Laudo Antropológico Criminal 11 Kayapo e Kuikuro - Gustavo Menezes
Laudo Antropológico Criminal 11 Kayapo e Kuikuro - Gustavo Menezes
Laudo Antropológico Criminal 11 Kayapo e Kuikuro - Gustavo Menezes
PROCURADORIA-GERAL FEDERAL
PROCURADORIA FEDERAL ESPECIALIZADA-FUNAI
SRTVS Quadra 702 – Bloco “A” Ed. Lex- 3º andar
CEP: 70346-904 TEL. 61-3133519
Solicitante: Sra. Patrícia Helena Shimada (Delegada de Polícia Federal) e o Sr. Mário
1
Introdução
Este laudo antropológico busca dar visibilidade aos aspectos socioculturais das
populações indígenas Kayapó e Kuikuro e, mais especificamente, aos questionamentos
feitos pela Justiça se os indígenas citados detêm condição de compreender o caráter
ilícito do fato que lhes é imputado e de se auto-determinar conforme tal compreensão.
1
Documento de Trabalho da Oficina sobre Laudos Antropológicos realizada pela ABA e NUER/UFSC
em Florianópolis em novembro de 2000.
2
O trabalho de campo foi realizado em várias etapas. Entre 22 e 23/03: entrevista com Tuíra Kayapó e
Emi Kayapó na aldeia Kaprenkrere, PA. Em 24/03: entrevista com Yode Kayapó na aldeia Las Casa, PA.
Entre 25 e 26/03: entrevista com Putuiarô Kayapó na aldeia Gorotire, PA. Em 19/04: entrevista com Ireô
Kayapó na CASAI/FUNASA de Redenção, PA. Entre 20 e 21/04: entrevista com Yamyti Kayapó na
aldeia Kriny, PA. Entre 29 e 30/04: entrevista com Arifutuá Kuikuro na aldeia Afukuri, Parque Indígena
do Xingu, MT.
3
Em dezembro de 2004 participei, como assessor, da Oficina de Produção do Atlas das Terras Indígenas
Mebengokrê (Kayapó), Panará e Tapayuna Gonorã, vinculada ao Curso de formação dos professores
indígenas destes povos. Em setembro de 2005 participei, assessorando o módulo de antropologia, da 10ª
Etapa do Curso de Formação de Professores Mebengokrê (Kayapó), Paraná e Tapajuna, na T.I. Kayapó,
MT. Em julho de 2010 participei de Seminário de discussão sobre a implantação do Território
Etnoeducacional Kayapó, na aldeia Kubenkankrei, T.I. Kayapó.
2
direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam – assegurou a eles o
direito à diferença, reconhecendo que o seu destino não seria o de ir paulatinamente
perdendo sua condição de indígena, até deixar de sê-lo por completo. Em resumo, a
constituição de 1988 reconhece aos índios o direito de ser índio e de manter-se como
índio.
3
Foi justamente essa classificação de Ribeiro, baseada nas teorias de integração e
aculturação, que serviu de base para as categorias utilizadas no Estatuto do Índio, em
1973, apenas com algumas alterações na composição das categorias, que passaram de
quatro para três, quais sejam: isolados, em vias de integração e integrados.
Cardoso de Oliveira mostrou que não seria suficiente dizer que é a sociedade
dominante, nacional, quem decide sobre o destino dos povos indígenas. Para ele, a
etnologia deveria penetrar na dimensão política da situação de contato a fim de
descrever e analisar a estrutura de poder subjacente: o poder na esfera tribal, tradicional,
e como ele é transfigurado quando a sociedade indígena se insere noutra, maior, mais
poderosa, que lhe tira sua autonomia.
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entendimento antropológico, apoiado em pesquisas etnográficas, sobre os processos de
transformação cultural, que passam a não ser mais vistos a partir da noção de “perda”
(tão presente nos estudos sobre “aculturação”), mas a partir da noção de “alternativa”,
“estratégia” e mesmo “resiliência” – termo emprestado da física que descreve a
propriedade de alguns materiais cujos princípios podem ser observados em muitas
culturas indígenas: sob pressão elas cedem; cessando a pressão, retornam ao estado
original.
10
BARTH, Frederich. 1969, “Introduction” in Ethinic Groups and Boundaries. Bergen-Oslo, Universitets
Forlaget.
5
Assim, utilizando Terence Turner (1992 e 1993) 11 como autor-orientador sobre
os Kayapó, apresento o seguinte panorama a partir de trechos selecionados:
6
consistindo em mulheres irmãs e homens de outras casas incluídos por
casamento (ou seja, maridos). A família extesna matri-uxorilocal, chamada
“casa” (kikre), é o segmento ou unidade fundamental da organização social
kayapó. Consiste geralmente em três gerações: as gerações mais novas de mães e
pais e filhos, compreendendo as famílias conjugais ativamente reprodutoras que
constituem as unidades internas da casa; e a geração mais velha de chefes da
casa, que são os avós das crianças, pais das jovens mães e sogros de seus
maridos de fora.” (Turner, 1992, p.319)
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humana, deu lugar à situação de contato, onde a sociedade brasileira, de um
lado, e as sociedades indígenas, de outro, confrontam-se em uma relação de
interdependência ambivalente. Não apenas os brasileiros foram admitidos neste
novo esquema conceitual enquanto seres plenamente humanos e sociais, como
os Kayapó deixaram de se ver como o paradigma exclusivo da humanidade:
passaram a ser mais um tipo étnico da humanidade, partilhando em certa medida
sua etnicidade com outros povos indígenas, em uma comum oposição à
sociedade nacional. Passaram também a reconhecer as implicações desta auto-
definição como mais um povo ‘índio’ entre outros, com uma ‘cultura’
semelhante e problemas semelhantes, como por exemplo o de que a preservação
ou a perda de sua cultura e identidade étnica é uma questão que exige reflexão
consciente e cuja solução depende de uma ação política organizada.” (ibid:
58/59).
“Esta nova visão não substituiu a antiga, mas passou a coexistir com ela,
como se em um nível distinto, estando especificamente focalizada sobre a
interface da sociedade Kayapó com a sociedade brasileira, ao passo que a visão
antiga se volta essencialmente para processos e relações internos à sociedade
Kayapó. (ibid: 59)
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valor das roupas, rádios e aviões para os Kayapó, em outras palavras, reside
acima de tudo na negação do contraste humilhante entre eles como seres
‘selvagens’ e os brasileiros como ‘civilizados’, contraste que os Kayapó
experimentam como se definindo, da maneira mais simples e óbvia, em termos
da posse e uso de tais bens. Isto é verdadeiro, acima de tudo, para as roupas,
visto ser a nudez o signo fundamental da selvageria aos olhos dos brasileiros.”
(ibid: 61/62).
“No mito da grande águia diz-se: nos primórdios dos tempos vive uma
ave gigante, flagelo da humanidade. Ela desce dos ares e busca suas vítimas.
Pequenos e fracos, os homens nada podem fazer contra ela. Há, então, dois
irmãos que moram em uma casa de troncos de árvores, debaixo da água, que
crescem bastante e adquirem físico forte e bem desenvolvido. Eles matam o
monstro e se tornam os vingadores da humanidade; ao mesmo tempo, tornam-se
os ancestrais de uma nova humanidade, de gente grande e forte, os Caiapós.”
(1976: 25).
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que adquiram mais força e sejam mais velozes; passam-lhes nos peitos pêlos da
lagarta ‘cabelo de macaco’, venenosíssimos, para que criem resistência contra a
dor; mandam-nos lutar de corpos nus com marimbondos; e adestram-nos no
manejo da borduna (a arma predileta dos Kayapó).” (Arnaud, 1987: 80/81).13
Há ainda outro significante mito, que ajuda-nos a entender o ethos Kayapó. Mito
este, atualizado frequentemente a partir da realização de um importante ritual, praticado
até os dias de hoje. Transcrevo-o, em tradução livre, da obra de Darrell Posey
(1979:106-110)14:
13
ARNAUD, Expedito. 1987. “A expansão dos índios Kayapó-Gorotire e a ocupação nacional (região sul
do Pará) In: Revista do Museu Paulista. Nova Série, vol. XXXII, São Paulo.
14
POSEY, Darrell. 1979. Ethnoentomology of the Gorotire Kayapó of Central Brazil. Tese de Doutorado
submetida à Universidade de Georgia, Estados Unidos.
10
Esta cerimônia é uma das mais importantes no mundo dos Kayapó. Ela é, como
bem interpreta Turner, uma re-afirmação da humanidade dos Kayapós, uma afirmação
de seu lugar no universo, e de sua comunhão com o passado. Na cerimônia, tempo e
espaço se fundem e proporcionam uma unidade do ser: a continuidade da vida, história,
identidade e conhecimento.
“Ao tratar os povos que habitam até hoje a bacia dos formadores do rio
Xingu, no norte do Mato Grosso, pressupõe-se uma unidade tanto geográfica e
ecológica como sócio-política.” (Franquetto, 1992: 339).
15
FRANCHETTO, Bruna. 1992. “O aparecimento dos Caraíba: para uma história kuikuro e alto-
xinguana.” In História dos Índios no Brasil. Org. Manuela Carneiro da Cunha – São Paulo: Companhia
das Letras, FAPESP.
11
estido da memória histórica indígena e sua interpretação, e fruição de
experiências históricas selecionadas como marcos significativos para a
rememoração e transmissão dessa tradição oral (Basso, 1985; Ireland, 1988;
Franchetto, 1991).” (Apud Franchetto, 1992: 342).
Quanto à natureza agressiva dos primeiros contatos com os brancos, a abertura das
akiná (estórias) que foram coletadas é esclarecedora:
E continua a autora:
“As ‘coisas’ dos caraíba são assim representadas nas akiná por três
perspecitivas: num primeiro momento são ‘roubadas’, depois objeto de
trocas, enfim associadas claramente às doenças. A partir deste último, os
16
Ótomo é a designação Kuikuro para grupo local.
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brancos passam a ser chamados, também e até hoje, de kuríhe, termo que
designa o feitiço acionado pelos kurihé oto, os ‘donos do feitiço’, outra causa
de eventos de doença e morte:
“As akiná kuikuro nos contaram uma história que de algum modo
configura um imagem do que se passou até Von den Steinen [expedições de
1884 e 1887], uma história de conflitos sangrentos com os brancos, de fuga,
abandono de aldeias, deslocamentos, epidemias, com ciclos de crises e
recuperações demográficas (‘ficaram poucos’, ‘ficaram muitos de novo’). (...).
Houve, assim, a consolidação progressiva e processual do subsitema karibe alto-
xinguano que, sofrido subseqüentes reordenamentos territoriais e
redimensionamento populacionais, existe até os dias de hoje.” (ibid.: 348)
13
“No mesmo ano de 1954, uma violenta epidemia de sarampo abalou
ainda mais o alto Xingu. O sarampo atingiu todas as aldeias. Os grupos Karib
mais afastados do P.I. Leonardo, enfraquecidos e apavorados, resolveram aceitar
as propostas dos Villas Boas de mudarem suas aldeias para perto do posto: no
começo dos anos 60 um movimento geral deslocou os Kuikuro e os Kalapalo
dos altos Kuliseu e Kuluene para o baixo Kuluene. (...) A partida de Lahatuá foi
dolorosa; lá, lembram os velhos, deixaram os mortos do sarampo, enterrados às
pressas em valas comuns; a aldeia era grande e bonita, com muito peixe, muito
pequi e muitos caramujos, matéria-prima dos preciosos colares karib. (:353)
14
barganhar; saber dos direitos bem ou mal assegurados pela lei às minorias
indígenas, aprendendo, por exemplo, a reivindicar o controle sobre a venda de
imagem, uma vez que o alto Xingu se firmou como ‘o cartão-postal’ do índio
genérico brasileiro por meio de fotos, filmes, reportagens.” (:354).
TUÍRA KAYAPÓ
Tuíra Kayapó é casada com Takatô Kayapó, com quem divide a liderança da
aldeia Kaprenkrere. É uma aldeia recente, cuja construção começou há pouco mais de
um ano. Nela vivem 167 pessoas, todos do povo indígena Kayapó, distribuídas em 23
casas em estilo tradicional (madeira e sapê), construídas pelo próprios índios. Não há
energia elétrica na aldeia, e as obras para instalação de poço e caixa d’água central ainda
não estão completas.
Na casa de Tuíra vivem, além dela e do marido, a filha do casal, Nhakpratikopo
(de 12 anos), o filho do casal, Bepktex Kayapó (de 21 anos), a esposa do filho,
Bekwxnhdjiti Kayapó (de 28 anos) e a filha de Bepktex e Bekwxnhdjiti, chamada
Bekwynop Kayapó (de 2 anos de idade).
Tuíra nasceu na aldeia de Kokraymoro, às margens do rio Xingu. Ela não
frequentou a escola, não é alfabetizada e não fala o português. A partir das falas de
Tuíra (feitas a partir dos meus questionamentos), o intérprete Kube-í Kayapó (servidor
da FUNAI) transmitiu-me, mantendo a 1ª pessoa, a seguinte narrativa:
15
Um de meus tios, chamado Betikrere, era outro cacique respeitado, até hoje o
nome dele é passado para as crianças.
Nessa época, não havia terra demarcada para nós, então, tínhamos que
manter o “kuben” longe. Havia canoa e machado de pedra. Os homens sempre
faziam arcos e flechas e faziam bordunas. O machado é como o facão. Com o
facão nós tiramos palha de açaí. Nós sempre utilizamos o facão para trabalhar.
Esse facão é nosso alimento. A minha mãe e a minha avó já usavam para tirar
açaí, bacaba, mel, castanha. Nós usamos o facão para sobreviver.
Como já terminei a história sobre os bisavôs, vou contar que a história da
nossa vida é junto com o rio Xingu, pelo que nos dá de frutas. O meu tio lutou
por isso, contra desmatamento a favor da natureza. Eu estou fazendo o que
fizeram meus antepassados, que é defender a floresta e a água, que é nossa
saúde. Nós não queremos doença na barriga, e mesmo os animais precisam dessa
água para ter saúde. E nós queremos defender nosso território.
Eu estou trazendo uma batata para você ver por que nós precisamos do
rio Xingu. O kuben quer colocar veneno no rio Xingu. Mas como nós vamos
comer essa batata? Nós precisamos de água limpa. Até na mandioca nós usamos
água para misturar e fazer beiju. Não podemos deixar nossa água ficar suja, não
podemos sujar o Xingu que é o rio mãe.
Aqui a gente dorme bem, no frio, calmo, é assim que nós queremos nossa
floresta, nossos animais. E vivendo aqui em paz, com nossos parentes, marido e
filhos. Nosso ventilador é o vento. Não temos ar condicionado nem ventilador. O
vento é que nos esfria, a chuva, que vai da folha até a raiz esfriando nosso
alimento. A carne que caçamos, pendurada a noite vai ser esfriada, vai ficar boa,
para não nos fazer mal. E essa é a nossa vida, e nós estamos lutando para
preservar nossa floresta e nosso modo de viver.
Na cidade há muita doença, há muita fumaça. Na nossa aldeia não há
isso. Na nossa aldeia não há essas doenças, não há esses objetos; só Mebengokre
(gente Kayapó) e mato. Por isso todo mundo está saudável.
Não sou só eu que estou defendendo. Somos todos nós Mebengokre,
defendendo a floresta e o rio.
Na cidade há depósitos e lugares para congelar. Nossa relação
tradicional, nosso depósito é a floresta e o rio. É lá que nós buscamos nosso
alimento, na hora que é preciso. Na floresta tem alimentação, natureza, e os
Mebengokre vão se alimentar para não adoecer.
Tem outro. Os remédios que nós usamos. O mato não é depósito só de
comida, mas de remédio também. A farmácia da cidade não tem todos os
remédios não. Na mata há outros remédios nativos. Por isso defendemos nosso
território. Você tá me vendo, forte, sem operação, e eu não uso remédio da
farmácia, só do mato.
Então, minha luta, minha história já foi falada. Mas vou falar sobre o que
ocorreu em Altamira com o engenheiro. Eu já falei para você ontem. Eu fui
cantando o canto das mulheres, em direção dele. Quando eu estava cantando, no
ginásio, nas minhas costas o pessoal cercou ele. Eu nem vi. Havia muita gente,
de muitos povos.
Uma vez eu cheguei bem junto, todo mundo sabe, todo mundo fala e
lembra. Mas eu só encostei. Eu não feri ninguém.
Leva meu recado para o juiz para ele não sujar meu nome, para não me
derrubar. Eu não vi, eu não participei. Não suje o meu nome.”
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EMI KAYAPÓ
YODE KAYAPÓ
Tem 41 anos, nasceu em Gorotire e sempre morou lá. Seu pai e sua mãe também
eram de Gorotire. Quando por mim entrevistado, Yode estava em Las Casas, pois a neta
Cocorai, de 6 meses de idade, adoeceu e estava em tratamento com o pajé de Las Casas.
Yode é casado com Cocoró Kayapó, que tem 36 anos e também é de Gorotire. Em
Gorotire, ele vive com os filhos, genros, noras e netos.
A seguir, a fala de Yode, traduzida oral e simultaneamente para o português por
Kube-í e Tabô (Kayapó de Las Casas familiarizado com o português), e registrada por
mim:
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Sobre essa manifestação: eu venho escutando meus avós dizendo para
preservar a natureza, os rios. Há muito tempo nós ouvimos isso dos nossos
antepassados. Fui fazer aquilo o que eles fizeram; proteger o ria e a natureza.
Porque eles ainda estão vivos, mas tem muita área devastada. Eu fui defender o
nosso território e não só para mim, mas para os meus filhos e netos. Para eles
crescerem como eu, na aldeia, no nosso modo de vida.
Eu não fui para brigar e não conheço quem foi para brigar. Eu não fui
para a manifestação para agredir ninguém.
Sem rio, os índios não vivem. Sem o mato, os índios não vivem. A
natureza nos protege da poluição, da fumaça e dos venenos dos brancos. Para
nós sermos sadios, precisamos da natureza. Com o rio sujo, não conseguimos ver
o peixe para flechar.
Com a barragem, o rio vai ficar sujo, animais ficam podres lá dentro da
água parada e isso pode acabar com a nossa saúde, a nossa vida. Os rios já foram
mais limpos e agora estão contaminados. Nas fazendas, eles usam veneno e o
veneno vai para os índios, que se banham e bebem do rio. Não queremos essas
doenças. E novas doenças vão surgindo com água parada. Até o rio e os peixes e
as caças que bebem dessa água ficam doentes.
Já existem muitas plantações de soja que jogam veneno. E eu quero falar
para o juiz: nossa plantação é para nós mesmos, não é para comercializar. Nós
não usamos veneno. Nossa plantação é sadia.
Eu coloquei o meu sentimento e eu digo: eu não fui brigar com ninguém.
Se eu estivesse querendo eu poderia lutar e matar e morrer, mas eu não fui fazer
isso. O engenheiro teve apenas um corte no braço. E os nossos parentes que
morreram pelo branco e ninguém nunca fez nenhum processo e nem se
importou?”
PITUIARO KAYAPÓ
Nasceu e sempre viveu em Gorotire. Seus pais são de kubenkankrei. Sua mãe
faleceu quando ele tinha entre 8 e 10 anos, assim, ele foi criado pela irmã mais velha de
sua mãe, chamada Mrikara.
“Eu tinha 17 anos quando me casei com Ngreiken, que também é daqui
de Gorotire. Temos quatro filhos: dois homens e duas mulheres.
Eu faço a roça, planto. Planto banana, batata, mandioca, milho, arroz.
Caço e pesco também. Caço porcão, anta, mutum, jacú, macaco, tatu. Com essa
caça que eu trago da mata, a gente se alimenta. Eu, minha esposa e meus filhos.
Da pesca eu trago tucunaré, pintada, pacu e outros.
A mulher busca lenha para assar peixe para comer com beiju, com massa
de mandioca. Do mato a gente também tira açaí, bacaba, palmito, castanha,
pequi, cacau do mato e mel.
Eu nunca morei na cidade. Eu também nunca fui para a escola. Porque eu
não quis estudar. Quis aprender só na minha cultura. Da cultura do branco eu
não gosto. Sou índio mesmo, não gosto de atrapalhar a minha cultura.
Eu não sei ler nem escrever. Mas a minha mulher sabe ler em Kayapó,
em livro evangélico.
Eu fui para a manifestação levado pelo padre Saulo, de Redenção. Eu não
fui lá para brigar e nem escutei que alguém queria brigar. A manifestação que
nós fomos participar foi em defesa do rio, da caça, da pesca e da cultura
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também. O que aconteceu com o engenheiro ninguém sabe e eu até agora não
sei. Mas achei errado ele sair ferido.
A nossa preocupação é que nós vamos perder os remédios da mata, nossa
alimentação, a natureza, e isso não deve ser destruído. Deixa o rio ficar limpo e
sem contaminação. Se o rio ficar contaminado e a caça beber a água do rio,
quando nós matarmos a caça e a comermos, nós também vamos adoecer.”
IREO KAYAPÓ
Ireo Kayapó nasceu em Gorotire, em 1958. Morou a maior parte de sua vida em
Gorotire, com a exceção de alguns poucos anos em que viveu na aldeia Kriny. Ireo
fundou a pequena aldeia Iranatchere, há cerca de 45 km de Gorotire, onde atualmente
vivem cerca de 25 pessoas. Ireo foi o único dos índios entrevistados que deu sua
entrevista em português:
YAMYTI KAYAPÓ
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do Kriny. O padre Saulo levou para fazer manifestação contra barragem. Mas
ninguém mandou machucar ninguém. Eu nem sei por que fizeram aquilo. Manda
o engenheiro parar de perseguir a gente.
A dança das mulheres é com facão sim. O facão é antigo. A dança das
mulheres é coisa delas mesmo. Se a avó quer passar o nome para a neta, chama
as mulheres e começa a dança própria. Mas isso é segredo delas. Tem também a
dança para esperar o inimigo, que pode ser o branco ou outra aldeia de índios
mesmo.”
ARIFUTUÁ KUIKURO
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Deus que fez a aldeia dos índios aqui. O branco começou lá em Portugal
e está apertando a gente agora. O engenheiro xingou os índios.
Porque nós estamos lutando? Porque nós estamos preocupados com o rio.
Onde vamos pescar. O rio é o nosso único mercado. Os velhos precisam dele
para comer. As crianças também. Aqui ninguém come comida do branco. E nós
não comemos anta nem veado, só macaco e mutum. Em Canarana, eu comi
carne de boi e fiquei doente com a barriga pesada. Eu preciso de beiju e peixe,
essa é nossa alimentação.
Fala para o engenheiro para parar de vir atrás de mim.
Alguns falam que em 20 anos vai secar tudo. Eu estou pensando nos
nossos filhos e netos. Como eles vão comer no futuro? Depois de Paratininga 2,
os Kalapalo não encontram mais os lugares onde existiam as pedras para furar
caramujo e fazer enfeites. Esse é o material mais importante para os Kalapalo.
Eu fico triste.”
CONCLUSÃO
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Considero que houve uma “falha de comunicação” entre as partes, pois, enquanto os
povos indígenas conceberam aquele evento como um momento onde eles seriam
“consultados” sobre a construção da barragem de Belo Monte, o engenheiro concebeu
sua fala como um momento de lhes “comunicar” que Belo Monte seria,
inexoravelmente, construída.
Isso gerou enorme frustração nos indígenas, que passaram a vaiar a fala do
engenheiro. Este, no entanto, não recuou em seu discurso, terminando por propor um
“desafio” aos indígenas ali presentes, ao dizer: “Eu quero ver quem tem coragem de
criticar o programa Waimiri-Atroari.”
Quanto à Arifutuá Kuikuro, apesar de seu povo não ter um ethos guerreiro tão
acentuado quando o dos kayapó, há outras razões históricas e culturais que lhe
orientaram a também hostilizar a atitude do engenheiro. Primeiramente, devemos ter em
consideração a associação que fazem os Kuikuro entre os brancos e as doenças
(kurihé). Lembremos que Arifutuá nasceu em Lahatua, aldeia que padeceu de enorme
epidemia de sarampo. Além disso, a dolorosa transferência de território por
imposição dos brancos é parte da história Kuikuro. Por último, Arifutuá tem um
exemplo próximo de sua aldeia de como a implantação de grande projetos como
represas e hidrelétricas podem ser nocivos ao meio-ambiente, assim como podem ser
implantados sem o aval ou a participação dos povos indígenas. Refiro-me à represa de
Paranatinga 2, situada no rio Kuluena a cerca de 100km do Parque do Xingu. Como
narrou Arifutuá, essa represa trouxe, efetivamente, uma série de impactos negativos para
os povos que vivem da pesca do Kuluene, como os Kuikuro de Afukuri17.
17
Veja-se, por exemplo a reportagem divulgada na página do ministério público (http://www.prr1.mpf.
gov.br/noticias/prr1-quer-suspender-obras-da-usina-hidreletrica-paranatinga-ii):
A Procuradoria Regional da República da 1ª Região (PRR-1) interpôs recurso ao Tribunal
Regional Federal (TRF-1) para que sejam suspensas as obras na usina hidrelétrica de Paranatinga II, em
Mato Grosso. Segundo os procuradores regionais da República autores do recurso, Paulo Gustavo Gonet
Branco e Odim Brandão Ferreira, a construção provoca riscos ao meio ambiente da região, além de
prejudicar comunidades de todas as etnias do Parque Indígena do Xingu.
Em dezembro de 2004, o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou ação civil pública para
interromper as obras de Paranatinga II e remeter o processo de licenciamento ao Instituto Brasileiro do
Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), órgão federal. A licença ambiental para a
construção foi emitida pela Fundação Estadual do Meio Ambiente do Mato Grosso (Fema). De acordo
22
Portanto, as sociedades indígenas Kayapó e Kuikuro são sociedades
eminentemente fechadas em seu próprio convívio. Apesar dos indígenas aqui tratados
terem conhecimento e, por vezes, frequentarem a sociedade envolvente, sua conduta,
visão de mundo e autodeterminação são orientadas majoritariamente (e quase que
exclusivamente) pelos valores, prerrogativas e sanções da sua própria cultura.
* * *
com o MPF, a Fema é incompetente para o exame do empreendimento, já que as obras têm reflexo direto
no Rio Xingu, curso fluvial da União. A Fema ainda vem sendo alvo de diversas denúncias de corrupção
na expedição de licenciamentos.
Em abril de 2006, a Justiça Federal proferiu decisão favorável ao pedido do MPF e suspendeu a
construção. Mas a empresa Paranatinga Energia S/A recorreu ao TRF-1, que manteve o andamento das
obras em decisão publicada no dia 19 de novembro de 2006.
Terra sagrada - A barragem está sendo construída no Rio Culuene, principal formador do Rio
Xingu. O trecho é considerado sagrado pela população indígena. De acordo com lideranças locais, a área
foi palco do primeiro ritual funerário do Quarup. Além disso, as obras colocam em risco a pesca na
região. Segundo um dos autores do estudo de impacto ambiental contratado pelo própria Paranatinga
Energia S/A, Juarez Pezutti, os cardumes migratórios que habitam o Rio Xingu provavelmente não
conseguirão superar o obstáculo da barragem construída no Rio Culuene. A empresa alega que pretende
construir uma escada de peixes para solucionar o problema. Contudo, afirma Peruzzi, por mais que (o
projeto da escada de peixes) seja um dos mais modernos dessa natureza já elaborados, não há
comprovação de que é um mecanismo que vai garantir a migração de grandes cardumes de peixes.
23