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Laudo Antropológico Criminal 11 Kayapo e Kuikuro - Gustavo Menezes

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ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO – AGU

PROCURADORIA-GERAL FEDERAL
PROCURADORIA FEDERAL ESPECIALIZADA-FUNAI
SRTVS Quadra 702 – Bloco “A” Ed. Lex- 3º andar
CEP: 70346-904 TEL. 61-3133519

Laudo Antropológico sobre a situação sociocultural dos


indígenas Tuíra Kayapó, Emi Kayapó, Yode Kayapó,
Putuiaro Kayapó, Ireo Kayapó, Yamyti Kayapó ( todos do
povo Kayapó) e Arifutuá Kuikuro (do povo Kuikuro) em face
do Inquérito policial nº 0073/2008 – DPF/ATM/PA

Solicitante: Sra. Patrícia Helena Shimada (Delegada de Polícia Federal) e o Sr. Mário

Sérgio Santos Nery (Delegado de Polícia Federal)

Antropólogo Responsável: Gustavo Hamilton de Sousa Menezes, antropólogo, Chefe

do Núcleo de Antropologia da Procuradoria Federal Especializada (PFE), Fundação

Nacional do Índio (FUNAI), Brasília – DF.

Data: junho de 2012.

1
Introdução

Este laudo antropológico busca dar visibilidade aos aspectos socioculturais das
populações indígenas Kayapó e Kuikuro e, mais especificamente, aos questionamentos
feitos pela Justiça se os indígenas citados detêm condição de compreender o caráter
ilícito do fato que lhes é imputado e de se auto-determinar conforme tal compreensão.

O laudo segue os parâmetros de produção recomendados pela Associação


Brasileira de Antropologia (ABA) na Carta de Ponta das Canas 1, seguindo suas
recomendações para seguintes pontos: 1) Paradigmas (o campo teórico, conceitual e os
interlocutores disciplinares); 2) Aspectos técnicos (o trabalho de campo, o recorte e o
conteúdo, a literatura e a estrutura do documento); 3) Ética (lei, autoridade e saberes,
tradução/interpretação e a ação política).

A aproximação deste antropólogo ao contexto sociocultural e às relações


interétnicas dos povos Kayapó e Kuikuro, bem como ao contexto comunitário dos
indígenas citados, ocorreu por meio de 1) levantamento bibliográfico sobre a produção
antropológica específica; 2) levantamento documental sobre os relatórios oficiais
relativos ao povo Kayapó e Kuikuro; 3) excursão à campo para entrevistas 2; 4)
experiência profissional anterior3.

Sobre as linhas teóricas adotadas

O arcabouço ideológico que embasou a construção do Estatuto do Índio, em


1973, estava atrelado à ideologia integracionista, entendendo a condição de indígena
como algo transitório, considerando que o índio, na medida em que conhecesse a
‘civilização’, dela se embeberia, se transformando em um civilizado e deixando, por
isso, de ser índio – perdendo, consequentemente, seus direitos diferenciados.

Porém, um marco de rompimento com o paradigma integracionista foi erguido


com a promulgação da Constituição Federal, em 1988, exigindo adaptações da
sociedade e, principalmente, de setores do Estado. A Constituição, ao reconhecer aos
índios de sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições – além dos

1
Documento de Trabalho da Oficina sobre Laudos Antropológicos realizada pela ABA e NUER/UFSC
em Florianópolis em novembro de 2000.
2
O trabalho de campo foi realizado em várias etapas. Entre 22 e 23/03: entrevista com Tuíra Kayapó e
Emi Kayapó na aldeia Kaprenkrere, PA. Em 24/03: entrevista com Yode Kayapó na aldeia Las Casa, PA.
Entre 25 e 26/03: entrevista com Putuiarô Kayapó na aldeia Gorotire, PA. Em 19/04: entrevista com Ireô
Kayapó na CASAI/FUNASA de Redenção, PA. Entre 20 e 21/04: entrevista com Yamyti Kayapó na
aldeia Kriny, PA. Entre 29 e 30/04: entrevista com Arifutuá Kuikuro na aldeia Afukuri, Parque Indígena
do Xingu, MT.
3
Em dezembro de 2004 participei, como assessor, da Oficina de Produção do Atlas das Terras Indígenas
Mebengokrê (Kayapó), Panará e Tapayuna Gonorã, vinculada ao Curso de formação dos professores
indígenas destes povos. Em setembro de 2005 participei, assessorando o módulo de antropologia, da 10ª
Etapa do Curso de Formação de Professores Mebengokrê (Kayapó), Paraná e Tapajuna, na T.I. Kayapó,
MT. Em julho de 2010 participei de Seminário de discussão sobre a implantação do Território
Etnoeducacional Kayapó, na aldeia Kubenkankrei, T.I. Kayapó.

2
direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam – assegurou a eles o
direito à diferença, reconhecendo que o seu destino não seria o de ir paulatinamente
perdendo sua condição de indígena, até deixar de sê-lo por completo. Em resumo, a
constituição de 1988 reconhece aos índios o direito de ser índio e de manter-se como
índio.

A superação política do paradigma integracionista também refletiu, de certa


maneira, o avanço teórico da própria antropologia que, desde a primeira metade do
século XX, buscou compreender adequadamente o significado dos fenômenos das
relações entre povos de culturas diferentes, ou seja, as relações interétnicas. No contexto
internacional pós Segunda Guerra, as tradições acadêmicas que mais se destacaram no
estudo das relações interétnicas foram a britânica, conhecida por social change studies,
e a norte-americana, representada pelos acculturation studies (Oliveira, 1996: 34)4. Foi
um momento de superação das teorias raciais – que buscavam reconhecer um grupo
étnico através de critérios biológicos. As duas tradições tiveram forte influência no
Brasil; a primeira, a partir de trabalhos de autores como Malinowski, Firth e Lucy Mair,
e a segunda através dos estudos de Redfield, Linton, Herskovits e Siegel, dentre outros.

Assim, autores brasileiros, em sintonia com o interesse antropológico


internacional em explicar culturas indígenas em transição, incorporaram a noção de
aculturação da escola norte-americana para estudar a realidade indígena nacional. Os
primeiros estudos vieram de Wagley e Galvão (1961 [1949]) 5, entre os Tenetehára e de
Altenfelder Silva (1949)6, entre os Terena (Shaden, 1964: 22)7.

Nesta mesma linha de preocupações encontrava-se Darcy Ribeiro. Ele, porém,


ao enfatizar a importância do contexto histórico e da estrutura econômica regional na
configuração dos grupos indígenas, formulou um conceito específico – de manipulação
simultânea com o conceito de aculturação –; o conceito de integração. Em seu ensaio
Línguas e culturas indígenas do Brasil, de 1957, ele considera que os grupos tribais que
se encontram integrados participam intensamente da economia e das principais formas
de comportamento institucionalizado da sociedade brasileira e sofrem profunda
descaracterização em suas línguas e culturas (Ribeiro, 1957)8.

Em trabalho posterior, Darcy Ribeiro afirma que as populações indígenas do


Brasil moderno seriam classificáveis em quatro categorias referentes aos graus de
contato com a sociedade nacional, as quais representariam etapas sucessivas e
necessárias da integração das populações indígenas na sociedade nacional, a saber:
isolados, contato intermitente, contato permanente e integrados (Ribeiro, 1970: 432-3)9.
4
OLIVEIRA, Roberto Cardoso. 1996. O índio e o mundo dos brancos. Editora da Unicamp, Campinas,
SP.
5
WAGLEY, Charles & GALVÃO, Eduardo. 1961 [1949]. Os índios Tenentehara (Uma Cultura em
Transição). Serviço de Documentação. Ministério da Educação e Cultura. Rio de Janeiro. (A primeira
edição, em língua inglesa, é de 1949. Nova Iorque).
6
ALTENFELDER SILVA, Fernando. 1949. “Mudança cultural dos Terena”. Revista do Museu Paulista,
n. s., vol. III, págs. 271-379.
7
SHADEN, Egon. 1964. Acultuação Indígena: ensaio sobre fatores e tendências da mudança cultural de
tribos índias em contato com o mundo dos brancos. São Paulo.
8
RIBEIRO, Darcy. 1957. “Línguas e Culturas Indígenas do Brasil” in Educação e Ciências Sociais, nº 6,
Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, Rio de Janeiro.
9
RIBEIRO, Darcy 1970. Os Índios e a Civilização: a integração das populações indígenas no Brasil
moderno. Editora Vozes, Petrópolis, RJ.

3
Foi justamente essa classificação de Ribeiro, baseada nas teorias de integração e
aculturação, que serviu de base para as categorias utilizadas no Estatuto do Índio, em
1973, apenas com algumas alterações na composição das categorias, que passaram de
quatro para três, quais sejam: isolados, em vias de integração e integrados.

Avaliando o trabalho de Darcy Ribeiro, Cardoso de Oliveira considera que o


objetivo descritivo e não-teórico de Ribeiro o impediu de aprofundar seu pensamento
sobre os mecanismos de interação entre índios e brancos, inseridos em sistemas sociais
distintos: o tribal e o nacional (Oliveira, 1996: 45).

Ainda sobre os estudos de relações interétnicas, temos em Roberto Cardoso de


Oliveira um dos autores que mais impulsionaram o seu desenvolvimento no Brasil.
Crítico dos estudos de integração e aculturação, ele via nesses estudos uma ênfase
desmedida nas relações entre “traços culturais”, ao invés de uma abordagem ampla e
relacional entre entidades sociais (ibid: 39). Cardoso de Oliveira foi buscar nos estudos
de colonial situation do sociólogo francês Balandier a concepção de que a sociedade
tribal mantém com a sociedade envolvente (nacional ou colonial) relações de oposição,
histórica e estruturalmente demonstráveis. Note-se bem, diz ele,

“que não se trata de relações entre entidades contrárias, simplesmente


diferentes ou exóticas, umas em relação a outras; mas contraditórias, isto é, que
a existência de uma tende a negar a da outra. E não foi por outra razão que nos
valemos do termo fricção interétnica para enfatizar a característica básica da
situação de contato. (...). Daí entendermos a situação de contato com uma
'totalidade sincrética', ou em outras palavras – (...) –, 'enquanto situação de
contato entre duas populações dialeticamente 'unificadas' através de interesses
diametralmente opostos, ainda que interdependentes, por paradoxal que pareça”
(Oliveira,1996: 47).

Cardoso de Oliveira mostrou que não seria suficiente dizer que é a sociedade
dominante, nacional, quem decide sobre o destino dos povos indígenas. Para ele, a
etnologia deveria penetrar na dimensão política da situação de contato a fim de
descrever e analisar a estrutura de poder subjacente: o poder na esfera tribal, tradicional,
e como ele é transfigurado quando a sociedade indígena se insere noutra, maior, mais
poderosa, que lhe tira sua autonomia.

No entanto, enquanto a antropologia dos anos sessenta passava por grande


preocupação e desalento quanto às perspectivas de sobrevivência física e cultural dos
povos indígenas, no final dos anos oitenta e início dos noventa vários antropólogos
passaram a perceber a situação indígena de maneira distinta, ressaltando o êxito – contra
todas as expectativas – de muitos povos em manter sua identidade social, cultural e
étnica a partir de uma resistência eficaz contra as agressões advindas da sociedade
nacional, crescendo populacionalmente e demonstrando grande capacidade de
incorporar e dominar aspectos da cultura nacional, tais como a língua portuguesa e as
tecnologias de comunicação, sem que estivessem, assim, “perdendo suas culturas”.

Essa nova perspectiva traz para o léxico antropológico conceitos como


“resistência”, “adaptação”, “re-invenção cultural” e “resgate”. Torna-se mais sólido o

4
entendimento antropológico, apoiado em pesquisas etnográficas, sobre os processos de
transformação cultural, que passam a não ser mais vistos a partir da noção de “perda”
(tão presente nos estudos sobre “aculturação”), mas a partir da noção de “alternativa”,
“estratégia” e mesmo “resiliência” – termo emprestado da física que descreve a
propriedade de alguns materiais cujos princípios podem ser observados em muitas
culturas indígenas: sob pressão elas cedem; cessando a pressão, retornam ao estado
original.

Assim, compreendendo o dinamismo cultural, entende-se que não é correto


tomar a existência da cultura como uma característica primária de um grupo étnico,
quando se trata, pelo contrário, de consequência da sua organização. Do mesmo modo,
não é correto supor que essa cultura partilhada deva ser obrigatoriamente igual à cultura
ancestral.

Essa perspectiva está em consonância com a definição clássica de Barth para


grupos étnicos, amplamente reconhecida atualmente, e que os considera como formas
de organização social em populações cujos membros se identificam e são identificados
como tais pelos outros, constituindo uma categoria distinta de outras categorias da
mesma ordem (1969: 11)10. É uma definição que dá primazia à identificação do grupo
em relação à cultura que exibe. Ela reconhece a flexibilidade dos traços culturais, seu
dinamismo, sua constante variação no tempo e no espaço, entendendo que um mesmo
grupo étnico exibirá traços culturais diferentes conforme a situação ecológica e social
em que se encontra, adaptando-se às condições naturais e às oportunidades sociais que
provêm da interação com os outros grupos, sem, no entanto, perder com isso sua
identidade própria.

Portanto, sob uma perspectiva antropológica, considera-se completamente


superadas as noções de “graus de aculturação”, “aculturação” e “integração”, uma vez
que as teorias atuais e seus fundamentos sustentam que o reconhecimento étnico deve
advir primordialmente da identidade dos membros desse grupo e não dos traços de
cultura que exibem.

OS KAYAPÓ NA LITERATURA ANTROPOLÓGICA

Os Kayapó são um povo de língua jê do sul do Pará e norte do Mato Grosso,


contando hoje com quase oito mil e setecentas pessoas divididas em dois grupos
principais (Censo FUNASA 2010). Apresento a seguir um breve panorama a respeito da
organização social e da história de contato do povo Kayapó (que se auto denomina
Mebengôkrê) com a sociedade não-índia. O objetivo é familiarizar o leitor não
especializado com alguns elementos que serão resgatados na conclusão desse trabalho,
tais como o ethos guerreiro dos Kayapó e sua relação de atração e desconfiança com a
sociedade não-índia.

10
BARTH, Frederich. 1969, “Introduction” in Ethinic Groups and Boundaries. Bergen-Oslo, Universitets
Forlaget.

5
Assim, utilizando Terence Turner (1992 e 1993) 11 como autor-orientador sobre
os Kayapó, apresento o seguinte panorama a partir de trechos selecionados:

O grupo Xikrin, mais setentrional, habita duas aldeias, uma no rio


Bacajá, perto de Altamira, a outra no rio Catete. O grupo meridional, derivado
do grupo ancestral comum Gorotire, compreende quatorze aldeias, cuja
população total é de pouco mais de duas mil pessoas.” (1993: 45)

“Os Gorotire foram pacificados em 1947, e os Kayapó do Xingu entre


1952 e 1958. Ambos os grupos viveram em relativo isolamento das fronteiras de
colonização ou da empresa extrativista até muito recentemente, quando abriram
garimpos de ouro a quinze quilômetros de Gorotire.” (ibid: 46)

“As comunidades Kayapó tendem a ser grandes, para os padrões


contemporâneas da Amazônia. (...) Historicamente, as aldeias chegaram a ter
uma população de bem mais de mil pessoas. A residência é matri-uxorilocal. A
forma tradicional da aldeia, ainda vista no Kapot, é a de um círculo de casas
(abrigando famílias extensas) em volta de uma grande praça central, em cujo
meio se ergue uma casa dos homens. A casa dos homens é tradicionalmente a
residência das classes de idade dos jovens não-iniciados e dos solteiros, e o
ponto de encontro das associações dos homens maduros. Tais associações,
lideradas por chefes chamados ‘cantadores’, são os principais grupos políticos
dos Kayapó. As sociedades de homens maduros e os solteiros organizam-se
ainda em unidades militares e cerimoniais, sob a direção dos cantadores. As
mulheres também se dividem em associações etárias comunais, com funções
cerimoniais importantes, mas sem funções políticas. As cerimônias realizadas
por estes grupos são principalmente ritos de passagem, dos quais os mais
importantes são a iniciação e a nominação. Ambos estes rituais sublinham a
importância das relações familiares extra-nucleares (respectivamente, as relações
de afinidade e as categorias de onde saem os nominadores: avós, tios maternos,
tias paternas). Eles marcam assim a incompletude e a dependência da família
nuclear e seus membros frente às relações com a família extensa e servem como
critérios de recrutamento para as instituições coletivas da comunidade, as quais
realizam as cerimônias. As instituições comunais, assim, ao mesmo tempo
incorporam a estrutura doméstica da família extensa e servem para reproduzi-la.
A sociedade como um todo é organizada segundo um princípio de ‘hierarquia
recursiva’, no qual cada nível repete [replicates] o mesmo padrão estrutural. Este
princípio se aplica não apenas nos planos das instituições comunais e da unidade
doméstica, mas igualmente à construção social da pessoa.” (ibid: 46-47).

“Os Kayapó são monogâmicos e possuem uma regra de residência matri-


uxorilocal após o casamento. A família nuclear funciona como unidade básica da
produção social, mas não é institucional ou ritualmente reconhecida como uma
atividade social distinta; não há palavra para “família” na língua Kayapó. A
unidade básica das relações é a família extensa gerada por residência uxorilocal,
11
TURNER, Terence. 1992. “Os Mebengokre Kayapó: história e mudança social: De comunidades
autônomas para a coexistência interétnica.” In: História dos Índios no Brasil. Org. Manuela Carneiro da
Cunha – São Paulo: Companhia das Letras, FAPESP.
TURNER, Terence. 1993De Cosmologia a História: resistência, adaptação e consciência social entre os
Kayapó. In: Amazônia: etnologia e história indígena. Org.Eduardo Viveiro de Castro, Manuela Carneiro
da Cunha. São Paulo. USP, FAPESP.

6
consistindo em mulheres irmãs e homens de outras casas incluídos por
casamento (ou seja, maridos). A família extesna matri-uxorilocal, chamada
“casa” (kikre), é o segmento ou unidade fundamental da organização social
kayapó. Consiste geralmente em três gerações: as gerações mais novas de mães e
pais e filhos, compreendendo as famílias conjugais ativamente reprodutoras que
constituem as unidades internas da casa; e a geração mais velha de chefes da
casa, que são os avós das crianças, pais das jovens mães e sogros de seus
maridos de fora.” (Turner, 1992, p.319)

“O estabelecimento de relações pacíficas entre os Gorotire e a


sociedade nacional deu-se em condições traumáticas. O grupo hoje chamado
‘Gorotire’ era uma facção da comunidade ancestral de mesmo nome, que em
1936 se dividiu em facções mutuamente hostis. A facção que veio a dar os
modernos Gorotire, então cerca de oitocentas pessoas, refugiou-se da
perseguição movida por uma das outras facções junto à população neo-brasileira
de Nova Olinda, em 1937. Nova Olinda não dispunha dos recursos médicos e
alimentares para abrigar um tal número de refugiados, e o Serviço de Proteção
aos Índios não estava apto a dar uma assistência efetiva. O grupo foi
relocalizado repetidas vezes, mas as epidemias, novas divisões faccionais e
condições de vida miseráveis dizimaram-no de tal forma que, dez anos depois do
contato inicial em Nova Olinda, ele se viu reduzido a apenas cem pessoas. Uma
missão protestante, estabelecida em 1938, conseguiu prestar assistência médica e
ganhar a confiança dos membros eminentes da comunidade com mais êxito que
o SPI, o que levou a uma aguda rivalidade entre o encarregado do SPI e a
missão. Tanto a missão como o SPI instalaram seus postos dentro da
comunidade nativa, criando um padrão que persiste ainda hoje. O desespero
produzido pela doença e pelas severas perdas demográficas, e a consequente
dependência do SPI e da missão, foi a realidade dominante nos primeiros
trinta anos da existência do Gorotire. Em 1947, logo que a comunidade foi
transferida para seu sítio atual, ela foi reconstruída por ordem do novo
encarregado do SPI na forma de um ‘arruado’ (duas fileiras paralelas de casas),
abandonando a planta circular tradicional da aldeia.”(1993: 47)

Com a abertura de garimpos e das atividades madeireiras dentro das terras


indígenas, os Kayapó tiveram acesso a recursos advindos dos royalties. Isso permitiu
que a comunidade adquirisse uma série de bens de consumo, entre eles roupas, carros,
caminhões, barcos, motores e geradores. Assim,

“os Gorotire, ao longo da década, trouxeram sistematicamente para


dentro de sua comunidade e reserva todo foco importante de dependência
institucional e tecnológica para com a sociedade brasileira. Em lugar de destruir
a ‘arquitetura de dependência’ que estas instituições e objetos constituem, eles
fizeram-nos seus, convertendo-os no fundamento da autonomia local da
comunidade.” (ibid:51)

“Com o desenvolvimento das relações com a sociedade brasileira, uma


nova ‘visão de mundo’ parece estar se constituindo. Esta nova formulação, como
a antiga, exprime a relação entre a sociedade Kayapó e aquelas não-Kayapó em
termos que são análogos à estrutura interna da sociedade Kayapó. A aldeia
Kayapó isolada, enquanto domínio exclusivo da sociedade integralmente

7
humana, deu lugar à situação de contato, onde a sociedade brasileira, de um
lado, e as sociedades indígenas, de outro, confrontam-se em uma relação de
interdependência ambivalente. Não apenas os brasileiros foram admitidos neste
novo esquema conceitual enquanto seres plenamente humanos e sociais, como
os Kayapó deixaram de se ver como o paradigma exclusivo da humanidade:
passaram a ser mais um tipo étnico da humanidade, partilhando em certa medida
sua etnicidade com outros povos indígenas, em uma comum oposição à
sociedade nacional. Passaram também a reconhecer as implicações desta auto-
definição como mais um povo ‘índio’ entre outros, com uma ‘cultura’
semelhante e problemas semelhantes, como por exemplo o de que a preservação
ou a perda de sua cultura e identidade étnica é uma questão que exige reflexão
consciente e cuja solução depende de uma ação política organizada.” (ibid:
58/59).

“Esta nova visão não substituiu a antiga, mas passou a coexistir com ela,
como se em um nível distinto, estando especificamente focalizada sobre a
interface da sociedade Kayapó com a sociedade brasileira, ao passo que a visão
antiga se volta essencialmente para processos e relações internos à sociedade
Kayapó. (ibid: 59)

“Na nova visão, a relação entre a sociedade indígena e a sociedade


brasileira é vista como articulada por processos instantâneos de circulação. Estes
processos de circulação ou troca estão divididos em dimensões ou aspectos
complementares, mas neste caso como formas positivas e negativas de
reciprocidade. Tais formas podem ser resumidas, respectivamente, como troca
mercantil, ‘presentes’, e assistência médica da FUNASA – retribuídos pela
amizade e cooperação por parte dos índios –, e como falta de palavra, trapaça
e roubo de recursos indígenas pelos brasileiros – retribuídos com
hostilidade e resistência por parte do povo nativo. (ibid: 59)

“Estas relações são o oposto uma da outra, e tomadas em bloco


repetem o padrão de transações contraditórias, positivas e negativas, que
articulam a estrutura interna do domínio social. Do lado dos índios, as
relações são construtivas, consistindo nos processos tradicionais de
transformação das energias e materiais naturais em poderes e formas
sociais, de uma forma que permite a renovação contínua da natureza e de
suas forças. Do lado dos brasileiros, as relações são destrutivas: a
derrubada das florestas e suas conversão em pastagens, a poluição dos rios,
a mineração da terra, o represamento dos rios e a inundação da terra em
volta – tudo isto uma espoliação definitiva da natureza, que a torna
imprópria para a habitação, o cultivo, a caça e a pesca.” (ibid: 60)

“O desejo Kayapó por mercadorias brasileiras se deve apenas em parte à


sua maior eficiência e utilidade frente aos produtos nativos, e muito pouco a uma
competição por prestígio fundada no ‘consumo conspícuo’. O valor primordial
da posse de mercadorias, para os Kayapó, - especialmente objetos próprios para
ser exibidos, como roupas, casas e gravadores – reside na neutralização
simbólica da desigualdade entre eles e os brasileiros, na medida em que esta é
definida em termos da posse dos produtos mais complexos e eficazes da
indústria ocidental, e da capacidade de controlar a tecnologia a eles associada. O

8
valor das roupas, rádios e aviões para os Kayapó, em outras palavras, reside
acima de tudo na negação do contraste humilhante entre eles como seres
‘selvagens’ e os brasileiros como ‘civilizados’, contraste que os Kayapó
experimentam como se definindo, da maneira mais simples e óbvia, em termos
da posse e uso de tais bens. Isto é verdadeiro, acima de tudo, para as roupas,
visto ser a nudez o signo fundamental da selvageria aos olhos dos brasileiros.”
(ibid: 61/62).

“Os Kayapó, em suma, passaram a perceber a ‘cultura Kayapó’ como


algo essencial para sua existência como uma sociedade, como algo que eles
devem lutar para defender contra as pressões assimiladoras da cultura brasileira.
Eles estão discutindo como isto pode ser melhor levado a cabo, e que nível de
penetração econômica brasileira, que nível geral de acomodação política, social
e cultural são compatíveis com este objetivo.” (ibid: 62)

“Os processos políticos e econômicos concretos de que lançam mão as


comunidades indígenas para resistir à dominação da sociedade nacional, ou
para controlá-la, estão se tornando um tema importante. (...) No caso
Kayapó, tais processos vão das táticas de luta armada ou da diplomacia,
passando pela manipulação dos estereótipos de si mesmo presentes nos
setores local e oficial da sociedade nacional, até a luta para dominar todos
os aspectos institucionais e tecnológicos da dependência ao nível da
comunidade (a ‘arquitetura da dependência’ ao nível local). Um aspecto
importante para a compreensão destes processos é o grau em que táticas
como as acima mencionadas se fundam em concepções mítico-ideológicas
nativas.” (ibid: 62)

Sobre essas “concepções mítico-ideológicas nativas”, de que fala Turner, temos


em Lukesh (1976)12 uma referência importante. Segundo ele:

“No mito da grande águia diz-se: nos primórdios dos tempos vive uma
ave gigante, flagelo da humanidade. Ela desce dos ares e busca suas vítimas.
Pequenos e fracos, os homens nada podem fazer contra ela. Há, então, dois
irmãos que moram em uma casa de troncos de árvores, debaixo da água, que
crescem bastante e adquirem físico forte e bem desenvolvido. Eles matam o
monstro e se tornam os vingadores da humanidade; ao mesmo tempo, tornam-se
os ancestrais de uma nova humanidade, de gente grande e forte, os Caiapós.”
(1976: 25).

A valentia, a força e a bravura, portanto, fazem parte do ethos Kayapó. Uma


série de autores que inclúi Turner, Banner e Arnaud confirmam essa noção:

“Segundo ainda Banner (ibid.: 19), o Kayapó cultiva a bravura ‘com o


mesmo afã que o civilizado procura enriquecer’, representando a palavra
djekré (bravo, feroz, valente) o ideal ao qual todos os homens aspiram. Os
pais não costumam bater nos filhos porque desejam torná-los independentes e
agressivos. Assim que os meninos passam a dormir no ngóbe [casa dos homens],
após dez anos de idade, os adultos procuram desenvolver em seus espíritos o
culto djekrê: arranham-lhes os braços e as pernas com dentes de peixes, para
12
LUKESH, Anton. 1969. Mito e vida dos índios Caiapós. Livraria Pioneira Editora e USP, São Paulo.

9
que adquiram mais força e sejam mais velozes; passam-lhes nos peitos pêlos da
lagarta ‘cabelo de macaco’, venenosíssimos, para que criem resistência contra a
dor; mandam-nos lutar de corpos nus com marimbondos; e adestram-nos no
manejo da borduna (a arma predileta dos Kayapó).” (Arnaud, 1987: 80/81).13

Há ainda outro significante mito, que ajuda-nos a entender o ethos Kayapó. Mito
este, atualizado frequentemente a partir da realização de um importante ritual, praticado
até os dias de hoje. Transcrevo-o, em tradução livre, da obra de Darrell Posey
(1979:106-110)14:

Nos tempos antigos, os Kayapó viviam no céu com os outros animais. Os


Kayapó eram então como os outros animais, e os índios podiam até entender a
língua dos animais. Mas nesses dias antigos, os Kayapó eram fracos e não
viviam em aldeias ou tinham sociedades. Eles não eram mais poderosos do que
outros animais. Assim, alguns animais, especialmente os besouros (màrà) sob a
liderança de seu chefe, o grande besouro de chifres (krã-kam-djware), lançaram-
se em guerra contra os homens. Mas nos tempos antigos, ainda no céu, os
Kayapó aprenderam a se organizar em grupos e a viver em comunidades, como
os marimbondos e as formigas (ñy). Então, na grande batalha, os valentes e
destemidos guerreiros Kayapó sobrepujaram e venceram o Krã-kam-djware.
Esta vitória estabeleceu o homem como uma criatura mais poderosa do que os
outros animais, em razão de duas coisas: 1) o poder que veio da organização
social, e 2) a grande força e valentia dos guerreiros índios que também vem dos
marimbondos. Os Kayapó aprenderam o segredo dos marimbondos através da
cuidadosa observação do comportamento desses insetos e aprenderam que o seu
‘poder’ poderia ser adquirido através da sua potente ferroada. O veneno dos
marimbondos era o segredo; e o ataque agressivo e destemido dos marimbondos
tornou-se um modelo para os guerreiros Kayapó.

Ainda atualmente, em ocasiões regulares, os Kayapó comemoram a


aquisição desse segredo e a sua vitória sobre o Krã-kam-djware. Eles buscam
constantemente pela casa dos marimbondos mais poderosos e agressivos (amuh-
dja-kên). Quando a casa encontrada é suficientemente grande (normalmente com
um metro e meio de comprimento e meio metro de diâmetro), um andaime é
erguido (a noite, quando os marimbondos estão inativos) preparando a re-
encenação do antigo evento mítico.

No frio da madrugada, toda a aldeia caminha solenemente até o lugar


preparado. Os guerreiros dançam ao pé do andaime e cantam sobre a força
secreta que eles receberam dos marimbondos para vencer o besouro gigante. As
mulheres choram cerimonialmente, lançando gritos e soluços enquanto os
guerreiros, dois a dois, sobem até a plataforma para golpearem apenas com as
mãos a gigantesca casa. Eles batem na casa para receberem as ferroadas dos
marimbondos e continuam a fazê-lo até ficarem semi-conscientes em razão da
dor causada pelo veneno. Às vezes, dois ou três golpes são necessários para os
mais fortes guerreiros.

13
ARNAUD, Expedito. 1987. “A expansão dos índios Kayapó-Gorotire e a ocupação nacional (região sul
do Pará) In: Revista do Museu Paulista. Nova Série, vol. XXXII, São Paulo.
14
POSEY, Darrell. 1979. Ethnoentomology of the Gorotire Kayapó of Central Brazil. Tese de Doutorado
submetida à Universidade de Georgia, Estados Unidos.

10
Esta cerimônia é uma das mais importantes no mundo dos Kayapó. Ela é, como
bem interpreta Turner, uma re-afirmação da humanidade dos Kayapós, uma afirmação
de seu lugar no universo, e de sua comunhão com o passado. Na cerimônia, tempo e
espaço se fundem e proporcionam uma unidade do ser: a continuidade da vida, história,
identidade e conhecimento.

OS KUIKURO NA LITERATURA ANTROPOLÓGICA

Aqui, seguirei de perto o argumento e as informações de Bruna Franquetto


15
(1992) , utilizando-a como autora-orientadora sobre os povos alto-xinguanos,
especialmente os Kuikuro:

“Ao tratar os povos que habitam até hoje a bacia dos formadores do rio
Xingu, no norte do Mato Grosso, pressupõe-se uma unidade tanto geográfica e
ecológica como sócio-política.” (Franquetto, 1992: 339).

“Seus limites geográficos são claros. A bacia dos formadores, área de


transição entre o cerrado e a floresta, é drenada por um leque de rios, sendo os
principais os rios Kuliseu ou Kurisevo, Kuluene e Ronuro, interligados por um
emaranhado de igarapés, canais e lagoas que confluem a 11º55' de latitude sul e
a 53º 35' de longitude oeste, no ponto chamado pelos índios de “centro do
mundo”, palco da criação do universo físico e humano.” (ibid.)

“Do ponto de vista sócio-político, a sociedade alto-xinguana é um


conjunto bastante homogêneo de grupos locais inter-relacionados que
compartilham traços culturais em diversos domínios – padrão de aldeamento,
economia, parentesco, cosmologia, valores, rituais intra e intertribais – e que se
distinguem entre si por outros traços, que funcionam como emblemas de
identidades constrativas. Como a manufatura de artefatos para a troca, o
território de ocupação histórica e a língua ou dialeto.”(ibid. 339)

“A sociedade alto-xinguana é multilíngue; seus povos falam línguas que


pertencem aos troncos Tupi e Arawak e à família Karib, além dos Trumai, língua
considerada isolada. O Kamayurá e o Aweti são línguas Tupi-Guarani;
Mehináku, Waurá e Yawalapiti são línguas Araeak; Kuikuro, Kalapalo, Matipu
e Nahukwá são línguas Karib.” (ibid.)

“Informações mais precisas relativas ao período que poderíamos chamar


de “proto-história” alto-xinguana, dos últimos duzentos ou trezentos anos, são
obtidas pelo exame dos indícios contidos nas narrativas indígenas que contam
sobre o contato com os caraíba – os brancos –, sobre a origem dos grupos locais
hoje existentes e sobre o desaparecimento de outros já extintos. Já foi dito que
dessas narrativas apreendemos, contudo mais do que indícios para nós históricos
– ou seja fatuais – que nos permitam formar alguma idéia do que existia e se
passou antes de 1884: figuras discursivas, imagens, símbolos e construção do

15
FRANCHETTO, Bruna. 1992. “O aparecimento dos Caraíba: para uma história kuikuro e alto-
xinguana.” In História dos Índios no Brasil. Org. Manuela Carneiro da Cunha – São Paulo: Companhia
das Letras, FAPESP.

11
estido da memória histórica indígena e sua interpretação, e fruição de
experiências históricas selecionadas como marcos significativos para a
rememoração e transmissão dessa tradição oral (Basso, 1985; Ireland, 1988;
Franchetto, 1991).” (Apud Franchetto, 1992: 342).

Quanto à natureza agressiva dos primeiros contatos com os brancos, a abertura das
akiná (estórias) que foram coletadas é esclarecedora:

“Os chefes (anetá) dos caraíba vieram nos matando; o nosso


pessoal fugia para outras aldeias e logo os caraíba chegavam nos
matando todos, contavam nossos antepassados, contavam nossos antigos
[...]”. (Citado em Franchetto, 344).

“Os antepassados caraíba chegaram muito tempo atrás. Os


antepassados caraíba vieram até o Kuluene, montaram acampamento em
Turi, construíram muitas canoas de casca de jatobá, muitas enfileiradas
para matar os nossos antigos. Estavam em Agahúku [...]”. (Citado em
Franchetto, 344).

E continua a autora:

“A primeira parte dessas narrativas se desenvolve por episódios


sucessivos, numa repetição paralelística característica de um estilo de arte
verbal, a construção de uma cronologia do tempo narrativo expressa por
deslocamentos espaciais dos caraíba de um ótomo16 a outro. Em cada episódio-
etapa dessas andanças, os brancos matam à procura dos chefes indígenas, bem
como aprisionam e raptam mulheres, crianças e também homens. Eis alguns
exemplos desses blocos narrativos:

“Depois mudaram para outra aldeia novamente. Morreram, o


pessoal de Isagá foi morto pelos caraíba. Os caraíba roubaram as
crianças, roubaram as esposas que se tornaram esposas deles [dos
caraíba]. Foram embora [...].

“[...] vieram até o pessoal de Aráha, usando suas embarcações.


Era ainda noite, quase madrugada e o pessoal de Aráha estava dançando
ntuhé kwerá. Escondidos, os soldados (atátu) fecharam as pessoas dentro
das casas. Golpearam os que ainda estavam quase dormindo e que
tentaram fugir. Morreram. O sangue correu como fio d’água [...]. Os
caraíba foram até o pessoal de Urihihâtâ, sempre de noite. De novo
tentaram fugir por entre as pernas dos soldados. Juntaram os mortos e
perguntaram: ‘Onde está o chefe? Onde está Kujaicí?’ Lá não estavam os
chefes, nem Kujaicí, nem Aráhi, nem Painigkú. Os caraíba foram
procurá-los, foram procurar Kujaicí. A aldeia ficou vazia depois que os
caraíba passaram matando [...]”. (citado em Franchetto, 344)

“As ‘coisas’ dos caraíba são assim representadas nas akiná por três
perspecitivas: num primeiro momento são ‘roubadas’, depois objeto de
trocas, enfim associadas claramente às doenças. A partir deste último, os
16
Ótomo é a designação Kuikuro para grupo local.

12
brancos passam a ser chamados, também e até hoje, de kuríhe, termo que
designa o feitiço acionado pelos kurihé oto, os ‘donos do feitiço’, outra causa
de eventos de doença e morte:

“ Começaram as mortes. Chegaram as doenças-feitiço (kurihé).


Ficamos poucos [...]. As flechas feitiço voaram. Muitos morreram. Os de
Kuhikuro acabaram, acredite, no tempo das viagens dos caraíba. Contam
os antigos que os colares de ‘olho de peixe’ eram enterrados com os
mortos. Kálusi foi embora. Passou um ano e o pessoal de Kuhikúru
viajou até os caraíba, até as aldeias dos Bakairi. De lá trouxeram a tosse.
Tinham ido buscar facas, contam. Deram facas, tesouras, machados. Veio
a tosse”.

“As akiná kuikuro nos contaram uma história que de algum modo
configura um imagem do que se passou até Von den Steinen [expedições de
1884 e 1887], uma história de conflitos sangrentos com os brancos, de fuga,
abandono de aldeias, deslocamentos, epidemias, com ciclos de crises e
recuperações demográficas (‘ficaram poucos’, ‘ficaram muitos de novo’). (...).
Houve, assim, a consolidação progressiva e processual do subsitema karibe alto-
xinguano que, sofrido subseqüentes reordenamentos territoriais e
redimensionamento populacionais, existe até os dias de hoje.” (ibid.: 348)

Franquetto demonstra que todo a primeira metade do século XX é marcada pela


aproximação da sociedade envolvente, e pela consequente disseminação de doenças
entre os índios.

“Os anos 40, contudo, representam mudança mais dramática deste


século, com o recrudescimento das epidemias e a entrada em cena da Expedição
Roncador-Xingu, que acaba instalando definitivamente a presença entre os
índios dos ‘caraíba’, agora agentes indigenistas. Em 1946, a expedição,
integrada por sertanistas Cláudio, Orlando e Leonardo Villas Boas, atingiu as
cabeceiras do rio Kuluene, onde foram abertas duas pistas de pouso, embriões
dos primeiros postos militares do Xingu, Garapu e Sete de Setembro.” (ibid.:
351)

“O ano de 1954 é duplamente significativo para os índios do alto Xingu.


Nele foi criado o P. I. [Posto Indígena] Capitão Vasconcelos (depois P.I.
Leonardo Villas Boas), novo ponto de referência para a procura de assistência
médica e de bens industrializados, principais sustentáculos do regime tutelar e da
dependência em relação aos brancos. O P.I. Leonardo passou, assim, a
representar o marco definitivo da presença do Estado brasileiro em território
indígena, centro de irradiação de uma experiência, a dos irmãos Villas Boas, que
se tornaria um filão da tradição indigenista nacional. A fórmula villas-boasiana
seria uma síntese de preservacionismo preservacionista, proteção efetiva com
gradual e controlada integração dos índios, manutenção de um espaço
imemorialmente indígena apropriado pelo Estado como reserva não somente
para os seus habitantes originais, como também para outros grupos que ali iriam
‘se refugiar’, uma vez que suas terras fossem liberadas para a colonização.”
(:352/353)

13
“No mesmo ano de 1954, uma violenta epidemia de sarampo abalou
ainda mais o alto Xingu. O sarampo atingiu todas as aldeias. Os grupos Karib
mais afastados do P.I. Leonardo, enfraquecidos e apavorados, resolveram aceitar
as propostas dos Villas Boas de mudarem suas aldeias para perto do posto: no
começo dos anos 60 um movimento geral deslocou os Kuikuro e os Kalapalo
dos altos Kuliseu e Kuluene para o baixo Kuluene. (...) A partida de Lahatuá foi
dolorosa; lá, lembram os velhos, deixaram os mortos do sarampo, enterrados às
pressas em valas comuns; a aldeia era grande e bonita, com muito peixe, muito
pequi e muitos caramujos, matéria-prima dos preciosos colares karib. (:353)

“Os anos 50 se fecharam com um balanço dramático para os povos dos


formadores. Felizmente, entre 1960 e 1970, o processo de depopulação se
inverteu e deu lugar a uma lenta mais gradual recuperação, com a consolidação
de uma assistência médica constante e eficaz e com o início das campanhas de
imunização, frutos positivos do reconhecimento oficial e internacional do
parque. Com isso, por outro lado, os índios alto-xinguanos se tornavam cada vez
mais dependentes dos brancos, protetores e fonte aparentemente inesgotável de
bens.” (:353).

Entende-se, assim, que o sistema social e político da região dos formadores do


rio Xingu não é exclusivamente um produto cultural, mas o resultado de um processo
histórico de muitos séculos de formação contínua em face de novos acontecimentos e
por meio de novos redimensionamentos.

“ O rearranjo territorial dos ótomo alto-xinguanos parece ser agora


influenciado não tanto pela dependência dos postos de assistência dentro do
parque, como acontecia na época de maior fragilidade e de presença mais sólida
do indigenismo de Estado. Há hoje um movimento espontâneo que, por um lado,
volta a obedecer, na medida do possível, à lógica política interna das fissões dos
ótomo e, por outro lado, se dirige cada vez mais para o exterior, para os centros
urbanos mais próximos, como as cidades ‘de fronteira’ de São José do Xingu e
de Canarana, onde os índios se defrontam, agora sem mediações, com novas
experiências. Cresce a consciência dos limites definitivos do parque, de seu
perímetro não mais circundado de florestas virgens, mas sim por um anel de
fazendas; cresce, assim, a consciência da necessidade de fiscalizar
permanentemente esses limites e de ocupar a faixa periférica do parque,
controlando as intrusões, os desmatamentos e a poluição das nascentes. Os
kuikuro, por exemplo, continuam pensando em voltar a seus antigos territórios –
Tahunúnu e Lahatuá – nunca de fato abandonados, já que continuaram a ser
visitados periodicamente.” (:353/354)

“(...). Novos arranjos das alianças políticas internas estão se delineando,


incluindo, agora, não apenas os kuré, os próprios grupos dos formadores, mas
também, os ‘outros índios’, os gikóro, os ‘bárbaros’ definitivamente vizinhos
dentro dos limites do parque (Kayabi, Kayapó, Txikão), ou aliados potenciais
numa identidade geral de ‘índios’ fora desses limites. As políticas internas estão
cada vez mais se projetando e assimilando problemas para além do mundo
indígena: Funai, políticas governamentais; uma pluralidade de organizações
assistenciais que se apresentam com soluções para os problemas de
sobrevivência e dependência, e com as quais os índios têm que saber negociar e

14
barganhar; saber dos direitos bem ou mal assegurados pela lei às minorias
indígenas, aprendendo, por exemplo, a reivindicar o controle sobre a venda de
imagem, uma vez que o alto Xingu se firmou como ‘o cartão-postal’ do índio
genérico brasileiro por meio de fotos, filmes, reportagens.” (:354).

SOBRE OS INDÍGENAS CITADOS


Apresento, a seguir, algumas informações relevantes, colhidas durantes as
entrevistas, sobre os indígenas citados no inquérito nº 073/2008-DPF/ATM/PA.

TUÍRA KAYAPÓ

Tuíra Kayapó é casada com Takatô Kayapó, com quem divide a liderança da
aldeia Kaprenkrere. É uma aldeia recente, cuja construção começou há pouco mais de
um ano. Nela vivem 167 pessoas, todos do povo indígena Kayapó, distribuídas em 23
casas em estilo tradicional (madeira e sapê), construídas pelo próprios índios. Não há
energia elétrica na aldeia, e as obras para instalação de poço e caixa d’água central ainda
não estão completas.
Na casa de Tuíra vivem, além dela e do marido, a filha do casal, Nhakpratikopo
(de 12 anos), o filho do casal, Bepktex Kayapó (de 21 anos), a esposa do filho,
Bekwxnhdjiti Kayapó (de 28 anos) e a filha de Bepktex e Bekwxnhdjiti, chamada
Bekwynop Kayapó (de 2 anos de idade).
Tuíra nasceu na aldeia de Kokraymoro, às margens do rio Xingu. Ela não
frequentou a escola, não é alfabetizada e não fala o português. A partir das falas de
Tuíra (feitas a partir dos meus questionamentos), o intérprete Kube-í Kayapó (servidor
da FUNAI) transmitiu-me, mantendo a 1ª pessoa, a seguinte narrativa:

“Meus bisavós e tios moravam em terras da região do Xingu.


Meu pai morava em Picatoti, na região de Kubenkankrei. Minha mãe
morava em kokraimoro. Eu nasci em Kokraimoro. Tenho seis irmãos (um
homem e cinco mulheres), todos vivendo em aldeias indígenas da Terra Indígena
Kayapó.
Quando o meu pai foi para Kokraimoro, casou-se com a minha mãe. Aí,
quando eu tinha entre 10 e 15 anos, fui conhecer a minha avó e a minha tia, na
aldeia Kubenkankrei. Aí o meu pai fez uma nova aldeia, chamada Aukrê. Aí, eu,
meus pais e irmãos passamos a morar em Aukrê. Então, a minha irmã mais velha
se mudou para Gorotire. Aí, quando meus pais desapareceram [usam a palavra
desapareceram para evitar dizer que morreram], eu fui morar com a minha irmã
mais velha, chamada Maini, em Gorotire.
Foi em Gorotire que eu conheci e me casei com Takatô Kayapó, há cerca
de 32 anos [os dois têm dificuldades em precisar a idade, mas estima-se que seja,
de ambos, em torno de 50 anos].
Passado algum tempo, nós saímos de Gorotire, para ajudar o meu irmão a
abrir uma nova aldeia, chamada Juarí. Mas, nós não ficamos morando lá, e
fomos viver na aldeia de Las Casas. Ficaramos em Las Casas por alguns anos, aí
eu fiz plano para fazer uma nova aldeia. Essa nova aldeia é a que vivemos
atualmente. Kapenkrere é o nosso lugar, e que aqui que nós vamos ficar até
morrer.
Um dos meus bisavôs, chamado Prinkôre, de Kubenkankrei, foi um
cacique velho muito respeitado. Até hoje o nome dele é passado para as crianças.

15
Um de meus tios, chamado Betikrere, era outro cacique respeitado, até hoje o
nome dele é passado para as crianças.
Nessa época, não havia terra demarcada para nós, então, tínhamos que
manter o “kuben” longe. Havia canoa e machado de pedra. Os homens sempre
faziam arcos e flechas e faziam bordunas. O machado é como o facão. Com o
facão nós tiramos palha de açaí. Nós sempre utilizamos o facão para trabalhar.
Esse facão é nosso alimento. A minha mãe e a minha avó já usavam para tirar
açaí, bacaba, mel, castanha. Nós usamos o facão para sobreviver.
Como já terminei a história sobre os bisavôs, vou contar que a história da
nossa vida é junto com o rio Xingu, pelo que nos dá de frutas. O meu tio lutou
por isso, contra desmatamento a favor da natureza. Eu estou fazendo o que
fizeram meus antepassados, que é defender a floresta e a água, que é nossa
saúde. Nós não queremos doença na barriga, e mesmo os animais precisam dessa
água para ter saúde. E nós queremos defender nosso território.
Eu estou trazendo uma batata para você ver por que nós precisamos do
rio Xingu. O kuben quer colocar veneno no rio Xingu. Mas como nós vamos
comer essa batata? Nós precisamos de água limpa. Até na mandioca nós usamos
água para misturar e fazer beiju. Não podemos deixar nossa água ficar suja, não
podemos sujar o Xingu que é o rio mãe.
Aqui a gente dorme bem, no frio, calmo, é assim que nós queremos nossa
floresta, nossos animais. E vivendo aqui em paz, com nossos parentes, marido e
filhos. Nosso ventilador é o vento. Não temos ar condicionado nem ventilador. O
vento é que nos esfria, a chuva, que vai da folha até a raiz esfriando nosso
alimento. A carne que caçamos, pendurada a noite vai ser esfriada, vai ficar boa,
para não nos fazer mal. E essa é a nossa vida, e nós estamos lutando para
preservar nossa floresta e nosso modo de viver.
Na cidade há muita doença, há muita fumaça. Na nossa aldeia não há
isso. Na nossa aldeia não há essas doenças, não há esses objetos; só Mebengokre
(gente Kayapó) e mato. Por isso todo mundo está saudável.
Não sou só eu que estou defendendo. Somos todos nós Mebengokre,
defendendo a floresta e o rio.
Na cidade há depósitos e lugares para congelar. Nossa relação
tradicional, nosso depósito é a floresta e o rio. É lá que nós buscamos nosso
alimento, na hora que é preciso. Na floresta tem alimentação, natureza, e os
Mebengokre vão se alimentar para não adoecer.
Tem outro. Os remédios que nós usamos. O mato não é depósito só de
comida, mas de remédio também. A farmácia da cidade não tem todos os
remédios não. Na mata há outros remédios nativos. Por isso defendemos nosso
território. Você tá me vendo, forte, sem operação, e eu não uso remédio da
farmácia, só do mato.
Então, minha luta, minha história já foi falada. Mas vou falar sobre o que
ocorreu em Altamira com o engenheiro. Eu já falei para você ontem. Eu fui
cantando o canto das mulheres, em direção dele. Quando eu estava cantando, no
ginásio, nas minhas costas o pessoal cercou ele. Eu nem vi. Havia muita gente,
de muitos povos.
Uma vez eu cheguei bem junto, todo mundo sabe, todo mundo fala e
lembra. Mas eu só encostei. Eu não feri ninguém.
Leva meu recado para o juiz para ele não sujar meu nome, para não me
derrubar. Eu não vi, eu não participei. Não suje o meu nome.”

16
EMI KAYAPÓ

Emi é viuva. Nasceu em Gorotire, mas vive em Kapenkrere com 6 filhos e


filhas. Tem cerca de 40 anos e é viúva. Tuíra é sua tia.
Emi estudou alguns anos na escola da aldeia, mas não sabe precisar até que
série. Sabe ler na própria língua. Quase não fala o português.
A seguir, narrativa feita por Emi na língua Kayapó e traduzida simultaneamente,
em 1ª pessoa, por Kube í Kayapó:
“Eu vivi em Gorotire até quando casei com meu marido e tivemos filhos.
Já tinha 35 anos quando fui com meu tio até a Kriny, onde ficamos um ano. Aí
fomos para a Las Casas e ficamos 3 anos. Aí meu marido “desapareceu”.
Minha tia fez o plano para criar a nova aldeia e nós viemos para a aldeia
Kaprenkrere, onde vamos viver até morrer.
Nosso facão já era usado por bisavós para alimentação. Nós usamos para
tirar o mel para cortar pau, para fazer casa, para tirar açaí, bacaba, castanha, mel.
É por isso que a gente usa.
O facão nós não compramos para brigar. Usamos e compramos para
trazer e usar na aldeia. Nós não fomos [para Altamira] para brigar. O facão hoje
é como o machado para os nossos avós. Os homens usam para fazer borduna. O
trabalho de Deus faz a pedra curtinha para usar no machado.
A razão da nossa manifestação era mostrar para o branco que ele dever
respeitar nossa floresta, nosso rio, caça, pesca e território. O branco não pode
fazer desmatamento. Essa é nossa manifestação. Nossa pintura, de jenipapo e
urucum é nossa vida também.
Sobre as atividades das mulheres: o nosso trabalho é cuidar dos nossos
filhos e filhas, com enfeites e pintura. Buscamos lenha para assar carne, beiju,
batata e mandioca. É assim que nós cuidamos de nós. A nossa pintura não vai
acabar nunca. Vou sempre raspar minha cabeça, isso não vai acabar nunca.
Sobre Altamira: eu estava com meu filho pequeno e fui atrás dele na hora
que o engenheiro foi cortado. Eu não corto ninguém, eu não machuco ninguém.
Eu sou crente e evangélica. Perdi meu marido e não quero que meus filhos
ouçam coisas erradas ao meu respeito. Quero o meu nome limpo. Essa é a minha
mensagem para o juiz. Não quero que me chamem mais.”

YODE KAYAPÓ

Tem 41 anos, nasceu em Gorotire e sempre morou lá. Seu pai e sua mãe também
eram de Gorotire. Quando por mim entrevistado, Yode estava em Las Casas, pois a neta
Cocorai, de 6 meses de idade, adoeceu e estava em tratamento com o pajé de Las Casas.
Yode é casado com Cocoró Kayapó, que tem 36 anos e também é de Gorotire. Em
Gorotire, ele vive com os filhos, genros, noras e netos.
A seguir, a fala de Yode, traduzida oral e simultaneamente para o português por
Kube-í e Tabô (Kayapó de Las Casas familiarizado com o português), e registrada por
mim:

“Eu nunca morei nem trabalhei na cidade. Sempre morei na aldeia, em


Gorotire. Minas atividades são na aldeia e no mato. Eu caço, pesco, cuido da
roça, faço casa, planto mandioca, banana e milho.
Eu estudei na escola da aldeia, com missionário. Aprendi mais da minha
língua mesmo. Não compreendo o português.

17
Sobre essa manifestação: eu venho escutando meus avós dizendo para
preservar a natureza, os rios. Há muito tempo nós ouvimos isso dos nossos
antepassados. Fui fazer aquilo o que eles fizeram; proteger o ria e a natureza.
Porque eles ainda estão vivos, mas tem muita área devastada. Eu fui defender o
nosso território e não só para mim, mas para os meus filhos e netos. Para eles
crescerem como eu, na aldeia, no nosso modo de vida.
Eu não fui para brigar e não conheço quem foi para brigar. Eu não fui
para a manifestação para agredir ninguém.
Sem rio, os índios não vivem. Sem o mato, os índios não vivem. A
natureza nos protege da poluição, da fumaça e dos venenos dos brancos. Para
nós sermos sadios, precisamos da natureza. Com o rio sujo, não conseguimos ver
o peixe para flechar.
Com a barragem, o rio vai ficar sujo, animais ficam podres lá dentro da
água parada e isso pode acabar com a nossa saúde, a nossa vida. Os rios já foram
mais limpos e agora estão contaminados. Nas fazendas, eles usam veneno e o
veneno vai para os índios, que se banham e bebem do rio. Não queremos essas
doenças. E novas doenças vão surgindo com água parada. Até o rio e os peixes e
as caças que bebem dessa água ficam doentes.
Já existem muitas plantações de soja que jogam veneno. E eu quero falar
para o juiz: nossa plantação é para nós mesmos, não é para comercializar. Nós
não usamos veneno. Nossa plantação é sadia.
Eu coloquei o meu sentimento e eu digo: eu não fui brigar com ninguém.
Se eu estivesse querendo eu poderia lutar e matar e morrer, mas eu não fui fazer
isso. O engenheiro teve apenas um corte no braço. E os nossos parentes que
morreram pelo branco e ninguém nunca fez nenhum processo e nem se
importou?”

PITUIARO KAYAPÓ

Nasceu e sempre viveu em Gorotire. Seus pais são de kubenkankrei. Sua mãe
faleceu quando ele tinha entre 8 e 10 anos, assim, ele foi criado pela irmã mais velha de
sua mãe, chamada Mrikara.

“Eu tinha 17 anos quando me casei com Ngreiken, que também é daqui
de Gorotire. Temos quatro filhos: dois homens e duas mulheres.
Eu faço a roça, planto. Planto banana, batata, mandioca, milho, arroz.
Caço e pesco também. Caço porcão, anta, mutum, jacú, macaco, tatu. Com essa
caça que eu trago da mata, a gente se alimenta. Eu, minha esposa e meus filhos.
Da pesca eu trago tucunaré, pintada, pacu e outros.
A mulher busca lenha para assar peixe para comer com beiju, com massa
de mandioca. Do mato a gente também tira açaí, bacaba, palmito, castanha,
pequi, cacau do mato e mel.
Eu nunca morei na cidade. Eu também nunca fui para a escola. Porque eu
não quis estudar. Quis aprender só na minha cultura. Da cultura do branco eu
não gosto. Sou índio mesmo, não gosto de atrapalhar a minha cultura.
Eu não sei ler nem escrever. Mas a minha mulher sabe ler em Kayapó,
em livro evangélico.
Eu fui para a manifestação levado pelo padre Saulo, de Redenção. Eu não
fui lá para brigar e nem escutei que alguém queria brigar. A manifestação que
nós fomos participar foi em defesa do rio, da caça, da pesca e da cultura

18
também. O que aconteceu com o engenheiro ninguém sabe e eu até agora não
sei. Mas achei errado ele sair ferido.
A nossa preocupação é que nós vamos perder os remédios da mata, nossa
alimentação, a natureza, e isso não deve ser destruído. Deixa o rio ficar limpo e
sem contaminação. Se o rio ficar contaminado e a caça beber a água do rio,
quando nós matarmos a caça e a comermos, nós também vamos adoecer.”

IREO KAYAPÓ

Ireo Kayapó nasceu em Gorotire, em 1958. Morou a maior parte de sua vida em
Gorotire, com a exceção de alguns poucos anos em que viveu na aldeia Kriny. Ireo
fundou a pequena aldeia Iranatchere, há cerca de 45 km de Gorotire, onde atualmente
vivem cerca de 25 pessoas. Ireo foi o único dos índios entrevistados que deu sua
entrevista em português:

“Minha esposa se chama Burê Kayapó e é de Gorotire também. Nós


temos sete filhos; quatro homens e três mulheres.
O homem Kayapó caça, pesca, faz casa, faz roça e bate timbó. Essas são
as minhas atividades também. A mulher cuida dos filhos pequenos, vai para a
roça e busca lenha para preparar nosso alimento. Ela sempre usa o facão, usa
para tirar alimento do mato e para se proteger de cobra e outros animais.
A minha língua, claro, é a língua do meu povo, a língua Kayapó. Mas
aprendi o português com professor da FUNAI e com a missionária de Gorotire.
Eu estudei até a 5ª série.
Em 1978 eu fui Coordenador de Garimpo. E em 1985 eu participei, junto
com o exército, da demarcação da Terra Indígena Kayapó. Eu também fui chefe
de posto de Gorotire por quatro anos. Eu sou liderança indígena respeitada.
Lá em Altamira, havia índios de todo o Xingu; havia Araras, Assurinis,
Mundurucus e outros. Ninguém tinha combinado nada, até porque as línguas são
diferentes. Mas o engenheiro falou duro, disse que o trabalho era dele e que
estava fazendo e que ia fazer a Belo Monte, e que não adiantava os índios
reclamarem. Então todos levantaram e dançaram fechando. Aí ele se levantou e
escorregou. Ele escorregou e se acidentou. Mas eu protegi ele, fiquei com o
corpo na frente e não deixei ninguém machucar ele. Mas foi ele que escorregou e
se acidentou.”

YAMYTI KAYAPÓ

Yamyti nasceu em Gorotire em 1958. Seus pais, Djokrô Kayapó e Kokoró


Kayapó também eram de Gorotire e tiveram seis filhos; quatro homens e 2 mulheres.
Yamyti morou toda sua vida em Gorotire, até que, em 2007, mudou-se com sua mulher
e filhos para a aldeia Kriny.
“Minhas atividades são na roça. Eu planto mandioca, milho, batata doce,
abóbora, banana, inhame e feijão. No mato eu caço porção, catitu, anta, tatu,
macaco e mutum. No rio eu pesco pintada, piranha, pacu, boca larga, curubim,
cuio-cuio e piabanha. Junto com minha família eu construo a nossa casa e cubro
com telhado de palha. Minha esposa pega lenha, pinta e enfeita as crianças e faz
comida. A comida que eu mais gosto é peixe com macaxeira.
O pessoal da missão chamou o pessoal de Gorotire para ir até Altamira,
para participar da manifestação. Aí, o pessoal de Gorotire chamou a gente aqui

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do Kriny. O padre Saulo levou para fazer manifestação contra barragem. Mas
ninguém mandou machucar ninguém. Eu nem sei por que fizeram aquilo. Manda
o engenheiro parar de perseguir a gente.
A dança das mulheres é com facão sim. O facão é antigo. A dança das
mulheres é coisa delas mesmo. Se a avó quer passar o nome para a neta, chama
as mulheres e começa a dança própria. Mas isso é segredo delas. Tem também a
dança para esperar o inimigo, que pode ser o branco ou outra aldeia de índios
mesmo.”

ARIFUTUÁ KUIKURO

Arifutuá é Kuikuro, cacique da aldeia Afukuri, às margens do rio Kuluene,


tributário do Xingu. Ele nasceu na aldeia Alahatua. Seu pai e sua mãe também eram do
povo Kuikuro. Seu primeiro casamento foi com uma índia da etnia Kalapalo – já
falecida –, com quem teve uma filha. Seu segundo casamento foi com a índia Sarati,
também Kalapalo, com quem tem quatro filhos; dois homens e duas mulheres.

“Deus nos colocou aqui no Kuluene. Estamos aqui desde o passado.


Todos os meus ancestrais moraram aqui e lutaram por essa terra e por nossa
natureza.
Eu não tenho estudo, não fui à escola, não sei ler nem sei o português.
Quando meu cunhado, cacique grande Maiugi Kuikuro, faleceu, ele
deixou indicado que eu seria o novo cacique. Eu cuido de todos dessa aldeia que
tem 13 casas grandes. Eu trabalho construindo casas, vou à roça, vou ao mato e
pesco para sustentar a família. O rio Culuene é para nós como um mercado, é lá
que a gente busca nosso alimento. A gente também faz a roça, para as mulheres
fazerem o beiju que a gente come com peixe.
Aqui nunca teve missão nem igreja e eu não tenho a religião do branco.
Mas sei que a alma da pessoa vai para o céu. Nisso nós acreditamos também.
Nós fazemos Quarup, que é uma cerimônia importante para homenagear
alguém importante e querido, pode ser um cacique famoso, um bom lutador de
huka-huka, um cantor.
Eu sei que as represas atrapalham o rio. Aqui perto tem a represa
Paratininga 2 e ela atrapalha muito nossa pesca. Ela abaixa o rio e diminui o
número de peixes. O Kuluene ficou baixo. Como vamos viver no futuro?
Antigamente o Kuluene não ficava baixo e em abril ainda estava fundo. Agora
não.
Quem me convidou para ir até Altamira foi um cacique Kayapó, e depois
o André Vilas Boas, do ISA. Fui porque quero tirar a usina. O que é que os meus
filhos e netos vão comer depois?
E o que o engenheiro fez? Ele prometeu fazer a usina. E alguém
perguntou para ele o que é que nós iríamos comer. Ele disse: vocês vão comer
animal da terra, vão comer cobra. Aí ele ficou nervoso, esquentou, xingou o
índio.
Eu não bati em ninguém. Fiquei pensando a noite inteira, e lembrando de
tudo, e te digo: eu não bati em ninguém. O que todos os índios que estavam lá
dizem é que foi um acidente, por que ele levantou e caiu.
Porque é que o branco faz barragem? Antes tinha muita arara, eu matava
e dava de presente. Era muito importante para nós. Agora não tenho mais. Agora
eu procuro peixe e não acho. Antes tinha pacu, matrinchan, piau. Não acho mais.

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Deus que fez a aldeia dos índios aqui. O branco começou lá em Portugal
e está apertando a gente agora. O engenheiro xingou os índios.
Porque nós estamos lutando? Porque nós estamos preocupados com o rio.
Onde vamos pescar. O rio é o nosso único mercado. Os velhos precisam dele
para comer. As crianças também. Aqui ninguém come comida do branco. E nós
não comemos anta nem veado, só macaco e mutum. Em Canarana, eu comi
carne de boi e fiquei doente com a barriga pesada. Eu preciso de beiju e peixe,
essa é nossa alimentação.
Fala para o engenheiro para parar de vir atrás de mim.
Alguns falam que em 20 anos vai secar tudo. Eu estou pensando nos
nossos filhos e netos. Como eles vão comer no futuro? Depois de Paratininga 2,
os Kalapalo não encontram mais os lugares onde existiam as pedras para furar
caramujo e fazer enfeites. Esse é o material mais importante para os Kalapalo.
Eu fico triste.”

CONCLUSÃO

Os sete indígenas aqui entrevistados (seis Kayapó e um Kuikuro) apresentam


independência cultural em relação à sociedade envolvente. Isso é compreendido ao
considerarmos três critérios fundamentais: o “espacial”, o “de parentesco” e o
“linguístico”:

1. Espacial: temos que todos os sete indígenas nasceram, cresceram e viveram


dentro da Terra Indígena, em área de convívio exclusivo de indígenas e cuja
entrada de não-índios é controlada e, em vários casos, proibida. Quando na
cidade, continuam vinculados a uma rede de assistência da própria etnia, assim
como de assistência oficial, tais como FUNAI e FUNASA.

2. De parentesco: os indígenas aqui estudados jamais mantiveram relação de


união estável ou de casamento com membro da sociedade não-índia. A
união de todos eles deu-se exclusivamente com outros indígenas. No caso dos
seis Kayapó, todos tiveram casamento intra-étnico, ou seja, dentro da mesma
etnia. No caso do Kuikuro, seu casamento também não foi com mulher não-
índia. Ele casou-se, tanto da primeira quanto da segunda vez (sua primeira
mulher faleceu) com mulheres do povo Kalapalo, seus vizinhos e aliados. Como
vimos, o casamento inter-étnico, ou seja, entre diferentes etnia, é comum entre
os povos indígenas do alto-xingu. Excluída, aqui, a possibilidade de casamento
com não-indígena.

3. Linguístico: Todos os sete entrevistados têm a língua indígena como a “língua


materna”. Apenas Ireô comunica-se com desenvoltura em português, fato que
de forma alguma descaracteriza sua identidade Kayapó. Todos os outros podem
ser considerados monolíngues, com algum grau de bilinguísmo passivo, ou
seja, vale para a compreensão e não para execução (Franquetto, 339).

Além desses três aspectos fundamentais (espacial, de parentesco e linguístico),


outros devem ser analisados para se compreender a reação de hostilidade dos povos
reunidos no evento em Altamira para com o Engenheiro Paulo.

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Considero que houve uma “falha de comunicação” entre as partes, pois, enquanto os
povos indígenas conceberam aquele evento como um momento onde eles seriam
“consultados” sobre a construção da barragem de Belo Monte, o engenheiro concebeu
sua fala como um momento de lhes “comunicar” que Belo Monte seria,
inexoravelmente, construída.

Isso gerou enorme frustração nos indígenas, que passaram a vaiar a fala do
engenheiro. Este, no entanto, não recuou em seu discurso, terminando por propor um
“desafio” aos indígenas ali presentes, ao dizer: “Eu quero ver quem tem coragem de
criticar o programa Waimiri-Atroari.”

Entendendo-se desafiado em um dos pontos mais importantes do seu ethos – a


coragem, a valentia – os Kayapó reagiram com conduta hostil, socialmente requerida,
“obrigatória” para eles em momentos de disputa. Assim, inadvertidamente, o engenheiro
ao desafiar sua coragem cruzou a linha do que é lícito na cultura dos Kayapó.

A reação, no entanto – na percepção dos índios – foi de hostilidade mas não de


agressão, já que consideram que o corte no braço do engenheiro foi um acidente. A
dança feita pelas mulheres Kayapó é uma dança de lamento que relembra a morte dos
seus parentes pelos brancos, sempre realizada com facão em punho. Essa dança é
normalmente feita para se dar força aos membros de uma aldeia enquanto se “espera do
inimigo”. Ao fazê-la em Altamira, sua intenção era demonstrar toda sua seriedade e
indignação com aquela postura inflexível e desafiadora do engenheiro. Esperavam, de
fato, hostilizá-lo, mas não agredi-lo. Se essa fosse a intenção, afirmam os índios, não
haveria dificuldade em causar-lhe ferimentos muito maiores, uma vez que eles não
foram controlados por forças externas (polícia, exército) e sim por si próprios.

Quanto à Arifutuá Kuikuro, apesar de seu povo não ter um ethos guerreiro tão
acentuado quando o dos kayapó, há outras razões históricas e culturais que lhe
orientaram a também hostilizar a atitude do engenheiro. Primeiramente, devemos ter em
consideração a associação que fazem os Kuikuro entre os brancos e as doenças
(kurihé). Lembremos que Arifutuá nasceu em Lahatua, aldeia que padeceu de enorme
epidemia de sarampo. Além disso, a dolorosa transferência de território por
imposição dos brancos é parte da história Kuikuro. Por último, Arifutuá tem um
exemplo próximo de sua aldeia de como a implantação de grande projetos como
represas e hidrelétricas podem ser nocivos ao meio-ambiente, assim como podem ser
implantados sem o aval ou a participação dos povos indígenas. Refiro-me à represa de
Paranatinga 2, situada no rio Kuluena a cerca de 100km do Parque do Xingu. Como
narrou Arifutuá, essa represa trouxe, efetivamente, uma série de impactos negativos para
os povos que vivem da pesca do Kuluene, como os Kuikuro de Afukuri17.

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Veja-se, por exemplo a reportagem divulgada na página do ministério público (http://www.prr1.mpf.
gov.br/noticias/prr1-quer-suspender-obras-da-usina-hidreletrica-paranatinga-ii):
A Procuradoria Regional da República da 1ª Região (PRR-1) interpôs recurso ao Tribunal
Regional Federal (TRF-1) para que sejam suspensas as obras na usina hidrelétrica de Paranatinga II, em
Mato Grosso. Segundo os procuradores regionais da República autores do recurso, Paulo Gustavo Gonet
Branco e Odim Brandão Ferreira, a construção provoca riscos ao meio ambiente da região, além de
prejudicar comunidades de todas as etnias do Parque Indígena do Xingu.
Em dezembro de 2004, o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou ação civil pública para
interromper as obras de Paranatinga II e remeter o processo de licenciamento ao Instituto Brasileiro do
Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), órgão federal. A licença ambiental para a
construção foi emitida pela Fundação Estadual do Meio Ambiente do Mato Grosso (Fema). De acordo

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Portanto, as sociedades indígenas Kayapó e Kuikuro são sociedades
eminentemente fechadas em seu próprio convívio. Apesar dos indígenas aqui tratados
terem conhecimento e, por vezes, frequentarem a sociedade envolvente, sua conduta,
visão de mundo e autodeterminação são orientadas majoritariamente (e quase que
exclusivamente) pelos valores, prerrogativas e sanções da sua própria cultura.

Gustavo Hamilton de Sousa Menezes


Antropólogo da Procuradoria Federal Especializada – FUNAI
Doutor em Antropologia Social pela Universidade de Brasília

* * *

com o MPF, a Fema é incompetente para o exame do empreendimento, já que as obras têm reflexo direto
no Rio Xingu, curso fluvial da União. A Fema ainda vem sendo alvo de diversas denúncias de corrupção
na expedição de licenciamentos.
Em abril de 2006, a Justiça Federal proferiu decisão favorável ao pedido do MPF e suspendeu a
construção. Mas a empresa Paranatinga Energia S/A recorreu ao TRF-1, que manteve o andamento das
obras em decisão publicada no dia 19 de novembro de 2006.
Terra sagrada - A barragem está sendo construída no Rio Culuene, principal formador do Rio
Xingu. O trecho é considerado sagrado pela população indígena. De acordo com lideranças locais, a área
foi palco do primeiro ritual funerário do Quarup. Além disso, as obras colocam em risco a pesca na
região. Segundo um dos autores do estudo de impacto ambiental contratado pelo própria Paranatinga
Energia S/A, Juarez Pezutti, os cardumes migratórios que habitam o Rio Xingu provavelmente não
conseguirão superar o obstáculo da barragem construída no Rio Culuene. A empresa alega que pretende
construir uma escada de peixes para solucionar o problema. Contudo, afirma Peruzzi, por mais que (o
projeto da escada de peixes) seja um dos mais modernos dessa natureza já elaborados, não há
comprovação de que é um mecanismo que vai garantir a migração de grandes cardumes de peixes.

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