na etimologia da palavra pode-se inferir que o termo “trans” é um


prefixo latino que tem um sentido ligado a movimento e condução que ele é o mesmo do
vocábulo traduzir, redução do latim “trã” e criar do latim creãre que significa dar
existência, gerar, formar: transcriar, portanto, seria conduzir a existência de algo novo,
gerar, para além da criação.
O processo de transcriação não é apenas uma questão interartística, mas a
transcriação, também pode se dar entre um texto histórico e um texto literário. A partir de
suas vivências e memórias Élis foi “re-construindo”, traduzindo a História. Apreende a
História e transcria literariamente, ele insere pessoas do povo, da classe média
vilabonense e transcria o que a sociedade pensou em relação a transferência da capital
trazendo uma nova constituição de sentido para a história, usando signos da história e
ficcionalizando-os.

Referências

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615
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616
617
TRADUÇÃO: FATORES LINGUÍSTICOS E
INTERSEMIÓTICOS NO PROCESSO DA COMUNICAÇÃO

Cristiano Gomes da Silva (PUC Goiás)1

Resumo: Partindo do pressuposto de que comunicação quer dizer partilhar uma informação,
torná-la comum, no processo de tradução deve-se levar em consideração que traduzir, além de
ser um evento linguístico, é também um ato semiótico, que traz à baila discussões do signo
linguístico preconizadas, principalmente, por Ferdinand Saussure e Charles Peirce. Sendo
assim, no presente artigo, pretende-se analisar a tradução em suas três modalidades basilares: a
intralingual, a interlingual e a intersemiótica, sustentando-se em alguns dos principais teóricos
acerca desse assunto, como Roman Jakobson e Julio Plaza.
Palavras-chave: Comunicação; Tradução; Signo linguístico; Intersemiose.

Considerações iniciais
A comunicação é uma capacidade intrínseca ao ser humano, nesse sentido, quando
se traduz, o objetivo é comunicar uma mensagem. Segundo Plaza, já no ato de pensar,
tem-se a tradução:
Por seu caráter de transmutação de signo em signo, qualquer pensamento é
necessariamente tradução. Quando pensamos, traduzimos aquilo que temos
presente à consciência, sejam imagens, sentimentos ou concepções (que,
aliás, já são signos ou quase-signos) em outras representações que também já
servem como signos. (PLAZA 2010, p. 18)

Embora não seja observado cotidianamente, a ação de traduzir é mais natural do


que se possa imaginar. Uma simples reflexão, sobre um assunto qualquer, a
interpretação de uma anedota, a análise de uma pintura, já se configuram um ato de
tradução, talvez ainda inconsciente, mas o é.
O objetivo principal de uma tradução, independentemente de sua ocorrência, é
buscar a equivalência na disparidade, por meio de uma combinação do código, pois,
mesmo quando falamos em sinonímia, o significado não é exatamente igual, mas
semelhante. Portanto, pretende-se aproximar, ao máximo, o significado completo de
uma mensagem, não apenas de um de seus termos. A metalinguagem é outro fator
relevante no processo de tradução, pois “[...] a faculdade de falar determinada língua
implica a faculdade de falar acerca dessa língua” (JAKOBSON, 1987, p. 67). Ao
traduzir um determinado signo, o tradutor recodifica a mensagem buscando, naquele
código, termos equivalentes para a aproximação do sentido da mensagem original.

1
Cristiano Gomes da Silva. Mestrando em Letras pela PUC Goiás, e-mail: crisaureo@gmail.com

618
Assim, o circuito da fala, de acordo com Saussure, contém uma parte externa
que representa “a vibração dos sons indo da boca ao ouvido” e que é também
a parte não-psíquica do circuito, por incluir “os fatos fisiológicos” e “os fatos
físicos”. (SAUSSURRE, 1995, p. 20)

Destarte, o significado de um signo linguístico é, por si, sua tradução por outro
signo, o qual lhe pode substituir. Isso nem sempre é uma tarefa simples, haja vista que o
tradutor deve ter um razoável domínio de ambos os signos e também de seus códigos.
Este assunto é mais complexo do que se apresenta, pois não se deve observar apenas os
estudos da tradução no seu aspecto interlingual, isto é, na interpretação dos signos
verbais por meio de outra língua, mas também, em seus aspectos intralingual (a
interpretação dos signos verbais por meio de outros signos da mesma língua) e
intersemiótico (a interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não-
verbais).
A seguir, serão discutidas algumas questões sobre essas três formas da tradução,
mostrando alguns de seus pontos de tensão, como também de seus principais recursos
dos quais se pode utilizar o tradutor, bem como, citar e ponderar sobre exemplos que
ilustrarão essas abordagens.
Aspectos e alcances da tradução intralingual
A esse aspecto da tradução corresponde, simplesmente, a interpretação, a análise
de determinado signo por meio de outros signos da mesma língua. Contudo, a questão
da equivalência também poderá ser um problema nessa abordagem, pois, mesmo
dispondo-se do recurso da sinonímia, como postula Jakobson, sinônimo não significa
equivalência completa, mas uma tentativa de aproximação do sentido: “A tradução
intralingual de uma palavra utiliza outra palavra, mais ou menos sinônima, ou recorre a
um circunlóquio. Entretanto, via de regra, quem diz sinonímia não diz equivalência
completa” (JAKOBSON, 2003, p. 65).
Nesse sentido, quando se propõe à tradução entre signos da mesma língua, o
tradutor precisa dispor de certos recursos linguísticos para alcançar a máxima
equivalência da mensagem, possibilitando a interpretação mais acertada do objeto
traduzido. Esses recursos de tradução poderão ser as sinonímias, os circunlóquios, as
figuras de linguagem e, em certas circunstâncias, até os estrangeirismos e neologismos.

619
Figura 1. Disponível em: http://depositodocalvin.blogspot.com/2005/05/calvin-haroldo-tirinha-13.html

Na Figura 1, para responder à pergunta de Calvin acerca do termo “destino”,


Haroldo não consegue ser objetivo e dar uma resposta precisa, ao contrário, formula
uma pergunta como sendo uma possível resposta, pois, nesse momento, ele reflete o
significado do termo. Calvin responde de forma positiva à indagação de Haroldo,
entretanto, formula um conceito com outras palavras. Por fim, na última tirinha,
Haroldo define que o termo destino é um “pensamento assustador”.
A situação acima é um claro exemplo de que na tradução, inclusive na
intralingual, nem sempre se encontram termos objetivos e precisos para inferir sentido a
uma palavra, precisando o tradutor lançar mão, por exemplo, de circunlóquios –
expressões perifrásticas – para se chegar a uma definição mais aproximada daquele
termo.
Adicionalmente, essa situação reforça o quanto o ato da tradução é natural e
recorrente no nosso cotidiano, é de fato já automático, cada um é um tradutor em
potencial, embora não o perceba.
Ainda para ilustrar, outra ferramenta da qual se pode lançar mão para fazer
tradução intralingual no nosso dia a dia – e, possivelmente a principal, é o dicionário
monolíngue, o qual utiliza verbetes de determinada língua para aclarar outros verbetes
pertencentes à mesma língua.
Aspectos e alcances da tradução interlingual

Um problema maior o tradutor poderá encontrar ao realizar uma tradução


interlingual, pois, nesse aspecto da tradução, encontrar equivalência de sentidos entre as
mensagens exigirá o conhecimento não apenas de um código linguístico, como ocorria

620
na tradução intralingual, mas, agora, de pelo menos dois códigos. E, independente de
qual aspecto da tradução esteja em questão, deve o tradutor compreender que o objetivo
principal sempre será a comunicação, devendo conhecer e reconhecer todos os
elementos que fazem parte desse processo, isto é, o emissor, o receptor, a mensagem, o
referente, o código e o canal. Segundo Jakobson (1987),

O REMETENTE envia uma MENSAGEM ao DESTINATÁRIO. Para ser


eficaz, a mensagem requer um CONTEXTO a que se refere (ou “referente”,
em outra nomenclatura algo ambígua), apreensível pelo destinatário, e que
seja verbal ou suscetível de verbalização; um CÓDGO, total ou parcialmente
comum ao remetente e ao destinatário (ou, em outras palavras, ao codificador
e ao decodificador da mensagem); e, finalmente, um CONTACTO, um canal
físico e uma conexão psicológica entre o remetente e o destinatário, que os
capacite a ambos a entrarem e permanecerem em comunicação.
(JAKOBSON, 1987, p. 123).

Assim sendo, é imprescindível que o tradutor tenha o conhecimento de todos os


elementos intrínsecos ao processo de comunicação, sem o qual poderá realizar uma
tradução que desprivilegia a mensagem do texto original. Deve ainda considerar que
emissor e receptor, a pesar de cumprirem papeis diferentes, esses dois elementos são
sujeitos ativos na construção do sentido do texto.
Outra reflexão se faz pertinente, quando desse aspecto da tradução, a saber, se a
missão do tradutor é a de traduzir um texto cuja sua mensagem adquire um sentido
denotativo, por exemplo, textos técnicos, os problemas tendem a ser menores, já que o
receptor pode limitar-se ao sentido mais superficial da mensagem. Contudo, se a
mensagem do texto constar de um teor conotativo, a tradutor poderá encontrar outras
dificuldades, pois terá de lidar com a polissemia do texto.

Figura 2. Disponível em:

621
https://www.google.com/search?q=QU%C3%89+DEMONIOS+ES+ESTO+MAFALDA&tbm=isch&sou
rce=univ&sa=X&ved=2ahUKEwjhxoWpirvkAhWOJrkGHeNnDv0QsAR6BAgJEAE&biw=1366&bih=6
57#imgrc

Na Figura 2, Mafalda pergunta para Felipe o que é o objeto que está em suas mãos
e ele responde “um ioiô”, mas ela não compreende e então faz outra pergunta utilizando
o pronome “vos” duas vezes, que em português equivale ao pronome reto tu. A resposta
de Felipe permanece a mesma. Por fim, ela repete o nome do seu amigo por duas vezes,
o que equivale à 3ª pessoa do singular, e embora mais uma vez, agora já irritado, Felipe
tenta esclarecê-la, não obtendo êxito e por ela sendo chamado de egocêntrico.
A princípio, a tirinha não parece apresentar maiores problemas para sua tradução,
entretanto, onde está seu humor? Justamente no fato de que a expressão “yo” equivale à
1ª pessoa do singular do verbo, mas que “yo-yo” equivale a um brinquedo. Quando se
traduz ao português o humor se perde, pois, “ioiô” nenhuma equivalência guarda com
“eu-eu”, ou seja, o mesmo humor que há em espanhol se perde ao traduzir a expressão
ao português.
Nesse sentido, Jakobson (2003) traz a seguinte discussão:

Em sua função cognitiva, a linguagem depende muito pouco do sistema


gramatical, porque a definição de nossa experiência está numa relação
complementar com as operações metalinguísticas. O nível cognitivo da
linguagem não só admite, mas exige a interpretação por meio de outros
códigos, a recodificação, isto é, a tradução. A hipótese de dados cognitivos
inefáveis ou intraduzíveis seria uma contradição nos termos. Mas nos
gracejos, nos sonhos, na magia, enfim, naquilo que se pode chamar de
mitologia verbal de todos os dias, e sobretudo na poesia, as categorias
gramaticais têm um teor semântico elevado. Nessas condições, a questão da
tradução se complica e se presta muito mais a discussões. (JAKOBSON,
2003, p. 65).

Portanto, na tradução intralingual, o domínio do código linguístico – do sistema


gramatical- nem sempre será o fator fundamental para se realizar uma boa tradução,
mais importarão as relações de metalinguagem, ou seja, no uso que o código faz de si
mesmo.
Aspectos e alcances da tradução intersemiótica
A tradução intersemiótica, ou transmutação, consiste na interpretação de um
sistema de signos por outro, isto é, da poesia para a música, a dança, o cinema ou a
pintura, e vice-versa.

622
Ao se propor a esse tipo de tradução, o tradutor, além da translação, poderá
alcançar um efeito mais legítimo e criativo, que é a transcriação, no qual se usam dois
complexos de signos distintos para traduzir mensagens que são equivalentes. Quanto à
tradução do signo estético, apresenta-se a possibilidade da transposição criativa, que se
configura como transposição de determinada forma poética a outra, a chamada
transposição interlingual, ou aquela denominada transposição intersemiótica, em que o
processo acontece de um sistema de signos para outro (JAKOBSON, 2003).
Logo, infere-se que o processo de semiose é amplamente alterado quando o signo
é utilizado em sua forma estética, isso pois, o código, do qual o signo fazia parte
anteriormente, será transformado, tornando muito mais difícil a tradução.
Nas figuras abaixo, ver-se-ão alguns exemplos de transcriação.

Figura 3. Disponível em:


https://www.google.com/search?q=hist%C3%B3rias+em+quadrinho+dom+casmurro&sxsrf=ACYBGNS
KULEAFuvCA989DQkxKUSMtXId3g:1567807666309&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKE
wjS0JrYmr3kAhUZILkGHW_9BVIQ_AUIEigB&biw=1366&bih=657#imgrc=H9KS8fu81YmiFM:
Na Figura 3, retrata-se a impressão que Bentinho, personagem do livro Dom
Casmurro, tinha sobre os olhos de Capitu:

Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova.


Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava
para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não
ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos
cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a
onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me,
puxar-me e tragar-me. (ASSIS, 1994, p.32)

A Figura 3 é um excelente exemplo de tradução intersemiótica, pois transcria,


através de imagens, todas as impressões que Bentinho tem acerca dos olhos de Capitu,
aqueles seus olhos de ressaca que o deixam vertiginoso, como fossem as ondas do amar

623
engolindo-o. Nesse instante, para não ser carreado, precisa desviar a atenção para outras
partes do seu corpo, tais como os braços, as orelhas e os cabelos.
Considerações finais
A partir das reflexões propostas e analisadas nos itens referidos, tornou-se mais
claro que a atividade da tradução, independente de sua ocorrência - intralingual,
interlingual ou intersemiótica- começa, antes de tudo, no pensamento, sendo o próprio
pensamento um ato de tradução.
A tradução intralingual toma um teor de adaptação, onde se pretende buscar a
equivalência de um termo lançando mão dos circunlóquios e sinonímias, por exemplo.
Na tradução interlingual, ter-se-á o enfrentamento de dois códigos, portanto, tornando-
se um ato um pouco mais complexo, exigindo do tradutor o conhecimento de outros
elementos inerentes à comunicação, ou seja, o emissor, o receptor, o canal e o contexto,
para que tradução da mensagem não fique aleijada.
Por último, na intersemiose, ocorre o grau máximo de criação no processo
tradutório. A depender da qualidade e da criatividade do tradutor, os signos podem criar
uma inteiração tal tornando-se uma nova obra, com novos sentidos.

624
Referências
AGUIAR, José; SRBEK, Wellington. Dom Casmurro – histórias em quadrinho.
Disponível em:
https://www.google.com/search?q=hist%C3%B3rias+em+quadrinho+dom+casmurro&s
xsrf=ACYBGNSKULEAFuvCA989DQkxKUSMtXId3g:1567807666309&source=lnm
s&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwjS0JrYmr3kAhUZILkGHW_9BVIQ_AUIEigB&bi
w=1366&bih=657#imgrc=H9KS8fu81YmiFM:

ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

CALVIN E HAROLDO. Disponível em:


http://depositodocalvin.blogspot.com/2005/05/calvin-haroldo-tirinha-13.html. Acesso
em 04 de setembro de 2019.

JAKOBSON, Roman. “Linguística e Poética”. In: Linguística e comunicação.


Tradução de Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1987.

________. “Aspectos Linguísticos da Tradução”. In: Linguística e Comunicação. São


Paulo: Cultrix, 2003.

PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2010.

SAUSSURE, Ferdiand de. Curso de Linguística Geral. Trad. Antônio Cheline, José
Paulo Paes e Izodoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1995.

TREJÓN, Joaquim Salvador Lavado. Mafalda. Disponível em:


https://www.google.com/search?q=QU%C3%89+DEMONIOS+ES+ESTO+MAFALD
A&tbm=isch&source=univ&sa=X&ved=2ahUKEwjhxoWpirvkAhWOJrkGHeNnDv0Q
sAR6BAgJEAE&biw=1366&bih=657#imgrc. Acesso em 05 de setembro de 2019.

625
O TRUQUE DO TRAÇO PRECISO
LAMPEJOS EM LUVAS DE PELICA DE ANA CRISTINA CESAR

Joyce Lopes das Dores Campos (UFRJ) 1

Resumo: Da janela, alguém observa um trecho de paisagem. Em um trecho de texto, o leitor


acompanha a descrição desse cenário. Em Luvas de pelica (1980), de Ana Cristina Cesar, o que
pensamos ser uma exposição de um panorama que a voz poética vê, é, na verdade, o detalhamento
da gravura Sátira sobre a falsa perspectiva (1754), de William Hogarth. Neste artigo, procuramos
mostrar como Ana Cristina, ao justapor a sua perspectiva à de outro, tematiza o ato poético. E
esse olhar que percorre, atravessa e transcende a paisagem, ao recorrer a olhares de outros autores,
também nos permite fazer essa travessia e estabelecermos possíveis diálogos com obras de Pier
Paolo Pasolini e Arthur Rimbaud.
Palavras-chave: Ana Cristina Cesar; poesia; pintura; cinema.

No epílogo do livro Luvas de pelica, de Ana Cristina Cesar, lançado em 1980, a voz
lírica faz uma leve recapitulação do assunto de sua composição poética. Iniciando o
discurso falando diretamente com os leitores, ela afirma que não há ilusão no que faz, e
nos apresenta uma mala com um par de luvas de pelica por cima. Ela veste as luvas e abre
a mala que contém apenas cartões-postais: essa é sua biblioteca. Nessa valise, encontram-
se os objetos furtados de artistas que Ana Cristina admira; com suas luvas de pelica, ela
toca a composição de outros autores, para então poder elaborar a sua própria.
Enquanto são passados de mão em mão, vemos os registros de suas viagens entre
obras e expressões artísticas variadas; na frente, a imagem do outro, no verso, a referência.
Muitos, porém, encontram-se vazios. Ao final do livro, ela retira as luvas de pelica e deixa
o público analisando os cartões-postais. Alguns continuam circulando, outros ainda se
encontram na mala. A voz lírica se retira e nós somos deixados com seu itinerário poético,
ainda que não saibamos onde encontrar todos os destinos no mapa. Nos deslocaremos,
então, até certa paisagem que, não somente parece estar marcada por passos além dos de
Ana Cristina, como também pode ter sua origem em três cartões-postais distintos.

Hoje não pensei onde é que vai parar e quis te escrever carta de amor com
detalhes de hoje à tarde, minha ternura por você que só no dia seguinte pesco
mais, de braço dado em Covent Garden, pegando a tua mão e dizendo que te
rapto mas Joe do lado não queria. Estou esperando na janela onde tem casarão
de tijolinhos com árvores no sol e brisa de leve e outros trechos de paisagem
na tarde de verão. E um fio de luz que só depois faz foco. Tem um passarinho
que quando pia quero matar o passarinho, acho que é um pombo ou uma pomba

1 Graduada em Letras (UFRJ), Mestranda em Literatura Brasileira (UFRJ). Contato:


joyce.campos.fem@gmail.com.

626
ou uma coruja, um pio canino que me mata. Fico esperando na janela – fazendo
uma figura – você vê? – com truques: as árvores maiores no fundo e as árvores
menores na frente, os carneiros na mesma ordem, e a mulher debruçada na
janela com uma vela na mão que acende o charuto do anão no morro da frente,
e um céu à régua, um rio, dois homens pescando, todos os trechos certos da
paisagem e a perspectiva toda errada. Perhaps he is trying to show you can do
all the perspective wrong and the picture will still look all right (Cesar, 2013,
p.70-71).

No trecho acima, a voz poética descreve cruamente, mas de maneira velada, a


gravura Sátira sobre a falsa perspectiva, produzida por William Hogarth e publicada em
1754. Logo abaixo da ilustração vem a seguinte frase: “quem quer que faça um desenho
sem o conhecimento de perspectiva estará sujeito a tais absurdos como os que são
mostrados nesse frontispício”. Segue imagem:

Figura 1 – Sátira sobre a falsa perspectiva, William Hogarth, 1754.

627
A obra (figura 1) mostra vários elementos que formam cenários impossíveis em
conjunto, mas que individualmente são plausíveis. Por exemplo: a linha da vara de pescar
do homem que está no nível principal ultrapassa o homem que pesca a sua frente; em um
prédio no primeiro plano, uma mulher acende o charuto de um homem que está no morro
detrás, além de os dois terem a mesma proporção; os carneiros aumentam à medida que
se afastam, e as árvores diminuem conforme se aproximam, entre outros “erros” de
perspectiva. Olhando superficialmente, a gravura parece normal – como dito pela voz
poética, todos os trechos da paisagem estão certos. Mas as cenas não seguem a lógica do
real, pois a perspectiva está toda “errada”.
Assim como a ilustração de Hogarth, Luvas de pelica parece ter uma sustentação
sólida na realidade em sua semelhança com o diário e a carta. Na leitura de um discurso
revelador sobre a voz poética, o leitor se sente bisbilhotando algo que não é permitido, ao
mesmo tempo que se reconhece como destinatário daquela mensagem. A emboscada,
porém, está na inautenticidade desses segredos. Conforme analisamos cada elemento do
texto, a voz lírica perde sua posição de autoridade e seu caráter não é mais indubitável.
Passamos, assim, a enxergar o texto não como um relato de memória, mas sim como uma
construção. Em depoimento (real) dado no curso “Literatura de mulheres no Brasil”, Ana
Cristina fala sobre a elaboração de sua escrita:

Ao produzir literatura, eu não faço rasgos de verdade, eu tenho uma opção pela
construção, ou melhor, não consigo transmitir para você uma verdade acerca
da minha subjetividade. É uma impossibilidade até. Já que é uma
impossibilidade, eu opto pelo literário e essa opção tem que ter uma certa
alegria. Ela é engraçada. Não é uma perda como parece (Cesar, 1999, p.273).

E a alegria da criação resplandece quando encaramos o olhar satírico de Hogarth


em seu texto. A voz lírica inicia o trecho sem perspectiva, uma vez que não houve reflexão
sobre que rumo dar à correspondência. Em outro momento no livro, ela já se encontrou
em dúvida entre “embarcar nos rasgos de Verdade” ou no “olhar estetizante” 2, até optar
pelo último, como a própria Ana Cristina fala no depoimento acima. De outro modo,

2“Estou há vários dias pensando que rumo dar à correspondência. Em vez dos rasgos de Verdade embarcar
no olhar estetizante (foto muito oblíqua, de lado, olheiras invisíveis na luz azul). Ou ser repentina e
exclamar do avião – não me escreve mais, suave. Opto pelo olhar estetizante, com epígrafe de mulher
moderna desconhecida (‘Não estou conseguindo explicar minha ternura, minha ternura, entende?’)” (Cesar,
2013, p.68).

628
porém, aqui ela diz nem ter pensado onde a sua escrita iria parar, iniciando uma espécie
de exposição sobre as dúvidas que surgem durante o processo de criação.
A escrita segue pontuando um certo conflito de interesses entre a vontade de
compor algo e o ímpeto de somente assimilar a realidade a sua volta. Ela expõe o desejo
de escrever uma carta de amor com detalhes de hoje à tarde, ou seja, registrar o que sentia
em um momento específico. Porém, como antes 3, ela não consegue expressar sua ternura,
pois essa sempre escapa, só se permitindo pegar aos poucos no dia seguinte, quando já se
encontra corrompida pelo tempo. O leitor/destinatário, o único que traz a verdade consigo,
se torna alvo: ela pega a nossa mão, declarando que nos rapta, a fim de extirpar nossa
vida e nos desfazer em palavras. Mas Joe – possivelmente a tentativa frustrada da voz
lírica de personificar o leitor/destinatário – não consente, visto que não é capaz de
comportar a nossa existência.
Ela principia uma leve descrição de algo que parece real: da janela, uma paisagem
com os tais detalhes de hoje à tarde, e um fio de luz que só focaliza depois. Um pio,
porém, atrapalha seu gracioso relatório: ela não sabe de onde vem, nem de qual animal
parte. E isso muda o rumo de sua escrita, que passa de harmoniosa para desequilibrada.
Até que o fio de luz finalmente faz foco: será o olhar estetizante? Um certo paralelismo
entre esse fio de luz e a ternura é estabelecido, já que ambos não foram efetivados no
momento. A ternura, porém, só se deixa pescar paulatinamente, e, por isso, a voz poética
não consegue expressá-la: quando a palavra tenta encarnar o sentimento, essa se torna
outra coisa ou nunca se apresenta por completo. De forma contrária, o fio de luz funcionou
como perspectiva estética para ela, e, como tal, fez foco em sua escrita.
E essa luz ilumina um possível segundo cartão postal de Ana Cristina. Enquanto
refazemos sua viagem, esbarramos com outro viajante, conhecido por sua errância e
inquietude: Arthur Rimbaud carregando seu poema em prosa “As pontes”.

Céus cinzentos de cristal! Um estranho desenho de pontes, retas estas,


arqueadas aquelas, outras descendo ou caindo oblíqua sobre as primeiras, e
estas formas se renovando em outros circuitos iluminados do canal, mas todas
tão longas e leves que as margens, juncadas de cúpulas, se humilham e
diminuem. Algumas dessas pontes estão ainda cobertas de escombros. Outras
sustentam mastros, sinais, frágeis parapeitos. Acordes menores se cruzam e se
prolongam, cordas sobem as ribanceiras. Distingue-se uma jaqueta vermelha,
talvez outras vestes e instrumentos de música. Serão árias populares, trechos

3 Referência ao excerto transcrito na nota anterior.

629
de instrumentos senhoriais, restos de hinos públicos? A água é gris e azul, larga
como um braço de mar. — Um raio branco, caindo do alto do céu, aniquila
esta comédia (Rimbaud, 2012, n.p.).

Não podemos deixar de notar certas semelhanças entre os dois escritos. Rimbaud
constrói de modo fragmentado uma paisagem urbana, compondo seu texto em um
movimento semelhante ao do olhar que percorre uma pintura. Como quem se posta em
frente a uma paisagem, ele não somente observa uma configuração já pronta, mas vive a
experiência do espaço ao deslocar seu corpo e sua imaginação. Em Poética e filosofia da
paisagem, Michel Collot diz que a paisagem “é uma realidade tanto interior quanto
exterior, tão subjetiva quanto objetiva” (Collot, 2013, p.115) e que “não se trata de
reproduzir ou descrever a paisagem, mas de produzi-la e reescrevê-la” (p.116). Portanto,
podemos entender que o olhar do sujeito funciona como um raio branco que destrói e
reconstrói esse cenário que já parecia estar disposto: “a água e a luz são, desde sempre na
poesia de Rimbaud, os dois princípios de vida cuja reunião permite renovar o amor e
recriar o mundo” (p.127). E a paisagem reconfigurada estabelece uma realidade outra,
exclusiva da obra de arte; compreensão inaugurada com a crise da representação na
modernidade.

Livrando-se das restrições e das ilusões de uma mimese supostamente objetiva,


a arte moderna libera a expressão dos componentes subjetivos da paisagem. Se
esta não é mais figurada, pode encontrar-se refigurada, de acordo com o ponto
de vista de um sujeito criador, e/ou configurada segundo uma organização que
não tem mais nada de “realista”, mas se reconhece mais abertamente lírica,
fantástica, simbólica e estética (p.116).

E é com essa perspectiva moderna que a voz lírica de Luvas de pelica retoma o
texto. Após o fio de luz fazer foco em sua escrita, a encontramos novamente na janela e
novamente descrevendo uma paisagem. Mas dessa vez, com truques: ao invés de explicar
o que supostamente vê e sente, a voz poética diz fazer uma figura, quando, na verdade,
está falando sobre uma outra paisagem feita por outra pessoa. Ao nos perguntar
diretamente se vemos a figura com truques que alega gerar, ela cria uma ilusão de
confiança, mas que só ludibria os desatentos, já que sua intenção de enganar está explícita.
Aliás, a escolha da palavra “truque” é proveitosa, uma vez que também significa uma
espécie de jogo de cartas, o que não deixa de ser o que observamos nessa correspondência

630
entre pintores e escritores, em um jogo de verdades e mentiras com o leitor, cuja
significação pode ser estendida por todo o texto.
Podemos, inclusive, retornar ao epílogo comentado anteriormente, em que ela nega
qualquer possibilidade de ilusão, enquanto nos mostra seu chapéu, suas mãos, bolsos e
mangas vazios, momentos antes de vestir suas luvas de pelica: “como todos podem ver,
não há nenhum truque, nenhum alçapão escondido, nem jogos de luz enganadores”
(Cesar, 2013, p.72, grifo nosso). O que seria uma “nota de esclarecimento” para elucidar
certas fraudes da obra, se mostra uma nova artimanha: mesmo sem portar as luvas – esse
tecido que impede sua pele de tocar o texto, mas que ainda mantém sua forma exterior -,
ela inicia o epílogo com as palavras de outro autor, transcritas descaradamente. O furto
literário foi de uma frase de Lolita, de Vladimir Nabokov, seguida de sua tradução: “I
AM GOING TO PASS around in a minute some lovely, glossy-blue picture postcards.
Num minuto vou passar para vocês vários cartões-postais belos e brilhantes” (p.72).
Voltando à janela, escutamos a voz poética produzir uma figura de modo confuso,
incoerente e fragmentado, até atentarmos ao truque da apropriação de uma paisagem
também confusa de outro artista. Ao finalizar o detalhamento da figura, ela afirma que
todos os trechos da paisagem estão corretos, mas a perspectiva está totalmente errada.
Hogarth procurava manifestar sua posição de que, sem o conhecimento de perspectiva,
aquele que procurasse retratar algo baseado na realidade estaria sujeito a criar absurdos
como em sua própria gravura. De modo similar, os trechos da paisagem de hoje à tarde
da voz lírica também estavam corretos, mas sua perspectiva estava errada ao tentar
descrever com precisão o real, ao invés de aplicar o olhar estetizante.
Apesar disso, Hogarth acabou criando algo com conceito, algo estético, semelhante
ao que Ana Cristina fez. Ambos apresentaram uma paisagem que pretendia estabelecer
alguma simetria com a realidade – as várias imagens do cotidiano na gravura do pintor, o
estilo carta/diário da escritora -, mas que contém absurdos que transformam a obra em
algo que foge às leis da razão e do senso comum, expressando, assim, uma motivação
artística. O final do trecho, por exemplo, é uma sentença que pode ser considerada uma
interpretação da voz poética sobre a gravura de Hogarth, e que também difere da análise
convencional proposta pelo próprio pintor: talvez ele esteja tentando mostrar que você
pode ter a perspectiva errada e a figura ainda parecerá correta. Mas, surrupiando o que

631
poderia ser a leitura de outra obra e transferindo para a sua própria, nos perguntamos: a
perspectiva de quem é questionada? Do autor ou do leitor/espectador?
Caso seja a do autor, a perspectiva errada poderia ser verificada de duas formas: no
instante em que o artista tenciona documentar precisamente uma realidade exterior,
quando isso não caberia ao campo das artes, além de ser um objetivo ilusório; ou quando
o autor simula a criação de algo com feições do real, mas elabora conteúdos inverossímeis
propositalmente – no caso da gravura, para provar o posicionamento do pintor em relação
à perspectiva; em Luvas de pelica, como fruto da criação originado pelo olhar estetizante.
Podemos entender isso como um embate entre a tradição e a modernidade, comentada por
Collot no que concerne à experiência da paisagem nas manifestações artísticas:

Nossa tradição associa a paisagem à ordem da representação; tratar-se-ia de


uma realidade exterior, oferecida ao olhar, que a arte e a literatura teriam como
missão de reproduzir, tão fielmente quanto possível, por meio da figuração ou
da descrição. Caso se tratasse única e exclusivamente disso, não seria de se
estranhar que ela tenha desaparecido da pintura e da literatura modernas, pois,
verdade seja dita, tal coisa não se encontra em parte alguma e, muito menos,
no mundo real ou no da arte (Collot, 2013, p.115).

Dessa forma, o leitor/espectador também pode revelar uma perspectiva errada caso
não atente para essa inviabilidade representativa; descuido que o levaria a não perceber
os truques dos autores. O “você” da última frase, por exemplo, pode ser uma referência
direta da voz poética ao leitor que cai em sua armadilha de escrita confessional, uma vez
que o texto se assemelha à carta e ao diário. Ou seja, todos os trechos certos da paisagem,
do real, do diário, da carta, mas a nossa perspectiva "toda errada", tendo em vista que
aquilo é fingimento.
Assim como a última frase do fragmento é iniciado com o vocábulo perhaps,
exprimindo a incerteza da voz poética em relação à significação viável da obra de William
Hogarth, e até mesmo da sua própria, nossa análise é uma interpretação possível, sem
intenção de ostentar a verdade definitiva do texto. Até porque as verdades poéticas são
várias e elas surgem a partir da produtividade da composição. O rendimento de
significações aumenta conforme percebemos as múltiplas vozes contidas na obra,
especialmente quando há uma clara conversa entre diferentes tipos de arte.
Isso nos motiva a voltar à sua valise e pegar um terceiro cartão-postal
correspondente a essa paisagem. Mas agora, ele diz respeito à construção desse excerto

632
de Luvas de pelica. Como um diretor afasta a câmera para filmar em plano aberto, nos
distanciaremos dessa passagem a fim de contemplar a montagem de suas cenas. É
possível perceber uma alternância de planos com sentidos apostos, demarcados pelo fio
de luz, formando uma espécie de campo e contra-campo. E foi essa perspectiva
cinematográfica que nos levou às figuras intercaladas de “La ricotta” de Pier Paolo
Pasolini.
Nessa obra – um dos quatro segmentos de “Ro.Go.Pa.G” (1963) –, Pasolini nos
apresenta um filme sobre um filme, em que o presente (atrás das câmeras) é filmado em
preto e branco e o passado (em frente às câmeras) em cores. O “filme do filme” procura
retratar a Paixão de Cristo; tanto o posicionamento dos personagens quanto o próprio
colorido da cena denunciam uma certa artificialidade, que tende mais para o pictórico do
que para o cinematográfico. E, de fato, os planos policromáticos são baseados em duas
pinturas maneiristas – movimento artístico conhecido por sua sofisticação, contradição e
artificialidade: a Deposição da cruz (1521) de Rosso Fiorentino e A deposição (1528) de
Jacopo Pontormo. Em certo momento, o diretor, interpretado por Orson Welles – em uma
caricatura do próprio Pasolini –, lê o poema “Eu sou uma força do passado” do diretor
original:

Eu sou uma força do Passado.


Só na tradição consiste meu amor.
Venho dos escombros, das igrejas,
dos retábulos, das aldeias
abandonadas nos Apeninos ou Pré-Alpes,
onde viveram meus irmãos.
Vago pela Tuscolana feito um louco,
pela Appia como um cão sem dono.
Ou vejo os crepúsculos, as manhãs
sobre Roma, a Ciociaria, o mundo,
como os primeiros atos da Pós-História,
aos quais assisto, por privilégio de registro,
da borda extrema de uma era
soterrada. Monstruoso é quem nasceu
das entranhas duma mulher morta. E eu, feto adulto, perambulo
Mais moderno que qualquer moderno
a buscar irmãos que não existem mais (Pasolini, 2015, p.163).

Com isso, conseguimos formular vários paralelos entre “La Ricotta” e o trecho
analisado de Luvas de pelica. Temos aqui, uma obra que descortina deliberadamente a
artificialidade de sua construção, a fim de satirizar o caráter superficial da perspectiva

633
reducionista atual. Sua modernidade se dá através da reconstrução do passado, retomando
e reelaborando obras de outras expressões artísticas, principalmente a da pintura: “não
consigo conceber imagens, paisagens, composição de figuras, fora da minha paixão
pictórica inicial, do século XIV” (Pasolini, 1985, p.57). Ao utilizar a forma de tableau
vivant – atores recriando uma pintura, no caso, religiosa – em um filme metalinguístico,
Pasolini dessacraliza tanto a religião, quanto a obra de arte, rechaçando o senso comum
ao mostrar a plasticidade intencional de sua obra, e, disfarçada da sociedade. Com isso,
ele faz sobreviver a potência criativa e questionadora da arte e do indivíduo modernos.
Em A sobrevivência dos vaga-lumes, Georges Didi-Huberman fala da transformação
contínua de figuras e imagens do poeta-diretor, em uma confluência do hoje com o
outrora.

Pasolini sabia, poética e visualmente, o que sobrevivência queria dizer. Ele


sabia do caráter indestrutível, aí transmitido, lá invisível, mas latente, mais
além ressurgente, das imagens em perpétua metamorfose [...]. É o que
determina nele a conjunção assumida do arcaico e do contemporâneo, fazendo
dizer a Orson Welles em “La ricotta”: “Mais moderno que todos os modernos
[...] eu sou uma força do Passado” (più modeno di ogni moderno [...] io sono
una forza del Passato). Não nos esqueçamos de que essa frase, no filme, é
pronunciada por um artista carregado de experiência e de amor pela história.
Mas sentado diante de um jornalista incapaz, por sua vez, de fazer outra coisa
a não ser reduzir todo o profundo contemporâneo à atualidade das banalidades
necessárias à sociedade do espetáculo” (Didi-Huberman, 2011, p.62-63).

Tanto em Ana Cristina, quanto em Pasolini, observamos “como o outrora vinha


percutir o Agora para produzir o lampejo e a constelação dos vaga-lumes” (p.64). Em um
campo, eles nos mostram o presente, a realidade, exibida em sua crueza divertida e sem
cores. Até que um raio de luz branco faz foco e aniquila a comédia humana; como o
spectrum de Isaac Newton, a luz se decompôs ao atravessar a lente da câmera, o vidro da
janela, como se estes fossem prismas ópticos, para propagar as cores que as integram.
Cores do passado formadas pela emissão direta da luz. Essa luz, portanto, não é pura:
premissa evidenciada por Newton, e que aqui se mostra estética, ao mesmo tempo que
reveladora. Em contra-campo, o contemporâneo preto e branco, se desvela e se abre nas
cores de outrora, em um espaçamento do sujeito 4 que se anuncia parte integrante da

4
Michel Collot fala do espaçamento do sujeito na experiência da paisagem: “O sujeito parece sair de si
mesmo para se espraiar por todo o espaço circundante, uma espécie de ubiquidade, que pode ser feliz ou
vertiginosa” (Collot: 2013, 85).

634
paisagem que habita, “mais moderno que qualquer moderno”, porém alicerçado à
potência do passado. O cosmos é; ao mesmo tempo, nós o criamos. Pasolini e Ana
Cristina mostram como o passado integra o presente e, com isso, se lançam ao futuro.
De modo simultâneo, eles homenageiam e dessacralizam tanto o longínquo quanto
o corrente: a luz que ilumina o cenário faz mostrar que o presente reflete o espetáculo da
encenação, das convenções próprias do passado. Pasolini faz sobreviver a relevância de
outrora, com sua paixão pela obra pictórica do século XIV, mas também expõe máculas
que persistem, como costumes conservadores, manutenção de aparências e
superficialidade; e a partir dessa colisão, o diretor critica a sociedade italiana de seu
tempo. Ana Cristina também carrega a tradição em suas mãos; sua mala está cheia de
cartões-postais – uns carimbados, outros não – que registram suas viagens ao longo dos
séculos: “a viagem e a descoberta de novas paisagens lhe permitem sair de si para se abrir
ao mundo [...] a paisagem é o lugar de uma troca em duplo sentido entre o eu que se
objetiva e o mundo que se interioriza” (Collot, 2013, p.89). Nessa reciprocidade da troca
de correspondências, ela recebe e reescreve tanto a experiência de um outro, quanto a sua
própria, sem deixar de empregar seu olhar estetizante.
O vigor poético de Luvas de pelica nos permitiu aproveitar a pluralidade de
significações que a palavra proporciona. Palavra manejada de tal forma por Ana Cristina
que, em um único trecho – não chegando a preencher uma página de seu livro –, foi
possível alcançar uma multiplicidade estética que se desdobra em olhares pictóricos,
poéticos e cinematográficos. À medida que reconstituíamos seus passos e visitávamos as
paisagens de Hogarth, Rimbaud e Pasolini, fomos percebendo que eles próprios parecem
ter percorrido, cada um em sua época e à sua maneira, caminhos similares aos de Ana
Cristina. Andarilhos modernos, os quatro se reconhecem em seus deslocamentos
temporais e artísticos, assim como em uma inquietude questionadora e irônica,
congruente com a perspicácia do espírito contemporâneo. Como um lampejo irregular,
assistimos Ana Cristina evocar ora um, ora outro: “os vaga-lumes se apresentam a seus
congêneres por uma espécie de gesto mímico que tem a particularidade extraordinária de
ser apenas um traço de luz intermitente, um sinal, um gesto, nesse sentido” (Didi-
Huberman, 2014, p.58, último grifo nosso). Eles se revelam como riscos luminosos,
pequenas memórias itinerantes; comunicam-se em código, piscando um para o outro.

635
Ana-vaga-lume perambula no lusco-fusco, assegurando a sobrevivência de seus irmãos,
instantes de luz, reunindo-os em uma fileira, fazendo foco em sua escrita. Com truques.

636
Referências

CESAR, Ana Cristina. “Escritos no Rio”. In: ______. Crítica e tradução. São Paulo:
Ática, 1999, p.273.

______. “Luvas de pelica”. In: ______. Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2013,
p. 53-74.

COLLOT, Michel. Poética e filosofia da paisagem. Tradução de Ida Alves. Rio de


Janeiro: Oficina Raquel, 2013.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Tradução de Vera Casa


Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: UFMG, 2011.

NABOKOV, Vladimir. Lolita. London: Corgi Books, 1974.

PASOLINI, Pier Paolo. Ciclo Pasolini anos 60. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1985, p. 57.

______. “Eu sou uma força do passado”. In: ______. Poemas: Pier Paolo Pasolini.
Tradução de Maurício Santana Dias. São Paulo: Cosac Naify, 2015, p. 163.

RIMBAUD, Arthur. “As pontes”. In: _____. Iluminações. Tradução de Janer Cristaldo.
eBooks Brasil: 2012. Disponível em: <
http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/rimbaud.html >. Acesso em: janeiro de 2019.

637
A SOBREVIVÊNCIA DA NINFA

Juliana Andrade de Lacerda (CEFET-MG)1

Resumo: A partir da ideia de imagem sobrevivente, conceito de Aby Warburg (1866-1929),


apresentada nas pranchas do Atlas Mnemosyne (2010), destacaremos a figura da ninfa. Warburg
propôs reinterpretar essa figura grega, uma das representações do feminino, no contexto do
Renascimento florentino do século XVI. A conceituação de retorno da ninfa foi depois
trabalhada pelo filósofo Georges Didi-Huberman (1953). Para o autor, a ninfa declina com os
tempos modernos, perde seus panos, doravante aparecem deitadas, essas criaturas fantasmáticas
têm o poder de fascinar e agitar a alma.

Palavras-chave: Atlas Mnemosyne; Ninfa; Sobrevivência; Erotismo.

Este artigo discute a sobrevivência da imagem, a partir da figura da ninfa,


destacada no Atlas Mnemosyne (2010), de Aby Warburg (2010). Em seu Atlas, Warburg
procurou abolir as fronteiras entre passado, presente e futuro, segundo um pensamento
anacrônico existente principalmente nos estudos de Walter Benjamin e de Carl Einstein
e retomado posteriormente por Georges Didi-Huberman. Esse pensamento trata da
possibilidade de pensar a história da arte não como mera sequência estilística, nem
conforme a linearidade da historiografia clássica, mas como um contato entre tempos
diversos.
Ressaltamos, neste trabalho, conceitos importantes elaborados por Warburg que
produziram uma visão articulada e complexa da cultura, como Pathosformel, Nachleben
e Mnemosyne, que se articulam entre si. Esses termos possuem um caráter dinâmico e
operatório em sua pesquisa e passam a fazer parte de um ciclo indissociável.
A teoria sobre a Pathosformel estabelece relações com as representações das
imagens do Renascimento com a literatura clássica. É provável que Sandro Botticelli
(1445-1510) conhecesse a descrição antiga da deusa Vênus pela literatura clássica e que
a tenha usado como inspiração para suas pinturas: As duas têmperas – O Nascimento de
Vênus (1484-1486) e A Primavera (1482-1485) – fazem referência à filosofia antiga, à
poesia latina, pois suas fontes arqueológicas e compilações emanam da literatura
humanista grega.
Em sua tese sobre O nascimento de Vênus e a Primavera de Sandro Botticelli
(2013), Warburg analisou as pinturas desse artista remontando-as nos painéis do Atlas

1
Graduada em Jornalismo, mestrado em Artes Visuais (EBA- UFMG), doutoranda em Estudos de
Linguagem (CEFET-MG). Contato: lacerdandrade47@gmail.com

638
Mnemosyne. Destacou que havia nessas têmperas uma grande preocupação de Botticelli
em reproduzir os movimentos das vestes e dos cabelos das Ninfas: “os acessórios em
movimento funcionam como operador de conversão: entre o ar impalpável e o corpo
visível, entre o movimento visível e o movimento da alma” (DIDI-HUBERMAN, 2016,
p. 57).
Na Renascença florentina, a ninfa é o sintoma de uma sobrevivência. Os
conteúdos psíquicos se atualizam nessa figura, que se aproxima da Pathosformel. A
forma do páthos ressalta os gestos que sobrevivem e se cruzam repentinamente. Para
observarmos essa operação, nos ateremos, neste artigo, ao seguinte recorte: painéis 39,
41, 46 e 77 do Atlas Mnemosyne, de Warburg.
No painel 39, intitulado “Botticelli” – Estilo ideal –, destacam-se as pinturas:
Nascimento de Vênus, Primavera e Alegoria da abundância, de Botticelli, além de
Apolo y Dafne, atribuída a Giovanni Pietro Birago. A Vênus está presente também na
prancha 41, intitulada: “Pathos da destruição – Sacrifício, A Ninfa como bruxa –
Libertação da expressão”. Na montagem aparece o desenho de Albrecht Dürer, Morte
de Orfeu, e diversas figuras femininas, como Medeia e Eurídice.
Na prancha 46, “Ninfa”, a pintura Nascimento de João Batista (1486), de
Domenico Ghirlandaio 2, que também foi cunhada em moeda3, reproduzida em afresco e
em tela, representa o rosto da jovem esposa de Lorenzo Tornabuoni, falecida aos 20
anos, ao dar a luz. Destaca-se ainda, nesse afresco, uma escrava que passa com um vaso
de flores em sua cabeça. Essa figura é recortada de diversas maneiras e apresentada no
mesmo painel. Por fim, há uma campesina com saias longas andando em frente a sua
casa na Itália, fotografada pelo próprio Warburg.
Nas montagens warburguianas dos painéis, as ninfas da Antiguidade e do
Renascimento aparecem lado a lado em suas temporalidades múltiplas. Observa-se,
portanto, que a ninfa movimentou-se por diversos momentos do Atlas, como uma deusa
da sensualidade, do erotismo e do desejo.
Didi-Huberman, no livro Ninfa moderna: ensaio sobre o panejamento caído
(2016), aborda o erotismo, a beleza, o desejo, o prazer e a morte dessa figura feminina,

2
Domenico Ghirlandaio, Visitação... Afresco, 1485-1490. Capela do coro maior, Santa Maria Novella,
Florença e Retrato de Giovana Tomabuoni, Têmpera sobre painel, 1488. Coleção Thyssen-Bomemisza,
Madri.
3
Niccolò Fiorentino, Medalha de Giovanna Tornabuoni, 1486.

639
percorrendo a carnação renascentista e destacando que, enquanto na Antiguidade a ninfa
apresentava-se em posição vertical, muitas vezes retratadas:

Sentadas ou de pé, em pose ou a correr, elanguescidas à beira de uma fonte


ou adormecidas numa gruta, numa bacia ou numa concha, fiando a lã ou
cantando melodias inaudíveis, dançantes ou perseguidas, agredidas ou
fazendo amor, violadas ou raptoras de rapazes jovens, aguadeiras ou parteiras
de deusas, Kourotrophos [amas] ou amamentando Dionísio, protetoras das
fontes ou fatais aos humanos (DIDI-HUBERMAN, 2016, p.46-47),

Enquanto as beldades da arte clássica, como a famosa Cleópatra no século II,


apresentavam-se, muitas vezes, encostadas em um objeto de mármore, com seus tecidos
enrolados ao corpo, nas imagens do início do século XVI, como a Vênus de Urbino, de
Ticiano, percebemos que os corpos começam a cair e os tecidos escorrem pelo chão: “É
bom de ver que, depois da Vênus estendida de Botticelli até à Vênus de Urbino de
Ticiano – e todas as suas variantes para além desta –, os vestidos estão, por assim dizer,
caídos” (DIDI-HUBERMAN, 2016, p.50). Esse desnudamento pode ocorrer em uma
dança do amor ou para demonstrar a sensualidade e o desejo dessas divindades.
No Renascimento a ninfa vai se declinando até cair na terra; nos tempos modernos
ocorre um movimento semelhante, segundo Didi-Huberman, as figuras femininas
descem dos altares para as cenas libertinas, perdem seus panos, doravante aparecem
deitadas. O movimento acelerado da queda e do desnudamento das ninfas leva o
passado a se revolver na lama, a refluir na memória, para ressurgir no presente: “A
Ninfa é como a aura – no sentido benjaminiano: declina com os tempos modernos. Em
sentido estrito ela não chega a envelhecer, por ser uma criatura da sobrevivência”
(DIDI-HUBERMAN, 2016, p. 47).
O período do Renascimento e da modernidade, no qual os corpos aparecem
geralmente em posição horizontal e os tecidos caem por terra, foi classificado de
clinâmen por Didi-Huberman. Esse movimento de queda foi destacado em diversas
obras, dentre elas, algumas de Ticiano, como na pintura Vênus de Urbino (1538), em
que há uma jovem nua que aparece deitada numa espécie de cama em meio aos lençóis
e às almofadas. Isso pode ser observado também na pintura Vênus adormecida (1507-
1510), em que novamente aparece uma jovem nua recostada às almofadas e dormindo.
Há muitos trapos da ninfa lançados por terra após sua queda, a partir desse
movimento de clinâmen. Didi-Huberman (2016, p.48) esclarece: “A palavra, em latim,

640
significa duas coisas: por um lado, denota o movimento de se curvar até cair, a
inclinação de um corpo. O termo esclarece, portanto, esse eixo fenomenológico da
queda” (DIDI-HUBERMAN, 2016, p. 48). Por outro lado, segue nos explicando o
autor, o termo cliné designa “o campo privilegiado deste movimento corporal: é o leito,
o deitar, é a almofada das divindades, onipresente em todas as cenografias da Ninfa
quando se abandona às baixas forças do desejo e da horizontalidade” (DIDI-
HUBERMAN, 2016, p. 48).
Podemos dizer que o elemento patético é apresentado nos quadros de Botticelli
O Nascimento de Vênus e A Primavera. O artista deslocou para os acessórios o páthos,
projetou-o nas cabeleiras e nos tecidos. O movimento acontece ao tocar do vento,
elemento tornado central por Warburg na arte renascentista. Essa brisa imaginária
acompanhou o belo drapeado das ninfas, agitou as madeixas de Vênus e também o
vestido da escrava tártara em exílio, que atravessa o quadro com seu drapeado flutuante
na obra de Ghirlandaio. Produziu-se, com isso, uma construção muito bem elaborada,
capaz de moldar, em um gesto do corpo, o interior e o exterior das ninfas.
Dessa forma, os tecidos, assim como a carne, adquirem autonomia visual e vida
própria. Os panos, que antes cobriam o páthos, doravante se alongam e oferecem os
corpos ao imaginário do desejo. Dessa forma, ocorre:

A queda progressiva da Ninfa –, esta bifurcação tomará a forma de uma


lentíssima dissociação entre a nudez e o tecido que primeiro a vestia; é como
se o panejamento da Ninfa caísse por terra, por si só, em ralenti, desnudando
a jovem pouco antes que ela, por seu turno, atinja o chão, onde o tecido a
recolherá como um lençol (DIDI-HUBERMAN, 2016, p. 48-49).

Portanto, o panejamento como ferramenta patética transforma a prega em signos


visuais. Os restos de tecido amarrotados seriam como vestígios: “como uma última
forma possível para o desejo humano. Qualquer coisa como um farrapo do tempo”
(DIDI-HUBERMAN, 2016, p.51).

Das imagens gregas e romanas, como da Gradiva, que ao andar levanta a barra
de seu traje, e de Cleópata, encostada em um mármore, assim como nas pinturas de
Ticiano, passemos para o movimento de dilaceramento e da morbidez sacrificial dos
corpos cristãos. O corpo de Santa Cecília foi encontrado em uma capela cristã, na
obscura igreja de Santa Cecília de Trastevere, em Roma, onde há uma bela e intrigante

641
escultura intitulada Santa Cecília, assinada pelo escultor Stefano Maderno. Nessa obra
funeral de 1600, o artista ressaltou a sacralidade dessa figura adormecida e abandonada
com seus panos. Seu cabelo estava enrolado por um véu.

Trata-se da imagem de “uma jovem desabada por terra, o corpo enrolado, os dois
braços lançados para diante, a cabeça estranhamente voltada contra o chão” (DIDI-
HUBERMAN, 2016, p. 54). A santa, que ficou conhecida por ter sido decapitada
juntamente com o marido, mas cujo corpo nunca fora tocado por ele, morrera casta e
pura, abandonada ao sofrimento. A estátua de Maderno parece querer fixar a imagem da
jovem imobilizada por três dias, agonizando com sua cabeça semidecapitada. O artista
“não omitiu esculpir uma grande gota de sangue-branca, como um leite de pedra – que
brota do corte” (DIDI-HUBERMAN, 2016, p. 55). O sangue representa o leite materno
que alimenta os filhos. No entanto, o mais marcante nessa imagem seria a simbolização
do sacrifício dos corpos cristãos. Santa Cecília4 está deitada sobre um mármore branco
como “um animal no matadouro, o seu pescoço vertendo sangue” (DIDI-HUBERMAN,
2016, p. 55).

As autoridades arqueológicas e eclesiásticas reconheceram o corpo intacto da


virgem que fora sacrificada, martirizada e coberta por um véu 400 anos atrás. Há,
portanto, o caráter da não-corrupção do corpo da jovem, como um milagre, uma vez que
a santa foi encontrada em bom estado de conservação, quase não houve decomposição.
Stefano Maderno, ao ver o corpo quase intacto, enche os olhos com essa visão
celeste:

Foi, portanto, nesta época que a terra de Roma – a famosa Roma subterrânea
– foi, pela primeira vez, objeto de uma verdadeira arqueologia cristã. A
basílica e a cripta de Santa Cecília em Trastevere foram passadas a pente
fino, em busca dos mais antigos testemunhos do seu culto” (DIDI-
HUBERMAN, 2016, p. 56).

Maderno, ao reproduzir a figura da santa, inventou a postura, a cabeça coberta por


um véu, voltada para o chão, a cicatriz no pescoço, as mãos postas e uma lágrima de

4
No período Roma subterrânea, na basílica cripta de Santa Cecília, em Trastevere, a santa foi encontrada
pela arqueologia cristã: “descobriu-se um caixão de madeira, no qual se reconheceu o escrínio das santas
relíquias de Cecília, tal como o papa Pascal I as havia encerrado no ano 821” (DIDI-HUBERMAN, 2016,
p. 57).

642
sangue. Sua composição foi pensada minuciosamente para convencer o fiel da santidade
dessa mulher, uma vez que o artista não realizou um trabalho de observação do cadáver
em putrefação, mas elaborou, com sua habilidade, uma escultura de beleza
incomparável, que se tornou “nada menos do que uma das estátuas mais célebres de seu
tempo” (DIDI-HUBERMAN, 2016, p. 62). Sua elegância suprema pode ser atribuída ao
tecido que reveste seu corpo; trata-se de um dispositivo de pudor que a cobre dos pés até
a cabeça, substituindo os cabelos. Verifica-se, portanto, que o drapeado caído é comum
nas esculturas católicas, que não raro aparecem ligeiramente adormecidas e sensuais.
Nessas obras, o panejamento exerce um papel importante. Didi-Huberman conclui que:

É graças ao mesmo panejamento que ela aparece tão sensualmente


leve, adormecida diante de nós, simplesmente abandonada como
poderia sê-lo uma ninfa da Antiguidade ou, então, o seu substituto
lançado por terra, um vestido amarrotado resumindo por si só todas as
desordens do desejo (DIDI-HUBERMAN, 2016, p. 63).

A santa pudica, marcada pela desordem do desejo, seria a representação da


Antiguidade tardia, do período da Contra-reforma. Nessa época, propagou-se a imagem
de diversos mártires, como São Sebastião, que teve o corpo amarrado em uma árvore e
sacrificado com flechas. As esculturas da era cristã pretendiam ocultar as figuras greco-
romanas, colocando-nos “diante de uma antininfa, da antimênade por excelência”
(DIDI-HUBERMAN, 2016, p. 54).

A partir do pensamento anacrônico e da sobrevivência da imagem, discutiremos


algumas formas de insurreições, conforme ocorrem na atualidade, uma vez que a ninfa
não morre jamais, apesar de se modificar de acordo com os movimentos sociais.
Ninfa e os movimentos de levantes
Para continuar a discussão sobre a sobrevivência da ninfa analisaremos a prancha
de número 77 do Atlas Mnemosyne. Nela, destacaremos a imagem de uma golfista ao
lado de figuras masculinas, que apresenta um gesto de força, ao erguer o corpo e os
braços para arremessar o taco de golfe. Esse gesto se assemelha aos movimentos
apresentados na exposição Levantes (2017), por Georges Didi-Huberman, exibida em
diversos países, como França, Espanha, Argentina, Brasil, dentre outros.
Na montagem da exposição há uma imagem destacada pelo historiador da arte, a
pintura Liberdade guiando o povo (1830), de Eugène Delacroix, criada em

643
comemoração à Revolução de Julho de 1830. Nela, uma mulher estende os braços com
uma bandeira vermelha. A figura feminina apresenta-se, portanto, em um movimento de
elevação, que lhe permite sair da posição de submissão.
Esse movimento remete a uma ação que pretende vencer a morte, a passividade,
recolocando em jogo a vida. Conjuga-se aí, ao mesmo tempo, peso e leveza, uma vez
que a mulher da pintura de Delacroix sustenta, sem amarras, as várias possibilidades de
emancipação de um povo. Trata-se de um gesto que surge diante de um sofrimento
inaceitável, causado pelo próprio abatimento e pelas várias formas de poder que tentam
assujeitar os corpos.
No entanto, segundo Didi-Huberman (2017), os regimes totalitários podem
provocar apatia, uma vez que dificultam a capacidade de ver além e sufocam a
elaboração de pensamentos criativos. Contudo, há um desejo de sobrevivência que pode
ser ainda mais forte que essa apatia. Tal desejo pode provocar o gesto de elevação dos
corpos, o que se observa tanto no cotidiano, quanto nos esportes e na arte.
No livro Levantes (2017) há um artigo assinado por Judith Butler, no qual a autora
ressalta que, apesar da opressão das subjetividades e dos corpos, temos a necessidade de
erguer os braços e lutar, pois a violência que atinge os oprimidos persiste em proteger
os opressores. As insurreições seriam uma força subterrânea capaz de elevar-se até a
superfície para produzir uma aventura coletiva performativa. O corpo de um ser se junta
ao do outro, e, com isso, surge o levante: “contra todo um regime legal, podendo este
incluir a escravidão ou o domínio colonial, ou, ainda, contra ocupações, estado de sítio,
apartheid ou austeridade” (BUTLER, 2017, p. 24).
Um levante seria justamente um movimento contra um estado de coisas, “pois o
homem indignado é aquele que diz não: produz performances que, segundo um
movimento descendente e ascendente, vão da expressão de um contra-poder
constituinte até o menor não pronunciado contra o comando” (BUTLER, 2017, p.
110). Em um levante é necessário que um grupo se organize, pois: “um indivíduo não
pode se opor sozinho a uma lei injusta e de maneira heroica desafiar os imperativos
baixados por essa lei, um indivíduo, por mais provocador que seja, não constitui um
levante. Um levante não é algo individual” (BUTLER, 2017, p. 23). É necessário,
portanto, que os corpos se unam para reivindicar seus direitos; o mais importante em
um levante é a vontade popular manifestada sob a forma de rebeldia ou não.

644
Para contextualizar a questão dos levantes na atualidade, discutiremos os
movimentos que estão surgindo nas redes sociais na contemporaneidade. Dentre eles,
temos o cyberativismo, que estabelece conexões com as novas tecnologias. É um tipo de
ativismo que começa na web, mas pode ser ampliado para outras instâncias. Entre as
várias comunidades que se organizam nesses ambientes, há grupos com pautas
feministas e transfeministas5, criados com o intuito de compartilhar experiências e
discutir sobre questões de gênero.
Judith Butler em Corpos em aliança e a política das ruas (2018), analisa a teoria
queer, a questão do desejo e os movimentos nas redes virtuais. Para a filósofa, não é
possível pensar sobre gênero como algo imposto, mas como performatividade. Isso
significa que o gênero não está dado, mas é algo em constante movimento. A autora
descontrói, assim, o sistema hegemônico até então tido como algo prefixado entre
opostos: masculino e feminino, sendo importante pensar além do corpo biológico.
Buther ressalta ainda que, o exercício de gênero é importante, uma vez que, para mover-
se no espaço público é preciso agir em pé de igualdade com os demais:

Dessa maniera as comunidades que se unem em assembleia nas ruas


começam a encenar outras ideias de igualdade, liberdade e justiça diferentes
daquelas a que se opõem. O ‘eu’ é assim ao mesmo tempo o ‘nós’, sem
estar fundido em uma unidade impossível [...] A igualdade é uma condição
e uma característica da ação política em si, ao mesmo tempo que é o seu
objetivo (BUTLER, 2018, p.59).

Corpos se unem nas ruas para uma performatividade, minorias raciais e religiosas
estão juntas para lutar por melhores condições sociais e econômicas, que se ligam pela
precariedade. As mulheres, os queers, os transgêneros, dentre outros grupos que na
maioria das vezes são excluídos, podem, ao se reunírem, fazer suas reinvindicações.
Somente a partir do momento em que os marginalizados se tornarem conscientes de sua
existência e de seu lugar de sujeição é que poderão realizar um movimento de
deslocamento; a partir daí, talvez:

5
Transfeminismo ou feminismo transgênico é uma filosofia, uma práxis acerca das identidades trans, que
visa a transformação dos feminismos a partir de uma crítica fundamental à biologização do conceito de
gênero, reconhecendo que confundir sexo biológico e gênero corresponde somente a considerar mulheres
cisgênero como mulheres, e homens cisgênero como homens, excluindo mulheres e homens transgênero.
Cf. Blogueiras feministas, página da internet referenciada ao final.

645
Seja possível ver como a precariedade sempre esteve nesse enquadramento,
uma vez que a performatividade de gênero era uma prática, por assim dizer,
que se opunha às condições insuportáveis nas quais as minorias sexuais e de
gênero vivem (e algumas vezes também as minorias de gênero que
“passavam” como normativas a custos psíquicos e somáticos muito altos).
(BUTLER, 2018, p.40)

Ao buscar políticas de inclusão, os marginalizados lutam por um lugar no mundo


e, dessa forma, passam a produzir seu próprio discurso, ao questionar a naturalidade da
imposição do soberano 6, serão capazes de se articular para reivindicar a sua
humanidade. O poder hegemônico somente será enfrentado quando os indivíduos
tiverem capacidade de romper a fronteira que delimita os lugares sociais. As minorias
têm dificuldade, dentro de um sistema de poder dominante, de viabilizar seus trabalhos,
o que invalida os saberes. Se esses grupos não têm direito à voz, por estarem em uma
situação de inferioridade, também o lugar na sociedade lhes é negado.
Segundo Buther, a precariedade da vida está diretamente ligada às normas de
gênero que são impostas pela família e pela sociedade, por isso é importante que se
questione as regras do poder patriarcal, e reivindique novas possibilidades e modos
inteligíveis para viver a sexualidade. Nesse sentido, é importante que corpos se unam
para impor suas pautas de reinvindicações, nas quais grupos feministas e transfeministas
busquem novas formas de organização, seja nas redes virtuais ou nas ruas.
Podemos concluir que a ninfa sobrevive, graças ao mesmo planejamento leve e
sensual, como nas imagens cristãs, seja adormecida ou simplesmente abandonada, com
o seu vestido amarrotado pelas desordens do desejo. Portanto, a sua sobrevivência
persiste, como nos movimentos de levantes, uma vez que sua história é feita de
sofrimento, violência, mas também de desejo, erotismo, gestos de rebeldia, desde a
antiguidade até a contemporaneidade.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Ninfas. Tradução de Renato Ambrósio. São Paulo: Hedra,


Coleção Bienal, 2012.

___________. Homo sacer. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a


vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2002. 207p.

6
Foucault trata sobre a figura do Soberano, que será retomada por Giorgio Agamben para discutir sobre a
“vida nua”, a partir da figura do Homo Sacer. (AGAMBEN, 2002, p. 14).

646
BLOGUEIRAS FEMINISTAS. Disponível em: < https://blogueirasfeministas.com/>.
Acesso em: maio de 2019.

BUTLER, Judith. Cuerpos que importan: sobre los limites materiales y discursivos
del sexo. Tradução de Alcira Bixio. Buenos Aires; Barcelona; México: Paidós, 2002.

_____________. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria
performativa de Assembleia. Tradução de Fernando Siqueira Niguens. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2018.

________________________. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos


fantasmas segundo Aby Warburg. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2013.

________________________. Ninfa fluida: essai sur le drapé tombé. Paris: Gallimard,


2015.

________________________. Ninfa moderna: ensaio sobre o planejamento caído.


Lisboa: KKYM, 2016.

________________________ (org.). Levantes. Tradução de Jorge Bastos, Edigar de


Assis Carvalho, Mariza Perassi Bosco e Eric Roland Rene Heneault. São Paulo: Editora
SESC São Paulo, 2017.

WARBURG Aby. Atlas Mnemosyne. Tradução de Joaquín Chamorro Mielke.


Madri: Akal, 2010.

________________. Dürer e a antiguidade italiana. Cadernos Benjaminianos. Belo


Horizonte, n. 5, jan.-jun. 2012, p. 69-75.

_______________. O Nascimento de Vênus e a Primavera. In: _______________. A


renovação da antiguidade pagã. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2013.

647
TÍTULO: Lêda Selma deslê Cecília Meireles: Convergências e Tensões Poéticas

Mestranda: lívia Maria Borges (PUC-GOIÁS)


Orientador: Drº Divino José pinto (PUC-GOIÁS)

Resumo:

Este trabalho tem como objetivo principal investigar como o lirismo da poesia Lêda Selma lê e
deslê o lirismo de Cecília Meireles. Esses dois grandes nomes da literatura brasileira, embora se
distanciem cronologicamente, elas representam figuras de grande sensibilidade poética. O efeito
da desleitura permite identificar o procedimento transcriativos nos poemas de Lêda Selma.
Todos os estudos serão feitos por abordagens comparativas observando como o subjetivismo
poético se aglutina no olhar sinestésico presentes nos poemas das referidas poetas.

Palavras-chave: desleitura; lirismo; musicalidade; transcriação.

Introdução

A poesia tal como forma de arte que provem do ditirambo é anterior à própria
escrita. Há textos milenares que já utilizavam o gênero poema como Gilgamexe, um
poema épico da literatura suméria de 2000 a.C. Os épicos gregos, a Ilíada e a Odisseia,
datam dos últimos anos do século IX a.C. Nesse mesmo sentido, vale recordar o épico
romano, Eneida de Virgílio, escrito no século I a.C. e muitos outros. Essa produção
comprova que a poesia tem início nas manifestações verbais de culturas que antecedem
este tempo. Em pedras de grandes proporções que usavam os antigos alfabetos, tabletes
de argila com escrita cuneiforme e em seguida os papiros, logo a arte da poesia já é
cúmplice da humanidade que fazem parte dos registros historiográficos. Fazendo um
flashback, constata-se que a poesia permitiu contar e cantar inúmeros episódios heroicos
e inconcebíveis amores. Entretanto, as conquistas humanas e os modos de ser, de
organizar e produzir da sociedade refletia-se e reflete sobre a produção de linguagem.

648
Igual movimento exprime-se na produção artística, projetando-se sobre seus diversos
modos de realização: novos conceitos, novas estruturas: a poesia teve de acompanhar a
evolução da sociedade.
O mundo muda, o pensamento muda, a sociedade se transforma, logo a lírica se
redesenha. Essa metamorfose ocorrida na poesia do século XIX gera mudanças nas
concepções da teoria poética e da teoria crítica: “[...] a poesia não é um reflexo
mecânico da história”. As relações entre ambas são mais sutis e complexas. A poesia
muda; não progride nem decai. Decaem sim, as sociedades. (Paz, 1982, p.120)
Segundo Bosi (1977, p. 20) “a poesia moderna exprime a inquietude”. Segundo o
autor os comentários as explicações sobre textos poéticos podem nos surpreender, pois a
cada leitura é possível um novo olhar. É de se considerar que os fenômenos da lírica
contemporânea se destoem da lírica de tempos atrás. Octávio Paz (ano? P.?) já dizia que
a poesia revela este mundo e cria outro. O lirismo permeia tudo que o homem realiza
em todas as artes. A linguagem cotidiana está cheia de lirismo, ele é a marca do discurso
humano. Nos momentos de grande tensão histórica e social, o lirismo aflora mesmo nas
camadas incultas; o sofrimento passa a dar formas de lirismo. As ditaduras despertam o
sentimento lírico, pois é uma forma de dizer, mascarar o que se quer revelar.
A crítica diverge ao acreditar que a literatura seja reflexo do homem na sociedade
em que vive. Harold Bloom (2003,p. 50) - professor, escritor e crítico literário
estadunidense - propagou que, na arte e principalmente na literatura, nenhuma obra é
absolutamente criada, sempre estará à mercê de alguma influência de autores do
passado. Ele questiona os poetas, a poesia, os leitores e os críticos e abri um diferente
leque para se pensar sobre a poesia. Os ares da modernidade foram canalizando as
ideias com formatos diversificados gerando uma impactante mudança no pensar, nas
definições. Bloom acredita que não existem textos inteiramente novos.
Hugo Friedrich (1966, p. 15) Nos conta que a Europa, no século XX, nos
apresenta uma lírica enigmática, mística, misteriosa e, mesmo assim, com essa
ambientação obscura e indefinida, a lírica europeia foi bastante produtiva. A poética
lírica se apresentou com força similar à força da filosofia, das ciências, da música e das
artes em geral. Esse caráter indecifrável da poesia lírica foi explicado por T. S. Eliot, ao
afirmar que “A poesia pode comunicar-se, ainda antes de ser compreendida” e nesse
jogo desenha-se de maneira complexa, a falta de transparência de todas as sensações.

649
Essa ambientação do incompreendido gera um encantamento, uma fascinação que oscila
entre uma atmosfera de consonância e dissonância. As dissonâncias são próprias,
principalmente, das artes modernas que se fundamentam na inquietação. O processo que
liga o lirismo ao homem e aos seus sentimentos vem acompanhando as mudanças
históricas e conceituais que alimentam esse homem e a sociedade em evolução. O
lirismo moderno se entrega ao vago, ao obscuro e se desvincula de qualquer
manifestação de clareza e de coerência. Na lírica moderna, o indefinido, o
incompreensível tem um papel preponderante.
A linguagem poética e a linguagem cotidiana nunca estiveram tão próximas. A
clássica definição de lírico não cabe mais, já que o normal se torna repudiável no
momento seguinte. Os conceitos vão se transformando na expectativa de acompanhar o
tempo e o pensar do homem moderno. A língua poética sempre se apresentou diferente
da língua do cotidiano, entretanto com os ares da modernidade, a língua poética assume
o papel de geradora de sentidos, significados insólitos, provocando no leitor o prazer e
o conflito; o atrair e o perturbar. No Brasil, Manuel Bandeira foi um dos poetas que
assumiu a proposta de libertação da tradição:
Poética

Estou farto do lirismo comedido


Do lirismo bem-comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e
manifestações de apreço ao sr. diretor.

Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de
um vocábulo.

Abaixo os puristas.
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis (BANDEIRA, 2000, p. 32-33)

Esse fragmento do poema de Manuel Bandeira é emblemático no sentido de por o


divisor de águas que a desleitura do termo lirismo sofre. “A poesia moderna exprime a

650
inquietude”. Segundo Bosi (1977, p.40), os comentários, as explicações sobre textos
poéticos podem nos surpreender, pois a cada leitura é possível um novo olhar. É de se
considerar que os fenômenos da lírica contemporânea se destoem da lírica de tempos
atrás. Octávio Paz já dizia que a poesia revela este mundo e cria outro. O lirismo
permeia tudo que o homem realiza em todas as artes. A linguagem cotidiana está cheia
de lirismo, ele é a marca do discurso humano. Nos momentos de grande tensão
histórica e social, o lirismo aflora mesmo nas camadas incultas; o sofrimento parece
nutrir as formas de lirismo. As ditaduras despertam o sentimento lírico, pois é uma
forma de dizer, mascarar o que se quer revelar.
A crítica diverge ao acreditar que a literatura seja reflexo do homem na sociedade
em que vive. Harold Bloom (2003, p. 60) - professor, escritor e crítico literário
estadunidense - propagou que, na arte e principalmente na literatura, nenhuma obra é
absolutamente criada, sempre estará à mercê de alguma influência de autores do
passado. Ele questiona os poetas, a poesia, os leitores e os críticos e abri um diferente
leque para se pensar sobre a poesia. Os ares da modernidade foram canalizando as
ideias com formatos diversificados gerando uma impactante mudança no pensar, nas
definições. Bloom acredita que não existem textos inteiramente novos.
Há relações entre os textos. Estas relações vinculam-se a um ato crítico, uma
desleitura ou desapropriação, que um poema exerce sobre outro. Bloom (2003,p. 58)
reforça que há uma relação de influência e que ela governa a escrita e a leitura, logo a
inovação está em classificar a leitura como uma 'desescrita', assim como a escrita é uma
desleitura. Considerando a crítica, consequentemente, toda poesia se torna
necessariamente crítica em verso, bem como toda crítica se torna poesia em prosa.
Contaminada pelos ares da modernidade, também a literatura brasileira mergulhou
na imprecisa e rebelde resistência ao tradicional. Em Cecília Meireles essa resistência
simultaneamente ao tradicional e ao movimento modernista institui o sentimento do
vago, aéreo, do cósmico . Cecília não se encaixava aos princípios que a geração
modernista seguia,na verdade, a poetisa exigiria uma classificação própria da si e para a
sua poesia. Em pleno século XXI, Lêda Selma trabalha o seu lirismo mesclado de dose
de vazio existencial. Tanto Cecília Meireles quanto Lêda Selma comprometeram-se
com a poesia assimilando o ato criador duplo que reúne a singularidade das emoções e a

651
reflexão. O domínio das palavras vem depois do domínio da musicalidade da vida, do
grito, do suspiro e da melancolia.
Nas palavras da própria Cecília Meireles, “a poesia é grito, mas transfigurado”. A
transfiguração faz-se nos procedimentos de semantização e no plano da expressividade.
E Cecília foi escritora atenta à riqueza do léxico e dos ritmos portugueses, tendo sido
talvez o poeta moderno que modulou com mais felicidade os metros breves, como se vê
nas Canções e no trabalhadíssimo Romanceiro da Inconfidência. Das primeiras
transcrevo estas quadras bem cecilianas pela fusão de acordes instituídos e cadências
gnômicas:

Quando meu rosto contemplo,


o espelho se despedaça:
Por ver como passa o tempo
E o meu desgosto não passa.
Amargo campo da vida,
Quem te semeou com dureza,
Que os que não se matam de ira
Morrem de pura tristeza?
(BOSI, 1994, p. 461)

Consciência Estética

Em ambas as poetisas é possível notar elevada consciência estética. O estudo do


belo, na possibilidade da sua conceituação, na diversidade de emoções e sentimentos
que despertam através do reflexo das palavras, de sentidos, da musicalidade, de ritmo
em sua consciência, fenômenos como: prazer ou desprazer, alegria ou tristeza,
satisfação ou repugnância. Considerando a consciência estética, as duas poetisas, nota-
se que se inscrevem geradora de sentidos relacionados ao sentimento de plenitude da
dor, do amor e da melancolia, em suas múltiplas motivações e fases.

652
Lua Adversa
Tenho fases, como a lua.
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e vêm,


no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!

Não me encontro com ninguém


(tenho fases como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu... ( Cecília meireles, 2001)

O poema de Cecilia, Lua Adversa, foi todo construído em heptassílabos (7 sílabas


poéticas), aborda a esfera da transitoriedade, da passagem, das transformações dos
estados. O amálgama dos signos poéticos remete ao próprio processo construtivo do
poema que, também ele, traduza o fazer poético como aquele que inventou um eu lírico
que se combina com usos em que o difuso, a melancolia gire em interminável fuso.

Cecília utiliza a figura da lua como representação metafórica, uma vez que a lua,
mesmo se considerarmos que ela seja única e indivisível, é múltipla em suas faces.
Desse modo, o eu poético apresenta as adversidades, as contradições e as mudanças. O
texto metaforiza fases de interação e de isolamento, e isso se constrói poeticamente, por

653
meio de um jogo de contrários, de antíteses: escondida… vir para a rua / ser tua… / ser
sozinha. Estas são combinações de signos que desenham a união de opostos.
O texto se desenvolve em três momentos. O primeiro é a da constatação das
contradições. O segundo é a elucidação daquilo que não se explica, pois a definição de
tais fases foi arbitrária e o terceiro momento é o da negação. O destino se materializa de
maneira negativa, os desencontros prevalecem.
Nessa direção construtiva, no poema Fases, Leda Selma circunscreve o eu-lírico
em um texto que se diz camaleônico, mutante, sorrateiro, bem ao modo de plumagens
de seda em crescente encantamento. A opacidade da linguagem, a transfiguração a
leveza e o encantamento são sentidos que o poema de Leda Selma exprime como traços
de sua consciência poética, ou seja, de sua concepção de literalidade, recorrendo a
imagens simbólicas culturalmente – lua, céu, plumas:

Fases
Camaleônica, a lua
se transmuta céu ao longe.

Nova, desfila, sorrateira,


com suas plumagens de seda.

Em crescente encantamento,
exibe o colo de alabastro.

Já mulher, maliciosa,
seduz, cheia de graça.

E com seu riso minguante,


finda e reinicia a vida. (lêde Selma, 2012)

No texto de Lêda, o poema utiliza o símbolo da lua para evocar situações de


desenvolvimento e empodeiramento que se reconhece no ciclo da vida, e a
aprendizagem ao final de cada lição.
Nos dois textos poéticos, as metamorfoses, o amadurecimento, o viver é um
processo que inclui diversos olhares e posturas diante dos fatos, evocando: tristes

654
alegrias, silêncios ensurdecedores e outros inúmeros paradoxos que se fazem presentes
no cotidiano sonhado ou vivido pelo eu poético:

Despedida

Por mim, e por vós, e por mais aquilo


que está onde as outras coisas nunca estão,
deixo o mar bravo e o céu tranquilo:
quero solidão.

Meu caminho é sem marcos nem paisagens.


E como o conheces? - me perguntarão.
- Por não ter palavras, por não ter imagens.
Nenhum inimigo e nenhum irmão.

Que procuras? - Tudo. Que desejas? - Nada.


Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.

A memória voou da minha fronte.


Voou meu amor, minha imaginação...
Talvez eu morra antes do horizonte.
Memória, amor e o resto onde estarão?

Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.


(Beijo-te, corpo meu, toda desilusão!
Estandarte triste de uma estranha guerra...)

Quero solidão.
Cecília Meireles, Flor de Poemas, Editora Nova Fronteira , 1983.

RISCO

Fechei-me em teias
e nos fios de minhas sinas
estrangulei-me.

655
Mas sobrevivi ao rufar de asas.

Fecundei silêncios
e desatei a solidão
que me repartiu em nadas.

E sobrevivi ao cadáver de tantas dores. (lêda Selma, 2012)

Despedida está presente no livro Flor de poemas, publicado em 1972. No poema


retro, percebemos versos em que o eu poético canta o estado de solidão e o
esvaziamento de si: desatei a solidão / que me repartiu em nadas. A procura pela solidão é
um caminho. Essa procura faz parte de um processo. O sentimento de solidão traduz a
vontade de morrer quando o eu-lírico diz: Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.
O texto Despedida, de Leda Selma, organiza-se por meio de perguntas e de
respostas. A comunicação é estabelecida instituindo a imprecisão. Esse texto apresenta a
individualidade das sensações ao usar os verbos e os pronomes em primeira pessoa
durante todo o poema. E esse olhar pessoal, subjetivo e individual também é percebido
no poema de Lêda, Risco, que almeja ardentemente cultuar sentimentos de melancolia
e tédio diante da vida e do convívio social:

Ai, palavras, ai palavras,


que estranha potência, a vossa!
Ai, palavras, ai palavras,
sois o vento, ides no vento,
e, em tão rápida existência,
tudo se forma e transforma!
Sois de vento, ides no vento,
e quedais, com sorte nova!
Ai, palavras, ai palavras,
que estranha potência, a vossa!
Todo o sentido da vida
principia à vossa porta;
o mel do amor cristaliza
seu perfume em vossa rosa;

656
sois o sonho e sois audácia,
calúnia, fúria, derrota…
A liberdade das almas,
ai! com letras se elabora…
E dos venenos humanos
sois a mais fina retorta:
frágil como o vidro
e mais que o são poderosa!
Reis, impérios, povos, tempos,
pelo vosso impulso rodam…
...

Ai, palavras, ai, palavras,


que estranha potência, a vossa!
Éreis um sopro na aragem...
– sois um homem que se enforca! (Cecília Meireles, 1967)

O processo construtivo do poema de Cecília, ao metaforizar a força dos


signos poéticos na tradução do fazer poético reafirma, mas redimensiona e amplia sua
construção lírica para além do difuso, do melancólico, do difuso, do interminável fuso. Confere-
se caráter polissêmico, como se comprova por versos como estes: palavras, ai palavras, /
que estranha potência, a vossa!. Ao lhe atribuir este caráter cuida de reforçá-lo
reiteradamente e preservar outros atributos de sua lírica. Releiamos, portanto seus
versos:

Ai, palavras, ai palavras,


sois o vento, ides no vento,
e, em tão rápida existência,
tudo se forma e transforma!
Sois de vento, ides no vento,
e quedais, com sorte nova!
Ai, palavras, ai palavras,
que estranha potência, a vossa!
(destaque nosso)

657
Embora, metalinguísticos, os poemas de Cecília e Leda usam o termo “palavras”
para divagar sobre os diferentes significados que o signo pode apresentar numa
metáfora social em que a conduta daqueles que se utilizam das palavras costuram
intenções ou mascaramentos que a sociedade impõe ao indivíduo. Para aquém e além da
metalinguagem, tem-se a formulação metapoemática que é objeto de elaboração
transcriativa no poema “Palavras”, de Leda Selma:

Palavras

Palavras são pregos:


ora estraçalham,
ora crucificam.

Se penugens,
ora acariciam,
ora redimem.

Palavras perfuram,
abrem trilhas,
vergam versos.

Mudas, enganam.
Falantes, profanam.
Palavras odeiam. E amam. (lêda Selma, 2012)

Palavras perfuram, são pregos, pois estraçalham, crucificam: se penugem,


acariciam; se crucificam, redimem; se vergam versos, enganam, profanam. Essas
evidências sugerem o entendimento de que, acima de tudo, o verbo amar tal como
empregado é o que parece mais adequado para traduzir que estes signos, assim
combinados, são campos semânticos que participam da concepção da escritora sobre
que lirismo escolheu para suas composições poéticas.

Conclusão

658
Este estudo demonstrou que o lirismo de Cecília apresenta um forte apelo ao
místico em estilo musical, o que passa por um processo transcriativos nos poemas de
Lêda Selma por meio da investigação centrada no pressuposto da existência da releitura
produzida por Leda Selma a partir dos elementos intersemiológicos presentes na obra de
Lêda Selma, que relê e deslê a lírica de Cecília Meireles. Essa releitura deu conta de
estabelecer elo entre os poemas das referidas autoras.

Referências

BANDEIRA, M. Poesia completa e prosa. Rio de janeiro: José Aguilar, 1974.

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. Cultrix da Universidade de


São Paulo,1994.

BLOOM, Harold. Um Mapa da Desleitura. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Imago, 2003.

BLOOM, Harold. A Angústia da Influência. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Imago, 2002.

FRIEDRICH,Hugo. Estrutura da Lírica Moderna. Tradução de Marise N. Curioni, 2ª


Ed. São Paulo: Duas Cidades, 1978.

MEIRELES, Cecília. Poesia Completa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,1997

PAZ, Octávio. O Arco e a Lira. Tradução de Olga Savary. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira,1982.

SELMA, Lêda – Sombras e Sobras. Editora da UCG. Goiânia, 2007.

659
660
O FANTÁSTICO DISCURSO DE MARY POPPINS E LUCY IN THE SKY
WITH DIAMONDS

Ludmila Martins Naves1


Divino José Pinto2

Resumo: O presente artigo apresenta a utopia presente em dois discursos irônicos constituídos
por frames sociais que trazem nas molduras o rito de ironia presente em Lucy na canção Lucy in
The Sky With Diamonds d’Os Beatles e em Mary Poppins, personagem do clássico literário
inglês de Pamela Lyndon Travers, e que neste trabalho será talhada criticamente a partir da obra
cinematográfica inspirada no clássico: O retorno de Mary Poppins, filme do diretor Rob
Marshall estreado em 2018. Para tanto, esta leitura propõe a análise crítica da utopia presente
nos discursos a partir da transcriação poética desta como tradução de dois discursos fantásticos.
Palavras-chave: Utopia; Dystopia; Mary Poppins; The Beatles; Fantástico.

Mary Poppins e Lucy In The Sky With Diamonds

Neste trabalho a introdução traz como objetivo a apresentação da utopia na ironia


presente em dois discursos fantásticos. Este rito de ironia se faz presente através da
personagem Lucy na canção; Lucy In The Sky With Diamonds dos Beatles assim como
na clássica personagem da Literatura Inglesa; Mary Poppins que é tema do filme; O
retorno de Mary Poppins. Filme o qual se apresenta como mediador midiático da
persistência da utopia na distopia em tempos contemporâneos e traz a transcriação da
poética existente no discurso da ironia; traduzindo, portanto, esta poética, em uma
narrativa cinematográfica. Esta narrativa se apresenta ao receptor da mensagem em
frames sociais que se impregnam, se emolduram do teor irônico que constitui o referido
discurso cinematográfico.
Observando a narrativa através de um frame, pousa em solo, Mary Poppins,
usando uma sombrinha como paraquedas. Senhorita Poppins, a eterna personagem
responsável por cuidar das crianças da família Banks, no recorte cinematográfico
1
Mestranda em Letras pela Pontificia Universidade Católica de Goiás, escritora e publicitária.
2
Doutor em Letras – Teoria da Literatura – UNESP, professor Adjunto – PUC Goiás.

661
utilizado neste artigo, a obra cinematográfica de Rob Marshall (2018) agora, retorna
como um mito, transformada em super-heroína devida a sua capacidade de questionar a
realidade.
Lucy, no entanto, traz de forma mais introspectiva a persistência da utopia que se
apresenta em suas próprias atitudes, observando que, a personagem do letrismo d’Os
Beatles está no céu de diamantes, e considera-se que Lucy encontra-se por si só em um
tempo presente dentro da realidade do fantástico. Enquanto na história de Mary
Poppins, as crianças são conduzidas pela babá e a mesma pode estar ou não dentro desta
realidade fantástica, vez que a babá se apresenta na narrativa cinematográfica como
mediadora da consciência das crianças que ora, mergulha no universo do fantástico
através das histórias da babá e ora, encontra a própria babá neste mergulho ao
fantástico. E a babá, Mary Poppins, possui o controle consciente de levar e trazer as
crianças do universo fantástico para o universo do real. No entanto, o mesmo não ocorre
na canção d’Os Beatles,
A análise crítica à transcriação literária das personagens; será realizada através de
uma comparação às teorias aplicadas a ideia de utopismo no universo literário, o qual
convive com distopias decalcadas a partir dos rótulos presentes na realidade de acordo
com Clayes (2013), sendo uma questão acerca das exigências implícitas em uma
sociedade perfeita em busca de um ideal. Enquanto, para Bregman (2018) a utopia
persiste enquanto elementos básicos que conduzam às ações sociais e pessoais do
indivíduo no meio social, contrária a ideia de distopia.
Sendo assim, a presença do discurso irônico em amplos contextos inerentes ao
fantástico, fazem-se presentes a ideia de utopia que pode estar ou não permeada pela
presença de fatores distópicos, compondo, portanto, duas narrativas fantásticas, sendo
uma em tom poético como canção e outra como romance e também roteiro de cinema.
O fantástico discurso consistirá, então, a partir de fundamentos presentes no
discurso da ironia, sugerindo a ideia de Bakhtin (1999) em que a ironia presente não é
maliciosa, mas uma antífrase que traduz o teor literário do fantástico nas duas obras
literárias.
Para compreender a antífrase proposta por Bakhtin (1999), a presente leitura se
conduz ao olhar de Gregory Claeys (2013) e o autor faz um convite-leitura às
variedades da distopia para que seja possível construir uma razão acerca da utopia como

662
história de uma ideia: a utopia na distopia, e assim identificar novas fragmentações
discursivas que persistam nos referidos discursos. De acordo com Clayes (2013) o séc.
XX foi um período em que os totalitarismos refletiram focos do distopismo em alguns
textos literários enquanto a ideia do utopismo se fez implícita na composição da crítica
Aristotélica, ou seja, rejeitando a ideia de comunismo por meio da República de Platão,
o que corroborou para que vários aspectos advindos da teoria de Marx, e fossem
retraçados para que a sociedade pudesse ser considerada um frame da perfeição.
Portanto, as distopias surgiram no final do séc. XIX como mecanismos de restabelecer o
capitalismo, sendo estas distopias as sátiras ao comunismo e à eugenia. Considera-se,
então, utopias capitalistas antes da Primeira Guerra Mundial, a questão ditatorial e a
manipulação comportamental que permearam o sistema capitalista, implicando assim na
problemática da modernidade e assim, inviabilizando uma possível solução filosófica
para os conflitos mediados pelas distopias e utopias no período.
Dessa forma, mergulhando no fantástico discurso que contempla a persistência de
frames da utopia e da distopia, os quais se colocam frente a frente no âmbito literário à
criatividade na escrita, cinematográfica e a composição musical, observa-se estes como
dispositivos de construção à luz da teoria crítica que considere as categorias do espaço e
do tempo. Para tanto, pode-se dizer a partir do olhar de Brandão (2013) que, a obra
d’Os Beatles permeia o espaço social, o espaço psicológico, o espaço mítico, uma vez
que ela se inscreve no “espaço mental” e no vasto espaço da linguagem e aí, dialoga
com os demais sistemas de linguagem e, por isso mesmo, se reveste de amplo
significado no terreno da estética.
Corroborando com este olhar, a leitura de fragmentos da utopia e da distopia, é
por vez mais rica, se reiterada a partir de um caleidoscópio de transferências literárias,
sociais, históricas e psicanalíticas em um determinado período historiográfico d’Os
Beatles, sendo este um dos objetos de estudo, e assim, observa-se de acordo com
Vizentini (1996) um dos mais importantes acontecimentos entre os anos de 1965-1968:
o engajamento e a ofensiva dos EUA no Vietnã, país que recebeu ataques com
poderosíssimos meios de destruição, os superbombardeios, os quais não só abriram
“valas sem fim” no solo vietnamita, destruindo a natureza e marcando a utopia presente
na história como valas em uma distopia que parecia sem fim, pouco imaginada e que se
fez realidade vivida neste período.

663
Eis então, que a Guerra do Vietnã se fez marco mundial enquanto distopia
resiliente nas mídias, na sociedade e nos traços culturais dos países mais envolvidos,
considerando os resquícios de guerra que se faziam presentes enquanto impacto sócio
cultural em diferentes frames sociais no Oriente e no Ocidente, Martin (2007) comenta a
distopia vivida pelos The Beatles por meio da busca da filosofia oriental como mediador
utópico do que eles viviam em uma viagem para índia onde ficariam retidos em um
retiro filosófico e espiritual com a presença do guru Maharishi Maheshi Yogi.
Refletiram sobre a condição humana e a ideia de que “a alma perfaz uma jornada de
auto realização durante a vida presente, ou ainda tem o potencial de “enxergar a
verdade” no momento da morte ou no intermédio da auto realização”, ou seja, se
encontrar em um estado de nirvana.
No entanto, o mesmo olhar fantástico e por vezes, irônico, se fez presente a partir da
significação da utopia e da distopia também no discurso que envolve a personagem
Mary Poppins, vez que esta personagem apropriava-se de conduzir narrativas ficcionais
às crianças da família Banks. Senhorita Poppins, por vezes, usou de uma linguagem
persuasiva, apodítica para convencer as crianças à imaginarem utopias várias como
mecanismos de fuga de distopias resistentes na realidade da família, considerando
também, o período de guerras e outras dificuldades que permeavam o período. De
acordo com Citelli (2005) “o raciocínio apodítico possuía o tom da verdade
inquestionável. O que se pode verificar aqui é o mais completo dirigismo das idéias; a
argumentação é realizada com tal grau de fechamento que não resta ao receptor
qualquer dúvida quanto á verdade do emissor.”. Sendo assim, em uma das cenas que
Mary Poppins oferece uma colher com leite para os gêmeos, és repreendida por uma das
crianças como se estivesse oferecendo algo ruim. E na sequência da narrativa, a criança
ainda confusa com a garrafa e a colher, questiona o que a babá bebeu, ela responde que
era Rum, mas rapidamente diz que já é hora das crianças dormirem. Eis na atitude da
Senhorita Poppins, a persistência do discurso irônico permeando o fantástico discurso
que a história traz em tons de utopia, a utopia de uma realidade fantástica, onde as
crianças mesmo sem a presença da mãe, são muito felizes com a atenção e os cuidados
de uma babá, a qual para a família Banks não é apenas uma Babá, mas a mesma babá

664
que cuidou do Sr. Banks quando ele era criança, eis assim, a ideia ancestral de um
carinho em um duplo materno ainda que na figura de uma jovem mulher.
Sendo assim, relendo um dos pressupostos de Saussure (1984) o qual pontua que
a língua representa a sociedade e o indivíduo deve seguir as regras de convívio social.
Pode-se pressupor a partir desse enunciado que a linguagem de persuasão exerce um
poder considerável entre mensagem e sociedade, emissores e receptores. E são essas
regras que constituem os frames sociais, os quais se emolduram a partir da transcriação
poética existente, os discursos fantástico nos quais são observados fragmentos do
irônico, da utopia e da distopia, compondo assim um caleidoscópio social e histórico
onde se torna possível observar diferentes manifestações discursivas que traduzem um
tempo e um espaço.
Pensando em espaço e tempo, atenta-se à utopia persistente na composição
literária dos The Beatles pode ser comparada à teoria de Luis Alberto Brandão (2013),
em que se sucinta pelo olhar do autor que; a variação da noção de espaço exposta em
um texto-catálogo ao mesmo tempo abrangente sem que fosse exaustivo ao leitor, pode
ser como a composição de canções que trazem em suas variações de tons, ritmos e
criativa escrita para variados intérpretes, a questão do espaço e do tempo; assim como
no que se refere o autor às escolhas aleatórias, aos novos desdobramentos que uma obra
de arte literária pode ter a partir da investigação do objeto de estudo que mantem a
importância de determinado estudo, neste caso a utopia na distopia, e as intempéries
existentes para com a sociedade e a transcriação de valor para a crítica literária e de arte.
Observa-se, portanto, que; “a linguagem como uma criação coletiva onde se
condensam simbolicamente suas relações de produção, em que se materializam as
formas de consciência socializada pela comunicação.” (RUDIGER, 2011, P.85.). O
autor reverbera-se no dito de que a poética também se manifesta presente na
coletividade, ressaltando-se assim, que as traduções coletivas também são relações de
transcriação não só da mensagem enunciativa a que se corresponde a poética na arte,
assim como às fragmentações que constituem frames sociais em um período.
Trancriando e traduzindo um dado período por meio da poética existente em
objetos artísticos eis que, para Charaudeau (2006) o propor da notoriedade dessas
análises semióticas, se apresentam como discurso da modernidade, os quais podem ser

665
como as informações e estas como diversas comunicações que aludem aos fenômenos
sociais.
No entanto, Hall (1997) refere-se à linguagem de poder (persuasão) enquanto
identidade cultural, a qual consiste na importância atribuída aos acontecimentos
culturais, econômicos, políticos, artísticos e sociais que estão presentes na história ou na
atualidade.
Sendo que as premissas de Floch (1995, p.23) são confluentes com essas
transformações, a qual para o autor, a fotografia, a imagem pintada, a imagética no
âmbito artístico, enuncia uma proposta de significados quanto a simetria e proposições
de medidas a serem analisadas em cada figura. E atribui-se valor não apenas a
identidade visual da imagem quanto aos respectivos significados que podem ser
observados em determinado dispositivo visual, o qual associa uma relação entre as
unidades figurativas da imagem para construção do significado de uma mensagem.
Por fim, nas concepções de Charaudeau (2006), essas formações discursivas
por meio da linguagem verbal ou não verbal sugerem que no discurso da modernidade,
as informações e as diversas comunicações são noções que aludem aos fenômenos
sociais. As mídias, por exemplo; apresentam-se como um suporte organizador dessas
noções de modo que às integre a uma determinada lógica, a qual certamente terá
característica persuasiva.
E ainda para Floch (1985), a semiótica surge de construções do sensível,
fundamentalmente ao que se refere ao cunho cultural e artístico, sendo as imagens
possíveis construções de sentidos, enunciados de mensagens e discursos inseridos de
forma poética para discursar sobre a sociedade, cultura e política. Considera-se o ponto de
vista imagético, a estrutura, as formas, a paleta de cores, os traços, a simetria e também o
espaço e tempo à que se remete de forma persuasiva, sugerindo uma opinião e
compartilhando uma mensagem de modo que a poética, presente nesta mensagem, nesta
transcriação de uma mensagem mensure não só um dado espaço e tempo, mas uma
tradução da realidade por meio da arte.
Eis então, o olhar de Bregman (2018) ao teorizar sobre a utopia pontua alguns
pressupostos marxistas que conduzem a reflexão das várias adaptações artísticas à
referidas épocas, sendo o rock, não apenas um estilo musical que se adapta às
transcriações poéticas, traduzindo assim espaços e tempos, mas à significação da utopia

666
se considerar que esta derivação artística se constitui por meio de frames sociais
presentes em cada época.
Para Martin (2007) os Beatles são uma manifestação da poética do rock capaz de
traduzir uma época, considerando que o psicodelismo da banda surge no final dos anos
1960 como tradução do que se tinha como condições de produção artística naquele
período fortemente permeado por um discurso de Contracultura, sendo este um frame da
presença da utopia nas condições discursivas, assim como a denotação da ironia
presente em discursos vários no dado período, traduzindo assim a realidade em tons
discursivos do fantástico, ora, pois, os garotos de Liverpool não só contestaram a
estética política de Kennedy com vestimentas, vestindo terninhos e ironizando o
otimismo do presidente assim como transcriaram na poética presente em muitos
letrismos, assim como no que fora escolhido para este artigo, Lucy in the sky with
diamonds, sendo esta composição uma sátira a ironia que permeou frames sociais não
só na cultura inglesa e norte-americana, mas em outros continentes. E a leveza da
personagem Lucy no céu de diamantes se contrapôs a morte do presidente Kennedy que
deixara uma primeira dama repleta de brilho e glamour, porém, viúva e ovacionada por
críticos de diversos jornais e veículos midiáticos de massa mais utilizados nos anos
1960. Entretanto, segundo Baur & Irwing (2007) Martin Luther King também fora
assassinado e o advento da Guerra do Vietnã se tornava um dos maiores registros de
destruição não só cultural, social, mas geográfica ainda que para os EUA o suficiente
fosse vencer a batalha, não trazer os “diamantes norte-americanos” com vida ao retornar
para o país no pós-guerra. A natureza se fez por vez, fantástica e traduzida nas cores do
rock espelhado ao mundo na arte d’Os Beatles, tanto quanto nas atemporais
considerações discursivas em uma ironia controlada pela personagem Mary Poppins
desde o primeiro livro do clássico inglês, às telas do cinema contemporâneo. A questão
empírica sobre a utopia na década de 1960 ressalta a ideia de uma persistência marxista
em realidades várias que se traduziam em tons do capitalismo. Eis que, como manifesto
cultural e social, Karl Marx foi transcriado imageticamente em um álbum d’Os Beatles,
o álbum Sgt, Pepper’s Lonely Hearts Club Band, perpetuando assim a essência marxista
e a reverberação do Fab Four como poetas da Geração Beat, que trouxeram para o
mundo não só canções atemporais, mas marcos artísticos que fundamenta a utopia e a

667
distopia como ressignificação de frames sociais e históricos, emoldurando a história do
rock.
Salienta-se, então, o discurso utópico de Bregman (2018) que aponta o utopismo
para os capitalistas, mas que traduz esse utopismo por meio de um discurso capaz de
permear ironias que constituem frames sociais e históricos, os quais estão presentes em
transcriações poéticas, observando-se assim traduções por meio de diferentes objetos
artísticos produzidos em 1960, e comprovando por meio destas traduções a importância
de se pensar em utopia e distopia não apenas como fragmentos presentes em discursos
narrativos, mas em linguagens várias para que seja possível conduzir novas reflexões
sobre o capitalismo utópico assim como a formação imaginária de um povo.
Retomando as questões poéticas de Bahktin (1999) o presente artigo se importa
com o tom emocional-volitivo, sendo este uma referência a questão do valor real
afirmado, o qual de acordo com o teórico russo, pressupõe uma experiência do real
emergindo-se de um determinado contexto não-real, neste caso, emergindo-se de
transcriações poéticas que traduzem frames por meio dos objetos artísticos já
mencionados nesta leitura crítica. E ressaltando a essência artística que permeia a utopia
presente na poética d’Os Beatles e da narrativa cinematográfica que traz a icônica
personagem inglesa Mary Poppins, verifica-se novamente a questão da utopia pelo olhar
de Clayes (2013) que não só argumento que a persistência da utopia em contextos
vários se faz como história de uma ideia, mas como comunidade, eis que para o autor a
questão do utopismo se pontuada em sua ancestralidade meio ao advento dos Shakers
aos Hippies, sendo os Shakers desde o séc. XVIII essas pessoas que convivem em
comunidades com propósitos igualitários, sendo evidenciados por uma forte presença
artística que advém de uma dança cultural, a qual traduz em movimentos a liberdade
como resignação de uma ideia de utopia que ainda hoje persiste na existência de
colônias de shakers nos EUA, sendo estas colônias que perpetuam os valores marxistas
de 1970 e traduzem em sua arte um transe psicodélico, o mesmo que pode ser observado
pela sensação inerente do movimento; em transe da personagem Lucy no letrismo já
mencionado d’Os Beatles. É na retratação poética de um movimento leve e continuo
meio aos sons produzidos na composição desta canção que, a personagem Lucy atrela-
se ao paralelo semiótico da personagem Mary Poppins, sendo que a primeira remete-se
diretamente às condições de produção artística dos anos 1960 e a segunda à

668
atemporalidade que permeia a ideia de ironia mediada por uma utopia, ora por uma
distopia presente no fantástico discurso que esta personagem possui seja em tons
literários ou mesmo na narrativa cinematográfica. Para tanto, comprova-se tais paralelos
artísticos a partir dos conceitos de utopia verificados na teoria de Claeys (2013) a qual
em sua consistência histórica não só reverberando-se denotando a importância dos
hippies como enunciadores de um contexto de utopia e liberdade. Referenciados por um
discurso, de contracultura que traz em sua ancestralidade resquícios de outros grupos
anarquistas tais como os anarquistas residentes nos EUA no final do séc. XIX, sendo
estes a mais famosa colônia em prol desses ideais, em Modern Times, Nova Iorque, e
que desde então inspirou o utopismo do “comércio igualitário”, comércio este que de
tempos em tempos é reinventado em cenários da contemporaneidade.
Sendo assim, o caleidoscópio teórico que permeia a análise crítica neste artigo,
abrange-se na fundamentação principal da ideia de utopia na distopia, sendo esta uma
persistência que se encontras presente no tom irônico que por vezes é retratado no
fantástico discurso de Lucy e de Mary Poppins, considerando-as protagonistas de um
utopismo que compreende na atemporalidade não apenas pelas condições de produção
dos respectivos objetos artísticos dos quais fazem parte, mas da transcriação poética e
tradução de um dado período correspondente aos valores sociais, históricos e culturais.
Emoldurando estes valores, na constituição de frames onde estes se encontram presentes
na persistência da utopia em frames da distopia, eis o cenário de um mundus-vivendi na
contemporaneidade.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. 4. ed. Trad. Yara Frateschi. São


Paulo: Hucitec; Brasília: Edunb, 1999.
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BREGMAN, Rutger. Utopia for realists. Trad. Elizabeth Manton. New York: Back Bay
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BAUR, Steven; IRWING, William. Os Beatles e a Filosofia. São Paulo: Madras, 2007.
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das Mídias. Trad. Ângela Maria Corrêa. São Paulo:
Contexto, 2006. 283 p.

669
CITELLI, A. Linguagem e Persuasão. 16 ed. São Paulo: Princípios, 2005.
CLAEYS, Gregory. Utopia: a história de uma ideia. Trad. Pedro Barros. São Paulo:
Edições SESC SP, 2013.
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HALL, Stuart. A Identidade Cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A,1997.
MARTIN, George. Paz, amor e Sgt. Pepper’s. Rio de Janeiro: Dumará, 2007.
MORE, S. T. Utopia. [edição preparada por George M. Logan, Robert M. Adams;
tradução Jefferson Luiz Camargo, Marcelo Brandão Cipolla]. – São Paulo: Martins
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TRAVERS, Pamela Lyndon, 1899-1996. Mary Poppins: edição comentada e
ilustrada/P.L.Travers; ilustrações Mary Shepard; tradução, apresentação e notas Joca
Reiners Terron. -1.ed.- Rio de Janeiro: Zahar, 2017.
VIZENTINI, Paulo G. Fagundes. Guerra do Vietnã. Porto Alegre: UFRGS Editora,
2006.

670
A FAZENDA MODERNISTA DE FERNANDO PIERUCCETTI

Marcelino Rodrigues da Silva (UFMG)1

Resumo: Conhecido pelo pseudônimo “Mangabeira”, Fernando Pieruccetti foi o responsável pela
criação das famosas mascotes dos principais clubes de futebol de Belo Horizonte e do interior
mineiro, em charges publicadas nos jornais da capital do estado desde meados da década de 1940:
o Galo para o Atlético, a Raposa para o Cruzeiro, o Coelho para o América etc. A partir de
pesquisa biográfica sobre esse artista, o que pretendo neste trabalho é mostrar de que modo suas
criações para o jornalismo esportivo dialogam com as tendências artísticas de seu tempo,
especialmente o Movimento Modernista, evidenciando as conexões entre nossa cultura esportiva
e as concepções estéticas e projetos político-culturais gestados no campo da literatura e das artes.
Palavras-chave: Futebol; Charge; Modernismo; Fernando Pieruccetti; Biografia.

Conexão modernista
Em meados de 1945, trabalhando no jornal Folha de Minas, o ilustrador e cartunista
Fernando Pieruccetti começou a criar, com o pseudônimo Mangabeira, as hoje tão
famosas mascotes dos principais clubes do futebol mineiro2. Os bichos de Mangabeira
surgiram como personagens de charges publicadas pelo jornal para ilustrar suas páginas
esportivas, inspiradas pelo que fazia, na imprensa carioca da época, o Jornal dos Sports,
dirigido por Mário Filho, com as tirinhas desenhadas pelo argentino Lorenzo Molas. Na
primeira fornada, entraram os clubes que disputavam o campeonato estadual daquele ano:
o Galo para o Atlético, a Raposa para o Cruzeiro, o Pato Donald para o América, o Leão
para o Vila Nova, a Tartaruga para o Siderúrgica, o Zebu para o Uberaba e o Tigre para
o Sete de Setembro.
Os bichos fizeram logo muito sucesso e, no ano seguinte, o artista foi contratado
pelos poderosos Diários Associados, trabalhando inicialmente no Diário da Tarde e indo
depois para o Estado de Minas, onde suas charges foram publicadas até os primeiros anos
da década de 1970. Aos poucos, o zoológico de Mangabeira foi ganhando novos
moradores, ao sabor dos acontecimentos que pautavam o jornalismo esportivo, chegando
a contar com mais de 90 animais, que simbolizavam não apenas os clubes mineiros, mas

1
Doutor em Literatura Comparada (UFMG) e professor da Faculdade de Letras da UFMG. Contato: lino-
rodrigues@uol.com.br.
2
As informações biográficas sobre Fernando Pieruccetti foram obtidas por meio de extensa pesquisa, que
incluiu consultas a livros e periódicos diversos, entrevistas com seus filhos Edmundo e Yedda Pieruccetti
e acesso ao arquivo da família, no qual constam uma série de materiais, tais como esboços e originais de
desenhos, recortes e exemplares de jornais e revistas, manuscritos e livros publicados pelo artista. Foi
importante, também, entrevista realizada com a Profa. Ivone Luzia Vieira, especialista na história das artes
plásticas mineiras e grande responsável pelo resgate da memória do Salão do Bar Brasil de 1936.

671
também seleções estaduais e nacionais, clubes de outras partes do país, os torcedores e
entidades como as federações e os tribunais esportivos.
Com o tempo, muitos desses bichos acabaram sendo adotados pelos torcedores,
pelos próprios clubes, pela imprensa e pela publicidade, tornando-se parte do imaginário
popular e da linguagem comum nos meios esportivos de todo o país. Um índice curioso
desse sucesso é batalha jurídica travada pelo artista, no final de sua carreira, pelo
reconhecimento de seus direitos autorais sobre as mascotes, amplamente reproduzidas
por artesãos e comerciantes em chaveiros, almofadas, bonés, camisetas e uma infinidade
de outros tipos de souvenir, assim como pelos próprios clubes, em peças publicitárias e
de merchandising. Uma batalha que, aliás, estava condenada ao fracasso, em função da
enorme disseminação popular dos bichos, que, conforme estampou um pequeno jornal
publicado por torcedores do Atlético em 1977, haviam se tornado “propriedade do
povo”3.
Apesar do sucesso alcançado pelas mascotes, o nome de seu criador continuou
relativamente desconhecido pelo público. Os mais velhos certamente se lembram do
pseudônimo Mangabeira, com o qual ele assinava suas charges, mas essa lembrança
parece estar se tornando cada vez mais fraca, como se os bichos tivessem ganhado vida
própria na imaginação dos torcedores. Além disso, são pouquíssimos os que têm algum
conhecimento sobre a trajetória artística e profissional de Fernando Pieruccetti, que foi
também escritor e professor de desenho e, nos anos 1930, teve um papel importante no
grupo de artistas que renovou o cenário até então bastante conservador das artes plásticas
mineiras, introduzindo estrepitosamente na capital do estado as ideias e os problemas da
arte moderna e do Movimento Modernista.
A descoberta dessa trajetória, propiciada por uma dica do jornalista Walter
Sebastião e aprofundada em pesquisa recente de pós-doutorado, abre a possibilidade de
estabelecer relações entre o trabalho de Pieruccetti no jornalismo esportivo e as
tendências artísticas e culturais de seu tempo, que podem ser recuperadas pelo
mapeamento do contexto discursivo em que suas charges foram criadas e recebidas pelo
público. O que pretendo neste trabalho, portanto, é mostrar de que modo as charges e
mascotes criadas por Pieruccetti dialogam com essas tendências, especialmente o

3
Entrevista com Fernando Pieruccetti, publicada na seção “Bate Bola” do jornal Galôôô, em maio de 1977.
Arquivo da família Pieruccetti (recortes de jornal).

672
Movimento Modernista, evidenciando as conexões entre nossa cultura esportiva e as
concepções estéticas e projetos político-culturais gestados no campo da literatura e das
artes.
O Aleijadinho do crayon
Nascido em Belo Horizonte em 1910, Fernando Pieruccetti teve uma formação
artística eclética e predominantemente autodidata. Sua família veio de Ouro Preto e, como
muitas outras, mudou-se para a cidade acompanhando a transferência do centro
administrativo do estado. Seu pai havia exercido a profissão de ourives em Ouro Preto e,
em Belo Horizonte, estabeleceu-se como comerciante, trabalhando com sua mãe, Mme.
Penélope Pieruccetti, que foi talvez a primeira modista da cidade e dava aulas de pintura
para filhas de famílias abastadas. Segundo seus filhos, já na infância Fernando Pieruccetti
demonstrava gosto pelas artes, desenhando caubóis e heróis de histórias em quadrinhos.
Quando tinha 10 anos, seu pai faleceu e ele teve que ir para o internato no Instituto Dom
Bosco, em Itajubá, onde teve aulas com seu primeiro e único professor de desenho, o
mestre Luiz Teixeira, formado na tradicional Academia Imperial de Belas Artes
(posteriormente Escola Nacional de Belas Artes). Com ele, o garoto teria aprendido a
desenhar tudo na hora, começando a desenvolver o traço leve e ágil que o habilitaria mais
tarde ao trabalho nas redações de jornais e revistas.
De volta a Belo Horizonte, ele estudou no Colégio Arnaldo, onde sua veia de
caricaturista começou a se revelar, em desenhos dos sisudos professores da tradicional
instituição de ensino. Conta-se que um deles, certo dia, flagrou um desses desenhos e, ao
invés de ralhar com o jovem estudante, preferiu reconhecer e valorizar seu talento,
colando o desenho na parede. Logo após terminar os estudos secundários, o jovem
Fernando começou a tentar publicar seus desenhos e cavar um lugar nos órgãos da
imprensa da cidade. No início dos anos 1930, ele começou a trabalhar no Estado de
Minas, de onde saiu em 1934, quando Afonso Arinos fundou a Folha de Minas, onde
Pieruccetti permaneceu até 1946, depois da criação dos primeiros bichos. Durante os anos
1930, ele contribuiu para várias das revistas ilustradas que agitavam a imprensa da época,
como Belo Horizonte, Montanheza, Momento e O Surto.
Estendendo-se pelas rodas de conversa nos bares e cafés da cidade, o ambiente de
trabalho na imprensa foi decisivo na trajetória artística de Pieruccetti. Nas redações de
jornais e revistas ele travou contato com artistas de tendência francamente moderna, como

673
Delpino Júnior, Monsã e Érico de Paula, com escritores do grupo modernista, como
Guilhermino César, Cyro dos Anjos e Emílio Moura, e com intelectuais de esquerda,
como Fritz Teixeira de Salles, David Jardim e Henrique Diniz Filho. Num depoimento
prestado ao jornalista Achiles Reis e publicado pelo Estado de Minas em 24 de dezembro
de 1966, o próprio Pierucctti afirma: “Considero a redação minha verdadeira escola de
Belas Artes (...) entre outras coisas importantes, foi numa redação de jornal que conheci
Genesco Murta” – um artista respeitado e tarimbado, que havia estudado em Paris e se
tornou amigo e tutor do jovem cartunista.
Sob a liderança de Delpino Júnior, um grupo de artistas se reuniu, em 1936, para a
realização da primeira exposição coletiva de arte moderna da cidade, desafiando o
ambiente conservador e academicista que imperava no cenário artístico local, sob a
liderança do fluminense Aníbal Mattos, que também havia estudado na tradicional Escola
Nacional de Belas Artes. Conhecido historicamente como Salão do Bar Brasil, o evento
teve grande importância para a renovação das artes plásticas mineiras, motivando, nos
anos seguintes, a realização dos Salões de Arte da Prefeitura e abrindo espaço para os
grandes empreendimentos artísticos promovidos pelo prefeito Juscelino Kubitschek, no
início dos anos 1940, como a criação do Instituto de Belas Artes (hoje Escola Guignard),
a realização da Exposição de Arte Moderna de 1944 e a construção do conjunto
arquitetônico da Pampulha, marcos da definitiva legitimação das tendências modernas da
arte na jovem capital mineira.
Participando do Salão do Bar Brasil com uma série de desenhos feitos a carvão em
folhas danificadas de papel manilha, Fernando Pieruccetti foi o grande destaque da
exposição, provocando polêmica e entusiasmo no público e na crítica e conquistando,
com a obra “Miséria”, o primeiro prêmio na categoria desenho. Assinados com o
pseudônimo Luiz Alfredo, os trabalhos de Pieruccetti impressionaram tanto pela temática
social de forte apelo dramático, representada por cenas de pobreza e sofrimento de
personagens comuns nas ruas da cidade, quanto pela forma ousada, que combinava a
precariedade do suporte com o colorido sombrio do carvão e o traço deformante, de
inspiração cubista e expressionista. Segundo uma crônica da época, assinada por Luiz
Medeiros e publicada no Diário da Tarde, o próprio Aníbal Mattos teria se

674
impressionado, reconhecendo no artista “qualquer ponta de gênio” e qualificando-o como
uma espécie de “Aleijadinho do crayon”4.
Curiosamente, após ter obtido tanto sucesso no evento de 1936, Pieruccetti nunca
mais participou de exposições de arte. Por conta do clima de tensão política vivido na
época, os trabalhos que ele havia apresentado no Salão do Bar Brasil ficaram por muito
tempo escondidos com o escritor Fritz Teixeira de Salles. Descrito por seus colegas como
uma pessoa tímida, modesta e avessa ao assédio do público, ele continuou trabalhando na
imprensa e conquistou, em 1937, um lugar como professor de desenho no prestigiado
Ginásio Mineiro. A carreira de professor, nesta e em outras escolas de Belo Horizonte, e
a atividade na imprensa prosseguiram intensamente e, mais tarde, já depois do sucesso
como chargista esportivo, Pieruccetti defendeu tese para se tornar catedrático do Colégio
Estadual (antigo Ginásio Mineiro), escreveu e ilustrou livros de histórias infantis, formou-
se em Filosofia pela UFMG e desenvolveu pesquisas sobre a história da educação em
Minas Gerais. O pseudônimo Mangabeira, surgido durante a Segunda Guerra Mundial,
num episódio no qual ele foi preso como suspeito de espionagem por conta do sobrenome
italiano, enquanto desenhava na região do Alto das Mangabeiras, lhe servia de escudo,
permitindo-lhe passar despercebido, apesar do sucesso que seus desenhos faziam nas
páginas dos jornais da cidade.
Um mundo de fábulas e futebol
Desde o momento de sua criação, os bichos simbólicos e o universo das charges
inventados por Fernando Pieruccetti já podem ser entendidos como uma resposta a esse
contexto discursivo que podemos captar pela narrativa biográfica.
Em meados dos anos 1940, a utilização de charges e caricaturas para ilustrar as
publicações do jornalismo esportivo já era uma prática comum, relacionando-se tanto
com o processo de modernização da linguagem e dos recursos técnicos da imprensa
brasileira quanto com a popularização do futebol no país. Nas vibrantes revistas ilustradas
do Rio de Janeiro, essas ilustrações humorísticas já aparecem com frequência desde a
década de 1910, uma vez que o futebol, como moda entre os jovens da elite carioca, se
enquadrava perfeitamente no rol de assuntos mundanos pelo qual essas publicações se
interessavam. Nos decênios de 1920 e 1930, elas vão se tornando comuns também nas

4
Crônica de Luiz de Medeiros, publicada no Diário da Tarde em 1936. O título da crônica e a data precisa
da publicação não puderam ser recuperados. Arquivo da família Pieruccetti (recortes de jornal).

675
páginas esportivas que iam surgindo nos jornais de grande circulação, dividindo espaço
com os textos e as fotografias dos jogadores e do público presente aos jogos, com o
objetivo de favorecer a ampliação do público leitor. Por meio do trabalho de artistas como
J. Carlos, Antônio Nássara, Lorenzo Molas e muitos outros, as charges e caricaturas, com
sua linguagem acessível e irreverente, tiveram um papel importante na transformação do
futebol em um esporte de massas e em um símbolo da identidade e da cultura brasileiras.
Em 1945, quando deu início à criação dos bichos, Pieruccetti já havia trabalhado
por quase uma década e meia como ilustrador de jornais e revistas e dominava com
maestria essa linguagem, tendo obtido considerável sucesso com outras criações. Como
a série de desenhos sobre a “Moça Fantasma”, uma espécie de lenda urbana que
movimentou as páginas policiais do Diário da Tarde, nos anos 1930. Nos relatos sobre o
surgimento das charges com os bichos, conta-se que a iniciativa partiu do secretário de
redação da Folha de Minas, o jornalista Alvares da Silva, como uma tentativa de imitar
as tirinhas do argentino Lorenzo Molas, publicadas na época pelo Jornal dos Sports, do
Rio de Janeiro, nas quais o Flamengo era o Popeye, o Fluminense o Cartola, o Botafogo
era o Pato, o Vasco o Almirante etc. À proposta de Alvares da Silva, Pieruccetti teria
respondido com a ideia de fazer desenhos no espírito das fábulas de Esopo e La Fontaine,
utilizando animais da fauna brasileira, ao invés de heróis das histórias em quadrinhos,
para representar os clubes e outras entidades do mundo esportivo.
Seguindo essa proposta, o artista se inspirava em elementos que já faziam parte da
imagem e da história dos clubes para escolher os bichos que transformaria em
personagens simbólicos. O Atlético, com sua fama de valente e seu uniforme que
lembrava um galo carijó, ficou sendo o Galo; o Cruzeiro, que tinha dirigentes italianos de
incomparável esperteza para os negócios, virou a Raposa; o América, talvez o caso mais
curioso, começou como Pato Donald, por insistência do secretário de redação, mas depois
passou a Coelho, que era o sobrenome de alguns dos seus diretores e combinava com a
personalidade do clube; o Villa Nova, de Nova Lima, seria o Leão, pois fazia os
adversários sentirem-se em seu estádio como leões na arena; o Siderúrgica, criado em
Sabará por funcionários da Usina Belgo-Mineira, seria uma tartaruga com a carapaça dura
como aço; e assim por diante. Nas charges, apareciam também bichos que não
representavam clubes, mas outros personagens do mundo esportivo, como o Rato, que

676
fazia o papel do juiz; a Águia, que era a Federação Mineira; a Coruja, o Tribunal de Justiça
Desportiva; o Jaburu e o Espírito de Porco, simbolizando a torcida.
O desejo de Pieruccetti de trabalhar predominantemente com animais da fauna
brasileira (as exceções são poucas e sempre representadas por animais de apelo universal,
como o Leão e o Tigre) é também um índice bastante esclarecedor do contexto
enunciativo de suas criações. Como vimos, os heróis do cinema, das tirinhas e das
histórias em quadrinhos já faziam parte de seu imaginário desde a infância, quando ele os
reproduzia nos seus primeiros desenhos. No entanto, ele prefere recusar a assimilação
passiva do modelo de origem estrangeira, representado pelos desenhos de Lorenzo Molas
no Jornal dos Sports, optando por elementos que repercutiam a mentalidade provinciana
da Belo Horizonte das primeiras décadas do século XX e sua experiência com desenhos
de paisagens típicas do interior, no Instituto Dom Bosco de Itajubá.
Para um artista que havia interagido intensamente com intelectuais de esquerda e
artistas modernos, nas redações dos órgãos da imprensa local, a opção parece responder
também a certas preocupações de natureza ao mesmo tempo estética e política que
marcaram o Movimento Modernista brasileiro. Refiro-me, aqui, tanto à tentativa de
conciliar a pesquisa formal com o esforço de plasmar uma linguagem autenticamente
brasileira, por meio da utilização de elementos das tradições e da cultura popular, presente
no trabalho dos modernistas desde meados dos anos 1920, quanto à dimensão mais
diretamente política e social que essa tendência ganhou, com o Regionalismo e a arte
social dos anos 1930. Preocupações que se revelam com intensidade nos desenhos de
Pieruccetti para o Salão do Bar Brasil, na opção pela temática social urbana, e que se
transmutam, nas charges, no desejo de dialogar com as tradições locais de um “Brasil
profundo”.
Para colocar seus bichos em ação, Pieruccetti utilizava um traço simples, mas
dinâmico e comunicativo, em que as características das personagens, do cenário e do
movimento narrativo eram expressas sinteticamente, com a utilização de poucas linhas.
Um traço leve e ágil, que preservava muitas vezes os contornos abertos e inacabados,
lembrando os desenhos do “pintor da vida moderna”, descrito no famoso ensaio de
Baudelaire, nos quais a agilidade e o inacabamento são índices do tempo rápido da
modernidade, que o artista se esforça para captar. As charges costumavam ter apenas um
ou dois quadros, abaixo dos quais apareciam legendas com pequenas narrativas ou

677
diálogos sobre a cena representada no desenho. Embora fossem comuns as referências
temáticas ao universo dos quadrinhos, geralmente não havia o uso de balões e os quadros
não tinham caráter sequencial, funcionando mais como ilustrações e suplemento do texto
que vinha na legenda e do noticiário esportivo como um todo, o que pode ser interpretado
como mais um apelo ao universo cultural dos leitores mineiros e sua relação ainda tateante
com as linguagens da modernidade.
Nessas representações, os bichos apareciam conversando e realizando ações
humanas como capinar, comer com talheres, cozinhar, ler e dirigir automóveis, em
pequenas cenas que evocavam o cotidiano, tanto rural como urbano. O cenário mudava
conforme as circunstâncias, mas é nítida a predominância de um ambiente campestre,
sinalizado pela anotação rápida da grama, da árvore e da colina no horizonte, que remete
ao universo das fábulas, mas lembra também o mundo rural do interior mineiro, com a
presença de bichos domésticos, casinhas de campo, currais e telas do galinheiro. A
fazenda da funcionava como espaço de transição entre o campo e a cidade, o antigo e o
novo, o tradicional e o moderno, contando para isso com o poder da charge de misturar
elementos heterogêneos, vindos desses dois universos.
Para recriar os acontecimentos esportivos nessa linguagem, com esses personagens
e nesse ambiente, Pieruccetti se inspirava, como vimos, no modelo narrativo das fábulas
de Esopo e La Fontaine. As cenas protagonizadas pelos bichos representavam as situações
propiciadas pela competição esportiva, conferindo a elas uma dimensão metafórica e
ficcional que extrapolava a referencialidade jornalística e dava aos acontecimentos uma
ressonância alegórica. Assim, a vitória e a derrota, a marcha dos jogos e campeonatos e
as expectativas, atitudes e reações dos personagens do mundo esportivo diante desses
acontecimentos se convertiam em pequenas lições de esperteza e sabedoria, mais
próximas da memória e da experiência do público provinciano ao qual as charges se
dirigiam. O modelo narrativo da fábula funcionava, portanto, como mais uma ponte, por
meio da qual o imaginário e os valores modernos do esporte de conectavam a um saber
mais tradicional, enraizado na sociedade mineira e reproduzido nos livros ilustrados, nas
narrativas orais e nas práticas do cotidiano.
Nessa rápida descrição, já se pode observar claramente um esforço de mediação,
por meio do qual o artista cruza diferentes temáticas, linguagens e matrizes culturais, a
fim de dialogar diretamente com a memória e as tradições de seu público, contribuindo

678
para uma assimilação mais ampla e disseminada do esporte. Um esforço que também
podemos relacionar ao projeto modernista de aliar a pesquisa estética com a busca por
imagens de uma “autêntica” cultura brasileira por meio da combinação entre as
linguagens da arte moderna e elementos das culturas locais e populares.
Consideradas à luz de sua trajetória como artista plástico, portanto, as charges de
Fernando Pieruccetti ganham um colorido diferente e mostram como nossa cultura
esportiva está impregnada pelas ideias, projetos e concepções estéticas que circularam no
Brasil, ao longo do século XX. Ao seu modo, bem particular e ligado às circunstâncias
espaço-temporais específicas em que foram criadas, elas são convergentes com um
esforço mais amplo, realizado por diferentes agentes culturais ao longo do século XX, no
qual estiveram engajados tanto o jornalismo esportivo como o Movimento Modernista,
nas artes e na literatura. Um esforço de mediação e diálogo, por meio do qual se buscava
criar uma imagem inclusiva da comunidade nacional, alimentando um projeto mais
abrangente de modernização da sociedade brasileira. Dirigidas ao grande público da
capital e do interior, elas buscavam integrar elementos heterogêneos, provenientes da
multiplicidade social e cultural de seus leitores, fundindo-os numa linguagem de fácil
apelo visual, que servia à difusão do imaginário moderno projetado no esporte. Dessa
perspectiva, não só o trabalho de Fernando Pieruccetti, mas uma fração significativa da
produção cultural que se desenvolveu em torno do futebol no Brasil pode ser vista como
parte de um grande projeto político-cultural, levado à frente por jornalistas, intelectuais,
artistas e escritores, com vistas à inserção do Brasil na modernidade.

Referências

BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. In: CHIAMPI, Irlemar (Org.).


Fundadores da modernidade. São Paulo: Ática, 1992, p. 102-119.

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tempo: imprensa e cotidiano em Belo Horizonte 1895-1926. Belo Horizonte: UFMG,
AMI, PBH, 1997.

DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. Trad. Gilson César Cardoso
de Souza. São Paulo: Editora da USP, 2009.

LINHARES, Joaquim Nabuco. Itinerário da imprensa de Belo Horizonte 1895-1954.


Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro e Editora UFMG, 1995.

679
PEREIRA, André Mascarenhas. Traços de Belo Horizonte: a contribuição dos
caricaturistas para o Modernismo na Cidade Moderna. 2011. Dissertação (Mestrado em
História), Faculdade de Filosofia e Ciência Humanas da UFMG, Belo Horizonte.

RIBEIRO, Marília Andrés e SILVA, Fernando Pedro da (Orgs.). Um século de história


das artes plásticas em Belo Horizonte. Belo Horizonte: Editora C/ Arte, 1997.

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Público Mineiro, ano L, nº 1, jan. a jun. 2014, p. 132-147.

SILVA, Marcelino Rodrigues da. Quem desloca tem preferência: ensaios sobre futebol,
jornalismo e literatura. Belo Horizonte: Relicário, 2014.

680
ABSURDO E EXISTÊNCIA
EM ALBERT CAMUS
E LEANDRO GOMES DE BARROS

Maurício Rosa do Nascimento1


(criticaliteraria@hotmail.com)

Resumo: Abordar a temática da existência e do absurdo, sob o olhar crítico-literário, a


partir da obra de Albert Camus e Leandro Gomes de Barros, pode representar um
avanço no que concerne à descoberta de diferentes perspectivas de ensejo textual das
obras de cada qual, uma vez que, de um lado, encontra-se o caráter trágico expressado
por Camus em suas inúmeras publicações, enquanto do outro lado, é possível visualizar
o teor também trágico, porém atravessado de certa comicidade, no Cordel de Barros, o
que torna suas palavras mais suaves, no trato dispensado ao ser humano, nas vertentes
do existencialismo e do absurdo.

Palavras-chave: Crítica literária; Transcriação; Humanidade; Existência; Absurdo.

1. O sofrimento humano em Camus e Barros

O sofrimento pode ser interpretado como um tipo de sentimento ou sensação, a


partir da qual o indivíduo carrega consigo algo típico e inerente à vida humana, sendo
este sentimento intrínseco ao homem desde o início de sua existência como pessoa.
Contudo, as pessoas não sofrem porque querem sofrer. Elas sofrem naturalmente, em
decorrência de algo frustrante que ocorra, condicionando o indivíduo ao sofrimento
natural.
O sofrimento é, desse modo, um fator inerente as pessoas como seres humanos,
sendo uma espécie de “[...] inimigo cruel que atenta contra seu desejo de plenitude de
vida. Com efeito, quando o sofrimento nos atinge, interrogamo-nos a nós mesmos e a
Deus em busca de respostas sobre sua causa e finalidade” (MACHADO, 2008, p. 13).
O ‘sofrer’ se traduz como reações as quais nos faz sentir medo, depressão,
desamparo. Não se pode deixar de sofrer ou conhecer o sofrimento; podemos até passar
pelo mundo sem adoecer, mas não o atravessar sem sofrer. O ‘não sofrer’ é uma
situação de desconforto e até mesmo grave, pois o homem que não souber sofrer, não
vive, não aproveita seu tempo, sua vida.

1
Maurício Rosa do Nascimento – mestrando em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás.

681
Em um trecho de sua obra O Mito de Sísifo, abordando a questão do sentimento,
Albert Camus cita que: “[...] só existe um problema filosófico realmente sério: é o
suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à questão
fundamental da filosofia” (CAMUS, 1989, p. 23).
Sendo assim, é possível considerar que, no olhar especifico da literatura de
Camus, o sofrimento não é um fenômeno que se possa curar com o tempo, haja vista
que ele sempre está presente, em movimento. É um fenômeno que integra a existência
humana. Sofrer é estar em contato com nós mesmos, com a nossa existência. Imagina-se
que o homem que por algum motivo consegue passar pela vida sem sofrer, não
descobriu a essência da vida, o que nos faz conseguir superar uma perda ou uma tristeza
e, assim, reconstruir um novo caminho.
E assim versa Silva (1994, p. 161), sobre o sofrimento na literatura de Camus:
“a arte pretende ser comunicação, diálogo e ponto de encontro entre os homens,
fornecendo-lhes imagens privilegiadas dos seus sofrimentos e das suas alegrias, dos
seus sonhos e das suas ilusões, [...] de toda a sua condição”.
As narrativas de Barros eram variadas ele colocar em versos o sofrimento do
nordestino, assim como transformam suas dores em alegrias.
Como exemplo de amor, de sofrimento, etc., de acordo com Marinho e Pinheiro
(2012, p. 17),

No Brasil o cordel é sinônimo de poesia popular em verso. As histórias de


batalhas, amores, sofrimentos, crimes, fatos políticos e sociais do país e do
mundo, as famosas disputas entre cantadores, fazem parte de diversos tipos
de texto em verso denominados de literatura de cordel.

Como podemos evidenciar no poema abaixo:

Os sofrimentos de Alzira

Alzira era uma condessa,


Filha do Conde Aragão,
Desde muito pequenina
Tinha bom coração,
Embora que dos seus pais
Não fosse essa criação
[...]
Alzira, desde criança
Que era compadecida,
Dava pequeno valor

682
Aos objetos da vida,
Visitava hospitais
Inda que fosse escondida
Das iguarias da mesa
Ela mandava um quinhão
Para dar àqueles pobres
Que mais tinham precisão,
Principalmente os doentes,
Que não tinham remissão.
Um dia, que ela fez anos,
O padrinho presenteou-a
Com uma capa de brocado,
Que muito caro comprou-a.
Ela achando-a muito linda,
Com muito gosto guardou-a.
Indo à missa de S. Pedro,
A primeira vez botou-a
De volta, viu uma criança,
Gelada, morrendo à toa.
Ela pegou a criança,
Tirou a capa, embrulhou-a.

Nesses versos observa-se que a protagonista Alzira, filha do conde, assume o


papel de – amparo dos desgraçados, alívio dos desassistidos, mãe de todos os órfãos,
braços e pernas dos aleijados. Mas seria condenada à morte pelo próprio pai, o marido e
o vil cunhado (MEDEIROS, 2002, p.108).
A personagem Alzira tem sua existência limitada ao anseio do masculino, apesar
de proteger os excluídos, seu sofrimento é explicitado a partir de uma narrativa que
define o imaginário patriarcal no feudalismo em que o altruísmo da mulher era imposto
androcentricamente como filha obediente ou mulher submissa.
O que se pode verificar que os poemas de Barros abordam diversos temas dentro
do cotidiano nordestino, como o amor, em que são ressaltados nos romances os
encontros, desencontros, as traições e principalmente o sofrimento do povo e da mulher
sertaneja.
Os poemas de Leandro representam o entretenimento do povo nordestino de sua
época, autor que emocionava seu público independentemente da classe social que
ocupava. Sua poesia atingia desde a camada popular sofrida do sertão à nobreza
traduzida pela forma de poder como políticos, coronéis e cangaceiros.
Às vezes, as pessoas tendem a não acreditar em seu próprio sofrimento, pensamos
que Deus ou as outras pessoas estão sendo ‘injustas’ consigo. E com isso, acabam não
percebendo que as próprias escolhas as levam a essa dor. A este respeito, salienta-se que

683
o Cristianismo defende a ideia da importância do sofrimento como uma fonte de
crescimento humano, e que a dor não vem por injustiça, mas por livre-arbítrio.

O mal físico pode advir como consequência das leis da natureza ou em


virtude de faltas morais. Tal tipo de mal pode conter em si as doenças ou os
castigos e sofrimentos. No caso dos sofrimentos e castigos, estes podem ser
consequência do mau uso de nossa vontade livre. Cada ser humano, quando
não usa corretamente a sua livre vontade, corre o risco de contrair ou
propagar males físicos (NUNES, 2009, p. 40).

Isto posto, tem-se que o mal advindo da própria natureza humana, pode trazer
angústias significativas aos indivíduos, sendo que cada qual interpreta e reage a estas
dores e angústias de forma particular e individualizada, podendo variar de pessoa para
pessoa, mesmo que se trate de uma mesma causa ou mesmo evento que atinja a vários
indivíduos de uma só vez.

3.2A existência: Camus versus Barros

A forma com a qual as pessoas absorvem o sofrer pode variar bastante. A este
respeito, o que se pode observar é que Leandro Gomes de Barros formulou melhor que
Camus a respectiva questão do mal e do sofrimento humano, a partir das obras por ele
trabalhadas.Ou seja, existe uma pergunta relevante que as pessoas que não acreditam em
Deus poderiam fazer às pessoas que acreditam. Sobre o tema, tem-se um trecho de um
poema de Barros, abaixo transcrito:

Por que existem o mal e o sofrimento humano?

Se eu conversasse com Deus


Iria lhe perguntar:
Por que é que sofremos tanto
Quando se chega pra cá?
Perguntaria também
Como é que ele é feito
Que não dorme, que não come
E assim vive satisfeito.
Por que é que ele não fez
A gente do mesmo jeito?
Por que existem uns felizes
E outros que sofrem tanto?
Nascemos do mesmo jeito,
Vivemos no mesmo canto.

684
Quem foi temperar o choro
E acabou salgando o pranto?
Leandro Gomes de Barros

O trecho acima transcrito da obra de Leandro de Barros, reforça a noção da


importância da crença em Deus, o que consubstancia com a abordagem teórica
delineada no decorrer deste estudo, apresentando vertentes que ligam o sentimento
humano do sofrimento com a existência e o absurdo, propostos também em linhas
gerais de diversas obras de Camus. Esta seria a razão trazida por Barros, para
demonstrar a importância de se acreditar em Deus, considerando-se o fato de que cada
indivíduo vive como entende se melhor, porém, a crença em Deus se faz necessária no
sentido de viabilizar o desespero da morte seja amenizado, assim como para permitir
que as pessoas não vivam uma vida vazia, sem sentido.
Compartilhar do mesmo sentimento, sem preconceitos ou atritos contra quem
diverge da citada crença em Deus, é uma das propostas caracterizadas nas obras de
Barros. A necessidade de alguns ateus em provar que Deus não existe para aqueles que
acreditam, parece que é uma tentativa de tonar os outros vazios espiritualmente, para
que assim, talvez, o indivíduo se sinta menos sozinho.
Portanto, a presença do mal e do sofrimento, se relaciona com a visão apresentada
por Leandro Gomes de Barros, como apontado por um trecho específico do poema a
seguir, onde são encontrados alguns questionamentos necessários de serem feitos à
divindade e às pessoas que acreditam em Deus, senão observe:

– Você acredita em Deus?


– Acredito
– E como é isso?

Quem conseguiria viver diante da dura percepção alinhada para atormentar e


sangrar o mundo?
Isto posto, destaca-se a questão fundamental: ou as pessoas acreditam, de fato, na
existência de um Deus, ou, para as mesmas pessoas que não acreditam, a vida não teria
nenhum sentido. Seria bastante, nestes casos, que aqueles que não acreditam em Deus se
direcionassem para a morte, uma vez que não haveria sentido em sua própria existência

685
como ser humano. É o que se interpreta a partir das perguntas acima transcritas pelo
poema de Leandro Gomes de Barros.
Camus, o filosofo francês analisado em contraponto a Barros, tem um livro em
que inicia sua escrita dizendo “o único problema filosófico realmente sério é o do
suicídio” (CAMUS, 1989). Isso porque, o suicídio é um evento grave, em que a pessoa
avalia o mundo, avalia si mesmo e acha que não vale a pena. Nestes casos, na percepção
de Camus, o problema filosófico estaria no suicídio. Contudo, não seria este o real foco
filosófico de análises, haja vista que o suicídio é apenas um detalhe implicado no
problema mais grave – que se relaciona com a questão do mal e do sofrimento humano.
Então, é perceptível que Leandro Gomes de Barros formulou de maneira distinta
de Camus, a pergunta, levantando as questões mais abrangentes que um indivíduo que
não acredita em Deus poderia fazer para aqueles que acreditam. Assim, coloca-se a
própria existência de Deus em questão, porque é como se Deus tivesse querido temperar
o choro e acabou errando na mão, como se Deus fosse capaz de um erro, e infligido um
sofrimento terrível ao ser humano, pois é então Deus pra mim é uma necessidade, se eu
não acreditasse em Deus eu era um desesperado.
Camus, que tão bem buscou traduzir a temática do existencialismo em suas obras,
contrapondo-se à existência de um Deus na vida das pessoas, por ser ele – o próprio
Camus – um ateu declarado, descreve em seu poema “A Peste”, publicado no ano de
1947, argumentos contrários à existência de Deus, como Ser transcendente. A existência
seria, portanto, uma condição implicada no sofrimento humano e nos questionamentos
dele advindos.

A palavra ‘Absurdo’ surge agora sob minha caneta; há pouco no jardim não a
encontrei, mas também não a procurava, não precisava dela: pensava sem
palavras, sobre as coisas, com as coisas. [...] E sem formular nada
claramente, compreendi que havia encontrado a chave da Existência, a chave
de minhas Náuseas, de minha própria vida. De fato, tudo o que pude captar a
seguir liga-se a esse absurdo fundamental (SARTRE, 2006, p. 162)

Na percepção de Barros, não se deve basear a compreensão da existência e do


sofrimento pura e simplesmente em aspectos de negação ou de revolta. É preciso ir além
disso e compreender que Deus não pode se limitar a erradicar os problemas da raça
humana. É preciso que as pessoas sofram, para entender as causas que as levaram a
passar por determinadas situações, para que visualizem seus erros e saibam que são

686
responsáveis por seus próprios atos, recebendo as devidas consequências daquilo que
praticam.
Ou seja, conforme entendimentos de Barros, é possível dizer que Deus existe,
sendo que Ele “respeita a liberdade do homem. Mas, em meio a isso, não podemos
deixar de recordar os sofrimentos dos inocentes, que sempre foi e será um escândalo
que marcar a história da humanidade” (SANTOS, 2015, p. 1).
A vertente que liga a existência e o sofrimento, nas linhas poéticas aplicadas nas
literaturas de Camus e Barros, se contrapõe. Trata-se, de um lado, da confirmação de
que o sofrimento se associa implicitamente à natureza humana, sem que haja nenhum
tipo de interferência, especialmente de qualquer Divindade – para Camus; e, de outro
lado, ao entendimento de que o sofrimento, apesar de ser parte da própria existência, se
vincula à noção do indivíduo como ser capaz de decidir por suas ações, assim como
deve ser responsável por tudo que delas seja acarretado, inclusive o sofrimento – para
Barros.

Mas os homens de sentido, o homem honesto com sua razão e com sua
natureza, sempre foi capaz de olhar para esse sofrimento não como um fim,
ou como uma realidade perpétua, seu olhar é de esperança, o seu sentido está
para além dessa realidade de dor. Esses, mais uma vez, foram na história
lembrados como exemplos de humanidade. Estamos longe de encontrar uma
resposta para esse sofrimento, mas uma coisa é certa: a ausência de uma
explicação para ele não pode nos levar a concluir a falta de um sentido que
transcenda, que responda ao desejo de felicidade inscrito no ser humano
(SANTOS, 2015, p. 1).

A visão sobre a existência de Deus, para Camus, estaria diretamente associada a


inexistência do sofrimento, se realmente este Ser Divino existisse. Para o poeta, um
Deus que realmente se preocupa com os seres humanos, não permitiria que estes
sofressem, não ficaria inerte ou indiferente às dores e angústias humanas, não
consentiria com a degradação dos seres. Ao contrário, Barros apresenta uma ideia mais
aprimorada do sofrimento e da existência, traduzindo sua percepção do mal e da dor de
forma suavizada e até mesmo cômica.

Referências

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Relações Com a Literatura de Cordel e a Música Contemporânea. Disponível em:

687
http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/arquivos/810-4.pdf. Acesso em: 20
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ALVES, Luciene Antunes. A Tragédia de Gretchen: sujeito e liberdade no Fausto de


Goethe. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Guarulhos/SP: Universidade Federal
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ARAÚJO, Pedro Zambarda. Jornalismo Francês e Albert Camus. Revista Anagrama –


Revista Interdisciplinar da Graduação, 2009; 2 (3): p. 1-21. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/anagrama/article/download/35379/38099/. Acesso em: 5
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BALBINO, Lorena de Paula. Uma Estética da Existência em Albert Camus.


Doutoranda em filosofia pela Universidade de São Carlos. Seara Filosófica, 2016; 12
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BARRETO, Vicente. Camus: vida e obra. 2. ed. Editora Paz e Terra: São Paulo: 1997.

BISPO, Milene Fontes de Menezes; ROSA, Roberto Sávio. O Mito de Sísifo: a decisão
de viver ou suprimir a vida. Filosofando – Revista de Filosofia da UESB, 2013; 1 (2):
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CAMUS, Albert. TextesComplémentaires. Essais. Paris: Gallimard, 1965.

________. O Mito de Sísifo. Guanabara, Rio de Janeiro, 1989.

________. A Morte Feliz. Tradução de ValerieRumjanek. 4. Ed. Rio de Janeiro:


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________. TextesComplémentaires. Essais. Paris: Gallimard, 1965b. In: PIMENTA,


Danilo Rodrigues. Mestrado dm Estética e Filosofia da Arte. A Criação Absurda
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http://www.repositorio.ufop.br/bitstream/123456789/3207/1/DISSERTA%C3%87%C3
%82O_Cria%C3%A7%C3%A3oAbsurdaSegundo.PDF. Acesso em: 7 jan. 2019.

________. O Mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Record, 2010.

NUNES, Mariciane Mores. Livre-Arbítrio e Ação Moral em Agostinho: um estudo a


partir do de libero arbítrio. Dissertação de Mestrado em Filosofia. Porto Alegre:
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2009. Disponível
em: http://tede2.pucrs.br/tede2/bitstream/tede/2808/1/409453.pdf. Acesso em: 22
mai.2019.

688
SANTOS, Manoel Messias Dias. Os Limites do Absurdo Existencial de Albert
Camus. Postado no Blog Filosofia. 2º ano de Teologia - Diocese de Estância-SE.
Disponível em: http://levitasm.blogspot.com/2015/08/os-limites-do-absurdo-existencial-
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SARTRE, Jean-Paul. A Náusea. trad. Rita Braga. 1. ed. Especial. Rio de Janeiro/RJ:
Nova Fronteira, 2006.

SILVA, Américo Lopes. Estudos – Reencontro Com Albert Camus. Revista Filosófica
de Coimbra, 1994; 5 (3): p. 161-185. Disponível em:
https://www.uc.pt/fluc/dfci/public_/publicacoes/reenc_A_Camus. Acesso em: 22 mai.
2019.

689
A ESPACIALIDADE COMO UNIDADE NARRATIVA EM A HORA DOS
RUMINANTES DE JOSÉ J. VEIGA

Paula Apoliane de Pádua Soares Carvalho (PUC/GO) 1

Resumo: Esse artigo propõe uma análise acerca das representações de espaço, como unidade
narrativa, na obra A Hora dos Ruminantes, do escritor goiano José J. Veiga, romance este que,
de maneira singular, apresenta expressividade discursiva espacial perceptível pelas imagens que
alimentam o imaginário do leitor, provocando o estranhamento próprio do absurdo, do grotesco
manifestos no realismo fantástico. A relação integralizadora entre os espaços da narrativa e os
espaços originários a partir da relação obra e leitor caracterizam o estilo deste romance e atribui
a esses espaços outros sentidos dentro de um complexo tecido espaço-temporal que se modifica
conforme se movimentam os conteúdos sociais e as trajetórias da história.

Palavras-chave: Espacialidade; Transcriação; Fantástico; Condição Humana

A obra, A Hora dos Ruminantes, romance ficcional que apresenta, na sua


essência, características peculiares da categoria da literatura fantástica, dotado de um
realismo movediço, próximo ao absurdo, concentra densidade contemporânea,
plurivocal, a partir dos vários espaços constituintes da obra.
Percebe-se ser essa uma prática peculiar em José J. Veiga, assim como em outros
autores contemporâneos, que, pela fabulação, traduzem o universo tangível em vários
outros imaginários dentro de sua espacialidade configurada e traduzida por um discurso
metafórico.
Assim, Veiga agrega à literatura outras formas de perceber o texto narrativo
literário, em que as unidades narrativas se constituem a partir de cada fato e
acontecimento narrados em espaços distintos envolvendo ao mesmo tempo elementos
da realidade e da ficção, não se restringindo, tão somente, aos espaços físicos, como
categoria empírica, mas, àqueles que são recriados a partir da história de cada
personagem, dando identidade aos microssistemas como espaços narrativos.
O romance, A Hora dos Ruminantes, traz à pauta a história de uma pequena
cidade, chamada de Manarairema, que em meio à rotina, à trivialidade, à vida pacata de

1
Mestranda em Letras (PUC), professora da rede estadual de ensino de Goiás. Contato:
paulaapoliane@uol.com.br.

690
seus moradores, sempre no aguardo dos cargueiros, trazendo os mantimentos, se vê
totalmente modificada em virtude da chegada de uns ‘homens desconhecidos e
misteriosos’ que, repentinamente, e sem dar explicações, se instalam no outro lado rio,
no alto do largo, levantando acampamento, armando tendas, deixando, assim, todo o
vilarejo borbulhando de curiosidade e num estado de inquietação que perpassa por todos
os espaços reais e imaginários.

No dia seguinte a cidade amanheceu ainda sem toucinho, mas com uma
novidade: um grande acampamento fumegando e pulsando do outro lado do
rio, coisa repentina, de se esfregar os olhos. Às pessoas acordavam,
chegavam à janela para olhar o tempo antes de lavar o rosto e davam com a
cena nova. Uns chamavam outros, mostravam, indagavam, ninguém sabia.
[...] gente se vestindo às pressas, embaraçando a mão em mangas de paletó,
saindo sem tomar café, pisando em cachorros lerdos, gente dando peitada em
gente [...] (VEIGA, 1995, p. 4)

O cenário Manarairema nos oferece assim, uma visão rizomática pela sua
atmosfera insólita que irrompe no curso do cotidiano aparentemente tão estável das
personagens. A trama, dessa forma, é construída, de maneira tal, que no início, tudo se
plasmava diante das necessidades humanas mais elementares. Logo, os homens
estranhos começam a estabelecer os primeiros contatos, e tudo então passa a ser visto de
maneira bem diferente dos moradores do povoado.

Mas acampados tão perto, e fazendo grandes obras nos terrenos da velha
chácara de Júlio Barbosa, era natural que os homens de vem em quando
esbarrassem com alguém da cidade. Isso aconteceu com Geminiano Dias,
proprietário de uma carroça de aluguel. Geminiano estava carreando estrume
para horta, numa das viagens foi interpelado na cerca do pasto por um
homem alto, queixudo, de cabelo cortado à escovinha:
__ Negociar a carroça, caboclo?
Geminiano não gostou dos modos, e para mostrar que não tinha gostado
continuou viagem, sem parar nem olhar. [...]
__Negociar a carroça? Pago bem.
__Nhor não __respondeu Geminiano por muito favor.
O homem não desistia. Avançou mais um lanço, falou mandando:
__Pare um pouco. Pode parar não?
__Posso não. Se pudesse eu ficava para em casa.
[...]
__É, mas eu só quero a carroça. [...].
__Ora vá caçar coberta __disse Geminiano e chicoteou o burro com raiva,
deixando o homem apatetado na beira da estrada. (VEIGA, 1995, p.8)
[...]
De repente Geminiano sentiu a garrucha debaixo da camisa __grande e
pesada como um machado, [...] (VEIGA, 1995, p.12)

691
Agora Geminiano estava trabalhando para os homens da tapera. (VEIGA,
1995, p.14)

De fato, é bastante peculiar a forma como o autor, na perspectiva do realismo


fantástico contemporâneo, propõe de certa maneira uma apresentação do cenário à
época, valendo-se do alegórico, da linguagem metafórica, para traduzir fatos reais por
meio dos elementos, por excelência, de natureza ficcional, potencializando sempre o
verossímil, produzindo um discurso literário com aspectos da realidade.
Vale lembrar que é no discurso que a palavra assegura a função de identidade
semântica e ‘a metáfora viva’, por sua vez, altera a identidade da palavra. Assim sendo,
“A metáfora apresenta-se, então, como uma estratégia de discurso que, ao preservar e
desenvolver a potência criadora da linguagem preserva e desenvolve o poder heurístico
desdobrado pela ficção” (RICOEUR, p. 13).
O discurso narrativo ficcional em A Hora dos Ruminantes apresenta um fluxo
marcado pela intensidade do ritmo dos sentidos, os quais quando se inclinam para os
descaminhos da própria obra, permitem a percepção da realidade à época através da
linguagem metafórica. Temos, ainda, o aspecto plurivocal e plurilinguístico do texto
literário, que segundo Julia Kristeva:

O texto literário atualmente atravessa a face da ciência, da ideologia e da


política como discurso e se oferece para confrontá-los, desdobrá-los, refundi-
los. Plural, plurilinguístico às vezes, e frequentemente polifônico (pela
multiplicidade de tipos de enunciados que articula) [...]. (KRISTEVA, p. 18)

Nessa obra, ao (re)criar os microespaços de suas personagens, o narrador traduz o


mundo de Manarairema dando-lhes ‘voz’, que ecoa ao nas ideias constituintes de um
enredo, uma voz narrante, dando vida a outros espaços, por meio das suas personagens,
as quais são, sistematicamente, apresentadas conforme o seu modo de ser, falar e agir,
levando o leitor a se deslocar de espaços reais, físicos, para outros espaços, imaginários,
legitimadores de toda a narrativa.
Têm-se, então, os espaços criados e delimitados pelas experiências e vivências das
personagens ao longo da narrativa, como o caso de Geminiano, “era um preto risonho,
manso por fora, mas espinhento por dentro” (VEIGA, 1995, p. 9) que tem sua rotina
modificada em detrimento das vontades, dos ‘mandos e desmandos’ dos homens da

692
tapera, deixa de fazer seu trabalho, para então, não por opção, mas, sim, como sinal de
obediência, fazer outros trabalhos e percorrer outros trajetos.
Em toda a narrativa, é possível perceber o dimensionamento desses espaços, como
o lugar onde se situa a venda do Amâncio, o qual ao seu modo sustenta a fama de
valente e, em virtude de sua audácia, provoca uma aproximação com os homens da
tapera e desde então, sua venda se torna, um espécie de lugar de onde os homens
repassavam as determinações e ordens a serem cumpridas. Tudo isto ocorre, de modo
que quando a população percebe movimentação desses homens em direção à venda do
Amância, logo, se nota uma apreensão intensa e generalizada.
Outro lugar, palco dos fatos e acontecimentos envolvendo a vida e a própria
condição humana é na marcenaria do Manuel Florêncio que, no início, tenta resistir,
mas acaba cedendo, por receio do que lhe possa vir acontecer.
Não obstante, tem-se a oficina do Apolinário, o qual demonstrou força e
resistência em atender ao que fora solicitado pelos homens da tapera. Assim, seu amigo,
Manuel Florêncio não hesitou em aconselhá-lo: “_ Você não conhece aquela gente,
Apolinário. Eles cercam de todo lado, apertam, põem a gente numa roda viva. Você vai
ver.” (VEIGA, 1995, p.55). Dessa forma, todos esses ‘microssistemas’ formam o
‘macrossistema, a célula espacial da narrativa, a cidade de Manarairema.
É notável a presença de elementos discursivos extraídos da simplicidade da
linguagem produzida pelas vozes que se articulam em José J. Veiga e, principalmente,
quando a leitura se atenta aos intervalos, os quais traduzem os acontecimentos e
situações transcorridos, bem como fazem alusões aos momentos marcantes da história
tanto do interior do Estado de Goiás, como no Brasil.
Nessa perspectiva, a maneira como o autor promove os rearranjos entre os
espaços, proporcionam entendimentos que desafiam o leitor e o toma com a expertise de
um mestre, um produtor da arte de narrar, primando pela tradição regionalista brasileira,
tanto no que concerne aos aspectos culturais, como os geográfico e político.
Há de se destacar, também, o estilo literário do autor, quando se trata de narrativas
fantásticas, envolto ao um universo regido pelo realismo fantástico e que não se
distancia das peculiaridades da cultura local, do seu regionalismo, o que favorece a
imersão em outros universos que transcendem o simples e puro imaginário popular.

693
Portanto, da linguagem simples e metafórica o autor passa a constituir outros
espaços a partir do ‘elemento estranho’ característico do realismo fantástico,
provocando o leitor a transitar entre o mundo da narrativa para o mundo externo, onde
os conflitos são os estabelecedores das condições humanas.
Nesse sentido, aduz-se, partindo do texto em apreço, que a literatura vai além
desse simples externar do real, pois a obra literária possui a prerrogativa de poder
dialogar com o mundo em que está inserida, como também poder dialogar com
dimensões caracterizadas por tempos e espaços diversos que não os da realidade.
Na obra em estudo, o autor desenvolve uma narrativa em prosa, em que figuram,
nos diversos espaços, homens e animais, sendo que estes são dotados de expressões e
comportamentos, que desencadeiam no imaginário do leitor, várias sensações e
percepções que levam a questionar o limiar entre o real e o ficcional, criando-se outro
mundo entre essas esferas, caracterizado pela incerteza, dúvida, ocasionado, de certo
modo, pela ambivalência:

Os cachorros baixaram de repente, apanhando todo mundo de surpresa. A


cidade estava engrenando na rotina do tomar café, do regar horta, do varrer
casa, do arrear cavalo, quando os latidos rolaram estrada abaixo. As pessoas
correram para as janelas, as cercas, os barrancos e viram aquela enxurrada
avançando rumo à ponte, cobrindo buracos, subindo rampas, contornando
pedras, aos destrambelhos, latindo sempre. [...] Portas batiam em toda parte,
gente gritava, criança chorava, galinhas em pânico, mães ralhavam, rezavam,
homens procurando espingardas [...]. O palco estava armado para os
cachorros, e eles o ocuparam como demônios alucinados. (VEIGA, 1995, p.
35).

Houve casos de cachorros entrando numa casa, indo direto aos quartos e
saindo com chinelas, sapatos, roupas, tudo o que pudessem agarrar com a
boca [...] outros parece que entravam numa casa apenas para descarregar a
bexiga [...]. Eram desacatos que as pessoas toleravam resignadas,
consolando-se em pensar que não há mal que sempre dure. (VEIGA, 1995, p.
36)

A espacialidade é evidenciada como o locus, no qual o narrador apresenta as


personagens e suas relações com os animais, que a todo instante se encontram em
conflito, interno e externo, chegando até mesmo constituir uma representação alegórica
dos seus comportamentos, por conta da forma como os espaços são tomados e
deslocados, havendo, assim, um desarraigamento social, uma invasão aos “territórios”,

694
tudo constituído a favor da narrativa, levando o leitor à reflexão acerca das atitudes
humanas.

A água cochichava debaixo da ponte, fazendo redemunho nos esteios,


borbulhando, espumando. Um arzinho frio subia em ondas, trazendo cheiro
de areia e folhas molhadas. Sapos e grilos competindo, donos da noite. Mas
cigarros foram fumados, os tocos jogados na água, desapontamento para os
peixes, (VEIGA, 1995, p. 2). (grifo nosso)

Percebe-se, ainda, que no romance em estudo, as histórias envolvendo as


constituindo e se personagens vão se desconstituindo numa dimensão espaço temporal,
em uma primeira ordem, no sistema macro e, na sequência, vão se desconstituindo
dando voz e legitimidade aos microssistemas, ainda, dentro da própria narrativa,
formando, assim, os arranjos entre os mundos individuais e o mundo do coletivo.
A intensidade da inquietação vivida pelas personagens, nos espaços identificados
na obra, é o elemento que permeia e nutre o romance, fazendo deste uma representação,
como modo narrativo da condição humana, identificando, hoje, o leitor da
hipermodernidade, que vive numa constante e árdua busca do seu local de
pertencimento, físico, social e político, fomentado pela condição de ter.
A obra em epígrafe se constitui valendo-se sobre essas bases narrativas e assim
proporciona ao leitor a condição para o deslocamento dentro do próprio espaço do texto,
sem se preocupar a história ou com a necessidade de manter a estabilidade da natureza
circundante. O espaço da narrativa como elemento estruturante, possui uma
representatividade essencial para o discurso narrativo ficcional. Essa categoria permite
que as personagens se movimentem e se desloquem dentro da história.
Nesse viés teremos, então, o espaço como elemento viabilizador da história na
narrativa, o narrador retirando o indivíduo do seu espaço físico, da sua comunidade
originária e filiando-o ao outro espaço social utilizando do código literário. É a busca
pelo espaço-nação, é viver uma nacionalidade distante da sua comunidade, uma força
narrativa, conforme salienta Hommi Bhabha (1998) em função da força social.
Em A Hora dos Ruminantes, a população tem seu modo de vida alterado, por um
grupo de pessoas desconhecidas, com atitudes e comportamentos diferentes dos
habitantes de Manairarema, e que movida pela incerteza, pela dúvida, pela inquietação
constante, passa a viver em função de descobrir ou pelo menos entender o que aqueles
homens pretendem e, ainda, com medo e pavor das invasões estranhas que acontecem,

695
cachorros e bois invadindo e ocupando todos os espaços da cidade, transformando toda
essa atmosfera em um ambiente insólito.

Amâncio [...] continuou falando para fora [...].


__Quem havia de dizer que Manarairema ia muda em tão pouco tempo...
Antigamente a gente vivia descansada, sossegada, dormia e acordava e
achava tudo no lugar certo, não era preciso pensar nada adiantado. Hoje a
gente pensa até para dar bom dia. O que foi que nós fizemos para acontecer
isso? [...] (VEIGA, 1995, p.47)

Destaca-se, nessa perspectiva, a concepção de espaço físico como categoria


empírica, dotada de referências, observadas e de fácil percepção pelo leitor, o que
significa referir-se ao “espaço como série de referências que, detectáveis pelos sentidos
humanos, associam-se a localização, extensão, distância, circunscrição.” (BRAND ÃO,
2013, p. 160).
Nesse viés, há de se destacar que a relação da história com a representação
espacial varia de acordo com cada época e cada cultura. A historicidade se torna mais
latente que a historiografia, evidenciando características que determinam esses espaços
e tempos, atribuindo à obra um efeito estético por meio da transcriação que eleva a obra
ao nível artístico representativo, do ponto de vista da estrutura narrativa. As
personagens são descritos como sujeitos da história narrativa, ocupando vários espaços
sociais, tornando-se seres híbridos que trazem consigo resquícios de toda uma cultura,
rastros de outras culturas.

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697
O PROCESSO SEMIÓTICO DO CONTO

Penélopy Muniz Martins Lobo (PUCGO)1

Todo conto perdurável é como a semente onde dorme a árvore


gigantesca. Essa árvore crescerá em nós, inscreverá o seu
nome em nossa memória (CORTÁZAR).

Resumo: A literatura, materializada pela língua, é uma, dentre as diversas formas de


linguagem, que o homem utiliza para se expressar. É por meio dela que o artista tem a
liberdade de criar e recriar mundos fazendo o uso particular desta linguagem, seja nas
formas lírica, dramática ou narrativa. No que se diz respeito a narrativa, apesar de o
romance, o conto, a crônica e a novela terem algo em comum, isto é, a narratividade, o
processo de significação se dá a partir de cada modalidade textual de modo singular. Diante
disso, o enfoque deste trabalho consistiu em compreender como os mecanismos de
significados são impressos a partir da estrutura do gênero conto.

Palavras-chave: Semiose; Estrutura; Conto

Sabe-se que o homem se constitui, culturalmente, por meio de sistemas simbólicos


de significações que são produzidos por um processo de semiose, ou seja, pela ação dos
signos, que representam coisas e estados do mundo. Mas para que o homem consiga dar
conta deste processo, é preciso que utilize de uma linguagem que vem determinada por
um código, isto é, a língua. Na linguagem literária, este código recebe um tratamento
particular, ou seja, o procedimento operativo é de manipulação do código. Segundo Eco,

Essa manipulação provoca e é provocada por um reajustamento da expressão


e do conteúdo; esta dupla operação, produzindo um gênero de função sígnica
altamente idiossincrática e original, vem refletir-se, de certa forma, nos
códigos que servem de base à operação estética, provocando um processo de
mutação do código; a operação completa, mesmo quando visa à natureza dos
códigos, produz com frequência um novo tipo de visão do mundo; enquanto
visa a estimular um complexo trabalho interpretativo no destinatário, o
emitente de um texto estético focaliza sua atenção nas suas possíveis relações,
de modo que tal texto apresenta um retículo de atos locutivos, ou
comunicativos, que objetivam solicitar respostas originais”(ECO, 1976,
p.222).

1
Graduada em Letras: Português/Inglês (UEG), Mestranda em Literatura e Crítica Literária
(PUCGO). Este trabalho foi desenvolvido sob a orientação da Profª Drª Custódia Annunziata Spencieri
de Oliveira Contato:pmuniz.lince59@gmail.com.

698
A modificação do código gera um movimento incomum de interpretação, pois
diferente do que acontece no texto denotativo, onde os sentidos são únicos, no texto
literário eles se tornam plurais despertando associações e sugestões no leitor,
culturalmente estabelecidas.
É oportuno trazer à tona o termo cultura, pois Geertz, antropólogo contemporâneo,
em sua obra “A Interpretação da Cultura”, postula uma teoria interpretativa da cultura,
definindo-a como um fato essencialmente semiótico, pois as estruturas significantes de
que o homem se serve, se realizam na linguagem, ou seja, é por ela que todos os
significados são construídos e interpretados. E a literatura, esta máquina cultural de criar
e construir significados, arquitetonicamente complexa, ao invés de impedir uma
aproximação ao texto, ela imprime, justamente, uma força superior aos demais textos, e
seus significantes, socialmente compartilhados, elevarão o processo de semiose.
A partir dessa conduta laboral com os códigos, de que o texto estético se serve, o
processo de semiose se configura de maneira diferenciada, e Eco esclarece como esse
processo acontece durante a leitura deste tipo de texto. A organização laboral dos signos
atrai a atenção do destinatário pondo-o em situação de orgasmo interpretativo, levando-
lhe a interrogar as flexibilidades e as potencialidades do texto que interpreta como as do
código a que faz referência. (ECO,1976). A leitura se configura nesses moldes devido à
construção da linguagem que se torna altamente ambígua e metafórica, quando em vez
de gerar a desordem, chama a atenção para si mesma. Diante disso, o texto torna-se auto-
reflexivo, pois a reflexão do leitor não se limita a um universo posto diante dele, mas
também a como ele foi constituído.
No que diz respeito à narrativa literária, enquanto sistema semiótico, é organizada
por elementos que formam, no plano sintagmático e linear, o seu tecido ficcional ou
mesmo o mimético, que estruturada por meio do discurso verbal transmudado, tende a
acrescer a experiência do processo de semiose.
Apesar de o romance, o conto, a crônica e a novela terem algo em comum, isto é, a
narratividade, o processo de significação se dá a partir de cada modalidade textual de
modo singular. Sendo assim, o enfoque deste trabalho consiste em compreender como os
mecanismos de significados são impressos a partir da estrutura do gênero conto. Para isso
conta-se com o respaldo teórico de estudiosos como: Eco (1976); Poe (1986); Cortázar
(1993); Gotlib (1999); Kiefer (2004) e Piglia (2004).

699
O Processo de semiose no conto

O ato de tecer histórias sempre se fez presente na vida do ser humano. Tanto que é
difícil precisar quando foi contada a primeira história. Percebe-se, então, que este ato é
tão antigo quanto a existência do homem.
Dentre as inúmeras formas de narrar, a narrativa curta oral, na antiga tradição,
cumpria a tarefa de transferir conhecimentos religiosos, valores morais e éticos ou
concepções, os quais eram repassados de geração em geração, construindo uma cultura.
Sendo a narrativa um produto cultural universal, o conto narrativo, nos primórdios,
além de ter ganho existência na modalidade oral, era transmitido pela memória dos
homens. Segundo Kiefer, em “A Poética do Conto”:

Para ser lembrado e para poder ser recontado, incorporou um modelo estrutural
repetitivo, baseado na rígida causalidade de começo, meio e fim, na linguagem
rítmica melodicomnemônica, que o acompanha ainda, que, de certa forma,
aproxima-o da lírica, a ponto de chamar-se a certos contos sem enredo definido
de poesia em prosa ou prosa poética. Suas figuras ou motivações, extraídos da
vida prática, ou do fabulário mítico, conservaram um caráter pedagógico,
moral e religioso durante séculos, marcados que foram pela exemplaridade.
Enquanto a tragédia transformava-se no drama e a epopeia no romance, a
história curta, em qualquer de suas manifestações – forma oral, popular ou
erudita manteve suas características primitivas: brevidade, unidade e
totalidade. (KIEFER, 2004, p.137). (Grifo meu).

Já impresso, o conto literário utiliza de seus traços fixos para se reinventar. Com
técnicas aprimoradas, e a memória liberada do esquematismo necessário ao arquivamento
mental, pôde dedicar-se à complexificação artística. Torna-se, então, um gênero mais
intricado, sofisticado, isto é, artístico, e o enfoque não se dá mais apenas no que se conta
(fábula), mas em como (trama) se conta. Ou seja, o contista passou a se preocupar com o
processo de construção do texto, a fim de ressaltar-lhe os próprios valores enquanto
gênero com características próprias, garantindo-lhe sua literariedade.
Tal pensamento corrobora com o que Poe (1986), criador e teórico do conto
moderno, propõe em sua Filosofia da Composição, ao desconstruir a ideia de que a
expressão artística se concretiza a partir da capacidade inata que o artista possui.
Ao rejeitar o conceito de intuição, o crítico argumenta que a construção de uma boa
escrita do texto artístico se dá através de um processo metódico e analítico, e não como

700
uma produção natural advinda da pura intuição. Há construção inspirada; e por ela, a
própria estrutura promoverá um processo de significação.
Enquanto obra de arte, a matéria verbal do conto tornou-se um trabalho racional e
consciente no que tange aos seus meios expressivos. Desvinculada de seu caráter
utilitário, como qualquer obra estética, este gênero textual tornou-se um meio de levar o
homem a refletir sobre sua condição no mundo.
Além disso, é importante ressaltar que essa forma breve e condensada possui uma
alta capacidade de ‘fisgar’ o leitor de tal modo, que ele só consegue desprender-se do
texto após a leitura de sua última página. Mas qual seria a fórmula do conto para entrelaçar
o leitor em sua teia diegética?
Gênero de tão difícil definição, tão esquivo nos seus múltiplos e antagônicos
aspectos, e em última análise, tão secreto e voltado para si mesmo, caracol da
linguagem, irmão misterioso da poesia em outra dimensão do tempo literário
(CORTÁZAR, p.149, 1993).

Diante da fala de Cortázar se faz oportuno esclarecer que estudiosos do gênero não
chegaram a uma definição exata do conto. Apesar de sua indefinição, existem alguns
traços, os quais lhe são inerentes, e tais características, alguns estudiosos souberam
decifrar com louvor a ponto de considerá-las elementos imprescindíveis à construção
dessa forma breve.
Apesar das transformações sofridas ao longo do tempo, existem elementos, do
ponto de vista composicional e estrutural, que são comuns a todos os contos. Vladimir
Propp, em Morfologia do Conto, constatou, nos contos populares russos, que as
personagens das histórias, variando em idade, sexo, características gerais etc, realizam,
em histórias distintas, ações idênticas ou equivalentes. Apesar de serem contos populares,
tal estudo contribuiu para a compreensão da natureza dos contos que nasceriam
posteriormente.
É neste cenário da modernidade, formado por diversas transformações, quando a
incessante busca pela organização racional e estrutural do mundo e dos saberes estava a
todo vapor, que o estudo do conto, enquanto fenômeno cultural, ganha novos rumos, pois
não deixou de fazer parte deste conjunto de saberes, que o homem moderno visava
compreender. E é a partir desta necessidade que o Norte americano, Poeta, Contista e
grande Crítico literário, Edgar Allan Poe, lança suas bases teóricas do conto moderno.

701
Atacando uma visão tradicional de literatura, Poe propõe uma literatura que
coadune com a aceleração que a modernidade impunha. “Refiro-me a narrativa curta, cuja
leitura atenta requer de meia a uma ou duas horas. “(POE, apud CORTÁZAR,1993p.121).
O literato, então, estabelece dois elementos que, a priori, devem ser pensados na
construção e composição do conto literário: a extensão e a unidade de efeito ou impressão
total. Isso significa que sua tese estabelece uma relação entre extensão e efeito, que
imprime reações no leitor. Este efeito resulta da brevidade, intensidade e tensidade
presentes na estrutura interna do conto, que por si mesma é capaz de provocar reações no
leitor num espaço pequeno de tempo, e de forma intensa. Nesta perspectiva, dada a sua
extensão, a força do conto emerge de sua totalidade.
Apesar da importância que Poe deu à extensão, o mesmo percebeu que a eficácia
deste gênero não depende somente deste elemento, mas da sua intensidade como
“acontecimento puro”, isto é, todo comentário, descrições preparatórias ou diálogos que
formam digressões dentro da obra não cabe dentro do corpo de um conto.
Isto posto, todo elemento no conjunto textual exerce uma função; nada é supérfluo
e a lógica de sua construção consiste em conseguir com o mínimo de meios, o máximo
de efeitos para que a leitura ocorra de uma só assentada, evitando, assim, a dissolução do
efeito único, o qual se manifesta no leitor tão intensamente.

No conto breve, o autor é capaz de realizar a plenitude de sua intenção, seja


ela qual for. Durante a hora da leitura atenta, a alma do leitor está sob o controle
do escritor. Não há nenhuma influência externa ou extrínseca que resulte de
cansaço ou interrupção. […] concebido, com cuidado deliberado, um certo
efeito único e singular a ser elaborado, ele então inventa tais incidentes e
combina tais acontecimentos de forma a melhor ajudá-lo a estabelecer este
efeito preconcebido. Se sua primeira frase não tende a concretização deste
efeito, então ele falhou em seu primeiro passo. Em toda a composição não deve
haver nenhuma palavra escrita cuja tendência, direta ou indireta, não esteja a
serviço deste desígnio preestabelecido. (Poe apud GOTLIB,1995, p.34;35):
(grifo meu).

Nota-se, portanto, uma preocupação do contista concernente à preparação dos


meios verbais, sempre levando em conta seu leitor e o efeito que poderá causar nele. O
efeito, ao qual Poe se refere, difere do efeito do romance, pois enquanto neste gênero há
um acúmulo de efeitos, no conto, o único efeito, ocorre de maneira súbita e de uma vez
só. Estabelece-se também, uma relação dialógica entre autor/texto/leitor, visto que a
atuação do sujeito autor, em relação aos procedimentos criativos utilizados para compor

702
a obra, se revela de modo tão atrativo e envolvente, que culmina no “sequestro”
momentâneo do leitor. O texto, neste sentido, funciona como uma espécie de ima, com
forças altamente atrativas, direcionadas a quem se dispõe a lê-lo e em seguida modifica-
lo.
Em artigos, ensaios, prefácios, notas às traduções, o escritor Argentino Júlio
Cortázar também buscou desvelar os mecanismos de funcionamento da história curta,
agregando novas fórmulas teóricas e preceptísticas às já estabelecidas pelo autor
Americano. Porém, Cortázar em seu ensaio “Alguns Aspectos do Conto”, refere-se a este
estilo de prosa, convencido das ideias de Poe, como um gênero de tão difícil definição,
mas que segundo ele,
Se não tivermos uma ideia viva do que é o conto, teremos perdido tempo,
porque um conto, em última análise, se move nesse plano do homem onde a
vida e a expressão escrita dessa vida travam uma batalha fraternal, se me é
permitido o termo; e o resultado dessa batalha é o próprio conto, uma síntese
viva ao mesmo que uma vida sintetizada, algo assim como um tremor de água
dentro de um cristal, uma fugacidade numa permanência. Só com imagens se
pode transmitir essa alquimia secreta que explica essa profunda
ressonância que um grande conto produz em nós, e que explica por que há
tão poucos contos verdadeiramente grandes. (CORTÁZAR, 1993, p.150)
(grifo meu).

Desta forma, é por meio da brevidade, da síntese, que o leitor alcança o terceiro e
último estágio de interpretação dos fenômenos, como classifica Pierce, ao nível da
Terceiridade, e também de acordo com Barthes, ao terceiro sentido, isto é, à leitura da
significância. “O terceiro (sentido), aquele que é demais, que se apresenta como um
suplemento que minha intelecção não consegue absorver bem, simultaneamente teimoso
e fugidio, proponho chamá-lo de sentido obtuso” (BARTHES,1990, p.47). Sua brevidade,
ressaltada na tese de Poe, é o que diferencia o conto das páginas de um romance e de
tantos outros textos.
Também Cortázar chama a atenção para a extensão do conto ao referir-se a sua
forma “sintetizada”.
O romance se desenvolve no papel, no tempo de leitura em outros limites que
o esgotamento da matéria romanceada; por sua vez, o conto parte da noção de
limite, e em primeiro lugar, de limite físico, de tal modo que na França, quando
um conto ultrapassa as vinte páginas, toma já o nome de nouvelle
(CORTÁZAR, p.151).

Por conto significativo, entende-se aquele que consegue ultrapassar os limites da


estória, aparentemente comum, e tornar-se suplementaridade. Esse ultrapassar das
fronteiras se forma como uma “explosão de energia espiritual que ilumina bruscamente

703
algo que vai muito além da pequena e às vezes miserável história que conta. ”
(CORTÁZAR, 1993, p.153). Com efeito, o conto literário torna-se capaz de transmitir
valores através de temáticas que abordem, com profundidade, tanto os assuntos de ordem
individual quanto os de ordem universal, em uma escrita provida de tensão, em que os
fatos são recortes vívidos de vida, e são expostos de modo intenso. Os contos que deixam
suas marcas no leitor são exemplos de contos significativos.

A extensão, assim como o recorte da temática, não são os únicos elementos


responsáveis pela eficácia do conto literário, mas também o arranjamento do código, ao
tratamento literário com que se dá forma ao tema, e à técnica empregada para desenvolvê-
lo. E só se consegue com os elementos de intensidade e tensão.

A intensidade no conto é o próprio acontecimento (discurso em ação). Seguindo o


critério da economia dos meios, elimina-se o discurso descritivo a fim de que a coisa dita
se presentifique pelo discurso e não se crie o discurso sobre a coisa. E essa força “joga o
leitor de chofre na narrativa, em que os fatos despojados de toda preparação, saltam sobre
nós. ”

Sim! Tinha andado e ando muito enervado, mortalmente enervado; mas


porque haveis de dizer que sou louco? A doença aguçou-me os sentidos;
nem os destruiu nem os embotou. O sentido da audição foi o mais
exacerbado. Ouvi tudo do céu e da terra. Ouvi muitas coisas do inferno.
Como posso, pois, estar louco? Escutai...e observai de maneira saudável,
a maneira calma como vos conto toda a história. [...] (grifo meu) (POE,
p.299, 2014).

Esta passagem, extraída do conto “O coração Revelador”, de Poe exemplifica como


se configura a intensidade na malha narrativa. Verifica-se que já nas primeiras linhas do
conto o leitor se vê dentro da trama, e as palavras grifadas são índices que funcionam
como uma espécie de guia ao leitor que se adentra ao labirinto desta tessitura tão
convidativa. Observa-se que o próprio narrador insere o leitor na trama a partir do
momento que se estabelece uma situação de interlocução dentro do texto. Ao dialogar
com o leitor é possível verificar que o narrador assume o papel de depoente dos fatos dos
quais vivenciou, enquanto o interlocutor se torna testemunha dos fatos narrados.
No que tange à Tensão, seu papel consiste em aproximar o leitor do que se conta, à
medida que a estória está sendo enunciada. A forma como o enredo vai se desenredando
faz com que o leitor, mesmo estando distante do clímax, mantenha-se, em tensão, preso
à narração, ao discurso. Conforme Cortázar, “a tensão organiza as forças que os

704
desencadeiam, na malha sutil que os precedeu e os acompanha. ” (CORTÁZAR, 1993, p.
157).
Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo
blusão azul marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinha um jeito jovial
de estudante.
- Minha querida Raquel.
Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos.
- Veja que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes.
Que ideia, Ricardo, que ideia! Tive que descer do taxi lá longe, jamais ele
chegaria aqui em cima.
Ele Riu Malicioso e ingênuo (TELLES,1982, p.88). (grifo meu).

Este fragmento retirado do conto “Venha ver o pôr do Sol”, de Lygia Fagundes
Telles, publicado em 1988, ilustra com louvor a forma como a tensão vai sendo construída
na malha narrativa. Observa-se que os signos os quais descrevem o lugar e as personagens
são dotados de sentidos ambíguos capazes de gerar a tensão e a expectativa no leitor. Isto
se deve a densidade da linguagem, que engendra questionamentos no interlocutor
deixando-lhe refém do texto até que todas suas provocações (advindas do texto) lance
(diante das diversas possibilidades) o seu olhar (leitura). Nesse sentido, entende-se que a
tensão vai sendo gerada através da leitura do não dito, do que fica nos interstícios que
leva o leitor a imaginar, a ir além do que está na superfície. Ademais, é o que leva a outra
margem, sempre a construir-se.
Nota-se que justamente por ser o conto uma narrativa curta, sua organização
estrutural se materializa em elementos que promovem a tensão e a intensidade, pois são
organizados de modo tão condensado e intenso, que se tornam responsáveis pela
aceleração de significantes que se acumulam rumo ao clímax, que culmina numa força
totalizadora, dando vida ao efeito único, tão defendido por Poe.
As breves considerações expressas neste trabalho, buscaram analisar como se dá o
processo de semiose a partir da estrutura do gênero literário conto, destacando alguns
elementos que são imprescindíveis ao corpo de qualquer conto significativo, sendo eles a
extensão, a intensidade e a tensão. Para que tais afirmações tivessem valor, contou-se com
o respaldo de teorias construídas por teóricos que não se limitaram leitura e a construção
de contos, mas que se dedicaram a compreender a natureza dessa forma de expressão
breve.
A partir dessas contribuições, pode-se entrever que a natureza do conto é altamente
dissimulada, pois a linha aparentemente reta da realidade sintagmaticamente arquitetada
no discurso da trama, não apenas substitui o que fica omitido, mas constrói-o por meio

705
de uma espécie de elipse entranhada no tecido narrativo. E o próprio Ricardo Piglia,
teórico e contista contemporâneo, posterior a Poe e Cortázar soube conservar a leitura
que se fez deste fenômeno. Conforme Piglia, “o conto é um relato que encerra um relato
secreto. Não se trata de um sentido oculto que dependa da interpretação: o enigma não é
outra coisa senão uma história contada de um modo enigmático. ” (PIGLIA, 2004, p. 91).
Logo, ao adentrar no universo da contística, observou-se que suas características
estruturais próprias promovem a semiose por meio da unidade de efeito e de impressão.
Isso se deve ao procedimento de condensação e à forma de organização dos elementos
(categorias) que formam o enunciado narrativo, os quais se tornam promotores de um
clímax surpreendente, produzido pela aceleração do processo de semiose como um todo.

Referências

BARTHES, Roland. O Óbvio e o Obtuso: Ensaios Críticos III. Tradução de Léa Novaes.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

CORTÁZAR, Júlio. Valise de Cronópio. Tradução Davi Arrriguci Jr. e João Alexandre
Barbosa; organização Haroldo de Campos e Davi Arriguci Jr. 2. ed. São Paulo:
Perspectiva, 2008.

Eco, U. (1976). Tratado de Semiótica Geral (Danesi, A.P. & Cardoso, G.C., Trads). São
Paulo, Ed. Perspectiva,1933.).

GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do Conto. 7. ed. São Paulo: Ática, 1995.

KIEFER,Charles. A poética do Conto.Porto Alegre: Nova Prova, 2004.

PIGLIA, Ricardo. Teses sobre o conto. In: ____. Formas breves. Trad. José Marcos
Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 87-94.

POE, Edgar Allan.Todos os Contos Edgar Allan Poe. Tradução J.Teixeira de Aguilar;
Lisboa: Temas e debates-Círculo de leitores, 2014.

POE,Edgar Allan. A filosofia da Composição. In: O corvo de Edgar Allan Poe. São Paulo:
Expressão,1986.

TELLES, Lygia Fagundes. Antes do Baile Verde. Rio de Janeiro. Livraria José
Olimpio,1982.. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

706
707
TÍTULO: A POÉTICA DE WALT WHITMAN E CARLOS DRUMMOND DE
ANDRADE

Mestra: Rosângela Soares de Almeida Ribeiro (PUC-GOIÁS)


Orientador: Drº Divino José pinto (PUC-GOIÁS)

Resumo:

O presente trabalho tem por objetivo fazer uma comparação das poesias de Whitman Walt no
livro Folhas de Relva e de Carlos Drummond de Andrade no livro A Rosa do Povo. Fazendo
um estudo com as poesias de ambos comparados à grandeza universal e atemporal das obras
whitmanianos e drummondianos. Os poemas de Whitman apresentam com uma gama de temas,
como aspectos sociais, culturais, econômicos da vida referentes à sociedade. Drummond
desenvolveu nas suas poesias o caráter existencial, a vida cotidiana, a tecnologia. Whitman e
Drummond apresentam aproximações distintas, mas tratando dos seus textos eles se aproximam
pelas múltiplas abordagens temáticas de tipologia distintas e da grande contemplação que
ambos tinham pela vida, a natureza e as pessoas.

Palavras-chave: poesia; atemporalidade; ruptura; transcriação.

O objetivo deste artigo é fazer uma abordagem referente aos dois poetas: Walt
Whitman e Carlos Drummond de Andrade. Correlacionando as poesias de cada um, as
diferenças e as consonâncias que ambas apresentam.
Estudar Whitman e Drummond é fazer uma fazer uma investigação das
multifaces da linguagem e da vida que sua poesia proporciona ao leitor, trazendo à tona
suas mais várias nuances.
Os poemas drummondianos, que nos levam a um balanço da vida e um
autoquestionamento interior e exterior, uma vez que sua poesia nos inquieta. Assim,
percebemos que a arte de cada um dos autores nos indaga incessantemente. Isso é
perceptível nas escrituras dos referidos poetas.
Whitman e Drummond são de épocas diferentes, mas apresentam uma grande
proximidade pela várias abordagens temáticas das suas poesias, como por exemplo: em

708
relação às pessoas, a pátria e de como ambos contemplavam a natureza. Ambos estavam
conectados a tudo que estavam acontecendo no seu país.
Segundo o autor Ricoeur (2000) “metaforizar é ver, contemplar, lançar um golpe
de vista para o semelhante”.
Assim foi Whitman com as suas poesias, o poeta que poetizava com grande
liberdade as suas escrituras, sempre a favor das pessoas e demonstrava prazer pelas
coisas do cotidiano, como as preocupações, angústias, incertezas e idealizava um mundo
melhor. Whitman foi um incansável observador de tudo que o rodeava e tudo
transformava em belas poesias.
Em relação a Drummond, podemos certificar da sua originalidade como afirma a
citação a seguir:

E de fato Drummond é o grande poeta da sintaxe; não apenas pela habilidade


inventiva que demonstra no tratamento e na combinatória interna das
palavras da frase. Sabe criar com pouco um ritmo próprio, engendrando
admiráveis sequências verbais. É senhor absoluto do instrumento de ofício.
Na verdade, por associações inesperadas (num sentido amplo, mais maleável
do que o da sintaxe da gramática tradicional), ele gera e organiza as relações
entre verso e universo, por tudo o que é capaz de trazer de fora, do mundo e
da linguagem, e coadunar, ritmicamente no interior do poema.
(ARRIGUCCI, 2002, p. 31)

Conforme o autor (Arrigucci) Drummond apresenta uma grande competência na


sua grande arte de escrever, soube a arte combinatória de todas as palavras. Ele sabia
como poucos a articulação das palavras milimetricamente.
O poeta Drummmond soube dosar na sua arte de escrever, tudo relacionado ao seu
tempo, as suas expectativas, sonhos, amores e em relação a sua terra natal, etc.

Atemporalidade nas poesias de Whitman e Drummond

709
O impulso poético que Whitman apresentou nos seus poemas com tom de novo e
com o poder de nos deixar admirados pelas suas escrituras, visto que demonstra nos
seus poemas a sua marca de uma nova abordagem acerca de tudo, que para a sua época
a maioria das pessoas não conseguiu entender, mas que hoje carrega uma multidão de
admiradores e que é muito lido e que serve de instrumento de pesquisa para muitos
universitários.
Carlos Drummond de Andrade e Walt Whitman apresentam uma farta
semelhanças nos seus textos em a Rosa do Povo e Folhas de Relva apresentando desta
maneira uma forma refinada nas suas escrituras.
Podemos observar as peculiaridades em Whitman e Drummond, centrando na
sua forma de composição de seus versos, em Folhas de Relva (1845), de Walt Whitman,
com os seus versos livres, e A Rosa do Povo (1945), de Drummond, que rompe com a
sua própria maneira antiga de compor versos, seguindo a maneira de Whitman com a
poesia sem rimas; o poeta brasileiro, que retoma esta tradição, com um novo olhar e
versar que se consolida como um grande marco desse período.
Nesta perspectiva, Whitman reflete sobre Drummond e seus sucessores com a
sua imensurável arte de compor seus textos, o que vem sendo retomado e transcriado
inclusive na atualidade na arte de versejar.
“Como a linguagem do poeta é sua postura, sua relação com a linguagem da
poesia, medimos sua postura em relação à postura do seu precursor”. (BLOOM, 2003,
p. 91).
Bloom (2003) afirma que a conduta e a forma de expressar do poeta é
proporcional à do seu precursor. Neste construto, Drummond em A Rosa do Povo
(1945) seguiu uma nova maneira de compor seus versos, ou seja, a maneira do
Whitman. Tais versos mencionam não só das circunstâncias brasileiras, mas também
universais.
O poeta Drummond com a nova estética ampliada em o livro A Rosa do Povo,
com uma nova tradição com inovações seguindo a maneira de Whitman.
Estudar Whitman e Drummond acresce a cada novo poema a magnitude de seus
pensamentos junto a uma nação que ambos ante ao seu tempo deixaram uma mensagem

710
tanto de amor pela família, amigos e no que se refere à crítica a política aos governantes
ou algo que eles pressentiam que poderiam acontecer.
Os poetas investigados apresentam em cada poesia o insight de uma maneira a
sempre acrescentar algo novo.
Desse modo, os estudos da Literatura contribuem, de forma significativa
para as transformações observáveis no âmbito social e para a cidadania, uma vez que
estes podem propiciar ao estudioso a possibilidade de alcançar a sua emancipação como
leitor crítico.
Os manuscritos dos poetas apresentam uma estética modernista em que perdura
um marco das suas composições poéticas. Em Whitman e Drummond a aproximação de
seus textos em A Rosa do Povo e Folhas de Relva com a nova maneira de compor os
versos (livres) com a mesclagem de estilos soma com a nova abrangência de um novo
leitor com um novo olhar.
“Seu contemporâneo, Whitman, permanece adiante de nós por sua nuance e pela
evasividade metafórica.” (BLOOM, 1994, p. 284)
Conforme Bloom (1994) Whitman está à nossa frente, pela sua performance e
altivez na visão e composição de seus versos e a cada leitura dos seus poemas pode-se
notar essa fruição que são a leitura de seus poemas.
Os dois grandes significados da Literatura brasileira e talvez mundial apresentam
novas combinações nas suas composições poéticas, visto que ambos nasceram em
épocas tão distantes, mas ao apreciar as suas escritas, podemos sentir uma grande
aproximação desses autores em relação a quase tudo em relação a sua vastidão de visão
de mundo, ao amor e outras temáticas.
O discurso poético de Whitman e Drummond aponta dualidades com elegância e
vivacidade demonstrando vários contextos, que ao lê-las percebemos as conexões nas
obras whitmanianas e drummondianos.
Os textos a seguir mostram algumas similaridades de temas e atemporalidades
presentes na poesia dos dois autores:

Na praia, sozinho, à noite.

Quando a velha mãe balança para a frente e para trás,

711
[entoando sua canção vigorosa,
Quando assisto à brilhante estrela que cintila,
[reflito sobre a chave dos universos e sobre o futuro.

Uma vasta similitude engrena todas as coisas,


Todas as esferas, as desenvolvidas, as mirradas, as pequenas,
[as grandes, os sóis, as luas, os planetas,
Todas as distâncias de lugares, não importando quão longínquos,
Todas as distâncias do tempo, todas as formas inanimadas,
Todas as almas, todos os corpos viventes embora tão diferentes,
[ou de mundos diferentes,
Todos os processos gasosos, aquáticos, vegetais, minerais,
[os peixes, as criaturas,
Todas as nações, cores, barbarismos, civilizações, línguas,
Todas as identidades que existiram ou possam existir
[neste globo ou em qualquer globo,
Todas as vidas e mortes, todo o passado, o presente, o futuro,
Essa vasta similitude os abarca, e sempre os abarcou,
E há de abarcá-los para sempre e solidamente envolvê-los e contê-los.
(WHITMAN, 2012, p. 265)

Na poesia de Whitman “Na praia, sozinho, à noite” o eu lírico observa a velha


mãe que nina o filho e ao mesmo tempo ele faz autorreflexão consigo perante tudo que
existe no universo.
No primeiro, verso eu poético observa o céu e vê uma estrela fazendo
questionamentos acerca do que está por vir, as incertezas, o futuro. Já no segundo verso
a poética de Whitman vê uma similaridade de tudo que nos envolve e também a
natureza, ou seja, estamos envolvidos a tudo e a todas as coisas.
Nota-se a repetição do pronome indefinido “todas” na maioria das linhas do
poema, ratificando que mesmo perante as distâncias “nós” há conexão, semelhança a
tudo que existe na natureza, como podemos observar nas últimas linhas a seguir do
poema:

712
[...] Todas as vidas e mortes, todo o passado, o presente, o futuro,
Essa vasta similitude os abarca, e sempre os abarcou,
E há de abarcá-los para sempre e solidamente envolvê-los e contê-los.[...]
(WHITMAN, 2012, p. 265)

Percebe-se na linguagem poética de Whitman atemporalidade presente em cada


linha do poema, podemos constatar esse imenso universo que é o ser humano e a
natureza as semelhanças existentes entre ambos.
Análise a seguir da poesia de Drummond:

Consolo na praia

Vamos, não chores.


A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.


O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.


Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,


em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.


À sombra do mundo errado

713
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias


precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.
(DRUMMOND, 2007, p. 181)

O poema “Consolo na praia” apresenta características contemporâneas, a voz


poética fala das angústias e sofrimentos pelas pessoas daquelas circunstâncias.
O poema começa com versos que manifesta ordem, no modo verbal imperativo,
como podemos observar: “Vamos, não chores./A infância está perdida./A mocidade está
perdida”.
Relata dois momentos da vida que passaram: a infância período de grande magia
está perdida, a juventude época de tudo sonhar, fantasiar aventuras e descobertas, está
perdida. O eu poético mostra a insatisfação.
Mas cabe ressaltar que mesmo o eu poético demonstrando insatisfação do que
passou, destaca que há vida, há confiança, mesmo perante as derrotas. “O primeiro amor
passou./O segundo amor passou./ O terceiro amor passou.”
Podemos notar a repetição do verbo no passado “passou” e “perdestes” e do
advérbio de negação “não” presentes em várias linhas do poema, dando a ideia de
desesperança. Mas o poeta vai se demonstrando esperançoso ao final de cada lamúria.
O poema chama a atenção às tradições familiares da época, o conservadorismo
de uma família, a importância que tinha uma vida familiar.
O eu lírico deixa a perceber que perdeu algo que é o “amigo” e que deixa um
vazio.
O poema relata muitas perdas, como por exemplo, na última linha do primeiro
verso: está tudo perdido: “[...] mas a vida não está perdida”. No final do segundo verso
fala dos amores que já passaram [...] mas “mas o coração continua”. No terceiro verso
perdeste um amigo [...] ”mas tens um cão”.

714
No quarto verso, o eu lírico menciona acerca das palavras que muitas das vezes
machucam, [...] ”mas o humour?” Já no penúltimo verso a voz poética lamuria do
mundo errado, da justiça que não se resolve, [...] ”mas virão outros”.
Na última estrofe o eu lírico resume que tudo deveria ser jogado fora, destruído,
ou seja, o eu poético deixa subtendido a ideia de recomeçar, de tentar novamente,
mesmo diante as dificuldades, ele demonstra esperanças.
Os dois poemas “Na praia, sozinho, à noite” (Whitman) e “Consolo na praia”
(Drummond) apresentam temas parecidos referentes apenas aos lugares (praia) e as
crianças “chorando”, mas com características diferentes ao contexto de cada texto.
O primeiro poema de Whitman o eu lírico observa a mãe que embala o filho na
praia e faz questionamentos acerca de tudo que existe no universo versus ser humano,
que para ele há semelhanças entre tudo.
Já no segundo poema de Drummond o eu lírico faz questionamentos sobre o
passado, referentes a várias coisas, mas deixa explícito que há esperança, que há sempre
um recomeço.
Os poetas Whitman e Drummond se interligam no processo de seus textos nos
referidos livros Folhas de Relva e A Rosa do Povo, apresentando homologias entre os
seus textos, a modernidade sempre presente, mostrando-nos nas suas obras uma variada
conotação e uma amplitude de temas e a presença de uma lírica moderna nos seus
poemas.
Nesse sentido, notamos em Whitman e Drummond processos modernistas que
relatam o universo heterogêneo de ambos, que podemos notar em seus mais variados
temas que os dois abordam os seus estilos de uma forma poética: “A lucidez do poeta é
capaz de dar resultado em um campo apenas, o campo das palavras”. (LIMA, 1968, p.
184)
Segundo o autor (1968) nesse sentido o poeta é aquele que transmuda os seus
sentimentos ou em relação a qualquer temática através de poesia, sendo capaz através
do poetar levar a sua mensagem para todos.
Esse foi o caminho percorrido pelos dois poetas Whitman e Drummond que
muito fez das suas escrituras se tornarem um canto coletivo que foi influenciado e se
tornaram influências a outros escritores, como podemos perceber nas palavras de Bloom
a seguir:

715
Ora, nada aconteceria, simplesmente nada. Não se pode escrever, ensinar,
pensar e nem ler sem imitação, e o que imitamos é o que outra pessoa fez, o
que ela escreveu, pensou ou leu. Nossa relação com o que informa aquela
pessoa é a tradição, pois a tradição é a influência que se estende além de uma
geração, um transportar da influência. (BLOOM, 2003, p. 50)

Segundo o autor (2003) tradição é o novo poeta ciente do seu precursor e


compelido do ensinamento em relação ao seu antecessor, ou seja, ele terá sempre como
um ponto de referência a “tradição” daquele que lhe servira de modelo, no caso de
Drummond a maneira de Whitman no seu livro A Rosa do Povo com os seus poemas
reestruturados.
As continuidades das escrituras de Drummond no livro a A Rosa do Povo são de
escrituras modernistas e vale ressaltar, que seus poemas são reveladores de temáticos
presentes na nossa vida, ou seja, no momento de agora.
Os poetas Whitman e Drummond o olhar, o caminhar de ambos demonstram nos
referidos textos uma poética aproximativa e reveladora, nos traz todo o sabor de uma
poesia contemporânea.

Conclusão

Notou-se que a poesia whitmaniana e drummondiana apresenta uma


vastidão de interpretações, apresentando em seus textos uma lógica de pensamento e a
interatividade entre texto e leitor. Ambos apresentam imensurável visão de futuro e a
verossimilhança no seu fazer poético, o que tornam seus textos atemporais. Neste
enfoque, Whitman e Drummond não limitaram suas escritas a um público ou a um
tempo, mas as fizeram abrangentes, abarcando as mais variadas classes pessoas e
gostos.

Referências

716
ARRIGUCCI Jr., Davi. Coração Partido-Uma Análise da Poesia Reflexiva de
Drummond.São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

ANDRADE,Carlos Drummond de. A Rosa do Povo. 43 Ed. Rio de Janeiro: Record,


2008.

________.Poesia Completa. 1 Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Biografia. https://pt.wikipedia.org/wiki/

ANDRADE, Carlos Drummond de. https://www.google.com.br/

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da Poesia. Ed. Cultrix da Universidade de São


Paulo,1977.

BLOOM, Harold. Um Mapa da Desleitura. 2 Ed. Rio de Janeiro: Imago, 2003.

________. O Cânone Ocidental. 2 Ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 1994.

GLEDSON, John. Poesia e Poética de Carlos Drummond de Andrade. São Paulo:


Duas Cidades, 1981.

LIMA, Luiz Costa. Lira e Antilira. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1968.

RICOEUR, Paul. A Metáfora Viva. 1 Ed. São Paulo: Loyola, 2000.

WHITMAN, Walt. Folhas de Relva. 2 Ed. Martin Claret: Madras, 2012.

WHITMAN,Walt. Biografia. https://pt.wikipedia.org/wiki/

http://pessoal.educacional.com.br/up/4740001/7255740/Inquietudes%20na%20poesia%
20de%20Drummond%20-%20Antonio%20Candido.pdf.

717
718
OU SEJA, ARA: UMA PERSPECTIVA PSICANALÍTICA

Joyce Bacelar1

Resumo: Este trabalho se propõe a fazer uma leitura do romance Ara (2016), da escritora
portuguesa Ana Luíza Amaral, por uma perspectiva psicanalítica, explorando a forma como o
território ficcional não nomeado aproxima-se da experiência do inconsciente, uma vez que escapa
tanto à representação como à apreensão. Para tanto, no lugar de procurar responder “o quê” o
texto literário pode nos dizer, tenta-se uma aproximação sobre “como” a escrita pode ser
reveladora no que diz respeito aos instantes de verdade do inconsciente.
Palavras-chave: Ara; Ana Luíza Amaral; Perspectiva psicanalítica; Inconsciente.

A aproximação do campo da literatura sempre foi profícua para a teoria


psicanalítica. Freud tomou a literatura como um lugar de inscrição do saber inconsciente,
que permite um modo de acesso ao impossível e indizível do real. Além disso, o interesse
de Freud no texto literário despertou infinitas possibilidades de interlocução, permitindo
que o diálogo entre a literatura e a psicanálise não cessasse de ser aprimorado. Constata-
se que, desde então, estudiosos do campo da psicanálise procuram na literatura um acesso
a momentos de revelação do inconsciente.
A ficção aproxima-se da experiência do inconsciente na medida em que trafega por
um território não nomeado, que escapa à representação. É possível dizer que o escritor
criativo busca meios de dar conta do indizível. Freud viu nesse território um acesso
privilegiado à verdade psíquica e fez do escritor criativo um interlocutor ao longo da sua
obra, pois, assim como o poeta, ele queria beber “em fontes ainda não [...] acessíveis à
ciência” (FREUD, 1907/1996, p. 18). As referências literárias, no texto freudiano, muito
além de servirem como exemplos ilustrativos para a sua teoria, revelam momentos de
verdade do inconsciente (ASSOUN, 1996). Este trabalho se propõe a fazer uma leitura
do romance Ara (2016), da escritora portuguesa Ana Luíza Amaral, por uma perspectiva
psicanalítica, explorando a forma como esse território não nomeado é constituído no
romance.
A obra de Ana Luíza Amaral tem sido editada em vários países, incluindo o Brasil.
Embora ela seja conhecida e premiada por sua poesia, também escreve prosa. Ara é

1
Membro do Colégio de Psicanálise da Bahia. Doutoranda em Psicologia (UFBA), Mestre em Teoria
Psicanalítica (UCL – Londres UK) e Graduada em Psicologia (Estácio) e em Letras (UFBA). Contato:
joycebacelar@gmail.com

719
conhecido como a sua estreia no romance. Em uma entrevista dada ao Jornal Hoje Macau
em 2015, a escritora revela que os capítulos desse romance foram sendo escritos ao longo
dos anos, durante bastante tempo e não foi, portanto, um romance escrito de uma forma
cronológica, nem com aquela dedicação de escrita de que geralmente falam os
romancistas. Talvez seja essa uma explicação para os questionamentos sobre gênero
literário colocados por Ana Luíza Amaral em Ara.
Ara, que foi publicado em 2016 no Brasil, produz ressonâncias de sentidos, seja
através da estrutura desordenada da narrativa, que não segue uma lógica causal nem
temporal, ou por meio da sua linguagem poética, ambígua e autorreflexiva. O título
também aponta para esse efeito polissêmico da narrativa. A palavra “ara”, que tanto pode
ser a pedra benta sobre a qual, durante a missa, coloca-se o cálice e a hóstia, como pode
ser a pedra pagã, sobre a qual se faziam sacrifícios, remete à própria ideia de construções
dissonantes trazidas e problematizadas pela narradora.
Ana Luíza Amaral nos presenteia com um relato de amor que atravessa todo o livro,
com imagens, palavras e elaborações, que produzem espanto a partir de associações,
aparentemente discrepantes, de mundos e tempos diferentes. A escrita poética no romance
Ara, além de evidenciar questões de ordem literária, problematiza, explicitamente, o que
seria um romance ou um poema, o significado de escrever e os arranjos literários que um
romance deve comportar. No capítulo inicial, “Antes do resto”, a escritora declara:

Mas as coisas não giram ao nosso compasso. Eu não sou romancista. Se fosse
romancista, dividia-me em nomes de ficção – e disso não sou capaz. A própria
ideia de fazer uma história aterroriza-me. Tal como de lá pôr, por inerência,
pessoas a dissertar sobre o que as rodeia, a debater estados de espírito. Tudo
isso devendo ainda (para meu maior terror) pressupor tempos diferentes,
espaços diferentes (ao menos os de dentro): a densidade de uma personagem,
sendo capaz de a conceber, assusta-me, se imagino propô-la no papel
(AMARAL, 2016, p. 9).

O romance, ao subverter a noção de enredo com início, meio e fim, apresenta


fragmentos de amor e memória. Os capítulos estão entranhados de restos, japoneiras,
túneis, murmúrios, discrepâncias e coisas de rasgar.
A personagem introduz, dentre outras imagens recorrentes ao longo do texto, a
imagem dos túneis. Os túneis, ao apresentarem a escuridão, as suas fronteiras e
bordejamentos, desconhecem o rio, suas margens e seu fluxo, ou seja, ignoram a
passagem do tempo, mas carregam a memória vivida, ou talvez aquilo que seriam os

720
restos, resíduos que “ecoam ressonâncias de vida”. A imagem de túneis aqui sugere uma
referência ao mecanismo do inconsciente com seu aspecto atemporal. A personagem não
deixa de chamar atenção para metáfora produzida a partir da leitura psicanalítica quando
coloca: “Assim nos fez esse papão da psique, Segismundo adumbrado século e tal atrás”
(AMARAL, 2016, p.13).
Túnel aparece, acima de qualquer coisa, como lugar ambivalente de imagens e um
convite à rememoração, a revisitar lugares recônditos que permanecem encobertos pela
névoa do tempo que se foi. Daí a presença insistente do infamiliar de Freud (1919/2019).
Há uma constante referência no romance a algo familiar que se faz presente através do
caráter implacável da repetição, fazendo com que aquilo que deveria ter permanecido
secreto e oculto venha à tona.
Os restos que são trazidos pela narradora nas suas divagações e que compõem um
“ideário imaginado”, também podem ser coletados nos seus sonhos. Tanto manifestações
do inconsciente como a representação do divã são abordados na narrativa a todo
momento. A personagem resgata o processo onírico, no qual imagens e palavras se
enovelam, contendo uma profusão de sentidos e sem sentido algum, para abordar os
resíduos da memória. Os restos também sugerem o medo do aprisionamento, as asfixias
de tudo no desenrolar da escrita, uma vez que a narradora é sempre impelida a revisitar
algo que ficou para trás: “Qualquer coisa quebrando simetrias, mas não sabia o quê: mais
forte era o cansaço, quase ao lado do amor, e as memórias rompendo-se no sono”
(AMARAL, 2016, p. 31).
Entre contigências e paisagens somos atravessados pelos relatos de memória que a
narradora nos apresenta de forma singular. A representação da memória está presente
tanto no conteúdo como na forma fragmentada, repleta de digressões e não linear da
narrativa. Fragmentos de memória se esboçam e vão tomando contornos numa escrita que
“enche de palavras com sentido o que se fez (o que se faz) amor”.
No entanto, murmúrios de amor vivido e acariciado pela memória colecionada
deixam na sua marca também a discrepância do inenarrável. Como coloca a personagem,
“nem tudo é êxtase súbito ou coisas consonantes” e acrescenta: “e se o verso se molda até
onde se quer, se o verso pode ser tanto montanha como campo lavrado, ou montra de
cidade, assim não é a história” (AMARAL, 2016, p. 18). Ainda que apenas o verso possa
moldar e narrar o que se quer, diferente dos ruídos e murmúrios que rememoram algumas

721
linhas da vida, a história não se guarda em “bolsas de sentido que se bastam a si mesmos”,
fazendo com que mesmo a poesia possa não dar conta do indizível.
O amor no romance Ara revela o seu aspecto ambivalente, acima de qualquer coisa.
Estar enamorado não significa, necessariamente, certezas e entregas. No lugar, surgem
dúvidas, rejeições, “conforto, sempre fugaz, do amor”, que se equivalem em “dorida
alegria”:

As poucas vezes que te permito a entrada são vezes de fascínio e penitência.


Abrir-te a porta, a alegria dorida da chegada, no mesmo instante arrepender-
me do meu gesto, da minha cordialidade. O resto dessas vezes é quando chega
a pergunta inevitável: o porquê de ter permitido. Afasto-a, se consigo, mas
quando não consigo, os ventos que a limitam são zéfiros (AMARAL, 2016, p.
17).

A incerteza da personagem sobre a natureza do amor que sente produz dúvidas que
propiciam a invenção e o emendo da memória na escrita de Ana Luíza Amaral. Tudo isso
se entrelaça com o júbilo da leitura que é provocado pela tecitura das palavras e imagens
presentes nas histórias.
A personagem numa tentativa de narrar “aquilo que fez ou que faz amor”, percorre
os restos de memória, as consonâncias e dissonâncias presentes no amor, “naquilo que
faz ser feliz”. Acima de tudo, trata-se de um relato de amor e da fome de ternura
perpassado pelos vestígios de memória. É interessante observar que para tantas
discrepâncias e desconcertos no recuar no tempo, na memória, causam espanto a virtude
do amor, “o ser feliz”.
O espanto faz-se presente no convívio de dois mundos e tempos diferentes que,
além de estarem ligados pelas imagens metafóricas do processo de escrita, refletem aquilo
que é o fenômeno do infamiliar em Freud (1919/2019): o ponto de encontro quando então
não sabemos mais distinguir familiar e estrangeiro, o desvelamento da ambiguidade que
perturba com seu aspecto singular de revelação de algo até então oculto. No meio da
escrita, por exemplo, surgem pedaços de lembranças de uma noite de insônia, um
mergulho no passado, um beijo que não houve, “uma amante sem haver”.
Esse sentimento de espanto aparece toda vez que há uma espécie Déjà vu, um
lampejo de sentido, no encontro com aquilo que é dissonante e, por conseguinte, provoca
um recuo no tempo, uma rememoração. A personagem é acometida por uma epifania que
produz, entre outras coisas, aquelas sensações pueris da infância, como admirar as cores,

722
avistar gaivotas, sensações comparadas a raríssimos êxtases. Mas, que sobretudo,
permitem “ser feliz pelos olhos que fecham de espanto: por dentro”.
Já no capítulo “Coisas de rasgar”, o desejo é erigido e abordado como recusa de
uma “forma de amar conformada”:

Ia agora escrever na tua forma de amar conformada, mas não devo, porque não
é verdade essa conformação, como deve ser é mais intacto, melhor: amaste
quem te era permitido, amas quem te é deixado amar, podes beijar, como
quiseres, no meio da rua, sem que ninguém te olhe estranhamente, mas não é
desse amor que agora falo, aqui, mas do meu, por ti (AMARAL, 2016, p. 57).

Essa recusa da forma de amar conformada, no entanto, aparece como potência na


medida em que a narradora transforma algo que se pressupõe impossível em movimento
impulsionada pela força do seu desejo. Declara a personagem: “A minha mão à distância
possível, mas à distância toda da impossibilidade, do que não posso, não devo, não ouso.
Mas quero” (AMARAL, 2016, p. 57).
E nessa perspectiva, na dimensão propulsora do desejo de ir ao encontro de algo e
se deparar sempre com a inquietante falta, a personagem é levada a questionar: “Por que
é que eu sou o ponto mais vazio entre querer o mundo todo e não o ter?” (AMARAL,
2016, p. 59).
Nesse frisson de indagações, provocado também pelo ritmo intenso do texto,
sentimentos, personagens e gêneros literários se confundem todo tempo. Os diferentes
gêneros literários que emergem ao longo da narrativa constroem um verdadeiro mosaico
de textos na escrita. Uma colcha de retalhos com sentimentos dissonantes é descortinada
no romance que nos leva a confundir o desenrolar das histórias. Ora a narradora é tomada
de uma serenidade na recomposição de sua memória, ora ela se debruça com fascínio e
penitência à chegada do amor. Além disso, diálogos são disparados na confrontação da
personagem com o seu duplo que causam embaraço, fazendo com que seja difícil
constatar se há ou não uma segunda personagem na narrativa.
A narradora consegue transpor os sentimentos mais profundos e inesperados de
outrora para o momento atual e ainda assim recuperar aquela mesma emoção que fora
responsável por mobilizá-la. E é nesse espanto contínuo que o enredo nos conduz a
divagar pelos anseios da personagem.

723
Além disso, a leitura de Ara pode abrir para inúmeros outros sentidos na medida
em que o leitor é convidado a deslindar os fios que constituem a trama. Nessa direção,
esse romance mantém, através de jogos de palavras, um vigor atemporal, uma linguagem
ambígua e reflexiva, deixando o leitor inebriado do início até o último capítulo. O
romance exala, acima de qualquer coisa, o ar inquisidor da personagem em torno da
reconstrução de sua memória. Nesse ritmo intenso do texto, a arquitetura da escrita
propicia a abertura do pensamento uma vez que não há fechamento de sentido na
narrativa:

Embriagar-me até o infinito. Deixar de sentir mãos, músculos, sangue. Eu:


imenso vazio. E de conforto feito. Que no vazio, às vezes, as coisas ganham
alma e sentimento. Que no vazio, a mais das vezes, as coisas são reais. O real:
uma enseada de madeira, o seu o olhar, ausências de saudades do dever. Ou o
real: um círculo onde lhe desenhasse, comovida, o centro – um centro
distorcido e belo, um pássaro de cor? Ou o real, então: quando te sonho –
surges-me sempre como escrita minha, o teu corpo a viver sobre o meu corpo.
O real, finalmente: uma enseada de conforto, um círculo de luz sobre o teu
corpo. E eu (AMARAL, 2016, p. 66).

Cabe ao leitor navegar através da trama de Ara, permitindo um encontro com o


texto sem compromisso com o fechamento da narrativa, não deixando, no entanto, de ser
afetado pelas ressonâncias de sentidos produzidas pela escrita da autora. A construção de
sentido, diferente da configuração do significado, permite ao leitor deslizar para além do
texto num processo sobretudo de constituição de si. Desse modo, há uma espécie de
encontro com algo íntimo, trazido à tona pelo efeito produzido pela leitura, que escapa o
entendimento.
É interessante observar como a constituição do sentido na escrita de Ana Luiza
Amaral aparece de forma evidente através da própria estrutura da narrativa, seja pelos
diversos recursos estilísticos empregados no texto, seja por meio da transposição de
pensamento e indagações da personagem para o enredo. Desse modo, a trama é um
convite a encontrar no (des)conhecido o que pode haver também de mais familiar no
campo da subjetividade. Em outras palavras, é um desvelamento daquilo que podemos
sentir como rompantes de espanto, lampejos de sentidos, que se abrem para outros
sentidos num encadeamento metonímico.
Se tivesse que definir o que seria um bom encontro com um romance, diria que esse
encontro acontece quando sou tomada por uma espécie de espanto e, certamente, a

724
tecitura poética de Ana Luíza Amaral é capaz de produzir muitos espantos.

Referências

AMARAL, A. L. Ara. São Paulo; Iluminuras, 2016.

ASSOUN, P. L. Metapsicologia freudiana: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,


1996.

FREUD, S. Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen. In: Edição Standard Brasileira das
Obras Completas de Sigmund Freud, vol. IX. Rio de Janeiro: Imago, 1907/1996.

FREUD, S. O infamiliar. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud, Belo Horizonte:


Autêntica Editora, 1919/2019.

725
QUANDO O ESPÍRITO ULTRAPASSA A CARNE: A INFINDÁVEL E CEGA
BELEZA DA PRIMAVERA
Lucas Leite Borba (UFPB)1

Resumo: Desde a antiguidade a imagética do louco é perpetrada no meio social como uma
doença, a qual indivíduos deliram em suas próprias fantasias. À imagem do imperador Calígula,
de Roma, e de figuras como Dom Quixote, a loucura fora estigmatizada como uma regressão
mental, e os loucos, indivíduos isentos de racionalidade. Ainda que existam casos excepcionais,
em que a loucura é posta sobre outros prismas, como é o caso do príncipe Hamlet, da peça
homônima de Shakespeare. Nosso trabalho aborda uma diferente visão acerca da loucura,
colocando-a como o ápice da lucidez, assim como na voz do escritor Caio Fernando Abreu, o
louco sabe, sabe, e ao atingir a verdade, enlouquece por não conseguir enfrentá-la. Destarte,
assim como Freud (1914) ratifica, existem sujeitos que se voltam para seu uno campo egoíco,
dispersando-se do mundo exterior. Mergulhar nesse universo particular, pode ser para alguns
algo patológico, e em alguns casos pode configurar-se como o mesmo, mas em parte são
também modos de se viver. Nós não escolhemos como vivemos, mas a partir do que nos é
imposto, das chagas e dos sofrimentos, nos moldamos e formulamos nossa estrutura psíquica. À
vista disso, nossa análise terá como base no conto A imitação da rosa (1960), escrito por Clarice
Lispector. Sabemos que, no que tange a estética lispectoriana, observamos uma contemplação
da existência humana, e sobre os sentimentos que assolam e regozijam nossa alma. Nessa obra
somos apresentados a protagonista Laura, que se vê perdida dentro de si, com a alma
extrapolando o corpo, apraz-se por uma rosa, aos seus olhos, perfeita. Sua identidade se
descontrói, e a moça identifica-se com a flor, ansiando sê-la. A diegese é perpetrada pela
perspicácia de Lispector em dizer da alma humana, das agruras do espírito e prazeres da carne.
O feminino em A imitação da rosa é marcado em seu aspecto mais vulnerável, da mulher
consigo mesma, mostrando a beleza selvagem da rosa, e também seus espinhos cortantes.
Destarte, sentimentos de inveja e ciúmes transbordam, enquanto a mulher desabrocha suas
incongruências e desejos, tocando em sua feminilidade mais íntima. Outrossim, a fim de
embasar a nossa análise, utilizaremos o aporte histórico de Foucault (1972) e os constructos
teóricos de Klein (1998) e Freud (1914), a fim de analisar a personagem clariciana a partir da
sua profícua lucidez, ilustrando um dos óbices da loucura. Enfeitiçando-nos com sua lírica,
Lispector nos invoca aos escombros da alma de uma mulher, nos colocando defronte à sedução
e a paixão feminina, imersas na dor e na loucura.

Palavras-chave: Clarice Lispector; Literatura; Psicanálise.

1
E-mail: lucasleiteborba@hotmail.com

726
INTRODUÇÃO
Na mitologia grega, Dionísio, divindade vinícola relacionada aos bacanais e à
luxúria, emerge como símbolo da intensidade pulsional, capaz de dissolver os limites
do ego, mobilizando fortes emoções, desde as mais sublimes até as mais profanas. O
deus luxurioso é, por muitas vezes, retratado como criança (um jovem resistente aos
limites da adultez), caracterizado por uma personalidade intensa e passional, que não
consegue encontrar objetividade em meio às intempéries da alma, para as quais revela-
se sensível e inofensivo. O que o move é a procura do êxtase e do frenesi, submetendo-
se à embriaguez e aos vícios da carne. Os animais que são dedicados à essa divindade,
o lince e a pantera, ilustram sua dúbia excentricidade, já que são excepcionalmente
belos e fascinantes, ao mesmo tempo que sanguinários e mortíferos.
Os traços da loucura, expressos na copiosa face de Dionísio contrapõe-se à
razão e à sobriedade, que são os atributos do deus Apolo. Essas divindades, opostas, são
enlaçadas fraternalmente e representam uma alegoria do comportamento humano, que
oscila entre os caracteres apolíneos e dionisíacos. O homem é um ser racional, mas, por
vezes, sucumbe aos seus desejos mais mordazes e devastadores.
À vista disso, propusemo-nos, no seguinte trabalho, esmiuçar o colorário de
teorias psicanalíticas no que tange às experiências primevas do desenvolvimento,
articulando-as ao conto A imitação da rosa, de Clarice Lispector. Exploraremos as
vicissitudes psíquicas de Laura, protagonista do conto, que trafega pelo amâgo da alma
humana em busca das verdades que pairam sua existência. Nossa análise se baseia nessa
consciência de si, que nos trará o embate entre Apolo e Dionísio, no terreno em que a
loucura imiscui-se na razão.

1. LOUCURA, QUESTÕES HISTÓRICAS E INCURSÕES LITERÁRIAS


O termo loucura tem seus primeiros registros, em português, em meados do
século XIX, originário do radical louco, que advém da raiz espanhola loco. No
castelhano, o significado da palavra está arraigado à demência e ao retardo mental, com
seus primeiros registros já no século XII. O louco, que dá corpo à doença, possui
diversos sinônimos, como doido, mentecapto e demente, todos apontam, em termos
etimológicos, à falta de juízo e de moral. Mentecapto deriva do latim mente captus,
literalmente, privado da mente; enquanto doido aparece na língua lusitana no século

727
XVI, até então como doudo. A palavra, em sua forma original, serviu para dar nome ao
pássaro dodô, uma das espécies que simbolizam a extinção dos animais provocada pela
humanidade; e Demência provém do latim demens, referente àqueles que não têm juízo.
O radical mens significa intelecto, espírito ou alma, logo, o prefixo de-, diz respeito à
ausência desses predicados.
Com o propósito de oferecer um aporte histórico sobre o fenômeno, o filósofo
Michel Foucault delineia o modo como a loucura fora tratada socialmente, desde a
Idade Média até a contemporaneidade. Foucault aponta que, no declínio do período
feudal, em meados do século XV, o imbróglio da lepra desaparece, gerando um oco nos
espaços de isolamento. A dissipação dessa doença, segundo o pensador, não se dá pelos
aprimoramentos médicos, mas sim, por uma ruptura no modo de lidar com a lepra e
com o confinamento. Todavia, a imagética do leproso continuava danificada,
condenando esse indivíduo à marginalização. Essa é, possivelmente, a primeira noção
de loucura, sempre relacionada à internação física e ao afastamento social.
Na renascença, o conceito de loucura é modificado e a nau dos loucos ocupa
um espaço fundamental, responsável por transportar os que embarcavam numa grande
viagem simbólica em busca de fortuna e da revelação dos seus destinos e de suas
verdades. É possível que essa alegoria, que assombrou a imaginação de toda a primeira
parte da Renascença, tenha sido a nau de peregrinação, navios simbólicos de insanos em
busca da razão. Na paisagem imaginária da renascença, há duas formas de lidar com a
loucura: como uma experiência cósmica, composta pela supracitada Nau dos Loucos, e
uma racional, relacionada à ligação do homem consigo mesmo. No início do século
XVI, essa experiência crítica da Loucura, na qual o homem defronta-se com a verdade,
ganha força e sobrepõe-se à experiência cósmica. A partir disso, Foucault pretende
compreender o ponto de vista que o Classicismo teve acerca da perda da razão. Para
isso, é necessário vê-la pelo viés racional, a fim de que ela só tenha sentido no próprio
campo da razão.
Em meados do século XVII, origina-se a ligação entre loucura e internamento,
que é de suma importância para o pensador francês, ao passo que essa conexão é a mais
nítida experiência clássica da loucura, e porque, quando essa experiência desaparecer,
no século XIX, provocará um escândalo tão intenso a ponto de pensar em libertar os
loucos dos internamentos produzidos no século XVII. Outro aspecto posto em relevo

728
pelo autor é que, nas casas de internamento, não se tem uma representação de liderança
médica, mas funcionam como uma instalação semijurídica que decide, julga e executa.
Para Foucault, o Classicismo inventou o internamento, tal como, na Idade Média, havia
sido inventada a segregação dos leprosos. O “vazio” deixado por estes foi ocupado
pelos internos e esse enclausuramento apresenta várias peculiaridades, além de
significações enraizada à cultura e à moral social.
No século XVIII, o modo invadiu os recônditos do internato um medo. O
confinamento não mais representa o local de tratar os leprosos, afastados da cidade, mas
a própria lepra frente às pessoas. Esse temor aproximou a loucura da medicina, não por
benevolência, mas sim, em decorrência do pavor frente aos impuros, que fomentava
uma histeria tanto moral quanto física. Com efeito, criou-se uma nova loucura que se
distanciou do desatino, com o qual era comumente confundida, criando espaços
específicos para tratar os insensatos. Isso serviu de base para que, no século XIX, a
medicina se relacionasse com a loucura de forma mais plena, já que era estranha ao
Classicismo, e, dessa conexão, surgiram os asilos e a psiquiatria positiva. Não obstante,
Foucault afirma que essa última não fora responsável pelo caráter humanitário
desenvolvido no tratamento dos loucos. Para ele, esse fenômeno se deu no próprio
internamento, pois, no século XVIII, essa mudança consciente da forma de lidar com os
internos já estava sendo processada.
Por fim, Foucault finaliza a obra ratificando que, ao tentar fazer a história do
louco, o que ele fez foi a história daquilo que tornou possível o próprio aparecimento de
uma psicologia. O filósofo buscou catalogar a história de algo ainda inacabado, focando
não na Loucura em si, mas naquilo que a forma, o Louco. Ele contemplou as condições
para a possibilidade do nascimento da psicologia, que fora a área responsável por
produzir o louco na modernidade. O homem é aquele que detém a sua própria verdade,
mas, para o louco, esta é oculta, ao passo que ele não consegue vê-la, e, o campo que
proporciona a psicologia a tratá-lo e interná-lo, em seu confinamento, está construído.
À vista disso, podemos concluir que a loucura, em seus desdobramentos
ideológicos, apresentou-se de variadas formas dentro da esfera social e cultural. Dentre
essas representações, ela se inseriu na literatura tomando forma em personagens
eternizados pelo cânone, como é o caso do príncipe Hamlet, da peça homônima de
Shakespeare, escrita em 1600. A obra ilustra esse fenômeno psíquico de modo

729
verossímil, já que a capacidade intelectual do protagonista o isenta de ser nomeado de
débil e irracional, que são estereótipos e adjetivos pejorativos atribuídos à loucura. A
imagem que se constitui da personagem, como a de um louco que inspira cuidado, dá-se
devido ao seu discurso elaborado e permeado por metáforas, como é atestado em uma
das cenas na qual Polônio, seu tio e padrasto, após um diálogo com o sobrinho, afirma:
Embora seja pura loucura, há sensatez no que diz... Como são engenhosas as respostas
dele! [...] Felicidade que só acontece com a loucura e que nem mais a sã razão e
lucidez poderiam atingir com tanta sorte.2
A literatura permite uma leitura do homem sobre si mesmo e destoa das demais
ciências por encontrar-se em um hiato, entre a fantasia e a realidade. A subjetividade e
polissemia textual permite que a literatura seja tão particular quanto o ser humano,
tornando possível com que um texto se transforme a cada nova leitura. No que tange à
loucura, a literatura nos permite escavar esse fenômeno obscurecido por sua própria
complexidade, na medida em que nos coloca face a face com personagens que, apesar
de ficcionais, carregam em si profundeza e vastidão, permitindo que haja uma
representação do inconsciente no texto literário. Assim como o sonho, segundo Freud, é
o guardião do sono, poderíamos dizer que o texto é o guardião da fantasia, que ele
incorpora, anexa, manipula para fazer dela sua substância própria.3Dessa forma, a
loucura expressa na literatura assume uma posição subjetiva, aproximando-se de como
ela se perfaz no inconsciente humano, em suas complexidades e fantasias, pois,
impressa no texto literário, ela toma corpo e voz, alcançando seu sentido real e fazendo-
se entender por si própria.

2. ENLOUQUECER! OU NÃO? EIS A (IN)QUESTÃO


A psicanálise é a ciência que escava a alma humana em seus escombros e
subjetividades, desvendando os mistérios do inconsciente, a parte psíquica de maior
influência sobre o discurso e as ações dos indivíduos. As teorias psicanalíticas abarcam
amplos conceitos e vicissitudes sobre a psique humana, todavia, discutiremos, nesse
trabalho, as ideias propostas por Melanie Klein, na obra Inveja e Gratidão, acerca das
primeiras fases do desenvolvimento do sujeito, cujo foco são as estruturas psíquicas

2
SHAKESPEARE, 1981, p. 237.
3
BELLEMIN-NOEL, 1978, p. 94.

730
arcaicas e os seus mecanismos de defesa específicos.
Quando nascemos, somos invadidos pela realidade violenta do mundo: a
claridade em contraposição à escuridão intrauterina, o frio do ambiente externo ao corpo
da mãe, além da fome e sede incessantes. Essa amálgama de experiências novas
conjecturam o nascimento como despejo, abandono e morte. A primeira relação
estabelecida é com o infortúnio e a orfandade. Entretanto, destoando de outros autores,
os quais afirmam que o bebê é uma massa amorfa e sem subjetividade, Klein ratifica
que, nos seus primeiros momentos, o sujeito reage ao mundo externo, a partir de defesas
que lhe asseguram a não-extinção. As experiências, às quais o indivíduo é submetido
nesse estágio da vida, são dolorosas e ameaçam destruí-lo, desse modo, ele divide o
mundo entre bom e mau. Ao mecanismo que promove essa segmentação, chamamos de
cisão, um fenômeno primordial na elaboração primitiva do mundo.
Cindir as experiências entre gratificantes e vis é a forma com que o bebê
estabelece seu contato com o universo. Segundo Klein, nós nos relacionamos com o
ambiente externo a partir de projeções e introjeções, que são mecanismos da cisão, já
que projetamos aquilo que é mau e introjetamos os objetos amorosos, produtos da
dinâmica libidinal, a fim de separá-los. O que os outros recebem de mim reflete-se então
de volta para mim, e forma a atmosfera do que se chama: eu 4. Assim ocorrem as
relações entre sujeito e objeto nesse período. O indivíduo lança parte suas no outro e
recebe-as novamente. O ego é formado a partir das introjeções, por isso a importância
em absorver aquilo que é gratificante. Dessa forma, relacionamo-nos não com o objeto
em si, mas com partes nossas que foram expelidas nele. Esse processo é denominado
identificação projetiva. Ao projetar partes más de si mesmo no outro, o bebê sentirá uma
ameaça vinda do objeto externo. Isso acontece nos períodos primevos, por exemplo,
quando a pulsão de morte é projetada para o primeiro objeto que a criança tem contato,
o seio materno, originando, assim, o seio mau, citado por Klein. O seio bom surge no
mesmo instante, já que, juntamente com a pulsão de morte, a libido também é projetada,
a fim de criar um objeto gratificador, que irá satisfazer o esforço instintivo do ego pela
preservação da vida.5 A introjeção e projeção, além de cindirem o objeto e o próprio
ego, assentam uma relação parcial do sujeito com o outro, já que ele só se relaciona com

4
LISPECTOR, 2009, p. 27. Excerto extraído do romance A Paixão Segundo G.H.
5
SEGAL, 1975, p. 37.

731
partes excindidas dele. O indivíduo não é visto como um todo. A esse corolário de
mecanismos e ansiedades, denominamos posição esquizo-paranoide, a etapa na qual os
males que há no mundo não são plenamente elaborados e sempre serão colocadas no
outro. O mundo, como o percebemos, é resultado das visões fantasmáticas, que são o
substrato da realidade e o universo interno reverbera no externo.
Para que o indivíduo ame, algo que não seja ele próprio, é necessário que o
objeto, no qual a libido será depositada, seja sentido como todo, suas partes boas e más
não devem ser cindidas. Para isso, deve-se aprender a lidar com a ambivalência. Ao
introjetar o objeto como total, por exemplo, a mãe, que amamenta e cuida, é sentida
também, como frustradora. O bebê sente-se culpado, por sentir vontade de aniquilar
aquilo que também lhe propicia gratificação. O medo de perder o objeto por meio das
próprias ansiedades instaura um sentimento de angústia no sujeito, além da culpa, que
abre caminho para a reparação. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que
cativas.6No romance O Pequeno Príncipe, do escritor francês Saint-Exupéry, o narrador
nos oferece uma definição de amor, a qual se apresenta da seguinte maneira: Amar é
cativar, cativar é criar laços e criar laços é responsabilizar-se pelo outro. Ama- se o
outro por inteiro. Eros e Tânatos precisam ser, suficientemente, fusionados, pois ambos
são lados reversos da mesma moeda, que é a vida. Ao perceber o objeto como total, o
bebê angustia-se, por destruí-lo em suas fantasias, e busca aplacar esse sentimento com
a reparação, isto é, responsabilizando-se pelo outro. Esses processos, de introjetar o
outro como todo, culpar- se por odiá-lo e buscar reparar, compõem a chamada posição
depressiva, que sucede a posição esquizo-paranoide. Todavia, vale salientar que essa
última nunca é plenamente elaborada, o sujeito oscilará entre as duas, embora, para o
melhor desenvolvimento, a posição depressiva deverá prevalecer.
As fábulas e histórias infantis ilustram, por vezes, os mecanismos e terrenos
nos quais se assenta a posição esquizo-paranoide, como Os três porquinhos, que narra a
trajetória de três irmãos que constroem, cada um, a própria casa. O primeiro edifica a
sua com base em palhas. O segundo arquiteta sua moradia com madeiras, enquanto o
terceiro alavanca-a com tijolos. A problemática do enredo se dá com a aparição do lobo,
que ameaça soprar as residências, a fim de destruí-las e devorar as indefesas criaturas. À

6
EXUPÉRY-SAINT, 2015, p. 54.

732
medida que o vilão destrói as casas, os porquinhos mudam-se para a casa vizinha,
chegando, por último, na casa construída com tijolos, a qual o lobo não conseguiu
desmoronar e, não satisfeito, sobe pela chaminé, mas ao entrar por ela, cai diretamente
num caldeirão, no qual é cozinhado. A casa dos porquinhos é uma representação do seio
materno, que acolhe, e a sua resiliência diz respeito aos objetos bons introjetados. O
lobo é uma alegoria dos impasses que a vida impõe, a morte que nos acompanha desde
o alvorecer, e os tijolos representam o objeto gratificador, que nutrem, formado a partir
de catexias. A introjeção modifica o objeto, que é um receptáculo de memórias. Quando
são boas, permitem a sobrevivência, quando más, elas perturbam as primeiras
experiências do indivíduo, dificultando a introjeção do objeto bom.
Portanto, vemos que o indivíduo preso às condições próprias da posição
esquizo- paranoide é recluso a si mesmo, não suportando relacionar-se com o outro,
pois, se o outro agir como bom, ele irá danificá-lo, devido a sua inveja preeminente, e se
for mal, aniquilá-lo-á a fim de proteger o seio bom, gratificador. Devido à
predominância da ansiedade persecutória e à capacidade de relacionar-se apenas com
pedaços do outro, o indivíduo que prossegue nessa fase, ou regride a ela, continua
atormentado pelas fantasias e ansiedades persecutórias, observando o mundo exterior
através do mundo interno, fantasmático. A patologia dessa etapa do desenvolvimento se
dá pelas perturbações que podem ser causadas, quando os medos e ansiedades são
intensos e recobrem o indivíduo, forçando-o a projetar maciçamente, o que resulta na
sensação de que o ego está despedaçado. Para que se possa atingir a posição depressiva,
o ego deve introjetar um objeto bom. A mãe possui um papel fundamental na
elaboração daquilo que é expelido pelo bebê. A função materna, para com a criança,
assemelha- se a de uma ostra, que toma para si os dejetos que lhe são atirados,
reelaborando-os e devolvendo-os em forma de pérola. O ódio é redirecionado, ao invés
de ser lançado no outro. Essa elaboração do que é expelido pelo sujeito, possibilita-o a
sentir o mundo como um todo. O amor mitiga o ódio, promovendo o amadurecimento
que se dá no redirecionamento da pulsão de morte e da agressividade. Desenvolver-se é
aceitar nossos traços dionisíacos e apolíneos, razão e loucura são intrínsecas ao ser
humano, as diferenças residem em suas elaborações.

733
3 – AS ADVERSIDADES DA LUA E DO SER: TINGINDO A LOUCURA EM A
IMITAÇÃO DA ROSA
Em A História da Loucura Michel Foucault traça o itinerário dos loucos desde o
período em que eram confinados junto aos leprosos até o desenvolvimento da
psiquiatria e a criação dos manicômios. Dessarte, o louco esteve sempre à margem da
sociedade, afastado fisicamente da população dita “normal”. Todavia, há algo de
intrigante na loucura, como afirma o filósofo francês, que nos leva a encará-la não como
uma ausência de sentidos, mas à consciência total deles. Assim como o escritor Caio
Fernando Abreu cita: o louco sabe, sabe, sabe, e ao atingir a verdade, enlouquece por
não conseguir enfrentá-la. O louco não é afastado por ser contagioso, mas por não ser
entendido e, por conseguinte, temido.
Nas literatura freudiana, a loucura assume um papel distinto, porém ainda
relacionado a uma consciência máxima de uma verdade sobre si mesmo. O mestre
vienense teoriza sobre três estados psiquicos pelos quais percorremos durante nossas
vidas: a neurose, a perversão e a psicose. Todas elas estão relacionadas à lei, ou à moral.
Os neuróticos conhecem à lei e temem-na, seu prazer está na angústia de burlá-la e
sentirem-se culpados. Os neuróticos sublimam seus desejos perversos, elaborando-os de
diversas maneiras para não ferir à lei. Os perversos conhecem tanto a lei, que a burlam.
O gozo aqui está no ato da quebra da proibição. Enquanto os psicóticos, como afirma
Lacan, foracluem a lei. Renegam a realidade e adentram nas fantasias e ansiedades,
vivendo uma verdade intíma, total e quase impenetrável.
Em seu texto Introdução ao narcisismo, Freud (1914), irá postular sobre os
modos como os indíviduos se relacionam. Para Freud, nos relacionamos com partes de
nós mesmos que são vistas no Outro. O nosso mundo é formado por espelhos que nos
refletem em diversos ângulos, desde os mais sublimes ao mais obscuro. Destarte, os
psicóticos seriam os que viveriam à mercê dessas fantasias, observando os outros como
partes de si, mas ao mesmo tempo renegando aquilo que lhes é odiável. O que define a
personalidade psicótica são os extremos, ame ou odeie. Não há meio termo, ou metades.
Imaginemos um copo de água com metade de sua capacidade preenchida. O neurótico
agonia-se por tentar relativizar um meio termo entre meio cheio ou meio vazio, se existe
mais da metade ou menos. As possibilidades lhe são cortantes. O perverso encherá ou

734
esvaziará o copo à sua mercê. Já o psicótico irá apontar para um ponto de vista, o copo
está vazio ou está cheio, e não desapegará de sua verdade.
Logo, temos na loucura e nos delírios psicóticos o apego a uma realidade íntima,
colocando-a como verdade universal. Na narrativa clariceana somos apresentados à
protagonista Laura, uma mulher casada que vive metodicamente sua rotina, de cuidar do
marido. O enredo do conto se passa no espaço da casa de Laura, mas também no terreno
psicológico sobre suas impressões acerca das pessoas e do ambiente. Em um momento
epifânico, enquanto pensa no luto dos filhos que nunca tivera e nos seus afazeres de
casa, a protagonista encara um ramalhete de rosas. À sua vista eram perfeitas na sua
miudez, não de todo desabrochadas, e o tom rosa era quase branco. Parecem até
artifíciais.7 Ao passo que admira as plantas, imiscui-se nelas. As características que dá à
rosa, são como ela é descrita na narrativa. Diminuída, junto ao marido; não de todo
desaflorada, pois ainda lhe resta conhecer o que há de feminino em si; e também o que
almeija ser, quase artificial, ou seja perfeita e inerente ao tempo. Além do caráter da
claridade e da luz, que serão elementos citados adiante e representam essa consciência
sobre si mesma, que a torna diferente, quase não-humana. Considerando-a perfeitas, as
rosas passam a representar a falta. É com a sua própria lacuna que ela se identifica, com
a perfeição que almeija tanto alcançar.
A problemática se dá no momento em que Laura se vê obrigada a entregar as
rosas. Oscilando seus sentimentos acerca das mesmas. Vagarosamente dolorosa, olhou-
as, assim distantes como estavam na ponta do braço estendido - e a boca ainda mais
enxuta, aquela inveja, aquele desejo. Mas elas são minhas, disse ela com enorme
timidez.8 Quando expressa os extremos magnéticos, inveja e desejo, Laura se coloca na
incongruência humana, de amar aquilo que odiamos e odiar aquilo que amamos. Ela
ama as rosas, mas ao ver-se destituída delas, ou no perigo de perdê-las, um sentimento
de inveja apossa-se dela. Inveja da perfeição que antes admirava. Desejo das rosas as
quais ela inveja. Ao interpretarmos a rosa como símbolo da feminilidade, podemos
notar no conto as travessias pelas quais Laura percorre a fim de encontrar sua
personalidade, o seu ser mulher. Ao decorrer do conto observamos sua subserviência ao
marido, a lacuna de um filho que nunca teve e a ocupação com os afazeres de casa. Ela

7
LISPECTOR, 2016, p. 243
8
LISPECTOR, 2016, p. 246.

735
não se encontra como esposa, como mãe ou como dona de casa, então o que resta?
Resta a sua feminilidade mais íntima, que lhe é desconhecida e projetada nas rosas.
Perfeito é aquilo que perdemos, e anseiamos perdidamente encontrar. A partir do
momento que achamos o perfeito, esse morre, mitigando a inveja e o desejo de
persegui-lo. Então abre-se mão. Laura perde as rosas, para que possa encontrá-las de
novo, desejá-las novamente. O que lhe permite viver é desprender-se daquilo que a
define como feminina, o ser mãe e esposa, e buscar a feminilidade que está além dos
rótulos que lhe impuseram.
A falta da rosa lhe traz uma falta maior, como diz no conto, todavia, segundo o
narrador é uma ausência que adentrava nela como uma claridade.9 Ou seja, como
ratificamos acima, o contato com a rosa fora o bastante para que ela continuasse a
(re)encontrar-se com sua feminilidade. No desfecho do conto, essa claridade é revertida
na consciência. Laura chama por Armando ratificando que voltou. A protagonista não
responde ao marido o que havia retornado, apenas continua a falar que voltou, e que a
culpa foi das rosas. E da porta aberta via sua mulher que estava sentada no sofá sem
apoiar as costas, de novo alerta e tranquila como num trem.10 Que já partira. Como
citamos anteriormente, o estado psicótico imerge o sujeito numa viagem dentro de si,
vivendo a partir de seus fanstamas. Aqui, após entrar em contato com as rosas, Laura
reencontra com uma feminilidade que lhe fora soterrada pelo cotidiano, atingindo como
diz, sua vida íntima. Após esse momento epifânico, a personagem entra num transe,
pois aquilo voltou, por culpa das rosas, e agora ela desprende-se de tudo.
Fragmentando-se na amplitude da subjetividade, ela agora embarca numa viagem
adentro de si mesma. Conhecendo-se, sabendo de si, na louca lucidez de uma
consciência extrema. Citando novamente Caio Fernando Abreu, após entrar em contato
com as rosas, e assim com o mais profundo de si, Laura enlouquece por não conseguir
enfrentá-la.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O intuito do nosso trabalho, assim, é mostrar, a partir da personagem Laura, a
loucura sobre a ótica da consciência máxima de si. O louco em nossa leitura representa
um indíviduo em contato extremo com seus sentimentos e que atinge o máximo do ato

9
Ibid.
10
LISPECTOR, 2016, p. 255.

736
de viver, também mostrando-nos que todos possuímos algumas tessituras que perfazem
a figura desse. Assim, temos que Laura exproba o mundo para mergulhar dentro de si
mesma. Numa foraclusão total da realidade, e na imersão absoluta dentro de uma
verdade própria.
Portanto, a partir das figurações da loucura, tecemos em Laura traços desse
fenômeno psíquico, utilizando dos vestígios deixados pelo narrador do conto acerca das
indiossicracias da personagem. Somos levados às camadas mais profundas da psique da
protagonista, encontrando partes que também nos pertencem, já que, apesar de tudo,
precisamos nos afogar dentro de nós mesmos e de nossas verdades para conseguir
sobreviver à vida.
Podemos dizer que Laura se perde dentro de uma fantasia, que para ela possui
papel de realidade. Outrossim, Clarice Lispector nos coloca a questão sobre o que é de
fato a vida e o modo como vivemos. Virginia Woolf ratifica que a vida é um sonho, é o
acordar que nos mata. De tal forma, Laura escolhe exprobar o morte do acordar e
imiscuir-se na vida, no seu sonho.

REFERÊNCIAS
ABREU, Caio Fernando. Morangos Mofados. São Paulo: Editora Agir, 1982.
BELLEMIN-NOEL, Jean. Psicanálise e Literatura. São Paulo: Editora Cultrix,
1987.
FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1972.
LISPECTOR, Clarice. Todos os contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2016.
KLEIN, Melanie. Inveja e Gratidão. São Paulo: Editora Imago, 1991.
LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G.H.. Rio de Janeiro: Editora Rocco,
2009.
SEGAL, Hanna. Introdução à obra de Melanie Klein. São Paulo: Editora Imago,
1975.
SAINT-EXUPÉRY, Antoine. O Pequeno Príncipe. São Paulo: Editora Caminho
Suave, 2015.
SHAKESPEARE, William. Hamlet, Príncipe da Dinamarca. São Paulo: Abril
Cultural, 1981.

737
AS PULSÕES CONTORNANDO O AMOR, DE CLARICE LISPECTOR
Luciana, BRAGA (UFC)1

Resumo: Pretende-se, neste artigo, analisar o conto “Amor”, de Laços de Família, 1960, de
Clarice Lispector a partir da personagem principal, Ana, que percorre uma jornada de
conhecimento de si mesma ao adentrar no jardim botânico e envolver o leitor com uma
descrição simbólica repleta pelas pulsões de vida e morte. Dessa forma, pretende-se
compreender como os conceitos freudianos dialogam com essa narrativa do prazer e do gozo
antes adormecidos na personagem. Nessa análise, utilizaremos o conceito de pulsão de Freud,
assim como os estudos de Bataille (2017) e Barthes (2015), entre outros que possam contribuir
efetivamente para o cumprimento do propósito deste trabalho.

Palavras-chave: Pulsão; Vida; Morte; Outro; Desejo.

Introdução
Possivelmente, um leitor atento poderia questionar sobre os fatores que inserem a
obra clariceana na seara do erotismo, uma vez que ela não toca no obsceno. É preciso
esclarecer que o erotismo na obra de Clarice se revela na escritura tal qual Barthes
descreve em O Prazer do Texto à luz da Psicanálise:
Na perversão (que é o regime do prazer textual) não há “zonas erógenas”
(expressão aliás bastante importuna); é a intermitência, como o disse muito
bem a psicanálise, que é erótica: a da pele que cintila entre duas peças (as
calças e a malha), entre duas bordas (a camisa entreaberta, a luva e a manga);
é essa cintilação mesma que seduz, ou ainda: a encenação de uma
aparecimento – desaparecimento. (BARTHES, 2015, p.15-16)

A escrita erótica se situa necessariamente nesse entrelugar. Utilizando a metáfora


do corpo, a escrita não é nem a roupa que toca suavemente a pele, nem a pele desnuda,
mas o espaço entre a roupa e a pele. Se é erótica, é visceral, complexa, é imagética e
pulsional. É preciso saber o que é pulsão no corpo para entender o que é pulsão no
texto, como ela se mostra e se esconde, como ela compõe o texto literário. Sabe-se que a
teoria das pulsões foi desenvolvida por Sigmund Freud no século XX, mas que ainda
possui singular importância na Psicanálise, assim como em diversos campos do saber.
Pulsão foi mencionado por Freud pela primeira vez em 1905 nos Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade, mas aprofundado em 1915 com a publicação de As pulsões e seus
destinos como o conceito “que está na base dos processos que determinam os modos
como nós amamos, desejamos, sofremos” (FREUD, 2017, p.8).

1
Graduada em Letras: Português, Literatura (UFC); especialista em Ensino de Língua Portuguesa
(UECE) e mestranda em Literatura Comparada (UFC). Contato: l-braga@hotmail.com

738
Todavia, assim como os destinos são múltiplos, os caminhos pelos quais a
nomenclatura “pulsão” percorreu também foram variados. E é de suma relevância
pontuar esse fator, pois a tradução de algo que é anterior ao próprio aparelho psíquico
não poderia ser entendida como se tratasse de um fenômeno meramente biológico.
A pulsão não é como um orgasmo que ocorre de imediato como uma força de
impacto, mas representa uma força constante, como um elemento de ligação entre o
corpo e a psique. Freud (2017) sempre admitiu, ao longo de suas pesquisas, um caráter
científico bastante forte que o permitiu reformular por diversas vezes seus próprios
estudos. Sendo assim, as pulsões do eu/autoconservação e as pulsões sexuais
posteriormente são substituídas pela pulsão de vida e pela pulsão de morte.
A pulsão de vida seria representada pelas ligações amorosas que uma pessoa
estabelece com o mundo, com as outras pessoas e consigo mesma e a pulsão de morte,
como o próprio nome indica, seria manifestada pela agressividade que poderá estar
voltada para si mesmo e para o outro. Segundo Bataille:
a morte de alguém é correlativa ao nascimento de outro alguém, que ela
anuncia e de que é a condição. A vida é sempre um produto da decomposição
da vida. Ela é tributária, em primeiro lugar, da morte, que desocupa a vaga;
em seguida, da corrupção que segue a morte e recoloca em circulação as
substâncias necessárias à incessante vinda ao mundo de novos seres.
(BATAILLE, 2017, p.79)

A pulsão de vida e a pulsão de morte de Freud (2017) não são conceitos


contraditórios ou eliminatórios, pois vida e morte dialogam o tempo inteiro; na verdade,
estão conectadas. De um lado, existe a pulsão de vida, que leva as pessoas a buscar o
prazer, a criar, a realizar os anseios mais importantes; e, de outro, a pulsão de morte que
conduz ao isolamento, à solidão, à estagnação e à morte. Ambas são responsáveis pela
manutenção da vida da humanidade, pois todas as ações do homem são resultantes da
combinação dessas duas pulsões. Unidas, elas mantêm o corpo humano em equilíbrio,
pois a pulsão de vida impulsiona o sujeito a obter o prazer a qualquer custo e, se não
houver a interdição da outra pulsão, o resultado pode ser a morte. O princípio do prazer
é, portanto, transgressor e necessita de uma interdição para não resultar em morte.
O princípio do prazer movimenta o homem diante da vida e dialoga com a morte.
Conforme Bataille, “o movimento do amor, quando levado ao extremo, é um
movimento de morte.” (2017, p.65). Embora pareça paradoxal, nascimento e vida são

739
muito próximos da morte. Afinal, a reprodução é fruto do excesso, assim como a morte.
Segundo Bataille:
A morte de alguém é correlativa ao nascimento de outro alguém, que ele
anuncia e de que ele é condição. A vida é sempre um produto da
decomposição da vida. Ela é tributária, em primeiro lugar, da morte, que
desocupa a vaga; em seguida, da corrupção que segue a morte e recoloca em
circulação as substâncias necessárias à incessante vinda ao mundo de novos
seres. (BATAILLE, 2017, p.79).

Todavia, ainda que estejam interligadas, a vida é uma forma de negação da morte.
Busca-se afastar, condenar, excluir, eliminar tal ideia a todo custo. Provavelmente a
morte ainda representa um dos maiores temores humanos, exatamente porque o homem
não tem controle sobre ela.
Freud “pensa a literatura não como ilustração, mas como referência cultural
presente na elaboração dos seus conceitos, há um recurso à cultura literária na
psicanálise.” (PLASTINO, 2008, p.31). Para Freud, então, haveria no inconsciente duas
forças antagônicas, quais sejam: Eros, o deus da vida, que não seria apenas o objeto da
busca, mas a própria busca, sendo, todavia, incapturável por ser ao mesmo tempo “vida
e morte, carência e excesso, arrebatamento e abandono” (BRANCO, 1984, p.100),
portanto ambíguo e complexo; ao passo que Tanatos, o deus da morte, estimularia os
impulsos de autodestruição. Dessa forma, “matar-se, destruir-se seria a única forma de
retornar ao útero, de reviver a quietude morna do corpo da mãe, o silêncio e o nada
absolutos.” (BRANCO, 1983, p.78).
Para Bataille: “ainda que a atividade erótica seja antes de mais nada uma
exuberância da vida, o objeto dessa busca psicológica, independente, como disse, da
intenção de reprodução da vida, não é estranho à morte” (BATAILLE, 2017, p.35). A
humanidade está condenada a viver a morte no erotismo, pois é através do sexo que se
reafirma a falta, a divisão, a punição, a culpa e a busca pela continuidade. Dessa forma,
o desejo pela união com o outro é motivado pelo anseio de superar essa descontinuidade
humana. Eros é, portanto, a representação do desejo humano de vida, de continuidade,
que fatalmente está conectado a Tanatos. Ou seja, esse desejo de fusão, esse jogar-se no
abismo, esse gosto estranho e delirante da morte.
O ser humano está fadado à repetição, à busca por uma saciedade que nunca
chega. O circuito pulsional não chega ao fim e nem sempre está ligado ao prazer. Havia
a necessidade de uma pulsão de Tanatos, a fim de que freasse Eros. Sem a primeira não

740
haveria a vida. As pulsões não funcionam apenas de forma biológica e não são
fenômenos corporais. Erotismo também não reside apenas nos corpos, mas ultrapassa a
condição corporal e a própria mente. A linguagem erótica é pulsional, um circuito que
não cessa, pois não se captura Eros. Dessa forma, o desejo ultrapassa a própria condição
humana.

Pulsões em “Amor”
O conto “Amor”, de Laços de Família, de Clarice Lispector, 1960, relata a
história de Ana, que é esposa, mãe, mas, acima de tudo, mulher. O conto se inicia com
uma descrição do cotidiano dessa mulher perdida entre os inúmeros afazeres
domésticos. Sob a ótica de Gilda Plastino, Ana é:
uma dona de casa dedicada exclusivamente às tarefas centradas na execução
de papeis impostos pelo casamento, no marasmo de uma rotina que, se por
um lado lhe dá a sensação de que ‘também sem a felicidade se vivia’, de
outro, a faz sentir-se protegida dos perigos de existir. (PLASTINO, 2008, p.
100)

Ana é a típica dona de casa cercada pelos afazeres domésticos e cuidados com a
família e esquecida dos cuidados consigo mesma, como se a rotina fosse a forma que ela
havia encontrado para fugir de si mesma. No início do conto, Ana sobe no bonde e não
parece haver nada de especial nesse ato. No entanto, por meio do subentendido, a
narrativa oferece outros modos de adesão. Afinal, o suspiro da personagem é de “meia
satisfação” (LISPECTOR, 2009, p.19). Contudo, o que será que falta na vida dessa
esposa, mãe e mulher burguesa? Ela tem um apartamento aparentemente confortável,
um esposo que cuida da família e filhos saudáveis. Ela “parece” possuir tudo sob
controle. Apenas parece, pois Clarice compara Ana a um lavrador que plantou suas
sementes e viu tudo florescer de maneira magnífica diante dos seus olhos. Tudo ao redor
de Ana crescia, tudo se desenvolvia, sua família era como um jardim florido cuidado por
ela dia após dia e digno de admiração. Mas ela se sentia infeliz, o que pode ser
justificado pelo fato de que Clarice captura essa mulher com o casamento já
consolidado, por isso ela difere tanto das mulheres românticas cuja felicidade era
baseada na concretização de um casamento bem-sucedido. Ou podemos dizer ainda que,
assim como o princípio do prazer dialoga com a morte, a felicidade conjugal também

741
não se trata de um fenômeno constante, pois o desgaste diário com a rotina conjugal
pode provocar picos de infelicidade.
Na narrativa clariceana, existem momentos em que a infelicidade aparece de
forma mais nítida. Esses momentos são chamados de “horas perigosas” e ocorrem
exatamente no final da tarde, momento de puro devaneio e inquietação. É o momento
em que todas as tarefas domésticas já estão realizadas e Ana tem que olhar para si:
“Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de
sua força, inquietava-se.” (LISPECTOR, 2009, p.19). Esse olhar para si não é fácil, pois
inquieta e provoca o sofrimento. Mas, nas horas perigosas, ela se torna apta a um
perigoso mergulho dentro de si. As horas perigosas simbolizam a liberdade almejada
pela personagem, é a multiplicação das sensações, é a consciência da própria existência.
Esse mergulho ocorre quando Ana olha para um homem cego parado no ponto
mascando chicletes. Esse encontro é feito sem palavras porque elas não são capazes de
expressar o anseio desse corpo que se pronuncia na narrativa clariceana, e a
comunicação se faz de forma pura e simplesmente através do olhar:
Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio.
Mas continua a olhá-lo, cada vez mais inclinada – o bonde deu uma
arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô
despencou-se do colo, ruiu no chão – Ana deu um grito, o condutor deu
ordem de parada antes de saber do que se tratava – o bonde estacou, os
passageiros olharam assustados. (LISPECTOR, 2009, p.22)

Ana olha o cego e é observada pelos passageiros do bonde. Essa pequena cena é
complexa e extremamente simbólica, afinal Ana já não olha ao seu redor quando está
em casa, é como se ela já tivesse decorado todos os móveis, os cômodos, a rotina que se
repete dia após dia, enquanto o cego representa o novo, o inusitado, o estrangeiro, o
objeto que impressiona os olhos dela e a tira da vida automatizada. Essa cena lembra
bastante a freada brusca no táxi em “Os Laços de Família”, que permite o contato súbito
entre mãe e filha. Assim como Catarina, em “Os Laços de Família”, Ana também sente
o desconforto desse contato através do contato com o cego que masca chicles. Ana não
precisa tocá-lo como mãe e filha fizeram no conto supracitado, o toque aqui é do
domínio do olhar, afinal com os olhos também é possível sentir e possuir o outro, o
objeto amado. Essa atitude de Ana é puramente voyerista tal qual definiu Freud (2017)
em As pulsões e seus destinos, quando ele aborda a pulsão do olhar que “é autoerótica
no início de sua atividade, ou seja, ainda que tendo um objeto, ela o encontra no próprio

742
corpo.” (FREUD, 2017, p. 41). Além disso, o ódio que Ana diz sentir pelo cego não é
ódio, é medo, e “o medo conduz facilmente ao ódio, um ódio que pode por fim ocultar
(embora nunca possa extinguir) o amor” (MAY, 2012, p.323). Comparando esses
contrários, Betty Milan diz que: “Odeio no lugar de amo é o que há de mais corriqueiro,
como se o ódio fosse a cara-metade do amor.” (MILAN, 1983, p.14). Ou seja, amor e
ódio não são tão contrários como se imagina. Assim como Ana e o cego, esses
contrários podem se complementar, por isso, ela rejeita a imagem, como quem rejeita o
prazer, mas ele:
não é um resíduo ingênuo; não depende de uma lógica do entendimento e da
sensação; é uma deriva, qualquer coisa que é ao mesmo tempo revolucionária
e associal e que não pode ser fixada por nenhuma coletividade, nenhuma
mentalidade, nenhum idioleto. (BARTHES, 2015, p.30)

Ela sabia que algo havia mudado de forma súbita e violenta, porque algo quebra
dentro e fora dela. Os ovos quebrados no conto não se tratam de um acontecimento
banal. Tudo significa nessa obra e os ovos não deixam de representar um pouco a vida,
uma vida que não amadureceu. Tal como os ovos, Ana também é frágil e encontra-se
quebrada, violentada pela presença do seu duplo, já que “o mal já estava feito”
(LISPECTOR, 2009, p.22).
Antes do contato com o cego, Ana era opaca e sem gosto, como chiclete mascado
durante muito tempo, mas agora começava a sentir prazer nas coisas. Sobre essa
mudança da Ana após o contato com o cego, Plastino faz a seguinte reflexão: “O desejo
pelo cego representa, assim, a humanização da personagem que se vê e se aceita como
castrada, incompleta, e, portanto, desejante de um mundo também aceito como
imperfeito.” (PLASTINO, 2008, p. 116). Isto é, o cego proporciona a Ana uma
experiência de continuidade, como se ele fosse a metade perdida dela, o outro, seu
duplo, o seu eu refletido. É através desse outro que Ana irá se voltar para dentro de si
com a confiança que antes lhe faltava. Ana e o cego são como a dupla chama no dizer
de Paz; aparentemente distintos, mas, ao mesmo tempo, interligados. Sem o duplo, Ana
continuaria vivendo sua vidinha fugaz sem grandes acontecimentos, como se ela
estivesse adormecida para o desejo, para o amor, para o erotismo, para a vida. Ana ainda
não havia compreendido que “ama-se através do outro, porém também apesar dele e até
a sua revelia.” (MILAN, 1983, p.24). Ela estava mergulhada em uma “pulsão de morte”,

743
pois acostumara-se a poupar a própria vida, conformando-se com o pouco que possuía,
como se fosse tudo o que ela merecia. Afinal, “assim ela o quisera e escolhera.”
Por outro lado, “o movimento do amor, levado ao extremo, é um movimento de
morte” (BATAILLE, 2017, p.65), ou seja, o prazer de que Ana foge, mas em seu íntimo
almeja, dificilmente será alcançado de forma gentil, pois há sempre algo de agressivo no
ato. Ovos não quebram despropositadamente em um conto clariceano. Ana é tomada por
um misto de medo e desejo, envolta no mistério do encontro com esse lugar a priori
desconhecido, mas logo em seguida revelado como o Jardim Botânico.
O jardim será o espaço em que Ana aos poucos terá a experiência provocada pelas
sensações de um corpo erotizado. O jardim, na obra de Clarice, não é mero lugar e,
segundo Vera Moraes:
a simbologia do jardim é um tema recorrente na ficção de Clarice Lispector e
sempre colocado de uma forma instigante, uma vez que faz apelo à magia e
ao mistério de um espaço privilegiado – por seu aspecto cromático, sua
intensa luminosidade, sua ornamentação exuberante, seu apelo ao bem-estar e
à beleza. (MORAES, 2012, p.338)

O “discurso de sensações” virá permeado de sinestesias, pois o que ocorre na


narrativa desde o momento em que Ana penetra os portões do jardim não é do domínio
do real, mas do sonho, do delírio e do devaneio, pois “tudo era estranho, suave demais,
grande demais” (LISPECTOR, 2009, p.24). Toda a matéria orgânica daquele ambiente
assume um caráter hiperbólico e o leitor vai aos poucos se perdendo nesse labirinto
verde junto da personagem.
Até mesmo o surgimento de um simples gato causa em Ana sobressaltos, pois essa
atmosfera do prazer é desconhecida dela e, portanto, inquieta-a. De repente, ela irá
fornecendo ao leitor imagens menos delicadas do esperado em um passeio em um
jardim. Ela observa os frutos pretos nas árvores e os frutos podres caídos ao chão como
pequenos “cérebros apodrecidos”. Está-se, pois, em uma gangorra de Eros e Tanatos,
em que ora domina a “pulsão de vida” e ora a “pulsão de morte”. Cabe salientar que,
segundo Freud (2017), haveria no inconsciente das pessoas duas forças antagônicas:
Eros, o deus da vida, cuja existência não se resume ao encontro do objeto do desejo,
mas na própria busca. Ele é incapturável por ser, ao mesmo tempo, “vida e morte,
carência e excesso, arrebatamento e abandono” (BRANCO, 1984, p.100), portanto,

744
ambíguo e complexo; enquanto que Tanatos, o deus da morte, estimularia os impulsos
de autodestruição.
Ana antes estava dominada pela ânsia do não sentir ou do “desprazer”, mas agora
envolvida com essa natureza que vive e morre o tempo inteiro, ela também se sente
revigorada, pois a morte não era o que ela pensava, não era o fim, mas o recomeço. A
morte é vertiginosa, é fascinante, pois é a partir dela que novos seres são formados, da
“desaparição dos seres separados” (BATAILLE, 2017, p.38) surge uma experiência de
continuidade. E, para Bataille, é assim que a vida funciona, desde o Banquete de Platão
(1987) já se sabia: os seres humanos são descontínuos em busca da continuidade, que só
é possível ao se passar pela experiência de morte. Sendo assim, erotismo e morte são tão
íntimos quanto Eros e Tanatos, já que, “do erotismo, é possível dizer que é a provação
da vida até na morte.” (BATAILLE, 2017, p.35).
O jardim possibilitou à Ana uma experiência nova, pois a vida pulsava ao seu
redor: na terra, nas árvores, nos bichos, no vento e nos frutos. Então, ela se enche dessas
sensações e se sente como se “estivesse grávida e abandonada” (LISPECTOR, 2009,
p.25). Essa alusão à maternidade é imensamente simbólica, pois de acordo com Lúcia
Castello Branco: “durante a gestação, a mulher revive, ainda que temporariamente, a
totalidade que lhe foi roubada por Zeus” (1984, p.68), ou seja, a mulher experiencia a
sensação de continuidade durante a gravidez. No entanto, essa relação entre vida e
morte não é exclusiva da situação da mulher durante a gravidez, pois está estreitamente
ligada à própria concepção de erotismo, conforme Bataille.
Ana está decididamente apaixonada por esse jardim, tanto que passa a ter medo do
inferno. Natural, pois ela sente um prazer puro como se estivesse no paraíso. Ela é a
nova Eva e sente medo de perder seu lugar perfeito, seu reino do prazer, seu “jardim da
libido” (PLASTINO, 2008, p.117), seu reino do prazer. Isso ocorre porque, segundo
Simon May, “o amor brota tanto da deficiência quanto da abundância. É ao mesmo
tempo necessitado e engenhoso. O amante sente-se ao mesmo tempo vazio demais, o
que o incita a criar, e pleno demais, o que lhe permite fazê-lo”. (MAY, 2012, p.70). No
entanto, contraditoriamente, Ana começa a sentir nojo e essa sensação também faz parte
do processo de erotização do corpo, em que a repugnância e o horror atribuem um
caráter obsceno à cena e são o princípio do desejo de Ana se realizando, em que o
jardim abre nela um vazio tão profundo quanto à morte.

745
De repente, porém, Ana lembra-se das crianças e sai correndo do jardim,
atravessando os portões; despertando dessa experiência erótica sensorial. É como se ela
interrompesse o próprio gozo devido ao apelo interno da esposa e mãe que sempre fora,
mas ela não é mais a mesma. Os portões do jardim estão fechados. O jardim agora
parece uma prisão semelhante a vida dela. Ela, em desespero, sacode os portões. Justo
ela antes acostumada a viver em silêncio e imóvel. O vigia espantado de não a ter visto,
abre os portões e ela sai em disparada. Antes de chegar ao edifício onde morava, Ana
era o caos em pessoa e parecia que estava à beira de um desastre, isto é, parecia que ela
não iria suportar o retorno a esse mundo organizado depois de conhecer as delícias do
outro. Esse último era um mundo sujo, causava ânsia, desertava a violência em seu
corpo, mas era seu e ela se sentia ativa e participante. Não era mais uma mera
coadjuvante dos acontecimentos de sua vida, não estava mais anestesiada para o prazer.
Ela agora sentia o ódio, o gozo, o nojo e o prazer. Em conclusão, conforme a percepção
de Olga de Sá: “Chegando a casa, ainda traz nos olhos a náusea da exuberância de tanta
vida.” (SÁ, 2012, p.283), ou seja, seu corpo não era mais o mesmo, pois havia sentido
as delícias do prazer, o contato com o deus do amor. Envolvida entre as pulsões de vida
e morte, Ana iria sentia bastante dificuldade de regredir ao estado de submissa dona do
lar.
Clarice compara esse gosto pelo mundo novo apresentado pelo cego e
experienciado no Jardim Botânico às ostras. Lembrando que as ostras são consideradas
afrodisíacas e despertam sensações variadas como a experiência erótica; é um misto de
delícias e nojo. É preciso sentir esse nojo, esse horror e ainda assim ser capaz de engolir
o alimento viscoso da ostra. Contudo, ela ainda não se sente apta a devorar o mundo,
comê-lo com olhos e dentes. O filho aparece e, em meio ao abraço, ela diz baixinho
para ele que o mundo é horrível, mas, mesmo assim, ela se sente atraída por ele. Ela se
identifica com esse mundo e estranha o filho, cuja face se assemelha a sua. É apenas
isso, uma coincidência genética, pois a proximidade com o cego é bem maior, afinal, o
cego é seu duplo, o filho não. Perdida entre as sensações provocadas pela visão do cego
mascando chicles e do jardim hiperbólico, Ana percebe que é a eles que ela pertence.
Eles compõem a parte forte do mundo que ela conhecera e ela estava cega para tudo
isso, mas agora enxergava com nitidez. O cego paradoxalmente a devolvera a visão.
Esse mundo de acordo com os padrões pré-estabelecidos não é mais suficiente para ela.

746
“A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar.
Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era como
esse sentimento que se iria a igreja.” (LISPECTOR, 2009, p.27). Dois lugares são
citados nesse trecho em oposição: o Jardim Botânico e a igreja. O jardim simboliza o
erótico e a igreja, o sagrado. Conforme Bataille:
ambas experiências têm uma intensidade extrema. Quando falo de santidade,
falo da vida que a presença em nós de uma realidade sagrada determina, de
uma realidade que pode nos transtornar até o limite. Contento-me por ora em
cotejar a emoção da santidade e a emoção do erotismo na medida em que
ambas são de extrema intensidade. Quis dizer dessas duas experiências que
uma nos aproxima dos outros homens e que a outra nos aparta deles, nos
deixa na solidão. (BATAILLE, 2017, p.279)

Deste modo, apesar de Ana ter se sentido conectada com o mundo a sua volta
dentro daquele jardim, aquela experiência foi solitária. Afinal, nem o vigia percebeu a
presença dela. O erotismo joga o indivíduo na solidão e ela tem a sensação de estar
sozinha, pois nenhum familiar a acompanha nesse processo. Ana não consegue ser santa
(perfeita), pois o mundo é imperfeito e ela é parte dele. A santidade é a comunhão e Ana
é a falta. Enquanto isso, ela observa uma aranha e se espanta como uma flor se entrega
às suas mãos. A protagonista do conto é essa flor presa nas teias do mundo e sente-se
impelida a se entregar lânguida e asquerosa às mãos dessa aranha ou nos braços do
cego. O prazer a ultrapassa.
Agora, a cozinha é seu novo jardim, pois existem bichos (aranhas, formigas,
besouros) e uma nova atmosfera no ar, mas ela não pode se sentar e sentir, porque
precisa preparar o jantar. Ela se resigna a pertencer a essa sua antiga vida, em que os
convidados chegam e o jantar ocorre bem, mas, por dentro, ela é pura reflexão: “O que
o cego desencadeara caberia nos seus dias?” (LISPECTOR, 2009, p.29). E o leitor se
interroga junto da personagem: Será que a experiência com o cego e com o jardim
seriam o suficiente para tirar Ana do estado anestesiado em que ela vivia?
Um estouro do fogão devolve-a a realidade e a distancia de suas divagações. Ana
sente medo e o marido a abraça. Ela se aninha sem forças nos braços do marido em
atitude de pura submissão e, observando essa cena, o leitor já sabe: tudo vai voltar a ser
como antes. O marido a afastara do “perigo de viver” (LISPECTOR, 2009, p.29) e a
mulher é castrada novamente. Assim como em “Os laços de família”, tudo volta a ser
como antes. O conto “Amor” chega ao fim com a imagem de Ana penteando os cabelos,

747
mas seu reflexo não diz nada sobre ela mesma, que voltará a se contentar com as
pequenas vivências das horas perigosas. Ana sopra a vela e essa imagem pode remeter
facilmente à “dupla chama”. Ana apaga a chama vermelha do erotismo, sequer deixa
existir uma chama azul. Ela sopra o amor e o erotismo para longe e retorna à frieza e
calmaria dos seus dias. Mas, até quando? O conto não responde, porque a literatura
moderna não traz respostas, e sim estimula os questionamentos.
O título do conto é “Amor”, mas o amor não deve ser entendido de maneira
romântica e idealizada nessa narrativa e pode ser facilmente substituído por desejo: o
desejo pelo cego que mastiga chiclete calmamente no ponto do ônibus, o desejo de ficar
eternamente naquele jardim da libido que desperta sensações novas no corpo dela e o
desejo de fazer parte desse mundo distante das obrigações do cotidiano da mulher, mãe
e esposa. Ana aprende com essa experiência que sua vida antes do cego é insuficiente e
se sente deslocada na própria residência.

Conclusão
Conclui-se que o contato entre Ana e o cego possibilitou uma experiência de auto-
conhecimento singular para Ana que é completada com a entrada no jardim botânico
que é envolto por uma pulsão de vida e de morte, ao mesmo tempo, provocando desejo
e nojo na personagem. Eros é, portanto, a representação do desejo de Ana pela vida,
pela continuidade que fatalmente está conectado a Tanatos, esse gosto estranho e
delirante da morte.
O conto de Clarice possibilita a compreensão de que a humanidade está fadada à
repetição da rotina diária, a busca por uma saciedade que nunca chega. Percebe-se que
Ana estava envolvida por uma pulsão de Tanatos que freia o comportamento da
personagem constantemente, freia Eros, a não ser nas “horas perigosas”.
Finalmente, sabe-se que as pulsões não funcionam apenas de forma biológica,
não são fenômenos corporais. O erotismo também não reside apenas nos corpos, mas
ultrapassa nossa condição corporal e a própria mente. Assim, a linguagem clariceana é
erótica, é uma linguagem pulsional, é um circuito que não cessa, pois não se captura
Eros. O desejo ultrapassa a própria condição humana.

Referências

748
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BATAILLE, G. O erotismo. Tradução Fernando Scheibe. 1 ed. 2 reimp. Belo Horizonte:


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anos de nascimento, 50 anos de Laços de Família). Fortaleza: Imprensa universitária,
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PLASTINO, G. O discurso da falta em Clarice Lispector: “Laços de Família”. 2ª ed.


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SÁ, O. Na dança de Eros e Tanatos: movimentos de vida e morte em Laços de Família.


In: COUTINHO, F.; MORAES, V. Clarices: uma homenagem. (90 anos de nascimento,
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XAVIER, E. Que corpo é esse? o corpo no imaginário feminino. Florianópolis:


Ed.Mulheres, 2007

749
A PRECARIZAÇÃO DA MEMÓRIA NA OBRA DE BERNARDO KUCINSKI

Berttoni Licarião (UnB)1

Resumo: Se tomadas em conjunto, as obras de Bernardo Kucinski – K. Relato de uma busca


(2011), Você vai voltar pra mim e outros contos (2014) e Os visitantes (2016) – compõem um
tríptico coeso sobre a ditadura brasileira. Nessas obras, invenção, memória e autoficção confluem
para a exumação de um passado traumático que permanece, ainda hoje, hesitante entre o fardo da
calamidade íntima e a espera por uma justiça de transição. A partir de leituras sobre trauma e
estado de exceção, este artigo analisa o conto “A instalação” tendo em vista seu poder agregador
dentro da produção de Kucinski e os mecanismos de denúncia contra o esquecimento e a
precarização da memória engendrados pela narrativa.
Palavras-chave: Bernardo Kucinski; Ditadura brasileira; Memória; Trauma; Conto.

Em entrevista ao programa Super Libris do canal Sesc TV, Bernardo Kucinski


defende a tese de que houve um processo de individualização dos crimes contra a
humanidade, na medida em que o país não assumiu a tarefa de superar o golpe de 64 como
um trauma coletivo, deixando-o recair em tragédias pessoais. Destarte, nosso processo de
recuperação dessa memória foi pervertido e limitou-se, com raras exceções, a medidas
paliativas de retratação e indenizações. A Lei da Anistia de 1979 contribuiu sobremaneira
para essa normatização do esquecimento, promovendo aquele “apagamento do erro” de
que fala Paul Ricouer (2007, p.477). Aqui, a anistia engendrou amnésia, e o luto de cada
família ficou restrito à esfera do privado, carente de justiça. Torturadores seguem
impunes, beneficiados pelo “mal de Alzheimer nacional” (KUCINSKI, 2012, p.17), à
medida que casos continuam a ser enterrados sem corpos e paus de arara viram peças de
decoração.
No que tange à produção literária brasileira e os anos de regimes autoritários na
história recente do país, a obra de Bernardo Kucinski2 se destaca pela presença quase
ubíqua da ditadura em suas narrativas. O autor estreou na ficção em 2011, aos 74 anos,
com a novela K: Relato de uma busca. Desde então publicou um romance policial, Alice
(2014), a coletânea Você vai voltar pra mim e outros contos (2014), a novela Os visitantes
(2016), espécie de epílogo à primeira obra, o romance Pretérito imperfeito (2017), a

1
Graduado em Letras (UFPB), Mestre em Estudos Literários (UFMG), doutorando em Literatura (POSLIT,
UnB). Contato: berttoni@gmail.com.
2
Formado em física, começou a trabalhar desde cedo como jornalista e levou ao prelo obras sobre
economia, política e história. Kucinski chegou a exercer a função de assessor da Presidência da República
entre 2003 e 2006, redigindo informes analíticos diários para o então presidente Lula. Passou a se dedicar
à literatura após se aposentar como professor titular da USP em 2007, quando começou a publicar contos
em revistas especializadas.

750
distopia A nova ordem (2019), espécie de amálgama futurista entre a ditadura brasileira,
o terceiro Reich e nosso desgovernado presente. Apesar de breve, sua produção literária
encontra-se predominantemente vinculada aos anos de repressão, tortura, perseguição e
desaparecimentos que marcaram os governos militares iniciados com o golpe de 1964.
A novela K: Relato de uma busca apresenta a história de um pai à procura da filha
e do genro, desaparecidos políticos da ditadura. Esse ponto nuclear da narrativa parte da
vivência do autor, que perdeu a irmã e o cunhado – Ana Rosa Kucinski e Wilson Silva –
quando ambos foram sequestrados em 1974 pelas forças de segurança do estado de São
Paulo. Não obstante o insumo biográfico, o livro de Kucinski é sobretudo obra de ficção,
ainda que a complementaridade entre real e fictício seja evidente desde a advertência que
abre a novela: “Caro leitor: Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu.” A
busca empreendida por K., personagem central da obra, é marcada pelo absurdo, pela
perda de sentido e, consequentemente, pela negatividade da experiência. Semelhante a
uma fracassada versão moderna da Antígona, K. se vê impulsionado numa busca pelo
direito de sepultar seus mortos sem, contudo, dispor dos mecanismos para vencer a
máquina estatal de desaparecimentos. Enredado numa trama de personagens com matizes
kafkianos, a jornada de K. o levará à reconstrução da individualidade perdida da filha, de
quem soube tão pouco quando viva, mas cuja violenta supressão lhe proporciona, irônica
e tragicamente, uma oportunidade de reaproximação. O sucesso dessa construção advém
da estrutura do texto, composto por capítulos breves que intercalam diferentes vozes e
pontos de vista, como uma carta da filha endereçada a uma amiga, o depoimento de uma
amante do torturador Sérgio Fleury, a consulta com uma psicóloga de uma servente que
trabalhou na “Casa da Morte” em Petrópolis, etc.
Cinco anos após o lançamento de K: Relato de uma busca, Kucinski publica Os
visitantes, sua segunda novela. Mais uma vez os limites entre ficção e realidade são
apagados numa obra em que pessoas afetadas pela publicação de K. vão bater à porta do
autor para pedir reparação, apontar erros, acusar o escritor de falácias ou exigir emendas
às edições futuras. Agora explicitamente, Kucinski apresenta um texto em que o autor se
confunde com sua personagem, que deve se justificar perante os reclamantes que o
acusam de falta de ética, autopromoção, insensibilidade e desrespeito à memória dos

751
mortos. Em entrevista ao Suplemento Pernambuco3, o autor declara que os
questionamentos de fato existiram, mas não se deram da maneira como são apresentados
ao leitor. Junto a K., Os visitantes compõe um díptico não apenas sobre a ditadura
brasileira, mas sobretudo acerca das possibilidades de representação desse período pela
literatura em um contexto pós-redemocratização4. Interposta entre essas duas obras, a
coletânea Você vai voltar pra mim traz 28 contos breves que podem facilmente ser
amalgamados à estrutura de K., cujos fragmentos foram, nas palavras do autor,
arbitrariamente organizados5.
A instalação é um dos contos integrantes da coletânea publicada em 2014. Nesta
breve narrativa, duas primas que mal se conhecem resolvem encontrar-se após a morte de
seus maridos. Da primeira delas, Nair, cujo olhar às vezes se confunde com o do narrador,
sabemos que é uma sobrevivente dos porões da ditadura e que carrega um tique nervoso
na sobrancelha esquerda e uma lesão no tendão, sequelas das sevícias no pau de arara. Da
segunda prima não conhecemos o nome, apenas que foi casada com um militar chamado
Oswaldo e que agora vive sozinha num casarão que, aos olhos de Nair, funcionária da
Pinacoteca de São Paulo, revela em cada detalhe a ausência de requinte característica do
kitsch. O ponto de pressão e desequilíbrio do conto se concentra na imagem de uma
instalação na cozinha do palacete – “finalmente uma obra de bom gosto” (KUCINSKI,
2014, p.137) – formada por uma “peça composta de cachos de banana carnudos e
abundantes envolvendo um longo vergalhão de madeira envelhecida, erguido como um
totem” (KUCINSKI, 2014, p.137). Ao perguntar a dona da casa o que seria a haste no
meio daquela “instalação de arte antropofágica” (KUCINSKI, 2014, p.137), Nair
descobre que se trata de um pau de arara, presente que o marido recebera dos colegas da
polícia ao se aposentar.
A estrutura sucinta da narrativa e seu arremate desconcertante convidam à reflexão
crítica as célebres considerações de Julio Cortázar em Alguns aspectos do conto. Para o

3
Edição 127, Setembro 2016. Disponível em:
http://www.suplementopernambuco.com.br/images/pdf/PE_127_web.pdf
4
Segundo o autor, na advertência à segunda edição de K.: “Cada fragmento ganhou forma independente
dos demais, não na ordem cronológica dos fatos e sim na da exumação imprevisível desses despojos da
memória, o que de novo me obrigou a tratar os fatos como literatura, não como História.” (KUCINSKI,
2012, p.13)
5
Da nota “Caro leitor” que abre a segunda edição de K.: “A ordem dos fragmentos é arbitrária, apenas uma
entre as várias possibilidades de ordenamento dos textos” (KUCINSKI, 2012, p. 13)

752
escritor argentino, o elemento significativo do conto reside em seu tema e na capacidade
que a forma tem de eleger “uma imagem ou acontecimento que sejam significativos, que
não apenas tenham valor em si mesmos, mas que sejam capazes de funcionar no
espectador ou no leitor como uma espécie de abertura” (CORTÁZAR, 1999, p.351). No
conto de Kucinski, essa abertura merece atenção acadêmica: ao aproximar o político e o
literário, ela provoca a necessidade de indagarmos, junto a Márcio Seligmann-Silva,
“como a memória pode ‘lançar raízes’ em um país como o Brasil que reconhecidamente
‘não tem justiça’, onde não se incriminam os assassinos, onde os crimes são abandonados
na ‘lata de lixo da história’?” (SELIGMANN-SILVA, 2013, p.84).
O conto A instalação responde ao questionamento acima por meio do confronto
entre o trauma pessoal de uma torturada e a precarização da memória coletiva,
simbolizada pela problemática ressignificação artística e utilitária de um instrumento de
tortura. Nas seções que seguem, trataremos de analisar o edifício ficcional do conto de
Kucinski à luz das considerações de Giorgio Agamben sobre o contemporâneo, o
testemunho e o estado de exceção, na tentativa de perceber os mecanismos que
transformam essa narrativa num comentário sobre a violência institucional, a
individualização do trauma e o esquecimento comandado como expressão de interesses
autoritários.
O início de A instalação reforça a inscrição do trauma coletivo na esfera do privado
apontada por Kucinski na entrevista que abre este artigo. No parágrafo de abertura do
conto, à medida que acompanhamos a chegada da personagem Nair à casa da prima,
somos apresentados a um passado “vivido no presente” (BUTLER, 2017, p.90) expresso
nas marcas de sofrimento que, mesmo após dez anos, continuam a acompanhar a
protagonista:

Subiu os degraus devagar, um a um, já preocupada com a volta, quando


teria que descer e sentiria as agulhadas no joelho direito. Dez anos
haviam passado. O tique nervoso na sobrancelha esquerda, reflexo
condicionado das cacetadas, sumira com dois anos de divã, mas a lesão
no tendão, de quando a penduraram no pau de arara ficou para sempre.
Se soubesse da escadaria, não teria vindo (KUCINSKI, 2014, p.135).

Fica explícita, de imediato, a caracterização da personagem como sobrevivente dos


porões da ditadura civil-militar brasileira, alguém que, nas palavras de Agamben (2008,
p. 36) sobre as testemunhas de Auschwitz, “tem a vocação da memória, não pode deixar
de recordar”. Ademais, a abertura marca a entrada da narrativa no campo do trauma, cujos

753
sinais se manifestam tanto física quanto psicologicamente. No entanto, como veremos ao
final do conto, o excesso de estímulo que caracteriza o trauma (NESTROVSKI,
SELIGMANN-SILVA, 2000, p.8) virá desbaratar a aparente normalidade da
protagonista, revelando a precariedade de sua condição de sobrevivente em uma
sociedade sem lugar para a memória. Logo após ser informada da origem do vergalhão,
a sequela nervosa que havia sido “curada” após dois anos de terapia volta à tona:

Curiosa, ela perguntou:


– E essa coisa tão bonita, o que é?
– São pencas de banana que eu deixo aí para madurar.
– E aquela haste no meio?
– É lembrança do meu marido; é o pau de arara que o Oswaldo ganhou
dos colegas quando se aposentou da polícia.
Ela sentiu um frio subindo pela barriga e logo o beliscar pesado dos
tiques na sobrancelha (KUCINSKI, 2014, p.137).

O acionamento da resposta nervosa frente ao instrumento de tortura encerra a


narrativa com a imagem da protagonista sofrendo um desconforto fisiológico, silenciada.
Silêncio que parece indicar aquela aporia do relato traumático, a impossibilidade de
elaboração de uma experiência que não pode ser expressa porque resistente à
compreensão. No momento final do conto, “a língua do testemunho é uma língua que não
significa mais, mas que, nesse seu ato de não-significar, avança no sem-língua até
recolher outra insignificância, a da testemunha integral, de quem, por definição, não pode
testemunhar” (AGAMBEN, 2008, p.48). O objeto que despertou o interesse estético da
protagonista e que, logo em seguida, provoca-lhe um choque não traduz apenas “o
impacto violento do trauma [que] se associa ao despreparo do sujeito para elaborar e
superar a vivência”, mas, sobretudo, “os limites do sujeito em sua própria
autoconsciência” (GINZBURG, 2017, p.158). Traída pela própria memória na instância
do privado, e pela ausência de medidas oficiais capazes de promover regeneração ética e
política na esfera pública, o gesto final da personagem Nair extrapola os limites do
simbólico para incorporar aqueles que tocaram o fundo, as testemunhas integrais que
sucumbiram nos porões da tortura.
Como adverte Yves Michaud (1992), imprevisibilidade, caos e violência estão
geralmente juntos. Curiosamente, esses mesmos elementos encontram-se alinhados ao
longo da narrativa de Kucinski, estrategicamente distribuídos com vistas a criar e manter
a tensão narrativa até seu ponto de ruptura. A passagem forçada de Nair pelos cômodos

754
do palacete acompanhando a prima orgulhosa revela em detalhes a confusão de móveis
pesados, bibelôs, vidros imitando cristais, louças decorativas; um verdadeiro cabo-de-
guerra no qual mau gosto e excesso estético competem pela hegemonia ornamental:

Nossa personagem nunca tinha visto tanto kitsch. Nouveaux riches,


pensou. O canto era tomado por um pomposo bar de pseudojacarandá,
com balcão de plástico marmorizado e prateleiras repletas de taças de
vidro imitando cristal. Na passagem para a copa, pratos decorativos de
louça pintados de ouro falso e carmesim pendiam da parede
(KUCINSKI, 2014, p.136).

É marcante na passagem a carga semântica relacionada com o simulacro e a


aparência: o bar pomposo, o pseudojacarandá, o plástico marmorizado, a imitação de
cristal, o ouro falso, etc. ratificam veleidades de ascensão social e denotam o apreço
daquele núcleo familiar por status e reconhecimento; uma crítica tanto à pequena
burguesia que optou por se manter alienada quanto às patentes e aos abastados que
participaram ativamente nos lucros da ditadura e se mantiveram à sombra das benesses
do silenciamento que se seguiu. Também é importante ressaltar do trecho que, ao fazer
uso do expediente cinematográfico da misè-en-scene, o narrador de Kucinski mantém-se
colado à personagem que passeia pelos cômodos empurrada por sua anfitriã para
construir, com isso, um escalonamento irônico da aversão e do horror: num primeiro
momento, o leitor acompanha o olhar de estranhamento e desprezo de Nair sobre os
elementos de decoração da prima; em seguida, é surpreendido por uma construção
validada pela protagonista como “obra de bom gosto”, porém muito mais problemática
porque eticamente condenável. Em meio à imprevisibilidade e ao caos do kitsch, a
violência simbólica do pau de arara irrompe numa explosão de cores e frutas:

A peça era composta de cachos de banana carnudos e abundantes


envolvendo um longo vergalhão de madeira envelhecida, erguido como
um totem. Os bagos de banana iam do verde profundo ao dourado
voluptuoso, passando pelo amarelo-ouro, o laranja, o marrom, um
completo arco-íris tropicalista (KUCINSKI, 2014, p.137).

Neste ponto, não deve passar despercebida a menção à Tropicália, movimento de


ruptura cultural do final da década de 60 encabeçado por cantores-compositores como
Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé e reprimido pela ditadura ainda em 686. Um dos

6
Segundo Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling (2015, p.466), “a Tropicália misturava a tradição da
canção popular com o pop internacional e com experimentações de vanguarda, evocava imagens
estereotipadas do Brasil como paraíso tropical, e realizava a crítica aguda do país com referências incisivas
à repressão política, à desigualdade e à miséria social”.

755
principais estandartes do movimento – a experimentação sensorial – surge na passagem
encarnado num símbolo bastante representativo do paraíso tropical, a banana, cuja carga
de saciedade e bonança entrará em curto-circuito com aquela imagem de privação e
violência institucional, o pau de arara. À inventividade dos tropicalistas, Kucinski
sobrepõe o castigo cruel, desumano e degradante da tortura, outro campo fértil da criação
humana, segundo Michaud (1992, p.77):

No campo dos tormentos, sevícias, castigos e crimes, a inventividade


humana foi e é inesgotável. Os museus de suplícios atestam uma
imaginação delirante a serviço da produção da dor, do pavor e da morte;
não há técnica disponível que não tenha tido sua aplicação imediata
sobre os corpos vivos como matéria-prima da dor, com uma
solidariedade perversa entre habilidade técnica, conhecimento do
corpo, de sua sensibilidade e de sua fragilidade.

O percurso empreendido pela personagem central de A instalação pode ser ainda


compreendido como passagem de regressão da bíos (a vida em sociedade) à zoè (a vida
comum a todos os seres vivos), método de desumanização corolário dos estados de
exceção. Essa distinção, apresentada por Agamben na obra Homo sacer (2004), nos ajuda
a perceber o pau de arara como epítome da alienação total do corpo, da “redução sinistra
da vida humana à vida nua” (GAGNEBIN, 2008, p.14) a que foram submetidos aqueles
classificados como “subversivos” por uma ditadura empenhada em destruir física e
espiritualmente seus opositores. No domínio da zoè, o homo sacer é aquele cuja vida não
tem valor e que pode, portanto, ser sacrificado em nome de um bem maior. Foi em nome
da democracia, durante aqueles que foram os menos democráticos dos regimes, que o
aparato repressivo dos governos militares desapareceu, matou e torturou barbaramente
centenas de brasileiros, anulando “radicalmente todo estatuto jurídico do indivíduo, [e]
produzindo, dessa forma, um ser juridicamente inominável e inclassificável”
(AGAMBEN, 2004, p.14).
Por trás da panóplia de bem-estar e probidade, o palacete representa, portanto, esse
vazio de direito, a zona de anomia do estado de exceção da qual o Brasil nunca se retirou
completamente. É caso notório que nosso país não puniu os culpados por crimes de lesa-
humanidade durante a ditadura e continua a praticar os mesmos crimes de morte, tortura
e desaparecimento contra grupos desfavorecidos da população definidos por um
“estereótipo criminoso” (PENNA, 2007, p.190). Com efeito, João Camillo Penna (2007,
p.180) nos alerta que “grandes segmentos da população brasileira vivem hoje em dia sob

756
um estado de sítio branco, por debaixo da cobertura de um suposto estado de direito”.
Deste modo, o paradigma do estado de exceção se alimenta da irresolução desses crimes,
da inexistência de políticas públicas eficazes de valorização da memória, da morosidade
na instauração de uma Comissão da Verdade. Alimenta-se, sobretudo, do esquecimento
promovido pela anistia, como assegura a professora Eurídice Figueiredo (2017, p.26):

No Brasil não se cultiva a memória política porque a anistia significou


amnésia, o país se recusa a enfrentar seu passado, a rever os crimes
cometidos, a expor as atrocidades perpetradas por um regime de
exceção. Enquanto houver esse “vácuo de justiça” (FUKS, 2016), ou
seja, enquanto vigorar essa lei iníqua que perdoou os torturadores e os
assassinos, o Brasil não ousará olhar para seu passado, continuará sendo
um país desmemoriado.

Apesar dos esforços de projetos como Brasil: nunca mais, do relatório da Comissão
de Mortos e Desaparecidos Políticos (1996-2007) e de nossa tardia Comissão Nacional
da Verdade (2012-2014), o trabalho da memória e do arquivamento, da justiça e do acerto
de contas com a história foi mantido à sombra do esquecimento comandado pela Lei da
Anistia. Após o perdão amplo, geral e irrestrito concedido a perseguidores e perseguidos,
o país ficou à espera de uma catarse coletiva que nunca foi efetivada a nível nacional.
À contrapelo da história e do controle econômico de grupos conservadores, essa
função catártica tem sido desempenhada pela literatura, que congrega não apenas o acervo
das feridas e cicatrizes infringidas pelo aparelho repressor durante os anos de exceção,
mas pode ser vista com igual potência desestabilizadora como manifestação de uma
semântica própria da memória da ditadura. A literatura cumpre, dessa forma, “um papel
de suplência em relação à historiografia, conseguindo, às vezes, dizer o abjeto,
conseguindo nos entregar aquela verdade nefanda e interdita que o relato ou a crônica dos
acontecimentos não podem e, talvez, não devam dizer” (FINAZZI-AGRÒ, 2014, p.181).
A elaboração ficcional do período da ditadura passa a ser, portanto, uma reação à
normatização do silenciamento e àquela individualização do trauma de que se alimentam
os estados de exceção:

O “totalitarismo institucional” exige que a culpa, alimentada pela


dúvida e opacidade dos segredos, e reforçada pelo recebimento das
indenizações, permaneça dentro de cada sobrevivente como drama
pessoal e familiar, e não como a tragédia coletiva que foi e continua
sendo, meio século depois (KUCINSKI, 2012, p.163).

757
Nesse sentido, a capacidade que boa parte da produção de Kucinski tem de olhar
para o que é lacunar, inaudito e conflituoso representa, a nosso ver, aquilo que Giorgio
Agamben postulou como contemporâneo. Para o filósofo italiano, a contemporaneidade
se caracteriza por uma relação de aproximação e distanciamento com o próprio tempo.
Ser contemporâneo consiste, pois, em ser capaz de observar, no presente, não as luzes do
século, mas seus pontos de fuga e escuridão (AGAMBEN, 2009). Realizadas no encontro
entre tempos e gerações, as narrativas de Kucinski demonstram que o escuro do presente
é algo que lhes concerne profundamente e nunca deixam de interpelar. O conto A
instalação atesta que o extravasamento daquilo que há de privado proporciona uma visão
indissociável dos espaços de vivência do sujeito. Faz sentido, portanto, como sugere
Flávia Biroli (2014, localização kindle 603):

abandonar a visão de que esfera privada e esfera pública correspondem


a “lugares” e “tempos” distintos na vida dos indivíduos, passando a
discuti-las como um complexo diferenciado de relações, e práticas e de
direitos [...] permanentemente imbrincados, uma vez que os efeitos dos
arranjos, das relações de poder e dos direitos garantidos em um das
esferas serão sentidos na outra.

Com efeito, a ficção de Kucinski se abre para uma representação mais abrangente
do drama vivido por brasileiros durante os anos de repressão política. Por meio do trauma
de Nair, Bernardo Kucinski restaura um debate imprescindível sobre a cultura da
impunidade e a precarização da memória. Uma restauração talvez defeituosa, mas que
não deixa de figurar como “um patrimônio outro que a literatura proporciona por defeito,
onde uma comunidade [...] pode se reimaginar e narrar, inclusive no labirinto tormentoso
de um passado que continua fugindo e não se deixa integralmente, ainda, apreender”
(DALCASTAGNÈ, VECCHI, 2014, p.12). Dessa feita, o choque traumático descrito em
A instalação, mesmo emergindo de uma esfera privada, é projetado num lugar de
transferência e interpelação (BUTLER, 2017, p.90) – a literatura – que, sendo ao mesmo
tempo simulacro e potencialidade, gera um diálogo que “não é somente o diálogo das
forças sociais na estática de suas coexistências, mas é também o diálogo dos tempos, das
épocas, dos dias, daquele que morre, vive, nasce” (BAKHTIN, 2010, p.161).

758
Referências

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2004. 2ª ed.

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Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.

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Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009.

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Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.

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Aurora Fornoni Bernadini et al. 6ª ed. São Paulo: Hucitec, 2010.

BIROLI, Flávia. O público e o privado. In: BIROLI, Flávia, MIGUEL, Luis Felipe.
Feminismo e política. São Paulo: Boitempo, 2014. Kindle Edition.

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Wacht e Ari Roitman. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

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Janeiro: 7 Letras, 2017.

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pós-golpe. In: Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea. Literatura e Ditadura. n.
43, Brasília, jan/jun, 2014.

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Auschwitz: o arquivo e a testemunha. Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo,
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759
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Universidade de São Paulo, Fapesp, 2017. 2ª ed.

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__________. Você vai voltar pra mim e outros contos. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

__________. Os visitantes. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

MICHAUD, Yves. A violência. Trad. L. Garcia. São Paulo: Ática, 1992.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François [et al.].
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.

SCHWARCZ, Lilia Moritz, STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São
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SELIGMANN-SILVA. Márcio. “Reflexões sobre a memória, a história e o


esquecimento”. In: História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes.
Campinas: Editora da UNICAMP, 2013.

760
DITADURA MILITAR: MEMÓRIA E HISTÓRIA

Cleia da Rocha1
Resumo: Neste trabalho propomos pensar as relações entre a memória individual e coletiva e a
história do período militar pós 64 a partir da literatura. Para isso nos debruçamos sobre dois
romances contemporâneos que versam sobre o tema e que se utilizam das memórias e
experiências individuais dos autores. Trata-se de K. relato de uma busca, de Bernardo Kucinski,
publicado em 2010 e de O irmão alemão, de Chico Buarque, publicado em 2014. A primeira
narrativa está centrada especificamente na questão dos desaparecidos políticos, enquanto a
segunda traz constantes reverberações sobre o tema, já que parte do enredo situa-se nos “anos de
chumbo” e o narrador tem um irmão desaparecido.

Palavras-chave: Literatura Contemporânea; Ditadura Militar; Memória; História.

A história
Em Educação pós Auschwitz o filósofo Theodor Adorno afirma que o papel
primordial da educação é colaborar para que um novo Auschwitz não aconteça. Como?
Por meio do conhecimento dos acontecimentos históricos e das posturas sociais que
culminaram na morte de milhares de judeus, negros, homossexuais, ciganos e outros.
As atrocidades praticadas em Auschwitz são uma “ferida simbólica” na história da
humanidade, no que concerne ao desrespeito aos direitos dos homens. Entre nós,
brasileiros, também temos uma ferida, ainda ignorada por muitos, mas que é um trauma
na história política e social do país. A ditadura militar, iniciada com o golpe de 64 e
mantida no país até 1988, nos afeta como ferida simbólica, porque, assim como os
acontecimentos da Alemanha nazista, as atrocidades geradas por esse regime, se não
contaram explicitamente com o apoio de grande parte população, contaram com o seu
silenciamento.
Durante o período, principalmente após o AI-5, houve um endurecimento da
censura em relação à mídia televisiva e também à imprensa escrita, marcada pelo
fechamento de jornais, prisão e tortura de jornalistas. No meio cultural também imperou
a “lei da mordaça”, principalmente no teatro, na teledramaturgia e na música.
No campo da literatura, embora tenha havido censura, muitos livros, cujo interior
traziam denúncias, explícitas ou implícitas, ao regime, passaram despercebidos, não se
sabe se em razão da inadaptação dos censores para ler essas obras, ou se em razão do
alcance do texto literário ser menor, em termos de público. Assim, parte da literatura

1
Doutora em Letras (UFPR) e professora da rede estadual do Paraná. Email: cleiadarocha@hotmail.com

761
publicada no período serviu como um meio de denúncia, principalmente ao tornar público
a prática de tortura operada pelos órgãos oficiais.
Após a abertura política, e com a possibilidade de esclarecer a história recente,
houve uma profusão de textos sobre os “anos de chumbo”, principalmente textos
jornalísticos, biografias, e autobiografias, que se apresentam tanto como uma tentativa de
expressar o que antes não podia ser dito, como de tentar fazer justiça à memória daqueles
que, quando não morreram nas mãos dos militares, tiveram suas vidas devastadas pela
repressão. Também a literatura se abriu, mais uma vez, para refletir sobre a questão, não
na forma de denúncia velada ou explícita, como nos anos anteriores, mas por meio de um
texto mais reflexivo, marcado pela tentativa de readaptação à nova realidade. Esta
literatura se deu como escrita de testamento, cuja herança é o repertório de memórias
daqueles que estiveram diretamente envolvidos nos acontecimentos do período.
Podemos dizer que a Ditadura se inscreve na memória coletiva do país, não como
fato acabado e superado, mas como fratura exposta de uma dura cicatrização, cuja ingênua
ou inescrupulosamente tentativa de cura se viu na Lei da Anistia. E como esse trauma
não foi devidamente tratado ele tende a reaparecer, agora pensando na perspectiva
psicanalítica aplicada à memória e à história (RICOEUR, 2007, p. 91). O perdão
proclamado pela Lei da Anistia passa a ser contestado pelas famílias traumatizadas pelo
sumiço dos familiares, pela impossibilidade de enterrar seus mortos e cumprir com as
etapas do luto. Esse retorno, cuja Comissão Nacional da Verdade, instaurada em 2010, é
representativa, se dá também em termos políticos e na busca de uma revisão legal em que
se objetiva a punição dos militares envolvidos nas torturas, mortes e desaparecimentos.
Na literatura agora o olhar não está preso à denúncia, mas é um olhar
memorialístico, reflexivo para os acontecimentos do período. Em alguns autores, a escrita
literária é uma tentativa de expor em discurso as dores de um trauma que é individual,
familiar e social. Muitos escrevem a partir do seu conteúdo memorialístico, outros
buscam nas memórias das gerações anteriores, os acontecimentos e sentimentos para
narrar.
Aqui propomos pensar a relação entre memória e história apresentada por dois
autores que vivenciaram a período. Analisaremos os romances K. relato de uma busca,
de Bernardo Kucinski, publicado em 2010 e de O irmão alemão, de Chico Buarque,
publicado em 2014.

762
A memória
Conforme Marilene Weinhardt aponta os romances que “ficcionalizam a ditadura
militar e seus efeitos são lançados desde a época mesmo dos acontecimentos” (2016, p.
251), entretanto embora narrem um acontecimento claramente histórico, devido à
proximidade com os fatos narrados, eles se caracterizam menos como romances históricos
e mais como romances políticos, afirma a autora recorrendo à distinção funcional
proposta por Alcmeno Bastos (1999). Ainda conforme Weinhardt:

A oposição ao regime militar das décadas de 60 e 70 do século passado já foi


ficcionalizada, seja no período mesmo, como denúncia e tentativa de
resistência, seja após a abertura, como exorcismo. Mas assim como seus efeitos
empíricos se fazem sentir na geração dos filhos daqueles que viveram essa
experiência, a força de suas figurações, que tiveram hora e vez na voz dos pais,
não está esgotado, seu potencial pode se atualizar como herança (2016, pp.
245-246).

Segundo a autora, a listagem de romances que ficcionalizam o período, agora pelo


viés histórico “continua a crescer, obviamente trazendo outras percepções da história”
(2016, p. 251) e cita como exemplo romances de autoras jovens e que revisitam o passado
por meio do percurso da geração anterior como A chave da casa (2007), de Tatiana Salem
Levy; Azul-corvo (2010), de Adriana Lisboa e Não falei (2004), de Beatriz Bracher.
No conjunto de narrativas sobre essa temática destacam-se também as escritas por
autores que vivenciaram os acontecimentos do período, como é o caso das obras K. Relato
de uma busca (2010), de Bernardo Kucinski; O irmão alemão (2014), de Chico Buarque;
Ainda estou aqui, de Marcelo Rubens Paiva e Volto semana que vem, de Maria Pilla,
publicados em 2015 e A noite da espera (2017), de Milton Hatoum.
Em meio à seara profícua de romances sobre o tema, a justificativa para a seleção
dos romances de Buarque e Kucinski, deve-se ao modo de ficcionalização da memória,
em nossa concepção, literariamente amadurecida, e à similaridade final entre ambas,
ainda que difiram em seus processos de rememoração e de ressignificação ficcional. Em
ambas as narrativas o discurso romanesco recorre às memórias dos autores, homens
velhos e intelectuais letrados, aos quais poderíamos atribuir a condição de “homens
memória” de uma geração.
Ao buscar estabelecer a relação entre os romances, faz-se necessário esclarecer que
a retomada da memória da ditadura no romance de Chico Buarque faz-se de forma
diferente, uma vez que ela não é o elemento principal do enredo, que enfoca a descoberta
de um meio irmão alemão. Todavia, como veremos, ao refletir sobre a busca desse meio

763
irmão judeu, o autor volta-se para sua juventude, passada sob o regime militar e marcada
por outros desaparecimentos que, posteriormente, se configuraram como mais
misteriosos do que os ocorridos na Alemanha hitlerista. Essa comparação com a questão
alemã também aparecerá em K., no entanto, o desaparecimento da irmã do narrador (e
autor) é o ponto central da narrativa. Assim, os dois romances trabalham implícita ou
explicitamente com o paralelo entre Ditadura e Holocausto.
K. relatos de uma busca trata-se de um conciso romance, que por meio da
sobreposição de um conjunto de vozes tenta recuperar o percurso de Ana Kucinski,
desaparecida durante a ditadura militar, centrando-se na narrativa em 3ª pessoa que segue
a perspectiva do pai, ainda que recorra frequentemente a outros relatos e perspectivas,
feitos em primeira pessoa; O irmão alemão, de Chico Buarque, por meio de uma narração
em primeira pessoa, centra-se na descoberta de um irmão alemão, cujas últimas
informações referem-se ao período que antecede à Segunda Guerra.
A forma de lidar com o elemento temporal nos romances também se aproxima:
ambos os fatos narrados estão situados num tempo pretérito em relação à vida de seus
autores, no entanto, ao atualizá-los na narrativa, os autores escolhem uma abordagem
sincrônica, que vai construindo o relato linearmente, como se partisse de um passado e
desembocasse nos dias atuais. Entretanto, não se trata de um passado transposto como
lembrança, mas como situação, embora saibamos que se tratam de fatos situados no
passado. É como se os autores olhassem para os acontecimentos do passado, a partir de
um narrador inserido naquele momento. No romance de Chico Buarque, a ação
romanesca inicia-se na juventude da personagem, por volta de 1960 e chega aos dias
atuais, mais precisamente, 2013. Em K. também ocorre a abordagem de um período de
tempo semelhante.
Nesse aspecto, ambos os romances se distanciam dos relatos tradicionais de
memória em que usualmente o memorialista pode ser comparado ao próprio narrador e
“é visto na abertura na sua condição de ‘agora’ isto é, no presente da narração, evocando
o ‘não agora’”. (WEINHARDT, 2012, p. 250. Neste sentido, as narrativas constroem um
jogo complexo, pois está em questão não o recurso discursivo do relato da memória,
expresso na figura do narrador que olha para o passado inserido em um presente, mas o
próprio material memorialístico, extraído da vida dos autores.
Ambos os romances não apresentam essa caracterização, pois os narradores não
são vistos em sua condição de “agora, pois o desfecho ainda não está dado. Em K., a

764
narrativa constitui-se como recuperação de rastros de um acontecimento já dado. Em O
irmão alemão, o modo de realocar o fato ficcionalmente difere da narrativa de Kucinski,
lembrando o procedimento do romance policial, cuja surpresa sobre o paradeiro do irmão
alemão permanece até o fim. Aqui devemos esclarecer que o pacto ficcional deve ser
mantido, ao menos numa leitura inicial, pois se sairmos do universo da narrativa para o
da vida dos autores toda a construção que busca mostrar o fracasso em torno da busca de
Ana Kucinski e a descoberta ou não do irmão alemão corre o risco de se perder.
Diante desses esclarecimentos, evidencia-se que não estamos tratando dos
romances em questão como narrativas de memória, mas narrativas constituídas a partir
das memórias de seus autores.
Da memória familiar à memória histórica
Em O irmão alemão, como já foi adiantado, Chico Buarque ficcionaliza um
episódio familiar: a existência de um meio irmão alemão, filho do pai com uma judia
alemã, unindo, assim, suas memórias pessoais ao um novelo ficcional e não deixando
também de se utilizar de um conjunto de memórias coletivas, principalmente relacionadas
ao momento histórico em que os acontecimentos narrados se desenvolvem.
O enredo escrito em primeira pessoa segue a trajetória de Francisco, um jovem de
classe média, filho de um intelectual bastante conhecido, que encontra entre os livros do
pai, um documento: “escrito em alemão, cheio de maiúsculas” (BUARQUE, 2014, p. 9)
e do qual só consegue entender o cabeçalho e a assinatura Anne “com caligrafia inclinada
para a direita” (BUARQUE, 2014, p. 9). O documento retoma a lembrança de um
acontecimento familiar: o pai do narrador quando solteiro havia morado em Berlim entre
1929 e 1930.
Todo o relato de O irmão alemão acompanha a vida de Francisco, que após
empreender uma busca pelo misterioso paradeiro do irmão, passado muitos anos,
especificamente em 2013, descobre o percurso do meio irmão. Ao acompanharmos a
narrativa de Francisco, acompanhamos também uma série de mudanças na sua vida. Ele
que na abertura do romance tem por volta de 17 anos, ao longo da narrativa, deixa de ser
o jovem que roubava carro por diversão, forma-se na faculdade de letras, torna-se um
professor medíocre de cursinho e depois um professor universitário e ao final da narrativa
nos deparamos com um senhor que passa dos 60 anos e se ocupa corrigindo dúvidas
gramaticais em um Blog. As transformações não são só pessoais, a sociedade em que ele
vive também se transforma, tanto cultural como politicamente.

765
Dos anos tranquilos de festas passa-se aos anos difíceis após o golpe de 64,
elemento histórico que se instaura na obra silenciosamente:

E devo dizer que guardo boas recordações daquele nosso grêmio onde também
havia exposições de arte, recitais de poesia, cantoria, cachaça e moças
namoradeiras. Festas entravam pela madrugada até as vésperas de 31 de março
de 1964, quando os militares tomaram o poder.[...]
Pouco antes daquela data, numa esquina a cem metros da minha escola vi
grupos descendo dos bairros elegantes rumo ao centro da cidade. [...] vi afluir
de outras ruas grupos sempre maiores, vi velas e mais velas acesas no
parapeito, vi anciãos que nos saudavam das janelas, e na praça da República
choviam de prédios papéis picados. Sinos bimbalhavam na praça da Sé,
mulheres com véu na cabeça desfiavam o terço e, achei melhor me retirar antes
que algum maledicente me visse ali entretido com hinos religiosos, brados
patrióticos e discursos apocalípticos em frente à catedral. (BUARQUE, 2014,
p. 47 - 48).

A longa descrição da personagem dá a dimensão do clima anterior ao golpe e a


ideologia e organização das marchas conservadoras, por Deus, propriedade e família que
fomentaram a política conservadora instaurada pós 64.
Das conversas políticas em cenários, antes liberais dos centros universitários,
passa-se aos encontros sorrateiros em bares da cidade:

Com o cerceamento político do centro acadêmico, os alunos de filosofia,


ciências e letras costumávamos nos encontrar nos bares da redondeza onde a
boca a boca nos deixava ao corrente das manifestações contra a ditadura que
se realizavam vez ou outra pela cidade, obviamente sem a publicidade e a
repercussão das marchas católicas do passado. E eu [...] acabei tomando gosto
por esses eventos. Circulava entre universitário e secundarista, conheci
militantes de organizações de esquerda, andei de braço com artistas,
jornalistas, informantes, desocupados, malucos e moças insolentes com as
pernas de fora que me lembravam a Maria Helena. (BUARQUE, 2014, p.49).

O endurecimento do regime é marcado pela tortura e morte de opositores, pelo


autoexílio de intelectuais, pelo sumiço de jovens, entre eles Ariosto Fortunato, melhor
amigo de Francisco, e pelo silêncio da mídia. O desaparecimento de seu melhor amigo
preocupa menos a personagem do que comprometimento de sua carreira e ao ser
demitido, ser saber o motivo, ele teme que isso “deva-se à sua proximidade com
adversários do regime, até mesmo militantes da guerrilha urbana” (BUARQUE, 2014, p.
130) e que seu nome caia “em alguma lista negra”.
Após o desaparecimento do vizinho, a família Hollander recebe em sua casa a
namorada dele, Tricita, que está voltando à Argentina e precisa fazer algumas entregas
em bairros de São Paulo. Francisco oferece-se para acompanhá-la, mas Mimmo, seu
irmão mais velho, toma sua dianteira. O irmão e a namorada do amigo, misteriosamente,

766
desaparecem, levantando a suspeita de que teriam sido presos pelo regime, pois na manhã
seguinte a casa é invadida por “quatro intrusos” que procuram as coisas dos dois jovens,
reviram a casa, levam livros, sem maiores explicações (BUARQUE, 2014, p.157).
O pai de Francisco, um renomado intelectual, busca em vão pelo filho, usando de
sua influência política. Eleonora Fortunato, mãe de Ariosto, como forma de protesto e
usando de sua arte, estampa camisetas com o retrato do filho. Sua luta lembra muito a da
estilista Zuzu Angel que de forma semelhante denunciou o sumiço do filho Stuart Angel
e da nora Hildebrand Angel, amigos do autor.
O desaparecimento do irmão afeta a rotina da família Hollander. O pai se isola cada
vez mais em sua biblioteca, e a mãe passa a viver em função dele. Francisco também sofre
um choque inicial, mas com a passagem do tempo vai se integrando à vida normal. A mãe
se recusa a pensar no pior e como forma de negar o que se passa “enfiou na cabeça que o
filho tinha partido com Tricita para Buenos Aires” e sempre espera seu retorno
(BUARQUE, 2014, p. 159). Francisco alimenta os devaneios da mãe, mentindo,
inclusive, sobre a passagem do tempo para que ela não se dê conta da longa ausência do
filho: “Lá em casa, 1973 levou alguns anos para passar” (BUARQUE, 2014, 192).
Paralelamente ao sumiço de Mimmo, Francisco segue preocupando-se com o
irmão alemão, a ponto de a mãe questioná-lo, “mostrando que ficaria satisfeita se eu desse
ao Mimmo, metade da atenção que dedicava ao outro” (BUARQUE, 2014, p. 186). Mas
ele acha que não tem porque preocupar-se, uma vez que o irmão era um alienado de
questões políticas e “após prestar depoimento, tomar alguns sustos e cumprir quarentena
ele seria solto” (2014, p. 186). O que não ocorre, tornando o desaparecimento do irmão
do narrador, como o de tantos militantes políticos, um mistério. Como ele esclarece,
mesmo após a abertura política, o nome de Mimmo “não constava em nenhuma lista de
beneficiário da anistia” (BUARQUE, 2014, p. 192).
Chama-nos a atenção o descaso do narrador para com o desaparecimento desse
irmão, com quem ele, embora não tivesse uma relação amigável, possuía uma relação
muito próxima, habitando a mesma casa. E surge-nos uma explicação alegórica: não é só
uma apatia em relação ao irmão que o impele a não procurá-lo, há nesta decisão, que é
uma estratégia narrativa, um questionamento mais profundo sobre a própria memória
coletiva, da qual o autor compartilha.
Como o romance é criado pelo cruzamento da memória do autor e a ficcionalização
dessa, e uma vez que o irmão alemão de fato existiu e o irmão brasileiro é uma criação

767
ficcional, somos tentados a explicar a primeira obsessão em razão da valorização do
conteúdo empírico. Todavia, por que um autor experiente como Chico Buarque criaria
um irmão brasileiro na trama se ele não fosse importante ficcionalmente? De modo
alegórico, então, vislumbramos uma razão, essa sim mais complexa porque envolve um
jogo entre a criação ficcional de uma memória individual e a recuperação de uma
memória coletiva, e, portanto, histórica.
Assim, entendemos que os irmãos, alemão e brasileiro, representam
simbolicamente a memória coletiva de dois eventos e suas consequências,
respectivamente: a Segunda Guerra e a opressão aos judeus; a Ditadura e os
desaparecimentos políticos. Na obra, a personagem revisita os traumas da Segunda
Guerra, entre os quais poderia estar o desaparecimento do meio irmão, mas se recusa a
reconhecer em solo brasileiro um evento, de menor porte, mas de igual importância.
No conjunto das memórias traumáticas, a memória do Holocausto foi bastante
revisitada, sendo que o processo de luto já foi feito, tanto pelo distanciamento temporal,
quanto pela reflexão pós fato. Isso explicaria o desfecho positivo: diante de um mundo
bárbaro, o irmão alemão sobreviveu. O mesmo não pode ser dito da situação do irmão
brasileiro.
A ditadura ainda não encontra o distanciamento temporal e a reflexão crítica
necessária para operar na memória dos envolvidos a cura do trauma. Neste sentido, numa
perspectiva freudiana, retomada posteriormente por RICOEUR (2007), ela ainda não
passou pela condição do luto. Assim, podemos afirmar que o irmão brasileiro não foi
frequentado com a distância temporal e a reflexão crítica de um irmão alemão.
Da culpa familiar à culpa histórica
K. relato de uma busca, a ficção de estreia de Bernardo Kucinski, como o subtítulo
esclarece, relata a busca de K. por sua filha, uma professora universitária desaparecida
durante a ditadura militar. O livro é baseado no episódio verídico do sumiço da irmã do
autor, Ana Kucinski, descrito, todavia, sob o crivo do ficcionista, como esclarece o
próprio Bernardo em nota ao leitor: “tudo neste livro é invenção, mas quase tudo
aconteceu”.
A narrativa de Bernardo Kucinski é dividida em pequenos capítulos, e não se centra
apenas na busca do pai, embora esse seja o fio condutor da narrativa. Utilizando-se, na
maior parte do romance, de um narrador em terceira pessoa, o autor vai acrescentando
uma série de relatos de outras personagens, a maioria ficcional, sobre os episódios da

768
época, à perspectiva de K., buscando com isso suprir as lacunas de sua memória com
aspectos da ficção.
As escolhas ficcionais de Bernardo Kucinski deixam claro que sua narrativa não
se debruça sobre a vida de Ana, mas sobre o próprio percurso trágico do pai, em sua busca
instaurada desde o início como “demanda do impossível”. A luta de K. e, talvez de
Bernardo Kucinski, é contra “o apagamento definitivo dos rastros” como diria
RICOEUR. Assim, o relato busca reconstituir não a vida de Ana Kucinski, mas a
contribuição de sua luta histórica e a dívida com a memória familiar; por outro lado é um
libelo contra o pesar da perda, que segundo RICOEUR (2007, p. 91) “é essa tristeza que
não fez o trabalho do luto”.
O pai de Ana, K., 10 dias após o seu desaparecimento dá início a busca por sua
filha, ou pelo menos por rastros de seu desaparecimento. Aos poucos, ele vai se dando
conta da situação política do país e de que seu caso não é o único.
K. , antes alheio a tudo que ocorria no país, preso a sua literatura iídiche, de repente
é jogado num cenário onde não pode confiar em ninguém, onde todos parecem ser
ventrículos de um algoz invisível. K., que passou pela guerra na Polônia e teve os
familiares da esposa dizimados em um campo de concentração, sente no Brasil as agruras
de um sistema ditatorial que desaparece com seus inimigos políticos e apaga os seus
rastros. Conforme observa ele: “Até os nazistas que reduziam suas vítimas a cinzas
registravam os mortos, cada um tinha um número tatuado no braço. A cada morte, davam
baixa em um livro” (KUCISNKI, 2014, p. 23). E mesmo nas chacinas dos primeiros dias
de invasão, em que os judeus eram fuzilados e jogados em uma vala comum, os que
sobreviviam sabiam que seus mortos estavam enterrados naquele lugar, “eram execuções
em massa, não era um sumidouro de pessoas” (KUCINSKI, 2014, p. 23).
Não é gratuito que o narrador seja nomeado de K., a dívida com Kafka e O processo
é evidente: como citado na narrativa, o K. de Bernardo, assim como o K. do autor húngaro
é vítima de um sistema que arbitrariamente persegue suas vítimas e as consome sem
explicação alguma. Assim, a metáfora do sumidouro utilizado pelo autor é perfeita para
explicar o processo de julgamento e execução sumária a que os opositores do regime são
submetidos.
No interior da narrativa, uma voz que parece ser a do próprio autor reflete sobre a
obra de Kafka e seu personagem Joseph K. “Em o processo, Joseph K. examina seu
passado até os ínfimos detalhes, em busca do erro escondido, da razão de estar sendo

769
processado” (KUCINSKI, 2014, p. 168). O K. de Bernardo Kucinski também procura a
razão do desaparecimento da filha e mergulhado em um brutal estado de culpa, se
pergunta constantemente como não notou os perigos que circundavam a vida da filha.
Se a procura de K. reflete uma operação repleta de silêncio e vazio, as vozes que
representam os perseguidores, ou aqueles que estão próximo aos executores, mostram
toda a desumanização do processo. Neste sentido, destacam-se o relato de uma
funcionária de Fleury que presenciou ou horrores do período, da amante do famigerado
delegado e do próprio Fleury, figura empírica e considerado um dos responsáveis pelas
torturas, mortes e desaparecimentos do período.
Outro recurso muito utilizado são as cartas, também ficcionais, que buscam
presentificar na narrativa a filha e o genro já desaparecidos. Desta forma, os retalhos de
relatos vão construindo uma colcha na qual transparece todo horror do período, a frieza
de seus envolvidos, a tristeza dos familiares e a apatia da sociedade.
Desde o início, o relato se mostra como a tentativa de recuperar “a presença de uma
coisa ausente” (RICOEUR, 2007, p. 18), característica muito bem explicitada no texto
que serve como preâmbulo à narrativa, no qual o pai fictício reflete sobre a crueldade das
constantes cartas do banco destinadas à filha desaparecida há mais de três décadas: “como
é possível enviar reiteradamente cartas a quem inexiste há mais décadas?” KUCINSKI,
2014, p. 9) se pergunta o pai, para depois refletir sobre o papel desses “inventários de
perdas da perda de uma vida” e chegar à conclusão de que

É como se as cartas tivessem a intenção oculta de impedir que sua memória na


nossa memória descanse; como se além de nos terem negado a terapia do luto,
pela supressão do corpo, o carteiro fosse um Dybbuk, sua alma em
desassossego, a nos apontar culpas e omissões. Como se além da morte
desnecessária quisessem estragar a vida necessária, esta que não cessa e que
nos demandam filhos e netos. (KUCINSKI, 2014, p. 10)

Neste sentido, o relato tem uma função psicanalítica, fazer o trabalho de luto pela
materialização da escrita. Ana Kucinski ausente em corpo é recuperada pela memória e
materializada na narrativa. As palavras do pai são um grito contra a melancolia derivada
e a culpa, são, portanto, uma tentativa de perdão ao outro e a si mesmo, mas jamais de
esquecimento. Trata-se em um âmbito mais geral do que RICOEUR (2007, p. 490) chama
de “um exercício público do trabalho do luto”.
A luta de K. e, por conseguinte, do relato de sua busca é contra o totalitarismo
institucional que “exige culpa, alimentada pela dúvida e opacidade dos segredos, e

770
reforçada pelo recebimento das indenizações”, que faz com que os episódios dolorosos
da ditadura permaneçam “dentro de cada sobrevivente como drama pessoal e familiar e
não como tragédia coletiva que foi e continua sendo, meio século depois” (KUCINSKI,
2014, p. 169). A recusa social de aceitar esses episódios como parte de uma tragédia
coletiva, reside no fato de que “a memória imposta está armada por uma história ela
mesma ‘autorizada’, a história oficial, a história aprendida e celebrada publicamente”
(RICOEUR, 2007, p. 98)
Neste sentido, a grande contribuição do autor está justamente em refletir sobre o
grau de melancolia que se abateu sobre os familiares dos desaparecidos políticos e sobre
o “mal de Alzheimer nacional” tomado como solução ideológica pela nação que silenciou
diante das atrocidades do regime ditatorial. Silenciamento e esquecimento ainda em vigor
no Brasil e defendido por uma grande parcela da população, que mesmo em tempos de
democracia se recusa a reconstruir os relatos de uma tragédia humana.
Considerações finais
Como vimos, há muito em comum nos romances do estreante Bernardo Kucinski
e do veterano Chico Buarque, principalmente no que se refere à própria matéria que
condiciona o enredo, uma vez que ambos os romances constroem suas ficções a partir das
memórias familiares dos autores.
Em O irmão alemão há um grande mistério não resolvido, que é o desaparecimento
do irmão brasileiro do narrador, durante o período da ditadura, e é por esse elo narrativo
secundário que ligamos as duas narrativas, pois é por meio desse desaparecimento que o
narrador tece suas considerações sobre o momento histórico por que o Brasil passava.
Ainda que indiretamente, a sobreposição dos dois desaparecimentos, o do irmão alemão
e o do irmão brasileiro, permite à personagem construir um relato em perspectiva da
memória histórica e coletiva e até fazer uma comparação entre a experiência antissemita
na Alemanha hitlerista e os desaparecimentos políticos durante a ditadura brasileira. Em
K. a comparação entre esses dois cenários é mais patente, pois embora K. tenha fugido da
Europa antes da Segunda Guerra, ele vivenciou o episódio da invasão da Polônia e sabe
que sua mulher perdeu toda a família em um campo de concentração.
Com base na teoria freudiana acerca do luto e da melancolia, aplicada por
RICOEUR aos acontecimentos históricos, partimos do pressuposto de que a ditadura se
instaura como um trauma na história oficial, e que cada narrativa trabalha esse trauma de
uma forma diferente. Em K., o relato se instaura como tentativa de fazer o trabalho do

771
luto, por meio da abordagem do tema; em Chico, o silêncio é diagnóstico, mostra que
enquanto nação ainda não fizemos o trabalho de luto, não trouxemos à tona a questão.
Por isso nos sentimos tão à vontade de encontrar nosso irmão alemão e, por outro lado, o
desaparecimento de nosso irmão brasileiro se instaura como um estranhamento, marcado
pelo silêncio. Ele é o elemento familiar ao qual buscamos afastar do relato, para retomar
outro aspecto freudiano: o do umheimilich.
Em O irmão alemão esse silêncio e esquecimento são estruturais, o próprio
Francisco não reflete sobre isso; em K. , o pai se insurge contra o silêncio, mas observa
que ele está impregnado nas estruturas sociais, na coletividade que segue vivendo e
ignorando as almas perdidas no sumidouro humano. Ambos os romances refletem sobre
nossas feridas simbólicas e históricas: a ditatura aqui, o antissemitismo na Alemanha. E
em ambos a memória pode ser vista como matriz da história, uma vez que há um profundo
imbricamento entre memória individual e memória coletiva.
Retornando a Adorno e seu desejo de que Auschwitz não se repita, e diante do
cenário atual, a afirmação de Le Goff, se não esperançosa é necessária: “A memória, onde
cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o
presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma a que a memória coletiva sirva para a
libertação e não para a servidão dos homens” (LE GOFF, 1994, p.477).
Referências
BUARQUE, Chico. O Irmão Alemão. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

KUCINSKI, Bernardo. K. - relato de uma busca. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

LE GOFF, Jacques. Memória e História. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1990.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora. Da


UNICAMP, 2012.

WEINHARDT, Marilene. A memória ficcionalizada em heranças e leite derramado:


rastros, apagamentos e negociações. Revista Matraga, Rio de janeiro, v.19, n.31, jul./dez.
2012.

___________. Filhos da geração de 1960/70: herdeiros da memória. In_____: Ficções


contemporâneas: História e memória, Ponta Grossa: Editora UEPG, 2015, pp.237-238.

772
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE: FAZENDEIRO DO AR DECADENTE OU
SOBREVIVENTE NO INFERNO?

Fátima Ghazzaoui (USP)1

Resumo: ​As inflexões da lírica drummondiana no período da década de 60, dentro do contexto
histórico mundial do capitalismo tardio, do qual a ditadura militar brasileira é consequência
engendrada pelo lugar periférico do país no embate de forças do cenário mundial.
Compreende-se que as configurações da subjetividade lírica alteraram as tensões entre eu e
mundo. Os livros - “Lição de coisas”, “A falta que ama” e “As impurezas do branco”- podem
ser vistos como um percurso traçado em paralelo com a série memorialista “Boitempo”,
inserindo as questões ali configuradas no contexto da ditadura militar, que se não se faz presente
explicitamente, apresenta-se ora em negativo, ora em sua face econômica e do mercado.

Palavras-chave: ​Carlos Drummond de Andrade; Lírica; Década de 60; Ditadura Militar.

O que pode o poeta testemunhar num cenário em que a palavra está silenciada?
Para buscar esta resposta, gostaria de começar minha exposição lendo trechos de
uma crônica de Carlos Drummond de Andrade, publicada no Correio da Manhã, em
13/12/1968, intitulada “Baixou o Espírito-de-Natal”:

De repente, baixam os anjos, e o Espírito de Natal toma conta do Brasil.

§ O Esquadrão da Morte, sucursal de São Paulo, avisa aos interessados: “Durante


o período de enternecimento cristão, não executaremos nenhum marginal. Eles também
merecem comer suas castanhas.”

§ O Esquadrão da Morte que opera no Estado do Rio, com maiores


responsabilidades, em homenagem ao nascimento do Salvador do Mundo, reduz a dois
fuzilamentos por semana sua produção habitual, que era de sete.

[...]

§A inviolabilidade dos mandatos parlamentares será mantida durante o Natal e até


mesmo durante janeiro, pois os bons sentimentos duram pelo menos um mês.

§ Fica expressamente estabelecido que, nesta fase de amor e respeito à pessoa


humana, os índios submetidos a trabalho forçado em Roraima não serão marcados a

1
​Doutoranda do Programa de Pós-Graduação do DTLLC-USP. Contato: ​fatimagha0@gmail.com

773
ferro em brasa. Os que já o tenham sido receberão pedidos de desculpas e um rolinho de
esparadrapo.

[...]

§ O presidente Costa e Silva, admitindo pela primeira vez que, embora seja ótimo
o Governo, a equipe governamental tem pontos fracos, oferecerá embaixadas a dois ou
três de seus ministros, como presente de Natal aos referidos e ao povo brasileiro.

A crônica, explicitamente irônica, foi escrita à maneira de decreto-lei, com o


desdobramento do artigo em parágrafos que mostram que a violação dos direitos
humanos era norma e a violência praticada pelos aparelhos de Estado já vigorava desde
o golpe de 64. Entretanto, às vésperas do Natal, na mesma noite em que a crônica fora
publicada, “o Ato Institucional nº5 e o Ato Suplementar nº 38 foram promulgados, este
último pondo o Congresso em recesso indefinido”. (SKIDMORE, 1988, p. 166). A
cassação de mandatos, o fechamento do Congresso e o uso desenfreado do aparelho
repressivo do Estado passaram a ser norma.

O excertos selecionados evidenciam o repúdio do cronista a mais um período de


cerceamento dos direitos democráticos. Assim como expõem a decepção diante de mais
uma derrota coletiva. O exercício como cronista revela um Drummond atento às
mudanças e aos conflitos. Muito embora não se possa comparar o material das crônicas
com o dos poemas sem que se faça uma mediação, percebe-se que elas ofereciam-lhe
espaço para um primeiro contato com a matéria do cotidiano de cujo conteúdo o poeta
poderia posteriormente extrair pontos cruciais para voos mais longos e mergulhos mais
profundos que se traduziriam em outro gênero, em poesia. Entretanto, os rumos de sua
poética não são tão lineares e muitos o acusaram de demissionário, indagando o que
havia sido feito do poeta combativo das décadas anteriores. Nesse sentido, a questão
que se coloca é: tendo em vista a forte presença da poesia social na trajetória
drummondiana, quais foram as configurações assumidas pela subjetividade lírica no
período histórico que abrange os acontecimentos que engendraram a ditadura militar no
Brasil e seus desdobramentos, incluindo o projeto econômico desenvolvimentista que
culminou no que ficou conhecido por Milagre Econômico?

774
A razão da pergunta surge da afirmação da crítica que a lírica drummondiana
sofreu uma inflexão na qual as tensões do eu ​gauche e retorcido se dissiparam, o que
fez, entre outras coisas, com que a poesia social deixasse de ser engendrada. Nesse
sentido, muitos se perguntaram o que havia sido feito do poeta combativo das décadas
anteriores. Onde estava o poeta social de o ​Sentimento do Mundo ​(1940) e de ​A Rosa
do Povo ​(1945)? Crítica que também já havia recebido quando publicara em 1951 -
Claro Enigma - acusado de ter retomado os modelos clássicos e abandonado a praça de
convites. Porém, estudos como os do professor Vagner Camilo mostram que tanto o
pessimismo quanto a retomada d​o formalismo de ​Claro enigma estão ligados a certas
“especificidades do contexto político e estético dos anos 40-50; e que a reapropriação
drummondiana do legado “clássico”, nada tem de regressiva ou restauradora, como se
costuma supor”. (CAMILO,2001, p.18). Além disso, continua o crítico,
a frustração do projeto lírico-participante dos anos 40 e o pessimismo social
dominante na obra são vistos como decorrência do radicalismo ideológico do
PC no pós-guerra, que levaria à imposição do realismo socialista como
padrão artístico a ser seguido à risca.(CAMILO, 2001, P.18)​.

Em estudo recente, no qual esquadrinha a influência da mineração na obra do


poeta, o crítico José Miguel Wisnik traz elementos novos a essa questão, ajudando a
rever com suas análises este aparente desligamento do poeta das questões sociais.
Sobretudo quando ele associa sua análise do poema “A Máquina do mundo” à
instalação da Companhia Vale do Rio Doce, em Itabira, e à luta do poeta contra a
destruição do Pico do Cauê. O poema foi gestado à época da criação da siderúrgica e o
crítico aponta em sua análise como as questões locais estavam ligadas às mundiais,
assim como as questões da subjetividade lírica associavam-se às tensões criadas pela
prepotência do capitalismo, que em sua nova fase tornou todos os espaços da natureza
em espaços de exploração e submeteu a população local à sua tirania. O crítico, ao
analisar os versos em que há uma enumeração de coisas ofertadas ao sujeito lírico pela
máquina do mundo, diz que:

Não se trata de uma enumeração abstrata e genérica, mas de uma visão


articulada e nítida de um universal concreto, captado em voo rasante até o
coração mineral da terra: a tecnociência contemporânea e os dispositivos de

775
dominação e exploração do mundo agindo sobre todas as esferas objetivas e
subjetivas da existência. (WISNIK, 2018, pp. 213-4)

E quando analisa as várias acepções assumidas pela palavra máquina, revela que
a máquina concreta do capitalismo não matou a máquina poética e que a recusa do
sujeito lírico em se apropriar da totalidade metafísica, aumentou o poder demiurgo do
poeta, apesar de redimensionar a força do sujeito, que sai de mãos pensas. Assim sendo,
a inserção da nova ordem mundial na lógica da realidade local redimensionam o poder
do mundo e do sujeito lírico, e faz com que se olhe os livros subsequentes de maneira a
se considerar essa nova conjugação de forças, haja vista que a tensão entre eu e o
mundo estiveram sempre presentes em sua poesia.

Os livros dos quais me ocupo são da década de 60 e início da década de 70, a


saber: ​Lição de Coisas​, de 1962, ​A falta que ama​, de 1968, originalmente publicado
junto com ​Boitempo​, e ​As impurezas do branco​, de 1973. Além deles, Drummond
publicou sua ​Antologia Poética​, em 1962, e ​Menino Antigo ou ​Boitempo II​, em
1973.

Situo os livros na década de 60, tendo em vista a periodização feita por Jameson,
em artigo intitulado “Periodizando os anos 60” (JAMESON, 1991). Tomo emprestada a
delimitação feita por ele por entender que sua abordagem abarca aspectos do contexto
histórico que iluminam a poesia drummondiana daquele período. Valendo-se de vários
níveis de transformação histórica ocorridas no Primeiro Mundo, Jameson situa “os
começos do que viria a ser chamado de os anos 60, no Terceiro Mundo, com o grande
movimento de descolonização da África inglesa e francesa, no final dos anos 50. E fixa
seu fim em torno de 1972-1974, com o declínio da influência terceiro mundista na
Europa e EUA e com o processo de militarização dos regimes da América Latina depois
do golpe do Chile de 1973.

Grosso modo, ele estabelece esses limites tendo em vista as transformações em


diversos níveis - filosófico, político, cultural e econômico - que ocorreram no Primeiro
Mundo por influência do Terceiro Mundo. São transformações ambíguas e paradoxais,
porque ao mesmo tempo que buscavam libertação, engendraram novas formas de

776
exploração, de alienação e de opressão. Se por um lado, novos sujeitos históricos
surgiram e novas formas de se fazer política foram criadas, as questões identitárias,
pulverizadas em grupos cada vez menores, sobrepuseram-se a lutas de classes e
mataram a possibilidade da existência de sujeitos historicamente atuantes. Associado a
isso, o advento da cultura de massa engessou os princípios libertadores do Modernismo
e fez explodir com o bombardeio de informações o signo linguístico, agora
transformado em imagem esvaziada de sentido.

Diante desse quadro, percebe-se na composição dos três livros que pertencem à
década de 60 um movimento no qual Drummond enfrenta a dissolução, ou a perda da
centralidade, da linguagem verbal, o redimensionamento do sujeito, o que transforma a
relação de forças entre o eu e o mundo, e o fim dos princípios modernistas nos quais se
formou. Olhar os três livros como percurso traçado em paralelo com a série
memorialista ​Boitempo faz observar que essas questões estão configuradas dentro do
contexto histórico da ditadura militar, que se não se faz presente explicitamente,
apresenta-se ora em negativo, ora em sua face econômica e do mercado, ora nas perdas
e nas derrotas das lutas de classe. Nesse sentido, o que parece estar posto neste percurso
é o poder de atuação do eu, já que o mundo assume proporções muito maiores que as
forças do sujeito, que na sua reificação passa a ser incorporado ao quadro corporativo,
assim como a província deixa de ser espaço da memória para se transformar em
mercadoria a ser explorada. O que está posto em última instância é se a representação
poética sobreviverá ao esvaziamento do signo linguístico e à própria reificação da
palavra. Assim como, não se sabe se o homem sobreviverá à mercantilização e
reificação do espaço.

Parte da poesia produzida por Carlos Drummond de Andrade neste período


histórico apresenta esta reflexão metalinguística que incide sobre a função da poesia na
contemporaneidade. Percebe-se que muitos dos poemas figuram de diversas maneiras a
preocupação do poeta sobre questões relacionadas ao modo como a poesia seria capaz
de traduzir seu tempo. A perda da eficácia expressiva da palavra, a dificuldade de a
forma configurar com precisão a realidade no mundo contemporâneo, a constituição da

777
subjetividade lírica e sua consciência da reificação são algumas das questões figuradas
na poesia desse período que têm como intenção trazer à luz a verdade daquele momento
histórico na perspectiva do eu poético.

De um modo geral, em ​Lição de Coisas​, o cuidado com a linguagem e a tentativa


de ressignificar as palavras, retirando delas o sentido aparente e buscando inseri-las em
contexto histórico que leva em conta um novo entendimento do mundo e do país, é um
esforço de preservar o lastro poético, fazendo com que ele ainda mantenha o exercício
de revelação do mundo e de construção de conhecimento.

Assim, o cuidar da palavra é ainda tentar impedir o esvaziamento do signo


enquanto unidade de representação e sentido do mundo. A busca de renovação do o
olhar do poeta, que parte do exercício de aprendizagem oferecido pelo mundo sensível e
pelas vivências, imprime aos poemas do livro um caráter de poesia meditativa e
reflexiva. Sobretudo quando perfaz por intermédio deles o percurso que vai da origem
das coisas à consciência dos limites do sujeito, como atestam os poemas - “A Palavra e
a Terra” e “Cerâmica”.

O primeiro - A Palavra e a Terra - apresenta em suas seis partes um movimento de


ir e vir do sujeito lírico que ora se concentra naquilo que historicamente é universal a
todos os homens,ora retoma questões relacionadas à história particular do sujeito lírico,
aqui se confundindo com história pessoal de Carlos Drummond de Andrade, ora toca
em questões ligadas à identidade nacional e ao Brasil, ora aborda a linguagem, a palavra
e sua capacidade ou não de traduzir as coisas.

O segundo - Cerâmica - é um poema breve de fortes características epigramáticas,


no qual a meditação sobre a fragmentação da vida – ​os cacos da vida – engendra a
figuração alegórica sob a forma de um objeto do cotidiano que, porém, encontra-se
estranhado – ​estranha xícara​. Na produção de sentido sobre a vida alienada e
fragmentada a cena transfigurada revela elementos fantásticos e fantasmagóricos.
Produto cumulativo de toda uma existência, a vida estilhaçada alegoriza-se na xícara

778
estranha, sua súmula final. Assim como epigrama é a síntese da vida grafada na pedra, a
xícara do poema é a síntese alegórica da vida figurada em palavras.

Os dois poemas, postos um em cada ponta do percurso realizado no livro, figuram


de um lado o poder demiurgo do poeta e de outro a consciência dos limites de sua
atuação. De modo que se pode afirmar que um projeto de utopia persistia e constituía-se
do conhecimento adquirido com as conquistas e derrotas advindas da experiência.

O projeto de utopia quase se dissipa no livro – ​A falta que ama – cuja impressão
é de ausências pulsantes. Apesar do tom melancólico, a pulsão de vida se mantém na
ausência. A melancolia invade muitos dos poemas, em que o sujeito lírico, muitas vezes
identificando-se com o próprio poeta, anuncia o seu fim - como no poema “Falta
pouco” - (​Falta pouco para acabar/ o uso desta mesa pela manhã/ o hábito de chegar à
janela da esquerda/ aberta sobre enxugadores de roupa./ Falta pouco para acabar/ a
própria obrigação de roupa/a obrigação de fazer barba/a consulta a dicionários/a
conversa com amigos pelo telefone​). Ou afirma a impossibilidade de compartilhar o que
sabe, em “Cantilena Prévia” (​Dindon dorondin din/ O que sabe agora/não o diz
Drummond//Sabe para si./Sabe por si só./Sabe, só, sem som​.) O poeta não crê mais que
o seu esforço possa alcançar o outro, apesar de continuar tentando. Ou no diálogo do
sujeito lírico com um tu, no qual saber não apazigua a dor nem é poder de
transformação, em “Tu?Eu?” (​Foste morrendo só/como sobremorrente/no lodoso
telhado/ (era prêmio, castigo?)/ de onde a vista captava/o que era abraço e não/durava
ou se perdia/em guerra de extermínio,/horror de lado a lado.//[...]Não morres
satisfeito,/morres desinformado​.)

Entretanto, ​momentos de epifania entremeiam-se com a ausência de


subjetividade, caso dos poemas “Maud” e “A torre sem degraus”.

“Maud”, variação inglesa do nome germânico ​Mahthildis​, é a força que surge do


tempo “​Do tempo não visitado surge Maud/e volta/para o tempo não visitado​./ e
possibilita ao artista a experiência ​do tempo pleno (​Kairós​), significativo, o tempo da
linguagem e da arte, em oposição ao tempo cronológico e linear. É dessa força, que

779
rompe o silêncio e o sem sentido, que surge a experiência verdadeira e epifânica da arte,
“​doação-minuto/de Maud: sua passagem.//Agora, ei-la retorna, desintegra-se no carro
de fogo,/que a visão reste visão além do espaço,/E tudo tem sentido/e tudo resplandece
na Verdade​.” É o momento único e intenso, no qual a criação do poeta rompe com o
silêncio opressivo gerado pelo tempo que se vive sem entendimento do mundo e sem
experiência verdadeira.

Se em “Maud” a experiência verdadeira sobrevive, ainda que


momentaneamente, na “Torre sem degraus”as marcas da enunciação e da linguagem
referencial, típicas da comunicação, são empregadas dentro de uma estrutura metafórica
que antes conotava a comunicação - a Torre - para conotar a incomunicabilidade. A
subjetividade desaparece e a Torre de Babel moderna reproduz infinitamente a
incompletude. Nesse sentido, fica explícito a impossibilidade ou o desejo deliberado de
manter-se incomunicável diante de um cenário em que o espaço do protesto estava
silenciado. Fato significativo, tendo em vista que o livro foi publicado em 1968.

A incomunicabilidade acentua-se no livro - ​As impurezas do branco​. Porém,


nele o poeta irá explorar de outro modo o momento vivido pela realidade brasileira e
mundial. Em uma das acepções possíveis do título, relacionada às cores, as impurezas
do branco são todas as cores que não podem ser vistas na totalidade do branco, assim
como o homem é o que se destaca da infinitude divina. Nesse sentido, o livro explora as
ações humanas e suas imperfeições. Numa segunda acepção, as impurezas do branco
estão relacionadas ao homem de etnia branca. Nessa acepção, o livro explora as marcas
da mentalidade colonialista branca e as consequências da imposição de seu modelo
econômico no mundo de economia globalizada.

É esta faceta do capitalismo que Drummond irá explorar para tornar evidente a
configuração da realidade brasileiro sob o impacto do Milagre econômico. O poema
“Diamundo: 24 h de Informação na vida do jornaledor” é uma seleção de informações,
retiradas de diversos órgãos da Imprensa e publicadas em um único dia. Dentre as

780
escolhas feitas pelo poeta ao selecionar as notícias, configura-se a associação entre
Estado de Exceção e Política Econômica Desenvolvimentista.
Enquanto no âmbito político restringiam-se liberdades individuais e calava-se a
voz dos adversários, na economia, acordos de colaboração feitos entre o regime militar
e a elite mantiveram privilégios e intensificaram os métodos de exploração e tortura
(ARANTES,2014)2. A metáfora dos “homens de venda” evidencia o poder corrosivo e
destruidor da associação entre Ditadura Militar e Milagre Econômico, com o qual
homens foram submetidos à repressão do Estado e ajustados ao modelo econômico do
capitalismo tardio.
Carlos Drummond de Andrade, sensível à intromissão da economia em todas as
esferas da vida humana, não deixou de entrever a maneira como a sociedade brasileira
do período vinha se constituindo. Se de um lado o poema configura explicitamente os
resultados da expansão capitalista, de outro o poema sugere que esses são frutos de um
acordo tácito entre a elite brasileira e o regime militar. Pois o que está implícito no
poema e não veio a público, como a repressão política e a exclusão social, arrefeceu-se
em favor do fetiche criado pela política desenvolvimentista.
No poema, ao empregar a linguagem acessível e sedutora dos meios de
comunicação, o poeta explicita que essa linguagem tornou-se corriqueira e atingia um
público cada vez mais encantado com o acesso ao mercado. Se a poesia e a linguagem
poética perdiam espaço no mundo em que as relações se resumiam às relações
estabelecidas pelo mercado, o poeta encontrará na representação reificada dessas
relações os instrumentos para revelar a verdade histórica de seu tempo. Nesse sentido, o
presente se materializa em linguagem que também não se livrou da reificação, mas que
servirá ao poeta para atingir a força expressiva da sua poesia.

2
​Refiro-me à análise feita por Paulo Arantes como um dos passos irreversíveis da Ditadura Militar
brasileira em que o filósofo cita um almoço de banqueiros, organizado pelo então ministro Delfim Neto,
no qual o dono do Banco Mercantil arrecadou fundos para reforçar o caixa da Operação Bandeirantes
(Oban). “​O fato, ​diz Paulo Arantes​, é que se transpôs um limiar ao se trazer assim, pelas mãos de um
ministro de Estado, os donos do dinheiro para o reino clandestino da sala de tortura: esse o passo
histórico que uma vez dado não admite mais retorno​.” ARANTES, Paulo Eduardo. ​1964​, In​: O novo
tempo do mundo​. São Paulo: Boitempo, 2014, p.282.

781
O percurso feito pelos três livros, abordados aqui parcialmente, mostra que a voz
do cronista e do poeta não se contradizem. Os desdobramentos de sua lírica no período,
assim como a consciência da falta de alcance do sujeito num mundo globalizado,
mostram que o poeta não se alienou nem se tornou o fazendeiro do ar que entoa elegias
ao passado perdido. Ao contrário disso, o poeta é sobrevivente sempre, carrega seus
despojos e mantém-se em luta contra a destruição de tudo que é signo de humanidade.

Produzir/Ler o mundo diariamente


Referências
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Companhia das Letras, 2015.

ARANTES, P. ​1964​, In​: O novo tempo do mundo​. São Paulo: Boitempo, 2014, p.282.

CAMILO, V. ​Drummond. Da Rosa do Povo à Rosa das Trevas​. – São Paulo: Ateliê
Editorial, 2001, p.18.

CANDIDO, A. ​As inquietudes na poesia de Carlos Drummond de Andrade​, In: Vários


Escritos, São Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades, 2004.

CASTELLI, C. Sobre toda ruína – figuração da utopia em Lição de Coisas, de Carlos


Drummond de Andrade, Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teoria
Literária e Literatura Comparada da FFLCH – USP, 2010.

JAMESON, F. ​Periodizando os anos 60​, In: ​Pós-Modernismo e Política​, tradução


César Brites e Maria Luiza Borges, org. de Heloisa Buarque de Holanda, Rio de
Janeiro: Editora Rocco, 1991.

SKIDMORE, T. A Repressão autoritária, In: ​Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985​.


Trad.Mário Salviano Silva. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.166.

WISNIK, J.M. ​A Máquina poética​, In ​Maquinação do Mundo:- Drummond e a


Mineração​. 1ª edição - São Paulo: Companhia das Letras, 2018, pp. 213-4.

782
NARRATIVAS AO REDOR DO PASSADO: INTERSEÇÕES ENTRE NO
INTENSO AGORA E HISTÓRIA NATURAL DA DITADURA

Gabriel Fernandes de Miranda (UFF) 1

Resumo: O presente artigo busca analisar duas obras contemporâneas de arte brasileira que
tematizam, de alguma forma, o passado ditatorial do país. no livro História Natural da Ditadura,
de Teixeira Coelho, publicado em 2006 e no documentário No Intenso Agora, de João Moreira
Salles, finalizado em 2017. Ensaiarei o argumento de que o documentário e o livro parecem
configurar esforços que vão um passo além da “guinada subjetiva” na rememoração do passado,
utilizando-se da potência da arte em criar narrativas “ao redor” do passado, como já apontou
Beatriz Sarlo. O estudo dessas duas obras pode criar, assim, aberturas para uma compreensão
mais geral de formas de lidar com o passado e suas memórias.
Palavras-chave: Passado; Literatura; Cinema; Memória

Em minha atual pesquisa para o doutoramento, começo a me debruçar sobre as


múltiplas figurações do passado ditatorial do Cone Sul na literatura e nas artes. Em
especial, acredito haver uma tendência de busca pela evocação do passado nas tensões
entre o político e o íntimo, o pessoal e o comum. É por essa veia que vi a oportunidade
de analisar, ainda que tentativamente, duas obras brasileiras que, apesar da distância
temporal de seu aparecimento, parecem ter aproximações interessantes que nos
permitem pensar sobre o passado, a história e as possibilidades de suas representações e
usos no presente. Trata-se de História Natural da Ditadura, de Teixeira Coelho,
publicado em 2006, livro que com muita sutileza desliza por sobre imagens, obras de
arte e caminhadas contra o vento uivante, em uma evocação da imagética e da estética
de W.G Sebald que não perde a potência de sua originalidade. E do documentário-
ensaio de João Moreira Salles No Intenso Agora, lançado em 2017, cuja narrativa passa
por uma certa “pulsão arquivista”, já identificada na literatura brasileira contemporânea
(SCHOLLHAMMER, 2009, p. 12), ao utilizar apenas imagens e materiais de terceiros,
inclusive do arquivo pessoal de sua mãe, em uma gama de imagens que são reunidas
pela voz em off do diretor — em um jogo que lembra o método de Chris Marker em
Sans Soleil —, articulando a palavra e a imagem em um exercício crítico de caminhada
pelo passado de maio de 68 na França e na Tchecoslováquia, além da ditadura brasileira
e da Revolução Cultural Chinesa.

1
Graduado em História (UFRJ), Mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada (UERJ), Doutorando
em Literatura Comparada (UFF). Contato: gabriel_miranda@id.uff.br.

783
Portanto, iniciemos por minha leitura de “História Natural da Ditadura”, iniciada
em um 2019 convulso e que me deu duas impressões gerais: tratava-se de um livro
datado, em que o uso de ideias como estado de exceção se coloca de forma banalizada e
em que uma crítica dos polos envolvidos na ditadura brasileira parecia ecoar uma
“teoria dos dois demônios” que hoje sabemos ser equivocada. Ao mesmo tempo, os
procedimentos formais de Teixeira Coelho me surpreenderam pelo seu ineditismo nas
minhas leituras da literatura nacional, com o uso de imagens que aparecem, talvez,
como índices do real e de uma narrativa fragmentada que tensiona limites entre ficção,
ensaio e autobiografia.
Diante dessa ambivalência, HND segue um caminho único. Seu capítulo de
abertura que figura a visita à Portbou, a cidade da morte de Walter Benjamin dá o tom
do restante da narrativa e já apresenta a importância da figura e da filosofia de Benjamin
para o argumento do livro. Sua divisão em cinco livros —Portbou, Sur, 30, Teoria da
Tristeza e um capítulo homônimo ao livro aponta também para um caminho
fragmentário da construção narrativa.
Teixeira Coelho promove incursões pelo passado em pequenos momentos
fragmentados desse “romance-ensaio” (SCHOLLHAMMER, 2015, p. 46), com a visita
ao monumento à Benjamin, com as discussões de um grupo de amigos na faculdade, e
com uma espécie de poética arquivística que vai “escavando” por um passado que só se
revela nos seus indícios. Sintomática dessa forma de figuração do passado é a aparição
de imagens da ditadura brasileira que apesar de dar nome ao livro, somente aparecem na
página 74 do livro Sur:

[...] Quase nunca depois das cinco. Sempre antes das seis, sempre antes de
amanhecer totalmente. Essas horas da madrugada. Gravadas. O comboio de
carros. Na Argentina, os Ford Falcon, os carros da repressão. No Brasil, as C
10 da General Motors, as peruas como se chamavam à época, não ainda vans,
as odiadas C 10 da repressão, as odiadas C 10 da ditadura, suas quatro portas
atrás das quais nos víamos sempre que algumas faziam uma curva rápida em
alguma rua à nossa frente, as C 10 e os Ford Falcon, a automobilística da
repressão, os carros da Fórmula R, R de Repressão. (TEIXEIRA COELHO,
2010, p. 74)

Assim, através de um pequeno indício dos modelos de carro utilizados pelo


aparato repressivo do Estado, o narrador de HND promove uma evocação tangencial do
passado, de forma talvez a reabilitar aquilo que o tempo tem de mais mundano, de mais

784
profundamente material, uma “automobilística da repressão” que transparece as
pequenas lógicas e as mais ínfimas estruturas que sustentam uma ditadura. É justamente
com esse tom investigativo que busca o que poderíamos chamar de “monumentos”
através de Rancière (2018). O filósofo francês nos diz, após argumentar que que a
história se baseou na divisão entre documentos e monumentos: “O monumento é aquilo
que fala sem palavras, aquilo que nos educa sem a intenção de nos educar, aquilo que
carrega a memória pelo fato mesmo de só ter se preocupado com o seu presente.”
(RANCIÈRE, 2018, p. 26). HND traz à tona esses pequenos monumentos, pequenas
insignificâncias que, em sua opacidade, parecem nos dizem muito do passado.
Através da obra de León Ferrari, artista argentino que executou um livro com
recortes de jornais dos anos 1970 que comprovam a circulação de notícias sobre a
violenta repressão abatida sobre a sociedade de nossos vizinhos é que se desenrola o
livro Sur. Livro no qual Teixeira Coelho mantém a ênfase no esforço arquivista que
aparece, como em um espelho, no trabalho de Ferrari, cuja ação basilar é a busca por
indícios, fragmentos, que vão montando uma figuração do passado cotidiano.
A melancolia das páginas iniciais — marcadas pela triste e misteriosa morte de
um dos grandes pensadores da modernidade — se faz presente também ao longo do
livro e nos faz lembrar, com a insistência das repetições, do caráter absurdo do
empreendimento repressivo que aconteceu na América Latina, desde os corpos de
vítimas da ditadura Argentina que apareciam com a maré na costa Uruguaia, à efusiva
discussão do narrador e seus amigos sobre a viabilidade, validade e plausibilidade da
luta armada contra a ditadura brasileira. Através desses lampejos imagéticos, HND tece
uma teia de articulações que perpassam a dimensão cotidiana do passado, deixando
entrever uma espécie de teoria da história tal como Benjamin propõe em seu texto
seminal “Sobre o conceito da história” (1987). A valorização do resto, do fragmento,
daquilo que sobra, cria um “pacto com o insignificante” (RANCIÈRE, 2018, p. 24) que
é, sobretudo, uma forma de revalidar a potência da arte de dar vida ao insosso da
existência. Esse é o procedimento de História Natural da Ditadura que tanto me
agradou e que parece revelar, pelas ligações sub-reptícias entre fatos aleatórios, uma
espécie de ordem da história que se beneficia também do efeito verborrágico que a
ausência de parágrafos — especialmente nos dois primeiros “livros” — cria na
disposição formal do texto.

785
De fato, a ausência de parágrafos, as repetições e digressões se somam para criar
uma espécie de paranoia histórica, em que são criadas interligações do passado que
lembram desde o esquecido arquiteto argentino Augusto C Ferrari, pai de León Ferrari
até o golpe e assassinato de Allende no Chile em 1971, como na passagem que segue:

A crônica registra que [Augusto] Ilia relutou em sair, aceitando os fatos


apenas quando as tropas sublevadas ameaçaram invadir o palácio para
desalojá-lo à força, como depois fariam no Chile com Allende, outras tropas
que no fundo são as mesmas tropas, sempre as mesmas tropas.” (TEIXEIRA
COELHO, 2010, p.92. grifo meu.)

Assim, com a ênfase na indistinção dos aparatos repressivos, o narrador, em seu


movimento espiral pela história, aponta aquilo que perpassa todo o livro: uma
investigação da lógica do autoritarismo e de seu funcionamento sempre tão similar nos
mais distintos momentos e lugares da história, como apontou Schollhammer (2015, p.
47). Sua posição intenta uma análise conjunta que une o nazifascismo que matou
Benjamin, as ditaduras latino-americanas, mas também as esquerdas revolucionárias e o
uso da violência que o narrador tanto condena. Assim, a crítica operada por Teixeira
Coelho parece se basear bastante numa concepção Arendtiana de totalitarismo que torna
indistintos o nazismo e o socialismo real, análise que hoje dá as bases para importantes
negacionismos históricos — os argumentos que situam o no campo da esquerda, e a
ideia de um autoritarismo dos dois lados em embate durante o período ditatorial
brasileiro. Sobre a situação brasileira esse narrador que oscila entre lembranças da
juventude de exílio com uma personagem Anna M. e a crítica histórica, nos diz:

[...] a grande luta no país Brasil nunca foi, nos últimos 40 anos, a luta de
classes, mas sim a luta entre o Estado e a sociedade, sob governos dos
facínoras militares, dos liberais de centro e direita e dos populares de
esquerda e qualquer outro tom político ou, se for o caso de continuar falando
luta de classes, uma luta entre a classe política e a classe civil, entre a classe
política e a sociedade civil. (TEIXEIRA COELHO, 2010, p.103. grifo do
autor.)

Mais do que uma crítica política, o narrador destila profundo cinismo e desilusão
diante dos sonhos da esquerda e da direita, promovendo uma radical negação da política
que poderia, certamente, estar alinhada aos tempos de sua publicação e que, hoje, soa
como as sementes dos males que vivemos em 2019. É assim, com esse tom cínico
intercalado do deslumbre diante de obras de arte que o livro se constrói, na corda bamba

786
entre a beleza estética e o delírio da política. Entre lampejos do passado e observações
do presente, Teixeira Coelho propõe um exercício interpretativo da história, buscando
nela, talvez, pequenas fagulhas de esperança que ajudam a ler o contemporâneo.
No Livro “30”, que vai mais diretamente escavar a experiência ditatorial
brasileira, o narrador evidencia seu projeto de figuração da história em contraponto ao
paradigma do tempo em continuum — justamente aquele que também foi criticado por
Walter Benjamin —, da história marcada pelos nexos causais:

Talvez por isso as recordações fragmentárias assombrem e tenham esse


caráter obsessivo: porque são recordações fragmentárias, porque sei que —
dentro desse paradigma cultural em que estamos mergulhados até as orelhas,
nos últimos cento e cinquenta anos, quer dizer, desde a assunção da História
ao posto de disciplina definitiva de explicação da vida individual e social —
jamais conseguirei, no tempo de duração de minha vida, apoderar-me de um
mapa histórico que dê sentido a esses fragmentos todos e portanto à minha
vida, cujo sentido está sempre no futuro [...] (TEIXEIRA COELHO, p. 157)

O caráter obsessivo dessa tentativa de rememorar o passado, de materializá-lo é


dada a ver nessa passagem e ao mesmo tempo assume o caráter fugidio do sentido de
uma vida. No entanto, a tentativa de rememoração, por mais que pareça fracassar na
criação de um sentido, faz emergir uma série de outros sentidos, distantes do sentido
único que se esperaria da historiografia. O que HND produz é uma construção que age
pelas cascas da história, para lembrar Didi-Huberman (2017), em um ato já célebre da
fórmula benjaminiana de “escovar a história a contrapelo” (BENJAMIN, 1987, p. 229).
Assim, o movimento da narrativa de Teixeira Coelho se utiliza de diferentes
imagens, sejam elas as tradicionais fotografias e pinturas ou as imagens literárias que
são vividamente construídas no texto, para fazer emergir uma vivência comum no
tempo, da qual também fala Rancière:

Porque para que ela [a imagem] mesma exista, é preciso que eles tenham algo
em comum: o pertencimento a um mesmo tempo, justamente aquele que
denominamos história — um tempo que não é mais o simples receptáculo
indiferente das ações memoráveis por sua vez, mas o tecido mesmo do agir
humano em geral; um tempo qualificado e engajado, que traz promessas e
ameaças; um tempo que iguala todos que lhe pertencem: os que pertencem e
os que não pertencem à ordem da memória. (RANCIÈRE, 2018, p. 19)

Portanto, o jogo de imagens e palavras de HND pinta um quadro do passado como


uma massa espessa de indistinção, a história aparece como movimento que a tudo

787
abarca, em sua complexidade infinita, fazendo do narrador verborrágico uma espécie de
profeta da natureza em espiral da história. Teixeira Coelho produz não só um romance
ensaio sobre as formas do autoritarismo e do Estado de Exceção, mas incorre mesmo no
campo da teoria da história para validar e materializar a visão benjaminiana de uma
história fragmentária que não deixa, nunca, de ser comum a todos os homens. Como
Garramuño aponta, trata-se de “um abandono da lógica da representação em favor de
uma ambição de presença” (GARRAMUÑO, 2017, p. 108). Assim, apesar do
ineditismo de suas formas, HND se incluí numa ampla gama de produções artísticas
contemporâneas que intentam dar sentido à experiência histórica, com especial atenção
à uma ética da representação (CHARBEL, 2016, p. 65) e constroem um saber “desde
afuera” (SARLO, 2012, p. 166) em busca de formas tangenciais de falar do passado.
De forma similar, o documentário ensaístico de João Moreira Salles se apropria de
fragmentos imagéticos, de filmes alheios, de arquivos anônimos, das filmagens que sua
mãe fez em viagem à China e os une através de uma narração em off que analisa,
problematiza e reconstrói o passado do maio de 1968 em Paris, em Praga e na ditadura
brasileira. A memória aqui é utilizada no jogo do político (SARLO, 2012, p. 83) em um
tour pelo passado que revisita imagens clássicas que se fixaram como signos da revolta
de 1968, como os belos escritos dos muros parisienses. Se o maio de 68 se tornou um
paradigma da tomada de voz, como nos diz Beatriz Sarlo (2012, p. 161) a centralidade
do maio francês em No Intenso Agora parece dar pistas justamente dos motivos do
procedimento de Moreira Salles.
Ao unir imagens heterogêneas, sempre comentando sobre suas condições de
produção, Salles maneja uma pluralidade de vozes, de pequenos “monumentos” que
ensaiam um movimento não muito distinto daquele operado por Teixeira Coelho, no
qual há a evocação de uma experiência comum do passado.
Certamente, a passagem do tempo, com sua potência e sua inelutabilidade é o
tema central do filme. O próprio diretor, em entrevista, afirmou se tratar de uma
investigação acerca da euforia de 1968 e “do que acontece quando tudo isso passa”
(SALLES, 2017b). O uso de imagens alheias dá ao documentário ares mesmo de um
ensaio, na medida em que se apropria de pequenas citações de outros documentaristas e
mesmo de fontes anônimas, costurando assim uma narrativa que tenta dar corpo a
experiência do sujeito na história. Os súbitos congelamentos da imagem, que focam ora

788
no rosto de Daniel Cohn-Bendit, líder estudantil na Paris de 68, ora na figura da própria
mãe intentam capturar a existência no tempo daqueles corpos, produzindo um efeito no
espectador do estranhamento diante do passado que dá liga para um Kairós, noção grega
que pode ser resumida como um momento epifânico no qual se tem a consciência do
estar-no-tempo.
Assim, No Intenso Agora parece se utilizar de uma potência de enxergar a história
como ruína — a ruína dos sonhos de 1968, a ruína da felicidade e da vivacidade de sua
própria mãe — que se aproxima também, e mais uma vez, da poética de W.G Sebald,
cuja temática das ruínas — especialmente em Os Anéis de Saturno — se articula como
entrada para um profundo sentimento de Kairós (FORTIN-TOURNÉS, 2012, p. 156). O
encontro com as imagens de 68, as imagens do cortejo ao corpo de Edson Luís e as
imagens dos tanques soviéticos em Praga se apresenta como o encontro com as ruínas
da história, reafirmando ao mesmo tempo seu desaparecimento e sua presença espectral
no presente.
O documentário de Moreira Salles, distinto de suas outras obras mais formalmente
convencionais — como Entreatos e Santiago — se afirma justamente por uma ausência
de imagens feitas pelo diretor. É, portanto, um documentário de arquivo cuja proeza está
em orquestrar imagens múltiplas, cujo uso aponta também para o trabalho de escavação
que certamente foi necessário para o levantamento do material. Sobretudo, resta no
filme a impressão de que Salles compartilha com Teixeira Coelho a afinidade por uma
visão fragmentada da história, que ecoa tanto as críticas de Benjamin ao historicismo
como uma possível leitura da teoria de história de Hegel. O que se constrói no jogo de
palavras e imagens é também uma noção de que a história, o passado, não nos pertence,
frustrando o paradigma testemunhal que parece recorrer à uma verdade da essência do
sujeito. Cito Vladimir Safatle lendo Hegel:

Ou seja, a história é feita por ações nas quais os homens não se enxergam,
nas quais eles não se compreendem. Há uma dimensão aparentemente
involuntária que constitui o campo da história. Ou, melhor dizendo, há um
motor da história que para a consciência individual aparecerá
necessariamente como algo da ordem do inconsciente. (SAFATLE, 2015, p.
174.)

É dessa dimensão incontrolável do tempo que No Intenso Agora fala: das


pequenas vidas anônimas, confrontadas com a força e a potência de um movimento de

789
massas que parecia ser a História em movimento. Daí as imagens, já no final do filme,
de uma operária chorosa que não deseja voltar ao trabalho após o fim da greve que
havia começado em apoio aos estudantes. Salles investiga com maestria as formas de
afetar e ser afetado pelo seu tempo, recaindo bastante em um tom decepcionado que dá
ênfase aos limites do maio de 1968 francês, mais do que à sua potência libertadora já
tornada canônica na história das esquerdas.
Não é coincidência que o fotograma que fecha o documentário é, ainda, um rosto
congelado de uma militante anônima. Salles congela seu sorriso, encerrando a narração
como se dissesse: isso aconteceu, isso passou, num movimento que lembra justamente o
que Rancière (2018, p. 14) vê no uso que Chris Marker faz de uma filmagem de um
desfile da família real russa em Le tombeau d’Alexandre. A imagem convida o
espectador à uma reflexão mais acirrada sobre a passagem do tempo, somos chamados a
nos perguntar quem seria essa jovem, somos impelidos a imaginá-la hoje deposta da
juventude. Somos jogados ao redor da irreversível passagem do tempo que, no
argumento de Moreira Salles, parece varrer todos os sonhos. De alguma forma, seu
cinismo com a espontaneidade e a falta de projeto político da juventude francesa se
parece com o cinismo que o narrador de História Natural da Ditadura relega às
esquerdas do século XX e XXI, culminando em uma tônica decepcionada e talvez
melancólica que lida diretamente com as ruínas do passado.
As duas obras que busquei analisar de forma tateante se aproximam em seus usos
do fragmento como contraponto à história linear canônica e, ao mesmo tempo, mostram
maneiras de falar do passado por fora do paradigma testemunhal. Assim também o
fazem para a emergência da experiência comum do tempo, sem deixar a ênfase na
presença espectral do passado, figurando suas obras em um tempo no qual sua presença
é incontornável. Essa parece ser a construção de Teixeira Coelho e de Moreira Salles, o
passado é fragmentado, comum e, no entanto, jamais abandonado. Termino com uma
citação que gosto muito de Florencia Garramuño, uma teórica de força, na qual ela
comenta sobre o romance Glosa de Juan José Saer, mas poderia muito bem falar sobre
História Natural da Ditadura e No Intenso Agora:

Pois acho que a escrita desse autor [Saer] poderia se definir como uma
literatura que trabalha com restos, com ruínas, com fragmentos. Como se sua
obra tivesse querido sempre insistir não só em que a literatura trabalha com
os restos do real, mas em que a vida mesma está construída com os

790
escombros e as ruínas que a experiência e os acontecimentos depositam sobre
a superfície opaca da existência. (GARRAMUÑO, 2012, p. 98.)

Referências

BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história”. In. Magia e Técnica, Arte e


política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas Vol. I. Trad.
Sérgio Paulo Rouanet, 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.

CHARBEL, Felipe; GUSMÃO, Henrique Buarque de; MELLO, Luiza Laranjeira da


Silva (Orgs). As Formas do Romance: estudos sobre a historicidade da literatura. Rio de
Janeiro: Ponteio, 2016

DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. Trad. André Telles. São Paulo: Editora 34,
2017.

FORTIN-TOURNÈS, Anne-Laure. The Ruin as Kairos in W. G. Sebald’s The Rings of


Saturn. In: Études britanniques contemporaines, Montpellier, nº 43, pp. 153-162, 2012.

GARRAMUÑO, Florencia. A Experiência Opaca: literatura e desencanto. Trad. Paloma


Vidal. Rio de Janeiro: Eduerj, 2012

______________________. “Depois do sujeito: formas narrativas contemporâneas e


vida impessoal”. In: Estudos de literatura brasileira contemporânea, n. 50, pp. 102-
111, jan./abr. 2017. Disponível em:
<http://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/24135/17233>

NO INTENSO agora. Direção e roteiro: João Moreira Salles. Rio de Janeiro:


VideoFilmes, 2017. Projeção.

RANCIÈRE, Jacques. Figuras da História. Trad. Fernando Santos. São Paulo: Editora
Unesp, 2018.

SAFATLE, Vladmir. O Circuito dos Afetos: Corpos políticos, desamparo e fim do


indivíduo. São Paulo: Cosac & Naify, 2015.

SALLES, João Moreira. Sou um cineasta muito relutante. Continente, Recife, nº 196,
abr. 2017. p. 8-13. Entrevista concedida a Mariane Morisawa.

SARLO, Beatriz. Tiempo Pasado: cultura de la memoria y giro subjetivo. Una


discusión. 1ª ed. 2ª reimp. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2012.

SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Ficção Brasileira Contemporânea. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2009.

_________________________. A História Natural da Ditadura. Lua Nova, São Paulo,


nº 96, pp. 39-54, 2015.

791
TEIXEIRA COELHO. História Natural da Ditadura. 1ª reimp. São Paulo: Iluminuras,
2010.

792
TESTEMUNHOS DO UNIVERSO CONCENTRACIONÁRIO EM SEMPRÚN E
SOLZHENITSYN
João Philippe Lima (IFPI)1

Resumo: Este trabalho tem como objetivo realizar uma análise comparativa de duas obras que
abordam os universos concentracionários nazista e soviético, escritas por sobreviventes desses
dos regimes totalitários: Jorge Semprún Aleksandr Solzhenitsin. Iniciamos com breves resumos
das biografias dos autores de modo a salientar como suas experiências moldaram sua escrita
sobre a vida nos campos. Em seguida, procedemos à análise comparativa das obras para elucidar
como suas similaridades e diferenças retratam a vida nos campos nazistas e soviéticos. Por fim,
concluímos que as narrativas eminentemente autobiográficas representam um testemunho sobre
os horrores dos campos e um aviso para a posteridade.
Palavras-chave: Literatura de Testemunho; Jorge Semprún; Aleksandr Solzhenitsyn; Campos
de Concentração.

Semprún e Solzhenitsyn, testemunhas do século XX

O século XX começou em uma atmosfera de esperança e otimismo, resultado dos


grandes avanços do século anterior, especialmente nas áreas de ciência e tecnologia, que
pareciam pavimentar o caminho para um período de paz e prosperidade que continuaria
por tempo indefinido. Todas essas esperanças haveriam de ser brutalmente
despedaçadas pela catástrofe da primeira guerra mundial (ou Grande Guerra, como o
conflito foi chamado até 1939), na qual as grandes potências europeias se engalfinharam
em um conflito que durou quatro anos e ceifou quase dez milhões de vidas. A Grande
Guerra comprovara que as maravilhas da ciência e da tecnologia, além de serem usadas
para melhorar a condição humana, poderiam ser facilmente cooptadas para criar
sofrimento e morte em larga escala, e pouco tempo depois se revelariam cruciais para a
construção e manutenção dos campos de concentração. Como escreve Snyder (2011,
XV), “The Soviets and the Germans relied upon technologies [like]: internal
combustion, railways, firearms, pesticides, barbed wire”. Tecnologias que até então
eram símbolo da ascensão da humanidade a novas alturas, alçada pela marcha inevitável
do progresso.
A ordem do pós-guerra, com vários estados novos na Europa construídos sobre as
ruínas dos impérios do centro e do leste do continente, uma república na Alemanha e
um regime socialista de inspiração marxista na Rússia (que a partir de 1922 passaria a
se chamar União Soviética), parecia frágil desde o início, vulnerável a revoluções e

1
Graduado em Letras-Inglês (UFPI), Mestre em Literatura (UFPI). Contato: joaophilippe@gmail.com.

793
golpes tanto à direita quanto à esquerda. Foi em meio a este contexto de turbulência e
incerteza que nasceram os escritores Jorge Semprún (1923-2011) e Aleksandr
Solzhenitsyn (1918-2008). Ambos vieram ao mundo em condições sócio-econômicas
bastante distintas: Semprún nasceu em Madrid no seio de uma família aristocrática: seu
pai era diplomata e sua mãe era neta de um antigo primeiro-ministro espanhol, e,
portanto, teve uma infância abastada tanto em termos financeiros quanto educacionais.
Solzhenitsyn, por outro lado, nasceu em meio ao turbilhão caótico da revolução e da
guerra civil russas; seus pais tinham origens na pequena nobreza, mas o pai morreu
durante uma caçada e ele seria criado pela mãe viúva e por uma tia em condições de
relativa pobreza.
A década de 1930 traria desenvolvimentos políticos que haveriam de impactar
profundamente a vida de ambos os autores. A ascensão do nazismo na Alemanha, o
endurecimento da repressão na União Soviética, e a Guerra Civil Espanhola, através da
qual Hitler e Stalin mediriam forças indiretamente pela primeira vez. Solzhenitsyn
conseguiu passar incólume pelo Grande Terror do final da década em seu país, mas
Semprún teve sua vida alterada pelo resultado do conflito em sua terra natal: quando
ficou claro que Franco sairia vencedor, seu pai levou a família para a França, onde
viveriam como exilados. Em 1939 iniciou-se o conflito mais destrutivo da história
européia e humana, que deixaria uma marca indelével na vida (e ocasionaria a morte) de
milhões de pessoas, incluindo os escritores alvo deste trabalho: Semprún engajou-se no
Partido Comunista e na resistência que este movia à ocupação nazista na França, e por
este papel seria preso no final de 1943 e deportado para o campo de concentração de
Buchenwald, de onde seria liberto em 1945, quando o regime nazista foi derrubado e o
campo libertado por tropas americanas (TIDD, 2017).
Solzhenitsyn, por sua vez, foi um dos milhões de jovens soviéticos convocados
para lutar pelo Exército Vermelho, pelo qual foi condecorado por bravura duas vezes.
Enquanto Semprún era libertado do sistema concentracionário nazista, no entanto,
Solzhenitsyn ingressava na sua contraparte soviética: comentários derrogatórios sobre a
liderança do Exército Vermelho e sobre Stalin lhe renderam uma condenação de dez
anos de trabalhos forçados. Na década que se seguiu o espanhol retornaria à militância
política no PCE (Partido Comunista Espanhol), atuando sob várias identidades falsas e
morando clandestinamente na Espanha por alguns períodos, enquanto o russo passaria

794
por vários campos que constituíam a imensa teia do Gulag, entidade que administrava o
sistema concentracionário soviético, de instalações científicas (ele tinha formação em
matemática e física) aos campos de trabalho do Cazaquistão, estes últimos que seriam
extensamente retratados em sua obra, incluindo aquela que é alvo deste trabalho.
Solzhenitsyn viria a ser libertado dos campos na esteira do Degelo promovido pelo
sucessor de Stalin, Nikita Kruschev (SCAMMEL, 1986).
A década de 1960 se revelaria o ponto de partida de suas carreiras literárias.
Semprún publica sua primeira obra, A Grande Viagem, em 1963, que trazia aquelas que
se tornariam as marcas registradas de sua obra: a cronologia fraturada, o forte tom
autobiográfico, as longas digressões filosófico-artísticas. No ano seguinte seria expulso
do PCE por discordar da linha do partido, e a partir de então ele se tornaria cada vez
mais crítico do socialismo soviético, algo que se revelaria em sua obra posterior.
Solzhenitsyn, por sua vez, se beneficiava da atmosfera de mais liberdade do pós-
stalinismo e publicava Um Dia na Vida de Ivan Denisovich em 1962, pela celebrada
revista soviética Novy Mir, romance que exerceu grande impacto tanto dentro quanto
fora do país sobre a repressão no período stalinista. O Degelo, porém, acabaria com a
queda de Kruschev, e as obras que escreveu no restante da década foram publicadas
clandestinamente na forma de Samizdat, incluindo O Pavilhão dos Cancerosos, O
Primeiro Círculo e sua monumental obra de não-ficção Arquipélago Gulag. Em 1970 é
premiado com o Nobel de Literatura, mas não vai receber o prêmio por temer que as
autoridades soviéticas não o permitiriam retornar ao país. Ele o receberia quatro anos
depois, após ser expulso da União Soviética. Passaria os anos de exílio na Alemanha
Ocidental e nos Estados Unidos, retornando à Rússia em 1994, após o colapso da
URSS. Semprún, liberado de sua atividade política, focou em sua carreira como
escritor, publicando diversos romances, bem como escrevendo roteiros de cinema. Em
suas obras posteriores, tais como Um Belo Domingo e A Montanha Branca, ele se torna
cada vez mais crítico do socialismo soviético e de seus partidários. Em 1994 finalmente
publica sua autobiografia, A Escritura ou a Vida.

795
Um Belo Domingo (1980)
Neste romance o autor espanhol retoma os temas que pautaram suas obras
anteriores: a participação na resistência francesa à ocupação nazista, a deportação para
Buchenwald, a militância política comunista e, principalmente, o peso da condição de
sobrevivente, que se revela por vezes tão insuportável que seu alter-ego narrador se
questiona se de fato não estaria morto e toda a sua vida posterior ao campo não passaria
de um sonho irreal, como vemos logo nas primeiras páginas: “Dezembro, quantos
meses esperar? Ele estaria morto, talvez [...] Não, nem mesmo morto, esvanecido.
Estaria ausente, desfeito em fumaça” (SEMPRÚN, 1982, p. 13).
Esta perene sensação de ter morrido no campo e de toda sua vida posterior ser
uma ilusão fantasmagórica permeia toda a narrativa, e provavelmente é a causa de sua
cronologia não-linear. Apesar de começar e terminar no mesmo dia — um domingo de
dezembro de 1944 no campo de Buchenwald — ela perpassa uma vasta gama de épocas
e lugares, retornando para a vida na França antes da guerra e saltando para as décadas
seguintes, onde acompanhamos o papel do narrador-protagonista na militância
comunista, seus crescentes questionamentos sobre a causa à qual dedicara boa parte de
sua vida adulta, até culminar na desilusão e rompimento com o socialismo de estilo
soviético. Entremeando estas passagens ambientadas em outros lugares e épocas, a
narrativa sempre retorna para aquele domingo de dezembro de 1944. O retorno
constante ao campo é um indício de que o narrador jamais se convenceu plenamente de
que de fato conseguira sobreviver:

Talvez seja verdade, com efeito. Talvez eu não seja mais do que o sonho tido
em Buchenwald por um jovem morto de vinte anos, que se chamava Gérard, e
que se transformou em fumaça na colina do Ettersberg [...] A memória é o
melhor recurso, mesmo que pareça paradoxal à primeira vista. O melhor
recurso contra a angústia da lembrança, contra a solidão completa, contra a
loucura, familiar e surda. A loucura criminosa de viver a vida de um morto.
(SEMPRÚN, 1982, p. 98)

Outro tema recorrente ao longo da obra é a relação do protagonista com o


socialismo soviético, pelo qual militou por mais de duas décadas e que o levou a
participar da resistência e consequentemente resultaria na sua deportação para
Buchenwald. Quando ele chegou ao campo, no início de 1944, as condições de vida no
campo eram terríveis, e apenas se deteriorariam a medida que a guerra chegava ao fim e

796
o Terceiro Reich, nos estertores de sua agonia final, fazia as taxas de mortalidade nos
campos atingirem níveis elevados, fosse por brutalidade ou por abandono
(WACHSMANN, 2015). Ele, no entanto, contava com a proteção dos comunistas do
campo, que conseguiram para ele um trabalho de escritório que o poupava dos afazeres
mais perigosos. À medida que a narrativa avança, aprendemos que os comunistas dentro
de Buchenwald haviam construído um poder paralelo dentro do campo, com sua própria
rede de contatos entre internos e guardas, e que executava diversas ações que iam da
colaboração à sabotagem. De acordo Wachsmann (2015), os comunistas detinham todos
os postos-chave entre os internos no campo e tinham poderes sobre os demais, às vezes
até mesmo de vida e morte, não apenas por serem mais coesos e organizados, mas por
serem, via de regra, os internos mais antigos do campo, como Semprún (1982, p. 190)
confirma: “Em 1943, já fazia dez anos que eles estavam nos campos e nas prisões. [...]
Nós estávamos lá fora; eles estavam dentro”. Sabendo que sua sobrevivência se devia
em grande parte a esta proteção adicionava mais uma camada ao seu sentimento de
culpa e incredulidade por ter sobrevivido.
A trajetória do narrador pós-Buchenwald é um constante despertar para o fato de
que, em nome da ideologia à qual ele por tanto tempo servira, crimes foram cometidos
que não deixavam muito a dever em relação aos nazistas, e que o nazismo e o
socialismo soviético compartilhavam um ethos totalitário que se torna cada vez mais
perceptível à medida que o tempo passa e novas informações e relatos trespassam a
Cortina de Ferro e chegam ao Ocidente. Suas dúvidas começam com a denúncia do
stalinismo feita por Kruschev em 1956, e o processo de tomada de consciência dos
crimes do regime soviético culmina com a rejeição deste após a leitura dos Relatos de
Kolyma, de Varlam Chalamov, e de A Vida de Ivan Denisovich, de Solzhenitsyn. Tais
leituras o levam a reavaliar sua experiência em Buchenwald e sua militância comunista
à luz das novas revelações e acontecimentos:

Na verdade, os campos nazistas não eram o espelho deformador da sociedade


capitalista [...], eram um espelho bastante fiel da sociedade stalinista. E em
um campo como Buchenwald, onde os políticos, especialmente os
comunistas, obtinham vantagens, a fidelidade dessa imagem parecia a você
aterradora. (SEMPRÚN, 1982, P. 374)

Outra característica marcante do romance, e marca registrada da obra do autor, é


seu pendor por longas digressões histórico-filosóficas que entremeiam os fatos da

797
narrativa. Em Um Belo Domingo dois luminares do pensamento e da cultura européias
se fazem constantemente presentes: Goethe e Hegel. O poeta é uma presença constante
ao longo da narrativa pelo fato de ter vivido por um tempo nas colinas do Ettersberg,
onde muito tempo depois seria erguido o campo de concentração. O narrador parece
sentir constantemente a presença do vulto fantasmagórico do poeta percorrendo o
campo, e indaga como o mesmo povo que deu ao mundo um artista daquela magnitude
poderia conceber uma distopia horrenda como o nazismo. Em certo ponto ele devaneia
sobre um passeio hipotético de Goethe e seu amigo Eckermann pelas colinas do
Ettersberg, oferecendo um contraponto entre a inocência bucólica do ideal romântico do
poeta e a cruel realidade da vida no campo. Já a presença de Hegel se dá pelo fato de
sua dialética ter sido a base para a dialética marxista, e o narrador questiona como se
deu o caminho que começa em Hegel, passa por Marx e termina no socialismo
soviético.
Outra função que tais digressões cumprem é indicar a origem abastada do
narrador, que por repetidas vezes o incomoda: o aristocrata que se deserta sua classe
para lutar em prol do proletariado, uma ironia que não escapa ao seu kapo em
Buchenwald, que a certa altura afirma que, embora ele fosse militante comunista, jamais
seria um proletário, o que o leva a rememorar sua infância privilegiada e como ela se
encaixa na história recente da Espanha e da Europa (SEMPRÚN, 1982, p. 47-49). Essa
origem burguesa perfaz um contraste acentuado com o protagonista do romance de
Solzhenitsyn, como veremos em breve.
Ao percorrer a obra de Semprún percebemos que ele lança mão da ficção como
uma maneira de testemunhar sobre os horrores do sistema concentracionário nazista,
paradoxalmente, para fugir do testemunho. Ao se colocar como personagem em obras
de ficção ele tira de si o peso dessa obrigação tremenda de dar testemunho sobre o que
viveu em Buchenwald, como pontua Kolleritz (2004, p. 21): “Desde A Grande Viagem,
Um Belo Domingo e A Montanha Branca, Jorge Semprún relutou em usar a forma
testemunhal para expressar-se, preferindo a alusão ficcional; só em 1994, em L’écriture
ou la vie, ainda que de modo sutil e de construção complexa, concede o testemunho”. A
ficção, portanto, pode ser um instrumento poderoso de relatar aquilo que se encontra na
fronteira do inenarrável, e também pode servir como um mecanismo de proteção
psicológica pelo qual o sobrevivente tenta se destacar de experiências traumáticas.

798
Um Dia na Vida de Ivan Denisovich (1962)
Primeiro romance publicado por Aleksandr Solzhenitsyn, Um Dia na Vida de Ivan
Denisovich foi um marco na União Soviética por ter tido sua publicação autorizada na
prestigiada revista literária Novy Mir pelo próprio Nikita Kruschev, que acreditava que
a publicação da obra ajudaria a nação a confrontar e superar os fantasmas do stalinismo.
Apesar do discurso no XX Congresso do Partido Comunista soviético de 1956 e da
invasão da Hungria naquele mesmo ano, a União Soviética ainda gozava de respaldo
pelo seu papel na vitória sobre os nazistas e do apoio de muitos intelectuais ocidentais.
Relatos sobre os campos de trabalhos forçados do Gulag (sigla russa que significa
Administração Geral dos Campos e denominava o órgão responsável por gerir o vasto
sistema concentracionário soviético) já haviam passado através da cortina de ferro, mas
ainda eram encarados com incredulidade e desconfiança por muitos artistas e
intelectuais no Ocidente. Era o auge da Guerra Fria, e os defensores do modelo
soviético não estavam dispostos a contemporizar o que poderia ser propaganda
adversária, e havia esforços em desacreditar as narrativas sobre os campos soviéticos.
Neste contexto, o romance exerceu um impacto notável: “[...] the novel came as a
revelation. Instead of speaking vaguely about ‘returnees’ and ‘repressions’, as some
other books did at the time, Ivan Denisovich directly described life in the camps, a
subject which had not, until then, been discussed in public”. (APPLEBAUM, 2005, p.
590).
A obra retrata um dia comum de trabalho do prisioneiro Ivan Denisovich Chukov,
portador do número 5854, em um campo de trabalhos forçados nas estepes do
Cazaquistão. A narrativa começa na chamada matinal dos prisioneiros, no que haveria
de ser um dia de inverno com temperaturas congelantes e muito trabalho duro a ser
feito. Podemos ver logo nas primeiras páginas a desolação daquela manhã gélida:

Lá fora estava gelando muito, com uma neblina que cortava a respiração. Das
torres de vigia, dois projetores bem fortes varriam a fogo cruzado o caminho
em volta do campo com seus feixes em forma de cruz. Os faróis do muro e os
do campo estavam todos ligados. Eram tantas luzes ao mesmo tempo que as
estrelas ficavam meio pálidas. (SOLZHENITSYN, 1995, p. 14)

799
A cena acima descreve com precisão não apenas a atmosfera gélida e opressiva do
campo, mas também o poder onipresente da administração: as luzes, as torres de vigia e
os faróis estão lá para demonstrar aos internos a futilidade de qualquer tentativa de fuga,
que não obstante, vez ou outra aconteciam. Ivan está no Gulag há dez anos, tendo
passado por vários campos na condição de zek, gíria usada para denominar os internos.
A narrativa em terceira pessoa oferece um contraste notável com a narração em
primeira pessoa, convoluta, acronológica e permeada de digressões de Um Belo
Domingo. Ivan, afinal de contas, não é um homem culto de origem aristocrática que
pode discorrer com vagar e propriedade sobre a poesia romântica alemã e as dialéticas
hegeliana e marxista, tampouco é viajado e cosmopolita: é um camponês com pouca
instrução formal que pouco havia saído de sua aldeia antes de ser convocado para lutar
na guerra. Em fevereiro de 1942 foi capturado pelos alemães, mas conseguiu fugir e
retornar para a sua unidade, onde foi recebido com suspeitas de ter sido libertado para
espionar pelo inimigo. Tendo confessado sob tortura, foi condenado a dez anos de
trabalhos forçados, dos quais já cumpriu nove. Apesar de sua pena aparentemente estar
para terminar, Ivan não tem esperanças de sair em breve, pois as penas no Gulag tinham
um grau substancial de arbitrariedade: indivíduos, categorias de pessoas e povos eram
enviados aos campos e anistiados sem justificativas aparentes, bem como sentenças
eram anuladas e estendidas ao bel prazer da administração central e da cúpula do
partido, dependendo de quem era o inimigo da vez escolhido pelo Estado
(APPLEBAUM, 2005). Ivan tem plena consciência de tais vicissitudes do sistema:
“Mas será que vão devolver a liberdade dele? Será que não vão, por um diabo de coisa
qualquer, por nas costas dele mais dez anos de adicional? (SOLZHENITSYN, 1995, p.
41). Enquanto o protagonista de Um Belo Domingo está a princípio preso por tempo
indefinido, em dezembro de 1944 ele sabe que o regime nazista está prestes a ser
derrotado e o dia da liberdade se aproxima. Ivan, por sua vez, tem uma sentença
definida, mas que ele sabe que pode ser prorrogada indefinidamente.
Com poucas alusões à vida anterior ao ingresso no Gulag e nenhuma a qualquer
vida posterior a este, a narrativa se concentra naquele particular dia de inverno em um
campo qualquer nas estepes da Ásia Central, em um indicativo de que para o zek o
passado, o futuro e o mundo fora dos campos são entidades abstratas sobre as quais não

800
vale muito a pena pensar: vive-se dia após dia, e o universo do campo é a única
realidade palpável. Naquela manhã Ivan acordou ardendo em febre, e tenta agendar uma
consulta com o médico que poderia liberá-lo do trabalho naquela manhã, sem sucesso.
Sua esperança de evitar um dia de trabalho exaustivo agora estava no tempo: se o
termômetro caísse abaixo de 27 graus Celsius negativos, o trabalho em campo aberto
era suspenso. Como a natureza não colaborou, Ivan teve que ir trabalhar com febre
mesmo, e o trabalho, apesar de pesado, tinha um lado bom que era o de ajudar a passar
o tempo: “É maravilhoso como o trabalho faz passar o tempo. Chukov tinha notado isso
muitas vezes: os dias no campo passam sem a gente perceber. É o total da pena que
parece mexer, como se não diminuísse nunca”. (SOLZHENITSYN, 1995, p. 59-60).
Fosse no trabalho no campo, nas chamadas de inspeção ou nos barracões onde
viviam, a vida dos zek era totalmente controlada pela administração, que se esforçava
para que eles tivessem o mínimo de tempo possível para pensar em qualquer outra coisa
que não fosse trabalho: “Fora o sono, o homem dos campos de concentração só vive por
sua conta dez minutos de manhã, no café, cinco no almoço e cinco no jantar”
(SOLZHENITSYN, 1995, p. 20). Vivendo e trabalhando juntos o tempo todo, era
natural que surgisse alguma camaradagem entre os internos, algo que a administração
procurava sabotar de todas as formas; assim como nos campos nazistas criavam-se
várias categorias de presos que eram jogadas umas contra as outras pelos gestores dos
campos, também no Gulag havia incentivos para que os internos vigiassem e delatassem
uns aos outros, do contrário o sistema não funcionaria: “O inimigo de verdade do preso
é o colega preso. Se os zek não fossem uns cachorros uns com os outros... Nesse caso,
os chefes não teriam condições de mandar neles” (SOLZHENITSYN, 1995, p. 111).
Outra similaridade entre os sistemas concentracionários nazista e soviético era o
estado constante de subnutrição dos internos: o protagonista de Um Belo Domingo
descreve em vários trechos a sensação de fome em Buchenwald. Solzhenitysn também
dedica vários trechos ao constante estado de subnutrição dos internos do Gulag: “É de
costume que, de noite, a sopa seja bem mais rala do que de manhã: de manhã precisam
alimentar o zek para que ele trabalhe, mas, de noite, eles podem dormir de qualquer
jeito (se não estiverem mortos)” (SOLZHENITSYN, 1995, p. 127).
A narrativa se encerra quando chega a noite e termina o dia de trabalho no campo,
um dia que, embora pareça cheio de agruras e sofrimento para o leitor, não obstante foi

801
um bom dia para Ivan, o que sugere que há dias bem piores do que aquele que o leitor
acaba de conhecer:

Chukov estava pegando no sono, completamente satisfeito. Esse dia tinha


sido de muita sorte: não tinha ido em cana; a brigada não tinha sido mandada
para o Centro da Comunidade Socialista; no almoço tinha conseguido afanar
uma kacha; a percentagem tinha sido bem arranjada pelo brigadista; tinha
trabalhado com disposição; não tinha sido pego com a lâmina durante a
inspeção; tinha ganho coisas do Tsezar; tinha comprado fumo do bom; e em
vez de cair doente, tinha conseguido ficar melhor. Um dia tinha se passado.
Sem nem uma nuvem. Quase a felicidade. (SOLZHENITSYN, 1995, p. 149-
150)

Conclusão
Semprún e Solzhenitsyn, nascidos na mesma época, mas em países e contextos
socioeconômicos bastante distintos, não obstante se viram ambos enredados na
turbulenta história do século XX, testemunhando e experimentando os horrores dos dois
grandes totalitarismos que tentaram dominar a Europa e o mundo: o nazismo e o
stalinismo. Suas experiências pelos campos de concentração nazistas e soviéticos não
apenas alteraram o curso de suas vidas como marcariam indelevelmente suas escritas, e
suas obras dão testemunho da capacidade de regimes autoritários de oprimir, escravizar
e exterminar milhões de seres humanos, bem como da capacidade do espírito humano
de resistir e perseverar sob as condições mais adversas, e sobreviver para contar ao
mundo o que se passou com eles, para que, conhecendo a história, não sejamos
condenados a repeti-la.

Referências

APPLEBAUM, Anne. Gulag: a History. New York: Random House, 2005.

BELING, Romar. Uma poética da memória: o holocausto na obra de Jorge Semprún.


Santa Cruz do Sul: EdUNISC, 2007.

KOLLERITZ, Fernando. Testemunho, juízo político e história. Revista brasileira de


história, vol 24. Número 048. São Paulo. 2004. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
01882004000200004&lng=en&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em: 28 ago. 2019.

SCAMMEL, Michael. Solzhenitsyn: a Biography. London: Paladin, 1986.

802
SELIGMANN-SILVA, Márcio. História, memória, literatura: O testemunho na era
das catástrofes. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.

SEMPRUN, Jorge. Um Belo Domingo. Trad. Aulyde Soares Rodrigues. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1982.

SNYDER, Timothy. Bloodlands: Europe Between Hitler and Stalin. New York: Basic
Books, 2011.

SOLZHENITSYN, Aleksandr. Um Dia na Vida de Ivan Denisovich. Trad. Roberto


Leal Ferreira. São Paulo: Siciliano, 1995.

TIDD, Ursula. Jorge Semprún: Writing the European Other. London: Routledge, 2017.

WACHSMANN, Nikolaus. KL: a History of Nazi Concentration Camps. New York:


Farrah, Strauss and Giroux, 2015.

803
VOLTO SEMANA QUE VEM:
A INSISTÊNCIA DO DESEJO DE VIDA NO NOVO CICLO DE MEMÓRIA
CULTURAL BRASILEIRA

Luciana Paiva Coronel (FURG)1

Resumo: Volto semana que vem (2015), de Maria Pilla, compõe o esforço de recuperação da
memória dos anos de chumbo brasileiros dentro de um cenário posterior à transição para a
democracia, que foi reinstaurada no país sem que os crimes cometidos pelos agentes do Estado
ditatorial tivessem sido investigados e punidos. A narrativa caleidoscópica de Maria recompõe
sua militância no Brasil e na Argentina nos anos 70, podendo ser considerada exemplo do que
Michael Pollak (1989) chama “memórias subterrâneas”, escritos de segmentos derrotados que,
quando alcançam o espaço público, criam um campo de batalha no terreno da “memória oficial”
da Nação.

Palavras-chave: Literatura; Estado ditatorial; Memória.

“O presente conduz o passado


como se este fosse membro de uma orquestra.”

Italo Svevo, Consciência de Zeno.

Contextos históricos: 1964 e 2016

A sombra da impunidade que marcou o cenário brasileiro da transição para a


democracia, reinstaurada no país em 1985 sem que os crimes cometidos pelos agentes do Estado
ditatorial ao longo de 21 anos tivessem sido investigados e punidos, ofusca os horizontes e
as perspectivas de futuro da sociedade brasileira, que não soube defrontar-se com o
horror dos métodos com que a repressão logrou vencer a resistência criada ao arbítrio,
tanto no campo quanto nas cidades. Nos moldes do “pacto del olvido” que selou a superação
do fascismo franquista em solo espanhol, o Brasil não encarou de frente a história do arbítrio em
solo nacional e assim não pode elaborar efetivamente a memória sombria do passado, que, mal
assimilado, volta a rondar o imaginário do presente.
Escrito como decorrência de um imperativo de memória do presente o romance
foi gestado na conjuntura dos prenúncios de novo golpe no país, nos anos instáveis do
segundo governo de Dilma Rousseff, quando tinha-se a nítida consciência da iminência

1
Graduada em História e Letras (UFRGS), Doutor em Literatura Brasileira (USP). Contato:
lu.paiva.coronel@gmail.com.

804
da ruptura do Estado de Direito para a deposição da presidente democraticamente eleita
por meio de argumentos pífios, insustentáveis, que permitiriam a volta ao poder dos
grupos alijados das instâncias decisórias do país desde a primeira eleição de Luís Inácio
Lula da Silva, em 2003. O espectro do golpe rondava a Nação, e nesta conjuntura
surgem muitas obras como Volto semana que vem, voltadas à temática do arbítrio
sombrio do passado com vistas a iluminar o horizonte incerto do presente.
A Anistia brasileira, nos moldes como foi aprovada em 1979, garantiu a
impunidade dos culpados pelas torturas e assassinatos, blindando seus crimes e
impedindo a apuração do que de fato ocorreu nos porões ditatoriais. As tentativas de
revisão da mesma foram infrutíferas, ainda que crimes contra a humanidade sejam
imprescritíveis, de acordo com o Tribunal Internacional Penal, com sede em Haia.
Nenhuma instância do direito internacional conseguiu até os dias atuais fazer valer os
princípios maiores da dignidade humana, argumentando as altas instâncias da Justiça
Brasileira (como o Supremo Tribunal Federal), que a legislação interna do Brasil não
deve sofrer a ingerência de leis externas.
Conforme Eurídice Figueiredo afirma em A literatura como arquivo da ditadura
brasileira, “A anistia tem como corolário a promoção do esquecimento, que é o oposto
do trabalho da memória e do arquivamento.” (FIGUEIREDO, 2017, p.16). Exatamente
para arquivar e trazer a público a memória deste passado, combatendo o esquecimento e
promovendo a discussão pública da violência de Estado na vigência de regimes de
exceção, é que publicam-se alguns romances representativos do esforço de recuperação
da memória do passado no âmbito da literatura brasileira do século XXI.

Arqueologia afetiva do passado

Intenta-se analisar neste artigo o modo peculiar através do qual a memória, ao


mesmo tempo individual e histórica, é ativada pela instância narrativa de Volto semana
que vem, seguindo o olhar crítico presente na apresentação do romance, em que consta
apreciação segundo a qual o texto memorialístico em questão se constrói “sem adjetivar
o horror exposto ou a dor vivida” (ALMINO In PILLA, 2015, s/p), mas envolvendo
com pudor vigilante a tessitura de seu testemunho no sentido de torná-lo construção
literária.

805
A enunciação em primeira pessoa evoca, nos moldes de uma arqueologia afetiva,
o passado de modo fragmentário, a partir de espaços e tempos diversos, acionados pelo
fio condutor do afeto e caracterizados pelas referências culturais de cada momento,
como filmes, músicas, comidas e bebidas. A respeito do início da vida acadêmica, ela
conta: “Na Universitária, a livraria do Flávio, nos encontrávamos para compartilhar
euforia e medo, a Revista Civilização brasileira, a nouvelle vague, o cinema novo, o
congresso da UNE.” (PILLA, 2015, p.32)
Do mesmo modo, as animadas reuniões dançantes da adolescência antes da prisão
são trazidas ao texto por meio da música de Bob Dylan. Profumo di donna (Dino Risi,
1974) e O Grande Gatsby (Jack Clayton, 1974), por exemplo, são lembranças de filmes
exibidos no ciclo organizado pelas presas no cárcere argentino de Villa Devoto, situado
em Buenos Aires. Grande Otelo, Oscarito e Mazzaropi, por sua vez, compõem a
memória da tenra infância da narradora, marcada pelas matinês de cinema com a mãe e
a irmã, nas quais se viam rodeadas de mamadeiras, fraldas e bolachas. E Easy rider
(Dennis Hopper, 1969) marca a vida cultural da jovem já inserida na militância política.
Um tom sensorial invade seguidamente o texto, no qual é dito logo nas primeiras
páginas referentes ao período da prisão que odores eram “nossa grande carência naquele
lugar” (PILLA, 2015, p.8). Temperos e sabores percorrem as linhas do romance, que já
inicia com a poderosa reivindicação por cheiros em meio à ausência de liberdade. A
narradora nos mostra que a privação da liberdade passa também pela impossibilidade de
escolher os cheiros do seu dia, e por isso tem em Profumo di donna o seu filme favorito,
pela oportunidade de vivenciar ali a força sensorial do perfume através da vida das
personagens.
Em fragmento relativo à condição de presa, refém da ditadura argentina na prisão
de Olmos , por exemplo, a voz narrativa refere que lembrava os versos de Joan Manoel
Serrat, que remetiam à Guerra Civil Espanhola por meio da figura de Miguel
Hernandez, poeta espanhol republicano que escrevera “Nanas de la cebolla.” para a
mulher, que reclamava da fome e de ter apenas cebolas para comer com o filho de colo.
“Com o leite dessas cebolas de España, nós, reféns da ditadura argentina, também
aprendemos a temperar a nossa espera” (PIILLA, 2015, p..23), diz a mesma, costurando
seu drama ao de outros presos e ao de outras mulheres, cujas vidas não puderam
prosseguir do modo habitual devido às catástrofes da história.

806
Igualmente quando é narrada a decisão da militante pelo exílio, expediente que
lhe permitiria fugir da angústia de viver temendo ser presa pelo arbítrio latino-
americano, vivenciado por ela em ambos os países, Brasil e Argentina, ela mistura todos
os sentimentos de perda que lhe vem à mente e descreve o momento como tendo sido
coroado pelo sabor de “uma sublime torta de amêndoas” (PIILLA, 2015, p.27),
devorada com voracidade. O desafogo existencial tem sabor de amêndoas no texto de
Maria Regina Pilla.
A cidade de San Jose de Feliciano é referida no texto como “a grande estrela de
nossas conversas em Olmos e em Devoto com suas melancias de vinte quilos e o
cinema de Dom Jaime, onde à noite todos iam assistir às fitas que trazia da capital
paraguaia” (PILLA, 2015, p.86). Para narrar a memória das noites de filme, a voz
narrativa aciona sabores diversos, como o do sanduíche de queijo fresco que o padre
preparava, combinado às melancias que causavam polêmicas discussões entre as
detentas e ao prazer cultural advindo dos filmes assistidos, todos os elementos
compondo uma cena feliz: “quando sobrava dinheiro, mandava buscar uma copa de
vinho de Mendonza. Nem bem chegava a taça com o líquido cor de amoras, Dom Jaime
apertava o cifão para fazer borbulhas e aumentar a bebida.” (PILLA, 2015, p. 87).
Fatos marcantes da vida na penitenciária surgem no enredo de Volto semana que
vem acionados pelo fio condutor dos sabores, que funcionam nos moldes das
madeleines do romance Em busca do tempo perdido, de Marcel Poust. Para a
comemoração de um ano de prisão em Olmos, por exemplo, é narrado que as presas se
dispuseram a preparar rabanadas nas mais difíceis condições que se pode imaginar. Lê-
se no fragmento concernente à refeição, “que teve a solenidade dos eventos raros”
(PILLA, 2015, p.58), que “a graxa da carne de gado foi lavada muitas vezes até perder a
coloração laranja e o sabor dos molhos feitos com tomate” (PILLA, 2015, p.57) e que
para a execução da receita, “da ração das crianças de colo foi retirado um tanto de leite
em pó.” (PILLA, 2015, p.58).
A voz enunciativa narra no presente fatos de seu passado na prisão, evocados pela
memória dos cheiros e sabores. Ela lembra que foram dispensados os ovos,
ingredientes que constavam nas receitas originais de rabanada, porque inacessíveis,
lembra ainda que os guardas ficaram colados às grades, assistindo à festa que se fazia no
seu ambiente interno, local usualmente associado à tristeza, mas ressignificado naquela

807
ocasião pela insistência teimosa daquelas mulheres na celebração de suas vidas, ainda
que fossem vidas encarceiradas, porque histórias pregressas que ainda povoavam suas
mentes eram ali revividas sob o tempero do afeto:

Quem sabe cheirasse mal... o fato é que aquela graxa derretida nos trazia a
lembrança de fatos deixados para trás, de mães de avental segurando colheres
de madeira. As fatias de pão saíam dos pratos com leite em pó e açúcar para
aquele Ersatz de frigideira. [...] O cheiro da fritura do leite com açúcar
iluminava o rosto de cada uma. Colocada nos pratos da mesa da ceia, a
rabanada ainda chiava. Arrastamos o banco de madeira para que todas
sentassem à mesa.
[...]
Cada bocado era acompanhado por olhos brilhantes que iam de uma ponta à
outra da mesa, percorrendo a cela, buscando as memórias de vida de antes.
Eu quase havia perdido essas lembranças, quase podia dizer que nunca
haviam existido.
(PILLA, 2015, p.58).

Para deslindar o fio da memória, era preciso “remendar os esgarçamentos do


medo” (PILLA, 2015, p.11), reconhece a narradora, fugindo o tempo todo do tom
confessional e adotando formas poéticas para tornar públicas dores tão íntimas, como a
da tortura, que surge plasmada dentro de um pesadelo com cobertas sujas e um telefone
incessante, criando um clima alucinatório, nada realista, para compor pouco a pouco e
através de imagens a cena da violência maior sofrida:

O telefone – trim trim trim! – não parava de tocar, e ninguém atendia. […]
Trim, trim, insistia o telefone. Virei-me e lá estavam os olhos arregalados da
gatinha. […] Era só um pesadelo, repetia, contente da vida. Senti uma fisgada
aguda no pé. Debaixo dele, em vez da gatinha vi meus pés manchados de
sangue e estrangulados pela corda. O cheiro: inesquecível cheiro de roupa
suja misturado a um vago odor de pele queimada pelos fios desencapados.”
(Pilla, 2015, p.45-6).

A narrativa de Maria Pilla traz dores inenarráveis a que não alcança a mente que
vivenciou a experiência do trauma, entendido aqui a partir de Aleida Assmann como
“uma inscrição corporal que permanece inacessível à transcodificação em linguagem e
reflexão, e, portanto, não pode ganhar o status de recordação.” (ASSMANN, 2011, p.
297). O sofrimento bárbaro não pode ser desafogado através dos meios habituais de
expressão. Por esta razão, a estudiosa da memória insiste em que o trauma requer outro
caminho, mais radical: “diferente até mesmo das técnicas e experimentos do neauvou
roman e do romance de vanguarda.” (ASSMANN, 2011, p.305).

808
Assim como Kurt Vonnegut citado pela teórica, Maria Pilla não pode servir-se de
métodos e formas literárias previstas, ela precisa inventar sua própria forma de abordar
o trauma, que por definição não pode ser descrito. Do mesmo modo que a forma do
escritor estadunidense de ascendência germânica, a da autora gaúcha é “breve e
desordenada porque não há o que dizer de inteligente sobre um massacre.”
(ASSMANN, 2011, p.305).
A forma de composição de Volto semana que vem é como a de Slaughterhouse
five igualmente baseada na colagem, que mostra-se um recurso interessante de acesso à
cena traumática, uma vez que “‘quebra’ a espinha dorsal da narrativa, a sequência
temporal-cronológica, ‘rompe’ os nexos entre acontecimentos e distribui fragmentos de
arranjos livres. A colagem não é apenas uma forma de perda da ordenação, mas também
uma forma de abalo da ordem.” (ASSMANN, 2011, p.306).
Bastante pertinente para representar o abalo da ordem, a colagem do romance em
foco combina dores e alegrias, tudo combinado num mélange indiferenciado,
mostrando-se recurso estético e literário muito feliz nas maõs de Maria Pilla. Sua
experiência da prisão trouxe-lhe sofrimentos bárbaros, mas também propiciou-lhe
vivenciar a solidariedade e a cumplicidade entre as presas. É disso que se trata neste
romance, pontuado de momentos fugazes nos quais se busca a felicidade possível.
Volto semana que vem pode ser considerado exemplo do que Michael Pollak
(1989) chama “memórias subterrâneas”, escritos de segmentos derrotados que, quando
alcançam o espaço público, criam um campo de batalha no terreno da “memória oficial”
da Nação. O modo através do qual essa memória é ativada pela instância narrativa é
muito peculiar, sensorial e afirmativo, diante das brutalidades da história. Porque não se
trata de uma história de dor, mas de uma história de vida, reconstruída através da
palavra.

Referências

ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória


cultural. Trad. Paulo Soethe (coord.). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011.

FIGUEIREDO, Eurídice. A literatura como arquivo da ditadura brasileira. Rio de


Janeiro: 7 Letras, 2107.

809
PILLA, Maria Regina. Volto semana que vem. São Paulo: Cosac e Naifi, 2015.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, história. Estudos Históricos. Rio de


Janeiro, V.02. N.3, 1989, p.3-15.

810
VIOLÊNCIA E MEMÓRIA EM “A MANCHA”, DE LUIS FERNANDO
VERÍSSIMO: O SOBREVIVENTE E AS MARCAS DA DITADURA

Vanderléia de Andrade Haiski (UFSM)1


Lizandro Carlos Calegari (UFSM)2

Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar o conto “A mancha”, de Luis Fernando
Veríssimo, publicado em 2004, quase vinte anos após o término oficial da Ditadura Militar no
Brasil. Através do estudo dos personagens principais, procura-se verificar como se dá a
representação de elementos como a violência, a tortura e a memória dos sobreviventes da
ditadura civil-militar brasileira. O propósito é evidenciar elementos que atestem que o trauma
da ditadura ainda se faz presente nas suas vítimas, mesmo decorridos vários anos da violência
que sofreram. Para o embasamento da proposta, buscou-se respaldo em elementos teóricos de
Sigmund Freud, Néstor Braustein e Cathy Caruth, dentre outros.
Palavras-chave: Ditadura Militar; violência; trauma; Luis Fernando Veríssimo.

Em 1964, iniciava-se, no Brasil, um dos períodos históricos mais conturbados


para a nação. Esse período iria encerrar-se, oficialmente, em 1985. Embora essas datas
não possam ser vistas como marcos estanques para o início e o término de um
acontecimento de tamanha repercussão política, histórica e social, elas ajudam a
manter vivos, na memória de uma parcela significativa da população brasileira,
episódios cujo retorno não é desejado. A violência que caracterizou esse intervalo de
tempo significou um dos pontos mais altos da história de um país que sempre
conviveu com políticas autoritárias. Passado mais de meio século de abril de 1964,
ainda se buscam explicações sobre esse tenebroso episódio que deixou marcas
obscuras na vida de milhares.
Para alguns, a Ditadura Militar, no Brasil, teria adquirido uma postura mais
violenta e repressiva com a implantação do Ato Institucional n.º 5, de 13 de dezembro
de 1968, durante o Governo de Arthur da Costa e Silva. Através desse decreto,
assistiu-se à cassação dos direitos políticos, civis e jurídicos de muitos cidadãos. O
governo, naquele momento, passou a contar com poderes plenos de modo a intervir
em quaisquer instituições sociais e políticas. De 1968 a 1974, particularmente,
observaram-se as mais variadas formas de violência empregadas contra qualquer um
que se colocasse contra as ideologias do governo. Nesse sentido, uma centena de
diferentes métodos de tortura foi aplicada em pessoas suspeitas de atividades

1
Graduada em Letras (UNIJUÍ, RS), Mestre em Literatura Comparada (URI-FW, RS) e Doutoranda em
Estudos Literários (UFSM, RS). Contato: vanderleiadeandrade@hotmail.com
2
Doutor em Letras (UFSM), professor do PPGL da UFSM. Contato: lizandro.calegari@yahoo.com.br

811
subversivas, de forma que esses indivíduos ficaram marcados por sequelas físicas e
psicológicas.
É justamente para essas cicatrizes, isto é, para o trauma que caracterizou uma
geração, que este trabalho volta o seu interesse. De modo mais específico, procuram-
se demonstrar evidências que atestem a hipótese de que o trauma da ditadura persiste,
de alguma forma, na sociedade atual e se faz presente em determinadas manifestações
artísticas. Para cumprir com o propósito deste estudo, selecionou-se o conto “A
mancha”, de Luis Fernando Veríssimo, publicado em 2004, quase vinte anos após o
término oficial da Ditadura Militar no Brasil.
A ditadura de 1964 a 1985, no Brasil, como se verificou, foi marcada por intensa
brutalidade. Os militares perseguiam, torturavam e executavam aqueles indivíduos
que resistiam às regras do poder. Essas situações contribuíram para que muitas
pessoas ficassem marcadas psicologicamente, de modo que desenvolvessem um
trauma em relação às experiências por que passaram. O que é um trauma? Como ele
se define? Como ele se manifesta nas vítimas de uma violência extrema? Qual é a sua
repercussão nas artes em geral e na literatura em particular? É possível estabelecer
uma relação entre o trauma do passado e as manifestações artísticas mais recentes?
Essa é uma pergunta importante, pois, se existem relações entre os acontecimentos do
passado e a dor do presente, é porque há necessidade de revisão de posturas políticas e
éticas em torno da noção de democracia no país. É essencial, para a sobrevivência e o
bem-estar de cada um, a superação da dor do passado, mas é urgente, acima de tudo,
resgatar esse passado para que a democracia se dê de maneira plena, justa e
igualitária.
Em “Além do princípio de prazer”, Sigmund Freud busca definir o que é o
trauma. O autor explica que o organismo vivo é dotado de uma proteção contra
estímulos vindos de fora. Esse escudo protetor é dotado de um estoque de energia que
opera no sentido de proteger o corpo contra elementos ameaçadores externos dotados
de forças destrutivas. Assim, a quaisquer excitações provindas de fora que sejam
suficientemente poderosas para atravessar esse escudo protetor Freud as descreve
como traumáticas. Como o psicanalista complementa, “[u]m acontecimento como um
trauma externo está destinado a provocar um distúrbio em grande escala no

812
funcionamento da energia do organismo e a colocar em movimento todas as medidas
defensivas possíveis” (FREUD, 1976, p. 46).
No momento em que ocorre essa ruptura do aparelho protetor, a vítima é
acometida por desprazeres, pois, além de ficar susceptível a ameaças externas, ela fixa
a cena que lhe causou o trauma e passa a repeti-la constantemente. Nesse sentido,
conforme analogia proposta por Braunstein (2006, s. p.), o trauma seria um
descolamento da capa de celuloide, capa que permite que, por debaixo dela,
conservem-se os escritos da experiência. Essa película de celuloide “é a figuração de
um „tegumento psíquico‟ que seria atravessado por um instrumento pontudo e
cortante, o estímulo hiper-intenso impossível de simbolizar”. Em termos freudianos,
portanto, o trauma resulta de um fracasso dos mecanismos de defesa do “eu” que
deveriam ser restaurados de modo a devolver ao sujeito a possibilidade de reprimir,
racionalizar, intelectualizar o ocorrido.
Braunstein define o sujeito traumatizado como um sobrevivente (um “sobre-
vivi-ente”), alguém que está vivendo, mas que deveria ter morrido. Nesse sentido, ele
é “um ser que, de forma metafórica, tomou o lugar de um outro que vivia
anteriormente, que poderia ter morrido mas que não o fez”. Como o autor
complementa, “ele, o traumatizado, é a metáfora de outro que não é nem está. Um
usurpador ou um exilado de sua identidade anterior” (BRAUNSTEIN, 2006, s. p.). O
autor explica que o trauma deixa cicatrizes inapagáveis na vítima e, portanto, é um
presente que não quer pertencer ao passado, ou seja, é algo imune ao tempo, porque se
resigna em ser passado. Com isso, o sujeito seria escravo de um passado que insiste
em permanecer e, enquanto sobrevivente, é uma metáfora do ser que foi e que já não é
mais.
Como se observa, uma das características do trauma é a sua atemporalidade, isto
é, o fato de ele não se circunscrever dentro de um período específico de tempo. Assim,
as possibilidades de se reviverem os traumas formulados no passado não são absurdas.
Segundo Aby Warburg (2008), o trauma não consiste em um acontecimento
circunscrito em um período específico da história, mas algo que atravessa gerações,
culturas e povos, devido a seu caráter atemporal e não-findado. O trauma que não foi
devidamente curado pode renascer de tempos em tempos e causar transtornos às suas
vítimas. Conforme complementa Márcio Seligmann-Silva (2005, p. 69), “o distúrbio

813
traumático é caracterizado por um período de latência, que pode chegar a atingir
décadas. Só depois desse período a neurose traumática brota”. Claro, convém a
ressalva aqui de que o trauma herdado não apresenta as mesmas características do
trauma vivido pelos sobreviventes, pois, enquanto as vítimas viveram, de fato, um
excesso de “real”, as gerações subsequentes foram afetadas por meio de suas relações
com os primeiros.
O trauma, portanto, é uma ferida não cicatrizada presente na memória dos
indivíduos que viveram uma experiência limite de dor ou de violência. Essa situação
foi tão impactante para o indivíduo, que ele não consegue reelaborar a cena traumática
de modo que possa interpretá-la de uma forma que lhe proporcione algum tipo de
conforto. É por isso que ele fixou a cena do trauma e a repete constantemente. Ocorre,
no entanto, que é natural que o ser humano busque reprimir essas cenas de dor
formuladas no passado, tentando, com isso, forjar uma situação de alívio. Não
obstante, por ser um processo inconsciente, essas imagens retornam em situações
específicas. Conforme Cathy Caruth (2000, p. 111), o trauma não é um evento
totalmente compreensível no momento em que acontece e, por isso mesmo, acaba
retornando mais tarde “em flashbacks, pesadelos e outros fenômenos repetitivos”.
É o que se observa no conto “A mancha”, de Luis Fernando Veríssimo. O texto,
publicado em 2004, após 40 anos do golpe militar no Brasil, centra a sua atenção nas
vivências pós-traumáticas de um ex-preso político, vítima da tortura, chamado
Rogério. A narrativa é em terceira pessoa, e isso se dá por duas razões fundamentais.
Primeiramente, pelo fato de o texto ter sido escrito quase 20 anos após o término
oficial da Ditadura Militar no Brasil, e, em segundo lugar, pelo fato de o autor não ter
sofrido a experiência da tortura. Logo, o distanciamento temporal e a não experiência
com a tortura levaram Veríssimo a manter uma postura ética em relação aos
acontecimentos ao adotar um discurso em terceira pessoa.
O protagonista de “A mancha” é Rogério, homem de meia-idade que, ao retornar
do exílio, conhece Alice, com quem se casa e com quem tem uma filha de
aproximadamente oito anos chamada Amanda. Segundo a própria esposa, ela já o
conhecera “agitado”, “estabanado”, “tendo pesadelos”. Ao voltar da Europa, decide
mudar de vida, investindo no ramo imobiliário. Seu trabalho consistia basicamente em
comprar e vender imóveis; pegar casas e prédios abandonados, reformá-los e, depois,

814
vendê-los; ou simplesmente demolir construções velhas e negociar o terreno.
Conforme afirma o próprio narrador: “Vivia atrás de prédios decrépitos, de casas em
ruínas, de sinais externos de abandono. Dedicava-se àquilo como alguém que se
entrega a uma causa” (VERÍSSIMO, 2004, p. 2). Como se verifica, o personagem é
atraído por imagens de destruição, por ruínas e por fragmentos do passado, tanto que
seu sogro lhe apelidou de “Rogério, o Demolidor”.
Em certa ocasião, quando Rogério, juntamente com sua esposa, estava indo
conhecer a nova residência de Léo, irmão de Alice, depara-se com um prédio estreito
de quatro andares. Decide, então, conhecer o local, cujo proprietário era Miro,
segundo uma plaqueta contendo seu nome e número de telefone. Após as primeiras
conversas por telefone com o suposto proprietário, Rogério descobre que a casa antiga
era, na verdade, da mãe de Miro; mesmo assim, marcam um encontro para que ele
pudesse conhecer melhor o imóvel. Ao entrar em uma peça, chamou a sua atenção o
chão coberto por um carpete:

Um incongruente carpete fino, de má qualidade mas inteiro, cobrindo o


assoalho de parede a parede. Também fora a primeira coisa que ele notara
anos antes, numa outra sala, numa outra vida, quando o negro tirara a venda
dos seus olhos. O carpete incongruente. Lembrava-se de pensar que
provavelmente a sala servia para outra coisa e na adaptação apressada não
tinham se lembrado de tirar o carpete. Rogério caminhou até as janelas e
espiou para fora. O gordo Miro estava na frente do prédio, chutando o chão
de terra batida e fumando. Rogério virou-se e viu a mancha no chão.
(VERÍSSIMO, 2004, p. 3)

O carpete é um elemento que traz à memória do protagonista algumas


percepções de seu passado, é como se lhe surgissem lembranças de experiências já
vividas naquele local. Ou seja, cada detalhe do ambiente, agora vazio, faz-se
acompanhar por fragmentos de memória e pela subjetividade do protagonista. Se, até
esse ponto, pudesse haver alguma dúvida por parte de Rogério sobre o que poderia
ter-lhe sucedido naquele local, essa desconfiança se desfaz quando avista aquela
mancha no chão da sala. O lugar suspeito e a mancha causam-lhe certa perplexidade:
fica extremamente angustiado e, naquele dia, esquece inclusive de pegar Amanda na
escola de balé. Ao chegar em casa, perturbado e sem a menina, leva uma bronca da
mulher, a quem decide contar o que lhe havia acontecido. Ela comenta que não havia
certeza de que aquele seria o mesmo prédio que afirmara ser, e ele retruca: “Mas eu

815
reconheci a peça. E a mancha está lá, no chão. A mancha do meu sangue”
(VERÍSSIMO, 2004, p. 4).
Essa mancha consiste não apenas em uma nódoa vermelha de sangue no chão de
um prédio onde supostamente funcionaram sessões de tortura; consiste, acima de tudo,
em um indício do trauma sofrido por Rogério no passado. Alice coloca em xeque a
conclusão do marido: “Depois de quarenta anos, você reconheceu a mancha do seu
sangue num carpete. Está bom...”, e ainda observa: “Não fale nada disso na frente da
Amanda” (VERÍSSIMO, 2004, p. 5). É possível extrair dessa passagem duas
observações: 1) o trauma pode ficar latente na mente de uma vítima e, depois de um
tempo, vir à tona estimulado por algum indício; e 2) existe um confronto estabelecido
entre memória e esquecimento: enquanto Rogério deseja lembrar o passado, a fala de
Alice se dá no sentido de proibi-lo de trazer para dentro de casa o seu passado, a sua
história.
A partir daquele instante, porém, começam a vir à mente de Rogério episódios
que ele teria vivenciado na prisão, ou seja, a partir de então, a sua memória será
acessada por meio de flashbacks, rompendo com a linearidade da narrativa. Em uma
dessas cenas, relata que um negro era responsável por levá-lo a interrogatórios com os
olhos vendados. Nesse instante, recorda-se do horror em ter ficado sentado em uma
cadeira de ferro, com as mãos algemadas, “olhando em volta, o carpete surpreendente,
o teto, as paredes, as formas que as marcas de umidade tomavam no reboco”
(VERÍSSIMO, 2004, p. 5). A mancha que ele notara lhe é tão perturbadora, que
decide consultar a vizinhança a fim de descobrir informações sobre aquele prédio
abandonado, a começar por Miro, que lhe diz não ter encontrado nada a respeito
daquele imóvel. Uma senhora, indagada sobre a ocorrência de possíveis gritos e de
movimentos suspeitos de automóveis no local, também afirma não se lembrar de nada.
A mancha que o protagonista insiste em dizer que é sua teria sido ocasionada
por um soco que um dos torturadores teria lhe dado no nariz: “[Glenn Ford] [a]certara
sem querer no nariz, que começara a sangrar. [...] O sangue pingava diretamente no
chão” (VERÍSSIMO, 2004, p. 6-7). Na época em que foi torturado, Rogério fez
amizade com outros presos. Um deles chamava-se Alcides Sunhoz Filho, cujo
pseudônimo era Rubinho. Depois de aproximadamente quinze anos, por iniciativa de
Rogério, os dois voltam a se encontrar. Num certo dia, marcam um encontro e Rogério

816
rememora o passado, comentando inclusive do carpete e da mancha de sangue, o que
incomoda profundamente Rubinho: “– Conversar sobre o quê? Não sei qual é a sua
intenção, mas não me inclua nela. Não me lembro de nada daquela sala. Só da cadeira
de ferro” (VERÍSSIMO, 2004, p. 9).
O interessante do conto de Veríssimo é que, apesar de ser narrado em terceira
pessoa, assume uma perspectiva semelhante a um narrador em primeira pessoa que
teria sido torturado. Ou seja, em “A mancha”, o narrador, mesmo aparentemente
distanciado, não consegue manter uma neutralidade em relação à matéria narrada, e
esta se caracteriza por sua falta de linearidade, pois é constantemente entrecortada
com a narrativa de Rogério que insiste em tentar provar que aquela mancha de sangue
no carpete da sala daquele prédio é sua. Em uma dessas ocasiões, aliás, ele convence
Rubinho de acompanhá-lo até a sala do prédio para reconhecimento do local. Ao
chegarem lá, Afonso, o mestre de obra que está avaliando a construção, sugere a
Rogério que derrubem o edifício devido ao seu péssimo estado de conservação.
Rubinho reforça a decisão do funcionário: “– Acho uma grande ideia, seu Afonso. [...]
– Põe tudo abaixo. É a única coisa a fazer com monstruosidades. Pôr abaixo, esquecer
e começar tudo de novo. Sem vestígios do passado” (VERÍSSIMO, 2004, p. 12-13).
Observam-se duas perspectivas diferentes adotada pelos personagens de “A
mancha”. Por um lado, a exemplo de Rogério, há aqueles que não querem esquecer
nem negar o seu passado de dor; por outro, a exemplo de Rubinho, há aqueles que
negligenciam a sua experiência com a violência da ditadura. Estabelece-se, assim,
uma tensão posta entre lembrar e esquecer. Tanto uma forma de se lidar com o
passado quanto outra se vinculam a um componente traumático que caracteriza os
personagens. Se, conforme Jaime Ginzburg (2012, p. 426), “[o] impacto traumático da
ditadura leva os personagens a uma percepção severa de sua própria constituição”,
pode-se dizer que, para Rogério, acertar contas com o passado é decisivo para o alívio
de seu sofrimento, ao passo que, para o amigo, o que lhe causaria mais tranquilidade
seria esquecer esse passado, inclusive devido ao fato de, possivelmente, ter
dificuldades de lidar com o seu trauma. Em outras palavras, Rubinho confirma seu
trauma, buscando estratégias para se desvencilhar dele, por meio de uma
autoalienação, justamente para conseguir ir adiante, apesar do senso de limite.

817
Contudo, a tônica do conto aloja-se na prerrogativa de expressar uma tentativa
de apagamento do passado. Indícios de uma história traumática e violenta circundam a
todos. Alguns se adentram nesses vestígios (como Rogério), em busca de uma
possível compreensão e assimilação do que aconteceu; outros (como Rubinho)
preferem, por motivos particulares, manter-se afastados deles; muitos (como Alice e
Léo), por desconhecerem o impacto do passado na constituição da subjetividade
individual e coletiva, simplesmente ignoram esses sinais. Como se verifica, não há um
consenso formado quando o assunto é violência. A exemplo do prédio que causa
aflição em Rogério devido ao seu valor simbólico vinculado ao trauma, o passado de
ruínas que caracteriza a sociedade brasileira avoluma-se ao redor de cada um e é
preciso estar atento a esses sinais para que não passem despercebidos ou se tornem
ignorados pelas gerações presentes e futuras.
Nesse sentido, o impacto do passado traumático em Rogério é decisivo para a
constituição de sua subjetividade. Ele se sente abalado constantemente com as
memórias de um período violento, mas tem extrema consciência de que esse passado é
fundamental para a compreensão e possível reintegração de acontecimentos no
presente. Contra-argumentando com a esposa que insiste na ideia de demolição do
imóvel, ele diz: “Alguma coisa aconteceu naquele prédio. Me aconteceu. Aconteceu
pra nós todos” (VERÍSSIMO, 2004, p. 17). Ou seja, ele tem a convicção de que a
história do regime militar tem impactos profundos não só em si, mas na sociedade
brasileira como um todo. Trata-se, portanto, de se pensar na perspectiva de um trauma
coletivo.
Quanto mais Rogério busca informações sobre a história do prédio, mais ele se
frustra com as suas descobertas. Com base em notas de aluguéis do edifício, ele chega
à constatação de que, entre 1968 e 1972, o primeiro andar do imóvel tinha sido
alugado por Arthur Jaguaré Flama, que, até 1982, mais ou menos, tinha sido sócio de
seu sogro, que, a rigor, o considerava uma espécie de “líder” de seu grupo. Flama
pertencia a um grupo de empresários que havia financiado a repressão. Sendo ele
sócio do pai de Alice, surge uma suspeita de que ambos estivessem envolvidos com o
esquema de tortura da época. Quando a esposa cogita a possibilidade de construírem
uma casa no mesmo condomínio em que mora a família dela, Rogério é enfático em
negar a possibilidade.

818
Se Rogério não pode compactuar com a ideia de viver ao lado de pessoas com
personalidades suspeitas, é porque ele tem uma outra percepção das coisas à sua volta.
Ele se torna cada vez mais ciente do mundo em que vive. A sua visão equivale ao
olhar do materialista alegórico, de Walter Benjamin (1994), que, na aparente harmonia
das coisas, enxerga o todo em conflito, em tensão e em paradoxos. Assim, onde
muitos veem uma imagem do passado brasileiro caracterizada pela ordem, pela
coerência, pela integração de valores, o traumatizado vê uma sucessão de ruínas,
contradições, rupturas, impasses e tensões. Essa parece ser a avaliação de alguns
poucos, conscientes das condições de estruturação do Brasil, pois muitos foram
tragados pela política do esquecimento. A demolição do prédio, ao final do conto “A
mancha”, parece apontar para essa possibilidade de leitura:

A demolição do prédio foi rápida. Seu Afonso contou: sabe aquela mancha
no carpete, na sala da frente do primeiro andar? Atravessou o carpete e
manchou o piso de madeira também. Rogério imaginou a mancha
atravessando a madeira e o cimento e penetrando o chão sob o prédio,
entranhando-se no chão sob os escombros. Todo sangue encontra o lugar da
sua quietude. Onde lera aquilo? O lugar da quietude do seu sangue seria o
esquecimento, embaixo da terra num bairro de surdos, quanto mais no
fundo melhor. (VERÍSSIMO, 2004, p. 18-19)

Conforme se evidencia, o esquecimento do passado prepondera sobre a


insistência do protagonista em trazer para o presente assuntos relacionados aos seus
traumas do passado. Na verdade, a questão principal em torno da qual radica o conto
diz respeito à necessidade paradoxal em que vive a vítima do autoritarismo da
Ditadura Militar: lembrar os episódios extremos que viveu ou abandoná-los para não
inviabilizar a vida presente. Esta é uma dúvida central vivida por Rogério: “Comprar o
passado, renovar, vender e enriquecer mais. Ou comprar o passado, destruir, e pensar
no que fazer com o vazio” (VERÍSSIMO, 2004, p. 15). Parece que ele escolheu a
segunda opção, pois, de diferentes formas, foi coagido a isso. Provavelmente, a crítica
do conto incide justamente nesse aspecto da vida de muitas vítimas do regime militar:
forjar o esquecimento do passado para aproveitar, de alguma maneira, o presente.
No que tange ao papel do trauma na constituição da subjetividade dos
protagonistas, em “A mancha” há alguns pontos que merecem ponderação. Um dos
aspectos centrais dentro dessa discussão diz respeito ao fato de os protagonistas serem
traumatizados em virtude de sua inserção nos contextos de violência em que viveram.

819
Isso culmina em uma dificuldade de narrar a sua experiência em razão dos abalos
sofridos. É, por isso que, nesse conto, percebem-se dificuldades de o protagonista
Rogério verbalizar a sua angústia e de lembrar a sua história. A dor física extrema
impede que a narrativa seja fluente e linear.
Nesse sentido, como destaca Ginzburg (2012, p. 159), elementos de
descontinuidade formal, indeterminação, imprecisão, lacunas, concepções
fragmentárias de tempo e espaço não devem ser considerados falhas de escrita. São
detalhes que apontam para o fato de a vítima viver no presente um trauma formulado
no passado dentro de circunstâncias históricas específicas. Dito em outros termos, no
âmbito literário, mas não só neste, trauma e memória dialogam entre si e adquirem
uma forma de representação estética particular que denunciam a violência do passado,
mas também as suas sequelas no presente, comprometendo, em certa medida, a
democracia do país.
A partir da leitura de “A mancha”, de Luis Fernando Verissimo, é possível fazer
as seguintes ponderações:
1º) Embora o conto tenha sido publicado quase 20 anos depois do término
oficial da Ditadura Militar no país, os traumas do passado ainda se fazem presentes
naqueles que foram torturados ou que tiveram suas vidas afetadas pela violência. Isso
significa que o trauma não fica circunscrito a uma época específica, mas deixa
sequelas nas suas vítimas para sempre, atingindo, inclusive, as gerações seguintes que,
de alguma forma, tiveram suas vidas atingidas ou modificadas pela ditadura.
2º) Embora o conto tenha sido narrado em terceira pessoa, ele adota
procedimentos formais típicos de narrativas escritas por narradores que sofreram
alguma forma de violência, tais como, uso de flashbacks, oscilação de tempos verbais
entre passado e presente, e fragmentação textual. O fato de uma narrativa ter sido
escrita em terceira pessoa, mas, mesmo assim, adotar tais recursos, remete para a
perplexidade do narrador, que, de alguma forma, sente-se atingido pelo impacto da
violência do passado. Isso reforça a ideia de que a Ditadura Militar atingiu, direta ou
indiretamente, a todos, e de que ninguém pode manter-se imparcial ou isento em
relação a esse importante período da história do Brasil.
3º) O conto tensiona, por meios de seus personagens, duas perspectivas: o
lembrar e o esquecer. Até que ponto é saudável para as vítimas lembrar a violência

820
sofrida no passado? Por outro lado, até que ponto é perigoso negligenciar a violência
cometida durante a Ditadura Militar e os seus impactos na sociedade brasileira?.
A nossa perspectiva é de que não devamos negligenciar a violência nem os
traumas do passado, mas trabalhar com eles de maneira ética, séria e comprometida,
tanto para que o passado não se repita no presente, quanto para que as vítimas e seus
familiares encontrem respaldo e apoio na sociedade para lidar com esses traumas e,
assim, buscar constituir uma vida não mais sobre “ruínas” ou “construções antigas”
com “manchas” que remetam a um passado doloroso, mas sobre novos alicerces
sustentados pela compreensão, pelo apoio e pela justiça. Entre o passado e o presente,
ainda há “manchas” de sangue, de dor e de ressentimentos que precisam ser desfeitas,
mas de forma consciente, pacífica e ética, para que a democracia, no Brasil, possa ser
reestabelecida gradualmente. Enquanto não acertarmos as contas com o passado, esses
temas continuarão ecoando em nosso presente, exigindo respostas tão urgentes quanto
necessárias.

Referências

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ______. Magia e técnica, arte e
política. Trad. Sérgio P. Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 222-232.

BRAUNSTEIN, Néstor (2006). Sobrevivendo ao trauma. Trad. Marylink Kupferberg.


Disponível em <http://nestorbraunstein.com/escritos/index>. Acesso em: 05. abr.
2014. s. p.

CARUTH, Cathy. Modalidades do despertar traumático (Freud, Lacan e a ética da


memória). In: NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (Orgs.).
Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000. p. 111-136.

FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. In: ______. Obras psicológicas


completas. Vol. XVIII. Trad. Jayme Salomão e Christiano M. Oiticica. Rio de Janeiro:
Imago Editora Ltda, 1976. p. 17-85.

GINZBURG, Jaime. Crítica em tempos de violência. São Paulo: Edusp, Fapesp, 2012.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da cultura: ensaios sobre memória, arte,


literatura e tradução. São Paulo: Ed. 34, 2005.

VERÍSSIMO, Luis Fernando. Vozes do golpe: “A mancha”. São Paulo: Companhia


das Letras, 2004.

WARBURG, Aby. Der Bilderatlas Mnemosyne. Berlin: Akademie Verlag, 2008.

821
IRMÃOS CAMPOS E A RECUPERAÇÃO DE SOUSÂNDRADE: O CÂNONE
EM MOVIMENTO

Eliana Xavier Costa1

Resumo: O poeta Joaquim de Sousândrade (1832-1902) inicia sua obra poética em 1857, com
os poemas Harpas Selvagens e a encerra 36 anos depois com o poema Novo Édem, em 1893.
Sousândrade permaneceu obscuro em seu tempo, mas vem sendo revalorizado na
contemporaneidade. A quase completa ausência da obra de Sousândrade no panorama crítico
brasileiro, de forma mais cônscia, foi realizada apenas em 1964, ano da primeira edição de
ReVisão de Sousândrade por Augusto e Haroldo de Campos, importante obra, que recuperou o
nome do poeta, ignorado por quase um século.

Palavras-chave: Sousândrade; Re visão de Sousândrade; Augusto e Haroldo de Campos

Joaquim de Sousa Andrade, o Sousândrade, é um exemplo de artista deixado à


margem, não teve o público que merecia, foi desconsiderado por seus contemporâneos,
sendo lido e louvado “post-mortem”. “Projetando-se no futuro, de um ponto de vista
histórico-literário, com sua obra ímpar, Sousândrade vai atingir a geração seguinte, ou o
segundo o ciclo da literatura de sua terra” (BRASIL, 1994, p.25). O processo de
olvidamento do poeta maranhense e a sua recuperação realizada após a publicação do
livro Re visão de Sousândrade é o tema do presente trabalho. Com o intuito de refletir
sobre o seu olvidamento e sua ausência no cânone literário, selecionamos a antologia
organizada pelos críticos e poetas concretistas Augusto de Campos e Haroldo de
Campos como principal obra a ser estudada.
Inicialmente, consideramos de fundamental importância analisar a crítica em seu
tempo, para assim compreender os motivos que fizeram distanciaram Sousândrade do
cânone literário brasileiro.
Um dos principais meios anteriormente utilizados para a propagação da literatura,
os jornais nos dão uma visão bastante viva dos acontecimentos daquele período,
Sousândrade, consciente de sua difusão, utilizou-se desse recurso. No jornal nova-
iorquino O Novo Mundo escreveu artigos sobre a deflagração do índio na Amazônia,
divulgou alguns de seus poemas em jornais do Estado do Maranhão, escreveu artigos
defendendo a abolição da escravatura e a criação da Republica para o Jornal o Novo
Brasil.

1
Licenciada em Letras pela Universidade Estadual do Maranhão e Mestranda em Crítica Literária pela
Pontifícia Universidade Católica de Goiás – PUC-GO. Contato: elianaxaviercosta23@gmail.com

822
O jornal A Pacotilha, jornal de grande movimentação no Estado do Maranhão,
cuja circulação ocorreu entre os anos de 1880 a 1938, cita uma visita do poeta em um
evento de celebração na cidade de São Luís. Podemos perceber que a recepção às obras
do poeta, ao menos em sua terra natal, era positiva. Os convidados são presenteados
com um exemplar de seu mais novo poema O Novo Edén.

O conhecido literato sr. Joaquim de Sousandrade distiguio-nos ante-hontem


com a sua visita, para darmos um mimo de festas, segundo nos disse. Foi esse
mimo um exemplar do seu poema novo Éden, sahido há pouco do prelo.Com
o Gueza errante, trabalho anterior de sr. Sousandrade, o poema com que ele
acaba de brindar-nos, é uma obra litteraria que demanda vagar para ser
apreciada na leitura. Desse vagar não disposemos infelizmente de hontem pra
hoje, o que nos priva de acompanhar a notícia do brinde que recebemos de
algumas palavras relativas ao thema do poema e seu desenvolvimento. O
nome do sr. Sousandrade, é de sobra conhecido no mundo das letras,
dispensa além disso qualquer juízo da imprensa sobre a sua produção.
(Pacotilha, 1893, p.2)

Alguns fatos importantes sobre a vida do poeta também podem ser encontrados
em buscas realizadas nos jornais da época. Durante a vida, o poeta dedicou-se
exclusivamente à escrita de suas obras poéticas, no entanto, atuou como professor de
grego no Liceu Maranhense, uma tradicional instituição de Ensino Médio brasileira,
fundada em 1838, localizada em São Luís – MA. A imprensa local também comunicou
o acontecimento “Entrou hontem em exercício do cargo de professor de grego do Lyceo
Maranhense o sr. Joaquim de Sousândrade.” (PACOTILHA, 1894, p.2). Sousândrade,
no entanto, é substituído três anos depois pelo professor Belmiro Cézar. “ Consta que
foi nomeado para substituir Sousândrade no lugar de lente da cadeira de grego do Lycêu
Maranhense, o sr. Belmiro Cezar.” (PACOTILHA, 1897, p.3)
O primeiro comentário importante sobre Sousândrade é feito por Camilo Castelo
Branco, considerado um dos mais prolíficos escritores da literatura portuguesa. Ao lado
de nomes como Camões, Gonçalves Dias e Gil Vicente, o poeta recebe destaque
especial na obra intitulada Cancioneiro Alegre de poetas portugueses e brasileiros, de
Sousândrade o escritor escolhe o poema Mademoiselle e, sobre o poeta, destaca que “é
o mais estremado, mais fantasista e erudito poeta do Brasil na atualidade. O seu poema

823
O Gueza errante, é uma leitura que pesa e enfarta pela demasia dos adubos” (BRANCO,
1879, p.109)
Ainda na crítica do século XIX encontramos Silvio Romero, importante nome na
crítica literária do século XIX, Romero cita Sousândrade em seu livro “História da
Literatura Brasileira”. Inserindo-o na terceira geração do romantismo, representada pelo
subjetivismo de Álvares de Azevedo. O crítico ressalta que o poeta “viajou e tomou
grande faro da literatura do século no estrangeiro; mas não assimilou uma tendência
qualquer, daí as indecisões em suas ideias e vacilações em suas poesias” (ROMERO,
1888, p.1225)
No início do século XX temos o estudioso da literatura brasileira, membro e
principal idealizador da Academia Brasileira de Letras José Verissimo, que também faz
menção ao nome do poeta maranhense. Em seu livro “Estudos de Literatura Brasileira”
escrito em 1901, Verissimo remove o poeta da Escola Romântica, diferenciando-se de
Romero, e o enquadra como modelo simbolista. Em suma, o poeta maranhense é visto
por Veríssimo como um imitador desprovido de originalidade, pois bebeu das fontes
europeias e norte-americanas e pouco acrescentou à literatura brasileira.
Em seguida temos o crítico Antônio Cândido, modelo e referência para a crítica
brasileira, embora o crítico não dê ao poeta o crédito necessário, colocando na categoria
“menores”, seu comentário sobre Sousândrade nos leva a compreender a importância do
poeta e sua obra:

Não sendo menor poeta, Sousa Andrade é por certo mais original do que os
outros. O seu livro de estreia, Harpas Selvagens, vem marcado por um
romantismo que se diria interior, sem os cacoetes superficiais da métrica ou
da imagem. Poesia tensa e carregada de energia, desleixando os ritmos
românticos e se realizando melhor no verso branco, não raro em poemas
extensos, ao longo dos quais procura em vão a forma adequada. Um dos
motivos de interesse de sua obra está nesse ar de procura, que, se não
favorece a plenitude artística, testemunha em todo caso uma lídima
inquietação, elemento de indignidade intelectual nem sempre encontrada em
seus manhosos contemporâneos. (CÂNDIDO, 2000, p.186)

Outra característica interessante apontada pelo crítico, que, de acordo com ele,
influencia toda a escrita de Sousândrade, é seu caráter cosmopolita, a importância que a
viagem assume, para ele, como estímulo da emoção. Seus poemas são datados de vários
lugares do Brasil e da Europa, percebe-se uma mobilidade no espaço revelando em
Sousândrade a importância da variação no panorama universal, para aguçar a reflexão;

824
uma procura por lugares, mas que no fim, refletiria a procura do próprio ser. “Esses
movimentos tecem a contextura de sua poesia, onde encontramos, com prazer, em lugar
da mobilidade algo falaciosa dos ritmos, como em seus contemporâneos, a mobilidade
espiritual de um drama. ” (CÂNDIDO, 2000, p.186)
Ainda na crítica do século XX, especificamente em 1960, encontramos a obra que
mais nos aproxima do poeta, carregada de significado e com uma abordagem
diferenciada, Augusto e Haroldo de Campos propõem em Re visão de Sousândrade a
reavaliação do olvidamento do autor do Guesa, buscando a reposição de parte
expressiva de seus textos, que há muito haviam sido esquecidos e ignorados. Nas
palavras dos críticos, “pode-se dizer que este livro criou um caso na crítica literária,
propondo em termos deliberadamente provocativos, sem a tibieza cautelar do
escolaticismo acadêmico, a reavaliação do olvidamento do autor do Guesa” (CAMPOS
& CAMPOS, 2002, p.15). Para os críticos, impressionados com a linguagem
premonitória de Sousândrade, era necessário romper com o “Blackout ”, termo utilizado
por eles, que já durava um século.
Essa ausência no panorama crítico da Literatura era temida pelo próprio poeta,
que escreveu em 1887: “Ouvi dizer já por duas vezes que ‘o Guesa Errante será lido
cinquenta anos depois’; entristeci — decepção de quem escreve cinquenta anos antes”
(CAMPOS, 2002, p. 197). Sousândrade, apesar de inconformado com o possível
esquecimento, não modificou a sua escrita, que, segundo Silvio Romero (1888)
destoava da poetização do seu meio, suas ideias e linguagem tinham outra estrutura.
Nunca antes a crítica preocupou-se com a injustiça sofrida pelo poeta, ou
empenhou-se para repensar seu lugar no cânone, todas as obras mencionadas assumem
sua importância no panorama crítico brasileiro, no entanto, temos em Re visão de
Sousândrade uma preocupação em compreender sua linguagem, dando a ela
significação e valor. “Espera-se uma revisão de seu processo de olvido – superado os
limites da língua, há de situá-lo em nível internacional do plano dos pioneiros, da poesia
que hoje aceitamos como contemporaneamente válida.” (CAMPOS & CAMPOS, 2002,
p. 30)
A antologia reúne parte das principais obras de Sousândrade. Entre elas, temos
oito dos quarenta e seis poemas que compõem Harpas Selvagens; dois dos poemas de
Eólias; trechos do poema O Novo Éden, e uma seleção de trechos de seu principal

825
poema, na opinião dos irmãos, O Guesa, acompanhado de uma sinopse temática. À
terceira edição do livro, escolhido com objeto de estudo, por se tratar da obra mais
completa, são acrescentados dois novos ensaios críticos: “A peregrinação
transamericana em Sousândrade” de Haroldo de Campos e “Ecos do Inferno de Wall
Street” de Augusto de Campos. No prefácio à segunda edição, de 1964, os irmãos
afirmam:

Pode-se dizer que esse livro criou um “caso” na crítica literária brasileira,
propondo em termos deliberadamente provocativos, sem a tibieza cautelar do
escolaticismo acadêmico, a reavaliação do olvidamento do autor do Guesa e
repondo em circulação parte expressiva de seus textos de maior impacto
estético, em especial, a seção de seu longo poema por nós batizada ( a partir
dos versos do próprio poeta) “O Inferno de Wall Street”. (Campos &
Campos, 2002, p.15)

Com a revisão, os críticos esperavam “superados os limites da língua, situá-lo em


nível internacional no plano dos pioneiros, da poesia que hoje aceitamos como
contemporaneamente válida.” (Campos & Campos, 2012, p.18) A Expectativa dos
críticos tornou-se realidade, após a escrita de Re visão de Sousândrade, o poeta passou a
ser visto com outros olhos pela crítica, despertando interesses da crítica nacional e
internacional.
O responsável pela primeira pesquisa pós - Re visão de Sousândrade é o norte
americano Frederick G. Williams, em 1970 Williams se encontra em São Luís com o
objetivo de reunir informações para a sua tese de doutoramento em Literatura Brasileira,
que aborda com tema principal a vida e obra de Sousândrade. Em buscas pacientes na
Biblioteca do Estado, descobriu os manuscritos inéditos, com algumas folhas
dilaceradas pelas traças e algumas estrofes incompletas:

Era uma questão de salvar o que, no momento, representava tudo quanto nos
tivesse deixado inédito o poeta. Um tesouro mutilado, é verdade, mas
valiosíssimo, diante de sua unicidade. Hoje, porém, tendo em mãos os
originais do poema, por nós encontrados no dia 12 de fevereiro de 1970, nos
arquivos da Biblioteca Pública do Estado. Vemos quanto se teria perdido se
ficássemos somente na cópia datilografada, muito falha em termos de
fidelidade a esses originais. (WILLIAMS, 1970, p.16)

Muitas pesquisas sobre o poeta continuam sendo realizadas. Em 1976 Luiza


Lobo, importante crítica literária contemporânea, apresenta sua dissertação submetida

826
ao Departamento de Letras e Arte da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, com o tema Tradição e Ruptura em Sousândrade. A crítica proposta por Lobo é
hermenêutica e percorre alguns pontos principais da escrita sousandradina, entre eles, o
ponto mítico-histórico, os heróis civilizadores e o polo feminino. “O poeta é grande
desafio aos estudiosos de literatura que se preocupam com a classificação em escolas
literárias ou estilos de época na História da Literatura, ou com o problema de gêneros a
partir da categorização aristotélica ou canônica.” (Lobo 1976, p.9). Sua originalidade o
diferencia de Gonçalves Dias, que nos apresenta, no indianismo romântico, o índio-
herói, disposto a sacrificar-se para salvar seu povo e cultura, o índio apresentado por
Sousândrade faz oposição a ele, é covarde, amedrontado, fraco e foge às suas
responsabilidades. “A originalidade do poeta reside no fato de ele não se prender a um
perfil já consagrado pelo indianismo brasileiro, como o de Alencar, que torvava o índio
um herói quase inverossímil, apesar da sua derrota histórica. ” (LOBO, 1076, p.11).

Lobo aponta ainda outra marca característica do poeta, que reside no fato de
mostrar excepcional capacidade de projetar os escritores estrangeiros em sua obra,
fossem seus contemporâneos ou do passado, recriando-os num todo autônomo com
relação às fontes. “Sousândrade talvez tenha sido o primeiro autor brasileiro a perceber
a importância da síntese de influências estrangeiras na literatura nacional.” (LOBO,
1976, p.13). Por muito tempo não houve preocupação em publicar seus poemas, em
2012, Luiza Lobo, muda esse quadro definitivamente, com a publicação da primeira
edição completa e atualizada do principal poema de Sousândrade, O Guesa, com
organização, notas, glossário, fixação e atualização do texto da edição londrina.
Bosi (1994), em seu livro, História Concisa da Literatura Brasileira, publicado
em 1982, destaca o espírito originalíssimo do autor do Guesa, nota em seus versos
juvenis um excessivo cuidado com a escolha do léxico e no meneio sintático. O crítico
destaca que o poeta segue um caminho singular e diferenciado, enquanto os outros
poetas dedicam-se as demasias sentimentais dos epígonos e baixam o tom da lírica dos
condores, contentando-se em entrar no molde acadêmico da tradição romântica,
Sousândrade destoa dessa tradição. “As viagens pela Europa e a longa permanência nos
Estados Unidos abriram a Sousândrade o horizonte do mundo capitalista em plena
ascensão industrial”. (BOSI, 1994, p.138). Fechados em um contexto provinciano e
afrancesado, os demais românticos desconheciam esse contexto apresentado por

827
Sousândrade. O maranhense conheceu de perto os conflitos que regiam as grandes
metrópoles, os fenômenos das concentrações urbanas de Nova Iorque, sentiu os vários
prejuízos causados pelo capitalismo excessivo de uma democracia fundada no dinheiro
e na competição feroz. “Outra novidade em Sousândrade reside nos processos de
composição: de insólitos arranjos sonoros ao pluralinguismo, dos mais ousados
Assis Brasil (1994), em um estudo direcionado à poesia maranhense no século
XXI, encontra em Sousândrade, como muitos antes o fizeram, um poeta futurista,
projetado para além de seu tempo e ressalta que o poeta não foi esquecido em seu
estado, pois alguns jornais da época publicavam seus poemas. O poeta lamenta a
corrupção e omissão dos líderes políticos, destoando do eixo temático proposto pelo
Romantismo, sua obra atinge a geração seguinte, ou o segundo ciclo da literatura de sua
época. Sua participação como presidente de honra das Oficinas dos Novos, mostra que o
poeta, em seu estado de origem, não foi tão esquecido. BRASIL destaca que:

Sousândrade, que, se não influenciou decididamente seus pares ou os


contemporâneos geracionais, serve de pêndulo e medida para a poesia
maranhense que se desenvolveria desde então. Poeta prolifero, trabalhador
incansável (andarilho no mundo), material e poeticamente deixou uma das
maiores obras de escritor brasileiro, Sousândrade não se aliena com o
sentimento romântico dos primeiros versos, vai mais longe ao se preocupar
com a condição humana, chegando a exaltar o aparecimento da República do
Brasil. (BRASIL, 1994, p.25)

Avançando para a crítica do século XXI, temos Chipiani e Bresciane, que


apontam como foco principal da escrita sousandradina a inclusão do horizonte de
expectativas vivenciado pela poeta. O poeta preenche sua escrita com as experiências
vivenciadas em diversos lugares, abarcando diferentes culturas. Traz à tona a história
por meio de um mergulho no léxico, marcado em diversas línguas o grego, “o latim, o
francês, o inglês, o português, o tupi-guarani, - evidenciando a ascese do homem até o
período moderno, onde terá de inaugurar um mundo novo, o tempo da utopia
republicana e democrática.” (Chipiani & Bresciani, 2002, p.141)
Diante de todo o apanhado crítico realizado para a composição desse artigo
percebemos que a crítica realizada na contemporaneidade tornou-se possível graças aos
estudos realizados por Haroldo e Augusto de Campos e a contribuição de Luís Costa
Lima em Re visão de Sousândrade. No livro, Re visão de Sousândrade, que encontra-se
em sua terceira edição, os irmãos buscam ressignificar as obras do poeta, propondo

828
romper com o “blackout da História. O livro impõe um reexame da crítica de exceção,
que contribuiu para o olvidamento do autor do Guesa. “Uma revisão que, superados os
limites da língua, há de situá-lo em nível internacional no plano dos pioneiros, da poesia
que hoje aceitamos como contemporaneamente válida.” (CAMPOS & CAMPOS, 2002,
p.30)
A antologia alcançou tanta notoriedade que, segundo LOBO (2012) foi
responsável por reacender o nome do poeta. “na década de 1960 o poeta ganhou
notoriedade com a forma aglutinada de seu nome pela repercussão que obteve o
importante livro de Augusto de Campos e Humberto de Campos” (LOBO, 2012, p.10)
O principal objetivo dos críticos, ao repor alguns textos do poeta consistia em propagar
e divulgar suas obras, varrendo seu nome para longe do olvidamento. Apesar do nome
de Sousândrade não ser tão conhecido quanto o de seu conterrâneo Gonçalves Dias,
pode-se reforçar que os críticos cumpriram sua missão, trouxeram à tona o nome do
poeta olvidado e resgataram, ainda que indiretamente, as principais obras de
Sousândrade.

Referências

BOSI, Alfredo – História Concisa da Literatura. 32 ed. São Paulo. 1994.


BRANCO, Camilo Castelo – Cancioneiro Alegre de Poetas Portugueses e
Brasileiros. 1825-1880.
BRASIL, Assis – A Poesia Maranhense do Século XX. 1 ed. Rio de Janeiro. 1994.
CAMPOS, Haroldo de; CAMPOS, Augusto de. Re visão de Sousândrade. 3 ed. São
Paulo. 2002.
CANDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira. 9 ed. Rio de Janeiro. 2000.
CHIPIANI, Ligia e BRESCIANE, Maria Stella. Literatura e Cultura no Brasil:
identidade e fronteiras. 1 ed. São Paulo. 2002.
LOBO, Luisa, Épica e modernidade em Sousândrade. Rio de Janeiro. 2 ed. 1948.
LOBO, Luisa, Tradição e Ruptura: o Guesa de Sousândrade. Rio de Janeiro. 1 ed.
1976.
SOUSA-ANDRADE, Joaquim de. O Guesa. Org. LOBO. Luiza. Rio de Janeiro. 1 ed.
2012.

829
WILLIAMS, Frederick G. Sousândrade: inéditos. São Luis. 1 ed. 1970.

830
OS NOVOS MARGINAIS: POESIA E SLAM NO RIO DE JANEIRO

Fabiana Bazilio Farias1 (UNIGRANRIO/CAPES)2

Resumo: Esta comunicação pretende abordar os novos conceitos de poesia marginal a partir da
relação com a produção artística dos grupos de poetas que performam nos Slams do Rio de
Janeiro. Pretende-se destacar o caráter oral dessas produções, abrindo para uma discussão sobre
o espaço de resistência que a oralidade assume dentro dos estudos literários e sobre a evolução
do conceito de marginal ao longo do tempo.

Palavras-chave: poesia; slam; marginalidade.

Introdução

Este texto, apresentado como comunicação oral dentro do Simpósio “Cânone e


visibilidade: o que precisa ser (re)visto na Literatura?” traz uma das reflexões presentes
na pesquisa no pós-doutorado intitulada “A voz, a palavra e a resistência: relações
poéticas entre Stela do Patrocínio e Carol Dall Farra” que teve início em fevereiro de
2018 no Programa de Pós-graduação em Humanidades Culturas e Arte da
UNIGRANRIO. Essa pesquisa busca investigar a voz como forma de expressão e
ressiginificação. Sendo assim, a partir das investigações sobre a condição periférica e
marginal das poetas estudadas, apresentaremos algumas questões referentes à palavra
marginal na literatura, especialmente relacionada ao contexto do slam no Rio de janeiro
do qual faz parte a poeta Carol Dall Farra.
O conceito de “literatura marginal” tem como marco, no histórico de suas
discussões, a publicação em 1975 do livro 26 poetas hoje que foi organizado pela
pesquisadora e crítica literária Heloísa Buarque de Hollanda. No texto introdutório da
obra, já é possível compreender o que Heloísa Buarque entende por “marginal” naquele
período. Ao referir-se à produção poética presente na antologia, afirma: “Frente ao
bloqueio sistemático das editoras, um circuito paralelo de produção e distribuição

1
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
2
Graduada em Letras (UERJ), Mestre em Literatura Brasileira (UERJ), Doutora em Literatura Comparada
(UERJ) e atualmente é bolsista PNPD/CAPES no Programa de pós-graduação em Humanidades, Culturas
e Artes da UNIGRANRIO. Contato: fabibfarias@gmail.com.

831
independente vai se formando e conquistando um público jovem que não se confunde
com o antigo leitor de poesia” (HOLLANDA, 2007, p. 9).
Nesse sentido, o termo “marginalidade”, nesta primeira acepção, está relacionado à
posição de independência frente ao mercado editorial. A esse sentido do termo
“marginal”, a autora acrescenta características que aludem aos elementos intrínsecos e
extrínsecos do texto literário: participação do autor nas etapas do processo de confecção
e venda do livro; linguagem informal, desierarquização do espaço nobre da poesia; recusa
da literatura classicizante e das vanguardas experimentais (HOLLANDA, 2007).
Quase 50 anos depois do lançamento da antologia, é importante pensar algumas
questões que ainda circundam o conceito de marginal do ponto de vista social e
econômico atravessado ainda por questões de gênero e de raça. Essas discussões se
fortalecem nesta segunda década do século XXI em que presenciamos o crescimento de
uma nova geração de poetas que também se autointitulam marginais e que compõem
diferentes grupos e coletivos que buscam ressignificar o lugar e o rosto da poesia
marginal. E a produção poética do slam está conectada à sua vivência marginal cotidiana
no espaço urbano.

Sobre ser marginal

A poesia representada na antologia 26 poetas hoje é um recorte de uma produção


guiada pela espacialidade, e Heloísa Buarque de Hollanda já se posiciona criticamente na
introdução da obra sobre a questão ao afirmar que:

Esta mostra de poemas não foi feita sem arbitrariedade. Como a circulação da
maior parte das edições é geograficamente limitada e se confina às suas áreas
de produção, não escolhi senão entre os trabalhos que estavam ao alcance de
meu conhecimento. Assim, a grande maioria dos poetas apresentados são
residentes ou publicados no Rio de Janeiro. Além dos limites naturais e
geográficos, outras restrições foram feitas. Como princípio, não quis que esta
antologia fosse o panorama da produção poética atual, mas a reunião de alguns
dos resultados reais significativos de uma poesia que se anuncia já com grande
força e que, assim registrada, melhor se oferece a uma reflexão crítica.
(HOLLANDA, 2007, p. 13)

Mesmo “à margem”, esses poetas representam um espaço não-periférico e de


privilégio quando pensamos na dimensão da cidade e sua organização social: são em sua
maioria homens (os poetas se dividem em 21 homens e 5 mulheres), brancos e de classe

832
média que se reuniam e circulavam na Zona Sul do Rio de Janeiro. Pela amostragem da
antologia, se deduz certa predominância de um perfil hegemônico (no que se refere à
condição socioeconômica) do “poeta marginal” dentro de suas diferenças, mesmo
considerando que este retrato de um momento “pode ser desigual, transitório e arriscado”
(COELHO, 2018, p. 3).
Desse grupo, alguns assumiram intensamente (pensando em sua produção futura
ou no espaço que ocupariam na historiografia literária) essa identificação com o que ficou
conhecido como “poesia marginal” ou “geração mimeógrafo”. A partir do exposto,
percebe-se que o conceito de marginalidade assume, neste cenário, uma aura, além
da perspectiva de independência na sua produção, como já citado, de certa performance
juvenil para alguns poetas desse grupo, como afirma o poeta Chacal:

Têm várias leituras desse marginal. Em todas elas a gente se encaixa. Desde a
poesia "oficial", estilisticamente, tematicamente, até a marginalidade em
relação à produção e à distribuição dos livros, que a gente produzia por meio
de mimeógrafos e distribuíamos de mão em mão, nas praças e recitais, até a
postura da gente na vida era marginal, não era nunca de um ser equilibrado, do
sistema. Nós éramos boêmios, alucinados. (CHACAL, s.d.)

Pode-se pensar também em uma “performance da marginalidade” em que o termo


assume para si uma identidade de valoração dentro de um microespaço em que o novo
está em oposição ao velho, representado, nesse caso, pela “caretice” social. “Boêmios e
alucinados”, mas ainda pertencentes a certo espaço privilegiado da cidade, legitimados
pela posição social e, em sua maioria, pela noção de branquidade3. Perto de completar
50 anos do lançamento da antologia 26 poetas hoje cabe trazer a discussão de algumas
dessas contradições sociais e de circulação no território urbano para esta segunda década
do século XXI em que assistimos o fortalecimento de uma nova geração de poetas que
também se autointitulam marginais.
Embora a pesquisadora Heloisa Buarque de Hollanda (s.d.) proponha novas
terminologias para falar desse outro tipo de literatura que surge das vozes das margens
sociais, “literatura de compromisso”, a produção poética do slam está conectada à sua

3
Segundo Camila Moreira de Jesus (2012), a “branquitude passa a ser discutida como um estágio de
conscientização e negação do privilégio vívido pelo indivíduo branco que reconhece a inexistência de
direito a vantagem estrutural em relação aos negros. Já a nomenclatura branquidade, toma o lugar que
até então dizia respeito a branquitude, para definir as práticas daqueles indivíduos brancos que assumem
e reafirmam a condição ideal e única de ser humano, portanto, o direito pela manutenção do privilégio
perpetuado socialmente.” (JESUS, 2012, p. 2).

833
vivência marginal cotidiana no espaço urbano. A questão racial será muito importante
para uma (re)leitura dos sentidos que a expressão poesia marginal abriga. A questão não
deve ser esquecida ou deixada de lado em um debate que fala da produção poética em
uma cidade repleta de territórios marginalizados, de fronteiras sociais e construída sobre
uma herança racial incômoda do período escravocrata. O catalisador para essa reflexão
será justamente esse uso, em momentos distintos (os anos 70 e a segunda década do século
XXI) e de forma variada, do conceito de marginal na poesia. Quem são os autointitulados
marginais de agora? Heloísa Buarque de Holanda, em seu artigo “A questão agora é
outra”, já antecipa uma resposta:

Literatura marginal, periférica, divergente e alguns outros termos pelos quais


é conhecida é uma nomenclatura adequada na medida em que sem sombra de
dúvida essa literatura representa uma parte da cidade até hoje praticamente
desconhecida pelo que até hoje chamamos de centro, um conceito que começa
a ser desestabilizado precisamente pela visibilidade e força simbólica que estão
surgindo com intensidade vinda das periferias. Mas acho marginal ainda pouco
porque não fala dos compromissos que esta literatura assume enquanto agente
de transformação social. É uma literatura que vai bem além das funções sociais
atribuídas à literatura canônica ou mesmo de entretenimento. É uma literatura
de compromisso. (HOLLANDA, 2018)

Ainda falando sobre a literatura que ganha força nos anos 2000, com a publicação
de Capão Pecado pelo escritor Ferrez, Hollanda (2018) já antecipa algumas
características que serão importantes para pensar a marginalidade na segunda década do
século XXI na produção poética dos coletivos de slam do Rio de Janeiro citados. A
acepção de uma “literatura de compromisso” utilizada pela pesquisadora vai de encontro
a certas críticas que esses jovens poetas recebem de produzir uma “literatura panfletária”.
Esse embate surge ainda na matriz de uma discussão vista nos anos 20 do século passado
no surgimento do Modernismo de uma “pureza da arte” em que se cria arbitrariamente
um código de conduta para o poeta e para a poesia.
Como todo movimento que busca questionar certo status quo, a poesia que surge
da laje com o slam laje, das favelas com os poetas favelados ou das vozes-mulheres
(utilizando uma expressão de Conceição Evaristo) que vêm do Slam das Minas, causa
incômodo em quem se nega à discussão de que a poesia, mesmo quando se propõe
transgressora, possui ainda um lugar privilegiado geograficamente dentro dessa cidade
dividida e segregadora. Apesar de algumas semelhanças que podemos estabelecer entre

834
o movimento marginal dos anos 70 e os poetas marginais do slam, não é possível,
contudo, dizer que estão conectados ou que o segundo surge da influência do primeiro.
O termo “marginal” acabou por trazer a questão do ponto de vista da historiografia
literária, mas é preciso ver que essa própria historiografia silenciou e silencia vozes de
poetas negros ao longo da construção do seu cânone e que precisam ainda hoje ser
“resgatados” e causar incômodo na plateia que acusa de que tal obra não é boa suficiente
para estar no panteão da literatura e que sua relevância reivindicada por pesquisadores é
apenas resultado das cobranças dos movimentos identitários.
Nesta mesma abordagem crítica, a linguagem coloquial, vista como libertação da
linguagem poética para determinado grupo, para outro, é vista como desqualificante.
Hollanda já apontava essa questão quando tratava das críticas à obra de Ferrez:

Esses escritores escrevem errado, não apresentam um trabalho pertinente com


a linguagem por falta de domínio da língua, portanto não fazem literatura.
Esses escritores não têm formação literária. Ou seja, não conhecendo os
grandes autores, esses escritores não apresentam nenhuma filiação na série
literária, o que os elimina a uma possível candidatura à sua inserção a médio
prazo no cânone literário. Resumindo: para grande parte da academia e mesmo
da crítica, a literatura marginal não pode criar no trabalho com a linguagem
aquilo que é conhecido como o específico literário. (HOLLANDA, s.d.)

A discussão lembra uma frase marcante que aparece no filme “Estrelas além do
tempo” (2016) baseado no livro Hidden Figures que conta a segregação racial sofrida por
engenheiras negras na NASA durante a Guerra Fria. Em determinado momento, a
personagem Mary Jackson diz, ao ter sua candidatura negada para um programa de
treinamento por uma titulação que só existia em universidades para brancos: “Toda vez
que temos a chance de avançar, eles mudam a chegada”. Mudar a chegada é sempre uma
maneira de tutelar essa poesia, abrindo espaços em que o outro protagoniza e medeia seu
discurso ou impedindo o acesso a certos lugares de privilégio dentro das discussões da
academia.
A oralidade dessas poesias performadas no Slam Laje também traz à tona a
própria hierarquização dos saberes, como expõe a filósofa Djamila Ribeiro ao abordar a
contribuição da feminista negra Lélia Gonzalez à questão:

[...] quem possui o privilégio social, possui o privilégio epistêmico, uma vez
que o modelo valorizado e universal de ciência é branco. A consequência dessa
hierarquização legitimou como superior a explicação epistemológica

835
eurocêntrica conferindo ao pensamento moderno ocidental a exclusividade do
que seria conhecimento válido, estruturando-o como dominante e assim
inviabilizando outras experiências do conhecimento. Segundo a autora [Lélia
Gonzalez], o racismo se constitui “‘como a ‘ciência’ da superioridade
eurocristã (branca e patriarcal)”. Essa reflexão de Lélia Gonzalez nos dá uma
pista sobre quem pode falar ou não, quais vozes são legitimadas e quais não
são. (RIBEIRO, 2017, p. 24-25)

Para além das discussões sobre preconceito linguístico, estamos também falando
do contexto dos poetas do slam sobre um conveniente esquecimento da importância da
oralidade na construção cultural da sociedade. Deslegitimar a produção de conhecimento
de uma intelectualidade periférica que surge de experiências de conhecimento que
nascem de realidades distintas das experimentadas pelo saber acadêmico e/ou da
branquidade é uma das facetas do racismo nessas relações.
Para terminar essa breve reflexão, destacamos o título da fala de MC Martina uma
das idealizadoras do poetas favelados e do Slam laje no TEDEX em 2018: “síndrome do
colonizador”. Esse momento de grande visibilidade que os poetas marginais e que
performam no slam ganham na academia, nas pesquisas é bastante rico, mas também é
precio problematizar certa utilização desses poetas, como a Martina afirma, para
performar “militância”, “sororidade”, “lacre”. Discursos que se chocam com a prática. E
talvez essa deva ser a reflexão também para e sobre a academia: o quanto nos interessa
que os marginais continuem à margem para atender a esse fetiche que vez ou outra surge
na historiografia literária?

Referências:
BALBINO, Jéssica. Pelas margens: vozes femininas na literatura periférica.
Campinas, 2016. Dissertação de Mestrado. 185p.
CHACAL, R. “Chacal, o guerrilheiro cultural > Geração Mimeógrafo”. [s.d]. São Paulo:
Revista Bolsa de mulher. Entrevista. Disponível em
<https://www.vix.com/pt/bdm/estilo/chacal-o-guerrilheiro-cultural-2>.
https://www.youtube.com/watch?v=QNJL6nfu__Q COELHO, Frederico. Quantas
margens cabem num poema”

836
DALL FARRA, Carol. “A poesia de Mc Dall Farra”. Canal Mulheres de Luta. 11 set.
2017. Disponível em https://youtu.be/vd3KuMD90pg. Acesso em 10 nov. 2017.
DALL FARRA, Carol. “Slam das Minas RJ – final 2017 – Carol Dall Farra”. Canal Slam
das Minas RJ. 08 out. 2017. Disponível em https://youtu.be/DbQXy_jcCXE. Acesso em
10 nov. 2017.
ESTRELAS além do tempo. Direção de Theodore Melfi. Estados Unidos: Fox 2000
Pictures, 2016. 1 DVD (127 min.), son., color.
HOLLANDA. Heloísa Buarque. 26 poetas hoje. Rio de Janeiro: Editora Aeroplano, 2007.
______. “A questão agora é outra”. [s.d.]. Disponível em:
<https://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/a-questao-agora-e-outra/>. Acesso em
14 jun. 2018.
JESUS, Camila Moreira. “Branquitude x Branquidade: uma análise conceitual do ser
branco”. 2012. Disponível em: https://www3.ufrb.edu.br/ebecult/wp-
content/uploads/2012/05/Branquitude-x-branquidade-uma-ana-%C3%83%C3%85lise-
conceitual-do-ser-branco-.pdf. Acesso em 11 jun. 2018.
MÜLLER, T. M. P., CARDOSO, L. Branquitude: Estudos sobre a Identidade Branca
no Brasil. Curitiba: Appris, 2017.

837
LITERATURA DE CORDEL: POÉTICAS DA MOVÊNCIA POR ENTRE AS
RASURAS DO CÂNONE

Fernanda Santos de Oliveira (IFBaiano/UFBA)1

Resumo: No âmbito desta pesquisa, pretende-se discutir sobre as rasuras provocadas no cânone
da literatura brasileira a partir da produção de cordéis de autoria feminina. Para tanto, serão
analisados cordéis de autoria de Jarid Arraes e de Izabel Nascimento com o intuito de
reconhecer o potencial epistemológico de tais produções, suas estratégias contra a
invisibilização e sua capacidade de rasurar as fronteiras do literário. Jarid Arraes, cearense, tem
se destacado ao subverter a tradição do campo da literatura de cordel propondo novas
perspectivas temáticas, enquanto Izabel Nascimento, sergipana, empreende diálogos entre a
literatura de cordel e o ensino, com intensa atuação nas redes sociais.
Palavras-chave: Literatura de cordel; Cânone; Rasuras; Visibilidade.

Então, é assim que se cria uma única história:


mostre um povo como uma coisa, como somente
uma coisa, repetidamente, e será o que ele se
tornará. É impossível falar sobre única história
sem falar sobre poder. (ADICHIE, 2009)

Discutir sobre cânone e visibilidade exige percorrer por caminhos perigosos que
foram traçados ao longo da chamada “tradição” literária, desvendando as estratégias de
fixação de uma “história única”, conforme a epígrafe acima de Chimamanda Adichie.
Se por um lado, houve a reiteração de um discurso persistente e perverso para dominar o
“outro”, refletir sobre o cânone na literatura brasileira requer uma análise crítica a
respeito das histórias que foram fixadas e consagradas ao longo do tempo.
Para tanto, é imprescindível reconhecer que esse processo de fixação
hierarquizante de autores e obras literárias é regido por um viés seletivo e excludente.
Tratar acriticamente, portanto, da formação e da história da literatura é traçar um
caminho condizente com uma lógica que atende aos princípios e paradigmas de uma
tradição que se constituiu de forma homogênea e elitista. Se por um lado, um caminho
foi traçado, por outro há muitos outros a serem desvendados por terem sido anulados
nesse processo de constituição de uma história única. Sobre essa questão, Adichie
enfatiza o modo como tal processo está emaranhado com a “habilidade” do poder:

Poder é a habilidade de não só contar a história de outra pessoa, mas de fazê-


la a história definitiva daquela pessoa. O poeta palestino Mourid Barghouti
escreve que se você quer destituir uma pessoa, o jeito mais simples é contar
sua história, e começar com “em segundo lugar”. Comece uma história com

1
Graduada em Letras – Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa (UNEB), Mestra em
Estudo de Linguagens (UNEB), Doutoranda em Literatura e Cultura (UFBA), Técnica em Assuntos
Educacionais (IF Baiano). Contato: fer_soliveira@hotmail.com.

838
as flechas dos nativos americanos, e não com a chegada dos britânicos, e
você tem uma história totalmente diferente. Comece a história com o fracasso
do estado africano e não com a criação colonial do estado africano e você tem
uma história totalmente diferente. (ADICHIE, 2009)
A habilidade do poder, portanto, possui um caráter de dominação do outro ao
fixar sua história de forma exclusiva. Nesse sentido, constituir um quadro panorâmico
da nossa historiografia literária é assumir uma perspectiva que pode ser excludente,
seletiva e perigosa. Para se estabelecer e fixar um cânone é preciso orientar-se por
critérios que direcionam para uma rota que pode visibilizar alguns em detrimentos de
outros. Conforme Djamila Ribeiro,
o lugar que ocupamos socialmente nos faz ter experiências distintas e outras
perspectivas. A teoria do ponto de vista feminista e lugar de fala nos faz
refutar uma visão unilateral de mulher e de negritude, e outras identidades,
assim como faz com que homens brancos racializem, entendam o que
significa ser branco como metáfora do poder […] Ao promover uma
multiplicidade de vozes o que se quer, acima de tudo, é quebrar com o
discurso autorizado e único, que se pretende universal. Busca-se aqui,
sobretudo, lutar para romper com o regime de autorização discursiva.
(RIBEIRO, 2017, p. 69-70)

A partir de experiências múltiplas, as histórias são contadas de diferentes formas


em contraponto à unilateralidade. Rasurar o monopólio discursivo e totalizante é
imprescindível para a ruptura de uma suposta homogeneidade literária. A literatura de
cordel que esteve invisibilizada nas listas de autores e obras do cânone demanda por
uma revisão da concepção de literatura de modo a reordenar o campo literário
ampliando suas fronteiras ao promover deslocamentos e desestabilização que
evidenciam suas limitações. A historiografia literária atende a uma perspectiva voltada
para manutenção de privilégios de uma parcela que se apresenta com a capacidade de
representação do país, desconsiderando a diversidade de produções em toda sua
multiplicidade.
Para além de uma cronologia linear da historiografia literária, é preciso
empreender um olhar crítico a respeito das construções de discursos sobre a literatura
enfatizando as relações do poder cultural sobre os meios de produção discursiva –
determinante para a fixação de juízos de valor e para o estabelecimentos de binarismos.
Se para a construção do cânone nacional, foi preciso fixar nomes, obras e imagens que
corresponderiam a uma suposta autenticidade brasileira é necessário evidenciar as
imbricações entre literatura, representação e autenticidade.

839
Quais representações são autenticamente brasileiras? O que é ser autêntico? A
quem interessa a construção de alegorias da representação nacional? Quais são os
mecanismos de legitimação de tais discursos imagéticos? Estas noções de autenticidade,
de representação nacional e de legitimação estão relacionadas com o cânon, cujo
conceito é retomado por Reis:
O termo (do grego “kanon”, espécie de vara de medir) entrou para as línguas
românicas com o sentido de “norma” ou “lei”. Durante os primórdios da
cristandade, teólogos o utilizaram para selecionar aqueles autores e textos
que mereciam ser preservados e, em conseqüência, banir da Bíblia os que não
se prestavam para disseminar as “verdades” que deveriam ser incorporadas
ao livro sagrado e pregadas aos seguidores da fé cristã. O que interessa reter,
mais do que uma diacronia, é que o conceito de cânon implica um princípio
de seleção (e exclusão) e, assim, não pode se desvincular da questão do
poder: obviamente, os que selecionam (e excluem) estão investidos da
autoridade para fazê-lo e o farão de acordo com os seus interesses (isto é: de
sua classe, de sua cultura, etc). Convém atentar ainda para o fato de que o
exercício desta autoridade se faz num determinado espaço institucional (no
caso, a Igreja). (REIS, 1992, p. 4)

A partir de normatizações e convenções, uma tradição de autores e obras foram


“preservadas” como uma herança para a posteridade ao passo que outros foram
excluídos e ignorados. De acordo com Reis (1992, p. 6), “autoridade (e autor) está
etimologicamente engatado ao latim auctor, termo que, na Idade Média, designava o
escritor cujas palavras impunham respeito e credibilidade”. Nesse sentido, entre
anulações e apagamentos impostos pela tradição literária e as estratégias do (re)existir
da instância autoral, de que forma a literatura de cordel de autoria feminina, que por
entre narrativas moventes, demanda por um novo redimensionamento do campo
literário?
“Demandamos assistência/ Nós queremos atenção/ Já que essa Lei vigente/ De
Acesso à Informação/ É direito das mulheres/ Do governo, obrigação” (ARRAES, s/d,
p. 3). É assim que Jarid Arraes reivindica poeticamente atenção para os direitos das
mulheres. Neste estudo, parte-se do pressuposto de que as produções de cordéis de Jarid
Arraes e Izabel Nascimento empreendem uma literatura-movente que a partir das
perspectivas de mulheres que lampejam perspectivas múltiplas promovem revisitações
no campo. Por isso, a importância de verificar como esta produção posiciona-se nesse
jogo de forças no qual a linguagem se constitui como uma ferramenta que pode ser
usada para manutenção do modelo hegemônico ou para contrapor-se aos discursos da
exclusão. Dalcastagnè (2012, p. 17) enfatiza que “cada vez mais, os estudos literários (e

840
o próprio fazer literário) se preocupam com os problemas ligados ao acesso à voz e à
representação dos múltiplos grupos sociais”. Problematizar as instâncias legitimadoras,
seus discursos e critérios de valoração é primordial no trabalho com a linguagem
literária pelo fato de se configurar como um possível instrumento de dominação na
tentativa de impor uma hegemonia cultural a partir da negação de vozes múltiplas que
lutam por espaços de legitimação social enfatizando o quanto a linguagem constitui-se
como um campo de luta política.
Dalcastagné (2012, p. 17) ressalta que os estudos literários “se tornam mais
conscientes das dificuldades associadas ao lugar de fala: quem fala e em nome de
quem.” Acrescenta ainda que “está em questão a diversidade de percepções do mundo,
que depende do acesso à voz e não é suprida pela boa vontade daqueles que
monopolizam os lugares de fala”. (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 18). É neste sentido que
este trabalho tem por objetivo propor uma abordagem da obra de Jarid Arraes e de
Izabel Nascimento a partir da análise de seus cordéis com ênfase na relação entre a
literatura, a cultura e o cânone. Narrativas poéticas que redimensionam as marcas da
partilha de experiências a partir da tradução de subjetividades outras. A cada página
virada do folheto de cordel, a luz pulsante e intermitente que rasura as fronteiras e
alargam os olhares para o campo literário.
Nesse processo de rasuras literárias, como se inserem as autoras Jarid Arraes e
Izabel Nascimento? Jarid Arraes, escritora, poeta e cordelista de Juazeiro do Norte, do
estado do Ceará, tem se destacado ao subverter a tradição do campo da literatura de
cordel com o ativismo nas questões de misoginia, racismo e direitos LGBT. Ela é
curadora do selo literário Ferina que tem por finalidade a descoberta de autoras
brasileiras e criou o Clube da Escrita Para Mulheres, em São Paulo. Publicou diversos
artigos como jornalista da coluna “Questão de Gênero”, na revista “Fórum”,
problematizando o machismo e o racismo impregnados nas páginas da historiografia
brasileira oficial, como se pode observar no cordel intitulado “Informação contra o
machismo”:

O machismo só existe
Se não há educação
É na falta abrasiva
Da melhor informação
Pois só na ignorância
Ele encontra vocação

841
Por isso faço um apelo
Para quem estiver lendo
Não se cale nem permita
Que isso continue sendo
Um problema de silêncio
Que o país vai corroendo.

Solte a voz para falar


Sem receio, seja forte
Dissemine a informação
Transformando essa sorte
Das mulheres brasileiras
Sejam do sul ou do norte.

(ARRAES, s/d, p. 6-7)

Por meio de um tom de denúncia contra o machismo, Jarid Arraes apresenta a


temática a partir de uma perspectiva que rompe com a tradição na literatura de cordel
predominantemente de autoria masculina. O eu poético faz uma apelo aos leitores para
que seja quebrado o silêncio e soltarem a voz sem receio. Trata-se de um eu que,
sobretudo, solta sua voz ao apresentar a temática do machismo em um contexto,
predominantemente, machista. A literatura de cordel de autoria feminina é o grito de
vozes que destoam da tradição, mas que são “fortes”.
Izabel Nascimento, cordelista, pedagoga e docente sergipana, atua na Rede
Pública de Ensino de Maruim-SE. Sua trajetória profissional é marcada com o trabalho
de cordel em sala de aula e com o desenvolvimento de pinturas muralistas que têm
como fonte de inspiração as xilogravuras dos folhetos de cordel. Atualmente, é
Presidente Fundadora da Academia Sergipana de Cordel, coordena as atividades
culturais da “Casa do Cordel – Espaço Cultural Pedro Amaro do Nascimento” e
ministra palestras, além de forte atuação nas redes sociais. Izabel Nascimento também é
responsável pelo projeto “Cordel de Quinta”, uma transmissão às quintas-feiras ao vivo
pelo Facebook, no qual declama versos e presta homenagens aos cordelistas brasileiros.
É possível, portanto, subverter a tradição a partir das produções literárias de Jarid
e Izabel? Como pensar nos folhetos de cordel a partir da trajetória docente de Izabel e
da atuação como militante feminista de Jarid? Como conceber suas escritas múltiplas
que se fazem e se (re)fazem nos movimentos entre o literário, a sala de aula e a
militância? Pensar na autoria como uma instância de passagem, como bem salienta
Evando Nascimento, pode ser um caminho. Seus rastros entre o literário, a militância e
a docência. Seus limiares entre os diferentes formatos e suportes. Suas configurações

842
entre o oral e a escrita, entre a voz e o impresso, entre o corpo e o papel. Analisar a
historiografia do cordel possibilita a reflexão sobre a frouxidão das fronteiras que são
demarcadas pelas instâncias legitimadoras do fazer literário.
Quais são as outras pessoas discursivas e empíricas presentificadas no eu que
escreve? Como se configuram o eu-Jarid e o eu-Izabel? De acordo com Nascimento
(2011, p. 12), “o autor é um dispositivo tanto pessoal quanto impessoal, no limite do
anonimato”. Um dispositivo que transita em lugares difusos, metamorfoseando-se e
reinventando-se. E, nesse travestismo autoral o eu que deseja ser o outro lança-se numa
dinâmica de outramento no processo de configuração do eu na escrita.
A constituição da instância autoral na literatura de cordel mostra-se performática e
elástica, de modo que o “arquivo literário se encontra irrevogavelmente conectado a
esse grande acervo, não só porque muitas obras podem ser lidas, consultadas ou
baixadas da rede, mas porque os escritores de hoje se formam cada vez mais nessa
conexão mundial dos computadores”. (NASCIMENTO, 2011, p. 12). Nessa
flexibilidade em reinventar-se, alarga as possibilidades de inscrição da literatura que
transita entre a escrita e a oralidade abalando fronteiras, propiciando deslocamentos e
rasurando concepções reducionistas:
Nossa, suicídio de carreira, é bem isso! Porque as pessoas estão habituadas a
ler você de uma forma. E elas gostam de você por isso. Elas curtem seu
estilo, as coisas que você diz e inventa, a sua forma de escrever. De repente,
você faz algo que não tem muito a ver (ou nada a ver) com o que tem feito há
anos! Quem será que fica, quem vai embora, quem chega? Eu confesso que
estou empolgada por isso. (ARRAES apud SECHES, 2017, não paginado).

Entre quem fica e quem vai embora, situa-se uma instância de passagem na qual
cabe o pessoal e a impessoalidade, a evidência do eu e o seu anonimato. Um trânsito
discursivo que se move no versejar com toda a expressividade de uma performance
elástica.
No avesso das assimilações impostas pela tradição, a literatura de cordel
desestabiliza a “ordem” legitimada e promove rasuras no campo. Para tanto, é preciso
reconhecer seu potencial, recusar estereótipos e confrontar os discursos prepotentes e
reducionistas. Conforme Adichie (2009), a “ 'única história cria estereótipos'. E o
problema com estereótipos não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam
incompletos. Eles fazem uma história tornar-se a única história”.

843
A literatura de cordel é literatura brasileira que resiste apesar das estratégias de
invisibilidade, anulações e apagamentos. Insere-se no “território contestado”, expressão
cunhada por Regina Dalcastagnè, confrontando, desestabilizando e inscrevendo novas
rotas de leitura, de escrita, de literatura. Veículo de um saber movente que reconfigura a
poética por meio da vocalidade, da performance, da migração de suportes e da
extrapolação de perspectivas sociais. No cordel intitulado “Lugar de Mulher”, Izabel
Nascimento extrapola a instituição de espaços poeticamente:

Na cozinha ou na varanda
No júri ou na Presidência
Nos caminhos da ciência
No filme ou na propaganda
No Candomblé, na Umbanda
Na balada, se quiser
Na rota que lhe aprouver
Na Marinha ou na Igreja
E qualquer lugar que seja
É lugar de uma mulher.

(NASCIMENTO, 2018, p. 44)

Ao longo da tradição literária, buscou-se por um único perfil de personagem capaz


de representar o todo plural, foram narrados modos de viver como se fossem únicos e
exclusivos, alguns espaços foram visibilizados como dignos, outros foram relegados ao
“despejo” da sociedade. Numa perspectiva revisionista da literatura, é necessário
problematizar a incompletude de muitas concepções de modo a reconhecer os fazeres
literários não legitimados.
Trata-se da ampliação de perspectivas e de reconhecimento de pontos de vista
diversos, uma vez que as “histórias importam. Muitas histórias importam. Histórias têm
sido usadas para expropriar e tornar maligno. Mas histórias podem também ser usadas
para capacitar e humanizar”. Acrescenta ainda que “histórias podem destruir a
dignidade de um povo, mas histórias também podem reparar essa dignidade perdida”.
(ADICHIE, 2009). Estabelecer um modo de fazer literatura como referência é uma das
formas de exercer o domínio sobre o outro. Ao eleger, portanto, a cultura
escriptocêntrica como sinônimo de civilização e superioridade relega as poéticas e
narrativas orais à deslegitimação.
Nesse sentido, o que o termo “literatura” abarca? E o que ele exclui? O processo
de constituição de sua noção é entremeado por relações de poder de forma que é preciso

844
problematizar a formação do cânone. Os saberes e as hipóteses interpretativas estão
atreladas ao poder, de modo que o processo de atribuição de sentidos está inscrito
historicamente. O discurso dominante torna-se padrão. E, assim, o que se considera
“literatura brasileira” corresponde às narrativas da elite hegemônica, veiculando
ideologias e um único modo de vida, considerando que,
a linguagem também hierarquiza e engendra em seu bojo mecanismos de
poder, na medida em que ela articula e está articulada pelas significações
forjadas no seio de uma dada cultura, no interior da qual, como ficou dito, as
ideologias estão operando para garantir a dominação social. As sociedades
que têm escrita usaram e abusaram do alfabeto como forma de subjugar as
culturas “ágrafas” e esta foi uma das maneiras como, por exemplo, os
europeus colonizaram os povos do chamado Terceiro Mundo. (REIS, 1992,
p. 2)

As interpretações das narrativas literárias, ao longo do tempo, têm servido à


manutenção de um sistema de poder que, perversamente, anula qualquer contra-
narrativa que fogem aos seus moldes. O cânon é constituído a partir de uma seleção de
obras e autores sem nenhuma abordagem histórica, sustentando-se em pressupostos
estéticos. O que é o intrínseco do texto literário? As noções e conceitos são concebidos
para atender interesses ideológicos. Por isso, é imprescindível reconhecer a importância
da contextualização dos estudos literários enquanto práticas sociais.
São várias as instâncias legitimadoras do cânon literário: a escolarização da
historiografia literária, os meios de produção discursiva, as bibliotecas, as mídias, a
academia, entre outras. E, assim, a literatura tem sido instrumento de veiculação de
modos de vida, de valores, de preconceitos e de hierarquização. O cânon é constituído
de obras ocidentais de autoria masculina, branca e elitista, privilegiando a cultura
escriptocêntrica e ignorando diversas perspectivas sociais. Porém, como Jarid Arraes
ressalta: “A partir do movimento/ O discurso se espalha/ Atingindo muita gente/ A
verdade que não falha/ Remexendo a estrutura/ O machismo se chacoalha”. (ARRAES,
s/d, p. 4).
Para problematizar e questionar o cânon, é preciso extrapolar o intrínseco do texto
e situá-lo historicamente. É ler o texto em sua emaranhada rede de conexões. Reis
(1992) propõe promover uma desconstrução do cânone apostanto em outros modos de
ler que insiram as obras e autores no contexto histórico. A partir do estabelecimento de
contra-narrativas e contra-leituras, o campo literário que normatiza e controla é
desestabilizado. Para tanto, é de fundamental importância questionar os paradigmas

845
teórico-metodológicos, estéticos e ideológicos. Mais do que buscar respostas, que são
sempre provisórias e, por isso, instáveis, é necessário indagar as verdades absolutas, os
modelos inquestionáveis e estabelecer contrapontos:
Seria o caso de perguntar, então, quem articulou o cânon – de que posição
social falava, que interesses representava, qual seria seu público-alvo e qual a
sua agenda política, qual o seu estatuto de classe, de gênero ou étnico, por
quais critérios norteou a sua eleição e rejeição de obras e autores. A noção de
valor e a atribuição de sentido não são empresas separáveis do contexto
cultural e político em que se produzem, não podendo, por conseguinte, ser
desconectadas de um quadro histórico. O significado de qualquer juízo de
valor sempre depende, entre outras coisas, do contexto em que for emitido e
de sua relação com os potenciais destinatários e a sua capacidade de afetá-los
ou mesmo convencê-los. (REIS, 1992, p. 6)

À sombra de um viés nacionalista e modernizante, foi traçada a historiografia


literária tradicional. Numa perspectiva totalizante, a historiografia tenta criar um aspecto
de homogeneização, camuflando a pluralidade de perspectivas e a diversidade que se
manifesta no fazer literário. E, assim, a literatura consagrada tem servido à elite para o
exercício e expansão do poder. Em contraponto, Jarid Arraes problematiza:

Tem ainda quem duvida


E questiona a existência
Não enxerga esse machismo
Que não concede clemência
E por ser desinformado
Perde então a coerência.

Mas eu posso explicar


A verdade disponível
É possível comprovar
Esse mal perceptível
Até mesmo no papel
Seu retrato é terrível.

(ARRAES, s/d, p. 2)

Repensar a historiografia literária, portanto, é expor suas contradições e seus


efeitos de anulação e apagamento de diversos grupos sociais. Ao privilegiar o caráter
estético-estilístico da literatura, a historiografia tradicional dos “estilos de época” reduz
a análise ao texto como uma entidade autonôma e dissociada do seu tempo-espaço. Por
outro lado, inserir as obras em seu contexto de produção, circulação e consumo é
possível desvencilhar seu emaranhado de imbricações culturais, sociais, políticas e
históricas. Como enfatiza Dalcastagnè (2012, p. 43), “ao lado da discussão sobre o lugar
da fala, seria preciso incluir o problema do lugar de onde se ouve. Afinal, é daí que a
literatura recebe sua valoração”.

846
Para além da demarcação de fronteiras, o cerne dos estudos literários reside no ato
de interpretar. E, para tanto, é preciso considerar os aspectos inerentes à coerência
interna do texto, assim como seus atravessamentos com o tempo, o social, a cultura, o
espaço, a história e o político. O texto literário não só representa, mas institui
realidades:

Pra mulher de todo jeito


Lei de Acesso à Informação
Dando pra cada contexto
A mais séria atenção
Seja negra, índia ou branca
Em política união.

Educando e informando
Vamos sempre em união
Com coragem e ousadia
Fazendo a revolução
Da mulher empoderada
Filha da libertação.

(ARRAES, s/d, p. 8)

No traçado de suas narrativas, a literatura demarca fronteiras ao hierarquizar o


espaço-tempo ficcional quanto às questões raciais, sociais, sexuais e de gênero. A
literatura de cordel, “fazendo revolução”, evidencia um enorme potencial de
reconfiguração ao longo do tempo com as transformações de suportes: do oral, da
imprensa às mídias da contemporaneidade, de modo que se constitui numa manifestação
artística que vem apresentando uma elasticidade ao se atualizar nos mais distintos
formatos e linguagens. Ao explorar a voz e o corpo, a literatura de cordel traduz-se
numa narrativa poética da vocalidade e da performance, perversamente anuladas da
historiografia literária marcada por uma perspectiva escriptocêntrica e androcêntrica.
Portanto, o que precisa ser (re)visto na literatura? É possível apontar para alguns
caminhos. Um deles, discutido por Dalcastagnè (2012, p. 21), trata-se de um
“movimento, abertamente político, de crítica e legitimação”. A autora destaca a análise
do modo como “escritores, já 'autorizados', colocaram-se a falar dos marginalizados
[…] quanto as estratégias utilizadas por aqueles autores que, provenientes das margens
do campo literário, tentam inscrever nele sua perspectiva e sua dicção”.
(DALCASTAGNÈ, 2012, p. 21).
A literatura de cordel de Jarid Arraes e de Izabel Nascimento apresenta uma força
vibrante que a impulsiona para outros suportes e migrações artísticas, como folhetos,

847
livros e internet. Autoras que se reinventam ao ficcionalizar explorando a multiplicidade
do cordel, seja no âmbito social, seja no plano da narrativa. Cordéis que cintilam no
presente a sobrevivência sensível de mulheres que resistiram a truculência da tradição
literária, efetuando a arte do cordelizar contra as estratégias de invisibilização.
A partir da análise dos repertórios imagéticos, enunciativos e expressivos
presentificados nas narrativas poéticas dos cordéis, conclui-se que Jarid Arraes e Izabel
Nascimento empreendem uma literatura-movente que traduz subjetividades outras.
Afinal, as armadilhas de ofuscamento impostas pela tradição literária são perversas, mas
o sonho da sobrevivência de poéticas múltiplas resiste.

Referências

ADICHIE, Chimamanda. O Perigo de uma História Única. Vídeo da palestra da


escritora nigeriana no evento Tecnology, Entertainment and Design (TED Global 2009).
Disponível em:
<https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story/transc
ript?language=pt>. Acesso em: 10 abr. 2019.

ARRAES, Jarid. Informação contra o machismo (Folheto de cordel).

DALCASTAGNÉ, Regina. Literatura brasileira contemporânea – um território


contestado. Vinhedo: Editora Belo Horizonte, 2012.

NASCIMENTO, Evando. Retrato do autor como leitor. Conferência realizada no


Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo, em
06 de outubro de 2011.

NASCIMENTO, Izabel. Sementes de Girassóis. Aracaju: Editora Diário Oficial do


Estado de Sergipe – Edise, 2018.

REIS, Roberto. Cânon. In: JOBIM, José Luiz (Org). Palavras da crítica: tendências e
conceitos no estudo da literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992. p. 65-92.

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?. Belo Horizonte: Letramento: Justificando,


2017.

SECHES, Fabiane. De escritora para escritora: uma conversa com Aline Valek e Jarid
Arraes (entrevista Literatura). In: Valkirias. 2017. Disponível em:
<http://valkirias.com.br/de-escritora-para-escritora-uma-conversa-com-aline-valek-e-
jarid-arraes/>. Acesso em: 10 abr. 2019.

848
ABRE A BOCA, DEUSA1: O TRANSBORDAMENTO DOS ESTADOS
PULSIONAIS INCONTORNÁVEIS EM ANGELA MELIM E LAURA ERBER

Juliana Carvalho de Araujo de Barros


(UNIP)2

RESUMO: Pretendemos, para pensar o cenário poético dos anos 2000, fazer uma
leitura de Angela Melim e Laura Erber. Apesar de Laura Erber e Angela Melim
movimentarem-se poeticamente de formas parecidas, suas obras poéticas são distintas.
Melim é uma poeta ligada à poesia escrita. Ela lança seu olhar ao mundo, deformando
as imagens ordinárias para fundar um novo mundo, fundar o mundo através do
devaneio. Erber é uma artista que transita por diversas áreas de linguagem artística,
como a dos poemas, da prosa, de vídeos e fotomontagens, de instalações. Tais poetas
são importantes para a reflexão da imagem do poeta hoje, as mudanças de cenário da
poesia (1968-2008), as novas práticas literárias e suas relações com o espaço canônico.

Palavras-chave: Poesia contemporânea; Angela Melim; Laura Erber.

Introdução
Observamos, na produção poética contemporânea, em específico a primeira
década dos anos 2000, uma confluência de linguagens, emaranhado de formas e
temáticas sem estilos ou referências definidas. Há uma pluralidade de vozes. Quanto à
presença feminina, notamos um crescimento definitivo na produção literária em relação
à década anterior, quase equivalência com os homens. A presença negra também
apresenta maior nitidez neste cenário. A marca identitária, afirmativa e posicional das
minorias vai permitir o desenvolvimento de novas dicções de gênero e etnia. Há
também uma mudança na composição social destes poetas: número crescente de poetas
provenientes de periferia ou subúrbios. Novos movimentos editoriais surgem:
intensificação do movimento editorial em favelas; lançamento de publicações destes
novos produtores de poesia; internet como meio de circulação da produção de minorias
(mulheres, negros, grupos jovens, poetas ligados ao MST); surgimento de pequenas
editoras, produzindo um catálogo considerável de títulos de poesia; aparecimento de
novas revistas. A poesia passa a circular num espaço mais livre, mais alijada de todos os
gêneros. Desvantagem que traz uma vantagem: independência em relação às pressões

1
Verso de Angela Melim. A presente pesquisa começou na iniciação científica e se desdobrou no
mestrado, sob orientação da professora Dra. Ana Cristina de Rezende Chiara
2
Graduada em Letras pela UERJ. Mestre em Literatura Brasileira e doutora em Literatura Comparada
pela UERJ. Atualmente é professora titular de Literatura na UNIP – Brasília. Contato:
jucarvalho0301@gmail.com.

849
do mercado. As barreiras que separam a cultura alta, a de massa e a popular sofrem
rápido processo de erosão. Os anos 70 já haviam desestabilizado as hierarquias no
campo literário, ressemantizando-o. A poesia passa a se articular com várias mídias. A
distinção entre poesia escrita, cantada e visual não se sustenta mais. A nova poesia tem
uma natureza híbrida.
Propomos, neste artigo, a reflexão acerca das possíveis imagens do poeta no
primeiro decênio do século XXI, bem como a investigação desta poética.
Contrariamente ao observado na década de 70, quando, apesar da diversidade estética,
havia um reconhecimento do poeta, que se confundia com o movimento de
contracultura, o poeta era identificado como do contra, indagamos se esse tipo de
identificação é cabível. Perdemos o contorno da imagem do poeta. Na geração 90,
tínhamos um poeta letrado, que investia na recuperação do prestígio e no trabalho
formal e técnico com a literatura, veiculada por suportes diversificados, com questões
também múltiplas.
Pretendemos refletir acerca das seguintes questões a respeito da figura do poeta e
do poema: Como um poeta atinge sua época? Por quê? Para quê? Haveria questões do
“nosso tempo” seriam imprescindíveis no poema? Haveria “um modo de usar” ser poeta
ou de “ousar ser poeta”. Para tanto, fez-se um levantamento contextual das mudanças
ocorridas no período 1968-2008, a partir de uma abordagem comparativa, entre algumas
ocorrências poéticas reunidas nas antologias de Heloísa Buarque de Hollanda (26 poetas
hoje, Esses poetas e Enter).
Na introdução de Esses poetas, Hollanda reflete:

[...] diante de qualquer formação de consenso a respeito de quedas de


vitalidade na produção cultural, sinto-me impelida a organizar uma antologia
de novos poetas. De tempos em tempos, portanto, me surpreendo engajada no
processo de identificar sinais do que poderia ser um novo momento literário
ou poético. Sei também que é mais ou menos assim que assisto e colaboro, às
vezes até a contragosto, com alguns impulsos canônicos que vão se firmando
nesse horizonte ainda relativamente impreciso. [...] HOJE Já não me povoa
mais o propósito de identificar movimentos ou tendências através de uma
seleção objetiva na produção poética de uma época. Meus próprios
parâmetros de trabalho, como, por exemplo, a ideia de periodização, vem
demonstrando uma fragilidade conceitual irreversível. Até mesmo a noção de
valor estético, nestes últimos tempos, foi desestabilizada em função das
interpelações sobre sua legitimidade ética e literária promovidas pelos grupos
off canone. Sabemos hoje, com razoável convicção, que o interesse maior
que os critérios literários disponíveis podem nos oferecer dizem respeito ao
entendimento de sua natureza contingencial e histórica. Assim, a reunião dos

850
poetas que compõem esse volume não se pretende uma amostragem exemplar
da poesia de um período ou de uma geração. Ao contrário, procurei investir
no caráter autoral desta seleção e no fato de que o que esta antologia expõe
na realidade são apenas algumas afinidades eletivas de seu antologista.
(HOLLANDA, 1988)

Dessa forma, pretendemos investigar poetas que ficaram de fora destas


antologias. Poetas que são representativos de seu tempo, que possuem uma obra com
inquestionável valor estético.
Quanto à Angela Melim e à Laura Erber, escritoras em que nos detivemos mais
estreitamente, uma das questões muito relevantes em suas obras é a transição entre o
lugar e o não-lugar. Poderíamos dizer que neste entre-lugar acontece o
redimensionamento do sujeito, é ali que ele se transforma, com ímpeto ou espanto.
Apesar de representações literárias distintas – Erber passeia por diferentes suportes
literários e Melim é uma poeta exclusivamente “do papel”, as poetas são fundamentais
para a reflexão da imagem do poeta na primeira década dos anos 2000, as mudanças de
cenário da poesia (1968-2008) e as novas práticas literárias.

Angela Melim: um convite à viagem


O verdadeiro poeta é aquele que nos inspira.
Paul Valéry

Em Possibilidades (2006), último livro publicado por Angela Melim,


encontramos uma poeta menos ligada a questões específicas de uma época, como, por
exemplo, a dos anos 60, 70, que é o caso de vários poemas da coletânea Mais dia menos
dia (1996). Possibilidades nos apresenta uma poeta menos identificada com uma
coletividade, encontramos uma “fragilização de tradicionais cronotopos identitários
modernos” (ALVES, 2007, p. 41).
Em “Por mais que cicie”, vemos cavalgar o cavalo indomável de Claricei no
universo da poesia de Angela, “palavra não doma este potro/ intratável”, mas “tanto
faz”. As palavras vêm à poeta, ela as colhe - “colho olhos fixos de novo” (“Flores”).
“Oh palavras possíveis!/ Opondo-se semelhantes./ As mesmas sempre. Iguais.
Contradizendo-se.” A poeta colhe o poema a partir da paisagem que a invade - “O verão
quando entra em mim”, ela o contempla. A poesia não espera o poeta para acontecer, ela
se impõe a ele. Sobe pelo chão e o invade.

851
Colho olhos fixos
de novo
boca seca
aberta
- o não completo me suspende
entre parênteses invisíveis
no ar parado –
de passeio nesse campo minado
que a pasma semântica do absurdo
colore de avesso e espanto
flores que explodem ao contrário.
(MELIM, 2006, p.17)

A atitude, no entanto, não é a de passiva contemplação. O poema torna-se um


espaço contrastante, em que as palavras opõem-se umas às outras. As palavras
contradizem-se, apesar de possíveis semelhanças fônicas e/ou semânticas. Encontramos
no espaço poético “cio ou consciência”, voos longos e curtos, “eu ainda – viva! - a me
assombrar”, vais e vens, contrastes que provocam espantos e sustos, tornando o familiar
estranho. O verão entra nela e a renova. O olhar volta-se para o exterior, a extimidadeii
de Melim, que a coloca em situações conflitantes e a suspende. Lemos em “Flores”: “o
não completo me suspende/ entre parênteses invisíveis e impotentes/ no ar parado” -,
deixando-a extática, diante do mundo e dela mesma, - “boa seca/ aberta” diante da vida
que se abre e das “flores que explodem ao contrário”.
Segundo Bachelard (2001), o poeta é aquele que, pela imaginação, abandona o
curso ordinário das coisas. O poema é, neste raciocínio, essencialmente uma inspiração
a novas imagens. Melim, em entrevista concedida à Ana Chiara, relatou sua experiência
de suspensão do mundo concreto. O que acontece é um deslocamento, uma troca de
dimensão:

(...) quando eu vejo, vem andando na minha direção um par de sapatos


vermelhos, mas os sapatos lindos e as perninhas bem branquinhas vêm
andando. Eu não vejo nada, só os sapatos vermelhos, até chegar bem assim,
que é uma mocinha bem branca, cor de leite, com um lencinho assim que
nem o teu, cabelinho encaracolado e passou pra lá.(...) Eu só sei que eu só via
aqueles sapatos enormes da rua Haddoch Lobo. (MELIM, 2008). iii

A imagem da mocinha com sapatos enormes vermelhos se desdobra, Melim está


numa realidade objetiva, descritível, e, de repente, transporta-se a um não-lugar, ou a
um entre-lugar. Algo que está no limiar da sensação transforma sujeito e paisagem. A

852
imaginação é, sobretudo, a faculdade de deformar imagens, não de construí-las. Uma
imagem presente, a da mocinha com sapatos vermelhos, por exemplo, faz a poeta pensar
em uma imagem ausente – uma imagem-sensação que está no limiar da realidade,
imagem-transicional –, determinando, desta forma, uma prodigalidade de imagens
aberrantes, uma explosão de imagens. A imaginação aberta de Melim empresta a
situações cotidianas a experiência de novidade. O que está além das imagens ordinárias
é o que interessa à poeta, é esta mobilidade entre presença/ ausência uma das principais
características da sua poesia.
Se voltarmos mais uma vez a “Flores”, onde se lê sobre a preocupação com os
espaços limítrofes nos quais ela transita imprevisivelmente, vemos uma poeta suspensa
entre parênteses, espaços brancos, espaço-entre, zona de deslocamento. Flora Sussekind,
em seu texto “Desterritorialização e forma literária: Literatura contemporânea e
experiência urbana”, faz considerações acerca da dramatização do horizonte na poesia
de Angela Melim. Há, segundo ela, uma relação entre sujeito e paisagem.
“[...] passo os dias com medo/ da loucura/ - acima do horizonte./ E à noite dói/
boiar na amplidão/ sem companhia.” Estes versos colhidos de Possibilidades remontam
ao envolvimento do sujeito com a paisagem dramatizada. O horizonte se desdobra em
formas diversas e obrigatórias de conflito e indeterminação, gerando zonas
transicionais, mobilidade de imagens que nos seduz. A poeta se ausenta do curso
ordinário da vida e lança-se a uma vida nova. O deslocamento, o devaneio, transporta-
nos para outro lugar. A imaginação da poeta é o seu convite à viagem.
Em “CRTO”, quase não dá tempo de acompanharmos o ritmo do poema. Os
“papéis ao léu” nos revelam uma fome voraz. O inacabado que dá feição ao título deste
poema, o não completo que suspende Angela Melim, dá-nos Possibilidades. Fica de
tudo um pouco, talvez, bastante ou muito, para o leitor completar, preencher lacunas.
O leitor mergulha neste voo em parceria com a poeta. Ele avista com ela a linha
do horizonte. Horizonte que figura e desfigura o espaço do poema, lugar de contrastes,
conflitos: “passo os dias com medo da loucura – acima do horizonte”. Imagens
conflitantes: “o verão! Como é colorido [...] Contradições. Sinônimos” (MELIM, 2006).

Uma travessia: de Angela Melim a Laura Erber


aqui se repetem
antigas áreas de catástrofes

853
o gesto de andar
ligeiro
atravessar o pontilhado
onde se vigia
rompimentos
e saltos
Laura Erber

Insones é o título do livro de poemas de Laura Erber, lançado em 2002. O título


remete ao limiar da sensação, do sentido, a um estado de presença-ausência. Insônia.
Ao folhearmos Insones, deparamo-nos com a seguinte epígrafe: “algo que no te
deja dormir ni estar despierto te acompaña a esta hora” (Ángel Escobar). Se ainda
dúvida houver sobre os entre-caminhos por que passeia Laura, o poema “Sequência”
nos localiza, ou melhor, nos suspende nos espaços transicionais: “nenhuma teoria
obscura do desejo/ nenhuma teoria/ tudo tão simples como isto/ tiros na noite/ cochilo
entre um pensamento e outro/ atravesso pontes” (ERBER, 2002, p. 12) (grifo nosso). É
o que está entre, o que está no limiar da sensação, a zona de deslocamento é o que mais
uma vez nos chama a atenção aqui.
O que não está escrito, o não-dito, prevalece, faz-se presente pela própria
ausência, desloca o sujeito, faz com que ele “recorte a cidade por todos os lados” (id.,
ibid.), impaciente, em busca de. Há uma suspensão do sentido que atravessa a obra de
Laura de um extremo a outro. “Há mulheres/ dedos semi-suspensos em busca do/ que os
olhos não/ exatamente agora,/ na China,/ semi-suspensas” (id., ibid.).
Se em Angela Melim encontramos o espanto, em Erber lemos sobre o “Ímpeto”:
“perigoso de te procurar/ espaço atordoado em grande desordem/ arrancamos em seguida/
atropelantes/ neste pedaço de brejo/ há muita perturbação em se cruzar o asfalto”
(ERBER, 2002, p. 18-19). Segundo o dicionário Aurélio, ímpeto é um movimento
violento e súbito; impetuosidade. Arrebatamento, precipitação: ímpeto da juventude.
Assalto, violência, ataque. De um ímpeto, Erber anseia pelo outro, por cruzar a esquina
para descobrir o que há do outro lado. Há uma emergência na poesia desta artista, uma
urgência perturbada, um desejo intenso, um fluxo de desejos impossível de reter.
De acordo com o mesmo dicionário, espanto é uma surpresa causada por algo de
singular, de inesperado. Susto, assombro, pasmo. O que é familiar torna-se estranho a
Melim, através de contrastes, contradições, então, diante do mundo e de si mesma,
espanto.

854
Em Erber, o que é externo a ela mobiliza-a, desloca-a para uma zona de
desconforto, de desordem. Fá-la perceber o que está além, do outro lado da rua, ao
cruzarmos o asfalto, que perturba, transformando o ordinário, o cotidiano, “em impetuosa
vontade” de viajar a novos lugares, deformar imagens, o familiar em “estranho quarto”.
Então ela se submerge “na agitação opaca/ entre desejos materiais/ intensa necessidade de
tomar notas/ de se deitar um pouco” (ERBER, 2002).
A paisagem, em Erber, também atinge o sujeito: “uma paisagem com vapor/ em
movimento/ na intensificação que a rua oferece/ ele flutua/ e/ some”. O sujeito
interioriza o vivido. Há uma flutuação entre o eu e o outro, o que o dentro e o fora, “o
mundo dos prazeres é o mundo das coisas flutuantes” (id.). É nessa mobilidade flutuante
que o sujeito transforma o mundo e a si mesmo. Leiamos “Poema com fundo de Suzuki
Harunobu”:

quando as ondas brancas ficam mais altas em Tatsutayama


ninguém mais sabe se vai conseguir fazer a travessia de
noite
se o mundo dos prazeres é o mundo das coisas flutuantes
se a gaivota de risco fino terá lugar fora da paisagem
estilizada
ninguém sabe
se os amantes
tramam suicídio em Amijima
ou uma viagem pra Cuba
se quando pronuncio certos nomes
as ondas ficam mais altas
em Tatsutayama
ou aqui
(ERBER, 2008, p. 21)

Neste poema, é o sujeito quem interfere na paisagem, porque quando se


pronunciam certos nomes, as ondas podem ficar mais altas em algum lugar. É a
paisagem que se transforma, no entanto, ao transformar a paisagem, ele transforma a si
mesmo, numa relação ambivalente.
No ensaio “Contornos abertos”, de Ana Chiara, lemos sobre espasmos seguidos
de perda de consciência, sobre o exterior que incita e excita o poeta, sobre
deslocamentos. Ao provarmos da poesia de Erber e Melim, nós, leitores, deslocamo-nos
com estas mulheres, debatemo-nos em zonas de flutuantes, suspensas, zonas prazerosas.
“O mundo dos prazeres é o mundo das coisas flutuantes”.

855
Sentimos, ao acariciarmos as palavras destas poetas, um movimento fluído, “que
passa por uma refração ininterrupta de afecções, de sensações, tudo que é incitado,
excitado, pelo exterior e se transforma em delicados, violentos, exaltados, contrácteis
movimentos de sístoles e diástoles do que se chama desejo” (CHIARA, 2006). É
impossível delinear o fortuito.
Tanto em Erber quanto em Melim, observamos um movimento flutuante, algo que
não pode ser dito, apesar de estar presente, palavras e desejos que estão no limiar da
sensação, desejos vazados. Uma sensação insone. Não se estar nem num lugar, nem
noutro. O que importa a essas poetas é a mobilidade flutuante. Elas escrevem quase que
numa embriaguez poética, insone. Escrevem sobre imagens fugidias, imagens
percebidas no breve intervalo do sonho e do pensamento, da imagem e da palavra.
A palavra vive, nesses poemas, uma experiência dinâmica. Nos livros Insones e
Possibilidades, percebemos uma série de lugares (em Melim, paisagens, em Erber,
cidades) e movimentos. O sujeito desloca-se por cidades, em um ritmo frenético, e
desloca-se em si mesmo, principalmente.

São experiências confessadas ao pé do ouvido, piscando o olho para o leitor,


sussurradas, entre um bater de pálpebras. Pois a insônia de Laura
corresponde a estar perto, muito perto, estar esperto, estar desperto na
captação do instante. Em entrevista, Laura declarou uma vez: “a poesia
dissolve as bordas entre o que é cotidiano e o que é extraordinário ou
insólito”. Seus poemas se interessam pelos pequenos gestos (mulheres e
homens trabalhando, os percursos de ônibus, um caderno de notas perdido,
atrasos, amuos entre namorados) que por força de uma linguagem desviante,
alusiva, entrecortada ganham nova intensidade. (CHIARA, 2006)

No entanto, apesar de Laura Erber e Angela Melim movimentarem-se


poeticamente de formas parecidas – por serem poetas contemporâneas, mulheres,
algumas temáticas se aproximam etc. –, suas obras poéticas são distintas. Angela é uma
poeta ligada à poesia escrita. Ela lança seu olhar ao mundo, deformando as imagens
ordinárias para fundar um novo mundo, fundar o mundo através do devaneio. Um
mundo maravilhoso. A estrutura de sua poesia, segundo Ana Cristina Cesar, a poesia
de Angela é como uma conversa íntima com o leitor, apegada a exclamações,
despreocupada com a continuidade lógica e com a sintaxe rigorosa, à mercê das
interrupções súbitas, parênteses que interrompem a sequência. Laura é uma artista que

856
transita por diversas áreas de linguagem artística, como a dos poemas, da prosa, de
vídeos e fotomontagens, de instalações.
Reconhecemos nestas poetas um movimento de interiorização do vivido,
remetendo a um estado insone, embriagado, mas que supera o silêncio, conquistando
uma forma de dizer entrecortada por lacunas, suspensões, flutuações. Vivemos com
elas uma

experiência de precariedade, de vulnerabilidade, de instabilidade e, ao


mesmo tempo, a linguagem pode ser a superação desses estados, pois
configura um campo textual em que as noções estão sob contínuo
questionamento ou transbordamento, criando solos narrativos instáveis para
estados pulsionais intraduzíveis, intratáveis como diria Roland Barthes,
incontornáveis. (CHIARA, 2006)

Estas poetas reinventaram uma coerência própria, assumiram a herança


modernista e a herança concretista, expandindo a poesia dos anos 70. Encontramos
nelas uma liberdade de se experimentar.

Considerações finais
A partir do estudo comparativo de poemas produzidos na primeira década dos
anos 2000, por Angela Melim e Laura Erber, tentamos reconhecer, reconstituir, por
semelhanças ou diferenças, a imagem projetada do poeta na primeira década dos anos
2000. Nossos resultados indicaram que, até 2008, a partir do corpus literário analisado,
há uma pluralidade de vozes e subjetividades. Temos uma poesia híbrida, com
referências e suportes diversos. Erber, por exemplo, é uma artista plural, que transita em
várias linguagens diferentes: poemas, prosa, vídeos e fotomontagens, instalações.
Quanto à Angela Melim e Laura Erber, apesar de terem representações literárias
e estilos diferentes, ambas percorrem um movimento de interiorização do vivido e do
vivível, remetendo a um estado insone, de flutuação, zona de deslocamento entre o real
e o sonho, sono. Essas poetas superam o silêncio e conquistam uma forma entrecortada
por lacunas e suspensões de dizer, através da linguagem instável, os estados pulsionais
intraduzíveis, intratáveis e incontornáveis.

857
Referências
ALVES, Ida e PEDROSA, Celia (orgs.). Subjetividades em devir:estudos de poesia
moderna e contemporânea. “Poesia contemporânea: crise, mediania e transitividade
(uma poética do comum)”. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007.
BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
CHIARA, Ana Cristina de Rezende. Contornos abertos. Rio de Janeiro: Caetés, 2006.
CHIARA, Ana e ROCHA. Fátima Cristina Dias (orgs.). Literatura brasileira em foco: o
eu e suas figurações. “Ana Cristina César e Ana Mendieta: as infotografáveis”. Rio de
Janeiro: Casa 12, 2008.
ERBER, Laura. Insones. Insones. Rio de Janeiro: 7letras, 2002.

__________. Vazados e molambos. Florianópolis: Editora da casa, 2008.


__________. O funâmbulo e o escafandrista.
www.novembroarte.com/catalog_funambulist

HOLLANDA, Heloísa Buarque de. 26 poetas hoje. Rio de Janeiro: Editorial Labor do
Brasil S. A., 1976.

__________. Esses poetas: uma antologia dos anos 90. Rio de Janeiro: Aeroplano,
1998.
__________. Enter. http://www.oinstituto.org.br/enter/enter.html
LIMA, Luis Costa.
MELIM, Angela. Mais dia menos dia: poemas reunidos 1974 – 1996. Rio de Janeiro: 7
letras, 1996.
__________. Possibilidades. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2006.
SUSSEKIND, Flora. Desterritorialização e forma literária: literatura brasileira
contemporânea e experiência urbana. Disponível em:
http://www.eca.usp.br/salapreta/PDF04/SP04_01.pdf. Acessado em 4/07/2010. Acesso
em: 18 ago. 2019.

i
Na obra de Clarice Lispector, a imagem do cavalo é muito recorrente.

858
ii
Em seu ensaio “Ana Cristina César e Ana Mendieta: as infotografáveis” (CHIARA, 2008, p. 123), Ana
Chiara esclarece o conceito de extimidade: “A ‘extimidade’, segundo definição de Lacan, está no trânsito
entre o eu, o mim e aquilo que em ‘mim’ não domino”. É o escape em direção a um exterior, a um
outro, a um it.

iii
Entrevista com Angela Melim realizada por Ana Chiara e Amanda em 2008.

859
REINALDO MORAES E CHARLES BUKOWSKI – DIÁLOGOS DECADENTES E
PORNOGRÁFICOS À MARGEM DO CÂNONE

Por Leandro Dias Carneiro Rodrigues – Universidade Paulista (Unip – Campus Brasília)1

Resumo: O trabalho aborda a relação da decadência, enquanto estética, sob sujeito das
personagens, na narrativa pujante do escritor Reinaldo Moraes, no romance “Pornopopeia”
(2006), no qual a decadência, o hedonismo e a pornografia configuram a narrativa dialógica aos
contos reunidos em “Crônica de um amor louco”, do escritor norte-americano Charles
Bukowski (1920-1994). Busca-se apontar os encontros dos textos quanto à estética dos
personagens, configurada em um conjunto. O hedonismo em busca do prazer intenso. A
libertinagem como liberdade de vida. Catarse. Sofrimento e o alívio – a libertinagem como
liberdade das frustrações da vida e das pressões do dia-a-dia.
Palavras-chave: Estética Pornográfica; Cânone; Literatura Comparada.

Introdução

Discute-se, neste texto, o elo decadente, pornográfico e hedonista entre os


protagonistas – anti-heróis – de textos de dois escritores: um norte-americano – de
geração tardia dos poetas beat, Charles Bukowski – escritor, poeta e boêmio dos anos
1970, 1980 e 1990s – e o escritor brasileiro, Reinaldo Moraes, também com
características boêmias, estilo urbano, da atualidade. Se pretende fazer uma relação
entre as personagens “Bukowski” e outras, do conjunto de contos intitulado “Crônica de
um amor louco: ereções, ejaculações e exibicionismos – Parte I” – conjunto de textos
primeiramente publicados em 1984 – e o protagonista “Zeca”, do romance Pornopopeia
do escritor paulistano Reinaldo Moraes, de 2009.
Ambas as personagens apresentam uma percepção fugaz e efêmera da vida. O
viver hoje, o carpe diem, o viver intensamente. Cada dia se morre e no outro dia se
nasce novamente. Embora, em contextos sócio-histórico-temporais diferentes, as
temáticas são comuns. O estilo coloquial, cada qual ao seu modo, traça um diálogo à
margem do Cânone Literário.

1
Professor Adjunto do curso de Letras – Licenciatura em Língua Inglesa e Portuguesa e Letras –
Bacharelado em Tradução – Língua Inglesa – Língua Portuguesa; Mestre em Linguística Aplicada pela
Universidade de Brasília, pesquisador na área de Ensino/Aprendizagem de Língua Estrangeira (Inglês) e
Literaturas Comparadas. Contato: leandro.unip.brasilia@gmail.com

860
Os princípios catársicos de Aristóteles e o prazer do texto

Na poética, de Aristóteles, o princípio do fazer literário – o poesis – se consagra


a partir da catarse – efeito realizado tanto no gênero trágico quanto cômico –, processo
pelo qual passaria o leitor/interlocutor/espectador, que, na tragédia seria uma mescla de
sentimentos de terror e alívio, e na comédia – a surpresa e o riso para se elevar os
defeitos humanos. O ridículo. Tais ações verificadas nos textos são decorrentes do
princípio mimético (grosseiramente considerado como “imitação”) no mythos (enredo).
A arte de imitar pondera modelos – os primeiros textos da própria referência
humana. No caso de Aristóteles, em A poética, tem-se Homero – o primeiro poeta épico
grego de que se tem ideia – e os dramaturgos Sófocles e Aristófanes, entre outros.

Assim, Sófocles seria um imitador igual a Homero, uma vez que os dois
representam homens virtuosos, e igual a Aristófanes, porque ambos imitam
pessoas em movimento, em actuação. Daí resulta que alguns dizem que as
suas obras se chamam dramas por imitarem os homens em acção. Por isso
mesmo os Dórios reclamam para si a invenção da tragédia e da comédia (os
Megarenses reivindicam a criação da comédia: quer os daqui, como tendo
nascido entre eles no tempo da democracia, quer os da Sicília, porque era
natural de lá Epicarmo, poeta que foi muito anterior a Quiónides e a Magnes;
alguns Dórios do Peloponeso reclamam a autoria da tragédia), tomando as
designações como indício. Dizem eles que chamam aos arredores da cidade
komai, enquanto os Atenienses chamam demoi; portanto, os comediantes não
seriam assim denominados com base no verbo komazein mas porque,
expulsos por desprezo da cidade, andaram à deriva pelos komai; alegam
ainda que, para eles, a palavra que significa actuar é dran, enquanto para os
Atenienses é prattein Sobre as diferenças — quantas e quais — da imitação,
estas palavras serão suficientes (ARISTÓTELES, 2008, p. 40-41).

Podemos observar que os estudos literários ocidentais – aristotélicos – base de


nosso conhecimento literário – do que se tem ideia do que é e como se faz literatura – se
realizam com base em textos modelares, posteriormente, considerados canônicos, cuja
estética beira a perfeição. Todavia, Aristóteles nos mostra que a imitação – mimeses – é
natural e que isso, indireta ou diretamente – decorre das ações mais belas ou
repugnantes – estaria no texto literário, como podemos constatar abaixo:

Parece ter havido para a poesia em geral duas causas, causas essas naturais.
Uma é que imitar é natural nos homens desde a infância e nisto diferem dos
outros animais, pois o homem é o que tem mais capacidade de imitar e é pela
imitação que adquire os seus primeiros conhecimentos; a outra é que todos
sentem prazer nas imitações. Uma prova disto é o que acontece na realidade:
as coisas que observamos ao natural e nos fazem pena agradam-nos quando

861
as vemos representadas em imagens muito perfeitas como, por exemplo, as
reproduções dos mais repugnantes animais e de cadáveres. (ARISTÓTELES,
2008, p. 41)

Como pretendemos discutir aqui, os textos em questão estariam à margem do


Cânone porque fogem à estética e aos padrões canônicos. Todavia, pretendemos mostrar
que este fato não os inferioriza. Nossa ideia é mostrar que o diálogo entre os
protagonistas dos dois autores decadentes e pornográficos, de épocas e de lugares
diferentes, apresenta um componente mimético que os torna relevante: sua organicidade
– sua vivacidade – sua instantaneidade e seu prazer.
Ler Bukowski não é para qualquer pessoa. Os literatos, ou os que são
considerados críticos tradicionais da Literatura, com “L” MAIÚSCULO, em geral,
tendem a considerar o texto do escritor norte-americano sujo e desprovido de
“LITERARIEDADE” ou de “essência literária”, o que poderia ser: a falta do engenho
com as palavras; a escolha do modo mais próximo ao popular, o qual também é
tradicionalmente considerado “vulgar”; a falta de ingenium na construção do significado
– a falta da desautomatização da linguagem ao lermos. Também pode ser considerado
sujo, vulgar, sexista, decadente e extremamente pornográfico. Seus textos, em geral,
apresentam características da linguagem comum, cotidiana e explícita. O mesmo vale
para o outro escritor em questão: Reinaldo Moraes, apesar do estilo diferente.
Uma das características que nos leva a ler/escrever/interagir – todas em uma
tríade – é o prazer. O prazer do engenho e o prazer da leitura. Questão discutida em
Aristóteles e em Barthes, o qual afirma que “o texto que o senhor escreve tem de me dar
prova de que ele me deseja. Essa prova existe: é a escritura. A escritura é isto: a ciência
das fruições da linguagem, seu kama-sutra (desta ciência, só há um tratado: a própria
escritura). (BARTHES, 1987, p. 10)
Ainda Barthes nos ensina:

Se leio com prazer esta frase, esta história ou esta palavra, é porque foram
escritas no prazer (este prazer não está em contradição com as queixas do
escritor). Mas e o contrário? Escrever no prazer me assegura – a mim,
escritor – o prazer de meu leitor? De modo algum. Esse leitor, é mister que
eu o procure (que eu o “drague”), sem saber onde ele está. Um espaço de
fruição fica então criado. Não é a “pessoa” do outro que me é necessária, é o
espaço: a possibilidade de uma dialética do desejo, de uma imprevisão do
desfrute: que os dados não estejam lançados, que haja um jogo (BARTHES,
1987, p. 08-09).

862
Este espaço de fruição que constitui o ato da leitura e a possibilidade de uma
“dialética do desejo” nos leva à análise dos personagens subversivos de Bukowski e
Moraes. Uma das principais referências da questão do prazer no processo de produção
de significados é Marquês de Sade, o qual enfrentou inúmeras repressões em sua época
por provocar, por meio da natureza humana viva em seus textos, abalos ao status quo de
escritores iluministas e também de modelos de estética:

Sade: o prazer da leitura vem evidentemente de certas rupturas (ou de certas


colisões): códigos antipáticos (o nobre e o trivial, por exemplo) entram em
contato; neologismos pomposos e derrisórios são criados; mensagens
pornográficas vêm moldar-se em frases tão puras que poderiam ser tomadas
por exemplos de gramática. Como diz a teoria do texto: a linguagem é
redistribuída. Ora, essa redistribuição se faz sempre por corte. Duas margens
são traçadas: uma margem sensata, conforme, plagiária (trata-se de copiar a
língua em seu estado canônico, tal como foi fixada pela escola, pelo uso
correto, pela literatura, pela cultura), e uma outra margem, móvel, vazia (apta
a tomar não importa quais contornos) que nunca é mais do que o lugar de seu
efeito: lá onde se entrevê a morte da linguagem. Estas duas margens, o
compromisso que elas encenam, são necessárias. Nem a cultura nem a sua
destruição são eróticas; é a fenda entre uma e outra que se torna erótica. O
prazer do texto é semelhante a esse instante insustentável, impossível,
puramente romanesco, que o libertino degusta ao termo de uma maquinação
ousada, mandando cortar a corda que o suspende, no momento em que goza
(BARTHES, 1987, p. 10-11).

É nesse sentido que consideramos o elo dos protagonistas pornográficos – a


pornografia como gênese da mensagem da linguagem – à margem do Cânone.

Na filosofia de Sade, a crueldade sexual é aceita e justificada por ser um


reflexo dos anseios mais profundos da natureza humana. Caberia ao homem
dar vazão ao seu lado mais instintivo, em vez de reprimi-lo. Assim, as
histórias desenvolvidas pelo Marquês podem ser quase sempre definidas
como a livre exposição do corpo humano em busca dos prazeres mais
diversos, sem qualquer tipo de repressão de seus aspectos mais desmedidos,
repulsivos e escatológicos (SILVA apud FRANÇA, 2017, p. 156).

A questão desde sempre discutida de outrora e de agora: o Cânone

Desde os primórdios dos estudos literários – no que diz respeito ao que seria
considerado ou não Literatura, a questão do Cânone é debatida. Um modelo de escrita,
um paradigma linguístico e de estilo sempre estiveram à frente das diversas
manifestações literárias.

863
Harold Bloom, crítico e autor de “O Cânone Ocidental”, afirma que o Cânone se
trata de uma escolha, pois não há tempo hábil de lermos tudo. “Originalmente, o
Cânone significava a escolha de livros em nossas instituições de ensino, e apesar da
recente política de multiculturalismo, a verdadeira questão do Cânone continua sendo:
Que tentará ler o indivíduo que ainda deseja ler, tão tarde na história?” Trata-se de uma
crítica à postura de agora das instituições de ensino e pesquisa do mundo que têm
trabalhado a Literatura, considerada por ele com “L – MAIÚSCULO”, de forma
historicista, sob viés ideológico, em diálogo com os estudos culturais – os quais o autor
abomina. Ele ainda afirma categoricamente que o Cânone advém de grupos sociais
dominantes, como se lê abaixo:

O Cânone, palavra religiosa em suas origens, tornou-se uma escolha entre


textos que lutam uns com os outros pela sobrevivência, quer se interprete a
escolha como sendo feita por grupos sociais dominantes, instituições de
educação, tradições de crítica, ou, como eu faço, por autores que vieram
depois e sentem escolhidos por determinadas figuras ancestrais (BLOOM,
2010, p.33).

Na direção oposta – ou significativamente míope – da de Bloom, Zilbermann,


teórica brasileira que discute a área da história da Literatura e o ensino da Literatura,
afirma:

Cânone é a palavra que sintetiza o intuito classificatório da história da


literatura. Vocábulo que circula igualmente no âmbito religioso, não é por ter
sido laicizado que perdeu seu conteúdo sacralizante. Por essa mesma razão,
tornou-se o direito e o avesso dos debates mais recentes da história da
literatura. Canônicos são os autores consagrados que podem ter sido ungidos
pelos historiadores da literatura em decorrência de sua importância, impacto
ou inovação; mas podem ser também aqueles a quem se deseja destronar,
dado o peso que representam enquanto tradição, obrigação e devoção
(ZILBERMAN apud ARAÚJO, SANTOS e RIBEIRO, 2011, p. 20).

O que há de comum entre sua concepção de cânone e o de Bloom é


“tradicional”. Contudo, embora Bloom acredite que o canônico surge a partir de um
empreendimento individual e não de uma ideologia social, o canônico também é uma
escolha. E toda escolha é política. Vejamos o que ele fala quanto aos seus opositores:

Alguns partidários recentes do que se encara como radicalismo acadêmico


chegam mesmo a sugerir que as obras entram no Cânone devido bem-
sucedidas campanhas de publicidade e propaganda. Os compares desses

864
céticos às vezes vão mais longe e questionam até mesmo Shakespeare, cuja
eminência lhes parece algo assim como uma imposição. Se se adora o deus
compósito dos processos históricos, está-se condenado a negar a Shakespeare
sua palpável supremacia estética, a realmente gritante originalidade de suas
peças. A originalidade torna-se um equivalente literário em termos como
empreendimento individual, autossuficiência e competição, que não fazem a
felicidade dos corações feministas, afrocentristas, marxistas, neo-historicistas
foucaultistas ou desconstrutores – de todos que descrevi como membros da
Escola do Ressentimento (BLOOM, 2010, p. 33).

Também arriscaríamos dizer que além desses teóricos e os pós-modernos a que


Bloom mostra desprezo, poderíamos incluir os dois autores deste estudo, pois são
decadentes e pornográficos e sua estética foge às regras tradicionais de construção
literária. Desejamos, portanto, considerar a questão do cânone definida: sempre haverá
cânone, pois trata-se de escolha – uma escolha político-ideológica. Todavia, não sendo
canônico, não significa que seria menos literário, é o que afirmamos categoricamente,
pois, o fazer literário é, sobretudo, um fazer humano, a mimese humana.

Bukowski – O beat tardio e Reinaldo Moraes e a epopeia pornográfica

Na página inicial da edição brasileira de sua obra em questão, Bukowski é


referido como “o último escritor maldito da literatura norte-americana”. Também o
consideram como o último escritor beat, pois sua estética é considerada livre como a
proposta do movimento Beat nos EUA, desde os anos 1950. Artistas como Allen
Ginsberg (autor do famoso poema “o uivo”), Jack Keruac, William Burroughs,
Lawrence Ferlinghetti, Peter Orlovsky, Gary Snyder, Neal Cassady, entre outros,
tiveram como proposta uma literatura livre cuja intenção é uma nova forma de “sentir,
viver e habitar o mundo”, como afirma Juliana Barros (2019, p. 61).

As palavras obscenas e a forma não convencional com que encaravam a vida


chocaram – como era de se esperar – a sociedade da época. Segundo
Burroughs, se ‘protestava a favor do fim da guerra do Vietnam, da
legalização da maconha, o fim da censura, reconhecimento dos direitos das
minorias e quase todos esses objetivos se alcançaram’” (BURROUGHS apud
SUMMERS, 2017 apud BARROS, 2019, p. 61).

O que podemos considerar a escrita de Bukowski semelhante à estética beat


seria na forma – utilização da linguagem chula, de baixo calão, e as pontuações sem o
rigor tradicional, entre outros. Todavia, pode-se notar que o texto de Bukowski –

865
principalmente os contos em questão – está muito mais voltado para as questões
existenciais, de crise financeira, da busca de viver um dia de cada vez, do hedonismo,
da embriaguez para se esquecer a desestabilidade do dia a dia, do que, frequentemente
temas beat como a busca pela paz, a voz das minorias, entre outros.
É comum nos textos do autor americano termos como personagem principal
Henry Chinaski, conhecido também como Hank, personagem frequente de seus
romances. Um personagem considerado um anti-herói. Um protagonista que tem
“características iguais ou inferiores às de seu grupo, só que sem competência para
tanto.” (GANCHO, 2006, p. 18). As ações do anti-herói fogem ao que tradicionalmente
chamaríamos de “ações superiores”. Seriam ações que, além de serem contra o senso-
comum, em busca de um Leitmotif que exigiria ações superiores e nobres, o que vemos
no anti-heroísmo bukowskiano na obra analisada é uma sucessão de insucessos, de
ações trágicas, delírios e a quebra de expectativa. O mesmo sucede com o texto de
Moraes.
O livro em análise foi publicado em 1984, Ereções, Ejaculações e
Exibicionismos – parte I, na edição brasileira de 2007 foi dividido em duas partes. Um
conjunto de textos cuja temática varia entre sexo, violência, abuso de álcool,
experiências miseráveis, prostituição e a marginalidade na América.
No texto em análise, o protagonista é homônimo de Charles Bukowski, mas com
as características do velho Hank – “Henry Chinaski”, protagonista conhecido em contos
e romances de Bukowski. No conto “A vida num puteiro do Texas”, o protagonista, em
primeira pessoa, embora conhecido, escritor prefere se hospedar em um modesto hotel –
que é um randevu – vulgarmente conhecido como “puteiro” e o pior da cidade:

(...) No outro dia levantei, saí pela rua, comprei o jornal e la´estava a notícia
na coluna de fofocas local. Citava o meu nome. Charles Bukowski, escritor,
jornalista, viajante. Tínhamos nos conhecido um avião, a bela dama e eu. E
ela desembarcara no Texas, enquanto eu seguia adiante para Nova Orleans
para fazer uma matéria. Mas voltara, com a imagem da bela dama gravada
na lembrança. Sabendo apenas que a mãe tinha um estúdio de fotografia.
Entrei de novo no hotel, peguei meio litro de uísque, meia dúzia de
cervejinhas e finalmente caguei – que alívio! Talvez por efeito da notícia.
Me meti outra vez no meio do mosquiteiro. Aí então o telefone tocou. Era
ramal. Estendi o braço e atendi.
- Ligação pro senhor, Mr. Bukowski, do editor do... Quer atender
- Tá legal – respondi. – Alô.
- Charles Bukowski
- Ele mesmo.
- O que o senhor está fazendo num lugar desses

866
- Como assim Achei o pessoal daqui muito simpático.
-É o pior randevu da cidade. Faz 15 anos que a gente vem fazendo
de tudo para fechar esse troço. Como foi parar aí
- Estava um frio de rachar. Cheguei de ônibus e fazia um frio de
lascar.
- Veio de avião, não se esqueça.
- Ah é.
- Tudo bem. Estou com o endereço da casa da tal moça. Interessa
- Claro, se não for inconveniente. Do contrário, deixa pra lá.
(BUKOWSKI, 2007, 31-32).

A personagem busca viver o hoje, de forma simples, à espreita, à penumbra da


vida, mesmo sendo um escritor com alguma fama, sem deixar rastros.
De modo semelhante a esta personagem, podemos verificar em “Pornopopeia”,
romance escrito, em 2009, de Reinaldo Moraes, o protagonista Zeca, um publicitário ex-
cineasta marginal, tem de escrever um roteiro de um filme publicitário sobre embutidos
de frango, mas encontra-se completamente impedido, desmotivado, travado. Para tentar
realizar o ofício, já com o prazo no limite, o protagonista passa por aventuras sexuais e
com drogas em demasia, a fim da busca de inspiração. Podemos relacionar o título do
romance a uma epopeia pornográfica, repleta de experiências apreciadas por um leitor-
confidente.
Pode-se verificar no trecho a pressão pela qual o protagonista passa para
escrever o roteiro do filme publicitário, já no prazo final, mas que se sente
completamente impedido, travado.
O diálogo ao longo do livro é com sua consciência, que é o leitor/interlocutor –
sua consciência divagante:

Tão tá. Vamo nessa. Habemus ideia. Agora, é só escrever essa porra. Mas
quem vai escrever? Eu, claro. Quem mais? Você é que não vai. Nem vós,
nem eles. Mas o problema, insisto, é que eu não estou aqui-agora. Minha
cabeça – minhas duas cabeças ainda não saíram do templo da Samayana.
Será que ninguém aqui entende isso, porra?
Aliás, com quem eu tô falando aqui - porra? Até esse minuto tava achando
que você era eu mesmo, como sempre. Mas me veio agora uma ideia maluca
sobre a sua possível indentidade. Nem quero especular muito sobre isso
agora pra não bagunçar mais ainda o meu coreto psíquico. Mas é uma ideia
interessante que o meu cérebro fabricou pra se entreter um pouco consigo
mesmo enquanto não se decide a encarar os embutidos. Se der certo, tiro um
filme da história de ontem da Samayana, e você, um livro. Não esquenta
com isso agora, em todo caso. Continua lendo. Ou não. Cê que sabe. Por ora,
só preciso de um ouvinte – um qualquer você, que poderá ou não ser você
(MORAES, 2010, p. 24).

867
A pressão para finalizar – já em deadline – o roteiro do filme publicitário sobre
embutidos de frango é grande e Zeca decide buscar uma inspiração.
Constantemente Zeca vai atrás de cocaína para conseguir finalizar o roteiro.

Na fissura que eu tava, e depois daquele aviso sugestionante, se o cara te


vender cimento branco com laxante e sal de frutas, você vai demorar de duas
a três horas até se dar conta de que não está cheirando o mais puro bright
andino nem porra nenhuma. E se você estiver mamando um goró pesado e
dando pega num mato brabo é provável que nem perceba o logro até capotar
de vez. Mas não era impossível que ele tivesse adicionado alguma meleca
anfetamínica pra turbinar o bagulho, o que era sempre melhor que nada.
(MORAES, 2010, p. 34).

Os protagonistas “Bukowski” e outros, de Charles Bukowski, e “Zeca”, de


Reinaldo Moraes apresentam algumas características em comum. A narrativa é
realizada em primeira pessoa nas duas obras; eles vivem o agora – no caso do
Bukowski, ele busca um emprego para sustentar o seu vício em álcool e para sustentar o
seu dia. Ele busca o mínimo, a base para viver. Enquanto Zeca também não pensa no
amanhã. Gasta seu dinheiro e vive o hoje. Ambos os personagens são loucos por sexo.
Ambos também gostam da embriaguez ou das drogas – no caso de Zeca. Ambos sofrem
pressão. A pressão social de conseguir um emprego e conseguir se sobressair como
escritor. Zeca sofre pressão para terminar um vídeo institucional publicitário de
embutidos de frango.
A fim de buscar inspiração e energia, Zeca sai pela Augusta – famosa rua
boêmia paulistana – em busca de mais cocaína e acaba entrando em uma aventura
sexual com uma prostituta de rua.
A minha puta sabia tomar uma pica por via oral. Começou com um bem-
realizado tour de língua em torno da chapeleta, pra depois alojar o negócio
sobre o leito da língua dentro da boca. Meu pau ficou descansando um pouco
naquele berço esplêndido como um pequeno deus na manjedoura, antes que
ela iniciasse o trabalho de sucção. Quer dizer, a mulher se esmerava em
prolegômenos refinados até no boquete. De tirar o chapéu – ou a chapeleta.
Como a vida pode ser simples e divertida num pulgueiro de uma transversal
da Augusta, você de pau duro com uma puta de estampa razoável decidida a
te chupar até você explodir em jatos de gosma na cara dela. (MORAES,
2008, p. 100-101).

Acidentalmente, pelo instinto meramente humano, Zeca gasta os últimos recursos


do dia que tinha com a prostituta. Tudo por puro impulso, por puro desejo. No final

868
desta cena, Zeca, fortuitamente, se aproveita a distração da meretriz, toma a nota de
cinquenta reais, enrolada para cheirar cocaína, e a coloca no bolso.
Em outro momento da narrativa, Zeca encontra a mulher de um dos seus
melhores amigos, Nissim, desamparada, atrás de seu amigo, que não voltou para casa.
Ela se encontrava desesperada, preocupada, quase desnuda, vestida com a camisa de seu
esposo, e vai à produtora onde Zeca trabalha. Já é madrugada e está atrás de seu marido.
Então, em meio ao amparo à mulher do amigo, Zeca aproveita-se da situação e tenta
fazer sexo com Nina:

Larguei do braço dela e deixei a mão bobeando um momento no ar, antes de


mergulhar por dentro do decote da camisa – do Nissim, o que eu tentava
esquecer – até pousar num peito. Não houve reação. Catei o mamilo macio.
Dei uma leve sintonizada. Ela fez um aah... e virou a cara pro outro lado,
num protesto dengoso. Larguei da mão dela e catei uma coxa melada de
suor. A respiração dela ia acelerada, a minha também, mais ou menos no
mesmo ritmo. Escorreguei a mão coxa acima até a ponta do dedo tocar o
absorvente sob a calcinha.
Ela voltou a cabeça pra mim. Os lábios vieram junto. Saiu o primeiro beijo
linguarudo. Afastei calcinha e absorvente e abri com suprema delicadeza as
folhas de carne molhada. Senti o perfume no ar: buceta pura. Puxei o zíper
da calça e liberei meu pau disponível para o amor, para falar de um modo
poético. Como a Nina demorasse a tomar alguma atitude, tomei eu da mão
dela e botei lá. Seus dedos deram conta da encrenca. Apalpava, amassava,
titilava e até sacudia o objeto. Na verdade, não tinha muito jeito pra coisa,
mas, porra, tava bom pra caralho – praquele caralho específico.
Desgrudamos as bocas para tomar um pouco de ar, mas nem por isso a Nina
parou de me punhetear, nem eu de siriricar sua bucetinha molhada e de
bolinar seus peitos por dentro da camisa (MORAES, 2010, p. 217-218).

Pode-se comparar tal cena à de Bukowski, quando faz sexo com as amigas de
sua namorada em “crônica de um amor louco – parte 1), no conto “3 mulheres”:

(...) Jeanie tinha ido lá para o quarto, onde caiu chumbada na cama. Eve
apagou no sofá e Linda num outro, menor e de couro, que ficava no corredor
que levava ao banheiro. eu continuava sem entender o tal mexicano
fechando a parte traseira do caminhão na minha cara.
fui ao banheiro e deitei na cama com Jeanie. era gorda e estava nua. comecei
a beijar os seus seios, chupando-lhe os mamilos. (...)
fui por cima e aí, bem DEVAGAR, SEM PRESSA E SEM FAZER
BARULHO, cuidando para as molas não estalarem, meti e tirei, O MAIS
LENTAMENTE POSSÍVEL, e, quando gozei, cheguei a pensar que nunca
mais ia parar. foi das melhores fodas da minha vida. e enquanto me limpava
no lençol me veio uma ideia – era bem provável que há séculos a humanidade
não andasse fodendo direito. (BUKOWSKI, 2007 p. 85-86) Da crônica “3
mulheres”.

869
Podemos verificar a pontuação fora dos padrões convencionais. A falta das
iniciais maiúsculas após o ponto final pode ser vista não somente neste conto, mas em
vários outros. É interessante vermos que há esta ocorrência neste conto e no conto “3
galinhas”.
As cenas pornográficas se assemelham quanto ao ângulo do homem que deseja.
São perspectivas do prazer intenso do indivíduo e a vida é considerada sob o viés da
efemeridade, do momento, do agora.
No conto “Quinze centímetros”, o protagonista, Henry, narra o que significa ser
casado:
Os três primeiros meses do meu casamento com Sarah até que foram bem
razoáveis, mas eu diria que logo em seguida começaram a surgir os
problemas. Era boa cozinheira e pela primeira vez em muitos anos eu estava
comendo direito. E comecei a engordar. E Sarah a fazer comentários: - Ah,
Henry, você está ficando igual a um peru recheado de Dia de Ação de
Graças. – Exatamente, meu bem. – respondia.
Eu trabalhava no departamento de expedição de uma firma de acessórios e
peças de automóvel e o salário mal dava para atender as despesas. Minhas
únicas alegrias consistiam em comer, tomar cerveja e ir para a cama com
Sarah. Não era o que se poderia chamar de vida folgada, mas cada um deve
se contentar com o que tem. E Sarah estava longe de ser um prato de se jogar
fora. Tudo nela rescendia a S-E-X-O. Travamos de fato conhecimento numa
festa que a firma ofereceu aos empregados no Natal. Sarah era uma das
secretárias do escritório. Notei que nenhum dos meus colegas se aproximava
dela durante as comemorações e não atinei com o motivo. Jamais tinha visto
mulher tão sensual e não dava impressão de ser nada boba. (...)
(BUKOWSKI, 2007, p; 37).

Breves considerações

Portanto, pode-se concluir, ainda que mais observações podem ser realizadas,
que as obras em questão, sob a perspectiva das personagens dos contos de Bukowski e a
personagem principal do romance de Reinaldo Moraes, dialogam de forma orgânica,
fluída. Os textos suscitam a pornologia – um tratado, arriscamos dizer, de um fazer
literário intenso e sexualmente prazeroso. Estes escritores vão de encontro a
determinismos, como afirma Ziberman (2011) “binomiais de inclusão/exclusão” que
definem o Cânone. Eles são a própria margem, mas também são a própria revelação
literária.

870
Referências

ARISTÓTELES. Poética..- Lisboa, Portugal: Fundação Caloustre Gulbenkian.. – 3 ed.


Trad. Ana Maria Valente, 2008.

BARROS, Juliana Carvalho de. A vida de arte como obra de arte Andy Wharol e
Chacal. – Rio de Janeiro: Bonecker, 2019.

BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva. – trad. J. Guinsburg.


1987.

BLOOM, Harold. O Cânone ocidental. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.

BUKOWKI, Charles. Crônica de uma amor louco..– Porto Alegre: L&PM – 2 ed.
Tradução de Milton Persson, 2007.

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. – Rio de Janeiro. Ática. Série
Princípios. 7ª edição. 2006.

MORAES, Reinaldo. Pornopopéia. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

FRANÇA, Júlio (org.). Poéticas do mal: a literatura do medo no Brasil (1840-1920).


– Rio de Janeiro: Bonecker, 2017.

ZILBERMAN, Regina. História da Literatura, Literatura, História. In.: ARAÚJO,


Joana Luíza Muylaert, SANTOS, Regma Maria dos, RIBEIRO, Ivan Marcos. (orgs.)
Literatura e história: da instituição das disciplinas as releituras do cânone. –
Uberlândia: EDUFU, 2011.

871
ENTRE O SIMBOLISMO E O MODERNISMO: A POÉTICA DE AGENOR
BARBOSA

Nelise Pereira da Silva Pacheco (UEMS)1

Resumo: Agenor Barbosa é um poeta que atuou em dois períodos distintos na história da
literatura brasileira. Primeiramente, publicou nas revistas mineiras Vita e A vida de Minas,
quando o poeta vivia uma fase passadista, na qual se observa em seus versos uma dimensão
simbolista. Em seguida, os poemas publicados no jornal Correio Paulistano dialogam com as
ideias vanguardistas presentes na primeira fase do Modernismo no Brasil, momento que o
escritor é apresentado por Menotti Del Picchia e Oswald de Andrade como um “poeta futurista”.
Neste estudo, procura-se, por meio de análise, apresentar a transição entre uma poesia passadista
e uma poesia vanguardista para, assim, contribuir no resgate da obra de Agenor Barbosa.
Palavras-chave: Agenor Barbosa; Vita; A vida de Minas; Correio Paulistano; Poesia.

O poeta Agenor Barbosa, nascido em Montes Claros iniciou seus trabalhos na


imprensa em Belo Horizonte nos jornais Diário de Minas e Folha de Minas. No período
entre 1913 e 1916 atuou como secretário de redação e publicou seus versos nas revistas
Vita e A vida de Minas. Em seguida, transferiu-se para São Paulo onde se formou em
Direito e trabalhou no jornal Correio Paulistano e na revista A Cigarra. A menção ao
poeta está associada, em um primeiro momento, como um “poeta futurista”, visão
apresentada por Menotti Del Picchia e reafirmada por Oswald de Andrade no texto “A
divulgação da nova estética” de Mário da Silva Brito. Agenor Barbosa foi personagem
significativo entre os participantes da Semana de Arte Moderna. No entanto, a ausência
de uma obra escrita pelo poeta contribui para que sua poesia não chegue ao público
atual.
O poeta mineiro Agenor Barbosa participou de dois momentos distintos na
história da literatura brasileira. Primeiramente, ao lado de outros poetas como
Alphonsus de Guimaraens, Archangelus Guimaraens e José Severiano de Resende
publicou seus versos nas revistas Vita e A vida de Minas, nesta fase o escritor tem
poemas voltados ao universo simbolista, no qual seus versos apresentam uma
subjetividade, em que a sugestão marcada por um cenário imagético apresenta ao leitor
sensações, repletas de imagens e musicalidade. Em um segundo momento, os poemas
publicados no jornal Correio Paulistano revelam sua transição para o início do
modernismo através de uma linguagem que incorpora os acontecimentos da vida
cotidiana, bem como explora um estilo coloquial, objetivo e espontâneo.

1
Mestranda em Letras pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) - Unidade
Universitária de Campo Grande-MS. Contato: nelise.silva@gmail.com.

872
Para verificarmos a transição entre os dois momentos da trajetória literária do
poeta Agenor Barbosa, selecionamos o poema2 “De Ícaro” publicado na revista A vida
de Minas, em 01 de setembro de 1915, representado o primeiro momento do poeta, no
qual se observa em seus versos uma dimensão simbolista. Já em relação a sua produção
literária posterior, em que é possível identificar uma ligação estética com a primeira fase
do Modernismo no Brasil, selecionamos o poema “O Que Eu Vi Essa Noite...”,
publicado no jornal Correio Paulistano em 30 de abril de 1921. Assim, espera-se
identificar, situando por meio de análise dos poemas, a transição entre uma poesia
passadista e uma poesia vanguardista.
Ao analisar o primeiro momento literário, observa-se que o poeta Agenor Barbosa
está inserido no universo cultural dos periódicos Vita e A vida de Minas, no qual
publicou poemas como: “No S. Francisco” (1914), “Pelo Inverno” (1914) e “Últimas
Pedrarias...” (1916). Nesse período, a poesia de Agenor Barbosa reflete os aspectos que
envolvem o Movimento Simbolista, a partir de uma visão subjetiva e sugestiva.
Segundo Muricy os simbolistas trabalham na sugestão de sensações, “A diversificação
da sensibilidade específica manifesta-se principalmente na musicalidade, em termos de
uma integração íntima da imaginação verbal dinâmica geral da função simbolizadora”
(MURICY, 1987, p. 24). Assim, nota-se que o poeta Agenor Barbosa está inserido
nesse universo ao trabalhar sua poesia com musicalidade e reforçar o quadro sonoro
através da combinação de rimas, aliterações e assonâncias.
Sabe-se que o Simbolismo brasileiro apresenta o poeta Alphonsus de Guimaraens
ao lado de Cruz e Sousa como um dos principais representantes do movimento, no qual
publicou seus versos em diversas edições dos periódicos Vita e A vida de Minas e
despertou a admiração do poeta Agenor Barbosa conforme descreve no texto intitulado
“O Ritimador do Silêncio... – A Alphonsus de Guimaraens – Elogio para sua glória e
epitáfio para o seu túmulo, quando for da sua morte”, publicado no dia 09 de abril de
1921.

– Mestre!
Era assim que lhe chamávamos e é assim que lhe chamam ainda todos os
novos espíritos da minha geração. [...] Mestre. Ele o é, mais que ninguém: ele
é o guia, é o revelador, o iniciado para o qual todas as portas da alma se
abriram. [...] Mestre do Sonho e do Silêncio, mestre do Ritmo e do Símbolo,

2
Todos os poemas foram transcritos realizando a atualização ortográfica.

873
eleito de um divino mister na terra que os anjos desertaram... [...] Mestre de
uma nova doutrina, em cujas rasas fileiras se alinhavam, em grande e imortal
esplendor, uma teoria de espíritos eleitos, o seu sonho cresceu dentro da sua
fé e dominante, avassalante, governou a euritimia do seu coração, tocando-o
de santidade e de êxtase evangélico. E os seus poemas foram um himnario de
exaltação religiosa e mística, toda uma metafísica, na qual, entretanto, a sua
alma se plasmara toda, reveladora e revelada de um divino mistério interior.
(BARBOSA, 1921, p. 1)

É possível observar no fragmento que Alphonsus de Guimaraens exerceu


influência decisiva na trajetória poética de Agenor Barbosa, na época com 25 anos.
Outro aspecto a ser observado é que o texto escrito pelo poeta apresenta características
da estética simbolista. Fato curioso é que pouco mais de três meses que escreveu o
artigo ocorre à morte de seu mentor.
Dessa forma, o soneto a seguir possibilita observarmos Agenor Barbosa como um
poeta simbolista.

De Ícaro...
(Ad Me Ipsum...)

Meu desejo de Glória e meu Orgulho! Quando


Eu vos sentir quebrar em meio da amplidão...
E de face risonha e de interior chorando
Renunciar ao meu Sonho, à Glória, à Perfeição...

Quando vier o momento em que, te proclamando,


Eu te sinta morrer, minha santa Ambição...
E crendo vivo o meu Orgulho venerando
Sentir que ele falhou dentro do coração...

Quando tudo for pó, tudo for ruinarias,


Meu Sonho, meu Porvir, esse Ideal que alimento
Este Amor, esta cruz que arrasto nos meus dias...

Quando tudo for pó, sem soltar um lamento,


Lembrarei como o Sol, cego de pedrarias,
Bendizendo o meu Sonho, à luz do firmamento!
(BARBOSA, 1915, n. p.)

O soneto trabalha o tema da morte em que o eu lírico percorre uma trajetória


introspectiva expondo o curso dos sentimentos que vão se dissipando até já não restar
esperança. A ideia da morte também está presente no próprio título do poema ao
conduzir para uma reflexão sobre o voo trágico de Ícaro na historia da mitologia grega.
É importante destacar que essa temática trabalhada no poema está presente na
construção do Movimento Simbolista momento em que os poetas também são

874
chamados de decadentes, pois não compartilham as ideias impostas pelos valores
estéticos vigentes naquele período, como descreve Bosi:

Os coetâneos dos “poetas malditos” chamaram-lhe decadentes. Como evasão,


e mesmo loucura, foi sentido o esforço desses homens que voltavam as costas
ao prestígio das realidades ‘positivas’ e se apoiavam em uma fé puramente
verbal, em uma liturgia magramente literária, enfim, numa “oração”
veleitária e narcisista. (BOSI, 2015, p. 282)

Outro aspecto referente à estética simbolista presente no soneto é a preocupação


do poeta em aplicar a métrica, rima e ritmo na construção de versos longos de doze
sílabas poéticas com acentos na 6ª e 12ª sílabas ressaltando a musicalidade e a melodia
através das rimas externas. Octavio Paz destaca que “[...] a função predominante do
ritmo distingue o poema de todas as outras formas literárias. O poema é um conjunto de
frases, uma ordem verbal baseada no ritmo.” (PAZ, 2012, p. 63). Tal maneio com a
linguagem, a repetição de certos fonemas, a combinação de rimas, bem como a
sugestão, a subjetividade e o mistério são características que definem a poética
simbolista.
O poema se inicia com o pronome possessivo “Meu” pronunciado duas vezes no
primeiro verso “Meu desejo de Alegria e meu Orgulho”, assim como no décimo verso
“Meu Sonho, meu Porvir” e ao todo nove vezes no decorrer das estrofes nos versos 1, 4,
7, 10, 11 e 14, no sexto verso ocorre a variação de gênero ao descrever “minha santa
Ambição”, o que direciona o eu lírico para um foco introspectivo guiado por uma voz
na primeira pessoa. Nota-se uma subjetividade pautada na intervenção pessoal presente
no próprio subtítulo “Ad Me Ipsum” que significa “Para Mim Mesmo” e ao ser
empregado ente parênteses reforça o aspecto reflexivo.
Pode-se dizer que este soneto possui uma marca temporal representada pelo
“Quando”: “Quando eu vos sentir”, “Quando vier” e “Quando tudo for pó”, no qual é
responsável por estruturar cada estrofe e expressar um modo e tempo verbal de uma
ação que poderá acontecer. O primeiro quarteto apresenta um eu lírico reflexivo ao
desejo de Glória e Orgulho, que ao expressar a eventualidade e possibilidade de romper
com tais sentimentos “Quando Eu vos sentir quebrar” renuncia ao Sonho, à Glória e à
Perfeição. É importante destacar a forma em que o eu lírico conduz tal renúncia “de face
risonha e de interior chorando” marcando um caráter íntimo ao cultuar sua dor, seus
sentimentos despedaçados e optar por sorrir. Destaca-se ainda que o poeta utiliza o

875
“vos” para se referir ao pronome “meu” que aparece no verso como: “Meu desejo de
Glória” e “meu Orgulho!” o que aponta um afastamento para descrever um sentimento
pessoal.
O percurso para o fim avança na segunda estrofe ao prenunciar a possibilidade de
morte da “santa Ambição”, bem como o sentimento de falha do “Orgulho” uma
projeção futura aliada a algo que se acredita ser inevitável. Os versos apresentam uma
relação sonora entre as palavras momento/morrer, crendo/dentro e Orgulho/falhou,
outro aspecto sonoro que nos remete à musicalidade presente na estética simbolista é a
repetição do fonema v no verso “E crendo vivo o meu Orgulho venerando”. O ponto de
articulação labiodental do fonema v nas palavras “vivo” e “venerando” traduzem a
vibração expressiva do sentimento de Orgulho.
No nono verso observa-se uma divisão do poema sintetizando o ápice da renúncia
de viver do eu lírico. Do primeiro ao oitavo verso todo sentimento expresso de honra
alcançado por virtudes, contentamento, anseios e o mais elevado grau de exatidão foram
reduzidos a pó, transmitindo a concepção da morte. Na sequência o verso se completa
com a palavra “ruinarias”, que apesar de fazer referência a algo concreto corrobora o
estado de destruição do sentimento de Glória, Orgulho, Sonho, Perfeição e Ambição. O
poeta trabalha em um jogo de rimas com as palavras “ruinarias” x “dias” e “ruinarias” x
“pedrarias”, sendo que na primeira relação semântica observa-se um sentido abstrato ao
passo que na segunda nota-se a imagem concreta relacionando os restos de algo que se
quebrou. O décimo verso anuncia um futuro utópico que se contrapõe ao peso do
“Amor” e da “cruz” no presente. As palavras Glória, Orgulho, Sonho, Perfeição e
Ambição são grafadas com letras maiúsculas para enfatizar o sentimento, conforme
afirma Bosi: “O aspecto gráfico altera-se pela profusão de maiúsculas, usadas para dar
valor absoluto a certos termos [...] sendo assim elementos compõem a estética
simbolista” (BOSI, 2015, p. 291).
A ideia de perder as esperanças nos conduz para o fechamento do poema trazendo
uma espécie de resposta para os versos anteriores ao mesmo tempo que nos revela algo
novo. No primeiro verso da quarta estrofe “Quando tudo for pó, sem soltar um lamento”
assim como no terceiro verso da primeira estrofe “E de face risonha e de interior
chorando” nota-se mais uma vez a forma em que o eu lírico caminha para o fim
omitindo seus sentimentos, ora pela face risonha, ora por não expressar seu lamento,

876
mantendo de forma intensa o aspecto introspectivo. Os versos do segundo terceto
apresentam uma cadeia sibilante do fonema s “sem soltar” seguido pelas palavras “Sol”
que se assemelha ao som da palavra “cego” e por fim a palavra “Sonho”. O verbo
lembrar no futuro do presente, “Lembrarei”, possui uma certeza, um sentido mais
enfático e decidido. Toda a trajetória rumo à morte de todos os desejos efêmeros
transmitem uma tranquilidade em que tudo valeu a pena “Bendizendo [...] Sonho, à luz
do firmamento!”. Ao final foi bom ter sonhado as efemeridades da vida.
O título do poema “De Ícaro...” em conjunto com a imagem do Sol no décimo
terceiro verso “Lembrarei como o Sol, cego de pedrarias” aponta para o herói trágico
presente no Mito de Ícaro. O Mito narra a história de Ícaro e seu pai Dédalo
encarcerados em um labirinto construído pelo próprio Dédalo após punição por
contribuir com a morte de Minotauro. O engenhoso Dédalo fabricou asas com as penas
soltas dos pássaros e cera. Antes de partirem para o voo que o levariam à liberdade,
Dédalo recomendou a Ícaro que não se aproximasse do sol, pois a cera poderia derreter.
Ícaro ignora os conselhos do pai e passa a subir cada vez mais alto, assim como o seu
pai previu, o sol acaba derretendo a cera e Ícaro morre ao cair no mar, conforme
descreve Kury “Antes de ambos saírem voando Dédalo recomendou ao filho que não
subisse demais, porém este não lhe deu ouvido e chegou muito perto do sol; a cera
fundiu-se e Ícaro precipitou-se no mar” (KURY, 1999, p. 207). Observa-se que a
citação do sol no poema, como na lenda de Ícaro assume um foco de destaque e a sua
luz faz referência a dois extremos: a vitalidade e a ruína. No poema, a lembrança do sol
traduz uma tranquilidade firmada na intensa luz emitida que mesmo em uma trajetória
para a morte e para perda da esperança como berço para a vida, em que luz do
firmamento conduzirá ao sonho. No mito, Ícaro rompe o aspecto simbólico do sonho de
voar. Ao realizar seu voo segue iluminado pela intensidade da luz do sol que o conduz
para inquietude da queda.
Diferente da estética apresentada nas revistas Vita e A vida de Minas nos poemas
publicados no jornal Correio Paulistano (1920-1924) nota-se uma linguagem que
apresenta ligação com a primeira fase do Modernismo no Brasil. No texto “A
divulgação da nova estética” de Mário da Silva Brito o poeta Agenor Barbosa é
apresentado como futurista por Oswald de Andrade e Menotti Del Picchia, momento em
que divulga a produção do livro de Agenor Barbosa intitulado Poemas da Vida e das

877
Cidades. Destaca-se que atualmente não se encontra nenhum registro do livro escrito
pelo poeta. Menotti revela ainda as características da poesia de Agenor Barbosa:

Seus poemas são naturalistas integralistas – de acordo com as nonas correntes


estéticas, fixando assim, numa compreensão integral da função poética de
agora, os aspectos da vida violenta e citadina, dando-lhes
contemporaneamente uma significação subjetiva, isto é, a alma imanente que
possuem e que os eleitos enxergam. (BRITO, 1997, p. 212)

Segundo Alfredo Bosi, Agenor Barbosa ao lado de outros poetas participou da


Semana de Arte Moderna no momento em que foram declamadas as poesias
“modernas”, no qual “[...] Agenor Barbosa obteve aplausos com o poema ‘Os Pássaros
de Aço’, sobre o avião [...]” (BOSI, 2015, p. 361).
Destaca-se que ao inserir Agenor Barbosa no contexto histórico do “futurismo
paulista” Oswald de Andrade e Menotti Del Picchia buscam embasamento em sua
poesia referente aos antecedentes da Semana de Arte Moderna. O poema “O Que Vi
Nessa Noite” publicado no jornal Correio Paulistano é um exemplo da criação do poeta
destacando o momento inicial em que vivia a transição da estética simbolista para o
Modernismo.

O QUE EU VI NESSA NOITE...

Ouço a chuva lá fora... Por enquanto,


eu me deixo ficar na minha sala,
a olhar um velho cofre de amaranto
e opala.

Velho cofre de sândalo, dormente,


que guarda o aspecto de um caixão macabro,
a que eu, às vezes, religiosamente,
abro...

Abro-o e fico a olhar lá dentro, coisas mortas...


Um piano, na noite? Ouçamo-lo: é Beethoven...

(Ah! Mas será que esses criados não ouvem


como batem as portas?)

A chuva desce sobre o asfalto... Olho a calçada...


Parece um cais, que alguém olhasse da amurada
de um navio... E como há miríades de luzes
em cordões infinitos, que se estendem!

Passam mulheres que os seus corpos vendem...

Que noite! Cruzes!


(BARBOSA, 1921, p. 3)

878
O título do poema anuncia a descrição de um momento, no qual insere o eu lírico
em um isolamento marcado pelo mistério ao relatar suas impressões e sensações do
ambiente interno relacionado à antiguidade, estabelecendo um confronto ao ambiente
externo alusivo aos aspectos da modernidade. No cenário em que várias coisas estão
acontecendo surge a preocupação em captar um instante.
O primeiro quarteto se inicia com percepção sensorial atribuída ao som “Ouço a
chuva lá fora...” a captação do eu lírico dá início a um sentimento de nostalgia
permitindo-se ficar em sua sala, momento que revela estar preso a eventos passados, ao
descrever a ação de “olhar um velho cofre de amaranto e opala.” A imagem do cofre
traduz um compartimento destinado a guardar algo, mas ao atribuir sentido ao aspecto
funcional nota-se a relação entre esconder e revelar. O objeto armazenado em um cofre
adquire valor, material ou sentimental que o impede de ser evidenciado a qualquer
instante, ou seja, com o cofre fechado o objeto está escondido. Ao abrir o cofre, tal
objeto é revelado incluindo o aspecto emocional. O filósofo Gaston Bachelard em sua
obra A poética do espaço trabalha os elementos com os quais o espaço se apresenta
como um modo de constituir a imagem poética. Ao trabalhar a imagem do cofre como
“objeto-sujeito” (BACHELARD, 2008, p. 248) apresenta uma das formas de revelar
uma concepção da intimidade.

No cofre estão as coisas inesquecíveis, inesquecíveis para nós, mas


inesquecíveis para aqueles a quem daremos nossos tesouros. O passado, o
presente, um futuro estão aí condensados. E, assim, o cofre é a memória do
imemorial.
[...]
O cofre, o pequeno cofre principalmente, de que temos um maior domínio,
são objetos que se abrem. Quando o cofre se fecha, é devolvido à
comunidade dos objetos; toma seu lugar no espaço exterior. Mas ele se abre!
Então, esse objeto que se abre é, diria um filósofo matemático, a primeira
diferencial da descoberta. [...] O exterior é riscado com um traço, tudo é
novidade, tudo é surpresa, tudo é desconhecido. O externo não significa mais
nada. E mesmo, supremo paradoxo, as dimensões do volume não têm mais
sentido porque uma dimensão acaba de se abrir: a dimensão da intimidade.
(BACHELARD, 2008, p. 252-253)

As características do cofre descrito remetem ao mistério enunciado desde o título


do poema. Outro aspecto a ser observado é que ao utilizar o verbo “ouço” em relação à
chuva, refere-se ao sentido da audição, sendo algo além da sua vontade, diferente ao
citar o cofre e utilizar o verbo “olhar”, algo voluntário destinado a observar algo. Do

879
ponto de vista formal, observa-se o início do poema com formação de versos
decassílabos em que a primeira e a segunda estrofe apresentam rima externa alternada
indicando a dificuldade do poeta em abandonar a estética simbolista praticada em seus
versos publicados anteriormente, conforme afirma Brito:

Nos poemas de Agenor Barbosa, por exemplo, pode-se notar uma certa
timidez formal que o inibe de chegar a uma completa ruptura com os cânones
acadêmicos: a rima é respeitada, a métrica não é integralmente ofendida,
embora seja variada, e se bem que a poesia obedeça a um ritmo pessoal.
(BRITO, 1997, p. 221)

Por outro lado pode-se afirmar que o poeta assumiu a dimensão simbolista como
uma herança, sendo algo que enriquece a poesia modernista. Em seguida, a segunda
estrofe incorpora mais características ao cofre, primeiro reforça a ideia do antigo e
assim temos um cofre: velho, de amaranto, opala, sândalo e dormente. Há a consciência
de que tal objeto é mórbido, pois compara-o a um objeto fúnebre: “que guarda o aspecto
de um caixão macabro.” A ideia da morte surge em um cenário noturno e misterioso
aliado a um objeto antigo. É possível identificar um paradoxo no ato de abrir o cofre
estabelecendo uma relação entre as expressões “às vezes” e “religiosamente”. A
primeira não se pode afirmar a frequência da ação, já a segunda atribui uma espécie de
ritual que ocorre de forma precisa e constante.
O segundo quarteto encerra-se com uma ideia não terminada marcada pelo uso de
reticências, no entanto o primeiro dístico retoma a ação de abrir o cofre e resgata o
vínculo estabelecido com o passado de forma tão intensa que o objeto é capaz de
materializar a revisitação à uma existência que não volta mais. Ao olhar o que se
encontra dentro do cofre impulsiona as recordações de uma experiência já vivida, um
instante introspectivo e de isolamento que revela “coisas mortas.” Tal pensamento é
interrompido pelo verso seguinte “Um piano, na noite? Ouçamo-lo: é Beethoven...” A
pergunta aponta para incerteza sobre a veracidade da descrição do fato, em seguida um
esforço para identificar o som que vem de longe.
Na sequência mais uma quebra é atribuída à temática desenvolvida no poema
trabalhando a ideia introspectiva e de isolamento no verso: “Ah! Mas será que esses
criados não ouvem como batem as portas?”. Demonstra ainda a preocupação do poeta
em reproduzir as inovações técnicas através da linguagem espontânea, conforma afirma
Brito:

880
[...] algumas ‘novidades’ merecem destaque, como a interrupção do
raciocínio lírico oferecida pelos versos entre parênteses e que aludem ao
quotidiano na indagação apresentada de maneira coloquial[...] – situação
versística esta que, contudo, permite ao poema manter, e de certo modo
acentuar, a sua atmosfera de melancolia e de solidão e que lhe reforça mesmo
o seu mistério poético[...]. (BRITO, 1997, p. 222)

A descontinuidade tem seguimento nos versos que compõe o fechamento do


poema. É o momento que o eu lírico se volta para o ambiente externo transmitindo a
ideia de volta à modernidade: asfalto, calçada, cais, amurada de um navio, miríades de
luzes, mulheres que seus corpos vendem traduzem a imagem da cidade e da vida
urbana. A ideia de existência vazia em virtude da solidão em que o eu lírico se mantém
por estar preso ao passado pode ser relacionada ao verso “Passam mulheres que os seus
corpos vendem...”. A venda dos corpos independente do conteúdo e dos sentimentos
que carregam aponta uma forma de expressar um alívio imediato para uma angústia
permanente.
O último verso está associado ao contexto de toda descrição realizada nos versos
anteriores encerrando a ideia apresentada no título e sintetizando o sentimento de
espanto através de uma entonação exclamativa. A interjeição “Cruzes!” remete a uma
ideia cômica, conforme menciona Brito: “O final da poesia, apesar de o autor pretender
ligado aos versos anteriores através da rima – luzes e cruzes –, desprende-se [...] como
um recurso do poema-piada, e é, não se discute, uma interferência prosística em
discordância com o espírito da peça.” (BRITO, 1997, p. 222)
A leitura do poema se completa ao reunir todos os elementos apresentados para
explorar seu conjunto e atribuir um sentido mais amplo. É um poema que expressa os
dois momentos da história literária do poeta Agenor Barbosa: o Simbolismo e sua
transição ao Modernismo. Iniciando pelo cenário no qual o poema foi constituído pode-
se afirmar uma mistura das estéticas literárias, mas sua estrutura nos conduz ao
movimento Modernista, sobretudo pela construção irregular, rompendo com a sintaxe e
empregando o verso livre. A estética simbolista surge na imagem do “velho cofre de
amaranto e opala” explorando a dimensão fúnebre com o “aspecto de um caixão
macabro”. O Simbolismo guardado como um cofre é conduzido pelo poeta e aberto “às
vezes, religiosamente”. Agenor Barbosa revela que frequenta e não esquece a estética
simbolista ao compor seus versos. Assim, temos um poeta que se mostra modernista e

881
decide experimentar uma nova estética sem se desligar da antiga. O ambiente interior
representando dentro da sala e dentro do cofre simboliza um sentido metafórico para
dentro do poeta expressando o aspecto introspectivo, no qual ocorre a lembrança e o
resgate com seu vínculo simbolista. Já o ambiente externo representado pela chuva que
desce o asfalto, a calçada semelhante a um cais, a imagem do navio e dos miríades de
luzes simbolizam a mudança exterior que conduz para a estética modernista.
Ao analisar os poemas “De Ícaro” e “O Que Eu Vi Essa Noite...” é possível
constatar que a poesia de Agenor Barbosa encontra-se entre o Simbolismo e o
Modernismo. O poema “De Ícaro” assim como os outros publicados nos periódicos Vita
e A vida de Minas apresentam o mistério, o subjetivismo e a linguagem sugestiva que
revela uma ligação com a estética simbolista. Em um segundo momento o poema “O
Que Eu Vi Essa Noite...” e os demais divulgados no jornal Correio Paulistano apontam
para uma dimensão modernista através da linguagem coloquial, a incorporação de
aspectos do cotidiano e o verso livre.
É interessante observar que o poeta transita para o modernismo sem que ocorra
uma mudança brusca ou ruptura rigorosa com a estética simbolista. Agenor Barbosa
consegue executar um projeto pessoal ligado ao Movimento Simbolista dentro do seu
momento Modernista. Assim, ocorre uma transformação na qual emprega aspectos
valiosos do Simbolismo ao constituir seus versos dentro da estética Modernista.

882
Referências
BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

BARBOSA, Agenor. De Ícaro. A vida de Minas, Belo Horizonte, n. 12, 1 set. 1915, não
paginado.

BARBOSA, Agenor. O Que Eu Vi Nessa Noite. Correio Paulistano, São Paulo, n.


20.771, 30 abr. 1921, p. 3.

BARBOSA, Agenor. O Ritimador do Silêncio. Correio Paulistano, São Paulo, n.


20.750, 9 abr. 1921, p. 1.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 38. ed. São Paulo: Cultrix,
1994.

BRITO, Mário da Silva. História do Modernismo brasileiro: antecedentes da semana de


Arte Moderna. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.

GOLDSTEIN, Norma. Versos , Sons e Ritmos. São Paulo: Ática, 2000.

KURY, Mário da Gama. Dicionário de Mitologia Grega e Romana. 5.ed. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1999.

MURICY, Andrade. Panorama do movimento simbolista brasileiro. São Paulo:


Perspectiva, v.1, 1987.

PAZ, Octavio. O arco e a lira. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

PEIXOTO, Sergio Alves. A consciência criadora na poesia brasileira: do barroco ao


simbolismo. São Paulo: Annablume, 1999.

VIANNA, Nelson. Efemérides Montesclarenses – 1707-1962. Rio de Janeiro: Irmão


Pongetti Editores, 1964.

VITA. Belo Horizonte: [s.n], 1913-1915. Mensal. Não paginado.

883
ESCRITORAS BRASILEIRAS E O PROCESSO DE RESGATE DE SUAS
OBRAS

Renato Kerly Marques Silva (UFSC)1

Resumo: Este trabalho analisa o processo de formação do campo de estudos literários voltado à
análise das obras de escritoras brasileiras, apresentando alguns trabalhos realizados por
pesquisadoras e pesquisadores de diferentes instituições de ensino superior. Destaca-se que a
estratégia de resgate de obras de autoras foi a ação que marcou e ainda marca muitos trabalhos
acadêmicos na área dos estudos literários influenciados pela crítica feminista e pelos estudos de
gênero.
Palavras-chave: Estudos Literários; Resgate de autoras; Estudos de gênero

A formação de grupos para reivindicação de direitos para as mulher, na Europa, a


partir do século XIX, marcou o início de um processo de crítica organizada à uma
norma social vigente na maioria dos grupos humanos, a opressão das mulheres. Esse
movimento de mulheres, ou movimento feminista, buscava a equiparação entre
mulheres e homens, a principal atividade desses grupos constituiu-se na luta pelo direito
das mulheres ao voto, entendia-se que a cidadania era um direito que as mulheres não
dispunham por não poderem participar dos processos de eleição dos representantes
políticos. Esse foi o início de um processo que alcançou muitas conquistas para as
mulheres, mas que ainda está longe de alcançar uma equivalência de direitos entre
homens e mulheres.
Como um dos efeitos dessa luta, o conhecimento científico também foi
questionado e os mais variados campos da ciência, foram afetados pela crítica que os
movimentos feministas fomentaram, refutando, sobretudo a ideia de inferioridade
intelectual da mulher. No campo literário esses questionamentos também produziram
efeitos ao questionarem as poucas obras literárias produzidas por mulheres. Virginia
Woolf (1985), nos anos de 1920, se perguntava por que as mulheres só costumava ser
bem aceitas se ocupassem a posição de fonte de inspiração ou objeto de análise em
trabalhos artísticos ou científicos. Ao pesquisar sobre obras escritas por mulheres ou que
tinham-nas como objeto de pesquisa, Woolf indagava: “Têm vocês alguma noção de
quantos livros são escritos sobre as mulheres em um ano? Têm alguma noção de
quantos são escritos por homens? Estão cientes de serem, talvez, o animal mais
discutido do universo?” (WOOLF, 1985, p.34). O efeito de todo esse empenho em

1 Graduado em Letras (UFMA), Mestre em Ciências Sociais (UFMA), Doutorando em Literatura


(UFSC). Contato: renatokerly@yahoo.com.br

884
realizar estudos sobre as mulheres tornou-se mais um elemento de controle operando
sobre elas.
Mais do que respostas a essas questões, o trabalho de Woolf pode ser
compreendido como o início de uma onda que junto ao trabalho de muitas outras
mulheres questionaram a forma como o conhecimento científico foi produzido e
apontaram os efeitos do machismo no processo de produção da ciência. A partir da
década de 1970, na Europa Ocidental e nos Estados Unidos da América começam a ser
consolidados um conjunto de estudos denominados Estudos Feministas. Tal momento, é
marcado pela emergência de um movimento conhecido como segunda onda feminista
(BRANDÃO, 2017), o qual produziu um arcabouço teórico que buscava identificar os
processos de produção histórica e social da opressão das mulheres, além de reforçar a
luta do movimentos feministas, em curso desde o século XIX.
Nos Estados Unidos, um dos primeiros movimentos de questionamento da crítica
literária produzida até então, centrou-se no movimento de revisão do Cânone Literário.
A Revisão, “ato de entrar no texto a partir de uma nova direção crítica” (RICH, 2017,
p.66), buscava rever as obras da tradição literária ocidental, cujos autores em sua grande
maioria eram homens, para realizar uma crítica radical da literatura, a qual

consideraria a obra prioritariamente como um indício de como (as mulheres)


vivemos, como temos vivido, como temos sido levadas a nos imaginar, como
a nossa linguagem tem nos aprisionado ou liberado, como cada ato de
nomear tem sido, até agora, uma prerrogativa masculina e como podemos
começar a enxergar e a nomear – e, portanto, a viver de uma outra maneira
(RICH, 2017, p.67).

Em momento paralelo, na França, começam os estudos da Écriture Féminine. A


despeito das diferentes perspectivas teóricas que orientavam estas pesquisadoras, acho
mais relevante destacar as semelhanças de suas propostas, quando retomamos o artigo
de Hélène Cixous, O riso da medusa, percebemos a aproximação com a proposta de
Adrienne Rich. Para Cixous,

é preciso que a mulher se escreva: que a mulher escreva sobre a mulher e


traga as mulheres à escrita, de onde elas foram tão violentamente distanciadas
quanto foram de seus corpos; pelas mesmas razões, pela mesma lei, com a
mesma letal finalidade. A mulher precisa se colocar no texto – como no
mundo, e na história -, através de seu próprio movimento (CIXOUS, 2017, p.
129).

885
A partir deste ponto, é importante destacar que ambos os movimentos
questionavam a situação de opressão das mulheres, e preconizavam que a mulher
deveria fazer um uso político da literatura, denunciando e questionando os efeitos do
machismo e, posteriormente, das opressões de classe, raça e sexualidades. Trabalhos,
como os citados, tiveram o efeito de apresentar à sociedade como o machismo produziu
um discurso em que a imagem da escritora era formada a partir de preconceitos que
sustentavam uma ideia de inferioridade e inaptidão da mulher para o trabalho
intelectual. Enquanto os textos literários escritos por homens reforçavam a imagem da
mulher como variando entre as ideias de sensível, inconstante, volúvel ou perigosa,
excluindo, também, nos textos ficcionais a possibilidade da mulher ocupar posições de
poder as quais eram reservadas aos homens.
No contexto brasileiro, a crítica literária feminista foi iniciada com o
questionamento sobre a reduzida quantidade de escritoras no rol dos grandes nomes da
literatura brasileira (SCHWANTES, 2006). Para os críticos, majoritariamente homens,
havia algo próximo a um consenso de que a pequena quantidade de escritoras
conhecidas dava-se em razão da quase inexistência de escritoras, ou devido ao pouco
valor estético que os textos escritos por elas teriam.
Junto ao questionamento do cânone, iniciou-se um longo processo de resgate de
textos literários publicados por mulheres no Brasil. O processo de crítica social que
animava o feminismo, caminhou junto com a produção de uma crítica literária que
destacava as relações de opressão presentes nas representações apresentadas nos textos
literários e no processo de invisibilização/apagamento de autoras da história literária
brasileira. Nesses casos, “a 'crítica' é justamente a prática que não apenas suspende o
juízo mas também oferece uma nova prática de valores, baseada nesta própria
suspensão” (BUTLER, 2013, p.160). Apesar do lento processo de recuperação dessa
história já existe uma grande linha de trabalhos que questionam o apagamento das obras
dessas escritoras e o pequeno espaço editorial destinado à publicação de novas
narrativas escritas por mulheres.
Os estudos de resgate têm nos apresentado um resultado que dialoga com o
pensamento de Joan Scott (1995), ao pensar como os gêneros são construídos e
significados na nossa sociedade, Scott nos lembra que processos históricos e sociais têm
operado no estabelecimento de classificações que estabelecem a divisão do mundo entre

886
homens e mulheres, assegurando a superioridade daqueles sobre estas. Nesse sentido,
instituições como o Estado, a Igreja, a Justiça e a Ciência têm sustentado discursos que
respaldam a superioridade de alguns sujeitos sobre outros. Na área da Crítica Literária,
como nas demais áreas do conhecimento, tais discursos tiveram e ainda têm muita
influência nos processos de reconhecimento e consagração de escritoras.
A Crítica Feminista têm se apresentado como uma forma de questionar os
discursos que sustentavam a ideia de que as mulheres seriam menos aptas para produzir
literatura. Dentre as várias atividades desenvolvidas pela Crítica Literária Feminista no
Brasil, podemos destacar dois pontos importantes: a formação de uma rede de
pesquisadoras e a publicação de livros e antologias de escritoras que foram silenciadas.
A formação de uma rede de pesquisa, apresenta-se como um importante ponto
para a organização e fomento das pesquisas sobre escritoras brasileiras. Identifica-se a
criação do Grupo de Trabalho “A Mulher na Literatura”, ocorrido juntamente com a
criação da Associação Nacional de Pós-Graduação em Letras e Linguística (ANPOLL),
em 1984, como ponto importante para estabelecer a comunicação e a divulgação de
diversos trabalhos que estavam sendo realizados, em muitos casos, de forma isolada e
sem receber a devida atenção. Com a formação deste grupo, pesquisadoras e
pesquisadores, com estudos em torno da crítica literária feminista e do resgate de
escritoras, encontraram um importante espaço para a discussão e enriquecimento de
seus trabalhos (DUARTE, 2010).
Junto com a formação da ANPOLL é importante lembrar que alguns eventos têm
sido realizados e servem de ponto de encontro para pesquisadoras experientes e
iniciantes discutirem sobre suas pesquisas e tentarem aprimorar as abordagens teóricas
utilizadas. Eventos como o Fazendo Gênero e o Seminário Mulher e Literatura são
importantes exemplos da longevidade desses encontros.
No aspecto editorial, destaca-se o trabalho para dar visibilidade a autoras e a
textos cuja leitura era dificultado pelo difícil acesso à pequena quantidade de cópias
disponíveis de textos publicados por algumas escritoras. Em alguns casos, restavam
poucos exemplares, pois após uma primeira edição, muitos livros não foram reeditados.
É possível que alguns livros publicados por mulheres possam ter desaparecido.
Um importante trabalho para a divulgação dessas obras foi a fundação da Editora
Mulheres. A análise dos textos realizada pelas pesquisadoras envolvidas na atividade de

887
crítica parecia ser apenas uma das etapas desse trabalho, sendo importante fazer com
que mais pessoas pudessem ler os textos de escritoras que publicaram textos ao longo
do século XIX, por exemplo. Sobre a fundação da Editora Mulheres, uma das suas
fundadoras, Zahidé Lupinacci Muzarte, dizia:

A partir dos primeiros resultados do projeto é que surgiu, de repente, a ideia


de criar uma editora cuja finalidade seria realizar um projeto de resgate, isto
é, reeditar livros de escritoras do passado, fossem elas brasileiras ou não.
Assim como as editoras feministas que nos antecederam, também
desejávamos tirar da marginalização os livros de mulheres do passado. Dessa
forma, em 1995, nasceu a Editora Mulheres, que só começou a funcionar de
verdade quando foi preparado, editado e lançado o primeiro livro, o que
ocorreu em outubro de 1996 (MUZART, 2010, p.175).

No catálogo da editora mulheres, encontrávamos textos de escritoras como Julia


Lopes de Almeida (1862-1934), Andradina de Oliveira,(1864-1935), Carmen Dolores
(1852-1910), Emilia Freitas (1855-1908), Maria Benedita (Délia) Bormann (1853-1895)
e Maria Firmina dos Reis (1825-1917). Os textos, escritos entre a segunda metade do
século XIX e as primeiras décadas do século XX, apresentavam um conjunto obras
distantes do público leitor, um dos mais importantes efeitos dessas publicações foi
ampliar o acesso para a formação de uma fortuna crítica sobre os romances e sobre a
vida das escritoras citadas. Além do reconhecimento de que importantes textos literários
foram escritos por mulheres.
Além das obras publicadas, a importante constatação que as pesquisas de resgate
de autoras chegaram, foi de que uma grande parte da produção literária escrita por
mulheres no século XIX, não estava registrada em livros, muitas poesias, cartas, contos
e ensaios haviam sido publicados em jornais e revistas femininas, o que restringia, ainda
mais, o acesso aos mesmos, pois as fontes que preservavam os textos estavam
guardadas em arquivos e bibliotecas, o que implicava um grande trabalho de pesquisa
para identificar e reproduzir tais textos.
Com o objetivo de rever a historiografia literária brasileira, Zahidé Muzart, com a
ajuda de 35 pesquisadoras, produziram um dos maiores trabalhos da crítica literária
brasileira, Escritoras brasileiras do século XIX, antologia crítica que apresenta e analisa
a obra de mais de cento e cinquenta escritoras, composto por três volumes, publicados
respectivamente em 1999, 2004 e 2009. Esta antologia usa como limites a demarcação
cronológica do nascimento das escritoras analisadas, dessa forma, há escritoras citadas

888
que nasceram nos últimos anos do século XIX e textos que foram escritos nas primeiras
décadas do século XX.
Simone Schmidt, uma das pesquisadoras que trabalharam na pesquisa que
resultou no na antologia Escritoras brasileiras do século XIX, destaca que o objetivo da
publicação ia além da divulgação das escritoras, o trabalho pretendia revisar a
historiografia literária brasileira:

deseja-se que se incorpore o surgimento de um potencial literário e crítico em


torno de uma pesquisa arqueológica. Estamos reescrevendo a história da
literatura do século XIX, mas muito mais a história da literatura do final do
século XX, pela inclusão de pesquisas criticamente consistentes e
teoricamente modernas. Não basta estarmos em lista de ensaístas brasileiras,
com nossos dados civis e acadêmicos. Precisamos entrar literalmente na
História (SCHMIDT, 2005, p.220).

A representatividade deste trabalho se deve por ele apresentar um conjunto de


textos escritos por mulheres que moravam em todas as regiões Brasil, englobando uma
multiplicidade de gêneros literários, estilos e temáticas.

os textos reunidos pelas pesquisadoras desconstroem uma representação


homogênea do lugar da mulher, seja na história, seja na literatura do século
XIX, eles também acabam por solapar qualquer idéia que equivocadamente
pudéssemos ter de uma identidade comum a unir todas essas escritoras
(SCHMIDT, 2005, p.222).

Outras pesquisadoras também produziram antologias que pretendiam dar


visibilidade a textos literários publicados por mulheres que foram esquecidas pela
história. Como mais um exemplo, temos o trabalho coordenado por Luiza Lobo, o Guia
das escritoras da literatura brasileira (2006), resultado de um trabalho de dez anos de
pesquisa, desenvolvidos com alunos da pesquisadora.
O livro é dedicado a trinta e seis escritoras nascidas ou residentes no estado do
Rio de Janeiro, que contassem com pelo menos um livro publicado. Seguindo uma
estrutura próxima à empregada em Escritoras brasileiras do século XIX, a antologia
produzida por Lobo apresenta dados biográficos das escritoras, elenca os livros escritos
por elas, junto com uma análise da obra das escritoras.
Apesar da divulgação dos trabalhos de um número significativo de escritoras, o
processo de resgate ainda continua em curso, sendo realizado por várias pesquisadoras
em bibliotecas e arquivos de diversas localidades.

889
Esse trabalho têm se mostrado como um importante movimento de reconstrução
de uma história literária, social e política da sociedade brasileira. As pesquisas que
resgatam as obras de escritoras, apresentam o trabalho literário como uma atividade
praticada por muitas mulheres e tem colaborado para recontar uma história que foi
silenciada. Ao trazer à tona estes textos, as pesquisadoras acabaram por refutar a opinião
de muitos críticos, os quais defendiam a ideia de que havia uma inexpressiva produção
literária de mulheres brasileiras em período anterior ao século XX.

Referências

BRANDÃO, Izabel (Org.). Traduções da cultura: perspectivas críticas feministas


(1970-2010). Florianópolis: EDUFAL; Editora da UFSC, 2017.

BUTLER, Judith. O que é a crítica? Um ensaio sobre a virtude de Foucault. In:


Cadernos de Ética e Filosofia Política. n. 22, p. 158-179, 2013.

CIXOUS, Hélène. O riso da medusa (1975). In: Traduções da cultura: perspectivas


críticas feministas (1970-2010). Florianópolis: EDUFAL; Editora da UFSC, 2017.

DUARTE, Constância Lima; STEVENS, Cristina Teixeira. E assim se passaram 25


anos! História do GT Mulher e Literatura na ANPOLL. In: Revista da ANPOLL. n.28,
v.1, p. 30-50, 2010.

LOBO, Luiza. Guia de escritoras da literatura brasileira. Rio de Janeiro: FAPERJ,


2006.

MUZART, Zahidé Lupinacci. Uma editora de fundo de quintal: a Editora Mulheres. In:
Mulher e literatura - 25 anos: raízes e rumos. Florianópolis: Editora Mulheres, 2010.

RICH, Adrienne. Quando da morte acordamos: a escrita como revisão. In: Traduções da
cultura: perspectivas críticas feministas (1970-2010). Florianópolis: EDUFAL; Editora
da UFSC, 2017.

SCHWANTES, Cíntia. Espelho de Vênus: questões da representação do feminino.


Disponível em: http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/artigo_cintia.htm acessado em:
20.06.2006.

SCHMIDT, Simone P.; RAMOS, Tânia Regina Oliveira. Escritoras brasileiras do


século XIX. Graphos - Revista da Pós Graduação em Letras/UFPB, João Pessoa, v. 7,
n.2, p. 219-222, 2005.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Educação e
Realidade. v..20, n.2, p. 71-99 , 1995.

WOOLF, Virgínia. Um quarto todo seu. São Paulo: Editora Nova Fronteira, 1985.

890
 

 
 
VOZ E TRADUÇÃO NA ESCRITA EXPERIMENTAL DE MICHEL BUTOR

Amayi Luiza Soares Koyano (USP)1

Resumo: A tradução, para Butor, adquire o caráter de unicidade vocálica e a passagem das
múltiplas vozes para a voz múltipla do narrador. O emprego da tradução na escritura butoriana
deve-se ao seu desejo “de faire parler les autres”, de registrar suas vozes e de transformá-las em
personagens. A prática tradutória, para Meschonnic, vem reconhecendo a oralidade e se
transformando a partir dessa percepção, componente da renovação na teoria da linguagem e
indissociável da teoria da literatura. Butor, analisado segundo Meschonnic, imprime na tradução
enquanto criação literária o que há de mais contemporâneo dentro dos estudos discursivos: a
escrita experimental pela tradução das vozes como elemento-base para a tipografia do livro.
Palavras-chave: Michel Butor; Voz; Tradução; Escrita experimental

Michel Butor, nascido em 14 de setembro de 1926, no norte da França, foi


romancista, poeta, ensaísta e professor universitário de língua e de literatura francesas
na França, nos Estados Unidos, na Suíça, no Egito e na Inglaterra. Muito ativo tanto na
criação quanto na crítica literária e de artes visuais, trabalhou até o fim de sua vida na
escrita de poemas e em parcerias com artistas visuais e músicos, vindo a falecer em 24
de agosto de 2016. Foi premiado em 2013 pelo conjunto de sua obra pela Académie
Française, tendo já sido contemplado, dentre outros, com os prêmios Fénéon e Renaudot
em 1957, com o Prix de la Critique Littéraire em 1960, com o Grand Prix du
Romantisme Chateaubriand em 1998, com o Prix Mallarmé em 2006 e com o Grand
Prix des Poètes de la SACEM em 2007. Múltiplas foram as formas de exploração da
voz autoral para o escritor, incluindo nessa lista os livros de artista, os de literatura
infantil, os de parcerias com outros artistas e os livros sonoros (ou vocalizados), como
Pensées à voix haute (2017). Uma das formas abarcadas pelo escritor para se tratar da
voz é por intermédio da tradução como criação literária.
O emprego da tradução na escritura butoriana deve-se ao seu desejo “de faire
parler les autres” (BUTOR, 2017, n.p.), de registrar suas vozes, tal como ocorre com o
registro fonográfico, e de transformá-las em personagens que, em certa medida, se
assemelham ao próprio escritor, que as escuta e as apreende por meio de seus discursos.
A prática tradutória, para Meschonnic (2006, p. 8), vem reconhecendo a oralidade e se
transformando a partir dessa percepção, que é componente da renovação na teoria da
linguagem, sendo esta indissociável da teoria da literatura. Butor, analisado segundo
                                                                                                                       
1
  Bacharela em Letras (UFMG), mestranda em Estudos Linguísticos, Literários e Tradutológicos em
Francês (USP). Contato: amayi@usp.br  

891
 

 
 
Meschonnic, imprime na tradução o que há de mais contemporâneo dentro dos estudos
discursivos:

J’ai commencé par écrire des romans et là-dedans j’ai essayé de faire parler
des personnages, des personnages qui me ressemblait à certains égards et qui
pourtant étaient autre par certains signes essentiels […] donc il avait des
signes qui me distinguaient dans tels personnages. Et puis après ça, quand je
voyageais de plus en plus, je me suis efforcé de faire parler les gens que
j’avais rencontré, par exemple, lorsque j’ai voulu parler des États-Unis, le
seule moyen pour moi ça a été de trouver du discours américain, du langage
américain à faire passer en français. […] J’ai donc essayé de faire parler les
américains eux-mêmes, j’ai tendu une espèce de micro, si vous voulez, à la
population américaine et pour d’autres pays du monde ça a été pareil, je n’ai
pas pu me passer de l’intermédiaire de la littérature au-delà des ces pays-là.
(BUTOR, 2017, n.p.)

Butor, enquanto intermediário da literatura, dá voz às pessoas que conheceu em


suas viagens ao exterior. As viagens permeiam suas obras, tanto quanto os discursos que
elas representam. Partindo do desejo de retratar os países que visitou, o escritor
registrou os discursos de seus povos, com “une espèce de micro” (BUTOR, 2017, n.p.)
que capta as vozes tal como elas são, garantindo assim a fidedignidade pretendida pelo
escritor em suas representações vocálicas. Vemos, neste ponto, que a voz para Butor
permeia a tradução que ele realiza desses discursos: ele não teoriza diretamente a voz
em Pensées à voix haute, mas exprime a importância que ela possui nos discursos que
capta e que o cercam. O uso de uma espécie de microfone, como ele relata, ressalta a
importância da oralidade e da vocalidade na criação das imagens pretendidas, visto que
“o âmbito da voz é constitutivamente mais amplo que o da palavra: ele o excede”. Não
se trata, portanto, de um registro que apenas “liga a voz à palavra” (CAVARERO, 2011,
P. 28), mas que busca unir “o funcionamento da voz enquanto portadora de linguagem”,
portanto oralidade, ao “conjunto das atividades e dos valores que lhe são próprios,
independente da linguagem” (CAVARERO, 2011, p. 27), portanto vocalidade. Isso
porque a oralidade passa pela unicidade do sujeito portador da voz, enquanto a
vocalidade abarca todos os valores empregados pelo autor na prática de empregar a voz
enquanto ferramenta literária de grande valor estético por seu caráter fônico.

[…] dans une traduction on peut parler, on peut traduire toute sorte de chose
différente dans un texte, on peut traduire la superficie du texte ou bien des
choses beaucoup plus profonde, on peut traduire d’une façon tout à fait
sérieuse et respectueuse ou bien il peut y avoir toute sorte d’ironie à
l’intérieur même de la traduction. (BUTOR, 2017, n.p.)

892
 

 
 

A própria voz de quem traduz é impressa no texto traduzido. Para Butor, é


exatamente por esse caráter único do texto traduzido, em que a voz do tradutor ressoa
através de suas escolhas lexicais, sintáticas e semânticas que a descrição, as imagens
que ele captou em suas viagens ao exterior e as vozes que registrou em seu “microfone”,
em especial aos Estados Unidos presente em Mobile. Étude pour une représentation des
États-Unis (BUTOR, 2008 [1962]), só podiam ser feitas por intermédio de sua própria
tradução:

il a fallu naturellement que je les traduisent entièrement et il était essentiel


que la traduction soit la mienne. Il était impossible pour moi d’utiliser des
traductions déjà faites, d’abord pour la plupart de ces textes il n’y en avait
pas, pour certains textes classiques il pouvait y en avoir mais qui ne me
satisfaisait pas. (BUTOR, 2017, n.p.)

Fica mais evidente ainda a voz do tradutor Butor, que é antes de tudo leitor e
ouvinte desses discursos da alteridade, quando o escritor afirma que seu objetivo é de
“faire passer des données essentielles de telle ou telle culture à l’intérieur de la mienne
par une certaine lecture” (BUTOR, 2017, n.p.). É por meio da leitura que se faz a
tradução do Outro e de sua cultura, passando pelo filtro da cultura francesa do escritor e
de suas características linguísticas. A tradução butoriana é do Outro, mas é também a
sua própria enquanto personagem e enquanto escritor francês.

Et donc, l’écrivain furieux, si vous voulez, va dépenser une énergie


extraordinaire pour réussir à vaincre cette impossibilité, pour réussir à dire ce
que l’on n’était pas capable de dire auparavant. C’est ce qu’il fait d’ailleurs
qui le si difficile pour l’écrivain de dire comment il procède de dire tout d’où
il vient, puis qu’il s’agit de rendre dicible quelque chose qui auparavant ne
l’était pas. C’est un manque, si vous voulez, c’est une obscurité, mas
l’exemple des langues est très éclairant pour ça, on passe de l’une à l’autre,
de quelque chose qu’on n’arrivait pas à dire en français, sauf avec des
quantités des secondes locutions etc., et puis il y a un bon traducteur qui
réussi a trouver ça, un bon traducteur qui se soit un traducteur directe ou
indirecte, c’est-a-dire, qu’il traduisait effectivement une œuvre japonaise ou
bien qu’il s’inspire de certains donnés de la culture japonaise pour faire
quelque chose en français. Alors, là on voit très bien qu’on devient capable
de dire quelque chose qui l’était très difficile de dire auparavant, et bien on
peut généraliser ça, il s’agit de réussir à dire des choses qu’il était jusqu’à
présent très difficiles de dire dans n’importe quelle langue. (BUTOR, 2017,
n.p.)

893
 

 
 
A tradução se torna um meio, para o que Butor denomina de “écrivain furieux”
dizer o que era impossível de ser dito em uma língua, mas é possível de se dizer em
outra. É por meio da tradução direta ou indireta, do ponto de vista do escritor, que a
literatura francesa, e mesmo a literatura de qualquer outro país, alcança a possibilidade
de se expressar de um modo antes inimaginável. “Relacionado à função do logos, como
phoné semantiké, o problema da diversidade das línguas faz cair sobre a phoné uma
sombra desfavorável” (CAVARERO, 2011, p. 79) mas que, em Butor, é capaz de
transformar os limites da língua francesa para além de suas possibilidades linguísticas.
A phoné passa a exercer o ponto de partida do encontro entre as línguas e as
possibilidades particulares que carregam, fazendo com que a tradução seja a ponte onde
o “écrivain furieux” percorrerá o caminho do Dizer em uma língua o que só era possível
de ser Dito em outra.
A organização da obra Mobile. Étude pour une représentation des États-Unis
(BUTOR, 2008 [1962]), assim como de Pensées à voix haute (BUTOR, 2017) é
realizada seguindo a ordem alfabética dos estados americanos. Não há, portanto,
hierarquia entre as partes do texto. A obra representa “uma espécie de atlas literário ou
de relato de viagem sobre os Estados Unidos”, de acordo com Guilherme Zica. Trata-se,
portanto de uma obra que “ilustra esse aspecto do processo de produção de Butor, de
acordo com o qual o livro é feito não somente para ser lido da primeira à última linha de
uma única vez, mas também para ser relido e revisitado permanentemente” (ZICA,
2017, p. 144), do mesmo modo que são consultados os dicionários, os catálogos e as
enciclopédias. Essa é uma das fronteiras que Butor procurou se situar: entre literatura e
textos do cotidiano. É por esse mesmo motivo que Mobile é tão importante para se
compreender a escrita butoriana, pois a obra trata também da passagem de uma fronteira
a outra dentro de um mesmo território, abarcando todos os discursos representativos de
uma cultura e que compõem o pano de fundo das produções literárias de uma época.
Em uma espécie de colagem textual, em Mobile o escritor mescla vozes humanas
às emissões radiofônicas, aos gritos e aos sibilos discretos que solicitam o silêncio
(“psst !”, “chut !”, “psst !”), em vão. Trata-se de uma escrita experimental, que
comunga versos poéticos do escritor com textos dos mais variados gêneros: os catálogos
de produtos vendidos por correspondência pela Sears, Roebuck & Co.; os discursos
políticos de Thomas Jefferson e de Benjamin Franklin; o julgamento de Susanna Martin

894
 

 
 
em 1692, em Salem; o ato de fundação da Igreja Nativa Americana, a Peyote Church of
God; os enunciados sem enunciadores, ouvidos em diversas situações e em várias
localidades; o catálogo das exposições do The National Quilt Museum; as matérias de
jornais; os informativos da inauguração do parque temático sobre a história
estadunidense, o Freedomland USA; as ligações telefônicas, por intermédio de
telefonistas, solicitando chamadas para outros estados; as músicas tocadas pelas rádios,
“dont la radio hurle” (BUTOR, 2007 [1962], p. 211); as cartas de Thomas Jefferson ao
seu professor de música, John Fabroni; o próprio relato do escritor sobre sua passagem
por Los Angeles, em forma de diálogo com outro professor universitário, no qual eles
discutem sobre a mistura de elementos religiosos e comerciais nos Estados Unidos,
tendo como referência a análise que fazem da visita que realizam ao Clifton’s Cafeteria
(restaurante que mescla cultura cristã, com a recriação do jardim de Getsêmani, à sua
finalidade comercial, atraindo milhares de peregrinos em busca de alimento para o
corpo e para o espírito); as publicidades (das sopas Heins, da Coca-Cola, da Pepsi-Cola,
bem como os letreiros dos jornais The New York Times e The New Yorker); dentre
outros.
Todo o livro se caracteriza por vozes que se cruzam e que se conectam de forma
intercalada. É por meio da tipografia em alternância entre românico e itálico, entre
topônimos em maiúscula e entre textos com recuos variados numa mesma página que a
multiplicidade de vozes se apresenta na obra. Devido à escrita experimental de Mobile,
que não é um romance (apesar de ser essa a intenção de Butor ao viajar aos Estados
Unidos, a de escrever o seu quinto romance, que nunca foi escrito) e nem uma antologia
poética, cada parte do texto marcada por esses recuos e por essas tipografias apresentam
pontos de vista narrativos distintos. Nas partes em que aparecem poemas, podemos falar
de eu-lírico; nas que aparecem textos em prosa, a depender do gênero, em narrador, mas
torna-se mais coerente denominar todos esses sujeitos discursivos de enunciadores.
Qual seria, então, o enunciador maior, o que organiza todos esses discursos, que os
coloca à disposição do leitor? Como definir esse enunciador que viaja de um ponto a
outro, percorrendo todos os estados norte-americanos, e que recolhe por onde passa os
enunciados que escuta e que registra no papel, em forma de livro? Penso que seria mais
apropriado considerar esse enunciador maior como aquele que ouve todas essas vozes e
as transforma em voz múltipla.

895
 

 
 
No ensaio “Le livre comme objet”, presente no Répertoire II (BUTOR, 2006
[1964]), Michel Butor afirma que o livro é apenas mais um dos meios que possuímos de
conservar a parole. Além do livro, na década de 1960 (data da escritura deste ensaio) já
possuíamos outros meios de registro da parole e de seu timbre e entonação, como ele
indica ser o vinil, o gravador e o cinema. “Chaque ligne d’écriture, donc chaque
mouvement continu de l’œil, correspondra à une unité de signification, d’audition ; le
temps que met le regard à sauter d’une ligne à l’autre traduit le silence de la voix”
(BUTOR, 2006 [1964], p. 452). É por meio da tipografia empregada por Mallarmé em
Un coup de dés jamais n’abolira le harsard que Butor irá traçar os quatro princípios
fundamentais, presentes também em Mobile:

Les différences d’intensité dans l’émission des mots sont traduites


par des différences des corps. Les mots prononcés fort, et qui
appartiennent dans le cas de ce poème, à la proposition principale,
sont imprimés en caractères plus gros. L’ordre des intensités chez
Mallarmé équivalent à celui des subordinations. […] Les blancs
indiquent les silences : blancs entre les paragraphes ou strophes, plus
ou moins épais, blancs à l’intérieur des lignes, plus ou moins longs et
surtout décalages plus ou moins grands d’une ligne à l’autre. […] Il
est certain que Mallarmé a cherché de plus en plus un équivalent
de la hauteur des sons, de l’intonation. Il voulait que le haut de la
page correspondît au plus aigu, le bas au plus grave, comme dans une
portée. […] À cela s’ajoute la différenciation très courante entre
deux « couleurs » typographiques : le romain et l’italique, qui
correspond à la transcription d’un timbre ou d’une voix. […] Il faudra
peu à peu que les écrivains apprennent à manier les différentes sortes
de lettres comme les musiciens leurs cordes, leurs bois et leurs
percussions. (BUTOR, 2006 [1964], p. 462-463, grifos meus)

É possível identificar no livro vários personagens, como os índios, os brancos, os


estrangeiros, os pais fundadores, bem como vários de seus ethé, banhados pela
segregação racial, – “for whites only” (BUTOR, 2007 [1962], p. 308), “cet
établissement est ‘restricted’” (BUTOR, 2007 [1962], p. 175) – pela mudança ocorrida
da representação dos povos indígenas entre o ato fundador da Igreja Nativa Americana e
a objetificação de suas culturas, que viram fantasias e encenações cômicas no parque
temático, “des mannequins d’Indiens cachés dans les buissons tirent des coups de feu
inoffensifs et lancent des flèches téléguidées” (BUTOR, 2007 [1962], p. 297).
Em relação aos efeitos causados pela tradução de textos ligados diretamente à
uma cultura específica, Cesarino destaca a importância de se questionar “até que ponto

896
 

 
 
o trabalho de tradução altera ou não o ‘mito’”, se tomarmos a cultura ocidental e as
múltiplas representações de seus povos, em especial a estadunidense para o caso de
Mobile (BUTOR, 2008 [1962]), como mítica, visto que, se “[...] o mito é justamente
aquilo que melhor sobrevive às traições da tradução, não deixa também de ser
verdadeiro que novos mitos se produzem (de maneira mais ou menos deliberada)
justamente a partir das torções tradutórias” (CESARINO, 2014, p. 90). Nesse sentido,
vale o questionamento: as traduções butorianas, até que ponto ou medida, geram torções
tradutórias e, portanto, novos mitos dos povos retratados? O mito estadunidense
apresentado por Butor em Mobile não deixa de sofrer interferências do escritor que os
traduziu ao transformá-los em literatura francesa, esse é um ponto, pois não se trata
nessa obra de produzir literatura estadunidense do ponto de vista de um francês, mas de
remeter esses discursos gravados, essas outras vozes, à uma literatura com
características bem distintas da produzida nos Estados Unidos.
Butor dá voz aos personagens que narra, ele os faz falar em um cruzamento entre
a cultura proveniente desses discursos e a sua, francesa. Sua percepção do outro e dos
outros – “des personnages plus au moins individuels puis des discours qui sont collectifs
[...] des discours qui ne sont pas considérés comme les expressions d’individu mais
comme l’expression de la foule ou de la majorité […] ” (BUTOR, 2017, n.p.) –, no
entanto, não deixa de atravessar o seu logos francês, objetivo final de sua escritura –
“[...] il fallait que je trouve une façon de dire en français ces choses-là avec toutes les,
disons, toute la profondeur qui peut y avoir à l’intérieur d’une traduction […]”
(BUTOR, 2017, n.p.). O dizer que Butor suscita aos outros não franceses remete ao
“quem fala?” que, “enquanto único e, sobretudo, enquanto aberto à unicidade de um
outro” busca na compreensão do Dizer, “evento pelo qual os seres humanos, cada um e
um ao outro, se falam, não importando o que dizem”, o Dito, “que é, ao mesmo tempo,
aquilo que eles se dizem e o que diz o inteiro saber do Ocidente, mas é, sobretudo, o
sistema que organiza a palavra” (CAVARERO, 2011, p. 45-46).
O Dizer e o Dito, captados pelo microfone butoriano da escuta atenta, que pode
ser entendido como uma metáfora do ouvido, sofrem os efeitos do logos francês do
escritor ao passar pela sua própria tradução desses registros fônicos. Butor, apesar da
sua escuta ativa do discurso e dos modos de dizer dos Outros, faz parte da literatura dita
francesa; ele não se pretende um escritor universal, sem logos definido ou mesmo de

897
 

 
 
logos amplo e sem fronteiras. A França e os leitores franceses e francófonos são seu
destino e seu objetivo finais, senão maiores. A criação de sua escrita-mundo
(MORELLO, 2012) passa pela França e pela sua língua materna e compõe a literatura
de seu país.
Esse tradutor central da obra está imerso em uma atmosfera sonora múltipla, de
múltiplas vozes que, até o fim do livro, perdem-se em meio umas às outras, restando
apenas partes de palavras, restos de ecos, de repetições e de dizeres que não importam
mais do que a própria voz que os transmite e que não se recuperam ao longo do dia. É
como uma extensa canção em que o que resta dela são as impressões, os rastros
deixados pelos refrãos, desses enunciados colados uns aos outros e retomados ao longo
da obra, ecoando na cabeça do leitor como lembrança de um trecho que já foi lido e que
se expande em outro, e em outro, que se aglomera a tantas outras repetições de tantos
outros discursos entrecruzados.
De certa forma, a confluência de vozes tão distintas, e que podem estar tão
distantes espacialmente umas das outras, se reúnem no livro por intermédio desse
ouvinte atento e alheio às situações de suas emissões. O que essas vozes emitem, o Dito
que expressam, aqui não se faz relevante: importa mais o Dizer em si. A unicidade das
vozes não está no significado que as suas palavras oralizam, pois não são palavras que
remetem a um ser em particular; podem ser ditas por qualquer um, em diversos
momentos. É a própria vocalização, o fato de se fazerem ouvidas por outros além dos
destinatários a quem se dirigem que provocam os pedidos de silêncio e as chamadas
para o diálogo, que podem ser dirigidos a uma voz em particular ou a todas elas juntas.
Não há, no decorrer da obra, indícios explícitos de que uma dessas vozes pertence ou
não ao enunciador maior, àquele que está à espreita e que as registra em seu
“microfone”; há apenas uma passagem em que é possível se questionar se esse “je” do
texto pertence ao relator dessa viagem pelos Estados Unidos:

Quelqu’un, appartenant au département de français de l’Université de


Californie à Los Angeles, me demanda si je préférais voir quelque chose de
beau ou quelque chose de laid. « Laid, bien sûr ! – Je vais vous emmener à
Clifton’s Cafeteria… » (BUTOR, 2007 [1962], p. 326)

898
 

 
 
A voz, para o escritor, vai além da comunicação, tornando-se a própria função da
literatura. São as múltiplas vozes que dão vida à viagem do enunciador maior e é graças
a elas que o livro se faz. Nas palavras de Cavarero,

Registrada, mas não tematizada, a unicidade de cada voz se torna, em outros


termos, o pressuposto para a autenticidade da “voz” autoral referida no texto
escrito. O jogo é sutil: o funcionamento da metáfora requer que a voz, em sua
perceptibilidade sonora, seja única, mas a própria metáfora transforma o fato
da unicidade na peculiaridade de um estilo consagrado à escrita. Se, em meio
aos vários aspectos desse estilo, existe também um ar musical, exatamente
aqui está a passagem preciosa que reaproxima a “voz” da voz.
(CAVARERO, 2011, p. 113-114)

A tradução como criação literária de Michel Butor é apresentada no filme Michel


Butor Mobile (2001), com duração de 61 min, dirigido por Pierre Coulibeuf e estrelado
por Michel Butor e por Mireille Calle-Gruber. Nessa produção, vê-se a copresença da
entrevista literária, dos trechos de obras do escritor e da atuação tanto dele quanto de
Calle-Gruber, em uma espécie de colagem cinematográfica, que pode inclusive ser
entendida como uma releitura – ou uma mise en scène – das técnicas do Nouveau
Roman butoriano no cinema (lembrando que Mobile representa a saída de Butor do
Nouveau Roman, mas possui ainda características desta estética).
Para Thaïs Flores Diniz, as referências intermidiáticas são estratégias de
constituição do sentido e contribuem para a significação final de um produto – no caso
de Coulibeuf (2001), um filme. É a partir dos meios de execução do produto final que é
possível fazer referência tanto a uma obra específica pertencente a uma outra mídia (o
que a pesquisadora denomina de referência individual) quanto a todo um sistema de
mídia (denominado por ela de referência a um sistema). Esse produto final estará
totalmente ou parcialmente em relação às obras a que se refere, por meio da
tematização, da evocação ou da imitação de elementos ou de estruturas dessas outras
mídias referidas (livros e entrevistas literárias) e que são distintas da mídia a que
pertence (cinema) (DINIZ, 2018, p. 48-49).
Iniciando a análise pelo título do filme, Michel Butor Mobile (COULIBEUF,
2001), a presença do nome do escritor e do título de uma de suas obras já sugere poder
esta nova produção se tratar de uma releitura do livro citado, seja por meio da referência
individual, seja por meio da referência ao sistema de criação específico desta obra,
incluindo nesse produto final as técnicas de criação do escritor – e sua relação com a

899
 

 
 
pintura e com a música – para se construir o filme. Para além da análise do título, o
filme como um todo pode ser estudado a partir da categoria de referência intermidiática,
visto que “a obra pertence a uma única mídia [o cinema], mas faz referência à, ou
evoca, outra mídia [a literatura, as entrevistas literárias, a música, a pintura]” (DINIZ,
2018, p. 47), pois ela não é uma entrevista literária, nem o romance La Modification,
tampouco Mobile, mas evoca e refere-se a elas e a outras produções de Butor para a
criação fílmica. Dentro dessa categoria de referência intermidiática, é possível
considerar tanto a entrevista literária quanto as obras de Butor citadas acima como
referências a um sistema. A primeira é constituída de perguntas do entrevistador (no
caso do filme, essas são feitas por Mireille Calle-Gruber ou introduzidas pelo próprio
escritor como temas) e de respostas do escritor (às perguntas e aos temas que ele
enuncia). Já as obras literárias representam o referente da produção fílmica: as cenas de
Calle-Gruber em viagem de trem à casa do escritor e a própria montagem dessas cenas
remetem diretamente à viagem do narrador diegético de La Modification, dificultando
saber se se trata da viagem de ida ou da de retorno dessa personagem à casa de Butor; e
a ideia de recriar na produção fílmica, por meio da confluência de gêneros diferentes
(entrevista literária, obras do escritor, atuação) e da presença de cores diversas
(contrastante entre claro e escuro e entre dentro e fora da cara) o mesmo efeito de
recepção do filme que teve o leitor de Mobile.
No decorrer de Michel Butor Mobile (COULIBEUF, 2001), nas cenas em que há a
presença da entrevista literária, há uma em que Butor descreve o processo de construção
de Mobile, bem similar ao que ocorre no filme:

Mobile. J’avais besoin de pouvoir faire passer les choses à travers les
pages, comme des migrations sur le territoire des Etats-Unis ou
comme des nuages sur un paysage. Et donc, j’avais besoin pour cela
d’avoir des couleurs très tranchées dans mon texte, un peu comme
des couleurs fauves. C’est pour ça que j’ai pris des textes de
genres très différents les uns des autres, des discours politiques, par
exemple, des prospectus, des descriptions à l’intérieur des catalogues.
Et puis, à travers ça, j’ai fait passé des textes très différents, des
narrations découpées en quelque sorte en bande, et puis des sortes
des refrains, des refrains qui interviennent chaque fois qu’on est au
bord de la mer, chaque fois qu’un état se trouve au bord de la mer.
Ainsi on a des couleurs stylistiques qui sont très fortement marquées.
Et donc les choses peuvent se mêlées, peuvent passées les unes à
travers les autres et pourtant restées bien identifiables au moment
où l’on veut. C’est un peu comme des instruments de musique qui ont

900
 

 
 
des timbres très différents. Alors on se trouve à une frontière entre
divers genres, bien sûr, mais on se trouve surtout dans l’invention de
genre, d’un genre tout à fait nouveau, et ça a beaucoup surpris, je dois
dire. (BUTOR, apud COULIBEUF, 2001 [08:59 – 10:35], grifos
meus)

Segundo Butor, Mobile encontra-se na fronteira entre gêneros diversos,


representados por cores que podem ter sido inspiradas no movimento fauvista da pintura
– nascido no início do século XX, na França –, sendo possível distinguir cada um desses
gêneros textuais que compõem esse espaço fronteiriço e que são transformados em
refrãos dentro da narrativa, portanto, em música. A importância dessa obra está
exatamente nessa característica, de transpor gêneros textuais diferentes em aspectos
picturais e, a partir deles, compor uma música por meio de refrãos diversos que se
cruzam dentro do espaço da narrativa textual. Mas como bem lembra o escritor, não se
trata apenas de uma fronteira entre gêneros diversos, mas também de um espaço de
criação de um novo gênero – no caso do filme, a fronteira está entre documentário,
ficção e cinema de arte.
Retomando a análise da produção de Coulibeuf (2001), uma única produção pode
conter mais de uma categoria intermidiática, de modo que a existência de uma não anula
a presença de outra, como destaca Diniz, “uma única configuração midiática, por
exemplo uma adaptação cinematográfica, pode preencher os critérios de duas ou até de
todas as três categorias intermidiáticas” (DINIZ, 2018, p. 50). Sobre o processo de
criação intermidiático enquanto transposição, a pesquisadora afirma ser essa uma
concepção relacionada à gênese, à própria criação da obra. O original, nesse caso
Mobile, representa a fonte, a origem do filme, sendo sua formação calcada num
processo de transformação específico desta mídia de origem.
É possível, portanto, analisar essa obra como transposição midiática por meio de
uma adaptação cinematográfica de Mobile. A mise en scène do livro ocorre por meio da
recriação da viagem do escritor aos Estados Unidos nos anos 1960 – origem do livro –
mas de forma invertida, ou seja, a partir de uma viagem de Calle-Gruber à casa do
escritor com o objetivo de desvendá-lo, sendo ele o ponto de chegada e o interesse
principal para a criação fílmica – não mais a descoberta dos Estados Unidos, como
ocorre no livro, mas a do escritor enquanto ator de si mesmo e a da tradução de sua obra
para o cinema como exemplo da própria escrita experimental de Butor.

901
 

 
 

Referências

BUTOR, M. Pensées à voix haute. Vincennes: Frémeaux, 2017.

__________. Mobile [1962]. In: ________. Œuvres Complètes de Michel Butor – Le génie du
lieu 1. v. 5. Paris: La Différence, 2008.

_________. “Le livre comme objet”. In: ______. Œuvres Complètes de Michel Butor –
Repértoire I. v. 2 . Paris: La Différence, 2006.

CAVARERO, A. Vozes plurais: filosofia da expressão vocal. Tradução de Flavio Terrigno


Barbeitas. Belo Horizonte: UFMG, 2011.

CESARINO, P. N. “A voz falível: ensaio sobre as formações ameríndias de mundos”. Revista


Literatura e Sociedade, São Paulo, v. 19, n. 19, p. 76-99, 2014.

COULIBEUF, P. Michel Butor Mobile. Paris: Ministère des Affaires Étrangrères, 2001. 1 DVD
(61min.).

DINIZ, T. Intermidialidade. Rumores, v. 12, n. 24, p. 41-60, 20 dez. 2018.


MESCHONNIC, H. Linguagem, ritmo e vida. Tradução de Cristiano Florentino. Belo
Horizonte: FALE/UFMG, 2006.

MORELLO, A. Butor, œuvre des frontières et écriture-monde. In: ARBEX, M.; ALLEMAND,
R.-M. (Orgs.) Universo Butor. Belo Horizonte: C/ Arte, 2012.

ZICA, G. “A escrita experimental de Michel Butor”. Em Tese, Belo Horizonte, v. 23, n. 2,


maio-ago. p. 136-157, 2017.

902
UMA ANALOGIA ENTRE O LIVRO E O TIMBRE

Eduardo Francisco Júnior (USP)1

Resumo: Nesta apresentação faço uma analogia entre o timbre e o livro a partir dos diferentes
significados dessa palavra, buscando entender melhor esse lugar peculiar no qual circula nossa
literatura. Seja como sinal de nobreza, como forma impressa de institucionalidade ou como
forma individualizada e singular de emissão de sons, o timbre forma uma rede que nos ajuda a
entender e explicar a relação entre livro e literatura.
Palavras-chave: Livro; timbre; edição; organização de livros; voz

Um dos motivos da aproximação entre timbre e livro vem da polissemia da


palavra, dependendo do significado que escolhermos, o “timbre do livro” ganha
contornos diferentes, que nos ajudam a pensar diferentes possibilidades de se ver a
relação entre o livro e literatura.

No Houaiss o primeiro significado da palavra timbre é “1. Insígnia que se coloca


sobre um escudo de armas para indicar a nobreza de seu proprietário”.
Há vários caminhos possíveis para se seguir aqui, mas a primeira coisa para a qual
quero chamar a atenção é para esse processo de indicação de uma pressuposta nobreza.
Assim como a insígnia no escudo, o livro, na nossa sociedade, o livro – e a escrita – dão
aos discursos que veiculam uma certa superioridade. O que é perceptível no próprio
processo em que estamos: primeiro eu faço uma apresentação oral, depois transformada
num texto para os anais deste congresso e, se tudo der certo e eu for bem-sucedido no
meu ofício, disso sairá um artigo a ser publicado em algum periódico, que
posteriormente virá a ser reunido num livro. Tanto na passagem da fala para a escrita
quanto na passagem do texto avulso ou presente no periódico para o livro, há uma
indicação (e uma presunção) de uma superioridade, de uma nobreza.
Uma coisa interessante que ocorre, no entanto, é que essa nobreza ou
superioridade que inicialmente seria do texto ou discurso veiculado, acaba por se
espalhar e chega mesmo transbordar os limites do livro, e passam a recair, assim como
no escudo, também sobre seu proprietário. O produtor do texto publicado ganha, ele
também, uma nobreza, inclusive sendo agraciado com o título de Autor, que nos EUA é
inclusive intensificado pelo título de Published Author (Autor publicado).

1 Graduado em Letras (USP), Mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada (USP), Doutorando em
Teoria Literária e Literatura Comparada (USP). Contato: eduardo.francisco@usp.br

903
E, em alguma medida, também o leitor e até mesmo o portador do livro adquire
uma superioridade ou nobreza. O que podemos observar tanto no evangélico que faz
questão de andar com a bíblia debaixo do braço, quanto no eleitor antibolsonarista que
levou um livro para votar. Nos dois casos, o mero fato de se carregar ou empunhar esses
objetos atestam alguma superioridade autoinflingida.

“Timbre do livro” poderia designar justamente esse processo de nobilitação:


nobilitação dos textos, dos seus autores, e dos proprietários dos livros.

(Claro que essa nobreza é um ponto de vista, que se altera consideravelmente


dependendo do fato de sermos seus beneficiários ou sermos por ela subjugados, para
quase todos os povos que enfrentaram a chaga da colonização, essa nobreza da escrita
ou do livro, é apenas violência, é somente uma arma. Neste momento em que estamos,
no entanto, e no qual uma série de manifestações artísticas, acadêmicas e intelectuais
estão sendo reprimidas, usar essa arma parece ser quase que a única coisa que nos
resta.)

Em vez da nobreza, podemos descolar nossa atenção para a insígnia, significado


hoje em dia mais corriqueiro de timbre, e que aparece no Houaiss como “6. carimbo,
selo” e pensar no “timbre do livro” como essas marcas que os recobrem: os selos
editoriais, as capas, as assinaturas. Aqui, mais do que a nobreza, o que sobressai é a
identificação coletiva de diferentes grupos e tribos.
A editora, a capa, a diagramação, o aspecto visual do livro como um todo servem
também para colocar os textos no campo de forças e formas da nossa sociedade.
As divisões daquilo que Pierre Bourdieu chamou de campo literário tornam-se
insígnias no livro. Uma capa espalhafatosa da Editora Martin Claret ou uma capa sóbria
e construtivista da Editora Perspectiva trazem já em si uma série de presunções sobre
seus leitores e nossas divisões sociais, sobre nossos diferentes habitus. Nossas alianças,
nossas rixas, nossos gostos são marcados sobre nossos livros. Eles inserem seus textos
nas querelas estéticas, filosóficas e políticas de nossa sociedade.
A capa traz em si também questões de mercado: trata-se de um livro de luxo, de
um livro descartável, de uso cotidiano ou para se deixar exposto numa mesa de centro.

904
“Timbre do livro” seria, então, essas insígnias sociais colocadas e recolocadas
sobre os textos, inserindo-os no nosso campo econômico e social, permitindo ou
impedindo a circulação de certos textos em certos espaços, facilitando ou dificultando
seu acesso para determinados grupos de pessoas.

(Evidentemente, essas duas analogias entre timbre e livro estão interligadas,


muitas vezes há uma conexão entre essas divisões sociais e sentimentos justificados ou
não de superioridade e, na prática, podemos não conseguir separar o processo de
nobilitação de um texto de sua inserção no campo literário ou no mercado de livros –
essas duas coisas ocorrem muitas vezes de maneira simultânea.)

Depois dessas definições ligadas à nobreza e às insígnias, aparece a definição


acústica de som, que é meu interesse original nessa comparação entre livro e timbre e é
o núcleo dessa apresentação. Aqui a definição é um pouco mais técnica, além de ser
dupla: uma definição mais ampla e outra mais estrita, por isso me estenderei um pouco
mais nela.

Comecemos pela definição mais estrita, que vem da física e da teoria musical. Um
som é composto por uma frequência fundamental e por uma série de múltiplos dessa
frequência, assim, um som pode ser formado, por exemplo, por uma frequência
fundamental de 100 hz e uma série de seus múltiplos, com frequências de 200, 300, 400,
500 hz, etc. O timbre, nessa definição, é a proporção existente entre a intensidade da
frequência fundamental e a intensidade de cada uma das frequências da série. O que
gera inúmeras possibilidades de combinação e permite que diferenciemos de maneira
objetiva um som do outro.
Se pegarmos uma flauta, um oboé e um clarinete e a mesma nota for tocada com a
mesma intensidade e duração e formos analisar o som produzido com um espectômetro,
veremos que a flauta tem uma alta intensidade no início da série e relativamente baixa
nos tons mais altos, que no oboé a intensidade dos sobretons é bastante acentuada e que

905
no clarinete a intensidade da série de sobre tons cai rapidamente, havendo, no entanto,
um sobretom no meio da série que se sobressai.
O timbre, nesse sentido, é formado por essa complexa combinação se tom
fundamental e sobretons. É ele que dá, no jargão musical, a cor da voz.

Algo parecido com isso acontece nos livros, especialmente nos livros de poemas.
Se pensarmos que a literatura, como diz Maniglier “explor[a] [as] virtualidades [da
linguagem], efetu[a] as sobredeterminações locais que definem o signo, [faz] brilhar o
signo em todo seu essencial equívoco”, ou seja, se um poema é essencialmente
composto por uma efetuação brilhante de um emaranhado de redes de significados que
traz sob si. Podemos pensar esse emaranhado de redes de significados como um som, no
qual cada um dos harmônicos fosse uma rede de significados e assim como o som
“ideal” sempre traz em si todos os seus harmônicos, um poema “ideal” traria em si toda
a sua equivocidade, com a importante diferença de que ao contrário do som, não
conseguimos determinar na linguagem a frequência fundamental. O livro seria assim
como um instrumento musical que intervém na intensidade dos diferentes equívocos do
poema, das suas diferentes redes de significados, ressaltando e intensificando certos
harmônicos e abafando e amenizando outros.
Na organização do livro interfere-se essencialmente nos sobretons dos poemas.
Para pegarmos um exemplo, “A Máquina do Mundo” de Drummond apareceu
primeiramente em livro em Claro Enigma onde compõe com o poema “Relógio do
Rosário” a seção também intitulada “A Máquina do Mundo”. Nessa composição, os
sobretons comuns dos dois poemas são intensificados: a presença de Minas Gerais com
toda sua rede de associações em Drummond, as variações entre claro e escuro, luz e
escuridão, a sonoridade dos sinos; por outro lado, alguns contrastes entre os poemas são
também intensificados, notavelmente, a engenhosidade que provém da máquina e a dor
que provém do sujeito do poema na praça do Rosário. Esses sobretons e seus ecos
tornam-se essenciais para as leituras do poema de Vagner Camilo e José Miguel Wisnik,
a ponto de um poema intervir no outro: para Wisnik o signo que toca em “A Máquina
do Mundo” é o sino do relógio do Rosário, leitura que dificilmente seria feita sem essa
organização.

906
(Nesse caso podemos mesmo que dizer que o timbre do livro Claro Enigma é o
sino do relógio do Rosário.)

Pouco mais de dez anos após a publicação de Claro Enigma, Drummond fez uma
antologia de seus poemas para a Ed. José Olympio, nesse livro, “A Máquina do Mundo”
e “Relógio do Rosário” são separados e o poema “Rola mundo” antecede a “A Máquina
do Mundo” e o timbre agora outro. O que se sobressai é a profusão de imagens, é a
vertigem que o rolar do mundo e a máquina do mundo produzem – e a própria recusa à
máquina adquire outros tons, deslocando-se da máquina e sua geometria para o mundo e
seu ininterrupto devir.
Depois de “A Máquina do Mundo”, na Antologia está “Jardim” que de certa
forma abafa o primeiro poema e vários de seus sobretons para só após ainda mais outro
poema voltar “Relógio do Rosário”, reduzindo consideravelmente a intensidade de suas
ressonâncias, criando assim outro timbre.

A partir do momento em que começamos a reparar nesse tipo de interação entre


poema e livro, vemos que não só a organização do poema mexe no funcionamento da
equivocidade do poema, ainda que a organização seja o elemento mais interessante
dessa interação para a poesia, mas também outros elementos do livro o fazem,
notavelmente os paratextos que recobrem o livro como prefácios, posfácios, títulos e
subtítulos, orelhas… Cada um desses espaços tem a capacidade de ressoar diversas
equivocidades dispersas pelos poemas. Para continuar em exemplos drummondianos
títulos como Claro Enigma ou A Rosa do Povo reforçam certos tons nos poemas e nos
solicitam a buscar em sua relativa opacidade, respostas para esses títulos nos versos do
livro.
Esses paratextos podem também abafar alguns tons do livro, o que acontece com
frequência nas orelhas dos livros, nas quais corriqueiramente ressaltam-se alguns traços
biográficos dos autores – o que obviamente faz ressoar com mais intensidade alguns
significados ligados à autoria – o que muitas pode abafar aspectos mais construtivos,
históricos, o trabalho de linguagem e mesmo aspectos menos oficiais da biografia do
autor.

907
Em Drummond isso acontece muito na ênfase que se dá, por exemplo, a Minas
Gerais, que de fato é uma presença constante e fundamental de sua poesia, mas que
acaba por abafar a presença do Rio de Janeiro na sua poesia, cidade na qual ele viveu ¾
de sua vida, e que também tem uma presença significativa na sua poesia e ostensiva na
sua crônica.

Além dessa definição mais estrita do timbre, feita a partir de grandezas


quantificáveis e verificável por aparelhos e que pensa o timbre como propriedade da
fonte emissora do som, há uma outra definição do timbre dentro da teorização do som e
da música que, partindo dessa mesma relação entre o tom fundamental e seus
harmônicos, pensa o timbre de uma forma mais ampla, não totalmente quantificável e
verificável e que só se realiza de fato no cérebro do ouvinte.
Nessa definição se reconhece, por exemplo, que os tons harmônicos não são
produzidos de maneira tão precisa quanto a definição anterior dá a entender, os
sobretons frequentemente ficam um pouco acima ou abaixo do que deveriam, além
disso, não só o instrumento musical ou o corpo do cantor criam ressonância e
abafamentos, mas também o ambiente no qual o som é emitido e reverberado, além de
todo o eco que se produz até o som chegar a nossos ouvidos. Entre o som emitido e
nossos ouvidos há uma série de acidentes e percalços e para conseguirmos ouvir e
compreender um som, nosso cérebro é obrigado a fazer uma série de aproximações e
descartes, além de precisar presumir algumas coisas.
Ao ouvirmos um som, nosso cérebro usa toda a informação disponível que ele tem
sobre o ambiente em que estamos, sobre a fonte emissora do som, nossa memória e
nossa expectativa para fazer do som algo compreensível, que se encaixa nas nossas
concepções.
Nessa definição o timbre é algo muito mais circunstancial, efêmero e
culturalmente construído.
Nina Sun Eidsheim mostra como no canto erudito estadunidense há uma
tendência a se ouvir a voz de cantores negros e asiáticos como mais graves do que elas
realmente são e como na cultura operística (especialmente na americana), vozes graves
são associadas a alteridade, ao elemento estrangeiro ou estranho.

908
Nessa teorização sobre o timbre ressalta-se ainda que a principal função do timbre
para nós é a determinação da origem do som, tanto da localização dele no espaço quanto
na identificação do corpo que está produzindo o som. Pelo timbre nós diferenciamos
homens de mulheres, crianças de adultos, jovens de idosos, uma pessoa da outra. E essa
diferenciação não é apenas passiva, nós ativamente a fazemos através da nossa escuta,
mas também através da nossa fala, nós sempre corrigimos nossa fala, nossa voz, para
que ela atenda nossos pressupostos culturais e sociais.

O “timbre do livro” fica aqui mais complexo. Ele não é só produzido pela
ressonância de certos significados, mas também pelos percalços e acidentes existentes
entre a produção do texto e nossa leitura e das correções que fazemos para compensá-
los. Ele é menos uma propriedade do livro, do texto, que da leitura, da relação entre
leitor e texto. Ele depende do nosso corpo, da nossa memória, da nossa expectativa, dos
nossos preconceitos. O “timbre do livro” é também uma tentativa de se entender a
origem desse objeto, seu lugar no tempo, na história, a imaginação do corpo que o
produziu.
Nessa comparação entre timbre e livro, talvez o melhor exemplo sejam as edições
de poesia muito distante de nosso tempo e todo o aparato editorial e crítico que a cerca.
As notas, as explicações sobre o vocabulário da época, a introdução sobre as variantes
históricas da língua, as observações sobre nosso conhecimento histórico sobre o
período, tudo isso funciona como se o editor ou o responsável pela preparação da obra
quisesse que nós façamos as mesmas correções que ele faz; que nós corrijamos os
mesmos lapsos, que nós pensemos o tempo histórico e sua relação com o poema, da
mesma forma que ele o faz. Essas edições funcionam quase que como uma
exteriorização daquilo que para o especialista seria o processo interno de leitura.
Quando se diz, por exemplo, que em Machado de Assis “hipocondria” quer dizer
melancolia e não mania de doença é como se víssemos uma correção do timbre em
ação, como se corrigíssemos um pequeno acidente entre o século XIX e o século XXI e
que se dá numa busca de uma origem do texto. Esse processo, no entanto, não acontece
apenas quando ele é exteriorizado, mas o tempo todo e quase sempre de maneira
automática e não percebida.

909
O timbre é aqui o resultado de um processo complexo e sutil, circunstancial e
efêmero, que não é imediato nem imediado, mas cuja duração e mediação não
percebemos. Justamente por isso, essa é a parte da construção de um livro que é mais
difícil de perceber, porque ela se encontra em pequenos detalhes e variações que
fazemos, por exemplo, quando vemos um livro na estante de alguém e de alguma forma
nós passamos algumas impressões que temos daquela pessoa para o livro, ou quando
ouvimos uma autora falando e isso faz com que alteremos ligeiramente e quase sem
perceber a forma como lemos seu livro, ou ainda quando passamos por uma nova
vivência e isso altera a maneira como percebemos um poema. A própria separação entre
livro e poema, entre timbre de livro e timbre do poema se turva e se entrelaçam.

Referências

CAMILO, V. Drummond: da Rosa do Povo à rosa das trevas. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2001.

EIDSHEIM, N. S. Voice as a technology of selfhood: towards an analysis of racialized


timbre and vocal performance. San Diego: University of California, 2008. (Tese de
doutorado).

MANIGLIER, P. “Surdétermination et duplicité des signes: de Saussure à Freud" in:


Savoirs et clinique, nº 6, 2005, pp. 149-160. (trad. Fábio Roberto Lucas, no prelo)

WISNIK, J.M. Maquinação do mundo: Drummond e a mineração. São Paulo:


Companhia das Letras, 2018.

910
A VOZ DOS TRABALHADORES DA CASA DE FARINHA EM NOTAS SOBRE
UMA POSSÍVEL A CASA DE FARINHA, DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO

Gislaine Goulart dos Santos (Unicamp)1

Resumo: Notas sobre uma possível A casa de farinha (2013) se referem às 56 folhas com
programação roteirizada, as quais demonstram, por meio de rasuras, reescritos marginais e
interlineares, a imprevisibilidade do processo criativo de João Cabral. O auto permaneceu
inacabado, mas o poeta escreveu 15 folhas com os rascunhos dos versos/diálogos dos
carregadores e das raspadoras, onde podemos ler a voz de João Cabral pela construção do ritmo
(rima toante, repetição, jogos de palavras, versos) e a voz dos trabalhadores da casa de farinha
(historicidade, cultura e tradição oral). Neste sentido, analisaremos a escrita destes versos no auto
sobre A casa de farinha.

Palavras-chave: João Cabral de Melo Neto; Voz; Ritmo; Teatro; Casa de farinha.

Em meados de 1980, João Cabral de Melo Neto entregou a sua filha Inez Cabral
um pequeno fichário escolar com o manuscrito de um poema-livro inédito sobre A casa
de farinha, escrito no período de 11 de setembro de 1966 a 5 de novembro de 1985. Notas
sobre uma possível A casa de farinha (2013) se referem às 56 folhas com programação
roteirizada, as quais demonstram a imprevisibilidade do processo criativo. Para retratar a
saga anônima de carregadores, raladoras, raspadoras, prensador e quebrador, João Cabral
escolheu o auto, forma dramática mais próxima do poema e da cultura popular; já que
adentrar pelo caminho da tradição é uma tentativa de recriar o imaginário popular.
Escrito em versos, o auto A casa de farinha, se tivesse sido concluído, assim como
Morte e vida Severina, representaria o auge do teatro popular na década de 1950 e 1960,
um teatro acessível e que versa sobre o povo. O teatro é oralidade, é nele que ocorre a
teatralização da voz em um gesto performático do corpo e da própria voz dos atores
(ZUMTHOR, 2014); enquanto produto da escritura, o texto teatral possibilita ao leitor
refazer o percurso das vozes narrativas que se enunciam nele (NOGUEIRA, 2018, p. 69);
vozes criadas pela subjetividade e pela imaginação de João Cabral nos primeiros
rascunhos dos versos do auto.
No conjunto da obra de João Cabral, a poesia oral está representada na coletânea
poética Morte e vida Severina e outros poemas para vozes (1994) que inclui os livros
dialogais O Rio, Morte e vida Severina, Dois Parlamentos e Auto do frade. Esses poemas

1
Doutoranda em Teoria e História Literária (Unicamp). Contato: gigoulart@yahoo.com.br.

911
para vozes transmitem uma ideia performática, um modo vivo de comunicação poética
que precisa da presença do outro; palavras para serem pronunciadas publicamente e não
em uma leitura solitária. Para Zumthor (2014), a leitura solitária e puramente visual marca
o grau performancial mais fraco. Por este motivo, querendo comunicar-se com o outro,
João Cabral caracterizou os livros escritos sobre o povo e para o povo de “poemas para
vozes”.
Na escrita d’A casa de farinha, o processo redacional apresenta apenas quinze
folhas com seus lapsos de interrupção e reinício da construção da voz dos trabalhadores
da casa de farinha, como podemos notar pelos cinco momentos de escrita, dos quais
reproduziremos algumas folhas.

Primeiro momento de escrita

Neste primeiro momento de escrita, João Cabral escreveu três folhas com a fala dos
carregadores e das raspadoras. Leremos a primeira folha com o diálogo do arauto:

A Casa de Farinha

1º Arauto
Aqui estou minha gente
primeiro a trazer [ileg.]
vosso
que jogo prendo no chão
arauto humilde mais pobre que há;
mesmo
tal apenas o [ileg.]
que [ileg.] julga [ileg.] faz
jogando
já que e eu jogo no chão
a mandioca que há
e não na cab vossa cabeça
como chuva no temporal.
que cai de cima e por isso
ar
calei verdade ou com o [ileg.]
de que pois cai de cima
ou vai do que essa [ileg.] haverá
cai sentença: indiscutível
se mentira
ou verdade há que aceitar. (MELO NETO, 2013, p. 109)

912
Este arauto, assim nomeado por João Cabral, se refere à entrada do primeiro
carregador que chega e acentua a expectativa sobre os possíveis motivos de estarem todos
reunidos em um único dia na casa de farinha. Esta caracterização dos carregadores como
noticiosos está presente no planejamento manuscrito que antecede a escrita dos versos,
sendo assim, a intenção inicial do escritor é mantida: eles entram e saem da casa de farinha
para trazer a mandioca e com ela as notícias.
Apesar das lacunas a serem preenchidas posteriormente, começamos a perceber o
ritmo dos versos pela rima toante em “a” nos versos pares, mesmo que o sentido pareça
confuso.

Segundo momento de escrita

Neste segundo momento de escrita, João Cabral escreveu duas folhas com o diálogo
das raspadoras e dos carregadores:

A casa de farinha

- Todas às 5 da manhã
- Para as 5 da madrugada
- E todas para o dia de hoje
como à cada citadas
- Cada um trilha seu dia
- E sua semana
se mais abastadas
- E [ileg.] aqui nos chama a todos
- para essa hora madrugada
- hora em que o mundo é ainda nada
- e sem que nos explicassem
por que cá estar a essa hora nada
- hora em que nada se faz
- ou o que se faz vira nada.
- Haverá alguém de saber
porque de um sono de nada
nos trazer a um acordado nada?
______________________________

- Ninguém sabe, a quem


Seu [ileg.] pôs a leilão
Sua casa de farinha
que usamos até então.
(MELO NETO, 2013, p. 117)

913
- Vem uma fábrica nova
fabricar nossa farinha
- Quem já viu que a farinha
possa dispensar a sova,
o suor, o amassar de mãos
o torrar cantado com trovas
- Essa nova fábrica que vem
substituir aquela nossa
será capaz de trazer
à farinha a marca nossa?
- Mas a culpa por tudo é nossa
antes cada um plantava
sua própria mandioca
e no telheiro arrombado
fazia [ileg.] de nossa
- Mas que depois que cada um
se junta em grandes palhoças
de aluguel e a comerciar
o trabalho de alqueires horas
foi muito mais fácil para eles
atacar nas coisas nossas
(MELO NETO, 2013, p. 119)

Neste segundo momento de escrita, há uma sucessão de vozes marcadas pelo traço
no início dos versos, formando um coro, como escreveu João Cabral:

“- Tentar ver se é possível o choque dramático não individual mas em grupo.


Assim usando a técnica do coro repetitivo de M. e V. S., em que cada gente
‘acrescenta’ o que o anterior disse, tentar um tipo de conflito dramático novo:
sucedendo-se no tempo, sem bate-boca [ileg.], etc. P. ex.: um grupo
‘desenvolve’ uma opinião; quando ele acaba, como se fosse noutro nível, outro
grupo rebate aquela opinião” (MELO NETO, 2013, p. 101)

As raspadoras iniciam os diálogos em “- Todas às 5 da manhã” e começam a delirar


em reflexões sobre o “nada” que aparece seis vezes nos versos e contribui para o ritmo
do poema pelo uso da rima toante em “a”. Tanto a repetição da palavra, característica de
uma poética oral, como o ritmo no poema colaboram para a ideia de que elas começaram
a trabalhar nesta “hora nada” sem saberem os motivos ou a existência de algo que possa
fazer sentido para elas.

914
A pergunta final do diálogo das raspadoras, “- Haverá alguém de saber/ porque de
um sono de nada/ nos trazer a um acordado nada?”, se abre para a resposta dos
carregadores. O primeiro diz que a casa que usavam até então foi posta a leilão; o segundo,
“- Vem uma fábrica nova/ fabricar nossa farinha”. Estas duas hipóteses estão relacionadas
às “Suposições possíveis sobre o fechamento da casa de farinha”: o dono quer cobrar mais
da metade como aluguel; reformar o aparelhamento, vender o aparelhamento e derrubar
a casa de farinha; fazer outra indústria; que dão lugar a sucessivas opiniões das raspadoras
e das raladoras.
Nos dois primeiros diálogos das raspadoras desta segunda folha, notamos a
mudança de ritmo pela assonância que, na primeira folha, era em “a”, nesta em “o”. Ao
saberem da fábrica nova, as raspadoras otimistas começam a imaginar o presente/passado:
“Quem já viu que a farinha/ possa dispensar a sova,/ o suor, o amassar de mãos/ o torrar
cantado com trovas”. João Cabral inscreve-se numa tradição que acena para a
historicidade destas falas e, portanto, para a subjetividade de sua voz enquanto criador
nordestino vinculado à tradição trovadoresca medieval. Esta é a marca humana que a
fábrica não é capaz de dar à farinha. O possessivo “nossa”, repetido seis vezes nesta folha,
representa a farinhada nas casas como um acontecimento da vida comunitária, que lembra
como o homem realiza a sua condição de criador, pois fazer farinha é um ato de criação,
assim como fazer um poema.
Nos versos surge o tema da alienação: “Mas que depois que cada um/ se junta em
grandes palhoças/ de aluguel a comerciar/ o trabalho de alqueires horas”, identificamos
que o problema destes trabalhadores é que a casa de farinha onde trabalham pertence ao
coronel-dono, por isso ele quer vender, alugar, etc. Esta emancipação de fazer farinha
para comerciar aniquilou a liberdade destes trabalhadores em uma engrenagem de
produção na qual quem decidiu que eles tinham que começar a trabalhar mais cedo foi o
dono, sem dar os motivos.
Desta forma, os trabalhadores usam a historicidade da própria voz para narrar os
acontecimentos e situar o espaço (casa de farinha alugada), mas não há ação inerente à
voz. Há apenas uma sucessão de opiniões que marcam as múltiplas vozes dos
trabalhadores de acordo com a atividade que executam. Por este motivo, os carregadores
não emitem opinião, apenas dão as notícias; as raspadoras e as raladoras são responsáveis
pela discussão.

915
Terceiro momento de escrita

Neste terceiro momento de escrita, João Cabral escreveu quatro folhas que
apresentam o diálogo dos carregadores e das raspadoras. Leremos as duas primeiras
folhas:
- Muitos bons dias, senhora
que nesta lida está,
trago a carga de mandioca
que cresceu no meu lugar.
- Muitos bons dias, senhora,
que todos aqui estais:
trago a carga de mandioca
que às pressas pude apurar.
- Muitos bons dias senhoras
eis, me mandaram entregar:
tudo o que de mandioca
eu tinha podido lavrar.
- Muitos bons dias senhoras
eis, me mandaram entregar:
dizendo que aqui terá
a última vez de a entregar.
______________

- que se não a trouxesse hoje


não mais podia entregar
- que hoje é o último dia
que se pode trabalhar.
- que hoje esta casa de farinha
era a última a funcionar
- que já ninguém, farinha
fabricaria em seu lugar
______________________________________

(MELO NETO, 2013, p. 123)

2
- Nada podemos dizer disso
que vós todos estais a contar
o que sabemos é que tínhamos
de estar hoje neste lugar
- Nesta casa de farinha
que se é a maior que em volta há,

916
não é a casa de farinha
que muitos tinham em seu lar
- Nos disseram que viéssemos
todos aqui nos juntar
e todos juntos, a mandioca
de todos juntos trabalhar
- Não sabemos o que passa
nem o que possa vir passar.
Aqui nos juntaram todos
no tempo e espaço a acabar.
__________________
- Nós também minhas senhoras
não sabemos o que há
- Só sabemos que é o último dia
que se tem para trabalhar.
- Cada um traz sua mandioca
que, claro, vão se misturar.
- A minha, é uma mandioca
que nem Glória do Goitá.
(MELO NETO, 2013, p. 125)

Neste terceiro momento de escrita, os quatro primeiros diálogos, marcados pelo


travessão no início do verso, representam os carregadores que chegam e cumprimentam
as raspadoras: “Muitos bons dias, senhora”; mas cada um informa a situação de como
trouxe a mandioca. O primeiro traz “a carga de mandioca/ que cresceu no meu lugar”; o
segundo, “que às pressas pude apurar”; o terceiro; “tudo o que de mandioca/ eu tinha
podido lavrar”; para o quarto, não há referência se ele mesmo produziu, pois “me
mandaram entregar:/ dizendo que aqui terá/ a última vez de a entregar”.
Nestas duas folhas, o ritmo é marcado por 8 quartetos e 8 dísticos (4-4, 4-2, 4-4, 4-
2) que alternam os diálogos das raspadoras e dos carregadores. A repetição das palavras
“senhora(s)” e “mandioca” e a rima toante em “o” na primeira folha mudam as
perspectiva em relação ao último carregador (entregador) que fala usando dísticos e rima
toante em “a”. As anáforas favorecem o ritmo do poema que condiz com a oralidade e os
níveis de linguagem dos personagens, de acordo com a posição socioeconômica que
ocupam: grandes e pequenos produtores e entregador.
A oralidade, marcada pela repetição de elementos, a redundância informacional, a
fragmentação sintática, marcadores frequentes, hesitações, uso das formas pronominais

917
coletivas (vocês, vós), integra o sentido dos versos entrando em tensão com a semântica
do individualismo de cada um. Tudo isto compõe a situação dos personagens, mas a
resolução do conflito acena em termos de ritmo para a significância da indiferenciação
(não sabem os motivos de estarem todos reunidos).

Quarto momento de escrita

Neste quarto momento de escrita, João Cabral datilografou e juntou as ideias


esboçadas nos diálogos entre carregadores e raspadoras das folhas anteriores:

A CASA DE FARINHA 11.10.85


Início possível de
Casa de farinha
- Bom bom-dia, minha gente.
- Bom-dia para os presentes.
- Bom-dia, futuramente.
- Bom-dia, ainda no ventre

- Bom-dia tem que dizer


quem chega a todo presente.
Dizer bom dia é
- Bom-dia é como tirar
o chapéu, cumpridamente.
- Bom-dia não antecipa
o dia que espera em frente.
- Nem bom-dia tem a ver
se é sol ou chuvadamente.

- Nós respondemos bom-dia


a quem amigavelmente.
- Retribuímos o chapéu
sem tirá-lo mulhermente.
- Não há bom-dia ao pé da letra;
sei que ele nada promete.
- Que bom-dia pode ter
quem ouviu: trabalhe e espere?
(MELO NETO, 2013, p. 131)

918
- Vocês que chegam de fora,
o bom-dia é de valer?
- Porque aqui de madrugada
corujamos sem saber?
- Bom dia é o que precisamos
quem está aqui sem saber.
- Que floresça num bom dia
o dia que está a florescer.

- Viemos de fora, mas não


há promessa em nosso bom-dia.
- O escuro não deixou ver
se vai chover ou se estia.
- Fora, ninguém diz saber
por que a geral companhia.
- Que tem de moer a farinha
no dia que dura um dia.

- A vocês cabe saber


por que dessa pressa toda.
- Antes cada um em seu dia
vinha moer sua mandioca.
(MELO NETO, 2013, p. 133)

Neste quarto momento de escrita, datado de 11.10.85, João Cabral reinicia o diálogo
entre os carregadores e as raspadoras (mulheres de descascar) e marca a lápis a qual grupo
as falas pertencem.
O terceiro momento de escrita é o que se aproxima mais destes datiloscritos, pois
mantêm nos diálogos quatro carregadores e quatro raspadoras; a quantidade de raspadoras
já havia sido planejada por João Cabral no manuscrito “Para o cenário. Primeiras
conversas”: “começa com as raspadoras (4) sozinhas” (MELO NETO, 2013, p. 41).
Cada bloco (estrofe) representa o diálogo de um grupo de trabalhadores, como
escreveu João Cabral antes de começar a escrita do auto: “Cada grupo é um bloco, um
ideograma. O conflito nasce da sucessão de opiniões, ideogramaticamente. É como se
cada grupo falasse numa língua diferente da do outro.” (MELO NETO, 2013, p. 101).
Esta sucessão de opiniões está presente dentro dos blocos e entre eles, a começar na
primeira estrofe, em que cada carregador chega e diz “Bom-dia” às raspadoras, mas cada
um completa o verso de forma distinta: “minha gente”; “para os presentes”;

919
“futuramente”; “ventre”; um verso para cada um e todos com rima toante em “e”. Nesta
primeira estrofe, o diálogo dos quatro carregadores é mais breve e sem muitas explicações
sobre a origem de sua mandioca como nos rascunhos anteriores. Eles são apenas
noticiosos e determinam o ritmo do auto pela entrada e saída na casa de farinha com as
notícias/mandioca que trazem.
Depois da primeira estrofe, no início de cada fala, o substantivo “bom-dia” está
presente em praticamente todas as falas, criando um padrão sonoro (paralelismo). Além
de contribuir para o ritmo oral dos versos pela repetição, os diálogos entre carregadores
e raspadoras referem-se às discussões em torno da substantivação do sintagma “bom-dia”
que ganha algumas conotações negativas: “Não há bom-dia ao pé da letra;/ sei que ele
nada promete/ Que bom-dia pode ter/ quem ouviu: trabalhe e espere?” (carregadores);
esperançosas: “Bom dia é o que precisamos/ quem está aqui sem saber./ Que floresça num
bom dia/ o dia que está a florescer.” (raspadoras); e até mesmo alguns questionamentos
sobre o seu sentido: “Vocês que chegam de fora,/ o bom-dia é de valer?” (raspadoras).
As raspadoras, assim como nos rascunhos anteriores, questionam os carregadores e
perguntam por notícias: “Por que aqui de madrugada/ corujamos sem saber?”, mas
ninguém sabe o motivo de todos estarem reunidos em um único dia. Outra ideia retomada
dos rascunhos anteriores se refere à afirmação das raspadoras de que antes cada um tinha
seu dia de trabalho; um esboço de divisão de trabalho e de especialização das tarefas à
qual os trabalhadores serão acometidos com a modernização das casas de farinha.

Quinto momento de escrita

Casa de farinha
5. XI.85

- Enquanto vão-vêm trazendo


mandioca, trazem notícias.
- Podem nos dizer por que
aqui estamos reunidos
- Um prazo de vinte horas
temos para nossa farinha
- Depois dessas vinte horas
[ileg.] não se sabe o que viria.
___________________________________
- Mesmo os que sem novidades
sua
trazem aqui em mandioca.

920
- Trazem no estado mais feio
arrancado da terra morta
- A planta mandioca é viva
é simétrica, arquitetônica
- Mas o que interessa nela
são as raízes que provocam
________________________________
- A mandioca é planta feia
quase sempre venenosa
- Seu veneno de manipueira
morde mais do que qualquer cobra
- Nem sempre ela é bonachona
como a macacheira da horta x
- E é difícil distinguir
qual a de comer de [ileg.]
_________________________
(MELO NETO, 2013, p. 137)

Depois dos três momentos de reelaboração da voz dos carregadores e das raspadoras
até chegar à fase dos datiloscritos; nesta quinta etapa (escrita em 5.11.85), há um avanço
de escrita da voz das raspadoras, ainda com lacunas a serem preenchidas.
A casa de farinha é um lugar de memória, onde o meio físico, as mãos de terra e os
calos nos dedos, se tornam objetos biográficos, condutores de representações na vida. O
contato da mão com a mandioca/terra está diretamente ligado ao real e à possibilidade de
como as raspadoras veem o mundo, lidam com o cotidiano e sentem emoção, de uma
maneira própria.
A mandioca é simbólica nestes versos, pois as notícias são trazidas com ela
(“Enquanto vão-vêm trazendo/ mandioca, trazem notícias”); “A planta mandioca é viva/
é simétrica, arquitetônica”; tem vida própria, pois é “arrancada da terra morta”; é sustento
e símbolo do pobre agricultor. “A mandioca é planta feia/ quase sempre venenosa”, por
isso, o trabalho das raspadoras é embelezá-la, “despir a raiz/ como se despe a donzela”.
A palavra poética vocalmente transmitida pela expressividade da relação do
trabalhador com o objeto (mandioca), seus significados e valores para a cultura local,
afeta a sensibilidade e a capacidade inventivas cabralinas nestes versos que retratam as
facetas travadas entre as raspadoras, o seu espaço e o alimento de sobrevivência. Na
composição da voz das raspadoras, João Cabral organiza o seu discurso em uma rede
complexa de combinações rítmicas (versos cantados) pelo uso dos blocos dialogais (a
sucessão de opiniões), a repetição de palavras que, justapostas, organizam o verso

921
(“despir” como uma donzela) e as rimas toantes, para transmitir uma tradição, um modo
de viver e se de relacionar com a mandioca. Como observa Meschonnic: “Em somme, le
rythme est une sémantique et une éthique de l’historicité: une poétique de la societé par
une poétique du langage. Toutes deux nécessaires à une pensée du politique”
(MESCHONNIC, 1989, p. 360) 2.
Na leitura dos rascunhos do auto, notamos que João Cabral tenta atribuir a sua
escrita o estatuto da oralidade condizente com a origem e o dialeto dos carregadores e das
raspadoras, cujos diálogos iniciais foram escritos. Para isto, o poeta adentra a tradição do
romanceiro e retoma o auto medieval para recriar o imaginário popular. É uma criação
subjetiva que traduz as vozes dos trabalhadores da casa de farinha por meio de elementos
populares da oralidade da sociedade nordestina, para atingir uma finalidade ética e
estética do poeta. A escrita d’A casa de farinha caminha entre a linguagem popular e a
forma tradicional como nos livros da coletânea Morte e vida Severina e outros poemas
para vozes, obras de mesma estirpe social.

REFERÊNCIAS

MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida Severina e outros poemas para vozes. 34.
ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.

______. Notas sobre uma possível A casa de farinha. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.

MESCHONIC, Henri. La rime et la vie. Lagrasse: Verdier, 1989.

NOGUEIRA, Erich Soares. Os sentidos da voz: vocalidade em Guimarães Rosa. São


Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2018.

ZUMTHOR, Paul. Perfomance, recepção, leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e


Suely Fenerich. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

2
Em suma, o ritmo é uma semântica e uma ética da historicidade: uma poética da sociedade por uma poética
da linguagem. Ambos necessários para um pensamento político (Minha tradução)

922
IMAGINAÇÃO FEMININA EM CIRANDA DE PEDRA E LES MANDARINS

Larissa Carolina de Andrade1

Resumo: Apresento, brevemente, a maneira pela qual busco entender a questão da construção
de uma imaginação feminina dentro das obras Ciranda de Pedra, de Lygia Fagundes Telles, e
Les Mandarins, de Simone de Beauvoir. Ao problematizar a questão do texto pelo ângulo da
literatura de mulher, vinculando-a ao tema da imaginação, parto do pressuposto de que a
imaginação poética é faculdade fundamental na construção da realidade (RICOEUR, 2010). O
presente trabalho procura incentivar, portanto, o encontro estético dos eixos: mulher e
imaginação.

Palavras-chave: Literatura; Mulher; Imaginação.

A hipótese que rege o estudo aqui apresentado, e vai ao encontro das ideias de
Ricoeur (2010), é a de que “a imaginação poética é faculdade fundamental na
construção de realidade”. Ricoeur, ao trabalhar com o distanciamento do sentido pelo
próprio desvio do texto, oferece uma possibilidade interessante de relacionamento com
os textos e valores da cultura. A ideia de desvio do texto permite um outro tipo de
identificação entre leitora e texto, isso porque, na leitura de textos em que as
personagens femininas avultam como individualidades marcantes, há uma necessidade
implícita de se aproximar de uma leitura mais feminina, ou seja, mais próxima ao que se
entenderia como um imaginário feminino. A grande vantagem, evidenciada por Costa
(2015), estaria em entender o juízo hermenêutico como a dialética da suspeita e da
recolecção, na qual as categorias ricoeurianas de prefiguração, configuração e
refiguração2 do texto permitiriam mostrar que a identificação da leitora não é
diretamente com a autora, sequer com a personagem feminina, e sim com a
possibilidade de refigurar feminina e analogicamente aquilo que o texto traz em sua
configuração, esta também sustentada pela verossimilhança de certa prefiguração que
pode ser feminina. Esse fenômeno leva o problema da identidade para o campo da
prática existencial da leitora, onde está em jogo sua própria identidade narrativa.

1
Graduada em Letras (Unesp), Mestranda em Estudos Literários (UFPR). Contato:
larissa.carolina.93@gmail.com.
2
Os três níveis da operação mimética correspondem aos tempos da prefiguração, configuração e
refiguração. O ato narrativo passa de um tempo prefigurado da ação, no nível do vivido e da experiência
humana, para um tempo configurado simbolicamente pela composição narrativa. Tendo em vista que toda
obra almeja comunicar uma experiência, tem-se o tempo refigurado, que restitui à ação o tempo vivido do
leitor, completando o ciclo dessas operações narrativas, onde o sentido nunca se encerra em um
fechamento ou cristalização.

923
Segundo Ricoeur (2010), trata-se de um trabalho dialético que renova o pensamento
sobre o que vem a ser imaginação:

Essas duas perspectivas sobre a leitura [de que ela aparece alternadamente
como uma interrupção no curso da ação e como um novo impulso para a
ação] resultam diretamente de sua função de enfrentamento e de ligação entre
o mundo imaginário do texto e o mundo afetivo do leitor. Quando o leitor
submete suas expectativas às que o texto desenvolve, ele irrealiza a si mesmo
na proporção da irrealidade do mundo fictício para o qual emigra; a leitura
torna-se então um lugar igualmente irreal onde a reflexão faz uma pausa. Em
contrapartida, quando o leitor incorpora – consciente ou inconscientemente,
pouco importa – os ensinamentos de suas leituras à sua visão de mundo, para
aumentar sua legibilidade prévia, a leitura é para ele algo diferente de um
lugar onde ele para; ela é um meio que ele atravessa (RICOEUR, 2010, p.
308).

Cardoso (2005) apresenta uma definição de identidade bastante poética e


ilustrativa. Ela questiona sobre o que seria a vontade senão aquilo que projeta o homem
para fora de si mesmo e liga-o ao mundo e aos outros homens? A imagem da vontade
como responsável pela união de sujeito e objeto tem um nome: identidade. Uma
identidade que nada tem a ver com eventuais esquematismos, mas que nasce da
convivência (do leitor) com os personagens de um drama que a princípio são meros
estranhos, mas que, à custa da vontade de compreender (e imaginar) a vida alheia,
estabelecem uma ligação a ponto de fazer da história do outro sua própria história, parte
de sua própria identidade.
O conceito de identidade narrativa advém do entrecruzamento de narrativas
históricas e narrativas ficcionais, sendo que ambas pretendem redescrever o real do
leitor e nutrem sua identidade individual, que é também narrativa. Nesse sentido, Costa
(2015) defende que a mulher lê para compreender-se como mulher e porque
compreende-se como mulher. E compreender-se como mulher significa, de acordo com
a autora, inserir em todos os planos do processo hermenêutico as dialéticas do
distanciamento e da apropriação, que seriam as dialéticas da recolecção e suspeita;
ideologia e utopia; subjetividade e objetivação, através das quais a mulher/leitora lida
com a diversidade da literatura e com o imaginário social. Por isso, afirma Costa, a
questão feminina não trata apenas de um caso específico dos estudos culturais, mas de
um processo de explorações que considere a hermenêutica feminina (e feminista) um
desafio tanto para compreensão de obras e textos da tradição, quanto para a

924
compreensão da tarefa filosófica de decifração dos símbolos sustentados pela produção
cultural.
Uma vez admitida a existência do texto, enquanto lugar de significação, pode-se
distanciar dele através de um exercício de crítica. Logo, o reconhecimento da existência
do texto pode, de acordo com Ricoeur (2010), servir para estabelecer o valor estético da
literatura. Porém, esse objeto resguarda um caráter problemático, que não se encontra
somente nas críticas de valores, mas também, e inversamente, no texto como um
conceito que resguarda o valor existencial do texto em si. Isto é, o texto é uma fonte de
autoridade, na qual a ideia de texto como valor em si origina-se na tradição. Sem a ideia
de tradição, afirma Costa, a retomada do trabalho de descontextualização em uma
recontextualização seria insustentável, porém este é um trabalho problemático para a
crítica feminista – para a qual no distanciamento do texto, e não na tradição, é onde se
afirma o valor em si do texto – visto que no processo de descontextualização “certas
normas exógenas ao texto resgatam-no para um acervo comum onde se definem ao
mesmo tempo a forma e o conteúdo da veemência ontológica” (COSTA, 2015, p. 408).
Por conseguinte, é a operação de distanciamento do texto que possibilita problematizar
o texto enquanto conceito questionável em si, buscando discutir a política e filosofia
literária que estão por trás do conceito de texto.
Ao problematizar a questão do texto pelo ângulo da literatura de mulher,
vinculando-a ao tema da imaginação, entende-se que o processo de leitura está
intimamente ligado à sua condição histórica, afinal lê-se a partir de uma situação
própria. O leitor compreende os sentidos, dentre os quais o sentido feminino, a partir de
uma tarefa presente de leitura. A ideia de situação de leitura feminina precisa
problematizar não só a verdade da interpretação, mas também a verdade (feminina) do
intérprete desta verdade, na medida em que “a leitura feminina é tensa; aplica e
desaplica a ideia de mulher, crê e não crê na ideia” (COSTA, 2014, p. 5). Assim sendo,
a condição de historicidade do leitor parece, a princípio, integrar a dimensão da
diferença entre os leitores. Há, porém, uma busca pela universalização do leitor
enquanto sujeito, mesmo que de forma crítica, definindo-o, justamente, pela sua
condição de historicidade. Nesse sentido, afirma Costa (2014), as hermenêuticas
buscam definir o que é a leitura do leitor, partindo de uma necessária universalização
do gesto interpretativo. Todavia, o problema em definir esse leitor, que seja ao mesmo

925
tempo significante e não universalizável, permanece. Dito de outra forma, as
hermenêuticas não conseguem definir a leitora:

[...] A historicidade feminina, aplicada à leitura, é uma forma de preconceito


que só existe de forma crítica quando rejeita ser posição conceitual. A
definição da leitora encontra-se, em suma, sob a dependência de uma
interpretação negativa de sua condição universal, que não se deixa reduzir à
condição cultural ou social de qualquer grupo humano, mas também não se
deixa identificar com o conceito de sujeito. Para usar um vocabulário familiar
da hermenêutica moderna, e repetindo a ideia: não há como aplicar o
feminino sem desaplicar o feminino (COSTA, 2014, p. 6).

A questão do feminismo, corroborando com as ideias de Nancy Fraser (2012,


apud Costa, 2015, p. 404), está situada num espaço discursivo coletivo e, ao permitir
negociações políticas emancipadoras, não pode nem deve se perder em considerações
arriscadas sobre a natureza individual da feminilidade. Em outras palavras: o feminismo
não pode submeter-se a nenhum pensamento que aspire à neutralidade do gênero,
incluindo a suposta neutralidade dos conceitos, da linguagem e dos textos. Pois, se é
certo que existe empiricamente um discurso individual, é certo também que não é neste
plano que se encontra uma linguagem transformadora; não é possível nenhuma
subversão no plano da dialética individual. Há uma fatalidade dupla da classificação
genérica do feminino. A literatura de mulher nunca pode ser apenas feminina, mas
também não pode ser somente um poema, romance, gênero. Ou seja, “definir uma obra
literária como feminina é, no ato, ocultá-la como obra. Defini-la como obra é, no ato,
ocultá-la como feminina” (COSTA, 2014, p. 8). Considerando-se que a linguagem
permanece sob o domínio da criatividade e da leitura poética, as mudanças de economia
da significação não se originam a partir de uma linguagem masculina/neutra. Isto
significa que não há como separar a atividade crítica da atividade poética, quando se
quer imaginar as mutações femininas da linguagem. Sendo assim, a frente crítica contra
o neutro permanece junto da frente criativa da vivência feminina, fazendo com que haja
uma constante problematização de uma pela outra. Isto é, “assim como o pensamento
neutro é homem [...] o pensamento crítico do neutro é mulher” (COSTA, 2014, p. 13).
A leitura de literatura feminina, ao buscar mudanças na economia da significação, talvez
possa vir afirmar o prazer superior da mulher leitora, enquanto mudez instaurada, que se
converte em linguagem de superação da neutralidade suspeitosa.

926
Defende-se, aqui, que a atitude hermenêutica pode explicar a polissemia
simbólica da representação literária feminina e do drama do feminino que há em
escolher. No entanto, não se pode deixar de afirmar que a abordagem pela hermenêutica
crítica é, mais uma vez e justamente, escolher. Costa defende que uma hermenêutica
crítica feminista na medida em que concorda com a ideia de que o tempo seja uma
estrutura transcendental de compreensão dos textos e de si, também recusa que esta
ideia seja justa para com o drama da escolha. Segundo a autora, a hermenêutica literária
em Ricoeur corre ad infinitum por causa mesmo da necessidade ética da decisão. Ao
contrário, porém, do que ocorre com a hermenêutica do texto de filosofia, que propõe
certo nível conceitual de interpretação dos símbolos, na literatura a síntese do escolher e
do não escolher permanece sempre vinculada a uma questão de imaginação. Mas por
que, afinal, a hermenêutica crítica de Ricoeur poderia iluminar o estudo sobre
imaginação feminina na escrita de Lygia Fagundes Telles e Simone de Beauvoir? Pode-
se dizer, de início, que a hermenêutica crítica é um tipo de estudo que insiste no gesto
prático, isto é, não teórico da leitura, viés pelo qual as obras são exploradas. A grande
preocupação está, portanto, em ler os romances menos para teorizar sobre o que vem a
ser a figura feminina e mais para entender essa(s) mulher(es).
Porém, mais uma pergunta permanece aberta: por que da escolha de Ciranda de
Pedra e Les Mandarins dentre tantos outros livros? Ambas as obras se comportam
como imaginações que imaginam, isto é, tanto Ciranda de Pedra como Les Mandarins
apresentam personagens femininas que lidam e suportam a realidade do já imaginado
através de sua capacidade imaginativa, e é por meio da imaginação que elas
transformam o real da ficção e possibilitam, consequentemente, a transformação da
realidade da leitora, que também se transforma e se forma pelo processo imaginativo,
visto que a experiência estética é que garante a transformação e criação de realidades, e
a experiência estética acontece, primordialmente, pelo ato de imaginar. As personagens
sobretudo femininas quando não conseguem se reconhecer, se encontrar, se situar em
suas vidas começam a imaginar uma outra realidade na qual se enxergam. Ou seja, a
realidade não é suficiente para sustentar suas existências, por isso apelam à imaginação,
lugar de onde se veem e veem os outros. Todas as imagens (sustentadas no mundo das
ideias) que ocorrem a elas são responsáveis por impulsionar suas ações, de modo tanto
positivo como negativo. A imaginação, nesse sentido, atua, como delatora de uma

927
realidade em curso e criadora de outras tantas, e esse movimento permite que as
personagens, almejando aproximar-se do mundo imaginado, escolham e ajam
continuadamente. Ou seja, essas obras criam uma dupla dialética: entre a realidade da
ficção, o mundo que abriga as personagens, e o que elas imaginam para escapar a essa
realidade; e entre a realidade do texto e a imaginação da leitora, que se coloca em
relação ao universo imaginário do texto. É a dialética da imaginação.
Costa apresenta um questionamento importante que pode (e deve) ser pensado
neste trabalho: como é possível garantir que haja positivamente, na literatura, leitura
feminina? E responde que a solução não pode ser encontrada somente através da leitura
mas também e, sobretudo, pela reflexão sobre a “atividade imaginativa, crítica e
criativa, que vence as barreiras da identificação, mas não ultrapassa os limites
metafóricos da diferença e da semelhança feminina” (COSTA, 2014, p. 7). Por meio
dessa pergunta entendemos cada vez mais o elo intrínseco e complexo existente entre a
recepção e a atividade imaginativa, tarefa que propicia desenvolvimento crítico e
criativo sobre o que vem a ser a mulher:

A atividade de imaginação, que tanto opera no plano do discurso


argumentativo conceitual, assumindo seu caráter de interpretação da
realidade, quanto no plano da atividade literária, assumindo seu caráter de
evasão da realidade, parece-me o ponto de equilíbrio não violento entre
definir ou não definir a mulher. Se a tarefa de desimpedimento e de
exploração do feminino não é indefinida para poder ser infindável, talvez seja
justamente por conta de seu caráter simultaneamente hermenêutico e estético.
Tudo são leituras imaginativas de mulher (COSTA, 2014, p. 13, grifo
meu).

A atividade crítica torna-se imprescindível quando se pretende ultrapassar as


cristalizações teóricas de qualquer definição do feminino. É necessário mostrar que essa
linguagem feminina e as homologias a ela associada são dependentes da imaginação,
lugar onde se (re)inventa constantemente a linguagem.
O caráter invasivo das teorias literárias é um fenômeno multiforme, afirma Costa
(2015). Essa atitude invasiva está situada tanto na redução estruturalista do conteúdo
semântico das narrativas, que tem como consequência a ocultação do valor estético,
como em leituras que reduzem uma obra ao seu momento histórico, o que,
paradoxalmente, impede o estabelecimento de qualquer relação estética com obras do
passado. Por sua vez, a necessidade de lidar com a história, significa, ao mesmo tempo e

928
dialeticamente, “o reconhecimento de sua produtividade intersubjetiva e o
reconhecimento da singularidade temporal dos objetos nela produzidos subjetivamente”
(COSTA, 2015, p.394). A dimensão narrativa do texto de ficção, responsável pela
diversidade das histórias, é um elemento de singularização do irredutível que opera
dentro e fora dos textos. Para Ricoeur (2010), as narrativas são diversas porque
respondem a tempos históricos diversos, essa diversidade caracteriza um fenômeno
transhistórico de organização das ações humanas, pelo qual é possível criar respostas,
múltiplas, às aporias e aos mistérios insondáveis da condição temporal. A
multiplicidade narrativa configura-se como o elemento fundamental de resistência do
literário e do mítico contra a redução teórica e conceitual, portanto, não há como ser
reduzida.
Por outro lado, faz-se necessário acolher a dimensão estética das produções e
obras da cultura humana, sendo capaz de justificar filosoficamente a estabilidade do
sentido das obras e textos. A justificativa ricoeuriana, de acordo com Costa (2015),
fundamenta-se na tradição kantiana do juízo estético reflexivo, condição que possibilita
a sociabilidade intersubjetiva. O sujeito de Ricoeur busca extrair das narrativas modelos
de ação aproveitáveis para sua vida prática e aplicáveis ao seu momento histórico de
leitor. Para Ricoeur, o agir é criativo e, por isso, o agir é também, e sobretudo, atividade
linguística solidária com a própria noção de representação. Nesse sentido, o problema
de saber se a verdade da ação está exclusivamente dentro ou fora do texto se resolve. O
sujeito de Ricoeur, embora não esteja de posse de regras imutáveis, reconhece seus
modelos relativamente estáveis através das estruturas narrativas do que lê, enquanto
paralelamente os textos produzem sentido ao longo de uma sucessão histórica. Logo, as
razões estéticas não são nem empíricas nem teóricas, mas humanas e subjetivas no
sentido de transhistóricas e intersubjetivas. O filósofo reconhece que a interpretação
existencial nunca é alvo de uma vivência fenomenológica direta, e precisa sempre
passar pela mediação das obras produzidas ao longo do tempo. Os objetos que a história
produz não resistem ao ser questionador que se interpreta imperfeitamente através deles:

[...] a hermenêutica crítica de Paul Ricoeur oferece a possibilidade de pensar


dialeticamente a leitura. Primeiro, porque é como dialética que se encontram
e se desencontram numa obra, a montante, as discussões de autores/leitores
com suas heranças, e a jusante, os esboços esquemáticos dos quais
autores/leitores podem lançar mão para aplicar criativamente, no plano
prático e poético, as verdades daquela obra, vivendo-a e vivendo-se nela.

929
Neste sentido, e contrariando as leis habituais da estética moderna do
hermético e do inutilizável, para Ricoeur não há incompatibilidade entre
qualidade estética e utilização de uma obra, na medida em que a própria ideia
de utilização de uma obra está pensada no plano da coerência de uma
filosofia hermenêutica prática. As obras são exemplos e modelos de ação, de
identificação e de redescrição do real, e por isso são faláveis e usáveis
(COSTA, 2015, p. 395-396)

De acordo com Costa (2015), as regras de configuração de um texto – a


composição da obra, o pertencimento a um gênero, o estilo individual – não são eventos
inteiramente singulares, legíveis no próprio texto. Nesse sentido, o que era visto como
um problema de configuração, precisa tornar-se um problema de recepção, isto é, de
leitura hermenêutica. Passa a ser complicado entender que aquilo que se recebe é um
texto já configurado e inserido na história, embora a configuração dependa desse gesto
de recepção. A recepção, atrelada à questão da configuração, precisa compreender as
justificativas de sua adesão ao texto. Dito de outra forma, explicar por que um texto
entrou para o cânone deixa de ser um problema de configuração, e se torna um
problema de crítica ideológica ou estética. O que a recepção precisa explicar não é o
texto, mas a existência do texto como texto. Segundo Ricoeur (2010), existe relativa
singularidade no ato de leitura, mas não existe, por outro lado, singularidade absoluta no
ato de configuração de um texto, pois, se assim fosse, não haveria nenhum
reconhecimento do valor da obra. A configuração textual ricoeuriana, nesse nível, supõe
formas históricas e transhistóricas, e o processo de individuação ocorre somente em
relação a um modelo estético, ainda que seja para subvertê-lo. No entanto, o
reconhecimento da tradição não corresponde diretamente a uma adesão aos valores
tradicionais.
A teoria feminista há muito vem pensando em sua tarefa hermenêutica e, para
Costa (2015), ela sempre foi e só pode ser uma tarefa hermenêutica crítica, na qual está
implicada uma tarefa de compreensão existencial e não de explicação objetiva, uma
tarefa que desde sempre necessitou de uma dialética do distanciamento e da apropriação
das objetivações do feminino que a história produz. Afinal, um texto não é mais que
uma interpretação a ser negociada no espaço comum. Neste sentido, há muito as teorias
feministas reconhecem para si o trabalho de construção de um espaço de conflito de
interpretações, é necessário procurar o que exatamente o projeto de hermenêutica crítica
de Ricoeur pode trazer para o debate sobre a escolha dos objetos. Isto significa que o

930
pensamento feminista deve produzir por si mesmo uma tarefa de hermenêutica crítica
em relação à própria filosofia de Ricoeur, uma vez que a crítica feminina das ideologias
literárias também opera por redução do campo literário, e neste sentido precisa do apoio
de uma hermenêutica capaz de juízo estético. É exatamente este ponto de partida que
justifica a aproximação entre hermenêutica crítica ricoeuriana e a literatura de mulher.
Se a imaginação é considerada, de fato, uma faculdade poética, tanto de crítica
das linguagens teóricas quanto da criatividade da linguagem literária, a questão da
literatura feminina, ainda hoje abundante em crítica e carente de definição teórica,
encontra-se implicada nesse contexto. Nesse sentido, a própria imaginação está posta à
prova, se a mulher for considerada como uma ideia que põe em risco, na literatura, a
impassibilidade do discurso universal, visto que a imaginação é produtora de sentidos
sempre resistentes e relutantes à redução conceitual. O presente trabalho busca explorar
as conjunções possíveis destas questões e procura incentivar o encontro estético dos
eixos: mulher e imaginação, visto que a questão do feminino continua precisando de
definição.
Vale ressaltar que a leitura concreta dos romances Ciranda de Pedra e Les
Mandarins não é feita no plano da impessoalidade conceitual. Falar de uma obra é falar
desse sujeito-leitor-mulher. Assim, a política de leitura adotada não é uma atitude
passiva de quem aprende, por meio dessas obras, lições de poesia e feminilidade, mas
sim de quem resiste, como mulher, às provocações retóricas do vazio contido em uma
suposta “neutralidade tradicional” da linguagem, que, como se sabe, é, em essência,
uma neutralidade bastante masculina. Tanto Ciranda de Pedra como Les Mandarins são
livros escritos por mulheres em que pesa, na narrativa, a presença e poder de
imaginação das personagens femininas. A escolha das obras se deu, portanto, por ambas
apresentarem-se como férteis terrenos da imaginação. Portanto, e com isso finalizo essa
breve apresentação de uma pesquisa ainda em curso, avultam nos dois romances
personagens mulheres que lidam e suportam a “realidade” por causa de sua capacidade
imaginativa, capacidade essa que transforma o real da ficção e, por consequência, a
própria realidade da leitora. Acredita-se, assim, que as personagens se mantêm sempre
abertas à leitura imaginativa de suas vidas, vivem a tensão imaginativa num primeiro
plano, como se a imaginação atuasse dentro do já imaginado, considerando-se a obra
como sendo um todo igualmente imaginado.

931
Referências

CARDOSO. Patrícia Silva. Imagens do outro e do eu em Um bicho da terra, de


Agustina Bessa-Lúis. Revista Letras, Curitiba, n. 65, jan./abr.2005, p. 11-21.

COSTA, Cristina H. A hermenêutica crítica de Paul Ricoeur posta à prova da


imaginação feminina. Remate de males: Campinas, SP, (35.2): pp. 393-418, Jul./Dez;
2015.

_________. Mulher uma essência vazia, mas resistente. Recorte: UNINCOR. v.11 –
nº 1, Jan./Julho; 2014.

RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa 2. Tradução Márcia Valéria Martinez de Aguiar.


Martins Fontes, São Paulo, 2010.

_________. Tempo e Narrativa 3. Tradução Cláudia Berliner. Martins Fontes, São


Paulo, 2010.

932
A ESCRITA COMO PERFORMANCE E A TRADUÇÃO COMO
CONTRAPONTO

Maíra Mendes Galvão (USP)1

Resumo: O projeto teórico de Henri Meschonnic (2006; 2007; 2010; 2011) tem como cerne seu
conceito específico de oralidade, que derruba a noção de que exista na linguagem uma dicotomia
entre oral/escrito, assim como a ideia de forma/conteúdo que é atribuída ao signo saussureano.
Para Meschonnic, a oralidade está presente tanto no modo falado da linguagem quanto no escrito.
Ao tomar a oralidade, modulada pela subjetividade e historicidade impressas no texto, como uma
operação performática da linguagem, propõe-se entender a tradução como contraponto a essa
performance. Ritmo, para Meschonnic, é a "assinatura" específica da oralidade de um texto, e a
ideia aqui é entender a tradução como geradora de um ritmo complementar ao do texto de partida,
em relação de contraponto.

Palavras-chave: Ritmo; Oralidade; Tradução; Performance; Jogos de linguagem

Henri Meschonnic, em seu trabalho teórico, afastou-se de boa parte das teorias de
linguagem, teorias literárias e teorias críticas propostas até então. Como ele é o principal
teórico adotado para guiar a pesquisa aqui apresentada (da qual este artigo é parte, mas
não o todo), cabe, logo de início, estabelecer um dos pontos de prova deste estudo: como
fica uma aproximação das ideias de Meschonnic com o conceito de performance,
considerando sua explícita distância das teorias performativas da linguagem (dos atos de
fala etc.)? O que parece destacar particularmente esse ponto como algo a ser revisto é que
Meschonnic reitera que o cerne do texto poético não é o que ele diz, mas o que ele faz.
Não é um passo grande demais conectar o fazer, ou seja, algum tipo de ação que veio a
ser entendida como não “somente” enunciação, com pelo menos alguma noção de
performance.
Afinal, como proposto por Zumthor (2018), parafraseando Performance,
percepção, leitura, a poética usa instâncias não informativas da palavra, e essas instâncias
não são regidas pelas regras, elas, de fato, são as regras. E essas regras são recriadas a
todo instante. Esse conjunto de regras reiteráveis (mas não redundantes) precisa de um
sujeito que faça adesão a elas, ou seja, que as atue e dê forma (aqui começa a aparecer o
sentido de atuação como também algo mais teatral, mais performático). Portanto,
segundo Zumthor, a forma só existe na performance, no ato de reconhecer forma
enquanto esta se assoma. Essas considerações me parecem se prestar a uma leitura de

1
Mestranda em Estudos da Tradução (LETRA – FFLCH/USP). Contato: mairamendesgalvao@usp.br.

933
Meschonnic menos preocupada com a acuidade de seu elenco de termos reinventados e
mais com os mecanismos que ele busca descrever ou, aqui ouso dizer, reperformar. Ora,
se a poética faz algo no mundo, e assumindo que ela só existe com a presença da forma,
e que a forma é processo muito mais do que estrutura, não seria a tradução também um
tipo de performance? Mais do que fantasma do texto poético, a tradução poética pode ser
desenhada como isomorfia, como quis Haroldo de Campos, ou uma espécie de
performance análoga, que ocupa posições correspondentes segundo algum tipo de regra.
Nesta pesquisa, o que se explora é a possibilidade (e operacionalidade) de chamar essa
performance análoga de performance contrapontística.
O mecanismo do contraponto na música envolve duas ou mais linhas melódicas que
se complementam por meio de interdependência harmônica (ou seja, obedecem a funções
harmônicas) e independência rítmica. A ideia aqui é propor que a tradução estabelece um
ritmo complementar, mas não idêntico ao do texto de partida, em uma relação de
contraponto. Assim, a interdependência é estabelecida pelo fato insuperável de que a
existência de um dos textos depende da do outro – e também, propõe-se aqui, pela ideia
de que ambos são operacionalizações das mesmas regras ou de regras análogas –
enquanto a independência rítmica provém da inevitabilidade da diferença entre idiomas,
da subjetividade do escritor e subjetividade do tradutor, do contexto espacial e temporal
etc., a qual, todavia, não exime o texto traduzido de apresentar ele também uma proposta
rítmica.
É importante frisar, no entanto, que o ritmo na acepção meschonniciana apoia-se
na ideia de que a contraposição entre oral e escrito não é sustentável: a oralidade permeia,
isso sim, tanto a língua falada quanto escrita. Nesse sentido, um texto poético apresenta
ritmo independentemente de ter ou não elementos como métrica, rima e aliteração: esse
ritmo é uma assinatura poética que provém da subjetividade do autor.
É claro que esse conceito de Meschonnic ainda causa pruridos, pois é abstruso em
sua especificidade e dificuldade de exemplificação, mas há mais uma consideração de
Zumthor (2018) que pode ajudar a elucidá-lo. Ele diz que "o que, na performance oral
pura, é realidade experimentada, é, na leitura, da ordem do desejo" e que a diferença entre
uma leitura poética e uma leitura não poética é que a primeira precisa da "presença ativa
de um corpo", ou seja, de um sujeito. Partindo-se do princípio de que é possível,
teoreticamente, colocar no mesmo plano a leitura e a escrita, assumindo que, ao se tratar

934
de texto poético, ambas retêm certas características específicas dessa modalidade, pode-
se propor um entendimento de que a escrita poética tem a capacidade de por em
funcionamento um ritmo marcado pela ação do sujeito que deseja operar aquela forma.
Existe uma possível equivalência entre forma e regras proposta por Zumthor a partir de
Max Luthi no seguinte trecho, quando ele chama a forma percebida de um texto de

um dinamismo formalizado; uma forma finalizadora [...] não um esquema que


se dobrasse a um assunto, porque a forma não é regida pela regra, ela é a regra.
Uma regra a todo instante recriada, existindo apenas na paixão do homem que,
a todo instante, adere a ela, num encontro luminoso. (2018, pp. 28 e 29)

Assim, temos que o sujeito deseja ou acata certas regras que, no entanto, não são
estáticas, mas atreladas à flutuação inerente à subjetividade. Além disso, continuando
com Zumthor e incorporando o repertório de Meschonnic, esse ritmo precisa ser
reconhecido pelo receptor como outro, como um tipo especial de alteridade, para marcar
que não se trata de mera comunicação.
Ou seja, para operar uma tradução como performance contrapontística, como texto
que é interdependente funcionalmente e independente ritmicamente do texto original, o
tradutor tem de não somente atuar enquanto receptor ativo e perceptivo de um "tipo
especial de alteridade" mas também como criador de ritmo: acatar e criar regras é sua
missão, engendrar forma em processo.
Para elaborar melhor essa ideia de processo, esta pesquisa propõe introduzir
algumas ideias do chamado segundo Ludwig Wittgenstein, o das Investigações
Filosóficas. Mas, antes de passar a ele, vale abrir alguns questionamentos: o que é um
processo senão um desenrolar de fatos gerados por um princípio inicial, um conjunto de
regras, ainda que essas regras sejam mutáveis de acordo com a ação daqueles que as
adotam? Uma questão importante quanto aos Estudos da Tradução é a de que suas teorias
são ad hoc e, por isso, mais adequadas a apoiar o estudo de traduções já executadas (ou
conjuntos delas, subconjuntos e por aí vai). Esse é um dos aspectos macro, ou de fundo,
que justificam minha pesquisa. Há uma necessidade de caracterizar melhor que tipo de
estudo pode servir a (ou acompanhar, melhor dizendo) uma tradução em processo.
Partindo da ideia do próprio Wittgenstein (2012) de que sua filosofia das Investigações
Filosóficas é mais uma metodologia que se escolhe e menos uma teoria abrangente e que

935
gera verdades, além do trabalho do professor Philip Wilson (2012), da University of East
Anglia, propõe-se tentar encontrar uma proposta para por em prática, com intervenções
das ideias previamente apresentadas, uma metodologia Wittgensteiniano-Wilsoniana de
apresentação do processo da tradução de forma a revelar as negociações empreendidas
pela tradutora entre os aspectos contrapontísticos interdependentes e independentes do
texto final em relação ao texto original. O que trata, possivelmente, de uma descrição em
processo.
A filosofia de Wittgenstein, quando passa a descrever o uso da linguagem, inclusive
o uso filosófico, também cria uma teoria de si, que parece ser o que o poema faz ao criar
usos particulares (cuja alteridade é reconhecida) da linguagem: ele instiga o leitor a olhar
para o poema como sua própria teoria de linguagem (teoria, aqui, não no sentido da teoria
da relatividade, por exemplo, ou da teoria evolucionista darwiniana, mas sim no sentido
de dispositivo linguístico particular e reiterável). Aqui, cabe mencionar Davenport apud
Perloff (2008, p. 28), que diz que Wittgenstein não argumenta, e sim pensa em problemas
"cada vez mais sutis e mais profundos" e que, por isso, sua escrita ganha "matizes de
poesia". Um dos pressupostos desta pesquisa é que os Estudos da Tradução enquanto
disciplina possam ganhar com a exploração de problemas cada vez mais sutis e mais
profundos. As teorias da tradução em processo têm o potencial de ser, portanto, mais do
que estudos ad hoc de certas tendências tradutórias ou técnicas mais ou menos
abrangentes, passando a incluir um conjunto heterogêneo não de princípios teóricos, mas
de práticas teóricas contínuas e constantemente revisáveis. Essa proposta apoia-se em
uma analogia em Marjorie Perloff (2008, p. 42), quando ela diz que "por mais que seja
impossível formular princípios éticos, é possível se ocupar de atividades éticas". Então,
por mais que talvez seja impossível formular princípios teóricos estilo guarda-chuva para
a tradução, ou para uma tradução específica que seja, talvez seja possível se ocupar de
atividades teóricas no âmbito tradutório.
Voltando à questão proposta inicialmente, me parece que a tradução como
performance contrapontística seja descritível wittgensteinianamente segundo a ideia dos
jogos de linguagem (WITTGENSTEIN, 2012): tudo aquilo que se pode fazer com a
linguagem obedece a certas regras, tácitas ou não, e depende do reconhecimento daquele
jogo específico para que ele possa funcionar. Por exemplo, um simpósio de
meschonnicianos bradando coisas sobre ritmo a torto e a direito seria uma balbúrdia

936
indecifrável para um estudioso dos distúrbios do sono a quem interessa o ritmo circadiano
do corpo humano. Ambas essas formas de vida, ou contextos práticos em que alguns
vocábulos se interseccionam, têm seus próprios jogos de linguagem determinantes ao
entendimento particular e frequentemente muito diferente desse vocabulário em comum.
Agora, é importante frisar que nem sempre o que determina esses jogos é o
significado dos vocábulos (e portanto os jogos seriam escansões da multiplicidade de
significados em potencial de um só termo), mas sim a maneira pela qual os sujeitos que
jogam se relacionam com a linguagem, ou seja, aquilo que fazem com ela (que é o que
Wittgenstein chama de gramática profunda). Essa ideia, portanto, me parece compatível
com a ideia de Meschonnic de que a tradução literária deve contemplar a oralidade do
texto escrito, ou seja, deve procurar captar o que o texto faz com a linguagem e fazer algo
em contraponto na língua de chegada.
Wittgenstein, no entanto, falava de jogos de linguagem já existentes como o tipo de
linguagem que se usa para comprar algo numa feira, ou o linguajar entre operários de
uma construção, ou a retórica religiosa da missa de domingo, e assim por diante. No caso
da poesia, a premissa adotada por esta pesquisa é a de que cada poema estabelece seu
próprio jogo de linguagem, ou, como foi dito anteriormente, sua teoria de si. São jogos
novos e precisam ser reconhecidos como tal, retomando a ideia da alteridade especial
também mencionada anteriormente, para que sejam lidos e traduzidos poeticamente.
Assim, as regras não mais são tácitas, elas precisam ser estabelecidas.
Neste ponto, coloca-se mais uma questão que é ponto de prova para relacionar as
bases teóricas aqui elencadas: é possível conciliar esse estabelecimento ou
reconhecimento de regras com o conceito meschonniciano de continuidade? Esse é um
conceito que permeia a recusa de Meschonnic em adotar dicotomias e separações
categóricas em qualquer entendimento do mundo, da teoria, da crítica, da linguagem e da
poesia (a lista é potencialmente infinita). A tríade falado, escrito e oralidade é um bom
exemplo de sua tentativa de superar a dualidade inerente ao conceito de signo, por
exemplo.
Da mesma forma, e aparentemente alinhado com Zumthor, para quem as pulsões
importam mais na poética do que as estruturas, Meschonnic enxerga o ritmo na poesia
como algo que não pode ser escandido, que não pode ser quebrado e categorizado, pois
está em movimento, é um contínuo. Esta pesquisa explora, portanto, as possibilidades

937
desse encontro de bases teóricas, seja como for, ainda que a empreitada revele
incompatibilidades insuperáveis, haja vista que o próprio Wittgenstein não parecia se
interessar muito por poesia e pouco falou sobre o assunto. Assim, pode ser
intelectualmente frutífero tentar ampliar seu projeto dos jogos de linguagem para servir
como metodologia não somente para descrever dinâmicas linguísticas já performadas e
reperformadas mas também para tentar entender o que poderia vir a ser uma prática
teórica minimalista de princípios, ou uma prática teórica do processo de tradução, ou ao
menos algumas propostas de práticas nesse sentido. Sendo uma descrição de algo que
está sempre em processo, ela teria de ser capaz de não somente incluir a continuidade, a
não-dicotomia, a não categorização (ou pelo menos uma categorização fluida,
operacional mas não estrutural) mas também de tornar ainda mais evidentes os aspectos
performáticos inerentes aos jogos de linguagem para que sejam reconhecidos como a
chave para essa continuidade meschonniciana.
A pesquisa está em andamento e depende de experimentação com tradução de
poesia, mas o que este artigo identifica são os pilares de sua proposta. A título de
conclusão, resumem-se nas seguintes proposições: 1. A linguagem poética escrita ou
falada possui oralidade; 2. A oralidade do texto poético aparece como um ritmo próprio
e variável, ou seja, aparece naquilo que o texto faz com as palavras; 3. O ritmo textual
depende da subjetividade do autor e da historicidade presente direta ou indiretamente no
texto e no ato de leitura; 4. A tradução deve não dizer o mesmo que o texto original em
outra língua, mas sim fazer o mesmo que o texto original faz, ou performá-lo em outro
idioma e cultura de chegada; 5. A tradução deve ser interdependente do texto original na
medida em que busca fazer a mesma coisa que ele, mas também independente, buscar
caminhos análogos na língua de chegada que funcionem como contraponto; 6. O texto
original é um jogo de linguagem (ou possui jogos de linguagem) que tem suas próprias
regras internas; 7. A tradução deve usar as mesmas regras enquanto jogo de linguagem
ou adotar regras contrapontísticas (análogas, funcionalmente semelhantes); 8. As regras
não devem ser determinantes rígidos mas devem abrir possibilidades, gerar pequenas
teorias pontuais sobre termos ou seções do texto ou até aspectos mais abrangentes do
texto como um todo que a tradutora pode expor ao descrever o processo de trabalho.

938
Referências

MESCHONNIC, Henri. Linguagem, ritmo e vida. Extratos traduzidos por Cristiano Florentino.
Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2006.

MESCHONNIC, Henri. 2007. Ethics and Politics of Translating. Volume 91 (Volume 7 da EST
Subseries). Editado e traduzido por Pier-Pascale Boulanger. Philadelphia/Amsterdam: John
Benjamins Publishing Company.

MESCHONNIC, Henri. 2010. Poética do traduzir. Translated by Jerusa Pires Ferreira and Suely
Fenerich. São Paulo: Perspectiva.

MESCHONNIC, Henri. The Rhythm Party Manifesto. Thinking Verse I, pp. 161-173. 2011.
Traduzido por David Nowell Smith. Disponível em:
http://thinkingverse.org/issue01/Henri%20Meschonnic,%20The%20Rhythm%20Party%20Mani
festo.pdf. Acessado em: mai. 2019.

PERLOFF, Marjorie. A escada de Wittgenstein. A linguagem poética e o estranhamento do


cotidiano. São Paulo: Edusp, 2008.

WILSON, Philip. Translation after Wittgenstein. Tese de doutorado. University of East Anglia,
ago 2012. Disponível em: <https://ueaeprints.uea.ac.uk/42354/1/2012WilsonPSPhD.pdf>
Acesso em: 25 jun., 2018.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado Lógico-Filosófico * Investigações Filosóficas. 3ª edição.


Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.

ZUMTHOR, Paul. Performance, percepção, leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich. São Paulo: Ubu Editora, 2018.

939
UMA METAFÍSICA DO INUMANO: O NOJO N'A PAIXÃO SEGUNDO G.H.

MATEUS TOLEDO GONÇALVES (UFPR)1

Resumo: O interesse dessa apresentação será tratar um aspecto da presença da barata na A


paixão segundo G.H. A barata, como se sabe, é o exemplo prototípico do animal nojento. Ao
narrar o confronto de G.H com uma barata, o romance parece querer lançar mão da intensidade
afetiva própria do nojo, dessa emoção visceral despertada pelo inseto abjeto. O caso é que,
como tentarei mostrar, num movimento no mínimo surpreendente, o nojo, esse afeto
marcadamente corpóreo, será empregado no romance no interior de um empreendimento de
natureza metafísica.

Palavras-chave: A paixão segundo G.H.; Nojo; Metafísica

As baratas infestam a literatura de Clarice Lispector. Elas aparecem em


praticamente todos os livros publicados pela escritora, normalmente de modo muito
discreto, como nos seus dois primeiros romances, em Perto do Coração Selvagem e em
O lustre, nos quais a “barata” aparece apenas de passagem (e como qualificativo, como
“cheiro de barata” e “gosto de barata”, espécie de antecipação do gesto dramático de
provar o inseto que iria se dar no romance que viria a seguir), mas por vezes de modo
marcante, como em A quinta história e A paixão segundo G.H, em que o confronto com
o inseto doméstico é o cerne da intriga.
Os sentidos possíveis dessa aparição no nosso romance são muitos. Olga de Sá vai
enfatizar na escolha do inseto a intenção de paródia bíblica e também a sua relação com
um passado imemorial, as centenas de milhões de anos de existência da espécie no
planeta:
A barata doméstica não está relacionada na Bíblia entre os animais impuros,
mas entende-se que esteja incluída entre os insetos alados repugnantes.
Clarice escolheu-a por considerá-la ligada à aurora do mundo, tendo
sobrevivido até hoje, através de sucessivas adaptações. (SÁ, 1993, p.136)
Para Alexandre Nodari a presença da barata no romance aponta não apenas para o
passado, mas também para um futuro apocalíptico, pois supostamente a barata seria um
dos poucos animais que sobreviveriam à catástrofe nuclear:
A capacidade de sobrevivência das baratas, que à época, a partir de boatos de
que elas teriam se mantido intactas em Hiroshima e Nagasaki, se dizia serem
capazes de resistir à radiação de uma bomba atômica, indicia que a viagem de

1Graduado em Filosofia (USP), Mestre em Estudos Literários (UFPR).

940
G.H. não será (só) por um passado atual, mas também por um futuro
(apocalíptico) que acontece agora: “como depois de uma catástrofe, a minha
civilização acabara”, dirá mais adiante a personagem. Na medida em que
antecede e sobrevive à humanidade, a barata parece dar acesso ao tempo da
formação e do fim do mundo, um mundo não-datado (NODARI, 2015 p.
142)
Benedito Nunes por sua vez vai também enfatizar, como Olga de Sá, o aspecto
antediluviano do inseto, mas para ele essa ancestralidade estaria sendo mobilizada para
marcar no romance o contraste entre humano e não-humano do modo o mais extremo
possível:
O confronto da personagem com o animal, e precisamente com um animal
dessa espécie - cuja ancestralidade, que precedeu o surgimento da vida
humana na Terra, a narrativa destaca - assinala a máxima oposição que
engloba os demais contrastes expostos no relato de G.H., entre humano e
não-humano, o natural e o cultural.(NUNES, 1989, p.60)

Gostaria de explorar mais extensamente um outro aspecto da escolha da barata


que é sua dimensão afetiva. A barata, como se sabe, é o exemplo prototípico do animal
nojento. Ao narrar o confronto de G.H com uma barata, o romance parece querer
mobilizar a intensidade afetiva própria do nojo, dessa emoção visceral despertada pelo
inseto abjeto. Como tentarei mostrar adiante, num movimento no mínimo
surpreendente, o nojo, esse afeto marcadamente corpóreo, será empregado no romance
no interior de uma busca de natureza metafísica.

II

Dentre as emoções, o nojo é possivelmente aquela cujo vínculo com o corpo é o


mais enfático, ele envolve reações corporais fortes (sua expressão clássica é o vômito) a
estímulos que normalmente têm também características corporais acentuadas; ele não
deixa de ter, no entanto, um conteúdo cognitivo intricado. (NUSSBAUM, 2001 p.200-
201) Essa concepção de que emoções são portadoras de um complexo de ideias, que
elas veiculam julgamentos, concepção que Martha Nussbaum vai remontar ao
estoicismo grego, encontra no caso particular do nojo sustentação convincente em uma
série de pesquisas levadas à cabo por Paul Rozin, provavelmente o psicólogo
experimental com os mais extensos e influentes estudos no campo. Sem entrar no
detalhe das suas pesquisas, o que estaria fora do escopo desse trabalho, gostaria de

941
isolar alguns elementos de suas conclusões que podem ser particularmente significativos
para nós.
O nojo seria para Rozin uma espécie de sentinela das fronteiras do eu, seria a
repulsão à incorporação de um contaminante externo, e teria na boca um lugar
especialmente dramático. Como órgão incorporativo, a boca é o ponto de transição entre
o que está dentro ou fora do corpo, de modo que ela “funcionaria como uma margem
altamente carregada entre o eu e o não-eu” (ROZIN e FALLON, 1987 p.26). O nojo
não tem como alvo, contudo, qualquer elemento externo ao eu. Como Rozin e Fallon
irão mostrar, na esteira do trabalho de Angyal, os objetos nojentos tipicamente são
animais, produtos com sua origem ou qualquer coisa que tenha mantido contato com
alguma matéria animal.2 De maneira que no nojo o que é experimentado como uma
ameaça ao eu é a animalidade. A fronteira que se quer defender é, assim, aquela entre o
humano e o animal. Como coloca Nussbaum, resumindo as formulações de Rozin, o
núcleo ideativo do nojo é a crença mágica “de que se pegarmos na animalidade das
secreções dos animais nós mesmos seremos reduzidos ao status de animal”.
(NUSSBAUM, 2001 p.203)
Um outro elemento da dimensão simbólica contida no nojo, como apontado por
William Ian Miller em seu Anatomy of Disgust, é o seu ímpeto hierarquizador. Como ele
explica, seria inerente ao nojo hierarquizar os objetos:
Disgust evaluates (negatively) what it touches, proclaims the meanness and
inferiority of its object. And by so doing it presents a nervous claim of right
to be free of the dangers imposed by the proximity of the inferior. It is thus an
assertion of a claim to superiority that at the same time recognizes the
vulnerability of that superiority to the defiling powers of the low. The world
is a dangerous place in which the polluting powers of the low are usually

2Produtos de origem vegetal, por exemplo, tipicamente não são tratados como nojentos:

Angyal (1941) suggested that all disgust objects are animals or animal
products, and we confirmed this claim through questionaires and interviews
(Fallon & Rozin. 1983; Rozin & Fallon, 1980). Almost all objects that
qualify as disgusting by our criteria are animals or parts of animals, animal
body products, or objects that have had contact with any of the above or that
resemble them. A major animal source is interpersonal: The prospect of
consuming things contacted by people who are disliked or viewed as
unsavory often elicits disgust. Some individuals use the word disgust to
describe particular vegetable items. However, according to our analysis, these
items do not have the psychological attributes characteristic of disgust (Rozin
& Fallon, 1980). They are almost always simply badtasting items (distastes),
with no offensive or contaminating properties. (ROZIN e FALLON, 1987
p.27)

942
stronger than the purifying powers of the high. Rozin quotes a mechanic who
captures the point vividly: "A teaspoon of sewage will spoil a barrel of wine,
but a teaspoon of wine will do nothing for a barrel of sewage.(MILLER,
1997 p.9)
O nojo degrada tudo o que toca. Haveria nessa emoção uma reivindicação de
superioridade junto de uma confissão constrangida de fragilidade. O nojo seria uma
afirmação de vulnerabilidade, na medida em que ele admite que há um perigo colocado
e não pode simplesmente ignorar o objeto tomado como inferior, como ocorre num
outro afeto hierarquizador como o desprezo; mas seria também sua (de)negação, pois
ele produz como resposta o desejo de afastar ou eliminar a coisa nojenta, de modo a
tentar restaurar a sensação de invulnerabilidade. Isto é, se há no nojo uma experiência
de vulnerabilidade, trata-se de uma vulnerabilidade experimentada como algo
insuportável, que se quer evitar a todo custo. De modo que o nojo funciona como uma
espécie de armadura protetora do eu.
Que a barata seja o exemplo prototípico de objeto repulsivo também está em
estreita ligação com essa dimensão hierarquizadora do nojo, pois como novamente
coloca Miller “os poderes contaminadores dos animais aumentam na medida em que
descemos nos filos. É notável que a capacidade de produzir nojo esteja tão intimamente
ligada com as suas posições numa hierarquia.” (MILLER, 1997 p.43) É o baixo na
barata, sua inferioridade numa suposta escala animal, que seria perigoso e poderia nos
contaminar com sua animalidade degradante.
O nojo seria, assim, um afeto particularmente conveniente para produzir escalas
de valor. Não é surpreendente, com efeito, que ele seja com tanta frequência usado na
fabricação e manutenção de hierarquias sociais. Pois, como se sabe, essa proteção
contra a animalidade não está direcionada apenas aos animais não-humanos:

So powerful is the desire to cordon ourselves off from our animality that we
often don’t stop at feces, cockroaches, and slimy animals. We need a group of
humans to bound ourselves against, who will come to exemplify the
boundary line between the truly human and the basely animal (NUSSBAUM,
2001, p.347)

Entre nós, um certo uso da noção de humano associado ao nojo com frequência
desempenhou o papel de submeter grupos sociais: a história do Ocidente está repleta de
casos de utilização desse afeto para conferir um status inferior a judeus, não brancos,
pobres, mulheres. (MILLER 1997 p.235-54) Homofobia, racismo, anti-semitismo em
vários momentos da história foram todos impulsionados pela “repulsa do homem

943
comum”, o nojo (e, por extensão, a fronteira humanidade/animalidade) funcionando
mesmo como justificativa para a perseguição desses grupos.3 No cerne das detestáveis
ofensas “à imundice dos judeus”, “ao mal cheiro dos negros”, “à repugnância do
comportamento homossexual” estaria em operação a categoria do humano.

III

In this age in which everything is held to be


permissible so long as it is freely done, in
which our given human nature no longer
commands respect, in which our bodies are
regarded as mere instruments of our
autonomous rational wills, repugnance may
be the only voice left that speaks up to
defend the central core of our humanity.4

Leon Kass, em uma discussão sobre a moralidade da clonagem humana – mas que
teria também incidência sobre outro tópico mais premente no início dos anos 2000, o da
proibição de pesquisas com células tronco nos EUA; Kass era na época chamado de “o
filósofo do presidente”, dada sua influência sobre G.W. Bush – cunhou a expressão “a
sabedoria da repugnância”. Para ele, o nojo possuiria um saber, ele teria como que um
acesso a normas morais conectadas à natureza humana - regras constitutivas que não
poderiam encontrar justificativa meramente na razão - e a repulsa que sentimos seria um
aviso de que essas normas estariam sendo desrespeitadas. 5 A repugnância seria uma
espécie de alerta sobre o que não devemos nunca transgredir sob pena de perdermos
nossa humanidade.

3Não muito tempo atrás e no mundo das chamadas democracias liberais, a criminalização de
grupos inteiros foi feita reiteradamente com apelo (muitas vezes exclusivo) ao nojo, como se vê
no histórico das leis anti-sodomia contra os homossexuais.
cf. NUSSBAUM, M; Hiding from Humanity: Disgust, Shame and the Law. Princeton: Princeton
University Press 2004

4 KASS, L. The Wisdom of Repugnance: Why We Should Ban the Cloning of Humans.
Valparaiso University Law Review, Vol. 32, No. 2 [1998], Art. 12 p. 687 itálico meu.
5KASS, 1998 p. 687

944
N’A paixão segundo G.H o nojo irá aparecer de um modo bastante particular. Se
ele parece evocar os mesmos elementos discutidos aqui - humanidade,
invulnerabilidade, hierarquia -, a narradora-personagem irá empregá-lo entretanto pelo
avesso, numa espécie de tentativa de atravessá-lo por dentro. Se o nojo normalmente
funciona como uma força de repulsão, que indicaria quais seres, comportamentos e
objetos devemos evitar, no nosso romance, ao contrário, ele é guia. É como se G.H,
diante das ameaças de perda da humanidade colocadas, respondesse: mas é justamente
isso o que desejo.

Mas o nojo me é necessário assim como a poluição das águas é necessária


para procriar-se o que está nas águas. O nojo me guia e me fecunda. Através
do nojo, vejo uma noite na Galiléia. (LISPECTOR, 2009 p.111)

No romance, como tentei defender em minha dissertação de mestrado, o encontro


com a coisa depende da perda da “montagem humana” - o que tenho tratado como o
nexo entre metafísica e metamorfose. Daí que G.H irá seguir os conselhos do nojo, mas
ao reverso, se aproximando daquilo que lhe causa repulsa e ameaça colapsar a fronteira
humano/animal. Essa aproximação se dá no plano do enredo – nas ações da
personagem, em particular no gesto final de provar a massa branca da barata – e
também no da narração. O tipo de descrição feita do inseto, muito minuciosa, que chega
nas suas intimidades, no detalhe mais próximo, como que traz a barata pra muito perto
de nós, produz na leitura o efeito nauseante de uma vizinhança asquerosa com ela. Eu
cito novamente o romance:
As antenas saíam em bigodes dos lados da boca. A boca marrom era bem
delineada. Os finos e longos bigodes mexiam-se lentos e secos. Seus olhos
pretos facetados olhavam. (...) ela é formada de cascas e cascas pardas, finas
como as de uma cebola, como se cada uma pudesse ser levantada pela unha e
no entanto sempre aparecer mais uma casca, e mais uma. (...) Ela era
arruivada. E toda cheia de cílios. Os cílios seriam talvez as múltiplas pernas.
Os fios de antena estavam agora quietos, fiapos secos e empoeirados. A
barata não tem nariz. (...) Olhos de noiva. Cada olho em si mesmo parecia
uma barata. O olho franjado, escuro, vivo e desempoeirado.(LISPECTOR
2009 p. 55)
Se o nojo funciona como sentinela da divisa humano/animal, no romance – em um
exercício de experimentação com esse afeto – ele será transformado num sabotador
dessa fronteira. É ele que entrega que a margem mais vulnerável dessa fronteira está no
inseto asqueroso. De modo que à força de repulsão do nojo, se oporá no romance uma
força de atração ainda mais forte, que fará a narradora seguir pelo caminho do nojo em

945
direção ao inumano. Será através da barata e de seu nojo por ela que G.H irá operar a
metamorfose:
A passagem estreita fora pela barata difícil, e eu me havia esgueirado com
nojo através daquele corpo de cascas e lama. E terminara, também eu toda
imunda, por desembocar através dela para o meu passado que era o meu
contínuo presente e o meu futuro contínuo - e que hoje e sempre está na
parede, e minhas quinze milhões de filhas, desde então até eu, também lá
estavam.(LISPECTOR 2009 p.65)
A mobilização do nojo no romance não é só animalizante, mas também anti-
narcísica. Novamente, de dispositivo protetor do ego, o nojo será convertido em um
mecanismo para indicar o que seria capaz de furar a crosta protetora do eu. Contra o
desejo de invulnerabilidade expresso nesse afeto, que quer expulsar o elemento externo
ameaçador, G.H irá reagir com um convívio íntimo com a barata, prolongando no tempo
essa proximidade dolorosa de modo a precisamente “quebrar o seu invólucro”. Trata-se
de perder essa película protetora para produzir no quarto um espaço de coexistência
porosa entre os seres:
Enfim, enfim quebrara-se realmente o meu invólucro, e sem limite eu era.
Por não ser, eu era. Até o fim daquilo que eu não era, eu era. O que não sou
eu, eu sou. Tudo estará em mim, se eu não for; pois “eu” é apenas um dos
espasmos instantâneos do mundo. (...) Mas agora, eu era muito menos que
humana - e só realizaria o meu destino especificamente humano se me
entregasse, como estava me entregando, ao que já não era eu, ao que já é
inumano. (LISPECTOR 2009 p.178)

Por fim, G.H irá solapar o ímpeto hierarquizante do nojo se devotando à barata.
Para desarranjar essa organização hierárquica, a personagem terá que cultuar o baixo, o
animal mais repugnante. O longo processo de perda da montagem humana que
acompanhamos no romance é também um desfazimento das hierarquias do ser. Como
coloca Cixous, a ordenação descendente que leva de Deus, passa pelos homens, as
mulher, os animais inferiores e plantas é feita do ponto de vista humano. (CIXOUS,
1991, p.25) Ao fazer ruir a humanidade, leva-se junto o parâmetro da escala de valor.
Institui-se “a equalização radical de todos os seres”:
If metaphysics (and religion is nothing but metaphysics) since Plato is
determined by the hierarchic superiority of the meta-physical over the
physical, wherein the "supreme idea," that which "has more being" (the
"myth of the cave"--Republic 515d, 3-4), is to be adequately represented by
discourse, G.H. proposes here the radical equalization of all beings.6

6 PENNA, João Camillo. Clarice Lispector's Things: The Question of Difference. Tese de
doutorado/ University of California, Berkeley, 1993. (sem paginação)

946
Com efeito, n’A paixão segundo G.H não só a estabilização, como trabalhamos na
dissertação, mas também a hierarquização da realidade são efeitos da montagem
humana. A metafísica tradicional, nesse sentido, é menos falsa do que escrita de um
ponto de vista que se procura com esforço abandonar. Ao operar a desmontagem, o que
se exibe no livro é, assim, uma metafísica outra, feita a partir do inumano.

Referências

KASS, L.(1998) The Wisdom of Repugnance: Why We Should Ban the Cloning of
Humans. Valparaiso University Law Review, Vol. 32, No. 2 , Art. 12

LISPECTOR, C.(2009) A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco,

MILLER, W.I; (1997)The Anatomy of Disgust. Cambridge: Harvard University Press.

NODARI, Alexandre.(2015) “A vida oblíqua”: o hetairismo ontológico segundo G.H;


Em: O Eixo e a Roda: Revista de Literatura Brasileira v. 24, n. 1

NUNES, B. (1989) O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. São


Paulo: Editora Ática.

NUSSBAUM, M; (2004) Hiding from Humanity: Disgust, Shame and the Law.
Princeton: Princeton University Press
_____________; (2001) Upheavals of Thought: The Intelligence of Emotions.
Cambridge: Cambridge University Press

PENNA, João Camillo. Clarice Lispector's Things: The Question of Difference. Tese de
doutorado/ University of California, Berkeley, 1993.

ROZIN, P., & FALLON, A. (1987). A perspective on disgust. Psychological Review, 94,
23-41.

SÁ, Olga. Clarice Lispector: a travessia do oposto. São Paulo: Annablume. p.136

947



A TRADUÇÃO COMO TRÉGUA: ECOS E RASTROS DE MARIANNE
MOORE NA OBRA POÉTICA DE MIRTA ROSENBERG

Sheyla M. V. Miranda (USP/CAPES)1

Resumo: As atividades de escrever e traduzir são simultâneas na trajetória de Mirta Rosenberg


(1951-2019), um dos nomes fundamentais da poesia argentina contemporânea. Este artigo
procura investigar as ressonâncias de Marianne Moore, uma das autoras do modernismo anglo-
saxão que Rosenberg traduziu, em sua obra poética.

Palavras-chave: Mirta Rosenberg; Marianne Moore; tradução; voz; Henri Meschonnic

No índice de El árbol de las palabras, primeira reunião da obra poética de Mirta


Rosenberg, publicada em Buenos Aires, em 2006, há uma entrada chamada “Conversos”.
Como no índice não há qualquer sinal que diferencie a entrada das demais, é preciso
avançar até a página 197 para entender que não remete a um dos livros publicados pela
poeta, mas a uma pequena compilação de poemas por ela vertidos ao espanhol. Na nota
introdutória da seção, Rosenberg pontua: “Esta breve seleção de traduções resume alguns
pontos importantes de minha atividade poética. Todas as versões foram escolhidas em
função do impulso e as direções que abriram em minha própria produção, por diferentes
motivos e em diferentes momentos” (ROSENBERG, 2006, p. 197).
Detenho-me por um momento no título da seção: “Converso” é o que foi convertido,
algo que adquire nova forma ou que passa a um outro estado, não sem as marcas de um
embate. “Converso” é também a abertura ao diálogo, “yo converso”, primeira pessoa do
indicativo, o tempo presente – Rosenberg convoca, nos poemas assinados por ela, os
autores que escolheu traduzir, faz conviver essas vozes com a própria voz. Constrói sua
poética no intervalo desse jogo em que coexistem temporalidades, e reconhece também a
presença de sua voz nos textos que traduz – uma dicção que se funda em relação, na
ressonância da voz de um Outro. Na obra de Rosenberg, pode-se pensar a escrita e a
tradução como duas matrizes de um mesmo ato2, de um mesmo gesto poético; um
movimento duplo, intenso, tensionado, cujos rastros tenho tentado observar.

1
Mestre em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universitat de Barcelona, é doutoranda do
programa de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP. Contato: sheyla.miranda@usp.br
2
Penso “ato” aqui no sentido da voz como ato, um contínuo em movimento, na esteira do que formulou
Valéry em sua Primeira aula do curso de poética: “Um poema é um discurso que exige e que provoca uma
ligação contínua entre a voz que existe e a voz que vem e que deve vir” (VALÉRY, 2007, p. 185).

948



Ecos e rastros de Moore
Concomitantes, indissociáveis: as atividades de escrever e traduzir são simultâneas
na trajetória de Rosenberg. Seu primeiro livro, Pasajes, foi editado em 1984, mesmo ano
em que começa a publicar traduções esparsas, que se avolumam quando desponta o
Diário de Poesía na cena literária argentina, no inverno de 1986, com tiragem inicial de
cinco mil exemplares. Surgido no contexto da redemocratização, após o fim da ditadura
militar (1976-1983), a revista circulou até 2011, publicando traduções, ensaios e poesia
contemporânea. Foi no Diario que Rosenberg publicou muitas de suas traduções, como
por exemplo as que fez de textos Emily Dickinson, Marianne Moore, Katherine
Mansfield, Hilda Doolittle, Elizabeth Bishop, Anne Sexton, Anna Swir, Denise Levertov,
Kay Ryan, entre outros autores.3
Ao lado de Diana Belessi, poeta, tradutora e também integrante do conselho do
Diario, Rosenberg atuou para construir na Argentina o acesso às obras de poetas mulheres
cujos trabalhos eram, na construção de sua poética, fontes de interação, de citações – às
vezes literais, outras indiretas, ruídos amalgamados nas fronteiras de seu projeto poético,
a um só tempo singular, bastante distinto de seus principais pares, e permeável às
reverberações da leitura e da escuta atentas e ativas que a tradução exige. O que faz pensar
na máxima de Meschonnic: “Traduzir só é traduzir quando é um laboratório de escrita”,
ao que ele segue, “De outro modo é decalque. Uma tarefa executada. (...) A relação entre
escrever e traduzir é uma parábola, uma história aparente, cujo sentido se esconde”
(MESCHONNIC, 2010, p. 269).
Nome fundante do cânone particular de Rosenberg, Marianne Moore (1887-1972)
é muitas vezes o Outro, uma espécie de presença geradora, uma base a partir da qual a
poeta argentina se sentiu autorizada a testar estruturas visuais e sonoras, a sondar os
efeitos da rima interna e da alternância de vozes instaurada pela recorrência de citações
de versos de outros poetas. A poeta modernista como uma força propulsora, um estímulo
inaugural que impulsionou Rosenberg a experimentar modulações para a frequência
rítmica de sua poética, que no início da década de 1980 viveu sua fase de arranque, com
as fronteiras ainda muito permeáveis, num espaço-tempo de reconfiguração e de testes
das formas poéticas na Argentina, sobretudo entre as poetas mulheres que emergiram no

3
Embora tenha traduzido principalmente poetas mulheres, Rosenberg também verteu para o espanhol
poemas de autores como W.H. Auden, D.H. Lawrence, James Laughlin e Seamus Heaney.

949



cenário literário nas brechas instauradas pelo contexto da redemocratização. E é a via da
tradução a senda particular de Rosenberg, e Moore sua experiência tradutória mais
marcante.
O impacto de Marianne Moore em Pasajes, o primeiro livro de Mirta Rosenberg, é
reconhecível em uma série de citações, uma das mais evidentes é a epígrafe da segunda
parte da obra, intitulada “Contra el espejo” (ROSENBERG, 2006, p. 41):
The week overcomes
its menace, the strong
overcomes itself.

MARIANNE MOORE

O trecho integra “Nevertheless”, publicado por Moore em 1944, um poema que


arma uma rede de tensão em seus 11 tercetos. A superfície do poema oferece uma forma
regular, em que cada estrofe de três linhas contém dezoito sílabas. A autora estabelece
um sistema aparentemente padrão (para sua época) para então transgredi-lo. Moore trocou
uma atenção acentual por uma atenção silábica, tornou-se marca da autora escrever em
“syllabics”. Na tradição da poesia de língua inglesa, a unidade métrica não é a sílaba e
sim o pé, composto de duas ou mais sílabas. Enquanto que os syllabics adotados por
Moore abriram-lhe a possibilidade de enjambements inventivos, pouco usuais em seu
tempo, e de uma disposição rítmica em que as quebras de verso não costumam ocorrer
nas pausas que seriam naturais do ponto de vista temático ou da respiração. É o caso do
poema citado:
NEVERTHELESS

you’ve seen a strawberry


that’s had a struggle; yet,
was, where the fragments met,

a hedgehog or a starfish
for the multitude
of seeds. What better food

than apple seeds-the fruit


within the fruit-locked in
like counter-curved twin

hazelnuts? Frost that kills


the little rubber-plantleaves

950



of Iwk-saghyz-stalks, can’t

harm the roots; they still grow


in frozen ground. Once where
there was a prickly-pearleaf

clinging to barbed wire,


a root shot down to grow
in earth two feet below;

as carrots form mandrakes


or a ram’s-horn root sometimes.
Victory won’t come

to me unless I go
to it; a grape tendril
ties a knot in knots till

knotted thirty times-so


the bound twig that’s undergone
and over-gone, can’t stir.

The weak overcomes its


menace, the strong overcomes
itself. What is there

like fortitude! What sap


went through that little thread
to make the cherry red!

Dentro desta caixa regular, de estrutura enganosamente simples, há um


agrupamento de justaposições que evidenciam as ambiguidades do poder, fraco e forte,
minúsculo – as sementes – e enorme – a metáfora de contínuo da humanidade. A tensão
das oposições se evidencia na forma do poema, na conformação rítmica estabelecida por
aliterações, rimas e quebras de linha, o ritmo é a organização do sentido no discurso
(MESCHONNIC, 1982, p. 70). A segunda e terceira linhas de cada estrofe são sempre
recuadas, de modo que o sistema de rimas – quase todo em ABB, CDD, EFF etc – torna-
se mais evidente. Não é único trabalho sonoro rastreável do poema, que opera ecoando
remissões internas, como nas linhas 7 e 8 (than apple seeds-the fruit/ within the fruit-
locked in) e 13 e 14 (harm the roots; they still grow/ in frozen ground). Os ecos internos
parecem ter um poder de ênfase maior do que as rimas posicionadas no fim do verso,
quebrado artificialmente para enfatizá-las. Como se a força estivesse no centro do poema

951



(the strong overcomes/itself. What…), na semente de morangos e maçãs.
Rosenberg faz outras alusões a “Nevertheless” em Pasajes. Em vários dos textos
da obra a autora trabalha a quebra de linha no meio das palavras, fazendo com que a
mancha de seus poemas lembre “Nevertheless”, e em “El arte de lo infinito”
(ROSENBERG, 2006, p. 46) a poeta retoma o uso dos tercertos e trata de uma luta interna
que se sabe desde o princípio perdida, pois interminável: a de fazer-se e desfazer-se
sujeito no encontro com o próprio desejo. O poder dissolvido na entropia dos dias. Neste
poema, a autora argentina não estabelece um sistema fixo de rimas finais (algo que de
fato não é uma característica das mais expressivas de sua produção), e sim evoca um
sistema de ênfase interno, com rimas e repetições como nas observadas no trecho que cito
a seguir, emulando uma Lemniscata – cujo ponto de convergência é o centro:

EL ARTE DE LO INFINITO
Barro los pisos
de dolores y alegrías
hechos polvo. Yo ensayo:

cansacio en lo que no
descansa. Soy possible
mientras barro alerta

a la puerta por donde


saldré cuando me vaya, aunque
sea ida siguiendo otro deseo

por delante. Semejante


a mi propia imagen, excedida
en el polvo disperso, vuelta

a juntarse. (…)

No correr da vida cotidiana, um varre o pó de suas ilusões, no processo desintegra-


se e depois volta a se reaglutinar, num movimento pendular, infinito, em que não há
vitória possível – uma força invisível é quem vence –, e no qual evita perguntar-se pelo
depois. Talvez uma outra forma de dizer o que Rosenberg já havia dito ao tomar de
empréstimo estes versos da poeta estadunidense Ursula K. Le Guin (1925-2018) no
poema “Llano” (ROSENBERG, 2006, p. 43): “Lo unico que hace possible la vida es la
permanente/ intolerable incertitumbre de no saber qué vendrá después”. O excerto surge

952



traduzido e entremeado aos versos próprios da autora argentina – nem esta ou qualquer
outra citação é identificada no poema em si, apenas no final deste primeiro livro, numa
nota intitulada “Intinerario” (ROSENBERG, 2006, p. 56). A identificação das citações
no final é um método que Rosenberg incorpora da observação da obra de Moore: “A
utilização de fontes diversas (especificadas nas notas finais) converte Marianne Moore
em uma collagista textual maravilhosamente hábil e sempre engenhosa e refinada”
(ROSENBERG, 1988, p. 17).
No poema “Oráculo” (ROSENBERG, 2006, p. 49), a referência a “Nevertheless”
é mais direta, uma citação de um trecho do poema, já traduzida, integrada a outras vozes
que se inscrevem no texto. “The weak overcomes its/ menace” torna-se, na versão em
espanhol de Rosenberg, “lo débil/supera su amenaza” – imprescindível notar que a quebra
do verso original é deslocada, com o corte antecipado para logo depois de weak/débil
(versos 11 e 12):

ORÁCULO
“Todo movimiento es apetencia”,
me decía, “fortaleza, perfección,
artistería”. Y también la promesa
de que echado a rodar, caído al mar,
el guijarro pulirá cualquier modo,
mojado en el vacío. No sé si comprender
que no soy sino él, cuyas aristas se rozan
entre espumas que cribaban lo claro hasta lo oscuro
de una vieja situación que todavía acaba de pasarme,
de este extramuros que no termina aquí, porque lo siento.
Tal vez conviene a él crecer, menguar a mí donde “lo débil
supera su amenaza”, dejando la promesa a lo más fuerte,
o a nadie que sepa concretarla. Al mismo tiempo
“para mí”, otra me decía, “el universo resulta
definitivamente indescifrable”, dada a pensar
en un valor que se negaba, por la visión
y el sufrimiento. Cuidado con la llama,
que a todos los cuidados sobrevive,
añadidura feliz de un pensamiento
incompleto, vano por vanidad
de saber que extinguida
la visión, la vida,
más terrible,
se disipa.

As primeiras aspas delimitam uma voz que se comunica com outra, a que enuncia, que

953



está às voltas com uma promessa da primeira e com a possibilidade de ser senão um
guijarro (“seixo”) – “No sé si comprender/ que no soy sino él, cuyas aristas se rozan entre
espumas” –; esta voz, a que enuncia, se inscreve em uma temporalidade indeterminada,
em que o antigo coexiste com o tempo presente do poema – “una vieja situación que
todavía acaba de pasarme”, que não cessa de se desdobrar, que não termina, “porque lo
siento”, e sente muito agora.
Uma terceira voz, a de Moore traduzida – então também a de Rosenberg? –, surge
quando se coloca outra ordem de indeterminação, introduzida pelo tal vez – conviria ao
seixo crescer, deixar a voz que enuncia à mingua? Neste ponto máximo de tensão, uma
fenda de equivocidade, o excerto de Moore constitui o verso mais longo do poema e,
cortado imediatamente depois de “débil”, marca o início de um processo de retração, em
que mínguam, como a extensão dos versos, as ilusões daquela primeira promessa (versos
3 a 6).
Mais uma voz – “otra me decía” – se apresenta neste espaço instável para falar
sobre a impossibilidade de decifrar o universo, desafiando a dimensão oracular instaurada
pelo título do poema, que prevê, à revelia de todos os cuidados – e desejos e promessas e
visões, profecias – a vida se dissipar ao final. A instância compositiva parece emular o
rastro de um corpo no poema, que se avoluma enquanto há pulsão, promessa, e decresce
quando constata sua fraqueza, “dejando la promesa a lo más fuerte", e na sequência vai
aos poucos se extinguindo. As aliterações mais constantes são em /m/, na primeira parte,
e em /v/, na segunda, criando a unidade sonora que é cara à autora, mesmo em um poema
no qual não é dominante o recurso poético que mais lhe interessa, a rima interna.
A fricção entre vozes presente neste poema, e em outros textos da poética de
Rosenberg, estabelece um espaço de contato amplo, desieraquizado, em que não só a voz
que enuncia tem poder, mas no qual as outras vozes, quase sempre de autoras com versos
traduzidos pela própria poeta, criam um eco múltiplo, heterogêneo, em que coexistem
temporalidades, historicidades, diferentes modos de existência – um lugar mesmo de
partilha que parece ser, afinal, o que constitui a voz, que é “sem limites, sem garantia”
(DOLAR, 2012, p. 185). E como coloca Roberto Zular: “Se a voz ocupa o lugar estrutural
da soberania como propõe Dolar, exatamente por estar dentro e fora da lei, é por ela
também como pura enunciação que se torna possível a emergência de outros mundos”
(ZULAR, 2014, p. 75).

954



Diferentes regimes de imaginação transitam na poética de Rosenberg, e assumem
um contorno ainda mais permeável em “Contra el espejo” (ROSENBERG, 2006, p. 48),
poema que leva o mesmo nome da seção de Pasajes que contém epígrafe de Marianne
Moore. Neste texto, a autora argentina faz uma espécie de torção à primeira vista difícil
de captar:

CONTRA EL ESPEJO
El grano de maíz
Dentro del vientre
Del torso de mujer
De la escultura de Moore,
en el museo, demora la mirada
de quien mira. Detenida, la mano visitante
puja por el grano pero no lo apresa, pendiente
del instante. Habría vida en esa curva, dura belleza,
y sostenida, la promesa: presente en cada vientre.
La que ve el maíz se turba, guarda la mano
Seducida, y se lleva el grano y la promesa,
el torso de mujer de Moore,
la curva de la vida
esculpida
en la cabeza.

Contra o espelho, frente a e em negação a um espelho, tudo se ergue em oposição


e sentidos duplicados neste poema. De qual Moore Rosenberg convoca a presença? Se
num primeiro momento leitor tende a pensar unicamente em Marianne Moore, diante das
reiteradas vezes em que a poeta é citada ao longo da obra – o que faz soar um eco
insistente de seu sobrenome –, parece haver mais um convidado a integrar o coro, o
escultor Henry Moore, também ele um nome expressivo do modernismo anglo-saxão.
Só que voz deste Moore é áfona, a forma de seu gesto, o torso de mulher que
esculpiu com suas mãos. É mudo.
Enquanto que sons que remetem a Marianne não deixam de pairar sob a superfície
do poema, dada a invocação do sobrenome que antes já lhe havia sido atribuído no livro,
e as repetições em /m/ – maíz, mujer, museo, mirada, mano, promesa – ajudam a reforçar
esse rastro sonoro, estabelecendo uma relação reiterativa. Por que é tão importante repetir
este sobrenome e reforçar sua primeira letra, este /M/ duplicado de Marianne Moore?
Parece ter a ver justamente com a noção de promessa, de pacto com a vida.

955



Usando a preposição neutra “de” para referir-se ao sobrenome Moore nas duas
vezes em que este aparece no poema, a voz que enuncia instaura uma potente zona de
indeterminação. Há uma voz que observa, distanciada, a ação de uma mulher que observa
outra mulher e faz dela seu espelho; esta, duplicada, grávida, talhada de “dura belleza”,
também observa? O leitor, esta outra voz áfona, também ouve e vê, portanto é outro
observador. Neste jogo de espelhos, os reflexos se desdobram, as presenças no poema se
multiplicam, como a promessa “presente en cada ventre”.
Ao contrário do que acontece em “Oráculo”, em “Contra el espejo” a promessa
(imagem recorrente na obra de Rosenberg, em perspectivas sempre distintas quanto à
concretização), em vez de se dissipar, pode ser sempre replantada, reenviada, tanto no
ventre como na cabeça de uma mulher – “la curva de la vida/esculpida/en la cabeza”.
Quem sabe este poema também possa ser lido como um elogio à capacidade intelectual
de Moore, que gerou mundos, funcionamentos distintos, não só com o próprio ventre –
talvez aqui haja uma referência implícita ao fato de que Moore não teve filhos – mas
também com a poética em que a autora fez caber tantas referências e inaugurou um ritmo
que reverberou de modo tão potente na obra de Rosenberg.

A tradução como trégua


“O tradutor, exposto à mesma fricção com a língua que é o centro de trabalho
poético, busca uma trégua entre o que diz o outro e o que digo eu”, escreve Rosenberg
em “La página maestra – Traducir poesía”, espécie de texto-testemunho-manifesto sobre
o ofício de traduzir, publicado no primeiro número de Extra/lecturas para poetas, revista
literária dirigida pela autora desde 2016, na qual figuram poemas contemporâneos de
autores argentinos, traduções de autores clássicos e contemporâneos e ensaios sobre
poesia e tradução. 1986, 2016: 30 anos separam o número 1 do Diario de Poesía e a
primeira edição de Extra. À maneira de Meschonnic, é enquanto tradutora que Rosenberg
teoriza, ou ainda: só pode haver “teoria através da prática” (MESCHONNIC, 2010, p.
41).
Entre o que diz o outro e o que digo eu, Rosenberg fala de uma trégua: de que é
feita uma trégua? Uma pausa, um cessar-fogo, armas em descanso; uma trégua na
linguagem, entre línguas? Uma zona de articulação máxima da tensão, um arranjo
conjuntural entre as vozes do autor-fonte e o tradutor, um espaço de hesitação prolongada

956



e de escuta que dê conta de fazer chegar não só o signo, palavra por palavra, mas o
discurso, com todas as instâncias sonoras, físicas e subjetivas que o compõem.
Buscando a trégua – é sempre preciso batalhar por ela, nas guerras e na linguagem
–, traduzindo “não o que dizem as palavras, mas o que elas constroem” (MESCHONNIC,
2010, p. LXII), o tradutor pode chegar, no corpo a corpo com o texto, à instauração de
uma superfície de contato entre ambas as vozes de modo que, de sua fricção, o discurso
possa então reverberar, ressoar, continuar em outra língua, em poemas autônomos dos
traduzidos ou integrados aos próprios, como acontece a partir do jogo de citações
proposto por Rosenberg. Faz conviver as vozes, a sua, desdobrada, no caminho de sua
configuração, com a de outros autores.
Mirta Rosenberg elenca três imperativos fundamentais para a sua poética do
traduzir: “Escutar. Interpretar. Trasladar.” (ROSENBERG, 2016, p. 244). Atividades que
se retroalimentam. Ela fala de ouvir os pulsos, a música, interpretar o ritmo para captar a
intenção e “não perder o fio do sentido”, transportar estruturas, sons, o tom. “É preciso
ler muito. Não só o poema a ser traduzido, é preciso fazer uma leitura da obra para ver
para que lado ela vai. Isso é a intenção. Inevitavelmente todos nos repetimos, então se
você procurar vai ver quais são os temas recorrentes, se rima, não rima, se tem métrica,
não tem; todas são declarações de intenção do outro”.4
A noção de intenção é provável que Rosenberg tenha tomado do pensamento de
Walter Benjamin em “A tarefa do tradutor” (uma tradução do texto foi publicada na
edição da primavera de 1988 no Diario de Poesía, e Rosenberg quem cuidava da pauta
da revista relacionada à tradução):
Assim, como a tradução é uma forma própria, assim também se pode
compreender a tarefa do tradutor como autônoma e diferenciada da do escritor.
Esta consiste em encontrar, na língua para a qual se traduz, aquela intenção da
qual é nela despertado o eco do original (...) A intenção do escritor é ingênua,
primeira, intuitiva; a do tradutor, derivada, derradeira, ideal. Pois o que realiza
seu trabalho é a possibilidade de integração das muitas línguas na língua
verdadeira. (BENJAMIN, 2008, p. 59)

Como transportar, trasladar o que as palavras dizem, ou melhor, o que elas fazem
numa língua? Há meios de levá-las? Como chegam ao outro lado? Em “La página


4
ROSENBERG, Mirta. También hay belleza. Evaristo Cultural. Buenos Aires, 2.jun.2017. Entrevista
concedida a Roxana Artal.

957



maestra”, Rosenberg formula uma espécie de resposta à célebre frase do poeta Robert
Frost – “Poesia é o que se perde na tradução”:
A poesia, Frost, não é o que se perde com a tradução, mas o que faz com que
valha a pena traduzir um poema, deixá-lo ir a outro lugar, movê-lo sem que
chegue esgotado pela viagem. E arriscar-se na aventura da passagem. Entrar
em um quarto escuro feito de versos e, como quer Anne Carson, tatear até
encontrar, nos muros escandidos, o interruptor da luz. Contemplar o que se
pôde iluminar. (ROSENBERG: 2016, p. 246)

Sem que chegue esgotado pela viagem. Sem deixar pelo caminho os traços distintivos de
uma poética – “estruturas, associações, pulsos, ritmos e acenos” (ROSENBERG, 2016,
p. 245). Tatear para não os perder, para procurar o acesso à luz, para ver. Mas também
para ouvir.
“Se queremos compreender alguma coisa a respeito da relação entre o descontínuo
do signo (...) e o contínuo do fazer, do agir na e pela linguagem, é preciso aprender, ou
talvez reaprender, um modo de escutar aquilo para o qual o signo nos tornou surdos”
(MESCHONNIC, 2010, p. XXI). Escutar, uma postura de abertura da ordem sensorial,
um colocar-se à disposição ao mesmo tempo em que se está entregue, um estado de
profunda permeabilidade: “Escutar é estender a orelha – expressão que evoca uma
mobilidade singular, entre os aparelhos sensoriais, do pavilhão da orelha –, é uma
intensificação e uma preocupação, uma curiosidade e uma inquietude” (NANCY, 2013,
p. 162).
Curiosidade pela voz do outro que, em Rosenberg, acaba por ser um elemento
constitutivo, amplificador, sem ser totalizante, mas justamente relacional; a autora
demarca sua voz na relação com a poética de outros autores, sobretudo autoras que traduz,
um gesto que pressupõe um espaço de contato, de partilha fundante. Dentro desta
dimensão de uma poética pensada por Rosenberg para a tradução, em que a escuta é algo
essencial, o tradutor é alguém que, enquanto trabalha, habita uma zona de mistério, de
imersão em estruturas que, auscultadas, revelam não só procedimentos, mas modos de
pensar, os segredos do projeto poético do autor que está traduzindo. Também do próprio?
Se estar em escuta é estar propenso a um acesso a si (NANCY, 2013, p. 165), os
procedimentos de um autor que é objeto de escuta podem se inscrever no próprio fazer
poético do tradutor-poeta, num gesto de implicações recíprocas? “Estar à escuta é estar
ao mesmo tempo no fora e no dentro” (NANCY, 2013, p. 167).

958



A noção de implicação recíproca parece justamente um conceito-chave para
pensar as relações entre tradução e criação na poética da autora, porque o acesso à voz
ocorre, nesta poética, por uma “entrada pela porta do estrangeiro”, como pontua Paul
Ricoeur (2011, p. 55), um espaço em que coexistem as vozes do autor e do tradutor; no
caso de Rosenberg, esse movimento se desdobra, porque incorpora sua voz de tradutora
à sua voz autoral, uma potência duplicada. “Somente o poema pode unir, manter o afeto
e o conceito em um só bocado de palavra que age, que transforma os modos de ver, de
ouvir, de sentir, de compreender, de dizer, de ler. De traduzir. De escrever”
(MESCHONNIC, 2015, p. 2).
Na obra de Rosenberg há uma trama complexa em que se encadeiam ouvir e
traduzir, traduzir e escrever, ouvir e escrever, escrever e traduzir. Uma “busca de um
sujeito que se esforça para se constituir como sujeito por sua atividade” (MESCHONNIC,
2007, p.8 apud FALEIROS, 2014, p. 128). Talvez não seja demasiado arriscado dizer que
todas as frentes de atividade constituem a obra de Rosenberg, num movimento de
remissão, de reforço, gestos de uma ética, de uma política e uma poética literárias.

Referências
DOLAR, Mladen. O Objeto Voz. In: Prometeus, 5, número 10, 2012, p. 167-192.
FALEIROS, Álvaro. A voz e o silêncio em Paulo Henriques Britto e Haroldo de Campos
tradutores. In: Revista Literatura e Sociedade 19, 2014, p.117-130.
MESCHONNIC, Henri. Linguagem: ritmo e vida. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2006.
__________________. Manifesto em defesa do ritmo. Belo Horizonte: Chão de feira,
2015.
__________________. Poética do Traduzir. São Paulo, Autêntica, 2010.
MOORE, Marianne. The Complete Poems. New York: Peguin, 1981.
________________. El reparador de agujas de campanario y otros poemas. Buenos
Aires, Centro Editor de América Latina, 1988.
NANCY, J. L. À escuta. In: Outra travessia 15. Faculdade Federal de Santa Catarina,
2013.
ROSENBERG, Mirta. El árbol de palabras. Obra reunida 1984/2006. Buenos Aires:
Bajo La Luna, 2006.
__________________. Página maestra, traducir poesía. In: Extra/ 1 - Lecturas para
poetas. Buenos Aires: Bajo La Luna, 2016.
VALÉRY, Paul. Variedades. São Paulo: Iluminuras, 2007.
ZULAR, Roberto. (org.) Apresentação. In: Dossiê voz – Revista Literatura e Sociedade
19, p. 69-75.

959
ENTRE ILUSÕES PERDIDAS E PAISAGENS TROPICAIS: BALZAC E SUA
QUASE AVENTURA EM TERRAS TUPINIQUINS.

Carlos Eduardo do Prado (UFF/UERJ)1

Resumo: “Cheguei ao fim da minha resignação. Penso deixar a França e levar meus ossos ao
Brasil, num projeto louco, e que escolho por causa da sua loucura. Não quero mais suportar a
existência que levo. Basta de trabalhos inúteis.” Estas foram as palavras de Balzac em uma carta
enviada à sua amada, a Condessa Hanska, no dia 03 de julho de 1840. Mas afinal, o que viria
fazer Balzac em terras tropicais? Desta forma, este trabalho tem como objetivo propor algumas
reflexões sobre a construção da imagem do Brasil, a partir do século XIX, com a troca de olhares
entre o Novo e o Velho Mundo, buscando evidenciar o diálogo entre as ideais provenientes da
Europa e o continente sul-americano.
Palavras-chave: Honoré de Balzac; Stefan Zweig; Brasil século XIX; França século XIX; olhares
cruzados

O mundo da biografia sempre me fascinou, e o gênero (auto)biográfico me


acompanha desde o momento em que escolhi me dedicar às letras e ao estudo da literatura.
De Clarice Lispector, passando pela realeza brasileira (Dom Pedro II, Carlota Joaquina,
Marquesa de Santos), e claro, como não poderia faltar, pela monarquia francesa: Madame
Pompadour, Louis XVI, Marie Antoinette (em várias publicações traduzidas para o
português e uma em francês) as biografias sempre estiveram comigo neste meu caminhar
no mundo das letras.
Balzac eine biographie (1946) em sua versão em alemão, ou Balzac le roman de sa
vie (1950) em sua única tradução francesa, será meu objeto de estudo e análise no
doutorado. No Brasil, Balzac, a biografia sobre o pai do realismo francês aparecerá na
coleção Obras Completas de Stefan Zweig, traduzido pelo médico brasileiro Odilon
Galotti em 1956.
Autor de grande sucesso no período de 1916-1933, Stefan Zweig será um dos
autores mais traduzidos da sua época. Conhecido principalmente pelas suas biografias:
Marie-Antoinette, Américo Vespúcio, Marie Stuart, Joseph Fouché, Magellan, ele
também escreveu diversas novelas, com destaque para: O medo (1920), Amok (1922),
Confusão de Sentimentos e 24 horas na vida de uma mulher (1927), e Xadrez, uma novela
(obra póstuma).

1
Graduado em Letras Português-Francês (UFF), Mestre em Literaturas Francófonas (UFF), doutorando em
Literatura Comparada (UFF) com bolsa sanduíche CAPES (PDSE) na Université de Pau et des Pays de
l’Adour (UPPA – França). Professor assistente de língua francesa, do Instituto de Aplicação Fernando
Rodrigues da Silveira – CAp-UERJ. Contato: cadupradofr@gmail.com

960
Balzac le roman de sa vie, apesar de ser considerada por Zweig a sua obra de maior
importância, o seu magnus opus, ela não foi terminada devido ao período turbulento de
1933 a 1942. Inicialmente, o autor imaginou o seu “grand Balzac” em dois volumes: um
volume para o homem, e outro para a sua obra.
A paixão por Balzac, iniciada na juventude em Viena, vai se tornando cada vez
mais forte com o passar dos anos. Balzac é transformado em modelo a ser seguido e
projeto de vida a ser completado. O escritor francês torna-se para ele símbolo de prestígio,
e que promoverá o coroamento da sua carreira.
A construção deste portrait por Stefan Zweig não é apenas um relato de
acontecimentos cronologicamente organizados. Nele o autor vai tecendo a história a partir
de fatos da vida de Balzac, apoiando-se na própria do biografado, misturando trechos da
obra e da correspondência entre o escritor, seus familiares, seus amigos e suas amantes.
Como um cirurgião que, com sua mão firme, rasga a pele do paciente com o bisturi
para deixar agir sua arte e depois torna a fechá-lo com destreza e habilidade Zweig
trabalha minuciosamente na construção do seu personagem Balzac.
A arte de Stefan Zweig está na sua capacidade de preencher os espaços vazios da
narrativa biográfica, transformando toda a história do biografado. Ele age nos pontos onde
a imperfeição da vida real deixou suas marcas e através do seu toque ficcional, transforma
este novo ser e esta nova realidade em algo que se encontra no limite entre a realidade e
ficção.
E foi através da leitura dessa biografia, que soube do desejo de Balzac em
abandonar tudo na França, e recomeçar a vida no Brasil:

[...] Inútil! Inútil! Inútil! Demasiadas vezes disse Balzac essa palavra a si,
demasiadas vezes percebeu que era inútil. Está agora com quarenta e dois anos,
escreveu cem volumes, criou com o seu cérebro, que não descansa, duas mil
personagens das quais cinquenta ou cem são inesquecíveis. Edificou um
mundo, e o mundo nada lhe deu por isso. Com quarenta e dois anos está mais
pobre do que era há vinte anos, quando morava na rua Lesdiguières. A essa
época tinha ilusões, hoje elas já não existem mais. Duzentos mil francos de
dívidas, isso é o que lhe resta de todo o seu trabalho. Cortejou mulheres e elas
o rejeitaram; construiu uma casa, penhoraram-na e dele ela foi retirada; fundou
revistas e elas faliram, tentou negócios e eles não deram certo, esforçou-se para
conseguir um lugar no parlamento no governo do seu país e não o elegeram.
Candidatou-se à Academia e foi rejeitado. [...] Tudo que empreendeu foi inútil
ou parece inútil. Terá ele realmente ainda a necessária energia para concluir a
sua obra, La Comédie Humaine?
Poderá ainda um dia, como as outras pessoas descansar, viajar e não ter
preocupações? Pela primeira vez, tem momentos de desânimo. Pensa
seriamente em deixar Paris, a França, a Europa e ir para o Brasil. Lá existe um

961
imperador, D. Pedro, que o salvará e lhe oferecerá domicílio. Balzac manda
buscar livros acerca do Brasil, cisma, reflexiona. Sente que assim não pode
continuar, é preciso que aconteça um milagre para libertá-lo dessa servidão
inútil, é preciso que de repente aconteça algo que o livre desse contratempo,
algo que lhe dê repouso necessário após esse excesso de esforço, essa tensão
que ele não pode mais suportar.
Será que este milagre acontecerá? Balzac, o eterno fantasista, já quase não ousa
ter esperança disso. [...] (ZWEIG, 1950, p. 385-386)

Inicialmente, acreditei que tal afirmação era mais um fato criado pela imaginação
de Stefan Zweig, porém após pesquisar nos livros, documentos e correspondências de
Balzac.
Para minha surpresa, na coleção intitulada Lettres à Madame Hanska, no dia 03 de
julho de 1840, Balzac desesperado com sua situação financeira, e completamente
desiludido com a vida em Paris, escreve à senhora Hanska que em breve ele poderia tentar
mudar de vida no Brasil:

[…] Je suis au bout de ma résignation. Je crois que je quitterai la France et que


j’irai porter mes os au Brésil dans une entreprise folle et que je choisis à cause
de sa folie. Je ne veux plus supporter l’existence que je mène. Assez de travaux
inutiles. Je vais brûler toutes mes lettres, tous mes papiers, ne laisser que mes
meubles, les Jardies, et je partirai après avoir confié les petites choses
auxquelles je tiens, à l’amitié de ma sœur. Elle sera le dragon le plus fidèle de
ces trésors. Je donnerai ma procuration à quelqu’un, je laisserais mes œuvres
à exploiter et j’irais chercher la fortune qui me manque, ou je reviendrai riche,
ou personne ne pourra savoir ce que je serai devenu. C’est un projet
excessivement arrêté qui sera mis à exécution cet hiver, avec ténacité, sans
rémission. Mon travail ne paiera pas ma dette, il faut aviser à autre chose. Je
n’ai plus que dix années de véritable énergie et si je n’en profite pas, je suis un
homme perdu. Il n’y a que vous au monde qui serez instruite de ceci. Certaines
circonstances peuvent précipiter mon départ, cependant quelque rapide que
puisse être ce terrible projet, vous recevrez toujours mes adieux. [...]
(PIERROT, 1990, p. 515)

Exílio forçado, os detalhes revelados por Stefan Zweig não são encontrados na carta
de Balzac, como por exemplo, a possível relação entre o escritor e o imperador D. Pedro.
Mas afinal, como era o Brasil imaginado por Balzac?
A imagem do Brasil para ele confundia-se com a vontade de enriquecer e conquistar
fortuna. Sua máxima “une femme et une fortune” estaria completa, visto que a senhora
Hanska, rica e nobre, logo seria sua esposa.
Sua obra literária pode ser considerada um reflexo da sua vida, onde Balzac muitas
vezes vai misturar ficção com a realidade, trazendo para a vida real seus personagens. Em
seus relatos, alguns amigos mais próximos afirmam que durante uma simples conversa,

962
o autor muitas vezes falava de seus personagens como se esses fossem pessoas reais, um
amigo que morava do outro lado da calçada, e com quem poderíamos cruzar nas ruas de
Paris.
Possuindo a França como universo do seu mundo, e Paris o centro nervoso de toda
essa rede, percebe-se facilmente que o resto do mundo possui pouca relevância ao autor,
mesmo que ele registre frequentemente em suas páginas o desconhecido, e o exótico,
características das terras distantes, lugares considerados selvagens.
Em relação à existência do Brasil para Balzac, afirma Paulo Rónai:

Existia, na medida em que existem para cada um de nós os sonhos que voltam
sempre, as miragens que nos acompanham durante a vida e às vezes nos
consolam das angústias do presente. (RONAI, 2012, p. 163)

O Brasil vai pontualmente aparecer nos livros do autor, em todos os períodos da


sua vida. Imagem evocada por alguns personagens, ela será marcada pelo exotismo,
natureza exuberante e muito mistério. Essas terras encontradas pelas caravelas
portuguesas repletas de ouro e pedras preciosas, será o destino de vários dos seus
personagens, além dele próprio. No Brasil, virão fazer fortuna para quem sabe um dia
voltar ao Velho Mundo.
O novo mundo, desde cedo, despertou a curiosidade e até a cobiça dos habitantes
do Velho Mundo. A imagem fantástica e exótica destas novas terras já era evidenciada,
desde os primeiros relatos dos viajantes, imagem em constante evolução desde do século
XVI até os dias atuais.
Foi através desses relatos (Colombo, Vespúcio) que a imagem edênica do
continente Americano se propagou nas cortes europeias, lançando no imaginário de vários
povos as lendas de riquezas e da fartura nestes novos locais. E o continente americano
tornou-se meta principal das atividades comerciais de algumas coroas do velho
continente, como por exemplo, Portugal e Espanha.
A imagem do paraíso com um clima agradável sem grandes oscilações está de
acordo com o pensamento de Montesquieu, no qual o clima atua diretamente no
temperamento dos homens, bem como suas leis e evidentemente, na sociedade como um
todo. Sendo o Brasil o paraíso terrestre (terra fértil, clima paradisíaco), seria esperado que
neste mesmo local, os homens constituíssem uma sociedade perfeita, na qual as diferenças

963
não existiriam, onde os habitantes viveriam em seu estado de natureza, conforme
afirmavam alguns filósofos como, por exemplo, Jean-Jacques Rousseau.
Nesta terra, a miséria e a fome que tanto assolavam o Velho Mundo seriam
inexistentes. Além disso, com um ciclo de estações que se confundem muitas vezes, tudo
levava a crer que os viajantes que aqui aportaram haviam chegado ao Eldorado, local da
felicidade e abundância presentes no pensamento clássico, ainda recorrente para a Europa
das “Luzes”.
E desta forma, ao longo dos séculos, a representação do continente foi sendo
construída, através de uma leitura de todas as ficções e fantasias que inundavam o
imaginário da Europa, ainda repleto de elementos medievais (seres mágicos, monstros,
homens com corpo de gente e cabeça de animais, etc.). Foi-se criando no imaginário dos
europeus, o Novo continente, esta nova terra, ambivalente, um misto de terra misteriosa,
de ficções e fantasias.
A Europa como propagadora das luzes, lançou-se no projeto colonizador como
forma de irradiar as “luzes” aos cantos sombrios do Mundo, criando desta forma uma
dualidade entre O Velho e O Novo Mundo. Se por um lado, o avanço europeu no caminho
do progresso é incontestável, por outro lado, o contato com o outro, fez com que o europeu
pudesse compreender um pouco melhor de si mesmo, tendo “o outro” como diferente.
Essa aproximação despertou um sentimento crítico e reflexivo ao evidenciar os males da
sociedade civilizada, tendo como parâmetro uma idealização do “natural”, do
“primitivo”.
Esse homem que vivia no hemisfério sul do mundo era livre de pecados, vivia em
completa harmonia com a natureza, isento de vícios e das deformidades causadas aos
homens das sociedades desenvolvidas.
Por outro lado, o pensamento religioso em oposição a esta idealização construída
através da uma literatura de viagem nega a existência deste “homem bom”, representando,
em seu lugar, um homem com características primitivas, feroz e muitas vezes
antropófago.
Neste caldeirão de contradições e dualidades, o Novo Mundo representa, ao mesmo
tempo o paraíso natural na face da terra que deve ser poupado da miséria decorrente da
civilização, assim como o mundo primitivo que deve ser civilizado.

964
Os habitantes do hemisfério sul do globo terrestre apresentam valores diferentes
dos europeus. Se as contradições em relação ao povo e ao seu caráter são recorrentes nos
registros (relato de viagem, literatura etc), a visão da natureza e da sua riqueza é um
aspecto que não gera nenhum tipo de dúvida entre os viajantes que aqui estiveram.
A diferença entre a realidade europeia e a brasileira é cada vez mais evidente e
transita entre dois pólos diferentes. A imagem positiva da natureza do Mundo, paraíso de
riquezas, de bom clima e de paisagens espetaculares, vai se delineando e consolidando
ao longo dos séculos, chegando até os dias atuais, sem grandes modificações. O exótico
nos é muitas vezes atribuído. Ser exótico é ser diferente, afastado, estrangeiro, de fora,
esquisito, extravagante, bizarro, mas também, aquilo que possui encanto.
Ao falar em “alma do Brasil no século XIX” fica quase impossível desvincular o
conceito de alma dos conceitos de imaginação, sentimento e emoção, características
opostas ao campo do conhecimento e da razão.
O conhecer o outro proporcionou ao viajante europeu a possibilidade de pensar e
refletir sobre si mesmo. Ou seja, a América dos viajantes não existe pelo que ela realmente
é, mas sim pelo que não é. Em outras palavras, podemos dizer que O Novo Mundo não
é Europa, ele é tudo o que a Europa não é.
Nessas novas terras, nenhuma distinção é feita, não há competição, a propriedade é
inexistente, não há um senhor ou rei. Sendo assim, a verdadeira possibilidade de
felicidade no mundo só poderia ser realizada em outro lugar que não fosse a Europa.
Ao longo do século XIX, alguns dos principais viajantes franceses que visitaram o
Brasil e deixaram algum tipo de relato foram Ferdinand Denis, Auguste de Saint-Hilaire,
Hercule Florence, Alfred Martinet, Francis de Castelnau, Alcide d’Orbigny, Dumont
d’Urville, Freycinet, Conde de Suzannet, Emile Adet e o Conde de Gobineau,, que
juntamente com os outros viajantes dos séculos precedentes vão ajudar a construir a
imagem do país no continente Europeu.
Contemporâneo de Balzac, o escritor Victor Hugo teve contato com o Brasil através
do livro Brazil pitoresco de Charles Ribeyrolles. Apesar de admirar a cultura e a
exuberância brasileira, autor fará poucas referências sobre o Brasil em sua obra. Como
por exemplo, em sua coletânea Chanson des rues et des bois, de 1865, ele evocará no
poema Gare! o nome de Rosita Rosa uma possível conquista amorosa do autor. Outras
referências estarão dissipadas em diferentes trabalhos, como Les travailleurs de la mer.

965
Por volta de 1830, o Brasil encontra-se em diversas capas de revistas e jornais
franceses. Com a imprensa falando sobre o Brasil e os brasileiros, não era difícil encontrar
nesse cenário a divulgação de imagens idealisadas e esteriotipadas. Será nessa mesma
época que a terra brasilis e seus habitantes aparecerão nas obras de Balzac. Em Paris, o
distante país abaixo da linha do Equador era moda, e o público parisiense estava
apaixonado pelas imagens edênicas brasileiras, pelos jaguares, caramurus, jacarés-açus e
todo tipo de exotismo.
Vale a pena descatar também que alguns acontecimentos políticos do Brasil,
contribuíram efetivamente para a difusão do país na Europa. A renúncia de D. Pedro I e
a ascensão de D. Pedro II em 07 dse abril de 1831, com mais de cinco anos de idade, ao
trono será um dos assuntos mais comentados na imprensa européia, sobretuto na França.
A relação França-Brasil era muito amistosa, e D. Pedrô2, o monarca constitucional
brasileiro, vai se refugiar em Paris, após deixar o trono brasileiro com o seu filho. Em
Paris, ele recebe apoio do seu “tio” Luis Filipe I, antes de enfrentar o seu irmão, Dom
Miguel, autoproclamado rei de Portugal, que usurpou o trono sua filha mais velha Maria
da Glória.
Com uma vida social ativa durante o seu exílio, D. Pedrô participará da cerimônia
que lançara a pedra fundamental da Coluna de Julho, monumento parisiense localizado
na place de la Bastille. O ex-monarca brasileiro em seu uniforme de general, firmou o
tijolo colocado pelo seu tio com duas suaves marteladas.
Nesta mesma data, acompanhou Luis Filipe I durante as comemorações em
homenagem aos mortos dos Três Gloriosos Dias, que ajudaram a depor o absolutista
Carlos X. Em cortejo ao lado do seu tio, os dois passaram pela place de la Bastille e
Panthéon acompanhados por uma multidão que gritava vivas à França, ao rei e à
Constituição, como também saudavam o ex-monarca brasileiro condecorado com a Grâ-
Cruz da Legião de Honra da França, com gritos de “viva o imperador constitucional!”
Assunto comentado em várias páginas dos jornais da época, D. Pedro I foi retratado
por vários chargistas, inclusive Balzac, que mostravam o conflito entre ele e seu irmão D.
Miguel.

2
Dom Pedro I, era conhecido na França como Duque de Bragança, ou ainda como D. Pedrô (com sotaque
francês)

966
Em 23 de junho de 1831, no jornal La Caricature, Balzac sob seu psudônimo vai
publicar uma charge na qual em tom bem jocoso, vai dizer que os brasileiros mudaram
de rei apenas para seguirem a moda do momento. Ele também se diverte diante do grande
nome do jovem D. Pedro II (Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano
Francisco Xavier de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga), bem como
aproveita para criticar o então rei constitucional Luis Filipe, com o qual Balzac não
simpatizava.
Além disso, encontramos na enorme galeria de personagens da sua Comédia
Humana, personagens que de alguma desejaram ou encontraram riqueza em terras
distantes, principalmente no Brasil, reafirmando a ideia do Brasil como fonte de riqueza
e/ou uma possibilidade de recomeço.
Dentre os personagens imortalisados pela pena de Balzac, encontramos:

✓ Marquês de Aiglemont em La femme de trente ans (1831): é o único homem que


conhece bem os canais das Antilhas e as costas do Brasil.

✓ Conde Carlos Mignon em Modeste Mignon (1844):Após a queda do Império, o


antigo tenente-coronel de Napoleão vai vender seda francesa em Nova York, e
logo em seguida, começa a comercializar ópio na Europa. Consequentemente
ficará extremamente rico.

✓ Carlos Grandet em Eugènie Grandet (1833): personagem que mais se assemelha


ao romancista, quando na miséria, parte para as Índias e desaparece. Enquanto o
restante da família acreditava que ele havia morrido, Carlos fazia fortuna. O
“batismo da Linha” o fez perder muitos preconceitos, e percebeu que comprar e
vender homens africanos, chineses, crianças, ninhos de andorinhas, artistas nas
regiões intertropicais era muito mais vantajoso. Retorna a Paris rico.

✓ Maxilimiliano de Longueville em Le bal de Sceaux (1829): associa-se a um


banco e “faz com o Brasil uma especulação que o pode tornar milionário.”

967
✓ Gobseck e Elias Magus em Gobseck (1830): personagens que vivem do comércio
de pedras preciosas em Paris, eles vão reclamar que a abundância de diamantes
no Brasil fará o preço cair na Europa.

✓ Rafael Valentin em La peau de Chagrin (1830-1831): Personagem


autobiográfico de Balzac. Em determinado momento de miséria, pensa em fugir
para o Brasil.

✓ Ferragus, personagem enigmático em Ferragus (1833): mantinha relações


misteriosas com a embaixada do Brasil.

✓ Barão Henrique Montes de Montejanos aparecerá em vários romances e


novelas da Comédia Humana: Le père Goriot (1834), Splendeurs et misères des
courtisanes (1838), Les secrets de la princesse de Cardignan (1839) e Béatrix
(1839) : Bisneto de um dos conquistadores do Brasil, Balzac vai caracterizá-lo
como um “magnífico exemplar da raça portuguesa no Brasil”. O Barão
Montejanos, apesar do sobrenome castelhano, era um “verdadeiro milionário
brasileiro.”

Impregnados pela visão eurocêntrica, e a lógica da homogeneidade propagada


desde o Iluminismo, esses personagens reforçam as imagens esteriotipadas que
normalmente o europeu possui do brasileiro. Sujeito alegre, agradável ao mesmo tempo
extravagante, excêntrico , os personagens balzaquianos que tiveram contato com a cultura
brasileira estarão quase sempre envoltos por algo mágico e misterioso.
Em relação à vinda de Balzac ao Brasil para enriquecer em terras tupiniquins, se
realmente isso tivesse acontecido, provavelmente o autor não ficaria rico, e
consequentemente “nós estaríamos mais pobres, pois não teríamos a Comédia Humana,
cuja ideia só lhe veio depois”, afirma Paulo Rónai. (RONAI, 2012, p. 172).
Como quase tudo na vida do escritor francês, o projeto de viagem ao Brasil estava
no mesmo oceano de outros inúmeros projetos imaginados, e que rapidamente foram
abandonados por Balzac.

968
O plano de tudo deixar para trás, e vir morar no Brasil, bem como, a edição dos
seus livros com apólices de seguro para os compradores, a fabricação de papel para seus
livros, a importação de madeira ucraniana para construção de estradas de ferro na França,
a plantação de abacaxi no terreno da suas Jardies, a exploração das antigas minas de prata
da Sardenha, a viagem às Antilhas, e quem sabe mais quantos sonhos e devaneios ele teve
com o intuito de enriquecer, desapareceram rapidamente da sua mente.
Se no plano profissional, após sua morte, o autor conquistou a eternidade, o mesmo
não pode ser dito da sua vida pessoal, onde tudo foi efêmero.
Ele não terá tempo de mencionar na correspondência com sua irmã Laure de
Surville, que ela tinha sido a escolhida por ele para cuidar da sua obra e bens, durante a
sua ausência. Em agosto, praticamente um mês após anunciar seu plano de viagem, o
autor consegue ganhar um pouco mais de dinheiro ao editar sozinho a Revue parisienne,
e desta vez, um pouco mais otimista com o futuro, ele escreve novamente à sua amada, a
senhora Hanska e coloca um ponto final em toda essa história:

[...] Adiei a execução do meu projeto no tocante do Brasil. A gente ama tanto
a França! (PIERROT, 1990, p. 516)3.

Referências
AZAMBUJA, G. Dom Pedro Ier, empereur du Brésil (1798-1834) et Dom Pedro II,
Empereur du Brésil (1825-1891) ID/Cote :4-G-567 (642) In: "Les Contemporains", n°
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CURTIUS, E. R. Balzac – Essais – Trad. Michel Beretti. Paris : Éditions des Syrtes,
1999.

3
« [...] J’ajourne encore l’exécution de mon projet sur le Brésil. On aime tant la France, je vais résister. »

969
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jun. de 2019.

970
A ORDEM E O CAOS: A MULHER ESCRITA EM DEUS DE CAIM, DE
RICARDO GUILHERME DICKE E CAIM, DE JOSÉ SARAMAGO

Elair de Carvalho (UNEMAT/ PPGEL)

Resumo: Este artigo propõe um estudo para compreender as representações do feminino nos
romances Deus de Caim, de Ricardo Guilherme Dicke e Caim, de José Saramago, cuja
investigação se insere no âmbito dos Estudos Comparados de Literatura, na medida em que se
estabelecem semelhanças e diferenças entre os dois textos literários, dos países de língua oficial
portuguesa. Situam-se as leituras nas protagonistas, analisando a construção de um discurso que
se revela na continuidade textual da transgressão, no confronto dos textos sagrados, na prática
de resistência a esse mundo de preconceito e de submissão que se opõe às condições individuais
e profundamente humanas.

Palavras-chave: Personagem feminina; Estudos comparados; Textos bíblicos; Transgressão

Este trabalho pretende investigar como o ser feminino tem sido projetado de
forma convergente e divergente nas produções escritas de Língua Portuguesa pelos
discursos, reinvenções do feminino: falamos de Brasil e de Portugal. No Brasil, Ricardo
Guilherme Dicke escreve Deus de Caim e em Portugal, José Saramago produz Caim.
Procuraremos, pela aproximação e distanciamento das obras, observar de que maneira
ambos os autores, pelas narrativas, reconstroem os discursos de seus tempos e lugares,
conduzindo à problemática do ser que se olha no espelho, se depara com o abismo por
não se ver e mostra a humanidade característica do tempo em processo, dimensionada
pelo vazio, revelando uma nova dimensão condizente com a concepção moderna.
Desse modo, pretende-se estabelecer parâmetros comparativos que nortearão
nossas percepções sobre o feminino, permitindo-nos perceber como as narrativas de
autoria masculina contemporânea consideram a mulher na estrutura e acontecimentos
externos, e ao mesmo tempo, expande para aberturas de (re) interpretação de
identidades subjetivas, tendo em conta seus deslocamentos e avanços, pela metáfora da
palavra transfigurada em arte. O corpus literário de Ricardo Guilherme Dicke e de José
Saramago, bem como do ser feminino, referendam hipóteses de ver na ambiguidade do
ser fictício um retrato da figura humana na contemporaneidade.
A proposta de analisar a construção do feminino no percurso da ficção desses
autores partiu de um pressuposto mais abrangente: o das relações tensas entre o eu-
feminino e o outro-masculino. Em outras palavras, o da crença de que o fazer ficcional,

971
ao dialogar com o tempo, amplia o terreno de análise da cultura, enquanto tecido
produtor de sentidos que reinventa, com seus meios próprios, os limites do referencial.
A opção pelo feminino, longe de ser uma escolha aleatória, mera coincidência
assinalada, aponta Dicke e Saramago para um sentido mais radical do processo
revolucionário, lá onde a questão ideológica ou política é ultrapassada para se chegar a
rasurar um modelo cultural de raízes nitidamente machistas. Esse espaço conquistado
pelas mulheres é, antes de tudo, um espaço textual nos dois romances.
Nesse sentido, as pesquisas caminharão em busca da imagem feminina na história
literária, consagrada pela tradição e que em nossos tempos vem sendo questionada.
O feminino, em uma linha horizontal, correspondente às bases consagradas pela
sociedade religiosa e patriarcal e, nela, descobriu cortes verticais que correspondem aos
questionamentos feitos pela mulher ao longo dos séculos, bem como analisar em
confronto, a construção das personagens femininas centrais nos romances, num percurso
que segue do sociocultural ao socioexistencial.
Dentro do interesse atual pela problemática da mulher em processo de
transformação, desde o século XXI, devido às transformações ainda em curso nos
processos da escrita da ficção – romance, conto, novela – este projeto de estudo
pretende verificar nas obras escolhidas as mudanças vividas, não só no plano literário –
o do atual em confronto com o tradicional -, mas também no plano ético-existencial – da
imagem da mulher transgressora dessa mesma tradição. Sob essa ótica, buscaremos
observar os textos a partir do universo local para atingir o universal, procurando
verificar em que medida o texto ficcional articula a fala e tematiza a relação do eu-
feminino com o outro.
CANDIDO (2000) leva-nos a questionar até que medida a arte é expressão da
sociedade e em que medida é interessada nos problemas sociais. Estabelece esta relação,
do ponto de vista sociológico, entre a obra, o autor e o público.
Enquanto Arte, Mato Grosso, possui na prosa a obra Deus de Caim, de Ricardo
Guilherme Dicke, inscrita no Modernismo de 1960 e seus desdobramentos. Nela,
encontra-se todo um universo constituído de destilações verbais, venenos e inventaria e
brumas da relação Ser/sociedade, vida/morte, amor/dor, fantasia/frustração,
carne/espírito, dilemas/sentido e percepção, moendas (interior)/engenhos (de almas
atribuladas), tormentas pertinentes/insanidades comportamentais. Adere seu imaginário

972
à combinação de misturas míticas, metáforas e eventos históricos. A narrativa revela um
trágico existencial, e ao mesmo tempo explora uma alquimia verbal que faz comungar o
monólogo interior, o psicológico e o factual, o real e o fantástico, num contínuo
caleidoscópio de subjetividades. Nelly Novaes Coelho (1999, p.5) o considera uma obra
o momento em que “o homeetantom [é] interrogante, aquele que sonda o vazio
existencial [...] predominando a sondagem dos escuros do homem [...]”.
No romance, as personagens Caim, Lázaro e Abel são entre sombreados com
querelas, acontecimentos, traições e taras; a vida nua e crua revelando sinais de pânicos
e disfarçando conflitos e neuras. Existe mais insanidade, loucura do que sensatez na
vida, nas cargas dos ombros dos homens. O Deus de Caim interroga até sobre as
palavras não ditas, dadas a compreender. O discurso politizado da enunciação na
narrativa possibilita a voz feminina da protagonista Minira se fazer audível. O desejável
focalizado nos sonhos, vontades, pequenos atos de rebeldia autoriza uma leitura densa e
crescente do “eu” feminino buscando fazer-se ouvir. A denúncia da subalternidade
feminina na sociedade realizada por Ricardo Guilherme Dicke confronta os lugares
ofertados à mulher, seja o de esposa ou de amante. Em ambos, o feminino constrói-se
como objetos sem valor e com voz emudecida. A escrita de Dicke guia-nos através da
realidade social complexa do seu espaço, dos conflitos entre homens e mulheres na
organização familiar e da construção do estatuto social da mulher.
A escrita do mato-grossense mergulha na tradição de um mito bíblico: a história
ancestral de ódio entre os irmãos Abel e Caim complementa-se com os irmãos Jônatas e
Lázaro, apaixonados por Minira. A protagonista participará de uma disputa de poder,
pois é a causa desta. A palavra de Deus é posta em questão.
Entretanto, a literatura de Saramago atenta ao começo vertiginoso da vida, se nega
a determinar uma estrutura e constituição dos sentimentos humanos. Por isso que as
protagonistas da narrativa Lilith e Eva se colocam à escuta, se veem a beira do abismo
fundador e estão na escruzilhada sem ter ninguém que as direcionem. A felicidade ou a
exorbitância do nada pelas tomadas de decisões ebulem as emoções e tomam primazia
na investigação acerca do ser feminino disposto no romance.
Caim apresenta pistas que sugerem uma nova perspectiva de configurar na
palavra, as relações vividas pelas personagens femininas Eva e Lilith. O código
religioso subvertido pela ideia herética das personagens seria uma característica nova

973
como uma estratégia de configurar nas formas romanescas o espaço para fugir das
características tradicionais impostas à personagem feminina. A consciência individual
evocada faz da matéria bíblia um romance que desafia e escava fundo um dos grandes
interditos que alicerçam a Civilização Cristã Ocidental e que no tempo de caos entra em
dissolução: o interdito do sexo. Afirma o erótico como lei sacramentada, característica
do novo perfil da modernidade. Seria uma maneira de questionar a própria verdade do
discurso que impõe o código religioso.
Desse modo, colhe-se através do olhar ao código religioso, a subversão pelas
personagens e, ainda, aponta essa transmutação do código como uma estratégia de
configurar nas formas romanescas, o espaço para fugir das características tradicionais
impostas à personagem feminina. A paródia do discurso anterior não é, evidentemente,
inócua, se a lermos enquanto escrita necessária para rasurar a questão religiosa e seu
poder através do erotismo, veiculadora da imagem de uma mulher esposa e mãe, como é
o caso de Eva, para quem o prazer estava em questão, não mais a função reprodutora da
qual ela não se aliena.
Ao evocar a necessidade de ir à fonte do passado e do presente, ilustra um
percurso vitorioso que não se faz apenas no terreno político. Ao pôr em evidência
mulheres como Eva, expulsa do paraíso, ou a mítica Lilith, transfigurada como a
poderosa proprietária de escravos e rainha de uma civilização, a escrita de Saramago
passa à contrapartida da imagem tradicional e propõe com os meios da ficção, um
redimensionamento da questão do poder na sociedade. O escritor cria, nas imagens
tecidas pelo discurso romanesco, um novo espaço para a emergência do ser feminino.
Lilith é a dona das vontades que seduz os escravos, é dona de um corpo que se
oferece sem limites ao erotismo compartilhado e assumido, independentemente, da
geração de um filho que não tem com o marido, num tempo de rígidas sanções que
negavam à mulher o desejo e o gozo. Ao apaixonar-se por Caim, a união de dois corpos
e da energia cósmica interna, cheia de vontades e desejos provocados pela imaginação,
ascende e transforma o “amador” na “coisa amada”. Homens e mulheres revitalizados
na completa e perfeita aderência.
Surge paralelamente no romance a outra mulher, Eva, que escolhe o espaço
transgressor da heresia, advindo do radical grego airésis, de sentido ainda não
contaminado pelos valores religiosos, mas traduzida tão somente como escolha, eleição,

974
preferência. Isso porque escolhe sem temor o homem a que deseja, seduz o guarda
arcanjo do paraíso e toma os frutos para sua sobrevivência.
Sob a rubrica de José Saramago, a ficção portuguesa contemporânea assinala,
portanto, o lugar da mulher como produtora de sentidos novos para uma cultura que a
calou, cerceou sua liberdade, frustrou sua realização amorosa. Ao desvendar esse
percurso da liberdade, também o espaço do feminino que se ergue. (Lindo isso)
Ambos os romances revivem o bíblico (o ódio entre os irmãos Caim e Abel em
Saramago e a narrativa de Jônatas e Lázaro), colocando a nu o oculto, contínuo choque
entre a natureza humana e as subjetividades e o discurso religioso. Entre as exigências
da carne-incesto, adultério, morte, sexo – a consciência de si a construir-se
indeterminadamente como o homem de Heidegger que pressagia o conhecimento da
subjetividade partindo do vazio. HEIDEGGER (2001) propõe um olhar sobre-humano,
além da simples filosofia, pelo seu sentido de ser. O ser em questão, segundo o
pensador é indefinido e sempre incompleto, e ao mesmo tempo, autônomo e
independente. Desta forma, pensar o ser em Heidegger é escutar a realidade de vozes de
realizações autorais que deixam para si o que desejam para o outro, numa proposta de
duplicação de si mesmo.
Desse modo, as personagens nas suas descontinuidades ganham contornos de
aberturas observados na escrita os quais consideram o lado problemático na vida.
Colocado o problema do valor humano face às diversas transformações em vias de se
efetivar, tomamos as personagens femininas que na ausência de motivos para viver,
abrem-se à problematização de estar no mundo. Algo gerador da crise da condição
humana em meio ao mundo caotizado feito de sombras e simulacros a compor a
distância abissal entre original e cópia.
As personagens femininas se desempenharão no enredo como um elemento de
mediação entre o desejo e a realização do humano. Por viverem situações individuais
profundamente humanas, elas apresentam valores universais.
Nessas obras ficcionais, brasileira e portuguesa, manifesta-se, como questão
candente da contemporaneidade, o desejo de voo da mulher para o vir-a-ser. Nestes
termos, realizar um trabalho observando a condição social e cultural do feminino de
maneira que os diferentes modos de ver e ser na ficção busca fazer uma reflexão a partir
da crítica do conceito atribuído pela narrativa tradicional à representação do ser

975
feminino para chegar a um novo conceito. Temos por objetivo investigar na
configuração estética, a representação e resistência do feminino e se as escritas
narrativas refletem forma de resistência e de mudanças.
ABDALA JR (1989) argumenta que o aspecto ideológico que compõe as
narrativas recriam estratégias e modelizam as formas do imaginário político
subvertendo a história tradicional. A práxis do homem não é a atividade prática oposta à
teoria: é a determinação da existência humana como elaboração da realidade. A práxis é
ativa, é atividade que se produz historicamente – quer dizer, que se renova
continuamente e se constitui praticamente – unidade do homem e do mundo, da matéria
e do espírito, do sujeito e do objeto, do produto e da produtividade.
Nessa direção, a difícil tarefa de chegar às fontes faz o sopro motivador desta
reflexão. Com base que não são os acontecimentos externos que devem ser
reproduzidos na imagem narrativa, mas o processo de consciência e discursos que
circulam nas produções literárias, leva-se a pesquisar nas obras as imagens que aludem
à construção de um discurso que revela, na continuidade textual, diálogo que ora
aproxima, ora reescreve, bem como a transgressão, na prática de resistência a esse
mundo de preconceito e de submissão que se opõe às condições individuais e
profundamente humanas.
A esse respeito, estudaremos as relações entre literatura e vida cultural, outras artes e
seu público, conforme afirmam os autores:

Para um trabalho de Literatura Comparada, ora-se admite também, (...) o estudo


das relações entre a literatura, de um lado, e, de outro, as outras áreas de saber e
de crença, tais como as artes, a filosofia, a história, as ciências sociais, a ciência,
a religião, etc. (WELLEK In: FRANCO & CARVALHAL, 1994, p.64)

E, para resultar, então, ao estudo do texto literário como uma rede imbricada em
elos, em que o diálogo com as várias vertentes teóricas se ocupam de compreender o ser
feminino priorizando o encontro e a diferença.Trata-se de examinar comparativamente
textos de autoria masculina compondo a imagem do ser feminino no quadro das
literaturas de língua portuguesa, com sensibilidades diferenciadas em que as habitantes
das narrativas negam antes de serem abaladas nas suas certezas. Criadas a partir de
sociedades periféricas, como Brasil (Mato Grosso) ou semi-periféricas como Portugal,
suas escritas apontam o conflito cultural que se fez forte, evidenciando as mudanças

976
vividas, não só no plano literário - o do atual em confronto com o tradicional - mas
também no plano ético-existencial da imagem de mulher transgressora dessa mesma
tradição. A ênfase na abordagem de gênero e nos aspectos do cotidiano feminino
considera que as pesquisas sobre a mulher possuem relevância para os países colocados
à margem, pois, existe um incômodo em relação aos estudos sobre como o feminino se
define e se identifica. Diante do exposto, situa-se as leituras nas personagens femininas
das narrativas, especialmente as protagonistas, no intuito de acompanhar como suas
trajetórias de objetos à sujeitos que contestam a visão dominante sobre a mulher com
graus diversos de contestação do status quo político, econômico e social, bem como
incluem o confronto aberto às instituições patriarcais para subvertê-las internamente por
meio de um subtexto paródico e irônico. Nessa direção, além da subversão às
instituições religiosas e patriarcais, as recriações da mulher são revistas de forma,
primeiramente, juntar os pólos de submissão e contestação como instâncias do feminino
e, num segundo momento, ampliar os horizontes das representações da mulher para
incluir variadas experiências que fundamentam e promovem as subjetividades do
feminino, com ângulos de reflexos múltiplos em que se frisa a consciência histórica da
diferença.

977
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ABRALIC – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LITERATURA COMPARADA


15 de Julho a 19 de Julho de 2019 / Universidade de Brasília – UNB/ Brasília - Brasil

979
LUGARES DA SUBJETIVIDADE NO ROMANCE
MEMORIAL DE MARIA MOURA

ELISÂNGELA SANTOS PETRUCCI PEÇANHA (UFF)1

Resumo: Este trabalho tem como objeto de estudo o romance de Rachel de Queiroz
,Memorial de Maria Moura (1992), e a partir da obra literária traçar reflexões sobre o
deslocamento da personagem Maria Moura e a importância dos lugares da
subjetividade no romance. A autora consegue com muita propriedade discutir a imagem,
a atuação e a participação das mulheres na sociedade nordestina do século XIX.
Palavras-chave: Subjetividade; Literatura ; Protagonismo; Rachel de Queiroz.

Cada escritor estabelece uma relação de singularidade com a sua obra. A


construção simbólica desse universo de sentido pode demandar questões subjetivas
profundas onde a memória, a alteridade, os espaços, à infância entre outras questões
pertinentes podem estabelecer especificidades à estória contada. Outros autores podem
demonstrar essa subjetividade de maneira sutil, comportada e até pouco perceptível.
Porém, quando falamos em Rachel de Queiroz essas marcas subjetivas ganham status
de características peculiar da autora , além de estabelecer clara relação entre autor e
produção literária.
É possível dizer que os lugares da subjetividade em Rachel de Queiroz são
muitos e circulam desde seus romances até suas crônicas, sempre demonstrando uma
perspectiva social e cultural. Partindo deste recorte faremos uma reflexão sobre o
romance Memorial de Maria Moura tentando contribuir criticamente para um horizonte
de discussão sobre a subjetividade. O estudo que pretendemos realizar sobre a obra de
escritora diz respeito, num primeiro momento, em situar o conceito de subjetividade que
no século XX procurou ampliar e compreender esses novos sujeitos , cada um com a
sua singularidade e em constante formação e transformação na sociedade. Assim,
poderemos refletir também como essa individualidade, desse novo ser em construção, se
desenvolveu dentro de uma totalidade , grupo humano, histórico , cultural e social.
O conceito de subjetividade é amplamente explorado em vários campos do saber
como a Sociologia , a Filosofia , a Literatura, entre tantos outros. É preciso assinalar,
portanto, que esses termo foi forjado , a priori, pela Psicologia e permanece até os dias

1
Graduada em Letras (UFF), Mestranda em Literatura Brasileira e Teoria da Literatura (UFF).
lissmaker@gmail.com

980
atuais como um importante objeto de estudo. Em alguns momentos a utilização desse
termo e a sua aferição pragmática ficou bastante comprometida devido ao desgaste
excessivo, por vezes até banalizado, de seu uso na atualidade. Dito isto, observaremos
uma das várias definições que abarcam a subjetividade como “ a síntese singular e
individual que cada um de nós vai construindo conforme vamos desenvolvendo e
vivenciando as experiências da vida social e cultural." (BOCK, 2001, p.28). Pensando
na fusão subjetiva da autora , personagens e temas abordados na obra Memorial de
Maria Moura concluímos que o conceito acomoda-se perfeitamente à reflexão proposta
neste trabalho, haja vista que Queiroz projeta essas marcas subjetivas em seus
personagens, na ambientação do romance , nas suas memorias que as vezes confluem
com as memorias dos próprios personagens, na autoria feminina, enfim, é possível
perceber em toda narrativa. Essas projeções da subjetividade não se restringe apenas ao
romance analisado, sua abrangência é notada em vários outros romances como O
Quinze, romance de estreia da autora , que deliberadamente ela explora o tema do sertão
tão familiar e importante para ela. A identificação da autora com seus personagens pode
ser observada em “Todos os anos , nas férias da escola, Conceição vinha passar uns
meses com avó (que a criara desde que lhe morrera a mãe), no Logadouro, a velha
fazenda da família, perto do Quixadá.” (QUEIROZ, 2002, p.9). Quixadá é um
município do Ceará, onde Rachel nasceu e foi criada. A menina de 19 anos que
escreveu O Quinze trouxe para esse romance regionalista e humanizado a
representatividade do sertão brasileiro numa ousadia e força nunca antes trabalhado na
literatura brasileira por uma mulher. A subjetividade define a essência do homem, essa
profundidade Rachel soube aproveitar com maestria e habilidade revelando-se assim
uma grande contadora de histórias cheias de vida social , lembranças e verossimilhança.
Seu último romance , Memorial de Maria Moura , foi publicado em 1992 e é
considerado o romance da fase madura da autora. O olhar crítico e apurado volta-se para
o século XIX e, vai descortinar um sertão de atraso, de preconceitos , de desigualdade ,
de luta pela vida e independência. Além disso , o romance apresenta elementos
importantes da arquitetura humana e social da sociedade nordestina do século XIX. O
romance é considerado polifônico e potencializa denúncias , críticas e perspectivas
feitas por cinco narradores ( Maria Moura , Beato Romano, Marialva, Tonho e Irineu)
que vão traçar a partir de suas versões um panorama de antíteses sociais atribuídas ao

981
sertão brasileiro do século XIX. Através da obra literária Rachel projeta seus próprios
questionamentos e apontamentos em relação ao poder estabelecido no nordeste , os
tipos humanos em transformações , as belezas e percalços da terra , a hospitalidade
desse povo , seus sofrimentos e carências , além da luta por sobrevivência e liberdade. A
autora sabe do que fala , viveu com esse povo, participou da transformação lenta e
quase imperceptível. Queiroz traz para a literatura brasileira:

Na obra romanesca de Rachel de Queiroz , sente-se essa “secura” no


tratamento linguístico dado aos ambientes e aos personagens. Os diálogos
são curtos, as conversas claras , sem dissimulações . Sua estética se preocupa
mais com o sensorial do que com a harmonia das formas. Uma linguagem
atrelada à coragem do nordestino, a verbalização dos sentimentos dos
cantadores repentistas , as histórias contadas pelos jagunços da fazenda do
Junco, a mística de um povo que busca no céu a sua sobrevivência física e a
sua transcendência. (FONTES,2012, p.166)

A palavra “memorial” que compõe o título do romance abrange o campo


semântico da memória, da lembrança , da constituição dos principais fatos da vida de
Maria Moura, e atua também como o último memorial de Rachel, visto que foi a sua
última obra escrita em vida. E se formarmos um paralelo entre autora e protagonista
muitas características são compartilhadas entre as duas. Moura representa a junção de
duas mulheres que realmente marcaram a vida de Rachel de Queiroz :Maria de Oliveira 2
e a rainha Elizabeth I.3
O romance apresenta estágios relevantes que visitaremos com mais profundidade
para firmar a subjetividade da protagonista , são eles : o sítio do Limoeiro , as andanças
pelo sertão, o período do assentamento e construção , e a Casa Forte . Esses ambientes
são importantes porque apresentam uma forte simbologia formando uma simbiose com
a própria Maria Moura, além de apresentarem componentes sociais de um sertão
atrasado e sofrido, como, poder/força/terra, masculino versus feminino/família ,
identidade, amadurecimento/ morte e vida.

2
Maria de Oliveira , mulher e mãe , que depois da morte do marido se viu obrigada a sustentar sua
família. Ainda no século XVIII organizou o primeiro bando no sertão brasileiro, sendo precursora de
Lampião.
3
Elizabeth I (1533-1603) foi rainha da Inglaterra de 1558 até 1603, ano de sua morte. Com 25 anos foi
coroada rainha, instituiu seu governo com mãos fortes. Durante seu reinado à Inglaterra tornou-se o
principal centro financeiro da Europa. Suas características fortes inspiraram a escritora na composição
de Maria Moura.

982
Três pressuposições governam o estudo ao qual este ensaio é dedicado.
Primeiramente, considero que, o estudo da subjetividade e o protagonismo feminino no
romance “Memorial de Maria Moura ”(1992), de Rachel de Queiroz, enfatiza questões
importantes sobre o universo feminino e a luta interna e externa por autoafirmação e
representatividade no nordeste brasileiro do século XIX. Rachel de Queiroz consegue
com muita propriedade discutir a imagem, atuação e participação das mulheres na
sociedade nordestina.
A segunda pressuposição é a seguinte: a questão da memória que se destaca a
partir do título do romance vai estabelecer referenciais entre com elementos primordiais
e imagéticos da sua infância, viagem de amadurecimento e vida adulta.
A terceira pressuposição repousa sobre a articulação dos espaços da narrativa e o
caráter temporal da experiência humana que é por si só transformadora e intrigante
porque estabelece um aprofundamento reflexivo e crítico sobre as cristalizadas
estruturas sociais do nordeste brasileiro.
O desafio proposto neste trabalho é fomentar reflexões e contribuir no debate
sobre o romance racheliano e o seu papel de instrumento de mudança social e de
pioneirismo. Desta forma, o espaço narrativo o “locus enunciativo”, e a sociedade do
século XX, onde a Rachel de Queiroz está inserida passam a figurar um campo
dialógico-reflexivo de luta e resistência .
As marcas subjetivas presentes no romance atuam de forma abrangente e
complexa , haja vista , que durante toda a prosa essas considerações e comparações
vão nos revelando a genialidade da autora, as influências advindas do seu oficio de
tradutora , o seu olhar como mulher e escritora, as lembranças da infância e da
adolescência. Rachel explora o espaço do sertão de forma familiar, memorialística e
afetiva . A terra, apesar de difícil contribui para discussões mais amplas como poder,
simulacro de violências ,mas também para acolhimento, para mostrar o povo amável do
sertão .
A protagonista do romance Maria Moura também transparece essa subjetividade
tanto nas atitudes como nas lembranças , sua subjetividade não é estática , mas
moldável no desenrolar de suas memórias. Pelo olhar e voz da Moura conhecemos seus
medos, sonhos , desejos contidos e revelados , suas força e sua fragilidade.

983
Nas veredas narrativas do romance Memorial de Maria Moura encontramos
pontos de interseções entre os elementos simbólicos : terra, fogo e água, estreitando
relações e revelando nuances importantes da história e da memória de Maria Moura. O
passado e o presente da narrativa são permeados por memórias, que se deslocam pelo
sertão, através da polifonia das vozes e da ambientação, que, por vezes, são espaços de
lembranças , espaços subjetivados . Os três narradores principais narradores , Maria
Moura , Beato Romano e Marialva, são deslocados dos seus espaços porém não saem
do sertão , que ora está fora deles , trazendo percalços , ora está dentro das
personagens. Seus deslocamentos são consequências de suas escolhas , nesse sentido a
própria Rachel de Queiroz é uma deslocada , porém o sertão tem lugar cativo em sua
vida. A grande metáfora desta caminhada figura a evolução das personagens e também
da autora frente às adversidades naturais , sociais, econômicas e, principalmente,
pessoais. A importância de cada um desses elementos ambientados na história
racheliana nos faz olhar criticamente para um entrelaçamento relevante entre narrativa e
símbolo, pois ,de acordo com Bachelard (1998), relacionam-se com a vida íntima.

Já que as imagens poéticas possuem uma matéria ;a partir desse pressuposto,


pode-se pensar que a literatura possibilita tanto ao escritor quanto ao leitor,
ultrapassar as imagens da realidade, ampliando as noções singulares e
objetivas, criando sentidos, ampliando o real. Portanto o símbolo realiza, na
literatura, o papel de mediador, tanto no processo de criação quanto de
recepção. (BACHELARD, 1998, p.238.)

Ao observarmos a presença do Sertão/deserto como material simbólico e


metafórico para a história, podemos associá-la à busca pela essência dos personagens, o
que também nos remete à passagem bíblica dos hebreus em sua caminhada pelo deserto
de Sinai, em busca da Terra Prometida. Foram muitos percalços e sofrimentos, mas
houve também crescimento e amadurecimento, e, ao final, a satisfação. Assim se deu
o deslocamento das personagens Maria Moura, Beato Romano e Marialva que
conheceram caminhos difíceis, cheios de peculiaridades, porém chegaram a um porto
seguro, a Serra dos Padres ou Casa Forte.
A seca pode ser entendida como uma fase de privações que, durante a caminhada
de Maria Moura, vai do sofrimento à revelação da lealdade, confiança e união do seu
bando.

984
A terra sempre esteve no imaginário de Moura, como um sonho alimentado pelos
seu avô e seu pai. Desta forma, podemos perceber que o sertanejo tem uma ligação
vital com a terra, mesmo quando apresenta aridez e dificuldade. Portanto, a conquista
da terra é uma revelação de poder e força, o que Maria Moura sempre deixou claro que
era o seu objetivo, isto é, ser dona do seu destino, o que significava ter a sua própria
terra. Precisamos ter em mente que o poder e a força se relacionam intrinsecamente,
logo, podemos concluir que todas as relações de poder na sociedade sertaneja
apresentam ramificações ligadas quase que prioritariamente à terra. Sendo assim, ao
observarmos a relação do sertanejo com a terra é possível notar que existe uma ligação
forte e peculiar, pois há um desnudamento da alma e do psiquismo das personagens e
também da autora. Neste ponto, Rachel de Queiroz destoa dos outros escritores
regionalistas da década de 30, porque o Sertão/terra estéril se apresenta em seus
romances com alma e personalidade, ganhando, por vezes, status de personagem, e não
apenas mera ambientação figurativa. Antonio Candido (1918)4 já esboça esta função
humanizadora da literatura através da qual, segundo ele, é possível vivenciar toda a
diversidade e peculiaridade dos personagens em suas vivências. Logo, é possível
concluir que o Sertão, terra difícil e sofrível, é um espaço propício para surgir um povo
forte, guerreiro e lutador. Já a função social da literatura, de que fala Candido (1918),
também pode ser considerada uma marca subjetiva da escrita de Rachel de Queiroz, que
reage e denuncia as atrocidades de forma muito sutil e poética.
Assim como na Cruzada das Crianças5, em que um grupo de crianças marcham
durante a segunda guerra mundial, pela Europa, em busca do Santo Sepulcro em Israel,
o romance analisado vai desnudando as mazelas sociais no Sertão brasileiro do século
XIX, e a polifonia das vozes narrativas vai construindo e denunciando, através do
discurso, em cada pedacinho de chão, as adversidades e carências do povo, porém
Maria Moura se mantém firme no propósito de encontrar a Terra Prometida.
Diferentemente da Cruzada das Crianças, onde o mar é o destaque do sofrimento final,
no romance, o contraponto do mar fica por conta dos perigos, da terra seca, quente e

4
CÂNDIDO, Antônio. A Literatura e a formação do homem. In: Textos de intervenção; seleção
apresentações e notas de Vinicius Dantas. São Paulo: Duas cidades .Ed.34, 2002. 392 p. ( Coleção
Espírito Crítico).
5
SCHWOB, Marcel. 2011. Narrativa que conta a história de um grupo de crianças, que atendendo um
“chamado” divino, percorrem a Europa rumo a Jerusalém com o objetivo de chegar até o Santo
Sepulcro. Pelo caminho essas crianças sofrem todo tipo de adversidade.

985
desértica do Sertão. A literatura tem essa função de criar em nós, leitores, essa fruição e
alteridade.
Beato Romano, que um dia fora padre e representante legal da instituição
religiosa, mesmo desgarrado, precisava também de pouso, sossego, segurança, e a
Casa Forte de Maria Moura poderia lhe proporcionar tudo isso. Já a prima Marialva
nunca teve ambição por terras, mas a segurança de um lar para a sua família a levou
até Maria Moura e a sua fortificação significava segurança. Os personagens Tonho e
Irineu, primos de Maria Moura, representam no romance a cobiça pela terra, própria do
sertanejo, que comete atrocidades para ter mais terras e poder. A Terra, então, tem um
valor simbólico bastante relevante, em um romance que pretende abordar temáticas
sociais. Rachel de Queiroz estabelece um status de personagem à terra/Sertão, por seu
caráter de engajamento e de denúncia social. A terra é tudo para o sertanejo e, por isso,
a sua ligação com essa terra difícil e, por vezes, indomável, em uma relação de
possessividade, gera uma relação paradoxal de conflito e afetividade. O segundo
elemento que merece destaque no romance é o fogo, que significa, em muitas culturas,
um rito de passagem, uma provação. Para fugir do jugo dos primos Tonho e Irineu, que
desejavam tomar às terras do sítio Limoeiro à força, Maria Moura planeja sua fuga. O
fogo é o meio para destruir de vez toda e qualquer possibilidade de volta. Também
funciona como uma mensagem de coragem remetida aos primos da menina sertaneja,
que não se deixará domar por nenhum homem. O fogo marca a morte-simbólica da
sinhazinha do Limoeiro, da menina na sua condição submissa e frágil, que só serviria
naquele contexto para casamento ou relações sexuais consensuais ou não.
O simbolismo da despedida da Casa do Limoeiro é marcado pelo abraço às
paredes, e o olhar, já em fuga, para a propriedade sendo consumida pelo fogo. Nesse
momento, o fogo mata de vez a menina para deixar surgir a mulher, a Dona Moura. A
figura da fênix que ressurge das cinzas é revisitada no romance, trazendo à tona uma
nova personalidade para Maria Moura. Na sequência dos acontecimentos desta nova
vida, Moura somente voltará a visitar esses espaços através das lembranças da sua
infância e adolescência.

Eu tinha planejado a defesa e o incêndio, mas agora a minha ideia era vaga.
Na primeira hora procurava só respirar em fundo e tomar o cheiro daquela
liberdade. Não me doía tanto quanto esperei, o fogo na casa do Limoeiro;
afinal, agora tinha chegado a vez de cumprir o meu grande sonho. A terra da

986
Serra dos Padres. Tudo fresco, olho d’água correndo entre as pedras.
(QUEIROZ, 2008, p. 93)
.
Numa nova versão da mulher sertaneja, ela assume o bando com rigor e coragem,
deixando para o espaço da memória seus momentos de fragilidade, medo e reflexão.
Neste sentido, as mulheres construídas por Rachel de Queiroz são completamente
transformadas pelo meio e assumem os seus caminhos com liberdade e ousadia.
A água, como terceiro elemento simbólico, explorado no romance, merece um
destaque todo especial, devido à confluência das memórias e aos espaços, onde é
possível desenvolver a feminilidade de Maria Moura. De todas as imagens poéticas que
circundam o romance, a água é aquela que mais expressa liberdade do seu lado
feminino, já que esses poucos espaços fluidos deixam aflorar na narrativa a
subjetividade de Moura, deixando-a ser autêntica em suas emoções e memórias.
As metáforas envolvendo a água pintam um quadro representativo da intimidade,
infância e feminilidade de Maria Moura. Sempre que o personagem está em um desses
espaços fluidos, ele vive momentos de tranquilidade, segurança, deleite e calmaria, por
isso suas reminiscências são ativadas de forma positiva e até motivadora traz à
personagem uma compensação de si mesma na sua caminhada difícil pelo Sertão.

(...)Nem pensava mais nos meus banhos de cheiro, na boa cama com lastro de
sola que eu tinha no Limoeiro. Também isso, e tudo o mais, estava agora
tinha virado em cinza. Do meu conforto de sinhazinha, nada. A vida era
outra, eu estava endurecendo. Já um dia inteiro a cavalo, por maus
caminhos, não chegava a me deixar enfadada. Um bom mergulho na lagoa,
com Libânia vigiando pra não passar homem perto [...]
(QUEIROZ,2008,p.124)

Aquele grande Sertão encontra-se dentro de Maria Moura e a sua intimidade com
a água seria o momento de fertilização, de reflexão, de autenticidade. Podemos
observar também o simbolismo da água atrelado ao questionamento interior da
personagem, por vezes um monólogo bastante revelador de sensibilidade e fragilidade,
que, no trato diário com seu bando de jagunços, Moura tenta esconder pela rudeza dos
atos e frieza nas decisões . Segundo Gilbert Durand “o símbolo é, portanto, uma
representação que faz parecer um sentido secreto, ele é uma epifania de um
mistério.”(DURAND, 1988, p.15)
A água na representação literária de Rachel de Queiroz somente aparece ligada ao
discurso da personagem principal. Seria, para Moura ,a fonte de energia vital

987
revigorante e reflexiva, onde o espaço fluido funcionaria como elemento pacificador. A
água que Maria Moura busca incansavelmente é a terra, a segurança de um lugar, de um
lar. Para este intento, a personagem sofrerá grandes transformações através das suas
caminhadas pelo Sertão. Ela começa o romance como sinhazinha do sítio Limoeiro, por
força se transforma em Maria Moura, mas no ápice do romance já é Dona Moura, da
Casa Forte. Essa sede é o que alimenta a sua busca. O final aberto do romance nos leva
a crer que essa busca nunca cessa e nem os espaços de poder, como a Casa Forte, foram
capazes de suprir essa busca da personagem. A terra, o fogo e a água assumem durante
todo o romance um lugar de subjetivação que deixa aflorar a personalidade forte e
guerreira da personagem Maria Moura. Assim como a protagonista da obra, Rachel de
Queiroz também se vale das suas lembranças do Sertão para contar suas histórias e
fazer brotar sua subjetividade no romance. Estes elementos formam os espaços que,
através da memorização e polifonia, vão denunciando preconceitos, modificando
valores e criando novas perspectivas narrativas. A busca de Moura é também a busca de
cada um de nós, pois cada ambiente gera em nós uma interação e uma apropriação, que
ora nutre nossa satisfação e, em outros momentos não nos sacia mais, e nos impele a
buscar novos caminhos e novos desejos.
O pensamento moderno da autora transforma o sertão em um vasto mundo ,
transforma a protagonista em um ser construído individual , social e culturalmente ,
levanta o debate sobre a identidade , a função do sujeito e a subjetividade, ou seja, todas
essas questões dão ao romance uma fruição e uma maturidade literária .

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Francisco Pereira Smith Júnior (UFPA)2

Resumo: Este trabalho tem como objetivo principal abordar uma vertente da Literatura
Comparada, o estrangeirismo. Brunel e Chevrel (2004) discorrem que um texto nem sempre
pode ser considerado puro, ou seja, sem que haja influências de elementos estrangeiros.
Machado e Pageaux (1989) citam que a literatura comparada, também, possibilita ao comparatista
novas perspectivas de estudo e de investigação e uma de suas vertentes é o estrangeirismo. O foco
de nossa investigação são poesias de Adalcinda Camarão Luxardo, marajoara, da cidade de
Moaná, Marajó, Pará. Adalcinda era considerada, uma notável figura feminina na intelectualidade
Paraense e alguns de seus poemas mesclam português e inglês.

Palavras-chave: literatura comparada; estrangeirismo; poemas; Adalcinda.

Este trabalho foi elaborado e baseado nas teorias dos autores Brunel e Chevrel
(2004), que teorizam a análise de literatura comparada em diversas áreas. Dentre essas
áreas, há uma que analisa a presença de um vocábulo estrangeiro em uma obra literária,
no caso desta pesquisa, em poemas. A ideia de um autor escrever dentro de suas obras
palavras em uma língua diferente da sua de origem não significa, necessariamente, que o
autor esqueça de seu próprio país ou de sua língua, muito pelo contrário, deve existir
fatores diversos que os levem a escrever de tal forma, uma delas essa pesquisa busca
explicar. Primeiramente, os autores advertem a, primeiramente, fazer uma busca na vida
e obra do autor, geralmente a resposta está em algo de sua vida e experiência em línguas
e culturas diferentes. Os autores nomeiam essa teoria como “A lei da emergência”, onde
nos conduz às profundezas do texto literário. “... sua atenção é despertada pelo
aparecimento de uma palavra estrangeira, de uma presença literária ou artística...” (p. 22).
Conduz ao comparatista a investigar além do texto, indo ao autor, seu país de origem,
cultura e língua.
Os comparatistas classificam como fonte dupla de inspiração, ou seja, o autor teve
duas fontes de inspiração. Uma fonte provém de seu país de origem, cultura e língua
original e outro que divergem. Nesta pesquisa a autora será analisada poesias da autora

1
Graduada em Letras com Habilitação em Língua Inglesa, UFPA – Pa. Mestranda na Pós-graduação de
Linguagens e Saberes da Amazônia, na Universidade Federal do Pará. Campus Bragança. Contato:
heydejane.16@gmail.com.
2
Mestre em Letras: Linguística e Teoria Literária pela Universidade Federal do Pará (UFPA) (2004), Doutor
em planejamento do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Pará (PDTU/NAEA/UFPA) (2012).

990
Paraense, Adalcinda Camarão. A autora possuía duas fontes de inspiração, a Brasileira e
a Americana, provem disso a razão pela escrita de poemas nas duas línguas, língua Inglesa
e Portuguesa. Brunel e Chevrel (2004) citam que para alguns comparatistas usar um
vocábulo estrangeiro em suas obras nacionais, faziam com que as valorizassem ou
demonstrava que o país proveniente do vocabulário servia de inspiração para a escrita da
mesma, ou era considerada por alguns, elegante.

“São bem conhecidas as manifestações de um certo snobismo (mas afinal de


contas, não é este vocábulo uma importação do inglês), - o de Odette de Crécy
em A la recherche do temps perdu [Em busca do tempo perdido], o da alta
sociedade e S. Petersburgo em Guerra e Paz. Marcel Proust divertiu-se.
Sobretudo em Um Amour de Swann [Um amor de Swann], a multiplicar os
anglicismos da cortesã que crê assim falar <<chique>>. Tolstoi dá-nos a
imagem de uma sociedade onde o francês era ensinado e estimado.
Noutroscasos é o italiano que será elegante: em Stendhal, ou nos salões dos
Lanty, no inicio de Sarrasine de Balzac.” (p. 22)

Mas, por certo, são diversas as razões por utilizar um vocabulário estrangeiro em
uma obra nacional. Acontece de acordo com a intenção do escritor ao usar tais vocábulos.
No caso dos poemas da escritora Paraense, apesar de residir em um país estrangeiro ela
prezava em mostrar que a sua Amazônia e seus entes queridos não saiam de seu
pensamento e coração.

Adalcinda Camarão
A autora tem por nome completo Adalcinda Magno Camarão Luxardo, nasceu no
dia 18 de julho do ano de 1915, na pitoresca cidade marajoara de Moaná - Pará. Filha de
João Evangelista de Carvalho Camarão e Camila Brito Magno Camarão. Adalcinda
passou sua infância em Moaná, “teve a infância marcada por uma rotina calma, amorosa
e cercada pela beleza exuberante da pequena e pacata cidade”3, vivia a beira do rio a
brincar. Essas paisagens, por certo, inspiraram grande parte dos poemas de Adalcinda, no
prefácio de seu livro Caminhos do vento (1968), Seleneh de Medeiros4, sua amiga poetisa,
a descreve com maestria e é perceptível a admiração por Adalcinda, seus versos e amor
pelas artes. Colocações de Seleneh, “Ungida pela Amazônia, Adalcinda começa, ainda

3
Considerações da irmã de Adalcinda, Celeste Proença, para uma entrevista concedida em setembro de
2011.
4
Seleneh de Souza Medeiros, nasceu em Salvador, na Bahia em 1914. Formou-se em Artes Dramática e
música, foi poeta, declamadora, conferencista e concertista.

991
com asas de infância. Ao redor dela, motivação de garças brancas, tambatajás... a
misteriosa simbiose dela, Adalcinda, com a terra, vento, céu, o rio absoluto.”
Um fato marcou a trajetória de Adalcinda Camarão no meio intelectual literário, o
fato ocorreu no dia 25 de janeiro no ano de 1950, no teatro da Paz, Adalcinda toma posse
na Academia Paraense de Letras, e ocupa a cadeira de número 17, que dantes pertencera
a Felipe Patroni. Foi um acontecimento notável na vida de Adalcinda, a despeito de sua
pouca idade e o fato de alguns homens tinham resistência a presença de mulheres nessas
casas de cultura. A escritora foi uma das primeiras mulheres a assumir um posto tão
reconhecido no meio literário-cultura.
A cada fase de sua vida a autora a eterniza em seus poemas. Adalcinda, Brasileira,
marajoara, residente nos Estados Unidos, onde a língua predominante é o Inglês, o qual
fez parte de sua rotina diária, devido ao seu trabalho e vivencia social neste país tão
distante e de cultura que muito se diverge da cultura amazônida, utilizou da língua do país
de residência pra escrever sobre seu estado de espírito em alguns momentos residindo lá.
Saudades da sua amada Amazônia, suas paisagens, pessoas e tudo mais. Podemos
encontrar diversos poemas escritos por completo em inglês ou mesclado com palavras
das duas línguas. Alguns são escritos na língua materna, mas são assinados com a data
em formato americano e com o nome de uma cidade americana, Washington, D.C.,
Atlantic City, New Jersey e Potomac River. Os poemas que foram escritos por Adalcinda
na língua inglesa encontram-se dentro de duas de suas obras, “Folhas” e “Á sombra das
Cerejeiras”.

O estrangeirismo no poema “SKYLAP”


Foi selecionado um poema de sua coletânea, “Folhas” (1979) e “À sombra das
Cerejeiras” (1989), esses poemas foram escritos enquanto Adalcinda ainda residia nos
Estados Unidos. Por vezes esta análise trará voz de Adalcinda ao mesmo tempo que é o
eu-lírico do poema. Isto só é possível por se tratar de uma pesquisa na área da Literatura
Comparada que investiga dados da vida do autor como fonte influenciadora de sua obra.
O título do poema escolhido é “SKYLAP”, que faz parte de uma coletânea de
poemas com temas diversificados, desde orações, despedidas, relatos de felicidade e de
tristeza, saudades entre outros.

992
Em um tom mais singelo, o eu-lírico do poema traz lembranças materiais e psicológicas de
seu país de origem, o Brasil. O poema, “skylap”, é composto por duas estrofes, sendo a primeira
com doze versos e a segunda com sete. O poema possui o efeito de sonoridade das rimas, “dentre
os recursos usados para obter certos efeitos especiais de sonoridade do verso, o principal é a rima”
(CANDIDO, 2006. p. 61). Manuel Bandeira descreve as rimas como igualdade ou semelhança de
sons em terminação das palavras. Mas, vale ressaltar que Adalcinda tinha característica de poemas
em prosa e até mesmo possuindo rima, eles se diferem, como afirma Candido (2006, p.66):

“De modo geral, houve no Modernismo, em relação ao Parnasianismo e ao


Simbolismo, uma marcada dessonorização do verso; depois, uma
ressonorização em outros termos. Por dessonorização entendo aqui uma
diminuição dos efeitos sonoros regulares, ostensivos e evidentes, não a
sonoridade de cada palavra; a busca de um som de prosa, inclusive com a
supressão da rima, a queda da regularidade rítmica etc.”

Percebe-se que as rimas no poema não são regulares, mas são presentes e podemos
considerar que elas possuem um ritmo mais pessoa, já que não segue um padrão pré-
estabelecido.
SKYLAP
Coberta de alvinho algodão
- tecido sutil
Made in Brazil5.
Um broche de patchuli
Escrito “meu bem”
Made in6 Belém.
Transir numa órbita alheia,
Nem bela, nem feia,
No stick7 verão!
Sair pelo mundo em debris8,
No lap9 feliz
Do meu coração

Sair sem fumar um cigarro,


Nem diesel no carro,
Mas ir trabalhar,
É tudo o que eu sei
Do meu birthday10
Sem happy11, sem cake12,
Nem vela de cor pra soprar!

5
Minha tradução para: Feito no Brasil;
6
Idem, feito em Belém;
7
Idem, bastão;
8
Idem, detritos, resíduos;
9
Idem, colo;
10
Idem, aniversário;
11
Idem, feliz;
12
Idem, bolo.

993
Nos versos 5 e 6, podemos perceber o primeiro par de rima “bem” e “Belém”.
Ambas palavras são da língua portuguesa como é o caso da rima seguinte, nos versos 7 e
8 nas palavras “alheia” e “feia”, mas nos versos 10 e 11 a rima acontece entre “debris” e
“feliz”, a primeira da língua Inglesa e a segunda da língua portuguesa. Apesar de
pertencerem a línguas diferentes, a sonoridade da rima aconteceu. Na próxima estrofe a
mensagem que se passa ao ler o poema é de contentamento, o eu-lírico se prepara para
sair pelo mundo, como no décimo verso da primeira estrofe está escrito, vestido de uma
camisa provinda do Brasil, com um broche típico paraense, feito de patchuli com o
coração feliz apesar de no seu aniversário não ter bolo o eu-lírico apenas relata um estado
de felicidade e o uso da língua com termos em inglês parece demonstrar apenas aquilo
que faltava, o uso da língua inglesa. O eu-lírico, também, utilizou o verbo de uma palavra
provinda da língua inglesa “made” para fazer analogia a diversas marcas de produtos que
possuem esse verbo para identificar a origem do país de fabricação.
É comum encontrar produtos escrito “made in China”, por isso a autora utilizou o
verbo, na intensão te enfatizar que os produtos por ela utilizados provinham de seu amado
país de origem e estado. Nos versos 7 e 8 o eu-lírico deixa bem claro que não se encontra
em seu local de origem, mas que está em terras estranhas, “transir numa órbita alheia”.
Esse lugar aparenta ser indiferente a seus olhos “bem bela, nem feia”, a beleza do lugar
existir aos seus olhos ou não é apenas um detalhe que a ela não parece importante. O eu-
lírico está com o coração repleto de felicidade “no lap feliz do meu coração”. O poema
foi escrito nos Estados Unidos, na capital Washington D.C., no dia do seu aniversário em
que completou 66 anos de idade e um ano após a morte de seu amado marido.
Uma outra versão para o poema é que Adalcinda está tentando se recuperar da perda
de seu amado e tenta seguir a vida normalmente. Está como muitos falam aqui no Pará,
seguindo a vida no modo automático. Na segunda estrofe o eu-lírico participa de um
momento que podemos perceber que são obrigações que devem seu cumpridas, mesmo
que seja um dia de celebrações, que visivelmente ela não quer celebrar qualquer coisa que
seja, “sem happy, nem cake” “nem vela de cor pra soprar”. O carro não tem combustível,
mas ela deve ir trabalhar e cumprir sua obrigação. O sentimento que passa é o de vida que
segue apesar de tudo o que já passou.

994
Conclusão
A poética de Adalcinda conquistou a admiração de diversos intelectuais, tanto os
residentes no Brasil, que tinham o privilégio de ler suas obras através de suas publicações
enviadas para os jornais e revistas de grande circulação no Pará, na sua época, quanto aos
americanos que trabalhavam junto a ela quanto aos alunos para quem lecionava.
É uma grande honra escrever sobre esta autora. Adalcinda Camarão marcou uma
época com suas participações ativas nas questões literárias e junto com seu esposo,
artísticas, no Pará. Foi muito importante para a história do estado, junto com seus amigos
enriqueceram a cultura local com publicações literárias que até os dias de hoje são
utilizadas nos trabalhos acadêmicos. Possuía um talento nato, isso é comprovado, uma
vez que seu sucesso não ficou restrito ao Pará - Brasil, fez carreira em um país distante e
diferente linguística e culturalmente do seu. Isso é muito motivador e desperta em nós,
paraenses, mulheres, grande orgulho.
Nos Estados Unidos, Adalcinda criou o setor de linguística na American
University. Também lecionou Português e Literatura na universidade, lecionou Português
para o filho do presidente Kenndy e entre outras coisas. Adalcinda foi uma escritora
completa que merece ser lembrada, tanto por seu talento quanto por seus feitos.

995
Referências
Antologia poética / Adalcinda. – Belém: cejup, 1995. – (Coleção Verso e Reverso, 7).
367 p.

BARBOSA, Iris de Fátima Lima. Versos modernos... A paisagem Amazônica no


imaginário poético de Adalcinda Camarão. 153 f. Dissertação de mestrado –
Universidade Federal do Pará, Pará. 2012.

BRUNEL, Pierre e CHEVREL, Yves (Org). Compêndio de literatura comparada.


Tradução de Maria do Rosário Monteiro. Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa. 2004.

CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. 164 p. Editora Humanitas. 5 ed. São
Paulo. 2006

PIGNATARI, Décio. O que é comunicação poética. 8 ed. Cotia. São Paulo. Ateliê
Editorial, 2005.

MACHADO. Álvaro Manuel; PAGEAUX, Daniel-Henri. Da Literatura Comparada à


Teoria da Literatura. Fundamentos. Editorial Presença, Lisboa, 2001.

Fundação Cultural do estado do Pará.


Disponível em:
<http://www.fcp.pa.gov.br/consulta-do-acervo/acervo-bibliografico/consulta-do-acervo-
da-biblioteca>. Acesso em 28 de Julho de 2019.

Michaellis. Dicionário Brasileiro de Língua Portuguesa


Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/busca?id=OWQE>. Acesso em 12 de Julho
de 2019.

Templo Cultural Delfos.


Disponível em: <http://www.elfikurten.com.br/2014/04/adalcinda-magno-camarao-
luxardo.html>. Acesso em 20 de julho de 2019.

996
AS VOZES NA NARRATIVA DA COMUNIDADE TRADICIONAL
PESQUEIRA DE ARRAIAL DO CABO
Autora: Dra. Manuela Chagas Manhães (CEAD CNEC)
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar um dos contos produzidos pela
comunidade pesqueira de Arraial do Cabo, na região dos Lagos, no Rio de Janeiro. Sabe-se que
a narrativa tem diferentes formatos, entre elas, a história oral. Algumas das narrativas compostas
pela oralidade, foram organizadas por Wilnes Pereira, e isso nos permitiu uma maior
acessibilidade na compreensão da construção da memória social e coletiva dessa comunidade e
de sua identidade cultural. O conto analisado será o "O vigia da praia grande" para que possamos
compreendê-los em suas entrelinhas e, assim, demonstrar tais particularidades e elementos
culturais imateriais que retomam as lembranças dos membros da comunidade.
Palavras chave: narrativas, comunidade artesanal de pesca, identidade

Introdução

Por muito tempo a oralidade tem sido uma das mais importantes entre os membros das
comunidades tradicionais que compõem o povo brasileiro. No caso específico da
comunidade tradicional de pesca de Arraial do Cabo a organização dos contos e lendas,
num livro feita por Wilnes Pereira, permite que analisemos os fatos remontados e
ressignificados, os quais são elementos essenciais para identificação dessa comunidade
artesanal pesqueira. Por conseguinte, compreendê-los em suas entrelinhas e, assim,
demonstrar tais particularidades e elementos culturais imateriais retomam as lembranças
dos membros da comunidade. Este acervo contribuiu para uma melhor compreensão da
rememoração que acontece diariamente nessa comunidade, como meio de manter a
própria memória social e coletiva no seu cotidiano, constituindo o sentimento de
pertencimento, assim como o reconhecimento social comunitário, ambos voltados pelas
suas tarefas sociais em torno da pesca artesanal.
Em outras palavras, em nossas pesquisas compreendemos que os membros de uma
comunidade ao compartilharem tais expressões e elementos estruturantes significativos
culturais constituiriam entre si o reconhecimento social comunitário. Tal reconhecimento
é extremamente relevante para o sentimento de pertencimento, mas também é para que a
comunidade tradicional possa sobreviver ao tempo e às adversidades. Portanto,
entendemos que autoidentificação nesta comunidade é um fator primário para que haja o
fortalecimento do sentimento de pertencimento e, consequentemente, sejam consideradas
legítimas na sociedade brasileira. Essa autoidentificação seria um primeiro passo junto ao
Ministério da Cultura para seu reconhecimento como comunidade tradicional. Para isto
se torna elemento integrador o seu modo de vida que traz a pesca artesanal como

997
estruturante, sendo compartilhada entre os membros da comunidade. ou seja, a pesca
como atividade socioeconômica, passada de geração e geração através da história oral,
assim como seus aspectos simbólicos, ritualísticos, seus costumes e tradições norteariam
as relações cotidianas e toda a estrutura dessa comunidade.

Reconhecimento social nas comunidades tradicionais em Arraial do Cabo

Segundo Berger & Luckmann (1985) o ser humano está num processo de tornar-se
humano, o qual é efetuado a partir do meio que vive. Considera esse meio como um lugar
comum etnológico, já que há inúmeras maneiras de se tornar humano, assim como, são
numerosas as culturas humanas. Ou seja, “a humanização é variável em sentido
sociocultural” (BERGER & LUCKMANN, 1985, p. 72). Para os autores, a forma
específica em que esta humanização se molda é determinada pelas condições sócio-
culturais, por isso, termos uma variedade de formações, processos sociais e identidades
sociais. Assim:
“A auto produção do homem é sempre e necessariamente um
empreendimento social. Os homens em conjunto produzem um ambiente
humano, com a totalidade de suas formações sócio-culturais e
psicológicas (...) assim como é impossível que o homem se desenvolva
como homem no isolamento, igualmente é impossível que o homem
isolado produza ambiente humano. O ser humano solitário é um ser no
nível animal (que, está claro, o homem partilha com outros animais).
Logo que observamos fenômenos especificamente humanos entram no
reino do social. A humanidade específica do homem e sua sociabilidade
estão inextricavelmente entrelaçadas” (BERGER & LUCKAMNN,
1985, 74-75)1.

Consideramos a partir dessa afirmação o desenvolvimento do processo de


socialização feito pelas instituições sociais. Tais instituições são extremamente
importantes para formar o indivíduo para viver na sociedade. Logo, sabemos que somos
definidos por uma série de condições e elementos que são resultados da constituição da
vida social e seus sistemas políticos, econômicos, culturais. Como já foi discutido, os
papéis das instituições diante da sociedade determinam toda estrutura da organização da
sociedade e, ainda uma forma de conceber o estar na sociedade. Por conseguinte, a
atividade humana está numa realidade objetiva determinada pelo mundo institucional.

1
Sic em BEGER & LUCKMANN no seu livro A construção social da realidade (1985).

998
Assim sendo, o produto de tal atividade quando exteriorizado ganha o meio social e passa
a existir na composição de uma relação direta entre o ser humano, o produtor e o meio
social. Somos produtos da sociedade da mesma forma que interagimos com a mesma.
Além disso, somos protagonistas na dinâmica vivenciada enquanto seres sociais.
Porém, sabemos que espaços e tempos (períodos históricos) diferentes favoreceram um
mosaico de comunidades locais2, as quais são identificadas as especificidades e as
particularidades, os tipos de atividades específicas, como as narrativas que são
intermediadoras da formação e manutenção da memória coletiva, tradições, elementos
sócio-culturais e morais. Ou seja, quando entramos em contato com o nosso objeto de
estudo: a comunidade tradicional de pesca de Arraial do Cabo, na verdade, encontramos
um grande acervo de universos simbólicos, que, são definidores e representativos para a
comunidade. Isso significa dizer que estas especificidades culturais tanto materiais quanto
imateriais, contribuem para a existência da diversidade e diferentes dimensões de
reconhecimento social, entre elas a dimensão comunitária e societária no território
nacional.
É perceptível que para isso, para que haja progressivamente a existência do
reconhecimento social nas distintas dimensões, há o processo de socialização. Este é
fundamental para a existência do sentimento de pertencimento entre os membros, nesse
lugar etnológico no seu dia-a-dia. Nossa afirmação é determinada por entendermos que
há uma relação mediada pela subjetividade na primeira dimensão (afetiva) e pela
constituição de regras e normas que são compartilhadas nesse espaço pelo grupo,
ordenando, então, a própria realidade social:
“Objetos diferentes apresentam se à consciência como constituintes de
diferentes esferas da realidade. Reconheço meus semelhantes com os
quais tenho de tratar no curso da vida diária (...) entre as múltiplas
realidades há uma que se apresenta sendo a realidade por excelência. É a
realidade da vida cotidiana (...) apreendo a realidade da vida diária como
uma realidade ordenada” ((BERGER & LUCKAMNN, 1985, p.38).

Nesse aspecto, pensamos sobre a importância do sentimento de pertencimento e a


relação com o reconhecimento social produzido com a apreensão pelos indivíduos de
símbolos, tradições, atividades, valores que são compartilhados no cotidiano nas

2
Termo utilizado por Zygmunt Bauman em seu livro Comunidades: a busca por segurança no mundo atual
(2003, p. 114).

999
comunidades. Essa necessidade de sentir-se pertencente a grupos sociais, se dá desde o
primeiro momento que encarnamos o estar no mundo, tendo nas relações afetivas,
familiares um acolhimento o que caracteriza a dimensão afetiva (RIBEIRO, 2016).
É uma relação de se reconhecer, reconhecer o outro e ser reconhecido. É sentir-se
pertencente que faz com que diferentes questões, atividades e valores adquiram sentido e
representatividade na vida cotidiana. Traz uma teia de significações e objetivações que
intermediará as relações sociais estabelecidas no dia-a-dia da comunidade tradicional de
pesca de Arraial do Cabo. Isto é, o fato de reconhecer e ser reconhecido propicia as formas
elementares de convívio intersubjetivo3 e seus laços sociais, num contexto que é coerente
para aqueles que participam, constituindo os sentidos da consciência de si e da identidade
cultural individual e coletiva.
“A vida cotidiana apresenta-se como uma realidade interpretada pelos
homens e subjetivamente dotada de sentido para eles na medida em que
forma um mundo coerente (...) o mundo da vida cotidiana não somente
dotada de sentido que imprimem as suas vidas, mas é um mundo que se
origina no pensamento e nas ações dos homens comuns” (...) (BERGER
& LUCKAMNN, 1985, p.35-36).

O fato é que o processo de socialização em geral acontece de geração para geração


e entre as gerações, desde a primeira infância, efetuando nos indivíduos uma
interiorização de normas de conduta, valores que regem as ações e relações sociais. Há
um preparo do indivíduo a partir de sua realidade, na vivencia do seu cotidiano para estar,
interagir e viver em comunidade o que favorece a definição da segunda dimensão do
reconhecimento social: direito e a dimensão comunitária. Desse modo a historicidade, a
narrativa são meios para que estes membros possam constituir o sentimento de pertença
e, assim, fortalecer os laços comunitários que são definidores da própria existência e
sobrevivência da comunidade de pesca. Tais laços vêm sendo reproduzidos e
ressignificados, mas mantém algo intrínseco: a pesca artesanal e a definição de funções
que estão em torno da pesca artesanal.
Assim sendo, quando esta comunidade se organiza por meio dos valores e
particularidades passadas de geração em geração, envolvida pela território, o meio
ambiente, o uso de determinados instrumentos e ferramentas, assim como histórias
trazidas no seu dia a dia com a memória social e coletiva, podemos encontrar na dimensão

3
Cf in HONNETH (2009, p. 43).

1000
comunitária o respeito e autorrespeito como bens primários fundamentais, além das
normas e regras para a manutenção do convívio social entre os membros da comunidade
tradicional.
Isso significa dizer que, além de modos de vida, há expectativas sobre o
comportamento do outro, a partir de tais regras que são apreendidas e legitimadas pelos
sujeitos sociais nas e para interações sociais, em suas relações dialógicas no cotidiano.
Segundo Honneth (2009) essas normas interiorizadas acabam por criar as expectativas
que orientam legitimamente todos os outros membros do grupo, colaborando para o
desenvolvimento social da comunidade. Isso se deve ao fato do indivíduo aprender a se
conceber de uma maneira específica, partindo das interações da vida cotidiana.
Nesse percurso Ribeiro (2016: 394) afirma que esse processo de reconhecimento
percorre um caminho dialógico na formação da identidade humana, que de maneira geral,
compartilha elementos definidores do grupo/comunidade. Em suma, é no diálogo que
encontraremos a comunicação e possibilidades de formação humana pela socialização.
Por isso a narratividade exerce um papel primordial na dinâmica social, já que fomenta
as construções simbólicas e materiais, ao trazerem representação e significado, os quais
favorecem a existência do sentimento de pertencimento.
Dessa forma, a formação do sentimento de pertencimento é construída pelas
especificidades do próprio grupo numa teia de interrelações intermediada por histórias,
lendas, rememorações que ganham novos sentidos e significados no cotidiano da
comunidade. Isso acontece quando são compartilhadas e legitimadas pelos seus membros,
tendo o reflexo de si entre os pares. Logo, Ribeiro (2016, p. 394) afirma que “(...) o lento
e penoso caminho da luta pelo reconhecimento acontece numa complexa rede de relações
que tece o encontro concreto com o outro, com os outros, em instituições e tradições
concretas”.
Por mais que seja ressignificada, redefinida, a narrativa, ao trazer elementos
estruturantes significativos, a percepção dos atores sociais como membros da
comunidade. Em outras palavras, eles constituem a sua autoimagem e a imagem (Mead
apud HONEETH, 2009) dos demais membros havendo, então, o sentido de respeito e
autorrespeito. Sendo assim, se percebem como pares e iguais na comunidade cabista
provocando a definição dos bens primários no cotidiano e, assim, a possibilidade do

1001
princípio de justiça como equidade (RAWLS, 1997) entre os envolvidos na dimensão
comunitária.
Análise do conto: O Vigia da Praia Grande
Neste conto nos deparamos com um dos sistemas de pesca da Comunidade artesanal
de Arraial do Cabo. Sabe-se que em Arraial do Cabo há vários tipos de pesca artesanal,
no entanto, a pesca de cerco ou de arraste4 na Praia Grande é considerada uma das mais
tradicionais e envolve vários pescadores e indivíduos que estejam na Praia Grande. É um
evento em distintos momentos, mas na hora de puxar a rede, encontramos o ápice, pois
todos se esforçam e participam. Há diferentes funções desempenhadas na canoa e fora
dela, entretanto, há uma extremamente importante e respeitada por esta comunidade, a de
vigia. Segundo Damaceno (2003, p. 199):
“Na hierarquia da pesca, o vigia representa o posto superior na pesca.
Entre um e dois quilômetros de distância, ele pode visualizar um
cardume ou manta e, a partir da formação do cardume, sabe a
quantidade e a espécie do peixe. Se, por acaso, não acerta com exatidão
a quantidade, erra por dez ou quinze, quantidade irrelevante diante do
cardume de mais de oitocentos peixes, por exemplo. O vigia também
identifica o tipo de peixe e passa a informação para os pescadores da
canoa por gestos”.

O vigia seria considerado na hierarquia da pesca uma função nobre por ter a
sabedoria sobre os tipos de pescados e quantidades. Ele traduz as marés e as correntezas
para apontar para os demais pescadores na canoa onde o cardume estaria. Ele orienta os
pescadores de cima de uma pedra. Tal local fica num ponto alto no morro da Praia Grande
para que o vigia possa visualizar o cardume e poder se comunicar com os demais
pescadores através de sinais. Como foi dito, sua formação se dá pela oralidade, apreende
com os mais velhos os saberes, os conhecimentos necessários para atuar nesta tarefa
social.
A herança cultural por meio da interlocução tem dado continuidade aos saberes do
vigia e permite que este tipo de pesca ultrapasse o passado e permaneça vivo no presente,
sendo notório o orgulho daquele que pratica esta função e o respeito que lhe é dado pelos

4
Segundo Prado (2002, p. 117): “a pescaria de cerco consiste, como o nome indica, em cercar o cardume
de peixes na beira da praia. Com este objetivo, são usadas canoas de herança indígena feitas de um só
tronco e medindo de seis e 12 metros de comprimento, redes de 180 braças e um conjunto de nove
pescadores, que recebem o título de companheiros, assumindo as seguintes posições: mestre, vigia,
proeiro, contraproa, contra-ré, cabeiro, corticeiro e chumbeiro”.

1002
demais pescadores. Neste contexto, compreendemos a relação do reconhecimento social
e a importância do respeito e autorrespeito entre os membros da pesca artesanal de cerco
efetuada na Praia Grande. Nesse âmbito, o grande protagonista neste conto é o vigia, por
orientar a pesca e difundir seus saberes apreendidos pela herança cultural. Por isso, esse
conto é uma demonstração da grande representatividade da pesca artesanal na
comunidade cabista e, para muitos, seria apenas “história de pescador” de um vigia da
Praia Grande:

O vigia da Praia Grande

A grande movimentação que o pescador fazia em cima do morro, ao lado de uma guarita,
era notada por um mineiro que, com olhar fixo, observava aquela cena sem nada entender.
A princípio, pensou que fosse alguém que estivesse fora de suas faculdades mentais. Com
semblante pasmo, espiava aquela cena com muita desconfiança, enquanto se banhava nas
águas límpidas e cristalinas da Praia Grande. O sol estava brilhante e sem nuvens no céu.
Aquele homem simples, em cima da colina, com um pedaço de pano branco na mão,
agitava-se de um lado para o outro com gritos estridentes e acenava para alguém embaixo
dele, com estranhos sinais. O mineiro ficou perplexo e resolveu caminhar morro acima
para entender melhor aquela cena tão curiosa.
Ao chegar ao topo do morro, encontrou o vigia com os últimos acenos e viu que, lá
embaixo, no meio das águas claras do mar, uma canoa havia largado a sua rede. O mineiro
se aproximou e viu que esse homem, que tanto acenava feito doido, com um pedaço de
pano na mão, estava ofegante, ao lado de uma pedra, dentro de uma simples casinha.
- oi! Bom dia senhor pescador. O senhor está se sentindo bem, hoje?
- Perfeitamente bem, meu caro turista. Obrigado pela preocupação!
- Por que o Senhor fica feito louco batendo com o pano branco pra lá e pra cá?
- É um jeito próprio da pescaria de Arraial do Cabo – eu indico para meus colegas que
estão lá embaixo dentro da canoa, sobre a movimentação e direção do cardume, e deixo
o peixe exatamente no centro da rede. Se um amigo turista olhar o mar na direção daquele
primeiro “pau” que fica a três milhas daqui, verá um cardume que se aproxima
lentamente, e nós devemos cercá-lo em breve.

1003
O mineiro coçou a barba desacreditando do pobre pescador. Olhou o mar e não viu nada
e tornou a pedir a localização do cardume. O vigia, estendendo o braço indicou o local. E
novamente, o turista nada viu e insistia na localização do ponto onde o peixe se
encontrava.
- É por fora daquela arrebentação de mar que a gaivota acabou de passar! Indicou o
pescador. Se o senhor observar atentamente verá a mancha que ora se desloca para fora
da arrebentação, ora se aproxima da praia, mas segue em direção única que é vir direto
ao canto onde estamos pescando.
- Ai meu Deus do céu, não vejo nada. O senhor tem certeza que está vendo um cardume
vindo em nossa direção? Isso não é embromação? Desconfiou o mineiro.
Mais uma vez o vigia olhou fixamente aquele ponto... Analisou o tamanho da mancha, a
evolução e velocidade do cardume, e disse:
- Tudo indica, seu turista, que são sessenta peixes dos grandes; para ser exato ao senhor
são cavalas, qualidade muito comum na Praia Grande. Isso vai nos render uns bons
trocados porque é peixe de carne nobre e de bom mercado.
-Louvado seja meu Bom Jesus, que esse homem está caçoando de mim! Por acaso está
querendo me enganar, seu pescador? Aí o senhor me desagrada! Desesperou-se o mineiro.
Primeiro o senhor me diz da movimentação do cardume, da quantidade de peixe que está
na água; se é grande ou pequeno, e por último a qualidade? Pelo amor de Deus, meu
senhor, pega mais leve uai!
O visitante resolveu ficar mais um pouco por ali para averiguar aquela situação, e sua
curiosidade se aguçava a cada minuto. É impossível ao homem, sem tecnologia alguma,
descobrir algo desconhecido à razão humana.
Lá embaixo, a canoa já com a rede embarcada, preparava-se para uma nova atividade.
De repente, o vigia novamente tomado pelo desespero. De pé, com um pano branco na
mão, corria, novamente, de um lado para o outro feito louco.
Gesticulava daqui, gritava dali, batia o pano para o lado esquerdo, ora para frente, ora
para o lado direito e, incansavelmente, acenava para a canoa que, no mar procedia ao
cerco com grande rapidez, segundo seu comando.
- pronto o cardume está no meio da rede, gritou o vigia com ar fatigado.
- Aonde? Eu não vejo nada! Falou o mineiro.

1004
- É aquela mancha que está no meio da rede moço. Eu não disse? É cavala grande e deve
ter sessenta peixes, como eu havia afirmado.
O mineiro mais uma vez coçou os poucos cabelos de sua cabeça, e meio incrédulo, disse
de si para consigo.
- Eu vou descer daqui porque tenho certeza que esse pescador biruta está caçoando de
mim! E desceu morro abaixo.
Na praia, a rede chegava à areia, e os tripulantes da embarcação trabalhavam risonhos
ajudados pelos turistas que visitavam a belíssima praia grande.
O mineiro curioso chegou devagar. Com as mãos para trás e perguntou a um pescador:
- Moço, o que aí no lance?
-Cavala, seu turista; só cavala!
O mineiro se assustou e tornou a inquirir:
- Quantos peixes são?
- Cinquenta e nove peixes grandes e somente um pequeno.
O mineiro sentiu frio na espinha dorsal.
- Nossa, uai! Não é que aquele doido estava certo! Não vou contar em Minas nada do que
eu vi aqui, senão, vão dizer que o louco sou eu!
(PEREIRA, 2013, p.71-76)

Assim como os demais tipos de pescas artesanais nos diferentes espaços e praias de
Arraial do Cabo, a de cerco pode ser compreendida pela relação direta entre a experiência
compartilhada, a territoriedade, a ancestralidade, o meio ambiente, a observação. Há a
produção de instrumentos, de tarefas e funções sociais, de bens materiais e de saberes que
são passados de geração em geração, como podemos perceber na construção da narrativa
“O Vigia da praia grande”. Entre os saberes produzidos, a linguagem de sinais, usada pelo
vigia como forma de comunicação com os demais pescadores na canoa, norteia a pesca
como se evidencia:
Ao chegar ao topo do morro, encontrou o vigia com os últimos acenos
e viu que, lá embaixo, no meio das águas claras do mar, uma canoa
havia largado a sua rede. O mineiro se aproximou e viu que esse homem
que tanto acenava feito doido, com um pedaço de pano na mão, estava
ofegante, ao lado de uma pedra, dentro de uma simples casinha
(PEREIRA, 2013, p. 71-72).
De repente, o vigia novamente tomado pelo desespero. De pé, com um
pano branco na mão, corria, novamente, de um lado para o outro feito

1005
louco. Gesticulava daqui, gritava dali, batia o pano para o lado
esquerdo, ora para frente, ora para o lado direito e, incansavelmente,
acenava para a canoa que, no mar procedia ao cerco com grande
rapidez, segundo seu comando (PEREIRA, 2013, p.74).

Essa linguagem continua sendo uma ferramenta comunicativa específica dessa


comunidade para a realização da pesca de cerco ou de arraste. Por outro lado, provoca um
estranhamento e deslumbramento para aquele que vê da areia da praia. Cidade marcada
pelo turismo ambiental é muito comum estar repleta de turistas que vão para lá buscando
a beleza de suas praias. Logo, aqueles que não conhecem as particularidades culturais e
saberes, principalmente, no que diz respeito à pesca artesanal de cerco/arraste, serão
impactados com suas formas de linguagem e sabedoria:
A grande movimentação que o pescador fazia em cima do morro, ao
lado de uma guarita, era notada por um mineiro que, com olhar fixo,
observava aquela cena sem nada entender. A princípio, pensou que
fosse alguém que estivesse fora de suas faculdades mentais. Com
semblante pasmo, espiava aquela cena com muita desconfiança,
enquanto se banhava nas águas límpidas e cristalinas da Praia Grande.
Aquele homem simples, em cima da colina, com um pedaço de pano
branco na mão, agitava-se de um lado para o outro com gritos
estridentes e acenava para alguém embaixo dele, com estranhos sinais.
O mineiro ficou perplexo e resolveu caminhar morro acima para
entender melhor àquela cena tão curiosa.
Nossa, uai! Não é que aquele doido estava certo! Não vou contar em
Minas nada do que eu vi aqui, senão, vão dizer que o louco sou eu!
(PEREIRA, 2013, p. 71/76).

É evidenciada a relação entre a constituição da memória social e coletiva e


manutenção da pesca artesanal nessa região e suas tradições pela oralidade e, assim, o
aprendizado do vigia desde as questões ambientais como tipo de peixe e quantidade.
Nesse conto, encontramos um exemplo do orgulho da profissão e como este
conhecimento tem sido um dos pilares da pesca de arraste, o de cerco e,
consequentemente, enfatizando o papel do vigia presente na sequência dialógica:
É um jeito próprio da pescaria de Arraial do Cabo – eu indico para meus
colegas que estão lá embaixo dentro da canoa, sobre a movimentação e
direção do cardume, e deixo o peixe exatamente no centro da rede. Se
um amigo turista olhar o mar na direção daquele primeiro “pau” que
fica a três milhas daqui, verá um cardume que se aproxima lentamente,
e nós devemos cercá-lo em breve.
Tudo indica, seu turista, que são sessenta peixes dos grandes; para ser
exato ao senhor são cavalas, qualidade muito comum na Praia Grande.
Isso vai nos render uns bons trocados porque é peixe de carne nobre e
de bom mercado (PEREIRA, 2013, p.73).

1006
Por mais que existam diversos modos de formar o indivíduo, é fato que nas
sociedades tradicionais o uso dos saberes a partir da tradição oral entre os seus membros
seja um dos meios privilegiados ao longo da socialização, passando a herança cultural
formada pela sua historicidade. Portanto, os saberes e conhecimentos espontâneos, assim
como as tradições dão continuidade pela apropriação e significação, ainda que sejam
redefinidos diante das adversidades e desafios encontrados no cotidiano. Essas tradições
são muito específicas na vila de pescadores artesanais cabistas e proporcionam a
constituição da sua identidade cultural pela definição das tarefas, funções sociais e
saberes.
Partindo dos pressupostos de Prado (2002), o que se evidencia nesta comunidade
é a redefinição da identidade cultural. Sabe-se que inicialmente ser cabista seria ser
pescador. Assim a definição de pescador tradicional de Arraial do Cabo apresentava-se a
partir da naturalidade, ou seja, nascido em Arraial do Cabo. Entretanto, com as dinâmicas
sociais ocasionadas pela migração e instalação da Companhia Nacional de Álcalis, houve
uma modificação nessa concepção. Há o estabelecimento de que pescador tradicional
seria aquele que exerce a profissão, independentemente de ser nascido ou não em Arraial
do Cabo, deveria ter competência e saberes para a prática da profissão, além de viver em
Arraial do Cabo no mínimo 10 anos. Desse modo, Prado (2002, p.130) nos diz que:
O vínculo com a tradição não tem nenhuma relação com o fato de ser
ou não nativo, mas de estar inserido dentro do modo de vida local e de
saber pescar, ou melhor ainda, de viver da pesca. O tradicional,
aparentemente, toma feições do ofício de pescador, de modo que
mesmo um migrante não sendo um cabista nato, o fato de ele exercer
uma profissão que se constitui como a principal, dentro do que foi
explicitado como base da economia tradicional e obter o
reconhecimento coletivo deste fato, acaba por determinar que ele possa
ser considerado um profissional tradicional.

Parece-nos evidente que há uma modificação do que é considerado ser pescador


tradicional em Arraial do Cabo. Mas, no entanto, ao incorporar os novos sujeitos sociais
que no dia a dia apreenderam suas tradições e saberes, há a redefinição do próprio
reconhecimento social na dimensão comunitária. Estes passam a ser reconhecidos como
pescadores tradicionais e, por isso, merecedores desses saberes que norteiam a pesca
artesanal. As particularidades culturais foram e são construídas a partir da relação com a
natureza, com o ofício de pescador e suas funções, apreendidos pela socialização. A

1007
dinâmica social entre os membros da comunidade pesqueira artesanal redefine quem é
esse pescador. O ofício de ser pescador e as distintas funções que envolvem a pesca são
mediados na interação social, contendo, então, os elementos estruturantes significativos.
Estes elementos são considerados como um conjunto de conteúdo recebido por um grupo
geracional e que no seu dia a dia foi significado e/ou ressignificado obtendo, então,
representação para os membros da comunidade.
Prado (2002, p. 131), ao analisar as tradições da comunidade pesqueira de Arraial
do Cabo, ressalta que: “A tradição, aqui, serve para reformular o passado, atualizar o que
dele é relevante”. Por conseguinte, entendemos que os saberes do vigia foram constituídos
pela apropriação da relação do homem com o meio ambiente. Além disso, os saberes e
conhecimentos representam o respeito à hierarquia da pesca artesanal.
Nesse aspecto, a constituição da memória social e coletiva, seja memória- hábito
ou memória-lembrança se encontra no meio social havendo um fluxo de informações
numa relação dialógica entre passado e presente. Isso pode ser perceptível no conto na
sequência dialogal retomada pelo vigia e pelo turista. Isso se deve às vozes da narrativa
que articulam suas sequências descritivas, explicativas e argumentativas e, ainda, a
sequência dialógica e na constituição do próprio conto. Portanto, as particularidades
comungadas pela comunidade estarão atreladas às tradições e suas reinvenções e são
preenchidas de significados pelos membros da comunidade no presente, o que favorece
entre os membros o reconhecimento social na dimensão comunitária e, assim, o
fortalecimento do sentimento de pertencimento, contribuindo para edificação do trabalho
cooperativo entre os envolvidos na pesca artesanal, definindo a relação de
companheirismo. Isso possibilita a constituição dos bens primários de Rawls (1997) e do
fortalecimento da identidade cultural de resistência.
Conclusão
É entendido que a articulação entre os membros da comunidade tradicional
pesqueira é favorecida pela narratividade e a autoidentificação ao seu modo de vida, que
é compartilhado na vida cotidiana. Desse modo encontramos além do primeiro momento
do reconhecimento social dito como afetivo, a constituição do reconhecimento entre os
membros como pares, definindo então a presença do reconhecimento comunitário. Este,
por sua vez, tem como eixo norteador a articulação dos membros da comunidade
enquanto pares por meio da autoidentificação. A autodefinição, então, possibilita a

1008
manutenção da sua memória coletiva viva, a qual pode ser ressignificada diante da
dinâmica social, e que é representativa entre eles no cotidiano da comunidade.
É desse modo que compreendemos a relação direta que existe entre tais contos
narrados, história e lendas contadas e recontadas como um dos pilares fundamentais da
socialização dos membros dessa comunidade. Tais histórias se transformaram em
experiências de vida na comunidade. Isso possibilita à comunidade o reconhecimento
social na dimensão comunitária, ultrapassando os conflitos, permitindo a construção de
sua identidade cultural de resistência e de projetos.
É inegável que, por meio da existência de tais narrativas, haja sequências
descritivas, argumentativas e explicativas. Desse modo, tais sequências da narrativa
permitem a redescoberta dessa comunidade tradicional pesqueira. Isso se deve ao fato das
narrativas serem fontes de conhecimento que incorporam um sentido amplo dos aspectos
culturais, territoriais e cotidianos. Compreendemos que tais narrativas demonstram
particularidades culturais da pequena vila de pescadores artesanais de Arraial do Cabo. É
perceptível que enquanto comunidades tradicionais, as especificidades encontradas em
suas histórias representam o seu modo de vida, se diferenciando das outras comunidades
tradicionais e grupos sociais.
Referência
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1009
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1010
UMA CASA DE MEMÓRIAS: UMA LEITURA DE O ÚLTIMO KIBUTZ,

DE SABRINA ABREU

André de Souza Pinto (UFMG)12

Resumo: Em O último kibutz, de Sabrina Abreu, narra-se a história de Sofia, uma jovem
brasileira que se muda para um kibutz e encontra em Simon, um velho judeu israelense, um de
seus principais interlocutores com a cultura judaica, revisitando, nessa casa fronteiriça, uma
memória que é reinventada e reescrita na narrativa. Em meio ao terreno árido e inóspito, tem-se,
no romance, a transformação do kibutz em uma comunidade próspera, espaço de proteção e
acolhimento, que, a partir de seus moradores, constitui-se como um verdadeiro cosmos,
conforme Gaston Bachelard, abrangendo, nesse passado e presente enunciativo, uma
multiplicidade de histórias que são narradas pelo fundador e pelos moradores temporários.
Palavras-chave: Casa; Kibutz; Memória.

O kibutz não tem fim, e as recordações das


pessoas que aqui tenham vivido são
próprias, distintas umas das outras. Mais
cedo ou mais tarde, não importa quem
sejamos, não importa como o façamos, não
importa que mudanças sejam operadas em
nós ou nele, a ele acabaremos regressando.
(Sabrina Abreu)

Em O último kibutz, de Sabrina Abreu, romance publicado em 2017, narra-se a


história de Sofia, que, após abandonar o emprego em São Paulo, se muda para um
kibutz, uma fazenda comunal no norte de Israel, buscando, com isso, refazer os passos
do pai, que fora voluntário em sua juventude.
A figura da casa, que perpassa o imaginário humano desde a criação, conforme
salienta Joseph Rykwert, em A casa de Adão no paraíso: a idéia da cabana primitiva na
história da arquitetura, torna-se, então, necessária para se pensar não somente o
surgimento desse ambiente de refúgio e proteção (CHEVALIER; GHEERBRANT,

1
Graduado em Letras – Licenciatura em Língua Portuguesa (UFMG), Mestre em Literaturas Modernas e
Contemporâneas (UFMG) e Doutorando em Letras: Estudos Literários (UFMG). Contato:
andresouzapintto@gmail.com.
2
Trabalho realizado com o auxílio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES).

1011
1998), mas, principalmente, na narrativa de Abreu, a gênese de um povo e de um país
que se constrói nesse espaço limítrofe.
A epígrafe do romance, uma frase de Susan Sontag, “Cada geração tem que
reinventar a espiritualidade” (ABREU, 2017, p. 7), servirá como chave de leitura dessa
casa de memórias múltiplas, que são revisitadas, reinventadas e reescritas por Sofia,
que, em seu diário, enlaça fios e retalhos à trama narrativa do kibutz, contrapondo uma
tradição judaica aos fragmentos e referências trazidas pelos jovens voluntários.
Dentre as várias vozes que compõem o kibutz, a narradora encontrará em Simon,
um velho judeu israelense e um dos fundadores dessa comunidade, um de seus
principais interlocutores com a memória judaica, revirando, por intermédio dos diálogos
trocados pela voluntária e pelo pioneiro, as camadas de pedras e terra que alicerçam o
surgimento dessa casa fronteiriça, assim como compõe o discurso histórico de formação
do Estado de Israel.
A reinvenção do kibutz se realiza, portanto, na dissonância entre a história
relatada por Simon e a narrativa de Sofia, que, na companhia dos outros jovens
estrangeiros, intenta “recriar” uma vida nesse espaço fundacional, ao mesmo tempo em
que sobrepõem a modernidade ao modo de vida dos kibutznikim.
Em meio ao terreno árido e desolado, um espaço de angústia habitado pelos
primeiros pioneiros, “homens e mulheres [que] camuflavam-se perfeitamente ao
cenário” (ABREU, 2017, p. 8) e que encontraram “um monte de pedras. [Que] [...] não
estavam apenas sobre o solo, mas embaixo dele também, em quantas camadas se fosse
possível chegar” (ABREU, 2017, p. 8), tem-se a transformação do kibutz em uma
comunidade próspera, na qual sessenta “anos depois, o cenário desolado deu lugar a
plantações de maçãs, pêssegos, kiwis e, para orgulho geral, até cerejas. Diante dos
pomares, mesmo os mais céticos gostavam de recitar uma profecia bíblica segundo a
qual o deserto iria florescer” (ABREU, 2017, p. 9), assinalando, pois, a importância
desse espaço, cujo “passado inóspito apresenta-se [...], no presente, como uma história
de vitórias de jovens, homens e mulheres, sobre condições que lhes são adversas”
(NASCIMENTO, 2019, p. 26).
Contudo, a seca que marca a gênese desse lugar, conforme os “arbustos de verde
pálido que se via ao longe eram um atestado do quanto a vegetação sofria pela falta da

1012
água” (ABREU, 2017, p. 8), está entranhada nos primeiros moradores dessa casa
fronteiriça, uma vez que, segundo o pioneiro,
os nativos do local [...] eram como o chão debaixo de seus pés: duros. E não
importava se tinham ascendência russa, ucraniana ou húngara, se seus
antepassados vinham do Egito, do Iêmen ou do Irã; de algum jeito, a pele de
todos havia sido impregnada pelo tom marrom daquele descampado na curva
do fim do mundo, de frente para o Líbano. Uma conseqüência da lida
debaixo do sol (ABREU, 2017, p. 8).
Assim, nos confins desse espaço desértico, no qual o ambiente está amalgamado aos
sujeitos que ali vivem, tem-se, a partir da criação dessa morada comum, uma “visão
romântica [...] dos últimos milhares de anos dos antepassados de todos [...] [os
pioneiros]” (ABREU, 2017, p. 9), cujo aspecto fundamental seria a existência de um
“país que não os rejeitaria” (ABREU, 2017, p. 9).
Na narrativa de Abreu, a ida de Sofia para o kibutz coincide com a morte de
Yuval, um pioneiro da comunidade, e, assim, é a partir do fim, isto é, da morte, que se
inicia a narrativa da voluntária, pois, segundo o narrador, chegar
num local e ser imediatamente convidada para ir a um enterro poderia parecer
mau agouro para tanta gente. Mas Sofia viu nisso “uma primeira
oportunidade de observar como as pessoas vivem no kibutz. E como
morrem”. (ABREU, 2017, p. 10)
Se o princípio do relato de Sofia se dá com a morte, o que resta para narrar? Para os
vivos, no romance de Abreu, sobram às memórias que permeiam a casa, uma
multiplicidade de histórias, marcas de um passado e de um presente enunciativo, que
são narradas tanto pelo fundador quanto pelos moradores temporários, tornando o
kibutz um cenário para os conflitos entre os voluntários e palco para que se faça a
reencenação de uma memória histórica.
Para Lyslei Nascimento (2019, p. 26), um
pomar materializado, como qualquer Éden, não está isento de conflitos,
diversidades e rearranjos, necessários ao crescimento e ao amadurecimento
pessoal e coletivo tanto dos jovens, oriundos dos mais variados lugares, que
ali buscam identidade e memória, quanto dos velhos pioneiros, cujas histórias
parecem, no entanto, ser marcadas por um fim, até certo ponto, nostálgico.
Sendo assim, o kibutz ultrapassa a definição inicial desse espaço acolhedor e
“tendencialmente pacificador e regenerador” (BUESCU, 1999, p. 27), pois, segundo
Gaston Bachelard (2008, p. 62), a “casa vivida não é uma caixa inerte. O espaço
habitado transcende o espaço geométrico” e, assim, no romance, alicerçada em um
relato memorialístico e fundacional, no qual o texto literário se justapõe ao discurso
histórico engendrado na ficção, a casa, física e metafórica, conta, por meio de seus

1013
cômodos, seus objetos e, principalmente, por intermédio dos seus moradores, a
formação desse espaço fronteiriço.
O diálogo entre Sofia e Simon, ao perpassar todo o romance, é, na narrativa, o
eixo que conduzirá a retomada dessa memória judaica, que se dará, não só pelas
impressões da jovem brasileira, mas, também, por intermédio da história narrada pelo
pioneiro, responsável, ao lado de Rafael, outro voluntário brasileiro, por contrapor a
visão romântica de Sofia a uma possível realidade judaica.
Para Paul Zumthor (1993, p. 19), “quando um poeta ou seu intérprete canta ou
recita (seja o texto improvisado, seja memorizado), sua voz, por si só, lhe confere
autoridade”, um poder que é, no romance, assumido por Simon, que, ao contar histórias
a respeito da fundação do kibutz, compartilha essa memória coletiva da fazenda,
evidenciando, às vezes, um olhar e um agir subversivo acerca das tradições judaicas,
como a não observância do Shabat.
Segundo Simon, ao retomar a figura de Yuval, falar sobre o amigo era “como se
ao relembrar os sonhos e os feitos [dele] [...], pudesse trazê-lo de volta” (ABREU, 2017,
p. 60), “um bom motivo para [...] continuar vivendo, pelo menos, por mais um tempo,
apesar de todas as dores de intensidades variadas que era obrigado a carregar” (ABREU,
2017, p. 97), sinalizando, assim, nesse discurso nostálgico, que marca a finitude dessa
memória, a existência de um velho rabugento, como Sofia irá retratá-lo – episódio que o
alegrará, uma vez que, segundo ele, a jovem estaria
virando uma perfeita israelense, dizendo palavras diretas, sem medo de se
posicionar. [Contudo], não uma judia, Deus a livre, pois a história mostra que
há muitas desvantagens em ser judia. Mas israelense, com certeza. (ABREU,
2017, p. 93)
Assim, se ouvir “uma boa história é algo pelo que vale a pena esperar nesta vida”
(ABREU, 2017, p. 47), conforme afiança o narrador do romance, Sofia se mostra grata
ao velho judeu por evocar as memórias da comunidade, trazendo, para o presente
enunciativo, o espaço árido e desolado do kibutz amalgamado ao sonho de construção
dessa casa.
Desse modo, o kibutz, “uma casa grande” (ABREU, 2017, p. 15), segundo o
pioneiro, um espaço miniaturizado daquilo que seria Israel, incluindo o dinheiro de
brinquedo, usado pelos voluntários em suas compras na comunidade, “torna-se o
mundo” (BUESCU, 1999, p. 29), isto é, “outra dimensão de mundo, [...] outra escala,
que “outra forma de mundo – ou melhor, [...] outra dimensão de mundo, [...] outra

1014
escala” (BUESCU, 1999, p. 27)”, que é regido por regras próprias e pelo caráter onírico,
ainda que já realizado, de construção desse projeto coletivo de igualdade.
Em uma de suas memórias, Simon afirma:
O meu projeto de vida era fazer com que o país continuasse existindo por
mais um ano, depois outro ano, e outro e mais um. Quando Israel completou
a primeira década, dançamos no pátio em frente de onde começava a ser
construído o heder ohel que temos até hoje. Foi uma emoção ver que, apesar
de todas as vicissitudes, tínhamos conseguido. Os voluntários que chegaram,
logo depois de 1967, queriam nos ajudar nessa tarefa e conhecer uma forma
de vida mais igualitária. Se era possível dentro do kibutz, talvez fosse
possível reproduzir pelo mundo todo um modelo menos desigual. Eram
projetos coletivos. (ABREU, 2017, p. 81)
Assim, para o pioneiro, a manutenção do espaço habitado consistia no trabalho de
fundação do Estado de Israel, com base nesse movimento em que se estabelecia um
modelo social mais igualitário, no qual uma mistura
bem inusitada [de] americanos e australianos vivendo numa mesma
comunidade, junto a europeus do Leste e do Oeste, [e, agora, brasileiros]
[que] tinham em comum o fato de serem judeus, o que não é pouca coisa,
mas nunca é o suficiente (ABREU, 2017, p. 61),
tinha a sua sobrevivência garantida, pois, segundo o narrador, “eles estavam cultivando
um novo país. Dispostos a se sacrificar por isso” (ABREU, 2017, p. 61) e, desse modo,
o kibutz pôde perseverar, ainda que marcado pelas inúmeras transformações trazidas
pelo tempo e pela globalização, algumas em decorrência de “uma grave crise financeira
[que] fez os kibutzim reavaliarem se era recompensador continuar com esse estilo de
vida. [...] [deixando] de aceitar voluntários” (ABREU, 2017, p. 29).
Além disso, no romance, das várias narrativas trazidas pelos voluntários e
relatadas em seu diário, Sofia irá narrar a história de Ori, “filho de membros [do
kibutz]” (ABREU, 2017, p. 43), que, por intermédio de “um grupo de jovens indianos
totalmente ocidentalizados” (ABREU, 2017, p. 58), sujeitos nascidos “em pátrias tão
diferentes, [mas que] tinham os mesmos interesses e o mesmo tipo de humor que ele”
(ABREU, 2017, p. 58), decide “abandonar as armas” (ABREU, 2017, p. 58), uma vez
que se “indianos eram seus irmãos, se até as pedras e os riachos eram, como não seriam
também os vizinhos árabes?” (ABREU, 2017, p. 58).
De acordo com a narradora, ao abandonar a farda, Ori se indispõe com o kibutz e,
não podendo mais cuidar das plantações na comunidade, se exila desse ambiente,
tornando-se, assim, no âmbito da narrativa, uma referência ao judeu errante, uma vez
que, para ele, “para onde quer que fosse, no fim das contas, estaria sempre de passagem
(ABREU, 2017, p. 43).

1015
Portanto, a reinvenção da espiritualidade proposta pela epígrafe de Sontag se
realiza, por exemplo, em Sofia, que encontra um modo de vida distinto daquele
supostamente estável vivido em São Paulo, ou em Ori, que decide cuidar de Israel de
outra forma, abandonando, talvez, as velhas tradições nesse espaço marcado pelas
guerras e abraçando, ainda, um novo olhar sobre os vizinhos árabes.
No romance de Abreu, o presente narrativo de Sofia e um passado relatado pelo
pai, um dos motivos iniciais para ser voluntária, incluindo o kibutz frequentado por ele,
não correspondem. Todavia, como as nuances que permeiam essa casa grande, a
memória ganha forma na narrativa do kibutz, retratando, além da fundação dessa casa
fronteiriça, um modo de vida perpassado pela tradição judaica.
Em O último kibutz, a dureza do deserto, habitado e transmutado em uma casa
comum, permeada por homens e mulheres de várias nacionalidades, uma escala menor
de um projeto coletivo de formação de um Estado, é entrelaçada aos sonhos e memórias
de seus personagens, contendo, assim, em sua trama, a contraposição de gerações e um
quadro nítido desse kibutz erigido sobre lembranças revisitadas e reinventadas na
narrativa.

Referências

ABREU, Sabrina. Meu Israel – viagem ao país onde o céu e a terra se encontram. Belo
Horizonte: Leitura, 2009.

ABREU, Sabrina. O último kibutz. Santos: Simonsen, 2017.

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São


Paulo: Martins Fontes, 2008.

BUESCU, Helena Carvalhão. A casa e a encenação do mundo: os fidalgos da casa


mourisca, de Júlio Dinis. In: ______. SILVEIRA, Jorge Fernandes de (Org). Escrever a
casa portuguesa. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos,


costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). Trad. Vera da Costa e Silva [et al.].
12. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.

NASCIMENTO, Lyslei. Reinventar plantar cerejas: o kibutz nosso de cada dia. Revista
Bras.il, n. 8, p. 26-27, fev. 2019. Disponível em:
<https://issuu.com/revistabras.il/docs/bras-il-2019-02-web>. Acesso em: 20 ago. 2019.

1016
RYKWERT, Joseph. A casa de Adão no paraíso: a ideia da cabana primitiva na história
da arquitetura. São Paulo: Perspectiva, 2003.

ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: A “literatura” medieval. Trad. Amálio Pinheiro,


Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

1017
ARQUIVO E MEMÓRIA: MOVIMENTOS DA ESCRITA DE SAMUEL RAWET
A PARTIR DO POEMA A ECLUSA, DE PAUL CELAN

Bianca Iung Bruel1

Resumo: Este trabalho investiga possíveis atividades literárias do escritor judeu-brasileiro


Samuel Rawet a partir de itens de seu acervo, doado recentemente ao Arquivo Museu de
Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. A transcrição do
poema A Eclusa, de Paul Celan, feita à mão por Rawet em papel avulso, e sua possível conexão
com a produção do texto Kadish - Oração pelos vivos das Olimpíadas de Munique formam o
corpus dessa investigação.
Palavras-chave: Samuel Rawet; Paul Celan; Arquivo Literário.

Este estudo é fruto de um artigo desenvolvido em coautoria com a Professora


Doutora Rosana Kohl Bines, do departamento de Letras da PUC-Rio. O trabalho nasce
das incursões realizadas no acervo de Samuel Rawet, doado em 2018 ao Arquivo Museu
de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro.
Em meio a documentos pessoais, correspondência, anotações, plantas, fotocópias,
recortes de jornais, manuscritos, fragmentos de textos, desenhos e esboços que
permitem remontar percursos da escrita rawetiana, os trajetos do autor, seus
questionamentos e dores mais sensíveis, uma primeira investigação debruçada nos itens
reunidos na Arquivo Museu de Literatura Brasileira revela o ávido interesse de Rawet
pela leitura acompanhada do hábito de fazer anotações. O autor transcrevia citações;
copiava poemas inteiros; selecionava versos, partes de gramáticas, trechos de
entrevistas e discursos de autores que admirava, de prefácios de livros de seu interesse.
Muitas dessas anotações foram transportadas para as epígrafes de seus livros, ou para as
suas narrativas.
Mesmo sem contar com sua biblioteca pessoal, o acervo consegue desenhar
relações entre as atividades de leitura e escrita do autor. Ao percorrer o arquivo, notam-
se papéis de diferentes tamanhos com referências de livros anotadas à mão, seja para o
propósito de aquisição ou organização de sua própria biblioteca. Estão lá também
recortes de jornais com resenhas e pequenos descritivos de obras. Há cartas
datilografadas destinadas a editoras solicitando a obtenção de listas de livros de autores

1 Integrante do Programa de Mestrado em Literatura, Cultura e Contemporaneidade (PUC-Rio). Contato:


biancaiung.bruel@gmail.com.

1018
variados; carteirinhas de bibliotecas; papéis marcados com a caligrafia de Rawet ou
datilografados, servindo como suportes para transcrições. Sua atividade de leitura
parecer estar acompanhada de gestos de escrita para selecionar, reter e fixar algo que
pudesse ser aproveitado em algum momento.
Esse processo de leitura-escrita denota uma lógica associativa relacionada ao
corpo, que empenha diferentes posturas ao ler e anotar, como descreve Roland Barthes:
“Ler é fazer o nosso corpo trabalhar ao apelo dos signos do texto, de todas as linguagens
que o atravessam” (BARTHES, 1970, p. 29). Para Barthes, há certos textos que são
apenas legíveis, há outros que fazem levantar a cabeça, ou seja, colocam o leitor em
estado de produção, num desejo de escrever na margem, o empurram para escrita. Os
materiais do arquivo parecem sugerir o tempo todo a produção de textos-leitura, aqueles
que Rawet construía enquanto levantava a cabeça ao ler.
Nessa dimensão, a leitura parece formar um importante componente no percurso
de criação para o autor. O texto-leitura pode ser compreendido como um elemento
formador do modus operandi de sua escrita, manifestado através da prática de uma
leitura produtiva, que seleciona, extrai, transcreve e desenvolve associações. Há uma
multiplicidade de vozes em seu trabalho literário que reverberam das anotações e itens
identificados no arquivo, mostrando uma atividade de leitura intensiva e atravessada.
É possível identificar esse processo na transcrição do poema A eclusa, de Paul
Celan (1920-1970). O acervo conserva a folha avulsa em que Rawet transcreveu à mão
na íntegra o texto retirado da obra Poemas (1977), com tradução de Flavio Kohte,
referência anotada pelo próprio autor em rodapé no momento de transcrição. A simples
escolha da leitura da coletânea de Celan possibilita traçar caminhos de conexão entre os
autores antes mesmo de adensar qualquer hipótese interpretativa da obra de Rawet à luz
do poema A eclusa. De forma geral, os dois autores compartilham em seus textos
experiências e temáticas que se afinam ao abordarem questões como exílio, silêncio e
impossibilidades na relação com o outro frente a situações de trauma e violência. Filhos
de pais judeus, ambos exilaram-se e viveram conflitos relacionados à identidade e a
tradições do judaísmo.

1019
Rawet aportou no Brasil em 1936, com sete anos de idade, ao lado da mãe e
irmãos. Deixou a pequena cidade de Klimontow, na Polônia, para morar no subúrbio de
Olaria, no Rio de Janeiro. Enfrentou processos de adaptação tanto com relação à
cultura local quanto à comunidade judaica ao seu redor, situações encenadas na ficção.
Em sua coletânea de estreia, Contos do Imigrante, de 1956, esse embate surge nos
textos de O profeta, Gringuinho e Judith, talvez os mais conhecidos do autor por
apresentar realidades contrastantes a partir de personagens de origem judaica, que
imersas na impossibilidade de contato com o outro e inadaptação ao que as cerca são
invadidas pelo silêncio. O ato de emudecer é construído por meio de narrativas
fragmentadas, que vagam para se compor e decompor em meio a frases descontínuas. A
língua nessa operação performatiza experiências de estranhamento, percebidas tanto na
escrita rawetiana quanto na poética de Celan.
Concebida como uma manifestação da gênese da ideia e da emoção, a língua para
Samuel Rawet (2008) produz diferentes tonalidades afetivas, vocalizando a
complexidade do ser deslocado. O português foi incorporado pelo autor sob o signo da
experiência errante, através da vivência nos subúrbios cariocas, nas andanças tempos
depois pelo Centro, Catete, Largo do Machado e Flamengo. Comum nas trajetórias de
imigrantes judeus, a incorporação de uma língua estrangeira ocorreu para o autor ao
mesmo tempo em que o ídiche, sua língua materna, estava presente nas tradições
religiosas e familiares.
Na obra de Celan, a experiência de estranhamento da língua tem raízes mais
imbricadas. Nascido em Czernowitz, cidade pertencente na época ao império Austro-
Húngaro, o ídiche, assim como para Rawet, fez parte do ambiente familiar. O idioma
nacional foi o romeno em meio ao húngaro e todas as línguas eslavas que circulavam na
região. O alemão foi a língua adotada em um período que era preponderante no contexto
cultural das comunidades judaicas do leste europeu.
Celan sobreviveu a dois anos de trabalhos forçados durante a Segunda Guerra
Mundial. Filho único, perdeu os pais no campo de concentração nazista. Refugiou-se
em Viena, onde trabalhou como tradutor. Mais tarde conseguiu fixar-se em Paris. Em
1948, adotou a nacionalidade francesa; lecionou alemão na mesma época em que

1020
publicou a maior parte de seus poemas em língua alemã. Seu embate no campo
linguístico reside na tensão em produzir poesia na língua atrelada aos traumas da guerra,
vivos em sua memória. Como escrever na língua que lhe foi opressora sem perpetuar a
opressão? A palavra surge, então, como ato de resistência nesse confronto. Na poética
de Celan, a língua opera na dinâmica de fazer desmoronar as palavras, criar um campo
de ressonância que tende ao silêncio — um silêncio audível também nos personagens
rawetianos. Berta Waldman (2004) sintetiza esse processo ao analisar autores da
literatura hebraica que escreveram no período pós-Holocausto: “Para não trair, a
linguagem precisa ser partícipe de um projeto suicida e conduzir a si própria a seus
limites mais extremos, limites que podem incluir sua total impossibilidade. Só assim é
possível estampar o horror” (WALDMAN, 2004, p. 35).
Essa operação está presente em A eclusa, poema em que a palavra toma o espaço
central. É pela palavra perdida, buscada e salva que o poema ganha força para evocar a
morte, memória e luto. O que desperta atenção inicialmente na transcrição de Rawet são
as duas palavras grifadas pelo autor: Kaddisch e Jiskor, nomes em hebraico ligados a
ritos sagrados do judaísmo, usados em preces cotidianas e em memória a falecidos.
As palavras selecionadas permitem traçar possíveis construções da escrita
rawetiana a partir de seu processo de leitura. Os nomes marcados levam a outro texto de
autoria de Rawet que repousa no arquivo: Kadish - Oração pelos vivos das Olimpíadas
de Munique, publicado em folheto do Conselho Juvenil Judaico.
No poema de Celan, Kaddish é uma palavra perdida, carrega a impossibilidade do
luto, do contato com o outro em situação de perda e dor, ao mesmo tempo que
estabelece a necessidade de se lembrar dos mortos. Ao inverter a sintaxe convencional,
Celan mostra que o resgate dessa memória parte do silêncio. A oração é solitária. Os
primeiros versos demonstram o luto em vão, o silenciamento diante da dor que não
consegue ser compartilhada. O não-dito é marcado no poema por uma linha pontilhada,
que instaura uma pausa rítmica no desenrolar dos versos. Impõe-se um tempo
meditativo ao leitor, ao mesmo instante em que se rasga horizontalmente a página,
produzindo uma visualidade interrompida. Sem o preenchimento de palavras, o vazio se
instaura.

1021
Acima deste teu
luto: nenhum
segundo céu.
……………… 2

É do sentimento de luto esvaziado que Rawet abre Kadish - Oração pelos vivos
das Olimpíadas de Munique. A palavra grifada no papel com a transcrição do poema de
Celan transporta-se para o título do texto. Assim como em A eclusa, a memória dos
mortos brutalmente assassinados no atentado terrorista que abalou os jogos Olímpicos
de 1972 não pode ser resgatada pelas vias tradicionais da oração em homenagem aos
falecidos. Se no poema de Celan o Kadish perde-se em meio ao silêncio, em Rawet ele
é deslocado para a necessidade de se rezar pelos vivos. Esse deslocamento é marcado
pela afirmação “Oro pelos vivos”, repetida ao longo do texto, produzindo um efeito
semelhante às repetições rítmicas presentes em orações religiosas.
O Kadish dirigido aos vivos repetidamente acaba por preservar a memória aos
mortos. O ato simbólico da lembrança amplifica-se quando o autor insere o nome das
vítimas do atentado em meio ao texto. Nas orações judaicas fúnebres, essa nomeação é
uma forma de conceder homenagem aos que se foram. Assim como na tradição judaica,
os nomes evocados por Rawet são inscritos como uma demonstração de respeito à
memória. A palavra nesse caso é como uma inscrição tumular. Aos vivos, pronunciar os
nomes inscritos é um sinal de que eles importam.

Oro pelos vivos de dentro para fora, em tom seco. As flores de retórica, as
figuras, as preces, o pranto, a angústia são inúteis para os mortos:

Amitzur Shapiro,
David Berger,
Joseph Romano,
Zeev Friedman,
Yakov Shringer,
Kehat Short,
Moshe Weinberg,
Yosef Gutfreud,
Eliezer Halfin,
Mark Slavin,
Andre Spitzer.3

2Retirado da transcrição de Samuel Rawet do Poema A Eclusa, de Paul Celan. Fundação Casa de Rui
Barbosa / Arquivo Museu de Literatura Brasileira / Arquivo Samuel Rawet.
3Retirado do folheto com texto Kadish - Oração pelos vivos das Olimpíadas de Munique. Fundação
Casa de Rui Barbosa / Arquivo Museu de Literatura Brasileira / Arquivo Samuel Rawet.

1022
Os textos voltam a se cruzar a partir da segunda palavra grifada por Rawet: Jiskor.
Ao final do poema de Celan, o resgate do nome Jiskor mostra como a linguagem
poética ainda pode abrir possibilidades para resguardar a lembrança aos mortos. A
eclusa, estrutura de passagens que permite deslocar algo de um lugar ao outro, é a
imagem usada nessa construção. É por meio dela que se torna possível a transposição do
luto e da memória para um local onde se possa preservá-los. Há um esforço impresso
pelo autor nessa travessia para trazer de volta, através e além da corrente, a palavra, não
a perdida (Kadisch), mas Jiskor, aquela que indica lembrança, e reforça a ideia de que
há vias possíveis para preservação da memória. O luto compartilhado está sufocado,
mas a lembrança encontra-se viva e resguardada.

Tive
de atravessar a eclusa
para re-salvar a palavra de volta
através e além da corrente salina:
Jiskor.4

No fechamento do texto de Rawet, através de um episódio bíblico, o autor resgata


a memória contida nas escrituras sagradas, e a contrasta com a construída no fluxo do
tempo presente, para indicar uma possível via de realização do luto e resguardo da
lembrança aos mortos.
Em Gênesis, Abraão recebe uma provação divina ao ser obrigado a sacrificar seu
filho Isac, obedecendo uma ordem de Deus. Em troca receberia um cordeiro. Instantes
antes do sacrifício, ao perceber a devoção de Abraão disposto a assassinar o próprio
filho, a ordem divina é retirada; a fé o salva. Ao construir a imagem de Abraão hesitante
em sua missão divina, imerso no fluxo de consciência diante da possibilidade de matar o
próprio filho, tendo por instantes a plena percepção que não o assassinaria por uma fé
inabalável, Rawet mais uma vez dirige-se aos vivos para preservar a lembrança dos
mortos. Se o ritual de luto aos mortos deslocou-se para necessidade de se rezar aos

4Retirado da transcrição de Samuel Rawet do Poema A Eclusa, de Paul Celan. Fundação Casa de Rui
Barbosa / Arquivo Museu de Literatura Brasileira / Arquivo Samuel Rawet.

1023
vivos, a lembrança (Jiskor) dos que se foram é evidenciada através de uma figura
bíblica usada para simbolizar a memória e consciência em fluxo.

Quando o patriarca primeiro seguindo uma voz ergueu a lâmina para


sacrificar o filho, ele sabia que não sacrificaria o filho, por uma fé inabalável.
Entre a lâmina erguida e o olhar para o lado, entre o filicídio e a visão do
carneiro pró-pascoal, uma fração infinitesimal de tempo. O tempo de dois
movimentos de consciência, o intervalo dos vivos. Oro por eles, por essa
intervalo, pelo fluxo de imponderáveis energias. 5

Mais do que aproximar os dois textos e autores, a transcrição de Rawet do poema


A eclusa e todo conjunto de seu acervo permitem lançar roteiros de leitura capazes de
traçar possíveis percursos de sua obra e trajeto biográfico. A tradução do poema de
Celan, selecionado e transcrito pelo autor a partir da coletânea de Flavio Kohte, foi
publicada em 1977. O atentado em Munique ocorreu em 1972. O texto de Rawet
encontrado no acervo não contém informação do período de publicação, o que leva a
diferentes roteiros hipotéticos de composição.
As datas sugerem o questionamento se Rawet teria escrito Kadish - Oração pelos
vivos das Olimpíadas de Munique antes de ler o poema em tradução ou depois. Teria
sublinhado as palavras em hebraico no texto a posteriori, reconhecendo em Celan uma
língua afim e questões que também lhe afetavam? Ou escreveu anos depois do atentado,
como uma homenagem tardia, após ter lido o poema de Celan?
Dinâmicas hipotéticas como essa podem ser percebidas em distintas leituras
traçadas através do acervo do autor, ao se investigar conexões, formas que indiquem
como os materiais que lá estão podem se comunicar entre si e se articular em vias
mútuas com a obra do autor.
É a partir dessas conexões que o arquivo estimula e convida a desenhar
cartografias de acesso ao trabalho de Rawet, a identificar possíveis afetos presentes em
sua trajetória, despertando questionamentos como o que estaria em jogo para o autor no
empenho de suas transcrições e de seus fragmentos de texto, como essas questões
passam por sua vida privada e interferem na sua forma de composição literária,
atravessada por processos de construção de escrita via leitura.

5Retirado do folheto com texto Kadish - Oração pelos vivos das Olimpíadas de Munique. Fundação
Casa de Rui Barbosa / Arquivo Museu de Literatura Brasileira / Arquivo Samuel Rawet.

1024
Sabe-se da suposta imagem do autor relatada por Fausto Cunha à Renard Perez
quando Rawet foi encontrado morto em seu apartamento em 25 de agosto de 1984, na
cidade de Sobradinho. Ao seu lado, sobre uma mesa, estavam folhas e mais folhas
empilhadas com a caligrafia do autor. Nos dias que antecederam sua morte, supõe-se
que Rawet esteve a transcrever sob a luz de velas, pois de acordo com sua irmã Clara
Rawet, não havia energia elétrica em sua residência nesse período, poemas da escritora
mexicana Sor Juana Ines de la Cruz6. Teria dado os últimos suspiros de vida copiando
versos de amor, praticando até o último instante sua leitura produtiva.

Referências:

BARTHES, Roland. O Rumor da Língua. Trad. Mario Laranjeira. São Paulo: Martins
Fontes, 2004.

BINES, Rosana K. Entre o cheder e a rua: figurações do judaico e do brasileiro na


prosa de Samuel Rawet. In:____. Identidade e Cidadania: Como se expressa o
judaísmo brasileiro. Helena Lewin (Coord.). Rio de Janeiro: Centro Edelstein de
Pesquisas Sociais, 2009.

RAWET, Samuel. In:____. Samuel Rawet: fortuna crítica em jornais e revistas.


Francisco Venceslau dos Santos (Org.). Rio de Janeiro: Editora Caetés, 2008.

WALDMAN, Berta. Linhas de Força. Escritos sobre Literatura Hebraica. São


Paulo: Humanitas, 2004.

6 Episódio descrito por Rosana Kohl Bines no artigo Entre o cheder e a rua: figurações do judaico e do
brasileiro na prosa de Samuel Rawet.

1025
NAS TERRAS DO CHACAL: UM (RE)ENCONTRO COM OS PRIMEIROS
CONTOS DE AMÓS OZ

Fernanda dos Santos Silveira Moreira (USP)1

Resumo: No ano de 1965 foi publicada a obra de estreia de um dos principais escritores da
literatura israelense, Amós Oz. Artsot Hatan (Terras do chacal) reúne dez contos dos quais dois
foram traduzidos para o português no livro O novo conto israelense (1978), com organização de
Rifka Berezin. Dentre as muitas homenagens prestadas ao escritor, que faleceu em dezembro de
2018, o conto Kol Haneharot (Todos os rios) foi publicado pela revista The New Yorker em
tradução inédita para o inglês, oportunizando aos leitores um reencontro com a obra de estreia
do escritor. Neste trabalho serão apresentadas algumas características deste primeiro livro bem
como uma análise sobre alguns dos temas suscitados pela narrativa de Kol Haneharot.
Palavras-chave: Amós Oz; Artsot hatan; Kol Haneharot

Introdução
Em 28 de dezembro de 2018 faleceu Amós Oz, consagrado escritor israelense que
nasceu em Jerusalém em 1939 e que se tornou um dos mais prestigiados nomes da
literatura de seu país. Oz iniciou sua aclamada trajetória como escritor ainda em sua
juventude, ao ter suas primeiras histórias, como Caminho do vento (Derech Haruach),
publicadas pela Revista Keshet na década de 1960 (OZ; HADAD, 2019, p. 86).
Seu primeiro livro foi Artsot Hatan (Terras do Chacal2), publicado em 1965, que
reúne dez narrativas escritas entre os anos 1962 e 1965. A maior parte das histórias está
contextualizada em kibutzim3, espaço no qual Oz viveu por muitos anos e que está
presente em obras posteriores do escritor, como Uma certa paz (1982) e Entre amigos
(2012). Mas há também outros contextos, como uma novela ambientada nos tempos
bíblicos (Sobre esta terra má4), um conto sobre jovens combatentes (O monastério
trapista5) e um conto que se passa na cidade de Jerusalém (Fogo estranho6).

1
Mestra em Literatura Comparada (UFRJ), Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação LETRA (USP).
2
As versões dos títulos dos contos do hebraico para o português são traduções livres da presente autora a
partir do verbete sobre o livro (ARTSOT HATAN, 2019), assim como as traduções da edição em inglês
de Where the jackals howl and other stories, salvo aqueles que já possuem tradução para nosso idioma e
os que possuem indicação.
3
“[...] comunidades agrícolas em que todas as propriedades e meios de produção eram coletivos”
(CONIB, s.d.).
4
“Al ha’adamah hara’ah hazot”.
5
Traduzido do título em inglês “The Trappist Monastery”; em hebraico “Minzar hashatkanim”.
6
“Esh zarah”.

1026
Desde sua estreia, o talento de Amós Oz foi evidenciado, como é possível
observar na nota sobre Artsot Hatan na tradução de Nicholas de Lange e Philip Simpson
para o inglês, cujo título é Where the jackals howl:

Where the jackals howl é a primeira coleção de histórias do premiado autor


Amós Oz. Em sua publicação recebeu aclamação crítica imediata e revelou
Oz como sendo um mestre artesão a sondar as profundidades emocionais de
seus personagens. As vidas dos israelenses comuns são contrapostas ao pano
de fundo da vida comunitária em um kibutz. O destino desses indivíduos,
seus impulsos, ambições e idiossincrasias fundamentam-se na estrutura física
e social de suas comunidades, enquanto Oz retrata seu mundo como um
microcosmo de um mundo mais amplo. (OZ, 2005, p. 2)7

Desta obra de estreia de Oz, dois contos foram traduzidos para o português no
livro O novo conto israelense (1978) com organização de Rifka Berezin8: o já
mencionado Caminho do vento assim como O nômade e a víbora. Esses contos têm sido
objeto de análise de trabalhos como os de Waldman (2004), Kirschbaum (2009) e, mais
recentemente, de Candido (2018).
Ao analisar O nômade e a víbora, Waldman (2004) destaca na narrativa a
presença dos árabes, assim como em Meu Michel (1968), “presença reprimida na
primeira geração da literatura israelense” (WALDMAN, 2004, p. 61). A pesquisadora
salienta ainda que: “No início, o kibutz forma um importante eixo aglutinador de sua
obra, que, embora se distancie do realismo, toma sua matéria da realidade kibutziana”
(WALDMAN, 2004, p. 60).
Kirschbaum (2009) desenvolve uma análise sobre a relação entre maioria e
minorias no Estado de Israel em três obras de Oz, destacando em O nômade e a víbora:

O retrato apresentado no conto [...] por um lado mostra a alteridade das


minorias em termos de interesses concretos que podem chocar-se com
aqueles da maioria; por outro, expõe a encruzilhada em que se encontra o
próprio Estado, o qual deve decidir entre uma posição monolítica que lhe
permitiria ignorar e desconhecer o modo de vida, os motivos e os interesses
das minorias, e uma posição igualitária. (KIRSCHBAUM, 2009, p. 51)

7
“Where the Jackals Howl is prize-winning author Amos Oz’ first collection of stories. On publication it
received immediate critical acclaim and revealed Oz to be a master craftsman probing the emotional
depths of his characters. The lives of ordinary Israelis are set against the backdrop of community life in a
Kibbutz. The fate of these individuals, their drives, ambitions and idiosyncrasies, are grounded by the
physical and social structure of their community as Oz portrays their world as a microcosm of the wider
world”. Nesta edição da editora Vintage, a descrição transcrita não está assinada, por isso a indicação do
sobrenome de Oz na referência.
8
Este volume pioneiro conta com a tradução de 14 contos de diversos autores israelenses e foi realizado
por uma equipe de professores e alunos da USP (ROZENCHAN, 2019).

1027
Candido (2018) analisa os dois contos de Oz juntamente com O casamento de
Gália (1970), do escritor israelense A. B Yehoshua, a partir de pressupostos dos escritos
de Walter Benjamin, destacando que os dois autores, em seus contos, “rompem com
convenções sociais e literárias, como normalidade e anormalidade, principalmente as
israelenses” (CANDIDO, 2018, p. 83).
No presente trabalho, tem-se o objetivo de apresentar algumas características
desta obra de estreia do escritor, dando continuidade às análises que já têm sido feitas
sobre a mesma, assim como destacar aspectos específicos que compõem a narrativa de
um conto em particular: Kol Haneharot.
Apresentação da obra
Artsot Hatan é o título do livro e também do primeiro conto que o compõe, no
qual se narra a história do personagem Matityahu Damkov, que convida ao seu quarto a
jovem Galila, filha de um dos fundadores do kibutz, com o pretexto de entregar-lhe
materiais de pintura, mas também para lhe revelar um segredo. Mas a figura do chacal
citada no título, e seus uivos, se faz presente nesta e em outras histórias do livro, como
em Antes do seu tempo9 ou em Fogo estranho, no qual, de Jerusalém, “o lamento
sombrio dos chacais é ouvido de longe” (OZ, 2012, p. 137)10.
Oz reescreveria os contos que compõem Artsot Hatan, republicando o livro dez
anos após sua primeira edição. Em conversas com sua editora, Shira Hadad, publicadas
recentemente com o título Do que é feita a maçã (2019), Oz indica o porquê da
reescritura de suas primeiras narrativas, ao responder ao questionamento de Hadad
sobre esse livro ter desenhado suas fronteiras:

Nunca sinalizei quais eram as fronteiras. Isto é, nas histórias de Artsot hatan
a língua foi o hebraico mais elevado que já tive, um hebraico assim eu nunca
mais tornei a escrever. E isso foi pura insegurança: uma espécie de
presunção, “olhem só para mim, vejam que palavras lindas e elevadas”. [...]
Sim, eu rebaixei a linguagem. Para falar que nem gente. Para não declamar.
Para que não fosse uma espécie de ostentação de riqueza. [...] foi a única vez.
Porque na verdade eu mal tinha vinte anos quando comecei a escrever Artsot
hatan, queria que as pessoas soubessem que eu conhecia a linguagem da
Bíblia hebraica e também a da Mishná e também a de nossos sábios de
abençoada memória e também a de Agnon. Disso já me libertei. (OZ;
HADAD, 2019, p. 125-126)

9
“Kodem z’mano”.
10
“The dim wailing of jackals is heard from far away”.

1028
As traduções de Artsot Hatan para o inglês, de Nicholas de Lange e Philip
Simpson, e para o espanhol, de Raquel García Lozano, consultadas para este trabalho,
bem como os contos traduzidos para nosso idioma em O novo conto israelense, foram
feitas a partir da edição revisada por Oz.
Em meio às muitas homenagens prestadas ao escritor após sua morte, a revista
The New Yorker de 14 janeiro de 2019 publicou em inglês um dos contos de Artsot
Hatan, Kol haneharot (Todos os rios) com o título de All rivers. A tradução foi feita por
Philip Simpson, um dos tradutores do livro para a língua inglesa que apresenta apenas
oito dos dez contos do original hebraico. Kol haneharot e Tikum haolam11 não haviam
sido incluídos em Where the jackals howl. A edição do The New Yorker indica que essa
é a primeira vez que o conto é publicado em inglês12.
Na edição da revista americana, All rivers vem acompanhado de uma ilustração de
Ben Wiseman, assim como charges de Spaulding, Shanadav e Lothan e ainda conta um
poema de Maggie Millner chamado Etiology.
O conto
Kol Haneharot narra uma história sobre o jovem Eliezer Dror, um kibutznik de
vinte e oito anos, que vai até Tel Aviv a fim de encontrar-se com um colecionador que
oferecia “um conjunto completo de selos da Bósnia e Herzegovina” (OZ, 201913, p.
50)14 em troca de um selo austro-húngaro de 1899, cuja ilustração era a de uma mulher
que se banhava em um rio com cervos à margem. Mas Eliezer, que é também o
narrador, inicia sua história com um nome: Tova, uma mulher misteriosa que conhecera
no dia em que estivera em Tel Aviv.
Eliezer tenta descrever Tova a partir de suas lembranças, muito nítidas, sobre seus
cabelos, seu nariz e pescoço, e até mesmo sobre o tecido de sua calça, mas a cor de seus
olhos ele não consegue lembrar. Tova é uma figura enigmática, mas não “etérea”. Nas
palavras de Eliezer uma “moça com um corpo de mãe” (OZ, 2019, p. 49)15.

11
Que pode ser traduzido como “Correção do mundo” (MORASHÁ, 2015).
12
Este conto, juntamente com outras histórias de Artsot Hatan foram analisadas por Esther Fuchs no
artigo The Beast within: Women in Amos Oz's Early Fiction, de 1984, na Modern Judaism (Vol. 4, No. 3
(Oct., 1984), pp. 311-321). Neste artigo, a autora analisa as personagens masculinas e femininas dos
contos do livro. Fuchs apresenta alguns trechos por ela traduzidos diretamente do hebraico.
13
Na publicação do The New Yorker, a datação do final do conto é de 1963, mas aqui indicaremos a data
da publicação do conto em inglês.
14
“a full set of stamps of Bosnia and Herzegovina”.
15
“A girl with a mother’s body”.

1029
O narrador reconhece não seguir uma descrição linear tanto de Tova quanto da
própria narrativa que escreve.

Veja você, isto acontece comigo com frequência. Eu tenho tentado descrever
o rosto de Tova sistematicamente, seguindo uma certa ordem, e mesmo um
olhar casual revelaria isso. Em minha pressa de passar de seu cabelo para
seus olhos, eu senti falta da testa. Eu senti falta das suas bochechas também.
Disse o suficiente. A história está me decepcionando, esticando coisas uma
após a outra, mas quando você olha para Tova você vê o seu rosto e todo o
resto de uma vez. E, além disso, um rosto está vivo e as palavras estão
mortas. Eu estou cansado de palavras. Você se esforça para ser exato, e então
as palavras aparecem e falsificam tudo. (OZ, 2019, p. 49)16

Buscando apresentar um contexto para a história que se propõe a contar, Eliezer


passa então a narrar alguns detalhes de sua vida, como o fato de ser filho de dois
membros fundadores do kibutz Tel Tomer, a personalidade de cada um dos pais, seu
período do Exército (que detalhará mais adiante) e como seu trabalho como supervisor
da oficina de abajures no kibutz, em suas palavras, é “uma real história de sucesso” (OZ,
2019, p. 49)17. O narrador descreve também como era seu relacionamento com as moças
de seu kibutz e como elas gostavam de visitá-lo no fim do dia. Elas traziam bolos, ele
oferecia bebidas e contava suas histórias do período no Exército. Entretanto, esses
detalhes são uma forma de preparação para que o leitor possa conhecer os caminhos que
levaram Eliezer a encontrar Tova, começando por descrever sua meticulosa relação com
a coleção de selos:

Todas as noites, antes de as garotas chegarem para beber e conversar, eu


dedico uma hora ou uma hora e meia à minha coleção de selos. É uma das
melhores coleções do país. Meu pai começou esta coleção em Lodz cinquenta
e cinco anos atrás. Eu herdei quando eu voltei do exército e em menos de seis
anos eu consegui duplicá-la de tamanho. [...] Filatelia é um deleite que
alguém que não tenha experenciado nunca poderia entender. Eu volto para o
meu quarto depois da ceia, sento-me em minha poltrona, acendo um cigarro,
fumo devagar e com concentração [...] Eu fecho as venezianas e acendo a
lâmpada da mesa [...] e então eu começo a classificar de acordo com o
catálogo, checando, examinando, gravando e colocando no lugar. Eu também
escrevo cartas, uma toda noite. Eu estou em contato com mais de vinte

16
“You see, this is what often happens to me. I’ve tried to describe Tova’s face systematically, following a
certain order, and even a casual glance will reveal that, in my haste to move from her hair to her eyes, I
missed her forehead. I missed her cheeks, too. Enough said. The story is letting me down, stretching
things out one after another, but when you look at Tova you see her face and the rest of her all at once.
Also, a face is alive and words are dead. I’m tired of words. You strive to be accurate, and then words
come along and falsify everything”.
17
“[…] is a real success story”.

1030
colecionadores em todas as partes do mundo, e eu faço trocas regulares com
eles. (OZ, 2019, p. 49-50)18

Eliezer afirma que foi seu hábito de colecionar selos que o levou, indiretamente, a
conhecer Tova, pois, como antes pontuado, na tentativa de conseguir toda uma coleção
de selos da Bósnia e Herzegovina em troca de apenas um raro exemplar dentre os selos
repetidos que tinha, saiu de Tel Tomer em direção à Tel Aviv. E, em um pequeno
restaurante, enquanto aguardava a hora do encontro com o colecionador, Eliezer
conhecera Tova.
Escrevendo e fumando, Tova não parecia aberta a uma conversa com um
estranho. Mas Eliezer insiste e desde o primeiro contato nota algo incomum: Tova
tossia a maior parte do tempo, uma tosse adoecida. Apesar da resistência da mulher, a
conversa encontra um ponto em comum quando falam sobre poesia. Ela estava
escrevendo um poema quando ele chegou, ele dizia ter escrito um poema em
homenagem a um de seus amigos, morto em combate a meio metro de si. Depois de
algum tempo, Eliezer lê o poema de Tova:

Todos os rios correm para o mar


E o mar não está completo.
Todos os poemas envenenam o sangue
E o sangue é destruição destilada.
Tudo o que há aqui vai para lá
E existe apenas o mar moribundo
Homens sábios dormindo em suas casas
Apenas o rio está no purgatório
Todos os rios correm para o mar,
E o mar fica estéril e não dorme
E não se extingue e não é
(OZ, 2019, p. 52-53)19.

Eliezer tece algumas considerações sobre o poema de Tova, em particular sobre o


último verso que, segundo ele, poderia ser mais trabalhado. Enquanto Eliezer escrevia

18
“Every evening before the girls arrive to drink and talk, I devote an hour or an hour and a half to my
stamp collection. It’s one of the best collection in the country. My father started it in Lodz fifty-two years
ago. I inherited it when I came back from the Army, and I less than six years I’ve succeeded in doubling it
in size […] Philately is a delight that someone who hasn’t experienced it could never understand. I go
back to my room after supper, sit in my armchair, and light a cigarette, smoking slowly and with
concentration […] I close the shutters and switch on the table lamp […], and then I start sorting
according to the catalogue, checking, examining, recording, and sticking in place. I also write letters, one
every evening. I am in contact with more than twenty collectors in all parts of the world, and I make
regular exchanges with them”.
19
“All rivers flow to the sea/ And the sea is not filled./ All poems poison the blood/ And the blood is
destruction distilled./ All there is here goes there,/ And there is only the moribund sea./ Wise men asleep
in their homes./ Only the river is in purgatory./ All rivers flow to the sea,/ And the sea turns barren and
does not sleep/ and is not extinguished and is not”.

1031
poemas para ocasiões especiais, como as festas do kibutz, para Tova o processo de
escrita era diferente: “Como um químico em um laboratório manipulando materiais
tóxicos: cuidadoso, lúcido e cheio de concentração. Um poema era a incorporação de
combinações fundamentais. Como uma solução, como cristais de veneno” (OZ, 2019, p.
52)20.
O conto de Oz nos apresenta um encontro entre duas pessoas muito diferentes
uma da outra embora tenham a poesia como interesse em comum. Entretanto, à medida
que a narrativa avança, os detalhes nos mostram que, enquanto indivíduos, eles estão
envoltos em uma contextualização mais complexa.
Eliezer havia participado da Campanha do Sinai em 1956 e estivera a centímetros
de morrer como seu amigo no campo de batalha; foi condecorado por uma atitude
corajosa em combate, mas, ao fim de seu período no Exército, retorna à vida comum no
kibutz, ao trabalho e às obrigações cotidianas, e desenvolve a paixão por colecionar
selos.
Possuir uma coleção de selos é uma característica significativa neste conto, mas é
uma atividade que aparece em outros livros de Oz e mesmo no relato de sua própria
história. Em Meu Michel (OZ, 1982, p. 88-89), por exemplo, o marido de Hana começa
a colecionar selos e explica para ela “o valor dos selos dos países extintos: Lituânia,
Letônia, Estônia, Dantzig [...]”, esta última cidade de grande importância para a
narrativa do romance. Em De amor e trevas, de 2002, Oz escreve que através de sua
coleção de selos ele tinha a oportunidade de conhecer o “grande mundo”, lugares como
Dantzig, Trinidad e Tobago, Uganda. Um mundo enorme, “sedutor, maravilhoso, mas
para nós [os judeus21], muito perigoso e hostil” (OZ, 2005, p. 11). Em Kol Haneharot,
Eliezer descreve com detalhes a maneira como essa atividade ocupa um lugar especial,
ritualístico, em sua rotina e como, por conta de sua coleção, está em constante contato
com pessoas de diversas partes do mundo.
Sobre o ato de colecionar, Tova apresenta, por duas vezes no desenrolar do conto,
uma percepção significativa: “Deus nos coleciona também, um a um nos organiza, nos
cola em seu álbum e desfruta da harmonia por trás de nosso sofrimento” (OZ, 2019, p.

20
“Like a chemist in a lab, handling toxic materials: careful, lucid, and with full concentration. A poem
was the embodiment of fundamental combinations. Like a solution, like crystals of venom”.
21
Inserção nossa.

1032
50; 55-56)22. A questão do sofrimento destacada pela personagem indica não apenas um
pensamento pessimista em relação a Deus ou à vida, o que poderia ser também
observado em seu poema, mas aponta para uma situação mais complexa, apresentando
uma personagem com um passado distinto daquele do narrador. Tova é uma
sobrevivente de um campo de concentração.
Tova não possuía um dos polegares, o que é logo percebido por Eliezer, que, aos
poucos, narra mais características sobre a jovem. Ela é uma mulher de trinta e três anos,
e por sua data de nascimento, o leitor consegue identificar que a narrativa do seu
encontro com Eliezer se passa no fim da década de 1950. Ela diz se chamar Gita, filha
de Lisa e Robert-Reuben Levi. Nascida na Eslováquia, foi levada com sua família para
um campo de concentração, e depois da guerra apenas ela sobrevivera e fora para Israel,
chegando pouco antes da criação do Estado. Desenvolveu sua carreira como poetisa e
artista gráfica, mas antes havia passado um período em um kibutz, onde perdeu seu
polegar. Durante a guerra, Tova fora agredida e narra detalhes sobre as queimaduras de
cigarro feitas em seu corpo por um oficial alemão que a deixava tocar piano, mas que
pedia que ela o açoitasse com um cinto e a queimava quando ela não o açoitava forte o
suficiente.
Observa-se que há no conto um conjunto de temas profundos trabalhados a partir
de duas personagens que se encontram de forma ocasional, mas que estão envoltas por
redes complexas de significados em um país ainda muito jovem, mas que é composto
por indivíduos com trajetórias históricas e pessoais distintas.
Os dois personagens se encaminham para a praia, compartilham mais segredos
sobre si e lá, entre ataques cada vez mais severos de tosse e uma demonstração de força
e habilidade do rapaz, Tova pede que Eliezer se case com ela. Eliezer identifica que
apesar de ser uma mulher interessante, além da fragilidade física, Tova possui questões
sentimentais e psicológicas complexas, profundas. Ele recusa o pedido e decide partir
para seu compromisso com o colecionador. Diante da partida de Eliezer, em meio a
lágrimas, Tova profere as seguintes palavras:

“Espere”, ela disse com uma voz fraca, “espere. Isto virá para você também.
Sim, você é muito forte, você é forte e atlético, você pode caminhar sobre
suas mãos, explodir os bunkers. Mas isto não o ajudará, porque um dia o seu

22
“God collects us, too, one by one, arrange us, sticks us in his album, and enjoys the harmony that hides
behind our suffering”.

1033
corpo irá traí-lo. E então você se lembrará como o preveni contra isso, você
verá. Você mima esse seu maravilhoso corpo, tendo certeza de que nenhum
dano virá sobre ele, mas ele é um traidor. Uma noite ele o esfaqueará com
uma adaga de dor e você se lembrará do que eu estou contando para você.
Você se contorcerá de dor, e você chorará e implorará, mas ele lançará faca
após faca em você. Tudo o que você tem feito por ele, ele esquecerá. Você
abrirá os seus olhos em pânico na escuridão da noite e ele o matará. No meio
da noite, onde não há ninguém com você. Nem mãe, ou pai, nem kibutz e
nenhuma mulher. Apenas você e o seu assassino na noite, e nenhum poder no
mundo poderá pará-lo. Você irá morrer. Agora, tente fugir, tolo, fuja agora se
você pode, fuja sobre suas mãos, tolo, então eu nunca mais verei você
novamente. Corra”. (OZ, 2019, p. 57)23

As palavras de Tova são cortantes e encerram o encontro dos dois de uma forma
dramática. Suas palavras estão envoltas por um pesar que perpassa sua visão sobre a
vida e que refletem as experiências traumáticas que vivenciou. A fragilidade do corpo e
a certeza da morte – e da solidão na hora da morte – são por ela ressaltadas. E essas
palavras continuarão ecoando na mente de Eliezer, mesmo quando ele já está de volta
ao kibutz, sozinho diante de sua coleção de selos. Ao pensar sobre como se formam os
rios e como todos eles correm para o mar, Eliezer termina sua história com a seguinte
indagação: “A questão é: De onde vem este súbito e intenso desejo de morrer neste
exato momento?” (OZ, 2019, p. 57)24.
Aspectos sobre o livro e sobre o conto
Kol Haneharot difere-se em diversos pontos dos demais contos que compõem
Artsot Hatan. Na maior parte das narrativas que exploram a questão do kibutz há um
narrador que participa da comunidade e que convive com as pessoas de suas histórias.
Não sabemos o seu nome, ou se são diferentes narradores, mas em vários dos contos se
identifica como parte do grupo ao usar expressões como “nosso kibutz” (OZ, 2012, p. 1
– Terras do Chacal)25 ou “Nós, os membros do secretariado” (OZ, 2012, p. 24 – O

23
“‘Wait’, she said in a feeble voice, ‘wait. It’ll come to you, too. Yes, you’re very strong, you’re strong
and athletic, you can walk on your hands, blow up bunkers. But this won’t help you, because someday
your body is going to betray you. And then you’ll remember how I warned you against him, you’ll see.
You pamper this wonderful body of yours, making sure that no harm comes to him, but he’s a traitor. One
night he’ll stab you with a dagger of pain and you’ll remember what I’m telling you. You’ll squirm in
pain, and you’ll cry out and plead, but he’ll thrust knife after knife into you. Everything you’ve done for
him he’ll forget. You’ll open your eyes in panic in the dark and he’ll kill you. In the middle of the night,
when there’s no one with you. No mother, or father, no kibbutz and no woman. Just you and your
murderer in the night, and no power in the world can stop him. You will die. Now try to run away, fool,
run away now if you can, run on your hands, run on your strength, fool, so I never have to see you again.
Run’”
24
“The question is, Where does it come from, this sudden and intense desire to die this very moment?”.
25
“[...] our kibbutz”.

1034
nômade e a víbora)26. Mas em Kol Haneharot temos um narrador que se identifica, tem
um nome, conta uma história que ele mesmo viveu e compartilha como se dá sua
relação com as palavras, com o ato de expressar através da escrita as percepções dos
momentos vividos27.
Embora conte em vários momentos detalhes de suas vivências no kibutz Tel
Tomer, o acontecimento principal de seu texto é completamente outro, fora de seu
contexto usual, sobre suas impressões de alguém que lhe é totalmente diferente, em
vários sentidos. Em diversos momentos, Eliezer parece estar escrevendo este texto para
um leitor específico, pois faz comentários como “Veja você [...]” (OZ, 2019, p. 49)28 e o
que conta parece ser, ao mesmo tempo, uma forma de confissão e uma maneira de não
deixar que os detalhes sejam modificados pela memória, pois “A memória distorce
tudo”29 (OZ, 2019, p. 52), ainda que também afirme que “as palavras estão mortas” e
que as mesmas “falsificam tudo” (OZ, 2019, p. 49)16. As impressões que Tova causou
em Eliezer são profundas e o impulsionam a escrever.
Amós Oz publicou anos mais tarde outras histórias cujo foco está nas questões
relativas às vivências nos kibutzim, como Uma certa paz (1982) e Entre amigos (2012).
Neste último é possível observar detalhes mais próximos das histórias da obra de estreia
do autor por ser formado por histórias que poderiam ser lidas de forma independente,
mas que estão conectadas por se passarem todas em um mesmo kibutz.
As histórias de Artsot Hatan, escritas em diferentes anos entre 1962 e 1965,
embora tenham características comuns, podem parecer não vinculadas umas às outras a
uma primeira vista, em particular porque há de fato contos que não possuem a temática
do kibutz. Mas é interessante notar que alguns personagens, como Matityahu Damkov,
do conto que dá nome ao livro, reaparece em Pedra oca30 (OZ, 2012, p. 170; 172).
Embora sejam narrativas que problematizem um mesmo espaço, tão significativo
na obra de Oz quanto o kibutz, na mencionada entrevista à Shira Hadad, Oz afirma que:

26
“We, the members of the secretariat”.
27
A relação do narrador com as palavras é de fato significativa no conto e foi um aspecto descrito por
diferentes leitores do conto em inglês compartilhado no site The Mookse and the Gripes com postagem de
Trevor Berrett, disponível em: http://mookseandgripes.com/reviews/2019/01/07/amos-oz-all-rivers/.
Acesso em 26 mai. 2019.
28
“You see […]”
29
“Memory distorts everything”.
30
“Even chalulah”.

1035
[...] apesar de ter posto na capa de Entre amigos o mesmo desenho do kibutz
que estava na capa de Artsot hatan, a distância entre essas histórias de kibutz
e as primeiras histórias de kibutz é grande, até mesmo muito grande. Em
Entre amigos eu conto quase num sussurro, em comparação com Artsot
hatan. (OZ; HADAD, 2019, p. 126)

De fato, as histórias de Artsot Hatan são compostas por diversas situações


dramáticas, com imagens intensas e cheias de símbolos que podem ser analisadas
separadamente ou em comparação a outras obras do escritor, como proposto nas
análises de Waldman (2004), Kirschbaum (2009) e Candido (2018) e como a história
aqui analisada também sugere.
Considerações Finais
Obra ainda não toda traduzida para nosso idioma, Artsot Hatan apresenta diversos
aspectos a serem desenvolvidos, ampliando as análises e as percepções possibilitadas
pela escrita de um autor cuja trajetória literária é tão preciosa quanto a de Amós Oz.
Neste trabalho o objetivo foi apresentar alguns trechos e temas desenvolvidos em Kol
Haneharot sem, entretanto, explorar todas as significativas características do conto. Mas
também teve como propósito motivar novas leituras e (re)encontros com a obra de
estreia do grande escritor.

Referências

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2019. Disponível em:
https://he.wikipedia.org/w/index.php?title=%D7%90%D7%A8%D7%A6%D7%95%D7
%AA_%D7%94%D7%AA%D7%9F&oldid=25355762. Acesso em: 7 set. 2019.

BEREZIN, Rifka (Org.). O novo conto israelense. Edição de Moysés Baumstein. São
Paulo: Edições Símbolo, 1978.

CANDIDO, Juliano Klevanskis. Amos Oz e Avraham B. Yehoshua à luz de Walter


Benjamin. Cad. Benjaminianos, Belo Horizonte, v. 14, n. 1, p. 73-85, 2018. Disponível
em:
http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/cadernosbenjaminianos/article/view/14
285. Acesso em: 17 jun. 2019.

CONIB. Kibutz. Confederação Israelita do brasil. Sítio da Internet. Disponível em:


http://www.conib.org.br/glossario/kibutz/. Acesso em: 11 jun. 2019.

KIRSCHBAUM, Saul. Amós Oz: a perplexidade da inversão de posições.


WebMosaica, Revista do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall v.1 n.1 (jan-jun),

1036
2009. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/webmosaica/article/view/9766/5559. Acesso
em: 23 jun. 2019.

MORASHÁ. Carta ao leitor: ano XXII n.88 junho 2015. Sítio da Internet. Disponível
em: http://www.morasha.com.br/revista/88.html. Acesso em: 7 set. 2019.

OZ, Amós. Meu Michel. Tradução de Rifka Berezin, Sônia Baguchwal e Nora
Rosenfeld. São Paulo: Summus, 1982.

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São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

OZ, Amos. Where the Jackals Howl and other stories. Translated from Hebrew by
Nicholas de Lange and Philip Simpson. London: Vintage, 1992 (First Publication).
Versão 1.0 para Kindle, 2005. Epub ISBN: 9781448168620.

OZ, Amós. Uma certa paz. Tradução do hebraico de Paulo Geiger. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010.

OZ, Amos. Where the Jackals Howl and other stories. Translated from Hebrew by
Nicholas de Lange and Philip Simpson. Boston, New York: Mariner Books edition,
2012.

OZ, Amós. Entre amigos. Tradução do hebraico e notas Paulo Geiger. – 1ª ed. – São
Paulo: Companhia das Letras, 2014.

OZ, Amos. Tierras de chacales. Tradución del hebreo de Raquel García Lozano.
Ediciones Siruela. Formato digital: julio de 2017. ISBN: 978-84-17151-49-2.

OZ, Amos. All rivers. In: The New Yorker, January 14, 2019. Illustration by Ben
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https://www.newyorker.com/magazine/2019/01/14/all-rivers. Acesso em: 2 mar. 2019.

OZ, Amós; HADAD, Shira. Do que é feita a maçã: seis conversas sobre amor, culpa e
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ROZENCHAN, Nancy. Quando Amós Oz chegou ao Brasil. Arquivo Maaravi:


Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. V. 13 n. 24 (2019): Diários,
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WALDMAN, Berta. Romance e política: alguns aspectos da obra de Amós Oz. In:
WALDMAN, Berta. Linhas de força: escritos sobre literatura hebraica. São Paulo:
Associação Editorial Humanitas, 2004.

1037
O CONFLITO INTERGERACIONAL NOS CONTOS DE ETGAR KÉRET

Gabriel Steinberg (USP)1

Resumo: A sexta antologia de narrativas curtas Takalá Biktzê hagalaksia (Um incidente nos
confins da Galáxia), rendeu ao escritor israelense Etgar Kéret o prêmio Sapir em 2018, no
mesmo ano de sua publicação. Como é marca de sua escrita, suas narrativas se dirigem ao leitor
numa linguagem coloquial e informal. Sua escrita por vezes bem humorada tem como
personagens pessoas comuns que em situações peculiares, tem um comportamento extremo e
até bizarro. Esta comunicação aborda a questão do conflito intergeracional em alguns de seus
contos.
Palavras-chave: Etgar Kéret, Literatura israelense; conflito intergeracional

Para os escritores nascidos na Terra de Israel antes da independência e que se


tornaram conhecidos como os integrantes da Geração da Guerra da Independência, ou a
Geração da Terra, a ideologia sionista socialista exerceu forte influencia sobre suas
narrativas. Eles acreditavam nos valores coletivistas do Movimento Trabalhista. Para
eles a função do jovem hebreu que recebeu a denominação de sabra, era construir a
Pátria, defendê-la com sua própria vida e ligar seu destino ao destino de seus
companheiros e de seu povo.
Os escritores do período que antecedeu à criação do Estado e mesmo após sesse
período, contribuíram com suas obras para propagar os vários mitos sionistas. A maioria
deles analisaram o cotidiano israelense sob a ótica de sua
identificação pessoal e sentimental com um “milagre” prestes a ocorrer. Em suas obras
não havia críticas. Foi uma literatura que tentou mostrar uma sociedade coesa sem
conflitos intergeracionais, nem conflitos internos. Os embates mostrados eram os da
sociedade judaica lutando contra os árabes ou os britânicos. Os heróis das obras
literárias da época eram sempre combatentes sabras estereotipados: donos de um agir reto
e direto, dispostos a sacrifícios ilimitados em prol de seu povo, sérios em suas
concepções ideológicas e possuidores de uma fala curta e entrecortada por gírias.
Seu sofrimento e desejos refletiam o sofrimento e os desejos coletivos e nunca os
pessoais ou íntimos. Na literatura da época, os jovens sabras sentiam um temor
reverencial diante da figura dos pais fundadores da empreitada sionista e perante os

1
Professor Doutor de Língua Hebraica no Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Contato: steinberg1818@hotmail.com.

1038
pioneiros. Eles sentiam uma identificação com o mundo de seus pais, de seus
professores e de seus líderes. Os jovens tinham consciência que não podiam
decepcionar seus pais, ao contrário, eles deviam atender a todas as expectativas destes
em tudo o que se relacionava com os objetivos sionistas. Muitos jovens sentiam que a
primeira geração, os colocara à prova, e eles deviam por isso esforçar-se ao máximo não
somente para não decepcioná-los e sim para superá-los com sua coragem e altruísmo,
com seu heroísmo e disposição para o sacrifício.
Os jovens nascidos no país alistavam-se voluntariamente
para as missões militares mais perigosas. O jovem devia mostrar-se socialmente como
um soldado, de preferência como um membro de uma comuna agrícola e como um
membro partidário e ideológico exemplar. E o exemplo, pelo menos no discurso oficial,
era o do jovem que desbravava novas terras e concretizava com seu suor o sonho
sionista. O comentário de Amós Oz em De Amor e Trevas ilustra o contraste entre a
imagem criada em torno da figura do sabra no contexto agrícola com a geração anterior,
mas também seu desejo e o de outros jovens de serem diferentes de seus pais, nascidos
fora da Terra de Israel, deixando claro o conflito intergeracional velado. Assim diz Oz

No começo da década de 1950, o polo oposto à casa paterna era o kibuts. Lá,
longe de Jerusalém, „para além das montanhas das trevas‟, na Galiléia, no
Sharon, no deserto do Neguev e nos vales, florescia assim pensávamos na
Jerusalém daquele tempo uma nova raça, sólida, de pioneiras e pioneiros,
sérios mas não complicados, de poucas palavras, que sabiam guardar segredos,
capazes de dançar e rodopiar vertiginosamente até a embriaguez, mas também
afeitos ao isolamento, à reflexão, e acostumados à vida no campo e às tendas
dos acampamentos: rapazes e moças robustos, obstinados, prontos a realizar
qualquer tipo de trabalho, mas mantendo uma vida espiritual rica, plena, de
sentimentos profundos. Eu queria ser como eles para não ser como meu pai,
nem como minha mãe, nem como os literatos refugiados melancólicos que
enchiam a Jerusalém judia. (OZ, 2005, p. 490)

Já a literatura dos anos 50 e 60 do século XX se mostra como a “literatura do


desengano”. Uma vez que os valores do coletivismo ficaram abalados, era preciso
encontrar valores individuais com os quais fosse possível prosseguir. O arquétipo do
herói desapareceu gradualmente, era urgente encontrar a figura do anti-herói para
representar a nova realidade social e literária. A nova geração de escritores, a chamada
Geração do Estado, encarou Israel tanto com suas qualidades quanto com seus defeitos e
fraquezas. A identidade dos israelenses nativos ou os que cresceram no país, refletiu-se

1039
e desenvolveu-se nas obras literárias de Amós Oz e A. B. Yeoshua, os principais
representantes desta geração. Eles se tronaram os principais mas não os únicos porta-
vozes da chamada “narrativa modernista sionista”. Segundo Yigal Schwartz “a trama
central das obras escritas pela Geração do Estado gira em torno das tensões não
resolvidas entre individuo e sociedade, nação e Estado”. (SCHWARTZ, 1998, p. 23)
Os protagonistas das narrativas desta geração lutam para impedir que sua
individualidade seja esmagada pela tirania da doutrina sionista baseada na exaltação do
coletivo. O que caracterizou a literatura desse período segundo Rozenchan foram

As várias versões da narrativa modernista sionista baseadas em duas


oposições, a intergeracional e a homem-mulher. O foco da narrativa situava-
se quase sempre no conflito entre pais e filhos e era essencialmente
masculino. Como um conflito pai-filho nunca pode ser totalmente resolvido,
não há situações de preponderância total, mas somente interações breves,
violentas e destrutivas (ROZENCHAN, 2008, p. 131)

No conto O Silêncio Contínuo de um Poeta, publicado por A.B. Yeoshua no final


da década de 60 encontramos uma mostra do conflito intergeracional tal como ele
aparece na ótica dos escritores da Geração do Estado. O narrador do conto, um poeta
esquecido e decadente já avançado em anos teve um filho ao qual ele rejeita
profundamente. Sobre este nascimento ele diz: “É um mero acidente. Ao final de contas,
ele não se parece comigo, e entre mim e ele só existe em comum um fino traço de
agressividade” (YEOSHUA, 1978, p. 138). A seguir ele continua: “Ele é meu filho
caçula. Nasceu incidentalmente, por engano, por uma espécie de milagre amaldiçoado,
pois já estávamos ambos, a mãe dele e eu beirando a velhice” (YEOSHUA, 1978, p.
138).
O menino nasceu silenciosamente com uma lentidão imperceptível. Na narrativa
ele é constantemente chamado pelo pai de “retardado”. O menino é rejeitado pelo pai
por ser diferente, desajeitado, isolado. Quando as irmãs do garoto faziam festas em casa,
elas exigiam do pai que o escondesse e o pai as atendia. Nem no casamento de uma das
irmãs ele pode participar “Só o trouxeram de volta altas horas da noite” (Idem, p. 143).
O pai o rejeita ao longo de toda a narrativa e não cansa de dizer: “E assim começou a
nossa vida em comum, um junto do outro, numa casa sossegada... Eu um poeta que se
calara, e ele – um menino retardado, solitário. Até na escola, os professores o
consideravam como alguém que não pode ser recuperado”. (Idem, p. 143).

1040
O menino cresceu nas sombras como uma espécie de Golem, realizando os
serviços domésticos, limpando a casa, descalçando os sapatos do pai, cuidando do
jardim, cozinhando, no entanto, sem emitir qualquer palavra. O silêncio reinava entre
filho e pai e este apenas se questionava sobre o que ele poderia falar com esse menino?.
No último ano escolar, três semanas antes do término das aulas, estudaram na sua classe
um dos poemas do pai. Foi nesse momento que o rapaz não pode mais se conter, ele
ficara emocionado com o fato. Quando o pai chegou em casa, o garoto se pôs a ler
aquele poema. Foi o momento em que uma luz se acendeu no garoto, mas o pai não
encontrou o caminho da comunicação com seu filho. Ao final do conto, o pai descobre
atônito que seu filho escrevia a seu modo poesias e viu seu nome, com letras trêmulas
delineado no alto do poema. O menino tentou encontrar por meio da poesia uma ligação
com seu pai que, no entanto, o rejeita até o final.
A mesma linha narrativa e ideológica é seguida por Amós Oz no conto O
Caminho do Vento, publicado também na década de 1960, e que tem como ponto
central o conflito intergeracional entre o pioneiro e líder sionista Shimshon Sheinboim e
Guideon, seu filho desajeitado, magro e desengonçado que em nada corresponde ao
modelo do sabra, idealizado e desejado por seu pai. A trama se sucede no Dia da
Independência de Israel, ocasião na qual um grupo de paraquedistas pulará do céu sobre
o kibutz Nof Harish, entre eles Guideon que terá mediante esse ato, a oportunidade de
se redimir aos olhos dos moradores do lugar e também de seu pai, um dos pioneiros da
empreitada sionista.
Guideon é uma humilhação para Shimshon, considerado um grande herói de Israel
e sobre o qual o narrador nos conta:

Ele não permitia que sua posição de principal ideólogo do movimento o


dispensasse dos deveres de qualquer membro do kibutz: guarda noturno,
plantações, mutirão no período da colheita. Nenhuma sombra de falsidade
tolda a vida de Shimshon Sheinboim desde sempre e até hoje. Ele é um bloco
compacto de ideais e realizações que desconhece esmorecimentos ou
hesitações (OZ, 1978, p. 34).

Diante da grandeza do pai, Guideon é o oposto e por isso causa desconforto a


Shimshon. Ele é descrito pelo narrador tal como é visto pelo pai: “Um jovem moreno,
tenro, de uma beleza quase feminina, cortando sempre os caminhos do kibutz num

1041
silêncio obstinado. Não se destaca no trabalho. Não se destaca na vida social. Fala
lentamente e, com certeza também pensa lentamente” (OZ, 1978, p. 36).
No último dia de vida de Guideon ele conseguiu constranger seu pai mais uma
vez. Ao pular de paraquedas sobre o kibutz, desobedecendo as ordens de seu
comandante e com o intuito de ser visto e percebido por todos, ele abriu o primeiro
paraquedas e a seguir o segundo, que somente poderia ser aberto em caso de
emergência, e com isso ele acabou sendo levado pelo vento para longe, pousando sobre
um cabo de alta tensão. Após inúmeras tentativas de salvamento e súplicas do pai para
que pulasse e assim salvasse sua vida, e após ouvir também a gritaria das crianças que
de baixo zombavam dele, Guideon se prendeu do cabo e com isso deu um fim à própria
vida, deixando seu pai enlutado, desconsolado e humilhado para sempre.
Na contramão das gerações literárias descritas até aqui, chegamos à década de
1990, época em que a literatura hebraica viveu uma nova fase. Dentre os escritores da
nova geração chamada de Pós Pós, encontra-se o escritor contemporâneo Etgar Kéret
nascido em 1967 e que pertence à geração de escritores pós-modernistas e pós-sionistas
cuja literatura transcorre num presente prolongado. Nos seus contos é possível perceber
que as narrativas acontecem como se fossem histórias em quadrinhos, ou pequenos
relatos inspirados em telas de TV, ou clipes que seguem uma espécie de roteiro
cinematográfico. Alguns de seus contos exploram justamente o conflito intergeracional
quebrando, no entanto, os paradigmas conhecidos na literatura hebraica anteriormente.
Na narrativa de Kéret os papeis se invertem, pais e filhos não se comportam exatamente
como deles se espera que se comportassem socialmente. Um texto exemplar neste
sentido é o conto Lishbor et hahazir (Quebrar o porco), publicado em 1994 e que faz
parte do livro Gaaguai le Kissinger (Saudades de Kissinger). Neste conto o pai se
comporta como uma criança, ele incentiva seu filho Yoav a quebrar um cofre cheio de
moedas segurando um martelo na mão. Yoav por outro lado, apegou-se ao porquinho
que adquirindo características humanas ganhou dele o nome de Pessachzon. A respeito
deste conto Rozenchan afirma

Kéret escreve por vezes do ponto de vista de uma criança, e usa essa técnica
para apontar a hipocrisia do comportamento adulto. Em Quebrar o Porco,
por exemplo, o menino ganha um porquinho-cofre do pai para nele guardar
as moedas que ganhará se tomar diariamente o seu achocolatado. O menino
queria na realidade um boneco emblemático de desenho animado. Acontece
que ele se apaixona pelo porquinho e valoriza exatamente o oposto do que o

1042
pai quer que aprenda. Seu porquinho-cofre se torna o seu maior tesouro, não
pelas moedas acumuladas, mas pelos laços de amizade criados.
(ROZENCHAN, 2008, p. 141)

A sexta antologia de narrativas curtas Takalá Biktzê hagalaksia (Um incidente nos
confins da galáxia), rendeu ao escritor Etgar Kéret o prêmio Sapir em 2018, no mesmo
ano de sua publicação. Como é marca de sua escrita, as narrativas de Kéret se dirigem
ao leitor numa linguagem coloquial e informal. Sua escrita por vezes bem humorada
tem como personagens pessoas comuns que em situações peculiares, tem um
comportamento extremo e até bizarro. Humor, depressão, brigas, conflitos entre casais,
o absurdo, a ironia e a subversão são temas pelos quais suas narrativas transitam com
extrema facilidade. Um dos temas condutores de alguns de seus contos é precisamente o
conflito entre filhos e pais na contemporaneidade, onde por vezes os pais tem um
comportamento tão infantil e surreal, mostrando como os papeis dos atores sociais na
era pós-moderna se invertem, e os filhos levam os pais a agirem como se eles próprios
fossem crianças. Em sua narrativa nada está definido de antemão, tudo pode ser
imprevisível.
No conto Al taassê et zê (Não faça isso), Kéret coloca o leitor diante de um
homem prestes a se jogar do topo de um prédio. O garoto personagem que se chama Pit
Pit, descobre o homem antes mesmo que seu pai. Antes que o pai percebesse que do alto
de um prédio de quatro andares havia um homem prestes a pular para baixo, Pit Pit
declara que o tal homem está se preparando para voar. Enquanto o pai tenta evitar que o
homem acabe com sua vida e grita de baixo para que o homem se detenha, Pit Pit, o
filho, que segura o pai pela cintura grita e incentiva o homem a pular imaginando ser ele
um super-herói e ainda lhe pergunta: “Você tem forças sobrenaturais?” (KÉRET, 2018,
p. 11). Quando o homem lá do alto grita que ele não pode mais e que está sem forças
pois fora abandonado por uma mulher ou por sua mulher, assim conclui o pai, Pit Pit,
um pequeno menino da pós-modernidade que não obedece seu pai e tem personalidade
e luz própria insiste: “E dai, voe já de uma vez” (KÉRET, 2018, p. 11).
O pai insiste que a vida apronta muito com as pessoas mas que é preciso superar
as dificuldades e prosseguir vivendo, quando então ele se vale do menino para tentar
persuadir o homem a se deter: “Há aqui um menino, ele aponta para Pit Pit, ele não
precisa ver isto” ao que o garoto retruca e diz: “Eu sim, eu sim! E voe já de uma vez
antes que escureça” (KÉRET, 2018, p. 12). O pai segura o garoto e sobe correndo até o

1043
topo do prédio. Ao chegar, o homem já não se encontrava mais ali, ele realmente tinha
se espatifado no chão. O pai ficou aturdido e então Pit Pit começou a recrimina-lo e lhe
disse: “Ele voou, ele voou e por tua causa não conseguimos ver nada, por tua causa”
(KÉRET, 2018, p. 13).
No conto Machar Kupá (Amanhã, uma caixa registradora), os papéis de pai e
filho novamente são invertidos por Kéret. Neste conto é um menino que leva seu pai,
um homem divorciado e amargurado, a cometer loucuras com o intuito de ser
contentado com um estranho pedido. No dia do aniversário, o pai leva Lidor para o
shopping após ter lhe dado um drone de presente que ele lhe trouxera do exterior. Eles
foram ao shopping para comprar as baterias do drone. E naquele lugar abarrotado de
gente, Lidor teima em subir na escada rolante que desce e o pai, obviamente, vai atrás
causando tumulto no centro de compras, argumentando para si mesmo que o garoto é
“um menino adorável”. Ao chegar na loja de doces no terceiro andar, o pai declara:
“Escolhe o que você quiser, não importa o preço e papai vai comprar para você”.
(KÉRET, 2018, p. 49). Após percorrer a loja o menino decide que ele quer a caixa
registradora de presente. Quando o pai lhe diz que ela não estaria à venda o menino
insiste: “Eu quero a caixa registradora, você prometeu... você é um mentiroso. Lidor
grita e chuta minha perna com toda a força” (KÉRET, 2018, p. 50). O pai então oferece
ao vendedor mil shekalim que logo se transformarão em 2 mil, mas o vendedor se
recusa a negociar.
Nesse momento, receber ou conseguir a caixa registradora torna-se um
imperativo que o pai deve conseguir, ao final de contas não se pode decepcionar um
menino de sua idade. O pai insiste e tenta pegar a caixa registradora à força e pela qual
ele coloca as notas no bolso do vendedor, olha para o garoto e diz todo orgulhoso:
“Lidor me olha como se eu fosse um rei. Não há nada mais agradável do que ver teu
filho olhando para você desta forma” (KÉRET, 2018, p. 50). Quando o pai conseguiu
remover a máquina do lugar, o vendedor retornou ao estabelecimento acompanhado do
segurança do shopping ameaçando chamar a polícia. Esta narrativa quase acabou mal
por causa da infantilidade do pai. O pai que teme ter que enfrentar o filho e com isto se
indispor com ele, prefere assumir um comportamento infantil e até irresponsável com o
intuito de fazer o desejo de seu pequeno, que ao igual que muitas crianças da geração
pós-moderna, não pode ser contrariado pois ao final ele é um doce garoto.

1044
Já no conto Ugat Peirurim (Um bolo de migalhas), uma mãe de idade avançada,
leva o filho para um almoço afim de celebrar seus cinquenta anos. No restaurante e
perante Charlie, um atendente gordo e entediado, mãe e filho discutem pois o
aniversariante deseja comemorar seu dia comendo panquecas. “Eu quero pedir uma
torre de panquecas com xarope e chantili porém mamãe pede, como de costume, que eu
peça algo mais saudável. É meu aniversário, meu aniversário de 50 anos. Deixa mãe eu
pedir as panquecas, somente desta vez” (KÉRET, 2018, p. 63). No final, a mãe que não
se incomoda com o vexame público, decide premiar seu filho tanto com as panquecas
como com um bolo de migalhas que ela lhe preparou em casa. Ao retornar para casa, a
mãe compra para o filho após ele insistir e como presente de aniversário um bilhete de
loteria, porém o adverte que sua chance de ganhar era ínfima. No dia do sorteio pela
TV, enquanto a mãe entediada com o programa foi até o banheiro, o filho viu a seguinte
cena sendo transmitida e sobre a mesma ele reflete da seguinte forma:

Sobre a primeira bola que saiu da máquina apareceu o número 46 que é o


número da nossa casa. Na segunda bola estava o número 30, que é a idade
que mamãe tinha quando meu pai morreu e eu nasci. Na terceira bola
apareceu o número 33 que é o número de comprimidos que mamãe tomava
antes que lhe receitassem o remédio para o glaucoma. Que estranho que
todos os números que aquela loira escolheu tinham relação com a vida da
minha mãe e comigo. Os últimos três números eu sequer olhei... pois seria
muito triste se mamãe e eu tivéssemos que passar a viver em casas separadas.
(KÉRET, 2018, p. 69).

Se na literatura da Geração da Terra não havia conflitos entre pais e filhos e


predominava um temor reverencial dos jovens perante a figura dos pioneiros e dos pais
fundadores da nação, e na literatura da Geração do Estado os conflitos intergeracionais
aparecem e são tema dominante dessa literatura, as narrativas de Kéret subvertem a
relação pais e filhos, mostrando por vezes realidades que beiram o grotesco ou o
absurdo, conduzindo o leitor a refletir sobre situações do cotidiano e sobre novas
realidades e facetas da literatura pós-modernista em Israel.

Referências
KÉRET, Etgar. Lishbor et hahazir (Quebrar o porco). Gaaguai leKissinger (Saudades
de Kissinger). Tel Aviv, Zmora Bitan, 1994

1045
____________. Takalá biktzê hagalaksia (Um incidente nos confins da Galáxia). Hevel
Modi‟in, Kineret, Zmora Bitan, Dvir, 2018
OZ, Amós. O Caminho do Vento. O Novo Conto Israelense. São Paulo, Símbolo, 1978
________. De Amor e Trevas. São Paulo, Companhia das Letras, 2005
ROZENCHAN, Nancy. Subversão e humor na obra de Etgar Kéret. Cadernos de
Língua e Literatura Hebraica, nº 6. São Paulo, Targumim, 2008
SCHWARTZ, Igal. Caminhos da Prosa. Literatura de Israel nº 2. São Paulo, 1998
YEOSHUA, A.B. O Silêncio Contínuo de um Poeta. O Novo Conto Israelense. São
Paulo, Símbolo, 1978

1046
OS DISSABORES DO PARAÍSO: UMA LEITURA DO CONTO “NO SEIO DE
ABRAÃO”, DE MOACYR SCLIAR

Kenia Maria de Almeida Pereira (UFU)1

Resumo: Moacyr Scliar constrói de forma primorosa, num misto de deboche e melancolia, uma
narrativa que zomba da crença na vida após a morte; além de que o título do conto “No seio de
Abraão” irá nos remeter, de forma irônica, aos deleites dos bem-aventurados. A história é
contada em primeira pessoa, mas o narrador abre espaço em seu discurso para que a alma
abnegada de seu avô possa contar com detalhes as benesses do céu. Para Scliar, o seio de
Abraão, contraditório e ambíguo como a própria condição humana, não está isento de riscos.
Paradoxalmente, esse paraíso pode se tornar, de súbito, num lugar tristonho e inóspito,
principalmente quando somos dominados por nossos desejos.
Palavras-chave: Moacyr Scliar; Paraíso; Paródia

E além do mais, entre nós e vós existe um longo abismo, a fim de que aqueles
que quiserem passar daqui para junto de vós não o possam, nem tampouco
atravessem de lá até nós. (Lucas 16: 26).

Linda Hutcheon, em Poética do pós-modernismo (1991), comenta que a literatura


contemporânea apresenta características recorrentes, como subverter o discurso
dominante por meio da paródia e da ironia, além de rebelar-se contra o cânone
estabelecido. O escritor Moacyr Scliar, por exemplo, segue esse caminho da
desconstrução literária do legado cultural, apontado por Linda Hutcheon. Desde sua
estreia, com o livro de contos Carnaval dos animais (1968) e o romance A guerra no
Bom Fim (1976), que esse escritor gaúcho apresenta um texto ficcional transgressor que,
ao mesmo tempo, incorpora e desafia a tradição. Em muitos de seus contos, esse autor
gaúcho dialoga de forma paródica com a Torá e com a cultura judaica. Para Berta
Waldman (2003, p.130), Scliar, além de apresentar um olhar irônico sobre personagens
do mundo hebraico, também se insere, “com seu estilo coloquial, (n)uma visão crítica
da realidade e com o traçado de seus anti-heróis, na literatura que está se desenvolvendo
no Brasil nas últimas décadas”. Gilda Salem Szklo (1990, p.157), por sua vez, comenta
que o melhor de Scliar está tanto na técnica narrativa “entrecortada de vozes”, como no
seu traço “anedótico, lúdico, [...] encarando a realidade sob o espelho do humorismo”.
Em Contos reunidos (1995), por exemplo, no capítulo intitulado “A Bíblia
revisitada”, há algumas narrativas que desconstroem as histórias das Sagradas
Escrituras, ora dando voz a personagens marginalizados e secundários, como é o caso

1
Doutora em Literatura Brasileira pela UNES / São José do Rio Preto. Contato: kenia@triang.com.br.

1047
de “As pragas”, em que um camponês egípcio narra o desespero e as dificuldades em
conviver com as consequências das pragas enviadas pelo Deus dos hebreus; ou ainda a
narrativa “Diário de um comedor de lentilhas”, em que Esaú, em detrimento de Jacó,
ganha direito à voz e à escrita, a fim de narrar a perda da sua condição de primogênito.
Moacyr Scliar enfoca ainda, com muito bom humor, figuras exponenciais dos
Evangelhos: em “As Ursas”, o autor retoma a história do profeta Eliseu, o calvo, e em
“Entre os sábios”, Scliar reinterpreta passagens da infância de Jesus.
Já no conto “No seio de Abraão”, que nos interessa nesta comunicação, percebe-
se que, mais uma vez, Moacyr Scliar constrói de forma primorosa, num misto de
deboche e melancolia, uma narrativa paródica e zombeteira. Desta vez, ele troça da
crença na vida após a morte, usando como mote a expressão judaico-cristã “no seio de
Abraão”, a qual irá nos remeter, de forma irônica, aos deleites dos bem-aventurados ou
ao espaço das almas privilegiadas que se reencontram no Jardim do Éden.
A expressão no “seio de Abraão”, usada tanto por cristãos como por judeus,
corresponde a uma antiga fraseologia bíblica: “reunir-se a seus pais “, ou seja, aos três
patriarcas mais importantes, Abraão, Isaac e Jacó, além de aparecer apenas uma vez na
Bíblia, mais precisamente em Lucas 16: 22. Jesus conta a parábola de “O mau rico e o
pobre Lázaro”. Depois da morte desses dois personagens, o mendigo leproso e sofredor
é levado pelos anjos para o “seio de Abraão”, enquanto o rico egoísta segue para os
tormentos do inferno. Assim, “o seio de Abraão” seria o espaço de recompensa e do
regozijo para os bons e os sofredores. Jean Delumeau, em seu intrigante livro “O que
sobrou do paraíso?”, acrescenta ainda que, na antiguidade, o Céu era visto como jardim
de felicidade, lugar bucólico ligado ao mundo rural com colheitas ininterruptas, frutos
deliciosos e flores triunfantes. Delumeau (2003, p.124) complementa ainda que esse
jardim era considerado também como o espaço dos justos e que, em “Apocalipse de
Paulo, ele aparece como um lugar onde corre um rio de leite e mel e onde cada árvore
frutifica doze vezes por ano, dando a cada vez frutos diferentes”.
Lembrando ainda que a expressão “o seio de Abraão” também está relacionada ao
Sheol, ou, como bem explica Yehezkel Kaufmann (1989, p.313), em seu livro A
religião de Israel, seria o local para onde desce o espírito do falecido e onde ele “se
junta aos ancestrais que partiram e aos parentes”. Ou ainda, um lugar em que segundo
Kaufmann (1989, p.13) “pequenos e grandes, rei e prisioneiro, patrão e escravo dormem

1048
juntos”. Aliás, esse espaço, “seio de Abrão”, pode ser considerado ainda como
reminiscências da pós-morte grega, em que as almas, apartadas dos vivos, migrariam
para o reino de Hades, local exclusivo dos mortos. Homero (2012, p.345) nos dá notícia
desse local fúnebre, quando Ulisses desce ao mundo subterrâneo “onde os mortos
restam vazios de tino” para consultar o espírito de Tirésias, além de rever saudoso sua
defunta mãe Anticleia.
Assim, enfocando esse espaço das regalias espirituais, dos jardim dos justos, é que
o conto de Scliar se inicia. Embora narrado em primeira pessoa, o narrador irá abrir
espaço em seu discurso para que a alma abnegada do seu avô falecido, incorporada em
um médium espírita, possa contar com detalhes as benesses desse paraíso dos bem-
aventurados. A narrativa se inicia com o avô afirmando, através de um médium espírita,
o qual cobrava em dólar, que “era ótima a vida no seio de Abrão”. O narrador afirma
que sua família fazia qualquer coisa para ter notícias do finado vovô, mesmo que para
isso tivessem de recorrer ao espiritismo. Ora, as contradições e angústias do narrador
começam por aí. Se o espiritismo kardecista ensina que “desde que houve homens,
houve também espíritos e que estes têm o poder de manifestar-se” (KARDEC, 1997,
p.158), já a Torá, adverte, em Deuteronômio, que é tarefa execrável consultar os mortos:
“que em teu meio não se encontre alguém [...] que pratique encantamentos, que
interrogue espíritos ou adivinhos, ou ainda que invoque os mortos, pois quem pratica
essas coisas é abominável a Iahweh...” (DEUTERONÔMIO 18, 10-12). Mas,
ironicamente para se ter notícias do saudoso avô a família judia precisa burlar as regras
e consultar um médium.
Retomemos mais uma vez Linda Hutcheon (1991, p.43), que defende que os
textos pós-modernos “desestabilizam a convenção de maneira paródica”, apontando
tanto para os paradoxos como para o caráter provisório de quase todo conceito, a fim de
reinterpretar, complementamos, de forma crítica ou irônica, o conhecimento do passado.
Assim, Moacyr Scliar, dentro dessa perspectiva pós-modernista de desestabilizar
convenções, apresenta-nos a um grupo familiar de judeus pouco ortodoxos, que, já
aclimatados ao estilo brasileiro multifacetado, de frequentar várias religiões
concomitantemente, procuram um médium espírita para intermediar a conversa com o
avô judeu falecido. Como não lembrarmos aqui do personagem Riobaldo, quando ele
afirma sua fé sincrética em Grande Sertões Veredas:

1049
Eu cá não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo
rio... Uma só pra mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico,
embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina
dele de cardéque. Mas quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é
crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a bíblia [...] Tudo me
quieta, me suspende. (ROSA, 1994, p.16).

No caso do narrador de Scliar (1995, p.221), para aquietar sua curiosidade e


aplacar a saudade do avô, eles pagavam “uma pequena fortuna “, que era cobrada em
dólar.
O avô descreve o paraíso como “imenso, [onde] a gente pode caminhar horas e
dias, e depois a gente pode deitar, e é tão macio, tão quentinho”. (SCLIAR, 1995,
p.221). E mais: segundo o espírito do bom velho, a gente pode passar longas horas
proseando com outros homens dignos, e, embora ele não goste muito de música, pode-
se ouvir anjos que passam entoando belas melodias. Se gracejos e brincadeiras marcam
a fala do bondoso avô, que chega a dizer, pela boca do médium, que o seio do patriarca
é um matagal de pelos brancos e que de uma dessas mamas sagradas pode jorrar uma
torrente de leite morno, além de soltar a expressão chula “porra nenhuma”, há também,
em seu discurso, sofrimento e decepção, já que suas andanças pelo paraíso se resumiam
apenas ao lado esquerdo do seio de Abraão.
O avô chega a afirmar que seu desejo era transpor os pelos e as gigantescas
mamas de Abraão, verdadeiras montanhas, vales, e chegar do lado direito do paraíso.
Além disso, segundo o narrador, o “seio direito maior, ficava tão longe que [seu] avô
mal o enxergava (verdade que sua visão não era das melhores, antes de morrer sempre
falava em trocar óculos, o que acabou não fazendo: a mania de adiar, adiar)”. (SCLIAR,
1995, p.222)
Mas afinal, o que tanto queria o bondoso avô do lado direito do paraíso? Por que
ele não se contentava em apenas fazer suas caminhadas pelo jardim aprazível dos
íntegros e prosear com amigos do lado esquerdo do céu? Como ele poderia estar
tristonho vivendo num horto celestial descrito como “imenso”, “quentinho” e “macio”?
(SCLIAR, 1995, p.221).
O conto começa a ganhar um viés tragicômico, quando o leitor é informado que é
do lado direito do seio de Abraão que se encontra uma antiga namorada de seu avô, uma

1050
viúva chamada Janeta. As agruras e dissabores do Éden, advêm da solidão, do tédio e da
imensa saudade que o bom velho sente dessa senhora.
Segundo ainda o narrador, seu avô, nascido e criado na Europa Oriental, conheceu
Janeta ainda na infância. Eles eram inseparáveis, e “tudo indicava que viriam a se casar,
para a alegria dos pais e de todos” (SCLIAR, 1995, p.222); mas, aos dezoito anos, o avô
conheceu a filha de um rico comerciante, mudando assim seu destino e de Janeta. As
más línguas diziam que ele dera o golpe do baú, casando-se com a herdeira por
interesse. Quando empobrecem, o casal deixa a Europa e tenta refazer a vida no Novo
Mundo, mas o avô “nunca esqueceu a doce Janeta”. (SCLIAR, 1995, p.222). Quando,
finalmente, ele soube do falecimento da ex-namorada, “chorou muito, mas consolou-se,
dizendo: vou me encontrar com ela no seio de Abraão “. (SCLIAR, 1995, p.222).
Ironicamente, o seio de Abrão, com seus abismos, montanhas e matagal de pelos,
impede a concretização do reencontro amoroso entre o bom velho e a sua antiga paixão.
Frustrado com esse jardim do Éden que não pode lhe dar a companhia de sua
amada, o avô contenta-se, tal qual Dante no paraíso cristão, a contemplar ao longe sua
querida Beatriz, a também mirar distante, com seus olhos míopes, a linda e inatingível
Janeta, moradora também solitária do lado direito do empíreo.
O avô segue contrariando as afirmações teológicas judaico-cristãs de que no Céu a
atração pelo sexo oposto terá desaparecido, como aponta Jean Delumeau, citando Santo
Agostinho em Cidade de Deus: “pois a carne será espiritualizada” e “passar-se-á da
vetustez do corpo animal à novidade do corpo espiritual [...] revestido de
incorruptibilidade e de imortalidade”. Assim, “o desejo sexual terá desaparecido, mas a
beleza será recuperada”. (DELUMEAU, 2003, p.38).
Para Moacyr Scliar, “o seio de Abraão”, contraditório e ambíguo como a própria
condição humana, não está isento de riscos. Paradoxalmente, esse paraíso pode se
tornar, de súbito, num lugar tristonho e inóspito, principalmente quando as almas dos
justos não podem concretizar seus mais recônditos desejos. E o desejo, como bem
aponta Jacques-Alain Miller (2013, p.1), com base em Lacan, o desejo é algo inerente e
pré-formado no organismo, inscrito no real do corpo, desde sempre.

O desejo se extravia. Este é um traço que constantemente reconhecemos nele.


Desde sempre se deplorou e se censurou suas aberrações, suas
extravagâncias, suas errâncias. Tentou-se de tudo para educá-lo, regulá-lo,

1051
dominá-lo, mas em vão: ele só faz o que lhe dá na cabeça. (MILLER, 2013,
p.1).

Afinal, dizia Lacan, o desejo “é um duende travesso que nos prega peças”.
(MILLER, 2013, p.1).
É assim, portanto, que o avô, mergulhado em desejos e saudades, que nem mesmo
o paraíso conseguiu domar, assaltado pelo duende travesso do anseio amoroso,
inconformado com a ausência da mulher amada, insiste de forma insensata com sua
família para que ele também possa consultar o médium e ouvir, pelo menos uma vez, a
voz da ex-namorada, “numa espécie de triangulação telepática”. O médium avisa que
isso seria impossível e se ele teimasse nessa loucura a família pagaria “uma taxa extra,
muito alta” (SCLIAR, 1995, p.223). A família resolve ignorar o pedido do avô; afinal,
essa Janeta não era a avó deles, e mais: eles não podiam, sob pena de incorrer em
grande heresia, “estimular uma paixão espúria, sobretudo, no seio de Abraão”.
O avô então, esse anti-Orfeu desconsolado, que não pode buscar sua Eurídice no
reino dos mortos, fica dando voltas “em torno do enorme mamilo de Abraão”. A família
teme que um dia o querido vovô seja arrastado por uma torrente de leite morno que o
faria desaparecer para sempre e assim nada mais poderia ser feito por ele. Assim, a terra
que mana leite e mel, o espaço dos justos, o céu dos misericordiosos, pode de repente se
aproximar do inferno, onde os mais frágeis, os insensatos, os desejosos encontrarão o
choro e o ranger dos dentes.

Referências

A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Edições Paulinas, 1992.

DELUMEAU, Jean. O que sobrou do paraíso? Tradução de Maria Lúcia Machado. São
Paulo: Companhia das Letras, 2003.

HOMERO. Odisseia. Tradução de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2012.

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Tradução de Ricardo Cruz. Rio de


Janeiro: Imago, 1991.

KARDEC, Allan. O que é o espiritismo. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira,


1997.

1052
KAUFMANN, Y. A religião de Israel. Tradução de Atillio Cancian. São Paulo:
Perspectiva; EDUSP, 1989.

MILLER, Jacques-Alain. “Lacan, professor do desejo”. Opção lacaniana on line nova


série. Ano 4, número 12, novembro de 2013.

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
Vol. 2.

SCLIAR, Moacyr. Contos reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

SZKLO, Gilda Salem. O bom fim do Shtetl: Moacyr Scliar. São Paulo: Perspectiva,
1990.

WALDMAN, Berta. Entre passos e rastros. São Paulo: Perspectiva, 2003.

1053
TRAMAS BÍBLICAS: AS MULHERES EM CONTOS ERÓTICOS DO ANTIGO
TESTAMENTO, DE DEANA BARROQUEIRO1

Késia Oliveira (UFMG)2

Resumo: Em Contos eróticos do Antigo Testamento, publicado em 2006, a escritora portuguesa


Deana Barroqueiro reescreve dez episódios bíblicos do Primeiro Testamento, trazendo em
primeiro plano personagens femininos. Nessa recriação, a mulher que, muitas vezes, é silenciada
no cânone bíblico judaico-cristão adquire voz e torna-se ponto central das narrativas. Esta
comunicação pretende apresentar a coletânea e discutir de que forma a figura feminina é abordada
nos contos, refletindo sobre como o texto bíblico é acessado e reescrito na ficção por Barroqueiro,
atentando-se para os artifícios e as estratégias que a escritora utiliza em seu ofício no contexto da
cultura e da tradição judaica como tema.

Palavras-chave: Bíblia; Reescrita; Mulher; Deana Barroqueiro.

Em Contos eróticos do Antigo Testamento, publicado em 2006, a escritora


portuguesa Deana Barroqueiro reescreve episódios bíblicos do Primeiro Testamento,
trazendo em primeiro plano personagens femininos. Nessa reescrita, Barroqueiro se
inscreve numa tradição de escritores, da qual fazem parte Machado de Assis, Jorge Luis
Borges, Moacyr Scliar e Richard Zimler, dentre outros, que estruturam suas narrativas a
partir do texto bíblico.
Ao recriar algumas tramas bíblicas, Barroqueiro se apropria de um arquivo
considerado sagrado, total e unívoco, para o discurso religioso, como as Escrituras, mas
que, também, se constitui um legado na tradição ocidental literária sendo continuamente
reescrito, interpretado, reinterpretado, traduzido e retraduzido.
A escritora revisita a tradição bíblica sob o viés de um cronista daquele tempo, um
pouco cético, “sem crenças em Baal, Marduk ou Jahweh, interessado em recriar espaços
geográficos, ambientais, sociais e étnicos, segundo os testemunhos” (BARROQUEIRO,
2006, p. 6). Esse tipo de narrador visa conferir uma aparente credibilidade e
verossimilhança aos textos apresentados.

1
Uma versão deste texto foi apresentada IX Colóquio Mulheres em Letras: cartografias do corpo, realizado
na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais em 2017.
2
Doutoranda em Letras no Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da Universidade
Federal de Minas Gerais (Pós-Lit/UFMG). Contato: kesia@ufmg.br

1054
Em seu relato, o leitor percebe a manutenção de uma dicção religiosa que faz com
o que narrador se aproxime da figura de um compilador de fatos históricos, intentando,
assim, ser um copista fiel do texto bíblico. No entanto, apesar de se apresentar como um
historiador, o narrador reinventa e expande o texto bíblico.
O uso das Escrituras e sua reinvenção crítica são relatados na introdução da
coletânea:

Pretendi que este meu livro fosse, em parte, uma crônica histórica da
Antiguidade, ficcionada, cujo fio condutor seria a aventura dos sentidos,
através do olhar magoado das mulheres e da sua luta pela existência, num
mundo em que as descendentes de Eva eram consideradas pelos homens como
mercadoria e inferiores aos animais, conceito que perdurará ainda hoje,
perpetuado por determinadas interpretações fundamentalistas dos livros ditos
sagrados, em nome de uma verdade religiosa que nenhum Deus, bom e justo,
poderia alguma vez sancionar ou sequer tolerar (BARROQUEIRO, 2006, p.
14).

A construção do texto a partir do “olhar magoado das mulheres”, confessada por


Barroqueiro, revelaria uma relação ambivalente com o episódio bíblico em um “misto de
homenagem e de provocação, em certa medida, subvertendo os sentidos do texto sagrado,
desqualificando o sistema e código ali vigentes e, sobretudo, se inscrevendo nos
interstícios do texto bíblico, promovendo uma suplementação” (NASCIMENTO, 2015,
p. 168).
A subversão pode ser observada desde o título da coletânea. A presença da palavra
“erótico” promove certo desvio de sentido do texto sagrado ao trazer em cena episódios
nos quais a narrativa revela algum desejo e/ou alguma sensualidade em algum
personagem. O deslocamento de um texto que se propõe como total (a Bíblia) para textos
fragmentados, como o conto, também pode ser visto como um índice dessa subversão ao
sagrado. Nesse sentido, vê-se uma proposição da escritora em ficcionalizar o texto
religioso, em fragmentar verdades absolutas.
Nos dez contos da coletânea – “No início”; “Os cuidados de Abraão”; “Os reveses
de Lot”; “As agruras de Abraão”; “As provações de Judá”; “As doçuras de Booz”, “As
desditas de David”; “Os deboches de Amnon”; “As luxúrias de Salomão” e “Os langores
de Holofernes” – há algo paradoxal nos títulos em que os nomes próprios aparecem:
embora sejam personagens masculinos que estejam nos títulos dos contos, são as figuras
femininas, com seus ardis, as verdadeiras protagonistas das tramas.

1055
Em “A cicatriz de Ulisses”, Erich Auerbach, ao comparar o sacrífico do filho de
Abraão, descrito em Gênesis, com o episódio do retorno de Ulisses, narrado em Odisseia,
destaca um laconismo da narrativa bíblica:

Não é fácil, portanto, imaginar contrastes de estilo mais marcantes do que


estes, que pertencem a textos igualmente antigos e épicos. De um lado,
fenômenos acabados, uniformemente iluminados, definidos temporal e
espacialmente, ligados entre si, sem interstícios, num primeiro plano;
pensamentos e sentimentos expressos; acontecimentos que se desenvolvem
com muito vagar e pouca tensão. Do outro lado, só é acabado formalmente
aquilo que nas manifestações interessa à meta da ação; o restante fica na
escuridão. Os pontos culminantes e decisivos para a ação são os únicos a serem
salientados; o que há entre eles é inconsistente; tempo e espaço são indefinidos
e precisam de interpretação; os pensamentos e os sentimentos permanecem
inexpressos: só são sugeridos pelo silêncio e por discursos fragmentários”
(AUERBACH, 2002, p. 9.)

“O que fica na escuridão”, como o trecho aponta, incentiva o leitor à interpretação,


e se torna matéria literária para Barroqueiro, pois a escritora revisita os episódios da
Bíblia, preenchendo com ficção as lacunas do texto bíblico. Apropriando-se do texto
sagrado, ela circunscreve naquilo que não foi dito, visto que muitas das mulheres bíblicas
são personagens retratadas superficialmente, emergindo apenas pontualmente ao executar
uma ação em algum relato, e, logo, desaparecem, exigindo, assim, que o leitor imagine o
resto da história.
Nessa perspectiva, Barroqueiro se inscreve no está implícito nessas lacunas e dá
prosseguimento às histórias de Noé, Jacó, Isaque, Abraão, Salomão por meio de um olhar
feminino que se realiza a partir da visibilidade atribuída a mulher na narrativa trazendo
em cena as histórias sobre Sara, Ester, Lia, Raquel.
Nessa recriação, a mulher que, muitas vezes, é silenciada no cânone bíblico judaico-
cristão adquire voz e torna-se ponto central das narrativas, como Agar, a escrava egípcia,
e Judite, cuja história está presente na tradição judaica, mas ausente na Bíblia hebraica e
protestante.
As personagens dos contos possuem narrativas que chegam se constituir uma
história independente da Bíblia, como Judite, analisada no artigo “Mulheres que matam”,
de Lyslei Nascimento, que “será [na Bíblia] a casta viúva que libertou o seu povo dos
grilhões assassinos de Holofernes, mas para o leitor [do conto de Barroqueiro], a
articulação do crime com a vingança e desta com a justiça é colocada sob suspeita]”
(NASCIMENT0, 2015, p. 171) ou Davi, que ao contrário do relato bíblico no qual o

1056
personagem é apresentado como um pastor de ovelhas, um herói escolhido por Samuel
para ser rei em substituição a Saul, é retratado, em “As desditas de Davi”, como “muito
idoso, de idade tão avançada que a sua velha carne já não aquecia [..] cheio de pontadas
no peito e dores nos ossos, todo tolhido de reumático” (BARROQUEIRO, 2006, p. 160).
No relato bíblico, Davi é um homem destemido, que ao encontrar um animal feroz,
“o perseguia e o atacava pela juba, o feria e matava, tal como fora feito contra Golias”, já
no conto de Barroqueiro, o narrador afiança que “uma mulher formosa sempre teve o dom
de transformar o rei David no jovem herói capaz de matar Golias, o gigante filisteu.”
Nota-se, por esse trecho, que o narrador desloca a força de David atribuindo-a para a
figura feminina, promovendo, assim, uma ruptura com a tradição bíblica, invertendo o
papel secundário, muitas vezes, atribuído à mulher.
Essa inversão permeia toda a coletânea, como relata a escritora:

O Velho Testamento, através do Livro do Génesis (e não só dele), mostra uma


visão extremamente depreciativa das mulheres, rebaixando-as ao estatuto de
seres inferiores e pecaminosos, menos inteligentes do que os homens, a quem
devem obediência cega, por mais infames que eles sejam. Eu procurei
transformar essas lendas e milagres em relatos históricos, como um cronista,
contextualizando-os segundo a época, os costumes e a mentalidade desses
povos da Antiguidade pré-clássica, que levei bastante tempo a estudar, e que
são apresentados segundo o ponto de vista dessas mulheres que nunca tiveram
voz (BARROQUEIRO, 2006, p. 6).
Ao trazer esse ponto de vista feminino, Barroqueiro traz, ainda, para a cena, uma
história vista de baixo, na qual as mulheres que possuem suas histórias ignoradas e/ou
emudecidas, sendo, muitas vezes, consideradas como “agentes de Satã”, como evidencia
o estudo de Jean Delumeau, passam a ser ouvidas, como é possível ver no conto que
reescreve a criação bíblica.
Se em uma das versões do Gênesis, a mulher é criada a partir da costela de Adão
com o objetivo de lhe ser uma ajudadora idônea, pois não seria bom que o homem
estivesse só, no conto de Barroqueiro, Deus

na euforia que se seguiu, não vendo entre todos os animais desse Mundo uma
companheira adequada para oferecer à Sua criatura, caíra na tentação de dar
vida a um novo ser, feito à imagem do anterior, mas aperfeiçoando o modelo
com a introdução de pequenas mais significativas diferenças. Como desejava
um material mais raro do que o pó utilizado na primeira tentativa, adormeceu
profundamente o homem, nas margens do Rio Tigre que limitava a Oriente o
jardim do Éden, e tirou-lhe uma das costelas que substituiu por carne,
esculpindo a partir do osso uma nova criatura em forma de Mulher. Ao
comtemplar a Sua obra, Deus achou-a tão bela que, em vez de lhe soprar a vida
pelas narinas como fizera ao Homem, lha insuflou através dos lábios beijando-

1057
a e, com surpresa, sentiu pela primeira vez o Seu espírito vibrar de emoção
nesse fugaz contato com a matéria.” (BARROQUEIRO, 2006, p. 11).
Ao acessar o texto sagrado, a escritora recria-o, como o trecho evidencia, mantendo
sua versão próxima, em dicção, ao texto bíblico, criando, assim, uma composição que se
aproxima da técnica do pastiche, conceito que, segundo Carlos Ceia, insere-se no campo
modernista da colagem e do reaproveitamento de moldes.
Esse reaproveitamento aponta para a literatura contemporânea, o escritor e o seu
ofício, como afiança Wander Melo Miranda: “O que resta [aos escritores], de novo, senão
a pilhagem e o pastiche ao infinito de estilos os mais variados – eruditos ou populares –
para que o silêncio seja vencido, para que histórias possam ainda ser contadas?”
(MIRANDA, 2010, p. 132). O saque e a pilhagem, bem como a ideia do pastiche de textos
e estilos, apontados por Miranda, evidenciam o texto literário, especialmente o
contemporâneo, e sua estreita relação com o passado, que é revelado nas reescritas
bíblicas que se configuram como textos do presente que se articulam com vestígios do
passado, com reminiscências de textos anteriores, cabendo ao escritor, assim, rearticular
essa memória.
O pastiche nos contos de Deana Barroqueiro, desse modo, parece se dar a partir da
emulação do discurso bíblico encenado pelo narrador cronista, que incorpora certa dicção
dos escribas bíblicos, pondo em evidência o fazer literário como um trabalho de reescrita.
Na esteira de Julia Kristeva, para quem “todo texto se constrói como mosaico de citações,
todo texto é absorção e transformação de um outro texto” (KRISTEVA, 1974, p. 64),
Antoine Compagnon afirma que a escrita literária é sempre um trabalho de citação, ou
seja, um exercício de intertextualidade. Essa premissa, ao colocar em evidência o diálogo
entre os textos e a apropriação como estratégia de construção literária, permite ao leitor
pensar que toda narrativa ressoaria o rumor de outros textos.
Nessa perspectiva, esses “outros textos” são, em Contos eróticos do Antigo
Testamento, uma série de narrativas extraídas do Primeiro Testamento. Ao se apropriar
do arquivo bíblico, Barroqueiro cria desvios que podem fazer soar uma multiplicidade de
vozes e uma fragmentação de verdades tidas como absolutas, tensionando a relação do
escritor com a tradição, que parece se dar pela fidelidade, autenticando-a, transmitindo
um modelo, ou pela traição, alterando-a.
Se para Ricardo Piglia, a partir das reflexões de Tzvetan Todorov, o conto sempre
encerra duas histórias, uma subjacente à outra, “uma história visível esconde uma história

1058
secreta, narrada de um modo elíptico e fragmentário” (PIGLIA, 2004, p. 90), ao realizar
um pastiche do texto bíblico, a escritora evidencia uma história dos detalhes, que se afasta
das monumentalidades, constituindo, assim, uma espécie de história vista de baixo, para
usar o termo do estudo de Jim Sharpe, ressignificando, desse modo, a presença e o
significado da figura feminina na Bíblia, cuja existência no cânone bíblico é
frequentemente silenciada ou mencionada apenas de passagem, como aqui apontado.
Contos eróticos do Antigo Testamento, assim, revela, ao leitor, as múltiplas possibilidades
de interpretações das tramas e sentidos da tradição judaica-cristã.

Referências

AUERBACH, Erich. A cicatriz de Ulisses. In: ______. Mimesis: a representação da


realidade na literatura ocidental. Trad. Jacó Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2002. p.
1-20.

BARROQUEIRO, Deana. Contos eróticos do Antigo Testamento. São Paulo: Aquariana,


2006.

BÍBLIA DE JERUSALÉM. Nova edição, revista e ampliada. Trad. Euclides Martins et


alii. São Paulo: Paulus, 2010.

BUCHMANN, Christina; SPIEGEL, Celina (Org.). Fora do jardim: mulheres escrevem


sobre a Bíblia. Trad. Tania Penido. Rio de Janeiro: Imago, 1995.

CEIA, Carlos. Pastiche. In: CEIA, Carlos (Coord.) E-Dicionário de termos literários.
Disponível em: http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/pastiche/. Acesso em: 13 jul. 2019.

COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Trad. Cleonice P. B. Mourão. Belo


Horizonte: Editora UFMG, 1996.

DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente, 1300-1800: uma cidade sitiada. Trad.
Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

ECO, Umberto. O sagrado não é uma moda. In: _____. Viagem na irrealidade cotidiana.
Trad. Aurora F. Bernardini e Homero de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
p. 110-116.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Trad. Rogério


Fernandes. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.

GUINSBURG, Jacó. Da mulher na Bíblia. Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos


Judaicos da UFMG. Belo Horizonte. v. 7, n. 12, p. 74-84, mar. 2013. Disponível em:

1059
<http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/maaravi/article/view/4719/4398>.
Acesso em: 13 jul. 2019.\

KRISTEVA, J. Introdução à semanálise. Trad. Lucia Helena França Ferraz. São Paulo:
Perspectiva, 1974.

MIRANDA, Wander Melo. Nações literárias. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2010.

NASCIMENTO, Lyslei. Mulheres que matam. In: JEHA, Julio; JUÁREZ, Laura;
NASCIMENTO, Lyslei. Crime e transgressão na literatura e nas artes. Belo Horizomte:
Editora UFMG, 2015. p. 155-172.

SHARPE, Jim. A história vista de baixo. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da história:
novas perspectivas. Trad. Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1992. p. 39-62.

SOUZA, Eneida Maria de; MIRANDA, Wander Melo (Org.). Crítica e coleção. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2011.

PIGLIA, Ricardo. Teses sobre o conto. In: ______. Formas breves. Trad. Josely Vianna
Baptista São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 89-94.

1060



UMA FOTOGRAFIA EM MINHA MENTE:
TEREZÍN, DE DANIEL BLAUFUKS

Lyslei Nascimento (UFMG)1

Resumo: A contrapelo de uma estratégia perversa de monumentalização, principalmente a que


se refere a institucionalização de alguns “lugares da memória”, o conjunto da obra do fotógrafo
e escritor português Daniel Blaufuks denuncia a “banalidade do mal” que, na memória oficial,
muitas vezes, pode se inscrever. Ao revés desse posicionamento revisionista, perverso e a-
histórico, Terezín, de Daniel Blaufuks, publicado em 2010, põe em cena uma denúncia contra o
excesso e o acúmulo que, no contexto contemporâneo, provocam uma insensibilidade dos
sentidos. Desde o título, Blaufuks expõe o leitor a um espaço de dor e de morte deslocado e
ressignificado.
Palavras-chave: Memória; Fotografia; Terezín.

Assim como há amores inesquecíveis, há


pesadelos irremediáveis. O holocausto é o
pesadelo de nosso fim de século. Depois de
saber-se que ele foi possível, como, mesmo
de um ponto de vista estritamente profano,
ainda seria possível levar a sério uma
história evolucionista da espécie humana?
(Luiz Costa Lima)

A contrapelo de uma estratégia de perversa monumentalização, principalmente a


que se refere a institucionalização de alguns “lugares da memória” (ACHUGAR, 2006,
p. 167-183) o conjunto da obra do fotógrafo e escritor português Daniel Blaufuks
denuncia a “banalidade do mal” (ARENDT, 1999) que, na memória oficial, muitas
vezes, pode se inscrever. Essa prática impõe, sob ambíguos artifícios, uma memória
institucionalizada que pode ser produzida para o esquecimento.
Em 1986, por exemplo, foi instalado em Hamburgo uma obra de arte das mais
espantosas, o “Monumento contra o Fascismo”. Concebido para desaparecer, esse
trabalho, de Jochen e Esther Shalev-Gersz, é, como afirma Márcio Seligmann-Silva, um
antimonumento (SELIGMANN-SILVA, 1999, p. 42-63). O público, entusiasmado por
ser chamado a ser “coautor”, participou dessa espécie de epitáfio da memória,
escrevendo, nela, palavras antifascistas, manifestações pacifistas e, claro, palavras de


1
Doutora em Letras: Estudos Literários (UFMG), Professora de Teoria da Literatura e
Literatura Comparada da Faculdade de Letras da UFMG. Contato: lyslei@ufmg.br

1061



ordem e de ódio neonazistas. A coluna de aço, com cerca de 12 metros de altura,
recoberto por uma película de chumbo, foi, aos poucos, enterrada, até desaparecer
completamente em 1993.
Talvez, para esses artistas, na Alemanha, onde o memorial foi concebido para
ser enterrado, não haja como fugir desse tipo de manifestação. Essa antimemória se
configura como uma performance coletiva que instala monumentos artísticos e
literários, em certo sentido, buscando, pelo menos no que se refere à opinião publica
mundial, uma imaginada reparação da nação alemã a aqueles que foram trucidados pelo
nazismo, ou, ainda, explorando, tanto política quanto turisticamente, marcos espaciais
do terror nazista. É preciso não perder de vista, também, que o trabalho citado inscreve-
se em de uma série de práticas e políticas que propõe um tipo de superação pelo
esquecimento, muito comuns em nossos dias. Essas estratégias fundamentam-se,
astuciosamente, sobre a institucionalização de memoriais. Inúmeros, eles causam a
vertigem do acúmulo, logo, sua consequente anulação.
Diante do soterramento da lembrança, sob camadas, sobreposições e
relativizações de sentidos, cega-se o olhar, ensurdessem-se os ouvidos, emudecem-se a
voz, anula-se a empatia e a vítima é, muitas vezes, intencionalmente, confundida com o
algoz. Ao revés desse posicionamento revisionista, perverso e a-histórico, Terezín, de
Daniel Blaufuks, publicado em 2010, põe em cena uma denúncia contra o excesso e o
acúmulo que, no contexto contemporâneo, provocam uma insensibilidade dos sentidos.
Desde o título, Blaufuks expõe o leitor a um espaço de dor e de morte deslocada
e ressignificada. Situada ao norte de Praga, Terezín é duas vezes marcada por uma
catástrofe. Os nazistas estabeleceram lá um gueto e um campo de concentração que,
com algumas características muito específicas – para esses lugares foram enviados
artistas e intelectuais – pretendiam, a partir de uma ideia de espaço-modelo, iludir a
comunidade internacional. Para uma inspeção da Cruz Vermelha em 1944, uma farsa foi
montada por intermédio de uma ação de embelezamento da cidade. A densidade
populacional foi diminuída, as fachadas das casas foram pintadas, jardins foram
plantados, cafeterias e lojas foram maquiadas. Criou-se, nesse lugar de confinamento,
um banco e um centro comunitário com auditório, biblioteca, sinagoga.
Uma cidade, assim, foi forjada pelos nazistas para que o relatório da comissão
lhes fosse favorável. Tão positivo foi esse relatório que a Cruz Vermelha, enganada por

1062



essa farsa, desistiu de inspecionar outros campos (BOSI, 1999). Os nazistas produziram,
na sequência, uma das peças do seu acervo cinematográfico mais escandalosa: O Führer
oferece uma cidade aos judeus. Rodado em 1944, o filme de propaganda “dirigido pelo
judeu alemão Kurt Gerron, veterano homem de cinema, que havia atuado em O anjo
azul ao lado de Marlene Dietrich, e dirigido vários filmes com Hans Albers nos anos
1930” (NAZARIO, 2006, p. 152-177).
Para Luiz Nazario:
Numa macabra encenação, Gerron, que fugira da Alemanha em
1933, mas fora detido na Holanda ocupada, agora preso em
Theresienstadt, foi convocado como “diretor de atores” e aceitou
a incumbência na esperança de salvar sua vida. [...] Gerron
dirigiu os outros prisioneiros, maquiados para encobrir seu
verdadeiro estado físico, obrigados a simular bem-estar
“interpretando” homens livres de qualquer constrangimento.
Uma completa farsa foi montada, com reforma cenográfica do
campo, “embelezado” para que o mundo pudesse testemunhar “a
vida opulenta dos judeus” sob o nazismo. Súbitos
“melhoramentos” apareceram no campo: lojas foram
construídas, ruas pavimentadas, barracas ornadas com vasos de
flores nos alpendres, janelas ganharam cortinas novas, cantinas e
mesas ficaram bem guarnecidas. [...] Apresentado como uma
colônia de férias, o campo de concentração parecia agora abrigar
“hóspedes” que passavam as manhãs em oficinas especiais e as
tardes e noites organizando concertos, partidas de futebol e
outros jogos, se instruindo numa fornida biblioteca. Terminadas
as filmagens, os “cenários” foram desmontados e os “atores”
assassinados; Kurt Gerron foi deportado para a Polônia, onde
morreu gaseado em Auschwitz em outubro de 1944, assim como
a maioria dos figurantes, incluindo todas as crianças que
atuaram no experimento nazista de sadismo cinematográfico (p.
160).
Estão, portanto, em cena, uma “macabra encenação”: a manipulação de imagens,
sons e textos que, na construção de mentiras que parecem verdades (BONAZZI; ECO,
1980), visam adulterar a memória e obliterar o direito e a justiça que ali foram
ignoradas. Perversamente, o cinema e os seus recursos de expressão foram usados para
isso. Nazario chama a atenção para todos esses “efeitos” que, ao final, vão dar em
Auschwitz: a rede de campos de concentração operados pelo Terceiro Reich e pelos
colaboracionistas localizados no sul da Polônia, e considerado o maior símbolo da
Shoah perpetrado pelo nazismo durante a Segunda Guerra Mundial.
Terezín é, pois, o livro de um fotógrafo/escritor ou de um escritor/fotógrafo que,

1063



nessa dupla, ou talvez múltipla condição, desconfia e faz o leitor, ou o espectador,
desconfiar de imagens e de textos que são oferecidos ao olhar (GOMES, 2010). A
primeira vez que Blaufuks viu uma imagem de Terezín foi, segundo afiança
(BLAUFUKS citado por GOMES, 2014), no romance Austerlitz, de W. G. Sebald
(2008).
Considerado como um dos mais importantes romances do século, Austerlitz pode
ser lido como a “crônica de um homem em busca de sua biografia”. A partir do ponto
de vista de um narrador em primeira pessoa, acompanhamos os seus encontros com o
professor Jacques Austerlitz, que viaja pela Europa, ao sabor do horário dos trens e da
erudição acadêmica, coletando material fotográfico para suas pesquisas. Numa de suas
viagens, ele é subitamente tomado por uma visão que lhe causa um sentimento
incômodo de ter vivido sempre uma vida alheia. A partir dessa experiência, ele passa a
reconstruir, em suas viagens, fotografias e memória, a própria história, descobrindo e
reconstruindo sua biografia.
Para cumprir essa tarefa, que se mostra, desde o início, impossível de ser realizada
completamente, o narrador deixará que o relato do professor Austerlitz vá, entrelaçando
o passado e o presente da narrativa, países e cidades em cenários dos mais díspares –
como um seu lar adotivo, com pais severos e protestantes, no interior de Gales, um
internato britânico, uma biblioteca em Paris, campos de concentração, monumentos e
banheiros públicos – com a história europeia no século XX. Entre relato de viagem,
memória, ficção e, porque não dizer, um álbum de fotografias, o personagem vê-se onde
tudo começou, com outro nome, outra língua, numa estação ferroviária, quando os
horrores da Segunda Guerra e da Shoah começavam a se anunciar. O romance Austerlitz
é, pois, um tapete, um quebra-cabeças, entremeando fotografias, que não se deixam
decifrar – de objetos, de cartões-postais e de lugares que não são identificados – e que
não ilustram a história, mas compõem um mosaico sem um fio condutor que o unifique.
O texto introdutório a Terezín, de Blaufuks, intitulado “A fotografia em minha
mente”, funciona como uma rede de remissões e uma chave da poética contemporânea.
A partir desse recurso metalinguístico, o fotógrafo/escritor ou o escritor/fotógrafo
aponta, não só para a intrínseca relação entre imagem e texto, mas também para uma
reflexão sobre a atuação do artista e do seu ofício diante de um mundo que, muitas
vezes, inebriado e “seduzido pela memória” (HUYSSEN, 2000) a institui,

1064



paradoxalmente, como uma forma de esquecimento.
Em Terezín, de Blaufuks, o romance de Sebald dá-se, assim, explicitamente, como
uma citação:
A primeira imagem que eu vi do campo de Terezín,
anteriormente conhecido como Theresienstadt, a uma hora de
carro de Praga, estava em um livro do escritor alemão W. G.
Sebald. A fotografia é uma imagem mal impressa, granulada em
cinza e branco no final do livro. Quase como uma fotocópia, ela
retrata um espaço que parece ser um escritório. Há uma mesa de
trabalho no meio da sala com quatro cadeiras à sua volta. Uma
pequena escrivaninha com uma cadeira está perto da parede
direita e há um relógio acima dele na parede, posicionado para
que quem estiver sentado na escrivaninha esteja sempre ciente
do movimento constante do tempo. A escrivaninha tem gavetas
no lado direito. Abaixo do relógio, há um pequeno objeto não
identificável, provavelmente um dispositivo de controle de
aquecimento. Há uma porta escancarada quase no centro da
imagem, mas não podemos ver nada fora do cômodo, não temos
ideia de onde este espaço está localizado. A luz vem do lado
esquerdo da imagem, de forma que se tome conhecimento da
existência de uma janela do lado oposto da porta, embora ela
esteja fora da imagem. A luz cai diretamente sobre a mesa vazia
e as sombras no chão de madeira são longas, dando a impressão
de que a foto foi tirada no final da tarde. De acordo com o
relógio, são exatamente seis horas (BLAUFUKS, 2010).
A referência a Austerlitz aparece no texto a partir de um elo importante: a imagem
da escrivaninha. Essa evocação, constitui-se como uma o exercício explícito de citação
e leitura. O artista e fotógrafo português, como leitor, cria, assim, um franco diálogo
com o escritor alemão, puxando, por evocação, fios insuspeitos e, ao recortar o
romance, inscreve-o em outro espaço, à história que está contando. Blaufuks começa,
desse modo, por examinar, obsessivamente, essa imagem, ampliando algumas zonas,
recortando outras, como se fizesse da escrita uma autópsia, ou seja, um exame detalhado
de si e do outro. A fotografia é, no entanto, “uma imagem mal impressa, granulada em
cinza e branco no final do livro”. Parte-se, assim, de uma do mal-impresso, do
granulado e daquilo que vem ao final para se deslocar, ilusoriamente, o que é
importante, do centro da perspectiva, para as margens ou para o final, e da noção de
total para a de fragmentação.
Essa estratégia aponta, então, para a “má impressão”, no sentido que Jacques
Derrida propõe em Mal de arquivo (2001), quando postula, no campo semântico que

1065



articula tipografia, tinta, papel, um suporte material da memória que, no entanto, é
submetida à desconfiança de sua integridade, ou seja, daquilo que se apresenta como
inteiro ou original. Daí que a referência a uma “quase fotocópia”, também lança dúvida
sobre a autenticidade, ou originalidade, dos textos e dos intertextos usados pelo autor e
da manipulação que faz deles.
Terezín, dessa forma, se aproxima de outro livro de Blaufuks, Sob céus estranhos,
publicado em 2007. Nesse livro, a maior parte das imagens utilizadas não eram, de fato,
dele. Eram fotografias de fotografias de família, documentos e memórias alheias
rearranjadas como próprias. Em fotografia, esse rearranjo, adverte o fotógrafo, se chama
after image,2 isto é, trabalha-se a partir de imagens pré-existentes, mas que criam um
novo corpus. As imagens criam, ad infinitum, outras imagens, não originais, mas outras,
apesar de continuarem a ser as mesmas. Para o fotógrafo, “quando já existem imagens
não vale a pena chover sobre chão molhado, não vale a pena fotografar aquilo que já
está fotografado, será mais interessante utilizá-las de outra forma ou com outra visão”
(BLAUFUKS citado por GOMES, 2014).
Sobre livros que tematizam os campos, ele afirma:
Nunca quis fazer livros sobre campos de concentração, com
imagens de campos de concentração. Acho que isso já foi feito,
e muito bem, no seu tempo – já não cabe à minha geração fazê-
lo. As poucas imagens que existem minhas dentro do livro
apenas lhes dão uma certa alma que não teriam de outra maneira
(BLAUFUKS citado por GOMES, 2014).
A tarefa infinita do escritor, de acordo com o Blaufuks, não seria a tomada de
novas imagens dos campos, mas a recombinação de imagens (ou textos), o rearranjo do
já dito, do já enunciado. “Nunca estive interessado na fotografia como obra única”,
acrescenta Blaufuks. “Não me interessa uma fotografia; interessa-me uma fotografia
como parte integrante de um projeto e de um contexto” (BLAUFUKS citado por
GOMES, 2014). Além disso,
há fotografias que não me interessam nada como fotografias, são

2
O filme Afterimage, de Andrzej Wajda, 2017, narra a história do artista plástico Wladyslaw
Strzeminski, perseguido na União Soviética por fazer oposição ao Realismo Socialista
(movimento artístico, basicamente estruturado como uma forma de propaganda dos ideais
soviéticos). As memórias, especialmente visuais, não são, no entanto, apagadas com a
destruição de obras de arte pelos agentes soviéticos, nem, tampouco, impedindo o artista de
continuar seu trabalho, ao contrário, são rearranjadas como uma fábula da permanência da arte e
de sua importância para a humanidade. Cf. GUIMARAES, 2017.

1066



más fotografias, se quisermos, mas que se integram no meu
discurso. Um livro de um escritor não é feito apenas de belas
palavras ou de frases bonitas, é preciso outras para sustentar o
"corpus" e a linearidade do texto. Nesse sentido, todas as
fotografias servem [para] o mesmo fim. Haverá umas que se
destacam mais do que outras de uma forma estética mas que,
sozinhas, para mim, não teriam muito interesse. As fotografias
não servem para decorar paredes. As minhas fotografias, no
fundo, são as ruínas do tempo, são o testemunho do tempo que
passou. Penso que o meu trabalho também é sobre encontrar
ordem num certo caos (BLAUFUKS citado por GOMES, 2014).
Projeto e contexto são, portanto, para Blaufuks estratégias de construção de sua
obra, mesmo que ele mesmo a defina, paradoxalmente, como “ruínas do tempo”. Quase
como uma fotocópia, assim, a fotografia recortada de Austerlitz e reinscrita em Terezin,
revela, com o uso do advérbio “quase”, um espaço que parece ser o de um escritório.
Instaura-se, assim, uma quase fotografia de um lugar que parece ser. Essa condição
débil das certezas põe em xeque o saber e a verdade instituídos, inclusive pela imagem.
A memória, com suas perdas, danos e evocações, torna-se frágil e ao sabor da
leitura, portanto, da interpretação, reforçando o apelo à suspeita em relação à imagem.
A imagem que aparece no livro de Sebald (e ele não diz de onde é) e que reaparece,
quase fantasmaticamente, em Terezín, torna-se, assim, uma potencialidade, não uma
afirmação, de que ela, de forma subjacente, possa ser a de uma sala no campo de
Terezín. Blaufuks avalia o uso que Sebald faz da imagem:
Nada no Sebald é explícito, tudo no Sebald é coincidência sobre
coincidência e quando achamos que é mentira o que ele está a
dizer, ele põe-nos uma imagem que aparentemente prova que é
verdade –como se uma imagem não pudesse ser também uma
mentira. Essa imagem é toda uma espécie de encenação. Como
eu escrevo no livro, há um relógio que está parado exactamente
às seis da tarde, os ponteiros estão verticais, há um lado vazio
naquele espaço de escritório que, a mim, desde o início, me
lembrou uma peça de teatro. Foi isso que me provocou mais
estranheza dentro daquela sala (BLAUFUKS citado por
GOMES, 2014).
Também essa é uma estratégia de Blaufuks. Ele, ao se apropriar da imagem de
Sebald, o faz para fazer convergir para uma rede (não um centro enunciador) um saber
histórico, artístico, literário que, antes, põe em dúvida, do que afirma a complexidade
dos nós das histórias, das verdades ou do próprio saber ali inscrito:
Não podemos confiar nas imagens. Como fotógrafo, sou o

1067



primeiro a dizer isso. As minhas fotografias são completamente
subjectivas. Não há objectividade na fotografia, não existe. A
maior parte das fotografias de reportagem até há bem pouco
tempo eram a preto e branco. A ideia de que uma fotografia a
preto e branco pode ser realista é uma mentira absoluta na qual
todos nós acreditamos a certo ponto. Como é que uma fotografia
a preto e branco pode ser realista e documentar a verdade se nós
vemos a cores? A partir daí, tudo é uma sucessão de mentiras.
As imagens mentem, mentem, mentem. Estão sempre a mentir
(BLAUFUKS citado por GOMES, 2014).
Sebald, assim, ao afirmar a literatura como um lugar de tensão entre o escrito e o
não escrito, entre verdades e mentiras, não é só o ponto de partida para Blaufuks, mas
uma “figura tutelar” do projeto do escritor/fotógra que, segue, desse modo, uma
estratégia de Sebald ao fazer integrarr imagens nos seus livros, conjugando-as aos textos
escritos, fazendo com que elas adquiram uma função quase paradoxal. Por um lado,
parecem confirmar o que é descrito no texto, por outro, instalam a incerteza no leitor,
questionando a faculdade documental das imagens (BLAUFUKS citado por GOMES,
2014). Para Blaufuks, onde Sebald insere uma fotografia para provocar um desejo de
comprovação, ele faz o contrário, quer dizer, ele insere um texto para fazer o leitor
duvidar das fotografias. Seria, assim, “uma estratégia paralela a de Sebald, mas
contrária”, avalia (BLAUFUKS citado por GOMES, 2014).
Na fotografia e no texto, aparece, despretensiosa em sua simplicidade, a imagem,
no entanto, eloquente de uma escrivaninha. Essa evocação, em Blaufuks, constitui-se
como uma o exercício explícito de leitura, fazendo despertar aqueles sentidos que, em
outras expressões contemporâneas podem parecer adormecidas ou dormentes.
Ao ser reenviado reiteradamente ao romance de Sebald, o leitor deve levar em conta a
fragilidade das verdades ali contidas, os níveis de enunciação e os desníveis de
informação que, naquela história, reforçam o caráter ficcional do texto. Na citação de
Sebald, tal qual em Blaufuks, a condição do narrador é a de um leitor que, numa sala de
leitura, está lendo uma revista de arquitetura às seis da tarde. O cenário, portanto, ou a
cena de leitura, dá-se, pois, encenando, metalinguisticamente, a “arquitetura” do texto
que está sendo construído, estrategicamente, com imagens e textos, em uma hora em
que, entre o dia e a noite, projetam-se sombras e luzes sobre a escritura. A essa cena
vislumbra-se a lembrança, em segundo plano, das enigmáticas narrativas do Professor
Austerlitz, que, como já foi dito, vêm entremeadas pelo discurso dentro do discurso, em

1068



vários planos, do narrador.
Em Seis propostas para o próximo milênio, na proposta dedicada à visibilidade,
Italo Calvino afirma, que
o poeta deve imaginar visualmente tanto o que seu personagem
vê, quanto aquilo que acredita ver, ou que está sonhando, ou que
recorda, ou o que vê representado, ou que lhe é contado, assim
como deve imaginar o conteúdo visual das metáforas de que se
serve precisamente para facilitar essa evocação visiva
(CALVINO, 1990, p. 99).
Essa ponderação aproxima-se à realização de Blaufuks, na medida em que projeta
um leitor que precisa levar em consideração que, na literatura, no imaginar, no sonhar,
no recordar, no representar, no contar, a imagem é uma estratégia narrativa que é
determinada por textos preexistentes que abrem um “campo de possibilidades infinitas,
de aplicações da fantasia individual, na figuração de personagens, lugares, cenas em
movimento.” (CALVINO, 1990, p. 102).
Essa recriação a partir da leitura, da vida arquivada ou da verdade
imaginariamente vivida, relativiza o texto que é constituído de citações, imagens e
textos, próprios e alheios. Estaria, pois, o leitor, assim, diante de um fotografo-escritor
que constrói a sua obra com o que encontra (o arquivo familiar e todos os restos e ruínas
de textos precursores, do passado), monta com alfinetes, ajusta (reinventando,
reescrevendo e reinscrevendo em outro contexto, realizando outra inscrição); como uma
costureirinha (COMPAGNON, 1991, p. 30).
A imaginação do leitor/escritor que atua sobre a imagem é, para Calvino, “um
repertório do potencial, do hipotético, de tudo quanto não é, nem foi e talvez não seja,
mas que poderia ter sido.” (CALVINO, 1990, p. 106). Logo, matéria para narrativas
outras (em rede, em entrelaçamento de repertórios, línguas, espaços, memórias), um
escritor leitor se “apropria”, “toma de empréstimo” textos e imagens para compor seu
próprio texto e, nesse sentido, não faz soterramento desses intertextos, mas com eles
estabelece um diálogo, convidando o leitor a mergulhar nessa confluência de vozes.
A partir dessas reflexões, a imagem da escrivaninha retorna, de forma inequívoca
apontando para o escritor e o seu ofício. Em A câmara clara, Roland Barthes avalia que
não é a informação, o sentido fechado, dirigido, que o toca numa fotografia, mas um
detalhe que corta a leitura unívoca, linear; um choque, um distúrbio, que fere tanto o
leitor quanto o espectador (BARTHES, 1984). Em Austerlitz, de Sebald, a imagem que

1069



provoca o efeito tanto do detalhe que punge, quanto da multiplicidade que deixa
entrever uma rede de conexões entre autores, imagens, textos, é a escrivaninha que é
revisitada por Blaufuks em Terezín.
A definição do dicionário é funcional e, por vezes, excessivamente asséptica. A
escrivaninha de alguns escritores, mesmo em sua austeridade quase rústica, não aponta,
no entanto, para o silêncio. Ao contrário, elas podem fazer falar, como metonímias para
o que sobrevive, em multiplicidade, o apelo da escrita, ou da escritura, no sentido de
atribuição do texto escrito à impressão, como queria Derrida (2001).
A imagem da escrivaninha que Blaufuks recorta do romance de Sebald coaduna-
se com a obra do escritor como colecionador e arquivista de imagens que se imbricam,
que falam e fazem falar também o leitor/espectador. Diferentemente das escrivaninhas
de escritores renomados, na anônima austeridade da imagem da mesa de escrever que
Blaufuks recorta de Sebald, há algumas presenças angustiantes: as paredes totalmente
recobertas de escaninhos, que circundam a escrivaninha, colocada não se sabe onde; o
relógio que marca o tempo inclemente e o dispositivo de aquecimento.
A escrivaninha deixa vislumbrar, desse modo, uma dupla natureza do artista, a do
seu ofício e a do imperativo de criar mesmo diante do luto. Essa, portanto, não é uma
imagem fixa, congelada no tempo, ou paralisante. A escrivaninha de Terezín, de Daniel
Blaufuks, faz entrever a luz que vem de fora (uma janela) uma consciência do tempo
(passado, presente e futuro) evidenciada pelo relógio que pende na parede, bem como a
da temperatura dos dias, pelo dispositivo de aquecimento. Por intermédio dessa
escrivaninha a literatura continua viva.
Referências

ACHUGAR, Hugo. O lugar da memória: a propósito de monumentos (motivos e


parênteses). In: ______. Planetas sem boca: escritos efêmeros sobre arte, cultura e
literatura. Trad. Lyslei Nascimento. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. p. 167-183.
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal.
Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Trad. Júlio Castañon
Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
BLAUFUKS, Daniel. Sob céus estranhos. Lisboa: Tinta Negra, 2007.
BLAUFUKS, Daniel. Terezín. Lisboa: Tinta da China; Göttingen: Steidl, 2010.

BONAZZI, Marisa; ECO, Umberto. Mentiras que parecem verdades. Trad. Giacomina

1070



Faldini. São Paulo: Summus, 1980.
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Trad. Ivo
Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 99.
Cf. BOSI, Eclea. O campo de Terezín. Estudos Avançados. São Paulo, v. 13, n. 37,
set./dez., 1999. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141999000300002>.
Acesso em: 30 out. 2019.
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Trad. Claudia de
Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
GOMES, Kathleen. O fotógrafo que suspeita das imagens. Disponível em:
<https://www.publico.pt/2010/07/14/culturaipsilon/noticia/o-fotografo-que-suspeita-
das-imagens-261369>. Acesso em: 30 out. 2018.
HUYSSEN, Adreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Trad.
Sérgio Alcides. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.
NAZARIO, Luiz. Documentos fílmicos do Holocausto. Revista de Estudos Judaicos, n.
6, p. 152-177, dez. 2006. Belo Horizonte: Instituto Histórico Israelita Mineiro, 2006. p.
160.
SEBALD, W. G. Austerlitz. Trad. José Marcos Macedo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2008.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. A literatura do trauma. Cult. São Paulo: Lemos
Editorial e Gráficos Ltda., ano 2, n. 23, p. 42-63, jun. 1999.

1071
TRADUÇÃO DE ‘CAPESIUS, O FARMACÊUTICO DE AUSCHWITZ’ DE
DIETER SCHLESAK: - LIDANDO COM A FACE OCULTA DA
HUMANIDADE
Miriam Bettina Paulina Bergel Oelsner
Graduada em Ciências Econômicas (USP)
Mestre em Literatura Alemanha (USP)
Doutora em História Social (USP)
Contato: oelsner@usp.br

Resumo: O livro ‘Capesius, o farmacêutico de Auschwitz’, de Dieter Schlesak, romeno


de etnia alemã, chegou ao Brasil em 2015. Trabalho documental sobre os horrores de
Auschwitz, de leitura difícil devido ao teor trágico do relato. É narrado por Adam,
personagem ficcional, na qualidade de sobrevivente. Ressalta os processos de Frankfurt,
1963 a 1965. Destaca Fritz Bauer, promotor público judeu, protagonista do processo,
com o julgamento de 29 nazistas e o testemunho presencial de 367 vítimas. Mostra a
virada de consciência e início da autocrítica alemã, em que os crimes de guerra até então
tinham permanecido encobertos.

Palavras-chave: Holocausto; Nacional-socialismo; Auschwitz; Fritz Bauer;


Antissemitismo.

‘Capesius, o farmacêutico de Auschwitz’ de Dieter Schlesak foi publicado na


Alemanha em 2006, após trinta anos de pesquisa incansável. Traduzi este livro do
alemão para a Editora Bertrand Brasil do Rio de Janeiro e foi lançado no Brasil em
2015.
Schlesak, o autor, não o publicou antes por consideração a seus pais, já idosos, em
vista da proximidade familiar deles com alguns dos personagens, que tinham sido
nazistas atuantes.
Capesius, o personagem principal, nasceu em 1907 na região alemã da Romênia,
chamada Siebenbürgen, ou Transilvânia, onde viviam os, então chamados, alemães
étnicos. Schlesak nasceu em 1934 em Sighisoara, próxima à cidade natal de Capesius,
também no estado de Siebenbürgen.
Capesius trabalhou para a Bayer como farmacêutico. Foi colega de adolescência
da mãe de Schlesak. Capesius visitou um grande número de consultórios médicos e
farmacêuticos, inclusive de judeus, na divulgação dos medicamentos da Bayer. Consta
nos autos do seu processo jurídico em Frankfurt am Main que sua mulher, também
farmacêutica, seria meio judia.

1072
Para os romenos de etnia alemã a Alemanha representava o modelo a ser seguido,
era sua segunda pátria, não criticavam qualquer atitude dos governantes alemães. Desta
forma, não foi feito nenhum comentário negativo quando um tio de Schlesak, Roland
Albert, aderiu por opção às SS Waffen, o exército de Hitler, no início dos anos quarenta,
declarando-se abertamente supremacista em relação aos judeus. No pós-guerra Roland
Albert escapou da pena máxima, por meio de corrupção pesada, escondendo-se em
Innsbruck, no Tirol austríaco. Outro tio, o irmão predileto da mãe de Schlesak, também
aderiu ao exército de Hitler, diferentemente de Roland Albert, não por ideologia, mas
por compromisso com o dever pátrio. Este tio morreu como combatente, nos últimos
dias da guerra, já abril de 1945.
Schlesak tinha 10 anos quando em 1944 os soviéticos invadiram e ocuparam sua
terra natal. A família do autor vivia muito bem instalada na localidade de Sighisoara e
ele descreveu sua infância em um ambiente harmonioso, ressaltando sempre a
ingenuidade política de grande parte da família. Quando o exército comunista dominou
toda a Romênia, inclusive a localidade de Sighisoara em 1944, para todos eles o mundo
se desfez como vidro estilhaçado. Foi por meio do rádio que tomaram conhecimento da
capitulação de seu rei.
Schlesak captou de maneira ímpar no livro ‘Capesius, o farmacêutico de
Auschwitz’ toda a tragédia de Auschwitz e do nazismo em geral, por meio de suas
pesquisas e entrevistas junto a todas as fontes, pessoas e diários que encontrou. Além
disso, retrata o choque trazido pela mudança inesperada daquela vida calma, pacata e
harmoniosa nos antigos moldes em que todos tinham sempre vivido.
Desde 1941, três anos antes da invasão soviética, o exército romeno aliou-se a
Hitler. Capesius, o farmacêutico, então um jovem de 34 anos, foi convocado para a
guerra, enquanto Schlesak era um menino de sete anos.
Em fins de 1943 Capesius chegou a Auschwitz, ocupando o cargo de major. O
farmacêutico anterior do Lager tinha irrompido em denúncias explícitas, dentro do
próprio campo, expondo as atrocidades que estavam sendo praticadas lá: -“tudo era
muito pior do que ‘Sodoma e Gomorra’, do que o ‘Inferno’ de Dante” bradava ele aos
quatro ventos. E, não tardou muito, no início de 1944 ele foi fuzilado de maneira
sumária e a administração da farmácia de Auschwitz passou para as mãos de Capesius.

1073
Juntamente com Mengele e outros médicos e farmacêuticos ele era convocado
para a ‘seleção’ nas plataformas de desembarque dos trens – vagões de gado com mais
de 80 seres humanos por vagão, espremidos com seus pertences. Selecionavam quem
deveria ser conduzido imediatamente para as câmaras de gás, e uns poucos,
‘privilegiados’, que se tornariam mão de obra escrava, trabalhando, no próprio Lager,
ou nas indústrias I.G. Farben, o grande conglomerado alemão das indústrias químicas e
farmacêuticas, que acabara de instalar uma filial na região de Auschwitz, para poder se
valer desta mão de obra escrava. A ‘seleção’ definia o destino de cada pessoa que saísse
viva do vagão, pois essas pessoas desembarcavam desvitalizadas após a viagem
macabra. Todos os milhares de seres humanos ao conseguirem sair dos vagões não
desconfiavam que estivessem a um passo das câmaras de gás. Dentre as vítimas que
desembarcaram nas plataformas, médicos juntamente com seus familiares, antes
visitados por Capesius se tranqüilizavam ao reconhecerem o rosto do antigo
farmacêutico da Bayer, em meio àquela balbúrdia e horror, acenando então para ele.
Qual não foi o espanto de toda essa gente, quando perceberam que ele se mantinha
impassível, simplesmente, assim como Mengele, indicando com o polegar, para a direita
ou para a esquerda, quem iria para as câmaras de gás, ou quem permaneceria vivo.
Tornou-se famosa a frase mentirosa de Capesius na separação das famílias de quem ia
para a direita ou para a esquerda: - “Não chore, sua esposa e suas filhas somente irão
tomar uma ducha, daqui a uma hora vocês se reencontrarão”. Antes do final dos
processos de julgamento dos nazistas em Frankfurt entre 1963 e 1965 o escritor Peter
Weiss colocou esta frase em sua peça ‘O inquérito’ [Die Ermittlung], como o auge do
cinismo, denunciando Capesius publicamente, a cada encenação.
A população que desembarcava dos vagões trazia consigo todos os seus objetos de
valor: - joias, dinheiro, remédios e comida. Capesius encontrou formas de se apropriar
dessas bagagens e esconder grande parte dos bens nos muitos aposentos da farmácia.
Schlesak descreveu com minúcias uma infinidade de tópicos dos requintes atrozes
desenvolvidos em Auschwitz na desumanização das vítimas: - judeus, em sua grande
maioria, ciganos, homossexuais, inimigos políticos e testemunhas de Jeová. Como
ocorreu com o médico legista húngaro judeu Dr. Miklós Lyisli, assessor de Mengele,
presença fundamental para as tenebrosas pesquisas do ANJO DA MORTE. Dada sua
importância, o legista pôde ir para Auschwitz acompanhado de sua mulher e filha. Em

1074
1966 ele começou a divulgar as pesquisas que fora obrigado a fazer para Mengele, que
ganharam fama, por sua crueldade. Mais tarde foi escrito um livro sobre Dr. Lyisli. Um
parêntese: - o filme húngaro O FILHO DE SAUL, que ganhou o Oscar de 2016 como
MELHOR FILME ESTRANGEIRO, extrai o drama do menino morto, o filho de Saul, a
partir dos relatos do Dr. Nyiszli, sobre a experiência assassina em um menino cigano de
dez anos. Ao fazer a autópsia do menino Dr. Nyiszli descobriu horrorizado que Mengele
tinha lhe aplicado uma injeção letal diretamente no coração.
Por outro lado, Schlesak, a partir dos dez anos cresceu sob o regime soviético,
juntamente com sua família. Lá, na Romênia, no imediato pós-guerra grande parte dos
oficiais nazistas romenos foi logo identificada e condenada à morte, e os foragidos
como Capesius foram condenados à morte ‘in absencia’. Outro importante fugitivo,
alemão, Mengele, escapou para a Argentina com a colaboração do Vaticano do Papa Pio
XII, segundo o livro ‘O vigário’ de Rolf Hochhut e o filme AMÉM de Costa Gavras.
Capesius não poderia retornar jamais para a Romênia. Ou seja, ao final da guerra
os crimes de guerra por ele praticados tornaram-se conhecidos nos países da antiga
União Soviética. Sua mulher e suas três filhas continuaram a viver em Sighisoara até
meados da década de sessenta do século passado. Perderam sua antiga e famosa
farmácia, aonde em criança Schlesak, o autor, ia comprar balas. A mulher teve de
trabalhar duro para manter o sustento das três filhas. A família voltou a se reunir na
Alemanha em meados da década de sessenta. As três filhas estudaram em Universidades
alemãs, e duas delas mantiveram o nome Capesius, sendo que a mais velha defendeu o
pai até a morte dela em 2013.
O autor
Schlesak, nosso autor, nasceu abençoado por uma genuína veia literária e se
tornou um grande poeta e escritor, tanto em língua alemã, quanto na romena, tendo
recebido o Prêmio Schiller e muitos outros, inclusive ‘Doutor Honoris Causa’ em
Bucareste pelo conjunto da obra. Aos trinta e cinco anos de idade, em 1969, casado e
pai de um filho conseguiu realizar uma viagem profissional para a Alemanha, de onde
nunca mais voltou [voltou anos mais tarde para rever a família]. Era difícil se ausentar
do país sob o regime soviético. Logo no pós-guerra Schlesak tomou conhecimento dos
crimes praticados por Capesius.

1075
Sintam os terríveis paradoxos que assolaram a vida de Schlesak: - sua mãe tinha
sido colega de adolescência do farmacêutico de Auschwitz. E um de seus tios fora um
nazista convicto, que após ser ferido no front, foi enviado para Auschwitz, o já
mencionado Roland Albert. Roland Albert não somente foi ativo em Auschwitz, como
também já em 1945 conduziu uma das famigeradas ‘marchas da morte’ para o campo de
concentração de Bergen-Belsen. Em 1978, durante suas pesquisas Schlesak o
entrevistou em seu refúgio em Innsbruck. Schlesak entrevistou também Capesius em
sua casa na Alemanha, descrevendo o nojo que sentiu por se encontrar perto desse
terrível criminoso de guerra, seu conhecido de criança. Relata também como Capesius e
esposa denotavam avançado grau de senilidade. O sobrevivente Hermann Langbein,
prisioneiro por motivos políticos, foi um dos fundadores do ‘Kampfgruppe Auschwitz’ –
grupo de combate interno no Lager e após a guerra foi Secretário Geral do Comitê
Internacional de Auschwitz. Conseguiu caçar o diploma de farmacêutico de Capesius,
que continuou a trabalhar somente como esteticista. Dentre todos os paradoxos sofridos
por Schlesak houve um drama pior: - alta traição entre os colegas escritores na
Romênia, durante o regime de Ceausescu, envolvendo posteriormente inclusive a
escritora conterrânea Prêmio Nobel de Literatura Hertha Müller, 2009.
O livro
Trata-se de um romance histórico de denúncia. O narrador do livro denominado
Adam, o primeiro homem bíblico nos conduz às labaredas fumegantes de Auschwitz.
Ele seria um sobrevivente fictício, única figura ficcional do livro. Schlesak se coloca
como amigo íntimo dele e coloca em sua boca toda a poesia de desespero de Paul
Celan. Ele se transforma em judeu de língua alemã de Czernowitz, sorvendo cada
palavra de Paul Celan. Metamorfoseia-se também em Primo Levi, até mesmo em
Victor Klemperer, que teve a sorte de não ter sido enviado para um campo de
extermínio, mas fala do seu profundo amor à língua alemã, seu único refúgio, assim
como Adam, o narrador. A maneira com que Adam nos introduz ao horror, ao inferno
das mortes de homens, mulheres, crianças, idosos e bebês, à desgraça absoluta de cada
prisioneiro contem um senso de realismo incomum nesse tipo de literatura. Adam é o
grande delator contra Capesius, Roland Albert e toda a gama de criminosos de
Auschwitz. Coloca-nos dentro do horror de Auschwitz. Transforma o leitor que
conseguir atravessar essa fogueira de barbaridades em uma testemunha perene de

1076
Auschwitz, mesmo que ausente. Retrata a fome, o frio, a desumanização do ser humano,
toda a sorte de abusos, desde a chegada até a morte fatal. Você se impregna da certeza
de ser uma das vítimas de Auschwitz, que conseguiu sobreviver, sem saber como e por
quê. Você passa a sentir o cheiro adocicado dos corpos gordos se desfazendo nos
crematórios. Pessoas gordinhas eram enviadas para os crematórios, após as câmaras de
gás. Enquanto müselmänner e müselfrauen estavam se desmilinguindo, sem qualquer
alimento, eram obrigados a morrer lentamente assistindo ao apodrecimento de seu
próprio corpo. Adam relata que uma conhecida sua estava feliz, tinha alcançado um
posto no Lager, e, portanto, não iria tão cedo para as câmaras de gás: - ela passou a
pertencer à Szajsbrygady [Chefe da merda/ das latrinas, onde muitas vítimas morriam
afogadas dentro das latrinas]. Outra tarefa salvadora era pertencer ao Schleppkomando –
arrastar os corpos gaseificados para os fornos crematórios, e muitos outros trabalhos tão
desumanos quanto esses mencionados. ‘Capesius, o farmacêutico de Auschwitz’ é um
documento vivo, porque Schlesak além de relatar tudo a respeito do campo de
extermínio vai mostrando como os oficiais nazistas foram se acomodando à vida lá
dentro, onde tinham tudo grátis, todo aquele horror penetrando na normalidade do
cotidiano.
A partir dos julgamentos de Frankfurt entre 1963 e 1965 Schlesak assume o papel
do próprio narrador, substituindo Adam, seu alter-ego, em todos os trechos que não
incluíam Auschwitz.
O livro é composto por colagens de um sem número de cenas embaralhadas, em
que o leitor vai gradativamente conseguindo montar este emaranhado quebra-cabeça.
Desta forma, o leitor, além de se ver como testemunha presencial de Auschwitz toma
conhecimento do primeiro julgamento de nazistas na Alemanha, feito pela Promotoria
Pública alemã na cidade de Frankfurt am Main, os assim chamados Processos de
Frankfurt. Grande mérito dessa realização coube ao promotor público judeu alemão
Fritz Bauer. Em 1933 fora enviado para um campo de concentração na Alemanha, e
logo depois conseguiu refugiar-se na Suécia, onde se tornou redator, juntamente com o
futuro chanceler alemão Willy Brandt, do jornal ‘Tribuna Socialista’. Retorna em 1949
e começa a caça aos nazistas. Em 1956 se torna o primeiro promotor público judeu
alemão. Há muitos filmes sobre este papel fundamental de Fritz Bauer. O serviço

1077
secreto israelense Mossad pôde caçar Eichmann em 1960 graças às descobertas secretas
de Fritz Bauer.
Schlesak valoriza o papel de Fritz Bauer por sua caça aos nazistas no pós-guerra.
As cenas do julgamento em Frankfurt entre 1963 e 1965 já são apresentadas nas páginas
iniciais do livro. Fritz Bauer conseguiu reunir meros 29 criminosos nazistas, dentre
tantos oficiais nazistas que trabalharam nos campos de extermínio. Todos esses 29
mantiveram um pacto de silêncio entre si em relação aos demais. Bauer conseguiu
reunir 367 testemunhas de acusação. Capesius foi julgado culpado. Contratou dois dos
melhores advogados dos nazistas, porque tinha enriquecido com todo o ouro roubado
dos dentes dos mortos.
Fritz Bauer sofreu inúmeras ameaças de morte e morreu sozinho em seu
apartamento em Frankfurt no verão de 1968, de causas pouco esclarecidas, aos 63 anos
de idade. Pode ter sido assassinado.
Por uma feliz coincidência Schlesak e eu nascemos no mesmo dia, ele onze anos
mais velho do que eu. Estabeleceu-se entre nós um contato amistoso esporádico. Tentei
entrar em contato com ele para lhe contar que eu iria falar sobre sua obra-prima no
ABRALIC 2019, quando me inteirei chocada e entristecida de seu recente falecimento
há três meses. A leitura deste texto, portanto, é uma homenagem póstuma ao magnífico
escritor, citando a frase inicial do NARRADOR, dirigindo-se ao autor: -
“Você precisa fazer alguma coisa, precisa colaborar... As próximas gerações têm de ter
conhecimento de tudo o que aconteceu aqui, com a maior exatidão possível” p.13.

Um pouco sobre Schlesak: - instalou-se na Alemanha em 1969, já após a


conclusão dos processos de Auschwitz. Entretanto, foi viver também na Itália porque se
sentiu sufocado na Alemanha ocidental, onde nazistas continuaram a viver livremente.

Há dois anos a jornalista inglesa Patrícia Posner escreveu O Farmacêutico de


Auschwitz sobre os crimes cometidos por Capesius, citando o livro de Schlesak perto de
setenta vezes, sua fonte principal. O ponto alto do livro são as descrições detalhadas
sobre os processos de Frankfurt.

Frase de ELIE WIESEL: - "O que você fez com o meu futuro? O que
você fez com a sua vida?". E eu respondo que tentei. Tentei manter a
memória viva, tentei lutar contra aqueles que esquecem. “Porque, se
esquecermos, seremos responsáveis, seremos cúmplices”.
"Esquecer os mortos é o mesmo que matá-los pela segunda vez".

1078
FRITZ BAUER: - “Meu desejo é que os jovens de hoje tenham o mesmo
anseio por justiça, que eu tive e que saibam que a vida só tem sentido,
quando se luta por liberdade, justiça e fraternidade”.

Referências bibliográficas
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Contraponto, 2013.
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Companhia das Letras, 1989.
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1997.
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Distribuidora Record, 1972.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais. Trad. Federico Carotti. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.
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Stuttgart / München: Deutscge Verlags-Anstalt, 2001.
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HOCHHUT, Rolf. Eingriff in die Zeitgeschichte. Hamburg: Rowohlt Verlag GmbH,
1981.
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Grijalbo, 1965.
KLEMPERER, Victor. LTI – A linguagem do Terceiro Reich. Trad. Miriam Bettina P.
B. Oelsner. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009.
MENDES DE ALMEIDA, Ângela. A República de Weimar e a Ascensão do Nazismo.
São Paulo: Editora Brasiliense, 1990.
PINTO, José Nêumane. Mengele, a natureza do mal. São Paulo: EMW Editores, 1985.
POSNER, Patrícia. O Farmacêutico de Auschwitz. Trad. Fabienne Mercês. Rio de
Janeriro: Editora Globo, 2018.
SCHLESAK, Dieter. Capesius, der Auschwitzapotheker. Bonn: Dietz, 2006.
SCHLESAK, Dieter. Capesius, o farmacêutico de Auschwitz. Trad. Miriam Bettina P.
B. Oelsner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015.
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Alfred A. Knopf, 2014.

Filmes
A. GRAHAM, William. The man who captured Eichmann. EUA: 1996.
COSTA-GAVRAS. Amen. Alemanha, França e Reino Unido: 2003.
KRAUME, Lars. Der Staat gegen Fritz Bauer. Alemanha: 2015.
RICCIARELLI, Giulio. Labyrinth of lies. Alemanha: 2014.
YOUNG, Robert. Eichmann. Hungria, Reino Unido: 2007.
ZIOK, Ilona. Death by Instalments. Alemanha: 2010.

1079
Youtube
Fritz Bauer – Generalstaatsanwalt Nazi Jägger – German Doku – 2019
The Capture and trial of Adolf Eichmann – 2018
Die Heimatlosen / Fritz Bauer full movie 2015 – 2017
ZDF-HISTORY – Mörder unter uns – Fitz Bauers Einsamer – 2017
Die Würde eines Jeden Menschen – Erinnerungen an Fritz Bauer – 2017
Fritz Bauer Spricht Zum Eichmann-Prozess – 2016
Fritz Bauer in Frankfurt Kellerklub 1964 – 2016
Heute Abend Kellerklub – mit Fritz Bauer - 2014

1080
POESIA E MÚSICA NA TRAMA DE E A NOIVA FECHOU A PORTA, DE
RONIT MATALON

Nancy Rozenchan
Professora Sênior de literatura hebraica (USP)
Contato: nrozench@usp.br

Resumo: Para se acompanhar o aparentemente simples desenrolar da ficção de Ronit Matalon, é


preciso, por vezes, recorrer a recursos diversos, como os hermenêuticos, desde a compreensão
de leituras sagradas até suas implicações na leitura da realidade contemporânea. Alguns
segmentos da trama de Vehacalá sagrá et hadélet (E a noiva fechou a porta), de 2016, que soam
como estranhos e herméticos, se constroem tanto sobre a vida da poeta Léa Goldberg, sobre um
seu poema e a sua poética, como sobre a fonte evangélica que lhes serviu de sugestão. O quadro
de sobreposições é completado por uma música cantada em árabe. Sem estas tramas paralelas,
quase marginalizadas, a novela não consegue atingir um fim e sugerir uma saída ao leitor.
Palavras-chave: Ronit Matalon; Literatura hebraica; Literatura israelense; Léa Goldberg.

O confronto com uma obra da autora israelense Ronit Matalon resulta sempre
surpreendente. Para se acompanhar o seu aparentemente simples desenrolar, é preciso,
por vezes, recorrer a recursos diversos, como os da hermenêutica, desde a compreensão
de leituras sagradas até suas implicações na leitura da realidade contemporânea ou uma
busca inter-tramas, quando estas sequer fazem parte da narrativa, ou extra-tramas.
Ainda que, à primeira vista, essa busca seja incompatível com a abordagem dos
elementos que compõem a trama básica, verifica-se que tal processo é indispensável
para uma percepção ampla da obra. A novela Vehacalá sagrá et hadélet (E a noiva
fechou a porta), de 2016, é um instigante modelo de desafio. Alguns segmentos da
trama que, em uma abordagem inicial, além de não serem desenvolvidos, soam como
estranhos e herméticos e parecem conduzir a lugar nenhum, se somam por fim em
camadas que geram uma leitura totalmente diversa em que o que é incialmente explícito
se torna secundário.
Ronit Matalon, de família originária do Egito, uma das principais escritoras
israelenses, foi autora de contos, romances, peças e ensaios literários.
E a noiva fechou a porta traz as perplexidades do noivo e das famílias do casal
ante a declaração da noiva Margie (Margalit) de que não se casará. O fato ocorre no
próprio dia do casamento, e os familiares alvoroçados, já parcialmente paramentados
para a festa, cuidam do que pode ou deve ser feito. A trama de E a noiva fechou a porta
tem início no próprio título da obra.

1081
A primeira frase do texto dá continuidade à atitude da noiva; ela proclama três
vezes: “Não caso!”. Em continuação, o espanto e preocupação do noivo e de familiares
de ambos são complementados com conjecturas sobre o que está acontecendo ou como
obter uma explicação da noiva.
Poucas palavras que delineiam as características de cada personagem. A escassez
de detalhes não compromete a qualificação individual. Ali estão o noivo, Mati, seus
pais, a mãe da noiva - Nádia, um primo, Iair, que tem apreço por trajes e maneiras
femininas, e Lina, a avó da noiva tratada pelo atributo Savtona ou, em português,
Vovozona. Esta última, senil, representante da primeira geração imigrante, manifesta-se
mais em árabe do que em hebraico. Há ainda menção a uma garota, Natalie, irmã da
noiva, desaparecida muitos anos antes, quando saía da escola.
O tom histriônico utilizado para essa apresentação se, por um lado, tenta aliviar a
tensão compatível com o status quo, por outro, choca-se com o hermetismo e o caráter
enigmático de outras porções da trama a serem expostos.
Além de declarar que não irá se casar, o que se tem da noiva é o silêncio absoluto;
ela não responde às preocupações do noivo. O contato entre os noivos será assumido
por via não oral, enquanto os familiares tentam chegar a um consenso sobre medidas a
serem adotadas, seja em relação à noiva, seja quanto aos compromissos da festa e com
os convidados. Quanto ao encerramento da noiva, a ideia de trazer um chaveiro para
abrir a porta é logo descartada; em sequência, concordam em trazer uma psiquiatra ou
talvez seja uma psicóloga da empresa “Noivas que se arrependem”. Como essa
terapeuta informa que precisa falar cara-a-cara com Margie, e o apartamento se situa
alguns pavimentos acima da rua, é convocado um motorista que traz um caminhão com
grua capaz de chegar à janela do andar desejado, que içará a psiquiatra à janela. O
motorista, Adnan, que está retribuindo um favor à família, é palestino, e o veículo que
ele traz pertence à companhia de eletricidade da Autoridade Palestina. A acrescentar, a
psiquiatra é originária da Rússia.
É pela comunicação entre os noivos que, afinal, são os que devem se entender,
que se apresenta na obra a possibilidade estimulante de decifrar (ou não) o motivo da
recusa da noiva. No diálogo unilateral, Mati, diante da porta fechada e da noiva muda,
expõe os seus pontos, questiona razões e procura suscitar uma reação da noiva que em
momento algum fala. Mas a mudez pode ser substituída por outra forma de

1082
comunicação. A resposta (?) vem por baixo da porta do quarto: Margie passa para Mati
uma folha de caderno com a cópia de um poema. O poema é objeto de algumas das
reflexões que se seguem.
O poema copiado é versão um pouco modificada de “Badérech” (No caminho)
(GOLDBERG, 1947), o primeiro do conjunto de três que a poeta Léa Goldberg
publicou em maio de 1947. O título do conjunto é “Mishirêi haben haoved” (Dos
poemas do filho que se perde ou Dos poemas do filho pródigo)1. Lea Goldberg2 foi
insigne poeta, tradutora, dramaturga, autora de literatura infantil, ilustradora e ensaísta.
Mesmo que Margie faça referência a apenas o primeiro deles, não há como não
considerar o conjunto todo. Com a referência óbvia à parábola do Evangelho de Lucas,
15, 11-32, uma leitura hermenêutica compatível procura aclarar as engrenagens que
permitam deslindar as relações entre os textos que dialogam (ou não) entre si na obra de
Matalon. Na inevitável interrelação entre os discursos dos três textos, o do Evangelho, o
do poema original e o copiado pela noiva é que pode brotar uma verdade que está
mascarada.
A parábola de Lucas é estudada como o retorno do pecador arrependido à senda
do bom caminho, à fé.
Não é este o modo do poema de Léa Goldberg. Antes de outras considerações,
há que se registrar a tradução que o conceito de “filho pródigo” ganha em hebraico. Em
português, o qualificativo bíblico conduz a interpretações diferentes: “pródigo” é aquele
que é bem aquinhoado ou aquele que é perdulário. Quando o qualificativo é
transportado para o hebraico, sua tradução resulta mais complexa: haben haoved. Nesta
questão semântica o significado literal é “o filho perdido”, “o que se perde”.
Cada um dos poemas do conjunto "Dos poemas do Filho Perdido” representa
uma imagem diferente, e os três criam uma unidade completa que começa a partir do
ponto em que o filho perdido está a caminho de casa.

No caminho
E, no caminho, a pedra lhe disse:
seus passos tornaram-se tão pesados.
(Por acaso) você – disse-lhe a pedra -.

1
O poema se popularizou em Israel e tornou-se parte do programa escolar. Muitos dos poemas de
Goldberg foram musicalizados e gozaram de sucesso.
2
Léa Goldberg, de família residente em Kovno (Kaunas), na Lituânia, nasceu em Koenigsberg, na Prússia
Oriental, em 1911, estabeleceu-se na Palestina em 1935 e faleceu em Tel Aviv em 1970.

1083
retornará para a sua casa olvidada?

E, no caminho, disse-lhe o arbusto:


seu porte se encurvando
como você chegará – disse-lhe o arbusto-,
como você, cambaleando, chegará?

E os marcos (estáticos) do caminho


não reconheceram o homem estranho
e os marcos do caminho
se aprumaram e perfuraram como cardo.

E, no caminho, disse-lhe a fonte,


seus lábios secaram de sede!
E ele se ajoelhou e bebeu da água
e uma lágrima tocou outra. 3 (GOLDBERG, 1947)

Em cada uma das quatro estrofes há marcos do caminho, uma pedra, um arbusto,
os marcos em conjunto, uma fonte. A hostilidade que apresentam àquele que retorna
somente é arrefecida na derradeira estrofe. Apenas a fonte não pergunta, não desafia e
nem admoesta, mas o chama para saciar sua sede, oferecendo ternura e compaixão. A
fonte lhe dá a força para retornar. Parece sugerir que se cumprirá o que é inspirado pelo
texto da parábola.

Como elementos diversos dos outros poemas do conjunto de Goldberg podem


ser percebidos na novela de Matalon, justificam-se os comentários.

No segundo poema, o filho não está presente e não é mencionado. O poema não
trata do retorno do filho, mas da presença dos membros da família, - pai, mãe, irmão,
irmã, noiva - à mesa, onde há chalá4 e vinho, e o seu confronto com a partida e o
retorno aguardado.
A família está em conflito, o filho perdido que partiu vai voltar e as opiniões dos
diversos membros da família estão divididas sobre como se comportar. A irmã observa
que a "tempestade uiva", e a noiva, que "a porta está trancada"; ambas indicam as
situações externa e interna implícitas em relação ao retornante. As duas situações são
repelidas pelo irmão e pelo pai que não perdoaram o filho perdido.

3
Essa e as demais traduções no texto são de minha autoria (N.R.). Essa tradução privilegiou apenas o
conteúdo e não se ateve a qualquer aspecto poético cuja complexidade estará exposta mais adiante.
4
Pão em forma de trança sobre o qual é proferida uma bênção. Esta é antecedida pela bênção sobre o
vinho.

1084
No final, a mãe atua em prol do filho. No terceiro poema, depois de concluir
suas tarefas, “recolhendo a louça da mesa”, ela se levanta e abre a porta para a
tempestade.
Costurar estas construções dramáticas com a atitude da noiva que se recusa a
casar é tarefa abstrusa.

Seguimos Corá e Silva que, valendo-se de conceitos de Ricoeur, destacam que


“a sua hermenêutica possui como traço distintivo a atenção voltada ao caráter
conflituoso da experiência humana.”(CORÁ & SILVA, 2014, p. 15) E, fazendo uso dos
escritos de Jervolino (apud CORÁ & SILVA, idem), que teceu considerações a respeito,
os autores acrescentam que “por trás dos textos e das obras de literatura existem homens
que agem e sofrem, sendo os textos e os discursos as expressões da ação desses
homens” (idem). Os tensos poemas de Goldberg lidam com o símbolo trágico do personagem,
com o caráter conflituoso da experiência humana onde se inserem os sentimentos feridos, a ira
do pai, alteram a trama original do Evangelho e a reescrevem. A atenção é voltada ao caráter
agastadiço da experiência humana.
Margie, a noiva hesitante, não copia literalmente o primeiro dos três poemas de
Goldberg.
A versão de Margie do poema pode ser lida segundo mediações diversas: trata-se
da sua versão. É a sua relação com o seu mundo, enquanto, para o leitor, a opção é
avançar pela sequência do tema poético levando em conta os referenciais destes
discursos e mirá-los por um ângulo próprio.
Ao invés do “Dos poemas do filho que se perde”, Margie transpõe o poema para o
feminino, “Dos poemas da filha que se perde”.
Dos poemas da filha que se perde
E, no caminho, a pedra lhe disse:
seus passos tornaram-se tão pesados.
(Por acaso) você – disse-lhe a pedra -.
retornará para a sua casa olvidada?

E, no caminho, disse-lhe o arbusto:


seu porte se encurvando
como você chegará – disse-lhe o arbusto-,
como você, cambaleando, chegará?

E os marcos estáticos do caminho


não souberam se ela é (uma) estranha ou (um) estranho
e os marcos do caminho
se aprumaram e perfuraram como cardo.

1085
E, no caminho, disse-lhe a fonte,
seus lábios secaram de sede!
E (ela) se ajoelhou e bebeu da água
e uma lágrima tocou outra. (MATALON, 2016, p. 58, 59)

O título do conjunto passa a ser o título do poema. Isso se acentua no hebraico pelo fato
de pronomes, formas verbais e demais atributos serem declinados ou conjugados na
flexão feminina peculiar à língua5. A essa característica soma-se mais uma diferença:
agora já não se trata no poema de um estranho apenas, há também uma estranha que
não é reconhecida pelos fatores da natureza que testemunham o doloroso retorno.
Como uma noiva deve se encaminhar para as núpcias? Qual é o mundo de onde
ela provém, e o que significa a nova vida? O que significa uma família em que um dos
seus membros simplesmente desapareceu, foi perdido? Pode um filho viver a vida de
seu irmão? Há amor entre os noivos, mas talvez isso não seja tudo. Por que a
duplicidade dos estranhos? Quem é Margie para si mesma? No poema de Goldberg,
apesar de ter a porta aberta pela mãe, não há alento para o “estranho”. Em Matalon, que
não faz menção literal ao terceiro poema, haverá alento para o “estranho” e a “estranha”
de Margie? No que parece se constituir uma família normal do poema goldberguiano, -
há até uma mesa posta tradicional judaica, com chalá e vinho, mesa que deveria estar
santificada – faltam os necessários sentimentos conciliadores. A chalá e o vinho não
representam elementos à altura. O irmão molha a sua porção de chalá no vinho. Não há
um ritual, não há bênçãos, é um ato vazio. Quanto à vida de Margie, os alicerces frágeis
de sua família – a mãe viúva, a avó senil, o primo gay e, principalmente, uma irmãzinha
desaparecida - sinalizam que não podem oferecer suporte para que a noiva tenha
condições de enfrentar as rudezas do caminho.
O poema copiado por Margie, não confere à noiva uma voz direta. Tudo o que se
pode inferir do mundo interior da noiva e seus motivos, são especulações interpretativas
sugeridas pelo poema. A complexa “chave” da trama afeta, todavia, o destinatário da
mensagem. Mati, durante as muitas horas de expectativa, ao evocar vários dos seus
momentos passados com a noiva, expõe para si e, às vezes, para ela, algumas de suas
posições, dúvidas, reflexões. O ato de Margie quebra a automatismo da conduta pessoal
e familiar das duas famílias, que são forçadas a lidar com o inusitado.

5
São treze as diversas flexões indicando o feminino no poema. Na versão do poema ao português, quase
todas elas passam desapercebidas pois não são passíveis de destaque.

1086
Ao longo silêncio da noiva, contrapõem-se, as reflexões do noivo. Destacam-se as
citações de momentos vinculados à literatura, em particular aquele que faz referência à
poeta Léa Goldberg. A presença da poeta na novela não se resume à cópia do seu
poema. Ao contrário, ela abunda em diversos outros cantos do texto de Matalon.
A digressão hermenêutica que a novela propõe roça por aspectos intra e
extraliterários, além dos referidos quanto à poesia de Goldberg e particularidades de sua
vida. No primeiro momento de questionamento do noivo, ao trazer à baila rusga recente,
ocorrida apenas na noite anterior, quando assistiram na TV a um documentário sobre a
vida da poeta, infeliz em seus amores, é do amor que se trata. Ante os sofrimentos da
poeta, ele declarara que, se dela fosse contemporâneo, teria se casado com Goldberg, o
que despertou, segundo ele crê, o ciúme de Margie, sentimento que demorou a ser
amainado. A resposta-poesia da noiva, ao avançar pela obra da autora, colocando o foco
no “estranho” ou na “estranha” e mais alguns detalhes esparsos pela novela abrem
espaço para que muito do que Matalon abrangeu possa ser visto pelo universo poético e
particular de Goldberg. Esclareça-se que Matalon publicou estudos literários sobre a
obra da poeta.
É fato sabido que este ciclo de poemas, assim como alguns outros da autoria de
Goldberg, têm a ver com um sofrimento pessoal dela. Na interpretação desse e de
outros poemas de Goldberg, querem os críticos que a poeta pedia perdão ao pai por tê-lo
deixado para trás na Europa conturbada, perdão que ela jamais pôde pedir. Goldberg
chegou em Israel em 1935, depois de estudar em diversas universidades europeias. A
mãe chegou um ano depois. O pai, que servira na I Guerra e, em sequência, acusado de
traição, sofrera intensas torturas no exército, passou por grande abalo mental e foi
internado à força em um sanatório. Foi morto na Europa durante a II Guerra.
Incapacitada de falar pelas suas dúvidas e temores, Margie se manifesta para a
psiquiatra por outros meios não orais. Inicialmente responde do quarto à terapeuta com
um “sim” e um “não” proferidos pela boneca mecânica da irmãzinha desaparecida.
Depois, pela janela, responde apresentando numa cartolina a sua resposta definitiva:
“slichá”, “perdão”, o que a aproxima mais uma vez à poeta, pois o poema mais
conhecido de Goldberg tem o título de “Slichot”6, “Perdões”; o poema é relacionado,

6
É também o nome das preces com pedido de perdão recitadas nos dias que antecedem o ano novo
judaico, data em que é enfatizado o arrependimento.

1087
segundo os críticos, ou aos amores não correspondidos ou ao pai. O segundo verso
desse poema faz menção à janela, uma imagem recorrente na poesia de Goldberg. E que
é onde Margie se encontra e se manifesta: “Vieste a mim os meus olhos abrir e o teu corpo
para mim é um vislumbre e uma janela e um espelho.” (GOLDBERG, 1938).
Segundo Adriana X. Jacobs, “In Goldberg’s oeuvre, the window also serves as a
complex metaphor for poetic perspective, but it also generally involves some form of
mediation between the internal world of the speaker and an outside reality.” (JACOBS,
2108, p. 106)
A janela, como elemento vinculado ao amor, se encontra também no nono
poema da série “Ahavatá shel Tereza Dumont” (O amor de Tereza Dumont”, do amor
impossível da fictícia personagem feminina francesa medieval que escreveu uma série
de poemas ao jovem preceptor de seus filhos e queimou-os quando ele partiu:
Da minha janela, e também da tua,
avista-se o mesmo jardim, a mesma paisagem
e por todo um dia posso amar
as coisas que teu olhar acariciou.

Diante da tua janela, e também diante da minha


de noite canta aquele mesmo rouxinol
e quando teu coração estremecer no sonho
despertarei e o ouvirei também eu. (GOLDBERG, 1968)

O grito mudo do “perdão” de Margie-Goldberg talvez seja o código faltante nas


comunicações. Na expectativa de sua decifração, Mati e a Savtona são os mais ansiosos.
Rever o que houve e reler o que a noiva escreveu pode aclarar os pensamentos. Quando,
depois de repassar mais um pouco os eventos de seu namoro, o noivo relê para a avó o
poema copiado na folha de caderno, é a vez da idosa, em um momento de lucidez, se
manifestar. Interrompe a leitura e sugere-lhe que peça perdão à noiva. Atônito, sem
saber a que ela se refere, se teria lido os seus pensamentos sobre as falhas de conduta,
concorda e se compromete a atendê-la.
Assim como os poemas de Goldberg deixam vislumbrar e encobrem sentidos, a
busca da justificativa da recusa de Margie não resulta em uma resposta. Conseguir
entendê-la é menos vital do que dar continuidade à vida. O ato de Margie quebra a
automatismo da conduta pessoal e familiar de duas famílias, que são forçadas a lidar
com o ato inusitado. O poema "dela" pode ser entendido tanto como um canal de
resistência e desafio da noiva, quanto como uma expressão de ambivalência emocional

1088
e cognitiva antes de seu casamento. Ou seja, a atitude excepcional da noiva ‘obriga’
Mati a passar por uma espécie de processo de maturação acelerada e desenvolvimento
de uma autoconsciência em que redescobre seu eu verdadeiro e o amor por Margie, e
torna-se mais amadurecido.
É preciso dar um encerramento à obra, e esse se dá pela avó senil que desponta
como mestra em questão de sentimentos. Ela completa a missão. Em árabe, com o olhar
fixado na porta fechada, os olhos quase saindo das órbitas devido à profunda intenção,
ela canta uma música árabe da veterana intérprete libanesa Fairuz. Começa com uma
vozinha que parecia um instrumento sendo afinado antes de um concerto orquestral e
cresce até preencher todos os espaços. Às palavras do poema de Margie, corresponde
uma música, mesmo que em outro diapasão, outra língua e outro tema
Tenho medo de dizer o que está em meu coração
para que não se endureça o seu coração
e você se torne inflexível comigo.
Mesmo que eu oculte de você
meu olho me envergonhará
e revelará o meu amor.7 (MATALON, 2016, p. 128-129).

A música de Fairuz na voz da avó tocou os medos, complexos, esperanças e


ansiedades de Margi antes do casamento. No universo de Margie e Mati, que entendem
que para consolidar o amor precisam se entender sobre as diferenças e desafios, a
música é uma resposta ao poema.
Ato contínuo, enquanto a avó ainda canta, ouve-se o rangido do arrastar de
móveis e gavetas dentro do quarto, garrafas de vidro se chocando, e o ruído da chave
dando uma volta e mais outra na fechadura. Resta abrir a porta. Ou será que a primeira
volta abriu a porta e a segunda a fechou novamente?

Referências
CORÁ, Élsio José & SILVA, Luzia Batista de Oliveira. “A ação como um texto na obra
de Paul Ricoeur” in Impulso, 24(59), 15-23, jan.-abr. 2014. Disponível em
https://www.metodista.br/revistas/revistas-
unimep/index.php/impulso/article/viewFile/1959/1270 Acesso em 01/06/2019.

GOLDBERG, Lea. “Slichot” in Turim, vol. 2, número 11, Tel Aviv, junho de 1938.

GOLDBERG, Lea. “Badérech” in Mishmar, Tel Aviv, 15/05/1947.

7
No original, em árabe transliterado e tradução ao hebraico.

1089
GOLDBERG, Lea. “Ahavatá shel Tereza Dumont” in Mukdam umeuchar. Tel Aviv,
Sifriyat Hapoalim, 1968.

JACOBS, Adriana X.. Strange Cocktail. Translation and the Making of Modern Hebrew
Poetry. Ann Arbor. University of Michigan Press. 2018. P. 106. Disponível em:
https://library.osu.edu/projects/hebrew-lexicon/02000-files/02000235.pdf Acesso em
01/06/2019.

JERVOLINO, D. Le parole della prassi: saggi di ermeneutica. Napoli: Città del Sole,
1996. Apud CORÁ, Élsio José & SILVA, Luzia Batista de Oliveira. “A ação como um
texto na obra de Paul Ricoeur” in Impulso, 24(59), 15-23, jan.-abr. 2014. Disponível em
https://www.metodista.br/revistas/revistas-
unimep/index.php/impulso/article/viewFile/1959/1270 Acesso em 01/06/2019.

MATALON, Ronit. Vehacalá sagrá et hadélet. Jerusalém, Keter, 2016.

1090
ZERUYA SHALEV: A ESCAVAÇÃO COMO FERRAMENTA DE PESQUISA

Saul Kirschbaum1

Resumo: A escritora Zeruya Shalev é autora de seis romances. Muito apreciada em Israel e no
exterior – principalmente na Alemanha –, ainda é pouco conhecida no Brasil. As tramas de seus
romances se desenvolvem à maneira de pesquisas arqueológicas, na forma de escavações na
alma de suas protagonistas femininas, personalidades auto-destrutivas. Alusões escriturais, da
Bíblia e do Talmud, permitem que os enredos reencenem episódios da tradição judaica,
desafiando o leitor a descobrir os episódios aludidos e estabelecendo paralelos com a vida na
Israel contemporânea. Estas referências podem, então, ser pensadas como chaves de leitura para
o melhor entendimento das tramas. Vida amorosa é seu único romance publicado no Brasil.
Palavras-chave: Zeruya Shalev; Literatura israelense; Vida contemporânea em Israel; Abralic

A escritora de quem vou falar, Zeruya Shalev, é muito pouco conhecida no Brasil.
Que eu saiba, a profa. Nancy Rozenchan publicou um artigo sobre ela em 2012, na
revista Cadernos de Língua e Literatura Hebraica número 10, com o título “O que
resta da vida e o contexto histórico: a respeito de identidade judaica e sua expressão na
literatura hebraica”. Os demais presentes talvez não saibam nada a seu respeito. No
entanto, Shalev já publicou seis romances - outro está no prelo -, além de poesia e livros
infantis. Seus romances são aclamados pela crítica tanto em Israel quanto no exterior,
com recepção de best-sellers em vários países, principalmente na Alemanha. Até agora,
suas obras foram traduzidas em 25 idiomas.
Vida Amorosa, lançado em 1997 - seu único livro publicado no Brasil, em 2002, e
mesmo assim em tradução do inglês -, granjeou-lhe amplo reconhecimento da crítica;
durante quatro meses foi o livro mais vendido em Israel, está incluído na prestigiosa
lista de “20 melhores romances da literatura mundial nos últimos 40 anos” da Der
Spiegel, juntamente com Saul Bellow, J. M. Coetzee e Philip Roth, e em 2008 foi
adaptado para o cinema, em co-produção alemã-israelense, o que resultou em um
premiado filme dirigido por Maria Schrader (que também dirigiu Aimée e Jaguar em
1999 e Stefan Zweig: adeus à Europa, em 2016). Aliás, a própria Zeruya atua no filme,
no papel de bibliotecária.

1 Pesquisador independente. Doutor em Letras, Programa Língua hebraica, literatura e cultura judaicas
(USP); pós-doutorado (Unicamp). Contato: saul.kirschbaum@gmail.com.

1091
Há notícias de que outra obra sua, She’erit ha-rayim, que em português poderá se
chamar Os restos do amor ou Cacos da vida, está por ser lançada no Brasil em breve,
pela Bertrand Brasil.
Shalev já recebeu vários prêmios, tanto em Israel quanto na França, Inglaterra,
Alemanha e Itália, além da prestigiosa condecoração francesa Chevalier des Arts et des
Lettres, que lhe foi outorgada em 20172. Nascida no kibuts Kineret em 1959, Zeruya
vive em Jerusalém, onde trabalha como atriz, roteirista e editora literária na Keter
Publishing House.
A autora tem mestrado em Estudos Bíblicos, o que lhe confere conhecimento
profundo da literatura escritural judaica. Esta bagagem é o fundamento de uma das
principais características de seus romances, a intertextualidade com a Bíblia e o Talmud.
A conexão com a Bíblia, na verdade, já vem da escolha de seu nome, muito raro mesmo
em Israel. A Zeruya bíblica, como se lê em I Crônicas, 2:11-16, era irmã do rei David.
Em entrevista a Silvia Dumitrache, porém, Shalev afirmou que não é religiosa, que vê a
Bíblia como fonte de inspiração, como literatura.3
Em Vida amorosa, Ya’arah, a protagonista, está se candidatando a um doutorado,
e escolhe como tema de seu projeto as chamadas agadot harrurban; ou seja, as
narrativas talmúdicas que procuram encontrar os motivos pelos quais o Templo foi
destruído. Segundo o Talmud, o Primeiro Templo foi destruído porque o povo se
afastara de Deus, e o Segundo por causa do ódio entre as pessoas.
Agadot, penso que todos sabem, é o plural da palavra hebraica agadah,
literalmente história, lenda. Ou seja, o conjunto do folclore, parábolas e lendas contidas
no Talmud. Rurban, por sua vez, significa destruição, e Talmud é o mais famoso livro
dos judeus, depois da Bíblia. É uma compilação dos escritos de diferentes épocas, sobre
inúmeros temas, por numerosos intérpretes da Bíblia e da Lei Oral. A coletânea
talmúdica constitui uma verdadeira enciclopédia da legislação, do folclore, das lendas,
das disputas teológicas, das crenças, das doutrinas morais, das tradições históricas da
vida judaica, durante nove séculos, entre o término da Biblia e o fim do século V da era

2 Fonte: http://www.ithl.org.il/page_13111, consultado em 14/08/2019.


3 DUMITRACHE, Silvia - “Writing is in my genes”. Entrevista com Zeruya Shalev, 2014: “- Do you
consider yourself a religious person?”. “- No, not at all. I see the Bible as a source of inspiration, for me
it’s literature.”

1092
cristã. Divide-se em Talmud de Jerusalém e Talmud da Babilônia, conforme o lugar em
que foi redigido. Subdivide-se em Mishnah e Guemarah, com diversos tratados.
Entre outras agadot que encontra em um livro raro que lhe foi emprestado pelo
chefe do departamento no qual está alocada, Ya’arah fica muito impressionada com a
história do

aprendiz de carpinteiro que enganou o carpinteiro e roubou sua mulher, depois o incitou a
divorciar-se dela, e lhe emprestou o dinheiro para pagar à mulher o acordo prometido no contrato
de casamento, e quando o carpinteiro não pôde pagar a dívida, foi obrigado a se tornar seu
criado, e enquanto os dois comiam e bebiam ele ficava ao lado, em pé, servindo o vinho, e as
lágrimas pingavam dos seus olhos e caíam nas taças. (SHALEV, 2002, p. 88)

Outra característica marcante de sua escrita, mormente em Vida amorosa, é a


ousadia na descrição de cenas de atos sexuais; mas não se preocupem, não vou
transcrever nenhuma delas.
Cabe destacar que em seus romances o protagonismo é sempre assumido por
mulheres, não apenas no sentido de personagem principal, mas como personagem mais
ativa, com iniciativa, incumbida de dar movimento à trama.
Juntamente com Baal veIshah (Marido e mulher) e Terah, Haiei Ahavah (Vida
amorosa) forma uma trilogia sobre a condição feminina e a da família na
contemporaneidade, partilhando as mesmas temáticas e o mesmo ponto de vista. Nas
três obras, o momento de ruptura constitui classicamente o início de uma história de
destruição e de redenção inserida em uma estrutura mitológica. Em todas elas, encontra-
se uma intriga cujo ponto de partida é uma separação que tem lugar no quadro familiar e
que é vivida como uma catástrofe, como a queda de um mundo ou o fim de uma
civilização.
Os romances são escritos na forma de monólogo interior e discurso indireto livre,
focalizando um período em que a protagonista está vivenciando um ponto crítico de sua
vida. Em Vida amorosa, Ya’arah tem cerca de trinta anos e é casada mas ainda sem
filhos. Trabalha na universidade e está engajada na elaboração de um projeto para sua
tese de doutorado.
Um belo dia, Ya’arah vai ao apartamento onde residem seus pais, mas quem abre
a porta é um homem desconhecido, Arieh, que aparenta ter o dobro de sua idade e se
apresenta como amigo de seu pai. Este encontro fortuito, e a conversa com os pais a

1093
respeito de Arieh, os comentários negativos da mãe, desencadeiam um duplo
movimento irrefreável: por um lado, Ya’arah sente ao mesmo tempo fascinação sexual e
repulsa por ele, e passa a provocar para si mesma situações cada vez mais degradantes,
numa rota de autodestruição que prossegue até o desmoronamento de seu casamento
com Yoni; o uso do discurso indireto livre e a intensidade da narrativa estabelecem
cumplicidade com o leitor e fazem com que ele torça para que a heroína seja capaz de
interromper a tempo sua corrida para o abismo, mas também compreende que isso é
impossível.
Quanto aos nomes dos protagonistas, aspecto que deve sempre ser observado na
obra de uma autora que transita com tanta facilidade pelas escrituras judaicas: Ya’arah
significa “favo de mel”, estabelecendo uma intertextualidade com a história narrada em
1 Samuel 14:24-45, em que Jônatas, filho do rei Saul, é condenado à morte por ter
molhado a ponta de uma vara em um favo de mel, violando, inadvertidamente, uma
ordem do rei. Ao final, Jônatas é salvo de ser executado pelo clamor do povo. A palavra
Ya’arah aparece em 1 Samuel 14:27.
Arieh, por sua vez, significa “leão”, remetendo ao episódio (Juizes, 14) em que
Sansão mata um leão, mais adiante come do mel de um enxame que se estabelecera no
corpo do leão morto, e finalmente propõe aos filisteus o enigma “Do comedor saiu
comida, e doçura saiu do forte”, enigma que só é resolvido pela deslealdade de sua
mulher, que chorara para forçar Sansão a lhe revelar sua solução.
À medida que se aproxima de Arieh, Ya’arah forma a convicção de que existem
pontos obscuros no relacionamento entre ele e seus pais quando jovens; a percepção de
que Arieh é a chave para o de outra forma inacessível passado de seus pais aumenta seu
fascínio por ele; a protagonista percebe que seus pais tinham, ambos, vivido histórias de
amor das quais ela era excluída. Arieh, assim, constitui uma ponte para o conhecimento
de seu passado. Funcionalmente, Arieh equivale a um livro, objeto que, para adquirir
sentido, deve ser lido e interpretado; um arquivo. A temática do livro, da leitura, da
interpretação, perpassa a narrativa.
Ya’arah parte então em uma dolorosa e implacável escavação em busca de
esclarecimento, escavação igualmente vertiginosa e geradora de sentimentos de culpa,
fazendo ruir suas relações familiares. Uma arqueologia da alma. Este procedimento
remete ao que Jacques Derrida (2001) elaborou em Mal de Arquivo; naquela obra, o

1094
pensador judeu-argelino propõe distinguir o arquivo daquilo ao que foi reduzido: a
experiência da memória e o retorno à origem, o arcaico e o arqueológico, a lembrança
ou a escavação; resumindo: à busca do tempo perdido.
A família é, dessa forma, equiparada ao Templo; o desregramento sexual e a
reflexão sobre as causas da destruição do Templo fazem com que a trama do romance –
a destruição da família - seja iluminada pelo conto talmúdico do carpinteiro, sua esposa
e o aprendiz, bem como por outras agadot que aparecem na narrativa.
A questão ética, da responsabilidade, perpassa a trama de Vida amorosa. No início
da narrativa, em monólogo interior sobre a morte da gata de sua amiga Shira, que lhe
pode ser atribuída, Ya’arah mantém uma postura de indiferença, de insensibilidade.
Mesmo já sabendo que o animal foi atropelado e está morto, acompanha a amiga em sua
busca. Uma postura de negação. No episódio da gata, a protagonista procura, então,
estabelecer um ponto de cegueira para tentar evitar um ponto de iluminação indesejado,
pois poderia levá-la ao conhecimento de si mesma: “A caminho de casa, pensei, eu vou
negar sempre, ninguém além de mim sabe, e se negar por bastante tempo a verdade será
derrotada pela mentira, nem eu mesma vou saber o que realmente aconteceu”
(SHALEV, 2002, p. 15).
Ao longo de seu percurso na trama do romance, Ya’arah é levada a negligenciar
seus compromissos profissionais na universidade, pondo em risco até mesmo a
possibilidade de obter a almejada bolsa de estudos. Percebe claramente que o plano de
sua vida - a tese, o bebê depois da tese, e o apartamento maior depois do bebê -, começa
a ser perturbado, mas não se decide a interromper a trajetória de autodestruição.
Quando, porém, finalmente, consegue reconstituir o passado, Ya’arah sente-se obrigada
a realizar o preconizado pela mística judaica, o tikkun olam, o “conserto do mundo”. A
expressão tikkun olam remete ao conceito da Cabala elaborada pelo rabino Isaac Luria
no século XVI, segundo a qual a redenção da humanidade só será obtida pela ação
conjunta de Deus e dos homens.
Agora, chegando à iluminação ao fim de sua árdua escavação, Ya’arah
compreende que deve consertar o que sua mãe fizera ou deixara de fazer, tarefa que
resiste a assumir por se julgar incapaz de levá-la a bom termo. Em suas palavras,

assim como chegara tão próxima da verdade antes que se esgueirasse, próxima da juventude, do
passado deles, o passado que era um gato domesticado num minuto e selvagem e assustador no

1095
seguinte, idêntico a ele, o passado que me uivava e clamava por mudança à noite, e logo eu,
quem diria, tinha de mudá-lo, eu que mal conseguia mudar nada no presente, quanto mais no
futuro, logo eu tinha de reparar o passado, pois visto que se estragara eu também me estragara, e
minha única esperança de me endireitar estava em endireitá-lo, se não pudesse ser consertado
tampouco eu poderia. (SHALEV, 2002, p. 203-204)

Uma das principais características do Talmud é sua estrutura de obra aberta. Ou


seja, cada tema, cada versículo da Torah, está sujeito a ser novamente interpretado, num
processo inesgotável de sobreposições. Observadas, é claro, determinadas regras. Esta
dinâmica é observada por Zeruya Shalev para o desfecho do romance Vida amorosa.
Somente no último capítulo da narrativa a protagonista encontrará uma saída, uma
possibilidade de redenção, através de uma nova interpretação da agadah do carpinteiro,
que ela apresenta ao chefe do departamento:

Que foi que você entendeu?, ele me examinou, duvidoso, o grunhido de espanto ainda
pairando nos lábios cheios, pronto para saltar mais uma vez, e tentei detê-lo com uma pergunta,
por que ele chorava, em sua opinião, por que ele chorava quando ali em pé servia aos dois?
Que é que você quer dizer, sem dúvida é óbvio, endireitou-se na cadeira o chefe do
departamento, ele chorava por si mesmo, por si mesmo e pela mulher que se transformara em
outra pessoa, pela terrível injustiça que lhe haviam feito! E olhei aqueles lábios confiantes que se
juntavam e separavam, e disse, era isso o que eu achava até esta manhã, mas agora percebo que
não era pela injustiça feita a ele que o carpinteiro chorava, mas pela injustiça que ele fizera com
sua mulher, ele é o vilão da história, mais ainda que o aprendiz, e sem a menor dúvida mais que a
mulher. (SHALEV, 2002, p. 241)

Não podendo ocupar um lugar permanente junto a Arieh, seu casamento com
Yoni destruído, e incapaz de voltar a conviver com os pais, o que resta para Ya’arah é
refugiar-se num mundo de livros, do qual, em consequência, ela se tornará prisioneira:

Todo mundo em volta arrumava as coisas para sair, vi Netta ao longe balançando seus
insetos e pondo a pilha de papéis numa grande sacola, e só eu continuava atenta ao livro, como
uma mãe atenta ao filho, a examinar seus membros perfeitos, continuei virando e virando as
páginas, e sabia que nenhuma regra cruel nos separaria, e quando o alto-falante avisou que todos
se retirassem da biblioteca, fui para um canto distante e me deitei entre as prateleiras, no tapete
duro, a ouvir os suaves passos que dele se elevavam, e ouvi a chefe da biblioteca insistindo com
os funcionários para que se retirassem, tenho um casamento esta noite, ela disse, preciso fechar,
e após alguns minutos as luzes brilhantes apagaram, só permanecendo acesa a fraca lâmpada de
emergência, e eu sabia que até a manhã do dia seguinte seria uma prisioneira ali, sem nada para
comer nem beber e sem ninguém para me fazer companhia, sozinha com meu livro. (SHALEV,
2002, p. 252-253)

Shai Tseler, reportando uma entrevista com a autora, afirma que Zeruya Shalev
escreve sobre mulheres, mas sua escrita não é feminina, e suas histórias acontecem aqui
mas não são israelenses. A entrevistadora não esclarece o que entende por “escrita

1096
feminina”, mas subentende-se que é algo redutor, menor. É curioso observar que a
autora somente obteve sucesso em Israel após ter sido “descoberta” por um crítico
literário alemão, que a lançou naquele país, com grande impacto favorável. Como
registra Nancy Rozenchan (2012, p. 18-19), “[d]esde que, no final da década de 1990,
caiu nas graças da crítica européia, cada novo livro de Zeruya Shalev é antecedido de
grandes expectativas”. A cena literária israelense, ao que parece, é dominada por
escritores homens.
Diferentemente da grande maioria da literatura israelense contemporânea, a
questão política, temas como o relacionamento entre judeus e palestinos, os
assentamentos, estão ausentes em Vida amorosa. É verdade que em seu mais recente
romance, Ke’ev, em português Dor, de 2015, o incidente inicial é a explosão de uma
bomba plantada por terroristas em um ônibus. Porém, a temática do romance não é o
peso da presença do terrorismo no quotidiano israelense, mas sim as perturbações que
os ferimentos sofridos pela protagonista naquele incidente irradiam para o convívio
familiar. A própria autora declarou que a política israelense é tão onipresente em sua
vida diária que sempre tentou garantir que ela não tomasse conta de seus livros. Não
discutir politica em seus livros é sua maneira de protestar contra a atmosfera de
violência e guerra que sempre prevaleceu em Israel. É uma situação sem esperança, que
Zeruya nunca quis transpor em seus livros. “Eu sou tão diferente deste país, onde tudo é
político, onde tudo às vezes é tão vulgar, tão barulhento, tão extrovertido. Eu não sou
assim!”, ela declarou em entrevista a Didier Jacob (2014), por ocasião do lançamento de
seu romance She’erit harrayim (O que resta da vida)4.

Referências:

CARANDINA, E. Comme si j’étais en face de ruines. Yod – Revue des études


hébraïques et juives. http://yod.revues.org/2384, 2015, consultado em 14/08/2019.

DERRIDA, J. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Trad. Cláudia de Moraes


Rego. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2001,

4 Didier Jacob, entrevista com Zeruya Shalev, 2014: “- Pourquoi la vie politique est-elle peu présente
dans vos livres, qui se concentrent pour l’essenciel sur la sphère familiale et conjugale?”. “- La vie en
Israël est déjà si présente dans mon quotidien que je me suis toujours battue pour qu'elle ne prenne pas le
contrôle de mes livres. Parfois j'y parviens, parfois non. Dans le livre, Hemda dit que, petite, elle avait
l'impression d'être née au mauvais endroit au mauvais moment. C'est parfois ce que je ressens. Je suis si
différente de ce pays, où tout est politique, où tout est parfois si vulgaire, si bruyant, si extraverti. Je ne
suis pas comme ça!”

1097
DUMITRACHE, S. Writing is in my genes. https://www.bookaholic.ro/writing-is-in-
my-genes-interview-with-zeruya-shalev.html, 2014, consultado em 14/08/2019.

JACOB, D. Je ne quitterai pas Israël. http://www.crif.org/fr/alireavoiraecouter/zeruya-


shalev-prix-femina-étranger-2014-je-ne-quitterai-pas-israël/52981, consultado em
14/08/2019.

LEVY, E. Une entrevue avec l’écrivaine israélienne Zeruya Shalev.


https://www.cjnews.com/news/canada/une-entrevue-avec-lecrivaine-israelienne-zeruya-
shalev, 2014, consultado em 14/08/2019.

ROZENCHAN, N. O que resta da vida e o contexto histórico: a respeito de identidade


judaica e sua expressão na literatura hebraica. Cadernos de Língua e Literatura
Hebraica, São Paulo, n. 10, p. 11-27, 2012.

SCHWARTZ, Y. A lamenter in Leopard-print Pants.


http://journals.openedition.org/yod/2334, 2015, consultado em 14/08/2019.

SHALEV, Z. Vida amorosa. Trad. Aida Porto. Rio de Janeiro: Imago, 2002.

1098
LETRAS MIGRANTES: POÉTICAS DA JUDEIDADE NA LITERATURA
BRASILEIRA OU LENDO SAMUEL RAWET E ELISA LISPECTOR

William Conceição dos Santos (UFBA)1

Resumo: A presente comunicação propõe uma leitura comparada entre o conto “Gringuinho”,
do escritor judeu-polonês-brasileiro Samuel Rawet (1929-1984) e fragmentos do romance “No
exílio”, da escritora judia-ucraniana-brasileira Elisa Lispector (1911-1989), no âmbito dos
escritores brasileiros de origem judaica. A partir de um repertório teórico-crítico, evidencia-se a
escrita de traço judaica como um componente da literatura brasileira, capaz de abalar a
concepção homogeneizadora de literatura nacional.
Palavras-chave: judeidade; trânsitos; migrações; exílio.

Ler as obras de Samuel Rawet e Elisa Lispector requer um trabalho de escavar,


dentre vários nomes de escritores brasileiros de origem judaica, um componente externo
que se relaciona à literatura brasileira e que a ela é incorporado, pelo menos, há mais de
70 anos. Nos âmbitos da autoria e da temática textual, a presença de uma escrita literária
de traço judaico na literatura brasileira remonta os anos de 1940, marcada, inicialmente,
por imigrantes de primeira geração, isto é, aqueles que não nasceram no Brasil, e
depois, continuada por imigrantes de segunda e terceira gerações, representadas,
respectivamente, por filhos e netos de imigrantes.
A presença de imigrantes judeus no Brasil situa-se no histórico dos grandes
fluxos migratórios ocorridos no país e sua cronologia se inicia quase paralela à própria
cronologia de fundação da nação. Na esperança de sobrevivência e continuidade de suas
práticas religiosas e culturais, judeus oriundos de vários pontos da Europa migravam
para a América, a qual consideravam a Canaã Ocidental, terra da libertação das
perseguições, da miséria e das ameaças do Holocausto. O compósito textual de muitos
escritores de origem judaica, distribuído em cartas, depoimentos, diários, ficção,
constitui-se pelo aguçamento de suas memórias acerca do processo de trânsito entre o
momento de saída de suas localidades de origem até a instalação no Brasil, além do
impacto causado pelas barreiras culturais, linguísticas, climáticas e religiosas e dos
sentimentos de angústia e marginalidade imputados pela experiência do exílio.

1
Aluno do curso de doutorado do Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura
da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: williamcs88@hotmail.com.

1099
O estudo da ficção migrante de traço judaico como componente da Literatura
Brasileira Moderna e Contemporânea busca refletir sobre os movimentos de projeção da
vida do escritor de origem judaica, que assume esse perfil na constituição de seus
personagens marcados pela experiência exílica, seja de forma explícita ou relevante,
segundo Regina Igel (1997), seja através das linhas de força que rebentam e costuram os
fios significativos dessa textualidade judaica, associando-se o gesto de ultrapassagem de
fronteiras geográficas e culturais às fronteiras da subjetividade.
Considerado pela maioria dos críticos como significativa linha de ruptura do
conto tradicional brasileiro e renovador do gênero, muitas vezes comparado a Beckett,
Joyce e Kafka, Rawet apresenta à literatura brasileira um traço promissor em sua
contística, não apenas pela inserção do estrangeiro como tema e caricatura de
personagem, mas, sobretudo, pelo fragmentário e sincopado estilo de narrar. Samuel
Urys Rawet nasceu na pequena cidade polonesa de Klimontow, em 1929, numa família
judia, tornando-se brasileiro naturalizado, quando aqui chegou em 1936, contando
apenas sete anos de idade. Cresceu no subúrbio do Rio de Janeiro, cidade que, com suas
ruas, largos, avenidas e praças, testemunhou os perambulantes passos de um irrequieto
sujeito. Em 1963 e, definitivamente, em 1974, após algumas temporadas em Israel e na
Europa, transfere-se para Brasília, o lugar de cuja construção participou ativamente e
que fora escolhido para a continuidade de sua errância urbana até agosto de 1984,
quando morre acometido por um aneurisma cerebral.
Rawet inicia a sua vida literária com vinte anos de idade, ainda como estudante
da Escola Nacional de Engenharia, inicialmente, através de publicações de crítica teatral
no jornal Café da manhã, entre 1949 e 1951 e na Revista Branca. Formou-se em 1953,
tornando-se engenheiro calculista de concreto armado na equipe de Oscar Niemeyer,
Lúcio Costa e Joaquim Cardozo, participando de importantes construções, como a da
cidade de Brasília, a do prédio do Congresso Nacional e a do Monumento aos Mortos
da Segunda Guerra, no Rio de Janeiro. Esteve, por um ano, em Israel, acompanhado de
Niemeyer, na construção da Universidade de Haifa.
As publicações de Rawet, distribuídas em mais de doze títulos, se deparam com
uma múltipla malha textual, conferindo-lhe, por isso, um estatuto transitivo que se
materializa não só nas migrações espaciais vivenciadas pelo escritor, mas também na
ordem do discurso. Na ficção, encontramos contos, gênero que consolida a consagração

1100
do escritor, duas novelas e, pelo menos, três peças teatrais. No ensaio, encontramos
diversos textos de especulação filosófica e vários outros de crítica literária e, ainda, há
outros que desafiam a própria identidade do gênero ensaio, pois se comportam como
crônicas autobiográficas, ou se incorporam de traços ficcionais. Para o propósito deste
texto, abordaremos o conto “Gringuinho”, do seu livro de estreia, Contos do imigrante,
de 1956.
“Gringuinho” é um dos mais famosos textos de Samuel Rawet. No conto,
aparecem as mesmas motivações marcantes de uma personagem estrangeira na tentativa
de socialização num espaço, numa cultura, e entre pessoas distantes de sua realidade
primeira. Nesta luta pela assimilação, são esgarçadas a angústia, a marginalidade e a
incomunicabilidade. Um garoto estrangeiro é a personagem principal, tornando a
condição de estrangeiridade mais contundente e dramática. É um dos contos que melhor
possibilita a diluição de fronteiras entre a ficção e a autobiografia. Dessa forma, ficção e
autobiografia funcionam como linhas de força que se entrecruzam, cujas leituras
permitem equacionar o personagem Gringuinho com a própria figura do escritor Samuel
Rawet, quando chegou ao Brasil, com apenas sete anos de idade.
Os demais personagens de sua faixa etária são nominados: Caetano, Raul, Zé,
Paulo e Betinho. Porém, Gringuinho, personagem principal e o próprio motivo da
narrativa, só é reconhecido por esta alcunha pejorativa, que o situa, imediatamente, em
posição de diferença naquele contexto. O início do conto é ilustrado por um período
simples, apenas formado pelo verbo “chorava”. A economia da linguagem contística
percebida no modo estilístico narrativo do escritor não quer uma descrição delongada.
Apenas este verbo é suficiente para exibir uma imagem que inicia a angústia e o
sofrimento da personagem. O choro é a única companhia para o retorno da escola para
a casa. Ao passar pelo bairro, seus pés fendiam o barro formado depois de uma chuva,
sujando todo o seu fardamento. Viu uma mangueira em cujo galho estava pendente uma
corda de balanço, a mesma utilizada para sustentar a forte embalagem trazida por seus
familiares, a primeira imagem que tematiza a experiência migrante de Gringuinho e sua
família. Era ignorado por todos, inclusive por sua própria mãe, que não se atentou para
o estado de sujeira de sua roupa e, muito menos, para o seu rosto de lágrimas
enxugadas. Só percebeu a sua presença quando jogou alguns livros sobre a mesa.
Apenas ordenou que trocasse de roupas e que fosse comprar cebolas no armazém. Ao

1101
entrar no quarto, surpreendeu o balbuciar do irmão caçula, num gesto de quem tocava
uma harpa, certamente movimentando as mãos e os olhos em direção ao teto. Após essa
cena, o narrador, no mesmo parágrafo, entra num plano narrativo interno, deslocando,
de maneira abrupta, o ambiente da casa para o ambiente da sala de aula em que
Gringuinho estuda. A instituição responsável por se comprometer com o seu
aprendizado, mesmo em sua condição de imigrante, tornava-se o ambiente mais hostil,
excludente e odiado pelo garoto.

Era-lhe estranha a sala, quase estranhos, os companheiros. Os olhos no quadro


negro espremiam-se como se auxiliassem a audição perturbada pela língua.
Autômato, copiava nomes e algarismos (a este compreendia), procurando intuir
as frases da professora. (RAWET, 2004. p. 42-43).

Paradoxalmente, o espaço propício ao diálogo era o espaço da


incomunicabilidade. O desenho da muralha linguística imposta a este pequeno
estrangeiro se delineava pela apreensão visual do código escrito como esforço para uma
possível compreensão. Numa entrevista, Samuel Rawet, cuja língua materna era o
iídiche, parece minimizar do ambiente escolar a sua função letradora, atribuindo esse
papel ao ambiente da rua, especialmente, quando revela a maneira como aprendeu a
língua portuguesa:

A educação da linguagem, a educação da sensibilidade. Foi nas ruas, entre


Ramos e Olaria, nos subúrbios de Leopoldina, que iniciei meu aprendizado da
primeira, gringuinho, gringuinho de gente que vendia à prestação. Foi nas ruas
desta cidade puta, em meio à experiência da loucura, que afinei a segunda.
(RAWET, 1970, p. 241).

Aqui, neste relato autobiográfico flagrado no ensaio “Devaneios de um solitário


aprendiz da ironia” (1970), aparece explicitamente o ponto comum que liga a vida
infante de Samuel Rawet ao personagem Gringuinho: o próprio apelido como vocativo
e referência imediata de identificação desses sujeitos. Além disso, evidentemente, as
vivências decorrentes do contato com a nova língua como parte de um processo
experimental, posto em prática nas ruas e, de forma mais grotesca, com o auxílio da
violência, conforme depoimento do escritor dado ao crítico Flávio Moreira da Costa,
publicado em 1975: “Aprendi o português na rua, apanhando e falando errado – acho
que este é o melhor método pedagógico em todos os sentidos. Aprendi tudo na rua”.

1102
Voltando ao conto, as horas de recreio e de lazer pós-escola são, normalmente,
as mais desejadas pelas crianças da idade de Gringuinho, porém, para ele, são as horas
em que a hostilidade e o sentimento de exclusão são mais acentuados: “Ontem rolara na
vala com Caetano após discussão. Atrapalhou o jogo. O negrinho cresceu em sua frente
no ímpeto de derrubá-lo. “Gringuinho burro!” (RAWET, 2004, p. 43). Gringuinho ainda
se encontrava na mesma posição, no quarto com seu irmão, ajeitando o uniforme. Então,
deixava-se levar por reminiscências, distribuídas entre as vivências anteriores a
travessia de navio e as mais recentes, em sua nova e difícil realidade. Esses sobressaltos
de memória aparecem através do gesto digressivo da narrativa e são intercalados aos
vários retornos para o espaço onde se presentificam as ações: o ambiente da casa, de
onde se ouvem a voz insistente da mãe pedindo cebolas, o balbuciar do seu pequeno
irmão e o barulho agitado do seu chocalho.
Contrastando a nova realidade conflituosa com o desejado passado perdido,
lembrou-se do seu grupo de amigos, das brincadeiras de verão, da liberdade em colher
frutas e das traquinagens de sua outra infância. Lembrou-se da imagem de um velho
barbudo, certamente, o rabino responsável pela transmissão da educação judaica, de
quem tomava tapas e beliscões como parte de um processo grotesco de aprendizagem.
Parece que, diante de tamanha angústia, até essa desagradável lembrança vinha como
saudosismo. Lembrou-se do inverno, quando deslizava no rio gelado com botinas
ferradas ou trenó. Lembrou-se da afável companhia do avô, recém-chegado das orações
na sinagoga. Sentado no seu colo, sentindo o roçar de sua barba na nuca, fazendo-lhe
cócegas, dispunha-se a ouvir histórias do seu povo, a escutar canções entoadas pela voz
rouca e agradável do velho até atingir o sono. Aqui, revela-se um dado importante sobre
o papel de cada membro da família judaica como canal de formação intelectual das
crianças e da transmissão dos códigos da cultura judaica, especialmente quando esse
canal é representado pela figura do ancião.
Essas saborosas lembranças foram abruptamente cortadas quando lembrou-se
do constrangimento que passara na sala. Chegou atrasado e sentiu a necessidade de
justificar-se. Enquanto se dirigia à mesa da professora, todos o fitavam e dele
debochavam e riam. Queria chorar, mas conteve as lágrimas quando retornou ao lugar.
Lembrou-se de que chorou quando foi com o pai à sinagoga. Os meninos do bairro
cantavam em repetição: “Gringuinho”, “Gringuinho...” Deparou-se com os olhos do

1103
irmão nos seus. Abriu o livro na página indicada na tentativa de decodificar a lição de
casa, contida de figuras e histórias as quais eram estranhas ao seu repertório cultural.
Lembrou-se de uma voz: “Fala Gringuinho.” Lembrou-se do constrangimento passado
na casa do Raul, após receber uma fatia de melão, dessa vez causado pelo pai e os tios
do seu companheiro:

Ah! É o Gringuinho!” Expelida pelo nariz a fumaça do cigarro, o pai


soltara a exclamação. Quase o sufoca a fruta na boca. Os tios
concentraram nele a atenção. Parecia um bicho encolhido, jururu,
paralisado, as duas mãos prendendo nos lábios a fatia. “Fala
Gringuinho”. Coro. Fala Gringuinho (RAWET, 2004, p.44)

No final do conto, ao sair para comprar as cebolas, Gringuinho corre sobre o


cimento molhado equiparando este gesto à brincadeira de deslizar no rio gelado do
inverno de sua terra natal. Essa imagem o caracteriza como um sujeito consciente de sua
condição como partido entre dois mundos, dois imaginários, mesmo com a pouca idade.
Um mundo rompido pela experiência do deslocamento e outro, diferente, hostil e
angustiante. Ninguém lhe explicou as razões para uma drástica ruptura com o seu
mundo e com seus códigos já internalizados.
Nas publicações posteriores a Contos do imigrante, Rawet amplia a abordagem
temática de sua ficção e não apenas personagens estrangeiras são representadas, mas
também, aparecem personagens dotados de outras identidades, com outros formatos de
estrangeirismo. Trata-se de personagens dissidentes, que também se apresentam em
deslocamento, são errantes em seus percursos espaciais e comportamentais, traem os
papeis estabelecidos pelo status quo, tais quais, psicóticos, esquizofrênicos, prostitutas,
vagabundos, boêmios, bandidos, presidiários, mendigos, travestis, homossexuais.
Elisa Lispector, nascida Leah Pinkhasovna Lispector, nasceu em Sawran, na
Ucrânia, em 24 de julho de 1911. Junto com seus pais Pinkhouss Lispector e Mania
Krimgold Lispector, e suas irmãs Ethel (Tânia) e Haya (Clarice), Elisa Lispector chega
ao Brasil em 1920, aos nove anos de idade. Inicialmente, viveram em Maceió por cinco
anos, depois, mudaram-se para Recife e, em 1937, seguiram para o Rio de Janeiro. Em
Recife, após ter se formado na Escola Normal e estudado no conservatório musical,
lecionou para crianças. Foi concursada do serviço público federal como secretária de
delegações governamentais, representando o Brasil em importantes funções no exterior,

1104
aposentando-se em 1970. No Rio de Janeiro, estudou Sociologia, na Escola Nacional de
Filosofia, e Crítica de Arte, na Fundação Brasileira de Teatro.
Sua iniciação literária é marcada pela estreia do romance Além da fronteira, em
1945. Mais tarde, em 1948, coincidentemente, ano de fundação do Estado de Israel,
publica o romance No exílio, considerado, dentre suas obras, o mais autobiográfico, por
retratar, ficcionalmente, o trânsito da família Lispector da Ucrânia até a chegada ao
Brasil. Publicou também os romances Rondas solitárias (1954), O muro de pedras
(1963), que lhe rendeu os prêmios José Lins do Rego e Coelho Neto, O dia mais longo
de Teresa (1965), A última porta (1975), Corpo-a-corpo (1983). Estreou como contista
pelas publicações de Sangue no sol (1970), Inventário (1977) e O tigre de bengala
(1985). Em 2011, a biógrafa e professora Nádia Batella Gotlib organizou a publicação
do romance inédito Retratos antigos. A escritora morreu no dia 6 de janeiro de 1989,
aos 77 anos, no Rio de Janeiro.
Visto que Elisa Lispector possui um extenso legado literário, cabe expor e
problematizar a invisibilidade de sua figura autoral na cena literária brasileira, tanto do
ponto de vista da crítica, quanto do conhecimento do leitor. Assim, este texto, na
roupagem de uma brevíssima leitura de um dos seus romances, é, também, uma
proposta inicial para um ato de desrecalque de sua produção, tão ofuscada, tão
desconhecida, tão à margem dos centros de consagração literária, os mesmos que
legitimaram e canonizaram a obra de sua irmã, Clarice Lispector.
No exílio trata-se, como o próprio título anuncia, de uma narrativa sobre o exílio,
potencializando de forma explícita, uma textualidade de caráter autoficcional e
memorialístico. Narram-se as experiências de trânsito vivenciadas pela família
Lispector da Ucrânia para o Brasil, na fuga das terríveis ameaças e perseguições
propagadas pelos pogroms do império russo. O foco narrativo é em terceira pessoa,
conduzido pelo olhar de Lizza, a protagonista da trama.
O realismo do romance é evidenciado, principalmente por dois aspectos
explícitos: a memória do trânsito da família da Rússia para o Brasil, especialmente, para
Maceió, e a reinvenção dos nomes dos componentes da família imigrante: Lizza (Elisa),
Pinkhas (Pinkhouss ou Pedro), Marin (Mania ou Marieta), Ethel (Ethel ou Tânia) e Nina
(Haya ou Clarice). A estrutura do romance é ajustada ao formato mais clássico, voltada
para uma narratividade do início, meio e fim, incorporando algumas marcas da técnica

1105
de flashback. O enredo se inicia com Lizza como passageira de um trem, após alta de
um sanatório, despertada pela voz de um jornaleiro que anunciava a notícia da
proclamação do Estado Judeu. O fim do capítulo de abertura do livro já exibe o
propósito digressivo e memorialista que perpassa ao longo do texto, sob a ótica do
processo de perseguições e expatriação dos judeus, articulando a memória individual da
protagonista à memória coletiva de um povo:

Lizza fechou os olhos e recostou a cabeça no espaldar da poltrona.


Distantes episódios ressurgiam-lhe na memória, espantosamente
vívidos: fugas desditas, perseguições. Começou a recordar o êxodo de
que participou, numa interminável noite semeada de espectros e terror.
(LISPECTOR, 2005, p. 8)

A volta ao passado, permitida pelas reminiscências de Lizza, transporta o leitor


para a cena do trânsito noturno de uma caravana de emigrantes, da qual sua ela, com
apenas oito anos, e sua família também faziam parte. Enquanto suas irmãs menores e
sua doente mãe dormiam, Lizza, numa atitude heroica, decide dividir com o pai a
posição de sentinela da família. Revelam-se, ao longo da narrativa inicial, a tradição da
cultura judaica propagada pelos ascendentes, o encontro amoroso e o casamento dos
pais, o seu nascimento e o de suas irmãs e, como núcleo temático, as descrições dos
horrores e traumas das perseguições a sua família e a sua comunidade após a Revolução
Russa, de 1917. É digno de destaque o tecido babélico que é costurado em todas as
partes do romance. Sintagmas e vocativos contendo palavras e morfemas em iídiche,
hebraico e russo combinados com a língua portuguesa. Além disso, são acionados os
trânsitos culturais que se esbarram no texto, promovidos seja pelos rituais e tradições da
transmissão judaica, seja pela forte influência da literatura, da filosofia e da cultura
russa.
As descrições dos traumas e catástrofes das perseguições são terrivelmente
exibidas pelo jogo da escrita de Elisa, extraindo do leitor, a sensação de repugnância
diante do horror.

(...) À sua frente passava um carro apinhado de cadáveres, jogados uns


por sobre os outros, os rostos deformados, os membros esfacelados,
cobertos de sangue e de lama, e atrás desse carro seguia outro, e mais
outro, numa continuidade que parecia jamais ter fim. As rodas dos
veículos trepidavam sobre as pedras irregulares do leito da rua, e os

1106
montões de carne, trapos e lama eram embalados tragicamente.
(LISPECTOR, 2005, p. 37).

Ai, ai, ai, o que “eles” fizeram! Obrigaram-no a pisar a Torá e


vazaram-lhe os olhos; cortaram-lhe a língua e as orelhas. Ai –
suspirou dolorosamente – o que “eles” fizeram. (LISPECTOR, 2005,
p.39).

Diante de tantos horrores e ameaças, entre caravanas, andanças e acampamentos,


resistindo ao rigoroso frio, à fome, em meio ao risco de ser mais um número entre os
mortos, e depois da longa travessia pelo oceano, a família Lispector chega ao Brasil,
para que seja possível a continuidade de suas vidas. Mas a paz assegurada pelo novo lar
vem junto com a sensação de marginalidade e com as dificuldades de adaptação. Além
disso, denunciam-se as intrigas, a hostilidade e a exploração operadas pelos próprios
cunhados Pinkhas, aqueles que os acolheram após a carta de chamada. Para Lizza, a
hostilidade é mais contundente no espaço escolar, revelando a barreira linguística
enfrentadas por um imigrante:

O breve período escolar, durante uma curta permanência da mãe em


casa, marcara-a com experiência dolorosa. Convencera-se de que as
relações com as meninas de sua idade não mais seriam possíveis.
Sofrera durante as aulas, vendo-se demasiado crescida para estar entre
crianças que apenas se iniciavam nas letras; nos recreios, a sensação
de mal-estar aumentava ainda mais. – Diga cadeado, diga. – As
crianças cercavam-na e a apoquentavam, com maldade. – Ca-de-a-do
– repetia, pondo acento em cada sílaba, com medo de errar. A
meninada ria, pulava em torno, uma puxando-lhe a saia, a outra o
cabelo maltratado. Suportava, de dentes cerrados, contendo-se para
não dar parte de fraca. Se chorasse, seria pior. Então, as crianças
cansavam-se desse brinquedo e abandonavam-na no meio do pátio,
como uma coisa inútil, Lizza ficava sozinha, a um canto, esperando o
recreio acabar, A alegria ruidosa das outras não a contagiava, mesmo
quando se mostravam benévolas e condescendentes para com ela, a
imigrante. (LISPECTOR, 2005, p. 107)

Edward Said, no texto “Reflexões sobre o exílio”, traz a imagem de uma fratura
incurável para simbolizar a terrível experiência do exílio. Uma fratura entre o ser
exilado e o seu lugar natal, o eu e o seu verdadeiro lar. Essa mesma fratura, descrita por
Said, é também vista e vivenciada por Pinkhas, ao persistir na sobrevivência da tradição
judaica no contexto de uma cultura totalmente diferente da sua:

E sucediam-se os sóis e as luas. A via, no lar, mutilada. Pinkhas


procurando salvar dos destroços a vida e família, o espírito da tradição

1107
judaica. Aqui não havia sinagoga, nem homens versados nos textos da
Lei Mosaica. Do shabat, resguardava o mais que podia, para que a
existência não resvalasse para o sensabor de semana entranhada em
semana, todos os dias iguais. Porque acima de tudo, ele amava a vida,
amava-a apesar de tudo. (LISPECTOR, 2005, p. 116).

Passados os anos, após a morte de Marim, Lizza consolida a sua atuação materna
na família, já exercida antes, enquanto sua mãe estava doente. Criou suas irmãs, apoiou
seu pai, abdicou do amor, contrariando o desejo do Pinkhas para que se casasse e desse-
lhe netos. O romance revela o forte elo entre Lizza e Pinkhas, a cumplicidade entre a
filha e seu pai, fato que a deixou mais exposta à transmissão judaica do que suas irmãs,
que, por serem mais novas, aderiram ao processo de assimilação com mais naturalidade.
O final do romance é marcado pelo discurso historiográfico articulado à dicção
ficcional, tornando No exílio um texto múltiplo, pois congrega ficção, autobiografia/
autoficção, testemunho e discurso histórico-documental. Nos últimos capítulos, através
de diálogos entre Lizza e Pinkhas e a leitura compartilhada de jornais, periódicos e
livros, são discutidos temas como a questão judaica, o antissemitismo, o sionismo, a
disputa entre árabes e judeus por Jerusalém, a primeira e a segunda guerras mundiais e o
nazismo.
Diferente da linha ficcional de Clarice Lispector, que, por sua vez, não deixava
em seus textos, os rastros de uma filiação judaica de forma explícita, Elisa Lispector
trata do tema com maior vigor, especialmente em No exílio. Há razões evidentes para a
diferença entre os percursos das irmãs. Elisa chega ao Brasil com nove anos de idade,
sua língua materna, sua cultura judaica e, inclusive, todos os horrores que ela presenciou
já estavam internalizados em seu imaginário e experiência. Clarice chega ao Brasil com
apenas dois meses e, naturalmente, cresceu mais exposta à cultura brasileira, mesmo no
compromisso dos pais e da irmã mais velha com a transmissão dos costumes judaicos
na família.
Ler os textos de Samuel Rawet e Elisa Lispector significa mobilizar um
componente externo pouco explorado, mas muito presente na literatura brasileira dos
últimos 70 anos. A escrita migrante, vinculada a um estatuto de estrangeiridade, é
potencial para rasurar a relação fidedigna entre literatura e nação, abalando sua
concepção essencialista e homogeneizadora. Na contemporaneidade, vozes antes
silenciadas reverberam no discurso literário, no intuito de tematizar suas identidades,

1108
deslocando da agenda literária a pauta de um projeto nacionalista. Assim, para Zilá
Bernd, “classificar as literaturas pela pertença a uma única nação tornou-se não apenas
complicado, como cada vez mais irrelevante” (BERND, 2010, p.14).
Ao designar a escrita de Franz Kafka como uma literatura menor em relação à
língua alemã, Deleuze e Guattary, abordam o conceito de literatura menor referindo-se
às condições revolucionárias operadas por uma determinada literatura no interior de
uma literatura maior, considerando o caráter desterritorializado da língua. O estatuto de
minoria, na perspectiva evidenciada pelos pensadores, é uma significativa chave para ler
os textos de Rawet e Elisa. São textos escritos em língua portuguesa pelas mãos de
estrangeiros conscientes dos desafios dessa língua maior, confrontando o exílio de vida
com o exílio da linguagem.
Samuel Rawet e Elisa Lispector. Dois escritores brasileiros de origem judaica,
nascidos em aldeias judaicas do leste europeu, chegaram ao Brasil, praticamente com as
mesmas idades, imediatamente incorporados à dinâmica urbana. Tematizaram, por uma
marca indiscutivelmente autobiográfica, a condição exílica, imprimindo, cada um em
sua forma, os seus judaísmos. Seus personagens persistem sob os signos da
incomunicabilidade e da angústia, vivem em desajuste com o espaço e o tempo. Os dois
exerceram profissões paralelas à atividade da escrita, a de engenheiro e a de secretária
de relações exteriores, cujas funções lhes imputaram o trânsito por diferentes espaços.
Vivenciaram um certo ostracismo na cena literária brasileira, com seus livros
garimpados em sebos, longe das estantes das grandes editoras, alguns reeditados após
anos de suas mortes ou reunidos em obras completas, numa tentativa de oferecer aos
leitores a possibilidade de conhecimento sobre seus textos. Ainda assim, suas obras,
suas figuras autorais, até hoje, são pouco conhecidas, pouco lidas, pouco tratadas nos
âmbitos da crítica e da pesquisa literária.

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1109
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1110
NEMO, O PEIXINHO FILÓSOFO, DE ASSIS BRASIL: DIÁLOGOS COM O
LEITOR EM FORMAÇÃO

Cleane da Silva de Lima (UFPI)1

Resumo: Esta pesquisa objetiva analisar os aspectos sociais que dão sustentação à narrativa,
que, por meio da relação entre o real e a fantasia, em Nemo, o peixinho filósofo, propõe uma
leitura crítica do mundo com vistas à emancipação do leitor infantil e juvenil. Para tanto,
realizou-se uma pesquisa bibliográfica pelo método hipotético dedutivo, tendo como suporte
teórico Jauss (1994), Zilberman(2003), Iser (1999), Oliveira( 2007), Gregorin Filho(2011),
Ceccantini(2004) e Abromovich(1995). A obra de Assis Brasil possibilita a compreensão dos
assuntos sociais que estão ao redor da criança e do jovem, construindo nesses leitores uma
imagem do mundo através das descobertas afloradas pelo imaginário.

Palavras-chave: Leitura crítica; Real e fantasia; Nemo, o peixinho filósofo.

Introdução

A literatura apresenta diferentes funções e abrange diferentes leitores. Neste viés,


destacamos o encanto provocado nos leitores infantis por incitar a curiosidade e a
imaginação, as quais já são características intrínsecas deles, que, por sua vez, são
ativadas pela forma como os textos literários são disponibilizados bem como
apresentados a esse público. Logo, as crianças aos poucos vão construindo seu ponto de
vista em base daquilo que já conhecem mediante as leituras da literatura.
Desse modo, os textos da literatura infantil e juvenil por meio das narrativas
possibilitam ao leitor interpretar a história através de referências do seu mundo social,
pois a ficção desperta neste que lê a lembrança de algo já conhecido, através da fantasia
e da surpresa proporcionados pela narrativa.
Nesse sentido, o leitor ainda em formação, compreende a história a partir dos
assuntos que lhe são familiares, pois é pelo ato da leitura que se revela as condizentes
morais, culturais, cognitivos, assemelhando, de certo, com aquilo que já conhece,
aprendeu ou experimentou.
Nessa perspectiva, a leitura do texto, por meio do ponto de vista da criança,
provoca questionamentos sobre o mundo e o comportamento social, promovendo assim

1
Mestranda em Literatura pela Universidade Federal do Piauí, bolsista FAPEPI.

1111
a emancipação dela como leitora, além de aumentar seu repertório de conhecimento
sobre o mundo e, também, sobre si.
Desse modo, esta pesquisa busca analisar os aspectos sociais que dão sustentação
à narrativa, que, por meio da relação entre o real e a fantasia, propõe uma leitura crítica
do mundo com vistas à emancipação do leitor infantil na obra Nemo, o peixinho filósofo,
de Assis Brasil, o qual promove vivências apreendidas pela compreensão dos assuntos
relacionados à criança e ao jovem, construindo neles uma imagem de mundo através das
descobertas afloradas pelo imaginário, sobretudo o sentimento de cuidado para com a
natureza e o meio ambiente.
Nessa perspectiva, o estudo será divido em dois capítulos, o primeiro discorrerá
sobre a formação do leitor e suas vivências referentes à obra; o segundo dedica-se à
análise da obra alusiva às questões sociais empregadas no texto que dão margem para a
formação do leitor através dos assuntos morais e sociais possibilitando, através da
fantasia empregada na narrativa, a imaginação e criatividade da criança.

1 Leitor em formação e o texto literário

Os textos literários infantis fascinam as crianças pelas histórias misteriosas e


cheias de fantasias, provocando a curiosidade perante os assuntos abordados. Nesse
sentido, a literatura voltada para crianças, em suas narrativas, emprega temas sociais e
morais, de cunho pedagógico, preocupando-se com os conteúdos para cada faixa etária
(o público infanto-juvenil).
Por esse viés, as pesquisas referentes à Literatura Infantil abordam também fatores
como a fruição estética e a forma como o texto é apresentado à criança, pois, “a
Literatura Infantil e juvenil ainda é tímida em seus estudos, devendo então assegurar a
constituição de uma base sólida de tal modo que o campo possa de fato avançar numa
perspectiva horizontal ou vertical.” (CECANTINI, 2004, p. 27).
Os estudos sobre a Literatura Infantil são discutidos sobre sua expansão em
âmbitos escolares, familiares e sociais que viabilizam a criança o direito à literatura e
sua adaptação, sendo ela, leitor em formação. Por conseguinte, é um campo que se
aprofunda em estudos tendo em vista uma literatura que responda mais diretamente às
expectativas do público infantil.

1112
É perceptível também, que o contato da criança com a literatura se dá por meio da
escola, sendo, muitas vezes, a primeira instituição a concretizar o laço da leitura,
viabilizando ao leitor o acesso ao livro literário. Nesse contexto, a criança, como leitor
em formação necessita de acompanhamento tanto escolar como familiar no ato de ler.
Conforme Martins (2003) o leitor que está em formação, muitas vezes tem o
contato com o texto na escola a partir de seu nível escolar, tendo acesso ao livro
direcionado às práticas de leituras que estão imbricados sob os aspectos sociais, ações e
valores imbuídos nestes textos, os quais lhe possibilitam reiterar os assuntos do texto e
inferir nele seu conhecimento de mundo ainda em formação.
Por esse viés, é necessário que o texto dialogue com os leitores em formação
através das leituras realizadas e os sentidos atribuídos por eles em base de suas
vivências que possibilitam a compreensão da narrativa. Logo, o texto literário ativa na
criança suas emoções e experiências, mediante os assuntos que já conhece em seu dia a
dia, sendo, muitas vezes identificados por ela pelos personagens das histórias contadas e
narradas. A literatura tem função partilhada.
É por meio da linguagem, da interação do texto com o leitor que manifesta
encanto e fantasia, interligados pelas características dos personagens, prendem a atenção
do pequeno leitor. Muitos textos dessa literatura disponibilizam comportamentos morais
que a criança vai identificando como certo e errado por já trazer em si valores imbuídos
em sua formação social, sobretudo familiar.
Nessa perspectiva, a literatura é “como linguagem e como instituição, que se
confiam os diferentes imaginários, as diferentes sensibilidades, valores,
comportamentos através dos quais uma sociedade expressa e discute, simbolicamente,
seus impasses, seus desejos, suas utopias.” (LAJOLO,1994, p. 106). O leitor em
formação vai descobrindo e formando seu conhecimento em base do imaginário que o
texto através da linguagem lhe possibilita, logo, permitindo conhecimento crítico em
base da leitura.
A prática da leitura somente ocorre pelo interesse da criança despertada pelo
mediador, este que se torna responsável pela apresentação do texto e seu o acesso a ele.
A leitura constrói na criança saberes que se tornam “eficazmente às práticas de leitura
literária que ocorrem no contexto social e às atitudes e valores próprios que
correspondem ao ideal de leitor que se quer formar”. (SOARES, 2006, p. 47).

1113
Por conseguinte, a prática da leitura é eficaz quando a criança percebe como
funciona o texto em base de seu aspecto social, além dos valores, dos costumes,
reconhecidos nas narrativas, os quais lhe faz dialogar com os assuntos inseridos nas
histórias, formando seu ponto de vista sobre o texto. É notório porém que sem as
vivencias sociais seria impossível demonstrar a criança sentimento de partilha e
pertença ao texto.
Nessa perspectiva, os aspectos sociais suscitados no texto literário dialogam com
o leitor por meio de seu conhecimento prévio, que de acordo com Jauss (1994) ativa no
leitor a lembrança de algo já vivido ou lido. O que possibilita a criança interação com a
narrativa, além da compreensão do texto, em que vai pondo nele todo o seu
conhecimento de mundo e suas expectativas aliados ao que lhe é apresentado na história
lida, possibilitando não somente deleite, mas fruição estética e sua formação como
leitora.
Ela constrói os sentidos do texto por meio de suas projeções, em muitas delas,
coloca situações de sua própria vida. Logo, “[...] o leitor recebe o texto na medida em
que, conduzido pela articulação da estrutura deste, vem a construir a função como seu
horizonte de sentido.” (ISER, 2002, p. 944).
O leitor é este que atualiza o texto literário através de seu horizonte de sentido,
este aflorado por suas percepções sociais, morais, religiosas, ideológicas entre muitos
outros fatores que lhe permitem atribuir sentido àquilo que foi lido. Dessa forma, o
leitor em formação é este que se utiliza de seus conhecimentos empíricos e de suas
experiências sociais, os quais reconhece no texto e dele constrói o seu por meio de suas
próprias concepções.
Nessa perspectiva, a literatura é intrínseca a vida do leitor, principalmente infantil,
pois ela “é levada a realizar sua função formadora, que não se confunde com uma
missão pedagógica. [...] Aproveitada em sala de aula na sua natureza ficcional que
aponta a um conhecimento de mundo [...]”. (ZILBERMAN, 2003, p. 25).
Com isso, é através da literatura que a criança também descobre conflitos,
empecilhos que ocorrem em seu dia a dia, sendo percebidos pelas narrativas através dos
personagens, as quais dialogam com elas (crianças), por suas características emocionais
ou sociais nos textos. Desse modo, a criança, através do ato da leitura, tem a “[...]

1114
possibilidade de descobrir o mundo imenso dos conflitos, dos impasses, das soluções
que todos vivemos e atravessamos [...]”(ABROMOVICH, 1995, p. 17).
Ao longo da leitura e por meio das narrativas, também é capaz de compreender
fatos que não estão em seu repertório de conhecimento, os quais pela experiência da
leitura são somados aos do texto literário lhe possibilitando, por meio da ficção,
construir seu próprio ponto de vista sobre o lido relacionando com o seu mundo real.
O contato com a literatura, em sua maioria é promovida pela escola, direcionada
ao público infantil permite que enxergue o pequeno leitor perceba “suas reflexões, ao
mesmo tempo em que trabalham seus sentimentos e emoções, valorizando suas idéias e
as dos colegas, favorecendo o escutar e o argumentar, calcado no respeito mútuo,
estimulando o desenvolvimento da autonomia” (OLIVEIRA 2007, p. 109).
O texto literário, como apoio à formação leitora e fruição estética (compreensão,
visão crítica e maturidade da criança pela leitura), proporciona também
questionamentos sobre os aspectos sociais através dos assuntos que induz a criança a
refletir sobre eles, por meio da curiosidade, está intrínseca em sua formação leitora.
Essas relações conflituosas ou desconhecidas tornam-se conhecidas e projetadas para o
mundo real.
Gregorin Filho afirma que (2011), o leitor em processo é este que já domina o
mecanismo da leitura, e seu conhecimento de mundo é aguçado pelo pensamento lógico,
em que há ainda a necessidade do adulto em sua formação leitora. Na família ou na
escola com o professor.
O leitor em formação é este que compreende o texto mediante identificação com o
que já tem como repertório de conhecimento, o qual vai alargando-se através de
diferentes leituras e variados temas, ampliando a experiência de mundo do qual faz
parte. Desse modo, construindo uma visão sólida, que somente ocorre quando já tem
domínio daquilo que já experimentou ou por meio do texto, em que lhe possibilita
experienciar, construindo, de certa forma, sua emancipação leitora.

2 Nemo, o peixinho filósofo: diálogo com o leitor pelo aspecto imaginativo

Assis Brasil, romancista, contista, ensaísta, historiador literário, antologista,


jornalista, professor, dicionarista, crítico literário, membro da Academia Piauiense de

1115
Letras e da Academia Paraibana de Letras, não se revela somente profícua com o
público adulto, mas também com o infantil, com alguns livros que revelam os aspectos
imaginativos da criança perante a leitura da literatura infanto juvenil, provocando a
fruição estética.
A narrativa, Nemo, o peixinho filósofo, gira em torno das questões sociais e
morais por meio da imaginação que o texto se dispõe ao leitor. Nesse sentido, Nemo, o
peixinho, é uma das personagens intrínsecas na construção emotiva e imaginativa do
leitor na narrativa; outros personagens que propiciam os diálogo entre o leitor e a
narrativa é Dil, o garotinho que conversa com o peixinho; seu tio, Zé Déo, o dono do
peixe; a mãe, dona Carmozina, e o médico ginecologista que ajuda a família a realizar e
incentivar a ideia de Dil- possibilitar ao peixinho conhecer o mundo fora da água.
Nemo dialoga com o leitor em formação - o qual vai percebendo a familiaridade
do texto com o seu mundo real por meio dos assuntos que se misturam entre a ficção e
realidade, num misto fantasioso. O texto também constrói informações acerca do
equilíbrio da natureza entre os animais, propiciando a curiosidade e a criatividade
despertada pelo poder da imaginação do personagem percebido pelo leitor iniciante.
Nesse momento, percebe-se a transparência de um conhecimento acerca do equilíbrio
com o meio ambiente.
Nesse sentido, nota-se que o leitor é qualificado “para sofrer uma narrativa de
princípio ao fim” (ZILBERMAN, 1999, p. 21), pois, parece estabelecer-se um tipo de
familiaridade, que vai além daquela existente entre quem conta uma história e um
ouvinte que se deseja atento a escutar. Na obra, o protagonista se sente responsável por
essa apreensão, respeitar a natureza.
Desse modo, Assis Brasil constrói laços afetivos nas narrativas por meio das
informações acerca da família, da natureza, que fazem o leitor construir saberes e
interagir com a narrativa, estimulando sua capacidade intelectiva, questionando e
inferindo seu repertório de mundo, além das construções de imagens e representações
através de sua inferência de mundo real transgredido na obra.
O narrador, Dil, um adolescente de doze anos, dialoga com o leitor, contando a
história em que participa com seu tio Zé Déo, dono do peixinho Nemo. Embarcam em
uma aventura imaginativa em que pelo pensamento, o rapazinho, se comunica com o

1116
peixe. Com isso, a leitura é esta que mistura entre a imaginação do leitor com o
interesse e a curiosidade do receptor.
Nesse sentido, a obra, através do leitor “inicia um processo de discussão em que
busca a compreensão do pensamento do outro, ao mesmo tempo em que tenta se fazer
compreender” (OLIVEIRA, 2007, p. 102). Logo, o leitor que está em formação,
mediante sua prática de leitura interage com os fatos sociais, valores, além dos sentidos
do texto construídos pelo leitor. A essência do texto lhe é apreendida e internalizada
configurando-se em um ensinamento claro.
Com isso, a narrativa traça o diálogo entre o personagem principal, Dil com o
peixinho Nemo, pois mediante a interação entre o imaginário e o real a força
imaginativa,conduz o leitor a imaginar, pela criatividade e as cenas. Em uma dessas
passagens, tem-se que:

o comandante Nemo disse que entendeu o que eu falei, tio. Dois mundos, ele
repetiu, naturalmente, tentando decifrar o que quer que fosse. E a pergunta
dele foi contundente: como é que um mundo se comunica com o
outro?Débora está vendo umas flores muito bonitas aí no seu mundo do lado
de fora. (BRASIL, 2014, p. 50).

Dessa forma, a imaginação de criar o diálogo entre ambos se concretiza quando,


por meio da leitura, a criança que se dispõe da fantasia e o poder criativo assimila algo
já vivido com o que foi experimentado. A leitura proporciona emancipação sobre o lido,
em que esta constrói o sentido do texto, pelo seu repertório de conhecimento.
Pela conversa entre ambos - Nemo e Dil-, percebe-se que o peixinho também é
filósofo, por ter conhecimento filosófico, como, por exemplo, de Tomás de Aquino. Em
uma das cenas, Nemo, diz que “ __ a harmonia é a bondade, o soberano bem. Você, Dil,
e seu tio são a bondade que vem do soberano bem.
__ meu Deus misericordioso, isso é São Tomás de Aquino!”( ASSIS, 2009)
O texto também dispõe de outras leituras literárias, as quais incitam a curiosidade,
além dos assuntos sociais e morais, como conduta, honestidade, generosidade, que são
esclarecidos, mediante os questionamentos de Dil a respeito dos passarinhos
engaiolados e dos peixinhos do seu tio, conseguidos de forma legal pela justiça.
Com isso, o livro é cheio de imagens, em que o leitor descarrega todas as suas
representações de mundo e seu conhecimento de mundo. “De tudo isso, conclui-se que

1117
se deve buscar a contribuição específica da literatura para a vida social precisamente
onde a literatura não se esgota na função de uma arte de representação. “ (JAUSS,
1994, p. 57).
Dessa forma, a imaginação de Dil, sustenta a narrativa possibilitando a construção
de imagem do ocorrido perpassado pelo texto, pois, mediante a narrativa, Dil, pelo
poder criativo, tem uma ideia de tirar o peixinho do aquário para que possa enxergar o
mundo do homem

Cheguei com a ideia – sabia que era original e revolucionária – do escafandro


invertido, para o comandante Nemo poder respirar aqui fora ... Eu já tinha
tudo calculado, em lugar do tanque de oxigênio, simplesmente um tanque de
água... mas a quem levar tal ideia para a sua realização? Como o escafandro
que estava no aquário era tão pequenino, ele mesmo poderia ser adaptado
para se encaixar no corpo do Nemo. (ASSIS, 2014, p. 58).

Desse modo, o leitor se identifica com o texto por meio de seus conhecimentos
prévios que o faz mergulhar na narrativa pela imaginação e fazer parte da tessitura do
texto, estimulando sua capacidade intelectiva, promovendo questionamentos pela
inferência de representação de mundo real transgredido na obra.
A respeito do conhecimento sobre si e as condutas morais e éticas Dil possibilita
interação entre ele e o peixinho, além dos dois mundos (do mar e da terra), fazendo com
que o peixinho conheça esse mundo, o qual se torna uma experiência arriscada, mas
cheia de emoção. Por fim, Nemo com todos os riscos aceita conhecer o mundo de Dil e
experimenta algo indecifrável. Dil narra que “ já na porta da rua, tentei comunicação
com o comandante Nemo. Sentia que ele estava prestando atenção em tudo ao seu redor.
Mesmo com aqueles óculos de escafandro,a gente podia notar.”(ASSIS, 2014, p. 87).
Nessa perspectiva, “[...] suscitar o imaginário, é ter a curiosidade respondida em
relação a tantas perguntas, é encontrar outras idéias para solucionar questões (como as
personagens fizeram [...]”. (ABRAMOVICH, 1995, p.17), em que a criança vai
experimentando o texto pelos assuntos ainda tidos como novos para ela, através da
imagem que faz dos personagens, dos assuntos, entre outros. A curiosidade é, então, um
dos mais importantes aspectos imbricados à literatura infanto-juvenil.
É por meio dela que a narrativa convida o leitor a participar da tessitura do texto,
preenchendo com sua imaginação e construção de imagem o sentido da obra. Promove
não somente a fruição estética, que se designa em seu conhecimento sobre o texto, mas

1118
também seu poder de questionar, de emancipação sobre o texto, possibilitada pela
fantasia que lhe é permitida pela ficção.

Considerações finais

O leitor é este que responde aos estímulos do texto, por meio da imaginação
ativada pelas referências de mundo, o qual o leitor compreende por meio de assuntos
sociais já compreendidos e vividos por ele. Por esse viés, a obra Nemo, o peixinho
filósofo, possibilita a construção imagética a respeito dos fatos sociais, morais e
imaginativos pela personagem Dil que dialoga com o leitor, narrando os fatos e
convidando o leitor a participar do texto.
Além de se dispor dos fatos que prendem a atenção do leitor a imaginar Nemo e
suas façanhas para conhecer o mundo do homem, percebe-se também as investiduras do
tio Del e Dil a buscar uma forma de se comunicarem com o peixinho a fim de satisfazer
o desejo dele - conhecer o mundo fora da água.
Por esse viés, e por um aspecto filosófico, o texto reflete a sensibilidade questões
tanto sociais quanto morais. A criança, como criança, ainda está compreendendo seu
repertório de conhecimento em formação. Logo, o leitor por mais que seja iniciante em
seu processo de formação vai percebendo e construindo não somente as imagens, mas
também as representações percebidas no texto sobre os assuntos da narrativa,
preenchendo os espaços vazios por meio de suas projeções de vida que já conhece.

Referências

ABRAMOVICH, F. Literatura infantil: gostosuras e bobices. 5.ed. São Paulo:


Scipione, 1995.

CECCANTINI, João Luís. Perspectivas de pesquisa em literatura infanto-juvenil. In:


CECCANTINI, João Luís (Org.). Leitura e literatura infanto-juvenil: memória de
Gramado. São Paulo: Cultura Acadêmica, Assis: ANEP, 2004. p. 19-37.

GREGORIN FILHO, José Nicolau. A Literatura Infantil: um prescurso em busca da


expressão artística. In: (Org) José Nicolau Gregorin Filho; Patrícia Kátia da Costa Pina;
REGINA Silva Michelli. A Literatura Infantil e juvenil: múltiplos olhares, diverrsas
leituras. Rio de aneiro: Dialogarts, 2011.

1119
ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Trad. Johannos
Kretschmer, São Paulo: Ed. 34, 1999, v.2.

JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad.
De Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994.

LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. 3.ed. São


Paulo: Editora Ática, 1999.

MARTINS, Maria Helena. O que é leitura. São Paulo: Brasiliense, 2003.


OLIVEIRA, Áurea Maria de. Literatura Infantil: o trabalho com o processo de
construção de valores morais, na educação infantil. Educação: Teoria e Prática - v. 16,
n.28, jan.-jul. 2007, p.101-121.

SOARES, Magda. A escolarização da literatura infantil e juvenil. In: EVANGELISTA,


Aracy; BRINA, H. & MACHADO, M. Zélia (Org.). A escolarização da leitura
literária: o jogo do livro infantil e juvenil. 2.ed. Belo Horizonte: CEALE/ Autêntica,
2006.

ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. São Paulo: Global, 2003.

1120
EU SOU O QUE VEJO: UM ESTUDO ACERCA DA TEMÁTICA NEGRA NOS
LIVROS DE LITERATURA INFANTIL

Cristiane Veloso de Araujo Pestana (UFJF)1

Resumo: Este estudo tem como objetivo refletir sobre a Literatura Infantil de temática étnico-
racial. Portanto serão analisados alguns livros com personagens negras protagonistas tendo
como público leitor as crianças negras. Analisaremos algumas obras nacionais tendo como viés
principal as ilustrações e o impacto destas obras na construção social e identitária da criança
negra. Tais reflexões e possíveis considerações se justificam tendo em vista o aumento
considerável de livros infantis com esta temática a partir da Lei 10.639/03.
Palavras-chave: Literatura Infantil; Identidade; Africanidades; Personagens negras.

De acordo com as pesquisas da doutora em educação Maria Anória de Jesus


Oliveira houve um aumento significativo de livros infantis com temática étnico-racial a
partir da criação e implementação da Lei 10.639/03, lei que obriga o ensino de História
e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino
fundamental até o ensino médio. Com o advento da lei, as escolas tiveram que rever sua
grade curricular bem como suas práticas pedagógicas. Livros didáticos tiveram que ser
reformulados e as editoras de livros infanto-juvenis tiveram que abrir o leque de opções
a partir desta nova proposição.
O objetivo maior da lei 10.639/03 é combater as desigualdades raciais, o
preconceito e o racismo que ainda impera em nossa sociedade. Através do
conhecimento das culturas formadoras da Nação, os indivíduos passam a se reconhecer
e reconhecer o outro em suas peculiaridades, pluralidades e individualidade. Tendo em
vista tais objetivos, podemos considerar a Literatura uma ótima ferramenta para
divulgar histórias, culturas e identidades. Através do texto literário a criança pode ter
contato com a história do seu país, passar a reconhecer os povos fundadores da
sociedade brasileira, descobrir a cultura do outro e as heranças culturais deixadas.
Historicamente, a humanidade transmite sua cultura e sua história através das
narrativas, sejam elas orais ou escritas. Daí a relevância da literatura para a dissolução
de preconceitos infundados, enraizados em nossa sociedade e para a descoberta de nossa
verdadeira origem, sobretudo quando se trata das heranças africanas, tão hostilizadas e
rejeitadas por muitas pessoas.

1
Doutoranda em Letras: Estudos Literários (UFJF), Mestre em Letras: Estudos Literários (UFJF),
Especialista em Literatura e Cultura afro-brasileira (NEAB – UFJF), Graduada em Letras (CES-JF).
Contato: cristianeveloso.78@gmail.com.

1121
Ao apresentarmos os livros infantis com personagens negros, fazendo relação
destes com a cultura afro-brasileira e africana, estamos inserindo a criança negra, muitas
vezes alvo de agressões racistas, na construção de um povo. Ao se ver representada, ela
se sente parte atuante do todo e não mais à margem da história.
No entanto, pesquisas nos mostram que a invisibilidade das pessoas negras como
protagonistas de suas histórias ainda é algo a se combater. A partir da criação da lei tal
fato vem diminuindo gradativamente, porém, quantidade não é sinônimo de qualidade, e
é sob este viés que nos debruçamos nesta pesquisa.
Sabemos que alguns poucos livros de Literatura infantil com personagens negros
ou com temática racial já existiam antes da lei, como exemplos podemos citar O menino
marrom de Ziraldo, A bonequinha preta de Alaíde Lisboa de Oliveira e Menina bonita
do laço de fita de Ana Maria Machado. Ressaltamos, porém, que eram muito poucos em
quantidade e variedade e seu acesso à escola era restrito. A abordagem literário-
pedagógica utilizada não era eficaz no combate ao racismo e os livros eram mal
aproveitados e mal interpretados.
A partir de um olhar contemporâneo sobre os negros, os livros mencionados
acima receberam duras críticas, como a questão da objetificação do negro reforçada
através da personagem negra em A bonequinha preta, a falta de identidade e a presença
de discursos preconceituosos em Menina bonita do laço de fita e a descrição
estereotipada de traços fenotípicos do personagem negro em O menino marrom.
As observações acima não foram feitas a partir deste estudo, no entanto, julgamos
relevantes suas considerações, nem que seja apenas para aprendermos a refletir sobre
textos e imagens que visam representar negros e negras no Brasil.
Acreditamos que as crianças negras se tornam aquilo que observam sobre si
mesmas. Se o mundo lhes mostra aspectos pejorativos de sua identidade, elas irão se
sentir menosprezadas, se a vida lhes destina um lugar de invisibilidade e sem
importância, elas irão se sentir desvalorizadas. Mas se o mundo e a vida, através das
representações positivas, seja na mídia, na sociedade, nos brinquedos, nos discursos ou
na literatura, lhes apresenta um lugar de reconhecimento, respeito, beleza e
empoderamento, essas crianças negras se tornarão seres humanos mais valorizados,
conscientes de sua identidade e, consequentemente, mais felizes.

1122
Representatividade importa sim. Eu me torno o que vejo. Somos aquilo que nos
dizem ser. Nossa identidade é construída na alteridade, na relação com o outro. Por isso,
é de suma importância que saibamos filtrar o que chega aos nossos pequenos leitores,
principalmente quando eles são crianças negras.
A partir de tal posicionamento, ou seja, o de reconhecer que a literatura é peça
fundamental na construção identitária da criança e um dos elementos que pode trazer
clareza, empoderamento e felicidade, passamos a observar alguns livros destinados a
este público, desde seu texto verbal ao texto visual ou imagético, na tentativa de
reconhecer aspectos positivos e negativos dessas obras.
Neste estudo, escolhemos o viés imagético, ou seja, o impacto das ilustrações no
público infantil. O impacto das ilustrações pode auxiliar na construção de uma
identidade negra positiva ou reforçar imaginários preconceituosos. Como afirma o
pesquisador Marcelo Freire: “Cabe ao ilustrador decifrar o momento a ser visualmente
narrado, procurando sempre evitar o conflito entre o que o leitor imagina e o que a
imagem mostra” (FREIRE, 2004.p.5).
As considerações aqui apresentadas são fruto das respostas das crianças ao terem
contato com algumas ilustrações específicas.
Os livros aqui analisados foram apresentados ao mesmo grupo de crianças de uma
escola pública de periferia, onde a maioria dos alunos são negros e possuem entre 7 e 8
anos de idade. Do total de quatorze crianças, três não se manifestaram, duas afirmaram
gostar “dos desenhos” (fala delas) e nove criticaram as imagens. Algumas críticas foram
mais duras o que fizeram os alunos rejeitarem os livros.
Começaremos pelo livro O cabelo de Lelê (FIGURA 1) no qual podemos
perceber, através da marca do exagero da ilustradora, traços que reforçaram
características estereotipadas das meninas negras, como os cabelos. Ao serem
apresentados ao livro, os alunos tiveram reações diferentes. Os meninos riam das
imagens e as associavam às colegas da classe e surgiram comentários como: “Credo!
Que cabelo feio!”; “Hahahaha parece a Fulana”, “Olha o tamanho daquele cabelo!
Cruzes”, “Feia pra caramba” e por aí vai. Enquanto os meninos proferiam tais
comentários, as meninas se encolhiam nos cantos. Apenas uma delas retrucou e
devolveu a ofensa: “Feia é sua mãe!”.

1123
FIGURA 1: Ilustração da personagem Lelê no livro O cabelo de Lelê. (BELÉM, 2012, p. 8/11)
Autora: Valéria Belém Ilustradora: Adriana Mendonça

A partir desta experiência negativa, deixamos o livro de fora da lista preferencial


por algum tempo, depois voltamos a apresenta-lo aos alunos. Porém, foi necessário
fazer um trabalho prévio com as crianças sobre ilustrações, tipos de desenho,
subjetividade criativa e respeito ao trabalho e identidade do outro. Com uma dinâmica
que visava mostrar que cada um interpreta a mesma informação de formas distintas, os
alunos perceberam que ilustração é uma forma de interpretação, que muitas vezes é
lúdica e fantasiosa, e que nem sempre não condiz com a realidade. E então, ao se
depararem com as ilustrações que traziam um cabelo enorme e exagerado eles
pensavam “é o jeito dela se expressar”, “ela que quis desenhar assim” e as piadinhas
cessaram. Quando algum deles não assimila bem o conteúdo abordado e tenta fazer
algum comentário negativo, um outro colega o adverte.
Desta forma resolvemos o problema entre livro e leitor dentro da sala de aula, mas
por outro lado fica um questionamento sobre os outros pequenos leitores que não
receberam este tipo de mediação. O que será que eles pensam e comentam? Como se
sentem as meninas de cabelo afro que se veem retratadas de forma estereotipada num
livro que era para agradá-las e fazê-las se sentir bem?
O enredo do livro é sobre uma menina que não se gosta, que não se aceita por
conta de seu cabelo crespo, mas que descobre em um livro que seu cabelo é uma
herança ancestral de um povo africano e que poderia ser muito bonito se ela deixasse.
Esta questão de solução simples, rápida como num passe de mágica também nos
preocupa, tendo em vista que o processo de aceitação e transição capilar é muito
complexo, subjetivo e difícil para qualquer mulher de descendência africana.

1124
Os conflitos de identidade não são simples de resolver, o empoderamento
feminino é algo longo e sofrido, portanto deveria ser retratado no texto de uma forma
mais séria e próxima da realidade. Dizer que a menina agora gosta de se ver não vai
fazer uma garotinha que sofre preconceito na escola se gostar do dia pra noite.
Baseando-se em experiências com as crianças, podemos afirmar que o texto é frágil e
que as ilustrações, em muitas vezes, não causam uma identificação positiva.
No segundo livro O mundo começa na cabeça (FIGURA 2), o tema abordado
também é cabelo e ancestralidade. O texto é poético e muito bem escrito. A personagem
Minosse e as mulheres de sua família têm orgulho de seus cabelos e os manipulam com
carinho e significado de acordo com suas tradições. Através do cabelo elas apresentam
sua cultura ancestral com respeito e amor a seus antepassados. As crianças apreciam
muito este livro, porém a partir de um comentário infeliz, o mesmo não mais circulou
entre elas. A história é contada e é pedido que elas imaginem as imagens.
O comentário deste aluno sobre algumas ilustrações do livro chocou a todos
profundamente. Vamos esclarecer, em nossa cidade há um grande rio que a corta ao
meio de uma extremidade a outra, chama-se Rio Paraibuna. Neste rio, principalmente
no verão é possível observar famílias inteiras de capivaras nadando e tomando sol na
beira do rio. Pois este aluno, com o apoio de alguns outros comparou as personagens
com as capivaras. A fala dele foi mais ou menos assim: “Olha, parece a capivara que eu
vi no Paraibuna”. É importante acrescentar que mesmo antes de tal comentário as
crianças estavam com dificuldades de reconhecer figuras humanas a partir dos traços da
ilustradora. Segundo a maioria “os desenhos eram estranhos”.

FIGURA 2: Imagem retirada do livro O mundo começa na cabeça (AUSTONI, 2011, p. 15/16)
Autora: Prisca Agustoni Ilustradora: Tati Móes

1125
Tivemos a oportunidade de conversar com a escritora sobre a escolha dos
ilustradores, em especial sobre esta ilustradora e ela relatou que fora determinação da
editora. Por muitas vezes o autor não tem direito de escolher ou opinar sobre os
ilustradores de seus livros, situação que pode vir a acarretar conflitos entre texto verbal
e texto visual.
Já no terceiro livro A menina transparente (FIGURA 3), temos problema com
apenas uma imagem, de acordo com as observações das crianças. Volto a ressaltar que
as considerações aqui apresentadas partiram do olhar dos leitores em questão, ou seja, o
público infantil. Trata-se de um livro sobre a Poesia, seus temas, suas impressões, seu
efeito nas pessoas, enfim, é um bom texto. Não podemos considera-lo um livro ilustrado
mas sim um livro com ilustrações pois as imagens não são essenciais para a
compreensão do texto, consideramos que as mesmas foram utilizadas como forma de
acrescentar estética ao texto literário.
No livro em questão há um personagem negro caracterizado de uma forma
estética bem contemporânea com traços artísticos que não foram bem apreciados pelo
grupo de alunos. Ao contar a história fomos mostrando as páginas e quando um
determinado aluno se confrontou com a figura deste homem imediatamente falou:
“Nossa! É o Diabo!”. Após o susto, tentamos desfazer a má impressão alegando que se
tratava do traço artístico da ilustradora, porém outros dois alunos reforçaram que a
imagem parecia mesmo o que eles entendiam como Diabo.

FIGURA 3:Imagem retirada do livro A menina transparente (LUCINDA, 2010, não paginado)
Autora: Elisa Lucinda Ilustradora: Graça Lima

1126
Não é nosso objetivo criticar o trabalho artístico das ilustradoras, mas
acreditamos, sobretudo através destas vivências, que é preciso um cuidado extremo ao
ilustrar um livro infantil, principalmente quando se trata de personagens negros.
Historicamente os negros já são associados a animais, seres obscuros, exóticos e
fora dos padrões de beleza, portanto para que se cumpra a função de desconstruir tais
imaginários é preciso buscar ao máximo um traço mais simples, mais próximo da
realidade, abarcando a beleza, a sutileza e fazendo com que as imagens sugiram algo
bom e agradável ao olhar infantil.
Como exemplos positivos, completamente distantes dos apresentados acima,
alguns livros despertam contentamento, alegria e identificação nas crianças leitoras. A
ponto de surgirem falas como: “Esse menino parece comigo!”, “Que linda!”, “Meu
cabelo é bonito como o dela”, Vejamos alguns exemplos de imagens que estimularam
tais depoimentos:

As Meninas negras de Madu Costa. (COSTA, 2010, não paginado)


Autora: Madu Costa Ilustrador: Rubem Filho

1127
Luan, personagem do livro Lápis de cor. (COSTA, 2012, não paginado)
Autora: Madu Costa Ilustrador: Josias Marinho

Personagem principal do livro Betina. (GOMES, 2009, p.9)


Autora: Nilma Lino Gomes Ilustradora: Denise Nascimento

Personagens do livro Os tesouros de Monifa. (ROSA, 2009, não paginado)


Autora: Sonia Rosa Ilustradora: Rosinha

1128
A literatura deve ser uma aliada no combate ao racismo, especialmente quando
apresentada nas bases, ou seja, às crianças, desde que acompanhada de muito estudo, de
conhecimentos teóricos sobre as africanidades, de muito empenho e, sobretudo de
sensibilidade, seja por parte de pais, educadores, escritores, ilustradores, ou seja,
qualquer pessoa que irá auxiliar para que a mensagem do texto literário chegue de forma
adequada ao seu público leitor. Para a doutora em educação Eliane Cavalleiro
“compreende-se que o reconhecimento positivo das diferenças étnicas deve ser
proporcionado desde os primeiros anos de vida” (CAVALLEIRO, 2006, p.26).
Entendemos que a literatura só será capaz de promover transformações
significativas, seja no indivíduo ou na sociedade, se retratar de forma digna sua
população, especialmente quando se trata da população negra, pois, conforme salienta a
pesquisadora Maria Anória Oliveira (2015), o trabalho com a arte literária, seja no
âmbito da produção, ou da seleção e difusão dos livros de literatura infantil sob a
temática étnico-racial, requer um olhar crítico para não endossar o que se deseja
desconstruir.
Levando em consideração os quinze anos de experiência em sala de aula,
observando de perto as reações das crianças a partir dos livros de literatura infantil
estamos de acordo com a tese da professora Maria Anória e estamos defendendo uma
qualidade estética e uma verdade ética que devem permear as publicações que chegam
até nossos leitores.
Muito além do seu caráter lúdico e imaginativo, a literatura tem um
compromisso com a verdade e uma responsabilidade sobre o impacto que terá na vida
das pessoas.

Referências

AGUSTONI, Prisca. O mundo começa na cabeça. São Paulo: Paulinas, 2011.

BELÉM, Valéria. O cabelo de Lelê. São Paulo: IBP, 2012.

BRASIL, Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnicos


Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, DF:
Ministério da Educação, 2004.

CAVALLEIRO, Eliane. Do Silêncio do lar, ao silêncio escolar: racismo, preconceito e


discriminação na educação infantil. São Paulo: Contexto, 2006.

1129
COSTA, Madu. Lápis de cor. Belo Horizonte: Nandyala, 2012

______. Meninas negras. Belo Horizonte, Mazza edições, 2010.

DALCASTAGNÈ, Regina. A personagem negra na literatura brasileira


contemporânea. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

DEBUS, E.S.D. A literatura infantil contemporânea e a temática étnico-racial:


mapeando a produção. Anais do 16º Congresso de Leitura do Brasil - Seminário de
Literatura Infantil e Juvenil, 2007.

FREIRE, Marcelo Ghizi. Lendo a ilustração ou Ilustrando a leitura. I Seminário


Brasileiro sobre Livro e História Editorial. Rio de Janeiro: UFF, 2004.

GOMES, Nilma Lino. Betina. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2009.

LUCINDA, Elisa. A menina transparente. Rio de Janeiro: Galerinha Record, 2010.

OLIVEIRA, Maria Anória de Jesus. Educação, Literatura infanto-juvenil e relações


étnico-raciais. Cadernos Imbondeiro. João Pessoa, v.4, n.2, dez.2015. Disponível em:
file:///C:/Users/User/Downloads/28117-61010-1-PB%20(1).pdf. Acesso em 09/2017.

1130

LEITURA E LETRAMENTO LITERÁRIO, A LITERATURA INFANTIL


COMO AGENTE FORMADOR DE LEITORES

Flávia Côrtes (UERJ)1

Resumo: A literatura infantil é importante instrumento como agente formador de um leitor


crítico no processo de alfabetização no ambiente escolar. O objetivo deste trabalho é levantar
questões importantes sobre a formação de leitores críticos em sala de aula, as dificuldades, os
empasses e desafios encontrados por professores no dia a dia, e elencar as estratégias de sucesso
obtidas nessa empreitada.

Palavras-chave: letramento literário; leitura literária; literatura infantil; formação de leitores

Introdução
A literatura infantil é importante instrumento como agente formador de um
leitor crítico no processo de alfabetização no ambiente escolar. O processo de
letramento literário pressupõe que a literatura infantil pode e deve formar leitores,
contribuindo não apenas com o aprendizado da língua escrita, mas para um
posicionamento de reflexão em relação ao mundo em que vive. Processo esse que pode
ser apreendido através de uma leitura prazerosa e instigante.
O pesquisador Rildo Cosson (2018) destaca que encontramos o senso de nós
mesmos na leitura literária e esse senso nos permite o acesso à comunidade ao qual
pertencemos. É através da literatura que descobrimos a forma de nos expressar para o
mundo. Isso se dá porque “no exercício da literatura, podemos ser outros, podemos
viver como os outros, podemos romper os limites do tempo e do espaço de nossa
experiência e, ainda assim, sermos nós mesmos” (2018, p.17). Ao nos deixarmos
envolver na leitura de um texto literário, vivenciamos diversas situações, podemos
experimentar as vivências de personagens com realidades diferentes das nossas, e nesse
processo de sermos outros, encontramos o sentido de nós mesmos. Acerca dessa
questão, Rildo ressalta:


1
Graduada em Letras (UFRJ), especialista em Literatura Infantil e Juvenil (UFRJ) e mestranda em
Literatura Brasileira (UERJ), sob orientação de Regina Michelli. Contato: cortesflavia@yahoo.com.br

1131



É por possuir essa função maior de tornar o mundo compreensível
transformando sua materialidade em palavras de cores, odores, sabores e
formas intensamente humanas que a literatura tem e precisa manter um lugar
especial nas escolas. (COSSON, 2018, p.17)

Desta forma, a literatura infantil tem um caráter formador, tanto no que diz
respeito ao alargamento de horizontes do indivíduo, como no desenvolvimento de uma
criticidade do leitor, o que ultrapassa o viés meramente pedagógico, doutrinário, que por
vezes querem imputar a essa literatura. Por essa perspectiva, Nelly Novaes Coelho
elucida:

A literatura infantil é, antes de tudo, literatura; ou melhor, é arte: fenômeno


de criatividade que representa o mundo, o homem, a vida, através da palavra.
Funde os sonhos e a vida prática, o imaginário e o real, os ideais e sua
possível/impossível realização. (COELHO, 2000, p.27)

Trata-se, portanto, de uma fusão do mundo real e do mundo da imaginação, dos


ideais de vida às suas possíveis realizações. Esses elementos fazem da literatura infantil
o cenário ideal para que a criança espelhe nela seus sonhos e dúvidas de infância e para
que, pouco a pouco, construa em si mesma as bases sólidas de um indivíduo crítico. A
literatura é uma arte plena de saberes sobre o homem e o mundo, pois, como evidenciou
o semiólogo Roland Barthes, a literatura assume muitos saberes. Em um mesmo texto
literário, podemos nos deparar com elementos constituintes do saber histórico, social,
botânico, matemático, enfim, uma multiplicidade de saberes que já permeia
naturalmente o ambiente escolar. E, dessa forma, “a literatura faz girar os saberes, não
fixa, não fetichiza nenhum deles: ela lhes dá um lugar indireto, e esse indireto é
precioso” (BARTHES, 2002, p.18).
Desta forma, “A escrita é um dos mais poderosos instrumentos de libertação
das limitações físicas do ser humano” (COSSON, 2018, p. 16), pois é durante o
processo da leitura e da escrita de textos literários que levantamos os questionamentos
acerca dos padrões sociais e encontramos nosso próprio modo de ver o mundo e de nos
relacionarmos com ele.
Cosson (2018) ressalta que:

Ser leitor de literatura na escola é mais do que fruir um livro de ficção ou se


deliciar com as palavras exatas da poesia. É também posicionar-se diante da
obra literária, identificando e questionando protocolos de leitura, afirmando

1132



ou retificando valores culturais, elaborando e expandindo sentidos. Esse
aprendizado crítico da leitura literária, que não se faz sem o encontro pessoal
com o texto enquanto princípio de toda experiência estética, é o que temos
denominado aqui de letramento literário. (2018, 120)

Na opinião da pesquisadora Teresa Colomer (2007), não é possível pensar o


conhecimento adquirido pela narrativa oral e o da palavra escrita como se fossem dois
momentos, dois estágios separados. Pois, embora ainda no início do processo do
aprendizado da escrita, as crianças dessa fase da educação infantil já possuem seus
próprios “conhecimentos narrativos especificamente literários” (2007, p.89). As duas
vias de acesso (da oralidade e da escrita) se relacionam e contribuem para a construção
das competências que as crianças adquirem e passam a utilizar quando começam a ler
sozinhas.

Literatura infantil na escola


De acordo com a pesquisadora Regina Zilberman (2017), as atividades com a
literatura infantil em sala de aula são um exercício de hermenêutica, à medida que
levam o leitor a refletir sobre significações que emergem do texto, de acordo com a
vivência de mundo daquele leitor, não se restringindo apenas à compreensão do sentido
linear do texto.
Coelho complementa que:

a escola é, hoje, o espaço privilegiado, em que deverão ser lançadas as bases


para a formação do indivíduo. E, nesse espaço, privilegiamos os estudos
literários, pois, de maneira mais abrangente do que quaisquer outros, eles
estimulam o exercício da mente; a percepção do real em suas múltiplas
significações; a consciência do eu em relação ao outro; a leitura do mundo
em seus vários níveis e, principalmente, dinamizam o estudo e conhecimento
da língua, da expressão verbal significativa e consciente - condição sine qua
non para a plena realidade do ser. (COELHO, 2000, p.16)

Porém, cabe ao professor não apenas ensinar a decodificar os signos de leitura


e, sim, propiciar experiências em que o aluno desenvolva um processo de relacionar o
que lê no texto ficcional com a realidade do mundo em que vive, estimulando-o a
chegar a suas próprias conclusões. A seleção de livros adequados a esse momento do
desenvolvimento infantil, com temas que despertem o interesse dos pequenos, é crucial
para o sucesso desse empreendimento.

1133



Conforme esclarece a pesquisadora Teresa Colomer (2007), foi a partir da
criação dos jardins de infância e do ensino pré-escolar que se começou a pensar em
livros voltados para esse leitor específico: “Necessitavam-se livros para criar um
entorno leitor, livros para serem manuseados, olhados e lidos pelos pequeninos, livros
para iniciar as ‘práticas de leitura’ de todos os setores sociais.” (COLOMER, 2007,
p.91). Muitos educadores começaram então a perceber o quanto os livros literários
voltados para o leitor em formação o encantam e envolvem em um mundo de fantasia
que estimula sua imaginação. Para Colomer:

A criação de um espaço de leitura individual na escola pretende dar a


oportunidade de ler a todos os alunos; aos que têm livros em casa e aos que
não os têm; aos que dedicam tempo de lazer à leitura e aos que só leriam os
minutos dedicados a realizar as tarefas escolares na aula. A leitura autônoma,
continuada, silenciosa, de gratificação imediata e livre escolha, é
imprescindível para o desenvolvimento das competências leitoras. É
imprescindível que o próprio texto ‘ensine’ a ler.” (COLOMER, 2007, p.125)

É imprescindível preparar o aluno para o que virá. A reflexão a cerca do livro a


ser lido gera expectativas e contribui para formar na criança uma autoimagem como
leitor, capacitando-o a formular sua própria avaliação do texto e do objeto livro, fazendo
com que ela mesma possa escolher suas leituras, abandonando um livro que não a
agrade e trocando por outro mais atraente.
Trabalhar a literatura infantil em sala de aula, sobretudo como objeto de apoio
à aprendizagem da leitura, exige um posicionamento crítico do educador diante do texto
em questão. Entretanto, muitos educadores não se sentem à vontade para trabalhar a
literatura infantil durante o processo de alfabetização, já que se trata de processo que
exige um esforço hercúleo, em meio a tantas outras dificuldades que o educador
brasileiro encontra em seu dia a dia na profissão.
Os cursos de formação de professores – de nível superior e que supostamente
deveriam ser completos de modo a abarcar as demandas ligadas à formação docente –
não disponibilizam disciplinas suficientes sobre o universo da literatura infantil na
escola. E se hoje encontramos tantos professores capacitados para tal muitas vezes é
graças à sua própria dedicação em buscar leituras e cursos que o capacitem, além de um
talento natural no uso da criatividade que felizmente muitos desses bravos professores
possuem.

1134



Coelho enfatiza que a literatura infantil tem a principal tarefa de servir como
agente de formação em uma sociedade como a nossa, que se encontra em constante
transformação. “É ao livro, à palavra escrita, que atribuímos a maior responsabilidade
na formação da consciência de mundo das crianças e dos jovens” (2000, p.15).

A fantasia como ferramenta na formação de leitores


A fantasia é um dos caminhos, talvez o principal, em que o homem busca o
autoconhecimento e aprende a enfrentar o real. É descortinando o mundo da fantasia e
estimulando a imaginação que se criam os meios para que o pequeno leitor aprenda a
lidar melhor com o mundo ao seu redor ou mesmo com os seus monstros interiores.
Entretanto, o monstro moderno é muito diferente do dos contos de fada. Na
literatura infantil atual, ele é muitas vezes, senão em sua maioria, desconstruído em suas
características, quando não é ridicularizado, como se a criança não fosse capaz de
processar o texto de forma crítica e precisasse de uma narrativa suavizada, o que não é
verdade. As histórias de medo muitas vezes é suavizada e não raro se transforma em
comicidade. Essa problemática da literatura infantil atual e dos pais, que super protegem
os filhos ao privá-los da fantasia e de histórias de medo, foi tratada pelo psicanalista
Bruno Bettelheim:
Os conflitos internos profundos originados em nossos impulsos primitivos e
emoções violentas são todos negados em grande parte da literatura infantil
moderna, e assim a criança não é ajudada a lidar com eles. Mas a criança está
sujeita a sentimentos desesperados de solidão e isolamento, e com frequência
experimenta uma ansiedade mortal. Na maioria das vezes, ela é incapaz de
expressar estes sentimentos em palavras, ou só pode fazê-lo indiretamente:
medo do escuro, de algum animal, ansiedade acerca de seu corpo. Como cria
um desconforto num pai reconhecer estas emoções no seu filho, ele tende a
passar por cima delas, ou diminui estes ditos medos a partir de sua própria
ansiedade, acreditando que abrigará os temores infantis. (2001, p.18).

Em geral, os contos de fadas e as narrativas de medo transmitem a ideia de que


devemos enfrentar os momentos difíceis, vencer os medos e passar por todo tipo de
perigo para alcançar a vitória.
Há muito receio, porém, nos dias de hoje, por parte de pais e agentes de leitura
em apresentar às crianças histórias que tratam de temas como o medo e a fantasia.
Esquecem-se de que “ler não tem contraindicação, porque é o que nos faz humanos.”
(COSSON, 2014, p.179). Confrontar os próprios medos é, provavelmente, a melhor
forma de superá-los e a linguagem simbólica, própria dos textos literários, é um

1135



excelente instrumento mediador porque desloca o medo para elementos substitutivos
que são vencidos na narrativa, acalentando e tranquilizando os pequenos. Bruxas más,
gigantes terríveis e lobos ameaçadores são derrotados pelo herói, nas narrativas.
Existem algumas, entretanto, em que o desfecho é trágico, tal como ocorre na realidade,
repertório ficcional também necessário à formação discente.

O medo da literatura
Há educadores que sentem receio em trabalhar com a literatura infantil em suas
classes de alfabetização, principalmente diante de certos temas, como os contos de
fadas. Um texto literário de qualidade, ainda que voltado para o público infantil, possui
certas particularidades que permitem diversas interpretações e podem levar a grandes
questionamentos sobre o mundo, a sociedade e o indivíduo.
Alguns adultos acreditam proteger os pequenos, amenizando os contos de fadas
ao recontá-los ou até proibindo o acesso a livros e filmes que tratam do tema. Mas a
criança necessita de referências para aprender a distinguir o certo do errado e é através
do enfrentamento dos medos que aprendem a lidar com eles, se deparando com
questionamentos ainda mais profundos e colocando para fora suas dúvidas e incertezas,
tornando-se assim adultos mais bem resolvidos no futuro.
De acordo com o psicanalista Bruno Bettelheim (2001), como existem
indivíduos que fogem da realidade e vivem em um mundo de imaginação, algumas
pessoas deduziram, equivocadamente, que o estímulo da fantasia interfere no lidar com
a realidade. “Mas uma fantasia que flutua com liberdade, que contém de forma
imaginária uma grande variedade de saídas também encontradas na realidade, provê o
ego de um abundante material de elaboração.” (2001, p.149).
Para que uma história seduza o pequeno leitor, precisa estabelecer um contrato
de comunicação (Oliveira, 2003) com o mesmo, apresentando um tema que desperte seu
interesse, sua curiosidade e, que além de tudo, estimule a imaginação e ofereça soluções
para seus questionamentos. Charaudeau ressalta que é “através da ficção, e somente
através dela, que podemos ter a sensação de completude (começo, meio e fim) que não
temos nas experiências caleidoscópicas do dia-a-dia” (apud OLIVEIRA, 2003, p.50). E
tudo isso, “sem nunca menosprezar a criança, buscando dar inteiro crédito a seus

1136



predicamentos e, simultaneamente, promovendo a confiança nela mesma e no seu
futuro” (BETTELHEIM, 2001, p.13).

Zilberman salientou que:

...de acordo com as oportunidades ficcionais desencadeadas pela fantasia, é


possível uma literatura emancipatória, conduzindo a atenção da criança à
discussão dos valores que a circundam e, concomitantemente, assentando-se
na realidade imediata percebida pelo leitor. (Zilberman, 2017, p.203)

É fato que, nas classes iniciais, não é a criança quem irá decidir o que será lido
e comentado em sala de aula, mas sim o profissional da educação, seja ele o professor
ou o coordenador. “A literatura infanto-juvenil continua sendo uma questão de adultos
que vão pensá-la, partindo da necessidade histórica da revisão de como lhes foi imposto
o próprio ato de ler.” (KHÉDE, 1986, p.9)
Cabe à nós, adultos e profissionais das letras e da educação, livrar-nos de
temores e dúvidas que impeçam o uso dos contos de fadas nas aulas do fundamental I,
proporcionando ao leitor em formação um desenvolvimento de seu próprio senso
crítico.

A literatura deve, considerando a criança como ser agente, assumir-se como


um veículo capaz de burlar o sistema. É quando a reprodução do saber,
necessária para assegurar a continuidade mínima do processo de
conhecimento, se reveste de um sentido positivo: a criança, o jovem, o adulto
aprendem um saber reproduzido mas produzem também um saber
proveniente do questionamento deste, por intermédio justamente das
potencialidades transgressoras que o texto literário e outras formas de
conhecimento paralelas lhes abrem. (KHÉDE, 1986, p.10 e 11).

Não devemos menosprezar a capacidade cognitiva infantil. Se para nós, adultos


críticos, o livro traz mais de uma conotação, com diversas possíveis camadas de leitura, para a
criança não é diferente. Pois afinal, como analisa a pesquisadora Regina Michelli:

Assim, não há o porquê de preservar a criança de temas que falam à alma


humana, ao focalizarem problemáticas que precisam ser enfrentadas para que
haja o amadurecimento. Os contos da tradição permitem a vivencia de
historias que abordam a morte, o abandono, a rejeição, a dor, a necessidade
de ultrapassar obstáculos..., ajudam a vencer o medo e a enfrentar a vida.
Disfarçar esse conteúdo como o verniz social do ‘politicamente correto’

1137



transforma-se em atitude hipócrita, uma vez que as crianças experimentam
todos esses sentimentos. (MICHELLI, 2007, p.7)

Infelizmente, algumas pessoas, inclusive educadores, acreditam que a literatura


é um saber desnecessário, um verniz burguês do passado que já deveria ter sido abolido.
Com isso, muitas vezes a literatura acaba servindo apenas como um apêndice nas aulas
de Língua Portuguesa, enquanto a disciplina de Literatura, propriamente dita, “constitui-
se em uma sequência enfadonha de autores, características de estilos de época e figuras
de linguagem, cujos nomes tão somente devem ser decorados.” (COSSON, 2018, p.11)
Como afirma Regina Zilberman (2017), a literatura infantil ainda é alvo de
muitos preconceitos, que diminuem sua validade estética, quando na verdade deveria ser
amplamente estudada por teóricos e acadêmicos, por constituir-se do objeto literário. A
pesquisadora acrescenta:

O fato de a literatura infantil não ser subsidiária da escola e do ensino não


quer dizer que, como medida de precaução, ela deva ser afastada da sala de
aula. Como agente de conhecimento porque propicia o questionamento dos
valores em circulação na sociedade, seu emprego em aula ou em qualquer
outro cenário desencadeia o alargamento dos horizontes cognitivos do leitor,
o que justifica e demanda seu consumo escolar. (ZILBERMAN, 2017, p.12)

Zilberman (2017) enfatiza ainda que muitas vezes a escola utiliza a literatura
infantil como agente didatizante e moralista, para doutrinar a criança de acordo com
certa norma de comportamento vigente na classe dominante. Isso gera um grande
problema: cria indivíduos dependentes e manipulados, sem pensamento próprio. A
solução está longe de ser a de abolir a literatura infantil nas escolas, pois isso seria como
“abandonar a criança à sua própria sorte, após tê-la feito adotar a imagem de sua
impotência e incapacidade” (2017, p.24). Seria como afirmar sua incapacidade e
despreparo. Tanto a escola quanto a literatura só poderão provar sua real utilidade
quando se tornarem espaço onde a criança possa refletir sobre si mesma e sobre o
mundo, literatura, portanto, emancipadora, em termo empregado pela pesquisadora
citada. Este, sim, é o papel da educação.
Formar leitores críticos é papel da escola e a escolha de textos de literatura
infantil de qualidade é imprescindível para o sucesso dessa empreitada. Somente assim
a literatura infantil pode exercer sua ação formadora, propiciando elementos para uma

1138



verdadeira emancipação do indivíduo, convertendo-o num ser crítico e capaz de
posicionar-se perante à sociedade.
Para Cosson (2018), o termo Letramento não se trata apenas da aquisição da
habilidade de ler e escrever, mas sim da habilidade de se apropriar da escrita e das
práticas sociais que a ela se associam. Por sua vez, o letramento literário, propriamente
dito, possui configuração própria. “O processo de letramento que se faz via textos
literários compreende não apenas uma dimensão diferenciada do uso social da escrita,
mas também, e sobretudo, uma forma de assegurar seu efetivo domínio” (2018, p.12). É
por esse motivo que é tão importante sua presença em sala de aula e em todo e qualquer
processo de letramentos. Letramento literário, portanto, nada mais é do que a
escolarização da literatura.

Considerações finais
A escola é um importante ambiente formador de leitores mas não é o único. A
família e a sociedade também têm um papel importante nesse processo, na evolução da
criança enquanto indivíduo crítico e questionador. Ao ler uma história para a criança
dormir, por exemplo, pai, mãe, avó ou qualquer outro responsável, detém em suas mãos
os elementos necessários a despertar o interesse do futuro leitor. São esses momentos de
troca de afetos que vão semear o interesse pela leitura e, com isso, levar a criança a
estender seu interesse para os momentos deste aprendizado na escola.
Ainda segundo Cosson (2014), letramento literário é também uma prática de
leitura e sua especificidade está na maneira com que a palavra é tratada, construindo
sentidos esteticamente elaborados. Para ele, a escola deve ser dessacralizada enquanto
formadora absoluta de leitores, ela não é o único espaço de formação. O letramento
literário é uma prática social, que pode ocorrer em diversos espaços. “Nossa capacidade
de aprender vai além de qualquer estratégia ou método didático. A maior prova disso é
que o propositor de uma nova metodologia aprendeu certamente dentro dos limites da
metodologia anterior que ele critica” (2014, p.178).

Referências

BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 2002.

1139



BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2001.

COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas: símbolos, mitos, arquétipos. São Paulo:
DCL, 2003.

______. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna, 2000.

COLOMER. Teresa. Andar entre livros. A leitura literária na escola. São Paulo:
Global, 2007.

COSSON, Rildo. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo: Contexto, 2014.

______. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2018.

KHÉDE, Sonia Salomão. As polêmicas sobre o gênero. In: Literatura infanto-juvenil:


um gênero polêmico. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986.

MICHELLI, Regina. “A Literatura infanto-juvenil nas tramas do tempo”. CaSePEL


Caderno do Seminário Permanente de Estudos Literários, v.03, p.6-16, 2007. In:
http://www.dialogarts.uerj.br/casepel/casepel_3.pdf Acesso em 12.Jun.2018.

OLIVEIRA, Ieda de. O contrato de comunicação da literatura infantil e juvenil. Rio de


Janeiro: Lucerna, 2003.

ZILBERMAN, Regina. A Literatura Infantil na Escola. São Paulo: Global, 2017.

1140
APRENDENDO A MORRER: UM ESTUDO COMPARATIVO DAS OBRAS O
PATO, A MORTE E A TULIPA E O SOL SE PÕE NA TINTURARIA YAMADA

Gisele Gemmi Chiari1

Resumo: O artigo compara duas obras contemporâneas da literatura infantojuvenil, O pato, a


morte e a tulipa (2007) de Wolf Erlbruch e O sol se põe na tinturaria Yamada (2017) de
Claudio Fragata e Raquel Matsushita, por meio da análise do texto escrito e das ilustrações, bem
como de todo o projeto gráfico, perscrutando como ambos os livros tratam a temática da
morte. O estudo pontua como os dois livros interpelam a questão da morte valendo-se de uma
perspectiva filosófica, do humor, da consonância e da complementaridade entre texto e imagem
Palavras-chave: Literatura comparada; Literatura infantojuvenil contemporânea; Morte

Cantar e pensar são os dois troncos vizinhos do ato poético.


Heidegger

Neste estudo, propomos comparar duas obras contemporâneas da literatura


infantojuvenil, O pato, a morte e a tulipa (2007) de Wolf Erlbruch e O sol se põe na
tinturaria Yamada (2017) de Claudio Fragata e Raquel Matsushita, por meio da análise
do texto escrito e das ilustrações, bem como de todo o projeto gráfico, perscrutando
como ambos os livros tratam a temática da morte.
Invariavelmente, nos contos tradicionais e maravilhosos, a morte sempre se faz
presente. Em muitas histórias, morrer se configura como punição aos maus ou meio de
ascensão dos personagens extremamente bons para um patamar de santidade. Dito de
outra maneira, as abordagens têm um cunho religioso, mormente de cunho judaico-
cristão. A morte também pode aparecer seguida de ressurreição simbolizando a
mudança ou metamorfose das personagens.
Com o fortalecimento da visão burguesa da infância a partir do século XIX como
uma fase da vida que requer cuidados e proteção, as representações da morte foram
amenizadas ou evitadas nas histórias destinadas aos pequenos leitores.
Na sociedade contemporânea, a morte tornou-se um tabu e a presença do referido
tema na literatura infantil, no início do século XX, tornou-se escassa. No entanto, a
partir da década de oitenta, o mercado editorial de livros infantis passou a incluir temas
mais complexos e constrangedores, como o da morte. Nessa produção mais coetânea,

1
Doutora em Letras (USP). Contato: giselegemmi@hotmail.com

1141
em muitas obras, a referência a esse assunto tem como escopo preparar e consolar a
criança em relação à partida das pessoas mais velhas da família, sobretudo os avós.
O estudo parte de uma análise comparativa das duas obras da literatura infantil,
pontuando como ambas interpelam a questão da morte valendo-se de uma perspectiva
filosófica, do humor, da poesia e da consonância e complementaridade entre texto e
imagem. Empregamos o termo “poesia” no sentido de poético e não de gênero ou
composição em verso. A perspectiva filosófica implica o pensamento de cunho racional
e a elaboração reflexiva das percepções sobre a realidade e o humano. A escolha das
obras também se deveu a intensidade dos recursos estéticos empregados no texto e
ilustrações conferindo-lhes uma gama de possibilidades de leitura e literariedade.

“... obras que fogem ao pedagogismo, aos enredos lineares e à utilização de


clichês e estereótipos. São obras que, lançando mão de recursos
composicionais e imagéticos originais, como o humor, os finais abertos ou
duplos, as quebras de expectativas, a polifonia narrativa e intertextualidade,
apresentam maior grau de literariedade, possibilitando, portanto, aos
pequenos leitores, uma leitura mais aberta, desafiadora e polissêmica.”
(SILVEIRA, Rosa Hessel et alii., 2012, p. 28-29)

O livro de Fragata e Matsushita, embora narre a despedida do senhor Yamada do


seu neto Hiro, diferencia-se da abordagem com mensagem consolatória ao relativizar a
finitude por meio da valorização da memória. Do calor da manhã ao sol poente, o velho
relembra um poema da infância que nos convida a pensar sobre o significado da vida e
da morte. É por meio da poesia que o Sr. Yamada se relaciona com o seu fim e o aceita
com serenidade.

Taro-Kun e Yo-chan
Transpunham a soleira
Quando viram a rã.

Não ultrapassem o cercado;


Voltem para dentro,”
Coaxou a rã.

Os garotos dobravam o caminho


Quando surgiu a raposa.
“Não subam às montanhas, há neves nos cumes”, disse ela.

“Voem até o céu”,


Aconselhou-lhes a cegonha.

1142
“Lá estarão livres de todos os perigos.” (FRAGATA &
MATSUSHITA, 2017, passim)

A linguagem do poema, cifrada e metafórica, traz à tona verdades ressignificadas,


pois quando vivificadas pela memória, tornam-se passíveis de (re)interpretação. “Assim,
afastamo-nos do conceito de poesia como representação, porque a sua linguagem não
representa, mas sim faz pressentir o indizível anterior à construção do poema.”
(MEMÓRIA, 2009). Nesse caso, o indizível inerente à experiência da morte.
Ainda segundo o verbete do E-dicionário de termos literários de Carlos Ceia, a
memória é retenção de um dado e um meio para o conhecimento. A presentificação da
narrativa poética ativa a imaginação e as capacidades de interpretação no plano
diegético e fora dele, no leitor.
Nesse sentido, a linguagem poética da tradição oral presentifica um saber antigo,
dos primeiros povos, um conhecimento que se exprime por meio do mito, da metáfora e
da fábula. Uma maneira de ver o mundo para além da empiria e da ciência que se
perpetua e permite ao homem compreender a morte na vida e sonhar a vida na morte.
Os versos da memória do sr. Yamada falam sobre os caminhos tortuosos, os riscos que
cercam a vida. Mas é preciso transpor a soleira e aceitar o momento de voar ao céu,
onde, contrariamente, não há mais perigos. Com a mitologização da ciência, a poesia
passou a ser relegada ao âmbito do emotivo, como aliás ela é apresentada às crianças
nas escolas, destituindo-a do seu caráter perquiritivo e desvelador. Privando-nos de um
saber que sempre acompanhou a humanidade e lhe é inerente e necessário.

É certo, contudo, que, pelo substrato greco-latino de nossa cultura intelectual,


a filosofia stricto sensu pressupõe a poesia historicamente, pois que esta,
mais velha, nasceu antes da outra (Platão estudou os poemas de Homero), e
formalmente, pois no sentido mais geral a poesia mergulha no elemento
originário da poiesis, seja que a tomemos como potência geradora do mito,
seja que a tomemos como potência verbal formadora dos enunciados,
verdadeiros e/ou falsos, que o discurso filosófico articula. Assim, nesse
sentido preliminar restrito e só nele, toda filosofia é poética. (NUNES, 2011,
p. 13)

A relação entre a memória e a tradição oral é o que une as gerações e, ao mesmo


tempo, dá sentido a existência na possibilidade de continuidade, do não perecimento.
Daí a importância do neto na narrativa. A presença da criança aqui não apresenta um

1143
sentido paradigmático, didático e instrumental. Dito de outra maneira, a personagem
Hiro não representa um modelo de comportamento diante de uma situação traumática.
Aprender a morrer na obra os autores brasileiros se dá nessa confluência entre
poesia e filosofia, entre vida e morte. O poema do Sr. Yamada teria um cunho alegórico,
no sentido benjaminiano em as Origens do Drama Trágico Alemã, pois revela uma
verdade oculta, uma versão de como as coisas foram ou podem ser.
Já, em O pato, a morte e a tulipa, a questão é interpelada de forma singular,
apresentando a morte como uma personagem simpática e humanizada. Os traços de seu
semblante, os olhos redondinhos e a pequena linha representando os lábios bem como a
representação do movimento do crânio dão à criatura carisma e ternura. As roupas
confortáveis, as pantufas e a tulipa na mão em vez da foice complementam e
ressignificam essa conhecida figura do nosso imaginário. Diferentemente dos
estereótipos veiculados em filmes de terror, a morte não exerce um papel ativo, mas
contemplativo, apresentando certa fragilidade e emoção. (ENG, Lennart, 2017).
Em um primeiro momento o pato fica muito assustado com a presença da
indesejada, mas quando a examina detidamente e dialoga com ela, convida-a para nadar
no lago e, juntos, experimentam novas sensações e ideias. Sugerimos que a relação entre
o pato e a morte é uma metáfora indicadora de uma outra atitude diante do fim da vida,
indo de encontro à negação e esquivamento da sociedade coeva. Vale destacar que
Erlbruch não apresenta um desfecho confortador ou uma solução metafísica, mas
propõe uma reflexão que explicita a intrínseca relação entre vida e a morte, já que,
como pontua Morin (1988, p. 11), a sociedade funciona apesar da morte e contra a
morte, mas toda a nossa organização se baseia na ideia da inevitabilidade do nosso
perecimento.
Belatto (2005) comenta que, na sociedade contemporânea, a postura do ser
humano em relação à morte é paradoxal, encarando-a ora como um interdito,
expulsando-a para fora da vida quotidiana, ora como um fato técnico, banalizando-a. O
escamoteamento e a banalização da morte, embora pareçam contraditórios, são duas
formas de velar a inevitabilidade da morte e a dor da ausência, da perda da
individualidade e do fracasso da racionalidade. De qualquer maneira, ao evitar a morte
pelo interdito ou negá-la por meio da instrumentalização, nos desumanizamos.

1144
Kovacs (2008, p. 405) alerta para a confusão que o distanciamento da experiência
da morte e, paradoxalmente, a reprodução descontrolada de acidentes, assassinatos e
catástrofes pela mídia pode causar na educação das criança: “A T.V. passa a ser um dos
grandes educadores sobre morte para crianças em cenas de violência repetidas à
exaustão, dificultando a compreensão da irreversibilidade da morte, ao trazer,
recorrentemente, a imagem do acidente ou da pessoa viva.”
No livro em questão, a morte aparece como parte da vida, presentificada: “—
Estou por perto desde que você nasceu, por via das dúvidas.” (ERLBRUCH, 2007, s/p).
Apresenta, assim, a experiência do viver e morrer como inseparáveis. O diálogo entre o
pato e a morte configura-se em uma reflexão sobre o viver (apresenta questão
fenomenológica acerca da realidade em si e a realidade como se apresenta para /ou se
constrói pela percepção humana “— Quando você estiver morto, o lago também não vai
mais estar lá — pelo menos não para você.”) e o morrer, afastando-se da atitude
coetânea e estabelecendo uma ligação entre texto literário e filosofia. Se a morte é
inevitável, como viver?
Sócrates, por exemplo, ensinava que o objetivo da filosofia era compreender o
significado da vida em relação à morte e entender a natureza da alma. O filósofo
verdadeiro era o que praticava a arte do morrer o tempo inteiro, ou seja, aceitar a morte
como a separação da alma (a qual continua a existir) do corpo (o qual cessa de existir).
(SANTOS, 2009, p. 16). A morte, no livro de Erlbruch, revela estar sempre presente, o
que faz o pato repensar a vida, no entanto, a obra não apresenta uma solução metafísica.
Quando o pato pergunta se há vida após a morte, ela ironiza e desconversa, deixando a
pergunta sem resposta, valorizando o presente.

— Alguns patos dizem que a gente vira anjo e fica sentado numa
nuvem olhando para a Terra lá embaixo.
— Pode ser — a morte sentou-se — afinal asas vocês já têm.
— Alguns patos também dizem que debaixo da Terra existe um
inferno onde a gente é assado, se não tiver sido um pato bom.
— Vocês patos imaginam cada coisa, mas quem sabe?
— Então você também não sabe! — grasnou o pato.
A morte apenas olhou para ele.
— O que a gente vai fazer hoje? — perguntou a morte bem-
humorada. (ERLBRUCH, 2007, s/n)

Em Heidegger, “a tomada de consciência do ser-para-a-morte leva a um


questionamento de todo o ser, no sentido de que o ser humano se coloca radicalmente

1145
diante de seu ser.” (WERLE, 2003, p. 111). A desassociação entre vida e morte (e o
equívoco do recalcamento da morte na sociedade contemporânea), nesse sentido, seria
não compreender que a “angústia diante da morte é a angústia diante do próprio poder
ser e que o medo da morte gera no ser (aí) uma possibilidade para uma vida autêntica.
(WERLE, 2003, passim). Nunes (2011, p. 9), por sua vez, explica que o ser para a morte
heideggeriano não é necessariamente um “sentido da vida”, mas fundamento
estruturante da existência, dando ainda a condição ao homem de, através da revolta com
sua finitude (não enquanto negação), também estar autenticamente diante do horizonte
do mundo onde os fenômenos são interpelados e interpelam. Vale lembrar que para o
existencialismo, o ser se completa na morte (SANTOS, 2009, p. 23).
O livro de Erlbruch apresenta a morte como uma figura que desperta
questionamentos no pato e uma possibilidade de existência, demonstrando que a vida é
um recurso a ser empregado (vida autêntica e não automatizada pelas demandas sociais)
que, ao final, o ensinam a morrer. Dito de outra maneira, morrer é que dá sentido à vida,
basta pensar como a imortalidade pode ser melancólica e monstruosa. O vampirismo e
o conto “O imortal” de Jorge Luís Borges são exemplos sintomáticos.
Filosofia poética e poesia filosófica, esse movimento presente nas obras em
questão permite aos leitores refletir sobre como “... o caminho da morte deve levar-nos
mais fundo na vida, como o caminho da vida nos deve levar mais fundo na morte.”
(MORIN, 1988, p. 11)

Referências

BELLATO. R, Carvalho EC. O jogo existencial e a ritualização da morte. Rev Latino-


am Enfermagem. 2005 janeiro-fevereiro; 13(1):99-104, p. 103).

BORGES, Jorge Luis. O imortal. In: O Aleph. São Paulo: Globo, 1999.

ENG, Lennart, Reading guide to Duck, Death and the Tulip, 2017. Disponível em:
http://www.alma.se/en/Laureates/Reading-guides/Duck-Death-and-the-Tulip/. Acesso
em: 07/03/2019.

ERLBRUCH, Wolf. O pato, a morte e a tulipa. 2. ed. ,Trad. José Marcos Macedo. São
Paulo: Cosac Naify, 2013.

FRAGATA, Claudio & MATSUSHITA, Raquel. O sol se põe na tinturaria Yamada.


São Paulo: Pulo do Gato, 2017.

1146
KOVACS, Maria Julia. Desenvolvimento da Tanatologia: estudos sobre a morte e o
morrer. Paidéia (Ribeirão Preto), Ribeirão Preto, v. 18, n. 41, p. 457-468, Dec. 2008.
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
863X2008000300004&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 08/06/2019.

MEMÓRIA. In: PAIXÃO, Sofia. E-dicionário de termos literários de Carlos Ceia.


2009. Disponível em: http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/memoria/. Acesso em:
18/07/2019.
MORIN, Edgar. O homem e a morte. Lisboa: Publicações Europa-América, 1988.

NUNES, Benedito. Poesia e filosofia: uma transa. A Palo Seco: Escritos de Filosofia e
Literatura. Ano 3, n. 3, 2011.

SANTOS, Franklin Santana. Perspectivas Histórico-Culturais da Morte. SANTOS,


Franklin Santana & INCONTRI, Dora. (Org,) A arte de morrer: visões plurais. 2. ed.
São Paulo: Editora Comenius, 2009.

SILVEIRA, Rosa Hessel et alii. A diferença na literatura infantil: narrativas e leituras.


São Paulo: Moderna, 2012.

WERLE, Marco Aurélio. A angústia, o nada e a morte em Heidegger. In:


Trans/Form/Ação, São Paulo, 26(1): 97-113, 2003.

1147
A LITERATURA E O FIO DE ARIADNE:
REFLEXÕES SOBRE A IMPORTÂNCIA DO OLHAR DE DESCOBERTA NA
EXPERIÊNCIA LITERÁRIA
1
Juliana Pádua Silva Medeiros (UPM)

Resumo: ​À luz das considerações teóricas de Andruetto (2017), Coelho (2000), Góes (2003) e
Wandelli (2003), este artigo objetiva - ao analisar a rede de micronarrativas que compõe
Abrindo caminho​, escrito por Ana Maria Machado e ilustrado por Elizabeth Teixeira - discutir o
quanto a percepção astuta, a memória aguçada e a captação de pistas guiam o leitor não para que
saia do labirinto textual, mas para que consiga transformá-lo em vias comunicantes.
Palavras-chave: ​Educação Básica; Experiência; Leitura; Literatura Infantil.

Ler é relacionar cada texto lido aos demais


anteriores (texto-vida + textos lidos) para
reconhecê-los, significá-los e assimilá-los; processo
que dota o leitor da capacidade de ad-mira-ação
(olhar que apreende e aprende) e o torna um
leitor-sujeito de sua própria história. O ato de
leitura é revolucionário, pois transforma o leitor
passivo em leitor ativo, um coautor, doador de
sentidos.
Lúcia Pimentel Góes

Para Coelho (2000), enquanto um autêntico e complexo exercício de vida, que se


realiza com e na linguagem, a literatura possibilita a exteriorização do pensar e a
articulação com outros saberes. De acordo com a autora, o texto literário “[...] atua em
seus leitores como uma espécie de 'ponte' entre a sua experiência individual e o mundo
de experiências contido no livro, mundo que, ao ser vivenciado pelo leitor, passa a
integrar sua particular experiência de vida” (COELHO, 2000, p. 154).
Nessa perspectiva, compreendendo o trabalho com a literatura em sala de aula
como possibilidade de ensaio na linguagem e na vida, o presente artigo busca refletir
acerca da multiplicidade de itinerários de leitura que podem surgir em ​Abrindo
caminho, escrito por Ana Maria Machado e ilustrado por Elisabeth Teixeira, a partir de
um processo que aguça o olhar para o verbal e o visual. Para tanto, propõe-se a: 1.
apresentar a obra literária em questão, evidenciando a sua estrutura hipertextual, que,

1
​Graduada em Letras (FEF), Especialista em Literatura e Artes Visuais (UNIFEV), Mestre em Letras
pelo Programa de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa (USP) e Doutoranda em
Letras (UPM). Contato: ​julianapadua81@gmail.com

1148
semelhante a um labirinto, oferta múltiplas rotas para elaboração de significados; 2.
discorrer sobre os desafios que a cartografia do exemplar literário supracitado impõe ao
leitor-criança e também ao professor-mediador, haja vista que o seu caráter hipertextual
pleiteia um conjunto de estratégias cognitivas para acionar os links ​(nexos associativos),
e 3. apontar itinerários de leitura que - por meio do olhar de descoberta (espécie de Fio
de Ariadne capaz de guiar o mapa cognitivo que cada leitor tece) - possibilitam uma
experiência literária singular.

Arquitetura labiríntica
Abrindo caminho é um exemplar literário contemporâneo destinado a infância,
cuja tessitura articula palavra e imagem, fazendo despontar inúmeras referências do
universo artístico e histórico. O enredo não linear, por meio do uso de prenomes, alude
às grandes personalidades que contribuíram para abrir caminhos e mudar os rumos da
humanidade, traçando novos paradigmas.
Em prosa poética, a obra explora as possibilidades de trilhar novas vias para
transpor os obstáculos. A máxima de que o fim nada mais é de que o início de outro
começo e que os empecilhos podem ser revertidos em solução para a adversidade está
presente por todo o livro: na homenagem a Maurício Klabin e Antonio Carlos Jobim; na
escolha das personagens e suas histórias de superação; nos elementos simbólicos da
ilustração, entre outros.
O exemplar literário em questão, devido a sua estrutura hipertextual, impõe
desafios ao leitor, e consequentemente ao professor-mediador, pois exige um novo
modo de ler, haja vista que apresenta rotas multidirecionais. Não importando a chave de
entrada para esse labirinto de histórias, faz-se necessário observar que: 1. o verbal e o
visual formam um único texto sem suturas, já que as ilustrações também narram a
trajetória das personagens; 2. o poema ​No meio do caminho​, de Carlos Drummond de
Andrade, e a música ​Águas de março​, de Tom Jobim, incorporados à obra, dão ritmo ao
texto, não se limitando apenas à esfera sonora.2

2
Convém salientar que, no decorrer do livro, também há referências à epopeia ​Divina comédia​, de Dante
Alighieri, à carta de Cristóvão Colombo, aos relatos de viagens de Marco Polo, à autobiografia de Santos
Dumont, além de fotografias e de pinturas.

1149
De maneira geral, o arranjo estético do livro gira em torno de três grupos, os quais
se referem cada um a três personagens. O primeiro conjunto trata dos sujeitos ligados à
arte da palavra, aludindo a Dante Alighieri, a Carlos Drummond de Andrade e a Tom
Jobim. O segundo retoma as grandes personalidades da História, mencionando
Cristóvão Colombo, Marco Polo e Alberto Santos Dumont. Já o terceiro reporta-se a
uma garota, a um menino e ao próprio leitor da obra.
A esfera visual potencializa a relação entre o último grupo e os outros dois, visto
que a garota aparece com um livro nas mãos, enquanto o menino, com um mapa
debaixo dos braços. E o leitor da obra, sujeito empírico? Esse é representado pelo
“você”, como em “No meio do ​seu aposto, tem muita pedra também.” (MACHADO,
2004, p. 33, grifo nosso), tornando evidente, na estrutura hipertextual, o seu papel de
coprodutor dos sentidos no jogo interativo da atividade leitora.
O leitor empírico figura o agente da transformação, o indivíduo capaz de abrir
caminhos, mobilizando conhecimentos prévios para ativar as sinalizações presente na
hipertextualidade. Sob essa perspectiva, por meio de uma teia de micronarrativas,
despontam não apenas percursos múltiplos de três, mas uma inesgotável fonte de rotas
de leitura. O agenciamento infinito dessas histórias dentro de histórias completa,
aproxima, bifurca e exclui trilhas para um olhar de descoberta sobre o ato de
transformar obstáculos (empecilhos) em caminhos (alternativas): “Quem disse que o fim
da picada não se abre para a imensidão?” (MACHADO, 2004, p. 35).
Ao longo da obra, surge uma selva escura no meio do percurso de Dante; uma
pedra no de Carlos; um rio no de Tom; um oceano no de Cris; inimigo e deserto no de
Marco; muita lonjura no de Alberto. Esses empecilhos acabam sendo transpostos, uma
vez que no de Dante há uma estrada; no de Carlos, um túnel; no de Tom, uma ponte; no
de Cris, um mundo bem maior por meio das navegações; no de Marco, um mapa bem
melhor em razão das novas vias desbravadas em lugares desérticos e montanhosos na
Ásia; no de Alberto, um mundo bem menor devido à invenção do 14 Bis.
A menina-leitora e o garoto-desbravador aparecem no entrelaçamento desses
blocos de histórias. Ela lê de forma aconchegante sobre uma poltrona, situada frente a
uma biblioteca com exemplares de livros relacionados à literatura, à música e à história.

1150
Ele, sentado no chão, diante de um mapa, traça rotas para os seus barquinhos e aviões
de brinquedo.
Ambos só compartilham o mesmo espaço físico na última cena da obra, na qual
cada um traz em sua bolsa (bagagem) o respectivo objeto de interação: livro e mapa.
Quanto ao leitor empírico, o recurso de interatividade é a própria leitura desbravadora,
uma vez que o mesmo elabora mapas cognitivos para enveredar na arquitetura
labiríntica.

Exercício de vida
Consoante Andruetto (2017, p. 103-104), a leitura “[...] é uma possibilidade
esplêndida para dar lugar a perguntas, à discussão, ao intercâmbio de percepções e à
construção de um juízo próprio.”.
Por meio de um ​olhar de descoberta​, capacidade associativa por analogia,
integrando sensações e percepções na construção de significados, o leitor adentra,
portanto, a leitura literária e traça caminhos​:

O olhar aciona a memória da vivência passada produzindo leitura na leitura


desse objeto novo que é o livro de literatura infantil e juvenil. [...] Tal leitura
caracteriza-se pelo dinamismo que brota da rápida associação, concentrando
as percepções, filtrando as recordações reconhecidas. [...] Ele [o professor]
estimula a capacidade de associação por analogia, que se distancia da habitual
contiguidade predominante na visão cultural ocidental. [...] O leitor na
intertextualidade pode ad-mirar, pois tem os sentidos despertos, memória
avivada e acionada, vendo o que existe, sem submeter-se às leituras-desvios,
pois as detecta. Conhece o texto como prática intertextual e intersemiótica,
reconhece a inter-relação e a dialética da linguagem em movimentos
circulares de renovação-revolução. Leitura, espaço deflagrador de outras
ações-revoluções." (GÓES, 2003, p. 23-24)

Nessa esteira, observa-se que, na contemporaneidade, obras literárias como


Abrindo caminho apresentam uma espécie de fio de Ariadne capaz de indicar múltiplos
caminhos, não para que o leitor saia do labirinto, mas para que consiga transformá-lo
em vias comunicantes, as quais a concepção de mundo atual exige, conforme postula
Coelho (2000).

1151
Os novos paradigmas de leitura pleiteiam, então, um leitor apto a percorrer a
multiplicidade de caminhos em uma arquitetura labiríntica, cujos fios heterogêneos
conduzem o indivíduo na grande aventura de ler e outorgar sentidos, experiência única e
humanizadora:

A busca de significado é uma característica inerente ao ser humano, desde o


refletir sobre a razão da própria existência e da natureza das relações
interpessoais ou da compreensão do sentido de produtos oferecidos pelas
mídias. Pela ativação do sensível e do inteligível, é possível captar sutilezas
de fenômenos da existência, ou mesmo, tanto pela carência quanto pelo
excesso de estímulos, deixar de apreendê-las. Os modos de um leitor
relacionar-se com as diferentes manifestações da sua realidade dependem, em
grande parte, da capacidade de mobilizar as próprias experiências, considerar
o entorno, os elementos e as articulações ali existentes. É um constante
exercício de observar, analisar, organizar e capacitar-se a atribuir significado,
ir além da superficialidade de percepções de um contexto saturado de
informações. Esses são desafios de um saber ler, de conhecer mais e melhor.
Como uma paisagem produzida por múltiplos elementos, os textos incluem
horizontes diversos criados por várias linhas de fuga, que consolidam
referências, orientam percursos significativos. Há um horizonte que estende
pontes entre o próximo e o distante; orienta lembranças de outros cenários,
pessoas e tempos diversos; leva a criar percursos internos e pontos de
ancoragem, realizando caminhos de ida e também de volta, E, nesse
movimento, ampliam-se experiências de legibilidade e de inteligibilidade
sensível e significativa. (PANOZZO, 2007, p. 50)

Nas passagens “Era pau. Era pedra. Era o fim do caminho?” (MACHADO, 2000,
p. 10 e 22), os questionamentos acerca do enredo instigam a curiosidade do leitor
quanto aos (micro)clímax: ponto de maior tensão (o fragmento antecede os rumos
tomados por cada personagem ao transformar obstáculos em alternativas).
Como é possível observar, o uso da anáfora garante à obra um movimento
repetitivo e esse recurso estilístico ecoa no nível temático e de ordem estrutural. Essas
recorrências, no livro, desencadeiam e enlaçam micronarrativas que, apresentadas em
núcleos de três, estão dispostas paralelamente. Essa aparente simultaneidade desconstrói
a tradicional concepção de tempo e espaço, deixando as marcações espaciotemporais a
cargo da ilustração que as indicia através das vestimentas, das paisagens naturais e
arquitetônicas, entre outros.
Como no poema drummoniano, o fluxo do texto e, por conseguinte, o da leitura
também é interrompido (como se houvesse uma pedra no meio caminho). Isso se torna

1152
mais evidente após a apresentação, em páginas duplas, de cada uma das personagens e
dos obstáculos que lhes correspondem.
Em uma espécie de corte no decurso das histórias, espectros das personagens
citadas, anteriormente, reúnem-se na mesma área e é possível reconhecê-los pelos
contornos físicos. Os obstáculos, também, estão agrupados frente a essas sombras, como
se constituíssem uma barreira intransponível.
Nos referidos pares de páginas, o refrão “Era pau. Era pedra. Era o fim do
caminho?” (MACHADO, 2004, p. 10) apropria-se do poema de Carlos Drummond de
Andrade em intertextualidade explícita. Diante disso, convoca a memória para o
reconhecimento e pela repetição engendra um tempo que retorna, mas que também
progride, culminando em uma interrogação.

O fluxo memória/esquecimento que marca a leitura hipertextual


ziguezagueante faz o leitor caminhar sempre impelido a voltar atrás para
juntar os cacos orgânicos de sentido. Só que, em vez de usar pedrinhas, como
na fábula de João e Maria, marcará seu percurso com ícones-links e palavras.
Ao mesmo tempo que vai conseguindo juntar fragmentos da história pelo
caminho, o leitor vai também semeando pedaços de sentido, como se fosse
deixado partes do próprio corpo: fios de cabelo, barbas, mãos pernas, pés,
dentes, rabos, orelhas, fragmentos de pele, olhos. [...] Ler é um ato corporal.
Detalhes físicos curiosamente repetidos ao longo da narrativa funcionam
como sinais luminosos, piscando e indicando momentos de ancoragem e
tessitura de fragmentos, que serão esquecidos e perdidos em seguida em favor
de outras lembranças e conexões. (WANDELLI, 2003, p. 52 - 53)

Em ​Abrindo caminho​, pelas vias do ​mise en abyme​, nota-se que uma história
reveste a outra, devido à trama de textos dentro de textos. O livro que a menina lê, por
exemplo, no aconchego de uma poltrona, na página dez, contém a mesma ilustração da
anterior em que o leitor empírico navega. Essa dinâmica de encapsulamentos promove
avanços e recuos na rede vertiginosa de sentidos, visto que as retomadas e
sobreposições de tempos, espaços e personagem convidam à ativação de ​links.
Exemplo: A garota está diante de uma estante, onde há um rádio e vários livros, Esses
elementos, dispostos na pequena biblioteca, aludem às personagens já mencionadas,
tanto àquelas que ainda irão aparecer. Os exemplares que compõem a estante
representam, metonimicamente, uma espécie de parcela infinitesimal do registro dos

1153
grandes feitos humanos: ​Antologia poética, Bossa nova, Divina comédia Drummond,
Enciclopédias, História universal, Música e Poesia.
Na página doze também, por meio de uma técnica similar ao do cinema, o zoom
de aproximação, o livro que a menina-leitora tinha nas mãos torna-se o mesmo lido pelo
leitor empírico nas páginas quatorze e quinze. Nesse viés, as funções estética e
metalinguística da ilustração evidenciam os limites tênues entre os processos de
produção e recepção.
No livro, ao serem apresentadas as soluções para os entraves de Cris, Marco e
Alberto, uma nova personagem é introduzida. Na ilustração, vê-se um menino que até o
momento não havia sido exposto. O mesmo coloca brinquedos em forma de meios de
transporte sobre um mapa e traça rotas com um lápis, como se tudo estivesse ao alcance
das mãos. A cartografia ocupa as duas páginas e salta aos olhos, como se o leitor
também a estivesse manuseando.
No plano visual, o garoto, na sequência, encontra-se defronte a um muro alto, o
qual possui um portão cheio de grades. Ele tem debaixo dos braços um mapa que se
linka à ilustração anterior.
Na esfera da palavra, os processos de produção e recepção aproximam-se ainda
mais nessa cena, tendo em vista que o narrador dialoga com o leitor, convidando-o a
pensar a respeito dos obstáculos: “No meio do meu caminho tem coisa de que não
gosto. Cerca, muro, grande tem. No meio do seu aposto, tem muita pedra também.
Pedra? Ou ovo? Fim do caminho? Ou caminho novo?”. (MACHADO, 2004, p. 32).
Ao cruzar o portão cheio de grandes, a criança ultrapassa os limites impostos e
depara-se com a imensidão do mundo: um universo globalizado, cujas diferenças vivem
em harmonia. Na ilustração, um oriental, em uma bicicleta, perambula entre as ruas,
próximo onde está localizada a banca do Cristóvão, que alude ao descobridor das
Américas. Há também, no corpo do livro, outras referências desse intercâmbio de
textos, culturas e feitos humanos.
No desfecho da obra de Ana Maria Machado, a menção ao verso de Tom Jobim é
mantida na íntegra, tendo em vista que o uso do presente, tempo verbal da certeza,
sugere a esperança nos rumos da marcha da humanidade. Nesse par de páginas, a

1154
ilustração abarca o menino, na figura de um desbravador, e a garota, representando a
leitora. Ambos estão de braços abertos para a renovação (chuvas de março).3
Nesse veio, a obra também convida o leitor a transmutar, posto que disponibiliza
uma infinitude de rotas possíveis a serem exploradas pelas veredas da arquitetura
labiríntica, permitindo, assim, transformar cada ato de ler em uma experiência rica e
única, sempre renovada.
Em uma rede de significados que vai se construindo para além da cercania da
obra, percebe-se que cada personagem encapsula a anterior e nessa dinâmica atinge o
leitor, sujeito de carne e osso, que também se reconhece na arquitetura labiríntica do
livro.

Itinerários de leitura
Na página quatro, é possível identificar a paráfrase do canto I de o Inferno na
Divina comédia​, devido à expressão “selva escura” e à correlação com as seguintes
imagens: onça, loba, leão, anjo, diabo, Virgílio, Beatriz e elementos da Idade Média
(vestuário, igreja, oposição entre noite e dia). Convém lembrar que, mesmo que o leitor
não reconheça as intertextualidades através das associações, é permitido inferir que a
figura de Dante concerne a um escritor medieval, em virtude da pena, do livro e do
traje.
A ilustração, em página dupla, conecta-se a outras que, de maneira similar,
retratam o inferno dantesco com suas florestas subterrâneas: o poeta Dante frente à
selva escura.
Na página seis, a referência ao poeta-gauche é ativada por meio da calvície da
personagem, óculos, papel, caneta, pedra, serras, uma vez que esses ​links ​reportam aos
traços físicos de Carlos Drummond de Andrade, sua função como escritor, a sua
produção literária e à região mineira de Itabira, onde nasceu.

3
Na cena final, a chuva, simbolizando o agente fecundador, denota renovação. O enlace céu, terra, mar,
chuva, sol, ar, metaforicamente, evoca uma comunhão de elementos vitais a desencadear a fertilidade
(espiritual e material). Nesse contexto de fusão imagética, o verbal projeta a utopia: “É promessa de vida
no meu coração.”.

1155
Nesses labirintos de significados, textos-vida mais textos lidos iluminam os
diálogos intertextuais e intersemióticos, guiando a descoberta através de um olhar que
(inter)relaciona, como expõe Góes (2003).
Na ilustração de página dupla acerca de Tom, Elisabeth Teixeira reforça os
elementos que circulam o universo carioca da vida do compositor Antonio Carlos
Jobim, como, por exemplo, o Pão de Açúcar e o calçadão de Copacabana. Dessa forma,
além de ressaltar os traços físicos do músico, que mira uma paisagem, acompanhado por
um violão, é possível identificar a cidade do Rio de Janeiro, cenário bastante costumeiro
em várias músicas do cantor. Logo, a passagem “No meio do caminho de Tom tinha um
rio.” (MACHADO, 2004, p. 6), torna-se polissêmica, visto que a palavra RIO pode ser
lida tanto como grande massa de água, tanto quanto o nome da capital de um estado
homônimo.
A alcunha Cris compete ao descobridor da América, Cristóvão Colombo. Essa
inferência é assegurada pelas três caravelas dispostas em uma imensidão de oceano que
comprova que a Terra é redonda. Além do mais, os monstros submersos em águas
profundas retomam as lendas acerca dos barcos que sumiam no horizonte, atribuindo o
desaparecimento às feras marinhas que os devoravam. Tal ilustração ressalta que as
grandes navegações foram responsáveis pela mudança das visões da humanidade, pois,
entre imagens reais e fantásticas, é perceptível a crença antediluviana de que a Terra é
achatada e o mar acaba em um terrível abismo.
Cris, reportando ao navegador genovês Cristóvão Colombo, é a primeira
personagem do conjunto de três personagens que assinalaram o humano com os seus
feitos catalizadores. Ele, ao transpor os limites impostos pelo conhecimento da época
em torno das navegações e da própria Terra, descobre a América e os seus diários de
viagem/ cartas tornaram-se fontes de dados para se traçar outras rotas marítimas.
Na sequência, é mencionado o nome Marco que concerne a Marco Polo, filho de
grande mercador que, no século XIII, chega até o continente asiático. A ilustração de
uma comitiva, observada por inimigos, atravessando o deserto, corresponde aos
constantes saques sofridos pela família de desbravadores. A muralha, os vestuários, os
meio de transporte (camelo), as armas e as personagens orientais localizadas no canto da

1156
página, ampliam a dimensão do enredo, ancorando-o ao episódio histórico no qual
Marco Polo, em uma expedição ao Oriente, faz excelentes transações com o imperador
chinês Kubilai Kan.
A personagem Alberto faz alusão ao grande aviador Alberto Santos Dumont, que
no livro está estampado dentro de um balão próximo a uma fita verde-amarela. No
fundo, dá para identificar a Torre Eiffel, na França, por onde sobrevoou tal ilustre
brasileiro.
No decorrer da obra, uma miríade de nexos vão se linkando em uma rede de
sentido em torno da personagem, como é o caso de Alberto. Cabe enfatizar que a
hipertextualidade se dá na relação entre o texto e outros textos e entre eles e sua própria
tessitura: capa, título, contracapa, dedicatória, homenagem, ilustrações, síntese
biográfica do autor/ilustrador etc.
Esses ​links fecundam uma miríade de interpretações, garantido que o texto
(hiper)textual esteja aberto a novos significados em um diálogo com o mundo, não o
reduzindo a um amontoado de frases e ilustrações em uma inocente solitude.
O título ​Abrindo caminho​, por exemplo, arraiga uma multiplicidade de sentidos,
os quais não se esgotam em si mesmo, pois estabelecem uma rede de conexões
significativas ancoradas nas inter-relações com as personagens.
A hipertextualidade e o caráter labiríntico da obra são bastante evidenciados na
ilustração e em alguns elementos do livro, para além do arranjo de micronarrativas,
como na capa, na contracapa e na breve biografia de Ana Maria Machado e Elisabeth
Teixeira. Na capa, a ilustração remete a uma ​homepage​, similar àquela em que o
internauta navega, acionando ​links. Na contracapa, há três meios de transportes ladeados
por setas que apontam para caminhos em várias direções. Na folha de rosto, há uma
mandala, indicando rotas multidirecionais. Já o texto de apresentação sobre as autoras
está disposto de forma espiral, aludindo a um labirinto.
A exemplo disso, na dedicatória de Abrindo caminho, é possível observar que a
imagem de uma criança arrastando o seu piano (recurso metonímico) até o topo do
planeta refere-se ao músico Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim Tal inferência
é legitimada a partir dos conhecimentos prévios em torno da biografia de Tom Jobim,

1157
permitindo acionar múltiplos ​links ​nessa ilustração: 1. Ele aprendeu a tocar piano ainda
menino, estudando com maior afinco a partir de 1941; 2. Em 1950, faz apresentações
em bares e casas noturnas de Copacabana como pianista; 3. Em meados de século XX,
atinge proporções internacionais com a bossa nova; 4. Um dos artistas mais ouvidos do
mundo e com gigantesco repertório de composições interpretado por outros cantores.
Vale alertar que, segundo Wandelli (2003) não é possível reconhecer todos os
links ​“existentes” na estrutura hipertextual e saturá-los.

Considerações finais
Um olhar atento sobre a obra leva a depreender que as personagens Cris, Marco e
Alberto, já apresentadas, não pertencem à mesma época, visto que as vestimentas são
diferentes e os meios de transporte também (tração animal, navio e avião). As regiões
pelas quais viajam mostram-se bastante distintas: Colombo desembarca em uma terra,
onde há papagaios, índios, e palmeiras. Já Polo, em território oriental em razão dos
traços faciais. Santos Dumont, em uma sociedade na qual os indivíduos usam máquina
fotográfica (Terceira Revolução Industrial).
Os obstáculos superados com determinação, coragem, negócio e tecnologia abrem
caminhos para uma sociedade globalizada, na qual o progresso é tido como fruto de
ações anteriores, que encapsuladas, reatualizadas, apontam a longa marcha da
humanidade em busca de uma convivência harmoniosa entre os diferentes.
Nessa trama que entrelaça palavras e imagens, nós associativos dentro e fora do
tecido do objeto estético são acionados, construindo uma rede de sentidos. A
mobilização dos sistemas de conhecimento permite a cada leitor articular,
singularmente, os fios que compõem a tessitura do texto, de modo que nenhum ato de
ler seja idêntico ao outro, pois os leitores não possuem os mesmos conhecimentos
prévios e os modos de acioná-los podem ocorrer de maneiras diversas. Esse processo
complexifica-se à medida que novos conhecimentos são adquiridos, garantindo uma
leitura cada vez mais mediada por novos conceitos que regeneram a compreensão.4

4
​Convém destacar que para a semiótica perciana, todo conhecimento entra pela percepção, “[...] assim
como a ação deliberada está na porta de saída, quer dizer, todo pensamento lógico começa na percepção
para desaguar na ação.” (SANTAELLA, 2004, p. 90).

1158
Enfim, a arquitetura labiríntica de ​Abrindo caminho (cartografia proposta pela
escritora e ilustradora) e os mapas cognitivos (itinerários construídos pelos leitores ao
enveredarem pela multiplicidade de entradas e saídas no diagrama hipertextual)
asseguram uma experiência lúdica de sensibilidade e aprendizagem, pois, quando o
sujeito ​linka os nexos associativos, retoma pontos e avista novas direções,
entregando-se ao fascínio do percurso da obra que se (des)dobra em exercício de
linguagem.
Em ​Abrindo caminho, observa-se, portanto, que a configuração hipertextual
impulsiona uma leitura não linear e intranquila, visto que incita o leitor, a cada paragem,
a reprogramar a rota. Nessa trama de caminhos tecidos de obstáculos e ao mesmo tempo
de ​links ​para novas descobertas, os significados despontam do olho do redemoinho
narrativo a partir de um Fio de Ariadne (percepção astuta, a memória aguçada e a
captação de pistas).

Referências
ANDRUETTO, María Teresa. A leitura, ​outra revolução​. São Paulo: Edições Sesc,
2017.

COELHO, Nelly Novaes. ​Literatura​: arte, conhecimento e vida. São Paulo: Peirópolis,
2000.

GÓES, Lúcia Pimentel. ​Olhar de descoberta: Proposta analítica de livros que


concentram várias linguagens. São Paulo: Paulinas, 2003.

MACHADO, Ana Maria. Abrindo caminho. São Paulo: Ática, 2004.

MEDEIROS, Juliana Pádua Silva. ​Navegar é preciso: ​o leitor contemporâneo e os


desafios da leitura hipertextual em “Abrindo caminho” e “A maior flor do mundo”
[dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2011.

SANTAELLA, Lúcia. ​Navegar no ciberespaço: o perfil cognitivo do leitor imersivo.


São Paulo: Paulus, 2004.

WANDELLI, Raquel. Leituras do hipertexto: viagem ao Dicionário Kazar.


Florianópolis: Editora da UFSC; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo,
2003.

1159
A LITERATURA INFATOJUVENIL NA VOZ PERIFÉRICA DE ALLAN DA
ROSA: UMA LEITURA DO LIVRO ZUMBI ASSOMBRA QUEM?
Karla Cristina Eiterer Santana1 (UFJF)
E-mail karlaeiterersantana78@gmail

Resumo: Este trabalho tem como objetivo apresentar uma leitura do Livro Zumbi assombra
quem? O livro foi direcionado para o público infanto-juvenil. Escrito por Allan da Rosa e
ilustrado por Edson Ikê, portanto temos uma articulação textual e imagética. O autor e o
ilustrador são militantes de um movimento que busca a revisão histórica, de grupos que foram
deixados à margem. Trabalham com as representações sociais do povo afro-brasileiro,
apontando para ressignificações de valores atribuídos a eles.

Palavras-chave: Literatura; Infantojuvenil; Identidade; Zumbi; Negro.

Introdução:

A escolha desse livro para o artigo foi feita observando a forma como o autor e
o ilustrador apresentam Zumbi. Eles partem da literatura periférica que resgata
identidade e ancestralidade. Como são militantes engajados em movimentos que lutam
para combater estereótipos, reforçar a luta contra o racismo e buscar a inserção de
outras vozes, também nos convidam à adentrar em seu mundo e juntamente com eles
repensar a História de forma multifacetada e crítica.
A literatura como toda Arte deve ser interpretada e analisada para que se
compreenda a mensagem que uma obra quer transmitir. Sendo uma Arte que se apoia
nas palavras, as escolhas dos elementos a fim de compor um texto são determinantes
para transmitir a mensagem escolhida. O encontro com as dores de personagens, as
dificuldades que precisam superar para alcançar seus objetivos, suas dúvidas, erros,
acertos e conquistas aproximam personagens, escritores e leitores.
Essa é a grande sacada da literatura: transformar e formar as pessoas que se
arriscam por seus caminhos. Dentre as categorias das manifestações textuais, temos a
literatura marginal ou periférica que luta contra o não reconhecimento de sua Arte. O
1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários – Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Juiz de Fora.

1160
instrumento ideológico apresentado é a ressignificação das identidades individuais e
coletivas. Como é construída à partir de uma linguagem simples e informal, costuma ser
avaliada por alguns críticos de forma pejorativa. Como Observa Sellgmann (2005)
sabemos que o escritor como um produtor, é um ser histórico, ele escreve sobre a
realidade da qual faz parte, ou seja, o episódio histórico que vive: os traumas, as
fraturas, os silêncios, as reticências e os fragmentos.
O escritor e o ilustrador apresentam em seus textos, temas que foram velados por
parte da história hegemônica e hoje precisam ser recontados de forma dialógica, para
que sejam contrastados, com outras fontes que também narraram os acontecimentos
importantes, como estes relativos ao nosso passado. Através dessa obra de resgate e
revisão do passado do povo afro-brasileiro, propomos algumas reflexões sobre essa
articulação entre a Literatura e a História, apontando para o acréscimo que outras
formas de narrar podem trazer para o discurso histórico, acerca do mesmo tema.
Diante do esquecimento do passado histórico, dessa experiência traumática para
as vítimas do colonialismo, desse fato violento que foi a escravidão, nasceu um espírito
de resistência que luta contra o pagamento das memórias e das subjetividades de
pessoas que foram escravizadas. Por isso, precisamos trazer para os ambientes
acadêmicos textos que produzam reflexões como esta entre a História, a literatura, como
nos alerta Bernd (1988), cumpre reivindicar o espaço ainda não conquistado, para
autores que a estão à margem na sociedade.
O nosso intuito é trazer para as discussões sociais, históricas e literárias, esta
nova leitura sobre Zumbi dos Palmares cuja representação discursiva se dá, pela escrita
de um autor de literatura periférica que narra a história do período colonial brasileiro,
através do cotidiano do menino Candê e seus familiares os quais pertencem a uma
família afro-brasileira e vivem numa realidade periférica.

Sobre a obra:

O livro Zumbi assombra quem? retrata uma família afro-brasileira que ajuda o
menino Candê a conhecer sua história, seu passado e seus ancestrais, a se construir

1161
como sujeito e como lidar com as pessoas no seu cotidiano escolar. A família narra
acontecimentos que envolvem Zumbi e o Quilombo dos Palmares, como nos explica
Seligmann (2003) pouco a pouco, por meio de detalhes, revela-se muitas experiências
vividas pelos negros.
E através dessa releitura é possível fazer uma reescrita da História salvando-a
do esquecimento. A ancestralidade é um fator importante dentro dessa narrativa, para
explicar muitas questões e para se discutir outras ligadas à ponte: passado-presente-
futuro. Abordaremos temas recorrentes como: memória, identidade, negritude,
alteridade, escravidão, resistência, violência e cultura.
A família ajuda o menino a se construir como sujeito honrado, a lidar com as
pessoas e com as dificuldades de seu cotidiano, ao mesmo tempo em que o ajudam a
conhecer a sua história e a de seus ancestrais. Ao longo da narrativa, somos levados a
perceber a necessidade desta revisão histórica, aliada à construção de uma literatura
crítica, voltada para os temas dos grupos minoritários que ficaram à margem da
sociedade.
Portanto, devemos trazer à tona textos como esse que contam as atrocidades
cometidas na escravidão, à invisibilidade que esses grupos de pessoas foram deixados e
também mostrar o quanto lutaram contra a opressão e buscaram ter direito a vida,
resgatar suas memórias e os valores de sua cultura. As questões como a negritude são
trabalhadas no decorrer do enredo, pois os conflitos que o garoto vive diariamente são
discutidas e resignificadas através do auxílio familiar. Como destaca Bosi (2002) tem
por finalidade preservar as crenças e os valores de um grupo.
No decorrer da narrativa a avó dona Cota Irene, sua mãe e o tio Pabrin trazem
para o conhecimento de Candê, o seu passado apontando para uma conscientização da
sua negritude, do porquê de se orgulhar da sua raça, da sua cor, do seu cabelo e da
riqueza cultural da sua família, pois de acordo com Kabengele Munanga (2012) todos
que são herdeiros dos povos africanos os quais foram submetidos à escravidão devem se
engajar na luta, para defender os direitos nos negros como cidadãos. Só assim, esses
conceitos já estabelecidos pela cultura dominante, serão destruídos. O fragmento a
seguir é um exemplo do tio Pabrin ensinando sobre a cultura: “ Pabrin ensinou que no

1162
centro do quilombo sempre se punha a lenha pro fogo não se acabar, com a fumaça
escrevendo os seus cheiros no ar.” (ROSA, 2017, p.19)

Existe sempre uma coesão entre o passado e o presente que interliga Candê aos
seus antepassados mostrando a importância de seus ancestrais. Nessa luta diária da
família, para que o garoto possa conquistar um espaço entre os amigos e ser
reconhecido como uma pessoa de valor, o menino cresce. O tecido textual é riquíssimo,
pois agrega conhecimento, permite debates, sugere mudanças que podem ser feitas, para
uma melhor interação entre as pessoas, afirmando a riqueza de se trabalhar a
diversidade.
Os relatos do tio Pabrin perpassam pela História mostrando a importância da
ancestralidade. Como elenca Seligmann (2003) pela rememoração do extermínio de
muitos, pelos traumas e pelas dores, mas também é movido por fé, esperança de
liberdade e amor. Nesse processo de ressignificação e reconstrução da história afro-
brasileira, a narrativa também apresenta em suas tramas uma questão recorrente sobre o
significado do nome Zumbi e o porquê das analogias pejorativas atribuídas a ele. Como
exemplifica o trecho:

(...) o que é Zumbi mesmo então, sô? Dizem até que vem dos infernos
debaixo da terra.
-Chamam esses de Zumbi porque decretaram que a língua, o cabelo e a
respiração negra era assim, corpo de maldade. E maldade seria domínio pra
baixo da terra (...)
- Por que tanto chamam Zumbi de demônio, então, tio?
- Por que ele era a dor de cabeça dos que tinham chicote na ponta da cruz da
caneta, sabem que dizem que ele aprendeu a ler com um padre,pra balançar a
palavra deitada no papel e inflar a letra com estratégias? (...) dizem que ele lia
sonhos também...lia os passos, lia o que arfava subindo e descendo no peito
das pessoas e o que vibrava na garganta.(ROSA, 2017, p.34-35).

Quando relemos a história do período escravocrata percebemos que há muitas


passagens marcadas, pela violência e pela dor. Como aponta Fanon, (2005) para o
colonizador o colonizado é a encarnação do mal, essa é uma das inúmeras justificativas
para tanta violência no período colonial. Muitas cenas de opressão, crueldade e a
humilhação eram impostas aos negros que viveram esse período. Candê enquanto ouve

1163
as histórias dos mais velhos é convidado a projetar o seu futuro num engajamento de
luta contra a exclusão, não só a do negro, mas também das demais minorias. E questões
simbólicas são trazidas para reafirmar a importância de se conhecer as diversas culturas
que foram apagadas no decorrer da História.
A narrativa mostra que a resistência foi e ainda é a arma utilizada pelo povo afro-
brasileiro. Contar a própria história é se posicionar diante da sociedade, é conquistar o
seu lugar de fala, seu território e mantê-lo, a fim de que não só o passado seja recontado
em outras versões, mas que os negros sejam reconhecidos por seus protagonismos. A
escola reproduz o pensamento social preconceituoso e afirma que o que acreditam seja
verdadeiro. Candê quando contrastava o que aprendia na escola com o que era ensinado
pela família, foi desconstruindo fatos e resinificando o que era negativo como positivo
para sua identidade. O garoto sempre passava por situações difíceis na escola, como por
exemplo:

- Você não! – os pequeninos Germano e Nívea com a língua arranharam sem dó- sai
daqui, Candê sujo, cabelo de Zumbi! O motivo do esculacho era crespo e tinha
cheiro de mel e de babosa do quintal. (...) Sua natureza era de crescença para cima,
no rumo das estrelas e da lua. (ROSA, 2017,p.12-13)

Conclusão:

Percebemos que os conflitos que acontecem ao longo da história são estratégias


do autor para trazer à tona acultura, a religião, os costumes e a ancestralidade africana.
Notamos que o garoto é confrontado pelos colegas em relação aos seus costumes: como
a sua maneira de usar o cabelo. Em razão de não compreendem certas diferenças, o
excluem das brincadeiras. Concluímos também que debates sobre o Racismo e Bullying
são suscitados no decorrer da história a fim de provocar reflexões nos leitores. Como
observa Glissant (2014) as pessoas devem mudar, permutar, estar em harmonia com as
diferentes etnias, pois são hibridas: nascem na mistura e vivem na mistura. A mudança é
algo permanente. Essa é a contramão da história convertida em atitudes revolucionárias
e artísticas, essa exposição feita no campo estético através de várias linguagens, através
da crítica que está empenhada em combater a presença do colonizador na cultura.

1164
Concluímos que os autores que trabalham com a literatura de periferia, traduzem a
realidade e o sentimento criando uma nova linguagem, potente e transformadora. É um
momento de questionamento universal contra a dominação cultural. A Literatura
Marginal ou periférica, assim como para as demais Artes: todas essas manifestações
intelectuais devem ser pensadas dentro da metafísica e devem ser reveladas a todos os
homens: aos grandes líderes, aos poetas e aos homens comuns.
Como podemos observar a obra em análise mostra a importância de uma nova
forma de olhar, para esse sujeito negro que está sempre à margem. O autor almeja a
construção de uma nova identidade a partir do estudo da cultura de da ancestralidade.
Podemos dizer que ele faz muito mais do que reivindicar, ele resiste ao logo dessa
história e busca apropriação de um espaço que não privilegie apenas uma parte da
sociedade.

Referências:

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https://pt.wikipedia.org/wiki/Allan_da_Rosa. Acesso em: 06 fev. 2019.

_______. In Geledes. Disponível em: https://www.geledes.org.br/tag/allan-da-rosa/


Acesso em: 06 fev. 2019.

_______. In: Global Editora. Disponível em:


https://globaleditora.com.br/autores/biografia/?id=1988. Acesso em: 06 fev. 2019.

BHABHA, Homi K. O local as cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1988.

BERND, Zilá. Introdução à literatura negra. São Paulo: Brasiliense, 1988.

BOSI, Alfredo. Literatura e Resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

CHARTIER, R. Cultura Escrita, Literatura e História. Porto Alegre: Artmed, 2001.

EDSON IKÊ. In: Geledes. Disponível em: https://www.geledes.org.br/edson-ike/.


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FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução Renato da Silveira.


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1165
. Os condenados da terra. Tradução Enilce do Carmo Albergaria da Rocha e
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GLISSANT, Édouard. O pensamento de tremor. La cohée du lamentim. Tradução


Enilce do Carmo Albergaria da Rocha e Lucy Magalhães. Juiz de Fora: Gallimard,
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. Introdução a uma poética da diversidade. Tradução Enilce do Carmo


Albergaria da Rocha. Juiz de Fora: UFJF, 2005.

LINDEN, Sophie Van Der. Para ler o livro ilustrado. São Paulo: Cosac Naif, 2011.

MUNANGA, Kabengele (org.) Negritude usos e sentidos. 3.ed.Belo


Horizonte:Autêntica Autêntica Editora, 2012 (Coleção Cultura negra e Identidades.)

.História cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro:


DIFEL/Bertrand Brasil, 1988.

NASCIMENTO, Érica Peçanha do. Literatura marginal: os escritores da periferia


entram em cena. 2006, 211f. (Dissertação de Mestrado em Antropologia Social).
Universidade de São Paulo- faculdade de Filosofia, letras, e ciências humanas,
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POLLACK, Michael. Memória e identidade social. Estudos históricos. Rio de Janeiro,


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http://www.pgedf.ufpr.br/downloads/Artigos%20PS%20Mest%202014/Andre%20Cap
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VENTURA, Tereza. A poética polytica de Glauber Rocha. Rio de Janeiro: Funarte,
2000.

1166
JADIS, A FEITICEIRA DE NÁRNIA, DE C. S LEWIS E A RAINHA DE
NEVE, DE H C ANDERSEN: REFIGURAÇÕES E SEXUALIDADE

Lígia R M C Menna (UNIP/USP)1

Resumo: O conto “A Rainha da Neve”, de Hans Christian Andersen, em sua tessitura complexa,
constitui-se em uma narrativa de formação, um rito de passagem da infância para a vida adulta,
em uma analogia para os primeiros contatos com a sexualidade. C. S Lewis refigura a rainha
andersiana em Jadis, a feiticeira branca, como a própria materialização do mal. Teríamos nessa
releitura um apagamento da sexualidade vislumbrada no conto andersiano? Este artigo objetiva
refletir sobre essa questão em um estudo comparado entre essas personagens e narrativas. Como
aporte teórico, utilizaremos Carlos Reis e Jean-Jacques Wunenburger sobre conceitos como de
refiguração das personagens e imaginário, respectivamente.
Palavras-chave: Refiguração; Rainha da Neve; Feiticeira de Nárnia; Sexualidade; Imaginário.

Introdução

Ao longo de nossas pesquisas de pós-doutorado, confirmamos o variado leque de


releituras e adaptações do conto “A Rainha da Neve” (Snedronningen, The Snow Queen),
de 1844, de Hans Christian Andersen, tanto literárias quanto cinematográficas ou
televisivas; assim como as múltiplas e por vezes contrastantes refigurações da sua
personagem homônima, uma rainha de poder congelante, conhecida por seu mistério,
magia, beleza e sedução.
Em citações diretas ou meras analogias, a Rainha da Neve adquire sobrevidas em
figuras como, por exemplo, a rainha da animação O Reino Gelado (Snezhnaya korolev,
Wizart animation, Rússia, 2012); a rainha Elsa, de Frozen: uma aventura congelante
(Frozen, Disney, EUA, 2013); e a também Elsa e sua tia Ingrid, a Rainha da Neve, ambas
da série Once Upon A time, 2014; já analisadas em outros artigos. Na literatura, uma das

1
Doutora em Letras na área de Estudos Comparados de Literaturas em Língua Portuguesa (FFLCH-USP).
Professora titular da UNIP- Universidade Paulista, membro dos Grupos de Pesquisa/CNPQ: Produções
Literárias e Culturais para Crianças e Jovens (FFLCH-USP) e Encontros Interculturais na EAD: Narrativas
de vida dos diferentes brasis (UNIP INTERATIVA)

1167
personagens mais evidentes é Jadis, A Feiticeira Branca, autointitulada “A rainha de
Nárnia”, presente nos dois primeiros livros de As Crônicas de Nárnia, de C. S. Lewis:
O sobrinho do mago e O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa.
Como podemos observar, a personagem Rainha da Neve permanecido viva no
imaginário de muitos escritores, desenhistas, roteiristas, diretores, e seus públicos, em
diferentes contextos de produção. Tomemos como base, dentre as várias acepções do
imaginário, o que Wunenburger propõe:

[...]imaginário (é) um conjunto de produções, mentais ou materializadas em


obras, com base em imagens visuais (quadro, desenho, fotografia) e
linguísticas (metáfora, símbolo, relato), formando conjuntos coerentes e
dinâmicos, referentes a uma função simbólica no sentido de um ajuste de
sentidos próprios e figurados. (WUNENBURGER,2007, p. 11)

A partir do exposto, julgamos importante observar que a simbologia depreendida


dessa misteriosa personagem antecede à produção andersiana, já que se sustenta sobre a
mitologia grega e nórdica, em divindades como Perséfone, Skadi, Freya e Hela,
remetendo, dentro do imaginário popular, à sexualidade, ao feminino e à própria
representação da morte2.
Quando nos referimos à figuração e refiguração da personagem, é preciso
enfatizar que esses termos são polissêmicos, assim como próprio termo “figura”. Para
nossas análises, vamos considerar que figura é, segundo Carlos Reis:

[...] toda entidade ficcional ou ficcionalizada que desempenha funções na


composição e na comunicação instaurada pelo relato ou que vive
acontecimentos nele narrados. A manifestação mais evidente da entidade
designada como figura é a personagem[...] ( REIS, 2018, p. 163)

Assim, mesmo havendo a possibilidade de o narrador ser uma figura, focaremos


este estudo na personagem, mais especificamente em a Rainha da Neve, figurada, ou
mesmo refigurada por Andersen e refigurada por C.S Lewis em outro contexto:

2
Esse tema foi abordado no artigo “O mito de Perséfone, A Rainha da Neve, de Hans Christian Andersen
e a animação Frozen: uma aventura congelante: A morte revestida de beleza”. Anais Congresso Abralic,
2018.

1168
A figuração designa um processo ou um conjunto de processos discursivos e
metaficcionais que individualizam figuras antromórficas localizadas em
universos diegéticos específicos, com cujos integrantes aquelas figuras
interagem enquanto personagens. (REIS, 2018, p. 164)

Vale acrescentar que a figuração, segundo Reis, é um processo dinâmico, gradual


e complexo; não se esgota em um lugar específico do texto, pois vai sendo construída ao
longo da narrativa, além do que, não se restringe à descrição e não pode ser confundida
simplesmente com a caracterização da personagem.
Da noção de figuração decorre o conceito de refiguração, o qual se reporta ao...

[...] processo de reelaboração narrativa de uma figura ficcional (normalmente


uma personagem), no mesmo ou em diferentes suportes e linguagens.
Pressupõe-se, deste modo, que as figuras ficcionais não são entidades
restringidas e estaticamente fixadas na figuração a que uma certa narrativa as
submeteu. (REIS, 2018, p. 161)

Como já dito, devido a essas refigurações, as personagens podem adquirir


sobrevidas, como ocorre com a Rainha da Neve. Para essa percepção, é preciso
reconhecê-la. Vejamos a primeira vez que a personagem surge para o jovem Kay:

Esse floco foi ficando cada vez maior, até que se transformou numa mulher
vestida com o mais fino algodão branco e parecia ser feita de milhões de
flocos em forma de estrela. Ela era bela e graciosa, mas era de gelo, de gelo
brilhante e cintilante. Mas mesmo sendo de gelo, estava viva, e os seus olhos
brilhavam como estrelas, mas neles não se via serenidade e nem paz. Depois
acenou com a cabeça e com a mão para a janela. (ANDERSEN, 2017, p. 108.
Grifos nossos)

A partir de tal caracterização, por sua beleza, sua brancura e seu ar gélido, é
possível a vislumbramos em Jadis, a Feiticeira Branca, de As crônicas de Nárnia, de C.
S. Lewis, como destacamos a seguir:

Estava também envolta em peles brancas até o pescoço, e trazia, na mão


direita, uma longa varinha dourada, e uma coroa de outro na cabeça. Seu rosto
era branco (não apenas claro), branco como a neve, como o papel, como o
açúcar. A boca se destacava, vermelhíssima. Era, apesar de tudo, um belo
rosto, mas orgulhoso, frio, duro[...] (LEWIS, 2009, p. 115)

1169
Além disso, a personagem de C. S. Lewis adquire “ vida” em sua caracterização
fílmica com a marcante atuação da atriz Tilda Swinton (Fig. 2) no filme Crônicas de
Nárnia: O Leão, a Feiticeira e o guarda-roupa (Disney, 2005).
Além das refigurações em filmes e animações, tanto a Rainha da Neve quanto
Jadis são apresentadas por meio de diferentes ilustrações em livros. Para este estudo
comparado, nós nos ateremos à narrativa escrita, embora as ilustrações, desenhos e
caracterizações em filmes não escapem ao nosso olhar e reflexões.
Por exemplo, se compararmos umas das ilustrações do conto (Fig. 1) com uma
das cenas do filme (Fig. 2), quando a Rainha encontra Kay e Jadis, Edmundo,
respectivamente, a intertextualidade torna-se mais perceptível.

Figura 1 The Snow Queen, by Elena Ringo, 19983

3
Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:The_Snow_Queen_by_Elena_Ringo.jpg. Acesso
em 10 Junho de 2019.

1170
Figura 2 Jadis, Feiticeira Branca (Tilda Swinton).
Crônicas de Nárnia: O Leão, a Feiticeira e o guarda-roupa: Disney, 2005.4

Para nossas análises, vale lembrarmos que o conto “A Rainha da Neve”, de


intrincada tessitura, carrega fortes influências do maravilhoso pagão e do espiritualismo
cristão, sem contar com características evidentes do Romantismo alemão, passando pela
idealização da mulher e da infância. Vários aspectos da trama como o fato de Kay ser
seduzido e enfeitiçado pela Rainha e seus gélidos beijos, de Gerda partir em busca do
amigo para resgatá-lo com suas mornas lágrimas, e do amadurecimento das personagens
nos levam a considerar essa narrativa uma analogia aos primeiros contatos com a
sexualidade em um rito de passagem da infância para a vida adulta.
Já no século XX, envolta na simbologia cristã, C. S Lewis também apresenta em
Crônicas de Nárnia uma narrativa de formação, na qual as personagens amadurecem e se
transformam. Jadis, a feiticeira branca, apesar de se assemelhar à Rainha da Neve quanto
à brancura, à beleza e ao poder congelante, é figurada como a materialização do próprio
mal, em oposição ao divino, bom e justo Aslan. Teríamos nessa releitura um apagamento
da sexualidade vislumbrada no conto andersiano?
Jennifer Miller, em seu artigo “No Sex in Narnia? How Hans Christian Andersen's
"Snow Queen" Problematizes C.S. Lewis's The Chronicles of Narnia , afirma que a
ausência de sexualidade e do amor romântico em As Crônicas de Nárnia foi uma opção

4
Disponível em https://www.alamy.com/stock-photo/chronicles-of-narnia-tilda-swinton.html.
Acesso em 10 Junho de 2019.

1171
consciente de Lewis que , em seu artigo “On Science Ficcion”( LEWIS, 19825 apud
MILLER, 2009), chegou a manifestar fobia e muito desconforto com histórias que
insinuam ou relatam um caso amoroso ( love affair) entre crianças. Inclusive, em carta
a James Higgins afirma que “escrever para jovens certamente modificou meu jeito de
escrever, o que exclui o amor erótico” (MILLER, 2009, p 115. Tradução nossa).
Contudo, a autora considera que, apesar dos esforços de Lewis em compor um
mundo inocente, uma terra criada por crianças e para crianças, sem espaço para
sexualidade ou prazer (a não ser o prazer pelo divino), o fato de referenciar a rainha
andersiana, ou mesmo seres mitológicos como o sátiro, na figuração do fauno Tumnus,
estimula o imaginário dos leitores que conhecem essas referências, levando-os a
vislumbrar índices de desejo sexual, sedução e sexualidade também na obra de Lewis.
Para ela, o filme de 2005 só vem reforçar essa visão, principalmente pela escolha dos
atores: a charmosa Tilda Swinton, como Jadis, já mencionada, e o jovem ator James
MacVoy, como Tumnus.
Refletiremos a seguir sobre os índices de sexualidade, presentes ou não, nessas
narrativas, em um estudo comparado entre a rainha andersiana e a rainha de C S Lewis,
considerando seus pontos de aproximação e distanciamentos. Vale lembrar que estamos
tratando da obra literária, e não do filme.

Os beijos da Rainha da Neve

O conto “A Rainha da Neve” é um dos mais longos de Andersen, que o dividiu


em sete partes devidamente intituladas, as quais correspondem a uma sucessão de
aventuras da protagonista Gerda em meio a uma diversidade de personagens e locais. A
saber: “Primeira história: que trata do espelho e dos cacos”, “Segunda história: um
rapazinho e uma menina”; “Terceira história: O jardim da mulher que sabia fazer
feitiços”; “Quarta história: Príncipe e Princesa”; “Quinta história: A pequena salteadora”;

5LEWIS, C. S "On Science Fiction." On Stories, and Other Essays on Literature. San Diego: Harvest
Books, 1982. 55-68.

1172
“Sexta história: A mulher da Lapônia e a mulher da Finlândia” e “Sétima história: O que
aconteceu no palácio da Rainha da Neve e o que se passou depois. ”
No início, o narrador faz um preâmbulo contando-nos a história de um duende
mau, o próprio diabo, “ da espécie mais malvada”, que inventou um espelho mágico para
depois quebrá-lo em mil fragmentos, sendo que alguns desses iriam atingir o jovem Kay
em seus olhos e coração, somente na segunda história:

Um dia, o Diabo estava de muito bom humor porque tinha acabado de fazer
um espelho com um poder muito peculiar: tudo de bom e belo que se refletia
nele parecia reduzir-se a quase nada, enquanto tudo que não tinha valor e era
feio tornava-se mais proeminente e feio do que nunca. (ANDERSEN, 2017, p.
104)

A Rainha não é mencionada nesse capítulo e, ao longo da narrativa, não se


explicita qual seria a relação dela com o espelho ou com o Duende. Ela aparece somente
na segunda e sétima história, com poucas falas e pouca ação. Ela é figurada lenta e
metaforicamente, inicialmente vislumbrada, nem mesmo denominada. Tanto o menino
Kay, como os leitores, conhecem a Rainha aos poucos.
Na segunda história, o narrador nos apresenta Gerda e seu vizinho Kay, sua
amizade, sua vida cotidiana. Em seguida, ao observar a neve por uma janela, ouvem da
avó que os flocos de neve se assemelhavam a abelhas brancas. O menino pergunta se
essas abelhas também tinham uma rainha, ao que a avó responde que sim: “Em muitas
noites de inverno, ela voa pelas ruas e espreita pelas janelas. Depois elas gelam de
maneira estranha, como se estivessem cobertas de flores” (ANDERSEN, 2017, p. 107).
Gerda se assusta e pergunta se a Rainha da Neve poderia entrar na casa, ao que o jovem
Kay responde: “Bem, ela que entre- gritou o menino- Eu a colocava no fogão quente e a
derretia” (ANDERSEN, 2017,p. 108).
Após essa cena, provavelmente como uma resposta a Kay ou um prenúncio da
morte, a Rainha aparece, mas ainda não é denominada:

Ela era bela e graciosa, mas era de gelo, de gelo brilhante e cintilante. Mas
mesmo sendo de gelo, estava viva, e os seus olhos brilhavam como estrelas,
mas neles não se via serenidade e nem paz. Depois acenou com a cabeça e com
a mão para a janela. (ANDERSEN, 2017, p. 108.)

1173
Observamos que há no conto uma forte relação entre a chegada da Rainha da Neve
e seu inverno com a própria morte. Nesse sentido, ao recorrermos à mitologia nórdica,
constatamos que a morte relaciona-se a uma terra congelada, denominada de “Niflheim”,
a qual existia antes do universo conhecido ser criado. Em seu centro, havia uma fonte
gelada, “Hvergelmir”, mãe de vários rios. Tornou-se o reino de Hel,( Hela) deusa dos
mortos: “Helheim”. (BULFINCH,2013,587). Note-se que em língua inglesa “Hell”
designa o inferno. Assim, a ideia de que o inferno seria um lugar quente advém de uma
concepção cristã posterior. Ou seja, o surgimento da Rainha da Neve e seu poder invernal
como símbolos da chegada da morte tornam-se mais evidentes.
Podemos considerar que essa relação da Rainha da Neve com a morte já fazia
parte do imaginário de Andersen, conforme podemos constatar no excerto em que narra
a noite da morte de seu pai, em seu livro The true story of my life:

Meu pai morreu no terceiro dia depois disso. Seu cadáver estava deitado na
cama: eu dormi com minha mãe. Um grilo cantou a noite inteira. "Ele está
morto", disse minha mãe, dirigindo-se a ele; "tu não precisas chama-lo. A
donzela de gelo o buscou ". Eu entendi o que ela quis dizer. Lembrei-me de
que, no inverno anterior, quando nossas janelas estavam congeladas, meu pai
apontou para elas e nos mostrou uma figura como a de uma moça de braços
estendidos. "Ela veio me buscar", disse ele, em tom de brincadeira. E agora,
quando ele jazia morto na cama, minha mãe lembrou-se disso, o que também
ocupou meus pensamentos. (ANDERSEN, 1847,p. 10. Tradução nossa)

Em 1861, Andersen retornaria ao tema de forma mais explícita, por meio do


pequeno romance A Donzela do Gelo, que narra a história e o destino de Rudy. Segundo
Nelly Novaes Coelho, nesse texto reforça-se

[...] a peculiar visão andersiana da existência humana: a exuberância da vida,


condenada inexoravelmente a ser aniquilada pela morte: a “Donzela do Gelo”,
a senhora poderosa das geleiras, a inevitável morte que aguarda os homens.
(ANDERSEN, 2011, p..567)

Kay também morrerá, mas não literalmente. Ao ser atingido pelos fragmentos do
espelho, torna-se um menino ríspido e insensível, indispõe-se com Gerda e, quando
brincava sozinho com seu trenó, acaba por ser levado pela rainha para seu gélido castelo
onde permanecerá enfeitiçado. Eis o primeiro momento em que a Rainha da Neve é

1174
denominada: “O manto de pelo e o gorro eram feitos de neve, e era uma mulher, alta,
elegante e ofuscadamente branca; ela era a Rainha da Neve em pessoa
(ANDERSEN,2017, p.111)
A Rainha coloca Kay em seu trenó e observamos a primeira vez que o autor lhe
dá voz: Andamos muito rápido! ” Disse ela. “Será possível que esteja tremendo de frio?
Abrigue-se no meu casaco de pele de urso! ” (ANDERSEN, 2017, p. 111).
A fala da personagem transmite zelo, um cuidado quase que maternal para com
o menino que, na verdade, está sendo raptado. Entre as várias publicações que
consultamos, A Rainha da Neve é muito pouco retratada nas ilustrações, cabendo o
protagonismo a Gerda. Consideramos os desenhos de Katharine Beveley e Elizabeth
Ellender, de 1929, em tons branco, vermelho e preto, reproduzidos na publicação da
editora Taschen (2017), bastante significativos.
A ilustração que se refere ao trecho citado (Fig. 3) é representativa, e reforça o
que foi dito no conto, colaborando para a imagem de bondade e carinho da Rainha, ao
aconchegar Kay sob seu casaco de pele de urso. Contudo, a sensação do menino é como
se estivesse afundando em um monte de neve.

Figura 3: Rainha da Neve e Kay

Em seguida, ela pergunta se ele ainda sente frio e o beija na testa:

1175
Brrr! Aquele beijo foi mais frio que o gelo.. Sentiu-o até no coração, metade
do qual já era um pedaço de gelo. Ele sentiu-se como se estivesse morrendo,
mas apenas por um instante. Sentiu-se muito confortável e deixou de sentir frio
(ANDERSEN, 2017, p. 112)

Interessante observar o uso do discurso indireto livre e a onisciência do narrador,


que nos revela os pensamentos e sentimentos conflitantes do jovem Kay, criando empatia
com os leitores, também propensos ao encantamento.
Em seguida, após beijá-lo duas vezes ( Fig. 4) a Rainha fez com que o menino se
esquecesse de sua família e de Gerda, e revelou que não poderia mais beijá-lo, pois
poderia matá-lo com seus beijos:

“ Não vou beijá-lo mais”, disse ela, “porque se o fizer, você morre. Kay olhou
para ela. Era tão bela! Ele não conseguia imaginar um rosto mais inteligente
e belo. Já não parecia feita de gelo como parecera antes, quando lhe acenou
amistosamente à janela. Aos olhos dele, ela era perfeita, e Kay já não tinha
medo nenhum. (ANDERSEN, 2017, p. 112)

Observamos como, aos poucos, Kay não tem mais medo, tudo é natural, e a rainha
se torna cada vez mais bela. Eis que o rapaz se encontra enfeitiçado, impossibilitado de
qualquer ação. Esses trechos denotam, simbolicamente, o medo dos primeiros contatos
sexuais e o prazer em conhecê-los, ou simplesmente vislumbrá-los. Mas Kay precisa ser
resgatado por Gerda, já que está sendo iludido, comprometido pelo feitiço do espelho e
pelos beijos da Rainha. Vale ressaltar que A Rainha, mesmo não sendo um ser humano,
é um adulto, e Kay ainda é uma criança, o que torna a situação instigante. Como validar
essa relação entre um menino e uma mulher adulta? E essa mulher representasse a figura
da própria mãe ? Instigante e polêmica relação destinada a futuras reflexões.

1176
Figura 4: O beijo da Rainha da Neve

A Rainha da Neve e Kay voltarão a aparecer somente na última e sétima história.


Nesse longo espaço narrativo, o que se destaca são as aventuras e desventuras de Gerda
a procura do amigo.
Ao final, tomamos conhecimento de onde estaria o rapaz. A Rainha da Neve o
havia aprisionado como um morto-vivo em seu castelo, em uma ambiência gélida e
artificial, imprimindo-lhe um desafio: “Se você conseguir formar essa palavra
(Eternidade), será dono do seu próprio destino, e lhe dou o mundo inteiro e um novo par
de patins” (ANDERSEN, 2017, p. 146). Curioso e insólito trecho, que compara um
simples par de patins e a um mundo inteiro. Aqui, nos parece, Kay é tratado como a
criança que realmente é. O desafio é imenso, já que Kay não raciocina, não sabe nem
mesmo seu nome, perde sua identidade. Mesmo ao final, continuamos sem saber porque
a rainha o raptou, somente por que ele a desafiou?
Seguindo o propostos por Joseph Campbell para a jornada do herói, temos nesse
ponto a “iniciação”, tão necessária para seu amadurecimento, após a “separação” ocorrida
no segundo capítulo. ( CAMPBELL, 2004)
Em sua ambiguidade, destruidora e criadora, a Rainha priva Kay de sua liberdade,
mas também é responsável por gelar as montanhas e produzir a aurora boreal com seus
clarões azuis. Como uma deusa, uma entidade da natureza, administra a neve e as gélidas
paisagens, tão necessárias para a harmonia terrestre:

1177
Agora vou voar até os países quentes, quero ir ver os grandes caldeirões
negros”. Ela se referia aos vulcões Etna e Vesúvio. “ Tenho de embranquecê-
los um pouco. Eles precisam, e ficarão tão bem com os limões amarelos e as
uvas púrpuras. (ANDERSEN, 2017,p. 146)

Essa é a última fala e aparição da Rainha da Neve. Quando Gerda chega ao castelo
e salva Kay com suas mornas lágrimas e beijos, a Rainha já havia partido. Não há,
portanto, um conflito final entre as protagonistas. Como um duplo, em um espelho, a
Rainha e Gerda de contrapõem, entre o invernal e o solar, entre o divino e o humano,
entre o sonhado e o vivido, o imaginário e o real, respectivamente.
Observamos ainda que há constantes referências ao Menino Jesus, a anjos e a
solar Gerda, cujas lágrimas e beijos mornos quebram o feitiço da Rainha. O imaginário
cristão aqui se evidencia em contraponto à cultura nórdica e pagã. A ambiência para esses
momentos é o do verão, quando há alegria, os campos estão abertos, as rosas florescem e
as personagens encontram-se em harmonia, já adultos, mas ainda crianças em seu
coração, como no desfecho, em um clássico final feliz, não tão comum a Andersen:

Kay e Gerda se olharam e por fim perceberam o significado do seu antigo


salmo: “ Onde as rosas florescem no vale tão docemente/ Lá encontrarás o
Menino Jesus certamente”. E ali permaneceram sentados, crescidos, mas ainda
crianças, crianças de coração. E era verão, quente e glorioso verão.
(ANDERSEN, 2017,p. 149)

Gerda, em sua jornada heroica, torna-se adulta. Kay é salvo por Gerda e também
se torna adulto. Ambos, após a separação, partem para a iniciação e posterior retorno,
seguindo a jornada do herói. Kay precisava passar por essa experiência com a Rainha,
passar pelo inverno. Gerda transpões outros obstáculos em busca do rapaz, sua jornada é
outra. Continuam amigos, agora crescidos, mas crianças em seu coração. Lembrando que
eram amigos e vizinhos, nada que os impeça de um romance amoroso, o que fica em
aberto.
Ressaltamos que as estações do ano aparecem bem detalhadas e demarcadas no
conto. Todas são importantes e formam um ciclo vital, necessário para o equilíbrio e a
harmonia dos seres e da natureza.
Em uma perspectiva metafórica, o inverno simboliza a morte, enquanto a
primavera ou mesmo o verão simbolizam fertilidade, sexualidade, renovação,

1178
ressurreição e amadurecimento, sendo o conto, portanto, um rito de passagem, no qual
temos representações da morte, das primeiras experiências sexuais ou amorosas, do
embate feminino, o duplo solar que enfrenta seu reflexo espelhado, seu lado gélido e
sombrio. Como uma semente, morre-se para renascer. A redenção pelo amor, tão
cultuada pelos escritores românticos, assume um nível metafísico, constituindo-se na
própria ressurreição de Kay.

Jadis e o manjar turco: a sedução pelo estômago

Jadis, A Feiticeira Branca, das Crônicas de Nárnia, de C. S. Lewis, surge no


primeiro livro, O sobrinho do Mago, precede à criação de Nárnia, e lá estava presente,
como um obstáculo para a paz, um mal eminente que se revelaria em breve,
comprometendo a existência de um bem maior, representado pelo leão Aslan.
Ela era é uma feiticeira de um mundo sombrio e foi desperta por Digory, o
sobrinho do Mago, no caso o tio André, e trazida para o mundo real e cotidiano. Perde
seus poderes e se autoproclama Imperatriz e não perde a oportunidade de se manifestar
cruel. Mesmo assim, encanta o tio André: “Moça valente! Que pena o temperamento
dela! Mas que mulher, que mulher danada” (LEWIS, 2009, p. 63).
No livro “O leão, a feiticeira e o guarda-roupa”, Jadis é chamada de a Feiticeira
Branca, mas se autoproclama a “Rainha de Nárnia” e mantém seus “súditos” imersos em
um feitiço congelante
A redundância descritiva com ênfase na brancura do rosto (“ Seu rosto era branco
(não apenas claro), branco como a neve, como o papel, como o açúcar”) colabora para
construção de uma personagem não-humana, insólita e enigmática. Apesar de tão branco,
frio, orgulhoso, duro, “era um belo rosto”.
Mas Jadis não beija Edmundo, ela lhe dá uma bebida quente e o enfeitiça com o
manjar turco, o seduz pelo estomago e incita-lhe a gula e a traição. Seus objetivos são
bem claros, ela quer destruir os filhos de Adão e Eva que, segundo profecia, seriam os
futuros reis de Nárnia. Finge-se de gentil para alcançar seus sórdidos desejos de poder.
Como a serpente bíblica, provoca o menino pelo desejo. Ele não comerá uma
maçã, mas um manjar turco ( goma árabe), em uma fome insaciável. Simbolicamente,

1179
temos mais uma vez a atração de um menino por uma mulher mais velha, que o seduz
pelo estomago, como uma analogia materna, a mãe que alimenta. Não temos aqui a maçã,
símbolo de fertilidade, de amor ou mesmo de conhecimento espiritual, na tradição celta,
mas um doce viciante.
Contudo, posteriormente, quando Edmundo chega ao castelo da feiticeira sem
seus irmãos, a crueldade da feiticeira se revela:
_ Aqui estou, Majestade- disse Edmundo, avançando, aflito.
- Como se atreve a vir sozinho-perguntou a feiticeira em tom de ameaça - Não
dei ordem para que trouxesse seus irmãos?
- Perdão, Majestade. Fiz o que pude. Eles estão aqui perto(....) Um sorriso cruel
desenhou-se lentamente no rosto da feiticeira. (LEWIS,2009 , p. 146)

Vale dizer que a rainha andersiana não é descrita como má, é gentil com Kay,
apesar de mantê-lo no cativeiro. É uma representação da morte revestida de beleza e a ela
não são atribuídas marcas negativas, ao contrário do que ocorre com a personagem de
Lewis. Lúcia, após encontrar o sr. Tumnus, relata o que sabe sobre a Feiticeira Branca:

[...]_ Uma pessoa horrorosa. Diz que é a rainha de Nárnia, embora não tenha
o direito de ser rainha. É odiada por todos os faunos e dríades (...). É capaz de
transformar as pessoas em pedra e de fazer mil coisas horríveis. É por causa
de um encantamento dela que é sempre inverno em Nárnia, sempre inverno,
mas o Natal nunca chega. Ela anda num trenó puxado por duas renas, tem uma
varinha na mão e uma coroa na cabeça. (LEWIS, 2009, p. 119. Grifos nossos)

Jadis mantém o reino em um inverno constante, triste e sem Natal, e transforma


seus inimigos em pedra como uma forma de demonstrar sua crueldade e se manter no
poder, adquirindo autoridade pelo medo. Para a Rainha da Neve, o controle do inverno
faz parte de sua natureza divina. Os vulcões precisam ser congelados, o ciclo do natural,
de inverno a inverno, precisa ser mantido para o equilíbrio vital da Terra.
Como vemos, mulheres adultas enfeitiçam meninos, com objetivos distintos.
Uma seduz por seus beijos, outra pelo estomago. Sua feminilidade, e eventual
maternidade, são elucidadas. Contudo, Jadis representa o próprio Mal, uma ameaça a
Aslan e à harmonia de Nárnia e é destruída. Já Rainha da Neve simplesmente desaparece,
ruma para outros lugares onde o inverno se faz necessário, dando continuidade ao ciclo
da vida.

1180
Vale aqui recorrermos à mitologia grega. Segundo Fraser (1982), houve uma
disputa entre as deusas Perséfone6 e Afrodite, adultas, pelo belo Adônis, ainda criança, o
que remete, a nosso ver, nas devidas proporções, às relações entre a Rainha da Neve e
Kay, entre Jadis e Edmundo:

Em sua infância (de Adônis), a deusa (Afrodite) o ocultou numa arca, que
confiou a Perséfone, rainha dos infernos. Mas, quando Perséfone abriu a arca
e viu a beleza da criança, recusou-se a devolvê-la a Afrodite, embora a deusa
do amor tivesse ido, ela própria, ao inferno para resgatar seu amado do poder
do túmulo. (FRASER, 1982 p. 308)

Kay e Edmundo passaram por uma experiência similar, contudo, vale lembrar que
Kai foi esqueceu-se de si, de Gerda e de sua família. Já Edmundo foi induzido a trair seus
irmãos em troca de um doce viciante, revelando seu lado obscuro.
Segundo Miller (2009), o desejo de Kay pela Rainha da Neve confunde-se ora com
o desejo por uma mulher mais velha, ora com o desejo pela figura materna, conforme
apontamos anteriormente , algo edipiano, por assim dizer. Para tal afirmação, a autora
referencia Jorgen Johansen: "a prisão de Kay no castelo da Rainha da Neve ocorre
quando ele, ainda menino, está prestes a se tornar um jovem adulto e adora uma mulher
altamente ambígua que ele vê como metade mãe e metade amada" (JOHANSEN, 20027
apud MILLER, 2009,p. 122. Tradução nossa). Tais desejos desafiam o ideal tradicional
do amor romântico, o qual só poderia ser concretizado na relação entre Kay e Gerda.
Lewis, por outro lado, procura eliminar qualquer possibilidade de amor romântico
quando nos apresenta Edmund e Lúcia, personagem semelhante à Gerda em suas ações
heroicas, como irmãos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

6
Perséfone era filha de Deméter, deusa da agricultura e da terra cultivada, com o poderoso Zeus. Ela era
uma bela jovem, virgem e despreocupada, conhecida também pelo nome Core, a donzela. É raptada por
Hades e passa a viver no mundo dos mortos. Volta ao Olimpo na primavera. Representa dois arquétipos
femininos, o da jovem virgem e o da rainha do mundo dos mortos, do submundo.
7 Johansen, Jorgen Dines. "Counteracting the Fall: 'Sneedronningen' and 'Iisjomfruen': The Problem of
Adult Sexuality in Fairytale and Story." Scandinavian Studies 74.2 (Summer 2002): 140.

1181
Pudemos constatar que a Rainha andersiana, mesmo quando vista como um
prenúncio da morte, não representa “ o mal”, mas sim uma etapa do ciclo vital, necessária
para o amadurecimento e a harmonia do universo. Ela é um ser etéreo que controla a
natureza, inspirada em deusas mitológicas, como Perséfone e Skadi, ou mesmo Hela, a
deusa dos mortos na terra gelada de Niflheim. Ela é a deusa que pode representar a mulher
mais velha . a amada, a própria mãe. Sua figura nos remente não somente à morte es eu
prenúncio, mas à fertilidade e a sexualidade.
Já Jadis, a Feiticeira Branca, é a sua refiguração mais maléfica. Composta a partir
do ideário cristão, a Rainha de Nárnia representa o próprio Mal, liberto pela curiosidade
dos homens. Como a serpente no episódio de Adão e Eva, representa o demônio sedutor.
Em seu reinado há o inverno eterno, sem Natal, sem cristandade. Para se manter no poder,
precisa destruir não somente os homens, mas o próprio Aslan, o Bem maior,
simbolicamente Jesus Cristo.
Observamos a intenção de Lewis para apagar os índices de sexualidade
observados no conto A Rainha da Neve, esses , inclusive, com raízes mitológicas e
pagãs.. Contudo, ao utilizar personagens que dialogam com o conto e com essa mitologia
acaba por revelar o que queria manter oculto, a sexualidade e os desejos interditos.
Ao finalizarmos este texto, ratificamos a ideia inicial de que a misteriosa rainha
de cabelos platinados, construída a partir de imagens linguísticas e uma intrincada rede
mitológica, adquire sobrevidas e passa a ser refigurada em diferentes contextos e
linguagens, permanecendo ainda viva no imaginário de autores, roteiristas ilustradores e
público em geral.
Em comum, essas sobrevidas possuem beleza e mistério, mas diferem em sua
vilania, atitudes maléficas e objetivos obscuros. Entre o divino e o humano, apresentam-
se muitas vezes como seres ambivalentes. Ora como seres amaldiçoados, ora como a pura
representação do mal, mas femininas em sua essência.

1182
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WUNENBURGER, Jean-Jacques. O Imaginário. São Paulo: Edições Loyola,2007.

1183
FONTE DAS FIGURAS

Figura 1- A Rainha da Neve, Ilustração de Elena Ringo. Disponível em


https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:The_Snow_Queen_by_Elena_Ringo.jpg.
Acessado em 10 junho de 2019

Figura 2- Jadis, Feiticeira Branca (Tilda Swinton). Crônicas de Nárnia: O Leão, a


Feiticeira e o guarda-roupa: Disney, 2005. Disponível em
https://www.alamy.com/stock-photo/chronicles-of-narnia-tilda-swinton.html . Acessado
em 10 junho 2019

Figura 3- A Rainha da Neve e Kay. Ilustração de Katharine Berly e Elizabeth Ellender,


1929. In ANDERSEN, Hans Christian. Os contos de Hans Christian Andersen. Edição
de Noel Daniel. Direção artística. Andy Disl e Noel Daniel. Londres: Taschen.2017, p.
114.
Figura 4- O beijo da Rainha da Neve. Ilustração de Katharine Berly e Elizabeth Ellender,
1929. In ANDERSEN, Hans Christian. Os contos de Hans Christian Andersen. Edição
de Noel Daniel. Direção artística. Andy Disl e Noel Daniel. Londres: Taschen.2017, p.
113.

1184
LEITURA DE BEST-SELLERS: DESAFIOS À ESCOLA NA FORMAÇÃO
DO LEITOR

Luzimar Silva de Lima (UESPI) 1

Resumo: Este trabalho apresenta resultados de uma pesquisa sobre a leitura de best-sellers da
cultura de massa realizada em três turmas de 9º ano do ensino fundamental de três escolas públicas
municipais de Buriti dos Lopes – PI, com o objetivo de compreender a relação leitor/texto na
atividade de ler best-sellers. Empreendeu-se uma pesquisa de campo, com abordagem quanti-
qualitativa, sendo os dados coletados com um questionário e uma sessão de entrevista. O suporte
teórico provém de autores como Jauss (1994), Iser (1999), Compagnon (1996), Todorov (2009),
Cosson (2015. A pesquisa revelou a intensa presença dos best-sellers da cultura de massa nas
atividades de leitura dos alunos.

Palavras-chave: Escola. Leitura da literatura. Best-sellers. Cânone literário. Leitor crítico.

Introdução

O trabalho com literatura na escola, considerando as ações do professor e a forma


como as obras literárias são apresentadas, tem frustrado as expectativas de muitos leitores,
porque em grande parte das vezes, há o predomínio do cânone como centralidade do
ensino de literatura. Isso significa afirmar que a aproximação entre os leitores e essas
leituras nem sempre respeita as preferências dos alunos, exercendo um caráter impositivo
que, em muitos casos, rouba da literatura o seu caráter humanizador.
Nesse contexto, percebemos que os alunos têm apresentado um repertório próprio
de leituras para além daquilo que a escola ensina, dentre eles os best-sellers da literatura
da cultura de massa alcançam um percentual crescente entre os jovens leitores e podem
ser aproveitados pela escola como leitura válida, visto que fazem parte do repertório de
leituras preferidas dos estudantes.
A pesquisa foi desenvolvida com três turmas de 9º ano do ensino fundamental de
três escolas públicas municipais da zona urbana de Buriti dos Lopes. Os dados foram
coletados através de uma pesquisa de campo por meio de um questionário e uma
entrevista.
1 LITERATURA, BEST-SELLER E CÂNONE LITERÁRIO

1
Mestranda do Mestrado Profissional em Letras-PROFLETRAS - Universidade Estadual do Piauí.

1185
A literatura recebeu diferentes definições e foi compreendida de diferentes
maneiras através dos tempos e por diferentes autores, não sendo essa uma questão nova,
no entanto precisa apresentar um norte para que se possa distinguir o literário do não
literário.
Os estudos literários falam da literatura das mais diferentes maneiras.
Concordam, entretanto, num ponto: diante de todo estudo literário, qualquer
que seja seu objetivo, a primeira questão a ser colocada, embora pouco teórica,
é a da definição que ele fornece (ou não) de seu objeto: o texto literário. O que
torna esse estudo literário? Ou como ele define as qualidades literárias do texto
literário? Numa palavra, o que é para ele, explicita ou implicitamente, a
literatura? (COMPAGNON, 1999, p. 29)

O texto literário oferece aos leitores uma recepção que permite a observação de
diferentes questões: palavra, estrutura, ficção, realidade, fruição, imaginação,
conhecimento, história, momento, além de outros fatores. Todos esses elementos são
responsáveis por muitos estudos no campo literário e consideram diferentes perspectivas
acerca do texto literário e de suas percepções.
Em busca de estabelecer conceitos e reflexões acerca daquilo que define o literário,
alguns autores entendem a literatura como a arte do escrito, o escrever como ato concreto
da linguagem, ainda como matéria da essência do fazer literário e concretização primeira
dessa arte enquanto ato libertário.

o texto, isto é, o tecido dos significantes que constitui a obra, porque o texto é
o próprio aflorar da língua, e porque é no interior da língua que a língua deve
ser combatida, desviada: não pela mensagem de que ela é o instrumento, mas
pelo jogo das palavras de que ela é o teatro. Posso, portanto dizer,
indiferentemente: literatura, escritura ou texto. (BARTHES, 1977, p. 15).

A afirmação final do autor revela que conceituar literatura é um processo complexo


que envolve uma visão estruturalista de texto por meio da própria linguagem que lhe é
matéria constitutiva e é dela que se sobressaem todos os sentidos que lhes são extraídos
através da leitura.

a literatura amplia o nosso universo, incita-nos a imaginar outras maneiras de


concebê-lo e organizá-lo[...]. Ela nos proporciona sensações insubstituíveis
que fazem o mundo real se tornar mais pleno de sentido e mais belo. Longe de
ser um simples entretenimento, uma distração reservada às pessoas educadas,
ela permite que cada um responda melhor à sua vocação de ser humano.
(TODOROV, 2009, p. 23).

1186
As teorias expostas permitem avaliar a experiência da leitura como algo que
depende das escolhas do leitor, revelando ainda que os gostos e preferências estão
imbricados na relação leitura/leitor/autor/obra. Sobre a compreensão do leitor e a
importância que desempenha na leitura do texto literário, Jauss (1994) destaca a
experiencia estética como elemento indispensável da leitura da literatura, o que nos
permite concluir uma nova dimensão dos aspectos da análise do literário, sobrepondo o
leitor a todos os outros. Iser traça aspectos de interação de maneira a considerar as
minúcias da relação estabelecida entre ambos.

Pois é só na leitura que os textos se tornam efetivos, e isso vale também, como
se sabe, para aqueles cuja "significação" já se tornou tão histórica que já não
tem mais um efeito imediato, ou para aqueles que só nos "tocam" quando, ao
constituirmos o sentido na leitura, experimentamos um mundo que, embora
não exista mais, se deixa ver e, embora nos seja estranho, podemos
compreender. (ISER, 1996, p. 25).

E é sobre esse processo que reflete mais especificamente, ao descrever a assimetria


entre o texto e o leitor. Aquele que lê é o responsável por atribuir significação ao texto
através do preenchimento de espaços vazios que desafiam os leitores, podendo inclusive
frustrá-lo em face de uma não compreensão. O cânone é uma literatura que provoca
desafios em função das obras apresentarem distância estética, distância que irrompe
desafios que permitem atualização do lido quando há um período de distanciamento entre
os leitores e a época de nascimento das obras canônicas.

Best-seller: entre a literatura de massa e o cânone literário

Segundo Lima (2015) o livro denominado best-seller é fruto da cultura de massa,


que começou a se consolidar no século XIX e se tornou um gênero à parte, menosprezado
pela elite e pelas escolas, porém de grande receptividade popular.
Rossato (1994) discorre sobre o que se entende como best-seller referindo-se aos
franceses, ao darem o nome genérico de paraliteratura (paralitératture) para o que nós
convencionamos chamar de literatura da massa, ou seja, best-seller, que vende milhões
de exemplares e enriquece seus autores e editores com textos considerados “dirigíveis” e
“envolventes” próprios para o entretenimento dos leitores ávidos por uma história. O que

1187
não quer dizer que uma obra de literatura culta não possa tornar-se também um best-
seller, ter uma grande receptividade popular.
Nesse contexto, a receptividade e o gosto precisam ser pensados, o perfil do leitor
mudou e as novas preferências são elementos constituintes dessa nova identidade,
constituindo também outras formas de socialidades.

Mas o que leva os jovens optarem pela leitura de best-sellers? O grande


incentivo concorrente é a interação que conseguem assumir com a leitura
desses textos, interação durante a leitura silenciosa e interação nas práticas
cotidianas com os amigos que demonstram nessas conversas verdadeira
adoração por esse tipo de literatura. Com a leitura dos best-sellers, os jovens
leitores encontram o prazer da leitura e a relação de alteridade com seus
incentivadores, representados pelos amigos. (LIMA, 2015, p.193).

Se as preferências existem, ações potencializadoras de aproveitamento delas


precisam ser pensadas pela escola, já que nenhuma leitura, em princípio, é inválida no
processo de formação do leitor, até mesmo porque as vantagens são percebidas pelos
próprios leitores. A recusa a esse tipo de literatura, no âmbito escolar, o mais das vezes,
se deve ao fato de não fazer parte do cânone. Conforme Cosson (2015) o cânone literário,
ou o também denominado clássico ou obra-prima, é um conjunto de autores e obras que
são consideradas representativas para uma determinada nação ou idioma.
A predominância do cânone na escola passou a ser criticada pela existência de
outras leituras e ainda pela rejeição que muitos alunos manifestam pelas obras indicadas
pela escola.

Se ao menos estivessem próximos do gosto dos professores, haveria uma


possibilidade de trabalho literário de formação. Mas poucos professores de
hoje tiveram real acesso aos autores “clássicos” ocidentais e aos valores
eminentemente literários. Poucos admiram as experiências literárias
renovadoras bem sucedidas do século XX, como demonstraram diversas
pesquisas sobre leituras de professores. (PAULINO, 2004, p. 59).

Tais observações advêm de uma pesquisa realizada por Paulino (2004) junto a
professores de Português da rede pública de Belo Horizonte, obtendo dados que
demonstraram serem esses professores, em sua maioria, não leitores literários. Leem
apenas os livros que precisam escolher para seus alunos.
De certo, muitos fatores podem ser ressaltados acerca do não gosto do aluno pelo
cânone, no entanto, não se pretende negá-lo, tão pouco negar a importância dessa

1188
literatura. Diante disso, questiona-se: por que não considerar, na escola, essa literatura
não canonizada, a exemplo da denominada cultura de massa, com seus best-sellers?

2 Metodologia

Para a realização deste trabalho optamos pela pesquisa de campo. Inicialmente,


participaram 65 alunos de três turmas de 9º ano do ensino fundamental de três escolas
públicas municipais da zona urbana da cidade de Buriti dos Lopes-PI, as quais, em
atenção à preservação do anonimato, foram denominadas de E1, E2 e E3. Os participantes
da pesquisa foram identificados como A1, A2, A3 e sucessivamente, conforme o número
de participantes de cada turma.
Quanto à abordagem do objeto investigado, esta pesquisa classifica-se como quanti-
qualitativa, interpretativa e explicativa.
Esse estudo teve como foco investigar mais profundamente os sentimentos e
motivações dos alunos com as obras lidas, de modo a perceber que preferências de leitura
se inserem hoje no contexto escolar e como nele se presentificam, tendo em vista a
interação do educando com as obras de categoria best-seller de cultura de massa.
Dividimos essa análise em quatro categorias:
CATEGORIA 1:Quantidade de títulos lidos pelos alunos das escolas investigadas
CATEGORIA 2: Formas de acesso aos best-sellers
CATEGORIA 3: Motivações para a leitura de best-sellers
CATEGORIA 4: Concepção de literatura pelos participantes da pesquisa

3 resultados e discussão: subjetividades em contexto

A respeito da quantidade de títulos lidos pelos alunos nas escolas investigadas,


observou-se que os alunos têm lido uma quantidade bastante considerável dos livros de
categoria best-seller.
Categoria 1 – Demonstrativo da quantidade de títulos lidos pelos alunos das escolas
investigadas.
Quadro 1 – Quantidade de títulos lidos pelos alunos das escolas investigadas

1189
A Cinqu A Ha Diá Sen To
Esc menina enta tons culpa é rry Potter rio de um hor dos tal de
olas que de das banana anéis títulos
roubav cinza estrela por
a livros s escola
E1 5 4 7 8 4 7 35
E2 1 18 1 15 16 11 96
8 8
E3 1 11 1 12 11 6 67
1 6
Tot 3 33 4 35 31 24 19
al 4 1 8
Fonte: A pesquisa.

Conforme consta no quadro 1, as leituras revelam que os gostos dos alunos variam
em torno de temáticas bem variadas, como o erotismo, em Cinquenta tons de cinza; o
amor romântico, em A culpa é das estrelas; as aventuras, o mistério e a magia, em Harry
Potter; o cotidiano da adolescência, em Diário de um banana, e a saga heroica, presente
em Senhor dos anéis. Isso revela interesses e afinidades por conhecimentos e experiências
que abrangem diferentes campos, propiciados por leituras de gosto que podem ser
percebidas e exploradas pela escola.
Portanto, considerando os títulos, no total, em termos quantitativos, a pesquisa
revelou o seguinte: em E1, 35 livros; E2, 96 livros, E3, 67 livros. Nas escolas pesquisadas,
temos um total de 198 títulos lidos. Levando em conta os títulos não sugeridos no
questionário, mas citados pelos alunos, o número sobe para 228 livros totais lidos.
Apresentando as três escolas de maneira pormenorizada a respeito da revelação dessa
última informação, temos: E1 2 títulos; E2 22 títulos e E3 6 títulos.
Percebe-se uma leitura constante desses livros nas escolas pesquisadas. Os quadros
abaixo, mostram as formas de acesso aos best-sellers da cultura de massa nas três escolas
alvo da pesquisa, constituindo a categoria 2:

Quadro 2 - Formas de acesso aos best-sellers lidos em E1


Alunos Acesso às obras de categoria best-seller
da E1
A4, A5, O acesso aos livros de categoria best-sellers se dá por meio da internet, já
A7, A9, A11 que a biblioteca de suas escolas não dispõe de acervo que compreenda essa categoria
de leitura.
A1 “internet e empréstimo, principalmente da minha mãe. Na biblioteca da
minha escola não tem essas obras.”
A2 “Emprestado de amigos. Não.”

1190
A3 “Internet. Já vi dois livros desses na biblioteca, Diário de um banana e A
culpa é das estrelas.”
A6 “Emprestado de amigos. Na minha biblioteca não tem.”
A8 “Compro, e também na biblioteca, não a dessa escola. Nenhuma dessas
obras.”
Fonte: A pesquisa.

Em E2, temos as seguintes respostas:


Quadro 3 – Formas de acesso aos best-sellers lidos em E2
Alunos Acesso as obras de categoria best-seller
da E2
A5, A6, Indicaram a biblioteca como veículo exclusivo de acesso às obras de
A9, A10, A12 categoria best-sellers.
A1 “Ganhei alguns da minha irmã, alguns achei na biblioteca. Na biblioteca tem
esses livros, inclusive estou lendo um agora que peguei lá.”
A3 “Minha prima apresentou e disse que era muito legal, primeiro ela assistiu
ao filme. O livro é mais detalhado, a gente imagina. Encontrei. Estou lendo um
chamado superação que indiquei à minha mãe, fala de como se aceitar e ser feliz.”
A7 “Na biblioteca, ganho de amigos e peço emprestado de uma prima. Sim”.
A8 “ Na biblioteca, minha mãe também compra. Encontro esses livros na
biblioteca.”
A11 “O filme me inspira, livros emprestado de amigos, na biblioteca (pensei em
pegar um hoje). Não encontrei. Geralmente pego de amigos.”
Fonte: A pesquisa

Para a categoria 02, os participantes de E3 responderam:


Quadro 04 - Formas de acesso aos best-sellers lidos em E3
Alunos Acesso às obras de categoria best-seller
da E3
A6, A7, afirmaram que o acesso a esses livros se dá por intermédio único, a internet,
A8, A9 inclusive revelaram que a biblioteca da escola não apresenta acervo que contemple
esses livros.
A1 “Na internet ou compro. Nas visitas a biblioteca só vi um (O menino do
pijama listrado)”
A2 “Em revistas e compro. Na biblioteca não tem.”
A3 “Pela internet e biblioteca. Vi apenas um.”
A4 “Com a minha tia, vizinha e biblioteca. Nessa aqui não.”
A5 “Compro ou encontro na biblioteca. Já encontrei só um a menina que roubava
livros.”
A10 “Compro, pego emprestado. Na biblioteca não tem.”
Fonte: A pesquisa

Num comparativo entre as duas bibliotecas vemos as diferenças entre as respostas


e confirmamos a hipótese de que essas obras são atrativos para os mais diferentes leitores

1191
e o fato de apresentarem, as bibliotecas, um acervo numeroso reafirma a leitura mais
assídua e numerosa também dos best-sellers. Isso implica afirmar que elas são procurados
e caíram verdadeiramente no gosto público. Percebemos nas palavras de Chartier a
liberdade de escolha que se circunscreve no poder de decisão do leitor em face de um
terreno amplo de leituras.
Categoria 3 - Motivações para a leitura de best-sellers
Perguntados a respeito das motivações para leitura dos best-sellers, os alunos deram
as respostas transcritas no quadro 5:
Quadro 05- Motivações para a leitura de best-sellers em E1
Alunos da Motivações para a leitura dos best-sellers
E1
A7 e A8 Leem best-sellers porque ouvem comentários sobre o romance quando os
amigos dizem ser bom.
A1 “A curiosidade de saber o enredo da história.”
A2 “Leio para conhecer a história.”
A3 “A curiosidade, histórias de magia....”
A4 O título e indicações.
A5 A curiosidade.
A6 “A curiosidade e indicações de uma prima.”
A9 “Por achar bom, leio o início e se for bom leio todo se não pego outro.”
A11 “Costumo ler por indicação de amigos.”
Fonte: A pesquisa

Os participantes de E2 revelaram que:

Quadro 06 - Motivações para a leitura de best-sellers em E2


Alunos Motivações para a leitura de best-seller
da E2
A1 “Assisti a filmes e achei a história muito bonita... é interessante por trazer
aspectos da realidade.”
A3 “Primeiro leio o resumo, depois por curiosidade leio a história.”
A5 “É porque são legais.”
A6 “Leio porque gosto, por incentivo da minha mãe. Tem coisas próximas da
realidade.”
A7 “Acho que são interessantes. São personagens jovens mais próximos da
nossa realidade.”
A8 “Eu gosto de ler porque através da leitura adquiro mais conhecimento, são
histórias interessantes, gosto de romance e suspense.”

1192
A9 “Acho que é porque a gente entende e também adquire conhecimento. Eu
não lia, mas uma amiga minha vivia lendo, perguntei o que tinha de bom... então
comecei e não parei, antes minha mãe mandava eu ler e eu tinha preguiça.”
A10 “Encaixo-me no personagem, imagino-me, vivo novas aventuras.”
A11 “Gosto de ação, suspense, adolescente como personagem.”
A12 “É um passatempo bom.”
Fonte: A pesquisa.

Em E3 foram dadas as seguintes respostas:

Quadro 07 - Motivações para a leitura de best-sellers em E3


Alunos da Motivações para a leitura de best-sellers
E2
A1 “A vontade de saber, a curiosidade, isso me beneficia de alguma forma.”

A2 “Acho interessante, pesquiso ou pergunto se é bom.”


A3 “A curiosidade de saber o que vai acontecer com o personagem central e
para passar o tempo.”
A4 “Procuro na internet, se eu gostar do conceito, então...”
A5 “Leio porque o título é interessante.”
A6 “Quando traz aventura, romance e suspense.”
A7 “Alguns amigos me indicam dizendo que é muito bom.”
A8 “Pela magia, ficção, fantasia, história que conta.”
A9 “Os mistérios.”
A10 “A curiosidade e também porque acho bom e interessante.”
Fonte: A pesquisa

Percebe-se no conjunto das respostas dos entrevistados que a curiosidade e o gosto


são preponderantes como motivação para a leitura, visto que foram citados por 4
participantes em E1, por 7 em E2 e por 4 em E3, totalizando 15 alunos. A curiosidade
desempenha papel fundamental quanto aos estímulos de leitura, visto que significa um
desejo intenso de conhecer o desconhecido, de experimentar algo novo e original, o que
se verifica entre os alunos pesquisados. O gosto implica identificação com o lido, um ato
de conquista e ganho, ele é fundamental para que a leitura se mantenha como ato contínuo,
pois sem ele haverá frustração de expectativas leitoras e abandono.
Esses dados revelam um amplo universo de motivações pelas quais guiam-se
diferentes sujeitos. O ato da leitura não corresponde exatamente aos mesmos propósitos
do que nos leva a ler um livro, por essa razão, há uma diversa lista de leituras possíveis,

1193
essa divergência motiva as mais diferentes leituras dos mais variados gêneros da
literatura. É o que orienta a Base Nacional Comum Curricular (2017), quando reafirma
a necessidade de o educando entrar em contato com diferentes tipos de textos literários,
inclusive os textos veiculados ao universo da internet e que fazem parte do universo dos
alunos do 9º ano do ensino fundamental.
Os dados da categoria 4 revelaram o que mostram os quadros abaixo:
Quadro 08 – Concepção de literatura pelos participantes de E1
Alunos da E1 Concepção de literatura
A3, A4, A5, A6, Consideram as obras lidas como literatura
A7, A10, A11
A2 Os best-sellers lidos não se enquadram na literatura
A1 e A9 Acham que sim, mas afirmam que Cinquenta tons de cinza não faz
parte da literatura, e excluem também da lista de literários A culpa é das
estrelas e Harry Poter.
Fonte: A pesquisa

Sobre as considerações dos participantes em E2, percebemos que as respostas se


dividiram de maneira bastante equilibrada entre certezas e incertezas.

Quadro 09 – Concepção de literatura pelos participantes de E2


Alunos da Concepções de Literatura
E2
A3, A5, A6, Demonstram certeza ao responderem que são obras que se enquadram no
cânone e portanto, são literárias. Explicam que assim as consideram por
A9, A11
provocarem inspiração nos leitores.
A1, A7, A8, As incertezas de ao responderem com os termos “acho que sim” e não
explicarem o porquê da resposta.
A10, A12.

No que tange a esse aspecto, os participantes de E3 representaram uma certeza


maior que as outras escolas.

Quadro 10 – Concepção de literatura pelos participantes de E3


Alunos da E3 Concepção de literatura
A1, A2, A3, A4, Responderam categoricamente que sim, não souberam explicar as
A5, A6, A7, A10 razões de tal classificação.
A9 Respondeu com dúvidas e disse que achava que sim, demonstra
uma incerteza que não apresenta-se em nenhum outro participante.
A8 Classificou apenas Harry Potter e Diário de um banana, os demais
não.
Fonte: A pesquisa

1194
Questionados sobre o enquadramento ou não dessas obras na literatura, os
participantes apresentam nas relações de enquadramento mais certezas que incertezas.
Sobre as razões dessas certezas não souberam explicar o porquê. A maioria considera
literatura aquilo que lê, não vendo o desprestígio que muitos destinam aos best-sellers,
tampouco manifestam essa visão dicotômica da literatura erudita e popular, da literatura
de cultura de massa e da literatura canônica.
Em todas as escolas ficou clara a instabilidade de explicações acerca das obras lidas
serem consideradas literárias. A maior parte acredita que aquilo que leem é literatura,
apenas não sabem explicar as razões as quais podem enquadrá-las nessa classificação. A
relação dos leitores com a literatura pressupõe um envolvimento com o lido, o que é
elucidado e“o público dá realidade e sentido à obra, e sem ele o autor não se realiza, o
público é famtor de ligação entre o autor e sua própria obra”. ( CANDIDO, 2006, p. 47).

Considerações finais

Esta pesquisa enseja reflexões concernentes às atividades de leitura do texto


literário e das preferências que os alunos apresentam pela leitura de best-sellers da cultura
de massa, mais especificamente a alunos do 9º ano do ensino fundamental de três escolas
públicas da zona urbana do município de Buriti dos Lopes-PI. Na investigação de nosso
objeto de estudo, analisamos respostas dos participantes da pesquisa a um questionário e
a uma entrevista.
Assim, o apanhado dos dados nos traz informações bastante importantes, pois
reafirmam o que a teoria desse trabalho afirma. Se os best-sellers são lidos, e muito lidos,
há que se tirar proveito delas. Não existe leitura que não traga benefícios. Por pensar as
leituras mencionadas e por sabermos que os estudantes devem ter acesso aos bens
culturais, como a literatura canônica é que pensamos essa pesquisa, visto que os alunos
fazem as leituras de best-sellers por conta própria e atribuem a elas as funções que a
literatura oferece.

Referências

1195
CHARTIER, Roger. Os desafios da escrita. Trad. Fulvia M.L Moretto. São Paulo:
UNESPI, 2002.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Trad. Cleonice


Paes Barreto. Mourão. Belo Horizonte: UFMG, 1999.

BRASIL. Ministério da educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2017.

BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Editora


Perspectiva, 1987.

TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Trad. Caio Meira. Rio de Janeiro: DIFEL,
2009.

JAUSS. Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad.
Sérgio Tellaroli. São Paulo: Editora Ática, 1994.

ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Trad. Johannes
Kretschmer. São Paulo: Editora 34,1996. v.1.

ROSSATO. Wilson. O que é um best-seller?. Revista de Letras. Brasília, ano 01, n. 11,
abr.1994.

PAULINO, Graça. Formação de leitores: a questão dos cânones literários. Revista


portuguesa de educação. Universidade do Moinho, Braga, Portugal, v.17, n.1p. 47-62,
2004.

ZUNTHOR, Paul. Performance, recepção e leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich. São Paulo: Cosore Naify, 2007.

CANDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. 9. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul,
2006.

LIMA; ET.al. O Best-seller e a formação do gosto pela leitura dos jovens leitores. Revista
Eco Pós, Goiás, v.18, n.1, 2015, p. 190-204.

1196
ENTRE LIVRO E TELA: A AVENTURA DO HERÓI NA LITERATURA DE
RECEPÇÃO INFANTIL

Maria Zilda da Cunha (USP)1


Maria Auxiliadora Fontana Baseio (UNISA/FRS)2

Resumo: Os heróis exercem grande fascínio para crianças e jovens, porque, incontestavelmente,
reverberam o desejo humano de superar situações-limites. Ao reunir sentimento e ação, seu
destino é o ritual iniciático – que se traduz como aventura. Essas imagens arquetípicas tomam
feições singulares de acordo com a cultura e o contexto em que se inserem e, pela força do
imaginário, são capazes de circular em diferentes linguagens, códigos e suportes. Este trabalho
analisa, com os instrumentais dos estudos comparados, a obra Kiriku e a feiticeira, de Michel
Ocelot, em suas expressões em livro e filme.
Palavras-chave: herói; Imaginário; literatura de recepção infantil; estudos comparados de
literatura; Kiriku e a feiticeira

Introdução
Sabemos que a cultura se constitui pela interação dos homens e de suas
manifestações em códigos e linguagens. Temas, motivos, imagens, figuras, transitam
entre diferentes sistemas sociais, culturais, estéticos, nos diversos espaços e tempos,
sendo permanentemente relidos e ressignificados.
Uma das figuras que se desloca nas diversas culturas humanas é o herói, no qual
se projetam ideais, valores, fundamentos da existência. Desde o semideus da antiguidade
grega aos pós-modernos heróis urbanos, as figurações histórico-culturais desse arquétipo
apresentam-se plurais. Essa imagem arquetípica revela-se em múltiplas faces, há heróis
míticos, épicos, romanescos, picarescos, assim como há anti-heróis e super-heróis que
problematizam a condição humana e, por isso, exercem grande fascínio.
Importa-nos, nesta investigação, perscrutar as formas de conformação dessa figura
arquetípica, bem como sua ação iniciática, a aventura, em diferentes sistemas de signos.

1
Pós-doutora pela Universidade do Minho, Portugal; Doutora em Letras - Estudos Comparados de
Literaturas de Língua Portuguesa (USP-2002); Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP (1997);
docente no programa (de graduação e pós-graduação) de Estudos Comparados de Literaturas de Língua
Portuguesa e coordenadora da área de Literatura Infantil e Juvenil (USP);líder do Grupo de
Pesquisa Produções Literárias e Culturais para crianças e jovens (USP/CNPQ). Autora do livro Na
Tessitura dos Signos Contemporâneos. Editora Paulinas, 2009. Contato: mariazildacunha@hotmail.com

2
Pós-doutora pela Universidade do Minho, Portugal; Doutora em Estudos Comparados de Literaturas de
Língua Portuguesa (USP-2007); Mestre em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa
(USP-2000); Professora do Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas na Universidade Santo Amaro
(UNISA) e da Faculdade Rudolf Steiner; líder do grupo de pesquisa Arte Cultura e Imaginário (Unisa) e
pesquisadora do grupo Produções Literárias e culturais para crianças e jovens(USP). Contato:
mbaseio@uol.com.br

1197
Para tanto, analisaremos a obra Kiriku e a feiticeira, de Michel Ocelot, em suas expressões
artísticas na forma de livro e filme. Nosso percurso metodológico pauta-se nos estudos
comparados de literatura, que nos permitem análises críticas, a fim de compreender
fenômenos culturais e artísticos. Essa possibilidade interpretativa advoga a favor da
autonomia e da especificidade de cada arte, salvaguardando seu respectivo valor dentro
do campo semiótico em que se corporificam. Assim, consideramos que está em jogo a
função estética no sentido de que uma obra traduz criativamente a outra para com ela criar
ressonância, não para completá-la ou para contemplá-la como superior.
Em geral, as adaptações são realizadas da literatura para o cinema. No caso em
questão, Kiriku e a feiticeira (kirikou et la sorcière), trata-se de um desenho animado
adaptado para livro. A animação tem como diretor Michel Ocelot, com trilha assinada
pelo músico senegalês Youssou N’Dour, foi produzida em 1998 e venceu, em 1999, o
Grande Prêmio do Festival Internacional de Annecy, chegando ao Brasil em 2002. Em
2016, Michel Ocelot adapta para livro.

1. O herói e a aventura
À medida que um herói emerge nas produções artísticas, ele nos convida a
revisitar sua antiga natureza – sua forma arquetípica, que, no entender de Jung, mostra-se
como
[...] certos esquemas estruturais, pressupostos estruturais de imagens (que
existem no âmbito do inconsciente coletivo e que, possivelmente, são herdados
biologicamente) enquanto expressão concentrada de energia psíquica,
atualizada em objeto. (JUNG apud MELETÍNSKI,1984, p. 20)

Para o referido autor, os arquétipos traduzem acontecimentos anímicos


inconscientes em imagens do mundo exterior e representam etapas do processo de
individuação. Jung discute a questão do herói mostrando que símbolos se originam de
uma necessidade psicológica e assumem formas que perpassam as sociedades. Ao tratar
do nascimento do herói, assinala que, como figura humana, ele é uma das formas de
representação da libido (e por extensão do espírito) de grande pregnância simbólica, daí
que sirva de matriz prototípica de muitos mitos, lendas e epopeias. Fundador e
transgressor, mediador entre lei e contra-lei, ele instaura a ordem humana pela ruptura
com a ordem divina, daí sua liminaridade entre dois mundos: o dos vivos e o dos mortos,

1198
o dos civilizados e o dos selvagens. Neste sentido, o herói mítico constitui modelo
exemplar para outros tipos heroicos.
Na visão de Gilbert Durand (1984, p.202 -215), o herói é visto também como um
arquétipo, sua figura é um mitologema universal, representa uma constante do imaginário
coletivo inscrito no Regime Diurno das estruturas antropológicas do imaginário. Nesse
sentido, contrapõe-se o herói ao monstro sendo o primeiro considerado arquétipo nas
estruturas presididas pelo schème verbal da separação.
Habitante do inconsciente coletivo e do imaginário humano, esse arquétipo é um
catalisador de esperança, capaz de pôr em curso a possibilidade de vida diante e contra o
mundo da morte, podendo, em seu dinamismo, fazer aperfeiçoar nossa condição no
mundo. É inegável que exerce grande fascínio em todos os lugares e tempos, porque traz
uma aspiração humana universal: o desejo de superar situações-limite, por isso, seu
destino é a aventura, na qual se inscreve o ritual iniciático.
O herói é aquele que se lança ao que advém (aduenire, a(d)ventura),
disponibilizando-se para o outro. Ao lançar-se à busca de algo perdido, do invisível, do
elã vital ou espiritual, favorecerá a transformação de si, de outros, do mundo.
Campbell (1997, p.36) apresenta o “percurso padrão da aventura mitológica do
herói” como “separação – iniciação – retorno”. O herói afasta-se de seu mundo habitual,
passa por uma iniciação e retorna enriquecido e vitorioso trazendo benefícios ao
reintegrar-se à sociedade de onde partiu.

Um herói vindo do mundo cotidiano se aventura numa região de prodígios


sobrenaturais; ali encontra fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva; o herói
retorna de sua misteriosa aventura com o poder de trazer benefícios aos seus
semelhantes. (CAMPBELL, 1997, p. 36).

Para o referido autor, “o âmbito de ação do herói não é o transcendente, mas o


aqui e o agora, na esfera do tempo, o âmbito do bem e do mal [...]” (CAMPBELL,1990,
p.69), podendo realizar dois tipos de proeza: uma física, “em que pratica um ato de
coragem, durante a batalha, ou salva uma vida”, e uma espiritual, “na qual o herói aprende
a lidar com o nível superior da vida espiritual humana e retorna com uma mensagem.
(CAMPBELL,1990, p.131)
É dessa jornada imaginária, presente tanto no livro, quanto no filme, que trataremos
primeiramente neste artigo. Para isso, a narrativa em livro nos facilitará a transcrição das
cenas.

1199
1.1 A partida do herói: Kiriku e o chamado para a aventura

Logo ao nascer, Kiriku toma conhecimento de sua vocação e do chamado para a


aventura. A cada pedido de ajuda, a mãe lhe esclarece:

- Mãe, me ajuda a nascer! [...]


- Uma criança que fala na barriga da sua mãe sabe nascer sozinha.[...]
- Uma criança que nasce sozinha se lava sozinha.
Kiriku salta em uma bacia e respinga água alegremente ao redor.
- Não esbanje água. Karaba, a feiticeira, secou nossa fonte. Ela devorou seu
pai e todos os homens da aldeia. Só restou seu tio. Ele está no caminho dos
flamboyants, indo combater a feiticeira.
- Então, eu devo ir ajudá-lo. - grita Kiriku. (OCELOT,2016, p.5).

Enuncia-se o motivo para a aventura, que, de acordo com Campbell (1990, p.131),
“começa com alguém a quem foi usurpada alguma coisa, ou que sente estar faltando algo
entre as experiências normais franqueadas ou permitidas aos membros da sociedade. Essa
pessoa então parte em uma série de aventuras que ultrapassam o usual, quer para recuperar
o que tinha sido perdido, quer para descobrir algum elixir doador da vida”.
O pequeno sai da sua zona de conforto ao lado da mãe para aventura -se ao combate
do mal. Apresenta-se ao tio, que não aceita a ajuda pelo fato de o menino ser muito
pequeno, mas, quando percebe, o garotinho está escondido embaixo de um chapéu que
corre ao seu lado. Em seguida, os dois se deparam com Karaba, a feiticeira, altiva e
convencida, solicitando o chapéu mágico onde se escondia Kiriku, em troca de acabar
com os males que ela fazia à aldeia. Mas o menino foge com o chapéu. Karaba se enfurece
e manda seus guardiões para saquear o ouro da aldeia e vive criando armadilhas para
prejudicar as pessoas do lugar. Kiriku sempre fica alerta para as ciladas, avisa os
companheiros, entretanto nunca é ouvido. Mesmo assim, sempre os salva, em nenhum
momento, recusa o chamado, sujeitando-se, para isso, a todo tipo de provação.
Ao sofrer junto aos seus a falta de água, o pequeno decide ir em busca do segredo
da fonte enfeitiçada. Nessa parte do percurso, vivencia uma iniciação, ao que Campbell
designou de “passagem pelo primeiro limiar” (CAMPBELL,1997, p.82-91), simbolizada
pelo encontro com o “monstro nojento e todo inchado” que aparece diante dele.

1.2 A iniciação do herói: o caminho de provas

1200
No trajeto iniciatório, o personagem passa por espaços misteriosos e perigosos,
sendo auxiliado por agentes benignos, vai sofrendo provações de natureza e de
intensidade diversa. Experimenta a iniciação de várias formas: a “passagem pelo primeiro
limiar” e a “passagem para o reino da noite”, simbolizados pelo encontro com o Monstro
na caverna. Em seguida, a “passagem pelo limiar do retorno” (CAMPBELL, 1997, p.213
-225).
Kiriku encontra o guardião do limiar, ou seja, aquele que guarda a passagem,
depara-se com um monstro, que se esconde dentro de uma caverna.

ele rasteja, bate, geme e acaba chegando numa enorme caverna. Um monstro
nojento e todo inchado aparece diante dele. [...] Kiriku sai, pega um ferro em
brasa e retorna correndo. Ele crava o ferro na barriga do monstro! A besta inflada
de água explode como um maremoto, inundando a caverna. Kiriku é levado pela
onda da maré, ele se choca com as paredes e se afoga. (OCELOT,2016, p.19)

O menino enfrenta e vence o monstro da caverna, levando água para a aldeia,


entretanto sofre uma quase morte física e renasce. “O ventre da baleia, ou a passagem
para o reino da noite”, segundo Campbell (1997, p. 91 -94), ocorre do seguinte modo: “A
ideia que a passagem do limiar mágico é uma passagem para uma esfera de renascimento
é simbolizada na imagem do útero, ou ventre da baleia. O herói, em lugar de conquistar
ou aplacar a força do limiar, é jogado no desconhecido, dando a impressão de que morreu”
(CAMPBELL, 2007, p.91). Penetra no ventre da baleia, como sucedâneo do ventre
materno, para nascer de novo. Em primeiro momento, ele se autoaniquila para
seguidamente renascer, o que significa sempre um “ato de concentração e de renovação
da vida” (CAMPBELL, 1997, p.93).

A água está de volta! A alegria da aldeia dura pouco. Na fonte, flutua um corpo
sem vida do valente Kiriku. Sua mãe o toma em seus braços, o aperta contra seu
peito e começa a cantar baixinho. Os aldeões, inclinados sobre a criança, também
cantam suavemente. É então que uma pequena tosse interrompe a cantoria.
Kiriku está vivo!
-Eu venci! – fala Kiriku, com uma voz fraca.
- Ele venceu! – gritam todos da aldeia.
Todos dançam e cantam com alegria. (OCELOT,2016, p.20)

Ressalta-se, na passagem acima, a caverna, a escuridão, a água e o monstro, como


elementos que reforçam o cenário iniciático do regime noturno da imagem, tipificados

1201
pelas estruturas místicas e dominados pelos “schèmes” verbais descer, possuir e penetrar
(DURAND, 1984, p. 308, 310 e 313).
O renascimento de Kiriku, neste primeiro limiar, foi físico, uma vez que estava
afogado. Ainda assim, ele trouxe libertação do mal para a aldeia:

Kiriku é pequeno, mas ele pode muito!


Kiriku não é grande, mas ele é valente!
Kiriku nos libertou de quem nos enfeitiçou! OCELOT,2016, p.21)

Entretanto, isso não lhe bastou, ele queria perscrutar a causa do mal. Ao perguntar
à mãe, obtém a informação de que somente o sábio na montanha, seu avô, poderia lhe dar
uma resposta, mas teria que enfrentar mais obstáculos, atravessar para o outro lado e, para
isso, deveria passar pelo controle de Karaba. A mãe o auxilia na passagem, oferece o
punhal do pai de Kiriku e o pequeno “mergulha nas profundezas da terra”, avança num
labirinto de galerias e vai cavando em direção ao domínio do sábio da montanha. Ele
sobe, desce, perde-se, enfrenta um gambá, salva os filhotes de esquilo e vai desbravando
corajosamente a terra, até respirar aliviado do outro lado, onde, com astúcia, consegue
voar nas costas de um pássaro até um ponto da montanha, depois enfrenta um javali e,
novamente, com sua inteligência e ousadia, este o leva ao Grande Cupinzeiro, já domínio
do velho da Montanha, seu avô.
O culminar da iniciação de Kiriku não se deu com o encontro com a deusa
(CAMPBELL, 1997, p. 111 -120), o que acontece “quando todas as barreiras e ogros
foram vencidos”, mas com o avô, figura de relevância quando se trata de sabedoria para
a cultura africana.
Assim, as provações iniciáticas ajudaram a preparar a sua lenta transformação.
Com o avô, aprende o sentido do mal de Karaba. O velho explica que ela é malvada
porque colocaram um espinho envenenado em sua coluna. Diz o menino,
destemidamente: “- Eu arrancarei o espinho das costas de Karaba ou morrerei. ”
(OCELOT,2016, p.34)
Kiriku faz um plano de tirar Karaba de seu domínio e, para isso, deve roubar-lhe o
ouro. Cava um túnel, com seu punhal, debaixo do cesto que contém as joias, e as retira.
Karaba enfurece e ameaça matar o menino. Ele se embrenha na floresta e, embaixo da
Grande Árvore, coloca as joias. Ela ali se ajoelha para procurar, e o menino, escondido
em cima da árvore, vê o espinho, lança-se sobre suas costas e retira-o com os dentes. A

1202
feiticeira grita tão alto que assusta todos da floresta, da savana e da aldeia. Depois de um
largo silêncio, tudo renasce na natureza, pássaros cantam, árvores desabrocham flores.
Para redimir-se e mostrar sua gratidão ao menino, Karaba pergunta o que poderia
fazer. Ele sugere casar-se. Mas ela retruca dizendo que ele ainda é pequeno. Então, o
menino sugere um beijo, que se consuma, e depois disso, magicamente, ele cresce e se
torna um grande guerreiro. Mediante a “passagem pelo limiar do retorno”, faz o seu
regresso à vida metamorfoseado num outro, ainda que ele mesmo.

1.3 O retorno de Kiriku


As sucessivas iniciações descritas prefiguravam a transformação de Kiriku “num
rapaz como todos os outros”. Na sua condição de herói de caráter mitológico, embora
circunscrito em um conto, sai voluntariamente de sua aldeia em direção ao limiar da
aventura. Ali encontra o Monstro, uma presença sombria que guarda a passagem.
Enfrenta-o destemidamente e o vence com seu punhal.
Continua sua aventura além do limiar, enfrentando forças adversas, algumas o
ameaçam fortemente, outras o auxiliam. Kiriku nasce pelo menos duas vezes: a primeira
fisicamente; a segunda espiritualmente. E nessa última etapa, o retorno se prefigura. No
limiar de retorno, o herói reemerge do reino do terror (retorno, ressurreição). A força que
ele traz consigo restaura o mundo. O ponto alto da narrativa dá-se com a sua
transformação em rapaz, com o casamento com a feiticeira e com o retorno à aldeia. O
mal não foi apenas vencido, mas sua raiz tornou-se conhecida, consciente.
Para Junito Brandão (1997, p. 15), herói, de héros, remete àquele que guarda, o
guardião, o defensor, o que nasceu para servir. Kiriku atende à sua vocação. Com
coragem, astúcia e ousadia, embora pequeno fisicamente, realiza a aventura, grande
jornada espiritual. Como todo herói mítico, faz a experiência iniciática como busca de
libertação. Para isso, enfrenta provas, obstáculos e retorna enriquecido beneficiando toda
a aldeia.
A partir de agora a aldeia está reunida. Mães, filhos, esposas, maridos e crianças
correm e se abraçam ao redor do lindo casal: Kiriku e Karaba. Isso é a paz...
(OCELOT,2016, p.50)

Um tanto pequeno, mas de ideal grandioso, Kiriku busca compreender, na raiz, a


história de seu povo, por isso consegue libertá-lo.

1203
Tanto no livro, quanto na animação, a matéria narrativa organiza-se com esses
elementos acima apresentados, entretanto cada campo semiótico, no caso a literatura e o
cinema, reinventa esse conteúdo imaginário de uma forma singular, de acordo com seus
códigos e linguagens específicos, o que será analisado a seguir.

2.O movimento tradutor: da voz à tela, da tela ao livro


Como afirma Zumthor, em Escritura e Nomadismo (2005, p.48), “somos seres de
narrativa, tanto quanto de linguagem”. Cada sociedade faz emergir maneiras diversas de
narrar e a matéria narrativa migra por diversos suportes, hibridizando códigos e
linguagens.

Eu gostaria de enfatizar o fato de que, dentro da existência de uma sociedade


humana, a voz é verdadeiramente um objeto central, um poder, representa um
conjunto de valores que não são comparáveis verdadeiramente a nenhum outro,
valores fundadores de uma cultura, criadores de inumeráveis formas de arte.
(ZUMTHOR 2005, p. 61)

A arte narrativa sempre foi indissociável da voz, “essa força física que temos em
nós, que suporta nossa linguagem “ (ZUMTHOR 2005, p.53). Por meio da voz que narra,
cria-se a cultura e um imaginário que sustenta as várias formas de arte.
Para Walter Benjamin (1994), “a experiência que passa de pessoa a pessoa é a
fonte a que recorreram todos os narradores”. No entanto, modifica-se, no tempo, essa arte
de contar. Ainda que o narrador tradicional não realize a performance em razão das
modificações por que passaram as sociedades, surgiram novos modos de narrar que se
interpõem às experiências humanas, providenciando outros meios de produção de
linguagem, propiciando novos diálogos entre mídias e artes, nova consciência de
linguagem. Fato que, ao fim e ao cabo, expressa a capacidade humana de criação,
revelando uma constante busca por modos diversos de expressão e pela recriação
semiótica.
Tendo passado a infância na Guiné, local em que a cultura é basicamente oral
(com o convívio de muitas línguas), Ocelot viveu muito de perto a experiência da
narrativa, cuja movência é garantida pela transmissão basicamente oral. Conheceu a lenda
de Kiriku com a qual dialogou em suas criações artísticas, seja no livro, seja no filme.
Como cineasta, roteirista, Ocelot recorre a uma linguagem altamente híbrida e
intersemiótica – a cinematográfica - para recontar a lenda de Kiriku. Na verdade, escolhe

1204
a arte da animação – (animar - dar vida a algo, uma espécie de sopro de vida no universo
cinematográfico).
Conforme sabemos, o cinema é uma arte do movimento, o autor empresta o corpo
à performance e o verbo além da sua função simbólica da informação, tem uma realização
sonora icônica e performativa, na modulação da voz. No âmbito da recepção, o espectador
fílmico, de certo modo, torna-se um ouvinte. Ao fim e ao cabo, o cinema, ao aliar à
temporalidade da narração fílmica a performance corporal, a voz, a imagem, faz-se como
uma técnica de sutura, um suporte que engendra um imaginário significante capaz de
trazer à cena, de forma singular, a representação do narrar e do material narrado.
Vale considerar algumas escolhas desse realizador para a produção do longa-
metragem, que revelam a pesquisa, atenção e deferência para com o lugar de onde vem a
história - para a execução da trilha sonora - assinada por Youssou N’Dour, músico
senegalês - foram utilizados instrumentos tradicionais da África, como balafon, ritti, cora,
xalam, tokho, sabaar e o belon para as canções. As vozes dos personagens foram feitas
por atores africanos, na versão original – francês. Além disso, vale atentar para a
entonação, a proposição do ritmo que engendra o gesto vocal, para as pausas e perceber
a ressonância da voz de África (de língua oficial francesa ou portuguesa, mas
singularizada pela convivência de outras línguas locais e realmente faladas pelo povo em
seu cotidiano).
Nessa ordem de ideias, defendemos a importância de se perscrutar operações de
linguagem que buscam traduzir eventos narrativos - para outros suportes ou mídias. Para
Júlio Plaza (1987, p. 98), “a operação de linguagem de um meio para outro implica
consciência tradutora capaz de perscrutar não apenas os meandros da natureza do novo
suporte, seu potencial e limites, mas a partir disso, dar o salto qualitativo, isto é, passar
de mera reprodução para a produção”.
Lembrando Walter Benjamin (1994), em sua essência, a obra de arte sempre foi
reprodutível. O que os homens faziam podia ser imitado por outros homens. Essa imitação
era praticada por discípulos, em seus exercícios; pelos mestres, para a difusão das obras,
e, finalmente por terceiros, meramente interessados no lucro. A reprodução técnica da
obra de arte, em contraste, representa um processo novo, que se vem desenvolvendo na
história intermitentemente, através de saltos separados por longos intervalos, mas com
intensidade crescente. Com a reprodutibilidade técnica, um discurso se tornou comum:

1205
perde-se a artesania e a memória. No entanto, a animação que ora focamos se tece
exatamente desses elementos.
Sabe-se que a versão fílmica da lenda precedeu a impressa, não é abusivo dizer
que a animação de Ocelot corrobora as palavras de Deleuze (1990, p.87) quando diz: “O
cinema não apresenta apenas imagens, ele as cerca com um mundo”. Por meio da
linguagem em movimento, o cinema recupera a vocação narrativa que alimenta a
necessidade humana de contar e ouvir histórias.
Na versão livresca, importa reter como o leitor é introduzido nas páginas da
história, mais como um visualizador, espectador de cores e examinador de letras. As
ilustrações são de grande beleza e iluminadas, o tempo e o espaço são tecidos pelas cores
e formas. O verbal explora o potencial descritivo criando cenas, roteiriza e dá
temporalidade aos eventos e às ações, elementos que se articulam compondo uma espécie
de storyboard para a película.
Vale considerar, no entanto, que, para além dessa face da técnica de roteirizar a
história, o autor promove, por meio desse verbal, o ressoar das vozes de África e o modo
como conjugam as várias línguas com as quais convivem.

Considerações finais
Entre as diversas searas artísticas, deslocam-se imagens e transitam arquétipos. O
imaginário põe em circulação essas redes simbólicas, sinalizando valores, identidades, elementos
que tornam ou podem tornar expressiva uma cultura ou um sistema social.
A forma de materializar cada arte difere pela linguagem, pelos códigos, pelo suporte,
entretanto o espírito fabulador, herdeiro de um sonho coletivo, revela-se uno, guardando vínculo
com a experiência humana.
A história de tradição oral recebe novo sopro de vida por via da animação
cinematográfica, aporta no livro ilustrado de literatura infantil e juvenil contemporânea,
corroborando a ideia de que o nomadismo da voz se faz por meio da memória e de
linguagens.
A recriação da figura do herói, cara a diversas sociedades e culturas, realiza-se
por suportes e mídias diversos, do artesanal ao tecnológico, guardando o engenho
fabulador, próprio da humanidade e reverenciando o sonho e o desafio que guia a aventura
humana – o de superar situações-limites.

1206
Referências
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história
da cultura. 7.ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas, 1)

BRANDÃO, J.S. Mitologia grega. Rio de Janeiro, Petrópolis. Vozes, 1997.

CAMPBELL, Joseph, et Bill Moyers. O poder do mito. Trad. Carlos Felipe Moisés. São
Paulo: Palas Athena, 1990.

_______. O herói de mil faces. Trad. Ubirajara Sobral. São Paulo: Cultrix/Pensamento,
1997.

DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.

DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. Trad. Hélder Godinho.


São Paulo: Martins Fontes, 1997.

JUNG, Carl. El hombre y sus símbolos. Barcelona: Luis de Caralt Editor, 1964.

MELETÍNSKI, E.M. Os arquétipos literários. 2.ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.

OCELOT, M. Kiriku e a feiticeira. Rio de Janeiro: Viajante do tempo, 2016.

OCELOT, Michel. Kiriku e a feiticeira (kirikou et la sorcirè, França/


Bélgica/Luxemburgo, 1998). 74 minutos.

PLAZA, J. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 1987.

ZUMTHOR, P. A letra e a voz: a “literatura” medieval. trad. Amálio Pinheiro e Jerusa


Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

_______. Escritura e nomadismo. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.

1207
O RETRATO DA GRAVIDEZ NA ADOLESCÊNCIA NA LITERATURA
JUVENIL: UMA REFLEXÃO SOBRE A REALIDADE.

Mariana Rissi Azevedo (UFAM)1

Resumo: A presente pesquisa discute o tema gravidez na adolescência e contrasta os


acontecimentos das obras literárias, Detour for Emmy de Marilyn Reynolds, e Like Sisters on the
Homefront de Rita Williams Garcia, com os dados do Ministério da Saúde e da Organização
Mundial de Saúde referente ao Brasil, para demonstrar que os enredos das obras fazem retratos
literários da vida de muitas meninas que são vitimadas pela ignorância e preconceito. Este
trabalho busca inspirar jovens mães a lutarem pelos seus direitos e exigirem ações governamentais
que garantam seu estudo e condições para que possam viver dignamente.
Palavras-chave: Literatura Juvenil; Gravidez na adolescência; Marginalização feminina

Introdução
Esta pesquisa escolheu analisar as obras Detour for Emmy de Marilyn Reynolds
e Like Sisters to the Homefront de Rita Williams Garcia, que são de origem norte
americana, porque até o presente momento não se encontrou obra brasileira que
exemplificasse às mães adolescentes que é possível dar continuidade aos estudos e
garantir um futuro melhor para si mesma e para seu bebê.
A metodologia empregada neste trabalho consiste em apresentar dados de
índices de gravidez na adolescência no Brasil de inúmeras organizações, tais como
Ministério da Saúde e Organização Mundial da Saúde, entre outros, e discutir as
consequências da maternidade e paternidade precoce em nosso país, além de debater os
acontecimentos em torno do tema em ambas as obras escolhidas como objetos de estudo.
Espera-se inspirar jovens brasileiras a lutarem por políticas públicas que lhes deem
condições de buscar para si mesma e para seu filho, um futuro mais digno através do
estudo.
O aporte teórico usado para embasar este estudo são obras que discutem a
sexualidade feminina, tais como a de Woolf (1998) e obras que discutem a gravidez na
adolescência tais como Wiltz (2019), Vieira (2019) e Tiba (1985), entre outros. A
argumentação será pautada em dados científicos e busca chamar a atenção para a falta de
apoio do governo em criar possibilidades que permitam que a gravidez na adolescência
seja minimizada através de programas educacionais e distribuição de materiais

1
Graduada em Letras Inglês e Português (UNIFAIMI), Mestre em Letras (UNESP), e docente da UFAM.
Contato: mari_rissi@hotmail.com.

1208
contraceptivos, além de ressaltar a ausência de projetos do Ministério da Educação que
permitam à mães adolescentes a permanência na escola.

1. Gravidez na adolescência no Brasil


De acordo com dados divulgados em 2017 pelo Fundo de População das Nações
Unidas (UNFPA), o Brasil tem a sétima maior taxa de gravidez na adolescência na
América do Sul. Um em cada cinco bebês é nascido de uma mãe adolescente, três de cada
cinco mães precoces não estudam nem trabalham, e sete em cada dez são
afrodescendentes. A incapacidade de planejar a vida reprodutiva impede as adolescentes
de desenvolver habilidades para integrar a força de trabalho remunerado e alcançar
independência financeira.
Jaime Nadal, representante do UNFPA no Brasil, afirma que: “As mulheres mais
pobres, que não têm acesso a recursos que lhes permitam o planejamento reprodutivo ou
que não conseguem ter bons atendimentos de saúde, são as que menos conseguem
desenvolver seu potencial.” Políticas públicas falham em assegurar creches, e muitas
jovens mães são impedidas a retornar ao estudo ou ao trabalho. A licença maternidade
remunerada é um privilégio de poucas e a discriminação emudece e desencoraja.
Segundo IBGE houve redução de 13% do índice de gravidez na adolescência
entre 2010 e 2017, no entanto os números ainda são alarmantes, pois o Ministério da
Saúde aponta que cerca de 56 adolescentes a cada grupo de mil, enfrentam o problema de
uma gravidez não planejada, sendo que meninas negras representam a maior proporção
entre essas mães.
As consequências da maternidade e paternidade precoce são muito diferentes,
tanto no âmbito social como no jurídico. A seguir veremos o impacto dessas
consequências nas vidas dos adolescentes.

1.1 Consequências legais e sociais da gravidez na adolescência


O artigo 5º, inc. LXVII, da Constituição Federal de 1988; o artigo 733, § 1º, do
Código de Processo Civil e o artigo 19 da Lei nº 5.478/68 impõe penalidades ao não
pagamento da pensão alimentícia obrigada por lei aos que se encontram sob proteção dos
parentes, cônjuges e tutores. No caso de adolescentes, se a guarda pertencer a mãe, o pai
deve pagar a pensão alimentícia, mesmo sendo de menor idade e estudante, pois as

1209
necessidades da criança não esperam o pai chegar a maioridade, portanto o responsável
pelo pai de menor idade é quem tem que arcar com as despesas.
No ano de 2016 novas regras foram aplicadas à pensão alimentícia para garantir
o direito do alimentado, dentre elas estão: a prisão imediata caso o pagamento da pensão
não seja efetuado, inclusão do nome no Serviço de Proteção ao Consumidor, e ter o débito
descontado em folha de pagamento.
A guarda da criança é um conjunto de obrigações, direitos e deveres em relação
ao filho, e o artigo 226, § 5º da Constituição Federal concede a ambos os genitores o
exercício do poder familiar em relação aos filhos comuns. Segundo Dados do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), com base no Censo Escolar de 2011, há 5,5 milhões de
crianças brasileiras sem o nome do pai no registro de nascimento, o que demonstra que a
guarda geralmente pertence a mãe e que a criança é acometida pelo abandono paterno.
Ana Liése Thurler, do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília,
afirmou que na cultura machista o homem não se sente comprometido a assumir os filhos
tidos fora do casamento ou em uniões não-estáveis, e que a dificuldade de acesso a
métodos contraceptivos a mulheres de renda mais baixa, as impedem de escolher entre
engravidar ou não.
A realidade do Brasil é que a maioria das adolescentes assumem sozinhas a
obrigação de cuidar de seus bebês, enquanto os rapazes seguem com os estudos e se
engajam no mercado de trabalho. Embora seja garantido por lei a pensão alimentícia,
muitas não dão entrada em processo por conta da falta de informação ou de acesso a
defensoria pública, e sem ter respaldo financeiro, ou ajuda de políticas públicas que
disponibilizem creches, essas adolescentes ficam marginalizadas e seus filhos
menosprezados.
O volume 25, da Revista Paulista de Pediatria, publicado em dezembro de 2007,
revela que a vida de muitas adolescentes é ligada a carências, e que seus recém-nascidos
apresentam maior frequência de baixo peso ao nascer, especialmente por prematuridade,
o que causa consequências imediatas e em longo prazo. Comparados aos filhos de
mulheres adultas, os filhos das mães adolescentes mostram atraso no desenvolvimento,
maior proporção de problemas psicológicos, além de deficiência de crescimento e maior
morbidade e mortalidade infantil.

1210
Abandonadas por seus parceiros, negligenciadas pelas políticas públicas e
excluídas do mercado de trabalho e da escola, as mães adolescentes têm pouca chance de
garantir a si mesma e ao seu bebê o sustento necessário para sobreviver. O próprio meio
social em que vivem as condenam por terem iniciado suas vidas sexuais precocemente, o
que gera danos morais, psicológicos e físicos para as adolescentes e seus filhos.
De acordo com a pesquisa Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça,
divulgada em 2017 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada com base nos números
da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), o número de lares brasileiros
chefiados por mulheres passou de 23% para 40% entre 1995 e 2015, aumentando o risco
de vulnerabilidade social, pois a renda das mulheres, especialmente a das negras é inferior
a dos homens.
Segundo dados do IBGE divulgados em 2017, nosso país ganhou mais de 1
milhão de famílias de mãe solo. 4,84% das crianças são cuidadas pelas mães em
conformidade a dados levantados pelo Pnad 2015, e o expressivo cuidado maternal
impacta a presença feminina no mercado de trabalho e faz com que a taxa de pobreza
atinja com maior força as famílias de mãe solo, sendo que a probabilidade de ser mãe
solteira em uma periferia é maior.
O movimento Todos pela Educação se baseou na Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílios (Pnad) de 2013 e constatou que o Brasil tinha 5,2 milhões de meninas de
15 a 17 anos, das quais 414.105 possuíam ao menos um filho, sendo que apenas 104.731
dessas meninas estudavam. 309.347 estavam fora da escola, e apenas um pequeno grupo
de 52.062 trabalhavam.
O Ministério da Educação não tem programas específicos para garantir que essas
adolescentes retornem aos estudos após a gravidez precoce, e de acordo com a Lei de
Diretrizes e Bases a oferta de educação infantil, tais como creches que possibilitariam
essas jovens mães de retornar à escola ou ao trabalho, é de responsabilidade municipal.
As reações familiares e sociais diante da gravidez na adolescência são diferentes
para meninos e meninas. Para a sociedade a paternidade precoce indica que o rapaz é viril
e que iniciou sua vida sexual, embora ele tenha responsabilidades, não sofre tanto
preconceito e não é impedido de continuar os estudos ou de trabalhar. A sexualidade
feminina é reprimida pela sociedade machista patriarcal, portanto a gravidez precoce é
um indício de que a menina iniciou sua vida sexual quando deveria ter praticado o

1211
celibato. A adolescente passa a sofrer uma série de preconceitos que a humilha e a
inferioriza.
Em muitos casos a atitude do pai adolescente é rejeitar a paternidade. Muitas
adolescentes passam também a serem discriminadas pela família e por aqueles que as
cercam e o impacto dessa discriminação no psicológico da gestante adolescente a faz
perder a autoestima e a perspectiva de que sua vida terá continuidade. Os sentimentos em
torno dessa gravidez precoce variam desde a surpresa, aceitação e alegria até reações
negativas caracterizadas por tristeza, depressão e automutilação como tentativa de aborto.
As políticas públicas preferem criar programas que previnam à gravidez na
adolescência, mas falha na tentativa, pois a educação sexual dada aos adolescentes nas
escolas é pouca ou quase nenhuma, e em diversos momentos escola e pais conservadores
se recusam a tratar o assunto.

2. Distribuição de materiais contraceptivos e tabus nas escolas sobre aulas de


educação sexual
A saúde pública disponibiliza nos postos e nas unidades básicas de saúde
materiais contraceptivos tais como: preservativo masculino e feminino, pílula
anticoncepcional e injeções anticoncepcionais. A distribuição é gratuita, contudo, muitos
adolescentes estão desinformados sobre esse assunto, ou quando estão conscientes dessa
distribuição estão envergonhados demais para coletarem o que precisam, pois isso
indicaria que iniciaram suas vidas sexuais.
Em relação a educação sexual, em 2013 foi aprovada a cartilha de educação
sexual, que foi impedida de ser distribuída em muitas escolas. O objetivo era orientar
crianças e adolescentes sobre a sexualidade. A criação do material teve acompanhamento
de psicólogos e pedagogos, e foi desenvolvida para ser compreendida facilmente.
Quando foi lançada e distribuída nas escolas, a cartilha causou inúmeras
polêmicas e pais revoltados exigiram a retirada do material do ambiente escolar. A
justificativa foi de que a linguagem empregada era inadequada e que o conteúdo
incentivava o sexo.
De acordo com a Secretaria de Educação Fundamental, o objetivo do documento
é promover reflexões e discussões de técnicos, professores, equipes pedagógicas, bem
como pais e responsáveis, com a finalidade de sistematizar a ação pedagógica. Todavia,

1212
a sociedade parece estar despreparada para admitir que jovens iniciam suas vidas sexuais
sem essa orientação, e uma das consequências é justamente a gravidez na adolescência.
Tudo o que diz respeito à educação sexual para crianças e adolescentes gera
polêmicas, isso porque sexo é ridiculamente um tema evitado. Há muitos séculos as
religiões vem propagando a ideia de que o sexo é pecaminoso, sujo e proibido, e
infelizmente a sociedade não consegue se libertar de tais amarras e discutir a sexualidade
e o sexo com naturalidade.
Há sempre a ideia de que o sexo deva ser evitado até que através do matrimônio
possa ser permitido com o intuito de perpetuar a espécie. Esse pensamento ignora que na
atualidade do Brasil já não se espera o matrimônio para iniciar a vida sexual, e que a
internet oferece modelos deturpados de sexualidade baseados em pornografia. Instigados
pelos hormônios e sem educação sexual, os adolescentes se lançam no mundo do sexo
sem o auxílio de materiais contraceptivos e ficam vulneráveis a doenças, a gravidez
precoce e a traumas psicológicos resultante da vivência de uma vida sexual frustrante.
Se a escola está impedida de discutir sexualidade, em muitos casos, pela
intromissão dos pais, imagina-se de que estes se encarregam da responsabilidade de
orientar os filhos, contudo esse papel é negligenciado também pelos responsáveis,
deixando os adolescentes a mercê da própria libido e das consequências acerca do desejo.

3. Marilyn Reynolds e Rita Williams Garcia


Marilyn Reynolds é autora de mais de dez títulos e vários livros da sua série
Hamilton High foram incluídos nos "Melhores livros para jovens adultos" da American
Library Association, incluindo Too Soon For Jeff e Detour for Emmy. Detour for Emmy
recebeu o prêmio Young Adult Book da Carolina do Sul em 1996. Seus livros discutem
temas polêmicos tais como: gravidez na adolescência, abuso sexual, estupro e identidade
de gênero. Além de escrever, Reynolds dá palestras para escritores e professores.
Rita Williams Garcia nasceu no Queens em Nova York, e se graduou na
Universidade Hofstra em 1980. Atualmente é escritora de livros juvenis e leciona em
Vermont College of Fine Arts. A autora recebeu o prêmio “Newberry Honour” em 2011,
os prêmios “Coretta Scott King” e “Scott O’Dell” no gênero de ficção histórica por seu
livro One Crazy Summer.

1213
3.1. Detour for Emmy
Detour for Emmy é narrado em primeira pessoa pela protagonista Emily
Morrison, de 15 anos de idade, que conta sua trajetória desde o aflorar da sexualidade até
o nascimento de sua filha Rosemary. Emmy é uma personagem complexa que luta em
meio a dificuldades, tendo uma mãe alcoólatra, um irmão foragido da lei, e um namorado
que a abandona.
Antes de Emmy entrar na Hamilton Heights High School, ela e suas duas
melhores amigas, Tammy e Pauline, descobrem um livro chamado The Joy of Sex (Os
prazeres do sexo), e passam horas estudando as páginas enojadas e fascinadas.
Quando as aulas iniciam na nova escola, Emmy chama a atenção de Art
Rodrigues, um garoto popular que está no Hamilton Harmonics, um grupo de música o
qual ambas Emmy e Pauline aspiram fazer parte. Emmy e Art usufruem as descobertas
do primeiro amor e a protagonista passa a viver as páginas do livro The Joy of Sex.
O romance de ambos é ofuscado pela dura realidade de uma gravidez precoce.
Art rejeita a paternidade e Emmy tem que crescer em força e maturidade para enfrentar
os desafios da maternidade.

3.2. Like Sisters on the Homefront


Gayle é a protagonista de 14 anos de idade, que engravida pela segunda vez, e é
levada contra sua vontade por sua mãe a uma clínica para fazer um aborto. Seu primeiro
filho, José, é ainda apenas um bebê. Ambas as paternidades haviam sido renegadas. A
mãe de Gayle decide enviar a filha para o estado da Georgia para que viva com os
familiares religiosos e encontre nas raízes da família o amor, e consiga se superar diante
das limitações que as circunstâncias a impõe.
Na Georgia Gayle é recebida por seu tio Luther, sua tia Auntie e sua prima
Cookie. Luther é reverendo e impõe a Gayle uma educação rígida, na qual a personagem
tem que ajudar nos deveres de casa e a cuidar de sua bisavó.
Inicialmente há inúmeros atritos entre Gayle e seus familiares, no entanto a
protagonista se afeiçoa a todos e se torna mais responsável com todas as suas obrigações
e principalmente com os cuidados de seu próprio bebê, José.
A aproximação com sua bisavó, faz com que Gayle conheça a história de toda
sua família, e então, passa a valorizar mais sua mãe. Este processo de assumir inúmeras

1214
responsabilidades faz com que Gayle amadureça e decida retornar aos estudos, e sua mãe
e irmão se mudam também para Georgia para se reunirem a ela.

4. Análise das Obras Detour for Emmy e Like Sisters on the Homefront
As obras, Detour for Emmy de Marilyn Reynolds, e Like Sisters on the
Homefront de Rita Williams Garcia, foram escolhidas para esta pesquisa porque ambas
demonstram que após a maternidade precoce é possível dar continuidade aos estudos e ao
crescimento individual rumo ao amadurecimento e a independência financeira.
Emily Morrison está inserida em uma família composta por seu irmão David, e
sua mãe Barbara, que luta sozinha para sustentar os filhos, e cuja força de trabalho não
consegue mais do que uma renda mensal baixa. Emmy atinge a idade de cursar o que no
Brasil chamaríamos de primeiro ano do ensino médio, e seu aflorar para a sexualidade
chama a atenção de Art Rodriguez, um garoto popular da escola.
Art e Emmy iniciam suas vidas sexuais sem orientações e inevitavelmente,
Emmy engravida. Inicialmente Art quer assumir a paternidade, mas ao mesmo tempo que
quer assumir esta responsabilidade, não quer desistir dos planos de cursar o ensino
superior em outro estado. Ambos acabam se distanciando e Emmy assume sozinha as
consequências da gravidez precoce.
No primeiro momento, Barb insulta a filha e exige que ela faça um aborto ou dê
a bebê para adoção, mas Emmy quer ficar com a filha, apesar da sua condição financeira
não permitir. O que possibilita Emmy manter sua filha, é que na escola onde estuda há
um centro infantil, que através de um programa, funciona como creche e auxilia as jovens
mamães para que elas possam dar continuidade nos estudos.
Durante a gestação Emmy é obrigada a cursar outra grade curricular da escola,
que a isola dos demais estudantes e a prepara para a maternidade, esta mesma grade é
considerada ruim, pois apesar de a preparar para os desafios de cuidar de uma criança,
não a prepara para a realidade da concorrência de vaga no ensino superior, ensino este
que só se torna possível para a personagem por conta de um projeto denominado
“Esperança”.
O ensino superior nos Estados Unidos é em sua maioria pago e na obra, o projeto
fictício Esperança, garante os custos da universidade e dos livros, além de garantir uma
vaga de trabalho no campus escolhido com uma jornada de quinze horas semanais de

1215
trabalho remunerado, mas não há neste programa nenhuma provisão para filhos
dependentes.
Embora o ensino das faculdades comunitárias seja considerado de baixa
qualidade, Emmy opta por estudar em uma localizada em sua cidade, pois não teria como
conciliar os cuidados de Rosie com os estudos em outro local.
Felizmente Emmy é contemplada pelo programa Esperança, após ter seu
currículo cuidadosamente preparado e ter passado por inúmeras entrevistas, isso se deu
devido ao ótimo desempenho de Emmy nos estudos. Com a pequena renda do trabalho,
apoiada pelo centro infantil, e pelo programa Esperança, Emmy consegue dar sequência
aos estudos para futuramente se inserir no mercado de trabalho e sustentar a si mesma e
sua filha.
Se não fosse ajudada, Emmy não teria a menor chance de seguir em frente, assim
como acontece com inúmeras meninas no Brasil, que sem apoio algum de políticas
públicas ficam marginalizadas.
Em sua obra Promiscuities: a Secret History of Female Desire, Naomi Wolf
(1998) comenta sobre a marginalização das meninas que engravidam na adolescência, a
autora afirma que a gestante adolescente comete uma espécie de suicídio social. Em um
país desenvolvido como os Estados Unidos, este problema é presente, ainda há muito
preconceito e recusa em lidar de forma sadia com a gravidez na adolescência, assim como
Emmy, muitas jovens gestantes são obrigadas a deixar a escola regular para cursar uma
nova grade curricular que as preparam para a maternidade, mas não para as universidades.
Embora haja essa relutância em falar sobre gravidez na adolescência, há a
criação de alguns programas como o projeto fictício Esperança, e o centro infantil
apresentados na obra. O Second Chance Housing é um exemplo desse tipo de programa
e é operado e financiado pelo Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano
dos EUA. Configurado como uma casa de apoio para mães adolescentes, o Second
Chance Housing opera em Washington DC e oferece aos adolescentes de baixa renda um
lugar para morar, além de informações sobre habilidades básicas de cuidado infantil,
habilidades profissionais e eventual independência.
Essas políticas públicas nos Estados Unidos, o aborto legalizado em muitos
estados, e investimento maciço em projetos de prevenção a gravidez na adolescência nas
escolas, minimizam o problema da gravidez na adolescência no país.

1216
No Brasil há impedimento de discutir sobre educação sexual nas escolas, não há
nenhum projeto do MEC para incentivar jovens gestantes a continuar o estudo, além de
não haver número suficiente de creches municipais que cuidariam das crianças, para que
estas mães precoces pudessem estudar, e futuramente trabalhar. Há a necessidade
imediata e urgente da criação de políticas públicas, tais como as dos Estados Unidos para
que este problema diminua.
Quando nos referimos especificamente a adolescentes negras e pobres, o número
de gestantes adolescentes é ainda maior. Na obra Like Sisters on the Homefront, a
protagonista negra chamada Gayle, reside em bairro periférico em Nova York, e é
obrigada por sua mãe a abortar o fruto de uma segunda gestação quando ainda tem apenas
14 anos de idade. Enviada para o estado da Georgia, se reúne com familiares e amadurece
para cuidar de si mesma e de seu filho, todavia, apesar de sua família lhe ajudar a cuidar
de seu bebê, e possibilitar seu retorno ao estudo, Gayle é vista somente como a mãe do
futuro dirigente da paróquia da família Luther.
Teresa Wiltz (2015) afirma que disparidades raciais e étnicas persistem em taxas
de gravidez na adolescência, e que os Estados Unidos ainda enfrentam a realidade de que
as adolescentes negras têm duas vezes mais chances de engravidar em comparação às
adolescentes caucasianas. No Brasil a situação é a mesma, isso se dá devido a faixa de
vulnerabilidade em que famílias afrodescendentes se encontram.
A adolescente negra que engravida, embora tenha a opção de dar seu filho para
adoção, decide manter e criar a criança na pobreza, além disso ela pode terminar o ensino
médio, mas é improvável que frequente o ensino superior. Quando Gayle é obrigada a
abortar seu segundo filho, os agentes da saúde a comunicam da opção de dar seu bebê
para adoção, no entanto, Gayle menciona que dificilmente uma criança negra é adotada,
o que constitui uma verdade em relação ao Brasil.
Gayle só consegue retornar aos estudos porque deixa o gueto de Nova York e se
muda para a Georgia, onde residem seus tios que têm uma situação financeira estável. Ao
se reunir a filha, a mãe de Gayle oferece cuidar de José para que a adolescente possa
retornar à escola.
Ambas as personagens, Emmy e Gayle, conseguem dar continuidade as suas
vidas, no sentido de que estão se preparando para a independência financeira. As
protagonistas dão continuidade aos estudos, o que provavelmente lhes garantiriam uma

1217
melhor posição no mercado de trabalho. É possível que muitas adolescentes gestantes
trilhem o mesmo caminho de Emmy e Gayle, desde que haja políticas públicas para
minimizar o problema sistêmico da gravidez na adolescência. Enquanto não houver ações
governamentais que garantam creches para as crianças de mães adolescentes e apoio
financeiro para que continuem os estudos, não haverá a diminuição da vulnerabilidade e
da pobreza as quais essas jovens mamães são acometidas.

Considerações Finais
Esta pesquisa buscou discutir a representação da gravidez na adolescência nas
obras Juvenis de Reynold e Garcia com o intuito de inspirar jovens mães a lutarem pelos
seus direitos e exigirem ações governamentais que garantam seu estudo e condições para
que possam viver dignamente.
As consequências da gestação prematura são piores para as mulheres, que
assumem sozinhas essa responsabilidade. Quando a paternidade é constatada ou aceita
pelo adolescente, a lei obriga que até 30% de sua renda seja direcionada para o
alimentado. Muitas vezes a pensão alimentícia é insuficiente para sustentar uma criança.
É necessária uma revisão imediata desta porcentagem. O justo seria que, obrigatoriamente
50% da renda do pai responsável fosse destinada a criança, dessa forma os rapazes seriam
mais responsabilizados e a criança teria melhores condições de sobrevivência.
Possivelmente esta medida pressionaria os homens que estão no poder legislativo a
aprovarem a legalização do aborto no Brasil.
A independência financeira da voz às adolescentes silenciadas pela
marginalização que a gravidez precoce lhes causou, e as empodera para educar seus filhos
de acordo com suas crenças e ideologias. Dessa forma escapam da pobreza e
vulnerabilidade que as encobriam, além de livrá-las do machismo e autoritarismo dos
homens que as cercam, lhes dando autonomia sobre suas próprias vidas.
No entanto a independência financeira só será adquirida por mães adolescentes
se os governantes do Brasil criarem, através de projetos, possibilidades para que isso
aconteça. É necessário que haja a mobilização da sociedade para reivindicar que a
gravidez na adolescência receba a merecida atenção, e que jovens mães tenham o seu
direito de estudar garantido através da criação de meios para tornar isto possível.

1218
Referências
Brasil – Ministério da Saúde – DATASUS [homepage on the Internet]. Informações de
Saúde – Estatísticas Vitais – Mortalidade e Nascidos Vivos: nascidos vivos desde 1994.
Disponível
em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sinasc/cnv/nvuf.def Acesso em:
11/06/2019.

Desigualdades ameaçam saúde e autonomia das mulheres, alerta fundo de população da


ONU. Disponível em: https://nacoesunidas.org/desigualdades-ameacam-saude-e-
autonomia-das-mulheres-alerta-fundo-de-populacao-da-onu/ Acesso em: 06/06/2019.

GARCIA, Rita Williams. Like Sisters on the Homefront. New York: Puffin Books, 1997.

MORENO, Ana Carolina; GONÇALVES, Gabriela. No Brasil, 75% das adolescentes que têm
filhos estão fora da escola. Disponível em: http://g1.globo.com/educacao/noticia/2015/03/no-
brasil-75-das-adolescentes-que-tem-filhos-estao-fora-da-escola.html Acesso em:
11/06/2019.

Pensão Alimentícia. Disponível em:


https://www.jusbrasil.com.br/topicos/26413395/pensao-alimenticia/artigos Acesso em:
06/06/2019.

REYNOLDS, Marilyn. Detour for Emmy. Buena Park: Morning Glory Press, 1993.

SANTOS, Kate Delfini. Um estudo psicanalítico sobre a maternidade na adolescência:


histórias de abandono, violência e esperança na trajetória de três jovens mães.
Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47133/tde-20072011-
150734/pt-br.php Acesso em 13/07/2019.

TIBA, Içami. Sexo e adolescência. São Paulo: Ática, 1985.

VIEIRA, Maria de Lourdes; BICALHO, Gladys Gripp; SILVA, João Luiz de C. P.; e et
al. Crescimento e desenvolvimento de filhos de mães adolescentes no primeiro ano de
vida. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
05822007000400008 Acesso em: 11/06/2019.

Wiltz, Teresa. Racial and Ethnic Disparities Persist in Teen Pregnancy Rates. 2015.
Disponível em: https://www.pewtrusts.org/en/research-and-
analysis/blogs/stateline/2015/3/03/racial-and-ethnic-disparities-persist-in-teen-
pregnancy-rates Acesso em: 13/07/2019.
WOLF, Naomi. Promiscuities: A Secret History of Female Desire. London. Vintage.
1998.

1219
UM ESTUDO SOBRE REINAÇÕES DE NARIZINHO, DA COMPANHIA DAS
LETRINHAS, A PARTIR DAS NOTAS DE RODAPÉ E DAS IMAGENS DAS
PERSONAGENS

Patrícia Aparecida Beraldo Romano (UNIFESSPA)1

Resumo: Este trabalho pretende apresentar uma breve discussão sobre a obra Reinações de
Narizinho, da editora Companhia das Letrinhas (2019), em cujo texto o jovem leitor encontrará
notas de rodapé, em forma de diálogo entre personagens, que parecem sugerir o papel de um
mediador de leitura. Pretendemos analisar o possível efeito dessas notas “mediadoras” no leitor
contemporâneo. A obra também traz ilustrações a partir de uma ótica de concepção de nossos
jovens leitores do século XXI. Com isso, pretendemos buscar respostas para as possíveís
perguntas: as notas contribuem para informar adequadamente o leitor sobre questões polêmicas
presentes nesse texto infantil de Lobato? Quanto às imagens, elas representam personagens ao
gosto do nosso jovem leitor contemporâneo? Quais seriam as possíveis características delas que
arrebatariam a atenção desse leitor do século XXI?

Palavras-chave: Reinações de Narizinho; mediação de leitura; ilustração.

Em janeiro de 2019 toda obra de Monteiro Lobato passou para domínio público.
Trata-se de uma boa notícia para os estudiosos do autor bem como para o público em
geral que poderá tomar contato, com mais facilidade, com os textos tanto infantis quanto
adultos do autor taubateano. Além disso, já nos primeiros meses de 2019, foi possível
perceber um número bastante grande de editoras que relançaram as obras completas de
Lobato, em especial, as infantis, numa corrida para ganhar a preferência do jovem leitor
a partir de edições bastante cuidadosas dos textos.
Nessa gama de novas edições, está Reinações de Narizinho, da Companhia das
Letrinhas, com prefácio de Marisa Lajolo e notas de rodapé de Cilza Bignotto, além das
belíssimas ilustrações de Lole, que já na capa da obra parecem prender a atenção não
somente dos pequenos leitores, mas também dos “grandes”! São sobre as notas de rodapé
e sobre algumas ilustrações dessa obra que esse texto se construirá na tentativa de
entender se aquelas contribuiriam, de maneira significativa, para uma mediação de leitura
eficaz e estas para que essa edição estivesse mais próxima de um livro ilustrado, em vez
de um livro com ilustrações, como sempre foram as obras infantis de Lobato, ilustradas

1
Doutora em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, professora da Universidade Federal do
Sul e Sudeste do Pará- Campus Marabá. Contato: paromano@unifesspa.edu.br

1220
por diversos nomes famosos ao longo de muitas décadas e se, assim, instigariam a atenção
do jovem leitor contemporâneo.

Algumas palavras sobre notas de rodapé em textos de Monteiro Lobato


Os textos infantis de Monteiro Lobato foram alvo, em momentos históricos
distintos, de vários ataques por conta de temáticas polêmicas muitas vezes presentes em
seus textos infantis, como História do Mundo para Crianças ou mesmo Caçadas de
Pedrinho. Essa última protagonizou a polêmica de 2010, quando o Parecer do Conselho
Nacional de Educação (CNE) colocou a condição de que a obra fosse publicada com
“notas explicativas” nas passagens com possíveis marcas de preconceito, estereótipos ou
ainda doutrinações. Na época, a possibilidade de se inserir notas de leitura incomodou o
público acadêmico e professoral, já que esse tipo de intervenção sugeriria “formas” ou
“maneiras adequadas” de se ler um texto literário, o que não confere com práticas de
leitura de literatura. Para Aldo Rebelo (2010), em texto publicado na Folha de SP, na
época, notas explicativas são feitas com “estudo, reflexão, debate, confronto de ideias,
não com censuras de rodapé”.
Segundo Gérard Genette (2009, p. 283), “A nota [de rodapé] pode aparecer a
qualquer momento da vida do texto” e a ideia é entender como essas notas da edição de
2019 parecem se diferenciar daquilo que foi proposto pelo Conselho Nacional de
Educação em 2010.
As notas de rodapé dessa edição chamam a atenção do leitor porque parecem trazer
um discurso ficcional paralelo ao do texto lobatiano e, com isso, a leitura do leitor não
ficaria comprometida ou mesmo induzida, já que a conversa que se estabelece entre
Narizinho e Emília, nessas notas, elaboradas pela professora Cilza Bignotto, estudiosa de
Lobato, parece sugerir que, caso o leitor tenha mesmo dúvida quanto ao termo ou
expressão utilizados na narrativa, as personagens, da mesma narrativa, estão logo ali no
rodapé da página, para sanar-lhe a dúvida a partir de um divertido diálogo que parece
sugerir a contemporaneidade da narrativa.
Vejamos dois exemplos:

1221
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho (Ilustrações de LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho (Ilustrações de
Lole/Paratextos de Cilza Bignotto). São Paulo: Companhia das Lole/Paratextos de Cilza Bignotto). São Paulo: Companhia das
Letrinhas, 2019, p. 45. Letrinhas, 2019, p. 50.

Conforme podemos perceber nesses dois casos, Narizinho e Emília, ao discutirem


as expressões “Mastro de São João” e “muito boa dona de casa” trazem ao leitor uma
contemporaneidade do texto, como se os leitores pudessem “clicar” nas palavras ou
expressões e um diálogo explicativo se abrisse no texto para eles. E as explicações se
tornam benvindas porque parecem continuar a narrativa “em paralelo”, ou seja, nas notas
que aqui chamaremos de “ficcionais”2. É como se o leitor não saísse da narrativa ao ler
as notas, bem ao contrário do que notas explicativas podem fazer a um texto literário de
literatura infantojuvenil, já que, nesse caso, seria uma espécie de indução a uma única
explicação, a partir de um ponto de vista definitivo ou mesmo uma quebra de expectativa
de leitura gerada pelo texto literário e “destruída” pela nota explicativa.
Por se tratar de uma espécie de continuidade do texto narrativo, o leitor
permaneceria nessa narrativa “paralela”, uma talvez “paranarrativa”3, com as mesmas
personagens do texto literário e ela ajudaria a compreender o contexto da fala das
personagens no texto. Parece que, com essa opção, temos um jovem leitor que conhece o
texto infantil de Lobato e consegue pensar, junto com o comentário das personagens nas
notas ficcionais de rodapé, se ainda hoje tais nomenclaturas se sustentariam, seriam ainda

2
Chamamos de “notas ficcionais de rodapé” a conversa “paralela” ao texto de Lobato que se estabelece
entre Narizinho e Emília no pé da página, sugerindo que essas persoangens falam no contexto da
contemporaneidade do leitor.
3
A uso do neologismo “paranarrativa” faz aqui uma analogia com paratexto no sentido de que as notas,
que consideramos ficcionais, “falam” do texto que o leitor lê e o ajudam a compreendê-lo também de forma
lúdica e divertida, sem perder essa característica do texto infantil de Lobato.

1222
utilizadas ou mesmo se ainda existiriam no mesmo contexto da época em que o escritor
elaborou a história. Essa diversidade de possibilidades delega ao jovem leitor a
capacidade de pensar criticamente sobre o assunto, indo ao encontro daquilo que Lobato
parece sempre ter tentado colocar em seus textos infantis, conforme nos recorda Sônia
Travassos em seu artigo intitulado “Lobato e escola: por que ler obras clássicas com as
crianças de hoje?”: “De acordo também com diferentes pesquisadores, Lobato possuía
um projeto ideológico: abrir, com sua literatura, espaços de interlocução entre a criança
e o mundo, investindo na formação crítica delas” (TRAVASSOS, 2019, p. 101).
Abaixo reproduzimos os dois trechos do texto literário e as duas notas ficcionais de
rodapé que fazem a eles referência. O primeiro, faz referência ao “mastro de São João”;
o segundo, à expressão “muito boa dona de casa”. Vejamos:

Texto literário Paratexto- nota “ficcional” de rodapé


Pedrinho interrompeu a conversa, de ouvido Narizinho:
atento. “Naquele tempo, quem vivia na roça não tinha
-O mastro de São João!...-murmurou enlevado. – telefone, televisão, internet...por isso, muita gente
Quantas vezes no colégio me iludi com os ringidos pensava que as pessoas do campo eram menos
das portas, imaginando que era a bandeira do nosso espertas do que as da cidade. Nada disso! As
mastro!...Como vai ele? nossas diversões eram diferentes; fazíamos lindas
[...] O dia de São João era o grande dia de festa no festas juninas, por exemplo.
Sítio do Picapau Amarelo. Emília:
Tão lindas que o mastro com bandeira de São João
enfeitava o sítio pelo resto do ano...
LOBATO, 2019, p. 45 LOBATO, 2019, p.45

No tempo de Lobato as festas juninas eram, de fato, juninas, com músicas de acordo
com o festejo e com todos os doces típicos, bem como os festejos de rojões e as danças
de quadrilhas. Tendo em vista que o Sítio ficaria num espaço de roça, de cidade do interior
do país, e que os meios de comunicação de hoje sequer existiam, festas típicas eram
motivos para muita diversão popular e lembrança pelo resto do ano, como é o caso de se
hastear a bandeira de São João no mastro e de ela permanecer, como lembra Emília,
hasteada até final do ano no Sítio. As crianças ou mesmo o jovem contemporâneo não
estão mais acostumados a festas típicas brasileiras. Muito delas, como as juninas, foram
descaracterizadas e muitos nem sabem mais o que vem a ser um mastro, muito menos que
as festas se comemoram em dias de santos, como é o caso da de São João. Sendo assim,
a nota “ficcional” esclarecedora coloca o leitor em xeque com as diferenças de épocas
históricas e ainda abre a possibilidade de discussão desse assunto, que é apresentado no

1223
diálogo entre Narizinho e Emília como algo a ser, ainda, questionado pelos jovens leitores
de hoje.
Com isso, parece-nos que as notas que chamamos de “ficcionais” contribuiriam
para que uma discussão de ideias se estabeleça nos leitores contemporâneos e que eles
questionem como eram tais situações no passado e como são as mesmas hoje, ou mesmo
se ainda existem como tais.

Possibilidades de leitura de Reinações de Narizinho a partir das ilustrações:


breves impressões sobre a leitura das imagens.
Os textos infantis de Monteiro Lobato sempre vieram acompanhados de ilustrações,
feitas por variados nomes da ilustração, como Voltolino, Belmonte, Nino, Augustus, Jean
Villin, Wiese, Raphael Lamo, Rodolpho, J. U. Campos e demais artistas que, mesmo
depois da morte de Lobato, ilustraram seus textos. Embora com ilustrações belíssimas,
elas compunham, junto com o texto lobatiano, um livro com ilustrações, cujo trabalho
encantou muitos jovens leitores do tempo em que Lobato produzia seus textos.
Com a entrada de Lobato em domínio público, novas edições da obra apareceram
no mercado e essa da Companhia das Letrinhas traz ilustrações de Lole, Alessandra
Lemos, que parece prender a atenção do leitor logo na capa do livro. Nela Narizinho
aparece como garota que é transportada pelo vento e pela água ao Reino das Águas Claras.
Temos um fundo azul, com peixinhos e com nuvens brancas, céu e águas cristalinas num
feliz encontro entre realidade e sonho de Narizinho que a transportam para o reino do
Príncipe Escamado. Na imagem da capa4, o leitor ainda se depara com um certo
movimento, já que a menina parece ser transportada pelo sonho e pela imaginação. Trata-
se de um feliz encontro entre essas esferas que vão fazer parte a todo momento da
narrativa que aguarda o jovem leitor.
Somado a isso, o leitor se depara com uma profusão de cores vibrantes que prendem
o olhar e o instigam a abrir o livro e a descobrir o que há dentro dele, cuja capa o anuncia
quase que como um apelo ao nonsense, já que praticamente todas as aventuras das
crianças se passam na imaginação delas. Vale lembrar que a contracapa (ou quarta-capa)
traz outras personagens do Sítio, como Tia Nastácia, Pedrinho, Marquês de Rabicó na

4
Não reproduzimos no trabalho a imagem por conta de direitos autorais. Pelo mesmo motivo citaremos as
páginas da edição onde se encontram as duas ilustrações sobre a qual falaremos à frente.

1224
mesma posição de viagem pelo imaginário na qual aparece, em imagem ampliada e na
capa, Narizinho, que dá nome às Reinações. Com isso, a capa de Lole nos sugere a “toca
do coelho”, de Alice no país das maravilhas: parece ser o pó do pirlimpimpim levando
personagens e leitores ao mundo das aventuras fantásticas do Sítio do Picapau Amarelo.
Para falar brevemente sobre as ilustrações do interior da narrativa de Reinações
(2019), escolhemos duas delas. A primeira encontra-se na página 27 e a segunda, na
página 140, respectivamente.
São muitas as ilustrações ao longo da narrativa, e todas apresentam as cores fortes
que captam o leitor pelo olhar. Além disso, há sempre uma marca nonsense na ilustração
o que pode sugerir ao leitor uma certa liberdade de leitura visto que, no nonsense, há a
possibilidade de um certo humor no aparentemente sem sentido. Também é possível
acrescentarmos que essa liberdade de se estar no “sem sentido” atrai crianças e jovens,
pois lhes parece permitir viver o mundo imaginário que criam em suas vidas. Partimos,
assim, da ideia de que as ilustrações de Lole antecipam uma possível leitura primeira do
que ocorrerá no capítulo, ou nas páginas seguintes do texto, a partir de suas ilustrações.
Algo como a permissão de se imaginar, como leitor solitário ou com a colaboração de um
mediador, antecipadamente, possibilidades de leitura a partir das imagens da ilustradora.
Pensemos nessa possibilidade a partir dessas duas ilustrações. A primeira encontra-
se na página 27 de Reinações, e assume a página inteira do livro. O leitor se depara com
uma imagem de Emília, a primeira imagem dela no texto antecipada apenas por sua
carinha nas notas “ficcionais” de rodapé. Embora ela esteja em página seguinte ao texto
que a apresenta recebendo a pílula falante do Dr. Caramujo, e que faz referência à
ilustração, por estar em página inteira, parece inevitável que o leitor pare a narrativa para
olhar a ilustração.
Emília se apresenta como a gigante que será em toda a saga infantil. E merece,
portanto, aparecer de forma “gigantesca” para o leitor, afinal, será como lembra Lobato
em carta a Godofredo Rangel, de 01 de fevereiro de 1943,
Emília começou uma feia boneca de pano, dessas que nas quitandas do interior
custavam 200 réis. Mas rapidamente evoluiu, e evoluiu cabritamente –
cabritinho novo- aos pinotes. Teoria biológica das mutações. E foi adquirindo
uma tal independência que, não sei em que livro, quando lhe perguntam: “Mas
que você é, afinal de contas, Emília?”. Ela respondeu de queixinho empinado:
“Sou a Independência ou Morte”. E é. Tão independente que nem eu, seu pai,
consigo dominá-la. Quando escrevo um desses livros, ela me entra nos dedos
que batem as teclas e diz o que quer, não o que eu quero. Cada vez mais, Emília
é o que quer ser, e não o que eu quero que ela seja”. (LOBATO, 2010, p. 551)

1225
E o olhar do leitor inevitavelmente se dirige para a enorme língua que envolve toda
a boneca. Língua que a torna a personagem mais irreverente da saga infantil e a mais
adorada dos leitores, conforme comprovam as muitas cartinhas escritas por eles a à
boneca direcionada, disponíveis no acervo Raul de Andrada e Silva, no Instituto de
Estudos Brasileiros (IEB/USP). Além disso, Emília tornar-se-á a porta voz das ideias
lúdicas de Lobato sobre vários assuntos destinados ao jovem público leitor. Como boneca
de pano que é, Lole a apresenta composta por retalhos dos pés à cabeça. Sua enorme
cabeleira, em tons particularmente rosados/pink e lilases (tons muito recorrentes nas
ilustrações de Lole em diversos personagens e ambientes), sugere ter sido elaborada a
partir de fios de lã, típicos de cabelos de bonecas de pano feitas à mão.
Os tons rosas/pink e lilases perfazem toda sua constituição, inclusive no pano que
representa sua pele de boneca. Pensando na possibilidade de que esses tons estejam
relacionados à feminilidade, podemos pensar que apelam, inclusive, à infância feminina,
aproximando-as desse público leitor já que, tanto Emília quanto Narizinho, apresentam
essas cores em sua constituição. Não podemos esquecer que Emília é boneca de
Narizinho, feita por Tia Nastácia. Todas moram no Sítio dirigido por Dona Benta.
Estamos na esfera do feminino, portanto, e isso parece se evidenciar nas cores que
constituem Emília e Narizinho. O leitor se depara com a enorme língua pink de Emília
que, em muitos episódios das narrativas do Sítio, será responsável por momentos de
tensão causados pela boneca, ou de resolução de problemas, graças à mesma língua de
pano dela.
Enfim, depois de se deparar com a ilustração e ir ao texto ou mesmo sair do texto e
ir à ilustração, o leitor nela encontra as palavras que Lobato usou para criar a boneca
falante:
Emília engoliu a pílula, muito bem engolida, e começou a falar no mesmo
instante. A primeira coisa que disse foi: “Estou com um horrível gosto de sapo
na boca!”. E falou, falou, falou mais de uma hora sem parar. Falou tanto que
Narizinho, atordoada, disse ao Doutor que era melhor fazê-la vomitar aquela
pílula e engolir outra mais fraca.
-Não é preciso –explicou o grande médico. –Ela que fale até cansar. Depois de
algumas horas de falação, sossega e fica como toda gente. Isto é “ fala
recolhida”, que tem de ser botada pra fora.
E assim foi. Emília falou três horas sem tomar fôlego. Por fim, calou-se
(LOBATO, 2019, p. 26).

E assim a gigante língua de Emília na ilustração de Lole faz jus ao que o leitor
descobre sobre a boneca depois de curada pelo Dr. Caramujo.

1226
A segunda ilustração abre o capítulo “Cara de Coruja”. Ao observarmos a imagem,
ficamos seduzidos pelas cabeças de Emília e Narizinho que aparecem, ao mesmo tempo,
como composição do corpo delas e como sugestão de estarem dentro das histórias do livro
que lêem, ou ainda das aventuras que se encontram dentro de sua imaginação. Numa
perspectiva novamente de nonsense/surreal, o leitor se depara com uma poltrona onde se
encontram Emília e Narizinho lendo/vivenciando suas próprias aventuras, já que o
capítulo tratará da chegada das personagens do País das Maravilhas ao Sítio. Assim, a
poltrona se encontra sobre um tapete e ambos no possível terreiro frutífero do Sítio de
Dona Benta, que é o espaço por onde chegam as personagens do País das Maravilhas. No
tapete e no terreiro estão, em forma de miniaturas, algumas dessas personagens, como as
princesas Cinderela, Branca de Neve, Capinha Vermelha, bem como outras personagens
dos Contos de Fadas que sempre permearam a imaginação da menina e também da
boneca.
Para o leitor que não conhece o capítulo, fazer uma possível leitura da ilustração,
sozinho ou mesmo com a ajuda de um mediador é um exercício que pode se tornar muito
divertido. As princesas saem do livro, onde se encontram a cabeça/imaginação das
personagens bem como ficam pairando no ar, já que fazem parte do mundo da imaginação
das meninas e também se estabelecem no solo, possivelmente aludindo à entrada no Sítio
de Dona Benta pelo terreiro da casa.
Todo esse exercício lúdico, mais uma vez, rico em cores fortes, com imagens que,
em princípio, parecem desconectadas, podem ganhar deliciosa conexão a partir da
instigação de um professor mediador de leitura.
Assim, chegamos à ideia que no início apresentamos como uma das hipóteses de
nosso trabalho: as ilustrações de Lole parecem sugerir ao texto de Reinações a
aproximação dele à de um livro ilustrado em vez de um livro com ilustrações, como
sempre foram os textos anteriormente publicados pelas editoras que publicaram Lobato.
Acreditamos, conforme Nikolajeva e Scott (2011, p.13), que “o caráter ímpar dos livros
ilustrados como forma de arte baseia-se em combinar dois níveis de comunicação, o
visual e o verbal” e conseguimos perceber essa marca na edição dessa obra com as
ilustrações de Lole. Ainda nessa linha, conforme nos lembra Peter Hunt (2014, p.233), o
livro ilustrado não é a mesma coisa que um livro que contém ilustrações, embora a

1227
"distinção [seja], em grande parte, organizacional. Porém se lembrarmos que a ilustração
altera a maneira como lemos o texto verbal, isso se aplica ainda mais ao livro ilustrado”.
Nessa perspectiva, parece-nos que tanto crianças como jovens e adultos podem
encontrar um lúdico atual na obra de Monteiro Lobato. Imaginamos que o mundo do
nonsense, dos sonhos, do surreal proporcionado pelas ilustrações de Lole possam gerar
uma proximidade maior com a criança, mas também são marcas que atraem jovens e
adultos. Assim, lembramos novamente Nikolajeva e Scott (2011, p. 61): “As ilustrações
não só refletem o estilo individual do artista e sua sensibilidade à história, mas também o
estilo geral delas em determinado período, ideologia, intenções pedagógicas, visões da
sociedade sobre certas questões”.

Considerações Finais
Diante do que apresentamos quanto às notas de rodapé ficcionais e às ilustrações
relativamente nonsense/surrealistas da obra Reinações de Narizinho (2019), da
Companhia das Letrinhas, parece-nos que ambos os recursos contribuem para renovar a
obra de Monteiro Lobato, sem alterar a escrita original do texto e, por isso, podem
contribuir de maneira bastante significativa para trazer ao leitor mirim do século XXI
discussões de temas ainda muito atuais na sociedade brasileira, que mereceram destaque
no início do século XX e continuam merecendo no século XXI, apenas necessitando
serem lidos sob a ótica da nossa contemporaneidade.

Referências
GENETTE, Gérard. Paratextos editoriais. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.
HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho (Organização de Marisa Lajolo/Ilustrações
de Lole/ Paratextos de Cilza Bignotto). Companhia das Letrinhas, 2019.
______. A Barca de Gleyre. São Paulo, Globo, 2010.
REBELO, Aldo. “Monteiro Lobato no tribunal literário” in Folha de SP, 07/11/2010.
Disponível em
http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=140984&id_secao=11, acesso
em 11/07/2019.

1228
TRAVASSOS, Sônia. Lobato e escola: por que ler obras clássicas com as crianças de
hoje? In Revista da Biblioteca Mário de Andrade, n. 73 (Monteiro Lobato). São Paulo:
Departamento Biblioteca Mário de Andrade, 2019.

1229
O CONTO DE FADAS LITERÁRIO DE AUTORIA FEMININA: UMA REFLEXÃO A
PARTIR DOS APONTAMENTOS INAUGURAIS DE NELLY NOVAES COELHO

Paulo César Ribeiro Filho (USP)1

Resumo: A partir dos apontamentos de Nelly Novaes Coelho (in memoriam), fundadora da área
de literatura infantil e juvenil da Universidade de São Paulo e um dos maiores expoentes da
crítica literária relativa à área em questão, busca-se, neste estudo, além de esboçar uma trama de
relações intertextuais que alinhava os contos de fadas literários de autoria feminina a uma
tradição contística de natureza escrita, delinear alguns de seus peculiares aspectos estruturais, a
fim de distingui-los daqueles que constituem o conto de fadas popular.
Palavras-chave: Conto de fadas; Romance precioso; Nelly Novaes Coelho

Duas figurações introdutórias


A metáfora do texto como um tecido mostra-se sempre oportuna quando se fala
em intertextualidade aplicada aos contos de encantamento (contos maravilhosos, contos
de fada, contos folclóricos, fábulas, apólogos, etc.). Isso porque o arcabouço temático
que fornece matéria-prima para essas e outras formas de expressão artística do
imaginário origina-se inequivocamente da experiência humana em toda sua gama de
inquietudes, fascínios, tabus, prazeres e medos, enfim, de todos os sentimentos inerentes
ao homem desde os primórdios de sua existência. No caso do conto de fadas, foco desta
análise, tal consideração ganha reforço por se tratar de um tipo de narrativa que “têm
como eixo gerador uma problemática existencial” (COELHO, 1991, p. 12-13). Sabe-se
que as tramas que compõem a tessitura constituinte de um conto de fadas, aquele em
cujo cerne está um argumento ligado à realização de determinadas “atitudes humanas”
(COELHO, 1991, p. 11), são, por isso, suturadas por fios de procedências múltiplas e de
posse coletiva, cujas pontas iniciais não podem ser encontradas no interior do próprio
texto, pois rompem os seus limites materiais, estão emaranhados, e formam teias
moventes que excedem tempo e espaço.
Um segundo paralelo metafórico pode ser feito com a dança folclórica
coreografada conhecida como pau-de-fitas, em que uma ciranda de dançarinos, cada
qual portando a extremidade de um laço de cores sortidas, dança em volta de um mastro
em cujo topo, o núcleo dos vetores, a outra extremidade está amarrada; ao longo dos
movimentos, que não se restringem a uma única coreografia, as fitas vão se trançando
até revestirem o mastro por completo; tão inúmeras quanto os possíveis resultados finais
1
Doutorando em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, Mestre em Literatura
Portuguesa (USP), Bacharel e Licenciado em Letras (USP). Contato: paulo.cesar.filho@usp.br.

1230
são as variáveis que poderiam levar a uma trama diferente: além da alternância de
coreografias e ritmos, poderíamos citar a cor das fitas, a quantidade delas, a posição dos
dançarinos, etc. Juntas, as duas metáforas apresentadas são capazes de suscitar uma
série de conjecturas a respeito da natureza intertextual dos contos de fadas e seus motes.
Entende-se, portanto, que os fios que perpassam suas tramas (ou os laços que se
trançam de diferentes modos, no caso da dança com fitas) têm origem popular,
procedem do povo e de suas experiências. Ao se apropriar desses fios, o(s) autor(es)
age(m) como um tecelão que tem em suas mãos a possibilidade de fabricar tecidos de
diferentes cores, texturas, tamanhos e densidades. Tais figurações tornarão mais claras
as oposições que serão estabelecidas, ao longo deste estudo, entre o “conto de fadas
popular” e o “conto de fadas literário”, possibilitando, inclusive, uma definição mais
didática do chamado “romance precioso”.
Por uma nova filologia
Em Nelly Novaes Coelho há a seguinte afirmação:

Explora-se também [nos contos maravilhosos em geral] a técnica da


intertextualidade (a absorção de um texto antigo por um texto novo), técnica
resultante da consciência de que não há texto original, pois cada texto novo
depende visceralmente de um texto anterior e este, de outro, e assim ad
infinitum, até chegar a um hipotético (ou esquecido) texto inaugural.
(COELHO, 2000a, p. 155)

Partindo-se da ideia de que mesmo as fontes escritas apontadas como gérmen de


uma série de contos de fadas franceses foram invariavelmente elaboradas a partir de
motivos da tradição popular, torna-se desnecessário reiterar, daqui em diante, que
expressões como “registro escrito”, “cultura escrita” e demais termos que tenham o
adjetivo “escrito(a)” como qualificativo, não estão isentos dos pressupostos contidos nas
metáforas anteriormente apresentadas. Ou seja, torna-se explícita a intenção de não se
estabelecer uma hierarquia entre “oral” e “escrito”, bem como entre “popular” e
“literário”, já que tais categorias encontram-se amalgamadas principalmente quando se
trata da análise de contos dessa natureza. O uso da expressão “fontes escritas” estará,
sim, em oposição ao de “fontes orais” no sentido do método empregado para a
composição do texto: no primeiro caso, através da atestada consulta a obras impressas e,
no segundo, pela primordialidade da recolha de testemunhos orais.

1231
Uma segunda ressalva indispensável diz respeito à recusa do qualificativo
“original” para se referir aos diferentes contos de fadas de uma mesma tradição. A
chamada nova filologia encontra no Elogio da variante, de Bernard Cerquiglini, a
manifestação de uma nova postura referente às várias versões de um mesmo texto.
Cerquiglini postula que “a obra literária na Idade Média é uma variável” e, “nesse
sentido, se opõe à autenticidade e à unidade que os modernos associam a toda produção
estética” (CERQUIGLINI, 2005, p. 66), um apontamento que, apesar de se referir
nomeadamente aos textos medievais, pode ser estendido, sem prejuízo ou deturpação de
sentido, aos conjuntos de textos em que se situam os contos de fadas nos séculos XVII e
XVIII, obras literárias em que o conceito de originalidade não pode ser aplicado sem
grandes ressalvas. Essa noção de variância proposta por Cerquiglini está em
consonância com o conceito de movência apresentado por Paul Zumthor:

o caráter de uma obra que, como tal, antes da era livresca, emerge de uma
quase abstração, dado que os textos concretos que a compõem apresentam,
por intermédio das variantes e reconstituições, uma espécie de vibração
incessante e uma instabilidade fundamental (ZUMTHOR, 1972, p. 507)2

Aliadas, as definições de movência e variância procuram minimizar a ênfase dada


por algumas vertentes presentes no campo de estudo da filologia tradicional e da crítica
genética que se propõem, entre outros objetivos, a reconstituir a arquitetura primitiva de
um texto para atestar-lhe a originalidade ou empreender uma busca pelos “originais”
perdidos de uma determinada obra. Os conceitos de movência e variância estão
intimamente relacionados à necessidade de se compreender que há uma importante rede
de interações tanto orais quanto escritas evidenciadas nas variantes, entendendo-as
como textos autênticos e integrais, eliminando hierarquias entre “prototextos integrais”
e derivados falhos ou lacunares.
Temos um exemplo: os motivos que compõem os argumentos de uma estória
como A Bela e a Fera encontram-se na referida esfera da experiência humana, de uma
atitude existencial, engendrando mitos (na dimensão do sagrado), arquétipos (na
dimensão dos paradigmas humanos) e símbolos (na dimensão da linguagem) que não
podem ser rastreados a partir de procedimentos de natureza arqueológica na intenção de

2
Tradução livre. “[...] le caractère de l’oeuvre qui, comme telle, avant l’âge du livre, ressort d’une quase-
abstraction, les textes concrets qui la réalisent présentant, par le jeu des variantes et remaniement, comme
une incessante vibration et une instabilité fondamentale.”

1232
chancelar o que seria a “melhor” ou a “mais completa” versão. Neste caso, não cabe
dizer que a narrativa de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, de 1756, é incompleta,
lacunar ou inferior à de Gabrielle-Suzanne Barbot de Villeneuve, de 1740, de
longuíssima extensão. Aliás, essas duas narrativas expressam diferentes posturas
autorais quanto modo de efabulação escolhido para dar forma à narrativa. Fazendo uso
de um mesmo fio, as duas damas aristocratas costuraram diferentes tecidos, variantes,
que desde então vêm sendo remodelados indiscriminadamente (na acepção mais
positiva possível do termo)3.
As fontes dos contos de fadas franceses
A leitura predileta nos elegantes salões literários franceses dos séculos XVII e XVIII era
a de distintos contos de fadas que, assumindo a forma narrativa de extravagantes e extensos
romances preciosos, permaneceram em voga durante o período historicamente demarcado pelo
reinado de Luís XIV, o Rei Sol. Grandes damas da alta aristocracia estiveram no âmago dessa
produção de matéria feérica, que se tornou a expressão literária modelar do preciosismo, uma
das vertentes artísticas do Barroco francês. Nelly Novaes Coelho esboça uma rota literária
bastante coerente quanto ao trajeto percorrido pelas fadas e toda sua comitiva mágica
proveniente das fontes célticas-bretãs até os quatros livros que elenca como os mais
decisivos para a definição e implementação do que viria a se tornar a forma canônica do
conto de fadas literário francês e do romance precioso.
Os celtas: Esse percurso panorâmico pode ser iniciado pela seguinte máxima em
relação às fadas: “Quanto a serem de origem celta, parece não haver mais nenhuma
dúvida entre os pesquisadores” (COELHO, 1991, p. 32). Nelly aponta que foi entre os
celtas, grupo formado por um conjunto de diversos povos que se espalharam pela maior
parte do Oeste da Europa, concentrados sobretudo nas Gálias, Irlanda e Ilhas Britânicas,
que nasceram as fadas, figura em cuja origem “real” estariam as arcanas ou druidesas,
mulheres possuidoras de dons especiais ligados à magia presente no conhecimento da
natureza. A atmosfera mística e maravilhosa que paira sobre o conto de fadas e lhe serve
de fundo seria uma herança cultural desses povos. Tal é o encantamento que caracteriza
as novelas de cavalaria do ciclo céltico-bretão, como o do Rei Artur (COELHO, 2000b,

3
Hierarquia semelhante costuma se estabelecer entre Petrosinella, de Giambattista Basile (1637),
Persinette, de Charlotte-Rose Caumont de La Force (1698) e Rapunzel, dos Grimm (1812). As matérias
comumente anunciam chamadas como “Conheça a verdadeira história de...”, como se o primeiro registro
escrito deste ou de outro conto expressasse um conteúdo mais fidedigno que as demais variantes do
mesmo mote.

1233
p. 175). Estes ciclos de novelas, aliados aos motes da literatura cortesã-cavaleiresca
medieval e aos lais4 da Bretanha, trazem ao público as primeiras referências a fadas
como personagens ou figuras reais (COELHO, 1991, p. 33). Muitos séculos se passaram
até que se iniciasse a dissolução entre as fronteiras espirituais do pensamento
mágico/pagão céltico-bretão com o pensamento cristão, a qual acabou por proporcionar
uma acepção do maravilhoso nas quais essas duas mundividências se combinam a ponto
das manifestações de entidades pagãs serem consideradas milagres, bênçãos da
providência divina, sem nenhum estranhamento. Vide as novelas do ciclo do Santo
Graal. “Segundo os historiadores, a lenta fusão dos rituais pagãos dos celtas com a
liturgia cristã se deu entre os séculos VI e XI de nossa era” (COELHO, 2016, p. 77). As
aventuras heroicas dos cavaleiros, um misto de episódios reais com passagens
fantasiosas, serviram de matéria para incontáveis poemas épicos e novelas de cavalaria.
Estes gêneros, que segundo Nelly não têm origem no Oriente nem em fontes greco-
romanas, apresentam “muitos rastros daquelas primeiras fontes” céltico-bretãs
(COELHO, 2016, p. 50). Estima-se, finalmente, que “o sucesso das novelas arturianas,
iniciado no século XII, vai se manter inabalável até o início do XVII” (COELHO, 1991,
p. 47).
As fadas encantam os letrados: Nelly lança luz sobre dois processos que ocorrem
simultaneamente em diferentes localidades da Europa: ao sul, enquanto a poesia
trovadoresca e as canções de gesta5 expandem-se não só entre o povo do campo, mas
também pelas cortes, ao norte, “círculos mais restritos de poetas letrados” passam a se
dedicar à exploração literária de emoções mais intimistas, tendo o Amor por tema
básico; “nascem os romances corteses, poemas escritos não mais para serem
declamados ao som de música, mas lidos em voz alta diante de um auditório seleto”,
além de possuírem um certo “aperfeiçoamento estilístico” que os tornaram “mais
literários que as canções de gesta” (COELHO, 1986, p. 122-123). Nelly elenca três tipos
básicos de romances corteses: (1) os Romances de Antiguidade, que continuam a narrar
os motes aventurescos típicos das canções de gesta; (2) o Romance Bizantino, que

4
O lai é uma forma de romance medieval que circulou em língua francesa e língua inglesa. Os lais são
curtos contos rimados de amor e cavalaria envolvendo motivos sobrenaturais. Os lais escritos mais
antigos a que se tem acesso são dos de Marie de France, datados da década de 1170.
5
Poemas épicos franceses compostos para serem acompanhados de música que circularam entre os
séculos XI e XII; a mais antiga de que se tem notícia é A Canção de Rolando, cujos manuscritos datam do
ano 1100.

1234
narram os feitos dos heróis gregos; e (3) o Romance Bretão, cujo berço se encontraria
nas províncias anglo-francesas e que passaria a desenvolver, em forma de romance,
temas tradicionais dos povos célticos e bretões, “onde se mesclam o real e o
maravilhoso” (COELHO, 1986, p. 123). É nesse terceiro tipo de narrativa em que “o
romanesco e a fantasia se misturam à epopeia e começam a surgir as aventuras
extravagantes e maravilhosas”, em que não somente heróis épicos, mas também figuras
da corte e do povo simples passam a se relacionar com seres mágicos, lutar contra
monstros e viajar para países feéricos. “O Romance Bretão foi o que teve mais difusão
nos séculos XII e XIII, e acabou definindo aquilo que hoje chamamos de Romance
Cortês” (COELHO, 1986, p. 123). O maravilhoso pagão mesclado ao cristão e a fatos
históricos também se encontra presente nos inúmeros livros de linhagem muito
populares nesse período em particular, como as hagiografias, crônicas e literatura
moralizante/prosa doutrinal.
O modelo italiano: Uma história estruturada em torno de 100 contos contados por
sete moças e três rapazes ao longo de dez dias, publicada entre 1348 e 1353, acabou por
celebrizar um modo de narrar largamente imitado nos séculos seguintes. Trata-se do
Decameron, de Giovanni Boccacio, considerado uma das pioneiras a romper, em termos
literários, com a mundividência medieval marcada pelo sentimentalismo do amor
espiritual, inaugurando uma efabulação às vezes longa, mas ainda assim concisa do
ponto de vista da agilidade com que o enredo avança, e mais realista (na acepção mais
ordinária do termo) que as produções antecedentes. A verossimilhança presente nos
diálogos repletos de referências históricas e geográficas, bem como a conjugação de
motivos e causos populares na composição dos contos estabelece uma estrutura de
composição literária que, posteriormente, será desenvolvida mais propriamente nas
obras-primas de Giambattista Basile, Gianfrancesco Straparola da Caravaggio, Giulio
Cesare Croce, Gonçalo Fernandes Trancoso e Marguerite de Navarre. As fontes do
Decameron, como bem se pode antever a essa altura desse panorama, foram motivos
populares que circulavam na Itália de então, alguns deles recolhidos diretamente de
informantes do povo, além de episódios presentes no fabulário grego e latino.
Destacam-se também as narrativas francesas e espanholas que já circulavam escritos em
suportes populares.

1235
As fadas na França: Voltando a atenção à cena literária francesa, faz-se
necessário destacar uma importante figura real que esteve no centro do processo de
“refinamento” dos modos de vida na corte em todos os seus aspectos, notadamente o
artístico. Trata-se da rainha consorte Alienor D’Aquitânia, esposa de Luís VII (1137-
1152). Em Nelly temos as seguintes informações:

Neta de Guilherme de Poitiers, o mais antigo dos trovadores provençais,


Alienor é uma apaixonada das artes e torna-se protetora dos poetas e artistas,
atraindo à sua volta uma sociedade refinada e culta. Seu exemplo, no
incentivo à cultura e às artes em geral, é seguido mais tarde por sua filha
Marie de France, que passou à História como a primeira poeta francesa. Em
1152, a rainha Alienor, repudiada por Luís VII, casa-se com Henrique II e
torna-se rainha da Inglaterra. Assim, ainda menina, Marie de France muda-se
para a corte britânica. Lá completa sua educação e, com os trovadores da
corte, passa a conviver com a literatura de matéria bretã, impregnada pela
magia sonhadora dos celtas. Apaixona-se por essa literatura e torna-se, ela
própria, uma de suas mais importantes divulgadoras [...] Marie de France,
encantada com os primitivos e líricos lais bretões, impregnados desse novo
ideal, entrega-se ao trabalho de traduzi-los para o francês: nascem as
narrativas maravilhosas, conhecidas como os Lais de Marie de France. Neles
se expressa uma visão nova de mulher, do amor e de um mundo misterioso,
onde os objetos têm vida, onde reinam as fadas e os magos; onde os animais
falam, os homens transformam-se em animais, os heróis realizam feitos
sobre-humanos e onde existem os ‘filtros de amor’. Hoje, conhecidos como
as células líricas das novelas arturianas (e de muitos contos de fadas que se
tornaram famosos), os Lais de Marie de France estão entre os textos que
cumpriram a importante tarefa de divulgar o espírito céltico-bretão para o
resto da Europa e de auxiliar a fusão do antigo ‘paganismo’ com o espírito
cristão. (COELHO, 1991, p. 47-49)

Seguindo a mesma trajetória do restante da Europa, os motes presentes nos lais


franceses vão adquirindo novas formas ao passar dos séculos, reestruturados e
remodelados, dentro dos referidos círculos letrados, de acordo com as tendências
literárias e gosto do público. O Romance Cortês, já em meados do século XVI, às portas
do neoclassicismo e do Renascimento cultural francês, vai cedendo espaço para uma
nova forma de narrativa, o romance precioso, cuja forma também se encontra “no rastro
do chamado Romance Pastoral, de grande sucesso no século anterior” (COELHO, 1986,
p. 149-150). Nelly aponta quatro obras seminais para o estabelecimento do rol de
argumentos presentes nos romances preciosos, também chamados de contos de fadas
para adultos: “trata-se das coletâneas feitas pelos italianos Caravaggio, Basile, Croce e
pelo português Trancoso” (COELHO, 1985, p. 40), ou seja, respectivamente, Noites
Agradáveis, Conto dos Contos ou Pentameron, Astúcias Sutilíssimas de Bertoldo e

1236
Contos e Histórias de Proveito e Exemplo, todas localizadas no entorno dos séculos
XVI e XVII e estruturalmente inspiradas no Decameron de Boccacio. Mme. de Murat,
importante autora do século XVII francês, chegou a afirmar que todos os contistas de
então, inclusive ela, estava tirando estórias de Pentameron para desenvolver em seus
romances preciosos (BOTTIGHEIMER, 2009, p. 61). Cabe adicionar, como um
possível quinto livro de cabeceira, o Heptameron, um conjunto de breves novelas
escritas em francês pela rainha consorte Margarida de Angoulême, esposa do rei de
Henrique II de Navarra, publicada 1558. Seguindo o modelo do Decameron, a obra se
estrutura em torno das histórias contadas por cortesãos como entretenimento enquanto
estão isolados por tempestades. As fontes de tais aventuras amorosas são as mesmas das
demais: os romances de cavalaria, as canções de gesta, os lais bretões, etc.
As narrativas fantasiosas e burlescas de matéria feérica que compõem o romance
precioso são apontadas por Nelly e pela crítica em geral como “ponto de partida do
gênero ‘romance’, a ser criado pela civilização burguesa a partir do século XVIII”
(COELHO, 1986, p. 149-150). O que prevalece no romance precioso (cujo nome está
ligado ao preciosismo, vertente literária do Barroco francês, como foi o cultismo ou
gongorismo espanhol) é a aventura sentimental, o “heroísmo da paixão, que suporta mil
provas para dar testemunho de sua verdade.” (COELHO, 1991, p. 87)

Esses relatos romanescos, que se passam no reino da livre imaginação,


tornaram-se conhecidos como ‘romances preciosos’ ou ‘romances barrocos’.
São narrativas muito extensas em que se mesclam aos jogos dos amores
galantes, as mais estranhas aventuras: pirataria, maravilhosas, bizarras,
longas narrações de ações que, embora transcorrendo no mundo real (em
lugares, povos e personagens reconhecíveis) na verdade limitam-se ao mundo
da ilusão, da imaginação pura e romanesca, tendendo ao inverossímil. Trata-
se de uma estrutura narrativa cuja explicação pode ser encontrada em
determinadas características da época barroca: preciosismo, jogos de
imaginação, fuga evidente à realidade circundante, uma vez que a arte
deveria desenvolver-se numa supra-realidade — no plano estético ou ideal.
(COELHO, 1986, p. 150)

É nesse contexto que se destacam as preciosas, mulheres cultas que reuniam


intelectuais e artistas da época em seus salões literários, onde eram difundidas (e até
criadas) “as obras que se transformavam em moda” (COELHO, 1991, p. 70). Esses
salões elegantes proliferaram durante o reinado de Luís XIV, e Charles Perrault era um
de seus assíduos frequentadores. Sua sobrinha, Mlle. L’Héritier, era uma dessas damas
escritoras de contos de fadas em forma de romance precioso. Nelly informa que Perrault

1237
era um “defensor das ‘preciosas’” e que foi justamente devido a essa veia feminista
“que ele escreveu seu primeiro conto resgatado das fabliaux populares: A Marquesa de
Saluce ou A Paciência de Grisélidis” (COELHO, 2016, p. 82).

Pouco antes das publicações de Perrault, Mme. D’Aulnoy, jovem baronesa de


vida aventurosa e cheia de escândalos, escreve o romance precioso História
de Hipólito (1690), em que existe um episódio, ‘História de Mira’, cuja
personagem central é uma fada, espécie variante da maga celta, Melusina. O
grande sucesso dessa personagem provocou a ‘moda das fadas’ na corte
francesa. Entre 1696 e 1698, Mme. D’Aulnoy publicou oito romances
preciosos: Contos de Fadas, Novos Contos de Fadas, Ilustres Fadas6, entre
outros. (COELHO, 2016, p. 84)

Alguns desses romances, “destinados ao prazer das damas e cavalheiros da corte


já crepuscular de Luís XIV, acabaram sendo fonte de contos hoje integrados na
literatura infantil” (COELHO, 1991, p. 70). Nelly encerra suas considerações acerca
desse momento histórico de moda dos contos de fadas dizendo que

A voga das fadas e do maravilhoso feérico resiste até fins do século XVIII,
quando, entre 1785 e 1789, é publicada a série Gabinete de Fadas — Coleção
Escolhida de Contos de Fadas e Outros Contos Maravilhosos (na qual como
se vê pelo subtítulo, fazia-se distinção entre duas espécies narrativas que,
mais adiante, definiremos). Seus 41 volumes, de vários autores, marcam o
fim dessa produção literária fantástica destinada aos adultos (COELHO,
1991, p. 70-71).

Algumas conclusões
Esse breve percurso histórico que mapeia as fontes escritas que estão na base da
produção dos contos de fadas literários franceses, escritos em forma de longos romances
preciosos, expõe a imensa teia intertextual que subjaz às narrativas feéricas de autoria
feminina que alcançaram imenso sucesso durante cerca de um século. A grande
novidade dessa produção não se encontra em seus motes, que costumam ser estudados
em perspectiva genética em busca de uma narrativa “primordial”, mas sim forma de
narrar, na efabulação, na maneira em que esses fios de discursos populares são
entrelaçados para formar uma nova tessitura formal e estética, o romance precioso, tão
rico do ponto de vista estilístico-estrutural.
Em vias de conclusão e em consonância com as metáforas iniciais, Nelly afirma
que “o que a criança encontra nos contos de fada são, na verdade, categorias de valor

6
Este último título já teve sua autoria comprovadamente afastada de Mme. d’Aulnoy.

1238
que são perenes [...] O que muda é apenas o conteúdo rotulado de ‘bom’ ou ‘mau’,
‘certo’ ou ‘errado’...” (COELHO, 2000b, p. 55). Nós, os leitores dos contos de fadas,
nos reconhecemos nas diversas personagens míticas e arquetípicas e, a partir de suas
atitudes, prudentes ou irresponsáveis, sempre maniqueístas, somos capazes de
questionar nossos próprios valores, guiados para a compreensão de uma moralidade que
subjaz ao texto.

Se há personagem que apesar dos séculos e da mudança de costumes


continua mantendo seu poder de atração sobre homens e crianças, essa é a
fada. Pertencente à área dos mitos, a fada ocupa ali um lugar privilegiado,
encarna a possível realização dos sonhos ou ideais inerentes à condição
humana. (COELHO, 2000b, p. 173)

Os contos de fadas ainda têm o poder de fazer conexões interpessoais (entre as


personagens ficcionais e os leitores reais), intertemporais (entre o tempo do “Era uma
vez” e o tempo presente dos diversos momentos históricos em que são ressignificados) e
interespaciais (entre o algures de ares medievais, com castelos e grandes reinos, sempre
tão distantes, até o espaço social em que o leitor contemporâneo se localiza). Poucos
gêneros literários são capazes de promover com seus textos tão grandes transposições
no espaço-tempo e sobreviver a eles quase que da mesma forma como nasceram. “Os
contos de fadas fazem parte desses livros eternos que os séculos não conseguem
destruir...” (COELHO, 2016, p. 27).

Referências
BOTTIGHEIMER, Ruth B. Fairy tales: a new history. Nova York: State University of
New York Press, 2009.

CERQUIGLINI, Bernard. Elogio da variante. Tradução de Marcia Arruda Franco e


Cristina Nagle. In: Politeia: História e Sociedade, Vitória da Conquista, v. 15, n. 1,
2015, p. 61-79. Disponível em: http://gg.gg/ejftx. Acesso em 14 jul. 2019.

COELHO, Nelly Novaes. Panorama histórico da literatura infantil-juvenil: das origens


indoeuropéias ao Brasil contemporâneo. 3ª ed. ref. e amp. São Paulo: Quíron, 1985.

__________. O Conto de Fadas. 2ª ed. São Paulo: Editora Ática, 1991.

__________. Literatura: arte, conhecimento e vida. São Paulo: Peirópolis, 2000a.

1239
__________. O conto de fadas: Símbolos, mitos, arquétipos. 4.ª ed. São Paulo: Paulinas,
2016.

__________. Literatura e Linguagem: a obra literária e a expressão linguística. 4.ª ed.


ref. São Paulo: Quíron, 1986.

__________. Literatura Infantil: teoria, análise, didática. 1.ª ed. São Paulo: Moderna,
2000b.

ZUMTHOR, Paul. Essai de poétique médiévale. Paris: Éditions du Seuil, 1972.

1240
UM OLHAR SOBRE AS FADAS DE FLÁVIA CÔRTES

Regina Michelli (UERJ)1

Resumo: Em tempos pós-modernos, histórias da tradição são relidas, recontadas, reescritas. As


fadas fazem parte desse universo. Suas origens se perdem nas brumas dos celtas, das
sacerdotisas e pitonisas romanas, das deusas da mitologia de vários povos. Persistem evocando
a magia do feminino. Nosso olhar recai sobre duas obras da escritora Flávia Côrtes: O portal
das fadas e Senhora das névoas.
Palavras-chave: Literatura Infantojuvenil; Fada; Flavia Côrtes.

A Natureza as fez feiticeiras. – É o gênio próprio


à Mulher e seu temperamento. Ela nasceu Fada.
Jules Michelet

Eu sempre acreditei em fadas.


Flávia Côrtes
Introdução
Em tempos pós-modernos, histórias da tradição são relidas, recontadas, reescritas.
O texto literário que emerge desse processo apresenta um novo frescor ao iluminar
histórias que embalam a humanidade desde há muito. As fadas (MICHELLI, 2013)
fazem parte desse universo. Vêm de tempos esquecidos, tempos de mulheres
respeitadas, com poderes percebidos como sobrenaturais, a começar pelo milagre de
gerar vida. Elas pertencem ao maravilhoso (LE GOFF, 2010), geralmente
desempenhando uma mediação mágica de auxílio a seus protegidos, com a função de
prever e prover (COELHO, 2000) o que eles precisam na realização de seus desejos.
São descritas como seres geralmente belos, imortais, dotados de poderes sobrenaturais
cujo símbolo é a varinha de condão. Suas origens se perdem nas brumas da cultura
céltico-bretã, das sacerdotisas e pitonisas romanas, das deusas da mitologia de vários
povos, assinalando a soberania da mulher:
Segundo o registro mítico-literário, os primeiros contos de fadas teriam
surgido entre os celtas, povos bárbaros que, submetidos pelos romanos (séc.
II a.C./séc. I da era cristã), se fixaram principalmente nas Gálias, Ilhas
Britânicas e Irlanda. A essa herança céltica, é atribuído o fundo de
maravilhoso, de estranha fantasia, imaginação e encantamento que
caracteriza as novelas de cavalaria do ciclo bretão (ciclo do Rei Artur e seus
Cavaleiros da Távola Redonda e sua Dama Ginevra). Foi, pois, nas novelas
de cavalaria que as fadas teriam surgido como personagens, representando
forças psíquicas ou metafísicas. (COELHO, 2000, p.175)

1
Mestre e doutora em Literatura Portuguesa pela UFRJ; pós-doutorado concluído na USP e em
andamento na UFU, com pesquisa na área de Literatura Infantojuvenil. Contato:
reginamichelli@globo.com, r.michelli@gmail.com

1241
As fadas existem entre nós ainda hoje, circulando nas letras de livros, nas telas de
cinema e hipertexto, nas imagens. Persistem evocando a magia do feminino. Há várias
escritoras contemporâneas em cujos textos emergem fadas e bruxas, mas nosso olhar
recai em obras da escritora Flávia Côrtes: O portal das fadas e Senhora das névoas.

O portal das fadas


O protagonismo infantil, o enredo sem grandes conflitos, ainda que tecendo o
suspense na narrativa, as ilustrações de Thaís Linhares e o design visual do livro
permitem a inserção da obra para o público infantil. A história se nutre do contato entre
Luana, a personagem menina que crê em fadas, e Jasmim, a única fada que acredita na
existência de seres humanos. A entrada para o Reino das Fadas encontra-se no jardim da
casa da menina, espaço ameaçado de extinção pelo pai de Luana.
A obra de Flávia Côrtes tematiza a importância da fantasia em meio a perspectivas
adversas. A narrativa define-se por dois espaços díspares, interligados por um jardim:
de um lado, o reino das fadas, de outro, a casa de uma família humana.
O jardim simbolicamente representa o Paraíso terrestre, centro do Cosmo, sendo
simultaneamente a representação do Paraíso celeste, de acordo com Chevallier e
Gheerbrant (2002, p.512), simbologia que ratifica a ligação entre o empírico e o
maravilhoso. Ele é o espaço de fronteira, abrigando a entrada para o Reino das Fadas,
“entre um pé de azaleia e um pé de capim-limão” (CÔRTES, 2012, p.6), por onde as
fadas adentram o reino, que se mantém escondido dos olhares alheios. A entrada remete
ao portal do título, a uma porta, cujo significado, segundo os autores já citados, aponta
para “o local de passagem entre dois estados, entre dois mundos, entre o conhecido e o
desconhecido, a luz e as trevas, o tesouro e a pobreza extrema. A porta se abre sobre um
mistério. [...] É o convite à viagem rumo a um além...” (2002, 734-735). Esse é o
convite que a obra faz ao leitor.
No reino das fadas, as casas são de pétalas de flores. O trabalho desses seres
sobrenaturais é cuidar da natureza, para que tudo esteja perfeito. À superfície, a terra
dos homens, cuja ambiência se desenha por uma árvore, uma fonte com chafariz
representado pela imagem de uma fada, um banco velho - o espaço parece abandonado,
a família de Luana mudara-se para ali, aparentemente há pouco tempo. O pai da menina

1242
quer limpar o jardim, arrancando o mato existente, incluindo o pé de capim limão que
esconde o portal. Essa intenção ameaça a permanência das fadas naquele lugar.
A narrativa, porém, ultrapassa o conflito que se estabelece entre os seres dos
planos maravilhoso e empírico: de um lado, a preservação do reino das fadas e da
própria natureza; de outro, a limpeza do local. A história, como num espelho, reduplica
situações, alternando pontos de vista. No reino feérico, as fadas não acreditam na
existência de crianças e, por extensão, de gente humana, exceto uma fada pequenina,
Jasmim, que insistentemente anuncia sua crença, despertando o riso nas demais. Do
outro lado, no “outro mundo” – porque o primeiro a ser mostrado é o das fadas -, Luana
é uma menina que acredita na existência de fadas, também despertando o riso do irmão,
que parece ser mais velho pela forma como se dirige a ela. Lucas, o irmão, tal como o
pai, não acredita em fadas. A narrativa mostra dois mundos que se reduplicam
especularmente, apresentando-se o jardim como ponto de intercessão.
Considerando o pacto ficcional, crença e descrença dependem do ponto de vista
na narrativa, coexistindo ambas em cada espaço – feérico e humano -, em que se ratifica
a existência ou o apagamento do Outro. A narrativa opera o deslizamento de uma
perspectiva a outra, de acordo com o espaço e os seres que habitam esses espaços.
Assim, há o Reino das Fadas, geralmente caracterizado como o mundo da fantasia,
espaço feérico, apresentado, na história, como real para as fadas e Luana. A casa, a
árvores, as figuras humanas caracterizam o mundo dito real, mas, do ponto de vista das
fadas, seres humanos não existem, exceto para Jasmim. Quando a perspectiva passa a
ser a de Lucas e seu pai, o mundo feérico é que desaparece. Assim, realidade e
imaginação/fantasia permutam posições, diluindo fronteiras. De certa forma, a narrativa
incentiva a vivência da alteridade ao permutar situações e esmaecer diferenças.
A técnica de duplicação especular evidencia-se também no diálogo entre texto e
imagem, que alternam posições. No início e ao final da narrativa, o texto verbal e o não-
verbal ocupam integralmente páginas distintas, lado a lado. As três primeiras páginas
trazem o texto verbal à direita e o não-verbal à esquerda, na quarta página invertem-se
as posições; processo semelhante ocorre ao final. Algumas páginas centrais, porém,
trazem as palavras acima das ilustrações, mas a que apresenta as personagens Luana e
Jasmim, respectivamente às páginas 18 e 19, emblematicamente apresentam as imagens
acima e o texto verbal abaixo, única a trazer esse tipo de composição, o que pode

1243
significar a importância das protagonistas e seus respectivos mundos. A obra
intercambia posições, ideologias e crenças, fato confirmado também na ilustração.
Assim, por meio do narrador e da voz das protagonistas, a narrativa perspectiva a
questão da crença no invisível, numa defesa inicial da fantasia, independentemente do
mundo ficcional em que nos situemos, se o feérico, se o humano. Igualmente nos dois
há o demérito e a desqualificação dos seres menores que parecem acreditar na fantasia,
quando os maiores já ultrapassaram essa etapa – “coisa de fadinha”, “Menina boba”,
“Bebezona” (2012, p.14, 10, 27, respectivamente). Jasmim é inventadeira, enquanto
Luana é chamada de mentirosa. A uni-las, a defesa do sonho e do faz de conta.
A narrativa parece desposar uma perspectiva que ilumina o feminino,
estabelecendo certa aliança entre mãe, filha e fadas, fazendo confluir os dois mundos. A
fantasia, a emoção, a sensibilidade, a manutenção do sonho e a preocupação com a cura
encontram-se nessas personagens. O lado masculino, representado pelas personagens de
pai e filho, evidenciam a preocupação com a ordem, a limpeza, a racionalidade.
Alguns marcos interessantes ajudam a inserir a história na ambiência de um conto
de fadas, além da presença das próprias fadas: o começo com “Era uma vez”; o tempo
em que a narrativa se passa (primavera); o chafariz no mundo humano, reproduzindo
artisticamente a figura de uma fada; o final feliz.

Senhora das névoas


O segundo livro, Senhora das névoas, de maior extensão, é um convite a revisitar
a cultura celta e o universo do medievo, apresentando conflitos acentuados entre o bem
e o mal, estrutura narrativa complexa, protagonismo juvenil e temas caros à
adolescência, obra mais direcionada a jovens e a adultos que não perderam o
encantamento por histórias maravilhosas. A narrativa, tal como a primeira, configura
dois mundos singulares, o das fadas e o das personagens humanas.
O Reino das Fadas, nomeado Avalon ou Ynys Afallach, é um espaço protegido
dos olhos humanos pelas névoas que cercam a ilha sagrada e pela barreira natural de
suas árvores, as macieiras. A origem celta assinala ser “uma terra de inigualável beleza,
onde o tempo corre de outra forma e a dor não existe” (CÔRTES, 2011, p.17),
responsável por manter o “equilíbrio dos quatro pilares do mundo: terra, água, fogo e
ar.” (CÔRTES, 2011, p.17). Recorrendo-se novamente a Chevalier e Gheerbrant, “A

1244
ilha, a que se chega apenas depois de uma navegação ou de um voo [portanto, por água
ou pelo ar], é o símbolo por excelência de um centro espiritual e, mais precisamente, do
centro espiritual primordial.” (2002, p.501, grifos dos autores). Acrescentam os autores
citados que “Os celtas sempre representaram o outro mundo e o além maravilhoso dos
navegadores irlandeses sob a forma de ilhas, localizadas a oeste (ou ao norte) do
mundo.” (2002, p.501).
Para Paul Verdier, o mundo dos celtas é composto por dois reinos, o dos humanos
e o outro mundo, misterioso, que não corresponde ao mundo dos mortos cristão. A
região do outro mundo é a sede de uma outra vida, situada no extremo oeste do mundo,
cuja zona de fronteira é o mar: “Para os celtas orientais, o mero fato de partir para uma
longa viagem ao Ocidente marinho significa que o viajante enceta uma viagem para o
outro mundo a fim de conhecer os temas misteriosos do outro reino.” (VERDIER, 2000,
p.686). O Outro Mundo é, inevitavelmente, espaço do sobrenatural.
A trama envolvendo o mundo feérico inicia a obra, no chamado prólogo, narrando
acontecimentos que aconteceram há três séculos, dado que só descobrimos ao longo da
leitura. No capítulo “Noite Sem Fim”, Eileen, uma fada, se apropria do cálice sagrado
para entregá-lo a um mago druida, humano, por quem era apaixonada. O cálice confere
imortalidade a quem o possuir e souber usar. O gesto de Eileen caracteriza um furto e
uma traição a seu povo, os sidhe (a que a autora explica: “Os Sidhe (Sidh no singular –
pronuncia-se xi)” (CÔRTES, 2011, p.71). Eileen é banida da ilha e da convivência com
seu povo para sempre, ainda que permaneça com os poderes da fada. Ela acompanha o
mago e passa a viver entre os humanos.
As personagens humanas vivem no Rio de Janeiro e, ainda que a cidade não seja
nomeada, as referências ao Bosque da Barra, à Pedra da Gávea e à imagem do Gigante
Adormecido denunciam o espaço geográfico. Isa, a protagonista, namora Luca, com
quem pretende se casar, e se prepara para o vestibular, objetivando cursar medicina. Ela
e o namorado estudam no mesmo colégio e têm amigos comuns: Bianca, Sara e
Maurício, que compõem o grupo juvenil de personagens principais da intriga. Filha
única, Isa vive com seus pais num condomínio de apartamentos, mantendo com eles
uma convivência salutar. Outra personagem de relevo nesse espaço é Viviane, a vizinha
que cultua os hábitos do povo celta. Isa vive uma “vida perfeita” (CÔRTES, 2011,

1245
p.37), em sua percepção, com planos previamente definidos, almejando o viveram
“Felizes para sempre.” (CÔRTES, 2011, p.37). Os dois mundos, porém, vão se cruzar.
Quando estava no bosque com Luca e os amigos, Morgana, a Senhora do Lago,
surge para Isa e anuncia-lhe um novo destino: ela é uma faerie, descendente direta de
Morgana e dela dependerá a continuidade de Avalon, ainda que as trevas já se
aproximem, na advertência da rainha das fadas. Há algumas condições: aceitar esse
destino, vencer as próprias paixões, desenvolver seus dons por meio de treinamento,
esperar que o ciclo se complete. “É hora de acordar” (2011, p.14), lhe diz Morgana,
como se até aquele momento a protagonista vivesse dormindo, imersa em uma vida
controlada por ideais pequenos, ajustados a uma realidade cotidianamente limitada.
O termo fada remete à palavra latina feminina, fata, considerada uma variante rara
de fatum, fado. As fadas são associadas a deusas responsáveis pela ordenação da vida
humana em diversas mitologias: “Ao se associar à ideia de destino, a fada aproxima-se
das Moiras gregas, das Parcas latinas ou das Nornas nórdicas, todas representadas por
divindades femininas.” (MICHELLI, 2013, p.65)
A revelação de Morgana a Isa acontece, não por acaso, no dia de Samhain, o ano
novo celta, início do inverno, que significa também o início de um novo ciclo, momento
em que decisões importantes com relação ao futuro são tomadas e, por isso, é a noite
dos ancestrais, que cuidam de seus descendentes e são honrados nessa noite.
A obra compõe-se, assim, de duas narrativas simultâneas, relativas a espaços e
ações diferenciadas, com interferência das fadas Morgana e Eileen no mundo dos
humanos (e, mais à frente, Arthur), entendendo-se que Isa vive no espaço urbano, mas
desliza, por pertencimento, para o território das fadas.
A história do mundo feérico é apresentada por narrador em terceira pessoa, com
letras em itálico, referindo-se a acontecimentos passados: focaliza Avalon, a traição de
Eileen com o roubo do cálice sagrado, o aparecimento de Morgana no momento em que
a fada entrega o cálice ao mago, o rompimento de Eileen com o amado, que a
decepciona.
A outra narrativa, referente ao mundo humano, caracteriza-se por um narrador em
primeira pessoa, autodigético. É Isa, a protagonista, quem narra os acontecimentos de
seu ponto de vista, podendo expor seus sentimentos e conflitos. A narração em primeira
pessoa apresenta, porém, o recurso ao flash-forward (ou prolepse), evidenciando uma

1246
narração a posteriori, ainda que, na maioria da história, o narrador pareça desposar o
ponto de vista da atualidade dos fatos. Dois dados são antecipados pela narradora: a
descoberta de que há fadas perversas (2011, p.47) e a participação de Artur, o novo
colega de escola, em sua vida (2011, p.59). Situam-se, neste plano narrativo, os
acontecimentos ocorridos com as personagens humanas, como a relação familiar, os
problemas que surgem entre a turma de amigos, as interferências das fadas no mundo da
protagonista. O ponto de vista parte das experiências de Isa.
Além das duas narrativas marcadamente diferenciadas, há também, na obra, a
“narrativa em abismo” ou mise em abyme, a história dentro da história, a narrativa
principal sendo ressignificada por uma outra que lhe antecede. Nesse aspecto,
encontramos um conto celta que Viviane narra a Isa, cujo conteúdo indicia o futuro da
protagonista. Outra inserção é a busca de Isa pelo significado de fada, Sidhe, no
computador, texto que aparece em itálico. Por último, destacamos a história que envolve
o nome completo da personagem principal: Isabeau. O nome origina-se de um filme
intitulado Feitiço de Áquila, de 1985, dirigido por Richard Donner: tal como no filme,
em que a personagem feminina é amaldiçoada com a aparência de falcão apenas durante
o dia, de sorte a nunca poder se unir a seu amado, lobo durante a noite, a protagonista
também se vê dividida entre ser humana ou fada.
A obra operacionaliza ainda algumas tensões, evidenciando temas caros ao
público adolescente, no que tange, principalmente, à configuração de identidades. Um
dos aspectos focalizados diz respeito à vida perfeita de Isa, perspectiva baseada numa
ilusão, uma vez que ela desconhecia sua condição de fada; no outro polo, a ideia de
aceitar o destino que lhe está sendo oferecido como ser pertencente ao mundo meta-
empírico. A narrativa não desenvolve de forma linear as inquietações criadas por essa
circunstância, que envolve a escolha da protagonista: Isa se sente atraída pelos dons de
fada – que lhe conferirão poderes sobrenaturais -, mas reclama ser sujeito do próprio
destino e permanecer como estava até então, sentindo-se usurpada em sua liberdade e,
pode-se acrescentar, inconsciência. A personagem ouve que “Essa é uma jornada só
sua” (CÔRTES, 2011, p.69), é uma prova (2011, p.70), o que significa atualizar a
trajetória do herói: Isa tem uma missão, que é impedir a vitória das trevas, lutando para
que Avalon não sucumba ao mal. A protagonista passa por uma prova iniciática e
depende dela a escolha de ser ou não fada, cumprir ou não seu destino, continuar com

1247
seus planos na vida humana ou alçar novos voos. Abdicando, porém, da condição de
fada não poderá se beneficiar dos poderes sobrenaturais desse tipo de personagem.
Outra problemática que se impõe na narrativa, ligada ainda a configurações
identitárias, é o apelo a “ser inteira”, a desenvolver-se integralmente. A fada Eileen
associa ser inteira a aceitar as próprias potencialidades (2011, p.53). Dito de outra
maneira, entendemos que a protagonista é conclamada a enfrentar dilemas ligados ao
autoconhecimento, o que implica se defrontar com questionamentos que abrangem
passado, presente e futuro, como: de onde vim, quem sou, qual a minha história, aonde
pretendo chegar. Relacionado ao tema, surge, na narrativa, um poema de Ricardo Reis,
heterônimo de Fernando Pessoa. O livre arbítrio da protagonista se mantém, a escolha
entre permanecer humana ou transformar-se em fada é dela, mas a leitura atenta do
poema pessoano é índice narrativo, indicando caminhos futuros da história.

Entretecendo as duas obras


Observa-se, nas duas narrativas, a relação entre um Eu e um Outro, um mundo
habitado por personagens humanas, de um lado, e, de outro, um mundo habitado por
fadas e personagens do mundo feérico. Tomando de empréstimo à imagologia o
conceito de imagem, vemos que
toda a imagem procede de uma tomada de consciência, por ínfima que seja,
de um “Eu” relativamente a um “Outro”, de um “Aqui” relativamente a um
“Ali”. [...] a imagem é a representação de uma realidade cultural através da
qual o indivíduo ou o grupo que a elaborou (ou que a partilha, ou que a
propaga) revelam e traduzem o espaço cultural e ideológico no qual se
situam. O imaginário social a que nos referimos está marcado – vemo-lo - por
uma profunda bipolaridade: identidade versus alteridade, em que a alteridade
é encarada como termo oposto e complementar relativamente à identidade.
(PAGEAUX, 2004, p.136)

O reino das fadas configura um imaginário, diferenciado nas duas obras,


imaginário entendido como “expressão, à escala de uma sociedade, de uma
colectividade, de um conjunto social e cultural” (PAGEAUX, 2004, p.136), um
universo simbólico que remete a valores por vezes abandonados, por vezes
ressignificados, na nossa sociedade contemporânea ocidental: a existência do mundo
meta-empírico ficcional assinala a necessidade de preservação da natureza, do cuidado,
bem como de manutenção da fantasia e do maravilhoso nos textos literários.
As duas narrativas sugerem a abertura ao Outro, um aqui e um ali que terminam
por se tocar. N’O portal das fadas, o Outro se configura no território da fantasia, da

1248
imaginação, quer seja o reino das fadas ou dos humanos, dependendo do ponto de vista.
O “Outro”, na Senhora das névoas, é o povo de Avalon, mas é, principalmente, Eileen,
a “fada má” (2011, p.106), banida de seu povo, descrita pelo olhar desconfiado ou
perspicaz de Isa, fada perdoada ao final por Morgana que enxerga méritos na
personagem. Ela é o Outro, significando uma outra ordem a que Isa é convidada a
adentrar, mas é também a alteridade a essa mesma ordem, que ela traiu. Por isso, ela
espelha a necessidade de Isa vencer suas paixões, para que o acontecido com a fada
banida não se repita. Como afirma Pageaux, “O Outro é o que permite pensar de...outro
modo.” (PAGEAUX, 2004, p.137). A experiência adquirida no contato com o Outro
amplia a perspectiva ideológica das personagens protagonistas nas duas obras.
As experiências de Isa não são partilhadas por ela com seus amigos de escola,
tampouco com Luca, namorado e amigo. A imagem que Isa formula desse mundo outro,
“estrangeiro”, estranho, e de sua experiência com os seres a ele pertencentes, faz com
que ela, por vezes, considere estar enlouquecendo, percepção que ela estende aos
demais se lhes contasse as histórias com fadas que passou a vivenciar.
Na representação das fadas, no Portal, evidencia-se a necessidade de
sobrevivência: arrancar o pé de capim limão não significa destruir o reino das fadas,
mas a exposição do portal abala a segurança daquele mundo. A imagem construída
desse universo reforça a exclusão, o empurrar para as margens: o reino se mantém no
seio da terra, escondido. As fadas - e o que elas representam - precisam ser expurgadas,
negadas pela racionalidade redutora, especialmente masculina na obra. Elas são
personagens descritas como seres pequenos, por vezes também apequenados pelo
imaginário social, única forma de sobreviverem no mundo ficcional criado.

As fadas
Intentando, assim, proceder a uma categorização das fadas que emerge dessas
duas narrativas, recupera-se o que usualmente se atribui à configuração da personagem:
A imagem que provavelmente existe num substrato coletivo corresponde a
seres belos, por vezes alados, dotados de poderes sobrenaturais, o que lhes
permite auxiliar e interferir na vida humana. Como as fadas não estão
submetidas às leis de contingência física que cerceiam os humanos, não
morrem e tudo podem realizar. Em sua varinha de condão repousa seu poder
(MICHELLI, 2013, p.65)

1249
Lembrando a etimologia da palavra, pode-se destacar a fada portadora do Destino,
relacionada às Moiras gregas, às Parcas latinas. Em Senhora das névoas, essa função
aparece no início da narrativa, quando Morgana se revela à protagonista:
– Seu destino já foi traçado, Isa. Não lute. Apenas aceite. [...] Seu destino foi
escrito há muito tempo, – ela continuou. – e me foi revelado pela própria
deusa Dana. Você é uma descendente direta dos Sidhe, quando nós ainda
convivíamos com os humanos. (CÔRTES, 2011, p.15)

Nas duas obras, é delineada a fada como divindade ligada à natureza. Para José
Carlos Leal (1985), ela é um espírito da natureza, associada aos gnomos, elfos e outros
seres dessa espécie. Chevalier e Gheerbrant (2002) advertem para mudanças ocorridas
no imaginário que cerca a figura das fadas: consideradas, originalmente, expressões da
Terra-Mãe, elas sofreram um mecanismo ascensional ao longo da História, elevando-se
do fundo da terra para a superfície, tornando-se espíritos das águas e da vegetação. Na
mitologia germânica, de acordo com Leal, as fadas são divindades da natureza e
integram a mesma categoria de elfos, gnomos, ondinas, gigantes, ogres, ninfas, faunos,
seres, como elas, do maravilhoso. Dessa forma, as fadas germânicas podem habitar rios,
bosques, árvores, flores, protegendo as áreas em que vivem.
Em O portal das fadas, encontramos uma descrição que corrobora a ligação das
fadas com a natureza: “vivem quase eternamente, são filhas da mata, do ar, da água e do
fogo, e o trabalho delas é cuidar para que a natureza esteja perfeita.” (2012, p.18). Em
Senhora das névoas, os Sidhe são caracterizados como tendo descido à Terra “para
trazer paz e sabedoria aos seres humanos. Para viver entre nós, criaram o mundo
feérico, um lugar de grande beleza e perfeição” (CÔRTES, 2011, p.71).
Outra possibilidade de caracterização, segundo a própria obra, são as fadas
elementais, seres primitivos, ligados à natureza, nem sempre benéficos e lindos:
Naquela noite, eu olhava com mais interesse para as pequeninas fadas que
sempre via ao lado dela.
– São elementais, Isa. – ela explicou, notando meu interesse.
– Verdade que como vocês, faeries, elas podem mudar de forma? [...]
– Sim. [...] São seres da natureza que regem todos os elementos. Cada um de
acordo com sua capacidade e elemento específico: terra, água, fogo e ar.
– Eu sei, e eles trabalham para manter o planeta em equilíbrio.
– Sim. São tão parte da natureza, que a própria existência deles depende de
sua preservação. (CÔRTES, 2011, p. 63)

A fada irlandesa é a banshee, a mensageira do Outro Mundo, ser dotado de magia


e ligado à vida contínua, eterna, de quem descende a fada céltica: “Não está submetida
às contingências das três dimensões, e a maçã ou o galho que ela entrega a alguém

1250
possuem qualidades sobrenaturais.” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2002, p.415).
José Carlos Leal nomeia de fada medieval a personagem habitante das novelas de
cavalaria do ciclo arturiano, a qual concorre ainda o conceito grego de feiticeira, como
Circe e Medeia. Na obra de Côrtes, Morgana oferece uma maçã a Isa, evidenciando a
importância da personagem, mas a representante, por excelência, da banshee é
Morgana, a Senhora do Lago:
O vestido longo, cor de marfim, tinha um fino cinto dourado amarrado na
cintura, e era de um tecido tão delicado que não parecia real. Pele muito
clara, longos cabelos escuros, quase selvagens, olhos ternos e um rosto de
estátua antiga. A mulher mais linda que eu já tinha visto. (2011, p.13-14)

Igualmente bela é Isa, descrita por Bianca como muito linda, cabelos dourados e
compridos, olhos verdes, magra. Eileen, fada do mal, também parece bela, olhos azuis
expressivos, cabelos avermelhados compridos, puxados para trás, aparecendo as orelhas
levemente pontudas, asas enormes; sua expressão transmite, de início, frieza e medo a Isa.
Opera-se uma mudança no constructo que envolve a figura da fada durante o
processo de cristianização na Idade Média. Segundo Leal, integrando crenças pagãs,
fadas, sílfides, sátiros, sereias e outros seres sobrenaturais passaram a pertencer ao lado
demoníaco, tornando-se entes desprovidos de alma e, portanto, corpos ocos, provindo
de ilusões satânicas que o homem deveria evitar. Assim,
Tornou-se necessário dessacralizar a natureza, desvitalizar o poderoso
elemento mágico, presente na cultura céltica e de um modo geral
característico da infância da humanidade, para valorizar o domínio espiritual
de Deus. Como a Igreja encontrou resistência para destruir essas crenças ou
mesmo proceder à conversão do povo, utilizou a estratégia de sobrepor
imagens e práticas cristãs às correspondentes pagãs, o que Jacques Le Goff
denomina “obliteração” (1980: 211-214). (MICHELLI, 2013, p.66-67)

Considerações finais
As histórias de Flávia Côrtes trazem-nos uma arquitetura narrativa em que os
espaços se intercambiam, as personagens volatilizam papéis rigidamente definidos. Suas
fadas configuram-se com identidades próprias, ainda que apresentem pontos em comum
com um imaginário tecido ao redor desse constructo.
As fadas de O Portal não são fadas madrinhas de personagens humanas, suas
atribuições ligam-nas à natureza. Jasmim rompe com o próprio perfil desses seres na
intriga, o mesmo acontecendo com Luana, a personagem infantil humana.
Em Senhora das névoas, há uma configuração de um universo céltico que se
imiscui a tempos contemporâneos, com uma personagem atual, Isabeau, convidada a

1251
assumir sua herança de fada. O inventário celta emerge em datas comemorativas, ciclos
vitais, personagens femininas fadas, detentoras de poderes especiais e sabedoria, mas
também falíveis e vingativas, delineando possibilidades variadas de leituras.
A escritora de O portal das fadas e Senhora das névoas exemplifica esse
procedimento ao configurar esse mundo Outro, “estrangeiro”, entretecendo diálogos que
convidam a refletir sobre identidade e alteridade, preservação da natureza,
autorrealização pessoal. Ela oferece ainda a seu leitor interessantes trilhas de leitura,
como um convite para ultrapassar o portal da ficção e acessar um paratexto ao final de
Senhora das névoas, lacrado, o “Arquivo Secreto das Fadas”. Boa leitura!

Referências

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário dos símbolos. Rio de Janeiro:


José Olympio, 2002.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria – análise - didática. São Paulo:
Moderna, 2000.

CÔRTES, Flávia. Senhora das névoas. Erechim-RS: Edelbra, 2011.

______. O portal das fadas. Ilustrações Thaís Linhares. São pulo: Prumo, 2012.

LEAL, José Carlos. A natureza do conto popular. Rio de Janeiro: Conquista, 1985.

LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média. Lisboa: Estampa, 1980.

______. O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval. Lisboa: Edições 70, 2010.

MICHELLI, Regina. “Nas trilhas do maravilhoso: a fada”. Terra roxa e outras terras.
Vertentes do Insólito Ficcional. Volume 26 (dez. 2013), p. 61-72. In:
www.uel.br/pos/letras/terraroxa/g_pdf/vol26/TR26e.pdf. Acesso em 10.Fev.2019.

PAGEAUX, Daniel-Henri. Da imagética cultural ao imaginário. In: BRUNEL, Pierre;


CHEVREL, Yves (Org.). Compêndio de literatura comparada. Trad. de Maria do
Rosário Monteiro. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2004. p. 133-166.

VERDIER, Paul. “Mitos celtas”. In: BRUNEL, Pierre (org.). Dicionário de mitos
literários. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000, p. 683-695.

1252
SOBRE ARREPIOS, BORBOLETAS, TRANCAS E TROCAS: UM ESTUDO
SOBRE O AMOR NA LITERATURA INFANTIL BRASILEIRA

Samira dos Santos Ramos (IFMT)1

Resumo: Este trabalho concerne à área de Estudos Comparados, subárea de Literatura Infantil e
Sociedade, e analisa as diferentes representações do amor na literatura infantil brasileira, bem
como os códigos simbólicos e recursos expressivos que evidenciam os discursos sociais, gerando
significado à experiência humana de vinculação social. Através da leitura de Reinações de
Narizinho (1931), de Monteiro Lobato, Entre as folhas do verde, ó (1978), de Marina Colasanti,
e Sangue Fresco (1982), de João Carlos Marinho, observa-se que as representações ora subvertem
o casamento pré-moderno ora apresentam projetos estéticos e políticos nos quais podem ser
recuperadas teorias contemporâneas, como o amor confluente, de Giddens, e o amor líquido, de
Bauman.
Palavras-chave: Literatura infantil; Amor; Representação.

Mas como causar pode seu favor


nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor
Camões

Nos versos de seu soneto mais conhecido, Camões expõe paradoxos fundados na
compreensão cultural que nos acompanha desde o mito de Eros e Psique e que nos afirma
que o amor é um conceito oposto à razão. Oposição falsa, se considerarmos o fato de que
este sentimento é um problema filosófico por excelência, presente no nascimento da
filosofia ocidental, e que vem se estabelecendo nos últimos séculos como um corpus
sociológico.
Mas à literatura, desde sempre, coube interpretar, significar, representar e projetar
o amor, assim como as dinâmicas sociais que definem, geram, impedem, matam ou
eternizam este sentimento. E para a literatura infantil, para além da recorrência em toda a
literatura, foi delegada à função social de ensinar a importância do amor.
Apesar de a compreensão do amor como um sentimento de caráter transcendente e
universal, os discursos e as representações são múltiplas e se alteraram conforme a
sociedade e o tempo em que a obra é produzida. Se tomarmos como marco inicial da
literatura brasileira para crianças a obra de Monteiro Lobato, aproximamo-nos do
centenário deste gênero no Brasil e é profícuo entender como a obra infantil tem se
relacionado com este tema.

1
Docente de Língua Portuguesa e Literatura (IFMT). Mestra em Estudos Comparados de Literaturas de
Língua Portuguesa (USP). Contato: samiraramos@usp.br

1253
Literatura infantil e a codificação do amor
De acordo com Coelho (2000), estava em curso uma alteração de padrões de
pensamento e comportamento social espelhada nos avanços científicos da física
divulgados a partir da metade do século XX. Havia uma nova sociedade em construção e
instituições como a família e o casamento, bem como conceitos como individualidade e
verdade, estavam sendo dissolvidos de suas certezas para serem gestados novos
paradigmas de existir e existir em sociedade, baseadas nas ideias trazidas por termos
como relatividade e relacional. E compreensível que também o conceito de amor,
enquanto vinculação afetiva, fosse alterado.
No entanto, a contemporaneidade brasileira vive um momento em que estas
rupturas de paradigmas dividem espaço com o retorno aos princípios tradicionais de
vinculação parental. E os defensores destes princípios têm tomado a censura à literatura
infantil como território de reafirmação ideológica. Isto porque a sociedade, se não sabe,
pressente a importância da representação na literatura infantil para significar valores
abstratos fundamentais para o ser humano e para a vida em sociedade. Entre estes valores,
a importância do amor.
De forma geral, o amor é um fenômeno neural, biológico e social, pois define-se
como uma construção cultural utilizada para dar sentido às experiências afetivas
individuais e supõe um vínculo de forte intensidade (ANDRADE, 2015) ou é ainda “uma
construção social que pode ser traduzida como uma experiência emocional não universal
que é definida de forma diferenciada em função das culturas em que tem lugar” (NEVES,
2007, p. 612). E é justamente a mutabilidade deste código que nos interessa.
Através da mimese, a literatura apresenta o amor como um código simbólico que,
de acordo com Luhmann (1991), encoraja e possibilita a formação de sentimentos da
mesma ordem. O amor enquanto código seria fundamental para a comunicação humana
e, assim, para os sistemas sociais. Luhmann, lendo Rochefoucauld2, afirma que a falta do
código, inclusive, impediria que parte das pessoas pudesse ter acesso ao sentimento. De
modo que a comunicação assume papel relevante em projetar e significar o amor.
Portanto, entender as representações do amor na literatura, em parte, exige um
estudo que procede sincrônico, pois a simulação acompanha as mudanças de vinculação

2
Moralista e pensador francês do século XVI. É dele a máxima “Il y a des gens qui n'auraient jamais été
amoureux, s'ils n'avaient entendu parler de l'amour”.

1254
afetiva da sociedade em que tem lugar. Por outro lado, projeta modalizações de expressão
deste amor, implicando na criação novas formas de significá-lo. Não por acaso o amor
cortês teve como máxima expressão os poemas trovadorescos, que por sua vez foram
significativos para o nascimento do amor romântico e a ligação deste sentimento com a
instituição do casamento.
Na atualidade, a teoria de Giddens (1993), que ao promover a crítica à Freud e
Foucault sobre o espaço da sexualidade na sociedade moderna, caminha para a tentativa
da descrição das vinculações afetivas que são chamadas de amor em nosso tempo e seus
reflexos na democracia. A teoria do amor líquido de Bauman discute a substituição das
ligações por conexões afetivas na modernidade. Teorias que se contrapõem entre si e ao
amor romântico. Considerando o sistema de influências recíprocas, o autor e, por
conseguinte, a obra para crianças não passaram incólumes por estas mudanças no discurso
sobre o amor. Sobre qual delas a literatura infantil tem se desdobrado?
As representações de gênero, de família e as vinculações afetivas possivelmente
têm se renovado nestas obras. Principalmente por ser parte da função social da literatura
infantil no Brasil ensinar o que é amor.
Literatura infantil brasileira: um caso de amor
A centralidade do amor na literatura infantil tem raízes profundas. Na narrativa
popular, da qual parte da literatura infantil deriva e guarda semelhanças, o amor é
intermediário entre o herói e a sua realização (COELHO, 2008, p.85), assumindo
relevância no enredo mesmo quando a relação afetiva das personagens não é a
culminância da trama.
Ainda assim, faz-se importante lembrar que em parte dos contos populares europeus
temos a representação do casamento pré-moderno, que conforme Giddens (1993), era
alicerçado pela situação econômica inclusive entre os mais pobres, organizando o
trabalho rural. O amor romântico passa a integrar a cultura europeia a partir do final do
século XVIII.
Os primeiros textos para criança escritos no Brasil, no entanto, não têm como tema
o amour passion ou o casamento. “Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste!”,
escreveria Bilac nos primeiros anos do século XX em Versos Infantis. Obras como Contos
Pátrios (1904), de Olavo Bilac e Coelho Neto, e Histórias de nossa terra (1907), de Júlia
Lopes de Almeida, indicam que foi o amor que os gregos chamariam philia o primeiro a

1255
ser representado e estimulado em nossa literatura, aos moldes das obras europeias que
estavam na moda em nosso território, como Cuore, de Edmondo De Amicis.
Monteiro Lobato, considerado precursor da literatura infantil brasileira, também
não apresenta o amour passion, apesar de representar relações conjugais. Os casamentos
representados em O Marquês de Rabicó (1922) e O noivado de Narizinho (1928), de
Monteiro Lobato, obras reunidas posteriormente em Reinações de Narizinho (1931),
Emília e Narizinho casam-se, respectivamente, com um porco e um peixe. Os casamentos
não são marcados por amor romântico, mas antes pela convenção do casamento
aristocrático pré-moderno, dessacralizado na narrativa:
Narizinho estava no seu quarto conversando com a boneca.
- Senhora condessa, acho que é tempo de mudar de vida. Precisa casar, se não
acaba ficando tia. Amanhã vem cá um distinto cavalheiro pedir a mão de Vossa
Excelência.
[...]
Emília não se mostrava disposta a casar. Dizia sempre que não tinha génio para
aturar marido, além de que não via lá pelo sítio ninguém que a merecesse.
- Como não? – protestou a menina. – E Rabicó? Não acha que é um bom
partido?
A boneca ficou indignada e declarou que jamais se casaria com um poltrão
como aquele. O fiasco feito na viagem à terra das Abelhas não era coisa que
merecesse perdão.
A menina riu-se e explicou:
- Você está enganada, Emília. Ele é porco e poltrão só por enquanto. Estive
sabendo que Rabicó é príncipe dos legítimos, que uma fada má virou em porco
e porco ficará até que ache um anel mágico escondido na barriga de certa
minhoca. Por isso é que Rabicó vive fossando a terra atrás de minhocas.
Emília ficou pensativa. Ser princesa era o seu sonho dourado e se para ser
princesa fosse preciso casar-se com o fogão ou a lata de lixo, ela o faria sem
vacilar um momento. (LOBATO, 2014, p. 103)

Emília enxerga o casamento como uma forma de realizar seu sonho, ainda que
despreze o noivo. Já Narizinho guarda carinho pelo Príncipe Escamado, mas também é o
reconhecimento de sua condição social que torna possível para a menina que o casamento
se realize. Críticas afiadas, através da carnavalização dos casamentos aristocráticos.
Quando a avó lhe afirma que todos se casam com gente da mesma igualha, não com um
peixe, a menina afirma: “- Dobre a língua, vovó! Escamado é príncipe. Se se tratasse aí
de um peixe vulgar de lagoa, vá que vovó falasse. Mas o meu noivo é um grande príncipe
das águas...” (LOBATO, 2014, p. 124). Novamente é a situação econômica e social que
alicerçam o casamento.
Diferente de Entre as folhas do verde, o, de Marina Colasanti em que é justamente
a incompatibilidade entre a aristocracia do príncipe e a natureza da mulher-corça que

1256
impede a concretização do amor. Nos modernos contos de fadas, as novas representações
de vinculação afetiva caminham para um tipo de amor paradoxal ao felizes para sempre.
Para Giddens (1993), o ethos do amor romântico colocou a mulher em seu lugar –
o lar. A mulher-corça, no entanto, recusa este espaço no qual que não tem voz:
Todos os dias o príncipe ia visitá-la. Só ele tinha a chave. E cada vez se
apaixonava mais. Mas a corça-mulher só falava a língua da floresta e o príncipe
só sabia ouvir a língua do palácio. Então ficavam horas se olhando calados,
com tanta coisa para dizer.
Ele queria dizer que a amava tanto, que queria casar com ela e tê-la para sempre
no castelo, que a cobriria de roupas e joias, que chamaria o melhor feiticeiro
do reino para fazê-la virar toda mulher. Ela queria dizer que o amava tanto, que
queria casar com ele e levá-lo para a floresta, que lhe ensinaria a gostar dos
pássaros e das flores e que pediria à Rainha das Corças para dar-lhe quatro
patas ágeis e um belo pelo castanho.
Mas o príncipe tinha a chave da porta. E ela não tinha o segredo da palavra.
(COLASANTI, 1999, p. 37)

No conto, o amor romântico não pôde se sustentar neste desequilíbrio de poderes.


Apenas o príncipe tem a chave da porta. A mulher-corça não se expressa na mesma
linguagem. A impossibilidade da comunicação e o desejo de anulação da identidade do
outro impedem uma relação confluente conforme teorizado por Giddens (1993).
Ainda que prevaleça o amor puro entre as personagens, um vínculo durável que tem
como base as qualidades intrínsecas ao próprio vínculo, este sentimento termina frustrado
com a mulher, tornando-se toda corça, pastando próxima ao castelo. Aos amantes, a falta
de democratização da relação custa o próprio relacionamento, ainda que não mate o amor.
Divergindo deste vínculo profundo representado em Entre as folhas do verde ó,
impedindo tanto a união quanto a separação total, temos o longo relacionamento entre
Berenice e Bolachão, da Turma do Gordo, escrita por João Carlos Marinho. Com quase
50 anos entre a primeira, O gênio do crime (1969), e a última obra publicada, O fantasma
da Alameda Santos (2015), o relacionamento entre as personagens poderia, à primeira
vista, ser definido com o que Bauman (2004), teorizando sobre a liquidez das relações
contemporâneas, afirma ser um amor líquido.
O namoro da Berenice com o gordo estava no seguinte pé: inicialmente a
Berenice se apaixonou por Bolachão, o gordo demorou um pouco e apaixonou
também, depois a Berenice desapaixonou do gordo e namorou o Biquinha,
capitão do time de futebol, romance que durou algumas semanas, em seguida
a Berenice voltou para o gordo. (MARINHO, 2011, p. XX)

No entanto, estas sequências de conexões e desconexões afetivas entre a rede de


personagens não deixam de ser conflituosas. Os códigos de conduta normatizados nos

1257
ritos de cortejo como função da mulher resistir e ser fiel, enquanto esperavam do homem
a ação na conquista e aceitavam a sexualidade episódica (GIDDENS, 1993), são várias
vezes invertidos entre Berenice e Bolachão. Mas a independência e liquidez afetiva da
menina não passa intacta:
Um berro horrível, como se fosse o som alto de uma cuíca, atravessou a noite.
- É a onça – disse Hugo Ciência – Está procurando macho.
- Fêmea sem vergonha – disse o gordo – Deve ser prima da Berenice.”
(MARINHO, 2011, p. 84).

Os conflitos amorosos e de identidade levam Bolachão à violência verbal contra


Berenice. Como conciliar o ideal do amor romântico e a ideia de pertencimento a alguém
com os indícios de amor líquido que a menina oferece? Muito difícil para Bolachão? Uma
situação que precisa ser investigada com maior cautela, tanto na obra quanto em nossa
sociedade.
Considerações finais
Considerando a importância do amor para a literatura em geral, o atual contexto
social brasileiro, o sistema de influência recíproca (CÂNDIDO, 1980); a vocação
pedagógica da literatura infantil (COELHO, 2000; 2008); o amor como modelo de
comportamento simulável (LUHMMAN, 1991), propusemos um breve estudo
comparativo entre as matrizes situacionais dos contratos e dos relacionamentos conjugais
em três obras da literatura infantil brasileira.
Como resultado parcial, pôde-se observar que, desde a década de 1920, o casamento
pré-moderno coexiste na literatura infantil com outras representações de amor nas obras
de Monteiro Lobato, Marina Colasanti e João Carlos Marinho. Estas representações ora
subvertem o casamento pré-moderno ora apresentam projetos estéticos, políticos e
ideológicos nos quais podem ser recuperadas teorias contemporâneas sobre o amor, como
o amor líquido, de Bauman, e o amor confluente, de Giddens.

Referências

ANDRADE, Adriana Garcia. El amor como problema sociológico. In: Revista Acta
Sociológica. N. 66, Enero-Abril, 2015. p. 35-80.

BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre as fragilidades dos laços humanos. Trad.
Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2004.

1258
CANDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. São Paulo: Editora Nacional, 1980.

COELHO, Nelly Novais. A literatura infantil: teoria, análise e didática. São Paulo:
Moderna, 2000.

______ O Conto de Fadas: símbolos – mitos – arquétipos. São Paulo: Paulinas, 2008.

COLASANTI, Marina. Entre as folhas do verde O. in: Uma ideia toda azul. São Paulo:
Global, 1999.

GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: Sexualidade, Amor e Erotismo


nas Sociedades Modernas. Trad. Magda Lopes. São Paulo: Editora da Universidade
Estadual Paulista, 1993.

LUHMANN, Niklas. O amor como paixão para a decodificação da intimidade. Rio


de Janeiro: Editora Bertrand, 1991.

NEVES, Ana Sofia Antunes das. As mulheres e os discursos genderizados sobre o amor:
a caminho do "amor confluente" ou o retorno ao mito do "amor romântico"?. Revista
Estudos Feministas. Florianópolis, v. 15, n. 3, dez. 2007. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104026X2007000300006&ln
g=pt&nrm=iso. Acesso em 25 de março de 2019.

1259
MONSTROS DO CINEMA, DE MASSI E KONDO:
LITERATURA INFANTIL E JUVENIL COMO PROPOSTA TRANSMÍDIA

Sandra Trabucco Valenzuela (FAM)1

Resumo: Esta comunicação analisa o livro Monstros do Cinema, texto de A. Massi e ilustrações
de D. Kondo (São Paulo: SESI-SP, 2016), apontando suas possibilidades de leitura e interpretação
múltiplas, em função da diversidade de pletoras que o compõe: o livro amplia-se do impresso para
o digital, para o vídeo, para o brinquedo. Vencedor da categoria Livro Brinquedo de 2017
(FNLIJ), o livro ganha uma dimensão transmidiática que alcança gêneros e formatos como a
poesia, escultura, instalações, vídeo, música e canto, jogos e brinquedos, história do cinema, entre
outras. Discute-se o conceito e funções do livro brinquedo, para, na sequência, analisar a narrativa
no âmbito da literatura infantil num contexto transmidiático (Jenkins, 2009).
Palavras-chave: Literatura infantil; Livro brinquedo; Transmídia; Literatura e Cinema; Monstros
do Cinema

Construindo Monstros

De repente as palavras vestem seus disfarces e em um piscar de olhos estão


envolvidas em batalhas, cenas de amor e brigas. Assim as crianças escrevem,
mas assim elas também leem seus textos. (BENJAMIN, 1984, p. 55)

Os contos de fada e contos tradicionais congregam, de modo inerente, a presença


do monstruoso, do grotesco, do castigo e das representações do mal em oposição ao belo,
às representações do bem e ao sucesso alcançado através de boas ações.
Trazer a presença de criaturas fantásticas e, ao mesmo tempo, assustadoras, permite
ao leitor aprender a lidar com suas emoções e, especialmente, com seus medos: “emoções
(também chamadas de afetos) são estados interiores caracterizados por pensamentos,
sensações, reações fisiológicas e comportamento expressivo específico. Aparecem
subitamente e são difíceis de controlar” (DAVIDOFF, 2011, p. 369).
O livro Monstros do cinema propõe à criança um modo de lidar com seus próprios
monstros, já que se trata, em última instância, de reconstruí-los valendo-se da criatividade
individual. No início, encontramos indicações de como o livro pode ser usado, através de
textos breves apresentados em caixa alta: “MISTURE / BONS E MAUS /

1
Pós-Doutora em Literatura Infantil e Juvenil na área de Literatura Comparada (FFLCH-USP), Doutora,
Mestre, Bacharel e Licenciada em Letras (FFLCH-USP), Docente da FAM - Faculdade das Américas.
Contato: sandratrabucco@uol.com.br .

1260
ELEMENTOS”; “MONTE / TEU PRÓPRIO MONSTRENGO”; “LIBERTE / OS
MONSTROS / AÍ DENTRO” (MASSI; KONDO, 2017).
A representação gráfica das criaturas é desenvolvida de forma lúdica, de modo a
permitir, conforme a manipulação das páginas — que não são numeradas —, uma junção
da cabeça de um monstro, com o tronco de outro e os membros ainda de um terceiro,
criando-se assim, um novo monstro: se a cabeça é de King Kong, o tronco de Múmia e as
pernas de Drácula, temos o “Kingmila”, por exemplo.

Fig. 1. Kingmila, combinação de King Kong, Múmia e Drácula.

Na tradição oral e, posteriormente, na literatura infantil proveniente da oralidade,


elementos como suspense, mistério, terror e horror são matérias-primas frequentes na
construção da narrativa:
Os contos de fada expressam sonhos e medos, emoções e sentimentos através
de mitos e histórias que tentam compreender os fatos humanos, como
fenômenos sociais (disputa pelo poder, modelos de comportamento, conquista
de status social), questões éticas (luta entre o bem e o mal, artifícios usados
para alcançar os objetivos), e necessidades inerentes ao ser humano, através de
abordagens arquetípicas e contextos culturais (VALENZUELA, 2016, p. 90).

Nessa perspectiva, o medo é um sentimento comum dentro das histórias infantis,


pois ensinam, a partir de uma vivência psicológica, a lidar com situações inusitadas, com

1261
perigos rondantes e com emoções que estão presentes no cotidiano, sem que, para isso,
corra-se qualquer real perigo.
Bruxas, monstros e duendes unem-se a demônios e outras forças malignas para
habitar o universo mítico representativo do mal e dos perigos que insistem em tentar
provocar a morte, distanciando-se do belo, da paz, da calmaria e da segurança
proporcionada por seres relacionados a elementos positivos ligados aos paradigma
“vida”, tais como bondade, bem-estar, alegria, saúde, amizade, entre outros. As
monstruosidades, como metáforas do mal, incorporam-se à grande arca que incorpora o
folclore, os costumes, as práticas religiosas e as expressões culturais populares. Como
afirma Lovecraft, “a história de horror é tão antiga como o pensamento e a fala humanos”
(LOVECRAFT, 2007, p. 19).
Monstros do Cinema traz de volta obras clássicas da literatura de horror e que
também foram levadas às telas de cinema: Frankenstein: ou o moderno Prometeu, de
Mary Shelley, lançado em 1816, e Drácula, de Bram Stocker, de 1897.
Como o livro propõe a criação de seu próprio monstro, é possível trazer a ideia de
outra obra clássica do horror: O médico e o monstro: o estranho caso do Dr. Jeckyll e Mr.
Hyde, de Robert Louis Stevenson, publicada em 1885. Na obra, o médico, Dr. Jeckyl,
com o objetivo de provar a sua teoria de que o bem e o mal coexistem dentro cada pessoa,
ele elabora uma fórmula e a testa em si mesmo, consumindo-a. Porém, o composto revela
o lado obscuro do médico, que, quando assume a nova personalidade, ele se transforma
no malvado Mr. Hyde.
Considerando a premissa de O médico e o monstro, Monstros do Cinema aborda de
forma lúdica a criação de monstros. Não há medo, mas sim apelo ao lúdico, ao desafio de
usar a criatividade e compor o monstro que desejar. Como as páginas são divididas em
três partes, o que permite brincar com os verbos “libertar” e “montar”, como se os
monstros já existissem e apenas aguardam a possibilidade de ganhar forma dentro das
páginas do livro, bastando para isso o uso da imaginação.

1262
Fig. 2. A página propõe de forma ambígua a criação de um monstro.

Nas Fig. 3 e Fig. 4, é possível observar as possibilidades de leitura com diferentes


construções de frases a partir da mudança das partes das páginas. O adjunto de lugar “aí
dentro” (Fig. 3) oferece a ambiguidade na compreensão: vale entender que cabe ao leitor
libertar os monstros estão ainda presos no livro, ou que cabe ao leitor libertar os monstros
presos em sua própria imaginação, ou seja, dentro dele mesmo. Assim, o leitor pode
brincar de “o médico e o monstro”, pois cabe a ele criar um monstro, extraindo-o de
dentro dele próprio e combinando-o, a partir de sua imaginação, combinando as páginas
do livro.

Fig. 3. Opção de leitura. Fig. 4. Opção de construção de leitura.

1263
O livro brinquedo e a narrativa transmídia
O conceito de livro brinquedo suscita interpretações diversas, pois inclui tanto a
inserção do lúdico como o conceito de leitura, não havendo, portanto, uma especificação
única para sua definição.
Em geral, um livro brinquedo identifica-se, na produção editorial, com obras que
permitem ao leitor uma interação material baseada em jogos ou na leitura, numa proposta
verbo-sensorial. Os recursos gráficos oferecem um suporte que estimula a interação,
estabelecendo caminhos, às vezes regras, para a criação do jogo a ser desenvolvido pelo
leitor, seja ele criança, jovem ou (por que não?) adulto de qualquer faixa etária.
Da perspectiva histórica, como bem aponta Paiva (2017), o livro brinquedo tem sua
origem com o crescimento industrial:
A nomenclatura tem por referência realizações dos séculos XVIII e XIX,
londrinas e alemãs, por exemplo, de Robert Sayer — criador de livros com
cenários móveis —, de Ernest Nister — criador de livros interativos movable
(com aplicações móveis e deslizamentos), pop-ups (que saem do
unidimensional e saltam aos olhos em 3D) —, da S&J Fuller e da Editorial
Dean & Son — criadoras de livros para ler brincando, os toy books. Tais obras
alteraram o estilo de contar, ao propor que a ação direta do leitor coloque a
história em movimento (PAIVA, 2017).

Segundo Anderson (2005), nas primeiras décadas do século XIX, definiam-se como
livros brinquedo aqueles que fossem impressos com desenhos em cores, com texto
agradável, porém, sem qualquer objetivo de instruir; alguns, por sua vez, podiam servir
como ferramenta acessória à alfabetização, com o uso de imagens e letras inseridas em
requadros, por exemplo (ANDERSON, 2005, p. 47).
A partir do surgimento das diferentes mídias e suportes, o livro brinquedo adquire
novas características, as quais terminam por criar um híbrido, uma nova experiência de
leitura que envolve diferentes linguagens e percepções, bem como ultrapassa a noção de
autoria, entregando ao leitor uma obra a ser reconstruída e ressignificada a cada interação.
Como num jogo, o livro brinquedo constitui o ponto de partida para uma
experimentação narrativa, seja ela individual ou compartilhada, na qual podem se
manifestar diferentes sentidos, vivências e sensações, além da interferência da relação
espaço-temporal. Um livro brinquedo trabalha com a linguagem para além do verbal,
sem, no entanto, desconsiderá-la.

1264
A circulação de sentidos é construída tendo como ponto de partida o objeto livro
(ou livro-objeto, como muitos também o chamam), que pode se confundir com o livro-
brinquedo.
Monstros do Cinema constitui um livro brinquedo cujo projeto gráfico representa a
chave que permite a construção e desconstrução permanente dos sentidos. O livro
desempenha um papel de porto seguro, que conta a história de cada monstro, seu
surgimento, seus caminhos no folclore e na literatura, e sua representação nas telas de
cinema, seja uma ou mais vezes, como é o caso de King Kong. Esse porto seguro é na
verdade o ponto de partida para a viagem criativa que romperá as fronteiras do livro
formal para uma nova construção narrativa. As informações sobre cada um dos onze
monstros apresentados estão ao final do livro, com um quadro sinótico relacionando as
informações pertinentes à história do cinema e ao contexto em que esses monstros
surgem.
Essas informações sobre os monstros são oferecidas ao leitor com um design
semelhante a um hipertexto, ou seja, a página do livro simula um link que amplia os
verbetes, simulando a tela do computador:
Hipertexto é um conjunto de documentos de qualquer tipo (imagens, textos,
gráficos, tabelas, videoclipes) conectados uns aos outros por links. Histórias
escritas em hipertexto podem ser divididas em páginas que se desenrolam
(como aparecem na world wide web) ou em “fichas” do tamanho da tela (...),
mas elas são melhor descritas como segmentadas em blocos de informação
genéricos chamados “lexias” (ou unidades de leitura) (MURRAY, 2003, p.
64).

O medo é substituído pela construção de novos monstros: o leitor torna-se criador


de criaturas, atribuindo a elas as características que desejar, resgatando, muitas vezes,
características assustadoras, outras vezes, engraçadas, descabidas, numa arquitetura
particular de personagens e mundos ficcionais. O leitor não tem uma idade definida, pois
não há limites para a criação: basta brincar, manipulando e combinando as páginas
recortadas.
O traço proposto na obra expõe uma releitura da criação cinematográfica dos
monstros que, se nas telas são assustadores, nas páginas do livro ganham contornos mais
simples, geométricos, com o realce de elementos que os caracterizam, por exemplo,
Drácula possui dois dentes pequenos e pontiagudos e segura, numa das mãos, uma taça
com líquido cor de vinho, no mesmo matiz de sua capa. Fica a sugestão ou dúvida: vinho
ou sangue? Cabe ao leitor direcionar sua interpretação. Portanto, o medo cede espaço à

1265
criação, à imaginação posta em prática para a construção do novo monstro que, num
rápido manusear das páginas, obtém pernas finas como as do Lobisomem, um pescoço
longo e fino como o de E.T., ou um dentinho branco e saliente como o do esverdeado
Frankstein.
Monstros do Cinema, como se afirma na capa e quarta capa, é um livro “Pra toda a
família” e está “liberado para monstrinhos de 0 a 99 anos”. Por seu dinamismo e
abordagem, o livro funciona para crianças muito pequenas, alfabetizadas ou não, pois as
páginas recortadas e divididas em três partes organizam-se como quebra-cabeças rápidos
e carregados de significação.
A concepção de Monstros do Cinema funda-se na integração das linguagens, do
verbal e do não verbal. Assim, literatura, cinema, história, folclore e narrativas infantis
esteiam a proposta de narrativa transmídia.
Seguindo Jenkins (2009), na narrativa transmídia, “a história se desenrola por meio
de múltiplas plataformas de mídia, com cada novo texto contribuindo de maneira distinta
e valiosa para o todo” (JENKINS, 2009, p. 138). Toda narrativa transmídia sustenta-se
sobre três eixos, a saber: convergência dos meios de comunicação, cultura participativa e
inteligência coletiva.
Antes mesmo de seu lançamento em 2016, a obra já contava com uma página no
Facebook2. As três primeiras postagens disponíveis na página dessa rede social foi
publicada em 21 de fevereiro de 2015, e apresenta inicialmente quatro desenhos de
alienígenas invadindo a Terra, recordando as imagens divulgadas da obra que impactou
o mundo: A Guerra dos Mundos, baseada na ficção de H. G. Wells, e adaptada para o
formato radiofônico pelo então empresário de radioteatro, Orson Wells, em 1938.
Aproveitando-se da audiência rotativa que caracteriza o veículo rádio, Wells informou ao
público que se tratava de uma adaptação literária, porém, a audiência que perdeu o
esclarecimento, pensou tratar-se de fato de uma devastadora invasão alienígena à Terra.
Historicamente, o fato é marcado como sendo um grande fenômeno de mídia, pois
evidenciou-se a força e alcance representado pelos meios de comunicação.
Seguiram-se a essa publicação duas novas postagens, uma mostrando imagens do
filme O Homem invisível, de 1933, inspirado no romance homônimo de H. G. Wells, e

2
Página de Monstros do Cinema no Facebook, disponível em:
https://www.facebook.com/monstrosdocinema/, acesso em 20/08/2019.

1266
outra com imagens do filme Drácula, em sua versão de 1931, baseado na obra de Bram
Stocker, tendo o ator Bela Lugosi no papel título.
Em 26 de novembro de 2015, foi feita uma postagem contendo um vídeo de 35”
segundos3 revelando a estratégia que seria usada para compor o livro, através de recorte,
montagem e ressignificação.
Posteriormente à data da publicação de Monstros do Cinema no suporte livro, as
postagens se intensificaram, com muitas alusões a filmes com os monstros do livro,
homenagem a atores e autores, inserção dos primeiros esboços e ideias que resultariam
na confecção da obra.
Ampliando a gama de possibilidades e a abrangência de leitores, o site introduz
textos críticos tanto em português como em espanhol, além de proporcionar ferramentas
lúdicas com as imagens do livro, como é o caso do dado que pode ser impresso, passando
do digital para sua montagem real. O livro conta também com um booktrailer postado no
Youtube, em duas versões (português e inglês).

Considerações finais
Segundo Hunt (2010), a escrita e a impressão trouxe mudanças fundamentais às
narrativas, ao “impor uma coerência, alusão, desenvolvimento de personagem, diferentes
pontos de vista e enfoques” (HUNT, 2010, p. 279), porém, a contundente seja a ideia de
conclusão, ou seja, ao terminar uma leitura, uma narrativa, ou núcleo narrativo, foi
terminado.
Tal reflexão leva a outra: em tempos em que a Internet e as múltiplas plataformas
adquirem cada vez mais centralidade na vida cotidiana, em que medida podemos pensar
numa definição para o livro brinquedo ou livro objeto.
Ao tomar o exemplo de Monstros do Cinema, de Kondo e Massi, cabe refletir sobre
o livro brinquedo ou livro objeto como suporte para uma narrativa transmídia, cuja
circulação de sentido apenas parte do livro, ressignificando-se a cada leitura, seja através
do suporte livro, seja através do ciberespaço, que conjuga as mais diversas formas de
transmidialidade:
Na forma ideal de narrativa transmídia, cada meio faz o que faz de melhor —
a fim de que uma história possa ser introduzida num filme, ser expandida pela

3
Vídeo sobre Monstros do Cinema postado na página de Facebook, disponível em:
https://www.facebook.com/monstrosdocinema/videos/431790757021762/, acesso em 20/08/2019.

1267
televisão, romances e quadrinhos; seu universo possa ser explorado em games
ou experimentado como atração de um parque de diversões. (JENKINS, p. 138

É possível constatar que o trabalho transmidiático está no cerne da concepção de


Monstros do Cinema. O livro rompe com a estrutura linear do livro impresso,
ressignificando personagens assustadores do cinema, produzindo um caleidoscópio, isto
é, com uma visão múltipla, fragmentada e infinita em suas possibilidades.
instiga e contribui também para que o leitor busque mais informações sobre os
monstros, seus criadores, suas histórias, seus autores, suas versões cinematográficas e
outras curiosidades biográficas dos envolvidos na criação desses monstros.
Ao pensar num livro brinquedo, já não basta pensar no objeto brinquedo, mas como
se propõe enquanto mediação com outras plataformas, ultrapassando a fronteira o objeto,
da linearidade textual, para adentrar no universo transmidiático, em cujo jogo define-se
por um potencial narrativo ilimitado.

Referências
ANDERSON, Vicki. The dime novel in children’s literature. North Carolina, EUA:
McFarland & Co., 2005.

BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus,


1984.

CASTRO, Marcela C. Los Libros de Arena. In: Universitas Humanística n. 52. Bogotá:
Pontificia Universidad Javeriana, jul.-dez. 2001. Disponível em:
https://www.javeriana.edu.co/relato_digital/r_digital/bibliografia/virtual/castrocastro-
completo.htm Acesso em 06/07/2019.

DAVIDOFF, L. Introdução à Psicologia. São Paulo: Makron Books, 2011.

GLOSSÁRIO CEALE. Termos de alfabetização, leitura e escrita para educadores. Belo


Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, 2017. Disponível em:
http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/apresentacao

HUNT, Peter. Crítica, Teoria e Literatura Infantil. Trad. Cid Knipel. São Paulo: Cosac
Naify, 2010.

JENKINS, H. Cultura da convergência. 2ed. São Paulo: Aleph, 2009.

LOVECRAFT, H. P. O horror sobrenatural em Literatura. Trad. Celso M. Paciornik.


São Paulo: Iluminuras, 2007.

MASSI, Augusto; KONDO, Daniel. Monstros do Cinema. São Paulo: Sesi-SP: 2016.

1268
MURRAY, Janet H. Hamlet no Holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço. Trad.
Elissa K. Daher; Marcelo F. Couzziol. São Paulo: Itaú Cultural/Unesp, 2003.

PAIVA, Ana Paulo Mathias de. Livro-brinquedo. In: GLOSSÁRIO CEALE. Termos de
Alfabetização, Leitura e Escrita para Educadores. Belo Horizonte: Universidade Federal
de Minas Gerais UFMG, 2017. Disponível em:
http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/livro-brinquedo
Acesso em 08/07/2019.

SECO, Marcelo. Maquinarias desconstructivas. Poesía y juego en Juan Luis Martínez,


Diego Maquieira y Rodrigo Lira. Santiago: Cuarto Propio, 2013.

STEVENSON, R. L. O médico e o Monstro: Dr. Jekyll e Mr. Hyde. Trad. J. P. Golob, M.


A. Aguiar e R. Sartori. Porto Alegre: L&PM, 2017.

VALENZUELA, Sandra Trabucco. Once Upon a Time: da literatura para a série de TV.
São Paulo/Lisboa: Chiado, 2016.

1269
O NEOFANTÁSTICO E A DESCONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM
FEMININA NO CONTO "LA MICA" DE CARMEN LYRA
Simone Campos Paulino (UNIGRANRIO)1

Resumo: Este artigo busca realizar uma análise do conto “La mica”, da autora costa-riquenha
Carmen Lyra. A narrativa, presente na obra Cuentos de mí tia Panchita é uma das obras mais
importantes da literatura infanto-juvenil da Costa Rica. Buscaremos, portanto, destacar também
nessa obra, algumas características do neofantástico teorizado por Alazraki, dando destaque a
personagem feminina que dá nome ao conto.
Palavras-chave: contos de fadas, neofantástico, Carmen Lyra, La mica

Introdução
O presente trabalho propõe analisar o conto "La Mica" da escritora costa-riquenha
Carmen Lyra. Ressaltamos que a autora é um dos principais nomes da literatura infantil
da Costa Rica. Sua vida, marcada por seu posicionamento político, filiação ao partido
comunista e trabalho social voltado às mulheres, não a levou a entrar para Liga feminista
da Costa Rica, uma vez que, oriunda de classe popular, a escritora nunca se viu
representada pelas mulheres de classe alta da Liga Feminista. Entretanto, na literatura,
María Isabel Carvajal, usou o pseudônimo Carmen Lyra para dar voz aos contos
populares e, também, levantar críticas ao patriarcado. Usando a figura da narradora Tia
Panchita, a escritora se utilizou de uma estratégia semelhante a de Charles Perrault
quando o autor francês elaborou a Mamãe Ganso. Através dessa narradora, uma mulher
mais velha, Lyra evidencia o berço oral de seus contos. Em Cuentos de mi tía Panchita
(2012), publicado pela primeira vez em 1920, a autora une narrativas tradicionais, folclore
e contos de fadas, na elaboração de histórias como "La Mica", na qual ela desconstrói o
modelo tradicional das protagonistas dos contos de fadas. Nesse conto temos três
príncipes que partem em busca de noivas. O mais novo aceita o pedido de casamento de
uma mica, ela o faz para poder se livrar dos maus tratos da dona. Após o casamento, a
mica é quem escolhe onde vão morar, revelando, portanto, uma desconstrução do papel
submisso das personagens femininas dos contos de fadas que, geralmente, se apresentam
como dominadas diante do masculino. Barquero (2011) observa que a personagem Mica

1
Graduada em Letras (português/literaturas) pela Universidade do Grande Rio, especialista em Literatura
infantil e juvenil pela mesma universidade. Mestra em Teoria da literatura e literatura comparada pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro e doutora em Humanidades, culturas e artes pela Universidade
do Grande Rio. Pesquisadora nos grupos Margens da literatura, literatura das Margens (CnPq), no Núcleo
de Estudos Diferenças, Educação, Gênero e Sexualidades e no grupo A narrativa ficcional para crianças e
jovens: teorias e práticas (Cnpq). Contato: Simone.paulino@gmail.com.

1270
é bastante interessante, pois ela rechaça muitas características típicas do patriarcado.
Podemos considerar, ao longo da narrativa que, apesar de prisioneira do ambiente
doméstico antes e depois do matrimônio, a Mica representa a subversão feminina diante
aos ditames do patriarcado. Barquero (2011) afirma ainda que a Mica não é submissa, ela
é teimosa e faz apenas o que quer. Por sua característica de desconstrução através do
metafórico, compreendemos esta narrativa como neofantástica, de acordo com o proposto
por Alazraki (1990). Utilizaremos, portanto, na análise deste conto, os três eixos
propostos pelo autor como característicos deste tipo de narrativa: a visão – o real como
uma máscara que oculta uma segunda realidade, o verdadeiro destinatário –, a intenção –
metáforas que buscam vislumbres da realidade – e o modus operandi – aceitação do fato
insólito.

Carmen Lyra e Tia Panchita: a narrativa de contos populares


Nascida em 1888, Carmen Lyra, pseudônimo de María Isabel Carvajal, é um dos
grandes nomes da literatura da Costa Rica. Filha ilegítima do advogado Andrés Venegas,
María Isabel formou-se professora aos dezesseis anos, quando começou a exercer o
magistério. Preocupada com a educação, ela foi pioneira ao implantar no país uma escola
normal Montessoriana, após estudos na Universidade de Sorbone. Além da importância
como educadora, Lyra é considerada a fundadora da literatura de vertente realista social
na Costa Rica.
A escritora ocupou a cadeira de Literatura infantil na Escola normal da Costa Rica.
Desempenhando esta função, ela introduziu novos autores e metodologias avançadas.
Os primeiros escritos literários da autora podem ser encontrados em revistas para
as quais ela colaborou, como Páginas Ilustradas, Pandemonium, Ariel, Athenea.
Posteriormente dirigió las revistas: Renovación, San Salerín.
Engajada politicamente, a escritora foi um dos principais nomes na luta contra a
ditadura dos Tinocos, em 1919 e encabeçou um protesto pelas professoras de San José.
Lyra entrou para o partido comunista em 1931, depois de flertar com o anarquismo. A
escritora, além disso, lutou pelo direito das mulheres. Apesar de não integrar a Liga
feminista, pois não se sentia representada pelas mulheres elitistas que integravam o grupo,
ela foi defensora da igualdade salarial entre homens e mulheres e do direito ao voto

1271
feminino. A escritora fundou, junto com Luísa González o sindicato único de Mulheres
trabalhadoras, além de propor a criação de uma organização de professoras no país.
Em 1948, após a derrota na guerra civil do grupo calderonista-comunista apoiado
por Carmen Lyra, a escritora foi obrigada a abandonar a Costa Rica. No ano seguinte,
pediu para retornar ao país, mas isso lhe foi negado. Faleceu, naquele mesmo ano exilada
no México.
Responsável por iniciar a literatura infantil na Costa Rica, Carmen Lyra publicou,
em 1920, a obra Cuentos de mi tía Panchita, uma coletânea de contos que se tornou a
principal obra da literatura infantil costarriquenha.
Cuentos de mi tía Panchita é uma obra que mistura a cultura popular do país da
escritora com contos de fadas da tradição. O livro, segundo explica Lyra na introdução,
são histórias que ela ouviu na infância através da boca de sua tia, assim descrita:

Minha tia Panchita era uma mulher pequena, pequena, que penteava o cabelo
cheio em duas tranças, tinha uma enorme testa e pequenos olhos risonhos. Ela
estava sempre de luto e, em casa, trajava sua saia preta com aventais muito
brancos. (...)
Foi ela quem me contou quase todas as histórias que povoaram minha cabeça
com maravilhas. (LYRA, p. 7, 2012; tradução nossa)

Podemos perceber que a figura da tia contadora de histórias em muita se aproxima


da Mamãe ganso de Charles Perrault. Essa figura da detentora da memória familiar e das
narrativas tradicionais, é recorrente quando se observa os narradores presentes nas
coletâneas dos contos de fadas. Madame Leprince de Beaumont, escritora do conto “A
bela e a fera”, utilizava como contadora de suas histórias uma governanta, cargo que ela
mesma exercia.
Carmen Lyra, expõe no prólogo do livro, o objetivo que tem ao publicar essa
coletânea de contos: Transcrever as histórias que ouviu a tia contar quando era menina.
Vemos aqui, portanto que, assim como os irmãos Grimm, a escritora costarriquenha
recolheu narrativas da oralidade e os perpetuou na escrita.
Clarissa Pinkola Estés (2005) observa sobre a contação de histórias que
À medida que contar histórias é em sua verdadeira essência um fenômeno
subjetivo, a fim de realmente compreendê-lo, a pessoa precisaria tentar viver
dentro da cultura dos contadores de histórias, e tanto quanto possível dentro
das mentes dos contadores e no círculo de calor humano do contador em uma
“relação para sempre”.
Uma vez dentro do fenômeno, no melhor dos cenários, o ideal é que a pessoa
seja um contador de histórias orgânico, nem um leitor de histórias, nem um

1272
anotador apenas – por que há muito a transmitir quando se aprendem detalhes
de primeira mão no colo ou junto dos mais velhos, sentado com eles ou mais
próximo ainda, mas principalmente partilhando o trabalho doméstico, em casa
e no campo, todos os dias com aqueles que são mestres contadores.

Sendo assim, existe um importante entrelaçamento entre as histórias ouvidas e a


figura de quem conta a história, destacando-se a notoriedade da transmissão de narrativos
dos mais velhos para os mais jovens no seio familiar.
Lyra observa que os contos que ouviu na infância talvez nem estivessem em livros.
A escritora indaga de onde a tia tirou esses contos e, ela mesma, levanta a hipótese de
que, pegando narrativas antigas do velho mundo, Panchita colocou neles a graça de sua
palavra.

“La mica”
Um dos contos mais conhecidos de Cuentos de mi tía Panchita é a história “La
mica”. Essa narrativa inicia da seguinte forma:

Era uma vez um rei que tinha três filhos. E o rei estava muito desconsolado
com seus filhos porque não encontrava função para eles e queria que eles
fossem atrevidos e valentes. Se pôs a pensar como poderia tirá-los de baixo da
saia da rainha, que os tratava como criaturas recém-nascidas, não queria que
eles fossem jogados ao vento.
Um dia ele os chamou e disse:
—Rapazes, por que não vão rodar o mundo? Eu ofereço o trono para aquele
que vier casado com a princesa mais habilidosa e bonita. E é melhor que não
digam nada a mãe de vocês [...] (LYRA, p. 35, 2012; tradução nossa)

É possível percebermos, no trecho em destaque, que a história nos aponta para


personagens típicos dos contos de fadas da tradição (reis, príncipes, rainha), além de
apontar para uma Idade Média imaginária. Ora, estamos tratando de uma obra escrita na
América Latina, lugar que não teve a cultura medieval, no entanto, vemos a influência do
velho mundo com a monarquia e seus castelos.
Ademais, vemos, neste início, uma grande semelhança com o conto “Os quatro
irmãos habilidosos” dos irmãos Grimm que começa da seguinte forma:
Era uma vez um homem pobre que tinha quatro filhos e quando os meninos
cresceram ele disse:
— Queridos filhos, agora vocês precisam partir de casa, porque não tenho nada
para lhes dar. Cada um precisa aprender um ofício e abrir seu caminho no
mundo. (GRIMM, 2005, p. 81).

1273
Bem como no conto dos Grimm, na narrativa de Lyra, os filhos partem no mundo
para cumprir a tarefa proposta pelo pai. Entretanto, para não despertar a atenção da mãe,
que desejava mantê-los por perto, os rapazes saem cada qual num dia. O mais velho parte
na segunda, o do meio, na quarta e o último no sábado. Se pensarmos nos dias da semana
em espanhol, língua original da narrativa, veremos que o primeiro filho sai do castelo em
Lunes, dia da Lua, marcado pela lentidão; o segundo sai em Miércoles, dia de Mercúrio
e de caráter dúbio; o último, no Sábado, dia de descanso.
Os três rapazes tomam o mesmo caminho e os três passam pela mesma hospedaria,
na qual uma bruxa mantinha uma mica como prisioneira. A Mica aborda o filho mais
velho do rei durante a noite:
Sobre ele estava uma mica, pendurada pelo rabo, que havia saído Deus sabe de
onde. O príncipe ia gritar, mas ela colocou a mãozinha peluda na boca dele e
disse: “Não grite porque senão me encontrarão aqui e vão me dar outra surra.
Veja, venho te propor matrimônio para que me tire dessa casa. (LYRA, p. 36,
2012)

O príncipe recusa casar-se com ela e afirma que poderia levá-la consigo para se
divertir apenas. O segundo filho também recusa o pedido da Mica e nem mesmo propõe
levá-la consigo. O mais novo, entretanto, era impulsivo, tinha coração mole e não podia
com a crueldade e, por isso, acabou se casando com a Mica.
Após o casamento, a esposa é quem indica onde eles irão morar, não na cidade, mas
entre as montanhas.
Sobre a protagonista desse conto, Barquero (2011) afirma:
Por seu turno, a Mica é uma personagem muito interessante expressa,
em muitas de suas atitudes, a rejeição de características típicas do
patriarcado. Apesar de estar à mercê da bruxa e desempenhar o papel
de vítima, é ela que pede a cada um dos príncipes em casamento e toma
o controle da situação mais tarde. (p. 28)

Depois de um ano, os três irmãos se encontraram, Cada um falava da própria esposa


e o caçula, mentindo, afirmou ter se casado como uma bela moça. O rei então propôs aos
três filhos alguns desafios para provar a qualidade das noras. Testes como esses nos
remetem a contos de fadas como “Cinderela” – nas versões dos irmãos Grimm ou Charles
Perrault – , na qual o sapato serviria apenas na escolhida ou “A princesa e a ervilha”,
narrativa de Hans Christian Andersen na qual, para provar ser uma verdadeira princesa,
a personagem teve sua sensibilidade testada.

1274
A primeira tarefa foi tecer uma camisa para o rei e para a rainha. Quando o
príncipe caçula propôs isso à esposa não iniciou o trabalho e, apenas no último dia do
prazo, entregou ao marido duas sementes de tabaco que, na presença do rei, se
transformaram em belas camisas de tecido fino e botões de pedras preciosas.
Na segunda tarefa, o rei ordenou que as noras cozinhassem. Desta vez, o príncipe
esperou com paciência pela Mica, não a apressando em cumprir a tarefa. A esposa
entregou a ele uma cesta, que ele levou ao pai, enquanto os irmãos chegavam com
bandejas de ouro. O rei, quando viu a simples cesta trazida pelo caçula, lançou-a na
parede. Dali saíram dos pombos, carregando uma bandeja de ouro carregando manjares
deliciosos.
A penúltima tarefa pedida pelo rei era que as noras conseguissem uma vaca capaz
de ser ordenhada à mesa. A mica, para cumprir a tarefa, entregou ao esposo um pedaço
de bambu e pediu que ele confiasse e não abrisse aquilo antes de chegar ao pai. Bem como
nas outras tarefas, o filho caçula se saiu melhor e o bambu se revelou uma pequena vaca
com cascos de ouro, tão mansa que pôde ser ordenhada à mesa.
A última exigência do rei era conhecer as noras. A Mica pediu ao esposo uma
carruagem fechada, na qual ela partiu sozinha. O príncipe ficou desesperado ao imaginar
o que os irmãos e o pai diriam quando soubessem que ele era casado com uma mica, no
entanto, quando abriu a carruagem, não saiu dali um animal. “Mas foi saindo uma
princesa tão bela que o sol parava para vê-la. Estava vestida de ouro e brilhantes, com
uma estrela na frente, rindo e mostrando os dentes que pareciam pedacinhos de requeijão”
(LYRA, p. 41, 2015).
A moça explicou ao marido que ele era filha do rei da França que que tinha sido
enfeitiçada pela bruxa pois o pai não quis se casar com ela devido sua feiura. Sendo assim,
a bruxa castigou a filha do rei, a tornando um ser horrível e, somente se alguém se casasse
com ela, o feitiço poderia ser quebrado.
A mica representa uma dualidade. Por um lado, ela apresenta a característica
angelical, adjudicadas ao feminino pelo patriarcado, como a modéstia, a amabilidade, a
docilidade. Por outro lado, ela também tem um caráter monstruoso, não só por ser um
animal, mas por revelar-se intransigente, “cabeça-dura”, como é descrita na narrativa.
Desta forma, ela manifesta a autonomia feminina intransigente, uma característica, muitas
vezes, destinada às bruxas e antagonistas da literatura. Isto nos remete a Gilbert e Gubar,

1275
em The Madwoman In The Attic (1984) quando as autoras observam que na escrita de
autoria masculina, as personagens femininas são estereotipadas de forma dicotômica,
sendo apresentadas de forma angelical ou monstruosa. Vemos, portanto, no conto de
Lyra, uma personagem que se equilibra entre as duas características.
Em “La Mica” podemos perceber ecos de histórias do velho mundo, principalmente
de Charles Perrault. É certo que a escrita de Carmen Lyra, dado o tempo que ela estudou
na França, teve grande influência da literatura francófona. Observemos que, o fim do
conto, seguindo a esteira de Perrault e La Fontaine, é versado, como vemos a seguir:
“E então, eles viveram muito felizes./ E eu fui,/ Vi tudo,/ Fiz tudo,/ E nada inventei.”
(LYRA, 2012, p. 42)
Além disso, quando o narrador se aproxima da história, colocando-se como uma
espécie de testemunha ocular, nos remete a Hans Christian Andersen que realizava uma
abordagem semelhante em seus contos de fadas.
É notório que “La mica” nos remete as narrativas do ciclo do noivo animal, da qual
temos como mais famoso conto “A Bela e a Fera” de Madame Leprince de Beaumont.
No entanto, o animal, no conto de Lyra, não é uma criatura masculina, mas feminina,
como vemos ocorrer em tramas como “A gatinha branca” (século XVII) da Condessa
d'Aulnoy, “Princesa Serpente” (1946) de Camara Cascudo e no filme Penélope (2007) de
Mark Polansky. Inverte-se, portanto, os papéis daquele que por feitiço está
metamorfoseado em animal.
O encanto não é quebrado com o casamento, no conto de Lyra, mas quando o
príncipe, finalmente, acredita nela, criando-se uma relação de confiança entre os dois, o
que a liberta da maldição.

“La Mica” e o neofantático


O neofantástico é uma proposta teórica cunhada pelo argentino Jaime Alazraki para
se referir a obras latino-americanas de autores como Julio Cortázar e Jorge Luis Borges.
Alazraki entendia que a obra desses autores não cabia nas características do fantástico
que vemos em obras de estudiosos do gênero como Todorov. Sendo assim, o
neofantástico apresenta como especificidades: caráter metafórico, não se concentrar na
apresentação de um simulacro da realidade, mostrar fato insólito como aceitável e possuir
uma máscara que oculta uma segunda realidade.

1276
Alvarez (2012), observa que
Segundo o crítico [Alazraki], há a necessidade de buscar uma nova
caracterização para obras contemporâneas que buscam uma expressão
literária harmonizada com as inquietações próprias de sua época. Por
esse motivo, Alazraki situa o início dessa nova forma de encarar o
fantástico nas décadas que viram surgir a Primeira Guerra Mundial, os
movimentos de vanguarda, a psicanálise de Freud, o surrealismo e o
existencialismo, entre outros. (p. 38)
Desta forma, observamos que existe um período histórico – pós primeira guerra –
e um lugar – América Hispânica – que comportam o nascimento e desenvolvimento do
neofantástico.
Quando pensamos no conto “La Mica” de Carmen Lyra, nos parece claro defini-lo
como pertencente ao gênero maravilhoso, uma vez que são aceitas novas leis da natureza
e, vemos na referida narrativa, a estrutura dos contos de fadas da tradição. Porém, cabe-
nos aqui levantar algumas provocações sobre os limites desse gênero e de que forma,
neste conto, pertencente a seara do maravilhoso, Lyra flerta com o neofantástico descrito
por Alazraki.
Primeiramente, devemos compreender que as narrativas neofantásticas possuem
uma visão que oculta uma segunda realidade. Alazraki (1990) afirma que “se o fantástico
assume a solidez do mundo real (...), o neofantástico assume o mundo real como uma
máscara como um simulacro que oculta segunda realidade que é o verdadeiro destinatário
da narração neofantástica” (p. 29; tradução nossa). Dentro da narrativa “La Mica”,
observamos que aquela realidade ficcional oculta uma discussão sobre o feminino,
principalmente no que tange a questão da beleza. Devemos ainda considerar que o termo
“mica”, em espanhol, pode ser compreendido de forma figurada, denotando “mulher
feia”.
Alazraki observa ainda que a intenção dos contos neofantásticos não são provocar
medo ou terror naquele que os lê, apesar de causar inquietude pelos elementos insólitos
inseridos na trama. A intenção desses contos, segundo o teórico,
(...) é em maior parte metáforas que buscam expressar vislumbres,
entrevistos ou interstícios irracionais que escapam ou resistem à
linguagem da comunicação, que não se encaixam nas células
construídas pela razão, que vão contra o sistema conceitual ou científico
com o qual lidamos cotidianamente. (ALAZRAKI, 1990, p. 29).

Observamos, portanto, que a literatura neofantástica é arquitetada sobre metáforas.


Como já salientamos acima, o conto “La Mica”, apesar de ser pertencente a seara do

1277
maravilhoso, tangencia característica desse estilo fantástico peculiar da América
Hispânica. Podemos, assim, considerar que existe uma intenção de desconstruir o
estereótipo das personagens dos contos de fadas da tradição e contestar os aspectos da
passividade e beleza tão típicos entre as protagonistas femininas desse tipo de narrativa.
Outrossim, é importante ressaltar que o Modus Operandi é, também, um dos
aspectos que diferencia o neofantástico das outras categorias do fantástico. Alazraki
(1990) explica que “desde as primeiras frases do relato, o conto neofantastico (...) nos
introduz o elemento fantástico” (p. 31). No neofantástico não há um simulacro da
realidade que é confrontado com a introdução do elemento sobrenatural. Há uma
aceitação dos fatos insólitos. Podemos perceber que a aceitação do insólito na narrativa
“La Mica”, a aproxima do neofantástico também. A suspensão da crença é necessária por
parte do personagem masculino para que a personagem feminina possa cumprir as tarefas
exigidas pelo rei. É somente quando o marido crê na Mica que ela é capaz de se libertar
da maldição e retornar a forma humana. Sendo assim, era preciso, não somente o amor,
mas a confiança em ver além da imagem animal, para vislumbrar uma mulher capaz de
solucionar conflitos de forma mágica e, antes de tudo, engenhosa.

Considerações finais
O conto “La Mica”, de Carmen Lyra, é uma das principais narrativas infanto-
juvenis da Costa Rica. A história, que possui ecos dos contos de fadas de tradição
europeia, tem, também, características próprias das narrativas latino-americanas,
flertando com o neofantástico, proposto por Alazraki, e característico da literatura da
Americana Hispânica.
Lyra, no conto em questão, levanta, através da metáfora da Mica aprisionada,
diversas questões que são pertinentes a situação da mulher de sua época. É importante
ressaltar que a escritora era bastante ativa politicamente e combativa pelo direito das
mulheres. Sendo assim, não podemos descartar a relação entre a escritora e sua criação
literária e de que forma isso se apresentava na criação de suas personagens.
A Mica, no conto supracitado, possui um aspecto dual que, da mesma forma que se
mostra angelical – estando aprisionada e submissa – essa personagem é também
monstruosa – ao subverter, pedindo os príncipes em casamento, e sendo intransigente
diante das ordens do marido.

1278
A obra de Carmen Lyra que, infelizmente, não é tão difundida em outros países
latino-americanos – como, por exemplo, o Brasil – expressa afetividade com as tradições
populares nacionais que misturam histórias locais com narrativas dos colonizadores
europeus, criando uma literatura rica e única que possuí profundidade de tramas e
personagens.

Referências bibliográficas
ACUÑA, Gilda Pacheco. Preceptos teóricos de Sandra Gilbert y Susan Gubar en Cuentos
de mi tía Panchita de Carmen Lyra. Káñina, Rev. Artes y Letras, Univ. Costa Rica. Vol.
XXX (1), pág. 11-21, 2006.
ALAZRAKI, Jaime. ¿Qué es lo neofantástico? Mester. Vol. xix. No. 2, Fali, 1990.
ALVAREZ, Roxana Guadalupe Herrera. O neofantástico: uma proposta teórica do crítico
Jaime Alazraki. Revista FronteiraZ, São Paulo, n. 9, dezembro de 2012.
BARQUERO, Marcia Ugarte. Narrativas de mujeres en Costa Rica: Personajens
femeninos em los Cuentos de mi tía Panchita. Trabajo de investigación máster de lengua
española y literatura hispánica departamento de filología española universidad autónoma
de barcelona bellaterra, 2011.
GILBERT, Sandra; GUBAR, Susan. The Madwoman In The Attic” The Woman Writer
and the Nineteenth-Century Literary imagination. Yale University press new haven and
London 1979, 1984.
LYRA, Carmen. Cuentos de mi tia Panchita. San José, 2012.

1279
PROCESSO DE PRODUÇÃO ESCRITA EM ANA MARIA MACHADO: DO
JUVENIL AO ADULTO

Thayná Cavalcante Marques (UFG)1

Resumo: Esta pesquisa analisa a produção literária de Ana Maria Machado destinada ao público
juvenil e ao adulto, a fim de compreender as especificidades da literatura juvenil brasileira
contemporânea. Para isso, procura-se entender o processo de elaboração escrita dessa autora
partindo da análise das obras Canteiros de Saturno (2007) e Uma vontade louca (1992). Assim,
se observa a estruturação da linguagem, as personagens, a postura do narrador, entre outros.
Refletindo também sobre a própria literatura juvenil e se há nela tendências específicas quanto à
escolha temática e à elaboração da narrativa. Por fim, como base teórico-crítica recorreu-se a
estudos de Edmir Perrotti (1986), Chartier (2002), Peter Hunt (2010), entre outros.

Palavras-chave: Ana Maria Machado; produção escrita; narrativa juvenil; especificidade de


gênero.

Introdução
O objetivo deste trabalho2 é realizar um cotejo entre as obras de Ana Maria
Machado escritas para jovens e as obras escritas para adultos, com o intuito de entender
as especificidades da literatura juvenil brasileira contemporânea. Para tanto procura-se
entender o processo de elaboração da escrita dessa escritora – se há nela uma mudança de
postura quando muda o público leitor das obras, e se houver, quais mudanças ocorrem e
com qual objetivo.
Para tanto, se escolheu os títulos Canteiros de Saturno (2007) e Uma vontade
louca (1992) destinados aos adultos e jovens, respectivamente. O critério de escolha do
corpus se deu pela aproximação de certas estratégias narrativas empregadas, como a
apresentação gradual de personagens, além de serem romances publicados na década de
1990, com uma aproximação também temporal.
Para que esta pesquisa se realizasse, foi elaborada uma ficha de leitura das obras
selecionadas, analisando os mesmos aspectos em cada uma delas, para facilitar a análise
comparativa. Essa ficha se baseia na grade desenvolvida por Ceccantini, em Uma estética
da formação: Vinte anos de literatura juvenil brasileira premiada (1978-1997). O uso da
grade desenvolvida por Ceccantini se justifica por colaborar com o levantamento e a

1
Graduada em Licenciatura em Letras-Português, pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Mestranda
em Estudos Literários pelo programa de pós-graduação da mesma instituição. Contato:
thaynacavalcante.m@gmail.com.
2
A análise que aqui se empreende completa uma pesquisa maior que foi desenvolvida como Trabalho de
conclusão de curso; devido a extensão do que fora feito, houve a necessidade de síntese.

1280
sistematização de dados das obras juvenis analisadas com o fito de contribuir com a
reflexão sobre a existência de uma especificidade dessa literatura.
Desse modo, este estudo pretende acrescentar na compreensão do processo
criativo da escrita de Ana Maria Machado, assim como na reflexão sobre a especificidade
do gênero literatura juvenil.

A construção social e histórica da literatura juvenil


As crianças tornaram-se importantes no meio social em meados do século XVI, à
medida que a constituição de família muda, sustentada pelo ideal burguês de organização
socieconomica. Assim, antes do surgimento da família burguesa, as crianças eram
inseridas no seio da sociedade e cumpriam papéis semelhantes aos adultos, de modo que
estavam sempre expostas ao convívio social. O apego à criança e à infância foi construído
socialmente e passou por fases evolutivas que, gradativamente, foram transformando a
percepção que os adultos tinham dos infantes.
Ariés, no seu História Social da Criança e da Família (2011), descreve o papel
moral que o texto escrito desempenhou para educação e orientação das crianças,
percebendo as diferenças entre os textos destinados a um leitor infantil e um adulto. Tendo
em vista a ideia de educação moral associada às transformações na estrutura familiar e ao
papel que a criança passa a exercer na sociedade, surge “uma literatura pedagógica
infantil distinta dos livros para adultos” (Op. cit., p. 149), comprometendo-se
primordialmente com o ensinar.
Edmitir Perrotti (1986) ao discutir o papel edificante e didático da literatura
destinada aos jovens leitores, reflete sobre as questões do utilitarismo empreendido nela
– tendência de enxergar e produzir literatura infantil a partir de uma função ligada ao
ensino. O autor, apresenta as diferenças entre os discursos estético e utilitário, explicando
que esse último sempre tendia a “oferecer atitudes morais e padrões de conduta a serem
seguidos, ordenando os elementos narrativos em função de tal finalidade exterior.” (p.
117).
Em uma percepção cronologicamente instaurada, percebe-se um desenvolvimento
da literatura infantil e juvenil para a contribuição do pensamento critico e valorização dos
infantes. Assim, a partir de 1970, os autores que publicam para jovens leitores, prezam e
oferecem narrativas que agunçam o senso crítico dos jovens. Sobre isso, Marisa Lajolo e
Regina Zilberman (1984) caracterizam a década de 1980 como expressiva para a

1281
ampliação e para mudanças da literatura infantil e juvenil. Fazendo com que haja uma
preocupação social – a criança passa a ser vista como um ser completamente capaz de
absorver e compreender os mais variados tipos de produção literária.
Dessa forma, a literatura infantil e juvenil brasileira vem se consolidando,
procurando sempre preservar o teor artístico, literário em detrimento do olhar utilitário e
demagogizante. Pela complexidade que a literatura infantil e juvenil tem alcançado,
torna-se difícil defini-la em categorias estanques ou em olhares redutores. Peter Hunt
(2010) pondera a respeito dessa questão dizendo que literatura infantil são livros lidos
por; especialmente adequados para; ou especialmente satisfatórios para os membros do
grupo hoje definido como crianças. (HUNT, 2010, p.96). Mesmo que o autor afirme que
essa visão se torna, por vezes, complacente e pouco prática, uma vez que considera tudo
que uma criança, reconhecida socialmente como criança, lê, ainda parece ser uma forma
consciente de compreender as transformações e as diferentes conotações que a literatura
infantil e juvenil ganha com o passar do tempo.
Assim, Larissa Cruvinel (2009) reflete a respeito da especificidade da literatura
juvenil como gênero literário, fazendo um panorama de diferentes concepções e visões a
respeito do que seria essa literatura. Para tanto, discute a visão de uma série de críticos e
teóricos que tratam desse assunto. Um deles é Daniel Delbrassine, em “Evolutions récents
du marché du roman pour la jeunesse”, de 2002, que mostra que existem fatores extra-
literários que ajudam a consolidar a legitimidade desse campo, já que ao lado da literatura
juvenil é possível encontrar todo um “sistema existente em torno dessa produção, em que
há um mundo à parte em relação à literatura geral: crítica especializada, livrarias
específicas, eventos ligados à divulgação das obras (p.27)” (DELBRASSINE apud
CRUVINEL, 2009, p.20) e que, ao contrário do que comumente se espera, essa literatura
não se encerra apenas a aspectos de destinação, que é o público jovem.
Assim, não se pode desconsiderar as influências do mercado editorial na escrita e
veiculação dessa literatura, haja vista a relação que mantém com o que chega aos leitores
com essa alcunha. Tal percepção se justifica em razão do processo que por nós é
conhecido em que as editoras estabelecem quais livros serão vendidos a partir desse rótulo
de literatura juvenil, dizendo que aquele texto literário é propício e, consequentemente,
indicado para crianças e adolescentes. Todavia, esse não é próposito da discussão que
aqui se empenha.

1282
Dessa forma, pensar em marcas específicas da literatura juvenil envolve um
contexto mais amplo sobre o papel do mercado na qualificação da literatura para
determinado público, nas concepções do escritor sobre o que seja literatura juvenil, além,
é claro, da recepção do jovem leitor que pode ou não se sentir atraído por uma obra que
apresenta o rótulo de juvenil. Em vista disso, este trabalho busca lançar luzes sobre alguns
aspectos desse tema, apresentando como recorte a análise intrínseca de duas já citadas
obras de Machado com o intuito de, por meio de um estudo comparativo, discutir as
aproximações e as diferenças entre ambas as obras.

Uma vontade louca (1992): a literatura juvenil de Ana Maria Machado


Uma vontade louca narra as vivências de um grupo de adolescentes de uma
cidadezinha litorânea chamada Esmeralda. O romance é narrado em 1ª pessoa por
Marcos, um adolescente que decide escrever sobre as situações cotidianas vividas por ele
e seus amigos. O garoto, como narrador, possui visão limitada das outras personagens,
mesmo que tenha acesso a informações que transcendem sua presença e/ou participação
nos episódios narrados. É possível apreender da narração, em razão da condição de
adolescente, que Marcos em alguns trechos conta a história com uma timidez aparente,
ficando acanhado com o que percebe estar acontecendo entre o amigo e a irmã. Por vezes,
não consegue assimilar completamente o que sente, nem descrever de forma exata suas
emoções. Tais aspectos se estendem à construção do discurso, em que o narrador permeia
o relato com suas incertezas e inseguranças, como no trecho:

Então era isso. Mais essa. Não posso negar que fiquei meio surpreendido. E
com ciúme do Jorge, que nunca falou nada comigo, o maior amigo dele... Mais
sentimentos para misturar com os outros... Ainda fiquei com um pouco de raiva
também. Como se tivesse uma hora na vida da gente em que todas as emoções
vão se apresentando, ganhando forma, dando um passo à frente e se mostrando,
para a gente reconhecer e descobrir o que é que faz com elas. Se é que se pode
saber essas coisas. (MACHADO, 1992, p.87)

Uma estratégia composicional importante da narrativa é o fato de que Marcos


sempre convida o leitor para o texto, dando abertura e dizendo que esse precisa completar
o sentido dos acontecimentos e do romance por ele mesmo. Parece haver, então, uma
vontade da escritora de atrair o leitor, de forma que muitos dos fatos presentes na narrativa
são construídos a partir de aparente diálogo com o leitor. Isso pode ser verificado no
seguinte trecho, em que conversando com o leitor, o narrador diz que fica a cargo desse

1283
entender o porquê Mariana (irmã do narrador) e Jorge (melhor amigo do narrador)
discutiram, além de entender o início do relacionamento desses dois:

Só que nem eu mesmo sei por quê. E deixo isso para você pensar e descobrir.
Quem escreve, afinal de contas, não pode descobrir tudo, tem que deixar uma
porção de coisas também para quem lê. Se não, o escrito não vai ter graça
nenhuma, vai ficar parecendo lista telefônica, que dá sempre as mesmas
respostas e não deixa ninguém inventar nada. (MACHADO, 2007, p.35).

Sobre esse aspecto, Hunt (2010) diz que é importante compreender que o sentido
do texto literário é construído junto ao leitor e que esse possui grande responsabilidade
quanto a esse processo – o de significação e entendimento de um texto. O estudioso
considera também que, mesmo que parte do sentido esteja no livro, as concepções e
vivências de leitura que os leitores trazem consigo contribuem e, por inúmeras vezes,
afetam esse sentido. Nesse âmbito, os textos de Machado são extremamente bem
realizados, haja vista a constante atenção e preocupação de cobrar a participação ativa do
leitor. Essa característica, tão comum na obra de Ana Maria Machado, se apresenta como
uma estratégia de adesão do leitor à obra, visto que o narrador mantém um contato direto
com o leitor e que o chama para participar efetivamente da história que é narrada, fazendo
com que esse se sinta parte dos acontecimentos.
Assim, Machado lança mão de alguns recursos que contribuem para a adesão do
leitor, com a intenção de incitar nele curiosidade e certo apego às personagens e ao
romance como um todo. Uma vontade louca usa da afetividade para criar um vínculo
entre as personagens e o leitor; as personagens são inocentes, curiosas, tímidas e
cativantes e as situações que as envolvem são igualmente singelas.
Temos ainda como estratégia, que atrai o jovem leitor e exerce nele certa
identificação, o fato de que não há no livro passagem alguma que estabeleça de forma
conclusiva a idade das personagens. O que se sabe sobre Marcos e seus amigos é que são
um grupo de adolescentes, que vivem em uma pequena cidade no litoral, além de que, no
fim da história, o leitor tem conhecimento da mudança do narrador para a cidade de
Santana, a fim de continuar estudando para poder prestar vestibular. Dessa forma, a
narrativa não fecharia o universo narrado a uma única faixa etária, mas deixaria um
espaço aberto para a identificação de leitores de diferentes idades.
Reconhece-se também a escolha, extremamente recorrente nas produções juvenis,
de apresentar personagens e um narrador adolescente, em um movimento claro de buscar

1284
a identificação do leitor com essas figuras. Todavia, em Uma vontade louca essa
particularidade não aparece de forma gratuita, com intenção única de fazer com que o
jovem leitor se veja representado ali; ainda que trate de assuntos voltados para as
experiências da adolescência, a autora busca criar um ambiente de participação ativa do
leitor, sem procurar educá-lo e sem encerrar o enredo em apenas histórias clichês de
primeiro amor.
A descrição do processo pelo qual passa Marcos enquanto escreve é ponto que
merece atenção. O narrador está constantemente relembrando o leitor de que sua narração
é fruto de tentativa de escrita, contando quais são os processos que enfrenta enquanto está
escrevendo, como a escrita acontece, qual é o intuito de escrever e quais são as
dificuldades que encontra no momento da escrita. Há um processo de autodescobrimento
por meio da arte nas personagens de Machado. Assim, além de se descobrir como escritor
– que amadurece à medida que escreve, a personagem/narrador também percebe e
descobre revelações a seu respeito como indivíduo e aprende a lidar com os sentimentos.
Ilma Socorro Vieira (2013), em sua tese analisa o processo de escrita e consolidação
do escritor nos romances de Ana Maria Machado, explica a questão da
“autorreflexidade”, entendendo-a como o momento em que uma personagem toma para
si a responsabilidade de escrever sobre uma história, mesmo que não se veja apto a isso,
mas que, no desenvolver da matéria narrada, se descobre “sujeito e objeto do processo,
alguém que construiu e se construiu enquanto escritor (a), ainda que em caráter
experimental. Nesse sentido, tanto é importante o produto quanto o processo da criação
literária”. (Vieira, 2013, p.14). É exatamente nesse processo que Marcos está inserido,
uma vez que sente a necessidade de escrever sobre o início do relacionamento da irmã
com seu amigo, começa de forma tímida, sem crer na possibilidade de desenvolver uma
boa escrita, mas vai aprendendo e contando o que aprende, ao mesmo tempo em que
aprende.
Por meio da trajetória das personagens é possível perceber uma tendência de a
autora prezar pela emancipação do adolescente, uma vez que através das experiências
vividas e narradas, principalmente as de Marcos, o discurso e as problemáticas da
vivência do jovem são refletidas diretamente na narrativa, sem a interferência clara do
ponto de vista do adulto. Outro ponto que merece ser destacado é a capacidade das
personagens de oferecer ao leitor jovem uma forma de se ver representado e de se

1285
reconhecer na obra. À medida que as personagens compreendem o mundo, o jovem leitor,
por meio dessa experimentação fictícia, também pode observar o mundo de uma forma
mais complexa.
As relações amorosas nesse romance são representadas a partir das experiências
e dos sentimentos comumente associados à adolescência; as personagens configuradas na
obra fazem descobertas quando se envolvem em relações amorosas, mas esses temas são
tratados com sutileza. São abordados, portanto, o primeiro beijo, o primeiro toque, a
vergonha de gostar de alguém e ser descoberto, aliadas à curiosidade, ao desejo, à uma
vontade louca de descobrir o outro e a paixão. Todavia, o aparente recato com que é
contada a história não chega à moralidade exacerbada, mas apresenta um tom leve que
revela um texto limpo de palavras, expressões e/ou situações que poderiam criar algum
tipo de indisposição ou choque no leitor. Carregado de eufemismos e metáforas, o
tratamento de Ana Maria Machado ao discurso permite que ela aborde temas que
figurariam como tabus, como, por exemplo, as relações sexuais. No trecho em que
Mariana e Jorge escolhem ficar para trás, quase no fim do romance, leva o leitor a crer
que algo a mais aconteceu entre eles naquela noite:

– Podem ir. Mariana e eu arrumamos tudo e já encontramos vocês.


E ficaram para trás. Os dois sozinhos, na praia, na noite de luar. A caminho do
sétimo céu. Mas isso eu nem desconfiei quando disse:
– Está bem, até já! (MACHADO, 1992, p.128).

Todos os diversos tipos de relacionamento que as personagens desenvolvem são


sempre tratados de forma branda, nunca se excedendo em descrições mais contundentes
sobre as possíveis relações íntimas entre elas; não há raiva exacerbada, ou tristeza, ou
paixão. As personagens adolescentes discutem mas não brigam, não se ofendem de forma
mordaz e nem agem com violência, por exemplo. Processo distinto acontece em
Canteiros de Saturno, exemplar de uma literatura geral de Machado, que apresenta
personagens menos comedidas. Isso será melhor explicitado em tópico posterior.
Desse modo, é possível perceber na obra juvenil de Ana Maria Machado um
respeito pelo leitor e algumas especificidades quando o discurso é voltado para um leitor
jovem.

Canteiros de Saturno (2007): a literatura geral de Ana Maria Machado

Em Canteiros de Saturno, a autora apresenta um enredo intricado, em que uma

1286
gama de personagens são apresentadas e, por vezes, essas personagens se tornam também
narradores. Dessa forma, a narrativa, que se divide em 21 capítulos, organizados sob
óticas diferentes, não possui também uniformidade de tempo e espaço. Os capítulos,
portanto, interligam diferentes personagens, em diferentes lugares e momentos.
No romance há preponderância de um narrador em 3ª pessoa e onisciente.
Conhecedor de todos os sentimentos mais íntimos das personagens, conta dos
pensamentos e vontades delas. Outro ponto importante a ser ressaltado é o fato de que o
narrador auxilia na compreensão da história, a partir do momento em que ela se torna
mais complexa, como quando há o encontro de personagens que até então não existiam
no mesmo espaço, mas que em dado momento, se encontram e se relacionam, por
exemplo. Todavia, nem sempre isso acontece de forma ordenada; por vezes, o narrador
muda o foco narrativo repentinamente, concentrando-o em uma outra história,
personagem, situação; além de que nos cápitulos cinco, catorze e dezessete os fatos
passam a ser narrados em 1ª pessoa, trazendo relatos de algumas personagens que
acompanham a história trazendo uma perspectiva diferente acerca dos fatos narrados.

Há diversas personagens que compõem essa narrativa, entretanto as de maior


destaque são: Leonora, artista plástica, mãe de Isadora e Leonardo, mantém uma relação
amorosa e extraconjugal com Nicolau – arquiteto de formação mas que desenvolve
trabalhos de marcenaria em um estúdio do lado da casa da artista, além de ser patroa de
Marly. É o elo que liga boa parte das personagens e das histórias. Essas personagens são
estruturadas de forma complexa, de modo que fogem ao maniqueísmo, mostrando o misto
de sensações humanas – capazes de traições, mentiras e ciúme, mas igualmente capazes
de lealdade, solidariedade e verdade.
A maneira como se relacionam dá margem também para que seja trabalhada pela
autora uma série de temas considerados tabus na literatura juvenil, como traição, abuso
sexual e infantil, estupro, violência doméstica, violência contra a mulher, sexo, aborto,
gravidez na adolescência, gravidez indesejada que causa descontentamento e tristeza, ao
invés do que comumente se assimila como sentimentos dessa experiência, apatia ao
casamento e ciúmes. Tanto a discussão de temas tabus, quanto o emprego da linguagem,
contribuem para uma obra mais liberta das coerções que frequentemente são feitas a obras
juvenis.

1287
É importante salientar que em Canteiros de Saturno há o uso recorrente de termos,
adjetivos e expressões que caracterizam e ilustram de forma explícita os momentos com
maior teor sensual da narrativa, como em: “[...] Paola não aguentava mais que alguns
dias. Acabava aparecendo no escritório, perturbada, algumas vezes chorosa, outras
sedutora, chamava-o para jantar, acabavam trepando, e voltava a ser como antes.”
(MACHADO, 2007, p.13, grifo nosso), ou no trecho narrado por Marly que descreve,
com ingenuidade, suas primeiras relações sexuais:

Acho que eu sabia que era uma sacanagenzinha boa, mas boa, tudo certo, que
nem os bichos no quintal, não imaginava que aquilo é que fazia moça deixar
de ser donzela, começo de caminho de mulher da vida, nem que era assim que
a gente pegava filho. (p. 67-68)

Desse modo, neste romance, observa-se que a adesão do leitor é estabelecida por
meio da criação de um vínculo com as personagens apresentadas, uma vez que o leitor
estabelece relação afetiva, haja vista a forma como aquelas são construídas; são
personagens movidas pelo desejo, que estão em constante processo de aprender sobre si
mesmas, que erram, que se desculpam, que sofrem entre outros sentimentos tão
conhecidos pelo leitor. Outro ponto que permite uma ligação maior com o leitor é o fato
de o romance apresentar capítulos em que a história é contada por um narrador-
personagem; isso pode aproximar o leitor da narração. Exemplo disso seria facilmente
verificado no quinto capítulo, que é narrado por Marly. A doméstica, num relato
comovente conta de sua trajetória até chegar à casa de Leonora, tratando nessa narração
das violências físicas e psicológicas que sofreu, da filha que teve na adolescência e que
foi criada como sua irmã, da situação de cárcere que viveu com um de seus companheiros
entre outras coisas. Essa descrição sugere uma procura em despertar no leitor afeição por
Marly e por sua história.
Outro aspecto que vale a pena ressaltar é a forma como se estrutura a narrativa.
Como fora anteriormente explicitado, Machado opta por construir o enredo sem uma
ordenação clara e aparente à primeira vista. Assim, mesmo que o romance esteja dividido
em capítulos, a história não segue um fluxo temporal rigidamente estabelecido, nem
acompanha, capítulo a capítulo, um único personagem ou até mesmo se desenvolve em
um único lugar. A narração é fluida, e não indica as mudanças temporais e espaciais de
maneira clara, ao mesmo tempo que são contadas histórias no Rio de Janeiro se conta

1288
também histórias passadas na Itália.
Esse aspecto traz ao romance certo teor de desrealização, como aqueles
desenvolvidos nos romances modernos, à molde do que explica Anatol Rosenfeld em seu
“Reflexões sobre o romance moderno” (2009). De tal modo, Ana Maria Machado produz
um romance que não tenta se organizar a partir de uma lógica de estruturação ordenada
pela realidade, e sim há o esgarçamento das categorias narrativas, mesclando vozes
narrativas, tempo e espaço, a fim de conferir à forma toda a complexidade das relações
humanas que descreve.
Assim, a obra destinada aos adultos de Ana Maria Machado, Canteiros de
Saturno, é mais livre em relação à produção juvenil, de forma que trata com muita
naturalidade e desprendimento dos mais diversos assuntos, desde um relato mais
descritivo de questões concernentes à sexualidade até o tratamento de assuntos que
envolvem violência, como abuso sexual e violência contra mulher. Tudo isso arrolado a
uma visão capciosa da complexidade das relações humanas, refletida nas situações e nas
personagens criadas por Machado.

Considerações finais

Depois da análise que se apresenta neste trabalho, feita a partir do cotejo das obras
destinadas ao público adulto e juvenil, Canteiros de Saturno e Uma vontade louca, uma
série de particularidades acerca da produção escrita de Ana Maria Machado puderam ser
observada.
Assim, foi possível perceber que existem diferenças na postura da autora quando
escreve para adultos em relação ao trabalho que é feito na escrita para adolescentes. Os
aspectos ilustrados na análise topicalizada feita nas grades permitiu ver de forma clara as
principais distinções – vocabular, de tratamento acerca da temática e de assuntos que são
vistos como tabu, a imposição de características didatizantes e o trabalho com a narrativa
a fim de criar estratégias de controle e/ou adesão do leitor. Para que se compreendesse,
portanto, o processo pelo qual passa a escrita, houve a necessidade de compreender
também uma série de questões pertencentes à especificidade da literatura juvenil, como
as implicações do mercado editorial.
Desse modo, no que tange à linguagem empregada pela autora, é visível a diferença
entre a liberdade que aplica na obra adulta, em contraposição à obra juvenil. Em Canteiros

1289
de Saturno, em razão da complexidade estrutural da narração, que rompe com uma
ordenação clara, alternando vozes narrativas, lugares e personagens, é que se vê um
trabalho maior nesse sentido, para orquestrar o discurso de maneira que contemple essas
mudanças. Há um uso de expressões e palavras sem censuras do ponto de vista moral,
usando termos chulos, principalmente quando relacionado às relações eróticas que
algumas personagens mantêm entre si. Enquanto que em Uma vontade louca, a linguagem
assume uma forma mais homogênea, com predominância do discurso direto e
procurando, a fim de estabelecer relação de afinidade com o leitor, manter-se mais
informal. Não há recorrência de termos, expressões e palavras que chocariam o leitor ou
os mediadores ligados à escola. Quando a narração trata de temas tabus, tudo é feito de
forma eufemizada, não dando margem, portanto, para descrições mais cruas da vida
sexual dos adolescentes, por exemplo. Assim, essas particularidades permitem perceber
na produção juvenil de Ana Maria Machado certo comedimento a respeito do tratamento
dado à narrativa; aspecto que não aparece de forma tão marcada em sua obra destinada
aos adultos.
Outra questão que precisa ser destacada é que nos dois romances há estratégias de
adesão do leitor à narrativa, todavia, é importante se considerar a respeito da natureza e
finalidades delas. Na obra reconhecida como pertencente à literatura juvenil, o narrador
conversa com o leitor, chamando-o para participar da ação. Isso não acontece, entretanto,
no romance destinado aos adultos. Há ainda um ponto de semelhanças nas duas obras, em
razão da construção de narradores em 1ª pessoa, a fim de fazer com que exista uma maior
afinidade entre o leitor e a obra.
A forma como o discurso é construído nas obras de Machado aponta para um
trabalho estético bem realizado, em que há um grande respeito pela capacidade de
significação e contribuição do leitor para com a obra. Prova disso é a forma como a
escritora constrói estruturas e desenvolve enredos complexos. E seu processo de produção
escrita não se difere quando escreve para os jovens em termos de complexidade, no
sentido de a literatura juvenil se configurar de forma simplista. Machado demonstra ter
grande consciência acerca de sua produção, e do seu papel como escritora de literatura
infantil e juvenil. Assim, na elaboração de seu texto literário destinado ao público juvenil
não há uma voz de um adulto autoritário que ensina ao jovem leitor como se portar, de
modo que não há a tentativa de ensinamento ou controle moral vindo do adulto e nem

1290
uma valoração das ações, encerrando-as em certo e errado. É tudo feito e pensado de
maneira a reproduzir completamente as vivências de um adolescente, apesar de trazer
algumas situações que expressam, por exemplo, a sexualidade dos adolescentes de forma
eufemizada.

REFERÊNCIAS

ARIÉS, Philippe. História Social da Criança e da Família. trad. FLAKSMAN, Dora. 2ª


ed. Rio de Janeiro: LTC, 2011.

CRUVINEL, Larissa Warzocha Fernandes. Narrativas juvenis brasileiras: em busca da


especificidade do gênero. 2009. Tese de Doutorado. Goiânia, Goiás – UFG.

HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. Tradução de Cid Knipel. Ed. rev. São
Paulo: Cosac Naify, 2010.

LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: História &


Histórias. São Paulo: Ática, 1984.

MACHADO, Ana Maria. Canteiros de Saturno. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova fronteira,
2007.
______. Uma vontade louca. Ilustrações: Cláudio Duarte. s/d. Rio de Janeiro: Nova
fronteira, 1992.

PERROTTI, Edmir. O texto sedutor na literatura infantil. 1ª ed. São Paulo: Ícone, 1986.

ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. In: ______. Texto/contexto


I. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2009.

TURCHI, Maria Zaira. Tendências atuais da literatura infantil brasileira. In: XI


Congresso internacional da ABRALIC – Tessituras, interações e convergências. USP.
São Paulo: s.n, 2008. Disponível em: <http://www.abralic.org.br >. Acesso em: 20 jul.
2018.
VIEIRA, Ilma Socorro Gonçalves. Relações intertextuais na obra de Ana Maria
Machado: ficção e história, teoria e criação literária. 2013. Tese de Doutorado. Goiânia,
Goiás – UFG.

1291
IMAGENS DE PERSEGUIÇÃO, REPRESSÃO E RESISTÊNCIA
NA OBRA DE SCHOLASTIQUE MUKASONGA

João Marcos Reis de Faria (UERJ)1

Resumo: O trabalho analisará elementos recorrentes nas obras de teor autobiográfico e ficcional
de Scholastique Mukasonga, como a perseguição do regime pró-hutu aos tutsis de Ruanda e a
desumanização desse grupo, além de imagens dos atos de violência contra o corpo feminino e a
representação do genocídio de 1994, entendido como ponto culminante de um longo processo
histórico. Como contraponto, serão abordados temas como a resistência dos deportados tutsis e
a descoberta, pela escolarização, de uma fresta pela qual a autora pôde escapar do destino que
vitimou a maioria das pessoas que conhecera na juventude, elementos que favorecem a sugestão
de uma pedagogia do texto testemunhal.
Palavras-chave: Scholastique Mukasonga; genocídio; Ruanda; violência; perseguição.

No prólogo de seu primeiro livro, a escritora Scholastique Mukasonga narra um


pesadelo repetitivo: em meio a um zumbido crescente, pessoas armadas de facões a
perseguem após abater suas colegas de classe. A visão da chegada iminente dos
assassinos precede o despertar de Mukasonga em um ambiente silencioso, no qual seus
filhos dormem em segurança. Tendo deixado o quarto, ela percorre com os olhos uma
caixa de madeira, um caderno escolar e uma foto de seus familiares, tirada no
casamento de sua irmã mais nova. Observando-os vestidos com grande formalidade, ela
especula: “Eles vão morrer. Pode ser que já saibam disso.” (MUKASONGA, 2018, p.8);
e, com o caderno nas mãos, escreve os nomes dos parentes como quem busca certificar-
se de que eles de fato existiram. A tarefa de revisitar seus mortos impele Mukasonga a
mais uma noite insone, a uma espécie de velório que passa pela escrita.
Nos quatro parágrafos que compõem a introdução de Inyenzi ou les Cafards
encontram-se em latência alguns dos elementos essenciais para a estruturação do
próprio livro e da obra posterior da escritora, particularmente nos momentos em que sua
escrita apresenta um teor autobiográfico.2 Além da lista de nomes a serem retirados da

1
Professor de língua francesa no Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (CAp-UERJ). Doutor em Estudos de Literatura (UFF). Contato:
jreisfaria@yahoo.com.br.
2
Até a conclusão deste texto, em agosto de 2019, Scholastique Mukasonga já havia publicado sete livros
em francês: Inyenzi ou les Cafards (relato, 2006; publicado no Brasil em 2018 como Baratas); La femme
aux pieds nus (relato, 2008; publicado no Brasil em 2017 como A mulher dos pés descalços); L’Iguifou
(coletânea de contos, 2010; ainda não traduzida para o português); Notre-Dame du Nil (romance, 2012;
lançado no Brasil como Nossa Senhora do Nilo em 2017); Ce que murmurent les collines (coletânea de
contos, 2014; ainda não lançada no Brasil); Cœur tambour (romance, 2016; ainda sem tradução para o
português); e Un si beau diplôme ! (relato, 2018; ainda sem tradução brasileira). Neste trabalho, as
citações às obras já traduzidas de Mukasonga provêm das edições brasileiras existentes.

1292
imensurável vala comum do genocídio dos tutsis em Ruanda (abril-julho de 1994), no
qual perdeu mais de trinta parentes, Mukasonga prenuncia cenas de perseguição e de
violência igualmente ruidosas, enfrenta a impossibilidade do trabalho de luto e compõe
um relicário com os restos – paradoxalmente imateriais – de vidas subtraídas. São
nomes e rostos incluídos no relato de vivências igualmente remotas, ambientadas em
um contexto de repressão e de grande precariedade material. No interior do discurso de
memória, essa dinâmica confere a Inyenzi ou les Cafards um caráter testemunhal que
cobre não apenas os acontecimentos de 1994, mas, de forma ainda mais minuciosa, o
longo caminho de preparação para o massacre, no qual o genocídio aparece como ponto
culminante.
Um olhar panorâmico sobre a obra de Mukasonga revela as particularidades de
seu trabalho de memória diante do testemunho de anônimos e de sobreviventes que
conformam a bibliografia ligada à experiência do genocídio. Mukasonga conta ter
fugido do país em 1973, aos dezessete anos, acuada pelo recrudescimento da
perseguição aos tutsis; após ter vivido como apátrida no Burundi e acompanhado o
marido francês no Djibuti, instalou-se com ele e os filhos na Normandia, em 1992,
sempre em busca de um diploma de assistente social – formação que havia iniciado
ainda em Ruanda. O genocídio de 1994 foi, então, vivido a distância por Mukasonga, o
que não significa que ela tenha sido poupada: o horror das cenas veiculadas pela mídia
traz a confirmação do aniquilamento quase completo da família que permaneceu em
Ruanda. Mukasonga só se vê em condições de tomar a palavra ao retornar de uma visita
ao país em 2004, durante a qual deparou-se com as ruínas dos povoados de sua infância
e com o discurso negacionista de pessoas que viviam nas redondezas do povoado onde
sua família havia fixado residência na década de 1960.
A escrita de Scholastique Mukasonga se constitui, assim, a partir de uma
“experiência indireta do genocídio”, segundo expressão de Catherine Coquio (apud
AZARIAN, 2011, p.424, tradução nossa). Trata-se de uma elaboração que exige da
autora uma postura enunciativa capaz de presentificar suas lembranças e de incorporar
experiências coletivas às experiências próprias. Em Inyenzi ou les Cafards, o esforço
dessa espécie de “testemunha ausente” para evitar o desaparecimento definitivo de seus
familiares encontra sua realização mais extensa no último capítulo do livro, dedicado à
viagem de regresso: ecoando a listagem dos nomes mencionados no prólogo ao livro,

1293
são evocadas ali as histórias particulares dos parentes e de dezenas de antigos vizinhos.
Esse tipo de encadeamento é retomado e ressignificado no capítulo final de La femme
aux pieds nus (2008), relato de memórias que a escritora dedica a Stefania – sua mãe,
também morta no genocídio –, repleto de episódios sobre a luta das mulheres tutsis pela
sobrevivência.
As organizações de feição predominantemente cronológica, em Inyenzi ou les
Cafards, e temática, em La femme aux pieds nus, abrem caminho para soluções bastante
distintas na composição das memórias de Scholastique Mukasonga. À primeira vista, é
possível pensar essa mudança de paradigma estruturador como uma evolução rumo a
uma escrita menos referencial e autobiográfica e mais próxima do registro ficcional de
suas publicações seguintes. A leitura em conjunto dos diferentes livros de Mukasonga,
porém, revela a centralidade do procedimento de reelaboração de episódios, imagens,
personagens e mesmo de objetos evocados nas obras anteriores. Para Viviane Azarian
(2011, p.426, tradução nossa), a escrita de Mukasonga “se volta sobre si mesma, se
encena e reflete precisamente as questões do trabalho memorial”, explicitando suas
próprias motivações e caracterizando-se como escrita transgenérica e híbrida. É levando
em conta essa porosidade entre ficção e documentação e passeando por diferentes obras
de Mukasonga que pretendo observar traços comuns entre suas representações da
perseguição aos tutsis e dos diferentes modos de exercício da violência, seja ela física
ou simbólica – elementos centrais para o desenho do genocídio como algo intencional,
longamente preparado.

A sistematicidade da perseguição em palavras e atos


Os primeiros capítulos de Inyenzi ou les Cafards abrangem o processo de
deportação da família de Mukasonga entre o final dos anos 1950 e o início da década
seguinte. O período é marcado pela ascensão dos grupos políticos pró-hutu na linha de
frente das demandas pela queda da monarquia local e pela independência de Ruanda.
Esses grupos foram responsáveis, segundo o historiador Bernard Bruneteau (2004,
p.207, tradução nossa), por promover e consolidar a inversão da estratificação que
perdurou durante grande parte do mandato belga: “o hutu se tornou o autóctone, o único
e verdadeiro ‘indígena’, o camponês desbravador e fundador da organização social; por
sua vez, o tutsi foi assimilado a um invasor estrangeiro, um colono logo identificado

1294
como parasita do trabalho dos hutus”. As raízes dessa separação remontam à chegada
dos europeus ao Ruanda-Urundi, no século XIX; as diferenças de ordem social, ligadas
à organização econômica e política do local, não tardaram a ser interpretadas à luz de
teorias racialistas inspiradas pelo discurso bíblico: os hutus foram associados pelos
colonizadores às populações do grupo linguístico banto – africano autóctone e, apenas
por isso, inferior –, ao passo que os tutsis seriam herdeiros de sucessivas miscigenações
ocorridas na viagem de populações de origem caucasiana para a África central, mas
teriam conservado a superioridade física e moral desses ancestrais. Com a instalação de
alemães e, posteriormente, de belgas na região, essa clivagem se reproduziu na
administração colonial, ficando uma considerável parte de poder nas mãos da minoria
tutsi. A criação de desigualdades entre grupos que historicamente compartilharam uma
única língua e as mesmas crenças e se relacionavam em termos de complementaridade,
inclusive com mobilidade de indivíduos entre si, levou, então, a um irreversível
desgaste em um contexto de instrumentalização política. Além disso, o retrato do tutsi
como duplo do branco europeu acabou promovendo uma nova duplicidade – dessa vez,
entre semelhantes, entre vizinhos, entre grupos irmãos – o que só pôde, segundo
Catherine Coquio (2004, p.61, tradução nossa) “levar ao ódio em um espaço colonial
reduzido, saturado de ideologia e que alimentava, diariamente, a ideia de uma raça
estrangeira superior”.
A tradução em atos dessa ideologia fratricida é representada por Scholastique
Mukasonga em cenas de perseguições e violência que visam ressaltar o caráter
planificado do genocídio, algo distinto da imagem difundida no mundo ocidental de
“ódios tribais, atávicos, primitivos, dos quais não se podia compreender muita coisa”
(MUKASONGA, 2010, p.127, tradução nossa). Voltemos, então, ao início de Inyenzi
ou les Cafards e a uma das primeiras lembranças de sua autora: a expulsão da família de
sua pequena propriedade por um bando armado de facões, lanças, arcos, porretes e
tochas. A casa da família é destruída e o estábulo, incendiado. A deportação dos tutsis
em caminhões lotados é comemorada pela população hutu. O destino final é a inóspita
região do Bugesera, evocado nas narrativas tradicionais como um território para o qual
os monarcas tutsis expulsavam os condenados ao ostracismo. Começa ali um longo
período de privações alimentares e, em seguida, vêm prisões e desaparecimentos
arbitrários. Os soldados se tornam os principais porta-vozes de um processo de

1295
desumanização que acompanharia os tutsis ao longo das próximas três décadas: ao lado
das limitações de toda natureza, estes passam a ser chamados de “serpentes” e “baratas”
(inyenzi, em quiniaruanda). A animalização será um dos elementos da cartilha do
regime até a solução final de 1994. A lógica de afirmação dessa diferença, que sustentou
em permanência o regime de repressão, é semelhante à que Primo Levi (1990, p.76)
enxerga na confissão de um ex-comandante do campo de extermínio de Treblinka:
“antes de morrer, a vítima deve ser degradada, a fim de que o assassino sinta menos o
peso de seu crime”.
A sistematicidade da relegação dos tutsis será um dos motivos do primeiro
romance de Scholastique Mukasonga, intitulado Notre-Dame du Nil (2012). A narrativa
é ambientada em um internato localizado próximo a uma das presumidas fontes do rio
Nilo, dirigido pela Igreja Católica e destinado à formação da elite feminina de Ruanda.
O contexto é o do acirramento das tensões às vésperas do golpe militar que, em 1973,
levou à implantação de uma longa ditadura que não rompeu com a institucionalização
do etnicismo e cujo fim foi o evento detonador do genocídio de 1994.
Gloriosa, uma das personagens centrais do romance, é filha de um membro do
alto escalão do governo ruandês. Valendo-se de sua proximidade com o regime, a
estudante pouco a pouco mina o poder da madre superiora a fim de tomar as rédeas da
perseguição contra as estudantes tutsis e de consolidar-se como líder da juventude
militante dentro do liceu. Os discursos de Gloriosa exploram a oposição entre
“verdadeiros ruandeses” e “parasitas estrangeiros”. Seus planos incluem quebrar a ponta
do nariz da imagem da santa que dá nome ao liceu e título ao romance – pois, após a
pele da Virgem branca ter sido pintada de negra, ela teria ficado com feições tutsis.
Gloriosa acaba danificando a imagem mais que o esperado, e a única solução possível é
responsabilizar insurgentes que rondam a instituição, o que deságua na radicalização das
regras de convívio do local:

Gloriosa declarou que não queria mais abrir a boca diante das inyenzis. A
partir de então, as tutsis deveriam comer depois das verdadeiras ruandesas,
que cuidariam para deixar uma cota de comida que ainda era concedida às
parasitas que estudavam ali. Todas as outras colegas de mesa seguiram seu
exemplo. Gloriosa decretou também que ninguém mais deveria se dirigir às
tutsis-inyenzi e que era preciso impedir que elas se comunicassem entre si. As
verdadeiras militantes passariam a ficar de olho nelas e relatariam a Gloriosa
todos os fatos e gestos que lhes parecessem suspeitos. (MUKASONGA,
2017b, p.241)

1296
A violência contra as crianças e as mulheres
Ao lado das cenas de perseguição sistemática, as representações da violência na
obra de Scholastique Mukasonga são frequentes nos episódios que narram o cotidiano
dos deportados tutsis e abrangem patrulhas de militares, a convivência com o medo, a
fome e diferentes tipos de agressão contra as mulheres, além da representação do
genocídio propriamente dito.
O relato de um daqueles ataques no primeiro capítulo de La femme aux pieds nus,
mescla de rememoração e de pesadelo, aponta para um traço recorrente em episódios
semelhantes – o impacto sonoro que causaram na menina que Mukasonga foi:

E, de repente, o estrondo da placa de metal que serve de porta desabando: [...]


vejo três soldados derrubando os cestos e os jarros e jogando no pátio as
esteiras que estavam penduradas no teto.
Um deles leva André até a porta [...] e meu pai se precipita como se pudesse
parar o militar, e ouço os gritos da minha mãe, de Alexia. Fecho as pálpebras
com força para não ver. Tudo se turva, queria me esconder no lugar mais
fundo da terra...
O silêncio me faz abrir os olhos outra vez. [...] Agora, na casa do vizinho,
ouvimos os mesmos barulhos de botas, os mesmos gritos, os mesmos choros,
a mesma barulheira de jarros quebrando... (MUKASONGA, 2017a, p.11-12)

Os sons que Mukasonga associa ao terror invadem seu sono, mesmo na idade
adulta; são marcas profundas da experiência da repressão, como o zumbido crescente do
pesadelo mencionado no prólogo de Inyenzi ou les Cafards e a ruidosa investida contra
as estudantes tutsis no mesmo livro, recuperada no último capítulo de Notre-Dame du
Nil. As cenas da violência sistemática vividas por Scholastique Mukasonga em sua
infância e sua adolescência coincidem em larga escala com desenhos feitos por crianças
que passaram pela experiência de guerras e massacres, como os reunidos no livro
Déflagrations: dessins d’enfants, guerres d’adultes e na exposição homônima realizada
em Estrasburgo (França) no segundo semestre de 2017. Ao lado dos desenhos, o livro
traz textos de escritores, artistas plásticos e pesquisadores de diversas áreas convidados
a refletir sobre essas representações. A antropóloga Françoise Héritier, que assina o
prefácio do catálogo, aponta elementos recorrentes entre os desenhos da exposição,
como olhos arregalados, cabelos eriçados e bocas e dedos abertos, que sugerem o
caráter testemunhal daquelas imagens (ver Figura 1). Segundo Héritier (2017, p.10,
tradução nossa),

1297
[...] certos traços buscam dar conta da potência deflagradora do barulho que
acompanhou os atos. O silêncio na página é total, mas a realidade obscena
parece ter sido feita de furor e de tumulto. A força dos desenhos está em nos
fazer ouvir e ouvir outra vez o tumulto, os gritos aflitos, os cavalos correndo,
as chamas crepitando, o barulho das metralhadoras, o ronco dos aviões [...]”.

Figura 1: desenho feito por jovem de 14 anos no campo de


refugiados de Bossangoa (República Centro-Africana), em 2013.

Fonte: GIRARDEAU, Zérane S. (Coord.). Déflagrations : dessins


d’enfants, guerres d’adultes. Paris: Anamosa, 2017, p.84.

Os barulhos trazem em seu encalço o silêncio que era preciso fazer para não
chamar a atenção dos soldados ou antecipar a fuga. Esse último caso é representado por
Scholastique Mukasonga em diferentes ocasiões, estando sempre associado ao medo.
Em La femme aux pieds nus, a escritora conta como sua mãe desenvolveu uma espécie
de sexto sentido, como a atenção aguçada de um animal que devia se proteger de seu
predador. Essa associação é retomada no conto “La peur” (“O medo”), incluído em
L’Iguifou (2010), que tematiza a onipresença do medo e dos rumores em uma
comunidade de deportados. Já adulta, a narradora lembra os conselhos de sua mãe:

Em Nyamata, dizia mamãe, é preciso ter sempre em mente que, para eles, nós
somos inyenzi, baratas, serpentes, seres nocivos. [...] Não se deixe
surpreender, a morte arma emboscadas em todo lugar. Você deve ser mais
ágil que ela, como a gazela que foge ao menor movimento no meio do mato.
Você deve admirar a mosca que enxerga de todos os lados, à frente, atrás.

1298
Você precisa ter olhos de mosca. Pense que você é uma mosca. E o cachorro,
tome o cachorro como um exemplo. Quando pousa o focinho entre as patas,
ele parece estar dormindo, dormindo tão profundamente que nem mesmo um
trovão parece capaz de acordá-lo. Mas basta uma folha cair e ele logo se põe
de pé! Você deve aprender a dormir como um cachorro. É melhor sentir
medo, pois ele nos mantém acordados. O medo nos faz ouvir o que os
incautos não ouvem. Você se lembra do que dizem os abapadri no
catecismo? Toda pessoa tem um anjo da guarda que a protege. O nosso anjo
da guarda é o medo. (MUKASONGA, 2010, p.60-61, tradução nossa)

A violência contra as mulheres ocupa um espaço igualmente importante na obra


de Scholastique Mukasonga. Em La femme aux pieds nus, o relato inclui uma série de
episódios que mostram como a mulher tutsi foi utilizada como alvo preferencial das
ações dos militares. É o caso de um episódio que se abre em meio a reflexões sobre a
maternidade. Sob as terríveis condições de vida no desterro, dar à luz significava
oferecer mais alvos para a fúria dos militares; o corpo feminino se torna, dentro dessa
lógica, um objeto a ser violentado em sua capacidade exclusiva de gerar vida:

[Os militares] pegaram Merciana e a levaram até o meio do pátio, um lugar


onde todo mundo podia ver. Tiraram a roupa dela, deixaram-na
completamente nua. As mulheres esconderam os filhos debaixo dos panos.
Lentamente, os dois militares pegaram as espingardas. “Eles não miravam no
coração, repetia minha mãe, e sim nos seios, somente nos seios. Eles queriam
dizer a nós, mulheres tutsis: ‘Não deem vida a mais ninguém, pois, na
verdade, se colocarem mais alguém no mundo, vocês vão acabar trazendo a
morte. Vocês não são mais portadoras de vida, são portadoras de morte’”.
(MUKASONGA, 2017a, p.21-22)

Praticados dentro da lógica genocida, o desventramento e o estupro visavam à


exterminação do local de germinação da vida e à negação do ser mulher. Ao refletir
sobre o testemunho das sobreviventes do genocídio, Véronique Bonnet (2005, p.77,
tradução nossa) aponta que a obsessão com o tema do estupro, “do qual algumas
escaparam e que outras sofreram, criou, no interior do campo testemunhal, um dos
paradigmas da escrita do feminino”. Scholastique Mukasonga, nesse sentido, tematiza
as violações no final de La femme aux pieds nus. Segundo a autora, se a gravidez fora
do casamento já era um tabu na cultura local, o emprego do estupro no contexto da
repressão criou um novo problema a ser resolvido pelas vítimas:

[...] o que fazer com [os] costumes quando suas filhas são vítimas dos jovens
do partido único que aprenderam que o estupro de moças tutsis é um ato
revolucionário, um direito adquirido pelo povo majoritário? Quem suportará
o peso esmagador da desgraça que, em vão, se tenta esconder: a menina-mãe,

1299
que se torna uma maldição viva, de quem todos querem fugir e que afunda na
solidão do desespero? A família que fica remoendo o remorso de não ter
podido proteger os seus e que se vê posta de lado, por prudência, por todo o
vilarejo? E quais desgraças trará esse filho, filho nascido de tanto ódio?
(MUKASONGA, 2017a, p.149-150)

O registro da barbárie e a impossibilidade do luto


Mencionamos anteriormente que a ausência de Scholastique Mukasonga de
Ruanda em 1994 está na base da conformação do teor testemunhal de sua obra. Segundo
Viviane Azarian, trata-se de uma postura enunciativa paratópica, sintetizada pela
dialética entre proximidade e distância. Essa dinâmica fica patente no capítulo de
Inyenzi ou les Cafards consagrado à experiência do genocídio. Com o começo das
matanças, Mukasonga tem a confirmação de algo que já fazia parte das expectativas dos
tutsis; o sentimento é acentuado no texto pelo emprego da primeira pessoa do plural,
procedimento inclusivo que entra em relação com a indagação, relativamente
distanciada, sobre o que viria a ser uma das especificidades do genocídio em Ruanda, o
fato de ter sido levado a cabo não só por militares e milicianos, mas também pela
própria população em seus círculos imediatos de convívio. Nas palavras da autora,

Dali em diante, não teríamos mais que viver esperando a morte. Ela estava lá.
Já não havia meio de escapar. O destino ao qual os tutsis estavam destinados
iria se realizar. Uma satisfação mórbida atravessou meu espírito: em
Nyamata, há muito tempo nós sabíamos! Mas como é que eu poderia
imaginar o horror absoluto em que Ruanda mergulharia? Todo um povo
entregando-se aos piores crimes contra velhos, mulheres, crianças, bebês,
com uma crueldade, uma ferocidade tão desumanas que hoje os assassinos
não sentem remorso. (MUKASONGA, 2018, p.132)

A representação da barbárie propriamente dita aparece poucas páginas adiante,


como transmissão do que contaram o único cunhado e as únicas sobrinhas da escritora
que sobreviveram ao massacre. O relato das mutilações sucessivas sofridas por outro de
seus cunhados em uma prisão ressalta a que ponto a humanidade das vítimas foi
rebaixada. Da mesma forma, o martírio da irmã caçula de Mukasonga, cruzamento dos
testemunhos de seu marido e de uma sobrinha – que, por sua vez, havia sido estuprada e
contaminada com o vírus HIV –, indica a crueldade extrema que se abateu sobre as
mulheres grávidas se tornaram vítimas da crueldade.
O retorno de Scholastique Mukasonga a Ruanda ocorre após sucessivos
adiamentos. A visita aos locais que frequentou na infância e na juventude, bastante

1300
transfigurados pela ausência de vestígios humanos e pelo avanço da vegetação, desperta
o temor pelo desaparecimento definitivo da memória dos parentes e conhecidos mortos,
reforçado pela fala evasiva e pelo negacionismo dos poucos moradores que restavam na
localidade. Esse cenário consolida a impossibilidade do luto, tema do conto “Le deuil”
(“O luto”), incluído em L’Iguifou. Trata-se de uma ficcionalização do percurso que
Mukasonga realizou antes e ao longo de seu regresso ao país-natal. Há um raro
deslocamento da voz narrativa por meio da dissociação entre narradora e protagonista,
mas permanecem nítidos os traços que a relacionam à narradora dos relatos de teor
testemunhal, inclusive pela menção à missão de manter viva a memória dos mortos,
como lemos no diálogo entre a protagonista e o guardião de uma igreja usada como
esconderijo pelos tutsis em fuga:

Não é nos túmulos, perto das ossadas ou na fossa das latrinas que você
encontrará seus Mortos. Não é lá que eles a esperam, eles estão em você. Eles
sobrevivem em você e você sobrevive por eles. [...] Não há o que fazer
quanto a isto: a morte dos nossos nos nutriu, não de rancor ou de ódio, mas
de uma energia que nada poderá parar. Você também possui essa força.
(MUKASONGA, 2010, p.153, tradução nossa)

A resistência e a busca por dignidade


Ao lado das cenas que sustentam o registro das décadas de repressão como
preparação para o genocídio, Scholastique Mukasonga narra diversos episódios que
revelam a busca da população tutsi por condições mínimas de dignidade. É o caso, por
exemplo, da organização dos deportados na divisão das tarefas e da improvisação de
uma escola que garantisse a alimentação das crianças, narradas em Inyenzi ou les
Cafards. Episódios da mesma natureza são frequentes em La femme aux pieds nus, pois
são narrados ali os esforços da mãe da escritora para conservar tradições da vida
anterior a sua deportação. No último capítulo da obra, há uma sequência de cenas que
ressaltam o senso de coletividade das mulheres tutsis, como nos cuidados mútuos entre
vizinhas, os colóquios para a tomada de decisões sobre o cotidiano da comunidade, a
preocupação com a educação das crianças e com a iniciação das meninas à sexualidade,
os arranjos matrimoniais e a importância atribuída à maternidade. O encadeamento se
encerra com o relato da união das matriarcas para cuidar de uma jovem vítima de
estupro e conjurar a maldição que os costumes associavam a esse crime. Muitas vezes

1301
filtrados pelo olhar infantil, tais episódios contribuem para contrabalancear a descrição
da situação de miséria a que foram expostas as famílias tutsis:

Stefania, Marie-Thérèse, Gaudenciana, Theodosia, Anasthasia, Speciosa,


Leoncia, Pétronille, Priscilla e várias outras eram as Mães boas, as Mães
amorosas, as que alimentavam, protegiam, aconselhavam, consolavam, as
guardiãs da vida, que foram mortas por assassinos que quiseram, com isso,
erradicar a própria origem da vida. (MUKASONGA, 2017a, p.136)

Se a representação do cotidiano de humilhações permite que a escritora associe


suas experiências pessoais de infância e juventude às experiências coletivas, o tema dos
estudos está profundamente ligado à experiência individual da escritora, sendo a própria
escolarização retratada como a porta que permitiu a Mukasonga sair de Ruanda e
reconstruir sua vida fora do país, ainda que em condições muitas vezes adversas. Estão
associados a essa espécie de relato exemplar o episódio ambientado em uma escola
primária marcada pela precariedade material, em Inyenzi ou les Cafards, e suas
reelaborações posteriores em dois contos de Ce que murmurent les collines (2014); a
atribuição de um caráter redentor à educação por parte das jovens tutsis de Notre-Dame
du Nil e de Cœur tambour (2016); e o longo percurso de Mukasonga em busca de um
diploma de assistente social, ao lado do elogio da intensificação da formação escolar das
meninas ruandesas, ambos narrados em seu livro mais recente, Un si beau diplôme !
(2018).

Conclusão: por uma pedagogia da obra de Scholastique Mukasonga


Desembarcada no Brasil em 2017, num contexto de revalorização da literatura
produzida por escritoras e escritores de origem africana e diaspórica, a obra de
Scholastique Mukasonga acendeu o interesse do público-leitor pela história de uma
região da África que permanecia adormecida no imaginário coletivo brasileiro há mais
de duas décadas. Ao lado de uma ainda tímida, porém crescente recepção no universo
acadêmico, a inclusão das traduções dos livros de Mukasonga em círculos de leitura
independentes, especialmente nos de corte feminista, tem contribuído para alçá-la ao
posto de primeira escritora ruandesa a contar com uma considerável visibilidade em
nosso país. Seja por suas sugestões a respeito dos motivos para a relegação e a
perseguição contra os tutsis, seja pela descrição da violência sistemática a que foram

1302
submetidos com a conivência da comunidade internacional ou, então, pela representação
das dificuldades do trabalho de luto e do convívio com o trauma, a escrita de
Mukasonga pode nos ajudar a pensar as questões relativas à exclusão social, ao
autoritarismo de Estado e ao genocídio do povo negro e pobre no Brasil – o que nos
leva a considerar, como desdobramento dessa reflexão e dos debates que ela
proporciona, uma pedagogia do texto literário que inclua essas questões com vistas à
conscientização para aquele conjunto de problemas e à elaboração de estratégias de
resistência protagonizadas pelas classes sociais neles envolvidas.

Referências

AZARIAN, Viviane. Scholastique Mukasonga: le “témoignage de l’absent”. Revue de


littérature comparée, 340-2011/4, p.423-433, 2011.

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MUKASONGA, Scholastique. A mulher de pés descalços. Tradução de Marília Garcia.


São Paulo: Nós, 2017a.

______. Baratas. Tradução de Elisa Nazarian. São Paulo: Nós, 2018.

______. L’Iguifou. Nouvelles rwandaises. Paris: Gallimard, 2010 (Collection Folio).

______. Nossa Senhora do Nilo. Tradução de Marília Garcia. São Paulo: Editora Nós,
2017b.

1303
A REPRESENTAÇÃO DA MARGINALIDADE, DO EXERCÍCIO DE PODER
E DA MANIFESTAÇÃO DO NIILISMO NA PEÇA O ABAJUR LILÁS DE
PLÍNIO MARCOS

Márcio Azevedo da Silva (UNB)1

RESUMO: Este artigo faz uma análise a partir da representatividade da marginalidade, do


exercício de poder e a manifestação do Niilismo na peça O abajur Lilás de Plínio Marcos. Ele dá
voz aos marginalizados, através de diálogos fortes, que atingem ao público por mostrar a
realidade. O abajur Lilás foi uma peça censurada pelo governo militar no ano de 1970, tendo
autorização para ser encenada somente uma década depois. Plínio era considerado um inimigo da
ditadura porque suas peças mostravam realidade e autenticidade trabalhando temas como:
homossexualidade, a marginalidade, prostituição e violência.

PALAVRAS-CHAVE: Plínio Marcos; O abajur lilás; Marginalidade; Poder e Niilismo

Introdução

Plínio Marcos é um dramaturgo que trouxe inovações ao teatro brasileiro do


século XX tanto no que concerne à temática abordada como pelas personagens
escolhidas para protagonizarem suas peças. O autor escolheu por trazer à tona um
cenário marginalizado, habitado por prostitutas e homossexuais. A linguagem
utilizada por Plínio traduz o realismo vivenciado no cotidiano dos tipos descritos,
causando grande impacto, mesmo assim, sem perder o traço lírico nessa combinação.
É evidente que o diálogo das personagens não poderia sofrer com alterações
eufêmicas, sob pena de falsear a veracidade da comunicação travada nos ambientes
onde as peças acontecem. Plínio é situado pelos críticos na escola do realiamo-
naturalismo, estilo pelo qual explora a realidade da sociedade brasileira utilizando
bastante o recurso alegórico para representar os excluídos pertencentes às classes
sociais inferiores. O autor é chamado de maldito por ter essa característica de dar voz
aos nada favorecidos, aqueles que vivem na margem social, considerados o lixo da
sociedade.

1
Doutorando em Literatura no Pós – Lit. – Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de
Brasília. m-azevedodasilva@hotmail.com

1304
Para Sábato Magaldi “As peças destinam-se a incomodar o pacato repouso
burguês. Plínio não propôs soluções, subentende-se que o anima a idealidade apta a
subverter a ordem instituída como um todo” (Magaldi,1997, p. 307). A obra de Plínio
Marcos é socialmente engajada, com sua arte a favor das minorias, por isso, ele deixa
em evidência a existência de todos aqueles que muitos fazem questão de não enxergar,
sabem que eles sobrevivem, mas preferem que eles fiquem no isolamento da
marginalidade das ruas.
Plínio nunca fez questão de ocultar a realidade em suas peças, por esse motivo
muitas de suas peças foram veementemente censuradas no período da ditadura militar
no Brasil. Vale ressaltar que é na década de 60 que o dramaturgo surge no cenário do
teatro.
Para Rosenfeld a arte de Plínio Marcos a arte não pode se esquivar de mostrar as
mazelas sociais e afirma ainda que:

Uma das fórmulas do imperativo categórico, na filosofia moral de Kant,


estabelece que a dignidade da pessoa humana é ferida por quem a usa
apenas como meio e não a trata, também, como fim em si mesmo, isto é,
por quem transforma a pessoa em simples coisa ou objeto, sem respeitar-
lhe a condição do sujeito livre. E é exatamente nesse ponto que as peças de
Plínio nos atingem e refletem, ao desnudar os mecanismos elementares do
submundo, problemas morais e sociais muito mais amplos (ROSENFELD,
1993, p. 145)

É exatamente a força dos diálogos que faz com que o expectador das peças de
Plínio sinta a realidade tal qual ela é sem camuflar o que de real acontece ou buscar
florear as palavras. Ele simplesmente permite que tudo flua de acordo como tudo se
passa naturalmente. As peças de Plínio Marcos conseguem passar uma mensagem
diferenciada, capaz de conduzir as pessoas a uma reflexão através de um texto realista
e impactante.

1. Um breve relato do teatro brasileiro na ditadura militar

Em 2014 o Brasil registra 50 anos do golpe militar ocorrido em 31 de março de


1964. O regime militar perdurou durante 21 anos no país, silenciando todo e qualquer
movimento de insurreição contra seu modelo de governo. A violência era uma das

1305
formas de reprimir opiniões contrárias e qualquer manifestação que porventura
surgisse.
Nesse primeiro momento comandado pelo Marechal Castelo Branco o governo
toma várias posições que desrespeitam a liberdade de expressão. Sobre isso, elenca-se
a suspensão de direitos políticos e a cassação de mandatos parlamentares. As eleições
aconteciam de maneira indireta, isto é, tudo acontecia de maneira interna sem a
participação popular. Todos os partidos políticos existentes até aquele momento foram
desfeitos restando apenas o ARENA (Aliança Renovadora Nacional) e o MDB
(Movimento Democrático Brasileiro). Paradoxalmente o que menos se tinha nesse
período era democracia.
As manifestações artísticas eram maneiras possíveis para expressar a indignação
popular com a conduta ditatorial empregada pelo regime militar, porém, esta rechaçava
qualquer obra que pudesse incitar a população a questionar o governo através de seus
censores, responsáveis por identificar as mensagens que pudessem denegrir a imagem
dos militares.
Entre os anos de 1958 a 1968 surgem no Brasil os únicos grupos de teatro no país,
sendo estes o Arena e o Oficina que surgem com uma proposta social engajada.
Sobre a atuação do Arena e do Oficina Fernando Peixoto ressalta que:

Ambos os grupos defendiam os mesmos ideais, mas diferem na maneira de


tratá-los: inclusive, enquanto a Arena desenvolve essencialmente o
trabalho de dramaturgia, o Oficina volta-se primordialmente para o
trabalho de encenação. Ambos cessaram atividades quase ao mesmo
tempo, em consequência da repressão policial, depois de terem conseguido
manter, entre 1964 e 1968, uma firme resistência (PEIXOTO, 1986, p. 122)

A existência desses grupos evocava por uma dramaturgia genuinamente


brasileira, com trabalhos de formação teatral que conceberam grandes atores para essa
manifestação artística.
Mesmo diante da repressão, os artistas da época não se permitiam silenciar.
Dentre esses artistas, Plínio Marcos se destaca com a obra O abajur lilás, uma de suas
peças vetadas pelos censores do governo.

2. A representação dos marginalizados em O abajur lilás de Plínio Marcos

1306
A peça O Abajur Lilás é realizada em dois atos e mostra o submundo do
proprietário de um bordel chamado Giro, as prostitutas que trabalham para ele: Célia,
Dilma e Leninha, além de Osvaldo, responsável por coagir as mulheres do local. O
texto foi escrito em 1969, sendo censurado de 1970 a 1975, quando a peça foi liberada.
De acordo com Ilka Zanotto “em O abajur lilás as personagens percorrem uma
trajetória da mais abjeta degradação física e moral” (ZANOTTO,2003, p. 18).
Quem lê a peça não consegue ficar indiferente diante da condição sub-humana
na qual sobrevivem essas personagens.
Num primeiro momento moram no bordel as prostitutas Célia e Dilma,
submissas ao dono do local, o homossexual Giro e seu fiel escudeiro Osvaldo. Durante
a peça surge uma terceira prostituta chamada Leninha.
Giro comanda o bordel como um ditador, alguém que explora suas
subordinadas de maneira coercitiva.
De acordo com Zanotto “as circunstâncias fizeram de O abajur lilás mais do
que uma simples peça, uma bandeira. Ao defender sua liberação nos palcos nacionais,
era a própria liberdade de expressão, condição primeira da criação artística, que
defendíamos” (ZANOTTO, 2003, p.17).
As prostitutas trabalham sob total vigilância de Giro, pois ele não admite ser
passado para trás nos lucros, além de exigir que elas atendam a muitos clientes. Está
sempre reclamando por entender que elas poderiam render mais para aumentar os
rendimentos dele:
Giro - Eu estou contando. Tu entrou com homem aqui cinco vezes hoje à noite.
Dilma – E os três da tarde não conta?
Giro – E tu acha muito?
Dilma – E não é? Oito vezes. Não é mole.
Giro – Isso não é nada.
Dilma - Quem está ardida é que sabe.
Esse trecho da peça mostra o quanto Giro pressionava por resultados
financeiros. Alegava que gastava muito para manter as contas em dia, por isso queria
ver mais dinheiro. Fazia questão de chamar Dilma e Célia o tempo todo de puta, como
se quisesse não deixá-las esquecer de suas respectivas condições na vida e naquele
ambiente.

1307
Dilma suportava a situação por ter um filho e em todas as oportunidades
possíveis mencionava esse fato como justificativa por aceitar tanto desaforo todos os
dias. De acordo com Zanotto “somente em Dilma vemos resquícios de humanidade ao
defender o filho ausente, criado alhures, que ela sustenta com o suor do seu corpo”
(Zanotto, 2003, p. 19). Apesar disso, Dilma também pode representar a pessoa mais
resignada diante dos acontecimentos. É certo que ela aceita para sustentar o filho, mas
ela personifica todos aqueles que se calam e se acomodam diante de regimes
ditatoriais.
Numa certa manhã Giro encontra na pia um escarro com sangue e pergunta a
Dilma se é dela ou de Célia. Dilma nega que tenha feito isso, logo as suspeitas passam
a recair sobre Célia que também nega.
Célia também não gosta de Giro. Os diálogos travados entre os dois são sempre
ofensivos:
Giro - Qual é a graça?
Célia - A tua cara de bicha velha é um sarro.
Giro – Nojenta!
Giro – Vamos acertar as contas.
Célia – Já ou agora?
Giro – Quanto tu fez?
Célia – Seis michês.
Giro – Tu não quer nada mesmo.
Célia está sempre bêbada e nunca perde a oportunidade de afrontar Giro. Ela
parece representar a voz da resistência dentro desse ambiente, onde Giro é o explorador
e elas são as exploradas. Plínio Marcos constrói o bordel como uma alegoria do Brasil
dos tempos de ditadura militar, onde existe alguém que manda e os outros apenas
obedecem sob pena de serem punidos, mas ainda assim, havia quem se levantasse
contra, por isso, Célia encarna aqueles que não se calam e, como era comum, pessoas
com essa característica tinham um fim trágico. De acordo com Foucault, onde existe
o exercício do poder, é natural que existam pessoas que se rebelem:

(...) sim resistências no plural, que são casos únicos: possíveis, necessários,
improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, arrastadas,
violentas, irreconciliáveis, prontas ao compromisso, interessadas ou
fadadas ao sacrifício; por definição, não podem existir a não ser no campo

1308
estratégico das relações de poder. (...) As resistências não se reduzem a uns
poucos princípios heterogêneos; mas não é por isso que sejam ilusão, ou
promessa necessariamente desrespeitada. Elas são o outro termo das
relações de poder; inscrevem-se nestas relações como o interlocutor
irredutível (FOUCAULT, 2001, p. 91-92)

A terceira prostituta que chega ao bordel de Giro se chama Leninha. Ao chegar,


ela percebe que se unir a Giro será a melhor maneira de sobreviver, pois contaria com
sua condescendência quando precisasse, mesmo que para isso fosse preciso delatar as
colegas de quarto. Segundo Michel Foucault isso acontece “(...) porque o vértice (os
comandantes) e a base (os comandados) da hierarquia se apoiam e se condicionam
reciprocamente” (FOUCAULT, 2001, p. 221).
Giro sabia que se atendesse aos pedidos de Leninha, teria as informações sobre
o que confabulavam as outras com relação a ele.
Osvaldo é conhecido entre as prostitutas como brocha. É o responsável por usar
atos coercitivos a favor de Giro. É a representatividade dos torturadores da ditadura.
Ele surge na peça para usar da força bruta com o objetivo de arrancar a verdade sobre
quem quebrou o abajur lilás do quarto.
Leninha que desde o início parecia mesmo estar ali para ser os olhos e os
ouvidos de Giro foi torturada até apontar Célia como a autora do quebra-quebra no
quarto. A violência se constitui como uma ferramenta do exercício do poder praticado
por Giro pelas mãos de Osvaldo. Uma maneira de repressão para dominar e manter o
conceito de governabilidade de acordo com Foucault:

Um homem acorrentado e espancado é submetido à força que se exerce


sobre ele. Não ao poder. Mas se se pode levá-lo a falar, quando seu último
recurso poderia ter sido o de segurar sua língua, preferindo a morte, é
porque o impelimos a comportar-se de uma certa maneira. Sua liberdade
foi sujeitada ao poder. Ele foi submetido ao governo (FOUCAULT, 2001,
p. 384)

Após a confissão, Osvaldo atira em Célia pondo fim a prostituta que tanto
causava problemas para a ordem estabelecida por Giro.

3. O niilismo nas personagens de O abajur lilás

1309
Após a morte de Célia, Dilma e Leninha percebem que o devir para elas é
extremamente distópico. Elas se perguntam no fim da peça:
Leninha – Onde vamos?
Dilma – Onde vamos?
Leninha – Onde vamos?
É perceptível o niilismo passivo representado na descrença de futuro dessas
personagens, onde a vida parece perder o sentido e os valores são todos sobrepujados,
fazendo com que qualquer esforço pareça inútil.
De acordo com o filósofo alemão Friedrich Nietzsche:

O niilismo com estado psicológico terá de recorrer, primeiramente, quando


tivermos procurado em todo acontecer por um “sentido” que não está nele:
de modo que afinal aquele que procura perde o ânimo. Niilismo é então o
tomar consciência do longo desperdício de força, o tormento do “em vão”,
a insegurança, a falta de ocasião para se recrear de algum modo, de ainda
repousar sobre algo – a vergonha de si mesmo, como quem se tivesse
enganado por demasiado tempo (NIETZSCHE, 2008, p. 124)

Dilma não acredita que a vida dela possa contemplar um futuro com coisas
boas, vive tão somente por causa do filho. Ela oculta durante a peça toda o fato de ter
contraído tuberculose para não ser expulsa por Giro e, assim, perder sua única fonte
de renda.
O final da peça é carregado de lirismo e conta com um desfecho em oração de
Leninha com frases que realçam a perda da esperança mencionada por Nietzsche:

O gado está dormindo.


Para o poeta, o castigo.
Para o santo, a forca.
Para o profeta, a cruz.
Para o condutor, bala (MARCOS, 2003, p. 229)

O gado está dormindo parece representar o estado de letargia coletiva que toma
conta do povo brasileiro no período ditatorial, o sentimento de impotência diante das
atrocidades que acontecem. O castigo para os poetas estava no fato de não poder
publicar nada sem que os censores aprovassem, por isso, tinham que usar diversas
figuras de linguagem para driblar a repressão. Calar a arte que poderia expressar os
valores da liberdade era necessário para manter o poder. Para o santo, a forca, indica
que todos que tentassem ser a salvação teriam a morte como prêmio. Para o profeta, a

1310
cruz, mostra que não era permitido tentar levar o discernimento, caso contrário; viveria
silenciado ou afastado de seu próprio país. Para o condutor, bala, foi o que aconteceu
com Célia que ousou incomodar demais aquilo que estava consolidado como poder
superior.
Outro trecho que representa claramente o pessimismo segue abaixo:

O jato encurta a distância.


A solidão aumenta o tempo.
Cedo ou tarde, a morte está à espreita.
Onde vamos?
Onde vamos?
Onde vamos? (MARCOS, 2003, p. 229)

A morte está à espreita expressa toda a angustia dessas personagens que tem
plena convicção de que a morte pode alcançá-las a qualquer momento, assim como,
tocou Célia. Não há nenhuma garantia de que no momento seguinte estarão vivas, pois
são tratadas de maneira abjeta, são pessoas desfiguradas como seres humanos.
Segundo Nietzsche comprova que: “precisamente nisso enxerguei o princípio
do fim, o ponto morto, o cansaço que olha para trás, a vontade que se volta contra a
vida, a última doença anunciando-se terna e melancólica (NIETZSCHE, 2003, p. 11).
O encerramento da peça confirma toda a incerteza de um bom futuro para
Dilma e Leninha:

Os faróis que nos guiam são pálidos.


Onde vamos?
Onde vamos?
Onde vamos? (MARCOS, 2003, p. 229)

A palidez do farol mostra a falta de cor, de vida, de alegria na condução do


destino dessas personagens. Uma ausência de tudo, inclusive do motivo para existir.

Considerações Finais

Resgatar nomes como o de Plínio Marcos sempre é um trabalho de extrema


relevância para os estudos sobre o teatro brasileiro. Trata-se de um teatro que se utilizou
alegoricamente de micromundos, para estabelecer o cerceamento da liberdade de
expressão que acontecia no período da ditadura militar. É evidente que depois o autor

1311
seguiu outros caminhos com relação à sua temática, ao adotar um enfoque diferente em
outros momentos da construção de sua obra, entretanto, essa fase da produção do autor é
a que mais marcou toda sua história no teatro.
É importante notar o percurso das personagens de muitas das peças de Plínio,
quanto às obras que concernem ao período do governo militar. Os finais são trágicos e
até que o desfecho aconteça, são descritas ações que banalizam os mais preciosos valores
para um ser humano. O autor expressa uma realidade contundente desde a linguagem que
não economiza na crueza de sua colocação até os atos de violência, tanto física como
psicológica.
É interessante a reflexão que Plínio propõe ao analisar a condição humana de
personagens de algumas de suas peças. Filhos de prostitutas, criados em um meio
marginal, sem boas referências de seres humanos não podem ter um outro fim, senão uma
vida voltada para o roubo e as drogas, culminando com a morte. O autor parece distópico
com relação ao destino de quem nasce proveniente dos meios marginalizados, ele deixa
isso bastante claro, principalmente na voz de Giro em O Abajur Lilás, quando este se
refere ao filho de Dilma que vive em um orfanato. Vale lembrar de Querô, protagonista
da peça do mesmo nome. Ele é filho da prostituta Leda. Mesmo sendo aconselhada a
praticar o aborto, ela preferiu prosseguir com a gravidez. O futuro de Querô foi a
marginalidade seguida de morte, além da constante cobrança que o próprio filho fazia ao
espectro da mãe, ao perguntar o porquê de ela ter permitido a vinda dele ao mundo.
De acordo com Ilka Zanotto, a obra de Plínio Marcos existe também para
responder aos questionamentos das personagens que se perguntam sobre sua condição.

E apontava a chave desse enigma como enigma como residindo justamente na


raiz da dramaturgia do autor: ela mostra como “gente” aqueles que
normalmente são considerados “marginais”. E ao responder a “Neusa Sueli”
em Navalha... que ela é gente, sim, Plínio Marcos lança no ar um desafio
imenso à nossa obrigação moral e cívica de tratá-la como tal. Isso implica em
reavaliação de toda uma estrutura social e em compromisso de transformar essa
estrutura, que ao nosso imediatismo não interessa questionar, que à nossa
inércia comodista de avestruz não interessa abalar, que à nossa covardia não
interessa denunciar (ZANOTTO, 2003, p. 19)

Entendemos que os cursos de Letras precisam incluir em suas grades curriculares


mais conteúdos voltados para o teatro, com o objetivo de mostrar aos alunos a riqueza
dessa representação artística, transpondo a peça Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues,
sendo esta uma das poucas trabalhadas durante os quatro anos de graduação.

1312
Referências

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1313
A VIOLÊNCIA HIERARQUIZADA DE GÊNERO: JOÃO GILBERTO NOLL E
SER HOMEM E SER MULHER

Marcus Vinicius Camargo e Souza (UNESP/IBILCE)1

Resumo: Objetivou-se debater a violência hierarquizada contra o gênero por via da linguagem
ao analisar trechos do romance Acenos e afagos (2008) de Noll. Esse romance, a partir da
transformação de seu narrador de um homem em uma mulher, reflete sobre a violência contra o
gênero por meio de jogos de linguagem ao questionar as ideias pré-estabelecidas sobre o que é
ser homem ou ser mulher. Para tanto, utilizou a compreensão da violência contra o gênero como
parte da força ilocutória dos enunciados performativos, conforme proposto por Derrida em
Força de lei (2007). Por fim, entendeu-se que, de forma irônica, o narrador propõe um corpo
para si sem o peso das determinações sobre o gênero por meio da subversão da linguagem.

Palavras-chave: Acenos e Afagos; João Gilberto Noll; Violência; Poder; Subversão

O conflito narrativo

Acenos e afagos (2008) é o décimo primeiro romance de João Gilberto Noll,


dentro de um projeto literário sólido em que se discute a subjetivação de um narrador
protagonista que caminha interminavelmente para a sua própria ruína enquanto
indivíduo e que conscientemente constitui-se de palavras. O jogo narrativo produzido
por Noll em seus romances discute a questão da identidade em diversos níveis, seja no
desmonte de uma ideia de um indivíduo cartesiano ou mesmo na desestruturação desse
indivíduo pela vida contemporânea dentro de temas relacionados a corporeidade,
profanação do sagrado, imigração e, por fim, como é o caso do romance em análise, da
identidade de gênero. O narrador protagonista de Acenos e afagos (2008), durante o
percurso narrativo, sofre uma transformação de um homem socialmente aceito em uma
mulher. Cabe-nos acentuar que a transformação que o narrador sofre é fruto do próprio
processo narrativo, como nos lembra Franco Junior (2003), é do conflito narrativo que
toda a fábula desenvolve-se, e aqui, temos um caso exemplar dessa premissa: o narrador
é platonicamente apaixonado por um personagem denominado engenheiro e é entre as
idas e vindas desse personagem e na tentativa de tornar esse amor real que todos os
processos narrativos desencadeiam-se: a sua morte, a sua ressurreição e a sua
transformação em mulher, ou seja, toda a movimentação do narrador pelo espaço e pelo
tempo só dá-se a partir do desejo e do amor.

1
Graduado em Letras Português/Inglês (UFMS), Mestre em Estudos de Linguagem (UFMS) e
doutorando em Letras (UNESP/IBILCE). Contato: profmarcuss@gmail.com.

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Dessa forma, é do conflito narrativo que se emana toda a violência hierarquizada
da fábula sobre o gênero. Se é o engenheiro quem determina toda essa movimentação,
então, uma primeira violência é estabelecida:

Enquanto entrava, me olhei todo, inspecionando a quantas andava minha


feminilidade. Não via mesmo uma mulher em mim. Talvez com o tempo.
Tudo dependia mesmo do engenheiro. Afinal, eu avançava pelo meu
feminino só para ele. Sem ele, voltaria ao homem que fui. Tudo dependia
então de como se desenvolvesse o nosso plano em comum. Plano que
nenhum dos dois mencionava. E que latejava em segredo. (NOLL, 2008,
p.96)
Perceba-se o peso da palavra “dependia” no trecho, isso mostra que sem o
engenheiro e o plano secreto, uma vez que o engenheiro não diz em nenhum momento
que desejaria que o narrador se torne uma mulher e o próprio narrador não força sua
própria transformação, ele voltaria a ser um homem. No trecho, ele inspeciona sua
feminilidade por encontrar uma vizinha amamentando o filho, a comparação é
inevitável, e há uma consciência de que a transformação ocorre por força externa: o
engenheiro. Assim, durante toda a narrativa a figura do engenheiro é entendida como
um construtor desse corpo do narrador, um significado oculto e que progressivamente
faz o corpo mudar sem que ele o force.

A violência e o poder: força performativa

O entendimento da ideia de violência hierarquizada é concebido a partir da


palestra de Jacques Derrida, “Do direito à justiça”, proferida em 1989, em que trata da
diferença entre direito e justiça e de uma ética para a própria desconstrução a partir
dessa diferença por meio da compreensão da dupla significação da palavra alemã
Gewalt, autoridade e violência. Para Derrida, a autoridade é fundada numa violência
mística, uma vez que ela funda direitos os quais não são precisamente justos, mas
condizentes com aquela autoridade que a fundou. A origem do direito é uma força:

sempre uma força interpretadora e um apelo à crença: desta vez, não no


sentido de que o direito estaria a serviço da força, instrumento dócil, servil e
portanto exterior do poder dominante, mas no sentido de que ele manteria,
com aquilo que chamamos de força, poder ou violência, uma relação mais
interna e mais complexa. (DERRIDA, 2007, p.24, grifo do autor).
A ideia de força é a união dessa possibilidade entre o poder e a violência,
formando o que Derrida constitui como indecidível, entre uma coisa e outra. Um
exemplo dessa força fundante é a Constituição de um país, que inicia ou reinicia a

1315
autoridade do estado e as premissas que deveriam guiar aquele povo de forma positiva,
entretanto, essa constituição não atende a todos de forma justa, ela atende a um conjunto
de modos de viver, dessa forma, uma violência está fundada, uma vez que determina
diversos aspectos da vida de seus cidadãos. Derrida diz ainda sobre essa relação interna
e complexa que “há ali um silêncio murado na estrutura violenta do ato fundador”
(DERRIDA, 2007, p.25), o mesmo pode ser pensado sobre a identidade de gênero:
quem determinou que certos comportamentos são próprios de homens e próprios de
mulheres? Que violência mística e silenciosa é essa que fundou a crença de que o sexo
biológico, a identidade de gênero e, até mesmo os desejos, são semelhantes e contínuos?
É onde entra a questão do performativo, tão cara a Derrida e a Judith Butler, os quais
utilizarão dessa problemática para enunciar os mais diversos questionamentos. Derrida
nos alerta que da conceitualização do constativo e do performativo, dos atos locutórios,
ilocutórios e perlocutórios de Austin, existe uma força que torna o performativo
apropriado, feliz ou sério, essa força é a força ilocutória dos enunciados que nada tem a
ver com a própria linguagem, mas sim com o contexto em que o enunciado realiza-se.
Se a pessoa certa, diz a coisa certa no lugar certo, o performativo realiza-se. O problema
é esse: quem é a pessoa certa? Qual é a coisa certa? Onde está o lugar certo dos
enunciados? Mesmo sem esse “contexto total”, a expressão é de Austin, os enunciados
podem realizar-se? É claro que sim. Os enunciados performativos infelizes,
inapropriados e não sérios realizam-se sob a forma de subversão dessa força ilocutória.
A subversão é a base de nossa hipótese da interpretação da narrativa de Noll como um
indecidível nesse entre-lugar da violência fundadora e o reforço dessa violência contra o
que está hierarquicamente estabelecido: “indecidível é a experiência daquilo que,
estranho, heterogêneo à ordem do calculável e da regra, deve entretanto - é de dever que
é preciso falar - entregar-se à decisão impossível” (DERRIDA, 2007, p.46, grifo do
autor). Quando o indivíduo se entregar a indecisão, ele encontra a aporia de um
significado, ou seja, não encontra a origem das origens da linguagem, mas entende que
ela é capaz desses significados impossíveis mesmo assim. E esse indivíduo percebe
dentro desses significados impossíveis que ainda há a possibilidade de existir como
indivíduo. Se aquela identidade cartesiana era um performativo de controle, as
identidades cada vez mais impossíveis de significação simplista demonstram que a
capacidade de viver como indecidível é não só uma necessidade mas uma possibilidade,

1316
quem sabe até uma ética desconstrutora de se viver. E nesse jogo entre a possibilidade e
a impossibilidade é preciso ter a certeza de que a violência hierarquizada da força
performativa sempre estará ali: “mas como um performativo só pode ser justo, no
sentido da justiça, se fundamentado em convenções e, portanto, em outros
performativos, escondidos ou não, ele conserva sempre em si alguma violência
eruptiva” (DERRIDA, 2007, p.53). A violência sempre estará lá, então uma maneira de
coexistir com ela é pela sua própria subversão diária.

De que forma essas considerações sobre o direito e a justiça fundadas nessa


violência mística podem ser utilizadas na compreensão do ato do narrador de Noll?
Quando o narrador questiona os papéis violentos místicos da fundação do que é o
homem e do que é a mulher, ele está construindo uma decisão sobre o assunto originada
nessa violência ao se autoinflingir essas determinações sobre como um homem ou uma
mulher devem ser. Assim, seus questionamentos e acima de qualquer coisa, sua
transformação para um entre-lugar, que vai se esvaziando de significado dessas
concepções (PARADISO; PASSERI, 2010, p.44), somente alegorizam essas
possibilidades, ele pode ser uma mulher e mesmo assim exercer uma função masculina:

Ao lado da fome, vinha-me definitivamente um prazer inenarrável com


aquilo que se poderia chamar de nova versão de vagina. o que se formava
entre minhas pernas constituía-se numa genitália inédita quem sabe, alguma
coisa próxima a uma vulva, sem dúvida, mas guardando talvez algo
masculino, ao se lançar para dentro, mas desejosa de possuir a função
perfurante. Certo, eu estava afastada do corpo com a qual nascera. Para gozar
agora, eu precisaria esquecer meu desempenho anterior de macho. (NOLL,
2008, p.177)
A vulva perfurante, enquanto metáfora, é um performativo infeliz que
reinterpreta toda a possibilidade da justiça de gênero. O que seria essa justiça de
gênero? A justiça que emana de mim mesmo sobre a minha condição sexual? Ela é
passível de julgamento? Alguém pode determinar o meu sexo, minha identidade de
gênero e meu desejo no meu nascimento ao enunciar: é um menino é uma menina?
Onde está a justiça desse enunciado? É o fundamento místico da violência contra o
gênero. Assim, a pessoa/o narrador precisa viver sua vida inteira enunciando
performativos infelizes ou inicia uma cadeia de citações (CULLER, 2000, p.513) e ao
utilizar, no caso do trecho, o tratamento linguístico feminino para si sem saber de fato se
é um homem ou uma mulher é a prova disso. Viver de performativos infelizes é a

1317
subversão na própria estrutura da linguagem, também fundada em uma mística violenta,
a língua é assim por convenções arbitrárias, indecidível entre suas normas e seus usos.

Manifestação da autoviolência hierarquizada

Para demonstrar a análise dessa violência hierarquizada que se processa na


narrativa escolhemos a cena em que se inicia a ideia de transformação do narrador em
mulher:

Fomos de táxi até a casa que ficaria sendo nossa, para lá da periferia da
cidade, na mata -, contou-nos o motorista, mata que a partir dali começava a
se adensar muito pouco a pouco. Entramos Na casa de alvenaria, só reboco.
Por dentro também, sem pintura nas paredes. Abri a porta da cozinha. Sobre a
mesa havia panelas, talheres, pratos, duas laranjas. Nesse momento o
engenheiro se afastou. Ficou postado na janela da sala. Parecia contemplar
seu novo quintal. Talvez agora fosse dar vazão a algum pendor seu em
jardinagem. Os cotovelos no parapeito. A bunda e coxas salientes, já que Se
apresentava muito inclinado sobre o espaldar bem baixo. O que eu começava
a depreender daquilo tudo? Que ele seria o meu homem. E que para mim fora
preparada a cozinha com seus apetrechos. Para que eu tomasse conta dela e
nela fizesse bons pratos para o casal. E que soubesse lavar e passar. Alguma
coisa me dizia que, se eu ordenasse meus dias segundo os planos misteriosos,
poderia ganhar o corpo inteiro do engenheiro, noite após noite. Seria a única
maneira de eu ter aquilo tudo a que eu tanto ansiava desde sempre. Esse
homem enfim seria meu. Bastava que eu fosse a mulher com a qual ele
sonhava. [...] O meu amigo engenheiro voltou ao Brasil para ter-me a seu
lado. Eu de tradutor da mulher que jamais serei. Entro na cozinha e penso
como farei. Nunca cozinhei. Agora, porém, tendo como prêmio para as
minhas prendas domésticas o homem por quem eu era e sou apaixonado,
agora seria uma outra história e os dois atuariam na mesma produção. Eu
precisaria me sair bem. Se a minha oferenda culinária, de fato, tivesse como
recompensa a dádiva física dele, eu já me via fritando ovos, mexendo-os no
camarão, provando um pouco da panela, botando um pouco mais de sal,
pimenta-do-reino, alecrim, manjericão. Quando fui contar que estava quase
pronta a comida com o único mantimento que eu encontrara, vi que ele
continuava na mesma posição, as coxas e a bunda viradas para mim, na certa
a querer-me provocar. Indaguei em surdina se eu não passaria a viver agora
num mundo só de apoteoses. Cozinhar, lavar, passar, limpar não seriam
justamente um grande agrado para eu merecer as mil e uma noites e tantas
outras mais? Sim, eu não teria mais rotina. A dura execução das horas seria
tão-só um pagamento pela ardência da madrugada. E a cada noite eu mais
aprenderia o que até ali não soubera vislumbrar. Tinha um vestido, como
também um avental e uma toalha de banho que eu encontrara pendurados
num arame improvisado nas imediações da mata. Pareciam à minha espera.
Os ruídos dos animais da floresta me intrigavam. Havia perigo, mas também
chamado… Diante da mesa com os pratos sujos, perguntei-lhe se tinha
notícias de minha mulher e meu filho. Afinal, fiquei tanto tempo
inconsciente… Pelo menos era o que contava o engenheiro. (NOLL, 2008,
p.80-82)
O espaço em que a cena se desenvolve é a cozinha, quando o narrador abre a
porta, o engenheiro que o acompanhava o abandona para ficar na sala. O narrador lida

1318
sozinho com todos os símbolos que o espaço apresenta: são utensílios de cozinha,
mantimentos e, no final do trecho, roupas. Veja a pergunta que o narrador faz a si
mesmo: “o que eu começava a depreender daquilo tudo?”. Além do fato de conseguir
realizar o seu intento de ter o amor do engenheiro, ele começa a perceber o espaço como
uma determinação para como seria sua vida: “basta que eu fosse a mulher com a qual
ele sonhara”, mesmo assim essa afirmação é ironizada: “eu de tradutor da mulher que
jamais serei”. A construção da ideia de tradução é importante para pensar a questão da
linguagem: ele não conseguiria transpor o real sentido de uma mulher, mas traduzir, o
que é problemático, se pensarmos somente em Derrida. O narrador tem consciência total
de que é só narrativa, o mesmo dá-se na questão de os dois personagens “atuarem” na
mesma “produção”, e ele precisa atuar bem, precisa tornar o performativo de gênero
apropriado, precisa repetir ou citar com perfeição o contexto de uma mulher. Além
disso, a relação com as mil e uma noites também só corrobora para essa ideia, viver de
histórias, uma história alimentando dia a dia a sua sobrevida narrativa.

Tanto a cozinha e os apetrechos quanto as roupas femininas a sua espera, além da


promessa de uma noite de sexo com o engenheiro faz o narrador depreender o
significado daquilo tudo: o engenheiro seria seu homem, e na própria construção de sua
narrativa, de modo irônico, para tanto ele precisava performatizar uma mulher. As
subversões irônicas somente começam nessa cena, outras procedem durante todo o
romance, por exemplo: ele, durante o sexo, mesmo com um corpo feminino, é o homem
na cama com o engenheiro devido ele estar impotente: “o meu pau teria uma missão
especial: comer a quem parecia me querer como mulher (NOLL, 2008, p.93); outro
exemplo, o tempo todo ele está tentando ser uma mulher padronizada, a qual ele
construiu no começo da narrativa ao descrever sua própria esposa, mas não consegue
viver desse padrão, pois lembra-se sempre do homem que foi ou que ainda é: “sei que
verá ser eu uma mulher com pau e que nada farei para que se transforme em vulva. Vejo
que agora o garanhão chupa o meu cacete, fazendo o papel de uma mulher famélica. É
que sou bom de piça, eu mesmo acho. (NOLL, 2008, p.117). No fim da cena da
cozinha, construída pelo fim do jantar (duas laranjas as quais ele não sabia preparar) e
pelos pratos sujos sobre a mesa, ele ainda pergunta sobre seu passado: sua mulher e seu
filho. E para além disso, ele duvida, não só aqui, mas em outros pontos da narrativa
também, da sinceridade do engenheiro: “pelo menos era o que me contava”. Essa

1319
dúvida é a descrença de não conhecer o ato fundador, é entender que ele é uma
violência contra o narrador na fundação de sua produção como mulher. E mesmo
duvidando, ele prossegue, o conflito narrativo, o seu desejo pelo engenheiro é o que lhe
move, é a “violência eruptiva” da fundação de qualquer performativo.

Considerações finais

Entre ironias, alegorias e metáforas criadas por João Gilberto Noll em Acenos e
afagos (2008), o narrador reflete diversas maneiras das construções sociais do gênero,
joga com significados estabelecidos sobre o que é ser homem e ser mulher e deixa claro
que há uma relação entre poder e violência nessas construções. A violência, no caso
dessa narrativa, é uma violência dupla: vem de si mesmo com o objetivo de atender ao
desejo do narrador em relação ao amor que sente pelo engenheiro e de fora que lhe
determina por via simbólica o que precisa fazer para conseguir realizar o seu amor.
Entre autoinflingir essa violência e deixar-se levar por essa pressão externa, o narrador
não se deixa calar: questiona e não determina.

Existem ainda muitas outras formas de manifestação dessa dupla violência pelo
romance, mesmo assim esse narrador acaba por deixar claro que uma vida, apesar das
exigências externas e internas, sobre o corpo, no caso de linguagem, não pode ser aceita
sem reflexões. O narrador não entende como um problema essas determinações porque
deixa seu corpo transforma-se ao sabor da violência, mas resiste por meio da subversão
das palavras. Ele usa, então, a linguagem como forma de existir e resistir, torna seu
corpo feminino uma forma descarada de ironia rompendo as expectativas sociais sobre
como ele deveria ser ou parecer. A mesma arma utilizada contra ele pela violência de
gênero é a arma que ele utiliza para defender-se dessa violência: uma violência feita de
linguagem só pode ser resistida com mais linguagem, de preferência, subversiva.

Referências

CULLER, Jonathan. Philosophy and literature: the fortunes of the performative. Poetics
Today. Tel Aviv, v. 21, n. 3, fall 2000.

DERRIDA, Jacques. A força de lei: o “fundamento místico da autoridade”. Tradução


de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.

1320
FRANCO JÚNIOR, Arnaldo. Operadores de leitura da narrativa. In: BONNICI,
T.; ZOLIN, L. Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas.
Maringá: EdVE, 2003, p. 33-56.

NOLL, João Gilberto. Acenos e Afagos. Rio de Janeiro: Record, 2008.

PARADISO, Silvio Ruiz; PASSERI, Karine. O comportamento homoafetivo a partir do


determinismo social, em Acenos e afagos (2008). Terra roxa e outras terras: Revista
de Estudos Literários. Londrina, v. 18, p. 38-48, out. 2010.

1321
PARA ALÉM DAS DITADURAS: RESISTÊNCIA E RESILIÊNCIA NA
LITERATURA INFANTOJUVENIL DE LYGIA BOJUNGA E ALICE VIEIRA

Renata Flaiban Zanete (UMINHO)1

Resumo: Lygia Bojunga começou a publicar para crianças e jovens em 1972, no Brasil,
em pleno governo ditatorial. Alice Vieira em 1979, logo após a Revolução dos Cravos,
de 1974, marco do fim da ditadura em Portugal. O sistema autoritário e a violência por
ele empregada, permeiam certas obras literárias das autoras, assim como nos apresentam
formas de resistência e resiliência. As ditaduras e repressões parecem ter funcionado
como impulsos para defesas de direitos nas narrativas, bem como a abordagem de temas
fraturantes até então interditos, quais sejam: a morte, perseguições políticas, o corpo,
questões de gênero e o sexo na literatura para crianças e jovens.
Palavras-chave: Literatura infantojuvenil e ditadura; resistência; resiliência; perseguição
ideológica; liberdade de expressão.
Alguns pontos de partida
Fui ao dicionário em busca das acepções das palavras “resistência” e “resiliência”,
que aparecem no título de minha comunicação. Ambas são nomes femininos. As duas
palavras permitem-nos olhar para as obras literárias que iremos aqui abordar sob os
diferentes enfoques que nos dão os dicionários. Parece-nos que tanto num como noutro
caso, temos a presença de um outro que age, obstáculo que se interpõe no caminho de
alguém. “Capacidade de resistir” e “Capacidade de superar” são expressões que nos
saltam aos olhos, pois que implicam em esforço ou habilidade do sujeito que resiste e
supera uma dada situação adversa ou pressão para a submissão. É curioso que, em sentido
figurado, resistência possa significar teimosia, acepção que pode vir a ser utilizada para
desqualificar, por exemplo, os movimentos sociais de resistência. Por outro lado, o
choque aos corpos, presente na definição de resiliência no campo da Física, torna-se
dramático, quando estamos a tratar de, literalmente, corpos humanos sob a ação das
torturas mais variadas, inclusive por meio do choque elétrico, nos regimes ditatoriais.

No avanço de certas correntes políticas, hoje, assistimos a tentativas de minimizar


o que foi a ditadura no contexto brasileiro. Vemos a negação da expressão “golpe militar”,
sendo substituída em determinados discursos pela palavra “movimento”; o apagamento
do que foram as perseguições ideológicas, e até mesmo o elogio à tortura. Obras

1
Graduada em Pedagogia e Mestra em Linguagem e Educação (FEUSP), Doutoranda em Modernidades
Comparadas (CEHUM-ILCH-UMinho). Contato: renaflai@gmail.com.

1322
infantojuvenis que tratam do tema, e vinham sendo trabalhadas em escolas desde os anos
80 do século XX, passaram, agora, a ser perseguidas, como Meninos sem Pátria, de Luiz
Puntel. Assim, parece-nos ser fundamental trazer à tona obras literárias que tratem do
período ditatorial, tão recente e, por vezes, tão esquecido, a fim de que as gerações mais
novas entrem em contato e conscientizem-se a respeito deste universo político de ataque
à democracia.

Lygia Bojunga começou a publicar para crianças e jovens em 1972, no Brasil, em


pleno governo ditatorial. Alice Vieira em 1979, logo após a Revolução dos Cravos, de
1974, marco do fim da ditadura em Portugal. O sistema autoritário e a violência por ele
empregada permeiam certas obras literárias das autoras, assim como nos apresentam
formas de resistência e resiliência. Bojunga encontrou, na Literatura para crianças e
jovens, brechas para tratar da ditadura e do autoritarismo, “Valendo-se da ideia de que os
generais não liam” (RAMOS & NAVAS, 2016, p. 60) obras deste gênero.

Na obra A Bolsa Amarela, de Bojunga, editada pela primeira vez em 1976, temos
um galo, personagem inventado pela protagonista Raquel, desgostoso por ver todas
aquelas galinhas dependentes das ordens e opiniões dele. É denunciado por elas, ao dono
do galinheiro, pelo fato de querer outro tipo de vida, com “todo mundo dando opinião”.
O galo é torturado e intimado a ser como seus antepassados. Bojunga cria um “carretel
de linha forte” (BOJUNGA, s/d., p. 96) para amarrar os pensamentos, que faz com que
um outro galo só queira brigar, e não seja capaz de pensar mais nada além disso.

No Livro da avó Alice, de 2010, a autora escreve: “Os anos sessenta foram tempos
difíceis. De clandestinidades e segredos. De medos e telefones vigiados. De amigos que
de repente nos batiam à porta, e que no dia seguinte partiam, sem deixar rasto.” (VIEIRA,
2016, p. 47). Vinte cinco a sete vozes, publicado em 1999, fala sobre a Revolução dos
Cravos, a partir de sete diferentes pontos de vista e experiências. Um episódio vivido pela
autora aparece ficcionalizado no romance. Vieira recebe em sua casa um jornalista,
conhecido seu, que pede para ficar por ali apenas uma noite. Ela o acolhe com rapidez e
ele estranha. “Eu peguei rapidamente numa mala que estava mesmo junto à porta e só lhe
disse: [...] tenho de ir já para o hospital ter a criança. A minha filha nasceu oito horas
depois.” (VIEIRA, 2016, p. 47).

1323
As ditaduras e repressões parecem ter funcionado como impulsos para defesas de
direitos nas obras das autoras, bem como a abordagem de temas fraturantes até então
interditos, quais sejam: a morte, perseguições políticas, o corpo, questões de gênero e o
sexo na literatura para jovens.

Um pouco de contexto

Muitos estudiosos apontam que o 25 de Abril, em Portugal, para muitos jovens, não
passa de mais um feriado. No entanto, o fato de se ter uma data-marco de comemoração
do fim da ditadura revela uma consciência coletiva-social, instaurando na história do país
esta data simbólica, ou seja, um antes e um depois do 25 de Abril de 1974.

No caso brasileiro, o fato de não se ter esta data, um marco simbólico do fim do
período ditatorial, celebrado no calendário com um feriado, parece enevoar, junto com
uma série de outros fatores, o que representou o fim da ditadura, que se deu a 15 de março
de 1985, com a posse do presidente José Sarney, eleito indiretamente. A ausência de
processos para punir os torturadores, monumentos ou espaços que evoquem os mortos
pela ditadura, são lacunas históricas, contas a serem acertadas com o passado.

A alegria que a Revolução dos Cravos instaurou no país, em seus habitantes, pelo
que representou, no próprio dia de seu acontecimento e pelos meses subsequentes, como
celebração da liberdade conquistada, inexiste na realidade brasileira, como relato coletivo
de felicidade pelo fim da ditadura. Notamos esta alegria em fotos, obras literárias e filmes.

A ditadura, em Portugal, durou 48 anos, de 1926 a 1974. No Brasil, prolongou-se


por 21 anos, de 1964 a 1985. As colônias portuguesas na África e a insatisfação dos
cidadãos em relação às guerras coloniais fazem parte do contexto da Revolução dos
Cravos. Desigualdades econômicas e sociais, guardadas as devidas proporções, estiveram
presentes nas duas realidades. Em comum, os mecanismos para garantir o poder e
domínio ditatorial e gerar o medo: perseguições, torturas, prisões, exílios e assassinatos.

Localizamos dissertações de mestrado que abordam relações entre a ditadura e a


literatura produzida para crianças e jovens, no Brasil e em Portugal. Morais, que analisa
obras de Lygia Bojunga, Ana Maria Machado e Ruth Rocha, escreve “[...] fazendo uso
de uma linguagem por excelência metafórica, os autores foram dando a conhecer sob o
aspecto da ótica infantil a repressão daquela época.” (MORAIS, 2011, p. 13). Figueiredo

1324
destaca que “Interessava à política do Estado Novo incutir determinados valores morais
formando cidadãos submissos, “trabalhadores dóceis”, e fiéis à máxima imposta pelo
plano de acção doutrinária: “Deus, Pátria, Família”.” (FIGUEIREDO, 2006, p. 26).
As ditaduras e seus modos de funcionamento representadas na literatura para
crianças e jovens

Todorov, na tradução portuguesa Em Face do Extremo, alerta que

[...] a obra de arte é também uma afirmação de valores, ela confirma, portanto,
um envolvimento moral e político e a opção por esses valores só pode ser
imputada ao artista: os fatos em si não detêm nenhum ensinamento, não são
transparentes em relação a seu significado; é a interpretação que o artista dá
que é responsável por esses julgamentos contidos na obra. (TODOROV, 1995,
p. 300)

A cegonha Angélica, da obra de mesmo nome, de Lygia Bojunga, lançada em 1975,


deprime-se e não aceita viver sob a mentira de que são estes pássaros que trazem os bebês
ao mundo. Enfrenta o poder repressivo representado pelo pai e a família: “Nossa família
não vai mudar e daqui não vai sair nenhuma verdade. Sou o chefe da casa: falei, tá falado.”
(BOJUNGA, 1995, p. 74). Os irmãos de Angélica, que assumem a mentira imposta pela
tradição familiar, respondem com violência quando são questionados.

Lume: Na hora do recreio a filha da Dona Ema disse que é mentira: que a gente
não traz bebê nenhum pro mundo.

Todos: Psiu!!!

Pai: Fala baixo, menino!

Vô: E o que é que você disse?

Lume: Eu dei tanta bicada nela que ela acabou dizendo pra todo o mundo que
eram as cegonhas que traziam os bebês, sim. (BOJUNGA, 1995, p. 62)

A escola como lugar de deformação e repressão violenta também aparece na obra


A Casa da Madrinha, de Lygia Bojunga, editada em 1978. O menino Alexandre, que vive
em situação precária, numa favela, com a família, sai viajando em busca da casa da
madrinha. Conhece um pavão que passa a ser seu fiel companheiro. “A escola pra onde
levaram o Pavão se chamava Escola Osarta do Pensamento. [...] era só ler Osarta de trás
pra frente. A Osarta tinha três cursos: o Curso Papo, o Curso Linha, e o Curso Filtro.”
(BOJUNGA, 2002, p. 24). O medo já instaurado fica no corpo, vira sequela deste projeto
de formação torpe da escola que limita o pensamento.

1325
O pavão, sendo muito bonito, logo surgiram cinco donos para quererem explorar
comercialmente sua beleza. Para Matsuda e Ferreira os cinco donos do Pavão podem ser
uma alusão
[...] aos cinco Atos Institucionais emitidos pelo regime militar brasileiro nos
anos seguintes ao Golpe de 64. Além disso, o Ato Institucional n. 5 ou AI-5
foi o instrumento que deu ao regime poderes absolutos, fechando o Congresso
Nacional por quase um ano, considerado o mais duro golpe do regime militar.
(MATSUDA E FERREIRA, 2015, p. 283)
É interessante notar como o nevoeiro, simbolicamente, representa a incerteza, o
medo, o perigo, na obra da autora. Aparece aqui e também nas obras O Pintor e O Meu
Amigo Pintor. Céu azul e sol indicam clareza nos caminhos a serem seguidos pelos
personagens, como uma luz no fim do túnel, para além das dores e fragilidades com que
se deparam em seus caminhos.

Alexandre fala da professora nova: “A Professora era jovem; a maleta era velha,
meio estragada, e de um lado tinha o desenho de um garoto e uma garota de mão dada,
vestindo igual, cabelo igual, risada igual.” (BOJUNGA, 2002, p. 37). Surge uma “fofoca”
de que “um pessoal” não está gostando da maleta da Professora. A perseguição que se dá
aqui, à professora, não identifica exatamente quem é que não está gostando da maleta, ou
seja, de suas aulas numa perspectiva de alargamento dos horizontes das crianças. Este
clima de perseguição, em que não se sabe exatamente de onde vem, ou quem pode ser o
perseguidor ou delator para instâncias superiores, leva a certa paralisia. Diante do sumiço
da maleta, num dia de chuva, a professora só chora.

A estrutura de perseguição e resistência aparece em Águas de Verão, de Alice


Vieira, publicado em 1985. O Sr. Gualberto é um músico saxofonista que trabalha com
as crianças, em férias, no Grande Hotel das Termas, para que façam apresentações
artísticas numa festa. A mãe de Marta, narradora principal do romance, assim se refere às
crianças na companhia do músico: “na gritaria, feitas vadias”, e em conversa com o
marido, pergunta e exclama: “Tu chamas a um bando de desaustinados crianças
contentes? Ainda bem que ao menos o senhor general reagiu como deve ser!” (VIEIRA,
2010, p. 98). O chamado “general” é, na verdade, um hóspede-policial, que ali está com
o filho Anacleto, e se queixa ao proprietário do hotel, a fim de que o músico não continue
a trabalhar com as crianças, alegando que está a “indiscipliná-las”. Em Vigiar e Punir,
Foucault escreve: “A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos
“dóceis” (FOUCAULT, 1987, p. 127). E mais adiante complementa “A disciplina

1326
“fabrica” indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao
mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício.” (FOUCAULT, 1987,
p. 153).

Em O meu amigo pintor (texto narrativo, lançado na Espanha, em 1984, e somente


em 1987, no Brasil) e O pintor (texto dramático, vencedor do prêmio Molière em 1986),
de Bojunga, nos deparamos com o suicídio de um artista politicamente engajado e o
trauma que isto ocasiona na vida de uma criança, seu melhor amigo. O síndico,
personagem vigilante da vida alheia e delator, à polícia, sobre a vida do artista pintor,
retrata o modo persecutório de ação, nos sistemas ditatoriais, nas relações quotidianas.
Temos o seguinte relato do menino narrador: “Um dia eu tava lá em cima jogando gamão
e tocaram a campainha. Quando eu abri a porta dois caras disseram que eram da polícia
e me mandaram embora: queriam ficar sozinhos com o meu amigo pra interrogar ele.”
(BOJUNGA, 1999, p. 34).

A citação a seguir demonstra o quanto os adultos, pressionados pelo medo, durante


a ditadura, habituaram-se a falar baixo, por uma estratégia de sobrevivência, e buscaram
blindar as crianças de assuntos como a perseguição política.

E por que que quando é assim todo o mundo faz mistério? e fala baixo? e fica
até parecendo que suicídio é um superpalavrão? Por quê? Se um cara vai preso
porque matou porque roubou, gente assim da minha idade fica sempre por
dentro; por que então se dizem “ele é um preso político” gente da minha idade
nunca entende direito o que que isso quer dizer, por quê? (BOJUNGA, 1999,
p. 35).

Bojunga utiliza-se do mundo da arte e dos sonhos para que Cláudio, o menino
protagonista, elabore seus traumas e seja capaz de ultrapassá-los. A resiliência, muitas
vezes, torna-se possível, porque o inconsciente não deixa de agir, seja no mundo dos
sonhos, seja no mundo da arte.

Todorov aborda casos de suicídios que foram executados por sujeitos que passaram
pela experiência dos campos de concentração. Consideramos que podemos fazer
aproximações com certos casos que se dão nos sistemas de perseguição, nas ditaduras. O
autor escreve: “Esses suicídios são cometidos por desafio, não por desespero, constituem
uma última liberdade [...] escolher o momento e o meio de sua própria morte é afirmar
sua liberdade [...]” (TODOROV, 1995, p. 73).

1327
Vinte cinco a sete vozes, de Alice Vieira, trata diretamente, como o próprio título já
anuncia, da data emblemática, 25 de Abril de 1974. A obra foi editada em 1999. As sete
vozes referidas no título são sete personagens de idades e envolvimentos diferentes com
o acontecimento histórico. Entrevistados por uma estudante de mestrado que nasceu no
ano do 25 de Abril, dão ao leitor diferentes pontos de vista. O entrelaçamento que a autora
faz entre a escola, a família e o conhecimento ou desconhecimento da história recente do
país é paradigmático.

As ilustrações de Filipe Abranches são muito expressivas. Vemos uma mulher


gigante, no Terreiro do Paço, a própria investigadora de Mestrado, que, contorcida em
“U” para o sentido do chão, mexe com as “peças” da história, buscando aproximação e
conhecimento dos fatos e seus atores, como brincando com soldadinhos e tanques de
guerra. Todorov defende que

[...] corremos o risco de repetir o passado, se o ignorarmos. Não é o passado,


como tal, que me preocupa, mas sim o fato de eu acreditar que há nele uma
lição para nós, contemporâneos. Mas... qual? Por si mesmos, os
acontecimentos nunca revelam seus sentidos: os fatos não são transparentes;
para nos ensinar alguma coisa, precisam ser interpretados. (TODOROV, 1995,
p. 37).

A presença das mulheres na obra de Vieira, a discutir a ditadura, é marcante. Dos


sete entrevistados no livro Vinte cinco a sete vozes, quatro são mulheres, além da própria
entrevistadora.

Ricouer nos diz, (em tradução minha) que

[…] essa recuperação do significado a partir do fim aproxima a compreensão


do enredo da ideia de "repetição", que, como veremos, é a chave para a ideia
de "historicidade". [...] Desta forma, o enredo ajuda a introduzir a ordem
sequencial na memória, que retrocede no tempo.” (RICOUER, 1999a, pp. 198,
199).

A seguinte citação trata de como a perseguição, na ditadura, fica apagada para o


grande público. A professora de Inglês fala aos alunos de experiências vividas, enquanto
jovem estudante

[...] um dia a polícia fechou as portas da cantina, e prendeu todos os que


estavam lá dentro. E depois a gente procurava nos jornais – e não aparecia
nada! Era como se nada tivesse acontecido [...] Estudantes presos todos os dias,
muitos a fazerem greve de fome, ninguém a ir às aulas, plenários dia e noite, a
polícia toda mobilizada, pancadaria dia sim dia sim – e nos jornais a censura
não deixava sair nem uma palavra sobre o assunto. Nem na televisão,
evidentemente. Parecia assim um filme de ficção científica, sabe?, a gente a

1328
viver coisas que para as outras pessoas não existiam.” (VIEIRA, 2008, pp. 24,
27).

Esta “invisibilidade” das perseguições, ou a falta de nome próprio dos


perseguidores, policiais, aparece retratada na ilustração dos homens vestidos de preto que
têm todos a mesma cara, com óculos escuros, ombros largos que se colocam por cima da
cabeça, a demonstrarem força bruta. O que vem na frente traz um porrete na mão.
(VIEIRA, 2008, p. 25).

Em Chocolate à Chuva, obra lançada por Vieira em 1982, a menina Mariana,


protagonista de 13 anos, está num acampamento com amigos. A amiga Sofia conta:

- [...] Ela e o meu pai tinham que ir entregar uns papéis importantes e uns
jornais a casa de umas pessoas, e estavam com medo que a polícia os
apanhasse. [...]

- A polícia já uma vez lhes tinha mandado parar o carro para o revistar [...]
Então, não tiveram outra solução: meteram aquilo tudo debaixo do colchão do
meu carrinho de bebé, puseram-me a mim por cima, e lá foram comigo rua
fora, como se me levassem calmamente a passear até casa de amigos.
(VIEIRA, 2012, pp. 50, 51).

Esta curta história de resistência é escrita com leveza e humor, numa obra que não
trata especificamente da ditadura ou do 25 de Abril, mas que traz às crianças leitoras o
relato de expedientes utilizados, no quotidiano, para driblar as perseguições policiais.

Fazendo Ana Paz, de Lygia Bojunga, foi editado pela primeira vez em 1991. Em
comparação com as outras obras da autora, que abordam a temática da ditadura, neste
caso, temos uma obra mais realista e menos metafórica. Ganha espaço a metalinguagem,
com as indecisões, incertezas e angústias do processo de construção da escritora. Bojunga
compartilha com o leitor as possibilidades que lhe surgem.

Fui ficando um pouco desesperada. Mas acabei achando que eu tinha achado
o pai que o Pai ia ser. Ele ia ser um pai de todo dia, um pai incoerente; ia ser
um defensor do feminismo, mas ia criar o maior caso se chegava em casa e o
mulherio não tinha posto o almoço na mesa; ia ser um defensor exaltado da
reforma agrária, mas tinha uma bruta fazenda, que entrava pela Argentina
adentro, com terra descansando e se valorizando, e ele só aparecia por lá uma
vez na vida e outra na morte pra fazer um churrasco. […] Não saiu: no meio
do churrasco eu me dei conta que o pai tinha que ser um forte, um democrata
convicto, um homem de ação e imaginação, uma figura carismática, capaz de
imprimir uma marca muito forte na menina Ana Paz. (BOJUNGA, 2004, pp.
58, 59).

A cena traumática que é central na vida da personagem Ana Paz aparece quatro
vezes, ao longo da obra toda. O Pai é um sindicalista, perseguido por seus

1329
questionamentos políticos, e desaparece da vida da filha, quando ela está prestes a
completar 8 anos. Lygia Bojunga opta por escrever Pai, com letra maiúscula, destacando
assim a importância que o personagem tem na vida de sua filha e, ao mesmo tempo,
sugerindo-nos que outros como ele podem ter trilhado caminho semelhante, criando assim
uma espécie de personagem-tipo. Lygia acaba por fazê-lo carinhoso, penteando os
cabelos lisos da filha e contando-lhe histórias a partir de uma Carranca que deu a ela de
presente. “O Pai fez da Carranca uma mulher forte, coerente, que sabia lutar pelos direitos
dela. […] E o Pai começou a inventar um mau espírito atrás do outro: eles eram os caras
que não deixavam o Brasil ser uma terra de fartura pra tudo que é brasileiro.”
(BOJUNGA, 2004, p. 52).

É curioso notarmos a oposição que a autora faz entre um “pai de todo dia”,
“incoerente” e um “pai democrata convicto”, “capaz de imprimir uma marca muito forte”
em sua filha. A escritora constrói um personagem que, apesar do pouco convívio, deixa
para a menina uma herança digna, afetiva, no que diz respeito às convicções políticas.

Já em 1980 Lygia Bojunga nos apresenta, na obra O sofá estampado, uma liderança
que perde a vida, dedicada à causa de proteção da floresta amazônica. A narrativa é
construída à maneira das fábulas. Os bichos agem e falam como se humanos fossem. A
Avó do tatu Vítor, que é arqueóloga, responde, numa clara referência aos contextos
ditatoriais, a respeito de suas andanças pela América do Sul e África:

“– Vó, quando você faz essas viagens compridas, o que que você vê mais: floresta
ou mar? […]

– O que eu vejo mais é gente pobre e bicho perseguido, é isso que eu vejo mais.”
(BOJUNGA, 1987, p. 40).

A palavra Avó é escrita com letra maiúscula, como o Pai, de Ana Paz. Assim como
ele, ela demonstra engajamento social. São resistentes às injustiças impetradas pelos
sistemas ditatoriais e vítimas das forças agressivas que abatem aqueles que se opõem ou
opuseram, à ideologia dos regimes opressores, como nos casos do Brasil e Portugal. A
Avó chega, afobada, e diz pro neto:

Tô indo pra Amazônia, estão perseguindo muito bicho por lá. Recebi notícia
segura que anda uma destruição horrível na mata, diz que matam bicho e árvore

1330
aos milhares, falaram que até índio eles estão querendo matar, eu tenho que ir
lá ajudar. (BOJUNGA, 1987, p. 42).

Esta obra, que em 2020 completa 40 anos, mostra-se mais atual do que nunca, diante
do que temos visto acontecer à Amazônia, no Brasil. Dona Rosa, que é amiga dos pais de
Vítor, insensível, chora e abraça o pequeno tatu, dizendo várias vezes, “Tadinho do
Vítor”, até que, sem nenhum rodeio, esclarece: “É que a sua Vó morreu.” (BOJUNGA,
1987, p. 45). E ainda completa, demonstrando juízo de valor pelas causas que a avó
defendia, “coisas meio esquisitas”, e assumindo como justificativa para o assassinato o
falso (e corrente) discurso de que ela “não estava querendo deixar o progresso chegar”:

Bom, ela estava lá na Amazônia, você sabe, não é, e acontece que ela, bom,
você sabe como a sua Vó era, não é, sempre lutando por umas coisas meio
esquisitas, e então ela entrou lá num movimento pra juntar índio e bicho e
árvore, pra todo o mundo lutar junto e defender a floresta. […] Mataram ela,
ué. Ela e todo o mundo que não estava querendo deixar o progresso chegar na
Amazônia. (BOJUNGA, 1987, p. 45)

Últimas reflexões

Como escreve Ricoeur “[...] uma metáfora não é um ornamento de discurso [...] diz-
nos algo de novo acerca da realidade.” (RICOEUR, 1999b, p. 100). Ao olharmos para a
obra das duas autoras aqui estudadas, temos que a visão metafórica dos procedimentos
utilizados pela ditadura estão muito presentes em diversas obras de Bojunga. “Não
devemos, então, concluir que a metáfora implica um uso tensivo da linguagem de maneira
a apoiar um conceito tensivo de realidade? Quero com isto dizer que a tensão não é apenas
entre palavras, mas reside na cópula da enunciação metafórica.” (RICOEUR, 1999b, p.
115). Na junção das tensões, das situações histórico-sociais reais às situações ficcionais
criadas por Bojunga, reside a potência de suas obras e suas “metáforas vivas”.

Nas obras de Alice Vieira, ganha força a dimensão simbólica, expressa nas
experiências de vida de pessoas comuns. Ricoeur nos fala dos “símbolos”, “as imagens
que dominam a obra de um autor”, “ou as figuras persistentes dentro das quais toda uma
cultura se reconhece a si mesma” (RICOEUR, 1999b, p. 101).

A tensão entre pais que não querem que se trate de política na escola e professores
que insistem em tratar do tema está presente tanto no Brasil como em Portugal e nas obras
estudadas. A meu ver, a dimensão política não pode ser deixada de fora, pois trata-se
muitas vezes do nó que, desfeito, faz a história andar. O que talvez devamos enfatizar,

1331
enquanto sociedades democráticas, seja o papel da escola em debater ideias políticas e
analisar os fatos, contribuindo assim para a formação de cidadãos críticos, engajados, e
não alienados das questões políticas de seu país.

Professores, jornalistas, escritores e artistas são perseguidos porque são agentes


sociais que promovem consciência crítica, em detrimento da alienação e da manipulação
perpetrada pelos sistemas alienantes e opressores.

Tanto as obras das escritoras que aqui analisamos, como seus personagens
protagonistas e suas trajetórias de vida, nos colocam em contato com sujeitos resistentes
e resilientes que, apesar de todos os reveses, desde os anos 1970 até hoje, continuam a
agir pela liberdade e contra as perseguições e os cerceamentos de caráter políticos e/ou
ideológicos. As obras e as autoras, com suas narrativas, alargam nossos horizontes. Como
diz Ricoeur, “O que liga o discurso poético é, pois, a necessidade de trazer à linguagem
modos de ser que a visão ordinária obscurece ou até reprime.” (RICOEUR, 1999b, p.
107).

Referências bibliográficas

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FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. de Lígia M. Pondé


Vassallo. Petrópolis: Vozes, 1987.

1332
MATSUDA, A. A. & FERREIRA, E. A. G. R. A representação discursiva da Ditadura
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Maringá, v. 37, n. 3, p. 275-285, July-Sept., 2015.

MORAIS, J. O. A literatura infantil como instrumento de denúncia da ditadura militar


(Dissertação de Mestrado não publicada), Universidade Estadual da Paraíba, Campina
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Tropelias & Companhia, 2016.

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<https://dicionario.priberam.org/resili%C3%AAncia>. Acesso em: 05 mai. 2019.

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RICOEUR, P. Historia y narratividad. Paidós: Barcelona, Buenos Aires, México, 1999a.

RICOUER, P. Teoria da Interpretação. O discurso e o excesso de significação. Trad. de


Artur Morão. In GOMES, I. Teoria da Interpretação, de Paul Ricouer. Porto: Porto
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TODOROV, T. Em face do extremo. Trad. de Egon de Oliveira Rangel e Enid Abreu


Dobránszky. Campinas, SP: Papirus, 1995.

VIEIRA, A. Vinte cinco a sete vozes. 3ª ed. Lisboa: Caminho, 2008.

__________ Águas de Verão. 10ª ed. Alfragide: Caminho, 2010.

__________ Chocolate à Chuva. 21ª. ed. Alfragide: Editorial Caminho, 2012.

__________ O Livro da Avó Alice. 3ª. ed. Alfragide: Lua de Papel, 2016.

1333
NOS TEMPOS DO AMOR QUE MATA: A AIDS E O PARADIGMA
IMUNITÁRIO NA OBRA DE CAIO FERNANDO ABREU

Tamara Medeiros de Andrade (UFF)1

Resumo: Nesse trabalho, analisamos parte da obra de Caio Fernando Abreu que aborda a AIDS
tendo em vista o conceito de paradigma imunitário formulado por Roberto Esposito.
Considerando a imunidade como uma espécie de “proteção negativa da vida” (ESPOSITO,
2010), justamente por negar ou reduzir sua força expansiva, observamos de que maneira Caio
Fernando Abreu aborda o contraste entre o aprisionamento dos corpos causado pelos discursos
de preconceito e medo da doença (difundidos pela imprensa e maquiados como ciência), e o
desejo de amar e de afirmar a vida.

Palavras-chave: AIDS; Paradigma Imunitário; Caio Fernando Abreu

Caio Fernando Abreu divulgou ter a síndrome da imunodeficiência adquirida


por meio de uma série de três crônicas publicadas no Estadão entre 21 de agosto e 18 de
setembro de 1994 – as famosas “Cartas para além dos muros”. No início da primeira
carta, ele declara: “Alguma coisa aconteceu comigo. Alguma coisa tão estranha que
ainda não aprendi o jeito de falar claramente sobre ela” (ABREU, 2014d, p. 124). Nas
duas primeiras cartas, o assunto é tratado de forma enigmática; já na terceira, ele
explicitamente relata como recebeu o diagnóstico após voltar doente de uma viagem à
Europa. Em um primeiro momento, reagiu com muita naturalidade. No entanto, “Na
terceira noite, amigos em casa, me sentindo seguro — enlouqueci. Não sei detalhes. Por
autoproteção, talvez, não lembro” (ABREU, 2014d, p. 130). Seu estado de confusão
mental e alucinações o levou ao hospital onde se investigou um possível tumor no
cérebro. Assim, essas crônicas/cartas teriam sido escritas durante essa internação de
Caio no hospital.
É interessante observar que os títulos dos textos pelos quais o autor “saiu do
armário” em relação à doença nos remetem a um conto de sua autoria publicado pela
primeira vez no Suplemento Literário de Minas Gerais em 1971: “Carta para além do
muro”. Nesse conto, o muro para além do qual o narrador-personagem tenta enviar suas
palavras também é o de um hospital, só que, no caso, trata-se de um hospital
psiquiátrico. Tanto no conto quanto nas crônicas, os missivistas se esforçam para
conseguir escrever em um espaço que se destina à cura do paciente, mas que é ao

1
Graduada em Letras (UERJ-FFP), Mestranda em Estudos de Literatura (UFF). Contato:
ttandrad@gmail.com.

1334
mesmo tempo hostil a ele por propiciar tratamentos invasivos, impor regras e limites e
separá-lo do mundo exterior. Esses textos, portanto, têm em comum os muros. Muros de
construções físicas que são os hospitais, mas também muros como limites sociais entre
normais e anormais, entre saudáveis e doentes. Para pensar essas questões relativas à
proteção da vida como objetivo das políticas de saúde, mas que envolvem, por outro
lado, algum tipo de segregação, é importante nos voltarmos ao conceito de biopolítica
na obra de Michel Foucault.
Biopolítica
De acordo com Michel Foucault, o corpo foi, a partir do século XVII, se tornando
cada vez mais o objeto sobre o qual as ações políticas são exercidas. Por um lado, nos
séculos XVII e XVIII desenvolvem-se técnicas disciplinares para a domesticação dos
corpos individuais por meio de sua organização no espaço e por sua colocação em
vigilância. Além disso, essas técnicas visavam ao aumento da força útil dos corpos com
exercícios e treinamento. Por fim, tal poder sobre os corpos poderia ser exercido
“mediante todo um sistema de vigilância, de hierarquias, de inspeções, de escriturações,
de relatórios, toda essa tecnologia que podemos chamar de tecnologia disciplinar do
trabalho” (FOUCAULT, 1999, p. 288).
Por outro lado, uma outra tecnologia de poder surge, não substituindo, mas
utilizando-se das técnicas disciplinares (ou a também chamada anátomo-política do
corpo). Essa tecnologia seria a biopolítica, que não se dirige ao homem como indivíduo,
mas ao homem como espécie, à multiplicidade de homens pensada como “uma massa
global, afetada por processos de conjuntos que são próprios da vida, que são processos
como o nascimento, a morte, a produção, a doença, etc.” (FOUCAULT, 1999, p. 289).
A biopolítica vai lidar com questões biológicas na medida em que essas têm efeito na
gestão da população. A política na modernidade, para Foucault, passa a se basear cada
vez mais no “poder de ‘fazer’ viver e de ‘deixar’ morrer”, lógica inversa ao poder
soberano de “fazer morrer ou deixar viver” (FOUCAULT, 1999, p. 287). A tecnologia
biopolítica é previdenciária, pois tem como objetivo o “equilíbrio global, algo como
uma homeóstase: a segurança do conjunto em relação aos seus perigos internos”
(FOUCAULT, 1999, p. 297).
O paradigma imunitário

1335
O filósofo italiano Roberto Esposito vai contribuir para a discussão sobre
biopolítica, entre outras maneiras, com o conceito de paradigma imunitário. Ele nos
lembra de que imunidade é um vocábulo presente tanto na linguagem biomédica (a
proteção em relação a uma doença infecciosa) quanto na linguagem jurídica (a proteção
em relação aos efeitos de uma lei comum) e conclui: “a imunização alude a uma
situação particular que põe alguém a salvo dos riscos aos quais está exposta toda a
comunidade” (ESPOSITO, 2017, p. 140). Esposito defende que a lógica do poder
soberano não seria de todo contrastante com a biopolítica moderna, mas teriam em
comum o paradigma imunitário. O “fazer morrer” no absolutismo hobbesiano se
justificaria porque, no contrato social, os indivíduos abrem mão de sua liberdade
individual para que um soberano os proteja dos males que poderiam ser causados por
outros indivíduos. E o “fazer viver”, ou seja, a promoção da vida como objetivo da
política moderna, também engloba proteger o indivíduo do que possa ameaçar a sua
vida biológica, seja a violência, sejam as doenças. Esposito considera a imunidade uma
espécie de “proteção negativa da vida” (ESPOSITO, 2010, p. 74), justamente por negar
ou reduzir sua força expansiva.
Para Esposito, o dispositivo imunitário foi se ampliando a ponto de se tornar o
centro da experiência contemporânea. E cita, entre outros exemplos, o quanto a
descoberta da Aids significou em termos de estabelecimento de "normas não somente
higiênico-sanitárias – da experiência individual e coletiva. Nas barreiras, não somente
profiláticas mas socioculturais, que o pesadelo da doença determinou na esfera de todos
os vínculos inter-relacionais” (ESPOSITO, 2017, p. 141).
AIDS: identidade e imunidade
No início da década de 80, a causa da AIDS era desconhecida. Mas a alta
incidência da nova doença entre homossexuais levou os médicos a relacioná-la ao
comportamento de tal grupo. Ao longo do trabalho feito pela comunidade médica para
identificar as causas da epidemia, a ideia de que homossexuais partilhavam de certa
identidade “foi reatualizada e, ainda, em um momento inicial, cientificizada pelo
discurso biomédico: os homossexuais eram solitários, depressivos, dependentes de
drogas estimulantes, ‘promíscuos’ etc” (BESSA, 2002, p. 110). Não que fosse novidade
pensar uma doença como uma marca identitária – a hanseníase (lepra), a tuberculose e o
câncer são alguns exemplos de casos em que algo similar ocorreu. “No entanto, o

1336
diagnóstico da AIDS fez das pessoas (e ainda o faz hoje), quisessem ou não, outras. Há
uma transformação” (BESSA, 2002, p.91). Com o isolamento do vírus e a criação do
teste sanguíneo para identificação da presença de anticorpos para o HIV, a marca
identitária passa a abranger pessoas não-doentes, que poderiam ser soropositivas sem
apresentar sintomas. A dúvida de muitos em fazer ou não o teste ocorre porque saber
estar infectado significa adquirir outra identidade. Contudo, não saber significa não ter
certeza sobre sua identidade. “Assim, a questão do teste, de ter ou não ter, é que ele
poderá mostrar à pessoa que ela é na verdade diferente do que pensava ser (BESSA,
2002, p. 92).
No romance Onde andará Dulce Veiga?, a questão da identidade frente à
epidemia fica evidente. No enredo com ares detetivescos, o narrador-protagonista é um
jornalista que recebe a missão de encontrar Dulce Veiga, uma cantora que fora famosa e
desaparecera em seu auge, nos anos 60. Tal busca se mescla a uma busca por si mesmo,
uma tentativa de compreender seu “eu” diante de seu passado que envolve o seu
possível envolvimento no desaparecimento da cantora nos meandros da ditadura militar.
Se por um lado as investigações sobre Dulce Veiga levam o jornalista a reconstruir suas
memórias sobre essa personagem de seu passado, por outro lado a narrativa vai
lançando luz sobre outro personagem de seu passado mais recente: Pedro. Com Pedro,
descobriu prazeres e sentimentos diferentes dos que havia experimentado com as
mulheres. Na primeira relação sexual dos dois “Eu senti primeiro dor, depois medo,
depois prazer. [...] Mas nojo não, nem desprezo ou vergonha. Só alegria, eu senti com
Pedro. Uma alegria que era o avesso daquela que tinham me treinado para sentir”
(ABREU, 2014a, p. 170). No entanto, um dia Pedro não voltou mais e a alegria do amor
deu lugar ao vazio. “Desde esse dia, perdi meu nome. Perdi o jeito de ser que tivera
antes de Pedro, não encontrei outro” (ABREU, 2014a, p. 171).
Ao longo da narrativa, podemos sentir esse tom do protagonista tateando no
escuro, sem saber nem por onde procurar nem o que procurar na ausência de Pedro. A
tarefa de buscar Dulce Veiga o ocupa ao mesmo tempo que o faz encarar seu doloroso
passado. Suas tarefas no jornal, contudo, incluem também escrever sobre a banda da
filha de Dulce, chamada Márcia. Apesar de deixar claro sua postura crítica a essa
geração punk dark de “adolescentes rebeldes sem causa nem consequência” (ABREU,
2014a, p. 25), ele descobre ter mais em comum com Márcia do que imaginara. A

1337
cantora, cheia de atitudes agressivas e mudanças violentas de humor temperadas com
cocaína, e o repórter vão paulatinamente se entendendo. Em certo momento, Márcia
pergunta se ele seria homossexual. Ele diz não saber e ela compartilha dessa dúvida.
“Eu também não sei direito, às vezes eu, Patrícia, você sabe. Mas é estranho não saber.
Acho que ninguém sabe. Deve ser mais confortável fingir que sim ou que não, você
delimita” (ABREU, 2014a, p. 244).
Mas além dessas questões sobre sexualidade, eles também têm em comum
gânglios inchados: caroços no pescoço, axila, virilha. Ícaro, ex-namorado de Márcia,
morreu em decorrência da AIDS. Algumas semanas após o desaparecimento de Pedro, o
protagonista encontra um cartão-postal explicando o motivo: “‘Não tente me encontrar.
Me esqueça, me perdoe. Acho que estou contaminado, e não quero matar você com meu
amor’. Mas já matou, pensei naquele dia” (ABREU, 2014a, p. 247). Pedro já o teria
matado com seu amor tanto pelo vazio deixado por sua ausência quanto pela
condenação à morte que a infecção pelo HIV representava nos anos 80. Nem o
jornalista nem a roqueira, apesar de sentirem sintomas, têm coragem para fazer o teste e
oficializar tal condenação.
As questões identitárias estão intrinsicamente ligadas à AIDS, especialmente nos
anos de 1980. Revelar estar contaminado pelo HIV significava muitas vezes assumir-se
homossexual. Os doentes ganham um nome, “aidético”, e frequentemente apresentam
uma imagem reconhecível – a cara da morte, como a emblemática capa da Revista Veja
com Cazuza ilustrou e reforçou. Ser ou não ser homossexual. Ser ou não ser “aidético”.
Tais questões são partes importantes ligadas ao desejo do narrador de Dulce Veiga por
reunir seu centro, compreender sua identidade.
AIDS e o clima de perseguição
A lógica imunitária de proteção da vida foi, segundo Roberto Esposito, levada ao
extremo no regime nazista. Isso porque pensou-se a nação alemã como um organismo
que estava sendo ameaçado por existências “degeneradas” – judeus, homossexuais,
deficientes, entre outros. A promoção da forma de vida “superior” da raça ariana vai se
convertendo em destruição da vida, como em uma doença autoimune. O nazismo teria
levado a biopolítica moderna a uma espécie de tanatopolítica. E pode ser considerada
um extremo da biopolítica uma vez que “a transcendência do nazismo é a vida, o sujeito
é a raça e o léxico o da biologia” (ESPOSITO, 2010, p. 161). Não só a política se

1338
orientou pelas pesquisas biomédicas como os próprios médicos participaram ativamente
de práticas tanto de promoção da vida considerada superior quanto da eliminação das
existências consideradas inferiores, ou não-vidas.
Nas crônicas “Duas ou três coisas sobre os anos 80” (1985) e “A mais justa das
saias” (2014d, publicada primeiramente em O Estado de S. Paulo em 1987), Caio
Fernando Abreu compara o clima de desconfiança aos homossexuais em meio à
epidemia de HIV com o regime nazista:

E pouco importa também não saber ao certo de onde veio o vírus maldito. As
hipóteses não atenuam o fato: a coisa existe. E mata. Pior ainda: estimula a
níveis dementes o preconceito contra a mais castigada das minorias. Há
qualquer coisa de nazismo no ar. Qualquer coisa de fogueiras medievais para
queimar os feiticeiros. Lenha é que não falta. (ABREU, 1985, p. 30)

A pseudotolerância conquistada nos últimos anos pelos movimentos de


liberação homossexual desabou num instantinho. Eu já ouvi — e você
certamente também — dezenas de vezes frases tipo “bicha tem mesmo é que
morrer de aids”. Ou propostas para afastar homossexuais da “sociedade
sadia” — em campos de concentração, suponho. Como nos velhos e bons
tempos de Auschwitz? Tudo para o “bem da família”, porque afinal — e eles
adoram esse argumento — “o que será do futuro de nossas pobres
criancinhas?” (ABREU, 2014d, p. 66)

Na formação de tal atmosfera de medo em torno da AIDS, o discurso


jornalístico exerceu um grande papel. Marcelo Bessa aponta que as notícias sobre a
doença chegaram antes ao Brasil do que o diagnóstico dos primeiros casos no país: o
Jornal do Brasil publicou “a primeira reportagem jornalística brasileira sobre o ‘câncer
homossexual’” (BESSA, 2002, p. 22) em 3 de agosto de 1981, um mês após a primeira
reportagem norte-americana publicada no New York Times em 3 de julho de 1981. Se
por um lado as reportagens eram carregadas de preconceitos e julgamentos morais, por
outro lado contribuíram para a rápida divulgação do que estava sendo feito ao redor do
mundo em relação a pesquisas e tratamentos, servindo “como uma paraliteratura
médica” (BESSA, 2002, p. 54).
Misturados a relevantes informações científicas, vinham elementos folhetinescos
e carregadas tintas de sensacionalismo. Além disso, as reportagens sobre a AIDS eram
publicadas em seções relacionadas a ciência, saúde e medicina, mesmo quando o
conteúdo estava mais próximo de comportamento ou sociedade, como se isso “desse
mais credibilidade ao texto, conferindo-lhes uma aura, digamos, mais científica, e,
assim, mais neutra e analítica” (BESSA, 2002, p. 31). Dessa forma, o preconceito aos

1339
homossexuais acabava sendo naturalizado e até mesmo cientificizado. Processo não
completamente diverso daquele pelo qual se justificou cientificamente a inferioridade
biológica de alguns grupos no discurso nazista.
Em reportagem da revista Veja de 14 de julho de 1982, é colocada como possível
causa da então chamada praga gay “a ‘promiscuidade’ dos homossexuais que levaria a
um desgaste imunológico” (BESSA, 2002, p. 30). É possível observar como o discurso
mescla aspectos comportamentais e biológicos de forma parecida com o discurso
nazista de degeneração da raça. Em outra reportagem, agora da revista IstoÉ de 6 de
abril de 1983, a AIDS é caracterizada “como algo estritamente do estrangeiro e de
homossexuais, embora acene com a possibilidade de, em um futuro próximo, ‘produzir
vítimas’ entre os heterossexuais” (BESSA, 2002, p. 30). No discurso jornalístico sobre
o HIV ao longo dos anos 80, segue-se alimentando a ideia do outro como perigoso e da
necessidade de imunizar-se ao se afastar desse outro e desse comportamento
“degenerado”. Ideias que acabam por tornar a AIDS mais do que uma doença física,
mas também “uma epidemia de pânico, preconceito, intolerância, afastamento e
isolamento” (BESSA, 2002, p.117), o que Caio Fernando vai chamar de “AIDS
psicológica”:

Heteros ou homos (?) a médio prazo iremos todos enlouquecer, se passarmos


a ver no outro uma possibilidade de morte. Tem muita gente contaminada
pela mais grave manifestação do vírus — a aids psicológica. Do corpo, você
sabe, tomados certos cuidados, o vírus pode ser mantido a distância. E da
mente? Porque uma vez instalado lá, o HTLV-32 não vai acabar com as suas
defesas imunológicas, mas com suas emoções, seu gosto de viver, seu
sorriso, sua capacidade de encantar-se. Sem isso, não tem graça viver,
concorda? (ABREU, 2014d, p. 67)

Caio refere-se a esse mundo de isolamento paranoico utilizando a metáfora


“mundo de zumbis” (ABREU, 2014d, p. 67). Para o autor, portanto, um sujeito que abre
mão de explorar as potencialidades da vida se isolando com o intuito de se proteger dos
perigos acaba por se tornar uma existência não-viva. Contudo, se por um lado Caio
Fernando Abreu pensa o zumbi como o sujeito que tem medo de viver, por outro lado o
infectado foi justamente aquele mais comumente considerado um não-vivo, sofrendo
uma espécie de “morte civil, ou seja, a morte ainda em vida, pelo preconceito e
discriminação” (BESSA, 2002, p. 75).

2
HTLV-3 foi uma das denominações que o vírus causador da AIDS recebeu antes de ser chamado HIV.

1340
Afirmar a vida em face da doença
A escrita de Caio Fernando sobre a AIDS frequentemente levanta temas
decorrentes da proteção negativa dentro do paradigma imunitário, como o já citado tom
de solidão e isolamento. Podemos observar também o clima de medo da infecção, e
consequentemente, medo da morte. Em “Dama da noite”, a narradora-protagonista diz a
um interlocutor bem mais jovem do que ela: “Já nasceu de camisinha em punho,
morrendo de medo de pegar aids. Vírus que mata, neguinho, vírus do amor. Deu a
bundinha, comeu cuzinho, pronto: paranoia total.” (ABREU, 2014c, p. 130). Além
disso, temos os questionamentos em relação à própria identidade, uma vez que ser
soropositivo torna-se uma marca identitária daqueles de quem a sociedade tenta se
proteger. Esse seria justamente um dos fatores envolvidos na fragmentação da
identidade do protagonista de Onde andará Dulce Veiga?, pois sabe que seu ex-amante
está contaminado, embora não tenha certeza se ele próprio está ou não.
Todavia, há elementos em sua obra que apontam para a afirmação das
potencialidades da vida, subvertendo o paradigma imunitário. Marcelo Secron Bessa
aponta que o tom melancólico e pessimista na escrita de Caio sobre a doença teria se
atenuado após a descoberta de sua soropositividade, e sua obra teria se tornando mais
“positiva”. Entretanto, Bessa identifica o início dessa guinada positiva em Onde andará
Dulce Veiga?, publicado cinco anos antes do diagnóstico. O protagonista do romance,
após encontrar a cantora desaparecida, volta para casa com um presente de Dulce: um
gato filhote chamado Cazuza, que “dormia, parecia confiante em nosso futuro. Eu, nem
tanto” (ABREU, 2014b, p. 303). No momento em que está indo embora, ouve Dulce
gritar algo: “Parecia meu nome. Bonito, era meu nome. E eu comecei a cantar”
(ABREU, 2014b, p. 305). Apesar da dúvida, a referência ao cantor que afirmava a vida
diante da cara da morte. E a retomada da capacidade de cantar, algo que, no início do
romance, afirmara ter desaprendido.
Roberto Esposito, comentando o pensamento de Gilbert Simondon sobre o
nascimento, vida e morte, afirma: “A única maneira, para a vida, de diferir a morte não
é conservar-se tal, eventualmente sob a forma imunitária da protecção negativa, mas sim
renascer continuamente sob diferentes formas” (ESPOSITO, 2010, p. 256). De certa
maneira, o processo de se descobrir soropositivo implicaria em uma espécie de
renascimento: não o encarar a morte, mas de viver uma nova vida. De construir novas

1341
formas de viver, elaborar novas normas de vida. Para Esposito, “a negatividade da
doença – e muito mais da morte – não está na modificação de uma sua norma originária,
como queria a teoria degenerativa. Está, pelo contrário, na incapacidade por parte do
organismo de a modificar” (ESPOSITO, 2010, p. 268). Ou seja, o organismo saudável
seria aquele capaz de se modificar tendo em vista as novas condições trazidas por uma
doença.
Além dessa busca por novas formas de vida, outro aspecto da obra de Caio
Fernando Abreu que vai de encontro ao paradigma imunitário estaria na concepção de
indivíduo não como algo definido, mas que vai se construindo nas relações de afeto
entre os outros e o mundo. Caio vai contribuir para a formação de imagens diversas
àquelas do discurso construído e massificado em torno do indivíduo homossexual e
soropositivo buscando o que há de comum aos seres humanos em geral, até aos animais
e coisas. Em “Linda, uma história horrível” (2014c), estabelece-se um tenso diálogo,
cheio de silêncios e não-ditos, entre uma mãe idosa e seu filho que tenta sem sucesso
contar a ela que, como podemos deduzir por diversos indícios presentes no texto, está
com AIDS. Em torno desse episódio, é formado um paralelo entre os sinais da doença
do filho, da idade avançada da mãe e da cadela, e do estado decadente da casa antiga.
Completamente diferente dos depoimentos veiculados na imprensa destacando a
tragédia dos doentes condenados, o comum ao humano e ao animal: a passagem do
tempo, a doença, a morte.

Referências

ABREU, Caio Fernando. Caio Fernando Abreu: o essencial da década de 1970. 2 ed.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014a.

ABREU, Caio Fernando. Onde andará Dulce Veiga?: um romance B. 4 ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2014b. 1. ed. 1990.

ABREU, Caio Fernando. Os dragões não conhecem o paraíso. 4 ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2014c. 1. ed. 1988.

ABREU, Caio Fernando. Pequenas epifanias. 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2014d. 1. ed. 1996.

BESSA, Marcelo Secron. Os perigosos: autobiografias e AIDS. Rio de Janeiro:


Aeroplano, 2002.

1342
ESPOSITO, Roberto. Bios: biopolítica e filosofia. Lisboa: Edições 70, 2010.

ESPOSITO, Roberto. Termos da política: comunidade, imunidade, biopolítica.


Curitiba: UFPR, 2017.

FOULCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

1343
OS TIPOS IDEAIS, EM ERNEST GELLNER,
E A SÍNTESE, EM PAULO LEMINSKI

Rafael Fava Belúzio (UFMG)1

Resumo: A presente comunicação pretende estudar as noções de tipos ideias, em Ernest Gellner,
a partir da obra Pós-modernismo, razão e religião (1990), e de síntese, na obra geral de Paulo
Leminski, sobretudo a partir de poemas, cartas, ensaios e biografias. Assim, considerando os
esboços dessas visões de mundo e dos atritos entre elas, será possível compreender melhor os
pensamentos gellneriano e leminskiano, além de mostrar algumas afinidades de ambos os autores
com o pensamento liberal.
Palavras-chave: Ernest Gellner; Paulo Leminski; literatura e política; Abralic

José Guilherme Merquior, em um artigo publicado no Jornal do Brasil, caracteriza


seu orientador de doutorado, Ernest Gellner, utilizando três termos: “é um filósofo
bastante estranho. Para começar, doublé de sociólogo e antropólogo” (MERQUIOR,
1983, p. 78). De fato, o professor da London School of Economics realiza trabalhos nas
três áreas, aproximando ainda de outras, como a Ciência Política e a História. Esse
conjunto é, não raro, utilizado por Gellner para realizar o que Merquior chama de
“aumentar nossa inteligência sobre a realidade social” (MERQUIOR, 1983, p. 83). Nessa
empreitada, o estudioso judeu, nascido na França e naturalizado britânico procura se
posicionar a partir de tradições como o empirismo, além de se não se aliar ao marxismo
e ao relativismo.
Em Pós-modernismo, razão e religião, lançado na década de 1990, Ernest Gellner
expressa, muitas vezes com ironia, as suas aproximações teóricas e os seus afastamentos;
logo no prefácio, se posiciona como “um adepto intelectual do cepticismo iluminista”
(GELLNER, 1994, p. 7). O texto gellneriano, ainda levando em conta o que o autor
explica no prefácio, “constituiria metade de um volume mais alargado, escrito em
colaboração com o Professor Akbar Ahmed, muçulmano crente e praticante fervoroso”
(GELLNER, 1994, p. 7). No entanto, ao “receberem os textos, os editores resolveram
publicá-los em separado” (GELLNER, 1994, p. 8), embora Gellner pondere que a escrita
“seria certamente diferente se (...) tivesse tido conhecimento de que estava a escrever um
livro e não metade de um livro” (GELLNER, 1994, p. 8).

1
Graduado em Letras (UFV). Mestre e Doutor em Estudos Literários (UFMG). Contato:
favabeluzio@yahoo.com.br

1344
Nessa obra, o autor procura analisar o mundo contemporâneo a partir de “três
posições fundamentais” (GELLNER, 1994, p. 7): o relativismo pós-moderno, o
racionalismo iluminista e o fundamentalismo religioso. As três visões de mundo
colocadas por Gellner não são apenas históricas (no sentido da progressão religião/pré-
moderna, razão/moderna, relativismo/pós-moderna), mas se sobrepõem, hoje, “cada uma
delas expressa uma opção essencial do espírito humano, ao considerar o mundo tal como
este se apresenta actualmente” (GELLNER, 1994, p. 12). Em uma das faces do triângulo,
(a) a religião, algo de certo modo anterior à modernidade; (b) a valorização de um Estado,
por vezes nacional, forte e não secularizado; (c) um posicionamento político tratado como
direita; (d) o apreço pelo espaço absolutamente privado; (e) a fé em uma doutrina, a
crença em algo difícil de acreditar, algo baseada na Mensagem divina, sendo a Mensagem
ao mesmo tempo de fé e moral, bem como a importância dada ao culto aos santos e ao
êxtase místico; (f) a celebração da comunidade, ou, para usar os termos da Revolução
Francesa, a fraternidade. Em outra face do mesmo triângulo, (a’) a razão, próxima da
ideia de modernidade; (b’) o indivíduo é forte e valorizado; (c’) um posicionamento
político liberal, portanto, nem direita, nem esquerda, o que muitas vezes causa certa
dificuldade de compreensão; (d’) o desejo de um espaço simultaneamente público e
privado, certa convivência híbrida, com diferentes possibilidades de se organizar; (e’) a
fé cede lugar para a razão, e a religião para a ciência, sendo que a busca não é a do êxtase
místico, mas a da verdade científica; (f’) a universalidade dos direitos, ou, pensando em
relação aos três princípios da Revolução, a liberdade. Nesse lado do triângulo está Ernest
Gellner, o que explica a postura muitas vezes irônica do autor em relação aos outros dois
lados. Talvez a face que mais sofra essas ironias seja a terceira, (a’’) o relativismo, visto
como ligado à noção de pós-modernidade; (b’’) a valorização de tendências localistas e
secularizadas, bem como a recusa de tendências teocráticas; (c’’) um posicionamento
político tratado como esquerda; (d’’) o apreço pelo espaço absolutamente público; (e’’)
contrariando as três fases da teleologia de Augusto Comte, Ernest Gellner não coloca a
filosofia como algo anterior ao moderno, mas posterior a ele, especialmente certa
linhagem filosófica relativista; (f’’) a busca pela igualdade, para completar, assim as três
máximas de La Boétie.
Se por um lado esse modelo de elaboração de tipos ideias cai, determinadas vezes,
em reducionismos, por abstrair demais as realidades na procura de uma estrutura

1345
excessivamente coesa; por outro, não flerta com a ilusão relativista, segundo a qual a
variabilidade do mundo é tão grande a ponto de não se poder depreender dele, por
abstrações, uma compreensão capaz de reunir questões que são aparentemente muito
diversas. Assim, buscando um tipo ideal – mas sabendo que ele é em si um objeto mais
ou menos forjado e incapaz de dar conta, em estrito, da multiplicidade da vida – e visando
à compreensão da sociedade contemporânea, Ernest Gellner está profundamente
influenciado por Max Weber, autor muitas vezes citado em Pós-modernismo, razão e
religião.
Em seus estudos Sobre a teoria das ciências sociais, Weber reflete sobre o conceito
de tipo ideal, chamando a atenção para o fato de corresponder a uma abstração consciente,
artificialmente planejada, elaborada com o objetivo de formar um quadro homogêneo de
pensamento para a compreensão de determinado objeto.

Obtém-se um tipo ideal mediante a acentuação unilateral de um ou vários


pontos de vista, e mediante o encadeamento de grande quantidade de
fenômenos isolados dados, difusos ou discretos, que se podem dar em maior
ou menor número ou mesmo faltar por completo, e que se ordenam segundo
pontos de vista unilateralmente acentuados, a fim de se formar um quadro
homogêneo de pensamento (WEBER, 1991, p. 106).

A acentuação unilateral dos pontos de vista, marca Weber, é operada por um sujeito,
tornando o tipo ideal sempre uma elaboração, de caráter utópico, produzida,
racionalmente, por uma subjetividade. Não se trata de reproduzir ou refletir a realidade
tal como ela é em si mesma, na sua multifacetação; na verdade, o que se busca é um tipo
puro, mesmo sabendo, a prioristicamente, o fato de esse tipo ser, em maior ou menor
medida, uma miragem aspirada, uma construção propositadamente homogeneizada,
utópica, portanto. A aplicabilidade desse modo de operar um estudo social Max Weber
demonstra em seu clássico A ética protestante e o espírito do capitalismo. Nessa obra, o
pensador parte de uma primeira caracterização do que entende como o espírito do
capitalismo – sendo que ao longo da mesma pesquisa vai elaborando e reelaborando esse
conceito – até demonstrar, em definitivo, a relação capital/protestantismo na formação de
uma sociedade racionalizada, desencantada, secularizada. Estaria, justamente, nesse
ponto nevrálgico a explicação do mundo moderno para Weber, consideração levada em

1346
conta por Ernest Gellner 2. Ao elaborar os seus três tipos ideias, este caracteriza, em muitos
momentos, o moderno a partir das reflexões de Weber sobre o homem desencantado.
Além disso, o próprio orientador de José Guilherme Merquior se coloca nesse lado do
triângulo.
Para além desse modelo tecido a partir de reflexões gellnerianas, gostaria de pensar
aqui, nessa breve comunicação, alguns posicionamentos assumidos por Paulo Leminski,
escritor brasileiro que nasce no final da Segunda Guerra Mundial e morre no ano da queda
do Muro de Berlim. Um sujeito, portanto, anterior às configurações políticas
vislumbradas no triângulo pós-Guerra Fria desenvolvido por Ernest Gellner; todavia, de
certo modo, os três tipos ideais configurados em Pós-modernismo, razão e religião
ajudam a compreender melhor a diversidade de posturas do escritor brasileiro e ampliar
um pouco o modo de observar sua trajetória literária. Digo ampliar pois, desenvolvendo
uma criação estética em profundo diálogo com as marchas e contramarchas da sociedade
pós-1968, o poeta elabora, ao longo de suas múltiplas produções, uma escrita
caracterizada, por ele e por seus estudiosos, como sintética, embora haja, da parte de certo
conjunto de leitores, uma interpretação de que se trata de poeta vinculado, quase em
restrito, ao legado marxista. Assim, passo a mostrar como há elementos, na literatura
leminskiana, um tanto próximos de cada um dos pontos que caracterizam o triângulo de
Ernest Gellner 3.
Começo por uma das três faces, aquela que se aproxima da religião e da fé e de
alguma doutrina baseada na Mensagem divina. Nesse particular, cabe a memória de que
o escritor de Fogo e água na terra dos deuses e de Metaformose, muito interessado em
diversas culturas religiosas, é, durante um ano, seminarista da Ordem de São Bento,
escreve a biografia Jesus a. C., e até mesmo o poema a seguir, chamado “sacro lavoro”.
Os versos estão localizados em O ex-estranho:

2
Cf. p. ex., GELLNER, 1992, p. 116.
3
Minha comunicação de algum modo leva adiante reflexões já apresentadas na tese Quatro clics em Paulo
Leminski, defendida, em janeiro de 2019, no Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, da
Universidade Federal de Minas Gerais. Os pontos relativos à recepção crítica do autor constam, por
exemplo, no subcapítulo “Abordagens da síntese lírica leminskiana pela crítica literária”.

1347
as mãos que escrevem isto
um dia iam ser de sacerdote
transformando o pão e o vinho forte
na carne e sangue de cristo

hoje transformam palavras


num misto entre o óbvio e o nunca visto (LEMINSKI, 2013, p. 342)

Transformando palavras entre a realidade concreta, o óbvio, e o nunca visto, talvez certo
elemento metafísico, Paulo Leminski ajuda a dimensionar, ao mesmo tempo, a sua
posição eclética e a sua relação com o dado religioso. O ex-oblato beneditino não abre
por completo mão do que seria transcendente, e sim realiza desleituras da poética cristã:
de certa forma, o modo de Leminski ser um sendo vários é análoga e uma maneira de em
seu talento individual se relacionar com a tradição judaico-cristã, ou, mais
especificamente, com a personagem trinitária de Deus, este que é três sendo um. Ademais,
nessa tensão, entre muitos e um, há também a dimensão nacionalista do escritor que, em
inúmeros momentos, se declara ligado a diversas etnias, como a branca, vinda de
migrantes poloneses, e a africana e a indígena, vindas também de seus antepassados, além
de se interessar por fluxos populacionais e culturais, feito os japoneses assimilados pelo
haicai tropical desse curitibano cosmopolita. Por vezes religioso e nacionalista, Leminski
pode ser aproximado, portanto, da direita. O que, aliás, ocorre nas celebrações que faz da
Fraternidade, isto é, de um pequeno grupo dos melhores e distante da ideia de igualdade
universal. Lembro, metonimicamente, uma carta enviada a Régis Bonvicino, datada da
seguinte forma zodiacal: “28/leão/77”. Nessa epístola que internaliza o signo, o poeta
afirma: “às vezes penso que as melhores inteligências como as nossas são / você riso
caetano gil alice waly duda pedrinho sebastião” (LEMINSKI, 1999, p. 48) e alguns
etcéteras em decadências. Pressupondo haver “as melhores inteligências” e as segregando
do resto da população, cria uma comunidade privada e impede que sua visão de mundo
seja apenas de esquerda, como por vezes deseja certa linhagem da crítica brasileira.
Mas nem só de religião vive o escritor. A razão é uma asa que o leva e o aproxima
da ideia de modernidade. Nesse sentido, destaco a autoconsciência criadora existente na
poética do vencedor distraído. De certa maneira, Paulo Leminski se insere em um legado
de escritores modernos que problematizam em seus versos o fazer poético. Essa lucidez
é expressa, p. ex., no poema “contranarciso”, o qual afirma em sua primeira estrofe:

1348
em mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente
centenas (LEMINSKI, 2013, p. 32)

Apresentando uma tensão entre unidade e multiplicidade, entre o individual e o universal,


em si o eu-lírico vê outros, e outros, e outros, não sendo ocasional a tripla utilização da
mesma palavra. Nesses versos escritos no final do século XX chegam influências pré-
modernas como A Trindade, de Santo Agostinho, e a Bíblia; mas também a consciência
moderna do eu fragmentado, esse mesmo eu que é uma forma de levar adiante, entre a
continuidade e a ruptura, o problema da identidade trinitária divina. O eu cindido
leminskiano é autoconsciente como também são as personas líricas de Álvares de
Azevedo, o binômico; Augusto dos Anjos, o filho do carbono e do amoníaco; Mário de
Andrade, que é trezentos, trezentos e cinquenta; Drummond, que possui sete faces;
Ferreira Gullar, que está entre todo mundo e o fundo sem fundo. Leminski continua essa
linhagem de escritores que problematizam, racionalmente, isto é, modernamente, em seus
versos, a sua autoconsciente condição de existência. Cabe recordar ainda, operando nesse
vértice do triângulo gellneriano, a importância que a liberdade assume na poética de Paulo
Leminski. Voltando à carta escrita em 1977, em plenos mandos e desmandos do ditador
Geisel, o poeta comunista liberal tece uma espécie de evocação religiosa: “que a estátua
da liberdade / e a estátua do rigor / velem por todos nós”. Agora sob o signo do
monumento norte-americano, valorizando escolhas individuais, o poeta sabe que o seu
verso livre é uma influência direta das conquistas versíficas de Walt Whitman, como se
pode notar no texto “Folhas de relva forever”, escrito pelo autor novecentista brasileiro
em homenagem ao oitocentista estadunidense 4.
Por fim, completando o triângulo, o relativismo, aproximado por Gellner da pós-
modernidade, e contemplado por Leminski em sua poética multifacetada. Desde já, salta
aos olhos a percepção de que a obra do polilíngue paroquiano cósmico é capaz de ser
observada de diversas maneiras, dependendo, relativamente, do ângulo pelo qual é
analisada. Além do nacionalismo e do universalismo, noto aqui o localismo do escritor

4
Cf. LEMINSKI, 2012. p. 272-277. As alusões aos poetas feitas nesse parágrafo estão em conformidade
com o trabalho Quatro clics em Paulo Leminski.

1349
curitibano. A sua cidade, a propósito, é uma tópica que perpassa várias obras, entre elas
o poema “curitibas”, de la vie en close:

Conheço essa cidade


como a palma da minha pica.
Sei onde o palácio,
sei onde a fonte fica.

Só não sei da saudade


a fina flor que fabrica.
Ser, eu sei. Quem sabe,
esta cidade me significa. (LEMINSKI, 2013, p. 250)

Entre possíveis outras interpretações, ressalto que o eu-lírico se vê expresso pela sua
localidade. Ele a conhece como conhece as partes mais íntimas de seu físico, chegando
mesmo a confundir o espaço urbano e o corpo humano. O eu de um sujeito marcado
também por seus posicionamentos políticos de esquerda. Não por acaso ele escreveu uma
biografia de Trótsky. Na já mencionada “Carta 9”, enviada a Régis Bonvicino e já
pontuada aqui, o epistoleiro dos pinheirais sentencia: “o que interessa/ o que a gente quer,
no fundo, é MUDAR A VIDA / alterar as relações de propriedade a distribuição as
riquezas / os equilíbrios de poder entre classe e classe nação e nação”.
Como se pode notar, ao falar do escritor sintético a dificuldade é justamente realizar
uma apresentação sintética, perpassando, com a rapidez inevitável nessa comunicação, os
três tipos puros weberianos ideias de Ernest Gellner. Mas caminhando para o final, lembro
que Paulo Leminski, em um poema sobre Brasília, presente no livro Distraídos
venceremos, se demonstra confortável em não estar engavetado em estruturas típicas, com
as quadras e os esquadros, preferindo a sua liberdade clandestina. Agora, aqui na capital
federal, é oportuno retomar o poema “claro calar sobre uma cidade sem ruínas”, voltado
para a cidade de Niemeyer, e imaginar que o poeta, como se confundisse os pilotis de um
edifício lírico-político, se coloca em um lugar em que coexistam os três vértices do
triângulo gellneriano. Cito Leminski:

Em Brasília, admirei.
O pequeno restaurante clandestino,
Criminoso por estar
fora da quadra permitida (LEMINSKI, 2013, p. 192)

1350
Referências

BELÚZIO, Rafael Fava. Quatro clics em Paulo Leminski. 2019. Tese (Doutorado) –
Universidade Federal de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Estudos
Literários. Belo Horizonte, MG: 2019.

BÍBLIA de Jerusalém. 6. ed. São Paulo, SP: Paulinas, 2010.

FOGO e água na terra dos deuses: Salmo ao Sol, Hino ao Nilo. Tradução e posfácios de
Paulo Leminski. São Paulo, SP: Expressão, 1987.

GELLNER, Ernest. Pós-Modernismo, razão e religião. Tradução de Susana Sousa e


Silva. Lisboa, Portugal: Instituto Piaget, 1994.

LEMINSKI, Paulo. La vie em close. São Paulo, SP: Brasiliense, 1991.

_____. O ex-estranho. Organizado por Alice Ruiz S. e Áurea Leminski. Curitiba, PR:
Fundação Cultural de Curitiba; São Paulo, SP: Iluminuras, 1996.

_____. Metaformose: Uma viagem pelo imaginário grego. São Paulo, SP: Iluminuras,
1998.

_____. Envie meu dicionário: cartas e alguma crítica – Paulo Leminski e Régis
Bonvicino. Organizado por Régis Bonvicino, com a colaboração de Tarso M. de Melo.
São Paulo, SP: Editora 34, 1999.

_____. Ensaios e anseios crípticos. 2. ed. amp. 2. impressão. Campinas, SP: Unicamp,
2012.

_____. Toda poesia. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2013.

_____. Vida: Cruz e Sousa, Bashô, Jesus e Trótski: 4 biografias. São Paulo, SP:
Companhia das Letras, 2013

MERQUIOR, José Guilherme. O argumento liberal. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira,
1983.

SANTO AGOSTINHO. A trindade. 7. ed. São Paulo, SP: Paulus, 2014.

WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Tradução de Irene


Szmerecsányi e Tamás Szmerecsánui. São Paulo, SP: Pioneira/UnB, 1921.

_____. Sobre a teoria das ciências sociais. Tradução de Rubens Eduardo Frias. São
Paulo: Moraes, 1991.

1351



REFLEXÕES SOBRE CRÍTICA TEXTUAL EM TEMPOS SOMBRIOS

Ceila Maria Ferreira (Labec-UFF)1

Resumo: A partir de considerações desenvolvidas em nossa prática docente na Graduação, na


Pós-Graduação Lato e Stricto Sensu e na coordenação geral do Laboratório de Ecdótica, na
Universidade Federal Fluminense, assim como por meio de observações e de leituras realizadas
no processo de preparação, ainda em curso, das edições críticas de Papéis Avulsos, coletânea de
contos de Machado de Assis, publicada pela primeira e última vez em vida de seu autor em
1882, e das narrativas de viagem de Eça de Queirós, escritas em 1869-1870, iremos tecer
algumas considerações sobre a relação entre Crítica Textual, Estudos de Literatura e História.
Palavras-chave: Crítica Textual; Literatura; História.

Vivemos num tempo com muitos pontos de contato com o que Hannah Arendt
chamou de sombrios. Tempos em que a extrema-direita cresce em nosso país e em
outras partes do mundo. Em que a intolerância e o ódio às diferenças estão cada vez
mais acirrados. Em que os direitos trabalhistas e a previdência social estão sendo
destroçados, assim como a Educação e a Saúde Públicas são dura e ferozmente
atacadas. A necropolítica, no sentido dado a esse termo por Achille Mbembe e
empregado pela deputada estadual Renata Souza, estende cada vez mais suas garras.
Parece que a humanidade não aprendeu nada ou quase nada depois de tantas guerras, de
tantos massacres e destruições. O ser humano ainda é o lobo do ser humano. Milhares e
milhares de pessoas permanecem na ignorância e se deixam dominar por falsas notícias
transvestidas de verdades mais do que verdadeiras e imparciais divulgadas por uma
mídia financiada por interesses privados. E o que, nós, que trabalhamos com Crítica
Textual, podemos fazer, quando escolhemos o caminho da resistência e da contribuição
de uma forma de construímos possibilidades de ultrapassarmos esses tempos sombrios?
Para respondermos a esta pergunta, é interessante e mesmo fundamental
lembrarmos aqui das palavras de Antonio Candido em o Direito à Literatura. Diz o
saudoso Professor da USP a respeito do assunto a que se dedicou durante toda a vida, a
Literatura:


1
Pesquisadora 2 do CNPq. Professora de Crítica Textual do GCL-UFF. Coordena o Laboratório de
Ecdótica da UFF. É escritora membro do Mulherio das Letras Rio. Mantém o blog Crítica & Arte. E-
mail: ceilamaria@hotmail.com.

1352



[...] pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos
organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza. Negar a fruição da
literatura é mutilar a nossa humanidade. Em segundo lugar, a literatura pode
ser um instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as
situações de restrição de direitos, ou de negação deles, como a miséria, a
servidão, a mutilação espiritual. Tanto num nível quanto no outro ela tem
muito a ver com a luta pelos direitos humanos. (CANDIDO, p 186).

E por que buscamos uma citação a respeito da Literatura? Por que quem trabalha
com Crítica Textual geralmente trabalha com Literatura e com o estudo do processo de
gênese, transmissão, interpretação e recepção de obras literárias. A literatura, para ser
divulgada, é preciso que seja lida, recitada, dita, cantada, escrita etc. No caso, o das
formas escritas, é necessário que elas sejam transmitidas por edições manuscritas,
impressas, eletrônicas.
Uma das ciências que estuda a gênese, transmissão, interpretação e recepção da
Literatura, além de ter desenvolvido e de desenvolver metodologias de edição, de
interpretação e de estudo crítico da Literatura é a Crítica Textual, também conhecida
pelo nome de Filologia, para alguns ou algumas, entendida num sentido restrito, mas
para quem escreve estas linhas, num sentido amplo, pois a Filologia tem, como afirma
Fernando Lázaro Carreter, (LÁZARO CARRETER, 1984, p. 187) seu foco no estudo
de texto e não no da língua. E o estudo do texto numa forma que engloba várias
vertentes de estudos – culturais, históricos, literários, linguísticos - pois, para nós, uma
das definições possíveis de Crítica Textual é a ciência e a técnica que estuda e que
trabalha com a transmissão de textos e a restituição desses textos a uma representação
da última redação autoral ou da que mais se aproxima de uma redação autoral ou da que
for objeto de estudo da pesquisa em andamento. Além disso, estuda a materialidade
desses textos, as etapas do processo de construção e de gênese desses textos e os
aproxima, por meio de interpretações e de comentários, ao público leitor de hoje, além
de estudar também sua recepção. Lembramos também aqui a definição dada por César
Nardelli Cambraia para Filologia, na página 18, da Introdução à Crítica Textual,
como “estudo global de um texto” “[…] ou seja, a exploração exaustiva e conjunta dos
mais variados aspectos de um texto: linguístico, literário, crítico-textual, sócio-histórico,
etc.” (CAMBRAIA, 2005, p. 18).
A Crítica Textual, entendida como Filologia, foi introduzida, na UFF, como
disciplina obrigatória de todos os cursos de Letras, por iniciativa de Maximiano de

1353



Carvalho e Silva, Professor Emérito daquela Instituição de Ensino Superior, inclusive
com o nome de Filologia Portuguesa. Mais tarde, é que tal disciplina recebeu o nome de
Crítica Textual e, depois, recebeu o de Crítica Textual/Ecdótica I.
O Professor Maximiano não deixa de alertar, em Crítica Textual –Objeto –
Finalidade – Disciplina, para o grave problema terminológico que ainda acompanha
essa disciplina. Contudo, ela é indispensável para todos e todas que estudam, com bases
científicas, textos, pois como não cansamos de dizer, em nossas aulas de Crítica
Textual, no Instituto de Letras da UFF, à medida que os textos são publicados, eles são
modificados. 2 E é no Instituto de Letras da UFF, mais especificamente, no Laboratório
de Ecdótica, Labec-UFF, que estamos desenvolvendo as pesquisas acadêmicas a que
estamos nos dedicando atualmente. Tais estudos se propõem a contribuir para o resgate
de textos e de leituras que foram silenciadas, inclusive, pelo uso de teorias e de
metodologias de estudos literários que não levavam em conta o estudo da história da
transmissão de textos, assim como a importância do conceito de historicidade para os
estudos literários e o exame da materialidade textual para a formação de sentidos.
Segundo Rosa Borges e Arivaldo Sacramento Souza, Professores da UFBA:

É precisamente “contra a abstração dos textos”, perspectiva adotada por


quase todas as abordagens de crítica literária do séc. XX e do começo deste,
que se vê a relevância da crítica filológica. Nela, não se faz a oposição
binária entre texto físico/material versus texto abstrato; afinal, como aponta
Chartier, quando um “mesmo texto” muda de suporte, não há apenas um
simples transposição de uma massa textual, e sim a recriação de outras
coordenadas histórico-culturais que indicam outros sentidos. [...]
(BORGES/SOUZA, 2012, p. 54).

Não me canso de citar esse trecho de Edição de Texto e Crítica Filológica, pois
ele explicita muito bem a questão que acabamos de mencionar mais acima: a de que a
materialidade também contribui para a formação de sentido dos textos.
Como dissemos no resumo deste trabalho, a Filologia/Crítica Textual não
promove o divórcio entre texto material e texto abstrato. Além disso, a Filologia/Crítica
Textual trabalha com o conceito de historicidade, como salientou Marc Bloch, em
Apologia da História: “[...] dificilmente imagina-se uma ciência, qualquer que seja,
possa abstrair do tempo.” (2001, p. 55). E, como nascemos e vivemos na América
Latina, e também por ser, quem escreve estas linhas, mulher é, a meu ver, necessário a

2
Não vamos entrar, neste trabalho, na discussão sobre o conceito de ciência para as áreas Humanas.

1354



construção de uma perspectiva crítica, que, muitas vezes, nos é dificultada, às vezes, nos
é facilitada sua construção. Explico. Dificultada, pois estamos, segundo o olhar
eurocêntrico e o olhar estadunidense, na periferia do mundo, o que vai também
contribuir para que nos entendamos a partir de um olhar que nos toma como excluídos.
Facilitada, pois tal exclusão, vai também nos impelir a trilharmos caminhos para a
construção de uma perspectiva crítica. Contudo, pelo que podemos perceber do exame
da conjuntura atual brasileira, como também da leitura de obras como A elite do atraso,
de Jessé Souza, a transmissão de informação no Brasil é bastante problemática e muito
centralizada por uma parte da mídia ligada a interesses privados e financeiros, com
roupagem de interesses públicos. Também é muito importante a leitura de obras como
O povo brasileiro, de Darcy Ribeiro, para desenvolvermos uma visão menos ingênua
do processo de colonização do nosso país, assim como da miscigenação. E nestes
tempos sombrios em que vivemos é fundamental a leitura de Sobre o conceito de
história, de Walter Benjamin, para, nós, que trabalhamos com Filologia/Crítica Textual,
e não somente. Para nós, pois não prescindimos do conceito de historicidade, mas, no
caso daquela que escreve estas linhas, da historicidade que não pode abandonar a tarefa
de escovar a história a contrapelo, num exercício como o da proposta realizada pelo
samba da Mangueira deste ano de 2019, embora a citada obra de Benjamin pareça, por
algumas de suas passagem, não ter pelo menos parte de nós, mulheres, como
interlocutoras. Sobre essa observação, citamos duas passagens do fragmento 2 de Sobre
o conceito da história. A primeira: “[...] A felicidade capaz de suscitar nossa inveja
existe apenas no ar que respiramos com pessoas com as quais poderíamos ter
conversado, com mulheres que poderiam ter se entregado a nós. [...]” (BENJAMIN,
2012, p. 241-242). A segunda: “[...] Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas
não chegaram a conhecer? [...]” (BENJAMIN, 2012, p. 242). Contudo, tal texto de
Benjamin problematiza a questão da transmissão textual. No fragmento 9, diz ele: “[...]
Nunca houve um documento da cultura que não fosse simultaneamente um documento
de barbárie, tampouco o é o processo de transmissão em que foi passado adiante. [...]”
(BENJAMIN, 2012, p. 245). Essas palavras nos fazem lembrar do que temos
conhecimento acerca do processo de colonização da América Latina, assim como de
opressões e exclusões vigentes até hoje, em nosso país, e agudizadas nestes tempos
sombrios. No meu entender, ser uma intelectual, no Brasil, é procurar, é buscar ouvir o

1355



apelo de que fala Benjamin, no fragmento 2 de Sobre o conceito da História (2012, p.
242). E isto está muito presente para quem trabalha com Filologia/Crítica Textual.
Porém, sabemos que tal posicionamento vai depender também do grau de
conscientização de cada pesquisadora/pesquisador. Mas não podemos nos esquecer que
tal conscientização é também uma busca, uma opção.
Ainda a respeito da transmissão de textos, muitas vezes, ela é feita sem qualquer
explicitação da mediação que é realizada no processo de edição, como se o texto fosse
entregue diretamente pela autora ou pelo autor ao público leitor. Muitas vezes também
textos escritos e publicados num espaço temporal distante de nossa contemporaneidade,
como o século XIX, por exemplo, são publicados, nos dias de hoje, sem nem sequer
uma introdução explicativa sobre os critérios de realização daquela publicação.
Seguindo a metodologia e a teoria da Crítica Textual Moderna, a que trabalha com
textos e obras que ainda têm originais, sem nos esquecer das palavras de Benjamin, em
Sobre o conceito de História, estamos preparando duas edições críticas. Uma, a da
coletânea de contos de Machado de Assis, intitulada Papéis Avulsos, publicada pela
primeira e única vez, em vida de seu autor, em 1882, pela Lombaerts & Comp. A outra,
uma edição crítica, com viés genético, das narrativas de viagens de Eça de Queirós, essa
última realizada sob a coordenação do Professor Carlos Reis, coordenador da Edição
Crítica das Obras de Eça de Queirós, e com a colaboração de Cristiane Navarrete
Tolomei, Docente da UFMA, e de Gisele de Carvalho Lacerda, Doutoranda vinculada
ao Programa de Pós Graduação de Estudos de Literatura da UFF.
Para a edição crítica de Papéis Avulsos, contamos com a colaboração de alunas e
de alunos da Graduação de cursos de Letras da UFF, além de Pós-Doutorand@s e de
Pesquisadores que já realizaram o Mestrado. Cinco dessas alunas contam com bolsa
PROAES-UFF, também chamada de Bolsa de Desenvolvimento Acadêmico. A
pesquisadora/docente que escreve estas linhas conta com uma bolsa de Produtividade
em Pesquisa 2 do CNPq.
Sobre a edição crítica de Papéis Avulsos, estamos, no momento, pesquisando
para a escrita da Introdução dessa edição, assim como já estamos em processo de escrita
desse capítulo. Na Introdução, haverá subcapítulos sobre cada um dos doze contos de
Papéis Avulsos.

1356



O capítulo que abre a referida coletânea de contos machadianos é “O Alienista”.
Contudo, a primeira vez que esse famosíssimo conto de Machado de Assis veio a
público foi em A Estação de 15 de outubro de 1881 a 15 de março de 1882. Tal
periódico também foi publicado pela Lombaerts & Comp. E curiosamente, em A
Estação, o texto apresenta um final diferente do que foi estampado em formato livro,
em 1882, inclusive com uma citação de “Hamlet”. Além disso, em A Estação, o texto
do conto é acompanhado por algumas ilustrações que não podemos precisar se passaram
ou não pelo crivo do autor. Todavia, em “O Alienista”, publicado em A Estação, mais
especificamente no último capítulo, estão presentes ilustrações que se referem à Tunísia
(ASSIS, 1881, p. 49). Tais ilustrações não acompanham a publicação em livro.
Outrossim, tanto na publicação do referido conto em periódico e em formato livro, há
referências a árabes e ao universo muçulmano. Nas páginas de Papéis Avulsos,
publicado em 1882, em “O Alienista” podemos destacar alguns exemplo que aparecem
aqui com a grafia atualizada. São eles: “Ao cabo desse tempo fez ele um estudo
profundo da matéria, releu todos os escritores árabes e outros, que trouxera para Itaguaí
[...]” (ASSIS, 1882, p. 2); “[...] só os que vinham nos seus amados árabes, como os que
ele mesmo descobrira, à força de sagacidade e paciência. Ora, todo esse trabalho levava-
lhe o melhor e o mais do tempo […] (ASSIS, 1882, p. 13).
O outro exemplo que ora destacamos é um pouco mais extenso. Vejamos:

Enganava-se o digno magistrado; o médico arranjou tudo. Uma vez


empossado da licença começou logo a construir a casa. Era na rua
Nova, a mais bela rua de Itaguaí naquele tempo, tinha cinquenta
janelas por lado, um pátio no centro, e numerosos cubículos para os
hóspedes. Como fosse grande arabista, achou no Corão que Maomé
declara veneráveis os doudos, pela consideração de gravar no
frontespício da casa; mas, como tinha medo do vigário, e por tabela ao
bispo, atribuiu o pensamento a Benedicto VIII, merecendo com essa
fraude, alías pia, que o padre Lopes lhe contasse, ao almoço, a vida
daquele pontífice eminente. (ASSIS, 1882, p. 6).

Vale destacar que na publicação do referido conto, em A Estação, no lugar de


bispo, constava a palavra Inquisição (ASSIS, 1881, p. 232), o que ajudaria a datar a
história contada no conto, assim como poderia ajudar a criar mais uma ligação com os

1357



muçulmanos, já foram um dos grupos perseguidos no período em que a Inquisição
vigorou.
Sobre os muçulmanos, levantamos a hipótese, já em outros trabalhos, que a
presença de citações sobre eles pode tratar-se de uma forma de resistência empreendida
por um autor de ascendência africana, como Machado de Assis, já que muitos dos/as
africanos/as que chegaram como escravizados/as ao Brasil eram muçulmanos/as,
inclusive, a totalidade ou a maioria dos/as que participaram da famosa Revolta dos
Malês (1835) também lembrada pelo samba da Mangueira deste ano.
A respeito das narrativas de viagem de Eça de Queirós, a primeira parte, a que
fala sobre o Egito, publicada com várias modificações pelo filho mais velho do autor,
26 anos após a morte de Eça de Queirós. A segunda parte, “Palestina” e “Alta Síria”
(Líbano e parte da Síria atuais), foi publicada em 1966 e o texto foi preparado pela filha
do autor. A edição também apresenta modificações e supressões, algumas delas
assinaladas pela filha do autor.
Em todas as narrativas aqui referidas, em sua versão manuscrita, podemos
perceber o caráter político-literário dos textos escritos nas cadernetas e nas folhas soltas
ou linguados pelo na época, 1869-1870, futuro autor de O crime do padre Amaro. Em
alguns casos, o autor se posiciona , com manifesta revolta, a favor dos oprimidos, o que
aguça a atualidade desses textos de juventude de Eça de Queirós nestes tempos
sombrios, marcados por inaceitáveis discursos xenófobos, numa ação substancialmente
contrária à xenofobia que caracteriza a hospitalidade, nas palavras de Said, uma das
marcas da prática da Filologia (SAID, 2007, p. 22).
Vale lembrar que o texto utilizado como base para a edição de Papéis Avulsos
será o da publicação em livro de 1882 e o das narrativas de viagem de Eça de Queirós
será o dos manuscritos autógrafos do autor.
Portanto, além de resgatarmos textos autorais, pretendemos, com o exercício da
Filologia/Crítica Textual, contribuir para trazermos, aos dias de hoje, leituras que foram
esquecidas ou que não foram possíveis num passado também marcado por opressões e
silenciamentos.

Referências:

1358



ARENDT, Hanna. Homens em tempos sombrios. Tradução Denise Bottmann. São
Paulo: Companhia das Letras, 2008.

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Papéis Avulsos. Rio de Janeiro: Lombaerts &
Comp, 1882.

------. “O Alienista”. In: A Estação. Jornal illustrado para a familia. Rio de Janeiro,
Lombaerts & Comp. 15 out 1881, p. 231- 232.

------. “O Alienista”. In: A Estação. Jornal illustrado para a familia. Rio de Janeiro,
Lombaerts & Comp. 15 mar 1882, p. 49-50.

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ---. Magia e técnica, arte e
política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas I. Tradução
Sérgio Paulo Rouanet. 8 ed. São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 241 – 252.

BLOC, Marc. Apologia da história, ou, o ofício de historiador. Tradução André Telles.
Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

BORGES, Rosa/SOUZA, Arivaldo Sacramento. Filologia e Edição de Textos. In:


BORGES, Rosa/SOUZA, Arivaldo Sacramento de/ MATOS, Eduardo Silva Dantas
de/ALMEIDA, Isabela Santos de. Edição de Textos e Crítica Filológica. Salvador:
Quarteto, 2012, p. 15-59.

CAMBRAIA, César Nardelli. Introdução à Crítica Textual. São Paulo: Martins


Fontes, 2005.

CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: ---. Vários escritos. 4 ed. Rio de
Janeiro: São Paulo: Ouro sobre Azul/Duas Cidades, 2004, p. 169 – 191.

LÁZARO CARRETER, Fernando. Filologia. In: ---. Diccionario de términos


filológicos. Madrid: Gredos, 1984, p. 187.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. Biopoder, soberanía, estado de exceção, política da


morte. Tradução Renata Santini. São Paulo: N-1, 2019.

QUEIROZ, José Maria Eça de. O Egypto. Notas de Viagem. 3 ed. Porto, Lello &
Irmão, 1926.

------. Folhas Soltas. Porto: Lello & Irmão, 1966.

REIS, Carlos/CUNHA, Maria do Rosário (eds). O crime do Padre Amaro. Edição


Crítica das Obras de Eça de Queirós. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2000.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. A formação e o sentido do Brasil. 2 ed. São


Paulo: Companhia das Letras, 1995.

1359



SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do ocidente. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007, p. 22.

SHAKESPEARE, William. Hamlet. In: ---. The complete works of William


Shakespeare. London/ New York/Sydney/Toronto: Spring Books, 1975, p. 945 – 980.

SILVA, Maximiano de Carvalho e. Crítica Textual: conceito – objeto –finalidade. In:


http://maximianocsilva.pro.br/doc7.htm (Acesso em 24/07/2016).

SOUZA, Jessé. A elite do atraso. Da escravidão à lava-jato. Rio de Janeiro: Leya,


2017.

1360
UMA VISÃO HISTÓRICA DA MÍDIA E DA PROPAGANDA CIENTÍFICA NO
FINAL DO SÉCULO XIX ATRAVÉS DA CRÍTICA TEXTUAL

Leandro Trindade Pinto (UERJ)1

Resumo: O período que corresponde ao final do século XIX e início do século XX apresenta
um momento singular de transição da sociedade brasileira, tanto no campo político, social e,
sobretudo, científico. É justamente sobre esse ponto que nos passa a interessar o comportamento
da imprensa em relação aos conteúdos de cunho científico. Esta pesquisa pretendeu não só
analisar o discurso presente em temas envolvendo Ciência, principalmente na área de saúde, e
como esta situação era empreendida para os padrões da época e seus objetivos. Os resultados
mostram, por meio de uma edição crítica, os alardes midiáticos feitos, sobretudo em episódios
de epidemia e a divulgação de notícias sem a adequada verificação científica.
Palavras-chave: Imprensa; século XIX; divulgação científica; propaganda.

Como perceber o papel da mídia no nosso cotidiano de uma determinada época?


De que forma a mídia pode influenciar a população com o seu discurso voltado para um
interesse específico?
Esta pesquisa procura responder a tais questionamentos, levando em consideração
os pressupostos de edição preconizados através da Crítica textual. Primeiramente, é
preciso ter em mente, de forma abrangente, a maneira pela qual a mídia concretizou
suas bases em terras brasileiras; neste caso, leva-se em conta que parte de sua
historicidade tem em seu cerne características lusas, visto a própria presença da Família
Real no Brasil, no século XIX. Por outro lado, também é preciso analisar como esta
imprensa foi ganhando uma nova feição, adaptando-se às características próprias da
brasilidade. É justamente sobre essa fase de transição que se encontra centrado um dos
pressupostos desta pesquisa, procurando dar ênfase ao período de entre séculos, no qual
se estabelecia a República e, com ela, uma série de mudanças na maneira de pensar e
agir da nação.
É de se notar, que com o advento da República, uma série de medidas foram
tomadas no sentido de regular os hábitos e o cotidiano da população brasileira; fato é
que estas questões já se faziam presentes desde a época do Império, porém, com o
estabelecimento do legado republicano, a preocupação com o bem-estar social torna-se
mais evidente, principalmente no que diz respeito ao posicionamento da mídia.

1
Doutor em Ensino de Ciências e Matemática (UNICAMP), pós-doutorando em Crítica textual (UFF),
professor adjunto (UERJ). Contato: leandrotrindadep@yahoo.com.br

1361
É justamente sobre esse ponto que nos passa a interessar o comportamento da
imprensa em relação aos conteúdos de cunho científico, no sentido não só de valorizar
as pesquisas nacionais relacionadas a esta área, bem como incentivar o movimento de
higienismo pregado pelo novo padrão político da época. Sendo assim, uma sociedade
sadia física e mentalmente poderia ter mais chances de se definir como melhor
organizada e, porque não dizer, também modernizada, contemplando os novos conceitos
de relação social.
Entra, pois, em cena uma nova maneira de ser executado o labor jornalístico:
percebe-se que grande parte das reportagens que contemplavam esta área de
conhecimento traziam em seu cerne um conteúdo de propaganda não só elevando os
feitos do governo, como também visando influenciar a população a tomar como verdade
absoluta os métodos que consideravam seguros e próprios a serem seguidos.
Pode-se, assim dizer, que a imprensa do final do século XIX, em um amplo
sentido, foi uma das responsáveis a praticar aquilo que hoje denominamos por
divulgação científica, tomando para si a responsabilidade de informar a população sobre
as inovações e benefícios advindos das áreas de Ciência, Tecnologia e Saúde.
Sendo assim, tal pesquisa pretende não só analisar o discurso de como esta
situação era empreendida para os padrões da época e seus objetivos, assim como trazer
à tona estes textos por meio de uma edição crítica no qual possa haver um
entrelaçamento de tal interface deste conhecimento no sentido não só de valorizar as
pesquisas nacionais relacionadas a esta área, bem como incentivar o movimento de
higienismo pregado pelo novo padrão político da época.

A importância da mídia na sociedade


A mídia assim como a sociedade em geral, por mais que apregoem em seus
discursos a neutralidade em prol de um discurso racional, sobretudo no campo
científico, se distancia desta meta principalmente em momento de crise social.
Por mais que mídia e a sociedade tenham se tornado mais complexas e
diferenciadas com o passar do tempo, a intencionalidade dos sujeitos nos meios de
comunicação ainda se faz presente. Com base neste princípio podemos dizer que a
mídia representa uma forma de poder cuja manipulação de elementos simbólicos é a sua
característica central.

1362
A nossa sociedade passa por um processo de acesso a informação, nunca antes
visto antes na História. Quanto a internet Fonseca (2011) coloca que ainda não há um
consenso sobre o real poder da internet como meio alternativo de informação.
Entretanto, no contexto atual é importante não ignorar o quadro social:

As sociedades contemporâneas são fundamentalmente midiáticas, isto e, suas


relações sociais e de poder são intermediadas pelas diversas modalidades da
mídia. (FONSECA, 2011, p.44).

A complexidade atual dos meios de comunicação, com a consequente evolução


de instrumentos de verificação de notícias falsas, sobretudo com o aumento da
tecnologia e de pessoal capacitado dentro do aparato dos grandes meios de comunicação
não mudou de forma geral o conceito de “neutralidade” apontado por Fonseca (2011). O
autor coloca como a neutralidade da mídia se aplica:

Sob o lema do “dever da informação, que seria “neutra” independente,


apartidária e a-ideológica, características invariavelmente alegadas pelos
órgãos da mídia ao retratar, de forma cabotina, sua atuação. (FONSECA,
2011, p. 42).

Entre o final no século XIX e o início do século XX os jornais deste período


usavam os elementos simbólicos que fugiam do princípio da neutralidade. Dentro de um
processo de consolidação da identidade brasileira como nação, Bastos (2014) coloca o
papel da mídia como agregador de um discurso ideológico:

No Rio de Janeiro a grande imprensa cumpria o papel indispensável de


unificar o discurso dominante, tornando-o legível para os demais grupos
sociais. (BASTOS, 2014, p.3).

Os jornais além de difusores de tais discursos são instituições com fins lucrativos.
Neste sentido observamos em alguns jornais da época notícias recorrentes sobre
questões de epidemias no Brasil. Num contexto social onde parte significativa da
população brasileira não tinha acesso aos meios de saúde, tal tema despertava muito
interesse. Sendo algumas destas notícias de cunho mais alarmante do que, propriamente,
informativo, percebemos também que os meios de comunicação que apoiavam ou eram
contra o Movimento Higienista, em alguns casos utilizou-se de alarmismo para informar
a população do perigo de epidemias e seu contágio.

1363
Evento epidêmico coberto pela mídia no período
A geração de cientistas da época de Oswaldo Cruz que se consolidava no final do
século XIX, acabou sendo parte da base da reforma Higienista na virada do século XIX
para o XX, rompendo com os primeiros bacteriologistas brasileiros, dentre eles o doutor
Freire.
Segundo Benchimol (1995, p. 69), o trabalho do doutor Domingos Freire, de
acordo com a histografia é referido tão somente “como o autor do mais retumbante
‘erro’ cometido na medicina experimental brasileira”. Sendo assim, esse pode ser um
exemplo de anacronismo de como vemos a Ciência no Brasil disseminado pelos meios
de comunicação.
No que tange aos sujeitos envolvidos no episódio, cabe a importância de
conhecer as suas obras que são fundamentais para se entender o contexto da Ciência
brasileira num período tão importante da sua História.
Dentre os diferentes ensinamentos que podemos ter deste episódio e de todo o
ferrenho debate que se fez por anos sobre o tema pouco contribuiu para a melhoria da
percepção da população sobre a natureza do trabalho científico e do papel da mídia em
informar adequadamente a população sobre Ciência.
Baseamos este argumento principalmente se levarmos em consideração os anos
posteriores, quando ocorre o episódio da Revolta da Vacina. Observou-se claramente
nesta situação que a mídia, em alguns casos, como instrumento de manipulação da
população, vai se afastando da sua proposta de “informar” a população conforme aponta
Fonseca (2011).
O caso da “Vacina Freire” pelo fato de envolver um episódio descrito nos jornais
há mais de 120 anos, também necessitava para fins de análise discursiva mais detalhada,
de uma pesquisa com base nos originais publicados na época. Tal abordagem
investigativa, segundo Cambraia (2005) e Silva (1994), tem como argumento os
princípios da Crítica Textual, que tem como fundamento principal manter a questão
autoral, ou seja, preservar aquilo que o autor escreveu em vida. No caso em questão,
além da análise discursiva da notícia, pretendemos preservar a publicação original da
época. Esta abordagem procura deixar clara a linguagem empregada, mantendo-a tal
qual a original, sem a interferência das lacunas temporais ou mesmo de edições
consideradas apócrifas. Tal cuidado também se deve na verificação de textos antigos,

1364
pois as suas constantes reedições e referenciais, sobretudo com o tempo, podem perder
seu sentido original.
Neste trabalho foram apresentados os dados de diferentes jornais, por estes
abordarem de forma mais explícita o assunto, e por ser mais fácil a sua consulta. Tais
reportagens estão disponibilizadas ao público através do arquivo online da Biblioteca
Nacional, no site: memoria.bn.br.
Figura 1:

Fonte: Jornal do Commercio (RJ) - 22/03/1884. http://twixar.me/4GR1

Na virada do século XIX, mesmo a capital do Rio de Janeiro, carecia de pré-


requisitos mínimos de infraestrutura. Moradias como cortiços e outros locais mais
pobres eram percebidos por parte da mídia e das autoridades como foco de doenças.
Cabe ressaltar que nesta época não se sabia que a causa da doença da febre amarela era
um vírus, que o mosquito era o vetor de transmissão e, consequentemente, o
conhecimento de se evitar deixar água parada nos domicílios. Simplesmente, a
descoberta do mosquito como vetor de propagação da doença foi publicada e ampliada
no Brasil quase vinte anos mais tarde e, a vacina contra tal doença descoberta quase
quarenta anos depois.
Na verdade a ideia que estava presente, impulsionada, pela necessidade
urbanística de expulsar os cortiços e casas mais simples do centro da cidade era: casa
pobre – lugar, lugar – sujo, lugar – infectado: sendo assim, esse local teria focos de
febre amarela.
Tal pensamento era feito de forma tão explícito que era anunciado no jornal o
local onde seria feita a desinfecção. Neste caso, era como se bastasse apenas limpar o

1365
local e desinfetá-lo para a febre amarela sumir (não necessariamente eliminando os
focos do mosquito).
Tal fato aponta que a febre amarela, assim como outras doenças era associada a
fatores sociais, tanto que não era comum noticiar que pessoas da nobreza teriam
contraído a doença. Quando tal doença atingia alguém da corte tal fato era tratado na
mídia de forma diferente do que de outras pessoas da sociedade, tomando ares de
“escândalo”:
Figura 2:

Fonte: O Paiz (RJ) 6 de maio de 1889. http://twixar.me/vGR1

Uma das alegações presentes no contexto da época era que a classe social menos
“abastada” não teria recurso para se prevenir da doença, como por exemplo adquirir um
desinfetante que jogado no ar e por toda a casa eliminaria seus focos. Porém, entende-se
que a nobreza, por possuir maiores condições financeiras, teria como arcar com os
custos de uma desinfecção em maior escala. Sendo assim, uma notícia contendo a
temática apresentada acima, não só era motivo de vergonha para tal família,
principalmente pelas questões relacionadas à higiene, como motivo de alarmismo
também.

1366
Figura 3:

Fonte: O Paiz (RJ).08/05/1888. http://memoria.bn.br/DocReader/178691_01/5299

O anúncio mostra o sensacionalismo, comentando que “milhões” morreram de


febre amarela. Outro ponto foi a suposta capacidade do produto de eliminar a febre
amarela na atmosfera, como se fosse um vírus que permanece no ar de lugares
considerados insalubres. Tal pensamento era comum na época. Este tipo de mensagem
reforçava a ideia destruir locais que acabavam por receber esta denominação.
Neste contexto epidêmico, a cura para a febre amarela apresenta uma necessidade
urgente. Mas, mesmo nas tentativas de divulgar novas descobertas sobre o tema ou
mesmo para trazer informação para a população, percebemos a vinculação de ideias que
fogem do campo científico.
Havia muita especulação sobre a doença e os jornais não se refutavam a publicar
em seus anúncios curas inusitadas, sem passar por maiores “crivos” jornalísticos. Desta
forma, na maneira em que eram publicados, muitas vezes os anúncios de curas, como o
xarope de Jurubeba ou a reportagem científica sobre o assunto eram passados no mesmo
jornal sem a devida distinção de autenticidade:

1367
Figura 4:

O Paiz (RJ): 6 de maio de 1889. Fonte: http://twixar.me/vGR1

A mídia, em alguns casos, passa a ter mais credibilidade junto ao grande público,
que os próprios cientistas. Sendo assim, a mídia, sobretudo em questões de grande apelo
social, tende a dar “valores” diferenciados para a fala de alguns cientistas. Sem verificar
adequadamente seus métodos.
Figura 5:

Fonte: O Paiz (RJ) - 17/05/1888 | http://memoria.bn.br/DocReader/178691_01/5337.

1368
Tal recorte foi assim realizado porque se refere ao momento em que a “Vacina
Freire” para a febre amarela ainda contava com notoriedade na mídia, tendo apoio nos
jornais, e até mesmo defendido por membros do governo. Vinculado na mídia como
promessa de cura para tal grande mal, e sendo criada por um cientista brasileiro, se
tornava um enredo interessante demais para não ser vinculado na mídia com as ideias de
progresso e nacionalismo tão presentes na época, visto que isto acontecera um ano antes
da proclamação da República.
Nota-se, o paradoxo, a presença do traço eurocêntrico de tentar legitimar a
qualidade da vacina por ter seus trabalhos aceitos no velho continente. Outras notícias
referentes a esta descoberta reforçam esta ideia.
Segundo Bechimol (1994), neste período já havia um grupo de cientistas que
criticavam a Vacina Freire. Conforme a própria academia científica se consolidava no
Brasil neste período, ela conseguiu pressionar a mídia um pouco mais e ganhou força
sobretudo na virada do século, com o grupo de cientistas que tiveram apoio do governo
dentre eles o mais conhecido: Oswaldo Cruz.
Ainda assim como observamos na Revolta da Vacina em 1904, a mídia continuou
a vincular informações sem o devido crivo científico simplesmente por não possuir
interesse ou conhecimento em não vincular devidamente a informação. Depois de
passado um ano deste episódio, fato que gerou uma enorme confusão na capital,
observou-se um cuidado maior na vinculação desta doença:
Figura 6:

Fonte: O Paiz (RJ) - 20/01/1905 | http://memoria.bn.br/DocReader/17869

1369
A notícia mostra no mesmo jornal, depois da Revolta da Vacina, como mudou a
veiculação sobre a febre amarela. Nesta reportagem fica evidente o vetor do mosquito,
os criadouros e outras questões embasadas cientificamente. Bem diferente de notícias de
anos anteriores onde um desinfetante, xarope de jurubeba ou uma vacina sem maiores
testes científicos poderiam conter uma “cura” sem maiores comprobações científicas.

Algumas considerações:

O estudo apresentado procurou, através da apresentação de algumas notícias de


cunho científico da época, demonstrar como os conhecimentos científicos são
difundidos na mídia, carregando intencionalidades e concepções que distanciam da
“imparcialidade” ou “ neutralidade” defendida em pela grande mídia.
Nos dias atuais observamos um cuidado maior dos grandes meios de comunicação
em vincular notícias falsas de cunho científico, sem porém abrir mão de meios mais
sofisticados de expor sua intencionalidade. Todavia a sociedade atual é impactada por
diferentes meios de comunicação, sobretudo com o advento da internet, que se
proliferam sem a veracidade científica necessária para uma divulgação científica de
qualidade.

Referências:
BASTOS, I. A Imprensa no Rio de Janeiro da Belle Époque. In: VI Congresso Nacional
de História da Mídia, 2008, p. 1-15, Niterói.
BENCHIMOL, J.L. História da febre amarela no Brasil. História, Ciências, Saúde. V.1,
n. 1, 1994, p. 121-124.

BENCHIMOL, J.L. Domingos José Freire and the beginnings of bacteriolgy in Brazil.
História, Ciências, Saúde. V.1, n. 2, 1995, p. 67-98.

CAMBRAIA, C. N., 2005. Introdução à crítica textual. São Paulo: Martins Fontes
(Col. Leitura e Crítica).
FONSECA, F. Mídia, poder e democracia: teoria e práxis dos meios de comunicação.
Revista Brasileira de Ciência Política. N. 6, 2011, p.41-69.

SILVA, Maximiano de Carvalho e. Crítica Textual: conceito, objeto, finalidade.


Confluência, Rio de Janeiro, n. 7, p. 59-60, 1994.

1370
Figura 1: Jornal do Commercio (RJ) – vinte dois de março de 1884. Disponível em:
<http://twixar.me
/4GR1>. Acesso em 5 de jun. de 2018.

Figura 2: O Paiz (RJ) 6 de maio de 1889. Disponível em: <http://twixar.me/vGR1>.


Acesso em 8 de julho de 2018.

Figura 3: O Paiz (RJ).oito de maio de 1988. Disponível em: <http://memoria.bn


.br/DocReader/178691_01/5299>. Aceso em 8 de julho de 2018.

Figura 4: O Paiz (RJ): 6 de maio de 1889. Disponível em: < http://twixar.me/vGR1>.


Acesso em 7 de junho de 2018.

Figura 5: O Paiz (RJ) – dezessete de maio de 1888. Disponível em: < http://memoria
.bn.br/DocReader/178691_01/5337>. Acesso em 9 de junho de 2018.

Figura 6: Fonte: O Paiz (RJ) - 20/01/1905. Disponível em: < http://memoria.bn


.br/DocReader/17869>. Acesso em 8 de julho de 2018.

1371
JÚLIA LOPES DE ALMEIDA: UMA ANÁLISE DAS EDIÇÕES DE
ÂNSIA ETERNA

Viviane Arena Figueiredo (UFF)1

Resumo: Esta pesquisa tem por foco analisar o conteúdo presente nas três edições da obra
Ânsia eterna, publicada por Júlia Lopes de Almeida, inicialmente em 1903. Apesar da
aclamação desta obra, principalmente no meio acadêmico, ela só volta a ser reeditada em 1938,
quatro anos após a morte da escritora, mas com modificações significativas em seu conteúdo.
Igualmente, encontra-se a edição publicada em 2013, pela EDUNISC, não contendo menções às
modificações existentes entre o texto publicado em 1903 e àquele publicado em 1938. Sendo
assim, a Crítica Textual vem elucidar essas dúvidas, procurando manter a originalidade autoral.
Palavras-chave: edição; modificações autorais; Júlia Lopes de Almeida; Ânsia eterna.

Resgatar Júlia Lopes de Almeida é trazer à tona um passado nas quais muitas
mulheres ainda se sentiam silenciadas. Ao começar a escrever publicamente no final do
século XIX, Júlia Lopes torna-se capaz de quebrar um paradigma no espaço literário
essencialmente reservado ao mundo masculino. O impacto de seus textos sobre a
sociedade da época a aclamaram como escritora de renome tanto no Brasil quanto no
exterior por cerca de cinquenta anos.
É interessante notar, sobretudo, a vasta produção literária publicada pela escritora;
além dos inúmeros romances notadamente reconhecidos pelo público leitor, ela também
produziu uma infinidade de contos e crônicas, sendo a maioria deles publicados em
diversos jornais do eixo Rio-São Paulo, no entre séculos. Dentre estes textos, em
especial, destaca-se Ânsia eterna (1903), o primeiro livro de contos produzido pela
autora em terras brasileiras. Apesar de apresentar textos de conteúdo denso e, de certa
forma, com aspectos naturalistas, tal livro consagrou-se pela Garnier editores como um
dos livros mais vendidos de sua coleção.
Durante um período de sete anos, até o lançamento de Eles & Elas, Ânsia eterna
destacou-se como o principal livro de contos de Júlia Lopes de Almeida, tanto que A
caolha, um dos textos presentes nesta compilação, foi traduzido em mais de uma língua.
Apesar do sucesso, a obra só vem a ser novamente reeditada pela A noite editores,
em 1938, exatamente quatro anos após a morte da autora. O longo período de tempo
imposto entre estas duas edições levaram alguns pesquisadores sobre a obra de Júlia
Lopes crerem que este poderia ser considerado um livro póstumo, desconhecendo o fato

1
Graduada em Letras (Português-Inglês) pela UFRJ; Mestra em Literatura Brasileira pela UFRJ; Doutora
em Estudos Literários pela UFF; Atuando no programa de pós doutorado em Crítica Textual pela UFF.

1372
de a primeira edição ter sido publicada em 1903. Este pensamento acaba por se
concretizar não só pelas palavras expostas no prólogo de apresentação da obra, como
também por visualizarmos mudanças significativas nos textos expostos na edição de
1938.
Neste texto inicial, a editora A Noite menciona que os contos ali reunidos foram
previamente escolhidos e entregues pela família da autora no ano de seu falecimento
(1934), fato que muitos acreditam como verídico, visto que Júlia Lopes de Almeida
pertencia a uma família de escritores. Porém, ao analisarmos mais a fundo a obra da
autora, percebemos que tais alterações procedentes nos contos expostos na edição de
1938 precisam ser severamente verificados pelos termos definidos pela Crítica textual,
visto que não há nenhum documento comprobatório, ou mesmo manuscritos, que
venham a ressaltar que tais modificações tenham sido executadas pela escritora.
No mesmo patamar encontra-se, pois, a edição desta mesma obra publicada em
2013 pela editora Mulheres, pertencente à EDUNISC. Tal publicação encontra-se
totalmente baseada na edição de 1938, não sendo questionada em momento algum,
durante a introdução desta edição, a veracidade das alterações realizadas na edição de
1938, fato que denota um desconhecimento dos textos que foram expostos na edição de
1903. Sendo assim, a Crítica textual vem auxiliar na análise destas três edições de modo
a recuperar a essência autoral desta obra.

1903 e 1938: as edições de Ânsia eterna em foco


Ler, pesquisar, refletir, analisar. Estas são estratégias singulares utilizadas pelos
pesquisadores das mais diversas áreas a fim de balizar seus conceitos em
fundamentações que espelhem a seriedade de seu trabalho. É preciso organizar as mais
diversas fontes, considerando sua relevância dentro do trabalho a ser apresentado, de
modo que estas possam ser definidoras na obtenção de resultados realmente
significativos.
Para obter-se tal eficácia, faz-se necessário que os dados a serem pesquisados
correspondam, principalmente, ao princípio de veracidade. Nesse caso, deve-se levar em
conta não só o entendimento de verdade envolvendo os fatos expostos, mas também a
questão da atualização de conteúdo, de modo que o objetivo central da pesquisa não
venha a ser prejudicado por dados desatualizados, ou mesmo, obsoletos.

1373
Dentro dos estudos de literatura, tais procedimentos devem não só se fazer
presentes, como também, necessitam de um rigor especial, considerando o fato que a
maior parte das pesquisas nessa área consiste em análises de textos literários, focando
determinado tema, ou mesmo enfatizando a obra de algum autor.
No momento em que se pesa a importância da Crítica Textual para os estudos
literários, começa-se a ter outra visão sobre questões envolvendo a composição de
edições e publicações. Partindo desse parâmetro, o pesquisador, ao utilizar tal
metodologia, se depara com alguns questionamentos, que ao serem respondidos tornam-
se instrumentos balizadores na compreensão da própria história de determinada obra.
Sendo assim, baseando-se nos conceitos empregados pela Crítica textual, esta
pesquisa se dispõe a analisar a literatura de Júlia Lopes de Almeida através da obra
Ânsia eterna.
Primeiramente, é preciso traçar uma direção no que concerne a explicação sobre a
escolha dessa obra especificamente, não só levando em consideração o período literário
em que foi publicada, mas também pela sua relevância dentro dos estudos ecdóticos.
Com o intuito de explicitar um dos motivos de tal escolha, partiu-se da afirmação
elaborada por Lúcia Miguel Pereira em História da literatura brasileira: Prosa de
ficção (de 1870 a 1920): “Os contos de Ânsia eterna parecem todavia a sua melhor
obra, aquela em que, sem nada a perder da sua singeleza, ela aproveitou com mais arte
os seus recursos de escritora e deixou mais patente a sua sensibilidade” (PEREIRA,
1988, 261).
Como se pode notar, no ponto de vista dessa pesquisadora, Ânsia eterna constitui
uma obra de caráter diferenciado dentro da totalidade de publicações de Júlia Lopes de
Almeida. Sendo assim, considerando tal opinião, uma das primeiras referências feita a
tal obra, não se pode negar o impacto de sua importância no que concerne as temáticas
apresentadas nos contos que ali figuram.
Porém, o critério de investigação empregado na escolha de Ânsia eterna não se
limitou ao impacto causado pelos temas desenvolvidos por Júlia Lopes na composição
da obra. O desejo de trazer estes textos a público setenta anos após a sua última
publicação concorre para que esta pesquisa venha a se concretizar. Neste caso, é preciso
levar em conta um parâmetro que se tornou um fator de extrema relevância em relação a
tal escolha: as últimas reedições das obras de Júlia Lopes de Almeida tem privilegiado,

1374
em sua maioria, a produção romanesca. Sendo assim, sem querer desmerecer tal
esforço, e sim, complementar os trabalhos realizados, decidiu-se investir em uma edição
que contemplasse uma outra face da literatura de Dona Júlia: sua produção de contos.
Dentro desse contexto, um caso particular concorre para marcar e engrandecer o
valor inestimável dessa obra: parte dos contos foi dedicada a personalidades literárias da
época, fato tal que se torna um registro histórico remontando a um período particular da
literatura produzida no Brasil, no entresséculos. Sendo assim, nos deparamos com o
nome dos seguintes escritores:

“Ânsia eterna” – João Luso


“O caso de Ruth” – Valentim Magalhães
“A rosa branca” – Magalhães de Azeredo
“Os porcos” – Arthur Azevedo
“E os cisnes?” – Baptista Coelho
“Sob as estrelas” – Olavo Bilac
“A casa dos mortos” – Francisca Júlia da Silva
“A caolha” – Eva Canel
“A boa lua” – Maria Clara da Cunha Santos
“A alma das flores” – Lúcio de Mendonça
“O último raio de luz” – Júlia Cortines
“A morte da velha” – Presciliana Duarte de Almeida
“Perfil de preta” – Machado de Assis
“As três irmãs” – Zalina Rolim
“O Dr. Bermudes” – Raymundo Corrêa
“O último discurso” – Coelho Neto
“No muro” – Julião Machado

Há de se perceber que entre os nomes elencados para figurarem entre as menções


presentes dentro dessa obra, são mencionados os nomes de cinco mulheres que, tal
como Júlia Lopes de Almeida, dedicavam-se não só à literatura, como também ao
jornalismo. Ao dedicar seus contos a estas escritoras, Júlia quebra o mito de que a
literatura era produzida exclusivamente por homens, nos apontando para uma nova

1375
realidade na qual a mulher ia, pouco a pouco, ganhando espaço na vida pública do país,
quebrando paradigmas há tanto tempo já consolidados pelo contexto social. Pode-se
dizer que a observação desse dado tornou-se mais um dos motivos que justificam a
pesquisa dessa obra, em especial.
Sendo assim, após as primeiras iniciativas rumo à decisão definitiva da escolha da
obra que viria compor, não só o foco desta pesquisa, mas também, a base de uma futura
edição crítica, realizou-se um levantamento das edições anteriores, a fim de que fossem
dimensionados alguns pontos relativos a própria periodicidade de publicação da obra;
neste contexto, se deparar com a escassa quantidade de edições (somente duas) de Ânsia
eterna foi uma surpresa se levarmos em consideração que outras obras de Júlia Lopes de
Almeida, como Histórias da nossa terra2 foram contempladas com um número
significativo de edições.
Dentre muitos aspectos a serem considerados, a baixa periodicidade de publicação
dessa obra tornou-se, de certo modo, mais um fator relevante na pesquisa, visto que a
partir dessa observação começaram a ser levantadas hipóteses em relação ao próprio
mercado editorial da época em Júlia Lopes construiu seu legado literário. Conforme
sinalizado por Laurence Hallewell em O livro no Brasil (Sua história), foi Francisco
Alves o editor que realmente se dedicou em publicar a maior parte das obras de Dona
Júlia:

Mas suas relações mais estreitas eram, ao que parece, os dois Leão citados,
Rodrigo Octavio (seu advogado), Sylvio Romero, Barbosa Romeu,
Capistrano de Abreu, João Ribeiro, Carlos de Carvalho, Felisberto Freire e,
mais tarde, Olavo Bilac e Afrânio Peixoto. Dava-se também com Clóvis de
Bevilácqua, José Veríssimo, Coelho Neto, Manuel Bonfim, Alberto de
Oliveira, Olavo Freire, Emílio de Menezes e a romancista Júlia Lopes de
Almeida. (HALLEWELL, 1985, p. 210).

Ainda considerando a relação editorial existente entre Júlia Lopes de Almeida e


Francisco Alves, Hallewell abre uma nota explicativa, no qual chama a atenção para a
periodicidade de publicações da autora pelo livreiro-editor.

A história editorial de Júlia Lopes, uma importante romancista da época, não


deixa de ser típica. Seus Contos infantis (1886) e Viúva Simões (1897) foram
ambos publicados em Lisboa. A Garnier publicou Ânsia eterna, em 1903,

2
No caso desta obra, constam 21 edições, todas publicadas pela Francisco Alves editor.

1376
mas A intrusa (1908), Eles e elas (1910) e Correio da roça (1913) saíram
pela Alves, que continuou a reeditar suas obras anteriores até a terceira
edição de Cruel amor, em 1928, apesar de Leite Ribeiro ter publicado A isca,
de 1922. Na década de trinta, ela foi editada pela Cia. Editora Nacional: p.
ex., A Casa Verde, em 1932. (HALLEWELL, 1985, p. 221)

Levando em consideração que a primeira edição de Ânsia eterna, em 1903, foi o


único livro da autora publicado pela H. Garnier, não sabe-se até que ponto esta casa
editorial causou empecilhos para uma nova reedição desta obra. Olhando também sob
outro parâmetro, deve-se também considerar que a crescente produção literária de dona
Júlia, tenha suscitado o interesse editorial de algumas obras sobre outras, levando a crer
que Ânsia eterna não tenha sido cogitada em uma suposta lista de prioridades.
Ao dar continuidade a pesquisa, percebemos a ocorrência de apenas mais uma
reedição de Ânsia eterna, pela A noite editores, em 1938, quatro anos após a morte da
autora. Pode-se dizer que a publicação dessa obra passados mais de trinta anos após a
sua primeira edição, foi um ato de extrema relevância se for considerado não só o
critério de preservação da própria obra em si, mas também, por fixar na memória um
significativo registro sobre a produção literária da autora.
Porém, apesar da grande importância de sua publicação, verificam-se na edição de
1938 alterações de caráter bem relevantes em múltiplos pontos dessa nova produção
editorial. Surgem daí, novos questionamentos que, de certa forma, tornaram-se mais um
aspecto a ser discutido dentro dessa pesquisa.
Na verdade, a edição de 1938 de Ânsia eterna, publicada pela A Noite Editores,
merece alguns questionamentos: primeiramente, os contos selecionados para comporem
esta coletânea foram entregues pela família da autora, deixando dúvidas em relação à
veracidade do desejo de Júlia Lopes de Almeida quanto à reunião de tais textos. Apesar
do prólogo da edição de 1938 conter uma nota afirmando que a autora havia recomposto
esta obra para uma futura publicação, há de ser investigado os motivos pelos quais Júlia
Lopes teria retirado alguns contos presentes na edição de 1903.

1377
Ainda analisando o prólogo elaborado pelos editores da empresa A Noite, podem ser
levantadas certas suspeitas em relação à edição de 1938, visto que eles afirmam que a
autora teria reorganizado sua obra no seu último ano de vida (1934); na verdade, tal
afirmação parece ser questionável, visto que Júlia Lopes morrera em maio, três meses
após desdobrar-se em cuidados com a filha doente que encontrava-se em terras
africanas.
Partindo para uma pesquisa mais específica na direção de tentar elucidar esses
pontos, procedemos a uma pesquisa no espólio literário deixado por Júlia Lopes de
Almeida, através do contato com Cláudio Lopes de Almeida, neto da autora. Ao ser
questionado sobre as modificações ocorridas na edição de 1938 de Ânsia eterna, Dr.
Cláudio Lopes afirma que, provavelmente, elas teriam sido fruto de alterações
procedidas por sua avó, visto que estas eram acompanhadas por Margarida Lopes de
Almeida, filha de Júlia.
Porém, levando em consideração os critérios metodológicos empregados pela
Crítica Textual, a publicação de 1938, por ser uma edição póstuma, merece uma atenção
especial, visto que não se está trabalhando em cima de um registro autógrafo.

1378
Ao consultar o espólio literário deixado por Júlia Lopes de Almeida, no sentido
de tentar obter alguma informação a respeito de tais mudanças, foi encontrado somente
um esboço dos títulos de alguns contos que viriam a compor Ânsia eterna, como se
pode verificar a seguir:

1379
Como se pode notar, alguns títulos presentes na edição de 1903, aí já se
encontram delineados, tais como: “Ondas de ouro”, “Histórias do conselheiro”, “ A
morte da velha”, “A nevrose da cor”, “ O véu”, “Rosa Branca”, “Futuro presidente”,
“Incógnita”, “A primeira bebedeira”, “Esperando”, “A alma das flores”, “E os cisnes?”
e a “A caolha”.
Através da observação dessas folhas contendo o esboço dos títulos de contos que
foram utilizados em Ânsia eterna, percebe-se que quatro narrativas aí delineadas, foram
retiradas da edição póstuma de 1938: “Ondas de ouro”, “Histórias do conselheiro”, O
véu” e “Esperando”.
Sendo assim, a partir desse registro autógrafo deixado pela autora, faz-se
necessária um cotejo entre as edições a fim de verificar não só a apresentação de novos
contos, mas principalmente relacionar a retirada das narrativas, citadas no parágrafo
anterior

1ª edição (1903) 2ª edição (1938)

Ancia eterna Ânsia eterna


O caso de Ruth Os porcos
A rosa branca O lote 587
Os porcos A rosa branca
O voto O caso de Ruth
E os cysnes? O voto
Sob as estrellas O coração tem razões
A primeira bebedeira E os cisnes?
A casa dos mortos Sob as estrelas
As historias do conselheiro A primeira bebedeira
A caolha A casa dos mortos
In extremis A caolha
A boa lua A boa lua
Esperando O redentor
A alma das flores A alma das flores
Ondas de ouro O último raio de luz
A morte da velha A morte da velha
Perfil de preta Perfil de preta
A nevrose da cor A nevrose da cor
As três irmãs As três irmãs
O véo Pela pátria
Pela pátria O Dr. Bermudes
O Dr. Bermudes A valsa da fome
A valsa da fome O futuro presidente
O futuro presidente O último discurso
O último discurso No muro
No muro As rosas
As rosas

Tabela 1: Apresentação dos contos (1903 x 1938)

1380
Como se pode notar, a edição de 1903 apresenta quatro contos que não são
mantidos na edição de 1938: “As historias do conselheiro”, “In extremis”, “Esperando”,
“Ondas de ouro” e “O véo”. Além disso, consta na edição de 1938, novos contos: “O
lote 587”, “O coração tem razões” e “O redentor”.
Além dessas pontuais diferenças, verificam-se ainda modificações em alguns
aspectos da composição textual, desde variações em relação à pontuação, aos nomes dos
personagens, alteração de palavras, períodos e parágrafos inteiros dentro do texto.
Outro ponto que merece ser ponderado em relação à retirada dos contos na
composição da segunda edição de Ânsia eterna pode apontar para certa pressão social,
no que diz respeito á temática apresentada em seu conteúdo. Tem-se como exemplo o
conto In extremis, que apresenta um tema de cunho mais sensual e, nesse caso, não se
sabe qual seria o impacto deste em uma publicação póstuma da autora.
Mais uma vez, partimos para um ponto de vista investigativo: dificilmente, Júlia
Lopes de Almeida modificava o conteúdo de suas obras de forma tão extrema. Os
cotejos feitos em diferentes edições de suas obras revelam que a autora em nada, ou
pouco mexia em seus textos. Um bom exemplo para tal constatação remete-se às
edições de Histórias da nossa terra; em vinte e uma publicações, Júlia só modifica o
conteúdo textual, em vista de aumentá-lo com informações claramente mais precisas.
Porém, não há supressão de contos, ou mesmo, de conteúdos.
Neste caso, em relação à Ânsia eterna, cabe o questionamento: por que a autora
retiraria contos de uma obra? Se, então, existiriam novos contos a serem apresentados
ao público, por que, simplesmente, eles não foram incluídos na totalidade da edição de
1938?
Enfim, essas são questões que demandam ainda muita pesquisa que, decerto, em
parte poderá ser respondida mergulhando seriamente na comparação entre as edições
das diversas obras produzidas pela autora. Outras afirmações continuam ainda sendo
uma incógnita, que somente uma análise da história da época e o depoimento de seus
próprios familiares sejam capaz de responder.
Sendo assim há de se considerar como base da fundamentação dessa pesquisa o
texto relativo à edição de 1903, publicada pela H. Garnier. Acredita-se que a coletânea
de contos de Ânsia eterna, publicada nesta data, reflita o desejo de Júlia Lopes de
Almeida em procurar manter a organização e o sentido de sua primeira publicação.

1381
Mesmo que os textos publicados na edição de Ânsia eterna em 1938 possam conter
modificações perpetradas pela própria autora, procura-se, pois, dar ênfase à edição de
1903 por este ter sido o primeiro levantamento feito por Júlia Lopes, de contos então já
publicados.

Considerações finais
Apesar desta pesquisa mencionar as três edições de Ânsia eterna não cabe neste
momento maiores considerações sobre a edição de 2013, publicada pela EDUNISC,
visto que ela segue rigorosamente a edição de 1938, publicada pela A noite, esta, sim,
uma edição a ser contestada, visto as modificações contidas em seu conteúdo.
O fato em questão reside no questionamento do motivo pelo qual a edição de 1903
foi quase que ignorada na introdução presente na publicação da EDUNISC. Sendo
assim, em nenhum momento leva-se em conta pressupostos da Crítica Textual que, com
sua investigação minuciosa sobre os aspectos relacionados à composição do texto,
poderia tornar-se uma ferramenta ancilar no sentido de trazer à tona curiosidades e
reflexões ao leitor, a fim de entender, ou mesmo questionar o sentido de originalidade e
da importância da manutenção do texto autoral na preservação do patrimônio literário.

Referências
ALMEIDA. Júlia Lopes de. Ancia Eterna. Rio de Janeiro. H. Garnier. 1903.
ALMEIDA. Júlia Lopes de. Ânsia eterna. Rio de Janeiro. Anoite editores. 1938.
ALMEIDA. Júlia Lopes de. Ânsia eterna. Ilha de Santa Catarina. Editora Mulheres.
2013.
HALLEWELL, Laurence. O Livro no Brasil – sua história. São Paulo: T.A. Queiroz,
revista e atualizada pelo autor, 1985.
PEREIRA, Lucia Miguel. História da literatura: prosa de ficção: de 1870 a 1920.
Belo Horizonte, Itatiaia: 1988.

1382
SALIM MIGUEL E A CRIAÇÃO DE UM PROJETO ESTÉTICO-LITERÁRIO
“TRANSMODERNO”
Ana Cláudia de Oliveira da Silva (UFSM)1

Resumo: O escritor Salim Miguel criou, após a publicação de A morte do tenente e outras mortes
(1979), uma obra fragmentada e inacabada que remete incessantemente para si mesma. Nesse labirinto
narrativo, o autor-criador assume e também confere ao narrador características próprias do trabalho do
colecionador: reunir cacos de um passado em ruínas e restos de falas próprias e alheias. Essas diferentes
vozes e temporalidades são articuladas pelo narrador-colecionador de modo disruptivo. A partir dessa
leitura, a figura do colecionador aproximar-se-ia do conceito de “transmordenidade”, do filósofo peruano
Enrique Dussel, pois busca estabelecer novas correspondências entre tradição e modernidade, com o
intuito de redefinir esta última em termos mais solidários e co-participativos.
Palavras-chave: Salim Miguel; Colecionador; Transmodernidade.

Herdeiro de uma tradição em ruínas, a dos contadores de histórias orais (em


especial, aquela relacionada ao mundo árabe da qual descende como imigrante
libanês), e frente a um mundo em franca transformação, cheio de contradições e
entrechoques, Salim Miguel parece querer perseguir um ideal impossível: a
recuperação/superposição do tempo. Passado que nunca nos chega de modo íntegro,
da forma como foi vivido, mas como é percebido hoje, a certa distância, com
exageros, generalizações, modificações, excessos e supressões.
Consciente, portanto, de que essa busca é uma quimera, o autor passa a
recolher fragmentos de memórias, restos de experiências e situações que lembram
mais a ideia de uma coleção do que de um conjunto coeso. Ele cria, nesse processo,
uma obra fragmentada e inacabada que remete incessantemente para si mesma,
numa estrutura de encaixe que se assemelha àquela d’As mil e uma noites.
Nesse labirinto narrativo, o autor-criador assume e também confere ao
narrador características próprias do trabalho do colecionador, trabalho esse de
reunir pequenos fragmentos – cacos de um passado em ruínas, restos de falas
próprias e alheias –, recompondo-os em um mosaico de narrativas que só se dão a
conhecer a partir do seu aspecto relacional. Há, portanto, uma proliferação de
relatos, de vozes submersas, recalcadas ou marginalizadas, que a instância narrativa
recupera e incorpora a fim de que possam auxiliá-la na reconstrução de um mundo
esquecido nos desvãos da memória.
1
Graduada em Letras Português e Respectivas Literaturas (UFSM), Mestra e Doutora em Letras –
Estudos Literários (UFSM), Professora de Língua Portuguesa e Literatura no Instituto Federal de
Educação Ciência e Tecnologia Farroupilha (IFFar). Contato: clauoli13@gmail.com.

1383
Autoria compartilhada que remete à tradição oral dos contadores de história e,
igualmente, ao caráter dialógico e polifônico do romance, tanto no sentido d e
diálogo entre discursos quanto entre interlocutores. A inserção na narrativa dessas
outras vozes – esquecidas pelo processo histórico em curso –, problematiza a retórica
utilizada para legitimar uma práxis autoritária de dominação e/ou imposição de um
determinado modo de vida: moderno, civilizado, desenvolvido. Bem como, faz
sobressair outra percepção sobre a realidade circundante, uma realidade diversa, plural,
heterogênea e em contradição com o relato oficial.
Essas diferentes temporalidades em constante tensão em um mesmo espaço social
são articuladas pelo narrador-colecionador por meio de uma ótica descentrada,
contrapontisticamente situada ao redor de dois tempos-espaços contraditórios: o lá e o
aqui, o arcaico e o moderno.2 Ele propõe, desse modo, uma nova ordem aos fatos, em
contraponto ao encadeamento lógico e racional característico da sociedade moderna, o
que faz com que o tempo histórico seja apreendido em termos de intensidade e não de
causalidade, como supõe a ideia de cronologia.
A partir dessa leitura, a figura do colecionador aproximar-se-ia ao conceito do
filósofo Enrique Dussel (2016) de “transmordenidade”, no sentido de buscar estabelecer
uma nova relação entre o caráter emancipador racional da modernidade e sua alteridade
negada, qual seja, a perspectiva dos povos que habitam a periferia do mundo: América,
África e Oriente. Para o autor, essas culturas colonizadas, desprezadas, negadas,
ignoradas são não apenas anteriores à modernidade, como também contemporâneas a
ela, uma vez que resistiram à homogeneização/aculturação de seus traços diferenciais,
transformando-se ao longo do tempo, sem, com isso, perder a sua heterogeneidade
constitutiva. Por esse motivo, elas são capazes de responder com soluções
completamente inovadoras aos impasses da modernidade, uma vez que partem de outro
lugar, do ponto de vista de uma experiência cultural diferente, descentrada e/ou ex-
cêntrica, oposta à perspectiva dominante.

2
Partimos das considerações de Antonio Cornejo Polar (1996) e de Edward Said (2003) sobre o sujeito
que emigra e o seu discurso a fim de pensar essa duplicação do território de fala. Para Cornejo Polar, o
discurso migrante é essencialmente descentrado, uma vez que construído em torno de pontos vários e
assimétricos, de alguma maneira incompatíveis e contraditórios de uma forma não-dialética. De modo
semelhante, Said observa que a ótica do imigrante é contrapontística, pois, se a maioria das pessoas é
consciente de apenas uma cultura, de um ambiente e de um lar, o exilado e, por extensão, o estrangeiro, é
consciente de, pelo menos, duas.

1384
Essa atitude, vislumbrada na posição estético-formal assumida pelo narrador-
colecionador, também é percebida na maneira como o escritor articulou diferentes redes
de contato e trocas culturais com escritores e poetas latino-americanos e africanos em
meados da década de 1940.3 É a partir dessa geopolítica do conhecimento, dessa
consciência situada nas margens/fronteiras da modernidade, que se funda o projeto
estético-literário de Salim Miguel.

A morte do tenente e outras mortes

Segundo Antonio Cornejo Polar (1996), é preciso ultrapassar o limite da simples


constatação dessa pluralidade discursiva e analisar a fundo as relações de forças
desiguais que a produzem e atravessam. No caso brasileiro, essa formação social,
marcada pela pluralidade e pela convivência conflitiva de matrizes culturais distintas, é
decorrente do processo colonizador, escravocrata e da vinda de diferentes grupos de
imigrantes, estes últimos principalmente em atendimento a uma política de eugenia. O
resultado desse choque cultural – marcado por uma relação de dominação e dependência
– não poderia ser outro, a constituição de uma realidade social profundamente dividida e
fragmentada, que se contrapõe à imagem moderna de nação como algo uno e
homogêneo.
Reconhecer essa heterogeneidade básica de nossa sociedade não significa
imaginá-la sempre harmoniosa ou desprovida de conflitos, pelo contrário, significa
perceber as diferenças sem o intuito de homogeneizá-las ou ocultar as tensões oriundas
desse contato. Para isso é necessário reivindicar o conhecimento histórico como
correlato que integra a nossa heterogeneidade cultural em uma totalidade contraditória,
ou seja, é necessário reconhecer o processo desigual no qual se desenvolveu nosso país
e partir, em cada caso concreto, desse conhecimento para “examinar lo que en el fondo
es decisivo: la reproducción […] literaria de los conflictos y contradicciones que tejen la
historia global de nuestra sociedad” (CORNEJO POLAR, 1982, p.50).
Essas contradições do processo modernizador, os seus entrechoques e os seus
movimentos de resistência em reação à imposição de um único modo de vida são

3
Dentre estes destacam-se nomes como Luandino Vieira (José Graça), Augusto dos Santos Abranches,
Manuel Pinto e António Jacinto.

1385
aspectos que gostaríamos de ressaltar. Isso porque, ao valorizá-los, parece-nos que o
escritor não se volta exclusivamente para o passado com o intento de afirmar, de modo
essencialista, a sua própria identidade cultural, nem tampouco nega peremptoriamente a
modernidade e o seu apelo transformador, recaindo, dessa maneira, em um
irracionalismo niilista que não vê nenhuma saída. Ao contrário, as mudanças na
produção e na compreensão artísticas impostas pela modernidade são percebidas como
inevitáveis, ainda que, em muitas situações, devastadoras.
Tal constatação pode ser vislumbrada em A morte do tenente e outras mortes,
livro síntese do projeto estético-literário do escritor Salim Miguel. Nele há uma série de
histórias ou contos articulados em torno da utilização do mesmo espaço (Biguaçu) e das
mesmas personagens. A estrutura do livro assemelha-se, desse modo, àquela estrutura
das narrativas orientais, nas quais uma segunda narrativa é encaixada na primeira e
assim sucessivamente. Em razão disso, há fortes resquícios da tradição oral, ainda que
inexista um conto-quadro, que abarque todas as narrativas em torno de um mesmo ato,
comum e compartilhado, de contar histórias, tal como a grande narrativa encaixante de
Sherazade e do Rei Sahriyar.
Nessa perspectiva, a forma escolhida pelo autor é bastante característica, pois as
origens do gênero remontam à tradição de reunir as pessoas para contar e ouvir os
relatos da tribo, da comunidade e/ou da família. Aliado a isso, a forma conto emana,
segundo Julio Cortázar, uma ressonância profunda, algo como “um tremor de água
dentro de um cristal, uma fugacidade numa permanência” (2006, p.150). Por essa razão,
ainda que a história narrada possua limites precisos de tempo e espaço, paradoxalmente
esse pequeno recorte reverbera uma visão muito mais ampla sobre a realidade
representada. Essa abertura do conto para algo que transcende o campo abrangido pela
história narrada permite-nos afirmar que esse livro de Salim Miguel é um símbolo
candente de uma ordem social e histórica arraigada em nossa sociedade.

Representação disjuntiva da nação brasileira: tradição e modernidade

Esse sabor de oralidade, que aproxima narrador e ouvinte, é um dos fortes


aspectos presentes em grande parte dos contos de A morte do tenente, conferindo ao
leitor a sensação de participar da conversa. No entanto, ainda que esses resquícios de

1386
uma tradição oral estejam muito presentes nos contos da série, é perceptível o processo
de elaboração artística de cada uma das histórias, demonstrando a consciência do artista
ante a matéria que tem em mãos. Segundo Edda Ferreira (1991), os contos apresentam
uma radical ruptura com a chamada tradição narrativa realista e estruturam-se por meio
de recursos os mais representativos dos textos modernos, tais como: o jogo temporal
que funde e confunde passado e presente; a polifonia e a polissemia das vozes; o uso do
discurso indireto livre; as constantes dúvidas e interrogações lançadas ao leitor; a
fragmentação da narrativa.
Logo, torna-se difícil afirmar, por exemplo, se o velho imigrante libanês,
Yussef/José, da primeira narrativa – “O gramofone” –, simplesmente rememora alguns
episódios do seu passado na terra de origem ou se conta-os para um interlocutor. A
primeira hipótese parece ser confirmada pelo recurso à técnica do fluxo de consciência,
estruturada em um único bloco narrativo, o que confere certo tom opressivo ao relato,
tal como em um pesadelo. Contudo, de forma pontual, o narrador vai incorporando
alguns índices de oralidade: pausas, lapsos, digressões, retificações, perguntas, os quais
parecem indicar a presença de um ouvinte na história.
Essas constantes dúvidas, reticências, jogos de palavras conferem ao discurso do
narrador certo inacabamento. Há, por conseguinte, um tom de relatividade, aspecto de
quem não está muito seguro sobre o que expressa, o qual advém da utilização do
discurso memorialístico e a certeza de que este nunca poderá reproduzir fielmente o
passado.
No conto seguinte, “Um bom negócio”, o mesmo personagem ressurge, no
entanto, ele não narra mais a própria experiência no distante Líbano. O relato pessoal é
transferido para a voz de um narrador em 3ª pessoa, que desliza, por meio do discurso
indireto livre, do exterior (observação direta dos pequenos fatos cotidianos) para o
interior do personagem (seu processo mental, sonhos e frustações).
A venda de camarão seco para outras comunidades de Santa Catarina transforma-
se, como a ironia presente no título sugere, em um mau negócio, levando as parcas
economias do comerciante e deixando-o sem esperanças. Essa é a tragédia do modesto
vendedor, o qual se encontra diante de um impasse, ocasionado, da mesma forma que
no conto anterior, por um agente externo: o recrudescimento da 2ª Guerra Mundial e os
seus impactos econômicos. Os efeitos da crise são sentidos em todos os lugares, até

1387
mesmo naquela cidadezinha do interior catarinense, onde o personagem e a sua família
residem. Por conseguinte, a primeira narrativa engloba essa segunda, seja pela
reiteração do mesmo personagem e da mesma situação de crise política e econômica,
seja pela presença de fragmentos textuais que retomam a primeira história:

A melopeia se aproxima, vibra, depois vai se perdendo, o casal parou de


discutir, fica ouvindo. Ao som do meu saudoso violão. O sono chega. Na
dormência que o domina “seu” Miguel pensa, está em Kfarssouroun, Líbano,
outra guerra, é 1915, o tenente, o gramofone, a música, a noite na vila,
levanta-se, já vou, um pensar vago diluído [...]. (MIGUEL, 1979, p.34).

Mas qual seria a finalidade do encaixe para a compreensão geral da obra? Ao


retomarmos a texto de Todorov (2013) sobre o assunto, observaremos que o encaixe
não é um mero recurso composicional, antes uma explicitação da propriedade mais
profunda de toda narrativa. Neste sentido, parece-nos que, além de apontar as relações
assimétricas de poder ao longo do globo e como elas afetam a vida de pessoas comuns,
a narrativa encaixada reflete a narrativa encaixante no exato ponto em que “o passado
realmente não passou” e, por essa razão, os fatos repetem-se no tempo como uma
mesma cantilena a envolver a todos. Portanto, o uso de recursos textuais próximos da
tradição oral, árabe e popular, mais do que ressaltar um utópico retorno às origens do
autor apontam criticamente para a reiteração da velha e persistente estrutura social
(desigual e excludente) em países de modernização periférica como o nosso, mesmo
ante a perspectiva, ilusória, de uma mudança social efetiva. Essa análise parece
confirmar-se no conto “Outubro, 1930” pelas vozes da comunidade, espécie de coro a
proferir frases desencontradas sobre a tal revolução:

[...]
é o Getúlio
tem muita resistência ainda por este Brasil afora
besteira
não diga isto
novos tempos, melhores tempos
derrubada das oligarquias
tiraram as tábuas da ponte Hercílio Luz
não vai adiantar nada
dignidade
Getúlio
barcos de guerra se bombardeiam
perto de Biguaçu
cadáver na praia de São Miguel
sobras pra gente que não temos nada
me diga qual a importância de Biguaçu. (MIGUEL, 1979, p.135).

1388
Assim, apesar do discurso revolucionário anunciar “novos tempos, melhores
tempos”, destruição das antigas estruturas patriarcais da sociedade brasileira, o que
avulta nos comentários é a parca participação social no movimento e a certeza que, no
fim, “não vai adiantar nada”, pois para a maioria do povo restam apenas as sobras, as
mortes e a convicção de não possuir realmente importância. Por conta disso, a marcha
dos homens ligados a Getúlio Vargas até a capital do País modifica apenas
temporariamente o cotidiano da pequena cidade de Alto Biguaçu: “Apesar de tudo a
vida no lugarejo continuava. Era também forte, exigente. O viver comum, os trabalhos,
as distrações miudinhas.” (MIGUEL, 1979, p.130).
Fátima Regina Zan, ao analisar os mesmos três contos do livro de Salim Miguel,
afirma que eles “revelam um autor preocupado em mostrar a vida mesquinha das
pessoas comuns, a história franzina daqueles que vivem sem feitos heroicos, [e] que
muitas vezes são impedidos de tomar conta de suas próprias vidas” (1996, p.80). Razão
pela qual as histórias narradas não são lineares, contínuas, com começo, meio e fim,
uma vez que a vida das personagens é constantemente fraturada por acontecimentos
externos, promovidos por aqueles que detêm o poder.
Esses “grandes homens” que a história oficial não cansa de imortalizar,
membros de uma seleta e “digna” elite econômica e cultural em nosso País, não
poderiam deixar de figurar igualmente nos contos do livro. Contudo, diferentemente de
personagens como Ti Adão, Yussef Miguel e Jacinto Silva, portadores de uma
sabedoria popular profunda, oriunda dos ancestrais, de terras distantes ou de forças
espirituais que ultrapassam qualquer explicação lógica, tais figuras proeminentes,
presentes em toda e qualquer pequena cidade do interior (microcosmo da grande
província Brasil), são retratadas pelo narrador como sujeitos medíocres, hipócritas e
sem qualquer cultura.
Em “O silêncio escuro”, por exemplo, a morte do ilustre professor Muniz de
Souza e Melo, diretor do Departamento de Assuntos Culturais e Artísticos da cidade,
“beletrista, descendente de tradicional família, vinculado ao situacionismo político,
figura de prol da nossa melhor sociedade, [...] emérito declamador, fundador e sócio de
numerosas associações culturais e filantrópicas", político e pai de família exemplar, é
noticiada pelos jornais como uma “perda irreparável, que empobrece a cultura e a

1389
sociedade [local] – e por que não dizer, catarinense e brasileira” (MIGUEL, 1979, p.56-
57). Ao mesmo tempo, em que pelas vozes da comunidade presente em seu velório
“ouvimos”, em meio ao ressoar dos cochichos, o outro lado da história daquela
exponencial personalidade:

Te explico, me contaram que quando estudante ele andou, tu sabes, o passado


dele... Dona Amélia, trago-lhe a solidariedade do nosso querido Secretário,
que infelizmente não tem condições de comparecer, está adoentado, a saúde,
ficou muito abalado, mas está aqui em espírito. Obrigada. Mentira, infâmia,
inveja, calúnias! Um pai de família exemplar, um democrata. Dona Amélia,
pode crer. Obrigada, “seu” Serafim. E aquele caso recente com a atrizinha da
peça... (MIGUEL, 1979, p.55).

Mesmo personagem que ressurge como membro da seleta Associação Amigos da


Amizade, cuja “tertúlia” será o mote do conto “Reunião”. O narrador empregue uma
linguagem extremamente formal e metódica, contrastando-a com um persistente tom
irônico que ressalta os mínimos detalhes de uma elite cultural que gosta de utilizar
palavras difíceis, como sugere o adjetivo “beletrista”, mas que, em profundidade, não
tem nada a dizer ou transmitir em termos de sabedoria e/ou originalidade.
Essa análise permite-nos verificar outra constante, além do espaço, nos contos do
livro: a percepção temporal de que o presente é superficial, vazio, e o futuro pode ser
ilusório, enganoso, uma vez que a sua concretização é constantemente negada. É, por
isso, que Yussef, no primeiro conto, refugia-se nas memórias do passado, pois quando
acreditou nas perspectivas futuras de “Um bom negócio”, elas mostraram-se irreais,
tanto que essa segunda narrativa encerra-se da mesma forma que se inicia: com o
personagem acordando em um banco de praça, após um sonho insólito, no qual um
exército de camarões com as suas couraças amareladas, lanças em riste, perseguem-no
de forma ameaçadora. A aparente irrealidade da situação, conferida pela circularidade
do conto, contrasta com a construção realista da história, conforme atesta a sua
reiteração posterior, pela voz de Frederico, personagem de “O presente do diabo”, que
relembra o prejuízo que “sô” Zé teve com o camarão seco.
O mesmo dá-se em “O silêncio escuro”, cujo personagem principal vive as mortes
alheias por meio de sua coleção de gravatas-borboleta. Ou ainda com “As queridas
velhinhas”, narrativa que busca desvendar a misteriosa vida de duas senhoras idosas

1390
após as suas mortes, uma vez que ambas viviam isoladas do mundo exterior em um
“casarão inviolado”, indiferentes a tudo e a todos, sejam vizinhos ou parentes.
A fuga para outro tempo, para outra vida, para outro mundo construído com
palavras ou, então, com obras de arte (“Galo, gato, atog”) contrasta com o vazio e a
mediocridade do presente narrado em “Reunião” e com a perspectiva, nunca realizada,
de um futuro conciliador, como ocorre em “Amanhã”. Não por acaso, esse último conto
será aquele que encerra o livro, apresentando um grupo de jovens que projeta
eternamente para um amanhã a realização do sonho de sair da cidadezinha e enfrentar
um mundo novo, cheio de aventuras, de emoção e de conquistas. Cansados do
cotidiano, dos dias e noites sempre iguais, os amigos “querem-não-querem” enfrentar o
desconhecido, indecisão que obriga o autor-criador a interferir na narrativa e incitar os
jovens: “─ Coragem, seus merdas! A voz vem de dentro deles, não é de nenhum em
particular e é de todos” (MIGUEL, 1979, p.146). Contudo, a irresolução e a impotência
agarram-nos e mantêm-nos ali, temerosos do que exista lá fora. O isolamento da cidade
e a impossibilidade de renovar-se fazem, portanto, com que o futuro dos jovens seja
constantemente limitado pelas repetições do presente.
Essas distintas temporalidades formam uma “constelação” saturada de tensões que
não apontam para nenhuma solução fácil, pois se o presente é um tempo vazio de
experiências significativas, tampouco a possibilidade de concretização em um futuro
conciliador ou o retorno ao passado configuram-se como alternativas possíveis. Frente a
esse panorama desolador, é necessário estabelecer novas correspondências entre o
passado e o presente para que possamos projetar uma nova história. Uma história que
não vise a um retorno impossível ao passado, o que somente levaria ao isolamento e à
rejeição de qualquer aprendizado concreto (como se esboça em As queridas velhinhas);
nem negue peremptoriamente o futuro, ainda que o pense em termos não lineares (como
sugere o inacabamento do conto Amanhã); muito menos esqueça o fato de vivermos em
uma espécie de “presente eterno”, no qual não se vislumbra nenhuma perspectiva de
mudança efetiva dessa ordem de coisas.
Tal reflexão alia-se às considerações da historiadora, socióloga e escritora Régine
Robin, em seu livro A memória saturada (2016), ao tratar sobre o contratempo, as
repetições e as anacronias históricas. Para a autora, o presente não é um tempo
homogêneo, mas a articulação de temporalidades distintas, heterogêneas e polirrítmicas.

1391
Por esse motivo, não são poucos os estudiosos que percebem, na contemporaneidade,
um ar estranho de déjà vu, de um passado que retorna, pelo menos aparentemente, como
imitação ou farsa.
Diante desse cenário, é preciso articular um novo tempo a vir, um tempo de
esperança em uma nova sociedade. Para pensar isso, Robin cita o caso do movimento
zapatista no México e a sua luta contra o esquecimento a partir do cruzamento rítmico
de várias temporalidades – passado, presente e futuro – e espacialidades – local,
nacional e universal. De acordo com a autora, somente assim poder-se-ia articular o
todo sem construir uma falsa ideia de totalização, ou seja, poder-se-ia ilustrar o
funcionamento da “não contemporaneidade”.4
Para isso, necessitamos compreender, com clareza, que o mundo em que vivemos
não é uno e homogêneo, pelo contrário, a nossa realidade é contraditória, fragmentada e
heterogênea. Nessa dialética sem síntese possível, a qual busca captar o funcionamento
descontínuo das coisas e dos seres na continuidade dos processos históricos em marcha,
ganha destaque a figura do colecionador e o método de montagem literária presente no
livro A morte do tenente e outras mortes. Não por acaso, a primeira editora para a qual
Salim enviou cópia do original recusou a sua publicação, argumentando que “não havia
uma história com começo, meio e fim, não era seguida a cronologia, havia frases
começando com pronome oblíquo” (MIGUEL, 2000, p.12). A resposta veio em uma
carta explicativa, na qual o autor esclarece pontos importantes sobre o seu processo de
criação:

Tudo começa, a mais das vezes, com uma mera sensação indefinível, uma
imagem fugidia, uma palavra entreouvida. Ela aciona um mecanismo interior,
um depósito de que tenho acumulado no decorrer dos anos e de onde vou
extraindo os elementos para a minha ficção.
[...]
Em textos compactos ou em blocos, há um jogo de recorrências, de apelo à
memória, de diálogos onde tiques e modismos procuram identificar e situar
os participantes. É a partir daí que o conto se arma. Seja ele guiado por um
som penetrante, um cheiro asfixiante, cores, reconstituição do passado pelos
olhos de uma criança, sensações difusas [...]. Cada conto, assim, é uma
unidade independente. Mas o livro, como um todo, pretende algo mais:
compor o retrato de uma comunidade interiorana e tornar-se um romance
desmontável. (MIGUEL, 2001, p.13-14).

4
O conceito de Ernest Bloch de “não-contemporaneidade” é utilizado por Régine Robin no sentido de
que há uma desigualdade temporal no desenvolvimento histórico.

1392
Nesse fragmento, há uma clara associação entre o trabalho do escritor e o trabalho
do colecionador de recolher e correlacionar, de modo inusitado, fragmentos de
memórias, restos de experiências e falas alheias, os quais nunca formam um todo
coerente ou completo. Isso porque, mesmo que parta de um ambiente fechado, limitado
e estagnado de província e de sua visão estreita das coisas e dos seres, avulta a
percepção de que esse espaço é profundamente desigual, contraditório e fragmentado.
Percebemos essa estrutura social refletida na estrutura narrativa do livro, uma vez que
cada conto é uma unidade independente, mas em conjunto pretendem formar uma
espécie de romance desmontável. A província Biguaçu transforma-se, dessa forma,
metonimicamente na imagem disruptiva da província Brasil ao buscar captar em seus
dispersos e descontínuos fragmentos e temporalidades algo daquelas vozes esquecidas
pela ideia ilusória de uma história linear e causal, que progride irremediavelmente para
algum lugar, não sabemos qual.

Considerações finais

A partir dessa leitura, a figura do colecionador aproximar-se-ia do conceito de


“transmordenidade”, no sentido de buscar estabelecer uma nova relação entre o caráter
emancipador racional da modernidade e sua alteridade negada (tradição proveniente de
culturas pré-modernas, as quais durante séculos foram negadas, ignoradas, desprezadas,
mas resistiram ao processo aculturador). O filósofo peruano argumenta que, diferente do
postulado habermasiano de concretização do incompleto e inacabado projeto da
modernidade, devemos enfrentar os seus problemas com uma multiplicidade de
respostas críticas outras, provenientes de suas margens epistêmicas, ou seja, das culturas
e lugares definidos como periféricos. Nesta perspectiva, o seu projeto transmoderno não
se vincula nem à tradição (em uma afirmação folclórica do passado) nem a uma crítica
antimoderna ou pós-moderna (em uma negação total dos princípios modernos), uma vez
que implica a necessidade de vislumbrar alternativas à modernidade, com o intuito de
redefini-la em outros termos, mais solidários e co-participativos.
Assim, diante da dispersão desenfreada da modernidade e em contraponto à
concepção de um único modelo de modernidade, essencialmente eurocêntrico, talvez só
reste ao sujeito colecionar os fragmentos daquilo deixado de lado pela história

1393
totalizadora, realizando o árduo trabalho de estabelecer correspondências entre o antigo
e o atual. Equilíbrio instável que não visa restaurar uma antiga ordem das coisas ou
resolver os conflitos em uma síntese conciliadora, antes tão somente reconhecer a
existência e a resistência dessas outras vozes residuais em meio à imposição de uma
cultura dominante.

Referências

CORNEJO POLAR, Antonio. Sobre literatura y crítica latinoamericanas. Caracas:


Ediciones de la Facultad de Humanidades y Educación, Universidad Central de
Venezuela, 1982.

________. Una Heterogeneidad no dialéctica: Sujeto y discurso Migrante en el Perú


contemporáneo. Revista Iberoamericana. Vol. LXII, n. 176-177, Jul./Dez., p.837-844,
1996.

CORTÁZAR, Julio. Valise de cronópio. Trad. Davi Arriguci Jr. e João Alexandre
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1394
OS ÉPICOS LATINO-AMERICANOS DE NERUDA E ACCIOLY E A
LEITURA A CONTRAPELO

Éverton de Jesus Santos (UFS)1

Resumo: Uma das propostas de Walter Benjamin para a escrita da história é enfatizar o ponto de
vista dos vencidos, mediante uma leitura que escove a história a contrapelo. Nesse sentido,
partindo das epopeias Canto general, de Pablo Neruda, e Latinomérica, de Marcus Accioly, cujos
escritores, na posição de cronistas, valorizam a perspectiva dos dominados e oprimidos,
almejamos mapear, por meio de uma análise embasada em referencial teórico-crítico específico,
exemplos de revisitação de histórias contadas e/ou vividas por personagens por vezes silenciadas
ou esquecidas. Assim, sejam os povos indígenas dizimados após a “descoberta” da América,
sejam os torturados e desaparecidos por causa das ditaduras no continente, por exemplo, nos
épicos citados observam-se o engajamento político e a empatia com os vencidos. Com efeito,
espera-se, com este estudo, produzir reflexões em prol do conhecimento de uma humanidade
redimida, despertando, com esse olhar para o passado, a esperança, para que os dominadores não
continuem a vencer, projeto esse que Neruda e Accioly desenvolveram ao deixarem cantar pelas
suas epopeias os invisibilizados da história americana.
Palavras-chave: Canto general; Latinomérica. Contrapelo; América Latina.

Introdução
Canto general (1950), do chileno Pablo Neruda, e Latinomérica (2001), do
brasileiro Marcus Accioly, apresentam vários pontos em comum, por exemplo o
centramento na história e na geografia (latino-)americanas, a diversidade de temas e de
artifícios poéticos, mas também a postura revisionista que se volta para o passado em
busca de fazer justiça pelos oprimidos e esquecidos, de forma a inverter a lógica do
discurso oficial e hegemônico que por vezes reverbera o conhecimento e a perspectiva de
uma matriz colonial do saber/poder focada nos vencedores da história. Porém, é nos
vencidos que nos deteremos neste estudo.
Para tanto, partiremos principalmente de algumas considerações de Walter
Benjamin (1987), no âmbito da teorização acerca de uma maneira alternativa e politizada
de se escrever a história, no sentido de reconhecer leituras que, nas epopeias citadas, põem
no cerne do relato atores marginais (ainda que haja personagens tradicionais, como
Tiradentes e Prestes), dando a ver a ascensão de heróis que nem sempre são lembrados e
louvados. Isso porque, à medida que a obra literária se abre para valorizar versões não
canônicas e dar voz a personagens cuja história geralmente não é contada, não apenas se

1
Graduado em Letras (UFS), Mestre em Literatura e Cultura (UFS), Doutorando em Literatura e Recepção
(UFS), membro temporário do CIMEEP (Centro Internacional e Multidisciplinar de Estudos Épicos).
Contato: evertonufs2010@hotmail.com.

1395
demonstra o potencial da arte enquanto promotora do resgate de uma memória coletiva,
mas também de escritores que se engajam num trabalho épico que, por meio da
politização e da crítica, consegue deslocar e realocar o foco do heroísmo, iluminando
outras visões de mundo mais ligadas ao popular e em detrimento das canônicas.
A questão do povo/popular é interessante ser ressaltada aqui por estar diretamente
relacionada a uma personagem coletiva tanto em Neruda quanto em Accioly, mas também
porque conclama que o/a leitor/a se identifique com as lutas das massas por liberdade,
igualdade, justiça etc., ou seja, valores positivos que de alguma forma apontam para a
democracia. Benjamin (1987) escreve que as classes revolucionárias – como o povo unido
em prol da transformação social – fazem explodir o continuum da história no instante da
ação, isto é, insere-se uma cesura na linearidade histórica – aquilo que é posto como
verdade –, significando que é preciso haver combates para se subverter o status quo. Isso
vai na mesma direção de configurações repletas de tensões nas quais o pensamento para
bruscamente, comunicando-se um choque que cristaliza tais configurações (BENJAMIN,
1987), ou seja, é possível que haja uma nova orientação do pensamento a partir de um
movimento causado por tensões e cesuras, agindo, com efeito, sobre o continuum e
homogêneo da história oficial, o que leva a outros modos de apreender a realidade.
Há, além disso, na concepção do estudioso, uma relação indissolúvel entre passado
e presente, visto que aquele age como um sopro do que veio antes sobre o que é agora e
como ecos de vozes que já emudeceram, isto é, o ponto de partida do hoje é o ontem, a
história se renova, por um lado, mas por outro algo nela resiste e reaparece, e se apropriar
do passado com plenitude é tarefa que somente pode ser realizada por uma sociedade
redimida. É por isso que Benjamin, ao evidenciar o cronista que não faz distinção, na
narração, entre acontecimentos grandes e pequenos, ressalta que “nada do que um dia
aconteceu pode ser considerado perdido para a história” (1987, p. 224). Assim, podemos
considerar Canto general e Latinomérica como obras escritas num momento presente
(respectivamente meados do século XX e final deste e início do XXI), mas com um olhar
contundente para o passado, numa revisitação que, na maior parte das vezes, valoriza os
eventos e fatos por vezes esquecidos, menosprezados, silenciados, em prejuízo dos
grandes, ou seja, os que vigoram na História oficial. E, além disso, os poetas Neruda e
Accioly, ao darem ouvidos às mudas vozes e inscrevê-las numa forma grandiosa como é
a poesia épica, projetam-nas nas malhas de releituras que dão acesso a conhecimentos

1396
que geralmente não passam pelo filtro do cânone – que focaliza principalmente o ponto
de vista europeu, branco, masculino, heterossexual, cristão etc.
É nesse ponto que o historiador – mas também o poeta/cronista, diga-se de
passagem – fazendo jus a seu privilégio de ter o dom de “despertar no passado as centelhas
da esperança”, conforme Benjamin, não se inquieta por saber que [...] “também os mortos
não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer”
(1987, p. 224-225). Por conseguinte, reside nessa disputa entre vencedores e vencidos,
dominadores e dominados, o centro da questão: poder escrever uma nova história,
distanciada dos moldes hegemônicos, significa não um discurso neutro ou objetivo, mas
um alinhamento aos elos que têm sido desprestigiados historicamente (e não só na escrita
da história). O inimigo, nesse contexto, não pode continuar vencendo, e Neruda e Accioly
o sabem, tanto isso é verdade que o enredo de suas epopeias tem como principais figuras
heroicas povos indígenas, revolucionários, desaparecidos, torturados, artistas de
esquerda, trabalhadores, etc., ou seja, personagens que estão à margem do sistema e,
consequentemente, alijados do poder.
É na Tese 7 que Benjamin entra com a noção de “escovar a história a contrapelo”
(1987, p. 225), o que seria, para ele, tarefa do materialista histórico. Em outras palavras,
isso consiste em estabelecer uma relação de empatia não com o vencedor, como o faz o
investigador historicista, mas com o vencido, o dominado; privilegiar o dominador é
assistir a um cortejo no qual desfilam os que têm sido marginalizados, é dar continuidade
à barbárie que subjaz à transmissão da cultura e dos bens culturais, sendo a história a
contrapelo uma possibilidade de ir de encontro aos discursos cristalizados, de reescrever
e reler visões de mundo naturalizadas, de combater, não sem dor (pois que se escova na
direção contrária à do pelo), a aparência de verdade que há no que os vencedores têm
instituído, constituindo-se na “oportunidade revolucionária de lutar por um passado
oprimido” (Idem, p. 231); deve ser, portanto, a forma de lutar da classe vencida e oprimida
e de todos aqueles que com ela se identificam.
Feito esse percurso sobre a concepção de Benjamin (1987) acerca de uma leitura
histórica a contrapelo, contemplaremos, no tópico a seguir, algumas figuras que aparecem
em Canto general e Latinomérica, de forma a ilustrarmos com trechos das epopeias como
ocorre o revisionismo que projeta o heroísmo de personagens marginais, valorizando as
revoluções e lutas do povo.

1397
Heróis da história, história de heróis
Para exemplificar o modo como os escritores se voltam ao passado e ressignificam
o heroísmo, centraremos em duas personagens: em Canto general, focaremos em Túpac
Amaru, líder indígena mencionado cinco vezes na epopeia, e, em Latinomérica,
evidenciaremos alguns traços do revolucionário negro Toussaint L’Ouverture, citado
duas vezes. Salientamos que, ainda que possam ser reconhecidos como personagens da
tradição, ou melhor, cujo estatuto é marcado pela figuração na história e pelo valor dos
feitos empreendidos, a intenção neste estudo é verificar como o protagonismo se constrói
a partir de uma releitura que valoriza a perspectiva dos vencidos e espoliados da história,
ao invés dos vencedores.
Iniciando por Túpac Amaru, “sabio señor, padre justo”, é apresentado em poema
homônimo, acrescido do ano 1781, no Canto IV – Los libertadores, retratando quando,
juntamente com a primavera desolada, os patamares andinos assistiram à subida de
iniquidades e tormentos advindos da colonização. Os males estavam ligados à exploração
sofrida pelos índios na extração da prata, o que causava feridas que enterneciam o “Señor
Inca, padre cacique”: “Era un sollozo y otro sollozo. / Hasta que armaste la jornada / de
los pueblos color de tierra, / recogiste el llanto en tu copa / y endureciste los senderos”
(NERUDA, [1950] 2011, p. 225)2. Ele se insurgiu como “padre de la batalla” entre as
aldeias humilhadas contra a dominação espanhola em forma de pedra sanguinária, inércia
desgraçada e metal das correntes, uma vez que a intenção era promover a emancipação
do Peru para, entre outras coisas, libertar o povo do pagamento de impostos à metrópole.
No entanto, tendo sido derrotado em sua missão, o líder indígena, referenciado várias
vezes como “padre” (“pai”, em português), foi preso, julgado e executado de forma cruel:
“Ataron tus miembros cansados / a cuatro caballos rabiosos / y descuartizaron la luz / del
amanecer implacable” (Idem, p. 226)3.
O líder dos “povos cor de terra”, cujo nome era José Gabriel Condorcanqui, que
adotou o título de Túpac Amaru, um de seus antepassados, foi declarado culpado por ir
de encontro à ordem colonial, ameaçando-a. Guazzelli (2010, p. 133), acerca das revoltas

2
“Senhor Inca, pai cacique”; “Era um soluço e outro soluço. / Até que armaste a jornada / dos povos cor
de terra, / recolheste o pranto em tua taça / e endureceste as veredas” (NERUDA, 2010, p. 140-141, tradução
de Paulo Mendes Campos).
3
“Ataram os teus membros cansados / a quatro cavalos raivosos / e esquartejaram a luz / do amanhecer
implacável” (Idem, p. 141).

1398
indígenas que se avolumaram a partir do século XVIII, expõe que o significado da
rebelião de 1781 foi preceder o movimento de independência peruano e, “mais do que
indicar para a necessidade de um rompimento, [...] serviu como um alerta aos colonos,
que precisavam das forças da metrópole para conter uma transformação radical da
sociedade que colocava em risco suas existências”. Logo, sustentar o embate entre as
demandas indígenas, em face da submissão como força de trabalho, e as metropolitanas,
personificadas nas colônias pelos corregedores, representava um sistema contra o qual as
massas marginalizadas se uniram para lutar, portanto a liderança de Túpac Amaru nesse
sentido é lembrada como a de um libertador.
A sublevação indígena que ele encabeçou teve início na província de Tinta, em
1781, e foi marcada, conforme ensina Galeano (2017), por proclamações corajosas como
a proibição da mita – tipo de regime de trabalho assalariado forçado – e pela condenação
à forca de um corregedor real, além de ter decretado a libertação dos escravizados e a
abolição de todos os impostos, medidas essas que desagradaram à Coroa espanhola.
Enfrentando os colonizadores que se situavam em Cuzco, houve vitórias e derrotas, mas
foi, por fim, traído e aprisionado:

Túpac foi submetido a torturas, juntamente com sua esposa, seus filhos e
principais seguidores na praça de Wacaypata, em Cuzco. Cortaram-lhe a
língua. Amarraram seus braços e pernas a quatro cavalos, para esquartejá-lo,
mas o corpo não se dividiu. Foi decapitado ao pé da forca. Sua cabeça foi
enviada para Tinta. Um dos braços foi para Tungasuca e outro para Carabaya.
Mandaram uma perna para Santa Rosa e a outra para Livitaca. Queimaram-lhe
o torso e lançaram as cinzas no rio Watanay. Recomendou-se que fosse extinta
toda a sua descendência até o quarto grau (GALEANO, 2017, p. 73).

Assim como Lautaro, Túpac Amaru é uma figura de destaque na formação da


identidade americana porque foi de encontro ao poder estabelecido pelos conquistadores
em relação às colônias, e, ainda que seja “sol vencido”, há uma imensa glória na revolução
empreendida, conhecida como maior rebelião anticolonial do século XVIII na América
Espanhola. Por isso, as aldeias, os teares, as casas de areia, todos anunciam o nome Túpac,
visto que ele, como posto no Canto nerudiano, “es una semilla / [...] Y Túpac germina en
la tierra” ([1950] 2011, p. 226)4, demonstrando com isso que o heroísmo prevalece sobre
os percalços e atravessa o tempo, inscrevendo o nome de certas figuras no imaginário e

4
“é uma semente [...] / e germina na terra” (NERUDA, 2010, p. 142).

1399
na história tanto a nível de nação quanto de continente. Além disso, trata-se do
estabelecimento de vínculos com personagens históricas que, pela sua relevância, são
relacionadas à resistência indígena contra os conquistadores, passando a ter, em face
disso, um estatuto mítico que funde o individual ao coletivo, aumentando seu valor para
a comunidade que, pela memória, insufla o espírito guerreiro em nome de altos ideais.
Outra personagem que vale a pena ser observada é Toussaint L’Ouverture – desta
feita em Latinomérica, de Accioly (2001) –, líder dos movimentos de independência do
Haiti, primeira colônia da América Latina a se libertar dos grilhões da metrópole, a
França, e primeiro Estado das Américas a abolir a escravidão negra (PRADO;
PELLEGRINO, 2016). Com relação à importância do país, era, segundo as estudiosas,
responsável por dois terços do comércio exterior do Império, além de o maior mercado
de tráfico negreiro europeu, sendo a subordinação dos negros por meio de perversidades
e punições o que motivava as fugas constantes e o desejo de emancipação. Por exemplo,
no poema “Haiti”, no Canto XI – O Recomeço, os versos destacados apontam para dois
bens inalienáveis que eram almejados – a liberdade e a independência: “(ai de ti) ó Haiti
(de Port-au-Prince / à Ilha de Tortuga que alguém brade) / ‘teu nome (Independência) é
Dessalines / e teu nome (Toussaint) é liberdade!’” (ACCIOLY, 2001, p. 372).
Os nomes dos líderes da Revolução Haitiana, como se pode perceber, se associam
aos bens pelos quais se lutava, e Toussaint é apresentado como “o principal combatente
da rebelião escrava no Haiti, [...] um antigo escravo doméstico que [...] havia tido contacto
com alguns textos clássicos da cultura ocidental, sendo uma pessoa de invulgar erudição
para a época” (GUAZZELLI, 2010, p. 136), e Dessalines, “um ex-escravo que ascendera
à patente de general nas fileiras de Toussaint L’Ouverture” (PRADO; PELLEGRINO,
2016, p. 17). Os dois foram decisivos para os rumos da Revolução, tendo obtido como
resultado ao mesmo tempo a independência e o fim da escravatura no Haiti, único país
das Américas em que isso ocorreu.
O poema “Toussaint L’Ouverture”, presente no Canto XV – Os Segundos, enfatiza
a principal figura desse movimento, trazendo na primeira estrofe os antecedentes do maior
revolucionário negro das Américas: são citados o nome adotado (Toussaint L’Ouverture)
– “L’Ouverture” significa “abertura” – e o de batismo (Pedro Domingo), o local de
nascimento (a fazenda de Breda, no Haiti), além de o eu-lírico/narrador rememorar fatos
da infância, como os castigos, a fuga, a prisão, a venda para um francês e a ocupação de

1400
cocheiro. Além disso, é chamado de “libertador”, algo que se avolumará no poema. Na
segunda estrofe, por sua vez, é suscitada a relação de Toussaint com a iniciação nos
estudos, visto que ele, impulsionado pelo seu senhor, aprendeu a ler e a escrever, tendo
lido que um dia “[...] os negros achariam entre si / aquele destinado a ser o guia) / e foste
o guia deles (ai de ti)” (ACCIOLY, 2001, p. 473). Isto é, o revolucionário levou os negros
escravizados de fazendas açucareiras do norte de São Domingos a se insurgir contra seus
senhores, “exigindo melhores condições de trabalho nos canaviais e engenhos, com mais
tempo livre para dedicar-se à própria roça” (PRADO; PELLEGRINO, 2016, p. 17).
O “negro farol”, como é referido no poema, torna-se, assim, um emblema de
resistência e combate que foi símbolo de esperança para a pátria, mas preso pelas tropas
napoleônicas:

(escura chama) lenha que se queima


em fogo de carvão (brasa sem cinza)
teu nome (L’Ouverture) de abrir trincheira
(ou de minar o chão contra a inimiga
tropa) fincou na pátria uma bandeira
de esperança (que sob o sono vinga
o sonho) tu és Pedro e (Pedro) és pedra
da humana cordilheira destAmérica

(Napoleão – “dos brancos o primeiro


ao primeiro dos negros” – remeteu
seu cunhado Leclerc com o inteiro
exército francês que te venceu)
indo a bordo do Heros (prisioneiro)
escreveste que apenas se abateu
o tronco (em São Domingos) desta árvore
de raízes na terra (a liberdade)
(ACCIOLY, 2001, p. 473).

A “escura chama” que era L’Ouverture, “nome de abrir trincheira”, possibilitou


sonhar com a liberdade, dando aos escravizados um novo horizonte para além de viver
por toda a vida sob o jugo de seus senhores, por isso a intertextualidade com a passagem
bíblica de Mateus, capítulo 16, versículo 18, “Pois também eu te digo que tu és Pedro, e
sobre esta pedra edificarei a minha igreja”, quando Jesus interpelou o discípulo Pedro,
primeiro bispo da Igreja Católica, demonstra, no poema acciolyno, a grandeza da missão
de Toussaint, também chamado Pedro e “pedra da humana cordilheira destAmérica”. Isso
se deve, por exemplo, ao fato de ele, no exercício dos cargos de governador geral e
comandante das forças armadas, ter organizado as atividades produtivas da ilha, tornando

1401
assalariados os antigos escravizados (GUAZZELLI, 2010), além de proclamar o fim da
escravidão, em 1794, nas possessões francesas no ultramar.
No entanto, no embate com o exército de Napoleão, cuja cifra de soldados foi,
segundo Prado e Pellegrino (2016), de 25 mil homens, enquanto Guazzelli (2010) fala de
60 mil, comandados pelo general Victor Emmanuel Leclerc, cunhado do rei da França,
houve uma reviravolta, Toussaint foi preso e enviado para a metrópole, onde morreu,
ainda que muitas baixas também tenham acontecido nas forças armadas estrangeiras. O
herói, como mencionado nos versos finais, escreveu palavras de esperança, dizendo que
a árvore da liberdade, cujas raízes estão na terra, apenas havia se abatido, o que indica
que a luta ainda continuaria. E, como significado da Revolução Haitiana, a mensagem
que ficava para as demais colônias era que o Haiti, primeira colônia independente na
América Latina, “resultara no primeiro Estado nacional organizado e dirigido por negros
rebelados contra a escravidão. Isso com certeza teve mais importância para os criollos
que as influências independentistas que receberam de fora do mundo espanhol”
(GUAZZELLI, 2010, p. 137). Não se deve esquecer jamais que a transformação desse
status quo foi liderada por um revolucionário negro que, a partir de um movimento cuja
participação era majoritariamente de negros e crioulos, subverteu a condição escravagista
e implantou, com sua negra luz, nas terras antilhanas, o esplendor da liberdade, daí sua
marca como herói.
Considerações finais
Assim, ao se mudar a maneira de abordar acontecimentos, invertendo-se a
perspectiva, surgem possibilidades de contestação das ideologias, inclusive porque lutas
de classe são lutas pelo poder, e a forma de se escrever a história não raro contempla o
viés hegemônico, o do vencedor, algo que, ainda mais na contemporaneidade, precisa ser
confrontado. Como expõe Benjamin (1987), questionar cada vitória dos dominadores tem
como mecanismos a confiança, a coragem, o humor, a astúcia, a firmeza, de modo que a
tradição e os que a recebem tenham suas convicções estremecidas pelo encontro do sujeito
histórico com as reminiscências do passado, e não com aquilo que de fato foi.
Trazer os exemplos de Túpac Amaru e Toussaint L’Ouverture para demonstrar a
forma como a leitura a contrapelo é manifestada respectivamente em Canto general e
Latinomérica é uma maneira de chamar atenção para o revisionismo pelo qual figuras e
situações históricas passam em obras literárias que, longe de louvar os que ficaram

1402
célebres a partir da opressão infligida, da dominação causada a povos e populações, da
perseguição dita em nome de um ideal de ordem etc.
Diante do exposto, seja na escrita da história a partir de um viés alternativo, seja na
escrita da literatura como outras vozes a serem ouvidas, a leitura a contrapelo precisa ser
um mecanismo de desconstrução e de combate contra os discursos e as ideias
naturalizados, uma vez que a hegemonia e a hierarquia devem ser notadas como conjunto
de forças a ser enfrentado para que se construa uma sociedade mais igualitária, justa e
benevolente, e isso tendo em vista a valorização dos que foram historicamente dominados
e, por isso, espoliados de seu estatuto humano.
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ACCIOLY, Marcus. Latinomérica. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001.

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e técnica. Arte e política. Tradução Sergio Paulo Rouanet, prefácio Jeanne Marie
Gagnebin. v. 1. 3. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. p. 222-232.

GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Tradução de Sergio Faraco.


Porto Alegre, RS: L&PM, 2017.

GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. A crise do sistema colonial e o processo de


independência. In: WASSERMAN, Claudia (Coord.). História da América Latina:
cinco séculos. 4. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2010. p. 118-175.

NERUDA, Pablo. Canto geral. Tradução de Paulo Mendes Campos. 16. ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

NERUDA, Pablo. Canto general. Edición de Enrico Santí. 13. ed. rev. 6. ed. Madrid:
Ediciones Cátedra, 2011.

PRADO, Maria Ligia; PELLEGRINO, Gabriela. História da América Latina. 1. ed., 2.


reimpr. São Paulo: Contexto, 2016. (Coleção História na Universidade).

1403
LANTERNA VERDE PARA O SÉCULO XX: A CIDADE MODERNA EM
FELIPPE D’OLIVEIRA

Lucas da Cunha Zamberlan (UFSM)1

Resumo: Este trabalho objetiva abordar a poética de Felippe D’Oliveira de modo a ressaltar, em
perspectiva intercambiante, como esses aspectos se coadunam com o abrupto processo de
modernização ocorrido no Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século passado. Para tanto,
utilizamos um aporte teórico formado por autores que se concentraram no tema, como Rama
(2015), Sevcenko (2014), e Azevedo (2016).
Palavras-chave: Literatura Brasileira; Felippe D’Oliveira; Lanterna Verde.

No dia 17 de fevereiro de 1933, nos arredores de Paris, onde vivia há alguns


meses, o poeta e farmacêutico Felippe D’Oliveira experenciou, pela última vez, a
sucessão de procedimentos mecânicos que tanto o agradava no controle do seu Ford
modelo A. Como um bom dinamista2, habituado às novidades técnicas da época e, por
isso, às diferentes possibilidades sensoriais proporcionadas pela modernidade, Felippe
ligou a chave, atrasou a distribuição, posicionou corretamente o acelerador e precisou,
ainda, ir à frente do automóvel para girar a manivela para, enfim, escutar o ruído
estridente do motor de quatro cilindros. Minutos depois, a despeito das suas habilidades
ao volante, Felippe entregou o comando do automóvel o empresário Duvernoy, diretor da
Companhia Sul- América. Assim, pouco tempo depois, a voz do poeta silenciaria-se em
algum ponto da estrada próxima à Auxerre, deixando um legado, até então, de dois livros
que movimentaram a literatura brasileira das primeiras décadas do século passado: Vida
extinta, de 1911 e Lanterna Verde, de 1926.
A morte prematura de Felippe D’Oliveira, encarada sob o distanciamento
histórico quase secular, revela-se representativa. O poeta estava exilado na França, após
ter participado, ativamente, da Revolução Constitucionalista de 1932. Anos antes,
entretanto, Felippe havia atuado de forma decisiva no golpe de estado que permitiu a
ascensão de Getúlio Vargas ao poder ao formar, juntamente com seu irmão, João Daudt
de Oliveira e o deputado João Neves da Fontoura, a tríade indissolúvel – grupo
conspiratório ligado aos interesses da Aliança Liberal.

1
Realiza Pós-Doutorado CAPES/PNPD no Programa de Pós-Graduação em Letras na Universidade Federal
de Santa Maria (UFSM). Contato: lucasdacunhazamberlan@gmail.com.
2
Grupo modernista do Rio de Janeiro influenciado pelo sensacionismo português e formado por artistas
expressivos da intelectualidade carioca, como Ronald de Carvalho, Graça Aranha, Guilherme de Almeida
e Villa-Lobos. Em síntese, seus membros preconizavam a valorização estética de elementos próprios do
mundo moderno, tais como a velocidade, o movimento e o progresso técnico.

1404
Sua tragédia pessoal, portanto, pelo trânsito entre os diferentes círculos de poder
da capital, possui um componente político que a associa com a morte de seu pai. No dia
11 de agosto de 1890 (12 dias antes do nascimento de Felippe), o pernambucano –
delegado de polícia – Filipe Alves de Oliveira, fora assassinado por evolver-se em
acontecimentos particulares da política local do estado do Rio Grande do Sul, mas que
representavam, de modo amplo, a turbulência das relações de governança do país no
período pós Proclamação da República. Como afirma Beltrão (2013), os verdadeiros
motivos que acarretaram esse episódio evolvem a filiação ideológica do Filipe (pai) ao
partido liberal – portanto ao lado da monarquia – e principalmente seu temperamento
combativo, formalizado nos textos que publicava no periódico A Província, que ajudara
a fundar.
Com isso, o poeta, apesar de ter sido criado pelo seu irmão de sua mãe, João Daudt
Filho – um dos pioneiros da indústria farmacêutica no Brasil – e ter repisado os mesmos
caminhos trilhados pelo tio, pois tornou-se Diretor dos Laboratórios Daudt, Oliveira &
Cia, repetiu o destino trágico do pai que nunca chegou a conhecer.
Não obstante, o aspecto que parece essencial no acidente veicular de Felippe são
os significados simbólicos que se estabelecem nesse cotejamento entre o homem e a
máquina – no caso específico homem e automóvel. Esse argumento poético, no amplo
sentido da palavra, foi largamente evocado, com todas as suas implicações por vezes
contraditórias, por uma parcela considerável de artistas da segunda metade do século XIX
e início do século XX. Desde Fernando Pessoa/Álvaro de Campos (2006, p. 47) que
compôs a sua Ode triunfal, para dimensionar essa “beleza totalmente desconhecida dos
antigos” passando pela produção cultural das vanguardas europeias até o incremento
visual e estético da publicidade, a arte do período, como um todo, converge para esse
ethos moderno. Prova material e posteriormente social desse fenômeno, é a invenção do
cinematógrafo, dispositivo técnico que viabilizou a criação da sétima arte – mecânica e
industrial por excelência e responsável pela edificação de um imaginário urbano e de
massa que passou a divulgar imagens em movimento das grandes cidades do mundo.
No Brasil, lugar onde, de fato, Felippe D’Oliveira produziu sua literatura, o
substrato artístico e contextual, mutatis mutandis, acompanhou, embora em ritmo mais
lento e economicamente desajustado, o compasso modernizador europeu. António de
Alcântara Machado, por exemplo, amigo de Felippe, além de ter escrito um livro,

1405
denominado Pathé-Baby, que leva o nome de uma câmera, publicou em seu Brás, Bexiga
e Barra Funda, o conto bastante conhecido, chamado Gaetanhinho.
Sumariamente, o enredo expõe, com contornos líricos, o infortúnio de uma
criança, um filho de imigrantes italianos, que, enquanto estava jogando futebol
(manifestação cultural associada ao moderno) no meio da rua com outros meninos, é
atropelado por um bonde. Assim, Alcântara Machado, pela força dos acontecimentos
literários, elabora, além de uma complexificação da compatibilidade social entre homem-
máquina, também uma contradição fundamental do urbanismo funcional moderno,
sobretudo na América Latina.
O caso do poeta gaúcho, referente a esse assunto, apresenta-se de maneira um
pouco diferente, mas assentada nos mesmos alicerces temáticos e referenciais. No livro
In memoriam de Felippe D’Oliveira, primeira obra publicada pela Sociedade Felippe
D’Oliveira3, o intelectual Paulo Prado, um dos idealizadores do modernismo paulista e
agente importante da estada de Blaise Cendrars no país, descreve o homenageado de
maneira interessante.
Todas as contribuições do volume, por certo são marcadas pelo entusiasmo
emocional e, por isso, é necessário ajustar as lentes da racionalidade então muito
desfocadas pela tragédia dos acontecimentos. Entretanto, não de modo fortuito, Prado
justapõe, em apenas um parágrafo, o pioneirismo revolucionário do poeta como
publicitário, comparando suas propagandas a um poema modernista; a nobreza do seu
caráter (aspecto repetidamente ressaltado pelos autores), marcado sobremaneira pela
lealdade; e a habilidade de Felippe de dominar os aparatos tecnológicos desse mundo que
se descortinava em vertigem:

A propaganda revolucionária de Felippe D’Oliveira já era como que um poema


modernista: auto, radio, avião, tudo se agitava e se movia sob a direção alegre
e esportiva de Felippe. Conheci-o então completamente absorvido por este

3
Agremiação cultural criada, em 1933, em homenagem à memória do poeta. A Sociedade Cultural Felippe
D’Oliveira, entre outras ações, publicou textos inéditos do autor assim como republicou edições anteriores;
promoveu intercâmbios culturais; concedeu bolsas de aprimoramento profissional para artistas plásticos;
organizou exposições; e propagou o trabalho de autores brasileiros por meio de um concurso literário que
premiou grandes obras, como Casa Grande & Senzala (1935), Forma e exegese (1936), Manuel Bandeira,
com o conjunto de sua obra (1939), Raquel de Queiroz, com as Três Marias (1941), José Lins do Rego,
com Água-Mãe (1942) e Graciliano Ramos e Lúcio Cardoso, pelo conjunto de suas obras em 1943. As
ações da Sociedade eram divulgadas pelos boletins informativos Lanterna Verde, que perdurou entre 1933
a 1938 e, em um segundo momento, entre 1943 e 1944.

1406
trabalho, em que os próprios adversários reconheciam a lealdade e a bravura,
traços tão peculiares do seu temperamento (PRADO, 1933, p. 179).

Evidentemente, essa discussão aponta para o nome da obra-prima do poeta –


Lanterna Verde – e, consequentemente, para o poema “Entrecruzamento de linhas”

Entrecruzamento de Linhas
Núcleo de convergência no bojo da noite oval.
Lanterna verde
(amêndoa fosforescente
dentro da casca carbonizada.)
Longitudinal, centrífugo,
o trem racha em duas metades
a espessura do escuro
e, cuspindo pela boca da chaminé
as estrelas inúteis à propulsão,
atira-se desenfreado
nos trilhos livres.

Mas se o maquinista fosse daltônico


a locomotiva teria parado (OLIVEIRA, 1990, p. 65).

O texto, senão de feições estritamente modernistas, todavia seguramente moderno


em suas proposições formais e temáticas, oferece, de chofre, pelo ritmo irregular dos
versos livres, uma paisagem noturna em movimento. Cada ingrediente adicionado, uma
vez que os versos vão avançando e compondo o cenário completo, irrompe com verbos
que indicam força, a metaforizar, em certa medida, a fúria “desenfreada” da modernização
que, a despeito de parcelas resistentes da população, marchava sobre a capital do Brasil.
Em Literatura como Missão, Sevcenko escrutina esse processo justamente em
diálogo com a literatura. E na objetividade de seus dados, o teórico menciona o
alargamento da malha ferroviária como estratégica econômica que permitiria o
encurtamento das distâncias:

Mas o seu (modernização) aspecto material é mais vasto ainda, tanto no tempo
quando no espaço. Iniciada já, num certo sentido, com o Encilhamento, em
1891, mas a rigor com a inauguração da Avenida Central em 1904, ela se
estende com o mesmo fôlego de remodelação urbanística, arquitetônica e
social até o ano de 1920, quando sofre uma exacerbação frenética por ocasião
da visita do rei Alberto, da Bélgica, ao Brasil. Na sua dimensão espacial, ela
envolve toda a transformação da cidade do Rio de Janeiro até a criação de
novos troncos ferroviários, ligando a capital ao Norte, Sul e Oeste da nação, e
a organização da Marinha mercante (SEVCENKO, 2003, p. 58-59).

1407
No entanto, as linhas de força que movem a máquina estão subordinadas a uma
nova tipologia de linguagem, que permitem os acidentes – tanto por falha humana quanto
mecânica – como o que acontece em Gaetaninho e também artificial porquê fabricada,
embora imite em termos os efeitos físico-luminosos da natureza. A lanterna verde de
Felippe, além de estabelecer o sentido figurado que indica experiência cinética e
movimento para adiante, também direciona para as transformações operadas no corpo da
cidade, com a substituição de elementos naturais pelos artificiais.
Tal apagamento da natureza é realçado, seguramente, pela preocupação em relevar
a luminosidade de uma lanterna de semáforo em meio à noite, omitindo o luar e, por
conseguinte, toda uma tradição lírica de harmonização entre a natureza e a realidade
interior da persona poética. Essa marca é de fato reforçada pela presença/ausência das
estrelas, citadas no poema, que surgem como inúteis à propulsão da fumaça, distantes do
cenário que realmente interessa ao que está sendo descrito.
Esse debate se inscreve, relevantemente, em verdade, como um traço indelével
daqueles novos tempos. O quadro Poste de Iluminação (1909), de Giacomo Balla, no qual
um poste suplanta integralmente a luz da lua serve a título de exemplificação desse
evento. E a própria luz artificial do cinema também. Aliás, é importante ressaltar que a
primeira sessão pública de um filme, em Paris, em 1895, exibiu um trem chegando a
estação de Ciotat.
O final do poema, embora chame a atenção pelo seu conteúdo irônico e
aparentemente simples, remetendo, assim, a um poema-piada de Oswald de Andrade ou
até mesmo da primeira poesia de Murilo Mendes, abre espaço para alguns
questionamentos. Primeiro, para a possível falha humana, condicionada a um estado
orgânico do condutor. Segundo e, mais sub-repticiamente, para um problema de origem
técnica que teria acontecido no entrecruzamento de linhas, episódio substituído pela tirada
humorística. O verso “a locomotiva teria parado”, com o verbo no futuro do pretérito,
lança uma hipótese inócua, geralmente usada quando ocorre algo que se lamenta, que
poderia ter sido evitado.
No entanto, na poética do autor, o avanço feroz da modernização aparece de forma
mais explícita, não coincidentemente no momento que Felippe debruça-se sobre a
problemática americana. Na última seção de Lanterna Verde, “Magnificat”, o poeta

1408
dedica o longo texto conformado em cinco partes a Ronald de Carvalho, escritor de Toda
a América. Na quinta, acumulando gerúndios, a voz denuncia:

O homem moço, cantando, contou que viu


outros homens,
retorcendo rios,
achatando montanhas,
comprimindo florestas,
rasgando istmos,
fendendo promontórios,
plantando torres de aço,
derramando outros rios, rios de asfalto e de aço,
ferindo no ventre o chão de fartura
(punções de petróleo, raspagens sonoras de minerais)
Ferindo nas veias o corpo da terra,
(sangrias de óleos, resinas e seivas).

O poema de Felippe D’Oliveira serve de emblema para a compreensão desse


processo um tanto compulsório de modernização do Brasil integrado ao contexto da
América-Latina. Segundo Rama (2015), despido da herança medieval, o desenvolvimento
das cidades americanas trilhou uma trajetória urbana sui generis, (des)harmonizando os
aspectos da natureza tropical às necessidades transformadoras desse novo modelo de
civilização.
No caso específico do Rio de Janeiro da Belle Époque, onde Felippe D’Oliveira
viveu nas décadas de 1910 e 1920, a cidade passou por diversas modificações
empreendidas pelo prefeito Pereira Passos. A série de medidas inseriu o Rio de Janeiro
no compasso do progresso europeu, como afirma Azevedo:

Passos, então, fez unir o ideal de civilização de sua geração de homens públicos
do Império à cultura estética vivenciada nesse período, por meio de sua
participação ativa em uma nova cultura estética que Paris trazia ao Ocidente
pelo resgate de uma cultura visual europeia carreada pelo urbanismo e a
arquitetura em um discurso de sedução urbanística.

Entretanto, como o próprio Azevedo afirma nas suas considerações finais do seu
texto, os aspectos sociais não receberam a mesma atenção por parte do governo,
desencadeando um certo desiquilíbrio de gestão que desencadeou novos problemas
urbanos. Paradoxal e contraditório também é a relação do poeta com essas modificações,
na comparação entre os dois textos. Ao mesmo tempo que há um evidente entusiasmo

1409
com a modernização e seus benefícios, existe, na mesma medida, um lamento lírico na
inscrição dos novos aparelhos civilizatórios na terra americana.
Essa é uma das querelas da poesia modernista brasileira, representada por Felippe
D’Oliveira. E se há beleza e verdade em “Entrecruzamento de linhas” e “Magnificat” é
porque o processo complexo de modernização da época, embora tenha sido desigual e
socialmente condenável em muitos aspectos, também despertou fascinação, como as
luzes artificiais de e uma lanterna verde.

Referências

AZEVEDO, André Nunes. A grande reforma urbana do Rio de Janeiro e o apelo visual
da urbe reformada como retórica e enlevo civilizador. Rio de Janeiro: Revista
Maracanan, v. 12, n. 14, jan/jun 2016.

MACHADO, António de Alcântara. Pathé-Baby: Edição fac-similar comemorativa dos


80 anos da Semana de Arte Moderna (1922-2002). Belo Horizonte/Rio de Janeiro:
Livraria Garnier, 2002.

OLIVEIRA, Felipe D’; COSTA, Lígia Militz da (org.); MOREIRA, Eunice (org.);
SANTOS, Pedro Brum (org.). Obra completa. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro;
Santa Maria: UFSM, 1990.

PESSOA, Fernando. Fernando Pessoa: antologia poética. Porto Alegre: Leitura XXI,
2006.

PRADO, Paulo. In Memoriam de Felippe D’Oliveira. Rio de Janeiro: Sociedade


Felippe D’Oliveira, 1933.

RAMA, Ángel. A cidade das letras. São Paulo: Boitempo Editorial, 2015.

SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na


Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

1410
A NARRATIVA DE ALDYR SCHLEE E A TERCEIRA MARGEM DA VIDA

Pedro Brum Santos (UFSM)1

Resumo: A presente proposta revisita a narrativa do ficcionista sul-rio-grandense Aldyr Garcia


Schlee com o fito de salientar a modelagem de seus dramas humanos e do universo onde
ocorrem: a fronteira Brasil-Uruguai, espaço afetivo cultivado pelo autor ao longo da vida. Nosso
desenvolvimento salienta a peculiaridade da obra assente no caminho entre dois territórios sem
pertencer particularmente a um ou a outro, mas exatamente aos dois de maneira concomitante e
sob a perspectiva de um terceiro olhar, zona franca do híbrido e do diferente, que insinua uma
constante e sugestiva situação de passagem.
Palavras-chave: Ficção; Fronteira; Passagem

Titulado em ciências jurídicas e escritor reconhecido pela conquista de duas


bienais de literatura e cinco Prêmios Açorianos, Aldyr Garcia Schlee, desde que venceu
concurso nacional que entronizou o verde e amarelo como uniforme oficial da seleção
brasileira de futebol, em 1953, jamais se livrou dessa associação com o design, que, ao
final da vida, causava-lhe visível incômodo. Primeiro, porque parecia obscurecer a
constante dedicação à literatura. Depois, porque, ao cabo, o verde e amarelo acabou
usurpado pelo espectro político que jamais lhe despertou qualquer simpatia.
Durante quatro décadas, contadas desde as publicações iniciais até a data de sua
morte, ocorrida em 2018, a literatura rendeu-lhe catorze títulos de elogiada prosa
ficcional, afora coletâneas, traduções e numerosa ensaística. Sua ficção traduz a marca
de uma impressão que, segundo seu testemunho, foi colhida na juventude vivida sob a
linha divisória de fronteira:
Fui criado, desde muito cedo, pela minha avó. Meu pai, que tinha levado para
Jaguarão os dormentes da estrada de ferro e o cimento e o ferro da ponte,
através de sua linha de navegação fluvial e lacustre, praticamente construiu a
própria desgraça financeira. (...) [em Jaguarão] cheguei ao fim do curso
ginasial com uma perplexidade muito grande diante daquele rio que, do outro
lado, apresentava uma cultura diferente. Não conseguia compreender aquilo,
mas podia, pelo menos, questionar. Acho que isso teve grande significação
no meu trabalho (SCHLEE, 1988, p. 4).
O traço biográfico é a prova de que as demarcações geopolíticas não invalidam a
identificação mútua de destinos espelhados e de aspectos humanos e físicos
genuinamente semelhantes. A sensibilidade formada entre as duas margens do rio
Jaguarão, justamente o topônimo que separa, naquele ponto, as praças brasileira e
uruguaia, anima, em Schlee, uma contística que desafia os cânones do regionalismo
literário e constrói seu caminho de prestígio ao acordar a matéria-prima local que, sob
1
Doutor em Letras. Professor titular UFSM. Contato: pedrobrum@uol.com.br

1411
sua organização criativa, aspira à conformação de uma problemática maior e mais
complexa.
Há dois aspectos importantes a considerar com referência ao contexto inicial de
produção. O primeiro refere a singular figura do gaúcho, composição de força mítica,
pintada com tintas de heroísmo e patriotismo no extremo meridional brasileiro; o
segundo, a distinção positiva de tal tipo humano em relação a seu congênere platino,
posição esta bastante cultivada pela intelectualidade dominante do lado de cá da
fronteira. Ao contrapô-los, a obra em tela somente ganhou em originalidade e alcance.
Como ilustração do segundo ponto, basta citar passagem de Moyses Vellinho,
intelectual de obra densa e variada, partidário da gênese lusitana da cultura regional do
Sul brasileiro que, em título destinado a sublinhar os contrastes entre o Rio Grande e o
Prata, datado mais ou menos da época da mocidade pré-literária de Schlee, afirma:
O que vemos são processos contíguos apenas geograficamente, cenários
semelhantes, as mesmas armas, mas tudo o mais, diverso e antagônico – pelo
seu aspecto social e político, pelo comportamento e caráter de seus chefes,
pelo sentido e repercussão de seus efeitos. (....) No domínio dos fatos
culturais, sejam eles de natureza sociológica, artística ou literária, nada, em
nenhum momento da nossa história, nos denuncia como caudatários do Prata
(VELLINHO, 1962, p. 48; 51).
A posição de Moyses Vellinho encontra eco em significativa produção literária
sul-rio-grandense destinada a sagrar a figura do gaúcho pela lógica da diferença, com
ênfase nos aspectos linguísticos, culturais e históricos, tidos como suficientes para
apartar tipos humanos encontrados em um e outro lado da fronteira. À diferença dessa
tradição demarcatória excludente, a literatura de Schlee, desde logo, ancorou-se em
espectro situacional vasto, que vai do registro da prosódia linguística ao
contingenciamento dos aspectos socioculturais, mostrando-se vocacionada a mais do
que vivenciar os dois lados da demarcação política, aparar-lhe as distâncias. Ao longo
do tempo, sua narrativa somente fez ressumbrar o sentimento plural do universo
discursivo de fronteira no qual se insere.
Numa perspectiva de hibridismo, um dos pontos nodais que lhe confere
originalidade é a experiência autoral com o idioma castelhano, algo que acabou por
garantir-lhe o posto de escritor bilíngue e reconhecido tradutor de literatura. Uma de
suas obras, O Dia em que o Papa Foi a Melo, reunião de contos referidos à visita que
João Paulo Segundo fez, em 1988, à cidade uruguaia capital do Departamento de Cerro
Largo, a sessenta quilômetros da divisa brasileira, foi publicada primeiro em espanhol

1412
para ser editada em português quase uma década mais tarde. A parte isso, o conjunto da
ficção é povoado de expressões fronteiriças e de personagens que habitam com
naturalidade os dois lados da geografia divisória.
Indagado sobre sua região certa vez, Aldyr Garcia Schlee afirmou ser “natural de
Jaguarão e da fronteira uruguaia, onde [asseverou] os únicos limites parecem ser as
linhas do horizonte” (SCHLEE, 1988, p. 7). Há, nesse olhar, o gesto de amplitude
vocacionada a uma expressão literária implicada com a matéria das margens. Esse é o
ponto singular da proposta em apreço.
Fronteira como lugar de passagem
Mais do que inscrever-se na contracorrente da matéria regional que circunda e, em
certo sentido, dá origem ao projeto literário em tela, a obra, num nível mais amplo,
contraria a lógica da oposição cidade-campo, que logrou a tradição de conceder aos
centros urbanos a hegemonia da voz modeladora dos universos rurais e que, sob a
inspiração da arte romântica, outorgou-lhes, inclusive, as benesses de bondade e beleza.
Diversamente, o que constatamos aqui é um olhar erigido a partir da fronteira afirmada
como absoluto local de passagem que busca sua inscrição em outra lógica de
entendimento e expressão literária.
Como esclarece Jacques Lenhardt, o avanço do debate sobre o tema de fronteira
precisa retomar o inolvidável gesto anticentralista que, a partir dos umbrais do século
XX, estabeleceu foros de libertação à arte moderna. Uma de suas marcas visíveis, como
assevera Lenhardt, é “o abandono da perspectiva como modo de representação”. Em
outras palavras, “a supressão da hierarquia dos espaços em relação ao olho”, a
descentralização, a desfocalização da figura, aspectos que facilmente encontramos na
composição dos artistas plásticos das primeiras décadas dos novecentos (LENHARDT,
1996, p. 17).
Privilegiado pela vanguarda modernista, este gesto configura-se como a
incorporação do estranho e da simultaneidade. Ao asseverarmos tal concepção, também
apartamos a séria literária de Schlee daquilo que a ordem e a razão concorreram para
dispor em uma representação de mundo que Doris Sommer (2004) sagrou como ficções
de fundação ao referir os romances nacionais da América Latina. Com a obra do escritor
sul-rio-grandense, estamos ante a elaboração de outra espécie de fronteira, assente com
a remodelagem que o tema alcança no concurso da arte moderna. Essa é a linha que o

1413
liga a uma tradição que vai encontrar entre seus precursores o vanguardista francês
Louis Aragon. Em O camponês de Paris, de 1926, Aragon é dos primeiros autores
modernos a deslocar o interesse da narrativa literária para zonas não exploradas da
cidade. O novo objeto inaugurado por este gesto de deslocamento reside no fato de
contornar o interesse exótico em nome do que o autor francês sugestivamente denomina
como passagem.
Jacques Lenhardt (1996) sublinha que tipos como o camponês de Paris vivem de
uma integração provisória, por trás da qual soam dissimulados espaços e temporalidades
diversos. Daí a passagem, como fronteira, constituir “a interface de mundos ontológica
ou cronologicamente diferentes” (LENHARDT, 1996, p. 18). Também, diante da
mesma dinâmica de deslocamento, a realidade determinante de “passagem” desloca-se
do estatuto de limite. Por isso há, nessa concepção de passagem, algo que é da ordem do
desaparecimento.
Inscrita nesse viés de contracorrente, a ficção praticada por Schlee lembra
claramente aquela experiência de fronteira como passagem evocada nos estudos
paradigmáticos de Walter Benjamin (2018). Embora as passagens benjaminianas sejam
inspiradas nas famosas galerias parisienses do século XIX, sua maneira de ler a cidade –
que não é dissociada da formulação literária encontrada em Louis Aragon, sugere uma
forma de interpretação perfeitamente adequada ao tipo de preocupação encontrada na
obra do escritor sul-rio-grandense. Referimo-nos à valorização que Benjamin concede
aos restos, sua concessão às vozes que a História costuma silenciar em favor da
oficialidade instituída pelos vencedores.
É assim que, ao referir o episódio histórico da grande festa de inauguração da
Ponte destinada a ligar os territórios brasileiro e uruguaio, no conto “Primeiro de
janeiro” (Uma terra só), o enredo ilumina o drama de Pardito, personagem anônima que
se aparta do populacho e dos “graúdos” que acorrem ao ato. O tipo esquisito e solitário
parece ser o único a lamentar a perda do antigo ofício de levar e trazer gente. Como
remanescente de uma estirpe de barqueiros de aluguel, o mutismo de Pardito recobra as
obras, o alarido dos construtores, as paixões abafadas na experiência de mandalete, a
família vencida pelo progresso irrefreável trazido pelos novos tempos. O provisório do
ofício de atravessar o rio acusa o golpe do irremediável preço da chegada de nova
ordem econômica. Como paralisado pela própria provisoriedade que não tem solução,

1414
Pardito permanece em silêncio ali embaixo, onde, sugestivamente, como afirma o
narrador, “só chegam os ecos, avessos de gritos, de estouros, de alaridos, de fonfons, de
cascos por cima da Ponte” (SCHLEE, 2011, p. 69).
Tipos móveis, algo provisórios, como Pardito, povoam a contística de Schlee. Da
mesma senda são os irmãos solitários habitantes exóticos do ermo da campanha, os
visitantes suspeitos, os contrabandistas, as cafetinas, as tias, os velhos, os páreas. Há
neles o vezo de um silêncio revelador. À quietude das personagens, em contrapartida,
salienta-se a voz dominadora de narradores tendentes ao multilinguismo, traço que
aparece como marca da sintaxe frasal e acusa a expressão multicultural a que aspiram os
enredos, povoados por nomes emoldurados por espanholismos. São extrações
semelhantes a Pardito, como Pochoco, Marita, Oberón, Pichón ou Paco.
Tipos móveis e vagos
Reconhecido desde Uma terra só, volume de contos premiado em 1984 como
vencedor da II Bienal de Literatura Brasileira, pelo universo de tipos rústicos,
geralmente pobres, sem educação formal, que se tornaria marca registrada de sua prosa
literária, Schlee, tem sido aproximado das composições de Juan José Morosoli, autor
uruguaio da primeira metade do século XX redescoberto na década de 1960. Assim
como o ficcionista brasileiro, Morosoli prefere a narrativa curta, centrada no homem do
campo e nos pequenos burgos de recorte rural, de onde avultam seus interesses
recorrentes: os personagens simples e humildes, os temas da solidão e da morte, os
ofícios em extinção e a transição do gaúcho para o campesino.
Além da problemática de temas e assuntos, há duas questões, por assim dizer, de
fundo, que manifestam preocupação comum relativa aos dois autores, a despeito de
pertencerem a momentos e locais diversos. Trata-se da transposição literária de mitos,
costumes e linguagens de cores locais/regionais e, um pouco na contraface dessa
problemática, a eleição do conto como gênero preferencial de expressão.
No tocante ao primeiro ponto, o crítico uruguaio Pablo Rocca (2017) entende que
a obra de Morosoli realiza um movimento de transposição da matéria tradicional,
subvertendo seu apelo localista e redutor, através de uma aguda e aplicada consciência
literária. Rocca classifica-o no rol dos superregionalistas, expressão criada por Antonio
Candido (1989) para definir criadores como Guimarães Rosa e Juan Rulfo, cujas obras

1415
se sobrepõem à consciência amena e despreocupada do atraso (frequente em uma
primeira fase do regionalismo literário latino-americano).
Ao discorrer sobre o conto, Pablo Rocca sublinha o quão produtiva é sua forma
para transformar o imaginário agreste em literatura. Sua brevidade e precisão, o fato de
privilegiar a alusão a episódio único e central e rejeitar descrições demoradas concorrem
para expressar o alto grau de sugestão que os ambientes primitivos colocam como
desafio à tradução literária que supõe a força organizada e organizadora da palavra.
Logo, cada termo precisa ser medido com cuidado, ademais quando “se desviara de la
norma linguística estándar de uma lengua o cuando acudiera a formas dialectales”
(ROCCA, 2017, p. 66). Para Rocca, a ênfase concentrada na linguagem e em seus
artifícios, mais do que a pura enumeração da experiência, mostra a adequação de tal
forma de expressão a autores como Morosoli, empenhados, como assevera o crítico, em
conduzir o leitor a um espaço/tempo de forte teor localista:
Cualquiera que haya leído así sea un par de historias de Morosoli, aun si a
priori desconoce el medio representado, advierte que en esas narraciones se
recuperan las vivencias de seres y situaciones de su pequeña ciudad serrana,
Minas, y de sus alrededores cubiertos de campos pedregosos, en chacras más
que en estancias o en la soledad de la sierra (ROCCA, 2017, p. 67).
Relativamente à preferência pelo conto, Schlee sempre a teve muito presente.
Quando não aparece na forma canônica, o gênero é sempre perseguido. Isso fica claro
em títulos resultantes de pesquisa histórica como O dia em que o papa foi a Melo e Os
limites do impossível, projetos de novelas que, porém, ou levam a rubrica conto
encimando cada novo capítulo ou, no caso do segundo, sagra o título principal do
volume na forma de Contos gardelianos. Mesmo a sequência mais longa encontrada no
livro O outro lado, que recebe do autor a classificação de “noveleta pueblera”, é
entendida à semelhança de conto, posto que o próprio criador chama a atenção para o
núcleo concentrado em torno de poucas personagens.
Embora o ponto comum de privilégio ao conto como forma de expressão, a obra
de Schlee, à diferença do congênere uruguaio, parece menos empenhada em revelar os
aspectos antropológicos do genius loci. Seus tipos são menos crioulos, naquele sentido
de apego a terra e mais próximos do sujeito vago, ocupante de uma paisagem desde
logo orientada por uma memória autoral não necessariamente circunscrita às fronteiras
físicas. Trata-se de formas humanas que funcionam para iluminar hábitos passados,
onde avultam os matchs de futebol, matinés de cinema, figurações de cafés, circos,

1416
clubes sociais. Longo é o capítulo dos motivos passadistas, verdadeiras referências
sentimentais, espécies de geografias de intimidades, das quais despontam notações de
lembrança como a citada solidão da construção da ponte, ritmos cambiantes como o
bolero e o tango, os inolvidáveis Peñarol e Celeste Olímpica, a que se intercalam topos
memorialistas como a Casa London Paris, de Montevidéu, as praças de Jaguarão e a
amplitude campesina de onde acorrem as personas que se deslocam pela Estação Férrea
de Rio Branco (com seu inequívoco apelo de passagem) e pela frequente entonação
castelhana de lugares como Treinta y Três, Cerro Largo, Cuchila, Alarcón e Melo.
Fronteira dos tempos
Situados, muitas vezes, em uma encruzilhada entre o ambiente rural e o urbano,
seus personagens dramatizam histórias atravessadas pelo olhar memorialista calibrado
entre o ponto de vista do narrador, de talhe inventivo, e o corte de um eu autoral que se
revela nas dobras da estrutura narrativa. O núcleo concentrado dos contos gira
frequentemente sob o amálgama entre uma experiência presente objetiva e a percepção
radical e profunda de um tempo que ficou para trás. Vale aqui o juízo de Davi Arrigucci
ao referir o fundo perdido que alimenta as crônicas de Rubem Braga:
Imagem simbólica de uma plenitude impossível do ser, diante da qual os atos
humanos são vãos ou inúteis e, por isso, acompanhados de um olhar irônico e
melancólico, mas também terno e solidário, uma vez que sabiamente
alimentado pela íntima experiência do vivido (ARRIGUCCI, 1987, p. 64).
É de uma crônica de Rubem Braga, a admiração confessa por um verso de
Camões: “a grande dor das coisas que passaram”. Em Schlee, essa visão passadista
dolorida empresta aos dramas narrados um patamar de lirismo tal como nas crônicas de
Rubem Braga. A prosódia da frase é repleta de sonoridades e a voz que narra é flexível
e cambiante, com frequente alternância de ângulos de visão e pessoa gramatical. Daí,
muitas passagens adquirirem aquela leveza própria da crônica e de certa cadência lírica.
Porém, a força do contista e o domínio da representação de ações humanas prevalecem
no conjunto e garantem a redenção social de dramas perdidos, esquecidos ou recalcados.
Esses são os aspectos que emprestam à sua literatura a condição de fronteiriça naquele
sentido de tornar móvel a diferença, dar-lhe voz e burilar suas formas. Bilingue e,
portanto, habitante legítimo de um espaço de fronteira, Schlee joga permanentemente
com as nuanças de ver e não ver, contar e não contar, antecipar ou postergar uma
revelação. Jogo que, em acordo com aquele sentido de fronteira como passagem,

1417
alimenta-se insistentemente de memória, lembranças, registros arqueológicos e
arquitetônicos.
O sentimento de experiência que flui dos relatos faz com que se comuniquem com
os seres que povoam a narrativa e ainda os comuniquem. A lógica aplicada por Walter
Benjamin no trato sobre as passagens, vale do mesmo modo para esse universo feito de
restos, retalhos recuperados pelas “coisas narradas, seja na qualidade de quem as viveu,
seja na qualidade de quem as relata” (BENJAMIN, 1994, p. 205). No recôndito da
memória individual toma corpo a memória coletiva arquitetada de um mergulho
temporal onde o que se tenta recuperar é justamente o fugidio, o esquecido e, mesmo, o
proibido.
Seus títulos apontam facilmente essas notações temáticas destinadas a imaginar e
fantasiar as coisas do passado, que, recontadas, ressurgem dos subterrâneos da memória
e da História. Os limites do impossível trata da ideia desconfortante de que Carlos
Gardel, o mito do tango argentino, nasceu em zona rural do Uruguai, de um caso escuso
de incesto e estupro; O dia em que o Papa foi a Melo esquadrinha a estranha visita,
estrondosamente preparada e quase não vista por ninguém; O outro lado, “beleza do sul
em ruínas”, segundo o verso síntese de Pedro Gonzaga, é endereçado, como apõe o
narrador, à “magia dos arrabaldes e dos pueblos” (SCHLEE, 2018, p. 11).
Há, nos títulos, a reiterada performance da escrita que se transforma, pela
reinvenção, num ato imaginativo e criativo. Ao alimentar-se do vivido e do lembrado, a
escrita preenche as lacunas do esquecimento e desvela o que parecia condenado a
perder-se. Esses lugares de memória, que se opõem ao não-lugar – vazio de significado
e de solidão –, ganham o súbito status de zonas cambiáveis, nas quais, as marcas
coletivas traduzem a vivência simbólica do indivíduo e, como alhures afirma Milton
Santos, fazem fluir um espaço que se tenciona como signo “identitário, relacional e
histórico” (SANTOS, 2002, p. 32). A ideia de passagem, atrás referida a partir da
mirada teórica de Walter Benjamin, poderia aqui ganhar aquela dimensão apontada por
Homi Bhabha em O local da cultura (1998). Trata-se de um ir e vir que conforma no
mesmo movimento as condições de lugar, situação e época.
A terceira margem, sintagma que ecoa Guimarães Rosa, no caso presente, parece
mais adequada ao ancestral barqueiro Pardito, o sujeito destituído de suas funções por
uma ponte que literalmente passa por cima de sua cabeça, soterrando o antigo

1418
procedimento de ligar as fronteiras cortando o rio pelo fio das águas. Terceira margem,
aqui, é tanto figurada pela ponte, alegoria que se abre à ordem desenvolvimentista –
como progresso e miragem do novo - como aquela dos que ficaram para trás. A estes
resta o impasse de pagar a conta pelo que se perdeu ao modo de algo imprestável e
anacrônico. Eis a memória que ressumbra como zona franca do híbrido e do diferente,
que, nas palavras de Nubia Hanciau, materializa justamente “um terceiro, que se insinua
na situação de passagem” (HANCIAU, 2005, p. 134).
Os lugares de memória, como asseveramos, fornecem a dimensão dessa terceira
margem. Como observa Le Goff (1992), trata-se dos entranhados de vida responsáveis
por liberar experiências enterradas no passado, soerguendo-as. Lugar de memória que,
uma vez desatados os nós das fronteiras instituídas, se embrenha nos espaços do sujeito,
nos dramas de seus avessos e revezes. Lida-se, nesse campo, com aquilo que escapa aos
mapas. Longe das utopias salvadoras, sua dimensão simbólica é do nível das vivências
cotidianas. Daí suas recorrências em torno do que parece sempre próximo, como a casa,
a rua, a cidade, o circo e o próprio texto, enfim, espaços e situações onde o sujeito
habita, nos quais, narrador e leitor podem remendar aquela dor das coisas que passaram,
referida no verso de Camões, através do prazer sempre renovado de contar e ouvir uma
história.
Referências
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ARRIGUCCI JUNIOR, Davi. Enigma e comentário. São Paulo: Companhia das Letras,
1987.
AUTORES GAÚCHOS. Aldyr Garcia Schlee. Porto Alegre, Instituto Estadual do
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1419
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SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo:
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SCHLEE, Aldyr Garcia. O dia em que o Papa foi a Melo. Porto Alegre: ardotempo,
2012.
___. O outro lado. Noveleta pueblera. Porto Alegre: ardotempo, 2018.
___. Os limites do impossível. Contos gardelianos. Porto Alegre: ardotempo, 2009.
___. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018. 3 v.
___. Uma terra só. Porto Alegre: ardotempo, 2011.
SOMMER, Doris. Ficções de fundação. Romances nacionais da América Latina. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2004.
VELLINHO, Moyses. O Rio Grande e o Prata. Porto Alegre: Instituto Estadual do
Livro, 1962.

1420
RECONSTITUIR AS RUÍNAS PARA ESTAR COM OS FANTASMAS: NOTAS
SOBRE O PENSAMENTO-ROMANCE DA NUEVA NARRATIVA
HISPANOAMERICANA

Thiago Roney Lira Borges (UnB)1

Resumo: Este estudo procura compreender as obras do chamado “realismo maravilhoso” como
uma configuração artística que produziu um pensamento sobre o mundo desde a periferia. Saindo
da órbita crítica da representação, busca-se estudar qual pensamento a nueva narrativa
hispanoamericana pronuncia, através da experimentação conteudística-formal entre a ordem real
e maravilhosa, na sua forma discursiva não disjuntiva entre os termos contraditórios. Nesse
sentido, a partir do sistema filosófico de Alain Badiou (2008), penso a configuração de romances
do realismo maravilhoso como sujeito de um pensamento singular e genérico, no caso, uma
espécie de realismo espectral que des-escreve o poder moderno como mito.
Palavras-chave: Literatura hispano-americana; Realismo maravilhoso; Alain Badiou; Jacques
Derrida; Walter Benjamin.

Em mais de meio século de atividade, a crítica e o latino-americanismo formularam


dois discursos antagônicos em relação à nueva narrativa hispano-americana quanto ao
chamado “realismo mágico” ou “realismo maravilhoso”: promoveram, de um lado, um
conjunto de críticas triunfalistas produzidas a partir do boom editorial, e, de outro, um
arsenal contundente de críticas desestabilizadoras e negativas construídas pela crítica
contemporânea. Se nas décadas de 1950 a 1980 conceitos como realismo mágico, de
Arturo Uslar Pietri, real maravilhoso americano, de Alejo Carpentier, e transculturação
narrativa, de Ángel Rama, eram formulados e utilizados como ferramentas críticas e
epistemológicas adequadas para descrever o caráter “revolucionário” de romances como
Cem anos de solidão, de Garcia Márquez, e A casa verde, de Mario Vargas Llosa, como
assegura Carlos Fuentes (1972); nas últimas décadas, por seu turno, tornou-se quase um
lugar-comum constatar, por meio de uma revisão crítica dos pressupostos do boom e de
suas condições de possibilidade e impossibilidade, o caráter domesticado e subserviente
da estética da nueva narrativa latino-americana em relação à cultura dominante e ao
mercado global, como argumenta Franco Moretti (1996 apud MOREIRAS, 2001) e
Idelber Avelar (2003).
Embora antagônicas, as duas tendências se encontram num mesmo movimento
crítico: promovem uma incisão valorativa no campo artístico partindo de uma
instrumentalização de fora, isto é, produzem uma intervenção judicativa da arte a partir

1
Graduação em Matemática (UFAM), Mestre em Letras e Artes (UEA), doutorando em Literatura (UnB).
Contato: thiagoroney@hotmail.com

1421
de uma teoria estética e/ou social. Ainda que em alguns casos da tendência
contemporânea, em contrapartida à primeira tendência, há críticas procurando romper
com a ideia de representação, estas carregam sempre um substrato negativo que reafirma
violentamente a lente externa do juízo estético como guia de crítica, no entanto. Em suma,
as duas tendências tratam as obras como objetos do juízo estético, na esteira da tradição
kantiana. Com isso, qualquer rastro de pensamento próprio aos romances se torna
irrelevante ou negligenciável. Na primeira tendência, o pensamento das obras se perde
quando se instala como primado crítico a relação entre o movimento artístico, definido e
articulado conjuntamente com o mercado editorial do boom, e o mundo enunciado pelos
discursos sociais, fazendo com que a nueva narrativa hispanoamericana seja um
pensamento social antes mesmo de ser literatura. Explica-se, assim, por exemplo, o
sintagma “revolucionário” para se referir aos romances com toda ambiguidade semântica
possível. Por sua vez, a segunda tendência, enterra qualquer possibilidade de pensamento
das obras porque considera de antemão uma estética da submissão, da domesticação e da
impossibilidade.
Desviando dessas tendências, este estudo procura compreender as obras do realismo
maravilhoso como uma configuração artística que produziu um pensamento sobre o
mundo desde a condição periférica. Saindo da órbita crítica da representação, busca-se
estudar qual pensamento a nueva narrativa hispanoamericana pronuncia, através da
experimentação conteudística-formal entre o signo real e maravilhoso, na sua forma
discursiva não disjuntiva entre os termos contraditórios (CHIAMPI, 2012). Nesse sentido,
a partir do sistema filosófico de Alain Badiou (2008), penso a configuração de romances
do realismo maravilhoso como sujeito de um acontecimento-verdade criador de um
pensamento singular e genérico, isto é, de um procedimento formal que introduz uma
nova intensidade perceptiva do mundo, considerando sobretudo sua diferença em relação
à forma realista e fantástica.
Nessa acepção, El Senhor Presidente (1946), de Asturias, sugere ser o romance de
abertura, ou nos termos de Badiou, o sítio acontecimental de experimentação de um plano
enunciativo capaz de pensar, ao criar formas aos informes, os espectros produzidos pela
modernidade do sistema-mundo capitalista no “novo mundo”. Em seguida, reconstituindo
ruínas de diversos horizontes coloniais, romances como El reino deste mundo (1949), de
Carpentier, Pedro Páramo (1955), de Juan Rulfo, e Redoble por Rancas (1970), de

1422
Manuel Scorza, confirmam como acontecimento-verdade uma idiomática dos fantasmas
que formalmente encanta para obsidiar o poder e o progresso, conformando uma espécie
de realismo espectral como pensamento sobre a catástrofe moderna. Por fim, procuro
estabelecer um pequeno diálogo desse pensamento-romance da nueva narrativa
hispanoamericana com a filosofia de Jacques Derrida (1994), relativo aos espectros, e
Walter Benjamin (2012), relativo à história.
Em O ser e o evento, Alain Badiou (1996) sustenta que a filosofia não se constitui
como um lugar de produção de pensamentos e verdades, mas como uma estrutura de
apreensão e sistematização dos pensamentos produzidos pelas condições de verdades, a
saber: a política; a ciência; o amor; e a arte. Para tanto, defende uma ontologia do múltiplo
sem o “um”, a partir das matemáticas modernas. Em termos de apresentação do ser num
mundo, em Lógicas de los mundos, Badiou (2008) argumenta que quando um
acontecimento com consequências imprevisíveis promove uma ruptura em uma situação
e faz experimentar um procedimento genérico, a partir de uma singularidade nas
condições dos pensamentos, surge o sujeito como ponto local de formalização dos efeitos
do axioma novo de ruptura, tornando-se fiel ao acontecimento-verdade aberto. Assim,
para trazer alguns exemplos brasileiros, a revolta dos cabanos foi um acontecimento que
trouxe um novo axioma para o princípio de igualdade como verdade da política, o
encontro amoroso forte e experimental de um jovem casal como nova verdade do amor,
os trabalhos matemáticos sobre os sistemas dinâmicos de Artur Avila como verdade da
ciência, e os poemas drummonianos da rosa do povo trazendo uma nova sensibilidade
que “suportam o mundo” como verdade artística.
Nesse sentido, não se pensa a arte; ao revés, a arte pensa propriamente, sendo uma
das condições possíveis de produção do pensamento-verdade. Por isso, não há uma
estética, mas uma inestética da arte, no que tange a sua relação com a filosofia. A arte em
si como produtora de verdades, sendo, portanto, sujeito e não objeto. Assim, “contra a
especulação estética, a inestética descreve os efeitos estritamente intrafilosóficos
produzidos pela existência independente de algumas obras de arte. ” (BADIOU, 2002, p.
9). Ao analisar as consequências disso, a filosofia de Badiou se mostra ao mesmo tempo
poderosa e desafiadora para pensar o pensamento das artes, em especial, da literatura.
Nessa acepção, a literatura não se configura como expressão de uma particularidade
e, portanto, o sujeito do pensamento não é o autor. Antes, a literatura se constitui numa

1423
produção subjetiva infinita, amparada num múltiplo ontológico, mesmo com meios
finitos destinada a todos, surgindo como uma verdade impessoal aberta e indiscernível.
Cada obra atua como um sujeito local desse procedimento genérico como verdade.
Portanto, este sujeito geralmente é uma configuração de obras, surgido a partir de uma
experimentação sensível em alguma obra específica, a qual aparece um inaparente,
abrindo uma nova intensidade perspectiva do mundo, que constrói a trajetória do
pensamento-verdade que, no nosso caso, é o pensamento-romance.
É amplamente reconhecível o caráter disruptivo da nueva narrativa
hispanoamericana, em termos artísticos, quando Arturo Uslar Pietri nomeia pela primeira
vez, em 1948, o novo estilo narrativo pelo oxímoro realismo mágico e Alejo Carpentier,
em 1949, pelo real maravilhoso americano. Desde então, tentou-se não apenas nomear
como apreender conceitualmente a nova arte narrativa em ruptura com os estilos
predominantes da época: o realismo e a narrativa fantástica. Intempestiva como toda
verdade, a arte da nueva narrativa hispanoamericana seguiu gerando dissenso crítico
quanto à discernibilidade de sua forma, mesmo depois de grande distância temporal desde
o declínio do boom editorial dos anos de 1970, o que teoricamente deixaria os “objetos
artísticos” mais discerníveis esteticamente.
Há, no entanto, um consenso no dissenso: o realismo mágico/maravilhoso
produziria a operação de não disjunção no discurso entre os efeitos de sentido contrários
natural e sobrenatural, como mimetização de dois mundos operantes na América Latina,
percebida pela retórica diegética de naturalização do sobrenatural e sobrenaturalização
do natural. Essa operação marcaria a ruptura e diferença com o realismo como discurso
disjuntivo, tendo como base o efeito de sentido natural, e com a narrativa fantástica como
discurso conjuntivo, tendo como base os dois efeitos de sentidos contraditórios natural e
sobrenatural, com funcionamento complexo em termos de conflitos e hesitações,
conforme Irlemar Chiampi (2012, p. 138-148), em O realismo maravilhoso, que tem
mérito de sintetizar e sistematizar rigorosamente essa ideia. Assim, essa não disjunção
seria a característica central do efeito artístico do realismo maravilhoso mesmo para os
críticos que defendem como política dessa estética a necessidade de uma disjunção
subsumida, como em Idelber Avelar (2003) e Alberto Moreiras (2001).
Parece-me um grande acerto da crítica identificar a marca artística de ruptura da
nueva narrativa hispanoamericana na relação entre os elementos do mundo diegético

1424
pelos efeitos de sentidos contrários natural e sobrenatural. Mas um equívoco de mesma
intensidade ao pensá-la com base na lógica clássica. Fundamentada numa ontologia do
“um”, a leitura a partir da lógica clássica não consegue abarcar a heterogeneidade e
complexidade de acontecimentos como a irrupção de uma nova verdade literária. A
própria definição lógica genérica da relação de “não disjunção” formulada por Chiampi,
devido ao rompimento do princípio de não contradição entre discursos opostos, para se
diferenciar também com a operação de conjunção da narrativa fantástica, e, assim, tentar
capturar a complexidade da construção narrativa do realismo maravilhoso e seu difuso
poder de verossimilhança, mostra-se como um sintoma. Somente com a solução da “não
disjunção”, por exemplo, poderia se explicar o porquê o realismo e o efeito de sentido
natural como unidade é sempre o suporte de fundo do próprio realismo mágico, uma vez
que não há uma relação permanece na narrativa entre os discursos natural e sobrenatural.
Como se tivéssemos uma unidade maior do realismo abrigando em seu interior sua
identidade menor em uma relação especifica de não contradição com uma unidade
equivalente oposta que é o maravilhoso. Essa operação, na perspectiva da lógica clássica
e da tradição crítica literária, não poderia ser descrita como conjuntiva.
Ontologicamente, entretanto, os acontecimentos dos mundos artísticos são
amparados em múltiplos de múltiplos, como todo pensamento-verdade, e não na clausura
da unidade. Nesse sentido, o realismo e a narrativa fantástica, gêneros de força da
normalidade literária até 1930, apresentam-se como múltiplos consistentes e organizados
devido à especificidade de operar a contar-por-um o qual engendram seus elementos (o
“um” aqui é apenas um efeito de força de uma operação e organização do múltiplo).
Badiou (1996, p. 73-88), faz uma importante diferenciação entre a pertença e a inclusão
como modos distintos de contar-por-um na disposição dos múltiplos na teoria dos
conjuntos e, como consequência, para sua proposta ontológica. A pertença,
correspondente a situação de algum múltiplo, dispõe seus elementos como elementos,
enquanto a inclusão, correspondente ao estado da situação do mesmo múltiplo, arranja
seus elementos como subconjuntos. Quer dizer, a pertença é uma relação de estrutura e
apresentação do múltiplo, e a inclusão é uma relação de metaestrutura e re-presentação.
Portanto, a pertença ao conta-por-um o múltiplo estrutura uma situação, e a inclusão ao
contar-por-um em subconjunto duplica a conta como um excesso. E como real, de fundo,
temos o vazio como múltiplo puro inconsistente, o qual pode emergir nesse limiar entre

1425
as duas operações como um subconjunto que se apresenta na situação e ao mesmo tempo
se autopertence e se autoestrutura, configurando a singularidade da trajetória infinita da
verdade.
Contemporâneo ao surrealismo – a recém verdade artística nascida na Europa –, a
nueva narrativa hispanoamericana insurge como outra ruptura com a normalidade
literária, mostrando-se em retrospectiva como o mais novo acontecimento-verdade da
literatura. O procedimento genérico da configuração de obras indica que o sítio
acontecimental se encontra em El Señor Presidente, publicado em 1946, de Miguel Ángel
Asturias (2000), o primeiro romance efetivamente que experimenta uma nova relação
estrutural entre os efeitos de sentidos natural e sobrenatural com contraponto na própria
sintaxe inovadora.
El Señor Presidente é uma obra sobre as razões do poder político e sobre o realismo
de horror de uma ditadura. O estado de exceção é inserido na narrativa no índice de
territorialização e materialização latino-americana como resposta à ditatura de Estrada
Cabrera na Guatemala, terra natal do escritor, mas também às ditaduras do continente. No
parágrafo de abertura do romance, no entanto, o mais emblemático da nueva narrativa
hispanoamericana, temos uma espécie de desmaterialização materializante que traz, de
súbito, em seu bojo, a ruptura e o axioma condensado de uma nova aposta experimental
artística:
Alumbra, lumbre de alumbre, Luzbel de piedralumbre! Como zumbido de
oídos persistia el rumor de las campanas a la oración, maldoblestar de la luz
em la sombra, de la sombra em la luz. ¡Alumbra, lumbre de alumbre, Luzbel
de piedralumbre, sobre la podredumbre! ¡Alumbra, lumbre de alumbre, sobre
la podredumbre, Luzbel de piedralumbre! ¡Alumbra, alumbra, lumbre de
alumbre..., alumbre..., alumbra..., alumbra, lumbre de alumbre..., alumbra,
alumbre...! (ASTURIAS, 2000, p. 7).

Do estranhamento inicial ao encantamento lúgubre, a enunciação de um jogo de


palavras e significações, com auxílio de neologismos barroquistas, para a descrição
semântica e onomatopaica de um estranho-familiar sino de oração produziu o início de
uma lógica interna nova na esfera romanesca, a qual foi capaz de tecer um mundo singular
entre as referências de sentidos natural e sobrenatural, composta a partir de uma
hibridização entre a cultura cristã e maia-quiché, plasmadas com técnicas narratológicas
modernas, constituindo-se como marca artística do romance.

1426
A dança das frases do dobrar do sino, tanto na sintaxe como na semântica, remete,
de um lado, à luz e ao fogo do inferno, promovendo uma associação evidente do Diabo e
do deus maia Tohil ao Senhor Presidente, abrindo a atmosfera de adoração e horror ao
soberano da ditadura como conferem vários estudos, de outro lado, pouco investigado, a
sugestão da frase “maldoblestar de la luz em la sombra, de la sombra em la luz” – sabendo
que o neologismo maldoblestar é formada pela justaposição da palavra doblar e malestar
– remete também à contradição do iluminismo e sua sombra colonialista movida pela
ideia de progresso, além da consonância também com o pensamento freudiano do mal-
estar na cultura. Torna-se mais claro isso no decorrer da narrativa quando se fica sabendo,
por exemplo, que

Pronunciar el nombre del Señor Presidente de la República, es alumbrar con


las antorchas de la paz los sagrados intereses de la Nación que bajo su sabio
mando ha conquistado y sigue conquistando los inapreciables beneficios del
Progreso en todos los órdenes y del Orden en todos los progresos!!
(ASTURIAS, 2000, p. 302).

Qual é efetivamente, contudo, o pensamento aberto pelo toque de sino e sua


trajetória no romance? Em outras palavras, qual o mundo singular e a nova operação entre
os efeitos de sentidos natural e sobrenatural que traz um novo axioma de experimentação
sensível, o qual caracterizaria El Señor Presidente como um sítio acontecimental de um
pensamento-verdade da nueva narrativa hispanoamericana?
Em termos das lógicas dos mundos, de acordo com Badiou (2008), podemos pensar
os mundos do realismo e da narrativa fantástica por meio de uma lógica de intensidades
variáveis de identidades e diferenças, medidas em graduações, para seus objetos no
aparecer de determinado múltiplo, chamado de indexação transcendental do mundo, todos
previamente calculados ou contados-por-um pelo múltiplo de suporte. Por um lado, o
realismo produzindo um discurso com operação de conjunção disjuntiva, o qual dois
elementos de efeitos de sentido natural situados no mesmo mundo não identifica um
comum sobrenatural no aparecer, isto é, a intensidade de aparição do comum sobrenatural
é nula. Por outro lado, a narrativa fantástica produzindo um discurso com operação de
conjunção inclusiva, o qual um elemento é parte identificante do outro, sendo a
intensidade de efeito de sentido natural o guia para incluir o outro elemento sobrenatural
coaparente no mundo, mesmo que de forma conflitiva e hesitante como ente estranho ou

1427
ilusório, de modo a criar o efeito de fantasticidade, o que abre a possibilidade de retórica
dos fantasmas de um além mundo, mantendo, portanto, a intensidade do efeito de sentido
sobrenatural nula ou mínima enquanto existente no próprio sentido natural.
Nesse sentido, se tínhamos elementos no aparecer do mundo literário contados
como naturais na intensidade de efeitos de sentidos eram apresentados e representados
como realistas, como previsto pela indexação lógica. Por outro lado, se tínhamos
elementos no aparecer do mundo literário contados como supostamente sobrenaturais na
intensidade de efeitos de sentidos, sempre marcados pela hesitação e conflito devido à
indexação de base realista do mundo, eram apresentados e representados como narrativa
fantástica, também previsto pela indexação lógica. Era impensável, no entanto, qualquer
contiguidade não conflitiva entre os dois efeitos de sentidos natural e sobrenatural com
mesma intensidade no aparecer do mundo literário. Em outras palavras, o múltiplo
suporte dos mundos não era capaz de contar ou de reconhecer tal indexação lógica.
Quando o sino dobra no mal-estar de uma luz inscrita na sombra e de uma sombra
inscrita na luz no El Señhor Presidente instaura-se “um princípio temático-estrutural (...)
com a dualidade, ambiguidade e alternância” (ASTURIAS, 2000, p. 343), mas também
inaugura-se uma sintaxe diegética tendo como efeito de sentido um limiar entre o material
e o imaterial, natural e o sobrenatural, que faz desse toque de almas, confirmado no
decorrer da leitura do romance, surgir um entre-lugar entre o ser e o não-ser, o visível e o
invisível, como algo do passado ou do futuro que insiste em corroer e assombrar o
presente. O Senhor Presidente, que durante todo o romance aparece materialmente raras
vezes, mostra-se pulverizado por toda a parte, substancialmente nesse entre-lugar,
adquirindo como caráter fantasmagórico, com origem no passado, o poder soberano como
mito, construído por meio da associação permanente às culturas cristã e maia-quiché. Por
isso, por exemplo, “Una red de hilos invisibles, más invisibles que los hilos del telégrafo,
comunicaba cada hoja con el Señor Presidente, atento a lo que pasaba en las vísceras
más secretas de los ciudadanos” (ASTURIAS, 2000, p. 46).
Assim, Cara de Ángel, o homem de confiança do Senhor Presidente a princípio,
vai, aos poucos, entrando no “hueco invisible” (ASTURIAS, 2000, p. 314) do poder como
mito até visualizar claramente, com ajuda da razão dos sonhos e outros elementos
sobrenaturais, o espectro de Tohil no Senhor Presidente, quando este lhe manda para uma
suposta missão que é, na verdade, sua execução. Nesse momento, Cara de Ángel descobre

1428
que, assim como Tohil demandava sacrifícios humanos, o Senhor Presidente também
exigia sacrifícios humanos, pois, segundo o próprio Senhor Presidente, “sobre hombres
cazadores de hombres puedo asentar mi gobierno. No habrá ni verdadera muerte ni
verdadera vida” (ASTURIAS, 2000, p. 307-309).
Estamos diante da apresentação de uma nova operação lógica de elementos sem
qualquer representação no realismo ou na narrativa fantástica, rompendo com a conta de
seus múltiplos suportes. Em outras palavras, o que se tem é a aparição de um inaparente,
com intensidade nula nos mundos literários anteriores, marcado por uma contiguidade
não conflitiva entre os efeitos de sentidos natural e sobrenatural, caracterizando uma
conjunção intercalar, a qual um terceiro elemento tem intensidade máxima e emerge
como comum subjacente entre dois elementos natural e sobrenatural. Essa contiguidade
não conflitiva entre as ordens de sentidos, portanto, emerge de um múltiplo puro que
pertence a si mesmo, isto é, constitui-se como um subconjunto que se reconhece e se auto-
organiza, que é elemento e suporte de si ao mesmo tempo, carregando um axioma de
experimentação novo de percepção. Em suma, estamos diante de uma singularidade e de
um sítio acontecimental.
Assim, quando o narrador evoca algo do passado a partir da fosforescência dos
ossos dos mortos, indicado pelo sintagma Piedralumbre, no dobrar do sino de
maldoblestar, a enunciação abre como experimentação de pensamento-romance a
possibilidade de pensar o poder a partir dos fantasmas surgidos na condição periférica do
sistema-mundo capitalista. Nesse sentido, a idiomática do limiar de El Señor Presidente
– entre a sintaxe e semântica, os efeitos de sentido natural e sobrenatural – constrói a
história de horror da ditadura na Guatemala, ou em qualquer país latino-americano, desde
os fantasmas como modo de des-escrever o mito do poder da modernidade. A unificação
forçada de dois espaços incomensuráveis para fazer girar a dinâmica do progresso do
sistema-mundo capitalista, em vista de um desenvolvimento desigual e combinado, no
“novo mundo” produz fraturas e ruínas, das quais surgem fantasmas. Por isso, quando
Cara de Ángel, por exemplo, pensando nas diferentes profissões as quais atuou – de
diretor de instituto e de jornal, deputado, prefeito, à chefe de quadrilha do Senhor
Presidente – exclama “¡Caramba, lo que es la vida! That is the life in the tropic!”
(ASTURIAS, 2000, p. 86), mostrando, de um lado, a cisão da divisão social do trabalho
na periferia, e de outro, a fratura da qual e sobre a qual o romance pensa.

1429
El Senõr Presidente, portanto, como sítio acontecimental da nueva narrativa
hispanoamericana possui como marca do pensamento-romance uma espécie de realismo
espectral do funcionamento mítico do poder a partir da periferia do sistema-mundo. Essa
singularidade formal como verdade ganha corpo como sujeito de pensamento quando
outros romances desenvolvem suas consequências. El reino desde mundo, Pedro Páramo
e Redoble por Rancas, por exemplo, mostram-se como pontos específicos do sujeito fiel
dessa trajetória de pensamento.
El reino desde mundo, de Carpentier, publicado em 1949, apresenta a implicação
de pensar o atravessamento do fantasma mítico do poder em diversos horizontes coloniais
para o desenvolvimento do sistema-mundo capitalista desde a condição periférica: a
escravidão, a revolução de independência, o reino de Henri Christophe e sua queda no
Haiti. A conjunção intercalar entre os efeitos de sentidos natural e sobrenatural para
construção do limiar de idiomática dos fantasmas se constitui também a partir de uma
hibridização cultural, no caso entre a cultura cristã e a cultura afro do vodu. Assim, o
narrador, por meio da história de Ti Noel, nos guia pelo realismo espectral dos poderes
coloniais e, em seu bojo, pelo realismo fantasmagórico da utopia e da libertação marcado
pela luta de Mackandal. Pedro Páramo, de Juan Rulfo, por sua vez, publicado em 1955,
é o romance em que os fantasmas mais se corporificam, sendo os próprios personagens,
os quais nos guiam ao espectro mítico do poder no México. A partir da morte como
elemento cultural mexicano, a operação conjuntiva intercalar investiga as consequências
da revolução mexicana e o poder arcaico latifundiário como fundo da ilusão do progresso.
Assim, os murmúrios de vários narradores mortos-vivos nos fazem visualizar o espectro
do poder como mito na comunidade de Comala na Média Luna, com centro no
latifundiário Pedro Páramo. E, por fim, Redoble por Rancas, de Manuel Scorza,
publicado em 1970, primeiro romance de uma pentalogia, coloca o realismo espectral
para investigar a mítica do poder imperialista no Peru da mineradora norte-americana
Cerro de Pasco Corporation e dos latifundiários como o Dr. Montenegro. A comunidade
de Rancas, com seus habitantes indígenas quéchua dos Andes Centrais Peruanos, captura
o espectro de resistência e libertação. Os comuneiros, contudo, são massacrados no
desfecho do romance e, depois de enterrados, transformam-se em fantasmas, insistindo
por dentro em compreender o presente.

1430
Jacques Derrida, em Espectros de Marx, por meio de um diálogo entre a verdade
literária de Hamlet, de Shakespeare, e os escritos de Karl Marx, propõe pensar o que
seriam os espectros e fantasmas. Pensador da aporia, Derrida considera os espectros nessa
lógica: nem vivo nem morto, nem sensível nem insensível, nem ausência nem presença.
Os fantasmas seriam, assim, uma espécie de visualização do invisível ou aparição do
desaparecido. Nessa perspectiva, de acordo com Derrida (1994, p. 11, grifo do autor), o
espectro não possui substância nem essência, portanto, não existe plenamente porque
“não está jamais presente enquanto tal”. Assim, “o espectro, como seu nome o indica, é
a frequência de uma certa visibilidade. Mas a visibilidade do invisível” (DERRIDA,
1994, p. 138, grifo do autor). Por fim, segundo Derrida (1994), estar com esse outro
ausente e, no entanto, espectralmente presente é capaz de produzir uma política da
memória pela força da herança, devido a um luto interminável ao atravessar gerações.
Com isso, os espectros podem carregar a promessa de justiça como herança de fantasmas
de gerações que não estão substancialmente presentes. Por isso, é preciso com urgência
falar com e a partir dos fantasmas, tendo em vista qualquer política ou ética
contemporânea, seja qual for o fantasma: os dos mortos ou os dos nem nascidos.
Em diálogo direto com a ideia de espectro de Derrida, o pensamento-romance da
nueva narrativa hispanoamericana produz uma visualização do modelo mítico do poder
como espectro desde a condição periférica, a partir dos horizontes coloniais do passado,
promovendo, por sua vez, o fantasma da utopia vindo do futuro, ambos como frequência
da visibilidade do invisível na injunção política de qualquer presente no sistema-mundo
capitalista. Com isso, portanto, o realismo espectral produz uma política da memória que
promove a interrupção e a descontinuidade, próprio do desajustamento da temporização
da história agenciado pelos fantasmas, capaz de formar uma imagem com a pré-história
e a pós-história, isto é, uma espécie de imagem dialética na perspectiva de Walter
Benjamin (2007, p. 504-505), que traz na tensão entre o ocorrido diacrônico e o agora
sincrônico uma força fantasmagórica capaz de explodir o continnum da história e da
catástrofe da tempestade chamada progresso.
O pensamento-romance da nueva narrativa hispanoamericana, portanto, ao “hacer
visible lo invisible con palabras", como disse Asturias (1972) sobre o próprio trabalho,
elabora a reconstituição de ruínas para estar com os fantasmas como modo de des-
escrever o mito moderno do progresso do sistema-mundo capitalista desde a periferia.

1431
Referências
ASTURIAS, Miguel Ángel. El Señor Presidente. Edición crítica, Gerald Martin,
coordenador. 1ª Edição. Madrid; Barcelona; La Habana; Lisboa; París; México; Buenos
Aires; São Paulo; Lima Guatemala, San José: ALLCA XX, 2000.

______. Novelistas no, hechiceros. In:___. América, fábula de fábulas, y otros ensayos.
Comp. y pról. de Richard Caallan. Caracas, Monte Ávila Editores, 1972.

AVELAR, Idelber. Alegorias da derrota: A ficção pós-ditatorial e o trabalho do luto na


América Latina. Tradução Saulo Gouveia. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

BADIOU, Alain. Lógicas de los mundos: el ser y el acontecimento, 2. Traducción de


María del Carmen Rodríguez. Buenos Aires: Manantial, 2008.

______. O ser e o evento. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar Ed. ; Ed. UFRJ, 1996.

______. Pequeno manual de inestética. Tradução de Marina Appenzeller. São Paulo:


Estação Liberdade, 2002.

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tradução do francês Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Hozironte: Editora UFMG,
2007. 1167 p.

CARPENTIER, Alejo. El reino de este mundo. 2 ed. Madrid: Alianza Editorial, 2012.

CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso: Forma e ideologia no romance hispano-


americano. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 2012.

DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: O Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova


Internacional. Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.

FUENTES, Carlos. La nueva novela hispanoamericana. Volume 4 de Cuardenos de


Joaquím Mortiz. Mexico: Joaquín Mortiz, 1972.

MOREIRAS, Alberto. A exaustão da diferença: A política dos estudos culturais latino-


americanos. Tradução Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2001.

RAMA, Ángel. Transculturación narrativa en américa latina. 2 ed. Buenos Aires:


Ediciones El Andariego, 2008.

RULFO, Juan. Pedro Páramo. In:____. Toda la obra. Edición crítica. Cood. Claude Fell.
2.ª ed. Madrid; París; México; Buenos Aires; São Paulo; Río de Janeiro; Lima: ALLCA
XX, 1996. P. 177-307.

SCORZA, Manuel. Redoble por Rancas. México: Siglo veintiuno editores, 1991.

1432
O ENSINO DE LITERATURA E A DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS

Erica Cristina Bispo (IFRJ)1

Resumo: De acordo com Vera Candau (2013), a educação em direitos humanos deve se
debruçar sobre a tarefa de formar sujeitos de direitos, favorecer processos de empoderamento e
educar para o “nunca mais”. Considerando esses princípios como parte integrante do objetivo no
ensino de literatura, é nosso intento neste trabalho debater o papel do professor-pesquisador na
promoção da educação em direitos humanos, bem como estratégias curriculares a fim de
fomentar o educar para o “nunca mais”, na disciplina de Literatura. Como estudo de caso,
aborda-se a obra Quarto de despejo, de Carolina de Jesus, a fim de apresentar uma proposta de
leitura da obra com ênfase à promoção da educação em direitos humanos.
Palavras-chave: Ensino de literatura; Educação em Direitos Humanos; Carolina de Jesus;
Quarto de despejo.

Introdução
Em 1988, em razão da Assembleia Constituinte, o professor Antonio Candido
(CANDIDO, 1995) escreveu o texto “Direito à Literatura”, no qual discute as razões
pelas quais a Literatura se constitui um Direito Humano a ser defendido e ao qual todos
devem ter acesso. À época, Candido declarou que “a barbárie continua até crescendo,
mas não se vê mais o seu elogio, como se todos soubessem que ela é algo a ser ocultado
e não proclamado” (ibidem, p. 170). Trinta anos depois, infelizmente, a barbárie, que já
crescia, continua nesse processo, contudo, diferentemente do passado, seu elogio é
aplaudido. Diante disso, a pergunta que emerge é: como pode a literatura, sendo um
direito humano, colaborar para a construção de uma cultura de defesa dos direitos
humanos? E, havendo essa possibilidade, qual é o papel do professor de literatura nesse
processo?
Teoria
Em diálogo com o artigo 2º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que diz

A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de


liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno
desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e
sua qualificação para o trabalho (BRASIL/MEC, LDB, 1996)

1
Professora de Literatura do IFRJ – Campus Pinheiral. Doutora em Letras Vernáculas – Literaturas
Portuguesa e Africanas (UFRJ). Atua na área de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e Ensino de
Literatura. Contato: bispoerica@gmail.com.

1433
Vera Candau (2013) ensina que a Educação em Direitos Humanos precisa ser
orientada no sentido de que os seguintes elementos sejam afirmados nos diferentes
âmbitos educativos:

a visão integral dos direitos; uma educação para o “nunca mais”; o


desenvolvimento de processos orientados à formação de sujeitos de direito e
atores sociais; e a promoção do empoderamento individual e coletivo,
especialmente dos grupos sociais marginalizados ou discriminados.
(CANDAU, 2013, p. 61)

Atentemo-nos para cada um dos objetivos estabelecidos por Candau. O primeiro


objetivo, que é a visão integral dos direitos, aponta para o abandono do obscurantismo e
do senso comum no que diz respeito aos Direitos Humanos; ou seja, implica a
compreensão, bem como o alcance do conceito que ora se debate. O educar para o
“nunca mais”, segundo objetivo, trata da memória como instrumento por meio do qual é
possível romper com o silêncio do trauma e da tragédia, a fim de “escovar a história a
contrapelo” (BENJAMIN, 1994, p. 225) e, com isso, ressignificar o presente; isto é,
ressalta a necessidade de olhar para o passado num movimento de (re)apropriação. A
promoção do empoderamento individual e coletivo dos grupos marginalizados, terceiro
objetivo, dá conta do olhar para os grupos oprimidos e para a colaboração com a
assunção de direitos desses sujeitos. Nosso entendimento é o de que o ensino de
Literatura – em especial no espaço da educação técnica – pode e deve trabalhar no
sentido de promover uma educação em direitos humanos nos três elementos listados por
Candau, com ênfase na memória e na identidade.
No que diz respeito ao ensino de literatura no contexto do ensino técnico, a
disciplina de literatura parece, ao olhar leigo, oferecer uma gama de conhecimentos que
não dialogam com o mundo do trabalho. Tal noção errônea sobre a seleção curricular
parte de uma ideia de ser humano como sujeito cujo único propósito é a atividade
produtiva, desprovido de qualquer outra dimensão. Ou seja, o sujeito dessa maneira
concebido não estabelece relações sociais, não desfruta de lazer, não reflete sobre o seu
redor e tampouco interfere na realidade a sua volta.
Miguel Arroyo é categórico em afirmar que

Essa visão tão mercadológica e reducionista do trabalho tem marcado o


reducionismo a que é relegado o direito ao conhecimento, sobretudo para os

1434
filhos (as) dos trabalhadores que sobrevivem em trabalhos informais e para
onde os seus filhos parecem predestinados. (ARROYO, 2013, p. 104)

Diante disso, é curiosa a manutenção da formação cidadã como objetivo da


educação, uma vez que, segundo esta concepção, a escola precisa formar um sujeito que
ultrapasse a mão-de-obra pragmática e se integre à sociedade plenamente em sua
constante construção. Segundo Maria Ciavatta, a noção de formação plena do cidadão
remonta a educação socialista, cujo propósito era a formação omnilateral do sujeito.
Mesmo sem adotar o modelo econômico socialista e diante de uma série de investidas
neoliberais, Ciavatta afirma que se manteve no Brasil

o denso significado da ‘educação politécnica’ como educação omnilateral ou


formação em todos os aspectos da vida humana – física, intelectual, estética,
moral e para o trabalho, integrando a formação geral e a educação
profissional. (CIAVATTA, 2014, p. 190-191)

Contudo, na prática, a formação propedêutica se conjugou aos saberes técnicos


estabelecendo raros diálogos, quando os há. Por vezes, o currículo funciona como
instrumento segregador e seletor dos grupos sociais que dividem o espaço escolar, uma
vez que nele “há uma ausência seletiva de sujeitos sociais, étnicos-raciais, de gênero,
dos campos e das periferias; dos trabalhadores” (ARROYO, 2013, p. 138). Em geral, os
alijados socialmente não se enxergam como parte do conhecimento escolar. Não por
acaso, são eles os mesmos que engordam os índices de evasão e retenção.
Neste contexto, como se insere o ensino de literatura? Ao se retomar o texto de
Antonio Candido, intitulado “Direito à literatura”, é fácil associar a defesa dos direitos
humanos como um instrumental caro à literatura, já que, segundo Candido, “a literatura
desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais
compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante” (CANDIDO, 1995,
p. 180). Ou seja, para Antonio Candido, a literatura ajuda a desenvolver a sensibilidade
do sujeito. No entanto, como é possível atingir o desenvolvimento da humanidade por
meio da simples repetição de características das escolas literárias?
Está claro para nós que um ensino de literatura que visa ao fomento da educação
em direitos humanos não pode se basear na mera identificação de figuras de linguagem
ou características de movimentos literários. Não defendemos aqui a exclusão dos
escritores canônicos, mas nossa crítica, neste momento, se debruça sobre o como

1435
apresentá-los. Mais do que a vida dos escritores, nomes de livros ou características, ao
ensino de literatura cabe a tarefa de ampliar as habilidades leitoras do educando.
Vale lembrar que, para Paulo Freire, o ato de ler “não se esgota na codificação
pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas [...] se antecipa e se alonga na
inteligência do mundo” (FREIRE, 1989, p. 9). Ou seja, há uma relação direta entre o
texto e o real. Cabe ao professor ser o mediador da transformação da leitura da palavra
na leitura da “palavramundo”.
No âmbito da leitura literária, tal movimento se torna em um novo desafio, já que
“ninguém nasce sabendo ler literatura” (COSSON 2016, p. 29). Se por um lado, no
dizer de Antonio Candido (1995) ninguém consegue ficar 24 horas sem ter contato com
a efabulação; por outro, a literatura como disciplina escolar apresenta-se como um
objeto distante do educando, “inacessível e distante do leitor, terminando por lhe ser
totalmente estranh[o]” (COSSON, 2016, p. 29). Sendo assim, Rildo Cosson afirma que
“ao professor cabe criar as condições para que o encontro do aluno com a literatura seja
uma busca plena de sentido para o texto literário, para o próprio aluno e para a
sociedade em que todos estão inseridos” (idem, ibidem).
Prática
No esteio dessas reflexões, antes de encerrar este texto, queremos debater uma
proposta educacional, a partir da nossa experiência como professora-pesquisadora
inserida no contexto da Educação Básica Técnica e Tecnológica. Assumindo o papel
político presente no ato de ensinar, compreendendo que educar é uma forma de
intervenção no mundo e valorizando a pesquisa e o rigor metodológico (cf. FREIRE,
1996), optamos por adotar a obra Quarto de despejo, de Carolina de Jesus, no 3º ano do
Ensino Médio integrado ao técnico, nos cursos regulares, no IFRJ-Campus Pinheiral.
Quarto de despejo é uma obra literária em formato de diário, que narra a rotina de
Carolina e seus três filhos na favela do Canindé em São Paulo. A presença constante da
fome e a luta pela sobrevivência narradas em primeira pessoa envolvem o leitor no
drama diário vivido pela autora. Em todo o tempo, nota-se na narrativa uma constante
cíclica sintetizada nos movimentos de acordar, buscar água, catar papel, tentar comer
algo, dormir, acordar, buscar água. Para nós, é bastante marcante tal rotina, uma vez
que, em razão do formato de diário e a falta de perspectiva da família, em dado

1436
momento da leitura, o leitor se questiona como a narrativa terminará e na última página
se depara com o seguinte:

31 de dezembro... Levantei as 3 e meia e fui carregar água. [...] Eu fui


fazer compras, porque amanhã é dia de Ano. [...]
Espero que 1960 seja melhor do que 1959. [...]
1 de janeiro de 1960 Levantei as 5 horas e fui carregar agua.
(JESUS, 2014, p. 191)

Ao longo de toda a obra, é constante a escassez de direitos a que Carolina de Jesus


e seus filhos têm acesso. A luta contra a fome e a recorrência desta queixa saltam aos
olhos de qualquer um. As discussões sobre a responsabilidade coletiva das
desigualdades sociais, a maternidade diante da ausência dos pais das crianças, a infância
e o trabalho infantil, a segregação espacial e as remoções emergem do texto, querendo o
professor ou não. Não se trata aqui de politizar o texto literário, afinal de contas, nas
palavras de Paulo Freire, “a educação não vira política por causa da decisão deste ou
daquele educador. Ela é política” (FREIRE, 1996, p. 42). Assumimos a mesma postura
desse educador, que afirma que “não posso ser professor se não percebo cada vez
melhor que, por não poder ser neutra, minha prática exige de mim uma definição. Uma
tomada de posição. Decisão. Ruptura.” (FREIRE, 1996, p. 39).
Dessa forma, no sentido de unir o ensino de literatura à educação em direitos
humanos, a análise do texto precisa ser conduzida pelo docente de modo a não
reproduzir uma lógica que permanece a excluir sujeitos marginalizados socialmente.
Diante do texto, há que se questionar por que Carolina passa fome, como ela reage à
vida e quem são os sujeitos que ela responsabiliza por seu estado.
O debate em sala de aula desse texto tem, em nossa experiência, suscitado
discussões sobre o lugar social de onde fala a autora/narradora, bem como o quanto
Carolina destoa da imagem da maioria dos escritores cujas fotografias estão nos livros
didáticos usados pelos alunos. Conduzimos os estudantes a questionarem-se por que há
poucas mulheres, poucas pessoas negras e raras mulheres negras no cânone literário. O
lugar de subalternidade social de Carolina de Jesus, torna-se, portanto, uma motivação
para abordamos a obra visando a associar as razões sócio-históricas que levaram ao
surgimento das favelas e à condição de marginalidade dos negros. Tal reflexão, para
muitos alunos, é uma novidade, uma vez que permanece nos IFs, mesmo depois da

1437
implementação das cotas, um marcante recorte social. Além disso, as narrativas de
superação, bem como a lógica meritocrática permeiam o imaginário brasileiro.
Quarto de despejo apresenta uma rotina que salta aos olhos de quem pode comer
todos os dias. Em muitos momentos do texto, a animalização dos favelados surge nas
linhas de Carolina de Jesus. No esteio das palavras de Selligman, para quem “não existe
explicação para a animalização do homem” (SELLIGMAN, 2016, p. 15), ressaltamos a
não normalização do estado de extrema pobreza, bem como a importância de não
invisibilizar os sujeitos marginalizados. Em sala de aula, ressaltamos a amplitude do
abismo social e discutimos políticas públicas que buscam minimizar tal problemática.
Vale lembrar que, segundo Vera Candau, um dos desafios que se impõe à educação em
direitos humanos se configura na articulação política de igualdade e de reconhecimento
das diferenças, na medida em que é necessário promover “uma maior consciência dos
diferentes grupos socioculturais presentes no tecido social do país” (CANDAU, 2013, p.
32). Dessa forma, o diário de Carolina coloca no centro do espaço privilegiado da sala
de aula a tensão presente nos diversos tecidos sociais brasileiros.
Numa aula de literatura, por mais que defendamos a utilização do texto literário
como motivador de debates sobre direitos humanos, a abordagem não deve se limitar a
isso. Contudo, a forma como se exploram os traços estéticos de Quarto de despejo
também tem implicações políticas. Não é difícil encontrar exemplos do uso do texto de
Carolina de Jesus para ensinar variação linguística, dando ênfase aos “erros de
português”, enquanto o texto da escritora oferece uma série de construções poéticas,
como é o caso do seguinte trecho:

Os menino come muito pão. Eles gostam de pão mole. Mas quando
não tem eles comem pão duro.
Duro é o pão que nós comemos. Dura é a cama que dormimos. Dura é
a vida do favelado. (JESUS, 2014, p. 41)

Neste trecho, a escritora parte de um dado do real: a rigidez do pão, consequência


da extrema pobreza na qual está inserida, a fim de derivar o sentido da rigidez física ao
sentido metafórico da rudeza. A opção pela anáfora na repetição do adjetivo
“duro/dura” no início das frases enfatiza a dificuldade de viver, registrada nas páginas
do diário. A inserção da informação sobre a cama, elemento pouco explorado ao longo
da obra, quando comparado à fome, revela também a ausência de descanso, reafirmando

1438
a severidade da vida. Dessa forma, pão, cama e vida são elementos que, juntos, formam
a gradação que sintetiza a rotina na favela. O que queremos dizer aqui é que o olhar do
leitor pode se virar do erro para o belo.
Considerações finais
Retomando a discussão de Vera Candau ao propor que a educação em direitos
humanos precisa caminhar no sentido de desenvolver sujeitos de direito, empoderar
individual e coletivamente os marginalizados e educar para o “nunca mais”, entendemos
que o uso em sala de aula da obra Quarto de despejo atravessa esses três pilares.
No que diz respeito ao desenvolvimento do sujeito de direitos, a obra colabora
para fazer questionar a ausência de direitos a que tem acesso Carolina e seus filhos, bem
como o papel das políticas públicas na mudança das causas da exclusão dos favelados.
Sobre o empoderamento dos sujeitos marginalizados, a obra chama a atenção por se
apresentar como um “olhar de dentro” sobre a favela. A narrativa do eu empreendida
por Carolina revela a assunção de um discurso próprio, não mediado por outros
indivíduos, estes detentores do poder ou localizados em espaços de privilégio. Sobre o
educar para o “nunca mais”, o diário registra uma memória – ainda presente – que não
pode ser apagada ou esquecida, que é a realidade da fome. Segundo Seligmann, “não
contar perpetua a tirania do que passou” (SELIGMANN, 2000, p. 9), então, a fixação
pela escrita colabora com o processo de resistir ao esquecimento e ao silenciamento.
Encerramos este texto retomando as duas perguntas iniciais: como pode a
literatura, sendo um direito humano, colaborar para a construção de uma cultura de
defesa dos direitos humanos? E, havendo essa possibilidade, qual é o papel do professor
de literatura nesse processo?
Nosso entendimento é o de que a literatura humaniza, nos torna mais empáticos e
nos conduz a olhar o outro, reconhecendo e respeitando as suas diferenças e
singularidades. Sendo assim, ao professor, cabe ser o mediador de uma leitura da obra
literária que evidencie o outro, reaja à barbárie e fomente utopias e esperanças.

Referências
ARROYO, Miguel. Currículo, território em disputa. 5. ed. 7. reimp. Petrópolis: Vozes,
2018.
CANDAU, Vera; SAVINO, Suzana Beatriz. Educação em direitos humanos e formação
de educadores. Educação (Porto Alegre, impresso), v. 36, n. 1, p. 59-66, jan./abr. 2013
CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 3. ed. rev. e ampl. SP: Duas Cidades, 1995.

1439
CIAVATTA, Maria. O ensino integrado, a politecnia e a educação omnilateral. por que
lutamos?. Trabalho & Educação. v.23. n.1. jan-abr 2014. Belo Horizonte, 2014, p. 187-
205. Disponível em
<https://periodicos.ufmg.br/index.php/trabedu/article/view/9303/6679>
COSSON, Rildo. Letramento literário. Teoria e prática. 2. ed. 6. reimp. São Paulo:
Contexto, 2016.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São
Paulo: Autores Associados: Cortez, 1989.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São
Paulo: Paz e Terra, 1996.
JESUS, Carolina de. Quarto de despejo. Diário de uma favelada. 10. ed. São Paulo:
Ática, 2014.
SELIGMAN-SILVA, Marcio; NESTROVSKI, Arthur. Catástrofe e representação. São
Paulo: Escuta, 200.
SELIGMAN-SILVA, Marcio (org.). História, memória, literatura. O testemunho na era
das catástrofes. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.

1440
O SUJEITO EM FORMAÇÃO EM CONTOS DE MACHADO DE ASSIS:
PROTAGONISTAS JOVENS, A LEITURA E A ESCOLA

Luís Fernando Portela (UFRGS)1

Resumo: Este trabalho se propõe a analisar progressivamente a formação do sujeito em contos


de Machado de Assis que tenham como protagonistas personagens jovens, tomando como ponto
de partida a crítica sócio-histórica de Alfredo Bosi em “A máscara e a fenda”. Busca-se
demonstrar o papel central da leitura e do imaginário nos contos, e, nesse sentido, observar o
espaço que essas narrativas poderiam ocupar nas práticas de leitura escolares, como proposta de
ressignificação da leitura de Machado de Assis por jovens estudantes hoje, em cotejo com suas
práticas autônomas de leitura e sua realidade. Utiliza-se como base teórica uma mescla de estudos
críticos sobre a obra de Machado de Assis e estudos teóricos sobre o ensino de literatura.
Palavras-chave: Machado de Assis; contos; práticas de leitura; imaginário; leitura escolar.

Em seu artigo “A máscara e a fenda”, publicado em Machado de Assis: antologia e


estudos, em 1982, Alfredo Bosi traça um panorama da produção de contos de Machado e
trata das duas instâncias simbólicas de seu título como uma tensão constante nas
narrativas curtas do autor. Se nos seus escritos iniciais fica desenhada uma sociedade que
construiu um muro entre as classes, só transponível por fendas que eventualmente se
abrem por conta de relações “naturais”2, passagem para a qual o trabalho não tem
relevância (BOSI, 1982, p. 440) e a conformidade é exigida, com a maturidade, Machado
vai tomando consciência de que o engano é mais do que uma ferramenta, é uma
necessidade, e que a aparência dá o tom fundamental e se aplica de maneira universal,
enquanto essência que funciona tanto para a esfera pública quanto para a intimidade
(1982, p. 441). O uso dessa máscara torna-se então indispensável para que o indivíduo
possa “vencer na vida”, restando fora desse paradigma a “tolice, imprudência ou loucura”
(1982, p. 441).
Os “contos-teorias”, conforme nomeados por Bosi, são pontos referenciais para a
compreensão dessa movimentação social das personagens na obra machadiana. Os

1
Graduado em Letras (UPF), Mestrando em Letras (UFRGS). Contato: luis.portela05@hotmail.com.
2
No capítulo inicial de Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance
brasileiro, Roberto Schwarz trata desse liberalismo europeu “oco” assumido pela sociedade brasileira da
segunda metade do século XIX, de como se adequou enquanto verniz de um sistema baseado no “favor”, e
da sua presença na literatura: “No processo de sua afirmação histórica, a civilização burguesa postulara a
autonomia da pessoa, a universalidade da lei, a cultura desinteressada, a remuneração objetiva, a ética do
trabalho etc. – contra as prerrogativas do Ancien Régime. O favor, ponto por ponto, pratica a dependência
da pessoa, a exceção à regra, a cultura interessada, remuneração e serviços pessoais” (2000, p. 17). E
considerando que já em seu contexto originário esse discurso era “oco”, “Machado será o mestre” ao tratar
desse “oco dentro do oco” (2000, p. 21).

1441
sujeitos conforme traçados por essas histórias não se prestam a heroísmos, e não são por
isso julgados pelo autor, já que estão tentando sobreviver e lutar (cada um na proporção
de seus conflitos) com as ferramentas que lhes são possíveis nesse contexto, conforme
Bosi (1982, p. 442): “A crítica, silenciosa, tem um alvo maior: é o processo do Processo.
O anúncio do fatum poderá valer por uma denúncia universal” (BOSI, 1982, p. 442).
“A teoria do medalhão” como elogio da aparência sobre a essência é propriamente
uma ácida denúncia que se vale desse “anúncio do fatum”. Dá a ver que são os mais
jovens os que mais ameaçam a ordem estabelecida, pois estão ainda em formação como
sujeitos e em tal posição podem encontrar caminhos que faça surgir um rasgo nessa
máscara essencial e coloque o próprio funcionamento do sistema social a olhar
criticamente para si mesmo. É possível inferir que, dentro do horizonte machadiano, um
jovem que fosse ao limite de despir sua máscara não passaria impune: as consequências
seriam severas e sua degradação inevitável. Porém, é evidente também que vem das
crianças e adolescentes a força mais genuína capaz de pôr o funcionamento do mundo
social, conforme dado, em cheque. A natureza do potencial de transformação dos jovens
são as ideias e a sua exposição. E qual seria seu meio de cultivo e nascimento senão as
atividades que estimulam a criatividade e a imaginação? Essa atividade, por excelência,
é a leitura literária, posta aqui em um polo oposto à leitura esvaziada de “compêndios de
retórica”, de “A teoria do medalhão” (ASSIS, 2011, p. 67).
Para esclarecer melhor a centralidade do texto literário nesse cenário revolucionário
das ideias, pode-se recorrer a Wolfgang Iser. O teórico trata do fictício e do imaginário
no desenvolvimento de uma heurística que busca compreender “a auto-interpretação
humana que se faz por meio da literatura” (ISER, 1999, p. 66), e sua relação com o real
enquanto algo próprio dessa manifestação artística. Essa “auto-interpretação” está
relacionada à forma como essas três instâncias (fictício, imaginário e real) se relacionam
no texto literário. Conforme comenta Maria Zaira Turchi, “Iser defende a ideia de uma
dupla transgressão de limites: a realidade repetida no fingir se transforma em signo, e o
imaginário, experimentado por nós de modo difuso, informe, fluido, no ato de fingir,
ganha uma determinação” (TURCHI, 2009, p. 303). Há, portanto uma instância do real,
uma realidade referencial, interpelada pela imaginação criativa, criadora, que pode ser
tomada como base para a composição, em processo nomeado por Iser como “ato de
seleção” (referências extratextuais, que podem inclusive produzir intertextualidade),

1442
seguida do “ato de combinação” (em que estão postas questões intratextuais e onde
aparecem a denotação e a representação). O que o autor aponta, ainda, por fim, é o
“autodesnudamento da ficcionalidade”, ou seja, a instituição aberta do “como se”, pois
esse mundo criado pela ficção se apresenta como um outro possível, como se fosse, e não
como o mundo referencial. Ele o tem como partida e o ultrapassa. O imaginário, com isso,
é tanto impulsionador do fictício quanto ativado por ele, tendo o real como um ponto
referencial. A literatura é uma composição do imaginário, e no autodesnudamento de sua
ficcionalidade é que dá condições a uma estimulação e formatação do imaginário. Daí os
perigos que o texto literário poderia oferecer ao futuro medalhão como Machado o
descreve. Iser responde da seguinte maneira à questão sobre o que significa o imaginário
assumir forma nesse entendimento de que dele necessita o fictício para se realizar:

os atos de fingir descortinam um horizonte de possibilidades para o que é,


permanecendo, nesse sentido, ligados a realidades. Mas realidades são
concretas, e possibilidades permanecem abstratas, pois resultam de uma
travessia de fronteiras, não podendo ser modeladas por aquilo que excederam.
O horizonte de possibilidades prefigurado pela transgressão de fronteiras
inevitavelmente modifica as realidades que foram ultrapassadas. (ISER, 1999,
p. 71).

Esse é o potencial de transgressão próprio da literatura. Por mais que o imaginário


e o fictício não estejam ausentes do cotidiano, quando se autodesnudam enquanto ficção
podem levar o leitor, que dá agora uma forma à sua imaginação e vê a possibilidade de
uma nova realidade que ultrapassa aquela em que vive de fato, a um posicionamento
crítico em relação ao seu meio. Isso, evidentemente, para a manutenção de uma sociedade
como aquela descrita por Machado de Assis, deve ser a um só tempo temido e reprimido.
E esse espaço de repressão pode ser tanto a família quanto a escola, que ocupa um papel
privilegiado na seleção e imposição de leituras aos jovens. Criariam ambas, com isso,
uma hoste de leitores clandestinos, já que como aponta Iser, temos necessidade dessa
encenação da literatura (1999, p. 76-77). Ela está além de mero prazer fugaz ou
entretenimento.
A leitura e a escola
Dois contos de Machado que tem como ambientação a escola, senão central,
fundamental para a narrativa, merecem ser analisados quando tratamos do papel da escola
e da leitura na obra machadiana. São eles “Conto de Escola”, publicado inicialmente na

1443
Gazeta de Notícias, em 1884, e posteriormente, em 1896, em Várias Histórias, e “Umas
férias”, publicado em Relíquias da Casa Velha, no ano de 1904.
Em “Conto de Escola”, ambientado em 1840, e narrado em primeira pessoa por um
adulto que relembra um momento crucial para sua formação na infância, o protagonista é
o jovem Pilar, que com aproximadamente dez anos de idade, envolve-se em um trato de
corrupção na sala de aula. O filho do professor, Raimundo, suborna o menino para que
lhe explique um ponto da lição de sintaxe que não consegue entender. São eles dois
opostos naturais: Pilar não suportava frequentar a escola, e apesar disso gaba-se por ser
um dos alunos de maior talento, enquanto Raimundo, temendo fortemente o pai, esforça-
se ao máximo para compensar suas claras dificuldades intelectuais. Estão ambos e mais
o delator de sua troca imoral, Curvelo, sob a batuta, ou a ameaça de palmatória do mestre
Policarpo. Como a ação do conto se passa quase toda nesse reduzido ambiente da sala de
aula, fica nítido seu caráter opressivo em contraste com os devaneios do protagonista, que
arrependido de ter ido à escola, vê um papagaio de papel voando contra o céu azul lá fora,
enquanto está sentado “com o livro de leitura e a gramática nos joelhos” (p. 2).
O ambiente da escola não é em nada compatível com o exercício da imaginação, da
criatividade ou de qualquer atividade prazerosa em si mesma. Cumpre uma função
pragmática e de adequação ao mundo social. Basta retornar ao início do conto e atentar
para as expectativas paternas de Pilar e a centralidade da escola em sua concretização:

As sovas de meu pai doíam por muito tempo. Era um velho empregado do
Arsenal de Guerra, ríspido e intolerante. Sonhava para mim uma grande
posição comercial, e tinha ânsia de me ver com os elementos mercantis, ler,
escrever e contar, para me meter de caixeiro. Citava-me nomes de capitalistas
que tinham começado ao balcão (p. 1).

O filho não deve render-se a práticas que o desviem desse caminho traçado pelo
pai, e a escola é o grande instrumento para alcançá-lo. De forma muito pragmática, “ler,
escrever e contar” bastam para a iniciação profissional e são meramente ferramentas
básicas para essa pretensão de ascensão. Esse livro de leitura, que Pilar tem sobre os
joelhos junto da gramática, é a representação máxima do enfado escolar, de uma escola
que compreende a leitura como mera ferramenta e desestimula o exercício da imaginação.
Não é à toa que justamente ele é contraposto ao desejo incontornável da criança de brincar

1444
pela rua. A necessidade do fictício para a criança se expressar pelo brincar livre em
oposição à leitura escolar impositiva.
Assim como a autoridade do mestre se impõe com castigos físicos no conto, pela
palmatória, também está impregnada nas práticas das leituras escolares que visam a
atender certa demanda social e parental. E a fuga da personagem desse controle só se dá
por meio do rebaixamento velado da autoridade, do devaneio, do sonho, e, de forma mais
concreta, através do “tambor” que o atrair pelas ruas e o desvia da escola para brincar
pela cidade. Ele sim, simbolicamente mais forte que qualquer lição aprendida na escola.
De ambientação semelhante a “Conto de Escola”, porém de trama ligeiramente
diversa é o conto “Umas Férias”. O conto é também narrado em primeira pessoa, por um
adulto que rememora um momento traumático da infância, ocorrido aos seus dez anos (o
efeito comparativo é auxiliado por ter a mesma idade de Pilar). Também nele há um
evidente repúdio à leitura escolar, vista como obrigação enfadonha e oposta a qualquer
possibilidade de prazer. Aqui o espaço ocupado pelo imaginário é ampliado em relação
ao conto anterior. O menino buscado à escola pelo seu Tio Zeca, sem qualquer explicação,
volta para casa em companhia da irmã um ano mais velha, parando às portas de
armarinhos e vendas para ver bonecas e papagaios. Sair da escola enquanto lá estavam
confinados todos os outros meninos, era uma libertação incomparável. Tanto que ambos
seguem o Tio Zeca pela rua, sem que os sinais da tragédia de que tomarão conhecimento,
possam nem por um instante ser considerados por eles como tal.
O menino José Martins projeta uma ida ao teatro, imagina festa por conta da eleição
do padrinho a vereador, além da possibilidade de ser o aniversário de algum familiar.
Poderia ainda ser um “teatrinho de bonecos” em casa mesmo ou estaria em época de festas
de Santo Antônio e São João. Com esta lembrança, o que se acende além das fogueiras é
o desejo de destruir o objeto que simbolicamente o liga à escola e à vontade paterna:

Ah! Lembrou-me que era ocasião de deitar à fogueira o livro da escola, e o


dela também, com os pontos de costura que estava aprendendo.
– Isso não, acudiu Felícia.
– Eu queimava o meu livro.
– Papai comprava outro.
– Enquanto comprasse, eu ficava brincando em casa; aprender é muito
aborrecido (p. 4).

1445
Essa passagem é muito elucidativa das relações retratadas entre família (na figura
paterna), crianças e escola. Vislumbra-se também a distinção de gênero no ambiente
escolar, com livro da menina voltado a ensinar pontos de costura. Essa leitura
institucionalizada, que tem como fim um aprendizado, é tida pela criança como algo
negativo e aborrecido, o anti-espaço da imaginação e da efabulação genuínas, que
aparecem sob diversas outras formas que não no livro.
Quando o menino José descobre que foi tirado da escola por conta da morte de seu
pai, os sonhos de festas e teatros são destruídos e iniciam-se oito dias de luto em casa.
Portanto, a presença do pai neste conto é muito mais forte, pois ela está sempre ao fundo,
lembrando o menino do motivo pelo qual se isolou do convívio de seus colegas de classe.
A escola, antes preterida pela possibilidade de grandes diversões, se põe a crescer
intimamente no desejo da criança, que a vê como alternativa ao marasmo esmagador do
luto. Seus dias em casa passam a consumi-la de tédio, enquanto a mãe obriga ao estudo:

Em verdade, eu não folgava, se lerdes isto com o sentido de rir. Com o de


descansar também não cabe, porque minha mãe fazia-me estudar e, tanto como
o estudo, aborrecia-me a atitude. Obrigado a estar sentado, com o livro nas
mãos, a um canto ou à mesa, dava ao diabo o livro, a mesa e a cadeira. Usava
um recurso que recomendo aos preguiçosos: deixava os olhos na página e
abria a porta à imaginação. Corria a apanhar as flechas dos foguetes, a ouvir
os realejos, a bailar com meninas, a cantar, a rir, a espancar de mentira ou de
brincadeira, como for mais claro (p. 7, grifo nosso).

Está clara nesse trecho a distinção entre a leitura escolar e a imaginação (fonte de
prazer). A ação do menino pode parecer paradoxal, deixar “os olhos na página” e abrir “a
porta à imaginação”, porém se explica perfeitamente ao pensar na leitura escolar com
finalidade de ensinar algo, não de divertir. Com esse período de luto, o garoto que sonhava
com diversões de inúmeras naturezas, acaba, por fim, somente com o mais maçante dos
dois mundos, não há o que fazer em casa e da escola fica somente com o enfado das
leituras. A morte do pai é o catalizador de todos esses sentimentos, e o menino vê-se
sufocado por não poder extravasar sua necessidade de fantasia e brincadeira: “O livro
lembrou-me a escola, e a imagem da escola consolou-me. Já então lhe tinha grandes
saudades. Via de longe as caras dos meninos, os nossos gestos de troça nos bancos, e os
saltos à saída” (p. 8). O livro simboliza a escola, e o que há de prazeroso nela é a

1446
companhia dos colegas e suas travessuras. Com o que José Martins acha ao voltar à escola
“uma grande alegria sem férias”.
Os narradores de ambos os contos evocam momentos traumáticos de sua infância,
que são motivadores de sua narrativa enquanto adultos, podemos compreender que
tiveram impacto na formação de sua subjetividade, enquanto personagens que se colocam
para essa dupla camada de realização, de passado revisto e do presente que se expõe na
atribuição de sentido à experiência. O papel formativo da escola nessas lembranças é
decisivo para o bem ou para o mal, e a condução impositiva da leitura é mais uma camada
desse trauma. Diana Corso comenta essa questão da formação da subjetividade da criança
mediada pela educação a partir de Freud:

Sabe-se já ao ler o Freud do início do século, que o mapa de uma subjetividade


é traçado na infância e, diferente dos desígnios unívocos de um mapa astral, o
nosso é construído aos poucos, passa por periódicas mudanças de traçado, e se
confunde com a gênese da nossa imagem corporal. [...]
Freud arrancou a ilusão de objetividade da ainda jovem crença na possibilidade
de fazer um homem novo, filho da liberdade com o saber. Não se deduza disto
que não vejo em Freud o sonho iluminista: ele acreditava que da liberdade de
discurso da criança, da diminuição do jugo que mantinha a sexualidade sob um
véu de hipocrisia, adviria um homem melhor. Freud acreditava no poder
libertador das palavras que curam. O problema é que justamente por sua visão
complexa da subjetividade, da imprevisibilidade dos efeitos das vivências,
Freud baniu qualquer sonho de objetividade possível na construção educativa
de um novo homem. A partir daí, não temos mais nenhuma receita para gerar
o homem liberto e inteligente do sonho iluminista. (1998, p. 106).

Sem o “sonho iluminista”, a educação conforme descrita nesses contos por


Machado é até cruel em sua objetividade e em sua receita para a formação da pessoa. Essa
visão da complexidade da subjetividade infantil é totalmente renegada e a força se impõe,
num processo que está de todo afastado da “liberdade de discurso da criança” e que a
priva dos objetos de seu desejo em prol de uma adequação forçada à moralidade vigente.
A leitura literária, oculta ou esboçada pela ativação cotidiana do fictício e do imaginário
em oposição à realidade, parece ser a chave que destrava esse mecanismo. Ainda não
encontrada pelas crianças, será, porém, o trunfo dos adolescentes.
Fruir a leitura e reimaginar o real
Nos contos “Uns braços” e “Missa do Galo”, o panorama é diferente. É possível
traçar entre eles um claro paralelo pela semelhança de suas tramas. Além disso, ao

1447
contrário das leituras das crianças dos contos anteriores, não estão condicionadas por
determinações escolares, mas pelo prazer e por sua vontade pessoal.
Em “Uns Braços”, conto narrado em terceira pessoa, publicado pela primeira vez
na Gazeta de Notícias, em 1886, e posteriormente em Várias Histórias, 1896,
acompanhamos uma breve passagem da vida de Inácio, um rapaz de quinze anos
empregado e abrigado pelo solicitador Borges, na esperança do pai, barbeiro na Cidade
Nova, de ver o filho encaminhado em uma profissão que lhe desse retorno financeiro.
Inácio, porém, tem mais aptidão para as fantasias do que para o trabalho burocrático a
que é submetido. É um rapaz pobre, gracioso e sonhador, que ao reunir essas
características só poderia ser visto como maluco por seu empregador.
Já vivia há cinco semanas numa condição de desumanização promovida pela frieza
do trabalho e da convivência em casa: “Cinco semanas de solidão, de trabalho sem gosto,
longe da mãe e das irmãs; cinco semanas de silêncio, porque ele só falava uma ou outra
vez na rua; em casa, nada” (p. 3). O que lhe fazia aguentar toda essa situação extenuante
era ver três vezes ao dia os braços de D. Severina. Além disso, Inácio tinha outros dois
refúgios, que acabavam convergindo para o “famoso par de braços”: as janelas de seu
quarto de fundos, voltadas para o mar, “que lhe falava a mesma linguagem obscura e nova
de D. Severina” (p. 5), e a leitura, ou melhor, releitura de três folhetos “comprados a
tostão debaixo do passadiço do Largo do Paço”. Inácio revisita a paisagem, a literatura e
indiretamente os braços, em um movimento que o faz perder-se em sonhos.
Inácio dorme à rede lendo e passa a sonhar com D. Severina, que como saída das
páginas do folheto, vem da parede em um gesto impossível para beijar-lhe os lábios. E
esse é o encontro do sonho com a realidade, pois a mulher, que já começara a perceber o
interesse do garoto, e a interessar-se por ele também, ao encontrá-lo dormindo age como
a imaginação do rapaz concebe em seu sonho e beija-o também. Porém, assim como
encontram-se, o real e o onírico imediatamente se afastam: “Aqui o sonho coincidiu com
a realidade, e as mesmas bocas uniram-se na imaginação e fora dela. A diferença é que a
visão não recuou, e a pessoa real tão depressa cumprira o gesto, como fugiu até à porta,
vexada e medrosa” (p. 6). O sonho e a imaginação não encontram as mesmas barreiras
impostas pela realidade, pois nessa instância da vida não há limites impostos ou a
necessidade de serem mantidas as aparências e a moralidade vigente. A D. Severina real
não pode lidar com a vergonha da situação, e os braços voltaram a se apresentar cobertos

1448
por um xale até o dia em que Borges manda o rapaz de volta para casa. Inácio levou
consigo “o sabor do sonho” (p. 7), que se pode dizer, teve seu impacto amplificado pela
mediação da imaginação e do fictício, acionado pela leitura literária.
Em “Missa do Galo”, podemos identificar semelhante acontecimento. Machado
parece revisitar a trama já desenvolvida em “Uns Braços”, ao traçar episódio muito
semelhante da vida do jovem Nogueira, na narrativa publicada em Páginas Recolhidas,
1899. O faz, porém de forma muito mais sútil, por meio de ambiguidades e insinuações.
Nesse conto a leitura, além de elemento de constituição da personagem, torna-se também
tema da conversação entre o protagonista e Conceição, sua anfitriã. Aqui o interesse
amoroso entre eles está sempre no nível do subentendido, pois a narração em primeira
pessoa do adulto revisitando sua adolescência não permite que tenhamos acesso aos
pensamentos da mulher, somente à surpresa e fascínio do jovem com o acontecido.
Diferente de Inácio, que morava em um bairro proletário da capital, Nogueira se desloca
do interior e está há alguns meses na “casa assobradada” do escrivão Menezes para
estudar no Rio. O rapaz tinha 17 anos e vivia tranquilo com os seus “livros, poucas
relações, alguns passeios” (p. 1).
Desde o início fica clara a relação de Conceição com seu marido, baseada em
aparências: ele a trai e ela se resigna e acaba “achando que era muito direito”, e “aceitaria
um harém, com as aparências salvas”. Quem ameaça a segurança da máscara é o jovem
leitor Nogueira, que ou redesenha a situação por meio de sua imaginação ou faz com que
ela se esqueça momentaneamente desse seu apego ao aparente como justificativa para
suportar as humilhações que lhe são impostas. Nogueira está esperando a hora de sair para
a missa do galo, e passa o tempo com a leitura de Os Três Mosqueteiros. Se Inácio tem
sua experiência romântica em sonho, Nogueira sonha ao ler e acorda para vivê-la:

Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da leitura.


Eram uns passos no corredor que ia da sala de visitas à de jantar; levantei a
cabeça; logo depois vi assomar à porta da sala o vulto de Conceição. [...] Sendo
magra, tinha um ar de visão romântica, não disparatada com o meu livro de
aventuras (p. 2, grifo nosso).

Pode-se observar a mesma relação de passagem da leitura para a situação romântica


de “Uns Braços”, com a diferença que agora essa leitura chama o protagonista para uma
revisão da realidade, e é lícito afirmar que todo o desenrolar do conto está permeado pela

1449
ficção que dava forma ao imaginário de Nogueira até há pouco. O texto literário, nesse
contexto, lhe dá uma nova possibilidade para interpretar a realidade e compreender a sua
conversa com Conceição. Não à toa, também ela, assim como D. Severina, tem aspecto
de personagem ficcional, além de seus braços, também alvos da apreciação do rapaz, em
paralelo ao conto anteriormente analisado:

Não estando abotoadas as mangas, caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade


dos braços, muito claros, e menos magros do que se poderiam supor. A vista
não era nova para mim, posto também não fosse comum; naquele momento,
porém, a impressão que tive foi grande. As veias eram tão azuis, que apesar da
pouca claridade, podia, contá-las do meu lugar. A presença de Conceição
espertara-me ainda mais que o livro. Continuei a dizer o que pensava das festas
da roça e da cidade, e de outras cousas que me iam vindo à boca (p. 4).

Claramente, a transição da leitura aqui é para o real, e para a amplificação de seu


sentido e vivência. E é interessante perceber como um raro momento em que a máscara
cai e o rapaz pode falar espontaneamente suas ideias sem preocupar-se com as aparências
ou as consequências. Assim como em “Uns Braços”, aqui também vence a conformação,
e essa conversação impactante para Nogueira parece ter sido esquecida por Conceição no
dia seguinte. Fica somente na memória do protagonista como uma projeção romântica
não realizada. As ameaças a que a ordem seja rompida não passam mesmo de ameaças.
Considerações finais
Como se dá então o encontro entre os leitores jovens em Machado e os leitores de
Machado? É muito atraente a possibilidade de estabelecer um diálogo entre a perspectiva
de Machado a respeito da leitura escolar e da leitura como exercício de imaginação e seus
leitores na escola de hoje. Porém, como conciliar a imagem do leitor de Machado de Assis
que transgride a norma pelo imaginário com a sua leitura imposta nas aulas de literatura
como conformação à tradição literária? Podemos abordar a discussão sobre a
clandestinidade da leitura em contraste com as leituras escolares pragmáticas, em uma
perspectiva de sua constituição histórica, conforme elaborada por Marisa Lajolo e Regina
Zilberman, em A formação da leitura no Brasil:

A clandestinidade é a condição de a leitura poder se realizar a contento, sem a


interferência dos adultos [...].
Essas leituras são clandestinas porque nada têm de pragmáticas. A escola,
prática e aplicada, considera-as indesejadas e bane-as, estabelecendo-se uma
dicotomia intransponível e inconciliável. Se a escola patrocinar leituras que

1450
atendam apenas à imaginação e ao gosto, rompe o pacto educacional; se evitá-
las, torna-se detestável, sem impedir que as leituras prediletas continuem a
proliferar, na clandestinidade ou não.
A escola, num caso, torna-se incompetente; no outro, impopular (LAJOLO;
ZILBERMAN, 1996, p. 230-231).

Essa dicotomia inconciliável dá conta de esclarecer o papel desafiador que a escola


enfrenta ao definir sua política de leitura e faz atentar para uma história de repressão
institucional, muito ligada à manutenção de seu status e função social. Vale tomar como
horizonte o que propõe Antonio Candido em seu ensaio “O direito à literatura”, ao
argumentar a favor da literatura como uma necessidade humana, e enquanto tal, algo que
deve ter seu acesso assegurado como um direito básico.

Primeiro, verifiquei que a literatura corresponde a uma necessidade universal


que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato
de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta
do caos e portanto nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa
humanidade. Em segundo lugar, a literatura pode ser um instrumento
consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição
dos direitos, ou de negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação
espiritual. (CANDIDO, 2004, p.186)

Fica como algo indevido a qualquer prática de leitura escolar, portanto, negar ao
aluno seu livre acesso à literatura, independentemente dos cronogramas e planos de leitura
que sejam estabelecidos. Deve-se promover a livre circulação no espaço da biblioteca,
para além da necessidade de investimentos e mesmo constituição de bibliotecas escolares
(em muitos casos sucateadas ou inexistentes), além de estimular seu uso, bem como de
outros ambientes de promoção cultural dentro e fora da escola, em que o aluno tenha
acesso à arte em suas diferentes manifestações, linguagens e suportes. Não censurar as
leituras de seus alunos deve ser a primeira premissa básica de qualquer escola que se
preocupe com a formação humana de seus educandos. A isso se acrescenta que não basta
aos alunos terem liberdade de lerem o que quiserem, mas é de fundamental importância
de que leiam como quiserem, ou seja, tão ou mais opressivo do que proibir uma leitura é
condicioná-la a uma única compreensão possível, institucionalizada e irrevogável.
Nesse sentido, é que fica aqui proposta uma conclusão mais questionadora do que
afirmativa. Machado de Assis, em sua crítica “silenciosa”, ao expor o “fatum”, que
“poderá valer por uma denúncia universal”, retomando Bosi (1982, p. 442), a respeito da
relação entre jovens, a leitura e a escola, será ou não ouvido por aqueles que fazem a

1451
embaixada de suas obras nas salas de aula de Literatura e Língua Portuguesa entre os
jovens? Podemos contribuir para o reforço da máscara ou para a abertura da fenda.

Referências

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<http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co
_obra=1979>. Acesso em: 12 mar. 2019.

______. Missa do Galo. Disponível em:


<http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co
_obra=1931>. Acesso em: 12 mar. 2019.

______. Umas Férias. Disponível em:


<http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co
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______. Uns Braços. Disponível em:


<http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co
_obra=16981>. Acesso em: 12 mar. 2019.

BOSI, Alfredo. A máscara e a fenda. In.: Machado de Assis: antologia e estudos. São
Paulo: Ática, 1982.

CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 4. ed. São Paulo; Rio de Janeiro: Duas Cidades;
Ouro sobre Azul, 2004.

CORSO, Diana Myriam Lichtenstein. A invenção da criança da psicanálise: de Sigmund


Freud a Melanie Klein. Estilos Da Clínica. Revista Sobre a Infância Com Problemas, São
Paulo, v. 3, n. 5, p. 104-114, 1998.

ISER, Wolfgang. O Fictício e o Imaginário. In.: ROCHA, João Cezar de Castro (Org.).
Teoria da ficção: indagações à obra de Wolfgang Iser. Trad. Bluma Waddington Vilar;
João Cezar de Castro Rocha. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999.

LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. São Paulo:


Ática, 1996.

SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos


inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.

TURCHI, Maria Zaira. A vertigem do leitor no universo da ficção literária. In.: RÖSING,
Tania M. K.; RETTENMAIER, Miguel (Org.). Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo
Fundo, 2009.

1452
TRAMAS E PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA DO LITERÁRIO NO
CIBERESPAÇO: NOVOS HORIZONTES PARA O ENSINO DA LITERATURA
NAS ESCOLAS TÉCNICAS

Marina Leite Gonçalves (CEFET/MG)1

Resumo: A circulação do texto literário na escola deve contemplar a dimensão social das
práticas de leitura, priorizando o encontro entre o leitor e o texto ficcional, seja este em meio
impresso ou em meio digital. Este texto reflete sobre o processo de multiletramentos por meio
de práticas textuais com o clássico machadiano no meio online, nos cursos de Ensino Básico
Técnico Tecnológico. Em nossa experiência de letramento literário e digital, através da criação
de um fandon machadiano, tramamos práticas de leitura e escrita, que demonstraram ser
possível nos apropriar daquilo que existe fora da escola e que movimenta a cultura participativa
dos jovens do meio digital e enredar esse saber informal à nossa pedagogia institucional.

Palavras-chave: Letramento literário; Letramento digital; Machado de Assis.

Há, entre os educadores e críticos da Literatura, o temor de que o burburinho das


novas mídias digitais e os seus efeitos atrativos possam silenciar a leitura da obra
literária em seu suporte impresso entre os nossos alunos. De fato, a crescente
acessibilidade das tecnologias móveis e a crescente popularidade de seus aplicativos
têm disputado a atenção de jovens estudantes com os conteúdos escolares. Daí a ênfase
em argumentos de que o estreitamento cada vez maior da literatura na escola ocorre
devido ao impulso democrático da cultura e da valorização da diversidade cultural
contemporânea, que defende a ideia de “que as obras literárias representadas pelos
livros cedam lugar aos filmes, shows, vídeos, programas televisivos e tudo mais que
compõe, como já vimos, o cenário atual da vida dos jovens” (COSSON, 2014, p. 14).
Diante dos desafios que a literatura clássica enfrenta para continuar
testemunhando o cotidiano de nossos alunos, o desafio é enfrentar a situação buscando
novas oportunidades de fazer com que o texto canônico possa continuar participando e
atuando, significativamente, no contexto escolar. Deveríamos, assim, considerar os
indícios que bloqueiam a participação do clássico, na atual atividade escolar, como
obstáculos que possam ser contornados à medida que criamos situações em sala de aula
que possam envolver o aluno com a leitura dessas obras numa perspectiva mais
participativa e estimulante de conhecimento.

1
Graduada em Letras (UNIMONTES), Mestre em Literatura Brasileira (UNIMONTES), Doutora em
Literatura (UFJF). Professora Língua Portuguesa\ Literatura CEFET\MG – Unidade Curvelo. Contato:
marinaleitecvo@gmail.com

1453
Em virtude de o texto literário ter extrapolado as fronteiras da cultura impressa e
expandido suas experiências de criação e leitura até a cultura digital e com isso ter
também acrescentado outras perspectivas de apreendê-lo, uma vez que agora além da
perspectiva de leitor, temos a perspectiva do espectador e navegador, torna-se evidente a
necessidade do auxílio de um mediador entre essas culturas e o aluno. Alberto Matos
García adverte sobre a emergência de se formar agentes que saibam aproveitar os novos
fenômenos dos ambientes digitais e criar, assim,

[...] uma nova convergência: a convergência entre a cultura escolar e a cultura


clássica, ao que Chartier chama de “cultura letrada” (sem seus aspectos mais
positivos, não os simplesmente doutrinais ou normativos), com esse mundo
‘selvático’ da internet, de maneira que se possam converter telas em cenários
de ‘novas práticas letradas’, com um novo espírito de participação, liberação
do conhecimento, etc., próprio dessa nova era digital a que alguns chamam
de ‘inteligência coletiva’ (GARCÍA, 2010, p. 32).

Roger Chartier também acredita na atuação da escola como mediadora entre as


duas culturas: impressa e digital. Para ele, a tecnologia reforçou a possibilidade de
acesso ao texto literário, mas ao mesmo tempo trouxe dificuldades para a apreensão
total e completa de seu sentido. Ele explica que: “É função da escola e dos meios de
comunicação manter o conceito do que é uma criação intelectual e valorizar os dois
modos de leitura, o digital e o papel. É essencial fazer essa ponte nos dias de hoje”
(CHARTIER apud NOVA ESCOLA, 2007).
Foi percebendo o presente impacto pedagógico que os fenômenos textuais digitais
têm provocado na leitura do literário e acreditando na importância do educador como
moderador entre os novos suportes eletrônicos de leituras e o texto literário impresso,
que intentamos criar um projeto para convidar o aluno a entrar em contato com o
clássico nacional por meio de mídias e recursos bem próximos a ele. A ideia prévia era
se poderíamos nos valer dos conhecimentos e das experiências adquiridos pelo nosso
aluno nativo digital no meio online, em nossas aulas de Literatura, a fim de levá-lo a se
tornar leitor e produtor de conteúdo literário nesse meio.
Trabalhar a literatura pela imediatez das mídias digitais e suas textualidades e
introduzir os dispositivos digitais em nossas aulas, tomando-os como possibilidade para
o letramento literário, significaria somar práticas da leitura habitual do texto literário em
livros (mídia impressa) e novas perspectivas de leitura do literário em rede online, o que

1454
representaria analisar e refletir, também, como a linguagem literária e os seus sentidos
constroem-se nesses espaços. Para atender a esta proposta, buscamos conhecer o
ambiente do ciberespaço, os seus suportes e plataformas comunicativas, navegar por
suas arquiteturas e identificar as ocorrências do texto literário em seu universo. Nesta
busca, encontramos várias ciberadaptações literárias que nos possibilitaram novas
inferências para as atividades de apropriação do literário no contemporâneo. Pensando
como os novos fenômenos digitais de adaptar o literário poderiam auxiliar no
desenvolvimento de habilidades de leitura e de escrita nas aulas de literatura,
apropriamo-nos de um formato de gênero bastante recorrente entre a geração net – o fan
video do YouTube – para promover experiências da construção do saber literário no
ciberespaço. Nosso desafio era trabalhar as novas demandas de experimentação do
literário nos meios eletrônicos dentro de uma proposta marcada pela fruição e
valorização do cânone.
Desde a fase de elaboração do projeto, mantivemos a expectativa de encontrar,
nas redes sociais e nos gêneros digitais das plataformas online, um potencial pedagógico
a ser explorado no processo de letramento do literário. Nessa perspectiva, tomamos
como ponto de partida o entendimento de Coscarelli sobre ser necessário refletirmos os
hipertextos digitais não “como uma ruptura em relação ao impresso, mas como uma
continuidade dele” (COSCARELLI, 2009, p. 560). Ao evocar o clássico, estabelecendo
uma conexão entre ele e os meios de comunicação atuais, não nos interessava conduzir
um trabalho que medisse forças entre mídias, mas fazer com que a diversidade de
gêneros e suportes que emergem do meio digital entrasse em nossas aulas como
resultado de um planejamento responsável e ético. O projeto “Tradução Intersemiótica e
Cibercultura: letramento literário nas redes digitais”, em discussão neste texto, foi
desenvolvido no Centro Federal de Educação e Tecnologia de Minas Gerais (CEFET-
MG), unidade de Curvelo-MG, no período de março de 2015 a março de 2016, com o
público de alunos do Ensino Médio Técnico Tecnológico. Submetido ao edital do
Programa de Iniciação Cientifica BICJúnior/ FAPEMIG/ CNPq/ CEFET-MG/ 2015-
2016, recebeu apoio destas instituições para um aluno bolsista do Curso Técnico em
Eletrotécnica, durante o período de sua realização. Este aluno, nativo digital e
conhecedor das ferramentas desse espaço, bem como navegador exímio das redes
sociais, participou, ativamente, do projeto e foi de fundamental importância na sua

1455
realização, que resultou na produção do fan video “Um beijo a furto”2, baseado no conto
“Uns braços”, de Machado de Assis.
Nossa opção pela realização da adaptação do texto literário machadiano em um
vídeo de fã do YouTube deu-se ao fato do YouTube estar na categoria de maior rede
social de compartilhamento de vídeos no mundo. Plataforma aberta à participação
constante de públicos diversificados com intenções variadas, o site de vídeos veio para
influenciar uma nova prática de mídia audiovisual. Burgess e Grenn, no livro YouTube e
a Revolução digital (2009), reconhecem o grande potencial do site para o exercício da
cidadania cultural cosmopolita e afirmam ser a plataforma digital “um espaço no qual
indivíduos podem representar suas identidades e perspectivas, envolver com as
representações pessoais de outros e encontrar diferenças culturais” (BURGESS,
GRENN, 2009, p. 112). Para os autores, os colaboradores do suporte online constituem-
se de um grupo diversificado de participantes, e envolvem desde grandes e experientes
empresas de produção de mídia e publicidade, detentores de direitos autorais como
canais de TV, empresas esportivas e grandes anunciantes até inexperientes produtores e
amadores de conteúdo. “Cada um desses participantes chega ao YouTube com seus
propósitos e objetivos e o modelam coletivamente como um sistema cultural dinâmico:
o YouTube é um site de cultura participativa” (BURGESS, GRENN, 2009, p. 15).
A todos esses aspectos, é preciso acrescentar o interesse e a motivação que essa
rede social online desperta em nossos alunos. Idealizado pelo labirinto de vídeos com
conteúdo variado, facilmente acessado por um aparelho móvel conectado e pela abertura
do sítio enquanto lócus de expressão e criação individual, coletiva e independente, o
YouTube conquistou um mercado de usuários ávidos por entretenimento. Navegar pela
rota dessa rede audiovisual online é mais do que comum e rotineiro para nosso aluno
que nasceu familiarizado com a tecnologia digital. Entretanto, o encontro do canal de
entretenimento com o conhecimento literário da tradição escolar não tem surtido muitas
respostas. Embora o site esteja repleto de fenômenos literários, é raro encontrar o uso do
YouTube na sala de aula como recurso para o aprendizado de literatura e pouquíssimos
são os trabalhos acadêmicos que discutem suas propriedades como ferramentas para o
ensino dessa arte. Esta resistência de convergir mídias na prática docente pode estar

2
O vídeo de fã “Um beijo a furto”, desenvolvido no projeto, encontra-se disponível na plataforma:
https://www.youtube.com/watch?v=rhFdJzlzSDI&t=8s>

1456
relacionada ao fato da cultura escolar pré-digital insistir “em formar leitores de livros, e,
à parte, espectadores de artes visuais (quase nunca de televisão)”, como observado por
Canclini (CANCLINI, 2008, p. 18). Enquanto a tecnologia e suas novas ferramentas
estão unindo mídias e linguagens, e combinando novos espaços de conhecimento, a
escola continua presa à ideia de formar leitores e espectadores críticos pautados em
modelos antigos de aprendizagem.
As práticas informais de leituras e escritas no meio digital, no entanto, continuam
ocorrendo e a literatura continua fazendo parte da vida desses jovens navegadores,
talvez porque experimentam esta ficção literária de uma forma mais intensa do que
aquela vivenciada junto com o professor na sala de aula. Por outro lado, o professor
fecha-se a estas leituras e escrita da vivência do aluno, deixando-a do lado de fora de
seu estilo pedagógico. “Quem lê, contudo, quer o lado de fora, para onde se desloca,
comandado pela imaginação. Por isso talvez seja o caso de se pensar em transformar o
“de dentro” da sala de aula em “de fora” da leitura” (ZILBERMAN, 2010, p. 54). Foi
buscando formas de negociar a leitura do clássico nesse espaço multicultural e assimilar
as muitas maneiras de ler e de se apropriar do literário nesse universo, onde nossos
alunos vivem suas práticas de conhecimento de maneira diferente, que propusemos
transformar, como sugere Zilberman, o que ensinávamos “dentro” da sala de aula – o
clássico machadiano – em um gênero digital “de fora” das leituras do universo escolar.
O primeiro momento na realização do projeto correspondeu a explorar o texto
literário machadiano em seu ambiente de origem: papel e tinta. Utilizamos, assim, a
versão impressa do conto “Uns braços”, do livro O Alienista e outros contos (2004),
edição da Editora Moderna. Partindo do pressuposto de que não há letramento literário
sem “o contato direto do leitor com o texto literário” e porque acreditamos na
legitimidade da seguinte afirmação:

[...] não se pode pensar em letramento literário abandonando-se o cânone,


pois este traz preconceitos sim, mas também guarda parte de nossa identidade
cultural e não há maneira de se atingir a maturidade de leitor sem dialogar
com essa herança, seja para recusá-la, seja para reformá-la, seja para ampliá-
la (COSSON, 2012, p. 34).

Explorado o conto de Machado em seu suporte de entrada no mundo ficcional, o


segundo passo do projeto foi apresentar a sua literatura clássica nos mais variados

1457
intertextos nas plataformas do ciberespaço. Neste aspecto, o conhecimento anterior dos
alunos da literatura machadiana em seu suporte de origem foi importante para que
pudessem identificar aquilo que estavam experienciando em outro ambiente. O objetivo
em envolver o aluno com a travessia da narrativa literária para a multiplicidade de
práticas textuais online correspondeu ao efeito de interagi-lo com a trama machadiana
em múltiplas condições interpretativas, além de mostrar como o clássico do século XIX
estabelece conexões intensas com o contexto imediato das mídias dominadas por sua
geração, inclusive pelas suas variadas versões nas redes sociais. Aproximar o aluno
desse movimento convergente que une a literatura canônica aos gêneros emergentes do
ciberespaço, significava projetar o literário para dentro de seu território de
conhecimento.
Encontrar um caminho para trabalhar o texto literário no contexto hipermidiático
das redes sociais dependeu seguir uma sequência de passos que exigiu o entendimento
desde às configurações estruturais da plataforma YouTube e das atividades coletivas que
ali se realizam até os sentidos que o texto literário poderia experimentar nesse novo
espaço de recepção. Como observado por Burgees e Green, “ser letrado” no contexto do
YouTube não significa apenas ser capaz de criar e consumir o conteúdo em vídeo, é
preciso também desenvolver habilidades e capacidades para conhecer e compreender o
modo como o YouTube funciona como conjunto de tecnologias e como rede social
(BURGEES, GREEN, 2009, p. 99-101). Envolver o letramento literário no universo do
ciberespaço e no fluxo de suas redes sociais pressupõe traçar vias de sentido para o
literário dentro da complexidade desse ambiente. Para nos aproximarmos da linguagem
do site de compartilhamento de vídeos YouTube e aproveitá-la como prática textual
dialógica com o clássico machadiano, tivemos que buscar experiências de leitores e
leituras do meio digital para atingir nossos objetivos.
A primeira e fundamental aproximação foi a criação de um sistema de domínio de
fãs, ou seja, um fandon machadiano na sala de aula. A intenção foi criar uma
comunidade reunida em torno da obra de Machado de Assis, na qual os alunos
pudessem conversar sobre sua literatura, trocar ideias e produzir outros textos a partir da
narrativa de referência do escritor. Esta metodologia atendia a dois propósitos: despertar
nos alunos o sentimento de pertencimento a uma comunidade literária, confluindo
interesses e afinidades compartilhados por uma mesma obra eleita e levar o aluno a

1458
descobrir os sentidos do objeto cultuado – o texto literário – dentro da perspectiva de
convergência do imaginário dessa comunidade de fãs leitores. Como explica Miranda:
“A reunião dos fãs em torno de uma mesma obra de eleição, e às vezes de culto, é a
característica determinante de um fandom” (MIRANDA, 2009, p. 2-3). Miranda
argumenta que essa comunidade virtual de leitores tem contribuído para a atualização e
continuidade do literário:

O fandom mostra como a recepção da literatura, (re)apropriada pelos


usuários em contexto hipermidíatico, vem permitindo uma atualização do
sistema literário, com a renovação das atividades tradicionais de leitura e
escrita e com a formação de novos cânons. Constituídos por obras clássicas e
modernas, eruditas e populares, esses cânons parecem se compor obedecendo
tanto a critérios antigos quanto a demandas contemporâneas. Espera-se dos
textos eleitos que respondam ou continuem respondendo às interrogações da
atualidade, e que possam oferecer desafios ao exercício da interatividade, que
parece ser a marca distintiva da leitura e da crítica no fandom (MIRANDA,
2009, p. 4).

Cosson lembra que embora o fandon não seja uma atividade reconhecida pelo
ensino formal na escola, nada impede que seja usado como prática de leitura “nas aulas
de literatura ou língua portuguesa” (COSSON, 2014, p. 119). Cosson também orienta
sobre a institucionalização escolar do fandon. Segundo ele, a relação do aluno com o
texto “precisa mesmo ser de fã, pois do contrário será apenas uma tarefa escolar feita na
internet.” E o mais importante para o autor do letramento literário é “o cuidado com o
produto mesmo da apropriação que não pode ser uma mera paráfrase do texto original,
nem um mero pasticho do que já se encontra na internet” (COSSON, 2014, p. 120).
Seguindo essas orientações, buscamos estratégias para que nossa atividade com o texto
machadiano dentro da especificidade do fandon fosse negociada com os benefícios
pedagógicos de exploração das duas mídias: a impressa e a digital.
Nesse sentido, a leitura interativa, participativa e criativa do aluno, como parte do
reino de fãs de um objeto cultural cultuado, deveria se pautar na valorização dos
sentidos do texto literário em si e na sua potencialidade de oferecer material para a
criação e exposição de novas demandas textuais nos meios digitais. Para atingir a
admiração gratuita pelo clássico literário, conduzimos os alunos para além das
narrativas impressas, pelas vias do ciberespaço, à procura de fandons machadianos
espraiados pelas plataformas e redes sociais da Web 2.0. Visitamos sites de fanfictions e
o site YouTube, numa demonstração das atividades de leituras alternativas e criativas da

1459
obra do escritor canônico no ciberespaço. O passeio por esses centros de interação com
a literatura de Machado foi apropriado para o aluno se acercar da compreensão de que o
clássico de nossa literatura não atua somente nos meios tradicionais de leitura, ele
permanece também na preferência dos hábitos de leitura e de escrita coletivas dos
jovens fãs/ internautas. A força do clássico nacional continua atuante e também goza do
prazer da leitura dessa cultura participativa emergente.
Na realização da versão de fã em vídeo do conto “Uns braços”, de Machado de
Assis, para a plataforma YouTube, adotamos algumas estratégias que, segundo Jenkins,
são elementos básicos de intervenções de fãs na ficção original. Para Jenkins, fãs podem
buscar, na narrativa de inspiração, as seguintes brechas para novas criações:
- Sementes: pedaços de informações introduzidas na narrativa para indicar um
mundo maior que não é completamente desenvolvido na própria história. As sementes
tipicamente nos afastam do enredo central e introduzem possibilidades de histórias a
explorar;
- Buracos: elementos narrativos dos quais os leitores sentem falta e que são
centrais à sua compreensão dos personagens. Buracos tipicamente impactam o enredo
primário. [...] Na comunidade de fãs, um grande número de histórias diferentes pode
explicar o que aconteceu; cada versão pode refletir uma interpretação diferente;
- Contradições: dois ou mais elementos na narrativa (intencionais ou não)
sugerindo possibilidades alternativas para os personagens.
- Silêncios: elementos que foram sistematicamente excluídos da narrativa com
consequências ideológicas;
- Potenciais: projeções sobre o que poderia ter acontecido além dos limites da
narrativa. Muitos leitores terminam um romance e se encontram querendo especular
sobre o que acontece em seguida (JENKINS, 2012, p. 16-18).
Para Jenkins, embora as práticas de leitura e escrita de fãs sejam recorrentes nas
séries de TV populares e filmes, não há razão para que docentes não as ajustem ao
cânone literário. Na ficção de Machado, não é difícil encontrar o rico mundo de
possíveis potenciais que os fãs buscam para consumirem suas histórias. O escritor do
século XIX vem para as regiões fictícias da fanmade para contar que o universo fictício
criado por ele está repleto de histórias além daquelas contadas em suas narrativas
clássicas.

1460
O convite dessa especulação acerca da ficção “Uns braços” encorajou a
comunidade de fã, formada na sala, a explorar o conto a partir de seu ponto de vista.
Selecionando o episódio do beijo como ponto central que perspectiva uma outra história
dentro da história de “Uns braços”, os fãs leitores decidiram explorar a releitura do
conto através desse acontecimento. A natureza daquele beijo e as circunstâncias de sua
realização levaram os leitores a criarem e confirmarem hipóteses interpretativas para
assumirem sua própria produção ficcional. Como seria, então, o episódio do beijo
reformulado e reformado pelos fãs? Quais os elementos seriam necessários na
construção da nova história para que outros leitores pudessem identificá-la como
pertencente ao universo fictício de Machado de Assis? Os fãs leitores asseguraram a
permanência da intriga e do comportamento das personagens no conto e propuseram a
transformação e ressignificação da história por meio da criação de um novo título para
ela: “Um beijo a furto”. Esse pequeno ajuste muda a interpretação do texto, uma vez
que promove o deslocamento da atenção do leitor do ponto central do conto, os braços
de D. Severina, para uma atitude dela na narrativa: o beijo furtado.
Contribuir com a memória coletiva e cultural do texto fonte é atividade em que se
desdobram os esforços do fã. No seu ensejo de participar criativamente do texto alheio,
personagens, trama, cenários, tudo é para eles pontos confluentes de encontro com a
obra de origem. É como se dissessem ao autor da obra cultuada: “A história não acabou,
vamos virar a página e ela continua”. E isto faz com que, a despeito do tempo, objetos
culturais, como a literatura de Machado de Assis, permaneçam vivos. O retrabalho
criativo da literatura clássica de Machado no canal YouTube captura o que Jenkins
denominou de modelo participativo de leitura: “o texto como escrito é o ponto de
partida; leitores podem estar motivados a responder à obra criando outras novas
histórias” (JENKINS, 2012, p. 15). A comunidade de fã machadiana, ao ciberadaptar o
conto “Uns braços”, buscou uma proximidade com o escritor do século XIX, na
perspectiva de escolha de cenários, figurinos, personagens e na intromissão de um
narrador em terceira pessoa no audiovisual, que conferiu maior entrosamento com a
narrativa anterior. Como a apropriação se deu diretamente do clássico “Uns braços”, a
comunidade de fã assumiu também o papel de atores-fãs, atuando nos papéis das
personagens do conto.

1461
O fã só concretiza sua existência a partir da admiração de um objeto cultural. Ele
nasce e se firma a partir do momento que se encontra com algo do qual ele possa ser fã.
O professor pode usar esse jogo constitutivo a seu favor. Ele, que tanto deseja despertar
em seus alunos o envolvimento afetivo com o texto literário, pode oferecer a eles esse
objeto de admiração. Tornar o clássico ou outro texto literário sua propriedade midiática
favorita. Jenkins argumenta que educadores podem aprender muito com a produção de
fanfiction:

Acreditamos com convicção que existe valor em aprender a engajar com


trabalhos de ficção criativamente tanto quanto criticamente; que o processo
de criar obras transformativas muitas vezes motiva uma leitura mais próxima
do texto original, que isso fortalece os jovens a pensar por si próprios como
autores e portanto a encontrar suas próprias vozes expressivas, especialmente
no contexto da atual cultura participatória (JENKINS, 2012, p. 23).

Ao tratar das novas e emancipadas formas que a nova geração de leitores está
criando de ler e dialogar ao mesmo tempo com o texto e outros leitores, Defilippo alerta
que se essa nova prática leitora dos jovens for “ignorada, irá separá-los por completo da
sala de aula” (DEFILIPPO, 2015, p. 107). Segundo a autora “As literaturas não se
excluem e podem muito bem ser exploradas com cuidado e crítica nas mãos de um
professor despido de preconceitos literários e consciente desse universo, que ora se
forma em torno da leitura e da literatura nas mãos da geração z” (DEFILIPPO, 2015, p.
107). Nossa proposta de letramento literário no meio online efetivou-se por essa
perspectiva. No meio da convergência de conhecimento e partilha que a cultura
participativa impôs, “nenhum de nós pode saber tudo; cada um de nós sabe alguma
coisa; e podemos juntar as peças, se associarmos nossos recursos e unirmos
habilidades” (JENKINS, 2008, p. 28). Podemos assumir o desafio de uma aprendizagem
que preza pelas competências e habilidades, sustentadas no conhecimento que o aluno
tem da tecnologia e de seus dispositivos digitais, bem como nas redes sociais que ele
frequenta. Podemos agregar nosso saber centrado na cultura oficial e cultora da
literatura clássica ao saber do espaço aberto, democrático e alheio às leituras padrões da
escola, dos fandons do ciberespaço. “É assim que se tem lugar na escola o novo e o
velho, o trivial e o estético, o simples e o complexo e toda a miríade de textos que faz da
leitura literária uma atividade de prazer e conhecimentos singulares” (COSSON, 2012,
p. 36).

1462
O projeto “Tradução Intersemiótica e Cibercultura: letramento literário nas redes
digitais”, obteve resultados além daqueles que seus idealizadores almejavam,
alcançando um público maior que os alunos envolvidos no projeto. Apresentado ao
público das feiras científicas e tecnológicas, na 26ª Mostra Específica de Trabalhos e
Aplicações (META) e 12ª Semana de Ciência e Tecnologia (Semana C&T), organizadas
pelo CEFET/MG, na Unidade de Curvelo/MG, no ano de 2016, o projeto foi agraciado
com duas premiações de 2º lugar, nos referidos eventos. A maior significação da
premiação decorreu do fato de que um projeto sobre letramento literário pouca chance
teria de valorização em uma comunidade escolar na qual o desejo primordial dos
estudantes é aprender o sentido específico de uma determinada profissão e poder utilizá-
lo no futuro: os cursos de ensino técnico profissionalizante. Sendo o desafio de defender
a circulação e presença da literatura nesse espaço ainda maior.
Não somos pioneiros na utilização do canal na produção de fan videos a partir do
literário como estratégia pedagógica. Vários outros navegadores, exploradores do
ciberespaço, chegaram ali antes de nós. Múltiplos são os fan videos em torno de
releituras da literatura de Machado distribuídos na plataforma, sendo que muitas destas
produções refletem o trabalho de estudantes. O que desperta nossa atenção é que,
embora esta produção amadora e independente tenha se tornado expressão da juventude
contemporânea e invadido o espaço escolar, pouca representatividade e valorização tem
encontrado nos planejamentos que orientam e norteiam as práticas pedagógicas. A
decisão mais coerente seria, portanto, “expandir habilidades para utilizar as mídias para
nossos próprios fins, reescrevendo as histórias que a cultura nos concede” (JENKINS,
2008, p. 328), pois ignorar ou ser hostil a essas práticas de aprendizagem e
conhecimento que se formam, em sua maioria, fora do ambiente educacional, não
impedirá que nossos alunos, nativos digitais, continuem, informalmente, a se
promoverem como solucionadores autônomos de problemas ou aprendizes
independentes do novo meio.

Referências:

ASSIS, Machado de. O Alienista e outros contos. Rio de Janeiro: Editora Moderna,
2004.

1463
BURGUESS, Jean; GREEN, Joshua. YouTube e a Revolução Digital: como o maior
fenômeno da cultura participativa está transformando a mídia e a sociedade. Trad.
Ricardo Giassetti. São Paulo: Aleph, 2009.

CANCLINI, Néstor Garcia. Leitores, espectadores e internautas. Trad. Ana


Goldberger. São Paulo: iluminuras, 2008.

CHARTIER, Roger. Os livros resistirão às tecnologias digitais (Depoimento a Cristina


Zahar). Revista Nova Escola. São Paulo: Editora Abril, Fundação Victor Civita, n. 204,
ago. 2007. Disponível em: <http://revistaescola.abril.com.br/lingua-portuguesa/
fundamentos/roger-chartier-livros-resistirao-tecnologias-digitais./Acesso em 20 fev.
2017.

COSCARELLI, Carla Viana. Textos e hipertextos: procurando o equilíbrio. Linguagem


em (D)iscurso, Palhoça, SC, V. 9, n. 3, p. 549-564, set./.dez. 2009.

COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2012.

COSSON, Rildo. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo: Contexto,


2014.

DEFILIPPO, Juliana Gervason. Novos alunos, novas leituras: ensinar literatura para a
geração Z. In: SILVA, Rodrigo Fialho (Org). Do texto ao contexto: história, literatura e
educação. Barbacena: MG: EdUEMG, 2015. p. 99-111.

GARCÍA, Alberto Matos. “Os jovens diante das telas: novos conteúdos e novas
linguagens para a educação literária.” In: RETTENMAIER, Miguel; ROSING, Tânia
(Orgs.). Questões de literatura na tela. Passo Fundo: Editora UPF, 2010, p.13-36.

JENKINS, Henry. Cultura da convergência. Trad. Susana Alexandria. São Paulo:


Aleph, 2008.

JENKINS, Henry. Lendo criticamente e lendo criativamente. Trad. Gabriel Morato.


Revista Matrizes, ECA/USP, São Paulo. V. 6, n. 1-2, p. 11-24, 2012. Disponível em:
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2017.

MIRANDA, Fabiana M. Fandom: um novo sistema literário digital. Hipertextus, n. 3,


p. 1-2, jun. 2009. Disponível em: <http://www.hipertextus.net/volume3/Fabiana-Moes-
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YOUTUBE. Fan video Um beijo a furto. Adaptação do conto ‘Uns braços”, de


Machado de Assis. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=rhFdJzlzSDI&t=8s>. Acesso em: 14 mar. 2017.

ZILBERMAN, Regina. A leitura e o ensino da literatura. Curitiba: Ibpex, 2010.

1464
POR UMA TEORIA DA LITERATURA APLICADA

Micheline Madureira Lage (IFG-Goiânia)1

Resumo: As pesquisas na interface literatura/ensino apontam que, em geral, a disciplina de


Português no ensino médio tem se dedicado à exploração de textos literários e sua
contextualização em um espaço-tempo, sob um eixo positivista. O relativismo de interpretação
sob um viés na perspectiva do letramento e do dialogismo não parece ser tópico relevante. O
importante é levar o aluno a adquirir estratégias de leitura e de escrita que o habilitem a passar no
ENEM ou em algum vestibular. Na contramão desse processo, situam-se os avanços dos Estudos
Literários. Urge, portanto, pensar em um campo específico, assim como se deu com a Linguística,
no que concerne aos Estudos Literários, para minimizar o problema apontado.
Palavras-chave: Teoria da Literatura Aplicada, literatura e ensino, letramento literário.

Este artigo é fruto de minhas escolhas teóricas, sempre buscando a compreensão


das possíveis interfaces entre literatura e educação. Também diz respeito à minha
trajetória profissional e acadêmica. Entretanto, a comunicação realizada no XVI
Congresso Internacional ABRALIC, em julho de 2019, com ampla discussão entre
colegas da área, me fez confirmar a urgência de se pensar um campo específico para a
literatura, a qual eu denomino de Teoria da Literatura Aplicada.
A Teoria da Literatura é a ciência à qual compete estudar as manifestações literárias.
Conforme explica Zilberman (2013), o objeto da Teoria da Literatura é complexo, pois
diferentemente de outras Ciências que não precisam explicar qual é sua matéria de estudo,
a Teoria da Literatura necessita, permanentemente, esclarecer qual é a natureza do
produto sobre o qual dirige a sua atenção. Isso, porque, em conformidade com o que
também diz Lajolo:
O que é literatura? é uma pergunta que tem várias respostas. E não se
trata de respostas que, paulatinamente, vão se aproximando cada vez
mais de uma grande verdade, da verdade-verdadeira. Não é nada disso.
Não existe uma resposta correta, porque cada tempo, cada grupo social
tem sua resposta, sua definição para literatura. (LAJOLO, 1996, p.24-
25).2

1
Graduada em Letras/Português (UFMG), Mestre em Literatura Brasileira (UnB), Doutora em Educação
(UFMG). Contato: mixlage@yahoo.com.br
2
Destaques de Lajolo. Em 2001, a pesquisadora deu nova redação a esse livro, intitulando-o Literatura:
leitores & leitura, pela editora Moderna.

1465
Ou seja, o conceito de literatura é histórico e, se a literatura não foi sempre vista da
mesma maneira, facilmente percebemos que os modos de pensá-la foram igualmente
diversos. Podemos, de uma forma muito sucinta, resumir a História da Teoria da
Literatura da seguinte forma: uma excessiva preocupação com o autor, que perdurou
durante o Romantismo e o Século XIX em que perpetua na crítica literária a inclinação
historicista e o biografismo. Uma acentuada inclinação para o texto, valorizando-se a
construção da obra literária, como se deu com o Formalismo Russo, o Estruturalismo
Tcheco e com o New Criticism, movimento crítico que se desenvolve a partir dos anos
30, nos Estados Unidos. Nos últimos tempos, percebe-se uma transferência de atenção
para o leitor. A reflexão que move a chamada Estética da Recepção, por exemplo,
preocupa-se, sobretudo, com as operações receptivas, ou seja, com os procedimentos
efetuados pelo leitor no contato com a obra e suas consequências na conformação do
público (a receptividade da obra em sentido amplo). Observam-se, a partir dessa trajetória
histórica, três polos: autores, texto literário e público. Poderíamos, portanto, dizer que a
Teoria da Literatura tem-se caracterizado por deslocar a sua atenção de um desses três
polos para outro.
A busca pela especificidade do literário mobilizou sobretudo a crítica formalista e
estruturalista. Os estudiosos ligados a essas linhas diziam que um dos elementos
determinantes para se considerar se um texto é literário ou não é o índice da chamada
literariedade. Trata-se de um conceito complexo, que tem caráter histórico, relativo, mas
que muitas vezes é levado em conta para a identificação de certos traços peculiares do
discurso literário. Essa relatividade e essas limitações não impedem que seja assinalada
uma série de caracteres distintivos do discurso literário em relação a outros discursos. O
predomínio da conotação, a liberdade na criação, a ênfase no significante e o
estranhamento são alguns desses caracteres. Entretanto, hoje são levados em conta
acentuadamente a recepção e os aspectos contextuais, que impedem a visão de uma
literatura fechada em si mesma.
De acordo com Zilberman (2013), a partir dos anos 1960, e sobretudo depois dos
anos 1970, a Teoria da Literatura abriu-se em orientações diversas. Um dos autores que
impactaram os estudos literários foi Bakhtin. Contemporâneo dos formalistas, suas obras
questionavam as bases teóricas até então defendidas, indicando que a língua não
correspondia a um sistema desgastado, banal e desprovido de elementos sociais. Dessa

1466
forma, o filósofo da linguagem foge às concepções de texto dos formalistas mais
ortodoxos, e resgata as ligações do texto literário com a história. Para Bakhtin (1997),3 a
obra literária estabelece vínculos com o conteúdo da consciência dos indivíduos inseridos
em determinado momento histórico e só é apreendida no contexto dessa consciência, que
lhe é contemporânea. A obra é interpretada tendo em vista o espírito desse conteúdo da
consciência do público e recebe dela uma nova luz. É nisso que reside a vida da obra. De
acordo com Bakhtin, “em cada época de sua existência histórica, a obra é levada a
estabelecer contatos estreitos com a ideologia cambiante do cotidiano, a impregnar-se
dela, a alimentar-se da seiva nova secretada”. (BAKHTIN, 1997, p. 119).
Infere-se, da citação acima, a noção de “dialogismo”, muito mencionada por
pesquisadores e comentadores da obra de Bakhtin. Podemos definir o dialogismo como a
relação necessária entre um enunciado e outros, sempre situados em um horizonte
histórico. Assim, a obra literária é uma construção polifônica, na qual várias vozes se
cruzam, em um jogo dialógico, cruzando-se também várias ideologias, uma vez que a
obra literária não está isolada, mas faz parte de um grande sistema de correlações. Nas
palavras de Carvalhal, ao discorrer acerca dos trabalhos de Bakhtin, “o texto escuta as
‘vozes’ da história e não mais as re-presenta como uma unidade, mas como um jogo de
confrontações”. (CARVALHAL, 1992, p. 48).
Na esteira de Bakhtin, Kristeva chegou à noção de “intertextualidade”, termo por
ela cunhado em 19694 para designar o processo de construção do texto literário. Segundo
Kristeva “todo texto é absorção e transformação de outro texto. Em lugar da noção de
intersubjetividade, se instala a de intertextualidade, e a linguagem poética se lê, pelo
menos, como dupla”. (KRISTEVA, 1974, p. 146).
Esse conceito foi muito importante no campo literário, porque abalou a antiga
concepção de influência, deslocando o sentido de “dívida”, antes tão enfatizado.
Procurava-se, nos estudos comparados, ver qual autor devia ao outro a influência, a
inspiração. Com a noção de intertextualidade, a dívida que um texto adquiria com seu

3
A versão que tenho da obra Marxismo e filosofia da linguagem é a 8ª edição brasileira, de 1997. Entretanto,
é importante ressaltar que a 1ª edição brasileira, pela Hucitec, é de 1979. As ideias de Bakhtin tiveram
entrada no Brasil, de forma mais vigorosa, a partir do início da década de 70, pela obra Introdução à
semanálise (edição francesa 1969 e brasileira 1974), de Julia Kristeva.
4
Sèméiôtikè (Recherches pour une sémanalyse). Paris: Seuil, 1969. (Em Português: Introdução à
semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974). Apud CARVALHAL, 1992, p. 49.

1467
antecessor, passa, ao contrário, a ser entendida como um procedimento natural e contínuo
de reescrita dos textos.
Se a literatura muda com o tempo, é importante refletirmos acerca da relação
linguagem/sociedade na atualidade. Vivemos um período em que a linguagem, no seu uso
social, abarca múltiplas realizações, com um intenso intercâmbio entre as diversas
modalidades artísticas. Nosso tempo impregnou-se da visualidade. A todo instante nos
deparamos com outdoors, panfletos, letreiros, placas, faixas e outros meios de
propaganda que abarcam não só a escrita, mas também a imagem. Além disso, com o
desenvolvimento tecnológico, recebemos hoje uma variedade de informações por meio
da internet, da televisão, do rádio. (LAGE, 2003).
A informação também nos chega através de um montante enorme de jornais, de
revistas, assim como a desinformação, essa armadilha do século XXI, espalhada pelas
chamadas fake news, ou notícias falsas, veiculadas com ares de veracidade, publicadas
em sua maioria pela internet. É a coexistência e o intercâmbio dessa diversidade de
linguagens, é esse conjunto de vozes que caracterizam a contemporaneidade.
Nesse novo contexto social e, de posse das perspectivas apontadas pelos Estudos
Literários hoje, como formar o jovem leitor de literatura? De que métodos o professor
pode lançar mão? É sobre isso que discutiremos a seguir.

A Estética da Recepção e a formação do leitor de literatura

Segundo Aguiar e Bordini (1988), até meados da década de 80 o método


recepcional era pouco conhecido e utilizado nas escolas brasileiras, em cuja tradição não
cabia o ponto de vista do leitor. Com o crescimento do interesse das universidades pela
questão da leitura, a Estética da Recepção tem sido difundida no meio acadêmico.
No entanto, as principais linhas e tendências da Teoria da Literatura são estudadas
nas universidades brasileiras, muitas vezes sem se fazer a ponte com a prática. Dessa
forma, os alunos saem de seus cursos de formação na área de Letras sem entender o
porquê e o para quê se ensinar literatura repetindo-se as fórmulas trazidas pelos livros
didáticos e o que o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) exige em termos de
leitura. O ensino médio tornou-se etapa escolar mecanizada em que se preocupa com o

1468
que o jovem possa vir a ser, não ao que ele já é, deixando-se passar importante fase da
vida para se ler a literatura de forma prazerosa e crítica.
Em geral, os estudos literários no ensino médio têm se dedicado à exploração de
textos e sua contextualização em um espaço-tempo, sob um eixo positivista. O relativismo
de interpretação e, portanto, de leitura não é tópico relevante. O importante é levar o
aluno a adquirir estratégias de leitura e de escrita que o habilitem a passar no ENEM ou
em algum vestibular, alijando esse jovem de perceber o encontro estreito que existe entre
literatura e vida.
Em pesquisa intitulada Ensino, Literatura e Formação de Professores na Educação
Superior: retratos e retalhos da realidade mineira, Lage (2010) percebi pouco interesse
entre os professores do campo literário por buscar articulações entre educação/literatura,
tal qual relatado por Maria Alice Faria em Memorial apresentado em 1987 no Instituto de
Letras, História e Psicologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP) – Campus de
Assis, São Paulo, para concorrer a uma vaga de docente titular.
O difícil diálogo entre a Letras e a Educação e certo desprezo pelas questões
ligadas ao ensino nos cursos de Letras são objeto de reflexão de Faria em várias passagens
do texto. A autora historiciza a criação da USP e fala de suas impressões no tempo em
que lá graduou-se em Letras:

Na USP [...] havia uma inversão de prioridades, pois o principal objetivo era
criar um centro de pesquisas desinteressadas e de alta cultura. A formação do
professor secundário foi para a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
(FFCL) uma espécie de acidente de percurso, imposto pela lei federal. A
incorporação à FFCL de cursos de natureza pedagógica foi um processo mais
ou menos longo e sempre com desvantagens para o aspecto diretamente
voltado para a formação do professor (FARIA, 1987, p. 43).

Ou seja, a consagração da literatura somada ao desinteresse dos professores dessa


área por acompanhar as legislações e as reformas no campo educacional são de longa
data. Isso faz com que se avance pouco na pesquisa voltada para a aplicação dos
conhecimentos da área literária ao contexto da educação básica. Também reflete na pouca
qualidade dos livros didáticos quanto à abordagem do texto literário e ainda no risco de
se dar cada vez menos espaço para a literatura nas aulas de Português, em uma sociedade
cada vez mais utilitária e pragmática, em que os pesquisadores e teóricos do campo
literário não se articulam para salvaguardar a literatura como um direito dos jovens. Para

1469
que haja mudança nesse quadro é preciso fortalecer a voz do aluno, dar lugar para que ele
se exponha como leitor.
Nesse sentido, o método recepcional pode ser um dos caminhos uma vez que não
se submete à tradição dominante, pois sua base teórica defende a ideia do “relativismo
histórico e cultural, já que [a Teoria da Recepção] está fundamentalmente convicta da
mutabilidade dos objetos, bem como da obra literária, dentro do processo histórico”.
(FOKKEMA, 1977, p. 138). Se o historicismo positivista entende os fenômenos literários
como determinados pelos fatos sociais em uma relação de origem unilateral, em que a
obra é sempre consequência e nunca causa, o conceito de historicidade da teoria
recepcional é o de relação de sistemas de eventos comparados num aqui-e-agora
específico: a obra é um cruzamento de apreensões que se fizeram e se fazem dela nos
vários contextos históricos em que ela ocorreu e no que agora é estudada. (LAGE, 2003).
A recepção é concebida, pelos teóricos alemães da Escola de Constança, como uma
concretização pertinente à estrutura da obra, tanto no momento de sua produção como no
de seu percurso histórico de leituras, que pode ser estudado esteticamente, o que dá ensejo
à denominação da teoria de Estética da Recepção. A noção de concretização é derivada
dos trabalhos do polonês Roman Ingarden (1973), na década de 1930, e do tcheco Felix
Vodicka (apud Toledo, 1978) na década de 1940. Para Ingarden, ao se examinar uma obra
literária (seu “modo de ser”), percebe-se que ela é uma estrutura linguístico-imaginária,
permeada de pontos de indeterminação e de esquemas potenciais de impressões
sensoriais, os quais, no ato de criação ou da leitura, são preenchidos e atualizados,
transformando o que era trabalho artístico do criador em objeto estético do leitor. Ou seja,
tudo o que o texto não diz, ou silencia, cria vazios que forçam o leitor a interferir no
processo de criação, a dialogar com a escrita, em um ato de comunicação legítimo.
Com uma percepção histórica mais aguda, Hans-Robert Jauss procura situar a obra
literária no horizonte histórico dos significados culturais dentro dos quais ela foi
produzida, para em seguida explorar as relações variáveis entre ela e os horizontes,
também variáveis, dos seus leitores históricos. Para este teórico, o leitor é um horizonte
de experiências, ou seja, sujeito histórico que traz toda uma bagagem de vida, que acolhe
positivamente ou negativamente uma criação artística, sendo, pois responsável pela
recepção desta.

1470
O leitor precisa interagir com o texto literário. Ambos estão muitas vezes
mergulhados em horizontes históricos distintos. Para que a comunicação ocorra, é
necessário que haja uma mistura desses horizontes. A essa experiência Jauss (1994) dá a
denominação de fusão de horizontes, que seria o processo de intercâmbio do leitor com a
obra literária. Esta, integrada em sua origem a um horizonte histórico, vai se apropriando
dos horizontes dos outros momentos temporais em que circula. Portanto, não apenas cada
leitor contribui com seu horizonte, como recebe da obra os horizontes a que ela já se
almagamou com o decorrer da história. Nessa perspectiva, é como se a obra ganhasse
nova vida a cada novo leitor que a lê.

Regina Zilberman (1989) elenca as seguintes ordens de convenção constitutivas do


horizonte de expectativas, através do qual o autor/leitor concebem e interpretam a obra:
intelectual, ideológica, linguística e artística, todas provenientes do lugar social que o
indivíduo ocupa.

Podemos aproximar tais fatores (todos afinal de âmbito social) ao que a


pesquisadora Graça Paulino chama de letramento literário. De acordo com ela, o conceito
de letramento pode ser pensado em relação à literatura. Como outros tipos de letramento,
o literário continua sendo uma apropriação pessoal de práticas de leitura e escrita que não
se reduzem à escola, mas passam por ela.
A respeito da formação do leitor de literatura, destaca Paulino:

A formação de um leitor literário significa a formação de um leitor que saiba


escolher suas leituras, que aprecie construções e significações verbais de cunho
artístico, que faça disso parte de seus fazeres e prazeres. Esse leitor tem de
saber usar estratégias de leitura adequadas aos textos literários, aceitando o
pacto ficcional proposto, com reconhecimento de marcas linguísticas de
subjetividade, intertextualidade, interdiscursividade, recuperando a criação de
linguagem realizada, em aspectos fonológicos, sintáticos, semânticos e
situando adequadamente o texto em seu momento histórico de produção.
(PAULINO, 1998, p. 8).

Acrescente-se ao que foi dito por Paulino e Zilberman a influência do fator de


ordem afetiva na leitura de um texto literário. A emoção pode fazer, muitas vezes, com
que o leitor se sinta atraído ou não por determinada obra. Como se percebe, são muitos
os fatores constitutivos do horizonte de expectativas do leitor, que podemos compreender,
afinal, como sua bagagem de vida.

1471
Aplicação do método recepcional e as contribuições bakhtinianas para a
leitura literária

A aplicação da estética recepcional ao ensino de literatura5 prevê a transposição dos


pressupostos teóricos já citados à prática escolar da leitura literária. Por refletir a respeito
do fenômeno literário sob a ótica do leitor como elemento atuante do processo, o método
recepcional de ensino vai se fundar na atividade participativa do aluno. Numa inter-
relação com as teorias bakhtinianas, o professor deve colocar o jovem em contato com
textos literários dos mais variados gêneros discursivos e períodos históricos, uma vez que
o dialogismo bakhtiniano propõe um olhar que seja capaz, como diz Kristeva, de perceber
o mosaico de citações no qual a literatura se configura para nós, leitores.
Na sala de aula, o primeiro passo do professor seria o de efetuar uma investigação
acerca do horizonte de expectativas da classe, a fim de prever as estratégias de ruptura
que vai utilizar para romper com esse horizonte inicial. Para isso, o docente pode lançar
mão de instrumentos (questionários, por exemplo), rodas de conversa, respostas a
entrevistas, produções textuais sobre as memórias literárias dos alunos, em que se possa
averiguar os valores dos discentes em termos de crenças, modismos, estilos de vida,
preferências quanto a lazer, interesses específicos de leitura etc.
Uma vez detectadas as aspirações, valores e familiaridades dos jovens com respeito
à literatura e cultura de modo geral, a etapa seguinte consiste no atendimento do horizonte
de expectativas, ou seja, em proporcionar à classe experiências com os textos literários
que satisfaçam às necessidades dos estudantes, que não causem estranheza, tanto em
relação às convenções estéticas aceitas por eles, como por temáticas mais afeitas à
realidade que apontaram.
Quanto ao material literário, o professor poderá propor textos cujos temas e/ou
composição sejam muito procurados, ou na própria literatura ou em outros meios de
expressão, como na música (o Rap é um estilo musical bastante apreciado por jovens), as
séries, as histórias em quadrinhos, os blogs (diários virtuais), os vlogs (textos com foco

5
A aplicação do método recepcional com exemplos de textos literários está descrita detalhadamente em
AGUIAR & BORDINI, 1988, p. 80-102.

1472
em vídeos), dentre outras possibilidades disponíveis sobretudo por plataformas na
internet.6
A próxima etapa é a de ruptura do horizonte de expectativas pela introdução de
textos que abalem as certezas e os costumes dos alunos. Essa introdução deve dar
continuidade à etapa anterior por meio da oferta de textos que se assemelham aos
anteriores em algum aspecto: o tema, o tratamento, a estrutura composicional, ou a
linguagem. Entretanto, os demais recursos devem ser diferentes, de modo que o aluno ao
mesmo tempo perceba estar ingressando em uma espécie de mundo desconhecido, mas
também não se sinta inseguro demais a ponto de rejeitar a nova experiência.
O importante é que os textos dessa etapa apresentem maiores exigências aos alunos,
seja por discutirem a realidade, desautorizando as versões socialmente vigentes, seja por
utilizarem técnicas compositivas mais complexas, ou por apresentarem uma linguagem
poética, revitalizada, capaz de tirar o leitor de seu lugar comum.
A seguir, ocorrerá a etapa do questionamento do horizonte de expectativas,
decorrência da comparação entre as duas fases anteriores. Sobre o material literário já
trabalhado, a classe exerce a sua análise, decidindo quais textos exigiram um nível mais
alto de reflexão e, diante da descoberta de seus sentidos possíveis, trouxeram um grau
maior de satisfação. Supõe-se, portanto, que os textos de maior complexidade artística
tendem a ser vistos como difíceis em um primeiro momento e, após análise e
compreensão, a provocar a admiração do leitor.
Executada a análise comparativa das experiências de leitura, a classe debaterá seu
próprio comportamento em relação aos textos lidos, buscando explicitar os desafios
enfrentados, os processos de superação para entendimento dos textos, dentre outros
aspectos. Esse momento é de autoanálise, quando surgirão perspectivas a respeito de
dificuldades, definições de preferência quanto à temática e outros elementos da literatura,
assim como a transferência das situações em prosa ou em verso para o âmbito da vida dos
leitores.
Resultante dessa reflexão sobre as relações entre literatura e vida, a ampliação do
horizonte de expectativas é a última etapa do processo. Tendo percebido que as leituras
feitas dizem respeito não só a uma tarefa escolar, mas ao modo como os alunos veem o

6
O professor deve buscar o diálogo com a diversidade de linguagens que permeia a contemporaneidade e
o universo dos jovens.

1473
mundo, nessa fase eles tomam consciência das alterações que a experiência com a
literatura provocou neles. Cotejando seu horizonte inicial de expectativas com os
interesses atuais, verificam que suas exigências se tornaram maiores, bem como sua
capacidade de desvelar o que não é conhecido foi aumentada.
O final desta etapa é o início de uma nova aplicação do método, que evolui em um
crescente, sempre permitindo aos alunos uma postura mais consciente em relação à
literatura e à vida.

Considerações finais

Acreditamos ser importante ressaltar que a Estética da Recepção, bem como a


noção de dialogismo baktiniano tem sido testado em sala de aula por nós desde a primeira
década do século XXI sempre com imensa aceitação por parte dos jovens.
Entretanto, tais experiências representam uma faixa estreita no universo que
abrange a literatura e seu ensino. Compreende a prática vindoura, porém isolada, de uma
professora de literatura. Para que haja mudanças profundas, é urgente que os cursos de
Letras, que formam professores de Língua Portuguesa e suas Literaturas, tomem como
ponto fulcral de seus currículos a relação teoria/prática.
É preciso que a Teoria da Literatura e seus pressupostos influencie as diretrizes dos
cursos de licenciatura em Letras, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), os livros
didáticos e paradidáticos, a fim de que se saia do empirismo, do teste à deriva, como um
jogo de acerto e de erro, que se configura hoje o ensino de literatura na etapa escolar do
ensino médio. Esse jogo de acerto e de erro não tem fundamentação teórica alguma, mas
sim o único objetivo de fazer com que o aluno obtenha nota no ENEM ou passe em
alguma universidade por meio do vestibular, desvinculando totalmente literatura e vida.
As faculdades de Letras têm que refletir a respeito do que consiste ensinar/estudar
literatura e por que ensinar/estudar literatura nos Cursos de Letras. É importante que
respondam à pergunta: ensinar/estudar literatura para quem e como? Para isso, são bem-
vindos consensos a respeito das prioridades dos alunos que se tornarão professores da
Educação Básica.
Também são necessários estudos e reflexões a respeito da Literatura Infantil e
Juvenil e do papel destas na formação dos alunos de Letras. A literatura produzida na

1474
contemporaneidade precisa estar em diálogo com as demais produções literárias,
propondo-se o diálogo e não o estudo da literatura fechado em verdadeiros escaninhos,
onde se localizam as escolas literárias, como se a história fosse algo linear. São bem-
vindos estudos de textos escritos por mulheres, quase sempre ausentes dos nossos
manuais de História da Literatura Brasileira e também dos livros didáticos. A literatura
oral, a literatura indígena e a africana precisam do mesmo modo se fazerem presentes nas
salas de aula do Ensino Médio, pois língua, literatura e identidade se entrelaçam e a nossa
matriz de herança não é somente a portuguesa.
Da mesma forma, necessita-se de o estímulo para pesquisas a respeito dos livros
didáticos e da maneira como eles tratam os textos literários. Não menos necessária é a
criação de grupos de estudos a respeito da legislação pertinente à Educação Básica,
desconhecida por muitos professores de Letras, especialmente os da área literária. Isso é
importante para a consolidação da apregoada interação da universidade com as escolas
da Educação Básica. É pertinente, para tal, um diálogo entre professores do Ensino
Superior e seus colegas da Educação Básica, a fim de desenvolver projetos de formação
compartilhados. Enfim, é necessária uma conversa permanente em que se insista na
articulação entre literatura e educação, ou seja, na existência de uma Teoria da Literatura
Aplicada.

Referências

AGUIAR, Vera Teixeira de; BORDINI, Maria da Glória. Literatura: a formação do


leitor: alternativas metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.

BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo:


Hucitec, 1997.

CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura Comparada. São Paulo: Ática, 1992.

FARIA, Maria Alice. Contramão I, II, III. 1986-1987. 550 f. (Memorial apresentado no
Concurso Público de Títulos e Provas para um cargo de Professor Titular, junto ao
Departamento de Literatura, no Instituto de Letras, História e Psicologia da Universidade
Estadual Paulista – Campus de Assis.) UNESP-Assis, São Paulo: 1987. (Não publicado).

FOKKEMA D. W. ; KUNNE-IBISCH, Elrud. “Theories of literature”. In: The Twentieth


Century. London: C. Hurst, 1977.

1475
JAUSS, Hans-Robert. A história da Literatura como provocação à teoria literária. São
Paulo: Ática, 1994.

KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974.

LAGE, Micheline Madureira. Ler sem doer: perspectivas para a leitura do texto literário
no ensino médio. Coronel Fabriciano: Unileste-MG, 2003.

LAGE, Micheline Madureira. Ensino, literatura e formação de professores na educação


superior: retratos e retalhos da realidade mineira. Belo Horizonte: Universidade Federal
de Minas Gerais, 2010. (Tese de doutorado).

LAJOLO, Marisa. O que é Literatura. São Paulo: Brasiliense, 1996

PAULINO, Graça. Letramento literário: cânones estéticos e cânones escolares. In:


Reunião Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação,
21, 1998, Caxambu, Anais. Caxambu: ANPEd, 20-24 set. 1998.

TOLEDO, Dionísio (Org.). Círculo Linguístico de Praga; estruturalismo e semiologia.


Porto Alegre: Globo, 1978.

ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e história da Literatura. São Paulo: Ática,


1989.

ZILBERMAN, Regina. Fundamentos do texto literário. 2ª ed. Curitiba, PR: IESDE


Brasil, 2013.

1476
1

Leituras, literatura e remição de pena:


política pública para ressocialização nas prisões do DF

Ana Cristina de Castro1

Robson Coelho Tinoco2

RESUMO: este artigo apresenta um panorama sobre a concepção e a implementação do


projeto de remição de pena por leitura no DF, constituído como política pública
educacional e social de fomento às práticas de leitura que possibilitam caminhos para a
ressocialização do privado de liberdade. Avalia que durante sua concepção, o projeto
cumpriu a determinação da Vara de Execuções Penais do Distrito Federal (VEP/DF),
proferida por portaria VEP que visa atender, prioritariamente, os custodiados não
classificados para o estudo, trabalho ou qualificação profissional e abarcou a população
carcerária de cerca de quinze mil e quinhentos apenados. Esse processo, ainda, partiu da
publicação de portaria conjunta que instituiu uma comissão intersetorial, envolvendo
representantes dos órgãos públicos: Secretaria de Estado de Educação/ SEEDF e
Secretaria de Estado de Segurança Pública e da Paz Social/SSP. Quanto à metodologia
aplicada, decorrido o prazo de trinta dias, será realizada uma avaliação presencial, a
qual exigirá como tipologia textual um resumo crítico. Tal proposta objetiva, enfim,
colaborar com o trabalho do professor de Língua Portuguesa – e de leitura e de literatura
– ao destacar uma consideração mais ampla dos conceitos de letramento literário,
mesmo em ambientes prisionais, ou especialmente, destacando que a promoção do
conhecimento e respeito às diferenças potencializa o caráter inclusivo e integral da
própria educação, elemento tão essencial como maneira produtiva de gerar, de fato,
ressocialização a todas as pessoas, não só as presas.

1 Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura e Práticas Sociais (UnB), Mestre em


Educação (UNB), gestora e professora da Secretaria de Estado de Educação do DF, professora de
educação superior no Centro Universitário – UNIPROJECAO. E-mail: anacristinacastro3@gmail.com
2 Professor Titular do Instituto de Letras (UnB). Pós-doutorando em Linguística aplicada (UNICAMP-

IEL), Pós-doutor em Educação (USP-FE), Pós-doutor em Língua Portuguesa (PUC-SP), Doutor em


Literatura Brasileira (UnB), Mestre em Língua Portuguesa (PUC-SP). E-mail: robson@unb.br

1477
2

Palavras-chave: política pública, prisão, remição de pena, leitura, ressocialização

ABSTRACT: This article presents an outlook on the conception and implementation of


the penalty redemption project by reading in the Federal District, Brazil, which is
constituted as educational and social public policy to promote reading practices that
make possible paths for the inmate re-socialization. It evaluates that, during its
conception, the project fulfilled the determination of the Federal District Trial Courts,
issued by the governmental decree VEP, which priority aims to meet inmates that are
unclassified for studies, work or professional qualification, and covered the prison
population of about fifteen thousand five hundred convicted. Yet, this process started
from the publication of a joint regulation that established an intersectional commission
involving public agencies representatives: State Department of Education/ SEEDF and
State Secretary for Public Security and Social Peace/ SSP. A face-to-face evaluation
shall be carried out on the methodology applied after thirty days, which shall require a
critical summary as a textual typology. After all, such motion aims to collaborate with
the work of the Portuguese Language teacher, also reading and literature, to highlight a
broader consideration on literary literacy concepts, even in prison environments, or
especially on highlighting that the promotion of knowledge and respect for differences
potentiate the inclusive and integral education feature itself, an element so essential as a
productive way of generating the resocialization of all people indeed, not just those
convicted ones.

Keywords: public policy, imprisonment, penalty redemption, reading, resocialization

Introdução

A remição de pena se caracteriza como uma previsão jurídica que possibilita ao


custodiado a redução do tempo de sua privação de liberdade, amparada pela Lei
estadual no. 17.329, publicada em diário oficial em 08/10/12, respaldada pela Lei no.
12.433, publicada em 30 de junho de 2011, que regulamenta a remição da pena pelo
estudo.
Aos olhos do estado penal a Recomendação nº 44, de 26 de novembro de 2013,
do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em seu art. 1º, inciso v, fomenta a prática de
remição de pena pela leitura, estimulando, no âmbito das unidades prisionais estaduais e
federais, como forma de atividades complementares, a remição pela leitura,
notadamente para os apenados aos quais não sejam assegurados os direitos ao trabalho,
educação e qualificação, conforme os termos da Lei nº 7.210/84.
Ainda nesta mesma recomendação, compreende-se a necessidade em estabelecer
limites e prazos quanto aos processos de leitura nas prisões, com vistas à adoção para
remição de pena pela leitura. Sendo assim, sugere-se o prazo de 21 a 30 dias para que
seja realizada a leitura do livro. Ao final deste prazo será realizada a produção textual da
obra por meio de resenhas ou relatórios narrativos, para fins de avaliação, devendo ser

1478
3

acompanhada e legalmente avaliada, para que aconteça a remição de quatro dias da pena
por obra lida. Nessa direção, o custodiado poderá realizar no período de doze meses, a
leitura e avaliação de doze livros, e se for aprovado, poderá remir até 48 dias de sua
pena por ano, devendo-se também observar a capacidade gerencial de cada
estabelecimento penal.
No Distrito Federal, o projeto de remição de pena pela leitura caracteriza-se
como uma maneira de remição complementar, desde a sua concepção até a fase de
implementação, cumprindo determinação da Vara de Execuções Penais, proferida pela
Portaria VEP nº 010, de 17 de novembro de 2016. Esta regulou a remição de pena por
leitura, para o atendimento, prioritário, aos privados de liberdade que não foram
classificados para o estudo, trabalho ou qualificação profissional e abarca, atualmente, a
massa carcerária em cerca de dezesseis mil custodiados no Distrito Federal.
A discussão que se propõe aqui é a formação leitora no cárcere como argumento
central para ressocialização do privado de liberdade, por meio do acesso à leitura geral,
a leitura literária e as práticas de textos, tendo em vista que a remição de pena por
leitura nas prisões precisa ser entendida e assegurada como uma política pública
socioeducacional cabendo aos estados e aos governantes a legitimidade desse direito
nos estabelecimentos penais do país.
Quanto à prática de leitura nas prisões, a Resolução nº 14/1994 do Conselho
Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP estabelece regras mínimas para
o tratamento de privados de liberdade no Brasil e determina, em seu artigo 41 que os
estabelecimentos penais poderão contar com bibliotecas organizadas com livros de
conteúdos informativo, educativo e recreativo adequados à formação cultural,
profissional e espiritual do apenado. Entretanto, a realidade é bem diferente no interior
dos presídios brasileiros em que, em sua grande maioria, há bibliotecas desativadas e/ou
em precário e artesanal funcionamento, acervos ultrapassados e com muitas dificuldades
do apenado para ter acesso ao livro e, portanto, à leitura de literatura. (CASTRO;
TINOCO, 2019)
Para entender melhor a dimensão do problema penitenciário brasileiro, o
Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN, 2017) apresenta os
dados das pessoas privadas de liberdade no Brasil em junho de 2016, a saber: a
população prisional é de 726.712, a oferta de vagas nas prisões é de 368.049, gerando
um déficit de vagas em 358.663 e a taxa de aprisionamento é de 352,6. Especificamente,
no caso do Distrito Federal, a população prisional é de 15.194, a oferta de vagas é de

1479
4

7.150 e a taxa de aprisionamento é de 510,3 indivíduos encarcerados, aumentando, de


maneira alarmante, a superlotação nos presídios do DF. Os dados do INFOPEN também
revelam que tanto nas outras unidades da federação, quanto no Distrito Federal, prende-
se cada dia mais, como reflexo social de uma sociedade mais violenta e desigual. Tal
constatação reflete o hiperencarceramento, nele o ócio improdutivo e, além disso, a
massa carcerária ultrapassa o dobro da oferta de vagas nas prisões onde a
ressocialização praticamente não acontece.
Diante do contexto da superlotação nos presídios brasileiros e da ausência de
políticas públicas, a preocupação com a segurança institucional provocou a criação de
medidas para redução da tensão geral, a fim de favorecer o maior controle nas prisões e
nesse viés, o livro se tornou um poderoso instrumento para “entreter e acalmar” o
indivíduo (RIBEIRO, 2017). Assim, a prática de leitura enquanto política pública é uma
das poucas alternativas autorizadas nos presídios, dada a realidade de um indivíduo
encarcerado por volta de 22 horas por dia e sem praticamente nenhuma atividade
produtiva.
É importante ressaltar que no espaço das prisões existem grandes impasses
quanto à implementação e a execução das políticas públicas penais, visto que as
políticas são formuladas e implementadas sobre o discurso ideológico sustentados pela
tríade trabalho-profissionalização/educação/assistência como caminhos para a
recuperação e a ressocialização dos sentenciados – o Brasil é o único país do mundo que
propõe legalmente essa “ressocialização do preso”. Entretanto, inúmeros são os
obstáculos que levam ao confronto sistemático entre estruturas formais e informais,
ligados aos complexos prisionais que em grande maioria manifestam baixa capacidade
de “reforma da clientela”, além de reconhecer que a realidade das prisões, constituem
agências produtoras da delinquência e do agravamento da reincidência criminal
(ADORNO, 1991). Nesse contexto, pois, é essencial avaliar a importância da
implementação e da execução de políticas públicas sociais e educacionais nas prisões,
com vistas ao desenvolvimento de um país mais justo, menos criminoso, menos
violento, na medida em que a educação, o estudo e o trabalho sejam priorizados e
legitimados como eficazes instrumentos de transformação e emancipação de indivíduos
privados de liberdade.

- Da escola como polo ressignificador de informação e conhecimento

1480
5

À escola cabe o papel essencial de informar gerando conhecimento, seja qual for o
ambiente onde ela se situe – fora ou dentro de um presídio, por exemplo. Por essa
lógica, reconhece-se a variedade de práticas culturais associadas à leitura e a escrita em
diferentes contextos (ROJO, 2009). Ainda, tal entendimento admite a existência e
legitimidade da pluralidade das práticas letradas, mesmo aquelas ainda não adotadas
pelas instituições formais de ensino.
Importante destacar que a preponderância do modelo autônomo nos currículos
escolares se deve, sobretudo, à intensa valorização atribuída ao domínio do código
escrito da Língua Portuguesa. Essa valorização possui razões que partem da já referida
complexidade do texto escrito, mas envolvem também questões de natureza político-
cultural, como a tradição e o prestígio sociais que tal modalidade linguística possui.
Assim considerado, fica evidente que a utilização prática de determinados registros
linguísticos em detrimento de outros envolve aspectos os mais variados. Entre eles
relações de poder (simbólico, político e cultural) que, dentre outros desdobramentos,
resultam no estabelecimento de modalidades que podem ser entendidas como
“dominantes” e “vernaculares”.
Nesse contexto, os letramentos dominantes estão associados a organizações
formais, tais como escola, igreja, local de trabalho, comércio, nos quais estão previstos
agentes. Já no que diz respeito aos letramentos vernaculares, são essencialmente aqueles
que são identificados como enraizados na experiência cotidiana e que servem aos
propósitos de todos os dias (EUZÉBIO, 2012) como, por exemplo, um ambiente
prisional. Note-se que a adoção predominante ou exclusiva de uma modalidade de
letramento é algo controverso. Uma das razões para a sua crítica diz respeito ao caráter
excludente dessa prática que, ao optar pelo ensino de uma forma de expressão em
detrimento de outras, restringe a formação oferecida.
Tal restrição pode resultar em prejuízo pedagógico por focar a multiplicidade e
hibridação de linguagens e culturas convocadas pela sociedade contemporânea – e é a
“sociedade dos livres” que também determina tais procedimentos escolares (de escrita,
de leitura etc.) para a “sociedade dos presos” – em processos de construção de
significados assim como as implicações éticas de tais processos no mundo do trabalho.
Então, no pluralismo cívico e nos estilos de vida, a pedagogia dos multiletramentos se
constroi no imbricamento entre teoria e ato ético inscritos no “existir-evento”,
representando, portanto, uma alternativa epistemológica para um trabalho docente com
as linguagens no sentido de contribuir com a construção de sujeitos – espera-se,

1481
6

quaisquer sujeitos, mesmo se presos – capazes de transitar, compreendendo,


interpretando e respondendo, a partir de posicionamentos valorados, (a)os discursos
produzidos e circulantes nessa sociedade. (OLIVEIRA; SZUNDY, 2014)

- Remição de pena por leitura: caminhos e possibilidades para ressocialização nas


prisões do Distrito Federal

No Distrito Federal o sistema penitenciário possui uma população carcerária de,


aproximadamente, 15.400 (quinze mil e quatrocentos) custodiados, cumprindo pena em
regimes fechado, semiaberto ou com prisão provisória, distribuídos em seis
estabelecimentos penais, segundo dados produzidos pelo Levantamento Nacional de
Informações Penitenciárias – INFOPEN, 2017.
O sistema penitenciário no Distrito Federal, é composto pelos estabelecimentos
penais, a saber: Centro de Detenção Provisória (CDP); Centro de Internamento e
Reeducação (CIR); Penitenciárias do Distrito Federal I e II (PDF I e PDF II);
Penitenciaria Feminina do Distrito Federal (PFDF), onde também funciona a Ala de
Tratamento Psiquiátrico (ATP); Centro de Progressão Penitenciária (CPP) e mais
recentemente, a Penitenciária Federal de Brasília inaugurada no ano de 2018 e até o
presente momento, não participa do projeto de remição de pena pela leitura no DF.
A implementação da remição de pena por leitura no Distrito Federal surgiu da
necessidade de cumprir a determinação da Vara de Execuções Penais (VEP/DF),
conforme Portaria VEP nº 010, de 17 de novembro de 2016, a qual regulamentou a
remição de pena por leitura no âmbito do DF. Essa portaria teve como objetivo central
atender, prioritariamente, os custodiados que não participam de nenhum processo de
remição, seja pelo trabalho ou estudo.
No ano de 2017 foi elaborado o projeto de remição pela leitura no DF, com
representantes de órgãos públicos envolvidos como a Secretaria de Estado de Educação/
SEEDF, representada pela gestão central da Diretoria da Educação de Jovens e Adultos
(DIEJA) e em nível local, gestores e professores do Centro Educacional 1 de Brasília
(SEEDF) e da Secretaria de Estado de Segurança Pública e da Paz Social/SESIPE.
Pensar na formação leitora nos presídios como políticas públicas voltada para
ressocialização do privado de liberdade, por meio do acesso aos livros, da leitura geral,
da leitura literária e as práticas de textos são caminhos e possibilidades de
transformação do indivíduo encarcerado. Nesse sentido, é importante perceber que a

1482
7

leitura de mundo precede a leitura da palavra, num movimento contínuo da leitura de


mundo à palavra ao mundo, refletindo as experiências e vivências do sujeito nos
processos de leitura e criando a possibilidade de “escrevê-lo” e “reescrevê-lo”, por meio
de uma prática consciente (FREIRE, 1989).
Nas prisões, esta prática transformadora em que se insere o ato de ler possibilita
ao privado de liberdade um caminho para ressignificar sua história e suas vivências de
maneira autônoma, produtiva, crítica e, sobretudo, transformadora. Nessa perspectiva
humanizadora, a concepção do projeto de remição de pena pela leitura no DF, pautou-se
pela escuta sensível de todos os sujeitos envolvidos, como os diretores dos presídios, os
chefes dos núcleos de ensino, os agentes penitenciários, os professores que atuam no
sistema prisional e os privados de liberdade, tornando possível a sua elaboração e a
implementação nos seis estabelecimentos penais, a partir do segundo semestre de 2018.
Em relação ao delineamento pedagógico, o projeto de remição pela leitura
apresenta diferenciais ainda não implementados em outras unidades da federação no
território brasileiro, entretanto, cumpriu em todas as fases de elaboração, a determinação
da Vara de Execuções Penais (VEP/DF), regulamentada pela Portaria VEP nº 010, de
17 de novembro de 2016, a saber:
. A oferta das vagas mensais será de até 10% da população carcerária de cada
estabelecimento penal no Distrito Federal. Além disso, dever ser distribuídas em blocos
e alas alternadas nas unidades prisionais do DF.
. O rol das obras literárias foi composto de doze títulos para cada um dos níveis de
escolarização e totalizam 1.531 livros, quais sejam: 1º nível (alfabetizados e Ensino
Fundamental incompleto); 2º nível (Ensino Fundamental completo); 3º nível (Ensino
Médio completo ou incompleto); e, 4º nível (Ensino Superior Completo ou incompleto e
pós-graduado).
. Construção do Manual do participante foi elaborado com objetivo de orientar o
candidato sobre as informações importantes para produção do resumo crítico, visto que
as oficinas presenciais não foram autorizadas pelo sistema penitenciário por medida de
segurança.
. Instituíram-se duas equipes de trabalho para acompanhamento semestral das ações do
projeto de remição de pena pela leitura. A primeira, equipe gestora central composta por
gestores da Subsecretaria de Estado de Educação do DF (SUBEB) e da Subsecretaria de
Segurança pública e paz social (SESIPE); a segunda, equipe executora, representada
pela gestão do Centro Educacional 1 de Brasília, escola de natureza especial, vinculada

1483
8

à Secretaria de Estado de Educação (SEEDF) responsável pela educação nas prisões do


DF.
. Por meio da publicação do edital nº19, de 08 de maio de 2018, a Secretaria de Estado
de Educação do DF abriu processo seletivo simplificado para professores da educação
básica para atuar no projeto de remição pela leitura por até dois anos nos cargos de
professor-coordenador e professor-avaliador.
. Avaliação: decorridos 30 dias para leitura do livro, o candidato deverá fazer uma prova
presencial, na modalidade textual resumo crítico e será atribuída a nota de (0) zero a
(100) pontos, considerando para fins de aprovação o candidato que obtiver nota igual ou
maior que (60) pontos. Posteriormente, os resultados serão encaminhados para fins de
homologação e remição da pena aos órgãos judiciais competentes.
Atualmente, a Secretaria de Educação do DF (SEEDF) enfrenta grandes desafios
em acompanhar a execução e os impactos do projeto de remição de pena pela leitura nos
estabelecimentos penais. Também têm dificuldade os órgãos judiciais para garantir a
legitimidade de direito quanto o fomento das práticas de leitura como política pública de
estímulo à leitura nas prisões que apontam caminhos e perspectivas para formação
leitora no cárcere e a ressocialização do privado de liberdade de forma útil e
transformadora.

- Uma conclusão possível: o necessário no possível

Em nossa sociedade moderna e liquidamente reestabelecida em seu níveis de ética


e funções (BAUMAN, 1999), o “Estado ordeiro” possui uma tarefa complexa de
combate ao crime, por meio de uma política que envolve o confinamento de pessoas
(92% de homens, de 19 a 26 anos), cada vez maior e sem análises de alternativas
viáveis. Essencialmente, combater o crime não explica por si só o boom no sistema
penitenciário, visto que há outras formas reais para supostas ameaças à segurança
pessoal dos cidadãos. Nesse sentido, colocar mais pessoas na prisão e por maior tempo
nos mostrou até aqui resultados insatisfatórios. Utilizar como estratégia a inserção de
mais pessoas na prisão como forma de luta pela segurança dos cidadãos, significa o
ataque a questão numa linguagem contemporânea que faz uso de uma linguagem
prontamente compreendida e invoca experiências popularmente reconhecidas. (idem)
Pensar na literatura como instrumento humanizador envolve processos que
permite ao homem a (re)pensar sobre sua própria essência como, também, a
possibilidade de exercitar a reflexão, a aquisição do conhecimento, a boa disposição

1484
9

para com o próximo, o refinamento das emoções, a capacidade de compreender os


problemas da vida, o senso da beleza, a percepção e complexidades do mundo, dos
seres, de cultivar o humor. Enfim, a literatura desenvolve nas pessoas a quota da
humanidade e ao mesmo tempo as torna mais compreensivas e abertas à percepção mais
fina da natureza, da sociedade e mesmo de nossos semelhantes (CANDIDO, 1989) e,
especificamente nesse caso de análise, trata-se de semelhantes encarcerados.
Nesse sentido, a leitura e o ensino da literatura e a formação leitora no cárcere,
possibilita uma mudança de postura relativa ao significado do ato de ler, visto que
associa ao indivíduo um rol de contradições, originário de um conjunto social burguês e
capitalista. Além disso, provoca discussões internas nesse indivíduo, em planos diversos
como o artístico, o sociológico, o hermenêutico, o ideológico que não podem ser vistos
separadamente para não sofrer profundas, e por vezes irremediáveis, inconsistências em
suas apreensões. Além disso, o ato de ler promove outras contradições, de cunho
conjunturais e que podem “afetar” a nação, na medida em que ressalta os dilemas
nacionais, partilhando modelos desenvolvimentistas que não significam
necessariamente a superação de um estado do subdesenvolvimento e da miséria como
um todo. (ZILBERMAN, 1988)
Sendo assim, é necessário que o estado e seus governantes entendam a
importância da implementação e execução das políticas públicas de remição de pena nos
presídios, sejam por meio do estudo, do trabalho ou da leitura como possibilidade
redução do número de presos no país mas, para além disso, parte-se da adoção de
estratégias mais “humanizadoras” no cárcere, com ênfase na ressocialização e na
reintegração útil e mais produtiva, do indivíduo, à sociedade.
Nesse plano de ação e de propostas, em se tratando de Brasil e do Distrito
Federal, em particular, ainda há carência de avanços nos modelos de educação quanto
ao desenvolvimento de uma metodologia pedagógica específica que fomente a
implementação de políticas públicas educacionais no sistema penitenciário. Ocorre que
no cenário atual, a mesma sociedade cada vez mais exigente em cumprimento de penas
mais severas, seja de cumprimento integral ou em regime fechado, parece não se
preocupar com a garantia dos direitos básicos ao indivíduo duplamente condenado: à
sentença na prisão e à estigmatização social, após o seu estado de encarceramento.
(RESÊS; PINEL, 2016)
Por fim, uma efetiva implementação do projeto de remição de pena por leitura
no Distrito Federal permitirá novos estudos, análises e resultados para se entender

1485
10

melhor em que medida as práticas de leitura, também literária, como política pública de
estímulo à leitura nas prisões podem influenciar na formação leitora do indivíduo preso
em sua rotina diária e mesmo ao longo de seu período de encarceramento. Assim,
entendendo melhor tais práticas, também desenvolver metodologias que, em seu
conjunto de teoria bem sedimentada e aplicação eficaz, mantenham devidamente
encarceradas tendências sociocriminais estereotipadas, que corriqueiramente se ouvem
em várias situações, do tipo “bandido bom é bandido morto” ou “o problema dos
presídios é para quem está preso”.

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1488
ESCOLA, LEITURA E DISPUTAS LITERÁRIAS: O CASO DA POLÊMICA
SOBRE A OBRA DE MONTEIRO LOBATO

Filipe Rodrigues dos Santos (USP)1

Resumo: O presente trabalho busca compreender algumas das relações conflituosas entre
recepção de literatura, leitura literária e educação, considerando a polêmica, iniciada em 2010,
sobre a obra Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, e os contornos jurídicos dela decorrentes.
Interessa-nos refletir acerca dessa escolarização a partir da polêmica sobre a obra de Monteiro
Lobato e das questões jurídicas relativas a ela, pensando principalmente no direcionamento
judicial que modifica os currículos escolares.

Palavras-chave: Leitura Literária; Educação; Monteiro Lobato.

Textos literários são usados nas diferentes etapas do processo de escolarização,


evoluindo da simples regulação do comportamento da criança – por que não gritar, não
desrespeitar os pais, etc. – para o incentivo da imaginação e, finalmente, o deleite. Como
na escola tudo tem finalidade didática, o texto, no entanto, é também pretexto para o
ensino de outros conteúdos, como gramática e redação.
Associa-se à leitura certa função educativa abrangente, do aprendizado da língua à
formação cidadã e democrática. Nesse sentido, a leitura e o ensino de literatura tornam-
se parte constituinte do percurso dos alunos do ensino básico. Para garantir o acesso dos
alunos à literatura, há uma ênfase nas políticas de uso de bibliotecas, distribuição de livros
e atividades extracurriculares.
A Lei no 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) orienta que as
políticas públicas nacionais implementem e garantam no currículo nacional o estudo da
contribuição de diferentes culturas e etnias do povo brasileiro, assim como a
obrigatoriedade do ensino de história da cultura afro-brasileira e indígena. Apesar da lei,
porém, diversos autores têm apontado conteúdo de teor preconceituoso e estereotipado
em materiais paradidáticos e em livros didáticos de diversas disciplinas (GOUVEIA,
2005), de certo modo espelhando tensões e problemas sociais presentes no contexto
brasileiro.

1
Graduado em Letras (FFLCH-USP), Mestrando em Educação (FE-USP). Contato:
filipe.rodrigues.santos@usp.br

1489
O caso do processo formalizado contra o livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro
Lobato, em 2010, é exemplo dessas tensões. Em outubro daquele ano, foi encaminhada
uma denúncia ao Conselho Nacional de Educação (CNE) alegando que o livro
apresentava conteúdo de teor racista, o que iria de encontro ao PNBE e às políticas de
integração racial e educação antirracista.
Os pareceres elaborados por Nilma Lino Gomes, foram amplamente rebatidos por
diversas entidades e utilizados de maneira maliciosa por grande parte da imprensa. O
primeiro parecer aponta para a importância da requisição do denunciante sobre o suposto
conteúdo racista presente no livro Caçadas de Pedrinho.
A parecerista sugere, como mediação, notas em quaisquer livros ou publicações que
façam o uso de discurso considerado racista ou que apresente estereótipos na
representação do negro. No entanto, diversas associações manifestaram-se contra a
“ameaça de censura”, como a Associação Brasileira de Literatura Comparada
(ABRALIC), a Academia Brasileira de Letras (ABL), entre outras. Na mídia cotidiana,
também se disseminava com grande alarde a fúria contra a censura, em entrevistas e
depoimentos de especialistas em literatura ou escritores que já haviam enfrentado a
censura por causa de suas obras, como Inácio de Loyola Brandão.
A escritora Lya Luft, na época colunista da revista VEJA, argumenta:

“Pelo amor de Deus, da educação e das crianças, e da alma brasileira, não


comecem a mexer com nossos autores sob essa desculpa malévola de menções
a racismo. Essa semente terá frutos podres: vamos canibalescamente nos
devorar a nós mesmos, à nossa cultura, à nossa maneira de convivência entre
as etnias” (LUFT, p. 26, 2010)

Assim como Lya Luft, muitos dos textos que se seguiram evocaram uma suposta
convivência harmoniosa, uma “democracia racial”, e a relevância da figura de Monteiro
Lobato para a cultura e política nacionais. Segundo Marisa Lajolo, o episódio em questão
coloca a censura no horizonte, contra a literatura, o que permitiria:

“sinal verde para uma literatura autoritariamente auto-amordaçada. E este


modelito da mordaça de agora talvez seja mais pernicioso do que a ostensiva
queima de livros em praça pública, número medonho mas que de vez em
quando entra em cartaz na história desta nossa Pátria amada idolatrada salve
salve. E salve-se quem puder... pois desta vez a censura não quer determinar
apenas o que se pode ou não se pode ler, mas é mais sutil, determinando como
se deve ler o que se lê!” (LAJOLO, 2010).

1490
O tom inflamado recorre a situações conhecidas de privação da liberdade para
denunciar o perigo contra a democracia brasileira. Igualmente se aponta a precariedade
da formação do professor e da educação em geral, com fortes críticas ao sistema de
educação brasileira e mesmo aos professores.
Em resposta, a relatora manteve seu ponto de vista, expandindo a relação entre
política e política públicas relativas à escola e à leitura, a partir de uma retomada da
Constituição Federal e do Estatuto da Criança (ECA). Além disso, deu ênfase ao fato de
que a desigualdade e o preconceito não atingem só a população negra e afrodescendente,
mas também outros grupos politicamente minoritários. Após a elaboração dos dois
pareceres, o MEC pôs fim à discussão reiterando a necessidade de promover uma
educação antirracista e de formar professores para trabalhar com a questão.
Em sua análise de Caçadas de Pedrinho, Lajolo (2010), especialista nas obras do
autor, apresenta defesa contundente e afirma que a intervenção na leitura, seja com a nota
sobre as questões ambientais, já existente, ou uma nota sobre o tratamento dado a Tia
Anastácia, é insuficiente e não apreende a profundidade da obra de Lobato. Para
questionar as soluções oferecidas nos pareceres do MEC, Lajolo afirma que “leituras
ocorrem em situações socialmente marcadas” e “sabe-se muito pouco como efetivamente
funciona a leitura” (LAJOLO, 2010, online). O “desconhecimento” das particularidades
da leitura é o principal argumento da estudiosa de Lobato, sendo também utilizado por
ela em suas entrevistas televisivas.
Diferentemente de Lajolo, o artigo de Marcos P. Natali (2013) questiona a suposta
censura estabelecida pela polêmica iniciada em 2010. Natali problematiza a maneira pela
qual as discussões se deram. O autor aponta a censura como o ponto principal de desvio
das discussões, o que levou ao deslizamento da discussão ética para num debate político
acerca da “liberdade”.
Os apontamentos de Natali são oposição relevante às ideias muitas vezes propostas
por pesquisadores como Lajolo, embora seus textos não tenham sido disseminados de
maneira equivalente. Supõe-se que uma leitura equivocada, não mediada por um
professor preparado, levaria à formação de um adulto que reforça o lugar de
subalternização do negro, incorporando a perspectiva histórica presente na obra literária.
Dessa forma, os alunos e alunas do ensino básico são vistos como recipientes
ideológicos desse processo de escolarização, no qual a presença de um texto com

1491
estereótipos os levaria a reforçar e reproduzir uma visão racista. A leitura e a recepção de
determinados grupos irão, portanto, balizar e legitimar as escolhas ancoradas em
elementos políticos e sociais, que interferirão nos projetos pedagógicos e na distribuição
de livros dos programas do Ministério da Educação, como o PNBE. A problemática se
encontra no processo pelo qual ocorre a seleção, as leituras e, obviamente, os leitores.

A Polêmica e a recepção de Caçadas de Pedrinho


Gostaríamos aqui, a partir da polêmica veiculada, de apontar elementos sobre a
recepção da obra que foram escamoteados durante o debate, principalmente, de acordo
com Glass, por uma cegueira e sensibilidade raciais imposta ao debate.
Monteiro Lobato se manteve ao longo do tempo como uma figura que, além de
inovador no gênero, também assume um importante papel político. Subjacente à ideia do
escritor inventor da nossa ficção infantil, está ainda o papel político associado ao escritor,
como no avanço da comercialização e descobertas do petróleo em território nacional,
questão usada pelo escritor como tema em um de seus livros infantis. A dimensão da
afetividade, traz a imagem de Lobato para um lugar cativo aos educadores a uma.
Como aponta Natali (2013), no decorrer da polêmica sobre a obra de Lobato, foi
possível perceber a exaltação de uma iniciação à leitura pela obra de Lobato, como uma
espécie de imagem primordial de leitura, e um escritor fincado no imaginário brasileiro,
uma herança nacional. Lya Luft (2010) achou uma “perversidade” mexer naquilo que
temos de exemplo de boa convivência entre as etnias, o que estaria, supostamente,
manifesto na obra de Lobato. Todavia, a ideia de herança e a defesa da distribuição dos
livros de Lobato pelo PNBE continham claras questões de teor econômico, que acabaram
silenciadas na discussão.
Somando-se a esses dois pontos, encontra-se um elemento importante para a
recepção do livro: as marcas históricas de seu contexto de produção. Podemos observar
tais marcas não somente na representação da realidade transposta, mas também na
materialidade linguística da obra. O uso de “carne preta” e “macaca” trouxe à tona a
discussão com mais furor, uma vez que tal uso, hoje, seria repudiado. Para
compreendermos a obra em seu todo e também a defesa desta apresentada por Lajolo
(2010), apresentamos aqui uma breve análise de Caçadas de Pedrinho.

1492
A obra de Lobato apresenta um imaginário mágico transposto do meio rural, em
que a caça de uma onça, envolve crianças e outras personagens fantásticas do Sítio do
Pica-pau Amarelo. A narrativa desenvolve-se no decorrer da caça da onça e nas
consequências do fato: os animais da floresta desejam vingança, o que leva a uma guerra
armada entre o sítio e os animais silvestres, que despertará a atenção até mesmo da capital
do país, à época, o Rio de Janeiro.
Com a vingança iminente dos animais, o narrador então apresenta a cena:

Pedrinho pediu à boneca que repetisse a sua conversa com os besouros espiões.
Emília repetiu-a, terminando assim:
— É guerra e das boas. Não vai escapar ninguém — nem Tia Nastácia, que
tem carne preta. As onças estão preparando as goelas para devorar todos os
bípedes do sítio, exceto os de pena (LOBATO, 2008, p.26)

A escolha de “carne preta” apresenta um tom de rebaixamento frente às outras


personagens, a personagem negra aparece em tom de exceção. A escolha de marcar a
personagem como “preta” ou “macaca” revela um importante momento histórico. A obra,
de 1920, relata o lugar social do negro que há poucos anos ainda estava em processo de
integração social após o fim da escravidão. Nesse sentido, o lugar social no qual se situa
a personagem é de subalternização.
Tal subalternização é marcada constantemente pelo narrador, que escolhe indicar
as diferenças da personagem em relação às outras. Além de situá-la fora do grupo ao
marcar a diferença de cor, o narrador também escolhe marcar as diferenças linguísticas,
embora não o faça com as outras personagens, que tem fala homogênea: “–Corre, Sinhá!
– gritou para dentro – venha ver o ‘felómeno’ que aconteceu com a criançada”.
(LOBATO, 2008, p. 31)
Há uma marcação da diferença pelo narrador e uma escolha que revela resquícios
de momentos históricos distintos, como ainda o uso de “Sinhá” feito pela personagem ao
referir-se à personagem Dona Benta. Tais usos, porém, não podem ser definidos ou
constitutivos de uma propagação ou apologia ao racismo.
Como Lajolo (2010) aponta, o tratamento dado pelo narrador à personagem era o
mesmo tratamento dado às populações negras naquele contexto histórico. Trata-se de um
equívoco apontar Lobato como um escritor racista a partir de uma obra como Caçadas de

1493
Pedrinho, é necessário considerar as possibilidades e diferenças no pensamento e na
circulação dos discursos sobre a questão racial naquele contexto histórico.
Ainda sobre o livro, Lajolo apresenta uma defesa da obra, afirmando que é possível
ver que o narrador dá voz à personagem Tia Anastácia no fim do livro:

Dona benta deu um suspiro de alívio e voltou ao terreiro. Queria continuar o


seu passeio no carrinho. Mas não pôde. Tia Anastácia já estava escarrapachada
dentro dele.
–Tenha paciência – dizia a boa criatura. –Agora chegou a minha vez. Negro
também é gente, Sinhá... (LOBATO, 2008, p.71)

Embora o narrador apresente uma perspectiva ainda de exceção da personagem, ele


dá voz à Tia Anastácia num momento de questionamento. A fala da personagem responde
ao momento histórico, o uso do advérbio “também” em “Negro também é gente” é
justamente uma colocação linguística que evoca os discursos do período. É necessário
ressaltar que negro também é gente quando se sabe de um discurso que diz o contrário, a
fala da personagem permite localizar discursos sociais que se opõem a ela.
Nesse sentido, a qualidade do texto vai além da ficção, já que é possível identificar
diferentes vozes dentro do texto, vozes que podem, inclusive, contestar-se. Dentro dessa
perspectiva, é reducionista propor o veto a determinados livros de Lobato já que os seus
valores educacional e ficcional refletem seu momento histórico.
Os pareceres elaborados pelo CNE refletem essa perspectiva, sugerindo que sejam
formados professores que possam apontar e tratar dessas tensões históricas na obra. Como
foi possível observar nessa breve análise, muito do debate ocorrido sobre a “censura” e
sobre o livro se deu de maneira deveras superficial, sem recorrer realmente às questões
literárias e históricas.
A discussão, na polêmica, orientada pela “liberdade” demonstrou uma união de
vozes vinculadas na imprensa e na esfera acadêmica. Entrevistas ou textos de escritores
e pesquisadores negros tiveram pouquíssima – ou nenhuma – relevância na imprensa, e
pouca repercussão acadêmica.
Academicamente, ainda, pouco se recorreu aos estudos acerca da questão,
relegando às vozes favoráveis à obra de Lobato o lugar político da voz, de questionar e

1494
apresentar elementos relevantes ao debate. Observou-se uma ordem no debate, pela qual
as questões eram postas previamente, e aquilo que se pode ou não dizer, determinado.
A ordem do discurso (FOUCAULT, 2010) imposta colocou a questão da
“liberdade” contra a “censura” como central, embora sejam recorrentes temas como a má
formação de professores (VASCONCELOS, 2010) o anacronismo e o “analfabetismo
histórico” (CECCCANTINI, 2012) e o desconhecimento do processo de leitura e da
recepção do texto por parte de crianças negras (LAJOLO, 2010).
Se, por um lado, afirma-se que Lobato dá voz à Tia Anastácia e o mundo construído
em seus textos é um mundo de “igualdade” (LAJOLO, 2010) que reflete o “modo de
relacionamento das etnias”, (LUFT, 2010), por outro lado, apagam-se e silenciam-se os
textos onde há uma defesa da ideia de inferioridade do negro.
A representação de Tia Anastácia, marcada historicamente, pode, ou não, levar a
recepções que tendem a reproduzir a ordem social e que colocam a figura do negro de
maneira subalternizada. Portanto, a recepção não pode apenas se restringir as possíveis
ofensas às crianças negras, mas, mais que isso, não se deve ouvir apenas crianças negras,
como sugere Lajolo, mas a todas as crianças. A demanda do movimento negro é
justamente o reconhecimento e a representação do negro fora da situação de
subalternização, como foi proposto pelo parecer de Gomes (2011).
Com o movimento do debate em direção à “censura”, não se discutem as questões
sociais colocadas a partir de uma perspectiva étnica e que diz respeito não somente ao
racismo, mas à questão do lugar social do negro, de onde ele fala e de onde pode falar. É
no lugar de onde emanam as vozes que questionam a ideia de democracia racial que
ocorre o silenciamento; coloca-se, então, uma tensão ética e política ao debate, nega-se,
de forma velada, não somente a própria problemática racial, mas também o direito de
questionar o lugar de subalternização do negro.
As influências e pressões sociais exercidas sobre os debates levaram a uma
judicialização da discussão, colocando-a fora dos âmbitos universitário e literário. Como
a questão deslizou para a censura, aquilo que estava no campo do debate da educação e
da literatura foi escamoteado. Quando não tomada como questão de censura, a questão da
polêmica e sua problemática racial foram consideradas apenas como caso de cegueira
racial (a raça não diz nada) ou de sensibilidade racial (GLASS, 2012) principalmente
relativos à presença de Tia Anastácia, ou seja, a ideia de que apenas a presença de uma

1495
personagem negra seria positivo, sendo essa presença em si uma forma inquestionável na
leitura da obra.
A judicialização ocorre no que diz respeito às possibilidades de uma ação pública
que garanta os direitos das alunas e alunos da escola básica ao acesso à literatura e à
cultura que lhes é, muitas vezes, negada. Não somente o texto literário é direito pelo qual
o Estado deve responsabilizar-se, mas também o direito aos saberes da história e da
cultura das quais esses alunos e alunas fazem parte.
A decisão judicial de formar professores tem um tom progressista e funciona como
um deus ex machina que pode resolver o debate e colocar um ponto final na questão. Os
professores sofrem tanto com o silenciamento quanto com o dever de solucionar a
questão. No decorrer do debate as responsabilidades chegavam sempre à figura do
professor, embora não se tenha entrevistado ou questionado nenhum professor do nível
básico para opinar acerca da questão. Somam-se à formação de professores e a todo esse
processo, a situação já conflituosa da questão racial nas escolas brasileiras e a negação de
direitos imposta à população afro-descente.
O que está posto, portanto, é a dificuldade de se gerenciar um debate público que
desliza para a esfera judicial, onde as garantias dos direitos básicos dos alunos e alunas,
assim como os direitos de voz dos professores, são vetados em nome de uma suposta
imparcialidade e liberdade de expressão.
Assim, dá-se ao professor a tarefa difícil de gerenciar a relação dos alunos com o
texto e com a realidade histórica, com problemas críticos: por um lado, um problema
crítico, relativo à crítica literária e seus saberes e tensões; por outro, um problema
emergencial, crítico e histórico, muitas vezes resolvido pelo silenciamento dentro do
ambiente escolar.

1496
Referências

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em: Acesso em: 10 maio 2019.
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Acesso em 10 maio 2019.
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Janeiro: 7Letras, 2013, p. 115-132.
VASCONCELOS, Sandra. Sem título. Painel do leitor – Folha de São Paulo. 27 de
novembro de 2010. Disponível em: www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz271120.htm.
Acesso em: 20 maio 2019.
WEINHARDT, Marilene. “Carta aberta da ABRALIC”, 5 de novembro de 2010.
Disponível em: www.abralic.org.br. Acesso em: 20 de maio de 2019.

1498
LEITURA, LITERATURA E FORMAÇÃO DE LEITORES:
REPRESENTAÇÕES DE PROFESSORES

Juliana Fermino Pinto (FCL – UNESP/ Assis-SP)1

Resumo: Espera-se que a escola seja o espaço onde a formação leitora efetive-se com êxito para
que seus resultados sejam colhidos também em outros setores sociais. Por isso, entender as
representações sociais que os professores de Língua Portuguesa carregam em suas trajetórias e
que, de certa maneira, emergem em suas práticas em sala de aula é um caminho para compreender
mais sobre os leitores que estamos formando e como a escola pode tanto incentivar a leitura
quanto torná-la uma atividade mecânica e sem sentido.
Palavras-chave: Leitura; Literatura; Representações Sociais; Formação de leitores.

Sabemos que muitas pesquisas tratam de expor e refletir acerca da leitura


literária na escola, bem como muitos trabalhos mostram que há inúmeros conflitos e
dúvidas em torno dessa questão, pois muitas escolas que sequer possuem biblioteca.
Muitas vezes, lançamos mão de diversas práticas que exploram diferentes plataformas de
mídias e tecnologias para o ensino literário, mas nos esquecemos de oferecer, de fato, a
apresentação de alguma obra para que os alunos leiam. Usamos muitos questionários
prontos e tradicionais, perguntando sobre narrador, personagens e enredo para alunos que,
em sua maioria, não tiveram acesso ao texto ou, quando tiveram, não foram orientados
em um processo de mediação para conseguirem compreender, construir sentidos e até
opiniões, formando-se, progressivamente, em leitores literários mais autônomos.
Pensando nisso, o intuito do estudo intitulado como Leitura, Literatura e
Formação de Leitores: representações de professores é refletir, a partir das
representações sociais de professores que lecionam a disciplina de língua portuguesa nos
anos finais do ensino fundamental, sobre questões e dúvidas que permeiam o ensino de
literatura e formação do leitor literário nesse segmento de atuação. Por meio da
explicitação e interpretação das narrativas docentes, em uma perspectiva histórica,
cultural e social, acessamos quais são as representações sociais (CHARTIER, 1990) que
os profissionais possuem a respeito de leitura e literatura, como também as articulações
entre essas representações e os encaminhamentos dados ao trabalho em sala de aula para
a formação de leitores literários.

1
Gradua em Letras (UENP), Mestre em Letras (UNESP), Doutoranda em Letras – Literatura e vida social
(UNESP). Contato: juliana.fermino.letras@outlook.com.

1499
Partimos da ideia de que as representações são um meio que nos permite
conhecer a prática dos professores em sentido mais subjetivo, revelando-nos como os
docentes pensam a literatura e como a representam no contexto educativo. Acreditam na
possibilidade de ensinar literatura para seus alunos? Se sim, qual é o objetivo desse
ensino? Que textos selecionam? Como trabalham com esses textos? Consideram-se, eles
próprios, de fato, leitores literários?
Esses e outros questionamentos inserem-se no cotidiano escolar quando o
assunto é a literatura nesse meio e, por acreditarmos que a literatura nesse ambiente deve
ser usada para formar e não apenas informar, bem como o professor deve ser encarado
como mediador, entre texto e leitor, e não um transmissor de saberes sobre os textos, é
que optamos por investigar as representações sociais dos docentes, pois, dessa maneira,
podemos compreender sobre as perspectivas desses professores a respeito do papel da
literatura na formação de leitores e como isso influencia em suas expectativas e condutas.
Poderemos, assim, conhecer o que eles pensam e, ainda mais, conhecer por que pensam
dessa forma, ou seja, como as representações foram construídas.
De acordo com Chartier (1990), as representações funcionam como um sistema
de interpretação que guia nossas relações com o mundo e com outros indivíduos, orientam
e organizam nossas comunicações, nossas condutas e, além disso, também servem como
guia para a compreensão de identidades pessoais e sociais, bem como as transformações
de pensamentos individuais e coletivos.
Sendo assim, a partir dos pressupostos de Chartier (1990), por meio das
representações podemos acessar a maneira como os professores, cada um deles, em seus
diferentes estilos, pensam, sentem, assim como apreendem e interpretam o cotidiano em
sala de aula no ensino da literatura e, da mesma maneira, como consideram o papel dessa
na formação de jovens leitores literários. Dessa forma, podemos entender como os
professores pensam a literatura e formação de leitores por meio do modo como eles
representam esses conceitos, ou seja, o que constroem como verdade, a partir de ideias
criadas, recriadas, ou repassadas, e que definem suas ações.
Trata-se de um caminho para refletir sobre o lugar da literatura na escola, tal
como tem sido o desenvolvimento dessa escolarização. Isso porque a literatura é um bem
simbólico (BOURDIEU, 1996), do qual todos devem ter o direito de se apropriar, e a
escola, nessa perspectiva, precisa ser um espaço propício para essa democratização,

1500
criando ambientes favoráveis ao incentivo à leitura, desenvolvendo atividades
estimulantes e promovendo acesso livre à biblioteca e a bons acervos.
Nesse sentido, a indagação que orienta o estudo diz respeito a descobrir quais
representações sociais sobre literatura os professores de Língua Portuguesa possuem, bem
como têm encaminhado seus trabalhos de leitura literária em sala de aula, pensando a
formação do leitor literário, a partir dessas representações. Pois, pensamos que as
experiências docentes são muito significativas, uma vez que as perspectivas que giram
em torno da formação do leitor no Brasil perpassam, inevitável e principalmente, pela
atividade docente, todos eles e não apenas o professor de língua portuguesa, pois todos
podem desenvolver trabalhos de leitura em suas diferentes áreas de atuação.
Mesmo sabendo que função de incentivar a leitura não deveria ser direcionada
somente aos professores de língua portuguesa, pois os próprios Parâmetros Curriculares
Nacionais, (BRASIL, 1998), destacam que a escola deve estar organizada em torno de
uma política de formação de leitores e que todo professor, não exclusivamente o professor
de Língua Portuguesa, é também professor de leitura. Enfatizamos aqui o professor de
Português, pois esse acaba sendo, na escola, por razões do objeto de estudo de sua
disciplina, o responsável por apresentar a literatura e também incentivar os mais jovens
para a leitura.
Dessa maneira, o ato de investigar as representações sociais dos docentes é um
caminho que nos permite adentrar o cotidiano escolar e as práticas correntes de leitura
literária, propostas e desenvolvidas pelas instituições de ensino. Nesse percurso,
poderemos descobrir se a escola funciona, de fato, como agenciadora da formação de
leitores, pois é o principal espaço onde os alunos, especialmente em caso de escolas
públicas, têm acesso aos livros e o professor, também, nessa realidade, representa o
principal mediador entre esses jovens leitores e a literatura.
Muitas razões, sendo históricas, políticas e sociais justificariam o distanciamento
que existe entre a maioria de nossos alunos e a literatura, pois muitos não leem porque
não estão inseridos em contextos onde a prática da leitura literária seja uma realidade. A
relação dos brasileiros com a leitura é afetada por fatores socioeconômicos, pois os livros
são caros, fazendo com que muitas famílias tenham pouca, ou nenhuma, oportunidade de
contato com a leitura literária. Nessa situação, os alunos somente conseguem ter contato
com textos e obras na escola, seja pelo contato direto com as obras ou por meio de textos

1501
trazidos em seus materiais didáticos, e, por isso, espera-se que tal instituição desenvolva
práticas voltadas para a formação leitora, a fim de explorar todas as funções e vantagens
da linguagem literária.
Nesse aspecto, consideramos que o professor é quem pode, na escola, dar espaço
e abrir caminhos para que os alunos empreendam-se em um processo de formação leitora
voltados para a literatura, a partir do contato direto com os textos e, dessa forma, sejam
encorajados a fazer suas próprias análises críticas, apresentar suas opiniões, seus
sentimentos e, consequentemente, desenvolver uma necessidade, uma motivação para um
contato mais aprofundado com a linguagem literária.
Segundo Candido (1995), a literatura tem muita importância para o meio social,
principalmente na formação humana para a manutenção da vida em sociedade. Porém,
ressalta que todas as funções da literatura só podem ser desenvolvidas e acessadas
plenamente quando lançamos mão de uma ação, a prática de leitura, concedendo à
literatura a importância que lhe cabe e nos esforçando para a sua interpretação e
compreensão.

Entendo aqui por humanização (já que tenho falado tanto nela) o processo que
confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício
da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o
afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o
senso da beleza, a percepção da complexidade, do mundo e dos seres, o cultivo
do humor. A literatura desenvolve em nós a quota da humanidade na medida
em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade,
o semelhante. (CANDIDO, 1995, p.180)

Por isso, pensamos que todos os benefícios que a literatura pode trazer aos
homens dependem, principalmente, na especificidade do contexto brasileiro, da maneira
como a leitura literária é desenvolvida na escola. Uma vez que a escola é o principal lugar
onde crianças e jovens brasileiros têm acesso aos livros e o professor acaba, assim,
acumulando a tarefa de ser modelo e mediador, pois, além de precisar ser o mediador
entre seus alunos e os livros, torna-se, também, ele próprio o principal exemplo para seus
alunos sobre o que é ser leitor.
Sendo assim, compartilhando da ideia de ensino de literatura na perspectiva de
Todorov (2009), Dalvi; Rezende; Jover-Faleiros (2013), Antunes (2015), entre outros,
consideramos que o centro desse ensino deve ser o próprio texto literário e a relação com
o leitor na construção de sentidos, ou seja, que nosso objeto de estudo e ensino deve ser

1502
o texto, deve-se partir do texto para ensinar, e não o contrário, partir de elementos fora do
texto (alguns alheios ao mesmo) na tentativa de explicá-lo, ou mesmo facilitá-lo ou até
usá-lo apenas como modelo de uso da linguagem bem escrita.
Interessa-nos, então, saber a respeito do que, de fato, acontece na escola e
esperamos encontrar informações sobre isso nas representações expostas pelos docentes
investigados. Representações que serão acessadas e colhidas por meio da própria
linguagem, uma vez que os professores serão convidados, a partir de um roteiro de
entrevistas, a narrarem sobre aspectos de suas formações enquanto leitores, professores
e, também, suas experiências e ideias no tocante ao ensino de literatura nos anos finais do
ensino fundamental.
Sabemos que nossos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998),
orientam que as experiências com o texto literário devem ser experimentadas desde o
início da formação escolar, pois favorecem o desenvolvimento de um pensamento crítico
sobre questões diversas, sendo éticas, políticas, sociais e ideológicas, ultrapassando, dessa
maneira, a relação emocional com a literatura e as estratégias linguísticas de construção
desses textos apenas. A proposta é que a literatura seja explorada em sua ampla
capacidade formadora, a partir de diferentes práticas e experiências de leitura, visando a
formação de um leitor literário autônomo. Mas, como isso efetiva-se no cotidiano escolar?
Apesar das orientações dos documentos oficiais voltados para os anos finais do
Ensino Fundamental, o que constatamos diariamente, enquanto professores, na escola, é
que existe uma dificuldade muito grande em desenvolver um trabalho de formação leitora,
especialmente literária, com os alunos desse segmento. Percebemos que nos anos iniciais
do ensino fundamental existem práticas e formações voltadas para efetivação da recepção
do texto literário entre as crianças, resgatando o encantamento pela literatura,
oportunizando o contato e o gosto por ler literatura por meio da oralidade, da música, da
leitura deleite, da contação de histórias, dos livros-brinquedos, das visitas à biblioteca,
etc.
Enquanto isso, no Ensino Médio, com raras exceções, ainda persiste o modelo
de ensino da literatura por um viés histórico e biográfico, trabalhando os estilos literários
de cada época, principais obras e autores, bem como a biografia desses. A disciplina de
Literatura nesse segmento está vinculada aos estudos tradicionais em preparação para as
avaliações externas e vestibulares em geral, assim, acaba por não propiciar um

1503
aproveitamento da literatura como fenômeno artístico e de linguagem específica, optando
pelo estudo de fragmentos de obras (canônicas) exigidas pelas avaliações, não sendo,
portanto, uma aliada na formação de leitores, sequer servindo de estímulo aos jovens
estudantes para a prática de leitura literária, pois esses acabam encarando-a como mais
uma obrigação escolar apenas.
Não entrando nos méritos, ou não, das atividades literárias desenvolvidas nesses
dois segmentos, anos iniciais do ensino fundamental e ensino médio, o fato é que os anos
finais do ensino fundamental parecem ser os mais indefinidos, nos quais os professores
acabam desenvolvendo práticas mais intuitivas, de experiências pessoais e menos de
orientações, formações específicas. É como se houvesse um abismo entre anos iniciais,
anos finais do ensino fundamental e ensino médio, no que diz respeito ao trabalho com a
literatura.
Assim, essa fase da educação básica é a que, talvez, sofra mais com a
problemática da formação de leitores e ensino de literatura, pois é como se fosse um
espaço vazio, no qual, muitas vezes, não se trabalha a leitura literária de maneira mais
frequente e efetiva por não saber como fazer isso.
De acordo com os PCNs de Língua Portuguesa (Brasil, 1998, p. 70):

O terceiro e quarto ciclos têm papel decisivo na formação de leitores, pois é no


interior destes que muitos alunos ou desistem de ler por não conseguirem
responder às demandas de leitura colocadas pela escola, ou passam a utilizar
os procedimentos construídos nos ciclos anteriores para lidar com os desafios
postos pela leitura, com autonomia cada vez maior.

Assim, entendemos que os anos finais do ensino fundamental precisam estar


articulados com os iniciais, de maneira a dar continuidade ao trabalho de formação de
leitores, nesse caso os literários, estimulando a leitura, aproximando-os da literatura, ao
mesmo tempo que amplia o desenvolvimento da competência leitora, e todas as
habilidades introduzidas anteriormente, acrescentando noções sobre a especificidade do
texto literário enquanto linguagem e objeto cultural, estético, artístico.
Desse modo, interessa muito as representações que os professores desse período
têm a respeito de leitura, literatura e leitor, pois a maneira como a literatura está inserida
na vida do professor influencia a forma como ele desenvolve sua prática em sala de aula.
E, nessa perspectiva, acreditamos que para o sucesso da formação de leitores literários, é

1504
essencial que a leitura literária esteja incorporada ao cotidiano escolar e o professor,
enquanto mediador entre o texto e o jovem leitor, precisa compreender o que é, para ele,
a função da literatura na sala de aula e as suas contribuições para a formação de leitores.
Lajolo e Zilberman (1996), afirmam que o uso da literatura na escola para outros fins que
não o da formação de leitores pode contribuir para que os alunos construam uma
representação negativa de literatura e, assim, afastar cada vez mais os jovens leitores dos
textos literários.
Dessa maneira, acreditamos que o foco das aulas de língua portuguesa precisa
ser o texto e as práticas de leitura, destacando o texto literário como parte do cotidiano da
escola, pois carrega em si uma riqueza, a linguagem literária que permite a descoberta de
sentidos de maneira muito mais abrangente e, assim, tem um papel muito importante a
cumprir na escola, o de educar nossos alunos para a leitura como prática social e cultura,
além de ampliar a competência crítica e transformar a compreensão a respeito do eu e do
mundo ao seu redor.
Logo, por tudo isso, os professores de língua portuguesa podem nos revelar
muito sobre como a literatura tem sido abordada na escola, principalmente no que se
refere à formação de leitores. Pois eles estão diariamente nesse espaço, em contato com
os alunos (leitores em formação), e é o cotidiano escolar que pode confirmar se a literatura
vem sendo valorizada nesse processo ou se tornado elemento distante da escola e,
principalmente, das aulas de língua portuguesa.
Ou seja, a importância que os professores atribuem à leitura e literatura revelam-
se em suas práticas que, por sua vez, podem contribuir, ou não, para a formação de novos
leitores literários. Nesse sentido, pensamos que só é possível efetivar práticas de leitura
literária agradáveis e prazerosas, que instigam e seduzem os alunos, para aqueles
professores que compreendem, ou pelo menos refletem sobre, a função da literatura na
formação humana.
Por isso nossos questionamentos e preocupações, pois a maneira de abordar a
leitura literária na escola pode tanto contribuir para a formação de leitores e leva-los à
compreensão da importância da literatura para a vida, como pode levar a um
distanciamento entre os jovens leitores e os livros. Portanto, interessa-nos investigar o
que pensam os professores de língua portuguesa a respeito disso, quais são as suas
representações, pois como eles compreendem a leitura, a formação de leitores e o papel

1505
da literatura nesse processo é determinante para a escolha das práticas e posturas que
adotam no dia a dia em sala de aula. Ou seja, as representações que os professores
constroem a respeito desses elementos revelam-se, inevitavelmente, em suas práticas
diárias e suas práticas, por conseguinte, são determinantes para a formação leitora dos
alunos.
Desse modo, o estudo das representações é uma possibilidade para sabermos
como os próprios professores de Língua Portuguesa formaram-se leitores e como se
tornaram docentes que formam outros leitores, numa tentativa de levantar dados que
contribuam para a reflexão sobre a leitura e a literatura no cotidiano escolar, bem como
para a busca de melhores estratégias para a abordagem literária na formação de novos
leitores, especificamente nos anos finais do ensino fundamental.
Referências
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TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Trad. Caio Meira. Rio de Janeiro: Difel,
2009.

1506
“A BNCC E O CAMPO DE ATUAÇÃO ARTÍSTICO-LITERÁRIO: O
ESPAÇO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS NO ENSINO FUNDAMENTAL”
Kátia Chiaradia (UERJ)1

Resumo: A participação ativa das linhas de pesquisa dos Estudos Literários é essencial para que
professores do Ensino Fundamental, das redes públicas e das instituições da iniciativa privada,
possam inserir em seus Planos de Aulas, de maneira crítica e embasada, as habilidades dos
Objetos de Conhecimento previstas para o Campo Artístico-Literário na Base Nacional Comum
Curricular (BNCC) de Língua Portuguesa e nos currículos oriundos dela, de modo a assegurar a
presença literária nas salas de aula.
Palavras-chave: BNCC; Campo Artístico-Literário; Ensino de Literatura; Currículo;

O Contexto de implantação da BNCC


O Brasil vive um importante momento na educação, no qual, movidos pela
homologação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), Estados, municípios e
mesmo escolas da iniciativa privada reestruturam suas propostas curriculares. A BNCC
define o conjunto de aprendizagens essenciais a que todos os estudantes têm direito na
Educação Básica, no intuito de favorecer as aprendizagens de todos os alunos no território
nacional.
Em dezembro de 1996, o artigo 26 da atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Brasileira, sancionada, já definia que “Os currículos da educação infantil, do ensino
fundamental e do ensino médio devem ter base nacional comum, a ser complementada,
em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte
diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura,
da economia e dos educandos” (BRASIL, 1998). A despeito da clareza da
obrigatoriedade, contudo, mais de vinte anos se passaram para que o Brasil consolidasse
sua Base Comum Curricular.
Pouco mais de uma década à frente, as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais
para a Educação Básica, em seu artigo 14, trouxeram nova luz ao assunto, definindo como
básico um conjunto de “conhecimentos, saberes e valores produzidos culturalmente,
expressos nas políticas públicas e que são gerados nas instituições produtoras do
conhecimento científico e tecnológico; no mundo do trabalho; no desenvolvimento das

1
Kátia Chiaradia é Graduada, Mestre e Doutora em Teoria e História Literária pela Unicamp, sob
orientação da Profª Drª Marisa Lajolo. Atualmente desenvolve pesquisa de Pós-Doutorado na UERJ, sob a
supervisão do Prof. Dr. Roberto Acízelo Contato: npckatia@gmail.com.

1507
linguagens; nas atividades desportivas e corporais; na produção artística; nas formas
diversas e exercício da cidadania; nos movimentos sociais”2. (BRASIL, 2010)
Assim, as Diretrizes Curriculares Nacionais vêm estabelecendo um conjunto de
pressupostos legais a partir dos quais a educação deve ser entendida como um direito sine
qua non e oferecida em igualdade de condições a todos, em suas unidades da Educação
Básica (Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio). Esse conjunto de
direitos básicos deve articular componentes curriculares em Áreas de Conhecimento.
Deve, ainda, assegurar a educação integral, ou seja, é necessário que contemple todas as
dimensões de formação dos sujeitos.
Do desenho da Base Nacional Curricular Comum- BNCC
A BNCC de Língua Portuguesa se organiza a partir de “Práticas de Linguagem”3
(Oralidade, Leitura, Produção de Textos e Análise Linguística/semiótica) e “Campos de
atuação”4 (“da vida cotidiana”, “artístico-literário”, “de estudo e pesquisa”, “da vida
pública”, “jornalístico-midiático”, “de atuação na vida pública”’). Dessa combinação,
originam-se objetos de conhecimento que se abrem em habilidades, como demonstra a
figura a seguir.

2
Resolução nº 4, de 13/7/2010, das Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica, Art.
14.
3
O conceito de “Práticas de Linguagem” é explicado pelo Prof. Wanderley Geraldi (Unicamp): “Da
pesquisa linguística contemporânea podem ser retiradas três grandes contribuições para o ensino de
língua materna: a forma de conceber a linguagem e, em consequência, a forma como define seu objeto
específico, a língua; o enfoque diferenciado da questão das variedades linguísticas; e a questão do
discurso, materializado em diferentes configurações textuais. Tendo no horizonte estas três diferentes
contribuições, as Diretrizes para o Aperfeiçoamento do Ensino/Aprendizagem da Língua Portuguesa,
elaborada pela Comissão Nacional nomeada pelo Ministério da Educação (MEC, 1986), sugerem um
ensino centrado em três atividades: a prática de leitura de textos; a prática de produção de textos; e a
prática de análise linguística (Geraldi, 1996:65).
4
O conceito de “Campo de atuação” é oriundo da ideia de “Prática de linguagem”, acima explicada. Trata-
se de atividades tipicamente humanas que perpassam, engendram, asseguram, regulam a vida social. Ou
seja, passa-se a considerar, para a aprendizagem, a linguagem em uso nas várias práticas sociais. Segundo
Rojo & Barbosa, redatoras da Base de LP: Konder (2003:1) define “práxis” como a “atividade do sujeito
que, de algum modo, aproveita algum conhecimento ao interferir no mundo, transformando-o e se
transformando a sim mesmo”. Nessa perspectiva, as práticas sociais são ações racionais que convocam
responsabilidade social, envolvendo uma ética.

1508
(Quadro desenhado pela proponente deste texto)

Nesse desenho da BNCC, os estudos literários estão presentes no Campo de


Atuação Artístico-literário, predominantemente na Prática de Linguagem constituída pela
Leitura.
Do direito ao campo artístico literário
Como já dito, a BNCC continua algo que começou nas Diretrizes Curriculares
Nacionais, de 1996, as quais estabeleciam pressupostos legais para que a educação fosse
entendida como um direito sine qua non e oferecida em igualdade de condições a todos.
A Literatura é um desses direitos.
A Literatura é, mais especificamente, um direito humano, segundo defende o
Professor Antonio Candido, para quem o direito de “cada um” não pode ser mais urgente
que o direito do próximo: “pensar em direitos humanos tem um pressuposto: reconhecer
que aquilo que consideramos indispensável para nós é também indispensável para o
próximo.”
Em seu ensaio “O direito à literatura”, que antecede em décadas a homologação
da Base, o Professor Antonio Candido já explicava a importância do ensino curricular e
democrático da Literatura nas escolas:
“Por isso é que em nossas sociedades a literatura tem sido um instrumento
poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a
cada um como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade
preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão presentes nas diversas
manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma
e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de
vivermos dialeticamente os problemas. [...] Ela não corrompe nem edifica,
portanto; mas trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que

1509
chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver”.
(CANDIDO, 2004)

Assim, ainda que, enquanto vivência artística, a Literatura brote e (se) faça brotar
das subjetividades, ela também está necessariamente enraizada nas experiências
coletivas, como aquelas favorecidas pela escola. Defender o direito à Literatura hoje é,
portanto, defender a presença real e inexorável do campo artístico-literário nos currículos
e nas salas de aula que se redesenham com a BNCC.
Uma proposta de abordagem dos estudos literários no Ensino Fundamental
Destacaremos a seguir, para fins de análise, dois Objetos de Conhecimento
participantes dos estudos literários: a “Formação do leitor literário”, nos anos iniciais, e
a “Adesão às práticas de leituras”, nos anos finais do Ensino Fundamental. Abaixo, vemos
também algumas de suas respectivas habilidades.
Objeto de conhecimento: Formação do leitor literário

Habilidades:

(EF15LP15) Reconhecer que os textos literários fazem parte do mundo do imaginário


e apresentam uma dimensão lúdica, de encantamento, valorizando-os, em sua
diversidade cultural, como patrimônio artístico da humanidade.
(EF15LP16) Ler e compreender, em colaboração com os colegas e com a ajuda do
professor e, mais tarde, de maneira autônoma, textos narrativos de maior porte como
contos (populares, de fadas, acumulativos, de assombração etc.) e crônicas.
(EF15LP18) Relacionar texto com ilustrações e outros recursos gráficos.
(EF35LP02) Selecionar livros da biblioteca e/ou do cantinho de leitura da sala de aula
e/ou disponíveis em meios digitais para leitura individual, justificando a escolha e
compartilhando com os colegas sua opinião, após a leitura.

Objeto de conhecimento: Adesão às práticas de leitura

Habilidade:

(EF69LP49) Mostrar-se interessado e envolvido pela leitura de livros de literatura e


por outras produções culturais do campo e receptivo a textos que rompam com seu
universo de expectativas, que representem um desafio em relação às suas
possibilidades atuais e suas experiências anteriores de leitura, apoiando-se nas marcas
linguísticas, em seu conhecimento sobre os gêneros e a temática e nas orientações
dadas pelo professor.

(BRASIL, 2018)

1510
Observa-se, assim, que as habilidades na BNCC de Língua Portuguesa são
consideradas sob as perspectivas da continuidade das aprendizagens e da integração dos
eixos organizadores e “Objetos de Conhecimento” ao longo dos anos de escolarização. A
sigla EF15 indica que se trata de uma habilidade a ser trabalhada de 1º a 5º anos do Ensino
Fundamental, visando preparar o aluno para as habilidades EF69, que devem ser
trabalhadas, por sua vez, de 6º a 9º anos do Ensino Fundamental. Embora não esteja
explícita, a meta parece ser a autonomia do leitor.
Acerca da autonomia do leitor, a Profª. Dra. Neide Luzia Rezende (USP) observa:
“Construir autonomia e visão crítica, tendo a leitura como maior aliada, supõe
que o professor tenha ele próprio vivenciado esse tipo de formação e que o
currículo escolar reserva tempo e espaço para isso, uma vez que reflexão,
elaboração, escrita e leitura, em especial literária, demandam tempo, num
ritmo que não é aquele dos conteúdos objetivos com respostas exatas ou
mecanizadas. [...] a “formação do gosto” revela-se um jargão, já que o
professor, não tendo sido ele próprio ensinado a ver o leitor como instância da
literatura, faz uma transposição didática daquilo que aprendeu no seu curso
superior.” (ROUXEL; LANGLADE; REZENDE, 2013. p. 11)5

Percebe-se que a base das habilidades que compõem o “Objeto de Conhecimento


Formação de Leitor”, nos anos iniciais do Ensino Fundamental, incide sobre a distinção
entre textos literários e não literários, o que envolve, antes de tudo, a compreensão da
natureza e dos objetivos das diferentes práticas de leitura. Essa, contudo, já não seria uma
tarefa complexa até para professores especialistas?6
Com o intuito de amparar o trabalho dos redatores de currículos, o Ministério da
Educação disponibilizou uma ferramenta de download da Base7, bem como de
comentários orientadores sobre cada descritor. Para o caso da EF15LP15, uma habilidade
basal, lemos:
“Para o desenvolvimento dessa habilidade, é fundamental que, na elaboração
do currículo, sejam propostos critérios para a seleção de textos, livros e sites
que: possuam qualidade estética; não subestimem a capacidade do leitor;
abordem adequadamente os temas, do ponto de vista dos alunos; sejam
representativos de diferentes culturas, inclusive as menos prestigiadas. É

5
Também Marlène Lebrun, na página 138 do mesmo livro, explica que a literatura é “um espaço
privilegiado para tornar possível a inscrição do sujeito leitor em uma comunidade que favoreça as
condutas interpretativas e a leitura autônoma”. LEBRUN, Marlène. “A emergência e o choque da
subjetividade de leitores do maternal ao ensino médio graças ao espaço interpretativo aberto pelos comitês
de leitura”, in ROUXEL, Annie; LANGLADE, Gérard; REZENDE, Neide Luzia de. Leitura subjetiva e
ensino de literatura. São Paulo: Editora Parábola, 2013. p. 138
6
Lembremos que, no Brasil, a atual exigência para os professores das séries iniciais aponta para a formação
generalista, em Pedagogia, sem a exigência de especialistas da área de leitura e/ou literatura.
7
http://download.basenacionalcomum.mec.gov.br/

1511
ainda necessário prever o desenvolvimento de projetos de leitura por autores,
por gênero e por região, valorizando a cultura de diferentes grupos sociais.”8
(BRASIL, 2018)

Portanto, para que a BNCC seja devidamente implantada e, para além disso, para
que os estudos literários tenham seu lugar salvaguardado na prática das ações cotidianas
escolares e, deste modo, repercutam na formação dos alunos, faz-se necessário que
Estados, Municípios e instituições de educação privadas, junto e para além da redação de
seus currículos, se empenhem em dar condições de trabalho a seu quadro docente. Alguns
Estados, como São Paulo, em tempo preocupantemente recorde apresentaram suas
propostas curriculares, hoje já homologadas9. Contudo, não foram propostos caminhos
para a formação dos professores na implantação desse novo currículo, que pouco se
diferencia da própria Base.
Ler (ou ensinar a leitura de) uma obra consiste também em posicioná-la em uma
rede de referências intertextuais. Assim, oferecer formação docente que assegure a
professores e alunos o direito e a vivência da leitura literária de qualidade é papel das
instituições e órgãos públicos. É preciso ensinar o professor brasileiro das séries iniciais
a pensar sobre “critérios para a seleção de livros”, assim mencionados (mas não
explicados) na EF15LP15, se a meta dos governos é que, ao ingressar no Ensino Médio,
cada jovem seja autônomo e “interessado e envolvido pela leitura de livros de literatura
e por outras produções culturais do campo”, como almeja a habilidade EF69LP49.
O papel dos Estudos Literários junto ao professor da Educação Básica
Com efeito, professores de todos os níveis -mais particularmente dos níveis
fundamental do sistema educacional brasileiro- são as figuras decisivas no percurso do
livro, uma vez que cabe a eles não apenas a capacitação inicial das novas gerações para a
leitura, mas também o desenvolvimento do amor aos livros e à leitura, entendida esta
como prática essencial à vida social da comunidade e à vida individual de cada cidadão.
São escritos os textos legais que registram direitos e deveres de cidadãos, são
escritos os textos que difundem ciência e tecnologia, são escritos os textos normativos do
dia a dia de consumidores, e são escritos os textos que, há milhares de anos, sob forma de
poesia e de prosa, encantam leitores de todas as idades, tornando-se, com isso, a leitura
uma das responsáveis pela constituição da identidade individual e coletiva. Seriam todos

8
Grifo nosso.
9
Na data em que este texto foi escrito, havia já 25 currículos estaduais homologados.

1512
esses textos, no entanto, Literatura? E toda Literatura deve ter seu espaço assegurado na
escola?
Uma tal amplitude do circuito pelo qual a leitura assinala a vida de todos os
cidadãos de uma sociedade moderna, quando somada à centralidade da escola neste
circuito – muitas vezes, único ponto de encontro entre leitores/alunos e livros – evidencia
a importância da figura do professor na seleção de textos a serem disponibilizados para
seus alunos.
Pode-se, com isso, pensar que –no atual momento- é importante que a formação
dos professores inclua procedimentos de seleção de livros para crianças e jovens. Ora,
falar em procedimentos de seleção de livros é falar de leitura. Para ser capaz de escolher
(ou descartar) um livro não basta ao professor ser um leitor proficiente; também não lhe
basta conectar os temas dos livros à BNCC: ele precisa ser capaz de, conhecendo a imensa
oferta de livros disponíveis para o universo escolar, indicar aqueles que – a seu juízo? -
mais agradarão a seus alunos, mais bem se prestarão ao tipo de leitura que ele quer que
seus alunos desenvolvam, mais se aproximarão do programa interdisciplinar daquele
bimestre ou da necessidade de sua comunidade.

Uma seleção fundada em tais princípios exige professores que tenham


desembaraço com textos de diferentes estruturas, professores com uma ampla história de
leitura, familiarizados com um grande repertório de autores e de títulos. Tais experiências
e competências precisam ser ensinadas e trabalhadas.

1513
Referências
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Educação é a Base. Brasília:
MEC/CONSED/UNDIME, 2018. Disponível em:
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/wp-content/uploads/2018/02/bncc-20dez-site.pdf

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil.


Brasília, DF: Senado, 1988. Disponível em:
https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.
pdf

BRASIL. Ministério da Educação. Resolução No 7, de 14 de dezembro de 2010. Fixa as


Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental de 9 (nove) anos.
Disponível em http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/rceb007_10.pdf

CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. São Paulos/Rio de Janeiro, 2004 (4ª edição, reorganizada pelo
autor). Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4208284/mod_resource/content/1/antonio-
candido-o-direito-a-leitura.pdf

CHIARADIA, Kátia et ali. Exame Nacional do Ensino Médio – Enem: Escalas De


Proficiência 1998/2008. Inep. Brasília, novembro, 2018.
Disponível em: http://portal.inep.gov.br/documents/186968/484421/ENEM-
ESCALA+DE+PROFICI%C3%8ANCIA+1998-2008/efc100cd-b7e2-4c77-8db1-
700c118404f8?version=1.0

DALVI, Maria Amélia; REZENDE, Neide Luzia de; JOVER-FALEIROS, Rita (Org).
Leitura de Literatura na Escola. São Paulo: Editora Parábola, 2013.

FISCHER, Luís Augusto; LUFT, Gabriela; FRIZON, Marcelo; LEITE, Guto; GERALDI,
J. W. Portos de passagem. SP: Martins Fontes, 1991.
FISCHER, Luís Augusto e LUFT, Gabriela Fernanda Cé. “Literatura, leitura e ensino: o
Enem e os impactos das leituras obrigatórias dos exames vestibulares para a formação
de leitores”. In: Revista Contexto (ISSN 2358-9566). Vitória, ES: UFES, 2015.

JOUVE, Vincent. Por que estudar literatura?. Trad. Marcos Bagno e Marcos Marcionilo.
São Paulo: Parábola Editorial, 2012.

LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. 2°ed. São


Paulo: Ática, 1996.

LUCENA, Karina; VIANNA, Carla; WELLER, Daniel. “A Literatura no Exame


Nacional do Ensino Médio (ENEM)”. Nonada Letras em Revista. Porto Alegre, ano 15,
n. 18, p. 111-126, 2012.

1514
PACHECO, J. A. Territorializar o currículo através de projectos integrados. In
PACHECO, J. A.. Políticas de integração curricular. Porto, Portugal: Porto Editora,
2000.

ROJO, R. H. R.; BARBOSA, J. P. Hipermodernidade, multiletramentos e gêneros


discursivos. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.

ROUXEL, Annie; LANGLADE, Gérard; REZENDE, Neide Luzia de. Leitura subjetiva
e ensino de literatura. São Paulo: Editora Parábola, 2013

SILVA, Raquel da; MACÊDO, Jhennefer, e SEGABINAZI, Daniela. “A literatura


juvenil no Ensino Fundamental II: avanços e recuos na Base Nacional Comum
Curricular”. Revista de Estudos de Cultura. Universidade Federal do Sergipe | Nº 7 | jan-
abr./2017.LOPES, Alice C. Políticas de integração curricular. RJ:UERJ, 2008.

1515
LITERATURA NA REDE: BOOKTUBERS COMO MEDIADORES DE
LEITURA

Rebeca Mendes Garcia (UFT)1


Adriana Demite Stephani (UFT)2

Resumo: Este trabalho objetiva investigar, por meio de uma revisão de literatura, as
contribuições dos booktubers para a formação de leitores literários, enquanto mediadores de
leitura. A comunidade do youtube chamada booktube contém canais sobre livros literários e os
booktubers apresentam resenhas frequentemente, realizam entrevistas com escritores e
movimentam o mercado editorial. Primeiramente, discutiremos acerca da formação do leitor e
mediação com base nas concepções de Cosson (2006) e Petit (2009) e em pesquisas
anteriormente realizadas a respeito dos booktubers tais como Jeffman (2017), Martins e Barbieri
(2018).
Palavras-chave: literatura; booktubers; mediação.

Introdução

O cenário contemporâneo aponta mudanças significativas nos hábitos das pessoas,


em virtude do avanço das novas tecnologias da informação e da comunicação (NTICs).
Seja em frente a um computador, seja ao utilizar um smartphone, muitas atividades
atualmente são realizadas também na internet: conversar, compartilhar momentos,
comprar, vender, trabalhar e estudar. A respeito disso, Kenski (2007) afirma
uma imensa e complexa rede de meios de comunicação, instalada em todos
os países do mundo, interliga pessoas e organizações permanentemente. Um
único e principal fenômeno tecnológico, a internet, possibilita a comunicação
entre pessoas para os mais diferenciados fins. (KENSKI, 2007, p. 33).

A internet possibilita o acesso às chamadas redes sociais, isto é, aplicativos, sites


que funcionam como uma teia de relacionamentos e ampliam a comunicação e a
interação dos usuários. Podem ser citadas como principais: facebook, twitter, youtube,
instagram. Entretanto, as referidas redes não apenas servem de espaços para
comunicação, elas têm transformado o comportamento dos indivíduos, conforme
salienta Kenski (2007, p. 40) “a nova lógica das redes interfere nos modos de pensar,
sentir, agir, de se relacionar socialmente e adquirir conhecimentos”.

1
Mestranda em Letras pela Universidade Federal do Tocantins (UFT), especialista em Literatura
Brasileira pela Faculdade Dom Bosco e graduada em Letras – Português/Inglês pela Universidade
Estadual de Goiás (UEG). Atualmente, é Técnica em Assuntos Educacionais na UFT/Arraias. E-mail:
rebecamgarcia@hotmail.com.
2
Doutora e Mestre em Literatura pela Universidade de Brasília (UNB), especialista em Metodologias e
Técnicas de Produção Textual pela Universidade Paranaense e graduada em Letras e Pedagogia.
Atualmente, é docente (Adjunto III) do Curso de Pedagogia da UFT/Arraias e do Programa de Pós-
graduação em Letras da UFT/Porto Nacional. E-mail: astephani@uft.edu.br.

1516
Nesse cenário das redes sociais, há o youtube, um site de cultura participativa, em
que são publicados vídeos em canais de alcance mundial. “Fundado por Chad Hurley,
Steve Chen e Jawed Karim, o site foi lançado oficialmente em 2005.” (BURGESS;
GREEN, 2009, p.17). Burgess et al (2009) afirmam que o sucesso do youtube chegou
em 2006 e em novembro de 2007 já era o site de entretenimento mais popular do Reino
Unido, com o site da BBC em segundo. Em 2008, já hospedava aproximadamente 85
milhões de vídeos.

Muito embora esteja relacionado com o entretenimento, o youtube possui também


canais que tratam de disciplinas escolares e propõem vídeos esclarecedores sobre
diversas temáticas. Composta por canais de jovens adolescentes e adultos que objetivam
especificamente falar de livros literários, tem sido formada uma comunidade chamada
booktube, que, de acordo com Gnisci (2018):

A expressão booktube, a junção de book (livro em inglês) com youtuber vem


gradativamente se popularizando, com expressivo espaço de aceitação entre
adolescentes e jovens que de fiéis seguidores tornam-se promissores
consumidores pelo mercado editorial. (GNISCI, 2018, p. 112).

Tal comunidade tem crescido gradativamente e alcançado milhares de


seguidores, os quais, após se inscreverem no canal escolhido, assistem aos vídeos e
dialogam com o booktuber acerca do livro tratado. Nesse processo, a pessoa que cria o
conteúdo do vídeo assume o papel de mediador entre o livro e o internauta que participa
do canal.
A mediação da leitura possui um histórico amplo que começa com os pais ou
avós, ao contarem histórias para os seus descendentes até o professor, tido como
principal mediador uma vez que se considera, conforme Cosson (2009, p. 23), tarefa da
escola a formação de leitores literários.
No contexto do ciberespaço, o booktuber tem interagido constantemente com os
jovens e adultos e construído uma rede de interesses relacionados ao livro literário. Por
causa disso, é necessário compreender se esse processo de interação pode ser
considerado uma mediação eficaz.
Por isso, este trabalho, por meio de uma pesquisa bibliográfica, de abordagem
qualitativa, objetiva investigar a comunidade booktube, com base em trabalhos já
realizados sobre ela, no intuito de verificar se os booktubers de fato são mediadores de
leitura e se podem contribuir com a formação de leitores.

1517
Ler: prazer ou dever?
A formação de leitores literários pressupõe um processo de mediação cujo
responsável se posta como o elo entre o livro e o potencial leitor. Ocorre que, no Brasil,
por muito tempo, essa mediação tem acontecido na escola pelos agentes que nela atuam.
É notória a falta de hábito das famílias brasileiras no que diz respeito à leitura, seja por
falta de recursos para aquisição de livros, seja em virtude de uma cultura do letramento
não construída devido a fatores históricos, sociais. Além disso, por muito tempo o
acesso aos livros foi restrito às escolas.
O ambiente escolar, então, assume a responsabilidade por esse potencial leitor e
muitas são as iniciativas a fim de que ele se torne um propriamente dito. Nesse
contexto, surgem fichas de leitura, uso de fragmentos do livro didático, ênfase nas
escolas literárias em vez de prestigiar a obra, práticas realizadas em sala de aula que
resultam, no entanto, em uma abordagem periférica da literatura.
Conforme relata Cosson (2006), a literatura é vista nos espaços educativos como
uma disciplina desnecessária, acessória, a qual não possui um sentido prático. Nas
aulas, há uma tendência de ensinar estilos de época, história de autores ou utilizar os
textos literários para trabalhar gramática. Além disso, o autor expõe que as bibliotecas
são consideradas um depósito de livros e objetos sem utilização, tornando-as local
desinteressante. Assim, a literatura “é apenas um verniz burguês de um tempo passado,
que já deveria ter sido abolido das escolas” (COSSON, 2006, p. 10).

As Orientações Curriculares do Ensino Médio reiteram a questão supracitada ao


afirmar que há “um declínio da experiência de leitura de textos ficcionais [...] que aos
poucos cede lugar à história da Literatura e seus estilos” (BRASIL, 2006, p. 63).
Ocorre, segundo o documento, a fragmentação da leitura quando são apresentados
trechos de textos e poemas isolados com o intuito somente de apresentação de estilos de
época em detrimento da leitura plena.

Os livros são, muitas vezes, obrigatórios para responder as atividades propostas e


alcançar médias finais satisfatórias ou para conseguir êxito nos vestibulares, porém
pouco se fala em leitura por fruição estética na escola.

Essa visão da literatura precisa ser repensada e o caminho é retomar ao prazer que
o texto literário provoca. Aprender a gostar de ler pressupõe o contato com o livro e

1518
experiências de leituras agradáveis proporcionadas desde a apresentação da obra ao seu
desfrute.
É necessário, na aprendizagem da literatura, associar o livro ao prazer estético, a
fim de motivar os alunos a estarem em contato com o livro, gostarem do cheiro dele, da
capa e, por conseguinte, após essa aproximação, envolver-se na história, para que faça
sentido em sua vida. Martins (1994) esclarece que o desenvolvimento da leitura
perpassa três níveis:

a leitura se desenvolve nas pessoas percorrendo por três níveis básicos, o


sensorial, que remete a uma leitura realizada pelos órgãos de sentidos do ser
humano […]. O emocional, dependendo do contexto abordado na leitura
permite que o leitor envolva-se com seus sentimentos seja de alegria, de
tristeza, de solidão, emoções levando-o a distanciar das circunstâncias reais e
adentrar o mundo da fantasia e por fim, porém, não menos importante o
racional, este nível por sua vez é conquistado depois de todo o caminho
percorrido para obter-se o hábito pela leitura, pois é quando consegue ler e
interpretar o que foi lido. (MARTINS, 1994, p. 36-37).

No nível sensorial, os sentidos humanos são aguçados ao entrar em contato com


os livros, antes mesmo da leitura ter início: o ver, o cheirar, o tocar ampliam a
experiência. Na leitura, a pessoa consegue sentir diferentes sensações ao acompanhar as
personagens em um enredo que pode ser cômico, triste, dramático, apaixonante, etc.
Após essas etapas, chega-se ao nível racional, em que a pessoa adquire o hábito e se
torna um leitor.
Logo, para formar leitores, o mediador precisa considerar o fator estético e a visão
de que a Literatura é um bem incompreensível, segundo Candido (1988). A
obrigatoriedade de ler faz com que a arte da palavra se torne utilitarista, visando fins
práticos que não condizem com a natureza da arte em si.
Os booktubers, nesse sentido, desempenham um papel importante quanto a
aproximar os livros de quem assiste a seus vídeos sem quaisquer obrigações.
Paulatinamente, o dever de ler imposto pela escola pode ser transformado. Por isso,
convém conhecer um pouco mais sobre a comunidade intitulada booktube.

A comunidade booktube

Antes de conceituar a comunidade booktube, faz-se necessária uma introdução


sobre a plataforma em que está inserida. O youtube, considerado um site de cultura
participativa (BURGESS et al, 2009), abarca uma gama de vídeos criados e publicados
por seus usuários em um canal próprio. Porém, não se trata apenas de um

1519
compartilhamento de mídias, uma vez que têm sido formados grupos culturais ou
sociais que atuam de acordo com áreas de interesse. Sobre o youtube, Jeffman (2017)
afirma:

O YouTube pode ser entendido de duas formas: como uma empresa de mídia,
atuando enquanto agregador de conteúdo e plataforma de mídia, embora não
se caracterize, de fato, enquanto produtora de conteúdo; ou como site de
cultura participativa, atuando como plataforma de compartilhamento de
vídeos produzidos por seus usuários. É a partir da participação que o
YouTube se torna uma rede social. (JEFFMAN, 2017, p. 176).
Nesse sentido, ele pode ser considerado uma rede social, tendo em vista às
interações estabelecidas na comunidade ou no grupo formado. Essas interações ocorrem
por meio das curtidas (gostei/não gostei), dos comentários logo abaixo do vídeo postado
e na aceitação daquele grupo ao se inscrever, demonstrando interessado em estar em
contato com o canal.

A booktube trata-se de uma dessas comunidades formada por aqueles que


possuem interesse em literatura. Logo, para demarcar a comunidade, houve a troca da
palavra you (você) por book (livro), o que demonstra, desde o título, o campo de afeição
do grupo. No youtube, os usuários são conhecidos como youtubers, já na booktube, por
sua vez, eles denominam-se booktubers.

De acordo com Jeffman (2017), não há uma data precisa do início da comunidade
no youtube, mas acredita-se que os primeiros canais são de origem americana ou
inglesa. A autora afirma que, no Brasil, “Tatiana Feltrin é considerada a primeira
booktuber brasileira, porque seu primeiro vídeo deu início a um canal dedicado à cultura
literária.” (JEFFMAN, 2017, p. 188). O referido vídeo foi postado em 31 de julho de
2009.

Alguns aspectos caracterizam o booktube como comunidade virtual.


Primeiramente, é formada a partir de uma afinidade, isto é, a cultura literária, por
pessoas que gostam de ler e consomem/produzem conteúdo, as quais estabelecem uma
relação mútua, promovendo conversações contínuas dentro e fora do youtube. Ao todo,
até 2016, ano em que foi encerrada a pesquisa da Jeffman (2017), foram contabilizados
630 booktubers e 42.692 vídeos, totalizando 2.958.859 inscrições.
Assim, tem sido delineada a comunidade booktube. Para uma abordagem mais
precisa, foram selecionados três canais a serem exemplificados neste trabalho. São eles:

1520
Literature-se, da Mell Ferraz; Tatianagfeltrin, da Tatiana Feltrin e Ler antes de morrer,
da Isabela Lubrano. Falaremos, então, dessas booktubers na perspectiva de mediadoras
de leitura.

Os mediadores booktubers

Iniciamos a análise dos três canais escolhidos a partir do objetivo inicial das
booktubers que criaram esses canais, o qual pode ser encontrado na descrição
apresentada na própria página, no item ‘acerca de’. Além desse item, apontaremos a
quantidade de inscritos no canal e de publicações realizadas por cada uma, com o intuito
de contextualizar o trabalho desenvolvido.
Tatianagfeltrin, antes nomeado Tiny Little Things, é considerado o canal
brasileiro mais antigo da comunidade booktube, conforme aponta Jeffman (2017). Na
descrição está o registro de 2007 como o início das atividades. Atualmente, julho de
2019, o canal possui 360.792 inscritos e o total de 1.037 vídeos publicados. Uma
referência na comunidade, Tatiana Feltrin se apresenta como “leitora ávida”, formada
em Letras - Tradutora e Intérprete pela UMESP, pós-graduada em ensino de idiomas
pelo Mackenzie, Professora de Inglês como segunda língua:

Fonte: youtube. Acesso em: 5. Jul. 2019.

Outro aspecto relevante nessa apresentação é o fato de Tatiana apontar dois


objetivos do canal: compartilhar o amor pelos e livros e incentivar a leitura em vídeos.
Isso demonstra, desde o início, a consciência do papel desempenhado pela booktuber ao
ter um canal sobre literatura no grande site de cultura participativa que é o youtube.

1521
Já Isabella Lubrano, do Ler antes de morrer, apresenta uma perspectiva diferente.
Não se coloca explicitamente como alguém que motiva outras pessoas a lerem, mas está
focada no próprio desenvolvimento de leitora, ao propor o projeto de 1001 livros.

Fonte: youtube. Acesso em: 5. Jul. 2019.


Em seu canal, há 324 066 inscritos e 467 vídeos publicados até o momento.
Torna-se interessante destacar a respeito do Ler antes de morrer a forma como os vídeos
são gravados: com bom humor, qualidade e exclusividade, características que podem ser
valorizadas em uma mediação de leitura.
Ademais, está evidente o caráter romântico das atividades desempenhadas pelas
booktubers mencionadas. Especificamente a Mell Ferraz, dona do Literature-se, expõe
ao dizer que “possui sempre a vontade de conversar com o mundo sobre sua maior
paixão: os livros”:

Fonte: youtube. Acesso em: 5 jul. 2019.

1522
A Mell, assim como Tatiana, possui formação na área de Letras e ou Literatura,
fator preponderante na atuação dentro da comunidade, pois, mesmo que seja em tom de
conversa entre amigos, transparece mais conhecimento teórico sobre as obras discutidas.
Porém, é necessário compreender que o trabalho – utilizamos esse termo porque alguns
têm no youtube sua renda e se tornaram booktubers por profissão – da Tatiana, Isabella
e Mell não se trata de crítica literária, afinal, elas mesmas reconhecem o “tom informal”
da atividade, sem pretensão de formar um cânone a partir de suas leituras
compartilhadas, embora movimentem o mercado editorial a partir das resenhas.
Sobre essa relação entre crítica literária e conversa sobre livros, Martins e Barbieri
(2018) mencionam que “atribuir elementos dos afetos e compartilhá-los com o público,
produzir percepções além de textos críticos, é o que torna o material produzido pelos
booktubers atraente para os leitores de Literatura na contemporaneidade.” (2018, p.11).
Nesse sentido, as booktubers realizam a mediação e aproximam os espectadores
do livro literário físico. A mediação ocorre de um modo inovador, uma vez que se trata
de um conteúdo audiovisual publicado por meio do youtube, uma plataforma digital, a
um grande número de leitores-espectadores.
Por mediação, entendemos a ação de auxiliar como intermediário entre indivíduos
ou grupo de pessoas; intervenção.3 Essa mediação interpessoal é importante para que o
incentivo surja e seja construído na interação. Segundo Petit (2009):

O gosto pela leitura não pode surgir da simples proximidade material com os
livros. Um conhecimento, um patrimônio cultural, uma biblioteca, podem ser
letra morta se ninguém lhes der vida. Se a pessoa se sente pouco à vontade
em aventurar-se na cultura letrada devido à sua origem social, ao seu
distanciamento dos lugares do saber, a dimensão do encontro com um
mediador, das trocas, das palavras “verdadeiras”, é essencial. (PETIT,
2009, p. 154, grifos nossos).

Percebemos, pois, que os booktubers, antes apaixonados pela literatura e leitores


assíduos, contribuem para esse estímulo e gosto pelo ler, ao evidenciar, nos vídeos, esse
prazer e, sobretudo, estabelecer uma troca de impressões, favoritismos, desgostos acerca
das obras literárias.
Esse processo de mediação é realizado a partir de diferentes estratégias
desempenhadas pelo próprio mediador. Vídeos resenha, bookshelf tour (tour pela

3
Fonte: Dicionário online de Língua Portuguesa. Disponível em: https://www.dicio.com.br/mediacao/.
Acesso em 5 de jul. de 2019.

1523
estante), TAG melhores livros (do ano, do mês etc.), entrevistas com autores e editoras,
unboxing (amostra dos livros recebidos) e projeto de leitura conjunta são algumas das
quais os booktubers utilizam.
Convém ressaltar que há evidentemente o fator comercial envolvido na
comunidade. Muitos membros publicam seus vídeos com o intuito de conseguir
seguidores, aumentar o número de inscritos e visualizações e, por conseguinte, adquirir
mais lucro. Também há bastante interesse das editoras uma vez que quanto mais o livro
for divulgado, mais vendas ocorrerão. Contudo, esse quesito comercial não impede que
o leitor seja aproximado do livro e se interesse por literatura. O impacto maior se trata
da qualidade desse livro, se é discutido por vias de apreciação literária ou vendas. Essa
discussão, porém, não é objeto deste trabalho, uma vez que o foco não está na
qualificação do livro, mas sim no processo de interlocução dentro da comunidade
booktube.
É notória, sobretudo, a relação de afeto estabelecida entre os booktubers e o objeto
livro, que preenche as prateleiras do cenário e sempre está na mão do booktuber em
lugar de destaque. Assim refletimos como o livro impresso ganha espaço em um
ambiente virtual que, por muitos, é visto como ameaça à extinção dos livros. Na
comunidade booktube, o livro impresso é valorizado, exaltado e, principalmente,
apreciado, conforme apontam Martins e Barbieri:
Curiosamente, nas imagens audiovisuais em que os booktubers se
apresentam, o livro é sistematicamente ostentado para a câmera como uma
espécie de objeto mágico. Tantas vezes ameaçado pelos avanços
tecnológicos, o livro impresso passa a ser também o objeto de fetiche de uma
comunidade que se formou no ambiente digital, cujos membros, produzem e
assistem vídeos no YouTube, algumas vezes, apenas para falar de seus
aspectos materiais como a capa, o papel, a textura etc., como demonstram os
populares vídeos de unboxing, quando livros são meticulosamente
desempacotados em frente à câmera. (MARTINS; BARBIERI, 2018, p. 6).
A experiência estética dos booktubers se torna presente no vídeo publicado, desde
os comentários dos aspectos externos do livro (os quais também são relevantes para o
incentivo à leitura) aos aspectos do enredo, personagens, espaço, etc. Percebemos que,
sendo primeiramente um leitor, é promissora a mediação dos booktubers, afinal,
somente se faz possível exercer mediação sobre o que se conhece.
Considerações finais
Muitas são as estratégias que objetivam atrair pessoas aos livros e formar novos
leitores. Além da instituição família, a escola carrega a responsabilidade pelo letramento

1524
literário, de modo que toda a equipe escolar, especificamente os professores, exercem
papéis de mediadores nesse processo. Contudo, os desafios da prática demonstram a
necessidade de remodelar as técnicas de mediação já consagradas em espaços como a
biblioteca, as rodas de leitura, etc.
Nesse contexto, a internet surge e transforma hábitos diversos, inclusive os
hábitos de leitura. A booktube, comunidade virtual formada por leitores, apresenta
novos contornos à mediação, uma vez que são jovens os responsáveis por planejar e
elaborar atividades de incentivo na própria rede.
Em um universo de leitores em rede, os quais compartilham obras, gêneros,
gostos e desgostos literários, isto é, temáticas de interesse próprio, as estratégias de
mediação de leitura já reconhecidas se transfiguram em atividades mais interativas e
práticas. Isso se dá, também, porque não seguem a lógica institucionalizada de um
currículo, nem exigem avaliações como notas e conceitos escolares por cada leitura
realizada.
Os booktubers, assim, constroem elos com os internautas que os assistem, ao
buscar interagir e fomentar o prazer que possuem pela leitura de livros literários. Desse
modo, uma nova mediação tem ocorrido, por meio da tela, em uma rede que, além de
virtual, é, também, permeada por literatura.
Referências

BRASIL. Orientações curriculares para o ensino médio: linguagens,


códigos e suas tecnologias. Brasília: Ministério da Educação; Secretaria de
Educação Básica, 2006.
BURGESS, J.; GREEN, J. Youtube e a revolução digital: como o maior
fenômeno da cultura participativa transformou a mídia e a sociedade. São Paulo:
Aleph, 2009.

CANDIDO, A. O direito à literatura. In: . Vários escritos. São


Paulo: Duas cidades, 1988.
COSSON, R. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006.

KENSKI, V. M. Educação e tecnologias: o novo ritmo da informação. Campinas, SP:


Papirus, 2007.

JEFFMAN, T. M. W. Booktubers: Performances e conversações em torno do


livro e da leitura na comunidade booktube. Disponível em:
http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/6337. Acesso em: 19
fev. 2019.

1525
MARTINS, M. H. O que é leitura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
MARTINS, B. G; BARBIERI, M. B. Como compreender as transfigurações digitais
da mídia literatura? Trilhando o caminho dos afetos. Disponível em:
http://portalintercom.org.br/anais/nacional2018/resumos/R13-1210-1.pdf. Acesso em 5
de jul. de 2019.

PETIT, M. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. 2. ed. São Paulo: Editora 34,
2009.

1526
LITERATURA CONTEMPORÂNEA NA SALA DE AULA: UMA
EXPERIÊNCIA COM DESESTERRO, DE SHEYLA SMANIOTO.

Sílvia de Paula Bezerra (UNIVERSIDADE MACKENZIE - SP) 1

Resumo: este trabalho tem por objetivo mostrar que é possível uma aproximação entre teoria e
prática no ensino de literatura visando ampliar a capacidade de interpretação e de crítica dos
estudantes por meio da apropriação do conteúdo da leitura e da construção de diálogos entre
suas vivências e o texto literário. Para isso, partimos da experiência de leitura em sala de aula da
obra Desesterro (2016), de Sheyla Smanioto, seguida do encontro da autora com os estudantes
do terceiro ano do Ensino Médio e de fundamentação teórica em obras de Paulo Freire (2016),
Leyla Perrone-Moisés (2016), Michèle Petit (2010) e Alberto Manguel (2017).

Palavras-chave: Leitura; Ensino; Estratégias.

Lecionar Língua Portuguesa e Literatura no Ensino Médio é um trabalho não só


gratificante como também desafiador. Isso porque, aproximar a leitura das mais
variadas obras literárias e a realidade da maioria dos alunos adolescentes é uma tarefa
que exige conhecimento e criatividade. De acordo com Tereza Colomer (2007) a
educação literária deve ser uma constante aprendizagem baseada na construção de
percursos variáveis, uma vez que a escola tem o dever de garantir aos alunos o acesso à
literatura, enquanto a decisão de ir além do que foi apresentado caberá a cada estudante.
Por isso, acreditamos que o professor deve buscar os meios para que se criem os
caminhos mencionados pela autora, isto é, maneiras de fazer com que os jovens
encontrem motivos para ler cada vez mais e melhor, além de construírem as suas
próprias aproximações e questionamentos.
Para que esse trabalho possa alcançar êxito é preciso que, a despeito das
dificuldades enfrentadas todos os dias e que não podem ser ignoradas, o professor
busque saber, em primeiro lugar, em que contexto cultural seus alunos estão inseridos,
isto é, qual o contato que eles têm não só com os livros de modo geral, mas também
com séries, programas de televisão, canais do Youtube, músicas e demais manifestações
artísticas que fazem parte do cotidiano da maior parte dos jovens atualmente. A respeito
desse conhecimento a que o docente precisa ter acesso, pontua Paulo Freire:

1
Professora da rede pública municipal de Barueri-SP há 17 anos, Doutoranda em Letras (MACKENZIE)
Contato: silviadepaulla@bol.com.br. Este trabalho foi financiado em parte pelo Fundo Mackenzie de
Pesquisa.

1527
[...] que a educadora seja cada vez mais competente cientificamente o que a
faz saber o quanto é importante conhecer o mundo concreto em que seus
alunos vivem. A cultura em que se acha em ação sua linguagem, sua sintaxe,
sua semântica, sua prosódia, em que se vêm formando certos hábitos, certos
gostos, certas crenças, certos medos, certos desejos não necessariamente
facilmente aceitos no mundo concreto da professora. (2016, p.99)

De acordo com a nossa interpretação dessa fala, é possível dizer que ela diz
respeito a todos os educadores e, no caso dos alunos do Ensino Médio, muito mais aos
professores de Língua Portuguesa e Literatura que, sendo em sua maioria leitores
fluentes e conhecedores das obras canônicas, tendem a desprezar, nem sempre
propositalmente, os conhecimentos prévios e as leituras dos estudantes, fazendo com
que os adolescentes se afastem ainda mais dos livros porque eles podem até abandonar
suas opções em aderir àquelas que o professor venha a sugerir.
Além disso, por motivos diversos, a escola sempre oferece a leitura dos
clássicos, e quase nunca a de obras contemporâneas. Um dos principais motivos para
que isso aconteça é o tempo, uma vez que, dentro do programa do terceiro ano do
Ensino Médio da maioria dos livros didáticos e apostilas, os escritores contemporâneos
apareçam apenas no final, isto é, nem sempre é possível, dentro do prazo, fazer com que
os alunos tenham contato com as produções literárias que dialogam de modo mais
próximo com seu cotidiano.
Outro fator diz respeito ao custo, porque, de modo geral, enquanto as obras
clássicas podem ser baixadas da Internet, adquiridas em sebos, encontradas nas
bibliotecas e até mesmo na casa dos estudantes ou de vizinhos e parentes, as produções
literárias contemporâneas precisam ser adquiridas em livrarias e, para que o preço se
torne acessível, é preciso uma compra em quantidade, o que, dependendo da realidade
financeira dos alunos, torna-se inviável.
No contexto em que nosso trabalho foi realizado, para que pudéssemos conhecer
um pouco mais a respeito do contexto cultural dos alunos e utilizar essas preciosas
informações, foi solicitado a eles, no início do ano letivo, que escrevessem um texto
para ser entregue ao final da aula, a respeito de suas produções culturais preferidas, se
possuíam livros, se seus familiares eram leitores e outras perguntas que poderiam ser
respondidas de modo livre, ou seja, não era algo para nota, e sim para que o diálogo
pudesse ser estabelecido.

1528
Entre séries, filmes, histórias em quadrinhos, programas de televisão e canais do
Youtube citados por grande parte dos estudantes, também apareceram obras clássicas
como Meu pé de laranja lima (1968), de José Mauro Vasconcelos, Capitães da areia
(1937), de Jorge Amado e O alienista (1882), de Machado de Assis e Best Sellers
contemporâneos como As vantagens de ser invisível (2007), de Stephen Chbosky,
Extraordinário (2012), de R. J. Palacio, O conto da aia (2017), de Margaret Atwood,
Não se apega, não (2014), de Isabela Freitas (2014) entre outros.
Assim, foi possível notar que os alunos mantinham contato com produções
literárias da atualidade e que boa parte deles possuía condições de adquirir um livro
caso fossem solicitados. Diante dessas descobertas, por que não apresentar a eles uma
obra da atualidade que dialogasse com os clássicos e com as suas realidades? Por que
não buscar aprofundar seus conhecimentos? Conforme afirma Anne Rouxel:

[...] No ensino médio a inventividade do professor é requisitada para elaborar


um dispositivo capaz de interpelar os alunos [...] Os gestos profissionais
requeridos pelo ensino da literatura supõem a sagacidade do professor, que é
adquirida com a experiência [...] (2015, p.30)

Com base no que foi pontuado pelos estudantes em seus textos, alguns diálogos
puderam ser pensados até chegar ao trabalho de que trata este texto. Em primeiro lugar,
por se tratar do terceiro ano do Ensino Médio e porque, no conteúdo a ser estudado,
estava a literatura modernista dos anos 1930, chamada de Regionalista, os alunos foram
motivados a pesquisar a respeito das origens de seus familiares e tiveram a
oportunidade, de acordo com a sua vontade, de falar a respeito das descobertas que
fizeram a partir da conversa com pais, tios e avós.
Eles foram incitados a perceber o que havia de semelhante ou diferente entre as
histórias que iam contando, além de ter a oportunidade de comentar a respeito de temas
como violência contra a mulher, alcoolismo, necessidade de deixar o lugar de origem
em busca de oportunidades de trabalho e estudo entre outros. Segundo Paulo Freire:

Creio que a questão fundamental diante de que devemos estar, educadoras e


educadores, bastante lúcidos e cada vez mais competentes é que nossas
relações com os educandos são um dos caminhos de que dispomos para
exercer nossa intervenção na realidade a curto e a longo prazo. Neste sentido
e não só neste, mas em outros também, nossas relações com os educandos,
exigindo nosso respeito a eles e a elas, demandam igualmente o nosso
conhecimento das condições concretas de seu contexto, contexto que os

1529
condiciona. Procurar conhecer a realidade em que vivem nossos alunos é um
dever entre outros que a prática educativa nos impõe. Sem conhecer a
realidade de nossos alunos não temos acesso à maneira como pensam,
dificilmente podemos saber o que sabem e como sabem. (2016, p. 140)

Depois das aulas em que os alunos falaram um pouco sobre suas vidas e a de
seus familiares, foram lidos trechos de Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos
presentes no livro didático, foram ouvidas as canções Asa Branca (1947), de Luiz
Gonzaga e Segue o seco (1994), de Marisa Monte e, por fim, foi solicitado aos alunos
que adquirissem a obra Desesterro, romance de Sheyla Smanioto vencedora do Prêmio
Sesc de Literatura 2015.
É importante ressaltar que os alunos leram, com a mediação dos professores do
primeiro e segundo ano do Ensino Médio, clássicos como A moreninha (1844), de
Joaquim Manuel de Macedo e Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado
de Assis e O cortiço (1890), de Aluísio Azevedo. Logo, após uma conversa a respeito
de que já conheciam os clássicos e que todos haviam sido escritos por homens e que era
hora de conhecer uma narrativa contemporânea, escrita por uma mulher e tentar
perceber como as interações aconteciam, as turmas, em sua maioria, se mostraram
bastante motivadas para realizar a atividade. Além de pensar a respeito do fato de que os
clássicos também foram contemporâneos em suas referidas épocas de publicação.
Em seguida, foi feito contato telefônico e via email com a editora para saber a
respeito dos valores para compra dos livros, o prazo de entrega e demais informações, e
com a autora sobre a possibilidade de uma visita à escola para uma conversa com os
estudantes, o que foi aceito ao primeiro convite, graças às redes sociais e à
disponibilidade da escritora. Vale lembrar que o trabalho obteve o apoio da gestão
escolar na figura da coordenadora pedagógica e de sua assistente para organizar a lista
dos alunos, receber os pagamentos, providenciar recibos, realizar a compra e o
pagamento e entregar os livros aos alunos, além de toda a organização no dia do
referido evento. A atividade completa levou por volta de dois meses.
Ao recebermos os livros, a leitura foi realizada individualmente e também em
grupo. A cada aula, era lido trecho com os alunos e, em seguida, havia a oportunidade
de que eles falassem a respeito de suas impressões. Por conta da estrutura da obra, a
divisão da leitura era feita de modo diferente, marcando, por exemplo, o número da
página em que estavam e até onde deveriam chegar para a retomada na aula seguinte.

1530
Entretanto, essa ação era realizada menos em forma de cobrança, e mais, de acordo com
o que pontua SILVA (2009), como um incentivo para que avançassem na descoberta de
uma linguagem com a qual eles não estavam habituados.
Por isso, ao se depararem com uma estrutura diferente e não organizada por
capítulos numerados e lineares, com a mistura entre o que parecia fantástico e real na
narrativa e com partes que possuíam títulos como: “Vinte e um dedos sem contar essa
verruga”; “Na boca tinha unhas”; “Estômago esquerdo estômago direito”, os alunos
demonstravam seu estranhamento e certo receio em dizer quais hipóteses de leitura
poderiam ser levantadas. O contato com algo a que não estavam familiarizados
começou de modo apreensivo mas evoluiu com o auxílio das discussões em grupo.
Segundo Leyla Perrone-Moisés:
Aos poucos, esse tipo de literatura vai encontrando aqueles a quem se
destina, porque leitura é questão de treino. Os leitores que hoje ainda gostam
de histórias com começo, meio e fim, recheadas de peripécias e surpresas
vividas por personagens que “parecem vivas”, foram treinados há muito
tempo por escritores que inventaram essa maneira de contar histórias e hoje
são lidos com facilidade. Os escritores exigentes procuram novos modos de
contar e de se contar, mais condizentes com a complexidade do mundo atual.
E eles desafiam os leitores a experimentar novas maneiras de ler. (2016, p.
251)

Do mesmo modo, por meio da mediação realizada pelo professor e pelos


próprios colegas na leitura em grupo, houve a ampliação e a complementação do sentido
do texto lido, criando, segundo Paulo Freire (2016), pontes de diálogo entre os alunos,
dando-lhes voz e atuação, fatores imprescindíveis para o posicionamento crítico. À
medida que a leitura avançava mais envolvidos estavam os alunos e extremamente
ansiosos para conversar com a escritora, pois mencionavam a toda hora o desejo de que
ela pudesse explicar-lhes trechos da narrativa. Nas palavras de Alberto Manguel:

[...] No cerne do envolvimento de todo leitor com o texto, está à espreita um


laço duplo: o desejo de que o que é contado nas páginas seja verdade, e a
crença de que não o é. Nessa tensão entre os dois, os leitores instalam seu
precário acampamento. (2017, p. 111)

E foi assim até a finalização da leitura, uma troca de impressões e experiências


entre os alunos e a professora e que continuou a partir da visita da autora à escola, o
que, no contexto em que o trabalho foi realizado, costuma acontecer com frequência

1531
entre alunos do Ensino Fundamental I e II e raramente com estudantes do Ensino
Médio, ainda mais em uma escola técnica. Entretanto, de acordo com Freire:

Exercício de muita riqueza de que tenho tido notícia, vez ou outra, mesmo
que não realizado em escolas, é possibilitar a dois ou três escritores, de ficção
ou não, falar a alunos leitores seus, sobre como produziram seus textos.
Como lidaram com a temática ou com as tramas que envolvem seus temas,
como trabalharam sua linguagem, como perseguiram a boniteza no dizer, no
descrever, no deixar algo em suspenso para que o leitor exercite sua
imaginação. Como jogam com a passagem de um tempo a outro nas suas
estórias. Afinal, como os escritores leem a si mesmos e como leem a outros
escritores. (FREIRE: 2016, p. 82)

Ainda que em proporção menor do que a citada pelo educador, foi possível
observar o envolvimento dos alunos na atividade, bem como seu interesse em conversar
com a autora a respeito de suas inspirações, seu contexto cultural e social, os motivos
pelos quais ela quis ser escritora, o caminho que percorreu até realizar o seu projeto ,
além de terem podido perceber, não sem certa surpresa, que um escritor é alguém mais
próximo do comum do que eles imaginavam .
Após o encontro, as fotos e os autógrafos, a conclusão da atividade foi feita por
meio da produção de um texto com a opinião dos estudantes a respeito da experiência
que tiveram e, por meio da leitura das produções, ficou nítido o diálogo entre clássico e
contemporâneo, entre o contexto dos discentes e a produção literária.
A experiência real em sala de aula com uma obra contemporânea surtiu efeitos
produtivos, uma vez que aos alunos foi direcionada uma compreensão que não estava
presa apenas às sugestões do livro didático ou esvaziada de acompanhamento teórico.
Desse modo, pudemos perceber que havia ocorrido com os alunos o mesmo processo de
que fala antropóloga e pesquisadora sobre leitura Michèle Petit: “Eles não se tornaram
necessariamente grandes leitores, mas os livros não os entediavam, não lhes botavam
medo. Ajudaram a que colocassem mais palavras em suas histórias, a tornarem-se mais
atores delas” (2010, p. 48).
Para finalizar, sabe-se que é grande o desafio para aproximar os alunos do
Ensino Médio das variadas produções literárias porque não basta fazer circular a
literatura na escola sem contemplar, ainda que de modo comedido, a dimensão social
das práticas de leitura. Por isso, acreditamos que o professor deve buscar os meios para
que possa conquistar a liberdade possível para realizar o seu trabalho com base em

1532
estudo, pesquisa e um grande interesse por aquilo que permeia o ambiente em que a sua
escola e os seus alunos estão inseridos.

Referências
COLOMER, Teresa. Andar entre livros – a leitura literária na escola. Tradução Laura
Sandroni. São Paulo: Global, 2007.

FREIRE, Paulo. Professora, sim; tia, não: cartas a quem ousa ensinar. 26ª ed. São
Paulo: Paz e Terra, 2016.

MANGUEL, Alberto. O leitor como metáfora: o viajante, a torre e a traça. Tradução


José Geraldo Couto. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2017.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Mutações da literatura no século XXI. São Paulo:


Companhia das Letras, 2016.

PETIT, Michèle. A arte de ler ou como resistir à adversidade. Tradução Arthur Bueno e
Camila Boldrini. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2010.

ROUXEL, A. “Aspectos metodológicos do ensino de leitura”. In: DALVI, Maria A.;


REZENDE, Neide L.; FALEIROS, Rita J. (Org.) Leitura de literatura na escola. São
Paulo: Parábola, 2013. p.17-33

SILVA, Vera Maria T. Leitura literária e outras leituras – impasses e alternativas no


trabalho do professor. Belo Horizonte: RHJ Editora, 2009. (PNBE do professor)

SMANIOTO, Sheyla. Desesterro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2016.

1533
O TRIUNFO DO PATRIARCADO EM O CONTO DA AIA
1
Adriana Madeira Coutinho (UFRJ)

Resumo: Este trabalho pretende apresentar um estudo de gênero no âmbito da relação entre o
estereótipo feminino construído pelo patriarcado na distopia feminista O Conto da Aia de
Margaret Atwood. Por outro lado, pretende apresentar uma aproximação do retrato social, ainda
que distópico, traçado pela autora em 1985, diante do ​backlash estadunidense, às situações que
são vivenciadas pela atual sociedade brasileira como resposta conservadora ao que,
contemporaneamente, chamamos de quarta onda feminista.

Palavras-chave:​ Estudos de Gênero; Distopia; Patriarcado.

Linhas gerais da obra

Depois de inspirar a série “The Handmaid's Tale”, o romance distópico O Conto


da Aia, escrito em 1985 pela canadense Margaret Atwood, voltou a ocupar posição de
destaque no mercado editorial. Ambientado em um Estado teocrático e totalitário em
que as mulheres são vítimas diretas da cassação de direitos, a ficção futurista de Atwood
se apresenta como potente antecipadora da era Trump e Bolsonaro nas Américas.
Nesse futuro catastrófico, cabe aos homens o controle do conjunto da sociedade e
as mulheres, em sua maioria retiradas à força de suas famílias, são proibidas de ler,
obrigadas a usar um uniforme, não podem olhar os homens diretamente nos olhos, não
podem conversar e devem orar. Qualquer desvio dos padrões estabelecidos, como ser
homossexual ou feminista, é passível de fuzilamento. As aias, diante da crise de
infertilidade que assola o país, tem seus úteros destinados à atividade estatal de procriar
sendo submetidas à “cerimônia” - ritual sexual estabelecido pelo Estado no qual uma
vez por mês a Aia é estuprada pelo seu comandante para engravidar e dar o fruto dessa
gravidez à família a que ela pertence naquele momento.
O romance traz alguns registros importantes para a discussão de gênero. Em
primeiro lugar destaco o papel desempenhado pelas mulheres na sociedade de Gilead,

1
Doutoranda em Ciência da Literatura na Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestra em
direito pela Universidade Católica de Petrópolis e graduada em Letras também pela
Universidade católica de Petrópolis; bolsista CAPES. E mail: madeiracoutinho@gmail.com

1534
sem prescindir da divisão por classes sociais, em que podemos observar os privilégios
atuando. As mulheres são divididas por tarefas que desempenham, tarefas domésticas
são executadas pelas Marthas, a procriação fica a cargo das Aias – tarefa de destaque
pelo seu fim, uma vez que aquela sociedade vive sob o signo da infertilidade, mas é
mister entender que assim como acontece com classe trabalhadora, o exercício da
função principal não garante aquele que produz nenhum privilégio pelo cargo que
desempenha - a manutenção e formação das Aias fica a cargo das Tias. Às esposas cabe
o gerenciamento do ambiente doméstico. As econoespeosas e as não-mulheres são
mencionadas de forma bastante rápida. O ideal de mulheres forjado pela narrativa se
assemelha ao que vivemos na atualidade mesmo que possamos encarnar todas as
categorias descritas acima em uma única mulher. O reforço dos papéis ligados à
produção e reprodução da vida é a pedra de toque do patriarcado, enquanto aos homens
cabe o exercício da liberdade, o direito ao conhecimento e gestão da coisa pública e a
propriedade das mulheres, as mulheres são parte integrante do que podemos considerar
propriedade do homem e do Estado.
Características distópicas como totalitarismo, opressão, luta pela sobrevivência,
perda da individualidade, entre outras, podem ser observadas dentro da obra,
principalmente em relação às mulheres. A semelhança entre vários aspectos da obra e a
vida real é um dos fatores que justifica a grande popularidade dessa história e tem sido
causa de grandes discussões desde sua publicação.
Por fim, um aspecto interessante relacionado à contradição entre submissão e
subversão pautada pela autora, notada principalmente em Offred, é o fato de que ela se
põe em estado de cautela durante a maior parte da obra, reforçando sua vontade de
sobreviver, mas arrisca tudo para manter um relacionamento com Nick. O fato da
narradora personagem se colocar em risco para poder estar com um homem, e este
homem por fim se tornar o herói da história, pode apontar para uma incapacidade da
autora em sair do escopo tradicional e patriarcal de um romance, indo contra a fama
feminista atribuída ao livro.
Ondas feministas: ontem e hoje

Women become nonpersons – individuals who lack the rights and


opportunities that might enable them to counter openly society’s construction

1535
of them as Martha, Wife, and Handmaid – and their society strips them of any
resources with which to create their own subjective reality ((HOGSETTE,
2
1997, p. 263-264)

Judith Butler (2003) afirma que o gênero é uma forma culturalmente construída
em oposição ao sexo. Dessa forma, o sexo biológico não define o gênero. Para Joan
Scott (1989), as feministas passaram a utilizar a palavra gênero não só como definição
de identidade social, mas também para se referir ao sistema de relação entre os sexos e
as divisões de papéis entre eles. Por essa interpretação, então, “gênero” se torna uma
forma de significar as relações de poder e implica que “o masculino e o feminino não
são características inerentes e sim construções subjetivas” (SCOTT, p. 16). Estudos de
gênero são, portanto, um campo de pesquisa que leva em consideração a relação social
entre os sexos e os padrões culturalmente estabelecidos em relação a eles.
Escrita no final da segunda onda do feminismo, a obra levanta questões
pertinentes relacionadas à luta feminista. Tendo seu início na década de 1960, a segunda
onda feminista reafirmou e ampliou o debate trazido pela primeira onda. Estimulada
pela publicação da obra O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir (1949), a segunda
onda se propôs a criticar a visão de feminilidade instaurada pela sociedade patriarcal e a
posição da mulher. Abortamento, liberdade sexual e a função social da mulher foram
apenas alguns dos muitos temas abordados nessa fase do feminismo que se
manifestaram na obra. Assim sendo, O Conto da Aia passa a ser visto como uma crítica
feminista à sociedade patriarcal e um alerta à mesma, afinal “toda opressão cria um
estado de guerra” (BEAUVOIR, 2016, p. 542). O romance cumpre sua função distópica
de imaginar um futuro possível baseado em uma visão crítica da sociedade atual, ao
mesmo tempo em que levanta questões de gênero.
No Brasil, o movimento feminista, teve início no século XIX, o que chamamos de
primeira onda. Nesta, as reivindicações eram voltadas para assuntos como o direito ao
voto e à vida pública. Em 1917, Nísia Floresta, que ao lado de Bertha Luz é considerada

2
. “Mulheres se tornam não pessoas – indivíduos que não possuem os direitos e as oportunidades
que os possibilitem de se opor abertamente à construção, feita pela sociedade, delas como Martha,
Esposa, e Aia – e suas sociedades as despem de qualquer recurso com o qual criar sua própria realidade
subjetiva.” (tradução minha)

1536
pioneira no feminismo brasileiro, fundou a Federação Brasileira pelo Progresso
Feminino, que tinha como objetivo lutar pelo sufrágio feminino e o direito ao trabalho
sem a autorização do marido.
A segunda onda teve início nos anos 70 num momento de crise da democracia.
Além de lutar pela valorização do trabalho da mulher, o direito ao prazer, contra a
violência sexual, também lutou contra a ditadura militar. O primeiro grupo que se tem
notícia foi formado em 1972, sobretudo por professoras universitárias. Em 1975
formou-se o Movimento Feminino pela Anistia. No mesmo ano surge o jornal Brasil
Mulher, editado primeiramente no Paraná e depois transferido para a capital paulista e
que circulou até 1980.
No início da década de 90, nasce a terceira onda, na qual começou-se a discutir os
paradigmas estabelecidos nas outras ondas, colocando em discussão a micropolítica. As
críticas trazidas por algumas feministas da terceira onda, alavancadas por Judith Butler,
vêm no sentido demonstrar que o discurso universal é excludente; excludente porque as
opressões atingem às mulheres de modos diferentes, seria necessário discutir gênero
com recorte de classe e raça, levar em conta as especificidades das mulheres. Pode-se
dizer que ​Problemas de gênero ​de Butler, é um dos grandes marcos teóricos dessa
terceira onda, assim como o ​Segundo sexo ​de Simone de Beauvoir foi para a segunda.
A quarta onda feminista, termo recém cunhado, caracteriza o momento atual do
feminismo no Brasil e no mundo. O feminismo renovou suas energias na segunda
década do século XXI, bandeiras contra o abuso sexual, assédio moral, disparidades
salariais e protestos contra presidentes conservadores dão provas desta renovação. A
plataforma política é ampla e a utilização da internet, por meio de sites, blogs e redes
sociais estabelece a nova linguagem a ser utilizada para organizar a sociedade. As
feministas da quarta onda se basearam nas percepções interseccionais, usando-as como
principal filosofia e prática política. No Brasil, utilizada para retratar o que seria a
amplificação do movimento feminista a partir das ruas e das redes, os feminismos da
diferença, o avanço das lutas identitárias aqui no Brasil em pleno século XXI, a quarta
onda feminista é o alvo preferencial da resposta conservadora que vivenciamos hoje
com a eleição de uma governo conservador, misógino e preconceituoso, uma espécie de

1537
backlash brasileiro. Diante do aumento da bancada evangélica dentro do Congresso
Nacional e de um slogan da presidência da República que vem ganhando corpo “Brasil
acima de tudo e Deus acima de todos”, a passos largos vamos percebendo retrocessos
significativos, além dos ataques ao conjunto de trabalhadores com reformas
antipopulares, as mulheres sofrem com a flexibilização da posse de armas,
recrudescimento na legislação que trata da saúde reprodutiva e do abortamento e um
discurso conservador que joga a mulher para o ambiente privado novamente.

Imposições construídas pelo patriarcado

Patriarcado pode ser entendido como uma instituição social que se caracteriza
pela dominação masculina nas sociedades contemporâneas em várias
instituições sejam elas políticas, econômicas, sociais ou familiar. É uma
forma de valorização do poder dos homens sobre as mulheres que repousa
mais nas diferenças culturais presentes nas ideias e práticas que lhe conferem
valor e significado que nas diferenças biológicas entre homens e mulheres
(MILLET, 1969, p. 58).

A divisão social estabelecida em Gilead, sistematicamente favorecendo o homem


em detrimento da mulher, é didaticamente exemplificada na narrativa. As mulheres são
reduzidas a atividades domésticas, colocadas em posições de subalternidade e privadas
de qualquer tipo de independência.
A categoria das mulheres responsáveis pelas tarefas domésticas é representada
pelas Marthas. Por muito tempo, as mulheres foram proibidas de trabalhar e por isso
ficavam responsáveis pelo cuidado de suas casas e suas famílias. Durante as guerras
nasce a necessidade de mão de obra e a industrialização da produção acabou por
garantir a manutenção das mulheres no mercado de trabalho. Mesmo assim, aqui no
Brasil, até meados do século XX, os maridos precisavam dar autorização para que suas
esposas pudessem trabalhar fora de casa. Atualmente a participação feminina
corresponde a mais ou menos 43% no mercado de trabalho brasileiro, a pesquisa Retrato
das Desigualdades de Gênero e Raça, divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea), afirmou que as mulheres trabalham em média 7,5 horas a mais do que
os homens por semana devido às tarefas domésticas realizadas.
A sociedade, ainda hoje, é impregnada pelo estigma cultural de que uma esposa
deve servir ao seu homem, sendo uma mulher submissa, ficando em casa e se

1538
relacionando apenas com mulheres da mesma categoria social. Na narrativa, Serena Joy
segue como o principal exemplo da categoria, uma mulher que, na maior parte das vezes
em que é mencionada, está tricotando para os soldados ou cuidando do seu jardim.
A função social destinada a todas as mulheres, segundo o clamor social, a de
engravidar, é representada na figura da Aia. Condição ligada umbilicalmente à questão
de classe, às Aias não é dado o exercício da maternagem, elas são tratadas como
incubadoras que darão frutos, filhos, às classes dominantes que não podem engravidar.
As que não podem ter filhos perdem até seu direito de se assumir como mulher e são
caracterizadas literalmente como Não-Mulheres. Ainda assim, tanto na obra quanto na
vida real, é esperado que a mulher se torne mãe mas sem que explore o âmbito sexual.
O coito não deve ser ato de prazer pra mulher, mas ato de procriação, salvagurdado em
passagens bíblicas. Em sua narração, Offred, na sua função de Aia, confirma o
sentimento da perda de sua subjetividade e individualidade para que seja apenas um
receptáculo humano. “Somos úteros de duas pernas, apenas isso [...]” (ATWOOD,
2017, p 165).
O fato de o sexo ser propositalmente misturado a uma espécie de rito religioso
mecânico e repulsivo dá uma dimensão do quanto Atwood vai com os dois pés no peito
das questões que pretende debater, criticando não apenas as relações de poder da igreja
(que desde sempre interferiu e condicionou a sexualidade de seus fiéis) como também
as diferenças perversas de tratamento entre as classes sociais e entre os gêneros.
Em O Conto da Aia, Atwood faz mais que uma crítica à presença política da
igreja, estabelecendo ligações com o obscurantismo contemporâneo promovido por
algumas religiões e a reconstrução do passado por meio da manipulação dos fatos –
como bem fazia Smith no mundo orwelliano. Recheado de referência à Idade Medieval,
quando a Igreja Católica queimou mulheres acusadas, não raras vezes sem provas, de
bruxaria. Na obra não existem coincidências: a dureza da realidade – seja ela atual ou
passada – é retratada com coragem e sem qualquer dissimulação. O patriarcado, uma
chaga que assola a sociedade há anos, é apresentado em sua forma mais brutal e
impiedosa: homens que, sem medo, se sobrepõem aos demais e, principalmente, às
mulheres.

1539
É mister destacar que a divisão das mulheres em categorias não gerou um
sentimento de revolta mútuo nessa coletividade mas aumentou o sentimento de
rivalidade, reforçou estereótipos. Atribuo essa condição de incapacidade de indignação
à questão de classe, seria nítido aqui que a situação das mulheres é agravada pela
divisão da sociedade em classes que faz com que, mesmo não pertencendo à classe
dominante, uma martha não queira se juntar à uma aia para não perder seus privilégios
dentro da casa, como por exemplo, cuidar do dinheiro. Além disso, a obra também pauta
a hipocrisia do sistema: apesar de ser baseado em regras religiosas rigorosas e punitivas,
os Comandantes usufruem de prazeres proibidos graças ao seu s​tatus.
Dessa forma está construído o conceito de mulher imposto pelo patriarcado. Na
cultura sexista em que estamos inseridos, para ser mulher é necessário que se cumpram
alguns requisitos, salvo engano, os principais estão descritos nas mulheres da narrativa.
Em sua célebre afirmativa “ninguém nasce mulher, mas torna-se”, Simone de Beauvoir
traz para a cena que nenhum destino biológico define a fêmea humana, essa máxima
está diretamente ligada a um devir construído socialmente que atende a padrões
definidos pelo conjunto da sociedade baseado fundamentalmente no homem branco.
A narrativa de Offred não é a única constituinte de O Conto da Aia. Divida em
duas partes, a obra traz ao fim um epílogo no qual descobrimos que a narrativa é, na
verdade, a recomposição de várias fitas gravadas por Offred após seu resgate. Essa
segunda parte é nomeada por Notas Históricas Sobre O Conto da Aia, se passa em um
simpósio sobre estudos Gileadeanos, na Universidade de Denay, Nunavit, onde
conhecemos o Professor Peixoto, um dos responsáveis pela reconstituição das
gravações. Ou seja, o responsável pela narrativa, que conta a história de uma mulher, é,
na verdade, um homem.

Obrigado. Tenho certeza que todos nós tivemos grande prazer em apreciar
nossa encantadora truta do Ártico ontem à noite no jantar, e agora estamos
tendo grande prazer em apreciar nossa igualmente encantadora presidente do
Ártico. Emprego aqui a palavra “apreciar” em dois sentidos distintos,
excluindo, é claro, o terceiro, obsoleto. (Risos.) (ATWOOD, 2017, p. 353)

Intitulada “Problemas de Autenticação com Relação a O Conto da Aia”, a


palestra do Professor Peixoto deixa claro seu viés científico e mostra logo na abertura
seu caráter sexista ao objetificar completamente a presidente do simpósio. Neste

1540
momento, fica claro, pela piada machista feita pelo professor e pelos risos da plateia que
o caráter sexista e patriarcal das sociedades de antes e durante Gilead permanece na
sociedade pós-Gileadeana. Sendo assim, nas palavras de Rüsche (2015, p. 20): “a
representação, aqui, aponta para uma limitação: não se consegue vislumbrar outra
ordem social possível além do capitalismo e do patriarcado”.

Uma distopia

Sob o signo da distopia, que apresenta uma sociedade falha, que vive sob algum
tipo de opressão, derivada das aflições trazidas pelas mudanças sociais e pelos avanços
tecnológicos descontrolados promovidos pela Revolução Industrial, onde descobertas
científicas e tecnológicas surgiram, nasce a ficção (científica) especulativa. ​Em um
artigo escrito para o jornal americano The New York Times, Atwood declarou que ao
escrever O Conto da Aia, fez questão de que para tudo houvesse um antecedente real:

Uma das minhas regras foi que eu não botaria nenhum evento no livro que já
não tivesse acontecido no que James Joyce chamou de o “pesadelo” da
história, nem nenhuma tecnologia ainda não disponível. Sem dispositivos
imaginários, sem leis imaginárias, sem atrocidades imaginárias. Deus está nos
detalhes, ele dizem. O Diabo também está. (ATWOOD, What ‘The
Handmaid’s Tale’ Means in the Age of Trump, 2017)

Dentre as características definidoras desse gênero, cabe destacar como mais


importante a presença de um poder totalitário, visto que tal característica acaba por
determinar as seguintes. Desigualdade social, injustiça, acesso restrito à informação,
perda da individualidade, privações, propaganda usada como forma de controle, perda
da liberdade física e intelectual, vigilância constante, e um cenário hostil são
características distópicas consequentes de dito poder.
Diante de todas as características de cunho negativo das histórias distópicas e suas
colocações dentro d’O Conto da Aia, é importante ressaltar que mesmo em se tratando
de uma obra de ficção as situações narradas são inspiradas em situações reais. Mesmo
sabendo que “uma distopia tem por base uma forma de experimentalismo que isola
certas tendências sociais e as exagera para dar visibilidade às suas qualidades mais
negativas” (CAMPELLO, 2003, p. 207), as situações descritas na obra não
ultrapassaram o espectro da realidade, esse era um compromisso da autora.

1541
Além de pautar eventos passados, alguns aspectos do livro podem ser facilmente
relacionados com acontecimentos presentes. No Brasil, por exemplo, o aumento da
força da bancada evangélica dentro de um Congresso que se declara laico, colocando
em pauta uma lei que proíbe o abortamento até mesmo em casos de estupro, está em
conexão direta com os acontecimentos e ideologias do governo totalitário instaurado na
obra. Deputados se declarando abertamente a favor de métodos de tortura; presidentes
declaradamente misóginos, homofóbicos e xenófobos sendo eleitos; países onde
mulheres não têm o direito de falar caso estejam na presença de um homem; taxas de
estupro altíssimas e mulheres sendo culpadas por eles; todos esses são acontecimentos
presentes que podemos facilmente associar à obra.
“Nada muda instantaneamente: numa banheira que se aquece gradualmente você
seria fervida até a morte antes de se dar conta” (ATWOOD, 2017, p. 71). Sobre a
passividade de todos enquanto se instala o novo regime, temos o registro da personagem
e narradora Offred, que se assemelha, no meu ponto de vista, ao que acontece com o
povo brasileiro nesse momento. Inicialmente, não houve manifestações ou talvez,
inicialmente houve manifestações a favor; muitos acreditaram que tudo o que estava
acontecendo era realmente o melhor acontecer. Nada foi feito. Com isso, a autora, por
meio da protagonista chama a atenção do leitor para o perigo de não ser capaz de
enxergar o que está acontecendo.
Se é verdade que o Conto da Aia é uma obra de ficção especulativa, parece que no
Brasil caminhamos para além da especulação.

Conclusão

A literatura distópica nunca fez tanto sentido quanto agora. Aquilo que George
Orwell, Aldous Huxley e Ray Bradbury escreveram – só para citar a santíssima trindade
do gênero – em alguns casos, já faz parte do nosso cotidiano. Pela televisão, ou nas
redes sociais, testemunhamos com assombro – e de certo modo com alguma inércia – a
ascensão de poderes conservadores, misóginos e xenófobos fazendo com que a
conclusão de Marx (1852) de que história se repete a primeira vez como tragédia,

1542
depois como farsa, pareça insuficiente. Parte do mérito dos autores de ficção científica
está no quanto suas obras permanecem atuais com o passar dos anos, já que em geral as
distopias são exercícios de futurologia que não deixam de apresentar laços profundos
com o passado. Se, por um lado, às vezes antecipam tecnologias, por outro, essas obras
nos lembram de erros históricos que insistem em se repetir, como a existência de
governos totalitários, por exemplo.
Longe de querer equiparar a arte à vida a provocação em questão vem da
vontade de entender o porquê de ser tão atual uma narrativa escrita em 1985. De forma
atemporal as lacunas que fazem das mulheres reféns do patriarcado parecem as mesmas.
Acredito que o conceito chave para que entendamos a preservação de tal mentalidade
pode ser o de “backlash”. Backlash é uma expressão da língua inglesa desenvolvida por
Susan Faludi (1992) que, nesse contexto, remonta à reação anti-feminista da sociedade.
De acordo com Faludi:
Nos anos 80, o backlash andou pelos subterrâneos secretos da cultura,
circulando pelos corredores da bajulação e do medo. Ao longo do
caminho usou vários disfarces: desde a máscara de uma
condescendente ironia até a expressão sofrida da “profunda
preocupação”. Os seus lábios demonstram piedade por qualquer
mulher que não se enquadre na moldura, enquanto procura prendê-la
na moldura. Professa uma estratégia de cizânia: solteiras contra
casadas, mulheres que trabalham fora contra donas-de-casa, classe
média contra operárias. Manipula um sistema de punição e
recompensa, enaltecendo as mulheres que seguem as suas regras,
isolando as que desobedecem. O backlash revende velhos mitos sobre
as mulheres fazendo-os passar por fatos novos, ignorando qualquer
apelo à razão. Acuado, nega a sua própria existência, levanta um dedo
ameaçador contra o feminismo e procura desaparecer nos subterrâneos
(FALUDI, 1992, p. 21).

Como já mencionado, um dos principais motivos de o sistema patriarcal


prevalecer é o fato de as mulheres não estarem, como um todo, unidas contra ele.
Chego ao final deste trabalho, querendo reforçar a reflexão sobre até que ponto
estamos perpetuando uma cultura que prega a subalternidade da mulher, e apontar que a
impossibilidade de se imaginar um futuro diferente não representa apenas uma
característica do gênero distópico, mas também a resignação da nossa sociedade diante
da cultura patriarcal e capitalista.

1543
Referências bibliográficas:
ATWOOD, Margaret. ​O Conto da Aia​. Tradução de Ana Deiró. Rio de Janeiro: Rocco,
2017.

________________. ​In Other Worlds: SF and the Human Imagination. Ed. First
Paperback Edition. Estados Unidos: Anchor, 2012.

BEAUVOIR, Simone de. ​O Segundo Sexo: fatos e mitos​. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2016.

__________________. ​O Segundo Sexo: a experiência vivida​, volume 2. 3. ed. Rio de


Janeiro: Nova Fronteira, 2016.

BUTLER, Judith. ​Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade​. Trad.


Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

CAMPELLO, Eliane. ​A visão distópica de Atwood na literatura e no cinema​.


Interfaces Brasil / Canadá, Belo Horizonte, V . 1 , N. 3 , 2003.

FALUDI, Susan. ​Backlash: the undeclared war against American women​. Nova
Iorque: Anchor Books, 1992.

GRACE, Dominick M. ​The Handmaid’s Tale: “Historical Notes” and Documentary


Subversion. ​Science Fiction Studies, Vol. 25, No. 3, Nov., 1998, p. 481-494.

MARX, Karl. ​O 18 de brumário de Luís Bonaparte​. Tradução Nelio Schneider. São


Paulo: Boitempo, 2011.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica​. Traduzido por
Christine Rufino Dabat e Maria Betânia Ávila. No original: Gender: a useful category of
historical analyses. Gender and the politics of history. Columbia University Press. New
York, 1989.

1544
COMUNICAÇÃO E TECNOLOGIA: UMA ANÁLISE SEMIÓTICA DE BLACK
MIRROR

Alcioni Galdino Vieira (UTFPR)1

Resumo: Com base na semiótica peirceana, é apresentada uma análise de Nosedive, primeiro
episódio da terceira temporada da série televisiva Black Mirror. A compreensão do produto
audiovisual enquanto linguagem permite evidenciar as estruturas inéditas de signos, mediadores
de sentido, presentes no discurso. Tal abordagem considera, ainda, a hibridização entre os
gêneros de ficção científica e comédia romântica que dão sustentação à narrativa distópica do
episódio, marcado pela problemática da identidade feminina em um contexto amplamente
marcado pelo simbolismo tecnológico e pela divisão da sociedade em classes.
Palavras-chave: Semiótica; Hibridismo; Black Mirror; Abralic.

Introdução
Em dezembro de 2011, o canal de televisão britânico Channel Four exibiu o
primeiro episódio da série Black Mirror, criada pelo jornalista Charlie Brooker. A partir
de 2016 a série foi adquirida pela plataforma Netflix que, desde então, passou a veicular
os episódios da primeira temporada produzida anteriormente pela rede Channel Four,
bem como produzir novos episódios. Atualmente a série encontra-se em sua quinta
temporada.
Uma das particularidades de Black Mirror é seu formato antológico, isto é, não há
continuidade entre os episódios, assim, todos apresentam histórias diversas e envolvem
novos personagens. Entretanto, esses episódios estão ligados por um tema em comum:
os possíveis impactos das tecnologias digitais, principalmente as de comunicação, em
um futuro próximo.
Black Mirror propõe reflexões acerca do potencial que o conjunto de tecnologias
digitais possui para instituir mudanças radicais nos comportamentos humanos e nas
estruturas das organizações sociais. A produção também aborda a temática da
manipulação dos públicos pelos meios de comunicação e a consequente dependência
dos mesmos em relação aos poderes dominantes. Suas narrativas propiciam ao
espectador imergir em um modelo de mundo-ficção com alta dose emocional e foco nos
conflitos de relacionamentos humanos no cotidiano, peculiares da sociedade
contemporânea.

1
Doutora em Comunicação e Semiótica, Professora Adjunta do Departamento de Ciências Humanas e
Sociais da UTFPR Campus Londrina. Contato: alcionig@utfpr.edu.br.

1545
A produção enquadra-se em um tipo muito particular de narrativa, a distopia. Seu
título, Black Mirror, refere-se à tela dos dispositivos que usamos diariamente, a qual
uma vez desligada passa a refletir, como um espelho, a face do próprio usuário, um
reflexo nebuloso, o lado sombrio das novas tecnologias e do emprego que delas
fazemos. A série sugere, portanto, uma reflexão sobre os possíveis desvios relacionados
ao uso das tecnologias digitais de comunicação. Os episódios abordam tópicos bastante
atuais relacionados à infotainment, reality shows, redes sociais, internet viral, big data,
entre outros. Estabelecem-se, de fato, ligações entre ficção e realidade.
Para este trabalho, o corpus consiste em um episódio, o primeiro da terceira
temporada, intitulado Nosedive, que será analisado com base na semiótica de C. S.
Peirce.
Fundamentação teórica
Tendo como fundamento uma fenomenologia geral, em que as experiências
podem ocorrer em três níveis, Peirce (2000) desenvolve um sistema triádico de signos.
Tal sistema pressupõe o signo como algo que está sempre no lugar de alguma coisa, seja
ela existente ou não no mundo real, o objeto do signo, isto é, aquilo a que o signo se
refere, e o interpretante, o qual vai muito além da interpretação do signo por um
intérprete, pois o signo em si mesmo carrega potenciais interpretativos. O signo faz,
então, a mediação entre o objeto e seu interpretante de modo que só é possível conhecer
o objeto por intermédio do signo.
Em relação aos processos de significação, um aspecto relevante da semiótica
peirceana é que esse conjunto teórico direciona a observação dos fenômenos para o
domínio da experiência, de esquemas de ação espacialmente determinada,
possibilitando verificar como os objetos se comportam através da mediação sígnica. Isto
se deve à ideia de que a produção de significados culmina em um último interpretante
lógico, caracterizando uma mudança de hábito ou de conduta, um novo padrão de
crenças (SANTAELLA, 2001).
Com base no caráter triádico do signo, Peirce (2000) distingue três divisões, isto
é, o caráter do próprio signo, a relação do signo com seu objeto e a maneira pela qual o
interpretante apreende o objeto por intermédio do signo. Essas divisões refletem o
sistema de três categorias ontológicas de Peirce que fundamentalmente abrange a

1546
realidade como qualidade ou primeiridade, relação ou secundidade e representação ou
terceiridade.
Na relação do signo com seu objeto, o signo pode ser dividido em ícone, índice e
símbolo. Um ícone refere-se a um signo no terreno de sua semelhança com o objeto em
algum aspecto. Um índice está em uma dinâmica ou relação causal com seu objeto. Já
um símbolo funciona como o signo de um objeto em virtude de uma regra ou hábito de
interpretação (PEIRCE, 2000).
Para a análise de um produto audiovisual é imprescindível que se considere esses
três aspectos conjuntamente, isto é, as características de ícone, índice e símbolo. Os três
elementos co-apresentam um ao outro, portanto, uma análise fílmica que destaca os três
elementos pode trazer resultados importantes, particularmente no que se refere ao
estudo da percepção dos públicos.
Roland Barthes (2009) aplicou à análise da linguagem fotográfica elementos
centrais da semiótica peirceana. O autor analisou em profundidade essa relação direta da
fotografia com o objeto por ela representado, o que resultou em um referencial teórico
importante para a compreensão das imagens enquanto sistemas visuais sígnicos. A
“retórica da imagem” delineada por Barthes pressupõe que o sistema imagético
contribui para o estabelecimento de uma cosmovisão ideológica. O autor investigou os
modos como esse sistema sígnico, ideologicamente nutrido, imprime na sociedade
percepções particulares de realidade. E fez uma distinção teórica no âmbito das relações
internas do signo, mais especificamente entre significante e significado, com base nos
conceitos de conotação e denotação. Passou, então, a observar o significado a partir dos
níveis denotacional e conotacional para concluir que a retórica deriva do conjunto de
significados produzidos pelos signos os quais integram o código imagético, carregado
ideologicamente.
Para além da fotografia, os conceitos barthesianos passaram a ser aplicáveis
também aos produtos audiovisuais, incluindo os cinematográficos e televisivos, já que a
ideia de fotografia em movimento é central nesse tipo de matriz híbrida da linguagem.
A semiótica em Black Mirror
Em consonância com suas projeções de futuros distópicos e tecnologias futuristas
avançadas, primeiramente é necessário posicionar Black Mirror no âmbito do gênero de
ficção científica. A série incorpora principalmente futuros possíveis para os seres

1547
humanos, mas também apresenta aspectos do atual contexto social. A partir de
diferentes narrativas e estéticas fantásticas, acompanhadas de explicações lógicas e um
apelo à familiaridade, ilustra-se uma tecnologia, explícita ou implicitamente, com
grande capacidade para aprisionar as pessoas, questionando-se, assim, o próprio
conceito de liberdade.
Roberts (2018) explica que a ficção científica diferencia seus universos fictícios,
em um grau ou outro, do mundo real em que vivemos. Por possuir múltiplos elos com a
sociedade na qual se origina, alimenta-se de um imaginário existente, e a realidade serve
de inspiração para narrativas que abordam a sociedade, seus medos e desejos.
Para Freedman (2000), esse gênero literário é determinado pela dialética entre
estranhamento e cognição. Nesse sentido, Black Mirror busca manter no público certa
racionalidade face à desestabilização tecnológica, e talvez essa seja sua mais
significativa função ficcional, pois exige que os espectadores elaborem cognitivamente
os desdobramentos das situações complexas, apresentadas em cada episódio.
O alto poder de impacto dessa série reside, assim, na oferta de tecnologias
futuristas como explicação para ocorrências fantásticas. É por intermédio dessa
convenção do gênero fundacional que Black Mirror convida o público ao
questionamento de seus próprios hábitos e normas tecnológicas.
A seguir, é apresentada uma análise semiótica do primeiro episódio da terceira
temporada de Black Mirror, Nosedive, uma produção realizada pela plataforma
televisiva Netflix. O intuito é identificar as especificidades do discurso social
apresentado nessa produção audiovisual com o objetivo de ampliar a compreensão sobre
conteúdo de mídia, técnicas de produção, generalizações relacionadas a valores, crenças
e estereótipos e o potencial impacto de tais representações na maneira como a sociedade
negocia os significados da mídia.
Como gênero, Nosedive é uma hibridização entre ficção científica distópica e
comédia romântica, englobando, portanto, um conjunto de elementos capaz de atrair um
público extenso e diversificado. Muitas pessoas podem se interessar por uma produção
com essas características devido à mistura complexa de códigos estéticos, narrativos,
visuais, verbais e ideológicos nela em ação. Como a ficção científica não tem
compromisso com o real, histórias desse gênero são capazes de abordar problemas
sociais reais e tensões ideológicas sem parecer confrontar instituições estabelecidas. Já

1548
as comédias românticas, como um sistema de representação, usam estruturas sociais,
ambientes e instituições realistas e cada personagem é um signo dos papéis familiares e
de gênero desempenhados em relação aos sistemas sociais que prescrevem
comportamentos.
As representações da mídia relacionadas a personagens femininas e situações que
envolvem o cotidiano da mulher tendem a se tornar familiares e normais para o público,
mesmo que exageradas e imprecisas. Há evidências, segundo McRobbie (2009), de que
a mídia apóia os valores tradicionais nas comédias românticas devido à maneira como
as mulheres são representadas dentro das narrativas desse gênero fílmico. Comédias
especificamente românticas são caracterizadas por um retrocesso em relação aos
avanços e conquistas do movimento feminista devido ao apoio a valores patriarcais,
conforme destaca McRobbie. A autora refere-se a um “pós-feminismo”, uma ideologia
que mescla valores de gênero conservadores com uma concepção de mulher liberta e
dona de sua sexualidade.
McRobbie (2009) acredita que o pós-feminismo permite o exame minucioso de
várias interseções, mas também de conflitos recorrentes. As comédias românticas
retratam personagens femininas como levando um estilo de vida independente,
igualitário e livre. Mulheres, no entanto, de acordo com McRobbie, que não cumprem
os princípios do feminismo e não se associam aos objetivos do movimento feminista,
portanto, não contribuem para seu próprio empoderamento político. Desse modo, dentro
das narrativas de comédia romântica, muitas mulheres usam sua liberdade para adotar
padrões comportamentais femininos que o feminismo se esforçou para abolir.
Esse tipo de gênero fílmico na maior parte apóia valores pós-feministas quando,
por exemplo, desencorajam uma mulher a ser solteira, já que costumam representar
mulheres bem-sucedidas, mas que ainda acreditam precisar de um homem para fazê-las
felizes. O fato de uma personagem feminina não ser casada não a torna independente,
já que sempre é retratada como uma pessoa solitária e frustrada. Essa característica está
implícita também em Nosedive, como será posteriormente mostrado.
O episódio de Black Mirror inicia-se apresentando um futuro em que as pessoas
possuem dispositivos implantados nos olhos capazes de revelar informações pessoais e
toda interação exige que os interlocutores atribuam notas uns aos outros, classificando
suas experiências interpessoais dentro de uma escala de até cinco pontos. Nosedive

1549
apresenta a história da protagonista Lacie e suas incessantes tentativas de obter uma
classificação alta dentro dessa escala e, consequentemente, um status social elevado.
Após uma série de experiências infelizes, no entanto, a pontuação de Lacie começa a
cair. Ela fica desorientada ante o desempenho insatisfatório e, então, passa a ter
avaliações cada vez piores até perder por completo o controle dos limites impostos por
esse sistema determinado pela tecnologia. Os escritores e produtores do episódio
exageram na representação de feminilidade por meio de um cenário saturado por tons
pastel e uma caracterização ultrafeminina da protagonista, no contexto de uma
sociedade fortemente estruturada em classes.
A tecnologia em Nosedive parece estar relacionada a uma organização simbólica
dos signos, já que dessa instância decorre um conjunto de leis e normas o qual
determina comportamentos e valores daquela sociedade. A própria representação da
emoção associa-se a esse determinismo tecnológico. Desse modo, as significações
produzidas pela linguagem não se desviam do socialmente aceitável, a subjetividade do
indivíduo está atrelada aos padrões, já que uma pontuação baixa resulta em vergonha
pública e desaprovação social. Em consequência, essa espécie de ordem tecnológica é
constituída como um espaço no qual é preciso permanecer para manter uma identidade
forte e uma posição de destaque.
As convenções da comédia romântica mantêm a narrativa dentro dos limites do
gênero, isto é, os telespectadores estão focados nos esforços da protagonista para
melhorar seu desempenho diante das prerrogativas desse simbólico-tecnológico.
Portanto, o episódio inclui um dos conflitos importantes da comédia romântica:
questões de autoimagem, humor e empatia conduzem o espectador a buscar uma
solução para o problema que é apresentado.
Os personagens de uma história são entendidos de acordo com códigos, assim
como a noção tradicional de feminilidade, por exemplo, pressupõe certos padrões de
comportamento. Desse modo, a linguagem audiovisual segue estruturas e regras
elaboradas para a construção de significados por intermédio de uma narrativa, cuja
semiose ocorre por meio de sistemas simbólicos.
A vida superficial e a natureza exaustiva da obsessão por conquistar um bom
desempenho tornam Lacie uma personagem simpática. Já na primeira cena ela é vista
esforçando-se para melhorar seu desempenho físico e emocional: corre, pratica ioga,

1550
observa seu reflexo no espelho e ensaia um sorriso capaz de agregar valor a sua
imagem. Um close do olho da personagem dá ênfase às lentes de contato de alta
tecnologia. A cena corta nessa imagem refletida mostrando o nome e a classificação de
4,2 pontos de Lacie.
Os significados geralmente derivam de um código que prescreve como as coisas
se organizam sistematicamente, tal como os objetos em uma sala, as regras de um jogo
ou diferentes estilos ou combinações de roupas que sugerem vários significados. Os
relacionamentos entre qualquer signo e tudo ao seu redor podem gerar um sistema de
signos apto a estabelecer códigos.
Uma das cenas mostra a sala de estar e a cozinha da protagonista, onde o irmão
Ryan se diverte jogando videogame. Os móveis e os pertences da casa ilustram uma
clara distinção de gênero e atitude entre Lacie e Ryan, que veste camiseta azul, calça de
agasalho e óculos de realidade virtual. Lacie, por outro lado, usa um vestido rosa
almiscarado, acessórios delicados e é cercada por itens de cozinha e móveis que
combinam exatamente com a cor de seu vestido. A representação da casa estabelece
Ryan como letárgico e improdutivo, o que é justaposto à Lacie, uma mulher romântica,
dinâmica, motivada e feminina.
Aqui o que prevalece é o signo funcionando como um ícone. Na relação do signo
com seu objeto, um ícone expressa um significado porque se assemelha ao que
significa. Esse tipo de signo linguístico refere-se a uma categoria geral de expressões e
pode ser muito eficaz por causa das suposições que estão associadas com as
semelhanças. Uma simples cor pode ser associada a um espectro ideológico com apenas
algumas características gerais reconhecíveis. Mas, apesar de seu potencial persuasivo,
os ícones não são necessariamente signos confiáveis. Apesar de funcionarem bem para a
criação de signos universalmente reconhecíveis, como em uma série televisiva como
Black Mirror, em que a representação de um futuro distópico afetado pelas tecnologias
de comunicação em muito se assemelha a características e comportamentos da
sociedade contemporânea.
Em outro momento, a protagonista aparece sentada em um café local, com um
cenário de rua coordenado por tons pastel que inclui classificações e nomes pairando no
rosto das pessoas que ali circulam, o que implica em um vínculo entre perfeição
artificial e tecnologia do qual Lacie faz parte. Enquanto essa cena projeta o simbolismo

1551
tecnológico como possessivo e pedante, Lacie é representada sob uma luz adaptável,
respaldada pela iconicidade dos signos, sugerindo-se que ela é capaz de manter sua
identidade por meio de um estilo feminino e romântico.
Além da independência e da vida ordenada, a narrativa apresenta também a busca
intrínseca de Lacie por um parceiro romântico. As convenções da comédia romântica
comunicam uma preparação subjacente para um consequente casamento, permitindo
que a narrativa se formule em torno de um processo de amadurecimento e
desenvolvimento pessoal. No entanto, em Nosedive a natureza automatizada do
simbolismo tecnológico dificulta essa espontaneidade e impulsividade dos
relacionamentos amorosos.
No simbolismo tecnológico futurista, o processo para atingir a meta de casamento
exige atenção meticulosa em todas as interações sociais, porque são filtradas pela
tecnologia. Em busca de uma nova casa, Lacie fica interessada em um bairro de classe
alta, chamado Pelican Estate. Ela caminha ao lado do agente imobiliário por um
apartamento impecável e moderno. O corretor usa um controle remoto para apresentar
uma imagem de realidade aumentada em que Lacie aparece cozinhando no imóvel
enquanto um atraente homem sem camisa entra e a abraça por trás. A câmera aproxima
lentamente o olhar atônito e impressionado da personagem ao ver esse futuro
aparentemente possível. Embora a protagonista não declare explicitamente seu desejo
de romance e casamento, seu olhar para a representação de realidade aumentada indica
que esse é seu desejo interno, levando-a a acreditar que o apartamento é o passaporte
para conquistar esse desejo.
A partir de então, começa a predominar a indexicalidade dos signos. O poder de
um signo indexical é que ele direciona o olhar para algo específico, como um dedo
indicador que aponta para um objeto. Em muitas situações, como a análise de uma
imagem que se parece com alguém ou algo em particular, a distinção entre um ícone e
um índice pode ser fundamental para identificar uma falsificação, por exemplo.
Dentro do sistema semiótico peirceano de classificação dos signos linguísticos, o
conceito de indexicalidade está atrelado a uma relação existencial do signo com seu
objeto. Tal perspectiva aponta para o fato de que o produto audiovisual impõe à
realidade um significado cultural, ao invés de simplesmente retratá-la, ele a constrói. O
conceito de signo indexical enquanto parte de um sistema sígnico, como proposto por

1552
Peirce (2000) e retomado posteriormente por Barthes (2009), tem potencial para
embasar análises fílmicas que visam compreender tanto aspectos da significação, como
da interpretação.
O simbólico-tecnológico presente em Nosedive inicialmente consolida valores
patriarcais, e a construção da identidade feminina de Lacie é apenas um reflexo das leis
impostas por um sistema avançado e automatizado para o qual as pessoas são tragadas.
Embora as convenções da comédia romântica pareçam inicialmente posicioná-la como
mulher empoderada, com força de vontade e motivação, isso logo demonstra mascarar a
institucionalização de um determinismo tecnológico aprisionante.
As representações projetam uma noção de que o sucesso é indiscutivelmente
possível, subestimando-se instabilidades e obstáculos. Enquanto o objetivo de Lacie
diante do determinismo tecnológico orientar-se em uma direção precisa e obrigatória, a
natureza extenuante das relações simbólicas de signos começa a desestabilizar a
personagem, na medida em que desejo e frustração cruzam-se toxicamente.
Esse conflito da narrativa perturba o espectador de comédia romântica
convencional. Conforme defende McRobbie (2009), esse gênero tem como função
normalizar as ansiedades pós-feministas, pois faz com que, através de suas convenções
de linguagem, o público obtenha uma sensação de relaxamento e prazer. Tal conflito,
que não é esperado em uma comédia romântica, faz com que seja revelada toda gama de
repressões a que a personagem está submetida.
Uma espécie de morte simbólica de Lacie inicia-se quando ela se prepara para
obter uma nota média de 4,5 com o intuito de ter acesso ao desconto para adquirir o
apartamento, objeto de seu desejo. A fim de impulsionar sua pontuação, tenta se
beneficiar da influência de uma amiga da época de colégio chamada Naomi, cuja
classificação é de 4,8 pontos. Após diversas estratégias de reaproximação, a
protagonista recebe um convite para ser dama de honra do casamento dessa amiga.
Desse modo, ela planeja obter pontuações elevadas das pessoas no casamento por meio
de um discurso emocionalmente impactante. Apesar da tentativa de seu irmão alertá-la
sobre os riscos de ir em frente com esse projeto e da real natureza de seu relacionamento
anterior com Naomi, que a atormentava nos tempos de escola, Lacie dá segmento àquilo
que servirá de ponto de partida para sua queda e seu afundamento social.

1553
A partir daí, o público descobre como as notas baixas pioram as condições de vida
das pessoas naquela sociedade, tanto materialmente, como socialmente. Apesar de
tentar de todas as maneiras chegar ao casamento de Naomi, sua baixa audiência recém-
adquirida a impede de conseguir um assento em um avião e até mesmo acessar um carro
de aluguel confiável. Quando a amiga descobre a queda na pontuação de Lacie, a proíbe
de ir ao casamento, já que ter alguém com pontuação baixa pode afetar negativamente a
sua própria reputação. Em seguida, o espectador é confrontado com toda a violência
social do sistema, no qual o valor da amizade é substituído por uma forma extrema de
rede profissional e marketing pessoal.
Na tentativa desesperada de chegar ao casamento de Naomi, a protagonista é
obrigada a abandonar o carro alugado na beira da estrada, por problemas técnicos do
automóvel, sendo forçada a pegar carona com uma caminhoneira chamada Susan, cuja
classificação é de 1,5 pontos. Susan relata que costumava ser como Lacie, chegando a
alcançar uma pontuação de 4,6 para conseguir um bom tratamento para o marido que
teve câncer. A mulher explica, ainda, que, apesar dos esforços, não conseguiu o
tratamento adequado e o marido faleceu. Após esse acontecimento, Susan
desconsiderou o sistema de classificações e passou a viver de forma livre, sem se
preocupar com as regras. Por isso sua pontuação estava tão baixa.
Dessa forma, o senso de identidade de Lacie é negociado no momento em que se
depara com a realidade de Susan, um acontecimento que pode ser entendido como uma
ruptura estética da narrativa. Susan reflete uma posição equilibrada dentro do simbólico-
tecnológico, sistema o qual ela habita, mas não se submete aos seus componentes
extenuantes. Ao introduzir uma resolução alternativa, é apresentada ao espectador uma
forma de ser que não é determinada pelo simbólico-tecnológico, de maneira a
interromper a progressão da narrativa, até então confinada à perspectiva de Lacie na
medida em que a personagem avança na direção de seus objetivos.
As oposições binárias de Lacie e Susan no espaço da cabine do caminhão podem
ser vistas como as duas faces dessa ruptura estética capaz de originar opostos que se
encontram nas posições de modificado e modificador. Na percepção do espectador,
Lacie é modificada por Susan. Em outras palavras, Susan ressalta a estrutura extenuante
do simbolismo tecnológico, mas o faz de maneira subversiva, permitindo que o

1554
espectador visualize uma alternativa para a resolução do problema apresentado pelo
enredo, conseguindo enxergar além das convenções da comédia romântica.
Ao final do episódio, após despencar em queda livre no sistema de pontuações e
ver frustrados seus objetivos, Lacie aparece detida em uma prisão, num ambiente
futurista. A cena é caracterizada pela tensão emocional da personagem, ao passo que o
controle e as fronteiras do simbólico-tecnológico se desintegraram. Apesar de
confinada, Lacie parece sentir-se finalmente livre para poder ser quem realmente
gostaria, evidenciando-se uma ressignificação de sua identidade feminina.
Considerações finais
A análise semiótica de um episódio de Black Mirror teve como propósito ampliar
a compreensão dos processos de significação dessa série televisiva. Buscou-se fornecer
subsídios para que o leitor-espectador observe além do conteúdo e das acepções comuns
de uma narrativa distópica, marcada pela hibridização dos gêneros de ficção científica e
comédia romântica, passando a acessar as estruturas e os processos usados na
comunicação.
Nosedive trabalha com subjetividades e construções de perfis e explora as formas
como as estruturas mais amplas da sociedade são por eles alimentadas. Com base no
método semiótico, abarcado pelo conjunto teórico de C. S. Peirce, identificou-se o
discurso social, o que levou a uma avaliação crítica dos aspectos observáveis da mídia.
Enquanto produto midiático, essa produção audiovisual possui características que
sugerem uma singularidade, o que indica a necessidade de adaptar o pensamento crítico
a questões específicas da narrativa.
Desse modo, o episódio Nosedive, de Black Mirror, foi estudado considerando-se
as construções de identidade feminina e a circulação de ideologias e valores
apresentados como entretenimento. Evidenciou-se que a produção é marcada por
representações de gênero e classe, além da exploração de mitologias tecnológicas da
cultura contemporânea.
Foi possível verificar que os signos necessariamente existem nas relações com
outros signos em um determinado contexto, e até mesmo as representações mais simples
estão amalgamadas em conjuntos de crenças e valores, já que a familiaridade torna as
pessoas confortáveis com suas próprias suposições sobre o que parece ser normal e,
portanto, o que se acredita ser verdadeiro ou correto.

1555
Ao hibridizar os gêneros de ficção científica e comédia romântica, o episódio
representa questões fictícias intrinsecamente ligadas às mulheres. Por meio das
convenções da comédia romântica, explora a dificuldade da mulher manter-se num
lugar confortável e ao mesmo tempo preservar sua identidade dentro do universo
simbólico tecnológico. Os programas de televisão visam atender às necessidades
emocionais do prazer por meio de uma ideologia da cultura de massa. Nesse sentido,
Nosedive oferece situações de um romantismo idealizado, baseadas em estruturas e
instituições tradicionais da família e da sociedade. Mas dessa comédia romântica deriva
uma flagrante oposição à subjugação feminina, apresentando-se como uma espécie de
contraponto em uma mídia predominantemente carregada de enfoques superficiais sobre
as mais diversas temáticas.

Referências

BARTHES, Roland. O obvio e o obtuso. Lisboa: Edições 70, 2009.

FREEDMAN, Carl. Critical theory and science fiction. Middleton: Wesleyan


University Press, 2000.

MCROBBIE, Angela. The aftermath of feminism: gender, culture and social change.
Londres: Sage, 2009.

PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000.

ROBERTS, Adam. A verdadeira história da ficção científica: do preconceito à


conquista das massas. São Paulo: Seoman, 2018.

SANTAELLA, Lucia. Matrizes da linguagem e pensamento: sonora, visual, verbal.


São Paulo: Iluminuras, 2001.

1556
A INFERTILIDADE COMO METÁFORA EM THE CHILDREN OF MEN DE P.D. JAMES

Alice de Araujo Nascimento Pereira (UFF/IFF)1

Resumo: No romance de 1993 The Children of Men, de P. D. James, o historiador Theo Faron
narra um futuro em que os homens perderam misteriosamente a fertilidade, não havendo sequer
um nascimento há vinte e cinco anos. Nossa hipótese é de que a autora utiliza a infertilidade
como metáfora para criticar uma crise espiritual mais generalizada, retratando uma angústia
existencial da sociedade. Além disso, a infertilidade no romance não é só um fenômeno
biológico, mas um sintoma das próprias relações humanas estéreis. Procuraremos discutir como
as questões morais com as quais James se preocupa estão entrelaçadas com as questões políticas
nessa distopia.
Palavras-chave: Distopia; infertilidade; metáfora.

O futuro é uma abstração sobre a qual só podemos especular e não podemos


evitar nem postergar. Se há algum tempo atrás o futuro parecia a luz de um farol a nos
guiar, hoje não é bem assim. Futuro era quase sinônimo de progresso, mas agora ele
parece mais incerto e obscuro. Segundo Zigmunt Bauman, o progresso, que antes
invocava um otimismo radical, agora se direciona para uma antecipação fatalista da
ameaça de uma mudança inexorável que aumentaria a crise que nos afunda (2007, p.
16). Não há dúvidas de que as projeções de futuro da sociedade Ocidental no presente
momento histórico estão profundamente pessimistas. Guerras, desigualdade social
crescente, aquecimento global, poder crescente de corporações, terrorismo,
enfraquecimento do Estado de bem-estar social – todos esses elementos vêm se
fortalecendo desde o início do século XX, e esse turbilhão vem inspirando a literatura
distópica. Como observado por Tom Moylan:

Cem anos de exploração, repressão, violência estatal, guerra, genocídio,


doença, fome, ecocídio, depressão, dívida, e o sangramento constante da
humanidade através da compra e venda da vida cotidiana proveu mais que
2
bastante solo fértil para o lado negativo da imaginação utópica (2000, p. xi).

1
Graduada em Letras: Inglês/literaturas (UERJ), Mestre em Literatura de Língua Inglesa (UERJ),
Doutoranda em Literatura Comparada (UFF), Docente EBTT (IFF). Contato: aliceanp6@gmail.com.
2
No original: “A hundred years of exploitation, repression, state violence, war; genocide, disease, famine,
ecocide, depression, debt, and the steady depletion of humanity through the buying and selling of
everyday life provided more than enough fertile ground for this fictive underside of the utopian
imagination”. Todas as traduções das obras originalmente escritas em língua estrangeira serão
responsabilidade nossa, a não ser quando for indicado o contrário.

1557
Em inúmeras distopias, além das questões relacionadas ao autoritarismo, a
sobrevivência humana tem figurado como fio condutor de tramas. Aspectos
fundamentais para a perpetuação da espécie humana são a fertilidade e a reprodução.
Em algumas distopias, a temática é um problema de excesso populacional, mas há
também aquelas em que a escassez populacional é o ponto central, possibilitando
discussões distintas. Andreu Domingo chama essas distopias que tem como motivo
central as questões populacionais de demodistopias. Para ele, os romances distópicos
clássicos, como A Máquino do Tempo de H. G. Wells, Fahrenheit 451 de Ray Bradbury
e Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, embora não tivessem a questão
populacional como primordial, já tinham as questões demográficas como preocupação,
confrontando o progresso técnico utilizado no controle populacional (DOMINGO,
2008, p. 726). Ele pondera que muitos desses romances, com suas metrópoles
superpopulosas, seus autores estariam deixando patente um medo de ser engolido pelas
massas (20008, p. 728). Porém o período após a II Guerra Mundial foi momento de
proliferação de demodistopias preocupadas com mortalidade, normalmente através da
praga, logo, seu foco estaria na possibilidade da destruição da sociedade e no colapso da
civilização (DOMINGO, 2008, p. 731-732). Não obstante o final da Guerra Fria e
outras questões relacionadas ao desenvolvimento tecnológico e desastres ambientais
mudou o teor dessa subcategoria, aumentando a preocupação com o declínio das taxas
de natalidade.
O romance The Children of Men3 (1993) da escritora inglesa P.D. James, se
encaixa na categoria proposta por Domingo. A história se passa no ano de 2021, na
Inglaterra. Nela, o professor e historiador Theo Faron narra um futuro em que os
homens perderam misteriosamente a fertilidade, não havendo sequer um nascimento há
vinte e cinco anos, e o sentimento de desalento prevalece. Nesse momento, a Grã-
Bretanha é governada por um ditador, Xan Lyppiatt, primo de Theo, que se autointitula
Guardião da Inglaterra, e por um Conselho, que juntos comandam o país com um
discurso paternalista de cuidado e segurança. Uma aluna de Theo, Julian, o aborda em
nome de um grupo rebelde para que este use sua influência com o primo para modificar
as políticas autoritárias de seu governo em relação aos imigrantes, criminosos e a
condução da política interna no geral. Ela faz parte do grupo Five Fishes (os Cinco

3
O livro não foi traduzido no Brasil.

1558
Peixes), formado por Miriam, Luke, Graigscone e Rolf, marido de Julian. Embora
cético a respeito das intenções do grupo, Theo aceita o pedido e vai até Xan, mas não
tem sucesso. O grupo então começa a realizar pequenas ações subversivas, como
sabotagens e distribuição de panfletos anti-governo, mas que não causam grandes
danos. Tudo muda quando Julian, que tem uma deficiência física, revela que está
grávida. Theo, Julian e o grupo tentam escapar antes que ela e seu bebê caiam nas mãos
de um governante manipulador e inescrupuloso. Esse grupo teme que, se descobrirem
essa gravidez, Julian e seu filho poderiam ser usados para os interesses políticos de Xan.
O medo dela é que Lyppiatt tome posse dela e de seu filho e é por isso que ela resiste
aos apelos de Theo para ir ao hospital para o parto, ela diz que não quer Xan presente:
“Ele vai estar lá. Você sabe que ele vai estar. Ele vai estar lá no nascimento e ele vai
estar sempre lá (...) Se eu cair em suas mãos, nunca estarei livre dele. Meu bebê nunca
estará livre” (JAMES, 1993, p. 155). A fuga deles enfrentará diversos obstáculos e
revelará segredos, transformando as relações entre eles.
A ex-parteira Miriam ajuda Julian durante sua gestação inesperada. Graigscone,
um caminhoneiro que distribui os panfletos de propaganda política do grupo, elencando
suas objeções a Lyppiatt. Luke é um padre que ajuda Julian a manter um senso de fé e
organiza as reuniões do grupo em igrejas abandonadas. E Rolf, marido de Julian, é o
líder do grupo com aspirações políticas, com quem Theo tem atritos, mas na verdade
refletem seu ciúme, pois ele se apaixona por Julian. Cada um tem seus vícios e virtudes
que vão se descortinando ao longo da trama e nos faz compreender as questões que nos
ajudam a ver a infertilidade como metáfora tanto para a esterilidade das relações
humanas quanto para decadência moral da civilização e é por esse prisma que
analisaremos a obra.
Theo parece personificar alguns vícios que enfraquecem as relações humanas,
como sua vaidade e egoísmo, mas o protagonista também carrega culpas por conta de
acontecimentos do seu passado, e sua angústia reflete a dos indivíduos daquela
sociedade. Ele pondera: “Eu nunca tive intenção de ser um filho egoísta, um pai frio, um
mau marido” (JAMES, 1993, p. 218)4, deixando implícito que ele se considerava tudo
isso. Um grande trauma do passado foi quando Theo atropelara acidentalmente sua filha
Nathalie quando ela era criança e foi o responsável pela sua morte. A jornada em que

4
No original: “I didn’t mean to be a selfish son, an unloving father, a bad husband.”

1559
embarca para ajudar Julian a dar a luz em segurança também é um caminho para sua
redenção. Mais tarde Theo também está ligado à morte da idosa que ele faz de refém
para conseguir suprimentos para fuga. Ao ouvir no rádio sobre a morte da mulher ele se
sente desolado, ele estava “consciente somente da batida do coração e de um pesar que
o esmagava e envolvia” (JAMES, 1993, p. 217). Entretanto, os outros personagens
também têm essa angústia: Miriam, que acabara perdendo sua profissão e também
perdeu o irmão, morto pelo governo; Julian se culpa por ter se tornando amante de Luke
e esconde que é o padre, e não seu marido Rolf, o pai do bebê que ela carrega. A
ganância de Rolf e Lyppiatt, outrossim apontam para uma decadência dos valores
humanistas e para uma sede de poder incompatível com as necessidades coletivas de
sobrevivência ou com respeito Às individualidades. Rolf, que anteriormente se colocava
como oposição à tirania de Lyppiatt, passa a ter um discurso discriminatório ao dizer
que haverá competição por seu esperma saudável e que, utilizando os dados do governo
sobre mulheres férteis, deveriam selecionar as mais saudáveis e inteligentes (JAMES,
1993, p. 167). Os sofrimentos e falhas dos personagens acabam representando um
panorama de uma crise moral mais ampla.
O isolamento e solidão de Theo, também sintomáticos da esterilidade das
relações, são quebrados pelo sentimento que Julian desperta nele, mas seu primeiro
impulso é negar esse sentimento. Após um breve encontro com Julian, Theo entende
que está seu sentimento por ela é mais forte do que ele mesmo havia julgado antes e
escreve “Eu tenho cinquenta anos e nunca soube o que é amar (... ) mas cinquenta não é
uma idade para se convidar a turbulência do amor” (1993, p. 133)5. Ao encontrá-la em
um mercado ele pensa “não conseguia me mexer, minha mente um tumulto de
sensações extraordinárias e indesejadas”6. Esse arrebatamento o assusta de tal forma que
ele decide ir para Europa, abandonar seus compromissos e viajar sozinho por meses
para esquecer suas experiências desde que a conheceu. Ao mesmo tempo, essa alienação
parece não ser somente dele, mas um sentimento generalizado que não se limita à
ficção, refletindo o enfraquecimento dos laços inter-humanos na sociedade
contemporânea, que antes teciam uma rede de segurança digno de investimento de
tempo e esforço comunal, mas que agora são frágeis e temporários (BAUMAN, 2007, p.

5
“I am fifty years old and have never known what it is to love (…) Fifty is not an age to invite the
turbulence of love”
6
“(…) unable to move, my mind a turmoil of extraordinary unwelcome sensations”

1560
8-9). Quando um velho amigo de Theo pediu que eles dividissem uma casa, Theo
recusou, não desejava companhia. Então quando está em fuga, tenta solicitar ajuda de
Jasper, mas o encontra morto. Jasper havia se suicidado. Miriam também havia perdido
sua família e mesmo os outros personagens não mencionam outros laços familiares ou
de amizades fortes.
Um pressuposto comum entre a maior parte das distopias é que os regimes
totalitários nascem após uma crise aguda, seja um conflito social grave, um desastre
natural em grande escala ou uma pandemia devastadora, que relativizariam os valores e
crenças anteriormente disseminados. Em The Children of Men, Theo explica que após a
geração Ômega, a última a nascer antes da infertilidade generalizada, o Reino Unido
estava afundando na apatia, ninguém queria trabalhar, os serviços estavam quase
parados e o crime era incontrolável (JAMES, 1993, p. 152), e foi nesse momento que
Lyppiatt entrou em cena com um discurso de retorno da ordem.
Na obra de James, o Estado é autoritário: nenhum projeto de lei é debatido, e a
Grã Bretanha é governada por decretos pelo Conselho da Inglaterra (JAMES, 1993, p.
89); sendo assim, o exercício do poder pelo povo foi minado, e Xan Lyppiatt comporta-
se como déspota, tendo auxílio de um pequeno grupo para tomar as decisões que afetam
o destino do país. Em nenhum momento parece haver apoio popular ao que os
dissidentes querem fazer, o grupo não ganha novos membros e não surgem outros
movimentos similares e as pautas do pequeno grupo rebelde não encontram eco naquela
sociedade. Os fishes se opõe a exploração dos imigrantes e uma das pautas do grupo de
oposição ao regime é a melhoria das condições de vida dos imigrantes. Os soujorners,
como são chamados, vivem em campos, os homens separados das mulheres, fazem
trabalhos braçais, sem direito à cidadania inglesa, e aos sessenta anos são forçados a
retornar ao seu local de origem. Julian diz, indignada, que isso é uma forma de
“escravidão legalizada” (JAMES, 1993, p. 58). Esse aspecto da narrativa de James
dialoga muito com a realidade em que já vivem imigrantes e refugiados que buscam
melhores condições de vida em países desenvolvidos. Para Butler, conceitualmente,
existem sujeitos que não são de fato reconhecidos como sujeitos e vidas que não são
reconhecidas como vidas (BUTLER, 2009, p. 4), permitindo que um grupo em situação
de vulnerabilidade social seja desumanizado, como ocorre com os imigrantes no mundo
real e na ficção de James. Essa forma de apagamento das subjetividades é

1561
instrumentalizada politicamente para legitimar certas ações que na prática matam ou
deixam morrer.
Ficções como essas criticam o esvaziamento do valor intrínseco da vida humana
em regimes totalitários justamente num momento crucial para a sobrevivência da
espécie. Achille Mbembe argumenta que a política é um trabalho de morte, e a
soberania é o direito de matar (MBEMBE, 2011, p. 21), o que ele denomina de
necropolítica. Por extensão, a gestão da vida também leva inexoravelmente ao controle
da morte, no sentido de que o Estado soberano pode, e frequentemente exerce de fato, o
poder de matar ou deixar morrer. A necropolítica também contamina as relações entre
os Estados. Theo descreve como, embora houvesse um acordo formal entre as nações
para compartilhar o conhecimento sobre uma possível cura para a infertilidade em
massa, o que ocorre é desconfiança: “Mas atravessando continentes, fronteiras nacionais
e raciais, nos observávamos de forma suspeita, obsessivamente, nos alimentando de
rumores e especulação” (JAMES, 1993, p. 6)7. O discurso de cooperação não supera as
suspeitas do Outro e reitera-se aquilo que a autora parece ver como decadência moral.
Aos Estados também interessa o controle dos corpos e da vida biológica.
Foucault sustentou que nos Estados modernos são calcados “[p]ela administração dos
corpos e pela gestão calculista da vida” (FOUCAULT, 1988, p 131), No romance de
James tal controle vai sendo exercidos com a pretensão de buscar por algum indivíduo
que ainda seja fértil, homens e mulheres, porém qualquer um que possua características
indesejadas ou inadequadas para perpetuar a espécie não passa mais pelos testes. Julian
é vista como um corpo sub-humano, por conta de sua deficiência, em um mundo pós-
humano, já que seu corpo é considerado inútil e invisível, ele não teria o direito de gerar
uma vida (MARQUES, 2013, p. 44). Porém, sua gravidez eleva sua posição e coloca-a
como peão dos poderes centrais e essa posição de objeto passivo ela queria recusar. O
filho que ela esperava não era de seu marido, Rolf, mas sim de Luke, um homem que
também não passara pelos testes compulsórios governamentais, pois havia sofrido de
epilepsia na infância. O que era considerado um risco, já que não interessaria ao Estado
bebês com alguma doença, logo “[c]omo Julian, Luke era um rejeitado” (JAMES, 1993,
p. 188), O controle do Estado é seletivo.

7
“But across continents, national and racial boundaries, we watched each other suspiciously,
obsessively, feeding on rumor and speculation”

1562
Para Foucault os corpos são moldados por uma variedade de discursos,
disciplinas e práticas heterogêneas através das relações de poder contribui para uma
realidade com muitos níveis e camadas (McLAREN, 2016, p. 152), portanto não é só o
discurso estatal que perpassa o corpo, mas a própria noção de humanidade. É
interessante observar como James construiu os Ômegas, a última geração, os mais
jovens daquela sociedade e tanto seu corpo como comportamento sinalizam uma
ruptura. Os Ômegas são os corpos ideais esteticamente e tem um estilo inimitável,
porém volta-se para a barbárie, escolhem ser e ser vistos como não-humanos
(MARQUES, 2013, p. 45). É um grupo de Ômegas que se chamam de Painted Faces
(Caras Pintadas), que monta uma emboscada num bosque e pega o carro que Theo e os
outros estão usando. Eles dançam e cantam com tochas formando um círculo, numa
prática semelhante a rituais tribais. Theo chega a descrevê-los como feras. Eles matam
Luke, que se sacrifica para que os outros consigam fugir (JAMES, 1993, p. 179-184).,
Não obstante, também podem ser lidos como o fechamento de um ciclo: retorno a um
suposto primitivismo tribal. Do outro lado desse espectro temos os corpos envelhecidos
dos quais o Estado deseja livrar-se. É interessante pensar no controle do corpo em
tempos do debate sobre o pós-humano. Para Marques, a construção dos Ômegas
representa uma contradição corpórea. Eles são um grupo de humanos quase perfeitos e
deveriam representar o máximo da complexidade da humanidade. No entanto, são
incapazes de manter qualquer senso de comunidade e se tornaram estéreis não só
fisicamente, mas também social e psicologicamente (MARQUES, 2014, p. 40-41).
Um evento significativo para Theo, em The Children of Men, é quando ele
assiste a um Quietus, evento em que os idosos são colocados em barcos que ficam à
deriva até afundar. Theo presencia um em que só mulheres estavam presentes e
testemunha uma mulher que tenta desistir do suicídio coletivo. Ela pula na água e tenta
nadar até a areia, porém um guarda a golpeia. Um suicídio se torna um assassinato.
Parece significativo que haja somente mulheres naquele barco e que um agente do
Estado mate a idosa após ela ter desistido. Nesse momento, simbolicamente, Theo, um
historiador, tenta resgatar uma testemunha, um arquivo do passado, mas falha. Além
disso, o suicídio dos idosos toma outras proporções metafóricas por seu caráter coletivo
e na verdade, induzido por um estado que promete compensação para as famílias dos
que escolherem participar do ritual macabro, usando-a como moeda de barganha,

1563
também deturpa seu aspecto voluntário: o suicídio ali também é um extermínio. Assim
como nas narrativas apocalípticas centradas na peste, em que as cenas marcantes das
covas coletivas e a iconografia da pilha de corpos são recorrentes, o suicídio coletivo
também ressalta “a tomada brutal da identidade na morte” (GOMEL, 2000, p. 413)8 ao
usurpar a individualidade. Os corpos envelhecidos precisam ser eliminados porque na
distopia não se toleram os corpos deficientes ou incapazes (MARQUES, 2014, p. 41).
Esse genocídio dos idosos acontece não só para destruir os corpos envelhecidos, mas
também para apagar qualquer traço deles, eliminando-os do novo projeto de um
contínuo histórico, e afogando-os exatamente no elemento que simboliza a vida
(MARQUES, 2014, p. 42), projeto esse dos Ômegas com seu comportamento pós-
humano. O culto aos Ômegas jovens, porém socialmente inaptos, torna a intolerância à
velhice ainda mais irônica, pois se refere à necessidade de criar um novo senso de
história e de materialismo histórico desligado de um continuum que está morrendo com
a perda da fertilidade, logo, é como se corpos que sempre foram estéreis são ainda mais
centrais à manutenção das relações sociais nessa distopia do que aqueles corpos cuja
idade tornou estéreis (MARQUES, 2014, p. 41). O ritual do Quietus também sinaliza
como os corpos considerados inúteis são descartáveis.
Ao lado do paradigma da utilidade, a modernidade também fomenta o da
autossuficiência, que na verdade, reforça a sensação dos indivíduos de isolamento e
alienação, o que o próprio romance reassalta, como já visto anteriormente. Zigmunt
Bauman aponta que no mundo moderno cada indivíduo é deixado só, enquanto a
maioria é instrumento da promoção alheia (BAUMAN, 2007, p. 24), ou seja ou se tem
utilidade para os outros ou se é abandonado. E apesar dos discursos de cooperação e
combate às injustiças e desigualdade dos Estados, a retórica não condiz com a realidade.
Se o Estado é o “modelo da unidade política, um princípio de organização racional”
(MBEMBE, 2011, p. 38), sua racionalidade não tem sido bem-sucedida em combater a
miséria e tem sido, ao contrário, um aliado em sua perpetuação, apesar dos instrumentos
democráticos e mecanismos de participação popular. As narrativas distópicas parecem
ecoar a afirmativa de Bauman de que “o futuro da democracia e da liberdade pode ser
assegurado numa escala planetária, ou não ser assegurado” (2007, p. 26), isso é,
enquanto houver autoritarismo, seja onde for, ele será uma ameaça constante porque

8
“brutal stripping away of identity in death”

1564
crises – que tipicamente desencadeiam os horrores distópicos – acontecerão, porém a
construção da saída para elas só pode acontecer democraticamente. Se os Estados
modernos democráticos utilizam mecanismos científicos, burocráticos, jurídicos e
técnicos para controlar a vida, para garantirem interesses não só seus, mas de elites
nacionais, corporações e organismos transnacionais, como a vida pode manter qualquer
valor intrínseco se seu sinônimo é consumidor, cidadão, força de trabalho? Para Butler,
a vida que é passível de luto é uma pressuposição para considerar que uma vida tem
valor (BUTLER, 2009, p. 14).
Há também um processo de exclusão e precarização da vida daqueles que não se
submetem às imposições do sistema ou que o subvertem. Theo inicialmente afirma que
tudo o que as pessoas querem é proteção, conforto e prazer, porém Julian o confronta
dizendo que o Estado pode se preocupar com justiça. Justiça que faltou ao irmão de
Miriam, que narra como o irmão, negro, foi parar na Colônia penal por assalto. É para lá
que mandam todos os tipos de criminosos, porém não há supervisão, nem administração
de recursos, apenas abandonam os prisioneiros, que acabam formando gangues ou
morrendo de fome. Miriam, cujo irmão fora mandado para a ilha por roubar e agredir
um Ômega, mas tinha conseguido fugir, foi para a casa dela, onde foi encontrado e
morto. Ela diz: “a ilha é um inferno. Aqueles que foram para lá ainda humanos estão
quase todos mortos, e o resto são demônios” (JAMES, 1993, p. 63) 9. A desumanização
daqueles que o sistema não conseguiu disciplinar sinaliza uma incapacidade de criar
novos afetos e superar contradições.
A crise moral que James deseja retratar no romance também gera revolta por
parte daqueles que desejam revertê-la, como Julian. Mas também há rejeição da
possibilidade de mudança. Theo explica seu ceticismo em relação às crenças do grupo
de resistência: “Era razoável lutar, sofrer, talvez até morrer, por uma sociedade mais
justa e compassiva, mas não em um mundo sem futuro, onde, muito em breve, as
palavras ‘justiça’, ‘compaixão’, ‘sociedade’ e ‘luta’ mal passariam de ecos inaudíveis
no ar vazio” (JAMES, 1993, p. 112)10. Entretanto, a grande revelação para o
protagonista é quando ele, Julian, Luke, Miriam e Rolf estão em fuga, Theo redescobre

9
“The island is a living hell. Those who went there human are nearly all dead and the rest are devils”.
10
“It was reasonable to struggle, to suffer, perhaps even to die, for a more just, a more compassionate
society but not in a world with no future where, all too soon, the very words ‘justice’, ‘compassion’,
‘society’, ‘struggle’ would be unheard echoes on an empty air”.

1565
a capacidade de se conectar com os outros em laços de afeto; ele reflete: “Nunca me
senti tão à vontade com outros seres humanos como hoje me senti com esses quatro
estranhos com quem eu agora assumi, meio relutantemente, um compromisso e que
estou aprendendo a amar” (JAMES, 1993, p. 176)11. Acreditamos que a infertilidade
aqui serve como metáfora para essa angústia existencial e para a morte que também
possibilita o renascimento
Tanto as catástrofes causadas pela modernização desenfreada quanto à alienação
e exclusão ligadas ao tropo da infertilidade nas obras também estão conectadas à
precariedade da vida na civilização contemporânea, precariedade que as grandes
religiões ignoram, relativizam, idealizam ou com a qual muitas vezes contribuem. Em
ambas as obras literárias e suas adaptações, verificamos que embora a humanidade
esteja iminentemente em risco de extinção e que nessas circunstâncias cada vida deveria
ser considerada ainda mais indispensável e preciosa, seu valor é relativizado, e cada um
se vê numa posição extremamente vulnerável.
James parece sugerir essa angústia não encontra respostas satisfatórias na
religião organizada, mas para a escritora não se confunde com uma busca por
espiritualidade de outras maneiras. Os personagens de James personificam valores como
fé, senso de justiça, sacrifício e redenção, parecendo invocar uma possibilidade de
“salvação” através desses ideais, que nos remetem a uma espiritualidade não
institucional. Em The Children of Men, a religião perdeu espaço para uma visão de
mundo lacônica e sem esperança. Theo avalia que as igrejas haviam passado de uma
“teologia de pecado e redenção para uma doutrina menos comprometedora:
responsabilidade social corporativa junto com um humanismo sentimental” (JAMES
1993, p. 50)12. Em alguns momentos, os personagens debatem sobre Deus, já que não
parecem encontrar cientificamente nem explicações nem soluções para a infertilidade
generalizada. Ao passar por um grupo de religiosos que praticavam o autoflagelo como
forma de punição ou de clamor para que Deus redimisse a humanidade, Theo conversa
com um motorista de Xan e pergunta se ele acredita em Deus, e o homem responde que
“[s]e Deus existe e Ele se cansou de nós, ele não vai mudar de ideia [...]. Talvez o

11
“Yes I have never felt so much at ease with other human beings as I have been today with these four
strangers to whom I am now, still half-reluctantly, committed and one of whom I am learning to love”
12
No original: “(...) theology of sin and redemption to a less uncompromising doctrine: corporate social
responsibility coupled with a sentimental humanism”

1566
experimento Dele tenha dado espetacularmente errado, senhor.” (JAMES 1993, p. 90)13.
Quando Theo questiona Miriam sobre isso, ela diz que se Ele quer crença, é melhor que
mostre evidências, não de sua existência, mas de que se importa (JAMES, 1993, p.
188). Apesar dessas colocações que refletem as angústias dos personagens em relação a
sua situação, o encerramento do romance com um batizado simbólico do bebê de Julian
aponta mais para uma retomada da fé do que para contestação, embora a organização
religiosa tradicional não pareça ser o caminho que a narrativa invoca.
The Children of Men é uma alegoria sobre uma segunda vinda de Jesus Cristo, e
assim Julian representa uma nova Virgem Maria, enquanto Theo seria José (BACCI,
2017, p. 160). Ainda para Bacci, Theo e Xan também podem representar Caim e Abel,
já que em um embate final, Xan é morto por seu primo (BACCI, 2017, p. 164). Quando
Theo a vê já reconhecivelmente grávida, ele se sente tomado por um sentimento de
estarrecimento e graça. ele se ajoelha, entendendo a dimensão do milagre que
testemunhava (1993, p.. 154). Quando o bebê de Julian nasce e Theo o batiza com a
cruz, fica claro que ali representa-se um novo messias, a esperança para a humanidade.
No entanto essa esperança também tem sua ambiguidade já que ela também carregaria o
“pecado” dos país. Theo diz “então começa de novo”, mas em seguida, ele pensa
“começa tudo de novo: o ciúme, a traição, a violência, o assassinato” (1993, p. 241).
Acreditamos que a infertilidade aqui serve como metáfora para essa angústia
existencial e para a morte que também possibilita o renascimento. O próprio título do
livro faz referência à um salmo bíblico que diz: “Tu reduzes o homem à destruição; e
dizes: Tornai-vos, filhos dos homens.”
(90:3) aludindo ao poder divino de eliminar a humanidade. Apesar dessas colocações
que refletem as angústias dos personagens em relação a sua situação, o encerramento do
romance com um batizado simbólico do bebê de Julian aponta mais para uma retomada
da fé do que para contestação, embora a organização religiosa tradicional não pareça ser
o caminho que a narrativa invoca. A esperança que o nascimento do filho de Julian
representa não é baseada em pureza moral, mas sim nas próprias falhas humanas. E o
que poderia ser mais humano que falhar e ainda assim prosseguir?

13
No original: “If God exists and He’s decided that He’s had enough of us, He isn’t going to change His
mind […] Perhaps His experiment went spectacularly wrong, sir. Perhaps He’s just baffled. Seeing the
mess, not knowing how to put it right”.

1567
Referências:

BACCI, Francesco. “The Originality of The Handmaid’s Tale and The Children of Men:
Religion, Justice and Feminism in Dystopian Fiction” In: Metacritic Journal for
Comparative Studies and Theory, n. 2, 2017, p. 154-172.

BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de


Janeiro: Zahar, 2007.

BUTLER, Judith. Frames of War: When Is Life Grievable? Londres; Nova York: Verso,
2009.

DOMINGO, Andreu. “Demodystopia: Prospects of demographic hell”. Population and


Development Review, vol 34, no 4. Hoboken: Wiley-Blackwell. 2008, p. 725-745.

FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade I: a vontade de saber. Tradução: Maria


Thereza da Costa Albuquerque e J A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1988.

GOMEL, Elana. “The Plague of Utopias: Pestilence and the Apocalyptic Body”.
Twentieth-Century Literature, vol 46, no 4, Durham: Duke University Press, 2000, p.
405-433.

JAMES, P.D. The Children of Men. Nova York: Alfred A. Knopf, 1993

MARQUES, Eduardo. “I sing the body dystopic: utopia and post human corporeality in
P.D. James’s The Children of Men”. Ilha do Desterro. Florianópolis: Editora da
Universidade Federal de Pelotas. 2013, pp. 29-48.

__________, Eduardo. “Da centralidade política à centralidade do corpo transhumano:


movimentos da terceira virada distópica na literatura”. Anuário de Literatura, vol 19,
no. 1, Florianópolis: UFSC, 2014, p. 10-29.

MBEMBE, Achille. “Necropolítica”. In: ______. Necropolítica seguido de Sobre el


govierno privado indirecto. Tradução de Elisabeth Falomir Archambault. Madri:
Editora Melusina, 2011, p. 17-76.

McLAREN, Margaret A. Foucault, feminismo e subjetividade. Tradução: Newton


Milanes. São Paulo: Intermeios, 2016.

MOYLAN, Tom. Scraps of the Untainted Sky: Science Fiction, Utopia, Dystopia.
Boulder: Westview Press, 2000

1568
UMA DISTOPIA FEMININA: THE HANDMAID’S TALE E A QUESTÃO DE
GÊNERO

Ana Letícia Barbosa de Faria Gonçalves1 (UNICAMP)

Resumo: O presente trabalho tem a intenção de discutir o romance The Handmaid’s Tale (1985),
de Margaret Atwood, explorando-o enquanto uma obra literária distópica e feminista. Em
primeiro lugar, buscamos a reflexão acerca da apropriação do gênero “ficção científica” por
autoras mulheres. Em seguida, insidimos sobre o trabalho ficcional de Margaret Atwood em seu
diálogo com a História e a cultura, as quais agem coersivamente sobre as existências concretas
das mulheres, especialmente no que concerne a sexualidade e o domínio sobre suas decisões
reprodutivas.
Palavras-chave: feminismo; distopia; Margaret Atwood.

O texto inaugural do gênero ficção científica, Frankenstein (1818), de Mary


Shelley, foi tradicionalmente interpretado e analisado pelo viés da manipulação da
morte através da ciência e da (proto)tecnologia. No entanto, o amplo arcabouço
composto por essa perspectiva crítica sofre notável desvio a partir da leitura feminista.
As estudiosas Ellen Moers (2012), Sandra Gilbert e Susan Gubar (2000) desvelaram
uma interpretação da criação monstruosa de Shelley vinculada à experiência feminina
da procriação: o monstro adquire uma faceta simbólica no que concerne a relação da
autora com a instituição literária e com a instituição maternal. Nesse sentido, ao
dramatizar conflitos entre progenitor e ser gerado, o romance suscita elucubrações sobre
o tabu da concepção e suas consequências, como a culpa, o medo e arrependimento.
Desvelando a própria experiência da escritora diante da maternidade, as críticas
concluem que o romance pode ser lido como uma espécie de mito do nascimento,
revisão do mito da origem, desta vez colocando a significativa ausência feminina em
relevo.
Assim como atesta a leitura de Frankenstein (1818) pelo prisma da maternidade,
o olhar da teoria e da crítica feminista entende que a subjetividade da mulher representa
um contraponto profícuo ao universo da literatura enquanto desvio do discurso
hegemônico. Nesse sentido, temas usualmente obliterados pelos estudos literários
surgem com propósitos diversos, em enfoques sobre a representação da mulher em

1
Graduada em Letras (UNESP), Mestranda em Teoria e História Literária (UNICAMP). Contato:
anale1991@gmail.com.

1569
textos de autoria masculina, até a análise sobre como textos de mulheres expressam suas
experiências de gênero.
Como parte de uma leva mais contemporânea de escritoras, a célebre canadense
Margaret Atwood faz parte de uma rede de autoras que se afastam, para além do fato de
serem mulheres, da tradição literária canônica ao lançar mão do gênero “ficção
científica”. No caso do romance The Handmaid’s Tale (1985), objeto deste trabalho,
tem-se uma ficção distópica criada por Atwood, a qual incide especialmente sobre
concepções e normas tradicionais a agirem sobre a sexualidade e a capacidade
reprodutiva da mulher.
A multiplicidade de temáticas dentro do conjunto denominado “utopias
feministas” é identificada pela pesquisadora brasileira Susana Funck:

Variam desde uma total erradicação da família biológica, por meio da


reprodução artificial, até uma extrema valorização da maternidade por
meio da extensão da relação materna a todas as atividades humanas e
práticas sociais” (FUNCK, 1988, p. 126)

Dessa forma, assim como foi o caso da literatura gótica para autoras do século
XIX, sendo Mary Shelley um dos maiores exemplos, a apropriação da ficção científica e
suas ramificações pode ser entendida como uma resposta à exclusão da alta literatura e à
hegemonia masculina. Ademais, trata-se de uma negação das próprias formas
tradicionais consideradas superiores, criando uma relação embativa com o poder desde a
forma do texto (Funk, 1988).
Ainda de acordo com Funck (1988), Atwood se posiciona entre escritoras cuja
intenção é contrapor-se ao conservadorismo, quebrando padrões e gerando a reflexão
sobre a realidade, especialmente no que diz respeito às relações de gênero. De fato, em
entrevistas e escritos em que Margaret Atwood discute seu romance, a autora insiste no
enraizamento de seu universo ficcional na realidade, afirmando que nada inventou, mas
combinou fatos de épocas e culturas distintas para realizar uma espécie de colagem
histórica sobre a opressão e o silenciamento das mulheres.
No cenário instaurado, a população caucasiana decai em número e o caos
ecológico é agravante, ambas justificativas fundamentais para a instauração de um
regime despótico e totalitário nos Estados Unidos da América, na intenção de reverter o
destino trágico do país.

1570
Em primeira pessoa, a voz é outorgada a Offred, uma integrante do grupo das
aias, cuja função é servir como corpo reprodutivo para que o número de nascimentos
volte a ascender. Cada aia passa por um período de preparação no chamado Rachel and
Leah Re-Education Centre, ou Red Centre, para, em seguida, cumprir a função de
“barriga de aluguel” em meio às famílias da elite responsáveis pelo golpe de estado e
pela instauração da chamada República de Gilead. Offred não é o nome verdadeiro da
protagonista, mas a combinação da preposição of (de) e Fred, primeiro nome do
Comandante para quem a aia serve ao longo da narrativa. Este faz parte do grupo
denominado Sons of Jacob (Filhos de Jacó), fundamentalistas de direita que assassinam
o Presidente dos Estados Unidos na intenção de reorganizar a sociedade norte-
americana de acordo com seus princípios.
Como Northrop Frye (1965) conclui sobre o subgênero “distopia”, são temas
recorrentes a opressão política, o uso tecnológico para controle dos indivíduos e o caos
ecológico. No romance analisado, a destruição da natureza pelo homem é uma das
principais justificativas para a necessidade de uma reorganização autoritária, pois
resultou na decadência da taxa de natalidade e na contaminação por materiais tóxicos.
Ademais, é justamente a tecnologia o que permite a tomada de poder e o impedimento
das fugas: pelo bloqueio das contas bancárias e dos cartões de crédito das mulheres, é
possível bloquear suas evasões do país, tornando-as financeiramente dependentes de
seus maridos e familiares homens. A opressão política, por último, é central à
construção do universo ficcional, em que se instaura o domínio que pretende corrigir as
disfunções do território norte-americano através da força despótica.
Aos poucos, são revelados ao leitor os diversos níveis das restrições da liberdade
da narradora. O aprisionamento físico reflete-se na padronização das vestimentas; no
caso das aias, o longo vestido e a capa devem ser sempre vermelhos; a restrição da
movimentação é explícita, sendo permitido a elas a saída da casa apenas para realizar
compras de mantimentos. Há vigílias por todo o espaço exterior, guardas armados e
barreiras impedindo desvios. Dessa forma, a narradora-protagonista conhece apenas
uma porção restrita do universo que habita; a ela, enquanto aia, é imputada uma
profunda alienação sobre a situação política e social. Sua movimentação é
veementemente restrita ao ambiente doméstico, onde serve como corpo gerador,

1571
situação que dialoga de maneira direta com o papel feminino tradicional segundo a
ideologia patriarcal ao longo da história.
No universo da República de Gilead, a possibilidade de que o homem seja
infértil não existe: a ausência de filiação é necessariamente culpa do sexo feminino. As
chamadas Esposas são as cônjuges dos Comandantes responsáveis pelo golpe, em geral
mulheres mais velhas ou inaptas a gerarem filhos. Há, ainda, o grupo de mulheres com
o trabalho de doutrinar e disciplinar as aias no Red Centre, já mais velhas e fora da
idade fértil. As mulheres reprodutivas, por sua vez, são barradas da participação da vida
dos filhos que geram, já que devem cedê-las às famílias após a amamentação. É a
gravidez, porém, que assegura a sobrevivência da aia, que, do contrário, é exilada às
Colônias, onde perece em meio a materiais tóxicos.
É notável que Margaret Atwood trabalhe justamente com o exercício autoritário
da regulação da reprodução, que recai inevitavelmente sobre as mulheres. Nesse sentido,
o romance mobiliza imagens literárias que remetem às posições ambíguas ocupadas
pelo feminino no pensamento e nas estruturas cristãs e patriarcalistas: o corpo da mulher
é tido como tentação carnal, demoníaca, fonte da danação do homem, mas é também
fonte de um mistério divino e puro, que nutre a vida.
Sabemos que a literatura assume vigorosamente as representações polarizadas
do feminino, veiculando imagens do Anjo e do Monstro, tal como explora o renomado
estudo norte-americano The Madwoman in the Attic (2000), de Sandra Gilbert e Susan
Gubar. Os estereótipos oscilam entre a mãe domesticada e a madrasta sexualizada; a
pureza da virgem que se resguarda e a carnalidade da mulher que usa sua sexualidade a
seu bel-prazer; são inúmeras as formas tomadas por tais dicotomias na literatura,
inclusive nos textos de mulher, que incarnam os elementos incutados pela cultura, seja
pela reprodução dos modelos, seja pela apropriação que os subverte.
Assim, como os estudos feministas vêm destacando, a figura da mulher aparece
negativizada pela tradição judaico-cristã já no mito bíblico de Adão e Eva, que a
representa como a fonte da condenação da humanidade à queda e que, como
consequência, é condenada à parir dolorosamente os filhos do homem. O cristianismo
amaldiçoa o corpo feminino e sua sexualidade, ao mesmo tempo em que reverencia a
virtude etérea e pudica da virgem e romantiza as habilidades maternais.

1572
Ao voltarem-se para a história da maternidade como experiência
institucionalizada, estudos feministas recuperaram um segmento da existência humana
que foi historicamente invisibilizado nas narrativas, o que suscita a aproximação das
realidade e da literatura. Nessa vertente, Adrienne Rich, poeta e estudiosa feminista
norte-americana, coloca:

a regulação do poder reprodutivo pelo homem em todo sistema


totalitário e em toda revolução socialista, o controle legal e técnico da
contracepção, da fertilidade, do aborto, da ginecologia, obstetrícia e da
experiência reprodutiva extrauterina - tudo isso é essencial ao sistema
patriarcal, na mesma medida em que contribui para o status negativo
das mulheres que não são mães2 (RICH, 1995, p. 34, tradução nossa)

Dessa forma, ao tematizar o tratamento do corpo da mulher reduzido à sua


anatomia reprodutiva, Atwood dialoga com precedentes históricos que remetem a fatos
atuais e longíncuos da História e da cultura, em que a autoridade paterna circunda a
existência feminina como ventre receptor de sua propriedade. Devido à suposta
superioridade marcada em suas construções simbólicas, caberia ao homem o poder
naturalizado sobre a família, análogo ao poder divino sobre a Terra.
Através do olhar para a língua enquanto instância cultural das mais relevantes,
evidencia-se a negação da transcendência feminina justificada pelo papel reprodutor.
Termos depreciativos do inglês como barren e childless reportam ao valor do gênero
feminino sendo definido de acordo com seu status maternal, enquanto a ação no mundo,
a capacidade de conquista e dominação são o que categoriza usualmente o valor do
masculino, tal como os estudos feministas já concluíram.
Ademais, a República de Gilead, inspirada na realidade da qual fala Adrienne
Rich, apresenta inúmeros elementos a remeterem à religião cristã em seus traços
despóticos e violentos contra o feminino. Desde a epígrafe, está estabelecido o
precedente bíblico que atravessa a narrativa, com um trecho retirado Gênesis que narra a
história de Jacó e Raquel, em que esta, infecunda, implora ao marido que se deite com a
criada Bila para que ela lhes dê filhos. Tal como podemos depreender da narrativa, o
despeito e a inveja de Raquel são motivados pela visão da maternidade como o maior

2
“The regulation of women’s reproductive power by men in every totalitarian system and every socialist
revolution, the legal and technical control of contraception, fertility, abortion, obstetrics, gynecology, and
extrauterine reproductive experiences - all are essential to the patriarchal system, as is the negative or
suspect status of women who are not mothers.” (RICH, 1995, p. 34)

1573
destino feminino. Da mesma forma, na dinâmica entre as aias e as famílias a quem
servem, é patente a inspiração bíblica, em que a mulher fértil assujeita-se mensalmente
como substância geradora, sem poder de escolha ou voz, como parte de um programa de
re-população.
Em The Handmaid’s Tale, é a proximidade desmedida entre história e ficção o
que confere ao romance seu impacto distópico. Uma vez que as mulheres e suas
conquistas foram repetidamente apontadas entre as principais causas da situação caótica
em que o mundo se encontra, Atwood parece partir desse tipo de culpabilização para
delinear uma reconfiguração social a qual deve se pautar justamente no corpo da
mulher.
Dessa forma, narrado por uma personagem feminina cuja função social baseia-se
exclusivamente na geração, o romance de Margaret Atwood trabalha com a
maximização das restrições de ação no mundo e com a censura das possibilidades de
expressão. De fato, o grupo das aias é compreendido como essencial às transformações
sociais reformistas, o que resulta na constrição ainda mais severa de suas existências.
Parece ser justamente a relevância de seu papel o que condiciona seu aprisionamento,
remetendo às ações de controle voltados aos corpos das mulheres fora da literatura.
Com isso, concluímos que a narrativa composta por Margaret Atwood, através
de seu diálogo com fatos da realidade, pode ser entendida como uma espécie de alerta
contra a manipulação da capacidade reprodutiva da mulher pelo sistema, em prol da
necessidade de uma tomada de consciência sobre a fragilidade das conquistas feministas
e, ainda, pela tomada de poder sobre seus corpos. Dialogando com a tradição literária
que a precede, a autora canadense combina elementos fundamentais sobre as mulheres e
o próprio movimento feminista, ao mesmo tempo em que trabalha com questões
centrais às vidas marginalizadas ao longo da história da humanidade. Depreende-se,
portanto, que sua obra pode ser uma experiência estética de pertinência veemente à
compreensão da conjuntura social e política envolvendo a percurso de mulheres no
passado e no presente, incitando à ação em direção à transformação do futuro.

Referências

1574
ATWOOD, Margaret. The Handmaid’s Tale. London: Vintage, 1996.

MOERS, Ellen. Female Gothic: The Monster’s Mother. In: SHELLEY, Mary.
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University Press, 2000.

RICH, Adrienne. Of woman born: motherhood as experience and institution. New York:
Norton, 1995.

1575
PANEM ET CIRCENSES – O PÃO E O CIRCO EM JOGOS VORAZES
Anna Carolyna Barbosa 1

Resumo: O presente trabalho possui a função de discutir o funcionamento da hierarquia que rege
a sociedade distópica de Jogos Vorazes (2010), que se baseia na política de “pão e circo” para
poder manter a paz no concernente aos distritos - onde as pessoas estão sempre famintas demais
para poderem pensar em rebelar-se contra o sistema – ao mesmo tempo em que matem os cidadãos
da Capital distraídos, comovidos e envolvidos nos Jogos que dão nome à trama. Para tal feito
recorremos à abordagem de autores como David Harvey, Eneida Maria de Souza, Adorno e
Horkheimer, entre outros para embasar nossas reflexões.
Palavras-chave: Literatura distópica; espetáculo; Jogos Vorazes; mídia; reality show

Existir é ser percebido.


Eneida M. de Souza

Segundo Eneida Maria de Souza, em seu artigo Janelas Indiscretas (2011), o


espetáculo parte do ponto em que o que é privado se torna público. Para a pesquisadora,
“A estrutura ambígua do espetáculo permite, por momentos, que a manifestação pública
predomine sobre a privada, em que se mesclam sentimentos os mais variados” (p.29).
Atualmente, com o uso das mídias digitais e das redes sociais, o privado vem se
tornando cada vez mais público. Grande parte da população faz questão de dividir,
diariamente, parte de seu cotidiano com os seus seguidores ou amigos, seja por meio de
uma foto no Instagram, de uma frase no Twitter, ou mesmo de um vídeo no Facebook.
Além disso, foi a partir do desejo de saber o que se passa com o outro entre quatro paredes
que surgiram ideias para formatar reality shows como o Big Brother ‒ que recebeu esse
nome inspirado na obra de Orwell, 1984 ‒ ou outro bem popular no Brasil, que reúne
artistas decadentes em busca de mídia, A Fazenda. O fato é que estes realities têm sempre
enorme repercussão, porque nada interessa mais a pessoas de vidas vazias do que vigiar
a vida alheia.
Além disso, devemos refletir sobre o fato de que tudo o que ronda a desgraça
humana gera uma grande espetacularização pela mídia, que tem por hábito fazer grande
repercussão em torno de grandes tragédias, tsunamis, terremotos, atentados terroristas,
quedas de aeronaves, simplesmente pelo fato de que desgraça e audiência são fatores
diretamente proporcionais.

1
Graduada em Letras (UFSJ), Mestra em Teoria da Literatura (UFSJ), Doutoranda em Estudos Literários
(UFU). Contato: annacarolynab@gmail.com.

1576
Segundo Adorno e Horkheimer (1944), tal fato se explica pela busca dos mass
media em atender as necessidades das massas, agindo de forma a inibir as atividades
intelectuais do espectador; ou seja, esse tipo de entretenimento obtém sucesso porque faz
as pessoas desviarem a atenção de suas vidas para a vida de outrem, sem a necessidade
de pensar ou refletir sobre isso.
Desde o início do desenvolvimento dos meios de comunicação massivos, eles se
tornaram motivo de preocupação por parte de alguns pensadores. Benjamin (1955, p. 5),
por exemplo, demonstra sua insatisfação no andamento das comunicações massivas que,
segundo ele, eram um objeto dúbio, pois enquanto distraíam as multidões com uma
espécie de diversão banal, também eram um instrumento utilizado pelo fascismo para que
se pudesse infiltrar ideias nas mentes da população e criar padrões que corroboravam as
necessidades do regime capitalista.
Para Walsh (1976), o escritor é um ser que vive à frente do seu tempo e é capaz de
transcrever o sentimento que se encontra suspenso no ar, imprimindo-o em seus textos;
os escritores “pensam, sentem e temem hoje, neste tempo, aquilo que os filhos deste
tempo sentirão, pensarão e temerão amanhã” (pp. 19-21). É função da literatura distópica
plasmar tal sentimento no papel.
A ficção distópica, da qual Jogos Vorazes é um dos melhores representantes, tem
por característica principal ser uma história intencional de advertência, e essas
advertências, quase sempre, trazem à tona condições que se relacionam com o contexto
em que vive o autor, ou que por ele é percebido. Constantemente essas advertências se
realizam de forma a criticar a sociedade, comtemplando aspectos sociais, políticos,
econômicos e culturais.
Os Jogos de Collins são uma forma bizarra e corrompida de um reality show; tudo
na trama da autora gira em torno da mídia e da espetacularização, dos Jogos às vidas das
pessoas.
Dentro da narrativa de Jogos Vorazes, os medos da sociedade imaginada são
lugares-comuns que, na sua maioria, têm relação direta com os Jogos, dentro dos quais se
encaixam a inexistência de mobilidade social, o uso constante da mídia como forma de
opressão ou intimidação e entretenimento vulgar, responsáveis por tornar vazia a vida de
seus habitantes, tanto nos distritos – pela perda total da esperança – quanto na Capital –
pela futilidade e hedonismo em que vivem.

1577
Na trama de Collins, os jogos constituem o maior evento do ano, e os idealizadores
‒ pessoas que planejam os Jogos e as arenas e controlam o evento por inteiro ‒ trabalham
duro por muito tempo para que tudo seja perfeito e desta forma, os moradores da Capital
se divirtam bastante. Ao mesmo tempo em que os Jogos Vorazes são diversão e
entretenimento para a vida fútil e vazia dos cidadãos da Capital, o espetáculo em torno
deles é uma forma de humilhar os distritos, uma demonstração clara de poder da Capital,
já que todos, sem exceção, são obrigados a assistir à competição pela TV. “Eles tentam
escaloná-las [as colheitas] ao longo do dia, de modo que todos possam assistir tudo ao
vivo, mas só os residentes da Capital conseguem fazer isso” (COLLINS, 2010, p.52).
A narrativa tem início com a celebração do dia da Colheita – dia em que são
sorteados os 24 jovens de 12 a 18 anos que irão representar os distritos nos Jogos Vorazes.
A escolha dos jovens é um grande evento que é transmitido ao vivo para todo o país:
“Essa é a maneira encontrada pela Capital de nos lembrar de como estamos totalmente
subjugados a ela. De como teríamos pouquíssimas chances de sobrevivência caso
organizássemos uma nova rebelião” (p.25). O dia é transformado em feriado nacional,
para que todos em Panem possam estar em casa para poder ver seus filhos e filhas
colocarem os nomes no sorteio para os Jogos. “Nas casas e nos espaços públicos por todo
o país, todos os aparelhos de televisão estão ligados. Todos os cidadãos de Panem estão
assistindo ao evento. Hoje não haverá blecaute em lugar nenhum.” (p. 136).
O dia da colheita é importante: a colheita é uma forma de a Capital fazer um senso
do número de jovens entre 12 e 18 anos do país, posto que todos, exatamente todos os
adolescentes dessa idade devem se inscrever. O dia da colheita é um lembrete aos distritos
de que um novo levante não seria uma boa ideia “Levar as crianças de nossos distritos,
forçá-las a se matar umas às outras enquanto todos nós assistimos pela televisão. Essa é
a maneira da Capital de nos lembrar de que estamos totalmente subjugados a ela”. (p.25)
É uma forma de a Capital mostrar aos distritos que eles devem, sempre, ceder: “Para
fazer com que a coisa seja humilhante, além de torturante, a Capital nos obriga a tratar os
Jogos Vorazes como uma festividade” (p.25).
É, também, uma oportunidade de rivalizar os distritos, já que o distrito vencedor
recebe durante o ano seguinte dos Jogos uma porção extra de alimentos: “Durante o ano
seguinte a Capital fornecerá ao distrito vencedor cotas extras de grãos e óleo, e até mesmo
guloseimas tais como açúcar, enquanto o resto de nós luta contra a fome” (p.25). É quando

1578
a Capital deixa claro que dentro do distrito todos devem ser submissos a ela, pois até os
filhos dos prefeitos precisam dar o seu nome para o sorteio.
É no dia da colheita que as famílias mais pobres têm a chance de conseguir uma
porção a mais de grãos durante o ano, são as chamadas tésseras: “Você pode optar por
adicionar seu nome mais vezes em troca de tésseras. Cada téssera vale um escasso
suprimento anual de grãos e óleo para cada pessoa” (p.19); e, é claro, trata-se da melhor
oportunidade que eles têm de divertir o povo entediado da Capital.
Apesar de os Jogos colocarem a todos, de todos os distritos, em pé de igualdade, os
Jogos em si são um sistema desigual: primeiro vem a desigualdade de idade ‒ as chances
de um adolescente de 12 anos ganhar são ínfimas em comparação a um adolescente de 18
anos. Segundo, os distritos carreiristas 1 e 2 treinam as crianças em diversas armas e lutas,
para que quando elas cheguem aos 18 anos possam se oferecer como voluntários para
lutar na arena ‒ nos demais distritos as crianças dessa idade estão mais preocupadas em
lutar contra a fome.
O sistema de tésseras faz com que um jovem cuja família tenha uma condição
melhor não precise colocar o seu nome mais vezes na urna; este jovem possui, portanto,
menos chances de ser sorteado do que os jovens que precisam das tésseras para que suas
famílias não morram de fome.
O sistema para fazer Panem funcionar é simples: os distritos próximos e essenciais
à Capital (1 e 2) recebem um tratamento diferenciado, com uma porção maior de comida
e alguns privilégios ‒ são distritos que cercam a Capital e ninguém quer problema com
os vizinhos; além disso, é nesses distritos que são produzidos elementos essenciais para
a Capital. Para os outros distritos, mais distantes e menos importantes, a fome e a
violência são o suficiente para mantê-los sob controle, afinal, quem está preocupado com
o vazio no estômago não tem tempo para se preocupar com rebelião; e por fim, para
controlar a população da Capital, panem et circenses, comida, diversão e ócio para que
seus cidadãos não questionem nada – o nome do país de Collins é, portanto, bem
sugestivo. Essa dura realidade, porém, não pode ser alcançada pelos distritos. Nesse
tabuleiro doentio de jogo da autoridade máxima de Panem, todos os papéis estão
definidos, e todas as vidas estagnadas; a única forma de se mover é vencendo os Jogos.
Retornando à questão do espetáculo, comunicação ampliada ao ponto no qual os
recursos técnicos são utilizados como intermediários é relativamente recente na história

1579
da humanidade, e somente a partir do século XV, com o advento da imprensa e toda a
inovação que ela traz, no tocante a uma facilidade maior para a produção de livros e maior
abrangência de público, é que a comunicação começa a se tornar dependente dos aparatos
técnicos.
A partir do século XIX e início do século XX, o fenômeno da comunicação, através
de meios técnicos, amplia o público e começa a transformar as relações de poder. Já na
primeira metade do século XX, os principais meios de comunicação em massa são a
imprensa, o cinema, o rádio e a televisão − claro que não são os únicos, mas são os de
maior abrangência. A imprensa, mesmo não surgindo nesse período, mantém sua
importância; cinema e rádio se desenvolvem e mantêm o seu auge até a década de 1940;
e a televisão se encontra em franco desenvolvimento até os dias de hoje.
John Thompson, em A Mídia e a Modernidade (1998), destaca que a partir do século
XIX e no decorrer do século XX as comunicações mediadas ganham relevância e difusão
em relação ao grande público, e o desenvolvimento dos meios de comunicação se tornou
peça fundamental para alcançar o que hoje chamamos de modernidade. E foi, também,
imprescindível na remodelação das novas relações de poder e controle social.
O raciocínio de Thompson vai ao encontro da contextualização dos recursos de
comunicação, para entender como se projetam e se articulam com a sociedade. Assim,
criam ou realocam formas de organização social. Ao fenômeno que torna as grandes
mídias instrumentos capazes de sincronizar o pensamento de um grande público,
estudiosos denominaram como “cultura de massas”.
Não é de hoje que a mídia é considerada como uma entidade nociva e alienante;
desde o período entre guerras a comunicação mediada possuía a capacidade de moldar
uma sociedade e, até o início dos anos 1940, pesquisadores interessados pelos estudos da
comunicação acreditavam que os meios de comunicação – naquela época, rádio, imprensa
e cinema – exerciam influência fundamental sobre as pessoas. Essa inquietude em relação
às formas midiáticas toma forma no texto de George Orwell, 1984, no qual podemos
perceber que mesmo de forma radicalizada, Orwell situa as mídias com o propósito
principal de manter e estender as formas de controle engendradas pelo Partido.
Para Adorno e Horkheimer (1944, p. 114), o cinema massacra e despedaça o
pensamento do espectador; reduz a felicidade ao riso hilariante causado por uma comédia
organizada e inconsistente; restringe o amor ao romance; imita a vida das pessoas para

1580
que elas acreditem que o que acontece na tela pode mesmo acontecer com elas. Em vez
disso, o público é envolvido por um estado inebriante, um círculo vicioso que não tem
fim, sempre criando tendências que devem ser seguidas e assim o são, sem maiores
questionamentos, pois a diversão barata que recebe não deixa brecha para que possa
existir pensamento crítico. Ainda segundo os filósofos, a cultura é uma forma de dominar
bárbaros e instintos revolucionários. Mas a cultura industrializada faz mais que isso, ela
exerce sobre os indivíduos um tênue preenchimento, algo que os torna condescendentes
para com a vida que levam.
Segundo Benjamin (1955), o rádio e o cinema modificam a questão do intérprete
profissional, que apesar de parecer o protagonista, é na verdade um objeto da técnica;
modificam, também, a função de quem tira proveito da técnica para aprimorar a
representação de si mesmo diante desses dois veículos de comunicação − como é o caso
do político, que pode fazer uso da técnica para se fazer mais cativante diante do seu
público; com a técnica de edição ele não precisa mais demonstrar a segurança nos
discursos públicos e nos palanques, e falar pra os microfones e câmeras torna mais fácil
a execução do papel de figura de confiança.
No contexto de Jogos Vorazes, a mídia exerce funções ligadas à manutenção do
sistema de comunicação unilateral, em que a prioridade é o entretenimento banal. As
informações são de fácil digestão, e para os cidadãos da Capital é mais descomplicado
acreditar em tudo que é dito na TV, seja por seus ídolos, seja pelo presidente Snow. Dessa
forma, tudo gira em torno da Capital de Panem, cujos hábitos, modelos culturais e sociais
são permissivos em relação à estrutura dos Jogos, apagando a diversidade existente no
restante da nação.
De acordo com John Thompson (1998), o termo comunicação pouco guarda do
significado real, quando se trata de formas de difusão da informação:

Com muitas formas de comunicação de massa, entretanto, o fluxo de


comunicação é esmagadoramente de sentido único. As mensagens são
produzidas por um grupo de indivíduos e transmitidas para outros situados em
circunstâncias espaciais e temporais muito diferentes das encontradas no
contexto original de produção. Por isso os receptores das mensagens da mídia
não são parceiros de um processo de intercâmbio comunicativo recíproco, mas
participantes de um processo estruturado de transmissão simbólica. (p. 31)

1581
Baseados nisso, podemos compreender a forma com a qual Collins estabelece a
relação de comunicação na trama onde quase sempre não há comunicação em si. O que
existe é uma espécie de transmissão em uma via de mão única ‒ Snow manda e os distritos
obedecem, porque temem represálias provenientes da Capital; Snow fala e os cidadãos da
Capital acreditam, já que se sentem protegidos e alimentados por seu adorado líder.
Já David Harvey, em Condição Pós-Moderna (2014), afirma que o conceito de pão
e circo é uma fórmula utilizada desde a antiguidade, e que desde então tem-se obtido êxito
ao utilizá-la como forma de controle social; seu uso consciente tem sido frequentemente
empregado a fim de pacificar elementos insatisfeitos ou inquietos de uma população.
É justamente esse o esquema que rege a população de Panem, os Jogos Vorazes são
um espetáculo pacificador. Durante o período em que acontecem, os habitantes da Capital
conseguem fugir de suas vidas vazias, dos seus problemas; utilizam toda sua energia para
assistir e torcer. Os Jogos Vorazes são feitos para eles ‒ “os Jogos verdadeiros só
começam às dez horas porque muitos residentes da Capital acordam tarde” (COLLINS,
2010, p. 152).
Vale salientar que nos distritos, até mesmo aqueles que são, claramente, vítimas do
espetáculo midiático se deixam envolver − mesmo que a grande maioria das pessoas
estejam na colheita por obrigação, já que não podem ficar em casa −, ainda há pessoas
que vão apenas para se divertir às custas dos tributos, “Há outros também que [...] se
metem no meio da multidão para fazer apostas sobre os dois jovens cujos nomes serão
lançados. Se são da costura ou mercadores, se ficarão desesperados e começarão a chorar”
(p.23).
Enquanto para Capital, os Jogos agem como uma espécie de bálsamo que os ajuda
a fugir de sua vida vazia, se envolvendo por inteiro com o evento, no interior, durante o
tempo em que os distritos estão envolvidos emocionalmente, assistindo as crianças que
representam a esperança de seu distrito lutarem na TV, não há tempo para se pensar em
rebelião.
De acordo com Souza (2011), na sociedade regida pela mídia “existir é ser
percebido” (p.32). No espetáculo dos Jogos Vorazes, quem percebe isso se ajusta melhor
ao jogo, posto que grande parte das chances que um jovem tem de vencer a competição
vem do fato de ele conseguir ou não cativar o público da Capital. Ser percebido pelo
público, portanto, é uma tarefa que exige esforço dos jovens que participam dos jogos,

1582
principalmente porque eles precisam ser percebidos por sua força, beleza, habilidade ou
simpatia; ser notados por sua fraqueza não é uma opção; “[c]horar não é opção. Haverá
mais câmeras de televisão na estação de trem” (COLLINS, 2010, p.41).
Eneida Souza ainda nos diz que “[n]a condição de consumidor de ilusões, o sujeito
se priva da sua liberdade e se entrega à fruição de uma cultura que se banaliza e se
proletariza” (2011, p.29). A partir do momento em que tem o seu nome sorteado para
participar dos Jogos Vorazes, o jovem vira um produto a ser consumido pela Capital. E
cabe a ele e às suas equipes fazerem a melhor propaganda possível. É justamente nesse
esquema de consumidor de ilusões que se faz a imagem dos patrocinadores dos Jogos –
geralmente pessoas da Capital que possuem condição financeira de investir nos tributos,
e dão dinheiro ao seu mentor para que este possa enviar dádivas ao tributo dentro da arena
− em geral algo que vá garantir a sobrevivência do tributo: comida, remédios.
Harvey (2014) afirma que o prazer, o lazer e a vida erótica são trazidos para o
âmbito do poder, do dinheiro e da produção de mercadorias. Os tributos da obra de Collins
são, para os habitantes da Capital, essa mercadoria, com a qual eles se envolvem
patemicamente para compensar o vazio de suas vidas fúteis e monótonas. O tributo, que
ceder às obrigações do espetáculo e se comportar de forma a ser um melhor produto no
qual se pode investir dinheiro, sai na frente. E, para conquistar o investimento dos
patrocinadores, o tributo precisa de mais do que habilidade com as armas ou de luta
corporal: ele precisa ser bonito e atraente, pois beleza é sinônimo de poder.
De acordo com Adorno e Horkheimer (1944), o sofisticado é apenas um produto
que se diferencia de alguma forma dos mais populares; é mais caro e dá a impressão de
exclusividade para o consumidor. Claro que, ao se falar disso, fala-se na realidade dos
produtos oferecidos pela indústria de massa, mas podemos nos apropriar dessa reflexão
para analisar a fetichização em torno dos tributos. Ainda que na narrativa fale-se de
crianças e adolescentes, a fetichização em torno dos tributos é enorme, já que aqueles
vinte e quatro jovens são produtos raros, selecionados dos seus distritos. Quando se fala
a respeito do campeão, o “produto” se torna mais raro e mais especial ainda, consumir
aquela mercadoria é status de poder, de exclusividade.
No segundo livro de Collins, Em Chamas (2011), um dos tributos que venceu os
jogos, em um dos anos anteriores, afirma que ganhou por ser bonito, e mesmo tendo
apenas 14 anos quando foi campeão, ele se prostituía para as mulheres na Capital.

1583
Para David Harvey (2014), o corpo é metáfora para local de poder, e para atender à
expectativa dos telespectadores da Capital, os tributos passam por tratamentos de beleza
e possuem um estilista para que sejam feitas as alterações necessárias (em alguns casos,
cirúrgicas) nos corpos dos jovens, para que eles possam impressionar o público. Esse
corpo que é sinônimo de poder não pertence mais a eles, mas à Capital, que é quem decide
como o corpo deve ser apresentado.
Em consonância ao pensamento de Harvey, de acordo com os autores Adorno e
Horkheimer (1944), para o sucesso da indústria cultural é necessário que o público se
satisfaça com o conteúdo que lhe é oferecido. Com a consciência de que tudo gira em
torno de oferecer um bom espetáculo, por diversas vezes os personagens que representam
os tributos do Distrito 12 manipulam suas ações para garantir a simpatia do público - já
que para a Capital, esses tributos não são jovens destinados à morte; mas sim, produtos
que devem ser interessantes para que possam ser consumidos - e a preocupação em estar
ou não agradando ao público é constante.
Agradar ao público, não é função apenas dos tributos, mas também da equipe de
idealizadores dos Jogos – são eles que determinam que tipo de habitat é a arena, que tipo
de armas serão dispostas aos competidores, e em que momentos devem interferir de
alguma forma no andamento da competição. É importante que os cidadãos da Capital se
divirtam, e não se sintam entediados com os Jogos Vorazes.
A missão de entreter o público é levada a sério pelos idealizadores dos Jogos. Por
diversas vezes, quando a competição está morna ou não houve mortes no dia, eles
recorrem a algum dispositivo para que haja um embate entre os competidores: “O jogo
deu uma virada. A única finalidade do incêndio foi nos obrigar a realizar um
deslocamento. Agora o público vai poder se divertir de verdade” (COLLINS, 2010,
p.191). Na reta final, quando há poucos competidores, o país inteiro para suas atividades
para assistir à competição. Nesse cenário, até mesmo a educação é subjugada frente ao
espetáculo.
Se os Jogos forem considerados entediantes pelo público, a carreira do idealizador
acaba. “Num outro ano eles jogaram todo mundo num descampado com nada além de
pedras, areia e arbustos ásperos. Eu, particularmente, odiei aquele ano. Muitos
competidores foram picados por cobras venenosas e enlouqueceram de sede” (p.46). Para

1584
agradar a audiência é necessário que haja luta. Adorno e Horkheimer (1944) explicam
esse prazer e banalização da violência:

O prazer com a violência infligida ao personagem transforma-se em violência


contra o espectador, a diversão em esforço. Ao olho cansado do espectador
nada deve escapar daquilo que os especialistas excogitaram como estímulo;
ninguém tem o direito de se mostrar estúpido diante da esperteza do espetáculo.
(p.113)

Há, por parte dos habitantes da Capital, uma clara inversão dos valores: o fato de
eles não terem que trabalhar por seu sustento, como nos distritos, e a vida baseada no
hedonismo em que vivem, fazem com que para eles os Jogos Vorazes sejam, literalmente,
apenas um espetáculo, como uma corrida de cavalos. Para eles não há violência ou
assassinatos no espetáculo que assistem – tudo não passa de um espetáculo de jovens
lutando para sair da miséria de seus distritos, miséria que só existe porque tudo o que os
distritos produzem é sugado ela Capital. Quando enfim os Jogos acabam e há um
vencedor, esse vencedor só alcançou a glória porque eles ajudaram, patrocinaram,
torceram; se esse jovem sobreviveu foi graças à Capital, e o pagamento em troca da nova
vida é a própria vida. Não há quem possa se posicionar contra o espetáculo, ele é certo
demais, planejado demais; não se divertir é estupidez. A única forma de se envolver nos
Jogos Vorazes se você for da Capital é torcendo, se apaixonando, patrocinando.
Adorno e Horkheimer (1944) questionam a ausência dos finais infelizes nos filmes
regidos pela indústria do espetáculo, e a resposta dada por eles pode se adequar a uma
análise significativa e latente dentro da narrativa de Collins, já que os Jogos Vorazes são
uma punição aos distritos: por que não matar de uma vez esses meninos sorteados, por
que gastar dinheiro e tempo montando uma arena, para que no final apenas um sobreviva?
De acordo com os autores, espetáculo é uma fábrica de aperfeiçoamento moral.
Dentro da arena, a Capital não mata ninguém, são eles que se matam. Isso isenta a Capital
da culpa pelos assassinatos; a Capital não é assassina, e nem gostaria de que os seus
moradores pensassem dessa forma. Se não há um vencedor, os distritos perdem a
esperança e quem nada tem a perder parte para o ataque. Dessa forma, o espetáculo
mantém a cabeça de todos ocupadas com o suposto entretenimento, enquanto todo o resto
é subjugado.

1585
De acordo com Souza (2011), essa dominação da mídia e essa abertura de janelas
indiscretas de observação da vida alheia nada mais são do que a “domesticação da vida
pública” (p.35), o que ocorre porque há uma “desestabilização e barateamento dos
valores” (p.33). A narrativa de Collins demonstra como esse barateamento de valores é
uma preocupação latente na sociedade. Mesmo que seja uma construção hiperbólica, a
distopia de Jogos Vorazes traz reflexões de como a educação tem sido sucateada em
detrimento de tantos outros temas, muitas vezes sem maior importância para o povo.
Harvey (2014) afirma que o trabalhador das indústrias não é visto como todo, mas
apenas como uma parte do corpo necessária à produção: a mão, os pés, sua força. O
trabalhador não é uma pessoa, mas a mão de obra que ele pode oferecer. Em um mundo
que pensa em termos de produtividade, de que vale uma mente capaz de pensamento
crítico? Na narrativa de Jogos Vorazes, nota-se que pensar é um ato nocivo; não seguir o
fluxo do sistema é perigoso; reagir é mortal.
A mente que não pensa, não trabalha e vive uma vida baseada no prazer acredita
que os Jogos são realmente uma espécie inofensiva de diversão e que o vencedor alcançou
a única chance que teria de melhorar de vida. Effie Trinket ‒ personagem representante
da Capital designada para acompanhar os tributos do Distrito 12 desde a colheita até a
arena – afirma, em certo momento, sobre sua estratégia: “(...) vocês dois lutaram com
sucesso para superar a barbárie do distrito em que vivem” (COLLINS, 2010, p.83). Para
ela, como para os cidadãos da Capital, barbárie é o que eles passam no distrito; os Jogos
são apenas uma chance de eles vencerem na vida, uma oportunidade cedida pela
benevolente capital de Panem.
Para finalizar este artigo, novamente recorremos a Souza (2011): “O avanço da
sociedade do espetáculo e da cultura de massa possibilitou o reconhecimento de diferentes
modelos de valorização estética” (p.32). A cultura de massas cria padrões estéticos e faz
com que eles sejam desejados, e faz com que as pessoas fiquem tão perdidas tentando
seguir tais padrões, ou acreditando em finais felizes, ou tentando se identificar com a
pessoa da tela, que não há tempo para pensar ou reagir. O espetáculo esvazia as mentes,
e em alguns casos as enche de tanta coisa dispensável que já não resta espaço para mais
nada.

1586
Referências

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1587
A AMBIGUIDADE DISTÓPICA EM XENOGENESIS, DE OCTAVIA BUTLER

Gabriela Bruschini Grecca (UNESP)1

Resumo: Este artigo objetiva debater a tensão entre distopia e utopia na trilogia Xenogenesis, ou
Lilith’s Brood, publicada por Octavia Butler entre 1987 e 1989. Por aspectos advindos da tensão
entre a protagonista Lilith e a raça alienígena Oankali ao longo da trilogia, Naomi Jacobs (2003)
defende que o conjunto de obras seja uma forma de distopia crítica, baseando-se em Lyman Tower
Sargent (1994) e Tom Moylan (2000). No entanto, é preciso questionar de quais pressupostos
Jacobs se vale para categorizar as obras dessa forma, e se, em uma realidade outra em que as bases
epistemológicas não guardam traços do conceito de humanidade (tornando-se inexistentes), é
pertinente valer-se deste conceito para entendê-las, questões a partir das quais parte esta análise.
Palavras-chave: Distopia crítica; Octavia Butler, Xenogenesis.

Introdução
O ponto de partida da escrita deste artigo deu-se a partir do desejo de dialogar com
algumas argumentações da pesquisadora Naomi Jacobs, cuja fortuna crítica a respeito das
imbricações entre distopia e pós-humanismo já está consolidada dentro dos Estudos
Utópicos, em defesa da categoria “distopia crítica” como chave de leitura da trilogia
Xenogenesis, da escritora afro-americana Octavia Butler. A trilogia, escrita entre 1987 e
1989 e atualmente comercializada sob o nome Lilith’s Brood desde 2000, compreende as
seguintes obras: Dawn (“Despertar”), Adulthood Rites (“Ritos de Passagem”) e Imago
(sem tradução). Desde então, Butler vem sido aclamada por tais obras se dirigirem à
figura do alien de forma totalmente ressignificada; no lugar de delinear um Outro
monstruoso, Butler lhes dá uma epistemologia própria, a partir da qual se organizam
socialmente e se relacionam com outras espécies, ao mesmo em que, a cada obra, vai se
distanciando radicalmente do senso de humanidade do qual hoje compartilhamos.
Diante dessa nova configuração da realidade, assim, o objetivo deste artigo é
contestar se ainda é válido ler este conjunto de obras de Butler como distopia, propondo
um modo outro de analisá-lo. Na leitura em questão, Xenogenesis inicia propositalmente
pela emulação do gênero distópico em Dawn para provocar desconforto a respeito da
situação do cativeiro da protagonista Lilith, apenas para, após um jogo de possibilidades
de utopia e distopia, ultrapassá-las em Adulthood Rites e Imago. Para esta perspectiva, o

1
Mestre em Letras pela Universidade Estadual de Maringá e Doutoranda em Estudos Literários pela
Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, com período-sanduíche na
University of Florida, cujo período de estágio permitiu a escrita deste artigo enquanto Bolsista
CAPES/PDSE/Processo nº 88881.187021/2018-01 Contato: gabrielabgrecca@hotmail.com.

1588
apagamento das bases epistemológicas tais quais conhecemos gera um cenário outro, bem
como se distancia de categorias simples como responsabilização e consentimento, visto
que a raça alienígena Oankali, por mais que tente se aproximar das noções humanas de
expressão de desejos individuais e coletivos, jamais consegue com elas se confundir
totalmente.
Para a estruturação desta análise, será apresentada a raiz do conceito de distopia
crítica, apresentado por Lyman T. Sargent (1994) e Tom Moylan (2000), com o qual
Naomi Jacobs trabalha. Em seguida, será descrita sua hipótese de articulação entre
Xenogenesis e o termo de Sargent/Moylan, explorado no capítulo de livro Post-human
Bodies in Octavia Butler’s “Xenogenesis” (2003), tendo em vista o contexto de escrita
da autora, seus objetivos e argumentações. Por fim, serão elencados os itens que levaram
ao questionamento da categorização dada pela autora e pontuados aqueles que permitem
a defesa da leitura proposta no parágrafo anterior.

A distopia crítica
A primeira vez em que se registra uma inquietação sobre o termo “distopia crítica”,
ainda que somente sugerido para opô-lo a um conceito afim, a “utopia crítica”, está no
ensaio The Three Faces of Utopianism Revisited (1994). Lyman Tower Sargent, autor do
ensaio, havia demonstrado uma primeira tentativa de categorização (a qual ele sempre
compreende como provisória, instável e para fins metodológicos específicos) das obras
utópicas e distópicas quase vinte anos antes, em Utopia: The Problem of Definition
(1975). Levando em consideração essas duas décadas de transformação das narrativas
que compõem esse modo de narrar, Sargent repensa suas próprias categorias e as estende
no mencionado texto de 1994. Pensando não possuir um corpus considerável o suficiente
para considerar “distopia crítica” um conceito plausível (1994, p. 3), propõe continuar o
debate em um momento outro e, simultaneamente, deixá-lo de lado no percurso desse
ensaio.
Anos depois, o pesquisador Tom Moylan (2000), em Scraps of the Untainted Sky,
reaproveitará a sugestão de Sargent para explorar as distopias críticas mais
profundamente. Por um viés historicista e utilizando-o como estratégia de leitura de três
obras estadunidenses contemporâneas, Moylan considera essas distopias como aquelas
advindas de uma “virada” do gênero nos anos de 1980, a qual permitiu uma renovacão

1589
do distópico pelo afastamento da fase mais paradigmática e “tipificante” das obras do
período entreguerras, bem como pela aliança cada vez mais indissociável com a ficção
científica e até mesmo outros gêneros literários – isto é, pelo aspecto formal descrito por
Raffaella Baccolini (2004) como genre blurring, a “hibridez” entre os recursos estruturais
dos gêneros literários. Em seu livro, Moylan (1994, p. 190) denomina distopia crítica
aquela que resiste ao jogo de oposições com o qual as obras modernas do gênero
trabalham (como Estado versus oprimido, opressão versus resistência), demonstrando
maior complexidade nas nuances entre esses polos. Além disso, mais do que criticar
sistemas totalitários de poder característicos de um período, tais obras repensam nos
elementos políticos, culturais e sociais que se repetem na política ideológica neoliberal
como um todo, bem como nos domínios da micropolítica que dispersam o poder em redes
heterogêneas e inapreensíveis. Por meio do estremecimento de fronteiras e de ampliação
dos debates envolvidos, as distopias críticas renovam suas próprias estratégias de
“mapear, alertar e ter esperança” e reafirmam “funções transformadoras de linguagem,
textualidade, memória e história” (MOYLAN, 2000, p. 196 e 199, tradução livre),
desafiando limites previamente dados ao campo das obras distópicas.
Diante dos pontos acima levantados, novas roupagens para as distopias são
esperadas, dissociando-se do espelhamento direto de temas e formas reconhecíveis na
estrutura tradicional de romances paradigmáticos como Admirável Mundo Novo e 1984.
Todavia, todas elas orbitam em torno do mapeamento de possibilidades pesarosas para
um futuro cujas ameaças da contemporaneidade foram concretizadas, intensificadas e
levadas a níveis assombrosos, causando temor justamente pelos embriões estarem vivos
e em iminência de crescimento na realidade vigente dos leitores. Isso gera uma premissa
que se julga indispensável para quaisquer distopias: ainda que desastres de ordem
inevitável possam ser descritos (ecológicos ou até mesmo de ordem interplanetária), o
peso maior da crítica recai prioritariamente sobre a ação humana que sustenta jogos de
poder, repressão e controle dos corpos dos sujeitos. Este é o ponto ao qual se retornará
para divergir do uso da distopia crítica feito por Naomi Jacobs.

Naomi Jacobs, o pós-humanismo na distopia e as indagações flutuantes


O capítulo Post-human Bodies in Octavia Butler’s “Xenogenesis” foi publicado
por Naomi Jacobs, em meio a diversos ensaios de outros autores renomados dentro dos

1590
Estudos Utópicos, no livro Dark Horizons: Science Fiction and the Dystopian
imagination (2003), organizado por Tom Moylan e Raffaella Baccolini. Tendo como fio
condutor a atualização de releituras de obras de ficção científica (principalmente as
distópicas), bem como das linhas críticas mobilizadas para tal propósito (como o pós-
modernismo e o feminismo), a obra de Jacobs contribui na inserção do debate do pós-
humanismo como estratégia de compreensão da descentralização do humano como
portador de agência para decidir seu lugar no mundo.
Para Jacobs, a trilogia Xenogenesis é essencial para revelar essa desarticulação.
Contrastando-a com as distopias paradigmáticas, a autora crê que estas são escritas em
uma perspectiva “humanista” de alinhamento entre agência e identidade individual.
Regimes totalitários ficcionais, como o de 1984, conseguem controlar os sujeitos
submetidos a uma certa ordem social através da drenagem de suas identidades individuais,
transformando-os em meras máquinas para o Estado. Dessa forma, tais sujeitos não
conseguem decidir qualquer elemento que contribua com a sociedade, muito menos agir
sobre as decisões que outros (os dominantes) fazem por eles.
Nesse sentido, em tais distopias, “o campo da subjetividade é o locus primordial de
controle do regime; sem um senso claro do que é o ‘eu’, o cidadão da distopia não sentirá
necessidade de se rebelar, mesmo se os meios para a rebelião estivessem disponíveis”
(JACOBS, 2003, p. 92, tradução nossa). Essa coincidência entre impossibilidade de reter
sua própria individualidade e de agir sobre o mundo, para a autora, é típica da visão
humanista de sujeito, que trata a subjetividade como um vetor que permite acessar a
essência do que lhe é próprio, que lhe aparta dos demais. Em síntese, ao estilhaçar todos
os valores que envolvem a diferença, as distopias modernas revelam como a
homogeneização do pensamento tira a possibilidade de formar esse núcleo de
identificação do sujeito com seus próprios desejos, vontades e demandas.
No caso de Xenogenesis, Jacobs observa uma problematização dessa necessidade
de precisar reconstruir um “eu” para, assim, alcançar a camada de oposição ao sistema
vigente. No início da primeira obra, Dawn, Octavia Butler traz a protagonista Lilith no
despertar de um coma induzido, 250 anos após a ocorrência de uma guerra de proporções
massivas, a qual acarretou na extinção quase total da humanidade. Lilith é uma dentre os
poucos que restaram no mundo todo, todos resgatados por uma raça alienígena
denominada Oankali. Ao despertar, os Oankali já possuem feições humanas misturadas a

1591
seus outros aspectos físicos, algo que foi possível graças à sua capacidade de coletar o
DNA por meio de um órgão localizado em suas línguas. O mecanismo de registro de
material genético é vital para os Oankali, visto que eles dependem da troca de material
genético para sobreviver; caso contrário, sua existência está condenada.
Retomando a ideia de que as distopias críticas desestabilizam categorias dadas
como fixas na modernidade, tais como história e memória, Naomi Jacobs defende que
Xenogenesis atue como distopia crítica por dar continuidade a essa característica de
reorganização de conceitos, ao mostrar a impossibilidade da identidade como essência do
indivíduo. Na leitura da autora, Octavia Butler, no lugar de vitimizar Lilith como refém
de um mundo sem agência, questiona esta pela própria ideia. Pela tensão entre Lilith, uma
das últimas de sua geração a guardar traços humanos tais como hoje se atribui, e os
Oankali, os quais agem por meio de sua compreensão de mundo exclusivamente
sensorial, a trilogia retrata como fixar-se na ideia de identidade e individualidade é
condenar-se (JACOBS, 2003, p. 92-93). Afinal, Lilith só possui duas alternativas: aceitar
reproduzir filhos dos Oankali ou ser induzida a retornar ao coma; em outras palavras, ela
só pode persistir se abraçar o hibridismo. Assim, Jacobs compreende essa aceitação dos
corpos pós-humanos como modo de articular a subjetividade na pós-modernidade, e
Octavia Butler a teria utilizado como uma espécie de enclave de resistência de Lilith em
meio à situação distópica imposta pelos Oankali.
No entanto, são diversos os aspectos que levam à problematização da leitura de
acima descrita. Em primeiro lugar, por mais tentador que seja ver a escolha de Lilith
como, na verdade, uma ausência de escolha, deve-se relembrar que os Oankali possuem
uma epistemologia completamente diferente daquilo que é possível conceber. Longe de
conquistar territórios para exercer domínio autoritário, esses alienígenas também lutam
se debatem constantemente com os desígnios naturais de precisar aproveitar algo da
espécie do outro, bem como convivem com Lilith e os outros humanos para tentar
compreendê-los da melhor forma possível. Eles possuem um desejo latente de
convivência e troca, mas pela própria forma de entender o mundo ser outra (física,
sensorial e corporal), é impossível que a convergência entre o entendimento entre ambos
os grupos ocorra em totalidade. Portanto, debater ideias como consentimento e
responsabilização é entrar em um terreno extremamente delicado e confundido pelos
múltiplos debates com os quais Octavia Butler confronta seus leitores a todo momento, e

1592
é impor uma racionalidade aos Oankali que é incongruente com sua construção dentro da
narrativa, desencontrando-se com os próprios princípios da Ficção Científica.
Segundamente, além de haver uma divergência de epistemologias, uma delas, a
dos humanos, desapareceu. Lilith e os outros sobreviventes representam uma noção de
humanidade à qual é impossível retornar, e, com isso, torna-se impossível que haja até
mesmo a possibilidade de um embate entre concepções de mundo. O único modo de
ocupação é a dos Oankali, pois, mesmo se os sobreviventes pudessem retornar sem eles,
a condição biológica para sobreviver seria impossível sem o auxílio do material genético
dos Oankali, uma vez que as condições ecológicas foram completamente alteradas pela
ação dos humanos durante o período da guerra. Logo, o “abraço” celebrativo pós-
humanista de Jacobs parece estar em desacordo com uma nova concretização de mundo
que estará sempre em tensão, como revela as obras conseguintes a Dawn. Em Adulthood
Rites e Imago, tem-se um afastamento cada vez mais definitivo com o mundo de Lilith, a
ponto de esta deixar de protagonizar os eventos e ser suplementada por personagens ainda
mais híbridos – Akin (da segunda obra, mistura de Oankali e humano) e Jodahs (da última
obra, mistura de Oankali, humano e primeiro ooloi, um terceiro gênero, originado dessa
mistura) – e a aceitação do hibridismo não torna as questões que surgem mais “fáceis”,
sendo, na verdade, substituídas por outras tão ou mais movediças que as anteriores.
Por fim, e como resultado dos dois pontos anteriores, questiona-se se uma situação
como a criada por Butler em Xenogenesis, com tantas configurações que já se
desprenderam das formas de organização e relação entre humanos, ainda pode ser
considerada distópica, ou se, na verdade, trata-se somente de uma realidade outra cujas
negociações são dificultosas e enfatizadas por Butler. Apesar da incontestável
contribuição de Naomi Jacobs em descrever os paralelos entre agência humanista e pós-
humanista, a autora parece valer-se muito mais de Dawn do que das outras obras para
caracterizar a trilogia toda como distopia crítica, sendo que questões de Adulthood Rites
e Imago já se afastam mais ainda do conflito entre Lilith e os Oankali. Desta feita,
questiona-se também a substancialidade do corpus na análise feita por Jacobs no que diz
respeito à distopia crítica, por se acreditar que os sintomas de uma distopia em uma obra
só (Dawn) não deem conta de organizar toda a trilogia em questão.
À luz do exposto, será feita a seguir uma breve exposição do argumento que se
propõe como contraste, tomando como fundamentação teórica a pesquisa de Stephanie

1593
A. Smith, articulando-o com pontos considerados emblemáticos em Xenogenesis que
levaram à seguinte elaboração. O objetivo é demonstrar como Butler utiliza o distópico
no início de Dawn praticamente como uma forma paródica do gênero, para mobilizar
conhecimentos prévios do leitor sobre a distopia e, em seguida, desconstruir o paralelo
que parecia estar sendo tecido e levar ao conhecimento de uma realidade outra, cuja
concepção por distópica é insuficiente para compreendê-la. Ao contrário, somente ao
reconhecer que é necessário entender esse novo universo por paradigmas próprios é que
se pode ler criticamente os conflitos envolvidos no processo de transformar a visão
outremizada de um grupo no reconhecimento de sua existência como independente de
pressupostos cristalizados pelo grupo que outrora fora dominante.

Distopia como simulacro em Xenogenesis


Ao iniciar a leitura de Dawn, o leitor é confrontado com uma miríade de imagens e
diálogos em que a protagonista Lilith representa um sujeito em completa dominação.
Após celebrar o fato de simplesmente estar viva, apreende-se que a personagem se
encontra em um cubículo pequeno, vazio, obscuro e sem sugestão de saída por portas ou
janelas, espaço em que permanece por uma boa parte da obra. Algumas vezes ao dia, seus
captores falam-lhe por algum canal que Lilith não consegue identificar, ouvindo apenas
suas vozes, e lhe inundam de perguntas sobre a vida pessoal e sobre suas memórias a
respeito da guerra que os humanos haviam provocado, sendo as tentativas da personagem
de troca de informações totalmente rejeitadas. Manter a sanidade, assim, torna-se a
palavra de ordem de Lilith - assim como Winston Smith, em 1984, desafia a si mesmo a
fazê-lo enquanto passa por mecanismos de tortura no Quarto 101.
Com o avançar do capítulos, depara-se com uma infinidade de indeterminações
sobre a narrativa - o que querem de Lilith, quem são e qual o propósito de tudo. Conhecer
os Oankali, ou aquilo que decidem apresentar à protagonista, tampouco assenta o
transtorno de sua situação: ao contrário, depara-se com figuras que misturam os traços
desconhecidos com os humanos, que possuem outra organização de gênero sexual e que
precisam do toque em seu corpo por meio de órgãos desconhecidos a fim de conhecê-la
melhor. Uma variedade de elementos aponta, assim, para a repulsa da protagonista e para
a necessidade de escapar, remetendo indiretamente, para citar outro exemplo, a
motivações e expressões do medo semelhantes à personagem de Margaret Atwood,

1594
Offred, em O conto da aia, principalmente no que diz respeito à necessidade de se agarrar
à memória do passado para lembrar que nem sempre as coisas foram do jeito que estão:

She spent hours vainly trying to solve the problem of how she might
destroy them. This was one of the activities that help keep her relatively sane.
(...) She sang songs and remembered books she had read, movies and television
shows she had seen, family stories she had heard, bits of her own life that had
seemed so ordinary while she was free to live it. She made up stories and
argued both sides of questions she had once been passionate about, anything!
(...) She offered no cooperation. There were moments when she did not know
why she resisted. What would she be giving up if she answered her captor’s
questions? What did she have to lose beyond misery, isolation, and silence?
Yet she held out (BUTLER, 2007, p. 8-9).

No entanto, após o despertar dos outros indivíduos adormecidos na nave em que


se encontram, e a constante revelação da monstruosidade dentro do humano quando estes
julgam Lilith por conspiradora e arquitetam retaliações contra ela, a aproximação dos
Oankali como seres que agem apenas segundo a única epistemologia que conhecem se
torna mais clara. Para ilustrá-lo, pode-se remeter às diversas tentativas de Lilith a pedir
por papel e caneta para conseguir escrever, quando Nikanj recorre a respostas como,
“You know you can do what you’re doing with your fingers” (BUTLER, 2007, p. 9). Por
meio desta fala, é possível notar a incompreensão por parte de Nikanj sobre tudo o que
envolve a oposição corpo/mente com a qual um pedido como o de Lilith o confronta.
Para os Oankali, não faz sentido a demanda por um objeto “morto” para escrever, se é
acessível melhorar a si próprio quimicamente para fazê-lo com o próprio corpo. Conforme
sintetizado por Stephanie Smith (1993, p.73), a psicologização dos personagens constrói
uma diferente linguagem, ou “uma diferente morfologia nos dois sentidos etimológicos,
biológico e linguístico”, na qual “percepção, conhecimento e prazer estão tão
meticulosamente interligados que, grosso modo, não há canal de conhecimento dos
Oankali que não seja corpóreo” (SMITH, 1993, p. 71, tradução livre).
Além disso, há um segundo fator envolvido na recusa pelo papel: quanto mais
lentamente Lilith aprender, mais ela demorará a ser levada a reproduzir o filho de Nikanj,
sendo que este, por mais que seja repreendido cada vez mais, encontra esta maneira para
poupar Lilith até que esta se sinta pronta (BUTLER, 2007, p. 74). Nota-se, assim, o traço
de empatia que foge ao estereótipo do alien cruel e dominador. Outrossim, um outro fator
que complica a identificação dos Oankali com os opressores de uma distopia vai
ganhando forma conforme se esclarece que não há interação da qual estes participam sem

1595
saírem transformados. Em outras palavras, sua alteração também é parte da interação: não
somente os Oankali redesenham o desejo humano para torná-los dependentes dos
alienígenas, mas também é compulsória a atração que estes sentem pela espécie humana.
Não há modo, assim, para nenhuma das duas espécies dominar completamente a
outra: elas são dependentes uma da outra. Ainda de acordo com Smith (1993, p. 74,
tradução livre), “mesmo se essas políticas sexuais/textuais carreguem relações que as
associam a coerções violentas e históricas, elas devem ser negociadas dentro de um
contexto extraterrestre que perpassa peculiarmente a alienação”. Enquanto nas distopias
os humanos são responsáveis por suas próprias mazelas, os Oankali operam por uma
lógica diversa, cujo propósito não é o do controle repressor e de subir hierarquicamente
perante os humanos, ainda mais diante de sua crítica veemente, ao longo das três obras, a
qualquer forma de estratificação social.
Um outro fator importante está no fato de que os Oankali vão sendo revelados
paulatinamente como seres incompletos e que, quando passam a compreender algo que
não antes entendiam, conseguem mudar (como no caso da demanda de Lilith por papel e
caneta). Em Imago, quando se conhece o protagonista Jodahs, primeiro ooloi (terceiro
gênero, não-binário) nascido entre uma humana e um Oankali, os próprios alienígenas
não conseguem entendê-lo, precisando exilá-lo temporariamente. Nem mesmo dar luz a
um terceiro, híbrido, faz com que o relacionamento entre Oankali e humano se resolva,
criando algo diverso e imprevisível.
Realizando uma releitura de Smith (1993), percebe-se aqui que o conflito
apresentado por Octavia Butler ao longo das obras que compõem Xenogenesis está muito
mais voltado para os embates entre história e papéis geracionais do que para a distopia.
Mesmo em Adulthood Rites, quando Lilith já possui suas habilidades corporais e sua
estrutura física transformadas, ela permanece sem fundir-se completamente aos Oankali,
não importa o que estes façam por ela. Por pertencer à primeira geração de configuração
pós-humana da Terra, Lilith demonstra como conhecimento não é o suficiente para que
convenções tradicionais sejam anuladas da vivência de um sujeito, enquanto Akin e
Jodahs, de Adulthood Rites e Imago, representam tanto os esforços de contenção feitos
pelos que ainda restam da geração de Lilith como os fragmentos da nova epistemologia
híbrida sendo formada em tensão e revisitação dos modos antigos de conhecimento.

1596
Em suma, para que a trilogia de Octavia Butler se propusesse como distopia, ela
haveria, no mínimo, que possuir como fio condutor estruturante as formas de violência
geradas por uma nova ordem ideológica que se pretende permanecer para sempre no
poder. Além de auxiliar os humanos a regressarem à Terra e habitá-la pelo melhoramento
genético necessário diante da reversão ecológica, os Oankali também são conscientes da
transitoriedade deste auxílio, partindo para trocar material com outras espécies assim que
possível. Logo, enquanto para Lilith os traços do passado lhe tragam constantemente o
sentimento distópico da perda da humanidade, seria mais justo dizer que, na verdade,
distópica era a situação antes da chegada dos Oankali, capaz de ter destruído todo um
globo no envolvimento da guerra. Ao mesmo tempo, é possível compreender a
dificuldade do distanciamento de Lilith e sua geração a um conceito de humanidade que
deixou de existir, sendo, para esta argumentação, esse o motivo principal da simulação
de traços distópicos nos primeiros momentos da narrativa. A identificação da geração da
protagonista de Dawn com o público-leitor gera expectativas semelhantes à leitura das
distopias, apenas para, posteriormente, ser confrontada e estilhaçada pelo
desenvolvimento das narrativas seguintes por uma via inesperada.
Concluindo com este raciocínio, Smith (1993, p. 79) observa também que Octavia
Butler não apaga como os embates tumultuosos entre as gerações seguintes, mas ela se
recusa a fazê-lo pela escolha da violência como uma estética. Ao mesmo tempo, Butler
também rejeita em simplificar a ligação entre humanos e Oankali a partir de uma ideia de
hibridismo como celebração da diversidade como o faz Donna Haraway, principal suporte
teórico do capítulo de Naomi Jacobs (2003) aqui utilizado. Complicando a ideia de pós-
humanismo como chave de entendimento da realidade contemporânea, Octavia Butler
demonstra como não se consegue estatizar tal conceito, realçando o quanto, mesmo nas
relações entre as gerações mais híbridas, “embora todos sejamos aliens (...) alguns são
mais aliens do que os outros” (SMITH, 1993, p. 79, tradução nossa), e trata-se mais de
um aprendizado eternamente conflituoso ao qual é necessário se submeter do que um
simples jogo binário entre eu/Outro e oprimido/opressor.

Considerações finais
Diante do exposto, pode-se realçar como a trilogia Xenogenesis é uma obra
modelar para revelar como o contato com o Outro pode sempre parecer distópico à
primeira vista. Levando os sujeitos a mobilizarem mecanismos de reação diante daquilo

1597
que é imprevisto pelas práticas normativas que regem a sociedade vigente, esta condição
pode ser ultrapassada, como no caso de Lilith, Akin e Jodahs, ao se assumir o constante
embate com os modos antigos de conhecimento e debruçar-se sobre as novas operações
desestabilizadoras do conhecimento sem, para isso, recorrer ao fascínio da diversidade
homogeneizante que, na verdade, apenas pretende, por outra via, persistir não lidando
com a diferença.
Ao ultrapassar a distopia e propor uma leitura das obras por meio de outras
categorias, as quais exigem um imenso esforço e digladiação com conhecimentos prévios,
Octavia Butler propõe o enfrentamento de um futuro cujas consequências realistas da
descontextualização da organização social humana (com base em gênero, aspectos raciais
e de status quo) evidenciam o desbalanço na equiparação entre os sujeitos. Trata-se, no
entanto, de um esforço bilateral de dois grupos extremamente heterogêneos, que
constantemente negociam suas demandas e epistemologias para re-ocupar um mundo
dado como condenado não por temíveis extraterrestres, mas pelas próprias barbáries da
catástrofe humana.

Referências
BACCOLINI, R. The Persistence of Hope in Dystopian Science Fiction. PMLA. v. 119.
n. 3. 2004. p. 518–521. Disponível em: www.jstor.org/stable/25486067. Acesso em
23/08/2019.

BUTLER, O. Lilith’s Brood. New York: Grand Central Publishing, 2007.

JACOBS, N. Post-human Bodies in Octavia Butler’s “Xenogenesis”. In: MOYLAN, T.


BACCOLINI, R. Dark Horizons: Science Fiction and the Dystopian Imagination. New
York: Taylor & Francis Books, Inc., 2003. pp. 91-111.

MOYLAN, T. Scraps of the Untainted Sky: Science Fiction, Utopia, Dystopia. Westview
Press, 2000.

SARGENT, L. T. Three Faces of Utopianism Revisited. Utopian Studies. v. 5, n. 1. 1994.


pp. 1-37. Disponível em www.jstor.org/stable/20719246. Acesso em 19/08/2019.

SMITH, S. A. Morphing, Materialism, and the Marketing of “Xenogenesis”. GENDER.


n. 18. 1993. pp. 67-86. DOI: 10.5555/gen.1993.18.67. Acesso em 23/08/2019.

1598
Vigiar e punir: corpo, saúde e neoliberalismo em Corpus Delicti: Ein Prozess de
Juli Zeh.
Júlia Braga Neves (UFRJ)1

Resumo: Esta comunicação tem o objetivo de analisar o romance distópico Corpus Delicti: Ein
Prozess (2013), refletindo sobre os efeitos do neoliberalismo na sociedade alemã distópica
representada por Zeh. Este artigo pretende discutir o romance à luz das reflexões de Michel
Foucault sobre a biopolítica e o neoliberalismo, pelo qual o indivíduo deve atuar como um
“empreendedor de si mesmo”, elevando ao máximo a produtividade, os lucros e a sua autonomia
em relação ao estado. Ainda que o senso comum compreenda o neoliberalismo como uma
ausência de estado, Corpus Delicti demonstra, bem como a obra de Foucault, que a presença do
estado é imprescindível para o funcionamento da governabilidade neoliberal.

Palavras-chave: Distopia; Juli Zeh; neoliberalismo; literatura alemã.

Introdução
Logo no prefácio do romance Corpus Delicti: Ein Prozess de Juli Zeh, o conceito
de saúde é definido dentro dos parâmetros que serão tratados ao longo do romance. A
narrativa mostra uma relação com a saúde e o corpo pela qual os seres humanos dessa
Alemanha futurística devem aumentar o seu desempenho e, consequentemente, aprimorar
as suas funções produtivas na sociedade, sejam elas no trabalho ou em sua vida privada:

Saúde não é algo rígido, mas uma relação dinâmica do homem consigo mesmo.
[...] Saúde não é algo mediano, mas a norma incrementada e o desempenho
máximo do indivíduo. Ela é claramente a determinação transformada, uma
expressão da força de vontade da longevidade. Saúde leva à perfeição dos
encontros sociais através do aperfeiçoamento dos indivíduos. Saúde é o
objetivo da vontade natural de viver e, portanto, é um objetivo natural da
sociedade, do direito e da política. (ZEH, 2013, p. 7, tradução minha).

Este seria o prefácio do livro intitulado Saúde como princípio da legitimação estatal
escrito pelo personagem Heinrich Kramer, idealizador do sistema de governabilidade
cunhado como o “MÉTODO”, sempre citado em caixa alta. Trata-se de um sistema de
governo implementado na Alemanha na segunda metade do século XXI, no qual a saúde
dos indivíduos é duramente controlada e vigiada: todos os cidadãos têm um chip instalado
em seus braços, pelo qual suas informações fisiológicas são monitoradas diariamente; os
domicílios possuem um sistema de esgoto que realiza exames de urina e de fezes a fim

1
Júlia Braga Neves é pós-doutoranda no Departamento de Ciência da Literatura da Universidade Federal
do Rio de Janeiro. Possui doutorado em Literatura e Cultura Inglesas pela Universidade Humboldt de
Berlim e pelo King’s College, Londres. E-mail para contato: juliabneves@gmail.com.

1599
de verificar que não há doenças, contaminações ou até mesmo uso de drogas ilícitas como
cigarro, álcool e qualquer outro entorpecente; casais só podem se casar legalmente após
comprovação de compatibilidade genética.
Os indivíduos também devem cumprir com as suas tarefas diárias de atividade
física e de limpeza, com o intuito de manter a ordem da otimização de seus corpos e do
bem-estar da sociedade. Nesse sistema, a saúde do corpo individual e social depende
impreterivelmente do sistema judiciário, pois quando o MÉTODO aponta falhas na rotina
diária dos indivíduos, eles são intimados a comparecer em audiência disciplinar, na qual
o juiz faz advertência sobre os pontos deficitários de seus comportamentos. Caso não os
melhorem, essas pessoas estão sujeitas a responderem processos jurídicos.
O enredo do romance aborda a trajetória de Mia Holl, uma bióloga defensora do
MÉTODO, que inclusive atuou como pesquisadora em sua idealização, mas que deixa de
acreditar no sistema com a morte de seu irmão, Moritz Holl, que fora falsamente acusado
de estuprar e assassinar uma mulher. As histórias de Mia e Moritz são marcadas,
principalmente, pelos processos jurídicos que eles sofrem por serem considerados
inimigos do MÉTODO. No início da narrativa, o leitor tem acesso ao processo de Mia e,
ao longo do romance, os capítulos intercalam o passado e o presente da protagonista: a
sua relação com o seu irmão antes de sua morte e o processo que levou à sua condenação
no passado; e o luto de Mia pela morte de Moritz e o desenvolvimento de seu próprio
processo no presente.
Embora Moritz, de fato, burlasse e criticasse suas obrigações para com o sistema,
sua prisão e seu julgamento, que culminaram em seu suicídio, foram um erro do sistema,
que se legitimava pela sua suposta infalibilidade. Por sua vez, Mia é primeiramente
advertida porque está de luto por seu irmão e passa a negligenciar suas atividades diárias.
Depois, sua advertência converte-se em um julgamento, pois ela descobre que seu irmão
fora preso e acusado por um erro do próprio MÉTODO: na infância, Moritz tivera
leucemia e, no tratamento, seu DNA fora modificado e tornara-se igual ao de seu doador,
que seria o verdadeiro responsável pelo estupro e assassinato pelo qual Moritz fora
acusado. Para encobrir o erro do sistema e evitar o questionamento de sua legitimidade e
autoridade, Kramer e outros oficiais de justiça alegam que Mia é uma terrorista que se
utiliza do erro cometido pelo MÉTODO em relação a seu irmão a fim de incitar a
população a se rebelar contra o sistema. Os crimes pelos quais Mia é acusada consistem

1600
em terrorismo, traição à pátria, uso de substâncias tóxicas (cigarro) e pela sua negligência
em cumprir seus exames médicos.
É a representação do sistema judicial e social como forma de vigilância e controle
dos corpos dos indivíduos que caracteriza o romance de Zeh como um romance distópico
e, sobretudo, prende o interesse do leitor. Com enredo e diálogos fracos e personagens
mal construídos, Corpus Delicti certamente não configura uma obra literária excepcional.
No entanto, o romance de Zeh nos convida a refletir sobre o fato de sermos cada vez mais
vigiados e controlados, de devermos nos tornar sempre mais produtivos e eficazes e de
sermos compelidos a tomarmos mais cuidado com a nossa saúde. Desta forma, a minha
apresentação discutirá Corpus Delicti à luz da noção foucaultiana de biopolítica e sua
relação com o neoliberalismo.
Biopolítica e neoliberalismo
Na obra de Foucault, o conceito de biopolítica é discutido pela primeira vez no
primeiro volume da História da Sexualidade. Para o autor, os avanços do capitalismo
entre os séculos XVIII e XIX no Ocidente transformaram as políticas da morte em
políticas da vida (cf. FOUCAULT, 1990, pp. 106-107), exercendo o seu poder
diretamente nas vidas dos indivíduos, ao invés de ameaçá-los com a morte. É a partir
dessa circunstância histórica que Foucault descreve o conceito de bio-poder, que seria a
forma de controle e regulação de populações a partir da disciplina do corpo e de sua
otimização a fim de maximizar a reprodução e potencialidade da vida. Para Foucault, o
bio-poder foi um elemento essencial para o desenvolvimento do capitalismo, pois
proporcionou o controle dos corpos de acordo com os mecanismos de produção e
organizou novos fenômenos sociais dentro do sistema econômico (cf. ibidem, pp. 139-
141).
O poder sobre a vida, segundo Foucault, institui-se em duas formas básicas que
intermediam as relações sociais. A primeira é o “corpo como máquina”, que implica a
disciplina, a otimização das capacidades humanas e a extração máxima de trabalho do
indivíduo. A segunda seria o “corpo imbuído com a mecânica da vida”, pela qual o corpo
serve como meio de propagação dos processos biológicos, como o nascimento, a
mortalidade, o melhoramento da saúde e a elevação da expectativa de vida e da
longevidade (cf. ibidem, p. 139). É nesse contexto que surgem também formas de
controles populacionais, como por exemplo pesquisas institucionais que coletam

1601
informações sobre moradia, saúde, escolaridade e hábitos sociais dos indivíduos. A partir
do momento que o controle e a vigilância social não são mais realizados por uma figura
central do poder, mas difundido pela sociedade a partir de normas, os próprios indivíduos
passam a controlar os seus corpos a fim de atuar de acordo com as normas sociais.
Anos depois, em suas aulas no Collége de France, Foucault volta à discussão sobre
o conceito de bio-poder, agora referindo-se a ele como biopolítica. Nesses cursos, dos
anos de 1978 e 1979, o filósofo reflete sobre a biopolítica em relação à consolidação do
neoliberalismo como método de governabilidade. Para Foucault, a transformação gradual
do capitalismo liberal para o neoliberal acontece na primeira metade do século XX. Nesse
processo, a principal mudança atém-se ao papel do estado: enquanto no liberalismo, é o
estado que dita as regras do mercado, no neoliberalismo, é o mercado que dita as regras
do estado. Nessa conjuntura, as relações sociais passam a funcionar de acordo com as
regras do mercado, que têm como objetivo o lucro e a produtividade (cf. idem, 2008, p.
120).
Aumentar o lucro e a produtividade do corpo social, explica Foucault, é a premissa
da biopolítica: para maximizar o funcionamento da população e, consequentemente, do
sistema socioeconômico, os indivíduos devem responder à governamentalidade e, para
tal, o sistema jurídico atua como uma instituição essencial para a manutenção da ordem
social. Foucault atribui à sociedade civil caráter central na governamentalidade
neoliberal, pois ela deve ser administrada por leis (normas) que podem garantir e sustentar
a racionalidade governamental e econômica do neoliberalismo (cf. ibidem, p. 296). Desta
forma, é possível dizer que a sociedade civil é uma tecnologia governamental que atua
desde os primórdios do liberalismo econômico e que garante o funcionamento da
economia.
Foucault argumenta que o ápice da convergência entre o estado, a lei, a economia
e a sociedade civil reside na figura que ele denomina homo economicus, que seria o sujeito
neoliberal que é um “empreendedor de si mesmo, sendo para si mesmo o seu próprio
capital, sendo para si mesmo o seu próprio produtor, sendo para si mesmo a fonte de todo
o seu rendimento” (ibidem, p. 226, tradução minha). Se o mercado é quem dita as regras
do estado, e é o estado que cria as regras da sociedade civil, o sujeito neoliberal, que seria
o indivíduo que incorpora e reproduz todas essas normas de forma disciplinada e
obediente, é a sua única possibilidade de lucro e de sobrevivência. Temos aqui a evidência

1602
do que hoje é chamado de discurso da meritocracia, defendido por tantos setores da
sociedade: o estado não tem dever algum perante o indivíduo, pois este que deve se
preocupar em garantir o seu sustento e sua forma de subsistência. No entanto, é esse
mesmo estado que promove a regulação, o controle e a punição dos indivíduos, atuando
com violência quando aparecem empecilhos para a manutenção da ordem social e
econômica.
Neoliberalismo em Corpus Delicti
O romance de Zeh aborda essas questões dentro do contexto alemão, remetendo-se
a esses elementos foucaultianos, principalmente no que tange a regulação dos corpos e da
vida, o uso do mecanismo judiciário para punir aqueles que não se comprometem com as
leis e também a forma pela qual a saúde e, consequentemente, o MÉTODO são
empregados como estratégias de aumentar a produtividade da população.
No próprio julgamento e na condenação de Mia, percebemos a relação entre a vida,
a economia e o sistema jurídico. A justiça oferece à personagem duas possibilidades, que
teoricamente são uma negociação privilegiada de sua pena: ou ela é presa ou ela é
congelada. Ela mostra-se confusa em relação à última opção e Heinrich Kramer explica:

Um estado que se sustenta pelo MÉTODO, ou seja, pelo apreço da vida


humana, não pode aplicar a pena de morte. Ao invés disso, há a condenação
por morte aparente – e com isso está associada a oportunidade de se habilitar
a qualquer momento no futuro dentro de outras condições políticas. (ZEH,
2013, p. 231, tradução minha).

O congelamento aparece para a protagonista como a melhor opção, pois, ao estar


congelada, ela não terá de se submeter ao controle do estado sobre o seu corpo. No
entanto, há também a possibilidade real de morte durante o processo. Mia enxerga o seu
congelamento como uma saída irônica de sua condição, principalmente pelo fato de que,
se não houver morte, pode haver uma longevidade que supera a duração do MÉTODO. É
justamente esta questão que é levantada pelo alto escalão do governo e que leva ao
cancelamento da negociação de condenação: se a pena máxima consiste na indução à
morte aparente pelo congelamento, então ela pode ser entendida como um prêmio que
garante vida eterna ao condenado, visto que a morte aparente é um estado entre a vida e
a morte e que o MÉTODO prega a longevidade e a saúde. Aqui, temos a evidência de que
o MÉTODO utiliza a punição pelo aparato jurídico com ênfase na vida e não na morte.

1603
Tanto a morte como a prisão perpétua aparecem como penalidades controversas para o
sistema que, em crise, pode passar a mensagem de que a punição pode funcionar como
um prejuízo para o estado e, logo, como uma forma de resistir a ele.
A lógica entre o capitalismo e o aparato jurídico é constantemente reiterada no
romance de Zeh, onde o estado regido pelo MÉTODO se utiliza do aparato jurídico para
garantir que a população siga as normas de assepsia e de cuidado com o corpo que
permitem que elas maximizem o seu desempenho e a sua eficácia. Além dos próprios
mecanismos de vigilância da saúde mencionados na introdução, há aqueles que são
introduzidos como políticas públicas habitacionais. O prédio onde Mia Holl mora, por
exemplo, tem certificado de profilaxia do governo por conta de sua higiene, da pureza do
ar, do lixo e do esgoto. Com isso, os moradores do prédio ganham desconto nas contas
de luz e de água. Curiosamente, os edifícios que obtêm tal certificado são cunhados como
Wächterhäuser, que significa “casas vigilantes”, dada a sua eficiência na regulação dos
moradores sem a interferência de órgãos estatais.
Essas casas contrariam “quem, no passado cinzento, acreditou que o povo seria
demasiadamente preguiçoso ou burro para uma participação democrática na vida
pública”, pois elas demonstram que as pessoas “podem muito bem trabalharem juntas
para o benefício de todos” (ibidem, p. 21, tradução minha). Os habitantes do prédio se
vigiam a todo o tempo: quando se escuta um espirro, alguém corre para ver se alguém
está doente; quando Mia torna-se alvo da mídia por conta de seu julgamento, três
moradoras pedem que ela deixe o seu apartamento; uma dessas moradoras está sempre
atenta a possíveis infecções de vírus ou bactérias e anda para cima e para baixo com um
spray desinfetante.
Segundo Kramer, saúde não necessariamente significa “a ausência de doença”
(ibidem, p. 7, tradução minha), tampouco se trata da proibição de o ser humano ficar
doente. O que está em jogo nesse sistema é evitar doenças ao máximo com o intuito de
diminuir gastos, aumentar a produtividade e a longevidade, além de trazer felicidade a
partir da normalidade saudável. O MÉTODO é divulgado como um sistema social
infalível que substituiu a velha ordem mundial, que teve seu fim por conta de uma grande
guerra. Essa sociedade, Kramer explica, estaria perto de seu estado “de natureza”, ou seja,
da barbárie:
[Após a grande guerra do século XX], o indivíduo perdeu a autoconfiança e
começou a temer um ao outro. O medo regia a grande política. [...] Quais foram

1604
as consequências concretas? Queda da natalidade, o crescimento de doenças
condicionadas pelo stress, onda de assassinatos, terrorismo. Além disso, havia
a ênfase excessiva no egoísmo privado, a diminuição da lealdade e, finalmente,
o colapso do sistema de segurança social. Caos. Doença. Insegurança. (ibidem,
p. 88, tradução minha).

Como a descrição do “passado cinzento”, a fala de Kramer sobre os problemas da


sociedade anterior àquela do MÉTODO podem ser equiparados aos da nossa sociedade
atual. No entanto, a narrativa de Zeh ironicamente mostra como muitos discursos políticos
empregados nos dia de hoje, que são por vezes rotulados de uma “nova política” ou “uma
nova alternativa”, são na verdade reproduções dos sistemas atuais que buscam acentuar
ainda mais as formas de controle dos indivíduos e reforçar a ideia dos indivíduos como
“empreendedores de si mesmo”, que dependem única e exclusivamente de sua força de
trabalho para sobreviver. Se, por um lado, esses discursos defendem maior autonomia do
indivíduo em relação ao estado, eles também legitimam maior vigilância e controle da
população pelo próprio estado.
O romance de Zeh apresenta uma sociedade que superou as doenças, a queda da
natalidade, reduziu a mortalidade e aumentou a produtividade dos indivíduos. No entanto,
a noção de terrorismo e de desconfiança em relação ao outro permanece. Nesta nova
sociedade, são considerados terroristas aqueles que não aceitam todas as imposições de
assepsia, higiene e prevenção impostas pelo governo, como a organização denominada
Recht auf Krankenheit (Direito à Doença) cujos membros são vistos como inimigos do
estado e, portanto, como terroristas. Embora Mia e Moritz não façam parte desse grupo,
ambos são associados a ele a partir do momento em que deixam de obedecer regularmente
às normas do governo.
Como uma distopia, Corpus Delicti pode ser lido como uma analogia à crise que o
mundo tem enfrentado nas últimas décadas e que foi agravada pela crise de 2008. Como
em outros países, a queda de investimento de políticas públicas para o sistema de bem-
estar social aumenta a insegurança das pessoas em relação à saúde, ao trabalho e à
moradia. É claro que a situação da Alemanha é muito mais estável que a brasileira, mas
há também debates naquele país sobre os efeitos de cortes em programas sociais, como
os auxílios que garantem saúde, seguro desemprego e também aposentadoria. Quais são
as respostas dadas a esta crise?
O romance de Zeh reverbera as respostas da maioria dos países que, em maior ou
menor escala, utilizam os aparatos estatal e judiciário para criminalizar e responsabilizar

1605
única e exclusivamente o indivíduo por sua inabilidade de alcançar a riqueza, por sua
incapacidade de manter-se saudável, por seu suposto fracasso em necessitar de apoio
financeiro estatal para conseguir sobreviver.
Em Corpus Delicti, a doença em si não é ilegal, mas ela indica o fracasso do
indivíduo na esfera social: se houve doença, não houve higiene ou não houve assepsia ou
não houve precaução. Se a doença é congênita, o casal desobedeceu às regras de
compatibilidade genética que determinam a legalidade do casamento. Se a pessoa entra
em depressão, ela não está cumprindo com as normas de atividade física e controle de
doenças mentais. Em diversos momentos, os membros do estado reiteram que a
manutenção da saúde individual é uma premissa para o funcionamento do corpo social.
No entanto, o desempenho individual é regido, controlado e punido pelo mesmo estado
que alega garantir a proteção da sociedade. Nessa conjuntura, Corpus delicti, com todas
as suas falhas literárias, expõe as estruturas e consequências do neoliberalismo,
evidenciando também as fraturas nos discursos que pregam a saúde, a produtividade e a
eficácia como indicativos de bem-estar e equilíbrio.

Bibliografia
FOUCAULT, Michel. Robert Hurley (trad.). The History of Sexuality: an Introduction
(volume 1). New York: Vintage, 1990 (1976).
__________. Michel Senellart (ed.). Graham Burchell (trad.). The Birth of Biopolitics:
Lectures at College de France 1978-1979. New York: Palgrave Macmillan, 2008.
ZEH, Juli. Corpus Delicti: Ein Prozess. Frankfurt a.M: Schöffling & Co.
Verlagsbuchhandlung GmbH, 2013 (2009).

1606
NASCIMENTO E MORTE EM TEMPOS DE SIGULARIDADE
TECNOLÓGICA

Marcelo Gustavo Costa de Brito (UEG/UnB)1

Resumo: Explorando o potencial das narrativas fílmicas informarem sobre as lutas simbólicas
no imaginário social em que foram produzidas, a partir da análise dos filmes Blade Runner
(Ridley Scott, EUA, 1982) e Gattaca (Andrew Niccol, EUA, 1997), o presente artigo discute os
esforços da ciência moderna para o controle artificial do nascimento e da morte, projetos ligados
à aceleração tecnocientífica característica da Singularidade Tecnológica. Na falta de um debate
amplo na esfera pública sobre tais “avanços tecnocientíficos”, muitas vezes cabe às narrativas
fílmicas lançar essas questões e apresentar, coletivamente, algumas das promessas e riscos
envolvidos em tais projetos.
Palavras-chave: Blade Runner; Gattaca; Singularidade Tecnológica; He Jiankui.

Introdução
Este artigo centra-se na análise de duas narrativas audiovisuais de considerável
destaque nas décadas finais do século XX, Blade Runner (Ridley Scott, EUA, 1982) e
Gattaca (Andrew Niccol, EUA, 1997). Nos cenários distópicos projetados por estes
filmes, é possível identificar elementos daquilo que filósofos e sociólogos nomearam
como Singularidade Tecnológica, espaço de experiência em que a aceleração
tecnocientífica e suas consequências para a vida humana são o foco do debate. Com
Blade Runner e Gattaca como indícios empíricos, pode-se observar a maneira como o
fenômeno da Singularidade foi representado coletivamente na época da produção destas
narrativas, especialmente no que se refere à questão do deslocamento de sentidos
atribuídos ao natural e ao artificial como constituintes da condição humana.
A abordagem aqui proposta, de cunho interdisciplinar, instrumentaliza-se a partir
das categorias imaginário e representação. Com Bronislaw Baczko, reconhecemos que
as narrativas que circulam coletivamente não apenas informam e entretêm, mas também
fabricam imaginários e identidades: “com efeito, aquilo que o mass media fabricam e
emitem, para além das informações centradas na atualidade, são os imaginários sociais.”
(BACZKO, 1985, p. 314).
É assim que através dos imaginários sociais, uma coletividade designa a sua
identidade; elabora uma certa representação de si; estabelece a distribuição

1
Mestre em Psicologia (UnB) e doutor em História (UnB), Professor adjunto de Teoria e Metodologia da
História (UEG). Email: marcelobrito@hotmail.com

1607
dos papéis e das posições sociais; exprime e impõe crenças comuns; constrói
uma espécie de código de bom comportamento. (Idem, p.309)

Baczko sustenta, portanto, que os imaginários sociais – a maneira como


nomeamos, classificamos e hierarquizamos o mundo – são fabricados e compartilhados,
em larga medida, pelas narrativas midiáticas. Na mesma linha, o historiador Roger
Chartier propõe a idéia do mundo como representação, pela qual considera-se “...os
esquemas geradores das classificações e das percepções, próprios de cada grupo ou
meio, como verdadeiras instituições sociais.” (CHARTIER, 1990, p.18). As
representações possuem uma eficácia propriamente simbólica de construção da
realidade. Assim, que aspectos Blade Runner e Gattaca nos revelam sobre o imaginário
em que foram imaginadas? Como representam a Singularidade?
Gattaca e a engenharia do homem pelo homem
Gattaca, narrativa audiovisual produzida e distribuída mundialmente pela
Columbia Pictures, foi concebido e dirigido pelo cineasta neozelandês Andrew Niccol2.
Lançado em 1997, Gattaca recebeu uma menção da NASA em 2011 como um dos
futuros mais plausíveis dentre as ficções científicas de sua época 3 . No pôster de
divulgação do filme, vemos os personagens vividos por Ethan Hawke e Uma Thurman,
protagonistas com quem iremos, pelo mecanismo de projeção/identificação4, adentrar o
imaginário proposto pela narrativa. Entre os personagens há ainda uma imagem, no
centro, formada pela sobreposição de um embrião humano e os anéis de saturno, alusão
aos dois campos do saber tecnocientífico sobre os quais toda a trama do futuro
cenarizado em Gattaca se desdobra: o domínio sobre o nascimento humano pela
engenharia genética e a conquista do espaço efetivada a partir das nanotecnologias
associadas à robótica. Esta imagem central, portanto, refere-se à ambiência tecnológica,
elemento decisivo na trama, em que o “not too distant future” proposto por Gattaca
mostra-se efetivado.

2
Nesse mesmo período, Niccol escreveu e co-produziu o inventido Show de Truman (Peter Weir, EUA,
1998). Por este trabalho, ganhou o prêmio BAFTA de Melhor Roteiro e foi indicado ao Oscar de Melhor
Roteiro Original em 1999.
3
Conferir “Nasa elege 2012 o filme de ficção científica mais absurdo de todos os tempos” in GLOBO,
http://oglobo.globo.com/cultura/nasa-elege-2012-filme-de-ficcao-cientifica-mais-absurdo-de-todos-os-
tempos-2843608
4
Edgar Morin aponta o mecanismo psicológico da projeção/identificação como a base para experiência
subjetiva do cinema. (MORIN, 1970, Cap.IV).

1608
“Em um futuro não tão distante, o DNA determina tudo sobre nós: uma gota de
sangue, de saliva, um único cabelo determinam aonde você pode trabalhar, com quem
você pode casar, o que você é capaz de atingir. Uma sociedade em que o sucesso é
determinado pela ciência e pautada pelos mais altos padrões de perfeição...” apresenta
um dos trailers de lançamento do filme. A trama se desenvolve a partir de Vincent
(Ethan Hawke), nascido por concepção natural, o que quer dizer que não foi fabricado
geneticamente, como era a regra comum no seu tempo. Regida pelo acaso, a concepção
natural não dotou Vincent com o material genético necessário para que ele pudesse
realizar o sonho de sua vida, tornar-se um piloto da agência espacial Gattaca. O mais
próximo de Gattaca que seus genes lhe permitem chegar é como integrante da equipe de
limpeza da edificação – situação aliás que ele aproveita ao máximo, aprendendo sobre
os vários tipos de testes-controle físicos e biológicos que os empregados daquela
corporação eram submetidos e que ele teria que burlar. Para realizar seu sonho num
mundo feito para os geneticamente fabricados, Vincent sabe que sua única chance é
esconder a própria identidade tomando emprestado a identidade de uma outra pessoa.
Ainda nos minutos iniciais da narrativa, ocorre um diálogo importante sobre
como a ambiência tecnocientífica do futuro não tão distante de Gattaca alterou de
maneira fundamental o processo reprodutivo da espécie. Significativo é que este mesmo

1609
diálogo foi incluído em versão mais extensa nos extras do filme. Explorando esse fato, o
contraste entre as duas versões não deixa dúvidas de que Niccol aborda, pela ficção, a
questão da Singularidade Tecnológica muito próximo das mais recentes reflexões
teóricas – principalmente de filósofos e sociólogos – sobre o tema. Vejamos.
Como a maioria dos seus pares, os pais de Vincent decidiram que seu próximo
filho nasceria pela forma “natural” naquela época, ou seja, seria fabricado
geneticamente. A cena inicia-se com a chegada de Antonio e Marie a um laboratório de
fertilização artificial, quando são recebidos pelo cientista responsável:

Cientista: Os seus óvulos extraídos, Marie, foram fertilizados com o esperma de Antonio. Após a seleção,
ficamos com dois garotos saudáveis, e duas garotas muito saudáveis. Claro, nenhum tem predisposição a
doenças sérias. Só nos resta selecionar o candidato mais compatível. Primeiro temos que escolher o sexo.
Já se decidiram?
Marie: Queremos que o Vincent tenha um irmão... para brincar.
Cientista: Entendo. Vocês especificaram olhos castanhos, cabelos escuros e pele clara. Tomei a liberdade
para erradicar características prejudiciais, calvície prematura, miopia, predisposição para álcool e drogas,
propensão à violência, obesidade...
Marie: Não queríamos doenças, claro. Mas...
Antonio: ...achamos melhor deixar algumas coisas para o acaso.
Cientista: Queremos dar ao seu filho as melhores condições. Acreditem, já temos imperfeições demais.
Uma criança não precisa de mais um fardo. E ele herdará as características de vocês. As melhores que
têm. Uma concepção natural jamais alcaçaria tal resultado.

Este é o diálogo presente no filme. Com ele, sabemos que a concepção artificial
do embrião humano garante que várias características indesejáveis possam ser
eliminadas antes do nascimento, gerando seres humanos geneticamente mais perfeitos,
fabricados de acordo com os desejos dos pais, algo que uma concepção natural jamais
alcançaria. Na versão ampliada incluída nos extras, esse diálogo desdobra ainda mais
um aspecto importante:
Cientista: Sr. Antonio, seu filho será mais alto que você com 16 anos (risos). Muito bem. Esqueci alguma
coisa?
Antonio: Nós esperamos que ele se case e tenha filhos. Nós gostaríamos de ter netos.
Cientista: Entendo, vamos tomar conta disso. Ah, com um pagamento extra, posso adicionar habilidades
matemáticas ou musicais. Seu filho teria um futuro brilhante garantido.
Marie (demonstrando animação junto com Antonio): Isso é interessante. Quanto a mais nos custaria?
Cientista: 30 mil.
Marie (desanimada): não, infelizmente não faremos.

1610
Contrapondo as duas versões, é possível perceber o posicionamento de Niccol
sobre a Singularidade e a ética que lhe substancia. Caso tivesse mantido no filme a
versão mais extensa do diálogo, seu argumento poderia ser confundido como um alerta
apenas quanto ao risco do uso privilegiado da tecnociência por uma elite econômica.
Nesse caso, o objetivo pretendido pelo Projeto Genoma, qual seja, a fabricação do
homem pelo homem, não seria em si mesmo alvo de questionamento: o risco seria de
que esse projeto pudesse sofrer deturpações, como no caso a criação de uma superelite
geneticamente superior para aqueles que podem pagar por isso.
Mas a edição do diálogo sugere que essa não era a linha argumentativa
pretendida pelo autor, já que o pagamento extra por privilégios genéticos –
matemáticos ou musicais – não fez parte do formato final do filme. Além disso, em
nenhum momento o enredo foca na impossibilidade econômica de alguns terem acesso a
um embrião fabricado e outros não. A proposta de Niccol, na verdade, é muito mais
densa: em Gattaca, a tecnociência cumpre exatamente o que promete. Se algo nos
incomoda no futuro não tão distante encenado, não é o desvio do caminho, mas o
sucesso mesmo do avanço tecnocientífico. São os próprios sonhos que movem a
tecnociência que são colocados em suspeição nesta narrativa. Nesse caso específico, o
sonho da fabricação artificial do homem pelo homem.
Recentemente, em artigo de 2007, ao tratar das nanobiotecnologias, em especial
da engenharia genética, o filósofo Jean Pierre Dupuy chamava a atenção para que os
sonhos envolvidos na tecnociência também fossem objeto de reflexão:
No meu trabalho sobre ética das nanotecnologias defendi a tese de que essa
ética não podia ser simplesmente consequencialista, no sentido de que ela só
considerasse as consequências causais de técnicas já realizadas. Os sonhos
que essas técnicas trazem e que seus desenvolvimentos ao mesmo tempo
escancaram e reforçam devem também ser objeto de avaliação normativa
(DUPUY, 2007, p.32).

Dupuy recorda Hannah Arendt, que no seu clássico A Condição Humana, em


1958, profetizava:
O mundo – artifício humano – separa a existência do homem de todo
ambiente meramente animal; mas a vida em si permanece fora desse mundo
artificial, e, através da vida, o homem permanece ligado a todos os outros
organismos vivos. Recentemente a ciência vem se esforçando por tornar
“artificial” a própria vida, por cortar o último laço que faz do próprio homem
um filho da natureza. (...) Esse homem futuro, que segundo os cientistas será
produzido em menos de um século, parece motivado por uma rebelião contra
a existência humana tal como nos foi dada – um dom gratuito vindo do nada

1611
(secularmente falando), que ele deseja trocar, por assim dizer, por algo
produzido por ele mesmo. (ARENDT apud DUPUY, op.cit, p.36)

Passados 60 anos desde a profecia de Arendt e 20 anos desde que foi


representado por Niccol, “esse homem futuro (...) motivado por uma rebelião contra a
existência humana tal como nos foi dada” enfim concretizou seu sonho.
Em novembro de 2018, o cientista chinês He Jiankui comunicou ao mundo ter
criado os primeiros bebês geneticamente modificados da história, imunes ao vírus HIV:
“Se a tecnologia estiver disponível”, afirma o cientista, “podemos ajudar as pessoas que
dela necessitarem.”5 Já para o biólogo espanhol Lluís Montoliu, pesquisador do Centro
Nacional de Biotecnologia e presidente fundador da Sociedade Internacional para as
Tecnologias Transgênicas, a realização do cientista chinês configura-se como uma
tentativa de melhora genética da espécie humana. De acordo com Montoliu, as
prováveis consequências de tal empreendimento já podem ser previstas: “Foi aberta
uma caixa de Pandora. É de uma irresponsabilidade colossal. Não é uma edição para
curar. É uma melhora genética. O passo seguinte é uma eugenia total. Dirão aos pais: ‘O
que os senhores desejam?’”.6
O “homem futuro” de Arendt e Niccol, apto a trocar a vida concebida
naturalmente – um “dom gratuito vindo do nada” – por algo produzido por ele mesmo,
já é realidade nos corredores de alguns dos principais centros de pesquisa no mundo.
No final dos extras disponibilizados no filme, Niccol propõe um último
argumento/cenário para marcar sua posição nesse debate. Inicia-se assim:
“Em poucos anos, cientistas irão completar o Projeto Genoma, mapeando todos os
genes que nos fazem humanos...”
“...estamos agora num ponto em que poderemos direcionar nossa própria evolução...”
“...se tivéssemos adquirido este conhecimento um pouco antes, as seguintes pessoas
talvez não teriam nascido...”
E então sucedem-se imagens de algumas personalidades, uma a uma. Dentre elas
Abraham Lincoln, portador da síndrome de Marfan; Van Gogh, que sofria de epilepsia;
Albert Einstein, dislexia; Ray Charles, glaucoma primário; e Stephen Hawkin,
esclerose.
5
“Cientista chinês que modificou geneticamente dois bebês defende seu experimento” in EL PAIS,
28/11/2018. https://brasil.elpais.com/brasil/2018/11/28/ciencia/1543381113_429352.html
6
“Com modificação genética em bebês, China criou uma nova estirpe de humanos” in EL PAIS,
27/11/2018. https://brasil.elpais.com/brasil/2018/11/26/ciencia/1543253567_659329.html

1612
Após as imagens dessas personalidades, que talvez não teriam nascido se o
Projeto Genoma em sua busca por “garantir as melhores condições para o nascimento”
tivesse se efetivado um pouco antes, Niccol conclui seu raciocínio:
“... E claro, outro nascimento que provavelmente não teria ocorrido é o nosso.”

Blade Runner e as fluidas fronteiras entre homens e máquinas

A preocupação, expressa nas ficções, quanto ao desenvolvimento da ciência sem


uma correspondente reflexão ética sobre suas implicações, não é um fenômeno recente.
No mínimo, poderíamos recuar até 1818, com o Frankenstein de Mary Shelley
(SHELLEY, 1989), claro indício do receio quanto ao processo colocado em curso pela
modernização do mundo. Mas foi especialmente a partir da segunda metade do século
XX que tal discussão se adensou, muito devido à chamada “avalanche tecnológica”
resultante da aceleração tecnocientífica engatada na aceleração do capitalismo global. A
tecnociência, financiada pelo capital, entrou numa fase de progressos vertiginosos, com
promessas de modificar completamente vários aspectos do cotidiano. Ainda na década
de 1960, a conquista do espaço foi um dos símbolos desse processo7. É desta época
também, de 1956, a idéia de “obsolescência do homem” proposta por Günther Anders,
primeiro marido de Hannah Arendt. Em linhas gerais, trata-se da vergonha de termos
sido concebidos aleatoriamente e não fabricados, além de não determos o controle sobre
a morte. Daí a tecnociência buscar a superação desses limites, gerando uma nova
condição humana – pós-humana – que tornaria a condição humana natural obsoleta.
Vimos que o Projeto Genoma tenta dar conta do primeiro aspecto, o controle sobre o
nascimento; já o domínio sobre a morte é uma das promessas dos avanços da Robótica e
da Inteligência Artificial.
Embora praticamente inexistentes na esfera pública, onde de maneira geral
sempre foram abafadas em nome da naturalização de um progresso tido como desejado
e inevitável, preocupações relativas à tecnociência mantiveram-se presentes na
academia ao longo das décadas seguintes. Foi então que, em artigo acadêmico publicado
em 1993, o escritor de ficção científica Vernor Vinge nomeou esse processo de
aceleração tecnológica como Singularidade Tecnológica. Em “The Technological

7
Hannah Arendt escreveu na época instigante artigo em que indagava se a conquista do espaço
aumentava ou diminuía a estatura do humano. Cf. (ARENDT, 2009).

1613
Singularity”, Vinge introduz a idéia de que “estamos no limiar de uma mudança
comparável ao surgimento da vida humana na Terra. A causa precisa dessa mudança é a
iminente criação pela tecnologia de entidades com inteligência superior à humana”.
Vinge, pensando nos avanços da Inteligência Artificial, vinculou tal idéia ao intelecto
sobre-humano, porque, para ele, “a sobre-humanidade é a essência da Singularidade.”
Sobre a tese de Vinge, o sociólogo professor da Unicamp Laymert Garcia dos Santos
comenta:
E foi ainda Vinge quem estabeleceu uma analogia entre esse acontecimento
[a Singularidade] e o surgimento do homem na perspectiva da evolução das
espécies, ao afirmar que estávamos entrando num regime tão radicalmente
diferente do de nosso passado humano quanto foi o dos homens com relação
aos animais inferiores. Assim, tal analogia, ao mesmo tempo em que
anunciava a “superação” da espécie, consagrava o advento da era pós-
humana. (SANTOS, 2008, p.51)

Uma década antes desse polêmico artigo de Vernor Vinge, Ridley Scott levou
para as telas do cinema Blade Runner. Neste clássico da ficção científica, somos
lançados num cenário ficcional onde a questão das fronteiras identitárias entre humanos
e máquinas é levada ao limite, o que nos faz indagar sobre o próprio estatuto do humano
neste novo cenário. A questão da Singularidade, assim, atravessa de ponta a ponta o
enredo sombrio da Los Angeles de 2019 cenarizada por Scott.
Em Blade Runner, a humanidade prepara-se para habitar outros planetas. O que
nos impulsiona à conquista do espaço é o caos sócio-ambiental da vida na Terra. Numa
urbe noturna formada por imensos arranha-céus em que o sol praticamente não brilha,
marcada por uma névoa de gases tóxicos que escapam dos bueiros e por uma garoa
permanente, animais biológicos, quase todos extintos, são artigos de luxo. As ruas
imundas, superlotadas de carros e gente, são depósito aberto de lixo sucateado. Nesse
cenário, a colonização de outros planetas passou a ser uma necessidade. E para realizar
o trabalho pesado de exploração e preparação desses planetas para ocupação humana, o
gênio criativo da espécie alcança o apogeu da sua aventura tecnocientífica: associando
biogenética e robótica, cria-se uma das mais incríveis máquinas já imaginadas, robôs
orgânicos construídos geneticamente chamados de replicantes. Indistinguíveis
visualmente de qualquer ser humano, os replicantes são, porém, mais rápidos, mais
fortes e mais resistentes a condições adversas. Os mais avançados são tão inteligentes,
no mínimo, quanto os seus engenheiros construtores. No entanto, mesmo programados
para não desenvolverem sentimentos, começam a apresentar “instabilidade emocional”,

1614
tornando-se uma ameaça aos seus criadores. Por esta razão foram banidos da Terra e
possuem, em sua programação, um tempo de vida limitado há 4 anos.
O enredo de Blade Runner se desenvolve no ano de 2019, quando um grupo de
replicantes se rebela contra esse limite de tempo de vida e decide vir à Terra,
especificamente a Los Angeles, onde está a sede de uma das maiores megacorporações
da época, a Tyrell, que os havia fabricado. Os replicantes querem um encontro com o
seu criador, com o objetivo de reverter o curto período de vida a que estão programados.
Devido à periculosidade deste grupo, a polícia encarregada de desativar os replicantes
convoca um competente caçador de androides aposentado para a realização da tarefa,
Rick Deckard (Harrison Ford). Sem grande entusiasmo, Deckard assume o trabalho, e
sua perseguição ao grupo de androides é a linha condutora do enredo, dando a Blade
Runner a forma dos antigos filmes noir de detetives envoltos em ambientes dark.
Numa primeira abordagem sobre os novos limites de identidade e alteridade
entre homens e máquinas, o médico e psicanalista junguiano Walter Boechat aponta
como, na medicina contemporânea, esses limites já se romperam:
As próteses são instrumentais da téchne humana feitas para aumentar e
diferenciar órgãos da percepção, facilitando a adaptação do sujeito ao
ambiente externo. Ainda voltando a lembrar a sofisticada tecnologia dos
transplantes, os órgãos artificiais, os medicamentos que em número cada vez
maior circulam no sangue das pessoas, onde está o homem, onde está o
androide? Surge aqui o androide como identidade.(BOECHAT, 2008, p.191).

Muito mais incisivo quanto aos possíveis desdobramentos do binômio homem-


máquina, o professor da Unicamp Laymert Garcia dos Santos resume a profunda
mutação, atualmente em curso, já antecipada em Blade Runner:
Com efeito, vem crescendo nas últimas décadas a percepção de que estamos
no limiar de uma nova era, no que concerne ao indivíduo e à espécie, em
virtude do modo como a aceleração econômica do capitalismo global engatou
na aceleração tecnocientífica, a ponto de construir o que o poeta Heiner
Müller designou como “estratégia da aceleração total”, que em seu entender,
vai conduzir ao desaparecimento do humano no vetor da tecnologia
(SANTOS, 2008, p.47).

A “estratégia da aceleração total” que conduz ao “desaparecimento do humano


no vetor da tecnologia”. Esta seria, sem dúvida, uma revolução antropológica profunda
na imagem do que se entende hoje como humano. Mais do que refletir sobre a produção
de androides que nos serviriam como escravos e que podem se rebelar contra seus
criadores – o recorrente receio da criatura se voltar contra o criador – Blade Runner
sugere que estaríamos nos encaminhando, nesta avalanche tecnológica, para um tempo

1615
em que não apenas criaríamos androides “mais humanos que um humano” para nos
servir, mas seríamos nós mesmos um corpo androide num futuro “pós-humano”. Mas
em tal cenário, é preciso indagar, ainda seríamos nós?
A atualidade e plausibilidade do tema antevisto no filme são notórias. Em maio
de 2013, foi noticiado mundialmente que “Empresário russo quer transferir cérebro para
robô e ser imortal”. Trata-se de Dmitry Itskov, multimilionário russo à frente do projeto
“Iniciativa 2045”, ação que conta com especialistas russos em interfaces neurológicos
(para comunicação entre cérebro e computador), robótica, órgãos artificias e sistemas
informáticos. Segundo os cientistas responsáveis, o projeto tem como objetivos “a
transferência da personalidade de um indivíduo para um portador mais avançado não-
biológico, além da extensão da vida, incluindo a questão da imortalidade.” Em suma, “a
idéia do empresário é transferir seu cérebro para um androide e, através dele, viver para
sempre.”8

O jovem empresário russo Dmitry Itskov...

8
Empresário russo quer transferir cérebro para robô e ser imortal” in Globo,03/01/2001
http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2013/05/empresario-russo-quer-transferir-cerebro-para-robo-
e-ser-imortal.html

1616
... em sua versão pós-humana, já adiantada em seu desenvolvimento

Finalmente, Blade Runner, na versão final do diretor, incluiu uma cena


literalmente onírica, retirada da versão comercial por não ter sido entendida pelos seus
produtores. Deckard, sentado melancólico em frente ao piano de sua casa, entre o sono e
a vigília, é surpreendido pela imagem de um unicórnio branco, correndo em sua direção
numa floresta virgem. A imagem é rápida e, no momento em que ocorre, não se pode de
fato compreendê-la. Mas como os grandes sonhos que dificilmente revelam seu sentido
de imediato, ao final da trama, magistralmente, como o último ato que deve reverberar
no espectador quando se encerra a projeção fílmica, aquele feixe onírico nos lança em
definitivo no abismo das indefinidas fronteiras entre homens e máquinas. Ao encontrar
um pequeno origami de unicórnio quando tenta escapar com Rachel, na versão
comercial aquilo apenas indicava para Deckard que os caçadores de androides haviam
estado em sua residência e decidiram poupar a vida da replicante. Mas na versão de
Scott, se associamos a esta cena final o unicórnio mítico imaginado por Deckard ao
piano, somos tomados de espanto ao perceber que os caçadores de androides conheciam
o padrão de memória de Deckard, o que sugere que nosso herói do futuro já habitava
um corpo androide.
Referências

ARENDT, Hannah. “A Conquista do Espaço e a Estatura Humana” In Entre o passado


e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2009.
BOECHAT, Walter. “A mitopoese na era tecnológica – Mitos e Arquétipos da ficção
científica” in A Mitopoese da psique: mito e individuação. Petrópolis: Vozes, 2008.

1617
DUPUY, Jean-Pierre. “Fabricação do homem e da natureza” In NOVAES, Adauto
(org.) Mutações: ensaios sobre as novas configurações do mundo. Rio de Janeiro: Agir
e São Paulo: Ed. SESC, 2008.
MORIN, Edgar. O cinema e o Homem imaginário. Lisboa: Moraes editores, 1970.
SANTOS, Laymert Garcia. “Humano, Pós-humano, Transumano” In NOVAES, Adauto
(org.) Mutações: ensaios sobre as novas configurações do mundo. Rio de Janeiro: Agir
e São Paulo: Ed. SESC, 2008.
SHELLEY, Mary (1818). Frankenstein ou o Prometeu moderno. São Paulo: Círculo do
Livro, 1989.

Artigos publicados em meio eletrônico

“Cientista chinês que modificou geneticamente dois bebês defende seu experimento” in
EL PAIS,28/11/2018.
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/11/28/ciencia/1543381113_429352.html
“Com modificação genética em bebês, China criou uma nova estirpe de humanos” in EL
PAIS,27/11/2018.
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/11/26/ciencia/1543253567_659329.html
“Empresário russo quer transferir cérebro para robô e ser imortal” in Globo,03/01/2001
http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2013/05/empresario-russo-quer-transferir-
cerebro-para-robo-e-ser-imortal.html
“Nasa elege 2012 o filme de ficção científica mais absurdo de todos os tempos” in
GLOBO, http://oglobo.globo.com/cultura/nasa-elege-2012-filme-de-ficcao-cientifica-
mais-absurdo-de-todos-os-tempos-2843608

1618
O COMPONENTE EPISTEMOLÓGICO EM O CONTO DA AIA, DE
MARGARET ATWOOD
Mariana Mendes Flores (UFJF)1
Resumo: Este artigo tem por objetivo destacar a relevância do componente epistemológico na
narrativa de Ficção Científica distópica O Conto da Aia (1985), da escritora canadense Margaret
Atwood. Para tal finalidade, articularemos os conceitos de dominante ontológico e
epistemológico, propostos por Brian McHale (1987) às proposições de Ritch Calvin (2016)
acerca das relações entre a epistemologia feminista contemporânea e narrativas de Ficção
Científica Feminista.
Palavras-chave: Ficção Científica; Feminismo; Epistemologia; O Conto da Aia; Margaret
Atwood;

Introdução
Ao refletir sobre o gênero Ficção Científica, Brian McHale aponta em
Postmodernist Fiction (1987) que este tipo de ficção é norteado por um dominante
ontológico, pelo fato de promover tensões sobre o que se pode compreender sobre a
realidade. Narrativas orientadas por este dominante apresentam em si uma
descontinuidade em relação à realidade empírica e, por isso, representam mundos
possíveis relativamente distintos do que vivenciamos. Segundo o autor, textos que
apresentam esta orientação tendem a incitar questionamentos como “Que mundo é este?
Que tipos de mundo existem e como são constituídos, em que se diferenciam?”
(MCHALE, 1987, p. 6).
McHale define também a concepção de dominante epistemológico, uma vez que
sustenta a hipótese de que a principal mudança estrutural entre a ficção modernista e a
pós-moderna consiste na alternância do dominante epistemológico para o ontológico.
De acordo com o teórico, textos que apresentam a modalidade epistemológica como
dominante estão centrados nas percepções individuais dos personagens em relação ao
mundo que vivenciam, por isso, pautam-se nas individualidades e expressões de suas
subjetividades.

1
Graduada em Letras – Língua Portuguesa e respectivas literaturas (2013), Mestra em Letras: Estudos
Literários (2015) e doutoranda em Letras: Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora.
Contato: flores.marianam@gmail.com.

1619
Aproximações entre o componente epistemológico e a epistemologia feminista
contemporânea

A sustentação do componente epistemológico dentro da estrutura textual


fundamenta-se em convenções que evidenciam a indefinição ou incompletude do texto,
dúvidas epistemológicas estimuladas pelo enredo e demais elementos da narrativa. Por
isso, seus aspectos semânticos acabam por transferir estas mesmas dúvidas ao leitor,
respeitando assim suas idiossincrasias. De acordo com McHale:

podemos certamente dizer que isto [o dominante epistemológico] envolve


profundamente o leitor nas preocupações levantadas pela própria narrativa,
‘transferindo’ para ele ou ela (quase que no sentido psicanalítico) os mesmos
problemas inerentes à construção de uma história coerente a partir de um
texto radicalmente indefinido e duvidoso que envolve os próprios
personagens (1987, p. 9 – tradução nossa)2.

Narrativas orientadas por esse dominante, portanto, condicionam um processo de


investigação e, por este motivo, o pesquisador teria definido o gênero detetivesco como
exemplar dessa modalidade. Assim como o detetive que investiga a motivação e a
execução de um crime por estar buscando as verdades por trás de um fato, o leitor
também desconhece tais informações e, por isso, ambos ocupam a mesma posição de
incerteza epistemológica. Reis e Lopes (1988) denominam como “mundos epistêmicos”
o conjunto de características subjetivas dos personagens, que são

definidos em função [de suas] crenças e pressuposições [...] (ideologias,


atitudes ético-morais, opções axiológicas, etc.) . Por outro lado, na relação de
cooperação interpretativa, o leitor introduz na história, através de
mecanismos de inferência e previsão, as suas próprias atitudes epistêmicas. A
dinâmica da narração desenvolve-se na interação constante desses mundos, e
no romance policial, por exemplo, a estratégia do narrador consiste
justamente numa exploração hábil das contradições entre as expectativas do
intérprete e a sequência efetiva dos diferentes estados do mundo da história
(REIS e LOPES, 1988, p. 19).

Ritch Calvin (2016), ao tratar especificamente da Ficção Científica Feminista,


compreende que as narrativas inscritas nesse subgênero, além de questionamentos de
ordem ontológica – por serem ambientadas em realidades distintas –, levantam
2
Do original: “we can certainly say that it deeply implicates its reader in its own preoccupations,
“transferring” to him or her (almost in the psychoanalysts’ sense) the same problems of reconstructing a
coherent story from radically indefinite and doubtful text that beset its own characters”.

1620
perguntas epistemológicas, ou seja, tendem a incitar reflexões acerca das relações entre
os sujeitos representados e o ambiente sociocultural em que estão imersos. A distinção
entre essa abordagem e aquela orientada exclusivamente pelo dominante ontológico –
que, objetivamente, busca descrever um universo e que se concentra nos traços do
ambiente criado ficcionalmente – está fundamentada nas percepções subjetivas dos
sujeitos representados, consolidando-se como “uma série de estratégias de escrita e
leitura que codificam e decodificam práticas e normas sociais” (CALVIN, 2016, p. 6 –
tradução nossa)3. Logo, não há uma relação de exclusão entre a perspectiva ontológica e
a epistemológica, sobretudo em narrativas ficcionais ambientadas em um “mundo
possível”, como ocorre em Ficções Científicas, e que, além disso, são narradas a partir
da perspectiva de quem experiencia aquele mundo, o que consideramos ser um traço
recorrente na Ficção Científica Feminista. Conforme explicita Steven Connor:

Enquanto a epistemologia é o estudo do conhecimento e da compreensão, a


ontologia estuda a natureza do ser e da existência [...]. As preocupações
ontológicas e epistemológicas de forma alguma são mutuamente exclusivas,
porque perguntar como um mundo é constituído e como difere de outros
mundos possíveis é sempre perguntar sobre as condições da
compreensibilidade desse mundo (CONNOR, 2004, p.105).

Em O Conto da Aia, temos acesso a Gilead, o Estado totalitário e teocrático que


ambienta a narrativa a partir do relato da experiência da narradora Offred. A
enunciadora exprime em seu testemunho clandestino impressões individuais acerca dos
acontecimentos, constituindo, assim, uma versão historiográfica construída pela voz de
um sujeito oprimido. Esta percepção permite o estabelecimento de relações entre a
narrativa e o pensamento de Linda Alcoff e outras epistemologistas contemporâneas
cujos argumentos se concentram na possibilidade de trangressão dos discursos
dominantes pela voz dos subalternos.
A partir disso, compreendemos que a imersão de diversos elementos da narrativa
– como personagens, espaço e tempo –, em um contexto elaborado para a história de
Ficção Científica, incita reflexões acerca do pertencimento desses elementos na
dinâmica social do “mundo possível” criado. Partindo do estranhamento cognitivo,

3
Do original:”a set of writing and reading practices that code and decode social practices and norms”.

1621
efeito surgido pelos nova4 inseridos nas narrativas em análise, temos acesso a um
contexto ficcional, o qual, na posição de leitores, faz com que percorramos o mesmo
caminho trilhado pelo autor (ou pelo narrador) na construção da narrativa. Assim,
somos colocados em uma posição de coparticipação na construção do sentido, o que
pode fazer com que visualizemos de forma ampliada algumas situações de opressão
vividas no mundo criado ficcionalmente e que, consequentemente, estimula reflexões
acerca da realidade que vivenciamos.
Por isso, corroboramos Calvin (2016) em sua premissa de que o componente
epistemológico evidencia tais problemáticas e que, no caso da Ficção Científica
Feminista, se estabelece como “parte e parcela de uma forma particular de
compreensão, leitura e ‘decodificação’ de gênero na sociedade” (2016, p. 13). O teórico
define como Ficção Científica Feminista Epistemológica (Feminist Epistemological
Science Fiction) as narrativas do gênero Ficção Científica que levantam questões
semelhantes à reformulação da epistemologia dominante promovida por pensadoras
contemporâneas. Isso porque, da mesma forma que o componente epistemológico
atribui à narrativa uma perspectiva voltada para as percepções dos personagens acerca
do mundo que vivenciam, a vertente contemporânea e feminista da epistemologia
também insere questões subjetivas na construção do conhecimento, além de reivindicar
a credibilidade dos discursos produzidos pela perspectiva do oprimido. Desse modo,
tornam-se legítimos os seguintes questionamentos, também de ordem epistemológica:
“A quem é facultado o saber?; Como se sabe e com que grau de certeza?; Como o
conhecimento é transmitido de pessoa para pessoa e com que grau de confiabilidade?”.
De acordo com Calvin:

Essas ficções oferecem um mundo fictivo ou diegético que se diferencia, de


certa forma, de nossa realidade cotidiana, e a partir deste distanciamento, a
narrativa encoraja os leitores a refletir e reexaminar suas próprias certezas e
práticas. Essas ficções impulsionam reflexões sobre a cultura e engajam [os
leitores] a preocupações sociais, culturais e políticas características da
contemporaneidade (CALVIN, 2016, p. 6 – tradução nossa)5

4
Definido como novum (plural: nova), esse aparato simbólico é caracterizado por Adam Roberts como
“uma função que de forma envolvente engaja nossa imaginação, o novum nos coloca em uma posição de
reescrita, de reconceptualização da realidade que nos é familiar” (ROBERTS, 1999, p. 20)4. De acordo
com Suvin, “o novum é a condição necessária para a Ficção Científica (o que a diferencia da ficção
naturalística)” (SUVIN, 1979, p. 64).
5
Do original: “These fictions offer a fictive or diegetic world that differs in some ways from our everyday
lived reality, and in this gap, the narrative encourages readers to reflect and re-examine zher own

1622
Segundo Luzia Margareth Rago (1998), epistemologistas feministas tensionam o
modo de construção do saber, inserindo em suas análises questões identitárias
específicas:

O feminismo não apenas tem produzido uma crítica contundente ao modo


dominante de produção do conhecimento científico, como também propõe
um modo alternativo de operação e articulação nesta esfera. Além disso, se
consideramos que as mulheres trazem uma experiência histórica e cultural
diferenciada da masculina, ao menos até o presente, uma experiência que
várias já classificaram como das margens, da construção miúda, da gestão do
detalhe, que se expressa na busca de uma nova linguagem, ou na produção de
um contradiscurso, é inegável que uma profunda mutação vem-se
processando também na produção do conhecimento científico (RAGO, 1998,
p. 3).

O contraponto inicial dessa proposição em relação à filosofia ocidental parte


da noção de que, tradicionalmente, estabelecem-se modelos de indivíduos a quem são
conferidos os verdadeiros conhecimentos. A visão platônica, por exemplo, sustenta que
o conhecimento é possível apenas para aqueles que conseguem, racionalmente,
controlar suas paixões. Descartes, pelo viés do racionalismo, atribui a autonomia
epistêmica ao sujeito que rejeita qualquer crença que não seja pautada pela sua própria
razão e pela operação de princípios lógicos. Posteriormente, o empirista John Locke
credita o conhecimento à experiência possível de ser adquirida a partir de percepções
sensoriais, considerando que, além da razão, os sentimentos e a imaginação contribuem
para o processo de sistematização de uma concepção daquilo que é estabelecido como
verdade (cf. COTRIM e FERNANDES, 2010, p. 155-162). Ao propor uma reconstrução
da epistemologia pautada na descentralização dos discursos dominantes e na inserção
das vozes minoritárias, Linda Alcoff (2016) aponta a necessidade de abertura de
espaços políticos para o que chama de “epistemologia decolonial revolucionária”. De
acordo com Alcoff:

A epistemologia tem sido a teoria protocolar para o domínio da


discursividade no ocidente, situada numa posição de autoridade que lhe
permite um julgamento bem além dos ciclos filosóficos. A epistemologia
presume o direito de julgar, por exemplo, o conhecimento reivindicado por
parteiras, as ontologias de povos originários, a prática médica de povos

assumptions and practices. These fictions operate as both reflections of and cultural engagements with
contemporary social, cultural, and political concerns”.

1623
colonizados e até mesmo relatos de experiência em primeira pessoa de todos
os tipos. É realístico acreditar que uma simples “epistemologia mestre” possa
julgar todo tipo de conhecimento originado de diversas localizações culturais
e sociais? As reivindicações de conhecimento universal sobre o saber
precisam no mínimo de uma profunda reflexão sobre sua localização cultural
e social (ALCOFF, 2016, p. 131).

Logo, as questões identitárias e subjetivas passam a ser consideradas para a


validação de conhecimentos científicos, diferentemente da concepção tradicional do
pensamento epistemológico, que preza pela indeterminação dos sujeitos, o que, na
prática, relega o crédito do conhecimento vigente a grupos sociais dominantes. A
concepção platônica, já mencionada, retira do primeiro plano as percepções individuais,
inerentes aos sentidos, rejeitando-as como critérios válidos para a construção do
conhecimento. De acordo com Calvin, “Por outro lado, (algumas) epistemologistas
feministas/naturalistas valorizam o material em relação ao imaterial, o corpóreo em
relação ao mental e o cotidiano em relação à idealização” (2016, p. 31 – tradução
nossa)6.
Gayatri Spivak, em “Pode o subalterno falar?” (1988), expande a discussão ao
problematizar a posição do intelectual em relação a um objeto subalterno. A posição
privilegiada de um intelectual que se propõe a falar de um grupo social marginalizado se
torna alvo de questionamento justamente pelo fato de se sustentar em uma
epistemologia dominante e unilateral. A pergunta – “Pode o subalterno falar?” –
significa mais do que o questionamento sobre a oportunidade de se fazer ouvir a partir
do discurso. Pode esse subalterno tecer seu discurso conscientemente, ciente de seu
lugar e do que representa na sociedade? Ao apontar para uma violência epistêmica
praticada por uma ciência que, na tentativa de inserir o Outro acaba por limitar sua
capacidade de expressão e de construção de um discurso alternativo baseado em sua
própria experiência, a autora problematiza a configuração do escritor como intelectual
discutida por Foucault e Deleuze no diálogo documentado sob o título de “Os
intelectuais e o poder” (1972). Desta autocrítica em forma de diálogo podemos extrair
que, para os filósofos em questão, o intelectual passa a agir em defesa de uma causa e
que não deve se limitar a uma “consciência representante ou representativa”
(FOUCAULT e DELEUZE, [1972] 2016, p. 131). A luta contra os poderes coercitivos,

6
Do original: “On the contrary, (some) feminist/naturalist epistemologists valorize the material over
immaterial, the corporeal over the mental, and the everyday over idealized.”

1624
paradoxalmente invisíveis e ao mesmo tempo sensíveis, uniria a ação de teoria à ação
prática, dadas as situações em que as opressões e os abusos de poder ocorrem no
cotidiano. No entanto, para Spivak (1988), mesmo que essa autoanálise seja válida, do
ponto de vista ético, ainda permanece vigente uma hierarquia de construção do saber
que, mesmo que tenha como propósito trazer para o centro das discussões questões
relativas às alteridades subalternas, acaba por retirar o protagonismo de grupos
minoritários no que tange suas próprias lutas, bem como se limitar a um contexto
europeu e que, portanto, não contempla em sua sistematização a condição de povos
colonizados.

Conclusão

A partir da análise de diversas narrativas inscritas no subgênero Ficção


Científica Feminista, Calvin (2016) sustenta, como dissemos, que os elementos
estruturais, bem como a pessoa do discurso e sua perspectiva, são determinantes para a
identificação do componente epistemológico nessas construções textuais. Ao analisar
discursos em primeira pessoa, narrados a partir da perspectiva autodiegética, o teórico
(ibid.) observa que, à medida que o enredo se desenrola, guiado pela voz do narrador,
um processo de investigação se inicia. À medida que a leitura avança, portanto, o
receptor passa a ter conhecimento dos acontecimentos narrados, tendo como fonte a voz
desses narradores que apresentam os fatos baseados em suas próprias experiências. O
fator da narração em primeira pessoa enfatiza a posição empírica do narrador, o que,
consequentemente, pode refletir na confiabilidade deste discurso, uma vez que,
dependendo das características desses personagens-autores, suas falas podem adquirir
um caráter radicalmente indeterminado ou duvidoso. Por outro lado, há de se considerar
as motivações que podem causar essa indeterminação, pois, no caso de O Conto da Aia,
o relato de experiência de Offred representa um ato subversivo, motivado pelo desejo de
apresentação de vozes subalternas e que representam, fundamentalmente, as versões dos
fatos apresentadas a partir do ponto de vista do oprimido, do Outro, daquele que
desaparece quando as versões oficiais da História são documentadas pelo conhecimento
produzido pelos grupos dominantes.

1625
Referências

ALCOFF, Linda. Uma epistemologia para a próxima revolução. Revista Sociedade e


Estado. Volume 31, n. 1, jan/abr 2016. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/se/v31n1/0102-6992-se-31-01-00129.pdf.> Acesso em: 01
nov. 2018.

ATWOOD, Margaret Eleanor.. O conto da aia. [1985]. Trad. Ana Deiró. Rio de
Janeiro: Rocco, 2017.

CALVIN, Ritch. Feminist Science Fiction and Feminist Epistemology: Four modes.
Stony Brook: Palgrave Macmillan, 2016.

CONNOR, Steven. A cultura pós-moderna: Introdução às teorias do contemporâneo.


Trad. Adail Ubirajara Sobral e Maria Estela Gonçalves. São Paulo: Loyola, 2004.

FOUCAULT, Michel; DELEUZE, Gilles. Os intelectuais e o poder. [1972]. In:


Microfísica do Poder. Rio de Janeiro e São Paulo: Paz & Terra, 2016. pp. 129-142.

MCHALE, Brian. Postmodernist Fiction. London and New York: Routledge, 1987.

RAGO, Luzia Margareth. Epistemologia Feminista, Gênero e História. PEDRO, Joana;


GROSSI, Miriam (orgs.). Masculino, feminino, plural. Florianópolis: Mulheres,1998
Disponível em: < http://projcnpq.mpbnet.com.br/textos/epistemologia_feminista.pdf>.
Acesso em: 01 ago. 2018.

REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina. Dicionário de Teoria da Narrativa. São Paulo:
Ática, 1988.

ROBERTS, Adam. Science Fiction. London: Routledge, 1999.

SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar?. Trad. Sandra Regina Goulart Almeida,
Marcos Pereira Feitosa e André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: UFMG, 2010.

SUVIN, Darko. Metamorphosis of Science Fiction: On the Poetics and History of a


literary genre. New Haven and London: Yale University, 1979.

1626
DEPOIS DO SONHO AMERICANO: PESADELO E SOBREVIVÊNCIA
EM GOLD FAME CITRUS, DE CLAIRE VAYE WATKINS

Marina Pereira Penteado (FURG)

Resumo: Este trabalho propõe analisar como a falência do ideal de Sonho Americano é
representada na narrativa cli-fi de Claire Vaye Watkins, Gold Fames Citrus. Através da
análise do romance, proponho uma discussão sobre a crítica que essa ficção faz ao
progresso desenfreado incitado pelo ideal de Sonho Americano. Para tanto, teorias que
tratam das temáticas do Sonho Americano, Antropoceno e ecocrítica terão um local de
destaque para analisar a crítica aos posicionamentos políticos retrógrados que não
privilegiam as discussões que envolvem o meio ambiente, mesmo quando tudo indica
que estamos chegando em um momento preocupante do planeta.

Palavras-chave: Cli-fi; Distopia; Sonho Americano; Literatura Norte-Americana.

Este trabalho propõe analisar a literatura que trata de mudanças climáticas e a


crítica que ela faz ao ideal de Sonho Americano através do romance distópico Gold
Fames Citrus, de Claire Vaye Watkins. A narrativa é classificada como cli-fi – uma
mistura de sci-fi com climate change fiction – e se desenrola em uma Califórnia do
futuro, na qual a desertificação e a seca transformaram drasticamente o oeste norte-
americano. Enquanto no passado os exploradores rumavam para lá, no futuro pós-
apocalíptico do romance, os sobreviventes tentam desesperadamente voltar para o leste,
percorrendo, assim, o caminho oposto ao incitado por tanto tempo pelo ideal
estadunidense.
Embora a expressão Sonho Americano tenha sido cunhada em 1930, quando
James Truslow Adams descreve o ideal como “aquele sonho de uma terra na qual a vida
deve ser mais rica e plena para todos, com oportunidades para cada um, de acordo com
suas capacidades e feitos” (ADAMS, 1933, p. 13)1, o ethos estadunidense tem sua
origem ainda com os puritanos, no processo de colonização do país. O pensamento que
está na matriz do Sonho Americano, de que a comunidade recém-descoberta deveria ser
1
Cf.: “The American Dream is that dream of a land in which life should be better and richer and fuller for
everyone, with opportunity for each according to ability or achievement”. – Trad. Livre.

1627
como “a cidade sobre a colina” (WINTHROP, 2009, Ed. Kindle), é exposta por John
Winthrop, em 1630, em “A Model of Christian Charity”, e vem sendo reformulado e
adaptado ao longo dos séculos, a fim de sobreviver às ameaças de desconstrução e
subversão que surgem pelo caminho.
Assim, desde pelo menos o início do século XX, a discussão sobre a falência do
Sonho Americano tem sido tema de narrativas. Das críticas ao self-made man de F.
Scott Fitzgerald, passando pelos suburbs de John Cheever, pela tecnofobia de Don
DeLillo e pela pastoral perdida de Philip Roth, o lado sombrio do Sonho Americano
parece despertar a atenção dos escritores estadunidenses. Apesar de ser um ideal de
difícil delimitação, por conta de sua abrangência e complexidade, a noção de
excepcionalismo, de ser “como a cidade sobre a colina”, sempre esteve presente.
Conectadas a ela, os aspectos de busca por uma pastoral, pela wilderness e pela
fronteira também desde muito cedo fazem parte do Sonho Americano. Da expansão
para o oeste até a expansão para o espaço, os Estados Unidos constantemente buscam a
primazia. O problema que a literatura cli-fi levanta, contudo, é o esgotamento desses
aspectos.
Quando não existe mais oeste para ir e quando a wilderness se tornou uma terra
desprovida de vida e recursos, a literatura cria suas narrativas distópicas para tratar do
ideal. O subgênero chamado de cli-fi e romances como Gold Fame Citrus assumem esse
papel e colocam em evidência a importância da discussão de tais temas. Em um
momento no qual cientistas têm batido tanto na tecla de estarmos vivendo na era
geológica chamada de Antropoceno, bem como para as consequências que a
intervenção humana tem causado no meio ambiente, um surto de narrativas que tratam
dos perigos das mudanças climáticas, causadas, em parte, pelo próprio ideal norte-
americano, parece estar em evidência.
Gold fame citrus, publicado em 2015, surge exatamente em um momento no
qual uma onda nacionalista e protecionista ganha força. Ao não apenas ignorar a
importância de formar alianças para pensar estratégias de parar ou reverter os danos
causados ao meio ambiente nas últimas décadas, mas também ao transformar as
informações sobre aquecimento global em hoax, tais discursos são criticados pelo
romance de Watkins, que questiona se há lugar para esse tipo de pensamento quando o
mundo parece estar perto de entrar em colapso.

1628
Se o discurso dos Estados Unidos foi constantemente voltado para mitos que
recuperavam a noção de manhood e para o excepcionalismo, as práticas de exploração
quase sempre estiveram de braços dados e mascaradas pelo ideal estadunidense. A
exploração do oeste, iniciada ainda no século XVIII com a chegada dos Scotch Irish –
que consolidou o arquétipo do frontiersman – e a ideia de fronteira, juntamente com o
movimento para o oeste, sempre foi “a grande imagem do sentido norte-americano de
possibilidade” (ALLEN, 1972, p.57), de acordo com Walter Allen. No entanto, embora
a fronteira tenha feito o estadunidense, Gold Fame Citrus chama atenção para o fato de
não haver mais oeste e wilderness para explorar, pois os mesmos já foram destruídos,
indicando a necessidade de se repensar o ideal.
Em uma Califórnia destruída pela seca, os personagens Luz Dunn e Ray tentam
sobreviver em meio a escorpiões e carcaças de animais, em um lugar no qual “a
natureza se recusou a oferecer-se para eles”2 (WATKINS, 2015, ed. Kindle). Luz havia
sido o bebê propaganda do Departamento de Conservação da Califórnia, quando o
governo ainda pretendia expandir o aqueduto do estado para garantir água para as
gerações futuras – algo que, claramente, deu errado vinte e quatro anos depois. A
personagem é cercada por companheiros do sexo masculino que, apesar de lutarem para
sobreviver à devastação climática junto com ela, ainda vivem uma crise da
masculinidade que não pode ser separada da crise do ideal de Sonho Americano, que
por séculos defendeu a imagem do frontiersman – desbravador da wilderness e
provedor do lar.
Filha de uma chicana que morre enquanto ela ainda era jovem, Luz tem que lidar
um pai que a incentiva a se emancipar com quatorze anos de idade para se ver livre de
suas responsabilidades parentais3, além de ser o estereotípico do americano que não
sabe outra língua além do inglês (ele pronuncia o nome da filha de forma a rimar com
“fuzz” e precisa ser corrigido pela esposa), bem como o estereótipo do que
chamaríamos hoje de masculinidade tóxica. Billy Dunn é um homem que, na sua
insegurança, se recusa a ter que lidar com qualquer coisa “uterina, vaginal, menstrual,
relacionado à menopausa ou a adolescência”4. Os demais personagens masculinos que

2
Cf. “Nature had refused to offer herself to them”. Trad. Livre.
3
Cf.: “Emancipated at fourteen, her father’s idea, something he’d prayed on” (WATKINS, 2015, Ed.
Kindle).
4
Cf.: “Not permitted by his temperament to acknowledge anything uterine, vaginal, menstrual,
menopausal, pubescent”. Trad. Livre.

1629
perpassam a vida de Luz seguem o mesmo padrão: o namorado que a trata como uma
criança e o amante narcisista que é conhecido como o “profeta”.
Desta forma, além da catástrofe ecológica, Luz ainda precisa sobreviver a outra
crise do Sonho Americano: as imposições da sociedade patriarcal e as frustrações
masculinas por terem falhado em proporcionar um futuro melhor para as gerações
seguintes. O pesadelo ecológico, proporcionado, em grande parte, pelo progresso que
havia sido tão desejado pelas gerações passadas e seus desbravadores – que por várias
décadas rumaram para Califórnia em busca de fama, ouro e plantações frutíferas – não
está desvinculado da necessidade de poder que marca a crise da masculinidade.
Conhecidos como Mojavs, em referência ao deserto de Mojave, os californianos
do futuro distópico de Gold Fame Citrus são excluídos do resto do país, que agora é
controlado por milícias e adota políticas duras de migração de um estado para outro.
Com o México em guerra e uma duna gigante bloqueando a saída dos estadunidenses,
Luz e Ray ao fazerem o caminho oposto dos seus precursores, roubam uma criança de
um grupo, aparentemente, perigoso e tentam concluir o Sonho Americano de
proporcionar um futuro melhor para as gerações seguintes rumando para Utah com o
bebê chamado Ig. No entanto, ao ficarem sem combustível, Ray, falha em cumprir o
papel que ele acreditava ser dele e abandona as duas5.
Sozinha com Ig, Luz acaba encontrando um grupo de pessoas que vive na
imensa duna de areia chamada Amargosa, lideradas por Levi Zabriskie, que é tratado
como um herói pelos outros personagens. Levi e seu grupo, a partir de então,
desmitificam a visão de Luz sobre o deserto e o sobre a situação ecológica atual do
estado da Califórnia. Através de um livro chamado “Nova fauna da Duna Amargosa”,
Levi apresenta um bestiário com animais até então desconhecidos. De “blue
chupacabra” até “burrowing dwarf owl”, os animais são descritos e desenhados por
Levi com detalhes. Fica evidente que a seca que causou a formação da duna que cobre
boa parte do estado da Califórnia, embora tenha matado a fauna e a flora conhecida,
proporciona o surgimento de novas espécies.
Enquanto o governo tentava mostrar para a população que não havia mais vida
na Califórnia, Levi faz uma pesquisa que mostra o contrário, e explica durante a
narrativa que o governo ignora as informações que ele expõe, pois é de interesse público

5
Cf.: “He was going to leave her [Luz] alone to watch their child die, to prove what a good man he was”
(WATKINS, 2015, Ed. Kindle).

1630
que o estado siga sendo uma terra devastada6. Assim como as autoridades ignoram a
existência de grupos de resistência no deserto – que eles já chamam de desabitado –,
Levi explica para Luz que o governo norte-americano nunca teve interesse algum em
reverter os danos causados ao meio ambiente por grandes corporações, pois para eles é
mais fácil construir um discurso sobre a necessidade de destruir a duna gigante do que
investir em neutralizar os resíduos dispostos no meio ambiente de maneira irresponsável
pelas empresas7.
Desta forma, Gold Fame Citrus torna evidente que o pesadelo no qual a
sociedade se encontra é consequência de mudanças climáticas e no ecossistema
causadas pelas explorações inconsequentes incitadas, em grande medida, pelo Sonho
Americano e seu discurso de excepcionalismo. Como Isabelle Stengers observa, “o
caráter intrinsecamente ‘insustentável’ desse desenvolvimento, que alguns anunciavam
há décadas, tornou-se agora um saber comum” (STENGERS, 2015, Ed. Kindle). Em
Gold Fame Citrus, apesar de ser um saber comum, ninguém parece interessado – ou
forte o suficiente – para mudá-lo.
Se pelo menos desde a publicação de The Machine in the Garden (1964), de Leo
Marx, a discussão sobre a intromissão tecnológica na pastoral americana, proporcionada
pelo progresso, tem sido tema de romances e da ecocrítica, é indiscutível que nos
últimos anos essa interferência se intensificou. O termo Antropoceno, popularizado em
2002 pelo químico Paul Cruzten, marca esse momento. Para Cruzten, a influência
humana na atmosfera da Terra foi tão intensa nos últimos anos que seria adequado dizer
que o planeta entrou em uma nova era geológica. Mesmo ainda não havendo um
consenso sobre o seu início8, um grande número de cientistas e pesquisadores vem
usando o termo para discutir as alterações que o planeta sofreu por causa da
interferência humana nos últimos anos. De acordo com pesquisadoras como Sonia
Torres:
O impacto previsto implicará esforços de adaptação por parte da humanidade,
por conta de emissões de gases e hiperaquecimento global e forças geofísicas

6
Cf.: “I can’t believe they ignored all this (...) we’re told this is wasteland because they need it to be a
wasteland” (WATKINS, 2015, Ed. Kindle).
7
Cf.: “We should be spending Money on technology to neutralize the waste – industry should have to
fund that research. They should have been doing that from the beginning instead of ditching the shit in
storage pools and saying it’s everyone’s problem (...) Believe it or not, nurking the Amargosa is cheaper
than holding the industry responsible for its waste” (WATKINS, 2015, Ed. Kindle).
8
Cf.: TREXLER, Adam. Anthropocene Fictions: The Novel in a Time of Climate Change, Edição Kindle:
“possible dates include James Watt’s invention of the steam engine in 1784, the increase in background
radiation from Cold War nuclear tests in the 1950s, and the beginning of human agricultural ten to twelve
thousand years ago”.

1631
e biológicas que fugirão ao controle humano. Secas, ciclones tropicais, ondas
de calor, colheitas perdidas, enchentes, incêndios florestais e erosões são
alguns exemplos extremos, com consequências extremas, como fornecimento
insuficiente de água, má-nutrição e doenças infecciosas. Esses fenômenos
levarão, por sua vez, à migração massiva e conflitos regionais cada vez mais
intensos. (TORRES, 2017, p. 94)

Temas, na grande maioria, tratados na obra de Watkins, que deixa claro que os
medos nucleares do período da Guerra Fria agora deram lugar aos medos ecológicos
como o da poluição, do aquecimento global e da contaminação por agrotóxicos e
químicos potentes. Como Susanne Leikan e Julia Leyda notam, desde a agenda anti-
ambiental de Donald Trump, com a sua decisão de sair do acordo de Paris, em 2017, a
crítica dessa literatura chamada de cli-fi parece estar cada vez maior 9 . Embora a
ecocrítica tenha se consolidado como corrente teórica ainda na década de 1970, e a
literatura já estivesse alertando sobre os problemas climáticos e tentando salvar o
mundo bem antes dos romances cli-fis, como é notável na discussão sobre pesticidas de
Silent Spring (1962), de Rachel Carson, por exemplo10, romances como o de Watkins
seguem essa tradição e dão força a crítica ambiental, evidenciando cada vez mais que o
estilo de vida pregado pelo Sonho Americano precisa ser repensado.
Com os discursos de excepcionalismo ainda em alta – aspecto bastante
antropocênico, na medida em que o país constantemente invade outras nações onde há
combustível fóssil, por exemplo –, Gold Fame Citrus questiona as bases do ideal
estadunidense seguirem atreladas a uma cultura de exploração inconsequente. Se o
aumento da produção distópica, e mais especificamente cli-fi, pode ser explicado por
causa da exaustão dos mitos nacionais e pela aniquilação do Sonho Americano11, talvez
romances como o de Watkins, que trata especificamente das mudanças climáticas,

9
Cf.: LEIKAM, Susanne; LEYDA, Julia. “Cli-fi in American Studies: A Research Bibliography”, s/p:
“As one of the most prolific generators, disseminators, and adaptors of literary and cultural texts, North
America participates at the forefront in the recent spate of cli-fi. Even more importantly for American
Studies, as one of the key fossil-fuel consumers with global political influence, North America,
particularly the United States, features prominently in cli-fi narratives.”.
10
Como Atwood vai observar: ATWOOD, Margaret. “It’s Not Climate Change, It’s Everything Change”.
Disponível em: <https://medium.com/matter/it-s-not-climate-change-it-s-everything-change-
8fd9aa671804> Acesso 20 mai 2018.s/p.: “[...] thanks to Rachel Carson’s groundbreaking book on
pesticides, Silent Spring, not all the birds were killed by DDT in the ’50s and ’60s.”
11
Cf.: BOLLEN, Christopher. “Has US literature woken from the American dream?” (2015). The
Guardian. Disponível: < https://www.theguardian.com/books/booksblog/2015/apr/20/us-literature-the-
american-dream> Acesso: 5 mai. 2018: “Perhaps an exhaustion with national myths explains the recent
advent of post-apocalyptic literature: from Cormac McCarthy’s The Road to Colson Whitehead’s Zone
One. When the dream has been blown to bits for more than a century, all that’s left is to tell bleak stories
of human survival set in the wreckage of a junkyard.”

1632
instiguem a readaptação do ideal. É o que Gold Fame Citrus parece tentar fazer ao
apresentar um novo ecossistema dentro da devastação causada pela seca. A resistência
das espécies em sobreviver na duna indica, de certa forma, que nem tudo está perdido e
que é possível reconstruir, desde que a relação do homem com seu ambiente seja
reconfigurada.

Referências:

ADAMS, James T. “America Faces 1933’s Realities”. Disponível em:


<http://www.nytimes.com/learning/teachers/archival/19330101AmericanDream.pdf>.
Acesso: 5 mai 2018.

ALLEN, Walter. O sonho americano e o homem moderno. Rio de Janeiro: Lidador,


1972.

ATWOOD, Margaret. “It’s Not Climate Change, It’s Everything Change” (2015).
Disponível em: < https://medium.com/matter/it-s-not-climate-change-it-s-everything-
change-8fd9aa671804> Acesso 20 mai 2018.

BOLLEN, Christopher. “Has US literature woken from the American dream?” (2015).
The Guardian. Disponível: <
https://www.theguardian.com/books/booksblog/2015/apr/20/us-literature-the-american-
dream> Acesso: 5 mai. 2018.

LEIKAM, Susanne; LEYDA, Julia. “Cli-fi in American Studies: A Research


Bibliography”. American Studies Journal (2017). N. 62. Disponível em: <
http://www.asjournal.org/62-2017/cli-fi-american-studies-research-bibliography/>
Acesso: 20 mai. 2018.

STENGERS, Isabelle. No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que se aproxima.


São Paulo: Cosac & Naify, 2015. Edição Kindle.

TORRES, Sonia. “O Antropoceno e a Antropo-cena Pós-humana: narrativas de


catástrofe e contaminação” (2017). Ilha do Desterro, v. 70, n. 2, p. 093-105. Disponível
em: < http://www.scielo.br/pdf/ides/v70n2/2175-8026-ides-70-02-00093.pdf> . Acesso:
20 mai, 2018.

TREXLER, Adam. Anthropocene Fictions: The Novel in a Time of Climate Change.


Virginia: University of Virginia Press, 2015. Edição Kindle.

TURNER, Frederick Jackson. The Significance of the Frontier in American History.


London: Penguin Books, 2008.

WATKINS, Claire Vaye. Gold Fame Citrus. Boston: Riverhead Books, 2015. Edição
Kindle.

1633
WINTHROP, John. A Model of Christian Charity. New York: Evergreen Review, 2009.
Edição Kindle.

1634
O ROMANCE: ESPISTEMOLOGIA DE UM GÊNERO ABERTO

Candice Firmino de Azevedo (IFRN/UFPE)1

Resumo: Marthe Robert (2007) chama a atenção para o caráter revolucionário do gênero, que
anuncia, já no final do século XVII, uma modernidade futura no que diz respeito à negação dos
padrões vigentes de produção do texto literário, até então marcados pela Poética, como assinala
Irene Machado (1995). A noção do gênero é dissolvida e o romancista assume o papel de porta-
voz da dignidade do ser humano enquanto sujeito do acontecimento, revelando a concretude dos
dias por meio da escrita. Lukács se refere ao romance como gênero que nasce como decorrência
da narratividade da epopeia, mas que tem na fragmentariedade da modernidade espaço para a
experimentação. É importante ressaltar a liberdade como marca necessária à insurgência do
romance como gênero aberto que atende às necessidades de insubmissão à imobilidade.

Palavras-chave: Romance; Modernidade; Liberdade; Existência.

Os séculos XVIII e XIX foram cenário para o crescimento e o apogeu do gênero


romanesco, principalmente na França, Rússia e Inglaterra. À medida que se consolidava
a imprensa, também novas formas de reprodução do texto escrito possibilitaram a
produção e divulgação da prosa, principalmente, nos jornais da época e em manuais de
interesse coletivo que tomavam as ruas nas principais cidades europeias.
Apesar de haver produções marcadas pela presença da ficção no passado, a
exemplo da Grécia, da Idade Média ou ainda da França do século XVII, apenas no final
do século XVIII o termo “romance” se consagrou a partir das produções em prosa de
autores como Defoe, Richardson e Fielding2, que buscavam deixar impressos, nos
textos, um olhar mais próximo dos anseios daquele momento histórico, marcado pelo
rompimento com os padrões sociais associados à nobreza. No entanto, mesmo
considerando-se criadores de uma nova forma literária, esses autores e seus
contemporâneos não conseguiram caracterizar o novo gênero que tomava conta das

1
Graduada em Letras (UFCG), mestre em Literatura e Interculturalidade (UEPB), doutoranda em Teoria
da Literatura pelo PPGL/UFPE, bolsista CAPES. Docente do IFRN/campus São Gonçalo do Amarante.
Membro dos Grupos de Pesquisa (CNPQ): Linguagem, Cultura e Movimento/IFRN; Diásporas,
memórias e imaginários nas literaturas das américas (UFRJ); SUTRA – Subalternidades,
Transculturalidade e Perspectivas Descoloniais (UFPE). Contato: canfazen82@gmail.com.
2
Em seu livro A ascensão do romance (2007), Ian Watt faz uma análise historiográfica do gênero
romance e da construção da prosa romanesca dentro do contexto do final do século XVII até o século
XVIII e XIX. Nesse estudo, o autor chama a atenção para a consolidação do que ele denomina “realismo
filosófico”, uma produção que se aproxima dos aspectos específicos do gênero romanesco nesse período,
no que diz respeito à analogia entre vida e literatura. Para tanto, ele parte da observação dos textos de
Defoe e Richardson, principalmente, evidenciando o compromisso com a inovação e a reorientação da
prosa romanesca desses autores.

1635
produções da época, evidenciando que o romance que surgia tinha a pluralidade como
parte de sua construção.
Até então, a literatura ocidental presenciava a soberania da poesia e dos gêneros
literários tradicionais, como as principais formas de relacionar a arte literária e o
mundo. A lírica, a tragédia e a epopeia davam conta de uma produção que era percebida
dentro dos limites de construção estabelecidos pela Poética, que indicava regras para o
tratamento da linguagem e dos aspectos simbólicos da literatura. O mundo expresso nas
“belas letras” estava, de uma forma geral, direcionado para a contemplação de um
universo padronizado, reflexo de valores que marcavam uma sociedade com pouca, ou
quase nenhuma, mobilidade social.
Apenas com o crescimento de uma estrutura econômica baseada na produção e
comercialização de bens foi que a sociedade passou a lidar com movimentos claros de
ascensão e decadência social. A mercantilização e o comércio fizeram nascer grupos
heterogêneos de pessoas que detinham o poder econômico das cidades, mas não
gozavam, na maioria das vezes, de uma formação cultural e intelectual que desse acesso
aos bens culturais, principalmente associados à leitura e à escrita. Tínhamos, então, uma
parcela da sociedade disposta a consumir os produtos culturais disponíveis, mas carente
tecnicamente da formação necessária para o seu usufruto. Naquele momento, usufruir
da cultura era condição necessária para os grupos burgueses ascenderem socialmente e
serem aceitos nos círculos mais abastados da sociedade. A leitura, assim, assume um
papel importante na reorientação dos grupos sociais, e o romance, como uma produção
inovadora, traz a humanização da narrativa a partir da experiência individual, em
oposição às narrativas coletivas, como os mitos e lendas dos poemas épicos.
Com o desenvolvimento de tecnologias de reprodução de material escrito, a
exemplo das tipografias, a Europa assiste a uma verdadeira revolução nas letras,
principalmente nos grandes centros urbanos. A imprensa surge e, com ela, a necessidade
de um público leitor capaz de consumir os jornais e folhetins impressos em tiragens
cada vez maiores a partir do final do século XVII. Nesse contexto, o romance surge
como resultado de um movimento de popularização da leitura a partir do crescimento da
produção jornalística da época, que precisava formar um público leitor capaz de atender
às necessidades de divulgação e venda do material impresso. No entanto, é importante
pontuar que “popularização”, no início do século XVIII, não se referia a uma ampliação

1636
da alfabetização para a população pobre, mas ao atendimento do público burguês que
passou a entender a leitura e a escrita como bem cultural necessário para a ascensão
social.
Sobre a “expansão da leitura” em Londres, por exemplo, Ian Watt afirma que

Um breve exame dos fatores que afetaram a composição do público leitor


mostrará por que ele se manteve tão restrito segundo os padrões modernos.
[...] O primeiro desses fatores - e o mais evidente – eram as limitadíssimas
oportunidades de instrução – instrução não no sentido do século XVIII, ou
seja, de conhecimento das línguas e literaturas clássicas, mormente a latina,
mas na acepção moderna de capacidade de ler e escrever a língua materna.
Até isso estava longe de ser universal na Inglaterra setecentista. Por volta do
final do século James Lackington, por exemplo, escreveu que “ao distribuir
panfletos religiosos, descobri que alguns lavradores e seus filhos e também
três quartas partes dos pobres não sabiam ler”; e há indícios suficientes para
concluir que no campo muitos pequenos agricultores, suas famílias e a
maioria dos lavradores eram analfabetos e mesmo nas cidades alguns pobres
– sobretudo soldados, marinheiros e o populacho das ruas – não sabiam ler.
(Watt, 1957/1990, p. 36)3

Em seu livro A ascensão do romance, Watt analisa o romance dentro de um


contexto de produção do século XVIII, na Inglaterra, mais precisamente a partir da
produção de Defoe, Richardson e Fielding. O estudioso se refere às peculiaridades de
um realismo inglês, o realismo filosófico, que evidenciou uma produção com o foco na
reorientação individualista e inovadora, marca de um momento de mudanças sociais e
históricas. O romance, a partir de então, assume uma correspondência entre vida e
literatura inevitável numa sociedade em que a redefinição do que vem a ser público
leitor mobiliza os movimentos estéticos da época. Como um “veículo literário lógico da
cultura” (ibid., p. 15), o romance rejeita as convenções formais em detrimento da
fidelidade à experiência humana e, assim, reforça o caráter inovador de um gênero que
se confirma nas margens das formas tradicionais como uma prosificação da cultura4.
Até então prevaleciam as narrativas coletivas, a exemplo dos textos de caráter
mítico como as epopeias. Focalizar a realidade pressupunha um olhar mais detido para a

3
Faremos nota do ano de publicação da primeira edição do livro, seguido do ano de publicação da edição
consultada. Isso se deve ao fato de considerarmos que o período histórico e político da produção deixa
marcas em qualquer texto produzido, seja literário, informativo, científico, ensaístico etc. Toda
enunciação é carregada de discurso e todo discurso traz as marcas indeléveis da história e de sua
humanidade.
4
Prosificação da cultura foi um termo cunhado por Irene Machado (1995) para se referir ao aspecto da
cultura moderna que tende a romancizar os acontecimentos ordinários como uma forma de evidenciar o
ser humano como um ser da linguagem.

1637
experiência individual, a humanização da narrativa, constituindo “uma parte importante
do panorama cultural em que surgiu o romance” (ibid., p. 16). A particularização do
sujeito passa a mobilizar as “novas” formas literárias, evidenciando a expressão verbal
da identidade de uma sociedade que passava a se relacionar com o mundo de forma
diversa. Os movimentos burgueses de ascensão social, as relações de produção nas
fábricas, a ressignificação do trabalho mercantil, a escravidão e a colonização, por
exemplo, passam a compor o tecido narrativo e, assim, evidenciar a aproximação do
gênero romance com os acontecimentos da vida cotidiana.
Dessa forma, orientado culturalmente e historicamente para o pensamento
moderno, o romance reflete a tensão entre a história individual e coletiva do ser
humano.
Sendo uma produção destinada, inicialmente, a um púbico recém descoberto
leitor, os folhetins publicados nos jornais acabavam por atender às necessidades de
leitura de uma parte ainda reduzida da sociedade que tinha acesso à publicação
impressa: a burguesia crescente do início do século XVIII, principalmente as mulheres.
Meio à ocupação diária da administração das casas, entre as ordens dadas aos
empregados, as mulheres burguesas se debruçavam sobre a leitura dos textos literários
em prosa. Assim, apesar de um aumento na quantidade de leitores, não podemos, de
fato, falar em um acesso à leitura por parte da maioria da população, formada por
artesãos, trabalhadores rurais, pequenos comerciantes e os pobres, em geral.
Apesar do acesso ao romance ter sido limitado predominantemente aos grupos
privilegiados da época, podemos dizer que é um gênero que nasceu a partir de um
rompimento com regras tradicionais de produção e acesso à literatura. O romance já
surgiu para atender a uma necessidade prática de leitura e, com isso, abriu caminho para
processos de aquisição de leitura e de escrita, por consequência. Marthe Robert, em seu
Romance das origens, origens do romance (1988/2007), chama a atenção para o caráter
revolucionário do gênero, que anuncia, já no final do século XVII, uma modernidade
futura no que diz respeito à negação dos padrões vigentes de produção do texto literário.
Nesse cenário, comumente os romancistas eram tidos como escritores de menor
importância, até mesmo “romancistas envergonhados”, já que o romance era
considerado uma produção indigna dos letrados. O descrédito atribuído à produção dos
romances perseguiu o espírito de escritores como Cervantes, Defoe e Diderot, por

1638
exemplo, questionados sobre a importância de sua produção, em detrimento das
produções da época, afeitas às regras da Poética.
No entanto, apesar do desprezo inicial pelo qual o romance passou em seu
advento, o gênero continuou trilhando seu caminho como produção “arrivista” em busca
de se consolidar no espaço literário frente às produções da época, marcadas pelo
compromisso com a conduta retórica tradicional, com fronteiras mais delimitadas. Um
“gênero revolucionário e burguês, democrático por opção e animado por um espírito
totalitário que o leva a romper obstáculos e fronteiras, o romance é livre, livre até o
arbitrário e até o último grau de anarquia” (Robert, 2007, p. 13).
Vale salientar que muito do caráter desbravador do romance parece ter sido o
reflexo de um período historicamente marcado pela conquista de territórios por parte
dos países europeus. Quando Robert retoma o caráter imperialista dos países europeus
nos séculos XVII e XVIII, o faz na construção de uma analogia sobre a determinação do
gênero romance em marcar a sua difusão e expansão frente às outras produções
literárias da época. Rompendo fronteiras, e com o desfrute da liberdade própria de um
gênero em formação, o romance aboliu de uma vez por todas as antigas castas literárias,
apropriando-se de uma liberdade de construção que permitia extrapolar os limites do
próprio gênero, explorando procedimentos e permitindo diálogos nunca antes
experimentados nos textos literários. Dessa forma, o romance acaba assumindo a linha
de frente das produções culturais em literatura, da época.
Para Robert,

O extraordinário destino percorrido em tão pouco tempo pelo romance resulta


na verdade de seu caráter arrivista, pois, ao examinarmos de perto, ele o deve
sobretudo a conquistas nos territórios de seus vizinhos, os quais ele
pacientemente absorveu até reduzir quase todo o domínio literário à condição
de colônia. Tendo deixado o status de gênero menor e desacreditado a uma
potência provavelmente sem precedente, ele é agora praticamente único a
reinar na vida literária, uma vida que se deixou modelar por sua estética e
que, cada vez mais, depende economicamente de seu sucesso. (2007, p. 12 et
seq.)

Podemos perceber o caráter plural do romance, que surge a partir dos territórios
conquistados de outros gêneros literários. Assim, ele assimila uma ancestralidade, no
que diz respeito à consolidação das formas e linguagens de produções anteriores, sendo
um gênero que absorve os demais por meio de sua liberdade criadora. Para tanto, o

1639
romance acaba refletindo o passado literário, negando-o como regra inviolável e
reconstruindo-o em seu caráter reformador.
As mudanças vivenciadas na sociedade pré-industrial chegam ao gênero
romance como possibilidade de movimentos estilísticos capazes de evidenciar o caráter
inovador de um gênero que nasce como produção emergente e que consegue “reduzir
quase todo o domínio literário à condição de colônia”. A noção de gênero fechado é
dissolvida, visto que a produção do romance requer uma individualização do
romancista, necessária para a produção de um texto que tem na liberdade sua forma de
construção.

O romance e a materialidade histórica

A partir do século XVIII, o romancista assumia o papel de porta-voz da


dignidade do ser humano enquanto sujeito do acontecimento, do fato, revelando a
concretude dos dias por meio da escrita. O despertar para a existência em um mundo
heterogêneo mobilizava as estruturas superficiais do romance e evidenciava o
descompromisso do gênero com limites estilísticos, permitindo o questionamento de
conceitos de produção tradicionais. De alguma forma, essa abertura que o romance
pobssibilitava refletia, desde sempre, a necessidade de redefinição das relações sociais e
de escrita tendo em vista movimentos de mudança social, sensivelmente vivenciados
desde a mercantilização, comércio e industrialização.
Segundo Walter Benjamin,

O que separa o romance da narrativa (e da epopeia no sentido estrito) é que


ele está essencialmente vinculado ao livro. A difusão do romance só se torna
possível com a invenção da imprensa. [...] O romancista segrega-se. A
origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar
exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe
conselhos nem sabe dá-los. Escrever um romance significa, na descrição de
uma vida humana, levar o incomensurável a seus últimos limites.
(1936/1994a, p. 201)

Ao discutir sobre o papel do narrador na modernidade, Benjamin aponta para o


romance como gênero que surge trazendo a negação da dimensão prática e propondo a
experiência como identificação. Diferente da narrativa tradicional, de caráter oral e
coletivo, fruto da solidão das relações modernas, o romance trilhou seu caminho a partir

1640
de uma produção centrada na individualização do sujeito moderno, preso ao filtro do
olhar direcionado para cada faceta da sua fragmentada existência.
O ambiente fabril já não permitia o diálogo, como acontecia nos espaços
destinados à produção artesanal, onde mestres ensinavam aos seus aprendizes como
transformar matéria-prima em produto destinado à comercialização. Os artífices,
geralmente, passavam por todas as fases da produção, podendo, assim, narrar o processo
de feitura para outros que precisassem aprender o ofício. O fazer coletivo previa diálogo
e, consequentemente, a construção da narrativa desse encontro, sugerindo também a
construção de novos diálogos e novos encontros.
A “modernização” na forma de encarar o processo de produção na fábrica
demandava especialistas, desenvolvedores de técnicas cada vez mais eficientes, para
cada etapa do processo de produção. A especialidade necessária definia novas formas de
interação, com menos diálogo e uma individualidade sempre mais crescente, o que se
tornou muito conveniente na consolidação de um gênero que previa o encontro do leitor
com a leitura de uma forma solitária.
O encontro solitário com a solidão do romancista por meio do romance
evidenciava sujeitos portadores da substancialidade necessária para a consolidação da
literatura como reflexo de uma sociedade que vivia, desde então, uma crescente entrada
nos tempos modernos de valorização do eu. Esse constante encontro evidenciava
figurações e estruturas resultantes da individualização que atinge o gênero romance,
percebido, cada vez mais, como reflexo da materialidade histórica que define os
meandros de sua construção.
Sobre a representação moderna da experiência humana, Lukács, marxista
precursor de Benjamin, se refere ao romance como gênero decorrente da narratividade
da epopeia, mas que tem na fragmentariedade da modernidade espaço para a negação
das formas tradicionais e a consequente experimentação de novos conceitos de
produção.

Ora, esse exagero da substancialidade da arte tem também de lhe onerar e


sobrecarregar as formas: elas próprias têm de produzir tudo o que até então
era um dado simplesmente aceito; antes, portanto, que sua própria eficácia
apriorística possa ter início, elas têm de obter por força própria suas
condições – o objeto e o mundo circundante. Uma totalidade simplesmente
aceita não é mais dada às formas: eis porque elas têm ou de estreitar e
volatilizar aquilo que configuram, a ponto de poder sustentá-lo, ou são

1641
compelidas a demonstrar polemicamente a impossibilidade de realizar seu
objeto necessário e a nulidade intrínseca do único objeto possível,
introduzindo assim no mundo das formas a fragmentariedade da estrutura do
mundo. (Lukács, 1920/2000, p. 36)

Em A teoria do romance (2000), Georg Lukács analisa a figura do herói épico, e


sua não permanência na modernidade, como resultado da individualidade do ser
humano e da fragmentação do mundo moderno na literatura. Já que na modernidade não
parecia haver mais espaço para o herói da coletividade – o herói épico, o romance surgia
como espaço narrativo para a construção do herói do romance, um indivíduo que
buscava reconhecer-se meio aos fragmentos de um mundo em permanente (des/re)
construção. O processo individualizado que passou a caracterizar a produção fabril
também podia ser observado na tessitura da narrativa e na construção de um herói
romanesco diferente do herói épico. Nesse contexto, o romance assumia um espaço
simbólico de transgressão, enquanto a heterogeneidade do próprio gênero abria os
caminhos para o trânsito do esfacelamento dos fatos e das ações. Imerso na própria
individualidade, diferente da projeção coletiva do olhar épico, o herói romanesco
dialogava com a solidão e a reflexão do romancista e do leitor, nascendo de um
alheamento do mundo exterior.
Em 1992, Stuart Hall publica A identidade cultural na pós-modernidade
(1992/2015), onde discute o conceito de identidade a partir da existência de três tipos de
sujeito: o sujeito do iluminismo, cartesiano e essencialista; o sujeito sociológico,
valorativo e simbólico; e o sujeito pós-moderno, multifacetado. A este último, estão
associados os processos de deslocamento que compõem o sujeito e suas várias
identidades. As identidades, por sua vez, definem e são definidas pelas paisagens
sociais, resultado da fluidez e fragmentação da modernidade. Por fragmentação
entendemos o deslocamento ou descentração do sujeito e da realidade histórica que o
circunda. Desde as revoluções industriais, uma sociedade marcada pela definição de
paradigmas “engessados” passou a lidar com a descontinuidade do padrão e com
mudanças em camadas profundas das relações sociais e, por sua vez, nos meandros da
prosa romanesca, evidenciando o trânsito de experimentações estéticas, estilísticas e
culturais. O romance, já no século XVIII anunciava a liberdade de perceber-se parte de
uma conjuntura de abalos profundos na narrativa.

1642
A comparação que Lukács faz entre o romance e a epopeia reflete a necessidade
de se pensar a vida, na sociedade liberal como fragmentada, estandardizada e repetitiva,
na qual os romancistas se voltam para suas subjetividades particulares. Outros teóricos
marxistas, como Theodor W. Adorno, Lucien Goldmann e Walter Benjamin deram
prosseguimento ou questionaram esse posicionamento, evidenciando sempre o caráter
sócio histórico da produção romanesca como resultado de uma redefinição de fronteiras,
vivenciada seja no campo da geopolítica, da estética ou da cultura.
Em Mutações da literatura no século XXI (2016), Leyla Perrone-Moisés traça
um panorama sobre a diversidade conceitual que abrange o romance, até chegar aos
conceitos mais atuais, marcados pelo diálogo do gênero com o contexto de produção e
de leitura. A sua reflexão evidencia o valor de resistência e de crítica que o romance
assume como uma produção transgressora diante da realidade, como o preenchimento
de uma falta.
Desde o início, o romance assume um estatuto ambíguo que o faz equilibrar-se
em uma tensão entre a obra de arte e o bem de consumo, o entretenimento. Essa
ambiguidade é intensificada com a ascensão do gênero a partir do século XIX e fica
evidente nas produções do século XX, apesar destas assumirem também um valor ético
refletido discursivamente nos meandros do texto. Para a norte-americana Susan Sontag,
a forma finita e completa do romance, na qual se desenha uma estrutura capaz de
expandir-se em discurso ético, demonstra a capacidade de esclarecimento da história e,
justamente por isso, tem o seu lugar inquestionado na produção literária da atualidade.

Na narração, tal como é praticada pelo romancista, há sempre um


componente ético. Esse componente ético [...] é o modelo de completude, de
profundidade sentida, de esclarecimento proporcionado pela história e por
sua resolução – que é o oposto do modelo de estupidez, de incompreensão, de
horror passivo, e o consequente embotamento do sentimento, oferecido pela
glutonaria de histórias sem fim disseminadas pela nossa mídia. (Sontag,
2008, p. 221)5

Seguindo a linha teórica de Sontag, Perrone-Moisés (2016, p. 108) chama a


atenção para o caráter reformador do romance, para sua responsabilidade diante das
faltas evidentes nas relações da modernidade, que expõem o esfacelamento do mundo

5
Primeira Conferência Nadine Gordimer, proferida na Cidade do Cabo e em Johannesburgo em março
de 2004.

1643
em constante crise de identidade. “A narração continua sendo uma necessidade humana
básica, mesmo desprovida de sequências lineares de causas e efeitos, ou precisamente
porque causas e efeitos claros estão em falta” e, por isso, podemos dizer que o romance
não deve mais ser considerado “problemático”, como sugeria Lukács, mas um diálogo
necessário e constante com o mundo, no qual a volatilidade também é expressão.

O romance nasce como produção inferior por estar à margem dos sistemas
literários considerados legítimos até o século XVII, assumindo, por meio do discurso
plural, o caráter de resistência frente à exigência de continuidade de um padrão estético
e estilístico. O despertar para a existência em um mundo heterogêneo mobiliza as
estruturas superficiais do romance e evidencia o descompromisso do gênero com limites
estilísticos, permitindo o questionamento de conceitos de produção tradicionais para a
época. A comparação que Lukács faz entre o romance e a epopeia reflete a necessidade
de se pensar a vida, na sociedade liberal, como fragmentada, estandardizada e repetitiva,
na qual os romancistas se voltam para suas subjetividades particulares. Outros teóricos
marxistas, como Theodor W. Adorno, Lucien Goldmann e Walter Benjamin deram
prosseguimento ou questionaram esse posicionamento, evidenciando sempre o caráter
sócio histórico da produção romanesca como resultado de uma redefinição de fronteiras.
O encontro solitário com a solidão do romancista por meio do romance evidencia
sujeitos portadores da substancialidade necessária para a consolidação da literatura
como reflexo de uma sociedade que viveu, desde então, uma crescente entrada nos
tempos modernos de valorização do eu, mesmo um eu coletivo.

Referências

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história
da cultura. 7ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1994.
HALL, Stuart. Identidade Cultural e Diáspora. Revista do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, n.24, p.68-75, 1996.

LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobe as formas


da grande épica. São Paulo: Duas Cidades, Ed. 34, 2000.

1644
MACHADO, Irene A. O romance e a voz: a prosaica dialógica de M. Bakhtin. Rio de
Janeiro: Imago Ed., São Paulo: FAPESP, 1995.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Mutações da literatura no século XXI. 1ª edição. São
Paulo: Companhia das Letras, 2016.
ROBERT, Marthe. Romance das origens: origens do romance. Tradução André Telles.
São Paulo: Cosac Naify, 2007.
WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding.
Tradução Hildegard Feist – São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

1645
Simpósio: EPISTEMOLOGIAS DO ROMANCE: PERCEPÇÕES ESTÉTICIAS E
SOCIOLÓGICAS COMO POSSIBILIDADES DE QUESTIONAMENTOS SOBRE A
EXISTÊNCIA

Título: Desobediência civil e socialismo ensaísticos: Thoreau e Wilde e suas manifestações de


inconformidade a seus estados contemporâneos

Glauco Corrêa da Cruz Bacic Fratric1

Resumo: O presente estudo visa a detalhar as perspectivas de dois autores de literaturas de língua inglesa,
o irlandês Oscar Wilde e o norte-americano Henry David Thoreau. Oriundos de espaços e estéticas
distintos (Wilde, na Inglaterra vitoriana, e um dos maiores expoentes do Esteticismo; Thoreau, nos
Estados Unidos da América, nome de grande destaque do Romantismo daquele país), os dois autores
expressam suas perspectivas em relação a seus mundos contemporâneos em forma ensaística do quanto a
concepção de estado lhes é falha e quais as possíveis maneiras de ajustar as deficiências de seus sistemas
sociais, por meio de transformações que vêm do interior do indivíduo e se espalham para todo o seu
entorno comunitário, causando assim transformações libertárias às sociedades. Em Civil Disobedience, do
ano de 1849, o transcendentalista Thoreau, ao ser detido no vilarejo de Concord, em Massachussetts, por
sonegar impostos, explica ao leitor os reais motivos de sua sonegação, a qual estaria relacionada a uma
forma de desobediência civil pacífica a um governo escravagista e expansionista como o do presidente
James Polk, que declarou guerra ao México três anos antes. Para o autor norte-americano, somente o ato
de votar não é suficiente, pois cabe aos indivíduos livres votar e acompanhar as ações de seus
governantes, reservando-se aqueles ao direito de concordar e de discordar de tais ações, sem sofrerem
punições se se manifestarem em discordância com seus representantes eleitos. Thoreau sonha com um
estado ideal, inaudito, em que todos, sem exceção, sejam respeitados, mesmo lançando mão da
desobediência civil pacífica que, no caso do autor, se deu por meio da sonegação de impostos. Já Wilde,
no ensaio de 1891 intitulado The soul of man under socialism, busca explicar um regime de governo
ideal, em que o indivíduo possua plenas condições de desenvolver suas capacidades criativas, intelectuais,
espirituais e relegue à máquina o trabalho industrial manual, sobrando-lhe tempo para o ócio produtivo. A
partir desse prisma, o indivíduo livre, ciente de seus direitos e de seus deveres, em um sistema que
convirja para a ausência de classes sociais, conquistada a partir de um socialismo que ganhava corpo nas
discussões intelectuais europeias em fins do século XIX, emergia como a alternativa libertária para um
sistema capitalista sufocante, opressivo, que simbolicamente era criticado em diversas obras compostas
naquele século, desde o romantismo até o realismo e suas vertentes. Vemos em Wilde uma espécie de
anarco-socialismo manifestado a partir da individualidade do ser que, livre para desfrutar de suas
capacidades intelectuais, libertado da escravidão assalariada industrial, vê-se também livre das garras de
estados opressores.

1
Doutor em letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2016), mestre em letras pela Universidade de São Paulo
(2008), especialista em tradução de língua inglesa pela Universidade de São Paulo (2006) e graduado em letras pela
Universidade de São Paulo (2003). Atua principalmente nos seguintes temas: estudos literários em língua inglesa e tradução
literária.

1646
O século XIX destacou-se por transformações inauditas nos mais diversos cenários,
dentre eles, o social, o econômico e o industrial. Embora a revolução da Commonwealth,
ocorrida na Inglaterra em meados do século XVII, seja considerada por alguns como a primeira
revolução burguesa propriamente dita, são a revolução francesa, igualmente burguesa, e a
revolução industrial, que acontecem no século XVIII, talvez as grandes responsáveis por
transformações de grande magnitude vivenciadas no século seguinte.
No cenário norte-americano, o nascimento de uma ex-colônia em forma de república, no
final do século XVIII, é algo também inédito. Benjamin Franklin, um dos expoentes da
independência dos Estados Unidos, foi um dos protagonistas no processo de formação desse
novo país. Sua habilidade política angariou o apoio francês na luta contra as tropas da realeza
britânica, bem como o Enlightenment experienciado no novo mundo serviu de referência para a
revolução que culminou com a queda da Bastilha no continente europeu.
A experiência norte-americana embasou-se em uma ex-colônia que adotou o sistema
republicano, e não o monarquista, como viria a ser o hábito em muitas ex-colônias dali em
diante. A res publica, coisa pública, se sobrepôs ao ideal monárquico em que uma família,
auxiliada por aristocratas, governava a todos. No caso daquele novo país independente, que surge
em 1776, a construção da nova república seria a pauta para os anos seguintes. Como resultado,
uma constituição foi promulgada, instituições e valores republicanos foram introduzidos e, em tal
período iluminista, o nome de maior destaque na literatura foi alguém que não possuía como
principal ofício o de escritor: Benjamin Franklin. Seus almanaques, por exemplo, foram bastante
popularizados, com frases motivadoras ao trabalho árduo e à dedicação na formação de um novo
país. O primeiro escritor norte-americano a ganhar a vida somente com a literatura foi
Washington Irving, no início do século XIX, quando as condições no mercado editorial
começaram a se tornar mais propícias e estimulantes à produção literária local. Nas primeiras
décadas da república independente, seria mais acessível a leitura de obras inglesas do que as de
autores norte-americanos, devido às políticas ainda mal elaboradas de incentivo à produção
nacional, conforme atesta Van Spanckeren, o país vivia uma época de "estagnação literária":

The absence of adequate copyright laws was perhaps the clearest cause of
literary stagnation. American printers pirating English best-sellers
understandably were unwilling to pay an American author for unknown
material. The unauthorized reprinting of foreign books was originally seen as a
service to the colonies as well as a source of profit for printers like Franklin,

1647
who reprinted works of the classics and great European books to educate the
American public.2

Já no cenário inglês, houve grandes transformações de aspecto demográfico, por


exemplo. Cidades industrializadas testemunharam um inchaço populacional em decorrência do
êxodo das áreas rurais. Londres, Manchester, New Castle passaram a vivenciar condições
habitacionais críticas nos bairros periféricos, ocupados por migrantes recém-chegados que se
subempregariam nas fábricas dessas cidades. Como resultado, criminalidade, pobreza, falta de
condições dignas de trabalho, entre outras questões, formaram parte integrante da vida na
sociedade industrial daquela que seria à época a maior potência econômica do planeta.
Os romances vitorianos de Dickens são exemplos nítidos de quanto as transformações
sociais causaram impacto nas vidas das famílias mais pobres. O único romance de Wilde, Dorian
Gray, denota, em certa medida, as diferenças sociais existentes entre o leste londrino popular,
onde Dorian assistia às peças de Shakespeare, e o oeste da cidade, onde frequentava as festas da
alta sociedade inglesa.
Isto posto, destacaremos a seguir dois contextos provenientes das revoluções destacadas -
a industrial e a francesa. No tocante a essa, com o fortalecimento da burguesia, que viria a se
consolidar em diversos outros países nos séculos seguintes, o controle social migrou das mãos
monárquicas às da classe social que passou a deter o poder econômico: os comerciantes. Mais
tarde, já no século XIX, o poder passa para as mãos dos grandes industriais. Com o surgimento
mais nítido de classes sociais - proletariado e burguesia, por exemplo - a filosofia socialista
começa a nascer já em solo francês, em decorrência da queda da Bastilha, e das frustrações de
alguns, como o jornalista François-Noel Babeuf, que viam a falta de êxito na implementação dos
ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Uma nova forma de preencher essa lacuna seria
com a abolição da propriedade privada, e a utilização comunitária da terra e de sua produção.
sendo elaborada a posteriori por alguns filósofos, dentre os quais, por Marx e por Engels em
obras como o Manifesto comunista e O capital.
No contexto norte-americano, o conceito do estado republicano suscitaria novas
discussões, dado que sua implementação havia sido recente. Já na primeira metade do século
XIX, o romantismo transcendental (transcendentalism), que teve em Ralph Waldo Emerson e em

2
VanSpanckeren, Kathryn. Outline of American Literature (U.S. Department of State "Outline" series) (Kindle
Locations 422-425). A. J. Cornell Publications. Kindle Edition.

1648
Henry David Thoreau seus nomes de maior destaque, pois, além de buscar uma conexão do
indivíduo com o macrocosmo, bastante influenciada nas teorias orientalistas, como no caso do
ensaio Nature, de Emerson, havia também uma preocupação com a criação da sociedade ideal,
utópica - em certa medida - manifestada por Thoreau em dois ensaios: Walden or life in the
woods e Civil disobedience. No primeiro, cada capítulo relata como se dava a vida em Concord,
no estado de Massachusetts, local em que Thoreau viveu por dois anos, de maneira simples e
próxima à natureza, visando a encontrar a fórmula ideal de uma vida que buscasse o ato de
transcender e de evoluir como ser universal. O preceito da vida ideal, no aspecto coletivo,
aconteceria em pequenas comunidades, como também atestamos em alguns socialistas utópicos,
como Fourier. O segundo, o qual destacaremos nas próximas páginas, trata-se de um ensaio em
que Thoreau conta os motivos pelos quais foi preso por se recusar a pagar impostos, naquele
mesmo vilarejo.
No universo inglês, Wilde, em sua fase ensaística, escreve a obra The soul of man
under socialism, na qual, ao vivenciar as profundas transformações pelas quais a Europa passava,
no tocante à industrialização e à tecnologia na produção em larga escala, vislumbra uma
sociedade em que os indivíduos fossem finalmente libertados da escravização ocasionada pelo
trabalho na linha de produção e em que toda a pobreza fosse eliminada com o fim da existência
de classes sociais, mais precisamente da burguesia e do proletariado.
A seguir, destacaremos as duas obras para, por fim, tecermos algumas considerações do
quanto os ideais utópicos permeiam, em cenários, épocas, e em condições distintas, o imaginário
dos dois autores.

Civil disobedience

Publicado em 1849, Civil disobedience narra, em primeira pessoa, a experiência de


Thoreau na cadeia, após se recusar a pagar impostos para o governo do então presidente James
Polk, famoso por sua simpatia a políticas escravagistas e expansionistas, como as que levaram à
guerra contra o México, por meio da qual uma grande quantidade de territórios daquele país foi
conquistada (representada pelos atuais estados de Arizona, Califórnia, Colorado, Nevada, Novo
México, Utah e Wyoming).

1649
Mesmo possuindo fundos suficientes para o pagamento dos referidos impostos, Thoreau
se recusa a fazê-lo como forma de protesto a um governo que gozava de boa popularidade, mas
que advogava de ideais, como os já mencionados, que despertaram antipatia de um número
razoável de intelectuais.
Vislumbramos nesse texto a expressão de um indivíduo que sonha com o estado ideal
cuja participação na vida do indivíduo livre e autoconsciente é mínima ou inexistente. O ensaio
se fundamenta em duas premissas centrais, que são expostas de início: a de que "o melhor
governo é aquele que governa menos"3 e tal prática deveria ser implementada rápida e
sistematicamente, e de que "o melhor governo é aquele que não governa em nenhuma hipótese" 4.
Nota-se por meio de tais motes uma crença por parte de Thoreau de que o estado real, à época
governado por Polk, seria a antítese do que ele consideraria como estado perfeito.
Mais adiante, Thoreau demonstra compreender a necessidade da existência de um
governo, na medida em que os representantes do povo sejam eleitos para cuidar dos assuntos
pertinentes aos governados. Porém, a inércia popular durante a vigência dos mandatos permite ao
estado e a seu representante eleito que ajam de maneira não condizente com os interesses
públicos, ou mesmo de que os governantes ajam contra os ideais de quem os elegeu. Diante
disto, faz uma análise das relações entre o governo e o exército no caso da guerra contra o
México:

The government itself, which is only the mode which the people have chosen to
execute their will, is equally liable to be abused and perverted before the people
can act through it. Witness the present Mexican war, the work of comparatively
a few individuals using the standing government as their tool; for in the outset,
the people would not have consented to this measure.5

Assim, o estado, na visão de Thoreau, havia sido corrompido pelos interesses


expansionistas de Polk na guerra que teria encontrado oposição substancial na opinião pública. E

3
“That government is best which governs least” (tradução livre). Thoreau, Henry David. The Complete Works of
Henry David Thoreau: Canoeing in the Wilderness, Walden, Walking, Civil Disobedience and More (Kindle
Locations 39128-39129). . Kindle Edition.
4
“That government is best which governs not at all” (tradução livre). Thoreau, Henry David. The Complete Works
of Henry David Thoreau: Canoeing in the Wilderness, Walden, Walking, Civil Disobedience and More (Kindle
Locations 39129-39130). . Kindle Edition.
5
Thoreau, Henry David. The Complete Works of Henry David Thoreau: Canoeing in the Wilderness, Walden,
Walking, Civil Disobedience and More (Kindle Locations 39133-39134). . Kindle Edition.

1650
um precedente ainda mais grave teria sido utilizado na relação entre governo e exército, quando
este é utilizado como uma mera "ferramenta" dos interesses do governo em exercício.
Em seguida, Thoreau elucida os motivos pelos quais havia sido detido num certo dia a
caminho do sapateiro no vilarejo de Concord. Ao não pagar os impostos devidos, expressou sua
desobediência ao governo, ao estado, que tomou decisões que iriam contra os anseios de um
número razoável de eleitores. Iniciou-se uma guerra expansionista contra o país vizinho. Ainda
assim, essas políticas expansionistas, para Thoreau, não lograram êxito por mérito do governo, e
sim, pelo do próprio povo que obteve conquistas importantes para o país:

It does not keep the country free. It does not settle the West. It does not
educate. The character inherent in the American people has done all that
has been accomplished; and it would have done somewhat more, if the
government had not sometimes got in its way.6

Em sua concepção, o estado seria incapaz de manter o país livre, de educar seu povo, de
ocupar os assentamentos na expansão a oeste, não fosse pelo mérito popular propriamente dito.
Em face de sua ineficiência, o autor, todavia, não defende a extinção do governo, mas a
sua melhoria, baseado na premissa de que o governo, escolhido pela maioria, não deve relegar as
minorias ao isolamento ou ao sistema punitivo. Segundo ele, um governo em que a maioria
prevalece em todas as situações não é baseado na justiça.
É nesse momento que o autor introduz, ao universo estatal, a questão da consciência
individual, expressando assim a sua visão transcendental. A partir do momento em que a
consciência do indivíduo deverá se render ao legislador, sua existência enquanto consciência
perderá o sentido. Aquilo que a consciência individual definir como certo e como errado é o que
deverá prevalecer, acima de qualquer legislação elaborada pela democracia representativa.
Quando a consciência, contrária à decisão da maioria, não se lhe contrapuser, o errado
prevalecerá:

It is truly enough said that a corporation has no conscience; but a corporation


of conscientious men is a corporation with a conscience. Law never made men a
whit more just; and, by means of their respect for it, even the well-disposed are

6
Thoreau, Henry David. The Complete Works of Henry David Thoreau: Canoeing in the Wilderness, Walden,
Walking, Civil Disobedience and More (Kindle Locations 39143-39147). . Kindle Edition.

1651
daily made the agents on injustice. A common and natural result of an undue
respect for the law is, that you may see a file of soldiers, colonel, captain,
corporal, privates, powder-monkeys, and all, marching in admirable order over
hill and dale to the wars, against their wills, ay, against their common sense
and consciences, which makes it very steep marching indeed, and produces a
palpitation of the heart.7

Assim, a forma encontrada pelo autor para protestar contra o estado majoritário, que se
sobrepõe às decisões da consciência individual, se deu por meio da recusa em pagar impostos.
Após alguns dias na cadeia, sob olhares piedosos dos carcereiros e do colega de cela,
incompreendidos pelo próprio autor, autoconsciente em relação à decisão de protestar contra o
que a maioria considerava correta, um anônimo pagou sua fiança. Para Thoreau, o motivo de
estar consciente de seus atos individuais, fazendo a distinção entre o que, em sua perspectiva é
errado, e na perspectiva estatal é correto, o manteria lúcido em qualquer local e em qualquer
situação, inclusive na cadeia pelo tempo que fosse necessário. Ao concluir o ensaio, Thoreau
idealiza o estado em que a consciência individual prevalecerá:

I please myself with imagining a State at last which can afford to be just to all
men, and to treat the individual with respect as a neighbor; which even would
not think it inconsistent with its own repose if a few were to live aloof from it,
not meddling with it, nor embraced by it, who fulfilled all the duties of
neighbors and fellow men. A State which bore this kind of fruit, and suffered it
to drop off as fast as it ripened, would prepare the way for a still more perfect
and glorious State, which I have also imagined, but not yet anywhere seen.8

O estado ideal, em sua concepção, não consideraria somente as maiorias, mas as


minorias, os que não se identificassem com as decisões tomadas em nome da massa. Essa
discordância não causaria mal-estar na convivência entre vizinhos que pensassem de maneira
diferente. Se todos tomassem suas decisões conscientemente, os direitos e deveres de cada
indivíduo seriam respeitados, inclusive nas divergências, pondo-se assim à prova a real
necessidade da existência de um estado controlador. Para o autor, tal estado ideal ainda não teria
existido, conferindo à sua escrita um caráter utópico.

7
Thoreau, Henry David. The Complete Works of Henry David Thoreau: Canoeing in the Wilderness, Walden,
Walking, Civil Disobedience and More (Kindle Locations 39169-39171). . Kindle Edition.
8
Thoreau, Henry David. The Complete Works of Henry David Thoreau: Canoeing in the Wilderness, Walden,
Walking, Civil Disobedience and More (Kindle Location 39607). . Kindle Edition.

1652
The soul of man under socialism

Publicado em 1891, o ensaio The soul of man under socialism é apresentado com o
propósito de encontrar um sistema de governo que aliviasse o povo de fins do século XIX de
todo o sofrimento causado pela vida no sistema capitalista industrial vigente:

The chief advantage that would result from the establishment of Socialism is,
undoubtedly, the fact that Socialism would relieve us from that sordid necessity
of living for others which, in the present condition of things, presses so hardly
upon almost everybody. In fact, scarcely anyone at all escapes.9

Nota-se que se esse sistema substituísse o regime dominante à época, o indivíduo estaria
livre da "necessidade sórdida de viver para os outros", necessidade esta que não poupava quase
ninguém no sistema industrial inglês. As condições de trabalho ainda eram bastante rudimentares
e longas jornadas, a utilização do trabalho infantil, e o êxodo em massa das áreas rurais para as
cidades que se tornaram polos industriais, geraram um ambiente de bastante pressão sobre quase
todas as pessoas.
As exceções a "todas as pessoas", como menciona o autor, são muito poucas, como
Darwin, Keats, Flaubert, que conseguiram, naquela sociedade industrial de classes, se isolar do
"clamor dos outros", para atingir a perfeição em suas obras. Porém, a maioria das pessoas, com
altruísmo inerente, "estragariam" suas vidas remediando a pobreza, o que, na visão do autor, só a
manteria viva. A solução seria a sua erradicação:

it is much more easy to have sympathy with suffering than it is to have sympathy
with thought. Accordingly, with admirable, though misdirected intentions, they
very seriously and very sentimentally set themselves to the task of remedying the
evils that they see. But their remedies do not cure the disease: they merely
prolong it. Indeed, their remedies are part of the disease. They try to solve the
problem of poverty, for instance, by keeping the poor alive; or, in the case of a
very advanced school, by amusing the poor. But this is not a solution: it is an
aggravation of the difficulty. The proper aim is to try and reconstruct society on
such a basis that poverty will be impossible.10

9
Wilde, Oscar. Oscar Wilde: The Complete Collection (The Picture of Dorian Gray, 14 Short Stories, 9 Plays, All
Poems, Selected Essays and Letters) (Kindle Locations 16023-16024). Di Lernia Publishers. Kindle Edition.

10
Wilde, Oscar. Oscar Wilde: The Complete Collection (The Picture of Dorian Gray, 14 Short Stories, 9 Plays, All
Poems, Selected Essays and Letters) (Kindle Locations 16031-16033). Di Lernia Publishers. Kindle Edition.

1653
É nesse momento que o autor propõe um sistema de governo em que as classes sociais
não existam e, dessa forma, toda pobreza seja erradicada. Nele, não seria mais possível os
moradores do East end londrino se dirigirem às áreas mais privilegiadas da cidade para
dependerem do altruísmo de pessoas com maior poder aquisitivo. Para ele,

Under Socialism all this will, of course, be altered. There will be no


people living in fetid dens and fetid rags, and bringing up unhealthy,
hunger-pinched children in the midst of impossible and absolutely
repulsive surroundings.11

Sua descrição das cercanias pobres londrinas, principalmente as do East end, são bastante
sensoriais ao se referir, por exemplo, ao odor das barracas e dos trapos que eram as únicas
opções de moradia e de vestimenta das crianças assoladas pela fome. Tudo isso, na perspectiva
do esteta, é repulsivo. Ele encontra no socialismo, em um sistema alternativo ao capitalismo
industrial, a possibilidade da erradicação da pobreza e de tudo aquilo que considera repulsivo
para que o indivíduo, em sua função mais nobre no planeta, possa cultivar o ideal estético da
beleza, da "art for art's sake".
E um dos pilares centrais para que o socialismo erradicasse as classes sociais em sua
Inglaterra contemporânea seriam os avanços decorrentes da ciência e da tecnologia do século
XIX, que possibilitaram às máquinas realizar os trabalhos braçais, substituindo, assim, a mão de
obra humana. Em consonância com O capital, de Karl Marx, ambos criam no fim da
escravização da mão de obra humana a partir do avanço tecnológico. Sobraria, assim, tempo para
o ócio produtivo e para o ser humano se dedicar à busca da perfeição, e não mais, à luta empática
de remediar a pobreza e a miséria decorrentes da existência de classes. Lukács (p, 26) afirma que
é "(...) na revolução industrial, onde a introdução das máquinas faz com que o homem e sua
capacidade de trabalho não sejam mais os fatores determinantes do trabalho, que o próprio
trabalho humano seja desantropomorfizado (...)". Vivendo em uma era pós-revolução industrial,
já no seio de uma revolução tecnológica, os questionamentos sobre as relações desiguais entre
tecnologia e mão de obra permanecem, ora "escravizando" a mão de obra, ora abrindo mão dela
de maneira descartável, corroborando a noção de que não importa se avanços tecnológicos

11
Wilde, Oscar. Oscar Wilde: The Complete Collection (The Picture of Dorian Gray, 14 Short Stories, 9 Plays, All
Poems, Selected Essays and Letters) (Kindle Location 16043). Di Lernia Publishers. Kindle Edition.

1654
ocorreram no século XIX ou posteriormente, o fator social nas camadas mais pobres permaneceu
relegado a um segundo plano em qualquer contexto cronológico.
Wilde analisa a importância da máquina e da tecnologia nesse novo contexto industrial
do século XIX:

Man is made for something better than disturbing dirt. All work of that kind
should be done by a machine. And I have no doubt that it will be so. Up to the
present, man has been, to a certain extent, the slave of machinery, and there is
something tragic in the fact that as soon as man had invented a machine to do
his work he began to starve. This, however, is, of course, the result of our
property system and our system of competition. One man owns a machine which
does the work of five hundred men. Five hundred men are, in consequence,
thrown out of employment, and, having no work to do, become hungry and take
to thieving. The one man secures the produce of the machine and keeps it, and
has five hundred times as much as he should have, and probably, which is of
much more importance, a great deal more than he really wants.12

Dessa forma, enxerga que o ser humano extrapola a sua função como mera peça da
engrenagem do maquinário industrial. Contesta o fato da mecanização do trabalho ter
escravizado mais ainda o trabalhador, que se vê à mercê dos proprietários dos maquinários, que,
ociosos, lucram com seus equipamentos e abrem mão da mão de obra à revelia, gerando miséria,
criminalidade, e lucrando muito mais do que o necessário em cima da pobreza. .

Utopias nascidas a partir das revoluções?

Pudemos identificar em Civil Disobedience uma linha mais centrada na revolução


francesa (burguesa), que pôs fim à necessidade da existência de monarquias que efetivamente
governassem. A partir da premissa de que o Enlightenment norte-americano dialogava com os
ideais da revolução mencionada, tanto essa quanto a independência norte-americana aconteceram
em um intervalo de pouco mais de dez anos, e Benjamin Franklin, grande expoente do
Iluminismo norte-americano, era figura muito bem relacionada politicamente com os franceses.
Portanto, no caso da obra de Thoreau, vemos uma das primeiras tentativas de se idealizar
uma república perfeita, talvez tão utópica quanto a platônica. Na república do autor norte-

12
Wilde, Oscar. Oscar Wilde: The Complete Collection (The Picture of Dorian Gray, 14 Short Stories, 9 Plays, All
Poems, Selected Essays and Letters) (Kindle Locations 16236-16237). Di Lernia Publishers. Kindle Edition.

1655
americano, escolhas deveriam ser feitas a partir da consciência individual, que discerniria o certo
do errado, e em medida coletiva, as minorias oposicionistas teriam tanta importância quanto as
maiorias situacionistas. São anseios que, quase dois séculos depois, provavelmente ainda não se
tem registro de terem sido postos em prática em alguma república. Em uma sociedade em que a
consciência individual decide, a existência do estado e a da democracia representativa podem ser
questionadas.
Em The soul of man under socialism, também pudemos considerar as revoluções
burguesas, não só a francesa, mas a da Commonwealth, como bases para o nascimento de um
capitalismo ocidental. Contudo, enquanto que nos Estados Unidos, no momento da escrita da
obra de Thoreau, o país ainda não vivia uma industrialização tão intensa quanto a inglesa, e
questionamentos e afirmações sobre desigualdades sociais na literatura ensaística só viriam cerca
de mais de cinquenta anos depois com War of the classes, de Jack London, as relações de
trabalho no setor industrial vivenciadas quando da publicação da obra de Wilde suscitavam
grande desconforto quanto à tamanha desigualdade social, proveniente do capitalismo industrial
que, por meio das máquinas, possibilitava o trabalho em larga escala, em condições de trabalho
sub-humanas.
Como no período de publicação da obra de Wilde, nenhuma experiência socialista havia
sido posta em prática ainda, já que a revolução russa aconteceria somente durante a primeira
guerra mundial, não conseguimos perceber no ensaio do autor uma amplitude de visão que fosse
além do viés utópico, capaz de abarcar todos os procedimentos de implementação de uma
sociedade socialista. O autor ateve-se a um ponto de vista mais individualista e estético (Bendz,
1916), quando, por exemplo, apontou cientistas e poetas como verdadeiras exceções em uma
sociedade majoritariamente opressora, que ocupava alguns de seus indivíduos direcionando
esforços ao sofrimento dos pobres e à sua remediação. Lord Alfred Douglas certa feita afirmou
que Wilde jamais teria escrito esse ensaio se não tivesse conhecido George Bernard Shaw e as
Fabian societies (Bendz, 1916), bastante versadas nos ideais socialistas.
Assim, notamos no texto de Wilde uma idealização de um sistema jamais posto em
prática, no qual a mão de obra humana seria substituída pela das máquinas, e não haveria
injustiças e nem classes sociais, pois todos estariam dedicados ao ócio produtivo e ao culto à
beleza, na perspectiva do esteta.

1656
Em Thoreau, nota-se uma utopia de viés anárquico, na acepção do termo: a vida em
sociedade é possível sem governantes e cada indivíduo age conforme a sua consciência plena, ou
sua autoconsciência;
No tocante à nossa análise do ensaio de Wilde, Lukács (p. 80), ao tratar da distinção entre
socialismo científico e utópico, afirmava que

o primeiro aspecto decisivo que podemos notar é que o socialismo em Marx se


apresenta como normal e necessário produto da dialética interna do ser social,
da auto-explicitação da economia com todos os seus pressupostos e resultados,
da luta de classes, enquanto para os utopistas tratava-se de corrigir através de
medidas, (...) exemplos, etc, um desenvolvimento substancialmente pleno de
múltiplos defeitos.

Em Wilde, com a perspectiva de olhos atuais e de experiências socialistas que nunca


conseguiram ser integralmente implementadas, seja na antiga cortina de ferro, seja em outras
experiências, identificamos uma espécie de socialismo utópico, pois em sua concepção, a
sociedade ideal seria desprovida da existência de classes, eliminando-se assim toda e qualquer
desigualdade, e suas "medidas corretivas" estariam centradas na substituição do trabalho braçal
pelo da máquina e na extinção da pobreza.
Os dois ensaios possuem o ser como seu eixo central: no primeiro, a consciência do ser
individual se sobrepondo ao estado opressor; no segundo, o ser esteta que almeja eliminar tudo
aquilo que for repulsivo, e que vá contra o ideal da busca pela perfeição.

1657
Referências bilbliográficas

HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios: 1875 - 1914. Tradução: Sieni Maria Campos e
Yolanda Steidel de Toledo. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

LUKÁCS, Georg. A ontologia do ser social. São Paulo: L.E.C.H., 1972.

LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: Um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da


grande épica. Tradução: José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Editora 34, 2000.

WOODCOCK, George. História das ideias e movimentos anarquistas – vl.1: a ideia. Porto
Alegre: L&PM, 2002.

Referências virtuais

Hobsbawm, E. J.. Nations and Nationalism since 1780 (Canto Classics). Cambridge University
Press. Kindle Edition.

Hudson, William Henry. An outline history of English literature. . Kindle Edition.

Marx, Karl; Marx, Karl; Engels, Friedrich. Delphi Collected Works of Karl Marx (Illustrated)
(Delphi Series Seven Book 23) (Kindle Location 19251). Delphi Classics. Kindle Edition.

Oscar Wilde (Critical Heritage). Taylor and Francis. Kindle Edition.

Thoreau, Henry David. The Complete Works of Henry David Thoreau: Canoeing in the
Wilderness, Walden, Walking, Civil Disobedience and More

VanSpanckeren, Kathryn. Outline of American Literature (U.S. Department of State "Outline"


series). A. J. Cornell Publications. Kindle Edition.

1658
Wilde, Oscar. Oscar Wilde: The Complete Collection (The Picture of Dorian Gray, 14 Short
Stories, 9 Plays, All Poems, Selected Essays and Letters). Di Lernia Publishers. Kindle Edition.

1659
METAFICÇÃO E UM LUGAR AO SOL: UMA ANÁLISE DA CONSTRUÇÃO
DO PROJETO LITERÁRIO DE ERICO VERISSIMO A PARTIR DOS
PERSONAGENS NOEL E FERNANDA

Heidy Cristina Boaventura Siqueira (UNIMONTES) 1

Resumo: Dentre outros temas relevantes que marcaram o contexto social, econômico e político
da década de 1930, a literatura em si é tema da obra Um lugar ao sol, de Erico Verissimo. De
forma perspicaz, Verissimo pensa o fazer literário no próprio ato em que é feito. Este trabalho
pretende estabelecer um vínculo entre os discursos das personagens Noel e Fernanda na referida
narrativa, com o posicionamento do autor Erico Verissimo sobre a função e a finalidade da
literatura no contexto do romance do decênio de 1930.
Palavras-chave: criação literária; romance de 1930; Um lugar ao sol; Erico Verissimo

Não obstante tenha se definido como “simples contador de histórias” e sido


subjugado pela crítica, Erico Verissimo, escritor gaúcho, está inserido em dois dos
movimentos mais importantes da ficção brasileira do século XX, quais sejam, “o
romance modernista de 22” e o “romance de 30”. Segundo Sergius Gonzaga (1990), da
geração de 22 incorporou a simplicidade linguística. Característica esta, inclusive, vista
de forma “esnobe” pela crítica, conforme Antonio Candido (2001). Do “romance de
30”, retirou a busca pela verossimilhança, pelo registro mimético da realidade.
Durante a conflituosa produção literária do decênio de 1930, que segundo
Candido (In: PESAVENTO, 2001, p. 12), teve o extraordinário papel de “revelação do
Brasil”, Verissimo enfocou, de forma contundente em seus romances, o Rio Grande do
Sul, tratando de problemas sociais e questões inerentes ao ser humano. À época, foi
ladeado por Jorge Amado que escreveu sobre a Bahia; José Lins do Rego, que expôs a
problemática dos latifundiários na Paraíba; Raquel de Queiroz, que contextualizou a
seca do Ceará; e Graciliano Ramos, que abordou a migração nordestina. Entretanto,
embora seus companheiros figurem como leitura obrigatória na maioria das
universidades do país, o mesmo tratamento não é lhe conferido. Ainda que a sua escrita
acessível tenha encontrado ampla acolhida nos leitores, a modéstia do autor ao reduzir a
sua produção literária ao lugar-comum de contador de histórias foi corroborada pela
crítica do seu tempo que o classificou em posição de inferioridade dentre os principais
escritores brasileiros.

1
Graduada em Direito (UNIMONTES), Mestranda em Letras/Estudos Literários (UNIMONTES).
Contato: heidycristina@adv.oabmg.org.br.

1660
O olhar apressado da crítica literária ofuscou, temporariamente, a importância de
Erico Verissimo. Entretanto, a análise atenta dos seus personagens, cujos discursos são
construídos quando dialogicamente combinados uns com os outros e examinados de
forma panorâmica, revelaram uma literatura engajada, comprometida com o ser humano
e contra toda espécie de violência sofrida por ele. Tal (re)análise elevou a fortuna crítica
de Verissimo, que chegou a ser estimada por Flávio Loureiro Chaves em 2010, a 1.300
títulos. O pesquisador ressalta que, nesse patamar, dentro da literatura brasileira, apenas
se equiparam Machado de Assis, Guimarães Rosa e Mario de Andrade (MARCON;
ARENDT, 2015, p. 153).
Ao contrário do que dizia a crítica da sua época, Verissimo dominava os
procedimentos narrativos e foi pioneiro ao introduzir na literatura brasileira, sob a
influência de Aldous Huxley, do qual fez a tradução do livro com título homônimo em
1933, a técnica do “contraponto”, com a sobreposição dos protagonistas e fatos narrados
sem concentração num único centro narrativo.
Quanto à escolha da referida técnica, Maria da Glória Bordini afirma que ela não
foi feita com intenções imitativas e sim por uma questão estrutural relacionada ao
projeto literário, bem como seu plano de democratização da literatura que desenvolvia
frente à Editora Globo. Segundo a autora:

[...] manejando destramente técnicas narrativas pouco conhecidas no Brasil


daquela época, soube criar, para qualquer leitor, uma bela metáfora da
sociedade urbana, aplicável não só a Porto Alegre de então, mas à ideia de
cidade que ainda prevalece junto ao público: um lugar onde a ação pessoal de
nada vale, porque a metrópole, ao mesmo tempo que os promove, torna
anônimos todos os presumíveis heróis e nivela todos os dramas individuais,
banalizando o livre arbítrio e reduzindo-os à paródia de si mesmo, contra a
massa de interesses em choque, manipulados por forças que parecem situar-
se para além do entendimento comum. (BORDINI, 1985, p. 32-33).

Luís Bueno, em seu livro Uma história do romance de 30, em busca de uma
classificação do romance de 30 em “social” e “intimista”, afirma que, embora possa ser
considerado “social” ou mesmo “regionalista”, Erico Verissimo, aproxima-se, em
muitos momentos, do romance intimista (BUENO, 2006, p. 17).
Já para Alfredo Bosi, a referida classificação não é tão elástica, ao declarar que
Verissimo “buscou realizar um meio-termo entre a crônica de costumes e a notação
intimista” (BOSI, 1996, p. 408).

1661
Embora entenda-se que qualquer rótulo atribuído a Erico Verissimo como
“romancista regionalista”, “romancista social” ou romancista “intimista”, incorreria em
inexatidão e desprezo à complexidade de sua obra, necessário se faz a este trabalho,
ainda que no âmbito de Um lugar ao sol, discutir acerca dessa taxonomia.
Em entrevista concedida a Daniele Marcon e João Claudio Arendt, publicada nos
Cadernos Literários em 2015, Flávio Loureiro Chaves sustenta que a obra de Verissimo
é regional “porque fixa a história de uma região”. Mas, não pode ser considerada
regionalista, visto que é “amplamente universalista, porque o que determina a história
regional é essa dialética entre o transitório e o permanente, entre o masculino e o
feminino, entre forças de corrosão e forças de preservação. [...]”. (MARCON;
ARENDT, 2015, p. 151).
Assim, fundada na teoria de Flávio Loureiro Chaves, e, considerando que na
narrativa, a observação de características regionais serve para revelar o social, entende-
se que Um lugar ao sol não pode ser enquadrado como romance regionalista, sendo
passível de aplicação o título de romance urbano.
Atrevendo-se a discordar dos autores Luís Bueno e Alfredo Bosi, com substrato
na pesquisa de Maria da Glória Bordini, acredita-se que Um lugar ao sol distancia-se do
romance intimista, enquadrando-se como romance urbano social.
Assim, com projeto literário confesso de realizar um corte transversal na
sociedade, denudando a sua engrenagem através do romance urbano social, Verissimo
tem a criação literária como temática constante em suas obras. Desde Fantoches (1932)
até Incidente em Antares (1971), recorrentes são os seus personagens que têm na
leitura/escrita o seu ofício ou nela buscam respostas para os problemas enfrentados.
A este trabalho, de forma especial, interessa a relação dos personagens Noel e
Fernanda com a literatura, e a produção desta última no alvoroçado decênio de 1930. A
primeira aparição de ambos os personagens se dá no romance Caminhos Cruzados
(1935), no qual o projeto literário de Noel é concebido como forma de resolução do seu
conflito interior. Entretanto, é em coautoria com Fernanda, sua esposa, que tal projeto se
efetiva já em Um lugar ao sol (1936), com o romance homonimamente intitulado.
Um lugar ao sol tem como cenário Porto Alegre. Na narrativa, feita em terceira
pessoa, várias histórias se intercalam. Com a sobreposição dos protagonistas e fatos
narrados, não há concentração num único centro narrativo. Tal técnica, além de

1662
evidenciar os diferentes núcleos sociais, destacando o contraste entre riqueza e pobreza,
caracteriza a vida social como reificada frente à modernização industrial daquele
contexto histórico.
Uma leitura superficial do romance pode explicitar apenas o aspecto das
dificuldades financeiras enfrentadas pela maioria das personagens. Entretanto, esse
aspecto, apesar de relevante, não encerra todas as discussões propiciadas pela narrativa.
Durante a narrativa do romance. evidente se torna o contraponto de opinião entre
o casal Fernanda e Noel. Ele, apegado ao ideal literário do conto de fadas, convencido
de que a literatura deveria falar de mundos imaginários que propiciassem uma fuga da
melancolia da vida:
Os livros, [...], contribuíam para que ele mais se apegasse ao mundo
impossível. [...]. Nunca encontrava nos seus romances prediletos (por isso
eram eles prediletos) um operário sujo que passa fome, uma mulher
desgraçada, um homem inválido, uma criança abandonada. (VERISSIMO,
1995, p. 230).

Já para a personagem Fernanda, a literatura possui uma finalidade humana e social


a ser explorada:

_ [...] Ninguém bocejará se você fizer uma história humana. Deixe de


literatura. Faça um romance moderno. Sabe qual é a diferença entre o
romance de hoje e o romance de ontem? É que no romance de ontem o sol
era o astro-rei; no romance de hoje é sol mesmo. Ninguém morre recitando
Shakespeare. Ninguém pede emprego em versos rimados... (VERISSIMO,
1995, p. 340).

_ [...] O romance deve ser um hino... hino não, é um termo muito


convencional, deve ser uma exaltação de coragem, do espírito de
camaradagem. Deve dar uma esperança de dias melhores para os que sofrem
e lutam... E deve ser também um libelo... [...] ... aos que por egoísmo,
descuido, ganância ou qualquer outra razão não compreendem que todos têm
o direito de viver decentemente... (VERISSIMO, 1995, p. 341).

É por meio da dissonância entre os discursos de Noel e Fernanda que o leitor de


Um lugar ao sol é convidado a refletir acerca da finalidade da literatura na sociedade.
Segundo Sergio Miceli, a carreira de romancista alcançou sua plenitude no
decênio de 1930, entretanto, não permitiu aos intelectuais do período o acesso ao capital
de relações sociais. Desse modo, grande parte manteve a sua atividade literária como
atividade subsidiária, sendo que parcela substantiva de seus rendimentos provinham de
atividades externas ao campo intelectual e artístico (MICELI, 2001, p. 187).

1663
Diante da contextualização histórico-social feita por Miceli sobre a década de
1930, observa-se que Verissimo, ao constituir suas personagens Noel e Fernanda em
Um lugar ao sol, discute, de forma perspicaz, o fazer literário no próprio ato que é feito,
além de trazer à lumen a situação do intelectual naquele período.
Apesar de Noel pertencer a uma família rica, ao se casar com Fernanda começa a
trabalhar como redator em um jornal e a escrever o seu livro nas horas vagas. Sua
dificuldade em lidar com a realidade social é uma crítica aos intelectuais daquele
contexto histórico que, detentores de uma posição econômica dominante, não
conseguem vivenciar, nem mesmo no plano ficcional, a condição das classes
dominadas.
As fragilidades demonstradas pelo personagem no decorrer da narrativa servem
como fator de desconstrução do imaginário do escritor “conhecedor de todas as
verdades”, distantes dos sofrimentos, ambições e desejos humanos.
Na busca pela subsistência, Noel tem que conciliar seu emprego e seu projeto
literário. Neste contexto, Verissimo denuncia a precariedade de se sobreviver da
literatura, mas também traz ao escritor uma dimensão humana: um indivíduo comum,
que também luta pela sobrevivência.
Esta luta cotidiana por uma vida digna, que, em tantos momentos da narrativa
levam Noel a atitudes solitárias, revelam o impacto da modernização sobre o ser
humano, que fragiliza, reifica.
Quanto à personagem Fernanda, autores como Jorge Amado (1990) e Silviano
Santiago (2015) chegaram a afirmar ser ela o alter ego de Erico Verissimo, uma vez que
transmite em seus discursos, as visões estéticas e literárias do autor.
Verissimo, embora sem adesão a partido político definido, era, confessamente,
adepto da literatura engajada:

Cada escritor, cada artista está, queira ou não, inserido no seu “tempo” e no
seu “espaço”. Eis por que me parece impossível escrever-se um romance de
nossos dias que não reflita os problemas de natureza econômica, política,
social e existencial que nos perturbam. Claro, no caso dos alienados mentais
a situação é diferente... (VERISSIMO, In: BORDINI, 1990, p. 68).

Para o escritor gaúcho, o “fazer literário” possui uma finalidade humana e social a
ser explorada. Da mesma forma, para a personagem Fernanda o texto literário deveria

1664
propiciar uma reflexão sobre as injustiças sociais e uma mudança no comportamento
humano:

Fernanda é uma personagem construída com base na ideia humanista de vida


e literatura. Ela é a personagem responsável por viabilizar as ideias
humanistas de Erico Verissimo dentro do romance; é aquela capaz de criar
soluções para a realidade de uma forma pacífica, por meio da literatura,
sendo porta-voz do autor quando este diz que “considero-me dentro do
campo do humanismo socialista, mas note-se voluntariamente, e não como
prisioneiro”. Observando o projeto literário de Erico Verissimo em sua
totalidade, são as personagens femininas que possuem a característica de
serem intensas mobilizando o mundo e as pessoas que as cercam. (CAMPOS,
2017).

Beatriz Badim de Campos (2017) destaca que, tendo o projeto literário de


Verissimo se iniciado no decênio de 1930 foi fortemente marcado pelo neorrealismo,
que propunha a transformação da realidade pela arte. Preocupado em denunciar a
realidade injusta de opressão de uma classe sobre a outra, o neorrealismo pretendia
romper com a alienação, conscientizando o indivíduo quanto o seu papel social. Dessa
forma suscitava dilemas como arte ou vida, beleza ou verdade, contemplação ou
participação. Tais dilemas são explicitados no entrecruzamento dos discursos dos
personagens Noel e Fernanda.
Assim, o projeto ficcional da personagem Fernanda, que vislumbra esperança na
luta contra a engrenagem social que reifica o homem, é chave de leitura da perspectiva
de Erico Verissimo em Um lugar ao sol e em todo o seu projeto literário da década de
1930.

Referências

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(Org.). Erico Verissimo: o escritor no tempo. Porto Alegre: Sulina, 1990, p. 38.

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<https://periodicos.ufsc.br/index.php/travessia/article/view/17550/16124>. Acesso em
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1990.

1665
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BUENO, Luís. Uma história do romance de 30. São Paulo: Edusp; Campinas: Editora
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CANDIDO, ANTONIO. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy et al (Org.). Erico


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CAMPOS, Beatriz Badim de. Caminhos cruzados e Um lugar ao sol: o projeto


literário de Erico Verissimo. São Paulo: EDUC (e-book), 2017.

GONZAGA, Sergius. Erico Verissimo e os modernos. In: BORDINI, Maria da Glória


(Org.). Erico Verissimo: o escritor no tempo. Porto Alegre: Sulina, 1990, p. 37-39.

MARCON, Daniele; ARENDT, João Claudio. “Erico Verissimo não é um romancista


de 30”: entrevista com Flávio Loureiro Chaves. In: Cadernos Literários, v. 23, n. 1,
2015, p. 148-161. Disponível em:
<https://periodicos.furg.br/cadliter/article/view/5484>. Acesso em: 05/09/2019, às 17h.

SANTIAGO, Silviano. A estrutura musical do romance - o caso Erico Verissimo. In:


Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 157.

VERISSIMO, Erico. Um lugar ao sol. São Paulo: Globo, 1995.

1666
DOIS RETRATOS DE PROTAGONISTAS ROMANESCAS EM
DEFORMAÇÃO GROTESCA: UM SOPRO DE VIDA: PULSAÇÕES, DE
CLARICE LISPECTOR E ESTAR SENDO. TER SIDO, DE HILDA HILST

Joel Rosa de Almeida1

Resumo: O presente artigo visa a analisar duas protagonistas dos romances Um sopro de vida:
pulsações, de Clarice Lispector, e Estar sendo. ter sido, de Hilda Hilst: Ângela Pralini e
Vittorio, personagens-autores que se projetam em outros personagens-autores, Autor e Hillé,
respectivamente. Procuraremos estudar os retratos das figuras centrais romanescas em
perspectiva comparada, fundamentados na categoria do grotesco, dimensionada pelos teóricos
Mikail Bakhtin e Wonfgang Kayser

Palavras-chave: Clarice Lispector; Hilda Hilst; Romance; Literatura Comparada; Grotesco

Sabendo que ambas as autoras, Clarice Lispector e Hilda Hilst eram próximas e
escreviam romances psicológicos, notamos que há uma escassez de estudos comparados
entre as obras dessas prosadoras2. Nossa intenção aqui é analisar os protagonistas de
dois romances finais de ambas as autoras, tendo compreensão também que a obra de
Lispector e a de Hilst demonstram-nos um campo muito fértil de investigações sobre
retratos de seres ficcionais, perspectivas e vozes narrativas, ainda que nossas
preocupações, em primeira instância, sejam as personagens, como campo de mediação.
Com o lançamento de Um sopro de vida: pulsações (1978), fechava-se o ciclo
romanesco das obras de Lispector mesmo após sua morte, em dezembro de 1977.
Notamos que SV3 era um desejo e uma intenção de Lispector concedido sim a edição à
sua amiga Olga Borelli, e esta empreendeu-o com rigor e dedicação. Entretanto, há um
texto de Borelli (1981), intitulado Esboço para um possível retrato, espécie de retrato
biográfico-literário de Lispector, que reflete e modifica essa condição de leitora-
partícipe para a condição de autora ou possivelmente coautora, na medida em que
Lispector é objeto de sua escritura.

1
Doutorando na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, autor de A experimentação
do grotesco em Clarice Lispector, lançado pela Edusp/Nankin, em 2005; meu e-mail é
jrosa_author@hotmail.com
2
Podemos citar, entre poucos estudos, o de Fernando de Mendonça, como segue: MENDONÇA,
Fernando de.O desamparo do verbo: Clarice Lispector e Hilda Hilst - Salmódicas. 150 f. Tese
(Doutorado em LETRAS), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 150 p., 2014.
3
A partir de então, o romance Um sopro de vida: pulsações, de Clarice Lispector, terá a sigla SV.

1667
Sobre a fortuna crítica de SV, Benedito Nunes (1989) já apontava para a
montagem “triádica” que compõe o romance de Lispector, na instância de autoria: o
personagem metatextual denominado “Autor”, a criação dessa personagem também
metatextual denominada “Ângela” e a personagem Clarice Lispector, porque uma
reflete-se na outra, já que várias crônicas e pinturas assumidas pela protagonista
“Ângela”, são, de fato, de Lispector. O que fica evidente é que essa personagem de si
mesma Lispector já criara em A hora da estrela (1977) e também ecoara, neste romance
escrito paralelamente, segundo Borelli.
Narrativa de viés grotescamente “paródico e parafrástico”, Nunes também coloca
a oposição feminino x masculino, nesta instância de autoria metatextual, replicada de A
hora da estrela, “Autor” (figura de autoria masculina) confronta-se com sua criatura
“Ângela” (figura de autoria feminina), algo que reverbera desse romance, na oposição
entre Rodrigo S.M. e personagem Clarice Lispector. Há uma “disseminação de modos
de agir e pensar”, tendo-se dois discursos monologais que não confluem para o diálogo.
Há duas instâncias verbais de um mesmo “improviso narrativo”. Assim, temos uma
“escritura errante, empática, hiperbólica e repetitiva”. Ao citar Austen, Nunes (1989, p
170), afirma a existência de um “entusiasmo maligno” que chega a um “entusiasmo
infeccioso”. Diante de um jogo dialógico de vozes, Nunes considera que a voz da
personagem-autor Clarice Lispector é “ortônima” de seus “heterônimos”
(exemplarmente, Rodrigo S.M e “Autor” etc.), algo que Gotlib (1994, p. 475) também
corrobora, em sua crítica, considerando um caso de “círculo vicioso do circuito
ficcional-autobiográfico”. Vida e arte mesclam-se, em um romance experimental e
metatextual, póstumo mas que já agônico prenuncia a morte da autora Lispector, tanto
quanto em A hora da estrela, a ponto de Nunes afirmar que é um texto cujo “jogo de
identidade” dos narradores é uma espécie de “premonição da morte”, em reflexos de
“estrelas fúnebres”.
Gotlib (1994), atenta a movimentos ficcionais e biográficos da autora, indica-nos
criticamente que CL fazia uso de anotações esparsas e diversas, até mesmo em papéis
estranhos (pedaços de papel e cheques, por exemplo); e Olga Borelli, nos últimos quatro
anos de vida da autora, secretariava e organizava esses pedaços e fragmentos, com
dedicação e cuidado. O romance SV, portanto, tem uma perspectiva de “livro
inacabado”, o subtítulo “pulsações” reflete o caráter emocional da obra, mas sobretudo
algo “inclassificável”, “inacabado”, “fragmentado”, portanto, tortuoso e grotesco. Há
um viés de “improviso”, nesta obra e por diversas vezes nesta 3ª fase de Lispector, o

1668
jogo ficcional se “desmistisfica” para dar espaço a uma “explicitação de identidades”
difusas. Ângela Pralini e Clarice Lispector são especulares, porque ambas são pintoras e
prosadoras, ambas pintam e explicam seus quadros; há, portanto, nessas cenas finais,
um “autorretrato de Lispector”, que se expõe, que se desnuda, mas que também se
esconde, nas protagonistas romanescas que constrói. Gotlib salienta que, nesta época,
Lispector já madura e renomada escritora da nossa literatura brasileira moderna
desejava ser vista como pessoa e não como mito.
Homem (2012) revela-nos, em sua crítica sobre SV, em ponto de vista crítico-
psicanalítico, dois aspectos aproximativos grotescos e que nos permitem confirmar a
existência de uma escritura grotesca na obra de Lispector, mais particularmente em SV.
O primeiro ponto é o lugar da autoria, sempre deslocada e esvaziada, pois sempre
modula (passa de Lispector, para Rodrigo S.M. em A hora da estrela (1977) e depois
personagem-autor em SV, para ser finalizado com Ângela Pralini), mas sobretudo é um
espaço oco, vazio, intervalar e em configuração agônica ou em queda. Outro ponto é a
oposição “temporalidade versus eternidade”, quando nesta última temos o que Homem
recupera como “o vazio silêncio da eternidade”, são elementos não menos dicotômicos
e grotescos. Em SV, notamos que Lispector, de modo mais espraiado e condensado,
procura e produz uma escritura grotesca, concêntrica, espiral, paradoxalmente mística e
desmistificadora, como “cobra que engole o próprio rabo”, quase no seu último
processo de criação, e que não deixa de ser uma expressão mais aberta, onírica e na
construção das suas próprias ruínas, na criação e destruição da sua obra, em processo
contínuo da lavra literária.
Na romance ESTS4, de Hilst, temos uma circunstância literária paralela similar à
de Lispector, que é a produção de crônicas escritas para o jornal paulista Correio
Popular, de Campinas, nos idos de 92 a 95, tendo sido editadas, com o título Cascos e
Carícias (1998), lançado alguns poucos anos antes da morte da autora e
concomitantemente à produção de ESTS. Nessas crônicas, além de um diálogo, de uma
projeção e uma reflexão de vozes em ESTS, Hilst coloca-se criticamente diante de uma
realidade social brasileira brutal, vivendo dificuldades de toda ordem, não deixando de
polemizar e impactar o leitor citadino paulista. São textos pulsantes, dotados de lucidez
sobre a miséria e o número de “famélicos” brasileiros, suas indignações confrontadas a

4
A partir de então, o romance Estar sendo. Ter sido, de Hilda Hilst, terá a sigla ESTS.

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partir de reflexões sobre a corrupção e problemas nas políticas públicas, na saúde, na
educação, temas que hoje são ainda atuais no cenário político.
Lispector escreveu crônicas por longas fases da vida, relevante é o estudo
aprofundado dessa face da autora produzido por Aparecida Maria Nunes (2006), que
revelou uma autora empenhada em exercícios diários no gênero crônica, provocando
uma fusão ou mescla de gêneros entre a crônica e o conto e a crônica e o romance, esse
último efeito presente em SV, fenômeno este que também denominamos de migração
textual. Ambas as autoras passeiam por alguns gêneros da prosa com muito domínio,
provocam efeitos literários ainda não muito estudados, os textos de ambas projetam-se
de um meio a outro e criam sentidos inusitados ainda não analisados a contento, em
especial na obra de Hilst.
Em SV, de Lispector, já na primeira parte, sem denominação mas como uma
espécie de prefácio do romance, temos a configuração deste como um romance
fragmentado. Estruturado em diários; temos duas personagens, o Autor e Ângela
Pralini, ambos dialogando em intensidades. Há, portanto, aqui, na projeção do
personagem-autor, duas vozes: uma da personagem e de um personagem Autor, que cria
sua protagonista, Ângela Pralini. Esse Autor duplica-se na figura da personagem Clarice
Lispector, muito próximo do efeito que ocorre em A hora da estrela, de Lispector,
quando temos a construção de dois personagens-autores: Rodrigo S.M. e a personagem
Clarice Lispector. Ângela também é outra voz, e ora somam mais vozes, que plurais
superdimensionam a narrativa romanesca de Lispector. Essas vozes são praticamente
dissolvidas, de modo a quase se anularem, numa perspectiva grotesca dotada da
destruição ou do esgarçamento da linguagem, que demonstra, ao longo do antirromance,
deformarem ainda mais o processo de criação do romance, bem como aproximação e
repulsa.
De viés filosófico, o narrador procura construir sua protagonista de modo natural
e envolvente, pois esta já havia se separado do marido e tivera um contato com a
natureza, segundo o conto “A partir do trem”, de Onde estivestes de noite (1974), de
Lispector, próxima a sua parceira de trem D. Maria Rita, velha que será recebida pelo
filho Nandinho, em um sítio. Em SV, o contato com a natureza torna-se ainda mais
avassalador, a ponto de refletir a personagem por meio de metáforas florais e marinhas,
a contemplarem elementos da flora e da fauna. Assim, a natureza contribui como um
refúgio para a protagonista realimentar-se como ser, algo em perspectiva simbólica
arquetípica. Neste último romance de Lispector, temos a “rosa”, em metáfora não

1670
desgastada, árvores e frutos; voos de pássaros a metaforizarem a respiração enviesada e
tímida de Ângela; nozes e castanhas como elementos gestados pelo protagonista Autor,
a inspirar essa criação da protagonista que se dá no momento da enunciação. Nos
exemplos acima, notamos que há um encontro cúmplice com os elementos da natureza,
realizado pelo Autor e por Ângela, criador e criatura. A natureza conspira como um
espaço que permite fazer com que a protagonista consiga vivenciar essas experiências
errantes e grotescas. Quem muito bem delineou o passeio de Lispector com a natureza e
parodiou-o foi Cixous, em A hora de Clarice Lispector (1999), quando essa crítica
francesa incorpora o estilo natural de Lispector ao escrever aproximando-se dos fluxos
da natureza, numa perspectiva do gênero feminino.
Há o metatexto esvaziado, ainda que muito bem articulado a ponto de o narrador e
personagem-autor engendrarem esse efeito literário em ruínas, em demolição, em
fragmentos, próprio da estrutura romanesca grotesca, escritura que tem o processo de
criação em aberto. Pode-se seguir o fluxo dessa natureza, que está o tempo todo,
mediante vários elementos e símbolos, em contato com a protagonista. Ângela contribui
para construção do texto, em consequência, do seu próprio criador, seu personagem-
autor.
Um dos elementos filosóficos mais pulsantes em SV é o pensamento, mas não é
esse exatamente o elemento que o narrador e o personagem-autor buscam, é o pré-
pensamento e o “instante-já”. Há um intervalo entre a não palavra e a linguagem, um
hiato entre o silêncio e a comunicação, algo que Lispector, através da sua instância de
autoria, deseja expressar. Esses elementos traduzem a perspectiva de uma estética
grotesca arrojada, de intenções e visões filosóficas. O Autor busca a errância, o silêncio,
porque está no processo de construção da própria imagem e linguagem literária, que se
esfumaça, pois Ângela, ao ser criada, em um “sopro vital”, demonstra sua coragem ao
aproximar-se desse seu criador, e, em deslizes grotescos, ao enfrentar angústia, agonia e
errância.
O grotesco na literatura ganhou mais destaque, no século XIX e XX com os
estudos teóricos de Victor Hugo (1972) e Wolfgang Kayser (1964). O primeiro descreve
e explica os elementos do monstruoso, da mescla do animal e do humano, do terror, do
noturno, entre outros elementos de dimensão romântica. Já o segundo, sobre a
cosmovisão carnavalesca, basilar para compreender o romance polifônico, explicita os
conceitos teóricos interligados e estruturados, no realismo grotesco, porém recupera e
retoma os textos antigos e medievais, como a sátira menipeia e o “diálogo socrático”,

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também configurados como a síntese da cosmovisão carnavalesca, que se sustenta por
alguns aspectos teóricos: atualidade, “experiência e fantasia livres”, plurais estilos e
várias vozes.
O romance europeu, segundo Bakhtin (1997), apresenta sua evolução do viés
épico, passando pelo retórico e o carnavelesco. E a literatura carnavalizada ocorre nos
mais variados elementos do sensorial ao simbólico, transfigurados para a linguagem
literária. São quatro categorias dessa cosmovisão interligadas: “familiarização,
excentricidade, mésalliance e profanação. A atitude carnavalesca central é a “coroação
bufa” com o destronar do “rei do carnaval”. Há um festejar do tempo, com mutações
cíclicas, “morte e renascimento”, “destruição e renovação”, isto porque “o carnaval
aproxima, reúne, celebra os esponsais e combina o sagrado com o profano, o elevado
com o baixo, o grande com o insignificante, o sábio com o tolo etc” (BAKHTIN, 1997,
p. 123).
Há alguns vieses do realismo grotesco propostos por Bakhtin. Se por um lado, há
um viés baseado na construção de algo destruído, rebaixado ou degradado; por outro, há
o do risível e da diversão. Este é o que dá fundamento aos conceitos bakhtinianos de
polifonia ou romance polifônico, quando temos no interior do texto romanesco um
acúmulo de vozes plurais, múltiplas e difusas, com uma certa dificuldade de o leitor
identificá-las e processar a origem dessas falas cômicas, transgressoras e festivas.
A escritura grotesca procura a negação do romance tradicional e sobretudo a
busca de uma série de negações que envolvem a história de Ângela e seu criador, o
personagem-autor. Desde a dúvida do ato de escrever; passando pela certeza de a
“impessoalidade” ser “uma condição”; descortinando uma narrativa que pressagia o
silêncio; revelando as dimensões negativas da existência e do “espírito”; e até chegar a
redimensionar o “nada” e a “vida” como algo “inexplicável”. Todos são processos que
passam por uma negatividade, a buscar os espaços intervalares do “limiar da palavra
nova”. Trata-se de uma escrita que investiga seus espaços ocultos, misteriosos,
perigosos e vazios, o que resulta uma escritura grotesca.
Ângela Pralini, ao nascer com “um sopro de vida”, nega seu gênero feminino,
reflete a voz da autoria masculina, investiga-se e investiga seu interlocutor, o
personagem-autor também reprojetado discursivamente no próprio leitor, em seu
nascimento e em instantes e momentos efêmeros e fugazes. A protagonista assim se
constata, no seu nascimento:

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E assim recebi o sopro de vida que fez de mim um homem, sopro em você
que se torna uma alma. Apresento a mim, te visualizando em instantâneos
que ocorrem já no meio de tua inauguração: você não começa pelo princípio,
começa pelo meio, começa pelo instante de hoje. (SV, p. 25)

Na segunda parte intitulada “O sonho acordado é que é a realidade”, já temos esse


diálogo de vozes mescladas enunciadas pelo tempo presente. Este se mescla ao tempo
da enunciação da leitura, bem como se confunde com o tempo da criação da
personagem. O personagem-autor elege o “instante” como o tempo primordial e já
revela seu diálogo como falseado, pois metaforiza-o como “fac-símile de diálogo”.
Apresenta dúvidas se participa de uma “festa maldita”, aqui os aspectos grotescos
ganham contornos mais definidos. As desinências discursivas dos gêneros feminino e
masculino confundem o leitor, no início do capítulo, durante a montagem do texto,
quando o personagem-autor aflora.
Podemos perceber como o domínio da palavra, “do verbo”, uma apropriação
paródica às Sagradas Escrituras, em especial do livro Gênesis, de modo sublime, muda
de viés e de mãos, passando do Criador (Deus), ao personagem-autor, chegando à
criatura Ângela e a “todo mundo”, dessacralizado no seguinte trecho: “No começo só
havia a ideia. Depois o verbo veio ao encontro da ideia. E depois o verbo já não era
meu: me transcendia, era de todo o mundo, era de Ângela” (SV, p. 27). Essas
dessacralizações foram analisadas não só por nós em Hamlet, de Shakespeare, mas
anteriormente por Passos e Diniz, quando já apontavam as paródias que Lispector
realizava com Rei Lear, de Shakespeare, e, em uma crítica mais recente, foram
comentadas nos estudos de Barbosa (apud ALBUQUERQUE, 2015, p. 271):

References to Shakespeare’s plays, themes, and characters abound in


Lispector’s texts, and several scholars have analyzed this intertextual aspect.
Cleusa Rios Passos and Júlio Diniz, for instance, connect “Feliz Aniversário”
to King Lear, and Joel Rosa de Almeida notices common thematic ground
between the short story “Onde estiveste de noite” and Hamlet (Passos, 167-
74; Diniz, 29-50; Almeida, 89-92).

A construção de uma personagem central como Ângela passa por um processo de


criação aberto, instável, o personagem-autor está esculpindo sua figura como um artista,
escultor, há uma perspectiva de arte em processo ou arte ao acaso, como bem formulou
teoricamente Ostrower (2013). Ao misturar várias artes em moldura intertextual em
perspectivas de estética comparada (literatura que dialoga com a pintura, com a música,
com o cinema etc.), Lispector instaura processos artísticos de modo a correlacionar

1673
estéticas contrastivas (erudita ou popular, clássica ou moderna etc.), também de modo
paródico.
No meio de SV, temos uma terceira parte pequena intitulada “Como tornar tudo
um sonho acordado?” (SV, p. 91-96), que se comunica com a parte anterior “O sonho
acordado é que é a realidade” (SV, p. 21-90). De um outro modo, na quarta parte do
antirromance, denominada “Livro de Ângela”, apresentam-se várias minicrônicas como
exercícios de colagem de escrita muito próximas de patchworks costurados e
fragmentados como estilhaços de textos. Esses trechos e fragmentos configuram-se
como crônicas, minicrônicas ou microcrônicas.
O “Livro de Ângela” compõe-se como uma espécie de projeto final e metatextual
romanesco em miscelânea, misterioso sortilégio de Ângela e da própria personagem
Lispector, por vezes confundida como “bruxa”, já que sempre houve uma aura
misteriosa em torno da autora. Trata-se de uma colcha de retalhos às avessas, espaço
múltiplo, onde a personagem-autora Ângela mostra-se escondendo-se em suas temáticas
fluidas e envolventes. Homem explica esse livro numa dimensão tríade: “Uma autora
(Clarice Lispector) cria um Autor que cria outra autora (‘Ângela Pralini’), que também
cria sua obra” (2012, p. 154). Três autores se fundem, assim, numa narrativa grotesca,
que se expande e se esgota, porque os autores não têm personagens, na realidade, mas
outros autores. Ângela é outra personagem-autora de si mesma, de Lispector e do
personagem-autor. Podemos acrescentar que Ângela é personagem-autora de Lispector
também e não só do personagem-autor. Portanto, não se trata de um mecanismo só
tríade, mas de uma narrativa em espiral.
No romance ESTS, Vittorio é um velho de 65 anos, aos cuidados do irmão
Matias, de 55 anos, e praguejando impropérios de toda espécie, relata sua vida atual e
com a ex-mulher Hermínia, sua relação paternal com Júnior, em fluxos de consciência
dialogais ininterruptos. Numa relação triangular em atraso e em decomposição, Vittorio-
Hermínia-Alessandro, temos o erótico a desviar para o obsceno, nos relatos dos desejos
sexuais de Hermínia com esse novo namorado da mulher pela narração do protagonista.
Vittorio reflete todos os seres que perpassam a história, deslizando sua promiscuidade
narrativa, com a construção de diários reveladores. A narrativa vai se estruturando em
fluxos e diálogos, através de outras relações triangulares problemáticas e,
exemplarmente, na relação pai-filho-ex-mulher, a disputa entre o amor paternal e o
maternal se escancara, por vezes através de discursos diretos dramáticos, diálogos

1674
teatralizados com supressão de didascálias, em jorro narrativo que mescla o sintético e a
complexidade.
Numa radicalização do romance moderno muito próxima da dimensão explicitada
por Adorno (2003, p. 55-63), no quarto fluxo de consciência do protagonista em diálogo
com Matias, no romance ESTS, de HILST, ainda que essas e outras personagens
estejam próximas de Vittorio, em matizes grotescos e deístas dessacralizadores, há uma
perspectiva do abandono na velhice, de reflexos de bebedeira, de um abandono
voluntário e uma profunda solidão instigada pela dor e pelo sofrimento, que se viciam
na “euforia e se “roçam” e se “esfregam”, no acúmulo de memórias e restos de
existência diária, tendo as imagens naturais esgarçadas e diluídas, no intervalo
crepuscular entre o final da tarde e início da noite. Em uma promiscuidade sígnica
poética, o formato da margarida desliza-se ao da gérbera, numa mescla de sentidos e
imagens. O imaginário erótico e sexual do homem e da natureza é deslizante e aliciante,
na narrativa romanesca moderna de Hilst.
Na obra de Hilst, é certo que as correlações entre o ficcional e o poético são mais
pesquisadas e analisadas pela crítica, que se volta ao estudo de sua fase séria e
desdobramentos a partir da segunda fase denominada obscena, contudo, nota-se uma
outra correlação, que se dá entre o romance e a crônica, não suficientemente analisada,
nos estudos acadêmicos. Pécora (apud REGUERA e BUSATO, 2015, p. 13-27), em
artigo até certo ponto recente intitulado “Hilda menor: teatro e crônica”, explica-nos a
incursão de Hilst, no gênero crônica. Não se vê claramente uma saída para o
protagonista de Hilst, porque o ser humano está esgotado ou em um processo de
decomposição física e intelectual. A fragilidade do ser é visível, porque a comunicação
é pulsante com o leitor, mas praticamente evidencia-se deslocada e tangencial entre os
seres ficcionais.
Assim, Vittorio é um homem de 65 anos, que mora no litoral e envelhece através
de alguns subterfúgios: bebida, leitura, paixões e desilusões amorosas. Este tem contato
com o irmão Matias, de 55 anos, que apresenta uma outra aparência: mostra-se com
saúde, vida sexual, sem grandes conflitos existenciais e que se revela como contraponto
do irmão. Mas ambos são seres frágeis e em deslocamentos.
Moraes (apud REGUERA e BUSATO, 2015, p. 215-219), no mesmo compêndio
de estudos hilstianos, aborda o tema do erotismo na velhice ao comentar criticamente o
protagonista Vittorio e suas artimanhas no reino do desejo, do erotismo e da libertação
sexual na velhice, algo que na literatura de Hilst constrói-se em ESTS. Assim,

1675
aprofunda essas temáticas, nas perspectivas teóricas propostas já delineadas por Moraes
(Bataille, Barthes e Blanchot são os aportes teóricos desta, entre outros). Podemos
seguir os passos críticos profícuos de Moraes, na medida em que estes se aproximem,
em contraste crítico, do romance SV e de outros contos de CL da mesma fase,
notadamente os textos “encomendados” mais ligados às pulsões sexuais, aos desejos e
às forças corporais de Eros e Thanatos, que se encontram em A via-crúcis do corpo
(1974). São os textos de CL mais ousados e, de fato, essa autora demonstrava um certo
“pudor” por tratar de assuntos sexuais. Ainda que Hilst tenha empreendido textos
verticais de temáticas sexuais e corporais de rara ousadia romanesca em sua tetralogia
obscena, comparáveis aos de Marques de Sade, temos, em seu último romance, reflexos
e ecos dessa fase mais obscena, que não se esgota nessa tetralogia.
Vera Queiroz (2000), em seu Hilda Hilst: três leituras, analisa alguns textos de
Hilst e notadamente seu último romance, fazendo alguns apontamentos significativos
para nossa proposta de análise. A princípio, ao analisar Rútilo nada (1993) comenta que
os amores hilstianos são flagrados em “estados de decomposição”, algo que também
ocorre em ESTS. Além de uma ausência de convenções formais, notadamente dos sinais
de pontuação abolidos, há também ausência de limites entre os mundos real e ficcional.
Nos fluxos de consciência de Vittorio, a linguagem literária percorre “uma torrente
incontrolável e incontornável de impropérios, de imagens coprológicas, de blasfêmias”
(QUEIROZ, 2000, p. 19) Portanto, no romance ESTS, há ironia e sarcasmo, há também
o passeio pela prosa lírica (mescla de gêneros que se tornam sobretudo híbridos), assim
como o nonsense existencial. Assim como na obra ficcional de CL da última fase, Hilst
também constrói um “estilo em espiral” (p.22), texto com teores radical e erótico, que
alcançam o escatológico. Com relação à mescla de gêneros, temos os mais variados
hibridismos, e Queiroz esclarece-nos: “poesias, contos, novelas aparecem sob a forma
de diários, de memórias e biografias ficcionalizadas, de cartas, ou ao estilo de literatura
de cordel, como paródia dos contos de fadas e como pastiche da linguagem infantil” (p.
24).
Esse relevante ensaio crítico de Queiroz demonstra-nos que o estudo comparado
dos romances e livros de crônicas de CL e Hilst apresentam pontos de convergência e
divergência significativos no que concerne à procura do estudo crítico do grotesco,
porque ambas as prosadoras tinham este como uma importante concepção e categoria
estéticas.

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Assim, notamos que as personagens grotescas de CL e Hilst confrontam-se, em
um múltiplo e plural diálogo de vozes tortuosas, desconexas e difusas, como se
necessitassem de um grito agônico no silêncio da boca escancarada da noite assustadora
e infinda, como se, em momentos seguintes, não tivessem mais fala, o discurso fosse
nulo e vazio, tendo-se o esgotamento e esgarçamento da linguagem literária.
As romancistas, através do discurso literário moderno, projetam-se em vozes
plurais e múltiplas dentro da narrativa, são gestos metatextuais, porque o corpo dessas
vozes não é único, não é individual, mas coletivo e desdobrável, as imagens por vezes
reduplicadas e reencenadas, porque adensam tanto o discurso dramático “em
construção” ou “em ruínas”, quanto o sofrimento próprio e alheio, que perpassa também
pelas vozes múltiplas do leitor.
O estudo das perspectivas e dimensões grotescas desses retratos, nesses romances
de nosso escopo inicial, mostra-nos percursos de romances modernos experimentais e
arrojados, radicais escrituras errantes de várias faces, de diversos fragmentos e cujos
leitores atônitos tentam esboçar os retratos dessas protagonistas no texto, de modo a
revelarem as angústias mais misteriosas destas, a criação e a destruição desses seres
ficcionais, a refletirem os paradoxos da vida e da morte, do dia e da noite, na formação
dos desejos e das renúncias. Cada obra de cada romancista reflete procuras particulares,
mas são nossos sabores e dissabores humanos, em CL, ainda em formação, em
perquirições filosóficas, e em Hilst, já estão em processo de decomposição e
radicalização aliciantes, espécie de “pulsações” provocadoras, que CL já prefigurava
vinte anos antes.

Referências
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LISPECTOR, Água Viva. Rio de Janeiro: Artenova, 1973.
____. A via-crúcis do corpo. Rio de Janeiro: Artenova, 1974a
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MENDONÇA, Fernando de.O desamparo do verbo: Clarice Lispector e Hilda Hilst -
Salmódicas. 150 f. Tese (Doutorado em LETRAS), Universidade Federal de
Pernambuco, Recife, 150 p., 2014.
NUNES, Aparecida Maria. Clarice Lispector jornalista. São Paulo: Senac, 2006.
NUNES, Benedito. O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. São
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OSTROWER, Fayga. Acasos e criação artística. Campinas: Unicamp, 2013.
PÉCORA, Alcir. (org. et al.) Por que ler Hilda Hilst. São Paulo: Globo, 2010.
QUEIROZ, Vera. Hilda Hilst: três leituras. Florianópolis: Mulheres, 2000.
REGUERA, Nilze Maria de Azeredo; BUSATO, Suzanna (org.) Em torno de Hilda
Hilst. São Paulo: Unesp, 2015.

1678
MEFISTÓFELES: O MAL COMO NECESSIDADE EXISTENCIAL

Jonatas Alexandre Lima de Oliveira (UnB)1

Resumo: O Diabo é, sem dúvida, uma das maiores mitologias existentes na cultura ocidental
cristã. Na figuração arquetípica do Mal, o Diabo origenista carrega a função de elevar a
humanidade ao seu patamar divino, sendo o responsável pela ida dos indivíduos ao deus cristão.
Tal função foi trazida à tona por Mefistófeles, em especial na obra Fausto: uma tragédia de
Goethe. Contudo, a relação dialógica entre Fausto e Mefistófeles é o que move a existência de
ambas as personagens em busca por um motivo existencial.
Palavras-chave: Mefistófeles; Mal; Fausto; Goethe; Existencialismo

Ao se falar de um mal como necessidade existencial, há a inevitabilidade de


definição de tais mecanismos propulsores da mente humana – mal e existência – para a
compreensão do contexto social e cultural de época. Percebe-se que a literatura faz parte
de um sintoma de condição humana que busca a reprodução de mentalidade na forma de
escrita, fundindo-se a anseios individuais que são formados dentro do coletivo e se
manifestam, também, por meio da linguagem individual. Assim, a escrita é uma resultante
de expectativas, sonhos, percepções, trocas culturais, contato com o próximo; é uma das
formas de demonstrar a realidade de época vista por aqueles que a vivenciaram; é um
registro histórico individual que se coloca como modelo do microcosmo social, já que
parte da complexidade estrutural da unicidade humana e que apodera-se do macro para
sua existência. Georges Bataille afirma que:

“A literatura é o essencial ou não é nada. O Mal — uma forma penetrante do


Mal de que ela é a expressão tem para nós, creio eu, o valor soberano. Mas esta
concepção não impõe a ausência de moral. exige uma "hipermoral".
(BATAILLE, 1989, 9-10)

O mal é um conceito de tamanha amplitude que não há definição pronta ou completa


que justifique ou promova sua existência. O mal é um constructo social que dependerá da
época e sociedade a qual está sendo construído e formado. Contudo, a identificação desse
mal que tanto nos é próximo e visível, parte de um mundo ocidental e cristianizado que
veio sendo reformulado desde o nascimento da Igreja Católica.

1
Graduado em História (UPIS), Mestrando em Literatura Comparada (UnB). Contato:
historiador.jonatas@gmail.com.

1679
Na busca por uma intertextualidade que seja capaz de abarcar o Mal como
substância, encontra-se como ponto de referência primária o Velho Testamento na figura
de Iahweh. De acordo com Julia Kristeva:

O termo intertextualidade designa esta transposição de um ou vários sistemas


de signos num outro, mas já que este termo foi frequentemente entendido no
sentido banal de “crítica das fontes” de um texto, preferimos o de
“transposição” que tem a vantagem de precisar que a passagem de um sistema
significante a um outro exige uma nova articulação da temática existencial, da
posição enunciativa e denotativa (KRISTEVA, 1974, p. 60)

Na concepção de Carl Jung sobre a composição do divino ocidental na figuração de


Iahweh (JUNG, 2012), este deus coloca-se como detentor do Bem e do Mal, é a própria
dualidade e totalidade da existência, pois, em seu ser, as dicotomias da vida e as
complexidades da alma estão apaziguadas. Dessa forma, Iahweh na forma do signo da
totalidade é o UNO, é a perfeição. Já o deus cristão, existente no Novo Testamento, é
falho (JUNG, 2013, p. 85) por possuir somente o bem em seu ser, não sendo completo
por negar o mal, a morte e a destruição.
Dentro desta negação é que nasce a força de mesma potência e magnitude, o diabo
como força opositora e representante deste Mal na forma de um avatar materializado.
Para Jung, o Mal é diferente da figura do diabo, pois este primeiro nasce da negação da
palavra "bom" no segundo dia da criação existente na Gênesis. Historicamente, o diabo
será implantado dentro do Cristianismo e será o grande algoz da humanidade. De acordo
com Sanford:

“Existem, no Antigo Testamento, apenas quatro referências à Satanás como


sendo um ser sobrenatural. Todas as quatro encontram-se nos livros pós-exílio,
ou seja, posteriormente a 597 a.C. Além do mais, nenhuma dessas referências
é importante na narrativa do Antigo Testamento” (SANFORD, 1988, p. 37)

Além do posicionamento de Sanford, Frei Elias Vella afirma que Satã aparece no
Novo Testamento mais de trezentas vezes (VELLA, 2013, p. 20), demonstrando a
dicotomia entre os livros sagrados e a utilização desse signo do Mal como objeto de
realidade. Fato é, o cristianismo dará forma e substância a essa figura satânica em uma
miscelânea religiosa diversa, criando um ente capaz de se mesclar com outras bases
religiosas, como pode ser observado com o Zoroastrismo. Como declara Carlos Roberto
Nogueira, “foi a religiosidade hebraica que imprimiu nas consciências posteriores o

1680
arquétipo do Grande Inimigo, construído através de sua evolução histórica”
(NOGUEIRA, 2002, p. 13).
Gerald Messadie, em avaliação sobre o Zoroastrismo, afirma que:

“É no Irão que o Diabo aparece assim pela primeira vez. Os Gâthas ensinam
que no início do mundo houve dois espíritos que se encontraram e foram livres
de escolher. O primeiro, Ahura Mazda, fez a escolha boa e é o <Deus Sábio>,
precursor evidente do nosso Bom Deus. O segundo Arimânio, Angra Manyu,
o Mau Espírito, fez a escolha má, e é o Mau Deus, cujos discípulos são os
<seguidores da mentira>, os dregvant, enganados pela mentira, ou druj.”
(MESSADIE, 2001, p. 107)

Na busca por solucionar a problemática da origem do mal, Santo Agostinho, em


sua Privatio Boni, declara que o Mal é a ausência do bem e por isso não possui substância.
Sanford, nesta relação teológica sobre Agostinho, expõem que “só o bem possui
substância; o mal não teria substância própria, mas uma existência apenas no sentido de
diminuição do bem” (SANFORD, 1988, p. 169). Carl Jung, sobre essa falta de
materialidade do Mal na essência do deus cristão, alega que “a um Mal aparente só se
pode contrapor um Bem igualmente aparente, e um Mal não substancial só pode ser
anulado por um Bem igualmente não substancial” (JUNG, 2013, p. 75). Essa negação do
Mal como fator metafísico e material, pode ser compreendida, na avaliação junguiana,
como negação da sombra, do oculto e proibido que impede o ser envolvido a alcançar sua
individuação.
O pensamento aqui proposto, parte de da lógica junguiana que é desenvolvida a
partir do Mal como existência na lógica de análise de Origens de Alexandria, em sua obra
Apokatástasis (ORÍGENES, 2012). Para este pai da igreja, a função de Satã seria levar o
homem a sua salvação mediante provação constante de sua fé por intermédio da dor e
tentação. Ao final das eras, Satã haveria cumprido sua missão teogônica e terá seu retorno
ao plano celeste garantido por sua ação que simbolizava a danosidade, porém o caminho
necessário para a salvação.
A literatura foi fundamental para a consolidação do cristianismo no ocidente, tanto
no conceito de salvação quanto na elaboração da culpa. O cristianismo, como base
ontológica, somente terá uma teogonia estruturara a partir do século XVII com a obra
literária de John Milton, o Paraíso Perdido (MILTON, 2016). Assim, de acordo com Otto
Maria: “Com efeito, Milton professou o velho dogma dos heréticos origenistas, a

1681
Apokatástasis, segundo a qual o próprio Diabo receberá, no fim dos tempos, o perdão de
Deus” (CARPEAUX, 2015, p. 173). Haroldo Bloom, sobre o Paraíso Perdido, afirma
que: “O que torna o Paraíso Perdido único é sua surpreendente fusão de tragédia
Shakesperiana, épico virgiliano e profecia bíblica” (BLOOM, 2001, p. 169). Northrop
Frye, também, afirma que:

"Á medida que a literatura se desenvolve, as lendas e os contos do populário


tornam-se partes de sua matéria prima. Na literatura ocidental Dante e Milton
escolhem seus principais temas a partir da área mítica [...] Este processo é
possível graças à analogia estrutural, senão identidade, entre a estória profana
e a sagrada” (NORTHROP, 2004, p. 65)

É dentre deste contexto ocidental que nasce um dos mitos de juventude mais
conhecidos desde a Idade Moderna, o Fausto como homem que vende a alma ao diabo
em prol de prazeres materiais e carnais. Jean-Claude Carrière declara que “poderíamos
também chamar de mito ‘posterior’ ou ‘derivado’ aquele mito que segue o curso das
coisas, que vem em seguida, como que para ilustrar mais tarde um desvio decisivo de
mentalidade” (CARRIÈRE, 2003, p. 30). O autor, ainda estabelece que os mitos
fundadores são aqueles que precedem homens e instituições, partem de uma ideia
teogônica e buscam, na atualidade da cultura imaginada, um princípio que justifique sua
existência (CARRIÈRE, 2003, p. 21-38).
A figura de Fausto surge em uma Alemanha do século XV e vem acompanhada por
toda uma herança medieval que coloca as mudanças renascentistas como obras de Satã,
pois como afirma Stuart Clark “o diabo sabia mais sobre coisas naturais do que todos os
homens do mundo juntos e sendo chamado de o grande naturalista (CLARK, 2006, p.
221). Ao avaliar a figura desse Fausto histórico e humano, a partir dos escritos de Johann
Spiess com a História von dr. Johann Fausten (Faustbuch), Ian Watt declara:

“charlatão gabola e desagradável, sem dúvida; mas também um


individualista impenitente, capaz de abrir seu próprio caminho numa
sociedade em que cada vez mais se exigia das pessoas um trabalho
regular e uma residência fixa. Nele se reuniram a antiga e a nova
tradição” (WATT, 1997, p. 26).

Assim, o mito do Doutor Fausto, aquele que vendeu a alma ao diabo, ganha maiores
proporções quando Lutero desenvolve seus pensamentos sobre a precariedade da fé

1682
dentro da própria Alemanha em busca de fundamentar sua nova linha cristã protestante
combatendo o diabo. Como expõe Muchembled:

A extraordinária floração, na Alemanha, de uma literatura especializada em


“livros do diabo”, no decorrer da segunda metade do século XVI, dava
testemunho da importância da figura diabólica, igualmente muito presente nos
poemas ou nas peças de teatro. A propaganda partidária dele fez igualmente
grande uso para melhor diabolizar o inimigo religioso [...]. (MUCHEMBLED,
2001, p. 71)

Marlowe, aproveita-se das traduções sobre o Faustbuch, e abre o contato metafísico


com a peça teatral The Tragical History of the Life and Death of Doctor Faustus dentro
da Inglaterra, mas é com Goethe, na Alemanha, que está figura – Mefistófeles – ganhará
notoriedade mundial.
Um dos incontáveis valores literários da obra Fausto, está na relação de troca e
necessidade constante entre Fausto e Mefistófeles. Mefistófeles é para Fausto aquilo que
Fausto é Mefistófeles, uma condição fundamental para estabilização psicológica e
promoção de uma passagem terrena e temporária para Fausto; e uma eternidade com
pequeno lapso temporal de alegria e desafio para Mefistófeles, já que este usufruirá,
temporariamente, do fogo da alma humana em forma de desafio, já que, logo depois,
voltará a sua condição de vagante, sendo essa sua danação eterna, como ele mesmo expõe
sua condição de eternidade sem desejo pelos homens ao dialogar com O Altíssimo. Tal
posição pode ser compreendida:

MEFISTÓFELES
Não, Mestre! acho-o tão ruim quão sempre; vendo-o assim
Coitados! em seu transe os homens já lamento,
Eu próprio, até, sem gosto os atormento.

(GOETHE, 2018, p. 53)

A aposta fáustica dá-se por conta da insatisfação visível de ambos os titãs, que é o
mote central da obra. Por esse motivo que Fausto não vende sua alma a Mefistófeles,
como no mito clássico alemão ou na clássica obra de Christopher Marlowe, mas realiza
uma aposta, um jogo de possibilidades, pois sabe que qualquer feito promovido por
Mefistófeles não preencherá o vazio e existencial que carrega.
São as palavras de Fausto, ao realizar a aposta com Mefistófeles, que cria os
elementos essenciais para Fausto ser o titã representante do homem moderno, aquele que

1683
a todo custo, mesmo com sua eternidade em jogo, não aceita a vida como ela é. Fausto é
a eterna contradição humana, enquanto Mefistófeles é o possível abrandamento dos
conflitos existenciais, como pode ser percebida na passagem:

FAUSTO
Se eu me estirar jamais num leito de lazer,
Acabe-se comigo, já!
Se lograres com deleite
E a adulação falsa e sonora,
Para que o próprio Eu preze e aceite,
Seja-me aquela a última hora!
Aposto! e tu?

MEFISTÓFELES
Topo!

FAUSTO
E sem dó nem mora!
Se vier um dia em que ao momento
Disser: Oh, para! és tão formoso!
Então algema-me a contento,
Então pereço venturoso!
Repique o sino derradeiro,
A teu serviço ponhas fim,
Pare a hora então, caia o ponteiro,
O tempo acabe para mim!

(GOETHE, 2018, p. 169)

O Prólogo no Céu é o ponto crucial para o início do processo de assimilação entre


Fausto e Mefistófeles, pois O Altíssimo, como personagem onisciente, sabe qual a
necessidade de todas as suas criações, inclusive a de Fausto e Mefistófeles. Por tal motivo,
e observando a ausência de ânimo de vida de suas duas criações, é que o O Altíssimo traz
à tona o nome de Fausto quando Mefistófeles se queixa de sua existência sem emoção.

O ALTÍSSIMO
Do Fausto, sabe?

MEFISTÓFELES
O doutor?

(GOETHE, 2018, p. 53)

Fausto e Mefistófeles são facetas do próprio Eu de Goethe tardio, renovado em sua


velhice por experiências da juventude. A aposta fáustica pode ser vista como uma afronta
ao cristianismo na esfera de junção entre o sagrado e o profano. Contudo, Mefistófeles

1684
pode ser percebido como parte do plano de sagrado do O Altíssimo, na função de levar
as almas humanas para a salvação, conforme propôs Orígenes de Alexandria dentro do
cristianismo primitivo em sua tese sobre a redenção luciferiana. A redenção foi
concretizada ao final da segunda parte da obra com a salvação de Fausto, pois, como é
afirmado por Mefistófeles, ele é:

MEFISTÓFELES
– Sou parte da energia que sempre o Mal pretende
e que o Bem sempre cria

(GOETHE, 2018, p. 139)

Sua função é a salvação, mesmo que inconscientemente.

Referências

BRICOUT, Bernadette. O olhar de Orfeu : os mitos literários do ocidente. São Paulo :


Companhia das Letras, 2003.

BLOOM, Harold. O cânone ocidental : Os livros e a escola do tempo. Rio de Janeiro :


Objetiva, 2001.

CARPEAUX, Otto Maria. 1900-1978 : A cinza do purgatório. Balneário Camboriú, SC:


Livraria Danúbio Editora, 2015.

CLARK, Stuart. Pensando com Demônios: A Ideia da Bruxaria no Princípio da Europa


Moderna. São Paulo : Editora da Universidade de São Paulo, 2006

FRYE, Northrop, O Código dos códigos : a Bíblia e a literatura. São Paulo : Boitempo,
2004.

GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto: uma tragédia – primeira parte. São Paulo :
Editora 34, 2016.

1685
JUNG, Carl Gustav. Interpretação psicológica do Dogma da Trindade, Petrópolis, RJ :
Vozes, 2013.

JUNG, Carl Gustav. Resposta a Jó. Petrópolis: Vozes, 2012.

KRISTEVA, Julia. Introdução à Semanálise. Tradução: Lúcia Helena França Ferraz São
Paulo: Perspectiva, 1974.

MARLOWE, Christopher. A história trágica do doutor Fausto. São Paulo : Hedra, 2006.

MESSADIE, Gerald. História Geral do Diabo: da antiguidade à Idade Contemporânea.


Portugal : Europa América, 2001.

MILTON, John. Paraíso perdido. São Paulo : Editora 34, 2016.

MUCHEMBLED, Robert. Uma história do diabo: séculos XII-XX. Rio de Janeiro : Bom
Texto, 2001.

NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O Diabo no imaginário cristão. São Paulo : EDUSC,


2002.

ORÍGENES. Tratado Sobre os Princípios. São Paulo : Paulus Editora, 2012.

SANFORD, John A. Mal, o lado sombrio da realidade. São Paulo : Paulus, 1988.

VELLA, Elias. O Diabo e o Exorcismo. São Paulo : Palavras e Preces, 2013.

WATT, Ian P. Mitos do individualismo moderno: Fausto, Dom Quixote, Dom Juan,
Robinson Crusoe. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1997.

1686
IMAGENS E IMAGINÁRIO DE DIADORIM: UMA PERSPECTIVA QUEER
EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS

Leandro de Bessa Oliveira (UnB/UCB)1

Resumo: A pesquisa Imagens e Imaginários de Diadorim situa-se em face do enigma e


problematizações provocadas pela figura mítica e simbólica de Guimarães Rosa em Grande
Sertão: Veredas. É uma pesquisa de caráter bibliográfico com acesso a fontes primárias, no
acervo de Guimarães Rosa no IEB, e de fonte secundária, com intuito de levantar o estado da
arte referente às pesquisas sobre o tema. Na compilação foi possível identificar uma quinta
tipologia de estudo, ausente nas abordagens delineadas pelo professor e pesquisador Willi Bolle
(2004), que seria a temática do desejo homoerótico, ligada à teoria queer e os estudos
transgênero.
Palavras-chave: Diadorim; Estética; Grande Sertão: Veredas; Queer.

Introdução
Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins, “– que nasceu para o dever de
guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor...” (ROSA,
2015), a Diadorim de João Guimarães Rosa, figura central da narrativa de Grande
sertão: Veredas, é a personagem guia do narrador-protagonista Riobaldo, símile2 de
veredas e figura-chave para compreensão do romance. Na perspectiva de Ana Luiza
Martins Costa, “as veredas nos levam até Diadorim” (2002, p. 208). Conforme Costa
(2002), as veredas do Grande sertão, segundo descrição do próprio Rosa, são “vales de
chão argiloso onde aflora água absorvida nos terrenos porosos das chapadas” (2002, p.
220), e “nas veredas há sempre buritis, onde há buriti tem água” (idem). De tal modo, o
sentido das veredas para Rosa comporta um desdobrar-se de simbologias e
transfigurações que nos levam a conceber Diadorim como leitmotiv do romance, ou o
caminho que conduz Riobaldo pela travessia do duplo sertão: geográfico e existencial.
As análises de Diadorim são comumente relacionadas a uma personagem que condensa
uma fisionomia ambígua, agindo estranhamente entre delicadeza feminina e braveza de
jagunço, análises que apontam para uma dinâmica de circularidade e duplicidade: ora a
própria motivação da travessia ora os paradoxos e conflitos que implicam na condição

1Professor na Universidade Católica de Brasília (UCB), Doutorando e Mestre em Comunicação (UnB).


Contato: lbessa.arte@gmail.com.
2
“Os símiles remetem a uma ação, atitude ou movimento bem mais do que a uma qualidade” (COSTA,
2002, p. 235)

1687
humana, sobretudo naquelas vivenciadas por Riobaldo. Diadorim é 3, ao mesmo tempo,
delicado e terrível, misto de horror e fascínio.
Esta pesquisa, de caráter exploratório e bibliográfico, teve como fonte de dados
o acervo de Guimarães Rosa no IEB (Instituto de Estudos Brasileiros), na Universidade
de São Paulo – USP4, e o Banco de Dados Bibliográficos de João Guimarães Rosa. No
IEB, foram encontrados quarenta itens com referência ao nome Diadorim, entre eles:
cartas; artigos de periódicos; fotografias; um libreto de ópera; caderno de anotações de
Marlyse Meyer relacionando Diadorim com Joana D’Arc, Yansã ou Iansã, Parvati,
Palas Athena, Bellatrix (a Gama de Orion), Mulan, Maria Quitéria, Jovita do Piauí ou
Jovita Feitosa; outra anotação de Marlyse Meyer estabelecendo relações com “Sinclair
das Ilhas” e Diadorim.
No arquivo, as citações mais expressivas ao nome de Diadorim figuram nas
correspondências entre Rosa e o primeiro tradutor de Grande sertão: Veredas para o
francês, Jean-Jacques Villard. O debate em torno do nome e da relevância da
personagem enquanto figura-chave para a compreensão do romance resultou na
definição do título em francês: “DIADORIM. Me parece o melhor título. ‘Diadorim’ o
mais sonoro, simpático e sugestivo de todos aquêles que examinamos. Ficarei contente”
(Arquivo IEB-USP, Coleção JGR, documento: JGR-CT-02, 22), decidiu Rosa.
Ainda em âmbito bibliográfico, no Banco de Dados Bibliográficos de João
Guimarães Rosa, elaborado por Frederico Antônio Camargo, da Faculdade de Letras e
Ciências Humanas da USP (FFLCH)5, pudemos identificar como temáticas e
abordagem interpretativas e analíticas com maior recorrência: a problemática da
sexualidade presente na obra, sobretudo aquela ligada a uma abordagem homoerótica;
questões de gênero e representatividade feminina; ambiguidade e androginia; religião,
fé, dicotomia entre Deus e Diabo e a linguagem poética do romance analisada sob o
ponto de vista da presença de Diadorim na trama.

3
Em princípio, trataremos Diadorim como figura narrativa do ponto de vista de estado (ente) e presença,
sem nos atermos a uma definição específica de gênero, por isso não usaremos os artigos o e a e os
pronomes ele ou ela. O próprio nome da personagem nos permite tal incursão por meio do sufixo
indefinido im.
4 A pesquisa com as fontes primárias no IEB foi realizada em agosto de 2018.

5
A busca foi realizada em 15 de dezembro de 2018 no endereço:
<https://www.usp.br/bibliografia/inicial.php?s=grosa>

1688
O contato com as fontes primárias nos ofereceu pistas da relevância e da
centralidade de Diadorim para o entendimento do romance, bem como do tratamento
dado por Rosa ao título para a edição francesa, o que nos leva a refletir sobre o
“protagonismo” de Diadorim na obra. Entre os recortes de jornais organizados por Rosa
e Aracy de Carvalho, encontramos nota do Correio da Manhã, da edição dominical de
26 de janeiro de 1969, em que se comenta o lançamento de Estas Estórias. Na nota, o
autor não identificado se refere a uma das problemáticas suscitada pelo livro, que seria a
de saber quem seria seu herói central, e cujo apontamento geralmente recaía sobre o
personagem Riobaldo. Contudo, acrescenta o autor:
Recentemente, um crítico rosiano insurgiu-se contra essa interpretação,
mostrando que o grande herói é uma mulher – aquela que, no romance, aparece
sob o nome de Diadorim. [...] embora criação literária, o estupendo
personagem de Rosa integra-se no elenco das grandes heroínas da História do
Brasil, como sóror Joana Angélica, Maria Quitéria, Anita Garibaldi e outras
esplêndidas figuras de mulheres que, em momentos decisivos de nossa
evolução social e política, souberam dar grandeza humana ao seu destino.
(Arquivo IEB-USP, Coleção João Guimarães Rosa, documento: JGR-Rdc-08,
001)

No Banco de Dados Bibliográfico JGR, onde mapeamos a recorrência de


temáticas, leituras e abordagens no estudo da figura de Diadorim, percebemos paralelo
com a síntese elaborada por Willi Bolle, em “Grande Sertão.br”, ao esboçar quatro
tipologias dos estudos publicados sobre a personagem ou quatro abordagens distintas.
São elas:
Análises que tematizam o amor, num enfoque filosófico-cultural, representado
por Benedito Nunes (1964) e Carlos Fantinati (1965); 2. Leituras que
identificam Diadorim como encarnação do topos literário da donzela-guerreira
(M. Cavalcanti Proença, 1958; Leonardo Arroyo, 1984; Walnice Galvão,
1998); 3. Estudos mitológicos que veem Diadorim como figura iniciática,
andrógina e expressão da coincidentia oppositorum; esse tipo de abordagem,
do qual Benedito Nunes (1964) é um dos percussores, tem merecido também a
atenção da crítica esotérica (Francis Utéza, 1994); 4. Algumas interpretações,
de publicação recente, que se interessam por Diadorim como figura da poética
de Guimarães Rosa (João Adolfo Hansen, 2000; Cleonice Mourão, 2000).
(BOLLE, 2004, p. 196)

Em paralelo ao levantamento bibliográfico foi possível identificar uma quinta


tipologia de estudo, ausente nas abordagens delineadas por Boll, que seria a do desejo
homoerótico, em especial ligada à teoria queer e aos estudos transgênero, levantada,
timidamente, por críticos literários das décadas de 1980 e 1990 e crescente desde os
anos 2000. Este artigo investiga, por meio da narração (escrita) e do imaginário de
Diadorim, uma abordagem dos estudos transgêneros e da teoria queer.

1689
Ambiguidade e coincidentia oppositorum

Na definição de Mircea Eliade, a androginia é “uma fórmula arcaica e universal


para exprimir a totalidade, a coincidência dos contrários, a coincidentia oppositorum6.”
(2000, p.189), geralmente associada ao mito da origem divina da alma e de seu final
retorno à Unidade da qual foi desapossada. Decorre daí, segundo Eliade, um fenômeno
religioso complexo, pois “significa mais do que a coexistência – ou melhor, a
coalescência – dos sexos no ser divino”, ela, a androginia, “[...] simboliza a perfeição de
um estado primordial, não condicionado.” (Idem).
Foi Benedito Nunes quem notou essa relação primordial e mítica na relação
amorosa entre Riobaldo e Diadorim. Para o autor, a androginia de Diadorim descende
da sua face infante, ancorada no imaginário popular e religioso da “Criança Primordial”
ou “Criança Divina”, pois é desse mito que descende uma simbologia “comum à
simbologia erótica e mística, porque representa a final restituição do homem à
divindade” (NUNES, p. 158).
Nunes delineia, neste universo inquietante e dialético, a tópica do amor de
Riobaldo por Diadorim: atração, vínculo e repulsa. Ainda no imaginário da Criança
Divina e do mito do andrógino, Riobaldo vivencia três espécies de amor, “diferentes
formas ou estágios de um mesmo impulso erótico, que é primitivo e caótico em
Diadorim, sensual em Nhorinhá e espiritual em Otacília” (NUNES, 2009, p. 138). Para
Nunes, essa espécie de amor instintivo tinha um quê de paradisíaco, de idílico, e algo de
ameaçador, “escondendo o encanto noturno e proibido de uma felicidade enganosa, que
se enfumaçou, em meio ao sangue das guerras de vingança, como se evaporam as
simulações do Maligno” (NUNES, 2009, p. 161).
Rosa definiu o título da novela Campo Gerais, como um nome de fecundidade
ambígua, não diferente da criação de Diadorim: a personagem encontra-se
profundamente mergulhada neste líquido fecundo que chega a lograr outras facetas. É
preciso reforçar que Diadorim opera constantemente num jogo que logra sua posição
tanto na narrativa quanto no seu papel social. Marcia Tiburi (2013) alerta que “o
disfarce da androginia de Diadorim evita ao longo do texto que ele seja tocado, ao

6
Também a obra de Carl Gustav Jung (1980) aborda e problematiza o conceito da totalidade. Nela,
expressões como coincidentia oppositorum, complexio oppositorum, ou reunião dos opostos, mysterium
coniunctionis, são frequentemente utilizadas para designar a totalidade do ser.

1690
mesmo tempo que permite sua participação no ‘bando dos jagunços’ (e não pertencer a
homem nenhum)” (TIBURI, 2013, p. 203). Essa situação tem condições de
possibilidade sob a forma de lei soberana, enquanto não sabemos que ele é ela: “Bando,
por sua vez, é condição biopolítica daqueles que, tendo sido banidos, ao mesmo tempo
encontraram um lugar, são incluídos pela exclusão, o que explica bem a condição de
Diadorim” (Ibidem). Não obstante, a dupla posição social de Diadorim/mulher:
exclusão e sacralidade, sublinha o seu status de homo sacer: “[...] tal fórmula investe ao
nascer todo cidadão livre e parece assim definir o próprio modelo do poder político em
geral. Não a simples vida natural, mas a vida exposta à morte (a vida nua ou a vida
sacra) é o elemento político originário.” (AGAMBEN, 2002, p. 96). Rowland também
identificou essa ambígua condição de exclusão e sacralidade em Grande sertão: “a
correlação entre o exemplo (‘inclusão exclusiva’) e exceção (‘exclusão inclusiva’), que
põe em causa a delimitação, num conjunto ou comunidade, entre interior e exterior.”
(2011, p. 277).
A narrativa de Riobaldo em Grande sertão: Veredas não se desenrola puramente
por associações da ordem de causa e efeito. O leitor precisa ter consciência de que está
sempre numa espécie de tocaia simbólica e linguística, própria à escrita rosiana. Por
isso, quando os diversos estudos apontam para uma estreita relação entre a temática da
ambiguidade e da androginia à figura de Diadorim, é preciso estar atendo aos possíveis
logros dessa estratégia de linguagem. No entanto, a dupla imagem que atravessa a
história, “da coisa dentro da outra”, nos serve como ponto de atenção para qualquer
forma de interpretação, análise, adaptação ou imagens que se queira extrair do contexto
da obra. Afinal “O senhor ache e não ache. Tudo é e não é...” (ROSA, 2015, p. 22).
A ambiguidade de Diadorim pode ser percebida como um conflito sexual de
Riobaldo, uma leitura que nos levaria à relação tensionada de Riobaldo como decorrente
do desejo privado por outro homem. Para Daniel Balder, “Riobaldo piensa que está
enamorado de un hombre, cosa que le preocupa pero que logra encasillar; el
descubrimiento posterior de que ese hombre es mujer no explica el deseo que sintió
antes, y por muchos años, cuando pensaba que era hombre.” (BALDER, 1999, p. 2)
Deste ponto, nos questiona Balder: “Por que definir Riobaldo como um homem
heterossexual?” ou ao menos deveríamos tratá-lo com uma fluidez de sua orientação,
uma espécie de bissexualidade, comum e relativa aos desejos ambíguos. No entanto, a

1691
tocaia linguística torna a espreitar, pois, numa obra como Grande sertão: Veredas, “Ni
siquiera se puede hablar realmente de ‘bisexualidad’, ni de orientación sexual: el deseo
en Grande Sertão es tan fluido que no se deja canalizar, que se desborda de los cauces
de una deseada orientación” (BRUYAS apud BALDER, 1999, s/p).
No artigo “Riobaldo/Diadorim e o tema da homossexualidade”, Walnice Matos
Vilalva aponta que Riobaldo, mesmo sabendo da verdadeira identidade de Maria
Deodorina, opta por apresentá-la como jagunço: “Essa opção intensifica, no discurso, o
tema da homossexualidade, mas busca resgatar o percurso da descoberta da identidade
de Diadorim” (2008, p. 233). A partir das seguintes falas de Riobaldo, “Deixei meu
corpo querer Diadorim; minha alma? Eu tinha recordação do cheiro dele” (ROSA, 2015,
p. 245) e “Eu tinha súbitas outras minhas vontades, de passar devagar a mão na pele
branca do corpo de Diadorim, que era um escondido.” (Ibidem, p. 266), Vilalva sustenta
que “é nesse sentido que Riobaldo afirma ter amado outro homem” (2008, p. 235).
Galvão completa: “Ao longo de toda a sua atormentada relação com Diadorim,
Riobaldo enfrenta esta contradição: ele, um homem de mulheres, ama um homem, e
sabe que ama um homem.” (GALVÃO, 1986, p. 101).
No artigo “Desejo homoerótico em Grande sertão: Veredas”, de Antônio de
Pádua Dias da Silva, discute-se uma questão de valor histórico cultural referente à
concepção de um romance com uma temática tabu e imbuída numa realidade brasileira
de preconceitos e misoginia. Para o autor, Guimarães Rosa problematizou as questões
da sexualidade humana à luz do pensamento em que a obra foi publicada, em 1956,
demarcando, do ponto de vista da cultura, “os padrões heterossexuais da sociedade
misógina e machista como se comportou ao longo de sua história, o homem brasileiro”
(SILVA, 2008, p. 204). Desse modo, “do ponto de vista da formulação estética da obra,
Guimarães Rosa esteve à frente de sua geração” (Idem), aliando-se a uma corrente de
escritores que produziram certas rupturas no padrão normativo dos romances do período
pós-modernista da literatura brasileira, tais como Adolfo Caminha em Bom-Crioulo
(1985), Nelson Rodrigues em Toda Nudez será castigada (1965) e Beijo no asfalto
(1960), Plínio Marcos em Navalha na carne (1967), e contemporâneos como Fernanda
Young em Dores de amor romântico (2005)7 e a produção de Caio Fernando Abreu,
João Gilberto Noll, Silviano Santiago e João Silvério Trevisan.

7
As datas aqui citadas se referem ao ano de publicação das respectivas obras.

1692
Do páthos da donzela-guerreira à perspectiva queer

Diadorim, sob o páthos da donzela-guerreira, tem sido a resposta consensual e


mais explorada quando se disserta acerca da “gênese” e/ou “inspiração” de Guimarães
Rosa para a construção da sua personagem. No âmbito desta pesquisa, nos deparamos
com uma série de artigos que abordam Diadorim a partir dos estudos ligados ao mito e
ao padrão literário da donzela-guerreira. Nesse conjunto de pesquisas, destaca-se a
investigação de Elizabeth Hazin (1991), que, em correspondência com o escritor Ariano
Suassuna, chegou no que teria sido o “guião” para o enredo de Grande sertão: Veredas:
Outra coisa de que falamos sobre o Grande Sertão: Veredas – desta vez por
iniciativa minha – foi ligada à possível presença do romance ibérico, “A
donzela que foi à guerra” como fio condutor do enredo do Grande Sertão:
Veredas. Guimarães Rosa confirmou isso. Lembro-me até de que, como para a
pergunta eu tivesse usado a palavra guião, Guimarães Rosa se interessou logo
por ela, considerando-a “um achado”, e dizendo que realmente o romance
medieval lhe serviria de guião para o enredo de seu grande romance guerreiro
(HAZIN, 1991, p. 70)
O mito da donzela-guerreira, segundo Walnice Galvão (1998), foi constantemente
difundido na história, na literatura, nas civilizações e nas mais diversas culturas. Sua
herança é marcada por ser “[f]ilha de pai sem concurso de mãe”, cujo “destino é
assexuado, não pode ter amante nem filho. Interrompe a cadeia das gerações, como se
fosse um desvio do tronco central e a natureza a abandonasse por inviabilidade.”
(GALVÃO, 1998, p. 116). É, pois, um mito que se faz presente tanto no imaginário
oriental, quanto no ocidente.
Para Galvão, “atrás de Diadorim estão todas as donzelas-guerreiras dos
romances ibéricos” (GALVÃO, 1998, p.173), de maneira que a nossa personagem
central condensaria, praticamente, todos os elementos e fórmulas desse imaginário:
“órfã de mãe e filha única de grande chefe guerreiro. Os cabelos cortados, o peito
apertado em gibão de couro, vestida de homem, virgem [...]” (Ibidem). Diadorim,
particularmente, como sinal do sexo ocultado, banhava-se sozinha no escuro da
madrugada. Provocando e aguçando a curiosidade de Riobaldo – curiosidade da ordem
do misterioso, do inacessível e do inquietante, pois se trata de uma construção ao modo
de Guimarães Rosa. Para além do texto, é totalmente possível imaginarmos o nível de
constrangimento a qual Diadorim/mulher estaria exposta. A ausência de privacidade
num universo predominantemente masculino, com regras de gênero claramente

1693
determinadas, nos leva a pensar a respeito das angústias e das privações que não só
Diadorim possa ter passado, mas de todas as donzelas-guerreiras reais e imaginadas.
Entretanto, há algo em que Diadorim difere da tradição literária, cujo desfecho
das donzelas-guerreias é o de se apaixonar por um herói, demonstrando assimetria com
relação ao fim que tiveram tantas figuras femininas em contexto de guerra, “fato
fundamental é que nenhuma das gregas jamais morreu em combate como Diadorim”
(TIBURI, 2013, p. 193). Com isso, identificamos quatro efeitos que a morte de
Diadorim pôde produzir no desfecho da narrativa: (i) o de torná-la heroína, pois na
batalha final Diadorim entrega a própria vida para o extermínio do mal e, consequente,
vinga a honra paterna (Joca Ramiro, símbolo da justiça e benevolência no sertão); (ii)
libertar e redimir Riobaldo da culpa e do desejo proibido, oferecendo, assim, um perdão
heterossexual e justificando sua paixão por um jagunço; (iii) bastante explorado por
Rowland, a morte como estratégia de não encerramento da narrativa, pois relança o
leitor para o meio da história, provocando releitura do Grande sertão, “a descoberta do
sexo de Diadorim relança o livro de volta ao seu centro” (ROWLAND, 2011, p. 223). O
leitor buscaria as pistas do sexo de Diadorim ocultadas por Riobaldo, intensificando o
efeito “labiríntico” da narração (BOLLE, 2004); e (iv) uma morte que mantém a
tradição literária hegemônica, de caráter “falocrático” e “fanocrático” (TIBURI, 2013),
cujo costume é de produção, circulação e reconhecimento de obras de arte (livros,
pinturas, cinema, literatura etc) realizadas, em sua grande maioria, por homens.
Devemos lembrar que o contraponto do imaginário de uma morte feminina seria
o de uma mulher em gozo, relativo à liberdade que quase sempre está associada à sua
força de sedução8.
O tema da morte de Diadorim merece atenção especial, sobretudo porque
Diadorim opera como um fantasma de Riobaldo. Willi Bolle percebeu essa relação ao
definir a narração de Riobaldo como “um trabalho de luto, um pranto” (BOLLE, p.198),
de tal modo, o romance se desenrola como um “discurso fúnebre”, e Diadorim é ao
mesmo tempo uma figura mediante a qual Riobaldo exprime sua tristeza e lamento

8
A temática do gozo feminino, sua liberdade e sedução foi trabalhado no grupo de estudos Linguagem,
poesia e Comunicação, com o projeto: O feminino da tradição afrobrasileira à cultura brasileira - estudo
da figura da pombagira, suas imagens e imaginários mediático. O resultado da pesquisa pode ser acessado
no livro “Pombagira: Encantamentos e Abjeções” (2016) Disponível em:
https://pombagirafeminino.wixsite.com/pesquisa/livro> acessado em: 19 de junho de 2019.

1694
como um “médium-de-reflexão” (Idem): “O prazer muito vira medo, o medo vai vira
ódio, o ódio vira esses desesperos? – desespero é bom que vire a maior tristeza,
constante então para o um amor – quanta saudade...” (ROSA, 2015, p. 196). O relato do
luto denunciaria um sentimento melancólico em Riobaldo, cujo desejo é o de manter
viva a lembrança do sujeito amado, internalizando-o.
Explorar o imaginário de Diadorim no rastro das donzelas-guerreias pressupõe,
para nós, acessar o seu pathós, ou perscrutar a dinâmica trágica que envolve a sua
condição de sobrevivência. Deriva daí a investigação das paixões e mortes que
envolvem a vida da personagem. Por outro lado, investigar Diadorim à luz das atuais
perspectivas teóricas de gênero nos coloca diante de outras possibilidades de leitura,
que, de certo modo, subverteriam a tradição. A pretensão de formular outras perguntas
ao imaginário poético do Grande sertão não ignora o tempo histórico da sua concepção,
mas tampouco encerra a obra no seu passado.
Percebemos nesta investigação um tênue ensejo de releitura do Grande sertão
sob o ponto de vista daquilo que foi lido como tabu pela consolidada crítica literária.
Identificar o desejo homoerótico em Riobaldo não é algo difícil e encontra-se
disseminado em diversas análises e ensaios críticos: Proença (1958); Galvão (1986);
Bolle (2004) e em Silviano Santiago (2017). Entretanto, encontrar o lugar de expressão
do desejo e a identificação do gênero de Diadorim ainda é um grande enigma, pois a
ambiguidade e o mistério que residem na obra é a dimensão estética que imprime, em
Grande sertão: Veredas, o seu valor artístico atemporal, cuja capacidade de resistência
nos permite enxergar questões atuais, mesmo passadas décadas da sua criação.
O pesquisador Helder Thiago Maia (2018) propôs queerizar a leitura sobre as
donzelas-guerreiras, ao “contaminar a crítica literária com os estudos queer,
especialmente, neste caso, mediante as considerações de Halberstam (2008) e Mauro
Cabral (2006) sobre masculinidades.” (MAIA, p. 99). Maia, na proposta de queerização
da donzela-guerreira, identifica quatro expressões de gênero, significativamente
distintas entre si, diferindo da crítica literária tradicional:
Entendemos, portanto, que nessa constelação literária das donzelas guerreias há:
‘mulheres masculinas’, personagens que não foram à guerra e nem viveram como
homens; ‘mulheres guerreiras’, personagens que não viveram como homens, mas foram
à guerra; ‘donzelas-guerreiras’, personagens que viveram como homens
temporariamente, em segredo e foram à guerra; ‘transgeneridade guerreira’,
personagens que viveram sempre que puderam como homens e que foram a guerra.
(MAIA, 2018, p. 99)

1695
Em Diadorim seria possível uma leitura de “transgeneridade guerreira”, na qual
o menino na travessia do Rio São Francisco reforçaria a face transgênero de Diadorim:
“Aí pois, de repente, vi um menino, encostado numa árvore, pitando cigarro. Menino
mocinho, pouco menos do que eu, ou devia de regular minha idade. Ali estava, com um
chapéu-de-couro, de sujigola baixada, e se ria para mim.” (ROSA, 2015, p. 94).
Maia (2018) abre as perspectivas epistemológicas para os estudos da donzela-
guerreira, de modo que sua abordagem se distancia da tradição psicanalítica, na qual o
foco reside na falta do falo e “não só compreende a biologia como destino, como
também entende o trânsito entre gêneros como patologia.” (MAIA, p. 99). Também
coloca em suspensão os estudos literários sobre a tipologia em questão, pois entende
que esses estudos tratariam o gênero de forma exclusivamente biológica e binária,
“reduzindo todas as diversas experiências das donzelas-guerreiras à lei paterna” (MAIA,
p. 100). Para o autor, a crítica tem “invisibilizando os corpos e as vidas literárias que
transitam entre os gêneros, uma vez que os entende como uma impossibilidade
ontológica”. (Idem). A mesma inferência pode ser transportada para as diversas
tentativas de tradução imagética de Diadorim (muitas delas problemáticas sob o nosso
ponto de vista), sobretudo no audiovisual, que ganhou forma com as atrizes Sônia Clara
e Bruna Lobardi, que reforçaram a condição mulher da personagem e desconsideram as
possibilidades de trânsito de gêneros, garantindo que a ordem da sexualidade não fosse
ultrapassada e se configurasse em espécie de “representação tranquilizadora” (MAIA,
2018).
A possibilidade de abertura dessa abordagem de gênero foi levantada em 2016
pela pesquisadora da UFMG, Laísa Marra de Paula Cunha Bastos. No artigo Diadorim
Trans? Performance, Gênero e Sexualidade em Grande sertão: Veredas, a autora
delineia as seguintes aporias a respeito do gênero de Diadorim: “Seria apenas um
disfarce, como sugere o mito da donzela-guerreira? Trata-se de uma identificação psico-
social da personagem com o gênero masculino?” (2018, p. 338). Contudo, o que
sabemos é que Diadorim sabia desde a adolescência que precisaria de ser diferente: “-
Sou diferente te todo mundo. Meu pai disse que eu careço de ser diferente, muito
diferente…” (ROSA, 2016, p. 86). Por fim, Bastos sugere pensarmos Diadorim também
como homem trans, uma vez que seria possível ver em Diadorim uma masculinidade

1696
partilhada com a de Riobaldo, como um homem que também se veria na confusão de
desejar uma pessoa que se percebe do mesmo gênero: “Mas o Fancho-Bode se riu,
amistoso safado, como tudo tivesse constado só duma brincadeira: - ‘‘Oxente! Homem
tu é [...] (ROSA, 2015, p.124).
A complexidade do tema é também explorada por Ashley Brock (2018) no
artigo The Queer Temporality of Grande sertão: Vereda, em que nomeia o romance de
Rosa como uma “queer love story” e sugere que Riobaldo não seria o único a se seduzir
por um desejo homoerótico, mas também o leitor estaria seduzido por essa história de
um amor queer. Sobre a morte de Diadorim, o autor assinala uma redução a um corpo
feminino fetichizado (morto e virgem), embora haja algo de atenuado por essa
“fetichização”: a psique anteriormente dinâmica, ambígua e não-binária de Diadorim.
(BROCK, 2018). Residiria aí a temporalidade queer em Grande sertão, no espaço
intermediário da travessia, em sua dinâmica indeterminada e ambígua. Brock segue a
tese de Clara Rowland e acrescenta a ideia de que o lugar da travessia “o meio” é
também o tempo-espaço queer da narrativa:

[…] I draw on such theories of queer temporality to take the premise of


Rowland’s reading—that Riobaldo’s narrative perennially doubles back, away
from the death and finality of the ending and towards what she calls “o lugar
do meio”—to a different conclusion. I suggest that this structural recursivity
expresses not simply resistance to the imposition of novelistic form on the
orality of Riobaldo’s tale but also a melancholic longing to continue to inhabit
a distinctly queer time-space of latency, potentiality, and indeterminacy, which
I link to Rosa’s leitmotif of the travessia. (BROCK, 2018, p. 196)

Por fim, a chave de leitura que coloca Diadorim na zona do meio, no lugar da
não determinação e sustentada pela potente noção de terceira margem em Guimarães
Rosa, seria o caminho que pretendemos seguir. Essa ideia transcende o binarismo, bem
como as concepções patriarcais e heterosexistas do mundo. Por isso, propomos nos
guiar por este tempo-espaço da jornada, pela travessia, pelo meio. Espaço de ocultação e
mistérios: “Eu atravesso as coisas ― e no meio da travessia não vejo!” (ROSA, 2015,
41). Uma proposta que visa dar um passo adiante às barreiras do sexo homem/mulher e
lançar um olhar através dos princípios masculino/feminino, bem como as nuances que
habitam a complexidade intermediária destes princípios. Também, por consideramos
que a feminilidade é algo que interpela o ser humano e, do mesmo modo a

1697
masculinidade, em que ambas podem ser parte expressiva das subjetividades, emana daí
uma terceira via: o meio/queer.

Referências

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Veredas. In: Anais do 14ª Semana de Letras da UFOP, 1º Simpósio Nacional de Pós-graduação em
Estudos da Linguagem, Mariana, MG, 2016 pp. 330-342.
BOLLE, Willi. Grandesertão.br: o romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas Cidades, Editora
34, 2004.
BROCK, Ashley. The Queer Temporality of Grande Sertão: veredas. In: Chasqui - Revista de literatura
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GALVÃO, Walnice Nogueira. As formas do falso: um estudo sobre a ambiguidades no Grande Sertão:
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HALBERSTAM, Judith. In a Queer Time and Place: Transgender Bodies, Subcultural Lives. New York:
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HALBERSTAM, Jack. Masculinidad Femenina, Barcelona: Egales, 2008.
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MAIA, Helder Thiago. Transgressões Canônicas: Queerizando a Donzela-Guerreira. In: Cadernos de
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NUNES, Benedito. “O amor na obra de Guimarães Rosa”. In: O dorso do tigre. São Paulo: Ed. 34, 2009.
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ROWLAND, Clara. A Forma do Meio: livro e narração na obra de João Guimarães Rosa. Campinas,
SP, Unicamp; Edusp, 2011.
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TIBURI, Marcia. “Diadorim: biopolítica e gênero na metafísica do Sertão”. In: Estudos Feministas,
Florianópolis, 21(1): 424, janeiro-abril, p. 119-207, 2013.

1698
POR UMA EPISTEMOLOGIA DO OPRIMIDO: ESTUDO DO ROMANCE O
LOUCO DO CATI DE DYONÉLIO MACHADO

Nailton Santos de Matos (Fatec/Barueri)1

Resumo: Este artigo tem como objetivo refletir sobre o papel da literatura e da crítica literária
no século XXI. A análise tem como suporte teórico o estruturalismo genético de Lucien
Goldmann em Sociologia do Romance (1967) para quem a materialidade do romance resulta das
tensões sócio históricas, portanto as estruturas no plano da forma e do conteúdo são homólogas
às estruturas externas da vida social. Tomando como referência o método goldmanniano, este
artigo analisa a obra O louco do Cati (1984) de Dyonélio Machado no que se refere à forma e ao
conteúdo buscando estabelecer uma homologia entre a obra e as representações do mundo do
oprimido e dos mecanismos de opressão que buscam consolidar a dominação dos opressores e da
possibilidade de desmascarar todas as incoerências e dissimulações que a ação dos opressores.

Palavras-chave: Lucien Goldmann; Dyonélio Machado; O louco do Cati; Epistemologia do


romance

A discussão em torno do papel da literatura tem suscitado inúmeros debates entre


os intelectuais que se ocupam de estudar a obra literária. Há um grande número deles que
defendem a primazia do estudo dos aspectos imanentes presentes na literatura. Para esses,
o que deve ser levado em conta na análise literária para validar a sua qualidade é a
genialidade do autor ao elaborar uma representação de mundo a partir de formas
linguísticas.
O método goldmanniano de análise dos fenômenos culturais ficou conhecido
como estruturalismo genético. Vale destacar que, para ele, as estruturas não são dadas a
priori. Conforme pode ser percebido no exemplo dado por ele em seus estudos sobre o
jansenismo, “a vida dos homens e dos grupos sociais não é um estado, mas um conjunto
de processos” (1972, p.12) que só podem ser explicados a partir das relações internas
dentro daquela estrutura e dessa em relação a outras mais vastas, num processo dialético
em busca da totalidade explicativa para os fenômenos.

A obra literária como homologia

De modo geral, há uma concepção de que a obra literária deve ser vista como um
produto da capacidade de abstração do seu autor. O que está em evidência são as
estruturas internas que dão configuração à obra: linguagem, personagens, tempo, espaço,

1
Graduado em Letras (UEFS), Mestre em Literatura e Crítica Literária (PUC/SP), Doutor em Educação
(UNINOVE). Contato: nailtonmatos@yahoo.com.br.

1699
enredo etc. Uma das vertentes mais prodigiosas dentro dessa concepção de análise da
obra literária foi o formalismo russo.
Goldmann assume uma posição diferente dessa corrente. Este teórico entende que
toda produção cultural deve ser tomada como a expressão de uma consciência coletiva.
Goldmann (1993, p.106) deixa isso muito explícito ao afirma que
[...] toda manifestação é obra de seu autor individual e exprime seu
pensamento e sua maneira de sentir; essas maneiras de pensar e de sentir não
são, porém, entidades independentes em relação às ações e aos
comportamentos dos homens. Só existem e só podem ser compreendidas em
suas relações interindividuais que lhes conferem todo conteúdo e toda riqueza.

Para ele, uma obra artística não é resultado da capacidade cognitiva do seu autor. A
riqueza de uma obra literária reside no fato de que ela só existe e só se tornou possível
como expressão das tensões sócio históricas que lhe deram o lastro necessário à sua
materialidade. Essa dimensão da produção literária como uma espécie de síntese possível
desenvolvida por uma dada classe social, que não faz do autor um gênio capaz de erguer
um grande monumento como resultado de seu esforço pessoal e de sua capacidade
intelectiva, não parece ser coerente.
As visões do mundo são fatos sociais, as grandes obras filosóficas e artísticas
configuram expressões coerentes e adequadas dessas visões do mundo; são
como tais expressões individuais e sociais ao mesmo tempo, sendo seu
conteúdo determinado pelo máximo de consciência possível2 do grupo, em
geral da classe social, a forma sendo determinada pelo conteúdo para o qual
o escritor encontra uma expressão adequada. (GOLDMANN,1993, p.107-8)

Esse modo de produção da vida material determina o plano da expressão do


conteúdo e da expressão da forma. Esse modo burguês de conceber a realidade condiciona

2 Segundo Goldmann, é fundamental separar a consciência possível duma classe de sua consciência real
num certo momento da história, resultante das limitações e dos desvios que as ações dos outros grupos
sociais. Uma classe social não consegue alcançar um grau de percepção maior do que aquele na qual a
estrutura psíquica de sua classe consegue chegar. Cada classe estrutura seus pensamentos a partir dos
esquemas mentais construídos por sua classe. Desse modo, muitos aspectos da realidade escapam da
percepção ou chegam a ela deformadas, determinando, assim, a forma de pensar característica de uma classe
social. As estruturas do pensamento de uma classe determinam as possibilidades e os limites de sua
consciência. Inserida dentro do materialismo dialético, a teoria goldmanniana nega a existência de toda
entidade metafísica e especulativa, e defende que todo fenômeno é a expressão de uma realidade humana
mais profunda e mais vasta. Para ele, não há consciência supraindividual. A consciência coletiva e a
consciência de classe, por exemplo, consistem apenas no conjunto de consciências individuais e de suas
tendências tais que resultam da mútua influência dos homens uns nos outros e de suas ações sobre a
natureza. O materialismo dialético não acredita que o conjunto de consciências individuais seja a soma
aritmética de unidades autônomas e independentes; seu pensamento, numa linhagem que passa por Pascal,
Kant e Hegel, diz que cada elemento só pode ser compreendido no conjunto de suas relações com os outros,
isto é, em relação ao todo, pela ação que opera sobre esse todo e a influência que este exerce nele".
GOLDMANN, L. Ciências humanas e filosofia: o que é Sociologia? 12ª ed. Trad. Lupe Cotrim Garaude e
José Arthur Giannotti. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1993.

1700
a forma do conteúdo e o conteúdo da forma. A forma que ele dá ao conteúdo é um
romance. O romance, segundo Goldmann, é uma invenção burguesa. A forma do romance
clássico está condicionada pela visão de mundo da burguesia. A presença do herói
individual, de uma narrativa que está centrada em valores econômicos e de uma
linguagem carregada de metáforas que remetem à vida material, evidencia, no plano da
forma, esquemas mentais de consciência possíveis desse grupo social.
A mudança no plano da forma e do conteúdo não se dá de modo aleatório ou por
capricho do autor. Como o mundo em evidência é o mundo do proletário, as categorias
mentais de se conceber o mundo não são capazes de retratar as tensões e contradições
desse grupo social. De acordo com Goldmann (1972, p.13-4), “a vida da sociedade não
constitui um todo homogêneo; compõe-se de grupos parciais em meio aos quais as
relações são múltiplas e complexas. De uma maneira bastante esquemática e global,
poderíamos defini-las como um conjunto de conflitos e colaborações”. Goldmann (1993)
salienta que “o estudo das grandes obras filosóficas e literárias demanda um trabalho de
análise extremamente cuidadoso, já que no limite é preciso tentar depreender a partir da
visão de conjunto tanto o conteúdo como a forma exterior da obra. (p. 108)
Desse modo, a produção literária deve ser tomada não apenas como um simples
registro (mimesis) da realidade. Ela é, antes de mais nada, a materialidade no campo da
abstração da consciência possível de uma classe social. Mesmo quando apresenta um
conteúdo diferente daquele presente na consciência coletiva, ela é, na estrutura (forma),
homóloga à consciência coletiva de sua classe social e deve, segundo Goldmann (1972,
p.64), “ajudar os homens tomar consciência de si mesmos e de suas próprias aspirações
afetivas, intelectuais e práticas”.
O que se percebe é que toda produção cultural resulta de uma certa visão de mundo.
A obra nasce do desejo de dar coerência à realidade experienciada por uma determinada
classe social. Coerência não deve ser tomada como uma harmonização ou assujeitamento
desses indivíduos à visão de mundo, mas como um compreender e explicar no sentido
goldmanniano. Esse movimento deve colocar o indivíduo para além da percepção
imediata do fenômeno, para considerá-lo dentro do devir de relações que permitam
explicar o fenômeno dentro de toda a sua complexidade (interna e externa) em um
permanente processo dialético.

Análise do conteúdo da forma em O Louco do Cati

1701
Em O louco do Cati, o autor se debruça sobre a realidade à sua volta e se aprofunda
no drama dos oprimidos. Essa opressão não modifica apenas as relações exteriores das
personagens, mas se projeta para dentro da consciência das personagens. Ela está em toda
parte: no Rio de Janeiro, em Porto Alegre, em Florianópolis, em São Paulo, nos cafés,
nas ruas centrais na periferia, no interior, em todos os lugares, como um espectro que
atormenta e que limita o desenvolvimento de cada ser humano.
A opressão que sufoca e limita a ação humana não é uma ideia, um assunto de
intelectuais, mas o resultado de uma ação proposital de uma classe opressora que a coloca
não apenas como uma ação de fora para dentro, mas, sobretudo, como processo de
alienação do sujeito diante de suas possibilidades.
A “aventura” do maluco envolve o leitor. É de sua angústia, de seu psiquismo, de
sua loucura que nasce toda esperança. Dyonelio trata a questão social de um outro lugar
de enunciação, revelando suas consequências mais graves e mais profundas. O medo, o
encarceramento, a angústia, a loucura são elementos que compõem o aparato subjetivo
que se perde no tempo histórico-social e oferece a possibilidade de compreender e
explicar a totalidade do mundo do oprimido.
Ao particularizar a vida insignificante do “homem-cão” e de outras personagens
marginais, Dyonelio busca apreender a realidade na ótica daqueles que se encontram na
periferia da organização social e vivenciam cotidianamente a angústia e a opressão.
O estado psicológico do maluco com sua aparente fragilidade permite-nos
apreender a realidade cruzando contexto sócio histórico com o seu eco na vida interior do
personagem. A loucura do personagem resulta da sua imersão em um ambiente cuja
práxis se estabelece e se consolida pela violência.
No plano conceptual, Dyonelio Machado oferece uma resposta para a superação
dos mecanismos de opressão: a exorcização das estruturas psíquicas que legitimam a
visão de mundo do opressor. Segundo Freire (1987, p.30), somente o oprimido tem
condições gnosiológica e epistemológica de superar a visão de mundo do opressor,
porque vivendo todas as contradições e tensões advindas da estrutura capitalista burguesa,
fundada em valores quantitativos, somente ele tem possibilidade de construir outras
racionalidades capazes de apontar alternativas reais de superação da visão de mundo
hegemônica do opressor.

1702
Ao construir uma narrativa que tem como personagem “central” um louco que vem
de uma região na fronteira do Rio Grande do Sul, Dyonelio não quer descrever uma
situação particular, exótica, mas falar do homem universal cujas potencialidades são
limitadas pela práxis da violência.
A loucura do “homem-cão” lhe confere a capacidade de desmascarar todas as
incoerências e dissimulações que a ação dos opressores estabelece. A obra O louco do
Cati transpõe para o plano simbólico a resistência à visão de mundo da burguesia na
crença da ação histórica e libertadora que é capaz de conferir ao homem consciência da
sua existência e de sua dignidade.
A obra destaca ainda a importância da ação coletiva na construção da consciência.
Não se trata de personagens que vivem uma crise e que mergulham em uma viagem
psicológica interior na tentativa de encontrar as respostas para um mal ontológico. O
percurso vivido pelo louco evidencia que a superação dessa loucura só é possível pela
solidariedade. É no contato com os outros homens que se viabiliza a superação da
alienação e da opressão.
A obra de Dyonelio Machado na esfera do conteúdo ratifica uma recusa do
sedativo oferecido pelas classes dominantes que, em nome do progresso e da ordem,
violentam e oprimem a fim de que a estrutura opressora seja legitimada. As soluções
oferecidas são ilusórias: estradas, pontes, trilhos que não levam a lugar nenhum.
O Cati perde na obra a sua dimensão espacial para ganhar contornos de projeção
psíquica. As experiências vividas no Cati espacial situado no passado se atualizam num
presente que evoca a sua permanência. Desse modo, o Cati é uma realidade que ainda não
foi superada. O mais intrigante é que apenas o “louco” tem essa perspectiva. Para os
demais personagens, o Cati remonta a um passado historicamente superado.
Ao seguir viagem em direção à praia, os quatro rapazes param em uma hospedaria
para comer e descansar. Embora aquele espaço pareça um lugar seguro, o “louco” vê nas
relações mais profundas indícios do Cati.
- Isto! isto é o Cati!
A figura estranha bracejava na esplanada da frente da hospedaria, no centro
da enorme esfera de luz da alvorada. Com o gesto apocalíptico abrangia a
casa, os contrafortes, as dependências – que na claridade da manhã, saíam do
desenho apenas esboçado pela penumbra da véspera com um recorte militar
mais vivo: eram, mesmo, redutos, quartel, casamatas.
- E dominando o “terreno”, como “em posição” à sua frente – o seu Ricardo,
o dono (sempre madrugador), grande, grosso, cabeleira lançada para trás
bigodudo.

1703
- É o Cati! (MACHADO, 1984, p.23)

É aqui que reside a “loucura” – a capacidade de ver a realidade mais profunda. A


hospedaria reproduzia as mesmas estruturas do Cati. O mundo que se estruturava ali
reproduzia o desenho do Cati.
Quando Noberto é capturado pela polícia, o “maluco” tem a mesma reação:
- Quem é aí um tal de Noberto? Noberto? – indagava o homem que vinha
adiante, em voz dura e precipitada. Os seus companheiros “tomavam posição”
nos dois lados do veículo.
Noberto apareceu, no meio da curiosidade espantada de todos.
- Sou eu.
- Então me acompanhe.
Ouviu-se uma voz de terror, de terror pânico:
- Isto! isto é o Cati!
Era o maluco, um pé no ar, a cara de dor e os olhos fundos escancarados para
aquele “aparato”. (MACHADO, 1984, p.60)

Mais uma vez o “louco” reconhece naquele “aparato” o Cati – realidade não
superada que “tomava a mesma posição”: precipitação do encarceramento do sujeito.
Quando chegam ao presídio, o homem-cão vê no presente a atualização do Cati de sua
infância.
Noberto teve um choque, quando viu aquela porta fechada com as frades e um
soldado de baioneta calada montando guarda. (Em Araranguá, eles haviam
estado numa sala; coisa camarada. O maluco chegou-se mais para perto dele,
encolhido. Aventurou a medo:
- Isto não será o Cati?
Noberto teve uma reação brusca:
- Deixa de ser bobo. (MACHADO, 1984, p.74)

Vale destacar aqui a oposição de visão de mundo de Noberto e do maluco do Cati.


Há uma contradição entre ele e o louco. “O rapaz ruivo e de olhar inteligente falava baixo
para o amigo [...]” (MACHADO, 1984, p.11). “Noberto era consultado como um
oráculo.” (idem, p.22)
Noberto não consegue enxergar na realidade as projeções da opressão e da
violência. Embora seja um militante que se posiciona contra o poder estabelecido e seja
solidário com seus companheiros – “somos todos amigos” (MACHADO, 1984, p.27) –,
ele conhece o Cati como História e não como vivência.
É aí que reside a impossibilidade de superação da violência e da opressão. Isso
explica o fato de que, mesmo tendo um “olhar inteligente” ao longo da aventura, ele será
deixado para trás.

1704
No percurso de sua “aventura” o maluco transitará por espaços e estratos sociais
diferentes. Mas o que fica evidente em todos eles é a completa alienação. No Rio de
Janeiro, uma “mentalidade de máquina” começava a se criar. Enquanto todos vivem
experiências alienantes e alienadas, o maluco lança o seu olhar para mais adiante:
O passageiro do bonde ocupou o seu lugar e se pôs a apagar um ponto a sua
frente com um olhar sem conteúdo. (MACHADO, 1984, p.8)
O passageiro pôs o olhar ao longe, num armazém isolado no meio de um
grande terreno plano, e para lá seguiu. (idem, p.10)
Era preciso ter visto a sua cara, o seu olhar. (ibidem, p.26)

A “loucura” do personagem consiste na sua insistência de olhar para uma direção


contrária àquela que maquinalmente todos insistem em seguir. Uma “mentalidade de
máquina” sugere a completa acomodação do indivíduo à realidade imposta pela social
que se estabelece como única maneira de ver o mundo. O louco está sempre
desconfortável com essa possibilidade. Isso pode ser percebido quando o capitalista na
primeira classe do navio oferece novas roupas para ele.
[...] a promessa a ser mantida pelo passageiro, de mudar de roupa, trocando-a
por outra de sua nova classe. [...] O louco do Cati, algum tempo depois, foi
içado à primeira classe do navio. O capitalista viajava com muita roupa.
Nenhuma servia exatamente no corpo dele. Ficavam grandes [...]. (ibidem,
p.163)
O louco do Cati estava muito desagasalhado, como notou a mulher de cara
mongólica. Depois, entre seu corpo e aquelas roupas muito maiores do que
devia, circulava muito vento, - até um pouco daquela neblina. (MACHADO,
1984, p.170)

Percebe-se aqui a questão da visão hegemônica das classes dominantes. A única


visão de mundo possível é aquela imposta e legitimada por essa classe. Não há abertura
para outras possibilidades: “[...] ninguém podia admitir que houvesse gente que se
alimentasse com comida de outra cor” (MACHADO, 1984, p.163).
O capitalista se apresenta como solidário ao maluco do Cati. A iniciativa de içar o
louco para a primeira classe parece ter pretensões revolucionárias. Entretanto, isto não é
verdade. Ao assumir o nome de “Noberto” durante a viagem, o capitalista parece ver na
ascensão econômica do maluco um ato revolucionário. “[...] Mas, na verdade, constituía
uma tarefa por demais ingrata vigiar todos os passos dum indivíduo, quando entre um e
outro se interpunha uma separação tão severa como aquela das classes de um navio.”
(MACHADO, 1984, p.163)
Fica evidente que a suposta benevolência da burguesia capitalista em relação aos
oprimidos se dá para consolidar, legitimar e perpetuar a opressão. Se o romance é uma

1705
criação que reflete no nível simbólico o universo burguês, portanto, relacionado a ela e
aos seus valores, ele contém em sua própria gênese a contradição burguesa: o ideal de
integração harmônica e de formação humanista, solidária é posto.
Sendo essa “aventura” uma narrativa do oprimido, o mundo burguês não é
reificado, mas revelado em seu aspecto mais demoníaco. O louco do Cati se reconcilia
com o mundo quando se reconhece como agente da história. Quando exorciza todos os
fantasmas que o impedem do exercício pleno de sua consciência.
O homem-cachorro de ainda um instante quase não acreditava! Mas
afugentara a assombração num relâmpago, para sempre!... Queria, dali donde
estava, defronte do sol, queria – era poder estender umas mãos vingativas de
gigante, para sentir nos próprios dedos frisados de luz o esfarelar do pó do
Cati, do Cati que se esboroava – lentamente, através esses anos, numa
serenidade melancólica de coisa morta, que apenas vive a vida ultrajada e
espectro...
Mas sorria...
Sorria, na antevisão até de um descanso, na estrada. Sorria diante daquela
tarde de ouro, que dourava também a lâmina brilhante do arroio, crescido com
as grandes chuvaradas da primavera. Nos olhos, nos lábios frouxos, nos dentes
– uma umidade ouro-pálida ficara lampejando, dourando o seu sorriso.
(MACHADO, 1984, p.255)

Nessa “aventura” inusitada, o autor aponta para a possibilidade humana de


transcendência de um estado de “consciência” simples, para superação dos esquemas
mentais que legitimam a opressão.

Análise da forma do conteúdo em O Louco do Cati

Em O louco do Cati, forma e conteúdo se imbricam coerentemente. Para penetrar


inteiramente a realidade, o autor coloca em xeque as instâncias da narrativa tradicional,
no modo como o autor concebe o herói, a linguagem, a narração, o tempo etc.
Segundo Goldmann, a presença do “herói problemático” caracteriza cabalmente a
forma romanesca. Entretanto, essa categoria não se aplica ao “louco” do Cati. A
personagem não evidencia nenhuma crise de valores resultante da cisão entre
interioridade e exterioridade. O que temos é um personagem que, diante do abandono, da
violência, do medo e da solidão, encontra-se encarcerado dentro de si mesmo e no mundo.
Em O louco do Cati, o herói não age para intervir na realidade exterior. O seu
silêncio resulta da sua impossibilidade de agir enquanto estiver atormentado pelas
memórias da violência e da opressão que a exterioridade imprimiu em sua consciência. A
questão na obra não são os conflitos ligados à materialidade e ao exercício do poder na

1706
sociedade, mas o que isso provoca nas estruturas mentais tanto dos opressores quanto dos
oprimidos nessa sociedade.
No romance de Dyonelio, o herói não é um sobrevivente em um mundo degradante
e degradado. A configuração social e ideológica da realidade não restringiu apenas a vida
material das personagens. Ela degradou, sobretudo, sua dimensão psíquica, reduzindo-o
à condição de um “homem-cão”.
Segundo Bosi (1997, p. 388), “Dyonelio Machado tem escavado os conflitos do
homem em sociedade, cobrindo com seus contos e romances-de-personagens a gama de
sentimentos que a vida moderna suscita no âmago da pessoa”.
Para esse herói oprimido e violentado no âmago de sua consciência, não há
nenhuma perspectiva de futuro, como ocorre com o herói positivo. Enquanto a visão de
mundo do opressor não for superada, não há possibilidade de vislumbre do futuro.
Desse modo, a linguagem em O louco do Cati deve ser considerada não somente
como uma questão de ordem linguística, mas também de ordem epistemológica.
A obra situa a questão da relação entre literatura e realidade. A linguagem deve ser
percebida como reflexo de uma totalidade social, cujas contradições são reconhecidas e
materializadas na própria escritura do texto. A linguagem coloca em evidência uma
realidade descontínua de modo a torná-la produtiva e operante em relação aos sujeitos da
recepção, em lugar de uma concepção mimética que transforma idealmente o texto no
lugar de solução imaginária das contradições. A narrativa de Dyonelio transpõe para o
plano da construção formal da obra uma concepção do devir da história e,
consequentemente, da possibilidade de ruptura dessas ideologias opressoras.
Dyonelio Machado constrói no campo simbólico uma ambiciosa narrativa por meio
da qual faz uma sondagem das categorias estruturais que orientam a consciência dos
oprimidos. As personagens vivem visceralmente, em seus vários contextos, a violência e
a alienação. O medo e a solidão perpassam a trama dessa aventura feita de muitas
aventuras.
O olhar sobre a realidade se dá na perspectiva do oprimido, mas não centrado em
um puro individualismo. Há uma identidade entre o que ocorre na sua consciência e as
situações vivenciadas por seus companheiros de viagem. Na verdade, é só no contato com
as experiências coletivas que ele percebe sua própria falta de identidade.

1707
Todas as personagens vivem uma experiência dramática de encarceramento.
Segundo Bosi (1980), “é tão grave o seu peso, que se faz sentir até quando a personagem
já se viu livre das quatro paredes materiais da cela.” Em O louco do Cati, há um
aprisionamento epistêmico e ontológico. O aprisionamento já se instalou de tal maneira
na experiência do oprimido que sua consciência continua a reproduzir os esquemas da
dominação, mesmo quando não há estruturas materiais. O ser apenas consegue se
perceber inserido naquela estrutura que passa a ser percebida como a única possível.
Para desenvolver a narrativa, temos um narrador onisciente que deveria ter a
capacidade de penetrar pensamentos e intenções das personagens e conduzir o fluxo da
narrativa. No entanto, o que se tem é um narrador à deriva. No primeiro capítulo, “A
primeira aventura foi no bonde”, o “louco” ocupa seu lugar no bonde para iniciar sua
aventura. O bonde pode ser tomado como metáfora da própria narrativa. Vale destacar
que todo o percurso feito pelo bonde remete-nos à rigidez dos trilhos. Uma narrativa cuja
forma pretende ser coerente com o conteúdo não pode se estruturar nos moldes
tradicionais do romance.
A aventura sob os trilhos leva a personagem para um lugar semideserto. “O fim da
linha era um lugar semideserto” (MACHADO, 1984, p.10, grifos nossos). Não fazia
muito que havia os trilhos até o novo bairro que surgia. Para ser coerente com uma
realidade onde tudo é móvel, em constante devir, a narrativa precisa abandonar os trilhos
para ser capaz de retratar a violência, a angústia, o medo e a opressão.
[...] Devia ser este trilho – o trilho que seus olhos haviam enfiado, longe, no
arqueado da coxilha, em pleno dia, e que vinha do descampado, onde havia
palmeiras, e ia para outro descampado – ponte rápida e sonhadora entre
mistérios. (1984, p.20)

Predomina na moldura da narrativa o tema da busca. Essa busca se caracteriza por


um desejo de superar uma realidade posta. Por trás da forma, se escondem mecanismos
opressores. Quando chega à hospedaria, o edifício traduz em sua forma as mesmas
representações simbólicas da dominação, “eram, mesmo, redutos, quartel, casamatas”
(idem, p.23, grifos nossos).
A loucura funciona paradoxalmente como chave de sentido tanto no plano da forma,
quanto do conteúdo. No plano formal, a “loucura” consiste em “degradar a língua
metódica e sistematicamente”, como destaca Moysés Velhinho (1944, p.87).

1708
Vale ressaltar que a crítica de Velhinho foi extremamente negativa em relação à
obra de Dyonelio publicada em 1942. Segundo ele, o grande problema da obra consistia
exatamente em problemas estruturais e de linguagem. O que ele não conseguiu perceber
é que exatamente por sua subversão da estrutura e da língua, O louco do Cati constrói sua
coerência.
Se a língua é, em sua essência, um instrumento de cultura, conforme destaca
Velhinho (1944), e toda cultura uma representação de uma dada formação social, logo a
linguagem traz as marcas estruturais da classe social que a fez emergir.
“O signo e a situação social estão indissoluvelmente ligados. Ora todo signo
é ideológico.” Os sistemas semióticos servem para expressar a ideologia e
são, portanto, modelados por ela. A palavra é o signo ideológico por
excelência; ela registra as menores variações das relações sociais, mas isto
não vale somente para os sistemas ideológicos constituídos, já que a
“ideologia do cotidiano”, que se exprime na vida corrente, é o cadinho onde
se formam e se renovam as ideologias constituídas. (YAGUELLO, 2004,
p.16)

O que o crítico Moysés Velhinho (1944) não percebeu em sua análise foi a completa
homologia entre forma e conteúdo e a estrutura do grupo social que ela representa. Ao
construir a narrativa, com “períodos atravancados”, “sempre aos pulos” com “aridez de
forma” e com seus “seres amorfos”, Dyonelio reproduz o mundo dos oprimidos para
quem a realidade oficial não faz sentido algum.

Considerações finais

A análise de O louco do Cati à luz do estruturalismo genético goldmanniano aponta


não somente para a originalidade da obra, mas principalmente para a sua dimensão
epistemológica. A crítica de formação burguesa não se reconhecia na expressão artística
do autor. Esse mundo às avessas, construído pela força da violência e da opressão, tem
suas ressonâncias na consciência do oprimido. Não se trata de uma narrativa sobre o
oprimido. É o oprimido que ganha voz, mesmo em seu silêncio. A literatura que brota
desse lugar de enunciação oferece novas racionalidades, capazes de contrariar a visão
hegemônica de mundo.
O ostracismo a que foi submetida a obra de Dyonelio Machado revela como os
detentores do poder buscam silenciar os intelectuais que elaboram uma representação
simbólica de consciência de classe que não seja a da classe dominante. A sua condição

1709
ontológica de oprimido, vivendo sempre à margem da estrutura do poder, não permitiu
que sua obra tivesse ressonância em seu tempo.
Desse modo, uma literatura que nasce da síntese de uma classe opressora jamais
pode ser libertária. Pelo contrário, deixa em cada produção cultural a sombra da opressão
que esmaga e aliena o sujeito, impedindo-o de ser mais. A possibilidade de transcendência
da opressão só é possível na práxis libertadora do oprimido, que pode expulsar a sombra
opressora pela conscientização que viabiliza um posicionamento crítico diante das forças
opressoras.

Referências

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1997.

________. Uma trilogia da libertação. In: MACHADO, Dyonelio. Prodígios. São Paulo:
Moderna, 1980.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1987.

GOLDMANN, Lucien. A criação cultural nas sociedades modernas. Trad. Rolando


Roque da Silva. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1972.

________. A origem da dialética: a comunidade humana e o universo em Kant. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1967.

________. Ciências humanas e filosofia: o que é Sociologia? 12ª ed. Trad. Lupe Cotrim
Garaude e José Arthur Giannotti. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1993.

________. Sociologia do romance. Trad. Alvaro Cabral. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1967.

MACHADO, Dyonelio. Os ratos. 7ª ed. São Paulo: Ática, 1980.

________. O louco do Cati. 4ª ed. São Paulo: Ática, 1984.

VELHINHO, Moysés. Letras da Província: Coleção Autores Brasileiros, Vol. I. Porto


Alegre: Livraria do Globo, 1944.

YAGUELLO, Marina. Introdução. In: BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da


linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 11ª
ed. São Paulo: Hucitec, 2004.

1710
A morte na psicanálise e na literatura: Kafka e Camus

Thales do Rosário de Oliveira (UnB)1

Resumo: A pesquisa traz uma reflexão sobre a presença da morte na literatura, em especial na
literatura existencialista, usando os conceitos da psicanalise de Freud para explicar como o ser
humano compreende a morte dentro do seu desenvolvimento psíquico, assim como o
desenvolvimento de certas neuroses pode fazer com que o ser humano se distancie da sua
realidade, de sua vontade de viver e tenha, por meio de certos instintos destrutivos, a busca
inconsciente ou até mesmo consciente de um encontro precoce com a morte.

Palavras-chave: Morte; Literatura; Psicanálise; Kafka; Camus.

Introdução

Desde os primórdios da Civilização, a morte é considerada um aspecto que


fascina e, ao mesmo tempo, aterroriza a humanidade. A morte e os supostos eventos que
a sucedem são, historicamente, fonte de inspiração para doutrinas filosóficas e
religiosas, bem como uma inesgotável fonte de temores, angústias e ansiedades para os
seres humanos.
A morte como fenômeno físico já foi exaustivamente estudada e continua sendo
objeto de pesquisa, porém permanece um mistério impenetrável quando nos
aventuramos no terreno do psiquismo.
O objetivo do presente artigo é o aprofundamento teórico da questão da morte,
enfocando a maneira pela qual o homem lida com este fenômeno humano inevitável,
percebendo os mecanismos psicológicos que entram em ação quando o homem se
encontra diante da morte e desmistificando seu caráter negativo. O tema da morte não é
de forma alguma uma discussão atual. Foram muitos os filósofos, historiadores,
sociólogos, biólogos, antropólogos e psicólogos a discutir o assunto no decorrer da
História. Isto porque a morte não faz parte de uma categoria específica; é uma questão
que atravessa varias áreas do conhecimento, e uma questão essencialmente humana.

A visão da psicanálise sobre a morte

1
Formado em Filosofia (IMP), Mestrando em Literatura comparada (UnB), e-mail:
profess.thales@hotmail.com

1711
Ao sermos inseridos a um determinado grupo social após o nascimento, são
jogados a nossa individualidade os conceitos criados como certos e errados por esse
meio. Assim, nos é imposto uma busca pela felicidade criada e construída. A partir
desse instante frente ao mundo, uma névoa de expectativas começa a definir
socialmente o que é o prazer, que traz troféus de ganho social e maior voz que
demonstra seu nível de felicidade como um termômetro na forma de status frente ao
grupo. Assim, é no seio da cultura que a pulsão de morte ganha suas contenções, por
meio dos ideais culturais que fornecem um contraponto à sabotagem da pulsão de
morte. Nesse sentido, é fundamental a instauração do superego e a sublimação das
pulsões por meio dos ideais fornecidos pela cultura, como a ciência, a religião, as artes e
demais instituições.
A busca da felicidade está intimamente ligada à busca da sensação de prazer, que
seria nada mais e nada menos que uma sensação agradável ligada à satisfação de uma
vontade pessoal. O prazer opõe-se à dor e ao sofrimento e, por isso, esse conceito se faz
tão importante, pois é a fuga desse sentimento de desprazer que nos faz observar algum
sentido na vida e nos tende a crer que a esta vale a pena ser vivida, uma vez que o
espirito do homem nutre uma profunda rejeição por toda a forma de desordem.
O ser humano tende, consciente e inconscientemente, a manter-se vivo em uma
luta diária contra o relógio da natureza sem ao menos saber, no plano material, qual é
sua função desde o nascimento. A pulsão de vida é a organização da vida em impulsos
conservadores “que obrigam a repetição”, é a constante fuga da morte futura em ações
que tendem a minimizar, psicologicamente e cada vez mais, o medo da mudança das
ações comportamentais que podem levar ao encontro com a morte.
Freud descreve a pulsão de morte como uma pulsão biológica que pressiona para
o retorno ao inorgânico, o organismo reagindo a qualquer perturbação pela tentativa de
reencontrar o “status quo”. É possível imaginar que Freud sublinhou, de maneira
parcialmente defensiva, o aspecto biológico, o que permitiu que outros, e às vezes ele
mesmo, apresentassem suas ideias sobre a pulsão de morte como uma especulação
biológica. Esperava que sua formulação fosse julgada como chocante e encontrasse uma
grande resistência, o que realmente ocorreu.
A ideia é que a pulsão de morte trabalha como uma força de eliminação ou
delimitação, uma vez que o objetivo é por fim aquilo que nos tira a felicidade, nesse

1712
caso a destruição passa a ser uma forma de por fim a desordem. Nas suas formas mais
elementares, manifesta-se como destruição, em busca de paz pelo vazio. No entanto, o
esforço visa um retorno à calma e ao silêncio, pois qualquer solução é menos
perturbadora que o caos. Á medida que aumentam os meios, os resultados podem ser
alcançados de outra forma que não seja a eliminação, a pulsão de morte nem sempre nos
levará a um extremo de autoextermínio, mas é uma possibilidade da qual não pode ser
ignorada.

A morte como recurso literário

A literatura, tanto a literatura de ficção como a ensaística, pode nos falar da


doença e da medicina de um modo original e revelador, mais revelador às vezes de que
os próprios manuais médicos. Exemplos não faltam. Temos A morte de Ivan Illich‖, de
Leon Tolstói uma dilacerante narrativa sobre um homem que tem uma doença grave e
não consegue comunicar-se com seus médicos ou com sua família; A montanha
mágica‖, de Thomas Mann, no qual a tuberculose faz com que pessoas examinem suas
vidas; isto sem falar nas obras de médicos- escritores como Anton Tchekhov,
Guimarães Rosa, Pedro Nava. Maravilhosas descobertas podem ser feitas no comum
território partilhado pela medicina e pela literatura.
A melancolia é uma das grandes matérias-primas da arte. Mas como tudo que é
humano também é hipócrita se leva mais a sério a ressalva de maneirar na dose do que
de realmente discutir como resolver os problemas de saúde pública como a depressão e
o suicídio. Todas às vezes em que o suicídio aparece na arte e na mídia, o principal
argumento para puxá-lo de volta para a gaveta dos assuntos que não podem ser
nomeados é para que não cause o “Efeito Werther”.
Diversos clássicos da literatura já abordaram o assunto de maneira semelhante,
como Romeu e Julieta, de Shakespeare, e Anna Karenina, de Tolstói, por exemplo. Mas
o nome do fenômeno vem do romance Os sofrimentos do jovem Werther, do alemão
Johann Wolfgang von Goethe, cujo protagonista se mata após ser rejeitado por sua
amada Charlotte. O tom realista, depressivo e passional do livro, publicado em 1774,
quando a literatura era a principal mídia entre os adolescentes, provocou uma comoção
entre os jovens da época, que seguiram Werther e também se suicidaram. O livro foi

1713
banido em diversos lugares, retirado de circulação, queimado em praça pública por um
Arcebispo de Milão e algumas edições chegaram a incluir um aviso: “Seja homem e não
me siga”.
Por isso, o termo é usado para descrever o aumento das mortes quando um
suicídio é midiatizado. O fenômeno goethiano é comprovado pela ciência: médicos da
Universidade de Viena analisaram 98 casos de suicídio de famosos e perceberam que
reportagens sensacionalistas que glamourizavam a morte de celebridades estimulavam o
“suicídio por imitação”. A recomendação das autoridades de saúde é que não se
simplifique, romantize, mostre a forma como alguém cometeu suicídio e nem justifique
o comportamento suicida como heroísmo ou vingança.
No clássico O Mito de Sísifo, Albert Camus descreve o ato como a única questão
filosófica realmente séria: “Julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida significa
responder à questão fundamental da filosofia” (CAMUS, 2016, P.10). Único ou rodeado
por outros problemas filosóficos, o fato é que precisamos falar sobre as vítimas, as
causas, as pessoas afetadas e as formas de evitá-lo. Enquanto os índices de suicídio têm
diminuído na maioria dos países, as taxas brasileiras avançam. Entre 2002 e 2012, o
número de casos subiu 33,6%, bem acima dos 11% de crescimento da população no
mesmo período. Entre adolescentes de 10 a 14 anos, o aumento chegou a 40%, de
acordo com o último levantamento do Mapa da Violência.

A morte representada em “A metamorfose” de Franz Kafka

A Metamorfose conta a história de Gregor Samsa, um caixeiro viajante (que


provém o sustento da família parasitária) acaba subitamente se metamorfoseando em
um inseto horrendo. Tão horrendo que Kafka optou por não dar muitos detalhes sobre
sua aparência, fazendo com que a imaginação do leitor trabalhe para criar a figura mais
asquerosa possível, o senso comum imagina o inseto kafkiano como sendo uma barata,
mesmo que Kafka nunca tenha usado esse inseto em especifico como uma referência.
A relação de Gregor com sua família não é das melhores (exceto com a sua irmã),
o que pode servir para traçar um paralelo com a vida do autor, que também não se dava
bem com seu pai, me fazendo acreditar que a obra fala bastante sobre Kafka. Com o
passar do tempo vemos como a visão da família de Gregor em relação a ele só piora,

1714
fazendo com que o isolamento, tanto físico como psicológico, se torne cada vez mais
intenso, consumindo lentamente o resto da sua humanidade e identidade.
A Metamorfose é uma obra que trata sobre nossa relação com a solidão e a perda
de nossa identidade, que a meu ver só existe com um reflexo do nosso convívio com
outras pessoas. Quem sou eu? Quem é Gregor? Esse se trata de um dos maiores dilemas
da humanidade e que faz parte do nosso coro particular de demônios, mas que
permanece sem uma resposta concreta, a não ser que você pergunte ”Quem eu penso
que sou? Quem pensam que eu sou?”. Toda a melancolia de observar o desaparecimento
da figura de Gregor só se torna pior ao pensarmos que somos os únicos observando esse
processo, o que deixa todo o peso de sua morte em nossas mãos.
A metamorfose de Gregor no monstruoso inseto é apenas um recurso literário que
leva o leitor a reflexão bem mais complexa sobre a metáfora que esta por trás do tal
recurso que é a melancolia. Ao fim do livro podemos ver a morte de Gregor como sendo
um momento de libertação e cada cultura tem uma forma diferente de lhe dar com a
morte. No ocidente, por exemplo, ela é vista de maneira negativa, a morte é a única
experiência que absolutamente todos irão experimentar inevitavelmente.
O fato de tratarmos a morte como algo não natural, equivocadamente faz com que
criamos mecanismos de defesa que nos impede uma relação mais concreta com o outro
na tentativa de evitar o inevitável que é o contato com a morte. O que nos faz entrar em
uma situação de redundância, pois o medo de perder pessoas nos faz perder pessoas
todos os dias e conexões são sempre desfeitas, deixando assim bem claro a atuação da
pulsão de morte no que diz respeito a eliminar o caos, a busca da paz pelo vazio e o
retorno à calma.

A morte representada em “O estrangeiro” de Albert Camus

Com relação à obra de Albert Camus, O estrangeiro, escrita em 1975, havia na


Europa um ambiente intelectual já familiarizado pelo diálogo entre filosofia e literatura,
sobretudo com as publicações dos romances e contos de Sartre. O cenário do pós-guerra
foi, portanto, fundamental para esses pensadores desenvolverem suas visões de mundo.
Em suma, a herança da segunda guerra mundial será para Camus, e também para outros
escritores, a de um mundo onde se perderam todas as referências de verdade, moral e o

1715
significado à priori de uma existência. É diante disso que Camus irá formular a ideia de
absurdo, e aplicá-la constantemente em sua literatura.
A narrativa de O estrangeiro se sucede uma série de acontecimentos após a morte
da mãe de Mersault que levam a crer que este estaria envolto em um profundo processo
de indiferença com toda a existência, porém sem negá-la. Voltando do funeral da mãe,
logo em seguida Mersault, conhece uma garota na praia, a leva para o cinema para ver
um filme de comédia, passa a reencontrá-la periodicamente, mas nesse tempo todo não
chega a demonstrar mais sinais de luto. O luto de Mersault é o luto da falta de sentido
da existência, do abismo que existe entre as ações dos indivíduos e o significado delas,
e, de acordo com Camus “... essa densidade e essa estranheza do mundo, isso é
absurdo” (CAMUS, 2015, P. 29).
O ponto culminante da trajetória do protagonista de O estrangeiro é quando por
motivos absurdos e banais ele acaba por matar um árabe em uma praia. Vendo que a sua
indiferença ao mundo passa a ser utilizada contra ele mesmo, quando os acusadores
constantemente relembram ao júri a psicologia fria de um homem que não chorou no
enterro da mãe, Mersault passa a perceber que não existe redenção para um homem que
levou a vida inteira de maneira absurda. Mas é no momento em que aguarda a sua
execução que Mersault apresenta um paradoxo: Mesmo levando à indiferença as ultimas
consequências, demonstrando que todas as coisas no mundo possuem igual valor, ele
também confessa que a vida definitivamente merece ser vivida.
E é nesse ponto que Mersault encarna o espírito típico do existencialismo, mesmo
percebendo que não existe uma unidade no mundo, o que o faz valer a pena é a
subjetividade, a qual para kierkegaard seria a única verdade possível. E é essa a jornada
que o sujeito deve encarar para poder se curar do desespero, ou se sobrepor ao absurdo:
“Pois quando tento captar esse eu no qual me asseguro, quando tento defini-lo e resumi-
lo, ele é apenas água que escorre entre meus dedos. (...) para sempre serei estranho a
mim mesmo.” (CAMUS, 2015, p.33).

Referências

CAMUS, Albert. O estrangeiro. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2015.

CAMUS, Albert. O mito de sísifo. Rio de janeiro: Bestbolso, 2016.

1716
FADIMAN, James e FRAGER, Robert. Teorias da personalidade. São Paulo: Harbra,
1986.

FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. Porto Alegre: L&PM, 2016.

FREUD, Sigmund. Neurose, psicose, perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.

FREUD, Sigmund. O mal – estar na civilização, novas conferências introdutórias à


psicanálise e outros textos (1930 – 1936). São Paulo: Companhia das letras, 2010.

FREUD, Sigmund. Totem e tabu, contribuição à história do movimento


psicanalítico e outros textos (1912-1914). São Paulo: Companhia das letras, 2012.

KAFKA, Franz. A metamorfose. São Paulo: Companhia das letras, 1997.

1717
ÉRICO VERÍSSIMO: DISCURSO LITERÁRIO E O CONTEXTO SOCIAL EM
INCIDENTE EM ANTARES

Daniela de Oliveira Lima – Doutoranda – UNESP/Assis (bolsista CAPES)1


Orientador: Prof. Dr. Rubens Pereira dos Santos

Resumo: O escritor Érico Veríssimo (1905 – 1975) é um dos nomes representativos dentro da
literatura brasileira, sua atuação literária alcançou grande repercussão tanto no Brasil como em
outros países. Tendo em vista a popularidade e o olhar do escritor para a vida e a obra literária,
optamos por tratar neste texto o discurso literário e sua relação com o contexto social em um
dos seus últimos trabalhos, Incidente em Antares (1971). Neste apontaremos o modo de
observar a realidade e poder inseri-la dentro de um romance que faz alusão ao período da
ditadura militar brasileira, e através de seu fazer literário mostra-nos o contexto maior em que a
obra se concretiza entre a realidade e a ficção.

Palavras-chave: Literatura Brasileira; Érico Veríssimo; Incidente em Antares; Realidade e


Ficção.

Introdução

Érico Veríssimo (1905 – 1975) foi um escritor que em vida obteve sucesso com
suas produções, o que não quer dizer que sua carreira literária tenha sido fácil, pelo
contrário. Nasceu na pequena cidade de Cruz Alta, no Rio Grande do Sul, onde atrás do
balcão da farmácia da família já escrevia alguns contos, mas foi em Porto Alegre e
devido ao seu trabalho na Editora Globo que passou a viver de literatura. Foi nesse
ambiente que o escritor teve a oportunidade de publicar seu primeiro livro, Fantoches
(1932), que era uma coleção de contos, mas foi a partir do romance Clarissa (1933) que
começou a fazer sucesso. Embora inserido em um ambiente literário Érico trabalhou
muito no início de sua carreira:

Para complementar o ordenado insuficiente que me pagava a Revista do


Globo, decidi traduzir livros do inglês para o português. O primeiro que me
caiu nas mãos foi desgraçadamente uma novela policial de Edgar Wallace,
The Ringer. Eu passava o dia na redação da revista, e à noite, no nosso quarto
de hotel, trabalhava nessa tradução até às primeiras horas da madrugada. Era
uma tarefa que não me dava prazer. O autor e a estória não me interessavam,

1
Graduada em Letras (UNESP / Assis), Mestre em Literatura Portuguesa e Africanas de Língua
Portuguesa – Angola (UNESP / Assis). Contato: dani_7oliveira@yahoo.com.br.

1718
o esforço físico exigido pelo simples ato de datilografar o texto me produzia
dores no corpo inteiro. (VERÍSSIMO, 1974, p.247).

Henrique Bertaso, editor da Revista do Globo e filho de José Bertaso, dono da


editora, foi um dos principais colaboradores para o sucesso da carreira literária de Érico
Veríssimo, pois mediante essa amizade conseguiu a publicação de Fantoches – sugeriu
pagar a publicação do próprio bolso e queria facilidades no pagamento, mas conseguiu
por conta da editora. E alguns anos depois acabou recebendo um convite de Henrique
para trabalhar na Editora, o que lhe aumentou o salário. Eis alguns fragmentos que
mostram essa relação:

Cabeça baixa, cara sempre séria, Henrique coçou a coroa da cabeça, refletiu
por um instante e depois resmungou: “Podemos publicar seu livro por conta
da casa. Onde estão os originais?” Impossível! Engoli em seco, sem saber
que dizer. Não sou também homem expansivo. Balbuciei um agradecimento
canhestro. Separamo-nos. Dias depois eu entregava ao jovem Bertaso os
originais de Fantoches, que foi publicado meses mais tarde, com uma boa
capa de Ernest Zeuner, então chefe dos desenhistas da Globo. A tiragem? Mil
e quinhentos exemplares. (VERISSIMO, 1979, p.32).

Eu não saberia dizer exatamente em que ano aconteceu o que vou narrar. Só
me lembro de que um dia Henrique me convidou à sua maneira simples,
sempre isenta de qualquer tom solene – para ajudá-lo na editora, roubando
algumas horas à Revista do Globo. Propunha pagar-me por esses serviços de
conselheiro literário duzentos mil réis por mês. Era dinheiro que me caía do
céu! Aceitei o convite e comecei a trabalhar. (Só muitos anos mais tarde é
que vim a descobrir que esses “duzentos pilas” Henrique os tirava do próprio
ordenado, proibido que estava de contratar mais gente para a Editora).
Tínhamos escritórios contíguos, separados apenas por um fino tabique.
Costumávamos ambos trocar idéias e planos. (VERISSIMO, 1979, p. 40-41).

No entanto, foi a partir do romance Clarissa que a carreira do escritor foi


crescendo significativamente, publicou diversos romances, Caminhos cruzados (1935),
Olhai os lírios do campo (1936), a famosa trilogia O tempo e o vento, composta de: O
Continente (1949), O Retrato (1951) e O Arquipélago (1961), além de O senhor
embaixador (1965), Incidente em Antares (1971), entre outros. Cabe lembrar que suas
produções não se restringem apenas aos romances, escreveu memórias, Solo de
clarineta, volume I em 1973 e volume II em 1976; narrativas de viagem, como Gato
preto em campo de neve (1941), - sobre sua primeira visita aos Estados Unidos -; A
volta do gato preto (1946) e outros. Livros infantis também fizeram parte de sua
produção, por exemplo, A vida de Joana D’arc (1935), Os três porquinhos (1936), As
aventuras de Tibicuera (1937), entre outros.

1719
Além dos livros publicados a carreira do escritor começa a ganhar maior
visibilidade quando é convidado para dar aulas na Universidade da Califórnia e se muda
para lá com a família. Suas palestras proferidas em inglês foram reunidas e traduzidas
algum tempo depois pela professora Maria da Glória Bordini no livro Breve história da
literatura brasileira que apresenta um pouco a maneira como o escritor olhava para a
literatura brasileira e como a explicava fora de seu país, como, por exemplo, no trecho
abaixo:

Quanto à literatura de meu país – seu traço proeminente nos últimos dez anos
é que os escritores brasileiros deixaram de ser meros malabaristas verbais,
imitadores esnobes das modas literárias européias ou tíbios elfos, habitantes
da torre de marfim; pisaram em terra e deram as mãos ao homem comum
nessa cruzada universal por um mundo melhor de paz, fraternidade e
liberdade. (VERISSIMO, 1995, p.153).

Como forte característica de Érico está a sua maneira de se posicionar frente aos
acontecimentos, procurava emitir uma opinião seja referente ao Brasil ou a outros
países. As viagens à Europa também foram frequentes, o romancista era conhecido e
reconhecido por onde passava, e ele teve a oportunidade de conhecer pessoas do meio
literário também, tais como Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner, Joel Serrão, entre
outros. Em uma das viagens, Portugal vivia sob forte censura, e o escritor durante uma
palestra foi questionado justamente sobre esse assunto. Cabe citarmos um trecho:

No diálogo que se seguiu à palestra, um jovem universitário me perguntou:


“A que atribui V. Ex.ª a presente crise da literatura portuguesa?” Respondi de
imediato: “À Censura, meu filho. Sem liberdade não pode existir plena
criação literária ou artística.” Um outro estudante ergueu-se e objetou: “Mas
que fazer quando um escritor não tem ética?” Repliquei: “Ora, mais tarde ou
mais cedo ele se destruirá por suas próprias mãos.” [...] Você propõe a
censura como solução para controlar, digamos assim, a ‘ética’ de cada
escritor... Mas diga-me uma coisa: quem é que vai controlar a ‘ética’ do
governo ditatorial que exerce a censura? Nem sempre ou, antes, quase nunca
os mais capazes e decentes são os que tomam o poder, nos regimes de força.
(VERISSIMO, 1976, p.99).

Nesse período o escritor criticou a implantação da censura em Portugal e o que


não imaginava era que tempos depois ela atingiria o Brasil e que ele soube tão bem
inserir no contexto de Incidente em Antares. Mas antes de falarmos sobre esse romance,
lembremos que Érico Veríssimo está inserido dentro da literatura brasileira no
Movimento Modernista, como um forte representante da literatura da região Sul. No
entanto, sua participação foi diferente dos escritores regionalistas que se destacaram
nesse período, uma vez que suas obras não traziam questões de combates sociais, o que

1720
o fez receber algumas críticas. Mas são seus primeiros romances que abarcam a fase dos
anos 30 do Modernismo, ou seja, seu início de carreira. O livro Clarissa, por exemplo,
não aprofunda em questionamentos que envolvem problemas sociais, mas sim o
cotidiano das pessoas e as descobertas de uma adolescente, o que não desmerece em
nada o romance, mas o próprio escritor reconheceu os “problemas” do livro:

Por mais ternura que me inspirasse a figura da menina Clarissa, relendo a sua
estória eu não a achava satisfatória como literatura. A vida não era apenas
uma sucessão de cromos, de momentos de serena poesia doméstica. Tinha
também o seu lado sombrio e sórdido ao qual o romancista não devia fechar
os olhos ou virar as costas. Decidi usar nos futuros romances outros desenhos
e outras tintas. (VERISSIMO, 1974, p. 255).

O fato é que para as propostas que o movimento trazia, de inovação,


questionamentos dos problemas sociais, não eram o que interessavam para o escritor
naquele momento, tanto que reconhece a importância do regionalismo, mas:

[...] Embora admire os trabalhos isolados de escritores como Simões Neto,


Darcy Azambuja, Ciro Martins e Vargas Neto, nunca morri de amores pelo
regionalismo e, para ser sincero, tinha e ainda tenho para com esse gênero
literário as minhas reservas, pois acho-o limitado e, em certos casos, com
certo odor e um imobilismo anacrônico de museu. (VERISSIMO, 1974,
p.288).

Érico Veríssimo foi dos poucos escritores que conseguiu sobreviver de literatura,
ele e Jorge Amado alcançaram sucesso e prestígio junto aos leitores e se tornaram
conhecidos mundialmente, fato este que os tornou também escritores considerados de
“menor prestígio” na visão de alguns críticos. Por venderem muito seus textos eram
“fáceis” demais para o público leitor, e isso, de certo modo, desagradou muito o escritor
gaúcho, como ele demostrou em diversas entrevistas. Como exemplo, a entrevista
concedida para Clarisse Lispector, publicada na revista Manchete, do Rio de Janeiro,
em 1967, com o título Não sou profundo. Espero que me desculpem. Abaixo um
excerto:

Erico, por que você acha que não agrada aos críticos e aos intelectuais?

Para começo de conversa, devo confessar que não me considero um escritor


importante. Não sou um inovador. Nem mesmo um homem inteligente. Acho
que tenho alguns talentos que uso bem... mas que acontece de serem os
talentos menos apreciados pela chamada “crítica séria”, como por exemplo, o
de contador de histórias. Os livros que me deram popularidade, como Olhai
os Lírios do Campo, são romances medíocres. Nessa altura me pespegaram
no lombo literário vários rótulos: escritor para mocinhas, superficial, etc. O
que vem depois dessa primeira fase é bastante melhor, mas, que diabo! Pouca

1721
gente (refiro-me aos críticos apressados) se dá ao trabalho de revisar opiniões
antigas e alheias. [...] E ainda essa natural má vontade que cerca todo o
escritor que vende livro, a idéia de que best-seller tem de ser
necessariamente um livro inferior. [...] Mas devo acrescentar que há no
Brasil vários críticos que agora me levam a sério, principalmente depois que
publiquei O Tempo e o Vento. (Bons sujeitos!). (VERISSIMO, 1999, p. 25 –
26).

Érico Veríssimo teve o privilégio de alcançar um grande número de leitores e ter


um retorno em relação ao que de fato agradava-os em suas narrativas. Relata algumas
vezes que as pessoas chegavam até ele e opinavam sobre determinada personagem, se
gostavam ou não de tal atitude comprovando seu sucesso. Apesar das duras críticas que
recebia seus livros circulavam mundo afora:

Ao completar trinta anos de romancista, Érico Veríssimo era conhecido na


Europa, no continente africano, em toda a América Latina, e, principalmente,
no mundo de língua inglesa. [...] Inquéritos feitos em Angola e Moçambique
demonstraram que Érico Veríssimo é o escritor mais lido naquelas partes da
África. (COUTINHO, 2004, p. 438).

Nos países africanos de língua oficial portuguesa não só Érico Veríssimo foi lido,
mas muitos outros tiveram uma boa recepção e os africanos encontravam muitas
aproximações nos livros brasileiros com os seus países. Por exemplo, em Cabo Verde
na revista Claridade2, organizada por Manuel Ferreira foram publicados comentários
sobre o romance Clarissa. Podemos encontrá-los nas edições de número 4 e 5, que
trazem os seguintes textos assinados por António Aurélio Gonçalves, “Interpretações –
Clarissa e a arte de Erico Veríssimo (Das notas para um estudo sobre a obra do
romancista)”; e a continuação “Interpretações – Clarissa e a arte de Erico Veríssimo
(Das notas para um estudo sobre a obra do romancista) II”. Notamos que António
Aurélio Gonçalves realiza uma leitura da construção da personagem Clarissa e a técnica
utilizada por Érico. Eis alguns trechos:

Certos personagens de Erico Veríssimo vivem só, irremediàvelmente


isolados do resto de sua comparsaria, agindo como que sob os impulsos de
uma idéia única. Esta nada tem de excepcional: é, por via de regra, um dos
lugares – comuns que preocupam eternamente a humanidade – a conquista do
pão quotidiano, o mêdo da morte, a sensualidade, o desejo de evasão pelo
sonho, etc. – mas, ao cabo de muito repetida, adquire aspectos que a
aproximam de uma alucinação. O efeito resultante é o da monotonia. Sôbre
este fundo, recorta-se a vida dos seus homens, que nos deixam a impressão
de terem perdido a vontade, de viverem sob o domínio de uma obsessão, de

2
Claridade – revista de artes e letras, surgiu em 1936 em Mindelo, Cabo Verde, cujos responsáveis foram
Manuel Lopes, Baltasar Lopes da Silva e Jorge Barbosa. Teve nove números encerrando-se em 1966.

1722
formarem um mundo povoado de loucos lúcidos, de entes vivendo debaixo
da febre. (FERREIRA, 1986, p. 26).

O ano em que nos é apresentando Clarissa no romance que tem o seu nome é
para ela de uma importância capital. É aquele em que, subitamente, atravessa
a passagem da meninice para a adolescência, se ergue o seu apelo ao amor, a
princípio, em presentimentos [sic] confusos e, depois, uma aspiração precisa,
e é o ano em que desperta a sua curiosidade pelo mundo e pela vida. Desejo
de amor, desejo de conhecer a vida e resposta da vida ás interrogações da
rapariga – eis pois os temas dominantes de “Clarissa”. (FERREIRA, 1986, p.
27).

Após as breves considerações sobre a vida e a carreira literária do escritor gaúcho,


passaremos para os comentários sobre o romance aqui proposto.

Realidade e ficção em Incidente em Antares


Depois de anos de carreira literária, Érico Veríssimo apresenta-nos um romance
que se envereda pelos caminhos da literatura fantástica e traz maior relação com o
contexto social vivenciado na época. Incidente em Antares (1971) é dividido em duas
partes: Antares e O Incidente. Na primeira temos as origens da cidade Antares, no
século XIX, por volta de 1829, quando ainda era conhecida como Povinho, depois: “O
Povinho foi elevado a vila por alvará de 25 de maio de 1853, data em que recebeu
oficialmente o nome de Antares.” (p.23), sua localização estava na fronteira do Brasil
com a Argentina. Somos apresentados a história de duas famílias, os Campolargos e os
Vacarianos, que são rivais e as mais poderosas da região, até chegarmos aos moradores
do atual município e suas funções na narrativa já no século XX. São apresentadas as
principais personagens que participam do incidente narrado na segunda parte. No início
do romance o leitor já é antecipado em relação aos macabros acontecimentos de uma
sexta-feira, 13 de dezembro de 1963, mas sem entrar em detalhes. Na segunda parte, os
principais cidadãos antarenses já estão em cena, dona Quitéria Campolargo é a
matriarca que “restou” de sua família e do outro lado o sobrevivente da família inimiga
é o coronel Tibério Vacariano. No entanto, todos os anos de guerras e mortes entre as
famílias foi deixado no passado e a convivência é mais agradável e respeitada. O ápice
do romance é quando a pequena Antares passa por um momento conturbado com
movimentos grevistas, inclusive dos coveiros, o que acarretará a motivação para os fatos
assombrosos. Em um curto espaço de tempo sete pessoas morrem na cidade, são elas:
D. Quitéria Campolargo, o advogado Cícero Branco, o professor de piano Menandro

1723
Olinda, o sapateiro comunista José Ruiz conhecido como Barcelona, o jovem idealista
João Paz, a prostituta Erotildes e o bêbado Pudim de Cachaça. Devido então ao
cruzamento de braços dos trabalhadores do cemitério, os caixões foram deixados do
lado de fora, mas durante a noite, eles “acordaram” e se deram conta de que ainda não
haviam sido sepultados, como “solução” resolveram ao amanhecer retornar até a cidade
para exigirem o direito ao enterro. Eis que irrompe a situação de medo, pavor e
desespero nas pessoas que passaram a acreditar que era o fim do mundo.

Temos a opção de Érico Veríssimo de aproximar seu discurso literário dos


problemas enfrentados no Brasil, uma vez que o Golpe de 1964 restringiu a liberdade no
país em diversos campos, inclusive na literatura. Quando os mortos ganham voz e
passam a delatar os vivos, pois se encontram em uma situação na qual não têm mais
nada a perder, percebemos que os vivos estão mais podres que os defuntos presentes na
praça da cidade. É através deles que as denúncias serão feitas, descaso com a população,
roubos, falcatruas, negligência com os pobres, torturas e mortes. Revelando assim,
muito do que os políticos e “donos do poder” fazem para manter a ordem da cidade. O
contexto é o de uma cidade interiorana que vive tranquila, possui suas pequenas
indústrias movimentando a economia, além do comércio local, os servidores públicos,
delegado, juiz, prefeito, etc. Os dois padres que são opostos na narrativa, Gerôncio
defendendo as velhas tradições e apoiador de ricos e um mais jovem, Pedro-Paulo, que
se preocupa com os menos favorecidos e por isso é criticado. A cidade comporta
também um jornal, A verdade, sob o cuidado do diretor Lucas Faia, que é inclusive
quem descreve a chegada dos mortos no coreto da praça. É claro que o escritor ao criar
a fictícia cidade proporciona uma aproximação com qualquer outra cidade que
mantenha as mesmas características de Antares, mas o texto de denuncia social transita
em torno da falta de liberdade vivida pelo país.

O advogado Cícero Branco torna-se o porta voz dos defuntos e diante do público
da praça tenta desmascarar os cidadãos de Antares. O contexto que envolve maior
crueldade está na tortura sofrida por João Paz e que o levou a morte, e que foi descrita
no atestado de óbito que a causa tinha sido pneumonia e não tortura. Eis um trecho:

_ Num certo dia deste mesmo dezembro João Paz foi preso sob a falsa
acusação de estar treinando secretamente na nossa cidade um bando de dez
guerrilheiros esquerdistas do qual ele era supostamente o chefe. Sua prisão

1724
foi efetuada da maneira mais irregular. João Paz foi levado para o famoso
porão da nossa delegacia onde se processam os interrogatórios mais brutais.
Inocêncio Pigarço fez perguntas ao prisioneiro, ordenou-lhe que dissesse o
nome dos outros dez “membros do grupo”. Joãozinho negou-se a isso porque
nada sabia, pois tal grupo não existe em Antares! Inocêncio Pigarço entregou
o “subversivo” aos cuidados de seu “especialista” em interrogatórios, o
famigerado Boquinha de Ouro... que deve estar em algum lugar desta praça e
espero esteja me ouvindo. (VERÍSSIMO, 2006, p.374).

Essa foi a primeira fase do interrogatório, na segunda como o acusado nada


informava aplicaram-lhe choques elétricos através de um fio de cobre na uretra e outro
no ânus. Comportamento típico dos presos políticos capturados pela Ditadura brasileira,
alguns sobreviviam, mas outros não, como João Paz. Assim prossegue a fala do
advogado:

[...] O especialista nestas torturas elétricas cometeu um erro, aplicou no


prisioneiro uma descarga forte demais e o coração do moço parou. O médico
é chamado às pressas. Daremos um prêmio, digamos... o olho bom de João
Paz, a quem descobrir quem foi esse provincial esculápio. Já descobriram,
não? Isso mesmo! O nosso bondoso, o nosso caritativo, o nosso altruísta
doutor Lázaro Bertioga! – E, dizendo isso, Cícero aponta para o médico de
Tibério Vacariano. (VERÍSSIMO, 2006, p. 376).

Após a morte da personagem a solução encontrada foi transferi-lo para um


hospital e colocar no atestado de óbito como causa mortis uma embolia pulmonar. A
partir da escolha narrativa Érico Veríssimo deixa claro sua crítica social frente ao
contexto brasileiro, lembremos que o incidente se inicia em 1963 e o romance termina
sete anos depois, 1970, com o Brasil ainda com sua liberdade restrita, como foi bem
representada no final do livro com a criança não podendo ler a palavra “liberdade” que
estava sendo apagada de um muro, local onde um rapaz morreu ao escrevê-la. Incidente
em Antares potencializa o lado mais político do escritor, se com O Senhor Embaixador
a luta política, as injustiças estavam centradas em uma cidade caribenha, Sacramento,
distanciando as questões do Brasil, neste a alusão a História brasileira se fez muito mais
discursiva e presente. Optando por carregar no romance passagens irônicas e muitas
vezes cômicas, o que de fato pulsa no romance é o posicionamento do escritor em
propor um ato de denúncia das atrocidades cometidas pelos cidadãos de Antares, na
qual a violência, infelizmente, não consegue ser combatida. Como lembra Antonio
Candido:

E aqui a violência perde qualquer conotação positiva, não é mais como a dos
velhos caudilhos que jogavam a vida. É a brutalidade sistematizada,
transformada em instrumento de uma classe que finge renegá-la, mas alicerça

1725
nela os seus privilégios. A tortura policial, cuja descrição cresta a ironia do
livro e desfaz o riso a cada instante, atinge indiscriminadamente, pois sua
força consiste na cegueira com que estabelece o terror. Os privilegiados não a
praticariam, evidentemente, com as próprias mãos; mas não a dispensam e,
pelo contrário, a encorajam. A denúncia moral dos mortos insepultos se torna
denúncia política, nesse acontecimento fantástico de um 13 de dezembro,
acrescentando uma dimensão profunda à fábula admiravelmente arquitetada
por Érico Veríssimo. (CANDIDO, 2004, p. 82).

Érico Veríssimo nunca se filiou a nenhum partido político e nem por isso deixou
de fazer denuncias em seus textos, uma vez que teve consciência da realidade humana,
social e política de seu tempo, usou a arma que tinha a seu favor, a escrita para dar voz e
denunciar. Até porque em vários momentos de suas entrevistas relata que o escritor
precisa se indignar, pelo menos ele assim o faz para não cair na aceitação dos fatos e
não se sensibilizar com o outro. Mesmo a crítica social aparecendo em seus outros
romances, ela é, digamos, mais combatente ao mesclar realidade e ficção nesse enredo
de Incidente em Antares. Assim, o escritor se posiciona ao ser questionado durante
entrevista a Rosa Freire D’Aguiar, publicada na revista Manchete em 1973 e intitulada
Erico Verissimo: Um Solo de Clarineta:

O escritor peruano Manuel Scorza diz que as grandes obras universais


sempre foram sociais. E explica: no romance o escritor tem a
possibilidade de se tornar invisível, falar com os mortos, ou seja, unir a
fantasia à crítica social. Esta opinião de Scorza lembra o Incidente em
Antares. Em sua obra, onde você situa outros momentos de crítica
social?

De fato, em Incidente sete defuntos insepultos erguem-se de seus esquifes,


marcham sobre a cidade, instalam-se no coreto da praça principal e de lá
acusam os vivos, os donos do poder. Em menor grau, ainda com certa
timidez, fiz crítica social em Caminhos Cruzados, Música ao Longe, O Resto
É Silêncio e O Senhor Embaixador. (VERISSIMO, 1999, p.189).

A partir do momento que os sete defuntos se encontram em praça pública diante


da plateia e passam a delatar as atrocidades dos vivos, arma-se um cenário quase teatral
que na imaginação do leitor provocaria uma reação de espanto, de raiva dos moradores
de Antares com os poderosos da cidade. No entanto, a indignação, tão questionada pelo
escritor, só consegue atingir momentaneamente, com exceção de Valentina, mulher do
juiz que não quer fazer parte de toda a mentira exposta em praça pública, mas a maioria
é “forçada” a acreditar que tudo não passou de uma alucinação coletiva. Tanto que os
jornalistas que chegam ao local do incidente não se deparam com ninguém que lhes
conte o que de fato aconteceu naquela sexta-feira fatídica, devido a ideia de uma
operação borracha para que a memória apagasse todo o ocorrido. O advogado Cícero

1726
Branco, que participou de várias falcatruas com o prefeito Vivaldino Brazão e o coronel
Vacariano, conta para todos sobre uma fraude que aconteceu para a contratação de uma
firma para o fornecimento de automóveis, caminhões e máquinas para a prefeitura, na
qual escolheram a que concordou com uma “bonificação” de trinta por cento sobre o
superfaturamento. Outro episódio que “suja” a imagem do poderoso coronel foi quando
a prostituta Erotildes conta que foi por anos sua amante e que Tibério até montou casa
para ela. Além do episódio da tortura e morte de João Paz, que poderia causar revolta na
população, mas não surtiu nenhum efeito. O domínio de quem tem poder é tão forte que
os mortos são obrigados a voltar para seus caixões e aguardarem o fim da greve,
enquanto o povo seria facilmente convencido a esquecer todo o episódio, como no
trecho abaixo com o diálogo do prefeito e de sua esposa:

_ E agora que é que vai acontecer? _ pergunta ela. _ Milhares de pessoas


ouviram a denúncia. Todos vão acreditar, porque morto não mente.
_ Antes de mais nada, minha filha, morto não fala. Qual é o tribunal do
mundo que vai aceitar o testemunho dum defunto?
_ Mas o povo ficou sabendo.
_ Que é o povo? Um monstro com muitas cabeças, mas sem miolos. E esse
“bicho” tem memória curta.
_ Estou pensando nos nossos amigos e conhecidos. Com que cara vamos sair
à rua depois de tudo isso?
_ Eu vou sair com a que Deus me deu. E tu, se quiseres, podes usar uma
daquelas fantasias de que falou o patife do Cícero. Vou te fazer uma
sugestão: põe máscara de esposa mártir que finge não saber das safadezas do
marido. É um dos disfarces mais populares neste país. (VERÍSSIMO, 2006,
p. 396 – 397).

Considerações finais

Como podemos perceber, o texto de Érico Veríssimo é carregado de uma


linguagem ácida e pronta para apontar o dedo na ferida da sociedade, seu humor
caminha ao lado da ironia e da crítica. O percurso do escritor nos mostra que seus
romances quiseram trazer para os leitores toda a capacidade crítica e o modo de ver o
mundo que Érico teve:

Desde que, adulto, comecei a escrever romances, tem-me animado até hoje a
idéia de que o menos que um escritor pode fazer, numa época de atrocidades
e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a
realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos
ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da
náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos o
nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente,

1727
como um sinal de que não desertamos nosso posto. (VERISSIMO, 1974,
p.45).

Por fim, é fazer brotar uma luz no fim do túnel ao criar um discurso literário que
venha a dialogar e ao mesmo tempo criticar a sociedade, mostrando o papel do escritor
de se posicionar, papel este que foi muitas vezes cobrado, mas que em Incidente em
Antares aparece em diversos momentos.

Referências

CANDIDO, Antonio. Recortes. 3ª ed., revista pelo autor. Rio de Janeiro: Ouro sobre
azul, 2004.
COUTINHO, Afrânio. COUTINHO, Eduardo de Faria (co-direção). A literatura no
Brasil. 7 ed. rev. e atual. São Paulo: Global, 2004.

FERREIRA, Manuel. (Org.). Revista Claridade. Ed. Fascimilar. Lisboa: ALAC, 1986.
VERISSIMO, Erico. Incidente em Antares. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

_____. Um certo Henrique Bertaso / Artigos Diversos. Porto Alegre: Editora Globo,
1979.

_____. Solo de clarineta: memórias. 4. ed. v.1-2. Porto Alegre: Globo, 1974. 2v.
(Sagitário).

_____. Solo de Clarineta: memórias. V.2 (Segunda Parte, póstuma, organizada por
Flávio Loureiro Chaves). Porto Alegre: Editora Globo, 1976.

_____. Breve história da literatura brasileira. Trad. Maria da Glória Bordini. São
Paulo: Globo, 1995.
_____. A liberdade de escrever: entrevistas sobre literatura e política. (apresentação de
Luis Fernando Verissimo); Org. Maria da Glória Bordini. São Paulo: Globo, 1999.

1728
O PERSONAGEM-ESCRITOR NOEL E O REALISMO COMO FORMA DE
ACESSO À VIDA
Jaqueline Borges de Queiroz (UNICAMP)1

Resumo: Este trabalho aborda a criação de um personagem-escritor pelo romancista brasileiro


Erico Verissimo na década de 1930, período conhecido pelo aumento das discussões de caráter
social e político no campo literário. O personagem em questão, Noel, pertence a classe média
alta e é essencialmente não engajado, mas decide escrever um romance realista retratando o
cotidiano de um desempregado. Essa opção pelo realismo, assim como a valorização da
realidade cotidiana nas três obras em que esse personagem-escritor aparece, contribui para o
estudo do papel do método realista na representação do outro (de outra classe social) e,
consequentemente, fomenta a reflexão sobre os efeitos da literatura no mundo extraliterário.
Palavras-chave: Realismo; Erico Verissimo; Década de 1930; Personagem-escritor

Em 1935, em meio às afloradas discussões sobre o papel político da literatura,


provocadas principalmente pela ascensão de doutrinas comunistas e fascistas, Erico
Verissimo (1905 -1975), considerado à época (e muitas vezes também depois) um
escritor omisso, publicava Caminhos Cruzados, cujo forte caráter de denúncia não
deixava dúvidas em relação a sua intenção de posicionar-se frente aos problemas morais
e sociais do país. Recusando fórmulas prontas como a do romance proletário, o escritor
gaúcho preferiu contrastar de forma irônica e realista o cotidiano das classes altas e
baixas para que o leitor, a partir desse confronto de rotinas, refletisse sobre as
consequências da abissal desigualdade social brasileira.
Caminhos Cruzados tornou-se, assim, uma obra representativa do modernismo da
época – caracterizado por uma recorrente preocupação com o fator social –, mas sem
cair no simplismo de fórmulas prontas como a do romance proletário, que trazia
personagens militantes com a função de denunciar problemas sociais e dar lições sobre
como resolvê-los2. Isso porque, como o próprio Verissimo diria ao ser entrevistado anos
mais tarde, não cabe ao romancista indicar soluções específicas para as questões sociais,
mas revelar aos leitores o drama de outros homens, possibilitando assim que estes
possam olhar a vida e a humanidade por outro ângulo (VERISSIMO; BORDINI, 1999).

1
Licenciada em Letras (UNICAMP) e Mestranda em Teoria e História Literária (UNICAMP). Contato:
jaquelineb820@gmail.com. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
2
Cacau (1933), de Jorge Amado, possuía esses elementos e foi considerado o protótipo de romance
proletário, contribuindo para que se difundisse entre muitos intelectuais da época a ideia de que a
literatura verdadeiramente engajada deveria ser feita dessa forma. Conferir BUENO (2006), págs. 160-
166.

1729
Ao longo de sua carreira, foi essa a posição assumida pelo romancista, que se
tornou um dos autores mais queridos pelo público brasileiro e teve vários de seus livros
traduzidos em diversos países. Suas falas, ações e obras revelam uma postura ética
pautada pelo olhar em direção ao outro, postura que seria, a seu ver, a chave para que se
empreendam mudanças a nível social. Exatamente por trazer em seu cerne essa
perspectiva, Caminhos Cruzados mostrou-se crucial no contexto político, histórico e
social em que foi escrito: no auge da reflexão sobre a realidade do outro na literatura, o
livro de Verissimo não só expõe essa realidade como também critica duramente o
individualismo, atitude que dificulta a percepção daqueles que pertencem a outra classe
social como humanamente iguais e dignos de ter suas necessidades básicas supridas.
Tendo em vista essa reflexão sobre o outro, na discussão aqui proposta nosso
interesse recai sobre dois fatores que contribuem imensamente para seu êxito: o
primeiro é a valorização do realismo e do confronto com a realidade nas obras de Erico
Verissimo; o segundo é a criação de um personagem-escritor que se propõe a fazer um
romance realista e acaba por fomentar a discussão sobre como esse empreendimento
pode ser útil na aproximação daqueles que são de outra classe social.
O personagem em questão, Noel, foi construído de maneira a representar o oposto
do protótipo de intelectual engajado, tendo como principais características a alienação
em relação aos problemas das classes sociais baixas e o desejo de fugir do mundo real
através da literatura e da música – o que torna seu processo de adesão ao realismo ainda
mais interessante. Tal processo, que se inicia em Caminhos Cruzados, ganha
continuação em outros dois livros de Erico Verissimo, Um lugar ao sol (1936) e Saga
(1940), os quais também merecem atenção em nossa discussão. Consideramos,
portanto, a análise desse personagem como relevante para entender, da perspectiva de
Erico Verissimo, como o realismo pode ser uma aproximação entre o escritor e a vida,
uma vez que essa opção artística representa nos romances citados um meio de tornar
Noel um intelectual participante e consciente do potencial transformador da literatura,
assim como Verissimo foi durante toda sua carreira.
Cabe, primeiramente, elencar algumas características do realismo dos três
romances que serão discutidos. São livros que têm em comum o relato do cotidiano de
famílias de classe média baixa, que em geral estão passando por dificuldades financeiras

1730
e buscam, como bem simbolizou o título da obra de 1936, um lugar ao sol. Trata-se de
um período difícil na economia do país, e o próprio escritor passava por dificuldades:

O leitor terá observado como as personagens de Um lugar ao sol lutam com


as dificuldades financeiras e como se preocupam com suas dívidas. Não
precisarei repetir que tudo isso é reflexo da situação econômica e das
preocupações materiais do próprio autor, o qual – tendo visto a família
acrescida de dois membros entre 1935 e 1936 – não atinara ainda como um
meio de aumentar a renda mensal (VERISSIMO [1963], 1997, s/p).

A própria experiência de Verissimo, portanto, foi determinante para seu desejo de


descrever a angústia de alguns personagens em busca de suprir suas necessidades
básicas do dia a dia, e lhe proporcionou a empatia necessária para que isso fosse feito
com mais verossimilhança. Assim, as três obras compartilham a exposição desse anseio
presente na vida do homem comum: enfrentar tanto os problemas inerentes à existência
humana quanto aqueles que surgem devido às condições do meio em que se vive.
No caso de Caminhos Cruzados, há o uso da técnica do contraponto3 para mostrar
como os problemas diários mudam a depender da classe social em que se está. Como
Chaves (1981) procurou argumentar, trata-se de uma “tomada de posição perante a
realidade que, se ainda não define explicitamente uma ideologia, leva pelo menos a
considerar uma questão básica da criação literária – a seleção de dados da observação
que, transpostos para o mundo imaginário, traduzem a ética do escritor” (p. 27). De fato,
o livro demonstra um comprometimento de Verissimo com a discussão relativa à
opressão das minorias (pobres, mulheres, prostitutas) feita naquele momento,
comprovando que não era seu desejo se ausentar da crítica à realidade social então
vigente.
Caminhos Cruzados, na verdade, vai além, pois de forma metaliterária discute a
validade de se ter um olhar realista em relação à vida – questão que também estará
3
De acordo com Donizeth Santos (2015), “o contraponto é uma técnica importada da música. Em música,
essa técnica consiste em combinar, simultaneamente, duas ou mais vozes melódicas, sendo que cada uma
delas é independente uma da outra, mantendo-se uma relação de contraste entre elas, que por sua vez cria
uma harmonia. Dessa forma, o contraponto se dá através da harmonização dessas diferentes vozes
melódicas, ou seja, através da harmonização da polifonia. A transposição da técnica do contraponto para a
literatura se faria através da criação de um romance constituído por várias intrigas e personagens
paralelas, de modo que a narrativa fosse fragmentada, sem centro, e formasse um todo harmonioso
através do contraste polifônico das diversas vozes constituintes” (p. 28). Em Caminhos Cruzados, várias
histórias são contadas paralelamente, isto é, são alternadas ao longo dos capítulos. Os personagens que
protagonizam essas histórias são de diferentes classes sociais, o que põe em evidência as diferenças na
natureza dos problemas enfrentados pelos pobres e ricos.

1731
presente em Um lugar ao sol e Saga. Nesse aspecto, chama atenção o constante desejo
que os personagens têm de fugir da realidade de alguma forma, seja evocando o passado
ou mergulhando em alguma atividade artística (leitura, escrita, pintura). Diante dos
problemas que enfrentam, sejam eles dilemas internos, obstáculos gerados pelo
ambiente ou deveres rotineiros, alguns se perdem em idealizações do que seria uma vida
perfeita. Tais idealizações, que poderiam ter tornado esses três livros de Verissimo mais
românticos, no entanto, são sempre interrompidas por algum fator que faz com que
esses personagens retornem à realidade:

(...) o mundo real foi abolido. Agora é Paris, a coragem, a força, a aventura.
Correrias pelos becos, lutas com os guardas do cardeal, duelos...
O estômago de João Benévolo solta um ronco. É um protesto que quer dizer:
“Estou com fome”. João Benévolo volta à realidade. O sonho se apaga. Ele
agora sente a presença da mulher a seu lado, o filho na cama menor, junto da
parede (VERISSIMO, 2016, p. 147, grifos meus).

Noel acendeu o rádio, distraído. Em breve se retraçou no ar o desenho duma


melodia. E ele deixou que seus pensamentos se desenrolassem ao compasso
da música. Fechou os olhos e esqueceu as brutalidades da vida. Esqueceu
aquele sujeito horrível que vinha todas as semanas com a conta do armazém;
esqueceu o sofrimento de Fernanda; esqueceu que precisava de uma fatiota
nova, esqueceu que era sempre forçado a recalcar o desejo de comprar novos
livros; esqueceu que já não tinha mais a sua tristonha mas bela solidão, a sua
intimidade, a sua...
Um ruído chamou-o à realidade. Batiam à porta. Foi abrir (VERISSIMO,
1997, p. 189, grifos meus).

Dessa forma, os personagens, por mais que queiram, não conseguem escapar da
realidade por muito tempo, e a ilusão de que se pode viver no plano imaginário é
sempre desfeita por acontecimentos que exigem tomadas de atitude. Fica claro o quão
improdutivo é ignorar os problemas da vida cotidiana comum, os quais, sejam mais ou
menos graves, importam. E, justamente por importar, esses problemas rotineiros
merecem ser tema de um livro realista, como acontece nos casos de Caminhos Cruzados
e Um lugar ao sol, em maior escala, e de Saga, em menor escala4.
O realismo serve então como um meio de evidenciar as batalhas diárias
enfrentadas pelas pessoas comuns, mas sem ignorar o fato de que elas reagem de forma
individual a essas adversidades. Um caso emblemático é o do personagem João

4
Em sua primeira parte esse romance não relata o cotidiano comum, mas os desafios enfrentados pelo
personagem Vasco na Guerra Civil Espanhola.

1732
Benévolo, de Caminhos Cruzados: ele está em situação de miséria, mas prefere se
perder no universo da leitura a buscar um emprego que garanta seu sustento. Pode
parecer forçado, mas desmistifica a ideia do pobre como interessado apenas em coisas
práticas, distante da leitura e de um mundo mais abstrato. Outro personagem, o jovem
Vasco, de Um lugar ao sol e Saga, também precisa urgentemente de um emprego
quando se muda para a capital Porto Alegre, mas acaba se perdendo em uma vida
boêmia.
Por mais que seja um realismo voltado para o cotidiano, portanto, aparecem
fatores na composição dos personagens que complexificam a forma como eles lidam
com a realidade que lhes é imposta. Todos precisam, por exemplo, se submeter a algum
tipo de mudança para que tenham uma vida mais agradável ou se tornem pessoas
melhores, mas alguns são muito passivos, outros demonstram relutância em mudar. E
há, claro, um problema maior: a própria forma como a sociedade está estruturada, isto é,
a maneira como o sistema econômico não permite que todos tenham de fato chances de
mudar de vida.
Os motivos desencadeadores de alguns dos problemas mais graves que os
personagens precisam enfrentar são, assim, tanto de natureza mais pessoal – e aqui
entram seus dilemas e a maneira como eles encaram a realidade – quando de natureza
mais social, ou seja, a desigualdade econômica e a opressão capitalista.
Nesse sentido, a escrita de um romance realista aparece na vida do personagem-
escritor Noel não só como possível solução para seus problemas pessoais, mas também
como forma de ele se posicionar frente ao problema de desigualdade social, conforme
pode ser percebido quando Fernanda, uma personagem fundamental para sua tentativa
de mudança, tenta fazê-lo enxergar as dificuldades do outro através da escrita de um
livro:
[Fernanda] - Na frente da minha casa mora um homem que tem mulher e
filho e está sem emprego. Trabalhava na mesma loja onde trabalho. E eu sei
por que o coitado foi despedido... Porque precisavam dar o lugar dele para o
protegido dum político influente. O patrão não hesitou...
Noel não pode duvidar do que Fernanda lhe diz. Ela viu, sabe...
- Mas de que serve a minha piedade? Poderá ela melhorar a sorte dessa
gente?
Fernanda é rápida na resposta, pois já pensou muitas noites no assunto.
- A tua piedade não. Mas poderás fazer alguma coisa para que um dia tudo
isso melhore...
- Não sei como...
- Eu sei... (VERISSIMO, 2016, p. 172, grifos meus).

1733
(...)
Fernanda sorri e olha para o amigo:
Eu te ofereço um assunto, e esse assunto será o teu primeiro passo na direção
da vida...
- Qual é?
- Toma o caso de João Benévolo. Tem mulher e filho e está desempregado.
Eis uma história bem humana. Podes conseguir com ela efeitos admiráveis
(VERISSIMO, 2016, p. 173).

Fernanda é uma amiga de infância de Noel que se tornará sua esposa com o passar
do tempo. Por conhecer bem a personalidade dele, sabe que o amigo tem horror à
miséria e não gosta de ter contato com o pobre e sua realidade – a não ser que seja,
como ele mesmo assumirá em Um lugar ao sol, uma reprodução da miséria “estilizada,
asséptica, sem cheiros” de uma fita de Carlitos (VERISSIMO, 1997, p. 229).
Refugiando-se em livros nos quais a vida é mais romantizada, em músicas clássicas e
em idealizações de uma vida perfeita, Noel acredita ser possível simplesmente ignorar
os problemas do mundo real.
Contudo, o personagem vive um conflito interno: deseja uma vida mais autêntica,
com conquistas profissionais e a mulher que ama ao seu lado, mas ao mesmo tem medo
dessa mudança. Em Caminhos Cruzados, ainda morando com os pais e dividindo seu
tempo entre momentos de solidão em seu quarto e momentos de longas conversas com
Fernanda, Noel começa a pensar em dar um novo rumo a sua vida. Essa abertura
possibilita a amiga – que vem de uma classe social baixa e precisa lutar todos os dias
para se sustentar – fazer tentativas de mostrar a Noel a necessidade de enxergar o
próximo e enfrentar a realidade.
É muito significativo que ela faça isso lhe sugerindo que escreva a partir de uma
história de vida real – a de João Benévolo, relatada em parte dentro do próprio livro
Caminhos Cruzados. Primeiro, por demonstrar seu desejo de que ele não se afaste do
mundo concreto durante o processo de escrita, ou seja, se deixe levar por suas
idealizações. Segundo, por revelar que, da perspectiva dela, a escrita de um livro sobre
um homem em situação de miséria é uma forma de engajamento capaz de transformar o
mundo. Escrevendo um romance realista, Noel poderia se tornar mais pragmático e
melhorar como pessoa, ao mesmo tempo em que daria aos seus leitores a chance de
conhecer a realidade do pobre.
Trata-se de uma postura totalmente relacionada com a ascensão do romance social
nos anos 30, momento, segundo Candido (2005), em que “tudo parecia impor a ‘tomada

1734
de posição’” (p. 7). Uma tomada de posição que veio na forma do romance realista e
social, às vezes de forma mais radical e panfletária, caso dos romances proletários
(Cacau, de Jorge Amado, Parque Industrial, de Patrícia Galvão); às vezes de forma
mais amena, embora ainda crítica, caso dos romances de Erico Verissimo.
No entanto, como o processo de escrita de Noel e a publicação do livro revelam,
os propósitos de Fernanda não são alcançados. Mesmo relatando em seu romance a
existência de muitas limitações de um personagem miserável e ao mesmo tempo
vivendo diversas dificuldades em sua própria vida, já que se casou com a amiga e abriu
mão de todo o conforto e da estabilidade financeira proporcionada pelos pais, Noel
permanece tratando tudo que é relacionado ao universo dos pobres como repulsivo.
Falta por parte dele empatia para que consiga, de fato, tornar seu livro verossimilhante e
capaz de trazer uma crítica implícita à realidade. Tanto que durante a escrita é Fernanda
que toma algumas decisões sobre como o personagem deve se comportar, sugere
situações pelas quais ele deve passar e praticamente impõe o final do livro.
Depois de publicado, o romance do jovem escritor não alcança uma vendagem
significativa, o que pode ser explicado pelo fato de tanto a história quanto o personagem
terem sido construídos sem nenhuma complexidade, conforme pode ser deduzido por
uma fala de Fernanda:
Noel queria botar lantejoulas na narrativa, descrever paisagens requintadas,
atribuir a João Ventura ideias e impressões de artista, fazê-lo pensar em
termos de poesia. Fernanda contrariava-o: João Benévolo ou, melhor, João
Ventura era um pobre diabo sem imaginação. Seus problemas eram
elementares: comer, dormir, vestir...
Fernanda empurrou o marido mansamente para a máquina.
- Vamos, não entregue os pontos. Ninguém bocejará se você fizer uma
história humana. Deixe de literatura. Faça um romance moderno. Sabe qual é
a diferença entre o romance de hoje e o romance de ontem? É que no
romance de ontem o sol era astro-rei; no romance de hoje o sol é sol mesmo.
Ninguém morre de fome recitando Shakespeare. Ninguém pede emprego em
versos rimados... (VERISSIMO, 1997, p. 340, grifo meu).

Na tentativa de fazer o marido engajar-se através de um realismo despido de


qualquer elemento de fantasia, Fernanda acaba por fazê-lo simplificar em demasia a
personalidade e as ações do personagem João Ventura – e nesse ponto é bom relembrar
que João Benévolo, que serve de inspiração para esse personagem, era de fato sonhador
e se dedicava mais as suas aventuras imaginárias do que aos problemas elementares
mencionados por Fernanda. Ademais, ela acaba contrapondo realismo e “literatura”,

1735
reforçando uma dicotomia que pode ter prejudicado a elaboração formal do livro como
um todo.
Claro que não se trata de uma personagem criada para defender uma literatura de
baixa qualidade em termos estéticos, mas sim para evidenciar a importância da
exposição, da denúncia e da crítica à realidade naquele momento histórico. Mas
Fernanda também não é capaz de problematizar a afirmação do marido de que o
realismo de teor social perde em termos estéticos:

(...) - Se arte fosse copiar toda a sujeira do mundo...


Fernanda saltou?
- Arte? Mas isso não é tudo, Noel! De que vale um romance com arte mas
sem humanidade? O que importa é a humanidade (VERISSIMO, 1997, p.
247).

Faltou a Fernanda defender o tipo de romance que ela acha humanitário como
também capaz de proporcionar prazer estético, o que é totalmente possível se houver
uma preocupação do escritor com a elaboração formal. Mas seu papel fica restrito à
defesa – também importante – da literatura como uma forma do escritor engajar-se
eticamente com os problemas do outro, de seu semelhante. Nesse ponto, ela funciona
como alter-ego de Erico Verissimo, conforme ele mesmo confessou: “parece que o
autor falava pela boca de Fernanda” (VERISSIMO, 1963, s/p).
Noel, por sua vez, não se transforma em um intelectual mais filantrópico e
humanitário. Ao contrário, ao final de sua experiência, diz aos amigos que escreve
simplesmente para se proporcionar uma satisfação íntima. Quando a esposa alega ser
essa uma forma de individualismo que não beneficiará o mundo, não titubeia em afirmar
que “a arte é inútil” (VERISSIMO, 2006, p. 176).
Ainda assim, através dessa tentativa de esse personagem-escritor escrever um
romance realista com uma função social, Verissimo validou o realismo como forma de
reflexão sobre a vida e a realidade histórica. O fato de Noel ser tão alienado e não
conseguir sair dessa condição não é tratado como algo aceitável; pelo contrário, sua
forma de olhar o outro e se afastar da realidade gera incômodo. É muito mais fácil que o
leitor simpatize com a perspectiva humanitária de Fernanda, apesar de muitas vezes essa
personagem também dicotomizar e simplificar a relação entre a arte e o real.

1736
Erico Verissimo, através do confronto de ideias entre esses dois personagens,
revela o engajamento como parte de uma postura ética que deve ser assumida pelo
escritor, cuja posição privilegiada permite atuar politicamente no combate às opressões
e injustiças sociais. Em meio a um contexto de polarização política, o romancista
gaúcho criou um personagem que nem sequer discutiu a possibilidade de se filiar a
partidos políticos, mas certamente trouxe à tona a necessidade de o escritor se enxergar
como um agente de mudança, permanecendo em constante reflexão sobre como a sua
obra afeta o mundo extraliterário, isto é, sobre como ela se insere na vida.

Referências

BUENO, Luís. Uma história do romance de 30. São Paulo, SP; Campinas, SP: Edusp:
Editora da Unicamp, 2006.

CANDIDO, Antonio (2005). Apresentação. In: VERISSIMO, Erico. Caminhos


Cruzados. São Paulo, SP: Companhia de Bolso, 2016.

CHAVES, Flávio Loureiro. Erico Verissimo: realismo & sociedade. 2. ed. Porto Alegre,
RS: Mercado Aberto, 1981.

SANTOS, Donizeth. A técnica narrativa do contraponto no romance Caminhos


Cruzados, de Erico Verissimo. Revista de Literatura, História e Memória: Dossiê
literatura e sociedade, Cascavel, v. 11, n. 17, p.27-42, 2015. Semestral. Disponível em:
<http://e-revista.unioeste.br/index.php/rlhm/article/view/12090/8870>. Acesso em: 10
abr. 2019.

VERISSIMO, Erico.; BORDINI, Maria da Glória (org.). A liberdade de escrever:


entrevistas sobre literatura e política. São Paulo, SP: Globo, 1999.

VERISSIMO, Erico. Um lugar ao sol. 32ª ed. São Paulo, SP: Globo, 1997.

________ (1963). Prefácio. In: VERISSIMO, Erico. Um lugar ao sol. 32ª ed. São
Paulo, SP: Globo, 1997.

________. Saga. 20ª ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2006.

________. Caminhos Cruzados. São Paulo, SP: Companhia de Bolso, 2016.

1737
A POESIA LÍRICA DE LUIZ GAMA EM PRIMEIRAS TROVAS
BURLESCAS DE GETULINO

Magnólia Ferreira Cruz da Paixão (PROGEL/UEFS)1


magypaixao@hotmail.com
Adeítalo Manoel Pinho (PROGEL/UEFS)2
adeitalopinho@gmail.com

Resumo: Primeiras trovas burlescas (2000) do poeta Luiz Gonzaga Pinto da Gama, edição
organizada por Lígia Ferreira Fonseca, reúne poemas da primeira e segunda edição da obra,
lançadas em 1859 na cidade de São Paulo e 1861 no Rio de Janeiro pelo autor, esta é composta
de sessenta e três poemas líricos e satíricos. São trazidos para o debate, os poemas “A cativa”,
“Meus amores ” e “Minha mãe”, de Luís Gama, extraídos da sua única obra Primeiras trovas
burlescas de Getulino (2000), sob a ótica crítica de Eduardo de Assis Duarte, Florentina Souza,
Lígia Fonseca Ferreira, Nazareth Fonseca, Zilá Bernd e outros.
Palavras chaves: Primeiras trovas burlescas de Getulino; Luiz Gonzaga Pinto da Gama; lírico;
satírico.

Primeira trovas burlescas de Getulino foi a única obra publicada pelo poeta Luiz
Gama, lançado em 1859, em São Paulo, pela Tipografia Dois de Dezembro de Antonio
Louzada Antunes. Nessa edição o poeta usou o pseudônimo Getulino como forma de
velar parte de sua identidade, pois dentro da obra ele oferece pistas do seu verdadeiro
nome. Como nos poemas “No álbum do meu amigo J. A. da Silva Sobral” (“Que estou
a dizer?!/ Bradar contra o vício!/ Cortar nos costumes!/ Luiz, outro ofício”) e também
“No álbum do sr. Capitão João Soares” (“Não quero que o mundo diga -/ Que o Luiz é
tagarela”). O livro representou um importante momento na vida de Luiz Gama,
marcando sua entrada no “mundo das letras” da elite e a primeira grande oportunidade
para este ex-escravo expressar suas idéias (GRADEN, 1999, p. 365).
Nessa primeira edição o baiano apresentou 22 poemas, e não sendo “possível
apurar o número de exemplares da primeira fornada para saber até onde tinha ido o
favor do público, adquirindo o livrinho e determinando, em tão curto prazo, para a
sociedade do tempo, a necessidade da segunda fatura” (MENNUCCI, 1938, p. 56). Na

1
Graduada em Letras com Habilitação em Língua Portuguesa e Literaturas pela Universidade do Estado
da Bahia (UNEB). Pós-Graduada em Psicopedagogia Institucional pela Universidade Candido Mendes
(UCAM). Mestranda em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Feira de Santana
(PROGEL/UEFS). E.mail: magypaixao@hotmail.com
2
Dr. em Linguística, Letras e Artes. Professor do Curso de Letras e Coordenador do Programa de Pós-
graduação da UEFS. E-mail: adeitalo@uol.com.br.

1738
segunda edição, revisada e aumentada por ele mesmo, em 1861, constava 39 poemas,
desta feita ele não só se desvelou em versos, como também relevou o autor, e foi
publicada pela Tipografia de Pinheiro e Cia., no Rio de Janeiro.
Com base na primeira edição de 1859 e 1861 a estudiosa Ligia Ferreira organizou
e publicou uma reedição comentada de Primeiras trovas burlescas e outros poemas,
nesta reedição estão incluídos todos os poemas da primeira e da segunda edição assim
como os poemas publicados na imprensa paulistana. Esta reedição tem como finalidade
preencher uma lacuna deixada por edições anteriores da referida obra e contribuir assim
para que os leitores e admiradores de Luiz Gama possam ter acesso à leitura da
produção poética de forma integral e completa.
O lirismo é o tom poético mais suave e sentimental, está ligado aos temas
subjetivos e, geralmente, amorosos. O nome faz alusão ao instrumento musical clássico
chamado lira, que na antiguidade acompanhava os poetas na declamação de suas
poesias e, “quanto mais íntima a expressão lírica, mais simples o tom da linguagem”
(CANDIDO, 1982, p. 210).
Na face lírica do poeta Luiz Gama, em Primeiras trovas burlescas e outros
poemas (2000), pode-se encontrar expressões da literatura romântica da sua geração.
Traços que vão além do satírico, o que contribuiu também para o seu reconhecimento
como um poeta da corrente literária romântica. Um deles é trazer em sua poesia as
imagens e formas presentes no Romantismo em especial as imagens mitológicas, cristãs
e a conexão entre o poeta e a natureza, como em A borboleta:

Meneia os leques
Por entre as flores,
Que o ar perfumam
Com seus olores
Mimosos leques
De cores finas,
- Tela formosa
Das mãos divinas
(GAMA, 2000, p.111).

Por ser um poeta da terceira geração do Romantismo brasileiro, mesmo não tendo
sido reconhecido pelos críticos da sua época, sua poesia deixa transparecer signos
comuns aos românticos, no que diz respeito à inacessibilidade da mulher amada e a
presença do amor sentimental totalmente antagônico ao carnal:

1739
Ergue-te, ó Laura,
Do brando leito,
Dá-me em teu peito
De amor gozar;
Um volver d’olhos,
Um beijo apenas
Entre as verbenas
Do teu pomar.3
O individualismo é a grande marca da poesia lírica, Luiz Gama faz em Que
mundo é este? uma retomada das questões subjetivas comuns à poesia do seu tempo:

Que mundo? Que mundo é este?


Do fundo seio dest’alma
Eu vejo... que fria calma
Dos humanos na fereza!
(GAMA, 2000, p. 128).

Por ser um poeta do Romantismo, Luiz Gama também recebeu influência de


outros poetas dessa corrente literária, a exemplo de Casimiro de Abreu, ficando quase
impossível não observar a intertextualidade em relação ao poema Meus oito anos
(1859): “Oh! que saudades que tenho/Da aurora da minha vida,/Da minha infância
querida/Que os anos não trazem mais!”, com trechos de “Minha mãe” de Primeiras
trovas burlescas.

Oh, que saudades que eu tenho


Dos seus mimosos carinhos,
Quando c’os tenros filhinhos
Ela sorrindo brincava.4

Reconhecido como um poeta campeão na luta pela liberdade, terrível leão ferido
pela empresa escravista, devorador de covardes senhores negociantes de carne humana.
Luiz Gama é contemporâneo do nosso tempo. Pertence ao movimento de afirmação
étnica atual. Gama é insatisfeito e polêmico como devem ser todos os verdadeiros
intelectuais em qualquer tempo histórico. Não é por acaso que ele trouxe em sua lírica
valores distintos dos predominantes. Foi inovador ao fazer uma declaração de amor a
uma mulher negra e acima de tudo escravizada. Enquanto, os não negros, ou aqueles
que não se consideram negros, que os perseguiu, negativou, demonizou, e veem a cor da

3
Ibidem, p,123
4
Ibidem, p.150

1740
pele como algo feio, negativo, Luiz Gama se orgulha da sua cor e valoriza com muito
orgulho suas raízes africanas.

Como era linda, meu Deus!


Não tinha da neve a cor,
Mas no moreno semblante
Brilhavam raios de amor.5

Desde a escolha do pseudônimo Getulino que deriva de “Getúlia”, território da


África do Norte, hoje Argélia, que na Antiguidade e durante a ocupação romana da
África foi habitada por um povo nômade, os “getulos”, vê-se que Luiz Gama se
posiciona como um autor de origem africana, mas que ousou adentrar no seleto grupo
dos letrados, que até então era privilégio de brancos.
Na verdade, a poesia de Luiz Gama rompeu consideravelmente quando ousou
empregar material da cultura afro-brasileira em sua composição poética trazendo
elementos inovadores. Inaugurando uma poesia afro, dentro dos moldes, e não poderia
ser diferente, pois foram os românticos que trouxeram os ares teóricos e literários da
modernidade no ocidente, a noção de mundo, de consumo, de indivíduo, de aldeia
global, etc. Além disso, introduziu a temática negra, transformando-se em sujeito
enunciador a partir da voz original do ex-escravizado dentro da literatura nacional.

Do torpe mundo,
Tão furibundo,
Em fria prosa
Fastidiosa –
O que estou vendo
Vou descrevendo.
Se de um quadrado
Fizer um ovo
Nisso dou provas
De escritor novo.

Sobre as abas sentado do Parnaso,


Pois que subir não pude ao alto cume,
Qual pobre, de um Mosteiro à Portaria,
De trovas fabriquei este volume
(GAMA, 2000, p.7).

O lirismo negro encontrado em Luiz Gama é a prova da aceitação de sua


negritude, e de maneira geral, é a tentativa de generalizar tais valores para toda a

5
Ibidem, p.134

1741
sociedade brasileira. Entender a importância das suas origens africanas e exaltá-las em
seus versos é a concretização de uma nova corrente que, no futuro, seria consagrada
como literatura afro-brasileira. Gama tem uma memória nova e distinta. Enquanto isso,
a casta da etnia branca dos nossos colonizadores é de degredados, traficantes e piratas.
A autoestima positiva e admirável é uma característica marcante que vem de longa data
e ficou na memória do poeta. Como a poesia é memória inflamada, óbvio que o fazer
poético provoca a evocação de outros tempos e outras experiências. Por isso também a
tentativa de destruir o negro e sua memória valorosa. Vejamos o que diz o poema
Mote:

Sou nobre, e de linhagem sublimada,


Descendo, em linha reta, dos Pegados,
Cuja lança feroz desbaratados
Fez tremer os guerreiros da Cruzada!

Minha mãe, que é de proa alcantilada,


Vem da raça dos Reis mais afamados;
– Blasonara entre um bando de pasmados.
Certo povo de casta amorenada
(GAMA, 2000, p.36).

A exaltação da beleza negra na composição poética de Gama foi um dos traços


mais ousados de seu lirismo, por haver uma identificação e feição com características
africanas. Fugiu dos valores estéticos literários de seu tempo, em que o negro estava
fora da composição da identidade e da cultura nacional. Ao consagrar em seus versos a
beleza da mulher negra e oferecer a ela um lugar poético inédito, rompeu com o
estereótipo sensual feminino que foi construído no imaginário coletivo, ao longo da
história, e que talvez passou desapercebido na época. Sempre houve um erotismo na
mulher negra, mas era o de objeto, de mercadoria. A mulher branca tinha de estar toda
coberta, o corpo era tabu até mesmo para ela mesma. Não podemos falar de valorização
da mulher branca também, pois também era problemática, controlada somente pelo seu
caráter de formação da família patriarcal e hegemônica, não ainda como pessoa e
indivíduo. Na mulher negra, a nudez não era problema, pois esta moral tinha relação
com ideologia. Ao lembrar-se das imagens do mercado de escravos no recente filme 12
anos de escravidão (2013), os negros escravizados eram expostos à venda nus. Nos
versos a seguir de A Cativa o poeta revela e reprime sua paixão por uma recatada
mulata:

1742
Como era linda, meu Deus!
Não tinha da neve a cor,
Mas no moreno semblante
Brilhavam raios de amor.

Ledo o rosto, o mais formoso,


De trigueira coralina,
De Anjo a boca, os lábios breves
Cor de pálida cravina.

[...]

As madeixas crespas negras,


Sobre o seio lhe pendiam,
Onde os castos pomos de ouro
Amorosos se escondiam.

Tinha o colo acetinado


– Era o corpo uma pintura –
E no peito palpitante
Um sacrário de ternura
(GAMA, 2000, p.134).

Assim como no poema A cativa, o poema Meus amores (1865), inserido nas
Primeiras trovas burlescas a partir da terceira edição (1904), também traz a valorização
da mulher negra. Nele, Luiz Gama declara claramente uma beleza categoricamente
contrária aos cânones românticos. Como Heitor Martins (2006, p. 96) sinalizou,

[...] é em “Meus Amores” que Luís Gama se desvencilha, melhor que


qualquer outro romântico brasileiro, do eurocentrismo estético.
Enquanto os indianistas forçavam a mão para "ocidentalizar" o
indígena (a "cristianização" de Peri, em O Guarani, de José de
Alencar, por exemplo), Luis Gama toma o caminho inverso pelo
reconhecimento de que a arbitrariedade dos valores estéticos é criação
cultural e, portanto, pode ser modificada. Enquanto até mesmo aqueles
autores mais simpáticos à causa negra (Castro Alves) arianizavam a
imagem do afro-brasileiro, Luís Gama cria a primeira obra literária
brasileira afirmativa de uma possibilidade estética alternativa, na qual
a beleza negra é incluída.

Os versos de Meus amores são os mais representativos do lirismo de Gama em


toda a sua composição poética, para alguns críticos é um dos mais belos poemas da
poesia romântica brasileira. Em seus versos estão presentes traços da cultura africana e a
exaltação da beleza negra ao supervalorizar os atributos físicos da Tétis negra diante da
deusa da beleza ocidental (Vênus):

1743
Meus amores são lindos, cor da noite
Recamada de estrelas rutilantes;
Tão formosa creoula, ou Tétis negra,
Tem por olhos dois astros cintilantes.

Em rubentes granadas embutidas


Tem por dentes as pérolas mimosas,
Gotas de orvalho que o universo gela
Nas breves pétalas de carmínea rosa.

Os braços torneados que alucinam,


Quando os move perluxa com langor.
A boca é roxo lírio abrindo a medo,
Dos lábios se destila o grato olor.

O colo de veludo Vênus bela


Trocara pelo seu, de inveja morta;
Da cintura nos quebros há luxúria
Que a filha de Cineras não suporta.

A cabeça envolvida em núbia trunfa,


Os seios são dois globos a saltar;
A voz traduz lascívia que arrebata,
- E coisa de sentir, não de contar.

Quando a brisa veloz, por entre anáguas


Espaneja as cambraias escondidas,
Deixando ver os olhos cobiçosos
As lisas pernas de ébano luzidas [...]
(GAMA, 2000, p.243).

Essas estrofes apontam para um amor mais amadurecido e sensual em relação ao


de A cativa, mas ambos são uma ode à mulher afro-brasileira, Luiz Gama aponta para
uma nova possibilidade estética que é a beleza da mulher negra e a sua paixão por ela,
objeto de inspiração. O poeta não possuiu apenas a face satírica, mas também um lado
lírico, carregado de suavidade e sentimento. O seu modo lírico de escrever poesia
contribuiu para a valorização e maior visibilidade de uma estética literária que se
preocupava e buscava incansavelmente a afirmação da consciência e identidade negra.
A atualidade da sátira do baiano é incontestavelmente atual, mas o traço lírico
também é acentuado como em A borboleta, trazendo marcas do movimento artístico
literário do seu tempo. Todo avanço de Luiz Gama, talvez esteja relacionado às leituras
feitas das obras dos seus contemporâneos, principalmente Castro Alves, Fagundes
Varela, José Bonifácio, o Moço e outros.

1744
Sobre a açucena,
Que no horto alveja,
A borboleta
Mansinha adeja;

Libando os pingos
De orvalho brando,
Que a nuvem loura
Vem salpicando.

[...]

Ora serena,
Pairando a flux,
Esmaltes mostra
Do brilho à luz.

[...]

E o frágil corpo
Em sono brando,
Que embala a brisa,
Que vem soprando,

Alívio encontra
Na solidão
Até que d’alva
Rompa o clarão
(GAMA, 2000, p. 111).

No poema Meus amores Luiz Gama vêm representar a beleza da mulher negra,
sua sensualidade e seus traços físicos marcantes e belos. Essas características também
podem ser percebidas no poema Maria, de Castro Alves, em A Cachoeira de Paulo
Afonso, ambos fazem uso das letras para valorizar formosura da mulher.

Meus amores são lindos, cor da noite


Recamada de estrelas rutilantes;
Tão formosa creoula, ou Tétis negra,
Tem por olhos dois astros cintilantes.

[...]

O colo de veludo Vênus bela


Trocara pelo seu, de inveja morta;
Da cintura nos quebros há luxúria
Que a filha de Cineras não suporta.

A cabeça envolvida em núbia trunfa,

1745
Os seios são dois globos a saltar;
A voz traduz lascívia que arrebata,
- E coisa de sentir, não de contar.

Quando a brisa veloz, por entre anáguas


Espaneja as cambraias escondidas,
Deixando ver aos olhos cobiçosos
As lisas pernas de ébano luzidas.
Meus amores são lindos, cor da noite,
Recamada de estrelas rutilantes;
Tão formosa creoula, ou Tétis negra,
Tem por olhos dois astros cintilantes
(GAMA, 2000, p.243).

Esse poema foi publicado pela primeira vez no jornal O Diabo Coxo (1865),
inserido em Primeiras trovas burlescas a partir da terceira edição em 1904, que foi a
primeira publicação póstuma da obra. Assim, é injusto lembrar de Luiz Gama apenas
pela sua veia irônica, e sim como um escritor que além da sátira social, declamou com
lirismo e orgulho a beleza não só da mulher negra, mas de toda uma descendência
africana.
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1749
DEVIR HISTÓRICO E A CRÔNICA DRUMMONDIANA: ESCRITAS
CONTEMPORÂNEAS PARA O JORNAL CORREIO DA MANHÃ

Moema de Souza Esmeraldo (SEEDF/PUC-Rio)

Resumo: Este artigo abordar que Drummond executou na sua escrita, principalmente como
cronista, a tarefa de um pensamento não instrumental, mas interessado em discutir
questões relacionadas às imagens dialéticas do passado, por meio de uma perspectiva que
reforça o conceito de Agamben sobre o contemporâneo que afasta da compreensão de
tempo linear ao propor a rememoração dos espaços da cidade, para elaborar a
representação da experiência urbana, marcada pelo cotidiano e pelas pessoas comuns que
habitam a cidade.
Palavras-chave: Crônica; Carlos Drummond; Cidade; Cotidiano

“O cronista que narra os acontecimentos sem distinguir entre os grandes e os


pequenos leva em conta a verdade de que nada do que aconteceu pode ser considerado
perdido para a história” (BENJAMIN, 1994, p. 223). O cronista a que se refere a
tradução de chronist, do alemão para o português, na realidade, é uma analogia ao
historiador marxista, que, na concepção do filósofo, interpreta fragmentos de imagens
dialéticas do passado a partir da tarefa de explodir a continuidade homogênea de um
tempo histórico linear. Essa concepção teórica sobre a história e sobre o papel do
historiador se aproxima da necessidade de trabalhar com os fragmentos e as ruínas do
passado para uma compreensão não só dos grandes acontecimentos históricos, mas
narrar os fatos que a história oficial não menciona propositalmente para impor um
passado homogêneo e linear.
Assim, Walter Benjamin, no ensaio intitulado “Sobre o conceito da história”,
utiliza a figura do cronista como um historiador dos fragmentos, que faz uma crítica ao
pensamento historicista tradicional e concebe a linearidade histórica com o objetivo de
preencher o tempo histórico homogêneo e vazio. Para tanto, aponta que “o passado
aparece como uma imagem que perpassa veloz, como fixação rápida e não definitiva tal
qual um relâmpago” (BENJAMIN, 1994, p. 224).
Nessa acepção teórica, a compreensão de tempo apoia-se a partir de uma
descontinuidade, com sentido que se distingue do tradicional, pressupondo parte
substancial de um pensamento por meio de uma escrita por imagens. O autor expõe que
o pensamento não é apenas uma questão de conteúdo, mas de forma (escrita), e que um
projeto de escrita por imagens seria a construção de uma filosofia por imagens.
Benjamin afirma ainda no mesmo ensaio que “articular historicamente o passado não

1750
significa conhecê-lo como ele de fato foi” (BENJAMIN, 1994, p. 225), mas “significa
apropriar-se de uma reminiscência tal como ela relampeja no momento de um perigo”
(idem, p. 224). Assim, o crítico, no fragmento de número seis, dentre os onze expostos,
presume que é necessário:

fixar uma imagem no passado como ela se apresenta no momento do perigo


ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça
tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é
o mesmo: entregar-se às classes dominantes como seu instrumento. Em cada
época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se
dela (BENJAMIN, 1994, p. 224).

No interior da linguagem, temos acesso ao passado e à possibilidade de dizer “que


os vencidos aconteceram”, apesar de o devir histórico ter sido construído a partir dos
que venceram. No sentido de “colocar o passado em um momento de tensão no perigo”
(BENJAMIN, 1994, p. 224), o escritor Carlos Drummond de Andrade, em muitas das
crônicas do Correio da Manhã e em outras produções como a poesia, consegue, ao seu
modo, não só “fixar a imagem do passado como ela se apresenta no momento do
perigo” (BENJAMIN, 1994, p. 224), mas também aproximar elementos que constatam
uma sua escrita por imagens do pensamento. Nessa proposta de leitura, verificar-se-á
que Drummond executa na sua escrita, principalmente como cronista, a tarefa de um
pensamento não instrumental, mas interessado em discutir questões relacionadas às
imagens dialéticas do passado, por meio da rememoração dos espaços da cidade, para
elaborar a representação da experiência urbana, marcada pelo cotidiano e pelas pessoas
comuns que habitam a cidade.
Esse viés de observação teórica é marcado por uma prática de pensamento tendo
em vista a produção de uma escrita fragmentada por imagens que representa uma teoria
que perpassa não só o legado teórico benjaminiano, mas faz parte de sua prática
intelectual de escrita. Diante desse repertório teórico, cabe retirar o que é mais
específico para a análise do corpus desta tese, que foi selecionado com o propósito de
interpretar uma prática de escrita fragmentada em narrativas sobre a cidade. Esses
fragmentos foram aqui aludidos no capítulo anterior tendo como foco elementos ligados
à experiência urbana, tais como a rua, o pedestre, o bonde e a lotação.
Os textos de Carlos Drummond de Andrade pinçados no arquivo de crônicas
publicadas no jornal Correio de Manhã foram, sobretudo, os analisados nesta tese, com
o objetivo de demonstrar como o autor produziu uma prática de escrita análoga ao

1751
sentido que Benjamin empregou como devir histórico. Diante desse repertório teórico,
pode-se tirar algo mais específico que possa contribuir com apontamentos sobre como
Drummond elegeu a crônica como prática de uma prosa curta muitas vezes fragmentada
a partir de cenas do cotidiano urbano. O que validou a construção de uma prática escrita
que utilizou imagens dialéticas da cidade que não seguem a representação de um tempo
histórico homogêneo.
Benjamin propõe um estado de exceção permanente diferente do imposto pela
história universal, que se revela como uma fantasmagoria da tradição dos vencedores.
Em seus fragmentos, sobre o conceito da história, tem urgência em construir um
conceito de história que rompe com a linearidade temporal para obter, com os
fragmentos, imagens que ofereçam alegorias à interpretação do passado. Em
consonância com esse pensamento, por exemplo, Drummond estabelece como matéria
de sua literatura imagens que representam uma escrita que também não obedece à
memória linear do passado.
Tendo em vista essa busca por imagens que não privilegiam a ordem histórica dos
acontecimentos, Katia Muricy (2009) chama a atenção para o conceito de imagem
dialética na obra Passagens, de Benjamin:

a noção de imagem dialética é a grande novidade da epistemologia exposta


no livro Passagens, de Walter Benjamin. Essa obra constitui-se pela
articulação temporal que Benjamin encontrara nas alegorias das Passagens
parisienses de Baudelaire – o encontro do antigo e do moderno. A imagem
dialética é a projeção, na atualidade, das fantasias e desejos da humanidade –
o encontro do outrora com o agora. A imagem dialética, isto é, a dialética
parada, é ambivalente: é sonho e despertar, o arcaico e o atual. Na imagem
dialética, a relação entre o passado e o presente é arrancada da continuidade
temporal. Não há um desenrolar dialético, mas um salto que imobiliza. É a
produção de um conhecimento imediato sobre um objeto histórico
constituído simultaneamente, por sua vez, nessa imobilização. O espaço desta
imobilização é a linguagem, o medium das imagens dialéticas (MURICY,
2009, p. 237).

Tanto no ensaio “Sobre o conceito da história” quanto no livro Passagens, Walter


Benjamin não só teoriza sobre o conceito da escrita por imagens, mas a pratica como
método de elaboração de escrita. Guardadas as proporções, pois o primeiro é apenas um
ensaio enquanto o segundo se trata de um livro suntuosamente volumoso. Ambos
realizam a proposta de uma escrita fragmentária, porém no livro ele pratica esse tipo de
pensamento mais acentuadamente, com base na experiência na metrópole moderna.
Desse modo, o processo de elaboração do ensaio e da obra validam o embasamento para

1752
pensar o vasto, original e consistente projeto de pensamento de Benjamin sobre o uso de
imagens como técnica de montagem para a produção escrita.
No caso do ensaio citado, é composto por fragmentos de textos que
problematizam o conceito de história. Essa prática é comum em diversos autores. Vale
destacar muitos outros autores conceberam também seu pensamento por meio de
escritas fragmentárias, inclusive publicando em jornais, como o filósofo alemão
Sigmund Krakauer, que divulgou pequenos artigos em periódicos que flagravam
detalhes do cotidiano das cidades, em específico, textos publicados originalmente entre
1925 e 1933, no jornal Frankfurter Zeitung posteriormente reunidos no volume Strassen
in Berlin und anderswo (Ruas de Berlin e outros lugares) em 1963-4. Entre os escritos
do período da República de Weimar, esses textos do autor são considerados os que mais
se aproximam da forma literária. Cabe aqui examinar de que modo Kracauer compara
duas metrópoles, uma que foi cenário de revoluções (Paris) e a outra sem revolução
(Berlim). Nessa analogia, Paris produziu um cosmopolitismo vivo e Berlim propagou o
tédio e o vazio. Em Paris, o flâneur; em Berlim, o Bummler, ambos representando as
tensões da modernização acelerada em curso nas metrópoles europeias.
As obras de Krakauer, Strassen in Berlin und anderswo e O ornamento das
massas, caracterizam-se espacialmente a partir de elementos da cidade, como as ruas, os
locais e as pessoas. Nas duas obras apontadas, o leitor tem a impressão de estar junto
aos objetos que o observador-câmera, “curioso”, descreve, mas sem envolvimento com
o que é narrado, é distanciado – trata-se de uma experiência sui generis com ruas, locais,
coisas e pessoas. Em O ornamento das massas, ele também reúne textualidades diversas
de textos, como cinema, dança, fotografia, leituras. Entre esses, destaca-se que Kracauer
conheceu hábeis fusões da escrita a partir da perspectiva técnica de fotografia.
Andreas Huyssen, na obra Miniature metropolis: Literature in an age of
photography and film, dedica um capítulo “Photography and Emblem in Kracauer and
Benjamin’s street texts” justamente para discorrer sobre a técnica da montagem
fotográfica e a literatura.

Mas quão legítimo pode ser aproximar um texto literário da fotografia? Se


instantâneo ou filme ainda? “Instantâneo” à primeira vista sugere
superficialidade, reificação do tempo, arbitrariedade da imagem. Afinal, a
fotografia inevitavelmente registra o essencial junto com o insignificante em
um campo de visão sem discriminação, como os primeiros teóricos da
fotografia já haviam indicado. A miniatura literária, por contraste, condensa,

1753
aguça o foco e evita a arbitrariedade. O “instantâneo” também pode parecer
mal escolhido como um conceito orientador para discutir o novo regime
modernista do espaço com suas perturbações de visão. A fotografia, afinal,
permanece ligada à organização muito perspectivista do espaço, desafiada e
transformada na miniatura urbana, assim como na pintura modernista,
paradigmaticamente no cubismo e no construtivismo, ou na fotomontagem
(HUYSSEN, 2015, p. 126).

O instante é, portanto, um método adotado para manifestação da arte como um


“conceito orientador”, conforme afirma Huyssen, das artes modernistas associadas à
organização perspectivista do espaço, transformada em miniatura metropolitana, assim
como a pintura modernista. Nesse sentido, Kracauer elaborou uma escrita caracterizada
por uma prática fragmentária em que se vale da técnica da fotomontagem para compor
narrativas urbanas ou miniaturas urbanas, por buscar a experiência do choque entre os
habitantes da cidade. O encontro com o outro – os vários anônimos, marcados pela
multidão – significa uma relação entre anonimato e alteridade que constitui o espaço
público metropolitano.
As crônicas urbanas escritas para jornais por Kracauer e também o ensaio e a obra
citados de Benjamin são exemplos de “miniaturas urbanas”, o que traduz uma maneira
de capturar, de representar e de deixar um rastro das mudanças que, por vezes, passam
desapercebidas na vida urbana moderna. A miniatura urbana é a forma mais específica
de captura do fenômeno em sua efêmera singularidade do cotidiano. Nessa trilha de
pensamento escreve Andreas Huyssen sobre o impacto do que denomina como
“modernismo metropolitano” e as suas configurações. A metrópole tornou-se dimensão
formativa do pensamento e, por conseguinte, a escrita literária experimenta-se com
forma abreviada, a exemplo do ensaio, mas de modo mais breve, o que se reconhece
como a própria miniatura. Assim, o conceito de miniaturas urbanas apresentado nos
textos sobre a rua de Kracauer e Benjamin é exemplo encontrado como núcleo de
prática de uma escrita fragmentária sobre teorias metropolitanas.
Krakauer e Benjamin, juntamente com Adorno, são figuras-chave na criação de
uma teoria crítica de multicamadas do modernismo metropolitano. É uma teoria do
modernismo de dentro, por assim dizer, e, portanto, modernista através de todas as suas
contrações, fissuras e complicações. Ela engloba capital e cultura, alta e baixa; mídia
verbal e visual; a arquitetura e o impacto das tecnologias modernas, mudando a
estrutura da percepção e subjetiva; e reflexões sobre mudanças de padrões de
experiência espacial e temporal. De maneiras únicas e influentes, oferece uma análise

1754
cultural dentro das texturas sociais e políticas do mundo histórico de um modernismo
agora clássico. A metrópole como dimensão formativa de seu pensamento torna-se mais
visível em seus experimentos literários com a forma abreviada, não apenas o ensaio,
mas a própria miniatura. Nas miniaturas urbanas e nos textos de rua de Kracauer e
Benjamin, encontramos o núcleo brilhante de suas teorias sobre a condução
metropolitana (HUYSSEN, 2015, p. 126).
Contudo, este trabalho pretendeu arriscar conceitos de escritas por imagens que
têm como suporte a montagem como método de produção de pensamento. Isto posto,
parte-se da discussão de que a prática de uma escrita por imagens é caracterizada,
sobretudo, por representar de forma fragmentada a cidade. Tendo em vista tais questões,
neste capítulo são abordados temas que incidem na proposta de realizar uma crítica
específica sobre a representação da cidade na literatura. Para compor essa discussão,
depois de mencionados os aspectos conceituais, ressalta-se que no Brasil há uma
escassez de estudos que caracterizam as crônicas como textos contraproducentes ao
estudo das miniaturas metropolitanas. Têm-se como exemplo disso, na literatura
brasileira, as crônicas de Carlos Drummond de Andrade, publicadas no jornal Correio
da Manhã. Sobretudo, os textos analisados no capítulo anterior com os títulos de
“imagens urbanas”, “imagens de rua”, “imagens pedestre” e “imagens de lotação”.
De modo singular, o escritor mineiro, seja em sua prosa, seja em sua poesia,
elaborou uma escrita por imagens do passado em que narrou acontecimentos grandes e
pequenos e conseguiu flagrar imagens do passado que fogem a uma perspectiva linear e
continuísta da história. O exercício da crônica permitiu à aproximação do cotidiano, do
banal, do comum, do “infraordinário” para rever fatos importantes esquecidos pela
história oficial. Assim, é possível localizar pontos de encontro relevantes entre o
conceito de escrita por imagens de pensamentos em Walter Benjamin a partir das
crônicas de Carlos Drummond de Andrade elaboradas para o jornal Correio da Manhã,
a exemplo de alguns textos analisados. Com a proposição de estabelecer zonas de
contato entre a escrita da história e a narrativa drummondiana, podemos ousar tomar
emprestado o pensamento do filósofo para dialogar com alguns pontos pertinentes para
análise da produção cronística, a qual corrobora a hipótese de construção de imagens
dialéticas do passado nas crônicas de C.D.A para a coluna “Imagens”.

1755
No fragmento de número nove do ensaio “Sobre o conceito da história”, Walter
Benjamin cita a figura criada pelo pintor Paul Klee em 1920, o angelus novus, utilizada
para reconhecer a tarefa do historiador. Desse modo, ele constrói sua alegoria para a
história: com os olhos no passado, vê as ruínas onde o historicista veria acontecimentos;
vê catástrofes onde o historicista faz a canonização do ponto de vista dos vencedores
(Benjamin, 1994, p. 226). Benjamin critica, sobretudo, a compreensão da história como
acúmulo de fatos e propõe uma história focada em construir “imagens utópicas” da
história crítica, questionando a concepção continuísta e a concepção de uma história
imobilizada em imagens. Sobre as obras benjaminianas, Katia Muricy assevera que
essas “Teses” são construídas como alegorias. As alegorias de Benjamin são imagens
dialéticas, onde passado e presente fulguram simultaneamente em um conhecimento
instantâneo de ambos (MURICY, 2009, p. 234). A autora afirma que a imagem dialética
é um relâmpago e apresenta a epistemologia, que sustenta essas teses: “descontinuidade
do pensamento; temporalidades simultâneas relacionadas ao instante; fragmentação da
verdade; importância do minúsculo; são questões que aparecem nas Teses relacionadas
ao projeto de libertar o passado” (MURICY, 2009, p. 243).
Drummond foi, então, a seu modo, historiador de seu tempo no sentido proposto
por Walter Benjamin, pois narrou acontecimentos pormenorizados oficiais da história
da cidade do Rio de Janeiro, que serviram de matéria para suas crônicas, a exemplo da
tentativa de remover os favelados do Morro da Catacumba, no Rio de Janeiro; da
higienização da antiga Avenida Central pelo prefeito Pereira Passos; da demolição de
edifícios em nome de uma arquitetura mais moderna; e até dos escândalos envolvendo
personalidades e funcionários públicos fantasmas. O que predomina, contudo, para esta
proposta de estudo, são as referências sobre o cotidiano da cidade, em especial, da
cidade do Rio de Janeiro.
Na crônica drummondiana, mais do que reviver por meio da prosa, o espaço da
memória guarda o passado e estabelece uma relação decisiva para a aceitação do espaço
vivido no presente. Todavia, Drummond, de certo modo, rompe com a perspectiva
linear da história, por utilizar elementos que por ela foram esquecidos. O poeta não
deixa de revisitar espaços importantes da cidade, e pensa as inquietudes da existência
tendo em vista um “eu todo retorcido pelo mundo” (DRUMMOND, 2005, p.20).

1756
Desse modo, foi possível constatar que, na literatura brasileira, a cidade moderna
se constitui em objeto de reflexão de escritores-jornalistas, a exemplo de C.D.A, que se
debruçaram sobre o tema e marcaram, em suas obras, diferentes percepções e
impressões sobre as mudanças do espaço urbano na Modernidade. Para tanto, essas
crônicas jornalísticas contribuíram para a representação da memória da cidade, ao
registrarem a história das pessoas que vivem nela e as consequências da modernização
urbana.
O foco das investigações expostas considerou tópicos como a legibilidade da
cidade moderna em narrativas urbanas, promovendo uma representação do imaginário
urbano por meio da leitura das crônicas elaboradas para o jornal a partir do exercício
metodológico proposto por Andreas Huyssen e Walter Benjamin. Esses teóricos
propuseram métodos de análise sobre a cidade, as experiências urbanas e os fragmentos
apreendidos para a compreensão da relação da cidade com seus habitantes. Por
conseguinte, verificou-se que, seja por sua natureza física, seja pela vida social, os
textos apresentados compuseram o imaginário nacional, ocupado, não raras vezes, pela
cidade como posição central do objeto de reflexão.

Referências

ANDRADE, C. D. Alguma Poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

______. Fala, amendoeira. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras
Escolhidas).

HUYSSEN, A. Miniature metropolis: literature in an age of photograph and film.


Cambridge: Harvard University Press, 2015.

KRACAUER, S. Strassen in Berlin und anderswo. Berlim: Das Arsenal, 1987.

MURICY, K. Alegorias da dialética: imagens e pensamento em Walter Benjamin.


Rio de Janeiro: Nau, 2009.

1757
ANTROPOLOGIA, ETNOGRAFIA E ESCRITAS DO EU EM DARCY
RIBEIRO, DAVI KOPENAWA E BRUCE ALBERT
Ananda Nehmy de Almeida (UFMG)1
Resumo: O objetivo deste artigo é comparar Diários índios: os Urubus-Kaapor, de Darcy Ribeiro,
e A queda do céu: palavras de um xamã yanomami, de Davi Kopenawa e de Bruce Albert. Essas
obras mesclam as escritas do eu aos gêneros mais comuns à antropologia e à etnografia, como o
diário de campo e a mitologia, escolha que contribui para a formação de um arquivo da Literatura
Indígena. Para confrontá-las, serão retomados os conceitos de arquivo e repertório desenvolvidos
por Rita Olivier-Godet, além das próprias reflexões dos antropólogos Darcy Ribeiro e Bruce
Albert a respeito do processo de escrita e da pesquisa etnográficas.

Palavras-chave: Escritas do eu, etnografia e antropologia.

Diários índios, de Darcy Ribeiro, produzido entre 1949 e 1951, e a entrebiografia


A queda do céu, de Davi Kopenawa e do etnólogo Bruce Albert, reconfiguram o discurso
antropológico recorrendo à etnografia e às escritas do eu. O objetivo deste estudo é
compará-los considerando os temas comuns, as diferentes abordagens da antropologia, o
trabalho etnográfico e a reconfiguração dos gêneros pertencentes às escritas do eu em
arquivos do éthos indígena.
Para relacionar as modalidades oral e escrita no âmbito das escritas do eu, recorre-
se ao conceito de arquivo desenvolvido por Rita Olivier-Godet (2018), pois trata do
processo de passagem da memória indígena oral para a mídia impressa. De acordo com
Olivier-Godet (2018, p. 294), os aspectos metodológico e ético indicam “os limites da
enunciação de “dupla autoria” que, na verdade, envolve estratégias de tradução e
textualização do discurso oral indígena. A partir da análise de obras indígenas elaboradas
com a participação de antropólogos e etnógrafos, devido ao trânsito dessa literatura nas
modalidades oral e escrita, Olivier-Godet (2018, p. 294) revê as noções de fonte e suporte
e as estratégias de transmissão da memória cultural étnica, além de identificar as imagens
identitárias do grupo resultantes da relação estabelecida entre rito, mito e história.
Segundo a pesquisadora, essa produção literária atenderia ainda à necessidade de diálogo
dos indígenas com as novas gerações e os grupos externos à sua comunidade.
Os conceitos de repertório e arquivo
Rita Olivier-Godet retoma a concepção de memória cultural de Aleida Assmann
(2011), que recorre à memória de longa duração de forma a assegurar a constituição da

1
Graduada em Letras e doutoranda em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UFMG. Contato:
anandanehmy@gmail.com.

1758
memória fundadora e a preservação dos ritos ao estabelecer “um sentido simbólico à
cultura da comunidade”. Retira de Diana Taylor (2013) o conceito de repertório definido
como um conjunto de conhecimentos próprios às práticas performatizadas dos rituais
indígenas definidoras da memória cultural e da identidade coletiva desses povos. O
acúmulo de conhecimentos constituintes do repertório se diferencia da acumulação
gerada pelos arquivos da cultura letrada. Olivier-Godet identifica a mudança de atuação
de antropólogos e etnógrafos ao realizarem pesquisas de campo, pois muitos deles fazem
referência à autoria indígena de conceitos, à interferência da cultura de povos autóctones
nessas disciplinas, além de abordarem o arquivo da literatura oral incluindo os novos
processos de “continuidade histórica” e promovendo “trocas culturais” na passagem da
performance indígena para o escrito.
Sem desconsiderar a mudança de propósitos das pesquisas antropológica e
etnográfica, o objetivo principal de Olivier-Godet é analisar as obras de escrita
colaborativa tendo em vista as “perdas e os ganhos do exercício de travessia cultural que
consiste na estratégia de transformar os repertórios – os patrimônios intangíveis da
comunidade autóctone – em arquivo” (2018, p. 295). Essas observações contribuem para
verificar a interferência da enunciação durante os registros das pesquisas de etnógrafos.
A pesquisa de campo, com a coleta de dados, além da escrita teórica dos estudos
antropológicos e etnográficos constituem etapas da composição dessas obras marcadas
pelo discurso literário e pela montagem de arquivos da Literatura Oral.
Se, na concepção de autoria de Barthes (2004; 1971), a voz do “autor” é constituída
em meio à leitura ou à citação de outros textos e se fragmenta em linguagem voltada a
outros leitores, a entrebiografia, caracterizada pela escrita colaborativa, constitui as vozes
dos autores a partir das operações de tradução e textualização de versões da mitologia
yanomami e das vivências narradas pelo xamã na modalidade oral repassada para a
modalidade escrita. Diários índios ainda apresenta, na primeira pessoa, as narrativas orais
mediadas pela voz antropólogo que narra suas experiências com a pesquisa de campo.
A função de autor, proposta em Michel Foucault, resulta de práticas discursivas as
quais, no caso dessas obras, desenvolvem-se em disciplinas cujos conceitos e teorias
originam-se das observações do saber indígena. Tanto Darcy Ribeiro quanto Bruce Albert
buscam, dentro das limitações e progressos presentes no trabalho de campo e devido às
escolhas de registro da pesquisa, como se observa a seguir, apresentar aos leitores a

1759
cultura indígena numa escrita mais literária, mas ainda constitutiva de arquivos da
memória cultural indígena.
A escrita do eu na etnografia

Não procure aqui teorizações. Este é o material original de que elas são feitas.
O importante, a meu juízo, é apresentar estes fatos brutos para que possam ser
interpretados e não escondê-los atrás de construções cerebrinas.
Darcy Ribeiro2

Devo admitir que a imensidão da tarefa começou a me parecer difícil vencer.


Cada vez mais imerso nas sutilezas intelectuais e poéticas da cosmologia
yanomami, eu não conseguia mais libertar-me do fascínio que exercia sobre
mim a interminável sucessão de minhas conversas xamânicas com Davi
Kopenawa a respeito do livro.
Bruce Albert3

Darcy Ribeiro e Bruce Albert utilizam o material resultante de trabalho etnográfico


em reelaborações dos gêneros de escritas do eu. Consequentemente, não restringem a
apresentação de suas pesquisas ao público leitor especializado, habituado à leitura de
textos acadêmicos ou de diários de campo tradicionais, como se comprova nas epígrafes
acima. Devido ao uso dessa estratégia, acabam por modificar esses dois campos de
escrita.
Em Diários índios, Darcy Ribeiro mescla o diário de campo ao gênero epistolar,
retoma fragmentos de mitos, cantos e relatos colhidos nas duas expedições realizadas no
estado do Amazonas a fim de encontrar os Kaapor, povo indígena descendente dos
Tupinambá. Simula a interlocução com dois destinatários: a antropóloga Berta Ribeiro,
sua esposa, e o leitor do diário publicado não restrito ao público acadêmico. As
expedições de Darcy Ribeiro em busca dos Kaapor são dificultadas pela busca de
informantes que dominem a língua indígena desse povo, além dos constantes problemas
enfrentados pelos indígenas, a exemplo das epidemias de gripe e sarampo, assim como
dos conflitos com garimpeiros.
O cotidiano do antropólogo com os Kaapor, sua aproximação e as várias tentativas
de aceitação do seu trabalho de coleta de dados, algumas vezes incômodo pela insistência
em fazê-los falar, aparece na escrita dos Diários índios com a finalidade de tornar os

2
RIBEIRO, 1996, p. 12.
3
Epígrafe retirada do “Post-scriptum” de A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. (KOPENAWA;
ALBERT, 2015)

1760
registros etnográficos mais próximos do discurso literário associado também à escrita
acadêmica. Embora Diários índios evite se desvie de um modelo de escrita etnográfica
mais teórico, Darcy Ribeiro ainda busca, com a ajuda da memória de Anakanpukú,
conhecedor de mais de 300 nomes da sua genealogia, montar o sistema de parentesco dos
Kaapor. Essa sistematização é coerente com o objetivo inicial do antropólogo de buscar
parentesco entre os antigos Tupinambá da costa brasileira, povos documentados pelos
cronistas do quinhentismo, com seus possíveis descendentes kaapor. Ribeiro (1996, p.
12-13) reconhece, ao estabelecer essa finalidade, a violência que ocasionou a
incorporação forçada ao meio do colonizador ou a diáspora indígena, além da presença
da fisionomia e do patrimônio cultural indígenas no conhecimento brasileiro de
estratégias de sobrevivência dos trópicos, a exemplo da domesticação de várias plantas.
No contexto de Darcy Ribeiro, a primeira pessoa dos diários se apresenta como
antropólogo com visão aguçada voltada às violências sofridas pelos indígenas,
perspectiva redirecionada em A queda do céu. A escrita colaborativa de A queda do céu
retoma a cosmogonia yanomami narrada pela voz do xamã Davi Kopenawa ao etnógrafo
Bruce Albert que realiza a entretradução e a textualização da língua yanomami para a
francesa no gênero entrebiográfico. O discurso de Kopenawa se dirige a um destinatário
ignorante em relação ao éthos indígena, o que promove a mescla da entrebiografia com o
gênero epistolar. No post-scriptun, Bruce Albert explica tanto aos leitores comuns quanto
aos antropólogos e etnógrafos o processo de edição da entrebiografia e a composição da
primeira pessoa reelaborando o conceito de pacto autobiográfico de Philippe Lejeune:

Davi Kopenawa me incumbiu de dar maior divulgação possível a suas


palavras, através do modo da escrita em uso em meu próprio mundo. Isso
excluía de saída a produção de uma tradução literal entrecortada por pesadas
exegeses etnográficas e linguísticas dirigidas a especialistas. Por fim, este texto
é - assumidamente - local de interferência e resultante de projetos culturais e
políticos cruzados. É por isso tão tributário da visada xamânica e etnopolítica
de Davi Kopenawa quanto de meu próprio desejo de experimentar uma nova
forma de escrita etnográfica que tire consequências de minhas reflexões sobre
o que chamei de “pacto etnográfico”. (KOPENAWA; ALBERT, p. 536, 2015)

A exigência de nomes idênticos para autor e narrador em primeira pessoa, segundo


o conceito de pacto autobiográfico de Lejeune, é abandonada por Albert ao estabelecer,
com o narrador indígena, o pacto etnográfico de autoria colaborativa. O etnógrafo se
define como “discreto redator” porque recorre à “despersonalização lírica”. Embora

1761
reconheça as limitações da escrita do eu presa a voz do etnógrafo própria aos diários de
campo, não omite as possibilidades de ocorrerem interferências na edição da voz do xamã.
No Postscriptum de A queda do céu, Bruce Albert explica as estratégias de escrita
utilizadas para textualizar e traduzir os relatos de Davi Kopenawa. Entre 1989 a 1992,
Alcira Ramos grava a entrevista com Kopenawa em Brasília utilizada numa primeira fase
de montagem da entrebiografia e complementada com outras entrevistas do xamã
oferecidas a Albert. O etnógrafo evita a tradução literal e a transcrição linear das
gravações ao selecionar seções temáticas mais adequadas à tradução da língua yanomami
para a francesa. Usa metáforas em francês com equivalentes em yanomami, evitando a
tradução de termos indígenas sem correspondentes na língua francesa. Mantêm-se as
características das etnografias tradicionais nos anexos do livro, como mapas geográficos
e linguísticos, além de glossários geográfico e etnobiológico voltados aos yanomami.
A seleção temática o leva a evitar a transcrição cronológica das fitas, a fundir e a
cortar as repetições do relato de forma a tornar o relato indígena mais conciso. Embora
Bruce Albert consultasse constantemente Kopenawa em dúvidas acerca da cosmogonia e
da cultura yanomami, definiu, sem interferência do xamã, os critérios de organização dos
capítulos. Os temas comuns das transcrições foram embaralhados ao longo do livro,
dando forma àquilo que Bruce Albert denomina de “estratégia fractal” usada na
montagem dos capítulos. A primeira parte, sob o título sugestivo de “Devir outro”,
apresenta não só as causas da decisão de Davi Kopenawa se tornar xamã, mas também a
cosmogonia yanomami.
Antes da textualização do relato, o redator estabelece um pacto prévio com o autor
indígena, no qual se propõe a realizar a textualização das gravações mais próxima da
linguagem literária sem perder de vista os conceitos e a expressão do éthos indígena. O
xamã aceita a presença da voz do etnógrafo com a inclusão de um curto Postscriptum no
final do livro com explicações de como foi realizada a entrebiografia. Elabora-se um
arquivo impresso da Literatura Oral yanomami semelhante ao de Diários índios no que
se refere à tentativa de registro dessas memórias, assinalada pela diferença na composição
da primeira pessoa. Em ambos, na passagem do oral ao escrito, ainda ocorre a
transformação das narrativas, o que torna o arquivo da memória oral suscetível às
interferências de processos criativos de narradores indígenas e etnógrafos.

1762
Em A queda do céu, o mito dos irmãos Omama, o primeiro xamã, e Yoasi,
constantemente associado a forasteiros que prejudicam os indígenas, garimpeiros ou
missionários, explica a origem do povo yanomami seguindo as atualizações de seu
contexto. A invasão dos garimpeiros, a atividade de mineração no espaço indígena e os
trabalhos dos missionários são problemas desse contexto com temática associada ao
irmão “mau” Yoasi. Segundo o mito, os minérios cobiçados pelos garimpeiros foram
formados dos restos das estrelas e do sol quando tocaram o chão. Além de criar os rios,
as plantas, os animais e desenhar o sol, Omama substituiu a primeira floresta por outra
mais sólida, a Hutukara, pintada com traços de urucum, conforme o grafismo indígena,
comparados pelo narrador a “desenhos de palavras”.
Na panturrilha de Yoasi, Omama gera seu primogênito. Em seguida, retira da água
Panakore, a primeira mulher de seu povo, com a qual gera outros filhos. Omama busca,
semelhante ao corpo de sua mulher, uma árvore para introduzir em seu tronco o sopro de
vida dos indígenas a fim de torná-lo longo e resistente, dando-lhes a eternidade. Contudo,
Yoasi, apresenta a morte aos yanomami ao inserir uma casca de árvore com madeira
fibrosa e mole na rede de Panakore, que morre. Por isso, o demiurgo cria os xapiri para
proteger os yanomami de doenças e vingá-los das mortes causadas por Yoasi. Os
missionários são chamados pelos yanomami de gente de teosi, que creem nas escrituras
sagradas em peles de papel. A narrativa mítica é aberta a novas inserções mediadas pela
criação do narrador, como ao tratar da semelhança de Yoasi e Teosi justamente porque
ambos trazem morte aos yanomami. Teosi, representante dos missionários na
cosmogonia, propaga as epidemias no meio indígena. Esse exemplo demonstra as
atualizações do mito promovidas pelo narrador, sem obrigação de constituir um todo
invariável. O mito de Omama exemplifica o caráter fractal da entrebiografia, polvilhada
de outras narrativas em meio aos fatos vivenciados pelo indígena.
Em Diários índios, Darcy Ribeiro revê os excessos dos seus procedimentos de
registro possivelmente utilizados para responder à hipótese geradora das expedições,
contrastando seu método ao pouco apreço dos indígenas à estabilidade da narrativa oral.
As constantes versões de narrativas indígenas parecem explicar a dificuldade de Darcy
Ribeiro alcançar um relato uniforme de como se deu a pacificação dos Kaapor. Além
disso, a voz do narrador Kaapor Ianawakú, que conta ao antropólogo o mito de Mayra,
sofre a interferência da tradução do intérprete tembé, o que também impossibilita a

1763
construção de uma narrativa homogênea. Ao tratar da variação do discurso mitológico
numa constante interlocução com o público leitor utilizando a aproximação dos gêneros
diário, prefácio e correspondência, Ribeiro define o caráter literário dos mitos indígena
com uma ironia a determinado tipo de leitor avesso à literatura oral:

Você notará que há versões diferentes do mesmo mito. Os índios não têm
fanatismo da verdade. Várias versões discrepantes sobre os mesmos eventos
são perfeitamente assumidas. Publico os mitos em corpo menor para caso de
você não ter gosto literário. (RIBEIRO, 1996, p. 9)

Essas variações em narrativas de acontecimentos e de mitos indígenas citadas em


Diários índios também se encontram presentes no registro dos mitos realizado a partir do
processo de construção da entrebiografia yanomami. O arquivo da oralidade se apresenta
nessas obras sem a pretensão de estabilizar as narrativas do éthos indígena resultantes do
repertório desses povos. Ocorre o constante trabalho de recriação das mitologias movido
também pelo contexto sociocultural no qual se inserem os povos indígenas e pelas
mudanças nas formas de registro da pesquisa usadas pelos antropólogos e etnógrafos aqui
estudados.
Darcy Ribeiro ainda concentra a escrita de suas observações na perspectiva gerada
pela voz de um antropólogo. A entrebiografia resultante do trabalho colaborativo de Davi
Kopenawa e Bruce Albert e os Diários índios do antropólogo brasileiro apresentam ao
leitor uma visão mais complexa dos processos criativos que envolvem o trabalho
etnográfico, a cultura, a Literatura Oral e o sujeito indígenas.

Referências

ALBERT, Bruce. Postscriptum. In.: KOPENAWUA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do


céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. 1. e. São
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Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-
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6ª ed. Lisboa: Nova Vega, 2006.

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Tradução de Jovita


Gerheim Noronha, Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: UFMG, 2014.

OLIVIER-GODET, Rita. Arquivos orais e memória cultural: a emergência de outras


palavras nos diálogos interamericanos. COELHO, Haydée Ribeiro (Org.); VIEIRA, Elisa
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<https://www.eba.ufmg.br/revistapos/index.php/pos/article/viex/10/9> . Acesso em: 24
de março, 2015.

1765
TESTEMUNHOS DO FEMINICÍDIO NA ARGENTINA E NO MÉXICO

Carlos Magno Gomes (UFS/CNPq)1

Resumo: Esta comunicação propõe a análise do testemunho do feminicídio registrado em


Chicas muertas (2014), de Selva Amada, na Argentina, e, Delincuentos: historías del
narcotráfico (2005), no México. Essas obras trazem memórias da violência contra a mulher em
espaços sociais hostis de seus países. Metodologicamente, comparamos o testemunho social
dessa violência a partir da identificação da herança cultural do patriarcado. Para isso,
exploraremos os conceitos de “arquivo”, de Derrida, e de “corpo feminino” como território da
violência, de Rita Laura Segato. Temos o propósito de comparar os procedimentos estéticos
usados pelas autoras para o questionamento dos valores ideológicos de gênero, presentes no
resgate da memória do feminicídio. Na América Latina, esse crime é visto como um fantasma
que sempre assusta e impõe limites para os deslocamentos femininos pelos territórios
masculinos.
Palavras-chave: Memórias; Feminicídio; Literatura latino-americana.

Os feminicídios trazem marcas sociais de uma sociedade herdeira do controle


patriarcal e conservador. Na Argentina e no México, esses crimes ganharam espaços em
diversas narrativas do século XXI, propondo reflexões sobre a importância do debate
em torno da naturalização do assassinato de mulheres como uma prática machista. Além
da questão de gênero, a degradação econômica imposta pelo trabalho mal remunerado
não pode ficar de fora desse debate, visto que grande parte das vítimas são mulheres
pobres. Para um estudo inicial, vamos partir dos relatos registrados na narrativa Chicas
muertas (2014), da argentina Selva Amada, e na coletânea Delincuentos: historías del
narcotráfico (2005), da mexicana Arminé Arjona, ampliando as fronteiras espaciais dos
feminicídios já analisados em pesquisa anterior2.
Tais obras trazem experimentações estéticas que partem de relatos ou textos já
existentes para serem construídas por um tecido literário que desloca as marcas sociais
da violência de gênero. O testemunho de Amada é construído com o material de uma

1
Professor de Teoria Literária da Universidade Federal de Sergipe/CNPq. Contato: calmag@bol.com.br
2
Esta pesquisa é financiada pelo CNPq e abrange estudos comparados de diferentes formas de
feminicídios registrados em textos latino-americanos. Em estudos anteriores, analisamos a representação
do feminicídio na literatura brasileira com resultados publicados nos periódicos: Cadernos Pagu (2018),
Araticum (2019) e Ártemis (2019), entre outros.

1766
pesquisa de campo, feita pela autora, sobre três feminicídios na Argentina, quando
testemunhou relatos de assassinatos de jovens de sua idade sem a punição para os
culpados. Os contos de Arjona expõem o cotidiano do controle do narcotráfico em
Ciudad Juárez e, em especial, a violência imposta pelo crime organizado. Em comum,
as obras trazem experiências de escritoras que discutem a violência de gênero ao se
projetarem por meio de uma literatura pós-moderna paródica e irônica, a qual justapõe
diferentes tipos de textos: memórias, relatos autobiográficos, entrevistas, crônicas, entre
outros.
Os feminicídios registrados nas duas obras analisadas são praticados tanto no
espaço doméstico como em lugares controlados por organizações criminosas. Nesses
casos, o crime organizado, a corrupção e a omissão do Estado são responsáveis pela
manutenção de uma violência estrutural hegemônica que se mantém por questões
territoriais e políticas (FRAGOSO, 2010, p. 68). Tecnicamente, essas ficções são
explosivas como um grito feminista, pois dão um depoimento autêntico de como a
violência de gênero reproduz normas de gênero estruturalmente impostas.
Amada e Arjona relatam experiências intersubjetivas, porquanto exploram o
lugar de fala da mulher a partir do detalhamento dos diferentes tipos de violência de
gênero. Para María Cabral, a preocupação de trazer para a literatura os crimes contra a
mulher pode ser vista como própria de uma “estética corrosiva”, pois identificamos,
nesses relatos, os sentidos do passado para fazer um registro que dá destaque às
memórias “clandestinas, combatientes, travestidas, y su impacto en la experiencia del
presente” (CABRAL, 2016, p. 4). Ao relatar crimes contra mulheres, esse tipo de
literatura apresenta um olhar corrosivo da normatização de gênero.
Tal naturalização da violência contra a mulher é identificada por Laura Segato
como um fenômeno “percibido y asimilado como parte de la ‘normalidad’ o, lo que
sería peor, como un fenómeno ‘normativo’, es decir, que participaría del conjunto de
las reglas que crean y recrean esa normalidad” (2003, p. 132). Ao reconhecermos essa
violência estrutural como uma prática hegemônica de dominação e aniquilamento da
mulher, estamos propondo um diálogo epistemológico entre literatura comparada e
estudos antropológicos para a ampliação das possibilidades de interpretação do texto
literário, valorizando os arquivos sociais como uma memória coletiva dos feminicídios.

1767
Isso é possível pela forma como o testemunho é construído em cada texto. No
caso de Amada, a narradora-investigadora volta no tempo para tentar entender por que
crimes contra jovens mulheres não tinham sido conclusivos para a punição dos
culpados. Segato destaca que por trás da impunidade, há um “sistema de estatus” que
“se basa en la usurpación o exacción del poder femenino por parte de los hombres”
(SEGATO, 2003, p. 144).
No caso de Arjona, o testemunho de uma moradora de Ciudad Juárez denuncia
as tensões de gênero a partir dos abusos impostos aos corpos das mulheres pela cultura
do narcotráfico. Nesses espaços, a vítima perde o controle sobre seu corpo, que passa a
ser normatizado pelas leis do submundo do crime regido pelo “control legislador sobre
un territorio y sobre el cuerpo del otro como anexo a ese territorio” (SEGATO, 2013,
p. 20).
O termo “feminicídio” é bem amplo, mas tem como ponto convergente a
tipicidade do crime contra a mulher por ela ser mulher, quer dizer, especificamente, por
sua condição de gênero. Essa categoria não é homogênea, pois envolve questões
culturais, geográficas e econômicas. Por exemplo, no México, esse conceito é usado
para definir os crimes praticados por narcotraficantes contra jovens mulheres que são
sequestradas e abusadas ou prostituídas. Nesses casos, “el término feminicidio es una
herramienta crítica que concibe varios factores de estudio y análisis en torno de
asesinatos de mujeres en los cuales está presentes los motivos, los victimarios, los actos
de violentos, los cambios estructurales en cada sociedad” (FRAGOSO, 2010, p. 247).
Tais marcas desse crime reforçam sua condição de um arquivo da barbárie
provocada pelo sexismo e pela misoginia. No campo ficcional, tais representações
trazem memórias culturais, visto que o texto literário pode ser visto como um arquivo e
como tal é “ao mesmo tempo instituidor e conservador. Revolucionário e tradicional”
(DERRIDA, 2001, p. 17). Logo, a voz da mulher assassinada que ecoa no texto literário
pulsa como parte das normas fascistas que não punem seus culpados. Esse grito é muito
importante para a retomada do debate acerca de mulheres historicamente silenciadas de
forma brutal.
Por essa perspectiva, estamos interpretando o feminicídio como uma herança
machista imposta às mulheres, visto que o crime, como um arquivo social, reforça sua
condição de herança da qual não podemos nos livrar. Logo, ao nos depararmos com a

1768
perversidade dos feminicídios, nos confrontamos também com um sistema bárbaro,
imposto pelo culto da masculinidade, uma vez que esse crime, registrado no texto
literário, potencializa seu status de arquivo que “capitaliza tudo, incluindo aquilo que o
arruína ou contesta radicalmente seu poder” (DERRIDA, 2001, p. 24).
Em Chicas muertas, de Selva Amada, os arquivos de três feminicídios traduzem
normas sociais que rotulam as vítimas de vulneráveis e impõem a cultura da virilidade
masculina como o padrão. Para tais constatações, Amada faz uma pesquisa documental
que mistura ficção, relatos pessoais e depoimentos para construir uma narrativa policial
amarrada pelo tecido literário. Sua obra elege o debate em torno de “como” resgatar as
memórias das vítimas de crimes que ficam sem solução, expondo arquivos subterrâneos,
de inquéritos mal conduzidos e estagnados por valores misóginos, acima de tudo.
Os três casos de feminicídios investigados por Almada, Andrea, Luisa e Sarita
estão geograficamente situados no interior do país, em uma região dominada pela
agropecuária. A autora se projeta como potencial vítima desse contexto social patriarcal,
conservador e misógino: “Mi casa, la casa de cualquier adolescente, no era el lugar
más seguro del mundo, adentro de tu casa podían matarte. El horror podía vivir bajo el
mismo techo que vos” (ALMADA, 2014, p. 17). Tal falta de segurança ainda era mais
notória no contexto conversador da indústria pecuária por onde a narradora transitava:
“Si pasábamos a la mañana muy, muy temprano, me gustaba mirar a los empleados del
frigorífico que cruzábamos en el camino” (ALMADA, 2014, p. 63). Assim, as
fronteiras do campo e os arredores de cidades do interior de seu país são
geograficamente descritos como territórios perigosos para jovens mulheres andarem
sozinhas.
Quanto aos inquéritos, ela escolhe três que acontecem na mesma época de sua
juventude. No primeiro, Andrea Danne, de 19 anos – “rubia, linda, de ojos claros,
estaba de novia y estudiaba el profesorado de psicología” (ALMADA, 2014, p. 17) – é
encontrada morta dentro de sua própria casa. Mesmo em um espaço doméstico, não há
provas para se chegar ao executor desse feminicídio. Entre ex-namorados e amigos, há
diversas suspeitas que não são comprovadas. Na leitura dos documentos e nas
entrevistas com os envolvidos, Amada passa a traçar suposições, mas não consegue ir
além de constatações de que Andrea tinha muitos admiradores e era muito querida por
seus amigos, mas sempre se mostrou livre e independente.

1769
No segundo feminicídio, a vítima desaparece no caminho de uma festa. María
Luisa Quevedo, de 15 anos, “[…] había estado desaparecida por unos días y,
inicialmente, su cuerpo violado y estrangulado había aparecido en un baldío, en las
afueras de la ciudad” (ALMADA, 2014, p. 18). No processo de investigação desse
crime, Amada entrevista o irmão de Luisa e colhe alguns depoimentos que ressaltam o
quanto a polícia não se dedicou a investigar o crime como deveria ter feito. Amada
percebe que a hipótese de que ela poderia ter entrado em um carro de estranhos de
forma voluntária a desqualificava, relativizando a culpa dos criminosos. Tal julgamento
das vítimas de estupradores é comum a sociedades machistas que cultuam a sexualidade
masculina em detrimento do rebaixamento do corpo feminino violentado, conforme
Gomes (2014).
No terceiro caso de feminicídio, Amada passa a juntar o quebra-cabeça em torno
do sumiço de Sarita Mundínde, de 20 anos, “desaparecida el 12 de marzo de 1988,
cuyos restos aparecieron el 29 de diciembre de ese año, a orillas del río Tcalamochita,
en la ciudad de Villa Nueva, en la provincia de Córdoba” (ALMADA, 2014, p. 19).
Apesar de haver indícios concretos que o amante casado que a sustentava era o
mandante do assassinato de Sarita, esse crime também não tinha sido solucionado.
Isso foi possível porque o principal culpado consegue que sua esposa dê um
depoimento a seu favor. Com tal álibi, Amada se depara com mais um feminicídio sem
punição, que estava relacionado à condição social da vítima. Sarita só mantinha uma
relação abusiva porque precisava ajudar economicamente a família: filho, mãe e irmã.
Com o seu silenciamento, a narradora abre algumas reflexões acerca da violência
estrutural que silencia mulheres em situação vulnerável. Por essa perspectiva, mais uma
vez, o preconceito contra a jovem, que aceitou as condições da prostituição disfarçada
imposta pelo amante, é usado para relativizar a barbárie de seu assassinato.
Além dos crimes investigados do passado, a obra de Almada também relata
abusos que a autora sofreu no decorrer da investigação, apontando o quanto a violência
contra a mulher é naturalizada no contexto argentino. Isso acontece de forma
dissimulada, como em ocasiões em que é abordada por estranho e assediada por homens
que se acham no direito de tocar o corpo da mulher. As reflexões críticas que
denunciam as diferentes formas de violência contra a mulher condensam o ponto alto de

1770
suas memórias. Ela também relata o caso de um tio que pagava encontros sexuais com
sua empregada, enquanto as crianças brincavam fora de casa.
Esteticamente, destacamos a peculiaridade como os depoimentos são explorados
pela autora. Em particular, sua visita a uma senhora que joga cartas para saber o que
aconteceu no dia do assassinato de cada uma das três jovens assassinadas. Mesmo sem
conseguir descobrir uma pista nova, os conselhos da cartomante traduzem o próprio
projeto do livro que está sendo narrado. Tal possiblidade é anunciada quando a
cartomante lhe conta um mito daquela região sobre uma caçadora de ossos. Trata-se de
uma velhinha que juntava ossos de animais que ganhavam vida depois de serem
embalsamados, pois “a medida que canta, los huesos, se van cubriendo de carne y la
carne de cuero y el cuero de pelos” (ALMADA, 2014, p. 50).
Essa pequena história traduz, de forma metafórica, o projeto da obra de Amada,
que dá vida aos discursos silenciados, reforçando o quanto as vozes das mulheres
assassinadas permanecem ecoando e gritando por justiça. Assim, ao deparar com os
arquivos do feminicídio de seu país, Amada expõe as ruínas dos arquivos de uma
tradição machista pautada pelo assédio, estupro e assassinato de jovens mulheres por
homens que se escondem atrás da impunidade.
Assim sendo, a metáfora da caçadora de ossos potencializa o espaço literário
como o de lugar de empoderamento feminino, pois possibilita que ouçamos a triste
história dessas vozes por meio de Amada que, como uma “huesera”, passa a “[…]
juntar los huesos de las chicas, armarlas, darles voz y después dejarlas correr
libremente hacia donde sea que tengan que ir” (ALMADA, 2014, p. 50). Portanto,
essas opções intersubjetivas reforçam o projeto artístico de denunciar o silenciamento
histórico em torno dos feminicídios na Argentina.
Tal experimentação estética traz um novo olhar para o feminicídio, resgatando
crimes que não foram solucionados por serem considerados menos importantes pelas
autoridades, exemplificando casos de desqualificação desse crime por questões de
gênero. Ao escavar os inquéritos abandonados e abafados por valores morais misóginos,
Amanda constata que o principal motivo do fracasso da investigação está relacionado à
prática machista de silenciamento da mulher, “dando una respuesta novedosa al debate
sobre el “cómo narrar” la violencia, para el caso de los femicidios ocurridos en el
interior del país desde mediados de los años 80” (CABRAL, 2016, p. 11).

1771
A segunda obra que selecionamos para o estudo do testemunho do feminicídio é
da mexicana Arminé Arjona, Delincuentos: historias del narcotráfico (2005). Nascida
em 1958, em Ciudad Juárez, no México, Arjona dá seu depoimento de como as normas
do narcotráfico se confundem com a violência estrutural contra a mulher. Nesse
contexto, muitas mulheres foram vítimas do capitalismo e das desigualdades de gênero,
visto que milhares de trabalhadoras foram abusadas e assassinadas nas fronteiras do
deserto de Ciudad Juárez. Essas mulheres foram vítimas de feminicídios, que têm como
pano de fundo a pobreza e o machismo ancestral imposto pela colonização. Segato
reconhece que “allí, más que en cualquier otro lugar, se vuelve real el lema “cuerpo de
mujer: peligro de muerte”. Ciudad Juárez es también, significativamente, un lugar
emblemático de la globalización económica y del neoliberalismo, con su hambre
insaciable de ganancia” (2013, p. 11).
Desse contexto hostil, Arjona produz uma coletânea de contos e poesias que têm
em comum a denúncia da normatização de assassinatos e estupros de mulheres pelo
espaço do deserto. Seu olhar registra a violência como uma forma de controlar e punir
as mulheres que se envolvem com narcotraficantes. Para além dessas relações de
prostituição, contrabando e uso de entorpecentes, sua narrativa traz um painel de como a
violência social e a do narcotráfico se confundem, aproximando as fronteiras dos crimes
praticados por narcotraficantes dos assassinatos de trabalhadoras na volta para casa.
Com isso, a literatura de Arjona questiona a premissa de que a violência contra a
mulher é usada como uma forma de dominação de imposição do terror e do medo.
Segato debate essa questão a partir dos valores em torno do estupro, que socialmente,
pode ser considerado um ato de dominação. Esse crime é normatizado pelas
estruturadas do domínio do homem sobre o corpo da mulher como parte do
aniquilamento da dominada, visto que “es por esto que una guerra que resulte en
exterminio no constituye victoria, porque solamente el poder de colonización permite la
exhibición del poder de muerte ante los destinados a permanecer vivos” (SEGATO,
2013 p. 20-21).
Delincuentos: historias del narcotráfico teve sua primeira edição esgotada e é
considerado um referencial acerca da representação da degradação humana imposta pelo
crime organizado, pois traz uma versão que pormenoriza diversas situações em que
violência e uso de drogas se confundem. Neste trabalho, analisamos como a violência é

1772
relatada no conto “Ni la santa muerte”, que traz a descrição de uma narradora que sofre
assédio e é jurada de morte após se recusar a ficar com um traficante. Nesse caso, o
abuso sexual é visto como “un acto intencional del poder y la fuerza con un fin
predeterminado, por el cual una o más personas producen daños físicos, metales o
sexuales” (FRAGOSO, 2010, p. 234).
A descrição de assédio é produzida por etapas. No primeiro momento, a jovem
aceita dançar por temer a reação do seu assediador, mesmo estando muito cansada da
longa jornada transportando drogas: “– Véngase. Vamos a bailar, chaparra, – me dijo
un caporal enorme. – Órale, no más dos piezas porque estoy reventada de los pies.
Caminé mucho” (ARJONA, 2005, p. 24). No território do tráfico, a violência de gênero
é regida pelo machismo e pela força dos traficantes que impõem o terror e o medo como
uma estratégia de dominação.
No conto não é diferente: “La verdad no quise negarme porque andaba bien
loco y más que nada me convenció la.38 que traía fajada en el cinturón piteado”
(ARJONA, 2005, p. 25). Por deixar o revólver à mostra, o homem explicita sua
imposição de não querer ser contrariado. Este tipo de intimidação vai além do assédio e
foi registrado nos inquéritos de diversos feminicídios daquela região, que são regidos
pelo abuso do corpo feminino “y los medios utilizados para tal agresión pueden ser
armas de fuego, objetos punzacortantes y el cuerpo del agresor” (FRAGOSO, 2010, p.
236).
Por descrever o contexto do narcotráfico, “Ni la santa muerte” é composto por
um vocabulário próprio da região, possibilitando maior aproximação da ficção com os
casos reais. O fato de o conquistador não aceitar o “não” faz parte das normas de gênero
desses espaços dominados pela força masculina e pelo culto da virilidade, visto que “la
exhibición de la sexualidad como capacidad viril y violenta” faz parte das normas
sociais como destaca Segato (2003, p.33).
No conto, nenhum dos homens presentes defende a jovem do agressor. Há um
total silêncio por parte dos membros do comboio, que normatizam a capacidade violenta
do homem como própria de quem domina pela imposição da virilidade. Todavia, depois
de duas músicas, a jovem resolve parar de dançar. Ao ser rejeitado, o narcotraficante
não consegue aceitar esse “não”, por isso a ameaça de morte conforme os relatos da

1773
narradora: “Alcanzo a oír una risotada, y el cabrón que me apunta, me dice: ‘Ya te
cargó la jodida. Ni la Santa Muerte te salva de esta’” (ARJONA, 2005, p. 23).
Tal representação está atravessada pelas violentas normas do narcotráfico como
descreve a vítima: “Pero ahora sí con el cuerno de chivo en la mano. Me levantó de los
cabellos y me metió el cañón del arma en el cuello” (ARJONA, 2005, p. 26). Esse
excesso de violência está relacionado à “crise de masculinidade”, visto que ele se sente
inseguro após ser preterido e passa a usar a força como forma de reassumir seu lugar de
poder (GOMES, 2017).
No espaço ficcional de Arjona, de forma irônica, a jovem é salva pelo acaso,
após ser ameaçada insistentemente de morte: “Ni la Santa Muerte, ni la Santa Muerte,
repetía desquiciado” (ARJONA, 2005, p. 25-26). Isso foi possível porque o agressor
ficou muito alterado devido ao uso excessivo da coca. Desequilibrado, ele tropeça e
atinge seus testículos de forma muito rápida: “El cuerpo de oquis estaba revolcándose
en un charco de sangre. ¡Bendita piedra! Se había tropezado y se voló los güevos. –
¡Máteme, cabrones! ¡mátenme! – Bramaba como cochi en el matadero. Luego se
desplomó (ARJONA, 2005, p. 26). Portanto, o conto termina com um agressor
agonizando e pedindo para ser executado por um dos parceiros, pois não aceita sua
condição de ferido.
Ao projetar a violência de gênero como uma interseção das diferentes formas de
violências impostas pelo narcotráfico, Arjona aproxima as tênues fronteiras entre
testemunho e realidade. Sabemos que tais representações trazem o avesso do arquivo
como memórias culturais, visto que, como um arquivo, o texto expõe sua face
instituidora da ordem, ao mesmo tempo em que deixa transparecer as rachaduras da
perversidade que todo arquivo carrega, de acordo com Derrida (2001, p. 17).
Em comum, Chicas muertas, de Amada, e Delincuentos: historias del
narcotráfico, de Arjona, trazem pistas do quanto a violência contra a mulher vai além de
casos isolados, pois suas representações valorizam as rachaduras das normas de gênero
pautadas pelo culto da masculinidade (SEGATO, 2003). Nas duas obras, essas
rachaduras abrem uma perspectiva de debate sobre os direitos da mulher e a luta contra
o sexismo, haja visto suas experimentações estéticas que partem dos testemunhos
pessoais para a construção de um ponto de vista feminista que se opõe à naturalização
da impunidade dos crimes.

1774
Assim sendo, tanto a escritora argentina como a mexicana traduzem não só os
crimes reconhecidos oficialmente contra a mulher, mas registram as rachaduras dessa
opressão: a ausência de iniciativa masculina para impedir, acabar com ou punir tal
violência instituída. Esteticamente, Amada retoma o modelo das novelas investigativas
e policiais para imprimir uma particularidade que a coloca como uma das vítimas
daqueles crimes. Já Arjona traz o olhar atento de uma moradora de Ciudad Juárez que
reconhece a violência contra a mulher não como um crime individual, mas sim uma
violência contra todos de sua sociedade. As duas obras nos propõem reflexões acerca da
necessidade de mudanças de paradigmas sociais que se oponham efetivamente contra a
impunidade masculina nos casos dos feminicídios.

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ARJORNA, Arminé. Delicuentos: historias del narcotráfico. Ciudad Juárez: Al Límite Editores,
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GOMES, Carlos Magno. O femicídio na ficção de autoria feminina brasileira. Estudos


Feministas. Florianópolis, UFSC, v. 22, n. 3, p. 781-794, 2014.

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Cultural. Alagoinhas, UNEB, v. 7, n. 2, 2017.

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Buenos Aires: Tinta Limón, 2013.

1775
O ESPAÇO DA VOZ FEMININA NOS DIÁRIOS DE ALEJANDRA PIZARNIK

Erlândia Ribeiro da Silva (UNIR)1

Resumo: O trabalho aqui proposto tem como objetivo analisar fragmentos extraídos da obra
Diarios (2016) da escritora argentina Alejandra Pizarnik (1936-1972), com o intuito de observar
as reflexões que o seu texto diarístico suscita à respeito da identidade feminina. Ao ler os diários
de Pizarnik, datados de 1955, percebemos em vários fragmentos sua consciência crítica em
relação a condição social das mulheres e as imposições sofridas pela ideologia patriarcal. Esse
posicionamento da autora é bastante importante no sentido de registro histórico, para
compreensão do tempo em que se vivia e o que a autora desconstruía e transgredia com sua escrita.

Palavras-chave: Alejandra Pizarnik; Identidade feminina; Diários.

Alejandra Pizarnik nasceu em Buenos Aires em 1936, em uma família de


imigrantes judeus de origem russa e eslovaca. Em 1954, ingressou na faculdade de
Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires, porém não concluiu os estudos.
Ávida leitora desde muito jovem, publicou seu primeiro livro intitulado La tierra más
ajena, em 1955, aos dezenove anos de idade, livro porém que mais tarde rechaçaria. Em
seguida publicou La última inocencia, em 1956 e Las aventuras perdidas em 1958. Entre
1960 e 1964 morou em Paris e ali colaborou com várias revistas literárias e fez traduções
de importantes escritores franceses como Antonin Artaud e Marguerite Duras. Nessa
época iniciou amizade com Julio Cortázar, Rosa Chacel e Octavio Paz, este último foi
quem fez o prólogo de seu quarto poemário Árbol de Diana de 1962.
Em 1964 a autora retornou a Buenos Aires e publicou suas obras mais conhecidas:
Los trabajos y las noches (1965), Extracción de la piedra de la locura (1968) e El infierno
musical (1971). Desde 1954, Pizarnik escrevia um diário que a acompanhou até os
últimos dias de sua vida, diário esse que chamava de “Diário de escritora”, que foram
publicados postumamente.
Nesse sentido, neste estudo, foram feitas considerações acerca dos registros nos
diários tratando de perceber de que maneira a autora contraria a ideia vigente da época ao
se afirmar como mulher e escritora, ajudando a compor uma identidade feminina bastante
singular. Dessa forma, como embasamento teórico recorreremos, principalmente, a
Márgara Russotto com Constituição da voz feminina (1994), Judith Butler com

1
Graduada em Letras Espanhol (UNIR), Mestranda em Estudos Literários (UNIR). Contato:
erlandiaribeiro95@gmail.com.

1776
Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (2003), Pierre Bourdieu com
A dominação masculina (2003), Alberto Giordano com A senha dos solitários: diários
de escritores (2016), Philippe Lejeune com O pacto autobiográfico (2014) e demais
autores que nos ajudem a compreender os sentidos questionadores da escrita diarística de
Pizarnik.

Gênero confessional: espaço da voz feminina

Primeiramente é necessário ressaltar neste estudo que a escrita de diários, dentro


da literatura, muitas vezes tem sido enxergada por um viés simplista e até mesmo
considerado como “não-ficção”. Essa separação não corresponde exatamente à
importante e desafiadora escrita diarística, pertencente à Literatura confessional (diário,
memória, autobiografia). Ao contrário do que se possa imaginar, os diários não são o
acúmulo de acontecimentos íntimos de uma vida extratextual comprovada, mas sim uma
atividade calculada que mescla registros biográficos e ficcionais de forma a criar a ilusão
de espontaneidade e sinceridade.
A escrita diarística é assim caracterizada por Alberto Giordano em A senha dos
solitários:
Por diário de escritor entendo, quando salto da evidência empírica à arrogância
conceitual, um diário que, sem renunciar ao registro do privado ou do íntimo,
expõe o encontro entre notação e vida desde uma perspectiva literária, e, desde
essa perspectiva interroga-se sobre o valor e a eficácia do hábito (disciplina,
paixão, mania?) de anotar a cada jornada. (GIORDANO, 2016, p. 210).
Com tal reflexão, Giordano consegue sintetizar a ideia do diário de escritor, que
não abandona suas revelações particulares, mas que as aproveita como conteúdo e o
molda com a linguagem literária ou literariedade. Segundo o especialista em diários
Philippe Lejeune:
Quanto ao conteúdo, depende de sua função: todos os aspectos da atividade
humana podem dar margem a manter um diário. A forma, por fim, é livre.
Asserção, narrativa, lirismo, tudo é possível, assim como todos os níveis de
linguagem e de estilo, dependendo se o diarista escreve apenas para ajudar a
memória, ou com a intenção de seduzir outra pessoa. (LEJEUNE, 2014, p.
301).
Nesse sentido, o diário pode ter múltiplos conteúdos e ao adotar diferentes
formas acaba por dialogar com outros gêneros como a novela, a crônica, os contos, os
poemas, etc. Também por essa liberdade muitos escritores durante o período de escrita de

1777
suas obras mantiveram diários, como uma espécie de laboratório para seus projetos
literários.
Dentro do gênero confessional, a voz feminina parece muitas vezes ganhar o seu
espaço, se tratando de diários literários ainda mais. Podemos pensar que isso acontece
porque a voz feminina, de modo geral, sempre foi silenciada dentro de nossa sociedade,
não sobrando espaço para que na vida cotidiana essa voz fosse escutada ou levada em
consideração e dentro da literatura não seria diferente, esse espaço de voz também era
diminuído. É nesse sentimento sufocante de não poder dizer claramente o que se sente
em alto e bom som que nascem os diários femininos, no sentido de expurgar o que se
sente para fora, nesse caso, para suas páginas. Assim, segundo Lejeune, em sua obra O
pacto autobiográfico, temos dados importantes que dizem respeito a esse assunto:
Por que essa paixão das meninas pelo diário na adolescência? Seria natural,
cultural ou ambas as coisas? Em todo o caso, isso corresponde a um
condicionamento histórico: no século 19, na França, conforme veremos, as
meninas eram sistematicamente estimuladas a manterem um diário, muitas
vezes inspecionado pelos educadores. Ainda hoje, damos a elas, no natal ou
nos aniversários, caderninhos com cadeado, o que raramente fazemos com os
meninos. (LEJEUNE, 2014, p. 298).
Esse importante dado comprova que os diários destinados às meninas sempre
foram imbuídos de uma áurea de segredo, onde tudo poderia ser dito ao “querido” e
“amigo” diário, porém as declarações só poderiam ser compartilhadas com suas próprias
páginas, dessa forma, voz alguma fora do diário se escutaria acerca das declarações
escritas no mesmo.
A mulher escritora, então, que decide por escrever um diário, como Alejandra
Pizarnik, estaria a relembrar essa mesma condição de outras escritoras mulheres que
conservaram seus diários e escreviam mesmo que não literariamente. A respeito desse
tema, a escritora e crítica literária Ana Cristina César nos fala sobre a relação da mulher
escritora com o ofício dos diários:
Mulher, na história, começa a escrever por aí, dentro do âmbito particular, do
familiar, do estritamente íntimo. Mulher não vai logo escrever para o jornal.
Historicamente, séculos passados, quando a mulher começa a escrever é numa
esfera muito familiar. (CESAR, 1999, p. 257).
Com essa afirmação de Ana Cristina César é possível perceber o quanto a escrita
feminina é marcada por uma série de questões inerentes ao seu próprio gênero. O espaço
histórico que a mulher ocupa acaba por influir diretamente em sua escrita e vice versa.
Nesse aspecto, Alejandra Pizarnik trilha muitas vezes um caminho que não é de todo igual
a essa ideia do diário feminino. Em muitos trechos, ao lermos sua obra diarística, nos

1778
deparamos com uma linguagem que trilha outro percurso. Com certa frequência, lemos
com estranheza algum trecho em que Pizarnik se mostra muito à frente de sua época,
questionando e refletindo sobre temas ainda não discutidos abertamente como
sexualidade ou as normas de comportamento para as mulheres, como nos fragmentos que
serão analisados a seguir.

Fragmentos diarísticos: algumas reflexões

Ao ler os diários da autora, podemos perceber em vários fragmentos sua


consciência crítica sobre a condição social das mulheres e as imposições sofridas pela
ideologia patriarcal. Esse posicionamento é bastante importante no sentido de registro
histórico para compreensão do tempo em que se vivia e o que Pizarnik desconstruía e
transgredia com sua escrita. Observemos então o primeiro trecho selecionado de seu
diário:
Quisera ser homem para ter muitos bolsos. Assim poderia sempre carregar um
livro. A roupa feminina é muito chata. Tão apertada e incomoda! Não há
liberdade para se mover, para correr, para nada. O homem mais humilde
caminha e parece o rei do universo. A mulher mais enfeitada caminha e parece
um objeto que se utiliza aos domingos.2
Esse trecho do diário de Pizarnik datado de 1955, ainda ecoa nos tempos atuais,
com a ditadura da moda, a ditadura da beleza e todos os traumas e angústias que essas
questões trazem tão nitidamente para a vivência das mulheres na sociedade. A falta de
liberdade que o texto de Pizarnik ressalta é evidenciada nesse contexto patriarcal, em que
além das mulheres não terem voz ainda são obrigadas a seguir regras de comportamentos
definidores de seu gênero. As últimas frases carregam esse peso “O homem mais humilde
caminha e parece o rei do universo. A mulher mais enfeitada caminha e parece um objeto
que se utiliza aos domingos.” Ou seja, não há permissão para que a mulher seja quem ela
quer ser, não há essa liberdade de escolha, não há esse poder, ela é subjugada a esse lugar
da passividade, do silêncio, da beleza inquebrantável.

2
Tradução livre do original: “Quisiera ser hombre para tener muchos bolsillos. Hasta podría tener siempre
un libro en un bolsillo. La ropa femenina es muy molesta. Tan ceñida e incómoda! No hay libertad para
moverse, para correr, para nada. El hombre más humilde camina y parece el rey del universo. La mujer más
ataviada camina y semeja un objeto que se utiliza los domingos.” (PIZARNIK, 2016, p. 57).

1779
A contestação do texto de Pizarnik permeia também as questões que envolvem
a sexualidade, o erotismo, e toda uma gama de temas não muito trabalhados por mulheres
nessa época, como na passagem a seguir:
É muito tarde. Estou excitada. Desejo um corpo junto ao meu. Qualquer corpo!
Qualquer sexo, qualquer idade! Isso é o de menos. Basta um corpo a quem
tocar e que me toque. Meu sangue galopa! Ah! Desejo ferventemente. Me
dissolvo em desejos eróticos. Nada de amor. Não. Nada disso. Sim! O que eu
queria era viver minha vida diurna entre livros e papéis e passar as noites junto
a um corpo. Esse é o meu ideal. É lascivo? É luxurioso? É estúpido? É
impossível? É meu! E com isso basta.3
Aqui é possível perceber o desejo latente, a paixão, como contrários do amor
romântico, e isso é bastante interessante, já que nos mostra um texto muito diferente do
que as autoras escreviam até então, sempre ligados ao amor como forma de se chegar a
sexualidade, como uma ponte. Mas o texto de Pizarnik não, ele aponta a simples e real
vontade, a paixão e o erotismo, “Nada de amor. Não. Nada disso.”, separando então os
sentimentos e trazendo uma nova condução de imagens para o prazer feminino, um prazer
feminino transgressor, que não precisa do amor para ser validado.
Em outros trechos a voz feminina do texto chama ao amor próprio e parece ser
uma das possibilidades de alcançar a emancipação, a liberdade de seu ser enquanto
mulher na sociedade, como vemos aqui:
Por que não fico em um lugarzinho tranquilo e me caso e tenho filhos e vou ao
cinema, a uma padaria, ao teatro? Por que não aceito essa realidade? Por que
sofro e me martirizo com os espectros da minha fantasia? Por que insisto no
chamado? Por que me analiso? Por que não me esqueço de minha alma e não
aperto o paninho umedecido lendo Cuerpos y almas? Por que não me visto
com elegância e passeio por Santa Fé de braços dados com meu namorado? ...
Amo a mim mesma. Amo meu corpo e o beijaria todo porque é meu. Amo meu
rosto tão desconhecido e estranho. Amo meus olhos surpreendentes. Amo
minhas mãos infantis. Amo minha letra tão clara.4

3
Tradução livre do original: “Es muy tarde. Estoy excitada. Deseo un cuerpo junto al mío. Cualquiera!
Cualquier sexo, cualquier edad. Eso es lo de menos. Basta un cuerpo a quien tocar y que me toque. Mi
sangre galopa! Ah! Deseo fervientemente. Me disuelvo en deseos eróticos. Nada de amor. No. Nada de eso.
Sí! Lo que yo quisiera es vivir mi vida diurna entre libros y papeles y pasar las noches junto a un cuerpo.
Ése es mi ideal. Es lascivo? Es lujurioso? Es estúpido? Es imposible? Es mío! Y con esto basta.”
(PIZARNIK, 2016, p. 56).
4
Tradução livre do original: “Por qué no me ubico en un lugarcito tranquilo y me caso y tengo hijos y voy
al cine, a una confitería, al teatro? Por qué no acepto esta realidad? Por qué sufro y me martirizo con los
espectros de mi fantasía? Por qué insisto en el llamado? Por qué me analizo? Por qué no me olvido de mi
alma y no estrujo el pañuelito húmedo leyendo Cuerpos y almas? Por qué no me visto con elegancia y paseo
por Santa Fe del brazo de mi novio? ...Me amo a mí. Amo mi cuerpo y lo besaría todo porque es mío. Amo
mi rostro tan desconocido y extraño. Amo mis ojos sorprendentes. Amo mis manos infantiles. Amo mi letra
tan clara.” (PIZARNIK, 2016, p. 55).

1780
A liberdade da voz feminina aqui é justamente a de não sacrificar seus
interesses pessoais por construções que são impostas às mulheres. A consciência das
perguntas feitas remete a essa posição e cobrança que as mulheres sofrem constantemente
dentro da sociedade. As frases finais de percepção de sua própria identidade, e amor
próprio diante dos mínimos detalhes, desde os olhos até as mãos infantis, revelam esse
sentimento de força e afirmação enquanto mulher que desvia das normas impostas que
tanto limitam.
Outros trechos mais nos fazem perceber a fina observação de Pizarnik dos
condicionamentos que cerceiam a atuação da mulher no espaço social:
Se eu caminho lentamente, olhando as esculturas de velhas casas (algo que
aprendi a olhar) ou o céu ou os rostos dos que passam perto de mim, sinto que
estou atentando contra algo. Me seguem, falam comigo ou me olham com
assombro e reprovação. Sim. A mulher tem que caminhar apressada indicando
que seu caminhar tem um fim. Caso contrário é uma prostituta ou uma louca
ou uma extravagante. Se algo acontece, alguma aglomeração ou um acidente,
e me aproximo, comprovo que não há uma só mulher. Homens. Nada mais que
homens. Me sobe a angústia.5
Os ambientes públicos aqui são reforçados enquanto masculinos, como vimos
anteriormente a ideia do espaço feminino sempre foi aquele que pertencia a casa, ao lar e
os espaços abertos como as ruas, pertenciam aos homens, sempre livres para ir e vir. Mais
uma vez a ideia de liberdade é vinculada aos homens e não as mulheres, e a figura
feminina que se permite andar nesses espaços é julgada negativamente.
Dessa forma, Alejandra Pizarnik ao utilizar da autoficcionalidade e utilizar dessa
voz feminina subjetiva e transgressora distorce a escrita do que se tinha por uma
“literatura feminina”, as noções que a autora traz em debate para seus escritos traduzem
um pensamento muito à frente de sua época. A própria pesquisadora e professora Cristina
Piña estudiosa de suas obras afirma que:
Nunca houve textos obscenos assinados por mulheres até a aparição das obras
de Pizarnik. E se o obsceno é difícil de aceitar no geral, por trazer a cena o
desde sempre oculto, resulta mais repulsivo ainda, dentro de uma sociedade
que restringiu tão significativamente as possibilidades expressivas e vitais da
mulher, quando é uma escritora quem se atreve a articulá-lo.6

5
Tradução livre do original: “Si yo camino lentamente, mirando las esculturas de las viejas casas (cosa que
aprendí a mirar) o el cielo o los rostros de los que pasan junto a mí, siento que atento contra algo. Me siguen,
me hablan o me miran con asombro y reproche. Sí. La mujer tiene que caminar apurada indicando que su
caminar tiene un fin. De lo contrario es una prostituta o una loca o una extravagante. Si ocurre algo, alguna
aglomeración o un choque, y me acerco, compruebo que no hay una sola mujer. Hombres. Nada más que
hombres. Me sube la angustia.” (PIZARNIK, 2016, p. 58).
6
Tradução livre do original: “Nunca hubo textos obscenos firmados por mujeres hasta la aparición de las
obras de Pizarnik. Y si lo obsceno es difícil de aceptar en general, por traer a la escena lo desde siempre
oculto, resulta más revulsivo aún, dentro de una sociedad que ha restringido tan significativamente las

1781
Assim, podemos verificar a importância da voz da autora como uma voz de
rompimento dentro do que se tinha imaculado como uma literatura feita por mulheres.
Em outro trecho do diário, Pizarnik deixa claro o que é importante realmente para ela:
As palavras são minha ausência, em mim existe uma ausência feita de
linguagem. Não compreendo a linguagem e é a única coisa que tenho. Este
‘silêncio’ das palavras, das que digo e escrevo, é o horror, a vertigem. Mas
nenhuma presença humana se apresenta a mim como evidencia. Amigos e
amantes; corpos vazios e indiferenciados. Somente existem fantasmas que
amei até pulverizar minha consciência. 7
Nesse trecho, até mesmo a escolha de palavras dentro do texto diarístico de
Pizarnik se distancia de outras prosas femininas. Isso acontece porque a autora escrevia
sem que o regime padronizado dessa escrita a guiasse, ela acreditava em sua própria forma
de enxergar e escrever o mundo e seus sentimentos. As frases ‘Amigos y amantes; cuerpos
vacíos e indiferenciados. Sólo hay fantasmas que he amado hasta pulverizar mi
conciencia’ são frases que não poderiam ser pensadas em sua época como escritas por
uma mulher, o sentimento amor era escrito de outra forma pelas poetas, o conceito amor
era enxergado de outra forma, mas Pizarnik aposta na sua própria vivência e não torna
isso mais ameno, pelo contrário, utiliza de uma acidez e tom de tristeza que são seus. Não
existe aqui uma aposta em uma prosa de enfeites, que conta o trágico com a esperança de
que tudo se renove e venha melhorado, há uma consciência limpa do trágico, como a
realidade nos é apresentada desde sempre.
Nesse sentido, sobre a escrita feminina, Ana Cristina César (1999, p. 269) no
curso Literatura de mulheres no Brasil ministrado em 1983 observou que “Talvez o
feminino seja mais sangue, mais ligado à terra. Recentemente, pegando uma série de
autoras mulheres, vejo que essas autoras tentam colocar esse feminino de uma maneira
mais violenta.” Pizarnik estaria dentro desse ciclo de autoras que tentam colocar esse
feminino da literatura de uma forma mais violenta, trazendo à tona a visão realística, o
rompimento, a força, a posição do trágico, sem pudores em admitir fraquezas ou ousadias.
Ainda sobre a cristalização de certos padrões o sociólogo francês Pierre Bourdieu em A
dominação masculina, nos explica a respeito de tal assunto:

posibilidades expresivas y vitales de la mujer, cuando es una escritora quien se atreve a articularlo.” (PIÑA,
2006, p. 28).
7
Tradução livre do original: “Las palabras son mi ausencia, en mí hay una ausencia hecha de lenguaje. No
comprendo el lenguaje y es lo único que tengo. Este ‘silencio’ de las palabras, de las que digo y escribo, es
el horror, el vértigo. Pero ninguna presencia humana se me presenta como evidencia. Amigos y amantes;
cuerpos vacíos e indiferenciados. Sólo hay fantasmas que he amado hasta pulverizar mi conciencia.”
(PIZARNIK, 2016, p.1023).

1782
Lembrar que aquilo que, na história, aparece como eterno não é mais que o
produto de um trabalho de eternização que compete a instituições interligadas
tais como a família, a igreja, a escola, e também, em uma outra ordem, o
esporte e o jornalismo (estas noções abstratas sendo simples designações
estenográficas de mecanismos complexos, que devem ser analisados em cada
caso em sua particularidade histórica) é reinserir na história e, portanto,
devolver à ação histórica, a relação entre os sexos que a visão naturalista e
essencialista dela arranca (e não, como quiseram me fazer dizer, tentar parar a
história e retirar às mulheres seu papel de agentes históricos). (BOURDIEU,
2003, p. 4).
Aqui fica claro que Bourdieu nos traz uma visão ampla de como se dá a eternização
ou cristalização de comportamentos destinados aos sexos através das variadas instituições
que compreendem nossa sociedade como um todo. Essas cristalizações, no entanto, como
Bourdieu nos mostra são produtos de um trabalho de eternização, ou seja, podemos
desconstruir tais produtos com outros. Pensando nos diários de Alejandra Pizarnik, a
autora mais do que inscrever seu nome na argentina dos anos sessenta conseguiu também
dar voz a muitas mulheres que não figuravam na literatura daquele período construindo
um mosaico amplo de variações dessa identidade feminina daquele contexto.

Conclusão

Com tudo o que analisamos nesse trabalho, podemos perceber que Alejandra
Pizarnik questionou através de sua obra diarística paradigmas literários e de questões de
representação de gênero e sexualidade. Ao escrever utilizou do gênero diarístico,
superando a fase feminina, caracterizada pela “imitação e internalização dos valores e
padrões vigentes” (ZOLIN, 2003, p. 256). Em muitos trechos verificamos a resistência
da autora em se manter um ser pensante e crítico, que apesar dos pesares, não abriria mão
da literatura mesmo que a sociedade lhe destinasse outras obrigações e um outro caminho
a ser seguido.
Pizarnik enquanto mulher e escritora no cenário latino americano da primeira
metade do século XX tem em seu trabalho influência direta de todo um contexto de
sociedade patriarcal, onde as mulheres ainda estavam longe de serem respeitadas. Desse
modo, acreditamos que os diários da autora são de extrema importância e que mais
pessoas deveriam ler a autora, pelo viés questionador de sua escrita e pelo seu admirável
trabalho com a linguagem.

1783
Referências

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: a experiência vivida. Tradução: Sérgio Milliet.


Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.

BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Tradução Maria Helena Kühner. Rio de


Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade/ Judith


Butler; tradução, Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

CESAR, Ana Cristina. Crítica e Tradução. São Paulo: Ática, 1999.

GIORDANO, Alberto. A senha dos solitários: diários de escritores/Alberto Giordano;


tradução Rafael Gutiérrez - Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2016.

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rosseau à internet/Philippe Lejeune;


organização Jovita Maria Gerheim Noronha; tradução Jovita Maria Gerheim Noronha,
Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

PIÑA, Cristina. Límites, diálogos, confrontaciones: leer a Alejandra Pizarnik. Buenos


Aires: Corregidor, 2012.

PIZARNIK, Alejandra. Diarios. Edição de Ana Becciu. Barcelona: Lumen, 2016.

RUSSOTTO, Márgara. Constituição da voz feminina. In: PIZARRO, A. (Org.) América


Latina: palabra, literatura e cultura. São Paulo: Fundação Memorial da América Latina,
1994. t.2, p.807-29.

1784
A SUBJETIVIDADE DA MISÉRIA EM QUARTO DE DESPEJO
Flaviana de Castro Silva (UFPI)¹

Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar a persistência da miséria na construção de um
relato autobiográfico representativo da subjetividade em vários elementos que compõem o
cotidiano da escritora Carolina Maria de Jesus, moradora da atualmente extinta favela do
Canindé- São Paulo- na sua obra-prima “Quarto de despejo- o diário de uma favelada” publicada
em 1960. A autora traz para a obra sua biografia marcada por caracteres incomuns (pelo menos
para o contexto em que se enquadra) de uma mulher, negra, favelada, mãe solteira de três filhos
pequenos, catadora de papel e semialfabetizada.

Palavras-chave: Quarto de despejo; Autoficção; Subjetividade

Quarto de despejo- Diário de uma favelada é uma edição de vinte diários de


Carolina Maria de Jesus, migrante de Sacramento-MG, catadora de papel, negra,
semianalfabeta, mãe de 3 filhos pequenos com os quais mora sozinha num minúsculo
barraco na primeira grande favela de São Paulo, a Canindé, que foi desocupada em
meados dos anos 1960 para a construção da Marginal do Tietê.
O livro conta um detalhado relato da duríssima realidade vivida por favelados da
Canindé na década de 1950: os costumes, a violência, os vícios, a miséria, a fome e as
dificuldades para se obter comida. Tudo isso criando uma atmosfera de opressão aos
personagens jamais vista com tal tonalidade em toda a Literatura brasileira.
Na edição de 2018, temos ao todo o recorte de 261 dias espaçados entre julho de
1955 e janeiro de 1960. São relatos que apresentam numa densa viagem o universo de
sobrevivência miserável de Carolina Maria de Jesus e de seus vizinhos de favela.
A partir de contribuições teórico-metodológicas de teóricos como Philippe Lejeune
(2008) e de Ecléa Bosi (1994), dentre outros, tentar-se-á desvendar como as múltiplas e
persistentes adversidades de sobrevivência em condições de total marginalidade
interferem ou mesmo contribuem para o afloramento de uma subjetividade autoficcional.
Extensa tem se mostrado a crítica acerca da referida obra em muitos aspectos,
ressaltando-se o fato de esta constituir um caso raro em toda a nossa literatura brasileira
______________________________________
1. Mestranda de Literatura do PPGEL da UFPI- Universidade Federal do Piauí

1785
dadas as suas condições de surgimento, seu teor e sua repercussão. Tendo por isso sido
traduzida para mais de dez línguas e ser objeto de estudo em disciplinas acadêmicas de
universidades internacionais.
Na busca pela comprovação de ser a subjetividade impulsionada pela miséria um
elemento determinante de construção autoficcional em Quarto de despejo- o diário de
uma favelada é que se pauta este artigo, ou seja, nosso objetivo aqui é examinar a relação
entre esse contexto de vulnerabilidade agravado pela miséria e uma autobiografia
construída por alguém que vai na contramão do que é oferecido pela favela. Nesse
sentido, trouxemos alguns fragmentos de Quarto de despejo que nos servirão de corpus.
Contudo, antes que passemos adiante, faz-se necessário abordar alguns termos que
irão pautar este estudo, tais como, por exemplo, Subjetividade. Segundo o dicionário
Aurélio - online - Subjetividade é o caráter do que é subjetivo; adj. Que diz respeito ao
sujeito. / Que se passa no íntimo do sujeito pensante (por oposição a objetivo, que diz
respeito ao objeto pensado). / Que varia de acordo com o julgamento, os sentimentos, os
hábitos etc. de cada um; individual (...). Nestes termos, a subjetividade engloba todas as
particularidades inerentes à condição de ser do sujeito, envolvendo as capacidades
sensoriais, afetivas, imaginárias e racionais de um determinado indivíduo, em todas as
suas expressões.
Kluger (2009,p.24), a esse respeito, afirma: “A autobiografia, sustento, é a forma
mais subjetiva de historiografia. É história na primeira pessoa do singular. Por
necessidade, contém informação que não pode ser comprovada”. [...] De fato, a
autobiografia situa-se na fronteira que divide a história e a literatura imaginativa.
Já Bosi (1994) afirma que a memória permite a relação do corpo presente com o
passado e, ao mesmo tempo, interfere no processo “atual” das representações. “Pela
memória, o passado não só vem à tona águas presentes, misturando-se com as percepções
imediatas, como também empurra, ‘desloca’ estas últimas, ocupando o espaço todo da
consciência.”
Como é possível verificar no texto que é nosso objeto de estudo, a memória aparece
como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e
invasora a ponto de a autora do texto buscar papéis para anotá-las, como forma de burlar
o esquecimento e como válvula de escape de uma vida atormentada pela pobreza e

1786
marginalidade; uma dor perene diante da impotência de uma vida marginalizada. O fato
de escrever lhe proporcionava uma oportunidade de manter a sanidade.
Sobre a escrita autobiográfica, Margareth Costa (2013), em sua tese intitulada Sóror
Juana Inés de la Cruz: Autobiografia e Recepção, argumenta que a autobiografia está
intimamente relacionada com outros gêneros vizinhos dentre eles se encontram: a
biografia, as memórias, o diário e o testemunho, os relatos, as histórias de vida entre
outros textos que tratam da escrita de si.
Sob essa ótica, a construção da subjetividade surge dessa relação com o mundo
social, e que a relação entre indivíduo e sociedade implica na consideração da
subjetividade e da objetividade na perspectiva da constituição recíproca de um e de
outro. Sendo, portanto, a subjetividade constituída por fatores internos e externos, no
qual, a forma que o sujeito se percebe, está intimamente ligada com as relações sociais
que se estabelecem em um contexto específico, decorrente de condições histórico-
sociais.
De modo geral, estudar subjetividade é procurar no indivíduo as marcas da
sociedade. Ou seja, dizer que o indivíduo é mediado socialmente, não significa que ele
seja afetado externamente pela sociedade, mas sim que se constitui por ela, isto é, pela
sua introjeção. Assim, a psicologia, para entender as questões que se referem à
subjetividade, deve compreender as finalidades, as instâncias, os meios, pelos quais uma
determinada cultura forma o indivíduo.
Com relação ao termo Miséria, pode-se dizer que é um estado de extrema escassez
de recursos básicos à sobrevivência. Em outras palavras, é a pobreza elevada ao seu
extremo, ausência de meios materiais e sociais que possibilitem o existir ou pelo menos
o continuar existindo.
De acordo com Willemart (2005), este texto de Carolina Maria de Jesus se
encaixaria não como autobiografia, mas como autoficção considerando que a autora, ao
escrever seu diário, voltou várias vezes ao mesmo, leu e releu outras vezes o que ia
escrevendo e nesse ir e vir, rasurava sua escrita, escolhia as palavras com calma. Além
disso, ela foi sua primeira leitora ao transformar seu diário em livro, fato que lhe permitiu
editar algumas informações, e desta forma já nascia aí uma ficcionalização.
A autobiografia (narrativa que conta a vida do autor) pressupõe que haja identidade
de nome entre o autor (cujo nome está estampado na capa), o narrador e a pessoa de quem

1787
se fala. Esse é um critério muito simples, que define, além da autobiografia, todos os
outros gêneros da literatura íntima. (LEJEUNE, 2008, p.24)
A identidade se define a partir de três termos: autor, narrador e personagem.
Narrador e personagem são as figuras as quais remetem, no texto, o sujeito da enunciação
e o sujeito enunciado. O autor, representado na margem do texto por seu nome, é então o
referente ao qual remete, por força do pacto autobiográfico, o sujeito da enunciação.
(LEJEUNE, 2008, p.36)
Zinani (2014), que tece considerações acerca da literatura marginal, construída com
uma linguagem própria, e salienta o confronto entre a expressão de uma minoria e a arte
canônica da classe dominante, define de forma precisa a obra constituída neste texto, uma
vez que literatura marginal é “aquela produzida por afrodescendentes e por mulheres, na
medida em que buscam modalidades de representação próprias”.
Em uma leve aproximação com Foucault (2009), poderíamos indagar que sob a
pauta cotidiana da pobreza, das misérias e da luta diária pela sobrevivência, (des)vela-se
um entrelaçamento de jogos políticos, ideológicos, sociais, históricos e econômicos em
Quarto de Despejo. De tal modo, segundo esse autor: “[...] uma cadeia política inteira
vem entrecruzar-se com a trama do cotidiano” (2009). Nesse sentido, “o mal minúsculo
da miséria e da falta venial já não é remetido ao céu pelo segredar quase inaudível da
confissão; acumula-se na terra sob a forma de traços escritos”. (FOUCAULT, 2009).
Ainda segundo Foucault (2009), “a pedra de toque: ao trazer à luz os movimentos
do pensamento, dissipa a sombra interior onde se tecem as tramas do inimigo.” O desejo
do sujeito na posição de autoria é pontuar os dias, anotá-los com o legítimo anseio de
preservá-los e também preservar a si mesmo da solidão, da miséria e até mesmo da
loucura. Escreve para preservar não somente os dias repetíveis nas misérias, nas
injustiças, mas efetivamente, porque sonha/ambiciona deixar um legado do seu tempo,
visto pelas singularidades de uma função autor, chamuscada pelas contradições de um
sujeito entrecruzado por tantos outros “eus”.
Passemos então à exploração efetiva do corpus:
É interessante ressaltar que toda a narrativa é permeada de elementos situacionais
que se mostram comuns no cotidiano da favela, tais como: a violência física, verbal,
infantil e doméstica, a prostituição, o alcoolismo, intrigas e a inveja – um extremo
contexto de vulnerabilidade. E quando se sente ameaçada ou ofendida, ela revida assim:

1788
“Vou escrever um livro referente a favela. Hei de citar tudo o que aqui se passa. E tudo
o que vocês me fazem. Eu quero escrever o livro, e vocês com estas cenas desagradaveis
me fornecem os argumentos” (p. 17). [...] E o pior na favela é o que as crianças
presenciam. Todas crianças da favela sabem como é o corpo de uma mulher. Porque
quando os casais que se embriagam brigam, a mulher, para não apanhar sai nua para a
rua. Quando começa as brigas os favelados deixam seus afazeres para presenciar os
bate-fundos. [...]... A favela é o quarto das surpresas (p. 40)
Notamos, contudo, que para seguir na lida em um ambiente tão afetado por misérias,
Carolina cria através da literatura um mundo impossível, de fantasias, um mundo que lhe
permita sonhar e é com essa perspectiva que ela escreve: “É preciso criar este ambiente
de fantasia, para esquecer que estou na favela. [...] As horas que sou feliz é quando estou
residindo nos castelos imaginários” (p. 52). Ou ainda em “ ... Eu cato papel, mas não
gosto. Então eu penso: Faz de conta que eu estou sonhando.” Verifica-se que há um
processo de subjetividade, sentimentos que o indivíduo deixa escapar e com suas palavras
a memória individual, as impressões, a memória afetiva, suas dores e as dores dos
companheiros de infortúnio estão presentes.
Percebemos também que a relação território-identidade é muitas vezes conflituosa,
ocasionando até mesmo expressivo repúdio pelo ambiente em que vivia. Carolina
rejeitava qualquer ligação emotiva, qualquer traço que a identificasse com a favela. Ao
comentar sobre suas frequentes idas para buscar água, a autora afirma ter “pavor destas
mulheres da favela” (p. 12), denotando com isso certo distanciamento e certo grau de não
identificação com a própria comunidade. Sentia-se deslocada e por isso não se reconhecia
na figura de suas semelhantes de infortúnio.
O olhar da narradora sobre a cidade como um todo revela seu lado crítico a respeito
do papel da favela e do seu próprio em tal contexto:[...] Eu classifico São Paulo assim:
O Palacio, é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a
favela é o quintal onde jogam os lixos (p. 28). Estas afirmações, a nosso ver, já
demonstram o não pertencimento da autora/narradora de Quarto de Despejo, ela não se
sentia pertencente a toda aquela pobreza. Seu lugar era outro, mas como esse outro lugar
lhe era inacessível nesse momento, o que vemos é uma tentativa de não identificação com
o lugar e com as pessoas por sentir-se e desejar ser diferente.

1789
A mesma tônica se verifica neste outro trecho: Quando estou na cidade tenho a
impressão de que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de
viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um
objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo (p. 33).
Apesar do pouco acesso à escola, é através da escrita que Carolina se liberta das
agruras diárias: “- Nunca vi uma preta gostar tanto de ler livros como você” (p. 23). Ela
discorre que todos têm um ideal, sendo o dela o gosto por ler, que o livro é a melhor
invenção do homem, e que ainda prefere escrever a discutir.
12 de junho- Eu deixei o leito as 3 da manhã porque quando a gente perde o sono
começa a pensar nas misérias que nos rodeia. (...) Deixei o leito para escrever.
... Aqui na favela quase todos lutam com dificuldade para viver. Mas quem
manifesta o que sofre é só eu. E faço isso em prol dos outros (p.36). É no ato da escrita
que a autora se vê como alguém que tem algo a dizer dentre tantos outros e outras sem
voz. E com um propósito não somente individual, mas coletivo.
Inúmeras são as passagens em que há descrição da fome a qual muitas vezes passa
do limite do suportável. Esse é um elemento fortemente presente no cotidiano da favela,
e nossa narradora enfatiza incansavelmente a busca por doações, a falta de dinheiro para
comprar comida, o auxílio de algumas vizinhas e até mesmo a procura em lixos pelo
alimento: “Ontem comemos mal. E hoje pior.” (p. 120). Isso significa que as previsões
para o que ontem foi escasso são ainda mais desanimadoras para o agora.
Nesse aspecto, o efeito da saciação da fome é descrito entusiasticamente: “A comida
no estomago é como o combustível das maquinas. Passei a trabalhar mais depressa. O
meu corpo deixou de pesar. Comecei a andar mais depressa. [...] Comecei a sorrir como
se estivesse presenciado um lindo espetáculo. E haverá espetáculo mais lindo do que ter
o que comer? Parece que eu estava comendo pela primeira vez na minha vida (p. 40).”
Comer, este verbo tão corriqueiro e natural para a maioria das pessoas, para a narradora
representava o divisor entre ânimo e desânimo tanto físico quanto emocional.
Pela falta de alimento e pelo custo da vida, Carolina evoca o sentimento de suicídio
como solução rápida para o sofrimento. Por vezes registra sua perda de interesse pela
existência, mas não tem coragem para concretizar o ato contra sua vida. O ponto de
desespero que podemos perceber é na passagem a seguir: Hoje não temos nada para
comer. Queria convidar os filhos para suicidar-nos. Desisti. Olhei meus filhos e fiquei

1790
com dó. Eles estão cheios de vida. Quem vive, precisa comer. Fiquei nervosa, pensando:
será que Deus esqueceu-me? Será que ele ficou de mal comigo? (p. 153).
Percebemos no trecho acima, a que ponto pode chegar a interferência psicológica
exercida pela presença da dor, da fome, das mazelas sociais dos moradores da favela que,
semelhante à narradora, deveriam passar pelos mesmos sentimentos de impotência.
Os dias seguem numa repetição da falta de prosperidade e das adversidades dos
favelados. Nesse caso, o último dia de relato no diário- 1 de janeiro de 1960- “Levantei
as 5 horas e fui carregar água.” (p.191), facilmente pode ser, como efeito cíclico, o
reinício dos primeiros dias anotados – 16 de julho de 1955- “Levantei. Obedeci a Vera
Eunice. Fui buscar água.” (p.12). A luta do sujeito personagem é sempre a mesma: buscar
água, fazer a refeição para os filhos e ir catar papel/ lixo.
Diante do exposto, podemos dizer que Carolina Maria de Jesus, enquanto sujeito
autobiográfico/ ficcionalizado em Quarto de despejo- diário de uma favelada, expressa a
sua subjetividade acionada pelos insistentes e repetitivos gatilhos da miséria em que vive
com seus filhos no contexto adverso da favela Canindé num ciclo contínuo que sugere o
infindável.
Esta pesquisa nos levou a constatar, através da voz da narradora/protagonista/
autora de Quarto de Despejo, que a dor, a tristeza, a impotência de tantas outras Carolinas,
Marias, que conviviam no mesmo espaço da favela, configuram um elemento que separa
e junta os personagens ficcionalizados desta obra literária que vivem o mesmo cotidiano
e a mesma falta de perspectivas. Estes são elementos ativadores de uma subjetividade que
se projeta nos relatos dessa autora autoficcionalizada em sua obra.
Ao nos apresentar suas memórias em seu diários, a narradora é levada a boradar
também as memórias dos que dividem com ela o mesmo espaço de marginalidade e
exclusão. Assim, não é somente a imagem de si que ela constrói, mas a memória subjetiva
da narradora aponta para uma mulher como tantas outras que luta para não submergir e
que grita sua dor e sofrimento através da escrita subjetiva de si.

1791
Referências

BOSI, Ecléa; Memória e sociedade, São Paulo; Companhia das Letras , 1994

COSTA, Torres de Alencar, Margareth. Sóror Juana Inés de la Cruz: autobiografia e


recepção. Recife, PE. Originalmente apresentada como tese de doutorado, Universidade
Federal de Pernambuco – UFPE, .2013.

FOCAULT, Michel. O que é um autor?, Tradução de Antônio Fernando Cascais e


Eduardo Cordeiro. Lisboa,7ª edição, Passagens,2009

GALE, Helmut,org. e Outros: Em primeira pessoa: abordagens de uma teoria da


autobiografia. São Paulo: Annablume, Fapesp, FFLCH, USP.2009

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rosseau à Internete. Trad. Jovita Maria


Gerheim Noronha e Maria Inés Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008

WILLEMART, Philippe. Os processos de criação na escritura, na arte e na


psicanálise. São Paulo; Perspectivas, 2009.

ZINANI, Cecil Jeanine Albert. Produção literária feminina: um caso de literatura


marginal. ANTARES, v. 6, n. 12, p. 183-195, jul./dez. 2014. Disponível em
www.ucs.br/etc/revistas/index.php/antares/article/viewFile/3059/1814

1792
LIMA BARRETO, CLARA DOS ANJOS E UMA ESTÉTICA DO PROCESSO

Giovani T. Kurz (UFPR)1

Resumo: Constantemente apontado como um autor de processo criativo desordenado,


“caótico”, Lima Barreto teve, e tem, sua obra largamente recebida a partir de duas leituras
hegemônicas. Por um lado, vê-se sua ficção como extensão — ou reflexo — de sua biografia;
por outro, lê-se o texto como instrumento de transformação social. Aqui, busca-se retomar
brevemente parte da recepção de sua literatura, sublinhando o predomínio dessas duas leituras e
propondo uma alternativa a tais olhares.
Palavras-chave: Lima Barreto; Clara dos Anjos; Crítica Genética

Silviano Santiago é enfático ao falar sobre o percurso de Lima Barreto. Ainda


que generoso com o romance Triste fim de Policarpo Quaresma, Santiago aponta Lima
como um “autor tão conhecido pela negligência com que cercava o processo da criação
literária” (SANTIAGO, 1982, p. 163). A afirmação do crítico, porém, não aparece
acompanhada por comentário ou justificação, e a ideia de um escritor “tão conhecido”
pela suposta negligência permanece em suspenso. A caracterização do criador de
Policarpo Quaresma como um autor sem processo, contudo, é hegemônica, assim como
a constante recepção de sua literatura como projeção de sua biografia — não é preciso
forçar os olhos para perceber a primeira leitura como reflexo da segunda e vice-versa.
Lima Barreto tornou-se um exemplo de escritor “confessional”, em cuja obra seriam
visíveis “amarguras íntimas” e “ressentimentos”, para relembrar Sérgio Buarque de
Holanda (2017, p. 36). Lúcia Miguel Pereira, na mesma direção, vê Clara dos Anjos
como mero instrumento de Lima, que faria da protagonista “porta-voz de suas próprias
reflexões” (PEREIRA, 2017, p. 27), além de apontar Clara como “particularmente
característica das tendências de seu autor” (ibid., p. 29). Antonio Arnoni Prado, leitor
dos mais atenciosos da obra de Lima Barreto, afirma que, “nos seus escritos, os assuntos
não eram propriamente ‘narrados’, mas apenas organizados, distanciando-se da
plenitude do ‘acontecer’ ficcional que se instaura incontroverso e acabado” (PRADO,
1997, p. 527). Beatriz Resende vê no autor carioca “a preocupação social, o empenho na
defesa dos excluídos da sociedade, a luta contra a desigualdade, contra o racismo e
contra os desmandos dos governantes” (RESENDE, 2017, p. 29). Alfredo Bosi, sobre o
romance inacabado O cemitério dos vivos, nota como “embora a literatura brasileira já

1
Bacharel em Letras (UFPR), mestrando em Estudos Literários (UFPR). E-mail: giovanitk@gmail.com

1793
conte com um alto número de memórias e escritos autobiográficos, são raras as obras
que possam valer como testemunhos diretos e coerentes de um estado de opressão e
humilhação” (BOSI, 2007, p. 13). Tem-se, ainda, Antonio Candido, cuja leitura é de
que

talvez o Lima Barreto mais típico, seja o que funde problemas pessoais com
problemas sociais, preferindo os que são ao mesmo tempo uma coisa e outra
— como por exemplo a pobreza, que dilacera o indivíduo, mas é devida à
organização defeituosa da sociedade; ou o preconceito, traduzido em
angústia, mas decorrendo das normas e interesses dos grupos. E por aí afora.
(CANDIDO, 1989, p. 39)

É inevitável, assim, perceber a permanência, no discurso crítico que orbita a


ficção de Lima Barreto, de ideias como “confissão” e testemunho”, por um lado, e
“preocupação social” e “engajamento”, por outro. Num movimento pendular, as leituras
variam entre ver na obra de Lima um texto que se volta para o sujeito, que se confessa, e
um texto que se volta para o mundo, em missão pedagógica, combate social — ou, no
caso de Candido, uma leitura que se apoia no equilíbrio entre os dois extremos do
pêndulo. Contudo, deve-se notar como, apesar das percepções distintas sobre o
horizonte da ficção, há sempre presente uma ideia de “objetivo” orientador da produção
do autor carioca; não se vê, assim, grande cuidado da recepção em compreender os
movimentos de linguagem ou a concepção do universo ficcional das obras. Desse modo,
busca-se aqui deslocar o eixo histórico de análise para a construção literária, pensando
os movimentos criativos de Lima a partir dos manuscritos de Clara dos Anjos e
buscando perceber que, entre movimentos, reescritas e refundições, o autor sempre
perseguiu um projeto de linguagem em sua literatura.
Clara, Claras
O olhar biografista dedicado à produção de Lima Barreto sempre turvou a
recepção dos textos presentes em seu Diário íntimo. Afinal, misturam-se anotações para
contos, romances e crônicas com relatos da vida do escritor. Lima, nas páginas do
Diário, deixa aberturas para um interlocutor possível — “Aqui bem alto declaro que, se
a morte me surpreender, não permitindo que as inutilize [as notas], peço a quem se
servir delas que se sirva com o máximo cuidado e discrição, porque mesmo no túmulo
eu poderia ter vergonha” (BARRETO, 2019, p. 28) —, ele próprio complexificando a
natureza dos textos ali presentes. Entre tais escritos — notas e pequenos relatos —,

1794
chama a atenção um conjunto de mais de 30 páginas intitulado Clara dos Anjos, que
data de 1904 e é composto por quatro capítulos em ordem decrescente de
desenvolvimento2 — narrativa que permanece, assim, inacabada. A este romance
incompleto, somam-se ainda versões posteriores que aparecem sob o mesmo nome. De
1919 — uma década e meia depois —, data um manuscrito3 de 10 páginas, de enredo
completamente diferente daquele do Diário. Em 1920, Lima publica uma versão ainda
diferente — embora mais próxima do manuscrito — na revista América Latina4, que
será incluída, sem alterações, no volume Histórias e sonhos, do mesmo ano. Em 1923-
24, publicado postumamente na forma de folhetim, aparece o romance Clara dos Anjos
— escrito entre os anos de 1921-22 —, organizado como volume bastante mais tarde,
em 1948. Há, no Diário, anotações breves sobre Clara. Uma delas traça uma genealogia
da personagem:

Época: 1874 a 1905.

Clara.
Nasceu..........................1868.
Morte do pai................1887
Deflorada.....................1888. (12 ou 13 de maio).
Dá à luz.........................1889
Deixada.........................1892
Casada...........................1894
Viúva............................ 1899
Amigada de novo........1900. (BARRETO, 2019, p. 18)

Há outra, mais à frente, que organiza os capítulos — e que sequer faz menção a
Clara dos Anjos:

Capítulo I — A família Brandão.


Capítulo II — Marco Aurélio encontra uma conhecida de infância, Araci,
relembra-lhe a história.
Considerações. A rua. A escola, as pressões.
Capítulo III — A festa de formatura. Os lírios. O discurso de Marco Aurélio.
A alegria da família dona Romualda e a filha Mendonça.
Capítulo IV— Marco Aurélio Brandão, compadecido da miséria de um
colega, doente, sem dinheiro, recolhe-o a sua casa.
Capítulo V — Sentindo-se melhor, mas não tendo para onde ir, o rapaz
continua em casa e começa a namorar a irmã.

2
Manuscrito disponível em
<http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_manuscritos/mss1428166/mss1428166.pdf>.
3
Disponível em
<http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_manuscritos/mss1428141/mss1428141.pdf>.
4
Disponível em <http://memoria.bn.br/DocReader/331457/350?pesq=clara dos anjos>.

1795
Capítulo VI — Sedução de Alice pelo Mendonça, e como ele dá farinha
envenenada à filha.
Capítulo VII — Gravidez.
Capítulo VIII — As explicações e recusa.
Capítulo IX — O assassinato pelo outro irmão, a desculpa de Marco Aurélio
e a queda dos titãs.
Deve dar vinte capítulos.
O caso do Mendonça. Um poeta seduziu uma mulata. Houve um filho. Ele
não quis casar com ela. Indo uma vez pedir o que comer para o filho, ele lhe
deu farinha láctea com sublimado corrosivo.
Marco Aurélio. Pedro. Alice. O velho Nicolau. A criada Ana.
Silvino Cavalcanti. Manuel da Costa Freitas.
Romualda. Amélia. (BARRETO, 2019, p. 22)

Este planejamento prevê outro enredo, que não aquele iniciado em 1904, e
igualmente diferente do romance de 1922. O vínculo entre essa planificação e a
personagem Clara se dá por outra nota, anterior e mais longa, que narra, a determinada
altura:

Murmurava-se que Clara, mãe de Tito, era filha deste Brandão, César. De
fato, sua mãe Engrácia, uma cria da casa, nascida e libertada por ocasião da
vinda de Inhomirim, era provida da precisa beleza para interessar o seu
jovem senhor, tanto mais que isso estava nos costumes do tempo, quase sem
prostituição pública e de aventuras amorosas difíceis. (BARRETO, 2018, p.
17)

Nota-se, apesar das flutuações do enredo de cada uma das versões, uma
permanência importante: a quase ausência de Clara. Apesar de todas as versões levarem
o nome da personagem, a ação narrativa se dá, quase sempre, a seu redor e sem seu
envolvimento. Nenhuma das outras personagens apresentadas na sistematização
reaparece em versões posteriores da narrativa. O que se mantém, como aponta R.J.
Oakley, é o “fatalismo amplo e fundo” (OAKLEY, 2011, p. 20). Para o teórico inglês, o
romance de 1921-22 “martela continuamente as limitações fatais de uma inteligência
medíocre e de uma falta de compreensão, que todos os personagens exibem, num meio
desfavorável” (ibid., p. 13). Ainda segundo Oakley, “o texto oferece-nos um retrato de
mediocridade, fraqueza humana, falta de capacidade, em um cenário miserável no cerne
do qual se trava a luta entre a generosidade e o egotismo, a sinceridade e a falsidade, a
inteligência e a estupidez, a coragem e a covardia” (ibid., p. 13). Assim, ainda que
pouco se mantenha da narrativa iniciada em 1904, ou mesmo do planejamento
desenvolvido pelo autor nesse intervalo, todos os textos conservam o fatalismo como
sentimento predominante. De fato, entre as inscrições iniciais para o primeiro romance,

1796
percebe-se o envolvimento de Clara com diversos homens, carregada por um destino
sempre trágico5. O teórico inglês, sem penetrar os meandros biográficos de Lima
Barreto, prossegue, em diálogo com os fragmentos pertinentes do texto de Vera
Teixeira, sua análise de Clara dos Anjos, anotando que “a atitude de Lima Barreto para
com a questão de raça no Brasil tinha evoluído muito entre 1904 e a elaboração do texto
de 1921-2” (ibid., p. 12). Mantendo o tema, o que muda é a “atitude”, a abordagem — o
que se fez por meio da forma.
Pensando o romance diacronicamente, Oakley ressalta a crescente ênfase na
questão espacial. O teórico defende que

Na obra de 1904, o meio não passava de acompanhamento, uma espécie de


pano de fundo para a ação. No romance póstumo, no entanto, o espaço físico
no qual se movem estes personagens faz parte orgânica do mundo
romanesco. Esse espaço não pode dissociar-se dos personagens, nem estes
dele. Como assinalou Osman Lins, o papel do espaço em Lima Barreto é
peculiarmente intenso, e o Clara dos Anjos de 1921-2, obra da maturidade de
Lima, não constitui exceção: nele, o espaço é físico, social, econômico e
psicológico” (OAKLEY, 2011, p. 14)

Chama a atenção a recepção do romance, especialmente à época — o que sem


dúvida pavimentou a recepção posterior, e mesmo atual, de Clara dos Anjos. Lúcia
Miguel Pereira insiste que o livro é “literariamente inferior ao Policarpo Quaresma, ao
Gonzaga de Sá, ao Isaías Caminha e à sua admirável coleção de contos”, e conclui que é
“um livro sem o qual ficaria incompleta a obra de Lima Barreto, e quiçá menos nítida a
sua posição em face da sociedade” (PEREIRA, 2017, p. 29). Vera Regina Teixeira, já
num momento posterior, afirma sem rodeios que a construção individual de Clara deriva
da biografia de Lima — “Os dados pessoais de Clara saem diretamente da história
familiar do autor” (TEIXEIRA, 1980, p. 44). Afirmações desse tipo desconsideram
completamente o percurso da obra. Pensando Clara dos Anjos tridimensionalmente, a
partir das versões que precederam sua publicação “definitiva” em 1948, nota-se o
menosprezo do trabalho de construção ficcional desenvolvido por Lima Barreto ao
longo de sua vida — não é demais lembrar que, entre 1904 e 1922, Lima escreveu e
publicou todos os seus romances. Do mesmo modo, reduzir Clara dos Anjos a um

5
“O isolamento emocional, intelectual e psicológico deles [dos personagens] reforça-se, o que precipita
cada tragédia individual na narrativa; ou seja, o narrador dá-se ao trabalho de descrever meticulosamente
como a insuficiência psicológica, cultural e intelectual produzem o fracasso e um desfecho trágico.”
(OAKLEY, 2011, p. 12-13)

1797
posicionamento de Lima diante da sociedade é marginalizar a experiência literária sobre
a qual o autor trabalhou desde o primeiro momento de sua carreira. Deve-se, assim,
olhar para o projeto; deve-se olhar para o processo.
“Uma ideia, que me está perseguindo”
A primeira referência a um projeto ficcional aparece na página inicial de 1903 do
Diário, que é — a esta altura fica evidente — mais um espaço de planejamento do que
de confissão:

Eu sou Afonso Henriques de Lima Barreto. Tenho vinte e dois anos. Sou
filho legítimo de João Henriques de Lima Barreto. Fui aluno da Escola
Politécnica. No futuro, escreverei a História da escravidão negra no Brasil e
sua influência na nossa nacionalidade. Nasci em segunda-feira, 13 de maio
de 1881. (BARRETO, 2019, p. 4).

Em outro momento, Lima anota:

Veio-me a ideia, ou antes, registro aqui uma ideia, que me está perseguindo.
Pretendo fazer um romance em que se descrevam a vida e o trabalho dos
negros numa fazenda. Será uma espécie de Germinal Negro, com mais
psicologia especial e maior sopro de epopeia. Animará um drama sombrio,
trágico e misterioso, como nos tempos da escravidão. (BARRETO, 2019, p.
32)

As menções a projetos e o planejamento são frequentes e explícitos. Insistir na


ideia de confissão é ler a obra de Lima Barreto apenas superficialmente. Evidentemente,
descolar a condição marginal do escritor na sociedade é ignorar parte importante do
processo; é fundamental, contudo, não reduzir toda a produção a isso, vendo na obra
nada além de confissão ou testemunho. No mesmo sentido, o próprio Lima Barreto é
enfático ao citar a missão pedagógica do texto literário, que teria a necessidade de
comunicar “as grandes ideias do tempo”. Em Literatura e política, por exemplo, o autor
critica Coelho Neto vinculado as suas atuações política e estética:

Se ele estivesse ao par dos males do seu tempo, com o talento que tem, e o
prestígio do seu nome, poderia ter apresentado muita medida útil e original,
embora os seus projetos morressem nas pastas das comissões. Mas, nada fez;
manteve-se mudo, só dando um ar de sua graça para justificar votos de
congratulações a Portugal, por isto ou por aquilo, empregando nos discursos
vocábulos senis ou caducos. O deputado ficou sendo o romancista que só se
preocupou com o estilo, com o vocabulário, com a paisagem, mas que não
fez do seu instrumento artístico um veículo de difusão das grandes ideias do
tempo, em quem não repercutiram as ânsias de infinita justiça dos seus dias;
em quem não encontrou eco nem revolta o clamor das vítimas da nossa
brutalidade burguesa, feita de avidez de gancho, com a mais sinistra

1798
amoralidade para também edificar, por sua vez, uma utopia ou ajudar a
solapar a construção social que já encontrou balançando. (BARRETO, 2017,
p. 137).

Ideia semelhante aparece em Literatura militante:

A velha terra lusa tem um grande passado. Nós não temos nenhum; só temos
futuro. E é dele que a nossa literatura deve tratar, da maneira literária. Nós
nos precisamos ligar; precisamos nos compreender uns aos outros;
precisamos dizer as qualidades que cada um de nós tem, para bem
suportarmos o fardo da vida e dos nossos destinos. Em vez de estarmos aí a
cantar cavalheiros de fidalguia suspeita e damas de uma aristocracia de
armazém por atacado, porque moram em Botafogo ou Laranjeiras, devemos
mostrar nas nossas obras que um negro, um índio, um português ou um
italiano se podem entender e se podem amar, no interesse comum de todos
nós (BARRETO, 2017, p. 129-130).

A questão, assim, não é descartar as duas leituras hegemônicas da obra de Lima


Barreto. A proposta é somar a elas a análise da linguagem, do projeto literário. Lima, ao
longo dos quase 20 anos em que se debruçou sobre Clara dos Anjos, reescreveu
inúmeras vezes os textos e replanejou inúmeras vezes os enredos, movido por uma
insatisfação que transcende a confissão, o testemunho, e passa a carregar, enquanto
processo, movimentos bastante significativos para se ler sua obra. Deve-se pensar, desse
modo, como Lima Barreto responde, esteticamente, a seu tempo.
Olhar para Clara dos Anjos é pensar a acumulação de todas as suas versões
intermediárias, seus esboços e planificações, pensando o próprio movimento de criação
como parte do projeto ficcional. Olha-se, assim, para a ficção de Lima Barreto como um
todo. Nota-se como a evolução da história de Clara, enquanto linguagem, aparece
refletida na construção de outros romances, como forma e conteúdo. A “linguagem
literária” sempre foi uma questão para Lima, aparecendo também como questão para
várias de suas personagens. No percurso de produção de suas obras é possível perceber
— especialmente com um olhar minucioso dedicado aos manuscritos autógrafos, tão
rasurados e modificados — que as alterações propostas pelo autor caminham no sentido
de articular forma e conteúdo, questionando estruturas dominantes da época e
subvertendo, em geral pela sátira, uma organização canônica da literatura.

1799
Referências

BARRETO, Lima. Diário íntimo. Disponível em


<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000066.pdf>. Acesso em
22/08/2019.

______; RESENDE, Beatriz (org.). Impressões de leitura e outros textos críticos de


Lima Barreto. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

BOSI, A. O cemitério dos vivos. Testemunho e ficção. Literatura e Sociedade, v. 12,


n. 10, p. 13-25, 6 dez. 2007.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Prefácio. In: BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. São
Paulo: Companhia das Letras. 2017.

OAKLEY, R.J. Lima Barreto e o destino da literatura. São Paulo: Editora Unesp,
2011.

PEREIRA, Lúcia Miguel. Introdução. In: BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. São
Paulo: Companhia das Letras. 2017.

PRADO, Antonio A. Uma leitura do povo para o povo. In: BARRETO, Lima. Triste
fim de Policarpo Quaresma. Unesco, 1997.

RESENDE, Beatriz. Introdução. In. BARRETO, Lima; RESENDE, Beatriz (org.).


Impressões de leitura e outros textos críticos de Lima Barreto. São Paulo:
Companhia das Letras, 2017.

SANTIAGO, Silviano. Uma ferroada no peito do pé. In: Vale quanto pesa: ensaios
sobre questões político-culturais. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1982. p. 163-181.

TEIXEIRA, Vera Regina. Clara dos Anjos de Lima Barreto: biópsia de uma sociedade.
In: Luso-Brazilian Review, v. 17, 1980, p. 41-49.

1800



A FIGURA INCLINADA DE ANDRÉS CAICEDO:
RETRATO INCESSANTE DE UM ESCRITOR SOB O INFLUXO DE
SATURNO

Gustavo Osorio Agredo, Licenciado em Letras Espanhol,


Mestre em Letras (UFSC)
Doutorando em Literatura (UFSC)
Contato: gustav285@hotmail.com

Resumo: Em duas fotografias que o retratam, aparece com o olhar fixado no chão, o rosto
levemente inclinado e apoiado sobre a mão direita à altura da fronte. A partir desta
imagem, a presente cena de leitura indaga a obra do escritor colombiano Andrés Caicedo,
à luz da teoria da melancolia, apresentada por Walter Benjamin no livro A origem do
drama trágico alemão. Por sua vez, a leitura que Susang Sontang faz do próprio Benjamin
como escritor Melancólico em Sob o signo de Saturno, nos ajuda a estabelecer uma leitura
paralela entre a obra de Caicedo e seu iminente devir lutuoso, com os entrecruzamentos
possíveis de estabelecer com a obra de Benjamin.
Palavras-chave: Melancolia; Figura inclinada; Escritor saturnino.

Em duas fotografias, entre as muitas que o retratam, ele aparece com o olhar fixado
no chão, o rosto apoiado na mão direita, à altura da sua fronte. Sobre seu fino nariz, leva
um par de grossos óculos, atrás destes um olhar absorto, um pouco mais embaixo, estão
seus lábios fechados sobre si mesmos, formam uma careta que delata angústia. Sob seus
ombros, uma comprida cabeleira preta, cai como os fios de água de uma poderosa
cachoeira. A segunda foto mostra o mesmo gesto, esta vez seus lábios descansam de
maneira natural e contrastam por carnosos em relação ao macilento que parece seu rosto.
O contexto das imagens é o mesmo, o que nos permite intuir que foram feitas
sequencialmente: jaz sentado sobre a calçada, ao fundo um carrinho de venda ambulante
de cigarros. A data em que foram tiradas as fotografias, foi segundo o próprio Eduardo
Carvajal, meses antes da sua morte em 1977, a cidade: Cali, Colômbia. O lugar: fora do
Cine Club de Cali no bairro San Fernando, o qual dirigiu durante os anos que antecederam
seu suicídio. O presente texto, visa colocar em uma cena de leitura, diversos autores que
abordam o tema da melancolia, em relação com alguns fragmentos da obra de Caicedo.

1801



Figura 1 e 2: Fotos tiradas por Eduardo Carvajal.

1802

No seu livro Origem do drama trágico alemão, Walter Benjamin faz referência ao
influxo que a melancolia exerce sobre certos indivíduos atormentados e com uma aguda
percepção. Este tipo de pessoas, as quais, por alguma circunstância cósmica, neste caso a
influência dos astros, sobre seu temperamento, -em especial de Saturno-, seu caráter está
predeterminado e são de modo geral traçadas por um devir lutuoso, um desarranjo, uma
constante inadaptação com um entorno que geralmente, lhes resulta alheio e lhes oprime
na consciência, estranho até em suas formas mais simples. Além disso, se torna a causa
de uma insuportável angústia, uma agonia crescente, que pode-se sobrelevar, só através
de sublimar tal padecimento, por meio da criação artística; isto é desenvolvendo uma
visão crítica constantemente reflexiva, levada a cabo mediante uma técnica contemplativa
já que são, por natureza, susceptíveis a uma absoluta entrega, um abandono à
contemplação que por sua vez, agudiza sua visão da vida e incrementa seu nível de
reflexão.
O luto como um estado da alma aparece aqui, segundo Benjamin como um
sentimento que reanima esse mundo vazio que lhe provoca horror ao melancólico,
tornando-se capaz de gerar uma intensificação contemplativa muito especial; o que
devém meditação profunda, questão particularmente própria deste tipo de seres, os quais
são proclives à tristeza. Essa disposição à prática contemplativa é campo fértil para a
invenção, assim como também para a tristeza que emerge ao comprovar tal abismo
desolador. Constitui tal desarranjo com a realidade, que por sua vez, provoca um
desânimo vital, próprio do melancólico:

Vale a pena cair nesta contemplação absorta, que mais não seja pelos
significados que ela certamente permite decifrar nessas constelações; mas sua
repetição sem fim estimula o desânimo vital do temperamento melancólico a
consolidar o seu desolado domino [...] A desvitalização dos afetos que provoca
a maré baixa das ondas que os faziam erguer-se no corpo pode levar a que a
distância em relação ao mundo exterior em alienação em relação ao próprio
corpo. A partir do momento em que se interpretou este sintoma de
despersonalização como um grau de tristeza, a ideia que se fazia desse estado
patológico em que as coisas mais insignificantes aparecem como chaves de
uma sabedoria enigmática, porque nos falta a relação natural e criativa com
elas, entrou num contexto incomparavelmente fecundo. (BENJAMIN, 2016,
p. 145-146)

Esta desvitalização dos afetos, se torna perceptível através do corpo, de certa


sintoma da tristeza que manifesta-se mediante o corpo, este estado de maré baixa das

1803



ondas que antes erguiam o corpo, se manifesta agora como uma postura perante a vida,
um gesto, que pode ser resumido na figura inclinada que aparece no gravado intitulado
Melancolía de Albrecht Dürer: figura meditativa, absorta em uma contemplação profunda
e com a cabeça inclinada, apoiada sobre a mão que a sustem; Benjamin se refere assim
acerca desta imagem:

É nesse espírito que, na Melancolia de Albretch Dürer, os instrumentos da vida


ativa estão espelhados pelo chão como objeto de um estéril ruminar. Esta
gravura antecipa em muito o Barroco. O saber de quem medita e a investigação
do erudito fundiram-se nela tão intimamente como nos homens do período
barroco. (BENJAMIN, 2016, p. 146)

Figura 3: Melancolia, Albertch Dürer.

1804



A referência que o autor do Origem do drama trágico alemão faz sobre este gravado de
Dürer, é chave na hora de entender a teoria sobre a melancolia e a influência de Saturno
sobre alguns seres atormentados, que faz com que se tornem susceptíveis a um jeito
especial de perceberem o mundo em que habitam e gera neles uma potência criadora. Do
mesmo modo, a constante alusão que se faz ao estudo da melancolia em relação à figura
iconológica do gravado de Dürer, partindo de Panofsky e Saxl, em seu texto sobre Saturno
e melancolia (Benjamin, 2016), e por sua vez, Jean Starobinsky em seu livro A melancolia
diante do espelho, que não só cita como também o reproduz. Da compreensão deste gesto
iconológico que representa a figura inclinada, será possível estabelecer um paralelo com
a figura inclinada de Andrés Caicedo e, claro está, sobretudo, aproximando-se à análise
da sua obra, permitirá mapear uma série de cruzamentos que são possíveis de estabelecer-
se entre a teoria da melancolia e a tendência inata que possuem certos escritores e poetas,
nascidos sob o signo de Saturno.
Desta forma, e dando continuidade a este caminho proposto, é necessário
estabelecer um panorama da vida e da obra de nosso escritor sob o influxo de Saturno.
Em 4 de março de 1977, no mesmo dia que recebe o primeiro volume impresso do que
será sua principal obra, o romance ¡Que viva la música! e com vinte e cinco anos; Andrés
Caicedo se suicida. Não obstante, esta decisão não foi fortuita, ao longo de reiteradas
menções, que são possíveis rastrear em alguns de seus textos, assim como também no seu
legado epistolar, o autor se refere constantemente à iminência de sua morte, mais
especificamente a seu suicídio. Assim é possível constatar em uma de suas cartas, escrita
à sua mãe em 1975, na qual, consciente de seu “destino fatal” (como se intitula algum de
seus relatos) antecipa seu trágico devir:

Mamacita:
Un día me prometiste que cualquier cosa que yo hiciera, tú la comprenderías y
me darías la razón. Por favor trata de entender mi muerte. Yo no estaba hecho
para vivir más tiempo. Estoy enormemente cansado, decepcionado y triste, y
estoy seguro de que cada día que pase, cada una de estas sensaciones o
sentimientos me irán matando lentamente. Entonces prefiero acabar de una
vez. (CAICEDO, 2014, p. 17)

Ao longo da sua obra, se faz uma constante menção à iminência de um prematuro


suicídio, antes de completar os 26 anos, porque segundo o fundador da revista Ojo al cine,
continuar vivendo depois dos 25 anos e tornar-se adulto é uma insensatez. É assim como
a ideia de acabar com sua própria existência se torna algo assim como uma obsessão, não

1805



sem antes realizar seu legado, deixar obra artística e literária para, desse modo transcender
no tempo. “Dejo algo de obra y muero tranquilo. Este acto ya estaba premeditado. Tú
premedita tu muerte también es la única forma de vencerla” (p.16) lhe escreve a sua mãe
na mesma carta. Sua condição de homem sumido numa permanente tristeza, um constante
sofrimento que lhe atormenta e que há tempo o persegue: a ideia de acabar com sua vida,
“Nellicita querida, de no haber sido por ti, yo habría muerto hace ya hace años. Esta idea
la tengo desde mi uso de razón. Ahora mi razón está extraviada y lo que hago solamente
es parar el sufrimiento¨ (p,16). Com esta frase dá por terminada a carta à sua mãe; dando
luzes ao que será empreender esse drástico caminho, em relação à sua própria obra e
consciente de que seu registro epistolar fazia parte de seu legado literário. Em algum
momento será lida como complemento de sua obra literária, isso sim, como um
desgarrador relato do sofrimento que o agoniava e que faz com que seja colocado dentro
dessa categoria que venho apresentando: o escritor saturnino.
Não obstante, essa suicida confissão, não se consuma, ainda em 1975 e sua estância na
terra se prorroga um par de anos, suficientes para escrever o que vai ser sua obra mais
importante: O romance ¡Que viva la música!, um sem-número de textos de crítica
cinematográfica, abundante material epistolar e alguns de seus relatos mais afamados.
Retomando o fio da meada, que nos permite associar a melancolia à figura de
Andrés Caicedo e por esse caminho à do próprio Walter Benjamin, é importante dar
cabida ao argumento de Susan Sontag, sobre a maneira como Saturno interfere na vida
do escritor, tornando-o um ser melancólico. Sontag o apresenta da seguinte maneira:

Era o que os franceses chaman un triste. Na juventude, parecia marcado por


uma “profunda tristeza”[...] Considerava-se um indivíduo melancólico,
desdenhando os modernos rótulos psicológicos e invocaba a astrologia
tradicional: “Nasci sob o signo de Saturno- o astro de revolução mais lenta, o
planeta dos desvios e das dilações...” Seus principais projetos, o livro
publicado em 1928 sobre o drama alemão (O trauerspiel, literalmente a
tragédia) e sua obra inacabada París, capital do século XIX, só podem ser
plenamente entendidas desde que se compreenda até que ponto se baseiam na
teoria da melancolia (SONTAG, 1986, p. 86)

Desta forma, Susan Sontag nos apresenta a Benjamin atravessado pelo influxo de
Saturno. Sob esta perspectiva é que o autor pensa sua obra, a desenvolve. Projetos como
o Origem do drama trágico alemão e seu livro das Passagens, são possíveis, segundo
Sontag, graças à predisposição à melancolia, a uma consciência de estar dando certa

1806



continuidade ao que se conhece como a teoria sobre a melancolia. Segundo o texto de
Sontang, Benjamin projetava seu temperamento em tudo aquilo que escrevia, era, movido
por essas forças saturninas, que fazia a escolha dos temas a tratar:

Benjamin se projetou em todos os seus principais temas, e neles projetava seu


temperamento, que determinava sua escolha. Era o que ele via nos temas, como
os dramas barrocos do século XVII (que dramatizam diferentes facetas da
“apatía saturnina”) e nos escritores a respeito de cujas obras ele escreveu de
forma tão brilhante –Baudelaire, Proust, Kafka, Karl Kraus. Descobriu o
elemento saturnino no próprio Goethe. Pois, apesar da posição polêmica de seu
grande ensaio sobre as Afinidades eletivas de Goethe contra a tendência a
interpretar a obra de um escritor através de sua vida, utilizou de forma seletiva
a biografia em suas mais profundas meditações sobre os textos revelando o ser
melancólico, o solitário. (assim, ele descreve, falando de Proust, a solidão que
arrasta o mundo em seu vértice” explica que, Kafka como klee, era
essencialmente solitário”; cita em, Robert Walser, o “horror ao sucesso em
vida”.) não se pode interpretar a obra a partir da vida. Mas pode-se, a partir da
obra interpretar a vida. (SONTAG, 1986, p. 86)

Nesse jogo de interpretar a vida a partir da obra, que o próprio Benjamin coloca, é
que o presente exercício de leitura pretende se inserir, é dizer, através da leitura da obra
de Andrés Caicedo aventurarmos em decifrar seu caráter profundamente melancólico, sua
consciência plena de ser um escritor atravessado pela angústia. Em alguns de seus
primeiros textos, neste caso um poema próprio de sua vida de adolescente, é possível
rastrear uma predisposição à tristeza, à incompreensão de um entorno ante a qual se tem
certa distância, frente à qual existe um ritmo descompassado:

Puede ser una tarde con estrellas


La tarde se parece a mí
Soy un hombre melancólico
Soy un poeta.
Cuando tenía 12 años fui a mi primera
Fiesta y fue cuando me tocó bailar por
Primera vez en mi vida. Me fue muy mal.
No me cogió el paso. Me dijo: no le
Cojo el paso y me dejó allí Y yo fresco.
Pero yo ahora pienso
Que si me hubiera cogido el paso ahora yo
Sería bailarín y no poeta.
Hay gente que puede ser poeta y bailarín
Al mismo tiempo.
Pero yo no puedo. Yo soy un hombre melancólico.
Puede ser la luna a mis espaldas. (CAICEDO, 2014, p. 25)

Neste sentido, é possível afirmar que em textos como o anterior, embora se trate de
uma poesia própria da adolescência (o forte de Caicedo não foi a poesia e sim a prosa),

1807



se manifesta um desarranjo com esse entorno, uma incompreensão, uma sorte de ritmo
descompassado que é possível rastreá-lo, em certa medida, na declaração inicial de
homem melancólico e por conseguinte de poeta. Por sua vez, a imposição da dança “me
tocó bailar por primera vez”, como símbolo de integração a ritualidades sociais, isto é
como normatização do indivíduo que se insere num grupo social; lhe resulta totalmente
estranho, sendo rejeitado por uma eventual par de baile, uma não aceitação a tal ritual, à
dança, à iniciação masculina ao cortejo amoroso, arriscando-se a uma sorte de exposição
ao ridículo, a não corresponder o ritmo esperado, por ela e pelos demais dançarinos; são
todos estes elementos que o arrojam a esse sentimento de tristeza que está implícito no
poema, mas também o que lhe permite chegar à conclusão, de que suas habilidades estão
além das práticas mundanas, o que o faz diferente, sua melancolia e sua percepção do
mundo, sua reflexão do mesmo. A explicação do porquê de seu descompasso perante a
dança, Andrés Caicedo a procura na interferência do cosmos sobre sua existência, nas
estrelas ao final da tarde, é dizer nos astros, assim como também na lua.
No texto Origem do drama trágico alemão Benjamin faz alusão à melancolia
própria dos monarcas, príncipes e déspotas, possuidores de privilégios que fazem com
que o poder os transforme em seres solitários, propensos à tristeza e isto os fragiliza, os
deixa à mercê das manifestações de decadência que acompanham a queda dos poderosos.
A loucura, nestes casos, resulta ser a companheira diabólica que lhes sussurra ao ouvido
e provoca toda sorte de desvarios e lhes arrasta ao desespero. Apesar de que Benjamin se
refira à hipocondria do príncipe, e neste caso nos referimos à melancolia de um escritor
como Caicedo; esta relação é susceptível de estabelecer-se, na medida em que nos permite
caracterizar certos traços comuns a estes dois tipos de personagens. Longe de ser um
déspota ou monarca, sua condição de escritor privilegiado, possuidor de um nível de
análise auto reflexivo, fazem com que seja possível estabelecer esse paralelo, entre estes
dois temperamentos: entre o príncipe susceptível à perturbação, à decadência de seu trono
e a do escritor vulnerável à decadência de seu próprio mundo contemporâneo. Vítima de
uma crescente loucura, produto de sua excessiva contemplação e de sua aguda
compreensão do “eu”. Numa carta que lhe escreve a seu amigo Luis Ospina, com qual
funda a revista Ojo al cine, diz:

Luis, al que conociste acá en Cali no es el Ándres que existe, el que no se


expresa porque no puede. Y no es locura, estoy aburrido ya de la última

1808



tendencia a justificar todos los actos y enriquecerlos en importancia mediante
una locura gratuita-mariguana, eso de que “para ser genio hay que ser loco”
Yo no estoy loco.
¿Yo seré genio?
Yo no estoy loco. Yo duermo normalmente, jamás he intentado acto grave
contra la normalidad, yo pago en pesos colombianos cuando se debe pagar, yo
espero pacientemente, estudio, me olvido, aprendo.
No hay esquizofrenia.[…] Cómo hago entonces para encontrar una
justificación a esta falta de coherencia, que me avergüenzo, que desmiento y
no saco la cara por la persona que conociste acá, no le mandes saludos, que no
vale nada.[…] Tal vez, tal vez, el hombre verdadero sea el que ahora te está
escribiendo [...]Tal vez, digo yo, yo sea únicamente el que te escribe: no, ése
tampoco soy yo: yo soy el que piensa un montón de cosas que decirte, el que
busca claridad en las palabras y las putas palabras no salen claras, salen
ampulosas, de vez en cuando brillantes, salen hasta “Patéticas”, qué desastre,
qué estilo tan efectivo, qué talento. Más: yo soy solamente aquél que se
emocionó con tu carta y pensó “Voy a escribirle”.
Este que ahora escribe no soy yo (quién será entonces el que, una semana
después, passa la carta a máquina), este es un gazapo, una versión mal hecha
una incapacidad. (CAICEDO, 2014, p. 36)

Sua escrita se apresenta aqui, como uma impossibilidade de expressão, quer dizer,
como dificuldade para comunicar-se, produto de uma aproximação a certa loucura, (é
sabido que Andrés Caicedo era gago, travado para falar e também uma pessoa
profundamente tímida, à hora de conversar cara a cara com outras pessoas). Sua maneira
predileta para se comunicar, era através de cartas - que enviava inclusive dentro da mesma
cidade a seus remetentes. Não obstante, este valioso fragmento de uma de suas cartas, - a
um de seus mais íntimos amigos, cúmplice de sus inquietudes intelectuais e cinéfilas -
constitui uma revelação fidedigna, de uma interessante consciência do “eu”, isto é, de si
mesmo, num jogo de alternâncias acerca da infinita possibilidade de desdobramentos que
avassalam ao autor. É plenamente consciente do jogo autobiográfico e sobretudo ficcional
que devém da contemplação, da possibilidade criativa de inventar sua própria
autobiografia, de falseá-la, de catapulta-la à dúvida e à incerteza que contém o aventurar-
se na construção de um “eu” escritor; de visibilizar uma voz própria, mas também de
estabelecer uma conflitiva apropriação do sujeito que enuncia seu próprio devir,
plenamente contraditório, absolutamente crítico, um jogo infinito de reflexos espelhados
e no centro o indivíduo esvaziado, suspeita que, este caminho, possa tornar-se um desvio,
um equívoco, um exercício de constante re- escritura, de permanente erro, que potencia
aquela consciência do “Eu”, contorna os limiares da loucura, se aproxima ao disparate, à
agonia, à morte. Se manifesta como uma clara revelação de um constante conflito próprio
de alguns artistas, conscientes do abismo de incompreensão, entre sua obra, é dizer,

1809



possuidor da absoluta convicção de que este exercício criativo, epistolar, em algum
momento será lido e entendido como vestígio, como fragmento de um compêndio de
escritos ao que costuma se chamar de obra.
Para finalizar, quero remeter-me mais uma vez à imagem que comecei este ensaio,
a figura inclinada de Andrés Caicedo. aquela imagem na qual observa, absorto e tomado
de angústia o chão. Benjamin o apresenta assim: “os olhos postos no chão caracterizam
aí o saturnino, que perfura a terra com os olhos” (BENJAMIN, 2016, 159). Essa posee,
plenamente consciente – a meu modo de ver - é a ligação saturnina de um escritor
atormentado pela melancolia, que presente dar o passo iminente da morte e neste trágico
intuito que o assalta, decide congelar o tempo no gesto de levar-se a mão à cabeça e
incliná-la um pouco para olhar, perdido para seu abismo interior. Resulta assim, uma
atitude performática que busca transcender a morte e escapar ao esquecimento, para
complementar de forma magistral, uma vida dedicada por completo a deixar obra literária.
O retrato de Andrés Caicedo, o apresenta como um herói melancólico da vida
contemporânea e caótica, e seus escritos o aproximam com as ruínas de uma cidade em
transformação como foi a Cali dos setentas. Por sua vez, suas divagações e alegorias
cinematográficas, assim como também, seu vasto legado epistolar e literário, o tornam
um escritor relevante para a literatura atual, que hoje em dia toma muito mais força,
através de uma leitura atenta. Ainda que seu percurso pela terra tenha sido fugaz, seu
legado literário o converteu num anacrônico, que depois de quarenta anos de ter escrito
sua obra, retorna para nós sussurrar ao ouvido um universo literário fascinante disposto a
ser incessantemente devorado.

Referências:
BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão, Belo Horizonte: Autêntica
editora, 2016.
CAICEDO, Andrés. Cuentos completos, Bogotá: Alfaguara, 2018.
___________! Que viva la música!, Bogotá: Alfaguara 2014.
___________ Mi cuerpo es una celda, Bogotá: Alfaguara, 2017.
___________ Em revista número 1 de elmalpensante, Noviembre-Diciembre de 1996.
SONTAG, Susan. Sob o signo de Saturno, São Paulo L&PM editores, 1986.
STARONINSKY, Jean. A melancolia diante do espelho, Rio de Janeiro, Editora 34, 2014.

1810

1811
RIGOBERTA MENCHÚ TUM: SUBJETIVIDAD, TESTIMONIO Y ESCRITA AUTO
FICCIONAL
Margareth Torres de Alencar Costa-(UESPI- UBA)

Resumo: Este artículo hace parte de la investigación propuesta en nuestra estancia pos doctoral
sometido y aprobado por la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos Aires. El
objetivo es hacer una reflexión sobre la voz subjetiva de la narradora en Yo Rigoberta Menchú Tum:
y así me nació la consciencia. Los interrogantes: ¿Qué denuncias hace Rigoberta en su testimonio?
¿Cómo la subjetividad se presenta en su voz en la medida que denuncia los malos tratos hacia la
comunidad indígena a la cual pertenece?¿Porque esta investigación considera este testimonio una auto
ficción?Lejeune(2008),Gomes(2004),Spivak(2010),Badiou(2008),Gusdorf(1963),Halbwachs(2006),
Benveniste(2005), Fairclough(2001), Amossy(2005) entre otros, apoyan la discusión.

Palabras- claves: Rigoberta Menchú Tum; subjetividad. testimonio. auto ficción

Introducción
Mi nombre es Rigoberta Menchú Tum, tengo veinte y tres años, me gustaría dar
este testimonio vivo que no aprendí en un libro, tampoco sola, ya que todo eso
aprendí con mi pueblo y eso es una cosa que me gustaría dejar aclarado:[…] Mi
situación personal engloba toda la realidad de un pueblo(BURGOS,1993,p.32)

Esta es la voz subjetiva de una mujer indígena que ya empieza su discurso diciendo que
su voz es la voz de muchos que están callados, sufriendo injusticias, se propone a dar su
testimonio que engloba todo su pueblo. La realidad política de la época, era la difícil situación
de los campesinos e indígenas de Guatemala en la guerra civil. Es una voz que habla en su
nombre y del pueblo indígena oprimido. La narradora y protagonista, testigo de los hechos
ocurridos es Rigoberta, pero en la narrativa es posible escuchar dos voces: la voz de Burgos y
la voz de Rigoberta. Cuando Rigoberta habla, es una mujer, indígena que se da voz y al
denunciar las injusticias que su pueblo sufre, y mismo ella, Rigoberta, cuando da su
testimonio a Elizabeth Burgos, está huyendo de la policía que la busca para torturar y matar.
Ella ya había sido testigo de muchos actos de violencia en contra su familia, y su pueblo,
teniendo que huir todo el tiempo. La lectura del fragmento que empieza este articulo, permite
a los lectores inferir que antes que le despertara la consciencia, Rigoberta no sabía que era
diferente, porque era maltratada junto con los suyos, desconocía porqué ella, su familia y los
demás indígenas eran mirados con desconfianza y la forma des humana de cómo eran
transportados a las fincas . Le dolía ver la triste condición a que los indígenas eran obligados a

1812
vivir así que su testimonio es una forma de protesta y una necesidad de denunciar al mundo
esta realidad. Pero mismo en su oralidad, ya intenta demostrar que los indígenas mayas son
todos hombres de maíz, el mito de la creación maya está allí como es posible verificar en esto
fragmento:“ Y así se hace mención al maíz, al frijol, a las yerbas el niño o la la niña que se va
a alimentar del maíz y desde ya está formado de maíz, pues, su madre comió maíz cuando él
se formó. Entonces , el niño, sabrá respetar y cuidar un grano de maíz que esté arrojado al
suelo””( BURGOS,1993,p.47). En todo el relato se percibe el sincretismo religioso pero
queda aclarado por la narradora que la identidad de su pueblo es la creencia en sus antiguas
raices que son pasadas de padre a hijo, de toda la comunidad a cada uno que comparte de la
convivencia en grupo. Si sales de la comunidad solo vuelves a vivir con ellos si aceptas las
reglas de la comunidad. Halbwachs (2006, p. 16), afirma que la memoria individual se apoya
en la memoria colectiva porque: “Ciertamente, si nuestra impresión puede apoyarse no
solamente sobre nuestros recuerdos, mas también sobre la de los otros nuestra confianza en la
exactitud de nuestra evocación será más grande…”
El transcurso de la pesquisa se dio de la siguiente forma: i) Lectura de la obra Yo
Rigoberta Menchú Tum de Elizabeth Burgos/ Rigoberta Menchú; ii) Selección bibliográfica
del aporte teórico; iii) Selección y fichero de lecturas teóricas que abordan el testimonio, la
memoria en la literatura; iv) Análisis de la obra objeto de estudio de este articulo científico
bajo el punto de vista de la subjetividad y del testimonio
Marco Teórico
La subjetividad y la forma como esta se presenta en el testimonio presente en Rigoberta
Menchú Tum, desnuda a los ojos de los lectores las injusticias sociales que se hacen presentes
en todas las partes del mundo marginado, en este caso América Latina, lugar en donde nuestro
objeto de estudio conoció la pobreza y los prejuicios desde muy pequeña, pero también
enseña sus costumbres, su cultura y la necesidad de respecto, del derecho a su tierra, y de
apoyo del gobierno a los autoctones. Sus padres y demás campesinos cultivaban la tierra y
por las muchas deudas que tenían los ricos, que Rigoberta denomina de ladinos, quitaban sus
tierras y sus cosas hasta que los desalojaban de vez. Rigoberta habla todo el tiempo de las
muchas injusticias que ella y su Pueblo sufrieron como por ejemplo hambre, el hecho de que
niños, hombres y mujeres trabajaban indistintamente en las fincas, la manera como eran
transportados en camiones junto con animales, siendo menospreciados además de
desconocieren el idioma del hombre blanco, lo que los hacían todavía más explotados hecho
que le despertó la consciencia para la necesidad de aprender la lengua de los blancos como
forma de auto protección. El sincretismo religioso se hace visible cuando

1813
Rigoberta( Burgos,1993.p.16) afirma: “La Biblia habla de un Dios único, .[...] también
tenemos un solo Dios, es el sol, corazón del cielo. Pero la Biblia nos enseña asimismo que
existe una violencia justa, la de Judith que cortó la cabeza al rey para salvar a su pueblo.”
Euridice Figueredo( 2013,p.11) afirma que no es fácil probar que el testimonio es
verdadero, pero siempre que se hace relatos, diarios, testimonios, autobiografías ya si está
siendo subjetivo porque:
A pesar de ser difícil hacer la separación clara entre personaje/narrador/autora[…]
debe quedar aclarado que mismo la figura de la escritora ya es una ficcionalización,
porque no hay como escribir sin ordenar, seleccionar, dar énfasis, ocultar o velar.
Crear cierto suspense de manera a mantener el interés del lector.

La lectura concienzuda de estos teóricos nos lleva a pensar que por detrás del uso del
lenguaje y comunicación lingüística, tenemos las intenciones comunicativas y una de las
actividades realizadas por aquel que hace uso de la palabra es pensar en lo que va a decir y
como va decir, para que el destinatario o destinatarios de su discurso este de acuerdo con su
punto de vista, o sea, los objetivos deseados por el anunciador del discurso sean alcanzados.
Al leer la obra de Burgos/ Rigoberta, nos percatamos que el discurso proferido por Rigoberta
revela su verdadero rostro a través del uso de la subjetividad y que esta es una marca
constante en el texto en análisis como por ejemplo cuando Rigoberta habla de la creencia que
los mayas tienen que todo ser humano nace con su doble, o sea ellos comparten la cultura y
creencia que los seres humanos son duplos y esa idea de duplicidad la dice así:
Todo niño nace con su nahual. Su nahual es como su sombra. Van a vivir
paralelamente y casi siempre el nahual es un animal. [...] Todo animal tiene un
correspondiente hombre y al hacerse mal a él, se hace mal al animal. [...] Para
nosotros, los días son divididos en perros, en gatos, en toros, en pájaros. Cada día
tiene un nahual.(BURGOS,1993,p.54)

Si al hablarnos estamos siendo verdaderos o no, al dar nuestro testimonio y exponer


nuestro punto de vista e intentar comunicar al mundo lo que nos ocurre, intentamos persuadir
nuestros lectores a aceptar nuestra verdad de la historia, a aceptarnos como somos, a
perdonarnos nuestras transgresiones y forma de vivir, y es eso que hace Rigoberta al revelar
las costumbres de su pueblo. “Camino seis leguas a pié, o sea, veinte y cinco kilómetros, para
ir de la villa de Uspantán hasta mi casa. La aldea es la aldea de Chimel, donde nací”
(BURGOS, 1993, p. 33)- traducción propia
El habla de Rigoberta la lleva a mirar el pasado y expresar las injusticias sociales a las
cuales ocurrieron y ocurren a los indígenas de Guatemala y quizás a todos los pueblos
indígenas de América Latina. La memoria es un factor ligado a la cultura y a las condiciones
sociales de cada pueblo y cada época, es posible rastrear en el discurso de Rigoberta aspectos

1814
relacionados a valores, rituales, interdicciones y organización político-social de su pueblo,
como ilustra el fragmento abajo cuando dice que su padre fue maltratado por los blancos
desde niño, su voz denuncia el prejuicio del hombre blanco y las injusticias sociales a los
pobres marginados como afirma:
[...]Pero nunca aprendió el castellano ya que lo tenían aislado en un lugar donde
nadie le hablaba y que sólo estaba para hacer mandados y para trabajar. Entonces, él
aprendió muy muy poco el castellano, a pesar de los nueve años que estuvo regalado
con un rico. Casi no lo aprendió por ser muy aislado de la familia del rico. Estaba
muy rechazado de parte de ellos e " incluso no tenía ropa y estaba muy sucio,
entonces les daba asco de verle. ( BURGOS,1993,p.23)

Modernamente la guardia de datos que remiten a la vida privada de los individuos, se


tiene dado de forma fragmentada y todo lo que dice respeto a su historia de vida, social,
política, económica, rutinera como sus vidas es incentivada por la sociedad cuya cultura lleva
mismo a cultivar la supervivencia de la memoria de los demás a través de prácticas volteadas
a la meditación, terapias de grupo, escrita de diarios con el fin mismo de examinar el yo
interior y las acciones que lleven al individuo a mejorar su conducta en sociedad,
configurando lo que afirma Gomes (2004, p.14):
La verdad de los hechos y de sinceridad del individuo – vendría a influenciar la
escrita de la historia de varias maneras y de forma recurrente, especialmente a partir
de las décadas finales del siglo XX. Puede de esa manera trazar relaciones – ni
mecánicas, ni inmediatas – entre una historia de la subjetividad del individuo
moderno, una historia de las prácticas culturales de la escrita de si y de una historia
de la Historia que reconoció nuevos objetos, fuentes, metodologías y criterios de
verdad históricos. ( traducción propia)

La intimidad narrada no visa a un lector, entonces la subjetividad en un diario, es más


libre – menos miedosa porque al escribir y leer lo que nosotros mismo escribimos creemos
que el diario solo será leído por nosotros, (hipotéticamente, claro) – entonces aquí el silencio
– es menor, no callamos lo que no puede ser dicho – lo interdicto, porque no escribimos para
sernos leídos, lo que no ocurre con las cartas y testimonios, por ejemplo, y los textos
autobiográficos, sabemos que vamos ser leídos y que somos responsables por lo que
afirmamos en nuestro texto, en se tratando de este tema, Willemart (2009), acercase-se más
cuando afirma que la autobiografía es una especie de auto ficción, porque nosotros somos el
narrador de nuestra historia y nuestro primero lector, sea escribiendo cartas, diarios, memorias
o mismo autobiografías de testimonio como lo hace en el libro en estudio Rigoberta Menchú
Tum mismo que en principio su testimonio es narrado a otra persona, que lo edita y lo escribe,
por ser Rigoberta, analfabeta, pero su ethos se manifiesta:
Cinco hermanos mayores y que cuando estábamos en las fincas, yo vi morir todavía
a mis dos hermanos mayores, precisamente por la falta de comida, por la

1815
desnutrición que, nosotros los indígenas sufrimos. Muy difícil que una persona
llegue a tener los quince años, así con vida. (BURGOS,1993,p.24)

Leyendo el testimonio de vida de Rigoberta uno percibe que los indígenas querían ser
libres, tener la oportunidad de elegir su destino, no querían bajar a las fincas pero como les
faltaba el principal que era el alimento y tener por lo menos lo suficiente para seguir cada día,
tenían que someterse. Spivak (2010,p.5) al referirse al termino subalterno aclara que esta
expresión: “ describe a las capas más bajas de las sociedades constituidas por modos
específicos de exclusión de los mercados, de la representación política y legal y de la
posibilidad de se tornaren miembros plenos en la sociedad social”. El discurso de Rigoberta
es cargado de subjetividad, acusa a los hacenderos, los dueños de las fincas y al gobierno de
explotar a los indígenas y cuando estos deciden movilizarse y construir estrategias de
supervivencia y luchar por sus derechos son perseguidos, torturados y muertos. Además
existen presentes en el texto algunos marcadores como por ejemplo: la noción de raza como
identidad del pueblo maya quiché, la religiosidad, las costumbres específicas de esa cultura
que las excluyen de los procesos y oportunidades, el derecho que uno tiene de vivir una vida
plena en el mundo y tener sus derechos respetados y su identidad. Sin embargo la memoria
individual apoyase en la memoria colectiva una vez que es posible comprobar que la prensa
internacional notició la toma de la embajada española en Guatemala, ocupada por los
campesinos, para atraer la atención internacional sobre la situación política que la dictadura
del general Fernando Romero Lucas García, en esta ocasión sometía a las capas marginadas
de la sociedad y a los indígenas a muchas privaciones, torturas y muerte.
De acuerdo con las portadas de los periódicos y de la historia real, en 1982, los militares
en el poder en Tegucigalpa decidieron aniquilar las tres frentes de guerrillas y todas las
fuerzas civiles que las apoyaban, provocando uno de los mayores genocidios del siglo XX. La
practica de la oralidad en la vida de Rigoberta e de su comunidad desarrolló en ella y sus
contemporáneos la subjetividad, todos tenían la costumbre de hablar en ceremonias, pasar sus
costumbres de padre a hijo, de madre a hija y de narrar sus historias siempre de forma
ficcionalizada por ser historia oral, o sea, todos eran iletrados por lo tanto, la oralidad hacia
parte de su día a día. Rigoberta afirma que (Burgos,1993,p. 133 )“Aprendió el lenguaje del
colonizador, no para integrarse a una historia que nunca la incluyó, sino para hacer valer,
mediante la palabra, una cultura que es parte de esa historia.”
Rigoberta habla del hambre, marginación y explotación de los indígenas de Guatemala,
su relato casa con el pensamiento de Badiou ( 2008) cuando este afirma que los derechos del

1816
hombre son de no ser maltratado (que incluye acá todo tipo de violaciones de estos derechos
como por ejemplo la tortura, la ejecución, el hambre, el no ser ofendido, al ser respetado en su
identidad cultural) y el de disponer de su libertad como el de expresarse, desplazarse, emitir
opiniones sin ser arrestado por eso.
El entendimiento solo llegó a Rigoberta, cuando supo decir quién era y percatarse de
todo el mal que sufrían ella y los suyos le nació la conciencia, quiere decir que pudo ver,
entender que esta realidad horrible en la cual vivían los indígenas no era cierto. El encuentro
de Rigoberta con Elizabeth Burgos y la invitación de esta para que aquella le contara su
testimonio de vida, su historia y la forma como los indígenas eran explotados, hizo lo que
Gusdorf ( 1963) afirmó en su libro Ecriture de Moi, ella empezó a entrar en su ser y se
transformó en su objeto de estudio, teniendo que recurrir a sus memorias y cuando lo hace es
su yo que desnuda y corrió todos los riesgos de alterar lo que iba narrando sobre su punto de
vista, su manera de ver y encarar las cosas, por eso mismo segundo Gusdorf ( 1963) escribe
un texto recriado, bajo el pretexto de narrar su vida, repetir su existencia o sea, su auto
ficción, un texto donde uno se expone, y cómo tal su subjetividad.
On peut observer aux plages de l’Océan de curieuses figures légèrement dessinées
sur le sable ; un petit crustacé, un insecte parfois, un oiseau, a marqué ce lé- ger
sillage avant de disparaître, ne laissant après soi que cette gracieuse signature.
L’oiseau s’est envolé, le crustacé s’est effacé dans le sol humide. Un photographe
pourrait relever ces empreintes pour le seul plaisir de conserver les formes et
configurations, traces bientôt effacées par le vent et la mer, sans se préoccuper le
moins du monde des êtres commémorés par ces figures fugaces. (GUSDORF,
1963,p.13)

Leyendo lo que Gusdorf afirma, corroboramos con él cuando dice que el ser humano
intentar recrear su existencia pasada e intenta repetir su existencia, el significado del texto
autobiográfico que surgió del testimonio dado por Rigoberta a Elizabeth Burgos, vá más allá
de la verdad por estar el texto cargado de subjetividad, el texto es una obra de arte.
Gomes (2004, p.15) y Philippe Willemart ( 2005) defienden que por reconocer estas
características de la escrita del yo, hasta mismo los historiadores son objeto de preocupación
que viene generando debates entre los teóricos y críticos de la escrita de si, porque la
subjetividad crear una ilusión de verdad, y mismo que los hechos narrados puedan ser
comprobados con apoyo de la memoria colectiva, lo que se escribe son textos auto
ficcionales porque están cargados de subjetividad.
Así, todas las veces que Elizabeth leía para sí misma lo que Rigoberta había grabado en
las cintas le daba a ella el derecho de borrar o reescribir lo dicho anteriormente por acordarse
de otro hecho o por el hecho de que lo que había narrado el día anterior faltaba alguna cosa o

1817
había alguna cosa que modificar. Es como si la escrita fuera un trabajo de ordenar, re-ordenar,
de esa forma el texto estaba siendo continuamente editado y reeditado.
Estas reflexiones se vuelven para los estudios de Philippe Willemart (2009,p.127)
cuando este afirma que el yo no existe, si pensamos que “ Autobiografía, significa alguien que
escribe su vida o se narra, ese alguien que, segundo el autor, se narra y al hacer esto su yo
entra en un ejercicio como si fuera la pantalla de un ordenador”. Es en este ir e venir sobre su
yo, su ser, su pasado, que el autor/narrador/protagonista borra el texto, vuelve a el muchas
veces y lo que sale de ahí es un texto auto ficcional y esa realidad es verdadera para relatos,
testimonios, diarios, cartas y todo lo que se encaja en la escrita de sí.
Las revisiones continuas se someten a la lenguaje, se pierden y se multiplican en sus
rasguños y borrones [...] sostendré a pesar de la diferencia entre el pacto
autobiográfico y el pacto de la ficción establecido por Philippe Lejeune que el
genero autobiográfico existe raramente en el sentido de una narrativa
correspondiente realmente las intenciones del escritor y a los hechos vividos y que
todo que se acerca o se dice autobiográfico es, muchas veces auto ficción.
(WILLEMART, 2009, p.146-147) traducción propia.

Todas las veces que un sujeto motivado por un interese en producir un acto de lengua
un proceso comunicativo, su discurso estará cargado de subjetividad porque el sujeto de la
enunciación del discurso puede elegir, con cierta libertad, las estrategias de habla y las formas
de agregación de su discurso, las palabras que juzga más convenientes y apropiadas, una vez
que él toma la iniciativa y todo lo que dice está cargado de intenciones, como cuando
Rigoberta narra las costumbres del pueblo maya, sus ceremonias, sus creencias .
La lengua, como materia primera del discurso, ofrece a quienes la usan una serie de
opciones (fónicas, gráficas, morfo sintáctica y léxicas) de entre las cuales hay que elegir en el
momento de (inter)actuar discursivamente. Esa elección, sujeta o no a un control consciente,
se realiza de acuerdo con unos parámetros contextuales que incluyen la situación, los
propósitos de quien la realiza y las características de los destinatarios, entre otros.
Todo acto enunciativo implica la construcción de una imagen de sí. Ethos es, por tanto,
un término que designa la imagen de si construida en el discurso del mismo o de otro que
escribe sobre él. La forma como las palabras son enunciadas establecido una ínter-relación
entre locutor/ sujeto del enunciado y su interlocutor o destinatario permite construir una
imagen de ese locutor a partir de su discurso. Para Amossy (2005, p.9):
Todo acto de tomar la palabra implica la construcción de una imagen de si. Para
tanto, no hace falta que el hablante haga su auto-retrato, detalle sus cualidades ni
mismo que hable explícitamente de si. Su estilo, sus competencias, sus creencias
implícitas so suficientes para construir una representación de su persona. Traducción
propia.

1818
Las marcas de género entendidas en el discurso de Rigoberta, no solo como la forma de
vestirse como indígena, actividades realizadas de acuerdo con las costumbres mayas como
también por la jerarquía y papeles sociales concernientes a cada uno en la época en que trata
su testimonio entre hombres blancos e indígenas, son mostradas de forma clara por Rigoberta,
clamando toda la sociedad y pueblos a hacer una reflexión a través de su testimonio, su
historia de vida y las injusticias sociales sufridas por su familia y su pueblo porque segundo
Fairclough (2001, p.91):
El discurso es una practica, no solo de representación del mundo, mas de
significación, del mundo, constituyendo y construyendo el mundo en significado.
[...] El discurso contribuye, en primero lugar, para la construcción de lo que
variablemente es referido como “identidades sociales” e posiciones del sujeto” para
los “sujetos” sociales y los tipos del “yo”. Segundo, el discurso contribuye para
construir las relaciones sociales entre las personas y tercero, el discurso contribuye
para la construcciones de sistemas de conocimiento y creencia.

Esta afirmación de Fairclough es lo que creemos que hace Rigoberta al compartir su


historia de vida, la realidad de explotación y marginalidad compartida por su pueblo, el deseo
de acabar con esta situación por eso ella representa en este libro la voz de su pueblo.
Rigoberta propone en su discurso que los indígenas sean respetados, que tengan derechos y
que el CUC es la única arma que tiene la población como instrumento de lucha.
La subjetividad, la presencia constante del yo como anunciador del discurso es objeto
posible de comprobación del inicio al fin de su libro y la subjetividad de la cual hablamos en
este trabajo es la capacidad del locutor ( Rigoberta) proponerse como sujeto conforme nos
afirma Benveniste (2005, p. 268-288);
La consciencia de si mismo solo es posible se experimentada por contraste. Yo no
empleo yo a no ser dirigiéndome a alguien, que será en mi locución un tu. Esa
condición de diálogo es que es constitutiva de la persona, pues implica en
reciprocidad – que yo me torne tu en la elocución de aquel que por su vez se designa
como Yo. [...] A que entonces se refiere el yo? A algo de muy singular, que es
exclusivamente lingüístico; yo se refiere al acierto individual en lo cual es
pronunciado el locutor. [...] La realidad a la cual el remite es la realidad del discurso.
Es en la importancia del discurso en la cual yo designa el locutor que este se anuncia
como “sujeto”. Es, por tanto, verdad al pié de la letra que el fundamento de la
subjetividad está el ejercicio de la lengua. ( traducción propia)

Dominique Mangueneau (1996) dice que el ethos como siendo el acto del anunciador de
conferir a su destinatario cierto status para legitimar su decir: el se otorga en el discurso una
posición institucional y marca su relación con un saber. El ethos nos posibilita como noción
discursiva vislumbrar la imagen del sujeto anunciador a través de su discurso. La manera
como las palabras son ditas, las frases y oraciones son formadas nos posibilitan la
construcción de una imagen verdadera del locutor exigiendo del receptor un ejercicio de
reflexión sobre lo que fue dicho conforme explican Blancafort y Valls (2008, p.2).

1819
Como miembros de grupos socioculturales, los usuarios de las lenguas forman parte
de la compleja red de relaciones de poder y de solidaridad, de dominación y de
resistencia, que configuran las estructuras sociales, siempre en tensión entre la
desigualdad y la desigualdad, la identidad y la diferencia. Las identidades sociales
de las personas – complejas, variadas e incluso contradictorias – se construyen, se
mantiene y se cambian a través de los usos discursivos. Porque es en ellos donde se
activan y se materializan esas caras que se eligen para cada ocasión.

Rigoberta bien expresó lo susodicho cuando mostró al mundo su cotidiano, las


costumbres de su gente, bien expresadas por Elizabeth Burgos que supo escuchar, valorar la
palabra del otro y en ese hablar actos más importantes que constituyeron el auto conciencia de
Rigoberta Menchú Tum, por eso la indígena pide solidaridad al mundo, porque si en su
comunidad ellos se ayudan unos a los otros también deben dejar que los demás les ayuden si
lo precisan, pero para eso hay que mostrar que ellos existen, conforme afirma Amossy (2005,
p. 13) “El rostro es una imagen del yo delineada según ciertos atributos sociales aprobados
y, a pesar de eso, compartidas, una vez que podemos, por ejemplo, causar una buena imagen
de nuestra profesión o de nuestra fe cuando causamos una buena imagen de nosotros
mismos.”
Si consideramos la difícil situación de estrés por la cuál Rigoberta venía pasando desde
su infancia y considerarnos que otra oportunidad de hablar, defender su situación de penurias
e injusticias, las persecuciones, los sufrimientos de su familia, su pueblo era más que una voz
solitaria clamando por ayuda, era una voz desesperada, que tenía la responsabilidad de
representar a todo un pueblo hace siglos amordazado. Rigoberta era una voz desautorizada a
hablar, perseguida y cómo no tenía nada más a perder, tenía que aprovechar aquella
oportunidad única, por tanto, su discurso tenía que persuadir, ser eficaz, era la defensa de
muchos que estaba en juego.
La imagen positiva se refiere al valor y la estima que una persona reclama para si
misma y Rigoberta representa todo un pueblo sin voz, entonces hay todo un esfuerzo para
defender sus costumbres, su etnia, sus valores, sus sinnúmero de sufrimientos, la explotación,
las humillaciones, por eso mismo la imagen negativa siempre aparece cuando acusa a los
ricos, a los ladinos, a la policía, al gobierno. El aprendizaje del español, lo deja aclarado, fue
un esfuerzo no para integrarse a una historia que nunca la incluyó sino para hacer valer,
mediante la palabra una cultura que es parte de esta historia., para denunciar las injusticias
sociales y económicas que estaban exterminando a los indígenas.
Consideraciones finales
Los resultados de la pesquisa nos mostraron que la obra insertase en el género de la
escrita de sí. La pesquisa nos hizo comprobar que la obra es una mezcla de defensa de la

1820
cultura de un pueblo, de las injusticias sociales en contra los indígenas pobres de Guatemala
al mismo tiempo en que la protagonista hace la defensa de su género, se da voz clama por
justicia no solamente para sí misma pero para todos los indígenas pobres e injusticiados de
Guatemala.
Rigoberta habla todo el tempo de las muchas injusticias que ella y su Pueblo sufrieron
como por ejemplo hambre, niños, hombres y mujeres trabajando indistintamente en las fincas,
la manera como eran transportados en camiones junto con animales, siendo menospreciados
además de desconocieren el idioma del hombre blanco lo que los hacia todavía más
explotados. Los sucesos que ella relata son factibles de comprobación por cuenta de la
historia oficial del país y por las noticias en los periódicos.
De todas formas la voz de testigo de Rigoberta es una voz subjetiva que clama por
justicia para sí y para su pueblo, una voz que está cansada y dispuesta a dar la vida para que
las cosas cambien para mejor, para que se acaben los prejuicios y para que los indígenas
pasen a ser valorados por lo que son y que se acabe el hambre, para que los pobres puedan
trabajar su tierra, para que mejoren las condiciones de vida de todos los pobres de Guatemala.

Referências
BADIOU, Alain. Teoria del Sujeto. Foordinado por Ricardo alvarez 1ª Ed. Buenos Aires,
Prometeo Libros, 2008.
BENVENISTE, É. Problemas de Lingüística geral I. Tradução de Maria da Glória Novak e
Maria Luisa Neri. Revisão do prof. Isaac Nicolau Salum. 5. ed. Campinas, SP: Pontes
Editores, 2005.

BLANCAFORT, H. C.; VALLS, A. T. Las cosas Del decir: Manual de análisis del discurso,
Barcelona, Editorial Ariel, 2008.

BURGOS, Elizabeth. Meu nome é Rigoberta Menchú: e assim nasceu minha consciência.
Rio de Janeiro; Paz e Terra,1993.
FAIRCLOUGH, N. Discurso e Mudança social. Brasília, Editora Universidade de Brasília,
2001.

FIGUEIREDO, Eurídice. Mulheres ao espelho: autobiografia, ficção, autoficção. Rio de


Janeiro: EDUERJE, 2013
GOMES, Â. de C. (Org). Escrita de Si, escrita da História. Rio de Janeiro: FGV, 2004.

1821
GOMES, Angela. Escrita de si, Escrita da história. Rio de Janeiro, FGV, 2004.
GUSDORF, George. Les écritures du moi. Lignes de vie1. Paris: Les Éditions Odile
Jacob,1991.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução Beatriz Sidou. São Paulo:


Centauro, 2006

1822
LEJEUNE, P. O pacto autobiográfico: de Rosseau à Internete. Trad. Jovita Maria
Gerheim Noronha e Maria Inés Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008

MAINGUENEAU, D. Pragmática para o discurso literário. Tradução: Marina


Appenzeller; revisão da tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

MIRAUX, J P.. La Autobiografía: las escrituras del yo. Buenos Aires: Ediciones
Nueva Visión, 2005.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Tradução de Sandra Regina


Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa. - Belo Horizonte
Editora UFMG, 2010.
WILLEMART, P. Os processos de criação na escritura, na arte e na psicanálise. São
Paulo: Perspectiva, 2009.

1823
AUTORES DE MEMÓRIAS: METAFICÇÃO EM EM LIBERDADE DE
SILVIANO SANTIAGO E EL SECRETO DE SUS OJOS DE JUAN JOSÉ
CAMPANELLA

Mariana Perizzolo Lencina (UTFPR)1

Resumo: Muito se discute a respeito das indefinições do conceito de autoficção. Nesse


contexto, esta comunicação reflete sobre obras que, indicando sua própria compreensão do
termo, vão além dele: dramatizam a produção do texto autoficcional. Por isso, analisamos em
caráter comparativo duas narrativas de diferentes artes da escrita no escopo de autores latino
americanos: o romance Em Liberdade (1981) de Silviano Santiago e o vencedor do Oscar de
Melhor Filme Estrangeiro de 2010, El Secreto de Sus Ojos de Juan José Campanella. O objetivo
é contemplar, nessas construções fictícias da escrita de si, o exercício da metaficção e o papel da
memória na elaboração desse tipo de texto.
Palavras-chave: Metaficção; Ficção Contemporânea; Autores Latino-americanos; Silviano
Santiago; Juan José Campanella.

Obras literárias que fundem realidade e ficção, não raro, revelam-se problemáticas
a críticos e teóricos. A razão é evidente: o caráter híbrido por efeito do trânsito entre
experiência pessoal e ficção dá espaço à incerteza sobre qual esfera deve abrigar sua
interpretação e análise: o real ou o imaginário(?).
A relação entre essas duas esferas é questão central na discussão sobre autoficção,
termo utilizado, primeiramente, pelo escritor francês Serge Doubrovsky para referir às
obras resultantes da mistura entre elementos autobiográficos e ficcionais. Esta
comunicação versará sobre a possível inclusão deste gênero na literatura de cunho pós-
modernista e o uso da metaficção nessa escrita que é pautada especialmente pela
memória e pelo relato confessional.
Duas obras serão analisadas: o romance Em Liberdade (1981) de Silviano
Santiago e o longa, vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2010, El Secreto
de Sus Ojos (2009) do diretor Juan José Campanella. Ambas são narrativas que,
indicando sua própria compreensão de autoficção, vão além: dramatizam a produção do
texto autoficcional. Neste diálogo, pretende-se enriquecer o debate no escopo de autores
latino-americanos e contemplar as formas como a ficção latino-americana entende e
representa o texto autoficcional pelas diferentes artes de escrita.

1
Mestranda em Letras pela UTFPR – Campus Pato Branco. Linha de pesquisa: Literatura, Sociedade e
Interartes. Contato: marianaperizzolo@gmail.com.

1824
Autoficção na pós-modernidade
Primeiramente, convém fazer algumas inferências ao termo “autoficção".
Doubrovsky apresenta o conceito em 1977, ano que podemos situar no período de
efervescência da crítica ao estruturalismo. Dados relacionáveis, porque essa crítica é
protagonizada por Michel Foucault e Jacques Derrida que, entre outros autores,
contestam a estruturação da episteme na cultura ocidental, onde o pensamento se forma
pela linguagem resultante da relação direta entre significante e significado, exercida por
uma oposição binária. Foucault reflete: “as línguas estão com o mundo numa relação
mais de analogia que de significação; ou antes, seu valor de signo e sua função de
duplicação se sobrepõem; elas dizem o céu e a terra de que são a imagem” (2000, p. 51),
numa clara referência ao estruturalismo de Saussure e mais tarde de Lévi-Strauss, no
qual o conhecimento dependia de estruturas estáticas para ser formulado e respondia a
modelos pré-estabelecidos.
Esse comentário está em As Palavras e as Coisas de 1966, obra que ao lado de A
Escritura e a Diferença (1967) de Jacques Derrida instaura a tendência que se
desenvolveu ao longo da década de 1970, e a partir dos anos de 1980 é chamada de pós-
estruturalismo, representada, principalmente, pelos textos já citados, e pel’A Condição
Pós-Moderna (1979) de Jean-François Lyotard e Simulacros e Simulação (1981) de
Jean Baudrillard, obras que afirmam que as narrativas de legitimação do real perderam a
credibilidade e que o saber não se constitui pela associação de uma verdade a um signo,
mas consiste em referir linguagem à linguagem.
Desse contexto intelectual emerge a concepção de autoficção de Doubrovsky. Pela
perspectiva de críticos como a canadense Linda Hutcheon, poderíamos situá-la entre as
temáticas do pós-moderno. Teorização viável, visto que em seu livro Fils, onde define o
termo, Doubrovsky discorre sobre as diversas combinações entre real e ficção
permitidas pela literatura, onde a verdade não é almejada como na autobiografia,
embora tenha um autor-narrador relatando experiências próprias. Sendo, portanto,
desconstrução do gênero autobiográfico, autoficção pode ser analisada pela estética do
pós-modernismo, movimento cultural que Hutcheon afirma abarcar os demais
movimentos desconstrucionistas como o pós-estruturalismo e o neo-historicismo.
Buscou-se a superação de um saber fixado a estruturas estáticas, no qual tanto era
maior a legitimidade da escrita que “a Lei [de Deus] foi confiada a Tábuas, não à

1825
memória dos homens” (2000, p.53), como assinala Foucault em As Palavras e as
Coisas. A contestação pós-estruturalista expõe que a conversão do passado em discurso
produz textos que em registros históricos ou subjetividades da memória, permanecem
sendo somente discursos. O homem pós-moderno constata que só conhece a si mesmo e
ao real por meio de discursos, que dependem da significação dada por cada sujeito, o
que produz uma realidade múltipla, fragmentada e, por vezes, contraditória. Capturá-la
e reproduzi-la, seria, portanto, uma tarefa impossível. Assim, a autoficção se apresenta
como uma das versões possíveis para a realidade.
Autores de memórias pela metaficção
Se em autoficção, segundo Anna Faedrich em seu artigo “Autoficção: um
percurso teórico” (2016), a matéria é inteiramente autobiográfica, a maneira
inteiramente autoficcional, temos um narrador que é autor e personagem. Essa figura -
que sela o pacto autobiográfico apontado por Philippe Lejeune (1975) - imprime no
texto autoficcional dois elementos caracterizantes da literatura no pós-modernismo: a
metaficção e a desconstrução da memória individual e coletiva.
As duas obras que dialogam nesta comunicação retratam o percurso entre real e
imaginário de narradores/autores que se propõem a narrar as próprias experiências,
produzindo ficções autoconscientes de seus artifícios para inserir o vivido no jogo
literário. Além disso, ambas se aproximam por tecerem críticas a períodos ditatoriais, no
caso de Em Liberdade, há uma crítica tanto ao presente do autor Silviano Santiago:
ditadura militar de 1964-85, quanto ao passado de seu protagonista, o Estado Novo de
Getúlio Vargas.
Grande exemplar da prosa brasileira contemporânea, Em Liberdade é o que
Hutcheon identifica por metaficção historiográfica. Silviano Santiago, seu autor, recria a
ditadura getulista da década de 1930 ao incorporar à sua escrita o estilo inimitável de
Graciliano Ramos. Seus anos de pesquisa para escrevê-la preenchem-na de fatos
históricos e da vida do autor de Vidas Secas (1938). Essa seria uma continuação
ficcionalizada de Memórias do Cárcere (1953), redigidas pelo autor alagoano após a
prisão por acusação nunca provada de envolvimento com o Partido Comunista. Sua
forma em diário encarna as “mentiras” da ficção, como as referidas por Mario Vargas
Llosa em La Verdad de las Mentiras (1990), que oferecem ao leitor um acesso à história
que não se tem na vida real. Muito do que ali é narrado foi vivido por Graciliano

1826
Ramos, são fatos. São também, entretanto, imaginação, porquanto narrados por um
autor que não os viveu. Ao amarrar as criações narrativas ao sentido histórico e
documental de Graciliano, Silviano cria imagens do real e caminha por elas como se
pelos fatos transitasse numa realização autêntica da estética da simulação de
Baudrillard. Essa estratégia pós-modernista é definida como “desescritura de memórias
famosas” pelo professor David Jackson da Yale University, que descreve:

Como um simulacro, a ficção de Silviano se constrói, antes de tudo, na inter-


relação da língua, memória e história encontrada nas memórias do cárcere de
Graciliano: Em Liberdade questiona a relação entre a história e a ficção, entre
a fala e a língua, entre o pensamento e a realidade (...) (JACKSON, 1991,
p29).

A memória é o incentivador do fazer literário também em El Secreto de Sus Ojos


(2009), adaptação cinematográfica do romance de Eduardo Sacheri, La Pregunta de Sus
Ojos (2005). É um drama policial onde um jurista aposentado, Benjamin Espósito,
retorna ao Tribunal de Buenos Aires com um duplo propósito: averiguar um crime não
solucionado há mais de 25 anos e escrever um romance sobre a investigação. Há duas
linhas temporais: o presente, em que Espósito, aposentado, escreve, investiga, revive as
afeições pela juíza Irene Hastings, mulher que amou durante todos aqueles anos, e o
passado, memórias revisitadas sobre o assassinato de Liliana Colotto, as derrotas que
Espósito sofreu no tribunal e a convivência com o amigo Sandoval.
Ressignificar o próprio passado pela literatura evoca a metaficção, elemento
presente em autoficção e em qualquer gênero de ficção autoconsciente. É definido pela
professora britânica e crítica de literatura Patrícia Waugh (2001, p.2) da seguinte forma:

Metafiction is a term given to fictional writing which self-consciously and


systematically draws attention to its status as an artefact in order to pose
questions about the relationship between fiction and reality. In providing a
critique of their own methods of construction, such writings not only examine
the fundamental structures of narrative fiction, they also explore the possible
fictionality of the world outside the literary fictional text.

O que é ilustrado pelo romance e pelo longa fica esclarecido nesse excerto: a
liberdade que a literatura tem para refletir sobre si mesma e sobre suas próprias
estratégias para se aproximar de uma verdade. Diferentemente da história, a literatura é
livre para questionar os discursos que a permeiam e elaboram. O historiador Hayden

1827
White (2001, p. 102), diante dessa questão, considera o texto histórico como um artefato
literário:

O modo como uma determinada situação histórica deve ser configurada


depende da sutileza com que o historiador harmoniza a estrutura específica
de enredo com o conjunto de acontecimentos históricos aos quais deseja
conferir um sentido particular. Trata-se essencialmente de uma operação
literária, vale dizer, criadora de ficção.

Apontamento válido, uma vez que, ambas as narrativas entram em conflito com
discursos oficiais que servem de fonte a História: o governo, o tribunal e, nas duas, o
narrador/protagonista se vale da sua posição nos devidos contextos para oferecer ao
leitor uma visão privilegiada, uma porta de entrada ao outro lado dos acontecimentos. O
apelo à memória coletiva da qual o leitor/espectador partilha é recurso oportuno à
reflexão sobre o papel do intelectual em tempos de opressão política, a saber que o
longa remonta a década de 1970, os anos da ditadura militar argentina, e a obra de
Silviano relata o regime ditatorial de Getúlio Vargas ao final da década de 30. Tais
elementos são envoltos pelos pensamentos, divagações e incertezas dos
narradores/protagonistas e isso consubstancia o puro jogo metaficcional. Exemplos
disso são as instâncias em que o narrador do romance expõe as dificuldades que podem
ter sido tanto de Silviano quanto de Graciliano em redigir suas memórias, como a
seguinte:

[...] o suor foi tomando conta do meu rosto, até que pingou uma gota na
página escrita. Fiquei pensando nela e na sua curta e passageira existência.
Ao contrário do arabesco do papel feito pela tinta da caneta, a gota de suor
vai desaparecer tão logo passe a limpo este manuscrito. Só permanecem as
palavras (SANTIAGO, 1994, p.99).

Consciente de que, a despeito do esforço do escritor, só a criação recebe


reconhecimento do leitor, o narrador transita pelo fato de que todo texto, documental ou
ficcional, expõe-se a manipulações, casualidades e imprevistos que podem alterar seu
sentido. Uma máquina de escrever que não grafava a letra “A” pertencia ao tribunal e,
mais tarde a juíza Irene deu-a como presente a Espósito, brindando seu propósito
literário. Nesses atos, o longa argentino argumenta sobre as limitações e, mesmo,
deficiências com que as instituições de poder atuam para imprimir seus discursos à
posteridade. A questão é retratada de forma singularmente poética: Espósito desperta

1828
em uma madrugada e anota em seu diário o vocábulo “TEMO”, a seguir, Irene indaga,
acerca das notas, o que ele teme. Ao longo da película, acompanhamos o protagonista
sofrendo com a máquina de escrever, tanto no tribunal como na sua aventura
romanesca. No desfecho, percebe que em “TEMO” faltava a letra “A”, formando a
oração “TE AMO”, que representava a coragem para declarar-se a Irene e a atitude de
desprender-se do passado. Nas palavras do professor Wellington Fioruci (2015, p.7):

Más que una conclusión romántica, ese recurso visual y gráfico [...] imbrica
el sueño de Espósito, es decir, su deseo, en una acción, una toma de decisión,
que lo lleva del miedo, “temo”, hacia la actitud de empezar a vivir de hecho,
“te amo”, y por eso va en búsqueda de Irene y se declara.

Em Liberdade e El Secreto chegam ao seu desfecho apresentando versões de fatos


diferentes daquelas deferidas por órgãos oficiais. O narrador de Silviano dá outra versão
a morte do poeta Cláudio Manuel da Costa na Inconfidência Mineira e, no filme,
Espósito descobre o verdadeiro assassino de Liliana Colotto e seu destino. Uma
consistente demonstração de que o passado revisitado pela ficção sempre ganha novos
sentidos.
Ricardo Morales, personagem do viúvo de Liliana Colotto, nos momentos finais
da película, adverte o protagonista: “[...]no piense más. ¿ Qué importa? [...] No le dé
más vueltas, va a empezar con que si hubiera estado, si no hubiera estado... Va a tener
mil pasados y ningún futuro. No piense más, hágame caso, se va a quedar solo con
recuerdos” (1:53:41). Ao retornar ao que já foi vivido e convertê-lo em criação literária,
autores como o Graciliano de Silviano Santiago e o aposentado Benjamin Espósito são
aqueles que percorrem algum desses mil ou tantos mais passados. Nas obras
contempladas, autoficção é, evidentemente, o caminho escolhido para transformar o
vivido em ficção. Percebe-se que a descontrução do passado é efetivamente realizada
pela autoconsciência crítica do presente (da enunciação) e esta se desenvolve pela
metaficção, que é o elemento por excelência para esse impulso artístico e filosófico,
porque é o recurso pelo qual o autor abre as portas ao leitor não apenas das suas
memórias, permitindo que ele vivencie um outro passado, mas escancara, inclusive, a
entrada aos bastidores da escrita, onde dá acesso aos seus momentos de inspiração,
também os de incerteza e os de absoluta reflexão, onde coloca em questão o seu próprio
fazer literário.

1829
Considerações finais
Entre os vários diálogos que essas obras e as relações entre elas propiciam, a
conclusão a que podemos chegar para os termos desta comunicação é que, embora se
apresente de uma forma distinta em cada uma das obras – no romance, trata-se de um
personagem histórico ficcionalizado, e no filme argentino, o personagem é inteiramente
fictício – o recurso a autoficção indica que a reconstrução do passado é um exercício de
subjetividade. Autoficção é uma forma de revisitar o passado para (re)inventar a
memória e, como mostram esses grandes exemplares das artes literária e
cinematográfica latino-americanas, a metaficção revela que, seja o texto ficcional ou
documental, autoficcional ou autobiográfico, o processo de construção dos seus
discursos passa pelo mesmo caminho.

Referências

BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio D’água, 1991.

DERRIDA, Jacques. A Escritura e a Diferença. Tradução de Maria Beatriz Marques


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Trad. Salma Tannus Muchail. 8ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

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1830
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico — De Rousseau à Internet. Belo
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WHITE, Hayden. Trópicos do Discurso: Ensaio sobre a Crítica da Cultura. Tradução:


Alípio Correia de Franca Neto. 2 ed. São Paulo, Editora da USP, 2001.

1831
A AUTOFICÇÃO E O ENSAIO: UMA LEITURA DO ROMANCE MACHADO
DE SILVIANO SANTIAGO

Marília do Nascimento Costa (UFBA) 1

Resumo: Pretendemos discutir a presença da forma ensaio no corpo da ficção, na composição


de um romance-ensaio, considerando a autoficção como um operador analítico para unir as
investigações sobre a forma do romance e a forma do ensaio na obra Machado de Silviano
Santiago. Em Machado, o narrador se apropria da dicção ensaística e da autoficção como
dispositivo para tornar-se outro. Faz de Machado de Assis ao mesmo tempo em que faz de si
mesmo personagem de um romance, se auto representa sem compromisso com a verdade
protegido pela etiqueta da ficção.
Palavras-chave: Autoficção; Ensaio; Silviano Santiago; Literatura Brasileira Contemporânea.

Na contemporaneidade, é possível observar a presença de elementos


autobiográficos na literatura e a importância que o nome próprio do autor assume dentro
da obra. Segundo Ana Claudia Viegas em entrevista à Folha de São Paulo, pode-se
apontar como tendência na literatura contemporânea o uso frequente de narração em
primeira pessoa, na qual o narrador se confunde com o próprio autor, resultando em
“personagens-escritores”. Considerando esse panorama, gostaria de comentar
brevemente o romance Machado de Silviano Santiago, autor de literatura brasileira
contemporânea, colocando em xeque a operacionalidade da junção do biográfico, do
ensaio e do ficcional nessa narrativa.
A biografia e a autobiografia são as escritas de si mais clássicas da historiografia
literária. No que tange à autobiografia, há duas formas de conceituá-la: a mais
circunscrita a considera como “um relato de vida centrado na história da personalidade”
(COELHO PACE, 2012, p. 46 apud LEJEUNE, 1971, p.10), em contrapartida a mais
ampla pode ser entendida como “toda forma de escritos em que se fala de si
diretamente, ou mesmo todo escrito no qual o leitor supõe que o autor transpõe sua
experiência pessoal” (COELHO PACE, 2012, p. 46 apud LEJEUNE, 1971, p.10). Para
Philippe Lejeune, o principal critério para a classificação de um texto como
autobiográfico é a existência do pacto autobiográfico, um pacto de verdade entre quem
narra e quem lê. Contudo, de acordo com Pierre Bourdieu (1998), no texto “A ilusão
biográfica”, as escritas de si são construídas seguindo uma sucessão linear e cronológica
na tentativa de conceber uma experiência e o relato desta experiência como

1
Graduada em Letras (UFBA), Mestranda em Literatura e Cultura (UFBA). Contato:
mariliadonascimentocosta@gmail.com.

1832
compatíveis, algo extremamente difícil, pois tanto na autobiografia como na biografia
há uma cumplicidade entre quem conta a vida e quem a escreve. Quem conta recorre à
própria memória, que não é confiável, pois certamente irá lembrar-se daquilo que
considera mais importante ou mais adequado para vir a público, quem escreve a história
faz uma interpretação daquilo que ouviu na busca por criar um sentido convencional.
Ao ler o romance Machado de Silviano Santiago não o fiz pelo viés do pacto
autobiográfico de Philippe Lejeune, ou seja, pelo compromisso com a verdade, mas sim
analisando as enredadas relações entre vida e obra de modo autoficcional.
O termo autoficção foi forjado pelo francês Serge Doubrovsky em 1977 na
tentativa de definir o próprio romance Fils que foi considerado como autobiográfico e
ficcional. Ao ser difundido pelo mundo, a autoficção adquiriu sentido em outras línguas
como o português, inglês, espanhol, italiano e até mesmo o polonês. O vocábulo tem
dado certo em diferentes cenas artísticas como, por exemplo, filmes, peças teatrais,
performances, poemas, contos, etc, alcançando o campo literário brasileiro
contemporâneo. No Brasil, a autoficção tem servido aos escritores que se assenhoram da
expressão para caracterizar suas próprias obras e o mundo acadêmico tem estado atento
para apurar, sondar e indagar sobre tal esfera teórica. Assim, o termo já aparece nas
pesquisas, nos eventos acadêmicos, em dissertações, teses e artigos, livros, e-books,
entrevistas, resenhas e postagens em redes sociais.
A diferença entre o texto autoficional Fils de Serge Doubrovsky e uma
autobiografia clássica é a procura por uma “aventura da linguagem” (GASPARINI,
2014, p. 186), pois o modo de narrar em Fils é pautado na invenção, na inovação e na
pesquisa, como salienta Philippe Gasparini. E isso também acontece em Machado de
Silviano Santiago através do hibridismo evidenciado pela mistura entre ensaio,
autoficção e romance.
Luciene Azevedo (2008, p.31), define o gênero como “uma estratégia da literatura
contemporânea capaz de eludir a própria incidência do autobiográfico na ficção e tornar
híbridos as fronteiras entre o real e o ficcional”. Desse modo, o autor volta para o centro
das discussões literárias, pois o contexto das novas tecnologias reconfigura o sujeito
contemporâneo, o que torna o espaço propício para este retorno. Segundo Hidalgo
(2013), apesar da regra estabelecida por Doubrovsky de que uma obra autoficcional
deve apresentar o nome próprio do autor como personagem principal (princípio que

1833
muitos autores não acatam), a autoficção enquanto uma categoria híbrida e fluida
permite ser interpretada no exercício literário de formas subjetivas, explorando tensões
relativas à experiência e à memória.
O romance Machado escrito pelo romancista, acadêmico, e crítico literário
Silviano Santiago foi publicado em 2016 pela editora Companhia das Letras, com o
recorte temático preciso: os quatro últimos anos de vida de Machado de Assis, o período
da viuvez do protagonista. Na capa do livro é indicado que pertence ao gênero romance,
contudo, a obra assume um procedimento narrativo que funde romance, ensaio,
autoficção e diário íntimo. Tal fato se dá porque Silviano Santiago analisa com
facilidade as questões do campo literário do final do século XIX e início do século XX,
jogando luz sobre a forma como Machado de Assis se concebe, se desenvolve, se
aprimora e se estabelece como um dos maiores escritores brasileiros. Além disso,
Silviano Santiago resgata o caminho que o conduziu a escrever o livro. Para mais, há o
investimento na mistura entre ficção e realidade. Há o Silviano autor e há o Silviano
narrador, dando espaço para a existência de um narrador-personagem, que penetra a
narrativa e mistura-se aos demais personagens. Desse modo, as características
romanescas passam a dividir espaço com o tom ensaístico e autoficcional.
No livro, o autor-personagem nasceu no mesmo dia e mês da morte do
personagem Machado de Assis. Tal coincidência aponta para a sina literária definida
pelo nascimento, consequentemente, corrobora a idealização de continuação de um
escritor em outro. Logo, há transfiguração do narrador em Machado e Machado no
narrador: “Transfiguro-me. Sou o outro sendo eu. Sou o tomo V da correspondência de
Machado de Assis: 1905-1908” (SANTIAGO, 2016, p. 49). A partir disso, podemos
concluir que quando Silviano conta a vida de Machado de Assis, critica a sua obra,
versa sobre a solidão e dificuldades para sobreviver, está falando em certa medida de si
mesmo, de modo autoficcional.
A partir disso, é possível notar uma característica da autoficção apontada por
Evando Nascimento presente no romance Machado de Silviano Santiago, o pressuposto
de que o termo autoficção equivale à concepção de altterficção, ou seja, “ficção de si
como outro, francamente altterado e do outro como uma parte essencial de mim”
(NASCIMENTO, 2010, p. 62). Logo, para Nascimento, a simetria entre os dois termos
está fundamentada na perspectiva de que as escritas de si partem da relação do sujeito

1834
que narra com a alteridade, “o eu não passa de uma ficção do outro”, uma vez que tudo
procede do outro e para ele retorna, mesmo que haja um ponto de ligação com o eu.
No romance Machado de Silviano Santiago, o narrador se apropria da dicção
ensaística e da autoficção como dispositivo para tornar-se outro. “A força da autoficção
é que ela não tem mais compromisso algum nem com a autobiografia estrito senso (que
ela não promete), nem com a ficção igualmente estrito senso (com que rompe)”
(NASCIMENTO, 2010, p. 65). Nesse sentido, há o embaralhamento das fronteiras entre
o real e o ficcional, o que dificulta a escolha do leitor entre o literal e o literário no
momento de classificar a narrativa. O afastamento da verdade factual em paralelo à
transgressão ao pacto ficcional é o ponto forte da autoficção, pois essa característica é
responsável por fragmentar e desestruturar os gêneros literários, sem necessariamente
pertencer a qualquer deles. A autoficção “participa sem pertencer nem ao real nem ao
imaginário, transitando de um a outro, embaralhando as cartas e confundindo o leitor
por meio dessas instâncias da lettra.” (NASCIMENTO, 2010, p. 65).
Silviano Santiago, em seu texto “Meditação sobre o ofício de criar” comenta que
em seus escritos tem se valido do discurso autobiográfico através do movimento de
contaminação. Ao aderir ao autobiográfico como potência criadora, possibilita a
contaminação do mesmo pelo discurso ficcional. Silviano define a sua produção como
híbrida, formada pela contaminação da autobiografia pela ficção e da ficção pela
autobiografia, opondo-se a uma escrita confessional que ambiciona expressar
sinceridade ou verdades factuais, caracterizando seus textos como uma produção que
ficcionaliza a si mesmo enquanto sujeito. “Essas mentiras, ou invenções
autobiográficas, ou autoficções, tinham estatuto de vivido, tinham consistência de
experiência” (SANTIAGO, 2008, p. 177), sem de fato ser completamente.
É possível situar Machado de Silviano Santiago na categoria de literatura pós-
autônoma, lançada pela argentina Josefina Ludmer 2 em um texto-manifesto, se
considerarmos que o romance em questão foi produzido na última década, faz parte do
arsenal latino-americano e transita dentro e fora do que tradicionalmente concebemos
como literatura e ficção, implicando na mobilização de novos modos de leitura e
categorias tradicionais de análise. Segundo Silviano Santiago, produzir textos

2
LUDMER, Josefina. Aqui América latina: uma especulação. Trad. Rômulo Monte Alto. Belo
Horizonte: Editora da UFMG, 2013, p. 127-133.

1835
autoficionais, misturar o discurso autobiográfico com o discurso ficcional, requer
“relativizar o poder e os limites de ambas, e significa também admitir outras
perspectivas de trabalho para o escritor e oferecer-lhe outras facetas de percepção do
objeto literário, que se tornou diferenciado e híbrido” (SANTIAGO, 2008, p. 177). O
que está em jogo não é mais a pureza dos gêneros, mas sim o processo de contaminação,
de hibridização, que operam como fonte de trabalho para o escritor.
O romance de Silviano Santiago desde o princípio revela os motivos que levaram
a escrever a narrativa: “compro o quinto volume da correspondência de Machado de
Assis na manhã do dia 24 de junho de 2015” (Santiago, 2016, p.13). O narrador-
personagem, solitário, velho, com o corpo fragilizado pelo tempo e pela solidão,
encontra nos últimos anos de vida do viúvo e velho Machado de Assis uma espécie de
cura para seus tormentos, ele aprecia as cartas e concomitantemente apresenta fatos que
antecederam a escrita do romance, como no trecho: “As dez digitais dos meus dedos, já
semi apagadas pela velhice da pele, ganham dez olhos de sondar e explorar o livro antes
de lê-lo” (p. 49).
Em Machado de Santiago podemos perceber uma característica comentada pelo
crítico argentino Reinaldo Laddaga em seu livro Estética de Laboratório e também
presente em outras obras da literatura contemporânea. Ao resgatar o caminho que o
conduziu a escrever o livro, Santiago forja a si mesmo e ao processo de escrita (aí
emerge o que identificamos como uma dicção ensaística) aproximando-se do que
Laddaga chama de uma “visita ao estúdio” de produção do autor e que torna possível
aos leitores “formar uma ideia da pessoa e do pensamento do autor”. Embora saibamos
que se trata de mais um artifício, pois, como o próprio Laddaga aponta “um artista se
expõe enquanto realiza uma operação em si mesmo. O que mostra não é tanto ‘a vida
(ou sua vida) como ela é’, mas uma fase da vida (ou da sua vida) que se desenvolve em
condições controladas.” Desse modo, não deixa de ser interessante pensar que a dicção
ensaística presente no romance Machado pode ser pensada como um artifício para
reinventar a literatura.
Embora em Machado seja nítida as relações entre vida e obra, o que está em jogo
no romance de Silviano Santiago não é o caráter biográfico da obra, mas sim a cultura
brasileira, nesse sentido, não há uma biografia como o mapeamento de uma vida
privada, há uma bioblibliografia, ou seja, a biografia seria menos factual do que

1836
bibliográfica que se constrói a partir de outros gêneros literários, pela história intelectual
do período, pela história da cidade, uma vez que a história do Rio de Janeiro foi
marcante para Machado de Assis, e se constrói, principalmente, pela tentativa de
compor a organização mental de Machado de Assis, o autor carioca era um grande leitor
de Gustave Flaubert, o famoso romancista francês. Assim como Silviano Santiago,
doutor em Literatura Francesa, também é leitor de Flaubert. Desse modo, percebemos
que, para a construção do romance, o autor recorreu às próprias leituras das obras de
Machado de Assis, a leituras de escritores contemporâneos, às leituras da literatura
francesa, aos indícios de leituras realizadas por Machado de Assis pessoa civil,
construindo uma bioblibliografia. Assim, Silviano aproxima de modo autoficcional
personagens que não seriam naturalmente aproximados em uma biografia – como o caso
de Machado de Assis e Gustave Flaubert – uma vez que os dois personagens não se
conheceram, não viveram no mesmo período, apenas um era leitor do outro.
A partir da discussão proposta em “O que é literatura e tem ela importância?” de
Jonathan Culler, torna-se possível perceber o traço biobibliográfico presente em
Machado como uma forma de intertextualidade, característica dos textos literários, “as
obras são feitas a partir de outras obras: tornadas possíveis pelas obras anteriores que
elas retomam, repetem, contestam, transformam.” (CULLER, 1999, p. 40) Assim sendo,
o romance de Silviano Santiago encontra-se entre outros textos, transversalmente
afetados por essas outras narrativas. Tal característica faz da literatura um evento
linguístico que mobiliza outros discursos, a exemplo de “um poema que joga com as
possibilidades criadas por poemas anteriores ou como um romance que encena e critica
a retórica política de seu tempo” (CULLER, 1999, p. 40).
Outra característica existente no romance Machado de Silviano Santiago e
salientada por Jonathan Culler é a auto reflexividade da literatura. De acordo com o
teórico, “a literatura é uma prática na qual os autores tentam fazer avançar ou renovar a
literatura e, desse modo, é sempre implicitamente uma reflexão sobre a própria
literatura.” (CULLER, 1999, p. 41) Em Machado é fácil perceber essa qualidade a partir
da dicção ensaística própria da obra, seja em momentos que o autor elabora a si mesmo
e ao processo de escrita, seja em momentos que o narrador tece comentários críticos
acerca das obras literárias de Machado de Assis e o campo literário brasileiro. Desse
modo, o romance Machado é em algum nível sobre os bastidores da escrita do romance,

1837
“sobre os problemas e possibilidades de representar e dar forma e sentido à experiência”
(CULLER, 1999, p. 41).
Para finalizar, a qualidade convulsiva revelada pela narrativa talvez seja a maneira
que Silviano Santiago escolheu para fazer menção ao modo como Machado de Assis
escreveu, indo e voltando, com muitas digressões, mas numa tentativa de se aproximar e
também homenagear o mestre, falando dele mesmo, Silviano Santiago, e do modo
anômalo como construiu o romance. No romance Machado, Silviano Santiago parece
tentar dar uma outra volta ao parafuso da crítica biográfica, reapropriando-se da relação
entre vida e obra para reinventá-la.
Pensando assim, talvez seja possível considerar Machado, o livro de Silviano
Santiago, como um romance de resistência, resistência do nome de Machado e de sua
magnífica obra, da própria crítica e da ficção, pois, ao reelaborar as relações entre vida e
obra, Santiago resiste ao tão alardeado fim do romance e compondo uma forma híbrida
faz a literatura resistir.
Desse modo, temos em Machado o romance de consagração de Silviano Santiago,
logo, é fácil perceber em Silviano Santiago uma consciência do seu lugar no tempo, da
sua contemporaneidade, pois não é possível que um escritor tenha significação completa
sozinho, é preciso que ele esteja inserido no ceio de uma tradição, ou seja, atribuímos
significado ao autor a partir das relações que ele estabelece com seus antecessores. “Não
se pode estima-lo em si, é preciso situá-lo, para contraste e comparação”. (ELLIOT,
1989, p. 39) Sendo assim, as peculiaridades do romance Machado que o distingue dos
romances modernos salientam o lugar de quem marca e modifica a tradição.

A ordem existente é completa antes que a nova obra apareça; para que a
ordem persista após a introdução da novidade, a totalidade da ordem
existente deve ser, se jamais o foi sequer levemente, alterada: e desse modo
as relações, proporções, valores de cada obra de arte rumo ao todo são
reajustados; e aí que reside a harmonia entre o antigo e o novo (ELLIOT,
1989, p. 39).

Referências

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de literatura comparada, nº12, 2008.

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f. Dissertação de Mestrado em Estudos Linguísticos, Literários e Tradutológicos em
Francês, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
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Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo
(UFES), em 6 de outubro de 2011.

VIEGAS, Ana Cláudia. O retorno do autor – relatos de e sobre escritores


contemporâneos In: VALLADARES, Henriqueta Do Coutto Prado (org.). Paisagens
ficcionais: perspectivas entre o eu e o outro. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007.

SANTIAGO, Silviano. Machado. 1º ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

SANTIAGO, Silviano. Meditação sobre o ofício de criar. Aletria, 2008, p. 173-179.

1839
URDIDURAS DO RESSENTIMENTO EM HILDA HILST1

Rodrigo Santos de Oliveira (UFMG/CEFET-MG)2

Resumo: Hilda Hilst (1930-2004) recebeu em 1992 o convite para escrever no “Caderno C” do
Correio Popular de Campinas. Nota-se que as principais questões discutidas nas obras anteriores
aparecem citadas, revistas e ampliadas nas crônicas e/ou formas breves compiladas em Cascos
& carícias (1998). No conteúdo desses textos, a escritora consolida a estética da recepção de si
mesma como estratégia de reparação, já que o insistente discurso de Hilst, nas crônicas e
também nas entrevistas desse período, revela certo ressentimento acerca do seu legado literário
sob o rigor da crítica e do afastamento do público leitor. Assim, o ressentimento aqui aparece
vinculado ao biografema de Roland Barthes e à pulsão anarquívica de Jacques Derrida.
Palavras-chave: Hilda Hilst; ressentimento; biografema; pulsão anarquívica

Ressentimento: um gesto, duas entradas

A incursão por diversificados formatos literários possibilitou a Hilda Hilst (1930-


2004) a experimentação visceral de linguagem, bem como a (re)criação de gêneros
narrativos e poéticos no itinerário historiográfico da literatura brasileira. Em 1992, a
poeta recebeu o convite para escrever no “Caderno C” do Correio Popular de Campinas.
A escritora paulista ainda era pouco conhecida tanto no cenário acadêmico quanto para
os leitores em geral, uma vez que sua obra ficou muito tempo ausente das prateleiras das
livrarias.
Nota-se que as principais temáticas discutidas pela poeta aparecem citadas nas
crônicas ou ensaios datados do período entre 1992-1995, logo depois compiladas em
Cascos & carícias (1998). O conteúdo delas expõe, em tom de denúncia, as condições
de miséria, os problemas ambientais, a corrupção e o descaso governamental para com a
população brasileira; há também a preocupação da escritora em divulguar poesia,
filosofia, pesquisas científicas e literatura (nacional e universal) para um público não
acadêmico. Para isso ela se vale do arremedo coloquial, às vezes chulo, aglutinado ao
tom hermético e poético. Além disso, Hilst propõe revisitar de forma crítica, sobretudo
autoelogiosa, a sua fortuna literária.
Alcir Pécora (2008) destaca nesse conjunto a experimentação criativa da escritora
enquanto cronista humorista. Hilst busca justificar em alguns momentos o porquê de se
utilizar o cômico como mote e válvula de escape diante das agruras cotidianas:

1
Esta análise é a prévia de um dos capítulos do meu projeto de doutorado sobre o ressentimento nas
crônicas hilstianas. É, portanto, um esboço embrionário da tese.
2
Doutorando em Estudos Literários (UFMG). Contato: rodrigocabide@gmail.com.

1840
Uma das coisas que eu mais admiro em alguém é o humor. Nada a ver com a
boçalidade. Alguns me pedem crônicas sérias. Gente... o que eu fui séria
neste meus quarenta e três anos de escritora! Tão séria que o meu querido
amigo, jornalista e crítico José Castello escreveu que eu provoco a fuga
insana, isto é, o cara começa a me ler e sai correndo pro funil do infinito. Tão
séria que provoco o pânico. E nestas crônicas o que menos desejo é provocar
o pânico... Já pensaram, a cada segunda-feira, os leitores atirando o jornal
pelos ares e ensandecendo? (HILST, 2018, p.97)

As crônicas, comparadas às entrevistas proferidas pela autora ao longo da década


de 1990, versam frequentemente em torno do ressentimento. Prentende-se lê-las aqui
sob o viés autobiográfico. Hilda revela-se ressentida devido aos problemas editoriais em
torno da circulação e distribuição da sua obra, bem como repisa o descaso da crítica
literária em relação a sua produção.
Phillippe Gasparini parte das leituras de Lejeune sobre a distinção entre
autobiografia e romance autobiográfico e, sobretudo, de Doubrovsky para esboçar o seu
conceito de autoficção. O autor pretende traçar a origem e aplicabilidade do termo ao
compará-lo à autobiografia. Gasparini, lendo Doubrovsky, compreende a autoficção
como traço seletivo da história narrada, descontinuidade, fragmentação, metadiscurso,
incerteza: “por uma certa ética fundada na dúvida sistemática, dúvida que se refere à
exatidão dos fatos e à boa fé do próprio autor”. (GASPARINI, 2014, p.193)
Nas crônicas hilstianas pode-se entender o gesto autoficcional quando da voz
autoral emerge o cronista bufão, personagem descontínuo e abrupto que oscila entre o
lamento sobre o seu ofício e o deboche sobre os maus hábitos da sociedade, entre a
exaltação da poesia e a depreciação em torno do desgoverno dos políticos para com o
povo. Alcir Pécora assim demarca essa dicção ficcional evocada por Hilst nessa
coletânea:

Outras estratégias hilstianas para a crônica dizem respeito à criação de


fábulas com moralidade invertida [...] que esculhambavam alguma lembrança
do momento com historietas nonsense[...] Outras crônicas, ainda, simulam
uma espécie de entrega ao fluxo de lembranças momentâneas e aos desvios
mais inesperados do andamento argumentativo, o que produz uma impressão
de imediatismo e improviso total, como uma conversa que irrompe ali
mesmo, sem fim e sem começo[...]. (PÉCORA, 2007, p.20)

O uso máscara da autoral nas crônicas – recurso recorrente na prosa e poesia


hilstiana, em A obscena Senhora D. (1982) e Da morte. Odes mínimas (1980), por

1841
exemplo – engendra um personagem que transgride o pacto factual do gênero em nome
da inserção de fabulações ficcionais e de exercícios poéticos. Revelando-se, dessa
maneira, indigno de confiança no veículo informativo.
Nas entrevistas e nas crônicas há um embaralhamento autoral acerca do factual e
do ficcional, a escritora – que assumia reler sua obra e saber de memória trechos da
prosa e poemas inteiros – cita partes da obra como se fossem fatos ocorridos em sua
trajetória biográfica ou menciona versos dos poemas como aforismos ou (auto)citações
filosóficas. Outro dado significativo, apontado pelas biógrafas Luísa Destri e Laura
Folgueira, é o fato de Hilda sempre indicar um texto distinto do seu repertório como
favorito, com o objetivo de desestabilizar a pergunta padrão destinada aos escritores em
entrevistas, mas sobretudo de fazer publicidade da sua própria produção artística.
Aspecto também reiterado nas crônicas.
A manisfestação do ressentimento em Hilst foi inicialmente abordada por José
Castello numa entrevista com a autora em 1994 para a Folha de S.Paulo. Neste
trabalho, o jornalista e crítico literário enfoca o tema devido ao depoimento da escritora
em reportagens e entrevistas concedidas ao longo dos anos 1990. Percebe-se que o gesto
ressentido, tanto nas crônicas quanto nas entrevistas, ocorre de maneira indissociável da
autovalorização do seu trabalho literário.

A urdidura biografemática: remendo e reparação dos restos

Em “A morte do autor” (1968), Roland Barthes decreta a importância da isenção


do sujeito em relação ao escrito. Segundo a ótica estruturalista de análise, a obra é mais
valiosa e significativa porque exclui o sujeito que se encontra nos bastidores dessa
trama. Ao publicar O prazer do texto (1972), influenciado pelas teorias psicanalíticas,
Barthes revê essa concepção ao erguer a imagem simbólica do escritor como o homem
da teia:

texto quer dizer tecido; mas, enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado
por um produto, por um véu todo acabado, por trás do qual se mantém, mais
ou menos oculto, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a
ideia gerativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento
perpétuo; perdido neste tecido – nessa textura – o sujeito se desfaz nele, qual
uma aranha que se dissolve ela mesma nas secreções construtivas de sua teia.
(BARTHES, 2002, p. 74-75)

1842
Não considerando mais a figura autoral morta e sepultada, Barthes sugere
metaforicamente repensar o lugar escritor comparado-o a uma aranha que,
alternadamente num “entrelaçamento perpétuo”, se esconde e se revela em sua própria
teia. Alusão potencializadora e convergente para esta análise, que permite a
constatação de que em tal processo a teia (obra) apresenta lacunas, fissuras, rasuras,
rastros autobiográficos, nomeados pelo semiólogo francês por biografema.
O conceito de biografema – construído embrionariamente por Roland Barthes
em Sade, Fourier e Loyola (1971) foi depois desdobrado como anamneses ou
autobiografemas em Roland Barthes por Roland Barthes (1975) – é definido por
Leyla Perrone-Moisés como pequeno elemento biográfico, resíduo integrante do
campo imaginário afetivo que, por isso, não compõe a verdade objetiva sobre o
sujeito. Ao contrário, integra a biografia descontínua, representa a falha por meio de
pormenores isolados, uma vez que “o biografema é o detalhe insignificante, fosco”
(PERRONE-MOISÉS, 1985, p.15).
François Dosse considera a virada barthesiana erigida a partir do conceito. Para
ele, o semiólogo francês constrói em O prazer do texto uma espécie de autobiografia
não linear ao por em xeque suas próprias subjetivações, ao se converter em objeto
retratado de maneira parcial e dispersa. Segundo Dosse, o biografema impele a uma
relação metonímica, de maneira que parte da obra pode evocar a recomposição do
indivíduo.
Eneida Maria de Souza (2002) o define como pressuposto da crítica biográfica,
ao considerá-lo registro operatório na construção fragmentária do sujeito na obra.
Assim, por biografema também pode ser inferida a noção de transplantes figurativos
de unidades mínimas de vida convertidas em escrita literária ou unidades mínimas de
uma “vida escrita”3. Para a ensaísta, compete à crítica biográfica considerá-lo método
teórico embasado em metáforas residuais que são engendradas a partir de laços
estabelecidos entre obra e vida de determinado escritor. Nas palavras da pesquisadora:

3
Ruth Silviano Brandão define “vida escrita” por unidade biografemática e combinatória, a via de mão
dupla, entre escrever e viver: “a escrita se faz por seus traços de memória marcados, rasurados ou
recriados, no tremor ou firmeza das mãos [...], na superfície das páginas, da tela, da pedra, e onde se
possam fazer traços, mesmo naquilo que resta desses traços, naquilo que não se lê [...], marcas dessa
escavação penosa que fazemos no real”. (BRANDÃO, 2006, p.28)

1843
Reunidos por um fio temático e enunciativo, independente de intenções ou da
época em que viveram, escritores e pensadores constituem matéria biográfica
a ser explorada no nível teórico e ficcional. [...] Esse procedimento é dotado
de liberdade criativa, por conceder ao crítico cera flexibilidade ficcional
sobre o objeto em análise, não se prendendo à palavra do autor, mas indo
além dela [...] Nas entrelinhas dos textos consegue-se encontrar indícios
biográficos que independem da vontade ou propósito do autor. Por essa
razão, o referencial é deslocado, por não se impor como verdade factual.
(SOUZA, 2011, p. 20-21).

Em Cascos & carícias, além dos textos informativos e do teor opinativo, Hilda
apresenta aos leitores sua antologia, seu legado fragmentário e residual. Nessa
publicação jornalística semanal, a poesia é (auto)citação, motivo e sublimação diante
das tribulações cotidianas: “Diante da selvageria, do pânico, da desordem só nos resta a
poesia”. (HILST, 2018, p.69). Ou seja, os restos da obra é o que sobrevive à ruina do
esquecimento atribuído naquele contexto à produção dela. Na crônica, a escrita é guiada
por certo princípio de sabotagem, traição criativa, porque muitas vezes ela nada escrevia
no espaço do jornal, apenas relia e elencava poemas ou excertos de trabalhos anteriores.
A necessidade de imprecisão da técnica esbarra no megalômano embaralhamento
entre obra e trajetória biográfica: “Não estou a fim de escrever crônica, não. Tô a fim de
quimeras. Na vida e no texto. Então é isto aqui: eu mesma, lindo palimpsesto”. (HILST,
2018, p.315). Para Leonor Arfuch (2010) não há coincidência entre o narrado e o
vivido, nem na autobiografia, uma vez que quando o sujeito escreve, quando aciona o
processo de elaboração artística, aparta-se da experiência.
Dominique Combe endossa tal argumento ao traçar um panorama do sujeito lírico
em contraposição ao sujeito retórico, ficcional. Inicialmente, o autor identifica a
aproximação do primeiro ao sujeito empírico e o segundo circunscrito no plano de
construção diegética. No entanto, reconhece a experimentação ficcional do sujeito lírico
quando ocorre a transposição do “eu” em outros pronomes, ratificando, via esse desvio
referencial do “eu” empírico para o “eu-lírico”, a formulação também de um
personagem poético que difere do sujeito. Para ele:

a poesia lírica opera deslocamentos metonímicos.[...] Em termos de figura


retórica, essa inclusão do particular no geral, do singular no universal, parece
dizer respeito ao mecanismo lógico-retórico da sinédoque generalizante [...]
É em tal desvio que abre o espaço da ficção na poesia. A esse processo de
ficcionalização interna aproxima-se ainda a crítica alemã, quando atribui ao
“eu lírico” o valor de um “ele” próximo do Épos, introduzindo aí uma
distância que faz do sujeito seu próprio objeto. (COMBE, 2009-2010, p.124).

1844
Em vias metonímicas o sujeito retórico e lírico de Cascos & carícias tece sua
urdidura biografemática. Percebe-se que essa modulação categorizada como
palimpsesto opera-se por meio do recurso criativo do remendo e do reparo. O remendo é
a costura bricolada (repetida e diferenciada) de si mesma, o palimpsesto autorreferencial
(inserção revisitada de excertos da prosa e dos poemas na crônica), o gesto de reparo –
proferido no restrito espaço de um jornal popular – é a exaltação (“palavra rara” e “ouro
de dentro”) do que foi produzido ao longo da carreira literária, o resistente desejo de
memória frente ao suposto descaso da crítica e do público leitor. Como lenitivo
performatizado, Hilda Hilst oferece aos leitores sua herança dos restos, sua literatura em
segunda mão: “Que triste que seja tão verdadeiro o fragmento do livro Tu não te moves
de ti, cuja autora é esta modesta cronista de horas vagas, eu sim, que tenho sido
apedrejada (coitaaada!). Recortem-no (comprar o livro seria pedir demais)” (HILST,
2018, p.37)

O gesto anarquívico do ressentimento

A primeira crítica biográfica acerca do ostracionismo atribuído à obra hilstiana foi


proposta por José Castello. O jornalista utilizou a própria metáfora cultural
emblematizada por Hilda, numa entrevista concedida a ele, ao mencionar o fracasso de
sua literatura: a maldição de Potlatch. O primeiro a estudá-la foi o antropólogo Marcel
Mauss, em seguida Georges Bataille em A parte maldita, segundo Castello foi a partir
dessa obra que a escritora paulista teve contato com o conceito. Castello assim o define
a partir da leitura de Bataille:

Os etnólogos identificaram o Potlatch pela primeira vez pelos índios da costa


noroeste americana. Em um ritual incompreensível para nossa sociedade, os
ameríndios tinham o hábito de pegar a parte mais importante de sua riqueza e
simplesmente destruí-la. Bataille encontrou indícios do mesmo ritual de
sabotagem em outras culturas, bastante diversas entre si, o que pode indicar
que o homem carrega um elemento fixo, um espécie de impulso para o
aniquilamento [...] ameríndios nos tempos de maior fartura, incendiavam
aldeias inteiras, ou destruíam canoas, armas e reservas de alimentos. [...] O
Potlatch se constrói sobre uma lógica bastante elementar, mas nem por isso
menos cruel: a de que a maldição traz a glória. (CASTELLO, 2006, p.94)

Para José Castello, o discurso incisivo e bombástico da autora intensificou-se


quando ela despediu-se da “literatura séria” e passou a escrever textos pornográficos.
Neste contexto, Hilda travou brigas com vários editores, alguns amigos e leitores fiéis

1845
que desprezaram a mudança radical. Numa das entrevistas ela revela, em tom
ressentido, a revolta com um dos mais notórios editores brasileiros:

Eu fico indignada com os editores como o Luiz Schwarcz, que vive abrindo o
bocão falando que faz questão de qualidade. Quando ele montou sua própria
editora, eu mandei os meus livros e ele não quis publicar nenhum. Tudo bem,
mas quando ele paga perto de 3 milhões de cruzeiros de adiantamento por
esse livro da Bruna [Lombardi], aí acho desaforo pessoal que ele faz a um
escritor [...] Não que ela não mereça esse dinheiro, mas é um absurdo [...]
deixar um escritor que ele edita, como é o caso de Caio Fernando Abreu,
lavar pratos em Londres porque aqui o trabalho dele é desprezado em
detrimento dessa subliteratura. Sr. Schwarcz, isso eu não desculpo. (DINIZ,
2018, p.145)

Em Mal de arquivo, Jacques Derrida, a partir da leitura das pulsões freudianas,


esboça o conceito de “pulsão do arquivo” ou “mal de arquivo” a partir da pulsão de
morte. Para o filósofo, todo arquivamento revela-se paradoxal, pois comporta no cerne
da prática de conservação e do desejo de memória a própria destruição. Pretende-se
reler a maldição Potlatch filiada à pulsão de morte, enquanto poder de perder, como
exercício anarquívico no que se refere ao gesto de Hilst de compilar nas crônicas
semanais o seu acervo poético e ficcional de maneira altiva e celebratória. Contudo, ao
elevar a obra, a autora endossa contraditoriamente o seu próprio esquecimento, ao
arquivar-se, esquiva-se do pertencimento ao cânone naquele contexto dos anos 1990.
Essa estratégia autobiográfica é lida aqui como remendo e reparação dos restos.
Portanto, a maldição de potlatch, suplementada aqui pela pulsão anarquívica
derridiana, desencadeiam (via ressentimento) o ato de queimar-se na mídia, alusão à
expressão popular “queimar o filme” ou até mesmo “perder a linha”, porque Hilst
profere um discurso inflamado, hiperbólico e escatológico:

Romário vai receber um milhão de dólares por um novo contrato. E eu então


quero saber a opinião de vocês: será que se eu vendesse os direitos autorais
de todos os meus escritos, depois da morte também, tudo tudo, montanhas de
papéis (quarenta anos de trabalho) para algum bom de bola de sucesso limpar
o rabicó para o resto da vida, ia dar certo? [...] É um horror isso de ter tanto
prestígio e todo o teu texto não valer nem o excremento nem o mijo de algum
sedutor de massas [...] (HILST, 2018, p.281)

De maneira geral, ressentimento indica a repetição do sentir. Também demarca


uma operação narcísica, seja de autoadimiração ou autodepreciação, uma projeção

1846
individual de delegar ao outro a culpa do próprio fracasso, a origem do que o faz sofrer.
Ele também revela-se num atualizado processo de urdidura, já que o ressentido é um
fiandeiro compulsivo de memórias, de traumas passados não superados. Para Maria Rita
Kehl, a temática do ressentimento não é só de propriedade da psicanálise, sendo
identificada também na filosofia nietzschiana. Kehl assim define uma das facetas do
ressentido:

O ressentido não acusa a si mesmo nem reconhece a sua responsabilidade


diante da perda sofrida [...] o que o ressentido reinvidica é o reconhecimento
desse suposto valor, ou o exercício de um direito do qual acredita ter sido
privado por alguém: no horizonte fantasmático do ressentido está sempre a
figura de um usurpador [...] Não se pode dizer que o ressentido tenha
perdido um objeto; o que ele perdeu foi um lugar. (KEHL, 2015, p.55-56)

É justamente a cobrança reivindicatória desse lugar enquanto escritora e mulher


que Hilda exige reconhecimento:

A crítica “me agraciou” com os prêmios mais prestigiosos [...] E aqui, no


meu país, eu sou tratada [...] exatamente como era tratada aos olhos dos
hipócritas quando eu tinha vinte anos: uma puta. Sim, porque eu era tão
autêntica, tão livre, tão bela e tão apaixonante! AHHHH! O ódio que toma
conta das gentes quando o talento é muito acima da média! E como se
agrava contra nós esse ódio quando se é mulher! E quando se fica uma
velha-mulher, aí somos simplesmente velhas loucas, putas velhas, poetisas
sacanas, asquerosas, enfim! (HILST, 2018, p.260)

Mais que unir as pontas entre escrita e vida, pelo viés da bricolagem ou de um
princípio arquivístico de consignação, mais que um gesto autoficcional ou projeto
autobiográfico, Cascos & carícias pode ser lido como um acerto de contas literário.
Hilda buscou no suporte semanal do jornal popular revisitar, divulgar, atualizar e
ampliar seu universo ficctício e poético. Se, em linhas discursivas, o ressentimento é
obsessivo, hiperbólico e jocoso, esteticamente ele é, antes de tudo, político. Resistência
ao esquecimento, reivindicação e reparação. Reverbera-se pelo insistente desejo de
circunscrição no cenário literário brasileiro, de pertencimento a um lugar de direito –
renegado ainda a muitas mulheres sobretudo no setor trabalhista e na esfera da
representação política, ainda que ele esteja redefinido ou reduzido biografematicamente
na expressão de uma glória mal dita.

1847
Referências

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dilemas da subjetividade contemporânea. Trad. Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ,
2010, p.35-82.

BARTHES, Roland. O prazer do texto. 3.ed. Trad. J.Guinsburg. São Paulo: Editora
Perspectiva, 2002.

BARTHES, Roland. A morte do autor. In: O rumor da língua. Trad. Mario Laranjeira.
São Paulo: Editora Brasiliense, 1988, p.65-70.

BRANDÃO, Ruth Silviano. A vida escrita. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006.

CASTELLO, José. Hilda Hilst: A maldição de Potlatch. In: Inventário das sombras.
3.ed. Rio de Janeiro: Record, 2006, p.92-108.

COMBE, Dominique. A referência dobrada: o sujeito lírico entre a ficção e a


autobiografia. Trad. Iside Mesquita e Vagner Camilo. In: Revista USP. n.84. Dez-fev.
2009-2010, p.17-25.

DERRIDA, Jacques. Exergo. In: Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Trad.
Cláudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001, p.17-38.

DINIZ, Cristiano (Org.). Fico besta quando me entendem: entrevistas com Hilda Hilst.
São Paulo: Globo, 2013.

DOSSE, François. Os biografemas. In: O desafio biográfico: escrever uma vida. Trad.
Gilson César de Souza. São Paulo: Edusp, 2009, p.306-314.

FOLGUEIRA, Laura; DESTRI, Luísa. Eu e não outra: a vida intensa de Hilda Hilst.
São Paulo: Tordesilhas, 2018.

GASPARINI, Philippe. Autoficção é o nome do quê? In: NORONHA, Jovita Maria


Gerheim (Org.). Ensaios sobre a autoficção. Trad. Jovita Maria Gerheim Noronha e
Maria Inês Coimbra Guedes. Editora UFMG, 2014, p.181-221.

HILST, HILDA. 132 crônicas: Cascos & carícias e outros escritos. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2018.

KEHL, Maria Rita. Ressentimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2015.

PÉCORA, Alcir. Nota do organizador. In: HILST, Hilda. Cascos & carícias e outras
crônicas. 2.ed. São Paulo: Globo, 2007, p.15-21.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Biografemas. In: Roland Barthes: saber com sabor. 2.ed.
São Paulo: Brasiliense, 1985, p.9-19.

1848
SOUZA, Eneida Maria de. Notas sobre a crítica biográfica. In: Crítica cult. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2002, p.111-120.

SOUZA, Eneida Maria de. A crítica biográfica. In: Janelas indiscretas: ensaios sobre
crítica biográfica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, p.17-25.

1849
LITERATURA DE SI E PERTENCIMENTO: A CONSTRUÇÃO DE UMA PAISAGEM
LITERÁRIA EM O CEMITÉRIO DOS VIVOS, DE LIMA BARRETO

Ana Carolina Nery Albino (Université Lumière-Lyon2)1

Resumo: Em seu texto “Paysage avec dépaysement”, Jean-Luc Nancy parte das palavras pays, paysan e
paysage para explorar a relação existente entre elas. Seria assim, pays tido como uma situação ou espaço
qualquer; paysan, como uma ocupação e, paysage, como uma representação. A criação de sentido alcançada
por meio da ocupação do espaço (pays) seria uma maneira de se produzir uma paysage (paisagem).
Propomos, a partir das questões levatadas, uma compreensão do romance inacabado e publicado
postumamente O Cemitério dos Vivos (1956), do carioca Afonso Henriques de Lima Barreto, a partir de uma
leitura que contrasta o sentimento de exclusão e deslocamento, superados por uma forma de pertencimento
encontrada através da Literatura.
Palavras-chave: Lima Barreto; escrita de si; literatura de si; heterotopia; dépaysement

Lima Barreto – alguns dados biográficos e a relação com o seu tempo

Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881 e morreu na mesma cidade em 1922.
Apesar de sua vida breve, o autor teve uma vasta produção e discutiu, por meio da literatura, uma
série de questões como o papel da imprensa e o poder exercido pelas instituições sobre os
indivíduos, opondo-se de maneira bastante crítica, inclusive por optar pelo uso de uma linguagem
que ia na contramão do que pregava a Academia e seus seguidores. A sua produção literária, desde a
impressão de seu primeiro livro Recordações do escrivão Isaías Caminha, custeada pelo autor
através de empréstimos e publicado pela livraria Clássica, de A. M. Teixeira & Cia, em Lisboa, no
ano de 1909, chamou a atenção dos críticos da época que, tanto reconheciam a capacidade literária
do autor, quanto apontavam em sua obra a existência de problemas com a escrita e a forma dos
textos, notadamente por apresentarem um aspecto personalista.2
Neto de ex-escravizados e negro em uma sociedade marcada pelo peso da abolição tardia, o
autor confrontava-se com a segregação social e procura mostrar por meio de suas narrativas, seja
nos textos de jornais, nos contos ou nos romances, o preconceito racial quase que naturalizado pela
estrutura social. Lima Barreto percebeu as lutas que se davam nos tecidos sociais de sua época no
momento em que elas aconteciam e reagia a esse contexto através de seu discurso e postura
literários. O seu posicionamento não foi diferente diante da experiência talvez mais extrema que
sofrera na vida – a entrada no hospício, em que indivíduo a-social, que já não se sentia pertencente

1Graduada em Estudos Literários pelo Instituto de Estudos da Linguagem (UNICAMP), Mestre em Literatura Lusófona
pelo Departamento de Estudo dos Mundos Espanofônico e Lusófono (Université Lumière - Lyon 2)
Contato: ac.nery-albino@univ-lyon2.fr.
2 O crítico José Veríssimo, em carta escrita em 1910 dizia: “Há nele[Recordações do Escrivão Isaías Caminha], porém,
um defeito grave, julgo-o ao menos, e para o qual o chamo para sua atenção, o seu excessivo personalismo. É
pessoalíssimo, e, o que é pior, sente-se demais que o é.”A carta que contém essa crítica só veio a público no ano de
1956, com a publicação das obras completas de Lima Barreto pela editora Brasiliense, organizada por Francisco de
Assis Barbosa, Antônio Houaiss e Manuel Cavalcanti Proença. Ver Lima Barreto, Correspondência Ativa e Passiva,
Editora Brasiliense, 1961, vol.I, pp.204-5.

1850
às várias esferas sociais, fora obrigado a lidar, desde a sua entrada nesta instituição, com a perda
maior da individualidade, sendo caracterizado pelo anonimato, no meio de muitos outros. A sua
produção literária em nada suavizara ou contribuíra para sua situação de interno e ele passava a
fazer parte da massa homogeneizada que ocupava o Pavilhão de Observação do Hospital Nacional
dos Alienados, a dividir o espaço com insanos de todo tipo não sendo ele propriamente louco.

A experiência do Hospício – a escrita de um Diário

“Se essas notas forem algum dia lidas, o que eu não espero, há de ser difícil explicar esse sentimento
doloroso que eu tenho de minha casa, do desacordo profundo entre mim e ela; é de tal forma nuansoço a
razão de ser disso, que para bem ser compreendido exigiria uma autobiografia, que nunca farei. […]
Guardando-as, eu poderei fazer delas como pontos determinantes da trajetória da minha vida e do meu
espírito e outro não é o meu fito. Aqui bem alto declaro que, se a morte me surpreender, não permitindo que
eu as inutilize, peço a quem se servir delas que se sirva com o máximo cuidado e discrição, porque mesmo
no túmulo eu poderia ter vergonha”

Diário íntimo – Lima Barreto

Foi em plena véspera de Natal, no verão de 1919 que, em meio a uma crise de delírios, Lima
Barreto fora recolhido pela polícia e conduzido ao Pavilhão de Observação do Hospital Nacional
dos Alienados. O consumo excessivo de álcool, responsável pelos seus “acessos de loucura”, o
encaminhava mais uma vez para as dependências do Casarão da Praia Vermelha. O alcoolismo era
tido como uma ausência de controle e, associado à loucura, funcionava como a justificativa
necessária para que cidadãos fossem retirados do convívio, para que fossem eliminados da ordem
social, que não autorizava pobreza e miséria a olhos vistos.
Vale ressaltar que essa prática de recolhimento de pessoas das ruas, seguido da reclusão na
instituição fazia parte do controle dos desvios daqueles que não se enquadrassem na lógica de
modernidade pensada para as cidades naquele início de século XX, sobretudo depois das reformas
urbanas por que passara a capital da jovem República. Esse episódio não fora, provavelmente, único
na história das cidades brasileiras e poderia, inclusive, ter sido encerrado na caixa das histórias
anônimas jamais contadas ou lidas, não fosse a iniciativa de Lima Barreto de registrar sua passagem
pelo hospício através de notas tomadas no período de sua internação.
Depois de poucos dias como interno, ele passa a registrar em notas aquilo que comporia
mais tarde o Diário do Hospício. Ora, esse tipo de escrita de si - expressão assim conferida pelo
filósofo Michel Foucault aos escritos íntimos, assim como às correspondências é uma prática que
remonta aos tempos das escolas filosóficas da antiguidade greco-romana, em que a busca de si
passa pelo exercício da escrita. O que nos interessa aqui é, sobretudo, pensar nesse recolhimento do

1851
vivido como uma maneira de enfrentamento ao ambiente heterotópico3; de criar uma outra realidade
por meio da escrita, como forma de resistência, ou, ainda, de reconstrução da existência por meio da
Literatura.
A sua primeira anotação data de 4 de janeiro de 1920 e desperta atenção pela clareza com
que escreve. Trata-se de uma escrita clara feita por um interno lúcido e atento ao espaço ocupado,
ciente de sua situação e do poder exercido pelo aparato policial e psiquiátrico sobre ele e os demais
ali reunidos. Ele diz:

Estou no hospício ou, melhor, em várias dependências dele, desde o dia 25 do mês
passado. Estive no pavilhão de observações, que é a pior etapa de quem, como eu, entra
para aqui pelas mãos da polícia. Tiram-nos a roupa que trazemos e dão-nos uma outra, só
capaz de cobrir a nudez, e nem chinelos ou tamancos nos dão. [...] Deram-me uma caneca
de mate e, logo em seguida, ainda dia claro, atiraram-me sobre um colchão de capim com
uma manta pobre, muito conhecida de toda a nossa pobreza e miséria. Não me incomodo
muito com o hospício, mas o que me aborrece é essa intromissão da polícia na minha vida.
De mim para mim, tenho certeza que não sou louco; mas devido ao álcool, misturado com
toda a espécie de apreensões que as dificuldades de minha vida material, há seis anos, me
assoberbam, de quando em quando dou sinal de loucura: deliro. (BARRETO,2010,p.43)

Os seus apontamentos, desde o início, mostram-nos não apenas um Eu que pretende escrever
sobre sua realidade íntima de interno, afirmando sua lucidez, mas de alguém que usa o espaço da
escrita também para mostrar como o corpo policial, em nome da ordem e sob tutela do Estado, agia
indiscriminadamente, afastando da vida em comunidade os considerados potencialmente perigosos
para que a então capital federal – o Rio de Janeiro da Belle Époque – mantivesse a sua boa imagem
de espaço urbano arquitetado. Em outras palavras, mostrava como o discurso científico invalidava
quem não pudesse, de acordo com seus “princípios”, fazer parte da “sociedade equilibrada” e
contribuir para o seu desenvolvimento rumo à modernização e se baseava no discurso da
“degeneração das raças”, fazendo com que muitos indivíduos fossem, assim, privados da vida em
sociedade e conduzidos a lugares criados para que fossem “educados”, tratados como doentes antes
de uma possível reinserção social ou, em casos extremos de desamparo familiar, simplesmente
afastados para serem completamente esquecidos nesses locais, sem perspectiva de um retorno à vida
em sociedade.
Lima Barreto, forçado à reclusão, teria, assim, vivenciado todas essas formas de violência,
em que a ameaça de enlouquecimento a que fora submetido, nesse ambiente, cercado por loucos,
reforçava ainda mais o sentimento de exclusão. A decisão de tomar notas num Diário mostra que
ponto a Literatura foi o meio encontrado para compreender a si mesmo diante da situação limite que
experimentava. A urgência conferida à pluma e, mais do que isso, o já pronunciamento de uma
possível ficção desse material-vivência mostram como o afastamento permitido por meio da ficção
3 Recuperamos aqui a heterotopia, termo usado por Michel Foucault para designar um espaço ocupado pelos indivíduos
de maneira involuntária. Ver Milchel Foucault, Le corps utopique, les hétérotopies, Paris: Nouvelles Éditions Lignes,
2004.

1852
anunciava uma certa liberdade de investigar a si mesmo por meio do outro, sendo esse outro a
personagem criada para uma Literatura de si, unindo os elementos reais e pessoais, aos elementos
criados com a ficção. A partir dessas anotações, ainda dentro do hospício, Lima Barreto registra o
desejo de ficcionalização dessa experiência por meio de um romance, este O Cemitério dos Vivos,
que não fora, no entanto, finalizado. O primeiro capítulo que compõe a obra fora publicado na
revista Souza Cruz, ainda em janeiro de 1921, mas sob o título de As Origens. A primeira versão da
obra só viria a público em 1953 e, depois, em 1956, apareceria a versão que une as notas do Diário
com as páginas do romance.
Podemos perceber a partir desse conjunto certa problematização da própria questão de
gênero literário, uma vez que já no Diário encontramos indicações de um esboço de ficção, em que
o Eu, normalmente característico do autor nesses escritos de circunstâncias também aparece, por
vezes, nominado como na ficção – Vicente Mascarenhas, ou, ainda, Tito Flamínio, uma outra
possibilidade de nome que fora descartada – assim como encontramos, no romance, dados que
correspondem aos escritos pessoais presentes não apenas no Diário, mas também em outros textos
do autor. O Diário revela em suas notas, imbuídas de valor literário, as dores e reflexões da
passagem pela instituição, revelando, em tom fragmentário, muito do processo de criação do autor.
O romance, narrado em primeira pessoa pelo narrador-personagem Vicente Mascarenhas percorre
questões sociais, problemas de relacionamento, angústias da dificuldade de escrever até chegar ao
alcoolismo e passar dele à internação. A privação da liberdade e perda de autonomia e legitimidade
do discurso, levaram criador transformar-se em criatura para, por meio da Literatura, exprimir-se.
Vicente, assim como seu criador, é levado ao hospício na noite de Natal, e carregado por um
carro-forte de polícia, de onde é conduzido para o pavilhão superlotado destinado a indigentes e
alcoólatras. A narrativa, ainda que seja pautada por memórias e identificar personagens e
instituições histórico-sociais importantes, como os médicos com os quais teve algum tipo de relação
no Casarão da Praia Vermelha, demonstra ter encontrado a forma para seu romance e para as críticas
à sociedade nele contidas.
Já no final de sua estadia no casarão da Praia Vermelha, Lima Barreto, em entrevista datada
de 31 de janeiro de 1920, para A Folha expõe a perda de liberdade imposta pela instituição, pois
considera ser o Hospício “uma prisão como outra qualquer, com grades e guardas severos”. No
entanto, é bastante curiosa a sequência de sua fala, quando o autor afirma: “Para mim, porém, tem
sido útil a estadia nos domínios do senhor Juliano Moreira. Tenho coligido observações
interessantíssimas para escrever um livro sobre a vida interna dos hospitais de loucos. Leia O
Cemitério dos Vivos.”4 Apesar de difícil a estadia do hospício, ela funciona como impulso para a
produção literária, que parece se impor de maneira ainda mais urgente, sobretudo quando pensada
4Augusto Massi e Murilo Marcondes de Moura (Orgs.), Lima Barreto: Diário Íntimo e O Cemitério dos Vivos, Cosac
Naify, 2010, p. 294.

1853
sob a ameaça constante de morte em vida na “casa dos loucos”. O processo de reconstrução da
experiência em romance só se deu, no entanto, após a alta, como previra o autor na referida
entrevista: “Agora só falta escrever, meter em forma as observações reunidas. Êsse trabalho
pretendo encetar logo que saia daqui, porque aqui não tenho as comodidades que são de desejar
para a feitura de uma obra dessa natureza.” (BARRETO, 2010, p.297)
Percebemos, assim, que a essas notas está imbricado seu projeto anunciado de
ficcionalização de si – ao que chamamos Literatura de si – que faz com que o limite entre o real e
imaginário seja bastante tênue, quando não confunde as duas ramificações. Nesse sentido, o próprio
Diário perderia seu caráter estritamente confessionário podendo, então, ser apreendido também pela
criação literária já evocada; assim como o romance, ainda que inacabado e preenchido de
construções ficcionais, poderia ser tomado a partir do viés da escrita íntima; quase como uma
autoficção, por justamente transpor, muitas vezes, passagens idênticas de um registro ao outro;
marca de modernidade para sua época.
O romance apresenta uma estrutura bastante fragmentária, mas conta com a indicação de
cinco capítulos que são construídos de maneira a mostrar o percurso de Vicente Mascarenhas e sua
relação com a Literatura, sua formação como leitor e depois como escritor. Ele é, então, narrado,
como já fora aqui evocado, em primeira pessoa pelo narrador-personagem Vicente Mascarenhas e
tem seu fio condutor desvelado desde a sua abertura: a imagem de sua esposa Efigênia no leito de
morte que, proferindo suas últimas palavras, revela-lhe um último pedido, quase como quem
entrega um amuleto, numa tentativa de transmissão de uma mensagem que não pudera – por
questões que nos escapam – ser anunciada em outro momento que não fosse no limite de maior
potência extremada de vida: aquele que antecede a morte. Eis que nos confrontamos com a seguinte
frase-súplica de Efigênia: “Vicente, você deve desenvolver aquela história da rapariga, num livro.”
(BARRETO,2010,p.145). O pedido claro de que seja desenvolvida uma tal história já nos coloca em
alerta para o fato de haver, por trás dessa relação, uma outra que, por meio da escrita de um livro,
atravessa todo seu percurso literário, que parece ser o interesse maior de sua investigação.
Para construir essa que será a narrativa de si, ele parte do outro e atravessa diversos âmbitos
do espaço social, passando também pelo literário. Isso porque nessa sua relação com a mulher
encontramos, mascarada, uma ligação maior que vai se delineando, e que segue ao encontro da
Literatura. As suas referências literárias são revisitadas e, muitas vezes, colocadas em evidência. Ele
faz uso delas nos momentos em que sua condição humana é colocada em xeque, como na cena em
que fora obrigado a se despir para tomar banho junto dos colegas de internação, além de ter de lavar
o banheiro: “Eu me lembrei do banho de vapor de Dostoiévski, na Casa dos mortos. Quando
baldeei, chorei; mas lembrei Cervantes, do próprio Dostoiévski, que pior deviam ter sofrido em

1854
Argel e na Sibéria. Ah! A Literatura me mata ou me dá o que eu peço dela!”
(BARRETO,2010,p.46)
Diante da humilhação de se colocar nu diante de tantos outros que, Mascarenhas, que se via
ali numa mesma massa uniforme, através de suas memórias de leitor salva-se, relativizando seu
martírio diante do que tiveram de afrontar os seus mestres. A referência aos livros mostra-se
bastante efetiva também quando a personagem tem a opção de mudar de seção e escolhe justamente
aquela onde se encontra a biblioteca do hospício – na seção Calmeil – lugar muito conhecido e
frequentado pelo autor na ocasião de sua primeira internação, em 1914. A memória fora cedida à
personagem, que passa a usar o espaço da biblioteca para manter seu contato com as leituras, com a
Literatura e com a crítica literária. É dessa forma que temos acesso ao acervo que a compunha,
conhecimento dos livros faltantes, assim com dos novos títulos e, também como ela era frequentada
e ocupada pelos outros internos, a que ele observava atentamente. A biblioteca era, de certa forma,
um espaço que guardava em si outros espaços e através de seus livros, em especial os de ficção,
permitia a saída, ainda que pontual, de dentro do ambiente hospitalar; a literatura serviria, assim, de
acúmulo de valores essencialmente humanos ao qual o narrador recorre para resguardar sua própria
humanidade.
Além disso, é por meio desse levantamento das obras que percebemos o esforço do narrador
em mostrar-se também erudito, uma vez que, ao enumerá-las, ele mostra ter conhecimento delas e,
sobretudo, afirma novamente sua sanidade e lucidez face ao mundo e aos outros ali presentes.
Através dessa construção, Lima Barreto pôde rever elementos do próprio percurso e esteticamente
passou a elaborá-los nesta narrativa. Pode-se dizer que, de certa forma, ele utiliza os escritos do
Diário do Hospício como parte da matéria para uma constituição de si a partir da construção de uma
ficção. No recolhimento de tantas experiências e pensamentos – seus e alheios – Lima Barreto, por
meio de seu personagem, refaz-se. A narrativa carrega em si momentos de crítica tanto à estrutura
hospitalar quanto ao tratamento conferido aos loucos nesse momento, de expressão das sensações
causadas pelo confinamento e pelos contatos estabelecidos na instituição. No entanto, o processo da
escrita extrapola o período de internação e reúne situações e pensamentos referentes a conflitos
pessoais e anteriores, ou seja, permite que o autor se conheça não só como alguém que saiu do
hospício, mas também como indivíduo e sua relação com o mundo. Essa seria sua autoficção,
problematizada já em vida e, ainda que não pudera ser terminada, mostra a modernidade do texto
barretiano. Ainda que não possamos falar aqui em autobiografia – se considerarmos o que nos fala
Philippe Lejeune ao descrever que para haver o pacto, o Eu narrador da trama deveria ser o mesmo
o Eu do autor – seria esse texto um de seus romances autobiográficos. Apesar de falarmos de um
retrato de si por meio do texto literário não se pretende reduzir, absolutamente, o texto à biografia,
mas perceber como é que o Eu não narra apenas uma história centrada em si, mas faz uso de sua

1855
história para descrever um quadro maior. O que se pretende destacar aqui é justamente o fato de que
nessas narrativas o Eu, ao exprimir-se, apresenta-nos uma memória coletiva de seu tempo, que
extrapola as reminiscências do universo pessoal. Em outras palavras, o que temos é um retrato cru
do cotidiano, que carrega em si um discurso fragmentário e seus ecos de uma cidade também
fragmentada, que tentava apenas superficialmente modernizar-se, afastando da cidade tudo aquilo
que poderia diminuir seu embelezamento, condenando, muitas vezes, os indivíduos ao anonimato.
Se a impossibilidade de pertencimento às muitas faces da cidade já se colocava como
questão para certos indivíduos, quando confrontados ao ambiente heterotópico, sentiam ainda mais
latente o desconforto e o peso da exclusão – ou, melhor, do dépaysement. Diante de tamanha
ausência de pertencimento, o sujeito para salvar-se precisa criar uma ocupação que o permita
afastar-se do ambiente presente, para que possa criar uma outra realidade onde se possa existir. Tal
como mostramos a partir do diálogo com aquilo que propõe Jean-Luc Nancy, seria essa produção de
uma ocupação a possibilidade de se produzir uma paisagem. Insistimos nesse aspecto sobretudo
para pensarmos o dépaysement sob a lógica do indivíduo que não sendo louco se vê encerrado no
meio deles e precisa, a todo custo, reivindicar sua lucidez. Reivindicá-la não por meio de uma
afirmação verbal, que poderia ressaltar a insanidade diante do corpo médico, mas por meio da
criação de algo que esclarecesse o conhecimento da situação que lhe fora imposta.
É preciso, primeiro, conhecer os sofrimentos aos quais está sujeito o Homem, e o Hospício –
onde ele está encerrado, marcado pela consciência de não ser louco – parece despertá-los e funciona
como a realidade limite do que pode ser experienciado. No caso de nosso narrador-personagem, a
falta do espaço privado dentro da instituição fora convertida em espaço literário; a ausência de
pertencimento o levou a criar uma outra realidade por meio da imaginação e da criação de uma
literatura que desse conta da sua trajetória, afastando-o desse lugar.
Diante desse quadro, ao recapitular a trajetória de Vicente – esse desajustado social que
deixa a terra natal, vive entre o centro e o subúrbio, casa-se por convenção, não se forma doutor,
nem se adapta ao meio literário, entregando-se, por conta desses problemas, ao consumo do álcool
e, no limite mais drástico, encaminhado para o lugar heterotópico: o hospital psiquiátrico – somos
levados a entender como é que esse ambiente manicomial para o qual fora conduzido, intensificou
nele o dépaysement; provocou nele o constante sentimento de não pertencimento a nenhum lugar, a
nenhum pays. Isso o fez voltar-se para si para encontrar, diante desse ambiente de completa
anulação, a sua ocupação: a Literatura de si, a única maneira possível de resistir ou, na verdade, de
existir. Não se pode esquecer que uma das grandes queixas de Vicente em sua narrativa consiste
justamente no fato de ter sido levado para o Pavilhão, para onde são levados os indigentes. O seu
status de jornalista e escritor foram logo esquecidos, fora obrigado a despir-se e a colocar um
uniforme, sendo igualado aos outros, tendo sua identidade também desconstituída.

1856
Diante dessa perda identitária, de uma queda brusca em que a intimidade não pode estar
presente, o meio encontrado para manter sua existência enquanto indivíduo e afirmar sua lucidez foi
a escrita, a escrita de uma Literatura de si. Para conseguir existir, ele absorve todos os elementos,
menciona personagens sem ação, que só existem vinculadas a si, e constrói nessa abertura de si o
que seria uma paisagem. Em O Cemitério dos Vivos, acompanhamos, dentro dessa perspectiva, o
processo de marginalização de Vicente Mascarenhas e a criação de uma ocupação literária como
forma de diferenciação do meio; de possibilidade de existência no ambiente cercado por loucos. O
texto é, então, constituído de maneira fragmentária, por vezes repetitiva e, como era de se esperar,
inacabado. Ainda assim, ao acompanharmos o fluxo escolhido para a narrativa, pudemos perceber
como é que a história é tecida, de modo a cruzar-se com outras histórias que convergem sempre
para um projeto literário; em que Literatura e sua importância como resistência ao insulamento
ocupariam, assim, o centro.
Essa Literatura de si não pode, no entanto, ser vista apenas como um exercício da escrita de
si, de um depósito de opiniões pessoais expressas em sua literatura, mas nesse projeto de ficção de
si encontramos também uma maneira pública de colocar em discussão assuntos e problemas
relevantes para a sociedade de sua época. Nesse, e em outros textos, fica clara a questão do
tratamento conferido aos loucos, a indignação face ao horror do hospício, às normas e ao
cientificismo característicos dessa época, em que alcoolismo e loucura foram associados, pensados
sob a lógica da modernização da cidade no começo do século XX.
O projeto de ficção, já anunciado nas notas que compuseram o Diário, não pôde ser levado a
cabo, o que não nos surpreende e, pelo contrário, despertou-nos ainda mais interesse ao pensarmos
que seria mesmo impossível reconstruir um outro destino para si e que, mesmo no plano ficcional, o
rumo da personagem não poderia ser definido. A sua condição de texto inacabado, incompreendido
na sua época de produção, assim como durante muitos anos pela crítica dos estudos literários,
instiga-nos a lê-lo, hoje, a partir de seu caráter de obra moderna, justamente por seu caráter
fragmentário, em que o retrato de si é composto também por meio da observação de muitos outros.
A personagem deu sentido à vida por meio da comiseração partilhada com outros companheiros,
ainda que precisasse deles se diferenciar. Essa maneira de compreender a condição humana por
meio do sofrimento extremo marca não apenas essa obra, mas a produção barretiana dos anos que
antecederam a sua morte.
Nesse sentido, poderíamos ainda recuperar um trecho da conferência O Destino da
Literatura, em que o projeto literário e o papel concedido à Literatura enquanto criação de uma
ocupação que permite ao indivíduo alguma forma de pertencimento ao mundo ficam bastante
evidentes: “a Arte, especialmente a Literatura, a que me dediquei e com quem me casei; mais do
que ela nenhum outro meio de comunicação entre os homens, em virtude mesmo de seu poder de

1857
contágio, teve, tem e terá um grande destino na nossa triste Humanidade.”(BARRETO, 2017,
p.279). O romance O Cemitério dos Vivos teve sua trama tecida em conjunto com outras obras e a
fragilidade humana apareceu, em suas diversas faces, vinculada à necessidade de se criar uma
ligação com o mundo possível apenas pela Literatura. A escrita de si presente no Diário, fora
convertida em Literatura de si no romance e evidencia o poder de contágio do texto literário,
oscilando entre a capacidade de destruição e a potência da criação de uma resistência maior, de uma
verdadeira resiliência face ao horror instalado. Poderíamos, assim, aproximar esse exprimir-se
poeticamente daquilo que chamamos anteriormente da criação de uma ocupação para que a
paisagem pudesse ser construída, para que o sujeito pudesse, enfim, existir, afirmando-se através da
Literatura.

Referências
BARRETO, Lima. Recordações do Escrivão Isaías Caminha; introdução de Alfredo Bosi; prefácio de
Francisco de Assis Barbosa; notas de Isabel Lustosa. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras,
2010.

BARRETO, Lima. Diário do hospício; O cemitério dos vivos. In: MASSI, Augusto; MOURA, Murilo
Marcondes de (Orgs.). São Paulo, SP: Cosac Naify, 2010.

BARRETO, Lima. Impressões de Leitura; prefácio de M. Cavalcanti Proença. 2. ed. São Paulo: Brasiliense,
1961.

BARRETO, Lima. Diário íntimo: prefácio de Gilberto Freire. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1961.

BARRETO, Lima. Correspondência, ativa e passiva; prefácio de Antonio Noronha dos Santos. 2. ed. 2.v.
São Paulo: Brasiliense, 1961.

BESANÇON, Guy. L’écriture de soi. Paris : L’Harmattan, 2002.

FOUCAULT, Michel : Le Corps utopique, les hétérotopies. Présentation de Daniel Defert. Fécamp : Lignes,
2009.

HIDALGO, Luciana. Lima Barreto e a literatura da urgência: a escrita do extremo no domínio da loucura.
248 f. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2007.

LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique. Paris : Seuil, 1975.

NANCY, Jean-Luc. Paysage avec dépaysement, in : Au fond des images. Paris: Galilée, 2003.

1858
LIBERDADE PARA AS ESTRELAS: ESCRITAS DE SI E RELATOS DE
LEMBRANÇAS
Ana Flávia Araújo Dias (CES/JF)

Resumo: Este trabalho tem por objetivo relatar as vivências de Marina, personagem da obra
Liberdade para as estrelas (1988) de Cleonice Rainho por meio da narradora e prima Berenice.
Ela (re) vive os acontecimentos que envolveram a vida da Marina, mas também de toda a família
numa estratégia de flashback. Portanto, não são apenas relatos de si, mas da prima e seus
familiares. Isso configura ao romance o caráter de memorialismo não somente individual como
coletivo, de acordo com Maurice Halwbalcks. As escritas de si favorecem o resgate dessas
memórias e a reconstrução do passado no presente.
Palavras-chave: Cleonice Rainho; Escritas de si, Memória; Liberdade para as estelas.

Cleonice Rainho

A escritora, poetisa, contista e romancista, Cleonice Rainho Thomaz Ribeiro, autora


do romance Liberdade para as estrelas (1988), corpus deste trabalho e da dissertação
intitulada Eu voltei para contar um contexto de exceção na obra Liberdade para as
estrelas, de Cleonice Rainho que esta pesquisadora apresentou para obtenção do título de
mestra, nasceu na cidade de Angustura, município de Além Paraíba em Minas Gerais.
Essa escritora, que morreu aos 97 anos em Juiz de Fora, teve uma produção intensa,
escrevendo e publicando mais de trinta títulos ao longo de sua carreira e uma participação
ativa na vida cultural juizforana, figurando, portanto, entre os grandes nomes. Transitou
pelos gêneros, romance, ficção infantil, crônica, conto, poesia, editorial para jornais
importantes em Juiz de Fora e região, a citar o periódico, O jornal, do Rio de Janeiro,
chegando a assumir uma coluna dirigida ao público feminino com o pseudônimo de
Iracema.
Desde muito jovem Cleonice Rainho demonstrou intimidade com a literatura.
Começou a escrever quando ainda era estudante do ensino secundário. Nesta época
fundou o jornal A normalista, periódico da Escola Normal de Juiz de Fora1, - “em que as
alunas testemunhavam seu progresso, quer para o bem do próprio estabelecimento, quer
para tornar a sociedade ciente do que lá se realizava” (OLIVEIRA, 2010, p.36).
Rainho transitou entre grandes nomes da cultura e literatura, não só juiz-forana
como nacional. Entre tantos, a que se destacar o correspondente Carlos Drummond de
Andrade que escreveu um comentário do romance na quarta capa de seu livro Liberdade

1
Atualmente nomeado de Instituto Estadual de Educação de Juiz de Fora.

1859
para as estrelas (1988): “Sua prosa encanta pela fluência e poder de expressão, a serviço
de uma ótica sensível e perspicaz da vida” (DRUMMOND apud RAINHO, 1988. Não
paginado).
Teve a preocupação e o cuidado de oportunizar e favorecer saraus, concursos
literários e de poesias além de levar a literatura em variados contextos na cidade que
escolheu como sua.
Essa influência e desenvoltura entre grandes nomes da cultura contemporânea
advieram da bagagem adquirida ao longo de sua vida. Segundo Oliveira (2015), desde os
tempos do colegial lia autores brasileiros e portugueses importantes dentro do panorama
literário como Rachel de Queiroz, Jorge Amado e José Saramago. Era uma mulher culta,
engajada e viajada.
Sua vida e obra foi biografada pelo amigo e escritor Wanderley Luiz de Oliveira na
obra Cleonice Rainho a busca e o encontro uma biografia (2010). Esta obra reúne os
mais importantes acontecimentos de sua vida profissional e pessoal, além da vasta
produção literária. As informações coletadas e reunidas na biografia foram adquiridas por
meio de entrevistas com a própria escritora, com o irmão dela (Romeu Rainho) e
especialmente na pesquisa dos inúmeros manuscritos arquivados por Cleonice Rainho e
que atualmente encontram-se sob a guarda do Museu de Arte Murilo Mendes (MAMM)
na cidade de Juiz de Fora em Minas Gerais. Este arquivo foi doado pela família da autora
em 2010 com o consentimento da mesma e está no fundo Cleonice Rainho disponível
para pesquisa acadêmica no referido museu.
A obra
Três famílias se descompuseram, enquanto este
livro sofridamente se compunha.[...] Rebusquei
trechos de diários, cadernos de anotações, folhas
e opúsculos ditos “subversivos”, recortes, velhos
jornais e revistas.
Cleonice Rainho

Da vasta obra da escritora Cleonice Rainho, o romance Liberdade para as


estrelas publicado em 1988 merece especial importância. Uma narrativa ambientada nos
tempos da ditadura militar brasileira, contada em flashback pela narradora Berenice sobre
a vida de sua prima. Nas palavras do autor do prefácio da referida obra, Nelson Werneck
Sodré “trata-se de uma narrativa assentada no cotidiano, vivida por seres comuns, com

1860
seus pequenos e grandes problemas, alguns dramáticos outros triviais” (SODRÉ apud
RAINHO, 1988, p.7).
A trama ficcional narra a história de Marina, uma jovem que sai de Campinas e
chega ao Rio de Janeiro depois que, de fato, seu pai, deputado influente, é cassado pelos
militares depois do golpe de 1964 e se exila na França. Marina vai morar com os tios e
primos num confortável apartamento no Rio de Janeiro. Nessa cidade conhece Breno, que
é amigo de seu primo Mário e ambos são militantes de esquerda. O envolvimento de
Marina e Breno se deu logo no primeiro encontro e não demorou a decidirem por namorar
e a certeza pelo casamento também foi rápida. Durante o período do namoro e noivado,
o rapaz ficou algumas vezes desaparecido por suspeitas de conversas cifradas em bares,
pacotes com materiais proibidos, até mesmo por ter a barba sem fazer. Todas essas
circunstâncias traziam insegurança para a jovem Marina. Sempre que Breno se envolvia
em questões policiais, quem solucionava os seus problemas era o tio da moça, Álvaro,
Comandante da Marinha Brasileira. Tio Álvaro auxiliava moral e financeiramente a
família de sua sobrinha Marina. Entre várias ocorrências policiais e sumiços do então
noivo, o casamento deles ocorreu, numa cerimônia simples com a presença dos familiares
e amigos mais próximos. Passados poucos dias do enlace matrimonial e, tendo os
militares encontrado um pacote suspeito no apartamento de Breno, esse some sem deixar
pistas. Porém, sua esposa Marina encontrava-se grávida.
Todos esses acontecimentos foram relatados por Berenice, que embora nem
sempre estivesse com a prima de Marina, foi capaz de recompor na memória os fatos
vivenciados por ela e pela família. Ela não presencia os fatos, mas é capaz de contar sobre
eles.
O citado romance, Liberdade para as estrelas (1988), teve projeção nacional,
extrapolando os limites da interiorana Juiz de Fora, pois teve o respaldo da Editora Imago,
o prefácio de Nelson Werneck Sodré e a crítica de Carlos Drummond de Andrade. Além
de sua especial relevância por ser uma obra de pouca visibilidade no panorama literário,
mas de grande expressividade. E dessa maneira poucos pesquisadores, no campo
acadêmico, se arriscaram a estudar a produção literária de Cleonice Rainho.
O enredo dessa obra instiga o leitor a procurar o contínuo das páginas e adentrar
na vida das personagens, embrenhar no cotidiano delas e viver suas singularidades. O
período ditatorial em que o país estava vivendo favorece a tensão no romance os conflitos

1861
militares, a censura imposta, a opressão constante, mas a escritora apresenta esses fatos
de forma tênue, ou seja, diluindo nas passagens das circunstâncias vividas pelas
personagens: a busca do emprego de Marina quando chega ao Rio, o surgimento do bebê
de Honório no exílio em Paris (pai de Marina), o enxoval de casamento e tantas outras
passagens relatadas na ficção.
Também as personagens femininas têm um lugar especial dentro do romance.
Primeiramente, quando o ocupam com destaque por serem as protagonistas dentro de uma
narrativa que se passa no período ditatorial e segundo, por apresentar personagens fortes
e atuantes.
Um exemplo delas é Tia Lúcia, mãe da protagonista Marina, quando soube por
seu irmão Álvaro que seu ex marido exilado na França teria um filho com a nova
companheira francesa. Tia Lúcia foi compreensiva e até justificou a posição dele como
sendo necessária.
Outro exemplo de personagens femininas são as filhas de tio Álvaro. Andréia e
Sílvia foram criadas apenas pelo pai e são moças participativas e inseridas no contexto
social. Não se revoltaram pela ausência da figura materna. Viveram como as demais
meninas da idade delas, estudaram, se divertiram, namoraram, participaram da vida
familiar, das questões políticas e etc.
Relatos de si
A trama ficcional citada tem por personagem Berenice, uma das protagonistas do
romance, que narra os fatos em perspectiva de flashback. Ela volta ao tempo para contar
os acontecimentos que marcaram a vida da prima Marina e de toda a família registrados
por meio de escritas marcadas pelo eu, criando um espaço promotor de discussões a
respeito de temas essencialmente contemporâneos. Os acontecimentos vividos por
Marina, são revividos e resgatados pelas lembranças armazenadas pela memória
favorecendo a reconstrução do passado e de si. A protagonista-narradora, Berenice, não
participa dos acontecimentos vividos por Marina, mas (re) vive esses fatos por meio das
lembranças - do que é relatado pelo seu núcleo familiar, o que justifica a consideração de
que as escritas pessoais, sustentadas pela memória e pelas imagens do passado e de si. É
exatamente isso que a protagonista narradora faz; Berenice favorece que essas lembranças
sejam perpetuadas e até mesmo transpostas para o futuro, não deixando que os episódios

1862
vividos sejam esquecidos - característica da construção de personagens contemporâneos,
criados a partir do século XX.
Segundo o estudioso Renato Janine no texto Memória de si, ou... explica que é por
meio das memórias que as raízes da família de Marina são resgatas e o intuito desse
resgate é aproximar o passado com futuro e evocando não só os momentos de glória
vividos como também as dificuldades. Tudo isso é o que constitui a identidade pessoal e
também a coletiva.

O desejo de perpetuar-se, mas mais que isso, o de constituir a própria


identidade pelos tempos adiante, responde ao anseio de forjar uma glória.
Lembre-se Aquiles: já os gregos pensavam na opção entre uma vida longa e
pouco notável ou uma vida breve, porém seguida de glória imorredoura! O que
os arquivos pessoais podem atestar, o que o desejo de guardar os próprios
documentos [...], a posteriori, reconhecido por uma identidade digna de nota
(RIBEIRO, 1998, p.35, grifo do autor).

Se se fala em memória é importante salientar o que significa o termo para que as


aplicações possam ser eficazes. Segundo o verbete do Dicionário de termos literários,
memória significa:

[...] as memórias distinguem-se por constituir um relato na primeira pessoa do


singular que visa à reconstrução do passado com base nas ocorrências e nos
sentimentos gravados na memória, segundo as duas formas (a voluntária e a
espontânea) que pode assumir (MOISÉS, 2013, p. 289).

Os relatos de Berenice pautadas no eu são importantes para a construção da sua


própria identidade, como indivíduo integral, mas também de Marina e da família que
estão ao redor participando dos acontecimentos. São as memórias revisitadas que
conferem a essas pessoas o lugar de pertencimento no grupo estabelecido, ou seja, a
família. Portanto, é a conexão fato vivido/ memória que estrutura essa relação chamada,
no caso, de familiar. É a perspectiva de Santo Agostinho no texto Representações da
memória na literatura e na cultura de José Carlos da Costa e Lourdes Kaminski Alves
(2010).

A memória, porém, é também e fundamentalmente o lugar de encontro e


afirmação de si mesmo, é onde vai buscar as causas de sua vida presente. Tudo
isto realizo interiormente, no imenso palácio de minha memória. Ali eu tenho
às minhas ordens o céu, a terra, o mar, com todas as sensações que neles pude
perceber, com exceção das de que já me esqueci. Ali me encontro comigo
mesmo, e me recordo de mim e de minhas ações, de seu tempo e lugar do

1863
estado de espírito em que estava, e dos sentimentos que me dominavam quando
as praticava (AGOSTINHO apud, COSTA e ALVES, 2010, p. 191/192).

Não são apenas as lembranças de Marina ou os relatos de Berenice que constituem


a memória, ou seja, não são as lembranças individuais que constituem essa memória. Mas
é de fundamental importância o testemunho da família, pois vão endossar os
acontecimentos que foram vivenciados. Isso, é o que Halbawachs (2003) chama de
memória coletiva. Ambas, individual e coletiva, favorecem a constituição da memória
como um todo. O fragmento a seguir, confirma essa afirmação.

Para confirmar uma ou recordar uma lembrança, não são necessários


testemunhos no sentido literal da palavra. [...] uma ou muitas pessoas juntando
suas lembranças conseguem descrever com muita exatidão fatos ou objetos que
vimos ao mesmo tempo em que elas, e conseguem até reconstituir toda a
sequência de nossos atos e nossas palavras em circunstâncias definidas [...]
(HALBAWACHS, 2003, p.31).

Ao longo da trama Berenice vai demonstrando como estabelece essa relação entre
ela e Marina e da memória como elo. O primeiro fragmento apresenta o reencontro dela,
Marina e Alex. Durante a viagem de Berenice à Austrália ela envia cartões postais para o
filho de Marina, Alex, para acompanhar o desenvolvimento da criança. Depois de alguns
anos ela volta e reencontra-os, e os postais são a materialização do elo estabelecido entre
eles.

Naquela semana ainda, vieram Marina e Alex, a meu chamado e por eles
próprios, loucos nós três para nos vermos. O que contar mesmo, da longa
ausência, não era tanto. A frequente correspondência quanto a assuntos
familiares normais transmitia muita coisa, sendo a nota mais pesada, que não
quiseram dar a distância, a da morte de vó Dinha, triste vazio. Alex trouxe a
mala de postais. Bem acondicionados, separados por assuntos. Repassados os
de um pequeno lote, aqueles de que mais gostara. Entre eles, uma vista de
Adelaide, cidade pitoresca, junto à foz do rio Darling. A visão sacudiu-me as
emoções. Hans levou-me até lá, tanto eu lhe chamava a atenção para a
incidência do nome com o de minha tia querida do Brasil. Reportando-me ao
fato, Marina, lembrou do que lhe contara Breno na última oportunidade em que
estiveram juntos: o sargento do dia tinha grande implicância com seu nome –
“Breno?! Por que não Bruno de uma vez” (RAINHO, 1988, p. 264).

No próximo fragmento, Rainho apresenta Berenice, que embora estivesse longe


fisicamente, estava presente na vida da prima. As lembranças do passado ajudam ambas
a meditarem sobre os fatos para conseguirem dar prosseguimento em suas vidas.

1864
[...] Minha prima lia bem francês, cursara a Aliança ainda nos bons tempos,
língua amena, cantante, fluente. Gostava de pronunciar os uu, como em menu,
venu e mur, o som do i com os lábios em pinha, o pai dizia: “Fale naturalmente,
não precisa fazer biquinho não”, mas, no fim, ria, gostava e estimulava-a: “Tô
brincando, seu bico é até bonitinho, no princípio é assim mesmo”. Mal sabia
que mais depressa que esperava estaria ele na França, “falando naturalmente”,
vivendo naturalmente tão naturalmente que deu no que deu. Conquistou
Jacqueline ou foi conquistado? Esses negócios amorosos são mesmo
complicados. Misteriosos, às vezes, cabalísticos. Se a gente começar a discuti-
los vai dar pano para mangas, e quantas! [...] (RAINHO, 1988, p. 103, grifos
da autora).

E nesse último fragmento é possível observar a síntese dos fatos vividos por Marina,
narrados pela ótica de Berenice que acompanhava sem estar presente. Ela era a própria
testemunha (no sentido literal da palavra) necessária, segundo Halbwalchs (2003), para
recordar ou confirmar uma lembrança.

Pensava na prima tão sofrida, a lua-de-mel abruptamente interrompida ou que


nem mesmo existiu, a neurose do marido com os acontecimentos,a pingueira
do quarto, o vizinho massacrador e vingativo, prevalecendo-se de sua posição
militar. Ah! Já havia sofrido tanto e estava sofrendo e ainda por cima grávida.
A mudança repentina, a casinha do bairro, Zina, a tartaruga – tudo baralhado
em minha mente, afugentando o sono. Por mais que eu amasse crianças –
chorei de emoção ao ombro de tia Lúcia, quando soube do nascimento do
pequenino Jean – a gravidez de Marina preocupava-me sobremodo. Estava
farta de saber dos traumas que a mãe pode transmitir ao bebê em gestação e
ela estava traumatisadíssima: além de tudo tivera que assumir a casa, o
trabalho, a vida sozinha. Seria bom que continuasse ignorando o destino do
marido? Fiz-me a pergunta, dormiu em minha mente ou na língua e, ao acordar,
logo à mesa do café tinha-a pronta para passar aos tios (RAINHO, 1988, p.
235).

O trecho a seguir, de Maria do Rosário nas considerações finais de seu


trabalho dissertativo intitulado Momentos políticos e históricos da ditadura em
Liberdade para as estrelas, exemplifica como o romance de Cleonice Rainho se
constitui dentro do panorama memorialístico.

Liberdade para as estrelas é, pois, um romance de memória, com ampla


aplicação dessa faculdade. A autora usou da memória da personagem-
narradora par criar seu universo ficcional e recriar o real, por meio da
estabilização do contexto imaginário, que reuniu os fios dispersos da realidade
num todo bem estruturado (LIMA, 2005, p.79).

Portanto, o papel de Berenice na trama é essencial. Ela, por meio dos relatos de si
e de Marina encadeia o passado com o presente, costurando-os para revisitá-los. Essa
narrativa em flashback é importante para garantir que os fatos tivessem veracidade e que
respeitasse a cronologia dos acontecimentos.

1865
Referências
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literatura e na cultura. Revista Investigações. Pernambuco: UFPE, Vol. 23, n. 1, jan.
2010. Disponível em :
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em: 28 fev. 2017.

HALBWACHS, Maurice. Memória individual e memória coletiva. In: _______. A


memória coletiva. Tradução Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2003. p. 29-70.

LIMA, Maria do Rosário Moreira de. Momentos políticos e históricos da ditadura em


Liberdade para as estrelas. Orientador: Therezinha Mucci Xavier. 2005. 82 f.
Dissertação (Mestrado em Literatura) – Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora
(CES/JF), Juiz de Fora, 2005.

MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários.12. ed.rev.ampl. e atual. São Paulo:


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biografia. Juiz de Fora: Funalfa, 2010.

RAINHO. Liberdade para as estrelas. Rio de Janeiro: Imago, 1988.

RIBEIRO, Renato Janine. Memória de si, ou ... . Estudos históricos. Rio de Janeiro:
CPDOC, v.11, n. 21, 1988. Disponível em:
<http://www.marilia.unesp.br/Home/Pesquisa/cultgen/Documentos/memoria_de_si_ou_
renato_janine_ribeiro.pdf>.Acesso em: 10 out. 2018.

1866
POR UMA LEITURA EXPANDIDA DE 64: UM PREFEITO, A REVOLUÇÃO E
OS JUMENTOS, DE EUCLIDES NETO: NOS LIMIARES DA
AUTOBIOGRAFIA, DA HISTÓRIA E DA FICÇÃO

Ana Sayonara Fagundes Britto Marcelo (UFBA/UESB)1


Nada mais controvertido que o troço de 1964. [...]. Nosso intento é prestar
um testemunho de como a coisa pipocou aqui fora, na roça, em uma cidade
de 16 mil habitantes na sede, e 20 mil em todo o município, à época. Onde,
do movimento mesmo, chegaram os respingos, conquanto em seguida, as
consequências.... Muito já se escreveu de como os heróis atuaram nos
grandes centros: Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília. [...]
Daí pretendermos lançar uma penca de palavras cá do mato. Talvez, no
futuro, estas garatujas sirvam para enrolar sabão.

Euclides Neto. 64: um prefeito, a revolução e os jumentos.2

Resumo: O objetivo deste trabalho é refletir acerca da escrita autobiográfica do escritor baiano
Euclides José Teixeira Neto (1925-2000) partindo das relações estabelecidas entre os discursos
autobiográfico, historiográfico e ficcional, além de discutir o papel do leitor nesse contexto de
escritura. Tomamos como corpus o livro 64: um prefeito a revolução e os jumentos, publicado
em 1983. Essa obra se configura como um relato das experiências do escritor quando fora
prefeito da cidade de Ipiaú, Bahia, entre os anos de 1963 e 1967, período da ditadura militar no
Brasil, deflagrada durante a respectiva gestão na prefeitura.
Palavras-chave: Euclides Neto; Autobiografia; História; Ficção; Leitor

Na epígrafe, Euclides Neto refere-se ao período da ditadura militar que assolou o


Brasil entre os anos 1964 e 1985. Após estado de exceção como este, é importante a
figura da testemunha, aquela que sobrevive e narra os acontecimentos aos
contemporâneos e às gerações futuras. Muitos foram mortos, torturados e outros ainda
tiveram parentes, amigos e conhecidos desaparecidos. Por isso, a importância de relatos
como o de Euclides Neto na obra 64: um prefeito, a revolução e os jumentos, publicada
pela primeira vez em 1983, no início da abertura política, após a ditadura militar
deflagrada em 1964.
O testemunho que o escritor se propõe a fazer difere do testemunho daqueles que
sofreram torturas físicas e psicológicas, ou tiveram entes queridos desaparecidos no
período de exceção. O autor de 64 foi agente que desempenhou cargo público
legitimado pelo voto popular: o de prefeito da cidade de Ipiaú, Bahia. O respectivo lugar
de fala, portanto, não é o do trabalhador rural, como a maioria dos moradores de Ipiaú,
1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia
(UFBA). Professora Assistente da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Contato:
anasayonara@hotmail.com
2
EUCLIDES NETO. 64: um prefeito, a revolução e os jumentos. 2014a. p.29.

1867
sobreviventes da fome e da miséria causadas pelo desemprego ou pela condição
subumana em que viviam nas roças de cacau, como muitos trabalhadores rurais da
região cacaueira e de outras regiões brasileiras.
Sendo assim, o então prefeito detinha o poder de decisão e voz, embora limitado
pelo regime político que imperava no país. O lugar de fala ocupado pelo escritor
permitiu-lhe conhecer e conviver não só com políticos locais, da Bahia e do Brasil, mas
também com os moradores do interior da Bahia, homens e mulheres trabalhadores
rurais, explorados e espoliados pelos latifundiários baianos.
A produção escrita de Euclides Neto3 não aborda a formação das “terras do sem
fim” e suas “tocaias grandes”, como fizera Jorge Amado, quando se ocupou da região
cacaueira. Na escritura de Euclides Neto os latifúndios estão consolidados, os
proprietários das terras esbanjam riquezas nas cidades baianas e no exterior. À par, os
trabalhadores rurais vivem em condições degradantes nas fazendas, não tendo acesso
aos bens do Estado nem aos frutos do próprio trabalho.
Um dos acontecimentos destacados na obra é a “Fazenda do Povo”, oriunda da
desapropriação de terras destinadas à reforma agrária, fato reconhecido como a primeira
experiência executada por um prefeito no Estado da Bahia. Tal empreitada motivou a
abertura de inquérito militar, ao qual o prefeito fora submetido durante o mandato.
Embora o inquérito tenha sido arquivado, o então prefeito teve a vida devastada e
ameaçada em longos interrogatórios.
O escritor, advogado, homem público e fazendeiro deixa claro em toda produção
escrita a ligação com a cultura agrária. Em Trilhas da reforma agrária, explicita:
Ligado à terra, até onde o braço da genealogia arbustiva alcança, conheço
todas as trilhas de quem assiste na roça. Das quadras de lua às alegrias e
dificuldades. Amamentado por uma cabra, trago do berço um duplo
complexo de édipo. (EUCLIDES NETO, 2014b, p. 21)

Amparado pela ligação com a terra, Euclides Neto se propõe a escrever sobre a
vida de agricultores e agricultoras, cujas vozes não tiveram a oportunidade de dar
testemunho das próprias agruras, e, consequentemente, não tiveram audiência. As
experiências desses trabalhadores são conhecidas através dos romances, contos e
crônicas do escritor, que fez do ofício instrumento de denúncia do que viu e vivenciou

3
A produção literária de Euclides Neto é composta por romances, contos, crônicas, dicionário, relatos,
novela, totalizando 14 livros publicados. A reedição de 13 desses livros foi disponibilizada em 2014 pelas
editoras EDUFBA e Littera.

1868
nas trilhas das roças: “Falarei de lágrimas que vi e verti”, registra em Trilhas da
reforma agrária (EUCLIDES NETO, 2014b, p. 20). Talvez seja este o projeto da
escritura.
Tais constatações leva-nos a inquirir: Como ler os relatos e testemunhos de vida
que remetem a momentos importantes da história cultural, social e política de um
Estado e de um país? Além dessa indagação, é preciso considerar a transparência desses
textos. No caso específico de 64, atentar para as fotos na primeira parte do livro, e na
segunda, os documentos oficiais emitidos e recebidos no período em que fora prefeito.
Os documentos buscam assegurar “verdade factual” à narrativa. Sobre este aspecto,
Evandro Nascimento chama a atenção:
A ficcionalidade define menos um gênero do que o estatuto híbrido de
qualquer discurso. Por um lado, todo documento, mesmo o mais verídico,
detém traços de ficcionalização; por outro, todo romance, todo poema detém
valor documental. Ficção e verdade, imaginação ou documento deixam de
ser, por si mesmos, critérios de definição do gênero, pois a distinção é de
grau e não de natureza. Já os gêneros se definem menos por uma essência que
os teria gerado do que pela história de seus usos e significações, de suas
performances históricas, se quiserem. (NASCIMENTO, 2010, p. 66)

Reconhecemos a importância dos documentos no processo de retomada dos fatos


e textualização historiográfica; entretanto, ainda assim é passível de questionamentos se
considerarmos que as narrativas em torno deles se constituem a partir de dada
perspectiva, movidas por certa ideologia, o que pode alterar a visão dos dados a serem
apresentados, consideramos, pois, − como alerta Nascimento − o grau e não a natureza
desses textos no contexto que tratamos aqui.
Somado a essas ponderações, não podemos esquecer que o ato de rememorar e
narrar a própria vida é permeado por recordações esquecimentos e lacunas, que vão
sendo preenchidas pela imaginação, tecendo assim o ficcional. Tais lacunas formadas
pela distância entre o tempo dos acontecimentos e o tempo da narrativa são preenchidas
pela ficção, ao acionar o imaginário (ISER, 1996). Sendo assim, não podemos negar as
marcas ficcionais de textos autobiográficos.
Somado a isso, as produções escritas reconhecidas como autobiográficas trazem o
que o escritor planejou; entretanto, podem evidenciar aspectos não previstos por ele.
Sobre essa questão, destacamos as considerações de Evelina Hoisel:
O sujeito, e não mais a pessoa, fala e é falado pela linguagem. O sujeito não
diz apenas o que quer dizer, a articulação da fala o trai, cria tensões e desvios
que irrompem na linguagem, afastando-o das intenções do seu querer dizer.
Desse modo, o sujeito não é simplesmente o produtor de uma linguagem, de

1869
um texto, de uma escritura. Ele é também produzido pela linguagem-texto-
escrita que articula. (HOISEL, 2006, p.10. Grifos da autora)

A linguagem apresenta, portanto, não apenas as cenas escolhidas, mas as múltiplas


cenas e cenários sociais, políticos e culturais, que são entrelaçados no ato da escritura.
Nela, o escritor se personifica, revelando-se além dos limites que delimitou ao seu texto.
Apresentar a vida inter-relacionando o público e o privado, imbricando memória,
história e ficção, como ocorre nos textos supracitados de Euclides Neto, além de
evidenciar as experiências no exercício de cargos públicos, reflexões e atos em torno da
reforma agrária, da luta pela sobrevivência do (a) trabalhador (a) da roça, entre outros
temas, traz imagens e representações de si. Destas imagens emerge o homem público,
um ser social, atravessado por formas de pensar e agir, movidas por ética e ideologia. À
medida que se ficcionaliza, sobressaem marcas da história cultural, social e política de
uma época, além de evidenciar o interesse do escritor em manter-se vivo na memória e
na história do país.
Esse desejo de tornar-se imortal aparece registrado em Vida morta, segundo
romance publicado pelo em 1947: “O homem não morre desde que deixe um feito que
leve sua personalidade à posteridade” (EUCLIDES NETO, 2014c, p.61). Neste trecho, o
narrador traz à tona a necessidade de alguns escritores de serem lembrados e
valorizados pelas futuras gerações, corroborando com Leonor Arfuch, quando ressalta:
[...] biografias, autobiografias, confissões, memórias, diários íntimos,
correspondências, dão conta, há pouco mais de dois séculos, dessa obsessão
por deixar impressões, rastros, inscrições, dessa ênfase na singularidade que é
ao mesmo tempo busca de transcendência. (ARFUCH, 2012, p. 15)

Na busca por transcendência, escritores – nessas modalidades retóricas −


constroem pontes entre a vida e a ficção, que se realizam na escritura, estreitando a
relação entre elas, desconstruindo dicotomias históricas. Tais intersecções entre o real e
o ficcional também foram pensadas por Wolfgang Iser ao indagar a relação entre o
mundo empírico e a obra ficcional: “Os textos ‘ficcionados’ serão de fato tão ficcionais
e os que assim não se dizem serão de fato isentos de ficções? ” (ISER, 1996, p.13). Para
responder a esse questionamento e dissolver a dicotomia entre ficção e realidade
empírica o estudioso elenca três ações a serem desenvolvidas na constituição do texto
ficcional.
A primeira delas corresponde ao ato de selecionar os acontecimentos recortados
do mundo empírico, transmutados em tema do texto escrito. No relato, Euclides Neto

1870
trata do período que fora prefeito de Ipiaú, que coincidiu com o momento de ditadura
militar no Brasil, deflagrada em 1964, como mencionado. A “composição” textual,
segundo passo, remete-nos aos recursos expressivos da linguagem verbal, com a qual o
escritor recria elementos do mundo recortado, compondo a trama textual. Nela
percebemos as intersecções entre as formas autobiográficas, ficcionais e
historiográficas. Tal composição é objeto de nossa pesquisa ainda incipiente. A terceira
e última ação, refere-se ao “desnudamento da ficcionalidade”, ocorrido quando do
estabelecimento do “acordo tácito” entre escritor e leitor, efetivado no momento em que
se lê o ficcional “como se” fosse realidade.
O “como se” parece ser sempre o desafio lançado pelo texto literário. O leitor
deve estar atento à proposta de relação com o “real” que é insinuada nas escrituras
literárias. Cada texto nos lança diferentes desafios. Aceitar o pacto proposto não impede
de colocá-lo sob suspeita. Em relação à autobiografia, é preciso compreendê-la “como
texto da vida reinventado pelo próprio sujeito”, como nos alerta Nascimento (2014, p.
20). E se nesse pacto o autobiográfico for lido como literário, devemos acrescentar que o
desafio ao leitor é maior do que se possa imaginar a princípio, vez que “dizer tudo (tout
dire) é o índice dessa estranha instituição chamada literatura [...]. Um dizer tudo que
tanto significa “dizer qualquer coisa” (say anything) que se pense quanto “dizer tudo o
que se deseja” (say everything) ” (NASCIMENTO, 2014, p.21). Sendo assim, o texto
autobiográfico é posto sob suspeita.
A leitura de 64: um prefeito, a revolução e os jumentos exige, portanto, leitores
atentos a essas considerações e às imbricadas relações entre textos autobiográficos,
ficcionais e historiográficos. Relações por vezes construídas na mesma costura textual,
como parece acontecer no livro em estudo. Nele, Euclides tece suas vivencias como
prefeito, as dificuldades encontradas, tanto às necessidades mais urgentes dos
moradores do município e trabalhadores sem terra e sem emprego, quanto às relações
com políticos, militares, cacauicultores, comerciantes e familiares, encenando o período
do golpe militar, tanto as reverberações em Ipiaú quanto na própria vida pessoal, como
revela a passagem:
Estava no quartel, já cansado de esperar, o tempo crescendo, quando surgiu
Marcelo, meu filho caçula. Podia ter ele quatro anos de idade, ou menos. Tão
novinho e tão amigo. Passava por minha sombra nas obras, inaugurações, nas
pedras fundamentais, nas cerimônias, nas visitas de autoridades. Em qualquer
tempo e hora lá andava ele no meu faro e rastro: pés no chão, perninhas

1871
cambotas, nu, às vezes, fugido do zelo da mãe, Angélia. Nos lugares mais
impossíveis aparecia, não sei como, nem levado por quem.
Pois bem. Naquele dia em que saí escondido, refugiando-me na delegacia, no
fundo do quartel, [...], foi ali que Marcelo apareceu com seus olhos tranquilos
e amorosos de alma nobre, já na tenra idade, puxou meu paletó e perguntou
balbuciando:
– Por que vão prender painho?
[...]. Quem teria informado àquela criança, meu filho, com toda a força
telúrica de alguém que pronuncia: meu filho! Quem o teria informado que o
pai esperava prisão? (EUCLIDES NETO, 2014a, p. 160)

Em trechos como esse, o leitor tem acesso ao pai e ao marido preocupado com os filhos,
a esposa e os agregados à família numerosa, acrescida por irmãos mais novos que lhe
estavam sob responsabilidade.
Tem acesso ao político, cuja formatura em Direito e o exercício da advocacia
contribuíram para o exercício de cargos públicos. Entre outros acontecimentos, ganha
destaque os interrogatórios a que fora submetido pelos militares, quando é investigado
pelas possíveis ações comunistas após a experiência de reforma agrária que implantara
no município, dividindo terras entre os trabalhadores rurais:
O depoimento rolou horas sobre a Fazenda do Povo, a desapropriação de
Córrego de Pedras:
– Dizem que o senhor invadiu terras de João Caricchio com centenas de
homens armados!
– Parece que a informação não é exata. Realmente desapropriamos uma parte
da fazenda do senhor João. Depois requeremos ao juiz de direito imissão na
posse, que foi concedida. Então mandamos o povo construir as palhoças.
Antes, tentamos por todos os meios comprar a área. [...]. Quando esgotei os
meios amigáveis foi que parti à desapropriação. A terra não se usava para
nada: nem cacau, nem capim. Sem qualquer lavoura. Senhor João Caricchio
não dava, não vendia, não loteava e nem sequer as usava para qualquer fim.
(EUCLIDES NETO, 2014a, p.144)

Os leitores são convidados – ou conduzidos? – a firmar pacto com a verdade, nos


moldes definidos por Philippe Lejeune (2014), com o texto que se quer autobiográfico
e, ao mesmo tempo, apresenta traços históricos, cuja escrita remete-nos a mesma
linguagem empregada nos romances, contos e crônicas do escritor. O relato tanto pode
ser lido como ficção quanto como autobiografia e ao mesmo tempo inserir o leitor num
dado momento histórico. Tal constatação leva-nos a refletir sobre o posicionamento do
leitor.
Os usos que fazemos dessas narrativas é muito mais importante do que a devida
classificação, como afirma Nascimento em excerto supracitado. Elas se configuram
como registros aos contemporâneos e à posteridade do autor. O posicionamento de cada

1872
leitor diante delas construirá a história de leitura desse texto, como referenda Hans
Robert Jauss (1994).
O teórico nos adverte sobre o papel do leitor ao atualizar o texto, quando no ato
da leitura lhe atribui significações, trazendo-o para o momento histórico no qual se
encontra. Se cada texto se configura como resposta às agruras de seu tempo, como nos
afirma Jauss; em 64: um prefeito, a revolução e os jumentos temos um protagonista se
esforçando para realizar o melhor possível como prefeito, embora ciente das limitações
impostas pelo regime militar e outras circunstancias políticas. Assim, visa atender às
necessidades da maioria da população do município, formada por trabalhadores rurais
sem posses de terras, estas pertencentes aos latifundiários, que dominam os destinos das
cidades de economia agrária. A questão que retorna é: Será que o projeto de escrita
proposto por Euclides Neto é dar a esses trabalhadores voz e audiência e evidenciar as
contradições sociais no espaço rural do sul da Bahia? A resposta a essa e outras
indagações sobre o projeto de escritura de Euclides Neto ainda está em processo de
construção, continuemos, pois, com as reflexões sobre o leitor.
Se Jauss (1994) tratou do papel do leitor e do impacto da literatura sobre a
sociedade, e Iser (1999) evidenciou o impacto da leitura sobre um leitor individual, que
preenche lacunas deixadas no texto a partir de experiências e horizonte de expectativas
próprios; Evelina Hoisel, traz importante reflexão sobre o papel do leitor ao analisar O
falso mentiroso, de Silviano Santiago (2004). Guardadas as devidas especificidades
entre a escrita desse autor e a de Euclides Neto, a reflexão dessa teórica acerca do leitor,
chamado por ela de “leitor astucioso” (HOISEL, 2019) contribui com as reflexões aqui
realizadas.
Ora, sabemos que os textos pós-modernos lançam novos desafios à recepção, que
precisa se desprender das convenções que enquadravam os textos em determinados
gênero literário em detrimento de outros; e repensar as regras impostas para essas
classificações. Sabemos também que a escrita de Euclides Neto não se configura como a
de Silviano Santiago, analisado pela pesquisadora. Entretanto, requer também um
“leitor astucioso” capaz de “traduzir questões literárias e culturais embutidas na trama
das reinvenções da história” (HOISEL, 2019, p. 90).
O texto de Euclides Neto, considerando as imbricações entre o autobiográfico, o
histórico e o ficcional, também requer “um leitor migrante, nômade, em constantes

1873
trânsitos por territórios discursivos” (HOISEL, 2019, p. 90), e como a teórica bem
explicita, um leitor que realize a dupla função de “tradutor e interprete dos signos
textuais” e possa perceber além deles, sendo capaz de “migrar” e “transmigrar” para
outras linguagens, que com a literária tecem “a malha cultural contemporânea”
(HOISEL, 2019, p. 90-91).
O “leitor astucioso” é aquele que se libertou do papel de descobrir a significação
que a teoria e crítica literária no passado viam como transparente. Sua “função é
apreciar o plural do qual é feito o texto, disseminando suas significações” (HOISEL,
2019. p.91). O compromisso desse leitor é com “o saber precário”, nem totalitário nem
liberal, mas situado “em um entrelugar da afetividade e do saber”, como ensina Hoisel
(2019, p.91).
Esse é o leitor que a contemporaneidade almeja, mesmo diante de textos
considerados não contemporâneos. Se a trama textual reconhecida como pós-moderna
requer um “leitor astucioso”, os textos produzidos nas últimas décadas do século 20 –
ou em momentos anteriores – requer um leitor com o mesmo olhar lançado sob os
textos produzidos no século 21, sob os textos que se quer constituir apenas
autobiográfico ou ficcional ou historiográfico e os que costuram teias e tramas onde
essa classificação perde a importância, onde se torna urgente o desvelamento da
ideologia e o flagrante do não dito.
Desenvolver o “leitor astucioso” em cada um de nós, construindo leituras capazes
de descortinar a opressão que por vezes as linguagens parecem impor, é função desse
leitor que a contemporaneidade suscita. Expandir, pois, limitações constrangedoras
impostas por convenções sociais ultrapassadas e que não explicam mais os textos no
contexto da contemporaneidade é um caminho que parece sem volta.
As releituras que esse novo leitor será capaz de construir revelará novos textos,
uma vez que novos olhares serão lançados sobre eles. E revelará outras perspectivas que
ficcionistas e historiadores do passado não consideraram. É o que esperamos em relação
às leituras de 64: um prefeito, a revolução e os jumentos, de Euclides Neto, cujos fatos
narrados deixaram marcas que ainda reverberam na contemporaneidade.

Referências
ARFUCH, Leonor. Antibiografias? Tradução de Dênia Sad Silveira. In: SOUZA,
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1874
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1875
DECLÍNIO DE UM HOMEM: A ANGÚSTIA E O DESESPERO NA OBRA DE
OSAMU DAZAI

André Luiz Rodrigues Marinho (UFRN)1

Resumo: A proposta deste estudo é analisar dentro do romance Ningen shikkaku (1948), do
escritor japonês Osamu Dazai (1909-1948), o desespero e a angústia (conforme Kierkegaard
(1813-1855), à luz do pensamento de Keiji Nishitani) vivenciados pelo protagonista-narrador
Oba Yozo, alter-ego de Osamu Dazai. O romance de Dazai pertence ao gênero confessional
autobiográfico ahishosetsu e ao movimento literário Buraiha a temática da obra, portanto,
reflete muito dos sentimentos, pensamentos e fatos da vida do próprio autor na personagem Oba
Yozo.
Palavras-chave: Literatura Japonesa; Escritas de Si; Angústia; romance; shishosetsu

O objetivo deste artigo é investigar a obra Ningen shikkaku, de Osamu Dazai,


focando as categorias filosóficas de angústia e desespero, à luz de Kierkegaard conforme
interpretado por Keiji Nishitani.
Ningen shikkaku é classificado literariamente como um shishosetsu. Fowler
aponta que o shishosetsu não é definido pelos críticos japoneses como ficção, mas
tampouco como autobiografia. Nas palavras de Fowler: “Para a autobiografia
confessional, o que importa são as questões pessoais feitas com fim formal e moral
específico em mente. Confissões para redenção ou auto-análise e até mesmo auto-
engrandecimento é o catalisador de alguma resolução ou ação que dá ao trabalho sua
forma e direção”.

Fowler disseca os pormenores que definem o gênero shishosetsu, ao qual pertence


Ningen shikkaku. A princípio o define:

O shishosetsu tem origem no Japão Taishô (1912-192). O shishosetsu, narrado na


primeira ou terceira pessoa em tal maneira de tal maneira a representar com convicção a
experiência pessoal do autor, está cheia de paradoxos. Supostamente uma narrativa
ficcional, geralmente é lida mais como um diário privado. Tem reputação de ser real, para
uma falha, para a “vida real”; apesar disso, frequentemente foge da experiência que o
autor alegadamente retrata de maneira tão fiel. Sua orientação pessoal se faz através de
uma forma moderna; embora seja produto de uma tradição intelectual estrangeira bem
diferente do individualismo ocidental.

1
Licenciado em Letras: Língua Inglesa e Literaturas (UFRN), Mestrando em Literatura Comparada
(UFRN). Contato: andrelrmarinho@gmail.com.

1876
Para Fowler, a diferença básica do shishosetsu para outras formas de escrita
autobiográfica reside no fato de que o shosetsu (normalmente traduzido como “narrativa
em prosa” ou “romance”) se diferencia fundamentalmente da narrativa ocidental.

Fowler nos diz a consequência da ausência de um Deus condutor da narrativa


japonesa: há um grau de identificação narrador-herói-leitor que é geralmente impensável
em inglês ou em outras línguas ocidentais. Para os orientais, a realidade é a narrativa ter
a mesma voz que o herói, enquanto no ocidente a realidade é alcançada pelo
distanciamento do narrador.

Sobre a origem do shishosetsu, há estudiosos que o consideram como uma


adaptação do romance ocidental, ou a forma niponizada do naturalismo ocidental.
Segundo a leitura de Fowler, o gênero é um produto da tradição nativa japonesa do que
de uma importação do ocidente. Amano, porém, defende a tese da importação do
naturalismo: “O Naturalismo esperava analisar as vidas internas e construir uma
identidade japonesa moderna baseada no retrato objetivo da realidade.” Akagi Kohei é
um dos que defende que o naturalismo criou o shishōsetsu, mas também citou a sua
diferença entre eles: o shishosetsu representava experiências pessoais de maneira
subjetiva, isto é, focada na visão pessoal do autor.

Assim sendo, o gênero do shishosetsu nos apresenta uma grande proximidade com
o autor-herói-narrador. Portanto, podemos considerar, o shishosetsu como uma
representação inspirada em acontecimentos da vida do autor, porém, a ela não limitados.
Dessa forma, trata-se de uma forma de ficção com inspirações não-ficcionais.

A existência diante do nada: tédio, angústia e desespero

De acordo com a visão de Nishitani sobre Kierkegaard, a existência do indivíduo


concreto, que sinaliza o colapso dessa identidade especulativa, segue diante do desespero
e sofrimento da consciência da culpa ou pecado. Mas, antes de haver tal colapso, já existe
o tédio.
O tédio, a que Kierkegaard dedica seus primeiros trabalhos filosóficos, diz
Nishitani, já vinha sendo objeto de reflexão por Schopenhauer, em quem a vida é definida
como tédio: "Para além de qualquer necessidade existe o tédio". O trabalho diário e o
entretenimento para Schopenhauer afastam o tédio como passatempos que ajudam a
esquecer a niilidade existencial. Havendo tais ocupações, a vida se torna digna de se ter

1877
interesse e o aspecto do vazio infinito torna-se secundário. Mas, se alguém está ciente do
vazio da vida, a vida se torna sem sentido e vazia. Tais pessoas buscam um significado
transcendente por meio da religião e da metafísica para escapar do desespero da vida.
Portanto, quando religião, metafísica e moralidade são percebidas como nulas, a vida se
torna vazio e tédio:

[O tédio] pode ser traçado desde o início do mundo. Os deuses estavam entediados, então
criaram os seres humanos. Adão estava entediado por estar sozinho, então Eva foi criada.
Desde aquele momento, o tédio entrou no mundo e cresceu em igual proporção com o
crescimento da população. O tédio é a raiz de todo mal.

Para Kierkegaard, o tédio toma o lugar do deus panteísta como essência de todos
os fenômenos (NISHITANI, 1990, p. 14). O tédio, portanto, é o oposto ao panteísmo, mas
Kierkegaard ainda o exerga semelhante ao panteísmo devido ao nada permear toda a
existência.
Segundo Nishitani (1990, p. 6), Kierkegaard entende o tédio como o encontro com
o infinito abismo de vazio resultante da retirada de Deus do centro de Deus da totalidade
que conecta todos os fenômenos. A existência, por ter perdido o seu centro, se dissipa; a
vida, que se torna puro tédio, se “distrai” com prazeres periféricos.
“A realidade da liberdade como possibilidade para a possibilidade”, é definida
como angústia, e se trata de perceber a representação a liberdade antes de realizar o ato.
A angústia não é doença, muito menos uma deformidade no ser humano. É ela que
anuncia a voz daquilo que diferencia o homem dos demais seres vivos presentes na terra:
o espírito. A angústia em Kierkegaard 2é compreendida como uma espécie de mal-estar,
constituindo-se de um medo sem objeto determinado e de sensação física de aperto.

Segundo Kierkegaard, o primeiro homem (Adão) encontrou-se angustiado diante


da lei que o proibia de comer o fruto. A possibilidade de escolha ocasionou naquele
momento a perda da sua inocência. Assim sendo, não há ser humano a quem escape a
possibilidade de se angustiar diante dessa liberdade. No entanto, é necessário acautelar-
se, adverte o filósofo: “O ser humano em sua existência e sua subjetividade não pode
deixar a angústia tomar conta de sua vida, na mesma medida em que não pode viver sem
ela”(2010), O ser humano deve ter a certeza que a angústia é um elemento indissociável
da vida, categoria preciosa para o ser humano exercitar sua humanidade. Assim como o
tédio representa a vertigem diante do abismo do vazio, a angústia representa a vertigem

2
2010, p. 45

1878
de liberdade à beira do abismo, onde o ser olha para o abismo e as possibilidades infinitas
dentro de si.

“Quando o olhar imerge num abismo, existe uma vertigem, que nos chega tanto
do olhar como do abismo, visto que não seria impossível deixar de encarar. Esta
é a angústia, vertigem da liberdade, que surge quando, ao desejar, o espírito,
estabelecer a síntese, a liberdade imerge o olhar no abismo das suas
possibilidades e agarra-se à finitude para não soçobrar” (KIERKEGAARD, 1968,
p. 66 apud NISHITANI).

Para Kierkegaard 3 , “a angústia é uma antipatia simpática e uma simpatia


antipática”, o que significa que repele e ao mesmo tempo atrai. Tomado por angústia, o
ser humano tem nas suas mãos o poder de escolha entre possibilidades, encontrando-se
livre. Logo:
A possibilidade da liberdade não consiste em poder escolher entre o bem e o mal.
Um tal disparate não prossegue nem das escrituras nem do pensamento. A
possibilidade consiste em ser-capaz-de. Em um sistema lógico, é bem fácil dizer
que a possibilidade passa para a realidade. (KIERKEGAARD, 2010, p. 53)

No ataque da vertigem, portanto, de acordo com Kierkegaard, o ser se agarra à finitude


e se preserva se agarrando a ele, e nessa vertigem a liberdade cai pelo chão. O ser que
atinge as profundezas não enfrenta mais o abismo do absoluto vazio: ele está diante de
Deus. A angústia de ficar diante de Deus como um quem é um ser por virtude carregando
o fardo do pecado original é desespero, e o desespero é o maior enfermo experimentado
pelo ser humano em vida. Para o indivíduo acordar o seu Eu, ele deve assumir o seu
desespero e perceber que está mortalmente doente. Para reconhecer o desespero, é antes
necessário perceber as três formas pelas quais ele se apresenta, segundo Kierkegaard:
1) Inconsciência de estar consumido pelo desespero: a primeira forma de
desespero é a mais comum e consequentemente a pior forma, pois adoece a
existência de muitos seres humanos que não exercitam sua existência, vivendo-a
de maneira cômoda.
2) A consciência do desespero acompanhada da negação do mesmo: na segunda
forma, o homem percebe que está vivendo de maneira incorreta, que se encontra
tomando por um enfermo que ainda não conhece totalmente. No entanto, abdica
de enfrentá-lo, buscando distrações e diversões em sua vida para esquecê-lo.
3) A vontade de ser um eu: na terceira forma, o homem possui enorme consciência
de sua situação, consumido pela doença mortal não recua, defronta-se com seu

3
2010, p. 46, apud FAÇANHA, 2018, p.312

1879
desespero, por mais intenso e vivaz que ele seja, pois há neste homem um anseio,
uma inquietação, uma vontade desespera de libertar o seu Eu.

Quando a angústia (uma deformidade do espírito) se torna desespero (enfermidade do


espírito), o ser penetra e se une com as profundezas e finitude e finalmente se torna um
“indivíduo". Esta é a existência niilista. O niilismo do desespero, vivendo em toda a
existência estética começa a emergir das profundezas.

A síntese que o homem é, segundo Kierkegaard “de finito e infinito, de temporal e


eterno, de liberdade e necessidade” está sempre em discordância. Seja de maneira sensual
ou de maneira regrada, o indivíduo em menor ou maior nível, está dominado pela doença
mortal.

O momento que o ser passa a consumir-se em menor grau pela doença mortal, é o
momento que se torna o fluxo do tempo se torna uma ”repetição” da vida penetrada pela
morte.. Apenas quando o momento se torna repetição que existe verdadeira vida.

Esta é a forma de superar o niilismo oferecida pelo existencialismo de Kierkegaard:


a angústia, assim como o desespero, vem como caminho da salvação. Essa reviravolta da
“dialética paradoxal” marca a ressurreição do ser em uma nova vida pelo pelo perdão do
pecado e através da morte voluntária pelo pecado, e também é o salto para se tornar
existente. Isto é morte e ao mesmo tempo transcendência da morte.

A estrutura narrativa de Ningen shikkaku


Ningen Shikkaku é dividido em três cadernos, narrados pelo próprio protagonista
em primeira pessoa. O primeiro dos cadernos se refere à infância de Oba Yozo, mostra
os primeiros sinais de seu desespero e angústia; o segundo, à juventude, e a consolidação
dessa forma de sofrimento assumido por Yozo. Esta é a maior das três partes. O terceiro,
à idade adulta, mostra o máximo da decadência experimentada por Yozo, o desejo de lutar
contra isso e a sua parcial resignação pelo retorno à natureza.

Há um prefácio narrado por um esse narrador desconhecid, que descreve três fotos
que viu junto aos três cadernos, cada uma se referindo a uma fase da vida de Oba Yozo.

Na primeira, Oba Yozo é descrito como um menino em um jardim cercado de


várias meninas. Além da vestimenta tradicional, o que há de notável em Yozo nessa foto
é o seu sorriso forçado, descrito como um “sorriso de macaco”. “Alguém indiferente à
estética”, diz o narrador, poderia afirmar que o menino é “bonitinho”, mas quem tem

1880
alguma sensibilidade estética diria “que criança horrorosa!”. O sorriso é descrito como
causador de desconforto por dois motivos: é um franzir grotesco do rosto, e ele e está
apertando os punhos com força. “Nenhum ser humano consegue sorrir apertando os
punhos desse jeito”, diz o narrador.

Sobre a segunda foto, o narrador afirma estar espantado com a transformação na


aparência do menino. Ele afirma ser um estudante na foto, mas não é possível dizer se de
ensino médio ou universitário. A foto “não passa a menor impressão de se tratar de um
ser humano vivo”. O sorriso deixou de ser “de macaco” e passou a ser “agradabilíssimo”,
porém “não parece o sorriso de um sorriso de um ser humano”, “não tem [...] o peso do
sangue, nem a austeridade da vida [...] é leve, não como uma ave, mas como uma pluma,
uma folha de papel em branco, e está sorrindo” e “passa artificialidade do início ao fim”,
que segundo o narrador não bastaria chamar de “superficialidade” ou “elegância”. Há
além disso uma “sensação desagradável” ao olhar para ele.

A terceira foto é descrita como sendo “a mais estranha de todas”. Os cabelos são
descritos como um pouco grisalhos. O local é um quarto “muito sujo” com uma parede
“rachada em três lugares”. Yozo não sorri e todas as suas feições são descritas como
“comuns”, e “não tem nada característico” ao ponto que se você fechar os olhos terá se
esquecido do rosto no mesmo instante. O rosto “não pode ser desenhado”, “nem mesmo
uma caricatura”. O narrador diz que “até o rosto de um moribundo teria mais expressão,
despertaria mais impressões”, de forma que “se colocassem a cabeça de um cavalo no
corpo de uma pessoa o resultado fosse semelhante”. A sensação ao olhar a foto é de se
despertar “náusea” ou “espanto”. O prefácio encerra com o narrador afirmando nunca ter
visto rosto tão desconcertante quanto este.

No posfácio, o mesmo narrador do prefácio vai em busca de informações sobre


Oba Yozo, supostamente morto.

A angústia de Oba Yozo: a liberdade e o erro

A temática da angústia aparece diversas vezes em Ningen shikkaku. Desde a


infância, a possibilidade de escolha sempre gerava no protagonista Yozo a “vertigem de
liberdade”. pela palavra 罪(tsumi) que pode ser também traduzida como “crime” ou
“violação de regra”. O protagonista se diz ter uma “consciência criminosa”, (犯罪認識,

1881
ninshiki - pode também ser entendida como “consciência pecadora” ou “consciência
pesada” – tradução adotada em Declínio de um homem) desde o início da vida:

As pessoas falam dos “excluídos da sociedade”. As palavras aparentemente


denotam os perdedores miseráveis do mundo, os maus, mas eu sinto como se eu
fosse um “excluído da sociedade” desde o momento que nasci. Se eu um dia
conhecer alguém que a sociedade designou como um excluído, eu
invariavelmente sentirei um afeto por ele, uma emoção que me leva embora com
uma ternura fluida.

As pessoas também falam de uma “consciência pesada”. Toda a minha vida neste
mundo de seres humanos eu tenho sido torturado por tal consciência, e tem sido
minha fiel companheira, como uma esposa na pobreza, e juntos, só nós dois, nos
envolvemos em nossos prazeres.

O pensamento no pecado, que é constante, parece consumir Yozo em sentimento


de culpa e de medo, inicia-se na infância, época que obedecia cegamente os adultos por
medo de fazer algo errado que não comprrendesse. Ele dizia “tremer de medo diante de
seres humanos” desde a infância, e por isso manteve escondida sua melancolia e agitação,
sob um “otimismo inocente”. Quando criança, Yozo pensava: “Enquanto eu os fizer rir,
não importa como, eu estarei bem. Se eu fizer isso, os seres humanos não vão se importar
se eu ficar fora de suas vidas. A única coisa que devo evitar é ser ofensivo aos olhos deles.”

Um episódio da infância que mostra que a necessidade de escolher lhe angustiava


é quando o pai de Yozo iria viajar para Tóquio e perguntou a todos os seus filhos presentes
que queriam de lá. Quando perguntou a Yozo o que desejava de presente, anotando os
pedidos no caderno, ele queria responder “nada”, porque “nada lhe faria feliz”, mas ele
não conseguia negar o presente. Com o protagonista permanecendo silencioso, seu pai
perde a paciência e sai. Arrependido de não ter respondido, mais tarde Yozo vai até o
caderno do pai para escrever que queria uma “máscara de leão”.

Na sua juventude, no segundo caderno, essa angústia aparece como uma


continuidade de uma que já estava presente desde a infância: a sua máscara cômica. Yozo
tentava ser engraçado para todos de forma a não revelar seu verdadeiro eu, uma vez que
não sabia o que esperar de outros seres humanos se eles o vissem tal como é.

Um medo sem alvo mostrava o acometer Oba Yozo também aparece quando ele
se torna estudante de artes e muda-se para Tóquio:

Na verdade, quando eu primeiro cheguei à cidade eu tinha medo de entrar num


carro de rua por causa do condutor; tinha medo de entrar no teatro Kabuki por
medo das lanterninhas em pé dos lados da escadaria com tapete vermelho na
entrada principal; eu tinha medo de entrar num restaurante intimidado pelos

1882
garçons furtivamente atrás de mim esperando eu esvaziar meu prato. Eu odiava,
acima de tudo, pagar a conta – a estranheza que eu sentia após pagar algo não
era devida a avareza, mas de tensão excessiva, vergonha excessiva, ansiedade
excessiva e apreensão.

Quando já adulto e com sua primeira esposa, no terceiro caderno, Yozo revela que
tinha um enorme medo de Deus, acreditando somente na punição dele, mas não em Seu
amor. Neste momento que ele usa pela primeira vez a palavra “tsumi” (罪 – “pecado” ou
“crime”), em uma situação semelhante à do seu passado: a de não saber se aquilo que faz
é correto. Sendo ele mesmo um adulto, passa a buscar em Deus a verdade absoluta que
antes ele dava mérito aos adultos, agora com um novo prejuí:

Oh, me conceda uma força de vontade de gelo. Me faça conhecer a verdadeira


natureza dos “seres humanos”. Não é um pecado para um homem deixar de lado
o seu próximo?
[...]
Eu tinha medo até de Deus. Eu não acreditava no Seu amor, só no Seu castigo.
Fé. Isso, eu senti, era o ato de encarar o tribunal da justiça com a cabeça arqueada
para receber o flagelo de Deus. Eu acreditava no inferno, mas era impossível
para mim acreditar na existência do paraíso.

Ao se separar da primeira esposa, Shizuko, Oba Yozo entra em uma reflexão em


que aparece o sentimento de medo constante e sem objeto:

Meus sentimentos tinham sido moldado pelo medo profano que me era trazido
por tais superstições da ciência de centenas de milhares de germes trazidos por
brisas da primavera, com milhares de bactérias que destruíam os olhos que
infestavam os banhos públicos, as centenas de milhares de micróbios em uma
barbearia que causavam calvície, as enxames de parasitas sarnentos infectando
as fitas de couro dos vagões de metrô; ou a tênia, a causalidade e sabe lá que
ovos sem dúvidas viviam em peixe cru e carne mal cozida; ou o fato que se você
andar de pés descalços sobre um pequeno caco de vidro pode penetrar a sola do
seu pé, pela circulação alcançar seu olho e te deixar cego.

Quando ele finalmente se casa pela segunda vez, com uma mulher que lhe parecia
ingênua e pura, a temática do pecado torna-se constante, pelo contraste que ele via: ele,
um pecador, e ela, a pureza encarnada. Ele mentia para ela sem dizer uma única mentira:
ele contava a verdade em tom de brincadeira, e numa dessas vezes ele se sentiu culpado,
considerando-se grande pecador.

Depois, quando a sua segunda esposa é estuprada por uma pessoa em quem eles
confiavam, o narrador volta a se perguntar a possibilidade de “confiar” ser um pecado:
“Será a confiança é um pecado?”, “Deus, eu lhe pergunto: confiar é um pecado?”, “A
confiança imaculada é afinal a fonte de todo pecado?”. Incapaz de segurar o fardo Ao
tentar suicídio, ele pensa em libertar a sua esposa daquele “pecado”, dizendo a si mesmo
enquanto pensa nela antes de engolir os remédios: “Você não cometeu um pecado”.

1883
O pensamento de culpa e pecado que o atormentam é aquele de quem se encontra
se sentindo de tal forma que viver se torna uma doença pior do que a própria morte, apenas
por ele cometer um pecado sempre que deixado por tomar suas próprias escolhas:

Tudo que pode acontecer é um pecado sujo e humilhante se empilhando um atrás


do outro, e meus sofrimentos só vai ficar mais agudos. Eu quero morrer. Eu devo
morrer. Viver em sim é uma fonte de pecado”. Eu andava pra lá e pra cá, meio
que em frenesi, entre meu apartamento e a farmácia.

Seu último pensamento sobre pecados é no momento em que Yozo se interna em


um manicômio: “Deus, eu lhe pergunto, passividade é um pecado?”. A sua internação e
sua posterior mudança para uma cidade pequena no interior parece libertá-lo do
sentimento de culpa, mas também lhe tiram todo o sentido da vida: “Eu senti como se o
vaso do meu sofrimento tivesse se esvaziado e nada mais poderia me interessar. Eu perdi
até a habilidade de sofrer.” A angústia desparece, e seu desaparecimento torna uma
existência não-humana.

Não sinto nem felicidade nem infelicidade.


Tudo passa.
Essa foi a única coisa que pensei que me lembrava uma verdade da sociedade
dos seres humanos que eu vivi até hoje, e que me era como um inferno em
chamas.
Tudo passa.
Agora tenho vinte e sete. Meu cabelo ficou mais grisalho. Maior parte das
pessoas me consideraria ter mais de quarenta anos.

A inconsciência de estar consumido pelo desespero

A primeira forma de desespero é a mais comum, pois adoece a existência de


muitos seres humanos que não exercitam sua existência, vivendo-a de maneira cômoda.

Essa comodidade é apresentada pelo protagonista ao seguir somente aquilo que os


adultos lhe dizem, quando na infância. Mas a maior forma de comodidade, mantida em
todas as idades, é a de manter uma máscara cômica para não revelar o seu verdadeiro eu.

O desepero que o consome é reconhecido como pior que a morte na noite em que
dormem juntos ele e a garçonete do café em Ginza:

Ela deitou ao meu lado. A caminho do amanhecer ela pronunciou pela primeira
vez a palavra “morte”. Ela parecia estar cansada demais da tarefa de ser um ser
humano; e quando eu refleti sobre meu ódio do mundo e sua condição de ser
incômodo, sobre dinheiro, sobre o movimento, mulheres, meus estudos, parecia
impossível que eu pudesse continuar vivendo. Eu consenti facilmente à proposta
dela.

1884
O autor, no entanto, só se consome de desespero diante da situação de se ver
completamente impotente diante da falta de dinheiro até mesmo para ajuda-la a pagar por
uma última refeição antes do sucídio suplo.

A voz dela era inocente, mas me cortou rapidamente. Foi tão dolorosa quanto a
única voz da primeira mulher que amei poderia ser dolorosa. “Isso é tudo?” Não,
isso era mesmo sugerir mais dinheiro do que eu tinha – três moedas de cobre não
contavam como dinheiro. Essa era uma humilhação mais estranha que qualquer
uma que eu tenha tido antes, uma humilhação com a qual eu não podia viver.

Assim, ele tenta primeiro na saída do suicídio se livrar da sua situação desesperada.
Isso não lhe livra da segunda forma de desespero, uma vez que ele passa da oscilação
entre a consciência e inconsciência e então permanece a negá-lo.

A consciência do desespero acompanhada da negação

Na segunda forma de desespero, o homem percebe que está vivendo de maneira


incorreta e tomado por um enfermo que ainda não conhece totalmente. No entanto, abdica
de enfrentá-lo, buscando distrações para esquecê-lo. Esta forma de desespero se assume
quando Oba Yozo é um estudante universitário e conhece Horiki, seu melhor amigo. A
partir desse momento, ambos passam a se ocupar de distrações e prazeres para esquecer
o seu “pavor de seres humanos”, ao ponto de se colocar nas mais humilhantes e
desumanas situações apenas para abdicar de enfrentar a forma incorreta pela qual se
encontra vivendo:

[...] um estudante de arte me iniciou nos mistérios de bebida, cigarros, prostitutas,


lojas de penhor e pensamento de esquerda.
[...]
Pela primeira vez na vida eu encontrei um inútil da cidade. Não menos que eu,
mas de uma forma diferente, ele estava completamente removido das atividades
dos seres humanos do mundo. Éramos ambos de uma espécie e nisso estávamos
ambos desorientados. Ao mesmo tempo havia uma diferença entre nós: ele
operava sem consciência da farsa ou, nesta questão, sem me dar qualquer forma
de reconhecer a tristeza da sua falsidade.
[...]
Mas logo eu vim a entender que bebidas, tabaco e prostitutas eram meios
excelentes de dissipar, mesmo que por alguns minutos, meu ódio aos seres
humanos..

O que o narrador assume em frequentar reuniões marxistas, é apenas, de fato, uma


diversão. Não há uma forma de identificação com o marxismo, pelo contrário, ele está lá
apenas para suprir o vazio da necessidade de enfrentar o seu “medo dos seres humanos”:

1885
Eu não era camarada deles. Sim, eu ia para todos os encontros e fazia todo o meu
repertório de comédia. Eu fazia porque eu gostava, porque essas pessoas me
agradavam – e não necessariamente porque estávamos ligados por algum afeto
por Marx”.
Irracionalidade. Eu achava o pensamento muito prazeroso. Melhor, eu sentia
facilidade com isso. Quanto eu ficava assustado com a lógica do mundo; nela
havia o gosto antecipado de algo incalculavelmente poderoso. Seu mecanismo
era incompreensível, e eu não podia permanecer preso nessa sala sem janela, de
gelar os ossos. Lá fora podia haver o mar da irracionalidade, mas era mais
agradável que nadar nas suas águas até eu me afogar.

Oba Yozo tem leves intervalos de alegria quando consegue comprar suas drogas
e prostitutas com o próprio dinheiro, mas ainda persiste a terceira forma de desespero,
que desde o início ele não consegue se livrar: o de não conseguir ser ele mesmo.

A vontade de ser um eu

Na terceira forma desespero para Kierkegaard, o homem possui enorme


consciência de sua situação, consumido pela doença mortal não recua, defronta-se com
seu desespero, por mais intenso e vivaz que ele seja, pois há neste homem um anseio,
uma inquietação, uma vontade desespera de libertar o seu Eu.

Esse desejo é expressado pelo personagem de Oba Yozo que, com medo de revelar
o seu verdadeiro eu às pessoas, assume uma persona cômica e teme por ser descoberto a
todo momento. Ao mesmo tempo, ele busca estar com pessoas com quem ele possa
libertar esse seu verdadeiro eu.

Outra forma de busca do seu eu para Yozo é através da arte, pela qual ele pode
mostrar seus reais sentimentos e sua visão do mundo. Seus desenhos, inspirados no que
chamava de “retratos de monstros” por seu amigo Takeichi, eram a expressão do seu
verdadeiro eu, como mostrado no trecho abaixo:

Ele estava balançando uma foto colorida que ele mostrava com orgulho: “É a
foto de um monstro”, ele explicou.
[...]
Eu peguei um volume de reproduções de Modigliani e mostrei a Takeichi os nus
desenhados em cor de cobre queimado. “Que tal esses? Você acha que são
monstros também?”
“Eles são incríveis”. Takeichi arregalou os olhos, admirado. “Este parece um
cavalo do inferno”.
“Eles são realmente monstros, não são?”
“Eu queria poder pintar monstros assim”, disse Takeichi.
[...]
“Eu vou pintar também. Eu vou pintar imagens e fantasmas e demônios e cavalos
do inferno.” Minha voz enquanto eu falava isso foi baixando até virar um
sussurro, não sei o por quê.
[...]

1886
Para Takeichi (e apenas para ele) eu mostraria minhas insensibilidades
facilmente feridas, e não hesitava em mostrar meus auto-retratos. Ele estava
muito entusiasmado, então eu pintei dois ou três mais retratos de monstro.
Anos após, já adulto e tendo que ganhar a vida como artista, Yozo recorre apenas
a publicação de quadrinhos porque não ousa, embora deseje, mostrar o seu talento natural
para os autorretratos que chama de “retratos de monstros”.

Os tempos de auto-retratos que eu pintava no ensino médio – os que Takeichi


chamava de “fotos de monstros” – naturalmente vieram à minha mente. Perdi
obras-primas. Estes, meus únicos retratos que valiam a pena, tinham
desaparecido durante uma das mudanças de endereço.
[...]
Mas não era piada. Era verdade. Eu queria ter mostrado a ela aqueles retratos.
Senti um vazio desgosto o qual me deu um caminho a resignação. Eu acrescentei
“Quadrinhos, quero dizer. Sou melhor que Horiki em quadrinhos se não em
outras coisas.”
Oba Yozo novamente é tomado pela lembrança dos desenhos que
representavam seu verdadeiro eu quando em uma discussão com seu amigo Horiki foi
questionado pela qualidade de seu trabalho com quadrinhos. O pensamento de que jamais
poderá resgatar tais trabalhos lhe traz imensa angústia e demonstram o quanto eles são
importantes para se livrar do seu desespero sem fim.

“Seus quadrinhos estão lhe dando uma reputação, não é? Não tem como competir
como amadores – eles são tão imprudentes que não sabem quando ter medo. Mas
não fique muito confiante. Sua composição ainda não vale nada!”
Ele ousou se fazer de mestre para mim! Eu senti meu usual tremor de angústia
pensando nisso “Eu posso imaginar a expressão em seu rosto se eu lhe mostrar
os “retratos de fantasmas””, mas eu protestei dizendo “não diga tais coisas. Você
vai me fazer chorar.”
A morte final da possibilidade de ser a si mesmo foi o tratamento em um
manicômio. Tendo perdido a capacidade de se desesperar e de portanto buscar o seu eu,
ele não mais sofria, porém também em nada sentia prazer: “toda a motivação me
abandonou, eu perdi até mesmo a capacidade de sofrer”.

Conclusão

Pela forma que pudemos observar presentes na obra Ningen shikkaku, o


protagonista Oba Yozo se encontrou tomado pela doença mortal do desespero em suas
três formas e pelo permanente sentimento de angústia. O fim do seu sofrimento foi
precisamente o fim de toda vontade de viver.

Assim, a decadência, segundo Sakaguchi, parece trazer uma boa resposta à


questão trazida por Kierkegaard quando o homem: a “alma nua”. Incapaz, por toda a sua
vida, de ter uma “alma nua”, o protagonista de Ningen shikkaku sucumbiu primeiro a

1887
todas as possíveis formas de angústia e desespero e ao tentar fugir das mesmas apenas
encontrou sofrimento.

Essas formas de distúrbios existenciais do herói da obra, com quem existe uma
identificação com o autor, é precisamente aquela do niilista pós-guerra do Japão, não
muito diferente, no entanto, do ser humano na contemporaneidade, consumido pelo
niilismo e deixado para ter de tomar escolhas sozinho.

Se pela arte ele encontrasse a saída do niilismo, como propunha Nietzsche, Oba
Yozo teria encontrado uma saída para essas duas categorias importantes para a existência
humana. Isso seria o contrário de uma fuga: seria assumir o próprio desespero, assumir a
responsabilidade sobre si e portanto se ver livre do sofrimento. Se pudesse mostrar a todos
os seus “retratos de monstros”, o protagonista não chegaria a um ponto em que se
considerasse “não mais humano”. Isso pode nos levar a pensar, portanto, o papel da arte
para a existência humana, em especial no contexto contemporâneo onde há uma forte
influência do niilismo e, portanto, uma forte “consciência criminosa” autorresponsável.

Por conseguinte, a universalidade do gênero shishosetsu, e da obra de Osamu


Dazai, mostram que mesmo em tempos e contextos históricos diferentes, mantém uma
temática grande importância e pode trazer aos leitores importantes reflexões acerca desses
sentimentos que aparecem fortemente em suas vidas.

Referências

AMANO, Ikuho. Decadent Literature in Twentieth-Century Japan. Palgrave Macmillan


US. Edição do Kindle.

DAZAI, Osamu. Ningen Shikkaku ( 人 間 失 格 ). 1985. Disponível em:


https://archive.org/stream/aozorabunko_00301/aozorabunko_00301_djvu.txt
DAZAI, Osamu. Declínio de um homem. São Paulo: Estação Liberdade, 2018.
DAZAI, Osamu. A shameful life. Stone Bridge Press: Berkeley, 2018.
DORSEY, James. SLAYMAKER, Douglas. Literary Mischief: Sakaguchi Ango, Culture,
and the War. Lexington Books, 2010.
DOWER, John. Embracing Defeat: Japan in the Wake of World War II. New York:
Norton, 1999 1999, pp. 148-67.
FAÇANHA, Luciano da Silva. SOUSA, Leonardo Silva. Angústia e desespero como
possibilidade de construção da existência humana a partir da filosofia de Sören

1888
Kierkegaard. Conjectura: Filos. Educ., Caxias do Sul, v. 23, n. 2, p. 307-324, maio/ago.
2018
FOWLEY
KIERKEGAARD, Soren. O conceito de angústia. 3ª Edição. Editora Vozes, 2010.
KIERKEGAARD, Soren. O desespero humano. In: Kierkegaard: Os Pensadores. São
Paulo : Abril Cultural, 1979.
NISHITANI, Keiji. The Self Overcoming of Nihilism. State University of New York,
1990.
SAKAGUCHI, Ango. Darakuron. In: Chikuma Nihon bungaku zenshu, número 6.
Tokyo: Chikuma Shobo, 1991.
SAKAGUCHI, Ango. Discourse on Decadence. Review of Japanese Culture and Society.
Vol. 1, No. 1, Inaugural Issue: JAPAN & THE JAPANESE, 1986.

SAKAGUCHI, Ango. Zoku darakuron 堕落論 (Japanese Edition). Edição do Kindle,


2012.
SHIELDS, James Mark. Smashing the Mirror of Yamato: Sakaguchi Ango, Decadence
and a (Post-metaphysical) Buddhist Critique of Culture. Japan Review 23, p. 225-246;
2011.
STEWART, Jon. Soren Kierkegaard: subjetividade, ironia e crise da modernidade.
Editora vozes. São Paulo: 2017.
WELLER, Shane. Modernism and Nihilism. New York: Palgrave Macmillan, 2011.
WOLFE, Alan Stephen. Suicidal narrative in modern Japan: the case of Dazai Osamu.
Princeton: Princeton University Press, 1990.
Nota: Citações em língua portuguesa para textos originalmente em língua inglesa ou
japonesa são traduções nossas.

1889
DIÁLOGOS EPISTOLARES: A CARTA COMO LABORATÓRIO OU
ARQUIVO DE CRIAÇÃO LITERÁRIA

Carlos Augusto Moraes Silva (UFU)1

Resumo: Correspondências trocadas entre escritores são um espaço privilegiado, um terreno de


experiência e partilha no desenvolvimento literário. Perpetuam-se nelas nuances de um trabalho
ligado à gênese e à crítica do texto, um laboratório ou arquivo de criação em que o estudioso pode
acompanhar o engendramento da obra nas filigranas, observar os meandros da análise e da
interpretação e até pontuar motivações externas que irão precisar a circunstância do texto. O
presente trabalho faz um recorte no conjunto de missivas trocadas entre Clarice Lispector, João
Cabral de Melo Neto e Fernando Sabino, especificamente três cartas datadas de 1956, 1957 e
1958, nas quais os autores abordam impressões sobre a escrita do romance “A maçã no escuro”,
de 1961.

Palavras-chave: Correspondências; Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto; Fernando


Sabino.

A carta como laboratório ou arquivo de criação literária

Ó bendito tempo das cartas de três a seis páginas,


tempo em que nos entregávamos em nossas
cartas, nas quais ficávamos à vontade, nas quais
exercíamos nosso talento, nas quais nos
fechávamos e dávamos formas às experiências
vividas. Quando, portanto, – se posso perguntar-
lhe – desaparecestes?
(Thomas Man a Walter Opitz, 5 de dezembro de
1903).

A carta é um texto que, ao ser estudado, desvela fatos e acontecimentos, além de


expor sentimentos, experiências e idiossincrasias. Na leitura atenta, é comum que
algumas questões rompam o limite tênue do discurso epistolar, ao servirem de aporte
teórico para compreender o que parecia obscuro na vida e obra literária de um escritor.
É notório que a carta se configure como uma vasta fonte de informações sobre a
biografia, o processo de criação e as concepções de vida do autor. Moraes (2007, p. 92)
explica que ela é um laboratório ou arquivo de criação, na medida em que carrega em si
traços da criação literária do escritor:

A carta, enquanto terreno de experiência e partilha, figura como lugar


privilegiado no desenvolvimento literário. Perpetuam-se nela os resquícios de

1
Doutorando em Estudos Literários pelo Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de
Uberlândia (ILEEL/UFU). Contato: gutolitera@hotmail.com.

1890
um trabalho miúdo ligado ao nascimento e à crítica do texto literário, onde se
pode acompanhar o engendramento do texto nas filigranas, observar os
meandros da análise e da interpretação e até pontuar motivações externas que
irão “precisar a circunstância” do texto (MORAES, 2007, p. 92).

Mas, afinal, o que podem nos revelar esses documentos? O presente trabalho faz
um recorte no conjunto de missivas trocadas entre Clarice Lispector, João Cabral de Melo
Neto e Fernando Sabino, especificamente três cartas datadas de 1956, 1957 e 1958, nas
quais os autores abordam impressões sobre a escrita do romance “A maçã no escuro”, de
1961. Se a carta, enquanto laboratório crítico e de criação, participa da gênese de uma
estética e indiretamente da constituição das obras – seja como ateliê escritural ou ensaio
–, contribui também para a gênese de um “ser escritor”.
Para Haroche-Bouzinac (2016), a exploração do gênero epistolar envolve amplos
debates de natureza teórica, crítica e interpretativa. Por ser essencialmente híbrida e
maleável, a carta resiste a conceituações estritas, tencionando-se entre a norma e a
inventividade, o público e o privado, a escrita e a oralidade, o ensinamento e a alteridade,
o literário e o prosaico. Ainda segundo a autora:

[...] o estudo de carta pressupõe a percepção de muitas camadas de


significados, leituras do texto e do contexto, valendo-se de um instrumental
interpretativo que possa iluminar a força e a tradição epistolográfica, as
encenações do sujeito, os pactos entre os interlocutores, as sociabilidades e
tantas outras vertentes de análise (HAROCHE-BOUZINAC, 2016, p.16)

Evidentemente, a correspondência do escritor pode ser um valioso documento,


capaz de revelar as nuances da elaboração de determinada obra. É comum que, em meio
a notícias triviais, surjam com frequência comentários e trocas de ideias acerca do
processo criativo dos livros, sobretudo quando tal diálogo epistolar acontece entre dois
escritores. Assim, o estudo desse tipo de correspondência pode oferecer, à Teoria e Crítica
Literária, elementos para compreender a concepção estética do autor.
Por um longo período, as informações contidas nas correspondências trocadas entre
artistas e intelectuais foram relegadas ao segundo plano e vistas com certa desconfiança
pela História e Crítica Literária. Talvez, esse preconceito ocorra pelo fato de que, no
interior de uma cultura falocêntrica, a escrita epistolar foi considerada pelos críticos
literários uma literatura menor e era frequentemente associada à autoria feminina.

1891
A partir da década de 1980, a crescente publicação de coletâneas de cartas anotadas
e comentadas se destaca como um fenômeno editorial. Não tardou para historiadores e
críticos literários adotarem uma nova perspectiva de análise e leitura dos textos
epistolares, o que levou à revalorização do indivíduo, abrindo um importante espaço para
os escritos (auto)biográficos.
O desenvolvimento do gênero autobiográfico remonta ao século XIX. Nesse
momento, ele preenchia funções bem definidas com a educação do “eu” ou a fixação de
normas de convivência em determinados meios sociais, além de satisfazer a busca de
intimidade e privacidade que acompanhou a implantação do pensamento burguês no
Ocidente.
Diante disso, Malatian (2009, p.203) discorre que a valorização da experiência
individual pela historiografia tem feito os pesquisadores se interessarem pelas cartas
como objeto de investigação, sem considerá-las apenas fonte de informações; ademais:
“[...] as múltiplas possibilidades de sua abordagem e utilização, seja como fonte, seja
como objeto, inevitavelmente encontrarão no caminho as especificidades do gênero
epistolar”.
No campo dos estudos literários, o pesquisador da epistolografia tem um vasto
terreno a ser explorado. No ensaio “Narrador, registro e arquivo”, Malatian (2009)
assevera que a correspondência comporta troca de ideias e elaboração de projetos, além
de selar pactos, expor polêmicas e fixar rupturas. Por meio das missivas, o estudioso pode
detectar intrincadas redes de relações sociais que reúnem seus atores.
Em se tratando dos intelectuais, esse diálogo epistolar é imprescindível, pois
envolve a rede profissional, em que há trocas de livros e opiniões acerca de determinados
temas e sentimentos diversos, firmando-se estratégias de atuação entre os pares. Por essa
perspectiva, a carta se torna uma importante fonte de pesquisa para compreender a
circulação das ideias e dos homens nos espaços literários.
Neste trabalho é positivado o estudo das correspondências trocadas entre escritores
e intelectuais, com o intuito de investigar o processo criativo e sua trajetória ficcional.
Paralelamente a tal objetivo, tenciona-se problematizar em que medida o diálogo
epistolar, rico em opiniões e sugestões, influenciou ou não a criação e a gênese das obras.
A publicação de coletâneas de cartas de escritores e demais artistas descortinou,
para o grande público, nuances e informações sobre obras e autores até então

1892
desconhecidas. Expõem-se não apenas curiosidades da vida íntima de dessas
personalidades, como também preciosos dados que podem iluminar a composição e a
gênese de sua arte.
Desde que foram publicadas, as correspondências trocadas entre Clarice Lispector
e diversos autores da Literatura se tornaram documentos capazes de elucidar ou fornecer,
aos leitores e estudiosos, pistas do processo criativo da autora de “A paixão segundo GH”,
de 1964.
Em “Cartas perto do coração”, de 2001, e “Correspondências”, de 2002 – coletâneas
que reúnem parte desse acervo epistolográfico –, diversos temas se mesclam de maneira
recorrente, como afetos, confissões, notícias da vida social e política do país. Entretanto,
essas temáticas quase sempre convergiam para os meandros da criação artística, em que
reside provavelmente o valor das correspondências para os estudiosos da Literatura. Ao
grande público, tal acervo epistolográfico expõe nuances das reflexões de Clarice
Lispector sobre a criação dos livros. Ademais, as cartas revelam uma autora sensível,
atenta às considerações feitas pelos companheiros de Letras.
Pouco tempo depois de publicar seu primeiro romance – “Perto do coração
selvagem”, de 1942 –, Clarice se muda para Belém e posteriormente parte rumo à Europa,
para acompanhar o marido diplomata. Assim, as informações sobre a recepção e a crítica
dos livros fica sob a responsabilidade de suas irmãs e dos amigos escritores, dentre eles
Fernando Sabino e João Cabral de Melo Neto.
Clarice mantém intensa troca de correspondências com Fernando Sabino. Apesar
de o autor de “O encontro marcado”, de 1956, ser, assim como a referida escritora, um
escritor iniciante, se torna uma espécie de “tutor”, ao contribuir não apenas com sugestões
acerca dos textos de Lispector, como também ao ser um importante elo entre Clarice e
possíveis editores de seus romances.
Nesses termos, a confiança entre os escritores chega ao ponto de Fernando Sabino
tecer comentários desfavoráveis à estrutura de alguns romances de Lispector. A autora
aceita com humildade as críticas do amigo, tendo de revisar mais de 85 páginas do
romance “A maçã no escuro”, de 19612. Em carta de 25 de outubro de 1956, período em

2
Publicado em 1961, “A maçã no escuro” narra a fuga de Martim, após ter supostamente cometido um
crime que não se concretiza, como se sabe mais tarde com a leitura da obra. Com a crença no assassinato
da esposa, o protagonista se lança a uma jornada de isolamento e autoconhecimento, em que se questiona
acerca dos valores da existência anterior ao crime. A trajetória da personagem estabelece uma circularidade,

1893
que Clarice residia em Washington, é possível avaliar o quanto ela considerava as
observações feitas por Sabino acerca da escrita do referido livro:

Washington, 25 de outubro de 1956, quinta-feira

Fernando,

Eu ia responder logo que recebi sua carta. Mas me deu uma crise de desânimo
em relação ao livro, que se tornou geral, então não quis escrever enquanto
não passasse – sabendo que, com a graça de Deus, ou o desânimo passaria ou
eu passaria por cima dele.
Passei por cima dele. E embora sem crença, comecei a revê-lo. Só que tem
sido lentamente: tenho tido pouco tempo. Não sei como você teve paciência
com ele. Estou com pouca, ele é descozido, e tão mal escrito que muitas vezes
não dá jeito de consertar. Será que você irá ter paciência quando eu mandar
as correções citando página e linha? (As páginas com muita correção eu copio
inteiras, para serem substituídas). Me sinto encabulada até de ter pedido a
você para ler, mas enfim... Me escreva, sem adiar muito, se possível.

Grande Abraço da
Clarice

(SABINO, 2001, p.148)

A transparência da amizade sincera estabelece um pacto de confiança entre os


escritores. Clarice delega ao amigo a difícil tarefa de revisar os manuscritos de “A maçã
no escuro” e ainda solicita, a Fernando Sabino, que interfira junto aos possíveis editores
de suas obras. Entretanto, Viotti (2007, p. 25) chama a atenção para uma característica
peculiar do discurso epistolar e que deve ser considerada pelo estudioso que pretende
utilizar as correspondências como fonte de pesquisa:

Esse trabalho de leitura não pode ser ingênuo, pois o discurso das cartas nem
sempre pode ser tomado como verdade. Ele é construído em sujeição a
determinadas contingências, que às vezes exigem omissões e exageros
indispensáveis ao missivista para alcançar os objetivos que almeja.

Segundo o referido estudioso, assim como qualquer texto biográfico, a carta não
está livre do que se chama de “encenação da persona”. Na mesma linha de raciocínio
defendida por Viotti (2007), Moraes (2007, p. 8) afirma que a carta, no que tange ao “[...]
campo semântico da representação teatral, coloca ‘personagens’ em ‘cena’, pois o

pois Martim parte de uma negação à civilização, rumo à natureza e à animalização, para, no final da
narrativa, se voltar à norma, representada pelos quatro homens da lei que irão buscar o personagem na
fazenda onde está escondido.

1894
remetente assume papéis, ajusta máscaras em seu rosto, reinventando-se diante de seus
destinatários com objetivos afetivos ou práticos definidos.
As indicações de Sabino transcendem os aspectos semânticos. Em dezenas de
cartas, o autor se dispõe a revisar os manuscritos da obra e sugere títulos, mudanças de
expressões, termos que não lhe soavam bem e modificações estruturais. Tais alterações
podem ser verificadas em carta datada de novembro de 1956, na qual há sugestões feitas
por ele e as alternativas propostas por Clarice:

Washington, 12 de novembro de 1956, segunda-feira

Fernando,

Aí vão as correções. Espero que fazê-las não lhe dê muito trabalho ou


amolação. As páginas que tinham correções mais complicadas ou mais
trabalhadas, eu as copiei de novo: é fácil substituí-las, basta despregar a capa.
[...]Fernando, até breve. Diga se as correções vão lhe dar trabalho. Nesse
caso, arranjo outro jeito. Um abraço grande de sua amiga

Clarice

Vale ressaltar que as notas e a leitura dos originais foram remetidas em setembro
de 1956:

Título – Acho bom, mas pouco eufônico. Soou mal a todo mundo que falei,
por causa de “aveia”. Qualquer dos títulos das três partes, para o meu
gosto pessoal, é melhor. “COMO SE FAZ UM HOMEM”, “O
NASCIMENTO DO HERÓI”, “A MAÇÃ NO ESCURO”. Com um pouco
de esforço se encontraria no próprio livro título melhor que o exprimisse.
Mas, como disse, questão de gosto.
- Ainda não decidi sobre o título... Me disseram que cortasse o “A”, ficaria
“Veia no pulso”. Mas não só acho que muda o sentido, como fica muito lítero-
musical: estou enjoada de veias e pulsos. Tive algumas ideias, todas meio
ruins. Como: “O aprendizado”. Ou “A História de Martin”. Vou pensar
ainda. Se você tiver alguma iluminação, me ilumine, estou de luz apagada.
Página 1 a 3 (p. 13, linha 1) – Achei, em duas leituras, dispensável todo
“prefácio”. Meio precioso também. Repete coisas que o próprio livro já
diz, as que não diz poderiam ser aproveitadas no texto. Para mim, o livro
começa realmente em: “Começa (esta história) com uma noite...”
- Cortado “prefácio”. Substituída a página 3 (está junto das copiadas)

[...] (SABINO, 2001, p. 150).

Transcrevemos aqui apenas um fragmento da referida correspondência que se


estende por impressionantes 30 páginas. Dessa maneira, o leitor pode acompanhar, com
riqueza de detalhes, as sugestões de mudanças sintáticas e semânticas propostas por

1895
Sabino e as alternativas encontradas por Clarice para a tessitura do romance “A maçã no
escuro”.
A aceitação quase total das sugestões evidencia a grande influência de Sabino. Em
carta de 19 de dezembro de 1956, ela confessa constrangimento diante da confiança
depositada na avaliação dele: “[...] fiquei encabulado de ver que você seguiu ao pé da
letra demais minhas sugestões, fiquei com medo de ter exagerado, pensando até em voltar
atrás em alguns casos” (SABINO, 2001, p. 185).
Em contraposição às opiniões emitidas por Fernando Sabino, acerca do título do
novo romance de Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto, que residia na Espanha,
escreveu para a amiga em tom sarcástico:

Sevilha, 6 de fevereiro de 1957

Caríssimos Clarice e Maury.

Quem foi o errado que foi contra A veia no pulso? Acho que v. não deve mudar,
absolutamente. Em 1º lugar porque veia no pulso não é, como v. diz, a mesma
coisa; porque A veia não é absolutamente cacófato. Cacófato é o som ridículo
ou feio. “A veia”, no máximo pode parecer ambíguo, o que não é a mesma
coisa. Mas a ambiguidade não é motivo para tirar e sim para deixar. E mesmo
que ambiguidade é essa? Se o nome do livro fosse Aveia no pulso, ainda se
poderia criticar sobre o ponto de vista de ser ambíguo ou causador de mal-
entendido. Mas o nome é “A veia”, isto é, a coisa mesma que há no pulso e
portanto não há por que mudar nada. Se na língua falada fôssemos criticar
todos os sentidos duplos provocado pelo artigo ou pela preposição “a” teríamos
de ficar calados. Por outro lado, só um idiota, ouvindo A/VEIA NO PULSO
pode entender Aveia no pulso. [...] Essa que deram a você é o tipo de opinião
que não devemos levar a sério, creio que v. não deve dar nenhuma bola e dizer
que é aveia no pulso mesmo. Aveia que o personagem leva para que os burros
venham comer-lhe na mão [...] Bom, paro por aqui. Conversar é bom. Mas
visto do lado de vocês, conversar por carta com um indivíduo de letra como a
minha deve ser tão cansativo quanto conversar com um gago [...]
Afetuoso abraço do

João

(MONTERO, 2002, p. 213).

Em carta datada de 21 de maio de 1958, João Cabral de Melo Neto volta a pedir
notícias de “A veia no pulso”: “Mande notícias de Vs. e de ‘A veia no pulso’. Todas as
notícias que possam caber em muitas folhas de papel. Não faço as perguntas porque este
é um bilhete. Mas conte, sem ser perguntada” (MONTERO, 2002, p. 235). Ao que parece,
Clarice aceita as sugestões de Fernando Sabino, e o romance foi publicado em 1961 com
o título “A maçã no escuro”.

1896
Seria possível elencar inúmeros exemplos de correspondências cujo tema central é
a troca de ideias, sugestões e críticas ao processo criativo dos autores. Todavia, por se
exigir concisão no gênero artigo, iremos nos ater apenas a alguns trechos, a fim de ilustrar
as nuances do diálogo epistolar mantido entre Clarice Lispector, Fernando Sabino e João
Cabral de Melo Neto.
À medida que a pesquisa for aprofundada se pretende, na estratégia de leitura, ir
além da mera busca de fragmentos que justifiquem as análises e reflexões. Coaduna-se,
pois, com importantes questões levantadas por Viotti (2007, p. 21):

Em ensaios de crítica literária a carta costuma surgir mais frequentemente


como um complemento, funcionando muitas vezes como a voz do escritor
capaz de corroborar a tese que o crítico apresenta, na função de contracanto,
por assim dizer, pouco diferindo, por exemplo, da entrevista. No estudo
epistolográfico os papéis se invertem. A carta é o objeto de estudo, é preciso
adotar estratégias distintas, e tomar seu enunciado como ponto de partida, ao
invés de utilizá-lo como meio para atingir finalidades normalmente pré-
definidas a partir do texto ficcional. Esse ponto de partida, entretanto, precisa
ser significativo a ponto de sugerir hipóteses de reflexão que encontrem eco no
conjunto textual [...].

Ao considerar o enunciado das cartas como um “ponto de partida” para leituras e


reflexões, o trabalho que ora se apresenta busca compreender o processo criativo e a
trajetória ficcional da autora de “Água Viva”, de 1973, assim como as possíveis
influências exercidas pelos companheiros de Letras na constituição dos livros. Nesse
sentido, as cartas comparecem são vistas como mais um recurso à disposição do leitor e
do crítico para compreender os meandros e a gênese da obra de Lispector.

Referências

HAROCHE-BOUZINAC, G. Escritas epistolares. Tradução de Ligia Fonseca Ferreira.


São Paulo: Edusp, 2016.

MALATIAN, T. Narrador, registro e arquivo. In: PINSKY, C. B.; DE LUCA, T. R.


(Orgs.). O historiador e suas fontes. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2011.

MONTERO, T. Correspondências de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.

MORAES, M. A. de. Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia de Mário de


Andrade. São Paulo: EDUSP; FAPESP, 2007.

SABINO, F. Cartas perto do coração. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.

1897
SANTOS, M. D. Ao sol carta é farol: a correspondência de Mário de Andrade e outros
missivistas. São Paulo: Annablume, 1998.

VIOTTI, F. B. Encenação do sujeito e indeterminação do mundo: um estudo das cartas


de Guimarães Rosa e seus tradutores. 2007. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-
graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 2007.

1898
A ESCRITA DE SI SOB A FORMA DE DIÁRIO, NA OBRA TEORIA GERAL DO
ESQUECIMENTO

Christiane Gonçalves dos Reis (UFF)1

Resumo: Este trabalho tem como objetivo problematizar a escrita de Ludo, personagem de José
Eduardo Agualusa, a qual esteve por vinte e oito anos em autoclausura, emparedada, durante a
guerra civil angolana, período em que teria redigido dez cadernos em forma de diários,
continuando o processo da escrita de si, mesmo após o seu resgate,
Nesse diapasão, será analisada a questão da memória, sua expressão ou recalque, assim como a
relação desta com o esquecimento e, para tanto, serão utilizadas as obras de Paul Ricoeur,
Aleida Assmann, Maurice Halbwachs, Jeanne Marie Gabnebin, a fim de fundamentar
metodologicamente o trabalho.
Palavras-chave: Memória; História; Literatura.

O presente trabalho visa analisar a escrita de si sob a forma de diário tomando por
base a obra Teoria Geral do esquecimento, o qual traz a história de Ludo, portuguesa
residente em Angola junto à irmã e o cunhado até a independência daquele país, quando
estes desaparecem na véspera do embarque da família para Lisboa e ela fica só no
luxuoso apartamento onde viviam.
É importante ressaltar que o romance tem início com uma nota prévia, onde o
autor afirma:
Ludovica Fenandes Mano faleceu em Luanda, na clínica Sagrada Esperança,
às primeiras horas do dia 5 de outubro de 2010. Contava 85 anos. Sabalu
Estevão Capitango ofereceu-me cópias de dez cadernos nos quais Ludo foi
escrevendo o seu diário, durante os primeiros anos dos 28 em que se manteve
enclausurada. Tive igualmente acesso aos diários posteriores ao seu resgate e
ainda a uma vasta coleção de fotografias, da autoria do artista plástico
Sacramento Neto (Sakro), sobre os textos e desenhos a carvão de Ludo nas
paredes do apartamento. Os diários, poemas e reflexões de Ludo ajudaram-
me a reconstruir o drama que viveu. Ajudaram-me, creio, a compreendê-la.
Nas páginas seguintes aproveito muito dos testemunhos dela. (AGUALUSA,
2012a, p. 9)

Gérard Gennette, em Paratextos Editoriais, quanto às notas ficcionais diz o


seguinte:
Lembro que por esse termo entendo não as notas autênticas sérias que podem
acompanhar uma obra de ficção, mas, no caso de um texto ficcional ou não,

1 Graduada em Letras (Estácio), Mestranda em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa (UFF).


Contato: chrisgreis@gmail.com

1899
as notas cujo destinador é por alguma razão ficcional: denegativo, fictício ou
apócrifo.
A nota autoral denegativa, ou pseudoeditorial, é um gênero inteiramente
clássico, especialmente bem ilustrado nos romances epistolares ou em forma
de diário. Como nos prefácios de mesmo tipo, o autor apresenta-se aqui como
editor, responsável pelo estabelecimento e pela organização do texto que diz
ter encontrado ou recebido para cuidar. (GENNETTE, 2009, p.p. 298-299)

Sabemos que a nota do romance Teoria geral do esquecimento faz parte de um


jogo pós-moderno do autor com os seus leitores, levando a crer os incautos que o
romance havia sido baseado em fatos, o que não se deu.
Umberto Eco, em sua obra Seis passeios pelos bosques da ficção (ECO, 1994, p.
12), diz que num texto narrativo, o leitor é obrigado a optar o tempo todo, e os leitores
empíricos podem ler de várias formas, pois não existem leis que determinem como
devem ler, porque em geral utilizam o texto como receptáculo de suas próprias paixões,
as quais podem ser exteriores ao texto ou provocadas pelo próprio texto.
Com base na doutrina de Eco e exclusivamente para o fim de analisar os diários
de Ludo como uma das formas da escrita de si, iremos desconsiderar a figura do leitor
modelo para problematizar os diários a partir de uma leitura empírica, optando por
acreditar em sua real existência, tal como os incautos acima mencionados.
Após tais esclarecimentos, voltemos à história de Ludovica. Desde criança, não
gostava de espaços abertos e depois de algo que denominava “o acidente” esse medo
piorou e ela pouco saía de casa. Após deixar Portugal para acompanhar a irmã, agora
casada, e morar em Angola, continuou reclusa e não desejava conviver com o povo
angolano - “Selvagens celebrando algo – uma alegria, um augúrio feliz” (AGUALUSA,
2012a, p. 95) - e se sentia como um corpo estranho ao país. Assim, com o repentino
desaparecimento do casal, sentindo o clima conturbado do pós-independência, resolveu
se proteger construindo uma parede externa à porta do apartamento, local onde se
manteve enclausurada por vinte e oito anos.
Em seu diário, ela escreve:
Sinto medo do que está para além das janelas, do ar que
entra às golfadas, e dos ruídos que traz. Receio os
mosquitos, a miríade de insetos aos quais não sei dar
nome. Sou estrangeira a tudo, como uma ave caída na
correnteza de um rio. Não compreendo as línguas que
me chegam lá de fora, que o rádio traz para dentro de

1900
casa, não compreendo o que dizem, nem sequer quando
parecem falar português, porque esse português que
falam já não é o meu.
Até a luz me é estranha.
Um excesso de luz.
Certas cores que não deveriam ocorrer num céu saudável.
Estou mais próxima do meu cão que das pessoas lá fora. (AGUALUSA,
2012a, p. 31)

Durante esse período, Ludo viveu em solidão, teve apenas a companhia do


Fantasma, o cão, e escreveu em seus cadernos. Quando o papel terminou, passou a usar
as paredes e, ao sair da clausura, continuou escrevendo, embora afirmasse que
deveríamos praticar o esquecimento, já que os erros nos corrigem. Todavia, esse tipo de
escrita pode também ser vista como um registro, forma de manter vivas as lembranças,
o que denota uma aparente contradição. O que ela deseja afinal: memória ou
esquecimento? E qual seria o motivo ensejador da redação da própria vida em diários?
Sabe-se que Ludo vivia só e mantinha recalcadas as lembranças traumáticas da infância
e adolescência, até que passou a expressá-las. Vejamos, a propósito, um dos seus
poemas:
Exorcismo
lavro versos
curtos
como orações
palavras são legiões
de demônios
expulsos
corto advérbios
pronomes
poupo os pulsos. (AGUALUSA, 2012a, p. 93)

A partir do poema podemos perceber o exorcismo de demônios por meio das


palavras, a fim de não perecer e como forma de resistir às intempéries. Ela traduz o
sentimento de ser estrangeira a tudo, narra sua vida íntima, bem como os conflitos do
povo, os quais presencia pela janela ou do segundo andar da cobertura, mesclando a
história do país com a própria, trazendo à tona trechos de memória individual e coletiva.
Escreve:
Se ainda tivesse espaço, carvão e paredes disponíveis, poderia escrever uma
Teoria Geral do Esquecimento. Dou-me conta de que transformei o
apartamento inteiro num imenso livro. Depois de queimar a biblioteca, depois
de eu morrer, ficará só a minha voz.
Nesta casa todas as paredes têm a minha boca. (AGUALUSA, 2012a, p. 78)

1901
Pensando nessa vida passada entre paredes, mas com o olhar que percebe o
entorno, temos o que Halbwachs (2013) chama de “memória coletiva” e por meio da
qual postula que o fenômeno de recordação e localização das lembranças não pode ser
efetivamente analisado se não forem levados em conta os contextos sociais que figuram
como base para a reconstrução da memória. É, portanto, mediante essa categoria que a
memória deixa de ter apenas a dimensão individual, eis que as memórias de um sujeito
nunca são apenas suas ao passo que nenhuma lembrança pode coexistir isolada de um
grupo social.
Faz-se necessário ressaltar que boa parte da história angolana se encontra numa
espécie de caixa-preta ainda não aberta e que encerra também o período narrado por
Agualusa na obra sob análise. Por isso, uma das alternativas encontradas para suprir tais
lacunas foi a via do romance, onde vamos nos deparar com os caminhos da memória e
perceber que mecanismos são acionados com o objetivo de resgatar o ora enfumaçado
trajeto de alguns países africanos. Essa provisória solução foi apontada por Rita Chaves,
ao escrever sobre a formação do romance angolano, no que diz:
O peso da memória traz a marca do tempo, que ali estará representado por
um dos fatores constitutivos do gênero. Espaço de reinterpretação da terra,
onde se entrecruzam passado e presente, a narrativa se abre para abordar a
totalidade da vida reclamada pelo homem em sua historicidade.
(CHAVES,1999, p. 22)
Retornando aos diários e pensando nas expressões da memória, podemos observar
um inicial silêncio de Ludo e a parcial reclusão mesmo antes do casamento da irmã e do
desaparecimento do casal. Após um tempo, ela deu início à escrita, vindo a mencionar
os traumas do estupro, que denominou “o acidente”, assim como a reação do pai, a
gravidez e o fato de ter sido separada do bebê logo após o nascimento.
Escreveu também sobre os assombrados espelhos do apartamento, nos quais via o
homem que a violou na região praiana de Costa Nova, em Portugal. Falou do cheiro do
homem, das mãos ásperas e duras, das pancadas sincopadas, como se estivesse a
divertir-se. Falou da reação do seu pai, ao retornar a casa, ensanguentada e com o

1902
vestido rasgado. Foi esbofeteada, chamada de puta, vadia e trancada num quarto logo
que se soube da gravidez. Narrou:
Nem cheguei a ver o rosto da minha filha. Tiraram-na de mim. A vergonha. A
vergonha é que me impedia de sair de casa. O meu pai morreu sem nunca
mais me dirigir a palavra. (...) Mudei-me para a casa da minha irmã. Pouco a
pouco fui-me esquecendo. Todos os dias pensava na minha filha. Todos os
dias me exercitava para não pensar nela
Nunca mais consegui sair à rua sem experimentar uma vergonha profunda.
Agora passou. (...) (AGUALUSA, 2012a, p.p. 165-167)

Ao final da narrativa percebemos que para questionar esse silenciamento,


precisamos considerar os motivos que o causaram, além dos conceitos de memória,
esquecimento e trauma, partindo das metáforas da recordação, tema analisado por vários
autores, de Platão aos nossos dias, e presente também na obra de Aleida Assman (2011).
Daí, é de se inferir que os traumas de Ludo, principalmente o da violação, devem
ter impedido a rememoração e depuração do passado ao longo de parte da vida, embora
tenham influenciado suas atitudes, já que não se pode apagar a memória, pois esta
ressurge de maneiras diferentes e sempre de acordo com o vivido no momento presente.
Como já foi dito, há uma aparente contradição entre os desejos de lembrar e
esquecer/ser esquecida, ao registrar uma história que gostaria de ver apagada. Diz-se
aparente, porque levamos em consideração as propostas do filósofo Paul Ricoeur,
segundo as quais o esquecimento propõe uma nova significação à ideia de profundidade
que a fenomenologia da memória tende a identificar com a distância, com o
afastamento, a fim de que se possa ver os fatos em perspectiva. (RICOEUR, 2010)
Podemos dizer, então, que Ludo precisou de um tempo para “lembrar, escrever e
esquecer” (GAGNEBIN, 2009). Ela teria exercido o esquecimento ao acessar a
memória - lembrança prenhe de amargura - por meio das palavras, legiões de demônios
expulsos, ou seja, da escrita em si, a qual permitiu o contato com os medos que a
atormentavam, ao tempo em que foi também testemunha de parte da formação de uma
memória coletiva, a do povo angolano.
Finalizando, alguns trechos são reveladores do que se sustenta. Ludo quis deixar
de lembrar do que chamava de “acidente” (AGUALUSA, 2012a, p. 11), em razão do
profundo trauma sofrido (AGUALUSA, 2012a, p. 165-167), mas não pôde continuar
evitando essa memória a partir do momento em que conheceu a sua filha (AGUALUSA,

1903
2012a, p. 153) e escrevia, mesmo depois de liberta e ainda que já não pudesse ler, para
si mesma, como relata na seguinte parte do seu diário:
“Escrevo tateando letras. Experiência curiosa, pois não posso ler o que
escrevi. Portanto, não escrevo para mim.
Para quem escrevo?
Escrevo para quem fui. Talvez aquela que deixei um dia persista ainda, em pé
e parada e fúnebre, num desvão do tempo – numa curva, numa encruzilhada
– e de alguma forma misteriosa consiga ler as linhas que aqui vou traçando,
sem as ver.
Ludo, querida: sou feliz agora.
Cega, vejo melhor que tu. Choro pela tua cegueira, pela tua infinita estupidez.
Teria sido tão fácil abrires a porta, tão fácil saíres para a rua e abraçares a
vida. Vejo-se a espreitar pelas janelas, aterrorizada, como uma criança que se
debruça sobre a cama, na expectativa de monstros.
Monstros, mostra-me os monstros: essas pessoas na rua: a minha gente.
Lamento tanto pelo que perdeste.
Lamento tanto.
Mas não é idêntica a ti a infeliz humanidade?” (AGUALUSA, 2012a, p. 169)

Com isso, podemos dizer que Ludo usou a escrita como lugar para encontrar
novas significações para a própria existência.

1904
Referências

AGUALUSA, José Eduardo. Teoria geral do esquecimento. Rio de Janeiro: Foz, 2012a.

ASSMANN, Aleida. Espaços da Recordação: formas e transformações da memória


cultural. Tradução: Paulo Soethe. Campinas: Editora da Unicamp, 2011.

ECO, Humberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução: Hildegard Feist. São
Paulo: Companhia das Letras, 1994.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2009.

GENNETTE, Gérard. Paratextos editoriais. Tradução: Álvaro Faleiros. São Paulo:


Ateliê Editorial, 2009.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução: Beatriz Sidou. São Paulo:


Centauro, 2003.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução: Alain François.


Campinas: editora da UNICAMP, 2007.

1905
O ESPAÇO DA MEMÓRIA EM JOSÉ SARAMAGO: LITERATURA E
AUTOBIOGRAFIA

Denise Noronha Lima (UECE)1

Resumo: O objetivo deste estudo é introduzir o mapeamento do espaço da memória na obra de


Saramago, cotejando a ficção e a autobiografia do autor a partir da reflexão sobre literatura e
memória; contexto da obra literária e pacto autobiográfico. O estudo temático aborda o
percurso do autor desde as primeiras obras, de poesia e crônica, iluminando-o com seus diários
e livro de memórias. Observa-se que a obra do escritor se desenvolveu paralelamente a sua
formação pessoal e estética, dentro de um espaço cujo elemento fundamental é a memória
(pessoal, da tradição, da História e do imaginário) acabando por revelar uma imagem do autor,
deliberada e coerentemente construída.
Palavras-chave: José Saramago; Memória; Literatura autobiográfica; Ficção; Abralic.

O viajante que visitar a Igreja da Golegã, em Portugal, encontrará à entrada,


exibida por anjos, a divisa: “Memória sou de quem a mim me fabricou”. Assim conta o
narrador de Viagem a Portugal, acrescentando que este dístico “poderia estar em todas
as obras do homem” (SARAMAGO, 1985, p.155). Transportada da pedra arquitetônica
para a obra literária, e agora para este texto acadêmico, aquela frase representa cada
uma dessas situações em que se insere porque mantém inalterada a sua essência,
sustentada em três ideias: o homem – a memória – a obra. Entre o primeiro e a última, a
memória exerce a sua função mediadora, sendo o principal pilar de uma imaginada
ponte que o homem atravessa para algo que, não sendo mais o seu próprio eu, não
deixa, no entanto, de contê-lo: a sua obra.
Estamos pisando, bem o sabemos, num terreno perigoso, do ponto de vista da
crítica literária, que há muito tem colocado sob suspeita a relação vida e obra, quando
não a exclui sumariamente de seus estudos. Entendemos, no entanto, que a compreensão
ampla da obra de um autor não deve desconsiderar o seu vínculo com a memória
(pessoal, coletiva e histórica) que formou a sua personalidade. Por isso, o exame dos
textos de cunho autobiográfico de um escritor, em confronto com a sua obra de ficção,
feito com o rigor que a verdadeira crítica exige, pode iluminar vários aspectos que uma
leitura meramente formalista não alcançaria. Tais aspectos não se referem à simples
identificação de fatos da vida pessoal que porventura tenham sido ficcionalizados pelo
autor, exercício inócuo, que não condiz com o estudo propriamente literário.

1
Doutora em Letras – Literatura Comparada (UFC). Professora da Universidade Estadual do Ceará
(UECE). Contato: denise.noronha@uece.br.

1906
Trata-se, na verdade, de justapor, em um mesmo espaço, os escritos
autobiográficos e a obra ficcional, em diálogo permanente, para que uma parte da obra
revele dialeticamente a outra, compondo, com os fios da vida e da arte, a figura do
autor. Philippe Lejeune (1996, p. 165) chamou de “espaço autobiográfico” o lugar em
que é possível integrar as obras de um autor, desde que exista, entre elas, um texto
autobiográfico. Em nosso estudo, pretendemos ampliar esse espaço e as possibilidades
de relacioná-lo com o contexto em que ele se formou, que vai além do campo literário
(BOURDIEU, 1996). Referimo-nos ao “espaço da memória”, designação que sugerimos
pelo fato de acreditarmos que o fundamento de todo texto, literário ou não, encontra-se
na memória de quem escreve e do mundo que o rodeia. Nosso objetivo é mapear o
espaço da memória na obra de um dos mais importantes escritores modernos de língua
portuguesa: José Saramago (1922-2010).
Elegendo um gênero (o romance) e uma fase (a maturidade do escritor) como
principal objeto de análise, a crítica acaba por negligenciar, na obra de José Saramago,
tanto a sua produção anterior à década de 1980 quanto o gênero autobiográfico
cultivado pelo autor através de crônicas, diários e memórias da infância. Ao contrário
do que se possa pensar, essa parte de sua obra é importante para um desvelamento mais
amplo do próprio romance. Não se trata, no entanto, de sobrepor um gênero ao outro.
Tal atitude, além de infrutífera, faria pressupor uma independência dos gêneros, quando
na verdade defendemos que a compreensão profunda do romance de Saramago depende
também do conhecimento de sua obra autobiográfica. Por outro lado, essa não é a única
razão para a existência dessa escrita, digamos, pessoal (ser uma espécie de chave para se
penetrar nos romances) nem é o mais importante modo de a ler.
Essa relação estreita entre autobiografia e ficção concede à escrita do eu o estatuto
de essencialidade, e não de complemento, na compreensão da obra de um escritor.
Ainda mais importante é o fato de o princípio dessa relação ser o da reciprocidade entre
a obra e o seu autor, no que se refere à formação de ambos. O que devemos considerar,
de acordo com Dominique Maingueneau (2001, p. 46), “não é a obra fora da vida, nem
a vida fora da obra, mas sua difícil união”. Em outras palavras, entendemos a criação
artística em seu dinamismo formador, processo pelo qual o escritor, ao mesmo tempo
que cria a sua obra, constrói a si mesmo por ela.

1907
Nosso método de análise filia-se, em grande parte, à crítica temática, diferindo
desta na importância que atribuímos à figura do autor como sujeito histórico, o que não
deve ser confundido com a visão estritamente biográfica do homem que escreve. Trata-
se, antes, de relacioná-lo com o seu mundo, compreendendo este último como o
princípio formador da memória de um escritor, que congrega à sombra de seu
pensamento a vida - pessoal e pública -, a História e a imaginação, elementos com que
cria a sua obra. Se, como na crítica temática, atribuímos um valor decisivo à palavra
relação, estendemos o seu alcance às diversas esferas responsáveis pela construção da
visão de mundo do escritor, que se revela em sua obra: seu passado e seu presente, o
espaço literário em que se situa, a cidade, a natureza, o outro, a tradição e o porvir. Em
uma palavra: a memória.
Situados, assim, no tempo e no espaço, o autor e a obra fundam e, ao mesmo
tempo, são frutos de uma memória histórica. Para percorrê-la, fazendo algumas das
conexões inumeráveis que todo olhar sobre o tempo pressupõe, parece-nos um caminho
seguro, pelo menos de início, o da linha cronológica da vida e da obra de Saramago.
Desta, um conjunto de mais de quarenta volumes, entre romances, poemas, crônicas,
contos e peças teatrais, além de ensaios, conferências, discursos, diários e memórias,
elegemos aqueles livros que, quando não são declaradamente autobiográficos,
aproximam-se desse gênero pelo seu hibridismo.
A escrita autobiográfica assume, na obra de Saramago, principalmente as formas
de diário (Cadernos de Lanzarote - I (1994), II (1995), III (1996), IV (1997) e V
(1998)) e memórias da infância (As Pequenas Memórias, 2006). Considerando esta
produção, pretendemos confrontá-la com sua prosa de ficção, especialmente o romance
Manual de Pintura e Caligrafia (1977), e com textos híbridos como as crônicas (Deste
Mundo e do Outro, 1971 e A Bagagem do Viajante, 1973), obras da primeira fase do
escritor, em que o caráter autobiográfico é mais evidente. Nosso intuito é investigar,
através desse cotejo, como a obra de Saramago desenvolveu-se paralelamente a sua
formação pessoal e estética, acabando por revelar, em qualquer dos gêneros, uma
imagem do autor, deliberada e coerentemente construída.
“Datas são pontas de icebergs”, afirmou Alfredo Bosi (1992, p. 19), em uma de
suas frases mais felizes. Referia-se, com esta metáfora, ao enorme e denso volume de
eventos que a memória das sociedades guarda sob números, as datas, que iluminam e

1908
ordenam o caos. Do mesmo modo, naturalmente na proporção da medida de uma vida e
de uma obra, as datas nos ajudam a compor num mosaico a totalidade desta obra e da
vida que a gerou, compreendendo-a, tanto em uma visão panorâmica quanto nos
detalhes fornecidos pelas relações entre as várias datas e os eventos de que elas são
sinais. Assim, os números que registramos no parágrafo anterior não indicam apenas os
anos de publicação das obras de José Saramago, mas também o percurso de uma vida
em constante processo de criação, que acreditamos duplicado: o da obra e o do seu
autor.
Podemos assinalar o nosso ponto de partida com uma afirmação de Georges
Gusdorf (1991, p. 22), segundo a qual “toda escrita, a partir da primeira, é escrita de
si”.2 Para o crítico, o ato de escrever é uma forma de o homem enunciar-se e, também,
anunciar a sua presença entre os outros. Toda escrita tem, desse modo, uma assinatura,
pois manifesta uma consciência íntima de estar no mundo.
Diante da obra de José Saramago, como diante de um mundo, a escolha pela
análise temática, como um princípio de organização, favorece o nosso intuito de atingir
uma visão panorâmica dessa rede de associações que tem a memória como eixo
principal. É bem verdade que, a rigor, esta não se mostra uma tarefa difícil, embora
complexa, pois o próprio autor se esforçou por manter uma coerência de pensamento a
cada obra criada, assim como em sua vida. Outra vantagem desse método é que ele
aponta as forças motrizes da obra do autor, que já se anunciavam nesses livros e se
manterão, cada vez mais profundas, nas obras seguintes.
Essas forças motrizes, que os temas revelam, são a memória, o tempo, o espaço, o
Homem e a História. Como não poderíamos nos manter na vastidão desses campos sem
submergir no volume de reflexões, informações, referências, associações e todo o
pensamento complexo (MOURIN, 2006) que o trabalho intelectual – do autor e do seu
leitor – desencadeia, precisamos de algumas “pontas de icebergs” que nos orientem.
Neste caso, elas serão, além das datas, alguns textos em que a proximidade entre vida e
obra se mostra mais intensa: os poemas, as crônicas, o romance de aprendizagem, os
diários e as memórias. Com eles, ao mesmo tempo que percorreremos toda a trajetória

2
“Toute écriture, à partir de la première, est écriture de soi”. Em outra passagem, sobre a escrita literária,
o autor afirma: “De là l’indecision des lignes de démarcation entre l’autobiogrphie, le roman
autobiographique et le roman proprement dit. Les efforts des critiques littéraires pour jalonner avec
précision ces confins sont voués à l’écherc. L’écrivain a pour matiére première le vècu de sa vie; toute
écriture littéraire, dans son premier mouvement, est une écriture du moi” (GUSDORF, 1991, p. 15).

1909
de Saramago, analisaremos os principais temas que o autor desenvolveu, e que
manifestam o seu olhar sobre o mundo e sobre si mesmo.
Dentre esses temas, destacamos:
a) a reflexão sobre a escrita, que envolve as perplexidades do autor durante o
seu processo de criação, especialmente, no caso dos primeiros livros, a sua
busca por uma voz própria;
b) o compromisso do escritor: baseado no conceito de engajamento proposto
por Jean-Paul Sartre (1999) - para quem o escritor deve assumir a
responsabilidade sobre o que escreve, principalmente considerando-se o
fato de que escreve sempre para alguém -, este tema envolve as relações
políticas que a obra de Saramago estabelece com o mundo, questionando as
formas de poder que subjugam a humanidade;
c) Deus: uma das principais preocupações do escritor, que, embora ateu
convicto, soube reconhecer a influência decisiva do que ele chamava de “a
ideia de Deus” na construção da civilização ocidental, este tema é
recorrente em sua obra, em que Deus é encarado como um pretexto para o
exercício de poder das religiões sobre os povos, quase sempre com a
conivência do Estado;
d) a tradição literária: elegendo um cânone de escritores e obras que considera
imprescindíveis para a humanidade, o autor manifesta também o respeito
pela tradição, do ponto de vista do seu aspecto formativo em relação à arte
do presente;
e) a viagem, que pode acontecer no espaço ou no tempo, ou em ambos
simultaneamente, ramificando-se em vários tipos: a viagem ao redor do
Homem, da Arte, de si mesmo.
Entendemos que é no espaço da memória que esses temas têm origem. Por isso, é
pela memória que acreditamos ser possível a compreensão da obra de Saramago como
uma unidade (que abriga, naturalmente, a diversidade que a enriquece), bem como a
visão do processo em que autor e obra se formaram.
Em uma das entrevistas do autor, encontramos o reforço para a nossa ideia de
tomar como ponto de partida dessa viagem a poesia de Saramago, e não as crônicas,
como parte da crítica o faz. Em 1997, o escritor dissera a Carlos Reis, sobre a sua

1910
experiência poética: “[foi o] começo de uma tentativa, que se prolongou até hoje, de
encontrar suficientes razões para eu dizer quem sou”. Marcados pelo signo da
probabilidade, Os Poemas Possíveis, de 1966, e Provavelmente Alegria, de 1970,
revelam a busca do autor por uma voz original, de que a “luta com as palavras” é o
principal indício. Por outro lado, também anunciam, como afirmava o autor no prefácio
à segunda edição de Os Poemas Possíveis, “nexos, temas e obsessões” que habitariam a
sua obra, reunidos no tema geral da condição humana diante das diversas formas de
poder. De fato, várias crônicas dialogam com livros posteriores, favorecendo uma
leitura circular da obra do autor. Criações de uma dupla perspectiva do cronista – o real
e a imaginação -, essas breves peças possibilitam, no espaço da memória de Saramago,
a viagem do escritor por dentro de si mesmo e do seu mundo, examinando aspectos do
seu passado e do seu povo, da política e da arte, da humanidade em geral.
As crônicas também funcionam, nesse espaço, como a transição entre a poesia e o
romance de Saramago. Contendo elementos dos dois gêneros, o hibridismo daqueles
volumes teria permitido ao escritor retornar com mais segurança à narrativa romanesca,
de que havia se afastado após o fracasso da primeira tentativa (Terra do Pecado, de
1947). Ainda assim, Manual de Pintura e Caligrafia, publicado em 1977, pode ser
considerado um romance de aprendizagem, não apenas do protagonista, mas também do
autor, que afirmava ser esse o seu romance mais autobiográfico.
Há várias razões para considerar pertinente essa opinião de Saramago. A
principal, dentre elas, pode ser apontada na coincidência entre o narrador-personagem e
o autor, no que se refere à sua crise pessoal e artística, além da crise política por que
passava o Portugal coetâneo de ambos, no final da ditadura salazarista. Na vida de
Saramago, essa obra sucedeu a decisão crucial que o escritor tomou de não procurar
mais emprego e se dedicar unicamente à literatura, do mesmo modo que o pintor H.
decidiu buscar uma nova forma de expressão que ele pudesse chamar realmente de
pintura, diferente do convencionalismo previsível de seus retratos encomendados. É
precisamente essa busca de conhecimento artístico e humano que faz de Manual de
Pintura e Caligrafia um romance denso, cuja profundidade pode inibir aquele que se
aventurar em suas páginas sem a consciência do quanto a leitura dessa obra é exigente.
Diante da vastidão de aspectos que poderíamos abordar, cada um deles abrindo
incessantemente veredas relevantes, optamos por tomar o caminho que nos levaria pela

1911
memória do protagonista (e do autor), na sua experiência de “escrepintor”. Entre a
pintura e a caligrafia, H. é um aprendiz, recorrendo a uma para compreender a outra. É
nesse sentido que Manual de Pintura e Caligrafia é um romance de formação, e não
apenas da personagem. Pode-se atribuir também ao autor o desejo de “distinguir entre o
que é verdade de dentro e pele luzidia [...]. Separar, dividir, confrontar, compreender.
Perceber” (SARAMAGO, 1992, p. 21). É o momento de ouvir a memória. Começa
então a escrita de si.
Manual de Pintura e Caligrafia é um romance de um homem e sua memória,
entendida como passado, presente e porvir; romance de formação e transformação de
um ser; de aprendizagem de si e do mundo. No espaço da memória de Saramago, essa
obra tem, além de seu inegável valor literário, a particularidade de ser um romance de
transição entre o período formativo do escritor, como o denominou e examinou com
muita competência o crítico Horácio Costa (1997), e a fase decisiva para o
reconhecimento da obra, a partir de Levantado do Chão, publicado em 1980. Da relação
profunda entre Manual de Pintura e Caligrafia e a subjetividade de Saramago, aflorada
por sua memória no processo de autoformação que esse romance representa, concluímos
que, sem ele, as fases seguintes não se teriam constituído como a conhecemos, com
aqueles que são considerados os seus grandes romances, como Memorial do Convento,
O Ano da Morte de Ricardo Reis, O Evangelho segundo Jesus Cristo e Ensaio sobre a
Cegueira. Foi preciso escrever obliquamente sobre si mesmo, compreender o deserto
para depois habitá-lo.
Como o nosso objetivo é delimitado pela relação entre literatura, memória e
autobiografia, fixamo-nos, inicialmente, em uma ponta da vida do autor, aquela em que
observamos a sua formação pessoal e literária, indelevelmente marcada pela união entre
vida e obra, para reencontrá-lo depois na outra ponta, as últimas décadas também da
obra, que só se esgotou com a vida que a nutria.
Esse período se abre com os Cadernos de Lanzarote, o registro da mudança de
espaço físico – de Lisboa para a ilha das Canárias – que também se tornou o espaço do
diálogo do autor com o seu tempo, o presente (e a consciência profunda e dolorosa de
seu esgotamento) e o passado, primeiro em forma de diário, depois em livro de
memórias. A leitura desses volumes lança luzes sobre o restante dos livros do autor,
pois eles completam o autorretrato do escritor, iniciado com a primeira obra publicada.

1912
Rebatendo a acusação de puro narcisismo, os diários de Saramago não
disfarçaram, ao contrário, as evidências do êxito financeiro e, principalmente, social do
escritor. Aclamado pela crítica, solicitado por diversas instituições, amado por seus
leitores, o autor registrou tudo isso nos Cadernos, assim como o ódio, as polêmicas e,
como ele pensava, a inveja de alguns compatriotas. Entretanto, há algo mais importante
além dessa camada superficial com a qual boa parte da crítica se contentou: a relação do
escritor e do homem com o tempo, a memória, o espaço, a obra, o amor.
Em 1993, quando iniciou o seu diário, Saramago tinha 71 anos. “Reter o tempo”
seria, por isso, uma das razões para a escrita dos Cadernos, como declarou o autor em
uma entrevista, pois, reconhecendo a falibilidade da memória, o registro dos
acontecimentos teria ainda a vantagem de mostrar ao diarista que “a riqueza da
existência é muito superior àquela que julgávamos ter tido” (SARAMAGO apud
BAPTISTA-BASTOS, 1996, p. 58). É a diferença de perspectiva entre aquele que
escreve um diário e aquele que o lê, que pode provocar no leitor a sensação de estar
diante de insignificâncias, contrariando as expectativas que o diário de um escritor
renomado pode despertar. No nosso caso, nada foi considerado insignificante nessas
páginas, pois acreditamos que elas compõem, como dissemos, o autorretrato do homem
e do escritor, e são, por isso, também o diário da sua obra.
A união entre vida e obra, nos Cadernos, não se limita ao tempo presente do
diarista, que registrava, por exemplo, o processo de escrita de um novo livro, como o
fez com Ensaio sobre a Cegueira e Todos os Nomes, ou reflexões teóricas sobre o seu
método de construção de personagens, espaço e tempo, ou sua conceituação de narrador
e de romance. É também a inscrição de sua obra no espaço da memória, que o escritor
realiza. De certo modo contrariando, com a retrospecção mais remota, o tempo próprio
do diário, Saramago também retorna aos livros que escreveu no passado, sempre que lhe
parece oportuno, seja para mencionar os escritores que teriam exercido influência sobre
a sua linguagem e a sua visão de mundo, seja para explicar a mudança de perspectiva
que observou a partir do Ensaio sobre a Cegueira, metaforizada com “a estátua e a
pedra”. Tudo isso constitui uma espécie de poética do romance que os diários guardam,
importante para a compreensão não apenas da obra, mas do papel da memória no
processo criativo do escritor.

1913
Consciente de seu papel diante do “espetáculo do mundo”, Saramago assume e
defende, na esteira do pensamento de Jean-Paul Sartre (1999), uma atitude engajada do
escritor como cidadão, não concordando com a postura daqueles que declaram ter
compromisso apenas com a sua obra: “o mundo vai pedindo livros aos escritores, mas
também espera que eles não se esqueçam de ser cidadãos de vez em quando”
(SARAMAGO, 1995, p. 235), afirmou o autor, como a dizer que nem só de si vivem a
obra e o homem, nem o seu diário, que se abria para o mundo e seus problemas.
Podemos ainda caracterizar os Cadernos de Lanzarote utilizando a instigante
categoria de Bachelard (1996): uma “poética do espaço”. Além de ser o lugar onde a
memória é resguardada do esquecimento, pelo registro escrito, o diário de Saramago se
desenvolve em um espaço físico que se faz notar na obra pela importância que tem para
a identidade do homem e do autor que nele vivem: A Casa. Erguida numa ilha que se
assemelha à “jangada de pedra” ancorada no sul do planeta, a “casa feita de livros”
também guarda uma memória dupla, aquela que se construiu sob o seu teto, e a outra,
que veio de uma aldeia portuguesa, para sempre instalada no coração do escritor.
Entretanto, “se a Pilar não está, a casa não é a mesma” (SARAMAGO apud
ARIAS, 2003, p. 37). Essa declaração do autor, em entrevista, é facilmente comprovada
pelo leitor no percurso do seu diário. Todas as entradas que revelam um pouco da
intimidade desse espaço contêm, direta ou indiretamente, a presença da mulher do
escritor, a alma da casa, como o são as personagens femininas nos romances.
Indissociáveis, a casa e as mulheres que a habitam assumem, na memória de
Saramago e da sua obra, a imagem de um deserto povoado. Afinal, é a conversa das
mulheres “que segura o mundo na sua órbita, não fosse falarem as mulheres umas com
as outras, já os homens teriam perdido o sentido da casa e do planeta” (SARAMAGO,
2001, p. 107). A casa habitada é o lugar de recolhimento do espírito humano após seu
enfrentamento do mundo. É o espaço do reencontro do ser consigo mesmo,
especialmente em casos como o do escritor, que se ausentava às vezes por semanas em
virtude das inúmeras e constantes viagens.
Da casa de Saramago, seu diário deixa perceber que a cozinha, mantendo uma
tradição da aldeia, é o espaço de acolhimento, onde se reúnem a família e os amigos, e
onde chegam as notícias do mundo. A conversa à mesa de refeições pode variar, por

1914
isso, entre as ocorrências domésticas e as desgraças humanas. “A cozinha é o mundo”,
disse o autor ao descrever a casa dos avós, e a sua não era diferente.
Pela cozinha chegaram também os cães do escritor, cada um a seu tempo,
trazendo uma história ignorada, logo esquecida por eles, desde que se tornaram
habitantes da casa definitiva, porque lá ficariam até a morte. O único que sobreviveria
ao dono seria o Camões, e desse fato nasceu outro texto memorialístico (“Morreu
Camões, o cão que inspirou José Saramago”, 2012), dos mais belos que Pilar escreveu,
quando chegou a vez de o cão partir, dois anos depois. Da leitura desse texto,
depreende-se o mesmo sentimento que Saramago deixou expresso no diário, sempre que
se referia aos seus bichos de estimação. Para além do afeto, no entanto, observamos
como a relação com os animais é motivo para a reflexão do autor sobre a própria
identidade - “onde acabo eu e começa o meu cão? onde acaba o meu cão e começo eu?”
(SARAMAGO, 1997, p. 204) – sugerindo uma ligação, diríamos, cósmica, a mesma
com que justificava a coleção de pedras que possuía em casa. Homem, rio, bicho, pedra,
árvore, de todos os tempos e lugares, estariam unidos, como na grande tela que o autor
usava para explicar a sua noção de tempo e história.
Essa espécie de circularidade justificaria outro questionamento do autor,
relacionado ao espaço: “Será Lanzarote, nesta altura da vida, a Azinhaga recuperada?”
(SARAMAGO, 1994, p. 130). A ilha que o escritor escolheu para viver, e que,
reciprocamente, o adotou, foi simultaneamente o seu ponto de chegada e de retorno; o
fim de uma trajetória que, tendo começado na pequena aldeia portuguesa, passou por
Lisboa, até um dia se separar dela, como se riscasse o chão com um pau de negrilho e se
lançasse ao mar em busca de sua origem. Mas Lanzarote não era Azinhaga. A rigor,
sequer Azinhaga era ainda a aldeia do escritor. Esta, como a casa dos avós, só existia, de
fato, na memória. Para voltar a ela, restaria escrever, reconstituindo pelas lembranças o
tempo e o espaço perdidos. As recordações que, generosamente, atenderam ao chamado
do autor, constituíram o seu último volume estritamente autobiográfico: As Pequenas
Memórias.
Como geralmente ocorre em livros dessa natureza, o escritor inicia o relato com o
seu nascimento, não como alguém que foi dado à luz, e sim como pessoa, para a
formação da qual concorreram três elementos, que analisamos: a terra de Azinhaga,
simbolizada pelo chão de barro, o rio da aldeia e a casa dos avós. O contato físico do

1915
menino com cada um deles teria aberto sulcos por onde as raízes do ser penetrariam
definitivamente, fazendo da aldeia o espaço jamais substituído por Lisboa como
formador da sua identidade, embora tivesse saído de lá com apenas dois anos.
Atribuímos ao barro uma conotação paralela à criação divina, focalizando a união
entre o homem e a terra, à revelia de Deus, como se, apenas por ter nascido em
Azinhaga, o autor pudesse dizer que é “na terra [que] se faz a única história possível”
(SARAMAGO, 1991, p. 20). O rio, por sua vez, teria contribuído como elemento de
integração profunda entre o homem, a natureza e o cosmos, de que os versos de
“Protopoema” tratam. Quanto à casa dos avós Jerônimo e Josefa, naturalmente em
virtude desses habitantes, foi, segundo o autor, “o mágico casulo onde [...] se geraram
as metamorfoses decisivas da criança e do adolescente” (SARAMAGO, 2006, p. 15).
Aos 84 anos, sentindo a cada dia a urgência de reter o tempo (que de fato se esgotaria
quatro anos depois), foi a esse espaço que o autor desejou voltar, pelo poder
reconstrutor da memória, para reencontrar o menino que foi e que, a julgar pela sua
obra, nunca o abandonou.
Entre “as duas pontas da vida”, a obra de Saramago deu testemunho da sua
formação: o neto de Jerônimo e Josefa é também todos os homens e mulheres de seus
livros, como o seu discurso do Nobel enfatizou. O que lemos sob a sua autoria é, direta
ou indiretamente, de acordo com o pensamento de Paul Ricoeur (2012, p. 95 e ss.), a
“configuração” da sua memória, a escrita de uma “história (ainda) não contada” quando
no estágio da “prefiguração”. Nosso estudo sobre Saramago é, por sua vez, a
“refiguração” dessas histórias, a da vida do autor e a da sua obra, como uma única
autobiografia: a do homem que escreve.

Referências:
ARIAS, Juan. José Saramago: o amor possível. Tradução de Rubia Prates Goldoni.
Rio de Janeiro: Manati, 2003.
BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. Tradução de Antonio de Pádua Danesi.
São Paulo: Martins Fontes, 1996.
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São Paulo: Companhia das Letras; Secretaria Municipal de Cultura, 1992.
BOURDIEU, Pierre. As Regras da Arte: gênese e estrutura do campo literário.
Tradução de Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
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1916
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José Saramago. Lisboa: Edições 70, 2008.
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em: http://www.josesaramago.org/morreu-camoes-o-cao-que-inspirou-saramago/
Acesso em 30 de maio de 2018.
GUSDORF, Georges. Les Écritures du Moi. Lignes de Vie 1. Paris: Jacob Odilon,
1991.
LEJEUNE, Philippe. Le Pacte Autobiographique. Nouvelle edition augmentée. Paris:
Seuil, 1996.
MAINGUENEAU, Dominique. O Contexto da Obra Literária: enunciação, escritor,
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MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. Tradução de Eliane Lisboa.
Porto Alegre: Sulina, 2006.
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de Claudia Berliner. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
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______. Cadernos de Lanzarote – Diário I. Lisboa: Caminho, 1994.
______. Cadernos de Lanzarote – Diário II. Lisboa: Caminho, 1995.
______. Cadernos de Lanzarote – Diário III. 3. ed. Lisboa: Caminho, 1996.
______. Cadernos de Lanzarote – Diário IV. Lisboa: Caminho, 1997.
______. Cadernos de Lanzarote – Diário V. Lisboa: Caminho, 1998.
______. Deste Mundo e do Outro. 3. ed. Lisboa: Caminho, 1986.
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______. O Evangelho segundo Jesus Cristo. 20. reimp. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999.
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______. Terra do Pecado. 3. ed. Lisboa: Caminho, 1998.
______. Todos os Nomes. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
______. Viagem a Portugal. 2. ed. Lisboa: Caminho, 1985.
SARTRE, Jean-Paul. Que é a Literatura? 3. ed. Tradução de Carlos Felipe Moisés.
São Paulo: Ática, 1999.

1917



O AUTOR EM "PORMENORES TÊNUES": A ESCRITA DE SI À LUZ DE
ROLAND BARTHES

Derick Davidson Santos Teixeira (UFMG)1

Resumo: Roland Barthes é uma figura emblemática no que diz respeito à exclusão e ao retorno
da figura autoral. Perpassando a morte e o retorno do autor, o presente trabalho pretende
rastrear, dentro da obra barthesiana, partindo de seu primeiro livro publicado, O grau zero da
escrita, de 1953, elementos para pensar as escritas de si, a fim de convidar Barthes para nosso
debate contemporâneo. Veremos que o teórico, basilar para a exclusão da figura autoral dos
estudos literários, pode nos dar elementos para pensar outros modos de inserção do autor em seu
texto.
Palavras-chave: Roland Barthes; Escrita de si; Autor.

As relações entre obra e vida têm sido objeto de novas reflexões com a atenção
concedida às escritas de si e à crítica biográfica contemporânea. Essas novas reflexões
intensificam o movimento, iniciado na década de 1970, na França, que traz de volta o
sujeito aos estudos literários. Na base desse movimento, está o retorno do autor, o qual
teve seu obituário escrito por Roland Barthes, dentre outros, no século XX.
Sabe-se que, no seminal “A morte do autor”, a literatura é tomada, por Barthes
(2012), como escritura que envolve, principalmente, a significação em oposição à
mímesis, e a intransitividade em detrimento à intenção do autor. Já que está livre do
referente, do sentido unívoco e da transitividade intencional, a escritura não poderia
sustentar o chamado “Autor-deus” que dominava na crítica que, na década de 1960,
Barthes chamava de crítica universitária: “no essencial, um método positivista herdado
de Lanson” cujo programa, muito conhecido, consistia no sistema de interpretação da
obra através da vida do autor (2013, p. 149).
À diferença de outras escritas, a escritura que caracterizava, para Barthes, a
literatura, até 1970, era concebida como uma linguagem que vivia sobre si mesma, isto
é, um texto autônomo e autotélico. Uma preciosa definição da prática escritural
encontramos no ensaio “Escritores e Escreventes”, onde a noção de escritura encontra
sua essencial cisão a partir da definição que Barthes nos dá de escritor e de escrevente.
Com tais definições, haverá, de um lado, a escrita do escrevente, na qual “a linguagem é
reduzida à natureza de um instrumento”(2013, p.35). Por outro lado, em oposição a essa


1
Doutorando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada, na linha de pesquisa Literatura e
Psicanálise, na Universidade Federal de Minas Gerais, e aluno do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental
de Minas Gerais (IPSM-MG).

1918



escrita instrumental, haverá a escritura do escritor, para quem escrever é um verbo
intransitivo. Supostamente, estaríamos, no que concerne à escritura propriamente dita,
às voltas com um texto autotélico e livre da figura autoral. Juntando a intransitividade, a
cientificista perspectiva linguística com os movimentos descentralizantes do século XX,
como o Formalismo Russo, o New Criticism e o Estruturalismo temos as bases teóricas
da seminal morte do autor. Todavia, um percurso pela obra de Barthes nos mostra que a
presença da figura autoral foi sempre ambígua e inarredável.
Essa inamovível presença do autor é notável quando analisamos a fundo a noção
de escritura que Barthes desenvolve ao longo de sua obra. A escritura, é sobretudo, uma
das bases sobre as quais Barthes constrói seu pensamento sobre a Literatura moderna,
em especial sobre as obras produzidas a partir do século XIX. Essa teoria inicia-se em
1953, com seu livro O grau zero da escrita. Mais tarde, Barthes terá como
companheiros de teorização sobre a escritura os teóricos Maurice Blanchot, Jacques
Derrida, Michel Foucault e Jacques Lacan.
A escritura se erige, para retomar um dito de Barthes, com a língua na situação de
Orfeu, “que só pode salvar aquilo que ama pela renúncia” (2000, p.65). O escritor,
como Orfeu, é aquele que não pode evitar perder o objeto amado ao virar-se para ele; é
esta a condição que impõe a linguagem, com seu lado mortificante que nunca traz senão
a morte da coisa. Esse caminho que, gradualmente, afasta qualquer referencia externa ao
texto acaba tendo como emblema Mallarmé, já que, como Barthes escreve, em “A morte
do autor”, o poeta atinge o ponto em que “só a linguagem age, performa, e não o ‘Eu’”
(2012, p. 58). Por outro lado, contra o desejo de fazer do texto um objeto
completamente autônomo, isto é, na via oposta à exclusão do autor, há uma
intransponível pessoalidade presente nessa noção de escrita.
A escritura tem na sua gênese uma realidade ambígua. Na passagem do século
XVIII para o XIX, quando o escritor, nas palavras de Barthes, “deixou de ser uma
testemunha do universal para se tornar uma consciência infeliz o seu primeiro gesto foi
escolher um compromisso com a sua forma”, a partir desse momento, “a Literatura toda,
de Flaubert a nossos dias, tornou-se uma problemática de linguagem” (2000, p. 5). Esse
escritor, afastado do universal e engajado, antes, com a linguagem, ao fazer seu
compromisso com a forma colocará, em cena, para Barthes, a questão do estilo.

1919



Chegamos ao primeiro modo de inscrição de si que se elabora ao longo da obra de
Barthes. Com a noção de estilo, duas linhas são traçadas. A primeira vertical. Barthes
escreve que o estilo é “uma linguagem autárquica que mergulha apenas na mitologia
pessoal e secreta do autor” (2000, p.10). As referencias do estilo, segundo ele, “estão no
nível de uma biologia ou de um passado, não de uma História: ele é a coisa do escritor,
seu esplendor e sua prisão, é a sua solidão” (2000, p.10-11). A língua, segundo Barthes,
estando implicada em uma relação com o outro e com o notável utilitarismo
comunicacional que concerne à fala, teria, antes, uma estrutura horizontal. O horizonte
da língua e “a verticalidade do estilo desenham, pois, para o escritor, uma natureza,
porque ele não escolhe nem uma coisa nem outra” (BARTHES, 2000, p.13). A língua
funciona como uma negatividade, o limite inicial do possível, o estilo, Barthes escreve
“é uma Necessidade que amarra o humor do escritor à sua linguagem. Ali ele encontra a
familiaridade da História, aqui a de seu próprio passado” (2000, p.12).
O estilo nos interessa, sobretudo, porque há uma preocupação com a forma.
Barthes lembra que toda forma é também Valor, eis por que, nas suas palavras, entre a
língua e o estilo “existe lugar para outra realidade formal: a escritura” (2000, p. 13). Em
qualquer forma literária, há, conforme Barthes escreve, “a escolha geral de um tom, de
um etos, se quiser, e é aí precisamente que o escritor se individualiza claramente,
porque é ai que ele se engaja”. (2000, p.13).
Teremos, então, de um lado o corpo do autor, seu passado, sua biologia, sua
mitologia pessoal. De outro lado: a língua, com sua carga histórica, social e sua potência
comunicativa. Como uma síntese entre o mais geral e o mais particular, surge, então, a
escritura.
Em Sade, Fourier, Loyola publicado três anos após a morte do autor, já
distanciado do estruturalismo e da ciência linguística, Barthes retomará o estilo,
reformulando-o e relacionando-o a outros modos de figuração do autor no texto
literário. Foucault, em “O que é um autor?”, de 1969, reduziu a figura autoral a uma
função criando, no mesmo movimento, a noção de “Fundador de discursividade”, sobre
a qual situou, por exemplo, a obra de Marx, Nietzsche e Freud (2015, p. 272). Barthes,
ao contrário, fala dos “Fundadores de língua”, o que ele chama, mais precisamente, de
“logothetas” (2005, p. 15).

1920



Ao contrário da poética clássica, pautada pela retórica, a escritura, como uma
poética moderna, atualiza a noção de estilo. Nela não se trata da distinção entre forma e
conteúdo, isto é, escolha de um assunto e modo adequado de reportá-lo, mas, sim de um
escalonamento de significantes, uma montagem de palavras tomadas como objetos.
Barthes escreve que nessa língua fundada pelo autor, na qual a palavra vale como
materialidade, sem distinção entre fundo e forma, a centralidade da figura autora é
eliminada. O escritor, nas palavras do teórico, se transforma em um “cenógrafo: aquele
que se dispersa através dos bastidores que planta e escalona até o infinito” (2005, p. 13).
Essa parole única, sobre a qual Barthes fala, em muito ecoa a noção de estilo de O grau
zero da escrita, no qual o estilo já aparecia como “um fluir, um léxico que nasce do
corpo e do passado do escritor” (BARTHES, 2000, p. 12).
O corpo de onde flui o léxico que compõe o estilo é basilar, também, para um
segundo modo de figuração do autor. Ainda em Sade Fourier Loyola, Barthes proclama
o que ele chama de “retorno amigável do autor” (2005, p 16). Entretanto, o autor que
reaparece é, como escreve o teórico “o lugar de alguns pormenores tênues, fonte,
entretanto, de vivos lampejos romanescos, um canto descontínuo de amabilidades”
(2005, p.17). Nessa aparição, lemos, apesar de tudo, “a morte com muito mais certeza
do que na epopeia de um destino”, pois o autor que surge aqui “não é uma pessoa (civil,
moral), é um corpo. […]” (BARTHES, 2005, p.17).
Vimos que a escritura, na sua gênese, era pensada como espécie de síntese do
encontro entre o mais singular do estilo, com o mais geral que é língua. Também em
Sade, Fourier Loyola, Barthes recorre à dialética. Todavia, distanciando-se cada vez
mais da perspectiva científica ou estrutural enquanto ia, ele mesmo, em direção a
escritura, Barthes fala de uma “dialética arrevesada”(2005, p.15). Trata-se da dialética
que se trava entre o texto e o autor. Conforme ele escreve, “se é necessário que, por uma
dialética arrevesada, haja no Texto, destruidor de todo sujeito, um sujeito para amar, tal
sujeito é disperso, um pouco como as cinzas que se atiram ao vento após a morte”
(2005, p. 16). O que surge como resultado da dialética, aqui, é um sujeito fragmentado,
reduzido aos pormenores tênues, resíduos biográficos que Barthes chamou de
“Biografemas”, como o morfema é para a linguística, o biografema é a mínima unidade
da biografia (2005, p. 16). Em Câmara Clara, Barthes escreve que o biografema possui
com a vida a mesma relação fragmentária que a fotografia tem com a História (2011, p.

1921



40). Por fim, em 1975, em Roland Barthes por Roland Barthes, ele esclarece que o
biografema nada mais é do que uma “anamnese factícia”, atribuída ao autor (2003, p.
126).
A escrita pode ser tomada, então, como veículo de Anamnesis. Lembremos que o
prefixo ana quer dizer “trazer de novo”, e mnesis nos remete a “memória”. Assim,
Barthes aponta, no que concerne à escrita literária, a insistência de determinados
resíduos sígnicos que nos remetem ao âmbito biográfico. Já em O grau zero da escrita,
separado, por quase duas décadas da noção de biografema, ele escrevia que as máximas
de La Rochefoucauld dizem a tal ponto as mesma coisas, que “são o seu autor, as
obsessões dele, seu tempo, que elas nos entregam” (2000, p.79).
Também em Sade, Fourier, Loyola, Barthes escreve que é o “O prazer do texto
comporta uma volta amigável do autor”, mas não mais como aquele que foi identificado
pelas instituições, pois “nem mesmo o herói de uma biografia ele é” (2005, p.16). Em O
prazer do texto, deslocando a noção psicanalítica de gozo, o teórico nos propõe pensar,
ao lado do gozo do leitor, no gozo do autor o qual, então, aparece no texto como “corpo
erótico” (1987, p.71). É notável, todavia, a distância teórica que separa este autor do
falecido autor da década de 1960. Como Barthes escreve “como instituição, o autor está
morto: sua pessoa civil, passional, biográfica, desapareceu”, desapossada, tal figura, já
não exerce sobre a obra a “formidável paternidade [...] mas no texto, de certa maneira,
eu desejo o autor: tenho necessidade de sua figura” (1987, p.37)
Nessa via, Barthes elabora a noção de figuração, que seria o modo de aparição
do corpo no texto, através do erotismo entre o autor e sua própria escrita. Entretanto,
essa aparição, ele ressalta, não se dá por via da “biografia direta (o que excederia o
corpo, daria um sentido à vida” (BARTHES, 1987, p.71). Se o autor, em “A morte do
autor” era concebido como um limite semântico, é digno de nota que, para Barthes, o
autor que retorna não pode exercer sobre o sentido nenhuma influência.
Enquanto idealiza, em 1966, em sintonia com o estruturalismo, uma ciência que
teria como objeto um sentido vazio, Barthes encontra uma aporia. Entre os preceitos
estruturalistas e a semiologia, a ciência a qual profetizava Barthes seria uma espécie de
linguística do discurso, que decomporia em partes o texto. Nesse caso, o autor e a obra
seriam apenas os pontos de partida de uma análise cujo horizonte seria a própria
linguagem. Tomado desse modo, o texto literário se ofereceria a análises seguras.

1922



Dentre os sacrifícios que tal ciência poderia custar à literatura, Barthes escreve: está “o
que amamos ou cremos amar quando dela falamos, e que é frequentemente o autor”
(2013, p.218). É essa a aporia da perspectiva cientificista, conforme Barthes aponta, tais
análises deixariam fora de seu alcance um “enorme resíduo”, (2013, p.220). Tal resíduo
já na época apontado por ele como essencial e que é, nas suas palavras, o “gênio
pessoal” (2013, p. 219).
À diferença da ciência da literatura idealizada na década de 1960, a qual deságua
em “A morte do autor” a escritura e, por extensão, a literatura, após 1970, é definida
como “a ciência do gozo da linguagem, seu kama-sutra” (BARTHES, 1987, p.10).
Barthes retoma, então, o resíduo que seria o gênio pessoal, na relação de corpo do autor
com o texto.
Em Barthes, a virada que leva o corpo para os estudos literários não é, certamente,
sem relação com uma mudança na concepção de língua e, consequentemente, de escrita.
Se ao tomar a linguística como fundamento, em “A morte do autor”, Barthes (2012)
conclui que não importa quem fala, e, no ensaio “Da obra ao texto” , o autor que fala é
reduzido à espessura de um “ser de papel” (BARTHES, 2012, p.72), em 1974, já
distanciado da linguística, em uma entrevista, Barthes afirma que “não há linguagem
sem um corpo” e estabelece a escrita como lugar de aparição “exata” do corpo, já que
nela ele não está por demais presente, como na fala (2004, p.8).
O corpo, não mais o Eu que a escritura apagou, como ele escreveu em “A morte
do autor”. Nessa perspectiva, rejeitando a centralidade e reafirmando o apagamento do
Eu, Barthes continua coerente com certos traços da escritura desenvolvida em “A morte
do autor”. Já não é o Eu quem fala, pois, para ele, o autor figura, principalmente, através
dos três traços aqui mencionados: pela língua que funda com o estilo que é situado no
nível de certa biologia ou psicologia profunda; pelo biografema que privilegia a
presença residual do autor; através do gozo da escrita que permite abordar o autor como
corpo erótico. Passada a famosa e ainda muito influente morte do autor, o texto surge,
portanto, como espaço privilegiado para aparição daquele que escreve.
É plausível mencionar, ainda, que não vemos, em sua teoria, um retorno à
referencialidade ou à intenção, o que nos permite abordar relações biográficas, ou
inscrições de si mesmo nos textos onde não há um esforço de referencialidade ou de
pacto biográfico. Sendo assim, longe de se limitar ao século XX, para o debate

1923



contemporâneo sobre o sujeito, o corpo e os modos através dos quais o texto aponta
para seu autor, Barthes também pode nos trazer contribuições sem precedentes.

Referências

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1987

BARTHES, Roland. O grau zero da escrita. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo:
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Martins Fontes, 2012.

BARTHES, Roland. Crítica e verdade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. 3.Ed. São


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FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos :estética: literatura e pintura; música e cinema.


Tradução de Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.

1924
AUTOBIOGRAFIA E AUTOFICÇÃO
NO ROMANCE GRÁFICO MAUS,
DE ART SPIEGELMAN

Fátima Aparecida Campos de Oliveira (CES/JF)1

Resumo: Este artigo pretende analisar o gênero autobiográfico e ficcional presente no romance
gráfico Maus: a história de um sobrevivente (2009), de Art Spiegelman. Maus conta a história
de Vladeck Spiegelman, pai do autor, um judeu do exército polonês que sobreviveu aos campos
de concentração de Auschwitz, sendo narrado pelo próprio filho, Art. Clássico dos quadrinhos,
Maus relata de forma simples e realista os horrores sofridos por Vladeck Spiegelman em
Auschwitz . Seu objetivo é mostrar para o leitor e – para si – até que ponto sua existência foi
influenciada pela sobrevivência do pai em Auschwitz. Maus é autobiografia, história e ficção.

Palavras-chave: Autobiografia; Autoficção; Narrativa Gráfica; Maus; Art Spiegelman

Introdução
Escrito e desenhado pelo cartunista norte-americano Art Spiegelman, o romance
gráfico Maus: a história de um sobrevivente (2009), apresenta em sua narrativa a
perspectiva da escrita de si autobiográfica e autoficcional, bem como a teoria sobre a
estruturação narrativa das histórias em quadrinhos.
Maus apresenta em sua diegese um diálogo entre o autor e seu pai, Vladeck
Spiegelman, um homem judeu que lutou pelo exército polonês, um dos sobreviventes da
perseguição nazista na Segunda Guerra Mundial. Este fato se consolidou na história
como um dos maiores crimes contra a Humanidade, que trouxe o inferno à Terra e
promoveu o genocídio de milhões de judeus sob o domínio da Alemanha nazista.
Sob a forma de relato, o narrador-personagem passa a investigar profundamente
sua percepção sobre os pais, sobreviventes de Auschwitz, desde quando se conheceram
até terror enfrentado, além de outros familiares mortos em campos de concentração.

1
Graduada em Pedagogia e Mestre em Letras (Literatura Brasileira) – ambas as formações cursadas no
Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora. Contato: fatima.campos30@yahoo.com.br

1925
De modo objetivo e surpreendente, a arte e o texto de Art Spiegelman sobrepõem
o leitor às lembranças de um sobrevivente da perseguição nazista, inclusive como
espectador dos conflitos entre pai e filho em suas divergências existenciais e sociais.
Spiegelman descreve com exatidão a complexa personalidade de seu pai, bem
como o comportamento depressivo, autodestrutivo e o suicídio de sua mãe anos após o
fim do conflito até a perda de Richieu – o irmão mais velho, morto durante a guerra e
quem nunca chegou a conhecer. Em Maus, o autor busca uma condição de reconciliação
consigo mesmo e com a história, de forma que seu relato biográfico da vida de seu pai
torna-se experiência autobiográfica e metalinguística sem precedentes na graphic novel.

Antropomorfização
O primeiro impacto de Maus vem de sua capa a partir das diversas publicações
que nos apresentam ratos com símbolos do nazismo, tal como uma suástica com um
gato exibindo um bigode semelhante ao de Adolf Hitler.
Art Spiegelman retrata na obra seres humanos como animais antropomorfizados.
O objetivo de antropomorfização das personagens em Maus é nos transportar a projetar
de forma explícita o que aconteceu nos campos de concentração nazistas, avistando
além da metáfora animal. Judeus são ratos – Maus, em Alemão –, alemães são gatos,
poloneses são porcos e norte-americanos são cachorros. A metáfora dos animais remete
ao desprezo dos alemães pelo povo judeu, comparando-os a verdadeiras pragas.
Os ratos judeus, acuados, perseguidos, embrenhavam-se em todo tipo possível de
esconderijo, de bunkers a túneis, sempre acossados pelos gatos nazistas. Enquanto os
poloneses são porcos e os norte-americanos são cachorros, os franceses são sapos e os
suecos são renas, representados de forma inteligente, didática e simples.
O autor constrói um texto autobiográfico no formato de história em quadrinhos
(HQ). Maus é uma grafic novel serializada entre os anos de 1980 a 1991. O quadrinho
retrata Spigelman entrevistando o seu pai acerca de suas experiências enquanto judeu
polonês sobrevivente do holocausto, tendo início em 1978, na cidade de Nova York.
Art Spigelman retrata essa experiência desde os anos que culminaram na Segunda
Guerra Mundial, que trouxe o inferno à Terra e promoveu o genocídio de milhões de
judeus sob o domínio da Alemanha nazista até a liberação de seus pais dos campos de

1926
concentração, e mostra o quanto Vladeck e Anja Spiegelman foram afetados de forma
irrecuperável, interferindo em suas identidades, e as implicações na relação familiar.
Preconceito, intolerância aversão a estrangeiros sem Pátria, construção ideológica
de um inimigo comum, além do nacionalismo exacerbado, causaram essa tragédia.
A utilização de animais faz referência aos quadrinhos norte-americanos, que
tradicionalmente apresenta as representações antropomórficas de personagens. A
autoficção em Maus pode ser identificada do seguinte modo: a representação
antropomórfica, adotada pelo autor; e a tradição dos quadrinhos em trabalhar com
ficção. Art Spiegelman foi influenciado pelo gênero Funny Animals, típico das HQ’s.
O hibridismo de Maus está na relação entre as imagens de memória e que mistura
ficção e realidade. Tem dupla recepção – ora autobiográfica, ora ficcional
(DOUBROVSKY, 1977). Elas são um suporte importante para o texto. Somos levados a
crer, então, que as imagens tornam as experiências narradas ainda mais poderosas. Os
animais estilizados são uma espécie de imagem escrita. Todos são muito parecidos,
homens, mulheres e crianças. O que os difere são suas vestimentas e seus acessórios.
A escrita memorialística ergue-se como uma região privilegiada para reratar o
jogo realista e ficcional, pois, ao aproximar-se de uma experiência vivida, acredita-se
que constantemente choca-se com a precariedade da memória, onde se conclui o quanto
é tênue a linha entre a realidade e ficção.

A Memória Autobiográfica em Maus


Filho de sobreviventes de um campo de concentração de Auschwitz, Arthur (Art)
Spiegelman é cartunista norte-americano, nascido em Estocolmo, na Suécia, em 15 de
fevereiro de 1948. Estudou nos Estados Unidos, onde com 16 anos iniciou sua carreira
de desenhista de quadrinhos. Foi ilustrador e capista da revista New Yorker durante uma
década e é co-fundador e editor da Raw, famoso periódico de quadrinhos e artes gráficas
de vanguarda. Seus desenhos e gravuras foram exibidos em galerias e museus.
Boa parte da história de Maus gira em torno da relação difícil entre o autor e seu
pai, e a ausência de sua mãe, que se suicidou, como podemos observar no diálogo que
se segue entre Vladeck e Anja:

- Deus, me deixe morrer também!


- Vamos, Anja, levanta!
- Por que está me puxando Vladeck? Me deixe! Não quero viver!

1927
- Não, querida! Morrer é fácil... Você deve lutar pela vida!
Temos que lutar juntos até a última hora! Preciso de você!
Você vai ver que juntos nós sobrevive. Isso eu sempre diz a ela.
(SPIGELMAN, 2009, p. 124).

Para Pollack (1992), além dos acontecimentos, a memória será constituída por
pessoas, personagens e lugares. Registra também fatos importantes da vida social e da
política, comprovando que a memória tem uma dimensão coletiva. Assim, é possível
perceber o papel que as imagens espaciais e o território desempenham na memória
coletiva de Vladeck como membro de seu grupo e de sua coletividade.
Segundo Pollack (1992, p. 3), aborda os acontecimentos constitutivos da memória
individual e coletiva que seriam “[...] acontecimentos vividos pessoalmente, em
primeiro lugar; em segundo lugar estariam os acontecimentos vivenciados pelo grupo ao
qual a pessoa se julga pertencer [...]”. A memória é a capacidade humana de armazenar
dados, transformando os acontecimentos vivenciados em recordações, narrando os fatos
importantes e salvando-os de quaisquer possibilidades de esquecimento.
Sobre o texto autobiográfico, Sheila Dias Maciel nos esclarece:

Assim como os relatos, a narrativa memorialística pertence ao universo da


escrita autobiográfica, é uma narrativa em que um “eu” faz um narrativa da
sua própria vida, mas enquanto as memórias são uma volta ao passado, os
relatos, são uma tentativa de guardar o presente (MACIEL, 2004, p. 83, grifo
do autora).

O pacto autobiográfico, proposto por Lejeune (2014), é consolidado desde o


instante em que há a afirmação da identificação dos papéis do autor como narrador e
personagem da própria obra. A autobiografia de Spiegelman se desenvolve
fundamentada na interposição de passado e presente, transformado em uma biografia
familiar. As cenas são analisadas levando-se em conta o poder de impacto da imagem
na memória, refletindo sobre a (re)criação e (re)construção da memória autobiográfica e
autoficcional, de maneira a revelar como o fazer literário do autor é influenciado pelo
implacável peso do real. A autobiografia, além disto, tem que ser um relato
retrospectivo, contar a história de uma pessoa em prosa.
A referida investigação fundamenta-se nos pressupostos teóricos que envolvem os
registros memorialísticos, apoiados nos textos do estudioso alemão Michel Pollack,
como embasamento para o estudo que em as características imprescindíveis que emerge
da obra. E como suporte para a teoria autobiográfica, utilizamos o teórico francês

1928
Philippe Lejeune, cujos conceitos sintetizam as características imprescindíveis que
circundam o universo da escrita autobiográfica e que irão embasar este texto.
Philippe Lejeune define autobiografia como uma narrativa retrospectiva em prosa
que uma pessoa real faz de sua própria existência quando focaliza sua história
individual, em particular a história de sua personalidade (2014, p. 15). Uma das
principais características da autobiografia é a importância da relação de identidade entre
o narrador e o personagem principal, a qual pode ser encontrada a partir de elementos
intratextuais – prefácio – ou paratextuais – título e subtítulo. Estes elementos estão
presentes em Maus, havendo uma relação entre o nome do autor – aquele que narra a
história – e da personagem – aquela que assume o papel da enunciação. O texto
autobiográfico desperta no leitor uma sensação de que o autor teve uma proposta sincera
ao escrever sobre sua vida.
A escrita autobiográfica não está livre de um descaminho, pois há espaços vazios
na memória. A escrita autobiográfica elucida fenômenos que a ficção deixa numa zona
de indecisão (LEJEUNE,2014), mesmo que o real esteja sendo descrito, tal como em
Maus Art Spiegelman faz uso de linguagem coloquial, mesclando hostilidade e lirismo.
Situações reais e surreais se fundem a um mundo real e imaginário ao mesmo tempo.
A palavra autobiografia foi importada da Inglaterra no início do século XIX e
empregada em dois sentidos próximos, mas assim diferentes. O primeiro sentido, aquele
selecionado para este breve artigo, foi proposto por Larousse em 1886: “vida de um
indivíduo escrita por ele próprio”. Larousse (1886) contrapõe a autobiografia, que é uma
espécie de confissão, às memórias, que contam fatos que podem ser alheios ao narrador.
Porém, em um sentido mais amplo, autobiografia pode designar também qualquer texto
no qual o autor parece expressar sua vida ou seus sentimentos, quaisquer que sejam a
forma do texto e o contrato proposto por ele (LEJEUNE, 2014, p. 51).
Na escrita autobiográfica, percebe-se que há a necessidade de narrar os
delineamentos da própria experiência. Assim, Art Spigelman faz questão de registrar os
desenhos em pedaços de papéis e gravador as vivências diárias de seu pai nos campos
de concentração nazistas, a experiência de vozes silenciadas ou à margem do discurso
hegemônico, como do autor-personagem que resgata e denuncia as condições
miseráveis da vida imposta pelos nazistas e onde viveram no início do surgimento
constante dos campos de concentração.

1929
Art Spiegelman registra os fatos importantes da vida social e política daquele país
e suas politicagens. A memória de Vladeck Spiegelman é registrada em Maus, assim
como a sociedade da época, e tem como contexto histórico-geográfico uma paisagem e
uma história real: a de Vladeck e Anja Spiegelman, pais do autor e sobreviventes de
Auscwitz, desde quando se conheceram até os horrores enfrentados nos campos.
Para Pollack (1992, p. 6), este é um fator importante do sentimento de
continuidade e coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução. Sob uma
perspectiva familiar e intimista, acompanhamos Art em longas conversas com o pai:

- Mas pai, é um ótimo material. Faz tudo ficar mais real, mais humano.
Eu quero contar a sua história, do jeito que realmente aconteceu.
- Mas isso não ser correto, honesto. Posso contar outras histórias, mas coisas
particulares eu não quer que você mencione.
- Está bem, eu prometo (SPIEGELMAN, 2009, p. 25).

O trabalho oferece também uma reflexão acerca da formação identitária do autor


norte-americano por meio da análise das narrativas e as representações sociais da obra.
Para Pollack, “há uma ligação fenomenológica muito estreita entre memória e o
sentimento de identidade” (1992, p. 12). Sobre esta ligação entre memória e identidade,
presente em Maus, pode-se observar que no contexto da narrativa de vida de Vladeck
Spiegelman, a memória muitas vezes aparece como um acontecimento individual.
Contudo, deve ser entendida como fenômeno coletivo e social, possibilitando às
transformações e mudanças constantes. Os elementos constituintes da memória,
individual e social, são acontecimentos vividos pessoalmente e pela coletividade, em
grupo; neste caso, nos campos de concentração nazistas (POLLACK, 1992, p. 2).
Para Pollack (1992), além dos acontecimentos, a memória será constituída por
pessoas, personagens e lugares. Em Maus há também o registro de fatos importantes da
vida social e política, comprovando que a memória tem uma dimensão coletiva. Assim é
possível perceber o papel que as imagens espaciais e o território desempenham na
memória coletiva de Vladeck, como membro de seu grupo e de sua coletividade.
A partir destes relatos, contaremos com os estudos de Maurice Halbwachs
presentes na obra A memória coletiva (2003), na qual o autor discute os conceitos de
memória individual e coletiva. Observaremos, também, as discussões do autor sobre os
conceitos de reminiscência, memória e lembrança, ademais, as características da
memória afetiva, a qual de forma bastante evidente marca a escrita de Art Spiegelman.

1930
Segundo Halbwachs (2003), a memória é algo sistematizado e que possui
organização: “[...] a memória não é linear, pois traz detalhes. Quando evocamos um
acontecimento que teve lugar na vida de nosso grupo e que considerávamos; e que
consideramos ainda agora, no momento em que nos lembramos, do ponto de vista desse
grupo [...]” (HALBWACHS, 2003, p. 36).
A memória individual é uma abstração, visto que prioriza a memória coletiva. A
memória coletiva, por sua vez, engloba as memórias individuais, mas não se confunde
com elas, evoluindo conforme suas leis. Reminiscências são fragmentos, como flashes;
são conexões possíveis para se estabelecer, mesmo faltando um tema. As lembranças
são memórias organizadas de forma temporal: inicio, meio e fim – narrativas.
É sabido que a memória tem uma dimensão pessoal, introspectiva, coletiva ou
social, e tais características são identificadas também na narrativa autobiográfica de
Maus: o testemunho do autor/narrador/personagem e de várias pessoas que vivenciaram
o mesmo sofrimento. Assim, a memória de Vladeck Spiegelman, narrador do romance
gráfico Maus, registra a sociedade e a realidade da Alemanha dos anos do holocausto.

Considerações Finais
Desde a Antiguidade, a escrita marca os sujeitos. Entretanto, a escrita e a escrita
de si são expressões distintas, e diferem-se, também, em sua relação com o sujeito.
Philippe Lejeune, em sua obra Pacto autobiográfico, mostra o eu contribuindo
diretamente para a formação do sujeito e, posteriormente, propiciando a elaboração de
discursos e do reconhecimento da verdade. O Pacto autobiográfico representa uma
contribuição decisiva para a identificação do texto como autobiográfico.
A narrativa analisada perpassa os conceitos de memória e autobiografia
estudados por autores como Lejeune e Halbwachs. Além de discutir aspectos históricos,
é marcada por linguagem acessível e desprendida de termos técnicos, o que permite ao
autor tratar de temas pessoais e coletivos em forma de HQ, sendo de fácil compreensão.
Maus é entendido como um pacto, pois atua como comprometimento do autor
em retratar a experiência de sua vida familiar e seus vários aspectos, além dos relatos de
negatividade. Conta também a tragecidade destes personagens, em espírito de verdade.
A composição dos textos e desenhos feitos pelo autor nos mostra elementos atinentes à
representação artística da memória. Maus é uma obra que merece ser lida e reconhecida.

1931
Referências

DOUBROVSKY, S. Fils: roman. Paris: Èdition Galilée, 1977.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. Beatriz Sidou.


São Paulo: Centauro, 2003.

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico. In: ______.


O pacto autobiográfico: de Rouseau à Internet. Noronha, J. M. G. (org.).
Belo Horizonte: UFMG, 2014, p. 15-55.

MACIEL, Sheila Dias. A literatura e os gêneros confessionais.


In: BELON, Antonio Rodrigues; MACIEL, Sheila Dias (org.). Em diálogo:
estudos literários e linguísticos, 2004, p. 75-91. Disponível em:
< http://docslide.com.br/documentos/a-literatura-e-os-generos-confessionais.html >.
Último acesso em 29 de fev. 2016.

POLLACK, Michael. Memória e identidade social.


Estudos Históricos, Rio de Janeiro, V. 5, n. 10, 1992, p. 200-212.

SPIEGELMAN, Art. Maus: a história de um sobrevivente.


Trad. Antônio de Macedo Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

1932
PEDRO NAVA, LEITOR EM FORMAÇÃO

Júlio Valle (UNIFESP)1

Resumo: A presente comunicação pretende abordar as Memórias de Pedro Nava comentando,


ao longo de seus volumes, algumas passagens nas quais se referem aspectos relevantes para a
formação do protagonista enquanto leitor, especialmente literário. Assim procedendo,
privilegiam-se, para os limites desse trabalho, duas figuras femininas que parecem desempenhar
papel relevante nesse âmbito: a criada Rosa, que trabalhava para a avó do Narrador, e a tia
Candoca, com quem Nava chegou a morar por um breve período, no Rio de Janeiro.
Palavras-chave: Pedro Nava; Memorialismo Brasileiro; Literatura Brasileira; Leitura.

Introdução
Esta comunicação pretende tomar as Memórias de Pedro Nava investigando, ao
longo dos seus seis volumes, aqueles momentos nos quais a formação do leitor se
constrói de maneira mais sensível. No interior desse recorte, será dispensada especial
atenção às figuras femininas atuantes nesse processo, aqui tomado num momento
bastante precoce, porque anterior à própria alfabetização. Pode-se dizer que dois
estudiosos da obra de Nava inspiram, mais ou menos diretamente, essa abordagem. Um
deles é Davi Arrigucci Jr, que num ensaio escrito em 1987, portanto apenas três anos
após a morte do memorialista, fixou na imagem de uma “construção arbórea” a
metáfora que sintetizaria o movimento próprio dessa obra. Para Arrigucci, a partir de
um tronco comum, no caso o próprio “eu” que narra, a obra se ramificaria em vários
níveis, muitas vezes apenas remotamente vinculados ao tronco de origem. Isso a tornava
comparável a um livro como Casa Grande & Senzala, ainda que a relação entre o
sujeito e a coletividade, em Nava, partisse do caso particular para o geral, no sentido
inverso, portanto, ao que se verifica na obra do antropólogo pernambucano
(ARRIGUCCI, 1987, p. 76). Em certa medida, a metáfora de Arrigucci não deixa de
evocar uma definição bem tradicional de memorialismo, já formulada por Georges
Gusdorf: ali, o movimento típico da autobiografia é descrito como centrípeto, enquanto
o memorialismo desenvolveria, por sua vez, um movimento “centrífugo” (1991, p. 260).
O tronco e seus ramos, de um lado, e o movimento centrífugo, de outro, partilham da
mesma inspiração de um centro que se expande em direção à periferia. Um desses
ramos, na obra de Nava, pode ser justamente o da formação do leitor, que muito embora
1
Mestre e Doutor em Letras pelo IEL-UNICAMP. Professor do Curso de Letras da Escola de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH- UNIFESP). Contato:
juliovalleunifesp@gmail.com

1933
aplique-se ao caso específico do narrador, também não deixa de sugerir,
centrifugamente, movimentos mais gerais, como se pretenderá sugerir logo mais.
Este trabalho também desenvolve algumas sugestões do estudo de Joaquim
Aguiar, publicado com o título de Espaços da Memória. Nele, Aguiar revisita a
formação de Nava a partir de quatro espaços-chave para a obra: a casa, a escola, o
trabalho e a rua. Tomando como objeto um recorte bem mais modesto, ou seja, a
formação do leitor Pedro Nava, esse estudo inclina-se especialmente a dois desses
espaços, a casa e a escola. Tendo já se ocupado da escola em outra oportunidade 2, o
espaço preferencial para nossas indagações será o doméstico, o que no caso de Pedro
Nava inclui diversas casas de parentes e algumas pensões em Juiz de Fora, Belo
Horizonte e Rio de Janeiro, cidades nas quais se estabeleceu, mais ou menos
longamente, entre os anos de 1903 a 1920, quando deixa o Internato do Colégio Pedro
II, no Rio, para cursar a Faculdade de Medicina na capital mineira. Assim procedendo, e
sem desconhecer que, a rigor, a formação do leitor é um processo contínuo, pretende-se
privilegiar os momentos nos quais a obra permite entrever, a relação entre o narrador, os
livros e a leitura, alguma dimensão propriamente inaugural e que seja, como tal,
relevante em termos formativos para o leitor nascente.
Rosa e as histórias em voz alta
Nesse sentido, uma figura exterior ao núcleo familiar, mas ao mesmo tempo muito
ligada a ele, desempenha uma função preponderante. Com apenas 8 anos e em
decorrência da morte do pai, em 1911, Nava deixa o Rio e muda-se com a mãe para o
sítio da avó, Maria Luísa, em Juiz de Fora. Ali, várias negras viviam praticamente em
regime de escravidão, trabalhando em troca de casa e comida e submetida aos rigores
eventualmente sádicos da matriarca, não obstante as duas décadas que separam a cena
da Abolição da Escravatura, datada, ao menos formalmente, de 1888. Uma delas, Rosa,
era especialmente querida pelo menino, num vínculo forte explicado, em boa medida,
pelas histórias ouvidas da criada da avó. Relembra o narrador, em Baú de Ossos:
“Todas as noites, na hora de deitar... Rosa! Agora a Pele de Burro. Agora a Bela e a
Fera. E vinham as histórias” (NAVA, 2000, p. 228). No mesmo volume, declara-se
espantado com a “sua memória prodigiosa, que registrava tudo para sempre e de modo

2
Cf. “A Lição dos Escritores: Literatura e Ensino a partir de Pedro Nava, Manuel Bandeira e Afonso
Arinos”. (VALLE, 2017)

1934
indelével” (NAVA, 2000, p. 227), no que talvez resida, aliás, outro fator de
identificação com a personagem.
Tomado retrospectivamente, o repertório de Rosa é motivo de surpresa para Nava,
segundo quem ela “sabia, ouvidas não sei onde nem de quem, todas as histórias de
Andersen, Perrault e dos irmãos Grimm”. Os contos, como é comum na tradição oral,
haviam de sofrer adaptações de toda a espécie, fenômeno que fica mais evidente a
propósito de uma das performances mais marcantes da “rapsoda”, como a chama o
Narrador a certa altura. Tratava-se de uma história de amor trágica, versificada e
cantada. Nava então pergunta-se, novamente surpreendido:

“Que trovadores, menestréis, orfeonistas e cantores fizeram atravessar o


oceano essa legenda? O fato é que ela chegou a Minas e era cantada pela
Rosa, que transformava o castelo peninsular consentâneo à tragédia num sítio
do Paraibuna, e o cavaleiro d. Jorge num peão matuto.” (NAVA, 2000, p.
231)

Além das aclimatações tropicalizantes operadas por Rosa, Nava não deixa de
registrar, também, aquelas efetuadas pela própria criança, que fundia o cotidiano de Juiz
de Fora ao universo imaginário das histórias ouvidas no sítio: “Nosso primo Antonico
Horta, por exemplo, com suas ameaças de virar criança pelo avesso, era certamente um
bruxo.” (NAVA, 2000, p. 229). O mesmo procedimento, agora com sinal invertido de
vilão para mocinho, valia para certa figura das relações familiares daquele período, o dr.
Beauclair: “Diziam que era médico e era mesmo, por sinal que médico de meu irmão
Paulo. Instruído pelas histórias da Rosa, eu sabia, apesar de sua estatura, que ele era um
dos sete anões da Branca de Neve.” (2000, p. 230)
Dessa breve recolha de fragmentos, desprende-se um rol considerável de aspectos
atuantes na formação do leitor, mesmo que, a rigor, sequer estejamos ainda falando de
livros ou de leitura propriamente ditos. Pela voz de Rosa, Nava é apresentado a contos
clássicos da tradição ocidental; toma contato com a diversidade formal própria da
literatura, ouvindo histórias em prosa, verso e eventualmente musicadas e passa, muito
especialmente, a filtrar o mundo a partir de um repertório simbólico mais amplo,
inclusive projetando-o sobre aspectos do cotidiano, dando corpo a um movimento que,
como lembra Annie Rouxel, constitui um índice de apropriação do texto, especialmente
o literário, por parte do leitor. (2013, p. 165)

1935
Aliás, psicologizando um pouco a questão, não seria de se desprezar o sentido de
acolhimento desempenhado por essas sessões noturnas, capitaneadas por Rosa e suas
histórias ao pé da cama. É justamente com essa cena que se abre o livro Comme un
Roman, de Daniel Pennac (1992). Entre o cenário francês e pequeno-burguês do final do
século passado e o ambiente ainda muito rural e escravocrata do Brasil de princípios dos
anos 1900, vai naturalmente uma boa distância. Mas, tal como propõe o escritor francês,
não seria absurdo ver em ambas as cenas aquele mesmo sentido inaugural do ato de ler,
capaz de atuar poderosamente na relação do futuro adulto com os livros. No caso de
Nava, não é de se desprezar o fato de que, naquela altura, estamos falando de um recém-
órfão repentinamente submetido, para piorar, ao convívio familiar com uma avó que em
nada correspondia ao estereótipo da velhinha amorosa. Ao contrário, Luísa dispensava
certa hostilidade ao neto, em cujo rosto via, conforme adivinha o narrador, a lembrança
do genro malquisto (NAVA, 2000, p. 30). É nesse ambiente sufocante que as histórias
de Rosa, contadas no espaço íntimo do quarto, abrem a perspectiva de outros mundos,
que ajudam a seguir em frente no mundo que nos cabe. Aliás, são numerosos os relatos
compendiados por Michèle Petit que revelam percursos duradouros de leitura nascidos
justamente em meio a situações-limite, em meio às quais o livro se revela como um
ponto de fuga revitalizante:

Essa dimensão profundamente reparadora, apaziguadora, do conto lido pela


mãe ou por alguém que a representa, do relato escrito em uma língua distinta
da língua cotidiana, é algo que René Diatkine, psicanalista que também
trabalhou muito com bebês e crianças pequenas, relatava com frequência.
Falava das histórias lidas às crianças antes de dormir, que lhes permitem
suportar melhor a escuridão, o medo de morrer e o medo que os pais morram.
Dizia o seguinte: “Somente a narração de uma história fictícia parece surtir
efeito contra essa angústia de separação, um relato em uma língua de
estrutura distinta da falada na vida cotidiana.” É isso que permite à criança
manter seus medos a distância e atravessar a noite. (PETIT, 2013, p. 71-72)

Tia Candoca e o livro como objeto de fascínio


O contato físico com os livros também foi precoce. Antes mesmo da mudança
para o sítio da avó, em Juiz de Fora, Nava reside por um tempo na casa de uma das tias,
apelidada Candoca. A parenta, que após a viuvez ganhava a vida ministrando aulas de
piano num tradicional colégio carioca, tinha na leitura um de seus hábitos, como
recorda, nesses termos, o narrador:

1936
Minha tia voltava do Sacré-Coeur pelas quatro horas e passava o resto do dia
ao piano ou agarrada aos livros. Eu gostava de admirá-la entregue a esses
misteres e fascinava-me a capa de uma de suas coleções de romances, parece-
me que chamada Horas de Leitura, onde havia uma dorida figura de senhora
lendo e destacando seu perfil agudo e o luto de sua roupa, contra a claridade
de uma janela ao fundo. Parecia minha tia e comecei a amar os livros.
(NAVA, 2000, p. 324)

O trecho ilustra, uma vez mais, a importância da figura feminina na formação do


leitor. Se com Rosa ela se deu por meio da tradição oral e popular, com tia Candoca ela
passa a envolver, propriamente, o volume impresso. O trecho recria o fascínio da
criança frente ao poder daquele objeto estranho, que parece explicar, em parte, o
despontar do amor pelos livros a partir dali. Afinal, tratava-se de um objeto
estranhamente poderoso, que não só conseguia hipnotizar a parenta como transportá-la,
misteriosamente, para a capa do livro, cuja imagem reproduzia uma espécie de seu
duplo, porque igualmente portando o “luto” e o “perfil agudo”. Esse impacto causado
pelo livro, enquanto objeto encarado pela perspectiva infantil, pode se dar de modos
diversos. A esse respeito, Michele Petit cita, em um de seus livros, o depoimento do
escritor antilhano Patrick Chamoiseau, cujos pais não liam quase nunca. Observando a
mãe manusear os livros, rememora o escritor:

Foi isso que chamou minha atenção: Man Ninotte se interessava por eles
apesar de não terem nenhuma utilidade. Eu observava como utilizava os
arames, os pregos, as caixas, as garrafas ou os vaporizadores guardados e, no
entanto, nunca a vi fazer uso desses livros de que ela tanto cuidava. Era isso
que tentava compreender ao manipulá-los sem parar. Encantava-me com sua
complexidade perfeita cujas razões profundas desconhecia. Atribuía-lhe
virtudes latentes. Suspeitava que fossem poderosos. (PETIT, 2008, p. 141)

Assim, nas palavras de Petit, “o que atrai a atenção da criança é o interesse


profundo que os alunos tem pelos livros, seu desejo real, seu prazer real”, que como
demonstra o relato acima, pode se traduzir por uma relação na qual a leitura
propriamente dita sequer existe, dando lugar a uma espécie de reverência pelo objeto em
si que, justamente por prescindir de qualquer utilidade visível, torna-se ainda mais
intrigante aos olhos infantis. Voltando às Memórias, cumpre lembrar que, para
determinado estrato social da época, a leitura, naturalmente selecionada, e a música,
naturalmente o piano, consistiam em práticas socialmente aceitas e até mesmo esperadas
para a mulher. Desse modo, não é por acaso que a imagem de Candoca lendo parece se
transportar para a capa do livro que segura entre as mãos. Afinal, as coleções de livros

1937
selecionados especialmente para o público feminino consistiam num modo de controle
em relação ao que se admitia, na época, que esse público pudesse ler. A coleção
Biblioteca das Moças, bastante difundida no Brasil durante o período de 1940 a 1960,
constitui um exemplo de popularização de romances condizentes com a então
preconizada educação feminina: “Neles, as protagonistas liam livros essencialmente
religiosos ou de formação, que instruíam e educavam, em contraposição aos que
seduziam ou vulgarizavam as jovens leitoras ali representadas.” (MORAIS, 1998)
Nesse sentido, a representação da mulher com expressão “dorida” e trajando “luto”, no
volume descrito por Nava, parece apontar, justamente, para o perfil esperado de leitora
daquela coleção, cujos livros, naturalmente, deveriam ensejar uma extensão da imagem
de pudor desde logo anunciada pela capa.
Portanto, ao mesmo tempo em que o convívio com os livros era predicado
benquisto, os limites dessa convivência também eram bem determinados. O fato não
passa despercebido a Nava, que ao descrever a participação de d. Raimundinha Teófilo,
da prima Maria Feijó e da tia Alice Salles na confraria científico-literária “Padaria
Espiritual”, da qual os seus respectivos maridos eram membros regulares, lembra que as
suas atividades se resumiam, quando muito, a secretariá-los: “Eram todas três
admiravelmente inteligentes - mas jamais brilharam literariamente entre os maridos
literatos e os literatos seus amigos.” (NAVA, 2000, p. 85) Já no quinto volume, O Galo-
das-Trevas, ao relembrar a mãe, Dona Diva, como exímia contadora de histórias, o
autor a descreve, na mesma esteira, como um talento literário abortado. (NAVA, 1981,
p. 338)
Considerações Finais
Chegando às considerações finais desta comunicação, cumpre sintetizar alguns
dos aspectos anteriormente apresentados. Em primeiro lugar, é importante verificar que
revisitando, a partir das próprias Memórias, alguns dos momentos aparentemente
decisivos para a formação do leitor Pedro Nava, não chegamos a abordar, nesta
oportunidade, nenhum momento em que a própria criança, já alfabetizada, opera por si
mesma a leitura. Em parte, tal recorte se justifica pelo momento atual da pesquisa aqui
representada e, naturalmente, pela extensão máxima concedida a esse texto. Mas, ao
mesmo tempo, tal limitação não deixa de ser eloquente, na medida em que sugere o
quanto o contato precoce com a literatura, em período mesmo anterior à alfabetização,

1938
desempenha papel importante na formação do leitor. Para voltarmos à metáfora de
Arrigucci, eis um dos “ramos” que, muito embora partindo do “tronco” particular da
família Nava, alcança maior representatividade. De certo modo, essa abrangência abarca
não só o espaço, mas mesmo o tempo, revelando-se com isso a pertinência, ainda hoje,
de determinados movimentos formativos do sujeito leitor. Isto pode se verificar tanto
nos casos de Rosa quanto no de tia Candoca.
No caso de Rosa, as histórias contadas em voz alta, desde a primeira infância e,
especialmente, naquelas circunstâncias emocionalmente adversas, constituem, até hoje,
uma prática valiosa na formação de leitores longevos. É o que diz Michèle Petit, a quem
recorremos, uma última vez, referindo-se a pesquisas recentes:

Várias pesquisas confirmaram a importância da familiaridade precoce com os


livros, de sua presença física na casa, de sua manipulação, para que a criança
se tornasse, mais tarde, um leitor. A importância, também, de verem os
adultos lerem. E ainda o papel das trocas de experiências relacionadas aos
livros, em particular as leituras em voz alta, em que os gestos de ternura, a
inflexão da voz, se misturam com as palavras (...). Na França, a criança cuja
mãe lhe contou uma história toda noite tem duas vezes mais chance de se
tornar um leitor assíduo do que aquela que praticamente nunca escutou uma.
(PETIT, 2008 , p. 140-141)

O trecho, na verdade, também se aplica à tia Candoca, na medida em que refere “a


importância da familiaridade precoce com os livros, de sua presença física na casa, de
sua manipulação”. Mas, nesse caso particular, os ecos (ou os “ramos”) da formação do
leitor Pedro Nava alcançam, mais claramente, o Brasil contemporâneo. Afinal, segundo
a edição mais recente da pesquisa “Retratos da Leitura”, datada de 2016, “a figura da
mãe surge como a principal influenciadora no gosto pela leitura” (2016, p. 6). No caso
de Nava, em que as circunstâncias propícias à leitura eram muitas e diversas, não se
poderia afirmar que a figura feminina da mãe ou, mais especificamente, de tia Candoca,
operassem, propriamente, uma influência “principal”. Contudo, fica claro em seu
percurso que as figuras femininas desempenharam papel relevante nesse processo. Do
mesmo modo, “as representações do livro, como companheiro da mulher, e da leitura,
como prática solitária e coletiva”, segundo lembra Morais (1998), “são uma constante
nos romances” da segunda metade do século XIX, donde se infere que tal prática, ao
mesmo tempo cerceada e aceita, como vimos, terá produzido consequências, ainda hoje,
nos modos pelos quais se formam os jovens leitores brasileiros.

1939
Como referido anteriormente nesta comunicação, as limitações a que a mulher
estava submetida socialmente, em princípios do século XX, em parte referidas pelo
próprio Nava, também alcançavam a própria prática da leitura, que tendia a ser bastante
selecionada. Não espanta, dito isto, que seja por intermédio de uma figura masculina, o
tio Salles, que o menino passe a ter um contato com os livros e a leitura que
contemplasse não só o aspecto profissional das letras como também, mais restritamente,
o criativo. Contudo, esses ramos escapam, por ora, do escopo desse texto, no qual se
pretendeu abordar o processo de formação do leitor Pedro Nava optando-se, de um lado,
por duas figuras femininas importantes nesse âmbito e, de outro, pela precocidade de
tais movimentos formativos. Contudo, ficam indicados aqui, desde já, alguns dos
próximos passos dessa pesquisa, cujo objeto comporta, como parece claro, aspectos
múltiplos e complexos, alguns dos quais apresentamos, ainda que brevemente, no texto
que aqui se encerra.

Referências

AGUIAR, J. Espaços da Memória: Uma leitura de Pedro Nava. São Paulo:


Edusp/FAPESP, 1998.

ARRIGUCCI Jr., D. Enigma e Comentário: Ensaios sobre Literatura e Experiência.


São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

FAILLA, Z. (org). Retratos da Leitura no Brasil 4. Rio de Janeiro: Sextante, 2016.

GUSDORF, G. Les écritures du moi (lignes de vie 1). Paris: Editions Odile Jacob,
1991.

MORAIS, M. A. C. A leitura de romances no século XIX. Cad. CEDES, Campinas


, v. 19, n. 45, p. 71-85, Julho 1998 . Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
32621998000200005&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 31 de agosto de
2019. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-32621998000200005.

1940
NAVA, P. Baú de Ossos. São Paulo: Ateliê Editorial/Ed. Giordano, 1999.

______. Balão Cativo. São Paulo: Ateliê Editorial/Ed. Giordano, 2000.

______. Galo-das-Trevas. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1981.

PENNAC, D. Comme um Roman. Paris: Gallimard, 1995.

PETIT, M. Os Jovens e a Leitura: uma nova perspectiva. Trad. Celina Olga de Souza.
São Paulo: Editora 34, 2008.

______. Leituras: do espaço íntimo ao espaço público. Trad. Celina Olga de Souza.
São Paulo: Editora 34, 2013.

ROUXEL, A. “Apropriação Singular das Obras e Cultura Literária”. Trad. Amaury C.


Moraes. In: ROUXEL, A.; LANGLADE, G.; REZENDE, N. L. (orgs). Leitura
Subjetiva e Ensino de Literatura. São Paulo: Alameda, 2013.

VALLE, J. “A Lição dos Escritores: Literatura e Ensino a partir de Pedro Nava, Manuel
Bandeira e Afonso Arinos”. PERcursos Linguísticos. Vitória (ES), v. 7, n. 17, p. 179-
192, 2017.

1941
O EU INSCRITO NA HIETÓRIA: FICÇÃO E HISTORIOGRAFIA EM A
FAMÍLIA MANZONI, DE NATALIA GINZBURG

Lilian Monteiro de Castro1

Resumo: O texto que ora se apresenta tem por objetivo explorar os empréstimos e hibridismos
recíprocos do elemento constitutivo das narrativas historiográficas e das narrativas literárias
propostos pelo historiador italiano Carlo Ginzburg nas obras romanescas de sua própria mãe, a
escritora Natalia Ginzburg, mais detidamente em A família Manzoni (2017). A romancista parece
desenvolver uma metodologia muito similar à micro-história, corrente historiográfica a que se
afilia Carlo Ginzburg, entretanto não prescinde da classificação de sua obra como romanesca.
Palavras-chave: Ficção; Historiografia; Micro-história; Escritas de si.

Nascida Natalia Levi, no ano de 1916, em Palermo, Sicília, em uma família judia,
a romancista italiana, Natalia Ginzburg, no Brasil, ainda é bem menos conhecida – e
consequentemente tem suas obras menos lidas – que seu filho, o historiador Carlo
Ginzburg, um dos expoentes da corrente historiográfica denominada de micro-história.
Apesar de sua produção literária e ensaística ser vastíssima – tanto no que se refere
gêneros quanto à quantidade de obras publicadas –, poucos dos seus livros foram
traduzidos para o português e publicados no Brasil assim como também não há uma
fortuna crítica que lhe faça justiça. Entre as parcas obras que o público brasileiro pode ter
acesso constam os romances: Léxico familiar (2018), Caro Michele (2009) e A família
Manzoni (2017).
Os três romances acima citados apresentam estruturas singulares, onde o
testemunho, mesmo que ficcional ou não intencional, se impõe ao leitor. Seja ele o
trabalho de rememoração da própria autora em Léxico familiar ou o conjunto de escritas
íntimas materialmente verificáveis d’A família Manzoni ou ainda o conjunto de cartas
ficcionais que compõem Caro Michele, todos ainda têm em comum o fato de serem
biografias não de indivíduos, mas de grupos familiares reais ou ficcionais.
Em Léxico familiar, Natalia Ginzburg se coloca como narradora em homodiegese.
Ela dá testemunho ao mesmo tempo que participa da biografia de sua família, os Levi.
Mas adverte seu leitor logo de partida: “esta não é a minha história, mas antes, mesmo
com vazios e lacunas, a história de minha família” (GINZBURG, 2018, p. 16). A autora

1
Graduado em História (UEG), Graduanda em Letras (UEG), Mestre em Literatura (UnB). Contato:
lilianmonteirodecastro@gmail.com.

1942
nasceu e cresceu no Período Entreguerras e só conheceu o conceito contemporâneo de
paz já adulta, viúva e com três filhos pequenos, entre os quais, Carlo Ginzburg.
Como o título do romance indica, o protagonismo do enredo não é dado a nenhuma
personagem, mas ao léxico próprio à família Levi. Natalia Ginzburg traça uma filologia
de expressões e jogos com a linguagem desenvolvidos no seio familiar e que funcionavam
como cifras àqueles que neles se havia iniciado, ou seja, apenas aos membros da família
Levi e seus convivas mais.

Minha mãe não parava de falar da senhora Ghiram, e, à mesa, comíamos as


iguarias que a senhora Ghiran tinha nos ensinado. – Surge um novo astro –
dizia meu pai, toda vez que se nomeava a senhora Ghiran. “Surge um novo
astro” ou apenas “novo astro” era sempre uma saudação irônica a cada novo
entusiasmo que tínhamos por alguém. (GINZBURG, 2018, p. 26)

As expressões, ao longo da narrativa, vão reaparecendo nos contextos em que,


metaforizadas, remetem ao seu contexto original, como exemplificado pelo trecho que
narra o início da amizade entre Mario Levi, um dos irmãos mais velhos da autora e Leone
Ginzburg, que viria a ser seu primeiro marido: “– O que Mario anda fazendo com esse
russo? – dizia meu pai de vez em quando. – Surge um novo astro – dizia, após ter
encontrado Mario com Ginzburg na avenida.” (GINZBURG, 2018, p. 109).
Mas mesmo que o léxico familiar tenha o protagonismo, o testemunho da ascensão
do fascismo italiano e da perseguição aos judeus e aos inimigos do regime ditatorial de
Benito Mussolini não deixa de transparecer:

Meu pai permaneceu na cadeia quinze ou vinte dias, acho, Gino, dois meses.
Minha mãe ia de manhã à prisão, com um embrulho de roupas-brancas; e com
pacotes de laranjas descascadas e de nozes sem casca, nos dias em que se podia
levar comida.
Depois ia à delegacia. Às vezes era recebida por um tal de Finucci, e às vezes
por um tal de Lutri: e esses dois personagens pareciam-lhe todo-poderosos,
parecia-lhe que tinham nas mãos os destinos de nossa família. (GINZBURG,
2018, p. 114)

Apesar do caráter testemunhal do romance o léxico familiar reorienta a si a


recepção da cena: “Meu pai ficara furioso ao saber que Alberto tinha sido preso e levado
ao Tribunal de Guerra. – Safado! – dizia – Enquanto a família estava na cadeia, ele ia
esquiar com as moças!” (GINZBURG, 2018, p. 117), o que revela a intenção de Natalia
Ginzburg quanto à recepção da biografia de sua família: “Embora extraído da realidade,

1943
acho que deve ser lido como se fosse um romance: ou seja, sem exigir dele nada a mais,
ou a menos, do que um romance pode oferecer” (GINZBURG, 2018, p. 15).
Adotando o sentido proposto pela autora, poder-se-ia, mesmo que em um sentido
lato, compreender o romance Léxico familiar, dentro do que propõe Vincent Colonna, em
Tipologia da autoficção como uma autoficção especular, pois a autora multiplica sua
presença na obra sendo, ao mesmo tempo, autora-narradora-personagem:

Baseada em um reflexo do autor ou do livro dentro do livro, essa tendência de


fabulação de si não deixa de lembrar a metáfora do espelho. O realismo do
texto e sua verossimilhança se tornam, no caso, elemento secundário, e o autor
não está mais necessariamente no centro do livro; ele pode ser apenas uma
silhueta; o importante é que se coloque em algum canto da obra, que reflete
então sua presença como se fosse um espelho. (COLONNA, 2014, p. 53)

Todavia, mesmo que secundário, o testemunho remanesce. Mesmo que ficcional,


como é o caso de Caro Michele. Nesses três romances existem vários eus – pois todos
eles narram biografias de famílias – que se inscrevem não somente na obra literária, mas
que, de alguma forma, testemunham processos e eventos históricos que, de maneira
inexorável, determinam o curso do cotidiano.
O jovem Michele, que nomeia o romance supracitado é o destinatário ou o assunto
de quase todas as missivas trocadas entre seu círculo íntimo. O texto se apresenta, em
grande parte, como se fossem cartas reproduzidas e a maioria delas se inicia com Caro
Michele que, no entanto, raramente as responde.
A preocupação com a ausência do rapaz se dá, justamente, por causa do contexto
histórico: o surgimento de brigadas, grupos paramilitares e terroristas após o Movimento
de Maio de 1968 em toda a Europa, já um reflexo da Primavera de Praga. O envolvimento
de Michele com membros desses grupos se evidencia em uma das raras cartas a Angelica,
sua irmã mais velha:

Cara Angelica,
Viajei às pressas porque à noite me telefonaram dizendo que o Anselmo tinha
sido preso [...].
É preciso que você vá imediatamente à minha casa. Peça a chave a Osvaldo
com uma desculpa. Diga que deve procurar um livro. Diga o que quiser. Ia
esquecendo de dizer que deve levar consigo uma mala ou uma sacola. Dentro
da minha estufa há uma metralhadora desmontada e embrulhada numa toalha.
(GINZBURG, 2009, p. 34)

1944
As cartas são entremeadas por trechos narrativos curtos que se conectam às cartas
e que, de início, têm pouca relação entre si. À medida que avança o enredo, os
correspondentes de Michele vão estreitando suas relações uns com os outros. Amigos e
familiares se unem em torno da ausência do jovem, tornando-se um grupo familiar
estendido.
Também são as cartas que estruturam A família Manzoni, mas com uma diferença
fundamental: foram escritas por pessoas que realmente existiram, cinco gerações de
sujeitos históricos. O livro se dedica à biografia do núcleo familiar do escritor italiano
Alessandro Manzoni – que conviveu com as cinco gerações pois viveu mais de cem anos,
sobrevivendo à maioria de seus filhos – autor do clássico novecentista Os noivos (1971),
recorrentemente citado por Umberto Eco e outros teóricos italianos.2
Diversamente de seus outros romances, em A família Manzoni a autora não inscreve
o eu de cada personagem em uma narrativa histórica. A narrativa já existe e está
cristalizada, à revelia das intenções romanescas de Natalia Ginzburg. A historiografia,
nesse caso, é um elemento essencial ao romance e a pretensão de fidelidade buscada pela
escritora reforça tal ideia. Na nota de abertura de A família Manzoni, a romancista italiana
ressalta as exigências imputadas pela escrita desse tipo do livro:

Este livro pretende ser uma tentativa de reconstrução e reordenamento de


minuciosos da história dos Manzoni, por meio de cartas e do que se sabe a
respeito da família. É uma história espalhada por vários livros, na maioria das
vezes não encontrados nas livrarias – cheia de vazios, ausências, zonas
obscuras, como, aliás, toda história familiar que se tente juntar. É impossível
preencher esses vazios e ausências.
Eu jamais havia escrito um livro desse gênero, que demandava outros livros e
documentos. (GINZBURG, 2017, p. 21)

Tais documentos são restos textualizados de um longínquo passado produzidos e


legados pela própria família Manzoni; sua correspondência pessoal e outros registros que,
nesse romance assumem o caráter do que os historiadores chamam de fontes: documentos
materialmente verificáveis e fiáveis para comprovar o estatuto de verdade que propõe o
discurso histórico. Sim, discurso, como explica o historiador estadunidense Hayden
White, a história é “um artefato verbal que pretende ser um modelo de estruturas e
processos há muito decorridos e, portanto, não-sujeitos a controles experimentais ou

2
Umberto Eco o cita em Pós-escrito a O nome da rosa (2015), Confissões de um jovem romancista (2013),
Sobre a literatura e no romance A misteriosa chama da Rainha Loana (2005).

1945
observacionais” (2001, p. 102). São as fontes que dão fiabilidade ao discurso investindo-
o de um regime de verdade.
Entre as peculiaridades da construção narrativa de A família Manzoni está o fato de
não haver uma formação textual das personagens. Elas são apresentadas ao leitor, assim
como os principais cenários da trama, por pinturas e fotografias do acervo pessoal daquela
família e o texto se compõe a partir da justaposição da correspondência pessoal trocada
entre o numeroso clã e seu círculo íntimo.
Sempre que, de alguma forma, se anuncia a “fala” de uma personagem, as aspas
marcam a reprodução de um texto escrito pelo punho de quem deveria falar. Não há
travessões ou diálogos. São as cartas que se impõem ao leitor entremeadas por uma voz
narrativa que lembra a neutralidade almejada por textos historiográficos:

Em junho, quando a notícia da derrota de Waterloo chegou a Milão, Manzoni


estava folheando livros numa livraria e desmaiou, abalado; depositara
esperanças em Napoleão, de novo, nos cem dias, e diante da derrota toda
esperança se aniquilou [...]. Descreveu seu estado a Fauriel: “São inquietações,
angústias que me causam um estranho abatimento...” (GINZBURG, 2017, p.
84)

A derrota de Napoleão em Waterloo que hoje parece quase mítica influenciou de


forma marcante e definitiva a saúde frágil de Alessandro Manzoni que o tinha encontrado
quando muito jovem e teria conservado “para sempre em sua memória aqueles olhos
penetrantes e desdenhosos” (GINZBURG, 2018, 46).
O romance é ainda parte da historiografia da literatura italiana, que assim como em
Léxico familiar, revela os percursos de leitura das personagens, as relações de Natalia
Ginzburg e Alessandro Manzoni com outros escritores e em A família Manzoni,
especificamente, os processos de escritura e reescritura d’Os noivos.
Adotando uma metodologia para a reconstrução e reordenamento da história dos
Manzoni, Natália Ginzburg, na forma de abordagem dos objetos da história aproxima-se
dos métodos utilizados por seu filho, o historiador Carlo Ginzburg. Assim como propõe
as bases teóricas da micro-história, corrente historiográfica da qual Carlo Ginzburg é um
dos expoentes, Natalia revela na narrativa dos três romances, contudo mais
criteriosamente em A família Manzoni, como eventos históricos influenciaram o modus
vivendi de microestruturas sociais.

1946
No entanto, a micro-história não se ocupa somente os efeitos de eventos e estruturas
complexos em microestruturas sociais, mas ainda o que essas microestruturas podem
revelar em si mesmas, como explica Giovanni Levi, outro expoente da micro-história:

[...] a ideia de se considerarem os indivíduos da história tradicional em uma de


suas variações localizadas é análoga à ideia de ler nas entrelinhas de um
determinado documento ou entre as figuras de um quadro, para discernir
significados que previamente escaparam da explicação; ou a verdadeira
importância daquilo que antes parecia ter surgido meramente por circunstância
ou necessidade; ou o papel ativo do indivíduo que antes parecia simplesmente
passivo ou indiferente. (LEVI, 1992, p. 160)

Assim como ressalta Levi no trecho acima, é a leitura nas entrelinhas, literalmente,
que a romancista se propõe seja nas fontes oferecidas pelos Manzoni ou nas práticas
linguísticas de sua própria família. É o exame detido, microscópico, dessas fontes que
evidencia não só a proposição de romances históricos, mas ainda historiográficos, que
para alguns teóricos da história como o já citado Hayden White, concorrem diretamente
com as narrativas históricas.
Na nota de advertência de Léxico familiar, Natalia sugere que essas lacunas ou
vazios que dificultam a unidade e a totalização da narrativa romanesca de cunho
historiográfico são, justamente os espaços onde se daria a ficção em romances
biográficos:

Por isso, se este livro for lido como uma crônica, será possível objetar que
apresenta infinitas lacunas. Embora extraído da realidade, acho que deve ser
lido como se fosse um romance: ou seja, sem exigir dele nada a mais, ou a
menos, do que um romance pode oferecer. (GINZBURG, 2018, p. 15)

Mas até mesmo os historiadores têm essa mesma percepção das lacunas ou zonas
opacas, que para Carlo Ginzburg “são alguns dos rastros que um texto (qualquer texto)
deixa atrás de si. Encontrei-os quando tentei refletir sobre minha própria pesquisa, em
duas experiências sugeridas pela distância temporal (e, num caso, também espacial)”
(GINZBURG, 2007, p. 12).
Carlo Ginzburg, ao contrário de Hayden White, defende que há limites claros em
relação à escrita e à recepção de textos historiográficos e textos literários e o uso de ambos
os discursos do elemento constitutivo, ou os modos de enredo que Northrop Frye delineia
em Anatomia da crítica (2013) e nos quais White se apoia, geraria em realidade “uma
contenda pela representação da realidade. Uma guerra de trincheira, eu levantava a

1947
hipótese feito de desafios, empréstimos recíprocos, hibridismos” (GINZBURG, 2007, p.
9).
Diante das consonâncias metodológicas entre as teorias de Carlo Ginzburg e a
literatura de Natália Ginzburg, dentro dos preceitos micro-historiográficos vem sendo
desenvolvida há cerca de um ano, na Universidade Estadual de Goiás – Câmpus Formosa,
a pesquisa De conto em conto, a micro-história: narrativa literária e produção
historiográfica no epicentro da substância fictícia e o elemento de convergência
discursiva,3 que busca compreender justamente esses empréstimos e hibridismos dos
quais fala Carlo Ginzburg feitos pelo discurso literário produzidos por sua mãe Natalia
Ginzburg, uma vez que a escritora afirma escrever ficção.

Referências

COLONNA, Vincent. Tipologia da autoficção. NORONHA, Jovita Maria Gerheim


(org.). Ensaios sobre a autoficção. Tradução Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria
Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

FRYE, Northrop. Anatomia da crítica: quatro ensaios. Tradução Marcus Martini. São
Paulo: É Realizações, 2013.

GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Tradução Federico


Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

GINZBURG, Carlo. Os fios e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. Tradução Rosa Freire
d’Aguiar e Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

GINZBURG, Carlo. Ralações de força: história, retórica, prova. Tradução Jônatas


Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

GINZBURG, Natalia. A família Manzoni. Tradução Homero Freitas de Andrade. São


Paulo: Companhia das Letras, 2017.

GINZBURG, Natalia. Caro Michele. Tradução Homero Freitas de Andrade. São Paulo:
Cosac Naify, 2009.

GINZBURG, Natalia. Léxico familiar. Tradução Homero Freitas de Andrade. São Paulo:
Companhia das Letras, 2018.

3
Pesquisa desenvolvida em parceria com o professor Jucelino de Sales (UEG/SEE-DF), Mestre em
Literatura (UnB), Doutorando em Literatura (UnB), que conta com duas alunas-pesquisadoras bolsistas de
Iniciação Científica.

1948
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Tradução Jovita
Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2014.

LEVI, Giovanni. A micro-história. BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas


perspectivas. Tradução Magda Lopes. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista,
1992.

MANZONI, Alessandro. Os noivos. Tradução Marina Guaspari. São Paulo: Abril


Cultural, 1971.

WHITE, Hayden. Trópicos do Discurso: ensaios sobre a Crítica da Cultura. Tradução


Alípio Correia de Franca Neto. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2001.

1949
CARTAS CARREGADAS DE POESIA: CECÍLIA MEIRELES ESCREVE A
SUAS FILHAS

Maria do Rosário Abreu e Sousa (Universidade Metropolitana de Santos)1

Resumo: Este artigo discute o estatuto literário e a linguagem poética de três cartas que Cecília
Meirelles escreveu a suas filhas, relacionando-as à sua obra. Com pressupostos teóricos do
discurso epistolar e da linguagem poética, destaca-se o conceito de “devaneio” considerado por
Antonio Candido, Fernando Paixão e Gaston Bachelar como intrínseco ao fazer poético.
Conclui, que o trato inventivo com a linguagem – pleno de aspectos da linguagem poética -
aponta tanto para o estatuto literário dessas cartas como para seu potencial como arquivo da
criação.
Palavras-chave: epistolografia; Cecília Meireles; linguagem poética; arquivo da criação.

Muito se tem discutido acerca do estatuto literário das cartas. De acordo com o
ponto de vista de críticos literários respeitados, as cartas podem sim serem consideradas
literatura.
Para Marcos Antonio de Moraes, em palestra realizada na Universidade
Presbiteriana Mackenzie em 27 de fevereiro de 2008, o estudo da epistolografia
pressupõe um alargamento do conceito de literatura. Já para Bem (1999), o fato de as
cartas terem sido escritas por grandes escritores, já lhes confere um estatuto literário.
Tomando como base o conceito de literatura como sistema formulado por Antonio
Candido (1975), a publicação da correspondência fecharia o ciclo produtor obra literária
e público, com a ressalva de que o produtor literário “mais ou menos consciente”, no
caso do missivista tende a ser bem menos consciente, embora alguns escritores como
Mário de Andrade e Monteiro Lobato aparentemente escrevessem cartas conscientes da
possibilidade de sua publicação.
A importância para os estudos literários da correspondência de Cecília Meireles
com suas filhas quando estas ainda eram crianças reside principalmente na importância
que a figura infantil assume na obra da escritora e da linguagem poética que perpassa
sua obra literária, e por hipótese, sua correspondência com crianças.
A obra de Cecília Meireles, em vários momentos, ocupou-se de crianças. Ela
escreveu não apenas o que é considerado ainda hoje pela crítica literária um dos mais

1
Doutora em Letras (Universidade Mackenzie).
Contato: abreu.rosario@ig.com.br

1950
belos livros de poesia para crianças Ou Isto ou Aquilo (1964), mas também livros
voltados para a educação como A Festa das Letras (1937), livros de literatura infanto
juvenil como Rute e Alberto (1945) e ainda livros sobre literatura infantil, como
Problemas de Literatura Infantil (1951).
Na poesia adulta de Cecília Meireles também há personagens crianças:
“Pastorzinho Mexicano”, “A Menina e a Estátua”, “Ar livre”, “Retrato de uma
Criança”, “Esboço Holandês”, “Esperávamos pelo menino”, “Orfandade”, “A Menina
Enferma”, entre outros.
O objetivo deste artigo é discutir a linguagem poética de três cartas selecionadas
que Cecília Meireles escreveu às filhas no ano de 1940, relacionando-as à obra da
escritora. Nesse período, Cecília foi professora de Literatura Brasileira na Universidade
do Texas e por esse motivo teve que separa-se das filhas por um tempo. As cartas estão
publicadas no livro As três Marias de Cecília (2006), organizadas por Marcos Antonio
de Moraes. Nomearemos as três cartas selecionadas do seguinte modo:
1)- CM1 – Vitória, 1940.
2)- CM2 – Austin, 09 de junho de 1940.
3)- CM3 – San Antonio, 02 de agosto de 1940.

A Linguagem Poética das Cartas


As metáforas são frequentemente citadas como a figura de linguagem mais
característica da linguagem poética. Candido (1987, p.95-111) tece comentários a esse
respeito em um capítulo inteiro do livro O Estudo Analítico do Poema, estabelecendo
uma diferenciação entre metáfora e imagem, mas enfatizando a capacidade reveladora
de ambas.

Das categorias acima referidas, a mais importante e freqüente é a metáfora,


que é um tipo especial de imagem. Ela se baseia na analogia, isto é, na
possibilidade de estabelecer uma semelhança mental, e portanto uma relação
subjetiva, entre objetos diferentes, abstraindo-se os elementos particulares
para salientar o elemento geral, que assegura a correlação. Mais radical do
que a imagem, suprime o elemento comparativo e opera uma transfusão de
sentido entre objeto e objeto.[...]
Na imagem, a semelhança é estabelecida subjetivamente por meio de nexo
comparativo, que preserva a identidade de cada termo.[...]
A mudança de sentido faz da imagem e da metáfora um recurso admirável de
reordenação do mundo segundo a lógica poética; mas, a metáfora vai mais
fundo, graças à transposição, abrindo caminho para uma expressividade mais

1951
agressiva, que penetra com força na sensibilidade, impondo-se pela analogia
criada arbitrariamente.[...]
A imagem e a metáfora podem ter uma capacidade ilustrativa quando se
incorporam a famílias já conhecidas. E podem ter capacidade reveladora
quando criam uma relação nova, que esclarece o mundo de forma diversa.
Candido (1987, p.95-111).

Candido, (1987, p.105) assinala que duas ciências contribuíram grandemente para
o estudo da metáfora: a linguística e a psicologia. A segunda, na opinião do teórico,
talvez tenha contribuído mais para o estudo da metáfora, por revelar os mecanismos
inconscientes de sua elaboração.

O homem forma imagens para dar vazão a necessidades profundas, e elas são
carregadas de um valor simbólico, que escapa ao seu elaborador.[...] A
importância do valor simbólico da palavra é um dos postulados da psicologia
moderna – mostrando que a palavra não é apenas um signo arbitrário ( como
ensina a lingüística), mas invólucro simbólico de um sentido que radica em
camadas profundas do espírito Candido (1987, p.105).

Nas cartas selecionadas de Cecília Meireles aparecem imagens e metáforas. Na


primeira carta selecionada (CM1), Cecília compara a calma da viagem, à necessidade de
pular, para o navio balançar um pouco. “A viagem está sendo muito bonita. Tão calma
que é preciso a gente pular em cima do navio para ele balançar um pouquinho.”
O cartão postal datado de 9 de junho de 1940 (CM2) é todo ele bastante poético, a
começar pelo poema escrito no verso do cartão. Trata-se de um poema com versos de
sete sílabas, rimas, cheio de ritmo e sonoridade.

1952
Na ilustração, o laço do cowboy escreve a palavra hell”, que une os dois
personagens, evocando um cordão umbelical. No verso desse cartão, Cecília Meireles
escreve às filhas um pequeno poema que justapõe à imagem visual da ilustração, esta
outra imagem verbal:

[...] e lendo este postalzinho,


todo cheio de carinho,
me mandem daí um abraço
como um cowboy manda um laço! (p.38)

Ao olhar a imagem e ler os versos finais do poema, o leitor pode imaginar um


laço unindo Brasil e Estados Unidos, mãe e filhas. Mas se no cartão postal é o “cowboy“
quem tem o poder (está montado num cavalo, num plano superior ao amigo laçado
prestes a se estatelar no chão), no poema é Cecília quem quer ser laçada pelo laço-
abraço que as filhas, como o cowboy, enviar-lhe-ão assim como um cordão umbilical
que se refaz metaforicamente.
Esse cartão postal (CM2) é bastante original, porque é constituído por pequenas
frases que deverão ser completadas por um ”X”, ou seja, o remetente não tem que
escrever nada, somente assinalar um “ X”. A última frase, antes da despedida, é bastante
sonora, pelo uso das aliterações em “v” e “b”. “Desejo ver vocês em breve; bem logo”..
Este mesmo cartão postal, (CM2) é constituído por enumerações. Entretanto uma
delas destaca-se das demais, por expor de modo bastante direto e sincero, a fragilidade
da poeta, sua necessidade de amor e compreensão. Aqui, o eu-lírico expressou-se
semelhante a um fluxo de consciência, dotando a enumeração de poesia. “Preciso de
vocês, beijos, sono, dinheiro, mais tempo, alguém que me ame, compreensão”. Esta
frase de Cecília remete à observação de Jakobson (1971, p.300) de que ao comparar a
obra poética ao diário íntimo do poeta russo Puchkin, observou que frequentemente o
diário íntimo era mais pleno de poesia, do que os próprios poemas escritos por Puchkin.
A razão disso, segundo Jakobson, é o fato de o diário propiciar a sinceridade, o registro
pleno de emoção, que o poema, por suas regras, muitas vezes cerceia.
A carta datada de San Antonio, 02 de agosto de 1940 (CM3), é um longo relato a
Viruchinha sobre a viagem de trem de volta do México para os Estados Unidos. Cecília
não fez uma boa viagem. Teve insônia, náuseas, nevralgia, dores de cabeça, sacudindo

1953
no trem que ondulava e balançava em seu percurso sinuoso. Dentro, passageiros
fumando e gargalhando, só faziam aumentar o mal estar da poeta. Rica em metáforas e
ilustrações, estas últimas além de elucidar o texto, ajudam a envolver o leitor
sinestésicamente, capturando-o para o ambiente vivido pela poeta.

O ambiente insalubre, cheio de fumaça, é descrito sinestésicamente. O leitor tem a


sensação, ao olhar para as ilustrações, de estar dentro de um trem em queda livre, tal é o
declive do traço que representa os trilhos. Dois vagões, inclusive, estão fora dos trilhos,
e parecem despencar no precipício do papel da carta. A espiral que faz as vezes da
fumaça da locomotiva, é igualmente exagerada. Completam o conjunto “asfixiante” um

1954
cigarro entre os dedos de uma senhora que não tem olhos, só boca e nariz, e por último,
o desenho da fumaça de uma fábrica de compotas.
O paralelismo, também apontado por Jakobson (1975, p.146) como uma das
características da linguagem poética, aparece aqui, por meio da repetição das ilustrações
das fumaças (do trem, dos fumantes, da fábrica), que ao mesmo tempo esclarecem e
enfatizam o texto da carta, envolvendo o leitor sinestesicamente, o que nos remete
também para as relações corpo/poesia, citadas por Bosi (1993, p.49).

No dia seguinte, que foi ontem, eu estava com uma dor de cabeça que
enlouquecia[...] O trem veio descendo daquelas alturas de 2000m. por onde
andávamos sempre pulando do trilho, como você está vendo no desenho
muito realista.[...] E o trem vinha cheio desse carnaval, de umas mulheres de
meterem medo até ao “seu Maximiliano”, todas cobertas de jóias que
pareciam latas de compota.
E essa gente fumando como a fábrica das referidas compotas, e dando umas
gargalhadas assim: pelo nariz. (CM3)

Explicita-se agora o motivo de a ilustração da mulher fumando ter apenas a boca e


o nariz. É para enfatizar o som da gargalhada fanhosa que tanto incomodava a poeta.
As metáforas para descrever as turistas americanas são bastante fortes, e
contribuem para envolver o leitor na atmosfera insalubre do trem, onde os fumantes são
fábricas de compota a expelirem fuligem.

Dentro tinha uma fauna horrível, porque as americanas turistas são o animal
mais medonho que Deus inventou, depois das baratas[...] Mas as diabas das
americanas, que são um monumento de mau gosto.[...] E o trem vinha cheio
desse carnaval, de umas mulheres [...] todas cobertas de jóias, que pareciam
latas de compota.[desenho 2] E toda essa gente fumando como a fábrica das
referidas compotas. (CM2)

A narrativa desta viagem asfixiante assume um ritmo característico da linguagem


poética principalmente pela construção paratática, predominante na poesia, segundo
Cunha (1979, p.106), e também pelas frases que marcam o ondular do trem, frases estas
semelhantes a um refrão, o que confere ao texto uma cadência de poesia . “[...] o trem é
daqueles de ondulação permanente.[...] O trem veio descendo daquelas alturas [...]
sempre pulando. E o trem vinha cheio desse carnaval [...] E o danado do trem sempre
pulando.” (CM3)

1955
Finalmente Cecília e Heitor chegam a San Antonio acompanhados uma vez mais
de sinestesias, que a poeta continua a utilizar para descrever a temperatura agradável do
México, em oposição ao calor sufocante do Texas. “Lá no México fazia um frio
delicioso: aqui o sol é fogo líquido.”
Para descrever o “quarto muito agradável”, Cecília faz uso da personificação;
“cortinas risonhas”.
Para aguçar a curiosidade de Matilde, Cecília uma vez mais lança mão do recurso
da surpresa, do inesperado, descrito por Jakobson (1975, p.137). “E o Heitor comprou
um relógio-monstro para a Matilde. Um relógio de carrilhão, que quando dá corda sai
ice-cream!”
Esta carta pode ilustrar um outro traço da linguagem poética. Mais
especificamente, do “fazer poético”: o devaneio. Diferente do sonho, o crítico literário e
poeta Fernando Paixão (1991, p.76-77), o conceitua como o intervalo de tempo em que
o pensamento desliga-se da realidade, desconcentra-se daquilo em que estava focado,
para em um voo de liberdade, deixar a imaginação flanar, reabastecer-se. Momento vital
para o poeta, é no devaneio que ele encontrará a matéria prima de seu fazer poético.
Também Candido (1987, p.106) destaca o devaneio, tal qual o filósofo Gaston
Bachelard o conceituou, como elemento importante da linguagem poética, por ser ele
espaço de manifestação do pensamento figurado.

[...] momento indispensável no processo de reconhecer e representar o


mundo. O pensamento compreende necessariamente um aspecto de sonho e
um aspecto de aplicação ao real. Aquele é espontâneo, este, construído.
Ambos são indissolúveis ao espírito humano (CANDIDO, 1987, p.106).

Cruzando-se as idéias de devaneio, essenciais ao fazer poético, com as idéias de


“arquivos da criação”, expostas respectivamente por Paixão (1991, p.76-77), e por Diaz
(1999, p.13), delineia-se também a possibilidade de reconhecermos nestas cartas,
passagens que ilustram tais procedimentos.
As cartas de Cecília Meireles são ricas neste tipo de procedimento. Intercalando
um assunto e outro, a poeta registra estes momentos, ora nomeando-os como sonhos,
ora não. A carta de San Antônio, 02 de agosto de 1940, (CM3) contém alguns desses
momentos.

1956
Ao descrever as sensações de mal estar causadas pelo balanço do trem, a inalação
involuntária do alcatrão e da nicotina dos fumantes, o som irritante da gargalhada
fanhosa, a visão desagradável das turistas cheias de jóias enormes, a insônia da noite
anterior, tudo isto cria um ambiente propício ao desligar-se da realidade, ao devaneio.
Este ambiente nada agradável aos sentidos da poeta, potencializaram seu mal estar, e ela
teve náuseas. “Náuseas de ser gente, de estar viva, de ir naquele trem, etc”.
É possível inclusive, abrir um parênteses para traçar um paralelismo entre o torpor
destas sensações registradas por Cecília, e as sensações experimentadas pelos
surrealistas, e por Baudelaire, com as drogas, a fim de obter artificialmente este
desligamento do real, vivenciar plenamente o onírico, penetrar o universo do devaneio.
O devaneio da poeta ocorre do mesmo modo como Paixão (1993, p.16-17) o
descreveu: entre dois tempos da narrativa. Após narrar as sensações de mal estar
decorrentes do ambiente da viagem, enfatizando-as com ilustrações, a poeta passa a
narrar o cardápio das refeições que faria em seguida, mas entre esses dois momentos do
narrar, seu pensamento se desprende do real, e surge o devaneio, registrado pela frase “
Náuseas de ser gente, de estar viva, de ir naquele trem, etc.” A sensação de náuseas
introduz a poeta no mundo do devaneio, e a expressão “naquele trem”, a traz de volta ao
mundo real, para logo em seguida penetrar novamente no mundo do devaneio. Após
relatar as refeições que fizera, comentando o seu preço salgado, a poeta uma vez mais
retoma o universo do devaneio, marcado pela presença da morte. “Não se pode nem
morrer tranquilo num trem desses!!”

Está claro q. piorei da dor e comecei a ter náuseas. Náuseas de se gente, de


estar viva, de ir naquele trem, etc. Comemos uma omelete com uma batata e
um pouco de arroz, e pagamos 100$000! Muito padece quem viaja! À tarde,
quase morri de nevralgia. E o danado do trem sempre pulando. Jantei só um
chazinho com torradas e ainda assim pagamos pelo referido chá 20$. Não se
pode nem morrer tranquilo num trem desses!! (CM3)

Talvez esteja aqui, nesta carta endereçada à filha Viruchinha (Elvira), datada de
San Antonio, 02 de agosto de 1940 (CM3), a gênese, ou uma das etapas da gestação de
Solombra, publicado em 1963, do qual Bosi (apud Oliveira 2001, p.95) disse ser a
morte, metamorfoseada em ausência, o tema central da obra e talvez também o
germinar, ou uma das etapas da criação do poema infantil “Andar de cima”
(MEIRELES, 1972, p.732).

1957
A respeito do poema “Andar de cima”, a primeira ilustração desta carta, mostra o
compartimento do vagão-leito onde Cecília jazia insone, na parte de baixo do beliche
vítima do ambiente insalubre do trem, enquanto Heitor, na parte superior do beliche,
dormia solto, ”sonhava alto. Isto parece sugerir o desconforto do andar de baixo, em
oposição ao andar de cima.
A análise das três cartas selecionadas mostra uma dimensão diferente da autora, e
talvez registre elementos para a crítica genética, ou desvele personas que somente no
contexto epistolar encontre terreno favorável para ganhar voz.
Das três cartas selecionadas, a relação com as crônicas de viagem é bem evidente,
entretanto a presença da morte, tema de sua obra adulta, aparece em uma das cartas,
CM3, o que fortalece a hipótese de se relacionar essa correspondência à sua obra
infantil e adulta.

Referências

BEM, Jeanne. Le Statut Littéraire de La Lettre. Gênesis. Revue Internationale de


Critique Génetique. Paris, 1999.

BOSI, Alfredo. O Ser e o Tempo da Poesia. São Paulo: Cultrix, 1993.

CANDIDO, Antonio. O Estudo Analítico do Poema. São Paulo: Edusp. 1987.

______. Formação da Literatura Brasileira. São Paulo: Edusp, 1975.

CUNHA, Helena. Os Gêneros Literários. In PORTELA, E. et al. Teoria Literária. Rio


de Janeiro: Tempo Brasileiro. 3. ed. Col Biblioteca Tempo Universitário 42.

DIAZ, José. Quelle Génétique pour les Correspondences? Genesis: Revue


Internationale de Critique Génétique. Paris, 1999.

JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação. 8. ed. São Paulo: Cultrix, 1975.

MORAES, Marcos Antonio. Três Marias de Cecília. Organização, Apresentação e


Notas: Marcos Antonio de Moraes. São Paulo: Moderna, 2006.

OLIVEIRA, Ana Maria Domingues de. Estudo Crítico da Bibliografia de Cecília


Meireles. Colaboração de Jane Cristina Pereira. São Paulo: Humanitas/FFCHL/USP
2001.

PAIXÃO, Fernando. O que é Poesia. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1991.

1958
ESCRITA E MEMÓRIA: O USO DA AUTOFICÇÃO COMO FERRAMENTA
DA ELABORAÇÃO TRAUMÁTICA EM A IMENSIDÃO ÍNTIMA DOS
CARNEIROS, DE MARCELO MALUF.

Mirvana Luz Teixeira (UFRGS)1

Resumo: O mundo que conhecemos hoje é resultado de um passado de guerras, de trânsitos


forçados, de regimes totalitários e, consequentemente, de traumas. É tentando entender esse
contexto híbrido que a Literatura Contemporânea irrompe, e seus autores, muitas vezes, recorrem
à escrita de si como forma de reestruturação de vivências do passado. Nesse sentido, o presente
trabalho visa estudar a presença na autoficção no romance A imensidão Íntima dos Carneiros, de
Marcelo Maluf (2015), bem como o modo que o protagonista utiliza a escrita para elaborar seu
passado familiar. Compõem a base teórica deste estudo Aleida Assmann, Serge Doubrovsky,
Manuel Alberca, Michel Pollak, Philippe Lejeune e Vincent Colonna.
Palavras-chave: Autoficção; Escrita; Memória; Trauma.

Introdução
O presente trabalho se dedicará ao romance A imensidão íntima dos Carneiros, do
autor Marcelo Maluf, lançado em 2015. Marcelo Pinotti Maluf (1974) é professor de
criação literária e escritor. O autor graduou-se em Licenciatura Plena em Educação
Artística pela UNESP, em 2004, e se tornou mestre em Artes, em 2007, pela mesma
universidade. Em 2013, o autor foi contemplado com a Bolsa de criação literária do
Governo do estado de São Paulo (ProAc) e com ela escreveu o romance que, nesse
trabalho, pretende-se estudar, o qual foi publicado em 2015 pela Editora Reformatório. A
imensidão íntima dos carneiros é o único romance do autor, mas não sua primeira obra.
Maluf é também autor do livro de contos Esquece tudo agora, publicado pela editora
Terracota, em 2012. Além disso, ele também escreveu o livro infantil As mil e uma
histórias de Manuela (2013) e é autor de dois livros infanto-juvenis, Jorge do Pântano
que fica logo Ali (2008) e Meu pai sabe voar (2009). Para além dessas publicações, como
contista, Maluf já foi publicado em diferentes revistas literárias e antologias. Com essa
apresentação, busca-se mostrar que Marcelo Maluf não é autor de um livro só. Embora A
imensidão íntima dos Carneiros tenha sido seu primeiro romance, o autor já conta com
uma trajetória bastante longa como escritor. Com esse romance, Maluf atingiu certo
reconhecimento, pois a obra foi finalista dos prêmios APCA, em 2015, e Jabuti, em 2016,

1
Graduado em Letras (UFGRS) e estudante de mestrado no Programa de Pós-graduação em Letras
(UFRGS-CAPES 7). Contato: mir.vanateixeira@gmail.com.

1959
sendo vencedor do prêmio São Paulo de Literatura, em 2016, na categoria autor estreante
com mais de 40 anos. Assim, percebe-se que esse romance foi bem recebido pela crítica.
Marcelo Maluf é descendente de Libaneses e transfere ao seu romance
problemáticas importantes que sua família - como muitas outras que fazem parte do
contexto globalizado em que estamos inseridos - viveu. A história trata da narrativa do
avô, Assaad Maluf, e do neto - homônimo do autor -, Marcelo Maluf, sobre a migração
do primeiro para o Brasil e as problemáticas envolvidas nesse processo, bem como sobre
a identidade Libanesa compõe a herança familiar dos personagens. Marcelo apresenta em
seu romance uma família envolta de personagens que buscam pertencimento em terras
brasileiras. O romance se passa no Brasil e no Líbano, já que conta com as narrativas de
Marcelo e Assaad, no passado e no presente, que compõem a obra analisada. A imensidão
íntima dos carneiros se funda sobre um trauma familiar. Em 1910, no Líbano, então parte
do império turco-otomano, a população se dividia entre cristãos e muçulmanos; contudo,
era comum a perseguição em relação às famílias cristãs, religião não aceita pelo império
instaurado. Foi nesse contexto que se estabeleceu o trauma fundacional do romance: o
assassinato brutal dos irmãos do personagem Assaad em frente a toda família, somente
porque, segundo o personagem, naquele dia “os soldados talvez estivessem fartos do jeito
tedioso da [sua] aldeia” (MALUF, 2015, p. 93). Por conta desse acontecimento, os pais
do personagem decidiram enviá-lo ao Brasil junto com outros imigrantes que, no início
do século XX, vinham ao brasil para tentar uma nova oportunidade de vida ou fugir do
autoritarismo estabelecido no Líbano naquele período. Já no Brasil, o personagem calou
sobre o ocorrido, do qual seus descendentes somente ficaram sabendo a partir de um dos
filhos da Assaad, Sami, único familiarizado com a história, e também a partir de um
caderno de memórias mantido pelo personagem. Assim, a narrativa constitui-se de duas
vozes: a do avô Assaad e a de seu neto Marcelo, que escreve o romance autoficcional “A
imensidão íntima dos Carneiros”. Nesse sentido, buscar-se-á, nesse ensaio, compreender
o conceito de autoficção dentro do romance, buscando pontuar porque acredito que a
narrativa de Maluf se diferencia, também, da autobiografia.
Escrita, Memória e Autoficção
A imensidão íntima dos carneiros conta com um narrador, Marcelo, que, é, como o
autor, escritor e busca encontrar, por meio da escrita de si, a compreensão do seu passado.
O romance, que intercala a escrita de Marcelo, narrador, e de seu avô, Assaad, mistura

1960
ficção e realidade, posto que a presença do avô no romance é ficcionalizada por Marcelo
como uma forma de elaboração de um trauma familiar decorrente da Guerra Civil Libanesa,
no início do século XX. Marcelo Maluf une, em seu romance, a memória à escrita, e utiliza
a segunda como uma ferramenta de compreensão traumática. Assim, a autoficção permeia
todos os capítulos do livro, e o intuito desse trabalho é observar como essa ocorre no
romance selecionado. Com o objetivo de entender o passado familiar, Marcelo Maluf,
autor, escreve o romance analisado. Em entrevista ao canal Literatórios, Maluf afirma que,
ao saber do passado de seu avô, precisou escrever para compreender aquilo que sua família
viveu, adicionando que o romance foi a forma encontrada por ele de fazer a elaboração
traumática.
Dentro do romance, o personagem Marcelo Maluf, também escritor, está colocado
na mesma situação. Stuart Hall, em seu texto “Quem precisa de identidade”, afirma que a
identidade de um sujeito se forma, muitas vezes, pelo discurso, dizendo que ela surge “da
narrativização do eu” (HALL, 2000, p. 109). O autor afirma que a compreensão do sujeito
de si mesmo passa por um processo que une a história à ficção, uma vez que a identificação
de um ser com sua história tem uma base real e outra simbólica, sem que nenhuma seja
mais importante que a outra. Vemos, então, que a formação identitária dos indivíduos passa
pela revisitação da história, mas também da simbologia do seu passado, o que ocorre,
muitas vezes, pelo discurso.

É precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora do


discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais
históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas
discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas. (HALL, 2000,
p. 109)

Portanto, é possível perceber essa busca da constituição identitária de Marcelo no


romance da forma apresentada por Stuart Hall: ele quer compreender a história familiar
para entender quem é; contudo, essa história não envolve somente os fatos ocorridos em
um passado anterior a ele, mas também a simbologia que os rodeia, como o modo que
esses acontecimentos alteraram ou não sua identificação - e a de seus familiares -
enquanto descendente de libaneses. A narrativa do romance, nesse sentido, contém
diversos elementos e acontecimentos da vida do autor: o mesmo nome, mesma profissão,
mesma árvore genealógica, mesmos traumas do passado, e é a presença desses traumas e

1961
da figura do avô que fazem o autor escrever sobre si mesmo, e deixar claro no romance
suas interferências explícitas

Qual é o motivo de sua presença em minha vida, se não consigo sentir a sua
falta? O que se move dentro de mim com tamanha força, a ponto de não me
permitir que a sua existência se anule dos meus pensamentos? O que afinal
resta de Assaad em mim? Qual segredo? Qual gesto? Qual sentimento? Qual
palavra ainda pronuncio como eco de sua existência em mim? O que devo
guardar? E o que devo abandonar? Ou mesmo lançar ao fogo? Olhe para mim,
meu avô. Estou aqui, em pé. Na sua frente. Pronto para ouvir sua história. Ou
você deseja que eu suplique e me ajoelhe? (MALUF, 2015, p. 21)

De acordo com Collona (2004), a autoficção é

“Todas as composições literárias onde um escritor se inscreve sob seu próprio


nome (ou um derivado indubitável) em uma história que apresenta as
características da ficção, seja por um conteúdo irreal, por uma conformação
convencional (o romance, a comédia) ou por um contrato passado com o leitor
(COLONNA, 2004, p. 70-71).

Nesse sentido, a escolha de Maluf, autor, em escrever um romance sobre sua


história, configura a existência de um romance autoficcional. É possível pensar, nesse
ponto, em o que faria desse romance ficcional e não autobiográfico. Seguindo a
concepção de Manuel Alberca (2013), é preciso ter em mente que é impossível
reconstituir, fielmente, o real. Por conseguinte, a diferença entre autoficção e
autobiografia está no fato de que a autoficção não tem um compromisso do sujeito
contemporâneo em construir, no romance, sua própria personalidade, sendo a narrativa
um produto do mundo pós moderno. De acordo com Jean Starbinski, a autobiografia deve
ser lógica e seguir uma ordem cronológica, em que podem existir algumas lacunas da
memória, que são comuns na natureza humana, mas, apesar dessas, deve haver um esforço
em criar o real, seguindo o curso da vida do autor. A obra de Maluf, no entanto, não
apresenta esse esforço, muito antes pelo contrário: segue a ideia da criação literária antes
da narração biográfica, ainda que tenha como plano de fundo, em muitos momentos,
acontecimentos reais.
O romance se divide, porém, em trechos que se passam no Brasil, e em outros que
se passam no Líbano, e é nesse ponto que vemos a constituição autoficcional do romance:
quando a história se passa no Brasil, contempla a história do personagem Marcelo Maluf,
que vive na mesma cidade do autor Marcelo Maluf, e contempla a história familiar e de

1962
vida desse. Nesses trechos, a estrutura autoficcional está dada de maneira plena, e, nesse
momento, é possível que o leitor firme com o autor até mesmo o pacto autobiográfico
conceituado por Lejeune (2014, p.15), uma vez que o autor propõe ao leitor uma
estruturação verossímil, que permite confiabilidade. Em contrapartida, A imensidão
íntima dos carneiros conta também com capítulos que se passam no Líbano e são narrados
pelo avô de do personagem Marcelo, também homônimo do avô do autor, Assaad Simão
Maluf. Assim, percebe-se que há invenção. Ainda de acordo com Starobinski (1970),
mesmo que haja uma tentativa de manter-se fiel à realidade e à experiência vivida, as
narrativas marcadas pela escrita pessoal, que se baseia, pois, na memória, acabam,
rotineiramente, culminando em ficção. O que se percebe, no romance de Maluf, porém,
não é essa tentativa de manter-se fiel à realidade, mas sim a utilização de fatos reais para
construir não só um romance, como também um entendimento sobre o passado familiar,
que fica evidente nas reflexões de seu personagem homônimo.

Talvez por isso eu esteja aqui, para tentar compreender por que Assaad
guardava tantos segredos. Não. Não é nada disso. Não estou aqui por Assaad.
Estou aqui por mim mesmo. Egoísmo é a palavra certa. Já tentei começar a
contar essa história de diversas maneiras [...] Mas não me senti à vontade. Ou
seja, estou aqui porque preciso. Preciso, como um jardineiro, revolver a terra
para que ela respire e acomode novas plantas, para que floresçam. Ou a
exemplo de um miserável, à procura de abrigo e alimento. Eu preciso me
abrigar e saciar a minha fome. (MALUF, 2015, p. 25-26)

Segundo o narrador do romance, as memórias que conhece do avô são adquiridas


por ele não só a partir de relatos do passado, mas de um caderno que Assaad mantinha
que fora entregue a ele posteriormente. Assim, ainda que esses trechos possam partir de
um registro escrito - do qual não se tem certeza a veracidade -, eles são postos no romance
como parte de uma segunda narração. Vê-se, pois, que essa intercalação de vozes é parte
de uma tentativa do neto, Marcelo Maluf, de entender a figura do avô. Marcelo chega a
afirmar, no romance, que imagina o esforço do avô em escrever suas memórias em um
caderno

Conto tudo isso a fim de organizar minhas lembranças e encontrar algum gesto
perdido de Assaad nessas histórias. Sei que ele está ansioso para contar o que
talvez seja o seu maior segredo. Sei que a sua mão esquerda vacila, mas
também sei que Assaad se esforçou para conseguir escrever e relembrar.
(MALUF, 2015, p. 30)

1963
Segundo Doubrouski (2005), a narração não pode ser considerada uma cópia da
realiadade, mas sim a recriação dessa por meio das palavras. De acordo com o autor, ela
é uma reinvenção da linguagem pelo “eu do discurso” e por seus “eus sucessivos”. Por
isso, é o modo ou modelo de narração que molda a “nossa’ vida.”; por esse ângulo, o eu
anterior, que está representado na figura do autor, está posto na obra, ainda que esteja
aliado a outras figuras, criadas por ele com a intenção de compreender sua identidade, sua
descendência e sua memória familiar. Deste modo, a escrita pode ser uma forma de
arquitetar memórias para formar uma identidade sólida; no caso de Marcelo, ela parece
ser um modo de fortificação após a descoberta do trauma familiar. A escrita não é, logo,
uma forma de compreensão apenas individual, como foi para o avô, mas sim coletiva,
dado que, para chegar ao entendimento pessoal, ele precisa necessariamente passar pelo
coletivo, que é o contato com Assaad e com sua descendência Libanesa, a qual o
personagem parece até então não ter percebido como algo significativo. Assim, o que é
necessário compreender é que a autoficção, nesse romance, não se configura como algo
absoluto e depende, pois, de um contrato com o leitor.
De acordo com Gasparini (2014, p. 214-215), existem romances autoficcionais que
contam com trechos autobiográficos e até mesmo autofabulativos, que são aqueles em
que há uma série de situações imaginárias e fantásticas. Portanto, percebo a imensidão
íntima dos carneiros como um romance autoficcional, que tem, todavia, trechos criados
pelo autor para que a compreensão do trauma familiar se dê de forma mais completa. A
escrita de si serve para o autor e, consequentemente, para o narrador central da obra, como
um elemento essencial de entendimento identitário e, por conseguinte, de tentativa de
pertencimento. Aleida Assmann, em seus estudos sobre a escrita, ao investigar os estudos
de Francis Bacon, declara que o filósofo, já no século XVI, percebia a escrita como
medium da memória em um duplo sentido: individual e coletivo (ASSMANN, 2011, p.
210). Marcelo busca, seguindo a lógica proposta por Bacon, escrever para alcançar a
memória coletiva de sua família, que irá compor a sua identificação como sujeito. Jan
Assmann (2008), em seu livro “Religión y memoria cultural”, também apresenta sua
percepção sobre a memória como sendo tanto neuronal como social. O autor se baseia
nos estudos de Maurice Halbwachs para afirmar que a memória é um fenômeno social
(2008, p.17), não apenas um hardware presente em nosso cérebro: ela é mais complexa e
depende de diversos fatores para se constituir. Podemos ver a busca de Marcelo por essa

1964
perspectiva. A memória, em seu caso, depende da memória de seus antepassados,
principalmente de seu avô. Michael Pollak, sociólogo austríaco, em seu ensaio “Memória
e identidade social” (1992), afirma que a memória, apesar de parecer um fenômeno
individual, constitui-se de acontecimentos vividos pessoalmente e também de
acontecimentos vividos “por tabela”, que são aqueles “vividos pelo grupo ou pela
coletividade à qual a pessoa pertencer” (POLLAK, 1992, p. 201). Assim, todos os
acontecimentos que, de alguma forma, rodeiam o imaginário do grupo ao qual um sujeito
pertence são também constituintes da memória do sujeito em questão, sendo,
consequentemente, importantes para sua formação identitária. No romance de Maluf,
parte dessa memória foi negada a Marcelo - e ao resto de sua família - pelo avô, que não
passou aos familiares nem sua história, nem sua língua materna, nem mesmo a cultura do
país de onde veio. Com isso, apesar de sentir-se integrante da família pela genética, ele
ainda não consegue compreender inteiramente sua cultura, o que se percebe no uso
constante da palavra “talvez” quando ele fala de sua descendência

Talvez minha memória seja genética. Minha falta de disciplina e o meu corpo
inteiro, genéticos. Os meus cabelos caindo, genéticos; as minhas dúvidas, as
minhas escolhas, os meus óculos, os meus sapatos. Todos genéticos. [...]
Talvez tudo o que eu sou e vivi e li também faça parte, hoje, da minha estrutura
genética. O que em tese me faria não saber identificar aquilo que recebi daquilo
que, supostamente, nasceu comigo. Talvez seja assim, o edifício genético é
uma obra em constante construção. (MALUF, 2015, p. 128)

Assim, vê-se que a escrita serve, pois, como um elemento de conciliação, e a


autoficção é aqui vista, então, sob uma outra perspectiva: como um interesse primeiro,
quase necessário à existência. O contato com o avô parece ser selado ao final do romance,
e Marcelo parece conseguir pertencer ao seu entorno e entender, finalmente, a
importância de seu passado. Vemos, finalmente, que a identidade de um sujeito não nasce
pronta, mas passa por um longo processo até que esteja formada. a última parte do
romance, portanto, vemos como a escrita serviu como elo entre neto, avô e história.

“Eu já não tenho mais medo de você. Estou livre!” Não compreendo para quem
Assaad dirige suas palavras. Sua euforia é de um jovem militante. Assaad
parece um herói resistindo às forças inimigas do opressor. Nunca o tinha visto
em tão bom estado, tinha o entusiasmo de um guerreiro. Seguimos viagem por
mais umas três ou quatro horas, o silêncio só é violado por uma melodia
cantada em árabe por Assaad. Sua imagem oscila como se fosse um holograma.
Não há mais muito tempo para ele. Logo não estará mais aqui. Mas não posso
chegar ao fim sem a sua companhia. Precisamos estar juntos nessa jornada, a

1965
única que poderemos seguir lado a lado. Avô e neto. Agora até sinto meu avô
como alguém íntimo e familiar. (MALUF, 2015, p. 142)

Conclusão
O presente trabalho buscou visualizar a imensidão íntima dos carneiros sob a
perspectiva da autoficção. Nesse sentido, primeiramente, observou-se como o romance é
amplo em possibilidades de abordagens, de modo que o presente ensaio propõe uma uma
ramificação das múltiplas abordagens possível, e mesmo dentro desse caminho, não
buscamos esgotar a questão. Com este objetivo posto, então, concluímos que A imensidão
íntima dos Carneiros trata-se de um romance de autoficção, uma vez que baseia-se em
acontecimentos reais, mas é autônomo deles, posto que trata-se de uma obra ficcional.
Apesar de conter elementos comuns com o universo real, o romance não fica contido
nesse e explora a criação literária de uma forma única, que une simbologia, religião,
história e memória.
Para além disso, abordou-se como o narrador do romance utiliza-se da escrita para
compreender seu passado familiar. Marcelo, ao entrar em contato com o universo do avô,
conseguiu aproximar-se de sua identidade. Assim, viu-se como a memória é social e
decorre tanto de acontecimentos vividos pelo sujeito como também por aqueles vividos
por outros, nesse caso, pela família do narrador. Com isso, observou-se que o trauma
familiar ocorrido no Líbano no século XX não ficou localizado nesse país e nesse período.
Suas consequências, a mudança da família para um local distante e as mudanças culturais
enfratadas pelo avô do narrador foram passadas a sua família a partir do silêncio, que
posteriormente se rompeu com a entrada da escrita nessa equação. Isto posto, a imensidão
íntima dos carneiros é um romance autoficcional, mas é muito mais do que isso, a medida
que a escrita serve, para os personagens, como forma de elaboração e compreensão
traumática.

Referências
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Madrid: Biblioteca Nueva, 2007.

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1967
A MULTIPLICAÇÃO E PULVERIZAÇÃO DO "EU" NA OBRA DE HELDER
MACEDO

Nayara Meneguetti Pires (UFSCar)1

Resumo: As obras do autor português Helder Macedo têm em comum o fato de questionarem a
verdade ao apagarem as fronteiras entre a realidade e a ficção e a tal aporia não escapa a própria
verdade autobiográfica. Tendo isso em vista, objetiva-se analisar a partir de um recorte focado
nas personagens Victor Marques da Costa, de Tão Longo Amor Tão Curta Vida (2013), Natália,
de Natália (2010) e Luís Garcia de Medeiros, de Partes de África (1991) a possibilidade de
Helder Macedo se fragmentar e se pulverizar em suas personagens, encontrando novas máscaras
para a escrita de si que não se limitem às ocorrências mais óbvias de autobiografia,
questionando, assim, as noções tradicionais de autoria e da própria Literatura.
Palavras-chave: Escritas de si; Helder Macedo; Literatura Portuguesa Contemporânea

Nasceu em Moçambique; foi criança em Moçambique; foi adolescente na Guiné e


em São Tomé; foi adulto em Portugal e foi exilado da ditadura Salazarista em Londres.
Helder Macedo já foi muitos: poeta, ensaísta, crítico literário – especialista em Cesário
Verde, Bernardin Ribeiro, Camões, dentre outros – e romancista desde 1991, com a
publicação de Partes de África (1991). Sua obra romanesca – da qual fazem parte, além
de Partes de África (1991), Pedro e Paula (1999), Vícios e Virtudes (2002), Sem nome
(2006), Natália (2010) e Tão longo amor, tão curta a vida (2013) – é tão multifacetada
quanto seu autor, apesar de sempre marcada pelo uso intenso de figuras de linguagem –
principalmente paradoxos – e pelo recurso à metaficcionalidade e à intertextualidade,
que tornam os sentidos fluídos, sem fixidez, tornando indecidíveis não apenas a forma,
como também as fronteiras entre a realidade e a ficção ao mesmo passo em que reflete
acerca dessas questões. Em uma panorâmica da obra de Helder Macedo, Marisa Corrêa
da Silva, afirma que essa dubiedade:

se dará por causa da radical desconstrução que Macedo efetua no estatuto de


verdade do narrador (...) esse narrador vai enredando o leitor numa rede de
tempos condicionais, de novas versões dos fatos que podem ou não serem
verdadeiras, contadas por outras personagens, de reflexões metaliterárias
sobre a ausência de limites definidos entre versão e verdade, de tal maneira
que, no final, apesar de reter um fio condutor da narrativa, o leitor sente-se
inseguro para afirmar: “foi assim”. (SILVA, 2011, p. 181)

1
Graduada em Licenciatura em Letras – Português/Inglês (UFSCar), Mestre em Estudos Literários
(PPGLit/UFSCar) e doutoranda em Estudos Literários (PPGLit/UFSCar). Contato:
meneguettipires@gmail.com.

1968
Sendo assim, no tocante às escolhas narrativas, todos os seus romances são muito
diferentes entre si, como se explorasse, de obra a obra, ao máximo, todas as
possibilidades: há, nestes romances, narradores que são autodiegéticos, narradores
heterodiegéticos e narradores homodiegéticos que podem, ou não, coincidir
nominalmente com a figura autoral. Em Partes de África (1991), por exemplo, o
narrador, chamado Helder Macedo, faz um balanço dos últimos 50 anos da história de
Portugal e da própria vida, enquanto que Natália (2010) tem como narradora a
protagonista Natália, que escreve um diário ao passo que investiga suas próprias
origens. Em Sem Nome (2006), o narrador aparenta se apagar, aos moldes da narração
objetiva típica à escola Realista, enquanto que em Pedro e Paula (1999), o narrador, em
primeira pessoa, conta história de outrem e toma o partido de sua personagem favorita.
A questão que se coloca é que independente da via escolhida, o destino é sempre o
questionamento do estatuto da verdade e que tal aporia que é instaurada diz respeito,
também, à impossibilidade da verdade biográfica. Em Pedro e Paula (1999), por
exemplo, não há certeza acerca da identidade de Paula – se filha do pai, ou se filha do
padrinho – e de sua filha – se fruto do estupro feito pelo irmão Pedro, ou se fruto do
relacionamento que estabelece com o padrinho, que pode ser seu pai. Já em Vícios e
Virtudes (2002), a identidade da personagem Joana se confunde com a figura histórica
mãe de Dom Sebastião, enquanto que, em Tão Longo Amor Tão Curta a Vida (2013), a
identidade da personagem Lênia se desdobra em duas pelas mãos do narrador. A
dúvida, todavia, não se restringe às identidades das personagens, mas atinge, sobretudo,
a própria figura autoral que, apesar de se colocar à mostra – mesmo que isso ocorra de
maneiras e em graus diversos de romance a romance – empreende um jogo de esconder-
se ao acrescer, aos dados referenciais autobiográficos, a ficção.
Vale mencionar que ao centrar nosso interesse na entrada do autor no texto, não o
tomamos ingenuamente. Sabe-se que aquele que vivenciou os fatos e aquele que narra
não coincidem, uma vez que, de acordo com Michail Bakhtin em Estética da Criação
Verbal (2010), há uma disjunção temporal entre essas categorias que ocorre inclusive
nos procedimentos de autorrepresentação, impossibilitando que sejam os mesmos
identitariamente. Munidos de tal consciência, já não é mais possível considerar o autor
nos termos em que ele era considerado antes da crítica do sujeito, ou seja, como um
autor-Deus, centro e origem de todo o significado, já que “Para além do nome próprio,

1969
da coincidência empírica, o narrador é outro, diferente daquele que protagonizou o que
vai narrar” (ARFUCH, 2010, p. 54). Tampouco podemos encará-lo nos termos de
Barthes (1988) e de Foucault (1992) a partir da ideia de um apagamento voluntário das
características individuais da figura que escreve, na qual o autor “despista todos os
signos de sua individualidade particular; a marca do escritor não é mais do que a
singularidade de sua ausência; é preciso que ele faça o papel do morto no jogo da
escrita.” (FOUCAULT, 1992, p. 32). Esse não parece ser o caso de Helder Macedo e de
uma série de romances da contemporaneidade – como Nove Noites (2004), de Bernardo
de Carvalho, ou de Delegado Tobias (2014), de Ricardo Lísias –, nos quais seus autores
não parecem estar dispostos a voluntariamente desaparecerem. Pensamos, portanto, a
problemática seguindo a esteira de Diana Klinger (2007), Leonor Arfuch (2010) e
Luciene Azevedo (2008), entendendo que a contemporaneidade, marcada pela
superexposição do eu, possibilita um retorno do autor que responde à especificidade do
presente. Falamos, aqui, de um autor que – de acordo com Luciene Azevedo (2008) – se
autoficcionaliza e mostra-se apenas o suficiente para antropofagizar a acentuada
autoexposição da intimidade da sociedade midiática, para, depois, esconder-se, por meio
da ficção, como uma forma de furtar-se à espetacularização do eu, bem como criticá-la:
trata-se de “um jogo de esconde-esconde que alude a uma visibilidade enganadora
investindo na possibilidade de confirmar se tudo (ou quase nada?), afinal, é verdade ou
não.” (AZEVEDO, 2008, p. 34). Desta maneira, mais do que preocupações com a
identificação autoral, perceber o modo como o autor se dramatiza em seus romances é
encarar tal presença como um efeito calculado que entrelaça vida e ficção e faz com que
a figura autoral seja “tão cuidadosamente construída quanto cada um dos ‘eus’ criados
no papel” (AZEVEDO, 2008, p. 43).
Tendo isso mente, objetiva-se explorar esse aspecto que, apesar de muito
proeminente e essencial à construção desse jogo dúbio entre a ficção e a realidade, é
pouco abordado pela crítica especializada: a presença irrefutável da efígie do autor, que
se insere nos romances e elide as fronteiras entre vida e ficção. Essa presença é explícita
nos narradores de romances como Partes de África (1991) ou Tão Longo Amor Tão
Curta a Vida (2013), porém, no decorrer de sua obra, é possível entrever uma série de
outras personagens e narradores que, apesar de não coincidirem nominalmente com o
autor, podem ser lidas a partir de um viés autoficcional, uma vez que ecoam

1970
intertextualmente e metaficcionalmente a personagem de si Helder Macedo por meio
dos temas que elegem como matéria ficcional – como o sonho e o duplo – e das
opiniões literárias que expressam – como quando opinam sobre o que seja a memória ou
sobre o pós-moderno –, mesmo que muitas vezes elas apareçam dissimuladas como
meros diálogos ou meras digressões que parecem nada dizer sobre a natureza do texto
em si.
Como tais proposições fazem parte de um trabalho mais extenso, no âmbito da
pesquisa de doutorado da autora na qual se pretende abordar toda a obra romanesca do
autor, procederemos aqui um recorte com o objetivo de mostrar sua validade e
pertinência, encarando as personagens Victor Marques da Costa, de Tão Longo Amor
Tão Curta Vida (2013), Natália, de Natália (2010) e Luís Garcia de Medeiros, de Partes
de África (1991), como novas máscaras encontradas por Helder Macedo para performar
sua subjetividade.
A personagem Vitor Marques da Costa, de Tão longo amor tão curta a vida, por
exemplo, ecoa a metáfora dos mapas do narrador – Helder Macedo – de Partes de
África:

Os mapas já se mudaram, trocados por outros os nomes dos sítios e mantidos


os nomes dos sítios mudados. Poderei assim mudar também os nomes
daqueles que nesses sítios existiram, as circunstâncias, as relações de família
ou de amizade, atando as pontas das várias vidas reais e imaginadas com os
nós verdadeiros dos laços fingidos. (MACEDO, 1991, p. 10/11).

Mas os mapas também poderiam ter sido, sem que então o pudesse entender e
só retrospectivamente poderia ter pensado, um exercício de livre-arbítrio que
lhe permitia preencher, como se por escolha própria, o espaço indeterminado
entre o acidente do nascimento e a inevitabilidade da morte. Pensaria
igualmente, com aquela incerteza sobre si próprio que os jovens têm por
ainda se sentirem próximos da morte de onde vieram, que ele poderia ter sido
uma das inumeráveis outras pessoas que nunca chegaram a nascer e que por
isso nunca poderão morrer, ficando eternamente a gravitar em volta de quem
não foram, como personagens de novelas.” (MACEDO, 2013, p.20)

Desta maneira, além de ser estabelecida uma relação de intertextualidade com a


própria obra, ao colocar em jogo o questionamento de quão investidas da subjetividade
do autor estão suas personagens, também acaba por colocar no centro do debate as
questões acerca da autoria e os limites entre ficção e realidade. De acordo com Teresa
Cristina Cerdeira (2014, s/p), a criação desse alterego – como ela nomeia – é uma
consciente escolha estrutural que permite, a partir da multiplicação autoral, que se conte

1971
a história da feitura de um romance. De acordo com a autora, a morte de Victor
Marques da Costa, ao final, simboliza o destino de toda personagem e de toda ficção:
existir apenas dentro dos limites do texto.
O mesmo ocorre em Natália, que escreve sob a influência do avô e de um escritor
que entrevistou – ambos muito similares à personagem de si criada por Helder nos
romances anteriores: que, por meio da metaficcionalidade, leva os leitores a
questionarem o estatuto de verdade e refletirem acerca da composição do texto. O avô
“tinha a arte do disfarce” (MACEDO, 2010, p. 13) e possuía o “inconformismo possível
de quem sabia que uma coisa pode ao mesmo tempo ser o que é e o que não é.
(MACEDO, 2010, p. 13-14)”, assim como o narrador – Helder Macedo – de Vícios e
Virtudes (2002), que assume acerca da personagem Joana: “Mas eu sabia dela o quê?
Histórias. Só histórias, ela própria me tinha dito, umas verdadeiras outras falsas, falsas e
verdadeiras ao mesmo tempo sem se poder distinguir o que era o quê.” (MACEDO,
2002, p. 217). Quanto ao escritor que influencia Natália, este parecia “querer viver em
tempos separados, no antes e no depois, como as suas personagens. Dentro e fora dos
seus livros.” (MACEDO, 2010, p. 18) e a aconselha a escrever “como se eu fosse uma
personagem de mim própria.” (MACEDO, 2010, p. 18). A forma com que Natália
encara a escrita é, portanto, análoga a do narrador autobiográfico de Partes de África
(1991), no qual os nomes do primeiro e do último capítulo – “Em que o autor se
dissocia de si próprio e desdiz o propósito de seu livro” e “Em que o autor se despede
de si próprio e reafirma o não propósito do seu livro” – revelam o processo de escrita
como um processo de construção da identidade no qual o autor precisa se dissociar de si
para se dramatizar como um “ser de papel”, para constituir sua identidade, ficando tudo
restrito ao espaço da linguagem. Ao fim, “Sobram só os mapas onde todas as ilhas são
imaginárias.” (MACEDO, 1991, p. 170): tudo é ficção.
Essas ocorrências não são gratuitas, mas implicam discutir não só o retorno do
autor no contexto contemporâneo, como as diferentes estratégias para a dissimulação da
escrita de si encontradas por Helder Macedo. Como ele afirma em um ensaio intitulado
As ficções da memória (1997), toda narrativa, por mais objetiva que se pretenda, contém
elementos autobiográficos, uma vez que de uma forma ou de outra, o autor:

continua a intervir no seu texto através da organização estrutural que lhe


confere, continua a manifestar sua subjetividade através da objetividade

1972
fictícia dos ‘fatos’ que escolheu como significativos, e continua a comentá-
los através do modo como os justapõe.” (MACEDO, 1997, p. 9).

A objetividade e o apagamento da figura autoral não passam de uma ilusão, já que

há sempre um elemento memorialista e autobiográfico implícito na seleção


desses ‘fatos significativos’ por que não há como não havê-lo, se mesmo as
situações mais fictícias são sempre a imaginação autoral de ter visto o que
não viu, se mesmo as personagens mais fictícias são sempre a memória
autoral de ter sido quem não é. (MACEDO, 1992, p. 10).

O que torna os romances de Helder Macedo especiais, entretanto, não é essa


característica – que é inerente ao ato da ficção – mas o fato de ele jogar com a própria
subjetividade, obrigando-nos a repensar a forma como a tradição literária encarou tais
questões.
De acordo com Luciene Azevedo (2007, p. 48): “a exacerbação do que pode
parecer mero confessionalismo pode assumir a polifonia de inúmeras posições de
sujeito encenadas por uma interioridade selvagem que desdobra-se em personagens,
papéis.”, que, neste caso, nem sempre estarão demarcados pelo nome próprio. Mapas
com nomes trocados, portanto. O que ocorre é que “a linearidade da trajetória da vida
estoura em benefício de uma rede de possíveis formas ficcionais” (KLINGER, 2007, p.
53), abrindo espaço para uma exploração que excede o sujeito biográfico e se dramatiza
não só baseado naquilo que é, mas no que poderia ter sido.
Essa discussão se torna muito mais urgente ao se considerar a personagem Luiz
Garcia de Medeiros, de Partes de África, que além de ser responsável por um dos
capítulos do romance, em uma narrativa independente a ele, possui livro publicado.
Neste livro, intitulado “Noites” e lançado em 1998, há uma carta do escritor Herberto
Helder que visa tentar determinar quem seja Luiz Garcia de Medeiros e na qual ele
afirma que o que sustentava a existência dessa personagem “era o especial
envolvimento de Helder Macedo, José Sebag e eu próprio.” (MEDEIROS, 1998, p. 27).
Vida e ficção estão entrelaçadas de tal forma na gênese dessa personagem, que Marisa
Corrêa da Silva (2011, p. 38) afirma que ela seria “uma espécie de heterônimo coletivo”
de Helder Macedo, Herberto Helder e José Sebag. Mais do que isso, durante dissertação
de mestrado, foi possível concluir que ele é, ambiguamente, também uma espécie de
ortônimo fictício, no qual se perde e se desestabiliza, por conta da ambiguidade da

1973
origem do discurso, as fronteiras entre criador e criatura: “Medeiros foi o nosso mestre
ou o nosso aluno tortuoso?” (MEDEIROS, 1998, p. 30).
Apesar de termos feito aqui um recorte e de a pesquisa ainda se encontrar em seus
estágios iniciais, é pungente a forma como Helder Macedo brinca com a própria
subjetividade e com a noção de autoria, conscientemente transmutando as formas de
fingimento de si ao se multiplicar e se pulverizar nas próprias personagens que cria.
Tais procedimentos são essenciais para a compreensão de sua obra, não só por
desvelarem a possibilidade de lê-la como um conjunto que constantemente aponta para
si mesmo, mas também por corroborar e intensificar o apagamento das fronteiras entre
ficção e realidade. Em obras tão plurissignificativas – e inconclusivas – como as de
Helder Macedo, é preciso investir nas possibilidades, evitar que se firmem conclusões e
se desvencilhar de termos apocalípticos como “morte do autor” ou “fim da narrativa”.
Seus romances apontam menos para o fato de que seja impossível narrar, como parte da
crítica afirma, e mais para o fato de que os relatos só são possíveis a partir de sua
incompletude e indefinição, visto ser esse o único modo de narrar a complexidade da
contemporaneidade. Como postula Nestor García Canclini em A sociedade sem relato:

Quando falo em sociedade sem relato não quero dizer que faltem relatos,
como no pós-modernismo que criticou as metanarrativas; refiro-me a
condição histórica na qual nenhum relato organiza a diversidade em um
mundo cuja interdependência leva muitos a sentirem falta dessa estruturação.
(CANCLINI, 2012, p. 25-26)

Nesse sentido, os estudos da escrita de si na contemporaneidade muito ganham ao


se pensar no conceito de “arquivo” tal qual o coloca o Indicionário do Contemporâneo
(2018), ou seja, do arquivo contemporâneo que enfrenta a tensão entre ordem e
desordem maquiada pelo espírito positivista do modernismo, superando a noção
teleológica de história para trabalhar com os espectros, com os rastros, com as ruínas e
pensando a si mesmo na relação com o outro e com o coletivo. Sempre entre a
necessidade e a impossibilidade de decifração de si:

Se aquele que coleciona existe na tensão entre a ordem e a desordem, aquele


que lembra também. Existir na tensão e no trânsito é condição proposta pelo
arquivo contemporâneo, um amontoado que nos junta, que nos envia para
fora de nós mesmos, nos endereça e dilacera para nos aproximar da alteridade
que ao mesmo tempo nos institui e destitui. Se há arquivo, não estamos sós.

1974
Se há arquivo, há outro espaço e outro tempo: o da contemporaneidade.
(CÁMARA; KLINGER; PEDROSA; WOLFF, 2018, p. 50)

De acordo novamente com Canclini, hoje "Desconfiguram-se os programas que


diferenciam realidade e ficção, verdade e simulacro. (...) as simulações aparecem
diariamente em todas as seções dos periódicos” (CANCLINI, 2008, p. 27). Estaríamos,
portanto, num momento de arte pós-autônoma, no qual a arte encontra-se, também, fora
de si e relaciona-se com o real, confundindo-se com ele e obrigando-nos a reconhecer
que, agora, os objetos são outros. Por esta razão há, hoje, a impossibilidade de relatos
totalizantes, todavia isso não significa que seja impossível narrar: não se busca uma
integração feliz das ambiguidades, mas sim manter viva a interrogação acerca da
incontingência da arte, visto não haver relato que conjure esta tensão. “Mais ainda: a
arte parece existir enquanto a tensão fica irresoluta” (CANCLINI, 2008, p. 54). Da
mesma forma, não há mais como pensar na subjetividade como categoria fechada em si
mesma e que não seria afetada por tal conjuntura. Na própria construção da identidade é
preciso estar “fora de si”, lidando com as tensões entre o real e o ficcional, entre a
ordem e a desordem, entre a identidade e a alteridade num processo infindável. A ordem
e a sanha de categorizar e etiquetar o mundo – próprias ao moderno – hoje implode em
benefício da consciência de que tudo se interconecta e se relaciona.
Nesse contexto, da arte fora de si, esperar uma narrativa com começo, meio e fim
– que dê finais e os explique, narrativas teológicas – é se pautar em uma noção de
mundo que ainda preza por discursos decisivos e completos. Se o próprio narrador
mostra-se ciente nos romances da impossibilidade de fechamento, jogando com a
própria subjetividade, porque continuar analisando-os segundo esses critérios? Pelo
contrário, os procedimentos narrativos adotados nos romances macedianos, ao
estimularem a inserção de discussões acerca da autoria, da impossibilidade da verdade
biográfica e até mesmo da própria Literatura, incutem a consciência de que narrar a
contemporaneidade é narrar suas descontinuidades e incompletudes em uma forma que
dê conta disso. Olhar para as estratégias de fingimento de si nestes romances desvelam
uma visão muito específica de Helder Macedo acerca da Literatura: que, ao invés de
desnarrar, talvez a única forma de narrar possível seja por meio de espectros e rastros,
arremessando-se para fora de si mesmo direto para o papel.

1975
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1977
AUTORES SIMULADOS E/OU LEITORES EM BUSCA DE AUTORES

Renan Augusto Ferreira Bolognin (Unesp)1

Resumo: A menção à figura autoral, como indivíduo empírico, se intersecciona com seu
homônimo fictício em alguns textos literários brasileiros contemporâneos. Aliado a essa
intersecção, esses livros recorrem a rastros biográficos dos autores, ocasionando no leitor uma
obsessão pela busca de quais fragmentos das narrativas são biográficos e quais são fictícios.
Como complicadores dessas tramas, nesses textos há inserções de fotografias de arquivos
privados e sua expansão – de modo a complementarem-se e/ou a complicarem-se – a outros
meios e gêneros discursivos. Sendo assim, propomos neste artigo uma discussão fronteiriça,
balizando nossos argumentos em diálogos que (tentam) aplainar teoria, literatura e análise.
Palavras-chave: Simulacros; Literatura expandida; Fotografia.

Exórdio
O autor e sua manifestação tem sido há muito debate nas artes. Sua importância
vital foi estabelecida a priori pelo historiador de arte renascentista Giorgio Vasari no
livro que escrevera sobre a “Vida” dos pintores renascentistas de quem era
contemporâneo, segundo Georges Didi-Hubermann em Diante da imagem (2017). Os
estudos literários, como sabemos, contam com um arsenal teórico diversificado a esse
respeito. Remontamos, sobretudo, às discussões de Michel Foucault (1969) e à autoria
como uma função e a seus desdobramentos distintos ao longo da história Ocidental. Ou
à morte autoral, decretada por Roland Barthes (1968). Ou mais, aos consagrados
estudos biográficos, de Philippe Lejeune (2008), basilares para o pontapé inicial da
escrita autoficcional do romance Fils (1977), de Serge Dubrovski.
A esse respeito, este artigo se interessa em analisar brevemente a obras de três
autores distintos e idiossincrasias relativas aos simulacros e simulações contidos em
seus textos. Diante disso, cabe citar os autores e as respectivas obras: Nove noites
(2002), de Bernardo Carvalho; Rremembranças da menina de rua morta nua (2006), de
Valêncio Xavier; e Divórcio (2013), de Ricardo Lísias2. Nestes textos literários, a
manifestação de seus simulacros e de suas simulações é estabelecida sobretudo na
articulação com as fotografias e menções a seus nomes.
A infiltração da vida biográfica dos autores se envolve nestes livros, a nosso ver, à
noção de expansão deste campo dos estudos literários, bem como de outros campos do

1
Graduado em Letras (UFSCar), Mestre em Estudos de Literatura (UFSCar), Doutorando em Estudos
Literários (UNESP/PPGELI), Bolsista Capes Processo 88882.180346/2007-0, Professor substituto de
Literaturas de Língua Espanhola (UFSCar). Contato: renanbolognin@hotmail.com.
2
A partir deste ponto, nos referiremos a estes livros pelas siglas: NN, R e D.

1978
conhecimento e atividade humanos (GARRAMUÑO, 2004). Tais contaminações em
campos distintos, nos levou a considerar a ficção expandindo-se em direção à figura
autoral empírica. Como se a biografia dos autores supracitados se contaminasse pelos
livros que escreveram. Para analisar esta característica comum às obras dos três
escritores, dialogamos com os conceitos “simulacro e simulação”, da obra homônima do
filósofo francês Jacques Baudrillard (1991). No que concerne a este textos, ambos os
conceitos se entrelaçam à exposição da figura autoral ficcionalizada. De outro modo,
estes conceitos funcionam nestes textos pelas vias da autobiografia e da autoficção
abaladas e, concomitantemente, levadas a seu extremo. Para a análise dos textos, sua
aplicação é realizada a partir de três modos de funcionamentos: i. Pela menção ao nome
dos autores como personagens de suas narrativas; ii. e/ou Por fotografias de arquivos
pessoais inseridas nas narrativas; iii. e/ou Pela tensão entre biografia e ficção.

Passos metodológicos
Para que alcancemos as análises pretendidas em nossa atual pesquisa de
doutorado (denominada “Eu não estou lá: algo da prosa brasileira contemporânea e suas
fotografias” e da qual apresentamos alguns resultados de discussão teórica-analítica
neste artigo) temos nos pautado em estratégias metodológicas que não possuem como
objetivo final formular uma nova categoria na seara dos estudos autobiográficos e
autoficcionais, que já conta com material vasto, excessivo e contraditório, por vezes.
Possuímos, sim, como objetivo central demonstrar sobretudo como o uso de fotografias
nestes textos - e especialmente em narrativas contemporâneas - tem aberto frestas
representacionais que obcecam os leitores destes textos literários pela biografia dos
autores supracitados como indício de comprovação da ficção como realidade.
Tendo em vista todas as complicações dessas questões, este artigo traz alguns
resultados deste estudo monográfico que é sobre literatura, mas também fotografias,
documentos e publicações anteriores e posteriores aos textos literários mencionados.
Todas estas manifestações artísticas/documentais compõem um estudo compósito e se
encalacram aos rastros autorais e como eles se dirigem à escrita de narrativas assentadas
ao que a professora argentina Diana Klinger (2015) chama acuradamente de
constelações biográficas. Em linhas gerais, a formação de um firmamento ficcional e

1979
autoral constituído por inúmeros indícios biográficos que levam à constituição de um
autor simulado. Um pouco personagem fictício, um pouco autor empírico.
Não por acaso, nossa metodologia avança em direção aos estudos performáticos
desta simulação autoral. Fincamos nossas bases teóricas a esse respeito, principalmente,
na profa. Luciene Azevedo e em sua proposição a respeito destes textos literários
pertencentes a autores como curadores. Uma estética, portanto, de montagem, seleção e
recorte. O avanço teórico de seu debate deve partir para a discussão de como uma
compilação de indícios biográficos pensada curatorialmente implica na integração do
texto literário a outros campos, tal qual uma “Máquina performática” (2017) - livro
homônimo de Gonzalo Aguilar e Mário Cámara - que avança para outros campos do
conhecimento. Na encruzilhada em que estes livros se encontram deriva um prisma
metodológico, que requere uma aproximação interdisciplinar ao material trabalho. Neste
caso, propomos uma viagem de conceitos de campos distintos do conhecimento,
propugnada pela estudiosa holandesa Mieke Bal (2002). Para isso, propõe-se uma
viagem dos conceitos fotográficos barthersianos aos de focalização, de Gérard Genette
(1995) e da própria Mieke Bal (1990). Antes que um conceito rígido, a focalização dos
narradores dos textos do corpus deve ser verificável como ponto de vista de um olhar
dirigido ao texto literário e às suas fotografias e constituído por leituras do punctum não
apenas como integrante da fotografia, mas como o olhar dirigido ao texto punge os
personagens das narrativas pela visão/focalização dos leitores sócio, política e
historicamente. Nesse ínterim, o olhar dirigido pelo leitor em direção ao texto, aos
autores simulados e aos personagens da narrativa também abarca outras viagens em
direção ao extratextual, ou a seu entorno. Em dupla acepção, desde um dado externo em
conversão para interno (CANDIDO, 2006). Ou mesmo como este mesmo dado interno
constitui a posteriori o externo, formando a sociedade (CANCLINI, 2016).
Caracteristicamente interdisciplinares, estes textos inespecíficos merecem uma
atenção metodológica diferenciada. Para analisar objetos como estes, são imperativas a
enumeração e a descrição dos passos tomados para uma análise (algo que,
desafortunadamente, pouco se discute em crítica literária). Para isso, viajamos da
análise fotográfica e de seus passos sugeridos por Joan Fontcuberta (2012) para levantar
uma metodologia viajante capaz de suplantar a análise destes objetos literário-
fotográficos. Eis os passos, sumariamente: i. Semiológico, considerando os signos

1980
fotográficos para análise; e ii. Temático, tomando as bases sociohistóricas subjacentes
como prioritárias na análise. Tendo em vista a viagem da focalização ao campo
fotográfico e do punctum barthesiano para o literário, da incorporação de ambos os
passos propomos uma síntese semiológico-temática com a integração das categorias
fronteiriças chamadas narratário e leitores. De outro modo, esta viagem de conceitos e
de imersão do leitor no texto e das biografias autorais tensionadas direciona a leitura
deles a outros paradigmas analíticos. Por fim, outro procedimento metodológico deve
levar em conta o processo semiológico-temático de constituição de um olhar construído
histórica-semiologicamente e localizado na inespecificidade literatura-fotografia. A
formação de um olhar leitor se dirige sociohistoricamente.
Para levantar esta proposição metodológica e analisar os textos sob o viés do
simulacro, inspiramo-nos na “História dos Olhares”, sugerida como disciplina a ser
criada por Roland Barthes (2012). Assim, o caminho da viagem empreendido pelo
pesquisador de textos desta inespecificidade se mostra como um balanço de forças
constituído historicamente para explicar a maneira pela qual semiologicamente algumas
obras inespecíficas são vistas distintamente em determinados períodos sóciohistóricos.
Neste caso, o olhar, do leitor - incluindo a nossa - como particularidade inerente aos
textos do corpus e suas dúvidas tocantes à infiltração de autores simulacros e simulados
por meio de fotografia, em oposição a outros textos que, ao longo dos séculos XIX e
XX não se dedicaram a esta prática inespecífica3.

Proposição teórica
A concepção de autor adquire contornos interessantes nas três obra, embora
novidades ou consolidações de procedimentos estéticos em torno aos conceitos
movediços de biografia, autobiografia, autoficção e similares não são, de modo algum,
originais: o hibridismo e a fluidez constituem o elixir fundamental de narrativas
apoiadas na intimidade própria e/ou alheia. A estudiosa argentina e professora da
Universidade Federal Fluminense Diana Irene Klinger alinhavou em sua tese intitulada
“Escritas de si, escritas do outro: e a escrita de si e a virada etnográfica” resultados

3
Entre estes, vale mencionar alguns: Bruges la morte (1892), de Georges Rodenbach; Nadja (1928), de
André Bréton; Orlando (1928), de Virginia Woolf; Paranoia (1963), de Ricardo Piva; Austerlitz (2001),
de WG Sebald; Estação Carandiru (1999), de Dráuzio Varella; Istambul (2000), de Orhan Pamuk;
Histórias reais (2009), de Sophie Calle, La vida descalzo (2011), de Alan Pauls; entre outros.

1981
expressivos e enriquecedores sobre estes conceitos movediços ao centrar-se nas obras
de Fernando Vallejo, Bernardo Carvalho e Washington Cucurto com o intuito de
demonstrar o que perpassa a escrita ficcional destes autores com marcas de suas
vivências. Acoplamos a esta tese/livro anterior, O retorno do real, de Hal Foster (2017),
referente a um levantamento e análise bibliográfica e artística exaustivas a respeito das
tendências estéticas rechaçadas no alto-modernismo europeu que eclodiram sobretudo
com o término da 2nda Grande Guerra e incidiram na consolidação da arte minimalista
e pop (destacando-se esta última sob a batuta e genialidade do artista estadunidense
Andy Warhol). A partir de então, a representação do real ganhou contornos mais
palpáveis e tangíveis aos olhos do espectador. Para Foster, é este o lastro de pólvora
para o qual os olhos do espectador e do artista seguirão. A obra de arte, portanto, finca
sua bandeira na autonomia de um campo que se consolida e se distancia do extratextual
e do linguístico. Em outras palavras, este movimento de consolidação da obra de arte
como campo artístico foi o responsável pelo reposicionamento de sua presença na vida
corrente. Em oposição a tal consolidação do campo, a arte que servia-se de objetos e
fatos, em diáspora para as problemáticas relações com o real foi reprimida nos artistas
do alto-modernismo do início do século XX.
No caso fotográfico, Joan Fontcuberta (2012) professa que, em relação às
fotografias do século XIX, as do século XX avançaram em direção ao alargamento do
sujeito representado e no questionamento em torno à fatualidade de sua representação, o
que se coaduna com a perspectiva sociohistórica de Hal Foster. Com o avanço dos
estudos psicanalistas, marxistas, e da teoria da relatividade no início século XX, a
dimensão subjetiva do homem se aproximou da fotografia, diminuindo a largueza e a
vastidão dos grandes campos e cidades europeus da fotografia do século anterior como
uma tentava de representação ipsis imago. Não gratuitamente, Adolfo Montejo Navas
(2017) sustenta que da fotografia emanam as vicissitudes do modernismo e das crises de
seus valores na pós-modernidade. Representativo disso é como o ready made
duchampiano, a realidade e suas múltiplas representações se discutiram - pelo aparato
fotográfico - ao longo dos séculos XX e XXI.
Unir estes pontos em comum de representações do real apontadas na fotografia
contemporânea e/ou mesmo nos livros (de literatura ou de fotos), demonstram a
importância gradual do sujeito ao longo dos anos na composição de uma imagem. Se os

1982
ready mades parecem colados ao real e provocam emoções distintas ao espectador que
os vê em um galeria de arte, por que não aprofundarmos o mesmo sentimento (pensando
hermeneuticamente) decorrente do olhar que um homem/mulher dos anos 90 poderia ter
em relação aos anos 10 e 20 do século em relação a fotografias pessoais postadas na
internet?
No mais, a tendência apontada por Hal Foster (2017) pode ser facilmente
entrelaçada à explosão bibliográfica de biografias, autobiografias, autoficções,
testemunhos, diários e outros gêneros confessionais. Se considerarmos os estudos de
Beatriz Sarlo (2005) a respeito dos períodos de repressão das liberdades individuais na
Argentina do século XX (na qual podemos incluir uma vasta literatura a esse respeito
produzida na América Latina) e a vazão dada a uma inúmera escrita de testemunhos,
bem como de romances diaspóricos alinhados em uma ficção com nódoas das opressões
vividas por personagens históricos neste período ditatorial.
Em relação aos três romances deste artigo, o olhar constituído em nosso período
histórico - gradualmente construído, embora não rígido – demonstra a influência dos
meios de comunicação e tecnológicos para a criação de simulacros (BAUDRILLARD,
1981) dos autores como responsáveis por esboroar as estruturas de gêneros como o da
escrita etnográfica (em Nove noites); da notícia televisiva/jornalística (em
Rremembranças da menina de rua morta nua); e do álbum de família/as redes sociais
(em Divórcio). Além daqueles híbridos que não cabem na nossa sede por etiquetações,
como a professora Leonor Arfuch (2010) parece indicar no prefácio de seu conhecido
livro “O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea”, estes gêneros são
extremamente expansíveis pelos meios de comunicação e tecnológicos do século XXI.
Para estudar este procedimento, a tese da autoria contemporânea como curadoria, citada
anteriormente, de Luciene Azevedo (2016, p.3) alicerça uma resposta em torno a isso
como “[...] modos de exposição de si na cena cultural do presente”.
Esta escolha estética é comum entre esses autores, embora trabalhada para fins
distintos. Emerge desse processo criativo uma “Dupla exposição” (2016), como o título
do livro de Paloma Vidal e Elisa Pessoa. Entre a necessidade e a obrigação de expor-se,
a humanidade contemporânea passa se balança nesta dicotomia. Em NN a exposição se
organiza como um trabalho realizado pelo narrador com a documentação pesquisada
para a escrita do romance. No entanto, sua importância somente aparece quando

1983
sabemos que sua gênese é um recorte e reformulação dos textos “Paixão etnológica”, de
Mariza Corrêa, e dos Cadernos da Pagu - também de Mariza Corrêa e, dessa vez,
acompanhada por Januária Mello. Bernardo Carvalho e/ou o narrador fictício do
romance tentam deslocar o azo da imaginação da documentação etnográfica. Já em R,
há simulação da mercantilização e/ou trato exótico dado às camadas baixas brasileiras
por meio da televisão e jornais brasileiros dos anos 90. A inserção do autor é sugerida
pelas mãos do editor que organiza toda a documentação e acidula os procedimentos de
construção estética da mídia brasileira alegoricamente como uma ficção. Já D retrata
diversos questionamentos éticos em torno à referência a pessoas reais e a personagens
fictícios como o cerne da construção estética da obra.
Em outras palavras, textos narrativos e poéticos escritos por estes autores mescla
fragmentos supostamente próprios, por vezes, implícitos com a ficção escrita. De
alguma forma, trata-se de uma estética muito elaborada e rebuscada, embora com certa
severidade estrutural. Um programa narrativo rígido que entrelaça demasiadamente
forte os signos extras e intralinguísticos constituintes da vida com a ficção que lemos.
Portanto, não se pode esquecer de maneira alguma que “[...] se o eu é um narrador [...] a
[narrativa] constitui” (SIBILIA, 2016, p. 59). Posicionadas em um interregno
inconclusivo, a solução de dilemas irresolvíveis destas narrativas apontam para o “eu”
que, por vezes, quer-se silenciado. Por outras, exposto em carne e osso.

Autores simulados e/ou leitores em busca de autores


A focalização do narrador de NN não expõe claramente sua posição
socioeconômica em relação às etnias narradas e o porquê (ao que parece) de ancorar sua
pesquisa/obsessão e identificação ao antropólogo norte-americano Buell Halvor Quain.
No mais, a dedicatória do livro a Mariza Corrêa parece um dos subterfúgios de desvio
de atenção a este personagem histórico. Expandindo a leitura do romance, descobrimos
que Mariza Corrêa deu, aparentemente, o pontapé à escrita de NN com uma resenha
escrita para a Folha de São Paulo, em 2001, a respeito de antropólogos/etnólogos que
vieram ao Brasil estudar nossas tribos indígenas no início do século. Além dessa
resenha, em 2008 a autora e Januária de Mello escreveram pelo Cadernos da Pagu, da
Unicamp, o livro “Querida Heloísa/dear Heloísa: Cartas de campo a Heloísa Alberto
Torres”. Este documento expande, a nosso ver, o romance à escrita

1984
etnográfica/documental, pois contém vários documentos contidos no romance
carvalheano, além de referir-se ao escritor na seção de agradecimentos. A vinculação do
narrador do romance com Bernardo Carvalho, como ambos sendo os realizadores de
pesquisas em busca de Buell Halvor Quain, incidem na constituição deste simulacro
como sintomática ao lermos a última orelha do romance e vermos uma fotografia
legendada como “O autor aos seis anos no Xingu” como propiciadora da simulação
deste autor como personagem de sua ficção e vice-versa.
R possui uma breve menção à presença de Valêncio Xavier na narrativa,
apregoando procedimentos estéticos que tendem a silenciar a voz narrativa por meio da
colagem de fragmentos. Sugerimos enxergar o hibridismo de objetos constitutivos deste
romance gráfico como uma série de vitrais da mídia contemporânea. Clamando
descaradamente ao leitor para ver e ler de politicamente o funcionamento semiológico
dos programas de televisão brasileiros e dos jornais cotidianos. Propomos a leitura deste
texto encaminhada na direção contrária ao discurso direto do narrador heterodiegético e
editor da narrativa, pois Valêncio Xavier é ficcionalizado como uma voz ecoando
através das colagens e apropriações realizadas. Reside neste ponto, a exploração do
olhar do espectador contemporâneo à luz de fotografias de matérias de jornal e jornais
televisivos. As apropriações de Valêncio mostram e exigem ao narratário dar-se conta
da manipulação midiática à qual os olhos do homem do tempo presente estão colados.
Sua estética de presença autoral parece desentranhar a conta-gotas como o
procedimento estético escolhido necessita de uma interpretação sobre a obra e a estética
para retirar os significados dos subterrâneos dessa narrativa. Os medievalistas sabem
melhor do que nós que na hermenêutica cristã de Santo Agostinho encontramos Deus no
fundo de toda escrita como significado de toda simbologia e alegoria. Nos textos de
Valêncio, ele é Deus satirizando a representação da realidade forjada pelos meios de
comunicação contemporâneos.
D possui artimanhas requintadas no tocante à exposição alheia e abeira-se a
imbróglios éticos delicados. Esta exposição se refere a uma proposta artística
interseccionada a resquícios da biografia (fictícia?) do autor e um enredo que se quer
fictício. Ao expor fatos, acontecimentos e nomes próprios pertencentes ao mundo real –
ou não necessariamente - D pode ser interpretado na oscilação de realidade e ficção.
Quer dizer, uma debandada da consolidação desses dois termos recai nessa obra (e em

1985
outras de Lísias) e se dissolve. Neste romance, o personagem Ricardo Lísias, “em carne
viva” devido seu recente divórcio, expõe fragmentos do diário da ex-esposa. Esta
exposição, ainda que seja a do outro e discuta o direito de expô-lo (ou não), é realizada
pelo personagem homônimo ao autor. Ricardo Lísias personagem é o demiurgo da
diegese, embora esta estruturação visceral do romance tenha sido vista por alguns
leitores como vida biográfica do autor. Para complicar a expansão dessa narrativa, ao
longo do texto acompanhamos uma série de fotografias pertencentes, aparentemente, ao
autor empírico e que, obviamente, ganham carga ficcional quando postas no livro. Por
fim, o romance do autor no ano de seu lançamento, 2013, ganhou várias publicações no
facebook pessoal do escritor, sugerindo desse modo (e voluntariamente, pensamos) a
criação de um simulacro do autor, que ora encontramos na leitura de seus livros, ora em
suas redes sociais, ora confundimos com o homem de carne e osso.
O “eu” indica cada vez mais a espetacularização de si mesmo como inerente à sua
existência. Segundo Paula Sibilia (2016), o “eu” nunca foi tão cultuado e cultivado em
toda a história da civilização Ocidental como atualmente. Paragrafando a escrita
iluminista e a função de o ser humano conhecer-se, diríamos que escritas como estas
têm em vista conhecer-se como sinônimo de tornar-se conhecido. Em relação à
autoficção, para Diana Klinger, ela está: “[...] no coração do paradoxo deste final de
século XX: entre o desejo narcisista de falar de si e o reconhecimento da
impossibilidade de exprimir uma ‘verdade’ não restrita” (2012, p. 22).
Independentemente dos valores éticos imputados (ou não) na vida alheia ao narrar a
própria vida. Repousa, justamente, na luta entre os dois sistemas, o literário e o
fotográfico, o não especular em ambas as representações artísticas abarcam essa, mas o
especulativo, segundo Joan Fontcuberta (2012, p. 63). E adicionamos: há também o
espetacularizado.
Como uma máscara mortuária, simulacro, as exposições destes eu aproximam-se
da definição de Sylvia Molloy sobre a autobiografia como uma prosopopeia, uma
máscara textual. A “verdade” posta entre aspas pela autora se deve ao esvaziamento
deste conceito para a construção deste pensamento basilar na cultura Ocidental
desmantelado pela autoficção. O desejo narcisista, na verdade irrestrito e na
autobiografia prosopopeia de ditas exposições, redirecionou o olhar do homem
contemporâneo para além da fractalidade: para a sua exposição e necessidade.

1986
No que diz respeito a esse modo de olhar (novo?), a desconstrução do conceito de
verdade e sua manifestação múltipla no mundo contemporâneo é medular. Nessa
situação, a verdade à qual presumia a realidade (tal qual se deu na desconstrução da
própria fotografia e de sua imagem como substancialmente afixada na representação
documental) transferiu-se ao campo dos simulacros (BAUDRILLARD, 1991), por meio
dos quais a humanidade tem substituído seus pensamentos e sentimentos mais íntimos.
De resto, estes simulacros não são apenas nocivos à sociedade, servindo como anteparo
que enganaria os homens em torno do que seria a realidade e mantendo-os cativos em
uma caverna em que não se encontra a realidade e a verdade, tal como na alegórica
caverna de Platão.
Os simulacros destes autores constatam a expansão e o alargamento de reflexões
em torno às imagens usadas pela humanidade do tempo presente, bem como da
inoculação de fantasias nelas. Sinônimas também de sua aliança estreita às tecnologias
contemporâneas e como ela ultrapassam o pessimismo baudrillardiano de criação de
hiper-realidades alienantes. De maneira Agambiana (1998), digamos que os simulacros
destes autores permitem ver as trevas em meio à luz.

Considerações finais
A construção autoral (guardadas as proporções e ressalvas sobre a estética de cada
um dos autores estudados) pareceu sempre amparada no limiar realidade/ficção. Com
uma breve revisão bibliográfica em torno a esse amparo no período contemporâneo,
notamos que o conceito de autor tem sentidos diaspóricos a outras artes e a outros
campos devido a uma possível manifestação fictícia, ainda que involucrada no real. De
outro modo, digamos que os autores contemporâneos citados neste artigo se dedicaram
aos simulacros autorais com maestria. Isso nos serve como argumento para
desenvolvermos uma pesquisa posterior em torno ao que chamamos de um autor-
simulado, que não está lá, mas utiliza os recursos da máquina artística para construírem-
se nos meandros da ficção e da realidade. Estes simulacros envolvem questões
pertinentes ao mundo contemporâneo e nos permitem questionar o uso massivo de
imagens como representação realista fidedigna, como o senso comum propala,
principalmente, sobre a fotografia. Assim, estes autores simulados propiciam debates
em torno à criação de imagens no período contemporâneo e levam os leitores a correr
em busca de soluções em torno à representação fronteiriça destes, então, personagens.

1987
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LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. 2ed. Trad. Jovita
Gernheim Noronha, Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora da UFMG,
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LUDMER, Josefina. Literaturas pós-autônomas 2.0. Revista Z-Cultural. Disponível em:
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SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. 2ed. Rio de Janeiro:
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VIDAL, Paloma; PESSOA, Elisa. Dupla exposição. Rio de Janeiro: Rocco, 2016.
XAVIER, Valêncio. Meu 7º dia: uma novella-rébus. São Paulo: edições ciências do
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XAVIER, Valêncio. Rremembranças da menina de rua morta nua. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.

1989
IDENTIDADE E AUTOFICÇÃO EM O MAL DE MONTANO, DE ENRIQUE
VILA-MATAS

Rosana Arruda de Souza (UFMT)1

Resumo: Tenho por objetivo investigar a articulação entre identidade e autoficção em O mal de
Montano, do escritor espanhol Enrique Vila-Matas. No romance, inexiste a coincidência entre
os nomes do autor e narrador-protagonista, mas este tem o mesmo ano e a mesma cidade de
nascimento do escritor. Assim, teríamos os “signos de realidade” (LEE, 2011) para a
individuação do sujeito e para a construção de uma identidade, ainda que fragmentada e dúbia.
Teríamos delineado o espaço da autoficção caracterizado por seu pacto contraditório, pois
rompe com o princípio de veracidade (pacto autobiográfico) sem aderir integralmente ao
princípio da invenção (pacto romanesco) (FAEDRICH, 2015).
Palavras-chave: Identidade; Autoficção; Individuação do sujeito

A narrativa em O mal de Montano exemplifica como a autoficção surge


justamente no seio da identidade pós-moderna, descrita por Stuart Hall. Só
relembrando, este autor pontua três concepções de identidade historicamente situadas. A
primeira propõe uma identidade estável; os fatores identitários nasciam com o sujeito e
com ele se desenvolviam. A segunda vem com o sujeito sociológico, cuja identidade se
moldaria influenciada pelas identidades do entorno. A terceira traz o sujeito pós-
moderno, envolto à fragmentação, sem ter mais a essência de antes. Elevar-se-ia o
momento de inconformidade do sujeito com sua identidade e são confrontadas as
memórias que corroboram tal identidade.
O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está
se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades,
algumas vezes contraditórias ou não resolvidas (HALL, 2005). Correspondentemente,
continua o autor,

as identidades, que compunham as paisagens sociais “lá fora” e que


asseguravam nossa conformidade subjetiva com as "necessidades"
objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultado de
mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de
identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades
culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático.
Esse processo produz o sujeito pós-moderno contextualizado como
não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente [...]

1
Graduada em Letras (UFMT), Mestre em Estudos Literários (UFMT). Contato:
rosanaarrudasouza@hotmail.com

1990
É definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume
identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não
são unificadas ao redor de um "eu" coerente (HAll, 2005, p. 12, 13).

Indagamos se nessa trama de colapso, descrita por Hall, a identidade pós-moderna


não seria um constructo de acúmulo e saturação das duas anteriores (a do sujeito
iluminista e a do sujeito sociológico), se consideramos o sujeito que, sim, não tem mais
a essência, porém vive à procura dela por meio de malfadados processos de
identificação.
Voltando ao sujeito sociológico, Hall (2005) advoga o como a identidade costura
o sujeito à estrutura; estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles
habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis. Agora, no
entanto, a identidade aparece como fator desestabilizador do sujeito e dos sistemas
culturais; é como se agora houvesse a busca por aquilo que sou, demanda outrora
ausente, pois já se nascia sendo, já se nascia sujeito essencialmente uno, com uma
identidade una e, supomos, com memórias organizadas, ainda que com a organização
proveniente de representações.
E quando a autoficção aparece, ela vem justamente como efeito de como se
conjuga a identidade na pós-modernidade. Conceituada por Serge Doubrovsky em
1977, ela afiançaria, atualmente, uma ferramenta de leitura para os casos em que o pacto
autobiográfico por si só não se faz suficiente, ou seja, a autoficção constituiria uma
tentativa de preencher as chamadas “casas cegas” deixadas por Lejeune. É possível
conceituá-la ou empregá-la às narrativas que alimentam um jogo com a identidade,
podendo haver, por exemplo, um romance declarado, mas com a identidade entre os
nomes do autor e narrador-protagonista, ou, o contrário também, uma autobiografia
declarada, mas sem a identidade entre esses nomes.
Em O mal de Montano, temos o narrador-protagonista chamado Rosário Girondo
que fala de uma doença da literatura – a literatura estaria correndo o risco de
desaparecer e as pessoas também são acometidas pela doença. Assim, o sujeito ou
perde a capacidade da escrita, tornando-se ágrafo, fato vivenciado pelo filho dele
Montano (daí o título da história):

1991
Em fins do século 20, o jovem Montano, que acabava de publicar seu
perigoso romance sobre o enigmático caso dos escritores que
renunciam a escrever, foi apanhado nas redes de sua própria ficção,
apesar de sua tendência compulsiva à escrita, e converteu-se num
escritor bloqueado, paralisado, ágrafo trágico (VILA-MATAS, 2002,
p. 13).

Ou passa a considerar que tudo que escreve e pensa já foi pensado e escrito por
outros escritores; ou se torna espécie de dicionário de citações ambulante, caso de
Rosário, quando vive a relacionar as coisas, as pessoas e as situações a trechos e
personagens da literatura:

talvez a literatura seja isto: inventar outra vida que bem poderia ser a
nossa, inventar um duplo. Ricardo Piglia diz que recompor uma
memória estranha é uma variante do duplo, mas é também uma
metáfora perfeita da experiência literária. Termino de citar Piglia e
constato que vivo rodeado de citações de livros e autores. Sou um
doente de literatura. A continuar assim, ela poderia acabar me
tragando como um boneco de palha dentro de um redemoinho, até
fazer com que eu me perca em seu território ilimitado. Asfixia-me
cada dia mais a literatura. Nos meus cinquenta anos, angustia-me
pensar que meu último destino seja me tornar um dicionário de
citações ambulante (VILA-MATAS, 2002, p. 14).

No mais, temos bastante metalinguagem na narrativa. A doença da literatura, por


exemplo, seria atribuída ao fato desta já estar cheia do gênero diário e de autobiografias,
e aí ocorre uma ironia, porque o próprio narrador desempenha a função de escritor de
diário. E, quanto à autobiografia, ausenta-se a premissa de Lejeune, pois o nome do
autor Enrique Vila-Matas em nenhum momento é citado, porém temos outros “signos
de realidade” (LEE, 2011), os quais podem chancelar se não um pacto autobiográfico,
um drible a este pacto, resultando numa autoficção. São dois os signos de realidade: o
primeiro se refere ao fato de o narrador ser também escritor e seu diário se transforma
em um romance, nomeado como O mal de Montano, ou seja, o mesmo nome da capa; o
segundo está no local e no ano de nascimento do narrador, ele nasceu em 1955,
Barcelona, coincidindo com o autor.
Então, enquanto a autobiografia afiançaria o compromisso com a identidade una e
pronta e, por tanto, com a veracidade, na autoficção, o compromisso existiria com o
processo de identificação, em que temos ainda uma identidade, mas esta vem inacabada,

1992
está sempre a se construir. E, como argumenta o próprio narrador, nesta construção
entrariam as vidas de outros escritores, de maneira que a Literatura ocorre por meio de
um grande “vampirismo”, ou parasitismo literário – expressões colocadas por Rosário
Girondo:

[...] tive a ideia de dar uma guinada neste diário, e convertendo-o, por
algum tempo, num breve dicionário que contará apenas verdades
sobre minha fragmentada vida e mostrará meu lado mais humano e,
por fim, me aproximará mais de meus leitores: um dicionário cujas
entradas viriam dadas pelos nomes dos autores de diários pessoais que
mais me interessaram ao longo de muitos anos de leitura de livros
desse gênero literário tão íntimo; alguns nomes de autores que, ao
reforçarem com suas vidas minha autobiografia, me ajudariam a
compor um retrato mais amplo e, curiosamente, mais fiel de minha
verdadeira personalidade, feita em parte com base nos diários íntimos
dos demais; que estão aí para isso, para ajudar a converter alguém, que
por si só seria um homem desarraigado de tudo, num personagem
complexo e com certo amor tímido à vida (VILA-MATAS, 2002, p.
107).

Doubrovsky (2014) afirma: das autobiografias clássicas às posteriores houve um


corte epistemológico e mesmo ontológico, que veio intervir na relação consigo mesmo.
Como um desses cortes, citamos a descoberta freudiana do inconsciente, vindo a
assinalar o fato de que o eu não é senhor de si. Assim sendo, o não domínio de si e, por
consequência, o não domínio da memória, impossibilitaria o desnudamento da vida
pretendido numa autobiografia. No máximo, os resultados são fragmentos e tal é a
artimanha de (des)organização desses fragmentos, o eu acaba por desaparecer, e a
escrita – a maneira com a qual o eu foi contado – chama mais a atenção do que o
próprio eu. Essa mesma linha de raciocínio cai sobre o propósito do narrador de O mal
de Montano, quando afirma várias vezes seu desejo de desaparecer por meio da escrita,
desse modo, ele escreve de si antes para sumir sob a escrita do que para evidenciar-se.
Isso, também, justificaria a doença literária, defendida pelo narrador-protagonista, pois
escrever de si seria adoentar-se e morrer (desaparecer) aos poucos.

[...] Talvez o que fiz foi ir me apoiando em citações de outros para


conhecer meu exíguo território particular, de subalterno com alguns
esplendores vitais, e ao mesmo tempo descobrir que nunca chegarei a
me conhecer muito a mim mesmo – porque a vida não é uma unidade
com um “centro” [...] mas em compensação, poderei ser muitas
pessoas, uma pavorosa conjunção dos mais diversos destinos e um

1993
conjunto de ecos das mais variadas procedências: um escritor
condenado, talvez, cedo ou tarde – obrigado pelas circunstâncias do
tempo que me couber viver –, a praticar, mais que o gênero
autobiográfico, o autofictício, embora torcendo para o momento dessa
condenação ainda demorar muito, e por enquanto enredando-me numa
íntima homenagem à veracidade, empenhando-me num esforço
desesperado de contar verdades sobre minha fragmentada vida, antes
de que talvez chegue a minha hora de passar para o terreno da
autoficção, na qual, sem dúvida, se não tiver saída, simularei que me
conheço mais do que na realidade conheço (VILA-MATAS, 2002, p.
124).

A autoficção se mostraria própria do tempo pós-moderno e traduziria os sujeitos


com suas identidades outras tendo a memória, ao invés de o fio organizador de tudo, o
fio a conduzir aquilo que não se pode ser, ou a conduzir algo dúbio, algo que se poderia
ser. “Sobretudo a autoficção, mas também a autobiografia e o memorialismo,
possibilitariam a multiplicação das personalidades do autor, caracterizando o gênero
como um produto do mundo pós-moderno, devido à impossibilidade de se definir uma
unidade para o sujeito” (DAMASCENO; VALLE; MORAES, 2019, p.55).
Conforme Hall (2005), a modernidade ao invés de definir-se como a experiência
de convivência com a mudança rápida, abrangente e contínua, trata-se de uma forma
altamente reflexiva de vida na qual: “as práticas sociais são constantemente examinadas
e reformadas à luz das informações recebidas sobre aquelas próprias práticas, alterando,
assim, constitutivamente, seu caráter” (GIDDENS, 1990 apud HALL, 2005, p. 15).
Outra questão, a ser apontada no romance, está na teia de alter egos (GREMSKI,
2016) tecida na história. Em certo momento, o narrador revela que seu nome se trata na
verdade de uma matrônimo, ou seja, era o nome de sua mãe e ele passou a utilizá-lo
para assinar suas obras:

Que outros se escondam em pseudônimos ou inventem heterônimos.


O meu sempre foi o matrônimo. Existe essa palavra, existe a palavra
matrônimo? Eu diria que existe tudo que se nomeia. Rosário Girondo
é como eu assino meus livros sempre, Rosário Girondo é o nome da
minha mãe. Muitas vezes tive que ouvir que era meu pseudônimo.
Não, é meu matrônimo. Quantas vezes precisarei dizê-lo Como o
nome da mãe pode ser um pseudônimo/ (VILA-MATAS, 2002, p.
126).

Vários detalhes de sua vida atravessam a vida dos demais personagens. Sua mãe,
por exemplo, também era escritora e tinha uma amiga imaginária chamada Margot

1994
Valerí, a mesma amiga imaginária de Rosário Girondo. A mãe de Montano, por sua vez,
teria se suicidado atirando-se de um prédio, o mesmo modo de suicídio que a mãe de
Rosário costumava escrever em poemas.
O maior salto narrativo, entretanto, aparece quando o narrador confessa a
inexistência de seu filho Montano, este fora apenas uma invenção sua:

há muito de autobiográfico em O mal de Montano, mas também muita


invenção. Não é verdade, por exemplo – quase não é necessário dizê-
lo –, que Rosa seja diretora de cinema. Rosa – como muitos de meus
leitores já sabem – é agente literária e, sobretudo, é minha eterna
namorada, vivemos juntos há quinze anos, não nos casamos nem no
civil, não tivemos filhos, tampouco os tivemos com terceiros. De
modo que Montano não existe (VILA-MATAS, 2002, p. 106).

A partir daí, colocamos todos os demais personagens sob a sombra da dúvida e


interrogamos se eles existiriam mesmo ou eram, também, invenção do narrador. No
trecho acima, o narrador intensifica uma sombra autobiográfica, quando afirma que “há
muito de autobiográfico em O mal de Montano”, porém, como O mal de Montano
também nomeia o romance escrito pelo narrador, resta, no trecho citado, um signo de
realidade, ou uma insinuação a atravessar ficção e realidade ao mesmo tempo.
A narrativa com o caráter autoficcional nos ajuda a compreender a identidade do
sujeito contemporâneo e o que se entende por identidade: algo fragmentado, sim, a
assegurar a anonimidade do narrador e, simultaneamente, a procurar sempre uma
essência de vida. Essa essência talvez não seja mais a do sujeito iluminista,
contemplado no primeiro conceito de Hall, mas uma essência concebida na própria
intenção de não ser. Quanto mais este sujeito vai contra a uma instancia solipsista,
manifestando, por exemplo, o seu desejo de desaparecimento, mais temos um eu muito
bem costurado, arqueado pelos valores de vida e sobrevida:

[...] se algo persegue obscuramente as páginas deste diário que


escrevo é a criação de mim mesmo e um melhoramento moral, que
busco por meio do trabalho e da reflexão sobre a precária situação de
minha vida, da vida dos outros e da vida da literatura, de que tanto
necessito para sobreviver e que no começo deste século recebe como
nunca os furiosos assaltos dos inimigos do literário.
Irei à cozinha [...], irei acompanhado pelo amigo desesperado que vai
sempre comigo, esse amigo que sou eu mesmo e que, para não cair
nas garras do maldito desespero, escreve este diário, esta história de
uma alma que procura se salvar através da sobrevivência da literatura,

1995
esta história de uma alma que tão rapidamente se faz forte e
temperada, como rapidamente sucumbe à depressão, para depois, com
muito esforço, afiançar-se, reajustar-se através do trabalho da
inteligência, em luta sempre constante contra as toupeiras do Pico
(VILA-MATAS,2002, p. 184).

Embora se advogue que o sujeito contemporâneo teria perdido sua identidade,


perdido suas raízes, a trama em análise mostra, e para isso o elemento autoficcional é
importante, não uma saída da identidade de cena, o que mudou foi a maneira com que
ela é concebida e valorada. Hall (2005) afirma a identificação como um fator
condicional para a existência de uma identidade. No caso de O mal de Montano, a
identificação se dá sempre entre o narrador e o autor, ou entre o narrador e seus alter
egos, de maneira a persistir o processo de individuação de um sujeito ou de um ser
criador da escrita, ao qual o leitor insiste a procurar.

Referências:

DAMASCENO, Carolina Duarte; VALLE, Júlio de Souza; MORAES, Ricardo Gaiotto


de Escritas de si: questões contemporâneas. In: XVI Congresso Internacional da
Abralic, 2019. Resumos dos simpósios.

DOUBROVSKY, Serge. In: NORONHA, Jovita Maria Gerheim. Ensaios sobre a


autoficção. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014, p. 111-126.

FAEDRICH, Anna. O conceito de autoficção: demarcações a partir da literatura


brasileira contemporânea. Itinerários, Araraquara, n. 40, p.45-60, jan./jun. 2015.

GREMSKI, João Felipe. A literatura como doença na obra O mal de Montano, de


Enrique Vila-Matas. Revista Versalete, Curitiba, v. 4, n. 6, p. 147-164, jan./jun. 2016.

HALL, Stuart. A identidade cultual da pós-modernidade. 10.ed. Rio de Janeiro DP&A


editora, 2005.

LEE, Henrique de Oliveira. Imaginário e drama da individuação em Yukio Mishima.


226 f. Tese de doutorado, Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da
Universidade Federal de Minas Gerais, 2011.

VILA-MATAS, Enrique. O mal de Montano. Tradução de Celso Mauro Paciornik. São


Paulo: Cosac Naify, 2005[2002].

1996
EU NÃO SOU SEU NEGRO –
A ESCRITA DO OUTRO, UMA REVELAÇÃO DE SI

Thayza Matos (UnB)1

Resumo: O documentário I am not your negro foi dirigido e produzido pelo cineasta
Raoul Peck em 2016 e apresenta, pelas das palavras do escritor James Baldwin,
reflexões sobre os sujeitos negros nos Estados Unidos. A partir de um manuscrito
inacabado de Baldwin, intitulado Notes Toward Remember This House, Peck mergulha
na obra do escritor buscando a essência de sua obra, a fim de transformar a narrativa
inacabada em uma narrativa cinematográfica singular. Observamos que, no produto
final – o documentário –, há um duplo movimento de escritas de si, no qual Peck, ao
“escrever” sobre o outro, escreve sobre si mesmo.
Palavras-chave: Memória; História; James Baldwin; Raoul Peck; Cinema.

Em 2016, o cineasta haitiano Raoul Peck produziu e dirigiu o documentário


intitulado I am not your negro. Baseando-se no último manuscrito de James Baldwin,
Notes Toward Remember This House (1979) e nos ensaios The Devil Finds Work
(1976), No Name in the Street (1972) e fragmentos da coletânea The Cross of
Redemption (2010) Peck associa fotografias, filmagens, discursos e outras imagens com
a narração em off, feita por Samuel L. Jackson, para tecer uma obra que questiona,
assim como também o fazia Baldwin, a precariedade das condições tanto materiais
quanto imateriais dos sujeitos negros nos Estados Unidos.
O filme apresenta uma perspectiva da história dos sujeitos negros nos Estados
Unidos, conectando o passado dos movimentos dos Direitos Civis nas décadas de 50 e
60 do século XX com o recente movimento do #blacklifematters, que protesta contra a
morte de jovens negros vítimas de racismo. Peck divide o documentário sob os
subtítulos: Paying my dues, Heroes, Witness, Purity, Selling the negro, I’m not your
nigger.
O cineasta procurou retratar as posições de James Baldwin que, ao tomar ciência
dos movimentos por direitos civis em seu país natal retorna aos Estados Unidos após
uma longa temporada na França, para “cumprir com seu dever”. No início do seu
manuscrito inacabado Notes Toward Remember This House, Baldwin fala sobre como

1
Graduada em História (UEG), Mestre em História (UnB) e doutoranda em Literatura (UnB). E-mail:
thayzaa.matos@gmail.com

1997
esse retorno se tornaria urgente. Ao ver nos jornais a fotografia de Dorothy Counts, uma
das primeiras jovens negras a participar do sistema de integração racial nas escolas
estadunidenses, mais precisamente em Charlotte, Carolina do Norte, o escritor fica
chocado com a imagem e a decisão do retorno é tomada.

Figura 1: Dorothy Counts


Fonte: I am not your negro. Direção: Raoul Peck. Estados Unidos: Velvet Film. 2016. Som.
Color/Black and white. 07:26”.

Ao ter acesso à descrição de Baldwin da referida imagem, Peck retoma a fotografia


de Dorothy Counts e a utiliza no seu documentário, dando um novo peso as palavras do
escritor. Roland Barthes em A Câmera Clara (2015) disserta sobre a potencialidade da
fotografia, apontando que “o que a fotografia reproduz ao infinito o que só ocorreu uma
vez: ela repete ao infinito mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se
existencialmente” (BARTHES, 2015. p: 14). A escrita cristaliza a sensação que Baldwin
relata e a utilização dessa imagem nos permite vislumbrar, mesmo que parcialmente, as
impressões de Baldwin.

Em um primeiro tempo, a fotografia, para surpreender, fotografa o notável, mas


logo, por uma inversão conhecida, ela decreta notável aquilo que ela fotografa. O
“não importa o quê” se torna então o ponto mais sofisticado do valor
(BARTHES, 2015. p: 35).

Barthes chama de punctum o detalhe que chama a atenção para si na fotografia, e


geralmente, não está em primeiro plano, em foco. Ao observar a imagem de Counts, vemos
que o que fisga Baldwin é justamente aquilo que está fora de foco, que lhe envergonha.

1998
“Unutterable pride, tension, and anguish in that girl’s face” (BALDWIN apud PECK,
2017. p: 12) justificado por aquilo que está fora de foco na fotografia: garotos brancos que
hostilizam a entrada de uma jovem negra naquela escola, “with history, jeering, at her
back” (BALDWIN apud PECK, 2017. p: 12).
A utilização que Raoul Peck faz das fotografias e das imagens de vídeos evocam e
constroem uma presença de Baldwin que só se torna possível através da sua edição. No
capítulo intitulado “Selling the negro”, o cineasta faz uso de um recuso visual para dar
mais impacto ao discurso deferido por Baldwin em uma palestra na Universidade de
Cambridge, sobre a tomada de consciência das marcas deixadas pela escravidão no país.
No momento em que Baldwin finaliza sua fala, uma salva de palmas toma a sala e o diretor
utiliza de uma transposição da imagem do preto e branco para as cores, reforçando a
mensagem da palestra.
No momento em que o escritor se coloca de pé e se encaminha para seu lugar após a
fala, a imagem acompanhando o movimento de Baldwin saí do preto e branco – tonalidade
predominante durante toda a película – e a sala cheia de estudantes e professores se torna
colorida, evidenciando a multidão branca e destacando a presença negra de Baldwin dentro
daquele espaço.

Figura 2: Do preto e branco à cor.


Fonte: I am not your negro. Direção: Raoul Peck. Estados Unidos: Velvet Film. 2016. Som.
Color/Black and white. 59:31”.

1999
Esse efeito constrói, ao mesmo tempo, uma conotação de poder e de desconforto.
Baldwin se mostra incomodado com a intensidade das palmas e suas expressões parecem
selar um pacto entre ele, Peck e o espectador, como se tivessem consciência de que aquela
cena, imortalizada por uma filmagem, atingiria ainda, gerações por vir.

A foto é literalmente uma emanação do referente. De um corpo real, que estava


lá, partiram radiações que vêm me atingir, a mim, que estou aqui; pouco importa
a duração da transmissão; a foto do ser desaparecido vem me tocar como os raios
retardados de uma estrela. (BARTHES, 2015. p: 70)

No documentário, há uma passagem em que James Baldwin afirma, em entrevista ao


programa The Dick Cavett Show, em 1968, que sua saída dos Estados Unidos se dá após
toda uma vivência traumática em relação a própria construção do racismo e da segregação
social naquele país. Crescer no Harlem em Nova York marcou profundamente sua visão
sobre como a segregação social delimitava a vivência de seus iguais, colocando-os como
cidadãos de segunda classe.
Nascido e criado no Harlem, em Nova York, Baldwin sofreu na pele os efeitos da
segregação racial, a tal ponto que parte sem destino, chegando a França com poucos
trocados no bolso e prometendo a si mesmo nunca mais retornar à sua terra natal. Porém,
os Movimentos de Direitos Civis nos Estados Unidos ganham força no final da década de
50 e para ele, seu retorno se fazia necessário. Sua perspectiva sobre o seu retorno foi
descrita em Notes Toward Remember This House e rearticulada no documentário:

But it was on that bright afternoon that I knew I was leaving France. I could,
simply, no longer sit around in Paris discussing the Algerian and the black
American problem. Everybody else was paying their dues, and it was time I went
home and paid mine. I had at last come home. If there was, in this, some illusion,
there was also much truth. (BALDWIN apud PECK, 2017. p: 13)

Na edição do roteiro de I am not your negro, Raoul Peck nos relata como teve
acesso ao manuscrito Notes Toward Remember This House e as motivações que o
levaram a produzir o documentário. Após diversos encontros com a irmã de James
Baldwin, Glória Baldwin Karefa-Smart, ela lhe entrega o manuscrito incompleto,
afirmando que ele saberia o que fazer com aquilo.

I knew immediately. A book that was never written! That’s the story. And
what characters! Medgar Evers, Malcolm X and Martin Luther King Jr. The
notes themselves were not much to start with, but they were more than
enough, given that I also have access to everything else from Baldwin. My

2000
job was to find that unwritten book. I am not your negro is the improbable
result of that search. (PECK, 2017. p: XV)

Produzir um texto único a partir das palavras de um outro se mostra uma tarefa
árdua. Mesmo não escrevendo o livro inacabado de Baldwin, Peck nos agracia com uma
loa à extensa obra de Baldwin. Ao transitar entre entrevistas concedidas pelo autor,
discursos pronunciados em universidades, textos literários, cartas, ensaios, poemas, Peck
presentifica um Baldwin tão diverso quanto sua própria obra.
O trabalho de Peck como organizador da obra de Baldwin, ao mesmo tempo que
dava forma ao seu documentário, se assemelha ao próprio trabalho de um escritor que,
palavra por palavra, desenha o cenário, constrói as personagens, encadeia o enredo que
deseja. Sem ter uma linha de raciocínio pré-determinada, o diretor haitiano se aventurou
dentro das obras de Baldwin, buscando elementos que o possibilitasse compreender o
livro nunca acabado e apresentá-lo como documentário.
Ao realizar essa operação de montagem a partir das palavras de Baldwin,
percebemos no trabalho de Peck não só um esforço técnico, mas também uma
reconstituição da memória do próprio Peck sobre Baldwin.

I do not know of any other example of a film created strictly from the
preexisting texts of one author. Especially when the texts came from sources
as diverse as personal notes not intended for publication, letters, manuscripts,
speeches, and published books. To begin with, I was theorizing, without any
clearly defined guideline, about an inconceivable film. (PECK, 2017. p:
XVII).

Seguindo a premissa colocada no manuscrito Notes Toward Remember This


House por Baldwin, baseada em narrar a vida de seus amigos, Peck constrói um arranjo
dramático articulando o manuscrito com outros elementos que lhe permitiram executar
o filme:

I realized that without creating a first draft of a complete document, I would


not be able to advance the realization of the film. But how to create such a
text? It could not be an adaptation, or a simple compilation, let alone a
chronological narration. I needed a dramatic structure, a story with a
beginning, a middle and an end, as I would for any screenplay. Except that in
this particular case the words already existed, as if in a large jar filled with
unlabeled pieces of a precious mosaic. (PECK, 2017. p:XVII)

O precioso mosaico que Peck diz estar contido nos escritos de Baldwin se
desdobra em cenas exploradas pelo diretor, que vai fabricando seu roteiro a partir da
obra de Baldwin. O filme se inicia com uma carta que o escritor escreveu para seu

2001
editor em 1979, dando a conhecer o conteúdo de seu novo manuscrito. Nessa carta,
Baldwin expõe que iniciava uma jornada para dizer a verdade, e que não saberia o que
encontraria no percurso:

I am saying that a journey is called that because you cannot know what will
discover on the journey, what you will do with what you find, or what you
find will do to you… (BALDWIN apud PECK, 2017. p: 5)

A jornada proposta e encarada por Baldwin em dizer a sua verdade sobre a vida e
a morte de seus amigos, realmente apresenta um caráter transformador, seja para o
diretor do filme ou para o espectador que mergulhado na história contada por Peck por
meio das palavras de Baldwin pode repensar a condição dos sujeitos negros nos Estados
Unidos.
Ao apresentar as personagens que pretende narrar em Notes Toward Remember
This House, Baldwin coloca o que deseja que essas histórias revelem umas às outras. É
a partir dessa proposição que Peck articula as palavras do autor, fazendo jus ao desejo
dele, mostrando como apesar de distanciados em determinados momentos, Martin
Luther King Jr, Malcolm X e Medgar Evers tiveram suas histórias perpassadas pela
mesma necessidade: repensar o local dos sujeitos negros na sociedade estadunidense.

I want these three lives to bang against and reveal each other, as in truth, they
did… and use their dreadful journey as a means of instructing the people
whom they loved so much, who betrayed them, and for whom they gave their
lives. (BALDWIN apud PECK 2017. p: 6)

O exercício de reconstrução da memória é uma das questões abordadas na obra


Lembrar escrever esquecer (2006), de Jeanne Marie Gagnebin. Ao refletir sobre o papel
da memória na construção de um passado e consequentemente de uma história a autora
nos aponta que:
Dos poetas épicos aos escritores sobreviventes dos massacres do século XX,
passando pelos múltiplos exercícios filosóficos, sempre retomados, de
explicitação do enigma do real, a memória dos homens se constrói entre esses
dois polos: o da transmissão oral viva, mas frágil e efêmera, e o da
conservação pela escrita, inscrição que talvez perdure por mais tempo, mas
que desenha o vulto da ausência. Nem a presença viva nem a fixação pela
escritura conseguem assegurar a imortalidade; ambas, aliás, nem mesmo
garantem a certeza da duração, apenas testemunham o esplendor e a
fragilidade da existência, e do esforço de dizê-la. (GAGNEBIN, 2006. P: 11)

No documentário de Peck, a ausência a que a autora se refere, tanto na


transmissão oral quanto por meio escrito, é substituída pela construção de uma
presença. A ausência é marcada pela morte de Baldwin e daqueles que ele buscava

2002
narrar em Notes Toward Remember This House, porém, ao dar voz as palavras de
Baldwin e trazer imagens que revelam suas intenções em vida, Peck produz uma
presença única dessas personagens.
Raoul Peck credita todo o roteiro do seu longa-metragem à James Baldwin, pois
não teria utilizado nenhuma palavra que não fosse do próprio escritor. Analisando o
roteiro podemos perceber que fragmentos de diversos textos de Baldwin foram
reconfigurados para dar corpo a uma única narrativa, produzindo tanto um sentindo
quanto uma presença em seu longa-metragem.
Existe a construção de um Baldwin que se dá pela seleção feita pelo diretor. É a
memória de Peck que tenta reconstruir uma imagem de Baldwin a partir dos vestígios
deixados pelo próprio escritor. Uma memória que cria um narrador-personagem
autorizado. Narrando em primeira pessoa, a voz em off de Samuel L. Jackson, reproduz
as impressões de um momento específico da vida de Baldwin, abrindo-nos uma “janela”
para se espiar o que teria ocorrido. Phillipe Lejeune em O pacto autobiográfico (2008),
ao se propor definir os limites entre a biografia e a autobiografia e a diferença desse tipo
de narrativa das que seriam declaradamente ficcionais, afirma que:

Em oposição a todas as formas de ficção, a biografia e a autobiografia são


textos referenciais: exatamente como o discurso científico ou histórico, ele se
propõe a fornecer informações a respeito de uma realidade externa ao texto e
a se submeter, por tanto, a uma prova de verificação. Seu objetivo não é a
simples verossimilhança, mas a semelhança com o verdadeiro, não o “efeito
de real”, mas a “imagem do real”. (LEJEUNE, 2008. p: 36)

A homodiegese, constituída pela narração em primeira pessoa das biografias de


Evers, Malcolm X e Luther King evoca o sentido de referencialidade externa ao próprio
texto, produzindo aquilo que o autor chama de “imagem de real”. A sobreposição da
narração feita em I am not your negro com imagens selecionadas pelo diretor reforça
essa ideia de “imagem de real”, que sendo verificável, confere ainda ao documentário
um estatuto de verdade.
A busca por essa presença é uma busca pelo impossível. A relação que se
estabelece é o chamado de Peck ao qual Baldwin não pode responder com sua própria
voz, mas o responde por meio do legado material – discursos, vídeos, entrevistas, textos
e etc.

Por mais minimal que seja, é uma imagem dialética: portadora de uma
latência e de uma energética. Sob esse aspecto, ela exige de nós que

2003
dialetizemos nossa própria postura diante dela, que dialetizemos o que vemos
nela com o que pode, de repente – de um pano –, nos olhar nela. Ou seja,
exige que pensemos o que agarramos dela face ao que nela nos “agarra” –
face ao que nela nos deixa, em realidade, despojados. (DIDI-HUBERMAN,
2010. p: 95)

Assim, compreendemos que Peck transforma à sua maneira e com os recursos que
dispõe o livro inacabado de Baldwin numa narrativa cinematográfica que traça um
duplo movimento de recuperação memorialística de grandes figuras do movimento
negro nos Estados Unidos. Ao mesmo tempo que busca uma possível finalização da
narrativa Notes Toward Remember This House e a construção narrativa de Baldwin
sobre Martin Luther King Jr., Malcolm X e Medgar Evers, Peck redescobre o legado do
próprio Baldwin e a pungência das palavras deste.

O “eu” e o “outro”: a relação entre sujeito e arte

A Europa em seu processo de expansão marítima e subjugação das terras além-


mar modificou de forma definitiva as possibilidades de construções dos sujeitos e de
suas identidades, legando para a contemporaneidade feridas que ainda precisam ser
curadas. O processo de colonização destacou a Europa e posteriormente os Estados
Unidos como centros de civilidade e bem viver, reconhecendo a produção intelectual,
cultural, artística e política nesses lugares como paradigmas de desenvolvimento
evolutivo social.
Apesar de teorias atuais demarcarem como cada grupo social é único e possuí, por
tanto, parâmetros singulares, ainda assim a sobreposição de um certo tipo de experiência
é vivenciada no mundo contemporâneo. Gavatri Spivak em Pode o subalterno falar
(2010) parte de um esforço em problematizar como o sujeito do dito “terceiro mundo” é
representado no discurso ocidental. A autora coloca que:

Em nome do desejo, eles introduzem novamente o sujeito indizível no


discurso do poder. Foucault frequentemente parece atrelar "indivíduo" e
"sujeito" e o impacto disso em suas próprias metáforas é talvez intensificado
em seus seguidores. Devido ao poder da palavra "poder", Foucault admite
usar a "metáfora do ponto que progressivamente irradia suas adjacências".
[...] E esse ponto radiante, que anima um discurso efetivamente heliocêntrico,
preenche o espaço vazio do agente com o sol - histórico da teoria - o Sujeito
da Europa. (SPIVAK, 2010. p: 28-29)

2004
Nesse sentindo, escrever sobre o outro é também escrever sobre o si e neste
movimento a construção dos sujeitos se dá em contraposição e por complementariedade.
Para a autora, “o mais claro exemplo disponível de tal violência epistêmica é o projeto
remotamente orquestrado, vasto e heterogêneo de se constituir o sujeito colonial como
Outro” (SPIVAK, 2010. p: 47), lhe sendo legado o consistente lugar de não
pertencimento e exotismo.
A produção tanto intelectual como artística de sujeitos negros – africanos e afro
descentes – assinalada repetidamente com base na cor da pele do artista, a relega sempre
ao teor sociológico, histórico, demarcando a escrita de autores negros somente como de
“testemunho”. Tais categorizações das obras, interrompem sua potencialidade artística,
não a pensando de forma universal e sempre a classificando como “literatura negra”,
“literatura marginal”, quando reconhecido o mínimo do aspecto estético delas. Essa
questão não se restringe a um único campo da vivência, as marcas da imposição do
éthos do colonizador sobre aqueles que foram colonizados se configuram como chagas
em nossa sociedade.
Assim, a recuperação da cultura, da memória e da história de grupos que sofreram
de forma direta a colonização se coloca de forma ainda mais complexa: o apagamento
de suas narrativas que se deu pelos processos de colonização dificulta o acesso a sua
própria história. Jeanne Marie Gagnebin, no ensaio Verdade e Memória do passado
(2006), reflete, com base nos escritos de Walter Benjamim, como a história e a
historiografia são articuladas com base em determinadas perspectivas, em lembranças
que não são necessariamente manifestações daquilo que “de fato” ocorreu.

Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo 'tal como ele


propriamente foi'. Significa apoderar- se de uma lembrança tal como ela
cintila num instante de perigo. (BENJAMIM apud GAGNEBIN, p: 40)

Essa lembrança articulada como discurso de cientificidade, postulado como


verdade, elimina diversas narrativas que a contradizem ou revelam outras nuances do
passado. Daí o perigo apontado por Benjamim. Paul Ricoeur, em Tempo e Narrativa
Volume I (2010), problematiza correntes historiográficas, tanto francesas quanto
inglesas sobre os seus estatutos de verdade, frutos do fazer científico.

Essa convergência de resultados é ainda mais chamativa pelo fato de a


argumentação ser diferente. Com a historiografia francesa, o eclipse da
narrativa procede principalmente do deslocamento do objeto da história, que

2005
já não é o indivíduo atuante, mas o fato social total. Com o positivismo
lógico, o eclipse da narrativa procedo sobretudo do corte epistemológico
entre a explicação histórica e a compreensão narrativa. (RICOEUR, 2010, p:
158).

Em busca de uma pretensa verdade cientifica o caráter narrativo da história foi


relegado a uma posição secundária e o corte epistemológico do qual nos fala Ricoeur,
prezou por uma historiografia que ignora as narrativas dos colonizados em detrimento
daquela dos colonizadores. Assim, o apagamento das narrativas originais de povos que
tiveram uma migração forçada pela escravidão, nos coloca diante de lacunas ainda
inexploradas.
Por meio da arte houve a preservação de alguns desses elementos que foram
sistematicamente apagados da historiografia “oficial” e que em diálogo com a realidade
dos sujeitos que a produziram e ainda a produzem, se colocam como obras passíveis de
valoração estética e não só testemunhal. O não reconhecimento dessas narrativas como
escrituras literárias, pela inobservância tanto de seu caráter ficcional quanto do que se
refere à escrita biográfica, executa um movimento de marginalização dupla, excluindo
dos campos artísticos não somente as obras, mas também seus autores.
Assim, o que temos no documentário I am not your negro é uma dupla
recuperação da memória, partindo de Peck para Baldwin e de Baldwin para seus três
amigos. Nesse sentido, o capítulo inicial da obra, “Paying my dues” se apresenta como
um “cumprir com as obrigações” dos dois artistas para com a sua própria cultura.
Baldwin expõe como as ações discriminatórias e consequentemente violentas
produzem efeitos devastadores que acabam abalando o senso de realidade daqueles que
são subjugados.
Leaving aside all the physical facts which one can quote, leaving aside rape
or murder, leaving aside the bloody catalogue of oppression, which we are in
one way too familiar with already, what this does to the subjugated – is to
destroy his sense of reality. (BALDWIN apud PECK, 2017. p: 23)

Giorgio Agamben tece uma reflexão sobre como o contemporâneo é aquele que
“resulta da relação e, por assim dizer, do corpo a corpo entre os viventes e os
dispositivos” (AGAMBEN, 2009. p: 13) ao mesmo tempo em que “mantém fixo o seu
olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro” (AGAMBEN, 2009,
p: 62), o que na nossa perspectiva, é exatamente o que executa Baldwin e Peck, como
viventes de seu próprio tempo, sujeitos que preferem encarar e “cumprir seu dever” ao

2006
contrário de compactuar com a falta de conexão com a realidade, apontada por James
Baldwin como uma das grandes questões dos Estados Unidos.
Assim, entendemos que o ato de recuperar uma memória e de produzir uma outra
memória através da obra de arte se configura como um ato reconhecido muitas vezes na
intenção artística de sujeitos brancos e negados à artistas negros: suas escritas não são
apenas testemunhos, são um trabalho artístico.
Raoul Peck ao se propor narrar as perspectivas de Baldwin revela também um
pouco de si e suas próprias perspectivas. Demonstrado claramente na edição do
documentário, que o Movimento de Direitos Civis e a jornada de Baldwin não se
encerraram na década de 1960, ao ligar esse momento ao movimento contemporâneo
que questiona o extermínio da juventude negra sob a designação Black Life Matters. A
associação os dois movimentos feita por Peck demonstra que apesar da distância
temporal, as realidades dos sujeitos negros nos Estados Unidos ainda são determinadas
pela cor de sua pele e pela violência infligida a esses.

2007
Referências Bibliográficas

I am not your negro. Direção: Raoul Peck. Estados Unidos: Velvet Film. 2016. Som.
Color/Black and white. 93 min.
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC:
Argos, 2009.
BARTHES, Roland. A Câmara Clara: notas sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2015.
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
__________________. O Livro por Vir. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
DE MAN, Paul. A autobiografia como Des-configuração. In: Modern Language Notes,
94 (1979), 919-930.
_____________. O ponto de vista da cegueira: ensaios sobre a retórica da crítica
contemporânea. Coimbra: Angelus Novus, 1999.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha? São Paulo: Editora 34,
2010.
________________. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da
arte. São Paulo: Editora 34, 2013.
FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: O que é um autor? Lisboa: Passagens. 1992.
pp. 129-160.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2006.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença – o que o sentido não consegue
transmitir. Rio de janeiro: Contraponto, 2010.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2008.
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RAMOS, Fernão Pessoa (Org.) Teoria Contemporânea do Cinema, Volume II. São
Paulo: Editora Senac São Paulo, 2005.
____________________. Mas afinal... o que é mesmo um documentário? São Paulo:
Editora Senac São Paulo, 2008.
RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
__________________. As distâncias do cinema. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Volumes: I, II e III. Rio de Janeiro: Martins
Fontes, 2011.
SPIVAK, Gavatri. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010.
STAM, Robert. A literatura através do cinema. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.
WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: Ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo:
Ed. da Universidade de São Paulo, 1994.

2008
TRAÇOS PERFORMÁTICOS EM O NATIMORTO, DE LOURENÇO
MUTARELLI
Graziela Ramos Paes (UFJF)1

Resumo: Bastante conhecido no universo das histórias em quadrinhos, Lourenço Mutarelli


demonstrou há tempos ser um artista multifacetado – escreveu romances, textos dramatúrgicos e
atuou em peças e filmes, alguns desses, inclusive, baseados em sua obra. Destarte, proponho
aqui uma leitura do romance O natimorto – um musical silencioso (2009) refletindo sobre o
poder da narrativa, aspecto que o autor evoca através da conjugação das imagens do tarô e das
imagens da campanha antitabagista brasileira. Atento para a presença da escrita performática no
romance em questão – especialmente pelo enfoque que a obra propõe nas histórias orais – fator
que se aproxima da concepção de Diana Taylor (2013) sobre o repertório.

Palavras-chave: Escrita performática; Lourenço Mutarelli; Arquivo e Repertório

Há alguns anos, os fumantes têm acompanhado no verso dos maços de cigarro a


presença de imagens de uma campanha antitabagista: um homem afrouxando a gravata
parecendo não conseguir respirar, uma senhora com o rosto triste acariciando a cabeça
de outra mulher que está deitada e entubada, um homem nu com uma mão feminina
fazendo um sinal de negativo na frente de seu pênis, o “close” em um sorriso necrosado,
ou em um pé gangrenado ou em um tórax masculino sendo aberto; um feto morto dentro
de um cinzeiro cercado de cigarros, um bebê ensanguentado e morto dentro de um vaso
sanitário, uma criança tossindo desesperadamente em meio a uma nuvem de fumaça,
uma mulher com o rosto enrugado e triste e mais uma infinidade de fotos que, com uma
frase logo abaixo delas, advertem sobre os riscos do cigarro: câncer no pulmão,
impotência sexual, enfisema, enfarto, aborto, parto prematuro, crianças como fumantes
passivas, envelhecimento precoce, etc. A partir de 2002 a campanha antitabagista que
utiliza as imagens tornou-se obrigatória no Brasil, e desde então apresenta uma
infinidade de assombrosas imagens que mostram as possíveis consequências do uso da
nicotina.
Em 2004, ainda no início dessa campanha, Lourenço Mutarelli, quadrinista, ator,
dramaturgo e fumante há mais de 30 anos, publica O Natimorto – um musical

1
Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários da Universidade
Federal de Juiz de Fora. Mestre em Letras e Artes pela Universidade do Estado do Amazonas.
Contato: graziepaes@gmail.com

2009
silencioso2. No romance, conhecemos um homem – O Agente – que sofre com traumas,
problemas conjugais, se diz assexuado e possui uma fixação por um ideal de pureza. Em
seu trabalho como caça-talentos para O Maestro, conhece uma jovem cantora lírica
recém-chegada à cidade – A Voz, com a qual imediatamente estabelece uma relação de
empatia, pelo fato de ambos serem fumantes e de ela gostar de ouvir as histórias e
teorias que ele conta. Alegando estar cansado de ser “agredido pelo mundo”, O Agente
lança então uma proposta para A Voz: a de viverem isolados em um quarto de hotel,
conversando, fumando e contando histórias: “Eu tenho tantas ideias. Eu tenho tantas
histórias/ Eu poderia distraí-la contando-as a você/ E você cantaria para mim/ E nós
cuidaríamos um do outro” (MUTARELLI, 2009, p. 33). A partir do momento em que
ele começa a falar para ela sobre a solidão, as agressões do mundo e a falta de
reconhecimento da sociedade diante de talentos como o que ela tem, consegue
convencer a moça a aceitar a insólita proposta, seduzindo-a com uma de suas manias: a
de ler a sorte do dia na imagem presente no verso do maço de cigarro, como se fosse
uma carta de tarô: “eu fumo um maço por dia. Então, acho que a imagem vai
prenunciar, de alguma forma, o destino desse dia” (MUTARELLI, p. 8). A teoria do
Agente é aquelas imagens presentes na campanha antitabagista sinalizem prenúncios de
novos arcanos e novos tempos.
O romance de Mutarelli apresenta um jogo entre os dois personagens principais,
oriundo do poder que as imagens do cigarro passam a ter naquele contexto. Porém, se
como meras imagens ilustrativas que costumam ir direto para o lixo após o fim dos
cigarros fumados, ali elas ganham um propósito e conduzem a narrativa. O Agente e A
Voz conversam sobre sexo enquanto fumam, de tal modo que o aspecto fálico do cigarro
parece também fazer surgir um jogo erótico entre os dois. Porém, O Agente sobre de
impotência sexual e tenta controlar seus desejos alegando ser assexuado:

Minha mulher acha que sou impotente […] Há alguns meses eu venho
procurando me tornar assexuado, me disciplinando pra isso […] desde que
descobri que minha mulher é infiel […] Sabe, minha mulher só atinge o
orgasmo com sexo oral, ela não goza com penetração […] Então eu descobri

2
O romance foi inicialmente publicado pela editora DBA, em 2004, e em 2009 publicado pela
Companhia das Letras, atual editora do autor.

2010
que ela estava, já há alguns anos, praticando sexo com O Maestro… eu passei
a sentir nojo, você sabe […] Como é que eu ia colocar minha boca ali?
(MUTARELLI, 2009, p. 30).

O Agente, desde o início, mostra sinais de seu apego a um ideal de pureza, que se
manifesta não só no âmbito da questão sexual, mas no modo como concebe as relações
humanas e seus aspectos simbólicos. Quando A Voz tira em seu maço de cigarros a
imagem do bebê recém-nascido cheio de tubos, ele lê que aquela “carta” se trata de um
dos novos arcanos, O Natimorto. Enquanto ela acha a imagem triste, ele assevera:

Isso é sublime. Ele tornou mãe a mulher que o pariu. E ela sempre dirá: meu
filho ‘nasceu’ morto. Isso o torna um ser superior, quase santo. Viveu sem
macular-se com o mundo. Pulou uma passagem de sofrimento e desilusão.
Foi da não existência para a não existência protegido no interior de sua mãe.
Puro (MUTARELLI, 2009, p. 80).

A personagem A Voz é fascinada pelas “parábolas”, como ela chama as histórias


que O Agente conta. Esses relatos são espécies de causos de infância que ele alega
serem histórias pessoais de amigos e familiares, cercadas de acontecimentos que
possuem um fundo trágico ou assustador, mas que carregam uma espécie de “lição de
vida”. A Voz o aconselha diversas vezes a escrevê-las: “você tem ideias tão fantásticas.
Isso daria um belíssimo conto [...] você poderia me contar mais uma de suas histórias ou
de suas teorias” (MUTARELLI, 2009, p. 34). Porém, com a convivência naquele
ambiente claustrofóbico do quarto de hotel, a relação entre os dois se agrava. A Voz
sente a necessidade de sair para a rua, desfrutar da companhia de outras pessoas, anseia
por sua audição com O Maestro e à medida que seu interesse exterior ao quarto cresce,
O Agente, em sua carência doentia, lê aquilo como uma forma abandono e traição ao
pacto que haviam selado, uma quebra da regra do jogo que jogavam.
No começo da história, a relação entre os trunfos do tarô e do cigarro
simbolizam coisas boas para o futuro da Voz, mas à medida que ela se desapega mais do
Agente, passam a designar surpresas negativas e ameaças. Sabendo que A Voz mantém
algum tipo de crença nas advertências das cartas, O Agente manipula a simbologia dos
arcanos em seu “tarô tabagista”, de acordo com suas intenções pessoais de mantê-la

2011
perto dele. Da forma análoga, as parábolas que ele narra oralmente passam a ser cada
vez mais mórbidas:

A Voz – Mas você falava do seu amigo.


O Agente – Nós tínhamos, na época, uns dez anos de idade. Havia, próximo
a nossas casas, um pastor-alemão muito bravo. Um dia esse cachorro pulou o
portão e mordeu meu amigo bem nas nádegas. Meu amigo passou a ter que
dormir de bruços, de tão profunda que foi a mordida. Arrancou um pedaço.
A Voz – Credo!
O agente – Imagino que até hoje ele durma de bruços.
A Voz – Mas essa não parece uma de suas histórias.
O Agente – Não, eu ainda não terminei.
A Voz – Ah, bom! Eu estava mesmo estranhando, porque suas histórias
sempre se amarram.
O Agente – Depois desse incidente meu amigo desenvolveu um ódio mortal,
patológico, pelo cachorro. Ele sempre dizia que iria se vingar.
O Agente – Como no ditado que diz que “vingança é um prato que se serve
frio”, meu amigo nutriu seu rancor por muitos anos. Sempre que passávamos
perto da casa onde ficava o cachorro, meu amigo se transformava. Ele parava
diante do portão como se desafiasse o cachorro e dirigia um olhar muito
ameaçador ao animal.
A Voz – E ele realmente se vingou?
O A gente – Dez anos depois.
A Voz – Ele guardou essa mágoa durante todo esse tempo?
O Agente – Foi pior do que isso. Ele a alimentou a cada dia. E então, dez
anos depois, quando o cachorro já estava muito velho, cego e doente, meu
amigo abriu o portão e, munido de um pedaço de pau, ele bateu no cachorro
até despedaçar sua cabeça.
A Voz – Que horror! Que história medonha!
O Agente – Quer outra?
A Voz – Não se for dessa natureza. Por que você contou essa história?
O Agente – Não sei. Foi uma história que me marcou. Além disso, você me
pediu uma história e essa foi a primeira que me veio à cabeça.
A Voz – Mas eu não esperava uma história dessas.
A Voz – Essa história é horrível. Eu esperava outra coisa de você.
(MUTARELLI, 2009, p. 52-3)

Ao contar todas essas “parábolas”, o personagem-narrador parece almejar uma


abolição do tempo histórico, e nessa tentativa promove um distanciamento, inclusive
físico, de tudo aquilo que lhe parece abominável no presente: a sociedade já não mais
lhe interessa em seu isolamento, uma vez que ele não vê ninguém exceto a cantora e o
funcionário do hotel que entrega a comida e os cigarros no quarto, não liga a tv, não lê
os jornais e passa o dia inteiro com as cortinas fechadas; o sexo também parece-lhe
impossível diante de sua impotência sexual e seu dom de narrar se torna inútil tal o
desinteresse da Voz em ouvir suas histórias: “nada mais tenho a oferecer/senão/a

2012
decifração/ da embalagem/e histórias/ cada vez mais/ amargas” (MUTARELLI, 2009, p.
95). A Voz, em contraponto, passa a sair cada vez mais do quarto e a dar menos atenção
às histórias do Agente, especialmente após conhecer pessoalmente o Maestro e se
envolver sexualmente com ele. Além disso, ela compra uma cigarreira, para não ver
mais as imagens das embalagens de seus maços. Nesse ínterim, O Agente passa grande
tempo sozinho no quarto de hotel, sem comer nada, apenas deitado e ocasionalmente se
masturbando: “Movimento de forma cadenciada/em busca de um instante de prazer/ de
breve prazer intangível/ Copulo com o meu vazio/ Simulo o sexo que quero vencer/me
fodo/ verto sêmen como se fossem lágrimas/Choro por um órgão reprodutor infecundo”
(MUTARELLI, 2009, p. 98-9). Ele traça um plano de vingança contra A Voz: “se a Voz
da Ternura tivesse feito sua parte no acordo/ e me permitido dela cuidar/ o monstro
permaneceria dormente/ e o mundo estaria protegido contra mim” (MUTARELLI, 2009,
p. 130). Assim, ele planeja esquartejar o corpo dela na banheira do hotel e comê-lo, num
gesto de antropofagia – que aqui também se torna extremamente simbólico diante de
sua impotência sexual.
O romance de Mutarelli possui uma manifestação performática em diversos
sentidos. Primeiramente, traz personagens que não possuem nome próprio, mas são
alcunhados em decorrência de suas funções na história (O Agente, A Voz, O Maestro, A
esposa) nomes que também seguem uma disposição análoga aos nomes dos arcanos do
tarô (O Louco, A morte, A estrela, O Diabo, etc.).
Há muitas teorias sobre a origem do tarô, porém o que sabe é que o jogo possui
pelo menos seis séculos de existência. No romance, O Agente explica: “a quantidade de
baralhos é quase incontável. O de Marselha é considerado o clássico. Dizem que o tarô
seria um livro, o único, que escapou das bibliotecas egípcias que foram incendiadas”
(MUTARELLI, 2009, p. 61). Não é a toa que se utilize o termo “leitura” para o tarô,
pois sua representatividade como narrativa resistiu ao tempo. É como se o tarô
constituísse um livro antigo sem palavras escritas, mas com linguagem pictórica repleta
de histórias as quais todos nós compartilhamos inconscientemente, mas acessando essas
narrativas de individualizada: o consulente busca uma forma de autoconhecimento por
meio daquilo que ouve sobre si.

2013
No romance de Mutarelli o personagem-narrador utiliza o tarô de Marselha para
traçar uma analogia com as imagens dos maços de cigarro. Esse tarô é formado por 78
arcanos, maiores e menores, sendo que os arcanos maiores se relacionam a 22 símbolos
arquetípicos. Jung foi um grande estudioso do tarô e mantinha um profundo interesse
em jogos e tentativas de adivinhação do futuro. Em seus estudos concluiu que o tarô
possuía uma origem que se relacionava com os padrões do inconsciente coletivo, pois as
ilustrações das cartas carregam relação com as imagens da memória coletiva ancestral
que estão dentro de nossos inconscientes e que podem ser ativadas por determinados
símbolos, como os que estão presentes na iconografia do tarô. Todos os arquétipos do
tarô são a forma imaterial à qual os fenômenos psíquicos tendem a se estruturar, e
trazem imagens que residem no inconsciente humano, afloradas em nossos sonhos e
narrativas. Para Sallie Nichols,

os Trunfos [..] operam de modo autônomo nas profundezas da psique humana


e que Jung denominou arquétipos. Tais arquétipos funcionam na psique de
maneira muito parecida com a que os instintos funcionam no corpo. [...] Está
claro que não podemos ver essas forças arquetípicas, como, de fato, não
podemos ver os instintos; mas experimentamo-las em nossos sonhos, visões e
pensamentos de vigília onde aparecem como imagens. (NICHOLS, 1980, p.
26)

Em “Seis propostas para o próximo milênio”, Italo Calvino (1993) lança como
quinta proposta a Visibilidade. Nela, o autor inicia seu ensaio fazendo uma leitura de
Dante, usando a imagem do Purgatório para desenvolver uma ideia sobre a imaginação,
o sonho e a fantasia, a partir da parte visual da fantasia, que ele alega ser o que precede
ou acompanha a imaginação verbal. Para Calvino, até mesmo o cinema nos oferece uma
concepção de imagem vinculada à fantasia: a imagem do filme que nos chega como
produto final foi visualizada antes na mente de um diretor, que posteriormente projetou
sua corporeidade em um set, para somente depois trabalhar com os fotogramas do filme.
Mas é nesse mesmo âmbito, o de uma imagem pré-fabricada que muitas vezes a cultura
de massa nos fornece, que Calvino questionará essa relação contemporânea que
estabelecemos com a imagem:

Hoje somos bombardeados por uma tal quantidade de imagens a ponto de não
podermos distinguir a experiência direta daquilo que vimos há poucos

2014
segundos na televisão. Em nossa memória se depositam, por estratos
sucessivos, mil estilhaços de imagens, semelhantes a um depósito de lixo,
onde cada vez é menos provável que uma delas adquira relevo. Se incluí a
Visibilidade em minha lista de valores a preservar foi para advertir que
estamos correndo o perigo de perder uma faculdade humana fundamental: a
capacidade de pôr em foco visões de olhos fechados, de fazer brotar cores e
formas de um alinhamento de caracteres alfabéticos negros sobre uma página
branca, de pensar por imagens. (CALVINO, 1993, p. 107-8)

Ao trazer para o desafio de se pensar por imagens, Calvino aponta nossa atual
deficiência nessa criação de imagens, uma vez que consumimos muitas imagens
prontas. Em O Natimorto Mutarelli pratica a evocação da imagem pela palavra ao trazer
um narrador-personagem que, lançando mão das imagens arquetípicas da iconografia do
tarô, cria novas imagens em seu tarô tabagista, e elas emergem em meio a estrutura
textual do livro, que se embaralha tal qual cartas de um baralho: a obra traz uma gama
de gêneros como o drama, a poesia, um possível roteiro de HQ, ou até mesmo, como
nos anuncia o subtítulo, um musical silencioso, mesclando o tom teatral com o gênero
romanesco (o romance inclusive já foi adaptado para o teatro e para o cinema) e dessa
forma apresenta uma linguagem que separa o coloquial e o poético – uma vez que os
diálogos entre os personagens e as histórias orais do narrador contrastam com seus
monólogos líricos.
A obra O arquivo e o repertório – performance e memória cultural nas
Américas, Diana Taylor apresenta uma investigação que contribui para a compreensão
das tradições de performance na América Latina. Taylor nos mostra que os estudos
sobre performance têm muito mais se apoiado na finalidade e no futuro da performance
do que em sua prática histórica, o que parece algo não muito positivo num contexto
latino-americano, uma vez que nossas histórias e práticas estão intimamente ligadas aos
contextos coloniais de dominação dos povos. Por essa razão, a autora nos apresenta uma
diferenciação daquilo que seria o arquivo e o repertório, se apoiando numa noção entre
palavra escrita e falada:

Práticas não verbais – como dança, ritual e culinária, entre outras –, que
serviam há muito tempo para preservar um senso de identidade e memória
comunitária, não eram consideradas formas válidas de conhecimento. […] A
fratura, a meu ver, não é entre palavra escrita e falada, mas entre o arquivo de
materiais supostamente duradouros (isto é, textos, documentos, edifícios,
ossos) e o repertório, visto como efêmero, de práticas/conhecimentos

2015
incorporados (isto é, língua falada, dança, esportes, ritual) (TAYLOR, 2013,
p. 48)

Taylor alega que a memória “arquival” provém de itens supostamente resistentes


à mudança, e por essa razão há muito tempo sustenta o poder. Nesse sentido, o
repertório é o conhecimento que vivo, as práticas que resistem e se conservam para
além da estrutura de poder veiculada à palavra escrita:

o repertório [..] encena a memória incorporada – performance, gestos,


oralidade, movimento, dança, canto –, em suma, todos aqueles atos
geralmente vistos como conhecimento efêmero, não reproduzível. O
repertório, etimologicamente “uma tesouraria, um inventário”, também
permite a agência individual [...]. O repertório requer presença – pessoas
participam da produção e reprodução do conhecimento ao “estar lá”, sendo
parte da transmissão. Em oposição aos objetos do arquivo, supostamente
estáveis, as ações do repertório não permanecem as mesmas. O repertório ao
mesmo tempo guarda e transforma coreografias de sentido (TAYLOR, 2013,
p. 50).

Mutarelli, ao trazer a leitura tarô e sua relação com a tradição das histórias orais
como base de seu romance, nos mostra a relação entre as histórias orais com o
repertório “encenado” dentro da literatura: cria imagens a partir de imagens, traz o tarô
como uma narrativa oriunda não a partir da escrita gráfica, mas da preservação de uma
memória oral, pois o tarô constitui uma leitura que só ocorre a partir da imagem, a
disposição das cartas representa o desenrolar de uma história. Tudo isso se aproxima da
noção de repertório, o que fica mais evidente quando pensamos na origem do tarô de
Marselha, que algumas teorias afirmam ser um baralho que se popularizou na região de
Provence, no século doze, e nesse contexto, segundo Bete Torii, “a criação do baralho
foi uma maneira encontrada para ocultar e preservar, na forma de cartas de jogar, a
cultura e o conhecimento daquela região [...] que a igreja e os reis da França da época
procuraram exterminar por ser hetética”, complementa ainda que o tarô foi o primeiro
livro “que permitiu que os analfabetos fossem capazes de refletir e meditar sobre sua
salvação eterna e a busca de si mesmos”3.
O baralho do tarô, enquanto um material iconográfico que resistiu ao tempo,
provém de uma tradição do arquivo, mas ler o tarô, por si só, constitui uma

3
Disponível em: <http://www.clubedotaro.com.br/site/h23_17_marselha.asp> Acesso em: 31
Mai 2019.

2016
performance, e essa marca está presente no texto de Mutarelli por meio do tom teatral
que a narrativa possui e pelas formas artísticas não linguísticas que estabelecem uma
relação direta com o romance. Se a performance escrita está “preocupada não com a
literariedade do texto, mas com o projeto de experimentação da escrita em jogo”
(BEIGUI, 2011, p. 31) podemos pensar então que Lourenço Mutarelli, mesmo sendo
quadrinista, opta por não desenhar as cartas do tarô no romance e sim criar uma imagem
mental dessas ilustrações. O público que lê a obra talvez não conheça as cartas do tarô,
tampouco conheça ou lembre das imagens contidas nos maços de cigarros, mesmo
porque a campanha antitabagista as atualiza no decorrer dos anos. Portanto, ao trazer o
personagem-narrador O Agente descrevendo as imagens e significados da iconografia
do tarô, Mutarelli nos apresenta a correspondência entre os arquétipos do tarô – tão
antigo em seu significado em tantas culturas e no inconsciente coletivo humano – com
as imagens que o narrador passa a criar a partir das fotos contidas nos maços de cigarro.
É importante frisar que, se nos anos 1990 a carreira de Mutarelli se estabilizou
com os quadrinhos, a partir de 2002 deu uma guinada com a publicação de romances,
sendo o primeiro deles O cheiro do ralo. Foi na feitura desse primeiro romance que
Mutarelli constatou que o processo de criação de uma HQ e o processo de criação de um
romance diferia bastante, e isso foi fundamental para a continuação de seu trabalho dali
em diante. Ele relata que a vontade de escrever surgiu após ler Capão Pecado, romance
do escritor Ferréz: “aquilo que eu estava lendo era o que mais se aproximava da
realidade, pra mim. Mais até que o cinema […]. Me deu muita vontade de tentar evocar
imagens através da palavra, construir essa atmosfera. Quando escrevo literatura vou
muito mais fundo do que quando trabalho com quadrinhos” 4. Investindo nos romances a
partir de então, Mutarelli concluiu que escrever em prosa era mais rápido e menos
trabalhoso do que produzir histórias em quadrinhos.
Exemplo disso está na entrevista que concedeu para Rogério Skylab, no
programa “Matador de Passarinho”, do Canal Brasil5. Nela, Mutarelli afirma que para
4
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=xtLqOAtHAP0> Acesso em: 04 ago
2018.
5
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=xtLqOAtHAP0> Acesso em: 04 ago
2018.

2017
concluir um álbum de quadrinhos de 100 páginas costuma levar de dez meses a um ano,
trabalhando de 12 a 18h por dia, enquanto na literatura o trabalho é bem menos pesado,
um “meio expediente” – a escrita consumia suas manhãs, os desenhos consumiam seu
dia inteiro. Portanto, mais do que uma performance vinculada ao trabalho com a
imagem, Mutarelli nos mostra em O Natimorto um aspecto performático de sua própria
função como artista: a capacidade de criar imagens através da palavra não é apenas
estética, mas também funcional em um país onde viver de arte (ainda mais se for
desenho) ainda é difícil.

Referências

BEIGUI, Alex. Performances da escrita. In: Revista Aletria. n. 1, v. 21. Jan-abr, 2011. p.
27-36.

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo:
Companhia das Letras, 1993.

MUTARELLI, Lourenço. O Natimorto - um musical silencioso. São Paulo: Companhia


das Letras, 2009.

NICHOLS, Sallie. Jung e o Tarô – uma jornada arquetípica. Trad. Octavio Mendes
Cajado. São Paulo: Cultrix, 1980.

TAYLOR, Diana. O arquivo e o repertório: performance e memória cultural nas


Américas. Trad. Eliana Lourenço de Lima Reis. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.

2018
AS FICÇÕES DA MERCADORIA NA LITERATURA DE ANDY WARHOL

Tiago Leite Costa (PUC-Rio/FAMATH-RJ)1

Resumo: Jonathan Flatley sugere que Warhol relativiza as oposições entre capitalismo e
comunismo por meio do elogio ao comum (“commonism”). O “commonism” se assenta, ao
mesmo tempo, no projeto artístico de “parecer com” (to look alike) e no discurso público do
“gostar de” (to like), ambos centrais na obra de Warhol, que enxergava na cultura do consumo
um mundo de objetos comuns correspondente a um mundo de sentimentos em comum. Minha
ideia é discutir como as afirmações de Warhol sobre as virtudes do gosto comum e sua reprodução
nos padrões de consumo apontavam para uma estranha aspiração utópica elaborada entre as
ficções da mercadoria.
Palavras-chave: Andy Warhol; Cultura do espetáculo; fetichismo da mercadoria

1. Introdução: enxergando através das paredes


O livro Popismo conta a história da ascensão da Pop Art durante a década de 1960, a
partir das memórias de Andy Warhol (devidamente editadas pela assistente Pat Hakett). Em um
dado momento do livro, Warhol fala de sua amizade com o jornalista e crítico de arte David
Bourdon (que viria a escrever uma biografia importante sobre ele). Segundo Warhol, um dia o
David Bourdon disse a ele que o achava muito mais amigável, aberto e ingênuo até 1964.
“Você ainda não tinha esse ar avoado de quem enxerga através das paredes”, disse
Bourdon. Imediatamente, Warhol confidencia ao leitor (“mas eu não precisava desse ar
na época, como precisei depois”) (BOURDON apud WARHOL, 2013, p.31).
Uma das características marcantes dos textos ensaísticos, biográficos e das
entrevistas de Andy Warhol é a voz desse personagem/narrador “avoado que enxerga
através das paredes”. Um narrador cúmplice e distante, ao mesmo tempo evasivo, mas
sempre muito afiado.
Ao ler os textos de Warhol, a impressão que você tem é a de que está diante de
uma figura transparente. Só que essa transparência cria, de modo paradoxal, um efeito
turvo. Como se o autor, através da sua sinceridade inusitada, estivesse continuamente se
esforçando para desestabilizar o leitor (ou o entrevistador). Ou ao menos aquele leitor que
ingenuamente busca alguma confissão sobre a sua arte ou sobre a sua a personalidade.

1
: Doutor em Letras (PUC-Rio) Realizando estágio de Pós-doutorado no Departamento de Letras-
Literatura, Cultura e Contemporaneidade (PUC-Rio). Contato: tiagoleite79@gmail.com

2019
Então, por exemplo, em várias situações ele afirma coisas do tipo: “a maioria das
minhas ideias são dadas por outras pessoas”; “Aura" só existe até você abrir a boca ”;
“não faço distinção entre a minha arte e a mídia”; “fazer dinheiro é arte e bons negócios
são a melhor forma de arte”; “comprar é mais americano do que pensar e eu sou tão
americano quanto se possa ser”. (WARHOL, 2013a;2013b;2018).
Por um lado, esse tipo de enunciação faz com que o personagem Andy Warhol
coincida com o aspecto despersonalizado da arte Pop. “O Pop vem de fora”, ele dizia. A
ideia era fazer arte como uma máquina faria, evitando ao máximo a “mão do artista”. Não
há nenhuma interioridade misteriosa. Tudo é revelado pela experiência imediata das
imagens e das palavras.
Mas é evidente que essa espécie de superfície absoluta, que perpassa tanto o
universo visual quanto a escrita de Andy Warhol, alimenta a reação contrária. Ou seja, a
sensação de que há definitivamente algo por trás de suas reproduções e de suas frases.
Mas algo que resiste à interpretação.
Então a armadilha está pronta quando você se vê perguntando: mas será que ele
está sendo sincero ou cínico? Será possível que ele tenha passado 20 anos tomando sopa
Campbell todo dia? O que ele estava "realmente dizendo" quando pintou as séries de
garrafas de Coca-cola e de notas de Dólar? Não é possível que ele não esteja zombando
nem que seja um pouquinho da “cultura de massa”?
Só que, no final, é difícil desatar os fios e distinguir claramente entre as
alternativas de intepretação. Até porque o truque de Warhol é justamente misturar
realidade e arte, original e reprodução, performance e vida etc. Quer dizer, não há um
modelo de Sopa Campbell original, assim como não há um Andy Warhol verdadeiro por
trás do personagem.
O Arthur Danto (2012) acredita que o Andy Warhol tinha uma mentalidade
naturalmente filosófica e que boa parte de seus trabalhos mais importantes são
proposições filosóficas. Exemplos célebres: a Brillo box (proposição: o que constitui uma
obra de arte? O que diferencia uma caixa de sabão de uma escultura?) O filme Empire
(proposição: o que constitui uma imagem em movimento? O que diferencia um filme de
uma foto?).
Segundo o escritor/jornalista Bob Colacello (diretor da revista Interview, braço
editorial da Factory), um dos refrões constantes de Warhol era: "Como posso fazer arte

2020
abstrata que não seja realmente abstrata?" (COLACELLO, 2018). De certa forma, acho
que sua escrita ensaística e suas entrevistas seguem essa linha. Ou seja, nelas Warhol
aposta sempre numa ambivalência de alta intensidade que conduz o leitor ao
questionamento dos significados dos conceitos em jogo, muito mais do que ao mero juízo
ideológico das afirmações.
Isso ocorre com diversos temas sobre os quais Warhol escreve, como o amor, a
beleza, a arte, o tempo etc. E, claro, esses temas frequentemente se entrelaçam. Só que
nesse texto, eu gostaria de discutir especificamente algumas afirmações que Warhol faz
sobre o capitalismo e o consumo de massa nos seus textos e entrevistas, e em seguida
tentar mostrar como ele relativiza os conceitos de utopia e fetichismo de mercadoria, tal
como nos são apresentados tradicionalmente pelos teóricos da cultura de matriz marxista.

2. Fetichismo e utopia na literatura de Warhol


Para isso, eu vou começar citando uma famosa entrevista de 1963 realizada pelo
crítico e jornalista Gene Swenson2:

Alguém disse que Brecht queria que todos pensassem parecido (alike). Eu
quero que todos pensem parecido (alike). Mas Brecht queria fazer isso pelo
comunismo, de certa forma. A Rússia está fazendo pelo governo. Aqui está
acontecendo por si só, sem a necessidade de um governo autoritário. Então, se
está acontecendo sem muito esforço, por que não pode funcionar sem que
tenhamos que ser comunistas? Todos se parecem, todos agem da mesma forma,
e estamos ficando cada dia mais assim. (WARHOL, 2018, p. 16)3.

Esse trecho pode ser lido de muitos ângulos. Mas eu acho interessante observar
nessa passagem o modo casual com que ele subverte a oposição entre o mito da
individualidade americana e da homogeneidade soviética. Então, apesar das diferenças
aparentes, tanto no capitalismo como no comunismo as pessoas estariam vivendo a
experiência da massificação do comportamento pelo regime de produção e consumo
industrial moderno.

2
Esta entrevista é parte de uma série com diferentes artistas publicadas sobre o título: “O que é a pop
art?” na revista Art News de 1963.
3
Daqui em diante, todos os trechos citados de livros em inglês, são de tradução livre minha.

2021
Seria um erro, porém, presumir que se trata de uma crítica irônica à massificação
(ou ao menos que se trata apenas disso), porque nessa mesma entrevista e em diversas
outras ocasiões, Warhol afirma sistematicamente seu elogio à cultura do consumo
padronizado. Para ele o consumo de massa era como uma forma de experiência comunal
possível. Uma comunidade formada de objetos comuns, que representariam sentimentos
comuns, e que estariam acessíveis a qualquer um, a despeito de suas diferenças sociais.
Então, por exemplo, em uma famosa declaração, ele diz o seguinte:

O que há de melhor neste país é que a América deu início à tradição pela qual
os consumidores ricos compram essencialmente a mesma coisa que os pobres.
Você está diante da televisão e vê um anúncio da Coca-cola, e sabe que o
presidente dos Estados Unidos bebe Coca-cola, Liz Taylor bebe Coca-cola, e
você também pode beber Coca-cola. Uma Coca é uma Coca e não há dinheiro
que possa conseguir-lhe uma Coca-cola melhor que aquela que o vagabundo
da esquina está bebendo. Todas as Coca-colas são iguais e todas as Coca-colas
são boas. Liz Taylor sabe disso, o presidente sabe disso, o vagabundo da
esquina sabe, e você sabe.4 (WARHOL, 1989, p.48).

Warhol não apenas enxergava virtudes na cultura do consumo de mercadorias de


massa, mas entendia que essa era uma prática tipicamente americana, e se orgulhava
disso. Este é um viés político explícito do Andy Warhol que nem sempre é fácil de
assimilar. Quer dizer, ele realmente entendia a cultura de massas americana como uma
celebração do gosto comum. Mais do que isso, como observa o crítico Jonathan Flatley,
parece que ele via no ritual de projeções e identificações da cultura de massa um impulso
utópico organizado em torno do ato de gostar.
Para Jonathan Flatley (2016), gostar de tudo e de todos era uma espécie de práxis
que funcionava meio como um princípio coerente que perpassa todo o universo de
Warhol. Não à toa, numa das suas famosas definições ele dizia que “ser Pop é gostar das
coisas”. Parece que Warhol enxergava no ato de gostar a base para qualquer engajamento
no mundo. Porque gostar é o que desperta nossa atenção e nos dispõe a ser afetados por

4
Em outra ocasião, Warhol expunha uma lógica parecida na afirmação: “Não é possível ver uma versão
mais assustadora de O Exorcista” (Warhol, 2018)

2022
algo ou alguém5. O que não quer dizer que ele tratasse o gostar como um afeto preliminar
para alcançar qualquer outro objetivo. Gostar já é o acontecimento. Daí ele dizer em uma
de suas entrevistas: “Não acredito muito no amor. Mas meio que acredito em gostar”
(WARHOL, 2018, p.226).
Ainda de acordo com Flatley, o ato de gostar “forma uma ideia do que é comum”
no universo de Warhol. É o sentimento positivo mais basilar que se pode ter. Agora, é
importante reparar que sua defesa era do gostar em si, não importando muito do quê ou
de quem. Como ele diz em outra famosa frase: “eu acho que todo mundo deveria gostar
de todo mundo” (2018, p.16).
Além disso, na visão de Warhol gostar de algo implicaria numa mistura de atração
e imitação. Ele dizia que: “Quando você quer ser como alguma coisa, isso significa que
você realmente ama isso” (2018, p.53). Como explica Flatley, existe uma relação implícita
entre o impulso do parecer com (to look alike) e o impulso de gostar de (to like). Para
Warhol esses dois ímpetos se combinavam na partilha das fantasias do imaginário da
cultura de massa. “Pense em todos os James Deans e no que isso significa” (WARHOL,
2013, p.53). 6 Na “teoria dos afetos” de Warhol, quando você encontra alguém na rua que
remete as suas fantasias de adolescente, trata-se de alguém que teve a mesma fantasia que
você, mas que ao invés de comprar essa fantasia ou ser essa fantasia, decidiu parecer com
a fantasia. Então ele foi a loja e comprou o estilo que vocês curtiam.
Se a gente somar isso tudo, é interessante como essa inclinação utópica de Warhol
se molda em um gênero de utopia diferente da utopia tradicional de raiz iluminista. A
utopia a que nós estamos acostumados a nos referir, é a utopia crítica. Como se sabe, a
raiz etimológica da concepção moderna de crítica, remete aos termos gregos krisis e krino,
que significam disjunção, quebra, separação. Quando falamos das utopias críticas, então,
estamos nos referindo a utopias nas quais, inicialmente, deve-se distinguir as partes de
um determinado fenômeno social, para poder analisar os diversos aspectos do problema
e, por fim, projetar um ideal alternativo. A utopia de Warhol, contudo, propõe o
movimento oposto, ou seja, o de juntar aquilo que parecia estar separado, identificando
as diferenças com aquilo que é anterior a reflexão crítica: que é o gosto.

5
Para Flatley, a maneira como Warhol trabalha com a ideia do “gostar” é próxima à teoria dos afetos de
Espinoza. Ver: https://lareviewofbooks.org/article/liking-andy-warhol-an-interview-with-jonathan-
flatley/
6

2023
O gosto é ao mesmo tempo a vontade de alguma coisa, mas também a vontade de
se parecer com alguma coisa, de se homogeneizar no universo comum dos signos
mercadológicos de massa. Nesse sentido, Flatley chama a atenção para o fato de que a
comunhão entre o gostar e o elogio à cultura do consumo na obra de Warhol deveria ser
entendido como algo além da mera ironia: “acho que o compromisso enérgico de Warhol
com o gosto e a semelhança faz mais sentido se a entendermos não apenas como uma
provocação. Em vez disso, vejo um impulso utópico que anima os gostos de Warhol
(FLATLEY, 2016, p.6).
Ainda sobre essa estranha utopia de Warhol, Baudrillard comenta que ela é
diferente da utopia das vanguardas modernas porque: “Warhol ao invés de situá-la, como
os vanguardistas, sob a proteção de um tempo diferido, ele a instala diretamente no
coração da utopia, isto é, no coração do nada (de lugar nenhum).” (BAUDRILLARD,
1994, p.3). 7
Eu acho que uma inversão similar pode ser pensada em relação ao conceito de
fetichismo de mercadoria. Então, em geral, o Warhol não está muito preocupado, como
os marxista, em desvelar as relações de exploração do trabalho ocultadas pela abstração
da mercadoria. Só que ele reconhece o efeito fetichista da mercadoria e celebra essa
ilusão, quase que retornando ao imediatismo dos fetiches nas religiões arcaicas. Como
nesses fetiches, não se trata de uma mediação entre a aparência e a essência. Tudo é a
imagem. Ou melhor, a própria mediação é tudo que há. Então é interessante observar
como para Warhol isso representava uma abertura a uma experiência da qual todos
poderiam participar com suas diferenças, na medida em que todos podiam gostar juntos
da mesma mercadoria, do mesmo filme, do mesmo estilo.

2. Conclusão

7
Sobre isso, haveria muito o que falar, porque uma das obsessões de Warhol é o nada. Então ele está sempre
afirmando que o que há, no final das contas, é nada. “O negócio é pensar em nada. Ideias são nada. O
propósito da vida é nada”, dizia Warhol em diversos textos e entrevistas. Este é um tópico que está
diretamente ligado ao projeto estético e em particular àquela transparência formal dos enunciados de
Warhol à qual me referi na introdução deste texto.
Ainda em relação a este tópico, o poeta Gerard Malanga, que foi seu assessor, diz: “Andy sempre achou
seu trabalho vazio. Ele achava que alguém tinha que ver sua pintura pessoalmente para perceber como era
realmente vazio. As pessoas simplesmente não sabem o quão vazia é uma coisa até verem uma cópia dela.
Talvez alguém precise imitar seu trabalho antes que pareça tão vazio quanto realmente é. “(WARHOL,
2018, p.192).

2024
Mas aqui temos um problema. Se de fato a obra de Warhol já foi muito deformada
para que pudesse se encaixar a uma intepretação marxista de crítica e ironia ao
capitalismo e a cultura de massa, penso que é um tanto chocante renegar completamente
esse tipo de significado na sua obra. Por exemplo, se ele de fato não estava sendo irônico
em nenhum sentido, o que significa dizer que:

A coisa mais bonita de Tóquio é o McDonalds


A coisa mais bonita de Estocolmo é o McDonalds
A coisa mais bonita de Florença é McDonalds
Pequim e Moscou ainda não têm algo bonito.
A América realmente é a mais bonita. Mas seria ainda mais bonita se todo mundo
tivesse dinheiro o suficiente para viver. (WARHOL, 2013, p.71)

O Baudrillard diz que é uma completa perda tempo a interminável discussão


ideológica sobre o valor crítico ou acrítico de Warhol. Ele garante que não há denúncia
no universo de Warhol, simplesmente porque não há sequer um enunciado, propriamente
falado. Para o Baudrillard o Warhol era um escritor presciente. Ele previu que a verdade
da ficção seria descartada em favor da ficcionalização da verdade.
E eu fico pensando se Warhol teria imaginado um mundo em que não haveria mais
muita distinção entre nós e nossas imagens audiovisuais. Se ele teria imaginado um
mundo onde todos poderiam participar com suas imagens e suas pequenas diferenças
curtindo uns aos outros.

Referências
BAUDRILLARD, Jean. Andy Warhol: El Snobismo Maquinal. Zona Erógena. Nº 22.
1994. Disponível em:
file:///C:/Users/Tiago/Documents/Pósdoc%20puc%202019/ANDY_WARHOL_E
L_SNOBISMO_MAQUINAL._JEAN_B.pdf
COLACELLO, Bob. Bob Colacello Thinks in 2018 Warhol Would Be ‘Dating Kim
Kardashian’. Entrevista para a Revista GARAGE, 2018. Disponível em:
https://garage.vice.com/en_us/article/yw7deb/bob-colacello-warhol-kim-
kardashian

2025
CROW, Thomas. Modern art in the common culture. New Haven, Conn.: Yale
University Press, c1996.
____________. The rise of the sixties: American and European art in the era of
dissent. New Haven, Conn.: Yale University Press, 1998.
DANTO, Arthur. Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história.
São Paulo: EDUSP: Odysseus, 2006.
_____________, Andy Warhol. São Paulo: Cosac Naif, 2012.
_____________ A transfiguração do lugar comum: uma filosofia da arte. São Paulo:
Cosac Naify, 2005.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do
espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
FLATLEY, Jonathan. Like Andy Warhol. Chicago, EUA: The University of Chicago
Press, 2016.
____________, Liking Andy Warhol: An Interview with Jonathan Flatley,
Entrevista para a Revista Los Angeles Review of Books, 2018. Disponível em:
https://lareviewofbooks.org/article/liking-andy-warhol-an-interview-with-
jonathan-flatley/
WARHOL, Andy. Diários de Andy Warhol V1 e V2. Porto Alegre: L&PM, 2012.
____________. I'll Be Your Mirror: The Selected Andy Warhol Interviews. Boston:
Da Capo Press, 2004.
____________. Popismo: os anos sessenta segundo Warhol. Rio de Janeiro: Cobogó,
2013.
____________The philosophy of Andy Warhol: From A to B and Back Again.
New York: Harcourt, 2013.
____________ Andy Warhol: A Retrospective. New York: Kyneston McShine/
MoMA, 1989, p. 441. Disponível em:
https://www.moma.org/documents/moma_catalogue_1815_300062895.pdf

2026
A VANGUARDA EUROPEIA NO BRASIL E O MODERNISMO BRASILEIRO
NA FRANÇA: AS RELAÇÕES ESTÉTICAS ENTRE BLAISE CENDRARS,
OSWALD DE ANDRADE E TARSILA DO AMARAL

Natalia Aparecida Bisio de Araujo (UNESP)1

Resumo: As relações estéticas entre as obras Feuilles de Route, de Blaise Cendrars, Pau-Brasil,
de Oswald de Andrade e vários trabalhos de Tarsila do Amaral exemplificam a ligação entre a
estética de Vanguarda e o Modernismo brasileiro. O objetivo deste trabalho é examinar como as
obras dialogaram e como foram acolhidas no Brasil e na França, avaliando se as parcerias
contribuíram significativamente para a recepção dos trabalhos nos dois países. A análise se dará
por meio do exame da fortuna crítica, de resenhas e de outros documentos que relatem a
repercussão das obras tanto no Brasil quanto na França.
Palavras-chave: Blaise Cendrars; Oswald de Andrade; Tarsila do Amaral; Vanguarda europeia;
Modernismo brasileiro.

O poeta franco-suiço Blaise Cendrars e foi um dos artistas da modernidade mais


cosmopolitas de seu tempo. Uma das características mais marcantes de sua obra poética
é a exaltação do novo, por conta das inovações vivenciadas pela sociedade do início do
século XX, em que o poeta descreve sua experiência própria com o mundo moderno,
vivida em suas viagens, e igualmente pelas inovações estéticas que se operavam no
gênero poético, com forte inspiração na estética das Vanguardas.
Cendrars viajou para o Brasil, em 1924, em busca de uma nova matéria para sua
poesia, a convite de Oswald de Andrade, de Tarsila do Amaral e de Paulo Prado, que
tinham conhecido o poeta em 1923. Cendrars voltará às terras brasileiras outras duas
vezes: em 1926 e em 1927-28, com permanências consideravelmente longas.
A experiência de Cendrars no Brasil foi de grande relevância em sua carreira
como escritor e marcou sua obra. Segundo Claude Leroy, essa viagem do escritor foi
para ele um verdadeiro momento de “renascimento como homem e como poeta”, de
modo que “[...] le Brésil va devenir la ‘deuxième patrie spirituelle’ de Cendrars et son
‘Utopialand’”2 (LEROY, 2006 apud CENDRARS, 2006b, p.390).
Além disso, o contato do escritor com os modernistas foi profícuo para nossa
produção artística: Cendrars acaba se tornando um membro antelitteram do
modernismo brasileiro pelo seu sodalício com Paulo Prado, Oswald de Andrade, Tarsila
do Amaral e com outros artistas envolvidos. Nascia, nessa viagem do poeta, a história

1
Mestre e doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Estadual Paulista – UNESP – Araraquara
SP. Contato: natalia-bisio@hotmail.com.
2
“[...] o Brasil se tornará a ‘segunda pátria espiritual’ de Cendrars e sua ‘Utopialândia’” (tradução nossa).

2027
de uma ligação entre a estética de vanguarda, representada por Cendrars, e o projeto
modernista, sobretudo, o de Oswald de Andrade e de Tarsila do Amaral.
Ambos os artistas brasileiros, anteriormente à chegada do poeta franco-suíço, já
haviam tido contato com a agitação vanguardista. A pintora esteve em Paris1920 e
1923. Na capital francesa, Tarsila do Amaral inscreveu-se na Académie Julian, onde
estudou técnicas de desenho. Lá, a pintora conheceu a estética cubista e futurista, já
demonstrando uma predileção por desenhos mais despojados, como os esboços rápidos
e os croquis. Em 1923, é o poeta Blaise Cendrars que apresenta Tarsila a Fernand Léger,
com quem a pintora teve aulas. Nesse momento, a obra da pintora já mostrava a sua
assimilação das técnicas da vanguarda, sobretudo, do Cubismo.
Oswald de Andrade também já havia viajado para a Europa antes da Semana de
Arte Moderna de 22, em 1912. Segundo Aracy do Amaral (2003, p.76), nesse momento,
o escritor teve contato com a Vanguarda europeia e, sobretudo, com Futurismo.
Posteriormente à Semana de 22, ainda sob influência das inovações trazidas pelo
evento, o poeta fica fascinado por Tarsila do Amaral, com quem regressaria para a
Europa. Depois de ter vivido na capital francesa em contato com a Vanguarda, percebe-
se na obra do escritor uma maior absorção da estética dos movimentos, como as
transformações na linguagem poética, conforme descreveremos mais adiante.
As movimentações artísticas na Europa cumpriram um papel crucial para a
tomada de consciência da arte nacional. No caso de Oswald, foi o contato com as
correntes europeias que fizeram com que ele redescobrisse o Brasil. Se, num primeiro
momento, houve o processo de valorização e encantamento causado pela estética
vanguardista – a ponto de Oswald afirmar para Mário de Andrade: “venha pra cá saber
o que é arte”, “aqui é que está o que devemos seguir” (OSWALD, 192-, apud
CAMPOS, 1971, p.16) –, em um segundo momento, há uma ampliação do olhar do
poeta para a realidade nacional. Segundo Paulo Prado (1971, p. 67), foi no numa
viagem a Paris, que Oswald descobriu que o Brasil realmente “existia”.
No entanto, além do contato com a Vanguarda europeia, um evento será crucial
para impulsionar a consciência da arte nacional modernista: a chegada de Blaise
Cendrars ao Brasil em 1924. A presença do poeta franco-suíço era o símbolo da
vanguarda francesa em São Paulo. Além disso, foi Cendrars quem fez despertar o
sentimento de identidade nacional que impulsionou o Movimento Modernista a partir de

2028
então. Entusiasmados pelas técnicas primitivistas, do movimento ligado à modernidade
e às Vanguardas europeias, os brasileiros encontram dentro da própria nação fontes
mais puras e vitalizadas para inovar sua obra. Assim, o poeta europeu foi responsável
pela articulação entre os movimentos europeus de vanguarda e o projeto artístico
essencialmente nacional. Segundo Aracy do Amaral,

A importância maior de Cendrars reside [...] [em] seu trabalho de mediador,


entre os modernistas impregnados de um nativismo ainda um tanto indefinido
em 1922, e seu anseio legítimo de atualização com a vanguarda francesa nos
setores das artes plásticas, literatura e poesia. Sua vinda ao Brasil em 1924 é
um marco, no sentido em que dá início à redescoberta do Brasil pelos
modernistas. À visão já orientada de Tarsila e Oswald em Paris em 1923,
lúcidos em relação à importância de nossa tradição no sentido de brasilidade
nela contido [...], segue-se a revisitação do Brasil, quase com os olhos
estrangeiros amantes do exótico do europeu que os “guiava” [...] (AMARAL,
1997, p.16).

Essa “revisitação do país”, da qual fala Aracy do Amaral, relaciona-se a uma


excursão que o grupo modernista – Oswald, Mário, Tarsila, Paulo Prado e René
Thiollier – fez, junto de Blaise Cendrars, pelo interior e capitais do país,. Essa viagem
despertou nos modernistas – que já estavam motivados por uma renovação da arte
nacional – um interesse por nossas tradições, por nossa história, sobretudo, pelos traços
remanescentes coloniais. Segundo Oswald, “o primitivismo nativo era o nosso único
achado de 22, o que acoroçoava então em nós, Blaise Cendrars [...]” (ANDRADE,
1971, p. 96). Assim, conforme afirma Aracy do Amaral, a viagem feita com o poeta
europeu
[...] foi um marco na redescoberta do passado brasileiro pelos modernistas,
em termos de revisão de nosso acervo de tradições até então menosprezadas.
A ânsia de europeização [...] ainda não se interrompera, e, pela primeira vez,
um grupo [...] se interessava pela terra (AMARAL, 2003, p. 149).

Nas obras de Tarsila, a presença de Cendrars e a viagem pelo país contribuíram


para a redescoberta de Aleijadinho, da arquitetura do século XVIII e das construções
populares e de todo um acervo cultural de nossas tradições. Segundo Tarsila, “[...] tudo
era motivo para as nossas exclamações admirativas”. (AMARAL, T. apud AMARAL,
2003, p. 150). Essa viagem é, sem dúvida, um marco para a obra da artista, pois essa
redescoberta do país foi a fonte na qual Tarsila colheu a matéria de sua pintura Pau-
Brasil. Muitas telas da artista tiveram inspiração nessa viagem, como Barra do Piraí
(1924), e Morro da Favela (1924) ou Carnaval em Madureira (1924).

2029
Além disso, o entusiasmo de Cendrars por tudo o que via e pelo projeto
modernista fez com que o poeta convidasse Tarsila a ilustrar Feuilles de Route, que
estava sendo produzido, um projeto que pretendia conter volumes com poemas sobre o
Brasil. Nascia, nesse momento, uma parceria que marcaria a produção artística dos dois
artistas. “Le Formose”, com o mesmo título do navio com o qual o poeta chega a
Santos, foi o primeiro livro a ser publicado em 1924 pela editora Au Sans Pareil,
ilustrado com croquis de Tarsila do Amaral. O segundo volume, intitulado “São Paulo”,
foi composto por seis poemas que acompanharam o catálogo de Tarsila para sua
exposição em Paris, na galeria Percier, em junho de 1926. A pintora expôs 17 trabalhos,
dentre eles, aquarelas e desenhos (SCHWARTZ, 2003, s.p.)
Há uma relação íntima entre os poemas do franco-suíço e os croquis da pintora
brasileira em Feuilles de Route. Em entrevista radiofônica, Cendrars chama suas
Feuilles de Route de “cartões postais enviados a amigos” ou mesmo “historinhas
simples e sem pretensão” (CENDRARS, 2006a, p. 19). Tal como a escrita de “cartões
postais”, esses textos “sem pretensão” são, em sua maioria, breves, curtos e com uma
linguagem despojada, informando rapidamente algum dado da viagem.
Os poemas apresentam características do primitivismo, tendência comum dos
movimentos de vanguarda. Os versos apresentam descrições de paisagens naturais,
sobretudo por seu aspecto rudimentar, selvagem, exótico e primitivo, que eram muito
distintas dos jardins simétricos dos castelos e praças europeus. No poema abaixo,
“Paysage”, encontram-se tais características quando o poeta descreve uma paisagem
brasileira:
La terre est rouge
Le ciel est bleu
La végétation est d'un vert foncé
Ce paysage est cruel dur triste malgré la variété infinie des formes
[végétatives
Malgré la grâce penchée des palmiers et les bouquets éclatants des
[grands arbres en fleurs fleurs de carême3 (CENDRARS, 2001, p.222).

Em versos essencialmente descritivos, sem pontuação e sem rimas, o “poeta-


pintor” registra uma paisagem. O paralelismo sintático dos primeiros versos – elemento
natural (terra; céu; vegetação) + verbo de ligação être/ser + cor –, revelam um período

3
“A terra é vermelha/ O céu é azul/ A vegetação é de um verde escuro/ Essa paisagem é cruel dura triste
apesar da infinita variedade das formas vegetativas/ Apesar do charme inclinado das palmeiras e dos
buquês brilhantes das grandes árvores em flores flores de quaresmeira” (tradução nossa).

2030
simples de orações sem subordinação, expressando a imagem rudimentar e primitiva da
paisagem representada. A palavra “malgré” (“apesar de”) acrescenta detalhes a essa
imagem, ornamentos que não modificam sua característica “cruel, dura e triste”. O
poeta esboça uma figura sem detalhes muito apurados já que a paisagem que descreve
se apresenta praticamente austera.
O interessante é a forma como os poemas assemelham-se com a pintura. No
desejo de reproduzir as paisagem brasileiras, esses versos descritivos e simples
reproduzem os traços e as formas também rudimentares de uma pintura primitiva.
Assim, os poemas de Feuilles de Route também assumem certo aspecto plástico, como
se fossem poemas-pintura. Além das “fotografias verbais” das paisagens brasileiras
apresentam um aspecto rudimentar e primitivo, de modo que a descrição da coloração
das imagens atribuídas à terra, ao céu e à vegetação são sempre as mesmas. A palheta
do “poeta-pintor” está reduzida a pouquíssimos tons de cores primárias, primitivas. As
“pinturas” de Cendrars assumem, desse modo, a mesma linha estilística.
Com a mesma brevidade e agilidade dos poemas, as ilustrações de Tarsila que
acompanham a obra assemelham-se às rápidas anotações que se fazem em um caderno
de notas, croquis que registram brevemente uma experiência ou a observação de uma
paisagem, como se pode observar na Figura 1. Tal como o poeta viajante, Tarsila
também compõe suas Feuilles de Route, registrando as impressões de sua redescoberta
do Brasil – recolhidas em sua viagem com Cendrars pelo país – e ilustrando as riquezas
naturais, culturais e modernas de sua terra natal.

Figura 1- Croqui de Tarsila em Feuilles de Route

Fonte: (CENDRARS, 2001, 222).

Além disso, a pureza das cores do céu, do sol, da terra e das árvores, que se
repete pelos poemas, somada à simplicidade linguística e formal dos versos, assemelha-

2031
se ao primitivismo das pinturas que Tarsila passou a desenvolver, onde traçava
desenhos em contornos simples, com predominância de cores primárias. Cendrars faz
um retrato primitivo do Brasil, assim como a pintora modernista.
Desse modo, é possível entender o significado da exposição na Galeria Percier
de 1926, onde foram expostos, juntos, quadros de Tarsila e poemas de Cendrars. São
inquestionáveis as relações estéticas entre as obras, comprovando que houve um
processo criativo conjunto entre o artista franco-suíço e a pintora brasileira.
Esse projeto estético conjunto entre Cendrars e Tarsila também dialogava com a
obra de Oswald de Andrade, sobretudo, com o Pau-Brasil, movimento idealizado pelo
poeta brasileiro. Para Oswald, a viagem pelo interior do Brasil e a presença de Cendrars
foram importantes para impulsionar os ideais estéticos do movimento. O próprio poeta
dedica seu mais novo livro, o Pau-Brasil, ao amigo franco-suíço: “A Blaise Cendrars
por ocasião da descoberta do Brasil” (ANDRADE, 2003, p. 15). Segundo Aracy do
Amaral (2003, p. 152), o interesse do vanguardista pelo nosso país despertou no
modernista um desejo de renovação da linguagem através do estudo de nossas tradições,
ajudando-o a se convencer da importância de nosso “passado tão recente”. O próprio
Oswald afirma que o renascimento do Brasil em sua obra – no sentido de fidelidade às
características culturais do país e menor valor para a europeização – foram alavancados
por Cendrars (ANDRADE, 1928 apud AMARAL, 2003, p. 154).
É importante salientar que a tomada de consciência nacional na produção
artística do escritor brasileiro não visava somente descrever as particularidades próprias
de nosso país. Oswald estava em busca de uma arte nacional, que pudesse ser
“exportada” para fora do país e não somente “importada” da Europa. Haroldo de
Campos (1971) foi um dos críticos a alegar que o poeta teria “deglutido” tanto a obra do
poeta franco-suíço, quanto as estéticas vanguardistas e elaborado um projeto original e
nacional. Do mesmo modo, Tarsila do Amaral teria assimilado essas influências e
lançado na pintura uma estética com princípios paralelos aos de Oswald na literatura.
Mas o que não se pode negar é que a técnica poética de Cendrars em Feuilles de
Route, com sua linguagem despojada, serviu como uma importante influência para
impulsionar o projeto artístico Pau-Brasil de Oswald de Andrade. Segundo Manoel
Bandeira, “esses poeminhas [de Feuilles de Route] tiveram, sem sombra de dúvida, uma
grande influência sobre Oswald de Andrade em Pau-Brasil” (BANDEIRA, 2001,

2032
p.460). Da obra de Cendrars sobre o Brasil, Oswald teria deglutido a simplicidade da
expressão linguística e formal dos versos, o primitivismo, a relação com a pintura e
outras tentativas de purificação e inovação do gênero lírico a fim de realizar a
“revolução copernicana” na literatura modernista – nas palavras de Haroldo de Campos
(1971) – que foi a poesia Pau-Brasil: “[...] uma linha de poética substantiva, de poesia
contida, reduzida ao essencial [...]” em oposição ao velho artesanato discursivo
institucionalizado em modelos retóricos pelo parnasianismo [...]” (CAMPOS, 1971,
p.15).
As característica observadas por Haroldo de Campos podem ser vista no poema
“Longo da linha” em que a descrição de uma paisagem é feita de modo tão sintético,
que os versos são extremamente curtos, substantivos e despojados formalmente, tal qual
as Feuilles de Route. Ainda semelhantemente à obra de Cendrars, o texto assume
expressividade visual, quando a grafia dos versos curtos cria a impressão de uma linha
vertical, insinuando esses coqueiros, que, horizontalmente, podem ser vistos de várias
alturas. “Longo da linha” dialoga diretamente com a tela Palmeiras (1925), de Tarsila
do Amaral.
Longo da linha
Coqueiros
Aos dois
Aos três
Aos grupos
Altos
Baixos
(ANDRADE, 1971, p.137).

Segundo Haroldo de Campos, ao partir da “deglutição” das técnicas estrangeiras,


sobretudo de Cendrars, Oswald “[...] estava redescobrindo a realidade brasileira de uma
perspectiva original e situando-se nela. Assumia o mapa diacrônico dos vários Brasis
coexistentes, em tempos (estágios) diversos, num mesmo espaço de linguagem, e
assumia-o inscrevendo-se nele [...]” (CAMPOS, 1971, p. 39). Foi assim que Oswald
criou um projeto estético que, apesar de ter sido inspirado por tendências estrangeiras,
como a da obra de Cendrars, levaria a uma literatura que pudesse representar nossa
originalidade nacional.
Com relação ao parentesco da poesia Pau-Brasil com Feuilles de Route, ainda é
preciso acrescentar que as semelhanças entre ambas as obras vão além: do mesmo modo
que Tarsila ilustrou o livro europeu com seus croquis de traços rápidos, primitivos e

2033
despojados, também o fez no Pau-Brasil. Além disso, tanto no livro de Cendrars quanto
no de Oswald, os desenhos de Tarsila se inspiraram na viagem do grupo de artistas feita
pelo país. É evidente a ligação entre a estética dos dois livros, que pretendiam saltar as
barreiras do gênero poético por meio das artes plásticas.
Em Pau-Brasil, a pintora ilustra muito mais que paisagens brasileiras, mas faz, na
arte dos desenhos, aquilo a que a poesia deveria aderir na linguagem: uma “[...] língua
sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos
os erros. Como falamos. Como somos” (ANDRADE, 1971, p.6), conforme defende
Oswald no Manifesto da Poesia Pau-Brasil. Em seu despojamento, os poemas e os
croquis na obra têm o mesmo objetivo de voltar-se para a realidade de nosso país.
Segundo o Manifesto de Oswald, “o melhor de nossa demonstração moderna” seria a
iniciativa de ser regional, puro e primitivo, sem deixar de refletir a sua
contemporaneidade.

Figura 2- Croqui de Tarsila em Pau-Brasil

Fonte: (ANDRADE, 2003, p.35).

Nessas relações entre Blaise Cendrars, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, a


recepção das obras dos três artistas se deu de modo muito distinto no dois países.
Primeiramente, temos Cendrars, que é convidado pela elite cultural brasileira a se
instalar no país e a participar das atividades artísticas locais. Ligado à famosa
Vanguarda, ele já tinha uma obra de visibilidade internacional e era escritor de língua
francesa – que, no início do século XX, era a “língua oficial” das artes – dispensando,
assim, uma tradução para que sua obra pudesse ser lida.
Cendrars já era profundamente admirado pelos escritores brasileiros. Sua estadia
no país fez com que se espalhassem artigos repletos de elogios e de entusiasmo nos
periódicos brasileiros. Paulo Prado (2001, p.406) o considera “o maior poeta francês” da
década de 1920. Patrícia Galvão comenta a participação de Cendrars como “pioneiro da
moderna literatura francesa” (GALVÃO, 2001, p.442-443). Menotti Del Picchia o vê

2034
como o poeta “mais deslumbrante de sua geração” (DEL PICCHIA, 2001, p.404).
Também começam a aparecer vários comentários de poetas modernistas revelando a
influência da poesia de Cendrars em sua obra. Manuel Bandeira, por exemplo, comenta:

[...] creio talvez poder confessar ter sido Cendrars quem levantou em mim o
gosto da poesia do cotidiano. E foi sem dúvida de Cendrars que veio em
grande parte o gosto dos poetas modernistas pela poesia do cotidiano. [...] Os
rapazes de São Paulo [...] apreciavam enormemente a poesia de Cendrars [...]
(BANDEIRA, 2001, p.460).

Mário de Andrade também confessa sua profunda admiração pela poesia de


Cendrars, sobretudo, pelo ímpeto de renovação que a obra do poeta franco-suíço
provocou-lhe, revelando-lhe não só a Europa, mas o próprio Brasil:

[...] amo sobretudo, da poesia viva da França, Blaise Cendrars, porque o mais
rico de benefícios para mim. Ele me libertou da incompreensão do passado,
pelo qual eu não vivia na terra do meu país e do meu tempo. Eu existia sem
viver. Livrou-me do ritmo impessoal, dando-me, não o seu, mais o meu
ritmo; tão diferentes estes! Descobriu para mim as puras nascentes do
lirismo, muito mais que escritores de estetas e experiências de laboratórios.
[...] Foi Cendrars que me revelou o universo. [...] Cendrars deu-me o
conhecimento. E, poeta francês, libertou-me da França (ANDRADE, 2001, p.
393; grifos do autor).

Com toda essa admiração, Cendrars foi convidado para palestrar sobre a arte
moderna. Falou da “Moderna poesia francesa” (1924) e das “Tendências gerais da
estética contemporânea” (1924) no Conservatório Musical de São Paulo e sobre “A
literatura negra” (1924), no Salão Literário de José de Freitas-Vale. Assim, não restam
dúvidas de que, no Brasil, o poeta é bem recebido, tornando-se inclusive uma das
personalidades do Modernismo Brasileiro.
Enquanto isso, na França dos anos 20, a obra de Tarsila do Amaral era descoberta
com entusiasmo. Em ocasião da exposição na Galeria Percier, em 1926, a pintora
recebeu uma crítica muito favorável dos franceses, que reconhecem sua originalidade. O
crítico Olaf Apollonius, por exemplo, elogia a mostra de Tarsila: “Estive há pouco na
Galerie Percier: exposição Tarsila. Nunca direi suficientemente o quanto gosto das
pinturas de Mme. Tarsila, a pureza, a perfeição, o encanto, a franqueza dessas imagens
do Brasil [...]” (APOLLONIUS, 1926 apud AMARAL, 2003, p.239).
O “exótico”, que era muito citado pela crítica francesa, e o cerebral da
composição foram pontos de referência para o apreciador europeu e contribuíram para a
visibilidade da obra. A originalidade da pintora, o fantástico e o primitivo também

2035
foram apontados pela crítica (AMARAL, 2003, p.238). Além disso, o reconhecimento
de Tarsila, na exposição de 1926, também é auxiliado pela participação de artistas de
renome em Paris, como Cendrars, no catálogo da exposição, Pierre Legrain, na
emolduração da telas, e de Paul Poiret, que desenhou o vestido usado por Tarsila.
Essa abertura para a obra de Tarsila na Europa, em 1926, proporcionou outras
participações da artista em exposições na França. A pintora teve mais duas mostras
individuais – na Galerie Percier, em 1928, e na Maison de l´Amérique Latine, em 2005
– e outras oito presenças em exposições coletivas – Salon des Indépendants (1926;
1928); Salon des Surindépendants (1928, 1929 e 1931); Arcturial (1976); Musée d'Art
Moderne de la Ville de Paris (1987); Centre Georges Pompidou (1992). Além disso,
Tarsila também foi exposta em outras cidades do mundo, como Madri, Moscou, Nova
Iorque, Lisboa, Buenos aires, Ontario, dentre outras. Desse modo, Tarsila cumpriu um
dos principais objetivos da estética Pau-Brasil, almejado por Oswald: não mais
“importar” estéticas estrangeiras, mas “exportar” uma mostra de nossa originalidade.
Já Oswald, nos anos 20, permanece obscuro na França. É verdade que a
descoberta dos modernistas por Cendrars viabilizou certo reconhecimento, na época, do
trabalho dos brasileiros. Além disso, as amizades literárias dos poetas contribuiu para
que o Pau-Brasil (1925) tivesse sua primeira edição feita pela Au sans pareil, mesma
editora parisiense que publicou Feuilles de Route. Essa publicação, porém, não fez com
que a obra alcançasse um impacto nos leitores franceses, provavelmente, por não ter
sido traduzida naquele momento.
A primeira e única tradução para o francês de Pau-Brasil, de Antoine Chareyre,
aparecerá somente em 2010. É a partir da publicação do texto em francês que surgirão
estudos críticos sobre o Pau-Brasil nos periódicos franceses, como “Le Brésil sans
fard”, de Richard Blin na revista Le Matricule des Anges (2011); “La poésie d’Oswald
de Andrade”, de Françoise Han, em Les Lettres françaises (2011). Algumas resenhas da
obra também são publicadas em periódicos, como no Europe, na Revue de culture
contemporaine, no Cahier critique de poésie, em Lectures e em Caravelle.
Depois de tanto tempo esquecido, o Pau-Brasil pode ter reconhecida a sua
importância dentro do contexto da poesia moderna, conforme comenta Chareyre:
“Deixando de lado a imagem do Brasil, a obra merece ser recebida como um legado a

2036
ser avaliado como patrimônio poético universal, dialogando com outras vozes da poesia
moderna” (CHAREYRE, 2011, s.p.).
O que resta agora à crítica, tanto na França quanto no Brasil, depois de quase 100
anos de história do contato entre Cendrars, Oswald e Tarsila, é continuar reconhecendo
e estudando a inventividade da obra dos três artistas, analisando mais profundamente os
diálogos que se estabeleceram entre eles e outros artistas, já que, nas relações entre
França e Brasil, são inúmeros os contatos.

Referências

AMARAL, Aracy A. Blaise Cendrars no Brasil e os Modernistas. São Paulo: Editora


34/Fapesp, 1997.

AMARAL, Aracy Abreu. Tarsila: sua obra e seu tempo. São Paulo: Editora 34, 2003.

ANDRADE, Oswald de. Obras completas: Poesias Reunidas. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 1971, 7 v.

ANDRADE, Oswald. Pau Brasil. Ilustrações de Tarsila do Amaral. Paris: Au Sens


Pareil, 1925. In: SCHWARTZ, Jorge (Org.). Caixa Modernista. São Paulo: Edusp,
2003.

BANDEIRA, Manoel. “A poesia de Blaise Cendrars e os poetas brasileiros”. In:


EULALIO, Alexandre. A aventura brasileira de Blaise Cendrars: ensaio, cronologia,
filme depoimentos, antologia, desenhos, conferências, correspondência, traduções. 2.
Ed. Ver. E ampl./ por Carlos Augusto Calil. São Paulo: edusp, 2001, p. 460.

CAMPOS, Haroldo. “Uma poética da radicalidade”. In: ANDRADE, Oswald. Obras


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CENDRARS, Blaise. Blaise Cendrars vous parle...: suivi de Qui êtes vous?, Le
paysage dans l’oeuvre de Léger et de J’ai vu mourrir Fernand Léger. Org. Claude
Leroy. Paris: Denöel. 2006a.

CENDRARS, Blaise. Du monde entier au cœur du monde: Poésies complètes. Paris :


Gallimard, 2006b.

CENDRARS, Blaise. Poésies complètes. Org. Claude Leroy. Paris: Denoël. 2001.

CHAREYRE, Antoine. Bois Brésil & Cie. Disponível em :


<http://boisbresilcie.blogspot.com/p/oswald-de-andrade.html>. Acesso em: 28 ago.
2019.

2037
DEL PICCHIA, Menotti. “Blaise Cendrars. A Conferência de Amanhã” In: EULALIO,
Alexandre. A aventura brasileira de Blaise Cendrars: ensaio, cronologia, filme
depoimentos, antologia, desenhos, conferências, correspondência, traduções. 2. Ed. Ver.
E ampl./ por Carlos Augusto Calil. São Paulo: edusp. 2001. p. 403, 404.

GALVÃO, Patrícia. “Blaise Cendrars: a aventura”. In: EULALIO, Alexandre. A


aventura brasileira de Blaise Cendrars: ensaio, cronologia, filme depoimentos,
antologia, desenhos, conferências, correspondência, traduções. 2. Ed. Ver. E ampl./ por
Carlos Augusto Calil. São Paulo: edusp. 2001. p.442-44.

PRADO, Paulo. “Cendrars” (1924). In: EULALIO, Alexandre. A aventura brasileira


de Blaise Cendrars: ensaio, cronologia, filme depoimentos, antologia, desenhos,
conferências, correspondência, traduções. 2. Ed. Ver. E ampl./ por Carlos Augusto
Calil. São Paulo: edusp. 2001, p.146.

PRADO, Paulo. “Poesia Pau-brasil”. In: ANDRADE, Oswald. Obras completas:


Poesias reunidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971, 7 v., p. 67-72.

SCHWARTZ, Jorge (Org.). Caixa Modernista. São Paulo: Edusp, 2003.

2038
BRANCO SAI, PRETO FICA: A PERIFERIA COMO POSIÇÃO

Camila Carvalho (UFMG)1

Resumo: Ancorados pelas reflexões que Didi-Huberman desenvolve em seu Quando as imagens
tomam posição (2017), propomos uma leitura do longa-metragem Branco Sai, Preto Fica (2014),
de Adirley Queirós. Noções como montagem, estranhamento, legibilidade e interrupção – às quais
o filósofo recorre para discutir a obra de Bertold Brecht – também estão presentes no filme. Assim
como a situação de exílio influencia diretamente nos primeiros trabalhos do dramaturgo, a
proximidade com a periferia é determinante para trabalho de Adirley Queirós. Interessa-nos
investigar em que medida procedimentos próprios do teatro breschtiano são apropriados pela
linguagem cinematográfica e discutir de que maneira o cineasta faz de sua situação periférica
uma posição (DIDI-HUBERMAN, 2017).

Palavras-chave: Cinema; Adirley Queirós; Brecht; Memória; Periferia

“Para saber é preciso tomar posição” (2017, p.15), escreve Georges Didi-Huberman
em seu primeiro olho da história2. Para saber é preciso situar-se no tempo, estar perto o
bastante para enxergar as nuances e afastado o suficiente para enquadrá-las num todo.
Para saber é preciso implicar-se, dirá o filósofo pouco mais adiante. Saber, tomar posição,
fazer de seu lugar no mundo uma posição; movimentar-se, insubordinar-se. É o que faz
Adirley Queirós, cineasta brasileiro, funcionário público e morador da Ceilândia, a maior
cidade-satélite da Capital Federal, tema central de todos os seus filmes.
Penso em sua biografia. Adirley escapa aos estereótipos. Morador da periferia,
mudou-se para Ceilândia ainda criança quando seus pais, trabalhadores do campo,
tiveram as terras desapropriadas. Interrompeu os estudos na adolescência para tornar-se
jogador de futebol profissional dos times de segunda e terceira divisão. Sua carreira se
encerra aos 25 anos, quando, desempregado, retoma os estudos e conclui o ensino médio
por meio do Supletivo. Visita a Universidade de Brasília pela primeira vez para se
inscrever num concurso público de nível médio – o mesmo que lhe garantiu o cargo de
técnico administrativo que ocupa até hoje. Aos 30 anos, ingressa no curso de cinema
menos motivado pela paixão que pela probabilidade: dentre as alternativas do curso de
Comunicação Social, este era o que exigia a pontuação mais baixa. Adirley costuma
comentar em entrevistas que quando entrou para a UnB, seu conhecimento sobre cinema

1
Graduada em Letras (UFMG), Mestranda em Teoria da Literatura e Literatura Comparada (UFMG).
Contato: ccamilacarvalho45@gmail.com.
2
O livro Quando as imagens tomam posição é o primeiro volume da série que o autor intitula “O olho da
história”.

2039
restringia-se ao pornô e Bruce Lee, os únicos filmes que eram exibidos nas salas de rua
da Ceilândia.
“Para saber é preciso manter-se em dois espaços [...] ao mesmo tempo” (DIDI-
HUBERMAN, 2017, p.16). Lembro-me uma vez mais de Didi-Huberman porque me
parece ser essa situação de constante movimento que compõe o saber de Adirley Queirós.
O mesmo sujeito que conhece de perto a realidade da Ceilândia é o que tem acesso a tudo
que lhe é negada. Perto o bastante e distante o suficiente, Adirley faz da periferia uma
posição e dela um trabalho de pensamento sobre o território que passa pela imagem, pela
memória, pela história e pelo cinema.
Seu segundo longa-metragem, o premiado Branco sai, preto fica (2014), é exemplar
nesse sentido. Inicialmente, o projeto previa a construção de um documentário sobre a
história do Quarentão, um baile de música black que surgira nos anos 80’, dez anos depois
da Ceilândia3. Por configurar-se como um espaço de identidade muito marcante para essa
geração – da qual Adirley faz parte –, o Quarentão fora constantemente criminalizado
pela polícia que, em novembro de 1986, num gesto violento tanto simbólica quanto
fisicamente, invade o local e fecha o baile.
BSPF4 seria, portanto, um filme documentário que recuperaria essa história a partir
de dois de seus protagonistas: Marquim do Tropa, de quem o disparo da polícia militar
tirou o movimento das pernas e Shokito Sartana cuja perna esquerda fora carregada pela
cavalaria. Adirley, então, elabora o projeto e o inscreve num edital público específico
para esse tipo de filme. Entretanto, o diálogo com a equipe e com as personagens mudam
a direção do caminho: o documentário converte-se numa espécie de ficção científica na
qual os arquétipos próprios do gênero servem de base para a fabulação dessa memória
real.
Penso em que medida esse gesto de insubordinação já aponta para uma tomada de
posição. A distância que BSPF estabelece em relação a alguns filmes – ficcionais ou não
– que têm a periferia como tema me parece sintomática. É completamente outro, o seu
modo de apresentar o que frequentemente figura o cinema nacional. Adirley volta-se para
aquilo de que faz parte; seu olhar, então, prescinde dos binóculos.

3
Com o objetivo de retirar de Brasília as favelas que se formaram logo depois de sua construção – cuja
população era formada pelas pessoas que executaram as obras – a Ceilândia fora criada em 1971, como
resultado da Campanha de Erradicação de Invasões (CEI), sigla que dá origem ao nome da cidade-satélite.
4
Deste ponto em diante, usaremos a abreviação BSPF para nos referirmos ao título do filme.

2040
É bastante significativo, o modo como BSPF borra fronteiras. Não se trata somente
de um documentário que flerta com a ficção, mas de um documentário que flerta com um
tipo específico de ficção. Esse gesto, que parece demonstrar um desejo radical de
afastamento de tudo que poderia sugerir uma atmosfera de realidade, é o modo como
Adirley toma posição, também, em relação à linguagem cinematográfica. Sobretudo em
relação àquela que, por se vestir de depoimentos e pessoas reais, costuma reivindicar a
marcação de um lugar próprio que se define pela diferença. O documentário é aquilo que
está o mais distante quanto possível do universo da fabulação.
Na contramão de tudo que se espera, BSPF é ambientado num futuro distante e
indeterminado, em que a segregação centro-periferia persiste e se intensifica. Sob esse
Estado fascista, que visa o estabelecimento da ordem por meio de toques de recolher e
pelo controle do acesso à Capital Federal, vivem o radialista Marquim e o mecânico de
próteses Sartana, dois sobreviventes da noite do Quarentão que trazem em seus corpos as
marcas da violência policial. Juntos, eles elaboram um plano de vingança contra o
Sistema: a explosão de Brasília por meio de uma bomba sonora, um artefato apocalíptico
composto pelos sons da periferia. Paralelamente a isso, um suposto viajante do tempo,
Dimas Cravalanças, é enviado do ano de 2070 para investigar o caso do Quarentão.
Os atores Marquim do Tropa e Cláudio Irineu Shokito emprestam seus corpos às
personagens Marquim e Sartana e, em certo sentido, interpretam a si mesmos. Sem perder
de vista a noite do fechamento do Quarentão e as marcas que o episódio deixara nos
corpos desses sujeitos, BSPF extrapola não só suas histórias pessoais, mas o próprio
episódio que lhe serve de mote. É esse movimento que permite ao filme abordar questões
raciais e territoriais de um modo mais abrangente: ao transformarem-se em personagens,
Marquim e Sartana deixam de ser identidades específicas para converterem-se na imagem
de toda uma juventude periférica marcada pela violência.
O modo como BSPF articula a convergência de tempos – que somente uma
atmosfera de ficção científica possibilitaria – também me parece uma estratégia potente.
Aquele racismo velado (do passado) que criminalizou e amputou a construção de uma
identidade coletiva periférica é o que abre o caminho para a edificação da nova ordem
fascista (do presente-futuro) que segrega a periferia – agora institucionalmente –
controlando o trânsito de seus moradores por meio de passaportes. Amputar o
pertencimento, promover o isolamento. Não há resistência sem organização coletiva. Ao

2041
projetar um futuro distópico para a Ceilândia a partir do episódio de fechamento de um
de seus lugares mais simbólicos, o filme desenha esse movimento de progressão histórica.
Mas não só. A convergência de tempos em BSPF também sugere que a releitura do
passado pode ser uma forma potente de romper o continuum da história5.
“Alguém que esquece o passado não poderá lhe escapar” (DIDI-HUBERMAN,
2017, p.36), leio na seção em que Didi-Huberman comenta um dos trabalhos de Bertold
Brecht. “As imagens”, continua o filósofo, “formam do mesmo modo que a linguagem,
superfícies de inscrição privilegiadas para esses complexos processos memoriais”
(ibidem, p.37). Didi-Huberman faz referência ao projeto da Kriegsfibel, as pranchas em
que Brecht colocava em diálogo fotografias de jornal e pequenos poemas que lhes serviam
de legenda. Nesta mesma seção, o filósofo chama atenção para o procedimento da
montagem, o artifício por meio do qual o artista confere àquelas imagens reais,
legibilidade. A voz de Brecht salta, então, da página: “Mais do que nunca, o simples fato
de ‘oferecer a realidade’ não diz algo sobre essa realidade. Uma fotografia das usinas
Krupp ou da A. E. G. não ensina praticamente nada sobre essas instituições” (BRECHT
apud DIDI-HUBERMAN, 2017, p.37). É justamente isso que parece não escapar a
Adirley.
A montagem é inseparável do cinema, mas BSPF parece levar o procedimento às
últimas consequências: divido em três partes – que embora não sejam separadas por
nenhum tipo de aviso são claramente identificáveis –, o filme é construído por
contradições e interrupções que, por meio de uma distorção extrema, tornam a realidade
mais legível.
Parte I: O baile do Quarentão e a Ceilândia distópica
BSPF inicia-se com um monólogo. Da rádio pirata instalada numa espécie de porão,
Marquim faz uma viagem no tempo e rememora a noite de fechamento do Quarentão. A
construção da sequência é primorosa: a câmera começa filmando a personagem que, na
medida em que o relato prossegue, cede lugar às fotografias reais do baile. Inicialmente,
as fotografias correspondem à legenda: “Pô, tá inframado vei, caramba. [...] Tá louco,
inframado, inframado! Tá lotada a bilheteria” (BRANCO SAI, PRETO FICA, 2014,
3’35”), diz Marquim enquanto o espectador observa uma fotografia na qual jovens negros

5
Sobre essa expressão cf. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In.:____. Magia e técnica,
arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012.

2042
são flagrados formando uma fila que ocupa todo o quadro. O relato segue desse modo até
o momento da chegada da polícia. A câmera, então, retorna para o estúdio improvisado
da rádio pirata e o que se vê é Marquim, mais velho, reproduzir o instante em que o baile
parou. Não existem fotografias desse momento. O relato segue: “Ah, não, vão parar o
baile? Caramba, bicho, porra! [...] Bora, bora, bora, puta prum lado, viado pro outro. [...]
Encosta ali. [...] Branco sai, preto fica, porra!” (ibidem, 5’32”). Silêncio. Alguns segundos
depois, ele prossegue: “Tá armado? Não, tô não... Tá... Deita no chão ai!” (ibidem, 6’18).
Novamente silêncio. Marquim aumenta o volume. A caixa de som reproduz um barulho
de helicóptero que se expande gradativamente. A cena, então, é interrompida por uma
imagem: jovens rapazes negros, deitados no chão. Dançando. Agora a legenda já não
corresponde. O simples fato de ‘oferecer a realidade’ não diz algo sobre essa realidade:
é ao desconstruir e remontar esses documentos, que BSPF dá legibilidade ao tempo, por
meio da legibilidade das imagens.
Surge na tela o título do filme. Branco sai, preto fica. É a palavra de ordem do
policial na noite da invasão. Em seguida, o interior de um contêiner explode na tela.
Dentro dele, um homem negro sacode; as luzes coloridas e o rap que toca ao fundo
acompanham o movimento. Uma interrupção. Uma terceira personagem surge à
distância. A câmera, então, se aproxima: é Sartana fotografando o horizonte. Interrupção.
Voltamos para dentro do contêiner: o homem diz, para o rádio que tem nas mãos, ser
Dimas Cravalanças, enviado de 2070.
Essa personagem se configurará como uma interrupção constante durante toda a
narrativa. Dimas Cravalanças é uma figura ambígua. Diferentemente de Marquim e
Sartana que, tanto no filme como fora dele, são claramente duas vítimas do episódio do
Quarentão, o viajante do tempo é interpretado por Dilmar Durães, e nesse sentido, é uma
personagem puramente ficcional. Mas o filme não deixa claro se ele é mesmo um enviado
do futuro ou se é mais uma vítima daquela noite que fora afetada psicologicamente. A
ambiguidade, que ao longo da narrativa ficará mais evidente, já é insinuada em sua
aparição inaugural.
Em seu relatório de chegada ao passado, Dimas lista as sequelas da viagem:
“transtornos psicológicos, cabeça... Tô lombrado, siquite, língua bamba dificulta
contato!” (ibidem, 8’22”). Seu relatório é interrompido por ele mesmo. Dimas começa a
atirar, com uma arma invisível, para algo que está fora da tela. Segundos depois,

2043
recompõe-se e continua: “segunda observação: passagem me deixou melancólico, dilatou
demais! [...] Diabo de muita sensação de tempo... Nóia lá de casa, saudade de mãe, pai
[...]” (ibidem, 9’24”). Por um lado, no contexto de uma ficção científica, um viajante no
tempo me parece mais que adequado. Por outro, é preciso lembrar que há poucos minutos
uma viagem no tempo ressoou pela rádio pirata, através da voz de Marquim. O que Dimas
tem nas mãos é um rádio.
BSPF segue composto por essas aberturas e contradições irresolvíveis. Lembro-me,
então, do que diz Didi-Huberman sobre a forma épica tão marcante no teatro brechtiano:
“trata-se primeiro de elaborar os elementos do real no sentido de um arranjo experimental
pelo qual [...] não se reproduz o estado das coisas, mas descobre-os” (2017, p.58). O
filósofo comenta ainda que essa descoberta se faz pela interrupção que cria
descontinuidades. “[...] Desligar as articulações até o limite do possível” (ibidem), dirá
mais adiante. Dimas Cravalanças é, precisamente, esse ponto de ruptura que distancia e
provoca estranhamento no espectador. Certamente o mais radical, mas não o único.
As cenas de BSPF são compostas por imagens investidas de uma potência épica. É
exemplar o modo como Adirley costura as duas narrativas que sustentam o filme. As
doses de distopia são destiladas pouco a pouco: Marquim dirige seu carro, uma voz salta
do rádio: “se você está ouvindo essa faixa é porque está sob a área de controle da cidade
de Brasília. Por gentileza, tenha em mãos o seu passaporte” (BRANCO SAI, PRETO
FICA, 2014, 11’08”). Sartana visita um ferro velho, e o que se vê não são peças de carro,
mas pernas mecânicas amontoadas. O expectador começa, então, a se ambientar nessa
Ceilândia do futuro. Mas o conforto vai ser logo interrompido.
Pouco tempo depois, enquanto assistimos à cena em que Marquim (personagem)
fuma, em silêncio, um cigarro em sua varanda, um intruso invade a narrativa. O som
ambiente cede lugar à voz de Marquim (pessoa): “Eu vi como se tivesse um eco.
Vuuuumm... Aí, nisso, adormeceu assim o meu corpo... Nessa dormência do corpo eu
procurei os meninos e já não vi mais eles, sumiu todo mundo! E... eu caí no chão” (ibidem,
12’43”). Ficção e realidade se confundem: o que vejo me insere no presente-futuro,
distópico e ficcional; o que ouço, em contrapartida, me transporta para o passado, distante
e real.
Na tela, Marquim aparece enclausurado, dentro de uma varanda completamente
gradeada. A imagem, então, parece ter um sentido duplo: ao mesmo tempo em que está a

2044
serviço da distopia, mostra aquilo que o relato não dá conta de dizer: prisão. O tiro da
polícia aprisionou Marquim na cadeira de rodas e, não por acaso, em quase todos os
momentos em que aparece, a personagem está aprisionada: no carro, na varanda, no porão
apertado da rádio pirata.
O procedimento se repete com o depoimento de Sartana. Mas agora, no cenário
entrecortado por elementos metálicos e finos – que não deixam de fazer referência à sua
perna mecânica – o que se vê é a personagem sempre prestes a cair. Quando perdeu a
perna, Sartana precisou reaprender a se equilibrar. “O que não se pode dizer ou
demonstrar, deve ser mostrado” (2017, p.28), dirá Didi-Huberman sobre a montagem e
sua relação com a potência épica das imagens.
Parte II: A vingança e a criação da bomba sonora
Se nesse primeiro momento, o filme concentra-se em ambientar o espectador na
Ceilândia distópica e familiarizá-lo com o episódio real que a ele se mistura, em sua
segunda parte, BSPF mergulha o espectador na vingança que Marquim e Sartana
planejam. A bomba sonora começa, então, a ser composta. Com o auxílio de Jamaika,
uma personagem secundária, Marquim recolhe os sons da periferia. O barulho de um
centro comercial popular, um rapper e uma banda de música brega são alguns dos
elementos gravados pelo radialista. Ao mesmo tempo, o mecânico de próteses Sartana se
incube da parte técnica: desenhos, cálculos, mapas. Os dois, então, encontram-se pela
primeira vez. Até aqui, as personagens apareciam apartadas e, justamente no momento
em que uma articulação coletiva começa a se desenhar, os encontros acontecem. Não por
acaso, o que vemos é a construção de um artefato composto por elementos que formam a
identidade da periferia. Não há resistência sem organização coletiva.
O espectador está completamente imerso no universo ficcional, quando, então é
surpreendido pelo único momento em que Marquim e Sartana dão depoimentos
diretamente para a câmera. Entretanto, os depoimentos filmados estão projetados na
parede da nave contêiner de Dimas Cravalanças. “Um choque de heterogeneidades”
(2017, p.80), dirá Didi-Huberman. É isso a montagem. O movimento é dialético. A
sequência expõe, ao mesmo tempo e de modo direto, o que o filme tem de mais real e de
mais absurdo. Assim funciona a dialética do montador: uma forma específica de “expor
a verdade desorganizando, logo, complicando ao implicar – e não explicando – as coisas”
(ibidem, p.87). É Didi-Huberman (2017) quem dirá que, justamente por abrir espaços às

2045
contradições não resolvidas, a dialética do montador só dis-põe as coisas ao expor sua
vocação para a desordem.
A projeção salta da parede metálica do contêiner e explode na tela. Durante alguns
minutos o espectador mergulha, da maneira mais concreta possível, na memória de
Sartana e Marquim (pessoas). O gesto funciona como uma abertura para a terceira e
última parte de BSPF, na qual o espectador terá a chance de ver essa memória traumática
se transformar em ação e resistência. É a releitura do passado que vai interromper o
continuum da história.
Parte III: A explosão
Depois de tomarem a tela, e expulsar por completo o espectador do universo da
ficção, Marquim e Sartana voltam a ser personagens e aparecem, agora, acertando os
últimos detalhes da explosão. O plano, então, entra em sua fase final. Marquim retira os
equipamentos da rádio pirata e esconde os mapas que detalham o processo. Sartana coleta
do metrô, a energia necessária para ativar a bomba e leva as baterias abastecidas para o
porão de Marquim, local de lançamento. O plano, então, vai sendo executado diante dos
olhos do espectador. Uma interrupção.
Dimas Cravalanças surge na tela. O viajante está sentado na nave cujo movimento
sugere uma espécie de teletransporte. Nas paredes estão afixados fotografias e recortes de
jornais antigos que noticiam o episódio do fechamento do Quarentão. Após alguns
segundos de silêncio, um novo contato com o futuro – agora sem a mediação do rádio –:
uma voz eletrônica informa a Dimas Cravalanças que sua missão teria sido cumprida. O
Estado Brasileiro iria, finalmente, quitar a dívida com a população negra e periférica.
Entretanto, a voz pede a Dimas Cravalanças que interrompa o evento eletromagnético
ocorrido no passado que comprometerá a terra, no futuro. O teletransporte termina. Dimas
Cravalanças aparece, agora, numa espécie de depósito de ferragens, desferindo golpes
com o auxílio de uma pá. Pouco tempo depois, o viajante se agacha atrás de uma barra de
metal e saca uma arma invisível. Enquanto dispara em direção a algo que está fora da tela,
Cravalanças grita: “Toma aí paga pau do progresso. Toma aí 225 prestação. Aí, não vai
vim aqui não, vai ficar aí no futuro mesmo. [...] Toma Europa do inferno. Toma grafite
paga pau da porra” (BRANCO SAI, PRETO FICA, 2014, 1:23’55”). Silêncio. Dimas se
volta para a câmera, atira no espectador e quebra a quarta parede.

2046
Com esse gesto, a personagem parece confirmar minha aposta: sua função ao longo
da narrativa é interromper e causar estranhamento. Cravalanças é o elemento que provoca,
de maneira mais radical, o distanciamento. “Distanciar [é] [...] aguçar o olhar” (2017,
p.61), diz Didi-Huberman a certa altura. É justamente a personagem mais absurda e
contraditória dessa narrativa distópica – e talvez justamente por isso –, quem consegue
mimetizar a proximidade incômoda que o filme estabelece com o mundo real que,
negando em representar, acaba apresentando.
Dimas, que ora parece ser mesmo um viajante do futuro e ora aproxima-se mais da
hipótese de uma vítima afetada psicologicamente pelo episódio do Quarentão, borra a
fronteira não entre o que é real e o que é ficção – como fazem as personagens de Marquim
e Sartana –, mas entre o que é possível e o que não é. É Dimas Cravalanças quem aguça
meu olhar e me põe a pensar que a segregação institucionalizada ou a instauração de um
governo fascista não é algo assim tão distópico. Em 2014, esse contexto que não era real,
já parecia ser possível.
A narrativa, então, se encaminha para o desfecho. A bomba sonora é disparada.
“Não deixar mudo o inaudito da história” (2017, p.161), escreve Didi-Huberman. É muito
simbólico ser justamente uma bomba sonora o artefato utilizado na vingança. A relação
entre o som e o episódio do Quarentão é evidente. Mas a bomba sonora também extrapola
essa conexão. Todo o silenciamento imposto transformou-se em energia: a periferia não
vai apenas explodir o centro, mas vai explodi-lo depois de obrigá-lo a ouvir.
Na tela, a explosão é representada pelos desenhos de Sartana que são exibidos
enquanto o conteúdo da bomba ressoa. “É preciso imagem para fazer história, sobretudo
na época da fotografia e do cinema. Mas é preciso também imaginação para rever as
imagens, e, logo, para repensar a história” (DIDI-HUBERMAN, 2017, p.236, itálico do
autor). É o que faz BSPF.
A explosão, contudo, não é a sequência final do filme. Logo depois dos créditos –
que passam enquanto a bomba ainda ressoa – surge na tela, sob um fundo branco, uma
frase a lápis possivelmente escrita por Sartana6: “Da nossa memória fabulamos nóis
mesmos. Ceilândia/DF. Janeiro de 2014” (BRANCO SAI, PRETO FICA, 2014,
1:35’14”). Para saber é preciso tomar posição.

6
Todos os desenhos que aparecem no filme são feitos pela personagem Sartana.

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Referências:

BRANCO Sai, Preto fica. Direção e roteiro: Adirley Queirós. Produção: Denise Vieira e
Adirley Queirós. CEI-CINE – Coletivo de Cinema em Ceilândia. Co-Produção Trotoar.
Ceilândia-DF, 2014.1h 35min.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tomam posição: o olho da história, I.


Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017.

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