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1, Jan-Jun 2022
É com grande alegria que aceito o convite do Grupo Calundu para apresentar o
mais novo número da Revista Calundu, periódico voltado às discussões acerca das
afrorreligiosidades brasileiras, que chega, agora, ao seu sexto volume. A alegria advém,
não só do convite, mas também do fato de que, num momento bastante complexo para as
Humanidades e para as religiões de matrizes africanas, uma revista que se propõe a
discutir um tema considerado marginal por grande parcela da população brasileira se
consolida com produtora de um pensamento complexo, diverso e multifacetado como
devem ser todas e quaisquer discussões em torno de um tema tão relevante.
E como não deveria deixar de ser, a Revista Calundu, honrando seu compromisso
com o debate descentrado e múltiplo, apresenta nesse seu novo número uma série de
textos em que os valores ancestrais provenientes das populações originárias do país –
indevida e genericamente chamadas de índios – são colocadas num primeiro plano,
demonstrando um processo de convivência, de redimensionamento e de reconstituição
pelas quais as afrorreligiosidades passaram no contato com os saberes indígenas.
É bem possível que, quando os portugueses, em 1532, iniciaram o
empreendimento colonial no território hoje chamado Brasil, não tivessem consciência do
grande mosaico étnicorracial, social e cultural que se estabeleceria no país a partir do
encontro, nada pacífico, entre europeus, populações originais e africanos escravizados. O
encontro das tecnologias dos primeiros povos africanos desterrados para o Brasil com
aquelas oriundas dos indígenas propiciaria aos africanos da diáspora o conhecimento das
folhas, raízes, bichos e de seus usos e a incorporação delas nos primeiros Calundus que
dariam origem à multiplicidade de expressões religiosas existentes, atualmente, no
território brasileiro. É por essa razão que na própria constituição do Candomblé Angola,
os caboclos, representação máxima da brasilidade ancestral, são incorporados sem
grandes questionamentos, num reconhecimento de que este chão já abrigava um conjunto
enorme de povos com seus saberes e seus modos de pensar. Povos, aliás, silenciados e
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Ògúnkeyé. Doutor em Letras (Teoria Literária) pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho”, campus de São José do Rio Preto-SP (IBILCE-UNESP). Membro do Egbé Ilê-Ifá. E-mail:
alsgomes70@gmail.com
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Revista Calundu –Vol.6, N.1, Jan-Jun 2022
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REIS, E. L. L. Pós-colonialismo, identidade e mestiçagem cultural: a literatura de Wole Soyinka. Rio de
Janeiro/Salvador: Relume-Dumará/Fundação Cultural da Bahia, 1999.
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Revista Calundu –Vol.6, N.1, Jan-Jun 2022
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Revista Calundu –Vol.6, N.1, Jan-Jun 2022
vertentes da afrorreligiosidade, tais como a Umbanda que, segundo o autor, ele mesmo
participou, afirmando seu caráter de divinização nessas manifestações.
Na mesma linha de reflexão, Gabriela Dantés Guerra (Sinavulê) trata em “Dois
amigos que tenho” do processo de iniciação na Umbanda e no encontro com o Candomblé
de Angola, no qual é iniciada. Na reflexão de Sinavulê, a relação com o caboclo Sete
Espadas, um guerreiro silencioso e que se manifesta pontualmente, e com o boiadeiro Seu
Ventania, um senhor falante e sempre presente, demonstra como as energias ancestrais
não encontram fronteiras ou impedimentos para se manifestarem em quaisquer espaços
sagrados, configurando-se como verdadeiros amigos de trânsito existencial da autora.
Finalmente, no texto “Recuperando áreas (e mentes) degradadas com
encantamento: a experiência da ‘Cosmonucleação Regenerativa’ do território indígena
Xucuru”, o bacharel em direito e indigenista, Mozart Mariano Machado, faz um percurso
discursivo sobre os modos como o povo Xucuru recuperou, a partir de uma noção em que
mundo visível e mundo invisível estão em constante relação, áreas degradadas de seu
território, constituindo, desse modo, um espaço de cura da terra que, em última instância,
é também cura da coletividade ali instalada. Para isso, Machado chama a atenção para as
diferenças técnicas entre a tecnologia dos povos originários – que sempre trata a terra e a
vegetação na sua dimensão sagrada, tal qual afrorreligiosos – e as tecnologias científicas
ocidentais que levam em consideração apenas a dimensão da degradação material da terra.
Por tudo o que dissemos até aqui acerca dos textos que compõem o presente
número da Revista Calundu só podemos desejar que a leitura do presente número seja
fonte de reflexões e convite a um olhar despreocupado com pretensas purezas e divisões.
Que nos entendamos como liminares e híbridos e que olhemos para esse país como um
território amefricano-ameríndio como bem conceituava Lélia Gonzáles3.
3
GONZÁLES, L. Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.