Direitos Humanos, História e Cultura Afro-Brasileira e Indígenas
Direitos Humanos, História e Cultura Afro-Brasileira e Indígenas
Direitos Humanos, História e Cultura Afro-Brasileira e Indígenas
HISTÓRIA E CULTURA
AFRO-BRASILEIRA
E INDÍGENA
Felipe Carmo
Presidente da Divisão Sul-Americana: Stanley Arco
Diretor do Departamento de Educação para a Divisão Sul-Americana: Antônio Marcos da Silva Alves
Presidente do Instituto Adventista de Ensino (IAE), mantenedora do Unasp: Maurício Lima
EAD
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Pr. Henrique Gonçalves; Pr. José Prudêncio Júnior; Pr. Luis Strumiello; Dr. Martin Kuhn;
Dr. Reinaldo Siqueira; Dr. Rodrigo Follis; Me. Telson Vargas
1ª Edição, 2023
1ª edição – 2024
e-book (pdf)
Bibliografia.
ISBN 978-65-5405-041-8
22-134421 CDD-650.1
Editora associada:
Referências.................................................................................................................................... 32
EMENTA
Educação para as relações étnico-raciais. Políticas
de ações afirmativas. Reflexão sobre a cultura e
história afro-indígena e conhecimento dos direitos
humanos. A contribuição da cultura afro-indígena
e sua relevância no debate sobre diversidade
cultural e enriquecimento da sociedade. Debate de
experiências na comunidade escolar de valorização e
respeito à diversidade.
UNIDADE 1
INTRODUÇÃO
É impossível falar sobre raça, e desenvolver uma discussão sobre direitos raciais, sem visitar uma infini-
dade de sentimentos incômodos, tanto para brancos quanto para negros. De uma forma ou de outra, ambos
estavam implicados nas condições materiais e históricas que fizeram emergir um fenômeno repudiado há
poucos séculos: o racismo. E não apenas o fenômeno, mas todas as consequências sociais que o Brasil en-
frenta, ainda hoje, por conta de um sistema econômico que decidiu basear-se no trabalho escravo de um
grupo de pessoas que, julgavam eles, “inferiores”, por razão da cor de sua pele. Alguém pode — num lapso de
desinformação — afirmar que o racismo não existe no Brasil, como já pretendiam os militares durante os anos
de chumbo. No entanto, ao visitar a história, não há quem possa negar a fissura social causada pelo sistema
escravista, e o abismo que separou os negros de seus direitos fundamentais até recentemente.
Não basta falar sobre os direitos raciais como se, do alto, fossem um “presente” oferecido aos negros
com passar do tempo. Ou como se tais direitos fossem uma consequência óbvia do progresso intelectual
da humanidade, agora iluminada pelos ditames da liberdade e da igualdade. Os negros sempre estiveram
conscientes de sua humanidade e dos direitos que lhes pertenciam; e apenas através de muita insistência
e violência foram capazes de comprovar isso a um sistema econômico que dependia de sua insignificância
ontológica para lucrar com seu trabalho. Falar sobre a conquista de direitos raciais, portanto, não seria justo
de uma perspectiva paternalista, como se tais direitos lhes fossem entregues: é, ao contrário, falar sobre as
vitórias e as derrotas experimentadas pelos próprios negros enquanto denunciavam ao mundo a indecência
de sua submissão forçada sob as mais severas formas de violência.
Por isso, nesta unidade, vamos falar sobre os direitos raciais, em primeiro lugar, entendendo-os desde o
contexto de sua perversão histórica. Depois disso, vamos compreender a história do Brasil da perspectiva das
resistências negras, que desde os tráficos transatlânticos se rebelavam para conquistar a igualdade por direito
à vida. Vamos notar que a resistência nunca cessou, e que a luta por direitos raciais tomou diferentes formas, a
depender do contexto de das condições favoráveis para sua reivindicação. Esperamos que, ao final, você con-
siga conduzir à consciência a relevância deste assunto, assim como sua urgência para a atualidade. Acima de
tudo, o objetivo desta unidade será cabalmente cumprido, caso você consiga chegar à compreensão de que a
luta contra o racismo é, na verdade, um dever coletivo, já que ele expressa uma das evidências de um sistema
econômico falido que se utiliza do preconceito para gerir sua manutenção e estender seus privilégios.
Bom estudo!
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DIREITOS HUMANOS, HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E INDÍGENA
DIREITOS RACIAIS NO BRASIL
Mas vale lembrar: a ideologia racial, como a conhecemos hoje, não justificou a escravidão em geral,
porque a escravidão nem sempre foi “racial”. Ela existiu em várias civilizações antigas, e não estava vinculada
à distinção da cor de pele – e, portanto, a uma ideologia de raças. A escravidão era uma forma de trabalho
forçado, que poderia ser justificada de várias maneiras por aqueles que desejavam mantê-la como sistema
de produção e reprodução (ver PAINTER, 2011). Uma pessoa, por exemplo, poderia ser condenada à escravi-
dão por dívidas, ou seja, com prazos de servidão limitados ao pagamento de seus débitos. Isso significa que,
embora a escravidão exista há centenas de anos, as definições de branquidade, como “liberdade”, e negritude
como “escravidão”, passaram a ser mais efetivas com a expansão das colônias.
SAIBA MAIS
Em seu livro The Invention of the White Race (“A invenção da raça branca”),
Theodore W. Allen (2021) afirmou que“quando os primeiros africanos chegaram
em Virgínia, em 1619, não havia brancos lá”. Com essa afirmação, o autor quer
explicar que a palavra “branco”, para designar uma raça privilegiada, não existia
na lei colonial até 1691. Em outras palavras, as práticas racistas de Virgínia
– no período em que os EUA eram divididos em treze colônias – não estava
diretamente vinculado ao conceito de raça branca. Havia, naturalmente, a noção
de que os europeus figuravam como “superiores”, mas, naquele local e ocasião,
ela ainda não tinha como base a distinção da cor de pele. Essa observação nos
ajuda a compreender que o regime escravocrata só funciona à base de um tipo
de discriminação, seja ela de cor, de tribo, de linhagem familiar etc.
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DIREITOS RACIAIS NO BRASIL
Naturalmente, essa distinção de raças foi útil, em primeira instância, à manutenção do sistema escravo-
crata nas colônias europeias e, por óbvio, serviu à justificação dos métodos desumanos aplicados às nações
subservientes. Esse processo inaugurou a prática da racialização como um “marcador social” que organizava
as relações humanas em hierarquias. Em outras palavras, a fim de explorar à exaustão os colonizados e es-
gotar seus recursos naturais em benefício próprio, os colonizadores lançaram mão de uma ideologia que
desumanizava o outro, privando-o de uma “alma branca” e estigmatizando sociedades inteiras até os dias de
hoje. O filósofo francês Jean-Paul Sartre ([1961] 1968, p. 9-10), na tentativa de desvendar a lógica racista da
colonização, a descreveu da seguinte maneira:
Com o trabalho forçado, dá-se o contrário: nada de contrato; além disso, é preciso intimidar; patenteia-se,
portanto, a opressão. Nossos soldados no ultramar rechaçam o universalismo metropolitano, aplicam ao
gênero humano o numerus clausus; uma vez que ninguém pode sem crime espoliar seu semelhante, es-
cravizá-lo ou matá-lo, eles dão por assente que o colonizado não é o semelhante do homem. Nossa tropa
de choque recebeu a missão de transformar essa certeza abstrata em realidade: a ordem é rebaixar os
habitantes do território anexado ao nível do macaco superior para justificar que o colono os trate como
bestas de carga. A violência colonial não tem somente o objetivo de garantir o respeito desses homens
subjugados; procura desumanizá-los. Nada dele ser poupado para liquidar as suas tradições, para substi-
tuir a língua deles pela nossa, para destruir a sua cultura sem lhes dar a nossa; é preciso embrutecê-los pela
fadiga. Desnutridos, enfermos, se ainda resistem, o medo concluirá o trabalho: assentam-se os fuzis sobre
o camponês; vêm civis que se instalam na terra e o obrigam a cultivá-la para eles. Se resiste, os soldados
atiram, é um homem morto; se cede, degrada-se, não é mais homem; a vergonha e o temor vão fender-lhe
o caráter, desintegrar-lhe a personalidade.
Devemos recordar que o colonialismo representou, basicamente, o desejo expansionista de uma na-
ção, com o objetivo de estender seu controle sobre territórios estrangeiros, explorando seus recursos, sub-
jugando seus nativos, estabelecendo mercados e acumulando riquezas. Ele imputava poder político, econô-
mico e cultural da metrópole sobre as colônias, a fim de expandir sua influência geopolítica. Durante esse
período, eram quase nulas as perspectivas que almejavam a aplicação de direitos de igualdade às populações
colonizadas: elas eram imediatamente destituídas de autodeterminação e soberania e, portanto, aptas para
serem exploradas e “educadas” aos moldes europeus. A empreitada econômica colonial era principalmente
justificada pela acumulação de riquezas das nações, mas chegou a desenvolver seus próprios ideólogos que
sustentavam tais objetivos.
Houve, por exemplo, os famigerados “teóricos da guerra justa”, como Francisco de Vitória (1483-156) e
Francisco Suárez (1548-1617), que justificavam a guerra contra negros e indígenas em nome da propagação
do cristianismo e do “bem comum”. Essas abordagens, como parece evidente, agregavam argumentos teoló-
gicos, filosóficos e éticos. O próprio filósofo inglês John Locke (1632-1704) é, ainda hoje, alvo de desconfian-
ças não solucionadas acerca de seu posicionamento sobre a escravidão (ver FARR, 1986, p. 263-289; BREWER,
2017, p. 1038-1078). A despeito de seu discurso antiescravista, ele foi beneficiado financeiramente pela Royal
Africa Company, uma empresa que comercializava escravos. E, enquanto conde de Shaftesbury, na Inglaterra,
chegou a encaminhar a instauração de um sistema aristocrático para que certos plantadores obtivessem total
autoridade sobre seus escravos. Ele nunca chegou a se pronunciar sobre a contradição de seus atos, motivo
de ser considerado hipócrita por alguns de seus estudiosos.
Mas a maneira de lidar com as colônias se alterou ao longo do tempo, embora não abandonasse seus mé-
todos desumanos. Em meados dos séculos 17-18, houve um conjunto de transformações sociais que ocorreu em
diferentes países, e especialmente na Europa: uma classe ascendente de comerciantes, industriais, banqueiros e
proprietários de terras ganhavam cada vez mais poder econômico e participação política. Nesse período, os privi-
légios das monarquias limitavam o avanço dessa classe, pois imputavam a eles taxações excessivas, restrições co-
merciais, legais e geográficas. Em alguns casos, inclusive, os senhores feudais mantinham o controle da produção e
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DIREITOS RACIAIS NO BRASIL
do comércio desses indivíduos. No entanto, com o desenvolvimento das indústrias – impulsionados pela expansão
marítima e economia colonial –, essa classe passou a acumular cada vez mais riquezas, motivando-os a conquistar
ainda mais influência política e autonomia econômica.
Nesse contexto nasce o liberalismo econômico, ou seja, uma revolução civilizatória frente às monar-
quias absolutistas europeias; uma corrente filosófica da economia política. Os “liberais” – a exemplo do seu
principal ideólogo, John Locke – criticavam os mandos e desmandos dos reis absolutistas, e exigiam liberda-
de de mercado a uma burguesia em ascendência na Europa. Essa “liberdade”, evidentemente, é a de comércio,
já que os donos de grandes fábricas desejavam expandir seus negócios; queriam ser livres para escolher para
quem e por quanto comercializar seus produtos. Trata-se, portanto, de uma liberdade da burguesia do julgo
dos reis, mas – como é evidente – continua significando dominação e exploração dos corpos negros e indíge-
nas subalternos, ainda subjugados nas colônias.
Na Europa, os ideais liberais ganharam força durante a Revolução Francesa (1789-1799), que pretendia
liberdade, igualdade e fraternidade à “humanidade”. Mas a burguesia da época disseminava um tipo de de-
mocracia que privilegiava unicamente os grandes capitalistas, que, inclusive, ainda utilizavam mão de obra
escrava: não estavam incluídos os negros, os indígenas e mesmo as mulheres – sem mencionar a multidão de
trabalhadores submetidos a condições precárias, subsalários e jornadas de trabalho exorbitantes. Portanto, o
liberalismo surgiu como um projeto teórico-político que representava os interesses econômicos da burguesia
europeia. Foram as potências liberais – entre partidos, cientistas e filósofos dessa perspectiva –, por exemplo,
que intensificaram a colonização da África e da Ásia entre os séculos 19-20.
Muitos foram os discursos que validaram a economia colonial durante a ascensão da burguesia e do libe-
ralismo econômico. Durante o século 18, por exemplo, uma prática altamente pseudocientífica, conhecida como
racismo científico, buscava justificar a supremacia étnica para validar o regime escravocrata europeu. Entre os seus
expoentes estava o naturalista e taxonomista Carl Linnaeus, autor da obra Systema Naturæ (de 1735), que chegou
a categorizar a humanidade em quatro grupos principais, atribuindo características estereotipadas e preconcei-
tuosas a cada um.1 Outro, o naturalista francês Georges-Louis Leclerc (“conde de Buffon”), propagava que o am-
biente podia influenciar negativamente os seres humanos, tornando-os inferiores, a exemplo dos africanos, devido
ao clima quente e árido da África. É ainda possível citar Johann Friedrich Blumenbach, antropologista e anatomista
alemão que propôs uma classificação em cinco raças baseada em diferenças cranianas: caucasiana, mongoloide,
etíope, americana e malaia, considerando a caucasiana (“europoides”) como a superior.
SAIBA MAIS
1 A saber: Americanus (indígenas americanos), Europæus (europeus), Asiaticus (asiáticos) e Africanus (africanos)
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DIREITOS RACIAIS NO BRASIL
Essa posição pode ser encontrada com ainda mais clareza e espanto
no discurso de filósofos iluministas, dos quais podemos citar, apenas a título
exemplo: David Hume (1875, v. 1, p. 252), que afirmou serem os negros “na-
turalmente inferiores aos brancos”; e mesmo Georg Friedrich Hegel (1999,
p. 83-86), por defender que, dos negros, “nada evoca a ideia do caráter hu-
mano [...] sua consciência ainda não atingiu a intuição de qualquer objeti-
vidade fixa”. A população negra que vivia escravizada nas colônias não era
o foco imediato dos direitos de liberdade, propagados por tais pensadores:
o negro foi categorizado como “criatura inferior”, desprovido de faculdades
2 Veja, por exemplo, Gonçálves (2015, p. 179-195); Lepe-Carrión (2014, p. 67-83);
Terra (2010, p. 299-312); Andrade (2017, p. 291-309).
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DIREITOS RACIAIS NO BRASIL
racionais e artísticas, incapaz de se organizar civilizadamente e, não obstante, passivo de ser educado por
meio da violência ao trabalho. Veja mais um exemplo, proveniente de Immanuel Kant:
Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo. O
senhor Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo em que um Negro tenha mostrado talentos,
e afirma: dentre os milhões de pretos que foram deportados de seus países, não obstante muitos deles
terem sido postos em liberdade, não se encontrou um único sequer que apresentasse algo grandioso na
arte ou na ciência, ou em qualquer outra aptidão; já entre os brancos, constantemente arrojam-se aqueles
que, saídos da plebe mais baixa, adquirem no mundo certo prestígio, por força de dons excelentes. Tão es-
sencial é a diferença entre essas duas raças humanas, que parece ser tão grande em relação às capacidades
mentais quanto à diferença de cores. [...] Os negros são muito vaidosos, mas à sua própria maneira, e tão
matraqueadores, que se deve dispersá-los a pauladas (KANT, 2012, p. 75-76, grifo nosso).
A prova mais flagrante de que os apelos à liberdade, fraternidade e igualdade não se aplicavam à vida
real – e não possuíam esse desejo – é a relação da França com suas colônias, da qual podemos eleger o Haiti
como exemplo. Ele figurava como uma das colônias francesas mais prósperas, devido ao cultivo de açúcar,
café e outras plantações, resultante da aplicação do sistema escravocrata sob péssimas condições de traba-
lho. A riqueza gerada pelo trabalho escravo no Haiti foi fundamental para o desenvolvimento da economia
francesa que, na prática, não poderia aplicar as máximas liberais a seus escravos.
A conquista daqueles “direitos humanos” ocorreu somente com a iniciativa dos próprios haitianos, por
meio de um processo revolucionário liderado por Toutssaint L’Ouverture, a Revolução Haitiana (1791-1804).
Nessa ocasião, os escravos se rebelaram contra a dominação francesa e conseguiram obter sua indepen-
dência. No entanto, para Toutssaint L’Ouverture a libertação haitiana não era urgente a um caso isolado da
dominação francesa: ela era relevante a todas as outras colônias. Por isso, escreveu a Napoleão Bonaparte,
em 1799: “Não é uma liberdade circunstancial, concedida apenas a nós, que queremos; é a absoluta adoção
do princípio de que nenhum homem, nascido vermelho, preto ou branco, possa ser propriedade do outro”
(SCHOELCHER, 1982, p. 264 apud HAIDER, p. 143, grifo acrescentado).
Por fim, podemos afirmar, com certa objetividade, que o conceito de “raças” pode servir a diversos fins que
dependem, a princípio, de uma hierarquia inventada que atribua ou retire poder e privilégios de alguém com base
na cor de sua pele. Essa divisão racial, conhecida como “racismo”, é, principalmente, um legado do sistema econô-
mico escravocrata, uma imposição ideológica de colonizadores para justificar o trabalho forçado. Falar de racismo,
portanto, não é uma iniciativa que se restringe à psicologia individual, à autoestima do negro, à identidade africa-
na, às “ancestralidades” e mesmo aos direitos raciais: trata-se de um tópico inaugurado no controle econômico de
uma sociedade, e que ainda é utilizado para a manutenção de hierarquias dessa natureza.
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DIREITOS HUMANOS, HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E INDÍGENA
DIREITOS RACIAIS NO BRASIL
O modo de produção que deu corpo, alimento e nutrição ao racismo foi, basicamente, o modelo escra-
vista colonial. Ele foi estruturado a partir da violência, da contradição e do maniqueísmo entre escravizados
vs. escravizadores (ver FANON, 1968, 25-74), reforçados por um aparato ideológico repressivo para legitimar
uma política econômica. Ainda que essa lógica pareça se restringir a um passado remoto, há quem nos alerte
sobre perspectivas atuais – notadamente imersas em interesses econômicos – que tentam devolver legitima-
ção ao colonialismo. Elas defendem que o processo de colonização foi, na verdade, positivo à economia, e
que “violentos”, de fato, eram os que reagiram contra as práticas coloniais por meio de levantes e revoluções
radicais – em que a revolução haitiana, conforme citamos, seria um exemplo.
Essa releitura branda da escravidão, contudo, não é novidade no meio acadêmico. Há alguns anos, Jacob
Gorender (2016a; 2016b), historiador e cientista social brasileiro, combateu diversos argumentos que pretendiam
amenizar a violência escravista colonial, o “escravismo benigno e consensual”: essa perspectiva retratava o negro
brasileiro como acomodado, um negociador do “paraíso tropical”, que trabalhava pouco, comia bem, e era rara-
mente castigado. Essa tese remonta ao século 18, e pode ser associada à propaganda imperial portuguesa, que
pretendia disputar a narrativa dos movimentos abolicionistas. Atualmente – apenas a título de contraposição –,
vale mencionar que o acadêmico mais famoso a divulgar a ideia de uma “escravidão benigna” no Brasil foi o escritor
Gilberto Freyre (1981; ver VERSIANI, 2007, p. 163-183). Não há espaço para esse debate no momento, mas não é
exagero afirmar que essa perspectiva é encarada com descrédito, e possui pouca base empírica para sustentá-la.
Mesmo assim, o revisionismo da escravidão brasileira é apenas a ponta do iceberg, comparado às muitas
narrativas racistas que apregoam a supremacia branca. Outra perspectiva que evidencia o retorno ao pensamento
colonial – desta vez do contexto estadunidense – foi constatada por Loïc Wacquant (1969; 2001), que deflagrou
nos discursos penais direcionados à população carcerária a retomada consistente de pressupostos antigos do ra-
cismo científico, a partir da neurociência, que ainda tenta identificar uma “configuração cerebral específica” nos cri-
minosos – justificando, assim, sua situação carcerária por meio de elocubrações racistas e biologicistas. Essa noção
caminha em paralelo ao crescimento de movimentos neonazistas no mundo, que apelam a um “orgulho branco”
relativo às conquistas do passado colonial: um exemplo disso é o crescimento em 270% dos grupos neonazistas no
Brasil, entre 2019-2022, atuando em 530 núcleos que reúnem a média de 10 mil integrantes.
Por isso, logo de início, é importante sublinhar o que observou o historiador Nelson W. Sodré (1984) so-
bre a história do negro no Brasil: ele explica que ela ocorreu por meio da incorporação da comunidade negra
à escravidão, de forma que a questão racial nasceu a partir de uma divisão étnico-racial do trabalho. Daí em
diante, é impossível fazer jus à história do negro brasileiro sem citar suas investidas anticoloniais, já que a luta
pelos direitos raciais tem sua relevância na libertação de qualquer sistema econômico que reproduz ideolo-
gias racistas. A exigência por esses direitos raciais se expressa muito cedo na história do negro brasileiro, e
pode ser prematuramente verificada em suas incontáveis investidas contra o sistema escravista.
Por isso, não é exagero afirmar, a princípio, que a história do negro no Brasil foi pautada pela violência:
seja aquela aplicada aos seus corpos pela escravidão, ou aquela desferida dos próprios negros contra seus se-
nhores, em atitude e protesto. Não por acaso; além de ser o último país a abolir a escravidão, o Brasil fez dessa
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DIREITOS HUMANOS, HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E INDÍGENA
DIREITOS RACIAIS NO BRASIL
tragédia um dos sistemas mais lucrativos da história. Mas os conflitos contra o sistema escravista no Brasil
contaram com a investida de outros, como homens e mulheres pobres, e inclusive alguns de classe média,
escravos e libertos. Ainda assim, as revoltas nem sempre previam a destruição do regime escravocrata – por
horrendo que fosse –, ou mesmo a liberdade dos cativos: algumas delas visavam apenas corrigir excessos de
tirania, ou diminuir o limite tolerável de opressão, além de reivindicações de benefícios.
Mesmo assim, durante boa parte do período que iremos explorar, “as elites brasileiras, os escravistas
de um modo geral e a maior parte do povo livre concordavam com uma coisa [...]: o escravo carecia ser con-
trolado” (REIS; GOMES, 2021, p. 17). É por isso que a superação da escravidão, posteriormente, não pode ser
compreendida como um “fenômeno episódico” (MOURA, 1986a, p. 8-9) – fruto de um progresso natural da
sensibilidade humana –, mas como resultado de incursões potentes e frequentes da parte dos escravos, que
durante séculos insistiram por sua liberdade. É essa perspectiva ativa, inteligente, estratégica e libertadora da
história dos negros que pretendemos explorar neste momento.
Desde o século 15, com as expansões marítimas, a África tornou-se a maior exportadora de mão-de-
-obra para trabalhos forçados. Estima-se a realização de 36 mil viagens de navios negreiros, ao longo de três
séculos, que partiam de 188 portos de escravos em África. Cerca de 5,5 milhões de negros vieram ao Brasil
sob essas condições – quase metade dos 12,5 milhões migrados para as Américas –, em que ao menos 1,8
milhões morreram no percurso. Mas a morte dos negros não era lucrativa aos comerciantes: encher um navio
de africanos e transportá-los ao Brasil sem nenhuma perda correspondia a lucros exorbitantes. Escravos eram
caros, e alternavam em preços a depender de suas condições físicas.
SAIBA MAIS
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DIREITOS HUMANOS, HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E INDÍGENA
DIREITOS RACIAIS NO BRASIL
Os negros sequestrados, no entanto, não eram ingênuos ou passivos, e podiam organizar rebeliões
nos navios: na metade do século 18, por exemplo, existem evidências de, ao menos, duas revoltas em navios
negreiros: a Revolta do navio Meermin (1766) e a Revolta do navio São José (1794). O primeiro navio, holan-
dês, navegava da África para as Índias Orientais Holandesas (atual Indonésia) em 1766. Os negros a bordo se
rebelaram contra a tripulação, resultando no extermínio de vários tripulantes. O navio encalhou na costa da
atual Namíbia, e os sobreviventes capturados pelas autoridades coloniais holandesas. O segundo, que trans-
portava africanos para o Brasil, naufragou perto da Cidade do Cabo, na África do Sul. Durante o naufrágio,
os escravizados se rebelaram contra a tripulação, resultando em outro extermínio.3 Mas a insurreição mais
famosa talvez seja de anos posteriores, a Revolta do navio Amistad (1839): africanos, liderados por Joseph
Cinqué, se rebelaram contra a tripulação, tomaram o controle da embarcação e tentaram retornar à África.
Mas o navio foi capturado pela marinha dos EUA, e os negros julgados e libertos por decisão da corte.4
Assim, no caso do Brasil, os negros eram traficados da África por meio de navios, com o propósito
principal de sustentar o sistema econômico escravocrata da época, de acordo com as demandas do merca-
do português. Essas viagens podiam ser mortais, e eram suscetíveis à revolta dos negros sequestrados. Ao
aportarem no Brasil, os trabalhos braçais as quais eram submetidos os negros aplicavam-se principalmente
nas roças; além de serem considerados mais resistentes do que os índios, os africanos estavam adaptados à
lógica do plantio, pois eram provenientes de uma sociedade agrícola. Entre Salvador e Recife, os engenhos de
açúcar poderiam contar entre 100-300 escravos – uma lógica de “criação de gado”.
Mesmo assim, tanto os povos indígenas quanto os africanos escravizados resistiam à exploração e
opressão dos colonizadores portugueses. Houve rebeliões, fugas para o interior do país e formação de comu-
nidades livres, como os quilombos, que eram assentamentos de escravos fugitivos (ver MOURA, 1986a; 2020).
A esta altura, talvez seja possível afirmar que onde houve escravidão houve, também, “rebelião quilombola”.
Mas a reação rebelde à escravidão se manifestou de muitas outras maneiras: quando os escravos sabotavam
as máquinas, cometiam suicídio, trabalhavam com lentidão, abortavam seus filhos, aplicavam métodos con-
traceptivos, matavam seus senhores ou fugiam deles. Independentemente do grau de organização, o des-
contentamento dos negros contra o sistema escravagista era contundente.
Grosso modo, quilombos eram comunidades formadas por fugitivos da escravidão. Esses locais serviam
como refúgio para que os negros pudessem viver em liberdade, mas também eram organizações de resistên-
cia militar ao regime escravocrata. Esses locais possuíam um funcionamento econômico próprio, e poderiam
agregar índios e brancos livres que, a despeito de suas diferenças raciais, construíam vidas independentes.
Esse funcionamento alternativo conferia oportunidade para que as tradições religiosas e culturais africanas
fossem resgatadas, desenvolvidas e mantidas a partir da experiência colonial brasileira. Os quilombos se or-
ganizavam de forma independente, desenvolvendo sua própria agricultura, educação, entretenimento, re-
ligião e exército – este último especialmente voltado à autodefesa, já que os locais eram frequentemente
atacados por expedições militares portuguesas.
3 Os destroços do navio foram descobertos em 2015, fornecendo evidências tangíveis da escravidão transatlântica.
4 Essa rebelião chegou a ganhar uma releitura cinematográfica, em 1997, com o filme Amistad.
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DIREITOS HUMANOS, HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E INDÍGENA
DIREITOS RACIAIS NO BRASIL
As resistências quilombolas mais conhecidas do período colonial são: o Quilombo dos Palmares, locali-
zado na região da atual Alagoas, que foi o maior e mais duradouro quilombo do período colonial, liderado por
Zumbi dos Palmares; o Quilombo do Campo Grande, situado no atual estado de Minas Gerais, sendo um dos
primeiros do Brasil; o Quilombo de Quariterê, localizado na região do Vale do Paraíba, em São Paulo, um dos
principais redutos de resistência quilombola naquela área; o Quilombo do Cascalho, situado no estado do
Maranhão; e o Quilombo de Cabula, estabelecido na região da atual Bahia. A organização e manutenção dos
quilombos é a maior prova, já no período colonial, de que os negros possuíam protagonismo político e eram
capazes de sugerir um projeto econômico alternativo à escravidão, capaz de sustentar grandes comunidades
sem a implementação do trabalho forçado.
Naturalmente, desse contexto de subsistência e resistência negra, começaram a se conflagrar as guerras qui-
lombolas, isto é, o conjunto de conflitos armados entre os quilombos e as autoridades coloniais brasileiras. Essas
disputas só eram possíveis porque, muitas vezes, tais comunidades eram organizadas de forma militar e resistiam
ativamente às tentativas das autoridades coloniais de reintegrá-los à escravidão. Os quilombolas defendiam seus
territórios com estratégias de guerrilha e táticas de emboscada, tornando a luta contra eles desafiadora mesmo às
autoridades coloniais. Essa guerra não foi um conflito único e contínuo, mas sim uma série de confrontos dispersos
ao longo do período colonial, refletindo a constante luta pela liberdade e pela dignidade humana.
Um exemplo famoso de conflito quilombola foi protagonizado por Zumbi dos Palmares (16555-1695),
um dos símbolos mais importantes para a resistência negra no Brasil. Ele nasceu em um quilombo e, portanto,
em situação de liberdade. Numa das incursões contra o local, foi vendido para um sacerdote e, assim, estudou
latim e português. Anos depois, Zumbi volta ao quilombo e passa a liderar o local. Ele já tinha uma população
de 30 mil pessoas e representava uma ameaça ao governo português, atiçando ainda mais uma guerra em
curso. Nos Palmares, o exército de Zumbi foi derrotado, e o líder capturado e morto. Sua cabeça foi exposta
em praça pública, tornando-se um ícone da resistência e da luta pela liberdade: o “Dia da Consciência Negra”,
comemorado todo 20 de novembro, foi estabelecido em homenagem ao dia de seu falecimento, em 1695.
SAIBA MAIS
A escravidão no Brasil, no século 17, foi caracterizada por uma intensificação do sistema escravista, espe-
cialmente com a expansão do cultivo de cana-de-açúcar e a consolidação das plantations nas regiões nordeste do
país. o Brasil se tornou o maior produtor mundial de açúcar, e essa economia foi a principal força motriz por trás
da colonização portuguesa. Grandes áreas de terra foram dedicadas ao seu cultivo, e a produção em larga escala
exigia uma quantidade significativa de mão de obra. Por isso, o tráfico transatlântico de africanos foi intensificado
durante esse período: milhares foram capturados e transportados à força em condições desumanas, sujeitos a
5 A data de nascimento de Zumbi dos Palmares, no entanto, é incerta. O ano de 1655 é uma estimativa.
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DIREITOS RACIAIS NO BRASIL
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DIREITOS HUMANOS, HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E INDÍGENA
DIREITOS RACIAIS NO BRASIL
Durante esse século, seguiram-se outras rebeliões, muitas inspiradas pelos ideais de liberdade alcan-
çadas pelos haitianos: podemos citar, por exemplo, a Revolta de Vila Rica, em 1720, e a Revolta dos Alfaiates,
em 1798. A primeira – também conhecida como “Revolta de Felipe dos Santos” –, foi um levante de 1720
composto por escravos e homens livres na região de Minas Gerais. Ela foi uma das primeiras manifestações de
descontentamento contra as políticas coloniais e tributárias impostas pela Coroa Portuguesa. E foi marcada
por uma série de atos de resistência, incluindo protestos, saques, ataques a postos fiscais e até a tomada do
controle de algumas cidades da região pelas forças rebeldes.
A segunda – também conhecida como “Conjuração Baiana” – foi um levante ocorrido em 1798 na cida-
de de Salvador, na capitania da Bahia, liderada por João de Deus do Nascimento e Lucas Dantas de Amorim
Torres, ambos alfaiates. Ela foi um dos primeiros movimentos de caráter emancipacionista e republicano no
Brasil, e é considerada um marco na luta pela independência e pela igualdade social no país. Motivada pelo
descontentamento com o sistema escravista e com a ascensão de ideais iluministas, a revolta reuniu mem-
bros da classe média e baixa, incluindo artesãos, alfaiates, soldados, mulatos e negros libertos. Os rebeldes
buscavam a independência da Bahia em relação a Portugal, além da criação de um governo republicano e
democrático. Embora existam evidências de que houve participação de escravos nessa revolta, ela não foi tão
significativa quanto a de homens livres e pobres (ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006, p. 160-169).
Mas com o final do século 18, a mentalidade mundial começou a tomar outro rumo no que diz respeito
à escravidão. Houve uma comoção internacional contra o tráfico de escravos, levando a medidas legislativas
que restringiam esse comércio. Uma dessas iniciativas foi a Society for Effecting the Abolition of the Slave
Trade [“Sociedade para a Abolição do Tráfico de Escravos”], em 1787, formada por ativistas britânicos. Pos-
teriormente, em 1807, o Reino Unido decretou o “Acto de Abolição do Tráfico de Escravos”, que proibia esse
comércio em navios britânicos – um primeiro passo significativo em direção à abolição do tráfico por uma
grande potência colonial. Um outro marco foi a assinatura do Tratado de Paris, em 1814, após as Guerras Na-
poleônicas, onde as grandes potências europeias concordaram em abolir o comércio de escravos. Antes, em
1808, Portugal também chegou a proibir o tráfico para o Brasil; mas sem sucesso, pois ele ainda ocorria de
forma clandestina e lucrativa.
Portanto, o crescimento do empreendimento português, nesse período, teve implicações para o sis-
tema escravista, que foi intensificado e monopolizado para atender à demanda crescente por mão de obra
nas fazendas de café: se contabilizarmos os três séculos de duração do tráfico transatlântico, os anos 1800-
1850 valeram por 43% de africanos desembarcados, isto é, 2 milhões (REIS; GOMES, 2021, p. 5). Essa prática
começou a se contradizer ao espírito da época, desde 1830, que passou a rechaçar esse tipo de prática. A Lei
Eusébio de Queirós, de 1850, por exemplo, proibiu o tráfico de escravos para o Brasil, mas a elaboração de
tais aparatos legais não era suficiente para a emancipação negra. A partir desse ano, a população escravizada
declinou, mas cresceu nas regiões cafeeiras.
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DIREITOS RACIAIS NO BRASIL
Durante o Brasil Imperial, a escravidão ainda era uma instituição fundamental na estrutura socioeco-
nômica do país. A economia brasileira dependia do trabalho escravo, especialmente nas atividades agrícolas.
Não obstante a isso, o processo que eclodiria na independência do Brasil começou a se intensificar no início
do século 19, impulsionado por uma série de fatores, incluindo as ideias iluministas, os conflitos internos
entre colonos e a própria situação política de Portugal. Em 1822, o príncipe regente Dom Pedro proclamou a
independência do Brasil, estabelecendo o país como um império sob sua liderança, tornando-se o primeiro
imperador do país: Dom Pedro I. Mas a escravidão continuou a ser uma prática amplamente aceita entre as
autoridades brasileiras. Além disso, movimentos abolicionistas surgiram ao longo do período imperial, defen-
dendo o fim da escravidão e a emancipação dos escravizados, sem alianças significativas com as resistências
escravas e os quilombos organizados na época.
SAIBA MAIS
A despeito do sistema escravista, muitos negros, nesse período, já possuíam posições sociais de influência
e destaque. Essa diferente classe de negros surgiu por conta de oportunidades para educação e acesso a círculos
intelectuais da época. A maioria deles se aventurou na luta abolicionista, articulando os ideais de liberdade da
época a partir de suas áreas de especialidade, como no direito, na medicina, nas letras etc. Reconhecido como um
dos maiores abolicionistas do Brasil, por exemplo, Luís Gama (1830-1882) foi um advogado, escritor e jornalista
negro que lutou pela libertação dos escravizados. Ele utilizou seu conhecimento jurídico para libertar centenas de
pessoas da escravidão, além de defender os direitos dos negros perante tribunais.
Outro exemplo, reconhecido como um dos maiores escritores da literatura brasileira, Machado de Assis
(1839-1908), filho de mãe negra e pai branco, foi um pioneiro negro na literatura nacional como escritor, poe-
ta e romancista. Sua obra, repleta de críticas sociais e reflexões sobre a sociedade, abordou questões raciais
no contexto da época, é reconhecido por ser o primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras. Embora
não tenha sido um ativista abertamente político, sua escrita e suas ideias contribuíram para a conscientiza-
ção sobre a injustiça e a crueldade da escravidão. Através de suas obras, como Memórias Póstumas de Brás
Cubas, Dom Casmurro e Quincas Borba, por exemplo, Machado de Assis retratou personagens negros de
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DIREITOS RACIAIS NO BRASIL
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SAIBA MAIS
Os levantes de resistência contra a escravidão podiam expressar Foto de Marc Ferrez de Quituteiras
símbolos e valores religiosos. Com frequência, as revoltas eram no Rio de Janeiro, em 1875.
planejadas para dias festivos e ritualísticos. João José dos Reis (1996)
Fonte: Pesquisa FAPESP
chegou a elaborar uma lista de revoltas escravas acontecidas em
dias festivos em seu artigo“Quilombos e revoltas escravas no Brasil”,
publicado na Revista USP (Disponível em: https://doi.org/10.11606/
issn.2316-9036.v0i28p14-39 Acesso em: 09 fev., 2024). Das citadas,
por exemplo, tanto a revolta dos Haussás quanto a revolta de
Campinas foram planejadas para o Natal. Além disso, o ideal de
liberdade e a solidariedade coletiva eram, muitas vezes reforçados
por concepções espirituais e seus arsenais simbólicos. O papel da
religião na resistência escrava não se limitou à identidade africana:
os escravos cristianizados desenvolveram uma forma peculiar de
cristianismo que os direcionavam à revolução e transformação do
mundo (ver SPILLER, 2021; ARAÚJO, 2008; CARVALHO, 2004).
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DIREITOS RACIAIS NO BRASIL
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oficialmente abolida em 1888 por meio da “Lei Áurea”, assinada em 13 de maio do mesmo ano. No entanto,
ela não foi acompanhada de políticas de integração social e econômica aos ex-escravizados, resultando na
persistente exclusão social da população negra dentro do novo sistema econômico que se instaurava. Diver-
sos movimentos e lideranças contribuíram para a conscientização e a luta pela abolição; mas muitos desses
esforços foram liderados por brancos, sem um plano efetivo para a reparação social. Fato é que a discrimina-
ção racial persistiu por muitos anos.
A ênfase na vitória da causa abolicionista como o fim da escravidão – ironicamente – ajudou a propagar a
“mitologia histórica” de que a libertação dos escravizados ocorreu sem derramamento de sangue. Contudo, como
vimos, a história comprova exatamente o contrário: combates truculentos costumavam ser realizados em revoltas
e conspirações nos navios negreiros, nas senzalas e nos quilombos, as modalidades mais violentas da resistência
negra. Até o momento da abolição, incontáveis cativos e cativas se irmanaram em protestos para resistir, à força, a
tirania escravista a fim de administrarem sua própria subsistência. Já os abolicionistas tradicionais, por outro lado,
estavam mais preocupados em inserir o Brasil nos modelos econômicos liberais, motivados pelo sentimento de
progresso da época – pouco importando o que a resistência negra havia conquistado até então.
O processo abolicionista foi resultado de múltiplos aspectos que o influenciaram, desde pressões in-
ternacionais até mudanças nas dinâmicas econômicas do país. Tal processo foi protagonizado por resistên-
cias pró e contra a abolição, envolvendo lutas políticas, parlamentares e discussões de leis emancipatórias
(COSTA, 2012a). Nesse contexto, talvez seja possível afirmar que a Lei Áurea representou apenas uma etapa
na liquidação da estrutura escravista colonial, prejudicando a velha classe de senhores e inaugurando um
processo de transformações mais intenso que se estendeu até a metade do século 19 – do trabalho escravo
ao assalariado, da monarquia à República (COSTA, 2012b). Com a Lei Áurea, finalmente, o Brasil foi o último
país a abolir – ao menos formalmente – a escravidão, pois, como se sabe, mesmo após tal promulgação, os
negros permaneceram sem acesso a vários de seus direitos fundamentais.
A abolição da escravidão garantiu apenas um direito formal aos escravos, sem qualquer garantia para
a subsistência do povo negro. Ou seja, além de não possuir dinheiro, moradia e outras condições mínimas
para sobreviver, eles permaneciam como páreas. Essa realidade causou uma fissura econômica ainda não so-
lucionada, que ainda marginaliza negros e negras adaptados a cargos “inferiores” ou informais, como serviços
domésticos, rurais ou braçais. Desde a abolição, muitos foram os movimentos e as personalidades que luta-
ram pela igualdade de diretos aos negros no Brasil.6 Mas os registros disponíveis a esse respeito costumam
ser demasiadamente brancos, coloniais e notoriamente masculinos; daí as várias iniciativas acadêmicas que
pretendem resgatar a identidade e história dos negros e negras responsáveis pela força e abrangência dos
movimentos de emancipação.
O século 20 foi marcado por movimentos importantes à luta pela igualdade e pelos direitos dos ne-
gros. Por conta da falta de políticas públicas que agregassem os negros à sociedade, logo após a abolição,
eles passaram a se organizar em grupos que uniam escravos e libertos. Essas instituições adquiriam fundos
para a libertação de escravos e, além disso, administravam a inserção destes à sociedade, por vezes através
de educações formativas – há evidência de que eles existiam desde 1820 (ver SILVA, 2011). Alguns deles, por
exemplo, carregavam o nome “Clube 13 de Maio” em referência à data da abolição, como os ajuntamentos
que ocorreram em Curitiba (1888), em Ponta Grossa (1890) e em São Paulo (1902). Em tais locais, os partici-
pantes encontravam abrigo, trabalho e outros tipos de assistência. Essa iniciativa fazia parte de um movimen-
to clubista exclusivo para sócios negros, com o objetivo de se tornar locais de subsistência e lazer para os
ex-escravos. Um dos benefícios oferecidos pelos clubes, por exemplo, era o direito a um funeral digno, para
que os negros não fossem enterrados como indigentes.
6 Eles podiam ser profissionais liberais, esportistas, mães, professoras, curandeiros, médicos, músicos, ativistas, líderes
religiosos, feirantes, garis, cabeleireiros, eletricistas e donas de casa e a lista segue.
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SAIBA MAIS
Nas primeiras décadas após a abolição (e até antes dela), se fortalece a “imprensa negra”, que em suas
publicações veiculava pautas sobre igualdade de direitos e denúncias de segregação racial. Estima-se que
entre 1915 e 1963, cerca de 30 jornais foram publicados por negros no Estado de São Paulo (ver FERRARA,
1985, p. 197-207). Desses jornais, por exemplo, podemos citar O Mulato (ou O Homem de Côr, de 1833), idea-
lizado por Francisco de Paula Brito – reconhecido por ser o primeiro editor de Machado de Assis; A Liberdade
(1919), editado por Gastão da Silva; O Clarim da Alvorada (1924), editado por José Correa Leite e Jaime Aguiar;
Tribuna Negra (1932), editado por Guaraná de Santana e José Correa Leite; e A Voz da Raça (1933), fundada
por Francisco Costa; entre outros. A imprensa negra, desde então, continuará a produzir muito conteúdo,
perpetuando uma tradição editorial permanente.
Mas em 1931, no Estado de São Paulo, o movimento negro conquistou um salto significativo com a cria-
ção da Frente Negra Brasileira (FNB), uma das primeiras frentes com reivindicações políticas mais deliberadas,
a entidade mais importante do movimento negro brasileiro nas primeiras décadas do século 20. Ela reuniu
milhares de membros, possuía filiais em diversos Estados e defendia os interesses da comunidade negra,
principalmente através do aperfeiçoamento intelectual contra o racismo (DOMINGUES, 2008, p. 517-596). Foi
a FNB quem lançou A Voz da Raça, por exemplo, e se transformou em partido politico em 1936, pretendendo
concorrer às eleições e capitalizar o voto da população negra. Vale enfatizar que a FNB não surge do vácuo,
mas recorre de iniciativas comunitárias, incluindo os diversos clubes e associações negras já existentes.
Até a criação da FNB, é possível afirmar que o movimento negro se aplicava a conquistar uma “cidada-
nia plena”, já que a discriminação ainda era um modus operandi para a segregação racial, e os negros com
extrema dificuldade se inseriam na sociedade brasileira. Neste primeiro momento, os negros buscavam a
integração social e o respeito dos brancos, mas sem questionar a estrutura discriminatória da sociedade de
maneira mais profunda. As pautas politicas passaram a tomar espaço com O Clarim da Alvorada e a fundação
da FNB, representando a culminância do projeto que aglutinou a movimentação nas irmandades religiosas,
na imprensa negra e nos clubes culturais, onde eram debatidos os problemas gerados pela discriminação em
busca de alternativas à melhora de vida para a população negra.
Outras iniciativas do gênero ocorriam em diferentes localidades do país, como a organização pela União dos
Homens de Cor (UHC), fundada por João Cabral Alves, em Porto Alegre, 1943. À semelhança da FNB, ela também
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DIREITOS RACIAIS NO BRASIL
A princípio, o centro pretendia desenvolver atividades sociais e recreativas em distanciamento das manifes-
tações políticas da época; ela pensava na temática da conscientização étnica como forma de superação das
desigualdades raciais, ao mesmo tempo em que realizava uma leitura crítica da história e desmistificava da
democracia racial (ver SILVA, 2020, p. 18-23). Porém, os ideais estatutários que, a princípio, afastavam o centro
de discussões políticas foi superado com tempo, justamente por entenderem ser impossível alterar o funcio-
namento racista do sistema sem agregar temáticas políticas e econômicas.
Aliás, no que diz respeito à cultura negra, a década de 1970 fez popularizar a música soul, protagoni-
zada por talentos negros como Tim Maia, Jorge Ben e Tony Tornado, assim como o movimento “Black Rio”. De
alguma forma, essa maneira de expressão musical representou a afirmação étnica e fortaleceu o sentimento
de contracultura vigente. Ele direcionou jovens negros a reflexões sobre política e identidade, além de reali-
zar oposição manifesta contra o mito da “democracia racial” (ver PAIVA, 2015). Em outro âmbito, no contexto
científico, pode ser citado o Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN), inaugurado em 8 de julho de
1975, no Rio de Janeiro, com o intuito de ocupar lugar como referência para a pesquisa da luta antirracista,
denunciando e combatendo o preconceito de cor.
No entanto, tais iniciativas, além de fragmentadas, ainda careciam do ímpeto político necessário para
abalar as estruturas sistémicas do Brasil, e não possuíam força para enfrentar o regime ditatorial. Apenas em
1978, com a criação do Movimento Negro Unificado (MNU), ocorre um retorno mais intenso à cena política
brasileira e a configuração de um movimento negro organizado (ver DOMINGUES, 2007, p. 100-122). Esse
retorno foi, em parte, influenciado pelas muitas experiências emancipatórias externas, sobretudo as de lín-
gua portuguesa, como os movimentos de libertação de Guiné Bissau, Moçambique e Angola. Tais influências
incentivaram o MNU a adotar um discurso político mais radical em relação à luta contra a discriminação racial
no Brasil. Para isso, o movimento foi gerido em âmbitos de discussões políticas e econômicas da época, de-
senvolvendo não apenas um discurso antirracista, de uma perspectiva identitária, mas uma crítica aos siste-
mas econômicos – como o capitalismo –, que intensificavam a discriminação racial.
A primeira atividade no MNU foi a organização de uma manifestação pública, realizada em 7 de julho de
1978, em protesto contra a discriminação sofrida por quatro jovens no Clube de Regatas Tietê, e contra a morte de
Robson Silveira da Luz, torturado até a morte no 44º Distrito de Guaianases. O evento foi um marco histórico à resis-
tência negra no Brasil, assinalando a retomada do ativismo negro, desmantelado pela Ditadura Empresarial-Militar.
Entre 1978-1979, por influência dessas iniciativas, o jornal Versus estipulou uma coluna para a “Afro-latino-américa”,
e à elaboração de artigos que conclamavam a população negra à luta contra o racismo e o sistema econômico
vigente. Pela primeira vez, a luta antirracista não esteve centralizada no âmbito acadêmico da intelectualidade
afro-brasileira, mas agregou nas ruas diversas representações e pautas do movimento negro.
O MNU chegou a incentivar, por exemplo, a criação de centros de luta nos bairros, nas vilas, nos terreiros de
candomblé e umbanda, nas escolas, nos locais de trabalho e mesmo nas prisões. Entre as muitas pautas imediatas
para resolução, estavam discriminação racial; a violência policial; o desemprego; o subemprego; a marginalização
da população negra; a implementação dos currículos escolares com assuntos voltados à história de África; e a des-
mitificação da democracia racial brasileira. Como parece evidente, à semelhança das resistências negras populares
citadas anteriormente, o MNU abrangia pautas que interessavam não apenas aos negros, mas principalmente à
massa de trabalhadores pobres, explorados e marginalizados pelo sistema capitalista. A luta do negro, nesse senti-
do, não era diferente daquela enfrentada pelas camadas oprimidas da sociedade brasileira.
Dos anos 2000 em diante, o movimento negro intensificou o processo de politização da raça, condu-
zindo mudanças na estrutura do Estado, como a criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial (SEPPIR), em 2003. Além disso, como será explorado com mais detalhes, foram elaboradas políticas pú-
blicas que facilitavam o acesso dos negros às universidades, as “cotas raciais”. Essas pautas, com o passar dos
anos, passaram a ganhar um local de destaque nas reivindicações dos movimentos, articulando esforços para
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DIREITOS RACIAIS NO BRASIL
DIREITOS RACIAIS
NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
Foto de Carlos Vergera da série “Car-
Com o avanço do liberalismo, a ascensão de uma burguesia e a imple- naval”, de 1972, em São Paulo.
mentação do trabalhado assalariado, os sistemas econômicos tomam formas
Fonte: Veja Imagens
progressistas, e a escravidão tornou-se cada vez mais obsoleta. Como vimos,
nesse período, os movimentos abolicionistas ganham substância, e as primei-
ras leis antiescravistas passam a ser estipuladas. Antes de 1888, durante século
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DIREITOS HUMANOS, HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E INDÍGENA
DIREITOS RACIAIS NO BRASIL
19, houve, por exemplo, o Alvará de 1818, que proibia o tráfico de escravos africanos para o Brasil, estipulando
multas à prática. Mas a legislação mais importante nesse sentido foi a Lei Eusébio de Queirós (Lei nº 581/1850),
promulgada em 4 de setembro de 1850, que insistiu de maneira ainda mais contundente contra o tráfico transa-
tlântico. Ela foi seguida da Lei do Ventre Livre (Lei nº 2.040/1871), que declarou liberdade aos filhos e filhas de es-
cravos nascidos a partir de sua promulgação – embora não agisse diretamente contra o tráfico, ela desestimulava
a importação de escravos. E, semelhante à última, a Lei dos Sexagenários (Lei Saraiva-Cotegipe - Lei nº 3.270/1885)
promulgou liberdade aos escravos com mais de 60 anos de idade.
Não é novidade afirmar, no entanto, que a estipulação dessas leis, somadas à abolição da escravidão
em 1888, não gerou resultados imediatos, e não impediu que o tráfico de escravos fosse realizado de diversas
formas ilegais. A articulação da legislação, tentou desmontar o negócio dos navios negreiros pela força da lei,
para que essa prática pudesse dar espaço a outros negócios mais lucrativos: a Inglaterra, por exemplo, embo-
ra tenha se beneficiado do comércio de escravos no passado, começou a perceber que o tráfico atrapalhava
o comércio britânico na costa ocidental da África. Com a Revolução Industrial, os africanos, além de “traba-
lhadores livres”, eram também consumidores dos produtos ingleses. “Esvaziar” a África, portanto, significava
desmantelar a dinâmica econômica que gerava lucro à Inglaterra em contexto africano.
Décadas à frente, após a Segunda Guerra Mundial, muitos países se uniam contra a ideologia das “raças
distintas”, revisitada e engendrada principalmente por ideais nazistas que enxergavam a realidade através de cate-
gorias inferiores ou superiores a depender de estereótipos físicos. Estava claro que a ênfase na categoria de “raça”,
na verdade, perpetuava o racismo, e não o contrário; quanto mais insistência era atribuída à essa distinção, mais
oportunidade era conferida a práticas racistas. Essa divisão dualista já era combatida por escritos afro-americanos
entre 1910-1940 (GUIMARÃES, 2002, p. 139-141) que enxergavam, no Brasil, a possibilidade utópica de realizar o
sonho de uma nação sem preconceitos: por ser o país da “mestiçagem”, ele deveria contribuir à crítica da distinção
das raças, idealizando a democracia racial – essa posição, em prol de uma sociedade identificada pela miscigena-
ção, chegou a ser defendida pela FNB, em meados da década de 1930, por exemplo.
No entanto, a experiência dos negros no Brasil os conduziu ainda mais à divisão racista da socieda-
de, influenciando, assim, no campo do direito, e abandonando a ideia miscigenada da nação brasileira. Os
problemas sociais que resultavam na marginalização dos negros eram gritantes, e o preconceito contra sua
cor contradizia os ideais de igualdade promulgados por lei, desde 1888. Para lutar contra a evidente de-
sigualdade social e econômica, os movimentos negros prepararam sua artilharia contra o preconceito e a
discriminação e, por conseguinte, nutriam a noção da “entidade jurídica negro” (nos termos de PINTO, 1953,
p. 344, itálicos do original), racializando a legislação brasileira e fortalecendo a noção de “raças distintas”. Essa
nova maneira de pensar o negro no Brasil – que teve influência do Teatro Experimental do Negro (TEN) – irá
respingar na luta pelos direitos étnico-raciais até hoje. Em suma, a própria lei será regida pela existência de,
ao menos, duas raças.
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DIREITOS HUMANOS, HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E INDÍGENA
DIREITOS RACIAIS NO BRASIL
Posteriormente à Ditadura Empresarial-Militar Brasileira, em 1985, a Lei Afonso Arinos ganhou uma
nova redação, que incluiu, entre as contravenções penais, a prática de atos resultantes de preconceito de raça,
cor, sexo e estado civil. Em 5 de janeiro de 1989 entraria, então, em vigor a Lei Caó (Lei 7.716/89) – referindo-se
ao Deputado Federal Carlos Alberto Caó de Oliveira, militante do movimento negro e autor da nova redação
–, que determinava a pena de reclusão a quem cometesse atos de discriminação ou preconceito de raça, cor,
etnia, religião ou procedência nacional. Vale ressaltar que, nessa época, já havia sido implementada a Cons-
tituição Federal de 1988 – 100 anos após a Lei Áurea. A Lei Caó, na verdade, foi uma norma complementar à
Constituição, regulamentando ainda mais os trechos relativos às práticas racistas.
Na Constituição Federal de 1988, por exemplo, o artigo 3º estabeleceu que um dos objetivos fundamentais
da República Federativa do Brasil é “promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade
e quaisquer outras formas de discriminação”. Em outros termos, o Estado brasileiro deve trabalhar para garantir a
igualdade de todos os cidadãos, independentemente de sua raça ou cor. Além disso, o artigo 5º estabeleceu que
“todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Isso significa que todos os cidadãos brasileiros
têm os mesmos direitos e deveres perante a lei, independentemente de sua raça ou cor. Ela também estabeleceu
que a prática do racismo é crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão. Essa medida é importante
porque tornou o racismo uma prática ilegal, sujeita os infratores a punições severas.
Até aquele momento, o governo de Fernando Henrique Cardoso foi o que mais se dedicou ao campo
jurídico relacionado aos direitos de raça. Em 1995, por exemplo, o presidente recém-eleito criou o Grupo de
Trabalho Interministerial para sugerir ações políticas que valorizassem os negros. Um ano depois, em 1996,
inaugurou o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), clarificando ainda mais o desejo de criar políti-
cas específicas para a população negra, tomando como base uma taxonomia brancos e negros (PNDH, 1996,
p. 29-31) – e, ao mesmo tempo, suprimindo as categorias “mulatos, pardos e pretos”.
Desde esse período, o governo já propunha, para médio prazo, “desenvolver ações afirmativas para o
acesso dos negros aos cursos profissionalizantes, à universidade e às áreas de tecnologia de ponta” (PNDH,
1996, p. 30). Com a virada do século, e a participação dos brasileiros na 3a Conferência Mundial das Nações
Unidas de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, em 2001, desejou-
-se ainda mais adotar ações afirmativas em favor dos negros, legitimando reparações históricas à escravidão
e cotas para negros nas universidades públicas.
Como resultado, o ministro da Reforma Agrária anunciou que 20% das vagas no seu ministério seriam
para negros; em dezembro, o presidente da República estendeu o mesmo princípio ao funcionalismo público.
Além disso, o Governo do Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, reservou 40% das vagas de suas universida-
des para pessoas que se definissem “negros ou pardos” – a Lei nº 30.766, de 4 de março de 2002, que já tinha
como base a Lei nº 3.708, de 9 de novembro de 2001. O nascedouro das políticas de cotas tinha como pres-
suposto que a falta de negros nas universidades ocorria devido à cor de sua pele, e não a pobreza e educação
anterior, das quais a maioria deles era vítima.
Com o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, a partir de 2003, foram feitas modificações no Sistema de
Financiamento ao Estudante (FIES), estabelecendo-se o Programa Universidade para Todos (PROUNI), ambos
especificando vagas para negros e outras minorias. O governo também criou, no mesmo ano, a Secretaria
Especial para a Promoção da Igualdade Racial (Seppier). Pode-se destacar, no entanto, a promulgação da Lei
10.639/2003, que tornava obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira em todas as escolas, públi-
cas e particulares, do ensino fundamental ao médio. Essa lei alterou as Diretrizes e Bases da Educação Nacio-
nal (LDB), e foi atualizada na Lei 11.645/2008, que incluiu o ensino da história da cultura dos povos indígenas,
incluindo a noção de que a população brasileira agregava dois grupos étnicos no seu processo de formação.
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DIREITOS RACIAIS NO BRASIL
Em anos recentes, as cotas raciais tomaram proporções ainda mais abrangentes e obrigatórias no Brasil: a
Lei de Cotas Raciais (Lei nº 12.711/2012), aprovada em 2012, foi elaborada como política pública que garante a
inclusão social de grupos historicamente excluídos do ensino superior, como negros, indígenas, pessoas com de-
ficiência e estudantes de escolas públicas. A lei foi sancionada em 2012 e regulamentada em 2016, determinando
que ao menos 50% das vagas em universidades e institutos federais devem ser reservadas para estudantes que
cursaram o ensino médio em escolas públicas, com renda familiar per capita igual ou inferior a um salário-mínimo
e autodeclarados pretos, pardos ou indígenas. A lei também estabelece que as instituições devem adotar políticas
de ações afirmativas para garantir a permanência e o sucesso acadêmico desses estudantes.
Para além da Educação, pode ser citada também a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), que pre-
tendeu proteger a mulher da violência doméstica e familiar. Ela foi criada em 2006 por uma farmacêutica
chamada Maria da Penha, que sofreu violência doméstica por parte do marido durante anos, tornando-se pa-
raplégica após uma tentativa de assassinato. A lei foi criada com o objetivo de aumentar a pena, a assistência
às vítimas e a prevenção da violência, criando mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e fa-
miliar contra a mulher. Embora não seja específica para direitos étnico-raciais, ela protege vítimas de violência
doméstica, que afeta uma população superior de mulheres negras.
Em 2010, foi promulgado o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010), que visou garantir a efe-
tivação da igualdade de oportunidades e a defesa dos direitos étnicos, individuais, coletivos e difusos. A lei
– promulgada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva – alterou outras, anteriores, como a Lei nº 7.716/1989,
que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, e a Lei nº 9.029/1995, que proíbe a exigên-
cia de atestados de gravidez e esterilização e outras práticas discriminatórias para efeitos admissionais ou de
permanência da relação jurídica de trabalho. O Estatuto estabelece diretrizes à promoção da igualdade racial
no Brasil, a exemplo da criação de políticas públicas à população negra, da promoção da igualdade de opor-
tunidades no mercado de trabalho e da valorização da cultura afro-brasileira. Além disso, a lei prevê a criação
de um sistema de monitoramento e avaliação das políticas públicas também voltadas à população negra.
Mas há um meio termo possível: de fato, os movimentos negros encontram-se de mãos atadas quando se
limitam a conquistar direitos no contexto jurídico; isto é, no limite estreito do sistema. A revisitação, atualização
e elaboração de novas leis – nas entrelinhas – flagram a ineficiência da legislação ao lidar com o racismo dentro
das estruturas sociais que o validam. A reprodução de direitos é, ironicamente, ainda mais benéfica às estruturas
vigentes, pois elas precisam se adaptar às novidades para se reproduzir. Nesse sentido, afirmar unicamente a im-
portância das subjetividades jurídicas – da “entidade jurídica negro” –, e não a de outras, de abrangência ainda mais
urgente, como as políticas e as econômicas, não altera o quadro da desigualdade perpetuada (ver SINGH, 2005;
ALEXANDER, 2018; HAIDER, 2019). Os dados alarmantes a respeito da negritude no Brasil não ocorrem especial-
mente pela falta de incentivo à cultura e identidade afro-brasileiras: eles resultam, acima de tudo, de uma estrutura
econômica fadada ao colapso, da qual os negros são, historicamente, as principais vítimas.
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DIREITOS RACIAIS NO BRASIL
Mesmo assim – é importante enfatizar – não seria positivo desistir das lutas identitárias, como fazem verten-
tes “anti-identitárias”. A ideologia que ronda a cor está inserida na vida concreta dos negros e servem, em situações
incontáveis, como medida para o seu sucesso ou fracasso. Ela carrega consequências fatais e, portanto, deve ser
estimada para o benefício da comunidade negra por meio de ações que valorizem sua identidade. As políticas de
identidade em sua forma atual são mecanismos de reprodução social do capitalismo. Quando as relações de poder
e de direitos civis são reduzidas à lei, elas ficam cegas a outras diversas práticas sociais responsáveis pelo acúmulo
de poder. Nesse sentido, a ênfase no identitarismo corre o risco de concentrar o foco em questões de identidade e
desconsiderar as contradições políticas e econômicas da sociedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A título de revisão, nesta unidade, estudamos acerca do conceito de “raça” e como ele foi articulado no
contexto do sistema escravista para transformar-se em racismo, a fim produzir e reproduzir práticas econômi-
cas exclusivas. Entendemos que, de uma perspectiva histórica, a ideologia racista foi útil para a manutenção
de muitos privilégios europeus, e foi difundida não apenas por esforços pseudocientíficos, mas por autores
conceituados do pensamento iluminista. O “negro”, como o conhecemos hoje, foi basicamente formulado
dentro dessas condições históricas específicas, e as consequências que hoje se experimentam a seu respeito
são devastadoras. Por isso a urgência de se pensar os direitos humanos de uma perspectiva racial, na tentati-
va de aliviar a fissura social causada pelo sistema escravista, e em muitos termos perpetuada por outros que
criam, atualmente, uma população de miseráveis – no Brasil, representada majoritariamente por negros.
Estudamos, de uma perspectiva histórica, que os movimentos negros, em busca da igualdade social,
lutaram sozinhos por séculos para legitimar sua humanidade. Em especial no Brasil, em que a resistência
contra a escravidão poderia se expressar de forma mais trágica e individual, como o suicídio, ou de maneira
mais heroica e coletiva, como as insurreições populares e a organização de quilombos. Em todos os casos, os
negros demonstraram ao mundo que sua humanidade não podia ser definida pelos interesses econômicos
de uma maioria abastada; e que a violência aplicada a eles foi utilizada como ferramenta à emancipação. O
ódio acumulado durantes os anos, segundo Sartre ([1961] 1968, p. 7-11), foi o “único tesouro” que puderam
acumular. E a história demonstrou que a forma mais saudável de extravasar tal cólera era na luta armada em
prol da libertação dos cativos.
No processo histórico de resistência, é natural que os negros afirmem – por vezes através da força legis-
lativa – sua cultura, história e outros elementos identitários. No entanto, talvez seja necessário ir além de tais
concepções que, generalizadas nas lutas antirracistas, reafirmam a distinção hierárquica natural do conceito
de “raça”, estipulado como ideologia colonialista para subjugar um grupo em detrimento de outro. O negro e
o branco, como categorias raciais distintas, foram criados pelo racismo e, nesse sentido, precisam ser “destruí-
dos”. É como se a apropriação da luta antirracista fosse útil para alcançar o horizonte em que o próprio con-
ceito de raça seja extirpado da sociedade, num processo de emancipação econômica desracializadora – sem,
contudo, perder de vista a relevância dos direitos raciais para a transformação sociedade.
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