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Lux Vidal - A Cobra Grande

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VIDAL, Lux.

A Cobra Grande: uma introdução à


cosmologia dos povos indígenas do Uaçá e Baixo
Oiapoque – Amapá. Rio de Janeiro: Museu do
Índio, 2007. 68 p.

MILENA ESTORNIOLO

O livro A Cobra Grande: uma introdução à versas origens se articulam, se difundem e se


cosmologia dos povos indígenas do Uaçá e Baixo transformam em diferentes povos, habitantes
Oiapoque – Amapá, de Lux Boelitz Vidal, abre de uma mesma região e em contato permanen-
a série Publicação Avulsa do Museu do Índio, te” (p. 16). Para tanto, Vidal vale-se de uma
criada com o intuito de difundir estudos sobre visão ampla que considera a interação entre
o acervo e as exposições etnográficas promovi- estrutura, história e cosmologia, definindo seu
das pela instituição. A autora é professora apo- trabalho, como um ponto de partida para um
sentada da Universidade de São Paulo e uma diálogo frutífero com os índios e para pesqui-
das coordenadoras do Núcleo de História In- sas de campo sobre mitologia e cosmologia em
dígena e do Indigenismo (NHII – USP), que, situações de intenso intercâmbio interétnico.
desde 1990, desenvolve pesquisas no Amapá, O texto parece ter sido redigido tendo em
das quais o livro é um dos resultados. vista atingir um público amplo, uma vez que
O trabalho apresenta de forma sucinta carac- é escrito em linguagem acessível ao leitor não-
terísticas das cosmologias de três povos do Bai- especializado e evita análises formais dos mitos
xo Oiapoque – os índios Karipuna, que vivem e balanços teóricos acerca dos temas apresenta-
às margens do rio Curipi, os Galibi-Marworno dos. O livro, dessa forma, mais abre caminhos
do Uaçá e os Palikur do Urucauá – por meio da para pesquisas futuras e instiga o interesse so-
análise de diferentes versões do Mito da Cobra bre a área e os povos que nela habitam do que
Grande, tema pan-amazônico que possui traços apresenta soluções definitivas para os temas e
específicos entre esses povos. Segundo a auto- questões propostos. O texto é dividido em duas
ra, os povos da região, apesar de provirem de partes principais, antecedidas por uma apre-
localidades geográficas diferentes e pertencerem sentação em que a autora descreve o cenário
a troncos lingüísticos distintos, além de terem da região, expõe algumas características sócio-
aderido à religião católica ou pentecostal, com- culturais dos povos indígenas do Oiapoque e
partilhariam características comuns do pon- apresenta um breve histórico da localidade, do
to de vista sócio-cultural e, ao mesmo tempo, ponto de vista dos próprios índios.
manteriam, cada um, uma identidade própria, De acordo com Vidal, esses povos se referi-
historicamente construída, e uma configuração riam a quatro fases quando pensam sobre sua
política e religiosa específica. história: “antes do SPI” (Serviço de Proteção ao
O objetivo do livro, caracterizado pela pró- Índio) – época de desaparecimento dos povos,
pria autora como impressionista e não linear, escravização e deslocamentos populacionais –,
é “mostrar como cosmologias e crenças de di- “durante a atuação do SPI” (de 1945 a 1968)

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– quando a instituição expulsa da área os co- A primeira parte do livro consiste na apre-
merciantes e estrangeiros, estabelece normas sentação de diferentes versões do mito da Cobra
em relação ao trabalho, comércio, consumo de Grande, narradas por membros dos diferentes
bebidas alcoólicas e casamento com não-índios povos. A escolha da análise de diferentes ver-
e também promove o agrupamento popula- sões do mito da Cobra Grande é profícua por
cional, com a introdução da ideologia de uma este ser difundido em todo o norte amazônico –
identidade nacional de que os índios fariam sendo sua presença recorrente na etnologia sul-
parte, junto com negros e brancos. americana e em todo o Brasil indígena, além de
A terceira fase, “entre o fim da década de 60 ser encontrada também no folclore nordestino
e o fim dos anos 80”, seria marcada pela atua- e amazônico, na literatura e nas artes plásticas.
ção da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) Ao mesmo tempo, o mito apresenta caracterís-
e do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), ticas próprias na região do Uaçá, onde se cons-
que reverteram o quadro anterior ao definirem titui tanto como um emblema da semelhança,
como prioridade a demarcação de terras, as bem como da grande diversidade cosmológica
assembléias políticas regionais, os projetos de e sócio-cultural encontrada na região, uma vez
educação diferenciada, além da difusão da cons- que cada povo insere a Cobra Grande de ma-
ciência de auto-valorização, com ênfase dada à neira diferenciada em um conjunto de narrati-
cultura de cada povo e aos direitos dos índios. vas interligadas e com ênfase variável.
Por fim, a quarta fase, a dos “tempos atuais”, Os mitos mostram que os seres que apare-
seria caracterizada pela consolidação das reser- cem aos humanos como monstros – nesse caso,
vas indígenas e a homologação das terras, pela na forma de Cobra Grande, vivem e se com-
criação de organizações indígenas, nomeação de portam como gente no “seu mundo”, onde as
índios para cargos políticos e públicos e pelos cobras possuem relações de parentesco e con-
projetos nas áreas de educação, saúde, infra- cebem a carne humana como caça, vendo os
estrutura e desenvolvimento sustentável. humanos como macacos – caça favorita dos
Ainda na apresentação, a autora aponta para próprios humanos. Além dos mitos da Cobra
a escassez de estudos antropológicos relevantes Grande, Vidal apresenta outros mitos que se re-
sobre os povos indígenas do Uaçá e Oiapoque lacionam a ele formando uma seqüência, entre
antes da década de 1990, e caracteriza seus pri- os quais estão as narrativas sobre a guerra dos
meiros estudos na área, realizados entre os Ka- Palikur e Galibi (Marworno) e os mitos sobre
ripuna, que eram considerados pelos estudiosos o “pessoal de Laposiniê” – categoria de espíritos
como “menos índios” e consideravam a si mes- auxiliares dos pajés nas curas e rituais do Turé.
mos como um povo misturado. Em relação a A postura de Vidal em campo enfatizou a
esse aspecto, Vidal admite as origens heterogêne- discussão sobre os significados profundos dos
as das tradições culturais do grupo, mas toma o mitos, narrativas e interpretações indígenas,
cuidado de não considerá-lo como mero receptor apreendendo-as como interlocutoras legítimas,
de traços exóticos, pálido reflexo de uma cultura de forma a permitir uma interação criativa en-
indígena mais autêntica. Ela evita, assim, cair na tre indígenas e antropóloga. A autora considera
armadilha de essencializar a cultura, preocupan- inconcebível, neste momento de surto de glo-
do-se, ao invés disso, com as maneiras particula- balização, que os índios não participem das dis-
res pelas quais os Karipuna foram construindo ao cussões que dizem respeito a suas teorias nativas
longo do século uma identidade própria, frente a enquanto produção de conhecimento. Assim,
outras dinâmicas identitárias na região. para além de estudar o mito da Cobra Grande

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como uma “historinha para cartilhas escolares” Ao refletir sobre as potencialidades analí-
(p. 29) e “anedotas para agradar visitantes” (p. ticas do mito da Cobra Grande, Vidal argu-
29-30), a autora procura recuperar o significado menta que, nas sociedades indígenas do norte
histórico, político e estético de suas narrativas e amazônico, esse mito articula o cosmo – o
apontar suas potencialidades analíticas. Esse é o mundo subterrâneo ou “do fundo”, a terra e o
objetivo da segunda parte do livro. céu. Para muitos povos, o mito possui relação
Vidal argumenta, na segunda parte, que com o território conquistado, com a organiza-
seus interlocutores indígenas vivem em reali- ção da vida em sociedade, trata de migrações
dades múltiplas, que reúnem o tempo deste de grupos em tempos históricos e, portanto,
mundo – no qual são católicos ou pentecos- constitui-se como uma forma de esses povos
tais, professores, agentes de saúde e membros pensarem sua própria história. Além disso,
de sociedades cujo contato com missionários, é símbolo referente à maloca, ao corpo, e à
militares e nacionais de toda origem acontece noção de pessoa. Em outros grupos, a Cobra
há séculos – e o tempo do outro mundo – onde está relacionada às práticas de cura e às ativi-
vivem os Bichos, os encantados e os karuãna, dades iniciáticas e xamânicas, servindo tam-
que são invisíveis para quem não sabe enxergá- bém como modelo estético e como entidade
los, mas visíveis para os pajés. arquetípica, símbolo do “povo índio antigo”,
Essas interações de múltiplas realidades se um marcador no processo de construção da
articulam, de acordo com Vidal, por meio de identidade/alteridade – como nos exemplos
duas metáforas fundamentais para esses povos, em que a Cobra Grande é o mito de origem,
que se consideram, como já explicitado, tan- da gênese indígena, das migrações.
to como “misturados”, metáfora que remete à O tema da Cobra Grande, múltiplo em
sua origem, geográfica e cultural, heterogênea significados, também teria incorporado novos
e, ao mesmo tempo, que tiveram seu destino valores após o contato com os colonizadores e a
específico definido por outra metáfora, o “nos- difusão da fé cristã. Entre os Galibi-Kaliña, por
so sistema”, que se opõe, mas complementa a exemplo, a cobra passa a representar o Diabo;
metáfora anterior (Vidal, 1999). os Palikur, pentecostais, possuem um discurso
Enquanto na esfera mítica a autora defen- elaborado que dá conta ao mesmo tempo de
de a abordagem estruturalista como adequada um corpus mítico tradicional e das histórias
para uma melhor compreensão das cosmologias bíblicas; já entre os Galibi-Marworno, encon-
dos povos do Uaçá, Vidal não considera conve- tram-se sinais de sincretismo; e entre os Kari-
niente a aplicação unilateral desse método para puna a Cobra é vista como conciliadora, não se
analisar o engajamento das pessoas no mundo, podendo falar, entretanto, de sincretismo.
por meio da ação. Nesse caso, utiliza-se de uma Em sua relação com o território, a Cobra
antropologia processual, inspirada em Frederik Grande, habitante do “outro mundo”, e outras
Barth, que focaliza fluxos culturais e processos, espécies de cobras entre as quais a primeira é a
de forma a articular o que se chama de cultura espécie mítica e paradigmática, são “donos” de
de maneira a torná-la transitiva para a intera- algum lugar e assumem o nome dos locais que
ção entre as pessoas. Para a autora, portanto, habitam. Esses territórios e localidades podem
as duas abordagens não são excludentes e, em representar fronteiras e definir identidades para
conjunto, podem contribuir para um modelo povos que vivem em uma mesma região e com-
que dê conta das especificidades dos povos in- partilham de um mesmo mito, o que evidencia
dígenas do Oiapoque (Vidal, 1999). a relação entre mito e território.

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Quanto às migrações, a história da Cobra “nosso sistema”, já que estes reafirmam a exis-
pode, como no exemplo dos Karipuna que mi- tência dos laços entre diferentes mundos e di-
graram para o rio Curipi, simbolizar o encon- ferentes pontos de vista. Nas versões do mito
tro do mundo indígena com o mundo cristão, da Cobra Grande, por exemplo, as Cobras se
e a possibilidade de um acordo e de uma convi- vêem como humanas em seu próprio mundo
vência pacífica. Assim, entre os Karipuna, um e vêem os humanos que capturam como caça.
fato histórico bastante recente – a ocupação do A carne de caça, diferente dos frutos do mar,
Curipi – é relegado a um tempo mítico, uma seria uma categoria marcada pela ambigüidade,
mito-história que parece ser uma forma de le- o que também é indicado pela palavra viãd em
gitimar a conquista de um território. patoá (viande, em francês), usada para denomi-
Entre os Palikur e os Galibi-Marworno, no nar tanto a caça quanto o inimigo.
entanto, a situação seria diferente, já que, para Desse modo, entre os Palikur e Galibi-
eles, ao contrário da idéia de conciliação e re- Marworno, segundo Vidal, as metamorfoses
ciprocidade a que o mito dos Karipuna reme- seriam contínuas e os discursos a seu respeito
teria, a Cobra Grande precisa ser morta. Para seriam ricos em imagens expressivas. Os pajés,
esses povos, de acordo com Vidal, ela não é um para os Galibi-Marworno, seriam os únicos a
mito de origem da humanidade; esta já existia enxergar os invisíveis seres do fundo e do cen-
e a Cobra é vista e vê os humanos como inimi- tro, descrevendo sua aparência durante as festas
gos. A Cobra, para eles, coloca em destaque as e rituais. Além disso, fica patente nos mitos a
lutas contra outras etnias ou contra os portu- importância do invólucro corporal como dife-
gueses e piratas com que se depararam. renciador dos seres do cosmo – algo já observa-
A autora também destaca a dimensão so- do por Viveiros de Castro –, descrito nos mitos
ciológica presente nas narrativas sobre a Cobra da região como paletós vestidos pelos seres, que
Grande, que revelam aspectos importantes das fornecem a eles características específicas para
relações sociais vigentes entre os povos indíge- quando saem de seus próprios mundos.
nas do Uaçá e apontam diferenças fundamentais O livro de Vidal sobre os mitos da Cobra
entre elas. Dessa forma, a análise dos afasta- Grande é, assim, um trabalho instigante, que
mentos em relação ao mesmo mito nas diferen- pretende indicar questões e perspectivas rele-
tes versões pode indicar uma estrutura própria vantes para a compreensão de uma realidade
a cada povo. A autora aponta que o mito de complexa, tratando em conjunto cosmologias
referência é Palikur, o que é indicado inclusive indígenas e não-indígenas muito diversas. Nes-
pela versão Galibi-Marworno. Em seguida, en- se sentido, a autora mostra a convergência entre
tretanto, as versões se diferem, “verificando-se os dados etnográficos do Uaçá com as posições
uma ênfase patrifocal no discurso Palikur e ma- teóricas desenvolvidas pela etnologia brasileira
trifocal no discurso Galibi-Marworno” (Vidal, nas últimas décadas – com referências, além
2001), versões que são o inverso uma da outra. das já apontadas obras de Tânia Stolze Lima
A autora também mostra, ao longo de todo e Eduardo Viveiros de Castro, de Lúcia Hus-
o livro, que, apesar do intenso contato interé- sak van Velthem, Aristóteles Barcelos Neto e
tnico, o perspectivismo – como descrito por outros – que enfatizam a inclusão dos Bichos,
Eduardo Viveiros de Castro (2002) e Tânia entidades sobrenaturais e artefatos, em contex-
Stolze Lima (2005) – continuaria vigorando e tos específicos, no âmbito das redes de relações
pareceria ter se firmado como traço fundamen- sociais. Tudo isso sem perder a dimensão da
tal do que os índios da região definem como formação histórica e das relações interétnicas,

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e do compartilhamento de uma cosmovisão es- VIDAL, Lux Boelitz. O modelo e a marca, ou o estilo
pecificamente indígena – Carib, Aruak e Tupi dos “misturados”: cosmologia, história e estética entre
os povos indígenas do Uaçá. Revista de Antropologia,
– mas também cristã – esta última, segundo
São Paulo, v. 42, n. 1-2, 1999. Disponível em: <www.
Vidal, pouco reconhecida pela antropologia e scielo.br>. Acesso em 22 nov. 2009.
pelo senso comum, apesar de muito presente ______. Mito, história e cosmologia: as diferentes ver-
nesses povos. sões da guerra dos Palikur contra os Galibi entre os
povos indígenas da Bacia do Uaçá, Oiapoque, Amapá.
Revista de Antropologia, São Paulo, v. 44, n. 1, 2001.
Disponível em: <www.scielo.br>. Acesso em 22 nov.
Referências Bibliográficas
2009.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectivismo e
LIMA, Tânia Stolze. Um peixe olhou pra mim: o povo
multinaturalismo na América indígena. In: ______. A
Yudjá e a perspectiva. São Paulo: Editora UNESP, Ins-
inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antro-
tituto Socioambiental e NUTI, 2005. 399 p.
pologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

autora Milena Estorniolo


Graduada em Ciências Sociais/USP

Recebida em 22/11/2009
Aceita para publicação em 27/11/2009

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