Social Science > Discrimination & Race Relations">
TELES - Educação Infantil - Dissertação
TELES - Educação Infantil - Dissertação
TELES - Educação Infantil - Dissertação
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
São Paulo
2010
CAROLINA DE PAULA TELES
São Paulo
2010
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO,
POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E
PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
Banca examinadora
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Aos meus sobrinhos Luana, Célio e Maria Luiza
Aos meus pais, que agindo cada um ao seu modo, torceram por mais uma realização.
Aos meus irmãos, Rodrigo, Miguel e Giovana, por participarem também cada um ao seu
modo da minha trajetória.
Ao meu marido, Diego Elias Santana Duarte, pelo amor, apoio, paciência (imensa!) e
incentivo oferecidos antes e durante a realização desta pesquisa.
À Andréia da Silva Pereira, pela amizade incondicional, pelo incentivo sereno e preciso antes
mesmo da minha entrada no mestrado. Pela disponibilidade em ler o meu trabalho e pelos
nossos momentos “marisa”.
Àqueles que mesmo sendo invisível aos meus olhos, muito ajudaram para eu chegar até aqui.
À Luciana Alves e a Waldete Tristão de Oliveira, mulheres que conheci nessa caminhada e
que espero que façam parte de outras.
À Profa. Dra. Maria Letícia do Nascimento pelas sugestões e apontamentos feitos ao longo do
trabalho. E por me ajudar a enxergar os encantamentos da educação infantil.
À Profa. Dra. Ana Célia da Silva pelas contribuições e apontamentos realizados, e pela
disponibilidade em ler o trabalho.
À professora Mara por permitir que eu compartilhasse alguns momentos de sua prática.
À Profa. Dra. Lucimar Rosa Dias pela leitura atenta e dedica da pesquisa e, sobretudo por me
ajudar a ver o que eu teimava em não ver.
A presente pesquisa pretende contribuir para que as professoras da educação infantil possam
refletir sobre as representações sociais que possuem a respeito das crianças negras e a partir
disso, pensar em transformações tanto nas relações sociais estabelecidas com essas crianças
quanto na prática pedagógica, de modo que essas possam se configurar como promotoras da
reeducação das relações raciais no ambiente escolar. A intenção de articular representações
sociais e relações raciais é que as professoras compreendam quão significativas são suas ações
cotidianas e práticas e os possíveis efeitos que elas têm sob as crianças, tanto negras quanto
brancas. Nesse contexto, o objetivo do estudo foi o de apreender e interpretar as
representações sociais sobre as crianças negras na perspectiva de uma professora de educação
infantil bem como analisar como essas refletem em sua prática pedagógica. A fim de cumprir
o objetivo mencionado, optamos por realizar uma pesquisa qualitativa na perspectiva
etnográfica, sendo esta desenvolvida em uma Escola Municipal de educação infantil (Emei)
na cidade de São Paulo com uma turma de crianças de cinco anos. Os dados foram coletados
por meio da pesquisa de campo, entrevista com a professora observada e análise de
documentos institucionais dando ênfase ao o que e como abordavam a temática racial e das
diferenças como um todo. O referencial teórico-metodológico adotado para a análise foi da
teoria das representações sociais cunhada por Moscovici (1978). Para o referido autor,
criamos representações sociais para tornar o que é estranho, ausente em nós e da nossa
realidade em algo familiar, compreensível ao nosso sistema de referência. A partir dessa
afirmação, interrogamos o que seria estranho para a professora considerando a temática
estudada e o contexto social e político na qual estava inserida e como essa elabora e põe em
funcionamento suas representações acerca das crianças negras. Com base na análise realizada,
inferimos que as representações sociais que a professora tem sobre as crianças negras podem
estar pautadas em movimentos de mudanças e de permanências, moderadas pelo modo como
o racismo foi operacionalizado no país – baseado no ideal de democracia racial em
contrapartida a valorização do branco – e pelas mudanças ocorridas ao tratamento da temática
racial, advindas das ações dos movimentos negros e que resultaram na confirmação da
existência do racismo no país, impulsionando ações, em todos os setores da sociedade,
sobretudo, na educação para modificar tal realidade. Desse modo, ao que se refere à
professora observada, compreendemos que ao representar as crianças negras da sua turma o
fez por meio da reelaboração de novos conhecimentos sobre a questão racial e da
permanência de ideais que ainda estão presentes na sociedade brasileira.
Palavras-chave: Teoria das representações sociais, educação infantil, relações raciais, prática
pedagógica.
ABSTRACT
This research aims to help primary school teachers to reflect over the social representations,
that they have of black children, and from there plan and think about changes both in
established social relations with the school children and their teaching practices, so that these
teachers can become promoters of the reeducation of racial relations in the educational
environment.The intention to articulate social and racial relations representations, is that the
teachers comprehend how meaningful their daily actions and practices are, and the possible
effects that they have on both black and white children. In this context, the aim of this study
was to apprehend and interpret the social representations of black children in the perspective
of a primary school teacher, as well as analise how this reflect on their teaching practices.
With the intention of fulfilling the above mentioned aim, we opted to execute a qualitative
research with an ehtnographic perspective. Due to this, it was developed in a public primary
school in the city of São Paulo with a group of five years old children. The information was
gathered through a field study, interview with the observed teacher and analysis of
institutional documents, emphasizing what and how the racial thematic was approached and
the differences as a whole. The theoretical methodology adopted to the analysis was the
theory of social representations, created by Moscovici (1978). For the author we have created
social representations to turn what is unknown, absent in us and our reality into something
familiar, comprehensible to our reference system. Based on this affirmation, we have
interrogated what would be unknown to the teacher, considering the studied theme and the
social and political context in which the teacher was part of, and how she elaborates and puts
in practice her representations of black children. Based on the analysis, we concluded that the
social representations that the teacher has of black children might be due to changes and
maintenance in how racism is applied in the country – based on the ideal of racial democracy
in compensation of the valorization of the white people – and for the changes ocurred in the
racial thematic, originated from the actions of the black movement and that resulted in the
confirmation of the existence of racism in the country, generating actions in all sectors of the
society over all in the education to change the general reality. Therefore, in relation to the
observed teacher, we comprehend that by representing the black children in her group, the
teacher reelaborated her social representations based on new information about the racial
thematic and the maintenance of ideals that are still present in the Brazilian society.
Key words: social representation theory, primary education, racial relations, teaching
practices.
SUMÁRIO
Introdução ............................................................................................................................... 10
2.1 Para começo de conversa: conceito de raça e racismo adotado na pesquisa ..................... 45
2.2 As primeiras teorias sobre as diferenças entre os homens.................................................. 46
2.2.1 Racismo científico ........................................................................................................... 49
2.3 A influência das teorias raciais nas representações sociais sobre os negros ...................... 52
2.4 A inoperância do conceito de raça ...................................................................................... 57
2.5 Estudos sobre as relações raciais no Brasil: a descoberta da permanência do conceito de
raça ........................................................................................................................................... 59
2.6 A influência das representações sociais sobre os negros para a prática na educação infantil
.................................................................................................................................................. 64
INTRODUÇÃO
Quanto mais branco melhor, quanto mais claro superior eis, ai uma máxima
difundida, que vê no branco não só uma cor, mas também uma qualidade social:
aquele que sabe ler, que é mais educado e que ocupa uma posição social mais
elevada (SCHWARCZ, 1998, p. 189).
1
Estamos nos referindo a duas pesquisas, uma realizada entre os anos de 2003-2004 intitulada “Construção da identidade e
consciência racial da criança negra na Educação Infantil”, financiada pelo CNPq, e outra desenvolvida no período de julho a
dezembro do ano de 2005 sob o título de "Linguagem, identidade e consciência racial da criança negra: uma análise à luz de
Vygotsky e Bakhtin", com financiamento da FAPESP. De modo geral, ambas tiveram como objetivo analisar como as
crianças negras de educação infantil estavam construindo suas identidades e a consciência racial, para tanto foram
consideradas a práticas pedagógicas e as relações sociais estabelecidas nesse espaço, entendendo esses aspectos como
essenciais na constituição da identidade e da consciência racial.
2
Nas pesquisas citadas partimos da premissa que tanto a identidade quanto a consciência de pertencimento racial das pessoas
se constroem nas relações sociais. Esses dois processos irão se formar a partir de um conjunto de elementos biológicos,
psicológicos e sociais e, também, pela representação social do grupo ao qual ele pertence, de maneira que a construção se
dará de forma dialética entre a história individual e coletiva.
3
Tais prejuízos a identidade das crianças negras foram apontados por Cavalleiro (2000).
11
4
No município de São Paulo o atendimento as crianças de 0 a 5 anos deverá ocorrer nos Centros de educação infantil (CEI)
para crianças de 0 a até 3 anos e nas Escolas de educação infantil (Emei) para crianças de 3 a 5 anos e 11 meses.
12
5
Compreendemos que o currículo, de acordo com Apple (1989), está vinculado às relações de poder e de legitimação de
valores, sendo assim podem transmitir visões de mundo particulares, reproduzindo valores que irão participar e influenciar na
formação da identidade de todas as crianças. Ressaltamos que, em se tratando da temática estudada, entendemos o currículo
para além dos conteúdos escolhidos e a serem passados pelo professor. No cotidiano escolar, há o currículo oculto ao lado
currículo oficial. O currículo oculto é compreendido como um conjunto de experiências não explicitadas pelo currículo
oficial, que podem ser as relações sociais estabelecidas entre professor-aluno e entre estes; inclui conteúdos não ditos, valores
morais explicitados, olhares, gestos de valorização como de negação, legitimações de indiferenças.
13
como verdadeiras teorias do senso comum, um saber ingênuo, que designa uma forma de
pensamento social; são utilizadas para explicar fatos, classificar objetos e pessoas. Tal
referencial busca perceber e compreender as relações interpessoais, que também estão
permeadas pelas questões raciais.
A opção por esse referencial advém do fato de acreditarmos que este possibilita a
produção de recomendações e estratégias de mudança direcionadas aos professores de modo
geral. Entendemos que ao fazer com que esses reflitam sobre suas representações sociais,
pode nos dar condições para analisar a prática dos professores e compreender o que os move,
com base em quais referenciais elaboram suas atividades, o que priorizam na aprendizagem
das crianças, pois são as representações sociais que também orientam suas relações sociais e
pedagógicas.
A questão é que as representações sociais são construídas social e historicamente, e
quando nos referimos a temática racial é sabido que estão vinculadas às ideias vigentes sobre
as relações raciais na sociedade e aliadas aos conceitos de raça e racismo.
Tendo em vista que as representações sociais produzem uma realidade social e uma
realidade escolar, acredita-se ser necessário explicitar as representações sociais sobre o negro
presente na sociedade e na escola, bem como questionar como os professores veem as
crianças negras. Além disso, é importante investigar se durante o processo de formação
docente os professores tiveram contato com reflexões que discutiam tal temática. A
possibilidade de compreensão de práticas inadequadas e o que seus significados representam
para a prática pedagógica, aliada ao conhecimento de que as representações sociais orientam
nossas ações, pode representar um auxilio para a sociedade, para o professor e para uma
reeducação das relações raciais.
Nesse sentido, reiteramos nossa hipótese de que as representações sociais sobre o
negro poderiam constituir-se em forma de pensamento social elaborado, orientado por um
discurso que perpassa também pelos conceitos de raça e racismo. Desse modo, as
representações pautadas nesses conceitos poderiam edificar-se como uma doutrina que rege
comportamentos.
Partindo do que foi posto, analisamos atitudes e práticas pedagógicas da professora no
momento qual essa acontecia, para tentar compreender o que impulsionava suas ações no
cotidiano escolar.
Assim, para que pudéssemos atingir os objetivos da pesquisa optamos por realizar um
estudo qualitativo na perspectiva etnográfica. Para tanto, as técnicas utilizadas foram:
observação do cotidiano escolar em uma turma de Emei; entrevista com a professora
14
outras palavras, como acomodou tal estranhamento em sua realidade cotidiana em sua
realidade? Qual a influência do contexto social da professora para a constituição de suas
representações?. E, por fim, delineamos como o referencial teórico-metodológico das
representações sociais aliada a temática racial poderia contribuir para a construção de uma
educação anti-racista voltada para a reeducação das relações raciais.
17
CAPÍTULO 1
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
6
O pressuposto positivista - tendo como seus principais pensadores Auguste Comte e Émile Durkheim - se fundamenta no
fato de que a sociedade pode ser analisada da mesma forma que os fenômenos da natureza. Assim, as principais ideias
difundidas nesse pressuposto é que a sociedade seria regulada por leis naturais e imutáveis, sendo independentes da vontade e
da ação humana. A segunda ideia básica do positivismo, afirma a necessidade e a possibilidade de que a ciência social fosse
completamente desligada de qualquer vínculo com as classes sociais, com as posições políticas, os valores morais, as
ideologias, as utopias, as visões de mundo, pois estes conjuntos de opções prejudicariam a objetividade das Ciências Sociais
(MOSCOVICI, 2003).
7
O funcionalismo - conceito desenvolvido a partir do pensamento de Durkheim - ao analisar qualquer elemento de um
sistema social, busca saber de que maneira este elemento se relaciona com os outros elementos do mesmo sistema social e
com o sistema social como um todo, admite-se assim, que a sociedade é um todo integrado. Contudo, os fatos sociais têm
existência própria e são independentes em relação aos indivíduos particulares. O que significou para o referido autor que
esses são exteriores ao indivíduo de modo que quando a pessoa nasce já existem regras, fatos na sociedade, que aprendem a
seguir, respeitar, sem criticá-lo, sem questionar (MOSCOVICI, 2003).
18
Psicologia Social do conhecimento a fim de estudar como e por que as pessoas partilhavam os
saberes, de modo a constituir uma realidade comum.
Assim, a Psicologia Social proposta por Moscovici buscava unir em um único saber os
conhecimentos das áreas de Psicologia – campo do conhecimento voltado ao estudo do
indivíduo – e da sociologia – campo do conhecimento voltado ao estudo da sociedade.
Contudo, para construir sua teoria acerca das representações sociais a partir da
construção de uma psicologia social, Moscovici fundamentou-se em outros autores,
principalmente em Émile Durkheim (1947)8 apesar de discordar do mesmo em muitos
aspectos, os quais serão discutidos posteriormente.
Durkheim (1970) concebia a vida coletiva e mental dos indivíduos como resultado das
representações, as quais uma vez constituídas, tornavam-se realidades parcialmente
autônomas, com vida própria, mantendo íntimas relações com sua essência. Assim, as
representações individuais e coletivas eram vistas, até certo ponto, como independentes.
Além disso, Durkheim (1970) defendia que as representações coletivas constituíam
formas de integração social construída pelos homens com o objetivo de manter a coesão do
grupo e suas propostas para o mundo. Designavam um conjunto de conhecimento, crenças,
mitos, religião e ciência.
Para o referido autor, no entanto, essas não se reduzem à soma das representações dos
indivíduos, uma vez que, ao representarmos algo, um novo conhecimento é formado, o que
favorece a recriação do coletivo. Nesse sentido, a função primordial das representações
coletivas seria a transmissão da herança dos antepassados, a qual acrescentaria às experiências
individuais tudo aquilo que a sociedade acumulou de sabedoria e ciência ao longo dos anos.
Assim, para Durkheim (1970), qualquer tipo de ideia que ocorresse dentro de uma
comunidade seria considerada uma representação coletiva.
Moscovici (1978) diverge da concepção de representações coletivas propostas por
Durkheim (1970) por acreditar que as mesmas só poderiam ser estudadas em sociedades
fechadas, onde os símbolos e rituais são partilhados e praticados por todos, assumindo um
caráter uniforme e estático. Para esse autor, as representações coletivas não seriam adequadas
ao estudo de sociedades contemporâneas, que se caracterizam pela multiplicidade de
orientações políticas, religiosas, filosóficas e artísticas, bem como pela rapidez na circulação
das informações (MOSCOVICI, 1978).
8
Durkheim foi o primeiro a propor a expressão “representação coletiva” no livro As regras do método sociológico (1947).
Neste livro, o autor queria designar a especificidade do pensamento social em relação ao pensamento individual.
19
Moscovici (1978) defende não ser possível pensar que as representações sociais são
apenas imitação de uma herança coletiva transmitida pelos nossos antepassados, já que as
mesmas são construídas por meio de imagens e expressões oriundas da socialização, sendo,
também, produtos de reproduções de objetos valorizados. Dessa forma, considera que os
indivíduos têm um papel ativo na elaboração das representações sociais e na sociedade.
Além disso, o referido autor defende que a construção de representações sociais
“implica em um remanejamento das estruturas, uma remodelação dos elementos, uma
verdadeira reconstrução do dado no contexto dos valores, das noções e das regras”
(MOSCOVICI, 1978, p. 26).
Cabe ressaltar que nessas modificações o indivíduo tem papel ativo, pois adquire a
oportunidade de re-construir o senso comum com os valores do seu grupo. Há também
possibilidade de explorar a diversidade de ideias presentes na sociedade, fazendo com que as
representações sociais tornem-se dinâmicas. Desse modo, as representações não podem ser
tomadas como algo dado (DUVEEN, 2003).
Duveen (2003) considera que as representações devem ser discutidas não como algo
estático, mas como fenômenos que variam de acordo com os indivíduos e a sociedade na qual
estão inseridos. Em função disso, surge a discussão da representação social como um
fenômeno, com um caráter dinâmico, em contrapartida à concepção de representações
coletivas de Durkheim (1970). A partir dessa reflexão, Duveen (2003) afirma que:
Nessa concepção, o ser humano é visto como um ser pensante que formula questões e
busca respostas e, ao mesmo tempo, compartilha realidades por ele representadas. Assim,
Moscovici (1978) acredita que não se pode pensar que as mentes dos indivíduos são caixas
pretas, que só recebem informações, muito menos assegurar que as pessoas ou grupos estão
sempre e completamente sob controle de uma ideologia dominante.
A partir dessa diferença, Moscovici (1978, 2003) assinala sua concepção sobre o
social, ou seja, a grandeza dos seres humanos seria a de serem pensadores autônomos e
produtores constantes de suas representações sociais, para quem as ciências e as ideologias
não são mais que alimentos para o pensamento. Reconhece-se que “as representações são, ao
mesmo tempo, construídas e adquiridas, tira-se-lhes esse lado pré-estabelecido, estático, que
as caracterizava na visão clássica. Não são os substratos, mas as interações que contam”
(MOSCOVICI, 2003, p. 62).
21
Elas entram para o mundo comum e cotidiano em que nós habitamos e discutimos
com nossos amigos e colegas e circulam na mídia que lemos e olhamos. Em síntese,
as representações sustentadas pelas influências sociais da comunicação constituem
as realidades de nossas vidas cotidianas e servem como principal meio para
estabelecer as associações com as quais nós nos ligamos uns aos outros (DUVEEN,
2001, p. 8).
Assim, nota-se que na afirmação supracitada Duveen (2003) reitera o que Moscovici
(1978, 2003) a defende, ou seja, que a definição de representação social é composta tanto de
aspectos sociológicos quanto psicológicos. Dessa forma, Moscovici (1978) procurou enfatizar
que as representações sociais não são compostas de conteúdos isolados, mas de redes de
significados que se relacionam a outras já existentes.
De acordo com Moscovici (1978), as representações sociais são entendidas como
verdadeiras teorias do senso comum, um saber ingênuo, que designa uma forma de
pensamento social e são utilizadas para explicar fatos, classificar objetos, pessoas e grupos.
“Em poucas palavras: a representação social é uma modalidade de conhecimento particular
que tem por função a elaboração de comportamentos e a comunicação entre os indivíduos”
(MOSCOVICI, 1978, p. 26), uma vez que não é todo conhecimento que pode ser considerado
representação social, mas somente aquele que faz parte da vida cotidiana das pessoas, por
meio do senso comum, que é elaborado socialmente e funciona no sentido de interpretar,
pensar e agir sobre a realidade (JODELET, 1985).
Para Jodelet (1985, p. 478), discípula de Moscovici, as representações sociais possuem
cinco características fundamentais, a saber:
Assim, com base nessas características, a autora afirma que toda representação social
refere-se a um objeto e tem um conteúdo. Este objeto pode ser a representação de alguém
(indivíduo, família, grupo, classe entre outros) e / ou de alguma coisa (informações, imagens,
opiniões ou atitudes). Além disso, a pessoa que formula a representação social é considerada
um ser social, localizada em um lugar social determinado.
Nessa direção, as representações sociais são vistas como “uma forma de
conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prático, e que contribui
para a construção de um saber do senso comum ou ainda saber ingênuo, natural” (JODELET,
2001a, p. 21). Servem para nos ajustar ao mundo em que vivemos, saber como devemos nos
comportar, identificar e resolver os problemas do cotidiano, principalmente porque
partilhamos esse mundo com os outros, às vezes de modo não tão pacifico.
De modo geral, para Jodelet (2001a, p.17), as representações sociais “nos guiam no
modo de nomear e definir conjuntamente os diferentes aspectos da realidade diária, no modo
23
Desse modo, o autor concluiu que é possível definir um grupo de pessoas como
diverso de outro pelas suas “teorias da realidade”, assim como, por meio de suas
representações sociais. Com isso,
Nesse sentido, “o processo de gênese das representações tem lugar nas mesmas
circunstâncias, e ao mesmo tempo, em que se manifestam” (SÁ, 1995, p. 27). As
representações formam-se mediante encontros de pessoas, nos diferentes espaços sociais, tais
como clubes, escritórios, igrejas, escolas, bares, ruas etc., lugares onde os sujeitos discutem os
24
mais variados assuntos, analisam situações e propõem alternativas. Essa dinâmica possibilita
a criação de verdadeiras “filosofias espontâneas, não oficiais, que têm um impacto decisivo
em suas relações sociais” (MOSCOVICI, 2003, p. 45).
Nota-se, assim, que as representações sociais são fenômenos complexos e ativos na
vida social. Seus elementos informativos, cognitivos, ideológicos, normativos, valores, suas
crenças, atitudes, opiniões, imagens, entre outros, são organizados sob aparência de um saber
que diz algo sobre o estado da realidade.
Em suma, o conceito de representação social foi pensado por Moscovici (1978) para
estudar a forma como os processos psicológicos agem no social, na ação cotidiana, e como
esta age no psicológico, impulsionando outras ações.
A questão que se coloca é compreender como as representações sociais intervêm na
atividade cognitiva dos indivíduos, e até que ponto estas são independentes, ou seja, até onde
determinam as atividades cognitivas que têm influência na vida prática.
Compreendendo que no ambiente social sempre há certa autonomia e
condicionamento, pode-se dizer que as representações sociais possuem duas funções: de
convenção e de prescrição. Para Moscovici (2003, p. 34), as representações sociais
Nenhuma mente está livre dos efeitos de condicionamentos anteriores que lhe são
impostos por suas representações, linguagem ou cultura. Nós pensamos por meio de
uma linguagem; nós organizamos nossos pensamentos, de acordo com um sistema
que está condicionado, tanto por nossas representações, como por nossa cultura. Nós
vemos apenas o que as convenções subjacentes nos permitem ver e nós
permanecemos inconscientes dessas convenções (MOSCOVICI, 2003, p. 35).
No entanto, mesmo com tal afirmação, o referido autor argumenta que é possível nos
tornarmos conscientes das convenções da realidade que moldam os comportamentos,
25
[...] as representações são prescritivas, posto que elas se impõem sobre nós com uma
força irresistível. Essa força é uma combinação de uma estrutura que está presente
antes mesmo que nós comecemos a pensar e de uma tradição que decreta o que deve
ser pensado (MOSCOVICI, 2003, p. 36).
[...] é facilmente constatável que as ciências são os meios pelos quais nós
compreendemos o universo reificado, enquanto as representações sociais tratam com
o universo consensual.
[...]
As representações, por outro lado, restauram a consciência coletiva e lhe dão forma,
explicando os objetos e acontecimentos de tal modo que eles se tornam acessíveis a
27
[...] tiene uma función de mediación entre el individuo y su médio, así como entre
los miembros de um mismo grupo, capaz de resolver y expresar problemas comunes,
transformado em código, em lenguaje común, este sistema servirá para clasificar a
los indivíduos y los acontecimentos, para constituir tipos respecto a los cuales se
evaluará o clasificará a los outros indivíduos y a los otros grupos. Se convierte en
instrumento de referencia que permite comunicar en el mismo lenguaje y, por
consiguinte, influenciar.
Nesse contexto, o objetivo é transportar o que é estranho para um espaço que seja
familiar ao grupo. Em outras palavras, é a capacidade de nomear o novo, de classificar o que é
estranho e desconhecido de maneira que este seja incorporado ao conhecimento social de cada
grupo.
Percebemos que o percurso da representação social ocorre a partir das referências
tradicionais do grupo, com as quais classificamos os objetos e / ou pessoas. Jodelet (2000a, p.
38/39), ao explicar tal processo, escreve que
De modo geral, minhas observações provam que dar nome a uma pessoa ou coisa é
precipitá-la (como uma solução química é precipitada) e que as conseqüências daí
resultantes são tríplices: a) uma vez nomeada, a pessoa ou coisa pode ser descrita e
adquire certas características, tendências, etc.; b) a pessoa, ou coisa, torna-se distinta
de outras pessoas ou objetos, por meio dessas características e tendências; c) a
pessoa ou coisa torna-se o objeto de uma convenção entre os que adotam e partilham
a mesma convenção.
O que possibilita ainda a apreensão dos processos que dão origem às representações
sociais e compreender como o funcionamento cognitivo interfere no social, e como este
33
1.4 Os estudo das representações sociais como contribuição para a educação escolar
[...] a área educacional aparece como um campo privilegiado para se observar como
as representações sociais se constroem, evoluem e se transformam no interior de
grupos sociais, e para elucidar o papel dessas construções nas relações desses grupos
com o objeto de sua representação.
educação, quais sistemas de referência o professor utiliza, seja para classificar seus alunos,
para a interação com os mesmos, para elaborar as atividades e ainda como saber quais
conteúdos e valores estão sendo enaltecidos e / ou estigmatizados.
Tal conhecimento se faz importante, posto que vários estudos como os de Alves-
Mazzotti (1994) e Canen (2001) demonstraram que as representações sociais que os
professores possuem de determinado aluno ou conhecimento são transpostos para a sua
prática pedagógica, causando, em alguns casos, danos ao processo educativo dos alunos
estigmatizados. De acordo com Alves-Mazzotti (1994), a tendência é que os professores
construam suas representações sociais e, em função dessas, suas práticas pedagógicas, e
acabem por impô-las aos alunos, na suposição de que sabem o que é bom para eles.
Os referidos estudos também apontam que:
É a presença de representações docentes impregnadas de visões estereotipadas sobre
as crianças faveladas, meninos de rua, crianças negras, alunos provenientes de
escola para “pobres”, alunos com dificuldades na língua padrão, indicando o peso
dessas representações nas ações pedagógicas desenvolvidas no espaço escolar
(CANEN, 2001, p. 213, grifos da autora).
Alves-Mazzotti (1994) expõe que uma das problemáticas enfrentadas pela escola era a
educação dos alunos vindos das classes populares. A principal dificuldade apresentada pela
autora, estava relacionada ao tipo de educação que os professores – que atrelavam o sucesso
escolar com o fator econômico – destinavam aos alunos das classes populares.
Para a referida autora, no momento que os professores atrelam o desempenho escolar
ao fator econômico, tecem percepções, atribuições e atitudes em relação aos seus alunos, e
essas acabam sendo diferenciadas entre aqueles que possuem maior ou menos poder
aquisitivo, e acaba contribuindo para o seu fracasso escolar.
Se nos reportarmos à educação infantil, tais fatos também podem ser constatados.
Rosemberg (1999), ao realizar uma análise sobre a desigualdade de oportunidade na educação
infantil, relacionando gênero e raça, utilizou dados das Pesquisas Nacionais de Amostragem
Domiciliar (PNADS) entre os anos de 1981-1995, bem como os do Ministério de Educação
(MEC), e chegou à seguinte conclusão: as instituições de educação infantil também
reproduziam o modelo excludente que existe no âmbito educacional brasileiro. Isso porque a
autora constatou que o índice de retenção de crianças negras na pré-escola era maior que o das
brancas e havia um claro desfavorecimento para as crianças de famílias com baixa renda,
especialmente as negras. Os dados mostraram que a predominância absoluta de crianças, com
7 anos ou mais, ainda na pré-escola, eram negras, chegando a 63,5%. Já em relação às
crianças brancas, nessa mesma faixa etária, o percentual caia para 36,5%.
36
na sociedade, sendo assim, nossas ações, comportamentos e falas devem ser constantemente
vigiadas na tentativa de modificarmos e refletirmos sobre nossas representações, para que um
dia possa haver mudanças, se assim for possível.
Desse modo, acreditamos que a análise das representações sociais dos professores
sobre seus alunos e sobre sua ação pedagógica poderá auxiliar na compreensão dos processos
simbólicos envolvidos na prática, e promover a reflexão sobre a mesma. É esse processo que
poderá promover a superação esperada por Gomes (2003).
Reportamo-nos ao artigo de Silva, P. (2001), intitulado “Pode a educação prevenir
contra o racismo e a intolerância?”, com intuito de ressaltar o quanto acreditamos que a
educação pode ser instrumento que possibilite modificações nas representações sociais, tanto
dos professores como dos alunos. No entanto, consideramos que somente a educação e / ou a
vontade, sensibilidade de um professor, pouco mudará as estruturas excludentes e
preconceituosas da escola.
No referido artigo, a autora busca responder a pergunta formulada em seu título. Para
tanto, expõe dados sobre a educação da população estigmatizada, ou seja, negra e indígena.
Os dados apresentados demonstraram a falta de visibilidade que possuem os assuntos e os
problemas de discriminação enfrentados por essa população no ambiente escolar. Diante
desses dados e referindo-se às pesquisas desenvolvidas, a autora escreve:
Para essa trama de relações dolorosas ser rompida já não bastam intenções,
tampouco incluir no discurso o reconhecimento das diferenças que compõem a
sociedade. Se não houver valorização de cada pessoa, de cada grupo social enquanto
igualmente valiosos, nos gestos, nas posturas, nas políticas públicas, nas
metodologias de trabalho este encontro preparatório que estamos realizando aqui em
São Paulo, assim como a Conferência Internacional contra o Racismo, a
Discriminação Racial, a Xenofobia, a Discriminação Correlatas não passarão de
eventos pontuais (SILVA, P., 2001, p. 8-9).
Assim, entende-se que educação escolar tem a possibilidade de prevenir, bem como
minimizar, refletir e discutir contra o racismo e a intolerância quando: 1) todos os envolvidos
com a educação, independente de pertencerem ou não a grupos discriminados, se envolverem
para a superação de ideias preconceituosas e práticas discriminatórias; 2) o trabalho educativo
for organizado com a intenção de respeitar e valorizar a todos; e 3) os professores forem
capazes, com base na sua formação e sensibilidade, de cultivar em si próprios e em seus
alunos o orgulho de pertencimento ao seu grupo racial, além de controlarem seus preconceitos
e atitudes discriminatórias (SILVA, P., 2001).
Entretanto, para a autora a educação não poderá contribuir se continuar privilegiando
uma única visão de conhecimento e cultura, assim como, se não promover políticas de ações
38
afirmativas que viabilizem reparações a todos os grupos que têm vivido em situações de
desvantagem, como é o caso da população negra.
Gilly (2001), ao realizar uma ampla revisão dos estudos das representações sociais no
campo da educação, aponta a importância dessas para a compreensão dos fatos que orientam e
organizam o processo educativo. Nesse sentido, as representações sociais permitem saber o
que motiva e condiciona as opções por determinadas práticas pedagógicas em relação aos
alunos e às ações exercidas.
No artigo intitulado “As representações sociais no campo da Educação”, Gilly (2001)
escreve que a escola, em sua essência, é desigual mesmo tendo um discurso que enalteça a
igualdade. Para o autor, o que contribui para a desigualdade e para sua permanência, são as
representações sociais que os professores possuem de determinados grupos, que ele chama de
desfavorecidos, e na própria função da escola.
Gilly (2001) escreve que os professores, confrontados no seu cotidiano,
[...] não podem aderir à ideia de diferenças não-hierárquicas entre crianças, que
fundamenta o modelo oficial do “desenvolvimento de potencialidades”, pois esta
ideia é incompatível com a visão que possuem sobre a manutenção de uma função
diferencial da escola. A despeito da implantação de uma estrutura unificada de
recepção, há sempre, para eles, os fortes e os fracos, destinados a percursos escolares
desiguais. E é sempre em referência ao modelo hierárquico que eles organizam o
essencial de suas práticas (GILLY, 2001, p. 328, grifo do autor).
Desse modo, o autor concluiu o que outros autores citados ratificaram, ou seja, que as
representações sociais dos professores podem determinar todo o processo educativo, isso
inclui a expectativa, a atenção do professor em relação ao aluno, a prática pedagógica e as
atividades propostas, entre outros aspectos.
No que refere ao tratamento pedagógico diferenciado, Gilly (2001) reportando-se a
Roux (1980) e Perrenoud (1982)9, destaca que tais autores demonstraram, em seus estudos,
que:
9
ROUX, J.D. Réussite scolaire et interactions dydatiques maîtresse-élève. Aix-em-Provence: Univesité de Provence,
1980; PERRENOUD, Ph. De l’inégalité pédagogique devant le système d’ enseignement; L’action pédagogique et la
diffférence: Revue européenne des Sciences Sociales, n.º 20, 1982, p. 87-142.
39
Tal ressalva feita por Gilly (2001) pode ser ampliada para a temática que envolve as
relações raciais, representação social e educação escolar, posto que não foi encontrado
nenhum estudo que articulasse esses temas.
Acreditamos que deve haver uma articulação entre os seguintes temas: relações
raciais, educação e representação social, pois entendemos tal articulação como possibilidade
de uma educação preventiva contra o racismo, preconceito e discriminação racial presente na
sociedade e no ambiente escolar. Daí a importância do tópico seguinte para elucidar como a
teoria das representações sociais pode ajudar nos estudos sobre relações raciais e educação,
para a construção de uma educação para as relações raciais.
1.5 Teoria das representações sociais como perspectiva de estudo em relações raciais e
educação
10
Entendemos por ações institucionais, quando nos referimos ao espaço escola,r aquelas pensadas e desenvolvidas por
profissionais da educação, geralmente gestores que possam dentre outras assuntos visar o combate ao racismo.
42
[...] observar crianças bem pequenas de origens raciais distintas brincando juntas. Se
não aprenderem a se observar em termos raciais, poderiam pensar sobre suas
diferenças de variadas maneiras, segundo a sua altura (altos e baixos) ou o tipo de
humor de cada uma (crianças mais alegres e crianças mais sérias), ou segundo a
maneira de andar, vestir-se ou simplesmente segundo a maior ou menor destreza em
algum tipo de brincadeira. Ou seja, a ideia de raça ou cor é aprendida, arbitrária e
socialmente construída (TEXEIRA, 2006, p. 264).
dos espaços em que as representações sociais são difundidas e, por isso mesmo, é um local
importante para que estas possam ser discutidas, combatidas e se possível superadas. Para que
isso ocorra acreditamos que é preciso mobilizá-las, fazê-las emergir.
Nesse contexto é que se torna importante considerar e investigar as representações
sociais dos professores a respeito dos grupos excluídos. Acreditamos que somente
identificando e interpretando as representações sociais é possível saber com base em quais
conhecimentos e referenciais socialmente construídos se pautam os professores ao
estabelecerem as relações sociais com as crianças com as quais trabalham. Por isso,
entendemos que as representações sociais não auxiliam apenas na interpretação da realidade,
mas também na tomada de decisões, na orientação das práticas sociais, tornando-se uma
maneira de interpretar, de pensar e de intervir na realidade cotidiana (JODELET, 1985).
Portanto, acredita-se que as experiências educacionais, as concepções, os valores, as
falas, as ações devem ser refletidas e estudadas. Para tanto, faz-se necessário, no que se refere
à temática estudada, questionar a representação que o professor tem de criança, de infância e
do negro, pois estas podem traduzir a relação adulto-criança que se estabelece e reflete na
organização das atividades.
Tendo em vista que as representações sociais produzem uma realidade social e uma
realidade escolar, acredita-se ser necessário explicitar as representações sociais sobre o negro
presente na sociedade e na escola, bem como questionar como os professores veem às
crianças negras. Além disso, é importante investigar durante o processo de formação docente
se os professores tiveram contato com reflexões que discutiam tal temática. A possibilidade
de identificar e intervir em práticas inadequadas e de seus significados representam, para a
prática pedagógica, aliada ao conhecimento de que as representações sociais orientam nossas
ações, um auxilio para a sociedade, para o professor e para a efetiva reeducação das relações
raciais.
De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana (2004, p. 13),
para ocorrer a reeducação das relações étnico-racias no Brasil “é necessário fazer emergir as
dores e medos que têm sido gerados”. Nesse sentido, tal reeducação impõe aprendizagens
entre brancos e negros, trocas de conhecimento, políticas públicas e ações cotidianas que
visem a uma sociedade justa e que possibilitem oportunidades iguais para que todos se
desenvolvam intelectualmente e emocionalmente, o que inclui estar bem e ter orgulho do seu
pertencimento racial.
44
As representações sociais permitem tais feitos, posto que estão envolvidas com
elementos sociais, afetivos e psicológicos, e estes constituem-na uma vez que faz parte da
sociedade construir os conhecimentos sobre o que é ser branco e ser negro, conhecimentos
presentes em todos os âmbitos sociais.
Ainda, de acordo com as referidas diretrizes, para que ocorra uma reeducação das
relações raciais, é preciso se desfazer de mentalidades racistas e discriminadoras, superar o
etnocentrismo, reestruturar relações raciais e sociais presentes nos processos pedagógicos.
Nessa perspectiva, reiteremos que elegeu-se a teoria das representações sociais para
orientar o presente estudo porque esta teoria proporciona elementos suficientes para analisar
as questões educacionais, e porque esta se configura como uma postura teórica que busca a
percepção da totalidade e das relações interpessoais, que se dão, como já dito, permeadas
pelas questões raciais.
Tendo pontuado a importância e a contribuição das representações sociais para a
temática das relações raciais e educação, que se refere, sobretudo, ao fato da teoria permitir
identificar e interpretar com base em quais conhecimentos socialmente postos sobre a
população negra os professores se pautam para estabelecer as relações cotidianas e sua prática
pedagógica, faz-se necessário, e será abordado no capítulo subsequente, saber como se
constituíram e quais são os conhecimentos histórico e socialmente difundidos na sociedade
brasileira sobre a população negra?; Qual seria o significado de ser negro no Brasil?; A que
está vinculado, socialmente, o indivíduo negro? E como esses conhecimentos - realidades
forjadas por meio da representação social - influenciam no ritual pedagógico, especificamente
da educação infantil? Tais informações são indispensáveis para compreendermos quais
representações sobre o negro circulam na sociedade brasileira e moldam uma realidade social
e concreta, que afeta brancos e negros, de forma diferenciada, em todos os setores sociais.
45
CAPÍTULO 2
O presente capítulo tem como objetivo situar a problemática da pesquisa com base nos
conceitos e teorias que norteiam a temática racial no país, a qual acreditamos influenciar na
elaboração das representações sociais sobre população negra. Iniciamos o capítulo expondo os
conceitos de raça e racismo essenciais para a compreensão da temática, bem como para a
exploração do objeto da pesquisa.
Acreditamos que o racismo e seus desdobramentos, preconceito e discriminação racial,
são estruturantes da sociedade brasileira; sendo assim, influencia na constituição das
representações sociais, o que reitera a necessidade de esclarecer a origem desse conceito,
buscando compreender em que medida as teorias que o legitimaram, sobretudo no século
XIX, influenciaram e ainda influenciam a vida da população negra e as relações sociais
estabelecidas entre brancos e negros ao longo da história e atualmente. Abordaremos os
conceitos de raça e racismo com base nos seguintes autores: Guimarães (1999, 2003),
Munanga (1998, 1999, 2004), Santos (2002) e Seyferth (2002).
Na presente pesquisa utilizaremos o termo raça com uma nova interpretação, baseada
na dimensão social e política do termo, ou seja, como construção social, pois conforme os
autores relacionados acima, o que persiste nas relações raciais são atribuições negativas
socialmente construídas sobre as características físicas e culturais da população negra. Tal
concepção pode auxiliar a compreender o sentido que orienta ações sociais. De acordo com
Gomes (2005, p. 41, grifo da autora), mesmo com as críticas à utilização do termo, ela o adota
porque “[...] raça ainda é o termo que consegue dar a dimensão mais próxima da verdadeira
discriminação contra os negros, ou melhor, do que é o racismo que afeta as pessoas negras da
nossa sociedade”.
Compreendemos racismo como a crença na existência de raças humanas naturalmente
hierarquizadas. Tal hierarquia delimita as distâncias sociais e impõe um sistema rígido na
46
Não havia dúvida de que Adão e Eva, ou seja, a humanidade na sua origem era
“branca”. Desvios “fenotípicos” [pessoas negras] deste modelo eram atribuídos a
falhas morais e, a partir do século XVII, passavam a ser explicados cada vez mais
também como produtos de influências climáticas (HOFBAUER, 2003, p. 10, grifo
do autor).
A cor negra era assim vista de modo negativo. Segundo Cohen11 (1980 apud
SANTOS, 2002, p. 45),
Em todos os tempos esta cor sempre esteve revestida de valores negativos nas
línguas indo-europeias. É desta maneira que em sânscrito, o branco simboliza a
classe dos brâmanes, a mais elevada da sociedade. Em grego, o negro sugere uma
mácula tanto moral quanto física; ele trai, igualmente, os homens de intenções
sinistras. Os romanos não somaram a este vocábulo nenhum significado novo: para
eles, o negro é signo de corrupção enquanto o branco representa a vida e a pureza.
Os homens da igreja, à procura de chaves e símbolos que revelassem os sentidos
ocultos da natureza, fizeram do negro a representação do pecado e da maldição
divina.
11
COHEN, W. Français et africain . Paris, Gallimard, 1980.
48
As disparidades entre as teorias e os teóricos eram mínimas, visto que partiam dos
mesmos pressupostos; da crença na diferença entre os tipos humanos que impunha
uma certa hierarquia e da busca de uma explicação anatômica para esta diferença,
somada ou não a outros fatores.
Cada grupo humano passou a ser considerado como inferior ou superior de acordo
com sua “raça”, para cuja definição a cor da pele era critério fundamental. Por isso, a espécie
humana ficou dividida em três raças: negra, amarela e branca (MUNANGA, 2004; SANTOS,
2002; SEYFERTH, 2002). Desse modo, aspectos biológicos de classificação foram
incorporados como modelos explicativos para a categorização e hierarquização dos povos.
Novas teorias raciais foram tecidas pautadas nesses indicadores.
Nesse sentido, o que prevaleceu foi uma realidade racial forjada por essas concepções,
que eram entendidas como algo que superaria qualquer teoria do direito. “Deste modo, a cada
raça cabe um lugar no mundo e seus direitos são definidos pelo grau de importância que
detém na ordem evolutiva. Ou seja, cada raça teria um direito determinado por natureza”
(SANTOS, 2002, p. 49). Essas concepções compuseram as teorias racialistas, entendidas
como estudos das raças humanas (SANTOS, 2002). Santos considera que Todorov, filósofo
iluminista, foi um dos primeiros a desenvolver as teorias racialistas e que elas possuíam
algumas proposições que podem ser resumidas em:
pura, mais forte e sábia, que eliminaria as raças mais fracas e menos sábias, desenvolvendo,
portanto, a eugenia.
Nessa nova tendência, a percepção poligenista acabava por inverter e interpretar a
perspectiva darwiniana de transmissão dos caracteres adquiridos, compreendendo que as raças
constituíam-se como fenômenos finais. Assim, a miscigenação ocasionaria sua alteração, pois
os caracteres das raças inferiores seriam transmitidos à branca, o que seria um grave erro.
Existiriam, em tal concepção, os tipos “puros”, em que o símbolo máximo era a raça ariana,
marco da civilização e os “erros” (entre eles, o povo brasileiro) condenados pela
miscigenação entre tão díspares raças. Este relato nos propicia uma ideia prévia de como essas
teorias irão repercutir no Brasil, uma vez que o país apresentava-se como um “exemplar”
genuíno de misturas de raças (MUNANGA, 1999).
Entre os principais adeptos dessa concepção de degeneração das raças, temos o Conde
de Gobineau, autor do “Ensaio sobre a Desigualdade das Raças Humanas” (1853), que
representaria a versão mais radical das teorias raciais, ressaltando o perigo da mestiçagem e a
condenando. Desde então, a mestiçagem - entendida como a “degeneração dos povos” - se
tornou um dos temas predominantes do racismo (SEYFERTH, 2002)12. De acordo com
Munanga (1999, p. 42),
12
Santos (2002) aponta que havia certa discordância entre os darwinistas e Gobineau (1853), para quem a classificação racial
era marcada por tipos, por variação de raça. Gobineau acreditava que a natureza produziria um número limitado de pessoas
de raças puras e haveria um grupo de degenerados aparecendo de forma gradativa, devido à mestiçagem. Para os darwinistas
não havia degeneração, pois os fracos, os assim ditos degenerados, seriam eliminados.
13
Na literatura não encontramos datas específicas sobre as obras do autor. Entretanto, de acordo com Munanga (1999), a obra
de Gobineau sobre raças humanas foi publicada em quatro volumes entre 1853 e 1855.
52
Gobineau diz que a civilização nasce de uma boa dosagem na mistura das raças e
que uma mistura excessiva a destrói. Um cruzamento, pelo menos, é absolutamente
indispensável; um segundo cruzamento será provavelmente nocivo, enquanto que o
terceiro levará infalivelmente à ruína da civilização e do poço criador (MUNANGA,
1999, p. 45).
Temos de forma geral, na conjuntura exposta, o negro considerado como inferior. Sua
inferioridade poderia ser comprovada biologicamente, por meio do crânio ou pelo
desenvolvimento de suas sociedades. Podemos dizer que a Biologia forneceu elementos para
que a ideia de raça se transformasse em racismo científico.
mistura entre brancos e negros, levaria à degeneração do ser humano – chegaram ao Brasil.
Aqui, esses discursos faziam constantes referências à composição do povo brasileiro como
algo absolutamente negativo por conta da grande mistura ocorrida, sobretudo com os negros.
Baseadas em fundamentos científicos, as teorias ganharam grande repercussão no
meio intelectual nacional14, que as adotou de maneira bastante original, ou seja, adaptando-as
à realidade brasileira, colocando o mestiço como categoria elevada, assim cumprindo um
importante papel para manutenção do discurso corrente sobre os negros (SCHWARCZ,
1993). Essa adaptação não poderia deixar de ser feita, porque o Brasil possuía uma realidade
social diversa da dos lugares onde floresceram as teorias raciais. No entanto, mesmo com
adaptações, continuou-se preservando a ideia de raças superiores e inferiores. Para Munanga
(1999), a adaptação das teorias raciais à realidade brasileira ocorreu, sobretudo, pautada no
fato de que pluralidade racial nascida no processo colonial incomodava e desafiava a elite que
se pensava vivendo em uma nação branca (e desejava isso profundamente).
Alguns dos expoentes da época que contribuíram para essa adaptação das teorias
raciais foram: Oliveira Viana, Tobias Barreto, Sílvio Romero, Nina Rodrigues, Euclides da
Cunha, Oswaldo Cruz, entre outros que compunham o grupo dos chamados Homens de
Sciencia. Para Schwarcz (1995, p. 18), esses “intelectuais irão se mover nos incômodos
limites que os modelos lhes deixavam: entre a aceitação das teorias estrangeiras – que
condenavam o cruzamento racial – e sua adaptação a um povo, a essa altura já muito
miscigenado”. A operação realizada nesses modelos tratava obviamente de utilizar os
conceitos aproveitáveis e descartar aqueles que não se adequavam à realidade brasileira. Para
que se tenha uma ideia dessa produção, examino na sequência o pensamento de alguns dos
intelectuais citados.
Nina Rodrigues (1862-1906), da Faculdade de Medicina da Bahia, defendeu a tese da
desigualdade das raças, da degeneração da mestiçagem e denunciou suas consequências na
ordem política e social. Os negros e mestiços, segundo ele, eram a anomia social e incapazes
de desenvolver uma cultura elevada. Com base nas premissas características das ciências
naturais, criticava o fato de que os códigos penais estavam ainda muito permeados por
concepções metafísicas e não reconheciam os avanços da ciência moderna, chegando a sugerir
a criação de dois códigos penais, um para os brancos e outro para os negros.
14
Nesse período tínhamos o surgimento das primeiras instituições de ensino superior. Em principio, apenas os cursos de
Medicina e Direito foram contemplados. São os alunos formados nesses cursos que se dedicaram aos estudos dos problemas
brasileiros, o que incluía a temática racial. Estávamos assim formando os primeiros “homens de Sciencia” (SCHWARCZ,
1995).
54
80% de brancos, se a mistura racial continuasse durante o século XX. E, em defesa de sua
tese, ele foi a Londres em 1911 representar o Brasil no I Congresso Internacional das Raças,
onde apresentou sua ideia de que o país estaria em processo de branqueamento.
Diferentemente da abordagem de Nina Rodrigues (1899), aqui a diferença essencial entre
brancos e negros não ganha destaque na análise. Lacerda (1911) concebe os africanos e seus
descendentes também como uma “raça própria”, mas que, por meio de sua contribuição à
construção da sociedade brasileira, é transformada em “elemento nacional” e, dessa forma,
absorvida pela cor/raça dominante (HOFBAUER, 2003). Podemos presumir com tal
argumento que para a população negra ser reconhecida teria que assimilar a cultura europeia
negando completamente a sua.
Oliveira Viana (1883-1951), importante pesquisador do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, enxergou o mestiço como um produto do sistema colonial, racialmente
indefinido e sujeito às consequências dessa indefinição. Explicou a situação por meio das
relações contraditórias como “o mameluco capitão a serviço do Bandeirante e o mulato,
capitão-do-mato perseguidor de escravos foragidos” (MUNANGA, 1999). Assim como o faz
Nina Rodrigues (1899), Viana também acredita no atavismo, ou seja, a tendência de haver no
mestiço a retomada de algumas características das raças que o originaram. Mas ele se afasta
do pensamento de Nina Rodrigues (1899) no tocante ao processo de branqueamento que ele
acreditava possível. Observa-se que de uma forma ou de outra todos os ensaístas brasileiros
da época aderiram ao conceito das raças superiores e inferiores (MUNANGA, 1999).
Depois das inúmeras teorias racistas por meio das quais as representações sociais
sobre o negro foram construídas, a década de 1930 é outro momento importante para a análise
do mestiço e das relações raciais: o mestiço transforma-se em ícone da identidade brasileira.
Assim, enquanto no período anterior a miscigenação significava no máximo o
branqueamento, agora se valorizava a mistura racial, sobretudo relacionada à cultura. A
miscigenação passa a representar uma de nossas maiores qualidades. Talvez até a maior delas.
Expressões culturais negras como o samba, a capoeira e a culinária ganharam novo status.
Neste contexto foi gestada a obra de Gilberto Freyre “Casa Grande & Senzala” (1933), que,
além de enxergar a mestiçagem de uma maneira absolutamente diversa da precedente, faz
uma leitura da escravidão como algo brando e “amolecido” (SCHWARCZ, 1996b).
Anunciava-se a nova e profunda preocupação por parte da intelectualidade brasileira
pelos problemas sociais que foram ignorados pelo racismo científico. Freyre (2006) procurou
enfatizar as efetivas contribuições que o negro teria feito nos costumes brasileiros.
56
Desse modo, a miscigenação foi naquele momento aceita de bom grado. A ideia
propagada era de que o Brasil foi formado pela “união” de três grupos humanos e culturas
diferentes: negros, índios e brancos. Da Matta (1997) chama essa interpretação de “fábula das
três raças”, com a qual se pretendia eliminar as distinções entre elas afirmando união e a
igualdade. Essa configuração é denominada por Freyre (2006) “democracia racial”.
Podemos definir de forma breve a democracia racial como a crença de que negros e
brancos convivem pacificamente num paraíso tropical, fato que pode ser comprovado pela
quantidade de mestiços, filhos de negros com brancos, no país. Para Moura (1988, p. 61),
“estabeleceu-se uma ponte ideológica entre a miscigenação (que é um fato biológico) e a
democratização (que é um fato sociopolítico) tentando-se, com isto, identificar como
semelhantes dois processos inteiramente independentes”. Podemos entender essas mudanças
na forma de conceber o mestiço como decorrentes dos novos caminhos na orientação e
compreensão política e social do país. Essa orientação não podia mais se adequar às teorias
raciológicas do século XIX, tornadas obsoletas (MUNANGA, 2004). Contudo, de forma
alguma podemos nos esquecer de que a perspectiva que surgia nos anos 1930 “encobre os
conflitos raciais, possibilitando a todos se reconhecerem como brasileiros e afastando das
comunidades subalternas a tomada de consciência de suas características culturais que teriam
contribuído para a construção e expressão de uma identidade própria” (MUNANGA, 1999, p.
80). Além disso, “afirma-se de modo genérico e sem questionamentos uma certa harmonia
racial e joga-se para o plano pessoal os possíveis conflitos” (SCHWARCZ, 1998, p. 180), o
que dificulta uma discussão mais aprofundada da mestiçagem e do racismo em nosso país.
Ainda hoje funcionam representações sociais sobre negro associando sua origem à suposta
inferioridade, reforçadas pelos meios de comunicação de massa e pela superexposição da
figura do branco em detrimento da do negro ou do índio.
Não podemos ignorar que todos esses argumentos e discursos [sobre as diferenças
raciais] foram considerados científicos em sua época (hoje são tidos como
pseudocientíficos). Envoltos pela atmosfera da racionalidade e da ciência alicerçada
na biologia, engendrou-se uma ciência das raças, a raciologia, que tinha como
objetivo explicar a diversidade humana. Entretanto, impregnada por argumentos que
se pretendiam neutros e empíricos, mas eram falaciosos (para não dizer ideológicos),
desembocou em uma absurda hierarquização da humanidade em raças desiguais. O
determinismo biológico que pavimentou o caminho do racialismo ou racismo
científico que até hoje pesa negativamente no futuro coletivo dos povos não-
europeus, principalmente negros e índios e seus descendentes mestiços, teve aí seus
primeiros passos (MUNANGA, 2002, p. 11).
O que o autor aponta como problema não é a classificação das pessoas ou, como
agora, a inoperância do conceito de raça, mas o fato de ter ocorrido desde o início a
hierarquização, o estabelecimento de uma escala de valor com base nas diferenças fenotípicas
(MUNANGA, 2004). Estas se articularam mais tarde com características psicológicas,
morais, intelectuais e culturais, presentes até hoje na representação sobre o grupo negro,
considerado como aquele que é desprovido de beleza, inteligência e moral.
Com base nos resultados dos estudos referidos acima, alguns cientistas sociais
começaram a considerar raça como um grupo de pessoas que numa dada sociedade se
distingue em virtude de traços físicos; na ausência desses, os grupos deveriam ser chamados
de étnicos. Para Munanga (2004, p. 29), “uma etnia é um conjunto de indivíduos que,
histórica ou mitologicamente, têm uma língua comum, uma mesma religião ou cosmovisão,
uma mesma cultura e moram geograficamente num mesmo território”. Sendo assim, o
conceito de etnia é sociocultural, histórico e psicológico. Na sociedade brasileira tal conceito
não se aplica, posto que os negros possuem uma mesma língua, mas, no entanto, não
compactuam todos da mesma religião e cultura. De acordo com Guimarães (1999), os autores
que optam por utilizar o termo etnia o fazem por achar que raça é carregada de ideologia. No
entanto, tal classificação é problemática, pois os dois conceitos são diferentes.
Para o movimento negro, a não utilização do conceito de raça tinha como objetivo
negar a discriminação e as desigualdades raciais crescentes no país; as desigualdades eram
reduzidas às de classe social, sem relação com a cor ou a ancestralidade. A tensão entre esses
ideários torna o termo insustentável e emerge a
Assim sendo, podemos dizer que atualmente grande parte dos estudiosos (GOMES,
1995; BERNARDINO, 2002; CAVALLEIRO, 2000;) das relações raciais utilizam o termo
raça independente do que nos diga a genética, pois compreendem que seja a partir dessas
59
raças fictícias que se reproduz e se mantêm o racismo no país. Ressaltamos que esses
estudiosos utilizam o termo com base em uma nova interpretação, baseada na dimensão social
e política. Utilizam sob a justificativa de que a discriminação racial e o racismo na sociedade
brasileira se dão não apenas por causa de aspectos culturais dos representantes das diversas
raças, mas também pela relação que se faz entre esses aspectos e os atributos socialmente
observáveis dessas pessoas, como cabelo, cor da pele, religião etc.
Aqui, o senhor não se sente ameaçado ou culpado por estar submetendo um outro
homem ao trabalho escravo, mas, muito pelo contrário, ele vê o negro como seu
complemento natural, como um outro que se dedica ao trabalho duro, mas
complementar às suas próprias atividades que são as do espírito. Assim, a lógica do
sistema de relações sociais no Brasil é a de que pode haver intimidade entre
senhores e escravos, superiores e inferiores, porque o mundo está realmente
hierarquizado, tal e qual o céu da Igreja Católica (DA MATTA, 1997, p.75).
15
Na presente pesquisa utilizamos a segunda edição desta obra, publicada em 2005.
61
Com base em dados censitários de renda, educação, saúde, entre outros, Hasenbalg
(2005) concluiu que a cor dos indivíduos tinha grande peso na explicação da pobreza e na sua
reprodução. Assim, a pobreza no Brasil teria cor, e esta seria preta e parda. Estudos recentes
como o de Gomes (1995) também confirmam o que Hasenbalg (2005) dizia em 1979. A
autora escreve que, no Brasil, os dados referentes a situação econômica, educação, saúde e
emprego dos negros ocupam os últimos lugares na escala social e que
16
Lembramos que neste período, baseado em pesquisas sociológicas e antropológicas, o conceito cor era usado para
substituir a categoria raça, sendo assim, significava mais do que pigmentação da pele.
63
Longe de ser um caso isolado, “raça está por toda a parte”: nas piadas que inundam
o cotidiano, nas expressões do dia-a-dia, na propaganda de turismo e na
discriminação violenta, mas escondida do Judiciário, do mundo do trabalho e da
intimidade. É particular, pois a discriminação pouco aparece nos discursos oficiais.
É específica, porque se afirma no privado, talvez como categoria nativa, neutralizada
pelo costume. Quase como uma etiqueta, uma regra implícita de convivência, no
Brasil cor combina com prestígio e com lugar social, e apesar de silenciosa é
eloquente em sua aplicação (SCHWARCZ, 1998, p. 236, grifos da autora).
Por meio de uma pesquisa realizada em 1995 pelo jornal Folha de São Paulo foi
divulgado que 89% dos brasileiros disseram haver preconceito contra os negros no Brasil;
10% admitiram tê-lo de maneira indireta; entretanto, 87% revelaram algum preconceito racial
ao concordarem com frases e ditos de conteúdo racista. Com isso, comprovou-se que no
Brasil existe racismo e preconceito, mas joga-se sempre para o outro, ou seja, dificilmente os
brasileiros individualmente assumem a possibilidade de terem preconceito racial
(SCHWARCZ, 1996a). “O problema parece ser o de afirmar oficialmente o preconceito, e
não o de reconhecê-lo na intimidade” (SCHWARCZ, 1998, p. 182). Nessa conjuntura, as
ações de combate ao racismo só podem ser eficazes por meio de uma educação que se
dedique ao combate de práticas racistas, que preze as relações raciais, que possibilite a
discussão e a reflexão sobre a convivência entre os pares. Quanto à legislação, ela não
penaliza o preconceito, mas combate práticas discriminatórias, o que faz com que o
preconceito passe ileso pelo campo jurídico e pela própria sociedade:
Acreditando que a forma mais eficaz de combater o racismo seja por meio da
educação, os movimentos negros, desde a década de 1990, se dedicam a dar continuidade ao
desmascaramento da cordialidade do racismo brasileiro, denunciando a presença deste
também no ambiente escolar.
Munanga (2001) nos chama a atenção para o fato de não ser somente por meio da
educação que se podem superar os problemas raciais, ou seja, não basta superar os limites da
pura razão só com conhecimento, pois há também uma dimensão afetiva e emocional. O
64
desafio da educação fica posto principalmente como estratégia de luta contra o racismo, mas
sozinha ela não dará conta; é apenas suficiente para revogar e/ou minimizar as representações
que brotam ou são cultivadas no imaginário da sociedade brasileira (MUNANGA, 2001).
Considerando esses aspectos e visando apontar ações que possam combater o racismo
na educação e a promover a igualdade racial no ambiente escolar, é necessário
compreendermos como o racismo se manifesta nesse espaço. E pensando no objeto desta
pesquisa, questionamo-nos como o pensamento racial chega às escolas, mais especificamente
aos professores. Como são condicionadas suas representações e sua prática? Com quais
referenciais olham para as crianças negras? Que influência a prática desses professores
recebem do modo como as relações raciais no país foram constituídas? Para elucidar algumas
dessas questões, abordaremos a seguir a manifestação do racismo na educação, especialmente
na educação infantil.
17
Rosemberg no ano de 1999, realizou uma análise sobre a desigualdade de oportunidade na educação infantil relacionando
gênero e raça, utilizando dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) entre os anos de 1981-1995, bem
como do MEC, e chegou à seguinte conclusão: as instituições de educação infantil também reproduziam o modelo excludente
que existe no âmbito educacional brasileiro. Isso porque a autora constatou que o índice de retenção de crianças negras na
pré-escola era maior que o das brancas e havia um claro desfavorecimento das crianças de famílias com baixa renda,
especialmente as negras. Os dados mostraram que a predominância absoluta de crianças, com sete anos ou mais, ainda na
pré-escola, era de negras, chegando a 63,5%. Já em relação às crianças brancas nessa mesma faixa etária, o percentual caia
para 36,5%. Em relação à desigualdade racial apresentada pela pesquisa, as causas econômicas, sozinhas, não explicavam a
retenção maior das crianças negras. Para Rosemberg (1999), ao componente econômico agrega-se o “pessimismo racial”.
Segundo a autora, esse processo consiste na descrença, por parte dos que atuam na educação infantil, do gestor ao professor,
da capacidade intelectual da criança negra. Por meio dos indicadores educacionais citados, a autora afirmou a existência de
discriminação racial desde a educação infantil.
66
evidenciamos que mesmo que as leis garantam o direito à educação das crianças de zero a
cinco anos, elas acabam prejudicadas pela desigualdade racial.
Dados recentes divulgados no terceiro relatório “As Desigualdades na Escolarização
no Brasil” (2009)18, realizado pelo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social
(CDES), indicou, com base em informações fornecidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE), Ministério da Educação (MEC) e Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisa (INEP), baseadas nos dados de 1995 a 2007, que o acesso à educação infantil,
infelizmente, pouco mudou, ou seja, o acesso a este nível de ensino continua sendo um
privilégio de crianças brancas e de classe média e não um direito das crianças. E quando as
crianças negras estão matriculadas na instituição, enfrentam práticas racistas que fatalmente
influenciarão e marcarão a construção de sua identidade, sua autoestima e sua aprendizagem.
As práticas racistas presentes na escola marcam negativamente a vida das crianças
negras. Podemos entender isto ao ler o depoimento de Veridiana (59 anos), registrado por
Cavalleiro (2003) ao trabalhar com famílias negras e processo de socialização:
Eu não gosto muito de lembrar da minha época de escola. [...] Não era muito fácil suportar os
xingamentos, medo de apanhar dos meninos. Sabe aquela coisa de você ouvir todos os dias
que você é feia, que seu cabelo é duro, que você é da cor de carvão. Entre um xingamento e
outro, tinha umas brincadeiras. Mas tinha os xingamentos que entristeciam, que chateavam...
Dá para entender? Eu não queria ser preta. Eu odiava (CAVALLEIRO, 2003, p. 52).
No relato ficou evidente que o espaço escolar nunca foi, e depois de tanto tempo
continua não sendo, agradável para as crianças negras. De acordo com pesquisas realizadas e
a denúncia dos movimentos negros, sabe-se que o racismo pode se manifestar na escola por
meio da prática pedagógica, das representações sociais vinculadas ao negro expostas nos
livros didáticos e nos de literatura infantil, pela exclusão e/ou omissão nos currículos da
história do negro, bem como sua contribuição na formação da sociedade brasileira. Acredita-
se que todas essas formas de manifestação baseiam-se nas representações forjadas nas e pelas
teorias raciais.
Entre as pesquisas que relataram a manifestação do racismo nas representações sociais
dos professores, destacamos a de Chiarello (2003), que entrevistou seis professoras do ensino
18
Quando fazemos um recorte racial nos dados disponíveis, a desigualdade torna-se evidente no que diz respeito ao acesso
das crianças negras e brancas à educação infantil. Isso porque mesmo que os dados do relatório indicando que em nível
nacional o acesso às creches entre 1995-2007, ou seja, ao longo de 12 anos, teve um aumento de 9,5%, e nesse mesmo
período o acesso das crianças negras também tenha aumentado 8,7%, quando comparados aos dados relativos às crianças
brancas, percebemos que o número de matrículas destas teve aumento percentual acima de 10,7%, enquanto o das crianças
negras subiu 8,7%. Desse modo, verifica-se que mesmo havendo expansão na oferta de vaga para essa faixa etária, a
desigualdade entre crianças negras e brancas permanece. E, além de permanecer, vem aumentando a cada ano, haja vista os
números: em 1995 era de 2,5% e em 2007, de 4,5%. O relatório pode ser consultado na íntegra no site:
http://www.ibge.gov.br/observatoriodaequidade.
67
Quanto aos fatores que influenciaram na mudança, a autora aponta que foram
As leis e as normas que instituem a discriminação racial como crime, tal como o
Art.º 5º da Constituição Federal de 1988, a criação dos Parâmetros Curriculares
Nacionais pelo Ministério da Educação e do Desporto e Secretaria de Ensino
Fundamental, em 1998, assim como as recomendações de algumas editoras, tal
como a FTD, no sentido de não veicular estereótipos em relação às diferenças
étnico-culturais, entre outras, nos textos e ilustrações dos livros didáticos,
constituíram-se em fator determinante de transformação da representação social do
negro. (SILVA A., 2002, p. 4).
Entretanto, de acordo com Rosemberg (2003, p. 136), são muitas as ilustrações que,
ainda, apresentam “o negro escravo, vinculando-o à passagem daquela condição à de marginal
contemporâneo, pouco trabalhando a diversidade de sua condição”.
19
As denúncias se intensificaram de 1980 em diante. Porém, sabemos que os estudos sobre o preconceito em livros didáticos
se iniciaram em 1950, com a pesquisa de Dante Moreira Leite: “Preconceito racial e patriotismo em seis livros didáticos
primários brasileiros”.
20
A Lei 10.639 de 2003, que altera os artigos da Lei de Diretrizes de Bases da Educação Nacional (LDB), Lei 9.396/96,
inclui no currículo oficial dos estabelecimentos de ensino básico das escolas do país a obrigatoriedade do estudo da história e
cultura afro-brasileira, bem como da História da África e dos africanos, a luta do negro no Brasil e sua contribuição para a
formação da sociedade.
69
A autora aponta que há preconceito nos exemplos mais simples, como nas brincadeiras
em que as crianças brancas não aceitam se relacionar com as negras, ou quando se recusam a
brincar com bonecas que não sejam brancas.
Silva, V. (2002) demonstrou em sua pesquisa que ações cotidianas podem gerar a
baixa expectativa e sentimento de aversão para com as crianças negras. A autora faz essas
afirmações, pois em sua pesquisa verificou que as professoras, quando se tratava de distinguir
quem eram as crianças fáceis e difíceis para se trabalhar, classificavam como difíceis em sua
maioria as crianças negras, principalmente os meninos negros. Essas crianças recebiam
atributos que são pautados em um comportamento social negativo, tais como “custa mais pra
aprender a dividir as coisas”; “ele é terrível, não para, não fica quieto”; “agitado”;
“agressivo”; “teimoso”; “muito levada”; “impõe aquilo que quer, por meio da agressividade”;
“quando está com muita raiva ele se isola”, entre outros. Enquanto as crianças consideradas
fáceis eram em sua maioria meninas brancas e os atributos utilizados para essas eram
“espertas”, “bem comportadas”, têm “bom desenvolvimento” etc. Entretanto, Silva identificou
que um comportamento tido como inadequado em crianças negras era qualificado como
positivo se feito por crianças brancas. Uma das professoras entrevistadas classificou como
difícil uma criança negra pelo fato de “sempre querer fazer tudo” (querer auxiliá-la na sala),
mas esse mesmo atributo foi usado como positivo ao se referir a uma criança branca como
fácil de lidar.
Tais apontamentos nos indicam a forma como as crianças negras aparecem no
imaginário social educacional e que práticas pautadas no racismo ainda estão presentes,
sobretudo na representação das professoras. Com essas atitudes, mesmo sem perceber, a
escola oferece à criança negra e à branca oportunidades diferentes e desiguais de
desenvolvimento social, cognitivo e educacional e as professoras conferem às crianças negras
a incerteza de sua aceitação e uma autorreferência negativa, pois, de acordo com a
pesquisadora,
72
Durante qualquer refeição, Vagner (negro/1 ano) era posto no cadeirão, pois de
acordo com Marli, “Ele não dá sossego”. Diante dessa situação, comecei a observar
que Igor (branco/1 ano) não fazia nada menos terrível que Vagner, pois, observando
o comportamento de Igor percebi que ele também fazia as mesmas coisas que
Vagner. No entanto, o tratamento recebido diante de suas travessuras diferia do
empregado a Vagner. As travessuras realizadas pelos dois eram as mesmas:
empurrar berços, subir em cima da mesa, arrastar as cadeiras, bater nos colegas, etc.
No entanto, o diferencial entre eles era a cor (OLIVEIRA, F., 2005, p. 38).
Nesse contexto, temos ainda outra situação: ganhar ou não o colo da professora no
momento que a criança está chorando:
O primeiro episódio sugere que ambas as crianças podem fazer coisas diferentes e que
essas possibilidades estão diretamente relacionadas ao seu pertencimento racial. No segundo
episódio vemos que a criança negra não recebeu o mesmo carinho que a branca, desse modo o
que prevalece é um carinho, aconchego e privilégios para a criança branca. Sendo assim,
constata-se que o ambiente escolar desigual para crianças negras e brancas é estabelecido
desde a mais tenra idade.
Temos também relatos de professoras sobre o comportamento de crianças brancas em
relação a crianças negras, diante de atividades que abordavam as diferenças.
A criança falou: “Eu não quero essa menina perto de mim [...] essa neguinha
perto de mim” (na festa junina). “Ah, eu não quero dançar com ela (criança
negra)”. A criança não diz especificamente porque não quer dançar... Mas
você tem que ter jogo de cintura como professora para montar os pares de
maneira que a criança negra seja bem aceita como um par. [...]
Às vezes ela (a criança negra) não é convidada para fazer parte da
brincadeira. São poucos os que chamam, os que convidam. Elas (as crianças
brancas) dão preferência às outras crianças brancas para ficar brincando
(DIAS, 2007, p. 156).
[...] vamos encontrar nos depoimentos das educadoras em relação à atitude das
crianças negras e brancas diante das atividades que poderiam ser consideradas
oriundas de seus saberes adquiridos na dimensão de saberes experienciais, que se
adquire na interação social por elas vivenciadas, ainda que bem pequenas [...].
Assim, a aprendizagem sobre ser negro e branco ocorre de diferentes formas e antes
da entrada da criança na escola (DIAS, 2007, p. 276).
Podemos observar nos relatos que as crianças, desde muito cedo, começam a
diferenciar-se umas das outras e elaboram hipóteses para compreender as diferenças,
principalmente as que se pautam no pertencimento racial (GODOY, 1999). Desse modo é
essencial que as professoras estejam preparadas para lidar com a questão das diferenças,
também as relacionadas ao pertencimento racial, tanto com as crianças quanto com suas
famílias; que tenham formação e subsídios técnicos e pedagógicos; confeccionem materiais
pedagógicos de forma a melhor representar a diversidade presente na sua turma; inclua
temática das relações raciais no currículo cotidiano das instituições de educação infantil e
saibam explicar para as crianças que as diferenças fazem parte da constituição humana e que
essas não se traduzem em inferioridade. Tais ações são capazes de promover a igualdade
racial na escola, bem como possibilitar que as diferenças sejam entendidas de modo positivo.
Essa melhora nas relações raciais pôde ser comprovada por Dias (2007), que
entrevistou professoras de creche que haviam realizado cursos sobre a temática racial. A
autora apontou que as professoras, após terem realizado o curso, foram capazes de
desenvolver práticas eficazes no combate ao racismo; que ele as auxiliou na percepção das
práticas discriminatórias no cotidiano escolar; que elas formularam repostas às manifestações
de racimo na escola; ficaram menos tolerantes com qualquer tipo de discriminação; que o
curso lhes possibilitou ter argumentos para intervir em situação de conflito; e que houve uma
tendência de que a educação para as relações raciais permeassem o currículo.
As professoras participantes da pesquisa ainda elencaram cinco pressupostos
pedagógicos que poderiam contribuir para a efetivação de uma prática que colabore para o
combate ao racismo no ambiente escolar e que ofereça a todas as crianças e professoras uma
reeducação das relações raciais. Os pressupostos são:
1. O trabalho com o tema deve ser contínuo e fazer parte do dia a dia;
2. O educador tem que ter coragem para trabalhar esse tema;
3. O lúdico é importante no contexto da educação das relações étnico-raciais;
4. A ideia de diferença deve ser construída junto à criança como algo positivo;
5. A criança tem de ter elementos que colaborem na construção de sua identidade
racial de modo positivo, já que essa identidade não deve ser imposta a ela
(DIAS, 2007, p. 257).
74
Entendemos, desse modo, que sem uma formação específica sobre a questão racial e
educação corremos o risco de continuar a presenciar atitudes de profissionais da educação
que, por exemplo, ao tentarem explicar por que as pessoas são racialmente diferentes, acabam
oferecendo às crianças brancas e negras respostas que, além de simplistas, dão as mesmas
possibilidades de entenderam que ser negro não é algo bom. Segue um exemplo:
Eu chamo a criança e converso com ela. Falo: “Vem cá: ele não é igual a você? Ele
não é um ser humano igual a você? Só que infelizmente ele é de uma raça e você de
outra [...] Vocês são crianças iguais [...] são seres humanos [...] são filhos de Deus
[...] iguais (Auxiliar de limpeza);
[...]
É que nem eu falo: o negro é um ser humano, ele não escolheu que cor que ele
queria ser (Professora);
[...]
Um menino falou para o outro assim: “Seu negrinho feio e nojento”. Aí eu falei:
“Você não fala assim, porque poderia ser você no lugar dele”(Auxiliar de limpeza)
(CAVALLEIRO, 2000, p. 83).
Depois desse curso eu aprendi que, quando acontecer esse tipo de coisa... Quando
acontecer de um menino ou menina falar: “Olha, ele não quer pegar na minha mão”.
[...] “Sua preta feia, eu não gosto mais de você [...]”. Eu não sabia lidar com essa
situação, então isso mudou a minha prática. Porque a partir disso... Não, você não
pode deixar passar. Aconteceu isso? Então, vamos sentar, vamos conversar,
trabalhar um jeito com a criança [para que] perceba que a outra é diferente dela, mas
não é por isso que ela tem de se afastar ou que tem de bater nela o tempo todo
(DIAS, 2007, p. 265).
Esse relato mostra que a intervenção da professora foi possível, sobretudo, por meio
da formação recebida no curso especifico. Desse modo, podemos inferir que quando as
práticas pedagógicas desenvolvidas na educação infantil tendem a ignorar o pertencimento
racial das crianças e a calar-se diante das manifestações de racismo, acaba por contribuir para
75
CAPÍTULO 3
O referencial que orientou a análise desta pesquisa foi a Teoria das Representações
Sociais. As representações sociais são consideradas matérias-primas para a análise do social,
pois revelam, explicam ou questionam a realidade.
Os dados coletados por meio da pesquisa de campo, incluindo entrevista com a
professora colaboradora, análise de documentos institucionais (publicação da Secretaria
Municipal de Educação de São Paulo e projeto pedagógico da escola em que foram realizadas
todas as observações), atividades registradas no semanário da referida entrevistada e textos
destinados à formação continuada das professoras na escola serão interpretados com base no
referencial teórico-metodológico das representações sociais e de autores que estudam relações
raciais e educação (GONÇALVES, 1987; GOMES, 1995; 2003; CAVALLEIRO, 2000;
OLIVEIRA, 2004, 2005; DIAS, 2007).
Referimo-nos à coleta das informações considerando a perspectiva etnográfica,
adotada para auxiliar na compreensão das representações sociais que uma professora de
educação infantil possui das crianças negras de sua turma. De acordo com autores dessa
perspectiva (GEERTZ, 1973, 2001; EZPELETA e ROCKWELL, 1986; ERICKSON 1989;
ANDRÉ, 1993, 1995, 1997; MERCADO, 1987), os pesquisadores poderiam somente
interpretar os dados e com isso fariam uma interpretação de segunda ou terceira mão
(GEERTZ, 1973). Para este autor, somente podemos considerar verdadeira a interpretação
realizada por aqueles indivíduos que vivenciaram determinada realidade. Tal opinião também
é compartilhada por Sperber (2001, p. 93), que afirma que “não se descreve o conteúdo de
uma representação; ela é parafraseada, traduzida, resumida, desenvolvida; em resumo,
interpretada”. A maior preocupação da etnografia é obter uma descrição densa, a mais
78
completa possível, sobre o significado que determinadas ações têm para um grupo particular
de pessoas (GEERTZ, 1973). Acreditamos que tanto a perspectiva etnográfica como a teoria
das representações sociais conseguiram auxiliar no que se propôs esta pesquisa, porque ambas
procuram compreender as ações dos sujeitos considerando, assim, aspectos individuais e
sociais.
A fim de compreender quais eram as representações sociais que a professora tinha das
crianças negras de sua turma e como repercutiam em sua prática pedagógica, buscamos
analisar as representações enquanto produto, de acordo com Alves-Mazzotti (1994) e Spink
(2004). Para as autoras, as representações sociais, focadas enquanto produto, emergem como
pensamento constituído. Analisá-las implica investigar seu conteúdo, ou seja, os elementos
que as constituem (as informações, as imagens, as opiniões, as crenças etc.) e o seu sentido,
sempre se referindo às condições de sua produção. Para Spink (2004), sendo a representação
compreendida como uma forma de conhecimento produzida socialmente, ao analisá-la temos
que nos remeter às condições sociais que a engendram. Desse modo, nas análises é preciso
abordar o contexto social no qual ela emerge, circula e se transforma se for o caso.
De acordo com Moscovici (1978), as opiniões, os valores, as avaliações, as
proposições e as reações são elementos que dizem respeito à natureza social das
representações sociais e são muito diversos, variando de acordo com a classe social, cultura e
raça, portanto, constituindo universos de opinião. Para melhor compreender esses universos, o
autor formulou três dimensões – atitude, informação e campo de representação –, que servem
para explicar o conteúdo e o sentido das representações sociais. Na análise dos dados desta
pesquisa utilizaremos as três, definidas da seguinte maneira, segundo Moscovici (1978):
• Atitude: expressa orientações e disposições cognitivas e afetivas dos sujeitos sobre o
objeto representado, essas podem ser positivas ou negativas. Disposições essas que
são construídas e apreendidas na interação social;
• Informação: relaciona-se com a organização dos conhecimentos, tanto qualitativos
como quantitativos, que um grupo possui a respeito de um objeto social;
• Campo de representação: remete-nos à ideia de imagem, de modelo social, ao
conteúdo concreto referente a um aspecto preciso do objeto da representação. Dito de
outra forma, seria o que está veiculado na sociedade sobre o objeto de representação
social, que, assim, engloba tanto os juízos quanto as afirmações formuladas sobre ele.
Entendemos que as dimensões descritas nos deram a possibilidade de compreender o
conteúdo e o sentido das representações que a professora tinha das crianças negras da sua
turma. No entanto, precisávamos compreender os mecanismos sociais que interferiam na
79
elaboração das representações formuladas pelos indivíduos, bem como a sua manifestação.
Em outras palavras, necessitávamos entender a força das determinações sociais na formulação
das representações sociais. Para tanto, também analisamos os dados coletados à luz dos
processos de ancoragem e objetivação, responsáveis pela construção de nossas representações
e que, de acordo com Alves-Mazzotti (1994), permitem compreender como o funcionamento
do sistema cognitivo interfere no social e como este interfere na elaboração cognitiva.
Na construção de uma representação social, a ancoragem configura-se como uma
operação para tornar familiar o que é estranho. O sujeito procede recorrendo ao que é familiar
para fazer uma espécie de conversão da novidade: trazê-la ao território conhecido da nossa
bagagem nocional, ancorando aí o novo, o desconhecido (MOSCOVICI, 1978, 2003;
JODELET, 1985; ALVES-MAZZOTTI, 1994). Por outro lado, a objetivação é o processo de
concretizar significados em uma imagem e vice-versa. Objetivar é dar uma forma específica
ao conhecimento acerca do objeto. Por meio desse processo, um conceito abstrato de difícil
entendimento é retratado, “coisificado” (MOSCOVICI, 1978) numa imagem concreta. Nesse
processo a intervenção do social se dá no agenciamento, ou seja, no modo como os
conhecimentos relativos aos objetos chegam ao indivíduo (MOSCOVICI, 1978, 2003;
JODELET, 1985; ALVES-MAZZOTTI, 1994). Nesse processo, a estrutura “imaginante”
torna-se um guia de leitura da realidade e, por “generalização funcional” (ALVES-
MAZZOTTI, 1994), referência para compreender a realidade. Assim:
Esse sistema de interpretação tem uma função de medida entre o indivíduo e seu
meio e entre os membros de um mesmo grupo, concorrendo para afirmar a
identidade grupal e o sentimento de pertencimento do indivíduo. Ele se torna um
código comum que permite classificar pessoas e acontecimentos, comunicar-se
usando a mesma linguagem e, portanto, influenciar. Assim, a ancoragem fornece à
objetivação seus elementos imaginados a título de pré-constructos, para servir à
elaboração de novas representações (ALVES-MAZZOTTI, 1994, p. 67).
A escola de educação infantil do município de São Paulo foi escolhida com base em
estudo exploratório realizado para a disciplina “Etnografia aplicada à pesquisa educacional”21.
Como trabalho final desta disciplina, fizemos uma pesquisa de campo durante os meses de
outubro e novembro de 2007. O tema foi o cuidar/educar na educação infantil, com o objetivo
de analisar esses dois aspectos de forma breve, em função do exíguo tempo para sua
realização. A pesquisa foi desenvolvida em uma turma de 1º. Estágio (crianças de três anos)
com uma professora que aceitou participar do estudo.
A escolha desse tema teve como objetivo compreender a articulação entre cuidar e
educar nessa etapa da educação básica. Nossa hipótese era de que o fato de na prática
pedagógica a professora privilegiar um determinado aspecto em detrimento do outro, ou seja,
somente o educar ou o cuidar, poderia caracterizar um fator de impedimento para novas
práticas pedagógicas que levassem em conta os novos pressupostos sobre as crianças na
educação infantil, e também o reconhecimento e a valorização das diferenças. Embora o foco
do estudo não fosse da mesma natureza da presente pesquisa, constatou-se, por meio das
observações realizadas, que a escola fazia alusão à diversidade pelo uso de materiais
pedagógicos destinados tanto às crianças quanto aos adultos. Assim, encontramos bonecas
(os) negras(os), indígenas e orientais; cartazes em vários espaços da escola, como no
refeitório, corredores e banheiro, incentivando a valorização da diversidade racial; outros
cartazes com crianças, adultos e famílias negras. Na sala da diretora, havia livros com a
discussão sobre relação racial e educação, tanto na educação infantil quanto no ensino
fundamental e médio; e, nos corredores, havia trabalhos realizados pelas crianças sobre a
primavera, diversidade e beleza das flores e autorretratos trabalhando com a identidade. Desse
21
A disciplina foi ministrada pela Professora Dra. Belmira Amélia de Barros Bueno, no curso de Pós-Graduação da
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, no segundo semestre de 2007.
81
22
A fim de preservar a identidade da instituição não citamos o nome da comunidade indígena vizinha.
23
O nome do projeto é fictício a fim de preservar a Emei onde foi desenvolvida a pesquisa. O projeto atendia crianças e
adolescentes das duas comunidades carentes vizinhas. A atuação era focada na educação (ampliação da formação pessoal e
educacional), cultura (oferecendo cursos de danças brasileiras, música, desenho, teatro, inglês e informática),
empreendedorismo (capacitação e suporte para os jovens na implementação do empreendedorismo social e geração de renda)
e ação comunitária (bases comunitárias locais), visando a melhoria de qualidade de vida dos moradores (informações
disponíveis no website do projeto).
24
Todos os nomes utilizados no estudo são fictícios, a fim de preservar a identidade dos colaboradores (professora, diretora e
crianças).
25
Na presente pesquisa utilizaremos professora, posto que na Emei onde a pesquisa foi realizada havia somente docentes
mulheres.
82
Neste tópico trataremos dos primeiros contatos ocorridos na Emei para a realização da
pesquisa. O primeiro do ano de 2008 ocorreu no início do mês de março, quando retornamos
com a devolutiva do estudo anterior, conforme havia sido combinado, e fez a solicitação para
realizar a pesquisa de campo para a presente pesquisa. Nas primeiras conversas com Carmem,
a fim de explicar como ocorreriam as observações e de acertar os demais encaminhamentos
para a entrada em campo, foi exposto o tema da pesquisa. A diretora mostrou-se interessada,
relatou que já estava elaborando e já havia realizado algumas atividades que pudessem, de
alguma forma, contemplar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9.394/1996
(LDB/96) alterada pela Lei n.º10.639 de 2003. Para exemplificar, mostrou o projeto
pedagógico da Emei e alguns outros que deveriam ser desenvolvidos durante aquele ano. Um
dos projetos previstos era sobre identidade, que, de acordo com a diretora, tinha como
objetivo auxiliar e estimular as crianças no conhecimento de si e das diferenças.
A escolha da turma deveria atender a alguns critérios previamente estabelecidos pela
pesquisadora, que eram: ser uma turma do 2º. estágio, portanto, com crianças de cinco anos; a
professora querer participar da pesquisa e ser uma turma em que houvesse maior número de
crianças negras frequentes. Entretanto, nos primeiros contatos com a diretora, esta sugeriu que
observássemos todas as cinco turmas do 2º. estágio, divididas entre o período da manhã e o da
tarde, para somente depois escolher uma turma. A proposta foi considerada e resolvemos que
observaríamos as cinco turmas, o que possibilitaria conhecer mais as professoras, a dinâmica
da Emei, bem como ter mais elementos para realizar indicação da turma em que a pesquisa
seria realizada.
O critério de haver maior número de crianças negras não foi mantido, pois as leituras
realizadas indicaram que o número de crianças negras, sendo menor ou maior, não
prejudicaria a apreensão e a interpretação da representação social da professora sobre elas,
posto que as representações que tivesse desses alunos poderiam ser ou não expressas
independentemente da presença de crianças negras em sua turma. Dias (2008) afirma que o
número de crianças negras não deve ser indicativo para se falar ou não sobre relações raciais,
assim como também para estudar as representações sociais que a professora possui. A autora
entende que
[...] não é necessário ter uma criança negra em sala de aula para que o tema seja
tratado pois a questão das relações raciais é de fato uma temática social e por isso
independe da presença de crianças negras e da classe social as quais pertencem para
que o diálogo sobre o tema seja realizado (DIAS, 2008, p. 28).
83
Além de propor que observássemos todas as turmas de 2º. estágio, a diretora também
solicitou que realizássemos uma reunião com as professoras da Emei, com o fito de esclarecer
o motivo da presença da pesquisadora na instituição. Nessa reunião deveriam ser abordados
temas como: contribuições das pesquisas acadêmicas para a prática pedagógica; como a
pesquisa iria ocorrer; qual turma seria observada; e sobre a ética, ou seja, esclarecer para as
professoras que nomes, tanto da Emei quanto os seus, não seriam divulgados. Entre as
recomendações para a reunião, uma foi específica e feita mais de uma vez, revelando, a nosso
ver de forma tímida, modos de relacionamento estabelecidos na Emei: a diretora ressaltou que
a pesquisadora deveria deixar claro para as professoras o motivo da escolha da Emei;
esclareceu, ainda, não querer que as mesmas achassem que, pelo fato de pesquisadora e
diretora serem negras, facilitaria qualquer pesquisa na instituição.
O encontro com as professoras aconteceu em março de 2008, no período da reunião
coletiva. Para essa ocasião elaboramos uma pauta contendo os tópicos solicitados pela
diretora, a explicação da pesquisa e um texto intitulado “As representações de criança” (SÃO
PAULO, 2002)26, selecionado pela pesquisadora, que tratava, de forma breve, da importância
da representação que temos e como esta influencia nossas práticas cotidianas. A apresentação
foi realizada em três horários para permitir que todas as professoras estivessem presentes27.
Após a reunião pudemos destacar alguns pontos considerados importantes para refletirmos
sobre as opiniões expressas por esse grupo de professoras a respeito da pesquisa acadêmica e,
sobretudo, da real função do pesquisador na escola. Seguem os aspectos destacados pelas
professoras durante a reunião:
• Em sua maioria, elas se mostraram interessadas com o tema da pesquisa, mas
ressaltaram que deveria haver um retorno com relação às conclusões do
trabalho, ou seja, uma devolutiva;
• Demonstraram estar cientes das contribuições de pesquisas para a prática e
consideraram importante ter na Emei outro olhar para ajudar a melhorar os
aspectos pedagógicos;
• Questionaram se seriam consideradas as dificuldades burocráticas e estruturais
da Emei ao descrever a prática da professora;
26
Texto retirado do documento “Fundamentos de Educação”. Rotas de aprendizagem: Infância e cultura – Módulo 2.
Secretaria de Educação do Município de São Paulo, dez. 2002.
27
A Emei funcionava em dois períodos: de manhã das 7h às 13h e à tarde das 13h às 19h; as crianças permaneciam na Emei
por seis horas. No entanto, as professoras trabalham em período de quatro horas; desse modo, havia três grupos de
professoras, que trabalhavam das 7h às 11h, das 11h às 15h e das 15h às 19h.
84
Após observar as cinco turmas de 2º. Estágio, a dúvida ainda era qual delas escolher
para a pesquisa. O que as diferenciava era o fato de que na turma da professora Mara
pudemos notar situações que sinalizaram mudanças quanto às relações sociais, raciais e a
prática pedagógica desenvolvida. Também consideramos como aspectos positivos, que
influenciaram na avaliação para posterior escolha da turma, a relação afetiva e acolhedora
estabelecida entre ela e as crianças. Observamos, constantemente, abraços, beijos e
brincadeiras entre as crianças e a professora.
Com relação às atividades, chamou a atenção o fato de, na primeira observação
realizada, a professora explicar sobre o descobrimento do Brasil28 de forma simples, mas não
menos rica, que os portugueses não descobriram o Brasil e, sim, que invadiram, pois aqui já
moravam os índios. A seguir, transcrevemos a observação de como a professora explicou às
crianças o acontecimento:
Embora não possamos afirmá-lo com certeza, a atitude de Mara levou-nos a inferir
que ela almejava transpor a concepção de planejamento pautado em datas comemorativas,
criticado por Ostetto (2000). Para esta autora,
[...] o trabalho com as datas comemorativas baseia-se numa história tomada como
única e verdadeira: a história dos heróis, dos vencedores; História que, na verdade,
privilegia uma visão ou concepção dominante em detrimento de tantas possíveis,
ignorando e omitindo, na maioria das vezes, as diferentes facetas da realidade
(OSTETTO, 2000, p. 182).
28
Era o primeiro dia de aula depois da data de comemoração do descobrimento do Brasil, 22 de abril.
85
Cinco meninas se aproximaram da professora, que estava ao meu lado, para falar
que Dandara havia batido em uma delas (que estava ali também). Nesse momento,
Dandara se aproximou e ficou ao meu lado ouvindo as meninas relatando o
acontecido. A professora virou, olhou para ela e disse para as meninas que não
deveriam “ligar” e que deixassem ela “pra lá”. Dandara olhou para a professora e
falou: “Sua feia, sua feiosa!” (repetiu duas vezes) e mostrou língua. A professora
respondeu dizendo: “Você que é feia”. Logo em seguida uma menina falou:
“Professora, ela também disse que você é galinha”.
Nesse momento, outras crianças começaram a chegar perto para ver o que estava
acontecendo e a professora, diante da fala de uma das meninas que estava
reclamando, respondeu: “Deixa, eu nem ligo! Vou falar essas coisas para o Paulão”
[pai de Dandara]. Dandara respondeu: “Pode falar, eu não ligo mesmo!”. Um
menino que estava ouvindo falou, olhando para Dandara: “Ela é chuchu preto,
pretão”. Diante dessa fala, a professora disse: “A Dandara é malcriada”. O menino
olhou para a professora e repetiu: “Professora, deixa ela. Ela é chuchu preto, chuchu
preto”. As outras crianças que estavam ali começaram a rir e a professora não falou
nada. Depois voltaram a brincar e, após alguns minutos, observei que a Dandara
estava com outras crianças (Observação de indicação da turma, professora
Aparecida).
Como o objetivo era realizar a pesquisa de campo em uma turma com a qual
poderíamos observar práticas adequadas em termos de relações raciais, escolhemos a da
professora Mara. Reiteramos que a escolha corresponde à característica da pesquisa, ou seja,
buscava-se a “boa” prática, pois se esperava ver como algumas concepções da professora
apareciam na relação com as crianças negras em sua prática pedagógica.
Compreendemos que a intencionalidade do professor nas atividades que oferece às
crianças, juntamente com a investigação de suas representações sociais, pode propiciar
atitudes diferenciadas em relação ao respeito às diferenças e, de modo geral, uma educação
que vise à tolerância. Entendemos, assim, que as atividades, o modo de explicar os
acontecimentos, enfim, tudo que permeia a prática pedagógica está constituindo mundos,
valores, mentalidades e representações sociais. Com este olhar é que selecionamos a
professora Mara para a participação na pesquisa.
As outras três turmas foram descartadas, pois na observação realizada não
identificamos aspectos que possibilitassem atingir o que nos propusemos com a pesquisa de
campo. Nessas turmas presenciamos práticas que seguiam uma rotina sistemática, onde o
contato entre as professoras e as crianças eram ínfimos e as atividades oferecidas a estas, a
86
nosso ver, não proporcionariam oportunidade de observar atividades que sinalizassem como
as professoras representavam as diferenças e, por conseguinte, a temática racial.
3.2.3 Observações
29
As crianças da turma da professora Mara pertenciam ao segundo período, que correspondia ao horário das 13h às 19h. No
entanto, como a jornada das professoras era de quatro horas, das 13h às 15h as crianças ficavam com uma primeira
professora, que iniciava sua jornada às 12h e às 15h a professora Mara começava suas atividades por isso as observações
começavam sempre nesse horário.
30
Nas segundas-feiras o parque, que ficava no último andar do projeto Girassol, permanecia fechado para manutenção.
87
31
Os dados foram retirados da ficha de caracterização da comunidade. Tivemos acesso, apenas para leitura, às fichas das
crianças da turma na qual a pesquisa foi realizada.
89
32
Conforme já esclarecido, na categoria negro estamos agregando as categorias pardos e pretos, do IBGE.
90
33
Semanário é o documento no qual as professoras anotam as atividades realizadas no dia, podendo ou não conter objetivos,
metodologia e avaliação.
34
Tanto o Projeto Pedagógico quanto o semanário foram disponibilizados na Emei e foi-nos permitido somente consultar e
copiar as informações expressas. Assim, fizemos uma sistematização dos documentos referidos, onde privilegiamos aspectos
que pudessem contribuir para a compreensão da temática estudada.
91
diferenças, leitura de livro sobre essa temática ou com personagens negros, temas da roda da
conversa sobre comportamento, entre outros.
Examinamos o PP e os textos em seus anexos até o momento da coleta de dados. O
tema do PP era “Formação da pessoa humana”, que também permeia todos os projetos e a
proposta pedagógica da Emei, segundo informou a diretora da instituição. Na organização do
PP estavam descritas as metas da Emei para 2008:
• O melhor atendimento à criança: item elaborado de acordo com o livro de Maria
Malta Campos e Fúlvia Rosemberg (1995) intitulado “Critérios para um atendimento
em creches que respeite os direitos fundamentais das crianças”;
• O melhor atendimento à comunidade: para atender tal meta foi entregue aos pais
uma ficha de caracterização da comunidade e uma avaliação onde eles deveriam
escrever em cada tópico o que parabenizavam, o que criticavam e o que propunham
para a Emei naquele ano;
Além dessas metas, havia alguns textos que deveriam ser lidos pelas professoras nas
reuniões de estudos. Textos e artigos que, de acordo com que estava escrito no PP, deveriam
servir de apoio para as professoras desenvolverem os projetos ao longo do ano. Os textos
abordavam temáticas como: gênero, inclusão da temática racial na educação; etnia indígena
presente na comunidade, inclusão escolar, sobre a importância da participação dos pais na
vida dos filhos:
Para fins de análise, os textos que se referem ao tema da pesquisa serão explorados
posteriormente. Como dito, a análise do PP foi realizada conjuntamente com os outros
documentos, porém reiteramos que, ao apreciar os dados, tentamos compreender a quais as
informações que a professora Mara teve contato durante o ano de 2008 que pudessem ter
contribuído para a inclusão da temática racial no planejamento das atividades oferecidas às
crianças. Tal verificação se fez necessária, mesmo não sendo objetivo da pesquisa, pois ao
analisar as representações sociais devemos considerar o contexto no qual o objeto a ser
representado e os sujeitos estão inseridos, para compreendermos se havia e qual era a
contribuição da Emei na prática pedagógica da professora.
O Projeto Especial de Ação (PEA) da Emei difere do PP por se caracterizar como
projeto de formação destinado às professoras, enquanto que o PP é um norteador das metas a
serem alcançadas pela equipe escolar ao longo do ano. De acordo com o que estava expresso
no documento, o projeto deveria, por meio dos grupos de estudos das professoras, promover
[...] a discussão e desvelar a teoria que embasa a cada prática, buscando revê-las a
luz de outras posições. Ele garante o principio de ação-reflexão-ação, o que significa
dizer que os professores partem para a discussão de sua própria prática, explicitando
seus pressupostos teóricos (EMEI, 2008).
Em 2008 o tema do PEA teve como mote gerador as artes na educação infantil, com
ênfase nas obras da Tarsila do Amaral. Além desse, havia outro que também era questão da
Emei, devendo ser trabalhado e incluído em todos os projetos desenvolvidos: a “Formação da
Pessoa Humana”. Conforme enunciado no PEA, este tema estava baseado no referencial
teórico da pedagogia Freinet e buscava sua efetivação “por meio do senso de
responsabilidade, senso cooperativo, sociabilidade, julgamento pessoal, autonomia,
criatividade, expressão, comunicação, afetividade e reflexão” (EMEI, 2008). O objetivo do
projeto era que as práticas pedagógicas desenvolvidas pudessem promover a formação da
pessoa humana por meio de quatro pilares: “aprender a conhecer; aprender a conviver;
93
aprender a fazer e aprender a ser nos princípios de autonomia e respeito” (UNESCO) 35. Sobre
o projeto de Arte, cujo tema era Tarsila do Amaral, encontramos dois textos, a saber: “Por que
e como lidar com a imagem da arte na educação infantil”, de Anamélia Bueno Buoro (2003) e
“A multiculturalidade na educação estética”, de Ana Mae Barbosa (2003). A diretora da
escola esclareceu que até o ano de 2008, e conforme fossem ocorrendo as reuniões de
formação e as sugestões das professoras, seriam anexados mais textos.
Por fim, temos a publicação da SMESP, “Orientações curriculares e expectativa de
aprendizagem para a educação étnico-racial”, que compõe o Programa Orientação Curricular
do Ensino Fundamental da Secretaria, que optamos por analisar pelo fato de o assunto estar
diretamente relacionado com a temática estudada, mas, sobretudo, pelo fato de ter tido
conhecimento, por meio da diretora da Emei, que as professoras já tinham realizado a leitura
do material em 2007, antes mesmo de ser disponibilizado para toda a rede municipal de
educação. Até então só tinham tido contato com o material professores e gestores que
participaram da sua elaboração; como Carmem participara, teve acesso à versão preliminar e
organizou uma discussão na Emei com todas as professoras.
Conforme a Portaria nº. 4.507 de 30 de agosto de 2007, que institui o referido
programa, este deveria subsidiar as unidades educacionais no processo de seleção,
organização de conteúdos e de aprendizagem, sempre articulado com o Projeto Pedagógico da
unidade. No caderno está expresso que o objetivo do programa seria
35
Aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos, aprender a ser (educação como contribuição para o
desenvolvimento total da pessoa) foram os pilares apresentados no Relatório da Comissão Internacional sobre Educação para
o século XXI. DELORS, Jacques. Educação: um tesouro a descobrir. São Paulo: Cortez, 1998.
94
representações sociais que são expressas por meio da linguagem não são fáceis de serem
apreendidas e interpretadas, pois não se pode somente considerar a fala como produto, posto
que é fruto de elaborações sociais ocorridas ao longo da vida. Referindo-se ao tema da
pesquisa, podemos dizer que a maneira como os amigos, os familiares, os meios de
comunicação social e a própria escola concebem o negro contribui, conjuntamente com os
dados da sua experiência individual, para a forma como a professora construiu suas
representações sociais sobre as crianças negras.
Visando atingir os objetivos da entrevista, organizamo-la em quatro blocos de
perguntas intitulados: infância (formação pessoal), escola (formação escolar), atuação
profissional e as crianças. As perguntas foram elaboradas considerando, também, que as
representações sociais são oriundas da articulação entre as relações sociais estabelecidas ao
longo da vida com a experiência profissional.
Nos tópicos infância e escola tínhamos como propósito abordar e desvelar qual a
contribuição das relações sociais na formação e estruturação da representação social sobre as
crianças negras que a professora tinha. No tópico formação e atuação profissional,
pretendíamos articular as informações obtidas na entrevista com as coletadas durante as
observações, e com a análise documental. Assim, esperava-se compreender por que a
professora escolhia determinadas atividades em detrimento de outras; o que priorizava em
termos de aprendizagem; como organizava sua prática; como via as crianças negras da sua
sala; se a questão da diversidade era abordada nas atividades propostas e como; se preconceito
racial e racismo era tema considerado existente na Emei e na sua turma; e como trabalhava
com a diversidade presente naquele contexto. No último item, “as crianças”, esperávamos
apreender as representações sociais mais específicas que a professora possuía sobre as
crianças, principalmente as negras, utilizando para tanto sua fala a respeito do conhecimento e
aceitação que achava que as crianças possuíam de si mesmas e como articulava tais
informações na sua prática.
Toda a entrevista foi transcrita, momento considerado uma pré-análise, pois já então
estávamos interpretando os dados (ROMANELLI, 1998). Após finalizar esse trabalho,
realizamos sucessivas leituras do material, tentamos com os dados em mãos responder as
perguntas motivadoras da entrevista e também de toda a pesquisa, a saber: quais
representações sociais a professora possui sobre as crianças negras e como, nelas apoiada,
organiza sua prática. Também revisitamos os relatos ampliados em busca de maiores detalhes.
Elegemos assim algumas informações, conceitos e ideias presentes no relato da professora
durante a entrevista e decidimos realizar a análise seguindo a lógica do restante da pesquisa,
96
ou seja, por meio das três dimensões – atitude, informação e campo de representação –
formuladas por Moscovici (1978). Essas dimensões possibilitam apreender por meio dos
dados expressos na entrevista, com base em quais elementos a professora estava constituindo
suas representações sociais acerca da temática estudada e ainda como esta representação
estava influenciando suas ações.
97
CAPÍTULO 4
assume seu caráter eminentemente social. Os novos elementos são percebidos por meio do
“filtro” do indivíduo ou do grupo.
Se a função de toda representação social é tornar o estranho familiar, não podemos
esquecer que essa explicação não pode ser incorporada a qualquer situação estudada: há
necessidade de levar em conta o contexto social no qual o estudo se insere. Desse modo, na
presente pesquisa, inserida no contexto brasileiro, diferente do europeu, no qual a teoria foi
instituída, não podemos entender que o que motivou a criação de representações sociais sobre
as crianças negras tenha sido a presença das mesmas, ou seja, que a presença física dessas na
instituição possa ser estranha à professora. Entretanto, entendemos que a visibilidade, ainda
que incipiente – e não somente a presença física das crianças negras – das discussões sobre
educação para as relações raciais, aliada e promovida pelo contexto político e social presente
no país, possa ter impulsionado a professora a elaborar representações sociais sobre o que
significa ter que dar visibilidade no cotidiano escolar para essa população; como
operacionalizar o trato pedagógico pautado nas diferenças, sobretudo raciais, ou seja, como
abordar as diferenças raciais de modo positivo. Assim, a questão que parecia estar colocada
para a professora é como ancorar, representar, tornar mais próximo essas novas atribuições
listadas acima. Tal argumento se sustenta ao considerarmos que para Moscovici (2003, p. 16),
Nesse contexto, supomos que o que Mara teria que tornar mais próximo seria a
abordagem das diferenças raciais em sua prática pedagógica e, consequentemente, rever suas
concepções e preconceitos ou não em relação às crianças negras. Desse modo, entendemos
que a invisibilidade dos indivíduos negros pode ganhar novas formas quando é incentivada a
promoção da igualdade racial; é dessa maneira que se pode passar a enxergar tais sujeitos.
Essa necessidade surgiu por exigências do contexto político e social do país, e para
exemplificar podemos mencionar a política de inclusão da temática racial nos currículos
escolares e a promoção de uma educação comprometida com a diversidade e com as
diferenças, tal como vem sendo exigida de toda a sociedade, sobretudo pelos movimentos
negros, desde década de 1990.
Todavia, outra interpretação é dada por Silva, A. (2002) para articular representações
sociais acerca da população negra. Para a autora seria possível que as crianças negras fossem
99
estranhas à professora que participou da pesquisa, pois, para esta, quando abordamos
representações sociais e população negra, quanto mais se conhece, mais preconceito haveria
em relação a esse grupo, ou seja, menos familiar ele seria. A explicação é pautada no fato de
que para tornarmos algo familiar utilizamos referenciais já conhecidos e instituídos nas
relações sociais. No caso da população negra, esses estão ligados a aspectos negativos
baseados no passado escravista do país e às teorias racistas que o sustentaram. Nesse sentido,
os elementos oferecidos para que os indivíduos possam compreender essa população são
negativos, transformam-na na maioria das vezes em um estranho e não em um familiar.
Mesmo concordando em parte com a autora e acreditando que o racismo e seus
derivados afetam e influenciam a todos, não podemos deixar de considerar que ao elaborar
representações sociais não apenas reproduzimos o que está na sociedade, mas sim repensamos
e reapresentamos nossas concepções. Sendo assim, não podemos pensar em uma relação
direta entre os elementos que a sociedade oferece aos indivíduos sobre a população negra e
suas representações sobre essas, pois é o modo como cada indivíduo organiza o processo de
representação juntamente com as experiências que o meio social lhe proporciona que poderá
fazer diferença nas relações estabelecidas com grupos diferentes do seu (MOSCOVICI,
2003). Portanto, nesse sentido as representações sociais não são objetos “sólidos”,
significados que uma vez construídos se transformam numa essência estática e imutável. Isso
seria semelhante a pensar a dinâmica social como algo que em algum momento para no
tempo. Mesmo uma tradição que sugeriria mais fortemente essa característica não pode ser
pensada senão em termos da dinâmica de sua adaptação aos novos contextos, o que
pressupõe, no mínimo, a necessidade de entrar em relação com novos elementos que vão
surgindo, ainda que seja para reafirmar sua permanência.
Ao fazer tal afirmação procuramos salientar que a ideologia, assim como os
estereótipos presentes na sociedade a respeito dos negros, não podem ser associados à simples
reprodução por parte dos sujeitos, posto que há possibilidade de sua negação, inversão e
deslocamento. Para Madeira (1991), a negação da ideologia vem com os conflitos entre o que
o sujeito apreendeu durante sua vida em relação aos valores, imagens e estereótipos de
determinados grupos e sua própria experiência no cotidiano, ou seja, o vivido, e como ele
absorve isso. No entanto, sabemos que a ideologia não pode ser desvinculada das
representações, tanto porque para essas serem construídas e manter-se, precisam da primeira.
Desse modo, a ideologia é apropriada e utilizada por grupos ou instituições para construir suas
representações e seus sistemas de referência. Reiteramos a importância das ideologias para as
representações considerando, de acordo com Guareschi (1995), que a ideologia entendida de
100
modo crítico nos permite desmitificar a possível neutralidade dos nossos pensamentos em
relação a algo, pois mostra que nossas representações não são independentes; ao contrário,
têm a ver com a nossa concepção de ser humano e de sociedade.
Mantivemos essa posição teórica durante a pesquisa de campo, em especial na
entrevista, em que pudemos reconstituir a conjuntura na qual a professora realizou sua
formação como docente. Essas informações tornaram-se relevantes para a compreensão do
que seria estranho para a professora e quais mecanismos utilizou para ancorar o estranho a fim
de que se tornasse familiar e ainda como objetivou ou materializou as ideias e conceitos
vinculados a respeito da população negra e da abordagem da temática em sua prática
pedagógica; de modo geral: como estruturou sua representação sobre as crianças negras e
sobre o trato pedagógico das diferenças raciais. Apresentamos a seguir os resultados da
pesquisa de campo. A análise foi pautada nas três dimensões – informação, atitude e campo
de representação – que possibilitam a compreensão de uma representação social.
Uma vez que para realizar a análise dimensional não há necessariamente uma ordem a
ser seguida, decidimos iniciar pela dimensão informação38 por entender, de acordo com
Moscovici (1978) e Jodelet (1985), que as representações sociais são um conjunto de
conceitos, frases e explicações originadas na vida diária durante o curso das comunicações
interpessoais, configurando-se como formas de conhecimento que se manifestam como
elementos cognitivos, imagens, conceitos e teorias e que tais categorias podem ser
consideradas fundamentais para a análise dimensional. Dessa forma percebe-se a importância
da informação, seja escrita ou oral, na constituição das representações.
Consideramos importante iniciar a interpretação por essa dimensão, pois, entendendo
que sua elaboração ocorre na articulação entre os conhecimentos da vida pessoal, profissional
e o contexto social e político no qual o indivíduo está inserido, pressupomos que a formação
que a que professora teve acesso conferiu-lhe elementos que poderiam constituir a
representação social que possui da população negra. Esperávamos que ao ter acesso a essas
informações, pudéssemos delinear o contexto no qual ocorreu a formação inicial da professora
Mara, o universo do qual partiu para elaborar as atividades que propôs às crianças e saber
38
Ressaltamos que informações são entendidas como conjunto de conhecimentos relativos ao objeto representado, podendo
ser estes tanto qualitativos como quantitativos.
101
39
Entendemos atitude e comportamento de acordo com Jones (1973). Para este autor a primeira refere-se ao que aprendemos,
sentimos, pensamos, esperamos e desejamos de acordo com o mundo social de um objeto, indivíduo ou grupo. Já
comportamento seria a atitude, mas de forma manifesta, como por exemplo, por meio de falas. Como exemplo, o autor expõe
a seguinte situação: “Pense em duas pessoas que você encontra regularmente. Será que gostam de você? (atitude). Como é
que você sabe disso? A prova para a atitude que você atribui a essas pessoas tende a ser uma lista de comportamentos
manifestos ou verbais” (JONES, 1973, p. 56).
40
Período marcado por concretizações no que diz respeito às relações raciais, advindas da luta dos movimentos sociais
negros em décadas anteriores e o surgimento de programas e iniciativas do governo federal, também impulsionados pelas
ações dos movimentos sociais negros, reafirmando o caráter pluricultural da nossa sociedade e a necessidade de respeito à
diversidade.
41
CARDOSO, Marcos. O movimento negro. Belo Horizonte. Mazza, 2002.
102
[...] o que marca uma profunda diferença entre este e o conjunto dos demais
movimentos sociais e populares nessa época é a história. Segundo esse autor, para o
Movimento Negro, o cotidiano da população negra é determinado pela estrutura do
racismo na sociedade brasileira. Ao emergir no cenário nacional e político
destacando a especificidade da luta política contra o racismo, o Movimento Negro
buscou na história a chave para compreender a realidade do povo negro brasileiro.
Assim, a necessidade de negar a história oficial e de contribuir para a construção de
uma nova interpretação da trajetória dos negros no Brasil são aspectos que
distinguem o Movimento Negro dos demais movimentos sociais e populares da
década de 70. O Movimento Negro é, portanto, fruto de uma negatividade histórica.
42
O movimento negro, desde 1985, vem organizando encontros municipais e estaduais com o objetivo de refletir a
participação do negro no processo constituinte. Uma das principais reivindicações apresentadas com relação à educação foi
que ela afirmasse o compromisso da educação com o combate ao racismo e todas as formas de discriminação, com a
valorização e respeito à diversidade, assegurando a obrigatoriedade do ensino de história das populações negras do Brasil
como uma das condições para o resgate da identidade racial e a construção de uma sociedade plurirracial e pluricultural. É
também nesse processo de promulgação da Constituição de 1988 que o racismo torna-se crime inafiançável, o que acaba
produzindo, de acordo com Gonçalves e Silva (2006), uma legislação favorável para programas de ações afirmativas e
implantação de projetos na perspectiva multicultural, sobretudo na educação.
43
Antes da aprovação da lei, alguns municípios, como Salvador (1989), Belo Horizonte (1990), Porto Alegre (1991),
Diadema e Belém (1994), São Paulo e Distrito Federal (1996), Criciúma (1997), Teresina (1998), Campo Grande (1999) e
Campinas (2000) já haviam incluído em seu currículo o estudo das relações étnico-culturais ou raciais.
104
Em 2008, houve uma nova alteração na LDB/96, por meio da lei n° 11.645, que
incluiu a história e a cultura indígenas no currículo oficial da rede de ensino. Após alterar a
LDB/96 com as leis n° 10.639 e n° 11.645, o Estado parece se preocupar em incluir a
diversidade como conteúdo essencial da educação, entendendo que se trata de conteúdos que
não interessam apenas a negros ou indígenas, mas que têm a ver diretamente com a qualidade
da educação, e que, portanto, dizem respeito a toda a sociedade, e não apenas a um segmento
ou outro.
Em 2003, criou-se a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
(SEPPIR), que continua atuante até o presente momento com objetivo principal de estabelecer
iniciativas contra as desigualdades raciais no País. Em 2004, no MEC, foi criada a Secretaria
de Educação, Alfabetização e Diversidade (SECAD), tendo como prioridade e objetivo a
valorização da riqueza de nossa diversidade étnica e cultural, reunindo, pela primeira vez, os
programas de alfabetização e educação de jovens e adultos, educação indígena, educação no
campo, educação ambiental, diversidade e inclusão educacional.
As ações dos ativistas dos movimentos sociais negros continuaram no mesmo período.
Destacaram-se, entre outras atividades, as manifestações comemorativas aos 300 anos da
morte de Zumbi dos Palmares (1995), que culminaram com a Marcha Zumbi, denominada
“marcha contra o racismo, pela igualdade e a vida”. Nessa marcha, cerca de 10 mil pessoas
foram a Brasília com um documento – entregue ao então presidente da República Fernando
Henrique Cardoso – com as principais reivindicações dos movimentos negros, denunciando o
105
44
De acordo com Machado e Santos (2008), no documento entregue ao presidente da República em 1995 a educação aparece
como um dos elementos centrais. Essa centralidade é criticada em estudos e referenciais do mundo ocidental, cujos
pressupostos reiteram estereótipos a confirmam preconceitos com relação a população negra. Apontou-se a necessidade de
reorganização da escola com base na diversidade, promovendo uma revisão de toda a estrutura educacional e implementando
ações afirmativas na educação.
106
sobre sua atuação em relação à temática, visando sensibilizar o profissional e que ele passe a
incluir o tema em seu planejamento. Entretanto, no documento há um alerta:
Não basta apenas a discussão do assunto, mas propor atividades que possam
contribuir com os processos de “ação afirmativa”, valorização da autoestima,
conhecimento e reconhecimento da importância dos vários povos, notadamente os
ascendentes africanos, na constituição de nosso povo e cultura (SÃO PAULO, 2008,
p. 88).
Apoiados em autores como Cavalleiro (2000), Dias (2006, 2007), Gomes (2002)
entendemos que esses temas, ao serem problematizados na prática pedagógica, de fato
poderiam auxiliar as crianças, principalmente as negras, a se reconhecerem enquanto tal e a se
sentirem orgulhosas desse pertencimento, assim como de suas características e cultura de seus
descendentes. De forma geral, no caderno enfatizou-se que temas como inclusão e relações
raciais precisam ser estudados, discutidos e refletidos no ambiente escolar desde a educação
infantil, dando assim oportunidades a uma prática inclusiva, que atente para a diversidade
cultural e social e acima tudo vise à concretização “de uma educação de qualidade para a
igualdade de direitos” (SÃO PAULO, 2008, p. 84).
É importante reforçar que as iniciativas descritas acima são resultados de
reivindicações e ações dos movimentos sociais negros. Silva e Barbosa (1997), analisando a
evolução do pensamento dos movimentos negros, indicam que eles avançaram para além da
denúncia, para contribuir com ações efetivas no contexto escolar. Com o amadurecimento da
militância, os movimentos se propuseram ir além da denúncia e partir para a apresentação de
propostas, pesquisas e formação de professores na luta contra a discriminação racial na escola,
o que justifica o aumento nos últimos dez anos de novas instituições do movimento negro.
Para D’Adesky (2009), esse estado é sinal da vitalidade de luta contra o racismo e a
ampliação do campo de ação para atividades sociais e de pesquisa.
O cenário que delineamos nos mostrará que houve avanços, embora tenhamos ainda
muito que melhorar, e nos revela o início, por parte do governo municipal paulistano, do
interesse em diminuir os efeitos perversos do racismo no país, propondo e incentivando ações
que visem a combater práticas racistas e preconceituosas na sociedade e a propiciar a inclusão
da população negra. Acreditamos que as ações de formação, as informações advindas tanto
dos movimentos sociais negros como de pesquisas acadêmicas, podem influenciar no modo
como as professoras veem as crianças negras, como escolhem os referencias, os materiais
pedagógicos e as atividades a serem apresentadas às crianças. Para tanto,
[...] uma educação de fato igualitária, desde os primeiros anos escolares [...], pois as
crianças dessa faixa etária ainda são desprovidas de autonomia para aceitar ou negar
o aprendizado proporcionado pelo professor, ou seja, podem se tornar “vítimas
110
Sabemos que tais iniciativas sozinhas não são capazes de impedir ações de cunho
racista e preconceituoso; no entanto, as que se referem diretamente à educação, ou seja,
mudanças de práticas e de referenciais pedagógicos, tendem a ter um efeito positivo sobre as
representações sociais que os professores têm a respeito das crianças negras. Entendendo, de
acordo com Moscovici (2003, p. 35), que “nenhuma mente está livre dos efeitos de
condicionamentos anteriores que lhe são impostos por suas representações, linguagem ou
cultura”, mas que por meio de um esforço podemos nos tornar conscientes das convenções da
realidade que moldam nossos comportamentos, percepções e pensamentos, assim podendo
escapar de suas exigências, acreditamos que ao abordar crenças e concepções já arraigadas
sobre a população negra, exige-se dos sujeitos envolvidos uma reflexão sobre elas.
Nesse subitem apresentamos informações45 a que a professora teve acesso por meio da
diretora – documentos da SMESP e textos anexos ao PP – que, a nosso ver, poderiam ser
utilizadas por ela para abordar as diferenças, sobretudo as pautadas no pertencimento racial,
de modo positivo. Além disso, inferimos que esses materiais poderiam ter influenciado na
construção das representações sociais da professora acerca da temática, porque entendemos
que poderiam ser utilizados para ancorar, ou seja, acomodar o que é estranho para a
professora, de modo que pudesse interpretar a realidade vivida ou objetivá-la, ou seja,
materializá-la em sua prática. Nosso intuito é expor as informações coletadas na entrevista
com a professora, textos e documentos lidos por ela, materiais pedagógicos utilizados nas
atividades oferecidas às crianças, bem como as próprias atividades, entendendo que os
conteúdos expressos nesses dados nos dariam indícios de como a representação social da
professora sobre o trato pedagógico da diferença estava manifesto em sua prática.
Em entrevista, a professora declarou ter usado para elaborar as atividades propostas às
crianças documentos oficias do MEC, tais como o Referencial Curricular Nacional para a
educação infantil (BRASIL, 1998), o caderno “Orientações curriculares: expectativas de
45
Ressaltamos que informações são entendidas como conjuntos de conhecimentos relativos ao objeto representado, podendo
ser tanto qualitativas como quantitativas.
111
[...] eu acho que é porque a maioria da nossa população é negra, a gente tem que
trabalhar com coisas que as crianças se identifiquem, se a gente for trabalhar
identidade na educação infantil tem que ter a boneca negra, tem que ter a família de
fantoche negra, tem que ter o indígena, tem que ter o livro [...] de todas as etnias
(Professora Mara – entrevista).
46
A Cor da Cultura é um projeto educativo de valorização da cultura afro-brasileira, fruto de uma parceria entre o Canal
Futura, a Petrobras, o Centro de Informação e Documentação do Artista Negro (CIDAN), a TV Globo e a Secretaria Especial
de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR). Teve seu início em 2004 e, desde então, produziu obras
audiovisuais, ações culturais e coletivas que visam o desenvolvimento de práticas positivas, valorizando a história deste
segmento sob um ponto de vista afirmativo. Disponível em: < http://www.acordacultura.org.br.>. Acesso em: 10 nov. 2009.
112
há a troca, até olhar-se no espelho também oh! sou eu; eu sou assim; o contorno do
corpo; a mão, quando você carimba eu existo isso é meu, isso é meu (Professora
Mara – entrevista).
Com base nesses trechos pudemos supor que a professora tinha conhecimento de que
atividades que focam o corpo e as características físicas – olhar no espelho, ver o contorno do
corpo, da mão etc. – podem contribuir para a construção da identidade das crianças bem como
a importância de brinquedos, tais como bonecas (os) e fantoches com que possam se
identificar e a seus semelhantes. Essas informações expressas professora estão enunciadas em
forma de orientação no caderno “Orientações curriculares: expectativa de aprendizagem para
a educação étnico-racial” (SÃO PAULO, 2008), fato que corrobora a declaração feita por ela
na entrevista, ou seja, de ter lido juntamente com outra professora o referido caderno.
Mara declarou ainda, que foi por meio dessa leitura que conheceu a história dos negros
no Brasil e a história da África, entre outras coisas. Com isso podemos entender que o
conteúdo expresso no caderno, mas não só ele, pode ter influenciado no processo de
constituição da representação social da professora sobre a população negra. Inferimos que as
representações sociais da professora sobre a população negra possam ter saído da zona de
estabilidade, já que teve acesso a informações de que antes não tinha conhecimento. É nessa
interação que podemos apresentar nossas representações atuais, ancorando-as a outras
informações, a representações já existentes, a fim de organizar a nossa realidade cotidiana e
orientar nosso comportamento.
Em conversa entre a pesquisadora e a diretora, esta relatou que o grupo de professoras
havia lido o caderno nos horários de estudos. Carmem complementou dizendo que além de ter
pedido para o grupo ler todo o caderno e não somente a parte de educação infantil, também
anexou no mural da sala de estudo duas reportagens relacionadas ao assunto, uma publicada
no jornal Folha de São Paulo no dia 27 de outubro de 2008, a qual denunciava que as escolas
não estavam cumprindo a LDB/96 alterada pela Lei n°10.6393, e outra que descrevia a
atividade realizada em uma creche na cidade de Santo André (SP)47, que contemplava a
mesma lei. Inferimos que as informações entravam no espaço escolar apenas graças a
intervenções da diretora.
47
Essa segunda reportagem falava sobre o projeto intitulado “Mala da diversidade”, desenvolvido por toda a equipe de uma
creche na cidade de Santo André (SP), que foi um das ganhadoras do 4º. Prêmio Educar para a Igualdade Racial promovido
pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), que reconhece escolas e professores que
cumprem a LDB alterada pela Lei n° 10.639/03.
113
48
O Projeto Pedagógico da Emei teve como tema “formação da pessoa humana”, conceito advindo da Pedagogia Freinet. As
professoras, ao elaborarem os projetos e as atividades a serem desenvolvidas ao longo do ano, deveriam levar em
consideração alguns dos objetivos dessa pedagogia, tais como o senso de responsabilidade, senso de coperatividade,
sociabilidade, julgamento pessoal, autonomia, expressão, criatividade, comunicação, afetividade, reflexão individual e
coletiva. E, além disso, poderiam ter utilizado uma das três diretrizes a seguir: posicionar-se em relação às questões sociais e
interpretar a tarefa educativa como intervenção na realidade; incorporar os valores da Pedagogia como objetivo das
atividades; e tornar parte da rotina o movimento constante de ação-reflexão-ação (Fonte: Projeto Pedagógico da Emei).
49
Além desses, estavam anexos no PP os seguintes textos: “Ler mundo também do ponto de vista do gênero” (2003) de Tatau
Godinho; “A inclusão de crianças com deficiência cresce e muda a prática das creches e pré-escolas” (2007) por Rita de
Biaggio, matéria publicada na Revista Criança; “África: berço da humanidade e do conhecimento” (s/d), matéria de revista,
sem referência; “Por uma sociedade mais justa e solidária” (1996), por Dulce Chaves Pandolfi, matéria publicada na Revista
Sociologia Ciência & Vida. Os textos citados trazem em comum a reflexão sobre a inclusão social e escolar dos grupos
historicamente discriminados na sociedade.
114
Por fim, apresentamos o texto de Santos (2003). A autora inicia expondo o problema
da evasão escolar de crianças negras, para a qual utilizou o filme chinês “Nenhum a menos”
115
(1999), que narra a busca incessante de uma menina-professora por um dos seus alunos, que
fugiu para uma cidade maior, pois estava decidido a largar o vilarejo onde morava. A questão
que a autora coloca ao leitor é: “justo correr atrás de um (a) aluno (a) e deixar todos(as)
outros(as)? Só um(a) faz tanta diferença assim?”. Partindo desse questionamento e com base
em dados quantitativos que demonstram que as crianças e jovens negros são as maiores
vitimas das desigualdades no sistema de ensino, afirma que nossas escolas produzem todos os
dias “alguns a menos”. Para a autora, a cor da pele por si só não é capaz de explicar o fracasso
escolar; entretanto, as práticas pedagógicas desenvolvidas nas escolas sim, pois essas
determinam o fracasso da população negra por meio de seus paradigmas pautados em valores
de classe média branca e que não têm sentido para as crianças e jovens negros em sua maioria
pobres. A cultura negra, africana, seus costumes, mitos, assim como o próprio negro são
invisíveis na escola, e nas raras vezes em que são vistos e/ou referenciados é de modo
pejorativo, ligado a aspectos negativos. E que como resultado
[...] podemos concluir que a sistemática negação de uma justa imagem “do outro”, a
negação e a visão estereotipada dos negros é um dos mecanismos mais violentos na
escola e é um dos fatores que mais concorrem para a eliminação da criança negra
(SANTOS, 2003, p. 27, grifo da autora).
Para modificar tal realidade a autora propõe – aliada a leis já existentes que
criminalizam o racismo – o reconhecimento da contribuição de outros povos na constituição
do país; produção de materiais didáticos que reforcem uma imagem positiva do negro;
formação para professores e toda equipe escolar de modo que os preparem para lidar com
situações de preconceito e racismo na educação; e acesso a bibliografia específica sobre o
tema. Para a autora, tais propostas são essenciais
De modo geral, os textos abordaram o novo olhar e postura que os professores devem
ter e pôr em prática em suas ações como docentes, sobretudo nas situações em que haja
manifestação de qualquer tipo de preconceito e discriminação. Entendemos que a leitura dos
textos pode ter oferecido à professora Mara, como para as demais, a oportunidade de refletir
sobre as oportunidades que oferecem às crianças da Emei; quais grupos e crianças eram
beneficiadas simbolicamente pelas imagens das professoras? Quais artistas apresentavam às
crianças? Qual cultura era valorizada? etc.
116
Compreendemos que esse painel sintetizou as ações da diretora que tinham o intuito
de desfazer estereótipos, valorizar e evidenciar as diferenças, mexer com as representações
50
O dread’s ou dreadlock consiste em bolos cilíndricos de cabelo que aparentam “cordas” pendendo do topo da
cabeça.
118
tanto das crianças quanto das professoras e principalmente oferecer a todas as crianças a
possibilidade de se reconhecerem nesses símbolos, tanto no Papai Noel negro quanto na ceia
brasileira com fotos de frutas que são comuns e fáceis de encontrar, e a que as crianças
possivelmente teriam mais acesso.
Entretanto, salientamos que a categoria informação não foi compreendida
desvinculada da atitude, pois conforme Moscovici (1978), não podemos estabelecer uma
relação imediata entre o nível de informação e o de atitude: era possível que mesmo tendo
contato com as informações descritas acima, a professora não tivesse a atitude de praticar os
princípios valorizados, assim como o contrário também poderia ocorrer, ou seja, que a
professora, mesmo não tendo acesso as essas informações pela instituição, poderia porém, por
razões diversas, apresentar atitudes favoráveis com relação à temática.
A seguir apresentamos algumas considerações, compiladas na entrevista com a
professora, a respeito de sua concepção de criança, infância e sua prática pedagógica. A
intenção de apresentar tais considerações era para que pudéssemos oferecer um panorama
geral do modo como a professora expressava sua atuação. Mas, principalmente, precisávamos
entender como Mara via as crianças, pois tais informações poderiam nos auxiliar na
compreensão da representação social que possuía das crianças negras de sua turma.
Não poderíamos desvincular a representação social que a professora tinha das crianças
negras do modo como ela as tratava, mesmo porque considerávamos que a concepção de
criança que possuía era articulada com suas práticas. Na entrevista, ela considerou que as
crianças são seres capazes de aprender, de viver, de ensinar, são “da mesma natureza que o
adulto” (Professora Mara – entrevista), pareceu expressar assim o crédito que dá à capacidade
de produção das crianças. A expressão pode ser atrelada à concepção de infância como
categoria construída histórica e socialmente, fruto da dinâmica das relações sociais, nas quais
as crianças exercem papel ativo, sendo participantes, investigadoras, elaboradoras de
hipóteses e, portanto, capazes de transformar a realidade. Nessa concepção entende-se que as
crianças também participam da (re)produção cultural, não como indivíduos isolados, mas na
interação com os outros, com os adultos e as crianças.
119
Nessa perspectiva, Sirota (2001) destaca que a infância não é mais relacionada à
imaturidade biológica. Também não é mais um elemento natural ou universal dos grupos
humanos, como na perspectiva psicológica, mas aparece como componente específico tanto
estrutural quanto cultural em um grande número de sociedades. Concomitantemente a essa
concepção, explicitamos o modo como entendemos as crianças negras nesta pesquisa:
[...] ideia de crianças negras que refere-se à passagem de uma visão que pensa a
criança para uma visão que vê uma criança. A criança: única e universal para uma
criança: impessoal, singular e múltipla [...] Essas pesquisas com suas respectivas
contribuições vão compondo um objeto de estudo e de análise para a compreensão
das relações inter-raciais e também para a formulação de propostas sobre formação
de professores, material didático, formulação de currículos, formação/produção de
políticas de Ação Afirmativa para o fortalecimento de uma sociedade plural, que
leve em conta a diferença e consequentemente o enfrentamento e a superação do
racismo. Isso favorece a formação de práticas de resistência para os negros, pois
estes devem poder se olhar e afirmar a sua diferença (ABRAMOWICZ; OLIVEIRA.
F.; RODRIGUES, 2009, p. 5, grifos das autoras).
Quanto à função da educação infantil, Mara explicitou que seria, em sua opinião, “[...]
tornar a infância algo gostoso, que as crianças aprendam coisas que não aprenderiam se
estivessem em casa. E hoje em dia é brincar muito, é aprender e ensinar” (Professora Mara –
entrevista). E para colocar em prática tal concepção, ela disse que propunha atividades que
tinham “[...] como enfoque que eles [as crianças] aprendessem, planejava uma rotina onde o
brincar estivesse presente, a atividade estivesse presente, a história”. Mara pontua aspectos
importantes de como as crianças em idade de educação infantil podem aprender, seja por meio
do brincar, da contação de histórias, entre outros. Reconhece o caráter educativo da instituição
ao mencionar que a sua função é que as crianças aprendam coisas que não aprenderiam se
estivessem em casa.
Mara explicitou que elaborava as atividades e a rotina com base naquilo que achava
que as crianças precisavam, de acordo com a idade e com que elas traziam. Nas palavras da
professora, organizava as atividades “[...] pelo que via da sala mesmo, se eles estavam
precisando, a partir [...] das propostas que nós temos, do que eu acredito que uma criança
dessa idade precisa” (Professora Mara – entrevista). Em seguida, especificou do que as
crianças de cinco anos precisavam: “[...] uma criança dessa idade [...] precisa ouvir história,
muita história, precisa já ter contato com o nome. Ela é capaz disso, então eu acredito. Eu
acredito que precise ir ao parque; eu vou entender [...]” (Professora Mara - entrevista).
Os trechos nos indicam que Mara procurava articular, ao propor as atividades, o que
achava que as crianças precisavam de acordo com a idade e as contribuições trazidas por elas.
O que questionamos é qual a importância dada à idade das crianças no momento de escolha
120
das atividades. Posto que se pensarmos que as atividades eram guiadas principalmente pela
idade das crianças, podemos inferir que Mara considerava que elas eram diferentes somente
na idade. Isso nos permitir supor por que deixou de mencionar que as crianças, mesmo ao
serem consideradas por ela da mesma natureza dos adultos, não se diferenciavam também
quanto a cultura e raça.
No que se refere à abordagem pedagógica das diferenças, observamos, mais em sua
fala do que em suas ações, que atitudes sinalizaram mudança, já que Mara ressaltava para as
crianças que as diferenças faziam parte da sociedade e que deveriam ser vistas como naturais.
Assim, mesmo a professora agindo, em certos momentos, de modo que sugerisse a
homogeneização das crianças, em outros destacava e considerava o fato de que estas são
diferentes e possuem necessidades específicas. Destacamos que a fala da professora não era
no sentido de que todos são iguais, mas sim de que as pessoas não são iguais e não podemos
expressar opiniões estereotipadas sobre essas. De modo geral, estava presente em seu discurso
dirigido às crianças a preocupação de que essas não tivessem ou pelo menos não
expressassem ideias preconceituosas. Nesse sentido, ao comentar alguma atividade ou
resolver situações de conflito, a professora explicava a elas que não havia uma regra quando
falamos das pessoas e que existiam muitas possibilidades para as relações humanas.
O relato que segue, embora não esteja diretamente ligado à temática racial, ilustra
como a professora agia em relação aos comportamentos das crianças, fato que observamos ao
longo do trabalho de campo:
Embora a pesquisadora não tenha ouvido nenhuma criança falando que havia
brinquedos de meninas e de meninos, pela fala que ouviu da professora pode inferir
que ela sim ouviu alguma criança falar que determinado brinquedo era de menina.
Assim Mara interferiu dizendo: “Eu já disse que não existe isso, essa coisa de
brinquedo de menina ou de menino, todos podem brincar com qualquer brinquedo”
(Diário de campo).
4.3.1 Mudanças nas representações sociais sobre crianças negras e a abordagem das
diferenças na prática pedagógica
51
As pesquisas a que estamos nos referindo foram citadas no capítulo um desta pesquisa.
122
graças à atuação dos movimentos negros. A professora pode ter materializado essas
informações e formações em sua prática pedagógica. Tal processo é o que denominamos de
objetivação, ou seja, a conversão de conceitos e ideias em práticas, nas relações sociais no
cotidiano escolar.
Lembramos que tanto a ancoragem quanto a objetivação tem como função integrar
algo estranho ao nosso universo cotidiano. Nesse sentido, entendemos que ao tentar tornar
familiar a abordagem das diferenças, a professora acaba por construir outra representação
social, mas que também já é pautada em outra (JODELET, 1985). Desse modo, a
representação assume a forma de conhecimento particular e vai modelando o objeto
representado e o sujeito como prática intrinsecamente relacionada com a experiência social. A
representação seria a presença do mundo exterior na mente do indivíduo. Ela não deixa de ser
uma apropriação subjetiva do mundo, embora seja sentida como uma presença objetiva da
realidade (MOSCOVICI, 1978).
Quanto à informação e a formação a que a professora teve acesso, reafirmamos que
estavam previstas no PP da Emei, por meio das metas a serem cumpridas pela instituição e
pelos textos anexos desse documento. Estavam previstas ações pedagógicas que oferecessem
às professoras subsídios para trabalharem a temática com as crianças visando que a
abordassem com outro olhar, que pudessem perceber comportamentos racistas e
discriminatórios na educação infantil e soubessem como agir. Mas que são agissem somente
quando houvesse conflitos, mas que oferecessem cotidianamente a todas as crianças
oportunidades de se reconhecerem e terem orgulho de seu pertencimento, de suas
características, que entendessem que as diferenças são parte da constituição humana e não
significam inferioridade.
Essas ações surgem como mudanças significativas tanto nas relações raciais da cidade
de São Paulo como nas do país, pois o que é recorrente é as instituições demonstrarem-se
sensíveis à diversidade, mas sem atuação concreta:
toda a Emei depois de terem assistido aos filmes animados do programa Cor da Cultura.
Segundo os registros da pesquisadora,
52
Nesse dia cada criança fez uma galinha com argila e um desenho individual sobre o filme.
124
A gente teve a ideia de fazer um painel da etnia no corredor [...] como se fosse uma
boneca segurando esse painel. [...] a boneca era negra. Aí uma criança, essa criança
tinha três anos falou: “Nossa, mas que boneca feia.” Eu falei: “Você achou ela
feia?”. “Achei”. “Por quê?” “Ah! porque se parece com você (professora negra),
parece com a C. e ela foi falando... Citou a mim e a todos os nomes das crianças
negras da sala” (DIAS, 2007, p. 269).
intenção de Mara parecia ser a de advertir quem cometesse tais atos e procurar fazer com que
refletissem sobre suas atitudes. No entanto, a professora expôs à pesquisadora a dificuldade de
estar atenta a todas as falas e atitudes das crianças, mas declarou que tentava. Segundo ela,
quando
[...] estava com quarenta [crianças] (risos) [...] eu vou para casa pensando, nossa! Eu
não poderia ter deixado perder esse momento, deveria ter conversado [...] eu sinto
isso às vezes. Era o momento que eu deveria ter conversado, porque talvez [...]
amanhã, talvez não faça tanto sentido (Professora Mara – entrevista).
O trecho nos dá a possibilidade de interpretar que a professora não estava alheia à fala
das crianças e principalmente ao que essas poderiam estar expressando. Evidentemente que
sua atitude poderia ser alvo de questionamento, posto que não problematizou o acontecido,
expondo somente às crianças que essas tinham feito algo errado e que as pessoas são
diferentes e ponto. Entretanto, sabemos que a questão não é ser ou não diferente – até porque
devemos problematizar quem é o diferente –, e sim o significado de ser negro na nossa
sociedade –, o porquê de determinadas características não serem vistas como belas, entre
outros aspectos. Questões referentes às características físicas (cor e textura do cabelo, cor de
pele etc.) são comuns às crianças, principalmente de educação infantil, pois fazem parte do
processo de construção da sua identidade, que será sempre relativizado pelo outro, ou seja,
126
construímos nossa identidade também no olhar do outro. Nesse sentido, todos os profissionais
que lidam com crianças têm grande importância nesse processo.
Para ser comprometida com uma educação de qualidade e democrática, que acolha as
necessidades e especificidades das crianças atendidas, as professoras têm de estar atentas às
subjetividades. É sua responsabilidade proporcionar às crianças momentos nos quais
referências positivas a todos os grupos estejam presentes, possibilitando-lhes que aprendam a
importância da diversidade. Para Cavalleiro (2000), a escola e seus profissionais devem
oferecer às crianças
[...] uma educação de fato igualitária, desde os primeiros anos escolares [...] pois as
crianças dessa faixa etária ainda são desprovidas de autonomia para aceitar ou negar
o aprendizado proporcionado pelo professor, ou seja, podem se tornar vítimas
indefesas dos preconceitos e estereótipos transmitidos pelos mediadores sociais,
dentre os quais o professor (CAVALLEIRO, 2000, p. 37-38).
[...] a professora distribuiu outra folha de sulfite em branco para cada criança e
explicou que nesta deveriam desenhar um Papai Noel. Enfatizou que deveriam
desenhar do jeito que soubessem, e que não existia só um jeito de desenhar uma
coisa. Após a explicação as crianças começaram a desenhar (Diário de campo).
Ainda sobre a mudança pautada em conceitos, citamos o momento, que faz parte da
rotina, em que a professora realiza a contagem das crianças presentes e registra o total na
lousa, usando como referência dois desenhos: de uma menina e o de um menino,
Mara foi até a lousa e perguntou para as crianças como ela poderia desenhar o
menino e a menina, lembrou que no dia anterior tinha feito tanto o menino como a
menina de cabelo liso. Algumas falaram liso, outras, enrolado. A professora sugeriu
que fosse “arrepiado” e as crianças concordaram.
A professora foi perguntando quem tinha o cabelo liso, enrolado ou cacheado na
turma e conforme ia falando, as crianças que se identificavam com o tipo de cabelo
levantavam as mãos. Parei para observar a manifestação das crianças. Algumas
meninas negras levantaram as mãos quando a professora falou cacheado e outras
quando disse liso. Quanto aos meninos negros, esses levantaram as mãos quando a
professora disse cacheado. As crianças negras e indígenas levantaram as mãos
quando a professora disse liso. Acabou o questionamento e Mara desenhou o
menino com o cabelo que ela chamou de arrepiado e a menina de cabelo cacheado
(Diário de campo).
Esse trecho que se refere ao momento da contagem nos revelou mudanças atitudinais
da professora, pois ela ofereceu às crianças a possibilidade de falarem sobre seus cabelos, de
se projetarem como representantes da turma e de se verem representados em diferentes
desenhos de meninos e meninas. Gomes (2002), ao recomendar a ampliação dos estudos sobre
questão racial na escola, observa ser necessário a construção de um olhar mais amplo sobre a
educação como processo de humanização que inclua e incorpore processos educativos não
53
Mas metas podem ser conferidas no capítulo três desta pesquisa.
128
escolares, o que, em sua opinião, abrange a relação com o corpo e o cabelo, que na nossa
sociedade são entendidos como definidores do pertencimento racial. Para a autora, o cabelo
[...] “é um veiculo capaz de transmitir diferentes mensagens, por isso possibilita as mais
diferentes leituras e interpretações” (GOMES, 2002, p. 50). Considerando que o cabelo crespo
em nossa sociedade é visto como algo a ser domado, um dos símbolos da inferioridade, a
atitude de Mara deu oportunidade para que as crianças falassem sobre seus cabelos, o que
pode ter favorecido o processo de saírem do lugar de inferioridade e começarem a ser
valorizadas e a se valorizarem. Dizemos “pode”, pois, mesmo sendo positiva, na atitude de
Mara não houve ações específicas para abordar os diferentes tipos de cabelo e, além disso, a
pesquisadora observou que algumas meninas negras somente levantaram os braços quando a
professora perguntou quem tinha cabelo liso. Fato que poderia indicar que essas meninas já
entendiam o significado que tinha seu cabelo que é crespo para a sociedade, assim não
desejando se assumirem como possuidoras de um traço ridicularizado; a negação aí pode ser
entendida como um mecanismo de defesa utilizado pelas meninas.
Diante desse contexto, verificamos que “na escola não só aprendemos a reproduzir as
representações negativas sobre o cabelo crespo e o corpo negro; podemos também aprender a
superá-las” (GOMES, 2002, p. 50). É nesse sentido, ou seja, de tentativa de superação,
mesmo que precise ser revista, que reiteramos a mudança atitudinal de Mara. Nessa
conjuntura, poderíamos dizer que as crianças da turma de Mara tiveram a possibilidade se não
de aprender por meio de atividades intencionais, a conviver de modo positivo com as
diferenças; tiveram a possibilidade de ouvir e de conviver com uma professora que estava em
movimento de mudança. Deve-se destacar também que ela conseguiu orientá-las de acordo
com uma concepção de educação e sociedade na qual as diferenças devem ser reconhecidas
como fator positivo e não como motivo de exclusão.
como o discurso de que se deve respeitar a todos e todos são diferentes, sem haver a
problematização do modo como isso ocorre na sociedade realmente. Para Maclaren (2000),
tais comentários são próprios de pessoas que agem como se não vissem as diferenças raciais,
colaborando, mesmo sem ter essa intenção, para que as crianças naturalizem as suas
percepções sobre a desigualdade racial. Ainda segundo o autor, essas frases revelam:
Uma das perversões sub-reptícias da democracia tem sido a maneira pela qual os
cidadãos têm sido convidados a se esvaziarem de toda a sua identidade racial e
étnica, de forma que, aparentemente, eles se apresentam nus diante da lei
(MACLAREN, 2000, p. 42).
54
Essa metodologia é baseada no texto de Valente, A. L. E. F. Proposta metodológica de combate ao racismo nas escolas.
Cadernos de Pesquisa. São Paulo, n. 93, p. 40-50, maio de 1995.
130
mestiçagem como algo positivo parecer ser mais forte e por isso acaba sendo valorizado em
sua prática pedagógica. Temos assim comprovado o poder das representações, que,
Por meio de sua autonomia e das pressões que elas exercem, mesmo que nós
estejamos perfeitamente conscientes que elas não são “nada mais que ideias”, elas
são, contudo, como se fossem realidades inquestionáveis que nós temos que
confrontá-las. [...] Talvez seja uma resistência ainda maior, pois o que é invisível é
inevitavelmente mais difícil de superar do que o que é visível (MOSCOVICI, 2003
p. 40).
[...] mantém outra aparência que não pode escapar à análise: é o imperativo
igualitário, cuja lógica leva à obtenção de direitos iguais, da igualdade de tratamento
ou da igualdade de oportunidade. Mas sem democracia verdadeira tudo se passa
como se a hipervalorização da harmonia racial servisse de condição de legitimidade
emblemática de direitos fundamentais, enquanto ela não passa de um biombo que
oculta um reconhecimento intrinsecamente desigual (D’ADESKY, 2009, p. 176).
[...] sustenta os argumentos daqueles que acreditam que a mistura total de todas as
raças resolverá as tensões e os conflitos entre os grupos. Ele tende a camuflar os
verdadeiros problemas e a desviar a atenção das causas profundas dos conflitos
raciais. O resultado de um tal ideal perverso supõe, na melhor das hipóteses, o
branqueamento da população e, na pior, a morenização, acompanhada da diluição
dos grupos negros. O ideal de branqueamento é, portanto, um racismo etnocida que
opera sobre a base de um discurso ambíguo. Ao fazer a apologia da mistura inter-
racial, ele induz os grupos a abandonarem suas características étnicas, apontando ao
mesmo tempo o grupo a ser erradicado. Essa implicação restritiva em relação à
categoria negro apresenta uma clivagem racial que tende a ver o negro como um
indivíduo diferente do tipo idealizado (D’ADESKY, 2009, p. 173).
Para as crianças negras, mas não somente para elas, os efeitos do branqueamento
incidem diretamente sobre a construção da identidade e da autoestima, pois aprendem e
vivenciam, principalmente no ambiente escolar, um dos principais espaços de socialização,
que são suas características as consideradas diferentes e desprovidas de beleza, aprendem que
132
tipo de atitudes são destinadas ao grupo racial a que pertencem e, desse processo derivará
parte de sua identidade social. Nesse caminhar, tendem a adquirir preconceitos raciais, pois as
ideias preconceituosas presentes na sociedade em relação à raça são transmitidas da mesma
maneira que todos os valores sociais: por gestos, palavras, atitudes cotidianas e, em geral, dos
mais velhos para os mais jovens. No entanto, Cavalleiro (2007) ressalta que:
55
As entrevistas foram realizadas com três crianças com idade de oito anos, moradoras da cidade de São Paulo, estudantes da
2ª. série do ensino fundamental de escola pública da região central da cidade.
133
Lá, por exemplo [no ensino fundamental], eu tive uma aluna que não lia e não
escrevia na 3º série, negra. Os amigos caçoavam dela e aquilo [...] é eu tive que
trabalhar da mesma maneira que eu trabalho aqui, só que aqui eles já são mais [...] é
[...] eu acho que a criança menor é mais receptiva nesse aspecto, mas agora lá, eu
trabalhei com eles, contei histórias, tudo, tanto que nesse ano ela foi para a 5º. série
lendo e escrevendo (Professora Mara – entrevista).
E ela [a aluna] não falava, só chorava; é [...] as crianças negras da sala também não
falavam [...] sobre ser negro, e aí a gente trabalhou muito isso. O que é que a mídia
passa? Porque a mídia passa umas coisas. Só passa, muitas vezes coisas assim sobre
a África, sobre o negro [silêncio] pejorativas (Professora Mara – entrevista, grifo
nosso).
Além disso,
burburinhos cotidianos e que foram inicialmente sustentados por teorias que objetivavam
comprovar a suposta inferioridade dos negros.
56
Dando continuidade, examinaremos o projeto intitulado “eu – identidade” ,
desenvolvido durante três meses na turma da professora Mara. De acordo com ela, o projeto
representava a possibilidade de as crianças “[...] perceberem que são únicas; que elas podem;
quem é a família delas [...] o que a escola pode oferecer; quem são as professoras [...]”
(Professora Mara – entrevista). Para além das possibilidades descritas, consideramos que o
projeto teria o potencial para abordar as diferenças e semelhanças entre as crianças. No
entanto, Mara optou por atividades que focaram o cotidiano das crianças, como, por exemplo,
a origem do nome, a característica da moradia, vizinhança, como a criança era quando bebê,
quem são os amigos, animal preferido, alimentos de que mais gosta, escola, família etc.
Ao ter acesso ao conjunto de atividades de uma criança pudemos constatar que no
tópico “como era quando era bebê”, momento em que poderiam ser abordadas as mudanças
físicas ocorridas, não houve aprofundamento: a atividade referente a esse tópico, que estava
registrada no projeto, eram três desenhos de diferentes tamanhos em um folha de sulfite. As
outras atividades propostas seguiram o mesmo estilo, ou seja, eram em sua maioria para as
crianças desenharem de que gostavam, suas famílias, animais, histórias preferidas etc. Não
houve nenhum tópico que fizesse alusão ao pertencimento racial das crianças ou de suas
características físicas: a questão simplesmente não é tocada. No entanto, constatamos por
meio da fala da professora que, em sua opinião, as atividades propostas no desenvolvimento
do projeto conseguiram atingir o objetivo, ou seja, possibilitar o autoconhecimento.
Com o excerto acima, onde Mara esclarece qual seria o objetivo do projeto, pudemos
inferir que o autoconhecimento é compreendido como atrelado às informações do cotidiano e
à vida das crianças. Não que esses aspectos não constituam o conhecimento de si, mas
parecem não ser suficientes para atingir o objetivo a que se propôs o projeto. Esse aspecto
mais genérico pode ainda ser constado quando a professora relata o modo como fazia para as
crianças se reconhecerem enquanto indivíduos, ou seja, como trabalhou a identidade:
Eu acho que foi conversando, foi por meio do diálogo com eles para eles [...]
observarem, continuarem observando [...] eles mesmos. Eu acho que isso é um
projeto mesmo [...] a identidade a gente trabalha com eles, toda mesmo que não
tenha projeto a gente trabalha, não tem como [...] no parque mesmo, em qualquer
momento não tem um horário, não tem um lugar (Professora Mara – entrevista).
56
O objetivo do projeto, que estava no anexo do semanário da professora, vinha na seguinte forma: “possibilitar o
autoconhecimento das crianças por meio de atividades que envolvam os alunos e suas famílias em um trabalho sobre o nome,
eventos da história pessoal (nascimento, gostos, irmãos, escola etc.). Realizar atividades interdisciplinares com o tema”.
Fonte: semanário.
136
A turma tinha voltado do parque e iniciou a rotina descrita na lousa. A atividade foi
57
referente à história “Tanto, Tanto! ”, que já havia sido lida pela professora em
outro dia, em que a pesquisadora não estava presente. A história narra uma festa
surpresa para comemorar o aniversário do pai. Após uma criança ter distribuído as
canetinhas e as folhas sulfite para toda a turma, a professora foi até a lousa e
explicou que deveriam desenhar a história que havia contado. Com o livro nas mãos
perguntou às crianças se lembravam da história, do que contou. Algumas crianças
57
COOKE, Trish. Tanto, tanto! Helen Oxenbury. Trad. Ruth Salles. São Paulo: Ática, 1997. 24 p.
137
falaram que “era do pai”, “da família”, “de um bebê novo” etc... [...] Após os
comentários, Mara abriu o livro na página onde estava toda a família reunida
abraçando o pai e avisou que colocaria no varal [esse ficava do lado oposto da
lousa], para que todos pudessem ver e lembrar da história e fazer um desenho
bonito. Logo que as crianças começaram a desenhar a pesquisadora passou entre as
mesas para ver as produções. Notou assim que nenhuma das crianças pintou as
pessoas de seus desenhos utilizando a cor marrom ou outra semelhante à da pele
negra, mesmo havendo material para isso. Pelo contrário, as cores utilizadas pelas
crianças para pintarem tanto o corpo quanto o cabelo foram rosa, amarelo, verde,
roxo, somente em alguns desenhos os cabelos eram pretos. No entanto, longos e
lisos. Nos desenhos não apareceu uma família negra e sim uma família considerada
padrão, em sua maioria branca e com cabelos lisos. [...] A leitura dessa história
indica que Mara não parou, não se deteve somente nas atividades do cinema (os dois
livros animados do programa Cor da Cultura). No entanto, não poderia deixar de
refletir se a leitura do livro tinha sido uma orientação da diretora por causa do
feriado de 20 de novembro ou um interesse despertado pelos filmes. Mesmo com
tais questionamentos, consideramos a importância da iniciativa para as crianças,
principalmente as negras, poderem presenciar a professora contanto uma história
com pessoas negras, retratando temas cotidianos que é uma festa de aniversário para
o pai da família (Diário de campo).
Consideramos o excerto ilustrativo, posto que mesmo com a leitura do livro que tinha
personagens negros, as crianças desenharam pessoas brancas para os representarem. Podemos
supor que isso ocorreu devido ao modo como a professora desenvolveu a atividade, ou seja,
ao ler o livro a professora não fez nenhuma referência as características dos personagens, o
que não possibilitou que as crianças negras e brancas refletissem a respeito. Quando
questionada como achava que as crianças negras percebiam livros como o “Tanto Tanto!”, ou
seja, que traziam de modo positivo personagens negros, sua resposta foi de que as crianças
gostaram do caráter repetitivo da história e também do fato de verem, no caso das crianças
negras, suas famílias representadas no livro. De acordo com a fala de Mara, “[...] eles [as
crianças] comentaram sobre a história mesmo: “Ai, que bonitinho! Olha isso, olha aquilo!
Olha, a mamãe chegou!; Eles gostaram muito da repetição, porque aquele livro traz a
repetição” (Professora Mara - Entrevista).
Assim reiteramos o questionamento sobre a validade do diálogo sobre ou mesmo da
leitura de livros em que aparecem personagens negros sem problematizar a presença desse
grupo. O uso de livros e outros materiais impressos na instituição escolar e fora dela pode, de
fato, dar oportunidade às crianças de momentos nos quais possam ver/vivenciar que as
diferenças devem ser respeitadas e valorizadas? Podem ser caracterizadas como práticas de
combate ao preconceito? Podemos considerá-las práticas que visam à educação para a
convivência das diferenças?
A professora enfatizou apenas um aspecto do livro, deixando de lado o que seria, a
nosso ver, uma ótima oportunidade de mostrar às crianças que famílias negras possuem um
138
cotidiano igual ao das outras famílias, de naturalizar, nas representações das crianças, as
imagens trazidas pelo material. Não podemos ser radicais ao ponto de dizer que ao agir do
modo descrito, a professora inutilizou, inviabilizou a proposta do livro, pois acreditamos que
mesmo não fazendo intervenções incisivas para as crianças, em especial as negras, ver as
imagens de uma família negra de modo valorizado e sendo narrados fatos cotidianos é um
ganho para a constituição da identidade das crianças negras e uma possibilidade para as
demais crianças compreenderem que pessoas negras podem ocupar os mesmos lugares que as
brancas e que tem as mesmas possibilidades de constituição familiar. Nesse sentido, mesmo
que Mara não tenha conduzido uma atividade que pudesse proporcionar reflexão por parte das
crianças a respeito das relações raciais, a apresentação do livro, como foi realizada,
provavelmente trouxe algum ganho para as crianças negras e brancas da turma.
Por meio dos trechos mencionados, das informações coletadas do semanário e com a
entrevista realizada com a professora, que declarou que no mês de novembro, em função do
dia da consciência negra, acabou reforçando a temática das relações raciais com as crianças,
constatamos que as atividades propostas por Mara, no que se refere à temática racial, foram
pontuais, não se caracterizando como parte integrante de seu planejamento mais amplo.
Entendemos que essa atitude pode dificultar a compreensão por parte das crianças sobre o
significado que tem a população negra na nossa sociedade.
As contradições e permanências evidenciadas se sobressaem às mudanças, posto que
mesmo a professora tendo atitudes e práticas consideradas de mudança no trato com as
diferenças, em outros momentos demonstrava não saber lidar com os conflitos de outro modo
senão repetindo o discurso de que as pessoas não são iguais e temos que respeitá-las assim
mesmo, além de se incomodar com a possibilidade de as crianças por ventura comentarem
sobre as características e o pertencimento da pesquisadora. Todavia, foram frequentes os
momentos nos quais a pesquisadora respondeu questões feitas pelas crianças a respeito do seu
cabelo, cor de sua pele etc. E também, mas com menor freqüência, algumas crianças iam até a
pesquisadora para dizer que chamavam Cleverson (negro) de Pelé. Tais acontecimentos
comprovam que as crianças não estão alheias à organização racial da sociedade e podem agir,
já nessa idade, de acordo com as convenções impostas pela sociedade sobre as relações
raciais. O trecho a seguir retirado do diário de campo também demonstra a que estamos nos
referindo:
A pesquisadora, na porta da sala de atividades, que estava aberta, viu um cartaz com
o desenho de uma menina e um menino (brancos) com roupas de festa junina. Uma
menina negra, também olhando para ele, falou à pesquisadora: “Olha você aqui.” A
139
Os dados coletados para essa dimensão não foram muitos em termos quantitativos,
uma vez que estão diluídos nas outras dimensões já expostas. No entanto, selecionamos
trechos que, em termos qualitativos, apontam elementos que auxiliaram na interpretação dessa
categoria, bem como das representações sociais da professora sobre as crianças negras. O
trecho destacado a seguir refere-se ao momento em que a professora expôs, entre outras
coisas, sua opinião sobre a presença de personagens negros em livros para as crianças:
Eu acho assim, isso tem que ser uma coisa natural [livros com personagens negros]
aonde a criança possa se ver e também a sua família. Então eu acho que vai chegar
um dia que a gente não vai mais ter os livros para trabalhar a diversidade, nós vamos
ter livros, vários, todos misturados, é isso que eu pretendo um dia, entendeu? Tem
que ter, sim, livros [...] de negros, de índios, de brancos, de vários misturados. Agora
a gente ainda está com pouco com esse enfoque. Olha, hoje eu vou trabalhar com a
história tal, mas acho que não tem que ser assim [...] meu sonho é um dia ler um
livro na segunda, outro na terça e aquilo ser tão natural que eu não estou trabalhando
a diversidade pensando no negro, estou pensando em todos, não só no negro. Ah!
porque tem que ser uma coisa comum. Não sei se eu consegui explicar (Professora
Mara - entrevista).
Nesse trecho temos elementos que podem ser interpretados tanto como movimento de
mudança como de permanência em relação ao modo como a professora ancora e objetiva sua
prática prática pedagógica em relação à abordagem das diferenças. Quanto à tendência
mudança, identificamos no discurso da professora o reconhecimento da importância de livros
infantis que tenham personagens negros para que as crianças possam se identiticar e também
suas famílias. Assim, a professora pareceu ser favorável à possibilidade de as crianças negras
e de outros grupos discriminados em nossa sociedade – que paulatinamente estão
conquistando espaço nesse tipo de material – estarem aí representados. Essa posição indicou
mudanças tanto em sua concepção sobre o tema quanto em sua prática pedagógica.
Entendemos que essas foram ocasionadas pelo contexto social e político do país, que vem
buscando o reconhecimento e a valorização das diferenças, bem como a promoção da
igualdade racial em todos os setores da sociedade.
Nesse contexto de mudança, consideramos positiva a crítica da professora, quando
relata que atualmente as professoras quando dizem estar incluindo as diferenças no cotidiano
escolar por meio de livros fazem de modo específico, ou seja, escolhem um livro que aborda
uma diferença e o leem de modo pontual. Isso nos faz supor que sua inconformidade seja em
relação às ações pedagógicas que ocorrem na instituição, ou seja, que abordam a temática
somente de modo pontual. Para Mara, a temática deve fazer parte do cotidiano, tem de ser
algo comum, e é aí que reside a mudança, o modo como significou/objetivou as informações
recebidas. Ela entende que não é adequado inserir a temática racial apenas em alguns
141
momentos e/ou datas específicas, dando a entender que o negro só faz parte da escola e da
sociedade em alguns momentos. No entanto, ela acabou admitindo que
[...] no mês de novembro a gente acaba reforçando isso [o trabalho com a temática],
mas acho que isso tem que ser todo dia, toda semana, não tem [...] eu vou trabalhar o
dia da Consciência Negra ou o dia do índio. Eu acho que não tem que ser isso, tem
que ser uma coisa que está sempre ali presente (Professora Mara – entrevista).
Mesmo Mara admitindo realizar práticas com as quais não concorda, reconhece a
importância de abordar a diversidade no cotidiano, nas pequenas e grandes ações, pelo fato de
permearem as relações sociais estabelecidas no cotidiano. Porém, em outro trecho já citado –
“[...] meu sonho é um dia ler um livro na segunda, outro na terça e aquilo ser tão natural que
eu não estou trabalhando a diversidade pensando no negro, estou pensando em todos, não só
no negro” – temos elementos de mudança e permanência. Mara explicita o desejo de um dia
poder ler livros que tenham personagens de todas as raças e que não fossem mais necessários
livros específicos, com enfoque nos personagens negros, e sim que a presença desses
personagens se tornasse comum na literatura didática e paradidática. O que a professora
menciona como um desejo – que estendemos como desejo de mudança – é também defendido
por aqueles que trabalham para promover uma educação mais igualitária, em que os materiais
pedagógicos, os conteúdos, as relações sociais estabelecidas entre crianças e adultos e entre
crianças e crianças e as práticas desenvoldidas sejam capazes de promover a igualdade racial,
de modo que as diferenças estejam de fato presentes e sejam respeitadas no ambiente escolar.
Porém, esse trecho nos faz supor que há permanência de representações sociais
pautadas nos mitos e ideias que ainda sustentam o racismo no país, uma vez que Mara parece
ainda compreender que ao trabalhar com livros que tenham personagens negros, estaria
focalizando somente esse grupo. A professora argumenta não querer trabalhar as diferenças
pensando somente nos negros, mas em todos, ponto em que também concordamos,
considerando que não são somente os negros que são diferentes, mas todos nós. Chamamos a
atenção para o fato de que os livros com personagens negros em destaque parecem não caber
na representação social sobre o trato das diferenças da professora, o que nos faz supor que
esta pode ainda estar ancorada no ideal de um país mestiço, plural, enfim, no discurso anti-
racialista58 e no direito de igualdade para todos. E é pautada nesses ideais e conceitos que
objetiva/materializa sua prática: Mara tem resistência em incluir no cotidiano escolar livros
58
O ideário antirracialista nega a existência biológica de raças. De acordo com Guimarães (1999), tal ideal adentrou no
imaginário da população brasileira dificultando o combate ao racismo, já que como há crença de que raça não existe, o que
importa é a classe social. Para o movimento negro tal visão relaciona os problemas enfrentados pela população negra não ao
pertencimento racial, mas a sua incapacidade. Assim, pode-se não usar raça para classificar as pessoas, mas isso não indica
que não exista racismo.
142
com personagens negros, pois nesse ideal não caberiam livros e nem mesmo ações destinadas
a um determinado grupo, porque sua premissa básica é de que somos todos iguais e que com
tais práticas estaríamos discriminando os outros grupos. O ideal de democracia racial
permanece na representação social da professora sobre os negros, reaparecendo sob a forma
do sonho de uma sociedade melhor e mais justa, na qual todos sejam representados.
O modo como Mara representa a abordagem das diferenças parece ancorado na
concepção de ações universalistas59, assim baseando-se nos discursos de direitos iguais para
todos. Esse ideal traz riscos, pois deixa de problematizar que historicamente a população
branca teve e ainda tem privilégios em todos os setores da sociedade, nas práticas escolares e
nos materias utilizados nesses ambientes. Enfatizamos que as ações da professora pareciam se
basear ora em práticas universalistas ora em ações específicas. A concepção universalista
apoia-se na ideia de Brasil plural. Entretanto, nessa lógica,
59
O princípio da universalidade refere-se à responsabilidade dos governos de assegurarem a todas as pessoas, sem distinção
de qualquer tipo, o acesso aos serviços públicos e aos direitos sociais: saúde e educação pública e gratuita, todos os direitos
da previdência e da assistência social. “A defesa intransigente das políticas universalistas no Brasil guarda, por identidade de
propósitos, parentesco com o mito da democracia racial. Ambas realizam a façanha de cobrir com um manto democrático e
igualitário’ processos de exclusão racial e social que perpetuam privilégios. Postergam igualmente o enfrentamento das
desigualdades que conformam a pobreza e a exclusão social”. Disponível em: < www.slideshare.net/.../manual-dos-dialogos-
contra-o-racismo>. Acesso em 20 de outubro de 2009.
143
O modo como a professora representa a prática que aborda as diferenças faz com que
deixemos de aproveitar certas oportunidades, que tinham o potencial de acelerar a promoção
da igualdade racial, uma vez que ainda quer manter diluída a presença dos negros nos livros
infantis. Além disso, outro motivo pelo qual classificamos a prática da professora na categoria
foi a sua atitude contra o que se defende atualmente quando se fala de uma educação para a
promação da igualdade racial. Para garantir tal promoção, há sim necessidade de materiais
pedagógicos que representem os diferentes grupos que compõe a população brasileira.
Todavia, o momento da abordagem não deve ser específico: um momento para se falar dos
negros ou dos indigenas; a cultura, os valores, as histórias e as brincadeiras desses povos
devem estar incluídos no currículo já na educação infantil, que historicamente é e ainda está
permeada de valores europeus (CAVALLEIRO, 2000; DIAS, 2006, 2007). Se se promoverem
condições de a diferença ser reconhecida como um fato positivo, não como motivo de
exclusão, a escola poderá contribuir para alterar as relações sociais existentes entre os
diferentes grupos que convivem em seu ambiente.
Em atividade oferecida às crianças pela professora pudemos novamente identificar que
o modo como ela objetiva a abordagem das diferenças repercute em sua ação pedagógica, o
que inclui até mesmo a escolha dos materiais pedagógicos a serem utilizados no cotidiano.
Constatamos que quando Mara trabalha as diferenças com as crianças utilizando o livro
“Romeu e Julieta”, de Ruth Rocha60, a abordagem é baseada no fato de que não deve haver
divisão entre as pessoas, principalemente pela cor de pele: enfatiza-se que o mundo fica mais
bonito quando todas as cores convivem.
Temos também os diálogos estabelecidos entre Mara e as crianças que eram positivos,
enfatizando que cada criança era diferente da outra. Contudo, sem problematizar que na
sociedade há grupos que são privilegiados e é isso que precisa ser mudado. Esta abordagem
poderia ter ocorrido, por exemplo, expondo às crianças que elas são diferentes entre si,
propiciando momentos onde todas tivessem a oportunidade de se sentir bem com seu corpo,
terem orgulho de suas características e sentirem que essas são valorizadas. Essa discusão com
as crianças da turma seria possível e necessária, posto que mais de uma vez a pesquisadora
60
O livro narra a história de duas borboletas, Julieta e Romeu, que vivam em um “reino” jardim onde os canteiros de flores
eram divididos conforme a cor das flores. Assim, cores diferentes não podiam se misturar, sendo que em cada canteiro
moravam famílias de borboletas da mesma cor das flores. Julieta era uma borboleta amarela do canteiro amarelo e Romeu
uma borboleta azul do canteiro azul. Um dia, na primavera, Ventinho convidou Romeu para dar um passeio no canteiro
amarelo. Chegando lá, Ventinho apresentou Romeu a Julieta e os dois logo ficaram amigos. Eles brincaram e saíram para
conhecer melhor o reino, só que eles acabaram se perdendo, e seus pais, depois de muito relutarem, resolvem sair de seus
próprios canteiros e se unir para encontrar os filhos. Graças a Romeu e Julieta as barreiras se quebraram e todas as
borboletas passaram a viver juntas, e na primavera seguinte as flores nasceram todas misturadas e o jardim se transformou
num maravilhoso arco-íris.
144
[...] que é muito boa e a cada ano está melhor. Eu não sei [...] se eu mesma estou
trabalhando melhor a diferença ou se as crianças estão cada vez vindo melhor, mas
eu até conversei com as colegas, quando passo livros com crianças na cadeira de
rodas, crianças negras, crianças japonesas, quando trago eu sinto que não tem mais
aquela coisa da criança ficar [...] estranhar, ficar constrangida, ficar com medo de
comentar alguma coisa (Professora Mara – entrevista).
Mara parece não querer abordar as diferenças por meio de livros que enfoquem
somente negros, mas concorda em ler livros para crianças em que tenham representados
outros grupos, como japoneses e cadeirantes. Tal fato nos faz pensar que um dos dilemas que
Mara parece vivenciar é o fato de ficar dividida entre ações universalistas ou específicas.
Nesse sentido, o que lhe falta, assim como para outras professoras, é compreender a
61
Como exemplo podemos citar que um menino negro era chamado pelas outras crianças de Pelé e nas vezes em que as
crianças se aproximaram da pesquisadora para contar o apelido, elas riam. Um menino negro relatou para a pesquisadora que
tinha duas namoradas e que o outro amigo branco tinha só uma e que essa era burra e feia igual ao Jaime, menino negro da
sala; outro menino negro relatou que tinham uma prima em outra turma e a descreveu como morena. A pesquisadora
perguntou se a prima era parecida com ela, e ele prontamente respondeu: “Assim não, né?”, como se ser negra da tonalidade
da pesquisadora fosse demais e não positivo. Os exemplos demonstram que as crianças compreendem que a criança negra de
tonalidade mais escura só pode ter o apelido de Pelé, que mesmo sendo reconhecido como rei do futebol parece que ainda é
vinculado a piadas. Ter uma namorada feia significa ter uma namorada negra. Assim, começam a não reconhecer beleza nas
caracteristicas das pessoas negras, questões que fazem parte da representação social sobre a população negra e que são
valores que desde muito cedo as crianças podem manifestar.
145
Vemos com isso a possibilidade de cada indivíduo recriar representações sociais para
atender a sua realidade específica – mesmo se pautando em aspectos da tradição e do passado
– representações sociais com as quais possa sentir-se bem, transformar o que é estranho em
algo familiar. De modo geral, trata-se de estabelecer seu campo de representação, espaço no
qual estejam presentes aspectos compartilhados pela sociedade e outros significados recriados
por ele.
No caso da professora Mara, entendemos que seu campo de representação foi
constituído com base na realidade forjada pelo ideal de democracia racial e essa o significou,
146
Considerações Finais
A educação é capaz de oferecer tanto aos jovens como aos adultos a possibilidade de
questionar e desconstruir os mitos de superioridade e inferioridade entre os grupos
humanos que foram introjetados neles pela cultura racista na qual foram socializados
(MUNANGA, 2001, p. 9).
de vista dos objetos de saber ensinados quanto dos mecanismos psicossociais, às vezes muito
finos, em ação nas aprendizagens” (GILLY, 2001, p. 337).
A fim de atingir o objetivo da pesquisa, realizamos uma pesquisa qualitativa na
perspectiva etnográfica, utilizando como procedimentos: observação do cotidiano em uma
turma com crianças de cinco anos numa Emei na cidade de São Paulo entre os meses de
março a dezembro de 2008, entrevista com a professora colaboradora e análise de documentos
institucionais (publicações da Secretária Municipal de Educação - SP; projeto pedagógico da
escola em que foram realizadas todas as observações; atividades registradas no semanário da
referida entrevistada e textos destinados a formação em serviço nos horários coletivos) dando
ênfase ao o que e como abordavam a temática racial.
Ao entrar na Emei onde a pesquisa foi realizada houve estranhamento por parte da
pesquisadora, posto que constatou a presença de cartazes e fotos com crianças e adultos
negros e indígenas, bonecas (os) negras (os) e indígenas, além de um Papai Noel negro
fazendo parte da decoração de Natal.
Em conversar com a diretora, em sua sala, pode constatar também a existência tanto
livros infantis com personagens negros quanto específicos sobre a temática racial e educação
destinados à formação das professoras. Foram inicialmente esses fatos que impulsionaram a
pesquisadora a realizar a pesquisa na instituição.
Vimos a possibilidade de questionar como as professoras da instituição lidavam como
a temática racial, como eram as relações raciais estabelecidas neste espaço, o que de fato
significava todos aqueles materiais que representavam as diferenças tão presente em nosso
país, e quais aspectos presentes na organização da escola que possibilitaram a presença dos
materiais mencionados. Algumas destas questões foram respondidas outras não, além disso
algumas foram surgindo e delineando o encaminhamento da pesquisa.
O primeiro contato na Emei foi com a diretora Carmem (negra), que mostrou-se
interessada na temática da pesquisa e relatou que já tinham desenvolvido um trabalho na
escola contemplando a temática. É inegável que a presença de uma diretora negra, fez com
que algumas das perguntas acima fossem rapidamente respondidas, posto que atrelamos sim,
a sua presença a existência dos materiais pedagógicos mencionados. Posto isso restava saber
como as professoras significavam a presença desses materiais, utilizavam-no de modo
intencional, ou seja, com o intuito de incluir a temática das diferenças em sua prática. Como
representavam essa prática, quais representações sociais tinham das crianças negras?
Com o desenvolvimento da pesquisa de campo aliado ao aprofundamento teórico,
mais questões foram sendo formuladas e respondidas. Umas das primeiras e que se
150
configurou como fundamental, porque a partir dela delimitamos de fato o que estávamos
considerando para identificar e interpretar as representações sociais da professora foi: o que é
estranho para a professora Mara? Essa pergunta é posta pelo fato de que criamos
representações sociais para transformar algo estranho em familiar e assim compor nossa
realidade social.
Pensando no objeto de pesquisa, no modo como as relações raciais estão constituídas
no país e como se configura na educação infantil, na própria constituição da turma da
professora Mara, composta por crianças negras, indígenas e brancas, dos lugares que tinha
atuado como professora, ou seja, majoritariamente em escolas de educação infantil
municipais, e concluímos que não poderia ser a presença física das crianças negras
consideradas entranhas à professora.
Consideramos então o contexto político e social no qual ocorreu a formação da
professora, fim da década de 1990, momento nas quais as instituições presentes na sociedade
estavam sendo incitadas, sobretudo pelas ações dos movimentos negros, a combaterem o
racismo e a promoverem a igualdade racial, o que denotou para a educação, mas não só para
ela, a inclusão da temática nas práticas pedagógicas, nas relações sociais estabelecidas nessas
instituições dentre outras coisas, temos também a presença da diretora Carmem, o que nos fez
concluir que o incomum para a professora e que a faria criar representações sociais seria a
inserção da temática racial na educação infantil, o como abordar as diferenças raciais e o que
elas significam em nossa sociedade seria o estranho, fazendo com que criasse representações
sociais referentes tanto as crianças negras quanto ao trato pedagógico das diferenças.
Entendemos que o contexto social e político citado, poderiam influenciar no modo
como a professora via as crianças negras e sua prática. Com isso queremos dizer que as
representações sociais da professora sobre as crianças negras não poderiam ser interpretadas
desvinculadas das questões elencadas acima. Portanto, quando nos questionamos quais
representações sociais a professora tinha sobre as referidas crianças não poderíamos tentar
interpretá-las sem entender concomitantemente como a professora representava a diversidade
e as diferenças, como as tornava familiar e em que as ancorava e como objetivava.
Tendo claro o aspecto exposto, precisávamos identificar em quais referencias a
professora ancorava suas representações sociais tanto das crianças negras quanto da
abordagem das diferenças raciais na sua prática pedagógica. Apoiando-se no referencial
teórico adotado, entendemos que as representações sociais são tidas como realidade concreta,
que moldam o pensamento social e consequentemente nossas ações e percepções sobre
151
determinado assunto e pessoas, sendo forjadas e reproduzidas por meio das teorias do senso
comum presentes nas interações sociais.
Considerando o que foi dito e problematizando sobre a questão racial no Brasil,
entendemos que as representações sociais da professora Mara sobre os temas já expostos,
apoiavam-se nos discursos construídos social e historicamente sobre os negros, e esses têm
potencial para influenciar e direcionar as relações sociais estabelecidas cotidianamente. Tais
discursos são pautados nas teorias racistas do século XVIII e nos conceitos atrelados a essas,
ou seja, raça e racismo e no modo como estes fora operacionalizado no país, sobretudo, com
base nos ideais de democracia racial e de branqueamento.
Ressaltamos que, de acordo com o referencial adotado nesta pesquisa, não ocorre uma
simples aplicação dos conceitos acima para a realidade vivida pela professora. Para tornar
familiar o que lhe é estranho Mara utiliza também outros elementos, sejam de sua história
profissional, pessoal - qual pressupomos que já possui concepções pré-estabelecidas para
determinados assuntos - quanto das relações sociais estabelecidas, nesse caso consideramos
que algumas atitudes da professora em relação a temática foram influenciadas pelas
intervenções da diretora.
Nesse contexto, embora o foco da pesquisa não fosse a diretora, não pudemos ignorar
sua condição social e racial, ou seja, o fato de ser mulher e negra, pois avaliamos que tais
fatos poderiam ter colaborado no modo como Carmem orientava as professoras em relação à
temática racial, o que pode também ter influenciado a prática de Mara.
Consideramos que Carmem avançou se compararmos o que a pesquisa de Gomes
(1995) verificou ao entrevistar mulheres negras no magistério. A autora constatou, que o
recurso do silenciamento e do discurso da igualdade era o mais usado entre as profissionais, e
assim concluiu:
professoras de modo geral, não abordavam a temática e quando faziam, pressupomos que
fosse, exclusivamente, por influência da diretora.
Desse modo, inferimos que tínhamos, a diretora almejando incluir no currículo da
Emei a temática, de um lado, e de outro lado o grupo de professoras ainda não sensibilizadas
com a temática. No entanto, mesmo as professoras ainda não sensibilizadas com a temática,
não podemos dizer que as ações da diretora não surtiram efeito, devemos considerar a
proposição dos filmes animados, assim como outras de suas ações mencionadas no decorrer
do texto, como atos que tiveram potencial para despertar nas professoras a reflexão sobre as
relações raciais na educação infantil.
Com os dados compilados e a análise realizada concluímos que as representações
sociais da professora sobre as crianças negras e a abordagem das diferenças ainda estão
pautadas, ancoradas mais no modo como o racismo foi operacionalizado no país, ou seja, por
meio dos ideais de democracia racial e branqueamento da população do que na promoção da
igualdade racial.
Contudo, conforme mencionamos não há uma simples reprodução dos conceitos e
teorias para as ações cotidianas, ao representar algo nós (re) apresentamos, (re) significamos
com base em outros referenciais construídos de acordo com as interações e conhecimentos
adquiridos ao longo da vida. Sendo assim, interpretamos que Mara ao representar à temática,
ancorou em aspectos que cabiam no que parece de fato acreditar e almejar, ou seja, na
existência da democracia racial no Brasil e, sobretudo, nas relações estabelecidas na Emei.
Desse modo, ao analisar suas representações sociais acerca da temática exposta e
como se manifestam na prática pedagógica constatamos que ambas estão sendo constituídas
por: movimentos de mudanças, pois a professora tem compreensão dos danos causados à
população negra, advindos da manutenção de práticas preconceituosas e discriminatórias na
sociedade e na educação. Verificamos também, o que estamos considerando início de uma
prática que tem potencial para promover a igualdade racial, pelo fato de Mara reconhecer as
diferenças como algo positivo, tentar desmitificar estereótipos exteriorizados ou não pelas
crianças, presentes nos materiais pedagógicos e mesmo na atividade oferecida dentre outros
aspectos e por movimentos de permanências e contradições, posto que Mara ancora suas
representações sociais sobre as crianças negras, também pelo modo como o racismo foi
operacionalizado, ou seja, baseado na ideia de ausência de conflitos, no ideal de igualdade
independente do pertencimento racial.
Sendo assim, o que se refere às permanências e até mesmo às contradições,
mencionamos o fato da professora, mesmo sendo favorável e compartilhando certas
153
Diante desse quadro, é possível supor que a incorporação de novas posturas quanto às
relações raciais e o contato com informações sobre o papel do negro na cultura e história
brasileiras ainda estejam em conformidade com nossa narrativa de origem, o mito da
democracia racial, uma vez que a valorização dos grupos raciais que compõem o cenário
brasileiro sempre foi apregoada, ao menos no discurso.
Nesse sentido, podemos dizer que o modo como Mara representa as crianças negras e
a abordagem das diferenças nos evidenciou traços de mudanças ao mesmo passo que possui
pontos de contradição. Entretanto, tal ambiguidade parece ser próprio do modo com as
relações raciais se desenvolveram no país, com isso podemos dizer que Mara re-criou.
Corroborando com o que foi dito, Gomes (2007) nos chama atenção para fato de que
no caso específico da questão racial, a ambiguidade continua sendo uma das formas mais
ardilosas do racismo brasileiro se manter e se expressar. “Sendo assim, o racismo ambíguo
brasileiro sempre foi um campo fértil para a construção de ideologias e pseudo-teorias raciais
no passado e para a perpetuação de desigualdade entre negros e brancos que se mantém no
presente” (GOMES, 2007, p.101).
Nesse contexto, será que poderíamos supor que as permanências e contradições
encontradas na representação social e na prática de Mara já eram esperadas, já que também
fazem parte da construção ideológica do racismo no país? Uma das afirmações de Gilly
(2001) nos ajudou a pensar a questão posta. Tal autor anuncia que:
Desde o início, a escola obrigatória é marcada por uma contradição profunda entre o
discurso ideológico igualitário, que vê na instauração do direito à instrução para
todos, nos bancos de uma mesma escola, um meio de suprimir as distinções de
classe; e um funcionamento não-igualitário, que se traduz por diferenças de
desempenho relacionadas às diferenças sociais e pela existência de redes escolares
distintas para as crianças do povo e para as camadas abastadas (GILLY, 2001, p.
323).
Destacamos esse fragmento não com a intenção de responder a questão acima, mas
para fazermos refletir tanto na pergunta quanto na afirmação do autor.
Considerando a questão exposta e compreendendo que a educação possa exercer forte
ação na prevenção do racismo e promoção da igualdade racial, as reflexões e os
questionamentos formulados no decorrer desta pesquisa assinalam que se faz necessário
potencializar os traços de mudanças observados na professora Mara, uma vez que podem e
devem ser estendidos à outras professoras, a outras escolas etc.
Acreditamos que isso poderá ser possível por meio de formação específica, sobre a
temática racial e educação, destinada aos professores, uma formação que forneça informações
155
Assim, temos uma educação calcada em práticas que consideram a desigualdade racial
nos contextos das relações raciais e que possibilita/permite a reflexão sobre as diferenças
raciais, auxiliando para a eliminação de todas as formas de preconceitos e discriminações e
hierarquização racial nas relações estabelecidas no cotidiano escolar.
No entanto, ressaltamos que qualquer formação realizada que tenha o intuito de mudar
práticas visando, sobretudo, a reeducação das relações raciais não pode deixar de considerar,
primeiramente, quais representações sociais os indivíduos possuem sobre a temática, posto
que será a partir dessas que significaram os conteúdos aprendidos. Para Alves-Mazzotti
(1994), abordar as representações dos professores é essencial se o que se deseja é mudar a
sociedade também por meio da educação, para que isso ocorra deve-se compreender os
processos simbólicos advindos de fatores sociais e como esses agem sobre o processo
educativo e, a partir disso, elaborar ações de formação, que possam abordar e promover a
reflexão a respeito das concepções e percepções muitas vezes tão arraigadas que os
professores não se dão conta que praticam e que são condizentes com essas. Quando nos
62
A pesquisa desenvolvida por Guimarães, C. (2000) confirmou a importância da formação dos professores quando
almejamos mudar práticas consideradas inadequadas presentes na educação, pois tais resultados ratificaram a possibilidade
de transformação das representações sociais mediante os conhecimentos científicos.
156
Referências
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APÊNDICE
166
Entrevista
- Agradecimentos
- Termo de anuência
1. Conte-me sobre algumas lembranças dos primeiros anos na escola. Com quantos anos
entrou na escola; relacionamento com os professores (as) e colegas;
2. Como eram seus professores (as). Lembra-se de algum que tenha te marcado?
Atuação profissional
1. Conte-me um pouco sobre sua formação e sua trajetória como professora (tempo de
atuação no magistério, como veio tornar-se professora);
2. Fale um pouco de sua prática pedagógica. Como elabora as atividades?; Quais seus
principais objetivos? São objetivos únicos para a formação ao final do ano ou específico
para cada bimestre?
4. Tem algum tema que gostaria de ter trabalhado, que considere importante e não o fez? Por
quê?
6. Avalia as atividades produzidas pelas crianças? Por que? Como faz? Utiliza algum
critério? Quais?
168
7. Quais assuntos são tratados nas reuniões pedagógicas e na JEI? E qual poderia ser
abordado?
9. Em sua opinião qual a função da educação infantil. Como tenta colocar em prática? Como
acha que as famílias vêem a educação infantil?
11. Fale sobre o desenvolvimento infantil. Para você cada criança tem seu próprio
desenvolvimento?. O que mais diferencia as crianças além do desenvolvimento?
12. O que representou o Projeto EU? Qual era o seu objetivo?. Como você auxilia as crianças
no seu autoconhecimento para além do projeto?
13. Há atividades que permitam que cada criança viva sua identidade? Quais? Como são
desenvolvidas?
14. Incorpora na sua prática atividades que valorizem as diferenças? Por quê?. Conte como
aborda a questão? Como é a receptividade das crianças?
16. Como acha que as crianças negras percebem os livros de histórias com personagens
negros?
17. Acha relevante para a vida das crianças trabalhar com essa temática?
18. Em sua opinião a cor/raça afeta as relações sociais e o desenvolvimento das crianças
negras e brancas? Se sim, como acha que isso acontece? E por que se dá essa influência?
19. Nas suas atitudes e conversas com as crianças, se preocupa em fazê-las refletir sobre seus
atos? Evita falas que sejam estereotipadas? A que você atribui essa sua prática?, A
formação acadêmica ou a Emei? Quais são os fatores que a levam a agir desse modo?
20. O que acha dos cadernos do Programa Orientações Curriculares? Fale os pontos que
considera interessante;
21. Propôs alguma atividade com as informações dos cadernos? Qual caderno? Qual foi a
atividade proposta? Como fez?
169
As crianças
4. Tem uma comunidade indígena aqui no bairro, e algumas crianças pertencentes a esta
comunidade/etnia aqui na Emei. Acha que as crianças percebem tal fato? E como
lidam com isso? Acha que as crianças desta comunidade se reconhecem? O que pensa
você sobre tal fato? (sobre esse reconhecimento ou falta dele?)
5. E as crianças negras, você acha que ela se reconhecem e se gostam enquanto negras?
Como percebe? A que atribui tal fato?
Últimas perguntas