Becker 1988
Becker 1988
Becker 1988
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EDITORA
Impresso no Brasil
EQUIPE TÉCNICA
Editor:
Antonio Carlos Ayres Maranhão
Revisores:
Fatima Rejane Meneses, Flávio Gonçalves Castro,
Maria Helena de Aragão Miranda, Regina Coeli Marques,
Thelma Rosane Pereira de Souza, Wilma Gonçalves Rosas Saltarelli
Supervisão Gráfica:
Antônio Batista Filho
Capa:
Nanche Las Casas
ISBN 85-230-0239-1
Ficha Catalográfica
Elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasília
91-04 341.222
Aubertin, Catherine, org.
Becker, Bertha, colab.
SUMÁRIO
Prefácio de BERTHA BECKER. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Apresentação de CATHERINE AUBERTIN e PHILIPPE LÉNA . . . . . 11
Principais siglas utilizadas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
1- TÂNIA NAVARRO SWAIN. Fronteiras do Paraná: da Coloni-
zação à Migração . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
2 - IGNEZ COSTA BARBOSA FERREIRA. Ceres e Rio Verde: Dois
Momentos da Expansão da Fronteira Agrícola . . . . . . . . . . . . . . . 38
3 - BERTHA I<. BECI(ER. Significância Contemporânea da Frontei-
ra: Uma Interpretação Geopolítica a Partir da Amazônia Brasilei-
ra. ................................................... ’ 60
4 - PHILIPPE LÉNA. Diversidade da Fronteira Agrícola na Amazô-
nia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90
5 - FRANçOIS LÉVÊQUE. Os Processos de Formação e as Dinâmi-
cas das Regiões Pioneiras. O Caso da Costa Atlântica Nicaragüen-
se e da Amazônia Brasileira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130
6 - RODOLPHE DE KONINCK. O Campesinato como Ponta-de-
Lança Territorial do Estado: O Caso da Malásia . . . . . . . . . . . . . 144
7 - MARTIN COY. Desenvolvimento Regional na Periferia Amazô-
nica. Organização do Espaço, Conflitos de Interesses e Programas
de Planejamento dentro de uma Região de “Fronteira”: O Caso de
Rondônia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167
8 - PRISCILA FAULHABER BARBOSA. Tradição e Mudança no
Médio Solimões. Estrutura Social e Movimentos de Base Territo-
rial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IQ5
9 - CATHERINE AUBERTIN. Industrializar as Fronteiras? . . . . . . . 215
10 - LUC J.A. MOUGEOT. Planejamento Hidroelétrico e Reinsta-
lação de Populações na Amazônia: Primeiras Lições de Tucuruí,
Pará . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 231
PREFÁCIO
Um número especial sobre a fronteira parece muito oportuno, não apenas
pelo desafio social e intelectual que constitui o processo contemporâneo de sua
expansão, marcado pela magnitude do ritmo, da escala e dos conflitos, mas
também porque a fronteira é um componente significativo na construção dos
Estados nacionais, e, portanto, na construção do seu futuro. Fato que assume
especial significado no momento político do Brasil.
O significado da fronteira não é dado. Embora represente ela a conquista
de novos espaços, seu significado é reescrito em função do contexto histórico
mundial e das especificidadesdas formaçõessociais em que se desenvolve. Ho-
je, a fronteira só pode ser compreendida como parte dos complexos e contra-
ditórios processos de globalização da economia e da dinâmica específica dos
Estados nacionais. A fronteira não é um espaço independente nem estranho à
sociedade e ao espaço nacionais - ela é deles parte integrante e influi forte-
mente na sua construção. Seu significado hoje não se resume à conquista de
novos territórios em termos demográficos e econômicos concretos; ele extra-
pola as franjas do mapa impulsionadas por pioneiros, identificando-se com o
próprio processo de construção dos Estados nacionais. Para o Estado, repre-
senta a possibilidade de afirmar a posição do País no cenário mundial, simulta-
neamente à afirmação de seu poder; para a sociedade nacional, representa a
possibilidade de mergulhar num espaqo dotado de virtualidade histórica em
termos políticos e de ascensão social. E'mito e realidade; sonho e frustração;
crescimento e sofrimento.
No caso do Brasil, a expansão da fronteira na Amazônia,após o golpe mi-
litar de 1964, se processou.num contexto específico em que o Estado mediou
interesses da grande empresa, principalmente do capital internacional, e sua
concepção de nacionalismo baseada na doutrina da segurança nacional; em
que desenvolvimento - entendido como rápido crescimento econômico a
qualquer preço - e segurança mutuamente se sustentavam.
Se esse modelo afetou o País como um todo, a Amazônia, por suas carac-
terísticas intrínsecas, foi talvez a região do País mais atingida pela intervenção
direta do Estado, no ato de construção do Estado nacional. A nova malha téc-
nico-política, imposta na região, contudo, não se fez por si só - incorporou
tendências de expansão e transformação da sociedade já existentes, em busca
do patrimônio material e ideológico representado pela fronteira que está sendo
construida pelas mãos de milhares de migrantes.
A apropriação do imenso território amazônico contribuiu, assim, a duras
penas, para a consolidação do modelo; não tanto ao nível de ampliar a pro-
dução mas de dar continuidade à construção do Estado nacional segundo a
concepçãovigente, reproduzindo as relações amplas de dominação específicas.
da sociedade brasileira. E, em conseqüência, uma nova Amazônia se delineia,
com novas sociedades locais e novas demandas.
No momento em que um novo horizonte político se abre no País, um dos
vetores para repensar a construção democrática do Estado nacional é, sem dú-
vida, a fronteira, pois que o modo em que é ocupada certamente influirá no seu
9
futuro. Como efetuar uma utilização de seu imenso potencial sem prejuízo do
atendimento às necessidades das populações presentes e futuras? Como asse-
gurar a representatividade dos diferentes grupos sociais que vivem a fronteira?
Numa nova conjuntura de um Estado que gere pressões, como definir uma di-
retriz que atenda a interesses gerais em face das múltiplas demandas sociais e
políticas, evitando que se gerem novas irracionalidades na gestão desse pa-
trimônio?
Eis alguns dos desafios que a sociedade brasileira tem que enfrentar na
construção da fronteira e de seu próprio futuro.
Bertha IC Becker
Rio de Janeiro,22 de agosto de 1986.
10
APRESENTAÇÃO
Raros são hoje em dia os países onde se pode observar um processo signi-
ficativo de ocupação demográfica e econômica de vastas parcelas do território
nacional, como é o caso no Brasil ou na Malásia. Trata-se, porém, em menor
grau, de um fenômeno muito freqüente nos dias atuais na zona intertropical.
Deve-se a este fenômeno notadamente o rápido desaparecimento da floresta
ombrófila, da América do Sul ao sudoeste da Ásia, substituída, no melhor dos
casos, por culturas comerciais permanentes e, na maioria das vezes, por uma
agricultura de queimadas e por uma pecuária muito extensiva, que encontram
no consumo do espaço uma estratégia coerente de otimizaçãoda relação traba-
lho/produto, susceptível de compensar parcialmente a ausência de capitali-
zação técnica. Deve-se notar que o termo “fronteira”, aplicado a este processo,
é, em grande parte, próprio do continente americano. Trata-se com certeza do
termo inglês frontier,popularizado por Turner no século passado, em sua aná-
lise da expansão territorial norte-americana, e estendido para a América Lati-
na. Mas haveria diferenças reais mais além da terminologia? Por que, por
exemplo, o termo “fronteira” quase não é utilizado pelos pesquisadores afri-
canos ou africanistas? Por que este projeto de Cahier desciences Humaines de
1’ORSTOMdedicado à “fronteira” teve pouca repercussão junto àqueles pes-
quisadores? A conquista de novos espaços é, no entanto, um fato permanente
da história africana e não faltam exemplos atuais, quer se trate de frentes pio-
neiras cuja dinâmica é devida à extensão de uma cultura de exportação (cacau
em Gana e na Costa do Marfim, amendoimno Senegal),da expansão territorial
de um grupo étnico (Mossi no Burluna Faso...), ou ainda de uma frente pluriét-
nica de pequenos agricultores (Mayombé); isso sem falar das terras altas de
Madagascar, estudadas por J.P. Raison, e das experiências de colonização diri-
gida, realizadas na Tanzânia, em Moçambique ou no Kênia, entre outros.
Seria a expansão da fronteira um conceito estreitamente ligado ao mito
fundador de uma determinada sociedade, em particular à colonização eu-
ropéia na América Latina, onde a pouca importância dos contingentes de-
mográficos anteriores e a progressão contínua do povoamento de origem eu-
ropéia teriam contribuído para produzir representações culturais específicas?
Não é suficiente que um espaço seja colonizado por um grupo em expan-
são, nem mesmo que o Estado utilize regularmente alguns territórios não ocu-
pados para a instalação de pequenos camponeses ou de empresas agroindus-
triais, para que se possa falar de “fronteira”. Apartir do momento em que o ter-
mo “fronteira” aparece nos discursos oficiais, é difundido pelos meios de co-
municação, utilizado (e mesmo manipulado) para designar a expansão da so-
ciedade nacional e a integraçã0 territorial, ele expressa um fenômeno global de
sociedade e adquire uma dimensão simbólica que ultrapassa o aspecto concre-
to e localizado do fenômeno, mas contribui fortemente para fornecer-lhe suas
principais características. Não estudaremos pois a fronteira como um conjunto
de fenômenos de ocupação de zonas marginais, como já foi feito de maneira
11
notável (l),mas como um componente do patrimônio, tanto material quanto
ideológico, que determina as relações das sociedades com seu espaço. Aleitura
dos artigos aqui reunidos evidencia que o fenômeno deve ser encarado em sua
dimensão nacional, ideológica; com efeito, a fronteira é reputada como de-
vendo oferecer ao país inteiro novas perspectivas (crescimento econômico, so-
luções de problemas sociais, domínio do território num sentido nacionalista,
etc...). Afronteira éentão definidaao mesmo tempo como construção ideológi-
ca, traço cultural e conjunto de fenômenos concretos extremamente diversos
(entre os quais o Único elo é muitas vezes o fato de pertencer a um mesmo cam-
po de representações) onde se encontra a presença do Estado em todos os ní-
veis.
O papel do Estado é particularmente determinante para catalisar e reo-
rientar as expectativas e tensões sociais, desviá-las para uma dimensão hori-
zontal, da qual se espera que ofereça a promoção vertical impossível nas re-
giões econômicas e sociologicamente estabilizadas. Prometendo a todos as
mesmas oportunidades na fronteira, o Estado prega um igualitarismo teórico
que é uma concretização da utopia pioneira, podendo assim desengajar-se dos
conflitos centrais; é por isso que freqüentemente a “fronteira” é apresentada
como um substituto da reforma agrária (2). Graças a esta possibilidade de des-
locar os conflitos para a periferia e de remetê-los à ideologia pioneira, graças
também à sua manipulação contínua do espaço (abertura de estradas, divisões
administrativas, etc...), o Estado assegura sua legitimidade e estende sua sobe-
rania. O fato é que na África é raro que o Estado tenha se encarregado de tal
construção. Deve-se colocar em questão a relativa fraqueza dos Estados e de
seus recursos financeiros que muitas vezes acarretou a entrega das operações
de ocupação de terras novas (concepção, controle, financiamento) a organis-
mos estrangeiros ou internacionais? Trata-se de um efeito do mosaico étnico e
do domínio tradicional do solo: qual espaço, com efeito, poderia ser designado
como “fronteira”, isto é7como espaço a colonizar, sem provocar a reação dos
c coloniza dos"? O Estado, para se manter, deve levar em conta esta pluralida-
de, caso contrário poderia, como ocorre às vezes, ter que se defrontar com mo-
vimentos de secessão. Poder-se-ia igualmente invocar a existência de um cam-
pesinato enraizado, estrutt~rado,em cujo interior as solidariedades aldeãs e a
ligação com a terra fossem fortes e contribuíssem para frear os movimentos de
população, mesmo em zonas densamente povoadas. Onde, até agora, as con-
dições de expansão de uma sociedade em vastos espaços foram melhor reuni-
das do que no continente americano? As diferenças étnicas e técnicas facilita-
ram a negação de formas de ocupação do espaço próprias das populações
autóctones. O massacre dos indios aparece como indissociável da fronteira,
(1)Vide bibliografia ao final de cada artigo - Para publicações estrangeiras vide principalmente:
- Les phénomènes de ‘frontière‘dans les pays tropicaux. Travaux et Mémoires de I‘IHEAL -
n?34, Paris, 1981.
- -
Frontier Expansion in Amazônia - University of Florida Press Gainsville, 1982.
(2) O Plano Nacional de Reforma Agrária, atualmente em difíceis negociações, relança fortemente
o debate. É d e se temer que ainda uma vez, para defender seus interesses, os grandes proprietá-
rios de terra levarão o governo a reativar o mito da fronteira.
12
pois sua expansão se efetua sempre em um espaço ideologicamente considera-
do como vazio, de um ponto de vista demográfico ou econômico, e mesmo jurí-
dico. Prova disto é que a ideologia da fronteira énitidamente menos acentuada
nos países sul-americanos que têm uma forte proporção de população amerín-
dia com a qual foi necessário compor. Mesmo em casos de importantes dispari-
dades técnicas, uma forte organização das populações autóctones pode frear a
expansão da fronteira, como mostram as federações shuar (Peru e Equador). É
contudo uma exceção na bacia amazônica.
Sob formas ligeiramente diferentes, encontra-se um fenômeno de “fron-
teira” na Ásia, particularmente nas Filipinas, na Malásia e na Indonésia. Neste
último país, o processo é antigo e principalmente ligadoà pressão demográfica
desigual, o que não impede de ser utilizado para servir a finalidades menos apa-
rentes. A manipulação pelo Estado do simbolismo da fronteira intervém prin-
cipalmente quando, por razões geopolíticas, econômicas e demográficas, é
conveniente deslocar populações numerosas que é preciso motivar, ou quando
é necessário atrair capitais privados, nacionais ou estrangeiros, ou ainda justi-
ficar e consolidar importantes investimentos públicos.
A maioria dos autores desta obra concorda em denunciar os custos
elevados e a pouca eficácia demográfica e econômica da fronteira, pelo menos
enquanto primeira ocupação de um espaço considerado como vazio. Assim,
apesar de um ritino de integraçã0 de novas terras à agricultura de cerca de
400.000 hectares por ano, o Brasil deverá essencialmente contar com a intensi-
ficação (e bem particularmente com o programa nacional de irrigação) para
aumentar significativamente a produção de cereais. A eficácia política é sem
nenhuma dúvida bem mais importante, mas também muito mais dificilmente
mensurável.
O estudo dos fenômenos de fronteira permite levantar uma série de pro-
blemas ao mesmo tempo teóricos e práticos de alcance mais geral, que se pode-
ria tentar sintetizar do seguinte modo: a acumulação demográfica e a capitali-
zação técnica, social, econôinica e institucional num determinado espaço são
fenômenos históricos complexos e interativos que se desenvolvem em longos
períodos de tempo. A tentativa d e abreviar este processo, transpondo certos
traços das regiões centrais consolidados para a periferia, acarreta uma série de
efeitos perversos que caracterizam as regiões de fronteira. O tempo levado para
atingir certo grau de consolidação representa de algum modo a duração devida
do fenômeno de fronteira. Supondo que seja possível (o que é evidentemente
um non sens), o deslocamento da totalidade da estrutura social (“formas de
controle” segundo a expressão de P. Gourou) para os novos espaços represen-
taria um custo exorbitante. Teremos pois uma estrutura social muito incomple-
ta, muitas vezes limitada ao estrito necessário para a reprodução dos colonos.
Isto explica, aliás, a forte ascendência dos movimentos religiosos e das seitas,
que vêm paliar estas deficiências e são levados a preencher funções que ex-
trapolam amplamente suas atribuições tradicionais.
Em zonas restritas, são possíveis as formas muito estruturadas de ocu-
pação e utilização do espaço. Porém, a importância dos investimentos empe-
nhados (pelo Estado ou por empresas privadas) acarreta em geral um controle
rígido que inclui as técnicas de produção e a comercialização, com afinalidade
13
de assegurar um máximo de rentabilidade. Trata-se de fato de uma proletari-
zação disfarçada. A iniciativa e as perspectivas de evo1ução”sãolimitadas. Afo-
ra estes casos bem específicos, encontram-se todos os níveis de intervenção,
desde a simples canalização ou orientação dos fluxos migratórios até os perí-
metros controlados e dotados de uma assistência sanitária, escolar e técnica de
abrangência variável. Em diversos graus, o Estado deixa às dinâmicas sociais a
tarefa da estruturaçã0 das terras recentemente conquistadas. Se este procedi-
mento apresenta a vantagem de permitir a integraçã0 de fraçöes das camadas
sociais marginalizadas do Centro e a promoção de uma pequena parte dentre
elas, ele acarreta contudo uma vigorosa diferenciação social e econômics, um
grande número de fracassos e a perpétua renovação da fronteira. Todos os au-
tores evocam a violência que reina na fronteira e o esgotamento físico das po-
pulações.
Apesar das superfícies médias por estabelecimento superiores às das zo-
nas de origem, e da pouca importância do capital imobilizado na terra, a fron-
teira não gera o progresso técnico, este último em geral está ligado à substi-
tuição dos agentes. Novas ondas vindas do Centro rechaçam os primeiros colo-
nos, dentre os quais apenas um pequeno número consegue acumular no local e
ter êxito na passagem para um novo estágio tecnológico.
Dada a permanência do fenômeno de fronteira na história do Brasil, ne-
nhum campesinato tradicional pôde desenvolver vínculos estáveis com o es-
paço e realizar no local uma capitalização técnica. Está claro que a crença nu-
ma disponibilidade quase infinita de terra é o corolário de uma agricultura ex-.
tensiva, que degrada o solo e o abandona, uma vez esgotado. Isso está ligado,
também a uma base econômica agrícola pouco diversificada, facilmente deses-
tabilizada frente à demanda de um produto, em geral de exportação, que con-
duz rapidamente a uma monocultura perigosa para a economia local. Neste
contexto, os trabalhadores rurais serão tanto mais sensíveis às propagandas
oficiais e não apresentarão forte resistência para converter suas aspirações em
movimentos horizontais.
Ocorre, pois, renovação permanente de uma categoria de camponeses
sem terras e de minifundiários susceptíveis de alimentar o ciclo das fronteiras;
e isto por meio da manutenção das estruturas fundiárias desiguais, do cresci-
mento demográfico e da pequena capacidade de absorção da indústria. Pois’a
fronteira não pode existir senão a partir de uma outra fronteira: o lugar de ori-
gem dos migrantes, que não se puderam manter em suas terras numa economia
em mutação, ou que buscam melhores cmdições de existência em terras sem-
pre mais afastadas. Uma fronteira dá origem a outra. Este mecanismo de inte-
gração dos novos espaços aos processos centrais não nos parece estar limitado
nem exclusivamente às atividades agrícolas, nem mesmo aos espaços vazios ou
fracamente povoados. Representa ele por isso um quadro estrutural e funcio-
nal determinante, uma espécie de fatalidade? Não estamos certos disto. Ao
contrário, certos caminhos parecem susceptíveis, particularmente no Brasil,
de limitar os efeitosperversos e de tornar o período de consolidação proveitoso
para um maior número de pessoas. Para nos limitarmos às iniciativas campo-
nesas, citaremos a difusão das culturas comerciais de frutificaçã0 rápida (café,
cacau, guaraná ...) que não necessitam de capital nem de conhecimentos técni-
14
cos importantes. Por outro lado, o progresso das organizações camponesas e de
suas reivindicações durante estes últimos anos parecem capazes de condu-
zir a uma significativa mudança de direçã0 das políticas fundiárias e das infra-
estruturas dos poderes públicos.
Através de numerosos estudos de casos e de análises t&ricas, os artigos
aqui apresentados participam deste debate sobre a interpretação da fronteira.
Catherine Aubertin,
economista e pesquisadora do ORSTOM.
Philippe L h a ,
gedgrafo e pesquisador do ORSTOM.
Tradução: Maria L u k a Belloni.
15
PRINCIPAIS SIGLAS UTILIZADAS
AM - Estado do Amazonas
BNH - Banco Nacional de Habitação
BNDES - Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
CEPLAC - Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira
CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológi-
CO
CVRD - Companhia Vale do Rio Doce
DF - Distrito Federal
ELETRONORTE - Centrais Elétricas do Norte do Brasil
EMATER - Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural
EMBRAPA - Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
FINS0 CIAL - Fundo de Investimento Social
FUNAI - Fundação Nacional do Índio
GETAT - Grupo Executivo das Terras do Araguaia-Tocantins
GEBAM - Grupo Executivo das Terras do Baixo Amazonas
GO - Estado de Goiás
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
I CM - Imposto sobre Circulação de Mercadorias
INCRA - Instituto Nacional de Colonização e da Reforma Agrária
ISS - Imposto Sobre Serviços
ITERPA - Instituto de Terras do Pará
MS - Estado do Mato Grosso do Sul
MT - Estado do Mato Grosso
NAEA -Núcleo de Altos Estudos Amazônicos -Universidade Federal do
Pará
NOVACAP - Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil
NUAR - Núcleo Urbano de Apoio Rural
PA - Estado do Pará
PAD - Projeto de Assentamento Dirigido
PIC - Projeto Integrado de Colonização
PIN - Plano de Integraçã0 Nacional
POLAMAZONIA - Programa de Desenvolvimento da Amazônia
POLOCENTRO - Programa de Desenvolvimento dos Cerrados
POLONOROESTE - Programa de Desenvolvimento do Noroeste
PRODIAT - Programa de Desenvolvimento Integrado da Bacia do Araguaia-
Tocantins
RO - Estado de Rondônia
SUCAM - Superintendência de Campanhas de Saúde Pública
SUDAM - Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia
SUDECO - Superintendência de Desenvolvimento da Região Centro-Oeste
FRONTEIRAS DO PARANÁ:
da colonização à migração
TÂNIA NAVARRO SWAIN
Historiadora, Professora da Universidade de Brasília
Departamento de História - UnB
Brasília, DF
RESUMO
Palavras-chave
Migração - colonização - êxodo rural - mecanização - camponês -latifúndio - café
- soja - produção agrícola - agricultura - estrutura agrária - Brasil - Paraná -
Rondônia.
FRONTIÈRE DU PARANÁ:
de la colonisation à la migration
RÉSUMÉ
19
les plus productifs. La structure agraire du Paraná, caractérisée par la présence
du petit paysan va ainsi se transformer de région d’accueil,en zone d’expulsion
créatrice de nouveaux flux migratoires.
Mots-Clés
Migration - colonisation - exode rural - mécanisation - petit paysan - latifundium
-café -soja - production agricole - agriculture -structure agraire - Brésil -Paraná
- Rondônia.
Key Words:
Migration - colonization - rural.exodus - mechanization - small peasant - latifun-
dium -coffee - soya bean -agricultural production -agriculture -agrarian structure
- Brazil - Paraná - Rondônia.
Durante todo o curso da história do Brasil, nada foi mais marcante do que
a presença do latifúndio que, na formação econômica e na criação de um esque-
ma social específico, foi sempre dominante. É desta forma que a existência da
grande propriedade concentrada nas mãos de poucos, no âmbito de uma eco-
nomia agroexportadora, conduz a uma crescente polarização da riqueza gera-
da pelo desenvolvimento econômico. A pequena unidade agrícola vê sua ex-
pansão bloqueada nas regiões ligadas ao espaço dinâmico da produção.
A própria legislação que regulamenta a propriedade da terra (desde 1850
com a lei das terras devolutas) representa um obstáculo intencional ao cresci-
mento do número das pequenas propriedades fundiárias, dentro da Ótica da
dominação e do controle da mão-de-obra. Assim, colocar a terra à venda a
preços excessivos torna-se um entrave à propriedade familiar, especialmente
para os imigrantes. A ocupação precária da terra mantém-se, até os dias de ho-
je, como um dos meios mais eficazes e mais controvertidos para se ter acesso à
20
propriedade. Aviolência para a obtenção dos direitos sobre a terra é constante
na história agrária do Brasil.A falsificação de documentos (grilagem)tem inva-
riavelmente como resultado a morte ou expulsão dos ocupantes precários.
Entretanto, a pequena unidade familiar, produtora de alimentos e de
matérias-primas baratas, pode existir fora das normas que regem a propriedade
da terra, no seio das relações de trabalho instauradas no sistema de latifúndio.
Estas são, na realidade, relações de dominação que se impõem à mão-de-obra
rural, na medida em que o acesso à terra economicamente viável mostra-se ex-
tremamente reduzido.
A apropriação da terra e a dominação da força de trabalho foram os pila-
res da concentração da riqueza no Brasil, a base do poder regional e o amparo
ao Estado oligárquico. Dentro deste contexto, a pequena propriedade repre-
. senta uma ameaça para o sistema estabelecido, tendo em vista o caráter mono-
exportador do setor dinâmico da economia que exige mão-de-obra abundante
a um custo pouco elevado, e novas terras férteis.
A região Sul do Brasil escapara a este esquema, ainda que o latifúndio te-
nha se mantido importante nas florestas e nos prados. Esta região do Sul brasi-
leiro (que engloba o Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul) manteve-se
em situação periférica com relação à produção do café até os anos trinta. Ela
pôde assim diversificar seu leque de atividades e se manter à parte do rígido
quadro de uma sociedade bipolarizada com base na propriedade e na riqueza.
O imigrante fora acolhido como fator de estabilização para o desenvolvimento
das cidades e o aumento das culturas alimentares, ainda insuficientes para sa-
tisfazer à demanda. O crescimento da pequena propriedade nestes três Estados
apresenta, naturalmente, características diversas e próprias a cada um, que não
pretendemos simplificar (Pebayle - 1973);o que nos interessa, aqui, érevelar a
presença significativa da pequena propriedade agrícola, em escala familiar, em
face da preponderância esmagadora do latifúndio no resto do País, e isenta das
barreiras sociais por ele impostas.
Assim, a mão-de-obra imigrante no Sul não foi absorvida pela insaciável
economia cafeeira, Moloch devorador de terras e de homens. Associando a pe-
quena pecuária à agricultura de subsistência, geradora de excedentes que vêm
reforçar o mercado interno e a atividade econômica regional, a pequena pro-
priedade agrícola cria raizes e tradição.
O Paraná é um exemplo marcante do quadro que acaba de ser descrito:
apesar da persistente presença de grandes latifúndios, a pequena propriedade
familiar se instala perto das cidades e vilarejos desde o final do século XIX, a
leste do Estado (Balhana et alii - 1969). Sua presença acentua-se a partir dos
anos 1930-1940, quando a economia cafeeira atinge o Paraná e se estende se-
gundo os planos de colonização dirigida. Esta ocupação, realizada graças à ex-
pansão das pequenas explorações agrícolas, marca definitivamente a estrutura
agrária do Paraná.
Os migrantes nacionais se sucedem aos imigrantes europeus no processo
de ocupação do território, da expansão da pequena propriedade. Nesta época,
o Paraná representa a principal fronteira agrária e agrícola do País, zona de
atração para os migrantes do Estado de São Paulo, Minas Gerais e todo o Nor-
deste, com suas férteis reservas de terras roxas. As colonizações, tanto oficiais
21
quanto privadas, se unem a fim de promover o estabelecimento das novas po-
pulações e de estimular as atividades econômicas. Mas, já entre os anos 1960-
1970, o Estado do Paranávê diminuírem as possibilidades de suafronteira agrí-
cola e, desde os anos setenta, se apresenta como um centro de migração rumo a
outras regiões. Tentaremos analisar aqui este processo no qual o Paraná, em
alguns anos, se transformou de região de acolha, com uma multiplicação do nú-
mero de pequenas propriedades familiares, em zona produtora de migrantes,
com uma redução do número de unidades agrícolas. Conseqüentemente, ob-
servamos em 1980 um aumento das grandes propriedades, configurando, de
fato, uma “relatifundização”, uma volta à preponderância do latifúndio.
1. A OCUPAÇÁ0 DO TERRITolUO
22
propriedade do Paraná, já que enormes concessões de terras são feitas às com-
panhias privadas que se destinam à sua produção. Os imigrantes, distribuídos
em mais de 100 “colônias”, constituem um contrapeso a esta tendência.
O período que marca a passagem da Monarquia à República acentua a
instabilidade das diretivas político-econômicas, de acordo com os movimentos
e composição das “alianças de poder” (Romário Martins, s.d.). Também, em
1880, a colonização enquadrada pelo governo é abandonada e substituída pela
colonização privada, que implantará mais de 40 “colônias” até 1900. Algumas
vão prosperar devido à proximidade de cidades ou vilarejos já estabelecidos,
mas outrasvão se desintegrar e desaparecer, vítimas do isolamento e da falta de
infra-estrutura, comunicação e transporte.
O povoamento tende, deste modo, a se concentrar em torno das cidades
antigas, especialmente a leste do Estado. No início do século XX, dois terços do
território do Paraná ainda se encontram praticamente desertos, com imensas
florestas cobrindo seus solos férteis.
23
cido pela chegada, em 1908, da estrada de ferro at6 a cidade de Ourinhos,
perto da fronteira do Estado de São Paulo. Assim, muitas cidades foram fun-
dadas na região entre 1900 e 1924: Jacarezinho (1900), Cambará (1904),Ban-
deirantes (1921), Cornélio Procópio (1924)...
-
O 100 K m
24
Quanto às concessões feitas, a oeste do território, às companhias privadas
para a exploração do mate e da madeira, sempre sob a condição de assegurar o
povoamento destas zonas, algumas não atingem nem mesmo o estágio’de ex-
ploração, como a Cia. Estrada de Ferro São Paulo, Rio Grande do Sul, Silva Jar-
dim e Miguel Mate. Outras são destinadas à exploração de florestas, mas so-
mente uma exercerá realmente uma ação colonizadora: Meyer Ammes e Cia.
Ltda., em 246.000 ha onde se desenvolverão três colônias.
A partir do começo do século até 1920, registra-se então um crescimento
da população (+ 109,6O/o)sobre o terceiro planalto, mas a ocupação se revela
ainda instável e esparsa.
25
1.4.O povoamento organizado: o norte do ParanÚ
26
1.5. O Paraná, região de acolha
27
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lhana et alii, 1969).Mas aqueles que chegam ao Paraná nos anos cinqüenta ve-
rão suas possibilidades de acesso à propriedade se reduzir: o número de explo-
rações agrícolas que têm recurso à parceria passa de 5% a 20%. As relações de
dominação que caracterizam a estrutura agrária no Brasil se multiplicam então
no Paraná. A mão-de-obra ligada às áreas rurais, assalariada ou não (emprega-
dos permanentes ou temporários, parceiros), dobra nesta época (quadro 2). A
ocupação precária que precede afrente pioneira aumenta sua açã0 sobre a terra,
em resposta à conjuntura menos favorável de acesso à propriedade.
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Assim, em 1960,rapidamente povoado, o Estado do Paraná amplia seu le-
que de atividades, mas concentra sobretudo esforços na expansão da agricultu-
ra. As florestas de pinheiros cedem então seu lugar ao café, milho e feijão. O Pa-
raná se transforma e torna-se o celeiro do Brasil.
30
minar os excedentes de produção e adequar a oferta à demanda. Mas, para o
Paraná, esta política está carregada de conseqüências. Tomaremos em conta
uma: a redução das culturas alimentares que acompanham o café durante toda
sua expansão no território do Paraná.
A cultura do café propicia a plantação de culturas intercalares e pode
mesmo delas necessitar inicialmente, o que permite uma grande diversificação
da produção agrícola. Trata-se de uma contrapartida da extrema dependência
do Estado frente às oscilações das colheitas de café. A eliminação dos cafezais
acarreta, portanto, uma redução das culturas secundárias, de subsistência (mi-
lho, feijão, etc.), cujos excedentes estavam voltados ao abastecimento urbano
ou à exportação para outros estados da Federação.
Desta forma, depois de ter formado, a partir de 1940, uma agricultura ali-
mentar muito importante, seguindo a ocupação do território e a expansão do
café, o Paraná vê diminuir sua produção de alimentos. Daí resultam graves
conseqüências para o abastecimento, não somente de sua população, mas
também.de todo o Brasil, do qual o Estado havia se tornado o grande fornece-
dor de gêneros alimentícios. E nos anos setenta que se farão sentir mais inten-
samente as conseqüências, quando a importação de alimentos começa a se fa-
zer necessária para satisfazer a demanda de certos produtos dos quais o País era -
auto-suficiente há muito tempo, como o feijão e o arroz.
A erradicação do café no Paraná acelera portanto o processo de transfor-
mações econômicas do setor agrícola, que leva a uma maior mecanização e a
mudanças profundas na utilização dos fatores de produção, modificando assim
o perfil da oferta agrícola do Estado.
2.2.A soja acelera a mecanizapîo
Asojafoi a cultura ideal de substituição do café; planta fácil de se cultivar,
inteiramente mecanizável, dotada de vantagens fiscais e do apoio do governo.
Sua cultura se estendeu como um rastilho de pólvora. As verbas do governo
destinadas à produção da soja passaram de 3% em 1969 a 17% em 1975. A su-
perfície do cultivo de soja no Paraná passa de 5.643 ha em 1960 para 3.007.841
ha em 1980. Este desenvolvimento produz uma inversão na relação culturas
permanentes/culturas temporárias. (Em 1960: 48% e 52% respectivamente, e
em 1970: 28% e 72% das superfícies cultivadas.) Em 1980 esta diferença ainda
se acentua: as culturas temporárias ocupam então 76% da superfície valoriza-
da, sendo uma grande parte desta porcentagem representada pela soja.
Com relação àutilização ótima dos fatores terra e capital, a soja éum pro-
duto ideal, tendo em vista a taxa de rentabilidade que ela garante aos investi-
mentos. Do ponto de vista da mão-de-obra, no entanto, sua expansão é negati-
va, geradora do desemprego devido à mecanização acelerada, fortemente esti-
mulada pelo governo.
Com efeito, a orientação do governo tende à modernização da agricultu-
ra, através da mecanização e do aumento da produtividade pela utilização de
inputs, tal como fertilizantes químicos, herbicidas, etc. Os preços mínimos e o
apoio do crédito subvencionado demonstram, aliás, sem rodeios, o desejo do
governo de desenvolver as culturas não-tradicionais de exportação, de acordo
com as oportunidades conjunturais.
31
Durante a implantação dos programab de erradicação do café, mais de
100.000 trabalhadores perderam seu emprego (entre 1962 e 1967);onde a cul-
tura do café empregava 30 pessoas, a da soja não necessitava mais do que uma
(Pebayle, 1978).
Os problemas assim criados com relação à redução da necessidade de
mão-de-obra, fator abundante (desemprego e êxodo rural, empobrecimento
das pequenas propriedades), não são objeto de medidas especiais, com exceção
dos programas de colonização no Centro-Oeste e da região amazônica.
O Paraná se apresenta como um caso típico: de centro de abrigo da grande
massa de migrantes, torna-se centro de expulsão dos trabalhadores rurais. Com
efeito, no decorrer dos anos sessenta, tendo emvista as modificações da políti-
ca agrícola e a restrição das oportunidades de acesso à terra, as migrações em
direção ao Paraná perdem seu dinamismo: dos 3 milhões de migrantes recen-
seados entre 1960 e 1970,apenas 20% se dirigiram ao Paraná, e 40% a São Pau-
lo, grande centro industrial.
32
nas unidades familiares, o número estimado dos bóias-frias representa em
1970 cerca de 88% daquele dos empregados temporários.
Os pequenos pedaços de terra explorados por famílias camponesas so-
frem um processo de empobrecimento: na medida em que sua população au-
menta, a produção destinada ao comércio se reduz. As menores unidades (me-
nos de 20 ha) sofrem as conseqüências e serão os responsáveis pela formação
dos fluxos migJatórios.
O movimento de refluxo dos trabalhadores em direçã0 às pequenas uni-
dades familiares é tão poderoso que as explorações de menos de 100 ha absor-
vem 91% da força de trabalho agrícola do Paraná em 1970 (Quadro 2).
As transformações que atingem a estrutura social do emprego agrario
acompanham os movimentos da economia.
A concentração da propriedade fundiária, sempre perpetuando seu siste-
ma de privilégios, nunca deixou de existir no Paraná. Entretanto, com o avanço
da colonização, notadamente a favor dos pequenos proprietários, seu espaço
relativo se restringe. Em 1960, as explorações de mais de 100 ha dispõem de
54% das terras ocupadas pelas unidades agrícolas; em 1970 esta porcentagem
cai para 47% (Quadro 1).
Em 1970, o número de unidades agrícolas de menos de 100 ha agrupam
96% do total das explorações agrícolas e 53% das superfícies. No entanto,
quando observamos os aspectos conjunturais, como a redução do fluxo mi-
gratório rumo ao Paraná e a incorporação das terras ao processo produtivo,
constatamos que a extensão média das grandes propriedades cresce, ao passo
que a dos pequenos estabelecimentos diminui com uma tendência ao des-
membramento, acompanhado pela concentração da mão-de-obra sobre as pe-
quenas explorações, principalmente aqueles de menos de 10 ha.
Assim, no final dos anos sessenta, as orientações da economia, indireta-
mente dirigidas pelo governo, preparam as partidas do setor rural do Paraná
que se iniciam no começo dos anos setenta rumo a outras regiões. Com o Censo
de 1980,já se pode constatar a diminuição da mão-de-obra agrícola e do núme-
ro de propriedades agrícolas (absoluto e relativo) dentro da classe das explo-
rações de menos de 100 ha (Quadros 1e 2).
Por outro lado, na extremidade oposta da estrutura fundiária, observamos
em 1980 um crescimento do número e da superfície das unidades agrícolas de
mais de 100 ha. Assistimos assim a uma retomada do latifúndio nas terras do
Paraná (Quadro 1).
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são prioritárias. Investimentos, mecanização, utilização de inputs químicos
(cuja maioria é importada) permitem o aumento da produtividade, mas afetam
diretamente o setor da produção alimentar e a demanda da mão-de-obra.
É assim que no final dos anos 70 a população ocupada nas explorações
agrícolas diminui em cerca de 10%.
Trata-se de uma onda migratória rumo a outros Estados e cidades, fugitiva
de uma pobreza crescente, da impossibilidade de concorrência com os grandes
produtores, da falta de crédito, da exigiiidade das terras em face da “liberação”
de mão-de-obra. Ainda que os maiores proprietários recomecem a engajar tra-
balhadores, as migrações continuam, estimuladas pelo governo, a povoar ou-
tras zonas de fronteiras, “prestes a recebê-los” como proclamam os planos de
colonização.
O quadro 2 nos mostra a redução da mão-de-obra ocupada nas explo-
rações agrícolas no Paraná em 1980: é na camada daquelas de menos de 100 ha
que encontramos uma perda nítida de população.
Do ponto de vista da estrutura agrária, a tendência é paralela à da força de
trabalho. O número de propriedades agrícolas, que havia dobrado entre 1960 e
1970, sofre uma redução de 18% entre 1970 e 1980. Aqueles que vêem seu nú-
mero diminuir de forma mais surpreendente pertencem à categoria de menos
de 10 ha e entre 10 e 20 ha ( - 27% para a primeira e - 11% no caso da segun-
da). A superfície diminui na mesma proporção que o número das explorações.
Por outro lado, as explorações de mais de 100 ha sofrem um aumento de 3lo/, e
sua superfície, de 35% entre 1970 e 1980 (Quadro 1).
Entretanto, são as explorações de menos de 100 ha, empobrecidas desde o
final dos anos 60, que são hoje, em 1980,responsáveis por dois terços do valor
de produção na agricultura do Paraná.
35
Grosso onde a colonização privada oferece condições mais favoráveis de insta-
lação, apesar do custo mais elevado das terras.
O objetivo explícito da colonização oficial em Rondônia é o de se estabe-
lecer neste Estado uma estrutura fundiária, com base na pequena propriedade,
a fim de aumentar a produção de alimentos. Na prática, são as colônias que
produzem para a exportação (sobretudo o cacau) que prosperam graças à aju-
da do governo. As tendências atualmente observadas pelos pesquisadores so-
bre as zonas de colonização em Rondônia se apresentam sob dois aspectos: a)
fragmentação dos lotes cedidos pelo governo, tendo em vista o aumento da
onda migratória; b) agrupamento em grandes propriedades dos lotes compra-
dos de pequenos produtores que não podem mais suportar a precariedade da
vida (Coy e Kohlhepp, 1985).
A colonização em Rondônia não criou uma camada média sólida de cam-
poneses. A distribuição de terras pelo governo constitui um pólo de atração
irresistivel para os camponeses pobres de outras regiões, dentre as quais o Pa-
raná. Mas a colonização precária e desordenada que se pratica no início dos
anos oitenta não age senão reproduzindo as tendências afirmadas no resto do
Brasil: o empobrecimento dos pequenos camponeses, uma renovação da domi-
nação dos latifúndios sobre as terras, e uma ajuda sobretudo às culturas de ex-
portação, em detrimento das culturas alimentares.
CONCLUSÃ o
36
vos do governo, apesar do aumento das importações alimentares, que se torna-
ram indispensáveis para satisfazer à demanda interna.
As colônias criadas ein Rondônia, a fim de abrigar os LLnovos pobres” vin-
dos do Paraná, não conseguiram estabilizar e fixar a população migrante tendo
em vista a falta de condições mínimas de sobrevivência e o aumento da onda
migratória.
Desta forma, constatamos que a acão colonizadora no Brasil deixou de
preencher seu papel de ocupação do espaço e de integraçã0 do território: a co-
lonização se tornou uma arma política, utilizada a fim de cortar o nó górdio das
tensões agrárias surgidas em regiões perfeitamente integradas aos circuitos co-
merciais.
A população, agora “excedentária” devido ao jogo de mudanças da políti-
ca agrícola, é constantemente empurrada para terras a serem desmatadas, onde
se reproduzem as condições desfavoráveisàinstalação da propriedade campo-
nesa familiar: justamente esta que, no Paraná, havia tentado frustrar a polari-
zação da estrutura agrária e de seu corolário, violência e dominação.
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37
CERES E RIO VERDE:
Dois Momentos no Processo de
Expansão da Fronteira Agrícola(?‘)
IGNEZ COSTA BARBOSA FERREIRA
Geógrafa, Professora da Universidade de Brasilia
Bras ília, DF
RESUMO
Por “fronteira” entende-se o processo de ocupação de um espaço reputa-
do vazio. O vazio pode ser tanto demográfico como econômico ou jurídico, e o
espaço se encontra tanto na floresta amazônica, como nos cerrados ou em
qualquer lugar do Brasil. A partir de dois estudos de caso, dentro do contexto
físico e histórico, nos propomos a dar testemunho sobre dois momentos da ex-
pansão da fronteira agrícola no Estado de Goiás, e sobre suas conseqüências
atuais no âmbito da organização da produção, do emprego e da urbanização.
Palavras-chave
Fronteiras agrícolas - Colonização - Pequena produção agrícola - Emprego agrícola
- Cidades da Fronteira - Soja - Brasil - Estado de Goiás - Mato Grosso de Goiás.
CERES ET RIO VERDE:
Deux Moments de L’Exppzsion de la Frontière Agricole
dans 1’Etat de Goiás
RÉSUMÉ
On entend communément par “frontière” le processus d’occupation d’un
espace réputé vide. Ce vide peut être démographique, comme économique ou
juridique, et 1’ ?space peut se trouver dans la forêt amazonienne, comme sur les
terres des cerrados, comme en tout lieu du Brésil. A partir de deux études de cas,
au contexte historique et physique différent, on se propose d’apporter un té-
moignage sur deux moments de l’expansion de la frontière agricole dans 1’Etat
de Goiás, et sur leurs conséquences actuelles dans le domaine de l’organisation
de la production, de l’emploi et de l’urbanisation.
Mots-cléS:
Frontières agricoles - Colonisation - Petite production agricole - Emploi agricole -
Villes de la frontière - Soja - Brésil - État de Goiás - Mato Grosso de Goiás.
38
redas vacant. This vacancy can be demographic as well as economicor legal and
the zone can be situated in the Amazonian forest as well as on the lands of the
cerrados, as in any zone of Brazil. On the basis of two case studies conducted
under different historical and physical conditions, one intends to give eviden-
ce on two periods of the expansion of the agricultural frontier in the Goiás state
and on their present consequences concerning the organization of production,
employment and urbanization.
Key words
Agricultural frontiers - Colonization - Small-scale agricultural production -Agricul-
tural employment - Frontier towns - Soya bean - Brazil - Goiás state - Mato Grosso
de Goiás.
INTRODUÇÃO
39
n Municipiosde Ceres e Rio Verde
. l?O km
40
A questão da expansão territorial será então enfocada como um processo
subordinado à lógica do processo de produção, que produz também o seu es-
paço. Com base nestas colocações, poder-se-ia admitir que a expansão se daria
não obrigatoriamente por Breas desocupadas, mas também retomando Breas
com uma história de ocupação implantada em fases anteriores da expansão
territorial. Neste caso, elas passariam a se inserir no processo produtivo de for-
ma diferente da anterior, via uma nova forma de ocupação e ou de apropriação,
que aí se implanta. No território poderemos encontrar as diferentes formas de
avanço da fronteira econômica que representam momentos desse processo.
Em suma, admite-se que a expansão territorial não obrigatoriamente se daria
reproduzindo formas anteriores, que tenderiam a ser superadas pelo próprio
processo.
A ampliação do espaço da produção pressuporia, ainda, a reestruturação
do espaço, o qual está permanentemente se ajustando às necessidades da pro-
dução, não sendo uma forma pronta, acabada.
Nos dias atuais, a problemática da abertura de novos espaços à produção
agrícola é bastante pertinente. Questiona-se, de um lado, os resultados das
“frentes pioneiras” e da colonização em termos de fixação do homem no cam-
po e, de outro, a concentração fundiáriaresultante da tecnificação da produção
agropecuária, nos últimos quinze anos, e o inacesso àterra por grande massa de
trabalhadores rurais, atualmente cum residência urbana.
Com os dois estudos de caso dos municípios goianos de Ceres e de Rio
Verde, pode-se estabelecer uma relação entre essas duas formas de expansão
territorial. Note-se que em ambos os casos observa-se a perda de população ru-
ral e expulsão da mão-de-obra, que vai povoar novas áreas da fronteira ou se
concentrar nas grandes cidades.
41
de mão-de-obraabundante e barata e na abertura do espaço para uma posterior
ocupação pela fronteira econômica.
Outra característica marcante da “frente de expansão” é o uso privado de
terras devolutas, no qual não se configura a propriedade da terra, não assumin-
do a mesma a equivalência de mercadoria. A figura central é o posseiro ou ocu-
pante (Martins, 1975). Quando se passa da produção de excedentes para a pro-
dução de mercadorias, quando se implanta a propriedade privada da terra, que
em vez de ser ocupada é comprada, ter-se-ia a “frente pioneira” (Martins,
1975). A “frente pioneira” se instala como empreendimento econômico, com
empresas imobiliárias, ferroviárias, bancárias, comerciais etc. Com a frente
pioneira se intensifica a ocupação pelo a f l u o de migrantes, loteiam-se terras
devolutas ou não, e os preços das terras sobem vertiginosamente (Waibel,
1958). Como coloca Waibel(1958),o “pioneiro” não só expande o povoamen-
to, mas o intensifica e imprime nas áeras uma nova forma de ocupação e de vi-
da, inclusive introduzindo novas técnicas. No entanto, o sentido de “pioneiro”
pode ser tomado em termos relativos, visto que ele próprio não inova, mas ape-
nas reproduz, na área da frente pioneira, as relações sociais da sociedade a que
pertence, e que se tornam inovações em face da ocupação anterior, de possei-
ros, de indios ou de antigos ocupantes.
Entende-se então a “frente pioneira” como uma modalidade de estender
a fronteira, incorporando novas áreas ao sistema produtivo, onde vão se repro-
duzir as relações sociais que estão nabase do mesmo. Assim sendo, considera-
mos que a questão deve ser colocada não apenas como uma ampliação da área
ocupada, mas como a inserção dessas áreas na divisão de trabalho no espaço,
devendo-se atentar não apenas para a ocupação, mas também para a apro-
priação do espaço, para as relações de trabalho, para a produção e suas ligações
com o mercado, para a especulação, uma vez que a terra se torna mercadoria.
Dentro desta colocação, poderíamos pressupor um fechamento da fronteira
para a “frente de expansão”, não tanto pelo fato de não existirem mais terras a
ocupar, mas, principalmente, pela condição de ocupação com a propriedade da
terra, fato que se impõe à expansão do espaço da produção capitalista. As
Breas onde ainda persiste a ocupação de posseiros e ocupantes se tornam focos
de tensões e conrlitos peia posse da terra.
Na fase atual do processo de expansão da fronteira, não obrigatoriamente
a “frente de expansão” ocorreria, e, dentro da lógica do próprio processo, pode-
se admitir que a mesma tenda asersuperada. O movimento pioneiro permitiu o
surgimento de numerosas propriedades rurais de tamanho médio e pequeno,
exploradas pelo próprio dono ou por parceiros (meeiros) (Waibel, 1958). Leo
Waibel admite que seria o surgimento do pequeno produtor rural (proprietá-
rio) no Brasil (Waibel, 1958). Considera-se, então, a “frente pioneira” como
um empreendimento capitalista, como uma forma de inserção do campono sis-
tema capitalista, especialmente pela condição da propriedade privada da terra
(ainda que seja a pequena propriedade), pelos investimentos em compra de ter-
ra, pela renda que a terra passa a dar aos proprietários absenteístas (que as
arrendam ou vendem), pela produção voltada para o mercado, ainda que não
se verifiquem investimentos de capital na produção e que as relações de traba-
42
lho se configurem como não tipicamente capitalistas (colonato, parceria,
meação, arrendamento em espécie) (Martins, 1975).
O estudo da Frente Pioneira de Goiás na região denominada de Mato
Grosso de Goiás (Fig. 2) se prende ao objetivo de entender o processo de
avanço territorial da produção capitalista, ou seja, a formação do espaço do ca-
pital no Brasil, tomando-se a frente pioneira como um momento nesse proces-
so, como uma das modalidades por meio da qual se integraram novas áreas ao
sistema de produção. Não se pretende explicar especificamente essa frente pio-
neira, mas tomá-la como uma via de análise segundo o objetivo exposto. Faz-se
necessário, no entanto, situá-la no contexto histórico em que se deu. Essafren-
te pioneira está envolvida pelo discurso ideológico da “Marcha para o Oeste”.
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. MINAS GERAIS
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MOOVERDE
Escala. 1. 4 O00000
43
Costuma-se atribuir à mesma a solução de problemas que vão desde segu-
rança nacional (necessidade de ocupar áreas praticamente desocupadas), ao
de reduzir tensões sociais urbanas (revertendo o fluxo migratório que deman-
daria as cidades do Sudeste) e ainda quanto ao abastecimento do mercado
urbano com alimentos.
Pretende-se enfocar a frente pioneira do Mato Grosso de Goiás apenas
no que diz respeito à forma de ocupação que com ela foi implantada, ou seja,a
pequena propriedade mercantil, e o povoamento da área.
Tomamos como marco temporal a década de 40 que éapontada por diver-
sos autores como Wailbel(l958) e Faissol (1952) como sendo a fase áurea da-
quele movimento e ainda porque é quando se oficializa a mesma com a criação
pelo Governo Federal da Colônia Agrícola Nacional de Goiás (CANG), em
1941.
Por essa época, o País se voltava para o desenvolvimento urbano-indus-
trial com a industrialização substitutiva de importações, passando a produção
para o mercado interno a ganhar importância. Firma-se o Sudeste como centro
dinâmico do desenvolvimento nacional. O crescimento demográfico, mu-
danças na agricultura e desagregação da economia de subsistência já expulsa-
vam população do campo, especialmente no Nordeste e em Minas Gerais (Ba-
lann, 1972). Pode-se considerar a existência de correntes migratórias prove-
nientes das regiões menos dinâmicas, que não ofereciam condições de absor-
ver a população resultante do crescimento demográfico, mas também, dentro
do próprio Sudeste, pelas mudanças impostas ao campo pelo desenvolvimento
urbano-industrial. A antiga frente pioneira do café também estaria gerando
seus excedentes populacionais. Segundo Monbeig, a fronteira aberta pelo café
em São Paulo já apresentava esgotamento de solos e sinais de despovoamento,
estando o pequeno proprietário e o sitiante sempre prontos a seguir adiante,
em busca de terras que lhes permitissem uma rentabilidade sem necessidade de
investimentos de que não dispunham. A situação desses pequenos produtores
já era precária; tendo esgotado os seus recursos com a compra da terra, não po-
diam se permitir pagar mão-de-obra e tinham até mesmo que suplementar sua
receita como meeiros nas grandes propriedades (Monbeig, 1952). A fronteira
aberta no norte do Paraná, com a colonização particular por firmas coloniza-
doras, exigia uma certa disponibilidade de capital para a compra da gleba. Para
o migrante sem-recurso restava a alternativa das cidades do Sudeste ou de algu-
ma nova fronteira que se abrisse. As terras abundantes e vazias do Mato Grosso
de Goiás, representadas pelas áreas de mata não ocupadas pela pecuária, que aí
se implantara desde longa data, quando do declini0 da mineração, parecem
alternativa lógica para a instalação dos migrantes sem recursos e que tende-
riam a aí desenvolver lavouras de alimentos para venda de excedente para o
mercado. Não se pode excluir a possibilidade de uma frente de expansão ou
mesmo uma frente pioneira no Mato Grosso de Goiás anterior aos anos 40.
Pode-se admitir ainda o início davalorização da área, antes dos anos qua-
renta, pelos investimentos governamentais em estradas e com a construção de
nova capital do Estado, Goiânia, em 1936, no Mato Grosso de Goiás.
A ligação de Anápolis com o Sudeste por ferrovia, desde 1935, torna
possível a comercialização de produtos, condição indispensável para a implan-
44
tação de ocupação voltada para a economia de mercado. Além da possibilidade
de comercialização, a rentabilidade dos investimentos na compra da terra seria
garantida pela fertilidade dos solos das matas e pela abundância de terras. Por
outro lado, a produção de lavouras tradicionais de alimentos para atender ao
mercado urbano do Sudeste não exigia investimentos, como no caso da lavou-
ra de café. Ainda, o preço menor dessas terras do que das de São Paulo ou do Pa-
raná as torna competitivas, não obstante a distância dos mercados. Tem-se as-
sim um quadro de vantagens locacionais para que se implantasse a frente pio-
neira, com a pequena propriedade de produção para o mercado.
O Estado foi o indutor desse processo, colocando as bases para a pro-
dução voltada para o mercado, através de implantação da infra-estrutura viá-
ria, do loteamento de terras devolutas e com a criação da CANG. Com essas
medidas o Estado aciona o gatilho para estimular o movimento de migrantes
para a região, movimento esse que vai muito além da Colônia oficial. Speridião
Faissol, em seu trabalho “O Mato Grosso de Goiás” (1952) estabelece os limi-
tes da área abrangida pela frente pioneira do Mato Grosso de Goiás que se es-
tende pelo sudoeste e centro-sul de Goiás, a partir de An6polis (Fig. 2).
Segundo o mesmo autor, era uma área de mata e que, portanto, estava des-
prezada pela ocupação antiga da região com a pecuária extensiva. Não se trata-
va, portanto, de região propriamente desocupada, mas escassamente ocupada.
Pelo Censo de 1940 (IBGE, 1940), essa área abrangia um total de 202.000 pes-
soas e com uma densidade média de 4 habitantes por lun2. Essa população era
eminentemente rural (80%) com uma densidade de ocupação da árearural de 7
hab. por lun2 (considerada aqui somente a área total abrangida pelos estabele-
cimentos rurais, propriedades ou não). Nota-se que essa área ocupada pela ati-
vidade agrária era de menos de 50% da área total dos municípios, podendo se
inferir ainda grande quantidade de terras e de matas a desbravar. As cidades,
assim consideradas por serem sedes municipais, sequer atingiam aos 1000 ha-
bitantes, a não ser Goiás (a antiga capital do Estado), Anápolis (o mais impor-
tante centro comercial) e anova capital, Goiânia, recém-construida, mas que já
era a de maior população, com 7000 habitantes. Não apenas pelos totais popu-
lacionais, mas também pelas atividades de comércio e industriais, pode-se con-
cluir pela fragilidade da vida urbana da região. No meio rural dominava a for-
ma de exploração ugropecuáriu (quer pela superfície: 58% da área explorada,
quer pelo número de estabelecimentosnesta modalidade: 71%), com produção
em pequena escala (1)tanto na pecuária como nas lavouras, em seu interior. A
agricultura era praticada sempre em pequena escala, seja nas unidades apenas
de lavouras, seja no interior das fazendas de pecuária. A produção em grande
escala ocorria apenasnas fazendas de pecuária, onde era predominante. Os es-
tabelecimentosde lavouraseram os menores (área média de 42 ha), enquanto a
pecuáriaera produzidanos grandesestabelecimentos (área médiade 586 ha) e a
(1) O Censo do IBCE em 1940 e 1950 classifica a produção em grande escala e pequena escala, se-
gundo o critério de área, tamanho do rebanho e produtividade em relação a diferentes regiões
do País. (Ver recenseamento geral do Brasil, 1940, IBGE.)
45
agropecuária nos médios (120 ha). Produzia-se na região, além do gado, arroz,
feijão, milho e cana-de-açúcar (IBGE, 1940).
É neste quadro que vai se instalar a frente pioneira dos anos 40. Waibel
(1958) se refere ao pioneiro como pequeno lavrador que cultiva terra que ele
mesmo possui, produzindo produtos agrícolas para o mercado e se interessan-
do pelas melhores terras, as de florestas, que os fazendeiros de gado tinham
desprezado. Localizam-se os primeiros, preferencialmente, próximos à estrada
de ferro.
A Colônia Agrícola Nacional de Goiás (CANG)foi instalada a 140 km de
Anápolis, criada por decreto presidencial de fevereiro de 1941. Posteriormente
foi abertauma estrada ligando-a a Anápolis. O decreto de criação da CANG es-
tabelecia a área do lote de 20 a50 ha, que seriam doados a pessoas pobres que se
tornariam posteriormente proprietários, e que receberiam também instrumen-
tos e casas, tendo a produção de lavouras como a principal finalidade. A sede da
Colônia, planejada juntamente com ela, recebeu o nome de Ceres. O projeto
previa ainda que o colono deveria manter uma reserva de 25% de sua área com
’
mata. Isto seria uma inovação no sistema tradicional de roças do brasileiro, que
consistia em derrubar a mata, queimar, plantar lavouras durante algum tempo
e depois mudar-se para outra área de mata e recomeçar o ciclo (Waibel, 1958).
Os estatutos da Colônia pretendiam mudar o sistema de agricultura itinerante
para a agricultura permanente, com a rotação de culturas, tornando a região
uma área de “agricultura moderna” (Faissol, 1953), o que significava mu-
danças de ordem técnica. Tinha a Colônia o objetivo explicitado de colonizar a
área (Faissol, 1952),que, no entanto, já estava sendo colonizada espontanea-
mente. O projeto de colonização esperava ainda fixar os migrantes no
campo.
Independentemente dos resultados da colonização oficial,afrente pionei-
ra, que ultrapassou os limites da CANG, trouxe mudanças à área, tais como:
substituição da lavoura de subsistência pela lavoura comercial; a apropriação
da terra pelo pequeno proprietário e não apenas pelo latifundiário; a inserção
daáreana economia de mercado através da lavoura, uma vez que pela pecuária
já o era; o adensamento populacional com o povoamento do campo e a urbani-
zação,
Com a frente pioneira adensa-se a ocupação do campo e cidades surgem
ou crescem, dada a importância dos centros urbanos para o escoamento das
mercadorias, principalmente em se tratando da pequena produção. Nas levas
de migrantes vinham também comerciantes. A região passa a atrair correntes
migratórias.
Waibel em sua viagem à região em 1947 relata que “de Anápolis os merca-
dores e as pessoas eram levadas de caminhão para o norte e para o oeste, num
raio de cerca de 150 a 200 lun. Aí derrubavam-seas florestas, cultivavam-se as
roças, abriam-se estradas, construíam-se casas e novos povoados surgiam em
lugares que antes não estavam ocupados” (Waibel, 1958).
Os migrantes vinham de Minas Gerais (80%),de São Paulo e Bahia, e com
isso o preço das terras no campo ena cidade crescia extraordinariamente (Wai-
bel, 1958).
Durante e depois da Segunda Grande Guerra, os preços alcançados pelo
46
arroz estimulam sua produção e ele se torna o principal produto da região. O
arroz dá bem em terras recém-desmatadas, e, dessa forma, além dos migrantes,
também os fazendeiros de gado passam a desmatar e plantar arroz (Waibel,
1958). O arroz faz com que a fronteira se estenda, dada a necessidade de novas
áreas para serem desmatadas e incorporadas ao sistema produtivo. A necessi-
dade de baratear os custos de transporte do produto leva a que indústrias de be-
neficiamento de arroz se instalem nas cidades da região.
O arroz além de ser produzido para o mercado, tem o papel de cultura
desbravadora e urbanizadora. A necessidade de mão-de-obra no plantio e na
colheita adensa o campo, enquanto sua produção estimula as instalações co-
merciais e industriais nas cidades. Além do arroz, a frente pioneira produzia o
milho (paraa engorda de suinosvendidos sob forma de banha), o feijão e o café,
segundo produto de exportação daregião, era restrito em área eveio introduzi-
do pelos migrantes paulistas (Faissol, 1952).
Com as lavouras, a produção de gado da região passa a ter uma perspecti-
va de melhora, devido àplantação de pastos nas áreas desmatadas pela lavoura
(Waibel, 1959). Faissol (1952) relataa ocupação com pastos de antigas Breas de
lavouras, onde os solos se tornaram empobrecidos. Já na década de quarenta
observava-se a transformação de grandes áreas de florestas em invernadas, ten-
do se tornado impróprias para o cultivo do arroz. No caso da pequena proprie-
dade, tendo o sistema de cultivo levado ao esgotamento do solo, o produtor era
obrigado a migrar, dado que o tamanho de sua área (menos de 50 ha) não com-
portava a pecuária com as técnicas que empregavam (Faissol, 1952). Nota-se,
então, em plena ocupação da frente pioneira, a tendênciaa curto e médio prazo
de a pecuária vir a dominar sobre a agricultura.
Ao final da década de quarenta a região era a mais importante produtora
de arroz, café, feijão e milho do Estado. O incremento populacional foi da
ordem de 75% na década, estimando-se um total de 350.962 em 1950 (IBGE,
1950).A população urbana quase dobra e a rural aumenta de 71%, absorvendo
80% do crescimento total. A densidade rural atinge 16hab./lun2 e a região con-
tinua sendo eminentemente de ocupação rural (79% do total) (IBGE 1950).
A exploração agropecuária já não tem a primazia de antes, competindo
com as lavouras em número de estabelecimentos, mas ainda detém a maior
proporção de área (49%);continua, no entanto, sendo a produção em pequena
escala. As lavouras têm um grande impulso, quer pelo número de estabeleci-
mentos, que passam a ser de 46% do total da região, quer pela área (210/0),mas
continuam sendo praticadas em pequena escala.A pecuária mantém seu peso re-
lativo na ocupação e continua sendo praticada em grande escala. Quanto às
áreas médias dos estabelecimentos, verifica-se que nas três modalidades houve
ampliação de área, continuando a lavoura a ser praticada nos pequenos estabe-
lecimentos e a pecuária nos grandes. A exploração mista da agropecuária con-
tinua a ser praticada nos médios (IBGE, 1950).
À frente pioneira pode-se atribuir o fato de predominarem em 1950 os es-
tabelecimentos entre 50 e 100 ha, sendo que os abaixo de 100 ha correspon-
diam a 70% dos estabelecimentos. No entanto, a concentração fundiária seve-
rifica, dado que estes 70% ocupavam apenas 17%da área. Metade da superfície
total é ocupada com estabelecimentos de 100 a 1000 ha.
47
2. A PEQUENA PROPRIEDADE E O ESVAZIAMENTO DO CAMPO
Aregião do Mato Grosso de Goiás é, atualmente, segundo dados do IBGE
para 1980,uma área de intenso esvaziamentodo campo e também, de certafor-
ma, de esvaziamento urbano. Com exceção de Anápolis e Goiânia, observa-se,
nas demais cidades, se não o decréscimo absoluto da população urbana, o
decréscimo relativo. Costuma-se relacionar o esvaziamentodo campo àgrande
propriedade, à latifundização e ao desaparecimento da pequena propriedade.
No entanto, na região a questão se coloca de forma diferente. A pequena pro-
priedade que se implantou espontaneamente ou oficialmente persiste, como
também o latifúndio, que existia antes da chegada da frente pioneira. O fato de
a pequena propriedade ser ainda marcante na região permite-nos afastar a
hipótese da latifundização, apenas para explicar o esvaziamento do campo.
Por outro lado, o esvaziamento do campo costuma ser correlativo do cresci-
mento urbano intenso, o que no caso também não ocorre.
O problema se apresenta, então, em termos de esvaziamento do campo
em área de pequena propriedade, como uma primeira colocação, e uma segun-
da seria a questão do não-crescimento urbano, que não será abordada no âm-
bit0 desse trabalho. A implantação da pequena propriedade pelo governo to-
mou de certa maneira o aspecto de uma “reforma” a nível local, com a intro-
dução de uma nova modalidade de apropriação da terra (pelo pequeno pro-
prietário e não apenas o grande), com o adensamento da ocupação em área es-
cassamente ocupada, com a produção agrícola para o mercado (onde antes era
a subsistência e pecuária), prevendo afixação do homem no campo com a pos-
se da terra e com isso absorver excedentes populacionais de outras áreas. Passa-
dos quarenta anos, os resultados permitem questionar a estratégia empregada.
Como unidade de observação e de análises tomamos o município de Ce-
res, por ter sido aí implantada a colonização oficial e assim concentrada a pe-
quena propriedade. Se bem que não tenha sido a área toda do município lotea-
da para a Colônia, é onde ainda se encontra a incidência maior da pequena pro-
priedade (92% do total delas com menos de 100 ha) e especialmente por não
existir aí praticamente a grande propriedade (apenas 3 com mais de 1000 ha).
Em Ceres, os dados censitários de 1980 (FIBGE, 1980) permitem traçar o
seguinte quadro: ns estabe!ecimentns !istadns pelo Censo seriam tndns pro-
priedades, especialmente individuais (98%), o que significa que não haveriam
mais terras de posseiros ou terras devolutas, e que a apropriação por empresas,
cooperativas ou entidades é desprezível (2%).Trata-se, então, da propriedade
privada da terra que se distribui em 1.938 propriedades, sendo 93% das terras
exploradas por proprierarios em suas próprias terras (88%) e em alguns casos
em terras arrendadas ou ocupadas de outro proprietário (5%).
As formas de exploração indireta por posseiro, arrendatário, meeiro ou
parceiro tornam-se bem reduzidas. Quanto à estrutura fundiária, guarda as
marcas da colonização: 52% das unidades da produção correspondem à classe
de tamanho do módulo da Colônia (10 a 20 ha) e o latifúndio é praticamente
inexistente. Não obstante estas características, não se exclui a concentração de
terras que se dá ao nível dos médios estabelecimentos (100 a 1000 ha), os quais
ocupam 45% da área representando apenas 8% do número total dos estabeleci-
mentos.
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49
Note-se ainda a importância do minifúndio (menos de 10 ha).
Quanto ao uso da terra, a pecuária passou a predominar tanto em termos
de área produt'iva ocupada com pastagens como em relação à área agrícola to-
tal ocupada pelos estabelecimentos pecuaristas.
A pecuarização se expressa ainda pelo valor da produção. Em 1980 a pro-
dução animal se equivalia àvegetal e, em 1983, ovalor da produção animal cor-
respondia a quase o total da produção agrícola municipal. O processo da pe-
cuarização atinge inclusive propriedades de menos de 50 ha. Quanto àlavoura,
ébastante disseminada pelos estabelecimentos, trata-se da lavoura temporária
em pequena escala. Dos estabelecimentos que têm lavoura, 72% a fazem em
áreas de menos de 10 ha. A grande lavoura é praticamente inexistente.
O processo de pecuarização já aparece em meados da década de 60 na re-
gião, o que se evidencia pela orientação da agricultura (em termos de valor da
produção) predominantemente voltada para a produção animal. A pecuari-
zação ao nível da pequena propriedade pode ser explicada porque o pequeno
produtor se dedica à produção (leite, ovos, aves, pequenos animais, bicho-da-
seda) que lhe permite o retorno mais rápido e regular do capital aplicado.
O valor obtido com essa produção compete com o valor das lavouras tradicio-
nais de alimentos. Não se constata a penetração de nenhuma das grandes la-
vouras comerciais no município (dados de 1983). Pelo fato de praticamente
não haver ocupação de mão-de-obra assalariada permanente ou temporária,
pode-se inferir a manutenção da estrutura familiar. A residência do produ-
tor é outro dado que pode mostrar o caráter de produção familiar. Nas proprie-
dades de menos de 50 ha o proprietário reside na propriedade rural, de um mo-
do geral. Nas de mais de 100 ha ele mora na cidade próxima ou em outra, assim
como alguns dos proprietários de áreas de mais de 50 ha (FIBGE, 1980).
Não se verificam os investimentos de capital e de trabalho que permitam
admitir níveis de intensidade de produção.
Pode-se concluir que não se trata da produção intensiva em capital nem
de produção que absorva intensamente a mão-de-obra, portanto intensidade
baixa de produção.
Os indices de produtividade corroboram esse aspecto, dado o decréscimo
da produtividade do arroz, e extraordinária redução da do feijão, sendo que o
milho se mantém, em relação a 1960.
Por estas características, pode-se concluir que não esteja havendo investi-
mentos de capitais de forma a alterar a estrutura anterior, montada com base
na pequena propriedade mercantil. A grande lavoura comercial não penetrou
no município. Para explicar esse fato, pode-se admitir a confirmação das hipó-
teses seguintes: a topografia acidentada não atraiu a grande lavoura, pela difi-
culdade de mecanização e, por outro lado, a existência de terras próximas mais
favoráveis. As terras já esgotadas e ou praguejadas demandariam investimen-
tos em insumos, maiores que em outras áreas, que apresentam vantagens loca-
cionais sob esse aspecto. A estrutura fundiária com excessiva fragmentação te-
ria também dificultado o remembramento.
Não havendo, pelo menos até então, a pressão para compra dessas terras,
no sentido de formar grandes propriedades, a estrutura se mantém. No entan-
to, a manutenção dessa forma de ocupação se dá com mudanças no seu conteú-
50
do social e econômico. O pequeno produtor, em muitos casos, já não é mais o
mesmo que comprou ou que recebeu do governo o lote. Por outro lado, a ausên-
cia de sintomas de intensificação permite admitir que não tenham se tornado
pequenos produtores dinâmicos (modernizados). Sobrevive a pequena pro-
priedade, em moldes familiares, segundo algumas estratégias a saber: a pro-
dução de leite para venda aos laticínios ou ao intermediário, que o comerciali-
za informalmente nas cidades próximas; criação de pequenos animais; algu-
mas lavouras e a criação do bicho-da-seda para venda à indústria (de São Pau-
lo), que se constitui na inovação promissora na área. A pecuária que é feita nos
pequenos estabelecimentos, é ela mesma sintoma de esgotamento e de não-
aproveitamento das terras.Aestratégiade sobrevivênciado pequeno produtoré
se tornar assalariado externo dessas indústrias que lhe impõem o tipo de pro-
dução, o preço, a quantidade, que lhe financiam porvezes (como no caso do bi-
cho-da-seda) e dasquaiselepassaa depender. Dessa forma,o pequeno produtor
se torna um assalariado externo da indústria se proletarizando mesmo ainda no
campo. Outra forma de vida desse produtor é alimentando, com sua pequena
produção, o setor informal do abastecimento urbano. Tendo ele próprio se tor-
nado de certa forma assalariado, não tem condições de empregar outros e utili-
za apenas a família.
A estrutura da pequena propriedade sobrevive ainda de forma improduti-
va paralazer ou como investimento de citadinos da área e de fora. A terra como
mercadoria fica estocada à espera de valorização.
O esvaziamento poderia ser explicado por um processo que praticamente
se implantou na época da frente pioneira, e que. se acelerou nos últimos dez
anos.
O processo de esvaziamento já teria se iniciado mesmo quando os saldos
migratórios altamente positivos não permitiam que aparecesse. A mobilidade
escondia o esvaziamento. Como coloca Faissol (1952), já no final da década de
40 as terras ocupadas há mais tempo apresentavam esgotamento e o pequeno
produtor seguia adiante, naregião, em busca de novas áreas a desbravar. De um
lado as condições técnicas não permitiriam a fixação, uma vez que pela quali-
dade dos solos não agiientariam ser trabalhados nos moldes rudimentares em
que se fazia na região, sem nenhum cuidado em preservá-los.
Por outro lado, a cultura desenvolvida, o arroz, que tinha cotação no mer-
cado, era ela própria fator de mobilidade espacial, nos moldes em que era prati-
cada. Instável por sua dependência às oscilações do mercado e móvel por ra-
zões de ordem técnica ela contribuiu para a não fixação de uma forma de ocu-
pação do território.
O tamanho dos lotes aliado às técnicas adotadas foi outro fator de esgo-
tamento, empobrecimento e conseqüente não-fixação da população. O pionei-
ro, com as técnicas que adotava para não esgotar o solo, teria que deixar a terra
em descanso algum tempo. O tamanho do lote não permitia isso.As alternativas
que se colocavam para ele seriam: intensificar a produção com uso de novas
técnicas e com insumos; migrar para áreas mais favoráveis e recomeçar; conti-
nuar com a lavoura com menos produtividade e empobrecer; passar à pecuária,
quando o tamanho da propriedade assim o permitisse. Como a primeira delas
não parece ter ocorrido com as demais a conseqüência seria a migração e o es-
51
vaziamento do campo, pela incapacidade da estrutura em conter a população
que veio com a frente pioneira e mesmo, possivelmente, o crescimento vegeta-
tivo posterior.
Nos moldes técnicos da produção dos pequenos produtores, de um modo
geral, a fixação fica na dependência da capacidade do solo em agüentar a pres-
são da ocupação e da exploração. A monocultura é um agravante dessa si-
tuação.
Não obstante, na década de setenta, a política agrícola do País tivesse
incentivado, via créditos subsidiados, a produção agrícola, o pequeno produtor
pouco ou nada se beneficiou disso, dado que os créditos concedidos se destina-
vam ao custeio (Tabela 2) basicamente, o que pressupõem condições de
investimento. Por outro lado, a assistência técnica évinculada aos projetos de
financiamento, além de que a pesquisa e a tecnologia difundida évoltada para a
intensidade de capital. Assim, o pequeno produtor fica duplamente marginali-
zado.
Especificagão Atividade
Agricultura
CUSTEIO Pecuária
Indústria
I
Agricultura 17
INVESTIMENTO Pecuária 3
Indústria 44
Agricultura 6
Pecuária O
Indústria -
TOTAL Todas as
atividades 100 I 100 I 100
52
3.A GRANDE LAVOURA COMERCIAL E A REESTRUTURAÇÃO DO
ESPAçO: O CASO DE RIO VERDE (GO)
Admite-se que, atualmente, o avanço da forma capitalista no espaço já
não se dê nos moldes e nas proporções das “frentes pioneiras”. Tal fato pode
conduzir à idéia de fechamento da fronteira, considerando-a como algo pron-
to, acabado. Propomos que se tome o conceito de fronteira como algo transitó-
rio, provisório e que tem o seu papel na incorporação de novas áreas ao sistema
produtivo, as quais, como ta1,vãoser modificadas ao longo do tempo, dentro do
processo de produção. Assim, não só a fronteira não significaria uma forma fixa
de ocupação e de estruturaçã0 do espaço, como novas fronteiras poderiam se
abrir, em pontos diferentes do espaço. A colocação da questão da expansão da
fronteira vista apenas em termos de ocupação e, especialmente, de ocupação
de áreas virgens, ou praticamente desocupadas, e ou de terras devolutas, pode
esconder o outro lado da problemática, que seria o de novas formas de ocu-
pação em áreas anteriormente apropriadas (como a das antigas frentes pionei-
ras), ou áreas de antiga ocupação de posseiros e ocupantes, e ainda áreas que,
inseridas na produção de mercado, teriam no seu interior formas não tipica-
mente capitalistas, como meeiros e agregados. Considera-se, então, a possibili-
dade de novas fronteiras se abrirem ao capital pela transformação da ocu-
pação, em termos de apropriação e de exploração, e pela forma como passam a
contribuir para a acumulação capitalista.
Por outro lado, áreas livres poderiam ser apropriadas pelo capital, de for-
ma produtiva ou especulativa, sem necessariamente passarem pela fase de ocu-
pação da frente de expansão ou frente pioneira com-apequena propriedade fa-
miliar. A característica marcante desta nova fase de expansão do capital no es-
paço não seria apenas a transformação da terra emmercadoria Marcam estafase
ainstauraçãodareiidadaterra,doinvestimentonaprodução, daproduçãoespe-
cializada, das mudanças nas relações de produção, a supressão das formas não-
capitalistas de produqão (como a produção de subsistência) e a submissão da
agriculturaà indústria. Pode-se, então, admitir as transformações que vão ocor-
rer nas áreas atingidas por esse processo de mudança e até mesmo considerar
umareestruturação do espaço. Esse processo assume contornos empíricos, a sa-
ber: supressão das formas de produção de subsistência (parceria,meação, arren-
damento em espécie, posseiros etc.) ; expulsão do campo da população ligada a
essas modalidades e conseqüente esvaziamento do campo como local de mora-
dia da mesma; emprego de mão-de-obra móvel, assalariada; transformação do
trabalhador rural em urbanista pelo assalariamento, e conseqüente reforço do
contingente urbano das cidades próximas e dos povoados, que se tornam o lu-
gar de residência e reprodução da força de trabalho; emprego da mecanização;
racionalização da ocupação da mão-de-obra de forma temporária, apenas nas
épocas necessárias e, conseqüentemente, transformação do trabalhador do
campo em trabalhador temporário (bóia-fria ou diarista, empreiteiro);concen-
tração fundiária pela eliminação dos estabelecimentos de posseiros, meeiros e
dos minifúndios, pela valorização das terras, pelo aparecimento da grande em-
presa rural; utilização de insumos industriais, o que liga o meio rural aos cen-
tros industriais; intensificação da produção; racionalização do uso da terra; im-
53
plantação da grande lavoura para a exportação. Destaca-se, nesta fase, o cará-
ter eminentemente urbanizador e esvaziador do campo, enquanto afrente pio-
neira povoava o campo e criava cidades.
Com o estudo de caso, Rio Verde, pretende-se analisar as mudanças que
ocorrem na organização da produção e suas conseqüências na organização do
espaço, com a implantação da grande lavoura comercial. Considera-se que esta
é a nova forma que assume a expansão do capital no campo, reincorporando “
54
lista, migrante com características mais de empresário que de camponês), a
intensificação da produção e ampliação do espaço produtivo.
Pode-se deduzir facilmente as mudanças que se implantariam na região.
Pretende-se traçar os contornos empíricos desse processo de mudança em ter-
mos de estrutura fundiária, emprego, mobilidade populacional e urbanização.
Note-se que no caso de Rio Verde o fato ébem recente, tendo se iniciado nos
meados da década de setenta, mas tomado impulso depois da de 80.
A grande lavoura comercial por suas características demanda grandes ex-
tensões de terra. A soja no município é plantada de 200 a 2000 ha, de um modo
geral, em face do porte dos investidores. Não se trata, no caso, de grandes em-
presas ou do grande capital individual, mas de agricultores do Sul que têm
algum recurso para comprar terras ou arrendar, para comprar máquinas e que
se apóiam nos créditos agrícolas para custear a produção. A cultura da soja
encontrou os espaços livres de que necessitava nas terras ociosas das fazendas
de pecuária, se instalando no distrito onde a pecuária era menos desenvolvida.
A lavoura não vem competir com a pecuária, em termos de área, embora se di-
recione para os campos do topo das chapadas, com topografia suave, que
constituem as pastagens naturais. Dada a racionalidade que comanda esse tipo
de produção, pode-se admitir a tendência à concentração fundiária a níveis de
tamanho médio e grande, inferiores aos dos grandes latifúndios pecuaristas.
Essa tendência se comprova com a comparação da estrutura fundiária do mu-
nicípio entre 1970 (antes da entrada da soja) e em 1980 quando ela começa a se
expandir. Nota-se, entâo, a ampliação do número de estabelecimentos de 200 a
2000 ha, que passaram a deter extensão maior de área, representando (1980)
~ 8 Y da
o área agrícola do município (FIBGE, 1980).Por outro lado, observa-se a
redução do número de estabelecimentos em todas as demais categorias: nos
maiores de 2000 ha e nos menores de 200 ha, com redução também da área ocu-
pada por essas classes de tamanho. Os de mais de 2000 ha têm uma perda de
49.000 ha, área essa que foi desmembrada em estabelecimentos de 200 a 2000
ha. A classe mais afetada foi a dos de menos de 10 ha: minifúndios. De 70 a 80
deixaram de existir 85% dos mesmos, Cujas áreas vão se incorporar a classe dos
de 200 a 2000 ha. Tem-se notícia de que muitos daqueles pequenos proprietá-
rios venderam suas terras e foram comprar outras em regiões mais distantes;
outros foram para a cidade de Rio Verde. Essas mudanças de tamanho dos esta-
belecimentos vêm acompanhadas de outras, como a redução das pequenas la-
vouras de subsistência e da produção de excedentes. Havia, também, outras la-
vouras em 1970: arroz, milho e algodão, praticadas em propriedades grandes e
médias, porém em áreas predominantemente de menos de 100 ha. Em 1980 a
lavoura passa a ser praticada principalmente em áreas de mais de 100 ha, ten-
dendo a se ampliar esse módulo se considerarmos que a área de soja triplicou
de 83 a 85 e que ela se faz em áreas de mais de 200 ha (FIBGE, 1980).Desapare-
ce, em parte, também, a figura do ocupante, e do arrendatário (em espécie).Em
1980 se firma a condição do produtor proprietário (80% dos estabelecimentos)
e surge o arrendatário de glebas médias e grandes (FIBGE, 1980).
Suprimidas as pequenas unidades de produção, de proprietários e de ocu-
pantes ou arrendatários das terras dosgrandes proprietários, com elas saem seus
habitantes. A nova produção requer mão-de-obra assalariada e temporária e
55
TABELA 3 - RIO VERLIE - GO - POPULAÇÃO E OCUPAÇÃO - 1970l1980
Local de
Residência
População Cidade
Vilas
Meio Rural
Total
Atividade
Agropecuária
Oc'JPaÇão Indústria
Comércio
Serviço
Outros
Total
Fonte de Dados - IBGE - Censo demográfico, 1970/1980.
56
da População Economicamente Ativa (PEA).A atividade agrícola é responsá-
vel pela absorção de 42% da PEA total, em 1980 (Tabela 3).
Em 1985 estimativas da prefeitura local admitem cerca de metade da po-
pulação urbana total do município como sendo assalariados temporários do
campo. Essa mobilidade mostra adaptação e subordinação da mão-de-obra ao
mercado de trabalho. Enquanto a lavoura temporária estiver se expandihdo e
não tiver se tornado mais mecanizada, pode ainda ser retida essa população das
cidades locais e povoados. Uma vez que o meio rural passe a ocupar menos pes-
soas, elas tendem a migrar para outras frentes de trabalho ou para cidades
maiores. Note-se que o emprego rural cresceu de 70 para 80.
Pmoados e
Vilse
do Municipio
i-- 1
Proximidades
hlUNICiP10 c-
Municipio
I
57
tagens torna-se economicamente mais viável com o preparo das áreas pelas la-
vouras, nos primeiros anos e depois o plantio de pastos.
Os proprietários pecuaristas arrendam suas terras para “lavoristas”,
obtendo assim o pasto plantado a custos reduzidos.
Por outro lado, o sucesso do empreendimento agrícola os estimulaa faze-
rem lavouras para baratear o custo da formação de pastagens. No caso de Rio
Verde essa tendência se confirma pelo desenvolvimento da pecuária, também
ela modernizada, vindo a superar de muito o valor da produção vegetal em
1983.Acentuando-se, assim, a característica de pecuaristas de épocas anterio-
res na orientação da agricultura.
Pode-se concluir, então, que a lavoura contribuiu para a expansão da pe-
cuária.
A possibilidade de reconversão da lavoura em pecuária deve ser conside-
rada, tendo em vista as facilidades técnicas para tal e pelo fato de que as lavou-
ras são temporárias e submetidas às oscilações da cotação do produto. Sendo a
produção de caráter especulativo, pode se converter no que der maior rentabi-
lidade para o capital. Com a pecuarização a tendência é a menor oferta de em-
pregos temporários.
REFLEXÃO FINAL
A implantação da ocupação pioneira marcou a fase de expansão com am-
pliação de terras (expansão horizontal), objetivando produzir alimentos, ocu-
par o território e povoar o campo, remanejando excedentes populacionais de
outras áreas. Implanta-se especialmente a pequena propriedade para produzir
para o mercado, atraindo mão-de-obra. Questiona-se os resultados da mesma
em termos da sua incapacidade em reter a população que para aí teria migrado
em busca de trabalho e de acesso à terra. Com a grande lavoura comercial
intensifica-se o aproveitamento de áreas já ocupadas, mas pouco exploradas,
intensifica-se a concentração da produção e das terras, produzindo para expor-
tação e para a indústria. Em ambas a participação do Estado é decisiva, seja de
forma direta ou induzida, tendo caráter ideológico de mudança e de reformano
meio rural. Mudanças e reformas essas que tiveram, como conseqüência, facil-
mente comprovável, o esvaziamento do campo e a transformação do trabalha-
dor rural em trabalhador temporário.
Pode-se admitir a hipótese de transitoriedade e de mobilidade dessa nova
fronteira. A persistir a forma atual de organização de produção, o esvaziamen-
to do campo parece irreversível e tende a se acentuar. A urbanização local é a
conseqüência lógica desse processo. Acumula-se nessas cidades e povoados
um contingente de população de baixo nível de vida que pode migrar a qual-
quer momento para cidades maiores. Tem também a urbanização um caráter
instávele deprecáriascondiçõesdevidada população.Por outro lado,esse esto-
que de mão-de-obra abundante e barata pode se constituir em um atrativo à ins-
talação de atividades industriais nessas cidades já de certa forma equipadas pe-
la comercialização dos produtos agrícolas. Caso isso não ocorra, não s Ó o campo
se esvazia, mas também pode-se prever que as pequenas cidades se esvaziem ou
não se dinamizem, constituindo-se em pontos de passagem dos migrantes.
58
BIBLIOGRAFIA
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histórico comparativo, in Balan, Jorge (org.). Centro eperiferia no desenvolvimen-
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WAIBEL, Leo. Capítulos de GeografiaTropical edo Brasil. Rio de Janeiro, IBGE, 1958.
59
SIGNIFICÂNCIA CONTEMPORÂNEAD A FRONTEIRA:
uma interpretaç¿ì0 geopolítica a partir da
Amazônia Brasileira
BERTHA K BECKER
Geógrafa,Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Departamento de Geografia- Cidade Universitária - Ilha do Fundão
2191O Rio de Janeiro,RJ.
RESUMO
Palavras-chave
Fronteira - Geopolítica - Alta-tecnologia - Estado - Amazônia Oriental - Apro-
priação - Mobilidade - Urbanização - Sub-regibes - Resistência.
60
pace et la formation de régions, comprises comme pouvoir local. La résistance
des petits producteurs vise la conquête d’un espace propre, s’effectue sous for-
me de conflits du quotidien et joue un rôle fondamental dans l’orientation du
processus de production de l’espace.
MOtS-Clés
Frontière - Géopolitique - Haute technologie - État - Amazonie orientale -Appro-
priation de l’espace - Mobilité - Urbanization - Régions - Formes de Résistance -
Brésil - Amazonie.
61
curso na era da “alta-tecnologia”, dificultam hoje abusca de soluções alternati-
vas para a consolidação de uma sociedade democrática no Brasil.
Tal dificuldade demonstra também a inoperância do conceito tradicional
da fronteira. Afronteira não pode ser mais pensada exclusivamente como fran-
jas do mapa em cuja imagem se traduzem os limites espaciais, demográficos e
econômicos de uma determinada formação social. Uma nova definição de
fronteira mais abrangente torna-se necessária, capaz de captar sua especifici-
dade - como espaço excepcionalmentedinâmico e contraditório - e arelação
desta com a totalidade de que é parte.
Para tanto há que deslocar a análise da fronteira de seu antigo terreno
empírico, sem que isso signifique afastar-se da história concreta dos lugares.
Entende-se que nossos conceitos são historicamente enraizados, refletem as si-
tuações sociais e políticas envolventes, e a “verdade é uma interpretaçãosigni-
ficativa para o nosso tempo, do mundo social como era, é e será” (Wallerstein,
1979).
Com o objetivo de contribuir para uma nova orientação de pesquisa sobre
a fronteira, este trabalho, a partir de uma prática de pesquisa (1)na Amazônia
brasileira e buscando numa nova geopolítica seu fundamento teórico, visa res-
ponder às questões - Qual a significância da fronteira no final do século XX?
Sob que condições se efetua sua expansão?
Numa primeira seção, partindo do pressuposto de que a produção do es-
paço é um processo não só material como teórico, se discute o processo de pro-
dução intelectual da fronteira no Brasil, e se propõe um novo significado para a
fronteira. As condições gerais de sua expansão como espaço em incorporação
ao espaço social, estatal, e, portanto, não plenamente estruturado são de-
monstradas numa segunda seção. A terceira seção retoma num outro patamar a
questão fundamental no debate sobre a fronteira, sobre o significado teórico e
prático da resistência de pequenos produtores no processo de sua expansão.
(1) Esse trabalho éfruto de pesquisas fundamentadas em trabalho de campo realizadas no âmbito
de um projeto que conta com o apoio da FINEP (Financiadora de Estudos e Projetos), CNPq
(Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnol6gico) e da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, coordenado pelaautorae de queparticipamasprofessorasLia0. Machado e
Mariana P. Miranda.
62
1.1.1.A tese de funcionalidade da fronteira relaciona-se àquestão da per-
manência de formas não-capitalistas na agricultura brasileira num contexto de
intenso crescimento urbano-industrial.
A funcionalidade da agricultura “atrasada” como setor flexível, capaz de
atender aos requisitos do processo de desenvolvimento segundo as exigências
do mercado consumidor (Paiva, 1971; Castro, 1969),foi concebida no âmbito
do pensamento liberal, em contraposição àqueles que consideravam esse setor
atrasado como um sistema sócio-econômico em si ou como um entrave ao de-
senvolvimento.
Foi então retomada pelo pensamento crítico, que a coloca em termos da
análise da acumulação do capital, superando a visão dual: a reprodução das
formas não-capitalistas de produção na agricultura, e por extensão na frontei-
ra, é funcional ao capital na medida ein que o suprem de alimentos e mão-
de-obra baratos; oferecendo condições para o crescimento extensivo da pro-
dução, a fronteira favorece a reprodução dessas formas (Oliveira, 1975),sendo
o excedente mobilizado para alguns autores, sem mudança estrutural ou com
ajustamentos.
Embora varie a ênfase quanto aos fatores determinantes dessa expansão,
há convergência na aceitação de que a expansão da fronteira se fundamenta na
reprodução de formas não-capitalistas de produção.
Para uns, os fatores determinantes daquela expansão são a disponibilida-
de de terras livres e os excedentes de força de trabalho liberados das áreas capi-
talizadas. A fronteira conStitui, assim, uma “válvula de escape” para as tensões
sociais e demográficas produzidas pela expansão capitalista nas áreas povoa-
das, e o Estado intervém para viabilizar o processo de ocupação de áreas novas
favorecendo a reprodução de formas arcaicas, tanto o campesinato na frontei-
ra como o latifúndio nas áreas já povoadas.
Para outros, os parâmetros explicativos seriam a expansão da demanda
.
da produção de alimentos e matérias-primas, expansão efetuada sob a domi-
nação do capital comercial que articula a fronteira mesmo através de formas
não-capitalistas de produção que assumem, assim, novo papel. “Nesse proces-
so, a fronteira pode se constituir no locus privilegiado da recriação da pro-
dução não-capitalista, ou camponesa” (Rego, 1978).
O questionamento àtese da funcionalidade da fronteira deriva de estudos
teóricos e evidências empíricas. Os estudos teóricos argumentam que: A) o
atraso relativo da agricultura - e da fronteira - decorre da sua subordinação
indireta ao capital. Não pode ser explicado pelo crescimento do capital. Não
dos setores não-agrícolas, i.e., do mercado urbano e industrial, mas sim pelas
formas particulares de desenvolvimento do capitalismo no País, derivadas do
desenvolvimento do capitalismo mundial e da divisão internacional do traba-
lho e sua repercussão a nível nacional. B) Tanto a explicação dualista como
funcionalista devem ser rejeitadas, porque obscurecem as contradições desse
desenvolvimento. Não há dualismo, pois as relações não-capitalistas existem
porque são subordinadas ao capital, mas essa subordinação tampouco deve ser
compreendida como funcional, pois que determina contradições específicas e
não umasolução para as contradições do capitalismo no Brasil (S. Silva, 1976).
63
Acresce que o desenvolvimento capitalista transforma o campesinato tra-
dicional, formando uma força de trabalho móvel e uma pequena burguesia ru-
ral que, juntamente com os grandes proprietários, respondem hoje pela pro-
dução agrícola tanto para exportação como para o mercado interno. Não é,
portanto, o campesinato que assegura a produção de alimentos. Segundo o
Censo de 1975, aproximadamente metade do número total de estabelecimen-
tos rurais no País (cerca de 2,5 milhões) tem um valor médio de produção me-
nor do que a metade do salário mínimo legal, e sua contribuição para o valor to-
tal da produção é menor do que 5%. O maior valor da produção no País, basea-
do no uso de insumos industriais e facilidades de crédito, é devido aum pequeno
grupo de estabelecimentos situado no Estado de São Paulo (S.Silva, 1982).
1.1.2. O mito da “terra liberta”. A temática da reprodução camponesa é
também a dos sociólogose antropólogos, embora desenvolvida com outro foco
de preocupações (Musumeci, 1984): o da tendência, a partir de 1970, ao “fe-
chamento” das oportunidades de acesso às terras antes “livres” da Amazônia
para o pequeno produtor devido à maciça implantação de grandes projetos
agropecuários subsidiados pelo Estado, e envolvendo o alastramento de con-
flitos na região (G. Silva, 1982).
A questão do confronto, da disputa pela terra entre posseiros e grileiros,
unidades camponesas e empresas capitalistas, pequena agricultura e grande
pecuária, é tratada como central para entendimento dos processos sociais em
curso na região, e a ênfase no antagonismo fez renascer um estilo de análise
dualista (Musumeci, 1984), esquecendo visões mais processuais anteriores. A
hipótese central de tal modelo é de que o “fechamento” da fronteira envolve o
confronto entre dois modos opostos de pensar e utilizar a terra, um que se arti-
cula em torno da noção de direitos de posse gerados pelo trabalho e outro que
se baseia na noção de propriedade privada que supõe um vínculo jurídico for-
mal e mercantil com a terra, independente do trabalho. Duas lógicas, duas for-
mas de relacionamento opostos, incompatíveis - a primeira constituindo o
núcleo do modo espontâneo de ocupação dos camponeses/posseiros, a segun-
da, o cerne da frente capitalista, simultânea ou posterior.
Numa das formulações do modelo, o dualismo se expressa como produto
ou reflexo de modos de produção distintos: o “modo camponês” de ocupar ter-
ras íivres, expressão cie um universo exterior ao capitaiismo, oposto ao modo
capitalista.
Outra formulação contrasta “frente de expansão” e “frente pioneira’:
ambas produto, direto ou indireto, do processo de expansão capitalistano cam-
po, mas instaurando também formas descontinuas e antagônicas de ocupação
da terra. A “frente de expansão” é a dos camponeses e posseiros. É definida co-
mo faixa intermediária entre a fronteira demográfica (grupos tribais) e a
econômica (frente pioneira capitalista), Cujas terras livres são ocupadas pelos
posseiros para prover a sua subsistência e reprodução através do trabalhofami-
liar; é identificada pela ausência da propriedade privada da terra (Martins,
1975), uma vez que a terra não é por eles concebida como apropriável em si
mesma nem como mercadoria, e sim apenas como instrumento de trabalho
(Wagner e Mourão, 1978; Fase, 1979; Martins, 1981).
A introdução da lógica capitalista de acesso à terra se traduz num proces-
64
so de expropriação do campesinato. Pode haver contudo resistência do campe-
sinato à expropriação e luta para perpetuar as “terras livres”, concepção que
constitui a chave para explicar o significado político dos conflitos de terra na
região.
Uma tendência àincorporação às regras dominantes é, contudo, registra-
da na resistência do campesinato: vários posseiros aderem ao “sistema domi-
nante” de apropriação da terra buscando a consolidação de suas posses e o
acesso à condição de proprietários de terra. Tal adesão é entendida pelos cam-
pesinistas como uma estratégia de adaptação defensiva, mas que provoca uma
“descampesinização” de uma camada de posseiros (Wagner, 1981), diferen-
ciando-os dos verdadeiros camponeses considerados foco da análise bem co-
mo da (eventual) aliança política.
Outros estudiosos, contudo, passam a questionar o “modelo”, indagando
sobre a possível existência de diferenciações e conflitos internos à própria es-
trutura da frente de expansão inicial, prévios portanto ao confronto camponês
- capitalista. Estas indagações (Velho, 1980,1983; Soares, 1981; Musumeci,
1984) levam a relativizar a idéia de uma lógica e um sistema de representações
específicas ao chamado campesinato de fronteira e oposto aos do sistema capi-
talista, na medida em que estudos de caso mostram que no interior de um mes-
mo grupo camponês na fronteira podem existir formas e “lógicas” de ocupação
muito diferentes e até contraditórias, e projetos muito distintos de reforma
agrária; a pensar a própria referência àterra liberta como mito, no sentido de
uma remissão a eventos distanciados no tempo e/ou espaço que visa a enunciar
algo sobre o presente e legitimar posições, estratégias e projetos individuais ou
coletivos, à semelhança das concepções de Turner sobre a fronteira como lo-
tus do capitalismo utópico; a reconhecer o nexo entre o movimento de colo-
nização “espontânea” e processos históricos mais amplos, destacando-se o pa-
pel do capital comercial-usurário na articulação da fronteira, e assim deslocar
o foco da análise da “especificidade” do campesinato.
Em decorrência, a fronteira passa a ser entendida como “espaço onde o
processo de colonização está instituindo novas relações sociais ou redefinin-
do antigas;a noção de fronteira não pressupõe a inexistência de formas prévias
de articulação desses espaços à sociedade, nem um processo de ocupação
contínuo, em bloco, como sugerido pela expressão norte-americana “fronteira
em movimento”. Pressupõe, essencialmente, uma estrutura social dinâmica e
relativamente “em aberto” associadaà ocorrência de movimentos de ocupação
ou reocupação de terras” (Musumeci, 1984).
1.1.3.Simultaneamente, pesquisas geográficas empíricas recuperam uma
rica tradição de estudos sobre frentes pioneiras no Sudeste do País em meados
do século (Monbeig, 1952;Waibel, 1955). Embora nem sempre explicitamen-
te, as análises têm relação com o debate acima referido.
Estudos sobre a expansão das rodovias, a ação das empresas multinacio-
nais e a degradação ambiental, desenvolvidos sob a Ótica da denúncia da ex-
pansão capitalista selvagem apoiada pelo Estado, aproximam-se da posição
que concebe a fronteira como locus do campesinato (Valverde et alii, 1979;
Valverde e Freitas, 1980). Esta posição também transparece, menos explicita-
65
mente, em estudos com ênfase nos problemas ambientais decorrentes do mau
uso da terra (Sternberg, 1981; Peybale-e Koechlin, 1981; Riviere D’Arc, 1978).
Outros estudos aproximam-se da posição que procura relativizar a fron-
teira, na medida em que revelam que a produção da fronteira se destina hoje
não ao mercado metropolitano e sim ao seu próprio abastecimento e/ou ao de
centros do Nordeste brasileiro; que a fronteira se expanda num contexto de
urbanização; que aimigração para afronteira não éespontânea mas sim princi-
palmente induzida pelo Estado e que no processo migratório se diferencia so-
cialmente o campesinato; que a fronteira é sede não só de grandes projetossub-
sidiados pelo Estado como de formas de produção vinculadas às várias frações
do capital, com financiamento hoje não só do capital comercial-usurário como
do capital bancário (Becker, 1982 a, 1983 e 1984 a; Machado, 1983,1984;Mi-
randa, 1982 e 1984).
É a partir desse conjunto de contribuições que se propõe um novo signifi-
cado geopolítico para a fronteira.
66
produção do espaço global/fragmentado. A revolução tecnológica no campo
da eletrônica e da comunicação cria uma nova forma de produção e de organi-
zação social baseada na informação e no conhecimento - a alta-tecnologia -
(Castells, 1984) que passa a reorganizar as bases do modelo de acumulação.
A implantação da nova ordem planetária, por um lado, na medida em que
ainda é viabilizada pela extensão do espaço estatal-político, mantém o papel
político-ideológico do Estado na atualidade. Por outro lado, o fortalecimento
das corporações representa perda de poder para o Estado na medida em que os
países deixam de ser as unidades econômicasda realidade histórica, que o Esta-
do perde o controle sobre a decisão locacional da empresa e sobre o conjunto
do processo produtivo, fato agravado nos Estados subdesenvolvidos pela dívi-
da externa (Becker, 1982 b, 1984 b, 1985).
Na produção do espaço globaVfragmentadosob condições de menor au-
tonomia do Estado, amplia-se assim, sobremaneira, a fragmentação pela
apropriação privada de grandes parcelas que, vinculadas a um espaço transna-
cional, são relativamente autônomas, introduzindo profundas dissociaçõesno
espaço estatal. Em conseqüência, aguça-se a contradição entre os interesses
gerais e os interesses privados, os conflitos com as formas construidas anterio-
res, bem como os movimentos contestatórios dos usuários.
É nesse contexto que se torna possível interpretar a significância da fron-
teira hoje. Fronteira não é sinônimo de terras devolutas, cuja apropriação
econômica éfranqueada a pioneiros. Tampouco se restringe a um processo de
colonização agrícola. Distintivo da situação de fronteira não é o espaço físico
em que se dá, mas o espaço social, político e valorativo que engendra. A hipóte-
se alternativaé que afronteira constitui um espaço em incorporaçãoao espaço
global/fragmentado(Becker, 1984); contém assim os elementos essenciais do
modo de produção dominante e da formação econômica e social em que se si-
tua, mas é um espaço não plenamente estruturado, dinâmico, onde as relações
e as práticas não assumem o grau de cristalização comum em outras cir-
cunstâncias, e portanto gerador de realidades novas e dotado de elevado poten-
cial político. O dado crucial da fronteira 13,pois, a virtualidade histórica que
contém: dependendo da forma de apropriação do espaço, das relações sociais e
dos tipos e interesses dos agentes sociais aí constituídos, ter-se-á a formação de
projetos políticos distintos. Pode ela ser definida como espaço de manobra das
forças sociais, e como o espaço de projeção para o futuro, potencialmentegera-
dor de alternativas.
Em outras palavras, a fronteira é o espaço da expectativa de reprodução
ampliada para praticamente todos os atores em jogo, mas onde há incerteza
quanto a essa reprodução, na medida em que as ações sociais respondem a
orientações políticas e valorativas e não só aos constrangimentos econômicos,
condição que lhe atribui valor dinâmico e estratégico. Questões atinentes à
fronteira podem, assim, ser investigadas em espaços muito distintos das franjas
de pioneiros em matas longínquas.
No caso da Amazônia, dadas a vastidão de seu território, às riquezas que
contém e à ausência de organizações regionais capazes de resistir à nova apro-
priação, a fronteira assume excepcionalvalor estratégico cdmo reserva energé-
tica mundial. Em face da nova estratégia das corporações, representa um es-
67
paço onde é possível exercer o monopólio dos meios de produção - matérias-
primas, mão-de-obra barata e terras; um espaço onde há facilidade para im-
plantar novas estruturas abrindo mercados para a alta-tecnologia; um espaço
onde é possível estender o controle do mercado financeiro mundial.
A potencialidade política contida em tão ampla escala geográfica torna-a
o espaço estratégico por excelência para o Estado que se empenha em sua rá-
pida estruturação e controle para integrá-la no espaço global, ao mesmo tempo
em que, na dimensão ideológica, manipula a preservação da imagem do espaço
alternativo. Para a nação, a via de desenvolvimento trilhada pela fronteira é
símbolo e fato político de primeira grandeza (Becker, 1983 e 1985).
(2) Uma parte da análise desta seçâ0 foi repensada a partir da referência bibliográfica de 1984a.
68
economia, diversificando seus investimentos inclusive pela compra de terras.
O Estado participa amplamente do processo, não só estabelecendo estíinulos
econômicos, como difundindo a ideologia desenvolviinentista que garante a
um tempo a monopolização da economia, a unificação do mercado nacional e
a centralização do poder. “Energia e Transporte” é o slogan que mobiliza a
nação e a estratégia que lança as bases para a produção do espaço global.
É através da extensão de redes que o Estado promove esta produção. Ini-
cialmente, estende-se a rede viária pioneira para articulação do território.
Grandes rodovias de penetração - a Belém-Brasília, e a seguir a Brasília-Acre
- quebram as barreiras geográficas que permitiam a coexistência de mercados
regionais isolados, acompanhando e estimulando o deslocamento de campo-
neses (3) e fazendeiros. Produto e condição da centralização econômica e polí-
tica, a fronteira assume expressão de âmbito nacional, dispondo-se na borda da
zona povoada do conjunto do espaço nacional.
Após a instauração do regime autoritário, em 1964, a ocupação da
Amazônia torna-se meta prioritária, e o Estado viabiliza e subsidia a ocupação
de terras àfrente da expansão pioneira. As ideologias da “marcha para oeste” e
a desenvolvimentista fundem-se no “Programa de Integraçã0 Nacional” (PIN,
1970) indicado como aquele capaz de assegurar simultaneamente o “milagre
brasileiro”, o acesso àterra aos pequenos produtores pobres do Nordeste e ase-
gurança nacional, contra ameaças externas e internas.
A extensão de redes de todo o tipo asseguraa integração do espaço; a rede
rodoviária, ampliada com a implantação de grandes eixos transversais, como a
Transamazônica, Perimetral Norte, Cuiabá-Santarém e Porto Velho-Manaus;
a rede de telecomunicações comandada por satélite que assegura a integração
ideológica, psicossocial, difundindo os valores dos centros dominantes pela
TV e estreitando a comunicação e os contatos por uma rede telefônica que tem
um funcionamento exemplar; a rede urbana, sede das redes de organizações
privadas e de instituições que comandamas operações econômicas e o controle
ideológico.
Na década de 1980, um outro tipo de rede se implanta, a rede hidroelétri-
ca, base da nova política de expansão da fronteira com grandes projetos em que
a intervenção estatal se direciona a investimentos vinculados diretamente à
produção de insumos básicos e à reprodução do capital.
(3) Camponeses são entendidos aqui como produtores de dimensões familiares que têm como um
de seus elementos característicos o trabalho na terra, sem que esse fato implique a presença de
umalógica própria de funcionamento das unidades produtoras e de uma identidade social par-
ticular.
69
convivem formas de organização da produção diversificadas que podem serre-
definidas.
A centralização de terras nas mãos do Estado e sua redistribuição contro-
lada são uma das bases de sua afirmação.
O monopólio da terra, ou a apropriação privada da terra, que não é sinô-
nimo de concentração de terra, nem é exclusiva da fraçäo monopolista do capi-
tal, é condição para gerar a realização futura da renda (S. Silva, 1981), seja
através de sua explotação produtiva seja por sua utilização como meio para
obtenção de subsídios e crédito (Becker, 1976,1980);écondição para reprodu-
zir a subordinação do trabalho ao capital (S.Silva, 1981); étambém condição
para reprodução das classes dirigentes e dominantes (Machado, 1985).Por sua
vez, o controle do processo de distribuição da terraé condição de fortalecimen-
to do aparelho de Estado.
Em face do seu projeto de rápida estruturaçã0 e controle de tão extenso
território, o Estado cria condições para a apropriação privada das terras devo-
lutas por segmentos da sociedade que detêm o capital e a capacidade de organi-
zação; na década de 1970, incentivos fiscais e créditos especiais a baixos juros
são mecanismos seletivos que subsidiam a implantação dominante da empresa
agropecuária capitalista vinculada a firmas nacionais e multinacionais sedia-
das no Sudeste do País. Na decada de 1980,grandes projetos de exploração mi-
neral apropriam-se de vastos territórios e recursos regionais. Mas o Estado
também desenvolve programas reformistas em locais estratégicos, de modo a
atender a interesses de grupos sociais diversos e a cooptar massas de população
rural.
Reproduz-se, assim, na região, o padrão nacional da estrutura fundiária
com forte concentração de terras, sem, contudo, significar que a fronteira este-
ja fechada, uma vez que:
A) Existe ainda grande quantidade de terras livres: a área ocupada pelos
estabelecimentos representava apenas 24% da área total em 1980;
B) Nela não se impõe a existência de uma só forma de apropriacão da ter-
ra, o latifúndio-empresa, verificando-se: a) a apropriação por outros agentes
pertencentes a diversas frações do capital tais como: os colonizadores priva-
dos, o capital comercial-especulativo,a quem o Estado delegou a iniciativa do
povoamento em vastos territórios, que se assemelham a verdadeiros barões
feudais ou chefes de mini-Estados fiéis, contudo, ao governo federal; os fazen-
deiros individuais, pecuaristas por tradição; os colonos e pequenos produtores
agrícolas capitalizados; b) a apropriação direta pelo Estado, vinculadaà suafa-
ce social e à necessidade de legitimação, através: da colonização oficial que, vi-
sando à distribuição social da terra pode ser entendida “como processo oposto
ao da instauração da propriedade privada da terra, i.e., como uma nacionali-
zação da terra” (Velho, 1983); da criação de territórios para sua gestão direta
em áreas de conflitos de terra (GETAT e GEBAM); c) a apropriação conjunta
Estado-empresaprivada, mais recente forma de apropriação do espaço, criando
territórios para exploração econômica do grande capital (Programa Grande
70
Carajás), ou orientados para o sentido distributivo (projetos de colonização no
Mato Grosso) (4).
C) Não está fechada porque as forinas de produção estabelecidas são
passíveis de reestruturação. Há evidências de que as estratégias dos agentes
para adaptação a novas conjunturas são flexíveis, podendo alterar as carac-
terísticas do processo de ocupação. Nas décadas de 1950 e 1960, a fronteira te-
ve um caráter de fronteira agrícola, impulsionada por frações não-monopolis-
tas do capital. Após 1969,passou a dominar a apropriação especulativa de ter-
ras, associada a atividades não-produtivas, efetuada pela fraçâ0 monopolista
do capital. Hoje, no momento da dominância do capital financeiro internacio-
nal e de crise, constata-se que:
- o grande capital parece se retrair na fronteira tendendo a se afirmar seletiva-
mente (Sawyer, 1982); os fazendeiros e pecuaristas, fortemente dependentes
de incentivos e de crédito, ou ampliam seus investimentos com incentivos fis-
cais (os grandes) ou os direcionam para produtos de exportação, acompanhan-
do o deslocamento do crédito;
- fortalece-se a condição da fronteira como locus de pequenos produtores cu-
ja capitalização decorre de acumulação proveniente de múltiplas atividades
distribuídas pelos diversos membros da família, do garimpo à acumulação fi-
nanceira. Num movimento de verdadeira desproletarização, organiza-se hoje
um flwo do ABC paulista para o norte do Mato Grosso, constituído de me-
talúrgicos da indústria automobilística desempregados. Quanto ao camponês
tradicional, tem intrinsecamente uma estratégia de sobrevivência que lhe per-
mite manter o vínculo coma terra através da “polivalência”,i.e., realizando ou-
tras tarefas, sazonal ou eventualmente, numa flexibilidade que é a base do pro-
cesso de expansão da fronteira.
71
capitalista. Amobilidade da força de trabalho é a qualidade de plasticidade que
lhe permite se amoldar às necessidades da produção e que, por isso mesmo, é
condição necessária, senão suficiente, da gênese do capital e indício de seu
crescimento, exprimindo-se na produção da força de trabalho, na sua utili-
zação no processo produtivo e na sua circulação espacial/ocupacional (Gau-
demar, 1976).
Na fronteira, intensifica-se a mobilidade de trabalho. Na tarefa de promo-
ver a ocupação rápida do vasto território, cria-se uma situação de escassez rela-
tiva de mão-de-obra decorrente do fraco povoamento regional e dos interesses
das unidades produtoras que só necessitam de mão-de-obra para certas tarefas
e em períodos de tempo limitados. Acriação de uma força de trabalho dinâmica
e versátil torna-se condição fundamental para a organização do mercado de
trabalho regional. A mobilidade é a solução encontrada para compatibilizar a
contradição entre as necessidades de atrair uma força de trabalho sem lhe con-
ceder legalmente a terra e a necessidade de dar a terra para obter a produção de
alimentos e para atenuar tensões sociais. Étambém uma solução para comple-
mentaçã0 da renda do “camponês” (Becker, 1978; Becker e Machado, 1980;
Becker, 1983).
2.3.2. Amobilidade éfruto das estratégias dos agentes sociais para moldar
o mercado de trabalho regional e de efeitosnão-expirados das ações dos grupos
envolvidos.
A estratégia do Estado para mobilidade sócio-espacial da população está
contida implícita ou explicitamente em todas as suas políticas. Ele promove a
atração em massa de migrantes, condiciona os fluxos migratórios, e as políticas
de terras e de crédito seletivo resultam na apropriação/expropriação e no pro-
cesso de proletarização/diferenciação do campesinato (Becker, 1981). A es-
tratégia da colonização privada é semelhante à do Estado, controlando o fluxo
migratório da origem ao destino e promovendo a mobilidade dos colonos no
interior do território das próprias companhias. A estratégia das unidades pro-
dutoras capitalistas vincula-se às condições de produção e varia com o tipo de
empreendimento, o grau de sua capitalização e Co-m as políticas públicas.
2.3.3. No decorrer do próprio processo migratório altera-se a estrutura
ocupacional da populaqão, diferenciando-se o campesinato com trajetórias di-
versas.
O Nordeste é a principal bacia de mão-de-obra não-qualificada, seguida
da zona Bragantina e do sul de Goiás. Migrantes do Centro-Sul, oriundos de
cidades médias e pequenas e do campo atendem o mercado para mão-de-obra
qualificada em formação e as áreas de colonização, respectivamente. Os dados
de campo demonstram que, para o conjunto de migrantes estudados, na
Amazônia Oriental dominam as trajetórias descendentes (Becker, 1983) (5):
há uma tendência nítida à proletarização, reduzindo-se à metade as categorias
que na origem tinham laços mais estreitos com a terra e crescendo aproporção
de assalariados (28%do total) e polivalentes (16%).Aforma mais nova de tra-
(5) As trajethias foram estabelecidas por um indicador grosseiro: a categoria ocupacional, prede-
finidasegundoo critCriodeacessoBterraeaocapita1,egraudeautonomiadetrabalho (Becker,
1978).
72
balho é a mobilidade rural-urbana, seguida de “gatos” (arregimentadores de
mão-de-obra) e de ofícios urbanos. As formas móveis com trajetória ascenden-
te representam apenas 35% dos casos estudados e referem-se a pequenos pro-
prietários/comerciantes.
Percebe-se que a questão da reprodução do campesinato relaciona-se
intimamente com a mobilidade do trabalho - as contradições contidas nesse
modo de expansão provocam a um tempo a dissolução/reprodução do campe-
sinato. Nesse processo, ele se diferencia socialmente: tende à dissolução o
camponês tradicional, e sua reprodução se dá por duas modalidades, a do semi-
proletário, que paga a renda da terra, e a do pequeno produtor capitalizado.
A “polivalência” configura, portanto, uma tendência à dissolução de re-
lações tradicionais de trabalho, constituindo ao mesmo tempo um limite para
o processo de proletarização.
Dado o caráter não plenamente estruturado da fronteira, da apropriação
pouco produtiva das terras, com investimentos que dependem das facilidades
oferecidas pelo Estado, reduz-se a gama de alternativas de produção e de em-
prego próprias ao capitalismo organizado, e torna as alternativas existentes in-
seguras, atribuindo à mobilidade o caráter de um doloroso processo de apren-
dizado social à custa do desenraizamento e forte instabilidade da população, o
que dificulta sua organização para formular qualquer tipo de reivindicação.
Conclui-se, através da análise desse processo no contexto da fronteira
amazônica, que o próprio conceito de mobilidade deve ser revisto - a mobili-
dade não é um processo linear, no sentido de fatalmente transformar o campe-
sinato em proletariado. A mobilidade é uma tendência ao assalariamento e, ao
mesmo tempo, corresponde a um limite na dissolução do campesinato e das re-
lações de produção tradicionais. É possível hipotetizar que os indivíduos mó-
veis são osnovos atores do mercado de trabalho sem que essa forma polivalen-
te signifique uma transição para a proletarização total. O que se propõe aqui é
o reconhecimento de que é essa forma móvel a que tem resolvido (ou contorna-
do) a contradição capital-trabalho em áreas de capitalismo “inacabado” como
o Brasil, e talvez mesmo a América Latina, alcançando uma intensidade muito
maior na Amazônia dado o seu caráter relativamente desestruturado.
Hoje, uma nova estrutura ocupacional está em implantação nos grandes
projetos vinculados à “alta-tecnologia”. Do que foi observado até o momento,
a segmentaçã0 entre ocupações que processam a informação e aquelas vincula-
das à produção material já se faz sentir nas grandes empresas agropecuárias e
na montagem dos projetos de exploração mineral. Resta investigar os seus efei-
tos sobre a mobilidade.
73
cesso de urbanização que a interdependência entre o aparelho de Estado e so-
ciedade civil é mais expressiva, manifestando-se em duas dimensões: a) ado es-
paço social, global ou urbanização luto sensu, referente a um modo de inte-
gração não só econômica, social e política capaz de mobilizar, extrair e concen-
trar quantidades significantes de produto excedente modelando uma econo-
mia espacialurbanizada (Harvey, 1973),mas tambémdeumaintegraçãoideoló-
gica e cultural, capaz de estender a hegemonia, i.e., uma ordenação no espaço
social; b) a do espaço territorial, correspondente ao crescimento, multipli-
cação e arranjo dos núcleos urbanos; a rede hierarquizada de núcleos tem sua
configuração e desenvolvimento vinculados a um nexo nas relações econômi-
cas, sociais e políticas sob a égide do capitalismo internacional que hoje situa as
cidades do mundo num sistema complexo e numa hierarquia vinculada à nova
divisão internacional do trabalho (Cohen, 1981), e os núcleos urbanos em si
têm uma feição particular vinculada ao seu papel no padrão geral de circulação
do excedente (Harvey, 1973) e como dispositivos espaciais básicos da pro-
dução do espaço social, locus da articulação Estado-sociedade local.
É assim que o projeto de ocupação da fronteira amazônica teve como es-
tratégia deliberada a urbanização, considerada como meio para fomentar o de-
senvolvimento econômico regional: “Ao invés do método clássico de desen-
volvimento de regiões despovoadas baseado na prospecção de recursos natu-
rais e posterior assentamento da população para sua exploração propôs-se, ao
contrário, urbanizar primeiro a região para que, uma vez as pessoas lá instala-
das, realizassem elas mesmas as prospecções e adaptações necessárias para ex-
plorar os recursos” (Racionero, i978).
Tal estratégia expressou-se no “urbanismo rural” do Incra - implantação
de núcleos urbanos ao longo da rodovia Transamazônica e em projetos de co-
lonização oficial entre 1970-74 - considerado necessário para atrair a popu-
lação por oferecer condições devida similares às áreas de origem dos fluxos mi-
gratórios. Em 1974, esta estratégia passou a expressar-se na política seletiva de
pólos de crescimento como o Polamazônia quando se destinou 42% dos recur-
sos para a Amazônia à infra-estrutura econômica.
Daí verificar-se na fronteira a urbanização em suas múitiplas formas, des-
de o crescimento explosivo de cidades velhas e novas à multiplicação de nú-
cleos e povoados fortemente instáveis; os núcleos urbanos têm papel funda-
mental na incorporação da fronteira ao espaço global.
2.4.1. Os núcleos urbanos são o locus onde se concentram e onde circu-
lam o capital, a informação e aforça de trabalho. Dado o caráter não-estrutura-
do da fronteira, com apropriação extensa e pouco produtiva da terra e avanços
irregulares das frentes, os estoques econômicos são descontinuos e pouco den-
sos enquanto os fluxos são muito amplos. É a circulação que comanda a organi-
zação de uma rede indefinida de núcleos fracamente conectados, dotados de
serviços precários, que crescem rapidamente em número e em concentração
populacional, principalmente como base da organização do mercado de traba-
lho; neles se processa a mudança nas relações sociais de produção, a concen-
tração e redistribuição da força de trabalho que deve estar disponível, móvel,
mas localizada em pontos do território.
Quanto menores os núcleos, mais exclusiva sua função de base de circu-
74
lação da mão-de-obra, mais precários os equipamentos e menor o seu tempo de
permanência, o que lhes atribui o caráter dominante de espaços de reprodução.
É o caso dos povoados, primeiro elo na grande cadeia de extraçã0 e mobili-
zação do produto excedente para as grandes metrópoles nacionais e interna-
cionais.
Onde as operações produtivas se adensam as funções e a estrutura urbana
são menos simplificadas. Apartir de um certo limiar, osnúcleos oferecem opor-
tunidades de emprego no baixo terciario e passam aatuar como mercado para o
pequeno comércio local e para a organização da produção regional de alimen-
tos, possibilitando novas fontes de acumulação. Assim, se o núcleo urbano é a
base da reprodução da força de trabalho que, uma vez liberada, dele necessita
para sobreviver, ele também estimula a permanência e a diferenciação do cam-
pesinato, limitando, portanto, a mobilidade. Esse crescimento incipiente mar-
ca um limiar no processo de urbanização, quebrando o caráter dominante do
núcleo como espaço de reprodução (Becker, 1985 a).
2.4.2. O s núcleos são o locus da açã0 político-ideológica do Estado, sede
do aparelho de Estado local, da Igreja e grupos hegemônicos da fração não-mo-
nopolista em formação na nova sociedade local, bem como da “preparação” da
população para o seu papel na sociedade, através da veiculaçã0 de valores do-
minantes e de sua adequação ocupacional. Neles se efetua a (re)socialização
dos imigrantes, cooptados principalmente através do comércio que os induza a
desejar e a consumir bens, serviços e informações de todos os tipos; neles se
transformam os indivíduos em cidadãos do Estado, obtendo-se o consentimen-
to ativo dos governandos, e assim possibilitando a criação da “teia” da hegemo-
nia (Machado, 1983 e 1984). Sustenta também a imagem ideológica da frontei-
ra como espaço onde se tem acesso àterra, oferecendo possibilidade de apro-
priação de um lote urbano e assim constituindo verdadeiro regulador das ten-
sões advindas dos movimentos de maior ou menor apropriação da terra pelo
grande capital.
A circulação, através das rodovias, e as condições econômicas e políticas
locais comandam assim o dinamismo dos núcleos e a rápida organização da re-
de. Entre 1970 e 1980 a população urbana da Amazônia Oriental cresceu de
1.652.688 para 2.720.140, i.e., passou de 36% para 43% da população total, e is-
to sem considerar os núcleos pioneiros não computados como urbanos nas es-
tatísticas.
Quatro movimentos podem ser identificados quanto ao crescimento
urbano na década 1970-80 (Tabela 1):A) a expansão-consolidação de centros
regionais e locais que constituem a base de operações produtivas de frentes ao
grupo das rodovias Belém-Brasília,Transamazônica e Cuiabá-Portovelho, des-
tacando-se a concentração de cidades da Belém-Brasília; B) a expansão-con-
centraçã0 nas capitais estaduais, principalmente a de Belém; C) a reprodução
de povoados e vilas dispersas, vinculados àmobilidade do trabalho que, finda a
frente de trabalho, se retraem ou extinguem, reaparecendo junto a novas fren-
tes; D) a retração de centros tradicionais vinculados à circulação fluvial.
Na década de 1980, acentua-se um novo movimento na urbanização da
fronteira: o crescimento das “cidades das companhias’’ que, já presentes nas
75
grandes agropecuárias, são agora implantadas nos grandes projetos de explo-
ração mineral.
1.000 e +
500 - 999 Belém Manaus
(1.000 hab.)
20 - 49
I Boa Vista
Municípios
Tucuruí
Altamira Santa Inês
f
l-.
---
:-;
- d-..:....-..-A D,,,, A r . P-Arnnn
LuiiLcikau uu tuasuaia uaiia uv u a i y a a
Marabá Ji-Paraná
FONTE: Dados organizados pela geógrafa Olga Buarque de Lima e por ela gentilmente cedidos, se-
gundo o Censo Demográfico de 1970 e 1980.
76
A rede urbana desenvolvida por incentivo estatal ao longo das rodovias
configurou gigantesco arco em torno da Amazônia; essa configuração altera-se
hoje pela implantação das franjas urbanas avançadas das cidades das compa-
nhias, por iniciativa do capital transacional. Assim, no conjunto de núcleos
urbanos da Amazônia] distinguem-se um papel e uma configuração sub-regio-
nais diferenciados. Tal diferenciação corresponde a espaços de atuação domi-
nante de determinados atores, com formas de produção, organização do mer-
cado de trabalho e relações sociais próprias, onde é diferente o peso da açã0 go-
vernamental. Correspondendo a escalas diferentes] tais espaços compõem ver-
dadeiros “circuitos” relativamente independentes, mas obviamente com pon-
tos de relacionamento entre si.
Com base nesses “circuitos” é possível identificar alguns modelos de
urbanização na Amazônia Oriental e Meridional:
A - a urbanização decorrente da iniciativa estafál de organização da re-
de urbana para integração da-fronteira ao espaço global. Ela se desenvolve em
duas formas: a) a urbanização dirigida das áreas de colonização governamen-
tal (Transamazônica e Rondônia) e privada (norte de Mato Grosso), baseada
num sistema de núcleos urbano-rurais hierarquizados em torno de um pólo, a
rurópolis; b) a urbanização das áreas de povoamento subespontâneo, sob ação
apenas indutora do Estado (rodovia] subsídios e créditos a fazendeiros e em-
presas na Amazônia Oriental), cuja rede se apresenta segmentada em centros
regionais desenvolvidos por incentivo estatal, e povoados e vilas destinados à
circulação da mão-de-obra;
B - a urbanização vinculada à circulação da força de trabalho; existindo
quase que exclusivamente como residência e mercado alternativo de trabalho
para assalariados temporários e camponeses pobres, destituídos de serviços e
de duração efêmera, os povoados e vilas constituem em si um “circuito”,no ca-
so o circuito informal da rede formal de cidades;
C - as franjas urbanas dos grandes projetos das corporações transacio-
nais vinculados à exploração de recursos com alta-tecnologia. Localizados em
áreas isoladas, são relativamente independentes da vida regional e local, e sua
auto-suficiência opera numa base urbana que os comunica diretamente com o
exterior através do computador e do avião, abriga as instalações da empresa, e
constitui residência do pessoal técnico numeroso e trabalhadores permanen-
tes e sede de atendimento da massa de trabalhadores temporários;
D - a urbanização vinculada de formas de organização tradicional, onde
se preservou o padrão de um centro regional comandando uma rede de povoa-
dos numa artéria fluvial.
É assim que, através da multiplicação de núcleos urbanos, não apenas se
ordena o território mas se estabelece a nova ordem do espaço social. Se o nú-
cleo urbano tem sido o mediador-chave para a estruturação da fronteira, viabi-
lizando a acumulação e a imposição da hegemonia e permitindo contornar as
contradições inerentes ao processo como sustentáculo ideológico da fronteira,
hoje, esse papel vem sendo ameaçado] na medida em que se torna foco de
intensos conflitos decorrentes do excedente da população móvel não-absorvi-
do e das lutas entre hegemonias tradicionais e novas que aí se localizam.
77
2.5. A fragmentação do espaço e a formação de regiões
78
79
80
conjunto produzem uma nova divisão territorial, paralela e conflitante com a
divisão oficial, com poder equivalente mas não oficializada e portanto despro-
vida dos instrumentos político-institucionais que garantam a representativida-
de da população.
O espaço preexistente é assim reconstituído em conjuntos homogêneos/
fragmentados identificáveis em várias escalas.
Um primeiro conjunto homogêneo/fragmentado é identificado na escala
nacional-regional, representado pela criação da Amazônia Legal. A homoge-
neidade regional C fragmentada em dois conjuntos homogêneos sub-regionais:
Amazônia Oriental, onde é intensa a açã0 do aparelho de Estado, e Amazônia
Meridional (norte de Mato Grosso) onde é forte a iniciativa privada. Por sua
vez, sociedades locais diversas fragmentam essas unidades sub-regionais dis-
tinguindo-se: I) o território de ocupação induzida pela rodovia Belém-Brasília
e pelo crédito para pecuária, o primeiro a ser ocupado, onde dominam fazen-
deiros individuais e pequenos produtores, parte dos quais constitui força de
trabalho móvel para os fazendeiros; II) o território de ocupação dinamizada
por incentivos fiscais, de dominância da grande empresa agropecuária, com
trabalho assalariado, no sul do Pará e no quadrante nordeste do Mato Grosso;
III) o território de ocupação dirikda pela colonização oficial da Transamazô-
nica e Rondônia onde dominam colonos com trabalho familiar; IV) os enclaves
de ocupação tradicional onde latifundiários tradicionais, posseiros e fazendei-
ros disputam a terra, e a gestão do governo central passou a ser direta (Getat);
V) o território da colonização particular, na órbita da rodovia Cuiabá-San-
tarém, na verdade territórios, dada a variedade dos colonizadores em termos
de grau de capitalização, e dei controle e organização que exercem (Becker,
1981).
Hoje, uma nova malha se justapõe ou superpõe às anteriores, ampliando a
fragmentação da fronteira - a malha dos imensos territórios das empresas
agropecuárias e grandes prajetos de exploração mineral, extensões locais de
conjuntos de escala nacional e/ou planetária em que a conexão entre compo-
nentes do conjunto é maior do que as conexões com o ambiente imediato, fren-
te avançada da nova fronteira que se delineia para o século M I .
3. A RESISTÉNCIA DOS USUÁRIOS - UM PODER LOCAL?
A prática da luta política representada pela multiplicação de movimentos
de protesto organizados em bases territoriais e reivindicando contra-espaços
evidencia a importância do lado prático do processo de produção do espaço so-
cial e coloca questões quanto a essa construção teórica.
Rompe-se a passividade dos usuários do espaço. Significará esse rompi-
mento um escape à ordem imposta pelo espaço social, de ampla escala? Terá a
escalalocal capacidade de um comportamento aleatório, e portanto virtualida-
de para gerar via política alternativa? (Becker, 1985 b)
Os avanços da física teórica e da mecânica quântica quanto à complexida-
de do nível microscópico, evidenciando a presença de sistemas estranhos, es-
truturas dissipativas, cuja evolução é tal que rompe a conservação dos elemen-
tos constitutivos do sistema mais amplo, levam a interpretar o crescimento
irreversível como expressão do crescimento da desordem molecular e do efeito
81
de uma evolução de sistemas para estados de probabilidade. Isto é, contraria-se
a noção de uma irreversibilidade linear do crescimento, na medida em que pro-
cessos na escala micro influem no seu redirecionamento; tais propriedades de-
vem ser também inerentes ao corpo social, embora a ciência social não tenha
ainda incorporado essas descobertas, empobrecendo sua análise (Gaudemar,
1984).
A construção teórica sobre a produção do espaço em sua abrangência re-
conhece as contradições e conflitos inerentes à produção do espaço social; no
entanto a abstração teórica não dá conta das especificidades com que as con-
tradições se manifestam nem da variedade dos resultados alcançados, i.e., não
dá conta das sínteses, das novas situações geradas. Em outras palavras, não
prevê o imponderável, a incerteza decorrente de especificidades no corpo so-
cial que correspondem a processos em curso em outras dimensões e escalas,
por vezes contraditórios com os processos dominantes na escala global e que
nele influem.
A análise de conflitos sociais localizados torna-se necessária. Recoloca-
se, assim, a questão da dimensão territorial como poder local específico, agora
sob o ângulo da resistência coletiva organizada em base territorial local e de
sua possível influência no direcionamento do processo de produção do espaço
social.
A experiência de pesquisa na fronteira permite hipotetizar que a resistên-
cia de pequenos produtores não emana da defesa de um modo de produção ou
uma lógica próprios tal como concebido peloscampesinistas, mas sim de seude-
sejo de conquistar um espaço na ordem dominante e que essa resistência tem
um papel influente na produção’do espaço social. Esse papel não se exerce ape-
nas em conflitos deflagrados e lutas organizadas por problemas específicos -
principalmente a disputa pela terra - em tempos determinados, mas sim
também em conflitos embutidos no quotidiano, na cadeia de ações e reações
que compõem as relações sociais e forjam as regiões. Nesses movimentos, a po-
tencialidade política da fronteira toma corpo. E, embora essas duas formas de
ação ocorram em toda a fronteira, são dominantes em certos contextos sociais
localizados, respectivamente a Amazônia Oriental e Rondônia, exemplifica-
dos a seguir.
3.1. Formas de resistincia na Amazônia Oriental
Situada estrategicamente no contato entre os centros dinâmicos do Cen-
tro-Sul, a bacia de mão-de-obra do Nordeste e a fronteira, a Amazônia Oriental
foi a primeira área a ser povoada na expansão recente da fronteira, tendo como
eixo de penetração a rodovia Belém-Brasilia. Compreende hoje o sul e leste do
Estado do Pará, o norte de Goiás e o oeste do Maranhão.
Aí, o Estado, por meio de subsídios e créditos, privilegiou nitidamente a
acumulação de fazendeiros individuais, empresas de grupos econômicos e, ho-
je, grandes projetos de mineração. Para tanto, intensa mobilidade da força de
trabalho foi estimulada.
Embora sejam numerosos e variados os conflitos na área, em todas as es-
calas e entre todos os atores, a mobilidade do trabalho constitui a principal raiz
dos conflitos e movimentos de resistência. A mobilidade em si do camponês-
82
83
peão é uma forma pacífica de resistência do campesinato à sua dissolução, da
mesma forma que a mobilidade de membros de família. A resistência pacífica
como estratégia de sobrevivência é, pois, um componente importante na forma
de organização do mercado de trabalho local.
No processo de expropriação contínua que intensifica a mobilidade, os
migrantes se politizam, gerando formas de resistência menos pacífica, com as-
similação de táticas de defesa e ataque: a invasão e aluta armada. O grau e afor-
ma de resistência variam segundo: a) renda diferencial da terra, ocorrendo em
áreas mais valorizadas por acessibilidade às estradas e núcleos urbanos e por
maior riqueza do solo e subsolo;b) a herança histórica e cultural do povoamen-
to, que influi no aprendizado da população.
A invasão organizada se processa em terras de empresas, de fazendeiros,
em terras devolutas e em terras das populações locais preexistentes - os indios
e os latifundiários tradicionais. Além do que, invadem-se as áreas urbanas re-
servadas pelo Estado para expansão da cidade.
Se inicialmente o Estado tira partido das invasões, transferindo para apo-
pulaçã0 o ônus da abertura de picadas e lotes nas áreas destinadas à coloni-
zação, e utilizando-as como forma de desagregação do latifúndio tradicional,
logo elas se convertem em um fenômeno não-controlado.
Dada a estrutura da sociedade local, a reação de fazendeiros e empresá-
rios é violenta, conflagrando-se a luta armada, localizada principalmente em
torno da cidade de Marabá, entrocamento de rios e estradas, dotada de grandes
riquezas minerais, onde fazendeiros, empresários, colonos, posseiros e o go-
verno central se defrontam, e onde há uma tradição de luta herdada de uma
guerrilha dissipada nos anos 1970.
Esses movimentos influem no processo através da mobilizaÇã0 de confli-
tos entre segmentos da sociedade civil e política, inclusive entre camponeses e
assalariados. Aresistência à expropriação e a defesa de invasõesvêm sendo for-
talecidas com o apoio da Igreja Católica, acentuando as relações contraditórias
desta com a política econômica do Estado que privilegia a empresa, emborano
plano político possa haver coincidência de pontos de vista em torno da ideolo-
gia do trabalho orgânico, presente tanto na reivindicação da justiça social da
Igreja como nos projetos da colonização para legitimaçã0 do Estado.
Se a resistência de camponeses e trabaihadores da Amazônia Orientai
certamente influiu na opinião pública a favor da abertura política e da reforma
agrária, as condições da estrutura social local se manifestam em aguda repres-
são que tem como resultado um grande número de mortes.
84
um Estado da Federação, produção efetivada numa estreita complementarida-
de entre a iniciativa estatal e as mãos de milhares de migrantes cuja iniciativa é
hoje, ao contrário da Amazônia Oriental, dominante. Por razões geopolíticas
de ordem externa e interna, cuja análise escapa ao interesse desse trabalho, o
governo federal passa nessa ocasião a dirigir e executar o processo de povoa-
mento do então território (Becker, 1985 c).
Aafirmação da hegemoniase fundamentou na ideologia da segurançana-
cional e se apoiou na imagem do eldorado onde terras férteis são acessíveis à
população. A estratégia utilizada de distribuição controlada de terras baseou-
se em dois instrumentos, a consolidação da rodovia que articula Rondônia a
Brasília e ao Centro-Sul(1968), que canalizou o fluxo migratório de pequenos
produtores de café expropriados de áreas que foram fronteira na década de
1940,e a apropriação das terras devolutas do território e sua distribuição em
projetos de colonização oficial, de grande efeito-demonstração: um pequeno
número de colonos foi assentado com toda a assistência do Estado, atraindo
grande massa de população que “espontaneamente” se assenta com suas pró-
prias mãos, tendo depois sua situação regularizada. A pressão popular foi tal
que, em contrapartida, o Estado se adaptou recorrendo à criação de novos pro-
jetos de colonização, novas escalas de gestão e formas novas de assentamento,
cada vez em menores lotes, com menor investimento estatal, e sempre a rebo-
que do povoamento, apenas retificando a ocupação.
Essa estratégia foi bem-sucedida em termos da ocupação rápida do ter-
ritório; entre 1970-1984a população cresceu de 11.064para 888.430habitan-
tes. Nos últimos anos, contudo, um efeito boomerang se faz sentir: o afluxo po-
pulacional excedeu de muito a capacidade de controle estatal, verificando-se
as invasões de terras públicas e particulares com fortes conflitos.
A resistência dos pequenos produtores se manifesta, assim, sob duas for-
mas: A) na pressão sistemática representada pelo povoamento espontâneo/in-
duzido no âmbito da estratégia e do controle do Estado, obrigando-o a alterar
gradativamente as formas de assentamento; B) nos conflitos gerados pelo po-
voamento espontâneo/induzido não previsto e não controlado pelo Estado.
O exemplo do Projeto Integrado de Colonização Ji-Paraná criado em
1972 é elucidativo quanto às formas dirigidas e “espontâneas”, controladas e
não controladas de povoamento. Inicialmente, em 1973,previu-se o assenta-
mento de 1.000famíliasparao primeiro setor;jáem 1974,em face do excedente
de pretendentesà terra que se acumulavamna área, estenderam-se as linhas do
primeiro setor e criou-se um novo, ao sul, onde o assentamento foi feito através
do “mutirão” (ajuda mútua) entre os colonos sob a supervisão do Incra e ado-
tando o modelo oficial. Em 1976,em face da intensa ocupação espontânea,
criou-se um novo setor onde a ação estatal se reduziuà abertura do eixo viário
central e à demarcação de lotes; concomitantemente, famílias sem terra, num
total de 3.500,ocuparam desordenadamente uma área que após a regulari-
zação oficial veio a constituir um novo setor. A malha fundiária do município
de Cacoal é expressiva das três formas de povoamento: o desenho dos lotes e
estradas passa do geométrico ao caótico (Fig.2) que, diga-se de passagem, corri-
ge as distorções do modelo oficial, rígido.
Estatísticas oficiais, embora imprecisas, indicam que, até 1984,a invasão
85
legalizada responde pelo menos por 40% do total de 34.272 famílias assentadas
até 1984, não havendo dados sobre a invasão não-oficializada.
Outras formas de povoamento espontâneo não conflituais específicos à
organização da sociedade local se desenvolveram. O mercado de trabalho
organizado no circuito da economia camponesa, baseado na própria família e
em parceiros - migrantes que enquanto aguardam sua terra vivem nos lotes
dos colonos pagando a renda com parte da colheita -, é um expediente que
permiteao proprietário contarcom maisbraçose ao parceiro escapar da proleta-
rização, e abre a possibilidade de absorção de produtores em número muito
maior do que o número de lotes demarcados. A multiplicação de cidades de
posseiros, centros de áreas agrícolas, com população de 24 a 60.000 habitantes
cada uma, situadas a cada 40 lun da rodovia, é um dos mais impressionantes
indicadores da força do povoamento espontâneo - aí é mais evidente o caráter
ideológico da colonização, na medida em que o Estado nada fez pelas cidades
construidas pelo trabalho dos migrantes que até hoje são posseiros, não tendo
suas posses regularizadas. Hoje, associações de posseiros e pequenos produto-
res se organizam também com o apoio da Igreja e de partidos políticos para es-
capar ao controle dos comerciantes.
A resistência por meio de invasões não esperadas e não controladas acele-
rou-se nos últimos anos, em decorrência do excedente de famílias sem terras -
20.000 ou 40.000 em 1985segundo informação do governo e da Comissão Pas-
toral da Terra, respectivamente. Favorecida pela densidade do povoamento, a
população realiza invasões organizadas, com táticas baseadas em informação
sobre a situação real da titulação das terras apropriadas por fazendeiros e em-
presas, invadindo áreas de titulação duvidosa e tendo, assim, geralmente, pos-
sibilidade de ganho de causa.
Em Rondônia, portanto, aresistência popular não se caracteriza pela luta
armada, mas por uma ação sistemática de conquista de um espaço e, hoje, de
sua preservação. A sua influência no direcionamento do processo de produção
do espaço é visível, inclusive na transformação do território em Estado em
?98?,2,pûïÜLitïû, na intensa iiiûbi!iza@û da sociedade civil e do aparelho de
Estado local em favor da Reforma Agrária.
As questões da resistência de camponeses e semiproletários na fronteira
retomam o debate sobre o confronto destes com as empresas e fazendas em um
novo patamar. O reconhecimento de um poder local emergente não se faz num
contexto dualista na medida em que a resistência e a espontaneidade dos cam-
poneses não se referem a um modo próprio de pensar e utilizar a terra, oposto e
exterior ao modo dominante. Pelo contrário, sualuta é pela conquista e preser-
vação de espaços nas regras dominantes - querem dispor da terra para cultivá-
la, vendê-la, alugá-la ou até como registrado in Zoco, loteá-la para criar uma
vila! E em suas formas de atuação revelam grande capacidade de adotar e corri-
gir os modelos oficiais,bem como de inovar e se organizar para a defesa de seus
direitos, sendo assim capazes de influir no direcionamento do processo de pro-
dução do espaço social.
86
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89
DIVERSIDADE D A FRONTEIRA AGRíCOLA N A AMAZôNIA
PHILIPPE LÉNA
Geógrafo do ORSTOM
Museu Paraense Emilio Goeldi, C.P. 399
66,000 Belém, PA
Tradução: MARIA LUíZA BELLONI
RESUMO
Palavras-chave:
Amazônia - Fronteira agrícola - Colonização - Diferenciação econômica do campe-
Sifi&û.
90
Mato Grosso et enfin l’occupation non encadrée du nord du Goiás. Face aux
discours pessimistes prévoyant la prolétarisation généralisée et aux visions
optmistes qui font de l’amazonie le lieu privilégié pour la reproduction du petit
paysan, l’etude comparative permet de relativiser les points de vue. Malgré des
conditions difficileset un cadre contraignant,rien ne semble joué àl’avance, la
diversité des situations, les contradictions et les luttes paysannes ouvrent des
voies nouvelles, chaque fois plus nombreuses mais extrêmement précaires. La
frontière Amazonienne peut être décrite comme une région “en crise”, où
ni les systèmes d’exploitation, ni les rapports sociaux, ni même la propriété
n’ont encore réussi à s’intégrer et à fonctionner selon un système reproducti-
ble.
Mots-Clés:
Amazonie - Frontière agricole - Colonisation - Différenciation économique du pay-
sannat.
Key words:
-
Amazônia Agricultural Frontier - Colonization - Economic differenciation of pea-
santry.
91
INTRODUÇÃO
92
pulados pelos poderes públicos ou pelas companhias privadas de colonização
segundo seus interesses do momento. Nem por isso deixam de fazer parte do
patrimônio de representações do homem brasileiro, do grande capitalista ao
humilde peão. Expressam um certo modo de perceber, de “sentir” a relação ao
espaço nacional. Cada migrante que se dirige para a fronteira, seja qual for sua
posição social, alimenta a esperança de dar partida a um processo de acumu-
lação individual, ou de abreviar este processo, assegurando assim sua pro-
moção social e o futuro de seus filhos.
Raciocinar em termos de trajetórias individuais permite assim melhor
compreender as freqüentes mudanças de categorias sócio-profissionais ao 1011-
go do processo migratório. Cada um tenta tirar o melhor proveito de suas apti-
dões e das circunstâncias, contrariando teorias da reprodução por classes ou
categorias. Em parte é isto que confere àfronteira seu caráter movente, instável
einacabado. Mas é tambémisto que a torna fascinante elhe permite catalisar as
esperanças.
Não se deve esquecer também o que a fronteira representa de sofrimento
humano, de esperanças frustradas. As trajetórias sociais não são todas ascen-
dentes, longe disto (Cf. Becker, 1982),mas há sempre (pelo menos até o mo-
mento) novos espaços para sustentar a esperança. Paradoxalmente o fracasso e
as estratégias individu&,,f,quevisam contorná-lo, contribuem para a expansão
da fronteira.
É a configuração amazônica e agrícola da fronteira que será abordada
neste artigo, isto é, sua extensão até a floresta densa, tropical e úmida, com toda
a carga simbólica que isto pode representar. Subjetivamente,a florestaé de fato
sempre percebida como um espaço mais “virgem”, mais “natural” do que, por
exemplo, os cerrados. Éverdade que seus ecossistemas são mais ricos e mais di-
versificados, mas sob outros aspectos esta distinção não se justifica. Para as po-
pulações indígenas, entre outras, o resultado da expansão da fronteira éo mes-
mo, qualquer que seja o ambiente ecológico.
No passado, outras “fronteiras” brasileiras tiveram uma divisão das ativi-
dades agrícolas em função dos diferentes tipos de meios. Assim, os pequenos
agricultores ocupavam as florestas e galerias florestais, consideradas férteis,
enquanto os pecuaristas ocupavam os cerrados que quase não se prestavam à
agricultura. Um certo grau de complimentaridade era assim realizado. Os pe-
cuaristas substituíam eventualmente os pequenos agricultores quando estes ti-
nham esgotado a fertilidade natural dos solos. Desde os anos sessenta, esta di-
visão de tarefas foi abalada: graças ao tratamento com calcário, possibilitando
reduzir a acidez dos solos, e aos preços subsidiados da soja, que permitiram fi-
nanciar as benfeitorias, a agricultura mecanizada e capitalizada penetrou rapi-
damente nos cerrados, ao mesmo tempo que a cultura de gramineas possibilita-
va substituir a floresta por pastagens. Existe pois, atualmente, concorrência pe-
los espaços florestais entre a agricultura (ainda essencialmente de subsistên-
cia, no entanto) e a pecuária, esta última ponta-de-lança da especulação fun-
diária.
Discutiremos neste trabalho as chances de formação e manutenção de
uma classe de pequenos produtores na Amazônia. As causas dos fracassos e us
fatores que favorecem a acumulação camponesa, a “fixação do hdmem àterra”
93
(tal como é anunciada nos programas oficiais) serão analisados a partir de
exemplos situados em quatro regiões diferentes:
- Uma antiga zona de colonização do Mato Grosso do Sul, hoje abando-
nada por sua população rural.
- Uma zona de colonização privada no norte do Mato Grosso.
- A colonização federal em Rondônia.
- A colonização espontânea do norte de Goiás.
1. A FRONTEIRA AMAZóNICA
94
CO para o centro econômico do País (Sudeste e Sul) possibilitando às dinâmicas
vindas destas regiões penetrarem os novos espaços abertos (exploração minei-
ra, pecuária, especulação fundiária, colonização agrícola - controlada ou es-
pontânea - etc. ...). As estradas recortam ao mesmo tempo zonas até então
ocupadas somente por populações indígenas em grupos extremamente reduzi-
dos, e um pequeno número de regiões de povoamento tradicional com suas ci-
dades ribeirinhas, que elas vêm tirar de sua letargia: Altamira, Santarém, Porto
Velho, etc. ...
Com exceção destas poucas cidades, recuperadas pela nova rede de estra-
das, pode-se dizer que as novas formas de ocupação constituemuma criação ex
nihilo, um sistema sem nenhuma ligação com a sociedade tradicional ou os
modos de vida nativos, sem nenhuma base histórica. Existe aí um risco tanto
maior quanto mais rápidos são os ritmos de valorização.
Do ponto de vista do meio ecológico, trata-se de uma ocupação das terras
firmes, dos divisores de águas e não mais dos vales aluvionários. Não se dispu-
nha até o presente momento de nenhuma experiência em grande escala de va-
lorização destes meios. As roças freqiientemente poliestratificadas das popu-
lações nativas parecem dificilmente transponíveis, e a região bragantina, den-
samente povoada, apresenta um tal grau de esgotamento de seus solos que difi-
cilmente pode ser citada como exemplo.
Do ponto de vista demográfico, a população imigrante é originária de re-
giões muito diferentes e não dispõe de nenhum sistema de reconhecimento e
avaliação das características do meio. Este é um fato mais importante do que
parece à primeira vista. Moran (1981) mostrou que os 30% dos colonos de ori-
gem local (caboclos) integrados ao Projeto de Colonização de Altamira (Tran-
samazônica) apresentavam melhores desempenhos que os 30% de nordestinos
e os 40% de camponeses oriundos do Centro-Oeste e do Sul.
Por outro lado, esta população imigrante apresenta taxas de crescimento
muito elevadas (16%por ano em Rondônia durante o período 1970/1980), a
tal ponto que a população de “terra firme” 6 hoje (1980) mais numerosa do que
a população ribeirinha, se excetuarmos os .dois grandes pólos regionais de
Belém e Manaus. Éverdade igualmente no que diz respeito àpopulação agríco-
la e é ainda mais verdadeiro se integramos no cálculo a faixa florestal da região
Centro-Oeste que, com aregião Norte, f o r m a a h a z ô n i a Legal (1).Porém esta
“fronteira agrícola” apresenta igualmente elevadas taxas de urbanização: a po-
pulação urbana da região Norte passa de 35,9% em 1970 a 51,7% em 1980,
graças a uma taxa de crescimento cerca de duas vezes maior do que a taxa da
população rural.
No entanto, a região Norte C a Única região do Brasil a apresentar uma ta-
xa de crescimento absoluto de sua população rural (3,71% por ano) durante o
período. Vem em seguida o Nordeste que, com uma taxa de 0,55%,amplamente
inferior a seu crescimento natural (3,4%),aparece como uma região de êxodo
rural relativo. Todo o resto do Brasil rural apresenta um déficit absoluto de po-
95
pulação, inclusive o Centro-Oeste considerado todavia como zona pioneira.
De fato, seria preciso distinguir, nesta última região, as zonas de ocupação já
antigas (principalmente o Sul e o Centro), que conhecem o êxodo rural, e as
franjas amazônicas nas quais ocorre seja o êxodo, seja o crescimento de sua po-
pulação rural, segundo a situação geográfica e as atividades anteriores.
O saldo migratório da região Norte deve representar cerca de 850.000 pes-
soas entre 1970 e 1980. Na realidade a imigração foi bem superior, pois as re-
giões tradicionais continuam a estagnar e mesmo a acusar perdas relativas ou
absolutas de população, principalmente na zona rural. Com exceção das gran-
des cidades, estes ganhos de população devem ser colocados quase integral-
mente no ativo das novas regiões de povoamento. Seria fácil demonstrar que
estes ganhos são pequenos a nível do Brasil (Lena, 1985a) e que só a cidade de
São Paulo recebeu sem dúvida mais imigrantes do que a fronteira amazônica.
E no entanto, em dez anos, são cerca de 100.000 famílias de camponeses
sem terra, de minifundiários e de pequenos produtores que, de uma maneira ou
de outra, puderam ter acesso àterra da Amazônia. Isto pode parecer pouco em
comparação com o projeto de instalação de 100.000 famílias nordestinas em 5
anos somente ao longo daTransamazônica (como tinhasido previsto em 1970)
que até hoje não conseguiu fixar nem 10.000famílias. Éporém bem mais do que
em todo o resto do Brasil, onde certamente as distribuições de terraforaminex-
pressivas frente ao vasto movimento de expulsão.
Em conseqüência, a Amazônia aparece não somente como o espaço onde
ocorre uma especuIação financeira desenfreada, onde a concentração da terra
é em média mais acentuada do que no resto do País, mas também, e paradoxal-
mente, como o Único espaço oferecido à reprodução do pequeno camponês
sem capital. Seria porém um erro considerar apenas este camponês. AAmazô-
nia é também um espaço de reprodução simples ou ampliada para outras cama-
das sociais. Há os pequenos produtores do Sul, possuindo um pequeno capital,
que integram os projetos privados de colonização; os colonos de segunda ou
terceira geração dos projetos públicos que vêm substituir o$ colonos originais e
são cada vez mais capitalizados; os espaços reservados pelo Incra ou pelos Es-
tados para a instalação de pequenas fazendas para pecuária (500 a 3.000 ha) ou
plantações, sem falar das grandes fazendas e das empresas agroindustriais.
O mecanismo de substituição dos colonos, observado historicamente nas
zonas de fronteira, não convida nem um pouco ao otimismo quanto às perspec-
tivas de crescimento destes pequenos camponeses sem capital. Não é fácil
porém saber em que medida eles não constituem senão um exército de desbra-
vadores destinados a ceder o lugar para produtores capitalizados. De toda ma-
neira não se pode trazer umaresposta globa1,para'aAmazônia.,Com efeito,'já é
agora amplamente reconhecido que o modo de intervenção do Estado e as
dinâmicas sociais diferem o bastante de um ponto a outro deste imenso territó-
rio: não somente para proibir qualquer extrapolação simples, como também
para constituir a base de um processo de regionalização cadavez mais acentua-
do (Baumfeld, 1983; Becker, 1982 e 1985).
1.1. A pressão sobre o ecossistema amazônico
Diante da imensidão da floresta amazônica, numerosos autores (IUatz-
96
man, 1975; Gourou, 1982; etc. ...) duvidaram que se pudesse dispor do capital e
da mão-de-obra suficientes para conseguir, em futuro próximo, acabar com ela.
Mas seria raciocinar segundo uma lógica capitalista que não nos parece apli-
car-se integralmente aqui. No entanto, a mesma opinião é difundida também
no Brasil, uma vez dissipados os temores legítimos gerados pela política de
concessão de incentivos fiscais e de créditos subsidiados às grandes empresas
que aceitavam implantar fazendas de pecuária na Amazônia. Lembremos que
o módulo mínimo fora fixado pela Sudam em 25.000 ha e que todas as armas
eram válidas para realizar, o inais depressa possível, vastos desflorestamentos,
inclusive os desfolhantes (Eglin e Thery, 1982).
Quando a Sudam desacelerou seriamente a concessão de incentivos fis-
cais, a rentabilidade no mínimo duvidosa de tais operações tornou-se evidente
e se tende a considerar que o vento de euforia passou definitivamente. É com
efeito pouco provável que vejamos instalar-se, nas condições atuais, comple-
xos de produção de carne com entreposto frigorífico, pista de aviação, etc., co-
mo foi o caso no passado. Todavia, se as ameaças que pesam sobre a floresta são
algo diferentes, nem por isso elas são menos graves.
Fearnside (1984) mostrou, a partir de fotos do satélite Landsat, que, se o
volume global dos desflorestamentos era ainda relativamente modesto em
1980, a evolução das curvas desde 1975 estava muito próxima de um cresci-
mento exponencial. Tal ritmo levaria à destruição da floresta em 1989 para o
caso do Mato Grosso, 1990 para Rondônia e 1993 para o Acre. Tais curvas não
são quase levadas a sério, particularmente desde as críticas feitas às previsões
do Clube de Roma há uns doze anos. São consideradas na melhor das hipóte-
ses como alarmes que possibilitam a tomada de consciência das tendências pe-
rigosas. No caso da Amazônia, parece importante de tOdo modo continuar a
manter a opinião pública alerta e não ceder ao otimismo provocado pela su-
pressão (parcial) do apoio à “política do boi”. O volume global dos desfloresta-
mentos não foi, ao que parece, influenciado por estas mudanças. Em janeiro de
1986,imensos incêndios voluntários foram detectados pelos satélites de obser-
vação no sul do Pará (2).Acreditamos, entretanto, que não serão mais observa-
das curvas exponenciais no futuro, por razões ligadas tanto às dinâmicas inter-
nas das empresas quanto às incertezas fundiárias. O resultado final porém não
será modificado, somente o prazo será adiado. O exemplo do Paraná, Cujas flo-
restas foram reduzidas a 5% no espaço de 30 anos, aí está para lembrar-nos;
ainda mais que os ritmos atuais de desflorestamento em certas regiões ‘da
Amazônia (em particular Rondônia e certas zonas do sul do Pará) são superio-
res aos que ocorreram no Paraná entre 1940 e 1970.
Em definitivo, a manutenção de blocos florestais importantes dependerá
da capacidade dos poderes públicos de fazer respeitar as reservas indígenas, os
parques nacionais e as florestas de rendimento, bem como de medidas que
possibilitariam a valorização econômica da floresta, ao mesmo tempo por uma
legislação adequada e pelo desenvolvimento da pesquisa em silvicultura
97
amazônica. Não parece, com efeito, que se deva contar com o fim da migração
para a Amazônia num futuro próximo.
É sempre difícil fazer previsões quanto ao volume dos fluxos migratórios,
na medida em que eles dependem intimamente do quadro econômico geral.
Pode-se entretanto constatar que o volume da imigração em Rondônia, apesar
de uma relativa saturação fundiária, não parou de crescer: 153.325pessoas em
1984, ou seja, um aumento de 15%com relaçãoa 1983;um ligeiro aumento foi
registrado em 1985. Ao que parece, uma tendência semelhante pode ser obser-
vada no sul do Pará.
Basear uma esperança na falta de mão-de-obra ou de capitais significaria
negligenciar o formidável “exército agrícola de reserva”, que continua a se
constituir no Brasil graças à conjunção de vários fatores: um crescimento de-
mográfico acentuado, sobretudo no campo; a modernização da agricultura do
Sul e Sudeste; uma estrutura fundiária muito desigual e a utilização crescente
na indústria de técnicas poupadoras de mão-de-obra. O Projeto Nacional de
Reforma Agrária previa a atribuição de terras a 7 milhões de famílias em quinze
anos. Isto representaria a integralidade da região Norte (suposta vazia para
efeitos de demonstração) à razão de 50 ha por família. De fato, durante estes
quinze anos os 7 milhões de famílias provavelmente se teriam tornado 10 mi-
lhões.
Este “exército” certamente não tem capitais, mas constitui uma força de
trabalho considerável, que não busca o rendimento médio do capital mas sim-
plesmente assegura sua subsistência e a de seus filhos, podendo, em conse-
qüência, ignorar os cálculos econômicos que lhe apresentam a pequena agri-
cultura na Amazônia como uma atividade não-rentável. Do ponto de vista dos
desflorestamentos, esta força de trabalho pode ser tão eficaz quanto as empre-
sas capitalistas. Basta comparar as curvas de Rondônia, onde o essencial dos
desmatamentos é obra de pequenos camponeses, com as do Mato Grosso
(Fearnside;op. cit.),onde eles são realizados em maioria por grandes empresas
ou fazendas, para dar-se conta de que elas não são sensivelmente diferentes.
A única medida que teria possibilitado relaxar as pressões sobre a
Amazônia de modo significativo teria sido a aplicação de uma reforma agrária
verdadeira, que combatesse as grandes fazendas subutilizadas de outras re-
giões do Brasil. Mas, como era de temer (Lena, 1985b), o Projeto de Reforma
afinal adotado apresenta um nítido recuo com relação ao projeto inicial. Dian-
te da multiplicação dos setores privados visando a defesa das grandes proprie-
dades e a influência ainda forte dos latifundiários a nível político local e mes-
mo federal, o governo finalmente renunciou a desapropriar em grande escala.
A situação atual se parece milito com o que ocorrera há vinte anos: a publi-
cação do estatuto da terra, em 1964, havia alimentado grandes esperanças, ra-
pidamente desmentidas pelos fatos; a luta contra o latifúndio se havia rapida-
mente transformado em imposto sobre terras não-produtivas (ele próprio rara-
mente coletado) e as esperanças dos trabalhadores sem terra e dos minifundiá-
rios deviam doravante reorientar-se para os projetos de colonização. Também
o novo Projeto conta com as terras públicas e com a colonização para atenderà
demanda ...
É preciso notar, todavia, que este “exército agrícola” potencial certamen-
98
te não é mobilizável nem totalmente nem imediatamente. Não é porque um
camponês do Sul perde a terra onde trabalhava e se torna trabalhador rural
sem terra que ele vai ser automaticamente tentado pela aventura da fronteira.
Se tal fosse o caso, já não haveria floresta amazônica. Se a Amazônia fascina,
ela também dá medo. O isolamento, aviolência, as condições sanitárias e esco-
lares precárias não são enfrentadas com alegria. Aí estão em jogo fatores psi-
cossociológicos. Alguns preferem desenvolver estratégias familiares multifor-
mes em seus locais de origem a emigrar. Não se rompe assim a rede de inserção
familiar e social. Aapreciação da situação individual e aavaliação das perspec-
tivas são naturalmente subjetivas. As mesmas condições podem levar alguns a
permanecerem e outros a emigrarem. Por outro lado, o candidato à emigração
pode optar por ir para a cidade grande, sobretudo se, como éprovável, ele já te-
nha parentes ali. A escolha da fronteira não se impõe, pois, como solução úni-
ca. Mas é uma opção que pode ser considerada por um número crescente de mi-
grantes potenciais na medida em que o efeito da influência familiar e de re-
lações pessoais aumenta enquanto a fronteira vai sendo povoada. Na região de
Dourados (MS) praticamente não existe um pequeno camponês que não te-
nha um parente ou um amigo emigrado para Rondônia ou Roraima. Além dis-
so, a fronteira não atrai apenas agricultores; as migrações interurbanas e rural-
urbanas são agora superiores às migrações puramente rurais em Rondônia.
Mecânicos, comerciantes, profissionais liberais e empregados dirigem-se para
afronteira (Becker, 1985).Alguns são urbanos de longa data (entre e1es;alguns
tentam ao contrário, e pela primeira vez, uma aventura rural).
O volume e o tipo de migração para a Amazônia vão então variar em
função da evolução das diferentes regiões amazônicas e das oportunidades que
aí serão oferecidas. Mas a pressão global deverá permanecer muito forte.
Não se pode deixar de concordar com os autores que pensam que os capi-
tais públicos e privados investidos nas operações de colonização ou de implan-
tação de fazendas de pecuária na Amazônia teriam sido melhor utilizados no
Sul e no Sudeste do País, já desenvolvidos (Gourou, 1982) (3).
Igualmente de acordo com a idéia de que mais vale fazer “pequeno e
intensivo” do que grande e extensivo (op.cit.)e que seria necessário orientar-se
para uma “gestão prudente das rendas do capital natural” (Thery, 1985):Deve-
se, entretanto, constatar que as dinâmicas atuais não se encaminham neste
sentido (salvo em algumas situações, importantes para o futuro, que tentare-
mos definir); elas correspondem de fato a uma racionalidade econômica pode-
rosa que nos parece justamente característica das zonas de “fronteiras”,com os
custos sociais e ecológicos que isto implica. As formas de acumulação que aí
ocorrem impõem condições draconianas à formação de um campesinato está-
vel. Querer instaurar práticas correspondentes a uma racionalidade que gstá
(3) Mas, na ausencia de reforma agrária, teriam estes capitais atendido as necessidades das catego-
rias sociais que emigraram para a Amazônia?
99
apenascomeçandono Sul desenvolvido seriacolocaracarroçaàfrentedosbois.
A expansão da fronteiraé um processo histórico cujalógica não é fácil romper.
Pode-se sem dúvida acelerar o curso deste processd, emesmo tomar alguns ata-
lhos graças a políticas adequadas, nem por isso a extensão até a “periferia” dos
sistemas e das relações de produção do “centro” (que goza de uma propriedade
privada estável, de um mercado consolidado e de uma legislação trabalhista re-
lativamente respeitada) deixará de exigir tempo. Este tempo é justamente o da
“fronteira”.
A ausência de integraçã0 e de controle institucional destes espaços (com
todas as características que isto implica) condena-os a formas predatórias de
acumulação e elimina de vez as formas de produção mais elaboradas.
Examinaremos rapidamente as restrições que pesam sobre o pequeno
camponês sem capital, típico das zonas pioneiras:
De modo geral, a fertilidade dos solos não é renovada. Aqueimada possi-
bilita obter um ou dois anos de boas colheitas, incorporando àterra os elemen-
tos minerais acumulados pela vegetação durante um período muito longo. Vis-
to que, conforme a qualidade do solo, seria preciso esperar de 15 a 30 anos para
pretender obter uma colheita semelhante no mesmo lugar, o camponês deve
abandonar a parcela e ir desmatar mais adiante. No melhor dos casos, as ma-
deiras de lei serão vendidas antes da queimada e umaparte da colheita de arroz
será comercializada. Nenhum investimento em trabalho ou em capital é reali-
zado com o objetivo de prolongar a vidaútil da parcela.Trata-se somente de ex-
trair uma riqueza natural que acaba por ser destruida no processo. Ao que pare:
ce, somente com esta condição é que o pequeno camponês pode manter-se. E
isto por diversas razões:
- O preço de compra ao produtor dos produtos alimentares (isto é, o es-
sencial de sua produção) é mantido baixo a fim de não exercer pressão
sobre os salários urbanos (4).Na fronteira, os custos de transportes, as
dificuldades de acesso, a multiplicação dos intermediários e a posição
desfavorável do camponês na negociação dos preços contribuem para
fazer baixar os preços ainda mais.
- Para sobreviver na entressafra, o camponês será obrigado a vender sua
produção a estes intermediários que vêm buscar o produto em sua casa
(ao contrário dos compradores do governo, Cujas instalações são de to-
da maneira insuficientes) e lhe concedem empréstimos a taxas usurá-
rias. O camponês pode comprometer de antemão uma parte ou a totali-
dade de sua colheita. O intermediário obtém um lucro importante jo-
gando com a inflação e com a estocagem. Prova disto é que, após o blo-
queio dos preços em 27 de fevereiro de 1986,a grande colheita de arroz
do sul do Pará não mais encontrou compradores, pois os intermediá-
rios recusaram-se a honrar seus contratos, na ausência de perspectiva
inflacionária e sem possibilidade de modificar seus preços.
- Se ele não possui sua terra, o pequeno camponês tem que ceder parte de
100
sua colheita ao proprietário. Esta sangria complementar o mantém a
um nível nulo de acumulação. No Sul, pode-se encontrar camponeses
sem terra que pagam uma renda e acumulam; em zona de fronteira isto
é excepcional.
- Tudo na fronteira é mais caro do que no “centro”. Isto se deve em parte
aos custos de transporte e às dificuldades de acesso, mas traduz igual-
mente a monopolização do comércio local.
- Comum nível de acumulação nulo, fraco ou irregular, o camponês pode
ser desestabilizado pelo menor acidente climático, ecológico (pestes)
ou de saúde. As dívidas então contraídas podem levá-lo avender seu di-
reito à terra. De outro lado, ele nunca consegue obter o capital que lhe
seria necessário para aumentar sua renda. Este investimento não seria,
aliás, forçosamente rentável, dadas as condições de preço e mercado.
Assim o crédito, associado ao título definitivo de propriedade, revelou-
se com freqüência uma faca de dois gumes; o camponês, incapaz de pa-
gar o empréstimo, vê-se na obrigação de vender sua terra.
É inútil dizer que estas condições difíceis impedem também qualquer acu-
mulação cultural e técnica.
O camponês não pode passar sem a boa colheita do primeiro ano que, de
fato, permite-lhe apenas manter-se, e não investir. Sua racionalidade econô-
mica é baseada exclusivamente no máximo de produção, que permite a des-
truição do capital natural. É o nível abaixo do qual ele não pode se permitir des-
cer.
A situação é apresentada voluntariamente de maneira esquemática a fim
de poder ressaltar os caminhos que se abremà acumulação. 8,no entanto, uma
situação vivida por‘numerosos camponeses na fronteira.
Se o camponêsnão está em situação de acumular, em contrapartida os cir-
cuitos comerciais parecem realizar uma importante acumulação, tanto maior
quanto mais inacessível é a região.
Os latifundiários sofrem as mesmas restrições que os pequenos campo-
neses. Eles também comprometem o capital natural, comercializando a madei-
ra e aproveitando a fertilidade “gratuita”. Porém eles apostam também em ou-
tras vantagens. O emprego da mão-de-obra condiciona a mudança de escala e
permite a acumulação. Em troca da autorização de cultivar a terra do pro-
prietário, o camponês cede uma parte de sua colheita e se compromete a
plantar uma pastagem antes de abandonar a parcela. Assim o latifundiá-
rio recebe ao mesmo tempo uma renda em produto e trabalho gratuito. Mas,
para fazeristo, é-lhe indispensável controlar ao mesmo tempo a terra e o traba-
lho. Esta é a lógica do latifundiário. Umavez que alógica camponesavisa evitar
o pagamento da renda, seja em produto ou em trabalho, aí se encontram as rai-
zes do eterno conflito. Com a diferença que na fronteira ele não é amenizado
por leis e controles institucionais, conservando em conseqüência todo o seu
potencial de violência.
Está na lógica latifundiária provocar a rarefaçã0 artificial da terra através
de vastas imobilizações fundiárias, obtidas graças ao baixo preço da terra ou
com recursos a práticas ilegais. O camponês vê-se assim constrangido a aceitar
relações de produção que lhe são desfavoráveis. Em zona de fronteira, trata-se
101
sempre de uma relação instável, sempre arecomeçar ou a manter pela coerção,
na medida em que existem espaços vazios que podem levar o camponês a emi-
grar. Velho (1981) mostrou que, quando a propriedade da terra não está clara-
mente definida como era o caso das atividades extrativas (borracha, castanha-
do-pará), a captação do valor só pode ser feita através das relações de força. No
caso da fronteira, ocorrerá de preferência o controle, às vezes violento, do es-
paço: de um lado, para extrair os rendimentos do capital natural, de outro, para
evitar as hemorragias de mão-de-obra. De fato, o interesse do latifundiário não
éforçosamente a expulsão pura e simples do posseiro (a menos que este último
esteja em condições de fazer valer um direito sobre a terra), mas de preferência
o controle da força de trabalho e a captação de uma renda (trabalho e/ou pro-
duto).
Certos autores, transpondo a situação que apareceu reqntemente no Sul
do Brasil, temem um vasto movimento de proletarização na fronteira. Global-
mente, isto parece pouco provável, pelo menos num futuro próximo. A instau-
ração de verdadeiras relações salariais generalizadas teria como efeito fazer
baixar as taxas de acumulação. Em contrapartida, uma estratégia de utilização
de mão-de-obra temporária destinada a evitar o recurso aos camponeses con-
tratados que, cada vez com maior freqiiência, buscam permanecer na proprie-
dadè já pode ser observada em certas regiões (norte de Goiás, sul do Pará...).
É preciso mencionar uma terceira forma de acumulação, válida tanto pa-
ra os pecuaristas como para os pequenos agricultores: a rápida valorização da
terra em zona de fronteira. Para aproveitá-la, porém, é necessário poder asse-
gurar o direito sobre a terra, e nesta luta os camponeses não são os mais prepa-
rados.
Entretanto, e isto é um fato novo, os sucessos dos pequenos posseiros em
suas lutas pela terra tendem aaumentar em número. Mais conscientes e melhor
organizados, eles conseguem cada vez com maior freqüência fazer valer seus
direitos. Os pecuaristas das regiões onde a pressão fundiária é forte vêem seus
bens constantemente ameaçados de invasão e são obrigados agastar somas im-
portantes na manutenção de milícias privadas. Wood (1983) cita o caso de pe-
cuarisfas da região de Conceição do Araguaia que encorajam a instalação de
r0!0ngs, “idos de !ntes s1rficientementegran*s, em torno de S%8S proprie-
dades, a fim de se proteger das invasões. A estabilidade da propriedade é procu-
rada, sinal de que a fronteira entra em outra fase.
Em Rondônia, Becker (1985) nota que a pressão popular, legitimada a
posteriori pelo Estado, permitiu uma significativa distribuição de terras. Ianni
(1983) evocava “a reforma agrária espontânea” em curso em certas regiões da
fronteira. Em outros locais, entretanto, os conflitos são mais violentos do que
nunca (sul do Pará) e as expulsões de camponeses continuam. Isto mostra a
grande diversidade das configurações espaciais-históricas encontradas atual-
mente na Amazônia. Mas o problemaé saber se, mais além dos eventuais suces-
sos passageiros, o processo tende para a fixação e o crescimento de camadas
camponesas cadavez mais numerosas, ou se, ao contrário, os pequenos agricul-
tores preenchem a função de desbravadores e estão destinados a ceder o lugar
para outras atividades. Foweraker (1982) considera o fenômeno de fronteira
como um processo de acumulação primitiva no qual a separação dos produto-
102
res dos meios de produção se desenrolaria no tempo, acarretando a reprodução
de frentes pioneiras no espaço e coincidiria exatamente com o fenômeno cha-
mado “expansão da fronteira”. As numerosas migrações dos colonos pesquisa-
dos (três, às vezes cinco tentativas de fixação à terra) tendem a confirmar este
esquema de expulsão e de grande mobilidade que, como ressalta Moran (1980),
não favorece a acumulação. Que uma pequena proporção de colonos consiga
fixar-se e prosperar não mudaria grande coisa no esquema geral. Para nuançar
seriamente o modelo é preciso que um vasto movimento se desenhe no sentido
da emergência de um campesinato estável, com rendas razoáveis. Após quinze
anos de colonização, pensamos que é possível procurar suas primicias ou pelo
menos suas condições de formação.
Constatemos antes de tudo que se o conflito pecuaristas/posseiros é qua-
se geral nas zonas de fronteiras, os projetos de colonizaçäo não são atingidos. A
luta pela apropriação da terra desenvolve-se aí de um modo mais policiado: os
lotes são vendidos e seuvalor não traduz somente os benefícios que serão obti-
dos pela destruição do capital natural, mas também a estabilidade do título de
propriedade e o valor do trabalho incorporado (pastagem, plantaçä0 de cacau,
etc. ...). Neste caso a expulsão toma a forma da substituição dos primeiros colo-
nos por imigrantes mais capitalizados, através de uma transaçä0 monetária. O
resultado final não seria o mesmo? Os primeiros colonos não contribuíram pa-
ra inserir a terra no circuito mercantil e fazer subir seu preqo, obrigando-se
e a seus semelhantes a ir buscar sempre mais longe um espaço para sua
reprodução? Sua substituição é inelutável? Seus sucessores serão capazes de
desenvolver uma lógica de reprodução e não mais da depredação? Quando ter-
minará este processo de reprodução de frentes pioneiras no espaço?
A esta última questão pode-se trazer alguns elementos de resposta. Teori-
camente a fronteira não deveria ter necessidade de esgotar até a última parcela
de floresta para passar a um outro estágio. Bastaria que o valor da terra fosse es-
tabilizado (a fim de evitar qualquer ganho especulativo importante) e aum ní-
vel suficientemente elevado para que a simples destruição do capital natural
representasse uma vantagem regligenciável (e -até - --
um inconveniente), em face
da obrigação de rentabilidade a longo prazo que implicaria a importância do
investimento. Seria preciso, entretanto, que o controle do espaço acompa-
nhasse o movimento, caso contrário os candidatosà extraçã0 dos benefícios do
capital natural não deixarão de invadir qualquer bloco florestal, mesmo que
tenha proprietário, como é o caso atualmente (as terras indígenas e os parques
nacionais sendo obviamente os primeiros ameaçados).
Em definitivo, a transformação da economia de fronteira e sua superação
dependerão da capacidade da sociedade de integrar seus excluídos e de acele-
rar a sucessão das diferentes fases pioneiras.
O papel dos poderes públicos é, pois, de primeira importância e deve-se
perguntar que papel desempenha a fronteira frente ao Estado nacional. Além
dos argumentos clássicos: soberania nacional, abrandamento das tensões so-
ciais, etc. ..., a fronteira parece realmente ser o lugar de uma acumulação signi-
ficativae de uma transferência de valor para o Sul (Foweraker,op. cit.).Todavia
é sobre um outro aspecto que gostaríamos de insistir. Parece-nos que a expan-
103
são da fronteira seja, no estado atual das coisas, o meio de evitar uma ruptura
do abastecimento alimentar básico. Considerando o aumento das rendas, o
crescimento da população e o ritmo de aumento dos rendimentos, Homem de
Melo (1982) calculou as necessidades anuais de crescimento da superfície cul-
tivada para diferentes produtos alimentares básicos: 4% para o arroz e 5% para
o feijão, a mandioca e o milho. Isto representa, no período 1977/85, respectiva-
mente 36,9% e 53,5%.A taxa de crescimento da superfície cultivada brasileira
deveria então ser de 4,4% por ano, quando a taxa histórica observada éde 3,5%.
Note-se que existe uma redução da superfície cultivada para estes produ-
tos nas regiões Sul e Sudeste (substituídos pela cana-de-açúcar e pela soja). Na
falta de uma reforma agrária, as zonas de fronteira seriam chamadas a contri-
buir de maneira significativapara o abastecimento. E aum custo relativamente
barato, visto os baixos preços da terra e a ausência de capitalização dos produ-
tores. Entretanto, além do fato que estas vantagens são em parte absorvidas pe-
los intermediários, as cifras apresentadas acima e as más condições de pro-
dução deixam pairar uma dúvida sobre a capacidade da fronteira de desempe-
nhar este papel. O preço dos alimentos corre o risco, pois, de continuar a exer-
cer uma pressão inflacionária, e uma reforma agrária seria provavelmente o
verdadeiro remédio.
Qual é o espaço deixado para a formação de um campesinato na Amazô-
nia em meio a este imenso campo de forças contraditórias? São talvez justa-
mente as contradições, as disparidades regionais, as diferentes etapas justapos-
tas que lhe deixam alguma chance. Será considerado como camponês aquele
que escapa à “zona de fragilidade”, que acumula e reinveste na produção. Para
saber como alguns conseguem chegar a este estágio, serão abordados os meca-
nismos de diferenciação interna do campesinato em diferentes regiões.
104
curo são encontrados principalmente nas zonas de campos e cerrados, têm
uma fertilidade média mas são sobretudo ácidos, e, por conseguinte, têm neces-
sidade de ser tratados. Os solos mistos, arenosos, são muito sensíveis à erosão e
menos férteis. Se as zonas de floresta concentram a maior parte das terras ro-
xas, elas se localizam igualmente ein grande parte sobre solos arenosos.
Desde o fim do século XIX, pecuaristas gaúchos colonizaram os campos e
cerrados sobre os quais eles praticam uma pecuária muito extensiva. A partir de
1969, agricultores mecanizados compraram-lhes a terra, que eles obtêm a
preços muito maisvantajosos do que em sua região de origem, e cultivam trigo e
soja. Mas sem apoio técnico e infra-estrutura suficiente para o tipo de agricul-
tura mais tecnificada que a sua, muitos vão fracassar (Pebayle e Koechlin,
1978).
Por outro lado, desde 1940,programas de colonização municipais (Itapo-
rã), federais (Colônia federal de Dourados que abrange 5 municípios) e depois
privadas (Bataiporã) vão permitir a pequenos agricultores o acesso àterra. Em
Itaporã e Dourados trata-se de lotes de 30 ha de floresta onde colonos, em sua
maioria nordestinos, cultivam arroz, milho, feijão, mandioca e café. A princi-
pal fonte de renda devia ser o café, mas as geadas dos anos cinqüenta desenco-
rajaram muitos produtores que começam então a cultivar algodão e amen-
doim. O esgotamento dos solos, trabalhados sem adubos, a erosão (solos are-
nosos) e o baixo nível técnico conduziram cada vez mais os pequenos produto-
res a entrarem em um processo de fragilização e de superexploraçãodo traba-
lho familiar tal que desde os anos sessenta numerosos são aqueles que partem
para o norte (centro do Mato Grosso ou pré-Amazônia). Atualmente, o Incra
está implantando dois projetos de colonização no sul (Sete Quedas e Mundo
Novo) em condições totalmente semelhantes.
A colonização privada se dirige a uma camada de agricultores um pou-
co mais favorecidos, uma vez que é necessário pagar a terra. Trata-se, nos anos
cinqüenta, de pequenos cafeicultores oriundos de São Paulo, expulsos pelo es-
gotamento dos solos. Visto que seu café vai sofrer os mesmos problemas, eles
vão igualmente adotar o algodão, o amendoim e a mamona.
Na mesma época, cafeicultores de São Paulo e, mais tarde, do Paraná,
onde suas plantações de café apresentam graves baixas de rendimento devido
ao esgotamento dos solos, são atraídos pelos baixos preços da terra e criam
plantacões. Atingido pelas geadas e pela evolução dos preços, o café vai ser pro-
gressivamente abandonado e substituído por pastagens. Estas grandes plan-
tações de café do leste vão assim dar lugar a grandes fazendas de pecuária, em
geral pela substituição de proprietários (op.cit.).Grandes pecuaristas vão
então se instalar nas zonas florestais, vindos de São Paulo, do Paraná ou do Rio
Grande do Sul. A mão-de-obra que trabalhava nas plantações de café fica de-
sempregada.
As transformações mais profundas vão ocorrer durante os anos setenta e
são expressas pelos dados demográficos: a população, que tinha aumentado de
120,4%de1960 a 1970, não cresce mais de 35,78% (superiorà média brasileira,
mas inferior à média do Estado). A população urbana cresce de 177,6% en-
quanto a zona rural perde 20% de sua população. Quatorze municípios apre-
sentam perda absoluta de população rural (alguns perdem 5@%,e mais); dois
105
outros têm uma perda relativa (crescimento inferiorà média brasileira), quatro
vêem sua população rural crescer: são estes os municípios que acolhem proje-
tos de colonização públicos ou privados destinados a pequenos agricultores.
As regiões mais atingidas são aquelas que abrigam os antigos projetos de
colonização. Mas esta evolução demográfica inclui na realidade situações mui-
to diferentes ligadas, em particular, às aptidões agronômicas dos solos.
Já nas zonas de campos e cerrados, e após os primeiros fracassos, os agri-
cultores do Sul vão buscar as melhores terras, contribuindo para valorizá-las.
Um número significativo de pecuaristas vai então recusar-se avender suas ter-
ras e achar mais vantajoso arrendá-las segundo contratos que implicam a plan-
tação de uma pastagem após a cultura. O pecuarista pode assim aumentar sua
capacidade de suporte graças ao tratamento com calcário, ao nitrogênio fixado
pela soja e às gramineas selecionadas.
Nas antigas zonas de floresta (hoje totalmente desbravadas) correspon-
dentes ao projeto de colonização dos anos quarenta, a situação é mais comple-
xa. A partir de sistemas de produção relativamente homogêneos há 15anos, a
região evoluiu no sentido da diversificação. A primeira mudança seguiu-se à
substituição do café pelo algodão e amendoim. O café estava associado aos
agregados, famílias que habitavam o lote do proprietário e cultivavam arroz,
milho e feijão, além de plantar café para o proprietário. Eles podiam continuar
as culturas alimentares entre os cafeeiros durantevários anos e faziam também
a colheita do café.
As rendas menores do algodão e do amendoim e a impossibilidade de cul-
tivar entre as linhas contribuíram para eliminar esta forma de trabalho que foi
substituída pela utilização sazonal de uma mão-de-obra residente na cidade.
Mas a grande mudança foi causada pela aparição da soja. As terras roxas
de floresta adquiriram rapidamente um grande valor monetário. Os rendimen-
tos da soja são, nestas terras, cerca de duas vezes mais elevados do que nas ter-
ras de campos e cerrados. Os custos de produção são inferiores, pois não é
indispensável fazer tratamento com calcário. Além disto, a maior capacidade
de retenção d’água dos solos permite a cultura de inverno de trigo e, por conse-
guinte, rendas superiores. Nas zonas de campos e cerrados, os agricultores em
-geral abandonaram a cultura do trigo porque os resultados são demasiado
aleatórios.
A alta do preço da terra foi tal que hoje mesmo os gaúchos não podem
comprar e são obrigados a alugar a terra. Airregularidade dos contratos os leva
com muita freqüência a morar na cidade. Num primeiro tempo, esta alta acar-
retou a partida de numerosos pequenos proprietários que, desprovidos de capi-
tal, não podiam comprar máquinas nem ampliar sua propriedade. Estes parti-
ram para a compra de uma terra maior no norte do Mato Grosso. Outros, em
contrapartida, tiveram sucesso na passagem ao novo sistema de produção, seja
com a compra de máquinas, graças a empréstimos bancários (entre eles, muitos
se.endividaram e tiveram que-vendersua terra), seja alugando as máquinas. Os
da primeira categoria buscaram rentabilizar ao máximo suas máquinas, arren-
dando terras pertencentes a outros proprietários e entraram assim em compe-
tição com os agricultores do Sul. Os lotes sendo pequenos, a soja substituiu to-
das as outras culturas no caso daqueles que adotaram o novo sistema de pro-
106
dução. Por outro lado, alguns agricultores não quiseram endividar-se junto aos
bancos e continuam a praticar uma pequena agricultura de subsistência, alu-
gando ao mesmo tempo alguns hectares a produtores de soja para obter rendas
monetárias. É notadamente o caso daqueles que se encontram nas partes mais
argilosas das terras argilo-arenosas.
A situação é bem diferente a leste de Dourados onde as terras arenosas
predominam. Se nas terras roxas os sistemas tradicionais haviam podido man-
ter-se mal ou bem até a chegada da soja, que acarretou o êxodo rural e a concen-
tração fundiária, tal não ocorreu nos solos menos favorecidos. A erosão e o es-
gotamento dos solos, a ausência de acumulação, o baixo nível técnico e o cres-
cimento da família haviam acarretado a partida de numerosos camponeses
desde os anos sessenta. Certos lotes foram subdivididos por ocasião das he-
ranças ou de necessidades imediatas de liquidez. Outros, em contrapartida, fo-
ram reunidos nas mãos de um mesmo proprietário. Aconcentração fundiária é
quase tão grande quanto nas “terras da soja”, aqui porém a causa é a pecuária,
principalmente leiteira. Visto que o capital que o camponês pode obter pela
realização do valor de sua propriedade é mais baixo do que quando se trata de
terras roxas, os que partiram procuraram de preferência os projetos de coloni-
zacão de Rondônia onde a terra é quase gratuita.
As parcelas que oferecem um acesso à água foram invadidas por pasta-
gens. Nas outras, o sistema tradicional (incluindo algumas plantações rema-
nescentes de café) mantém-se ainda (algodão e feijão nas melhores teryas, ma-
mona, milho e alguns pastos nas outras). O arrendamento da terra, pouco
rentável, não é freqüente. A mecanização é sobretudo representada pela tração
animal. As rendas são baixas, mas em troca a produção é mais diversificada. Se
em certas zonas a pecuária substituiu quase totalmente a pequena agricultura
(o que se traduz por uma parada do êxodo rural em 1980), em outras zonas,
onde a policultura subsiste, existe aindaum potencial de êxodo rural importan-
te que os programas de assistência ao pequeno produtor tentam barrar (luta
antierosiva, piscicultura, ervilhas, ovinos e caprinos, etc.). Devido à exigiiida-
de dos lotes, as únicas atividades rentáveis são as que apresentam um alto valor
comercial por unidade. Para o desenvolvimento de tais atividades, paradoxal-
mente, a mão-de-obra pode vir a faltar. O êxodo rural acarretou o fechamento
de escolas e a péssima manutenção das estradas. Alguns colonos um pouco
afastados têm a impressão de haver voltado à situação do início da coloni-
zação.
Os novos projetos do Incra do extremo sul parecem engajar-se pelo mes-
mo caminho: saídas para o Norte e para a Amazônia, substituição dos colonos e
extensão das pastagens.
O exemplo da região de Dourados 6 interessante por mais de uma razão.
Trata-se de um caso de êxodo rural e de transformação/substituição de proje-
tos de colonização, para o qual não se pode incriminar o carriter não integrado
da região, a falta de estradas e a multiplicação de intermediários captando uma
parte do valor. Ao contrário, a região ébem servida de estradas, a infra-estrutu-
ra bancária, escolar e comercial é satisfatória e existe mesmo uma rede de pe-
quenas cooperativas. No entanto o resultado é o mesmo do que nos projetos
amazônicos.
107
O êxodo rural é devido aqui a uma conjunção de vários fatores:
- Uma situação econômica estagnada; fracas possibilidades de acumu-
lação; impossibilidade de assegurar o futuro da família em lotes muito
pequenos; a queda dos rendimentos em solos pobres, a estagnação em
outros. Estes fatores bastaram para dar início ao êxodo rural.
- A chegada de uma nova cultura, muito vantajosa, mas que reclama um
nível técnico.ao qual os pequenos camponeses não podem ascender. Is-
to acarreta a valorização rápida das boas terras e um êxodo acelerado.
Sobre as terras menos boas, a pecuária vai desempenhar este papel,
num ritmo mais lento.
- Estratégias de reprodução familiar: com efeito, numerosos camponeses
dizem que seus filhos os impelem avender e emigrar para o Norte. Caso
contrário, estes últimos seriam obrigados a se tornar trabalhadores
temporários ou a se colocarem no mercado urbano de trabalho, em po-
sição pouco vantajosa.
O motor da migração é, pois, em definitivo, avalorização da terra, quando
esta representa uma defasagem demasiado grande frente às rendas que a fami-
lia pode esperar obter da propriedade. Isto éválido em termos relativos, é a di-
ferença que conta, e não o valor real, visto que há ainda terra disponível no
Norte a qualquer preço, inclusive gratuita.
Os fatores estruturais agravantes são a impossibilidade de aumentar rápi-
da e significativamente as rendas camponesas, sem modificação da estrutura
fundiária, e a pequena oferta de empregos urbanos locais capazes de absorver o
crescimento demográfico das famílias camponesas. Mas estes empregos seriam
de qualquer modo atraentes o bastante para desviar os emigrantes potenciais
de uma estratégia familiar patrimonial baseada em bens fundiários? Pode-se
duvidar disto, na medida em que este patrimônio é, cada vez mais, susceptível
de adquirir rapidamente um grande valor sem o menor esforço.
108
rem, por conseguinte, em Rondônia, todos os tipos de ocupação do espaço, des-
de o núcleo original realmente planejado e assistido dos projetos iniciais de co-
lonização até as propriedades fundiárias invadidas por posseiros à espera de
solução jurídica, passando pelos diferentes projetos de instalação rápida e
áreas de regularização fundiária.
Passado um tempo que varia conforme os projetos, sua data de implan-
tação e o grau de assistência fornecido, pode-se constatar em todos os lugares
um fenômeno de substituição dos colonos originais. Esta taxa é de cerca de
3Oo/o, segundo os responsáveis, para os projetos mais antigos (ela pode ultra-
passar 70% em certas áreas). Alguns lotes foram divididos enquanto outros, ao
contrário, foram concentrados nas mãos de um Único dono. Autopia igualitá-
ria dura pouco e a estrutura fundiária parece adaptar-se progressivamente às
dinâmicas sociais reais.
A diferenciação econômica é sensível. Numa amostra de 100 colonos ins-
talados no Projeto Ouro Preto (Lena, 1981) e que, em 1980, tinham em média
5,26 anos de ocupação do lote, 18tinham desmatado mais de 40 ha, 56 entre 20
e 40 ha e 26 menos de 20 ha. O tempo de ocupação do lote varia em função da
data de implantação de cada parte do projeto, mas depende também de uma
eventual mudança de proprietário, somente o último ocupante sendo aqui to-
mado em consideração. Percebe-se que a taxa de aproveitamento não depende
unicamente da duração da ocupação. Épreciso, por conseguinte, considerar os
ritmos anuais de aproveitamento da terra (isto é, superfícies desmatadas ou
plantadas anualmente, por medida de simplificação). Nota-se então que, se os
lotes que mudaram de proprietário tinham, no momento da transação, peque-
nas superfícies desmatadas (causa e conseqüência do fracasso do ocupante
anterior), seus'ritmos de desmatamento são, agora, bem superiores àqueles dos
lotes que conservaram seus colonos originais.
Entre os lotes que têm menos de 20 ha desmatados, os que foram compra-
dos (que perfazem em média 2,18 anos nas mãos do novo proprietário) apre-
sentam um ritmo anual de desmatamento de 3,50 ha contra 2,67 ha para os ou-
tros lotes.
Encontramos esta diferença, acentuada, para as outras classes de colo-
nos.
Por outro lado, os que desmataram 40 ha ou mais (sejam colonos originais
ou substitutos) apresentam um ritmo de desmatamento de 8,09 ha por ano, cer-
ca de três vezes maior do que o grupo de menos de 20 ha. O fosso se aprofunda.
Estas disparidades a nível dos ritmos de aproveitamento são ligadas a pro-
fundas diferenças nouso do solo. Quando as superfícies desmatadas e os ritmos
de aproveitamento são importantes, as pastagens constituem a forma domi-
nante de ocupação do espaço. Certos lotes já estão totalmente plantados com
pasto,. contrariando a legislação do IBDF que autoriza teoricamente apenas
50% de desmatamento do lote. Esta extensão geral das pastagens (precárias e
ecologicamente muito pouco satisfatórias) é sem dúvida grave, mas não deve
mascarar uma outra realidade: com exceção de um certo número de colonos
que se dedicam quase exclusivamente àpecuária (geralmente antigos pecuaris-
tas que compraram um ou vários lotes), a policultura permanece um traço dis-
tintivo da colonização em Rondônia. Os 18% de colonos mais importantes da
109
amostra estudada detinham, com efeito, 37% das superfícies de pastos, mas
também 30% do café e 32% do cacau. Por outro lado, 94% dos lotes têm uma
pastagem (apesar de apenas 53% terem gado).
Pode-se assim estabelecer uma classificação dos colonos: os mais desfa-
vorecidos são aqueles que têm um ritmo lento de valorização da terra, que têm
dificuldades para implantar um sistema de ocupação permanente do espaço
após a colheita anual (arroz, mas também feijão, mandioca e milho). Isto se tra-
duz pela existência de grandes capoeiras e pela ausência ou pouca representa-
tividade das culturas permanentes e das pastagens. São estes os colonos mais
frágeis, os mais susceptíveis de vender seu lote e prosseguir sua migração. A
grande maioria dos casos de fracasso pesquisados pertencem a este grupo. Os
mais ricos são naturalmente os pecuaristas e os policultores que possuem su-
perfícies grandes para cada tipo de utilização do solo. Entre estes dois, situam-
se vá!ios grupos que apresentam combinações diferentes de culturas, superfí-
cies em produção e ritmos de aproveitamento diferenciados.
Alguns compraram máquinas de descascar arroz, serras elétricas para fa-
bricar tábuas, caminhões, etc... Eles vendem estes serviços aos pequenos colo-
nos, emprestam-lhes dinheiro, vendem-lhes gado e os empregam quando o di-
nheiro torna-se raro na entressafra. Como se chegou a isto?
No entanto, o Incraparecia ter tomado, destavez, mais precauções do que
nas zonas de colonização mais antigas: os lotes eram suficientemente grandes
(100 ha) para que o esgotamento da terra não fosse uma causa imediata de
abandono e para que os filhos dos colonos pudessem trabalhar na propriedade;
as terras tinham sido escolhidas em função de sua fertilidade, notadamente por
sua aptidão à cultura do cacau; a promoção das culturas perenes devia assegu-
rar um nível de vida mais elevado.
Seria preciso naturalmente denunciar uma vez mais a utopia igualitária, a
idéia de que se iria criar uma “democracia rural amazônica” pelo simples fato
de oferecer condições de instalação consideradas como homogêneas. Trata-se
de uma negação da história e das dinâmicas sociais, características das cons-
truções utópicas. O mito igualitário é um dos temas míticos indissoluvelmente
ligado ao registro imaginário da fronteira ao longo de sua história, mas expres-
so com mais ou menos força segundo os contextos: desde os escravos fugitivos
que formaram os quilombos, passando pelos posseiros que f-ogemdosiazendei-
ros e fundam “centros” na floresta, até os modernos projetos de colonização
públicos e privados (o tema do “homem novo”, de uma “nova sociedade” é às
vezes explicitamente utilizado nas propagandas). Como se o espaço “virgem”
bastasse para engendrar relações sociais libertas do peso do passado e dos
atuais determinismos sociais e econômicos. No caso da Amazônia, há uma fu-
são entre estas representações e todo o registro imaginário ambivalente ligado
ao imenso espaço florestal (fascinação/repulsa, eldorado/“inferno verde”, es-
perança/perigo, etc...). Os projetos de colonização representam, de maneira
geral (isto é, não somente no Brasil mas no mundo inteiro), a realização, pelos
poderes públicos ou sociedades privadas, de uma construção utópica com to-
das suas características (obsessão pela ordem, pela organização, pelo geomé-
trico) que acaba em última análise na elaboração de uma estrutura vazia de
sentido, na qual foram negligenciados os mecanismos reguladores, que pode-
110
riam eventualmente possibilitar a correçã0 das tendências evolutivas decor-
rentes das dinâmicas sociais reais. Assim, todos os projetos de colonização co-
nhecidos derivam OU se ajustam a estas dinâmicas, num tempo variável, mas
em geral curto.
Toda tentativa simples (isto é, apoiada num só fator ou grupo de fatores)
para explicar o processo de diferenciação social e econôinica no interior dos
projetos está condenada ao malogro. Trata-se de um processo extremamente
complexo, do qual não se pode captar todas as variáveis e todas as combi-
nações. Por outro lado, os caminhos da diferenciação são diferentes de um país
para outro, de uma região e mesmo de um projeto para outro (para além, 6 cla-
ro, de um certo número de traços comuns). Não se pode senão buscar identifi-
car tendências e dinâmicas, que são resultados de processos, de sinergias, ex-
tremamentevariados.Procurar,a partir de taisanálises, construir um ideal seria
sucumbir à cilada utópica já denunciada. É preciso reconhecer claramente a
impossibilidade de evitar um processo de diferenciação. Poder-se-ia, entretan-
to, evitar a concentração fundiária, diminuir o número de fracassos e favorecer
a promoção social de um número maior de colonos, graças a políticas adequa-
das. Um certo número de erros poderiam ser evitados desde o início, integran-
do de saída a dimensão histórica e social (isto é, prevendo os desvios e instalan-
do mecanismos reguladores), mas sobretudo respondendo à evolução da de-
manda durante a história dos projetos, concebidos de maneira dinâmica. Para
isto é indispensável favorecer a organização e a conscientização dos colonos a
fim de que a demanda possa ser formalizada e identificada e que os poderes pú-
blicos possam tratar com sujeitos coletivos representativos de interesses defi-
nidos. Paradoxalmente, é provavelmente ao reconhecer seu fracionamento so-
cial e ao integrar suas lutas internas que um projeto pode avançar e garantir
uma verdadeira promoção social para a maioria de seus participantes.
Atualmente certas organizações se esforçam para catalisar estas dinâmi-
cas, com êxitovariável. Trata-se das comunidades de base católicas, comunida-
des protestantes de diferentes credos, sindicatos e comunidades criadas pelos
poderes públicos. Deve-se, de passagem, saudar sua ação, pois elas oferecem
uma via de socialização, de conscientização e de açã0 que vem preencher mui-
to a propósito o vazio da estrutura proposta aos colonos. Quase todos seus res-
ponsáveis queixam-se, todavia, dos numerosos fracassos que acompanham to-
da tentativa de ação coletiva bem como da rotatividade acentuada dos partici-
pantes.
Boa parte dos casos de fracasso parece decorrer da perpetuação do mito
igualitário e da não-consideração do caráter individualista das estratégias de
promoçáo social. Os colonos entram num grupo quando julgam que este pode
lhes trazer alguma coisa num dado momento, e saem dele quando seu interesse
individual não coincide mais com o interesse coletivo. Este fenômeno é ainda
aumentado pelas lutas políticas locais e pelo clientelismo. A socialização com
base ideológica mantém-se melhor no caso das seitas mais fanatizadas, sem no
entanto impedir a diferenciação econômica. Esta pode mesmo ser integrada às
representações do grupo e valorizada, o que não é o caso das comunidades
católicas em geral.
Os sindicatos representam uma tentativa de lutar com base nos interesses
111
concretos dos participantes e de formular as reivindicações a partir de um dis-
curso político; mas as lutas internas pelo poder, o fracionamento político (que
nem sempre corresponde a situações concretas reais mas antes a conflitos
entre pessoas ou a “sensibilidades” diferentes) entravam sua ação. O processo
político sofre dos mesmos males que a fronteira em geral, falta-lhe ainda
maturidade. Por isso os colonos custam às vezes a se identificar com os agru-
pamentos que lhes são propostos e permanecem desconfiados.
Examinemos, rapidamente os fatores de diferenciação social mais
aparentes nos projetos públicos de colonização de Rondônia.
112
de interpretação e nas estratégias de ação. Eles representam, todavia, um nú-
cleo irredutível que interfere constantemente com os outros fatores. Próximos
das categorias descritas por Moran, estes fatores, entretanto, não se confudem
com elas. Consideramos, com Eder (op. cit.), que eles são o resultado, hoje
perceptível a nível das atitudes e comportamentos, de “experiências de vida”
passadas Cujas circunstâncias concretas podem ser objetivamente descritas e
compreendidas sem por isso enveredar pelo caminho de um determinism0
ingênuo. Haverá sempre uma parte de imponderável e seríamos tentados a di-
zer “felizmente”. O essencial não está aí mas nos eventuais mecanismos que
permitiriam limitar as tendências à desigualdade e sobretudo romper os me-
canismos de reprodução da desigualdade, sem com isso amarrar os colonos ao
pelourinho e retirar-lhes toda iniciativa.
Estes quatro fatores gerais apresentam entre si múltiplas combinações,
que se vêm acrescentar aos fatores específicos, entre os quais citaremos apenas
os principais:
- A situação do lote. O traçado geométrico do lote praticamente não leva
em consideração a qualidade dos solos e os acidentes topográficos. As estradas
cortam numerosos talwegs e as construções necessárias para as vias de acesso
são freqüentemente destruidas na estação de chuvas. Numerosas estradas vi-
cinais são transitáveis apenas dois ou três meses por ano, isolando os colonos e
tornando quase impossível a comercialização da colheita. Certas parcelas não
- têm acesso à água, outras são parcialmente inundadas durante vários meses ou
apresentam uma topografia muito acidentada. As boas terras são repartidas de
maneira muito desigual, favorecendo a diferenciação dos modos de utilização
do solo e a renda diferencial. O afastamento com relação aos centros urbanos e
à estrada principal repercute sobre: o grau de valorização da terra; a qualidade
da assistência técnica, médica e escolar; o grau de integraçã0 aos procedimen-
tos administrativos e bancários, assim como os preços ao produtor praticados
pelos intermediários. O acesso ao crédito éassim ligado a um modelo espacial.
- A doença, principalmente a malária, que é responsável pela perda de
um grande número de dias de trabalho e de um enfraquecimento dos colonos
atingidos.
- O atraso na execução das obras de infra-estrutura. Alguns colonos
esperam dois anos pela abertura de uma estradavicinal dando acesso a seu lote,
comercializando alguns sacos de arroz transportados nas costas, a pé, através
de alguns quilômetros.
-Aausência de conhecimento do meio; os métodos empíricos de seleçã0
dos solos, notadamente para as culturas perenes, acarretaram custosos malo-
gros.
Se éfácil compreender que, neste jogo, aqueles que têm o hábito de gestão
de um negócio e possuem um pequeno capital inicial têm mais chances que os
outros, é particularmente interessante saber como alguns, dentre os mais des-
favorecidos, conseguem manter-se e acumular.
O acesso às culturas perenes e a presença de agregadosno lote são os dois
pontos fundamentais. O esquema clássico é o seguinte:
- Uma estrutura favorável da mão-de-obra familiar possibilita produzir
um excedente, comprar sementes de café e cacau (ou plantar as
113
sementes de café trazidas por eles) e fornecer alimentos a uma ou
duas famílias de agregados, esperando que estes obtenham sua própria
colheita. Estas condições favoráveis de produção puderam ser subs-
tituídas pelo crédito na época em que a inflação e os juros não eram
muito altos (5).Era necessário além disto estar próximo da estradae ter
boas terras.
- Quando a plantação começa a produzir, os agregados participam da
manutenção e da colheita em troca de uma parte do produto. É pois
uma mão-de-obra que não custa nada, pelo menos diretamente, e per-
mite também tornar mais firme abase alimentar da propriedade (espe-
cialmente em casos de doença ou de azares climáticos ou ecológicos).
Constata-se, com efeito, que os lotes que possuem agregados sofrem
muito menos fracassos.
- Para valorizar o lote e o trabalho de .desbravamento, o colono planta
freqüentemente uma pastagem sobre a parcela onde ele colheu o arroz
e o milho. O dinheiro ganho com a plantação époupado sob a forma de
gado. Este último éum capital que não se desvaloriza e não está subme-
tido às flutuações dos preços dos produtos alimentares. O camponês
vende conforme suas necessidades.
Utilizando este triplo sistema - agregados, culturas perenes, poupança
sob a forma de gado -antigosmeeiros, totalmente desprovidos de recursos ini-
ciais, tornaram-se hoje proprietários de um caminhão e comercializam sua
própria colheita.
Perto das cidades, alguns apostam no leite, nos ovos, galinhas e porcos.
Outros, em condições pedológicas difíceis, tentam os ovinos e caprinos. Colo-
nos recém-chegados (Rio Grande do Sul) alugam ou compram tratores e apos-
tam na cultura mecanizada do arroz, do milho e do feijão. É ainda cedo para
avaliar as conseqüências desta última prática a nível da erosão e do empobreci-
mento dos solos; o exemplo de outras “fronteiras” todavia não énada encoraja-
dor.
Nota-se uma tendência generalizada afazer experiências, a diversificar as
fontes de renda, notadamente no que se refere às culturas perenes: guaraná, se-
ringueira, castanheira-anã, mamona, etc. ... Quando a localização e as con-
diçöes de comerciaiização permitem, numerosos coionos tentam meinor re-
partir suas rendas ao longo do ano, obtendo assim um certo grau de segurança.
É certo que são sobretudo os novos colonos, aqueles que compraram um
lote, os “administradores”, os responsáveis por estas dinâmicas, mas os antigos
colonos, que até o momento estagnavam, são arrastados por esta efervescên-
cia (6).
A aceleração do processo de fronteira em Rondônia, a relativa densidade
(5) De fato o crédito agrícola sempre foi subsidiado, mas as altas taxas de inflação, a fixaçäo dos
preços de compra muito meses antes da colheita e o jogo dos intermediários tomavam muito
difícil uma saudável gestão dos empréstimos.
(6) As mudanças nos sistemas de produção e a diversificaçä0 das culturas acarretam uma forte de-
manda de mão-de-obra. Constatamos que a fixaçäo à terra dos proprietários de lote passa pe-
la utilizaçä0 de mäo-de-obra externa. Mas, no caso estudado, não se trata de relação salarial.
114
das infra-estruturas, as culturas perenes, o crescimento do fenômeno urbano, o
asfaltamento da rodovia Cuiabá-Porto Velho levaram a uma valorização rápi-
da da terra segundo um esquema espacialmente diferenciado que acarretou nu-
merosas vendas de lotes. Assim, um pequeno produtor de cacau à beira da es-
trada vendeu recentemente sua plantação por 700.000 cruzados para comprar
um comércio na cidade. Certos colonos afastados aceitam 7.000 cruzados por
seu lote e tentam recomeçar em outro lugar, mais longe, desta vez com um pe-
queno capital. O verdadeiro fracasso é a venda do lote para pagar uma dívida, o
que infelizmente ocorre com freqüência.
De um lado arenda diferencial (devida,sejaà localização, sejaà qualidade
da terra) seleciona duramente os colonos, de outro assiste-se à multiplicação
das estratégias de resistência. Se o otimismo ingênuo está excluído pelos fatos,
parece que não se deve também entregar-se ao pessimismo sistemático: alguma
coisa está acontecendo em Rondônia, dinâmicas positivas aparecem pouco a
pbuco na luta e na experiência cotidiana.
O papel dos poderes públicos deveria ser o de ajudá-las a se implantarem.
115
sar de algumas características comuns, enumeradas acima, os projetos priva-
dos diferem fortemente entre si.Alguns sofreram fracassos notórios, como o da
Coopercana (Dos Santos, 1985),no qual ocorreu até mesmo o retorno ao local
de origem de 50% dos colonos; ou ainda o da Colider onde o Incra teve que
substituir em parte a empresaa partir de 1982, para evitar uma degradação ain-
da mais grave da situação dos colonos. Outros, ao contrário, parecem bem ad-
ministrados (Alta Floresta, Sinop, ...), mas ainda assim enfrentam numerosos
problemas. Amá gestão de uma sociedade privada de colonização coloca os co-
lonos numa situação semelhante àquela dos colonos “espontâneos”, em curso
de regularização, da periferia dos projetos públicos: sem acesso à estrada; im-
possibilidade de comercializar a produção, de obter crédito sem título definiti-
vo; problemas de saúde e de escolarização paraosfilhos; etc.... Os participantes
dos projetos privados são por outro lado mais exigentes do que os dos projetos
públicos. Eles pagaram. Habituados a comercializar sua produção e a ter aces-
so a serviqos escolares e sanitários de qualidade média, eles exigem condições
decentes e a possibilidade de operacionalizar rapidamente um sistema lucrati-
vo de produção.
O projeto Sinop parece ser um modelo deste tipo. Bem concebido e bem
administrado, está integrado a uma fábrica de produção de álcool de mandio-
ca. Os administradores confessam 10 a 15% de desistências, em geral durante o
primeiro ano, o que é inferior aos projetos públicos.
Contudo, se a cidade parece muito ativa, a zona rural parece viver em rit-
mo desacelerado. A produção é fraca, e o fato que o município de Sinop seja o
4P do Estado, em termos de recolhimento de impostos sobre as mercadorias que
saem de seu território, não deve iludir: é a madeira, subproduto dos desmata-
mentos, que o explica. Isto ocorrerá apenas duranteum tempo; em seguida será
necessário achar novos recursos.
A maioria dos colonos vêm do Paraná e são antigos pequenos proprietá-
rios. A origem social é, pois, mais homogênea do que nos projetos públicos.
Ocorrem, no entanto, diferenças importantes: como em todos os projetos pri-
vados, encontra-se colonos que esgotaram totalmente seu capital (produto da
venda do minifúndio no lugar de origem) na compra da terra e se acham em
condiqões muito semelhantes àquelas dos colonos do Incra. Estes pequenos
colonos em geral não utilizavam máquinas, cultivavam o café e as culturas ali-
mentares de base. No projeto Sinop, eles logo descobriram que as terras eram
de má qualidade e que o café suporta mal a estação seca (maio a outubro) ; en-
fraquecido, o café é atacado pelos parasitas. Além disto, o IBC não atua na re-
gião. O café, sem classificação, é vendido ao mais baixo preço.
Um outro problema se coloca para os colonos que querem dedicar-se a
culturas grandes consumidoras de trabalho: a escassez de mão-de-obra. A com-
pra da terra e a seleção dos colonosno lugar de origem apresentam talvez avan-
tagem de evitar a anarquia das migrações espontâneas, mas, em contrapartida,
desencorajam os camponeses sem terra a tentarem sua sorte e a esperarem uma
eventual seleção (ou a possibilidade de efetuar uma posse), trabalhando para
outros. Os imigrantes não param no projeto Sinop, eles continuam em direçã0
ao norte (Colider, Guarantã, ...), onde o Incra desenvolve suas atividades.
Os colonos sem capital devem, pois, recorrer a outras estratégias: criação
116
de porcos e galinhas, pequena criação leiteira. O essencial é repartir as rendas
ao longo do ano. Alguns fazem um contrato com a fábrica de álcool e plantam
mandioca. Mas, apesar do preço ser indexado ao custo da gasolina, trata-se de
uma atividade pouco rentável: os rendimentos são 5Oo/o inferiores aos que se
pode obter no projeto Colider. Cultivada em parcelas não-destocadas, a man-
dioca necessita de muita mão-de-obra na ocasião da colheita; por outro lado, o
baixo custo da unidade de volume torna proibitivo o transporte em longas
distâncias.
Os colonos mais capitalizados se dividem em dois grupos:
- Os que tentam a mecanização e efetuam a destoca (em geral depois de
alguns anos de cultura manual, a fim de que as raizes comecem a apo-
drecer). Estes recorrem ao crédito bancário e à assistência técnica da
Emater. Eles plantam arroz, milho, e feijão; alguns fizeram tambémum
contrato de venda de mandioca com a fábrica (as culturas alimentares
podem, aliás, ser feitas entre as linhas de mandioca). Estão à procura
das estratégias mais rentáveis e por isto tentam um pouco de tudo: se-
ringueira, guarana’, urucum, mamona, criação de porcos e frangos,
criação de pomares. Muitos parecem ter esperança na soja.
- Os que esperam que as condições de produção se modifiquem e que a
terra seja valorizada. Se 80% dos lotes demarcados foram vendidos, em
compensação somente 30% foram aproveitados. As terras parecem es-
tar “em reserva”, à espera da difusão de umaatividade rentável. Os pro-
prietários ainda habitam sua propriedade no Paraná ou então vivem na
cidade. De qualquer forma eles não necessitam destas terras para asse-
gurar sua sobrevivência. A soja, cujos primeiros campos já se podem
observar, teria podido sem dúvida desempenhar um papel dinamiza-
dor sem a queda relativa de seu preço de compra. O movimento está
atualmente desacelerado; até quando?
Apesar do baixo preço da terra e da insuficiência relativa dos investimen-
tos, podemos perguntar-nos se a região tem interesse em fazer concorrência
com o Sul em produtos como o arroz, o milho e o feijão. Somente a soja, graças
aos subsídios e à organização do mercado, poderia ser rentável em agricultura
mecanizada.
Melhor seria explorar uma vantagem natural (“renda de situação”) graças
às culturas perenes tropicais. Seria necessário, contudo, realizar estudos
agronômicos e de mercado. Aseringueira parece adaptar-se àregião, mas exige
a abertura de linhas especiais de crédito, atualmente inexistentes no local.
De maneira geral, não se assiste à implantaç20 de um sistema de produção
estável, produtivo, mas muito antes a uma série de tentativas. Mais ao norte,
onde as terras são melhores, as culturas perenes são muito mais importantes,
chocando-se, porém, com os eternos problemas de mão-de-obra, de crédito e
de comercialização.
No projeto Sinop, o apoio ao surgimento de um pequeno campesinato ca-
pitalizado e produzindo para o mercado, através de projetos privados de colo-
nização, não parece estar em melhor caminho do que nos projetos públicos.
Num caso há substituição dos colonos, no outro, desaceleração das atividades,
mas o resultado é pouco diferente do ponto de vista do mercado.
117
A propriedade privada da terra pode ser uma condição necessária mas
não suficiente. Os pequenos posseiros sabem disto.
Uma dúvida paira igualmente sobre a estrutura fundiária destes projetos.
Não é certo que eles possam manter indefinidamente o módulo de propriedade
rural estabelecido por eles (cerca de 80 a 200 ha).
Em Alta Floresta, já se nota uma concentração e um desmembramento
dos lotes. Além disto, a valorização da terra elimina pouco a pouco a clientela
de pequenos camponeses. Estes não podem mais comprar. Para conservar um
número suficiente de compradores potenciais (os mais capitalizados não com-
pram nos projetos e exigem boas terras) algumas companhias colocam àvenda
lotes de menores dimensões. Assim o Incra autorizou, em 1984, a venda de lo-
tes de 30 ha. Os projetos privados correm o risco de assemelhar-se cada vez
mais aos projetos públicos. Tanto mais que os pequenos proprietários preferem
obter um lote quase gratuito do Incra e assegurar um bom começo do que es-
gotar seu capital na compra da terra. Estes são cada vez mais numerosos a pro-
curar os projetos do Incra.
Enfim, se os projetos privados puderam parecer, durante certo tempo, ao
abrigo das dinâmicas sociais da fronteira, já não é mais assim hoje em dia. As
invasões, seja das reservas florestais dos projetos, seja dos próprios projetos
(como é o caso do projeto da Andrade Gutierrez no Pará), são susceptíveis de
comprometer a rentabilidade de tais operações.
118
habitantes (Unltel, 1956).Eles não puderam, pois, opor nenhuma resistência à
ocupação de seu território.
Uma nova onda de pecuaristas chegou nos anos 1945-50, sem provocar
conflitos com os pequenos posseiros,já que eles não exploravam o mesmo meio
ecológico. A partir de 1950, os pequenos posseiros, fugindo da seca e da con-
centração fundiária do Nordeste, não param de chegar à região. Eles se insta-
lam lá onde existem terras devolutas, isto é, no meio do espigão e no extremo
norte, perto da confluência. ÀSvezes, o primeiro a chegar dá seu nome ao po-
voado. Estes são com freqiiência chamados de “centros”, refletindo a velha
oposição centro/beira; o centro éum espaço interior, selvagem;a beira 6 3mar-
gem do rio ou da estrada, o lugar de passagem, a civilização, em suma. Isto mos-
tra que os primeiros ocupantes se embrenharamna floresta, longe de todo lugar
habitado, para criar sua posse, sua roça. Os mais antigos povoados do extremo
Inorte datam do início dos anos cinqiienta: Sítio Novo, 1950; Axixá, 1956; São
Miguel, 1954; São Sebastião e Buriti, 1961; Augustinópolis, 1962; Sampaio,
1967; Centro dos Mulatos, 1968; etc. ...
Assim, em 1960 a região de TocantinÓpolis (7) já apresenta uma densida-
de demográfica de 4 habAtm2, superiorà média de Goiás (2,98hab./ltm2) e so-
bretudo bem superior à região de Araguaína, imediatamente ao sul e a sudeste
onde a densidade não passa de 0,77 hab./ltm2.
De 1960 a 1970, a região de Tocantinópolis vai registrar um crescimento
próximo da taxa de crescimento natural de sua população (35%). Deve-se, no
entanto, distinguir o sul da zona, onde a ocupação é antiga (século XIX) e onde
ocorre uma perda relativa de população, e o norte, ocupado recentemente por
pequenos posseiros, que vê sua população aumentar de 47,5%,e mais ainda nos
municípios do extremo norte. Mas é a região de Araguaína que apresenta a
mais alta taxa de crescimento (355%).Esta éuma conseqüência da abertura da
rodovia Belém-Brasília. O fluxo leste-oeste dos migrantes nordestinos vem
encontrar aqui o fluxo sul-norte dos pecuaristas e especuladores.
De 1970 a 1980, o Estado de Goiás não aparece mais como uma “frontei-
ra” do ponto de vista demográfico, seu crescimento é próximo da taxa natural;
em compensação, ele perde 14,3% de sua população rural.
Esta é, ao sul e no centro, a época da expansão da soja, da pecuária e da
expulsão dos pequenos posseiros. O norte é afetado à sua maneira por esta
dinâmica: se a região de Araguaina apresenta um crescimento significativo, ele
se deve a suas cidades, pois sua população rural cresce aum ritmo inferiorà ta-
xa natural (23%); quanto à região de Tocantinópolis, ela registra uma ligeira
perda relativa de população, mais forte na zona rural. Somente os dois municí-
(7) Administrativamente, o norte de Goiás está dividido em duas regiões, cada uma abrangendo
vários municípios: regiäo de Tocantinópolis (17.495 km*) e região de Araguaína (19.757 ltm2).
Com o sul do Pará e o oeste do Maranhão, elas constituem a zona de jurisdiçäo do Getat, órgão
federal criado em 1980 e diretamente ligado ao Conselho de Segurança Nacional. Sua missão
oficial era de “pôr ordem” na anarquia da ocupação fundiária (fonte de violentos conflitos) e fi-
xar a propriedade da terra a fim de tornar possível a gestäo do imenso pólo mineiro, agrícolae
industrial de Carajás, onde os capitais nacionais e estrangeiros deviam poder investir com toda
a segurança.
119
pios do extremo norte, São Sebastião e Augustinópolis, apresentam um cresci-
mento absoluto de sua população rural (58,4%),bem inferior contudo ao cres-
cimento urbano (377%).Em todos os outros lugares, ocorre êxodo rural, relati-
vo ou absoluto. Ele é absoluto ( -20%) nos dois municípios mais densamente
povoados: Axixá (63,56 hab./km2) e Sítio Novo (22,86 hab./km2). Ao sul dare-
gião de Tocantinópolis, onde existe desde o século passado uma população de
fazendeiros tradicionais e de pequenos posseiros vivendo em relativa harmo-
nia, a imigração é fraca e os conflitos mais raros.
É nas zonas pouco ocupadas do Norte que vão explodir os conflitos mais
violentos. Os pecuaristas e especuladores do Sul são atraídos pela abertura da
Transamazônica (1970) e pelo asfaltamento da Belém-Brasília (1974) que pro-
metem uma valorização rápida da terra. Situado praticamente no cruzamento
destes dois eixos, o norte de Goiás vai sofrer fortes pressões. Por outro lado, os
fazendeiros buscam agora a floresta e não mais somente as pastagens naturais.
Os pastos cultivados permitem uma melhor capacidade de suporte, e a explo-
ração da madeira rentabiliza os investimentos. A região vai então conhecer
uma onda de grilagem; notários e advogados inescrupulosos falsificam títulos
de propriedade ou os fabricam totalmente. Eles se apóiam em títulos muito
antigos cuja evolução ninguém é capaz de reconstituir, ou então fabricam
atos de venda provando que uma terra mudou várias vezes de proprietá-
rio. Assim a propriedade adquire um valor jurídico pela multiplicação das
transações. Em todo caso, a menos que ocorra uma vigorosa ação jurídica
da qual os posseiros, analfabetos em sua maioria, são incapazes, estes do-
cumentos são aceitos pelas autoridades locais, que oferecem até mesmo o
apoio da polícia e do exército para expulsar os posseiros. Com freqüência,
sobretudo quando temem uma ação jurídica, os fazendeiros recorrem à intimi-
dação e à violência. O caso mais famoso de intimidação e de conluio entre os
poderes públicos e os fazendeiros é, sem dúvida, o “bombardeio” de Sampaio
em 23 de julho de 1979 (8).Numerosos posseiros foram assassinados por pisto-
leiros; o que é novo em contrapartida é a réplica dos camponeses: desde há
alguns anos pistoleiros e fazendeiros também perderam a vida nos conflitos.
Os conflitos são diretamente ligados à chegada da “gente do Sul”. Em
Araguatins, gri!agem- e expn!sdes vio!entas ocorre?I- entre 1970 e 1973;em Ita-
guatins a partir de 1972, com recrudescência de 1975 a 1980; em Axixá os pro-
blemas começam em 1974; no Centro dos Mulatos se seguem à chegada de
três fazendeiros em 1974 e 1975, com uma confrontação violenta em 1979; em
Sampaio tudo começa em 1975, etc. ... Embora a imigração dos pequenos pos-
seiros tenha sido contínua, os povoados citados já eram importantes na época
dos conflitos (Sampaio tinha 300 casas em 1975),não sendo, pois, como dizem
os fazendeiros, a chegada dos posseiros que veio desestabilizar uma situação
outrora equilibrada. O que ocorre é exatamente o inverso.
Desde há alguns anos os posseiros, apoiados por religiosos pertencentesà
Comissão Pastoral da Terra - CFT, vêm se organizando, resistindo e tentando
(8) Cinco bombas foram jogadas de um helic6ptero na periferia do povoado. Os ocupantes desce-
ram em seguida e ameaçaram os habitantes caso estes continuassem a invadir as propriedades
alheias.
120
fazer valer seus direitos. Em quase todas as vilas, uma seção local do Sindicato
dos Trabalhadores Rurais foi criada com ajuda do Partido dos Trabalhadores
(IT). Advogados ligados ao sindicato ouà CPT oferecem seus serviços. Peque-
nas cooperativas dão seus primeiros passos à sombra destes organismos.
O movimento já pode contabilizar um certo número de vitórias: posseiros
permaneceram na terra apesar dos esforços do fazendeiro; certas fazendas fo-
ram desmembradas e divididas em lotes distribuídos aos posseiros. É todavia
bem pouco em comparação com a amplitude do problema.
Recentemente, as reivindicações dos posseiros tomaram uma forma mais
política: a luta por uma verdadeira reforma agrária e a aplicação, no norte de
Goiás, do módulo amazônico de 100 ha por família.
Desde 1980, o volume global da imigração tende a aumentar, de um lado
em razão dos dois anos de forte seca que afetam o Nordeste, mas também sob o
efeito da evolução da estrutura fundiária no Maranhão (concentração, exten-
são das superfícies dedicadas à cana-de-açúcar, substituição dos agregados de
fazenda por uma mão-de-obra assalariada). O norte de Goiás goza ainda de sua
reputação de terra devoluta, sendo de outro lado a porta da Amazônia e a proxi-
midade dos garimpos (especialmente Serra Pelada).
Atualmente, porém, os imigrantes têm mais dificuldades de efetuar uma
posse; daí sua concentração nas-cidades onde encontram pequenos empregos
urbanos, em geral complementados por um trabalho de diarista agrícola.
Alguns alugam terras, seja de fazendeiros, seja de posseiros mais antigos.
Isto é uma conseqüência direta das imobilizações fundiárias realizadas
pelos fazendeiros. A estrutura fundiária aparece efetivamente muito desequili-
brada; emhaguatins, onde o processo de expulsão foi levado a seu ponto mais
extremo, 15,5% dos proprietários possuem 85,5% das terras enquanto que 46%
partilham 3,1% do solo.
Lá onde os posseiros são em maior número e mais organizados, o proces-
so $de ser desacelerado, ou mesmo interrompido. Entretanto, um outro fenô-
meno vem aumentar a demanda potencial da terra: os fazendeiros deixam de
empregar em suas terras famílias de pequenos camponeses (como era o caso
anteriormente) commedo que estesnão queiram mais sair. Por outro lado, asi-
tuação de bloqueio fundiário devido à presença dos fazendeiros desorganiza a
economia tradicional regional na medida em que os proprietários não deixam
mais os camponeses entrar em suas terras para colher o babaçu, Cujas rendas,
melhor distribuídas ao longo do ano, são indispensáveis àeconomia campone-
sa.
Num certo número de municípios, a reforma agrária radical, na base de
100 ha por família, já era impossível em 1980. Sem contar os empregados agrí-
colasresidentes nas cidades, e supondo a exclusão de todos os fazendeiros (isto
é, redistribuindo a totalidade do espaço entre as famílias rurais), ter-se-ia obti-
do, naquela data, 72 ha por família em São Sebastião e Augustinópolis, 40 ha
em Sítio Novo e 18.ha em Axixá. Hoje os números seriam ainda menores. Sé-
rias adaptações dos sistemas de produção e das práticas camponesas serão por-
tanto necessárias em todos os casos.
Em caso de conflito ou de fragmentação demasiado grande da proprieda-
de, a política do Getat é oferecer terras no sul do Pará. Alguns aceitaram, mas
121
muitos dentre eles voltaram. O isolamento e a precariedade das infra-estrutu-
ras são as causas. Trata-se, com efeito, de camponeses habituados a viver em
povoados; ora, nos projetos de colonização, a manutenção da solidariedade é
extremamente difícil.
Os pequenos camponeses vieram atraídos pelas terras devolutas do Esta-
do de Goiás e se apropriam delas segundo o sistema da posse, origem de nume-
rosas ambigüidades, tanto do ponto de vista jurídico como das práticas sociais.
Se não há título de propriedade no sentido jurídico moderno do termo, existe
contudo apropriação individual na medida em que os camponeses sabem que
tal capoeira pertence a tal agricultor e a respeitam. Esta capoeira não retorna,
pois, a um fundo comunitário após a cultura e pode mesmo ser vendida. Não
observamos sistemas de “comunas” como esperávamos encontrar após a leitu-
ra de certos trabalhos. Além disto, a posse não se refere apenas ao trabalho pas-
sado (capoeira),ela antecipa igualmente as necessidades futuras: àsvezes o lo-
te é demarcado (fenômeno recente); com maior freqiiência trata-se de direções
de desbravamento, limitadas pelos acidentes naturais e pelas frentes de desbra-
vamento dosvizinhos. Em caso de venda, esta parte ainda intacta é igualmente
incluída na transação.
Isto quer dizer que não existe diferença alguma entre este sistema e alógi-
ca da apropriação jurídica em que se apóiam os fazendeiros e os órgãos esta-
tais? É preciso antes de tudo ressaltar que os camponeses falam de uma verda-
deira ruptura. Eles têm efetivamente a impressão de que o estabelecimento da
propriedade jurídica da terra acarreta uma modificação importante do sistema
deles, no sentido de um fechamento, de um bloqueio, tanto do ponto de vista
do acesso àterra quanto das relações sociais no interior da comunidade. Mas
estas transformações são provavelmente menos a conseqüência da proprieda-
de privada (jurídica) da terra em si do que da reunião de uma série de fatores
que ela vem de algum modo amplificar e cristalizar. Entre outros: a saturação
fundiária (provocada pela extensão das fazendas e acentuada pelo aumento
dos fluxos migratórios) e a valorização da terra. Existe assim o desaparecimen-
to das terras devolutas, acessíveis sem nenhum capital e sem conflito. Os novos
migrantes e os filhos dos antigos vêem, pois, suas esperanças frustradas por
aquilo que eles consideram ser a intervenção de fatores externos. Por outro la-
do, a valorização do solo leva cada vez mais camponeses a venderem suas ter-
ras; alguns (pouco numerosos contudo) buscam obter terra para revendê-la,
outros reivindicam superfícies superiores a suas necessidades, pois elas repre-
sentam agora um real valor mercantil. Daí o surgimento de conflitos entre pos-
seiros.
Ocorre, pois, desestabilização de um sistema, não pela introdução de
princípios que lhe seriam radicalmente estranhos, mas antes pela conjugação
da pressão fundiária, da valorização do solo e do doravante indispensável títu-
lo de propriedade. Anteriormente, o pequeno valor mercantil de uma terraain-
da abundante tornava fácil o acesso àterra e raras as vendas. O valor de uso do
solo era privilegiado (embora não exclusivo) e ninguém teria podido constituir
reservas fundiárias que excedessem suas necessidades. Hoje, os novos dados
são o pomo da discórdia introduzido no interior das próprias comunidades
(sem falar dos conflitos com os fazendeiros). Com efeito, trata-se realmente de
122
uma ruptura, do fim de um sistema que havia até então funcionado de maneira
relativamente aberta e mesmo baseado no bom convívio.
Em contrapartida, o sistema égrande consumidor de floresta, pois o retor-
no a uma parcela que já foi cultivada acarreta a queda da renda camponesa. No
segundo ano, a produção de arroz pode baixar de 50°/o. Nos solos médios, e em
primeira cultura, ren5mentos de 1.400 kg de arroz por ha são freqüentes. Em
compensação, nas zonas de solos pobres, onde a densidade demográfica leva a
cultivar várias vezes a mesma parcela os rendimentos caem a 600 kg. O des-
bravamento, a cada ano, de uma nova parcela, é percebido como uma invasão
pelos fazendeiros, que reivindicam a propriedade desta mesma floresta.
A cultura é integralmente manual e muito pouco diversificada, sem adubo
e quase sem pesticidas, sem culturas perenes e com somente algumas raras ca-
beças de gado. Nestas condições, as perspectivas de acumulação são quase nu-
las. O sistema é relativamente estável, mas é a reprodução da miséria.
Quanto à lógica dos fazendeiros, ela repousa na apropriação jurídica da
terra e em sua valorização como mercadoria. Este conflito de interesses leva
cada uma das partes a desbravar a floresta restante o mais rápido possível a fim
de forçar o reconhecimento de uma situação de fato e fazer desaparecer o obje-
to da cobiça. As reservas florestais ainda existentes estão todas situadas no
interior de grandes fazendas que as abatem a um ritmo acelerado.
Para permitir uma acumulação sem transformar os posseiros em assisti-
dos, seria necessário auxiliar as formas embrionárias de organização campone-
sa, notadamente as cooperativas que tentam romper a dependência em relação
aos comerciantes, estocando produtos de primeira necessidade, que serão re-
vendidos abaixos preços aos associados em período de escassez. Elas poderiam
ser dotadas de um pequeno capital que lhes permitiria a compra a crédito de
máquinas de descascar arroz e fazer farinha de mandioca. Armazéns já são
construidos graças ao trabalho comunitário; a compra de um caminhão ou de
um barco possibilitaria um grau suplementar de autonomia no processo de co-
mercialização. ÀSvezes uma roça comunitária é cultivada, e o produto da ven-
da da colheita é destinado ao funcionamento do sindicato. Por que não se faria
o mesmo com a cooperativa?
Enfim, os poderes públicos poderiam aumentar os “salários indiretos”
sob a forma de uma melhor assistência médica e escolar, de melhoria dos trans-
portes, etc. ...
O crédito rural, até agora difícil de obter dada a precariedade dos títulos
de ocupação do solo, não parece atrair nem um pouco os colonos. Alguns tive-
ram que vender seu lote para pagar seu empréstimo e assim desencorajaram os
outros. De fato, o crédito rural não consegue romper a dependência para com
os intermediários e acrescenta assim uma segunda dependência que torna a si-
tuação ainda mais difícil de administrar.
Porém sem desenvolvimento de culturas perenes (de acesso mais fácil do
-
que a mecanização) as vias da acumulação parecem lentas e difíceis (9).A ma-
(9) Elas permitiriam também uma melhor redistribuição da renda, pois seriam sem dúvida acom-
panhadas do aumento do número de agregados.
123
mona, o guarana poderiam ser difundidos, o que tornaria necessária uma adap-
tação dos circuitos comerciais. A cooperativa e o sindicato poderiam agir no
sentido de estimular as inovações como foi o caso no plano político.
Dada a estrutura e a história destas vilas, onde a população é, no início,
muito homogênea, as práticas de tipo comunitário parecem ter melhores chan-
ces do que nos projetos de colonização controlada. Entretanto, a ação do
Getat, baseada n a propriedade privada da terra, desorganizou, segundo dizem
os posseiros, a sociedade tradicional, rompendo a unidadedo mundocamponês.
Com efeito, alguns obtiveram o reconhecimento pelo órgão de uma posse
de 100 ha, enquanto que outros, em uma situação fundiária menos favorável,
não receberam mais do que 30 ha, e às vezes menos. Há também os que recusa-
ram os lotes propostos pelo Getat porque eram muito pequenos ou muito afas-
tados, ou ainda em razão das conseqüências trazidas pela privatizaçã0 da terra
(notadamente a expulsão em casos de dúvida), e que hoje se encontram numa
situação legal precária. Enfim, há os que não receberam nada e que começam a
alugar a terra de antigos posseiros com mais sorte, dando assim início a um pro-
cesso de diferenciação econômica e social.
No interior do sindicato observam-se dois discursos, cujo aspecto contra-
ditório os dirigentes nem sempre conseguem dissimular: o daqueles que que-
rem dar prioridade à luta pela terra e à reforma agrária e o dos proprietários que
reivindicam condições de produzir.
Nem a CPT nem o sindicato conseguem reunir todos os camponeses.
Além disto, os “sem terra” que alugam terras pertencentes aos fazendeiros te-
mem as conseqüências de uma luta radical que poderia privá-los de seu meio de
ganhar a vida por medida de represália.
Diante da impossibilidade de acumular em seus lotes, numerosos são
aqueles que se voltam para o garimpo, deixando a família em uma situação
precária, durante longos meses, por uma esperança freqüentemente frustrada.
Outros vendem seu lote logo após havê-lo obtido, rompendo assim com a soli-
dariedade camponesa. Estes tentam obter, pela mobilidade espacial, a as-
censão social que lhes é recusada na região.
Aqui também, e apesar da solidariedade e de organizações das mais fortes
que se possam encontrar na Amazônia, esboça-se a sombra do fracionamento
do mundo camponês.
CONCLvsÃ0
124
destacado. Não se trata de renunciar às leis gerais em nome dos particularis-
mos, mas de pôr em evidência a originalidade de cada elaboração regional em
seu compromisso entre fatores gerais e locais (geográficos,culturais, técnicos).
Dito de outra forma, trata-se de apreender estas situações regionais como con-
figurações históricas que manifestam um certo grau de autonomia e de criativi-
dade em seu tratamento dos dados do real concreto.
Constatemos antes de tudo que a expansão da fronteira agrícola é obri-
gatória e funcionalmente ligada à modernização de uma minoria de campone-
ses. Isto é, entretanto, o efeito de uma opção. Entre 1965 e 1995, o Brasil deve
poder multiplicar por 2,2 sua produção de alimentos, simplesmente para man-
ter o status quo (isto sem contar o crescimento das culturas de exportação). Pa-
ra realizar este salto para a frente, o Estado optou por não tocar na estrutura
fundiária e por apostar nas camadas camponesas susceptíveis de acompanhar
o movimento de modernização. O resultado é a exclusão de um grande número
de camponeses que perdem sua terra ou seu trabalho. Visto que o fenômeno é
agravado por um forte crescimento demográfico e uma fraca capacidade de ab-
sorção industrial, a concessão de terras na fronteira representa uma solução
custosa, mas dificilmente substituível. Num primeiro momento, trata-se, aliás,
de um investimento mais social do que produtivo, uma espécie de salário de so-
brevivência. Aliás, o Estado não tem recursos para financiar ao mesmo tempo a
modernização do Sul e a instalação de colonos em boas condições. Isto se ma-
nifestana pouca representatividade dos projetosoficiaise num imenso Zaissez-
faire no qual o Estado não intervém senão como regulador da apropriação fun-
diária.
A realização das infra-estruturas, o aproveitamento do solo e a demanda
permanente de terras acarretam a valorização diferencial do fundiário, verda-
deiro motor da “fronteira em movimento”, segundo a feliz expressão de Tur-
ner. Esta valorização leva à substituíçã0 dos colonos e, com freqüência, dos sis-
temas de produção. A partir do momento em que o solo assume um valor mer-
cantil, deixa de ser acessível aos mais desfavorecidos dentre os excluídos do
processo de modernização. À medida que o valor da terra aumenta, grupos de
camponeses cada vez mais abastados vêem proibir-se-lhes o acesso à terra. A
única solução é então buscar, sempre mais longe, espaços não-estruturados e
não-valorizados. A vida é aí particularmente difícil, mas é o preço a pagar para
ter acesso à propriedade. Níveis diferentes de valorização podem ser observa-
dos em curtas distâncias, principalmente em Rondônia. Mas, neste caso, a evo-
lução e a sucessão de diferentes fases são em geral extremamente rápidas.
Atualmente a saída “lógica” da fronteira de Rondônia (praticamente saturada
e, em todo caso, cada vez mais dificilmente acessível ao camponês sem terra) é
Roraima.
Em princípio a valorização da terra acarreta uma modificação dos siste-
mas de produção, porém segundo vias muito diferenciadas. No Mato Grosso
do Sul, houve expulsão dos pequenos produtores pela modificação do perfil
agrícola e uso de capital intensivo. Trata-se de uma substituição do trabalho
pelo capital segundo um modelo semelhante ao do Sul do País. Nas zonas
onde o café foi substituído por pastagens, não se pode dizer que o novo sistema
produza um maior valor por hectare e por ano. Em contrapartida, ele com-
125
bina várias vantagens: terra menos valorizada, exploração da madeira, ren-
da em produto paga pelo agricultor (que além disto planta gratuitamente a
pastagem), alta produtividade do trabalho que compensa a fraca produtivi-
dade do espaço. Enfim, o café apresentava rendimentos baixos e irregula-
res que não lhe permitiam concorrer com o novo sistema. Em uma escala mais
reduzida, observa-se a extensão das pastagens nos solos cansados e inaptos à
cultura da soja. O preço relativamente baixo da terra e a produtividade do tra-
balho possibilitam sua extensão (10). Trata-se igualmente de uma forma de
substituição do trabalho pelo capital, na qual este último éimobilizado na terra
e no gado.
Em contrapartida, as culturas perenes - nas quais Rondônia, a Transa-
mazônica (ao menos em algumas partes) e alguns projetos privados parecem
ter apostado -não acarretam a substituição do trabalho. Por certo pode existir,
e já existe, uma via capitalista da plantação, com utilização de mão-de-obra as-
salariada, e isto mesmo em Rondônia: os proprietários são obrigados a recru-
tar mão-de-obra no Nordeste, a fim de evitar o recurso à mão-de-obra local, ra-
ra e cara, e que, visto a intensidade das lutas pela terra, poderia em seguida re-
cusar-se a deixar a fazenda. Entretanto, a instauração da plantação capitalista
depende da estrutura da propriedade: ora, em Rondônia, a intervenção do Es-
tado privilegiou o pequeno produtor, e este se apóia de preferência nos agrega-
dos emeeiros. Estaformadeutilizaçãodamão-de-obrapermiteumainteressan-
te redistribuição das rendas; náo se vê meeiros que cultivam o café no Espírito
Santo comprarem terras e carros novos? (Aproveitando, éverdade, um cresci-
mento excepcional do preço do café este ano.) Este é seguramente o caminho
que parece mais satisfatório para a h a z ô n i a , ao mesmo tempo social, ecológi-
ca e economicamente. Étambém o caminho mais acessível para os agricultores
sem capital e o mais promissor do ponto de vista da promoção social.
Não se pode, contudo, evitar uma certa inquietude diante das centenas de
milhares de hectares de cacau que são plantados anualmente da Ásia àAmérica
Latina, passando pela África, pois. uma queda das cotações mundiais acarreta-
ria o fracasso e a saída de numerosos colonos. Esta esireita dependência com
relação às cotações mundiais torna aleatório este tipo de agricultura. Umagran-
de diversificação dos produtos e um sistema eficaz de estabilização nacional
dos preços seriam indispensáveis.
Os projetos privados eliminam de saída os camponeses mais desfavoreci-
dos, mas tendem a produzir outros, pela imobilização da totalidade de seu ma-
gro capital na compra da terra (pelo menos para os mais modestos). Isto explica
que estes projetos estejam freqüentemente divididos entre uma estratégia ba-
seada no trabalho (plantação) e uma estratégia baseada no capital (mecaniza-
da ou pecuária). Deve-se, entretanto, constatar que a via “moderna” marca
passo na Amazônia. Isto mostra que o que poderia ser o último estágio da fron-
teira, segundo os esquemas lineares - isto 6, a seleçã0 dos camponeses com
(10) Em todo o caso, é preciso nunca esquecer o papel das estratégias fundiárias familiares, patri-
moniais d o u especulativas.
126
melhor desempenho e a implantação de uma agricultura capitalizada utilizan-
do grandes quantidades de insumos -, não é rentável nas condições atuais da
fronteira. Além disto, visto que as culturas perenes gozam na Amazônia de uma
espécie de vantagem natural, não está comprovado que a cultura mecanizada
seja chamada a desempenhar algo mais do que um papel marginal. A baixa dos
preços da soja não permitiu testar sua capacidade de substituir as outras cultu-
ras na Amazônia. Antecipemos, entretanto, que a soja se teria propagado em
detrimento das superfícies de pastagens, mas que as plantações teriam resisti-
do; não somente por razões técnicas e culturais, mas sobretudo em razgo do
preço já muito alto alcançado pelas superfícies plantadas.
Contudo, esta “capacidade de resistência” da economia pioneira de plan-
tação está longe de ser uma situação já conquistada, como revela a história das
antigas frentes do café nos Estados de São Paulo e Paraná. A baixa dos preços e
dos rendimentos (seja em conseqüência da queda dos preços, seja pelo empo-
brecimento dos solos e envelhecimento das plantas) levou muitas vezes à subs-
tituição das plantações por pastagens. Na Amazônia, o aspecto cíclico da flu-
tuação dos preços acarretou, em passado recente, a destruição de numerosos
pés de pimenta, a estagnação e o quase abandono de importantes superfícies
cacaueiras e mesmo cafeeiras. Ao contrário, o reestabelecimento espetacular
dos preços da pimenta há dois anos e o aumento de 280%, em termos reais, do
preço do café pago ao produtor durante a campanha 198511986 levam, neste
momento, a uma retomada rápida da extensão das superfíciesplantadas. Mas,
por quanto tempo? Os preçosvantajosos manter-se-ão at6 a primeira colheita?
O desenvolvimento de sistemas agroflorestais pluriespecíficos com ciclos com-
plementares traria uma garantia de rendas mais regulares, mas sua implan-
tação se choca com numerosos problemas.
Logo que a fronteira se estende por um determinado espaço, ela inicia um
processo de estruturaçã0 que vai culminar com a consolidação de relações não-
igualitárias, sancionadaspelo acesso à terra (e pela possibilidade de manter-se
nela), e reproduzidas por ritmos de acumulação diferenciados. Constata-se as-
sim que quanto mais elevada é a origem dos migrantes mais rapidamente eles
acumulam. A cada etapa, porém, um certo número dentre os mais desfavoreci-
dos consegue concretizar um autêntico processo de promoção social (às vezes
vendendo seu lote e recomeçando em outro lugar). A fronteira oferece, por
conseguinte, reais oportunidades enquanto o processo de consolidação não
está demasiado avançado. Este é o momento, o espaço e a única chance dos
camponeses sem terra e sem capital. A eliminação destes não é inevitável, do
mesmo modo que sua permanência; há espaços de liberdade, homens em luta.
O exemplo dos pequenos posseiros do norte de Goiás mostra a importân-
cia para o camponês de poder obter a garantia da propriedade fundiária. É isto
que permite a acumulação, ali mesmo ou pela venda, nos projetos de coloni-
zação. Porém a luta pela terra é uma coisa, produzir é outra. Para estes possei-
ros como para todos os camponeses mais modestos da fronteira, a difusão rápi-
da de sementes de culturas perenes e uma boa assistência técnica parecem
indispensáveis, se se quer realmente diminuir o número de fracassos.
A mudança de governo e a promessa de uma reforma agrária tiveram co-
mo efeito mobilizar O mundo camponês. Isto se manifesta numa recrudescên-
127
cia das lutas pela terra, na recusa de emigrar, num nível superior de conscienti-
zação e de organização, bem como, fato novo, numa forte demanda referente às
condições de produzir. Por conseqüência, os dados estão mudando, sendo to-
davia demasiado cedo para analisar seus efeitos anível da fronteira. Esta é com
efeito o lugar de uma intensa diferenciação do campesinato e privilegia ainda
as estratégias individualistas e oportunistas.
BIBLI0 GRAFIA
128
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129
OS PROCESSOS DE FORMAÇÃO E AS DINÂMICAS
DAS REGIõES PIONEIRAS: O CASO D A COSTA ATLÂNTICA
NICARAGüENSE E D A AMAZôNIA BRASILEIRA
FRANçOIS LÉVÊQUE
Agroeconomista
Pesquisador do Centro de Economia de Recursos Naturais, ENSMP
60, Bld Saint Michel, 75272 Paris Cedex 06
RESUMO
Duas questões são tratadas neste artigo: Quais são os fatores nacionaisna
origem da colonização pioneira? Como caracterizar de forma dinâmica o siste-
ma pioneiro de exploração?
Duas teses são avançadas: a primeira é que a criação de regiões pioneiras
se articula fundamentalmente aos fatores políticos de soberania territorial, da
legitimidade do Estado e da identidade nacional. Ela resulta secundariamente
dos fatores sociais (crises demográficas e agrárias) e econômicos (ampliação
das bases do crescimento).
A segunda tese é que o sistema de exploração pioneiro tem sua base na ati-
vidade extrativa dos recursos primários. Sua dinâmica produtiva é determina-
da pela existência de rendas geradas a partir desta atividade. Ela pode ser
acompanhada por uma dinâmica especulativa fortemente articulada às trans-
ferências realizadas pelo Estado para as regiões de colonização. As dinâmicas
pioneiras são caracterizadas por fenômenos de apropriação e de criação de ex-
cedente.
O futuro das regiões pioneiras depende então fundamentalmente das
condições de passagem de uma economia rentista e redistributiva a uma eco-
nomia industrial e agrícola não-extrativa.
Estas teses apóiam-se em dois casos concretos: a costa atlântica nicara-
güense e a Amazônia brasileira.
Palavras-chave:
Regiões pioneiras - pioneiros - exploração fundiária - rendas - dinâmicas econômi-
cas - Nicarágua - Amazônia - Brasil.
I
130
Deux thèses sont avancées. La première est que la création des régions
pionnières se rapporte principalement aux facteurs politiques de la souverai-
neté territoriale, de la légitimité de 1’Étatet de l’identité nationale. Elle résulte
secondairement des facteurs sociaux (crises démographiques et agraires) et
économiques (élargissement des bases de la croissance).
La seconde thèse est que le système pionnier de mise en valeur est fondé
sur l’activité extractive des ressources primaires. Sa dynamique productive est
déterminée par l’existence des rentes issues de cette activité. Elle peut être
accompagnée d’une dynamique spéculative liée aux transferts de l’État vers les
régions de colonisation. Les dynamiques pionnières sont marquées par les phé-
nomènes d’appropriation et de création des surplus.
L‘avenir des régions pionnières dépend dès lors fondamentalement des
conditions de passage d’une économie rentière et redistributive à une écono-
mie non extractive de développement productif.
Ces thèses prennent appui sur deux cas: la Côte Atlantique nicaraguayen-
ne et l’Amazonie brésilienne.
Mots-Clés:
Regions pionnières - pionniers - système de mise en valeur - rentes - dynamiques
économiques - Nicaragua - Amazonie - Brésil.
131
“Pionnier:n.m. (1382;
“fantassin”,déb. XII&“
de pion).
Duas questões principais são tratadas neste artigo. Quais são os fatores
nacionais na origem da colonização pioneira? Como caracterizar de maneira
dinâmica o sistema de valorização das novas terras?
Os elementos de resposta apóiam-se no estudo de dois casos: a Costa
Atlântica nicaragüense e a Amazônia brasileira.
(1) Para a Amazônia brasileira, por exemplo, esse período cobre os anos 50,60 e início dos anos
1970. Ele se inicia com afundaçã0 da Amazônia Legal (1953)e terminacomachegadaao poder
do general Geisel e a programação do II PND (II Plano Nacional de Desenvolvimento (1974)).
132
Os fatores do crescimento econômico referem-se principalmente à ampliação
das bases de acumula.çã0 (novas alternativas para os mpitais, aumento da pro-
dução, principalmente de matérias-primas) e, em segundo lugar, à ampliação
da redistribuição. Enfim, os fatores de política nacional referem-se à soberania
e à legitimidade dos Estados, e à identidade nacional.
Eis um exemplo: o caso da Costa Atlântica da Nicarágua. A hierarquia
dos diferentes fatores e suas ligações com a politica dos Estados são a seguir
discutidas.
1.1.A formação da colonização da Costa Atlântica da Nicarágua
133
substituídos por empreendedores capitalistas, não têm mais interesse em con-
tratar uma mão-de-obra permanente ou semipermanente. As parcelas deixa-
das de graça ou alugadas aos camponeses para a produção alimentar são reto-
madas para estender as superfícies de algodão. A mão-de-obra é despedida ou,
mais freqüentemente, expulsa pela violência. Tornando-se migrante e pionei-
ra, ela abre espaço à criação. Aabertura do espaço florestal está fundamentada
sobre o movimento articulado: desmatamento pelos pioneiros/apropriação e
utilização para pastagens pelos criadores. O pioneiro, em troca do direito à la-
voura alimentar, desmata para o grande proprietário. Mais a miúdo, nenhum
acerto existe entre as duas partes. O primeiro ocupante émais tarde expulso. O
pioneiro troca. ou perde todos os direitos sobre a terra desmatada.
A população da província de Zelaya aumenta de 82% entre 1963 e 1974,
contra 30% em média pelo conjunto do País. Uma das conseqüências do desen-
volvimento do algodão é o deslocamento da produção alimentar. No decorrer
dos anos 60;mais de 25.000 ha de produção de grãos na zona do Pacífico são
substituídos pelo algodão. Em 1965,a superfície cultivada em milho da provín-
cia de Zelaya representa 7,5% da área de produção nacional; 7,4010para o fei-
jão. Dez anos mais tarde, as porcentagens respectivas são de 16,5% e 13%. A
nível nacional, o desvio amplia-se entre o crescimento da população e o au-
mento da produção de alimentos. “Além de oferecer oportunidades econômi-
cas aos pioneiros assentados, previa-se que a zona do projeto (Prica) aprovisio-
naria o mercado interior com produtos alimentícios, aliviando desse modo o
déficit de produtos básicos decorrente da transformação da zona do Pacífico
em região de produção de exportação” (J.R. Taylor, 1968).
A integraçã0 econômica da Costa Atlântica visada deve permitir também
o aproveitamento das instalações portuárias de Bluefields e assim proporcio-
nar uma saída mais favorável aos produtos de exportação rumo aos mercados
internacionais.
134
I
171
ZELAYA
I
84
MAPA DA NICARAGUA
135
outra, os meios materiais e sobretudo de propaganda utilizados para colonizar
os novos territórios.
Esse excesso tem sua significação no plano político. O caso brasileiro per-
mite ilustrá-lo. Na formação da Amazônia pioneira, como na Nicarágua, está
em jogo arealização da soberania nacional. É preciso povoar afronteira: “Ocu-
pemos a Amazônia hoje ou a perderemos’’ (2). Há uma necessidade da exten-
são do controle estatal e da integraçã0 política. Mas, mais fundamentalmente,
a Amazônia está sob o regime populista de Vargas e sobretudo sob o regime
militar, o ponto de apoio essencial do nacionalismo brasileiro. O período de
1968-1973 pode ser caracterizado como o estabelece M. Foucher (1977) co-
mo “o Brasil na hora amazonense”;a figura nacional proposta pelo Estado pa-
ra firmar sua legitimidade é Brasil = Amazônia. No decorrer desse período, a
1
crítica da colonização amazonense é julgada antibrasileira. O cidadão oposto à
colonização ésuspeito de ser um não-brasileiro. Na Franqa, o oponente à guer-
ra da Argélia não era um antifrancês?
A abertura dos espaços pioneiros constitui-se principalmente a partir da
questão nacional. Secundariamente, ela resulta dos fatores sociais e econômi-
cos. As possibilidades de tratamento dos problemas demográficos, agrários e
do crescimento econômico,pela colonização interior, são objetivamente limi-
tadas. t
Podemo-nos interrogar em conclusão a esta primeira parte sobre a von-
tade real do Estado de operar através da execuçáo do desenvolvimentopionei-
ro, um verdadeiro tratamento das questões sociais, econômicas e políticas. Po-
demos disso duvidar se observarmos as formas tomadas pela intervenção das
instituições estatais encarregadas da colonização. As características comuns às
suas primeiras intervenções são solidamente estabelecidas (J.P.Raison, 1978).
Simplesmente nós as lembraremos. São em número de quatro: o enquadra-
mento dos pioneiros, se quer total, a distribuição dos meios postos B disposição
dos colonos, se quer igualitária; a existência da população aborígene não éleva-
da em consideração, as perspectivas de evolução do perímetro enquadrado são
ocultadas. A exaustividade, o igualitarismo, a negação de uma ocupação ante-
rior e a rigidez ajustam-se com o comportamento burocrata e tecnocrata. Estas
características estão sobretudo ligadas também à visão ideológica pioneira. O
igualitarismo teórico dos projetos éuma concretização da utopia pioneira. Mas
no fundo a negação dos processos de diferenciação social e econômica é indis-
sociável das etapas posteriores à ocupação da povoação. O Estado desobriga-
se em seguida da corrida seletiva que se desenrola entre os pioneiros, os gran-
des proprietários-criadores e as firmas e no seio de cada uma dessas categorias.
Seria então a colonização pioneira uma alternativa de não-tratamento
dos problemas confrontados pelo Estado? Seria ela uma saída provisória per-
mitindo evitar as contradições internas sociais, econômicas e políticas?
É preciso examinar agora a que leva o jogo dos fatores nacionais na ori-
gem da colonização pioneira.
(2) Discurso de Costa e Silva em Belém em 1968. citado por M.Foucher (1977).
136
2. A DINÂMICA DO SISTEMA PIONEIRO DE VALORIZAÇÃO: criação e
apropriação das rendas, redistribuição dos excedentes provenientes da ativi-
dade de extração e das transferências do Estado.
137
por queimadas para criar a fertilidade necessária às culturas anuais, esgota-
mento dos solos pela atividade da criação.
Sab’e-seque a exploração dos recursos naturais é marcada pelos fenôme-
nos de renda. Cadá jazida mineral, cada parcela de terreno apresentam carac-
terísticas naturais únicas. Supondo, em condições técnicas dadas, um inves-
timento em trabalho e em capital equivalente em 2 terrenos o custo de explo-
ração será diferente. Por outro lado, existe em geral um preço Único de merca-
do.Arendaévista‘aqui comoadiferençaentreocustodeprodução, compreendi-
dos a remuneração dos investimentos e do capital, e o preço de mercado.
A dinâmica produtiva do sistema pioneiro édeterminada pela existência
da renda diferencial, resultante da exploração dos recursos primários. Esta
dinâmicaprodutiva pode ser duplicada porumadinâmicaespeculativaligadaàs
transferências freqiientemente maciças do Estado em relação a regiões pionei-
ras. A apropriação e a redistribuição desses excedentes constituem a aposta
permanente e conflituosa entre as diferentes categorias de atores da coloni-
zação. As principais categorias de atores que se pode distinguir por sua lógica
de comportamento são quatro. A categoria dos pioneiros designa o conjunto
das famílias ou dos indivíduos, deslocados na zona de fronteiras, que exercem
uma primeira atividade de extração do meio. Ela agrupa tanto os colonos agrí-
colas instalados pelas autoridades do Estado, os desmatadoresnão-enquadra-
dos, quanto, por exemplo, os garimpeiros da Amazônia. Sua característica co-
mum é que eles, inicialmente, não dispõem de nenhum capital. Os grandes pro-
prietários pecuaristas procuram assegurar o controle do espaço pioneiro para
realizar sua pecuária extensiva ou simplesmentepara fins especulativos.Asfir-
mas de extração se desdobram, nas perspectivas de pecuária e de apropriação
lucrativas. As firmas não-extrativas respondem às incitações fiscais propostas
pelo Estado. As instituições públicas e parapúblicas, enfim, acompanham a 16-
gica estatal fundamentada sobre o enquadramento total e o igualitarismo for-
mal.
Esta tese pode ser brevemente ilustrada pelos casos brasileiro e nicara-
güense.
138
que quando o ano de colheita é ruim na região a diferença entre o preço de
compra ao produtor da zona e o preço de compra médio nacional se reduz, ou
mesmo se anula. E inversamente, nos anos bons, essa diferença aumenta. O fei-
jão e o milho são cultivados na região por “roçada-apodrecimento” (3). Esta
técnica agrícola apresenta uma excelente produtividade em termos de tonela-
das colhidas por unidade de trabalho, apesar de ter um rendimento por unida-
de de superfície muito medíocre. Ela é muito superior àquela obtida pela “roça-
da-queimada” (não precisa semear com pau de cavar). Ela é igualmente mais
forte que aquela observada nas outras regiões. Até 1979, essa renda sobre o mi-
lho e o feijão era retirada antecipadamente pelos comerciantes e transportado-
res. Ela é amplamente exportada da zona. Apartir de 1980, com a aplicação de
uma nova política de comercialização, o preço de compra ao produtor aumen-
tou consideravelmente (ele é multiplicado por 3 no decorrer das 3 primeiras
campanhas).
A produção dá um salto adiante. Assiste-se mesmo a uma migração sazo-
nal para produzir o feijão. Os produtores passam aproximadamente 1mês na
zona, em dois períodos. No final do segundo período, eles entregam sua colhei-
ta diretamente ao organismo público coletor. Em seguida, eles tomam o ônibus
para Matagalpa ou Esteli.
Na Amazônia brasileira, a dinâmica produtiva éfundamentalmente mar-
cada pelas perspectivas e a existência das rendas da mineração.
Os recursos florestais são ainda pouco explorados para a sua madeira. As
serrarias e as fábricas de compensado são pouco desenvolvidas.
A produção agrícola comercial é destinada aos mercados intra-regionais,
principalmente urbanos. Aprodução cacaueira de Rondônia parece a única ex-
ceção; ela oferece lucros elevados. Os produtores pioneiros ficam em condições
de extrema instabilidade e de precariedade. Vindos sem capital, a realização de
um comeqo de acumulação, com a ausência de rendas, lhes é impossível. Se,
por sorte, descobrem boas terras, aptas a lavouras interessantes, eles são expul-
sos. Produtores de terras desmatadas e descobridores eventuais de fontes de
renda são excluídos grosseiramente dos processos de acumulação.
A pecuária repousa essencialmente sobre uma dinâmica especulativa. Em
zona de pecuária da Amazônia oriental, os donos de mais de 10.000 ha contro-
lam 56O/o das terras; esta porcentagem eleva-se a 85%se o limite é abaixado pa-
ra 1.000 ha. Aqui, as perspectivas de lucro na produção bovina, às vezes nulas,
não são o verdadeiro motor dos grandes proprietários. Sabe-se que na Amazô-
niabrasileira a apropriação do território está ligada às taxas de inflação eleva-
das, aos incentivos fiscais, aos créditos subsidiados, ou às perspectivas de reali-
139
zação de futuras infia-estruturas ou de descobertas de minerais. O vaior
das terras aumenta mesmo se as capacidades produtivas declinam (Hecht,
1984).
A produção mineira desenvolve-se consideravelmente. Em 7 anos (1977-
1983),a produção de ouro amazonense passou de menos de 25% amais de 90%
da produção nacional. Com a implementaçã0 do projeto Carajás, a produção
de ferro representará o terço da produção nacional (o Brasil é, com a Austrália,
o primeiro produtor mundial). Para o estanho, desde os anos 1970,a Amazônia
produz 10.000toneladadano, ou seja, ametadedaproduçãonacional. Avalori-
zaqão das jazidas de ouro, de estanho e de pedras preciosas opõem osgarimpei-
ros easfirmasmineiras. Estasencontramasmaioresdificuldadesparainterditar
efetivamente o acesso dos garimpeiros aos seus pontos de extração. Cada vez
que a CVRD (Companhia Vale do Rio Doce) quer interditar Serra Pelada, os
garimpeiros ameaçam sabotar a via férrea Carajás-São Luís. Notar-se-á
que as firmas e os chefes dos garimpeiros apropriam-se na totalidade das ren-
das mineiras. A arrecadação do Estado é nula.
A redistribuição das rendas da mineração toca uma população consíderá-
vel. A população dos garimpeiros pode ser avaliada em torno de meio mi-
lhão de pessoas. Conhece-se igualmente as grandes concentrações humanas,
ligadas à redistribuição ou às suas perspectivas, em torno dos pólos mineiros,
ou de suas infra-estruturas vinculadas (hidrelétrica de Tucuruí por exemplo).
Vê-se bem, então, que na Amazônia brasileira a redistribuição dos excedentes
não é unicamente aquela das rendas da atividade de extração. As transferên-
cias maciças operadas pelo Estado alimentam uma dinâmica especulativa mui-
to forte. Os principais beneficiarios disso são os grandes proprietários-pecua-
ristas e as firmas.
(4) E não parar ou frear a destruição dos recursos primririos. Éassim que, na agricultura, o proble-
ma reside menos na destruição do abrigo florestal climático que na execução de um sistema de
valorização agronomicamente e economicamente reprodutível que lhe sucederia.
140
Não se trata aqui de examinar a questão geral fundamental da passagem
de uma lógica baseada na exploração da renda e de redistribuição a uma lógica
de crescimento produtivo. Procuraremos simplesmente destacar os principais
obstáculos e os agentes potenciais de uma valorização produtiva e não-extrati-
va para os dois casos de ilustração. O nível de exame é o da análise de conjunto.
A diferenciação e a heterogeneidade locais das regiões de estudo não são então
levadas em consideração.
Na região de Nueva Guinea, observa-se um início manifesto de acumu-
lação camponesa. Seu produto está longe de ser na totalidade reinvestido na
produção agrícola local. Uma parte é diretamente consumida e permite a me-
lhoria do nível de vida familiar. Os bens de consumo comprados (querosene,
vestimentas, açúcar ...) são produtos do exterior da região. Uma outra parte
está alocada à compra de terras dentro e fora da zona (caso dos produtores sa-
zonais). O futuro de uma valorização agrícola ecologicamente e economica-
mente reproduzível é incerto. Será o sistema de “roçada-apodrecimento”
ecologicamente estável (balanços importação-exportação da matéria orgânica
e de elementos minerais) ? Em conseqüência do seu fraco rendimento emvolu-
me por unidade de superfície, não será ele ameaçado pelo prosseguimento do
crescimento demográfico? A introdução das lavouras permanentes ou semi-
permanentes é feita em condições muito difíceis: variedades mal-adaptadas,
problemas de escoamento e de conseyvação dos produtos. Enfim, a produção
baseada na renda dos grãos, mesmo na hipótese de uma degradação a longo
prazo dos solos, é levada a prosseguir pelo atrativo dasvantagens que ela ofere-
ce.
Na Amazônia brasileira, as perspectivas de umavalorização não-extrativa
sobre o conjunto do espaço são incertas. Os projetos não-extrativos, agrícolas,
florestais e pecuários das firmas são condenados, no seu conjunto, como hoje,
ao prejuízo financeiro ao menos até meio-termo. É necessário às firmas, pelo
fatode o volume dos capitaisaplicados (sob condições que esses capitais proce-
dem, em parte, de fundospróprios),assegurara reprodução agronômica de seus
sistemas de produção. A ausência de referências técnicas sólidas torna difícil
sua realização. Ela é muito onerosa. É o exemplo do Tari e de suas dificuldades
de implementar seu programa de reflorestamento. Avantagem de custo em re-
lação às produções fora do trópico florestal úmido é difícil de resgatar. A pro-
dução de massa de papel do Jari não é, por exemplo, competitiva com a de Ara-
cruz. O obstáculo reside também no confronto das firmas e das populações pio-
neiras. Como manter um enclave produtivo num espaço econômico submisso
às leis de redistribuição e de exploração de rendas?
De um modo geral, a rentabilidade da produção de carne mostrou-se nula
ou negativa. É pouco provável, salvo talvez a muito longo prazo, que a pecuária
amazonense rivalize, para demanda interna ou o mercado internacional, com
a produção extensiva dos cerrados. Hoje, os grandes indices de mortalidade, o
difícil controle da cobertura vegetal, a ausência de protóxido de cálcio são
alguns dos elementos que aí se opõem. Além disso, a intensificação da pecuária
extensiva é mais favorável fora da Amazônia. Pode-se desde então fazer a hipó-
tese de uma estagnação da pressão fundiária ligada àpecuária. Já sensível, ela é
reforçada pela diminuição das ajudas do Estado que alimentam esta especu-
141
lação. Assistir-se-á a um congelamento das terras. Trata-se, para os criadores,
de esperar pacientemente os resultados da pesquisa zootécnica em trópico
úmido.
Na Amazônia brasileira, apesar das aparências, o antagonismo produto-
res pioneiros/grandes proprietários pecuaristas não é nítido. Pode-se mesmo
esperar o domínio de uma terceira categoria de agentes: os produtores agríco-
las da segunda onda de colonização. Antigos produtores médios paulistas, por
exemplo, ocupam ou compram boas terras de Rondônia desmatadas pelos pri-
meiros pioneiros, e aí investem seus meios de produção.
CONCLu s à 0
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O CAMPESINATO COMO PONTA DE L A N ç A TERRITORIAL
DO ESTADO: O CASO D A MALASIA
RODOLPHE DE KONINCK
Geógrafo
Departamento de Geografia
Universidade Laval
Québec, Canadá, G IK 7P4
Traduçdo: MARIA LUíZA BELLONI
RESUMO
144
in order to administer the frontier, is particularly eloquent in this respect.
While consolidating its territorial hold, through monitoring the extension and
the intensification of the agricultural sector,the State is gradually transferring
to the smallholder sector the responsibility of producing a larger proportion of
the major cash crops, vulnerable on the world market.
Key words:
Southeast Asia - Malaysia - Agricultural frontier - Peasantry - Territoriality.
(1) Os poucos parágrafos que compõem esta primeira parte slo tirados de uma comunicoçgo inti-
tulada Les Politiques Spatiales des Etats à l‘endroit des pagsanneires en Asie du Szid-Esk, que
apresentei em 11 de novembro de 1984 num colóquio intitulado Estrutura do eirzprego edinû-
micaespacialda força de trabalho, realizadonaUniversidade Federalda Bahia (Salvador),sob
a responsabilidade do Centro de Recursos Humanos (CDRH) da UFBA e do CKEDAL/CNKS
da França.
145
vam-se confrontados a uma sociedade onde não existia a propriedade jurídica
permanente da terra (Furnivall, 1920, p. 4 e seg.). Esta situação parecia inad-
missível para os administradores coloniais que buscavam então desenvolver
uma agricultura mercantil e exportadora. Em algumas décadas, seu duplo obje-
tivo tinha sido alcançado: primeiro, fixar o campesinato, estabelecendo novas
regras de propriedade e criando uma classe de pequenos proprietários agríco-
las, para em seguida obter um excedente rizícola exportável (Furnivall, 1948,
p. 114 e seg.).
Nas Filipinas, entre 1918 e 1935, o Estado encorajou o desbravamento,
por pequenos camponeses, de vastos perímetros agrícolas na ilha de Mindanao
(Peltzer, 1945, pp. 90 e 134). Três objetivos eram perseguidis e todos foram
alcançados: a integração, pela colonização agrícola, de um território centrífu-
go insuficientemente controlado pelo Estado central filipino; a fixaqão de um
campesinato parcelar que podia desempenhar o papel de proletariado fundiá-
rio; a redução dos custos do desbravamento e da colonização para os grandes
propriztários (land grabbers) que conseguiram enganar, ou expulsar pela
força, os pequenos camponeses (ibid.).
Na Indonésia, a colonização de tipo fransmigrasi,aplicada pelos admi-
nistradores coloniais a partir de 1905, inspirava-se em uma lógica comparável
(Boeke, 1946, p. 155 e seg.). Tratava-se, em primeiro lugar, de descongestio-
nar a ilha de Java, densamente povoada, e de aí aplacar o problema da pobreza
rural. Em segundo lugar, a busca de uma maior integração das ilhas periféricas,
as Outer Islands precisamente, a um território nacional, centrado e gerido a
partir da ilha de Java, podia apoiar-se em parte na colonização pelos pequenos
camponeses javaneses. Em terceiro lugar, estes deslocamentos de população
javanesa iriam permitir prover de mão-de-obra as grandes plantações de Su-
matra. Este foi o caso notadamente da cultuurgebied,também chamada Deli,
este cinturão de plantações rodeando Medan na costa leste da grande ilha. En-
tre o início do século e 1930, o número de trabalhadores de plantações passou
de 55.000 a 336.000 (Stoler, 1985, pp. 31 e 43). Este crescimento deveu-se
essencialmente à imigração de coolies javaneses, preferidos aos coolies chine-
ses. Como bem mostrou Stoler em seu notável estudo, uma característica es-
sencial desta populaqão de trabalhadores javaneses, característica eventual-
mente favorecida pela “plantocracia” européia, era sua fixação por parcelas de
subsistências. Apesar de todas as confrontações que isto pôde acarretar entre
os fazendeiros e “seu” proletariado fundiário, tal situação apresentava dupla
vantagem do ponto devista dos interesses dos primeiros. Apopulação de traba-
lhadores estava melhor fixada em sua propriedade parcelar, sua subsistência e
sua reprodução sendo igualmente menos custosas para os proprietários do ca-
pital. Embora tenha consideravelmente evoluído em suas modalidades duran-
te as últimas décadas, a política atual do Estado indonésio em matéria de trans-
migração permite buscar objetivos equivalentes àqueles que eram visados pela
administração colonial holandesa. A colonização agrícola dirigida permite de-
safogar demograficamente a ilha de Java e integrar novas regiões, consolidan-
do assim o território nacional e ao mesmo tempo articulando melhor os diver-
sos setores da produção agrícola.
É contudo na Malásia e mais particularmente na península malaia -isto 6 ,
146
a Malásiapropriamentedita-que, semdúvida,aintervençäoestatal naagricul-
tura mais se desenvolveu. Aqui os componentes espaciais das políticas agríco-
las foram e permanecem muito explícitos, notadamente na gestão da fronteira
agrícola.
2. O CASO D A MALAISIA(2)
2.1. Os antecedentes do Estado moderno
(2) O termo Maláisia designa aqui a Federação da Malásia, formada em 1963, incluindo então Cin-
gapura que se separou em 1965. A Malásia compreende dois grandes conjuntos: de um lado a
penínsulamalaia, isto é, a antiga Malaia Colonial, a Malásia propriamente dita, agrupando on-
ze estados; e de outro lado cerca de 700 km a leste, na parte setentrional da ilha de Bornéu, os
Estados de Sarawak e Sabah. A península cobre 131.587 km2 e, no início de 1986, conta com
cerca de 13 milhões de habitantes, enquanto Sarawak (com 124.449 km2 e mais de 1,5 milhão
de habitantes) e Sabah (com 74.398 km2 e mais de 1,2 milhão de habitantes) cobrem cerca de
200.000 kmz mas reúnem menos de tres milhões de habitantes.
147
(IQ-atoska,1983, pp. 149-150),iria entretanto tornar-se senão repressiva, pelo
menos restritiva: em 1917,foram acrescentados o Rice Lands Enacfment que
dava aos administradores coloniais o poder de obrigar os camponeses malaios
a trabalharem em culturas de subsistência, isto é, essencialmente, na rizicultu-
ra - o objetivo era limitar a dependência alimentar dos Estados “federados” da
península (Perak, Selangor, Negeri, Sembilan e Pahang) - e os Straits Settle-
ments dirigidos aos Estados vizinhos, principalmente a Birmania e o Siam
(Lim, 1977, p. 120 e seg.). Com isto buscava-se igualmente desencorajar as ini-
ciativas pioneiras dos camponeses. Em Conseqüência - mesmo se o confina-
mento dos malaios na rizicultura esteve longe de ser atingido, pois um bom nú-
mero de pequenos camponeses lançaram-se na cultura ilegal da seringueira; e
mesmo que, em conseqüência, a colonização pioneira e individual daszonasflo-
restais do interior da penínsulatenha continuado -o desenvolvimento dafron-
beira agrícola foi consideravelmente desacelerado.
Desta forma os administradores coloniais tinham contribuído, de algum
modo, para constituir uma reserva de campesinato parcelar necessitando colo-
nização de um lado, e uma fronteira agrícola a reativar, de outro lado. Isto es-
tava, aliás, explícito no discurso colonial (Kratoslta, 1982,p. 302 e seg.).Nomo-
mento da passagem dos poderes, com a independência de 1957, a elite malaia
dispunha de um campesinato a modelar, de um projeto territorial latente para
aí chegar e de um discurso já preparado para justificá-lo (Rudner, 1971,p. 190).
(3) Esta oposi@o, hoje marginal em termos políticos e territoriais, foi combatida militarmente e
com bastante sucesso no quadro que foi chamado de Emergency (1948-1986). Cf. Short, 1977.
148
merciais quanto para a do arroz, o País tendo por isso que enfrentar um sério
déficit rizícola.
As tentativas de resolução destes problemas passarão, pois, pela elabo-
ração progressiva, mais rápida e eficaz, de políticas agrícolas baseadas em ver-
dadeiras estratégias espaciais (De Koninck, 1981a). A agricultura vai consoli-
dar-se, diversificar-se e se estender.
(4) Segundo o recenseamento de 1980 (Department of Statistics, 1983, p. 18),na peninsula os ma-
laios representam 55,3% dapopulação, os chineses 33,SVo e os indianos 10,2%. Em Sarawak, as
proporções correspondentes são de 69,3Vo, 29,5% e 0,2%; em Sabah, de 82,90/0, 16,2% e O,6O:u.
Entretanto, deve-se precisar que nestes dois casos a categoria de recenseamento não designa
“Malaios”,mas,respectivamente,Bumipute (“filhosdaterra”,autóctones)ePribumi(autócto-
nes); isto permite associar estatisticamente e, espera-se, politicamente os verdadeiros autócto-
nesde Bornéuaos malaios da penínsulae àsua causa. Semesteartifício os “ma1aios”estariamem
minoria nos Estados de Bornéu. Assim, sabe-se que em Sarawak os iban significam 30,3°%da
população e os malaios propriamente ditos 19,7°;o. (Idem.).
149
QUADRO 1- IMPORTANCIA RELATIVA DOS ORÇAMENTOS AGRÍCOLAS E
DOS ORÇAMENTOSALOCADOSÀ COLONIZAÇÃ0 NA MALÁI-
SIA, 1966-1985.
NOTAS: a) Durante o período considerado, o valor do $ ringgit malaio evoluiu entre 0,33
e 0,45 dólar americano.
b) Por colonização entende-se, aqui, o que é designado na Malásia pelo termo
land development, isto 8, em primeiro lugar e sobretudo a abertura propria-
mente dita de frentes pioneiras, mas também a consolidação ou a reabilitagão
de plantações camponesas em situação precária.
do, o que caracteriza realmente a land policy, a política espacial do Estado ma-
laio, é o de organização das frentes pioneiras.
150
mentos agrícolas nas terras baixas melhor controláveis da periferia da penínsu-
la, após 1957, os administradores do Estado independente vão tentar a con-
quista do interior, por meio da colonização.
Durante seus primeiros anos de atividade, istoé, de 1957 a 1961,a agência
Felda apenas apoiava financeiramente os novos programas de colonização dos
diversos Estados da península (Blair e Noor, 1981,p. 4).Aliás, tais programas
visaram então somente pôr um pouco de ordem nas práticas de desbravamento
e de colonização mais ou menos espontâneas que, sem nunca terem cessado,
r
N B A S DE CULTURAS COMERCIMS, NA MALABIA.
PLANOS QÜINQÜENAI S
PROGRAMAS
1961 - 1966- 1971 - 1976- 1981 -
1965'" 1970'') 1975'*' 1980'3' 1985[4)
(em hectares)
Programas das
Agências Federais
Felda 46.060 69.110 155.600 218.105 161.581
Felcra 47.720 19.995 22.492 28.218 41.142
Risda - - 18.243 13.220 9.770
1
1.545 40.926 77.875 5'6.606 73.279
153.926 I 217.151
Programas do Estado
e Setor Privado
(Joint Ventura)
TOTAL GERAL I
?
158.645
7153.621 I
52.951
385.503 1
67.096
480.565 I
100.000
549.644
NOTA: Nos três primeiros planos, o sistema inglês de medidas prevalecia; os dados em hec-
tares foram, pois, calculados pela relaçiio: 2,59 acres = 1 hectare.
151
reapareciam com mais força. Depois, progressivamente, a agência ia ser dotada
de maior autonomia e tornar-se o mestre-de-obras do desenvolvimento da
fronteira agrícola, particularmente na península (Quadro 2). Superfícies con-
sideráveis, a maior parte situadas nas zonas florestais do interior, foram colo-
cadas a sua disposição. Estas terras destinadas à coloniza@o são em geral pro-
priedade dos Estados ou são adquiridas por estes e é então com as adminis-
trações locais que a agência negocia a transferência dos “poderes”. O Estado
local (Pahangou Johore ou Negeri Sembilan, etc.) permanece proprietário, mas
é a agência Felda que se torna administradora e assume a responsabilidade de
desenvolver a infra-estrutura ou de contribuir para o desenvolvimento desta,
notadamente em termos de estradas de acesso.
Cabe geralmente àagência identificar e avaliar as áreas potenciais que de-
vem ser abertas à colonização. Ao fazerem isto, seus representantes são chama-
dos a colaborar com os diversos ministérios envolvidos, tanto a nível federal
como dos Estados. A agência possui, todavia, escritórios regionais e emprega
grande número de engenheiros, agrônomos e especialistas que asseguram ao
que se tornou um poderoso aparelho de Estado um alto grau de autonomia e
uma notável abrangência do território (Figura 1).
A estrutura de administração da agência Felda é ao mesmo tempo com-
plexa e eficaz. Segundo os últimos dados oficiais, referentes ao ano de 1981
(Felda, 1983, p. 4), a agência propriamente dita emprega 7.385 pessoas, das
quais 754 no escritório central em Kuala Lumpur, 1.077 nos escritórios regio-
nais e 5.419 no próprio campo, isto é, no interior dos projetos que ela adminis-
tra. Mas ela controla também oito corporações distintas que empregam 9.093
pessoas. Estas “corporações” são na realidade divisões administrativas do apa-
relho de gestão, responsáveis por atividades especializadas(5). Se acrescentar-
mos as três companhias, associadas à Felda, que operam na refinação de azeite-
de-dendê e da cana-de-açúcar e empregam 854 pessoas, o total de empregados
do grupo Felda ultrapassa 17.000 pessoas.
Este poderoso aparelho teve, pois, como primeira função organizar o de-
senvolvimento das frentes pioneiras desde a independência em 1957 e sobretu-
do desde o segundo plano qiiinqüenal da Malásia (1961-1965). Desde então,
Fe!& estabeleceu 308 perimetms ccja grande aier ria (cerca de 300)situa-se
na península. Ao fim de 1981, podia-se contar um total de 564.910 hectares já
desbravados no interior destes perímetros acolhendo então 70.500 famílias de
colonos (Quadro 3). Segundo os primeiros relatórios sobre a realização do
quarto plano qiiinqüenal da Maláisia (1981-1985),pode-se estimar que, no iní-
cio de 1986,a agência Felda dispõe de mais de 700.000 hectares já desbravados,
mas nem todos suficientemente “desenvolvidos” para serem inteiramente
aproveitados pelas quase 90.000 famílias de colonos já estabelecidas (6).
(5) Estas oito corporações são responsáveis por atividades designadas do seguinte modo: Milk,
Marketing, Transport, Latex Handling, Trading,Security Services, Agricultural Services, Cons-
truction (Felda, 1983, p. 1).
(6) Os dados referentes às atividades da agência Felda estão em geral disponíveis com certo atra-
so e podem variar segundo apareçam nos relatórios anuais da agência ou nos planos qiiinqiie-
nais. Além disto, são pouco detalhados e ilustram mal os detalhes de utilização do solo no inte-
rior dos projetos.
152
FRENTES PIONEIRAS DENTRO DA PENINSULA MAldrslA
Perímetros e instalaç8es da Agência Felda em 1981
153
QUADRO 3 - ~RRASDESE~TOLVIDASF’ELA
AGÊNCLFELDA, NAMAL~~SIAATÉ
1981.
IFamílias I Perímetros Superfícies
Estabelecidas
Culturas
t
T ~~
hectares nP YO
154
rante os últimos anos, a política da agência evoluiu para uma maior concen-
tração do hábitat. Enquanto que entre os perímetros mais antigos podia-se
encontrar até uma dezena de aldeias, hoje a tendência é o planejamento de
uma ou duas aldeias por projeto. No caso dos perímetros particularmente ex-
tensos, isto pode significar agrupamentos de 500 a 600 famílias. Além disto, co-
mo a tendência atual é de desenvolvimento de perímetros contíguos, a concen-
tração das atividades e serviços é cada vez mais acentuada. É o caso notada-
mente do centro do Estado de Pahang, ao norte de Temerloh, onde cerca de
vinte perímetros estão “aglomerados” (Figura 1).
Ao tomar posse de sua casa familiar, o colono assina um contrato com a
agência referente ao eventual reembolso do preço da casa, do lote e da alocação
mensal que ele vai receber enquanto espera que as árvores comecem a produ-
zir. De fato, quando os colonos estão estabelecidos, eles só têm alguns meses a
esperar, pois a plantação foi feita muitos meses antes de sua chegada (8).Du-
rante estes meses, eles deverão desenvolver o jardim contíguo a sua casa e cui-
dar de sua parcela, segundo as instruções fornecidas pelosfuncionários da Fel-
da que doravante não cessarão de controlar os colonos. Estes podem também
se empregar como trabalhadores na direçã0 do perímetro a fim de participar
dos numerosos trabalhos de desbravamento e preparação.
Se a manutenção e depois a cultura da parcela permanecem sob arespon-
sabilidade do colono e de sua família, estes contam com os conselhos e serviços
fornecidos pelos técnicos da Felda. De fato os colonos são cadavez mais operá-
rios agrícolas, com a única diferença, fundamental do ponto de vista da gestão
do trabalho, de que sua renda éfunção do rendimento da parcela que eles estão
comprando. Eles trazem sua colheita aos centros de coleta geridos pela agência
no interior mesmo do perímetro dos projetos. Sua renda bruta é calculada em
função do peso do látex ou dos frutos colhidos, de sua qualidade e do preço do
mercado (9). Para a determinação darendalíquida, deduz-se da rendabruta: de
um lado, as mensalidades da hipoteca (geralmente parceladas em 15 anos), da
casa, o preço do lote, o reembolso daalocação; e, de outro lado, as despesas de es-
tabelecimento (bens e serviços) efetuadas junto à agência. Os rendimentosagrí-
(7)Narealidade, ao longo dos anos, as políticas da agPncia evoluíram consideravelmente não so-
mente na seleção dos colonos mas também na dimensão das superfícies alocadas, o tamanho e a
natureza das casas, o estado dos lotes oferecidos, etc. De modo geral, a quase totalidade dos co-
lonos que se apresentam sendo malaios e muçulmanos, a questão do sexo se coloca raramente:
os candidatos são quase sempre do sexo masculino. Deve-se notar que isto só poderá acelerar a
erosão das relativas vantagens fundiárias de que se beneficiam as mulheres na sociedade malaia
tradicional.
(8) Também aqui as práticas evoluíram. De um lado, a melhoria das plantaqões é tal que diminuiu o
número de anos necessários para que a seringueiraverta seu látex (5 anos emvez de 7),ou para
que o dendezeiro produza frutos prontos paraa colheita (apenas 3 anos). De outro lado, busca-
se estabelecer os colonos em uma data mais próxima da época de início da produção.
(9) Ainda umavez, impõem-se nuances, pois as condições mudaram muito nos últimos anos. Nos
perímetros dedicados àcultura do dendC, o trabalho da colheita, de longe o mais importante, é
cada vez mais organizado em equipe. Assim, por exemplo, um grupo de vinte colonos, Cujas
parcelas contíguas constituem um “bloco”,trabalham em equipes. Então é o peso da colheita
coletiva que élevado em conta: isto já tem acarretado sérios problemas de injustiça e insatis-
fação (Massard, 1984, p. 34 e seg.).
155
colas sendo excepcionalmente elevadosnos perímetros Felda, arenda dos colo-
nosé emgeralnitidamentesuperioràrendadosmembrosdascomunidadescam-
ponesas das quais eles vêm, ou àquela dos trabalhadores nas plantações priva-
das.
Os colonos dos projetos Felda, apesar dos problemas quevão aparecendo
com o passar dos anos - eaos quaisvoltaremosbrevemente mais adiante -, re-
presentam no interior das comunidades rurais do País uma minoria relativa-
mente privilegiada: no total eles representam apenas cerca de lOO/o das famílias
agrícolas do País. Entretanto, apesar do isolamento geográfico de um certo nú-
mero de perímetros Felda, a política espacial da agência não está isolada, pois
aí se articulam ou pelo menos se acrescentam as de outros agentes.
(10) A agência Felcra foi constituída somente em 1968, porém os programas e projetos que pas-
saram para seu controle a partir desta dara haviam começado em 1960.
156
Também em terinos de área de intervenção, a agência Risda não pode
competir coin a agência Felda (Quadro 2). Porém o número de seus clientes
atuais é tão elevado quanto o da outra agência, pois eles s50 todos pequenos
produtores (que não dispõem muitas vezes de mais de um ou dois hectares) que
“replantam” ao mesmo tempo apenas uma fraçã0 de hectare. Assim, quando as
estatísticas relativas à ação desta agência mencionam 100 hectares “replanta-
dos”, é preciso esclarecer que isto implica várias centenas de produtores.
Estas três agências, Felda, Felcra e Risda, desempenharam uin papel cen-
tral na política de desenvolvimento e de consolidação da fronteira agrícola na
Maláisia e sobretudo na península. Além disto, sua ação não se limitou, e se li-
mita cada vez menos, exclusivamente ao setor da produção agrícola. Com efei-
to, todas as três diversificam suas atividades principalmente com o comércio e a
indústria de transformação, como já foi mencionado acima a respeito da agên-
cia Felda. Aliás, estas agências, e em particular a Felda - graças àtaxa cobrada
sobre os produtos cujo escoamento elas asseguram, graças aos preços que elas
cobram por seus serviços - são verdadeiras potências financeiras que soube-
ram diversificar suas atividades e haveres.
Elas podem também confiar progressivamente a responsabilidade da
fronteira agrícola aos Estados locais e facilitar a participação do setor privado.
De fato, durante os últimos planos qüinqüenais, os programas sob a dependên-
cia das administrações locais desenvolveram-se consideravelmente, a tal pon-
to que, durante o plano de 1981-1985, os programas pioneiros dos Estadosfo-
ram quase tão ambiciosos quanto os das agências federais. Isto éverdade sobre-
tudo na península, pois no interior dos Estados da ilha de Bornéu, Sabah e Sara-
wak, as agências federais nunca haviam conseguido dar, a este ponto, continui-
dade às iniciativas locais. Enfim, o papel das joint ventures entre o Estado e o
setor privado cresce consideravelmente (Quadro 2).
157
locais. Estes IADP, distintos dos projetos das três grandes agências federais em
ação na fronteira agrícola propriamente dita, são pois essencialmente localiza-
dos nas terras baixas onde predomina a rizicultura. Sua administração está sob
a responsabilidade de um aparelho de gestão que deve responder ao mesmo
tempo ao governo central e ao estadual, mantendo, contudo, uma grande auto-
nomia. Em fins de 1983, quinze dos vinte e dois projetos integrados eram consi-
derados como estabelecidos: eles envolviam 480.100 familias agrícolas, traba-
lhando 847.500 hectares. (Government of Malaysia, 1984, p. 246). A densida-
de agrícola destas áreas de terras baixas é, como se pode ver, nitidamente mais
elevada do que as margens pioneiras do interior.
Há previsões de que ao fim dos anos 80 o domínio dos IADP estender-
se-á para cerca de dois milhões de hectares cultivados por cerca de um milhão
de famílias camponesas (Kassim et alii, 1983,II, Quadro 1).Se somarmos todos
os espaços administrados e todas as populações agrícolas controladas pelas
agências federais e locais, constataremos que em breve o essencial do setor
camponês estará diretamente sob a tutela dos aparelhos de Estado (ibid.p.
234). O mapa da agricultura malaia torna-se cada vez mais o mapa dos territó-
rios diretamente administrados pelo Estado que tomou o controle de todas as
fronteiras agrícolas, antigas, novas ou em potencial, com conseqüências múlti-
plas.
(11) Os dados disponíveis sobre o conjunto do setoragrícolasão demasiado confusos para que se
possa estimar um número exato. Pode-se estimar que o total de superfícies cultivadas em to-
do o País não deve ultrapassar cinco milhões de hectares. Em outras palavras, as cinco princi-
pais culturas cobriram cerca de 90% deste total.
158
borracha nas exportações da Malásia era excepcionalmente importante, si-
tuando-se ainda em 55% do total em 1961 (001,1963,p. 334);em 1983,esta
parte não era mais de 11Vo (Ministry of Finance, 1984,p. 152). Entre estas duas
datas a diversificação das atividades exportadoras realizou-se não somente na
própria agricultura mas na economia como um todo. De uma economia basea-
da em dois produtos essenciais, a borracha e o estanho (21610em 1961),passou-
se a uma economia de exportação, na qual o petróleo representa um quarto do
total, os produtos manufaturados um pouco mais, a madeira cerca de 15% e a
borracha e o dendê representam cada um cerca de 10%. O conjunto das outras
exportações agrícolas (onde a parte do cacau não para de crescer, ultrapassan-
do mesmo a da copra) agora supera emvalor as exportações de estanho que não
significam mais que 5% do total nacional (ibid.p. 117 e seg. e 152). Enquanto
em 1961 as exportações de origem agrícola representavam cerca de 65% do to-
tal nacional (Malásia),elas representam hoje menos de 30% (ibid.).Em termos
de ocupação da população, a parte da agricultura evoluiu mais ou menos do
mesmo modo: cerca de 75% em 1961,passou a 37% em 1983 (Government of
Malaysia, 1984,p. 127).
Estes declínios nas proporções camuflam contudo a natureza e a im-
portância das operações de diversificação e de intensificação realizadas desde
o início dos anos sessenta no próprio interior desta agricultura, que permanece
o principal motor da economia do País, segundo os analistas do Banco Mun-
dial (World Bank, 1983,p. 18).E m primeiro Lugar, o total das superfícies dedi-
cadas à seringueira não mais se expande. Em segundo lugar, um formidável
programa de expansão da cultura do dendê foi lançado e continua atualmente
(Quadro 4).E m terceiro Zugar, mesmo sendo objeto de um aperfeiçoamento
nas técnicas de produção, a cultura do coco apresenta uma redução em termos
de superfície, enquanto que a do cacau se difunde, algumas vezes em substi-
tuição ao coqueiro, ou simplesmente em culturas intercalares. Em quarto Zu-
gar, a rizicultura foi objeto de uma intensificação totalmente excepcional, a
Malásia sendo o país onde a dupla safra se difundiu mais: enquanto em 1961 es-
ta cultura era praticada de modo totalmente marginal (001,p. 225),em 1981
ela abrangia mais de 50% das superfícies, contra 11% na Indonésia (Taylor,
1981,p. 178).Em conseqüência, enquanto durante os anos que se seguiram à
independência o País devia importar até a metade do arroz necessário ao con-
sumo nacional, esta proporção é atualmente da ordem de 10%.
Este crescimento da produção, também muito marcante nas duas outras
principais culturas, a borracha e o dendê (Quadro 5),não está ligado somente à
extensão das superfícies em produção, particularmente no caso do dendê e da
rizicultura pela dupla safra, mas também e sobretudo está ligado ao crescimen-
to dos rendimentos. Isto representa uma quinta mudança fundamental bem
ilustrada pelo caso do dendê e, sobretudo, da borracha natural, dos quais a
Malásia assegurava ainda, em 1983,respectivamente 51% e 39% da produção
mundial (Far East and Australasia Yearbook, 1984,p. 56). Entre 1961 e 1981,
os rendimentos médios do dendê quase dobraram (Muhamad, 1982,p. 9).En-
tre 1951 e 1983,osrendimentosmédiosdolátexpassaramde463acercade 1.300
kghectare (ibid.p. 9 e Ministry of Finance, 1984,p. 114).E mesmo se osdesem-
penhos das grandes plantações em termos de produção por unidade de superfí-
159
Culturas 1965") 1977'2' 1980'3' 1983'3' 1985")
NOTA: a) As superficies em padi levam em conta a dupla safra anual, cuja prática acentuou-
se durante os anos setenta e explica por si só o crescimento das superfícies.
160
Todas essas modificações que, mesmo assegurando uma melhor repar-
tição espacial da população, foram realizadas em termos de expansão ou de re-
dução, de realocação ou de adaptação, de intensificação ou de crescimento
articulam-se em torno de um processo centraZ,o de pôr sob tutela o campesina-
to. Por sua vez, este processo baseia-se na dinâmica pioneira do campesinato,
isto é, no exercício de seu papel de ponta-de-lança territorial do Estado (De
Koninck, 1984, p. 264).
Produções
Azeite-de-dendê
Padi (arroz) 83,4 111,s
- ~~~ _ _ _ _ _ _ ~
FONTE: Governo da Maliisia, 1981, p. 264. Para 1985, trata-se de estimativas que em geral
parecem ter sido confirmadas.
161
condição camponesa. Porém há mais do que isto. O que o Estado da Maláisia
soube fazer, talvez melhor do que qualquer outro, assegurando ao mesmo tem-
po a reprodução do campesinato, foi utilizar a tewitorididade do pequeno pro-
dutorparcelar. Estaterritorialidadeéumarelaçãoaumcertoespaço detrabalho,
um espaço no qual foi acumulado trabalho, e que faz ao mesmo tempo a força e a
fraqueza do pequeno produtor parcelar. E que, e isto éverdadeiro para muitos
contextos, pode ser uma vantagem e uma armadilha (De Koninclr, 1984, p.
266). Na Malásia, isto significa concretamente que a alocação parcelar do tra-
balho, por mais controlada e mesmo arbitrária que ela possa ser(l3),permite
ao Estado realizar objetivos de integraçã0 social, política e econômica que se
articulam com, que até exploram, o trabalho “territorializado” dos pequenos
produtores e em particular o das mulheres (De Koninclr, 1981c e’1985, p. 167).
Do ponto de vista da condição camponesa, os efeitos são ambíguos (Gib-
bons et alii, 1980). No conjunto do País, a taxa de pobreza rural mal regrediu
ao longo da última década. Em 1983, cerca de 55%da população agrícola vivia
ainda no limiar da pobreza’(Government of Malaysia, 1984, p. 80);no interior
dos Integrated Agricultural Development Projects, esta população ultrapassa
em média os 50% (Kassim et alii, 1983, vol. 1,p. 122). Quanto aos colonos da
agência Felda, embora a maioria receba uma renda que os coloca nitidamente
acima da média dos pequenos produtores agrícolas do País, eles estão em uma
situação de extrema dependência. Neste ponto eles representam, com os rizi-
cultores do projeto Muda, o último protótipo de uma categoria de produtores
agrícolas, hiperespecializados, cuja sobrevivência é direta e exclusivamente
dependente do Estado ... e do mercado mundial (De Koninck, 1983). Com efei-
to, em se tratando das culturas comerciais, tais como a borracha e o azeite-de-
dendê, seus preços variam consideravelmente e tendem a baixar desde há
alguns anos (Ministry of Finance, 1980,p. XIVe 1984, p.XX). Avulnerabilida-
de dos colonos é total e seu isolamento, notadamente geográfico, é grande.
Aliás, um dos problemas essenciais no interior dos projetos da agência Felda é
o êxodo dos jovens (Blair e Noor, 1981, p. 19). Se,por um lado, a colonização
agrícola parece ter sido objeto de um planejamento rigoroso, seus sucessos res-
saltaram, por outro lado, a ausência de um verdadeiro planejamento do em-
prego. Com efeito, a fronteira. agricola. IFicrura
‘--O --- 1-/’I nZo
--
teve at6 hoje se@-o um
impacto marginal sobre o desenvolvimento das cidades do interior ou pelo me-
nos sobre um crescimento bem distribuído das pequenas cidades (Figura 2).
Pode-se, contudo, esperar que uma atenção toda especial seja dada a esta ques-
tão no quadro do próximo plano qüinqüenal(l986-1990). Porque a tutela dos
camponeses e de seus espaços de produção, inclusive na fronteira agrícola, não
poderá ser mantida sem que se assegure igualmente sua integração aos setores
urbano e manufatureiro. Então poder-se-á melhor compreender o papel da
fronteira “agrícola”, em um país tal como a Malásia, e a importância das res-
ponsabilidades que pesam sobre aqueles que nela trabalham, os camponeses.
(13) Assim, nos perímetros administrados pela agência Felda, a propriedade real do bem fundiário
está longe de ser confirmada para os colonos: a agência cede a propriedade da parcela “deles”
aos colonos, uma vez que estes pagaram o empréstimo hipotecário, com a condição que eles
não a vendam, não subdividam, não mudem sua utilização ...
162
E W L U C Ã O D A REPARTIÇÃO D A S CIDADES DE lO.000 R E S I D E N T E S E M A I S
N A PENfNSULA MALASIA DESDE 1957 A 1980
163
BIBLIOGRAFIA
164
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166
DESENVOLVIMENTO REGIONAL N A
PERIFERIA AMAZÔNICA
Organização do espaço, conflitos de interesses e programas
de planejamento dentro de uma região de ‘ponteira”
O caso de Rondônia
MARTIN COY
Geógrafo
Geographisehes Ins tit ut
Universität Tübingen
HÖlderlìnstraBe 12
7400 Tübingen 1,RFA
Tradução: ELIZABETH MARIA SPELLER
RESUMO
* Este trabalho faz parte de uma tese de doutorado, atualmente redigida pelo autor, sob a direçã0
do Prof. Dr. G. Kohlhepp, “Geographisches Institut der Universität Tübingen”. As pesquisas no
Brasil, de abril de 1983 a novembro de 1984,foram possíveis graças a uma bolsa da ‘‘FundaCão
Friedrich Ebert”, Bonn. No Brasil, o projeto de pesquisa está ligado ao “Núcleo de Altos Estudos
Amazônicos” da Universidade de Belém e ao Departamento de Geografia da Universidade de
Brasília.
167
de desenvolvimento desfavorável a uma “autodeterminação” regional revelam
a posição dependente das frentes pioneiras no sistema das relações desiguais
entre “centro” e “periferia” no Brasil.
Palavras-chave:
-
Amazônia brasileira Rondônia - Migração - Colonização - “Fronteira”camponesa
- Diferenciação social - Conflitos fundiários - Programa Polonoroeste, NUAR.
DÉVELOPPEMENT RÉGIONAL À LA
PÉRIPHÉRIE AMAZONIENNE
Organisation d e l’espace, conflits d‘intérêts et programmes
d’aménagement dans une région de ‘Pontière”:
le cas du Rondônia
RÉSUMÉ
La région analysée constitue un des fronts pionniers les plus dynamiques
lem Amazonie brésilienne. Le développement régional du Rondônia est ca-
ractérisé, pendant les dernières années surtout, par une migration continue de
paysans “expulsés” provenant des régions rurales du sud et sud-est du Brésil, et
par la colonisation publique basée sur une distribution de parcelles de 50 à 100
ha, Bien que le Rondônia ait été considéré comme “frontière paysanne réus-
sie”, on peut observer actuellement une différenciation sociale dans l’espace
rural tendantà reproduire des structures socio-économiques des “régions d’ex-
pulsion rurale” des zones centrales du Brésil. La région voit surgir des conflits
fonciers, provenant d’un déséquilibre croissant entre démande et offre de ter-
res. On peut en chercher la cause dans les choix de la politique brésilienne qui
néglige les intérêts du paysannat. Sur la frontière, cela se traduit par une
compétition inégale entre différents “modes de production”.
Les stratégies d’aménagement de l’Etat, à l’exemple du program Polono-
roeste se révêlent incapables de restructurer de développement régional. Mê-
me si ces stratégies sont orientées vers les besoins fondamentaux de la popula-
tion paysanne; les problèmes de réalisation de ces stratégies et surtoiut % ! -I
fluence du cadre général de développement défavorable à une “autodétermi-
nation” régionale, réflètent la position dépendante des fronts pionniers dans
les relations entre “centre” et “périphérie” au Brésil.
Mots-Clés:
Amazonie brésilienne, Rondônia, migration, colonisation, ‘‘frontière”paysanne, diffé-
renciation sociale, conflits fonciers, programme Polonoroeste, NUAR.
168
Rondônia was mainly characterized both by the migration of “expulsed”
peasants from the south and southeast of Brazil, which still continues, and by
the governmental directed colonization based on the distribution of 50 to 100
ha land-lots. Though Rondônia is regarded as a “successful frontier”, one can
actually observe a social differentiation in the rural areas which tends to re-
produce the agrarian structures of meanwhile consolidated rural areas in the
core regions, the regions of expulsion. As a result of an increasing desequili-
brium between supply of and demand for land Rondônia also faces an increas-
ing number of land conflicts. The reasons for these facts are to be found in the
Brazilian development strategy which neglects basic interests of peasant agri-
culture. On the frontier this is expressed in unequal conditions for competition
between different “modes of production”.
The national development strategies as demonstrated in this paper for the
Polonoroeste program, are incapable to organize the development processes of
Rondônia. Even if the development strategies should be oriented towards the
basic needs of the rural population, the problems of the realization of those
strategies would reflect the overall influence of the general framework of the
development model which is unfavourable towards a regional “self-deter-
mination”. This illustrates the dependent position of the frontier within the
system of disparities between “core” and “periphery” in Brazil.
Key words:
Brazilian Amazon Region, migration, colonization, agrarian “frontier”,social differen-
tiation, land conflicts, Polonoroeste program, NUAR.
REGIONALENTWICKLUNG AN DER
AMAZONISCHEN PERIPHERIE
Raumorganisation, Interessenkonflikte und Regionale
Entwicklungsprogramme and der Pionierfront:
das Fallbeispiel Rondônia
ZUSAMMENFASSUNG
Die Untersuchungsregion ist eine der dynamischsten Pionierfronten des
brasilianischen Amazonasgebietes seit 1970. Die Regionalentwicltlung
Rondôniaswarwährendder letzten Jahre auf der einenSeite hauptsächlich ge-
kennzeichnet durch anhaltende Zuwanderung “verdrängter” ländlicher Be-
völkerungsgruppen vorwiegend aus ländlichen Regionen Süd- und Süd-ost-
Brasiliens. Auf der anderen Seite, in Ergänzung hierzu, stand staatlich gelenk-
te Kolonisation in Rondônia auf der Basis der Verteilung von 50 bzw. 100ha -
Parzellen. Obwohl Rondônia wiederholt als Beispiel einer “gelungenen”
ldeinbäuerlichen Pionierfront angesehen wurde, kann man in der letzten Zeit
soziale Differenzierungsprozesseim ländlichen Raum feststellen, die Tendenz
zur Reproduktion von Agrarsozialstrulturen, wie sie aus den Zentralregionen
des Landes, den “Verdrängungsräumen”, bekannt sind, erkennen lassen.
Ebenso ist in der Region eine Zunahme der Land- und Interessenkonflikte
festzustellen, hauptsächlich als Folge des sich verschärfenden Ungleichge-
Wichts zwischen Landnachfrage und -angebot in den offiziellen Kolonisa-
tions-projekten. Eine der wesentlichsten Erklärungen für all dies liegt im Stil
169
der brasilianischen Entwicltlung, in der wesentliche Lebensinteressen der
IUeinbauern von jeher vernachlässigt wurden, begründet. An der Pionierfront
drückst sich dies in der Konlsurrenz, bzw. den ungleichen Entwicltlungschan-
cen, verschiedener “Produlstionsweisen” aus.
Die Planungs: und Entwicklungsstrategien des Staates, die in dieser
Arbeit am Beispiel des Polonoroeste-Programms erläutert werden, zeigen sich
nicht geeignet, die regionalen Entwiclslungsprobleme in den Griff zu bekom-
men, geschweige denn zu lösen. Obwohl diese Strategien theoretisch an den
Grundbedürfnissen der ländlichen Bevölkerung orientiert sind, zeigen die
konkreten Umsetzungsprobleme dieser Strategien, wie besonders auch der
Einfluß der Rahmenbedingungen des, einer regionalen “Selbstbestimmung”
entgegenstehenden nationalen Entwicltlungsmodells die abhängige Position
der Pionierfronten im disparitären System von “Zentrum” und “Peripherie”
innerhalb Brasiliens.
Schliisselzuörter:
Brasilianisches Amazonien, Rondônia, Migration, Kolonisation, Kleinbäuerliche Pio-
nierfront, soziale Differenzierung, Landltonfliltte, Polonoroeste-Programm, NUAR.
i. INTRODUÇÁ O
170
grandes estradas (Belém-Brasília, Cuiabá-Porto Velho, Cuiabá-Santarém) fa-
cilitaram a integração da região Norte ao conjunto do espaço social nacional.
No início deste período, a política de colonização, fundada sobre a pequena
propriedade, foi primordial para apaziguar conflitos sociais virulentos das “ve-
lhas regiões” agrícolas (Nordeste, Sudeste). A colonização da Amazônia se
propaga como “alternativa” à reforma agrária necessária, ainda que o mesmo
governo tenha criado em 1964, com o “Estatuto da Terra”, a legislação agrária
mais progressiva até os dias de hoje no Brasil.
No que se refere ao desenvolvimento regional de Rondônia, os dois fato-
res acima mencionados são de particular importância: 1)a política coloniza-
dora do Estado autoritário na região amazônica - figurando por ordem de im-
portância Rondônia logo depois da “Transamazônica” - e 2) a expulsgo da
“populaçgo excedente’’ das zonas rurais de ocupação anterior (sobretudo no
Estado do Paraná) através da modernização capitalista do setor primário re-
forçado pelo modelo de desenvolvimento brasileiro.
2. DESCRIÇÃO DA REGIÃO
171
3.1. A migração
1950 - 1985
172
FIGURA 1 - DESENVOLVIMENTO D A MIGRAÇÃO PARA RONDôNIA
1979-1984. PROCEDENCIA DOS MIGRANTES.
173
r
I
cv
174
tado de nascimedo para Rondônia; que para 45qo Rondônia já é a segunda eta-
pa fora do Estado de nascimento, para 18% a terceira, para 8% a quarta e para
4% a quinta, sexta ou sétima etapas, sem levar em consideração as migrações
intra-regionais, nem nas etapas anteriores, nem dentro de Rondônia. Da mes-
ma forma, 34%dos interrogados passaram pelo menos por uma etapa urbana
no decorrer de sua história migratória. Este fato pode explicar as mudanças re-
centes acima mencionadas, na medida em que uma certa porcentagem destes
“migrantes urbanos” possui, na realidade, raizes rurais, tentando agora voltar
ao meio rural.
A história migratória de inúmeros habitantes de Rondônia é reveladora
do processo de deslocamento das frentes pioneiras (The moving frontier) no
Brasil. Nascidos em Minas Gerais ou nos Estados do Nordeste, passaram fre-
qiientemente pelos Estados de São Paulo, Paraná, Mato Grosso do Sul ou Mato
Grosso antes de alcançarem Rondônia. A continuação da migração rumo a
frentes pioneiras ainda mais recentes, como Roraima, tem demonstrado que
podemos colocar em dúvida se Rondônia será o ponto final deste processo.
A motivação mais importante que leva à fixação em Rondônia é a preten-
dida abundância de terras novas na “fronteira”, reforçada pelo fato de umgran-
de número de migrantes fazer parte da classe dos “sem-terras” (bóias-frias,par-
ceiros, etc.) em suas regiões de origem e procedência (da amostragem de 170
colonos no PIC Ouro Preto, interrogados pelo autor em 1983/1984,4l%nunca
possuíram terra, 31% eram proprietários de terra em sua região de procedên-
cia, na maioria das vezes proprietários de um minifúndio, 28% não trabalha-
ram com agricultura, portanto também não eram proprietários de terra).
3.2. A colonização
175
tal”. As técnicas agrícolas aplicadas são sempre as mais simples (plantio direto
após queimada); as culturas de subsistência (arroz, milho, feijão) são comple-
tadas por uma série de culturas de mercado (cash-crops)propostas por insti-
tuições governamentais (como no caso do cacau ou da borracha) ou trazidas
pelos colonos (como no caso do café).
A forte migração incessante rumo a Rondônia, por um lado, e, por outro, a
capacidade de absorção limitada dos projetos de colonização pública têm co-
mo resultado, em fins dos anos 70, um forte desequilibrio entre a demanda e a
oferta das terras públicas. O Estado reage através de mudanças de política de
colonização cada vez mais limitada à distribuição de lotes de 50 ha, só que
sem nenhuma implantação de infra-estruturas (“Assentamento rápido” - Fig.
2). Podemos também considerar estas mudanças como umareação ao aumento
de conflitos fundiários na região, conflitos entre posseiros e indios, etc. (Davis,
1977; Gall, 1978). Embora tenha sido possível, desta forma, distribuir um gran-
de nGmero de lotes (Quadro 2), esta mudança não teve o efeito preconizado, já
que sem infra-estrutura a fixação dos colonos à terra se revelou impossível.
(SITUACÃO:JULHO DE 1985)
177
dor de um modo de desenvolvimento periférico de Rondônia em função dos
interesses do “centro” econômico do Brasil.
Além disso, a cidade pioneira serve, desde o começo do processo de ocu-
pação rural de Rondônia, de “sala de espera” para muitos migrantes em busca
de uma atribuição de terras na zona rural. Enquanto isso, procuram trabalho
no setor comercial urbano onde ampliam o setor informal. Tendo em vista a
atual aceleração da migração e a penúria de terras de colonização, esta si-
tuação já não é mais transitória para uma grande parte desta população urbana,
mas torna-se permanente. O perigo de uma marginalizaçã0 já não parece fictí-
cio devido à capacidade de absorção limitada da economia urbana. A cidade de
“fronteira” não é local de produção. Sua principal função é ser um local de
intercâmbio entre o mundo rural, que fornece os produtos da frente pioneira, e
os centros industriais do País, interessados nestes produtos, bem como ao mer-
cado que a frente pioneira representa para o escoamento de sua própria pro-
dução. A cidade funciona, portanto, como mediadora entre “centro” e “perife-
ria”.
I
3.4. A periferia amazônica na política nacional
178
4. DIFERENCIAÇÃO SÓCIO-ECONÔMICA NO ESPAçO RURAL
179
quemes e Ouro Preto, até 50Yo do total dos estabelecimentos. Esta tendência à
venda das exploraçõesrepresenta igualmente um dos pontos de partida de uma
diferenciação social dentro do espaço rural que trataremos através de um
exemplo no PIC Ouro Preto.
A base de nosso estudo de caso é uma linha (uma estrada de penetração)
de 18 km com 72 parcelas de 100 ha distribuídas pelo Incra em 1973a 72famí-
lias de camponeses. Destes 72 proprietários de origem, apenas 27 ainda vivem
em suas parcelas. Isto significa que 63% dos colonos estabelecidos pelo Incra
venderam suas propriedades inteiras e deixaram, no decorrer dos 11anos, a re-
gião estudada. As razões das vendas se explicam, excluindo os problemas pes-
soais, pelas dificuldades de condições de vida acima mencionadas. Em geral,
esta emigração se dirige rumo a:
1. outras partes da zona rural de Rondônia, mais próximas da ‘frente de
desmatamento”. Estabelecem-se em outro lote comprado com a renda
da venda do lote atribuído pelo Incra;
2. cidades pioneiras da região, atrativas por seu desenvolvimento acele-
rado criando às vezes situações de boom e prometendo assim uma vida
Situaçä0 1972/1973
T
ll
.......
.......
Situaçä0 1984
T
.....
.....
~
Aquisição da terra
f
Formas de exploração
ElaboracZo: Martin Coy,1985
-
Parcelciro
Distribuicão pela INCRA Minifúndio
DiploraçJo maior rpela compm A Agregado
0? ~ ~ ~ c ~ m ~ ~ d O s o de mais do que um lote) Meeiro “Sem-terra”
O lGDO 20W 3WOm
Latifúndio O Administrador
180
mais tranqiiila enquanto comerciante. Freqüentemente, por falta de
experiência, estes sonhos se revelam irrealizáveis;
3. os Nuar, novas localidades centrais planejadas no espaço rural que
têm uma atratividade comparável àquela das cidades já mais consoli-
dadas, com a vantagem de darem “mais chances aos pobres”, pelo me-
nos dentro da percepção dos camponeses;
4. as frentes pioneiras ainda mais recentes do que Rondônia (sobretudo o
Território de Roraima: no momento da pesquisa, quatro famílias ha-
viam partido para lá). A volta às regiões de origem é bastante rara.
Dos 27 colonos de origem que vivem no conjunto da linha estudada, ape-
nas 14 ainda não venderam nenhuma parte de sua parcela.
No que se refere ao modo e àforma de propriedade das terras, observamos
mudanças de dois tipos:
1. A fragmentação dos estabelecimentos, que corresponde a uma tendên-
cia ao minifúndio: 23 proprietários de terra no exemplo estudado pos-
suem menos que a metade de um lote de 100 ha. Na maioria dos casos,
trata-se de menos de 10 ha, o que corresponde, nas condições regio-
nais, a um minifúndio de uma viabilidade econômica duvidosa.
2. Seja, ao contrário, uma concentração das propriedades pela acumu-
lação de parcelas de 100 ha nas mãos de um só proprietário. Seis pro-
priedades se compõem de mais de um lote. No entanto, é necessário ti-
rar a diferença entre os “estabelecimentos maiores”,’quenão diferem
dos estabelecimentos médios coin relação a seu “modo de produção”,e
o latifúndio (no nosso caso, 12 lotes de 100 ha adquiridos por umsó
proprietário). Este último se distingue nitidamente das outras formas
de exploração: o proprietário vive na cidade, utiliza exclusivamente o
trabalho assalariado, e dá preferência à criação extensiva de bovinos.
Tal modo de produção pode ser qualificado de capitalista.
Paralelamente a esta diferenciação dentro do tipo de propriedade rural,
notamos uma diferenciação entre os adquirentes. A clientela tradicional dos
projetos de colonização, pequenos camponeses e “sem-terras”,participa prin-
cipalmente da fragmentação dos estabelecimentos, devido ao estrangulamen-
to da oferta de terras públicas. Em geral, sua situação não permite sequer a
aquisição de um lote de tamanho “subeconômico”.Ao contrário, podemos ob-
servar, no decorrer de uma certa “consolidação da fronteira”, a aparição de mi-
grantes com meios Bnanceiros suficientes para adquirir um estabelecimento já
valorizado, a fim de “pular” a etapa inicial de valorização da terra virgem.
Finalmente, a burguesia regional emergente (intermediários, funcioná-
rios, advogados, médicos, etc.) se engaja cada vez mais no setor agrícola, sobre-
tudo com um objetivo especulativo de “reserva de valores”.
Ao lado destas mudanças e diferenciações dentro da estrutura da proprie-
dade rural, o exemplo estudado mostra nitidamente a emerg&nciade uma clas-
se de “sem-ferras”na “fronteira”,devidoao crescimento da parceria (principal-
mente no caso de culturas permanentes, tais como o café e o cacau) e à existên-
cia do agregado (relação social típica do campo no Brasil, a base de “intercâm-
bio de trabalho”). Neste contexto, étambém necessário considerar o aumento
do trabalho agrícola assalariado no curso do processo de “consolidação” da
181
frente pioneira. Dele participam os “sem-terras” e uma parte dos proprietários
(os minifundistas e os proprietários menos afortunados).
No exemplo estudado, 63% das 193 famílias que vivem nos 72 lotes per-
tencem à classe dos “sem-terras” (36% sob a forma de parceria). Ainda que este
processo não seja novo para a região, um grande número destas famílias não
terá, ao contrário dos anos precedentes, a possibilidade de adquirir um lote da
colonização oficial, tendo em vista o estrangulamento da oferta de terrenos.
Este exemplo demonstra claramente que a diferenciação sócio-econômi-
ca dentro do espaço rural tende a reproduzir as estruturas sócio-econômicas
das regiões de onde vieram os migrantes em busca de uma “estratégia campo-
nesa de sobrevivência” às frentes pioneiras. Em todo o caso, a idéia oficial da
colonização pública no Brasil, enquanto alternativa para a reforma agrária,vi-
sando uma “homogeneização” social, se revela um fracasso no sistema de de-
senvolvimento capitalista no Brasil. A partir deste exemplo, se a diferenciação
social se ampliar ainda mais, esta poderia conduzir à supressão do “modo de
produção camponês” e a sua substituição pelo “modo de produção capitalista”
na “fronteira” (Wood, 1983).Mas podemos também considerar a fragmentação
atual das parcelas como uma reprodução da economia camponesa em con-
dições pouco viáveis, tanto do ponto de vista regional quanto nacional. Con-
cluindo, esta situação talvez seja o signo precursor da supressão definitiva do
modo de produção camponês e portanto do comeco de um novo processo de
expulsão. Será Rondônia apenas uma outra etapa do moving frontier no Bra-
sil?
182
0Colonizaçao POLONOROESTE
PIC Ouro Preto
0 Assentamento Rapido Projeto de colonizaçao UrupA
Reguiarização Fundlaria
Coionizaçao POLONOROESTE E3 NUAR (Nllcieo Urbano de Apoio Rural)
NUAR existentes
Fazenda (com titulo de propriedade) 1 NovaUnião
2 Teixeir6poils
Fazenda (sem titulo de propriedade) 3 NovaColina
NUAR pianejados
Reserva indigena ou em situaçao Inicial
4 "Linha 200"
Parque Nacional 5 "Linha 204"
6 Mirante da Serra
184
mudanças na fronteira de Rondônia introduzidos pelos mecanismos inerentes
à sociedade brasileira e a seu modelo de desenvolvimento?
É a partir de 1981 que o Estado brasileiro, principalmente com o progra-
ma Polonoroeste, tenta ordenar a ocupação do espaço rural de Rondônia. Com
umvolume de cerca de 15bilhão de dólares, o Polonoroeste éum dos maiores
programas de planejamento do último governo militar. O Banco Mundial par-
ticipa deste programa com 34% do financiamento. A influência desta insti-
tuiçáo sobre o conceito concreto do programa não deve portanto ser subesti-
mada (TheWorld Bank, 1981; Mahar, 1982;Goodland, 1985;Slullings, 1985).
No centro do programa encontramos o asfaltamento da BR364, Cuiabá-Porto
Velho, com uma extensão de cerca de 1.400 lun, terminado em 1984. Esta me-
dida central consumiu 42% de todos os meios financeiros do programa (Cepa-
RO, 1983). Os outros segmentos do Polonoroeste acompanham esta medida
central e visam evitar os efeitos concomitantes negativos de tal medida dentro
da região-programa. Estaúltima se estende sobre 14municipiosno Mato Gros-
so e sobre todo o Estado de Rondônia. Estes segmentos são:
- o estabelecimento de cerca de 20.000 camponeses em novos projetos de co-
lonização, dos quais 15.000 se estabelecerão em Rondônia (24% dos meios
financeiros do programa);
- o desenvolvimento rural integrado nas áreas de influência da estrada BR
364 no Mato Grosso e em Rondônia (23%);
- o combate à malária em Rondônia (2%);
- a proteção das populações indígenas na zona de influência da BR364 (3%);
- a proteção do meio ambiente na região-programa (1Vo).
O fenômeno concomitante mais visível durante o asfaltamento da BR364
(evidentemente ligado à deterioração das condições de vida devido à crise
etonômicaj é atualmente o aumento da migração rumo a Rondônia. A estrada
asfaltada garante, ao contrário dos anos antekiores, o mesmo acesso durante o
ano todo, o que se traduz por movimentos migratórios contínuos independente
das estações (SeplanIRO-Nure, 1984, 1985).
Por outro lado, não devemos negligenciar a importância da propaganda
direta e indireta feita pelo Estado (por exemplo, pela TV)na região quando da
conclusão dos trabalhos.
Para o que propomos, o segmento “Desenvolvimento Rural Integrado”
em Rondônia e o estabelecimento de novos projetos de colonização merecem
uma análise mais detalhada.
185
186
no curto raio de ação para um total de cerca de 1.000 famílias de camponeses.
No início, foi prevista a instalação de 39 Nuar. Entretanto, os planos foram li-
mitados aos 20 Nuar realizados até 1984.
A assistência do Estado, qualquer que seja o setor, no âmbito do Polono-
roeste, está ligada ao Nuar. É dentro da zona de influência definida do Nuar
(Fig. 5) que as estradas de penetração são reconstruidas. É nesta parte da zona
rural que os camponeses deveriam receber uma assistência agrícola reforçada.
Nestas áreas de influência dos Nuar o Estado deveria aumentar a assistência
médica e sanitária. Enfim, é nestas partes do espaço rural que o Estado tenta,
através da formaç50 de “Comissões de Desenvolvimento Rural” (CDR), orga-
nizar a participação da população para a realização do programa. As insti-
tuições responsáveis por estes diferentes aspectos se localizam no Nuar e, desta
forma, estão próximas aos camponeses. No Nuar, estão localizadas, alCm
destas instituições que trabalham na zona rural, um posto de saúde, uma
escola primária e um armazém da Companhia Brasileira de Armazenamento
(Cibrazem).
Dentro da zona urbana do Nuar, são distribuídas parcelas aos campone-
ses da área de influência para que estes possam construir uma segunda casa no
Nuar com a finalidade de aproveitamento de seus serviços. São também distri-
buídas parcelas a comerciantes interessados (para um exemplo de Nuar veja a
Fig. 6).
O Nuar é, portanto, fundado sobre a idéia de melhorar as condições de vi-
da da população rural, aperfeiçoando assim a infra-estrutura rural e intensifi-
cando aassistência. Para se chegar a este ponto, o meio utilizado é a proximida-
de com os “serviços centrais” e com a assistência governamental para com os
camponeses. O Nuar tem, portanto, de alguma forma, uma função de mediador
entre “cidade” e “campo”. Entretanto, o modelo do Nuar nos faz pensar
no sistema das localidades centrais dentro dos projetos de colonização da
Transamazônica (Agrovila - Agrópolis - Rurópolis, Smith, 1976; Kohlhepp,
1978) que, aliás, fracassou.
No que se refere à realização das medidas do PDRI-RO, devemos consta-
tar, entretanto, um constraste considerável entre plano e realidade.
Encontramo-nos, efetivamente, em confronto com problemas de ordem
técnica, problemas ligados à qualificação e às características do pessoal, mas,
sobretudo, problemas de ordem mais geral, provocados pelo desenvolvimento
inquietante da região (aumento da migração, aumento dos conflitos de terra) e
ligados, assim, direta e indiretamente, à política nacional.
A assistência rural pela Emater-RO (Empresa de Assistência Técnica e
Extensão Rural) se vê, por exemplo, limitada em sua eficiência pela difusão de
métodos pouco adaptados e pela falta de formação de seus colaboradores, mal
integrados às condições regionais. Aintrodução e a difusão de culturas e de sis-
temas de produção adaptados, medidas que são de importância prioritaria na
concepção da assistência rural, são deficientes pelas ausências de créditos agrí-
colas convenientes e de um sistema de comercialização adequado.
Da mesma forma, no que se refere à participação dos camponeses no Po-
lonoroeste, podemos constatar que a formação das “Comissões de Desenvolvi-
mento Rural” (CDR) permanece, na maioria dos casos, como uma ação pura-
187
m
.c
C
Casas de habitação
em construção construida, não habitada habitada E3 abandonada
188
mente administrativa, sem nenhuma vida própria. A metodologia da insti-
tuição responsável e a falta de colaboradores preparados para um trabalho par-
ticipante contribuem para este insucesso. Em nível mais elevado, podemos
pensar que nunca houve interesse político em se promover uma verdadeira
participação da população. Segundo a lógica do Estado autoritário, não há lu-
gar para isso. Assim, a hipótese, segundo a qual o aspecto participante tem mais
função de álibi, pode parecer legítima.
A reação tão brusca do Estado às iniciativas próprias dos camponeses,
organizados em “Associações de Pequenos Camponeses” regionais (p. ex.
Arcopam, Araopam, Arjopaam) para defender seus interesses econômicos e
políticos, se insere dentro do mesmo contexto (o apoio da Igreja católicae lute-
rana a estas associações certamente reforçou esta reação do Estado).
189
Tudo isto se reflete na estrutura sócio-econômica dos habitantes: apenas
23% dos interrogados possuem uma propriedade agrícola na zona rural, 16%
venderam sua propriedade rural antes de se estabelecerem no Nuar, 48% não
possuem nenhuma exploração rural na região, 8% possuem uma chácara (um
“minifúndio” nos arredores do Nuar), 6% reivindicaram uma marcação (um
terreno invadido no parque indígena “Lourdes” - trata-se de habitantes do
Nuar Nova Colina, limítrofe ao parque indígena), (levantamentos realizados
pelo autor no PIC Ouro Preto 1983/1984).
A explicação é encontrada, mais uma vez, no desenvolvimento regional
de ordem mais geral: muitos migrantes, recentemente chegados em Rondônia
e não vendo mais a realização de suas idéias iniciais de obtenção de terras de
colonização, se estabelecem nestes Nuar tentando ganhar a vida com um tra-
balho urbano (construção, artesanato, comércio, etc.). Outros trabalham como
assalariados ou parceiros nas explorações rurais dos arredores.
A procedência dos interrogados nos Nuar é também um indicador destas
tendências atuais: 41% dos interrogados são de origem urbana (em compa-
ração aos 14% da amostragem da população interrogada na zona rural), dos
quais 21Yovêm diretamente de uma cidade no Sul ou Sudeste do Brasil (levan-
tamentos realizados pelo autor no PIC Ouro Preto 1983/1984).
Tudo isto insere o Nuar no âmbito mais geral da problemática da frente
pioneira dentro do contexto do modelo de desenvolvimento capitalista do Bra-
sil:
A diferenciação social se manifesta igualmente no Nuar na medida em
que a população atual é composta principalmente de camponeses que “fracas-
saram” (aqueles que venderam suas explorações) e c]e migrantes, expulsos de
suas regiões de procedência, em busca de uma “volta ao campo” (a intenção de
76% dos interrogados dentro da zona urbana dos Nuar era adquirir terras em
um projeto de colonização). Estes se vêem agora impedidos de realizar suas
- intenções e contribuirão, portanto, para a formação de uma classe de “sem-ter-
ras” na frente pioneira.
Tendo em vista a capacidade restrita do setor comercial dos Nuar, apenas
uma minoria poderá ganhar avida alongo prazo no Nuar através de um empre-
go urbano propriamente dito. Mas o “inchamento” do setor terciário, já obser-
vado neste Nuar (a quantidade de “bares” e “boliches”no exemplo demonstra-
do - Fig. 6), e o nascimento de um “setor informal” devem também ser consi-
derados como “estratégias de sobrevivência”.
Não podemos negar o risco de marginalização. A este propósito: o argu-
mento, freqiientemente usado pelos pesquisadores no Brasil, de uma insta-
lação dos Nuar com o Único fim de fornecer uma “reserva” de força de traba-
lho destinada a grandes explorações futuras, nos parece exagerado. Tendo em
vista o processo de mudança e de diferenciação, ele poderia, contudo, um dia se
revelar certo.
190
projetos de colonização (Urupá, Machadinho, Cujubim, Capitão Silvio, Fig. 2)
poderão absorver 15.800 famílias de camponeses. Um desses projetos (Urupá)
já está realizado, e um outro se encontra em fase de realização (Machadi-
nho).
Considerando o elevado número (20.000 famílias) que já foi seleciona-
do pelo Incra em 1982 (Última seleção) para receber uma exploração dentro de
um projeto de colonização, veremos que apenas uma parte destas famílias -
elas já moram há pelo menos três anos em Rondônia - poderá aproveitar des-
tes novos projetos. Assim, até agora 14.000 famílias, apesar de selecionadas,
ainda não receberam terra (informações fornecidas pelo Miradhcra-Dr/RO,
Porto Velho, julho de 1985).
Tendo em vista o crescimento da migração nestes últimos anos, o número
de famílias que espera a atribuição de terras de colonização deveria ser, na rea-
lidade, aindamais elevado. Constatamos, então, que a distância entre a deman-
da e a oferta de terra não diminuirá com os novos projetos. Ao contrário, esta
distância aumentará devido à migração, ligada - como já vimos - ao Polono-
roeste pelo asfaltamento da BR 364.
CONCLUSÁ o
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194
TRADIÇAO E MUDANÇA NO MÉDIO SOLIMÕES
Estrutura Social e Movimentos de Base Territorial $’
PRISCZLA FA ULHABER BARBOSA
A í ztropóloga
Museu Paraense Emilio Goeldi
Departamento de Ciências Humarzas
Belém-PA
RESUMO
O Médio Solimões (AM) é uma região ocupada economicamente pela
produção de farinha de mandioca, extraçã0 de castanha e pela pesca. A socie-
dade tradicional é caracterizada por relações entre a população ribeirinha e os
comerciantes, que têm dominado econômica e politicamente a região.
A partir da década de sessenta tem-se observado uma intervenção cres-
cente do Estado no sentido da ocupação territorial, que se define como frontei-
ra em movimento. De modo diferente que outras regiões da Amazônia, este
processo não tem significado uma migração maciça recente para a área, nem a
construção de barragens ou hidroelétricas. Observa-se, no entanto, a entrada
em cena do Estado como empresário, a implantação de empresas agroindus-
triais e a generalização da representação da terra como objeto de compra even-
da.
Isto tem acarretado uma desorganização da sociedade tradicional e a
emergência de movimentos de base territorial por parte de grupos de pequenos
produtores ribeirinhos, incentivados por agências confessionais e pelo movi-
mento sindical.
Palavras-chave:
Fronteira - Desorganização da sociedade tradicional - intervenção do Estado - De-
senvolvimento regional - Relações de clientela - Brasil - Estado do Amazonas - Mé-
dio Solimões.
RÉSUMÉ
Le moyen Solimões, dans l’état d’Amazonas, est une région qui vit de la
production de la farine de manioc, de la cueillette de la noix du Brésil et de la
* Este artigo foi elaborado a partir da comunicaqlo “Estrutura Fundiiria e Movimentos Territo-
riais no Medio Solimões”, apresentada na mesa-redonda “Espaço e Poder na Amazania”, coor-
denada por Wanderley Costa, dentro do Ciclo de Debates“AGeografiaeaProduqão do Espaço”,
realizado no Museu Paraense Emilio Goeldi, entre 25 a 29 de novembro de 1985. Agradeço Phi-
lippe Léna pela leitura atenta e pelas críticas estabelecidas àquele texto inicial.
195
pêche. Les rapports de clientèle entre la population riveraine et les commer-
cants qui détiennent le pouvoir économique et politique de la région, caractéri-
sent la société;traditionnelle.
A partir des années soixante, on constate une intervention croissante de
1’Etatdans le processus d’occupation du territoire, défini comme frontière en
mouvement. Contrairement aux autres régions de l’Amazonie,ce processus ne
résulte pas d’un grand mouvement de migrationrécent, ni de la construction de
barrages hydroéléctriques. On constate par contre l’entrée en scène de 1’Etat
comme entrepreneur, l’implantation d’entreprises agro-industrielles et la
généralisation du statut de la terre comme marchandise.
Cela a entrainé une désorganisation de la société traditionnelle et I’émer-
gence de mouvements revendicaifs àbase territorialle de la part de groupes de
petits producteurs riverains, encouragés par des organisations religieuses et
syndicales.
Mots-cléS:
Frontière - Transformations des sociétés traditionnelles - Intervention de 1’Etat -
Aménagement du territoire - Clientèlisme - Brésil - État d’Amazonas - Moyen Soli-
mões.
ABSTRACT
Key Words:
Frontier - Transformations of the traditional societies - State participation -
National development - Clientele - Brazil - Amazonas State - Middle Solimões.
196
i. ZNTRODUÇÃO
Este.trabalho tem por objetivo dar alguns passos preliminares no sentido
da compreensão de uma situação particular do processo fundiário regional na
Amazônia, ou seja, no Médio Solimões, área polarizada pela cidade de Tefé,
Estado do Amazonas.
A intervenção do Estado na área em estudo tem resultado na desorgani-
zação e reorganização das relações sociais tradicionais de fronteira, acarretan-
do a intensificação do processo de diferenciação social preexistente.
Entende-se “fronteira em movimento” como um espaço social interior ao
Estado. Este atua em relação àquele no sentido de projetar uma“ocupação per-
manente e significativa da terra”, constituindo a fronteira como um “espaço
aberto, porém controlado” (Velho, 1979: 205). Na sua relação com o Estado,
a fronteira não assume um papel meramente passivo, pois atua sobre ele, ao re-
fratar suas contradições, descortinando-se, assim, possibilidades múltiplas pa-
ra os atores que nela interagem.
Enfocaremos as relações sociais no antigo Município de Tefé, atualmente
desmembrado em Tefé (22.904 lUn2), Alvarães (6.075 la$), e Uarini (9.850
lunz).A cidade de Tefé, desde 1974,o eixo central do P61o Juruá-Solimões,defi-
nido pelo Programa Polamazônia, do Ministério do Interior. Esta cidade
polariza a formação social circundante, atraindo para si a população de rios co-
mo o Japurá, nos quais tem se observado o despovoamento.
A região caracteriza-se pela tradição de subordinação do campesinato
por relações de clientela aos comerciantes articulados ao capital mercantil e
usuário. Estas relações são travadas na comercializaçã0 do excedente da pro-
dução agrícola (farinha, juta), extrativa (castanha,seringa, madeira) e da pesca.
Verifica-se na área a constituição de agrupamentos de pequenos produto-
res rurais, formados a partir da ocupação de terras devolutas ou propriedades
particulares, e, em alguns casos, através de contratos verbais de arrendamento
ou aforamento, para a extraçã0 de castanha ou produção de farinha de man-
dioca. Estes pequenos produtores em geral são de origem indígena ou cabocla,
não tendo sido observados movimentos recentes de migração maciça para
a área.
A partir principalmente da década de sessenta, tem-se observado a inter-
ferência crescente do Estado, através de organismos diversos, e de outras agên-
cias confessionais e da sociedade civil.
O Estado, com o objetivo da “Integração Nacional”, tem atuado no senti-
do da “racionalização” do sistema financeiro, da relação trabalhokerra e da
apropriação e transferência do excedente agrícola, pesqueiro e extrativo, tradi-
cionalmente efetivado pelos comerciantes, que dominam econômica e politi-
camente a região.
Sua atuação no Médio Solimões tem-se caracterizado principalmente pe-
la instalação de agências destinadas a implementar sua política agrícola como
a Emater (Empresa de AssistênciaTécnica e Extensão Rural), criação de linhas
de crédito pelo Banco do Brasil destinadas diretamente à pequena produção,
instalação de órgãos destinados à regularização fundiária - como o Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e o Instituto de Terras do
197
Amazonas (Iteram) -, além de criação de infra-estrutura urbana e rodoviária
- como a construção de estradas vicinais visando o escoamento da produção
agrícola. É significativa a entrada em cena do Estado çomo empresário, que
atua através de empresas públicas (tais como a Emade - Empresa Amazonen-
se de Dendê - de direito privado e capital misto) e da Secretaria de Obras da
Prefeitura de Tefé, que age como uma construtora.
Desde a década de setenta, os pequenos produtores ribeirinhos têm sido
incentivados a lutar pelos seus direitos prescritos por lei pela Prelazia de Tefé, e
pelo MEB, através da formação de comunidades eclesiais de base. Mais recen-
temente, em 1979,foi fundado o Sindicato de Trabalhadores na Agricultura de
Tefé, associação da sociedade civil que tem por objetivo atuar como represen-
tante de classe.
Observa-se, não obstante, nos dias de hoje, alterações na estrutura tradi-
cional de apropriação agromercantil, verificando-se o aceleramento do pro-
cesso de concentração financeira e de intensificação da diferenciação social
preexistente. As maiores propriedades fundiárias da área encontram-se no
atual Municipio de Tefé e são pertencentes a empresas como a Emade (Empre-
sa Amazonense de Dendê - 270.000 ha), Ciane (Companhia Nacional de Es-
tamparia - 50.000 ha), GTB (Guias Telefônicos Brasileiros - 60.000 ha) e
Socfinco do Brasil - 100.000 ha).
As alterações acima referidas devem ser vistas em sua especificidade.
198
bancária nacional e internacional (Santos, 1980, cap. V), centralizavam o
sistema de crédito, condicionando as relações mercantis estabelecidas pelas
casas comerciais localizadas em núcleos urbanos ao longo do Solimões, como
Tefé e Tabatinga. Estes núcleos surgiram inicialmente como aldeamentos cria-
dos atraves dos descimentos indígenas (Porro, 1981:225).
As atividades agrícolas e extrativas, “subordinadas dentro de um sistema
vertical de relações” (Oliveira FP, 1979:124), eram financiadas pelo “siste-
ma de troco”, ou seja, sem dinheiro vivo, mas sob o cálculo monetário. Àmedi-
da que as distâncias eram maiores, aproximando-se das cabeceiras ou “altos
rios”, este sistema era crescentemente espoliativo, submetendo pela dívida a
população ao “trabalho forçado” (Tavares Bastos, 1975:209, apud Oliveira FP,
1979: 124).
A clientela, entendida como relação jurídico-política de dependência,
(Oliveira, FP, 1979:112), que regula a sujeição do trabalho caboclo aos pa-
trões, articulada a uma rede mercantil, parece explicar, antes da apropriação
fundiária, a “subordinação do trabalho amazônico às determinações do gran-
de capital” (Oliveira FP, 1979:132).
A subordinação não era alcançada mediante a expropriação, dada a
abundância de terras livres e “quase ausência de agências públicas para o esta-
belecimento de propriedades fundiárias”, mas pelo controle “dos meios de co-
mercialização e financiamento da produção (Oliveira FP, 1979:131/132).
A atividade mercantil sempre esteve articulada, não obstante, à incorpo-
ração territorial. Embora tenha se tornado viável sua regularização jurídica a
partir da “Lei da Terra” de 1850, freqüentemente a mesma não foi concretiza-
da. Dada a quase ausência de Órgãos estatais no interior, destinados a controlar
e regularizar a propriedade fundiária, esta era estabelecida mediante o uso da
violência pelos próprios “patrões”, como indicam depoimentos de agentes lo-
cais em Tefé. Os limites de tais propriedades eram definidos por acidentes
geográficos e, via de regra, não coincidiam com as limitações prescritas pela le-
gislação.
Na região em estudo, tais propriedades agromercantis constituíram-se
principalmente com o fim da comercialização da castanha, que sempre esteve
articulada à pesca e à agricultura de subsistência. Dada a disponibilidade de
terras, não se concretizou a expropriação, verificando-se a constituição de um
campesinato dedicado a atividades de subsistência.
A violência da apropriação fundiária, todavia, fez-se notar sobretudo nas
áreas de terra firme, onde se localizam os castanhais. As áreas de várzea, sujei-
tas a enchentes periódicas, onde só é possível aagricultura de ciclo curto, sem-
pre foram de niais fácil acesso a indios e caboclos.
Atualmente, é considerado “patrão” aquele que, detendo os meios de co-
mercialização, fornece ao “freguês” as mercadorias industrializadas a “troco”
dos produtos agrícolas e extrativos. Hoje, a utilização deste termo se estende a
regatões e proprietários, não sendo necessária a propriedade particular da ter-
ra para que o comerciante seja considerado “patrão”.
As relações de sujeição/dominação, próprias ao sistema mercantil, ainda
são um fato no Médio Solimões, pois os proprietários, durante o período de co-
letadecastanha, utilizam-sedogerenteacreditado, emgeralummoradordo cas-
199
tanhal, como um mecanismo de vigilância para garantir a apropriação da renda
em castanha. Quando os extratores realizam a venda direta, os “patrões” utili-
zam-se da força policial.
Segundo relato de agentes locais, durante o Segundo Império e Primeira
República, a propriedade das terras era adquirida mediante compra, através da
Coletoria Estadual. Como contam diversos relatos, estas terras já eram ocupa-
das por uma população indígena e cabocla, que oferece resistênci a à demarcação
das propriedades individuais. Apesar da erupção de conflitos, os comerciantes
apropriaram-se destas terras mediante o uso da força, visando garantir o mo-
nopólio da comercialização do excedente de produtos agrícolas e extrativos.
O uso da violência pelos patrões também consistia em um mecanismo re-
gulador das relações de trabalho na atividade agrícola e extrativa. Os signos
destas práticas ainda estão vivos em instrumentos materiais, como o “tronco”,
que ainda existe em algumas localidades, utilizado em um passado recente para
a punição do freguês que não respeitasse a autoridade do patrão e vendesse a
castanha para outros.
200
Verificou-se, a partir do Estado Novo, uma preocupação crescente, por
parte do Estado, em relação à comercialização da produção agrícola. Como ob-
jetivo de viabilizar um projeto de “integração nacional”, foi tomada uma série
de medidas, as quais, a nível do poder local, tiveram como conseqüência o for-
talecimento de uma burguesia mercantil em ascensão. Como exemplo de tais
medidas, deve ser citada a criação da Spevea (Superintendência do Plano de
Valorização da Amazônia), posteriormente transformada em Sudam (Supe-
rintendência de Desenvolvimento da Amazônia), e a implantação de um siste-
ma de crédito destinado a diversificar a produção e comercialização agrária. O
Banco de Crédito da Amazônia S.A., em meados da década de cinqüenta, pas-
sou a representar a “espinha dorsal do sistema de crédito da Amazônia”...
através de financiamento e compra de safras de borracha, e propiciamento do
crédito comercial, industrial e agrícola a toda a área amazônica” (Associação
Comercial do Amazonas, 1971:161).
Nos anos sessenta, foi criada na Amazônia uma efetiva “fronteira em mo-
vimento” (Velho, 1982:205). A ocupação territorial, através da integração
de fronteiras, foi objetivo de diversos planos do Estado Autoritário no Brasil,
podendo ser citados entre eles o PIN (Plano de Integraçã0 Nacional) e o Pola-
mazônia (com objetivos traçados pelo Minter em 1974), Cujas diretrizes mais
gerais eram a “integração e o desenvolvimento da Amazônia, assim como a di-
minuição das desigualdades existentes entre ela e as demais regiões do País”
(Minter, Sudam, 1981:III).
No Médio Solimões, o objetivo era “o incentivo à produção agrícola’’e a
“fixação do homemà terra”. Um grupo de comerciantes em ascensão, entretan-
to, manipulou estas políticas de Estado a nível local, fortalecendo-se. Como as
agências que representavam o Estado articulavam-se com as classes dominan-
tes locais, a alteração de relações sociais próprias à estrutura social preexisten-
te não acarretou mudança efetiva na estrutura de dominação local. Um exem-
plo disto foi a manipulação pelos comerciantes, em proveito próprio, do cddi-
to bancário dirigido diretamente àpequena produção agrícola (Faulhaber Bar-
bosa, 1983: cap III).
.O crédito direto, destinado ao custeio da pequena agricultura, vinculado
ao Proterra, foi introduzido pelo Banco do Brasil emTefé em 1975. Inicialmen-
te, parece ter efetivamente incentivado a pequena produção agrícola. Mas com
o passar do tempo, os comerciantes tiraram proveito da situação de endivida-
mento dos pequenos agricultores. Valendo-se de umalinha operacional de Cré-
dito do Banco do Brasil, os comerciantes utilizaram-se destes recursos para fi-
nanciar a produção agrícola através de uma cadeia de intermediários.
Dado o atraso freqüente da liberação do financiamento aos agricultores,
eles eram levados a obter os recursos das mãos dos comerciantes. Endivida-
vam-se desta maneira duplamente, contraindo débitos com os patrões e com o
banco. Sua situação de endividamento agravou-se com o aumento dos juros,
poisestes em 1975 eram de 13%,elevando-se para 35% em 1981. Em 1983, da-
das as alterações na política de crédito agrícola, os juros foram elevados a 65%,
além da correçã0 monetária de 70%.
A situação já era crítica em 1982, quando grandes enchentes produziram
estragos generalizados. Apesar de um abaixo-assinado que envolveu trezentos
20 1
agricultores, o Banco do Brasil não liberou os recursos do Seguro Agrícola
(Proagro),destinados a cobrir esse tipo de perdas. Na maior parte dos casos, o
Banco prorrogou a dívida dos agricultores com novos juros, acarretando a
multiplicação de suas dívidas, superpostas com aquelas contraídas com os co-
merciantes. Como conseqüência, apenas 50 dos 750 agricultores financiados
pelo Banco do Brasil em Tefé saldaram em 1983 suas dívidas com o Banco do
Brasil, que se acumularam, acrescidas de novos juros e correçã0 monetária. A
situação tornou-se ainda mais complexa pois os comerciantes têm poder de
barganha sobre os preços dos produtos agrícolas e manufaturados. Até 1985, a
grande maioria dos agricultores não havia saldado o débito com o Banco, que
os considera inadimplentes, e ameaça levar a juizo. Os agricultores temem que
seja acionada a força policial, como fazem os “patrões” para cobrar a “renda”
da castanha extraída.
A política de crédito agrícola contribuiu para a intensificação do processo
de diferenciação social preexistente na pequena produção mercantil. Com a in-
trodução do dinheiro, criaram-se condições para que o pequeno produtor agrí-
cola desenvolvesse estratégias econômicas no sentido da comercialização de
sua produção agrícola, assim como aquisicão de bens industrializados (motor
de popa, fogões ou ferramentas de trabalho mais sofisticadas).Alguns agricul-
tores tiveram condições, inclusive, de montar um pequeno comércio na cidade.
Isto acarretou, porém, o crescimento das dívidas.
A diferenciação no interior da produção mercantil não implica uma mo-
bilidade social efetiva, dada a situação de dependência do pequeno produtor
na relação pessoal com os comerciantes e na sua posição subordinada na estru-
tura social. Os pequenos comerciantes, por sua vez, estão sujeitos à concorrên-
cia com as grandes casas comerciais, que controlam o comércio da cidade.
Apesar das fronteiras entre os grupos sociais terem sido aparentemente
diluídas, elas não foram todavia rompidas. Observa-se, portanto, simultanea-
mente à intensificação do processo de diferenciação social, o crescente endivi-
damento de diversos setores sociais locais, tendo este fato, como contraparte, a
concentração do poder econômico de um pequeno grupo de grandes comer-
ciantes (Faulhaber Barbosa, 1983:114).
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D i f e ~ n ~ i a -deste --r-
os grandes comerciantes. Estes têm propriedades comerciais, fundiárias e de
meios de transporte, que lhes permitem obter financiamento bancário. A acu-
mulação de seu capital é realizada mediante estocagem de mercadorias, inves-
timentos financeiros, como a especulação no mercado de terras urbano e a
industrialização do pirarucu. Os comerciantes investem, também, no próprio
comércio, destinando os empréstimos seja diretamente a pequenos agriculto-
res, seja a comerciantes médios e pequenos, que repassam aos agricultores.
A instalação de agências bancárias propicia o controle do mercado e das
relações sociais na região, pelo endividamento crescente de todos os setores
sociais locais. Em conseqüência, o capital mercantil e usuário perde seu caráter
dominante, se bem que ele continue aimpregnar as relações locais de mercado.
As políticas de Estado em relação à Amazônia, no que tange ao caso es-
pecífico do Médio Solimões, produziram um “enfraquecimento da subordi-
nação estrita e imediata”, possibilitando uma trajetória social ascendente do
202
segmento camponês da produção mercantil (Velho, 1979:lOl).Isto não re-
presentou, contudo, uma mudança efetiva na estrutura social e regional, dadas
as fortes pressões acionadas em uma “fronteira controlada”, pois o processo
político não tem implicado uma quebra real da subordiiiação do campesinato, a
qual persiste embora transformada, ou uma transformação qualitativa da si-
tuação do segmento camponês que tenha representado uma trajetória ascen-
dente deste grupo social como um todo. Ademais, o processo de diferenciação
social não pode ser dissociado do endividamento crescente da pequena pro-
dução camponesa e de sua posição dominada na estrutura social e regional, se-
ja face aos comerciantes, seja face ao empresariado capitalista e aos proprietá-
rios de terras.
Observa-se, inclusive, nos dias de hoje, sinais de declini0 na pequenapro-
dução mercantil, verificáveis pelo exame da relação entre o preço dos produtos
agrícolas e extrativos e das mercadorias manufaturadas, e pela queda do nível
de vida do pequeno produtor. Nota-se, em contrapartida, a concentração do
poder econômico nas mãos de um grupo pequeno de grandes comerciantes, que
têm se aproveitado das transformações na sociedade regional.
A recente implantação de empresas agroindustriais, como a Emade, tem
acelerado o ritmo destas transformações. Tais empresas surgem como ator
emergente da década de oitenta, como o foram os grandes comerciantes dos
anos setenta. Seu advento tem, como contraparte, a intensificação do processo
de diferenciação social, pois introduz na região o trabalho assalariado e a pos-
sibilidade, ainda distante, da proletarização de segmentos do campesinato.
Nota-se que o trabalho assalariado vem sendo utilizado também por empresas
construtoras, como o Departamento de Obras da Prefeitura de Tefé, que atua
na construção de estradas vicinais e conta com engenheiros em seus quadros
técnicos.
Em resumo, o processo de diferenciação social se manifesta:
1. em termos da apropriação fundiária;
2. em termos da trajetória social de indivíduos ou grupos pertencentes à
produção mercantil, exemplificada pela difusão da aspiração de “tor-
nar-se comerciante”;
3. em termos da inserção no mercado, pois generaliza-se, com a difusão
das empresas, a utilização do trabalho assalariado.
Na região em estudo, observa-se que o movimento das fronteiras não pa-
rece conduzir à destruição do campesinato, pois o mesmo vem se integrando,
embora em posição subordinada, àsociedade regional. Ainterferência do Esta-
do tem representado, contudo, uma desorganização e conseqüente reorgani-
zação das relações sociais. Tal interferência resulta em uma intensificação do
processo de diferenciação social que tem, como contraparte, a crescente mobi-
lizaçã0 política do campesinato.
A crise do autoritarismo consiste no fato de que o Estado precisa mobili-
zar a sociedade civil, criando formas de produção subordinadas e articuladas
dinamicamente ao seu próprio desenvolvimento.
Tratando-se especificamente dos processos de ocupação fundiária,
convém notar que estas alterações têm acarretado a emergência de movimen-
203
tos de base territorial, incentivados pelas associações da sociedade civil e con-
fessionais.
Este processo resultou naviabilização de alternativas para a pequena pro-
dução mercantil, como a possibilidade de ter alguma margem de controle sobre
a comercialização de sua produção agrícola e extrativa, ou a ocupação de áreas
de terra firme, que até a década de sessenta era dificilmente acessível a indios e
caboc1os.
“Terra firme ,tudo tinha dono. O caboclo ficavanavárzea. O caboclo não
tinha voz ativa. Agora não. Mudou-se tudo”
Convém notar que as áreas de várzea constituem territórios marcada-
mente dominados, se comparados com as áreas de terra firme. Como as primei-
ras são sujeitas a freqiientes alagações, apenas permitem a agricultura de ciclo
curto e a extraçã0 de madeira, atividade que supõe asujeição afirmas madeirei-
ras. Estas empresas, mediante a utilização de crédito bancário para a explo-
ração da madeira, empregam o sistema de troco com as relações de sujeição/
dominação dele características.
Observa-se na região a constituição de um campesinato marginal, que
não tem a propriedade jurídica da terra. Em numerosas localidades, constitui-
se o chamado “campesinato livre” (Mourão apud Oliveira FP, 1979:7),consti-
tuído por pequenos produtores ligados por vínculos pessoais, de parentesco ou
compadrio, nos quais muitas vezes manifesta-se identidade étnica como forma
de organização. Verifica-se aapropriação comunal de terras devolutas (do “Pa-
trimônio”), ou de propriedades de ordens religiosas, sendo o “direito de posse
baseado no costume e na patronagem religiosa” (Oliveira FP, 1979:8).Nestes
casos, o controle da organização de produção é mediado pela relação entre a
comunidade e os “patrões”.
O processo de diferenciação social verifica-se, também, internamente às
comunidades, observando-se o exercício de relações mercantis e patronagem
por membros do chamado “campesinato comunal”. Nota-se a constituição de
vínculos de parentesco e compadrio entre membros destas comunidades e mi-
nicomerciantes do meio urbano, manifestos em relações de reciprocidade. Es-
tes minicomerciantes das cidades muitas vezes desenvolvem atividades agríco-..
123, ûbserfandí-j-se incbdjive 2 &iferen&@o s6ci+ecor,5r,ica pela aqu:s:@=
de cabeças de gado.
Nas áreas de mais fácil acesso a Tefé, o resultado da produção agrícola é
vendido na cidade, a quem oferece o melhor preço, seja a comerciantes, seja na
feira livre. Afirma-se, nestes casos, que “o patrão é a produção”. Nas áreas mais
distantes de Tefé, são as relações com os patrões o elemento fundamental da
organização da produção.
As alterações produzidas pela “fronteira em movimento” têm provocado
á emergência de lutas territoriais. Estas lutas são resultantes de um processo
político que tem tornado possível o desvendamento das relações de sujeição/
dominação próprias à estrutura de poder a nível local. É descoberto, assim, o
caráter autoritário das relações patrão/cliente, encoberto pelo paternalism0
das relações de compadrio interclasses (Faulhaber Barbosa, 1983:193).
Estes movimentos de base territorial caracterizam-se em alguns casos pe-
la motivação étnica, reivindicando os grupos indígenas à Funai a garantia da
204
posse dos territórios coinunais cujos limites atualmente são reconhecidos pela
sociedade regional. A identidade étnica é uma forma de organização que
mantém os grupos coesos, verificando-se que os grupos indígenas são mais
estáveis se relacionados com os agrupamentos de pequenos produtores ribeiri-
nhos, entre os quais se verifica intensa mobilidade.
As alterações atuais na estrutura fundiária acarretam a generalização da
representação da terra como objeto de compra e venda. Aintrodução de inves-
timentos financeiros para viabilizar a produção do dendê, assim como a infra-
estrutura urbana e rodoviária da prefeitura de Tefé e do governo do Estado
do Amazonas, tem inclusive alterado o preço da terra no Solimões, diferen-
ciando-se este preço à medida que se afasta da cidade de Tefé, centro urbano
que polariza a formação econômico-social circundante. Nota-se, também, a
crescente especulação financeira e fundiária.
Isto tem intensificado aluta pela terra na região, proliferando-se os movi-
mentos de base territorial. A situação é mais tensa nas áreas próximas a Tefé e
Alvarões, onde o preço da terra é mais elevado, dada a extensão de malhas ro-
doviárias. A construção de estradas tende inclusive a acentuar os conflitos,
pois, à medida que interfere no mercado de terras, aumenta a especulação e a
concentração da propriedade fundiária.
Ainda tênues sob o predomínio de relações mercantilistas, as contra-
dições sociais se acentuam e se evidenciam quando são produzidas alterações
mais marcantes na estrutura fundiária, que provocam um processo de desorga-
nização no hábito regional. Tal desestruturação no hábito regional poderá tan-
to constituir bases de ação para forças conservadoras quanto acarretar a
adoção de um modelo racional para a ação política, através da aliança com
forças democratizantes.
205
ciedade civil que possui o papel de representante de classe. A atuação de
agências confessionais tem provocado efeitos significativos no tocante à mobi-
lizaçã0 na luta pela terra e garantia dos direitos da população ribeirinha de
Tefé e mereceria uma análise cuidadosa, que não cabe nos limites deste traba-
lho.
4.1.Titulaçã0 de terras
206
A emissão de titulos definitivos na região obedeceu aos padrões vigentes
de ocupação territorial, caracterizada como “um processo desordenado, no
qual a força, a posição social, o poder ecoiiôinico e a situação política sempre
prevaleceram” (Teixeira, 1985:2). Neste processo, os proprietários de títu-
los individuais sempre fizeram valer pela força o direito adquirido por outros
meios que não o trabalho sobre a terra.
O Iteram, desde sua criação, prioriza a colonização de terras públicas tal
coino a mesma é prevista pelo Estatuto da Terra. Afirmam agentes locais que a
instalação de um escritório do Iteram em Tefé em 1980 acarretou um agrava-
mento dos problemas fundiários, tendo sido desativado em 1983, porque seus
técnicos expediam ‘%cenças de ocupacão descabidas, desagradando a grandes
e pequenos”.
As licenças de ocupação variam de 20 a 100 ha e são discriminadas
com um prazo de quatro anos de carência. Afirmam os técnicos do Iteram que
está sendo feito um controle por gleba, e serão demarcadas as áreas onde há
maior número de posseiros, e onde se verifica maior produtividade agrícola.
Até 1985, porém, não havia sido expedido pelo Iteram nenhum título definiti-
vo no Médio Solimões.
207
meios. Ainda, segundo as lideranças sindicalistas, os “patrões” só têm direito
efetivo à terra quando estabelecem com os posseiros relações registradas em
cartório, como arrendamento, aforamento, etc. Os contratos de arrendamento,
porém, segundo as lideranças sindicais, perdem a validade quando o antigo
proprietário morre, e a terra évendida. No caso de morte do proprietário, é fre-
qüente a luta entre herdeiros e posseiros pela apropriação do chamado espólio.
A complexidade da solução dos conflitos por terraé dada por ambigiiida-
des da própria legislação agrária, pois esta prescreve, por exemplo, que o direi-
to à terra seja garantido tanto por documentação quanto por tempo de posse e
investimento de trabalho humano.
As ambigüidades da legislação tornam-se mais evidentes quando se ob-
serva a prática dos órgãos públicos destinados a atuar no processo fundiário.
Como contam os representantes sindicais, a atuação do Incra e Iteram em Tefé
foi utilizada por interesses contrários aos dos pequenos produtores, mediante o
uso da força e aproveitando-se de falhas na fiscalização. A atuação destes
órgãos, portanto, veio reforçar os interesses dos grupos dominantes, no senti-
do da legitimaçã0 da grande propriedade agrária. De acordo com Inácio Ran-
gel, sob “o pretexto de regularização de posses e propriedades de origem pelo
menos discutível”, foi sancionado pelo Estado “um vasto movimento de grila-
gem” (Folha de SEO Paulo, 1985:3).
Os representantes sindicais incentivam os produtores a permanecer na
terra, argumentando, além do direito previsto pela legislação agrária, que não
existem marcos para a definição dos limites das propriedades. Os técnicos do
Iteram, no entanto, afirmam que não existem mais os marcos porque, como
eram de madeira, deterioraram-se com o tempo. Segundo os técnicos do Ite-
ram, é possível recompor os limites da demarcação através das peças técnicas,
com os mapas de área demarcada que indicam seus limites. Caso as peças técni-
cas não coincidam com os limites territoriais das propriedades, fica comprova-
da fraude no processo judicial relativo à demarcação. Ocorre, também, em
muitos casos em que se pleiteia propriedades, as mesmas não terem sido plota-
das em mapas do Iteram, talvez por ausência de peças técnicas que documen-
tem os processos de demarcação originais.
O governo do Estado do Amazonas atualmente prioriza a regularização
fundiária através da titulaçã0 de terras públicas ocupadas por posseiros, emi-
tindo licenças de ocupação (LO) preferencialmente em áreas onde não existe
litígio. Esta política entra em contradiqão com a reivindicação sindical no
sentido da desapropriação de propriedades particulares ocupadas por possei-
ros.
Examinemos a relação das diretrizes dos órgãos públicos com a organi-
zação sócio-espacial dos agrupamentos camponeses.
Nas comunidades camponesas, as casas são agrupadas à “beira” dos lagos
e igarapés, local que permite fácil acesso à pesca, aos meios de transporte e ao
comércio ribeirinho. A “beira” é associada à civilização e ao lazer (Velho,
1979:204).
A categoria “centro” designa o espaço interior da mata, onde são feitas as
roças e localizados os “tapiris” (barracos toscos) onde residem durante o perío-
do da coleta da castanha, sendo associada pelos ribeirinhos aatividades de tra-
208
balho que envolvem o dispêndio de maior esforço físico. Em oposição à “bei-
ra”, o “centro” remete a representações sobre situações de perigo provocadas
pela relação com a natureza incontrolada.
Atualmente é criada na região pela “fronteira em movimento” a cate-
goria “beira da estrada” (Velho, 1979:205). Esta categoria remete a represen-
tações negativas relativas a uma outra espécie de desconhecido, associado à
desorganização das relações sociais tradicionais, mas remete também a valori-
zações positivas, ligadas por exemplo a facilidades de escoamento da pro-
dução.
A distribuição espacial da sociedade organizada conforme o costume ca-
boclo não é respeitada pela política de “regularização fundiária” posta em prá-
tica pelo Iteram, que tem emitido licenças de ocupação no “centro” e isoladas.
É importante frisar que como o “centro” é considerado local pouco adequado à
residência, a titulaçã0 de terras nestas áreas vem contrariar as aspirações dos
pequenos produtores ribeirinhos. Segundo os técnicos do Iteram, serão demar-
cadas, após o prazo de quatro anos de carência, as áreas que apresentarem
maior produtividade. Verifica-se, na prática, contudo, pouco interesse pelas
áreas para as quais são expedidas as LOS.As LOS variam de 20 a 100 ha, o que
não corresponde à tradição de ocupação da terra na região. Esta tradição ca-
racteriza-se pelo uso comum das áreas de mata para caça, extraçã0 de castanha
e pela troca de trabalho coletivo (ajuri).
Aformação das comunidades de base, a partir dos agrupamentos de traba-
lho e moradia, tem sido incentivada, desde a década de sessenta, pela Prela-
zia de Tefé e pelo Movimento de Educação de Base. A açã0 pastoral tem gerado
efeitos inegavelmente positivos para o bem-estar da população ribeirinha.
Com o objetivo da “promoção social do homem”, a Prelazia tem inclusive doa-
do terras de sua propriedade para os pequenos produtores.
Estas comunidades não podem ser vistas como entidades isoladas na so-
ciedade regional, pois no seu interior verifica-se o mesmo processo de diferen-
ciação que caracteriza esta sociedade. Os líderes rurais constituem persona-
gens ambíguas, pois exercem o duplo papel de representantes das aspirações
dos ribeirinhos e mediadores das relações comerciais, exercendo portanto a
patronagem.
5. EXPECTATIVAS
210
pos indígenas da Barreira da Missão reagiram firmemente contra a proposta da
Empresa, recusando o loteamento.
Os indios afirmaram que, como têm dívidas com os patrões e com o Banco
do Brasil, temiam ser forçados a entregar a terra, e ver-se totalmente sujeitos à
Empresa. Apropriam-se da terra segundo um padrão de organização comu-
nitária do espaço que caracteriza-se por uma apropriação diferencial dos re-
cursos, regulado por relações de parentesco e compadrio. Como o terreno é pe-
queno para as necessidades da reprodução do grupo, torna-se impraticável o
loteamento, pois, como afirmam, iria “provocar uma guerra dentro da comuni-
dade”
Como sabem que a legislação indigenista garante a apropriação comunal
da terra, ao prescrever a inalienabilidade do território indígena, os índiosTicu-
nas e Cambebas da Barreira da Missão solicitaram a interferência da Funai no
sentido de garantir seu território.
As reações, no entanto, foram diferenciais. Outro grupo residencial, loca-
lizado nas terras da Prelazia, aceitou o loteamento. Observa-se, porém, que
neste caso já está em curso um processo de diferenciação interna, com avenda
de lotes por agricultores cuja situação é mais precária. A propriedade da terra
tende a concentrar-se nas mãos de médios produtores que inclusive desmatam
o terreno com o fim de criação de gado.
A direçã0 da Emade tem se mostrado acessível a reivindicações indíge-
nas, tendo solicitado a interferência do governo do Estado do Amazonas para
uma permuta de terra que viabilizasse a transferência para uma área onde não
existem indios. Mas como esta segunda área localiza-se em um castanha1 no
qual ocorrem intensos conflitos,tal permuta poderá agravar asituação dos pos-
seiros.
Atualmente, porém, a agricultura da mandioca parece mais atrativa em
termos da autonomia do pequeno produtor, pois ele pode dispor de seu tempo
de trabalho. O engajamento na produção de dendê tem sido encarado mais co-
mo um complemento da economia doméstica, trabalhando na Emade em geral
os homens solteiros da unidade familiar.
Pode-se atribuir também a pouca receptividade dos indios àtradição, pois
estão ligados por costume secular àprodução da farinha de mandioca, que aliás
I lhes garante a alimentação.
Atualmente, a Emade tem proposto um coletivo consorciado, simultâneo,
incentivando que os futuros dendeicultores se tornem cultivadores de outros
produtos. Imaginando uma expansão para áreas vizinhas, a Emade fez um pro-
jeto para pequena produção no Ministério da Agricultura, visando atingir pro-
dutores agrícolas ribeirinhos situados na periferia da área adquirida pela Em-
presa. As mudas de dendê, segundo o projeto, serão fornecidas apreço de custo,
para serem plantadas simultaneamente com a colheita da mandioca. Visam
aproveitar as áreas já desgastadas pelo plantio da mandioca para plantar o
dendê, que em alguns casos, após colheitas sucessivas da farinha, se transfor-
1
maria em cultura efetiva. Afirma a administração da Emade que tanto a man-
dioca quanto o dendê são exaustivos,pois provocam o desgaste da terra. Visan-
do incentivar a dendeicultura, a empresa fornecerá o adubo.
J Segundo o diretor da Emade, a produção mercantil está em franca de-
211
cadência na região, e não existem perspectivas para a mesma. Tanto o Governo
Federal quanto as agências financiadoras internacionais, como o Banco Mun-
dial, fazem pressão para a reprodução do capital a todo o custo, o que tende
a arruinar a pequena produção.
Ainda segundo o diretor da Emade, representante de um “empresariado
militante”, engajado, como diz, “no objetivo de resolver os problemas da pe-
quena produção”, metas como a “fixação do homem àterra” e a própria Refor-
ma Agrária são elementos de um discurso ideológico que visa desviar a atenção
das reais condições históricas, pois não há sinais de que o Estado incentive
concretamente a pequena produção.
O diretor da Emade apresenta a atuação desta empresa como uma pers-
pectiva para a dinamizaçã0 da economia regional e afirma que a empresa tem
objetivos sociais: com o projeto agroindustrial de desenvolver a região através
da produção de óleo de dendê, visa aumentar a renda de 625 famílias de peque-
nos produtores rurais, e criar 1.000 empregos indiretos.
Atualmente, no segundo ano de implantação, a Empresa contrata os tra-
balhadores pela CLT, pagando salário-mínimo. Seu objetivo é a transformação
dos empregados em pequenos proprietários, através da doação de 7 a 10 ha
para a plantação de dendê, além de 7 ha para a cultura de subsistência. A
Emade tem como meta futura retirar-se do processo, deixando tudo na respon-
sabilidade dos pequenos produtores. Estes teriam controle sobre a comerciali-
zação mediante a organização de uma cooperativa “sob tutela do Estado, que
leve a organização da cooperativa até a maturidade”.
Aprópria direçã0 da Emade, no entanto, reconhece a pouca possibilidade
de sucesso da proposta, pois na grande maioria os empreendimentos coopera-
tivistas, quando postos à prova dentro do sistema de mercado na Amazônia,
têmresultado em fracasso.ACooperativa Mista de Produtores Ruraiscriada em
Tefé na década de setenta, por exemplo, faliu em 1983. Um dos motivos da
falência foi ter perdido capital de giro porque comprava e vendia a preço de
mercado, e os pequenos produtores, habituados à tradição da clientela, conti-
nuaram trabalhando como os “patrões”,sob o sistema de troco, pois os gastos
com o transporte da produção até Tefé tornava a vinculação com a cooperativa
---.-- ..------- :Cm disso, havia “airavessadores” na cooperativa, yiie
IJUULU Lu,llpr;llsabûïâ.Â
212
I
nacional forçado a fazer alianças com o grande capital, doando terras e transfe-
rindo tecnologia”, afirma o diretor.
A partir da implantação da Empresa, em 1982,já tinham sido investidos,
em julho de 1985, US$500.000. Amudança mais acelerada foia partir dos últi-
mos 12 meses. Como a industrialização é subseqiiente ao início da produção de
dendê, que se espera para 1987, a mudança deverá ser mais nítida a partir do
quinto ano. A produção de dendê se destina primordialmente ao óleo comestí-
vel e matéria-prima para a indústria, e secundariamente em termos de com-
bustível, pois é cinco vezes mais caro que o óleo diesel.
A tendência é a transformação da região em um grande pólo dendezeiro,
acarretando a concentração financeira e fundiária, e a proletarização de seg-
mentos do campesinato, indica em seu depoimento o diretor da Emade. Os
pequenos proprietários seriam, assim, forçados pelo baixo nível de renda a
vender a terra, favorecendo a diferenciação e a concentração.
Nos próximos anos, dificilmente a dendeicultura irá substituir
totalmente a produção e comercializaçã0 da farinha de mandioca, pois es-
ta garante a reprodução dos pequenos produtores de beira-rio, em consonância
com a tradição regional das relações patrão-cliente. A tendência parece ser a
coexistência das duas atividades, o que, inclusive, pode ter conseqüências posi-
tivas para a pequena produção, no sentido da garantia de maior autonomia e
segurança.
Se quisermos avaliar o rumo para o qual apontam as contradições expos-
tas neste artigo, devemos prestar atenção às perspectivas apresentadas pela
personagem em início de carreira no campo de forças no Médio Solimões: o
empresariado agrícola capitalista, pois sua visão de mundo talvez possa forne-
cer subsídios para a análise do devenir histórico da estrutura social regional.
Sem querer negar que a dendeicultura seja uma alternativa econômica
viável para a sociedade regional no Médio Solimões, é necessário sublinhar
contudo que, em sua trajetória ascendente, está sujeita às crises inerentes à
dinâmica da economia internacional. Como a organização da produção de tais
empresas refrata as situações de depressão do capitalismo periférico, estas re-
criam as contradições sociais a ele inerentes. Entre março e maio de 1985, por
exemplo, por motivo de um déficit, a Emade teria falido, caso não demitisse a
quase totalidade dos empregados, readmitidos em julho.
As perspectivas de solução para os problemas sociais não parecem muito
animadoras.
O diretor da Emade apresenta como alternativa para a sociedade regional
a trajetória política dos pequenos produtores, via sindicato ou outras formas de
associação.
Convém sublinhar, porém, que a intensificação dos movimentos sociais
na fronteira não representa necessariamente uma alteração efetiva no curso
das trajetórias individuais e sociais, nem uma mudança real em sua situação
econômica, pois o jogo de forças da sociedade local parece amortecer o elevado
potencial político dos movimentos de grupos dominados.
213
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mnTxr-v.-.
IDCIAP~IKA,januário Coeino, - ”Sistema de Produção e Situação Fundiária no Municí-
1
214
IND USTRIALIZAR AS FRONTEIRAS?
CATHERINE AUBERTIN
Economista do ORSTOM
Departamento de Geografia - UnB
Brasilia,DF
RESUMO
Os Estados do Centro-Oeste brasileiro, Rondônia, Mato Grosso, Mato
Grosso do Sul, Goiás e Distrito Federal vêm sofrendo grandes modificações
em suas estruturas demográficas e produtivas. São os Estados das “fronteiras”,
sejam elas agrícolas, comerciais ou políticas. Na época destas profundas mu-
tações a indústria permanece retraída e não acompanha a explosão urbana
nem o desenvolvimento agrícola. Questionamo-nos neste artigo sobre as
chances de uma indústria que se apoiaria numa agricultura não-estabilizada
dentro de uma região dominada pelos grandes centros industriais do País.
Apresentamos aqui uma contribuição crítica à teoria do desenvolvimento por
cadeias agroindustriais.
Palavras-chave:
1 Desenvolvimento regional - Industrialização - Agroindústria - cadeias agro-indus-
triais - fronteiras agrícolas - Brasil - Centro-Oeste.
215
graphic and productive structures. They are frontier states, whether they are
agricultural, commercial or political. In the course of these deep modifications,
the industry is stagnating and keeps pace neither with the urban growth nor
with the agricultural development. We wonder in this paper about the poten-
tialities of an industry which would be based on a non stabilized agriculture in
a zone where the great national industrial centres prevail. We give here a criti-
cal contribution to the theory of the development by branches.
Key words:
Regional development - Industrialization - Agro-industry - Agricultural frontiers -
Agro-industrial branches - Brazil - Central western Brazil.
216
217
industrialização. A política agrícola observada na região não permite oferecer
uma estabilidade de qualidade e de quantidade, necessária a uma arrancada
industrial progressiva. Enfim, é preciso estar consciente de que a industriali-
zação da região não pode ser apenas estabelecida atraindo, graças às ajudas fe-
derais e locais, empresas (filiais ou “caçadores de prêmios”) cujos interesses
são exteriores e às vezes contrários aos da região, sem acréscimo de dependên-
cia e gastos sociais elevados para o Estado e o município de acolha.
- Toneladas -
Produto
1970 1980 1983
218
QUADRO 2 - VALOR DAS PRINCIPAIS PRODUÇÕES AGRÍCOLAS DO CEN-
TRO-OESTE - 1980.
219
Grosso do Sul não acompanharam o desenvolvimento espetacular da pro-
dução de trigo e de soja da região.
220
do, raros são os reflorestamentos em eucalipto), a indústria da madeira conten-
ta-se em valorizar uma pequena parte da madeira dos desmatamentos. É uma
atividade que aparece essencialmente como um subproduto dos desmatamen-
tos e sem autonomia própria, o que torna sua permanência muito hipotética
uma vez passada a “frente pioneira”. As madeireiras mais importantes vão pro-
curar a madeira onde ela se encontra para abastecer a sede de sua empresa as-
sim localizada no centro de um deserto, do ponto de vista florestal; os custos de
transporte tornam-se muito elevados e obrigam as médias empresas a fechar
suas portas.
As pequenas olarias, assim como as pequenas serrarias, desaparecem com
o esgotamento de suas fontes de abastecimento: o terreno de onde se extrai o
barro, e o terreno de onde se extrai a madeira. Constata-se uma grande instabi-
lidade dessas empresas nos recenseamentos do IBGE. Do mesmo modo, é fre-
qüente encontrar-se como foi o caso em Dourados (MS),na época do recensea-
mento industrial anual por amostragem, um terço das empresas selecionadas
fechadas ou paralisadas ... Essas empresas ocasionais constituem, em número,
a maioria das empresas industriais da região.
Observa-se o mesmo fenômeno na produção de arroz, caracterizado no
Centro-Oeste por seu aspecto itinerante de cultura temporária de abertura de
campos. Nessas condições é compreensível que a implantação das indústrias
de arroz (descascamento, condicionamento) situem-se nas áreas de compra e
não nas áreas itinerantes de produção. Em Sinop (MT), o arroz consumido é
em parte originário de Santa Catarina. Ao redor de Dourados (MS), de Ceres
(GO), antigas colônias agrícolas com a quase totalidade das terras já desmata-
da, as pequenas unidades de descascamento fecham umas após as outras.
A instabilidade das produções afirma-se então através da própria inslabi-
lidade das frentes pioneiras. Os colonos de Rondônia, confrontando-se com as
dificuldades do meio amazônico, com a violência, e com uma política de colo-
nização enfraquecida, sofrem para manter-se em seus lotes. Arotação nos perí-
metros enquadrados do Incra é muito forte, as culturas são muitas vezes aban-
donadas em benefício das pastagens. As terras da Amazônia não mantiveram
suas promessas. As produções de cacau, de borracha e de guarana não apare-
cem em 1980 entre os 14 principais produtos do Centro-Oeste e estão ameaça-
das de permanecer ainda por muito tempo marginalizadas apesar de bons re-
sultados para o cacau e de boas perspectivas para a borracha. Amaior parte das
plantações de café de Sinop (MT) está hoje abandonada. O solo mostrou-se de
qualidade muito medíocre e deveria ter sido irrigado no período de seca. Erros
diversos foram cometidos na escolha das mudas de café. Foi preciso arrancar
I milhares de pés de café em Rondônia e em Alta Floresta (MT),sendo que ava-
riedade que os colonos haviam trazido do Paraná não se adaptara. A cultura da
pimenta foi igualmente abandonada, pois não tinha mercado. As plantações de
cacau, as plantações de hévea foram atacadas por doenças que os migrantes e
os enquadradores não conheciam (vassoura de bruxa, queda das folhas). Não
se sabe ainda como o ecossistema da Amazônia pode reagir à introdução de
culturas em grande escala. Nas fronteiras, o entusiasmo por uma cultura pode
ser também tão rápido quanto o seu abandono.
As culturas perenes cobrem apenas 7°/0 das superfícies cultivadas. É preci-
221
so poder esperar sua entrada em produção, de 3 anos para o guarana e de 7 anos
em média para a hévea. O recurso ao crédito é então necessário e geralmente
fatal para D pequeno agricultor que, mal-informado e sem capital mínimo, não
poderá fazer face aos seus compromissos.
Um outro fator de instabilidade está ligado àpolítica governamental. Po-
de-se, em parte, explicar o sucesso da soja, da hévea, do bicho-da-seda, pela
facilidades de obtenção de créditos preferenciais. Nestes dltimos anos, so-
mente concessão de crédito com juros negativos em período de grande in-
flação permitia a realização de um confortável lucro financeiro que tornava
marginal o lucro obtido com a produção física. Numerosas produções fo-
ram então incentivadas, muitas desapareceram com a suspensão do crédito
que a elas fora concedido. Enormemente endividado, não tendo usado o crédi-
to para melhorar sua exploração mas para especulações financeiras, o produ-
tor da soja confronta-se, atualmente, com sérios problemas devido àbaixa dos
custos e à redução do crédito.
222
1.1.3.As políticas de agroindustrialização malsucedidas
223
de Cuiabá (MT).A indústria da madeira é atualmente uma indústria extrativa
assim como a indústria mineira.
O rápido desenvolvimento de Sinop (MT), que veio a ser a 3: cidade
industrial do Mato Grosso com suas 200 serrarias, não deve igualmente provo-
car ilusões. A madeira dos desmatamentos deve desaparecer, acarretando o fe-
chamento das serrarias.
O valor produzido é reduzido ao mínimo de alguns salários. Ao deixar
Mato Grosso, a madeira contém 50% de seu valor em custos de transporte. No
quadro de uma contabilidade regional, é provável que o Estado do Mato Gros-
so exporte sua riqueza florestal com prejuízo.
Veremos mais adiante que os frigoríficos contentam-se, em sua maioria,
em congelar a carne para exportá-la aos centros de transformação; o óleo de
soja produzido em Dourados (MS) é semi-refinado e exportado a granel. A te-
cedura dos fios de seda efetua-se em São Paulo. As verticalizações de transfor-
mações são muito reduzidas.
Àporta do matadouro, por quilo, o boi gordo tem o mesmo preço que o boi
magro. Nada de tão surpreendente àprimeira vista. Entretanto, o preço não le-
va em conta a porcentagem de carne e de osso, nem a qualidade da carne (boi
alimentado em melhores pastagens plantadas com capim colonião, criado em
estábulo ou em pastagens naturais, boi velho ou maltratado) e não atua a favor
de uma melhoria da produção bovina. Paralelamente, nenhuma atenção é da-
da ao couro. Os animais são marcados a fogo, sua pele é perfurada por carrapa-
tos e cheia de cicatrizes. Não se pode imaginar a instalação de um curtume lo-
cal que não tenha nenhum controle sobre a qualidade do couro, e, situando-se
na etapa final do trabalho no frigorífico, nenhum controle sobre o sistema de
abastecimento e de preços de venda. O Único curtume do Estado do Mato
Grosso deve sobretudo à sua longa experiência (desde 1959,bem antes da im-
plantação do frigorífico Sadia) e à sua capacidade de administração a sobre-
vivência nessas condições. Seria impraticável, hoje, a implantação de um novo
curtume que tivesse que financiar seus investimentos.
O leite, qualquer que seja sua qualidade e seu controle, segundo as normas
de higiene, terá o mesmo preço pago pelo mercado que, aliás, reclamará da irre-
gularidade da produção, apesar de contribuir para perpetuar uma produção lei-
teira ocasional e medíocre. O sistema de cotas leiteiras favorece supostamente
a produção em período seco, oferecendo um preço inferior para toda superpro-
dução do período úmido, desviando numerosos criadores da escolha de um au-
mento da produção ou da comercialização do seu leite através das leiterias.
224
Querendo regularizar o fornecimento de sua matéria-prima, estes estabeleci-
mentos prejudicam freqiientemente o desenvolvimento da produção leiteira.
Eles têm, inclusive, pouca margem de manobra, sendo os preços do leite fixa-
dos pelo governo.
2. AS FILIAIS
225
unidade de produção de bicho-da-seda, ela é senhora dos seus preços e goza de
um monopólio total. Nestes dois casos, a natureza perecível do produto impe-
de qualquer pressão da parte do produtor.
Não se trata de uma integraçã0 econômica regional, mas de uma inte-
gração econômica de empresas, Cujas ramificações organizam-se nacional-
mente a partir da sede. Se a sede decide reduzir a produção de suas filiais, não
será em função de escolha nem dos resultados agrícolas da região, mas de uma
política nacional totalmente independente. Cada empresa surge, então, como
uma unidade industrial isolada no contexto regional.
Além dos efeitos induzidos, existe igualmente o problema do mercado. É
verdade que o mercado local, reduzido, não pode constituir a única fonte de es-
coamento da produção. Isso é evidente para as explorações mineiras e para as
grandes unidades de produção. Mas a fábrica de cimento de Corumbá (MS),
cuja parte do mercado geográfico é fixada pela sede, abastece melhor Cuiabá
(MT) ou Porto Velho (RO) do que a própria capital do Estado a que pertence.
Inúmeras são as grandes fábricas de arroz que preferem os mercados do Nor-
deste e do Sul, em função de uma política nacional. O mercado local é então
abastecido pelo exterior!
Essas filiais dispõem de uma autonomia geralmente reduzida e a venda
local de uma pequena parte de sua produção oferece-lhes apenas complicações
na contabilidade. Em Rialma (GO), a capacidade de transformação é de
180.000 litros de leite por dia, quando o mercado local é de apenas 1.500litros.
226
mento são irrisórias. Por exemplo, a fábrica de soja de Rondonópolis (trata-
mento de 600 toneladaddia, culturas próprias em 1.000ha) cria apenas 80 em-
pregos permanentes e os salários e encargos sociais representam 1,50/0de seu
faturamento (setor agrícola inclusive). E isso para o investimento de 18 mi-
lhões de dólares (225.000US$ por emprego permanente criado) dos quais 75%
estão sob a responsabilidade da Sudam.
Para melhor fixar essas idéias, pode-se adiantar que os 3anos de prazo de
carência para o pagamento do ICM com taxa de 17%, com uma simples cor-
reção monetária de 20%, corresponde mais ou menos a uma soma que repre-
senta 6 meses de custos de funcionamento às expensas do Mato Grosso do Sul.
Projetos gigantescos de transformaqão da soja e de frigoríficos,são abundantes.
São, portanto, vantagens enormes, e falamos aqui apenas de vantagens
calculáveis, com um retorno relativamente fraco e, no caso de implantação de
filial, com uma perda de independência certa. Além do mais, é sem dúvida ne-
cessário lembrar que entre as 5 primeiras empresas (por ordem de valor do ca-
pital social) do Mato Grosso, 3 constituem autênticos escândalos econômicos
e financeiros, seja por não terem jamais funcionado (frigoríficoe fábrica de uís-
que), seja por acumularem os déficits e funcionarem com menos de 20% de sua .
capacidade (usina de álcool de Sinop), a despeito das vultosas concessões da
Sudam, que vêm provar a hipótese de que não são as ajudas e as vantagens fis-
cais que garantem o êxito de uma indústria. A adoção do risco pela adminis-
tração permite a multiplicação de projetos mal-estudados e irrealizáveis.
Embora o problema seja um pouco diferente, convém inserir neste sub-
capítulo as fábricas de álcool-carburante proveniente da cana-de-açúcar. O
fantástico desenvolvimento da agroindústria da cana no Centro-Oeste, forte-
mente encorajado e subvencionado pelo programa Pró-Álcool, deveria ser o
objeto de uma avaliação econômica e social. Se se pergunta sobre a rentabilida-
de da substituição da gasolina pelo álcool de cana, a opinião parece unânime
para denunciar as nefastas conseqüências sociais do programa: ocupação das
boas terras, geralmente em detrimento das culturas de sobrevivência, proleta-
rizaçã0 dos trabalhadores agrícolas (bóias-frias), tendência à monocultura.
227
QUADRO 3
~ ~
Matérias-primas consumidas
Indústrias Número de empregos
ou produção
228
zação agroindustrial da soja e do boi épobre em criação de empregos, tanto na
parte agrícola (aproximadamente 1pessoa para 100 hectares para a soja, 1pes-
soa para 200 cabeças de gado de corte) quanto na parte industrial.
CONCLUSÃO
229
uma reforma agrária, comaqual seriamos primeirosa sofrer. Tradicionalmente,
o modo de ocupação do espaço 6 representado pela grande propriedade de
criação extensiva. Este modelo econômico, mas também de caráter cultural,
permanece dominante na região. Mudar de modo de produção, colocar em
questão a base econômica e social para assegurar o desenvolvimento regional
exigiria uma mudança total das mentalidades. As ajudas às indústrias apare-
cem então como simples transferências que acentuam mais a punção que sofre
a região em proveito de grupo's exteriores ou de personalidades locais.
E é nas cidades, numa outra escala, no setor mais ou menos informal,
independentemente das produções agrícolas regionais e das suas transfor-
mações, que se desenvolve uma pequena indústria ligada à demanda urbana e
nascida da iniciativa privada ...
BIBLIOGRAFIA
23O
PLANEJAMEN’O HIDROELÉ_TRICO E REINSTALAÇ80
DE POPULAÇOES N A AMAZONIA: PRIMEIRAS LIÇOES
DE TUCURUI, PARA
LUC MOUGEOT
Geógrafodo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos
Universidade Federal do Parií
Belém- P A
RESUMO
No baixo rio Tocantins no Pará, o Complexo Hidroelétrico de Tucuruí
(CHT) inaugura no Brasil um vasto sistema de grandes barragens, destinadas a
valorizar o enorme potencial energético da bacia Amazônica. Precursor de
modificações inéditas nesta região brasileira, o deslocamento permanente de
populações ribeirinhas, ocasionado pela represa de Tucuruí, e seus ensinamen-
tos para os planejamentos futuros não mereceram, até hoje, nenhum acompa-
nhamentosistemático e contínuo. Apresentainosaqui seispontosparaumapri-
meira avaliação do programa de reinstalação de.populações: concepção e ges-
tão do programa, delimitação do perímetro de expropriação e recenseamento
das populações e propriedades atingidas, critérios e medidas de indenização,
organização e transferência aos sítios de acolhida rurais eurbanos, reinstalação
urbana e adaptação econômica da população residente nos sítios urbanos. Este
trabalho se baseia em pesquisas realizadas pelo autor na região do reservatório,
antes, durante e depois de sua evacuação, e os resultados são interpretados, na
medida do possível, àluz de intervenções semelhantes em outras regiões emvia
de desenvolvimento.
Palavras-chave:
Reservatórios hidroelétricos - Deslocamento de populações - Reinstalação de popu-
- lações - Amazônia brasileira.
AMÉNAGEMENTS HYDRO-ÉLECTRIQUES ET
RÉINSTALLATION DE POPULATIONS EN AMAZONIE:
LES PREMIÈRES LEçONS DE TUCURUE PARÁ
RÉSUMÉ
231
lations (PRT) en six points: conception et gestion du programme, délimita-
tion du périmètre d’expropriation et dénombrement des populations et pro-
priétés atteintes, critères et mesures d’indemnisation, aménagement et trans-
fert aux sites d’accueil ruraux et urbains relogement urbain et adaptation éCo-
nomique des résidents aux sites urbains. Ce travail se fonde sur des recherches
effectuées par l’auteur dans la région du réservoir, avant, durant et après son
évacuation, et les résultats sont interprétés, dans la mesure du possible, à la lu-
mière d’interventions semblables dans d’autres régions en voie de développe-
ment.
Mots clés:
Réservoirs hydro-électriques - Déplacement de populations - Réinstallation de popu-
lations - Amazonie brésilienne.
Key words:
Hydro-electric scheme related reservoirs - Populations displacement - Population
resettlement - Brazilian Amazonia.
232
INTRODUÇÃO *:
O Complexo Hidrelétrico de Tucuruí (CHT) inaugura na Amazônia
brasileira um sistema de barragens-reservatórios de grande porte, destinado a
arriar o potencial dos rios regionais, hoje estimado em 100.000 MW. O CHT é
o primeiro e maior de uma escadaria de 27 projetos para a exploração dos 25,3
MW da bacia fluvial do Araguaia-Tocantins (1). Acerca de 250 km a sudoeste
da cidade de Belém, no Pará, sobre o curso inferior do rio Tocantins, o CHT foi
desenhado para acomodar uma capacidade geradora máxima de 7.920 MW.
E m 1975 iniciou-se a construção da primeira (3.960 MW) de duas fases, com
energia sendo produzida em escala comercial a partir do fim de 1984; sua con-
clusão foi recentemente adiada para 1989, em razão de reprogramações na
construção de usinas metalúrgicas que, uma vez implantadas na região,
deverão consumir 2/3 da energia firme do CHT.
Visando assegurar na central do CHT, em qualquer época do ano, uma
utilização firme de 51% da capacidade instalada, um reservatório entre os mais
extensos no mundo e até hoje o maior na Amazônia sul-americana, foi criado o
montante de barragem do CHT (2). Com as adufas temporárias vedadas no pi-
que da estação menos chuvosa em 1984,o nível das águas amontante elevou-se
sobre um período de sete meses e meio, do nível do rio então na cota 6, até
72 m a.n.m. Um lago se formou, cobrindo uma área de 2.435 lar?, da qual cerca
de 90% em ambientes de várzea alta e terra firme, tradicionalmente explorada
por diferentes grupos humanos.
O represamento do rio Tocantins induziu o deslocamento permanente de
uma população considerável; contudo, as providências oficiais para seu reas-
sentamento, embora prenunciem intervenções que se multiplicarão na
Amazônia brasileira, não têm merecido o devido acompanhamento até hoje. A
maioria dos demais complexos projetados sobre outros rios da região deverão
desarraigar um grande número de comunidades ripícolas, ameaçando seus
meios de subsistência bastante vulneráveis, sobre a última grande fronteira do
Brasil. Justamente em razão dos seus ensinamentos potenciais para futuros ex-
perimentos do gênero, o Programa do Reassentamento de Tucuruí (PRT) deve
ser objeto de monitoramento constante e sistemático, nas suas mais diversas
fases.
Baseando-se, sobretudo, em levantamentos de campo na região da re-
presa de Tucuruí, antes (1979,1981),durante (1984) e depois (1985) dasuafor-
mação, esta contribuição avalia o desempenho inicial do PRT conforme seis
aspectos, essenciais ao exame de qualquer esquema do gênero (concepção e
gestão, perímetro de desapropriação e levantamentos populaaionais e fun-
diários, critérios e medidas de indenização, setores de reassentamentos rurais e
urbanos, fórmulas de realojamento urbano, e adaptação econômica inicial dos
Trabalho derivado de estudo sobre impactos da utilização de recursos hídricos na bacia fluvial do
Araguaia-Tocantins, financiado pelo CNPq e pelo Conselho Britânico.
(1) Eletronorte, s.d., pp. 2-3.
(2) Eletronorte, s.d., pp. 2-3; Prodiat, 1982. pp. 44-66; Paiva, 1982,pp. 42-52; Mougeot e Bar-
row. 1981, p. 7.
233
residentes nos setores urbanos). Conclui-se, resumindo os principais
ensinamentos identificados, com recomendações para a aplicação de soluções
mais apropriadas pelos órgãos competentes, nos demais programas atual-
mente em fase de planejamento na região (3).
(3) O autor agradece a colaboração prestada. na fase de levantamentos de campo, pelas insti-
tuições e empresas seguintes: Eletronorte S.A., Sucam-PA, Getat, Emater-PA, Ceplac-PA, Em-
brapa-PA, Camargo Corrêa Construtora S.A., bem como às prefeituras locais e líderes comu-
nitários. As interpretações e os erros que ainda persistem na presenteversão, contudo, são da
exclusiva responsabilidade do autor.
234
o
t
235
da represa e do seu cinturão sanitário. Inicialmente, e até novembro de 1982,
todas as terras sob a cota 86 foram adquiridas pela empresa estatal. Depois, já
encerradas as desapropriações e indenizações monetárias e com a evacuação
transcorrendo, a cota máxima prevista do reservatório foi baixada, de 86 para
76 m a.n.m., em parte devido à reestimação da pressão provável do lago sobre o
lençol freático circundante. Então, as terras desapossadas na faixa de 76-86 m
já podiam ser recuperadas por seus ex-donos, mediante requerimento dirigido
à empresa (4). Tal compensação aparecia muito após o pagamento das indeni-
zações monetárias e beneficiava somente os ex-proprietários. Todos os ex-ocu-
pantes e a maioria dos deslocados em direito, mas não-informados, dificil-
mente puderam valer-se de tal paliativo. A medida, provavelmente, atendeu,
de modo mais eficaz, pessoas que, desde cedo no processo, vinham planejando
estabelecer-se na borda da represa, em setores posteriormente abertos ao trá-
fego rodoviário, uma vez revista a linha seca do lago (5).
Os levantamentos populacionais e fundiários (1978-9) sucederam ao
penoso processo discriminatório de quase dois anos, e possivelmente foram
apressados por reivindicações feitas a diferentes escalões do governo por
entidades locais e autoridades municipais (6).As estimativas dos efetivos des-
locados geralmente limitam-se às famílias passíveis de indenizaçã0 (proprietá-
rias e/ou donos de benfeitorias) residentes no perímetro do futuro lago. Os le-
vantamentos assim excluem famílias morando fora do perímetro, cuja sub-
sistência dependia sazonalmente da ocupação de ambientes ribeirinhos e que
puderam ser deslocadas pela submersão, como observado em Sobradinho (7).
Além da subenumeração sistemática, o crescimento demográfico,
sobrevindo com o adiamento do PRT (1980-4),contribuiu para desatualizar as
previsões originais. Estas variam entre 4 e 17 mil pessoas; o levantamento da
Basevi limitou-se a 11núcleos apenas, prevendo que neles a população cres-
ceria em 8,5% ao ano entre 1978 e 1985,podendo perfazer até 9.626 pessoas em
1985.Os dados disponíveis na Sucam paraaárea do lago não permitem precisar
a população total envolvida; mas em 1980, data razoavelmente próxima aos
levantamentos e anterior aos aportes migratórios, esta bem podia oscilar entre
25 e 35 mil pessoas (8).Para se ter uma idéia do afluxo global ocorrido na região
do reservatório desde então, enquanto os quatro municípios compartilhando a
236
área da represa perfaziam 151 mil habitántes em 1980, as meras margens do
Tocantins - findadas pelas cidades de Tucuruí ao norte e Itupiranga ao sul, e
pela rodovia PA-150 a leste e desvios das BR-422 e'BR-230 a oeste - já reu-
niam pelo menos 115 mil pessoas no fim de 1983. Na época, apenas a 8 meses
do represamento, 55% do? 202 assentamentos identificados abaixo da cota
76 e dentro da represa ainda continuavam habitados por 5.165 pessoas, no
mínimo (9).
237
tinuava a depender das parcelas expropriadas (como foi o caso em Santa Tere-
za do Tauiry e relatado em Jacundá) apresentaram a tendência a permanecer
nos lotes ou a retornar a eles uma vez gastas as alocações. Pois apesar da in-
flação galopante e do atraso de cinco anos sofrido pelo PRT, as compensações
monetárias não foram reajustadas no intervalo, nem aplicado qualquer esque-
ma emergencia1para socorrer as famílias aflitas.
Os procedimentos de indenização enfatizavam conceitos e medidas
legalmente coerentes, porém amplamente inapropriados à estrutura fundiária
e à economia agrária localmente predominantes (11).Admitia-se R.priori que:
(a) a terra 6 bem privado, cujos títulos definitivos de propriedade são a prova
necessária e limitante do direito à compensação fundiária por substituição; e
(b) a avaliação venal dos investimentos e rendas agropecuários da terra ocu-
pada ou apropriada de modo particular estabelece ovalor suficiente das perdas
agrárias com a desapropriação. Embora necessárias e justas para os
proprietários, tais normas ensejavam soluções individuais, ajustando-se pouco
à realidade de uma região habitada por pequenas comunidades, onde prevale-
cia um regime de ocupação fundiária não ou mal documentada, porém social-
mente controlada. Este regime correspondia a um sistema de exploração
agrária que abrangia, além dos domínios de terra firme, praias, zonas de decan-
tação, bosques-galerias, ilhas fluviais, lagos e cachoeiras, possibilitando o re-
curso a uma série de produtos naturais, periodicamente disponíveis em
ambientes distintos, que excedem largamente os limites dos roçados particu-
lares.
A maioria das famílias deslocadas, oficialmente calculadas em torno de
quatro mil, teriam recebido inicialmente uma indenização apenas monetária,
em razão do grande número de posses não-tituladas, registros falsificados,
falhas na atualização dos cadastros e invasões por migrantes nos anos 70 (12).
Por outro lado, restringiram-se o ritmo e a cobertura territorial dos processos
de regularização fundiária, no decorrer dos anos que antecederam as indeni-
zações, a fim de conter os desembolsos do PRT. A aquisição pela empresa
estatal de parcelas definitivamente tituladas implicava custos superiores,
em superfícies iguais, àqueles ligados a terras não ou apenas provisoriamente ti-
tuladas, sendo que o número e aextensão das primeirasinfluíamdiretamente nos
montantes a serem repassados pela empresa à agência encarregada de indeni-
zar os fundi (13).No caso das colônias não-inteiramente quitadas, indenizava-
se a parte já quitada, assumindo a empresa a dívida restante junto ao governo;
de qualquer modo, podia-se evitar desembolsos, entregando à agência res-
(11) Na região, somente 903 estabelecimentos possuíam títulos de propriedade, contra 3.431
com direitos de posse. Destes, 1.907 eram considerados minifúndios (Hidroservice, 1977, I,
pp. 32-36).
(12) Entrevistas com técnicos d o Getat em Tucuruí, no dia 14/2/84.
(13) Quando se iniciou o processo de indenização, a maioria das parcelas rurais sobre a margem
ocidental doTocantins, aonorteeentreokm 110 eokm 153 daBR-230, aindanãotinhamsi-
do tituladas definitivamente, apesar da sua longa ocupação. Isto se explica, em parte, pela
preocupação de se minorar os custos da desapropriação, contradizendo aparentemente uma
decisão anterior, reportada por Goodland (1978, p. 39) de que seria respeitado o usucapião
(Entrevista com um antigo tecnico do PIC Marabá em Marabá, no dia 23/2/84).
238
ponsável parte dos domínios já expropriados para outros fins, para o reassenta-
mento dos deslocados.
Uma minoria da população rural desapropriada detinha títulos de-
finitivos, sendo que a principal comunidade desapossada foi um projeto federal
de colonização dirigida: o PIC Marabá. Em razão da submersão prevista de um
trecho da BR-230, pelo menos 621 colonos - possivelmente até oitocentos
agricultores - do PIC e sua redondeza tiveram seus lotes expropriados nas gle-
bas 21 a 52, entre o ltm 80 e o lun 180 do trecho da estrada Marabá-Altamira.
Um levantamento feito em março de 1979, com o apoio do Incra, provocou
considerável ansiedade entre os colonos, segundo entrevistas em julho do mes-
mo ano; tiveram que assinar sua desistência antecipada das colônias, sem con-
tudo saber quanto nem quando receberiam suas indenizações. As alocações
não seriam ajustadas para cobrir eventuais benfeitorias, posteriores ao
inventário. Isto levou muitos agricultores a reduzir, num período de cinco
anos, sua produção agrícola, procurando compensar a perda de renda com
empregos, nas cidades próximas e no próprio canteiro do CHT (14).
Mais grave talvez seja o fato do PIC Marabá ter sido entregue a sua sorte,
apesar da procrastinaçã0 do PRT. As medidas restritivas originalmente alve-
jaram tão-somente o parcelado condenado àinundação, mas logo foram esten-
didas a todas as 2.484 colônias e aos 70 lotes urbanos, ocupados pelas famílias
do PIC Marabá ao longo da BR-230, a leste e oeste da cidade de Marabá, e nas
agrovilas Cajazeiras e Castelo Branco (esta em condições miseráveis, em
fevereiro de 1984). A titulaçã0 foi interrompida em 1978, sendo o PIC eman-
cipado de fato da jurisdiCão do Incra a partir de novembro de 1979. O projeto
assim perdia acesso aos fundos do Polamazônia, os quais, nas circunstâncias,
teriam continuado sendo vitais para manter estradas, operar serviços sociais e
custear processos de registro fundiário, particularmente nas glebas
desapropriadas. No seu lugar, o orçamento municipal de Marabá, menor,
variável e priorizando o setor urbano, passava a responder pelas necessidades
do PIC. Também, quase todos os quadros administrativos do projeto foram
transferidos, dos quartéis regionais do Incra, na agrópolis Amapá em Marabá,
para uma unidade executiva local do Getat err, Tucuruí (15).
Aqueles colonos titulados que, desapropriados em 1979, tinham optado
por uma compensação parcial em dinheiro, com direito a serem remanejados
para novas parcelas, foram igualmente penalizados, por mudanças ocorridas a
posteriori e informadas a eles muito após a assinatura dos acordos de indeni-
zação. Primeiramente, a destinaçã0 dos investimentos sociais normais do
Getat priorizava projetos agrícolas não-contemplados pelo PRT, de modo que,
(14) Entrevistas com colonos expropriados em Cajazeiras, no dia 25/6/79, com um extensionista
rural da Emater no PIC Marabá em Marabá, no dia 5/7/79, e com um antigo técnico do PIC
Marabá em Marabá, no dia 23/2/84.
(15) Entrevista com técnicos do Getat e com outros, antigamente do PICMarabáemMarabános
dias 22-23/2/84. Os fundos sociais do Getar, proporcionados pelo BNDES através do Fin-
social, são destinados em prioridade aos projetos de colonização incluídos no quadro do
projeto de Ferro da CVRD na serra de Carajás. Somente 10% das 520 famílias assentadas
nestes esquemas até o início de 1984 teriam provindo da área do lago deTucurul, tendo re-
corrido a eles por iniciativa própria.
239
sob a gestão desta agência a partir de 1981, areinstalação de quase 320 famílias
do PIC se faria em condições de apoio institucional muito mais precárias do
que aquelas ofertadas pelo Incra nos anos 70, com projetos locais de coloni-
zação agrícola ou mesmo esquemas especiais de reassentamento, ligados à
criação de represas alhures no Brasil (16). Em segundo lugar e devido a modifi-
cações na legislação agrária nacional, as parcelas distribuídas em projetos ofi-
ciais de assentamento, na região, viram sua área reduzida em 50%; logo, des-
considerando-se a situação excepcional dos desapropriados do PIC, cada reas-
sentado receberia, em troca por cada lote de 100 ha, uma nova parcela de ape-
nas 50 ha.
O abandono do PIC Marabá levanta uma questão oportuna de plane-
jamento territorial. Por que um órgão governamental foi autorizado a projetar,
no fim dos anos 60, e implantar, ao longo de 1970-9,um experimento de coloni-
zação oneroso, precisamente em uma região cujo risco de submersão era co-
nhecido ou pelo menos suspeito por outros setores da mesma administração?
Além de inventário hidrológico que data de 1954, o CHT estava em plano já em
1968, muito antes da implantação do PIC Marabá, e foi aprovado em 1974. Co-
municações aparentemente defeituosas entre setores governamentais, atuan-
do na mesma região, hoje provocam gastos que poderiam ter sido evitados e o
desperdício de investimentos acumulados localmente, ao longo de mais de um
decênio. O erro não se resume apenas nos custos de se desmantelar um projeto
para dar margem a outro; oportunidades foram descuidadasna partida, que um
planejamento certo poderia ter valorizado, mediante aproveitamentos inte-
grados na região do futuro reservatório, como foi realizado em ambientes com-
paráveis, em outras regiões do mundo (17).
4. REINSTALAÇÃO NOS PARCELADOS AGRÍCOLAS E
NúCLEOS URBANOS ALTERNATIVOS
O remanejamento dos diferentes grupos humanos provavelmente foi a
etapa mais enriquecedora na implementaçã0 do PRT. Restrições impostas ao
orçamento global da empresa estatal causaram o adiamento das obras do CHT
e do próprio PRT, forçando o rearranjo dos setores de reassentamento re-
comendados, a eliminação de certos equipamentos e atrasos na sua instalação
em novos locais. De fato o PRT processou-se em um período de nove anos, ao
invés dos cinco previstos, invalidando alguns dos supostos e medidas de
indenização originais. A reinstalação das famílias já dura mais de seis anos e
permanece inconcluída. No intervalo, a deteriorização das condições de vida,
tanto nos locais a serem evacuados quanto nos de acolhimento, tem provocado
descontentamento e desconfiança entre a população afetada. Suas reivindi-
cações, porém, adquiriram rapidamente uma dimensão política, em virtude de
pressões exercidas sobre os responsáveis do PRT, e um processo de negociação
coletiva foi instaurado. Em conseqüência, muitos critérios de indenização
(16) Sobre o projeto especial de colonizaqäo em Sobradinho, ver Duque, 1984, p. 36.
(17) Comparar exemplos de planejamento pouco relevante e mais apropriado em Thomi
(1984, p. 111)e Lassailly-Jacob, 1983, p. 55.
240
foram reformulados e vários aspectos materiais do PRT sensivelmente
aprimorados, como será mostrado nas secções a seguir.
O plano geral do reservatório de Tucuruí, elaborado ap6s levantamentos
junto à população, recömendava uma rede de sitios alternativos já previsível,
tipicamente consoante com as preferências populares por soluções que
preservassem a coesão territorial de cada comunidade importante, e seu acesso
áos recursos do rio (18).Considerando-se a topografia local e outros fatores,
oito sítios foram definidos para reinstalação de famílias em parcelas agrícolas.
Estes setores, distribuídos igualmente sobre as margens oriental e ocidental do
futuro reservatório, eram situados, salvo um, a menos de 15 l m de vilas exis-
tentes acima, porém próximas à futura borda d’água. Além disso, dois sítios
foram propostos para novos núcleos urbanos, a leste e oeste do lago, no cru-
zamento de estradas existentes ou projetadas.
241
uma seqiiência que poderá repetir-se rio acima, com o atual asfaltamento de
rodovias nos arredores do futuro reservatório de Santa Isabel.
Como resultado, alguns setores de reassentamento, originalmente previs-
tos a oeste do lago, foram reprogramados sobre a margem oposta, em sobras de
domínios expropriados para dar passo a linhas de transmissão e a rodovias.
Juntamente com a revisão posterior das cotas prováveis do lago e o desvio tar-
dio da BR-422, o rearranjo dos sítios ensejariaa diminuição dos custosdo PRT,
por maior uso das terras já adquiridas para o CHT, liberando assim as beiras
nor-ocidentais para o estabelecimento de fazendas em situação privilegiada,
na proximidade da nova BR-422, da represa e da cidade de Tucuruí.
São quatro os setores agrícolas alternativos, sendo que o primeiro está
entre os que deveriam ser redesenhados na vizinhança oriental do lago. Mar-
geando a PA-263 entre o Itm 35 e o km 50 a partir de Tucuruí, o loteamento Rio
Moju foi delimitado, parcelado e titulado temporariamente pelo Iterpa, sendo
entregue e deslocados a partir do início de 1981, três anos após o começo das
indenizações. Inicialmente a empresa estatal forneceu a cada família uma casa
pré-fabricada numa clareira de 2,5 ha, em cada parcela de 50 ha. As unidades
residenciais reproduziam modelos já utilizados nos PICSdo Incra e na cidade
nova do CHT. Escolinhas foram construidas, bem como postos de saúde e
capelinhas. Mais tarde, contudo, as restrições orçamentárias levaram a
empresa estatal a limitar os repasses de fundos para o PRT; no Rio Moju, como
nos outros setores de acolhimento visitados, a grande maioria das famílias aca-
baram recebendo parcelas não-desmatadas, sem alojamento nem vias de aces-
so prontas. Quando percorrido, em março de 1984, o projeto Rio Moju estava
claramente agonizante. Os postos de serviços comunitários tinham sido
desativados, na borda de uma estrada em condições deploráveis e, segundo o
Getat, até o início de 1984 a maioria das famílias reassentadas (192 até o fim de
1983)já tinham renunciado a seus lotes, antes mesmo de terem recebido títulos
de propriedade negociáveis.
Dois outros setores rurais foram delimitados ao nordeste do reservatório:
o loteamento Mojuzinho, ao sul da sua contrapartida do Rio Moju, e a oeste o
loteamento Gleba do Meio C O primeiro, situado delestea oeste entre oRioMo-
ju e a PA-150, e de norte a sul entre o km 26 e o ltm 70 da PA-150, aproveita
sobras de propriedades adquiridas pela empresa estatal de energia. Foi inicial-
mente proposto aos remanejados do PIC Marabá (mas recusado por estes),
em troca pelas colônias desapropriadas. Apartir do fim de 1981a zona foi ocu-
pada por desapossados menos exigentes, procedentes de Jacundá e Remansão
da Beira. Até o início de 1984, cerca de 150 parcelas, segundo o Getat, já
tinham sido distribuídas; algumas destas, abandonadas ou inocupadas, foram
repassadas a famílias em busca de terras, sem vínculo com o PRT. Da mesma
maneira, cerca de 80% das seiscentas parcelas disponíveis na Gleba do Meio C,
povoada sobretudo em 1982,tinham sido alocadas até o começo de 1984, sen-
do que no máximo 20% o foram a famílias originalmente alvejadas pelo PRT.
Finalmente, concedido aos colonos do PIC Marabá, sobre a margem
ocidental do Tocantins, o trecho entre o km 81 e o ltm 150 do novo traçado da
BR-230 é o quarto e mais recente parcelado agrícola do PRT. De fato é o Único
que permitiu o traslado a curta distância de um grupo rurícola específico para
242
um ambiente fisicamente comparável ao loteamento evacuado (20). Construí-
do sobretudo para manter as comunicações terrestres entre o leste e o oeste
paraenses, o desvio da BR-230 foi aberto ao tráfego em junho de 1983 e 472
parcelas tinham sido entregues ao longo do mesmo até o fim daquele ano, sen-
do tituladas provisoriamente no decorrer do ano seguinte. Nenhuma cifra era
disponível, localmente, sobre a taxa de abandono dos lotes; contudo, em
princípio de 1984, entrevistas realizadas junto a colonos reinstalados e outros
agricultores locais confirmavam um risco já apontado em 1981. O estado
embrionário da rede de caminhos vicinais, a carência de capital pessoal para o
desmatamento e plantio, a inexistência de auxílio iiistitucional aos produtores
e de assistência social a suas famílias já constituíam sérios motivos para que
muitos reassentados negociassem seus títulos fundiários e provisórios. N o to-
tal e em princípio de 1984, não mais de 934 parcelas teriam sido concedidas a
cerca de 1.800beneficiários rurais do PRT, nos quatro perímetros acimareferi-
dos (21).
Ao manter-se a concepção atual do capítulo rural do PRT, certas situações
críticas poderão se desenvolver a meio prazo. O afastamento dos sítios alter-
nativos com relação ao reservatório eliminou qualquer urgência de se ordenar
a exploração haliêutica e agrícola do novo ambiente lacustre (uma proposta de
aproveitamento múltiplo está em fase de conclusão). Porém, em razão do
retorno de deslocados às margens do lago e da ampliação da zona de várzea alta
a montante, e dos efeitos negativos sobre a agricultura e a pesca a jusante, uma
intensificação de atividades já está ocorrendo na borda do lago, a qual poderá,
se náo for disciplinada a tempo, ocasionar conflitos entre usuários e causar
sérios riscos para sua saúde.
6. O REASSENTAMENTO NOS NúCLEOS URBANOS
O número, a distribuição e o cronograma de implantação dos centros ur-
banos foram igualmente afetados pelas limitações administrativas e finan-
ceiras do PRT. Entretanto, o componente urbano evoluiu bastante ao longo da
sua execução, muito em virtude de intervenções comunitárias mais efetivas do
que aquelas observadas no capítulo rural do programa.
Dos dois sítios-cruzamentos recomendados originalmente, apenas o do
Novo Repartimento foi mantido, porém sendo acrescidos cinco novos locais:
Novo Breu Branco (PA-263), Nova Jacundá e Novo Ipixuna (PA-EO), e Itu-
piranga e Cajazeiras (BR-230).Amultiplicaçáo tardia dasvilas-centrosvisava,
(20) Inicialmente os colonos transferiram-se com relutância, já que a maioria negava-se trocar
terras de 100 haporlotes de50ha. Oritmodostrasladosmelhoroudepoisdoalertafeitopelo
Getat aos beneficiários, de que as parcelas, se não fossem aceitas por eles, seriam redistribuí-
das a outras famílias carentes.
(21) As quinhentas famílias que teriam se refugiado contra as águas montantes, em Cajazeiras no
fim de 1984, ainda não tinham sido removidas para novas parcelas agrícolas; outras duzen-
tas, aparentemente, permaneciam em locais sujeitos à inundação. Até dezembro de 1984,
quatrocentas das 1.800 famílias em direito ainda não tinham recebido novas terras. Foi ape-
nas em agosto de 1985 que assinou-se um acordo de financiamento para concluir a reinsta-
lação dos beneficiários rurais, mediante a distribuiçãode mais 643 parcelas e a construção de
751 km de caminhos vicinais. Ver O Liberal 11/9/81, p. 11; 15/9/84, p. 9; 18/9/84, p. 8;
11/10/84, p. 2;1/12/84, p. 17; e 5/8/85, p. 3.
243
provavelmente, compensar a procrastinação da parte rural do esquema,
absorvendo uma parte das famílias que ficaram inatendidas, bem como
acomodar o crescimento global da população estabelecida no âmbito do futuro
lago, desde os recenseamentos originais. A fim de conter os custos e inves-
timentos do reassentamento, os novos núcleos foram definidos em terras
desapropriadas para outros fins, ao longo de ou na periferia de rodovias exis-
tentes e aglomerados já dotados de alguma infra-estrutura e/ou serviços bási-
cos, como Nova Jacundá, Cajazeiras e Itupiranga.
7. AS FóRMULAS DE REALOJAMENTO NOS NúCLEOS URBANOS
Os projetos de realojamento urbano têm nitidamente progredido, ao
longo da execução do PRT,como o mostra uma comparação entre as tentativas
iniciais em Nova Jacundá e a abordagem posteriormente adotada em Novo Re-
partimento.
Nova Jacundá (1979-83)
Fundada em 1976 sobre um platô a leste do Tocantins, a 100 lun do norte
da cidade de Marabá sobre a PA-150, Nova Jacundá hoje é o centro de um
corredor agropecuário em plena expansão. Escolhida para substituir a vila ri-
beirinha de Jacundá como sede municipal, tornou-se o primeiro local urbano a
acolher deslocados, procedentes sobretudo de Jacundá e Jatobal. Ali, três fór-
mulas de realojamento foram experimentadas, sucessiva e paralelamente.
O primeiro ensaio foi de reconstrução-presente, conhecido localmente
como o projeto Cobal (1979-80), sobre a periferia oriental da vila. Oitenta
unidades habitacionais foram montadas sobre quatro quadras, cada uma des-
tas com 20 terrenos de 10 m por 30 m. Todas as casas reproduzem fielmente,
tanto pela planta quanto pelos materiais, um modelo aplicado nos setores
residenciais da vila do CHT, e no 1oteamentoRioMoju. O remanejamento dos
beneficiários de Jacundá para o projeto Cobal começou em 1979; as duas lo-
calidades distam apenas 60 ltm uma da outra mas, na ausência de qualquer via
trafegável entre elas, os remanejados e suas mudanças tiveram que percorrer
245 lun, por barco e caminhão, via Jabotal e Tucuruí.
As condições de moradia e trabalho encontradas pelos primeiros reinsta-
lados em Nova Jacundá revelaram-se muito insatisfatórias; a maioria retor-
nou a Jacundá, onde desaconselhou as outras famílias a se mudarem para o
novo local. Na verdade, o projeto Cobal tinha sido concebido apenas como
apêndice residencial da vila existente, sem que qualquer uso econômico do
solo, além da moradia, tivesse sido previsto dentro dos seus limites. Outrossim,
as casas do projeto apresentavam vários inconvenientes, quanto aos materiais
e ao desenho, à taxa de área Construida, ao arranjo geral das quadras e à dis-
posição das utilidades públicas (22). Contudo, a resistência da maioria dos
reassentados, dependentes de atividades agrárias, devia-se sobretudo ao risco
que implicava mudar seu domicílio, de um ambiente ribeirinho estável, em
economia extrativa, para uma fronteira distante em plena terra firme, eferves-
cente e mais exposta à economia de mercado. Tal mudança tornava-se ainda
mais arriscada, pela defasagem da entrega de parcelas agrícolas, com relaçãoà
244
dos lotes urbanos. As casas do Cobal foram terminadas em 1978, sendo que os
beneficiarios de Jacundá foram convidados a transferir-se para elas, pelo
menos dois anos antes de que um número suficiente de parcelas fosse dis-
ponível nos setores rurais do PRT. Segundo alguns informantes, em muitos
casos as indenizações monetárias teriam sido entregues a candidatos de
Jacundá, somente uma vez efetivada sua mudança para a nova casa no projeto,
o traslado sendo inclusive requerido para a concessão de uma terra agrícola,
posteriormente.
Já que a maioria dos candidatos se negaram a tomar posse das casas do
projeto Cobal, estas foram redistribuídas a outros interessados; muitas
serviram para alojar agências governamentais e seus funcionários. A maioria,
contudo, foi alocada a servidores da antiga prefeitura de Jacundá; com algum
capital ou influência política, muitos, quando entrevistados, também já tinham
comprado ou adquirido parcelas inicialmente disponíveis em loteamentos
próximos a Nova Jacundá.
Em razão de novos atrasos que enfrentava o PRT, o número de famílias e
casas na área do reservatório cresceu bem além das cifras de 1978-9, devido à
formação de novos lares, retorno de deslocados e chegada de novos elemen-
tos (23).As condiçóes requeridas para a obtenção de um lote foram afrouxadas,
emvirtude de pressões políticas, e uma segunda fórmula, de auto-realojamento,
foi introduzida (1980-3), procurando resgatar recomendação do estudo da Ba-
sevi e acelerar o remanejamento das famílias para os sítios programados.
Na periferia oriental do projeto Cobal, uma área, que tinha sobrado defa-
zendas desapropriadas, foi loteada e arruada às expensas da companhia
estatal. Neste loteamento urbano Nova Jacundá, contudo, a empresa, ao invés
de construir as residências, concedeu a cada beneficiario uma compensação
monetária pela casa evacuada,bem como umlote baldio sobre o qual o reassen-
tado construiria sua nova casa. O espaço reservado ao auto-realojamento com-
prendia 17 quadras da metade meridional do loteamento, onde nada menos de
680 lotes foram distribuidos. Destes, apenas 25% (169) possuíam uma edifi-
cação qualquer, em princípio de 1984. Ao norte desta área principal, dois
setores menores reuniam cerca de 150unidades autoconstruídas (24).As casas
normalmente apresentam desenhos e materiais locais muitas vezes os mais
valiosos, recuperados dos edifícios evacuados; as residências ocupam uma su-
perfíciemenor do que noslotes do projeto Coba1,ea áreanão-construída,viade
regra, tem sido plantada e/ou cercada para a criação de pequenos animais. As
entrevistas nestes setores confirmaram que lotes foram alocados, não somente
(23) Durante a época anterior ao represamento, localidades isoladas abaixo do nível do, reser-
vatdrio atraíram menos migrantes de fora da áreado lago do que outros setores mais acessí-
veis. As amostras de 10% dos residentes em setores alternativos mostram que a maioria dos
entrevistados do Novo Repartimento (NR) antes residiam no Repartimento Central (RC),
enquanto quase a metade dos informantes de Nova Jacundá (NJ) nunca residiram em locali-
dades dentro da área do lago. Por outro lado, amaioria dos ex-residentes do RC tinham che-
gadoláapdso início dos levantamentos para a desapropriação, tendo sebeneficiado, mesmo
assim, com novas casas no NR. Em NJ quase todos os antigos residentes da área do lago ja
moravam lá muito antes de que fosse deslanchado o processo de desapropriação. Estas ob-
servações coincidem com alguns resultados de Basevi s.d., p. 53.
(24) Levantamentos populaciopais não-publicados da Sucam, em Nova Jacundá, dezembro de
1983.
245
aos candidatos contemplados originalmente, mas também a outros deslocados
não-proprietários, procedentes, sobretudo, de áreas rurais (ocupantes, lo-
catários e jornaleiros). Inclusive, alguns lotes, entregues a reassentados do pro-
jeto Cobal para indenizar a perda de terras e imóveis, eram usados para hortas
ou pequena criação de gado, ou então para alojar a família, enquanto arren-
dava-se a casa desocupada no projeto Cobal.
Apesar do abrandamento dos critérios de seleção, 75% dos 1.265 lotes
concedidos a famílias entre 1980 e 1983 permaneciam vacantes em principio
de 1984. Segundo as autoridades municipais competentes, nada mais de du-
zentas famílias residiam nas 316 casas enumeradas pela Sucam em dezembro
de 1983. Em geral, as estruturas desocupadas eram muito rudimentares,
aparentemente edificadas mais para garantir direitos do que para albergar uma
família. Em razão da carência de capital pessoal e do número reduzido de opor-
tunidades de emprego na cidade, a maioria dos realojados absenteístas
tinha provavelmente cedido, arrendado ou vendido seus direitos provisórios
de propriedade, como o sugerem as entrevistas com residentes do loteamento.
Uma terceira tentativa de realojamento foi então realizada no fim de
1983, na parte setentrional do loteamento urbano Nova Jacundá. Esta medida,
na verdade, fazia parte de uma revisão de todo o PRT, solicitada pelas muni-
cipalidades envolvidas. A empresa estatal de energia concordou em respeitar
seus compromissos originais, financiando a instalação tanto de equipamentos
sociais indispensáveis quanto das utilidades públicas. Retomaria também a
montagem e distribuição, aos remanejados, de unidades habitacionais modifi-
cadas (50 prontas no início de 1984,de um total então previsto de 100).De fato,
esta solução tardia pôde ser implementada, com menos tropeços, nos projetos
ainda em plano na época, como o do Novo Repartimento, do que o foi naqueles
já em execução. Em Nova Jacundá os investimentos anunciados causaram uma
valorização antecipada do solo, estimulando o comércio de direitos de ocu-
pação e títulos provisórios; além disto, famílias que já tinham sido indenizadas
para se auto-realojarem reivindicaram o direito a uma casa pré-fabricada so-
bre seu lote urbano.
246
desapropriadas, dois lotes na nova vila-centro: o primeiro na orla da BR-230,
usado para ali construir uma loja com materiais fornecidos pelo PRT; o segun-
do, adjacente, porém recuado da BR-230, entregue com casa pré-fabricada
destinada àfamília do comerciante. Cinco amplos setores residenciais ocupam
clareiras em colinas onduladas, circundando um núcleo central de equipamen-
tos escolares, de culto e segurança pública. Apesar de modestas, as unidades
habitacionais aqui são claramente mais adaptadas às condições físicas e só-
cio-econômicas regionais, do que aquelas edificadas anteriormente em Nova
Jacundá e no loteamento Rio Moju (25).
247
Em resumo, até o princípio de 1984,somente 186 dos mais de seiscentos can-
didatos de Repartimento Central e Jatobal tinham sido transferidos para Novo
Repartimento, e 585 lotes no máximo já tinham sido ocupados, nos dois nú-
cleos então implantados, pelas famílias alvejadas pelo PRT, estimadas em
1.200 (27).
CONCLu s à 0
(27) Em fevereiro de 1984 a maioria das unidades residenciais programadas ainda estava sendo
construida nos núcleos alternativos. Em setembro de 1984, quando começou a formar-se a
represa, reportou-se que faltavam 155 casas em Itupiranga e Cajazeiras para acomodar
familias do Tauiry, Ipixuna e Jacund6. O Liberal 18/9/84, p. 2.
248
famílias atingidas, preservar o acesso das comunidades ribeirinhas àvia fluvial,
e promover oportunamente a utilização racional do novo ambiente lacustre.
A estrutura administrativa e financeira do PRT explica amplamente sua con-
cepção, bem como sua subordinação a outras prioridades, às vezes conflitan-
tes. Estas têm impedido o PRT de materializar a rede dos sítios de acolhimento
propostos, a instalação oportuna de equipamentos e serviços essenciais, a re-
moção diligente e ordenada da população e sua reinstalação em condições am-
bientais apropriadas. Uma distribuição melhor coordenada dos lotes ur-
banos e rurais e uma maior integraçã0 espacial dos núcleos e parcelados teriam
facilitado muito a adaptaçãc de um grande número de remanejados nos novos
setores.
Os maiores ensinamentos do PRT situam-se a nível da sua concepção e
implementação. O modelo gerencial adotado em Tucurui tende a favorecer a
estagnação e a dispersão do saber-fazer no campo, desestimulando o efetivo
aproveitamento do acervo existente para o tratamento de soluções localizadas.
Torna pouco provável a correta identificação das lições do programa e ainda
menos certa sua incorporação oportuna no planejamento de futuras operações
do gênero. Não basta acumular uma memória institucional sobre determinado
tipo de intervenções; é preciso dotar os programas de um sistema gerencial
apropriado, de envergadura nacional. Trata-se de enquadrar projetos isolados,
sem entretanto isolá-los, planejando cada um à luz da informação pertinente
sobre seu ambiente e da experiência adquirida em intervenções comparáveis,
de modo a efetivar soluções individuais esclarecidas, articuladas entre si den-
tro de um horizonte espaço-temporal dado. Futuros programas, na Amazônia e
no resto do Brasil, muito poderiam beneficiar-se de um sistema gerencial que:
1) garantisse a autonomia executiva e financeira de cada programa de reas-
sentamento, necessária à coordenação das tarefas de formulação, condução e
monitoramento de programas abrangentes; 2) permitisse a acumulação, recu-
peração, divulgação e aproveitamento de informações sobre programas
semelhantes no país, para melhor adaptar os programas a situações específi-
cas; e 3) assegurasse contatos estreitos entre setores governamentais res-
ponsáveis por projetos distintos, na área de influência dos programas, visando
otimizar o aproveitamento dos investimentos, via planejamento espacial-
mente integrado. Com mais de sessenta reservatórios atualmente em estudo na
Região Amazônica, o Brasil possui excelentes motivos para desenvolver uma
perícia internacional a este respeito.
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