Formação Da Literatura Brasileira - Antônio Cândido de Melo e Sousa - 1-2
Formação Da Literatura Brasileira - Antônio Cândido de Melo e Sousa - 1-2
Formação Da Literatura Brasileira - Antônio Cândido de Melo e Sousa - 1-2
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Se no pertencesse a um dos grupos de prestgio social; se no fosse padre,
militar, magistrado ou repblico, o intelectual brasileiro ficava em segundo
plano, mesmo quando possusse "elevados entendimentos"; a sociedade no
apresentava diferenciao
suficiente, nem canais de ascenso, para classific-lo como tal; "nela s se
distinguem pelos grandes nomes o merecimento e as obras de cada um." (pg. 35)
Na do mocinho carioca encontramos, portanto, expressos com singular acuidade,
alguns problemas relativos posio do intelectual na sociedade brasileira da
poca, e uma espcie de revolta surda contra o estado de coisas no terreno da
cultura, aflora
ndo dentre a pesada crosta de conveno e conformismo. Encontramos tambm um dos
temas que ser idia-fra de todos os escritores brasileiros, desde ento e
pelo sculo XIX adentro: o desejo de mostrar que tambm ns, brasileiros, homens
de uma terra
inculta, ramos capazes de fazer como os europeus. Atitude decisiva e da maior
consequncia para a vida mental do pas, que encontrar a primeira manifestao
de alto nvel nas disposies e na obra de um dos "Renascidos", Cludio Manuel
da Costa, na
onomstica da Arcdia Glauceste Satrnio, grande esprito que foi, no Brasil,
ponte entre a herana cultista e os desgnios neoclssicos.
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#No plano consciente, cultuava o bero invocando sobretudo o Eibeiro do Carmo,
o "ptrio ribeiro", outro tema central das Obras, onde inclusive motivo para
uma "metamorfose", de sabor ovidiano, muito ao gosto das de Cruz e Silva. Nela,
e noutros p
oemas, unem-se os dois temas centrais do seu amor localista, nascendo o rio do
penhasco:
Aonde levantado
Gigante, a quem, tocara,
Por decreto fatal de Jove irado,
A parte extrema e rara
Desta inculta regio, vive Itamonte,
Parto da terra, transformado em monte.
De uma penha, que esposa Foi do invicto Gigante, Apagando Lucina a luminosa
Alampada brilhante, Nasci; tendo em meu mal logo to dura, Como em meu
nascimento, a desventura. (Fbula do Ribeiro do Carmo)
O motivo potico do Soneto XCVIII se ala aqui ao nvel telrico, identificando-
se o poeta aos elementos da paisagem nativa.
Esta identificao talvez tenha algo a ver com outra constante da sua obra: o
relativo dilaceramento interior causado pelo contraste entre o rstico bero
mineiro e a experincia intelectual e social da Metrpole, onde fez os estudos
superiores e se
tornou escritor. Intelectualmente propenso a esposar as normas estticas e os
temas lricos sugeridos pela Europa, sentia-se no obstante muito preso ao
Brasil, cuja realidade devia por vezes faz-los parecer inadequados, fazendo
parecer inadequado el
e prprio. Da uma ambivalncia que se manifesta de duas maneiras. Primeiro,
pelas desculpas que pede da sua rusticidade, da "grosseria das gentes" de sua
terra, indigna de pretender ombrear com a Metrpole:
Tu, Musa, que ensaiada *
sombra dos salgueiros, Esta inculta regio viste animada Dos ecos
lisonjeiros.
(Ecl. in)
Mas (insinua na entrelinha) a sua obra contribuio que traz para alinhar com
as produes dos poetas portugueses, embora se origine dum filho da rude
Amrica:
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#E a vtima estrangeira, com que chego, Em seus braos acolha, o vosso agrado.
(Fbula)
A conscincia de que estrangeiro comporta no apenas o aspecto negativo
mencionado (rstico dplac), mas tambm o positivo, de pleitear a sua
equiparao aos reinis, visto que a eles se equipara pelo talento:
O canto, pois, que a minha voz derrama, Porque ao menos o entoa um Peregrino,
Se faz digno entre vs tambm de fama.
(Son. I)
Alis, o tema da chegada e da partida; a melancolia ante a transformao das
coisas e das pessoas, perpassa nos sonetos e pastorais, acentuando aquela
referida oscilao moral entre duas terras e dois nveis de cultura.
Disso decorre que na sua obra a conveno arcdica vai corresponder a algo de
mais fundo que a escolha de uma norma literria: exprime ambivalncia de
colonial bairrista, crescido entre os duros penhascos de Minas, e de intelectual
formado na discipli
na mental metropolitana. Exprime aquela dupla fidelidade, afetiva de um lado,
esttica de outro, que o leva a alternar a invocao do Mondego com a do
Ribeiro do Carmo, numa espcie de vasto amebeu continental em que se reflete a
dinomica da nossa f
ormao europia e americana.
corn efeito, o contraste natureza-cultura, que norteia os sucessos do bucolismo
literrio, era uma linha adequada expresso de tais sentimentos, em que o
poeta se colocava, no de modo convencional, mas vital, entre a rusticidade do
seu bero e a ci
vilizao da sua ptria intelectual. Os pastores de Cludio encarnam
frequentemente o drama do artista brasileiro, situado entre duas realidades,
quase diramos duas fidelidades. H sem dvida algo mais que retrica se o poeta
escreve:
Torno a ver-vos, montes: o destino Aqui me torna a por nestes oiteiros, Onde
um tempo os gabes deixei grosseiros Pelo traje da Corte, rico e fino.
(Son. LXH)
E a sua sinceridade a mesma quando afirma o apego a Portugal ou ao Brasil;
pois ali esto as normas cultas a que se prende;
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#aqui, as razes da emoo e o objeto do seu interesse humano. cornparem-se os
dois movimentos, que so dois modos da sensibilidade:
(a)
A vs, canoras Ninfas, que no amado
Bero viveis do plcido Mondego, "
Que sois da minha lira doce emprego,
Inda quando de vs mais apartado.
(Fbula)
(b)
Leia a posteridade, ptrio Rio, Em meus versos teu nome celebrado, Porque
vejas uma hora despertado O sono vil do esquecimento frio.
(Son. II)
Da discernirmos uma terceira constante: o esforo de exprimir no plano da arte,
e dentro dos moldes cultos, a realidade, os problemas da sua terra. Santa Rita
Duro, isolado do Brasil desde os nove anos, e para toda a vida, manifestou esta
preocupa
o atravs do extico, maneira dos escritores estrangeiros desde o
Descobrimento, e procurou dar expresso pica nossa histria, vista como
grande aventura da f e da civilizao numa terra nova e pitoresca. Tambm o
nosso Cludio o quis. Mas, vive
ndo na Colnia, empenhado na sua administrao como secretrio de Governo e
membro do Senado de Ouro Preto; na sua economia como lavrador e minerador,
exprime com tendncia didtica os problemas vivos da sociedade: devassamento e
povoamento dos sert
es, decadncia das lavras, iniquidade fiscal. Na histria, destaca um momento
preciso, em que se perceba a instaurao da ordem racional do europeu sobre as
tendncias caticas da franja pioneira de mineradores, ressaltando a necessidade
de ajustar as
instituies realidade local. So o Vila Rica, o Epicdio I morte de
Bobadela; o Romance a Jos Gomes de Arajo; o Canto Herico, a D. Antnio de
Noronha; a Fala, ao mesmo; um pouco da cloga IV. Assim, pois, a fixao
terra; a celebrao dos s
eus encantos, conduzem ao desejo de exprimi-la no plano da arte: da, passa
exaltao patritica, e desta ao senso dos problemas sociais. Do bairrista ao
rcade; dele ao ilustrado e deste ao inconfidente, h um traado que se pode
rastrear na obra.
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*.
A este caminho do artista como homem se superpe o do artista como arteso,
discernvel apenas na anlise, pois formam inseparveis a jornada do poeta.
Digamos desde j que em Cludio se corporifica o movimento esttico da Arcdia
no que tem de profundo, pois tendo partido do Cultsmo, chega ao neoclssico por
uma recuperao do Quinhentismo portugus.
Estudante em Coimbra, foi contemporneo de Diniz, Negro, Gomes de Carvalho,
Garo, os reformadores literrios. Quando porm se definiu realmente a teoria
da reforma, estava de volta ao Brasil, (1753 a 1754) nem fez parte da sociedade
que a promoveu
(1756). A formao que levou da ptria e reforou inicialmente em Portugal foi
portanto barroca; de todos os poetas novos o que maior liame conservou com a
tradio. No entanto, a sua sensibilidade deve ter-lhe apontado desde logo (como
aos citados
colegas) a inviabilidade do estilo culto, j esgotado em Portugal pelos
desmandos do mau gosto, para exprimir o esprito do sculo e as novas
concepes. Da um esforo pessoal de superao, paralelo ao do grupo da Arcdia
Lusitana, que o levou sl
ida base da literatura portuguesa moderna; o sculo XVI. Quis todavia ir adiante
e ser plenamente homem do tempo, procurando a simplicidade didtica e o
interesse pela verdade humana contempornea, no que talvez tenham infludo os
desenvolvimentos da
Arcdia, embora, do Brasil, tivesse pouca oportunidade de familiarizar-se com
eles.11 O que todavia parece verossmil que ele foi, no caudatrio, mas co-
autor da transformao do gosto, embora do modo independente e mais
conservador.12
A leitura da sua obra mostra porm que no segm"do momento da sua evoluo
literria foi que se encontrou plenamente, ao encontrar os modelos
quinhentistas. Estes traziam em si, ao mesmo tempo, germens de cultismo e de
fresca espontaneidade popularesca
, em que de certo modo se prefigura muito dos perodos posteriores, de tal forma
aquele grande sculo expresso completa do pensamento e da sensibilidade
portuguesa. Assim, ao apoiar-se nele, Cludio encontrou a possibilidade de
manter muito da sua
vocao cultista, encontrando ao mesmo tempo a medida que a conteve em limites
compatveis com a repulsa ao desbragado Culteranismo de decadncia. No soneto,
pde exprimir o jogo intelectual que prezava, e cabia perfeitamente na linha
desta forma po
tica,
#(11) As suas Obras Poticas so de 1768. As de Quita, de 1766. As de
Garo e Diiilz foram de publicao pstuma, respectivamente 1778 e 1807-1817.
(O Hissfrpe, em 1802). A primeira estadia brasileira deste vai de 1776
a 1789. Hest
a a possibilidade de cpias manuscritas, que possivelmente iam
chegando s mos de Cludio.
(12) Norberto J o considerava precursor dos portugueses. V.
"Nacionalidade da Literatura Brasileira", BP, VII, pg. 205.
#forjada nos moldes da dialtica medieval e a seguir enriquecida com a
exuberncia formal do Renascimento. Nele, pde ainda vazar o amor pela imagem
peregrina, a rima sonora e a metfora, herdadas do barroco: pois assim como o
equilbrio quinhentsta
de Cames ou Diogo Bernardes deslizou insensivelmente para o Cultsmo, quase
como para um complemento natural, ele pde remontar deste quele sem perder as
opulncias de conceito e imagem aprendidas em Quevedo e Gngora. Nos sonetos se
encontra pois,
de modo geral, a sua mais alta realizao, e no constitui novidade escrever
que dos maiores cultores desta forma em nossa lngua.
O que neles chama desde logo ateno a frequncia de alguns temas parecendo
exprimir constantes pessoais. born nmero versa o do amante infeliz, que das
altitudes da Vita Nuova ou do Canzoniere, onde se sublima em contemplao
espiritual; dos admir
veis poemas de Cames, onde punge mais viva a "malinconiosa carne", - vem dar no
Cultsmo em orgia de negaceies retricos para terminar, com os rcades, em
socivel e comedida nostalgia. Nos de Cludio h um pouco de tudo isso, mas a
sua diretriz men
tal sobressai nas sries em que ordena determinado aspecto do tema. Assim, os de
nmeros XVI, XXI, XXII, XLIV, LV, LXVI, LXVIII, LXXIV se articulam com a cloga
VII para traar o roteiro da pena amorosa e morte do pastor Fido, que aparece
aqui substa
ntivado, a partir do qualificativo do Mirtilo, de Guarini. Os de nmero XXXIX,
XLVIII, LXX, parafraseiam o admirvel
Horas breves do meu contentamento
citado por Gracin como exemplo excelso de conceito e agudeza, antes atribudo a
Cames, hoje a Diogo Bernardes.
Outro tema, j referido, o do contraste rstico-civilizado, (por exemplo os
nmeros XIV, LXII, LXIII), que exprime a condio de brasileiro e d lugar a
jias como esta, onde ala em imagens admirveis, dentro da mais nobre harmonia,
a fora nova da
sua capitania de torrentes e socaves de ouro:
*
Leia a posteridade, ptrio Rio, Em meus versos teu nome celebrado, Porque
vejas uma hora despertado O sono vil do esquecimento frio: *"
No vs nas tuas -margens o sombrio, Fresco assento de um lamo copado; No vs
Ninfa cantar, pastar o gado, Na tarde clara do calmoso estio.
^
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#Turvo banhando as plidas areias, Nas pores do riqussimo tesouro O vasto
campo da ambio recreias;
Que de seus raios o Planeta louro, Enriquecendo o influxo em tuas veias, Quanto
em chamas fecunda, brota em ouro.
(Son. 11)
Aos dois temas citados prende-se o que centraliza outros sonetos, - por exemplo
VI, VII, VIII, que formam um trio sobre a tristeza da mudana das coisas em
relao aos estados do sentimento. Apesar da majestosa calma que d tanta
dignidade e contenso
ao seu verso, inexato dizer que ele no vibra. A disciplina formal apenas
disfara um subsolo emotivo mais rico do que se poderia pensar, tendendo por
vezes a certo dilaceramento dramtico, como se pode ver no soneto XVIII, onde
perpassa um arrepio
de negrume e pesadelo:
Aquela, cinta azul, que o Cu estende A nossa mo esquerda; aquele grito, com
que est toda a noite o corvo aflito Dizendo um no sei qu, que no se entende:
Levantar-me de um sonho, quando atende O meu ouvido um msero conflito, A tempo
que um voraz lobo maldito A minha ovelha mais mimosa ofende;
Encontrar a dormir to preguioso Melampo, o meu fiel, que na manada Sempre
desperto est, sempre ansioso;
Ah! queira Deus que minta a sorte irada: Mas de to triste agouro cuidadoso S
me lembro de Nine, e do mais nada.
A cada passo, vamos encontrando preciosismos que denotam pendor para os aspectos
amaneirados do Quinhentismo, e marca dos seiscentistas espanhis:
Nesta ardente estao, de fino amante Dando mostras, Dalizo atravessava O campo
todo em busca de Violante.
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#Seu descuido em seu fogo desculpava; Que. mal feria o Sol to penetrante, Onde
maior incendia a alma abrasava.
(Son. XII)
s lgrimas a penha enternecida Um rio fecundou, donde manava D"nsia mortal a
cpia derretida.
A natureza em ambos se mudava: Abalava-se a penha comovida, Fido esttua de dor
se congelava.
(Son. XXII)
Vinde, olhos belos, vinde; e em fim trazendo Do rosto de meu bem as prendas
belas, Dai alvios ao mal, que estou gemendo:
Mas ah! delrio meu que me atropelas! Os olhos que eu cuidei, que estava vendo,
Eram (quem crera tal!), duas estrelas. (Son. XXXII)
Nas clogas, odes, e outras peas, aparece, quase tirnicamente, um sinal de
impregnao gongorina, que ocorre na maioria das estrofes do "Epicdio" a Frei
Gaspar da Encarnao, a mais seguramente antiga das suas peas conhecidas (1752
ou 1753):
Pagou por feudo, tributou por culto
(Epicdio)
O triste caso, o infeliz sucesso (Ecl. VII)
O tempo veste, a, sombra desfigura.
(Ecl. IX) Ao bosqite escuro, ao fnebre arvoredo.
(Ecl. XIV)
Nunca abandonou tambm de todo o hiprbato, recurso culterano por excelncia,
utilizado por Gngora com admirvel sentido expressivo e banido pelos rcades:
Formando um, transparente Na verde relva resplendor luzente. (Ecl. XVI)
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#Hoje, que a poesia moderna manifesta tanta inclinao para o amaneiramento, e
portanto fomos levados a rever em sentido favorvel o esprito cultsta, no
podemos deixar de sentir que os cultismos de Cludio constituem fora. Nem
tampouco depreciar a
circunstncia de que o retorno ptria, segregando-o do foco de renovao, lhe
permitiu definir posio de equilbrio entre as duas tendncias - tornando-o um
neoqunhentista no melhor sentido.
A referida "imaginao da pedra" nos permite entrever outros aspectos da sua
impregnao barroca. Vimos que ela exprime vivncias profundas, ligadas ao meio
natal, e sabemos que o rochedo e a caverna fascinaram o Culteranismo, talvez
pela irregularida
de poderosa com que representam movimentos plsticos. Em Cludio, a sua
ocorrncia mostra como a sensibilidade buscava certas constantes barrocas, por
tropismo e pela eloquncia com que, opostas ao sentimento, podiam exprimir uma
daquelas fortes ant
teses que lhe eram caras.
Para compreender at que ponto elas contribuam para enriquecer a sua obra, nada
melhor do que pesquisar nela o tema do Polifemo.
Pode-se qualificar de essencialmente barroca, pela desmedida contorso
psicolgica da situao, a histria do ciclope enamorado de uma ninfa. Porisso
mesmo, abordaram-na com livre fantasia Marino e Gngora, dando-lhe este uma
altitude rara de obra-pr
ima. Da sua verso, e da de Metastasio - que lhe dedicou uma cantata (II
Ciclope) e um drama lrico (Galatea) - inspirou-se Cludio, que fez variaes
sobre o tema em duas cantatas (Galatea, Lize) e sobretudo na cloga VIII,
Polifemo.
Metastasio, inspirado na verso amaneirada e romanesca de Ovdio (Metamorfoses,
Livro XII), arcadizou por assim dizer o velho mito, suprimindo no amoroso
disforme o drama pungente para lhe deixar uma brutalidade de pera bufa. A
tendncia na literatur
a portuguesa foi, acentuando a verso de Marino, (Polifemeide) confinar-se ao
aspecto burlesco, no apenas no sculo XVII, com Jacinto Freire de Andrade e
Francisco de Vasconcelos, mas no XVIII, onde aparece em dois sonetos de Cruz e
Silva.
Aproximado de Metastasio pelo estilo, Cludio se aproximou da Fbula de Gngora
pelo esprito, indo todavia buscar, para alm deles, o admirvel Idflio XI de
Tecrito, que lhe inspirou a forma pura e sinttica da cloga VIII. Rejeitou
porm a ironia c
ontida no original grego, fiel integridade barroca do mito.
Antes de ir alm, acentuemos que ao tratar deste modo uma
#situao monstruosa, esteiada em sentimentos sem medida comum, manifestou muito
da ambivalncia do seu destino e algo da de sua gerao, que buscava o
equilbrio da naturalidade sem se desprender inteiramente dum cultismo ainda
prximo.
Na cantata Lize, Polifemo aparece como imagem do sentimento amoroso do poeta,
que desta forma supera o amaneiramento afetivo da poca, ao identificar-se com o
sadismo da lenda:
Na sorte, Lize amada,
Do msero Gigante,
Que triste do meu fado se traslada
O fnebre semblante.
Mas, ai, fado aleivoso!
Que infeliz inda mais que Polifemo
Me queixo. Ele a ocasio do seu cime
Sufoca, estraga, desalenta e mata;
E eu de uma alma ingrata
Sinto desprezo e no extingo o lume:
Pois sempre desprezado
Vivo aflito, infeliz, desesperado.13
A cantata Galatia, que antecede, descreve os amores da ninfa
- Mais cndida e bela
Qiie a neve congelada,
Que a clara luz da matutina estrela -
corn o pastor Acis, que afirma a prpria gentileza em contraste disformidade
do ciclope:
Vem, ouvir-me um instante, - ... .
Que em mim tudo ternura.
Do brbaro Gigante
No temas, no, a plida figura,
Que o tem seu triste fado,
Tanto como infeliz, desenganado.
(13) Encontramos noutro sentido a identificao do amoroso infeliz com Polifemo
numas redondilhas de Cames, onde h uma aluso pungente prpria cegueira.
Galatia sois, Senhora, Da formosura extremo; E eu, perdido Polifemo.
Vale a pena registrar o lato, porque no ocorre nos vrios tratamentos do
#mito.
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#Ora, justamente esta privao de amor e graa que leva o poeta a simpatizar
com Polifemo ( em nenhuma das principais verses anteriores objeto de
compreenso ou piedade) e compreender o seu drama, desentranhando no antigo mito
uma alegoria do desa
juste amoroso. Assim, colocada esteticamente entre a cantata Galatia (onde
aparece o air/or feliz e harmonioso) e a cantata Lize (onde perpassa a vontade
de aniquilamento que acompanha a frustao amorosa), a cloga VIII visa o drama
pessoal do gigan
te. um pinculo na obra de Cludio, marcado por um frmito que inflete o curso
do poema e manifesta a presena da alta poesia.
A pea curta (49 versos), circunstncia no estranha ao xito formal, visto
como a sua tendncia para alongar-se acarreta no raro a tara do prosasmo, que
infunde um ar demasiado didtico a algumas das suas pastorais. Note-se ainda a
habilidade, mu
ito sua, em alternar os metros, no caso, decasslabos e hexasslabos escorreitos
e puros:
linda Galatia,
Que tantas vezes quantas
Essa mida morada busca Fcbo,
Fazes por esta areia
Que adore as tuas plantas
O meu fiel cuidado: j que Erebo
As sombras descarrega sobre o mundo,
Deixa o reino profundo:
Vem, Ninfa, a meus braos,
Que neles tece Amor mais ternos laos
O intrito no pressagia a irrupo comovedora do sentimento, que surge na 2.a
estrofe quando a paixo desprezada e o cime se avolumam e expandem de repente,
num desespero que encapela o verso:
Vem, Ninfa adorada,
Que Aeis enamorado,
Para lograr teu rosto precioso,
Bem que tanto te agrada
Tem menos o cuidado,
Menos sente a fadiga, e o rigoroso,
Implacvel rumor que n"alma alento.
Nele o merecimento
#Minha dita assegura;
Mas ah! que ele de mais tem a ventura.
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#Este passo equilibra o da cantata Galatia, onde Acis aponta as limitaes
insuperveis de Polifemo, que aqui tenta afirmar-se, afirmando a dignidade
conferida pelo tormento da paixo,
(.. . o rigoroso, Implacvel mmor que eu n"alma alento),
que lhe deveria assegurar preferncia sobre o fraco merecimento de Acis, todo
superfcie e graa adolescente; mas
.. . ah! que ele de mais tem a ventura.
E prossegue:
Esta frondosa faia -A qualquer hora (ai triste!) Me observa neste stio
vigilante: Vizinho a esta praia Em uma gruta assiste, Quem no pode viver de ti
distante; Pois de noite e de dia, Ao mar, ao vento, s feras, desafia A voz do
meu lamento:
Ouvem-me as feras, ouve o mar, e o vento.
Humanamente, porm, a dor se aplaca; humanamente compreende que por si nada pode
aspirar, pelo despropsito da aspirao, e oferece a Galatia os bens mais caros
em troca do amor. A branda submisso marchetada de preciosidades culteranas, com
que fin
aliza, reintroduz o equilbrio inicial, emoldurando com ele a exploso das duas
estrofes anteriores:
No sei que mais pretendes:
Desprezas meu desvelo
E, excedendo o rigor da crueldade,
corn a chama do zelo
O corao me acendes;
No assim cruel a Divindade.
Abranda extremo tanto;
Vem a viver nos mares do meu pranto:
Talvez sua ternura
Te faa a natureza menos dura.
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#E se no basta o excesso
De amor para abrandar-te,
Quanto rebanho vs cobrir o -monte,
Tudo, tudo ofereo:
Esta obra do divino Alcimedontc;
Este branco novilho,
Daquela, parda, ovelha tenro filho,
De dar-te se contenta
Qtiem guarda amor, e zelos apascenta.
corn esta imagem, de sabor menos cultista que do melhor Quinhentismo, termina o
admirvel poema em que a sua alta conscincia artesanal exprimiu uma das emoes
mais puras do Setecentos luso-brasileiro. A sua fora deriva em parte da
circunstncia de
haver a inspirao encontrado na tradio clssica um mito cujas formas
desposou. Quando um mito ou alegoria tradicionais correspondem emoo potica,
esta flui no seu significado, de alcance universal, e a poesia brota mais forte,
encontrando corre
lativo. No de Polifemo, o contraste dramtico entre o gigante grotesco e a
ternura que o anima permitiu a Cludio um poema comovente, quase trgico. O
pobre ciclope apaixonado, largado a soluar a sua paixo desmesurada nas verdes
relvas do prado arc
dico, entre pastores e pastras de pera, produz o efeito de um estampido nessa
atmosfera de "parnaso obsequioso" - graas contenso clssica e fora
barroca que o anima.
Mas Cludio quis ser tambm homem do tempo, exercitar-se na busca da verdade e
da natureza por meio da dico simples; se esta no abunda em suas obras,
explica ao leitor em 1768, que "foram compostas ou em Coimbra, ou pouco
depois, nos meus primeir
os anos; tempo em que Portugal apenas principiava a melhorar de gosto nas belas
letras." Talvez haja a um pouco de artifcio, pois a anlise interna permite
datar aproximadamente boa parte das cornposies maiores (epicdios, clogas)
revelando que s
o posteriores a 1754 e 1760. provvel que em certos casos haja retomado
cornposies anteriores, ficando nelas, ento, a marca cronolgica desta
reviso. E ao faz-lo, talvez tenha querido aproxim-las da tonalidade mais
moderna, o que explica em m
uitas delas a mescla de Cultismo e naturalidade, nem sempre favorvel ao
equilbrio potico e efeito sobre o leitor.
Convm notar que em certos poemas pouco citados, c alis pouco numerosos,
#os quatro "romances", manifesta a maior simplicidade que obteve, aproximando-se
eruditamente do popularesco tradicional, com influncia visvel dos processos
mtricos caros aos espanhis, que ainda aqui encontramos a influenci-lo:
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#Pastara do branco arminho, No me sejas to ingrata: Que quem veste de
inocente No se emprega em matar almas.
(II)
Vo porventura, Pastara, A beber as cristalinas, Doces guas, que discorrem Por
entre estas verdes silvas?
(IV)
Todavia, nesses poemas (dos melhores na sua obra), a naturalidade parece obtida
por recuperao do passado e se exprime pela espontaneidade do sentimento.
Devemos procurar em peas maiores a que se definiu como prpria do sculo,
pendendo para o didt
ico e o racional. Nelas, fala o futuro inconfidente, falando o homem preocupado
com a Virtude, a Justia, a Ptria, e outras maisculas do tempo.
Uma das suas expresses o "Epicdio I", morte do 1. Conde de Bobadela,
grande administrador, amigo da Colnia, a quem o poeta vota rasgada e comovida
admirao. Vibra nele sentimento profundo que rompe a frieza do gnero e do
conceitismo, mostran
do o papel da justia como requisito para a aceitao dum governo e o papel do
mrito como critrio de eminncia social. Gomes Freire no a deve ao rei, -
chega a afirmar, - mas ao prprio valor, que, num rasgo ilustrado, dissocia da
sano regia:
No te faz grande o Rei: a ti te deves
A glria de ser grande: tu te atreves
Somente a te exceder: outro ao Monarca
Deva o ttulo egrgio, que o demarca
Entre os Grandes por Grande: em ti,louvado
S pode ser o haver-te declarado.
o Rei, portanto, que se honra ao consagrar a virtude com o ttulo
nobilirquico: coragem que espanta, na poca tirnica, e no homem, pacato e
respeitoso. Mais ousado o seguinte, enfrentando o sistema tributrio:
O vasto emprio das douradas Minas Por mim o falar; quando mais finas
Se derramam as lgrimas no imposto De uma, capitao, clama o desgosto
De um pas decadente...
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#A est, escrito provavelmente em 1763 ou 64, e impresso ern Coimbra, "na
oficina de Lus Seco Ferreira" em 1768, um ataque direto famosa derrama,
tratada conceituosamente num equvoco que d singular reforo repulsa pelo
imposto, confundindo-o n
as lgrimas que faz derramar. A est, vinte e cinco anos antes das Cartas
Chilenas e da Inconfidncia, o "desgosto de um pas decadente", que a equidade
no permite continuar submetido a tais medidas. A interveno de Gomes Freire
aparece pois como a
to daquilo que, segundo Cludio, mais se preza num governante: a justia, que
para o seu tempo (e mesmo no abafamento metropolitano e colonial) era a prpria
expresso das leis naturais que equilibram a conduta segundo a razo, sendo o
prprio encontr
o do racional com o natural.
A idia mais feliz de ser aceito
vontade de um Rei ter o -peito
Sempre animado de um constante impulso
De amar o que for justo: este acredita
Ao servo, que obedece; felicita
Ao Rei, que manda; este assegura a fama;
Este extingue a calnia, e apaga a chama
De um nimo perverso, que atropela
O -precioso ardor de uma alma bela.
A justia transcende a condio humana: deve ser igualmente observada pelo que
obedece e pelo que manda, pois alicerce da vida social. Por hav-la encarnado
superiormente, Gomes Freire supera o critrio rgio e se consagra pelo valor
prprio.
No s ela, porm, elemento do born governo: na obra de Cludio notria a
preocupao com os efeitos que ampliam a civilizao e constrem o fundamento da
vida racional, racionalmente ordenada. Deixemos de lado a cloga Albano, de
louvor talvez n
o objetivo a Pombal; mas no esqueamos de que em certas peas encomisticas -
o Romance herico, a Jos Gomes de Arajo; o Canto herico, a D. Antnio de
Noronha (1776); a Fala, ao mesmo (1779) - insinua-se por entre a loa pessoal o
realce s obras
de organizao civil da Capitania de Minas, em que se reconhece a qualidade do
administrador. Neste sentido, devemos ressaltar a sua admirao por Pedro, o
Grande, que plasmou na Rssia semibrbara uma pas moderno, intervindo com a
vontade para esta
belecer as normas da razo - empresa cara aos ilustrados, cuja meno em trs ou
#quatro poemas marca a sua posio neste sentido.
95
#Polir na guerra o brbaro gentio, Que as leis quase ignorou da natureza; Romper
de altos penhascos a rudeza, Desentranhar o monte, abrir o rio;
Esta a virtude, a glria, o esforo, o brio Do russiano heri; esta a grandeza
Que igualou de Alexandre a fortaleza, Que venceu as desgraas de Dario.
(Son. 83)
No de outra sorte viu a Rssia um dia Transportarem-se as tmidas torrentes J
do Tanais, do Lena, ou j do Volga Ao canal que abre a mo do grande Pedro.
(Fala)
Esta celebrao das grandes obras que poliam as terras rudes preocupou Cludio,
a ponto de absorv-lo num poema pico, celebrando a incorporao das suas
brenhas natais civilidade da Europa. Poema fastidioso e medocre, abaixo de
tudo quanto fez, an
tes e depois, embora carinhosamente elaborado, com base em documentos, alguns
dos quais obtidos em So Paulo por intermdio de Pedro Taques. pondervel a
sugesto de Joo Ribeiro, de que o poeta no o considerou, depois de pronto,
digno para divulg
ar-se, conservando-o como esboo de tentativa gorada.14 O mesmo crtico aponta
as influncias que sofreu: "Vila Rica um produto originado pelo Uragua.
Cludio Manuel esforou-se por parecer original, no adotou a oitava rima nem o
verso solto como
os seus antecessores; talvez por admirao a Voltaire preferiu aproximar-se da
Henriade empregando rimas emparelhadas."(pg. 35)
Vejo aqui um indcio eloquente para se compreender a evoluo esttica do poeta.
A esta altura, empenhado em compor segundo as exigncias da naturalidade, no
quis adotar o sistema estrfico tradicional, que Duro aceitaria pouco depois.
Ao mesmo temp
o, o pendor e o hbito da herana cultista no lhe permitiram adotar, aos
cinquenta anos, o verso branco, dileto dos reformadores. Em tal situao
interveio o exemplo de Voltaire, e Glauceste parodiou o alexandrino paralelo
(capaz dos melhores efeitos
na mtrica francesa onde o esquema por excelncia) em decasslabos
emparelhados processo invivel na portuguesa, fator de monotonia e frouxido que
comprometeu de incio o seu poema, como comprometeria mais tarde
(14) Joo Ribeiro, pgs. 36-37,
96
"Cludio Manoel da Costa", nas Obras Poticas, vol. I,
#o Assuno, de So Carlos. O caso interessante para compreender a sua
evoluo esttica, mostrando como a posio de poeta limiar prejudicava a adoo
plena das atitudes modernas.
Na Henriade hauriu estmulo para o tratamento do tema nativista: l, conflito de
liguenses e realistas; no Vila Rica, de mineiros rebeldes e fiis autoridade
regia, terminando ambos com o triunfo da autoridade legtima, que pe termo a um
perodo d
e distrbios e abre outro de prosperidade. A situao de guerra civil se exprime
no plano alegrico pela presena da Discrdia, entidade fictcia preponderante
no poema de Voltaire, e no de Cludio. L buscou ainda o processo de documentar
o poema, se
parando racionalmente o fictcio e apoiando o verdadeiro num ensaio prvio, nele
o conhecido "Fundamento histrico", alm das notas explicativas.
A influncia parece ter sido to grande que, na Ode relativa ao suposto atentado
contra Pombal, (1774) equipara o "sacrlego Pela", autor putativo, aos regicidas
Jacques Clment e Ravaillac, equiparando-lhes tambm quinze anos depois o
Tiradentes, na
inquirio judicial.15
Mais interessante para ns a influncia de Baslio da Gama, atravs de cuja
obra chegou porventura at de Voltaire.18 No Uraguai encontrou a sugesto para
tratar assunto brasileiro contemporneo, ligado sua experincia quase
imediata. Encontrou
a rejeio do esquema e do prprio torn camoneano, inclusive qualquer sistema
estrfico, e a descoberta de incorporar o ndio como assunto, versando-o de modo
mais sentimental do que herico, tendo sido o primeiro a celebrar, embora
timidamente, os am
ores de branco e ndia - logo depois retomados por Duro.
O episdio da morte de Aurora calcado no de Lindia, com pequenas alteraes,
sendo a comparao fatal para Cludio. At a tirada final, meio intempestiva e
separada do corpo do poema, corresponde do Uraguai, em craveira igualmente
amesqunhada:
Enfim sers cantada, Vila Rica,
Teu nome impresso nas memrias fica.
Ters a glria de ter dado o bero
A quem te fez girar pelo universo.
(15) Apenas J. Clment aparece na ao da Henriade, que termina logo aps haver
assassinado Henrique in. Ravaillac aparece todavia no apndice em
que Voltaire estuda a sua ao: "Dissertation sur Ia mort de Henrl
#IV".
(16) A epopia francesa citada nas notas do Vila Rica, mas no h meno
expressa da sua existncia nas bibliotecas sequestradas dos
Inconfidentes - verdade que mal discriminadas. Na de Cludio h meno
global de nada menos qu
e 189 obras, entre as quais ela poderia estar. Alvarenga Peixoto
possua um livro de "Vultrlo" e o cnego Lus Vieira "Oeuvres de M. Voltaire
um volume em oitavo". Na sua biblioteca poderia Cludio ter lido o Paraso
Perdido, de q
ue se valeu, conforme anota, para um passo do Vila Rica, na tradufio francesa
em prosa. Seria com certeza a de Dupr de Saint-Maur, corrente no sculo XVIII.
Consagra tambm a Milton uma ode entusiasta.
97
#Os crticos no discrepam ao apontar a sua decadncia nas obras posteriores a
1768, sobretudo na poema pico, "artificioso e coriceo exerccio potico de um
lrico j sem veia." (Eduardo Frieiro) preciso considerar trs subsdios para
poder aquila
t-la. Em primeiro lugar (repita-se pela ltima vez) o esforo de *se pr em
dia" com a moda, prejudicando a sua tendncia inicial e fecunda. A seguir, o
fato de que das obras no impressas s conhecemos at o momento (excetua-se o
Vila Rica) peas d
e circunstncia, geralmente laudatrias. Teria a veia secado e a capacidade se
restringido a incensar poderosos em verso banal? Note-se que tais peas tm
maior probabilidade de sobrevivncia, pois so feitas para ser recitadas
publicamente, sendo ofe
recida cpia cuidada ao homenageado. Isto indica a possibilidade de se ter
perdido uma produo lrica desinteressada, necessria para avaliar o ritmo de
decadncia do poeta - como se perdeu toda a produo dramtica referida nos
Apontamentos, que env
iou em 1759 Academia dos Renascidos. As peas reveladas por Caio de Mello
Franco so do ano da publicao das Obras (1768) e a sua qualidade, inferior s
destas, contudo igual a muitas das reveladas por Ramiz Galvo, e algumas
posteriores a 1780.
Todas elas so incomparavelmente melhores que o erro potico do Vila Rica.
Finalmente, h indcios de uma crise espiritual em Cludio, devida possivelmente
pouca repercusso da sua obra. Enquanto encontramos mltiplos sinais de que
Baslio da Gama e Silva Alvarenga eram conhecidos e levados em conta na
Metrpole, onde semp
re viveu o primeiro, quase no se encontra referncia a Cludio em tempo de sua
vida. Da a amargura dos seguintes versos do Vila Rica, que revelam certa
conscincia de enfraquecimento potico e explicam talvez o esforo de acertar o
passo com os mod
ernos para ganhar a desejada fama:
... eu j te invoco Gnio do ptrio rio; nem a lira Tenho to branda j, como se
ouvira, Quando Nize cantei, quando os amores Cantei das belas ninfas e pastores.
Vo os anos correndo, alm passando Do oitavo lustro; as foras vai quebrando A
plida do
ena; e o humor nocivo Pouco a pouco destri o suco ativo, Que da vista nutrira
a luz amada: To pouco vi a testa coroada De capelas de loiro, nem de tanto
Preo tem sido o lisonjeiro canto,
98
#Que os mesmos, que cantei, me no tornassem Duro prmio, se a mim me no
sobrassem Estmulos de honrar o ptrio bero.
(Canto IX)
Por isso confiou na epopia nativista, discreta e natural, para forar a
admirao dos contemporneos, sentindo-se projetar no futuro atravs da
celebrao da ptria, como vem no prognstico do "born velho Itamonte", a penha
por excelncia da sua imag
inao rochosa:
... do Gualacho
Nos futuros auspcios talvez acho, Que um pequeno ribeiro o nome guarda, Nas
margens suas de nascer no tarda O grosso engenho, que decante um dia A memrias
da ptria, e de Garcia.
Crescei para o cercar, loiros formosos. (Canto VIII)
Felizmente para a sua glria, havia ttulos maiores, que permitiram o
cumprimento do desejo: fundar uma literatura que significasse a incorporao do
Brasil cultura do Ocidente, aclimatando nele, de vez para sempre, as
disciplinas mentais que lhe pu
dessem exprimir a realidade.
Musas, canoras Musas, este canto Vs me inspirastes; vs meu tenro alento
Erguestes brandamente quele assento, Que tanto, Musas, prezo, adoro tanto.
Se em campos no pisados algum dia Entra o Ninfa e o Pastor, a ovelha, o touro,
Efeitos so da vossa melodia;
Que muito, Musa, pois, que em fausto agouro, Cresam do ptrio rio margem
fria A imareescivel hera, o verde louro!
(Soneto C)
99
#*
#Captulo in
APOGEU DA REFORMA
1. UMA NOVA GERAO
2. NATURALIDADE E INDIVIDUALISMO DE GONZAGA
3. O DISFARCE PICO DE B ABILIO DA GAMA
4. MSICA E POESIA EM SILVA ALVARENGA E CALDAS BARBOSA
#realizou a compenetrao do sentimento com a expresso universal. Em todos
eles, sobretudo quando querem ser anacrenticos, repontam laivos de
amaneiramento que so um eco, ou uma transformao de Cultismo, e que marchetam
a sua orientao neoclssi
ca de preciosismos que chamaramos por analogia, e com as precaues devidas,
Rococ.
Baslio e Silva Alvarenga conviveram na Metrpole, vindo o segundo em 1777 para
o Rio, onde ficou at morrer; em Vila Rica esteve Cludio s desde 1754; depois,
na companhia de Alvarenga Peixoto a partir de 1776, completando-se o trio com a
chegada d
e Gonzaga em 1782. Duro (caso parte) saiu do pas aos 9 anos e nunca mais
voltou. No h portanto uma Escola Mineira como grupo; mas fora de dvida que
o Arcadismo brasileiro encontrou a sua mais alta expresso em poetas ligados
Capitania das M
inas por nascimento ou residncia, podendo-se por este lado justificar a velha
designao.
Alvarenga Peixoto
Perfeitamente enquadrado na lio arcdica, Alvarenga Peixoto escreve como quem
se exercita, aplicando frmulas com talento mediano e versejando por desfastio.
Porisso mediana a qualidade de quase todos os seus poemas, sendo impossvel
equipar-lo
literriamente, - como uso, - aos outros poetas mineiros.
admissvel que o sequestro e a desgraa houvessem dispersado o seu esplio
potico, deixando apenas as peas destinadas a louvar e comemorar. Seja como
for, estas constituem quase tudo nas vinte e oito restantes, dando a impresso
de que o infeliz c
onspirador s invocava as "canoras Musas" para celebrar poderosos e amigos, numa
demonstrao compacta do carter de sociabiliade da literatura setecentista.
O interesse que apresenta hoje , todavia, devido exatamente a algo implcito na
poesia de circunstncia e j pudemos entrever em Cludio. Quero falar da
utilizao que os poetas fizeram tio louvor a reis e governantes para, atravs
dele, chegar med
itao sobre problemas locais, cumprindo assim um dos objetivos da literatura
ilustrada, em busca da verdade social. A homenagem tornava-se pretexto, tanto
mais seguro quanto o poeta se escudava no homenageado e mesclava habilmente
lisonja e reivindic
ao. o que vemos em muitos poemas de Cludio; nos de poetastros sem
consequncia, como Bartolomeu Antnio Cordovil; no que resta de mais vivo entre
os de Alvarenga Peixoto: duas odes, o fragmento de uma terceira, uma cantata e o
famoso "Canto Genet
laco".
#104
#Combinadas, referidas a alguns sonetos e devidamente lidas, desvendam um claro
roteiro de poesia ilustrada, com apoio em alguns temas fundamentais: louvor do
governo forte que promove a civilizao; preeminncia da paz sobre a guerra;
necessidade de
civilizar o Brasil por uma administrao adequada; desejo de que o soberano
viesse efetivamente tomar conhecimento da nossa realidade; aspirao de sermos
governados por brasileiros, que compreendessem os caracteres originais do pas,
marcado pela fu
so das raas e a aclimao da cultura europia. a mistura, tpica dos nossos
ilustrados, de pombalismo, nativismo e confiana nas Luzes.
Tais pontos no aparecem, claro, expressamente definidos e organizados; vm
contidos de modo mais ou menos explcito em sequncias e imagens, com
regularidade suficiente para fazer de Alvarenga Peixoto um ilustrado
brasileira. Alis, parece ter s
ido, dentre os poetas "mineiros", o mais resolutamente envolvido na
Inconfidncia, no contando que seria homem progressista e cheio de planos, como
os que procurou aplicar na melhoria das suas lavras do Sul de Minas.
A ode a Pombal com certeza a sua obra melhor e, apesar de descadas
ocasionais, uma das mais belas que nos legou o sculo XVIII no gnero
estritamente poltico. O verso conciso e seco, no raro lapidar, descrevendo a
brutalidade da guerra para ch
egar, por contraste, a uma nobre viso da paz e do trabalho, bens maiores na
vida dos povos.
Ensanguentados rios, quantas vezes
Vistes os frteis vales
Semeados de lanas e de arnses?
Quantas, Ceres loura,
Crescendo uns males sobre os outros males,
Em vez do trigo, que as espigas doura,
Viste espigas de ferro,
Frutos plantados pela mo do erro,
E colhidos em monte sobre eiras,
Rotos pedaos de servis bandeiras!
Mais longe:
Grande Marqus, os Stiros saltando Por entre as verdes parras Defendidas por ti
de estranhas garras;
105
#Os trigos ondeando
Nas fecundas searas;
Os incensos fumando sobre as aras,
A nascente cidade,
Mostram a verdadeira heroicidade.
Em Pombal revia o esforo construtor que admirava, como Cludio, na obra de
Pedro, o Grande, o qual,
... errando incerto e vago Brbaros duros civiliza e doma.
(Son. VIII)
A incultura da ptria - sublinhada na "Ode rainha D. Maria l" - surge todavia
nos versos do "Canto Genetliaco" ao batizado de um filho do Governador Conde de
Cavaleiros, como rica diversidade de promessas, cujo alcance apenas um
administrador brasil
eiro poderia apreender; da o subterfgio, por meio do qual atribua ao
pequenino D. Jos Toms de Menezes, nascido nas Minas, o sentimento que iam
tendo os intelectuais e proprietrios da necessidade de autonomia:
Isto, que Europa barbaria chama, Do seio de delcias to diverso, Quo diferente
para quem ama Os ternos laos do seu ptrio bero.
Como em Baslio da Gama, Silva Alvarenga, Cordovil e o Cludio da ltima fase,
tambm para ele o ndio ia se tornando smbolo do Brasil. Nas representaes
plsticas - escultura, pintura, artes aplicadas - isto se vinha dando desde o
Descobrimento, po
r todo o Ocidente: mas a recorrncia dos temas, em arte e literatura, s pode
ser tomada em sentido estritamente contextual; de acordo com este, tal prtica,
no sculo XVIII e no Brasil, vem acrescida de significado diverso, englobando as
idias de h
omem natural, liberdade e nativismo, que convergem para a imagem do ndio com
algemas rompidas, corrente no tempo da Independncia para exprimir a libertao
do pas. Em Alvarenga Peixoto e seus contemporneos, ainda no se trata disto:
tambm no se
trata mais da emplumada alegoria da Quarta Parte do Mundo, ao nvel dos
jacars, onas e ananazes. Na "Cantata", e principalmente na "Ode rainha D.
Maria I", o selvagem um porta-voz que exprime Europa os desejos locais, em
particular dos poetas
ilustrados, convictos da necessidade, para a Colnia, de born governo que
promovesse o imprio das Luzes,
106
#resgatando o povo da dura condio em que se achava e nitidamente denunciada
num verso ousadssimo, logo abafado pela ttica ligeira da adulao:
No h brbara fera
Que o valor e a prudncia no domine;
Quando a razo impera,
Que leo pode haver que no se ensine?
E o forte jugo, por si mesmo grave,
A doce mo que o pe, o faz suave.
Que fez a natureza
Em pr neste pas o seu tesouro
Das pedras na riqueza,
Nas grossas minas abundantes de ouro,
Se o povo miservel... Mas que digo!
Povo feliz, pois tem o vosso abrigo.1
("Fragmento")
Todavia, s quando aparecem poetas capazes de superar a estrita preocupao
ilustrada e comunicar no verso a beleza do mundo e a emoo dos seres, que
esta gerao alcanar verdadeiramente a poesia, - com Toms Gonzaga, Baslio da
Gama e Silva Alv
arenga.
(1) Este fragmento de ocje foi juntado aos Autos no processo da Inconfidncia.
107
#2. NATURALIDADE E INDIVIDUALISMO DE GONZAGA
"... tomando o Ru respondente isto em menos preo, e dando as razes, por que
lhe parecia isto impossvel, concluiu dizendo, que quando eles sassem ia fazer
uma Ode, que to sossegado ficava no seu esprito..."
Nesta resposta ao inqurito, Gonzaga deixa implcita uma teoria da criao
potica bem diferente da que reputaramos ajustada sua obra. Esprito em paz e
desanuviado no parece ter sido o que presidiu feitura da maior parte das suas
liras, compost
as na priso ou entre as dvidas duma corte amorosa, nem sempre livre de
oposies e dificuldades. Nem tampouco das Cartas Chilenas, a ser realmente
ele o oculto Critlo.
No entanto, h neste recurso de acusado uma leveza de expresso que nos deixa
pensativos: to sossegado que ia fazer uma ode... O exemplo que escolheu aponta,
- queiramos ou no, - para aquela nobre serenidade, aquela majestade tranquila
que marca as
suas boas liras, mesmo quando pungentes, sempre que superam o dengue da moda
anacrentica. Talvez a criao no dispensasse, para ele, a paz superior da
viso artstica, imposta pela fora do esprito ao impulso frequentemente
desordenado da paixo. E
este envluco brilhante e sereno daria dignidade e valor coletivo nota da
experincia pessoal.
Seja como for, o certo que em Toms Gonzaga a poesia parece fenmeno mais vivo
e autntico, menos literrio do que em Cludio, por ter brotado de experincias
humanas palpitantes. O poeta Gonzaga existe, realmente, de 1782 a 1793; poeta de
uma crise
afetiva e de uma crise poltica, diferente nisto de Cludio, cuja atividade
parece um longo, consciencioso artesanato de escritor, no sentido estrito da
palavra. O problema consiste em avaliar at que ponto a Marflia de Dirceu um
poema de lirismo a
moroso tecido volta duma experincia concreta - a paixo, o noivado, a
separao de Dirceu (Gonzaga) e Marlia (Maria Dorotia Joaquina de Seixas) ou o
roteiro de uma personalidade, que se analisa e expe, a pretexto da referida
experincia. certo
que os dois aspectos no se apartam, nem se apresentam como alternativas. Mas
tambm certo que
108
#o significado da obra de Gonzaga varia conforme aceitemos a predominoncia de
um ou de outro.
Para podermos formar juzo, preciso mencionar pelo menos trs pontos: a sua
aventura sentimental, a sua formao potica, as caractersticas da sua poesia.
Gonzaga dos raros poetas brasileiros, e certamente o nico entre os rcades,
cuja vida amorosa importa para a compreenso da obra. Primeiro, porque os seus
versos invocam quase todos a pastra Marlia, nome potico da namorada e depois
noiva; segund
o, porque eles criaram com isto um mito feminino, dos poucos em nossa
literatura. possvel que os organizadores das edies gonzagueanas, seguindo a
primeira seleo feita no se sabe por quem (1792), desprezassem composies no
ligadas ao tema, q
ue deste modo se extraviaram em maior nmero. Seja como for, o que resta um
bloco compacto, todo formado volta de Marlia. A Glaura de Silva Alvarenga,
pode, ou no, ter vivido; a sua existncia corprea no interfere com a pastra
estilizada e d
espersonalizada que aparece nos ronds e madrigais; a nossa curiosidade no
necessita ir alm do que estes nos dizem. O mesmo no acontece com a herona de
Gonzaga, muito mais viva e presente.
O tema de Marlia , pode-se dizer, modulado por ele com certa amplitude. Temos
desde uma presena fsica concretamente sentida, at uma vaga pastorinha
incaracterstica, mero pretexto potico semelhante s Antandras e Amarilis.
Quando apareces na madrugada, mal embrulhada
na larga roupa, e desgrenhada, sem fita ou flor; ah! que ento brilha a
natureza!
Ento se mostra tua beleza
inda maior.
(I, 17)
Fito os olhos na janela,
aonde, Marlia bela,
tu chegas ao fim do dia.
(T, 21)
109
#l
Quando janela acures, sem quereres, descuidada, tu vers Marlia, a minha, e
minha pobre morada.
(II, 12)
Pintam, que entrando you na, grande igreja: pintam que as mos nos damos. (II,
34)
Entra nesta grande terra, passa uma formosa ponte, passa a segunda; a terceira
tem um palcio defronte.
Ele tem ao p da porta uma rasgada janela: da sala, aonde assiste a minha
Marlia bela.
(II, 37)
Versos como estes personificam e localizam concretamente a bem-amada, dando-lhe
uma realidade que podemos reconstruir, superpondo a Vila Rica um roteiro amoroso
que o visitante procura captar, contemplando janelas, medindo distncias,
refazendo itiner
rios, de todo possudo pela topografia mgica do antigo amor.
No entanto, se procuramos completar esta forte presena de Dorotia por um
conhecimento mais completo do seu ser, as Liras fogem nossa curiosidade.
Entrevemos aqui um cime -
Minha Marlia, tu enfadada? -
imaginamos ali um leve snobismo de mocinha fina -
melhor, minha bela, ser lembrada por quantos ho de vir sbios humanos, que
ter urcos, ter caches e tesouros
que morrem com os anos; -
apenas pressentimos mais longe certa frieza ante os ardores do poeta, que chama
ento como argumento
110
#A devorante mo da negra morte
para persuadi-la:
faamos, doce amada, os nossos breves dias mais ditosos; --
e mais nada. Na medida em que objeto de poesia, Dorotia de Seixas vai-se
tornando cada vez mais um tema. Desprende-se da vida cotidiana, mal esboada,
para entrar na farndola rococ, de chapuzinho de palha, corpete de veludo e
cajado florido, num
desalinho convencional que estimula a musa anacrentca do Ouvidor e Procurador
dos Ausentes. Todo este lado Svres e Fragonard contrabalana o outro. Dorotia
se desindividualizou para ser absorvida na conveno arcdica: a pastra
Marlia, objeto
ideal de poesia, sem existncia concreta. Porisso mesmo, ora loura, ora
morena; ora compassiva, ora cruel: em qualquer caso, sem nervo nem sangue. um
bscuit arrebicado que o poeta envolve na revoada de cupidos, rosas e abelhas:
Apenas lhe morde,
Marlia gritando,
c"o dedo fugiu.
Amor, que no bosque
estava brincando,
aos ais acudiu.
(I, 20)
Lembremos apenas que sob esta Marlia dos poemas podem na verdade ocultar-se
pedaos de Lauras, Nizes, Elviras, Ormias, Lidoras e Alfias, que o poeta
cantara em versos anteriores. O belo poema, talvez inspirado num soneto de
Garo,
Eu no sou, minha Nine, pegureiro, que viva de guardar alheio gado --
refeito em seguida -
Eu, Marlia, no sou algum vaqueiro que viva de guardar alheio gado -
leva a pensar que no hesitava em retomar composies anteriores para ajust-las
s novas condies. possvel que outras liras endereadas a Marlia -
sobretudo as anacrenticas - sejam adaptaes de poemas mais velhos. Da, em
parte, a pastorinha q
ue vai e vem como peteca, em tantos versos de hbil negaceio sentimental. Isto
111
#ajudaria a explicar a predominoncia do ciclo de Marlia, que quase toda a
sua obra: seria realmente pouco vulgar que apenas aos quarenta anos tal poeta
abrisse as asas, e o fizesse de maneira desde logo to consumada.
Por outro lado, no h como escapar ao fato de que apenas em Vila Rica, a partir
de 1782, a poesia avultou na sua vida. No Brasil, o homem de estudo, de ambio
e de sala, que provavelmente era, encontrou condies inteiramente novas. Ficou
talvez mai
s disponvel, e o amor por Dorotia de Seixas o iniciou em ordem nova de
sentimentos: o clssico florescimento da primavera no outono. Foi um acaso feliz
para a nossa literatura esta conjuo de uma poeta de meia idade com a menina de
dezessete anos.
O quarento o amoroso refinado, capaz de sentir poesia onde o adolescente s
v o embaraoso quotidiano; e a proximidade da velhice intensifica, em relao
moa em flor, um encantamento que mais se apura pela fuga do tempo e a previso
da morte:
Ah! enquanto os destinos impiedosos no voltam contra ns a face irada, faamos
sim, faamos, doce amada, os nosso breves dias mais ditosos(...)
Ornemos nossas testas com as flores, e faamos de feno um brando leito;
prendamo-nos, Marlia, em lao estreito, gozemos do prazer de sos amores (...)
(...) aproveite-se o tempo, antes que faa o estrago de roubar ao corpo as
foras, e ao semblante
a graa.
(r, us)
Da, em sua poesia, a substituio da antiga pena de amor como impacincia
sensual, pela aspirao ao convvio domstico, que coroa e consolida os amores
da mocidade. As suas liras so copiosas na celebrao do lar, nos sonhos de vida
conjugai. Poriss
o dignificam os sentimentos quotidianos, superando os disfarces alegricos que o
Arcadismo herdou da poesia seiscentista e quinhentista. Marlia aparece ento
realmente como noiva e esposa, desimpedida de toda a tralha mitolgica, livre da
idealizao
exaustiva com que aparece noutros poemas.
Estas liras de cunho por assim dizer domstico se tornam mais belas e pungentes
quando escritas da priso - de onde imagina a vida junto esposa, delineando a
velhice tranquila. Para o seu mestre Auacreonte, a fuga da mocidade, importando
sobretudo e
m privao
112
#dos prazeres, despertava a evocao exaltada dos bens que se iam afastando;
para ele, sendo no obstante ameaa ao amor, a velhice motiva de preferncia a
invocao da paz domstica. E ele a trata com realismo nada inferior ao dos
antigos.
J, j me vai, Marlia, branquejando loiro cabelo, que circula a testa; este
mesmo, que alveja, vai caindo, e pouco j me resta,
, (n- )
diz retomando Anacreonte:
J me alvejam as tmporas e a cabea calva: j no mais a cara juventude e
os dentes se arruinaram. Resta pouco tempo da doce vida.
E, mais prximo aqui de Horcio, a viso burguesa da decrepitude:
Mas sempre passarei uma velhice
muito menos penosa.
No trarei a muleta can-egada,
descansarei o j vergado corpo
na tua mo piedosa,
na tua mo nevada. .
A s frias tardes, em que negra nuvem
os chuveiros no lance,
irei contigo ao prado florescente:
aqui me buscars um stio ameno
onde os membros descance,
e ao brando sol me aquente.
(I, 18)
Um homem de paixes fortes, de individualidade acentuada, que se embebe no
obstante na viso da felicidade domstica. E que pelo fato de nutrir tais
vises, primeiro da posio de um namorado maduro, depois na solitude do
crcere, soube dar-lhes (sup
erando muito remeleixo pernstico), ora uma dignidade, ora uma pungncia que as
tornaram das experincias poticas mais sentidas da nossa lngua.
Estabelecido que o amor pela mocinha de Vila Rica influiu decididamente no rumo
da sua vocao, preciso agora tocar noutra grande influncia: a de Cludio
Manuel da Costa.
113
#Gonzaga, pertencendo nova gerao, sofreu o influxo da Arcdia Lusitana, e
portanto de Cludio, cujas Obras, vindas a lume no ano mesmo em que terminava o
curso (1768), teria certamente lido. O ambiente em que se formou era outro, j
penetrado das
tendncias de reforma, que haviam passado o apogeu quando veio de Portugal para
as Minas Gerais (1782). Aqui, ligou-se desde logo ao colega mais velho, que
porventura admirava h muito e com certeza o animou a escrever, empurrando no
caminho da poesi
a o talento logo pressentido e manifestado.
Nas liras, fala constantemente do amigo; a intimidade entre ambos fica patente,
no s a, como nos Autos da devassa, onde declara que Cludio o aconselhava em
matria potica: "(...) o Doutor Cludio Manuel da Costa (...) sabia muito bem,
que ele tra
tava da sua retirada, que estava lendo e emendando as poesias do Ru Respondente
que tratavam desta".2 Num de seus poemas, querendo traar o paradigma do poeta,
diz:
e o terno Alceste chora
ao som dos versos, a que o gnio o guia3
(i, e)
Na Lira 31 da I Parte, faz do amigo o elogio mais alto que se poderia esperar de
um homem apaixonado:
Porm que importa
no valhas nada
seres cantada
do teu Dirceu?
Tu tens, Marlia,
cantor celeste;
o meu Glauceste
a voz ergueu: "
ir teu nome
aos fins da terra,
e ao mesmo Cu.
Na lira em que traa mais acuradamente o prprio perfil, manifesta o orgulho que
tinha em ser admirado por Cludio:
(2) Autos e Devassa, cit., vol. IV, pg. 259-260.
(3) Alceste Cludio, como se depreende do contexto de vrias
Uras. opinio de Alberto de Faria, estrlbado numa argumentao
#engenhosa ("Criptonlmos das Cartas Chilenas", Acendalhas, pgs. 38-39).
114
#corn tal destreza toco a sanfoninha, que inveja at me tem o prprio Alceste:
ao som dela concerto a voz celeste, nem, canto letra que no seja minha
(J, D
Pressentimos a a enternecida reverncia do mais velho, profundo conhecedor do
ofcio; o ltimo verso talvez indique, da parte de Gonzaga, desvanecimento, no
de estreante, mas de quem s ento comeava a poetar com verdadeiro
discernimento e fora p
ara prosseguir: "nem canto letra que no seja minha."
O profundo amor de Cludio pela terra mineira teria passado em parte ao luso-
brasileiro Gonzaga. Por ocasio da contenda com o Governador Lus da Cunha
Menezes, o sentimento de justia e o ardor combativo mais reforariam o nascente
apego, que haveri
a de contribuir para interess-lo na Inconfidncia, onde parece ter tido papel
vagamente marginal, se que teve algum.
bela e comovente a amizade dos dois grandes poetas, to chegada e afetuosa
como se v nas liras, onde Gonzaga fala no "meu honrado companheiro" e na "mais
fiel unio" (II, 12); ou nas declaraes da devassa, onde procura, sempre,
desviar de Cludio
perigo e suspeita. De Cludio, que antes de matar-se no desespero o
cornprometera to desastradamente, ilustrando o prprio verso, que mais diramos
profecia:
Ah! que falta valor ao sofrimento.
(cloga, VII)
Mais notvel se torna o calor dessa fraternidade sem cimes, se repararmos que
Gonzaga vinha de certo modo superar a obra de Cludio, trazendo literatura
luso-brasileira um torn moderno dentro do Arcadismo, deslocando para um plano
mais individual e
espontneo a naturalidade, que na gerao anterior ainda quase acadmica. O
"caro Glauceste" no combate nem rejeita estas manifestaes, como fazem
geralmente os que, aos sessenta, vm os mais moos inovar na literatura em que
produziram. Pelo con
trrio, emenda os versos do amigo, certamente entusiasmado e rejuvenescido pelo
seu cristalino frescor; e, quem sabe, sentindo neles a consequncia natural da
reforma que ajudara a empreender, trinta anos antes, em busca da naturalidade.
Gonzaga, de s
ua parte, seguia a orientao e o ensino do companheiro mais velho, porque nela
encontrava o instrumento para dar corpo quele mundo de poesia que descobriu
entre as serranias mineiras.
115
#Em nossa literatura dos maiores poetas, dentre os sete ou oito que trouxeram
alguma coisa nossa viso do mundo. com ele, a pesquisa neoclssica da natureza
alcana a expresso mais humana e artisticamente mais pura, liberta ao mesmo
tempo da con
toro barroca e dos escolhos da prosa. Nas literaturas romnicas do tempo,
forma sem deslustre ao lado de um Bocage ou um Andr Chnier.
Na primeira fase da sua poesia, anterior priso, denota preferncia pelo verso
leve e casquilho, tratado com facilidade que Cludio incrementaria, satisfeito
de ver o amigo brilhar num campo que nunca trilhou com xito. Depois de preso,
supera est
e lado rococ da inspirao, concentrando-se em formas mais severas; no
obstante, desse tempo a mais bela das odesinhas amorosas que comps:
A minha amada mais formosa que o branco lrio, dobrada rosa, que o cinamomo,
quando matiza co"a folha a flor. Venus no chega
ao meu amor;
(H, 27)
melodia pura de que h vrios exemplos na sua obra, e onde germinam os melhores
ritmos, as mais belas imagens de um Casimiro de Abreu.*
Superando a todos os contemporneos brasileiros e portugueses no verso gracioso,
no porm nisto que fundamenta a sua preeminncia. Esta deriva principalmente
do realismo e do individualismo, com que elabora, em termos de poesia, um
sentimento da v
ida e uma afirmao de si mesmo. "(---) No a persistncia dos elementos
tradicionais da poesia, mais ou menos pessoalmente elaborados, que nos do
definitivamente o seu estilo. Este consiste sobretudo nas novidades sentimentais
e concepcionais que
trouxe para uma literatura, derrancada no esforo de remoer sem cessar a
antiguidade".5
(4) As peas leves de Gonzaga, anacrenticas no sentido
convencional, de metro geralmente curto e com a presena de Venus e Cupido,
so 24 sobre as 110 consideradas hoje autnticas com alguma certeza; delas, 17
pertencem ao perodo
anterior priso e 7 ao perodo desta.
(5) Rodrigues Lapa, prefcio edio S da Costa, pgs. XXVII - XXVIII.
116
#-*
*
"**
*
Em Gonzaga, interessante o contraste entre as precaues mitolgicas com que
celebra a mulher e o senso de realidade com que a integra no panorama da vida.
Mais de uma lira votada tarefa quase didtica de mostrar bem amada a
naturalidade do
amor, mostrando-lhe a ordenao das coisas naturais. E, por outro lado,
valorizar a noo civil da vida social, salientando a nobreza das artes da paz,
o falso herosmo da violncia, a ordem serena da razo. Em alguns dos seus
melhores poemas, a belez
a aparece como contemplao singela da regularidade das coisas.
Um pouco meditemos
na regular beleza,
que em tudo quanto vive nos descobre
a sbia Natureza.
(I, 19)
A recuperao da naturalidade, cujos artfices foram os primeiros rcades,
encontra em Gonzaga a nota fundamente humana. simplicidade de ch-com-torradas
em que se despoetizou o estilo de Garo, substitui a vivncia calorosa do
quotidiano. A suprem
a importncia de sua obra a maturao do psicologismo esboado naquele poeta,
mas que s avulta com ele e Bocage.
A delegao potica, referida anteriormente, no perturba aqui a emergncia do
lirismo pessoal: Gonzaga surge, vivo, de sob o tnue disfarce do pastor Dirceu,
e a sua obra a nica, entre as dos rcades, que permite acompanhar um drama
pessoal e as l
inhas duma biografia. O impacto emocional sobre o leitor aumenta graas a este
degelo do eu, sem o qual no irrompe o autntico lirismo individual.
Ao contrrio da tradio impessoal do Cultismo e da delegao arcdica, vemos
uma personalidade que se revela, mas ao mesmo tempo se constri no plano
literrio. Por outras palavras: que considera a si mesma como objeto legtimo da
arte, e porisso se
desvenda, nas suas penas, no seu gosto, em toda a excavao profunda e sinuosa
da confidencia; mas s desvenda para atingir a imagem eloquente, a frase bela
que permite elaborar uma expresso artstica, ou seja, uma estilizao de si
mesmo. Gonzaga se
distinque ainda nisto dos romnticos,
#que captam as mais das vezes a forma emergente no calor da inspirao, anciosos
por registrar o impulso afetivo. No encontramos nele esta variabildade de
sismgrafo, riscando na percepo do leitor um trao nervoso e desigual. No
caa momentos fug
azes, nem prefere a notao rara e pitoresca do que s acontece uma vez. O que
procura construir a linha mdia da sua vida moral, num traado seguro,
equidis-
117
#tente do iiiexprimvel e das exigncias de clareza. As liras so um roteiro
pessoal, no uma srie de indicaes, como, setenta ou oitenta anos depois, as
Primaveras, de Casimiro de Abreu. Se elas pudessem ter sido ordenadas e
publicadas pelo prprio
autor, talvez isso ainda ficasse mais acentuado.
Este equilbrio verdadeiramente neoclssico entre o eu e a palavra perdeu-se a
seguir. A obra de Gonzaga admirvel graas a tal capacidade de extrair uma
linha condutora dentre a variedade de afetos e estados d"alma, construindo um s
movimento, que
funde a sua natureza e a forma que a demarca e revela. Deste modo ela
verdadeiramente sincera no plano artstico e, nas partes em que superou os
modismos bastante corruptveis do Rococ literrio, admirvel, geralmente
superior s produes do Roma
ntismo.
A superao do Rococ se opera principalmente pelo cunho muito especial que
Toms Antnio imprimiu expresso do seu eu: todo pautado pelo decoro
neoclssico e no obstante muito individual e revelador.
que o sentimento da prpria pessoa aparece, nele, exaltado e altivo.
gabolice e aos disfarces da poesia anterior, substitui a revelao sincera e
minuciosa do seu modo de ser. Fala com naturalidade e abundncia (sem o ar de
indiscrio que caract
erizaria mais tarde os romnticos) da sua inteligncia, posio social,
prestgio, habilidades. Preocupa-se com a aparncia fsica e a eroso da idade;
com o conforto, futuro, planos, glria. Talvez a circunstncia de namorar uma
adolescente rica (e
le, pobre e quarento) tenha exacerbado esta tendncia, que seria alm disso
exibicionismo compreensvel de homem apaixonado. Entretanto, mais provvel que
a descoberta do amor e da poesia o tenham levado a descobrir a si prprio, e a
comunicar o ac
hado.
Suponhamos, com efeito, que o triunfo na carreira judicial, o prestgio na
sociedade, no bastassem para satisfazer certas necessidades espirituais. O
malogro da carreira universitria, a falta de oportunidade e estmulo para a
literatura, teriam blo
queado parte das suas aspiraes: o encontro de Dorotia e de Cludio (do amor e
da tcnica...) abriu novo trilho para elas e a poesia surgiu deste modo, de
repente, como veculo para afirmar brilhantemente o seu ser. Ainda mais num
momento em que o G
overnador Luis da Cunha Menezes feria o seu pundonor e os Ferres, tios e tias
de Dorotia, procuravam guard-la para melhor partido.6 Da o cunho
(6) Diz Toms Brando que a amuia de Dorotia nSo desejava o casamento e tudo
fez para evit-lo, por ser Gonzaga muito mais velho e de sada para
#a Bahia, devendo pois levar a esposa. Mandaram-na inclusive para fora de Vila
Bica, e B mesmo a tenaz insistncia do Ouvidor pde quebrar a oposio. A lira
"Eu, Marlla, no sou nenhum vaqueiro". (I, 1) teria sido escrita para alegar as
suas qualid
ades, em resposta prospia da famlia materna de Dorotia. Marlia de Dirceu,
pgs. 142-166.
118
#611
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#Bp OBBAiasaid ap osjnoai ojppEp -J9A "BPUJOBI BsoqinSio Buin aA[OAU9S9p
gjaojEo op ojuauiEnijuoo o 9 Bossad Bns Bp OBBjsajiuBui ap BIA Eojun B asBnb
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Bpnapua} Ejsg -BI
^A a apBpiuip Biidjd Ep OBBULIIJE Epd opEqjpuod O11940^ uin sB[a utajas iBp
sreossad SBJTJ sBp ootjioadsa
#e os toques novos que trouxe poesia. Assim, a sua grande mensagem
construda em torno dele prprio; no apenas da sua paixo, que entra muitas
vezes como ponto de partida e ingrediente, mas da sua personalidade total,
amadurecida e de certo modo
recomposta pelo amor, a poesia, a poltica e a desgraa - que veio encontrar
misturados na decadente Vila Rica de Ouro Preto.
Graas a esta aventura humana e artstica, Toms Antnio pde traar e exprimir
o ntido contorno com que passou histria. Pde legar atravs das geraes, a
milhares de homens e mulheres que se dobram sobre o seu canto de ternura, dor e
orgulho, u
ma imagem de grandeza invulgar:
Eu que sou heri, Marlia bela, seguindo da virtude a honrosa estrada;
(I, 27)
Eu tenho um corao maior que o mundo, tu, formosa, Marlia, bem o sabes; um
corao, e basta, onde tu mesma cabes.
(U, 2)
No importa que por duas vezes fraquejasse ou, penso eu, se fizesse de esperto,
recomendando Marlia ao visconde de Barbacena e dobrando-se ao p deste (II, 14
e 23). So tricas de defesa, equivalentes s que desenvolveu com habilidade no
decorrer do
processo. O que resta a brusca tomada de conscincia com que esculpiu contra
o tempo a sua figura. Confiou mais do qus ningum em si mesmo e na fora
imortalzadora da poesia -
S podem conservar um nome eterno os versos ou a histria -
(I, "22)
G afirmou a dignidade do poeta, com uma segurana que ser das posies-chaves
do bardo romntico, do futuro vidente que Hlderlin definia mais ou menos por
esse tempo e Magalhes proclamaria mediocremente no Brasil, em 1836.
So impressionantes a firmeza e a sabedoria reveladas nas liras da priso. Nem
um momento de desmoralizao ou renncia; sempre a certeza da sua valia, a
confiana nas prprias foras. Um dos melhores critrios para constatarmos a
inautenticidade da f
alsa in Parte precisamente o desalento e a lamria que a envolvem, to em
contraste com a fibra dos demais poemas.
120
#Assim pois, amor e poesia refinaram a personalidade de Gonzaga; sem Dorotia e
sem Cludio no teramos a sua obra. Entretanto, mais do que o cantor de
Marlia, ele o cantor de si mesmo. A pieguice pastoral se esbateu nos seus
versos porque, medi
da que os compunha e se descobria, ia ficando cada vez menos o pastor Dirceu,
cada vez mais o poeta Toms Antnio Gonzaga, lanando dos jardins da Arcdia a
sua forte alma sobre a posteriodade.
121
#3. O DISFARCE PICO DE BASILIO DA GAMA
r
A oposio entre rusticidade e civilizao, que anima o Arcadismo, no poderia
deixar de favorecer no Brasil o advento do ndio como tema literrio. Aos olhos
do homem culto, era por excelncia o rstico; e quando tais olhos buscavam o
natural, nada m
elhor que ele poderia representar a lei vivida segundo a natureza, j que as
complicaes da sua ordenao social escapavam na maior parte ao observador de
cultura europia.
O rcade romano Termindo Sipilio foi o primeiro, na lngua portuguesa, que
chegou aos limites da conveno buclica, substituindo aos pastores vergilianos
estes filhos mais ldimos da rusticidade. Nisto, portou-se como homem do tempo,
fazendo a litera
tura tender naturalidade e buscando apoio na conveno campestre para
dissolver o excesso de formalismo intelectual, ainda ntido nas obras de
Cludio. O seu poema Uraguai, publicado um ano depois, marca um ponto decisivo,
qui o mais importante pa
ra a formao da nossa literatura.
Obra bastante complexa do ponto de vista dos intuitos e diretrizes, embora
simplificada ao mximo na textura, pelas qualidades estilsticas do poeta,
erro consider-la epopia, no se devendo perder de vista que , primeiramente,
lrica; em seguida,
herica; finalmente, didtica.
Contrrio a Duro e sua empresa algo extempornea, talvez o maior mrito de
Baslio da Gama consista no haver encontrado soluo ideal para o epos
setecentista, reduzindo-o a propores cornpatveis com o torn lrico, alm de
lhe dar contedo ideolg
ico moderno. Poder-se-ia com certa pertinncia defini-la como uma espcie de
cloga herica, em cuja estrutura se percebe o canto alternado de pastores e
citadinos, com o "lobo vors" surgindo a cada passo na roupeta do jesuta.
O assunto a expedio mista de portugueses e espanhis contra as misses
jesuticas do Rio Grande, para executar as clusulas do Tratado de Madrid, em
1756; a inteno ostensiva, fazer um panfleto antijesutico para conciliar as
graas de Pombal. A
anlise revela, todavia, que tambm outros intuitos animavam o poeta;
notadamente descrever o conflito entre a ordenao racional da Europa e o
primitivismo do ndio. Ao contrrio do que se d
122
#em Cludio, sentimos a cada passo certa indeciso entre ambos, como se o
encantamento pelo pitoresco levasse o poeta a lamentar intimamente a ruptura do
ritmo agreste pela civilidade imposta. Tanto assim que no conseguiu esconder a
simpatia pelo ven
cido; optou pelo elemento mais dbil, plstcamente mais rico e colorido,
revelando deste modo evidente predomnio da sensibilidade sobre os propsitos
racionais.
Esta indeciso resolvida pela presena dum terceiro elemento, ao qual
transfere o ataque: o jesuta. A virulncia que no ps na descrio dos
combates fica-lhe reservada, no hesitando para isso em acolher o que de pior se
dizia contra ele - seja s
incera, como quer Jos Verssimo, seja hipocritamente, como querem Capistrano de
Abreu e Afrnio Peixoto.8
No entanto, jesuta de carne e osso s aparece um, o Padre Balda, j que o Padre
Tedeo apenas se vislumbra.9 Basilio lhes atribui algumas vilanices primrias,
reservando o grosso do ataque para o jesuta abstrato, que paira nos versos para
alojar-se r
ealmente nas notas.
No tenho notcia de outro poema que seja, como este, desenvolvido em dois
planos complementares: o dos versos e o das notas, nele parte integrante da
composio, podendo-se considerar mutiladas essencialmente as edies que as
suprimem, como a de V
arnhagen. Voltaire tinha introduzido com a Henriade a moda dos poemas largamente
anotados pelo prprio autor, como se v tambm no Caramuru e sobretudo no Vila
Rica. No Uraguai, todavia, as notas se tornam verdadeiro suplemento em prosa,
correndo par
alelo ao verso, chamando a si a tarefa proposta de combater o jesuta e exaltar
Pombal. Valem deste modo como recurso para aliviar a sobrecarga polmica, pois o
objeto ostensivo lhes confiado e o poeta, livre dum mximo de no-poesia, pode
abandonar
-se s aventuras lricas que lhe so caras.
Esta estrutura peculiar revela claramente incapacidade pica de incorporar
artisticamente o elemento ideolgico, e faz do Uraguai um poemeto algo mal
construdo, cheio de quebras na sequncia, mas leve e brilhante, revelando um
dos poetas mais puros d
a nossa literatura. Salvo em alguns trechos (sobretudo no Canto V, mais
(8) Jos Verssimo, Introduo a Obras Poticas de Jos Basilio da Gama,
pgs. 43-48; Afrnio Peixoto, "Nota preliminar", Vraguai, onde vem tambm
citada a oplnifio de Capistrano (pg. XXII). Note-se o estranho
carter desta edi
o comemorativa fac-similar, criticamente
#excelente, onde tudo converge para vilipendiar o poeta a pretexto de lhe
celebrar o bicentenrio.
(9) Sobre estes padres, e principalmente o primeiro, defensor
tenaz das redues contra a incorporao Coroa portuguesa, v. o livro
recente e interessantssimo de C. Lugon, La republique communiste
chrttenne ds
Guaranis. Quanto deformao a que os submeteu Basilio, consultar
com precauo a Reposta (sic) Apologtica ao poema intitulado o Uraguai,
etc., publicao annima do jesuta Loureno Kaulen.
123
#poltico), o encanto do leitor ininterrupto. Variedade, fludez, colorido,
movimento, snteses admirveis, caracterizam esse decasslabo transfundido de
melodia, no obstante equilibrado e sereno, onde o verso branco to querido
teoria potica do
s rcades encontra a sua mais brilhante expresso. Nele os romnticos moldaro o
seu: e ao l-lo pressentimos Gonalves Dias. Aqui a naturalidade combina a razo
e o sentimento, como queriam as melhores tendncias do Setecentos.
Em composio relativamente longa, admira a raridade dos prosasmos e o
impecvel born gosto. Ao lado da inspirao, havia em Basilio aproveitamento
requintado e abundante das leituras, inclusive parfrases ou imitaes de verso
dos mestres, preconiza
dos pela esttica do tempo:
Verglio: 2Vos se-us lugares cada qual imvel Pende da sua boca.. .
(D
Rompe, sem fazer dano, a terra dura, E treme fora muito tempo a hstea.
(H)
Petrarca: ... e o pas belo, que parte
O Apenino, e cinge o -mar, e os Alpes.
(in)
Tanto era bela no seu rosto a morte.
(IV)
Cames: J a, nossa do Mundo ltima Parte
Tinha voltado a ensanguentada fronte Ao centro luminar.
(in)
Tasso: O rouco som da irada artilharia.
"(I)
Tu, vive c goza, a hiz serena e pura.
(V)
Nele a sensibilidade era plstica: no voltada para o escultrico e o
arquitetnico, maneira de Cludio, mas para os arabescos e os matizes, que do
ao verso movimento contnuo. Apreende o
124
#mundo sensvel com verdadeiro prazer dos sentidos, e a ordenao formal que lhe
d nunca vai ao ponto de transformar os seus aspectos em valores intelectuais,
ou sequer simblicos. O Rio de Janeiro, onde se educou e ao qual estava ligado
por famlia
e amizade, parece ter sido a sua terra querida, a cuja lembrana se manteve
preso, por uma nostalgia que o fez sentir-se estrangeiro noutras partes. Da, e
das viagens, nasceriam porventura o gosto pelas coisas do mar, as cenas e
imagens aquticas, a
sensibilidade lquida do verso,
O brilho hmido encontrado no s no Uraguai mas em toda a obra restante, e que
avultaro ainda mais no seu amigo Silva Alvarenga, outro mineiro transplantado
ao Rio e completamente seduzido pelas
Verdes ninfas azuis do pego undoso.
(Son. VI)
No Uraguai, recria a frescura dos bosques, as guas claras, a cor das plumas,
flores e tecidos; e nas cenas coletivas belssima a contnua translao de
pormenores, sem desmanchar contudo a ordem serena da descrio. Tanto os brancos
(A) quanto os
ndios (B) so ordenados conforme valores plsticos, distribuindo-se como
cornponentes de espaos diversos; as batalhas (C) definem um espao novo. onde
os valores se misturam em novas combinaes.
(A) com grandes passos, firme a testa e os olhos, Vo marchando os mitrados
Granadeiros.
(B) Leva negros penachos na cabea; So vermelhas as outras penas todas, Cor que
Cep usava sempre em guerra.
(A) Toda essa guerreira Infantera,
A flor da mocidade e da nobreza,
1 Como ele, azul e branco e ouro vestem.
(B) Esta foi de Caamba a esquadra antiga; Penas da cor do cu trazem vestidas,
com cintas amarelas.
(A) Este o primeiro
Ensinou entre ns por que caminhos Se eleva aos cus a curva e grave bomba "
Prenhc de fogo.
125
#(B) ... so to destros
No exerccio da flexa, que arrebatam Ao verde papagaio o curvo bico, Voando
pelo ar.
(A) ... fortes drages de duros peitos
Erguem nuvens de p por todo o campo Co" tropel dos magnonimos cavalos.
(B) ... e vem guiando Tropel confuso de cavaleria,
Que combate desordenadamente.
(C) Qual fera boca de lebru raivoso, De lisos e alvos dentes guarnecida, Os
Indios ameaa a nossa frente De agudas baionetas rodeada.
E:
Erguem todos um brbaro alarido E sobre os nossos cada qual encurva Mil vezes, e
mil vezes solta o arco Um chuveiro de setas despedindo.10
A finalidade das citaes sugerir ao leitor a equivalncia plstica de que se
vale o poeta para estabelecer o contraponto do civilizado e do silvcola,
visando nova interpretao do seu conflito, na qual procura ao mesmo tempo
simpatizar com os pov
os naturais e confiar na obra civilizadora. E a est outro fator de
abrandamento do esprito pico: o poema deixa de ser a celebrao dum heri para
tornar-se o estudo de uma situao. guerrilha do sul, superpe-se o prprio
drama do choque de cult
uras.
Por esta generalizao do caso particular, JJaslio se inscreve no esprito da
poca, e todo o Uraguai desprende um sentimento sereno das coisas naturais,
humanizando a paisagem, valorizando o trabalho, desprezando o dinheiro, e (por
incrvel que pare
a numa epopia de assunto militar) a prpria guerra.
Vinha logo de guardas rodeado, Fonte de eritnes, militar tesouro, Por quem deixa
no rego o curvo arado
(10) Os versos marcados com (B) pertencem ao canto IV.
126
(A) e (C) so do Canto II; os marcados corn
#O lavrador, que no conhece a glria; E vendendo a vil preo o sangue e a vida
Move, e nem sabe for que move a guerra.
(D
a paz vergiliana cantada nas pastorais, em que a presena do trabalho confere
dignidade paisagem, desvinculando-a do pitoresco imediato para v-la como
Natureza, (n maisculo) fonte da vida, guia da Razo. No formoso trecho do Canto
IV, que princi
pia:
Mas quando o Sol, de l do eterno e fixo Purpreo encosto do dourado assento -
sentimos, mais do que uma descrio potica, apelo ao equilbrio trazido pela
paz e o trabalho; reverncia pelas suas artes - agricultura, pecuria. Noutros
passos, reponta o carinho pelos amigos do homem -
O cavalo... forte e brioso;
(in)
... o imenso gado, que dos montes desce.
(in)
Esta viso civil mais um elemento para frear o mpeto blico, transformando as
cenas marciais em motivos plsticos, pois a guerra aparece (a quem sabe ler)
como ruptura mals do estado ideal de harmonia. O prprio heri, Gomes Freire de
Andrada, cum
pre o dever sem entusiasmo e no se rejubila nas vitrias:
... Descontente e triste Marchava o General: no sofre o peito, Compadecido e
generoso a vista Daqueles frios e sangrados corpos, Vitimas da ambio de
injusto imprio.
(in)
Da a simpatia pelo ndio, que, abordado quem sabe inicialmente por exigncia do
assunto, acabou superando no seu esprito ao guerreiro portugus, que era
preciso exaltar, e ao jesuta, que era preciso desmoralizar. Como filho da
"simples natureza", e
le assomou primeira plana da conscincia artstica de Baslio, no s por ser
o elemento esteticamente mais sugestivo (como ficou dito), mas quem sabe como
recurso para manter a integridade espiritual, comprometida na lisonja ao
militar, esmagadoram
ente superior, e
127
#no excessivo denegrimento do padre. O indianismo surgiu assim como renovao da
anttese arcdica e amenizao da loa poltica, e tal foi a sua simpatia pelo
pobre silvcola, amolgado entre ambies e interesses opostos, que atenuou para
ele o modo h
erico. Descreveu-o de preferncia nos passos tristes, mostrou-o hesitante em
face da aventura a que o lanavam, como se v na bela fala de Caam bo:
Gentes da, Europa, nunca vos trouxera O mar e o vento a ns! Ah! no debalde
Estendeu entre ns a natureza. Todo esse plano espao imenso de guas.
(II)
Embora ressalte a sua valentia, a nota principal do Uraguai parece o sentimento
(bem setecentista) da irrupo do homem das cidades no equilbrio de uma
civilizao natural, cujo filho surge como vtima de espoliao inevitvel, pois
O sossego de Europa assim o pede.
(II)
Esta conscincia de desajuste cultural motiva em Baslo a aludida simpatia e
distingue o seu Cacambo (manso heri guerreando a contragosto e correspondendo
deste modo ao Gomes Freire amansado do poema) dos marciais timbiras e ubirajaras
altissonantes
do indianismo romntico. um pastor infeliz por quem suspira a terna Lindia,
nome que o poeta inventou com eufonia buclica para representar um personagem
muito parecido s Marlias c Ormias da tradio. Alis, ao contrrio do que se
tem dito, o n
ome do heri no tomado ao Cndido, de Voltaire. Existiu efetivamente um ndio
missioneiro assim chamado; procurando entrar em contacto com o general
portugus, despertou a suspeita dos cornpanheiros, que tencionaram mat-lo. Por
intercesso do Pad
re Balda, foi contudo preso, e na priso morreu. Como se v, a esto os
elementos de que partiu Baslio para o personagem, cuja morte atribui ao
jesuta, alterando os fatos. Penso desfazer de vez um equvoco literrio com
este esclarecimento, encont
rado na citada Reposta Apologtica. (pgs. 132-133)11
(11) Inorma-me o Prof. Carlos Drumond, do Departamento de Etnograla Brasileira
e Lngua Tupl-Guarani da Universidade de So Paulo, que o Dicionrio Botnico,
de Bertonl, registra: "Caacamby, Euphorbla, sp./ierbaceue erectae", de onde
poderia ter par
tido a modificao admitida pelo prof. Egon Schaden, consultado por mim:
Csacaraby - Cacambu - Cacambo. O ndio assim chamado ol provavelmente referido
nalguma notcia dos acontecimentos das Misses, onde o encontraram
#Baslio, para celebr-lo. Voltaire, para efeitos burlescos.
128
#Devido ao tema do ndio, durante todo o Romantismo o nome de Baslio da Gama
foi talvez o mais frequente na pena dos escritores, quando se tratava de apontar
precursores da literatura nacional. Convm todavia distinguir nele nativismo e
interesse ext
erior pelo extico, parecendo haver predomnio deste, pois o indianismo no foi
para ele uma vivncia, como para os romnticos; foi antes um tema arcdico
transposto em roupagem mais pitoresca. Tambm o preto africano lhe feriu a
sensibilidade, tendo
sido o primeiro a celebr-lo no Quitubia, mostrando, como registrou Diniz, que a
virtude de todos os lugares. (Soneto II no IV Tomo das Obras) Esta
universalidade anima o Uraguai, e sob tal ponto de vista a sua obra aparece como
segundo momento na i
ntegrao da nossa realidade tradio cultural europia. Enquanto Cludio
trazia ao Brasil a disciplina clssica, Baslio da Gama, sem transgredi-la, mas
nela se movendo com maior liberdade esttica e intelectual, levava Europa o
testemunho do mu
ndo novo.
Leva de estranho cu, sobre ela espalha Co"a peregrina mo brbaras flores,
diz na breve e esplndida perorao do Uraguai. A "peregrina mo" era o prprio
"gnio da inculta Amrica", invocado no exrdio; a sensibilidade nova que
desejava incorporar literatura eram os "sentimenti dei mio paese" que se gaba
de exprimir, na c
arta a Metastasio, onde firma: "Baslio da Gama, brasiliano".
Apesar de residente em Portugal quis acentuar a qualidade de brasileiro e
sublinhar o teor extico do poema, "il cui soggetto tutto americano". O
restante da sua obra tambm muito ligado ao Brasil, - no apenas no orgulho
pelo seu progresso (tema
da nau Serpente, que aparece no Uraguai, na Ode II e no Soneto VI), mas na
impregnao sentimental. Fruto de experincias cariocas o que ficou da lira
amorosa, inclusive o Soneto VIII, "A uma senhora natural do Rio de Janeiro",
onde fere o velho ass
unto do amor ameaado pelo tempo e um dos pontos altos da nossa poesia:
J, Marfisa cruel, me no maltrata Saber que usas comigo de cautelas, Que inda
te espero ver, por causa delas, Arrependida de ter sido ingrata.
corn o tempo que tudo desbarata, Teus olhos deixaro de ser estrelas; Vers
murchar no rosto as faces belas, E as trancas de ouro converter-se em prata.
129
#II
Pois se sabes que a tua formosura
Por fora h de sofrer da idade os danos,
Por que me negas hoje esta ventura?
Guarda para seu tempo os desenganos;
Gozemo-nos agora, enquanto dura,
J que dura to pouco a flor dos anos.
Que um maravilhoso artfice, no h dvida, e dos poemas longos da literatura
brasileira talvez seja o Uraguai aquele em que h maior nmero de versos
expressivos e lapidares, feitos para a citao. Basta o leitor reportar-se
srie mencionada mais
alto em paralelo para se capacitar do seu supremo virtuosismo: o passo
cadenciado dos granadeiros, a curva da bala, o galope uniforme da cavalaria, os
cavalos descompassados dos ndios. Mas alm da maestria, o Uraguai revela
concepo segura e alto e
quilbrio criador.
Parece que se preocupava com problemas de esttica literria, como se v no s
pelas epstolas crticas de Silva Alvarenga, mas ainda pela traduo duma parte
do poema didtico de Dorat sobre La Dclamation Thatrale, onde empregou pela
primeira vez
em nossa lngua o alexandrino de 13 slabas para verter o dodecassflabo
francs. No Quitubia, - fraca poesia, - usa o decasslabo de rima emparelhada; e
tudo mostra que jamais conseguiu de novo a perfeio dos incomparveis versos
soltos do Uraguai.
somenos, mas no desprezvel para compreender o poema, indagar se representa
convico sincera ou ato de bajulao pura e simples a Pombal, renegando a
condio anterior de novio e protegido dos jesutas.
A informao do poeta era sem dvida improvisada; no h pormenores que revelem
conhecimento, seja dos costumes primitivos, seja da vida nas Redues,
resultando ndios esboados sumariamente. Talvez por isso mesmo sejam to
poticos, j que os formou
com a sensibilidade, sem o esforo erudito a que se abalanaria mais tarde
Santa Rita Duro. Quanto aos acontecimentos militares, limitou-se a indicaes
extradas da Relao abreviada, publicao antijesutica mandada fazer por
Pombal e fonte onde
hauriu argumentos, exemplos, s vezes os prprios termos. A comparao dos dois
textos deixa claro que procurou exprimir exatamente a linha oficial de
propaganda, e a Reposta Apologtica no mente quando chama Relao o "seu
Alcoro", qualificado de
""charco imundo donde bebeu todas aquelas notcias falsas". mesmo possvel
haver recebido material do acerbo
#ministro, que "lhe facilitou os meios e subministrou documentos";
130
#certo que "concluda a Obra lha fez imprimir em born caracter na Estamparia
Real e aprovar pela Mesa Censria".13
No decorre, porm, que agisse por m f, se agiu em parte por interesse; a
anlise do poema deve ter mostrado a presena da inspirao e de problemas que a
situao despertou na sua mente criadora. preciso ainda lembrar que a campanha
antijesutica
na Europa era extensa e violenta, patrocinada pelos governos, com adeso dos
homens progressistas, que nela viam a prpria marcha das Luzes. Por que no se
impressionaria honestamente o inflamado e volvel Baslio (assim o mostra desde
a infncia o
autor da Reposta) com o peso e a verossimilhana da piopaganda, que apenas hoje
estamos conseguindo avaliar com certa objetividade? No seria difcil ao leitor
dos filsofos e de muitas publicaes de propaganda, apoiadas no parecer e
testemunho de
bispos e telogos. Quanto s injrias assacadas aos padres (luxria, cobia,
assassnio), basta ser homem do nosso tempo e ver o que se diz e acredita, por
exemplo, pr e contra a Rssia, para compreender que um esprito liberal do
sculo XVIII no ma
ntivesse perfeita iseno.
A luta contra a alis poderosa e prepotente Companhia de Jesus era parte das
reformas de Sebastio Jos de Carvalho, e tudo leva a pensar que Basilio as
aplaudia sinceramente, por opinio e por reconhecimento proteo recebida.
Segundo Tefilo Braga
, no aderiu Viradeira nem acompanhou os confrades no vilipendio ao poderoso
homem de Estado, que incensavam na vspera. Dedicou-lhe mesmo um mau soneto, que
nem por haver permanecido indito prova menos a convico ntima.13