Livro - Monzani - COMPLETO
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DESEJO E PRAZER
NA IDADE MODERNA
Agradecimentos
Ao CNPq, que me conferiu, por dois anos, uma bolsa para que desenvolvesse
esta pesquisa;
À Josette, minha mulher, que teve a paciência de decifrar meus garranchos e
fazer a primeira versão datilografada;
Dos amigos, aos quais devo muito, gostaria de agradecer especialmente a
Moacyr Nunes de Oliveira e Adalberto Tripicchio, o primeiro por ter me auxiliado
muito na bibliografia e o segundo por suas fórmulas mágicas.
Por último, aos professores Michel Debrun, Fausto Castilho, Marilena Chaui,
Bento Prado e Arley R. Moreno, primeiros leitores deste texto. Foi, para mim, um
privilégio escutar suas observações sempre pertinentes. Que eles encontrem aqui a
expressão de meu respeito, admiração e amizade.
Para Josette:
Para Juliana,
J. Marcelo e
Luiz Henrique
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
.............................................................................................................................................
11
I. LUXO
.............................................................................................................................................
17
II. DESEJO
.............................................................................................................................................
63
III. INQUIETUDE
.............................................................................................................................................
115
IV. PRAZER
.............................................................................................................................................
163
CONCLUSÃO
.............................................................................................................................................
223
BIBLIOGRAFIA
.............................................................................................................................................
228
INTRODUÇÃO
O trabalho que o leitor tem em mãos é fruto de uma suspeita e resulta numa
hesitação. Por isso, talvez seja melhor retraçar rapidamente o itinerário que resultou na
sua confecção, para que se possa ter uma idéia mais clara de suas reais dimensões.
Há poucos anos, mais precisamente quando caíram em minhas mãos os
primeiros volumes da recente reedição das obras completas de Sade pela editora
Pauvert,1(SADE, 1986) propus a mim mesmo uma leitura mais sistemática desse autor
um tanto quanto esquisito. Já conhecia, há tempos, boa parte de sua obra. Mas, minhas
leituras foram sempre esparsas, desorganizadas e sem nenhuma finalidade precisa, a não
ser a curiosidade e a impressão de que esse autor havia produzido uma obra única,
incomparável e demo1idora. Por outro lado, meu conhecimento lacunar — não tinha
tido acesso, por exemplo, até então, à Histoire de Juliette — impedia-me de formar
qualquer opinião que pudesse julgar solidamente estabelecida.
Depois dessa leitura, agora mais metodicamente elaborada, e passado o impacto
que a obra do Marquês traz inevitavelmente, procurei examiná-la mais friamente, e
nasceu a suspeita não só de que Sade dependia muito, nas suas concepções, de certas
matrizes de pensamento do século XVIII, como também, sob muitos aspectos, ele era a
realização completa e acabada dessas mesmas matrizes.
Conhecia, é claro a tese de Horkheimer e Adorno sobre Sade. Mas, nunca pude
concordar com suas premissas. Curiosamente, concordava com algumas de suas
conclusões. Nasceu em mim, então, a suspeita de que era necessário encontrar o solo
real do qual o discurso de Sade brotava. De qualquer maneira, resolvi abandonar,
provisoriamente, a idéia tão difundida — sobretudo pelos próprios estudiosos de Sade
na sua grande maioria2 — de que sua obra seria uma exceção monstruosa e única, e
passei a trabalhar com a idéia de que talvez Sade apenas tivesse levado às últimas
conseqüências, no plano moral, certas premissas de pensamento estabelecidas na idade
moderna. Indícios sobre isso não faltavam, mas sentia a falta de um fio condutor.
Meus primeiros passos, realizados um pouco instintivamente, foram os de
examinar um pouco a literatura libertina da época e aqueles autores — na sua maioria
filósofos — que Sade insistentemente faz questão de afirmar que constituem o estofo e
o fundamento de seu pensamento. No primeiro caso, o exame da literatura libertina foi
praticamente inútil, a não ser para reforçar minha convicção de que Sade, no seu gênero,
é realmente um escritor de excepcional qualidade e que uma grande editora nada mais
fez que um ato de justiça ao incluí-lo entre os clássicos.
No segundo caso, as coisas passaram-se de forma ligeiramente diferente. O
referencial imediato de Sade — no plano filosófico — são os materialistas franceses.
Particularmente, La Mettrie, Helvétius e Holbach. Sade seguramente conhecia muito
bem esses autores, de alguns dos quais pilha páginas e páginas.3 No caso desses
pensadores, a filiação realmente era inegável. Nem sempre da forma colocada pelo
próprio Sade. Ele faz questão de afirmar, por exemplo, que as bases do que denomina
“seu sistema” estão, basicamente, nos textos de Holbach. Isso é verdade, no que
concerne às linhas gerais, isto é, à idéia de uma matéria em eterno movimento
produzindo e destruindo incessantemente novas formas, o ateísmo integral etc. Mas,
com relação ao problema ético,4 Sade é, na verdade, um profundo devedor com relação
a La Mettrie. Se se quer achar os antecedentes imediatos das concepções de Sade, elas
estão seguramente muito mais no Anti-Sêneca, do que no Sistema da Natureza.
O que impressiona profundamente o leitor é o fato de que, em La Mettrie,
encontramos praticamente as mesmas teses de Sade, com a diferença de que não são
desenvolvidas com a crueza cirúrgica do Marquês, mas sim no calmo plano das idéias
abstratas. Aproveitando-me de uma fórmula de Foucault, podemos dizer que La Mettrie
é o lado aveludado de Sade.
Não se trata aqui de mostrar essa semelhança, o que implicaria escrever um
trabalho de proporções mais ou menos iguais ao deste, mas sim de apontar para aquilo
que acabou ficando claro nesse primeiro momento. Por um lado, isso reforçava a
suspeita de que Sade não era uma estrela solitária, a não ser pelo modo como escolheu
para expor, mas não por certos esquemas de pensamento. Por outro lado, isso fazia
adiantar muito pouco o tratamento da questão. Pode ser interessante constatar fortes
convergências nas teses de dois autores mas isso apenas mostra que ambos trabalham
sobre um estofo conceitual, um certo universo mental já constituído, do qual ambos se
nutrem.
Ora, a questão particularmente mais instigante era exatamente tentar explicar
quais eram as linhas mestras dessa concepção. E, sobre esse ponto, as obscuridades
eram muito fortes e as idéias que tinha, muito vagas.5 Refletindo sobre isso, não foi
difícil concluir que o que estava provavelmente norteando tudo isso era uma concepção
sobre os fundamentos da vida passional que pouco ou nada tinha a ver com a concepção
clássica. Era preciso, de uma certa maneira, operar um recuo ainda maior e questionar
onde, na modernidade, poder-se-ia encontrar os primeiros indícios dessa concepção.
Tudo levava a crer que isso deveria ser buscado no século XVII, mais particularmente
em T. Hobbes.
Acreditei, então, poder isolar, dizendo as coisas de forma muito rude, um bloco
conceitual que ia de Hobbes até os denominados materialistas franceses. Houve um
trabalho intenso na tentativa de isolar certos conceitos capitais, certas noções-chaves e ir
vendo, por assim dizer, como se mantinham ou se transformavam no decorrer do tempo.
Esse projeto, durante um certo tempo, revelou-se frutífero, e parecia, de fato, que se
poderia isolar um conjunto de conceitos que se perfilavam de forma a indicar que uma
nova concepção da vida passional delineava-se na modernidade.
Mas, um estudo mais atento dos textos revelou que estava tratando, como uma
unidade algo que não possuía esse atributo. Considerações mais cuidadosas acabaram
mostrando que dever-se-ia considerar duas grandes mutações — operadas, no entanto,
sobre uma mesma matriz — uma em Hobbes e a outra, surpreendentemente, no Traité
des Sensations de Condillac. Esse intervalo, tudo levava a crer, estava recheado de
interrogações e hesitações. Percebi também, nesse meio tempo, que um autor que não
tinha cogitado de início exercia um papel fundamental: Malebranche.
Ao mesmo tempo que esse trabalho desenrolava-se nessa linha, um pouco por
acaso, no início, deparei-me com a famosa “querela do luxo”. Estudando-a com mais
atenção percebi que ela refletia de forma exemplar, embora vaga, esse conjunto de
novas concepções, o que aumentou a convicção sobre o caminho que havia escolhido.
Daí, por diante, fazendo uma espécie de jogo de vai-e-vem, procurei ir
progressivamente isolando os temas centrais que funcionavam como pólo — muitas
vezes distantes — de orientação na “querela do luxo” e ir examinando como essas
mesmas concepções se articulavam de forma mais clara e fundamentada em certos
textos centrais. Gostaria, no entanto, de prevenir o leitor de que as coisas não se passam
de forma cristalina como esse quadro esquemático que acabo de traçar pode dar a
entender. Neste terreno pode-se achar correspondências mas nunca a tal ponto que de
um conjunto a outro a relação seja biunívoca. Elas funcionam muito mais como quadros
orientadores.
A partir disso, este trabalho ordenou-se de forma mais ou menos natural. Parti de
uma exposição sobre os problemas conceituais envolvidos na “querela do luxo” —
querela longa e multifacetada. Em seguida, procurei isolar um grupo de conceitos que
articulam pela primeira vez na modernidade uma nova concepção da vida passional.
Depois tratei desse período intermediário — que aos meus olhos aparece como muito
hesitante e embrulhado conceitualmente. Por fim, tentei examinar como esses conceitos,
de uma certa forma, rearticulam-se na segunda metade do século XVIII.
Uma palavra quanto ao título deste estudo. Como percebi que o que estava no
horizonte de minhas inquietações eram os fundamentos da vida passional na idade
moderna, meu primeiro impulso foi assim intitulá-lo. Mas, logo percebi a enorme
pretensão aí contida, e a que, nem de longe, este trabalho faz jus. Procurei um título
mais modesto que indicasse melhor o seu conteúdo. Cheguei a este, mas confesso que
ainda não estou satisfeito. Ele reflete muito mal a limitação do campo de estudo.
Infelizmente não encontrei outro melhor e espero que esta introdução possa contribuir
para dissipar possíveis mal-entendidos.
Afirmei que este texto nasceu de uma suspeita e que acaba numa hesitação. A
primeira já explicitei. Com relação à segunda, embora considere, levando em conta meu
ponto de partida, que tenha avançado razoavelmente, hesito muito sobre o valor e o
alcance do que aqui é afirmado. Tendo, na verdade, a conferir um peso muito relativo e,
embora considere esta pesquisa suficientemente autônoma, tenho consciência de que
nada mais é que uma etapa e que precisa ir mais longe. Por essa razão evitei, no final,
extrair algumas conclusões que considero apressadas.
Quanto ao modo de tratamento, resolvi, em primeiro lugar, que era melhor, na
medida do possível, deixar que os próprios textos falassem por si mesmos. Tenho
freqüentemente a impressão de que muito comentário acaba, às vezes, por obscurecer.
Não que tenha me eximido da tarefa. Quando julguei necessário, o fiz. Mas procurei
reduzir ao que considero razoável. Isso tem sua contrapartida: em alguns momentos há
um excesso de citações. Foi o preço a pagar.
Por fim, gostaria de salientar dois ou três pontos que, talvez, chamem a atenção
do leitor. Em primeiro lugar, constatar-se-á isso facilmente, evitei cuidadosamente
certas generalizações no decorrer do trabalho. Generalizações que, talvez, sejam válidas
mas a respeito das quais não estou totalmente seguro. Não procurei, enfim, reconstituir
epistemés de diferentes épocas. Em segundo lugar, esta pesquisa não teve a pretensão de
ser exaustiva. Não foi minha intenção arrolar e analisar todos os autores que, na época,
trataram do tema. Procurei seguir um filão, como já indiquei, trabalhando
retroativamente, como um detetive que reconstrói uma história. História parcial, sem
dúvida mas que, nos seus limites, parece-me correta. Por último, não pretendi também,
nas análises positivas que procuro realizar, esgotar um tema num determinado autor.
Salientei apenas aquilo que julguei pertinente para esclarecer a trama de uma
problemática. Assim, o especialista neste ou naquele autor poderá sentir-se
decepcionado com o tratamento a eles conferido. Tenho consciência dessa limitação,
mas é a conseqüência de inserir um autor ou texto numa determinada questão que se
desenrola historicamente.
NOTAS
1 Sade, Oeuvres Complêtes, Paris, Pauvert, 1986. Até agora foram pub1icados,
ao que me consta, quinze volumes.
2 Uma honrosa exceção é J. Deprun que tem realizado estudos notáveis sobre o
enraizamento de Sade no século XVIII. Veja-se, por exemplo, seu estudo “Sade et la
Philosophie Biologique de son temps” in Le Marquis de Sade, Paris, Annand Colin,
1968, p. 189 e seg.
3 Assim, por exemplo, todo o longo discurso de Delbène no início da Histoire de
Juliette é uma cópia do Le Bon Sens du Cure Meslier de Holbach. Foi Deprun o
primeiro a apontar isso.
4 Que, é bom não esquecer, é o núcleo do pensamento dos materialistas
franceses, como mostrou Cassirer no seu A Filosofia do Iluminismo, Campinas, Editora
da Unicamp, 1992, p. 103.
5 Para não criar falsas expectativas, como o leitor verá logo mais, não temos a
pretensão de ter elucidado totalmente essa questão. Podemos dizer que, agora, elas não
são tão vagas para nós.
I
LUXO
1. Como fio condutor de nossa análise seguiremos uma sugestão de R. Hubert,
contida no seu clássico Les Sciences Sociales dans l’Encyclopédie, onde ele afirma: “O
problema do luxo é um daqueles onde a evolução das idéias, no decorrer do século
XVIII, é a mais característica”.1(HUBERT,1970, p.305-6). De fato, o exame da
chamada “querela do luxo” mostra-se exemplar para se tentar compreender o conjunto
das transformações conceituais operadas entre os fins do século XVII e o século XVIII,
pelo menos na sua generalidade, já que expressa, às vezes direta, às vezes
indiretamente, a lenta mutação e constituição das novas concepções (sobre o desejo e o
prazer).
2. Em 1736 Voltaire publica um poema, com mais ou menos uma centena e meia
de versos, intitulado Le Mondain. Enviou aos amigos com a recomendação expressa de
que não se desse publicidade, o que não aconteceu e acabou redundando num exílio
rápido do autor na Holanda. Nesse meio tempo, escreve um outro poema: Défense du
Mondain ou Apologie du Luxe.2 (VOLTAIRE, 1883-1885, p.83-87 e 90-93)
Examinemos, o mais rapidamente possível, os conteúdos e os problemas levantados.
Em linhas gerais, o Le Mondain obedece mais ou menos ao seguinte esquema:
os v. 1-4 tentam mostrar que é inútil pensar que os tempos antigos (austeros e rústicos)
foram melhores que os tempos atuais; os v. 5-10 realizam uma apologia dos tempos
modernos (“Eu agradeço à Natureza sábia / Que, para meu bem, me fez nascer nesta
época / Tão difamada por nossos pobres doutores: / Esta época profana é perfeita para
meus costumes / Amo o luxo e até mesmo a volúpia, / Todos os prazeres, as artes de
toda espécie / O asseio, o paladar, os ornamentos: / Todo homem de bem tem tais
sentimentos”). Os v. 11-12 constituem a defesa dos efeitos da abundância; os v. 30-60,
uma contraposição do estado de natureza e o de sociedade. Os v. 22-30 e 61-112
mostram que o luxo é responsável pelo incremento do comércio, sendo, portanto,
vantajoso para o desenvolvimento e a riqueza das sociedades. O final do poema é uma
crítica ao Telêmaco de Fénelon.
Quando lhes falamos dos povos que têm a arte de fazer construções
soberbas, móveis de ouro e prata, tecidos ornados com bordados e
pedras preciosas, perfumes maravilhosos, iguarias deliciosas,
instrumentos cuja harmonia encanta, eles respondem nestes termos:
Esses povos são muito infelizes por ter empregado tanto trabalho e
indústria para corromper-se a si mesmos! Esse supérfluo enfraquece,
inebria e atormenta aqueles que o possuem; ele tenta aqueles que dele
são privados a querer adquiri-lo pela injustiça e pela violência. Pode-se
chamar de bem um supérfluo que só serve para tornar os homens maus?
Os homens desses países são mais sãos e mais robustos do que vós?
Vivem mais tempo? São mais unidos entre si? Levam uma vida mais
livre, mais tranqüila, mais alegre? Ao contrário, eles devem ser
invejosos uns dos outros, corroídos por um temor, pela avareza,
incapazes dos prazeres puros e simples, visto que eles são escravos de
tantas falsas necessidades das quais fazem depender a sua felicidade. 8
(FÉNELON, 17--,p.118).
...o luxo envenena toda uma nação. Dizem que este luxo serve para
alimentar os pobres às expensas dos ricos; como se os pobres não
pudessem ganhar sua vida mais utilmente, multiplicando os frutos da
terra, sem enfraquecer os ricos por refinamentos de volúpia. Toda uma
nação acostuma-se a ver as coisas as mais supérfluas como as
necessidades da vida: todos os dias inventam-se novas necessidades, e
não se pode mais passar-se de coisas que não se conhecia trinta anos
antes... Este vício, que atrai tantos outros, é louvado como uma virtude:
ele dissemina seu contágio desde o rei até o último da ralé do povo. Os
parentes próximos do rei querem imitar sua magnificência; os grandes,
aquela dos parentes do rei; as pessoas medíocres querem igualar-se aos
grandes;... os pequenos querem passar por medíocres; todo mundo faz
mais do que pode; uns por ostentação, ...outros por má vergonha e para
esconder sua pobreza... Toda uma nação arruína-se, todas as condições
confundem-se. 11(FÉNELON, 17--, p.299).
É preciso fazer entender a esta jovem pessoa que é o luxo que confunde
todas as condições, que eleva as pessoas de baixo nascimento e
enriquecidas depressa por meios odiosos, acima das pessoas de
condição a mais distinguida; que é esta desordem que corrompe os
costumes de uma nação, que excita a avidez, que habitua às intrigas e às
baixezas, e que pouco a pouco sapa todos os fundamentos da probidade.
Ela deve compreender também que uma mulher, por maiores que sejam
os bens que esta traga a uma casa, logo a arruína se introduz ali o luxo,
com o qual nenhum bem pode ser suficiente. 17
(FÉNELON, 17--, p. 259-60).
As teses de Fénelon são bem claras. Elas apontam também para certas
características da natureza humana às quais nosso autor prende-se firmemente: um ideal
estrito de predomínio da razão, que deve dominar as paixões e conduzir a vida do
sujeito, a qual deve ser regrada e produtora do útil necessário. A inquietude não deve
fazer parte da vida humana. Deve ser banida:
se alguma vez ele escuta falar dos primeiros homens ou dos patriarcas,
de sua vida campestre e de sua economia, ele se espanta de que se tenha
podido viver em tais épocas onde ainda não havia nem escritórios, nem
comissões, nem presidentes, nem procuradores; ele não compreende que
alguma vez se tenha podido passar-se do cartório, do ministério público
e do botequim. 2l(BRUYÉRE, 1950, p.142)
Seu desprezo por esse tipo de gente acresce-se ainda mais pela sua “molesse”,
desconhecida dos antigos, nos quais não se os via, quando saíam de um jantar,
montarem numa carruagem, já que estavam persuadidos de que os “homens têm pernas
para andar e eles andavam”. 22(BRUYÉRE, 1950, p.142) Seus costumes eram austeros,
cuidando de seus próprios negócios: “Em todas as coisas eles contavam consigo
mesmos”. 23(BRUYÉRE, 1950, p.142) Sua “despesa era proporcional à sua receita” e
tudo era medido segundo suas rendas e sua condição e assim “passavam de uma vida
moderada à uma morte tranqüila”24 (BRUYÉRE, 1950, p.142)
Eles tinham menos do que nós e tinham o suficiente, mais ricos por sua
economia e por sua modéstia do que por seus rendimentos e por seus
domínios. Enfim, estava-se então penetrado por esta máxima de que
aquilo que nos grandes é esplendor, suntuosidade, magnificência, no
particular é dissipação, loucura, inépcia. 25
(BRUYÉRE, 1950, p.142)
7. A resposta a essas análises não demorou. E veio de uma das inteligências mais
profundas e mais polêmicas da época: P. Bayle. A crítica de Bayle é executada em
regra: ataca tanto a posição laica, quanto a inspirada na religião. Ambas, é fácil de
perceber, têm um ponto em comum: um certo saudosismo, quando realizam a apologia
dos costumes antigos mais puros e virtuosos. Outro ponto comum é a denúncia do
relaxamento geral dos costumes do presente. É exatamente sobre esse dois pontos que
Bayle inicia sua análise. Um dos inúmeros méritos de Bayle foi começar a colocar em
questão (o que não tinha sido feito seriamente até então) o mito da frugalidade e da
simplicidade dos antigos. Lança a suspeita de que, na verdade, trata-se de uma
construção retroativa elaborada com fins específicos e nem sempre confessáveis. O que
ele quer dizer é, por exemplo, que essa Esparta, rústica, austera, simples, frugal,
honesta, dotada enfim de todas as qualidades cívicas e morais, teria muito menos a ver
com a Esparta histórica do que com a projeção retroativa de um conjunto de valores que
pouco ou nada teriam a ver com ela. O mesmo pode-se dizer da Roma Republicana. E
sabemos o quanto Bayle foi mestre na crítica histórica. Sabia e mostrava que as
reconstruções de um Tito Lívio ou um Comélio Nepos eram falsas. Podiam estar
repletas de intenções morais (e não negava as vantagens resultantes disso) mas não
tinham a menor validade histórica. O que Bayle mostra, de forma cristalina, é que, se os
antigos viveram na frugalidade, isso não se deveu a nenhuma escolha de ordem moral,
mas a uma coação natural. Em outros termos: as sociedades antigas eram pobres. E não
é muito honesto transformar uma necessidade numa virtude: “Não é um grande mérito
renunciar... ao luxo quando se é pobre”.31 A austeridade só deve ser elogiada no campo
moral quando, na presença de um bem, opta-se por renunciar a ele. Não há nenhum
mérito no caso daquele que, além de não ter escolha, nem sequer saber que ele existe:
Quanto a essa frugalidade tão elogiada, ela não era uma supressão das
coisas supérfluas, ou uma abstinência voluntária das agradáveis, mas
um uso grosseiro daquilo que se tinha entre as mãos. Não se desejava as
riquezas que não se conheciam: contentavam-se com pouco por não
imaginar nada a mais; passavam-se dos prazeres dos quais não tinham
idéia. 32 (BAYLE, p.157, apud Morize, p.67)
______________
31 Como não tivemos acesso direto aos textos de Bayle, todas as referências são indiretas.
Pedimos, desde já, desculpas ao leitor. Nossas principais fontes foram a introdução de Kaye à Fábula das
Abelhas (cf. nota 15) e o texto de A. Morize, citado na nota 7. O texto de Bayle, acima citado, está em
Réponses aux Questions d’un Provincial, cap. 7, obs. III, apud Morize, p. 46-7.
E se isso, um dia, configurar-se como problemático:
Nada existe na terra tão universalmente sincero como o amor que todas
as criaturas, capazes de senti-lo, se professam a si mesmas; e como não
há amor que não desvele o cuidado de conservar o objeto amado, nada
há mais sincero, em qualquer criatura, que sua vontade, seu desejo e seu
empenho de conservar-se a si mesma. E lei da Natureza que todos os
apetites ou paixões da criatura tendam diretamente ou indiretamente à
preservação tanto de si como de sua espécie. 39(MANDEVILLE,
op.cit., p.21)
Num país onde todos andam descalços, o que fez o primeiro par de
sapatos tinha luxo? Não era um homem muito sensato e muito
industrioso? Isso não vale também para quem fez a primeira camisa?
Quem a fez esbranquiçar foi um gênio pleno de recursos capaz de
governar um Estado. Entretanto, aqueles que não estavam acostumados
a vestir camisas o tomaram por um rico efeminado que corrompia a
nação. 47(VOLTAIRE, op. cit., sec I, vol. XX, p.45).
Da mesma forma, como não se sabe quando começa, é difícil detectar também
quando termina ou quando passa a ser nocivo:
O que é, com efeito, o luxo? É uma palavra sem idéia precisa, mais ou
menos como quando dizemos os climas do oriente e do ocidente: não
existe, com efeito, oriente e ocidente. Não há ponto onde a terra se
levanta ou se deita, ou, se querem, cada ponto é oriente e ocidente. Dá-
se o mesmo com o luxo: ou não existe ou está em todo lugar. 50
(VOLTAIRE, 17--, p. 363-4)
Voltaire, como é fácil de ver, pode ter provocado grande ebulição quando
publicou o Le Mondain. Mas, nem nesse texto, nem na grande maioria dos que escreveu
posteriormente foi, propriamente, um inovador. Retoma quase sempre os argumentos de
Bayle e, sobretudo, de Mandeville. Cobre-os, embeleza-os, dá a eles sua tintura
particular, produzindo textos brilhantes e inigualáveis. Mas não vai muito mais longe.
Exceto em dois pontos, onde seu papel parece ter sido decisivo. Examinemos o
primeiro. Num desses giros muito característicos de Voltaire, ele acaba fazendo o feitiço
virar contra o feiticeiro e é, não sobre a noção de supérfluo que joga sua atenção, mas
sim sobre a de excesso. Foi esse o grande golpe de gênio de Voltaire, quando acaba por
inverter as posições e passa do papel de advogado de defesa ao de acusador. Trata-se de
um momento importante e delicado nessa longa e intrincada disputa sobre o luxo e, de
agora em diante, serão os próprios apologistas da frugalidade que se vêm na obrigação
de dar explicações. Isso tudo, Voltaire conseguiu com uma simples frase:
10. A abordagem de Hume foi discreta, mas nem por isso deixou de ser
importante:
Sua posição é ao mesmo tempo clara e nuançada. Clara porque, nas pegadas de
Mandeville e Voltaire, considera o luxo como algo que pertence à classe do consumo
produtivo e, portanto, em geral, benéfica. Nuançada porque realiza a distinção entre um
luxo inocente e outro vicioso, O que entende por luxo vicioso deixa apenas entrever
num exemplo:
O que ele chama luxo vicioso parece ser o que entendemos por monomania ou
idéia fixa. Não deixa de lembrar também Luís XIV e Versailles. A idéia que nos vem,
por exemplo, é a de um jogador cuja paixão foi levada a tal ponto que absorve toda sua
vida e drena todos os seus bens. Mas, nem nesses casos, Hume considera o luxo como
“o pior dos males da sociedade política”.57
A análise de Hume centraliza-se num ponto de vista socioeconômico. Os
homens, desde que deixaram o estado selvagem onde viviam principalmente da caça e
da pesca, dedicaram-se à agricultura, que de início ocupou a parte mais numerosa da
sociedade. Mas, o aperfeiçoamento da técnica levou ao estado em que bem poucos
homens, proporcionalmente, são necessários para garantir a subsistência dessa mesma
sociedade. Todo o problema, diz Hume, está em o que fazer com esse excedente de
mão-de-obra da agricultura. Pode-se usá-lo ou para o engrandecimento e o poder do
Estado (exércitos, frotas) e o aumento de seus domínios, ou pode-se usá-lo para a
produção de manufaturas e objetos mais refinados. Alguns Estados antigos preferiram a
primeira via e só se tornaram poderosos exatamente pela “ausência do comércio e do
luxo”. 58(HUME, “Sobre o Comércio”, ed. cit., p. 186-7.) Mas esses casos são
excepcionais e não instauram uma regra e, neste caso, podemos seguramente dizer que
“a política antiga era violenta e contrária ao curso natural e comum das coisas”.59
(HUME, “Sobre o Comércio”, ed. cit., p. 188.) Já que tudo no mundo é “adquirido pelo
trabalho”, causado pelas nossas paixões, e é natural que toda pessoa goze “dos frutos de
seu trabalho, em plena posse de todo o necessário e de muitas das comodidades da
vida”.60 (HUME, “Sobre o Comércio”, ed. cit., p. 191.) E esse é o “curso comum das
coisas humanas” e a boa política consiste em “concordar com a inclinação comum da
humanidade e dar-lhe todos os melhoramentos de que é suscetível” e, conforme o
“curso natural das coisas, a indústria, as artes e os negócios aumentam tanto o poder do
soberano quanto a felicidade dos súditos e é política violenta aquela que engrandece o
público à custa da pobreza dos indivíduos”.61 (HUME, “Sobre o Comércio”, ed. cit., p.
188.) É sob essa ótica que os indivíduos conseguem realizar sua felicidade pois os
homens, quando a indústria e a técnica florescem “mantêm-se em ocupação constante e
desfrutam da própria ocupação como sua recompensa, bem como dos prazeres que são o
fruto do seu trabalho”.62 (HUME, “Sobre o Refinamento...”, ed. cit., p. 194.) As
vantagens de se seguir as inclinações naturais dos homens são múltiplas: quanto mais se
requintam no prazer, menos se abandonam ao excesso de qualquer tipo.63 (HUME,
“Sobre o Refinamento...”, ed. cit., p. 195.) Essa produção e consumo desses artigos
ornamentam a vida multiplicando as satisfações inocentes, e são úteis também à
sociedade porque produzem não só um excesso, que pode ser estocado em caso de
necessidade futura, como também mantém uma mão-de-obra potencial disponível ao
Estado, caso ele venha precisar dela, já que ela não produz o essencial.64 (HUME,
“Sobre o Comércio”, ed. cit., p. 188-9.) Distribui melhor a riqueza no interior da
sociedade, e “onde as riquezas estão na mão de poucos”, estes detêm todo o poder e,
inevitavelmente, conspirarão para deixar todos os encargos aos pobres.65 (HUME,
“Sobre o Comércio”, ed. cit., p. 191.)
É falso, enfim, pensar numa opção frente ao problema de excedente provocado
pelo excesso de refinamento da agricultura. E mais: mesmo nos estados onde o Estado
era o valor único e primeiro, não foi o luxo o causador de suas desordens. Este “não
possui a tendência natural de acarretar a venalidade e a corrupção”. 66 (HUME, “Sobre
o Refinamento...”, ed. cit., p. 197.) Suas desordens procederam de um “governo mal
formado e da extensão ilimitada de suas conquistas”.67(HUME, “Sobre o
Refinamento...”, ed. cit., p. 197.) Essa é a fonte de seus males e é por isso que o luxo,
mesmo vicioso, não é o pior dos males num Estado. De nada adianta combater o luxo.
Ele por si só é geralmente beneficioso ou, pelo menos, inócuo. De um só golpe Hume
praticamente inocenta o luxo, insere-o na cadeia natural dos eventos sociais
(econômicos, seria melhor) e desloca o acento das necessidades do Estado para as
necessidades do indivíduo. O luxo agora é a conseqüência natural das matrizes
passionais do ser humano — desejo de ação, de prazer, e de consumo — e insere-se no
plano econômico, ligado ao desenvolvimento da indústria e do comércio. Ele é um dos
elementos essenciais do desenvolvimento do corpo produtivo. Dupla ação, portanto,
alocação do luxo como um problema econômico (e desligamento da esfera moral), que
deve ser tratado como tal, e sinalização de que os males do Estado têm por causa — não
o luxo — mas algo que está na esfera do político.
Se ainda pode-se dizer com Hume que o “luxo” é uma palavra polissêmica e que
se trata, portanto, de uma questão de delimitação, ninguém melhor que Hume até então
realizou esta operação de precisão do conceito. Pode-se argüir indefinidamente sobre
onde o luxo começa e onde acaba, argumentar sobre a relatividade geográfica e
histórica; o fato é que seu único ponto sólido de ancoragem é o econômico, sustentado
por uma teoria do valor baseada em constantes da natureza humana.
Esse texto é revelador, em primeiro lugar, da distância que foi percorrida nessa
discussão e que Voltaire espelha tão bem. Uma certa acepção do termo luxo já não se
discute mais: sua bondade, sua utilidade e seu caráter natural à espécie humana. Em
segundo lugar, se há um sentido em que o luxo pode ser condenado (“Neste sentido...”)
é aquele supérfluo, que é o privilégio de uma minoria rica. Mas isso diz respeito,
diretamente, à legislação e não à moral privada. Trata-se de um problema de política,
não de ética: da boa gestão e distribuição dos bens que são gerados e produzidos na
sociedade. Essa espécie de luxo condenável nem é má em si mesma, como veremos, já
que é um efeito e, mesmo como efeito, nem sempre é condenável.
Ele é o uso que se faz das riquezas e da indústria para se conseguir uma
existência agradável. 74 (LAMBERT, 17--, p.235)
Em seguida, realiza um longo exame dos argumentos que foram arrolados pró e
contra o luxo. Não vale a pena deter-se neste ponto na medida em que não apresenta
novidade em relação ao que já discutimos. A primeira coisa interessante a constatar é a
conclusão que extraí após esse balanço: tanto os elogios como as censuras que se fazem
ao luxo não são contraditos pela história. O que significa dizer que a história não é um
bom “topos” para se trabalhar a questão. E preciso encará-la sob outro ângulo. E a
maneira como ele a coloca pode ser expressa da seguinte forma: se os apologistas do
luxo vêem nele o motor dos progressos das nações, enquanto que seus detratores vêem
nele o motor de sua decadência, e como ambas as coisas podem ser constatadas no
plano histórico, não se estaria tomando como causa e como efeito algo que não é nem
uma coisa nem outra? 75 (LAMBERT, 17--, p.241) E, logo em seguida, afirma:
O interesse pessoal, sem que ele se tenha tornado amor pelas riquezas e
pelos prazeres, enfim, se tornado estas paixões que levam ao luxo, já
não produziu, seja junto aos magistrados, seja junto ao soberano ou ao
povo, mudanças na constituição do Estado que o corromperam? Ou este
interesse pessoal, o hábito, os prejuízos impediram de fazer mudanças
que as circunstâncias tinham tornado necessárias? Enfim, na
constituição, na administração, não existem defeitos, imperfeições que,
muito independentemente do luxo levaram à corrupção dos governos e à
decadência dos impérios?76 (LAMBERT, 17--, p.242)
Esse texto, precioso, e ao qual teremos de voltar, mostra claramente que existe
um desejo natural de produzir e gozar dos bens, das comodidades, o que excita a
produção das artes e indústrias. É esse desejo que conduz os homens a instalarem-se no
luxo e, num governo onde a propriedade está instalada, esses desenvolvimentos
acontecerão inevitavelmente. Como a sociedade igualitária é uma utopia e algo contra
essas inclinações naturais, elas até podem cristalizar-se historicamente, mas estão
condenadas ao fracasso, porque não seguem o curso natural. St.-Lambert leu Hume, que
é citado78 (LAMBERT,17--, p.240) e soube aproveitar as lições do filósofo. Os homens
podem produzir um excesso e querem usufruir dele. Nada mais natural. O importante,
nos avisa, é, de agora em diante, não confundir mais as coisas. Se há uma raiz dos males
e dos benefícios, esta se encontra na noção chave de interesse próprio e, para bem
administrá-lo — sendo fiel discípulo de Shaftesbury e seu tradutor, Diderot 79
(SHAFTESBURY, 1969, p.175 e seg.; DIDEROT, 1821, p.43 e seg) — basta
subordiná-lo ao “espírito de comunidade que torna o luxo benéfico e indefinido
temporalmente”. Deve-se também ligá-lo às outras paixões, formando assim um todo,
uma cadeia coerente, coesa e funcional. Como diz Hubert:
Assim, são os estados mal administrados que conduzem esse efeito concomitante
do social — o luxo — aos descaminhos, assim como os bens administrados farão com
que ele só produza efeitos benéficos. Nos primeiros ele se torna excessivo todas as
vezes que os particulares sacrificam, absolutamente, ao seu fasto e às suas comodidades
e fantasias, os seus deveres para com os interesses da comunidade. Mas é preciso ter
consciência de que. nestes casos, os particulares assim conduzem porque há um grave
defeito na constituição do Estado. Agora, o luxo está inocentado:
Assim, a natureza humana tem um impulso natural, uma inclinação pelo luxo,
esse gosto pelo supérfluo que parece ser inerente à sua essência. Daí porque não ser
correto falar em homens não luxuosos: isso só acontece em condições excepcionais ou
anormais. O exemplo de Ferguson, já citado 89, onde evoca “os fantásticos adornos de
plumas dos selvagens” é dos mais significativos. Mas, mais importante, é a conclusão
que Ferguson extrai:
...é a fantasia dos homens que dá valor a essas coisas frívolas; é esta
fantasia que faz viver cem operários que emprego; é ela que me dá uma
bela casa, uma carruagem cômoda, cavalos; é ela que excita a indústria,
sustenta o gosto, a circulação e a abundância. 91 (VOLTAIRE, 17--,
p.9)
14. Chegamos, assim, a alguns pontos centrais que, no entanto, são ainda
extremamente obscuros. A análise da “querela do luxo” aponta para determinados
atributos do desejo, da imaginação, da fantasia que se enlaçam para formar a idéia de
um processo que não tem fim, indefinido, ilimitado, que nunca estanca e sempre avança.
E dificilmente nos textos considerados clássicos sobre o assunto encontraremos alguma
luz. Tomemos, por exemplo, o tema da imaginação: de Locke a Holbach, ele é sempre
definido como o poder do espírito de reproduzir sensivelmente na mente objetos
ausentes. O que descobrimos, no entanto, a respeito da mesma faculdade, quando
Holbach faz seu requisitório contra o luxo? Que é insaciável, ilimitada, incessantemente
inquieta:
15. Uma primeira tentativa de resposta a essas questões, ou, pelo menos um
esboço, estaria nas seguintes considerações. Já que estamos tratando de ciclos naturais
(ciclos biológicos, característicos dos animais, mesmo os que vivem em associação,
como as abelhas) e ciclos não-naturais, característicos dos homens (já que não se pode
conceber a vida humana sem eles, a não ser em condições patológicas, como vimos), a
grande oposição estaria, portanto (e não é nisso que se insiste tanto nessa discussão
sobre o luxo?) entre o natural e o artificial. Mas, poder-se-ia questionar: não se trata, em
última análise, de uma falsa oposição, no caso em questão? Foi o partido que tomou
Ferguson no seu Ensaio sobre a História da Sociedade Civil. A arte, segundo Ferguson
(não se esquecendo de tomar esse termo na acepção que ainda tem no século XVIII de
artes mecânicas, tecnologia, além de arte, propriamente dita, mais conhecida como
belas-artes), estaria incrustada na natureza humana, faz parte integrante dela, de modo
que não há o menor motivo para espanto ao se detectar essa diferença básica entre
homens e animais:
“O amor pelos supérfluos foi, em todas as épocas, o motor do homem” (ed. Cit.,
p. 587).
O único texto que deve ser levado em consideração, parece-nos, é o de Diderot
(“Salon de 1767”, in Oeuvres Complètes, ed. cit., IX, p. 137-53). O texto é difícil, cheio
de nuances e, sobretudo, sua compreensão é embaraçosa porque, embora seu objeto
explícito seja a relação das belas-artes com o luxo, Diderot trabalha em vários níveis.
Uma coisa é certa: Diderot mostra muito claramente que o bom luxo (o luxo de
comodidade) é perfeitamente pensável fora dos quadros da premissa do consumo cada
vez maior e mais rápido. Aqui Diderot e Hume estão longe um do outro. Retomando um
título famoso, para Diderot o desenvolvimento do luxo e do capitalismo não são
sinônimos. É perfeitamente possível pensá-lo numa ordem estritamente fisiocrática que,
aliás, é a premissa da sua análise. Para nossos propósitos, a importância do texto está
principalmente aí. Mas ele bem merece uma análise detalhada.
84 Ver o texto referido na nota 1.
85 Basta lembrar a critica de D. de Tracy, mencionada anteriormente.
86 De qualquer maneira é sintomático que depois de aproximadamente 1770
(colocamos a data apenas para fixar as idéias), mesmo os críticos do luxo já aceitam a
idéia de que o luxo é uma inclinação natural do ser humano. Holbach, por exemplo, um
crítico ferrenho do luxo, que propunha leis rigorosas contra sua expansão, afirma na
Ethocracie (G. Olms, 1973, cap. VIII, p. 134), num determinado momento, o seguinte:
“...o luxo, isto é, o gosto das despesas supérfluas é, até um certo ponto, o efeito
de uma inclinação natural do homem para procurar incessantemente prazeres novos...”
(ed. cit., p. 95).
O luxo, agora, para esses autores, tem o mesmo estatuto do sexo: uma inclinação nataral
que deve ser reprimida.
87 Mandeville, op. cit., p. 133.
88 Ibid., p. 246.
89 Cf. nota 7l.
90 Ferguson, op. cit., p. 311.
91 Voltaire, Le Monde comme il Va, XXI, p. 9.
92 Holbach, Système Social, G. Olms, 1969, T. III, p. 64-5.
93 Ferguson, op. cit., p. 9-10.
94 Por exemplo, no texto anônimo, L’Âme Materielle, Rouen, s.d., p. 80. Devo à
amabilidade do Prof. Roberto Romano o conhecimento desse texto capital. Que ele
encontre aqui meus agradecimentos.
II
DESEJO
1. As mudanças operadas no universo mental dos homens na modernidade foram
de tal monta que até hoje ainda tentamos entendê-las. Até os fins da Idade Média —
salvo exceções — a representação do cosmos era hierárquica. De Platão até o século
XV, aproximadamente — a obra monumental de Duhem o mostra1(DUHEM, 1958-
1973) — elaborou-se e sofisticou-se uma concepção do mundo que perdurou por
séculos. Concepção geocêntrica, de um universo esférico, que supunha uma divisão
entre o mundo sublunar e supralunar, ambos submetidos a ordens diferentes, onde a
noção de “lugar natural” ocupa um posto central e, em conseqüência disso, a noção de
movimento retilíneo sempre aponta para uma “desordem cósmica”, uma “ruptura de
equilíbrio” 2 (KOYRÉ, 1986, p.23) e deve sempre ser passageira. Cosmos ordenado,
fechado, hierarquizado, onde cada objeto tem seu lugar determinado.
Essa visão desmoronou-se em pouco espaço de tempo. Unifica-se o espaço,
instaura-se o heliocentrismo e — sobretudo — a física matematiza-se com uma
velocidade prodigiosa. Os sábios começam a pensar o universo em termos atômicos.
Partículas que percorrem um espaço e um tempo determinados. Já não se pensa mais
com as categorias da Escola. E, entre a Escolástica e o Mecanicismo, instala-se um
naturalismo confuso e vago no Renascimento que, apoiado numa biocosmologia,
estranha para nós, pensa o mundo em termos, por exemplo, de simpatias, antipatias,
analogias, influências do supralunar sobre o sublunar. O mecanicismo, como mostrou
Lenoble3,(LENOBLE, 1943, p.5 e seg) terá que enfrentar duramente esse adversário
antes de triunfar.
O espaço geometriza-se pouco a pouco, o movimento emancipa-se, o cosmos
desmembra-se 4 (KOYRÉ, op. Cit., p. 93.) de um lado, e de outro unifica-se, porque
não há um acima e um abaixo, regulado por normas diferentes. O universo
homogeneiza-se. Perguntemo-nos, diz um autor, o que aconteceu quando se passou a
pensar em termos mecânicos coisas que até então eram representadas de forma
teleológica; “quando as explicações teleológicas — explicações baseadas no conceito de
utilidade e Bem — abandonam-se definitivamente em favor da noção que as verdadeiras
explicações do homem e de seu espírito, assim como as demais coisas, devem ser em
termos de suas partes mais simples; o que ocorreu entre 1500 e 1700 para que pudesse
cumprir-se essa revolução”. 5 (BURTT, 1960, p.27) As respostas não são fáceis de
serem obtidas e até hoje tenta-se encontrá-las.
Mas não foi só com relação à representação do mundo físico que as coisas
mudaram radicalmente. O universo antigo é ordenado, fixo e hierarquizado, não apenas
desse ponto de vista, mas de outros também. Sobretudo um que nos interessa
particularmente. Se excetuamos o epicurismo, a antigüidade sempre teve uma
concepção similar, com relação ao universo, do ponto de vista ético.6 Há valores
objetivos aos quais os diferentes sujeitos devem se subordinar. O Bem é uma estrutura
objetiva que está incrustada na realidade, e a qual os sujeitos devem se regular. Há uma
hierarquia objetiva dos valores, que culmina na noção de “summum bonum”, que se
mantém através dos séculos.
Isso implicou uma certa compreensão do mundo ético que incidiu diretamente
sobre a concepção clássica das paixões, que é o ponto que nos interessa nesse debate. Se
há um bem objetivo, ao qual o sujeito deve aspirar, é a esse mesmo Bem que ele deve
tender para realizar sua perfeição ética. Esse Bem deve ser conhecido pelo sujeito e,
através desse ato inaugural, ele tenderá irresistivelmente à posse desse Bem. O ato
subseqüente é a atração irresistível que esse objeto deve exercer no sujeito.
Conhecendo-o, ele o amará. E esse amor ao Bem é que deverá guiar toda a dinâmica de
suas paixões. O fim de todas as suas ações deve para aí tender. Existe uma estrutura
teleológica objetiva à qual os sujeitos devem se submeter. Assim, em Santo Tomás, a
felicidade humana está na contemplação de Deus, bem supremo por excelência. 7
(TOMÁS, 1967, p. 172-4) E, nessa estrutura, uma certa ordem das paixões se impõe
onde o amor deve predominar, vindo em seguida o desejo e, por fim, a delectação,
segundo a ordem da consecução (e não da intenção):
Santo Tomás, num certo sentido, nada mais faz que codificar aqui uma idéia que
vem desde a antigüidade e que perdurará ainda por muitos séculos. Essa hierarquia das
paixões supõe, portanto, três pares fundamentais, que se ordenam assim:
1. Amor Ódio
2. Desejo Aversão
3. Prazer Desprazer
A corrente tradicional que tem, e terá por muito tempo, um enorme peso
continua defendendo essa “antropologia de inspiração finalista”, segundo a qual o
homem está orientado para um Bem objetivo e transcendente. É essa imantação
exercida pelo Bem que constitui a mola do ser humano e dá inteligibilidade à sua
conduta ética. Aqui, o privilégio está no amor, “raiz primeira de todas as paixões”10
(GILSON, 1942, p.374) Produzida essa relação originária, essa paixão suscita o
movimento apetitivo (desejo) de se apossar realmente do objeto e, tendo isso sendo
atingido, o resultado é o repouso alegre, a satisfação do desejo. 11
Essa tradição, forte, ainda perdura no coração do século XVII. Basta abrirmos o
Traité de 1’Usage des Passions de Sénault, publicado em 1641. Ele é típico e exemplar.
O conhecimento deve preceder e governar as paixões:
É esse amor, não só a primeira das paixões, como também fonte e raiz de todas
as outras:
1) Que o sujeito, onde cor e imagem são inerentes, não possui equivalente no
objeto ou na coisa vista;
2) Que não existe nada, fora de nós, que realmente possa se denominar imagem
ou cor;
3) Que essa imagem ou cor não é senão uma aparência que chega até nós em
virtude do movimento, agitação ou alteração que o objeto produz no cérebro, sobre os
espíritos (animais) ou em alguma substância contida em nossa cabeça;
Nos animais existem dois tipos de Movimentos que lhes são peculiares.
Um deles é chamado de Vital; começa na geração e continua sem
interrupção durante toda a sua vida; deste tipo são a circulação do
sangue, o pulso, a respiração, a digestão, a nutrição, a excreção etc.;
para esses movimentos não é necessária a ajuda da imaginação. O outro
tipo é o do movimento animal, também chamado de movimento
voluntário, como andar, falar, mover qualquer um dos nossos membros,
da maneira como anteriormente ele foi imaginado em nossas mentes.
Pois a sensação é o movimento nos órgãos e partes interiores do
humano, causado pela ação das coisas que nós vemos, ouvimos etc. E a
imaginação é apenas o resíduo do mesmo movimento, permanecendo
após as sensações, como já foi dito no primeiro e segundo capítulos. E
como andar, falar e os outros movimentos voluntários dependem sempre
de um pensamento precedente de como, qual caminho e o quê, é evidente
que a imaginação é a primeira origem interna de todos os movimentos
voluntários. 30
Por outro lado, a instauração de uma relação de tipo ainda finalista (...)
entre desejo e movimento vital torna o estado do puro egoísmo biológico
definitivamente inultrapassável. Nossa tendência a perseverar no ser,
com efeito, não se identifica ao ser no qual tendemos perseverar; ela
não é senão um meio ao seu serviço, movimento destinado a
salvaguardar um outro movimento. E esse ser a salvaguardar é pura e
simplesmente a existência biológica bruta, sem outra especificação. 43
(MATHERON, 1969, p. 88)
Uma leitura mais atenta dos textos parece mostrar como indicamos acima, que é
exatamente a leitura oposta que deve ser feita. Oposta no sentido de que, sem negar esse
solo biológico, percebe-se que ele deve ser ultrapassado. Por outro lado, como veremos
um pouco mais à frente, a existência humana define-se como uma espiral aberta, que vai
de desejo em desejo, e isso só tem fim com a morte. Mais ainda: que o fato básico não
seja apenas a sobrevivência, mas algo mais, o indicam os próprios textos de Hobbes.
Todo ser humano deseja também, além da vida, o prazer, a alegria, a saúde etc. A
própria definição de felicidade hobbesiana é elucidativa:
f) Retomemos o fio de nossa análise. Um outro texto dos Elements of Law nos
esclarecerá sobre as relações entre o par desejo/aversão, tomado agora como originário,
e este outro, prazer/dor:
Na oitava seção do segundo capítulo foi mostrado que concepções e
aparições realmente são apenas movimento em alguma substância
interna da cabeça; este movimento não parando ali, mas prosseguindo
até o coração, aqui ele necessariamente precisa ou auxiliar ou estorvar
o movimento que é chamado de vital; quando o auxilia, ele é chamado
de deleite, contentamento ou prazer, que realmente é apenas movimento
em torno do coração, assim como concepção é apenas movimento na
cabeça; e os objetos que o causam são chamados de prazerosos ou
deleitantes, ou por algum outro nome equivalente.46
(HOBBES, vol. IV, cap. VIII, § 1)
Toda essa análise dos mecanismos passionais, de sua fonte, e de seus efeitos,
tem como conseqüência inevitável o abandono das noções tradicionais de bem e de mal
como realidades objetivas 55 e seu redimensionamento em função do desejo do sujeito.
A lógica de Hobbes é inflexível: assumindo integralmente o mecanismo (e, desse ponto
de vista, é mais coerente que Descartes, no sentido que postula um único tipo de
inteligibilidade para a totalidade do universo), desfinaliza totalmente o universo
objetivo, só admitindo um tipo de finalidade, a subjetiva — decorrente desse
mecanismo, como já vimos — que passa a ser agora o quadro de referência de onde
brotam os valores. Esse é o sentido mais fundo da fórmula: não desejamos as coisas
porque são boas, mas elas são boas porque as desejamos:
Cada homem, de seu lado, chama de bem àquilo que dá prazer e deleite
a ele mesmo, e de mal àquilo que lhe dá desprazer. Na medida em que
todos os homens diferem uns dos outros em sua constituição, eles
também diferem uns dos outros naquilo que concerne à distinção comum
entre o bem e o mal. Também não existe aqui algo como um bem
absoluto, considerado sem relação. 56
(HOBBES, cap. VII, § 3, p.32)
1) La Mettrie:
2) Holbach:
i) O que é, então, o desejo para Hobbes? Ele é algo irredutível e fundante. É ele
quem nos fornece a verdade do sujeito. E diverso nos diferentes sujeitos e no próprio
sujeito no desenrolar do tempo. É ele quem aciona toda a máquina passional do sujeito e
todas as paixões derivadas (esperança, coragem, cólera, ambição, ciúme, admiração,
glória, vergonha, piedade etc. etc.) nada mais são que derivações dos três pares
fundamentais (desejo/aversão; amor/ódio; prazer/desprazer), para estes, como vimos,
que têm como eixo o próprio desejo e nada mais são do que modalidades dele. Essa
derivação supõe a colocação em jogo do espaço inter-humano e através dela instaura-se
o lugar do ser humano no “estado de natureza”.
Esse “estado de natureza” não pode, por definição, ser o espaço da harmonia e
da concórdia porque, na medida em que cada organização individual modela o desejo do
sujeito, cada um obedece a uma lei ou regra que lhe é interna e da qual ele, sujeito, será
a expressão. A ausência de uma Regra Universal que seja aceita por todos faz desse
espaço o espaço do conflito. E isso por diversas razões. Primeiro, porque, como vimos,
a individuação deve ser pensada ao nível do estado de natureza. É nele, propriamente
falando que, num certo sentido, a individuação atinge seu grau máximo. Como diz com
muita precisão, R. Polin:
E, a única saída, portanto, que os homens têm para sair desse estado de conflito e
ameaça constante é a instituição de um pacto, através do qual cada sujeito renuncia a
seu direito (natural) a todas as coisas, com a condição de que os outros façam o mesmo
e deleguem a uma determinada instância o poder de regular, decidir e instituir as regras
e normas, as quais todos os membros do pacto se obrigam a obedecer. Nasce então a
sociedade política, que instaura as leis através das quais os indivíduos devem relacionar-
se entre si. Constitui-se uma instância universal — o Estado — através da qual são
definidos o bem e o mal para os indivíduos no interior dele. Retomemos um texto do
qual já citamos o início 62 e leiamos sua seqüência:
Os homens, assim, atingem uma noção de Bem e de Mal que é aceita por todos,
não porque acabam, um belo dia, descobrindo a natureza do bem e do mal, que esteve
para sempre inscrita na natureza das coisas e que se revelou a eles. Chegam a um
acordo, fundados em razões utilitárias, que é melhor viver sob uma autoridade comum
do que no estado de conflito permanente, e aceitam as regras emanadas dessa instância
(desde que não lese seus direitos fundamentais), como sendo aquela que dita o que é
bom e o que é mau:
Assim, não encontramos normas dos vícios e das virtudes fora da vida
social. Essa norma não pode ser, portanto, senão as leis de cada
Estado... 64 (HOBBES, De Homine, XIII, § 9)
j) Isso tudo, no entanto, tem um outro lado, uma outra faceta que é importante
não esquecer. O Estado, neste sentido e neste nível, é o resultado da metamorfose do
egoísmo pleno ao egoísmo mitigado, que nem por isso deixa de ser egoísmo, apenas
passa a ser um egoísmo ardiloso, astucioso, refletido. Esse egoísmo mitigado é a
condição do seu exercício com a menor taxa de risco. 68 Sejamos mais específicos, à
custa de nos repetirmos: renúncia a que e segurança em relação a quê? Renúncia aos
próprios desejos irrestritamente considerados, e segurança em relação aos desejos
alheios, entendidos da mesma forma. O estado de guerra nasce exatamente de uma
utilização irrestrita do direito de satisfação do desejo. Daí o conflito, a discórdia. Os
desejos colidem, entrechocam, afrontam-se e podem levar à morte. Em outros termos,
se a função do pacto tem por objetivo frear o estado de guerra de todos contra todos, o
único caminho possível para isso é frear os desejos. O objetivo último do pacto é a
dominação do exercício do desejo de forma irrestrita. O objetivo fundamental, portanto,
é limitar o campo do desejo, diminuir sua intensidade, circunscrevê-lo a campos
determinados sujeitá-lo a regras, domesticá-lo, laminá-lo, enfim. Estabelecido o pacto,
instaurada a soberania, constituir-se-á a Lei que definira o Bem e o Mal, o justo e o
injusto, o virtuoso e o vicioso, e são a essas regras que os indivíduos terão de se
submeter. Se no estado natural reinava a pluralidade, agora, introduzida a regra, o
objetivo é introduzir, até onde isso é possível, 69 a identidade, e eliminar as diferenças.
Nesse sentido, e só nesse sentido, é verdadeira uma sentença bastante conhecida que diz
que o Estado se instaura como violência contra o desejo. Em todo caso, como nascemos
e crescemos no interior de sociedades políticas constituídas, praticamente não sentimos
esse trabalho, operado cotidianamente, de docificação do desejo. Trabalho lento e
paciente que nos transforma, usando uma expressão que fez época, em corpos dóceis.
Trabalho onipresente, que praticamente nem vemos e nem sentimos, que se infiltra
sobre nossos corpos e nossas mentes, que nos modela tão bem a ponto de nos sentirmos
felizes na servidão.
É verdade que é inútil e faccioso apenas ressaltar esse lado da questão. Sob essa
condição é todo um mundo novo que emerge aos olhos de Hobbes. 70 Pois essa é a
condição para que os homens realizem suas outras potencialidades, civilizem-se,
adquiram o conforto, a sabedoria etc. Como diz Polin:
O que estes (os indivíduos) querem? Eles reclamam, no mínimo, a
conservação de suas vidas, um estado de segurança razoável que,
colocando-os ao abrigo de toda violência, é o único a justificar sua
renúncia a usar de suas próprias forças para se defender. Eles
procuram, no melhor dos casos, uma vida mais satisfeita, que lhes
assegure o máximo de bem-estar, de satisfação e de comodidades
compatíveis com a condição humana, the ornements and conforts of life,
incluídos aqui o luxo e a riqueza, assim como a cultura da ciência e os
prazeres que as ciências e as artes proporcionam. 71 (POLIN, op.cit.,
p.115)
Não são muitos os textos que expressam, em tão poucas linhas, toda uma
revolução nas concepções, como este.
Hobbes, parece-nos, foi o primeiro pensador na época moderna que repensou
radicalmente os fundamentos da antropologia tradicional. Centralizando suas análises
em função do conceito de desejo, e promovendo este último ao posto de noção-chave,
subverte toda ordem antiga do universo ético-político.
E exatamente esse desejo insaciável e inesgotável que vimos brotar
freqüentemente em nossa análise do problema do luxo. Percebemos agora como, de
fato, a sugestão de R. Hubert, 78 da qual partimos, foi, de fato, fecunda. Aquilo que
fomos detectando como indícios, que apontavam onde estavam centralizados os
supostos da nova análise, adquire agora contornos nítidos e fundamentos sólidos,
através da análise da antropologia hobbesiana. Não se trata de afirmar aqui — embora
isso seja possível e fortes indícios apontem nessa direção — que é a antropologia
hobbesiana quem guia boa parte das análises dos apologistas do luxo. Mas, com certeza,
é o mesmo universo conceitual que está presente, nos dois casos. Lá, mais como
suposto; aqui, em Hobbes, explicitado e fundamentado.
Estamos querendo dizer, enfim, que assim como a análise da querela do luxo só
se esclarece quando investigamos seus fundamentos (ou parte deles, no caso, já que,
como veremos, há muito mais coisas em questão), da mesma maneira, a análise de
qualquer outra manifestação (tome-se, por exemplo, a questão do progresso que vai
emergindo lentamente a partir da mesma época e ilustra-se já na querela dos antigos e
modernos) nesse nível deve seguir o mesmo caminho e, no caso, levar em consideração
que um dos conceitos- chaves que emergem na modernidade (e que funciona boa parte
do tempo como pano de fundo, meio subterrâneo) é o de desejo. Ele será um dos
operadores fundamentais através do qual podemos começar a entender essa longa e
complicada emergência disso que denominamos a compreensão moderna do sujeito.
Esse primado central do conceito de desejo tem um pressuposto e uma
conseqüência. O pressuposto, como vimos, é o conceito de “conservação de si”, de
auto-conservação que pode ser entendido tanto num sentido estreito, no qual significa
auto-conservação biológico-vital, conservação da vida às secas, quanto num sentido
mais amplo, que aponta não só para a manutenção das condições de vida e de sua
reprodução, como também para sua expansão, entendida num sentido mais largo, mas,
em geral, ligada à noção de expansão da própria potência. Tanto Hobbes como Espinoza
tomaram “conatus”, ao nível humano, no segundo sentido, reservando o primeiro ao
domínio animal.
A conseqüência é a de que, se todos os atos do sujeito podem e devem ser
compreendidos através da noção de desejo de conservação de si, então, a totalidade de
seus atos apontam, direta ou indiretamente, nessa direção. Serão sempre atos dessa
natureza que estarão em questão, em todos os níveis possíveis de análise do sujeito. O
egoísmo é a base natural de toda e qualquer ação. Por isso, denomina-se, às vezes, como
avisamos 79 essa corrente, com a expressão, pouco feliz, de antropologia do egoísmo.
O termo egoísmo, nesse contexto, não é unívoco. Seu campo semântico recobre várias
acepções, todas aparentadas. Já vimos que se pode falar num egoísmo pleno e num
egoísmo mitigado, quando analisamos Hobbes. 80 Mas, fundamentalmente, o que
começa a transparecer é essa imensa capacidade do egoísmo de se metamorfosear, de se
disfarçar, inclusive no seu oposto. A famosa dissecação da piedade realizada por
Hobbes (que já vem dos antigos, é verdade) é um exemplo entre muitos que se poderia
dar. Esse desejo de conservação de si será um mestre na arte do disfarce, e a tarefa
consistirá em que a análise vá retirando progressivamente essas camadas que, por
séculos, foram pacientemente depositadas, esse conjunto de juízos de valores que foram
sedimentados em tomo dos fenômenos e que os mascararam e mesmo inverteram seu
sentido. Só depois de operada essa varredura, poder-se-á ter uma visão mais clara de
quem é realmente esse sujeito, que não só disfarça seu egoísmo frente aos outros, mas
também frente a si mesmo.
Compreende-se melhor algo que está apenas assinalado na querela do luxo.
Afinal de contas, instituído o pacto político, e tendo sido freado o desejo, não é o luxo
uma das formas pelas quais esse desejo insaciável pode se manifestar? Por trás da
querela do luxo, percebemos, é todo um conjunto de formas de expressão do desejo que
estão em questão. Não só se redefiniu o ser humano a partir do desejo, mas procurou-se
um espaço legítimo para sua manifestação.
Enfim, colocar o conceito de desejo no centro da análise — e seu correlato, o
egoísmo — significa embrenhar-se por um certo tipo de leitura que atravessará a
modernidade — tendo seu ápice em Nietzsche e Freud — cujas raízes, salvo engano,
estão nessa viragem operada no século XVII. Viragem, portanto, que possibilitou isso
que se resolveu denominar a “leitura da suspeita”. É em pleno coração do século XVII
que encontramos já o primeiro exercício sistemático desse tipo de leitura. Estamos nos
referindo, é claro, a La Rochefoucauld que tomaremos agora, para terminar essa parte
de nosso trabalho, como contraprova disso que viemos analisando até agora.
3.a) Embora se possa, com fortíssimas razões, sustentar uma influência direta de
Hobbes sobre La Rochefoucauld, como faz muito bem Y. Zarka,81 não insistimos sobre
isso. Para nossos propósitos, é suficiente apontar que são os mesmos operadores
conceituais que estão norteando a análise, aqui e lá. La Rochefoucauld é um desses
homens, autor de um único livro. Melhor, um autor que explora, num livro, uma idéia
em todas as suas ramificações possíveis. Desde 1658 medita sua obra e, em 1665,
publica as Réflexions, Sentences et Maximes Morales. 82 Como dissemos há pouco, é
ele, ao que parece que inicia na modernidade essa leitura da suspeição ou da
desconfiança, procurando colocar em xeque aquilo que nos é dado e procurando achar
outros móveis, outras chaves explicativas para aquilo que é imediatamente apresentado
ao sujeito. Leitura que tem como suposto a idéia de que aquilo que está dado na
superfície tem uma explicação distinta, e às vezes mesmo, contrária a isso mesmo que
está sendo dado.
Isso é afirmado um sem-número de vezes pelo autor. Tomemos, como exemplo,
a máxima 72:
1ª) Todos os seres humanos são movidos, na maioria das vezes, por ilusões.
Num certo sentido (veremos qual, logo mais), a ilusão é constitutiva do ser humano, tal
é a sua estrutura, O amor, acabamos de ver, é algo inexistente. Entendamo-nos: o amor
puro e desinteressado ao outro. Nesse sentido ele só pode ser algo inventado, forjado
pelos homens e só acreditamos nisso porque deve haver motivos muito fortes. Se não
fossem eles, isso nem estaria em nós:
2ª) A segunda temática que se delineia nessa leitura, que vê algo outro do que
aquilo que aparece na superfície, que vê nessa superfície um efeito — ilusão é a
seguinte: os sujeitos, os próprios sujeitos, desconhecem a si mesmos. Ou conhecem-se
minimamente. Falar em alienação com respeito a si talvez não seja muito abusado.
Tomemos a máxima 43:
...somos mais felizes pela paixão que temos do que por aquela que
causamos. 95
(ROCHEFOUCAULD, máx. 239, p.47-8)
Qualquer que seja o bem que digam de nós, não nos ensinam nada de
novo. 96
(ROCHEFOUCAULD, máx. 303, p.55)
Na maior parte das vezes nossas virtudes são apenas vícios disfarçados.
100 (ROCHEFOUCAULD, p.1)
d) Esse é o motor básico de todo ser humano, esse amor de si, que faz, ou tenta
fazer, com que todas as outras coisas e pessoas girem em tomo dele. No fundo, somos
todos idólatras de nós mesmos e, conferidos os meios, sempre usaremos os outros que
nos circundam para satisfazer esse egoísmo. O outro nada mais é que um meio para
satisfazer nosso interesse, tal como (usando uma metáfora de La Rochefoucauld) as
abelhas apenas sobrevoam as flores para delas extrair o pólen. O ser humano configura-
se como possuidor de desejos impetuosos e de uma maravilhosa arte para esconder seus
desígnios.
Mas, e isso é uma hipótese, La Rochefoucauld parece ir mais longe. Esse
egoísmo é fundamentalmente necessário e essencial a todo ser humano:
NOTAS
7 Santo Tomás, Suma contra Gentiles, Madrid, BAC, 1967, vol. II, p. 172-4.
8 Id., Suma de Teologia, Madrid, BAC, 1989, vol. II, partes 1-11, “Tratado das Paixões
da Alma”, questão 25, art. 2, p. 239.
“Um tal debate não é deforma alguma gratuito. Aquilo que está em jogo atrás dessa
querela de precedência é toda uma concepção do homem e, em certo sentido, toda uma
concepção do mundo. Poderíamos até mesmo perguntar se o conflito teórico, aqui, não
exprime, à sua maneira, uma realidade vivida muito intensamente no século XVII: a
passagem lenta e difícil do homem medieval ao homem moderno” (id. ib.).
10 E. Gilson, Le Thomisme, Paris, Vrin, 1942, p. 374.
11 Parafraseio Matheron, op. cit., de onde extraí a citação acima de Gilson e essas
considerações finais. Cf. Le Thomisme, ed. cit., p. 374, segundo Matheron.
13 Ibid., p. 56.
14 Ibid., p. 58.
15 Ibid., p. 64-5.
16 A influência de Descartes não pode e não deve ser minimizada. Mas lembremo-nos
de duas coisas: 1) o texto de Hobbes sobre a natureza humana já circulava desde 1640.
O Tratado das Paixões de Descartes é de 1649. (A obra, ao que tudo indica, não parece
ter influenciado Hobbes de forma importante nos seus escritos posteriores; 2) a grande
herança cartesiana, no tratamento dessa questão, parece ter sido a aplicação do
mecanicismo ao domínio humano, o qual pode ser percebido, em linhas gerais, no
Discours de la Méthode. Isso exercerá uma influência decisiva, mas talvez indireta,
porque, como assinala Lenoble (Mersenne et la Naissance du Mécanisme, ed. cit., p. 3),
uma coisa é considerar esse mecanicismo cartesiano retrospectivamente, aí ele aparece
como dominante porque triunfante; outra coisa é observar o desenrolar das idéias na
época. Percebemos então que havia vários mecanicismos, similares, mas não idênticos
— entre eles o de Hobbes — que seguiram vias próprias.
19 Id., Six Lessons to the Professors of the Mathematics, in ed. cit., vol. VII, p. 210.
Um pouco mais à frente lemos:
“as regras de demonstração são de duas espécies: uma, que os princípios precisam ser
definições verdadeiras e evidentes; a outra, que as inferências precisam ser necessárias.
E das definições verdadeiras e evidentes, as melhores são aquelas que declaram a causa
ou geração do sujeito cujas paixões próprias devem ser demonstradas. Pois a ciência é
aquele conhecimento que é derivado da compreensão da causa. Mas quando a causa não
aparece, então nós podemos, ou antes precisamos definir alguma propriedade conhecida
do sujeito, e desta derivar alguma via possível, ou vias, da geração” (p. 212).
20 Id., De Homine, Paris, Blanchard, 1974, cap. X, § 5, p. 146; trad. italiana, Torino,
UTET, 1972, p. 590.
29 Mesmo nos casos do discurso casual, Hobbes insinua que, com um pouco de
atenção, acabamos por descobrir sua finalidade oculta que dá coerência a esse mosaico,
à primeira vista, desconexo. Cf. Leviathan, ed. cit., cap. III, p. 95.
30 Ibid, ed. cit., cap. VI, p. 118.
34 Th. Hobbes, Leviathan, ed. cit., cap. VI, p. 118-9. “Conatus” é a palavra que aparece
na edição latina. A mesma definição de “Endeavour” está no De Corpore, English
Works, cap. XV, § 2, p. 206.
36 Id., De Homine, XI, § 6. Trad. francesa p. 156; trad. italiana p. 595. O texto latino
diz: “sua cuique conservatio” (Opera Latina, Molesworth, vol. II, p. 98).
39 Ibid.
44 Th. Hobbes, Leviathan, ed. cit., cap. VI, p. 129. Mesma definição em Human Nature,
English Works, vol. IV, cap. 7, § 6, p. 33.
45 Th. Hobbes, op. cit., cap. XV, p. 212, grifo nosso. Este último argumento devo a Y.
Zarka, op. cit., p. 269.
48 Cf. nota 33, com relação à afinação de T. Magri. A afirmação de Hobbes é mais
nuançada:
“De forma que desejo e amor são a mesma coisa; exceto que por desejo
nós sempre significamos a ausência do objeto, por amor, o mais
comumente a presença do mesmo. Igualmente, por aversão nós
significamos a ausência, e por ódio a presença do objeto”
(Leviathan, ed. cit., p. 119).
51 Th. Hobbes, Human Nature, English Works, IV, cap. VII, § 6, p. 35.
52 Essa é uma velha teoria, de origem médica, que Hobbes herda e incorpora no seu
discurso.
53 Th. Hobbes, Human Nature, ed. cit., cap. VII, § 3, p. 32. Cf. De Homine, XI, § 4,
trad. italiana p. 594:
“Mas nós vemos por experiência que alegria e tristeza não procedem, em todos os
homens, das mesmas causas, e que os homens diferem muito na constituição do corpo”.
56 Th. Hobbes, Human Nature, ed. cit., cap. VII, § 3, p. 32; Cf. Leviathan, cap. VI:
“Mas qualquer coisa é o objeto do apetite ou desejo de qualquer homem; ela é aquilo
que ele, por seu lado, chama de bem. E o objeto de sua aversão e ódio ele chama de
mal...” (ed. cit., p. 120);
58 Essa teoria irá influenciar profundamente também toda a obra do Marquês de Sade.
Desde seus primeiros textos importantes (como o Diálogo entre um Padre e um
Moribundo), passando por toda sua obra “maldita”, até suas últimas produções, os
chamados “romances históricos” (mais fantasiosos que históricos, diga-se de passagem),
como Histoire Secréte de Isabelie de Baviére, Sade não se cansou de bater nessa tecla.
Tomemos alguns exemplos:
É exatamente essa teoria que servirá de apoio a Sade para que desenvolva suas idéias
sobre a naturalidade dos diferentes gostos:
“Oh não, não, Tereza, tu não compreendes o que é este prazer para uma
cabeça organizada como a minha... Não te imagines, Tereza, que nós
sejamos feitos como os outros homens; trata-se de uma construção
inteiramente diferente...”
(Justine, ou les Malheurs de la Vertu, in O.C., ed. cit., vol. III, p. 79; os
grifos são nossos).
Teoria que, se levada às últimas conseqüências, nos obriga a rever a idéia de Sade como
elaborador e propagador de um “evangelho do mal”. Rigorosamente, a inclinação para o
bem é tão natural quanto a contrária. E é exatamente isso que Sade deixa claro nas suas
três versões de Justine (texto, portanto, não alterado e impossível de ser imputado a um
“deslize”). Com efeito, quando Dubois, uma dessas típicas heroínas sadeanas, tenta a
todo custo convencer Justine de seus princípios recebe como resposta de Justine o
seguinte:
61 Th. Hobbes, op. cit., English Works, ed. cit., vol. II, § 2. Na nota a esse parágrafo
Hobbes afirma:
63 Th. Hobbes, Leviathan, ed. cit., cap. VI, p. 120. Cf. De Homine, X, § 5:
70 É todo um universo que está sendo sufocado para Sade (cf. nota 73).
73 É exatamente isso que vai recusar Sade. Partindo, praticamente, das mesmas
premissas que Hobbes, toma o caminho inverso. Não só denuncia todas as violências e
imposturas que a sociedade perpetra com relação aos indivíduos, como vai até a
denúncia do pacto social enquanto tal. Não opõe, a um modelo de sociedade, um outro.
Denuncia a sociedade enquanto ela, qualquer que seja, necessariamente opera esse
sufocamento. Não se trata, nunca, em Sade, de propor um outro modelo de sociedade
que escape disso. Isso é impossível. O que proporá é um modo de vida que chega nas
franjas do anarquismo, se é que não está nele. Na Histoire de Juliette lemos:
“Oh vós que vos dispusestes a governar os homens, evitai prender
qualquer criatura! Deixai-a fazer seus arranjos inteiramente só, deixai-
a procurar ela mesma aquilo que lhe convém, e logo vos apercebereis
que tudo só caminhará melhor” (op. cit., in ed. Cit., vol. VIII, p. 110).
No mundo moral, assim como no econômico, é melhor deixar as coisas
acontecerem por si mesmas, sem nenhuma instituição reguladora.
Desse ponto de vista, e só deste, portanto, podemos perfeitamente falar que há uma
coincidência genérica entre Hobbes e Espinoza, que fundam, ambos, isso que
denominamos a primazia absoluta do conceito de desejo na estruturação antropológica.
Com relação à Espinoza seria necessário acrescentar que essa aproximação só é possível
se consideramos o livro III da Ética como relativamente autônomo, o que, de fato, foi
feito por alguns autores do século XVIII.
“Essa passagem da máxima 504 (de L.R.), assim como vários outros
juízos, pode parecer como quase paráfrases ou comentários de Hobbes.
Sem dúvida, não se trata de semelhanças acidentais, pois o amor -
próprio em La Rochefoucauld é, em muitos pontos, idêntico à relação a
si do desejo em Hobbes” (p. 274. Os parênteses e o grifo são nossos).
83 Ibid., p. 15.
84 Ibid., p. 15-6.
101 Ibid., p. 1, n. 2.
105 “... o que chamamos mal neste mundo, seja moral ou natural, é o grande princípio
que fez de nós seres sociáveis, a base sólida da vida...” (Mandeville, op. cit., ed. cit., p.
248). Mandeville incorporará no seu discurso todo esse conjunto central de conceitos
que viemos analisando desde Hobbes. Embora os empregue esporadicamente,
esparsamente e de forma não sistemática. Mas todos estão operando no seu texto (e, não
foi Mandeville quem deslanchou com vigor toda a apologia do luxo, da qual seus
sucessores, na maioria das vezes, como Voltaire, nada mais fizeram que retomar?).
Releiamos um texto já citado:
“Nada existe na terra tão universalmente sincero como o amor que todas
as criaturas, capazes de senti-lo, professam-se a si mesmas; e como não
há amor ao que não desvele o cuidado de conservar o objeto amado, nada
há mais sincero, em qualquer criatura, que sua vontade, seu desejo e seu
empenho de conservar-se a si mesma” (p. 129).
O egoísmo, desnecessário dizer, está onipresente no texto. Por outro lado, com relação à
positividade do mal, sabemos o quanto essa noção é chave para se entender o discurso
de Sade.
III
INQUIETUDE
Oh minha força e minha luz, posso saber de vós o que sou e o que é esta
substância que sinto em mim, capaz de conhecer a verdade e de amar o
bem? Eu sou, mas desde que tempo? Sou eterno, cessarei de ser? Eu
sou, mas o que sou? Eu penso, mas como? Eu sinto que quero, mas quê,
eu não conheço claramente o que é querer. Quando penso nos corpos,
vejo muito bem aquilo do que eles são capazes; eu os comparo entre si e
descubro suas relações. Mas qualquer que seja o esforço que eu faça
para representar-me a mim mesmo, não posso descobrir aquilo que sou.
Quando sinto alguma dor, eu o sei, mas antes de senti-la eu não
compreendia que minha substância fosse capaz disso; e no próprio
momento em que eu a sinto, não compreendo nem aquilo que ela é, nem
qual relação ela pode ter, seja comigo, seja com aquilo que me rodeia.
Em uma palavra, para mim mesmo não sou senão trevas, minha
substância me parece ininteligível. 5 (MALEBRANCHE,1967,p.101-2.)
É tendo isso em vista que Malebranche propõe então “exprimir com relação às
propriedades que convêm à matéria”,9 (MALEBRANCHE, 1967, v.I, p.41)aquelas do
espírito. E assim, da mesma forma que a matéria tem duas propriedades básicas, a
primeira, de receber diferentes figuras, e a segunda, a capacidade de movimento, do
mesmo modo, o espírito humano possui duas faculdades, o entendimento (capacidade
de receber várias idéias) e a segunda, a vontade (capacidade de receber várias
inclinações). A vontade, assim, é relacionada à capacidade de movimento da matéria.
Exemplifiquemos melhor, através de um outro texto, já que é sobre a vontade que se
centralizará nossa discussão, como Malebranche a pensa:
Tudo não estaria tão mal se se pudesse pensar numa comunidade de substâncias,
no sentido forte do termo que, exatamente, tornasse legítima essa passagem. Porém,
Malebranche é um dualista de estrita observância e, neste ponto, fiel discípulo de
Descartes. Tratam-se, para ele, de duas substâncias radicalmente distintas e diferentes,
no sentido mais forte que se possa dar a esses termos. Se a matéria é extensa, o espírito
é inextenso; se a matéria é divisível, o espírito é indivisível, e assim por diante, sob
todos os pontos de vista. Seus atributos principais estão em exclusão recíproca. Mas, o
fato de não se poder atribuir extensão ao espírito, segue-se, necessariamente, que é
inextenso? A analogia é fraca: do que uma coisa não é não se deduz necessariamente o
que é.
É por aqui que se instala o que se acostumou denominar o “paradoxo da
psicologia em Malebranche”. É possível fundar rigorosamente um discurso científico
baseado em tal procedimento? M. Gueroult, num pequeno mas admirável estudo,11
procura mostrar que sim. Em essência, a resposta seria a seguinte: se tomarmos essas
substâncias enquanto substâncias tudo o que eu puder afirmar de uma, posso, de direito,
afirmar de outra, através da noção de substância inteligível. Assim, por exemplo, se toda
e qualquer substância é permanente, então a alma é uma substância permanente. O
caminho, portanto, é da substância material à substância inteligível, e desta, à substância
pensante.12 (GUEROULT, 1939,p.55)
Sob essas condições há, sem dúvida, um fundamento inquestionável do
procedimento analógico:
b) Podemos ver esse ponto com mais clareza aplicando esses dados gerais ao
ponto que nos interessa em particular: a teoria malebranchista da vontade. H. Gouhier
notou, com razão, que a teoria de Malebranche a respeito das ações humanas, mais
especificamente suas concepções a respeito da vontade e da liberdade, são inspiradas
diretamente nos autores cristãos:
Mas, num segundo nível, na medida em que as operações da alma só podem ser
entendidas analogicamente, na medida em que nos são reveladas por sentimentos
obscuros e confusos, elas só são acessíveis através de um raciocínio puro, que opera a
passagem da substância extensa para a substância pensante. O que significa dizer que a
inteligibilidade introduzida é a priori. O raciocínio de Malebranche é o seguinte:
1) “Deus nos impele sem cessar, e por uma impressão irresistível, para o bem
geral (...) Pois Deus nos fez e nos conserva para ele” 16 (MALEBRANCHE, 1967,
v.III, p.18)
2) “Pois o movimento de amor que sem cessar Deus imprime em nós não
aumenta nem diminui... Aparentemente Deus nos impele em direção a ele sempre com
uma força igual, pois ele nos impele em direção ao bem em geral o tanto quanto somos
capazes, e em qualquer momento nós o somos igualmente capazes, porque nossa
vontade ou nossa capacidade natural de querer é sempre igual a si mesma. Assim, a
impressão ou o movimento natural que nos impele para o bem nunca aumenta ou
diminui.”17 (MALEBRANCHE,1967, v.III, p.22)
Temos aqui, portanto, a aplicação, segundo o processo que já descrevemos, do
princípio da conservação do movimento:18
3) “Confesso que nós não temos idéia clara, nem mesmo sentimento interior
dessa igualdade de impressão ou de movimento para o bem. Mas é porque nós não nos
conhecemos por idéia, como provei alhures; e porque não sentimos nossas faculdades
quando elas não agem atualmente. Nós não sentimos em nós aquilo que é natural,
ordinário e sempre igual, assim como não sentimos o calor e o batimento de nosso
coração. Nós não sentimos nem mesmo nossos hábitos, ... Talvez exista em nós uma
infinidade de faculdades ou de capacidades que nos são inteiramente desconhecidas;
pois não temos sentimento interior de tudo aquilo que somos, mas apenas de tudo
aquilo que atualmente se passa em nós”. 19 (MALEBRANCHE,1967,v.III, p.22-3)
E, a razão pela qual esse raciocínio é elaborado dessa forma deve- se única e
exclusivamente ao fato de que o campo da experiência, isto é, do sentimento, só nos
fornece a diversidade empírica dos desejos. Mas isso não significa dizer que ele
desconsidere este último campo. Ao contrário, ele o consulta para, agora por outra via,
estabelecer concretamente a noção de vontade. Mas, o que revela, de fato, a
experiência? Consultando-a, Malebranche conclui que podemos afirmar que todos os
homens têm o desejo invencível de felicidade:
Pois não é verdade que ela (a sua consciência) lhe responda que ele
pode queimar-se vivo, ou que ele pode querer queimar-se vivo. Sua
consciência lhe ensina, ao contrário, que a alma não tem o poder de
suspender seu consentimento, aquele de deliberar, nem mesmo de
hesitar sobre uma tal escolha: porque não se tem, e porque se vê
evidentemente que não se pode ter motivo para se queimar. Sua
consciência lhe ensina que irresistivelmente ele quer ser feliz, e que ele
não pode querer o mal conhecido e sentido como mal. Ela lhe responde
que ele não pode querer consentir ao que quer que seja sem um motivo
que concorde com o desejo irresistível que ele tem de ser feliz. Ora,
queimar-se vivo não está de acordo com isso; portanto, ele não tem o
poder de queimar-se vivo, visto que ele não tem nem mesmo o poder de
querer.21 (MALEBRANCHE,1967, vol. XVI, art. V, p. 16. )
Abre-se, assim, um novo caminho, uma nova via possível para se definir a noção
de vontade, que toma um rumo totalmente diferente do primeiro que acabamos de ver,
pois assume-se aqui, agora, aquilo que lá era recusado. Esse caminho, em linhas gerais,
podemos retraçar levando em consideração que, desde a Recherche de la Vérité,
Malebranche afirma que os homens buscam o prazer, e que ele, em si mesmo, é um
bem.22 No Traité de l’Amour de Dieu,23 (1967, v.XIV) obra já tardia, Malebranche é
bem claro sobre sua posição. Estabelece que:
...é preciso observar que só se pode amar aquilo que agrada, e detestar
aquilo que desagrada.24 (MALEBRANCHE,1967, v.XIV,p.9)
e:
... todo prazer atual, enquanto prazer, de alguma maneira nos torna
felizes....26 (MALEBRANCHE,1967, v. XIV,p.9)
Temos aqui, nessas poucas linhas, todo o conjunto dos elementos que, pela via
da inspeção da consciência de si, levam Malebranche a uma definição da vontade que
está inextrincavelmente ligada à noção de felicidade. Ela é essa atração irresistível que
todos sentimos em alcançar a felicidade:
e:
c) Estamos, sem dúvida, frente a duas definições de vontade que foram obtidas
por caminhos diferentes. Dizem a mesma coisa? Aos olhos de Malebranche sim, porque
se a vontade é o movimento que nos impulsiona a Deus, o fim desse movimento (que,
sem dúvida, não se dará nessa vida) significará o repouso em Deus que nada mais é que
a felicidade suprema. Mas podemos duvidar da legitimidade desse procedimento. Para
os medievais era o mesmo movimento de raciocínio, e a manutenção dele no mesmo
nível, que estabelecia nossa atração para o bem e o estado de felicidade daí
decorrente.29 Já aqui as coisas não são tão claras. A definição da vontade, que a
determina como movimento em direção ao bem, estabelecida pela via analógica e por
puro raciocínio, estabelece que é a vontade de Deus que faz com que as criaturas se
orientem para o sumo bem. Ora, disso não se extrai, em hipótese alguma, o desejo de
felicidade das criaturas finitas. Mesmo reconhecendo, com Malebranche, a
universalidade desse desejo de felicidade30(MALEBRANCHE, 1967, v.XIV, p.10) e
que “o desejo da beatitude formal ou do prazer em geral é o fundo ou a essência da
vontade”,31(MALEBRANCHE, 1967, v.XIV, p.10) as duas teses (amor a Deus e desejo
de felicidade) nem se engancham, nem se deduzem uma da outra.
O Tratado de Moral é ainda mais explícito sobre esse ponto. Os demônios
odeiam a Deus porque não esperam mais nenhuma recompensa.32(MALEBRANCHE,
1967, v. XI, p.105) Se Adão continua a amar a Deus é porque ainda mantém a
esperança de que Deus será o seu Bem.33(MALEBRANCHE, 1967, v.XIV, p.26) É
preciso, portanto, concordar: aos olhos de Malebranche só há um motivo de amor: a
felicidade, que nada mais é que o estado de prazer:
Retirai do espírito todo amor próprio, todo desejo de ser feliz e perfeito,
que nada lhe agrade, que as perfeições divinas não lhe interessem mais:
ei-lo sem dúvida incapaz de qualquer amor.34 (MALEBRANCHE,
1967, v. XI,p.102)
d) Podemos tentar avaliar agora, com um pouco mais de clareza, esse conjunto
de teses de Malebranche. É verdade que, tomadas em si mesmas, como notou
Gouhier,35 elas estão no âmbito cristão e da mais pura ortodoxia. Mas, analisando-as no
próprio universo conceitual do autor percebemos que, de fato, adquirem um sentido
novo ditado por esse contexto. E, por mais que Malebranche insista, elas não parecem
conciliáveiss entre si. Amor ao bem e desejo de felicidade não são teses que nele, ao que
tudo indica, impliquem-se reciprocamente ou, pelo menos, que uma se deduza da outra.
A implicação é sempre suposta. Pior: a única implicação possível, que amamos o bem
porque ele nos traz a felicidade e o prazer, entra em contradição flagrante com a tese
clássica de que Deus deve ser amado por si mesmo, sem nenhum outro motivo, a não
ser a consideração de sua própria onipotência e bondade infinita.
De resto, a distinção malebranchista entre motivo e fim, que aparentemente
pretende conciliar as teses, nada mais faz que aprofundá-la:
Mas não nos iludamos, lendo esse texto, pensando que esse desvio para os
objetos particulares é obra única e exclusiva de nossa liberdade. Mais uma vez é Deus,
ele próprio, que determina esse movimento, sendo que a liberdade está apenas no poder
de detê-lo:
Esta vasta capacidade que a vontade tem para todos os bens em geral,
porque ela só é feita para um bem que encerre em si todos os bens, não
pode ser preenchida por todas as coisas que o espírito lhe representa, e
todavia este movimento contínuo que Deus lhe imprime em direção ao
bem não se pode deter. Esse movimento, não cessando jamais,
necessariamente dá ao espírito urna agitação contínua. A vontade, que
procura aquilo que ela deseja, obriga o espírito a representar-se todos
os tipos de objetos. O espírito os representa, mas a alma não os aprecia;
ou se ela os aprecia, não se contenta com eles. A alma não os aprecia
porque freqüentemente a visão do espírito não é acompanhada de
prazer; pois é pelo prazer que a alma aprecia seu bem; e a alma não se
contenta com ele, porque não há nada que possa deter o movimento da
alma, a não ser aquele que imprime nela esse movimento. Tudo aquilo
que o espírito se representa como seu bem é finito; e tudo aquilo que é
finito pode arrebatar por um momento nosso amor, mas não pode fixá-
lo. Quando o espírito considera objetos muito novos e muito
extraordinários, ou que têm algo de infinito, a vontade sofre enquanto
ele os examina com atenção; porque ela espera encontrar ali aquilo que
busca, e porque aquilo que é grande e parece infinito traz o caractere de
seu verdadeiro bem; mas com o tempo ela se afasta destes assim como
dos outros. Portanto, ela está sempre inquieta, porque é levada a buscar
aquilo que nunca pode encontrar, e porque sempre espera encontrar; e
ela ama o grande, o extraordinário, o que parece infinito, porque não
tendo encontrado seu verdadeiro bem nas coisas comuns e familiares,
imagina encontrá-lo naquelas que não lhe são conhecidas.39
(MALEBRANCHE, 1967, v.II, p.16-7)
g) Essa teoria, em Malebranche, assim como vimos com relação à sua teoria da
vontade, é edificada sobre duas raízes bem distintas, e não deixará de ser fonte de
ambigüidades. A primeira delas é a fonte medieval e cristã. Mais especificamente, Santo
Agostinho. Conhecemos a célebre frase das Confissões:
2º) Locke leu e estudou atentamente Malebranche desde 1676, quando em maio
adquiriu a Recherche de la Vérite. Sua oposição a Malebranche sempre foi clara e
veemente. Escreveu várias notas e textos razoavelmente longos criticando a teoria
malebranchista51. Por outro lado, o termo “uneasiness” aparece, pela primeira vez, nos
papéis de Locke, em julho de 1676. A influência, portanto, não é descartável.
Esses são os dados históricos. Eles podem e são indicativos e significativos. Mas
deles não é possível e nem se deve extrair nenhuma conclusão de peso. O fator decisivo,
é claro, será a análise do próprio texto de Locke. Vejamos.
b) Locke, fiel aos seus princípios, sempre afirmou que a natureza ou essência
íntima das coisas nos é, e será para sempre, desconhecida. A experiência apenas nos
revela o exterior das coisas e daí jamais penetraremos na constituição interna e real
dessas mesmas coisas. Pensar que, a partir da aparência sensível, é possível deduzir a
natureza íntima das coisas, é a pior de todas as ilusões. Jamais saberemos a verdadeira
constituição dos supostos corpúsculos que compõem a matéria, dada sua pequenez, o
que os torna inacessíveis aos sentidos.53(LOCKE, 1975, livro IV, cap. III, § 25) O
mesmo pode-se dizer, pela mesma razão, dos objetos remotos54(LOCKE, 1975, livro
IV, cap. III, § 24).Mesmo as coisas que nos são acessíveis pelos sentidos não nos
revelam sua estrutura íntima. Apenas suas propriedades sensíveis. Lembremo-nos do
exemplo do relógio de Estrasburgo invocado por Locke. A idéia que os homens fazem
das coisas é similar àquela que o camponês tem do “famoso relógio de Estrasburgo”, no
qual só vê o movimento dos ponteiros, escuta as badaladas e conhece mais algumas de
suas propriedades externas. Ele ignora, no entanto, seus mecanismos e suas engrenagens
internas.55(LOCKE, 1975, livro III, cap. VI, § 3) No que diz respeito à natureza das
coisas, estamos na mesma relação que o camponês frente ao relógio. Por essa razão, o
que atingimos é sempre a essência nominal das coisas e nunca sua essência real.
Isso também aplica-se ao ser humano. A idéia de homem é uma idéia complexa.
Se pudéssemos defini-lo realmente, deveríamos produzir uma compreensão não só do
seu sentido próprio, como também daquilo que o diferencia das outras espécies vivas,
sobretudo as mais próximas. E, ao longo do Essay (o exemplo da definição de homem é
recorrente), Locke aponta-nos sistematicamente para essa impossibilidade.56(LOCKE,
1975, III,VI,27; IV,VI, § 15 etc) Uma definição real do homem seria algo bem diferente
daquela que de fato obtemos pela experiência e pela construção de uma essência
nominal:
Diante dessa impossibilidade, Locke, por assim dizer, procede por uma espécie
de desvio e acaba propondo uma definição, não da essência ou natureza do homem, mas
sim uma que nos esclarece sobre sua finalidade interna. Propõe, em lugar de uma
definição essencial, que é impossível uma de natureza teleológica.58(POLIN,
1960,p.15-7) É o tini ao qual se dirigem os homens, e os meios que utilizam para atingir
esses fins, que podem suprir essa deficiência inicial, pelo menos no campo ético.
Percebendo que esse fim e esses meios constituem um todo coerente, pode-se atingir
uma unidade e uma compreensão do ser humano por essa via e, assim, compreendê-lo,
não do ponto de vista físico ou mental, mas moral. Escolhendo esse caminho
chegaremos, é verdade, muito mais perto da constituição de um “tipo ideal” do que de
como é de fato. Mas Locke suprirá esse hiato através da experiência.
Ora, com relação à finalidade, a questão resolve-se com relativa clareza. Locke
retoma uma velha e sólida tradição que define a finalidade da existência humana como
sendo a procura da felicidade. Todos estão de acordo sobre esse ponto, já apontava
Aristóteles na Ética a Nicômaco,59(ARISTÓTELES, 1959, p.34) que esse fim é o bem,
e sobre esse bem, a maioria dos homens está de acordo, trata-se da felicidade
(eudaimonia). No rastro dessa tradição, Locke define assim o alvo da existência
humana:
ou:
Como tudo aquilo que desejamos é apenas ser feliz, este desejo geral de
felicidade opera constante e invariavelmente....61 (LOCKE, 1975, II,
XXI, 71)
c) Entre nossas idéias simples que provêm da sensação e da reflexão, devemos contar as
de prazer e de dor:
d) Prazer e dor, juntamente com aquilo que os ocasiona, são os elementos principais
sobre os quais giram as paixões humanas.74(LOCKE, 1975, II, XX, 3.) Tomemos
alguns exemplos significativos de como Locke concebe essa dinâmica das paixões para
tentar discernir com maior clareza o que está exatamente em questão:
Não é difícil perceber, através desses exemplos, que Locke refere- se às paixões
sob dois pontos de vista: o estado de satisfação e o estado de insatisfação, de modo que
é possível, em linhas gerais, classificá-las desse ponto de vista dualista. Se excetuarmos,
bem entendido, as paixões que implicam a inter-relação humana, como, por exemplo, a
cólera ou a inveja. Todas as outras que se encontram nos homens terminam ou em
prazer ou em desprazer:
Disso tudo resulta muito claro também que todo estado de deleite, de prazer, incita o
sujeito a permanecer nele, ficar usufruindo dele e, portanto, aponta para o repouso. Já os
estados que culminam na dor ou no desprazer colocam esse mesmo sujeito numa
posição incômoda, incitam-no a sair deles, a fugir desses estados e, portanto, apontam
para uma mudança, e trazem consigo um impulso ao movimento e à ação:
e) Podemos, agora, tentar analisar esse conceito tão central e tão espinhoso da
filosofia de Locke, o de “uneasiness”. Central, porque, num certo sentido, toda sua
filosofia gira em torno dele, já que todas as nossas ações (inclusive as mentais) visam
basicamente eliminá-la e, assim fazendo, produzir esse estado de deleite ou prazer que
constitui a Felicidade, aspiração de todos os sujeitos. R. Polin percebeu isso com muita
agudeza quando declara:
Por prazer e dor, entendo tudo aquilo que nos deleita ou molesta; seja
que proceda de pensamentos de nossa alma ou de alguma coisa que aja
sobre nosso corpo. Pois seja que nós o chamemos por um lado de
satisfação, deleite, prazer, felicidade etc., ou do outro lado de
uneasiness, desgosto, dor, tormento, angústia, miséria etc., no fundo eles
são diferentes graus da mesma coisa, e pertencem às idéias de prazer e
de dor, deleite ou uneasiness; que são os nomes que eu mais comumente
usarei para esses dois tipos de idéias.81(LOCKE,1975, II,VII,2)
Satisfação Uneasiness
Deleite Desgosto
Prazer Dor
Felicidade Tormento
Angústia
Miséria
Assim, a “uneasiness” pode, em certos casos, identificar-se com uma dor (pain)
física que me faz, por exemplo, afastar o objeto. Em outros casos, pode ser um ligeiro
mal-estar que, no entanto, é suficiente para que o sujeito procure um estado mais
agradável. Colocar roupas mais leves devido ao aumento de temperatura, por exemplo.
A “uneasiness” destaca-se numa escala conforme a situação do sujeito. Exatamente por
isso, em cada contexto, adquire um determinado matiz semântico que pode ir desde a
identificação com a dor até, exatamente, ao mal-estar ligeiro que, no entanto, incita à
mudança. “Uneasiness” é um operador conceitual que só adquire sentido num
determinado contexto. E, no texto de Locke, assistimos à realização de todas as suas
possibilidades.
São as necessidades ordinárias, mas prementes da vida, que suscitam com maior
vigor a “uneasiness”, como a fome, a sexualidade etc85(LOCKE, 1975, II, XXI, 45).
Nesse sentido, a saúde é o mais desejável dos bens, e a condição para o usufruto de
todos os outros. A “uneasiness” é o correlato dos estados negativos, e só a eles
acompanha, porque só eles causam insatisfação. Prazer, deleite, satisfação etc, são
motivos, já vimos, para que se permaneça no mesmo estado, e não incitam à ação. É por
isso que a insatisfação tem um papel capital na história, tanto do indivíduo, quanto da
espécie. Relembremos uma frase célebre do Essay:
Assim, se “uneasiness” e desejo são uma só e mesma coisa ou, pelo menos,
mesmo fenômeno visto por diferentes ângulos, como faces de uma mesma moeda,
então, o que determina a vontade é o desejo. E, a ausência de um bem, manifestada no
estado de desejo é o que determina a vontade à ação. Seja esse bem almejado algo
negativo, como é o caso em que se deseja o alívio de alguma dor, seja positivo, quando,
por exemplo, através de uma ação se obtém algum prazer ou deleite.97(LOCKE, 1975,
II, XXI, 33)
Isso pode ser provado de diferentes maneiras. Em primeiro lugar, como já se viu,
ninguém que se encontra realmente satisfeito na condição em que está tem desejo de
realizar alguma ação (e determinar a vontade, portanto) para sair desse mesmo estado:
i) Não teria sido necessário Coste avisar-nos, na margem do texto de Locke, que
a teoria deste último vai diretamente contra a de Malebranche. A leitura dos textos
mostra isso de forma cristalina. E, na verdade, a crítica de Locke a Malebranche situa-se
em dois níveis, e não num único, como dá a entender a observação de Coste. Ele critica,
na verdade, as duas grandes vertentes da teoria malebranchista da vontade. A primeira
delas que diz ser a vontade o movimento em direção ao bem indeterminado, ao sumo
bem,104 e a segunda, que define a vontade como sendo o desejo invencível de
felicidade.105
A crítica à primeira vertente é radical e demolidora:
Locke, na verdade, insiste muito sobre esse ponto: um bem, ainda que pareça
excelente e se admita como tal, não atua, no entanto, sobre nossa vontade enquanto não
provocar insatisfação e desejo e faça, assim, com que nos sintamos inquietos por sua
ausência. 107(LOCKE, 1975, II, XXI, 46) É por essa razão que, suprimida a
“uneasiness”, qualquer porção de bem que nos chegue, por modesta que seja, é
suficiente para que nos sintamos satisfeitos e mesmo felizes.108(LOCKE, 1975, II,
XXI, 44)
Como é fácil de se perceber, Locke praticamente naturaliza e laiciza
completamente o problema da felicidade. A felicidade em que pensa é uma felicidade
terrena, aquela que os homens de fato procuram, aqui mesmo, no seu dia-a-dia. Não é a
idéia de um “sumo bem” que movimenta os seres humanos. São suas preocupações
cotidianas, diárias. São essas questões que estão interessados em resolver e todos dar-
se-iam por muito felizes, se conseguissem afastar esses males que nos afligem na vida
diária. Nossa vontade preocupa-se com coisas humanas e a felicidade está, se possível,
numa vida calma onde se afastou a “uneasiness” e se atingiu essa “easiness” à qual
tanto se almeja. Conseguindo isso, os homens se dão por satisfeitos.
A crítica à segunda vertente consistiu no fato de que Locke recusa-se
terminantemente a confundir vontade e desejo. Malebranche, como sabemos, operava
essa identificação. Retomemos apenas duas definições de vontade por ele fornecidas:
...deve-se tomar precaução para não ser enganado por expressões que
não marcam suficientemente a diferença entre a vontade e vários atos
da alma que são muito diferentes dela. Penso que essa precaução é
tanto mais necessária porque freqüentemente vejo a vontade confundida
com várias das afecções, especialmente com o desejo; de forma que um
é confundido com o outro, e isso por pessoas das quais não se poderia
pensar que não tivessem noções muito distintas das coisas, nem que não
tivessem escrito muito claramente sobre elas. Penso que isso não foi
uma das menores ocasiões de obscuridade e engano nessa matéria; e
isso deve ser evitado o tanto quanto possível. Pois aquele que volta seu
pensamento para aquilo que se passa em sua alma quando ele quer
poderá ver que a vontade ou poder de volição só se relaciona às nossas
próprias ações, termina ali e não vai mais adiante; e que a volição é
apenas essa determinação particular da alma pela qual, através apenas
do pensamento, ela produz, continua ou detém qualquer ação que é
suposta estar em seu poder. Isso, bem considerado, mostra claramente
que a vontade é perfeitamente distinguida do desejo, que na mesma ação
pode ter uma tendência inteiramente contrária daquela para onde nos
leva nossas vontades.110(LOCKE, 1975, II, XXI, 30)
Levar essa distinção a fundo e tomá-la a sério significa separar com mais
cuidado dois tipos de fenômenos que estariam aí embutidos.
De uma certa maneira é o que a posteridade de Locke fará, como veremos. De qualquer
maneira, de Hobbes a Locke, via Malebranche, a análise enriqueceu-se e aprofundou-se.
O mesmo fenômeno aparece dotado de significações inéditas. Mas isso foi conseguido à
custa de ambigüidades, de deslizes conceituais e lexicais. Quanto mais se aprofunda a
análise do desejo, mais se percebe que ele talvez seja um mandatário. Sua autonomia se
vê cada vez mais ameaçada. Locke, de uma certa maneira, introduz no seu bojo
elementos que o dilaceram e subvertem sua unidade. E, o que, no fim das contas,
pressupõe o desejo? É tentando responder a essa questão que o século XVIII operará
uma nova guinada na compreensão das coisas.
NOTAS
4 Para se ter uma boa visão dessa questão, pode-se consultar com proveito o livro de F.
Alquié, Le Cartesianisme de Malebranche, Paris, Vrin, 1974.
7 Esse ponto atingirá seu maior grau de clareza nos “Entretiens sur la Métaphysique e
sur la Mort”, in Oeuvres Complètes, vol. XII-XIII; texto que é, sem dúvida, a
exposição mais acabada e mais equilibrada do sistema de Malebranche, se é que a
palavra “sistema” pode ser aplicada ao seu discurso.
A restrição feita por Althusser: “discursos não científicos” pode ser deixada de lado
porque pouco importa de onde vem a noção e sim suas condições de aplicação. Freud
empresta alguns de seus conceitos de ciências vizinhas, nem por isso o problema deixa
de se colocar.
21 Id., “Réflexions sur la Prémotion Physique”, in Oeuvres Complètes, ed. cit., vol.
XVI, art. V, p. 16.
24 Ibid., p. 9.
26 Ibid.
28 Id., “Réflexions sur la Prémotion Physique”, ed. cit., vol. XVI, art. X, p. 41; grifo
nosso.
29 Como é ocaso de Santo Tomás, por exemplo. Cf. Suma Teológica, I,II, questões 10 e
11; Madrid, BAC, 1989, vol. II, p. 132-146.
31 Ibid.
32 Id., “Traité de Morale”, in Oeuvres Complètes, ed. cit, vol. XI, p. 105.
34 Ibid., vol. XI, p. 102. Na primeira carta ao padre Lamy, Malebranche diz:
“Eu sempre supus esta noção comum: que só se pode amar aquilo que dá
prazer, que o prazer, tomado em geral, era o motivo que agitava a alma e
a levava naturalmente a amar sua causa, que esta era a única
conveniência entre o objeto e a potência de amar que nós temos, e que
sem esta conveniência, sem este motivo, nossa alma não teria movimento
particular”, in “[Trois Lettres au R. P. Lamy”, in O.C., ed. cit., vol. XIV,
p. 45-6.
35 Cf.nota l4.
41 Espera-se um estudo que nos mostre mais detalhadamente essa inegável, mas pouco
apontada influência de Malebranche sobre o século XVIII, à semelhança do admirável
estudo que realizou P. Vernière com relação a Espinoza. Na sua falta, devemos nos
contentar com indicações esparsas dos historiadores.
45 Ibid.
46 Id., “Trois Lettres au R.P. Lamy”, in Oeuvres Complètes, vol. XIV, p. 104:
48 J. Deprun, op. cit., ed. cit., p. 192. Alquié chega a conclusões semelhantes (op. cit.,
cap. VII e VIII, p. 299 e seg.) e coloca à mão todas as peças do dossiê.
49 lbid., p. 192-4 e respectivas notas. Para evitar uma multiplicação excessiva e inútil
de notas, deixemos claro, desde já, que todas as informações contidas neste item
foram extraídas desse texto.
51 Para se ter uma noção do teor desses textos basta consultar, por exemplo, o Examen
de la’Vision en Dieu’de Malebranche, Paris, Vrin, 1978. Não só se percebe como Locke
leu e criticou Malebranche, como também pode-se acompanhar a história dessa
polêmica, depois da publicação do Essay, na informativa introdução de J. Pucelle, que
acompanha o texto de Locke (p. 7-28).
59 Aristóteles, Ethique a Nicomaque, Paris, Vrin, 1959, L.I, 1, 1095 a 16, p. 34.
64 lbid.
70 Ibid.,II,X,3.
75 Ibid.,II,XX,7,8,9 e10.
76 Ibid., II, XX, 14. Note-se a estranha colocação do desejo na série apresentada em
primeiro lugar. Cf., mais à frente, item 8.
82 R. Polin chega à mesma conclusão (op. cit., p. 18), só que baseado no texto do
Essay, II, XXI, 29, referido por nós na nota 77.
86 Ibid., II, XX, 6. Essa teoria influenciará alguns historiadores do século XVIII, como
Mably e Morelly, se é que este último pode ser considerado um historiador.
87 Ibid., II, XXI, 45.
“Nós podemos chamar esta uneasiness, tal como ela é, de desejo; o qual
é uma uneasiness da mente por querer algum bem ausente” (Essay, II,
XXI, 31);
99 Ibid., II, XXI, 35. Locke usa o exemplo do bebedor habitual que, embora saiba que
existe um bem melhor, quando aparece a “uneasiness”, dirige-se à taverna.
103 Ibid
111 Cf. texto referido na nota 77, da segunda parte deste trabalho.
IV
PRAZER
1. Essa situação, descrita por nós na parte anterior deste trabalho, perdurará por
um bom tempo até que uma nova mutação teve lugar, segunda portanto, que
reequilibrará de novo a arquitetura conceitual e dará um novo fundamento à vida
passional. Mudança esta também provisória, como sempre acontece nesse campo, mas
da qual, até hoje, somos herdeiros. Ela se deu através do maior dos seguidores de
Locke. Estamos nos referindo, é claro, a Etienne Bonnot, abade de Condillac. Será
através dele que assistiremos ao destronamento definitivo do conceito de desejo como
noção central para se compreender a trama da vida passional. Isso será realizado
naquela que é considerada a sua obra máxima: o Traité des Sensations.
Situação curiosa: Condillac que, sem dúvida, fornecerá um dos pilares e um dos
estofos sobre os quais estará assentada, teórica e coerentemente, uma nova concepção
do homem e, que, em espécie, fornecerá grande parte das bases daquilo que era exigido,
às vezes implicitamente, pelos apologistas do luxo para que suas posições tivessem
alguma solidez; Condillac repetimos, não era um fanático defensor do luxo. Ao
contrário, fazia sérias reservas a este último e só o admitia sob limitações e condições
especiais1.
Eu tinha esses prejuízos quando publiquei meu Essai sur 1‘Origine des
Connaissances Humaines. 5
(CONDILLAC, 1947, p.221)
Aqui Condillac está referindo-se explicitamente à idéia de que não só há uma
educação dos diferentes sentidos, um aprendizado mesmo, como também eles se
instruem mutuamente. Mas uma leitura atenta do Essai comparando-o com o Traité
mostra que há muito mais que isso apontado por Condillac. Para ver isso com maior
clareza, examinemos, o mais brevemente possível, o conjunto das teses principais do
Essai e o seu modo de encadeamento.
3.O Essai, como já foi notado várias vezes, segue de perto as teses de Locke.
Mas seria falso, como se sugere em alguns textos, que ele se resuma em repeti-lo. Aliás,
é provavelmente em virtude dessa idéia pré-concebida que uma leitura que ressalte com
clareza sua originalidade se vê dificultada. Condillac parte de Locke mas o corrige
muitas vezes e mesmo toma caminhos próprios. Como diz Derrida:
3.a) Nossas idéias originais são, portanto, as oriundas das sensações, sem as
quais estaríamos privados de qualquer possibilidade de montar o edifício do
conhecimento. Nas sensações é necessário distinguir: 1) a percepção que o sujeito
experimenta; 2) a relação que é estabelecida entre ela e as coisas que estão fora de nós e
que são sua causa; 3) o juízo que formulamos sobre a pertinência da relação que
estabelecemos com essas mesmas coisas.11(CONDILLAC, op. cit., p.9) A possibilidade
do erro está diretamente vinculada ao estabelecimento do juízo.
A partir desse dado originário, Condillac estabelece uma dedução genética das
diferentes operações da alma:
As coisas atraem nossa atenção pelo lado em que elas mais têm relação
com nosso temperamento, nossas paixões, nosso estado. São essas
relações que fazem com que elas nos afetem com mais força, e com que
tenhamos delas uma consciência mais viva. 15
(CONDILLAC, op. cit., p.13 e 17)
Quando uma percepção faz sua aparição, e o espírito adverte que já foi afetado
por ela anteriormente, que ele, em suma, a re-conhece, temos o fenômeno da
reminiscência16(CONDILLAC, op. cit., p.14) e, quando ela subsiste no espírito, na
ausência do objeto que a ocasiona, temos a imaginação, que nada mais é do que uma
percepção que subsiste em decorrência de uma percepção originária que já não é mais.
Ao aplicarmos nossa atenção a diversos objetos simultaneamente, ou às
diferentes partes de um mesmo objeto, temos a reflexão, da qual entrevemos tudo aquilo
de que a alma é capaz. A reflexão é de certa forma, o acabamento do processo. O ponto
inicial, o germe de seu desenvolvimento está na percepção, e o fruto na reflexão, que
possibilita as operações de distinguir, comparar, decompor, analisar e sintetizar.
Enquanto nós mesmos não dirigimos nossa atenção, vimos que a alma
está sujeita a tudo aquilo que a circunda, e só possui algo por uma
virtude alheia. Mas se, senhores de nossa atenção, nós a guiamos
segundo nossos desejos, agora a alma dispõe de si mesma, extrai dali
idéias que ela só deve a si, e se enriquece com seus próprios recursos.17
(CONDILLAC, op. cit., p.22)
A ligação das idéias tem como causa a atenção que a elas conferimos quando se
apresentaram juntas pela primeira vez. Nossa atenção, entanto, como vimos, é regulada
pelas nossas necessidades que são em última instância, o princípio ordenador e
compositivo. Formam-se, assim, as cadeias associativas que estabelecem as ligações
entre as idéias, em primeiro lugar, segundo a ordem em que se manifestam
originalmente e que, posteriormente, através de um outro fator que veremos logo mais,
se autonomizam e adquirem independência com relação à ordem original. Formam-se,
por assim dizer, cadeias que, por sua vez, se subdividem, cada uma delas, em
subcadeias que cruzam em certos pontos nodais e assim sucessivamente:
3.c) Existe um outro ponto sobre o qual Condillac insiste muito e que é
impossível deixar de lado. Trata-se da importância dos signos na constituição efetiva do
conhecimento. Já vimos que a ligação das idéias pode-se dar entre elas próprias ou entre
os signos.21 Na verdade, a plenitude desse princípio só será atingida quando ele operar
sobre os signos que serão os elementos principais e fundamentais na autonomização do
processo do conhecimento.
Condillac distingue três espécies de signos: os acidentais, os naturais e os de
instituição. Os primeiros ligam fortuitamente alguns conhecimentos entre si. Os
segundos são estabelecidos naturalmente, como os gritos emitidos pelos seres vivos e
que exprimem seus estados afetivos. Os terceiros, enfim, são artificiais, instituídos pelos
próprios homens e estabelecem uma relação arbitrária entre significante e significado.
22 (CONDILLAC, op. cit., p.19)
É sobre a noção de signo arbitrário ou de instituição que Condillac joga todo o
peso e a importância na constituição do conhecimento. Logo depois de enunciar o
princípio da ligação das idéias, Condillac insiste no fato de que seu desenrolar pleno
depende dos signos:
As idéias ligam-se com os signos, e é apenas por esse meio, como o
provarei, que elas ligam-se entre si.23
(CONDILLAC, op. cit., p.4)
Mas assim que um homem começa a ligar idéias e signos que ele mesmo
escolheu, vemos a memória formar-se nele. Uma vez esta adquirida, ele
começa a dispor por si mesmo de sua imaginação, e a dar-lhe um novo
exercício; pois graças ao auxílio dos signos que pode relembrar à sua
vontade, ele desperta, ou pelo menos freqüentemente pode despertar as
idéias que lhes são ligadas. 26 (CONDILLAC, op. cit., p.21)
Mas é sobretudo no estabelecimento da reflexão que o uso dos signos é
fundamental. E todas as operações que dela dependem estão basicamente ligadas ao uso
dos signos, já que só eles tomam possíveis as operações complexas na medida em que o
signo faz o papel do significado. Podemos imaginar uma certa quantidade de objetos
mas, a partir de um certo ponto, só o uso dos números e as operações realizadas através
deles tomam possível o manejo da quantidade. O mesmo se passa com as formas. Posso
facilmente imaginar um triângulo ou um quadrado mas, só através dos signos, posso
pensar uma figura de 500 ou 1000 lados.
Assim, tanto do ponto de vista da facilitação e da complexificação das operações
do entendimento, como também a própria captação de determinados conteúdos,
dependem diretamente do uso dos signos:
Por tudo aquilo que foi dito, é certo que a melhor maneira de aumentar
a atividade da imaginação, a extensão da memória e facilitar o exercício
da reflexão é ocupar-se dos objetos que, exercitando mais a atenção,
ligam entre si um maior número de signos e de idéias; tudo depende
disso.27
(CONDILLAC, op. cit., p.22. Os grifos são nossos)
Mas, a grande, a enorme vantagem do uso dos signos arbitrários está no fato de
que, antes disso, o espírito do sujeito, suas operações, melhor dizendo, não estão ainda
em seu poder. Ele depende, para o exercício delas, das ligações que são estabelecidas
acidental ou naturalmente e é sua repetição parcial que faz o processo associativo
deslanchar. 28(CONDILLAC, op. cit., p.19) Já o uso do signo de instituição faz com
que, em bloco, as atividades da imaginação, da memória, da reflexão, da comparação,
da análise e da síntese passem a depender do próprio sujeito. Ele se assenhorea delas e
pode dirigi-las conforme quiser:
É nesse momento, e através desse artifício, que o ser humano eleva-se acima da
pura animalidade porque seus poderes já não se encontram mais sob a dependência dos
objetos (ou melhor: das percepções que recebe), mas pode agora tomar por si mesmo o
direcionamento e o rumo de seus próprios pensamentos. Pode orientá-los. Quanto mais
cresce o império dos signos mais cresce nosso poder de dirigir e orientar e comandar a
seqüência das idéias.
4. Podemos isolar pelo menos cinco motivos que levaram Condillac a compor o
Traité. O primeiro deles, já vimos,31 é colocado de uma forma um pouco vaga e difícil
de ser determinado com alguma precisão. Trata-se, vez por outra, de que Condillac
reclama de certas obscuridades do Essai. Fala mesmo numa exposição “embrulhada”
referindo-se, genericamente, a certas partes da obra sem, no entanto, determinar com
maior clareza. Essa razão talvez seja genérica e refira-se muito mais às quatro que
exporemos a seguir.
Em segundo lugar, já com precisão suficiente, Condillac invoca certos prejuízos
que estariam presentes no Essai, sobretudo o prejuízo do dado do qual, ainda nessa
obra, compartilharia com Locke. Retomaremos a isso com maior clareza:
Seja que nós nos elevemos, para falar metaforicamente, até os céus; seja
que nós desçamos aos abismos, nunca saímos de nós mesmos; e é
sempre nosso próprio pensamento que nós apercebemos. Quaisquer que
sejam nossos conhecimentos, se quisermos remontar à origem destes
chegaremos enfim a um primeiro pensamento simples, que foi objeto de
um segundo, que o foi de um terceiro, e assim por diante. 36
(CONDILLAC, in op. cit., vol.I, sec. I, cap. I, p.6)
Afirmação que, num certo sentido, constitui um lugar comum. Ela não diz outra
coisa senão que, por exemplo, quando um sujeito vê um pedaço de cera avermelhado,
na verdade ele tem acesso direto à sua sensação, sua representação desse objeto, que ele
aceita e acredita que existe em si no mundo material, e do qual essa sua imagem é uma
espécie de cópia. Essa é a crença elementar do senso comum. Mas sabe-se, há muito,
que é extremamente difícil demonstrar essa “certeza” do senso comum (como muitas
outras, aliás). O argumento do sonho, entre tantos outros, é típico. Não acreditamos,
enquanto sonhamos, na realidade daquilo que se desenrola diante de nós? Quem garante
que isso que denominamos vigia não é um longo sonho? Dúvidas bizantinas, dir-se-á.
Na prática ninguém coloca essas coisas em questão. E isso é certo. Mas há uma
diferença profunda entre a certeza, a mais enraizada em nossas entranhas, e sua
demonstração. O crente sabe perfeitamente disso. Não duvida nem por um instante da
existência de seu Deus. Mas sabe que ninguém até hoje conseguiu provar, demonstrar
sua existência. É algo, na verdade, que está além das possibilidades de nossa
inteligência. Por isso mesmo, trata-se de matéria de crença, fé, não de demonstração.
É exatamente esse problema que atinge o texto de Condillac citado acima. Ao
que tudo indica, jamais duvidou que aos nossos pensamentos correspondem objetos no
mundo externo. Mas, como provar isso? Acrescente-se que, por essa época, difunde-se
na França a obra do bispo irlandês Berkeley que, decididamente, tinha vindo ao mundo
para confundir os espíritos. De maneira implacável, Berkeley, através de seus textos, foi
corroendo essa certeza e mostrando (pelo menos ele foi lido assim) que não há a menor
possibilidade de sairmos de nós mesmos e provarmos que existe um mundo material
externo. Cúmulo dos absurdos, sussurrava-se. Mas o terrível irlandês escapava a todas
as pretensas refutações de sua tese. Tinha-se a sensação clara de que havia algo
profundamente errado aí, mas ninguém conseguia desmontar o sistema elaborado pelo
ardiloso bispo. Foi Diderot, na sua célebre Carta aos Cegos que apontou tanto o
problema envolvido na afirmação inaugural do Essai quanto a ligação dela com as teses
de Berkeley.37
5.a) Para enfrentar todas essas questões Condillac elabora sua célebre hipótese
— que constituirá a pedra angular do Traité — de um ser estruturado exatamente como
nós, absolutamente desprovido de todo contato sensível porque estaria revestido de uma
camada de mármore. Nessa estátua por assim dizer, poder-sei ir abrindo seus diferentes
canais sensíveis (os sentidos) sucessivamente Trata-se uma ficção metodológica, sem a
menor sombra de dúvida. Mas, ficção indispensável se se quer saber exatamente em que
nosso conhecimento é devedor de cada um dos sentidos e de como esses conhecimentos
constituem-se no sujeito. Indispensável também para se saber como os diferentes
sentidos interagem entre si, promovendo essa espécie de aprendizado mútuo, e de como
desenvolvem-se as diferentes operações do espírito, a partir desse dado originário que é
a sensação. E preciso convir que, se é para se levar a sério a idéia de sensação
transformada, então, o Único caminho viável é o escolhido Não supor nada,
absolutamente nada, nessa espécie de Adão epistemológico, a não ser uma estrutura
sensível e receptiva onde se depositarão as sensações e, a partir daí, ir metodicamente
examinando como se desdobram nossos conhecimentos e nossas operações:
5.b) Examinaremos como Condillac realiza essa operação com relação ao olfato,
que é o primeiro canal aberto por ele e onde o essencial é dito. O olfato é, de todos os
sentidos, o mais pobre. Escolha estratégica, portanto, porque se Condillac conseguir
articular suas teses através desse sentido, a tarefa ficará mais fácil com relação aos
outros, O olfato constitui, na verdade, de “todos os sentidos aquele que parece
contribuir menos aos conhecimentos do espírito humano”44 (CONDILLAC, in op. cit.,
vol. I p.222, col. a). O projeto consiste em tomar cada sentido isoladamente, analisá-lo
para, em seguida, tomar o seguinte, repetir a operação e depois analisá-los
conjuntamente, e assim sucessivamente, até que “considerando-os todos, e em conjunto,
veremos que a estátua se tomará um animal capaz de velar por sua conservação”.45
(CONDILLAC, in op. cit., vol. I p.222, col. b).
A análise partirá do sentido mais pobre para chegar até o mais rico em
conhecimentos, o sentido do tato, este último sendo também o responsável pela
introdução da noção de objetividade. Além disso, ela passará daquele dos sentidos que é
o mais “subjetivo”, para aquele que o é menos. São esses dois princípios que estão em
jogo.
Ao abrir o canal do olfato, estaremos frente à seguinte situação. Em primeiro
lugar, ele recebe um odor, exclusivamente. Ela é, nesse momento, afecção-odor e não
existe a menor distinção entre sujeito e objeto. Se se faz com que ela experimente
diferentes odores, isso fará com que ela seja sucessivamente afecção-odor “a”, afecção-
odor “b” etc.46(CONDILLAC, Parte I, cap. I §§ 1 e 2, p.224) Enquanto afetada pelo
primeiro odor, sua capacidade de sentir esgota-se na impressão que acontece sobre seu
órgão. Não se trata, para ela, de uma imagem de algo porque, por hipótese, ela não pode
pensar assim. O solipsismo da estátua é completo. A estátua nesses instantes originais
nem sente, portanto, por exemplo, um odor de rosa, porque não tem a menor noção da
existência desse ser. Nem mesmo sente um odor porque, na verdade, essa afecção é seu
modo de ser. Aqui, a totalidade de sua experiência resume-se em ser-odor. Esse aroma é
ela mesma:
Se lhe apresentamos uma rosa, em relação a nós ela será uma estátua
que sente uma rosa; mas em relação a si ela será apenas o próprio odor
dessa flor. 47
(CONDILLAC, I,1, §.2)
Esse odor, sentido há pouco, não lhe escapa, no entanto, inteiramente, desde que
o corpo cessa de agir. A atenção ainda a retém nisso que foi e que subsiste como traço
na sua estrutura sensível. Esse traço será mais ou menos forte conforme a atenção foi
mais ou menos viva. Isso é a memória. Supondo-se isso e supondo-se também que seja
novamente afetada, ela ainda retém a impressão anterior. Sua capacidade de sentir
duplica-se agora entre a memória e o odor atual. A atenção mesma divide-se entre a
memória e a impressão atual, O que significa dizer que, agora, tem duas maneiras de
sentir, uma das quais se relaciona com o que se passa atualmente nela, e a outra com
algo que já sentiu. Mas, nela mesma, não tem a capacidade de distinguir entre uma
lembrança e uma sensação atual, na medida em que ignora a ação atual de um objeto
tanto quanto sua própria capacidade retentiva. Só adverte a diferença de intensidade das
suas impressões. 51(CONDILLAC, I, II, §§.7 e 8) Nota-se já, nesse nível, a diferença de
enfoque entre o Essai e o Traité. Naquele, a memória já era definida em função da
instituição dos signos 52 e seu funcionamento dependia destes últimos. No Traité a
estratégia é outra: ela é definida somente em função de certa propriedade de nossa
estrutura sensível e pode funcionar sem a linguagem.
Essa experiência, crucial no Traité, faz com que a estátua perceba que existe um
estado “A” que é diferente do estado “B”. Isso introduz a percepção de uma mudança,
de uma sensação, que redunda na percepção da diferença entre existir de uma
determinada maneira e lembrar-se de ter existido de outra:
Passando dessa forma por duas maneiras de ser, a estátua sente que ela
não é mais aquilo que foi: o conhecimento dessa mudança faz com que
ela reporte a primeira a um momento diferente daquele em que sente a
segunda; e é isso que a faz estabelecer a diferença entre existir de uma
maneira e recordar-se de ter existido de uma outra. 53
(CONDILLAC, op. cit., I, II, §10).
5.c) Suponhamos mais uma vez, uma sucessão de odores. Se todos atraem
igualmente a atenção da estátua, essa mesma sucessão conservar-se-á na sua memória,
segundo a ordem em que se sucederam no espírito, e se ligarão entre si desse modo. O
princípio da ligação das idéias estabelece-se assim, de forma automática na estátua, e é
exatamente essa sucessão ligada que fornece o fundamento da memória:
Notar-se-á, mais uma vez, aqui, que esse conjunto de operações do espírito, que
estão sendo destacadas a partir da impressão original, em momento algum estão na
dependência da instituição e do uso dos signos. Estamos já, como é fácil observar, num
nível razoavelmente complexo das operações intelectuais, e a linguagem não interveio
para explicar a gênese desses fenômenos. Na verdade, Condillac está reconduzindo
sistematicamente essas operações a um princípio que já está presente no Essai, mas de
forma razoavelmente discreta, conforme avisamos. Trata-se do princípio das nossas
necessidades, que é o grande motor que guia esse conjunto de operações:
Todas as vezes em que está mal ou menos bem, ela se recorda das
sensações passadas; ela as compara com aquilo que ela é, e sente ser-
lhe importante voltar a ser aquilo que foi. Daqui nasce a necessidade ou
o conhecimento de um bem, do qual ela julga que o desfrute lhe é
necessário. 59(CONDILLAC, I, II, §.25)
Por outro lado, assim como no Essai, a diferença entre memória e imaginação é
uma diferença de grau e não de natureza. Isso, no entanto, está muito mais enfatizado no
Traité, que insiste no fato de que, quando uma sensação se retraça tão vivamente que
funciona como se o próprio órgão estivesse sendo acionado, temos a imaginação; e
quando se trata de um retraçar ligeiro, sem muita força, temos a memória. Trata-se, na
verdade, de uma só e mesma faculdade que funciona segundo dois graus diferentes. O
mais fraco a faz sentir na forma do passado, e o mais intenso como se estivesse
presente:
Por outro lado, se, como vimos, ela possui idéias particulares e idéias gerais,
conhece também duas espécies de verdades. Os odores singulares são, para ela, idéias
particulares. Mas vimos também que possui idéias abstratas, como descontentamento e
seu inverso. Conhece, portanto, também, verdades gerais. Sabe, em geral, que algumas
modificações provocam descontentamento, outras contentamento. 70 (CONDILLAC, I,
IV, §.8)
Adquirirá também, ainda que de forma vaga, a idéia de possibilidade, na medida
em que, habituando-se a estar num determinado estado, passa para um outro, para
depois voltar ao primeiro, e assim, sucessivamente, adquire a idéia de que poderá estar
num determinado estado. 71(CONDILLAC, I, IV, §.9) Pelo mesmo princípio de
mudança de estado, alternada ou contínua, a estátua pode adquirir um conhecimento de
uma duração passada, de outro porvir, de uma duração presente e mesmo de duração
indefinida.72 (CONDILLAC, I, IV, §§.11-13)
6.a) A lição mais interessante que Condillac extrai desse longo inventário de
como o espírito vai desenvolvendo suas faculdades, assim como adquirindo
conhecimentos, é o fato de que, com relação ao desenvolvimento das operações, aquilo
que viemos examinando praticamente esgota as possibilidades do espírito e, portanto,
pudemos ver o nascimento de quase todas suas faculdades pela simples abertura de um
canal sensível:
Esta última cláusula é importante pois coloca claramente que o que poderíamos
pensar que fosse o desenvolvimento de outras faculdades nada mais é que a aplicação
das mesmas a um maior número de objetos que as faz desenvolver mais. Praticamente a
única exceção neste caso, o leitor já deve ter advertido, diz respeito à reflexão que
Condillac faz depender diretamente do sentido do tato que, incidindo diretamente sobre
a constituição da objetividade, torna possível a reflexão:
6.b) Assim, o exame subseqüente dos outros sentidos servirá muito mais para
Condillac mostrar em que, especificamente nossos conhecimentos dependem, quanto ao
seu conteúdo, dos diferentes materiais oferecidos pelas diversas classes de percepções.
Não se trata, em virtude de nossos problemas e de nossos propósitos de acompanhar
Condillac nessa longa mas fascinante jornada intelectual, na abertura dos outros
diferentes canais. Os diferentes sentidos vão sucessivamente aumentando o estoque de
nossas idéias e complexificando nosso conhecimento. Analisando cada um em
particular, e depois em conjunto, sucessivamente, Condillac vai nos mostrando como o
conhecimento é um verdadeiro aprendizado, como os sentidos se ajudam e se educam
mutuamente, para formar progressivamente essa trama complexa do nosso saber.
Nem se trata aqui, pelos mesmos motivos, de seguir passo a passo sua magistral
análise do sentido do tato que, além de ser uma fonte quase indefinida de nossas
idéias,76 será o responsável pela catalisação da idéia de existência exterior, constituindo
assim a idéia de objeto e objetividade, do mesmo modo que, simultaneamente,
configura-se, com maior clareza e distinção, a idéia de sujeito. E nesses textos que
percebemos o quanto, literalmente, objetividade e subjetividade são construções para
Condillac. A partir de uma massa indiferenciada e inicial de impressões vai se elevando
progressivamente, se constituindo e se construindo uma unidade espiritual complexa e
estruturada que tem como correlato um mundo, ele também, complexo e estruturado.
7.a) Esse conjunto de análises elaboradas por Condillac mostra também, além da
tese da sensação transformada, duas outras não menos importantes. A primeira delas é a
de que ver, ouvir etc. constituem um aprendizado. Que os sentidos, para exercerem-se
na sua plenitude, precisam ser educados. Essa é, aliás, uma das críticas explícitas que
Condillac endereça a Locke:
A mão diz de alguma maneira à vista: o azul está em cada parte que
percorro; e a vista, por força de repetir esse juízo, faz deste um hábito
tão grande que chega a sentir o azul ali onde ela o julgou. 82
(CONDILLAC, ” (précis de la III parte), in op. cit., p. 332.)
7.b) A segunda tese que emerge das análises de Condillac é a respeito da noção
de objetividade. O desafio lançado por Diderot consistia em indicar que ou essa
objetividade deveria coincidir com a existência de um mundo exterior ou estaríamos em
pleno idealismo à la Berkeley. Vimos que um dos motivos que levaram Condillac a
escrever o Traité foi o de responder a esse desafio. Ora, que noções de objetividade e de
existência externa nos fornece o Traité?
Retomemos os dados do problema. A análise inicial dos quatro sentidos (olfato,
audição, gosto e visão) não nos faz dar um passo em direção seja da objetividade, seja
da noção de existência externa. Sabemos que as “nossas sensações não são qualidades
dos objetos” e nada mais são que “modificações de nossa alma”. Percebemos apenas
nós mesmos através dessas modificações 83 (CONDILLAC, in op. cit., I, XI, § 1 p.
244) sensíveis. O problema é claro:
Agora, o mais difícil teria sido imaginar como nós contraímos o hábito
de relacionar ao exterior sensações que estão em nós. 84
(CONDILLAC, I, XI, § 1 p. 244)
Assim, a estátua, que originalmente foi, ela mesma, som, sabor, odor, cor etc.,
aprendeu e acostumou-se a relacionar essas sensações a um “fora”. Mas há, nos próprios
objetos, sons, sabores, odores ou cores? “Quem pode assegurar?”. 86 (CONDILLAC,
IV, V, § 1 p. 305-6) Isso tudo foi conseguido, sabemos, porque a estátua “contraiu o
hábito de julgar segundo o testemunho do tato”. 87(CONDILLAC, IV, V, § 1 p. 305-6)
Podemos, pelo menos, dizer que existe uma “extensão” que nos é revelada por esse
último sentido?
Mas quando ela tem o sentimento do tato, o que apercebe senão ainda
suas próprias modificações? Portanto, o tato não é mais crível do que os
outros sentidos; e visto que reconhecemos que os sons, os sabores, os
odores e as cores não existem nos objetos, poderia ocorrer que a
extensão também não existisse ali. 88
(CONDILLAC, IV, V, § 1 p. 305-6)
Sinto apenas a mim, e é aquilo que sinto em mim que vejo no exterior,
ou antes, não vejo no exterior; mas habituei-me a certos juízos que
transportam minhas sensações para onde elas não estão. 90
(CONDILLAC, op. cit., IV, VIII, § 1, p. 310. O grifo é nosso)
9.a) É sobre o conceito de necessidade que irá girar a análise de Condillac. Mas,
ao invés de ser um conceito posto, ele será deduzido a partir da situação original da
estátua. Será preciso, portanto, que voltemos, mais uma vez nossa atenção, a esse
momento inaugural onde o canal do olfato é aberto.
Sua abertura provoca, na verdade, dois fenômenos simultâneos. O primeiro, que
já vimos, é o fato de que, nesse instante, a estátua recebe uma impressão sensível, um
determinado conteúdo, um quê, por assim dizer. Por exemplo, este odor particular de
rosa. Nesse momento, a estátua nada mais é do que esse odor; ela identifica-se com essa
modificação. Concomitantemente a esse fenômeno existe um outro também original,
isto é, o modo como essa impressão incide na estátua. Esse modo pode ser de duas
espécies. Ou a estátua é afetada agradavelmente pela impressão ou ela é
desagradavelmente afetada. Assim, desde esse impacto original, ela é também
simultaneamente afetada pelo gozo ou pelo sofrimento:
Como, por hipótese, ela, nesse momento, não tem e nem pode ter nenhuma idéia das
mudanças que podem lhe advir, isso significa dizer que ela pode estar bem, sem desejar
estar melhor, ou estar mal, sem desejar estar bem. 94(CONDILLAC, I, II,, §3) O seu
sofrimento atual não pode fazer com que deseje um bem que não conhece, nem o gozo,
o temor de um mal que lhe pode acontecer. Assim, por mais desagradável que seja essa
afecção original, mesmo que leve ao ponto de “lesar o órgão”, 95(CONDILLAC, I, II.,
§3) o desejo de sair desse estado não tem como se instaurar porque:
A dor só ocasiona em nós este desejo porque esse estado já nos é
conhecido, O hábito que contraímos de olhá-la como uma coisa sem a
qual nós fomos, e sem a qual nós ainda podemos ser, faz com que não
possamos mais sofrer, e que logo nós desejemos não sofrer.96
(CONDILLAC, I, II., §3)
O sofrimento, assim, não lhe faz desejar um bem que não conhece e nem o gozo
lhe faz temer um mal o qual não conhece também. E é isso que toma a estátua incapaz
de desejar. Indicação preciosa porque a análise genética está mostrando que seu estado
original (dor/prazer) não contém, nele mesmo, analiticamente, por assim dizer, o desejo.
Este não só é outra coisa, como também é algo derivado e supõe, portanto, não só esse
mesmo estado original, como também, para que haja sua emergência, um conjunto outro
de condições que é preciso examinar e explicar conforme formos detectando-as.
9.b) Conjunto de condições na verdade complexo, pois supõe que a estátua tenha
desenvolvido, mesmo que minimamente, um conjunto de atividades que podemos, em
prol da clareza e numa primeira aproximação, subdividir nos seguintes momentos,
supondo desnecessária, porque já o fizemos anteriormente, a explicitação das operações
que estão em questão:
9.d) Feitas essas pontuações sobre as noções de prazer e dor, retomemos o fio de
nosso raciocínio. A constituição da memória é uma condição essencial para que as
operações intelectuais deslanchem pois, sem elas, não lhes restaria nenhum vestígio de
suas sucessivas modificações e assim:
... a cada vez ela acreditaria sentir pela primeira: anos inteiros viriam
perder-se a cada momento presente. Portanto, limitando sempre sua
atenção a uma única maneira de ser, ela jamais compararia duas delas
em conjunto, jamais julgaria sobre suas relações... 104
(CONDILLAC, I, II., §5)
O texto acima deixa muito claro que o motor fundamental que, em última
análise, aciona toda e qualquer operação do espírito — na medida em que o “interesse”
deve estar presente em todos os níveis — é, na sua raiz, o par prazer/dor. Mas, para que
adquira esse estatuto, para que funcione dessa maneira, é preciso que se ligue às
operações das faculdades porque, por exemplo, se o estado de sofrimento é, em nós,
atualmente, acompanhado do desejo de sair dele, a razão está, como vimos,
106(CONDILLAC, in op. cit., I, II, §3) em que não só esse outro estado já nos é
conhecido, como também o seu oposto. Ora, a dedução genética não pode supor isso,
mas sim chegar a isso. O que significa, por outras vias, chegar à mesma conclusão que
chegamos há pouco: há um par de operadores fundamentais (prazer/dor) que em ação
conjunta com as operações elementares do espírito faz nascer o desejo de permanecer
ou sair de um estado.
9.e) O desejo, assim, não só é um conceito derivado mas supõe, para que se
instaure, a sua soldagem ao campo representativo. Ele é sempre desejo de ... algo.
Instaurado o circuito do desejo, aí então, e só aí, o prazer e a dor passarão a funcionar
como o “único princípio” que determina todas as operações da alma:
Assim que ela tiver observado que pode cessar de ser aquilo que é para
voltar a ser aquilo que foi, veremos esses desejos nascerem de um
estado de dor, que ela comparará a um estado de prazer que a memória
lhe recordará. É por este artifício que o prazer e a dor são o único
princípio que, determinando todas as operações de sua alma, deve
elevá-la gradualmente a todos os conhecimentos de que ela é capaz. 107
(CONDILLAC, I, II., §4. Os grifos são nossos)
9.f) Chegamos, agora, a uma determinação mais clara e precisa daqueles que são
os elementos básicos e fundamentais de toda a análise elaborada por Condillac. São dois
e ambos contidos no ato original de ser afetado por uma impressão — na sensação —: o
primeiro, enquanto conteúdo, e o segundo, enquanto modo. Toda sensação contém, em
primeiro lugar, algo que ela transmite (uma cor, um odor, um sabor etc.) e, em segundo
lugar, o modo como esse conteúdo afeta a estátua: agradável ou desagradavelmente. E
da combinação concreta desses dois elementos que vai se erigir todo esse edifício
complexo que denominamos o espírito humano, tanto em relação à sua matéria, como
em relação à sua forma. O que significa dizer, para acentuar o ponto que estamos
tentando colocar em relevo, que, se excetuamos o conteúdo sobre o qual erige-se nosso
espírito, tudo o mais depende da ação contínua do par prazer/dor:
Condillac oferece, por outro lado, vários exemplos onde a exceção vem
confirmar a regra. Tomemos, por exemplo, o caso dos sonhos. Nesse estado psíquico,
segundo Condillac, o espírito não funciona segundo as condições normais. Ele opõe-se
tanto ao estado de sono completo como ao de vigília. No estado de sonho, algumas
faculdades ainda operam no sujeito, mas à sua revelia completa e apenas “sobre uma
parte das idéias adquiridas”. 121(CONDILLAC, in op. cit.; I, V, §3) Nesse caso, a ação
do espírito — ela mesma limitada — perfaz-se sobre um material incompleto e vários
anéis da cadeia associativa são interceptados por essa deficiência e a ordem das idéias
no sonho não pode ser a mesma que a do estado de vigília. E, no sonho, “o prazer não
será mais a única causa que determina a imaginação”. 122(CONDILLAC, in op. cit.; I,
V, §3)
9.i) Por outro lado, não é difícil perceber que, embora possa-se falar, por uma
licença de linguagem, num primado do prazer, na busca do prazer em Condillac, o fato
é que, nesse par prazer/dor, o elemento originariamente ativo é a dor em todas as suas
nuances quantitativas.’ E ela (a “mais importuna das sensações”, como dizia Locke) que
constitui o verdadeiro motor que atua incessantemente na estátua. É verdade que, em
condições normais, ela só pode atuar se houver — como contraponto — um outro pólo
— o estado de ausência de dor ou o estado de prazer — que funcione como foco de
atração. E isso só pode acontecer porque a estátua representa esse outro pólo como algo
onde deve chegar. Esse “objeto de representação” que atua teleologicamente parece ser
a condição para que o estado desagradável atue de maneira eficaz. Repetimos:
normalmente é assim que as coisas se passam. Mas nem sempre esse pólo
representacional está presente. Aliás, originalmente não está. Foi por não terem dado a
devida atenção a esse ponto que alguns autores, como veremos, puderam falar num
primado do entendimento sobre a vontade em Condillac. Basta, no entanto, que
tomemos a experiência paradigmática da fome, tal como aparece no Traité, para que nos
convençamos do contrário. Retomemos essa análise.
10. Embora o sentido do paladar seja aquele que menos precise ser educado, na
medida em que é absolutamente necessário para nossa conservação, 125 ele é, no
entanto, sob um certo ângulo, fruto de um aprendizado já que “quando a estátua
experimenta pela primeira vez o sentimento da fome, esta não pode ainda ter objeto
determinado”,126(CONDILLAC, in op. cit.; III, X, §2) na medida em que desconhece
os meios para satisfazê-la. Nesse estado, portanto, não quer nada absolutamente
determinado. Sente apenas o impulso de não permanecer no estado em que está.
127(CONDILLAC, in op. cit.; III, X, §2).
É neste instante que podemos captar o conceito de necessidade (besoin) no seu
estado puro e original. Ele refere-se basicamente a esse estado de mal-estar que provoca
no sujeito o impulso de sair daí, de afastar-se. Ela é esse impulso causado pelo mal-
estar. No caso que estamos analisando, esse estado de mal-estar espalha-se por todo
corpo e, logo em seguida, concentra-se mais fortemente nos lábios e na boca da
estátua.128(CONDILLAC, in op. cit.; III, X, §3) Aí, então:
... ela leva os dentes a tudo aquilo que se lhe apresenta, morde as
pedras, a erva e sua primeira escolha é alimentar-se das coisas que
menos resistem aos seus esforços. Contente com uma alimentação que a
satisfez, não pensa em procurar uma melhor. Ela ainda não conhece
outro prazer em comer do que aquele de dissipar sua fome. l29
(CONDILLAC, III, X, §3)
Agora sua fome não é mais, como antes, um sentimento que não tem
objeto determinado; mas ela dirige todas as faculdades para obter o
gozo de tudo aquilo que pode dissipar sua fome.130
(CONDILLAC, III, X, §5)
11. Estamos agora, por outro lado, em condições de entender melhor as idéias de
necessidade, desejo, paixão e vontade. Originalmente a necessidade nada mais é que o
estado conseqüente do de mal-estar e pode ter variações quantitativas. Mais tarde,
quando, pela experiência, a estátua aprendeu qual o objeto que satisfaz a necessidade —
eliminando o mal-estar — por extensão, usa-se o termo necessidade referindo-se aos
próprios objetos que a satisfazem. 135 Mas, com precisão, esse último fenômeno refere-
se ao desejo que é a necessidade já ligada à representação do objeto que a satisfaz e que
induz à ação. Ou melhor, é a ação de nossas faculdades que se determinam em direção a
esse objeto.136 A paixão é o hábito ou o costume de desejar.137(CONDILLAC, I, III,
§3) Por fim, a vontade é a fixidez e a unilateralidade do desejo. Ela nada mais é que um
desejo que passou a ser dominante. 138 (CONDILLAC, I, III, §9)
13.a) Retomemos agora nossa atenção para esse fenômeno do mal-estar. Sendo
determinado pelo par prazer/dor ele está como vimos também sujeito a variações
quantitativas. Ele representa, na verdade, o grau mais baixo da escala:
13.b) O leitor já deve ter percebido que, após essa caminhada, estamos de novo
frente ao fenômeno que viemos analisando desde seu aparecimento no texto de T.
Hobbes:151 esse movimento incessante que caracteriza a vida humana, denominado
metaforicamente de “corrida” por este último, “inquietude” por Malebranche, e
focalizado através do par “uneasiness/desire” por Locke.
Apesar de criticar Locke na leitura do fenômeno, num ponto Condillac está de
acordo com ele: a inquietude não é algo que transparece no decorrer do movimento do
próprio sujeito nessa constante corrida através de inumeráveis objetos que apenas
satisfazem momentaneamente seu desejo. Neste ponto Condillac também critica a
conceituação malebranchista, e de forma explícita:
Os sentimentos que nos são os mais familiares são por vezes aqueles que
temos mais trabalho para explicar. Aquilo que chamamos de desejo é
um exemplo disso. Malebranche o define como o movimento da alma, e
nisso ele fala como todo o mundo. 152
(CONDILLAC, p.327)
Amor — Ódio
Desejo — Aversão
Prazer — Desprazer
Prazer — Desprazer
Desejo — Aversão
Amor — Ódio
Agora, com Condillac, temos:
Prazer — Desprazer
Desejo — Aversão
Amor — Ódio
Este objeto é novo, e ele mostra toda a simplicidade das vias do autor da
natureza. Pode-se não admirar que só tenha sido preciso tornar o
homem sensível ao prazer e à dor para fazer nascer nele idéias, desejo,
hábitos e talentos de toda espécie?154
(CONDILLAC, p.222)
E eis que, mais uma vez, estamos frente ao fenômeno da corrida do desejo, tão
característica da vida humana, descrito por Hobbes, repensado por Malebranche e
Locke, reenquadrado por Condillac. Mas, se o fenômeno descrito é, em linhas gerais, o
mesmo, há uma enorme distância entre essa nova conceituação e as anteriores. Sob um
certo ângulo, de Hobbes a Condillac, ao que assistimos foi um progressivo
aprofundamento da análise, uma explicitação cada vez maior das condições do próprio
fenômeno. Em Hobbes assistimos a uma descrição do fenômeno apontando que nessa
corrida estão a vida e a felicidade humanas. Já Malebranche tenta explicitá-lo como o
corre- lato inevitável de nossa aspiração à felicidade e ao bem. Locke apontou o par
“uneasiness/desire” como sendo o motor dessa corrida e Condillac, operando as
distinções que julgou necessárias, mostra que o fundamento último, para ele, está nessa
nossa irresistível e natural atração pelo prazer e aversão à dor.
14.b) Em terceiro lugar, é bom ressaltar um ponto que viemos apontando desde o
início de nossa discussão sobre Condillac. A estátua é sempre movida ou pela
intensidade de um bem que não possui ou pelo escasso grau de prazer ou dor atual que a
afeta.164(CONDILLAC, I, II, §27 p. 229) Seus móveis — inclusive para adquirir e
arquitetar seus conhecimentos — são práticos. O que está sendo visado pela estátua, ou
melhor, o resultado de suas operações, é a sua própria conservação. Aqui, neste ponto,
Condillac afasta-se da tradição hobbesiana na medida em que para ele, a conservação
não é um dado, um “conatus” originário, mas sim algo adquirido165(CONDILLAC, II,
VIII, p.372) É obedecendo à sua tendência primária de afastar-se da dor e procurar o
prazer que a estátua aprende a se conservar. Mas essa conservação de si é um resultado
e não algo dado originariamente.
Em quarto lugar, o Traité des Sensations é a longa demonstração de como um
sujeito isolado, sem comércio com os outros e, portanto sem linguagem, é capaz de
erigir um conjunto de conhecimentos e de práticas necessárias e suficientes para sua
manutenção. Todos os atos da estátua têm um alvo prático. Vimos, anteriormente, que o
Traité provoca uma progressiva evacuação da potência da linguagem e dos signos. Mas
isso não significa dizer que Condillac pura e simplesmente abandonou as teses do Essai.
Ele as enquadrou de maneira diferente. Todo e qualquer passo a mais que tome possível
a saída desse estado original e que amplie sua gama de conhecimentos terá como
condição a instauração do uso dos signos e da linguagem:
Ora, uma análise feita sem signos só pode fornecer conhecimentos muito
limitados; estes são necessariamente de pequeno número; e como não
foi possível ordená-los, sua coleção deve ser confusa. Portanto, quando
trato das idéias que a estátua adquire, não pretendo que ela tenha
conhecimentos dos quais possa dar-se conta de maneira exata: ela só
tem conhecimentos práticos, toda a sua luz é propriamente um instinto,
quer dizer, um hábito de conduzir-se segundo idéias das quais ela não
sabe dar-se conta, hábito que, uma vez contraído, guia-a seguramente,
sem que ela precise lembrar-se dos juízos que a fizeram assumi-los. Em
uma palavra, ela adquiriu idéias. Mas a partir do momento em que suas
idéias a ensinaram a conduzir-se, ela não pensa mais nestas e age por
hábito. Para adquirir conhecimentos de teoria, necessariamente é
preciso ter uma linguagem; pois é preciso classificar e determinar as
idéias; o que supõe signos empregados com método. 166
(CONDILLAC, II, VIII, §35, p. 268)
15. A partir de todos esses elementos, tomados em conjunto, uma nova idéia e
uma nova compreensão do homem é posta em relevo. Da concepção clássica — que
ainda conserva muito de sua força — passa-se, a partir de Hobbes, à constituição dos
elementos que funcionarão para a criação de uma nova antropologia. Antropologia
fundada nas potências do prazer, do desejo etc., que impulsionam as capacidades quase
ilimitadas do imaginário. Tudo isso acaba dependendo, em última análise, a partir de
Condillac, de uma concepção onde o prazer e a dor são os elementos fundamentais. Essa
é, seguramente, uma das heranças mais problemáticas e originárias que a época
moderna nos legou. Das mais espinhosas também. Em essência talvez não seja difícil
enunciá-la: a do papel constituinte do prazer na estruturação do sujeito. Mas,
compreendemos realmente toda a extensão e as conseqüências dessa tese? Tese que está
admiravelmente resumida numa passagem do capítulo final do Traité:
Pois viver é propriamente gozar, e a vida é mais longa para quem mais
sabe multiplicar os objetos de seu gozo. 167
(CONDILLAC, IV, IX, §2 p. 314)
NOTAS
1 Existem quatro conjuntos de textos nos quais Condillac trata o problema do luxo. O
primeiro está no “Le Commerce et le Gouvernement Considérés Relativament l’un a
Autre” in Oeuvres Philosophiques de Condillac, Paris, PUF, vol. 2, cap. XXVII, p. 308-
11. Os outros três estão no Cours d’Études, respectivamente: voL. 2, p. 112-5; 155-7;
167-72. A posição mais equilibrada e coerente parece-nos estar no trecho entre as p.
155-7, no capítulo “Considérations Génerales sur ce qui Fait la Force ou la Foiblesse
d’une République”, in Cours d’Etudes, VI, Hist. Mod., Livre IX, cap. II.
5 Ibid, p. 221.
6 J. Derrida, L’Archéologie du Fri vote - Lire Condiltac, Paris, Médiations, 1971, p. 62.
7 Condillac, “Essai sur l’Origine des Connaissances Humaines”, in op. cit., vol. 1, p. 3
8 lbid, p.4.
9 Ibid.
10 Sobre este último ponto é bom lembrar as análises muito claras elaboradas por E.
Cassirer no seu Filosofia do Iluminismo, SP, Unicamp, 1992, cap. III, p. 135 e seg.
12 Ibid, p. 10.
13 Ibid., p. 11.
14 É desenvolvendo este último ponto que Condillac vai operar uma verdadeira
reviravolta nas questões que estamos tratando.
16 Ibid., p. 14.
17 Ibid., p. 22.
18 Ibid., p. 16.
19 Ibid., p. 4.
20 Ibid., p. 17.
21 Cf. texto referido na nota 19.
22 Condillac, op. cit., p. 19.
23 Ibid., p. 4.
24 Ibid., p.5.
25 Cf. texto referido na nota 18.
26 Condillac, op. cit., p. 21.
27 Ibid., p. 22. Os grifos são nossos.
28 Ibid., p. 19.
29 Ibid., p. 22. Cf. também p. 21 e 23.
30 Ibid., p. 47. Cf. também p. 46.
31 Cf, texto referido na nota 4 desta IV parte.
32 Condillac, “Traité des Sensations”, op. cit., vol. 1, p. 221, col. b, 1.10-21.
33 A continuação do texto diz: “Eu não tinha podido afastar-me deles pelos raciocínios
de Locke sobre um cego nato, a quem se daria o sentido da visão; e sustento contra esse
filósofo que o olho julga naturalmente figuras, grandezas, situações e distâncias: (ibid, I.
21-27).
Trata-se do problema de Molineaux e a referência é à seção sexta, da primeira parte do
“Essai”, vol. I, p. 53 e seg.
34 Condillac, “Extrait Raisonné du Traité des Sensations”, op. cit., vol. 1, “Précis de la
Première Partie”, p. 325-26. Cf. também o texto do mesmo “Extrait” na p. 324, col. a, 1.
6-19.
35 Por exemplo:
1- G. Le Roy, La Psychologie de Condillac, Paris, 1937, p. 102.
2- M. Dal Pra Condillac, op. Cit., p. 12 1-37.
3- R. Mondolfo, “Introducción al Tratado de las Sensaciones”, B. Aires, Eudeba,
1963, p. 5-56.
4- §. Le Roy, “Introduction à l’Oeuvre Philosophique de Condillac”, in ed. cit, p.
XVII.
38 Condillac, “Carta a Maupertuis”, de 25 de junho de 1752, in op. cit., vol. II, p. 536.
Foi J. Derrida, op. cit., p. 73 e seguintes, quem nos chamou a atenção para a importância
deste texto.
40 “O Ensaio (diz Derrida) é portanto do começo ao fim uma semiótica”, op. cit., p. 76.
41 “Podemos distinguir as operações da alma em duas espécies, segundo as
relacionamos mais particularmente ao entendimento ou à vontade, O objeto deste ensaio
indica que me proponha a considerá-las apenas pela relação que elas têm com o
entendimento” (“Essai”, in op. cit., 1, p. 10).
42 Cf. “Essai...”, in op. cit., vol. I, p. 13, 17, 36, 83, 87.
45 Ibid.
47 Ibid., I, 1, § 2.
51 Ibid., I, II, §7 e 8.
61 Ibid.
64 Ibid., I,1V, § 1.
65 Ibid., I, IV, § 2.
66 Ibid., I, IV, § 3.
67 Ibid., I, IV, § 4.
68 “Foi a arte dos signos que nos ensinou a levar a luz mais longe” (op. cit., I, IV, 7).
70 Ibid., I, IV, § 8.
71 Ibid., I, IV, § 9.
73 Ibid., I, VII, § 1.
74 Ibid., II, VIII, § 14; cf. também Extrait Raisonné, p. 327, col. a.
75 Ibid., I, VII, § 4.
76 “O número das idéias que podem vir pelo tato é infinito; pois ele compreende todas
as relações das grandezas” (op. cit., I, VIII, § 2).
79 Ibid., p. 328.
87 Ibid.
88 Ibid.
89 Ibid., IV, VI, § 9-10, p. 308. A natureza disso nos é absolutamente desconhecida:
“Mas qual é a natureza desses seres? Ela (a estátua) o ignora e nós mesmos o
ignoramos. Tudo aquilo que sabemos é que nós os chamamos de corpos” (IV, V, § 2, in
fine).
92 Numa outra carta, a Gabriel Cramer, Condillac vai na mesma linha: “É isso que faz
com que eu esteja um pouco embaraçado sobre toda essa matéria (i.e., a linguagem).
Eu até mesmo me apercebo de que disse mais do que queria dizer”, in Lettres Inédites à
G. Cramer (ed. G. Le Roy), citado por J. Derrida, op. cit., p. 95.
94 Ibid., I, II, § 3.
95 Ibid
96 Ibid
99 Ibid.
100 Ibid.
103 “Só existem sensações indiferentes por comparação: cada uma é em si mesma
agradável ou desagradável; sentir e não sentir bem ou mal são expressões inteiramente
contraditórias” (Condillac, “Extrait Raisonné”, in op. cit., p. 327, col. b).
105 Id., “Extrait Raisonné”, in op. cit., Abertura, p. 324, col. b. Os grifos são nossos.
108 Condillac, “Traité des Sensations”, in op. cit.; “Dessem de cet ouvrage”, p. 222,
col. a-b. Os grifos e os parênteses são nossos.
109 Condillac, “Extrait Raisonné”, in op. cit., p. 327, col. a. Cf. também “Traité des
Sensations”, in op. cit., IV, VIII, § 1, in fine.
111 Cf. texto referido na nota 105 desta parte e, também, “Traité des Sensations”, in op.
cit., I, II, §21e 41.
113 Ibid.,IV,VIII,4.
118 Ibid., I, VII, § 3: “pois sempre somos movidos pelo prazer ou pela dor”.
119 Ibid.
120 Id., “Extrait Raisonné”, in op. cit., p. 328, col. a, no início. Cf. também: “... enfim,
no prazer e na dor que acompanham todas as sensações que experimento, creio
aperceber o princípio de minha vida e de todas as minhas faculdades” (“Traité des
Sensations”, in op. cit., IV, VIII, §6).
122 Ibid. Os outros casos aparecem em: IV, I, §1-3 e IV, VI, §7.
124 O discurso de Condillac, neste ponto, como em outros, aliás, é muito semelhante ao
discurso freudiano. Inicialmente, como se sabe, Freud falava num “princípio do
desprazer” porque a tendência primária do aparelho psíquico é fugir do desprazer,
expulsá-lo, eliminá-lo. E esse ato é sentido pelo aparelho como prazeroso. O prazer
nada mais é, para Freud, do que a evacuação do desprazer. E por isso que este Último é
fundamental na estruturação do aparelho psíquico. Ele é o “grande mestre” como
denomina Freud no “Projeto” de 1895. Mais tarde Freud usará a expressão “princípio do
desprazer/prazer”, que ainda aparece na “Interpretação dos Sonhos”. Por fim,
prevalecerá a fórmula “princípio do prazer” que, sob este ponto-de-vista, não é das mais
felizes.
125 “O sentido do paladar instrui-se tão rapidamente que mal nos apercebemos de que
ele precise de aprendizado. Isso deveria ser assim, visto que ele é necessário à nossa
conservação desde os primeiros momentos de nosso nascimento” (“Traité des
Sensations”, in op. cit., III, X, §1).
127 Ibid.
129 Ibid.
132 Ibid.
133 Ibid., IV, I, § 2: “Nessa abundância a estátua forma desejos, mas neste momento ela
sempre tem com o que se satisfazer. Toda a natureza ainda parece velar por ela...”.
135 E o que deixa claro o Dictionnaire des Synonymes, no verbete “necessidade”: “Por
conseguinte, designam-se por esta palavra as coisas necessárias das quais se está
privado...” (op. cit., vol. III, p. 88-9).
142 Ibid. Tese, na verdade, historicamente duvidosa pois, como vimos, na idade
moderna, seu primeiro representante parece ter sido T. Hobbes.
148 Ibid.
149 Condillac, “Extrait Raisonné”, in op. cit., p. 327. Um pouco antes lemos esta
afirmação: “Locke foi o primeiro a observar que a inquietude causada pela privação de
um objeto é o princípio de nossas determinações. Mas e!e faz a inquietude nascer do
desejo, e trata-se precisamente do contrário” (p. 325).
155 Condillac, “Traité des Sensations”, in op. cit., IV, II, §7, p. 303.
156 “No decorrer da obra não se perdeu de vista esse princípio...”, (“Extrait Raisonné”,
in op. cit., p. 328).
157 Condillac, “Traité des Sensations”, in op. cit., IV, VIII, § 4, p. 312.
159 Ibid., II, XI, § 5, p. 271. O exemplo refere-se ao sentido do tato mas é facilmente
generalizável.
162 Condillac, “Traité des Animaux”, in op. cit., II, VIII, p. 372.
164 Condillac, “Traité des Sensations”, in op. cit., I, II, § 27, p. 229.
165 “Ao contrário, ao nascer nós aprendemos que somos sensíveis à dor. Portanto, o
primeiro objetivo do amor-próprio é afastar todo sentimento desagradável; e é por aí
que ele tende à conservação do indivíduo” (Condillac, “Traité des Animaux”, in op. cit.,
II, VIII, p. 372).
166 Condillac, “Traité des Sensations”, in op. cit., II, VIII, § 35, p. 268. A edição das
obras completas de Condillac, realizada em Paris (1821-1822), e republicada pela
Slaktine Reprints, Genève, 1970, contém uma lacuna nessa passagem que toma o texto
ininteligível. Cf. Tomo III, p. 172-3. Com relação ao problema aqui tratado, o leitor
pode ainda se reportar à abertura da quarta parte do “Traité des Sensations” onde
Condillac retoma mais uma vez as teses expostas neste cap. VIII da segunda parte.
CONCLUSÃO
Como afirmamos em nossa introdução, o que o leitor tem em mãos é apenas uma
etapa de uma pesquisa em andamento. Rigorosamente falando, nada temos a oferecer ao
leitor a título de conclusão. Poderíamos, é claro, como às vezes se costuma fazer,
elaborar uma síntese de nossa discussão. Não pensamos, no entanto, que isso seja
necessário, O que tínhamos a dizer já o fizemos, e parece-nos inútil tentar a mesma
coisa com economia de palavras. Inútil e repetitivo.
Podemos, no entanto, tentar apontar aqueles pontos que consideramos
fundamentais para que esse trabalho não se complete, mas se alargue de forma a se
tomar mais significativo e expressivo. Em primeiro lugar, seria necessário examinar
com mais cuidado a tradição insular, esses pensadores que costumeiramente se
denominam os moralistas britânicos (Shaftesbury, Clarke, Hutcheson, Butler, Gay,
Hartley, Price etc. etc.). O domínio continental e insular não foram estanques e isolados,
como sabemos. As influências recíprocas são grandes e seria interessante examinar esse
ponto.1
Há, em segundo lugar, um outro fator que não pode e não deve ser esquecido
nesta problemática. Esse fator é a enorme influência exercida por J.-J. Rousseau, o
grande ausente de nosso estudo, em razão do ponto-de-vista que adotamos. O
pensamento moral e político dessa época foi profundamente influenciado por esse gênio
solitário que quase sempre nadava contra a corrente. Em parte absorvido, em parte
criticado, Rousseau é quase sempre o interlocutor não nomeado de muitos textos. É
difícil encontrar um pensador que não se esgrima vez por outra com o genebrino.2 Mas
o movimento inverso também é mais que plausível. Quando se lêem as páginas iniciais
do Segundo Discurso, é impossível deixar de lado a impressão de que Rousseau retoma
exatamente o sujeito tal qual ele tinha sido deixado por Condillac ao pôr o ponto final
no Traité des Sensations. Esse sujeito, jogado na floresta, velando por si e por suas
necessidades, não se parece com essa estátua que Condillac pacientemente constrói e
cujo fim é cuidar de sua própria conservação?3 Assim, embora o desenvolvimento
formulado por Rousseau seja próprio e original, o ponto de partida é muito semelhante.
Um terceiro grupo de pesquisas impõe-se também. A partir dos anos 50,
cristaliza-se no século XVIII, no domínio francês, uma sólida tendência empirista e
hedonista. Do Anti-Sêneca de La Mettrie, passando pelo Tratado das Sensações, pelo
Do Espírito, até o Sistema da Natureza, essas concepções se concentram e adquirem
contornos claramente coerentes. É verdade que essa progressiva revalorização do prazer
parece vir do Renascimento, sobretudo com Lorenzo de Valla, passando pela
libertinagem erudita no século XVII, até tornar quase um lugar comum no século XVIII,
em diferentes autores como Mandeville, Voltaire4, Meslier5, (MESLIER, 1070-2, 3
vol., vol. I, p.216) Hume6 (HUME, 1978, p.167) etc.etc. Mas, na maioria das vezes, ou
são peças retóricas ou afirmações isoladas. A partir dos anos 50, e sobretudo no Traité
de Condillac, essa concepção se firma, cristaliza-se e se toma um todo coerente e
harmonioso. Na verdade, um conjunto de teses esparsas mas interligadas (primado do
prazer; predomínio do campo afetivo; redefinição da noção de bem, de valor, de amor
próprio; reavaliação positiva da noção de interesse; reenquadramento das noções de
utilidade e necessidade etc.) acabaram por se aglutinar, ordenar-se, produzindo um todo
unitário, coerente e sistemático.
Isso teve inúmeras conseqüências, das quais apontaremos algumas, e cada uma
delas requer uma pesquisa mais atenta. Em primeiro lugar, essa revalorização do prazer
trouxe à tona um tema não muito comum ao discurso filosófico: o do sexo. É verdade
que desde Platão7(PLATÃO, VI, p.151) são poucos os grandes pensadores que não
afirmam ser o sexo a mais potente e a mais violenta de nossas paixões. Mas, a partir de
La Mettrie e Helvétius a sexualidade passa a ser, sem a menor sombra de dúvida, o eixo
sobre o qual gira o discurso moral. Muito antes de Sade, a potência central da
sexualidade já estava afirmada.
Em segundo lugar, esse primado do prazer (e do sexo) afirma-se também no
discurso biológico ou filosófico-biologizante. Neste último caso, um exemplo
característico é Cabanis. 8(CABANIS, 1956, vol. I p.190-1, vol.II p. 131-52) Na
biologia propriamente dita ela aparece sobretudo em Lamarck 9 e Bichat.10
Por último, não se pode negar também a influência dessas teorias sobre o
discurso econômico, pelo menos em algumas de suas ramificações. Quase toda corrente
que conhecemos pelo nome de “psicologista” nesse terreno — da qual Condillac foi
sem dúvida um representante — parte das noções de necessidade e satisfação para
construir o conceito de valor.11
Enfim, existe um interessante e longo trajeto a ser seguido nessa linha, que
provavelmente seria muito frutífero para se investigar a constituição, o assentamento e
as influências recíprocas nesse campo.12 E, para falar com honestidade, só depois de
investigados esses diferentes “filões”, poder-se-ia talvez pensar em alguma conclusão.
Antes, e acima de tudo, cultivemos a paciência e a prudência.
NOTAS
2 Assim, por exemplo, o grande adversário de Sade, embora raramente nomeado, é sem
dúvida Rousseau, o qual ele conhecia bem. As teses de Sade, num certo sentido, podem
ser lidas como uma tentativa de resposta às de Rousseau e constituem um universo
quase simetricamente inverso ao dele.
7 Platão, Leis, Livro VI, 782 c —783 b; ed. Belles Lettres, XI, 2, p. 151.
8 Cabanis, Oeuvres Philosophiques de Cabanis, Paris, PUF, 1956, vol. I, p. 190 e seg. e
vol. II, p. 131-52.
11 Não é por acaso que um autor como J. Urban, que segue essa linha de interpretação,
vai constantemente buscar nos discípulos desses autores do século XVIII suas fontes de
inspiração. Cf. L’Épithymologie, Paris, F. Alcan, 1939.
12 Isso para não falar em trabalhos já solidamente elaborados, como é o caso do texto
de Halévy: La Formation du Radicalisme Philosophique (Paris, Alcan, 1901-4), onde a
influência de Condillac e Helvétius é apontada, com todo rigor, na formação da escola
utilitária.
BIBLIOGRAFIA
Esta bibliografia refere-se à que foi realmente utilizada no texto e não à consultada.
Utilizamos as normas habituais e convencionais.
Beccaria. Tratado dos Delitos e das Penas. Rio de Janeiro, Ed. de Ouro, s.d.
Condillac, Étienne de. Essai sur l’Origine des Connaissances Humaines, in Oeuvres
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________ Les Aventures de Télémaque. Paris. R. Simon. s.d. _________• Lettre à Louis
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Gusdorf, G. Les Principes de la Pensée au Siécle des Lumières, Paris, Payot, 1976.