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(Analise) Relato de Um Certo Oriente

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OBRAS LITERÁRIAS

Nome:__________________________________________________ N.º:____________

Série: 3.ª Turma:__________ Turno:__________ Unidade: BJ____________________

RELATO DE UM CERTO ORIENTE


MILTON HATOUM

AUTOR
Milton Hatoum nasceu em 19 de agosto de 1952, em Manaus, descendente de imigrantes libaneses.
Mudou­‑se para Brasília em 1967 e lá permaneceu até 1970, quando foi viver em São Paulo, onde se diplomou
em Arquitetura na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
Ainda na capital paulista, trabalhou como jornalista e professor. Em
1980, como bolsista, viajou para a Espanha – morou em Madri e
Barcelona – e, depois, na França, onde estudou Literatura Comparada
na Universidade Sorbonne. Ao retornar ao Brasil, instalou­‑se em
Manaus e, durante quinze anos, lecionou Literatura Francesa na
Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Como professor
convidado na Universidade da Califórnia (Berkeley), ministrou aulas
de Literatura Brasileira. Lá também foi escritor residente, assim
como na Yale University (New Haven/EUA) e na Stanford University.
Foi ainda bolsista da Fundação VITAE, da Maison des Écrivains
Étrangers (Saint Nazaire, França) e do International Writing Program
(Iowa/EUA).
Publicou, em 1989, seu primeiro romance, Relato de um certo
Oriente, que recebeu o Prêmio Jabuti de melhor romance do ano.
O segundo romance, Dois irmãos, de 2000, também foi premiado
FONTE: <https://www.companhiadasletras.
com um Jabuti – 3º lugar na categoria romance – e indicado para o com.br/autor.php?codigo=00217>. Acesso
prêmio IMPAC­‑ DUBLIN. A obra foi, em 2001, uma dos finalistas do em: 03/04/2019, às 15h50min.
Prêmio Multicultural do Estadão. Em 2005, seu terceiro romance,
Cinzas do Norte, obteve o Prêmio Portugal Telecom, o Grande Prêmio da Crítica/APCA­‑2005, o Prêmio
Jabuti/2006 de melhor romance, o Prêmio Livro do Ano da CBL e o Prêmio BRAVO! de Literatura. Em 2008,
Hatoum recebeu do Ministério da Cultura a Ordem do Mérito Cultural. Em 2010, a tradução inglesa de Cinzas
do Norte (Ashes of the Amazon, Bloomsbury, 2008) foi indicada para o prêmio IMPAC­‑ DUBLIN. Em 2008, o
autor publicou seu quarto romance, Órfãos do Eldorado, também agraciado com o Prêmio Jabuti – 2º lugar na
categoria romance. Em 2009 publicou o livro de contos A cidade ilhada. E, em 2013, foi lançada Um solitário
à espreita, uma seleção de crônicas publicadas em jornais e revistas. O prêmio mais recente, recebido em
setembro de 2018 – Troféu Juca Pato – lhe foi conferido por Noite da espera, de 2017, primeiro romance que
compõe a trilogia O lugar mais sombrio. Hatoum é ainda colunista dos jornais O Estado de S.Paulo, Jornal do
Brasil e O Globo. Em 2017, recebeu do governo francês o título de Officier de L’Ordre des Arts et des Lettres.

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O autor publicou também ensaios e artigos sobre literatura brasileira e latino­‑americana em revistas e
jornais do Brasil, da Espanha, França e Itália. Alguns de seus contos foram publicados nas revistas Europe,
Nouvelle Revue Française (França), Grand Stree (Nova York) e Quimera (México). Participou de várias
antologias de contos brasileiros publicados na Alemanha e no México, e da Oxford Anthology of the Brazilian
Short Story.
Os livros de Hatoum foram traduzidos para doze idiomas e publicados em catorze países. Só no Brasil,
foram vendidos mais de 300 mil exemplares de suas obras.

ESTILO
O crítico Daniel Pizza, na resenha do livro Cinzas do Norte, afirma que a literatura de Milton Hatoum “vai
do meio ambiente ao vazio da alma, fundindo o social e o existencial”. Essa constatação, obviamente, não
se restringe à obra resenhada, mas se estende à produção do autor manauara, que empreende, em suas
narrativas, mergulhos na origem das famílias retratadas – porque sempre há uma família –, inclusive em
seus aspectos disfuncionais, e no ambiente em que se desenvolvem. Assim, é­‑nos impossível analisar os
personagens fora do contexto histórico­‑social em que estão inseridos. Em Relato de um certo Oriente, temos
uma narrativa que se desenvolve em Manaus, um meio híbrido que denota grande desigualdade social,
diversidade de etnias, de línguas e de costumes, e uma estranha coexistência entre tudo isso, que dá um tom
de uniformidade à narrativa.
A produção do autor envolve, quase sempre, o processo de integração dos imigrantes vindos do Oriente
Médio – em especial os libaneses. Segundo críticos, essa tendência decorre do fato de Hatoum ser escritor
de uma minoria (a colônia libanesa no Brasil não é exatamente grande), o que o move a registrar “a voz dos
esquecidos: ecos do passado, daquele espaço problemático da assimilação".
Do ponto de vista estilístico, a prosa do autor varia pouco – o que garante unidade interna a sua obra. A
professora e crítica Marleine de Toledo afirma que “o estilo de Hatoum é econômico, mas ao mesmo tempo
poético, cheio de figurações e estranhamentos”. O trecho a seguir ilustra a análise da crítica:
Passei cinco ou seis anos exercitando esse jogo especular entre pronúncia e ortografia,
distinguindo e peneirando sons, domando o movimento da mão para representá­‑los no
papel, como se a ponta de um lápis fosse um cinzel sulcando com esmero uma lâmina de
mármore que aos poucos se povoava de minúsculos seres retorcidos e espiralados que
aspiravam à forma dos caracóis, das goivas e cimitarras, de um seio solitário que a língua
ao contato com o dorso dos dentes e ajudada por um espasmo fazia jorrar dos lábios
entreabertos um peixe Fenício. (p. 46)
Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa7721/milton-hatoum>. Acesso em: 03/04/19, às 16h33min. (Adaptado)

OBRA
“A vida começa verdadeiramente com a memória.”
(Relato de um certo Oriente. p. 19)

Relato de um certo Oriente é um romance polifônico, ou seja, traz várias vozes entremeando a narrativa.
A narradora principal, inominada, conta a história de sua busca, que vai se aprofundando na medida em que
outras vozes vão se mostrando. Cada narrador se constitui num olhar diferenciado a respeito de determinada
situação ou personagem e os mergulhos na memória de cada um revelam uma volta num tempo, que ora é

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mais distante, ora é mais próximo do tempo da narrativa. No último capítulo, voltamos ao tempo presente da
narrativa e conhecemos um pouco mais dessa narradora e de seus motivos para empreender essa busca
agenciada pelas memórias de todos os narradores. A tradição da transmissão oral, comum ao universo
retratado e à cultura árabe, se revela no título – trata­‑se de um relato, afinal! – e também na maneira como
cada um dos narradores mergulha no tempo e no espaço distantes
para enunciar sua perspectiva da história.
No panteão dos grandes autores da nossa literatura, Hatoum
utiliza a palavra como agente de transfiguração da realidade, com a
mesma intensidade com que nos aproxima da essência de cada um
de nós por meio da leitura. Afinal, segundo a narradora sem nome,
“[...] às vezes, a leitura de um livro desvela uma pessoa.” (p. 71 –
grifo nosso)
Vamos entender, ainda no primeiro capítulo, que a narradora é
também missivista, ou seja, seu relato é dirigido, por meio de cartas,
a seu irmão mais novo, que vive em Barcelona, na Espanha. Assim,
a busca engendrada pela memória – da narradora sem nome e das
outras vozes narrativas – é estendida a esse irmão, também sem
nome. E é assim que nós, leitores, passaremos a conhecer a história
dessa família de imigrantes libaneses que escolheu Manaus para se
estabelecer. Memórias, tradições, realidades díspares se entretecerão
FONTE: <https://www.companhiadasletras.
e formarão esse relato, sob o arremate final da narradora.
com.br/detalhe.php?codigo=10135>. Segundo o Dicionário de Símbolos, o termo oriente está vinculado
Acesso em: 03/04/2019, às 16h37min.
à origem da luz, à busca pela luz no que diz respeito à alma universal.
Sob essa perspectiva, o tal relato de determinado oriente pode ser entendido como a enunciação de uma
história – que nasce de outras várias histórias – que se colocam a serviço de encontrar e estabelecer um
sentido à vida – da narradora sem nome, de todos aqueles que se dispuseram a compartilhar com ela seus
relatos e, por que não, de nossa própria vida, como leitores.
A busca de um sentido pela memória e pela fala não são novidades em nossa literatura: Graciliano
Ramos já fizera isso em São Bernardo e, especialmente, Riobaldo, o jagunço de Grande sertão: veredas faz
isso ao longo do monólogo que se constitui em uma das obras mais importantes da nossa produção literária.
O diferencial de Hatoum é que essa voz narrativa, que busca o sentido da vida, é fragmentada em várias
outras vozes, que relatam memórias que se completam ou que abrem lacunas, que esclarecem, mas que
também omitem, que ecoam sons, cheiros, imagens e percepções que nos levam a uma esfera em que os
duplos convivem e, de certa forma, se completam: estrangeiros e brasileiros; Manaus e Líbano; português
e árabe; Parisiense e sobrado; catolicismo e islamismo; passado e presente; presença e ausência; fala e
mudez; movimento e imobilidade.
Os capítulos irão se alternando na medida em que as diferentes vozes vão aparecendo na narrativa
e somente nas últimas páginas do capítulo final vamos entender um dos aspectos que possam ter ficado
em aberto: o linguístico. Afinal, como, em meio a tantas vozes distintas, em tempos distintos, é possível
encontrarmos uniformidade linguística? A resposta nos chega em um exercício de metalinguagem, em que a
narradora sem nome expressa suas dificuldades em concatenar tantas vozes distintas e suas peculiaridades
em um único relato e a opção que fizera:

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Gravei várias fitas, encho de anotações uma dezena de cadernos, mas fui incapaz de
ordenar coisa com coisa. [...]

Quantas vezes recomecei a ordenação de episódios, e quantas vezes me surpreendi ao


esbarrar no mesmo início, ou no vaivém vertiginoso de capítulos entrelaçados, formados
de páginas e páginas numeradas de forma caótica. Também me deparei com um outro
problema: como transcrever a fala engrolada de uns e o sotaque de outros? Tantas
confidências de várias pessoas em tão poucos dias ressoavam como um coral de vozes
dispersas. Restava então recorrer à minha própria voz, que planaria como um
pássaro gigantesco e frágil sobre as outras vozes. Assim, os depoimentos gravados,
os incidentes, e tudo o que era audível e visível passou a ser norteado por uma única voz,
que se debatia entre a hesitação e os murmúrios do passado. (p. 148 – grifo nosso)

PERSONAGENS PRINCIPAIS
• Narradora sem nome – retorna a Manaus depois de quase 20 anos de ausência, após ter passado
um tempo internada em uma casa de saúde em São Paulo. Ao se deparar com a morte de Emilie,
passa a recuperar a mulher que a criou e a seu irmão por meio da memória – sua e de outros.
• Emilie – a mãe/avó adotiva da narradora e do irmão, matriarca de uma família de libaneses. Católica
fervorosa, sua casa é o microcosmo em que se revelam as tensões e a convivência entre culturas,
religiões e idiomas.
• Marido de Emilie, ou o pai – sem nome – homem sério e calado. Muçulmano.
• Hakim – filho mais velho do casal, o único a aprender árabe. É uma das vozes narrativas.
• Samara Délia – filha caçula, que teve uma criança na adolescência e foi execrada por isso. Nunca
revelou o nome do pai de sua filha e viveu uma vida reclusa e isolada de todos.
• Dois filhos sem nome – “inomináveis, filhos ferozes de Emilie, que tinham o demônio tatuado no
corpo e uma língua de fogo.” (p. 9)
• Soraya Ângela – filha de Samara Délia. Surda e muda, morreu atropelada aos seis anos de idade.
• Hindié Conceição – amiga de Emilie, sabia de muitos segredos da família, por isso seu relato
compõe a narrativa.
• Dorner – fotógrafo que registra os últimos momentos de vida de Emir, irmão de Emilie. É uma das
vozes narrativas do livro.
• Anastácia Socorro – empregada da família que conquista o respeito de Emilie.
Vimos que os relatos se desdobram e se revelam ao longo dos capítulos. Observe o esquema a seguir,
que indica o trânsito das vozes na narrativa.

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ESQUEMA

CAPÍTULO 1

RELATO DA NARRADORA SEM NOME AO IRMÃO CAÇULA

CAPÍTULO 2

RELATO DE HAKIM À NARRADORA

CAPÍTULO 3

RELATO DE DORNER A HAKIM

CAPÍTULO 4

RELATO DO PAI A DORNER

CAPÍTULO 5

RELATO DE DORNER E DE HAKIM

CAPÍTULO 6

RELATO DA NARRADORA SEM NOME

CAPÍTULO 7

RELATO DE HINDIÉ CONCEIÇÃO

CAPÍTULO 8

RELATO DA NARRADORA SEM NOME


EXPLICANDO OS OUTROS RELATOS

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OBRAS LITERÁRIAS

Passemos agora a um breve resumo dos capítulos.

CAPÍTULO 1

A narradora sem nome, no presente da narrativa, relata seu despertar no quintal da casa em que
vivera na infância. Ela registra suas primeiras impressões do local em que está. Sua narrativa é direcionada
ao irmão mais novo, que mora em Barcelona, na Espanha. Nas primeiras linhas, ainda sem que possamos
perceber, a ideia do relato já se mostra presente. Observe: “Deitada na grama, com o corpo encolhido por
causa do sereno, sentia na pele a roupa úmida e tinha as mãos repousadas nas páginas também úmidas
de um caderno aberto, onde rabiscara, meio sonolenta, algumas impressões do voo noturno.” (p. 7) Mas é
apenas no capítulo final, quando a narradora voltar à cena inicial, que vamos entender o motivo da existência
daquele caderno e daquela viagem. Além do caderno, ela falará de outros mecanismos em que registrará
os vários relatos que surgirão no desdobramento da narrativa: o gravador e as cartas que o irmão mais novo
enviara a ela.
Ainda no capítulo inicial, vamos observar um fenômeno que se repetirá ao longo da narrativa: a presença
de sinestesias que funcionarão como desencadeadores da memória: “A atmosfera da casa estava impregnada
de um aroma forte que logo me fez reconhecer a cor, a consistência, a forma e o sabor das frutas que
arrancávamos das árvores que circundavam o pátio da outra casa.” (p. 7 e 8 – grifo nosso)
Veremos, também, pelo olhar da narradora, as marcas do Oriente no mobiliário das salas, o que nos
conecta com o título: “Além de sombrias, estavam entulhadas de móveis e poltronas, decoradas com tapetes
de Kasher e de Isfahan, elefantes indianos que emitiam o brilho da porcelana polida, e baús orientais com
relevos de dragão nas cinco faces.” (p. 8) A narradora conversa com a empregada, mas se dirige ao interlocutor
distante, remontando ao que encontrara: “[...] na fala da mulher que permanecera dentro de mim, havia uma
parte da vida passada, um inferno de lembranças, um mundo paralisado à espera de movimento.” (p. 9)
A narradora recorda como era a vida entre as três crianças da casa de Emilie: além dela mesma, o
irmão caçula e Soraya Ângela. Ela reconta, ainda, o dia da morte da menina, e traz à presença Hakim, o
único dos tios que “costumava fazer macaquices com a gente, passear de mãos dadas como Soraya, sempre
às escondidas [...]”. Foi a ele que a narradora, ainda menina, recorreu, ao ver a priminha atropelada no
meio da rua, talvez por entendê­‑lo como uma das poucas pessoas disponíveis para a menina morta. Ainda
neste capítulo, a narradora falará sobre o avô, que cuidou dos irmãos adotados como cuidara dos filhos,
proporcionando­‑lhes o que podia, de forma justa e equilibrada: “[...] desfrutamos os mesmos prazeres e
regalias dos filhos, e com eles padecemos as tempestades de cólera de um pai desesperado e de uma mãe
aflita. Nada e ninguém nos excluíam da família, mas no momento conveniente ele fez questão de esclarecer
quem éramos e de onde vínhamos, contando tudo com poucas palavras que nada tinham de comiseração
ou drama.” (p. 17)
As memórias vão surgindo aos borbotões e a narrativa ganha nomes e odores com a apresentação da
origem da família e a presença de Hindié Conceição. Tudo isso, mais o triste retrato da realidade local, vão se
misturando, até que chegamos ao retorno de Hakim à terra natal e ao momento morte de Emilie. A narradora
conversa com o tio a respeito dos assuntos que a deixavam intrigada e Hakim dispõe­‑se a falar “[...] posso
passar o resto da minha vida falando do passado.” (p. 28) O tio começa então seu relato verborrágico, que
dará origem ao segundo capítulo.

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CAPÍTULO 2

Hakim conta, em um primeiro desdobramento temporal, um pouco de sua infância e do início da vida
adulta. Seu relato é entremeado pelas memórias dos relatos de Hindié Conceição, feitos anos atrás. Essas
memórias, passadas pela voz de Hindié a Hakim, configuram a tradição oral, tão comum à cultura árabe.
Uma delas remonta a mais de cinquenta anos, quando Emilie, triste por ter ficado sozinha com os irmãos
em Trípoli enquanto os pais tentavam a vida no Amazonas, acaba entrando em um convento. O irmão Emir,
inconformado, vai buscá­‑la ameaçando se matar caso Emilie não fosse com ele. O jovem mostra­‑se dramático
e passional, o que se confirmará em outro evento, quando quase abandona os irmãos em Marseille por causa
de uma mulher. “Resgatado” por Emílio, que fora instigado por Emilie a encontrar o irmão mais novo, Emir
nunca mais tem uma relação harmoniosa com a irmã.
Da narrativa dupla Hakim/Hindié, voltamos à voz do tio da narradora, que rememora como se davam as
grandes festas natalinas na casa de Emilie e, em especial, um Natal em que o pai e Hindié se estranharam
pela maneira “bárbara” como esta havia sacrificado os perus que comporiam a ceia. À noite, quando toda a
família e os amigos – pessoas de diversas etnias – se reuniam em torno da mesa, o pai atravessou a sala
e, em silêncio, saiu da casa, carregando vários objetos que lhe eram caros. Emilie, em um esforço sobre­
‑humano, manteve a chama da festa, embora visivelmente perturbada. A conversa deriva para a presença de
um fotógrafo, amigo da família, Dorner, que chega à casa da família libanesa.
Ao término das festividades, saberemos que o pai, antes de sair de casa, havia destruído os santos
católicos que Emilie cultuava e que ela passou o dia seguinte os reconstruindo, com a ajuda de Hindié
Conceição, ao mesmo tempo em que fez Anastácia Socorro ir atrás do marido e trazê­‑lo de volta para casa.
Hakim relata como começou a aprender árabe – ele é o único filho a aprender o idioma dos pais, o que
faz dele uma espécie de ponte entre os dois mundos, o oriental e o ocidental. Graças a esse aprendizado,
Hakim pôde adentrar no universo secreto que Emilie guardava, trancado em um armário. Destaca­‑se a
presença de um relógio preto, parado, como metáfora para o tempo da memória de Emilie, que guardava
sobre ele cartas trocadas com a irmã do convento que fora obrigada a abandonar e a última foto de Emir,
tirada por Dorner, pouco antes de o libanês se atirar às águas do rio. O fotógrafo é, portanto, a próxima voz
a relatar suas memórias.

CAPÍTULO 3

A voz narrativa é de Dorner, alemão que, entre outras funções, era fotógrafo e que morou na cidade e
conhecia bem a família de Emilie.
O início do capítulo é dedicado à história de Emir, o irmão de Emilie que cometeu suicídio. Dorner, que
se encaminhava para uma sessão de fotos, acabou registrando a última imagem de Emir (aquela que Hakim
descobrira no armário secreto da mãe) antes de o jovem se atirar às águas do rio. A dor da família – de Emilie
e do outro irmão, Emilio – também foi acompanhada por Dorner. Aqui entenderemos que esse relato foi feito
para Hakim, a quem Dorner irá se dirigir e a quem contará os desdobramentos desse evento: o pai de Hakim
pedirá a mão de Emilie em casamento. Também Dorner irá contar que, embora sempre muito silencioso e
sozinho, o marido de Emilie acabara por contar certas coisas de sua vida ao fotógrafo. O próximo capítulo
constitui­‑se, pois, no relato do pai de Hakim a Dorner, que explica uma certa mania que tinha: “[...] a mania
que cultivei aqui, de anotar o que ouvia, me permitiu encher alguns cadernos com transcrições da fala dos
outros. Um desses cadernos encerra, com poucas distorções, o que foi dito por teu pai no entardecer de um

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dia de 1929.” (p. 63) Observe que o registro escrito confere veracidade ao que Dorner enunciará, por meio
da voz narrativa do pai.

CAPÍTULO 4

Agora, quem fala é o pai, que relata alguns elementos de sua vida, como sua vinda ao Brasil e o motivo
que o levou a se estabelecer em Manaus.
O pai contará que o primeiro membro da família a vir para o Brasil foi o tio Hanna e que, passados alguns
anos, o avô de Hakim decidira que era hora do filho “enfrentar o oceano e alcançar o desconhecido, no outro
lado da terra.” (p. 65) O pai de Hakim, após longa viagem, chega ao lugar onde estaria o tio. Estranhamente,
o sisudo muçulmano é responsável por um dos trechos em que a prosa poética se revela na narrativa, ao
enunciar como vira o primeiro amanhecer em terras amazonenses, ainda antes de seu desembarque:
Ansioso, esperei o amanhecer: a natureza, aqui, além de misteriosa é quase sempre
pontual. Às cinco e meia tudo ainda era silencioso naquele mundo invisível; em poucos
minutos a claridade surgiu como uma súbita revelação, mesclada aos diversos matizes
do vermelho, tal um tapete estendido no horizonte, de onde brotavam miríades de asas
faiscantes: lâminas de pérolas e rubis; durante esse breve intervalo de tênue luminosidade,
vi uma árvore imensa expandir suas raízes e copa na direção das nuvens e das águas, e
me senti reconfortado ao imaginar ser aquela a árvore do sétimo céu. (p. 65)

Apesar de não encontrar o tio com vida, o pai vive alguns anos naquele povoado distante, onde aprende
a trabalhar com o comércio e, depois, num “último impulso aventureiro”, muda­‑se para Manaus. Ele explica
seus motivos para a escolha da cidade, ligados à religião: “decidi fixar­‑me nessa cidade porque, ao ver
de longe a cúpula do teatro, recordei­‑me de uma mesquita que jamais tinha visto, mas que constava nas
histórias dos livros da infância e na descrição de um hadji* da minha terra”. Percebemos, por esses trechos,
que o pai era um homem sensível, que se deixava levar pela emoção. Assim fora também com relação a
Emilie: “Muito antes do desaparecimento de Emir, soube que eu me casaria com Emilie. [...] Emilie era a única
filha e, de tanto ouvir falar dela, enamorei­‑me”. (p. 68)
*Hadji – título honorífico dado a um muçulmano que completa a peregrinação à Meca.

CAPÍTULO 5

Neste capítulo, alternam­‑se as vozes narrativas de Dorner e de Hakim. O fotógrafo fala de si, contando
que havia trocado o material fotográfico por uma biblioteca com obras raras editadas nos séculos anteriores.
Veremos que Dorner, em oposição à imobilidade de outras personagens, representa o movimento, a mudança.
Dentre os livros a que teria acesso está a obra As mil e uma noites. Interessante observarmos que essa obra
constitui­‑se no relato, em voz feminina, de outros relatos que ela fora ouvindo ao longo da vida. Coincidência?
Dorner leria o livro movido pelo convívio com o marido de Emilie. Suas impressões mostram que muitas
das histórias contadas pelo pai seriam parecidas com as que lera na obra: “por muito tempo acreditei no que
ele me contava, mas aos poucos constatei que havia uma certa alusão àquele livro, e que os episódios de sua
vida eram transcrições adulteradas de algumas noites, como se a voz da narradora ecoasse na voz do meu
amigo”. (p. 71) A voz do pai também contava histórias e, em parte, se apropriava delas, afinal, “o tempo acaba
borrando as diferenças entre uma vida e um livro”. (p. 71) Essas história ecoariam também na voz de Dorner?

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Na sequência, Hakim assume de novo o relato e “fecha” várias histórias que ficaram em aberto, inclusive
sobre como conheceu Dorner e suas impressões acerca desse alemão irrequieto, que fazia sucessivas
incursões à floresta amazônica e à Europa com a mesma familiaridade.
Outro elemento a ser retomado aqui é o armário secreto de Emilie. Hakim aprofunda suas memórias,
pois expõe como se sentia com relação às descobertas que fazia. Os tempos voltam a se misturar, pois as
memórias de um passado remoto são intercaladas com as de um passado recente, o dia anterior do relato:
“[...] ontem mesmo visitei o quarto de Emilie; no armário aberto vi o baú no mesmo canto, com a tampa aberta,
e vazio;” (p. 74) Com a morte da matriarca, os segredos não são mais acessíveis a Hakim. Na continuidade,
o narrador retoma as memórias mais distantes ao relatar o conteúdo das cartas trocadas entre a mãe e V.B.
Observe que as cartas são elementos estruturais importantes no romance. São a essência da enunciação
realizada a distância, direcionadas a alguém que geograficamente está distante. É o mesmo recurso que a
narradora sem nome utiliza para enunciar toda a história ao irmão.
Hakim continua se aprofundando nas recordações e fala a respeito das ações da mãe e questiona se era
generosidade o que a movia, quando da distribuição de alimentos aos filhos da lavadeira Anastácia Socorro,
afinal, Emilie não ofertava salário às empregadas domésticas – “procedimento corriqueiro aqui no norte”
(p.76) –, o que remonta a uma questão histórico­‑social importante. Além disso, destaca que as empregadas
eram abusadas pelos irmãos – os inomináveis: “meus irmãos abusavam como podiam das empregadas, que
às vezes entravam num dia e saíam no outro, marcadas pela violência física e moral”. (p. 76). Um dos motivos
que leva Hakim a deixar a casa materna e “venerar Emilie de longe” (p. 76) é a postura da mãe com relação
ao surgimento de um eventual neto, que seria fruto do abuso de um dos filhos. Rejeitada na casa de Emilie,
a mulher vai à Parisiense para contar sua história. O pai, cego de ódio como poucas vezes Hakim o havia
visto, volta para casa e grita, “entre pontapés e murros na porta, que um filho seu não pode escarrar como um
animal dentro do corpo de uma mulher”. (p. 77) A reação de Emilie é defender os filhos e acusar as caboclas
de serem sirigaitas. (Aliás, vocês devem se lembrar que outra mãe, em outra obra literária, tem atitude muito
parecida com a de Emilie. Pensou em Dona Salustiana, do romance Clara dos Anjos? Pois é... essa mesma!)
Hakim relata como se sentia com situações assim, trazendo mais uma vez questões sociais para dentro
da narrativa: “Essa convivência de Emilie com os filhos me revoltava, e fazia com que às vezes eu me
distanciasse dela, mesmo sabendo que era idolatrado. [...] lembro Dorner dizer que o privilégio aqui no norte
não decorre apenas da posse de riquezas: “– Aqui reina uma forma estranha de escravidão [...]. A humilhação
e a ameaça são o açoite; a comida e a integração ilusória à família do senhor são as correntes e golilhas”.*”
(p. 78).
* golilha ‑­ argola de ferro fixada num poste ou pelourinho, à qual se prendiam criminosos ou escravos pelo pescoço; argola.

Na sequência, Hakim conta um pouco sobre a relação entre a mãe e Anastácia Socorro, uma contadora
de histórias de sua terra, que conseguia envolver Emilie. Aqui de novo podemos refletir sobre o poder das
palavras, e mais, da oralidade: “[...] alguma coisa imprecisa ou misteriosa na fala de Anastácia hipnotizava
minha mãe. [...] Imantada por uma voz melodiosa, maravilhava­‑se com a descrição da trepadeira que espanta
a inveja, das folhas malhadas de um tajá que reproduz a fortuna de um homem, das receitas dos curandeiros
que veem em certas ervas da floresta o enigma das doenças temíveis, com as infusões de coloração
sanguínea aconselhadas para aliviar trinta e seis dores do corpo humano. ‘E existem ervas que não curam
nada’, revelava a lavadeira, ‘mas assanham a mente da gente.’” (p. 80­‑ 81). O poder dos relatos de Anastácia
é envolvente e encantatório, como convém às narrativas orais.
Tamanho encantamento, mais o fato de Anastácia Socorro ser sobrinha de Lobato Naturidade, curandeiro
que caiu nas graças da matriarca, reforça a amizade entre as duas e permite que Emilie traga a lavadeira

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para se sentar à mesa com a família, o que os irmãos sem nome jamais suportaram, afinal, “aquela mulher
sentada e muda, com o rosto rastreado de rugas, era capaz de tirar o sabor e o odor dos alimentos e de
suprimir a voz e o gesto como se o seu silêncio ou a sua presença que era só silêncio impedisse o outro de
viver.” (p. 86) A imagem antitética aqui é forte: o silêncio de uma serviçal é mais eloquente do que a fala dos
patrões.
Hakim relembra então o momento em que comunica seu desejo de ir embora. Emilie “expressou sua
surpresa com uma torrente verbal que só nós dois entendemos.” (p. 92) Ele entende, finalmente, porque
nenhum de seus irmão havia sido instruído no árabe: “para sermos confidentes, para ficarmos sozinhos na
hora da separação. (p. 92) O idioma árabe, com seus fonemas rudimentares, é, nessa hora, a melodia que
comunica o amor entre os dois, mãe e filho.
Distantes, mãe e filho jamais se escrevem, mas trocam fotos ao longo das décadas de ausência. É
por meio de imagens que ele sabe da morte do pai. E por meio das memórias, Hakim reconta a história de
Samara Délia, a irmã que engravidara na adolescência, que dera à luz uma menina surda e muda e que
se isolara do mundo depois disso. A voz de Hakim agora relembra o comportamento de Soraya Ângela,
condenada à invisibilidade no seio da família. Ele também relata brevemente a chegada “daquela mulher” – a
mãe da narradora, mistério não solucionado – para deixar os filhos, com dois anos de diferença, aos cuidados
de Emilie.

CAPÍTULO 6

A narradora sem nome volta a assumir o relato e fala sobre o dia seguinte à sua chegada, quando
ainda não sabia da morte de Emilie. Aqui, as memórias do passado se desfazem e cedem lugar ao presente,
nesse retorno após quase vinte anos de ausência. Ela resolve perambular pela cidade, “dialogar com a
ausência de tempo”. Mais uma vez as percepções vêm misturadas aos odores, mas ela tem uma sensação
de estranhamento, pois aquele mundo lhe é desconhecido. A Manaus de sua memória se desfaz frente à
Manaus que a narradora encontra, em especial frente às imagens da miséria que se revelam a ela: “lodo
e água parada, paredes de madeira, tingidas com as cores do arco­‑íris e recortadas por rasgos verticais
e horizontais, que nos permitem observar os recintos: enxames de crianças nuas e sujas, agachadas sob
um céu sinuoso de redes coloridas, onde entre nuvens de moscas as mulheres amamentavam os filhos ou
abanavam a brasa do carvão, e sempre o odor das frituras, do peixe, do alimento fisgado à beira da casa”.
(p. 110). Era difícil manter os olhos abertos, não por causa da luminosidade do dia, e sim pela miséria humana
com que se deparara.
Durante a caminhada, a narradora se encontra com Dorner, que voltara mais uma vez a Manaus. Eles
conversam, ela resiste em falar de si, mas suas memórias são despertadas por esse encontro.
A narradora lembra da repulsa do irmão à terra e diz entender o porquê. Mais uma vez o aspecto social
ganha importância e se funde ao existencial. Observamos isso no trecho “Pensei na tua repulsa a esta
terra, na tua decisão corajosa e sofrida de te ausentar por tanto tempo, como se a distância te ajudasse a
esquecer tudo, a exorcizar o horror: estes molambos escondidos do mundo, destinados a sofrer entre santos
e oráculos, testemunhas de uma agonia surda que não ameaça nada, nem ninguém: a miséria que é só
espera, o triunfo da passividade e do desespero mudo”. (p. 120) e na referência à mania do irmão “de fazer
do mundo e dos homens uma mentira, de inventariar ilusões no teu refúgio da rua Montseny, [...], para poder
justificar que a distância é o antídoto contra o real e o mundo invisível”. (p. 121). Ela faz o oposto, mergulha
fundo na realidade, o que a leva a um lugar indesejado.

10 RELATO DE UM CERTO ORIENTE


OBRAS LITERÁRIAS

Aqui mais uma vez há uma referência ao tempo, pois a narradora consulta continuamente o relógio. O
tempo é um elemento que permeia toda a narrativa, seja ele psicológico, seja ele cronológico ou metafórico.
Especificamente neste capítulo, a necessidade de ela controlar o tempo, ao olhar insistentemente o relógio,
revela uma perspectiva: o tempo de Emilie, motivo da volta da narradora, está se esvaindo como se esvaem
os minutos no relógio, mas ela não tem consciência disso, uma vez que aventa a possibilidade de que “talvez
quisesse adiar o encontro com Emilie, [...]. Caminhava apressada, não para chegar logo, mas para fugir, [...].”
(p. 121) Fugir da dor, da revelação, das memórias ou do olhar de Emilie? Nem ela nem nós nunca saberemos,
pois ao chegar em casa receberá a triste notícia, que marca a impossibilidade do encontro entre as duas: “Foi
doloroso não ter visto Emilie aceitar com resignação a impossibilidade de um encontro, eu que adiei tantas
vezes essa viagem, presa na armadilha do dia a dia, ao fim de cada ano pensando: já é tempo de ir vê­‑la, de
saciar essa ânsia, de enfronhar­‑me com ela no fundo da rede”. (p. 122)

CAPÍTULO 7

Hindié Conceição assume a narrativa após o evento da morte de Emilie. Neste relato, ela apresenta um
panorama das relações familiares da casa que frequentou por mais de cinquenta anos, como melhor amiga
e confidente de Emilie.
Já no início, Hindié deixa claro que a presença dos dois filhos inominandos de Emilie a incomoda
profundamente, visto não ter identificado neles nenhum sentimento ou consideração com a mãe, que os
havia protegido ao longo da vida, ainda que para isso tivesse de enfrentar o marido, que tentava discipliná­
‑los. Ela também registra, por outro lado, o caráter de Samara, “uma flor rara para o pai, que a mimava sem
perceber, ou sem que os outros percebessem”. (p. 127) Hindié conta que esses irmãos voltaram­‑se contra
Samara e, apesar dos pedidos do pai e da mãe, jamais a perdoaram por ter tido, solteira, uma filha. Os atos
desses irmãos sem nome só eram controlados porque eles dependiam do dinheiro que Emile guardava no
cofre, que os mantinha e às suas famílias. O maior temor da matriarca não era a morte nem a solidão, mas
que o segredo do cofre fosse descoberto, pois ela temia que, quando morresse, os filhos tomassem a casa
e a Parisiense e deixassem Samara sem nada, na rua. Por isso, ela confia a Hindié o segredo do cofre que,
de certa forma, protegeria Samara.
De acordo com o relato de Hindié, após a morte do pai, munida de excelente tino de negócios, Samara
Délia deu um grande impulso ao comércio da família. Ela e a mãe mantinham uma rotina amistosa e silenciosa,
até o último dia em que se encontraram. No dia de sua partida, Samara Délia estava elegantemente trajada
e expressava­‑se efusivamente a respeito de assuntos diversos: a vida na cidade, os novos fregueses da
Parisiense, os bons e os maus pagadores. Falava também sobre as mudas que foram um dia plantadas pelo
pai e que agora floresciam e frutificavam, entre outros assuntos. Naquele dia, antes de ir embora entregou
à mãe uma sacola com, “além de dinheiro, um livro grosso encadernado em couro, uma carta e outras
coisinhas”. (p. 132) Aquele fora o último dia que Emilie vira a filha, que deixara Manaus para nunca mais
voltar. A matriarca optou por não ir atrás de Samara, alegando que “[...] talvez ela seja menos infeliz assim,
vivendo no anonimato e numa cidade desconhecida, sem que a gente conheça o seu destino”. (p. 135)
Hindié conta os últimos dias da amiga, que ainda tenta convencer os filhos a perdoarem a irmã, mas
que a reação fora forte: “[...] a senhora deu à luz a uma mulher da vida; a senhora devia se odiar, e mais que
ninguém entender o ódio”. (p. 136) O tempo não diminuiu a raiva que sentiam da irmã. No transcorrer dos
dias seguintes, a matriarca dormia muito pouco e falava muito de Hakim, o filho que ela considerava muito
parecido com o irmão, Emir. Além de buscar nas imagens de Hakim o vínculo afetivo, também relia as cartas
do filho ausente, o irmão da narradora sem nome. Ao mesmo tempo, limpava e o organizava a casa, como

RELATO DE UM CERTO ORIENTE 11


OBRAS LITERÁRIAS

a deixá­‑la pronta para sua despedida: “Tudo no sobrado estava impecável, e nada, nenhum objeto, fora do
lugar”. (p. 137) Emilie arrumou a casa material, já que a família não lhe fora possível organizar, em parte por
causa dos dois filhos disfuncionais que provocaram o afastamento de Hakim e de Samara Délia.

CAPÍTULO 8

A narradora sem nome assume a narrativa para encerrá­‑la, revelando­‑se e a seus dramas, levando­
‑nos de volta ao quintal daquela casa, onde o relato teve início, configurando circularidade da obra.
A filha/neta de Emilie não participa do enterro, mas o acompanha de longe, reparando na diversidade
que seguia o cortejo, até que “[...] aquela tarde extenuante terminou na casa de Emilie”, onde se encontrou
com o tio Hakim e iniciou a conversa que gerou o relato que vimos no capítulo 2.
A narradora volta agora a conversar com o irmão e temos acesso ao que ocorreu com ela. Em seu relato,
ela relembra o tempo em que morou em uma clínica de repouso. Nas semanas iniciais, sentia­‑se imersa “na
escuridão pacata de um sono contínuo e sem sonhos”, provavelmente induzidos por medicamentos, já que
fora internada depois de um último acesso de fúria, quando destruiu o lugar em que morava. Ela imagina ter
sido internada pela mãe biológica, que no entanto permanece ausente. A clínica ficava a alguns quilômetros
do centro de São Paulo e lá coexistiam mulheres em esferas psíquicas distintas. Uma amiga da narradora,
Miriam, a visitava algumas vezes e levava “livros, cartas, agulhas, linhas e notícias”, dentre as quais a de que
a mãe biológica viajaria para a Europa, passando por Barcelona para visitar o irmão caçula. Essa mãe é a
presença do impossível, uma relação que nunca foi construída. Segundo a narradora, “[...] minha história com
ela é a história de um desencontro”. (p. 144). Miriam não se conformava com o fato de a amiga não ter pressa
para sair da casa de repouso, mas a narradora parece ter apreciado essa experiência entre dois mundos,
o de desordem, em que ela “ainda guardava as cicatrizes do desespero e da impaciência para sobreviver,
dilacerada pela árdua conquista dos prazeres efêmeros [...]” (p. 144) e o outro mundo, que “latejava a poucos
passos da janela”. (p. 145) Parece que a narradora vivia no espaço limítrofe entre o mundo interior e o
exterior, e isso talvez fosse um interlúdio amistoso entre o passado e o presente, daí o fato de não ter pressa
em deixar o lugar.
Durante o período da internação, escreve um relato, que depois é destruído e passa a compor uma
colagem. Nesse relato, constam várias imagens aparentemente incoerentes, dentre as quais se destaca “a
voz de uma mulher que nunca pronunciou meu nome”, em mais uma alusão à mãe biológica. Percebemos
que uma das questões que podem ter agenciado a busca da narradora é a presença/ausência dessa mãe,
que nunca cumpriu seu papel, mas que paira como uma sombra na vida dela.
O retorno ao início da narrativa se intensifica aqui, o que lhe confere o caráter circular. Se no primeiro
capítulo a narradora desperta no quintal de uma casa, aqui vemo­‑la chegando na casa, que saberemos ser
da mãe biológica, e não de Emilie, que fica a menos de quinhentos metros do local: “Ninguém foi avisado de
que eu chegaria aquela noite, mas eu sabia que, na ausência da mãe, a empregada ficaria sozinha na casa
construída próxima ao sobrado onde Emilie morava. Dirigi­‑me ao quintal, após ter atravessado uma espécie
de caramanchão: passagem entre um vasto jardim e o fundo da casa. Ali, onde se encontravam as edículas,
tudo estava escuro. Um único globo de luz aclarava o jardim. Preferi não acordar a empregada e passar a
noite ao ar livre [...]” (p. 146­‑147)
A narradora, finalmente, nos permite acessar a maneira como se deu a construção de seu relato:
com base nos vários relatos “ouvidos”, pelas vozes narrativa que já analisamos, e em gravações de várias
fitas e anotações em dezenas de cadernos (lembram­‑se do caderno logo no início do primeiro capítulo?).

12 RELATO DE UM CERTO ORIENTE


OBRAS LITERÁRIAS

O mais difícil, no entanto, é ordenar a torrente de memórias para não deixá­‑la vagando ao acaso, como
aquele desenho que ela encontrou na casa assim que chegou... “Senti­‑me como esse remador, sempre
em movimento, mas perdido no movimento, aguilhoado pela tenacidade de querer escapar: movimento que
conduz a outras águas ainda mais confusas, correndo por rumos incertos”. (p. 147)
A enunciação dos relatos era uma dificuldade porque ela ainda não conseguira encontrar o tom, entre
tantos movimentos narrativos, sotaques e expressões, que se misturavam como “um coral de vozes” – a
narradora expressa a essência polifônica do romance. Frente a tudo isso, ela resolve recorrer à própria voz,
que nortearia as demais vozes. Finalizando a carta endereçada ao irmão, a narradora inominada relata,
carinhosa e poeticamente, que toda aquela busca envidada pelo acervo da memória tinha uma finalidade:
Para te revelar (numa carta seria a compilação abreviada de uma vida) que Emilie se foi
para sempre, comecei a imaginar com os olhos da memória as passagens da infância, as
cantigas, os convívios, a fala dos outros, a nossa gargalhada ao escutar o idioma híbrido
que Emilie inventava todos os dias.

Era como se eu tentasse sussurrar no teu ouvido a melodia de uma canção sequestrada,
e que, pouco a pouco, notas esparsas e frases sincopadas moldavam e modulavam a
melodia perdida. (p. 148)

Em entrevista à revista Crioula, Hatoum comenta a opção pelo título da obra: “A verdade é
que foi difícil encontrar este título. Para mim foi um achado. Eu já havia praticamente terminado o
romance e tinha outros títulos em mente, como Retratos da memória. Eu lembro que esse era um
dos títulos possíveis, mas gostei deste título, Relato de um certo Oriente, porque nele há várias
perguntas. De que Oriente nós estamos falando? De um determinado Oriente? Mas qual deles?
É isso que o livro insinua. É o mistério em torno desse Oriente que está um pouco nebuloso, e
ainda não se sabe qual é o Oriente do romance. (EL GEBALY, 2010)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 24. ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
2009. p.663­‑ 4.

HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

<https://www.companhiadasletras.com.br/autor.php?codigo=00217>. Acesso em: 04/04/2019, às 14h12min.

<http://www.miltonhatoum.com.br/biografia/a­‑historia­‑ do­‑autor>. Acesso em: 04/04/2019, às 14h12min.

<http://www.gel.org.br/estudoslinguisticos/volumes/40/el.2011_v2_t54.red6.pdf>. Acesso em: 04/04/2019, às


14h13min.

RELATO DE UM CERTO ORIENTE 13


OBRAS LITERÁRIAS

EXERCÍCIOS DE VESTIBULAR
1. Escritores de uma nova geração, Milton Hatoum (nascido em 1952) e Bernardo Carvalho
(nascido em 1960) já garantiram seus lugares no panorama multifacetado da literatura brasileira
contemporânea. Relato de um certo oriente, publicado em 1989, marcou a estreia de Milton
Hatoum na literatura. Nove noites, publicado em 2002, é o sétimo livro lançado por Bernardo
Carvalho, que estreou na literatura em 1993 com o livro de contos Aberração.

A respeito das comparações entre Relato de um certo Oriente e Nove noites, considere as
seguintes afirmativas:

1. Milton Hatoum consegue trazer para a sua ficção o espaço amazonense sem cair no exagero do
exotismo; Bernardo Carvalho, por sua vez, tenciona o realismo pela inclusão, na ficção, de fatos e
personagens históricos, autobiografia e experiências pessoais.
2. Por meio de estratégias diferentes, os dois romances buscam compreender o passado, conscien‑
tes da obrigação histórica de recuperá-lo tal como aconteceu: Relato de um certo Oriente resgata a
memória trágica de uma família que viveu em Manaus; Nove noites investiga a morte de um antro‑
pólogo no sul do Maranhão, para entregar ao leitor a solução de um mistério até então não resolvido.
3. A epígrafe de W. H. Auden – “Que a memória refaça/A praia e os passos/O rosto e o ponto do
encontro” (em tradução de Sandra Stroparo e Caetano Galindo) – anuncia o elemento central da
narrativa de Milton Hatoum. O título do romance de Bernardo Carvalho se refere às nove noites que
o antropólogo Buell Quain passou na companhia de Manoel Perna, durante a sua estada entre os
índios Krahô.
4. O tratamento dado aos nativos em Relato de um certo Oriente pode ser verificado na humilhação e
nos abusos sofridos pelas caboclas e índias que trabalhavam na casa de Emilie, principalmente por
parte dos dois “inomináveis”. Em Nove noites, a narração do jornalista volta a momentos centrais da
história do Brasil no século XX – Estado Novo, Ditadura Militar e Período Democrático –, marcando
a situação de vulnerabilidade permanente dos índios num mundo de brancos.
5. Na Manaus multicultural da primeira metade do século XX, Emilie e seus filhos, com a curiosidade
natural do imigrante, atravessam constantemente o rio que separa a cidade da floresta. Da mesma
forma, o narrador jornalista de Nove noites visita inúmeras vezes os índios Krahô, em busca de infor‑
mações sobre o suicídio de Buell Quain.

Assinale a alternativa correta.

a) Somente as afirmativas 1 e 4 são verdadeiras.


b) Somente as afirmativas 2 e 5 são verdadeiras.
c) Somente as afirmativas 1, 3 e 4 são verdadeiras.
d) Somente as afirmativas 2, 3 e 5 são verdadeiras.
e) As afirmativas 1, 2, 3, 4 e 5 são verdadeiras.

14 RELATO DE UM CERTO ORIENTE


OBRAS LITERÁRIAS

2. (Enem)

A lavadeira começou a viver como uma serviçal que impõe respeito e não mais como escrava.
Mas essa regalia súbita foi efêmera. Meus irmãos, nos frequentes deslizes que adulteravam este
novo relacionamento, geram dardejados pelo olhar severo de Emilie; eles nunca suportaram de bom
grado que uma índia passasse a comer na mesa da sala, usando os mesmos talheres e pratos,
e comprimindo com os lábios o mesmo cristal dos copos e a mesma porcelana das xícaras de
café. Uma espécie de asco e repulsa tingia­‑lhes o rosto, já não comiam com a mesma saciedade e
recusavam­‑se a elogiar os pastéis de picadinho de carneiro, os folheados de nata e tâmara, e o arroz
com amêndoas, dourado, exalando um cheiro de cebola tostada. Aquela mulher, sentada e muda,
com o rosto rastreado de rugas, era capaz de tirar o sabor e o odor dos alimentos e de suprimir a voz
e o gesto como se o seu silêncio ou a sua presença que era só silêncio impedisse o outro de viver.
HATOUM. M. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Cia das Letras, 2000.

Ao apresentar uma situação de tensão em família, o narrador destila, nesse fragmento, uma
percepção das relações humanas e sociais demarcada pelo

a) predomínio dos estigmas de classe e de raça sobre a intimidade da convivência.


b) discurso da manutenção de uma ética doméstica contra a subversão dos valores.
c) desejo de superação do passado de escassez em prol do presente de abastança.
d) sentimento de insubordinação à autoridade representada pela matriarca da família.
e) rancor com a ingratidão e a hipocrisia geradas pelas mudanças nas regras da casa.

3. (Enem)

Texto I

Voluntário

Rosa tecia redes, e os produtos de sua pequena indústria gozavam de boa fama nos arredores.
A reputação da tapuia crescera com a feitura de uma maqueira de tucum ornamentada com a coroa
brasileira, obra de ingênuo gosto, que lhe valera a admiração de toda a comarca e provocara a inveja da
célebre Ana Raimunda, de Óbidos, a qual chegara a formar uma fortunazinha com aquela especialidade,
quando a indústria norte­‑americana reduzira à inatividade os teares rotineiros do Amazonas.
SOUSA, I. Contos amazônicos. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

Texto II

Relato de um certo Oriente

Emilie, ao contrário de meu pai, de Dorner e dos nossos vizinhos, não tinha vivido no interior
do Amazonas. Ela, como eu, jamais atravessara o rio. Manaus era o seu mundo visível. O outro
latejava na sua memória. Imantada por uma voz melodiosa, quase encantada, Emilie maravilha­‑se
com a descrição da trepadeira que espanta a inveja, das folhas malhadas de um tajá que reproduz a

RELATO DE UM CERTO ORIENTE 15


OBRAS LITERÁRIAS

fortuna de um homem, das receitas de curandeiros que veem em certas ervas da floresta o enigma
das doenças mais temíveis, com as infusões de coloração sanguínea aconselhadas para aliviar trinta
e seis dores do corpo humano. “E existem ervas que não curam nada”, revelava a lavadeira, “mas
assanham a mente da gente. Basta tomar um gole do líquido fervendo para que o cristão sonhe uma
única noite muitas vidas diferentes”. Esse relato poderia ser de duvidosa veracidade para outras
pessoas, mas não para Emilie.
HATOUM, M. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Cia. das Letras, 2008.

As representações da Amazônia na literatura brasileira mantêm relação com o papel atribuído


à região na construção do imaginário nacional. Pertencentes a contextos históricos distintos,
os fragmentos diferenciam­‑ se ao propor uma representação da realidade amazônica em que se
evidenciam

a) aspectos da produção econômica e da cura na tradição popular.


b) manifestações culturais autênticas e da resignação familiar.
c) valores sociais autóctones e a influência dos estrangeiros.
d) formas de resistência locais e do cultivo das superstições.
e) costumes domésticos e levantamento das tradições indígenas.

4. (UFSC – adaptada)

[...] Outras vezes, como naquela manhã, ela brincava com a boneca de pano confeccionada
por Emilie. Lembro­‑me perfeitamente do rosto da boneca; tinha os olhos negros e salientes, umas
bochechas de anjo, e se prestasses atenção aos detalhes, verias que apenas as orelhas e a boca
estavam sem relevo, pespontadas por uma linha vermelha: artimanha das mãos de Emilie. Soraya
nunca largava a boneca; enfeitava­‑lhe a cabeça com as papoulas que colhia, oferecia­‑lhe pedaços
de frutas, dirigia­‑lhe os mesmos gestos com a mão, com o rosto, passava­‑lhe água­‑de­‑colônia no
corpo, acariciava­‑lhe os cabelos de palha ou arrancava­‑os num momento de fúria, montava com
ela no dorso das ovelhas e deitavam juntas, abraçadas. Foram dias de exaltação, de descobertas.
Soraya, que parecia uma sonâmbula assustada, começou a abstrair; desenhava formas estranhas,
geralmente sinuosas, na superfície de pano que cobria a mesa da sala; reproduzia formas idênticas
nas paredes, nos mosaicos rugosos que circundavam a fonte, e na carapaça de Sálua onde o nome
de Emilie ainda não se apagara.
HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 13.

Com base na variedade padrão escrita da língua portuguesa, na leitura do texto, no romance
Relato de um certo Oriente, lançado em 1989, e no contexto de publicação desta obra, é correto
afirmar que

1. o excerto evidencia a relação íntima e afetuosa estabelecida entre Soraya e sua boneca. Renegada
pela família materna desde a gestação, a menina, além da boneca com quem anda para todos os lados,
envolve­‑se com brincadeiras com os primos e com os animais da casa, incluindo a tartaruga Saluá.
2. a narrativa de Hatoum é um texto híbrido, soma de vozes dispersas reproduzidas com rigor, como
afirma a narradora, a filha adotiva de Emilie, responsável pela metódica transcrição de depoimentos
e relatos coletados em entrevistas com parentes e amigos da família.

16 RELATO DE UM CERTO ORIENTE


OBRAS LITERÁRIAS

3. o texto diz respeito a fatos que aconteceram repetidamente na vida da menina, o que pode ser
observado pelo uso de formas verbais como “brincava”, “largava”, “enfeitava”, “dirigia”, “desenhava”,
“cobria” e “reproduzia”, entre outras.
4. a obra evoca a problemática da imigração no processo de formação cultural brasileiro, destacando a
presença de árabes no Norte do Brasil. A Parisiense, loja do marido de Emilie, evidencia a maneira
como se fixaram, prosperaram, enriqueceram e conseguiram superar o sentimento de deriva e
deslocamento.

É correto o que se afirma em

a) 1 e 2, apenas.
b) 1 e 3, apenas.
c) 2 e 4, apenas.
d) 2, 3 e 4, apenas.
e) 1, 2 e 4, apenas.

5. (Udesc – adaptada) Leia o texto.

O nome de Emir quase nunca era mencionado nas horas das refeições ou nas conversas animadas
por baforadas de narguilé, goles de áraque e lances de gamão. Os filhos de Emilie éramos proibidos
de participar dessas reuniões que varavam a noite e terminavam no pátio da fonte, aclarado por
uma luz azulada. Era um momento em que os assuntos, já peneirados, esgotados e fartos de serem
repetidos, davam lugar a confidências e lamúrias, abafadas às vezes pela linguagem dos pássaros,
e entremeadas por exclamações e vozes que pronunciavam o nome de Deus. Era como se a manhã
– como uma intrusa que silencia as vozes calorosas da noite – dispersasse o ambiente festivo,
arrefecendo os gestos dos mais exaltados, chamando­‑ os ao ofício que se inicia com a aurora. Mas,
em algumas reuniões de sextas­‑feiras, o prenúncio da manhã não os dispersava. Eu acordava com
berros dilacerantes, gemidos terríveis, ruídos de trote e uma algazarra de alimárias que assistiam à
agonia dos carneiros que possuíam nomes e eram alimentados pelas mãos de Emilie.
HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 50­‑51.

Considere os itens a respeito de Relato de um certo Oriente, romance de Milton Hatoum publicado
em 1989.

I. Em relação ao tempo, tem­‑se a predominância do tempo psicológico, pois a obra é narrada por meio
das lembranças de uma narradora que busca se encontrar.
II. Na narrativa, um dos momentos de tensão e uma das lembranças mais dolorosas é o relato da morte
prematura de Soraya Ângela, filha de Samara Délia.
III. O romance é uma narrativa que traz à tona as lembranças familiares da época em que Emilie e seus
filhos viveram em Trípoli, no Oriente.
IV. Assim como em Nove Noites, a narrativa se desenvolve em torno dos registros e depoimentos
acerca de personagens já falecidos.

RELATO DE UM CERTO ORIENTE 17


OBRAS LITERÁRIAS

Estão corretos os itens

a) I e IV, apenas.
b) III e IV, apenas.
c) II, III e IV.
d) I, II e IV.
e) I, II e III.

6. (BJL) Analise o que se afirma a respeito de Relato de um certo Oriente.

I. A morte de Emilie proporciona ao leitor uma viagem para o interior das muitas outras personagens
que povoam o romance, incluindo a própria narradora, que revela sua complexidade ao permitir que
o leitor acompanhe sua busca pelo esclarecimento de seu passado, compartilhe sua relação com o
ambiente da infância e juventude, descubra com ela a importância do calor de Emilie, fonte de amor
e vida e reavive a consciência e a reflexão a respeito de temas como tradição, círculo da vida, tole‑
rância, liberdade, coragem, perdão, entre outros.
II. A naturalidade da apresentação das narrativas confere à obra uma constância de ritmo compatível
com o mantido numa roda de narradores que têm como objetivo o entretenimento e interesse do
ouvinte, relação de compromisso e de cumplicidade que manteve Sherazade (Mil e uma noites) viva,
e que Hatoum estabelece entre seu texto e o leitor, instigando­‑ o a ficar atento ao fio que interliga
narradores e narrativas.
III. A narrativa apresenta uma “roda” de narradores, cujos relatos emergem também de lembranças,
histórias encaixadas que se complementam, de modo a não ficar no leitor a sensação de “falta”, pois
os desfechos podem ser imaginados facilmente pelo contexto.
IV. A narradora inominada de Relato é a personagem observadora do ambiente no qual se desenrola a
história, mas também é personagem integrante desse mesmo ambiente, pois nele vivencia parte de
sua própria vida. Atesta­‑se, portanto, a complexidade da figura do narrador, que toma distância do
ambiente no qual crescera para enxergá­‑lo e descrevê­‑lo, ouvindo de outros narradores sobre sua
participação, sobre seu papel na saga da família de Emilie, a protagonista.

É correto o que se afirma em

a) I e II, apenas.
b) I, II e III, apenas.
c) I, II e IV, apenas.
d) I, III e IV, apenas.
e) II, III e IV, apenas.

18 RELATO DE UM CERTO ORIENTE


OBRAS LITERÁRIAS

7. (BJL) Considere as afirmativas a seguir, a respeito de Relato de um certo Oriente.

1. A narradora, em carta ao irmão, no oitavo capítulo, expõe muito de seu íntimo, de parte de sua história
de vida, possibilitando ao leitor a formulação de hipóteses a respeito dessa figura do romance da
qual pouco se sabe, mas cujo papel é essencial para a narrativa, pois é o elemento articulador de
todas as histórias.
2. Na última carta, a narradora induz o leitor a um retorno ao início do Relato, por força de um autoen‑
caixe, e permite também, numa confissão metalinguística, que ele compreenda o quanto lhe dera
trabalho ordenar tudo o que registrara em sua estada em Manaus.
3. A narradora refere­‑se à mãe verdadeira sem oferecer explicações, instigando o leitor a fazer supo‑
sições a respeito dessa mulher, com quem a narradora não relata intimidade, pois tanto ela como o
irmão eram os netos adotivos de Emilie, cuja casa é que constituía “a esfera da infância”.
4. Para o leitor, que até o final do romance acompanha a narradora em sua trajetória de ouvinte, mas
também de relatora de memórias fragmentárias, os retornos a trechos apenas sinalizadores, pro‑
movidos por autoencaixes que os complementam, não têm papel significativo, pois tempo, espaço e
personagens são bem delimitados na narrativa.

Está correto o que se afirma em

a) 1 e 2, apenas.
b) 2 e 3, apenas.
c) 3 e 4, apenas.
d) 1, 2 e 3, apenas.
e) 2, 3 e 4, apenas.

8. (CEPBJ) Embora haja diferenças de temas e abordagens entre duas importantes narrativas
contemporâneas lidas neste ano – Nove noites e Relato de um certo Oriente, é possível
identificar algumas semelhanças entre elas. Assinale a alternativa que apresenta as semelhanças
corretamente.

a) Presença de narrador polifônico, ambientação na região amazônica e registro da vida de famílias


disfuncionais.
b) Presença de cartas como agentes de transmissão de histórias, interlocutores em outro país e resgate
da história pela memória.
c) Presença de um olhar antropológico, busca agenciada pela memória e registro de hábitos e costumes
do espaço retratado.
d) Presença de múltiplas vozes narrativas, registro de relatos por meio de cartas e resgate da memória
afetiva.
e) Presença de denúncia social, linguagem coloquial e narradores que optam pelo estilo memorialís‑
tico do registro.

RELATO DE UM CERTO ORIENTE 19


OBRAS LITERÁRIAS

9. (CEPBJ) Com relação aos personagens de Relato de um certo Oriente, é correto afirmar que

a) o pai sem nome era uma figura austera, que relegou à esposa o dever de educar e criar os filhos
homens para se dedicar ao comércio e cuidar da única filha mulher.
b) a narradora se sente uma intrusa na casa de Emilie, uma vez que sentia diferença no tratamento
dado a ela e ao irmão pelo resto da família.
c) o filho mais velho, Hakim, distancia­‑se da família por não suportar alguns comportamentos da mãe,
como a proteção descabida aos irmãos sem nome.
d) a lavadeira da família ocupa lugar de destaque na casa de Emilie por conhecer os segredos das
ervas e a arte do curandeirismo.
e) o fotógrafo alemão representa a modernidade da Europa em choque com o atraso cultural e a
miséria social que ele vê em Manaus.

GABARITO

1. C 2. A 3. A 4. B 5. D 6. C 7. D 8. D 9. C

20 RELATO DE UM CERTO ORIENTE

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