O Patrimônio Cultural Dos Terreiros de Candomblé e A Construção Da Questão
O Patrimônio Cultural Dos Terreiros de Candomblé e A Construção Da Questão
O Patrimônio Cultural Dos Terreiros de Candomblé e A Construção Da Questão
CONSTRUÇÃO DA QUESTÃO
RESUMO:
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Mestrando do Programa de Pós Graduação em Patrimônio, Cultura e Sociedade, da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)
e-mail: pedrotmcabral@gmail.com
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Apresentação
A evolução da questão
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Até os anos 2000 o único instrumento de proteção nacional do patrimônio cultural era
o Decreto 25/1937. Nesse particular o referido instituiu em seu texto:
Art. 1º Constitue o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis
existentes no país e cuja conservação seja de interêsse público, quer por sua vinculação a fatos
memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico,
bibliográfico ou artístico. (BRASIL, 1937)
Art. 4º O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional possuirá quatro Livros do Tombo, nos
quais serão inscritas as obras a que se refere o art. 1º desta lei, a saber:
3) no Livro do Tombo das Belas Artes, as coisas de arte erudita, nacional ou estrangeira;
4) no Livro do Tombo das Artes Aplicadas, as obras que se incluírem na categoria das artes aplicadas,
nacionais ou estrangeiras. (BRASIL, 1937)
Desde a década de 1930, a partir da figura de Mário de Andrade e de sua atuação junto
ao Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), órgão este que viria a dar
origem ao atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN),
suscitavam-se discussões sobre a diversidade do patrimônio do país. Segundo a autora:
(...) Mário foi, na prática, um pioneiro do registro dos aspectos imateriais do patrimônio cultural, pois
documentou sistematicamente manifestações dessa natureza ao longo de sua vida, deixando para a
posteridade fotografias, gravações e filmes que realizou em suas famosas viagens ao Nordeste.
(SANT’ANNA, 2003, p. 54).
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ampliação do conceito do que viria a ser o patrimônio cultural brasileiro possibilitou a
expansão da discussão.
Como movimento posterior ao que se iniciou com a Carta Magna, no ano de 2000, a
partir do Decreto Federal 3.551, institui-se o Registro de Bens Culturais de Natureza
Imaterial:
Art. 1o Fica instituído o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio
cultural brasileiro.
I - Livro de Registro dos Saberes, onde serão inscritos conhecimentos e modos de fazer enraizados no
cotidiano das comunidades;
II - Livro de Registro das Celebrações, onde serão inscritos rituais e festas que marcam a vivência
coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social;
III - Livro de Registro das Formas de Expressão, onde serão inscritas manifestações literárias, musicais,
plásticas, cênicas e lúdicas;
IV - Livro de Registro dos Lugares, onde serão inscritos mercados, feiras, santuários, praças e demais
espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas.
§ 2o A inscrição num dos livros de registro terá sempre como referência a continuidade histórica do
bem e sua relevância nacional para a memória, a identidade e a formação da sociedade brasileira.
§ 3o Outros livros de registro poderão ser abertos para a inscrição de bens culturais de natureza
imaterial que constituam patrimônio cultural brasileiro e não se enquadrem nos livros definidos no
parágrafo primeiro deste artigo. (BRASIL, 2000).
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Dentro da discussão que aqui se pretende, ressaltamos um elemento elencado no
instrumento em questão, que reconhece, para além de outras práticas, o papel dos “Lugares”,
entendidos no instrumento legal como “feiras, mercados, santuários, praças e demais espaços
onde se concentram e se reproduzem práticas culturais coletivas”. Este elemento em
específico, possibilita um olhar que abraça a espacialidade dos espaços e territórios próprios
das comunidades tradicionais de matriz africana, e criam possibilidades para sua compreensão
patrimonial. Neste contexto, as discussões envolvendo as comunidades tradicionais de matriz
africana passam a ganhar volume.
Poderíamos aqui citar o movimento pioneiro para o tombamento do Ilê Ásè Iyá Nassô
Oká, conhecido como Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho, que se concretiza em
19862. Esta seria a primeira vez em que o Estado Nacional reconheceria oficialmente as
tradições afro-brasileiras no campo patrimonial (VELHO, 2006). O processo de tombamento
do Engenho Velho fora envolto em um cenário conflituoso e em embates relacionados mais
uma vez aos modelos consagrados do tombamento, visto que os uma parte considerável dos
técnicos e dos grupos envolvidos no processo não reconheciam valor no conjunto
arquitetônico em questão, pois suas referências não se relacionam com os fundamentos da
arquitetura tradicionalmente reconhecida. Tal postura é reflexo da visão elitista sobre o
patrimônio cultural brasileiro, em que valores externos à cultura hegemônica não são
reconhecidos, e por muitas vezes são desprezados. Gilberto Velho, relata sua participação
enquanto relator neste processo em seu trabalho “Patrimônio, Negociação e Conflito”, em que
o próprio autor reconhece este processo de desvalorização por parte de algumas parcelas
envolvidas: “No entanto, não posso evitar mencionar que em alguns casos poderia haver um
certo desprezo pelo que considerávamos importantes manifestações culturais da nação
brasileira.” (VELHO, 2006)
Outras questões que permearam o processo em questão, também são reincidentes
ainda hoje nas lutas pelo espaço dos terreiros de Candomblé. Segundo Gilberto Velho, o
Engenho Velho passou por enfrentamentos e pressões imobiliárias resultantes do interesse da
indústria da construção civil em seu terreno. As pressões e influências que o mercado induz
sobre o território, pesam de maneira considerável em grupos sociais com uma vulnerabilidade
maior. “(...) vêem no patrimônio uma ocasião para valorizar economicamente o espaço social
ou um simples obstáculo ao progresso econômico” (CANCLINI, 1994)
Tal realidade reproduz processos sociais de desigualdade no campo do patrimônio de
maneira geral. Práticas e bens culturais de grupos sociais pertencentes às classes menos
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Esse movimento é também abordado no trabalho de Otair Fernandes: (OLIVEIRA, 2018, p.20).
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favorecidas, são colocados à margem da questão e desvalorizados na formulação de políticas
e práticas de preservação. Canclini nos traz uma reflexão de como tal processo de
desigualdade se reproduz na realidade do patrimônio cultural:
“O patrimônio cultural serve, assim, como recurso para produzir as
diferenças entre os grupos sociais e a hegemonia dos que gozam de um acesso
preferencial à produção e distribuição dos bens. Os setores dominantes não só
definem quais bens são superiores e merecem ser conservados, mas também
dispõem dos meios econômicos e intelectuais, tempo de trabalho e de ócio, para
imprimir a esses bens maior qualidade e refinamento.” (CANCLINI, 2006,pág.
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Porém, é a partir dos anos dois mil que a política patrimonial brasileira efetivamente
passa a reconhecer estes patrimônios fundamentais na formação histórico-social do país, e
ampliar as discussões que os considerassem e refletissem suas particularidades frente a
formação do que se entende como patrimônio cultural no país. Podemos citar o caso do IPAC
(Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia), com a instituição do registro especial
para patrimonialização dos terreiros baianos. O instrumento criado considera particularidades
envolvendo o limiar entre material e imaterial nestes espaços e garante, para além do registro,
mecanismos de proteção para o território em questão. Através deste registro, 10 terreiros da
região do Recôncavo foram inscritos no “Livro do Registro Especial dos Espaços Destinados
a Práticas Culturais e Coletivas”. A experiência do IPAC no caso citado, trouxe um avanço
para a questão pois protege, além da materialidade do espaço, as práticas imateriais que se
processam no lugar, como os ritos e a própria culinária.
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“sentidos e valores atribuídos pelos diferentes sujeitos a bens e práticas sociais” (FONSECA,
2012, p.113). A forma como os espaços dos candomblés se organizam, e as dinâmicas
envolvidas desde a sua formação até a sua utilização, parecem impossibilitar uma dissociação
entre a materialidade e a imaterialidade que ali se processa. Como elucidado por Fonseca, a
existência de um suporte físico, em determinados bens culturais, é imprescindível para sua
existência. (FONSECA, 2003, p. 68).
Em um processo simbiótico, a forma como estas comunidades se relacionam com o
espaço, fazem dele um suporte indispensável para realização não apenas dos ritos, mas em um
sentido mais amplo, como meio que possibilita toda a existência daquela comunidade. Muniz
Sodré, em sua obra “O terreiro e a cidade”, traz uma reflexão pontual para compreensão do
que aqui se propõe: “Por meio do sagrado, os negros refaziam, em terra brasileira, uma
realidade fragmentada” (SODRÉ, pg. 71, 2019). Esta reflexão revela o caráter fundamental
deste espaço/território enquanto elemento condensador de toda uma visão de mundo do
Candomblé. Um terreiro, por essência, se propõe a recriar um espaço sagrado de
materialização da memória dos ancestrais ali cultuados. E é a partir desta memória ancestral,
que seus praticantes orientam sua conduta social e também orientam aquele espaço. Um
espaço orientado por símbolos que comunicam a dinâmica daquela comunidade e seus
preceitos orientadores.
Tomaremos aqui como exemplo ilustrativo a tradicional Fogueira de Nzazi3,
festividade celebrativa que se processa anualmente no terreiro Omariô de Jurema, casa de
candomblé de tradição Angola/Congo, localizada no município de Barra Mansa, no interior
do Rio de Janeiro.
A cerimônia ritual dedicada ao nkisi4 Nzazi, patrono daquela comunidade, se inicia no
dia 29 do mês de Junho, onde nas primeiras horas do dia já se percebe a movimentação no
local. Neste dia, no cômodo da casa dedicado ao patrono, as limpezas rituais são realizadas e
o kuxikama5 daquela divindade é preparado para receber as oferendas que ali se processarão.
Também durante o dia, são preparadas as comidas votivas na rifula6 do terreiro. No processo
do preparo, todos os membros se congregam em respeito a este espaço sagrado, dividindo o
mesmo ambiente e compartilhando tarefas que são determinadas pela Mam’etu ria Nkisi7.
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Divindade de origem bantu, componente do panteão do candomblé de tradição Angola/Congo, associada ao
fogo e aos trovões.
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Em uma tradução livre do Kimbundu, entende-se a palavra nkisi como divindade
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Receptáculo onde se depositam variados símbolos que representam a materialização da divindade junto a
comunidade
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Cozinha ritual
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Sacerdotisa do Candomblé de nação Angola/Congo
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Ao anoitecer, é acesa uma primeira fogueira na área externa da casa, em que são
apresentadas as oferendas do Santo, e posteriormente todos se dirigem para o salão, em frente
à kubata8 de Nzazi. Ali são oferecidas as comidas rituais para a divindade e durante doze dias
são realizadas rezas dedicadas àquele nkisi. Durante esse período, todos os membros da
comunidade estarão presente integralmente ou parcialmente no terreiro, e suas rotinas
passarão a seguir os preceitos determinados pela liturgia que está se processando.
Figura 01: Fogueira de Nzazi, 2022, fotografia digital, 12,9 x 8,6cm. Acervo Omariô de Jurema. Crédito da
imagem: Leonardo Avelino.
Ao fim do décimo segundo dia, momento em que se realiza o festejo público, uma
grande fogueira é erguida em uma praça existente em frente ao terreiro, e todos os presentes
se reúnem para cantar e dançar junto a Nzazi, que neste momento se manifesta através do
transe nos membros iniciados para esta divindade.
A partir desta experiência narrada podemos perceber o quão simbiótica é a relação que
se constrói entre o material e o imaterial no contexto dos terreiros de candomblé. O terreiro é
um suporte que recebe e interage com toda tradição e a memória ancestral daquele grupo. É
referência para todos os seus membros, como veículo que conduz suas ações e condutas. A
tradição e a memória se cristalizam no espaço e criam laços indissociáveis.
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Cômodo reservado para as divindades, destinado a abrigar os seus objetos rituais
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A partir da narrativa percebemos, por exemplo, que um simples cômodo, passa a
ganhar uma outra conotação por ser o abrigo da representação maior da divindade que orienta
aquela comunidade, e com isso determina toda dinâmica dos rituais que ali se processam. É
notório que o fato de se processar uma cerimônia naquele espaço, reflete na conduta social e
na rotina coletiva de todos os membros daquele grupo. A estadia em um determinado local,
pela significação que este espaço contém, molda a forma como os indivíduos se comportam e
interagem ali. O espaço orienta as dinâmicas culturais daquele grupo, mas é também orientado
por ela e se dinamiza e transforma a partir do movimento daquela tradição. Esta
exemplificação, traz luz às relações que se constroem dentro da perspectiva destas
comunidades, entre o que se entende por material e imaterial, e como a compreensão da
materialidade por estes grupos possui uma conotação própria.
Considerações Finais
Referências Bibliográficas
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CASTRO, Sonia Rabello de. O Estado na Preservação de Bens Culturais. O Tombamento.
Rio de Janeiro: IPHAN, 2009. Capítulos I, II e VII. Disponível em:
http://www.soniarabello.com.br/biblioteca/O Estado na_Preservacao_de_Bens_Culturais.pdf
FONSECA, Maria Cecília Londres da . Para além da pedra e do cal: por uma concepção
ampla de patrimônio cultural. In: ABREU, Regina (Orgs). Memória e Patrimônio: ensaios
contemporâneos. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Lamparina Editora, 2009.
LOPES, Nei. Novo Dicionário Banto do Brasil. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Pallas, 2012
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História.
São Paulo: PUC-SP. n° 10. p12. 1993
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UNESCO. Carta da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial.
Paris, 2003, p 1-18. Disponível em:
http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/ConvencaoSalvaguarda.pdf
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