Revista Calundu v1 n1
Revista Calundu v1 n1
Revista Calundu v1 n1
http://calundu.org/revista
GIRA EPISTEMOLGICA
Volume 1, Nmero 1, Jan-Jun 2017
EXPEDIENTE E COMISSO EDITORIAL
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A Revista Calundu uma publicao acadmica semestral on-line do Calundu Grupo
de Estudos sobre Religies Afro-Brasileiras, que apresenta trabalhos escritos (artigos,
resenhas de livros e textos extensionistas), com a temtica afrorreligiosa/calunduzeira.
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A Revista Calundu apresenta publicaes na rea das Cincias Humanas, com a temtica
geral afrorreligiosa, trabalhada semestralmente por meio de nmeros temticos. Os textos
publicados so divididos em trs grupos: (1) artigos acadmicos; (2) resenhas de livros
recentes (publicados a no mximo 3 anos) ou antigos (pblicos h pelo menos 60 anos);
e (3) textos livres com carter extensionista, produzidos pela comunidade afrorreligiosa,
acadmica ou no, de autoria prpria ou de terceiros trabalhando com material original
de religiosos (entrevistas, ensinamentos orais, discursos e palestras, etc.).
A temtica afrorreligiosa aqui entendida como aquela das religies afro-brasileiras, cujo
fenmeno social hodierno se deriva de toda histria e experincia dos Calundus e da
resistncia do povo africano/afro-brasileiro escravizado no Brasil. intrnseco a esta
compreenso a interpretao do Grupo Calundu (concorre para tanto bibliografia
especializada, e.g. Segato, 1986, Silveira, 2005, Santos, 2006), de que as religies afro-
brasileiras foram formadas neste pas, ao longo de sculos, a partir de razes afro-
amerndias e interaes nem sempre diretas ou pacficas com o colonialismo catlico
portugus. Os textos aqui publicados devem seguir esta premissa editorial, afastando-se,
portanto, da premissa de que as religies em pauta so mais propriamente africanas no
Brasil do que afro-brasileiras.
H espao, contudo, para que outras formas afrorreligiosas americanas (sendo a Amrica
entendida como um continente amplo, que vai de sul a norte) faam parte dos dilogos
aqui apresentados. Com efeito, a compreenso de que religies afro-brasileiras so
resultantes de um processo scio-histrico iniciado com a colonizao do Brasil pode ser
estendida para outros cantos das Amricas: religies afro-americanas/amerndias so
resultados da colonizao das Amricas, que contou com a trgica vinda forada de
africanas/os para este canto do planeta, para fins de trabalho escravo. O prisma terico
desta interpretao so os estudos decoloniais.
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Ainda em fase de concepo/formao, sendo seus dois primeiros nmeros reservados
publicao de textos do Grupo Calundu, a Revista Calundu busca com o terceiro grupo
de trabalhos publicveis (textos livres de carter extensionista) dar voz comunidade
afrorreligiosa, acadmica ou no. Neste sentido, a revista assume um carter
extensionista, abrindo espao para outras formas de conhecimento, diferentes porm
no menos importantes do que aquela considerada cientfica.
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GIRA EPISTEMOLGICA
Volume 1, Nmero 1, Jan-Jun 2017
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SUMRIO
Apresentao 1
Tnia Mara Campos de Almeida
Artigos
Textos livres
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Revista Calundu - vol. 1, n.1, jan-jun 2017
APRESENTAO
Uma das vivncias mais ricas no dia-a-dia de uma universidade o momento que
estudantes e pesquisadoras/es, movidas/os pelo interesse comum em conhecer e refletir
sobre um tema, decidem se reunir espontnea e regularmente, sem preocupaes
burocrticas com produtividade, com as normas institucionais para atividades formais ou
com a verticalizao das posies hierrquicas. A mobilizao geral eficiente: um local
fsico e acessvel identificado, dias e horrios so acordados, bem como referncias
bibliogrficas e outros materiais so buscados e disponibilizados para subsidiar os
encontros. Pouco a pouco, um grupo vai se constituindo e ganhando espao,
especialmente quando esse grupo tambm possui afinidades existenciais e comea a
desenvolver vnculos de apoio mtuo e afeto entre suas/seus integrantes. Os projetos que
o norteiam tomam corpo e se consolidam rapidamente pelo sentido que lhes fazem
individual e coletivamente e, por conseguinte, pelo estmulo que apresentam entre si na
sua dedicao e realizao cotidianas.
Ver o Calundu Grupo de Estudos sobre Religies Afro-Brasileiras dar seus
primeiros passos tem sido, para mim, um desses momentos preciosos da vida acadmica,
de grande satisfao e aprendizado. As reunies, os debates, as discusses de textos, obras
e filmes, as trocas de mensagens.... Enfim, o grupo nasce de um agitado fluxo de decises
e aes compartilhadas no primeiro semestre de 2016. Algumas pessoas j se conheciam,
tinham sido colegas de cursos; outras pessoas foram apresentadas por terceiras/os s/aos
fundadoras/es. Todos/as so vinculados/as Universidade de Braslia (UnB), em
diferentes graus de formao, oriundos/as de distintas reas de conhecimento e inseres
na instituio. Outro vnculo entre elas o fato de terem circulao em comunidades
religiosas afro-brasileiras, quer seja de pertencimento inicitico e familiar quer seja de
simples pblico assistente dos rituais.
Calundu, portanto, a nomeao auto atribuda ao grupo. Em uma homenagem
aos cultos religiosos de referncia africana no perodo Colonial brasileiro, o grupo se
constituiu e vem se consolidando em movimentaes que reeditam e atualizam traos
desse passado. Ou seja, a juno de uma rede de pessoas com notveis saberes
1
Professora Adjunta III do Departamento de Sociologia da Universidade de Braslia (UnB).
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intelectuais, dedicao aos estudos e forte comprometimento com suas crenas e origens
religiosas, socioeconmicas e raciais emerge como possibilidade de transformao
construtiva do ambiente acadmico, que se declara democrtico nos princpios da
incluso meritocrtica das/os aspirantes por formao superior de ensino, mas altamente
excludente nas atitudes e representaes que dizem respeito s mulheres, aos negros, aos
indgenas e s camadas economicamente desfavorecidas da populao, bem como aos
modos de entendimento e vivncia que no sejam padronizados pela racionalidade dita
moderna.
Desdizendo a noo do senso comum a respeito do significado da palavra calundu,
que seria tristeza, cansao e mal humor sem motivo aparente, o grupo a relana com nova
semntica, apoiada justamente em recentes registros histrico-antropolgicos sobre os
primeiros Calundus. Estes, marcados pela resistncia escravizao, pela troca intensa
de informaes e sabedorias entre os grupos africanos para este cho trazidos e, tambm
pela troca com os amerndios, igualmente desrespeitados e oprimidos pelo colonizador.
Palavra que aponta, assim, para lado antagnico daquele do senso comum, ou seja, indica
superao de tamanha adversidade e de inmeros sofrimentos decorrentes do processo de
colonizao. Aponta para a alegria do verdadeiro encontro humano, capaz de recriar a
humanidade em meio aos horrores e perversidades em um tempo de longa durao, o qual
se estende at hoje pelo processo de colonialidade ainda em curso. Calundu
sobrevivncia subterrnea e intencional da trajetria de pessoas potentes, lutadoras e
dignas, que se uniram e se fizeram existir nos meandros dos discursos oficiais e das
narrativas que tentaram apaga-las da memria coletiva e dos legtimos fios da histria
desejada, empreendida e vivida.
Em consonncia com essa acepo, o Calundu esteve frente do Encontro
Afrorreligiosos, inserido na programao da Semana Universitria da UnB, em outubro
de 2016. Foram realizadas duas mesas de debate: uma sobre solidariedade e religio afro-
brasileira e outra sobre intolerncia religiosa no Brasil, com a participao, na condio
de expositoras/es, de acadmicas/os e lideranas religiosas, sendo estas mes e pais de
santo do Distrito Federal. O profcuo dilogo entre as/os expositoras/es e, destas/es, com
as pessoas que lotaram o auditrio do Instituto de Cincias Sociais (ICS) mostrou a
importncia de seguirmos discutindo e aprofundando os apontamentos levantados a partir
da pluralidade de vozes a presentes. A diversidade epistmica entre os pontos de vista,
ao apresentarem e analisarem os temas propostos, foi extremamente gratificante, em
particular por oxigenar a expresso monolngue da cincia, trazer-lhe maior densidade e
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O comeo do Toque
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dedicao e no cuidado com os Voduns. A Casa das Minas serviu de matriz para
diversas outras casas de Tambor de Mina no Maranho, muito embora no tenha filiado
outra casa em seu fundamento. Ainda se tratando das diversas perspectivas de mundo
que se desdobram em fricas e Brasis, que a Casa das Minas, o Querebent de
Zomadnu, preservou durante toda poca em que funcionou a memria, os segredos e
os fundamentos das famlias do Abom2. Nesta saga de resistncia que consideramos
o Tambor de Mina como um modo de vida e como uma forma de compreenso de
mundo composta por epistemologias que fogem do eurocentrismo e que estabelecem
primazias ontolgicas, na qual a complexidade de saberes extrada a partir de suas
prticas ritualsticas. De tal aspecto, as Vodunsi, termo de origem Fon que designa toda
aquela que recebe a fora do Vodum, eram as responsveis pela ordem do culto Jeje.
Atualmente, a Casa das Minas no possui mais nenhuma Vodunsi em atividade, sua
ltima sacerdotisa fora Dona Deni Prata Jardim, falecida em 2015, aos 89 anos, Dona
Deni recebia o Vodum Lepon. Mas, o que podemos perceber a prtica do saber oral da
tradio Jeje que tambm encontrada em outras casas de Tambor de Mina no
Maranho, na medida em que a ancestralidade est presente no corpo, na msica e
principalmente na fala. a transio do conhecimento por meio da oralidade, logo a
categoria ancestral o fio condutor entre o corpo, a memria e a palavra enquanto ao.
Dentro da tradio oral, na verdade, o espiritual e o material no esto dissociados
(HAMPT B, 2010, p.169), o mundo africano no se divide em projees binrias,
pois dentro da fala que o ritual se faz presente, a oralidade significa a permanncia do
saber africano. Isto significa que no Tambor de Mina as relaes mantidas com os
ancestrais e com os espaos de temporalidade que vivenciam os terreiros so fruto de
uma cosmologia filosfico-imagtica das narrativas orais feitas por antigas sacerdotisas.
No cenrio das religies afro-brasileiras, o Tambor de Mina possui
caractersticas especficas que se diferenciam dos Candombls da Bahia, dos Batuques
do Rio Grande do Sul, e da Umbanda do Rio de Janeiro. Em sua composio ritualstica
prevalecem as relaes entre os Voduns Jeje e os Orixs Nags, onde estes ltimos
tambm so chamados de Voduns Nags, o que favoreceu a estreita relao entre a Casa
das Minas e a Casa de Nag (Nagon Abioton), como tambm a forte sincretizao com
2
Em agosto de 1948, o fotografo francs Pierre Verger obteve de me Andressa, a mxima responsvel
pelo culto naquele momento, uma lista dos voduns venerados no Templo. Em dezembro do mesmo ano,
em entrevista com Mivede, em Abom, Verger confirmou que a maioria dos voduns das famlias reais de
Davince e Savaluno, em So Lus, eram nomes de Ancestrais divinizados da famlia real do Abom
(PARS, 2016, p.248).
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os santos da Igreja Catlica, sem deixar de mencionar a presena indgena que abriga o
Tambor de Mina. ainda muito recorrente nos terreiros de Tambor de Mina a presena
de manifestaes culturais que esto atreladas aos desejos dos Voduns, como o Tambor
de Crioula3 dedicado a Toy Averequete e o Bumba Boi4 dedicado ao Vodum Noch
Na; essas veias populares so influenciadas pela religio dos Voduns do Maranho.
Assim, no decorrer deste texto faremos uma breve trajetria sobre a chegada de
um Vodum bastante especifico da Casa das Minas que no ganhou um culto organizado
com os outros demais Voduns; falaremos do Vodum Legb, o Exu dos iorubanos. E, ao
mesmo tempo, apresentaremos suas semelhanas com a entidade de destaque que se
apresenta nos terreiros de Terec5: Lgua Boji Bu. Sendo assim, abordaremos um
questionamento inicial, a saber, se Legb, por no ter ganhado nenhum culto especfico
na Casa das Minas, teria ido para outras localidades do interior do Maranho e teria se
transformando na entidade Lgua. Seria Lgua o Legb esquecido no Querebent? Este
questionamento por vezes respondido em forma de silncio para os iniciados do culto.
Nos terreiros de Mina pouco se costuma falar de Exu, entretanto todos sabem de sua
existncia.
3
Ver FERRETTI, S. 2002.
4
Ver BORRALHO, T. 2015
5
Terec a denominao dada religio afro-brasileira tradicional de Cod [...]. tambm conhecido
por Encantaria de Barba Sora (ou Santa Barbara Soeira), por Tambor da Mata, ou simplesmente Mata
(possivelmente em aluso sua origem rural) (FERRETTI, 2012, p.296).
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Los integrantes de la unidad domstica completa varias famlias extensas emparentadas y
pertenecientes a un antepassado comn habitan en un amplio recinto. (Texto Original)
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unilateral, mas sim apresentam uma concepo de famlia mais estendida, que para alm
dos Voduns Jejes estariam tambm associados os Voduns Nags como integrantes da
grande famlia que abriga a Casa das Minas. Essa extenso no conceito de famlia ainda
percebida na prpria dinmica das sacerdotisas que, por vezes, moravam no lugar,
eram mes e esposas de tocadores como tambm eram mes, primas e filhas entre si.
Neste sentido, levantamos a hiptese de que a Casa das Minas desde sua fundao
funcionava como uma espcie de irmandade, tal como apresenta Reis:
Concebemos, assim, a Casa das Minas como uma famlia ritual, uma espcie de
irmandade religiosa autnoma e resistente, e toda sua organizao e direo dos rituais
festivos e fnebres que l aconteciam era realizada de maneira coletiva, sendo que todas
as suas Vodunsis estavam comprometidas com a vida em comunidade. Ao ponto em
que os Voduns no eram classificados como alheios a essa realidade, mas tambm
faziam parte de uma mesma famlia; na sequncia, falar de um Vodum , s vezes, ao
mesmo tempo, falar de sua devota. importante ressaltar aqui que, durante todo seu
funcionamento, a Casa das Minas no possuiu uma cosmogonia que narrasse a origem
dos Voduns, cosmogonia esta muito presente nos Candombls. Na Casa era comum,
quando se tratava da lembrana histrica de um Vodum, tal narrativa estar atrelada
histria de vida da Vodunsi que o carregava. Os Voduns, nesse sentido, tambm eram
membros da prpria irmandade. Posto isso, as famlias de Voduns se apresentam na
tabela abaixo:
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FERRETI (2009) e BARRETO (1977).
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[...] nenhuma comunicao pode existir entre o Criador e tal ou qual vodun
sem sua interveno. Cabe a ele assegurar a permanncia das relaes entre o
Criador e os voduns, cada um deles gerindo um domnio particular. Isto
significa que legb assegura o controle e o domnio das vias de comunicaes
no mundo divino (AGUESSY, 1970, p.30).
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etc. Ele no tem chifres e foi criado como um anjo. um anjo mau. Deus lhe
deus poderes para administrar o universo. Ele se envaideceu e se considerou
melhor que Deus. Quem o adora no vai para lugar nenhum. Ele tem a
aparncia de uma pessoa boa e nobre, mas no . Na Casa das Minas seu
culto proibido, pois Legba equivale a satans. [...] o rei do Daom,
Adandoz. Em 1804, em correspondncia a Dom Joo de Portugal, afirmava
que Legba era seu grande deus. Se, de fato, membros da famlia real do
Abomey foram vendidos como escravos por Adandoz (Verger, 1952), e se
alguns desses membros fundaram a Casa das Minas, compreende-se que
fosse proibido na Casa o Culto de Legba, que era um grande deus para o Rei
Adandoz(FERRETTI, P.124-125).
8
Adanzan deveria ser o rei de Daom; no entanto, seu carter sanguinrio faz com que seu pai, Agonglo,
consulte Fa para saber se algum outro de seus filhos no dirigiria melhor o pas. Fa designa Ghezo, ainda
uma criana. Agonglo decide apresentar Ghezo como seu sucessor e confi-lo a Adanzan, visto que seu
fim estava prximo. Adanzan permaneceu no poder, como regente, durante 22 anos e Ghezo teve de lhe
tomar o trono a fora. Durante o perodo de regncia, Adanzan, que era filho de uma outra mulher de
Agonglo, no hesitou em vender a me de Ghezo e uma parte de sua famlia aos mercadores de escravos.
Quando Ghezo, depois de assumir o trono tenta reencontrar sua me, a rainha Agotim, encarrega dessa
misso Dossu Yevoo, por suas qualidades de fidelidade e ainda por conhecer a lngua portuguesa, Migan
Atindebacu o acompanhar. Ghezo, antes da partida, estabelece com eles um pacto, tornando-os seus
irmos, portanto filhos da rainha que eles deviam procurar (BARRETO,1977.p.56).
9
Nome do quarto secreto da Casa das Minas onde se alimentavam os Voduns, possivelmente uma
corruptela de Damo.
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sua abertura para a Encantaria10, onde muitas entidades, que tambm so chamadas de
invisveis, apresentam-se em formas de animais. Aqui, talvez nas entrelinhas do poder
de transformao, de ser o conhecedor dos princpios da criao e de deter a lngua dos
Voduns, que Legb teria encontrado na Mata sua forma de reinar.
Como citou Jorge Amado em seu livro Terras do Sem Fim, a mata o passado
do mundo, o princpio do mundo (AMADO, 1971, p.49). A mata pode ser entendida
enquanto um ente, uma fora na qual se entrecruzam diversos seres; um mundo que em
si a prpria divindade. H na mata os segredos da cura e os saberes da morte, o lugar
em que primeiro pisou o antepassado, o lugar de onde vem a gua que alimenta os
Voduns e de onde se extrai as suas folhas; onde se abrigam o medo e a segurana, por
vezes parece sustentar o cu. l que caminhos so abertos, e quando perdidos estamos,
ali nos achamos em trilhas.
E foi justamente dentro da mata, especificamente dentro do interior do
Maranho, na cidade de Cod, que o toque acelerado dos tambores, tocado por diversas
etnias negras presentes no Maranho (dentre elas estavam os jejes, cambindas e nags)
dali teria originado o Terec, ou Tambor da Mata como tambm conhecido. Segundo
Centriny, este termo teria se constitudo devido aos primeiros toques de Terec serem
feitos dentro da mata fechada (CENTRINY, 2015, p.31). A mata neste caso teria sido
um lugar de agregamento dos diferentes grupos tnicos negros recm-chegados do
continente africano. E nesta confuso de lnguas que a figura de Lgua Boji Bu teria
surgido, e com grande reverncia a esta entidade. Lgua um dos fundamentos centrais
na religio do Terec. Mas, falar de Tambor de Mina tambm mencionar o Tambor de
Mata devido s suas proximidades, tendo em vista a presena de uma grande parcela de
Voduns jeje a ser tambm cultuada nos terreiros de Terec. Outra proximidade bastante
relevante que muitas das Vodunsis da Casa das Minas eram originrias da cidade de
Cod, e isto reflete o fato de que muitos ensinamentos estiveram sempre em transio.
10
Assim, quando falamos em encantaria maranhense no estamos nos referindo a voduns e orixs,
divindades africanas amplamente conhecidas. Estamos nos referindo a outras entidades espirituais
recebidas no Maranho em terreiros fundado por africanos ou por seus descendentes: nobres europeus
associados a orixs e/ ou a santos catlicos (como Dom Lus, Rei de Frana), entidades caboclas de
origem nobre (como Rei da Turquia e Antnio Lus, o Corre Beirada) ou representante de camadas
populares e indgenas (como o controvertido Lgua Bogi e Caboclo Velho) e tambm a seres no
inteiramente humanos (como as mes dgua, os Surrupiras [...]. (FERRETTI, 2003.p.120)
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Lgua pode ainda ser entendido como o caboclo de intermdio entre os seres
humanos, a natureza e as outras entidades que preenchem o Terec, sendo a Mata a
morada natural dos seres. Assim, Legb teria fugido para a Mata e teria constitudo sua
prpria famlia. Aqui, no Terec, as entidades tambm fazem parte da famlia de seus
iniciados, tal como no Tambor de Mina. Isto nos faz crer em uma ausncia de
princpios cartesianos que est presente nas religies afro-brasileiras de um modo geral,
as divindades vivem com os humanos, que fazem parte de um nico mundo. O caboclo
no necessita de uma ordem estabelecida, desta forma recorremos novamente a Aguessy
quando se trata do Vodum Legb:
Esta semelhana entre o Caboclo Lgua Boji Bua e o Vodum Legb se torna
ainda mais evidente ao ponto de aceitarmos que o Lgua tambm se recusa a aceitar
qualquer ordem, tendo em vista o seu prprio modo de atuao. Esta entidade das matas
possui uma dinmica de controle tanto sobre o caos quanto a harmonia, na perspectiva
em que Lgua possui vrios nomes, se apresenta em vrias formas, est em vrios
lugares, no h em Lgua uma unidade particular que o impea de ser o que quer ser,
ele aquele que se alimenta do que lhe entregam na Mata. Assim, este Caboclo,
originrio (?) de um Vodum possui uma esfera metafsica que nos aproxima da
ancestralidade ligada Mata; neste ponto inferimos que tanto os terecozeiros quanto os
11
Doutrina fortemente cantada nos terreiros de Terec.
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mineiros12 fazem parte da Mata, assim como a Mata faz parte deles. Lgua a festa, a
pura brincadeira, tal como apresenta Centriny:
A figura de mais controvertida do Terec, pois dizem que no existe terec
sem Lgua; nem Lgua sem Terec. Dono de uma famlia numerosa,
geralmente no se faz referncia s mes de seus inmeros filhos porque eles
geralmente no so filhos da mesma me, ficando assim impressas e
destacadas apenas as caractersticas gerais do prprio Lgua. Costuma-se
cantar: A famlia de Lgua t toda na eira, bebendo cachaa e falando
besteira. Entidade carismtica e de comportamento extravagante, beberro e
farrista costuma aparecer no Terec desestruturando todo o andamento do
terreiro, o qual ele no dirige ou no assentado. Esbraveja, cospe no cho e
chama muito palavres, pois geralmente quase no tem tempo para danar
porque o assdio muito grande em busca de suas consultas e seus feitios.
[...] Ficando difcil traar um perfil completo sobre sua existncia. Desconfia-
se de que ele faz questo de no esclarecer essas posturas contraditrias;
diverte-se bastante diante dessa situao toda. um coringa dentro do
Terec, pois, apesar dessa falta de responsabilidades aparentes, ele exerce
todas as funes dentro de um terreiro, principalmente a de chefia, inclusive
nos terreiros de Terec; onde ele tem assentamento ele quem faz todos os
rituais, inclusive do tambor de choro. (CENTRINY, 2015.p.238-239)
Lgua est presente em tudo. Lgua tudo, o Caboclo que comanda a Mata,
sobre a descrio acima feita por Cicero Centriny, demonstra a faceta de divertimento
que Lgua possui, ele se depara com o espao do contraditrio. Lgua ao mesmo
tempo a expresso do medo e da coragem. Dessa forma, talvez, por Legb no ter
encontrado um culto especifico dentro da Casa das Minas, o mesmo teria fugido e se
transformado na figura de Lgua e feito da prpria Mata sua moradia.
Desta forma, as semelhanas entre Lgua e Legb s tendem a crescer. Por meio
de aparies tanto nos terreiros de Terec, quanto nos terreiros de Tambor de Mina
(exceo da Casa das Minas), estas duas entidades, que por vezes aparecem apenas em
uma parcela da multiplicidade das narrativas encontradas nos terreiros, tm a
capacidade de narrar aquilo que querem narrar, e no aquilo que se pedido.
O conhecimento da Mata nos revela outra caracterstica importante das relaes
entre o tambor de Mina e o Terec: tanto o Caboclo Lgua Boji Bua, e o Vodum Legb,
aparentemente esquecido, so foras responsveis pela aproximao entre estas duas
religies, na qual tambm aproximam ancestralidades quase que equidistantes, a
indgena e a africana. Isto nos revela um conceito ainda em construo que se trata de
uma cosmoencantaria pensada a partir da experincia dentro dos rituais do Terec e do
Tambor de Mina, em que seus iniciados costumam falar de Encruzamento,
entrecruzando saberes africanos e saberes desta terra que j estava habitada.
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Expresso usada para designar os iniciados no Tambor de Mina.
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Referncias
CENTRINY, Ccero. Terec de Cod: uma religio a ser descoberta. So Lus: Zona V
Fotografias, 2015.
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PARS, Lus Nicolau. O rei, o pai e a morte: a religio vodum na antiga costa dos
escravos na frica ocidental. So Paulo: Companhia das Letras, 2016.
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A problemtica do Sincretismo
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Todo este nosso esforo por querer devolver ao culto dos Orixs,
religio africana, a dignidade perdida durante a escravido e processos
decorrentes da mesma: alienao cultural, social e econmica que
deram margem ao folclore, ao consumo e profanao de nossa
religio.
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candombls e que parte dessa atitude se daria em funo do sincretismo com os santos
catlicos. E nesse contexto que as lideranas signatrias do manifesto observaram e
enfrentaram uma espcie de inferiorizao das tradies de matrizes africanas
brasileiras em razo das imagens difundidas e, contra essas, como aponta Josildeth
Consorte, traziam a afirmao do candombl como uma religio independente da
catlica e no uma seita, um animismo primitivo (2006, p. 72). Essa autora enfatiza
ainda que a recusa do sincretismo muito mais uma decorrncia desse embate contra a
identificao do candombl com uma seita animista, contra sua folclorizao inclusive
explorada pelo turismo do que seu motivo ou mvel maior (CONSORTE, 2006, p.
73).
J os discursos acadmicos, sobretudo os brasileiros, pensam por outros
caminhos. Embora reconhecendo o carter poltico do sincretismo entre as divindades
dos candombls e os santos da igreja catlica, tais discursos, no raramente, o encaram
como parte do ncleo identitrio que constitui os candombls (por exemplo: BASTIDE,
2008; PRANDI, 2000; RHEBEIN, 1985) e, raramente, conseguem visualizar outros
lugares e especificidades do sincretismo para tais prticas tradicionais.
curioso, por exemplo, que os discursos acadmicos no acentuem com raras
excees , nas discusses sobre esse alardeado sincretismo religioso, um outro tipo
de sincretismo, este sim, constitutivo dos candombls. aquele sincretismo que se deve
histria da constituio dos cultos que agrupou divindades no Brasil, quando estas
eram, normalmente, cultuadas de modo separado e em regies distintas, no continente
africano formando aqui uma espcie de panteo geral, tradicionalmente inexistente
em qualquer lugar do Velho Continente Negro. Chamo a esse fenmeno de sincretismo
interno, pois no envolveu elementos religiosos articuladores externos s culturas e
prticas africanas em seu conjunto (embora a motivao para a construo desse
panteo geral venha de fatores externos aos grupamentos originrios e suas vontades
deliberadas). E todos esses elementos so fundamentais para a constituio dos
candombls.
Quando muito, encontramos referncias a junes de prticas, smbolos e
divindades que eram advindas de grupamentos diferentes: vemos, por exemplo, prticas
originariamente Jejes (dos grupamentos de lngua ew-fon) presentes em candombls
das mais variadas naes, o mesmo acontecendo com prticas Angola/Congo (dos
grupamentos de lnguas bantas) ou Ketu, Efon ou Ijex (dos grupamentos iorubs), que
so encontradas disseminadas nos candombls, gerando alm das naes originais,
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Pode ser visualizado no endereo eletrnico: http://www.terreiros.ceao.ufba.br/ (acessado em
12/05/2017).
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3
O adjetivo milongado deriva do substantivo quimbundo milonga, plural do substantivo mulonga, que
significa, mistrio, atrito, questo. No Brasil, um termo muito utilizado nos candombls de Angola para
indicar misturas, amlgamas.
4
Nunca demais lembrar que os candombls no so religies africanas, mas um sistema brasileiro que
organiza prticas, espiritualidades, valores, crenas e saberes em torno de matrizes africanas. (SILVEIRA,
2006; FLOR DO NASCIMENTO, 2016).
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sincretismo interno, e deixam lacunas e dvidas nos terreiros que buscam tal
reafricanizao. Ser um puro terreiro Ketu, por exemplo, na medida em que se buscam
os fundamentos africanos para esse culto, esbarra na presena de elementos advindos de
outros grupamentos africanos5. E a tambm se inicia um outro processo de
purificao: to mais puro ser um terreiro Ketu, quanto mais ele no utilizar
elementos de outras naes. Nesse cenrio, salta-se da purificao de elementos
catlicos, para uma purificao geral no tocante, ainda, de outros elementos tambm
originariamente africanos.
Mas, segundo Matory (2005), tambm na prpria Nigria, o processo de
reconstruo da Tradio, recente e ideologicamente estruturado. Muito da tradio
que hoje se encontra na busca pelas razes originrias dos candombls, sobretudo o de
ascendncia iorub, foi reconstrudo a partir da experincia atravessada pelo
cristianismo, por missionrios nigerianos cristos no final do sculo XIX e incio do
sculo XX: Matory mostra que foram eles (sobretudo pastores negros com experincia
diasprica) os primeiros a fazer registros da histria, da lngua e das tradies locais,
alm de terem elaborado as primeiras tradues da Bblia (HOFBAUER, 2011, p. 9).
Assim, para evitar o sincretismo interno, tem-se que conviver muitas vezes de
modo desavisado com uma nova (e, no raro, invisvel) influncia das leituras crists
das tradies iorubs. Isso , no mnimo, inusitado, j que a recusa do sincretismo
interno uma derivao, em contextos de busca da pureza, da recusa do sincretismo
afro-cristo. Embora sejam pessoas nigerianas a fazerem essa sistematizao da
tradio iorub, no deixam de ter uma perspectiva externa a essa mesma tradio, de
modo que elas so tambm partcipes da construo dessa frica mtica que
tambm buscada aqui em nossas terras.
Essa pureza almejada em grande parte em funo da procura de um processo
de reafricanizao que parece se fundar por um conjunto de leituras que esto
relacionadas com um determinado modo, o acadmico, de abordar as questes que
dizem respeito s tradies brasileiras de matrizes africanas e seus impactos nas leituras
pelo povo de terreiro, tendeu a desembocar no fato de que certas prticas e conceitos
5
Em tese, um terreiro Ketu teria sua ascendncia do reino de Ketou, no atual Benin, reconhecido por
cultuar, principalmente, o orix Oxssi. Entretanto, orixs que so tambm advindos de povos iorubs,
mas de outros reinos, como Efon, Egba, Abomei, Oy deveriam ainda ser cultuados num terreiro Ketu? O
orix Oxumar, por exemplo, deveria ter seu culto extirpado de um terreiro Ketu puro, j que seu culto
originrio de outro reino, de outra nao, no Ketu?
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Esta afirmao aponta para uma dupla discriminao: discrimina-se o candombl da nao de Angola e,
ao mesmo tempo, discrimina-se a Umbanda, que outra religio; ambas colocadas em uma espcie de
degrau hierrquico inferior frente aos candombls de origem iorub, entendidos como mais puros, mais
africanos.
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no seja responsabilizvel por introduzir valores novos quilo que tentamos entender.
Quem sabe tenhamos de buscar maneiras de pensar a pureza que no contamine o
prprio sentido do culto, que provavelmente pensa que o puro no o isento de
encontros, fuses, criaes desde o que j temos ideia, alis, j apresentada por Mary
Douglas (1998) em seu clssico sobre Pureza e Impureza ritual. Talvez tenhamos de
lidar com outras imagens de tradio, sincretismos e mesmo de pesquisa para
acompanhar o modo como esses processos se do nos candombls.
Parece ntido que o objetivo dos estudos acadmicos no foi o de reconstruir ou
lanar novas bases para os candombls. Mas interessante que nos ocupemos de pensar
de que maneira nossas pesquisas impactem o menos possvel a rotina das comunidades
de terreiro. imperativo que estejamos preocupados em buscar prever de que modo as
categorias que utilizamos para ler as experincias dos candombls no remetam o
prprio candombl para outro campo de experincia distinto daquele que j se
experimenta pelo menos no em funo das possveis leituras que se possam fazer,
por parte do povo de santo (j que sabemos que hoje um pblico consumidor vido
do que se produz na academia).
Enquanto prtica, os candombls surgem enquanto uma busca/reconstruo de
uma identidade arrancada durante o perodo do trfico e da escravizao. Talvez seu
sentido religioso, na medida em que entendemos a religio (no sentido de religiare)
como uma religao, seja exatamente este: uma reconexo buscada com uma identidade
perdida a ser ressignificada na tradio, que constantemente reconstrumos, na forma de
novas maneiras de procurar o que nos fora usurpado pelas prticas e crenas
racistas/escravistas (FLOR DO NASCIMENTO, 2016). Quem sabe o fortalecimento da
identidade, na relao com as pesquisas sobre as tradies de matrizes africanas, possa
se dar exatamente na possibilidade de encontro com uma tradio que em vez de pensar
em uma pureza calada em critrios de excluso que tendem a negar a prpria
dinmica de constituio dos candombls possa assumir o carter constitutivo do
sincretismo interno, mesmo que problematizando-o quando necessrio. Tomar uma
deciso politicamente engajada com as prprias comunidades de terreiro diante dos
caminhos por onde seguir quando nos colocamos em meio encruzilhada da tradio:
eis um desafio interessante para lidar com a problemtica do sincretismo e da pureza
diante da questo do fortalecimento da identidade.
Obviamente isso no significa desprezar a histria dos estudos acadmicos, nem
subordin-los lgica da produo de saber dos candombls. No se pode, ainda,
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ignorar que o sincretismo e a pureza j vem sendo criticados por diversas perspectivas
tericas acadmicas e que as teorias da identidade pululam para todos os gostos, no
presente. Trata-se mais de buscar uma conversa profcua com os terreiros, lembrando
que no se produz cincia (sobretudo as humanas e sociais) apenas para os pblicos
intra-acadmicos se que esse, algum dia, tenha sido o seu objetivo primeiro. Buscar
entender o impacto que o prestgio que as pesquisas cientficas tm sobre as intenes
que as comunidades em torno das quais pesquisamos tm para si mesmas uma
necessidade. No porque as comunidades sejam incompetentes ou no tenham seus
prprios intelectuais. Estes existem desde os incios dos candombls. A questo que a
distribuio deste prestgio e o modo como o Ocidente valoriza alguns tipos de
intelectuais em detrimento de outros passa pela dimenso ainda eivada pela
colonialidade e por sua sombra racista constitutiva.
Referncias
DANTAS, Beatriz Gis. Vov Nag e papai branco: usos e abusos da frica no Brasil.
Rio de Janeiro: Graal, 1988.
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LIMA, Ari; ALVES, Nana Luanda M. Relaes Raciais, Racismo e Identidade Negra
no Candombl Baiano de Alagoinhas. Educere et Educare, v. 10, n. 20, p. 585-598,
2015.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixs. So Paulo: Companhia das Letras, 2000.
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Resumo: Objetivo com este artigo mostrar que a autoridade de uma mulher
candomblecista construda a partir de uma lgica vivencial, em que posies
hierarquicamente mais elevadas so alcanadas a partir de seu tempo de iniciao e da
partilha em papeis comunitrios e religiosos variados, pelos quais todas devem passar.
Isso parte do longo caminho inicitico candomblecista, que envolve, dentre outros
diversos elementos, solidariedade, abraos, rezas e faxinas. Este caminho debatido no
texto e reflexes so apresentadas em carter decolonial. Como ponto central do debate,
narro uma experincia de faxina que vivenciei com uma me candomblecista angoleira
velha de santo. Alguns elementos e sentimentos presentes nesta interao so
apresentados e analisados. O grande respeito e a autoridade que aquela me me
suscitava, aliado a meu lugar de fala como ogan, deram o tom da interao. O carter
feminino, subversivo e nada asctico do Candombl complementa o conjunto de
observaes e consideraes tecidas no texto.
Introduo
1
O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento
Cientfico e Tecnolgico - Brasil. Texto versa sobre questes em pesquisa pelo autor como parte de sua
tese de doutorado.
2
Doutorando em Sociologia, pela Universidade de Braslia, orientado pela professora doutora Tnia Mara
Campos de Almeida. Integrante do Calundu Grupo de Estudos sobre Religies Afro-Brasileiras.
guidantasnog@gmail.com.
3
A expresso anos de santo se refere ao tempo como iniciada que uma pessoa tem no Candombl.
Conforme antiga expresso angoleira, no Candombl, antiguidade posto. Ou seja, quanto mais velha
de santo for uma pessoa, mas distinta ser.
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No Candombl, inquices so as divindades cultuadas pela nao religiosa Angola, a exemplo dos orixs,
cultuados pela nao Ketu, e voduns, cultuados pela nao Jeje.
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seus terreiros e se esforavam por tomar parte na vida religiosa de outras comunidades
candomblecistas. Este comportamento dinamizava uma rede de solidariedade, em que
informaes, bens fsicos e conhecimentos religiosos eram trocados entre adeptos e
fortaleciam as diferentes comunidades e o povo negro como um todo (SILVEIRA,
2006; SANTOS, 2009).
Embora menos visvel e menor, as redes de solidariedade entre religiosos e suas
comunidades de terreiro ainda existem. Foi devido a elas que optei por contratar uma
faxineira indicada por uma candomblecista. Ainda que no soubesse que me Sinh era
do santo, sabia que, seguindo a indicao, trabalharia com uma pessoa
relacionada/prxima ao terreiro da vodunsi Dandinha.
Por cuidado com as personagens reais aqui citadas, utilizei neste trabalho
pseudnimos, que foram escolhidos por dizerem algo sobre as pessoas reais: Dandinha
(e Danda, que vir logo abaixo) se remete a Dandalunda, ou Dangualunda, divindade da
cachoeira para o Candombl Angola, tambm conhecida no Brasil pelo nome Oxum
(que a divindade com a qual Dandalunda se sincretiza nos Candombls que usam
como lngua ritual o iorub), que acompanha a vodunsi Dandinha. E Sinh se refere
senhora da casa grande colonial, a quem todos deviam respeito que, na experincia
que narro muito mais devido me Sinh. A princpio no haveria problemas em citar
os nomes reais, mesmo porque nada de calamitoso aqui exposto. Pseudnimos, no
obstante, evitam outras situaes de constrangimento e no interferem no desenrolar do
texto. Suprimi tambm da verso aqui narrada da histria da minha interao com me
Sinh algumas passagens secundrias e personagens terceiras, que no alteram meus
argumentos, mas so dispensveis - e se tornariam morosas - para o contar dos fatos. A
histria da faxina est, portanto, resumida, mas no por isso menos rica.
5
Pode parecer um pleonasmo falar vodunsis candomblecistas, mas ogans e rodantes no so uma
exclusividade do Candombl. Pelo contrrio, embora as denominaes, gneros, e detalhes dos papeis
possam variar, em todas as religies afro-brasileiras possvel encontrar religiosos/as responsveis pela
orquestra dos terreiros que geralmente mantm seus olhos abertos e outros/as que entram em transe.
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podem ser iniciadas como rodantes, consequentemente a lder religiosa ser sempre uma
mulher. No Bate Folha, por sua vez, homens podem ser vodunsis, mas em geral e em
grande maioria sero as mulheres que sero iniciadas para este papel. Em um universo
em que papeis religiosos (e no sociais e de forma alguma preferncias sexuais) ditam
as regras do sistema, o sexo biolgico central para que os mesmos sejam distribudos
entre pessoas (SEGATO, 1986/2005).
Esta prtica de se iniciar mormente mulheres como rodantes se confunde com o
contexto da fundao do Candombl na Bahia. E, antes deste, com a forma como
historicamente foram construdas, ao longo de trs sculos, as estruturas dos Calundus
coloniais primeiro construto afro-amerndio-religioso no Brasil, que serviu como base
para todas as denominaes afrorreligiosas hodiernas.
Comunidades candomblecistas foram, historicamente, e permanecem no
presente estruturadas sob a lgica do espao domstico. Ao passo que mulheres (sempre
se tratando de sexo biolgico) e homens podem ser empossados como mes ou pais de
santo, ou seja, como os lderes mximos, a comunidade religiosa ser estruturada
exclusivamente sob o domnio do feminino, da organizao domstica do trabalho e da
famlia de santo (BIRMAN, 1995; SILVA, 2013; NOGUEIRA, 2016). Considerando
isso, a antroploga Patrcia Birman (1995) indica ser possvel que Candombls sejam
fundados e funcionem perfeitamente sem homens, com todas as atividades internas
sendo executadas por mulheres. Para aquelas tarefas em que indispensvel a presena
dos ogans, os mesmos podem ser contratados de outras comunidades e remunerados,
voltando s suas casas de origem aps executarem-nas. O contrrio, todavia, no
possvel e nem imaginvel no h terreiros de Candombl sem mulheres (BIRMAN,
1995).
A exposio de Birman (1995) traz implcita a assumpo da autora e antes
dela da antroploga Ruth Landes (1947/1994) e do socilogo Edison Carneiro (1961)
de que o sentido de existir das comunidades candomblecistas o transe afrorreligioso.
No partilho desta viso e defendo, junto educadora Denise Botelho e ao filsofo
Wanderson Nascimento (2010), que a motivao de existncia destas comunidades a
perpetuao e reproduo de suas tradies e modo de vida afro-comunitrio-religioso.
Ainda assim, Birman (1995) nos ajuda a dimensionar a importncia das vodunsis e
das mulheres candomblecistas como um todo em oposio aos homens, sejam ogans
ou rodantes. Esses e particularmente os ogans so indispensveis para a contnua
existncia do Candombl. Mas no possuem papel estruturador nas comunidades
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religiosas, razo pela qual podem ser tratados e remunerados como ajudantes externos.
So como pilares de suas comunidades de terreiro que as vodunsis e junto a
elas as makotas (mulheres que no entram em transe e possuem como principal papel
religioso, com os olhos abertos, a assistncia aos inquices em suas necessidades)
devem ser vistas. Efetivamente, o minucioso, estratgico e contra-hegemnico trabalho
de preservao e reproduo de seus cultos e de estruturao de suas comunidades vem
sendo empreendido por religiosas, em colaborao umas com as outras em ampla
resistncia aos intentos violentos da Colnia, Imprio e Estado brasileiro e valendo-se
de conhecimentos e habilidades acumulados tanto na frica quanto no Brasil desde os
tempos da escravido (SEGATO, 1986/2005). Foi devido a esta ao poltico-social
empreendida por essas mulheres e liderada pelas mes de santo que a afrorreligiosidade
se preservou no Brasil (SCHUMAHER e BRAZIL, 2013).
Dentro dessa estrutura, o trabalho domstico6 se torna parte integrante do
processo inicitico de rodantes e makotas no Candombl. Desde os primeiros momentos
em que estas/es religiosas/os aderem aos terreiros (alguns/mas na infncia) e do seus
primeiros passos iniciticos, entram em um longo caminho de participao em faxinas,
cozinhas, arrumaes, etc., necessrias para o funcionamento das casas religiosas e que,
combinadas com atividades religiosas especficas, devem ser divididas entre todas/os.
H aqui uma pedagogia prpria, construda a partir de heranas africanas que so
reproduzidas e repassadas em terreiros, em que todas/os tomam parte e que possibilitam
a reproduo do modo de vida afrorreligioso brasileiro (BOTELHO e NASCIMENTO,
2010) e que no encontra paralelo na colonial modernidade.
Birman (1995) a partir de ampla pesquisa de campo observa que esta lgica
ser mais marcante para as atividades no religiosas das mulheres, posto que os homens
vodunsis, tal como os ogans, terminaro por receber com mais frequncia trabalhos
externos ao terreiro, como ir s compras. E sempre se tratando de atividades no
religiosas executaro, igualmente, trabalhos no domsticos, como eventuais servios
de pintura ou manuteno/reformas dos terreiros. Para a autora, a lgica da diviso do
trabalho no religioso favorece que, seguindo a socialmente estabelecida diviso de
espaos domsticos e pblicos, mulheres se especializem nas atividades domsticas e
6
O trabalho domstico pode ser dividido em dois grupos: trabalho feito com rezas envolve todo o
trabalho realizado nos terreiros que depende de conhecimento ritual, como cozinhar para o santo ou
faxinas espirituais; e trabalho feito sem rezas envolve todo o trabalho que pode ser realizado sem
conhecimento ritual prvio. Ambos os grupos so importantes e sagrados, pois, para a cosmopercepo
afrorreligiosa, tudo sagrado (o profano no existe).
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A faxina
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No Candombl Angola a palavra mameto designa me de santo.
8
Fao aqui referncia a um argumento oral, mas saliento que a oralidade e no a escrita estruturante
em comunidades de terreiro. Ademais, a palestrante makota Valdina nacionalmente reconhecida como
grande liderana no movimento social afrorreligioso e negro, tendo sido por isso convidada a palestrar
sobre o povo banto, em 20 de abril de 2017, no terreiro Kupapa Unsaba na ocasio da celebrao
pblica do aniversrio de 70 anos de santo da me Mabeji.
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negra, pobre, oriunda da periferia de Salvador/BA, ser faxineira foi uma das mais
viveis opes de carreira que teve em sua vida. No acidental que tenha optado pela
mesma. Alm disso, embora marginalizada e tida como subemprego, a faxina no uma
ocupao menos vlida do que nenhuma outra, pelo que ser faxineira no um ofcio
vergonhoso para me Sinh e nem para nenhuma outra pessoa. Sendo assim, qual foi a
razo de meu constrangimento?
A resposta aqui no moderna/colonial, mas propriamente candomblecista.
Ogans, a no ser por opo pessoal, no fazem e nem ajudam nas faxinas em terreiros
de Candombl ou pelo menos no tradicionalmente. E mes velhas de santo tampouco
se ocupam demasiadamente com as mesmas. Estas senhoras alcanaram, por sua idade
de santo, um lugar de autoridade em que seu papel religioso e comunitrio muito mais
o de orientar as geraes mais novas, distribuir bnos, realizar atividades religiosas
complexas e comandar o funcionamento de seus templos, do que propriamente limp-
los, ou executar qualquer outra tarefa passvel de cumprimento pelas geraes mais
novas de santo. E, ao dizer isto, no postulo que a faxina seja menos importante que a
liderana da casa ou que a iniciao de filhas/os de santo. Pelo contrrio, busco indicar
que a faxina, o cozinhar para as/os mais velhas/os (de idade ou santo), a lavagem de
pratos e/ou de banheiros so passos para a senioridade de santo. So etapas cumpridas
por todas as vodunsis em seu caminhar para se tornarem mametos ou para, como me
Sinh, merecerem similar respeito, como mes candomblecistas a quem todos
inclusive ogans devemos pedir bnos.
A casa da qual me mudava, esclareo, no era um terreiro e, como tal, no era
vista por me Sinh como um local em que sua senioridade candomblecista importasse,
ou mesmo minha condio de ogan. Tratava-se de uma casa que necessitava de servios
profissionais de faxina e cujo dono havia contratado a profissional Sinh como
faxineira. O ponto de inflexo, portanto, no era a casa ser limpa ou no, mas minha
relao com aquela me candomblecista. Ns no deixamos de ser afrorreligiosos e de
respeitarmo-nos mutuamente por estarmos fora de um terreiro. Nosso vnculo de
santo permanecia existente e, com ele, suas ritualsticas deferncias e sociais
solidariedades, alm de nossas vises de mundo que trazem um sentido de irmandade e
destino no encontro de candomblecistas e dos inquices que lhes acompanham.
Transformava a relao em algo muito maior e mais significativo do que um contrato de
trabalho burgus, mediado e (mal) significado pela moeda e sua troca comercial e
financeira. Me Sinh, cabe dizer, vodunsi filha do inquice da prosperidade e, tambm
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pela idade de sua divindade9, sua visita minha casa sobretudo em um contexto de
mudana percebida como bom pressgio em minha cosmopercepo de ogan.
Constrangia-me, portanto, que me Sinh estivesse faxinando minha casa, no
porque no devesse, como trabalhadora, ter a faxina como ofcio. Mas porque, como to
distinta me candomblecista, mesmo embora minha casa no seja um terreiro, no
deveria mais fazer faxinas. Sua presena em minha casa significava para mim a visita de
uma senhora de grande autoridade e presena espiritual. Gostaria, assim, de ter faxinado
minha casa para receb-la, e no de t-la fazendo este trabalho para mim.
***
9
A iniciao de um/a candomblecista implica no que entendido como o nascimento de seu inquice
ritual/momento em que este se vincula mais proximamente pessoa iniciada. Assim, contar os anos de
santo de uma pessoa (salvo raras e casusticas excees) tambm contar os anos de idade do inquice que
a acompanha.
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comunidades de terreiro, s mes que lhes formam e que, com os anos, com a
senioridade, trazem autoridade.
H ainda mais do que isso. O Candombl envolve respeito ritualstico e
deferncia s lideranas, mas envolve tambm contato humano. Comunidades de
terreiro so, portanto, ricas em imagens visuais, bnos e cargos de autoridade, mas
tambm em cheiros, toques, abraos, ritmos, sons, etc. preciso estarmos integrados a
tal modo de vida para internalizarmos a reverncia que uma me inspira. Estas mulheres
foram, finalmente, criadas comunitariamente neste pluriverso to vivo e nada asctico, e
do mago do mesmo que emanam suas senioridades. So feitas de idade e experincia,
o que necessariamente acumula sempre mais ngunzo10.
Do dia da faxina, um outro exemplo ilustra bem esse processo de construo de
autoridade/senioridade: ao final do dia e dos trabalhos, chegou em minha casa a mameto
Danda, para buscar sua irm de santo me Sinh. Neste momento, parei de trabalhar
com esta na faxina, pois estava sentada em meu sof uma autoridade religiosa que,
mesmo sem demandar, merecia a exclusividade de minha ateno. No o caminho de
todas as vodunsis, como concluso de seu percurso inicitico, tornarem-se mes de
santo. Mas aquelas que se tornam, recebem tratamento rgio. Com efeito, so rainhas
para suas comunidades.
Ogans, cabe dizer, tambm devem passar por um processo inicitico e tambm
adquirem mais autoridade conforme mais velhos de santo. O fato de serem merecedores
de pedidos de bnos de vodunsis e de tradicionalmente no serem responsabilizados
pelas faxinas e outros servios domsticos no implica que no possuam seu prprio
caminhar para e pela senioridade, junto a outros ogans e demais religiosos da
comunidade. Com efeito, o que difere o caminho do ogan e o da vodunsi so os papeis
sociais e ritualsticos esperados de cada um, construdos sobre a longeva e complexa
lgica religiosa afro-brasileira. Neste sentido, inclusive, makota Valdina indicou, em
conversa logo aps a mesma palestra supracitada, que ogans que j nascem pais
devem buscar experienciar um perodo de filhos (muzenza, na linguagem angoleira), em
que efetivamente acumularo as vivncias necessrias para se tornarem os pais que
nasceram para ser. Cargo , assim, uma vez mais, deferncia e vivncia acumulada.
Essas andam necessariamente juntas.
10
A palavra ngunzo significa, grosso modo (no existe traduo literal ou abrangente ao portugus),
energia existencial. Aproxima-se do mana dos polinsios, ou do prana dos hindus. mais amplamente
conhecida no Brasil por sua traduo ao iorub, aportuguesada via msica baiana e pelos ritos afro-
brasileiros, sobretudo da umbanda: ax.
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Reflexes finais
Busquei com este artigo mostrar que a autoridade de uma mulher (sexo
biolgico) candomblecista construda a partir de uma lgica vivencial, em que
posies hierarquicamente mais elevadas dentro da religio so alcanadas a partir de
seu tempo de iniciao e da partilha de papeis comunitrios e ritualsticos variados. Essa
histria de vida no santo (vida no Candombl) lhes proporciona, alm disso, acumulo
de ngunzo, conceito de difcil traduo lingustica, mas sentido por todos os religiosos.
Busquei deixar explcito ao longo do texto que, na lgica da colonial
modernidade, valores micos candomblecistas, que do a essas mulheres notoriedade
perante o grupo, no dizem nada. Pelo contrrio, a classificao de pessoas iniciada com
a colonizao do Brasil legou s/aos africanas/os para c forosamente trazidas/os,
como escravas/os, via trfico negreiro, os piores trabalhos existentes. Os mais penosos
fisicamente e mais desvalorizados. Seus descendentes hodiernos as/os negras/os
brasileiras/os ainda sofrem com a mesma sina, mesmo que (geralmente)
remuneradas/os. No obstante, o Brasil as Amricas como um todo tenha sido
construdo sob sangue escravo negro e indgena, o violento sistema de explorao e
subordinao de pessoas baseado em sua cor de pele e origem geogrfica nunca foi
alterado. No postulo que deveria t-lo sido a partir da lgica afrorreligiosa, mas esta
claramente e isto busquei mostrar mais justa, inclusiva e abrangente.
Mes candomblecistas, devo dizer, diferentemente de me Sinh, no carecem
de ser negras. Embora o componente da cor da pele esteja includo em minha
argumentao, a religiosidade e mesmo a senioridade candomblecista no se
estabelecem a partir da cor de pele. Estabelecem-se, sim, por inquice na cabea, que
todos temos por crena, todas e todos nascem com um inquice que lhes acompanha ao
longo de suas vidas e vive, fisicamente, em suas cabeas. por isso que pessoas
brancas tambm podem ser iniciadas e mesmo se tornarem mametos ou tatetos, no
caso de serem homens. O Candombl, no obstante, negro em sua essncia os
inquices, orixs e voduns so antropomorfizados como deusas/es negras/os e/ou foras
da natureza que se remetem a uma paisagem africana assim como feminino, e o
lugar de uma me candomblecista ser sempre racializado como negro, assim como sua
indumentria de baiana, seus fios de conta, seus gestos, sua linguagem religiosa, etc. O
racismo religioso, portanto, tambm enegrece pessoas e opera estruturalmente na lgica
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da colonial modernidade.
Me Sinh, por sua vez, intersecciona diversas caractersticas consideradas
subalternas no Brasil: mulher, negra, pobre, faxineira, separada e macumbeira. Talvez
outras mais existam que desconheo. , portanto, uma grande autoridade
candomblecista, ao mesmo tempo em que est longe de possuir algum poder
moderno/colonial. H um choque de realidades aqui, portanto, que ela articula em sua
vida. E, posto que a colonial modernidade hegemnica, possvel afirmar que o
Candombl religies afro-brasileiras como um todo subversivo, afirmao esta j
feita anteriormente, dentre outras, por Segato (1986/2005) e Birman (1995).
A harmoniosa lgica subversiva de construo de autoridades candomblecista
no deve, por outro lado, ser entendida como um processo livre de conflitos. Pelo
contrrio, no raro percebermos brigas de egos e desentendimentos graves entre
religiosas/os filhas/os de uma mesma me de santo ou ainda biolgica de uma dada
comunidade de terreiro, o que algumas vezes leva a rupturas em uma famlia de santo,
que se divide e funda novos terreiros. A discrdia, com efeito, foi o que levou as
descendentes religiosas da dinastia nag Ar a se dividirem entre dois terreiros
calunduzeiros oitocentistas soteropolitanos, que so hoje considerados os terreiros de
Candombl mais antigos do pas: a Casa Branca e o Alaketu, ambos da nao Ketu. Por
outro lado, discrdias pessoais no impedem candomblecistas de reconhecerem a
senioridade de uma me candomblecista. Ainda que seus mandos ou os caminhos a que
lidera possam no ser queridos, sua autoridade e com ela o inquice que habita em sua
cabea jamais ser questionada. Uma me mameto ou no ser sempre uma
autoridade no Candombl e sempre ser respeitada mesmo que criticada como tal.
Valores de respeito vivncia, experincia de vida, das pessoas mais velhas
podem ser absorvidos do modo de vida candomblecista por outros grupos sociais. Com
ou sem discrdias, as comunidades de terreiro vm resistindo ao racismo religioso que
sofrem desde que os primeiros africanos organizaram Calundus no Brasil. E todas as
suas mes, com maior ou menor sofrimento em suas vidas pessoais, vm liderando esta
resistncia. Sua empresa pode ser difcil, mas incrivelmente vitoriosa. E isso dizer
muito na violenta colonial modernidade brasileira.
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Referncias bibliogrficas
HITA, Maria Gabriela. A casa das mulheres noutro terreiro: famlias matriarcais em
Salvador-BA. Salvador: Ed. UFBA, 2014.
LANDES, Ruth. The city of women. Albuquerque: 1st University of New Mexico Press,
1994. Republicao do original de 1947.
49
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SEGATO, Rita Laura. La Nacin y sus Otros: Raza, etnicidad y diversidad religiosa en
tiempos de Polticas de la Identidad.Buenos Aires: Prometeo Libros, 2007.
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Adlia Mathias1
Introduo
1
Doutoranda em Literatura e Prticas Sociais pela Universidade de Braslia, orientada pela prof Dr
Cristina Stevens. Membro do Grupo de Estudos Calundu, sobre Religies Afro-Brasileiras e do Grupo de
Pesquisa Vozes Femininas UnB/CNPq. E-mail: adeliamathias@gmail.com.
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A provocao que fao agora diz respeito a um desconforto pessoal que repasso:
Se possvel existir correntes tericas capazes de negociar tanto com a estrutura social
quanto com a esfera pessoal dos sujeitos homens, brancos e colonizadores, porque no
foi possvel a contraparte da apresentao do que formulavam os povos colonizados,
racializados e oprimidos?
Essa obviamente uma pergunta retrica. Sabemos, ou todos/as deveramos
saber, que enquanto a capacidade de os colonizados produzirem conhecimento nunca foi
questionada, s minorias, especialmente aos povos afro-amerndios, a possibilidade de
produzir conhecimento sofria e ainda sofre violenta represso, destruio e/ou tem sua
legitimidade colocada em dvida. Ou seja, a estrutura social racista, sexista,
misgina, eurocentrada, capitalista.
Embora esse no seja o objetivo desse artigo, importante questionar quais
fatores fazem silenciar as culturas e produes literrias construdas por esses povos,
como se apenas a partir dos Estudos Culturais que elas se tornassem academicamente
expressivas. Igualmente importante pensar quais processos sociais foram
determinantes para que finalmente as vozes sempre existentes e at ento silenciadas se
fizessem finalmente ouvidas o bastante para figurarem como grande vertente terica.
Apresentar o sistema dominante na produo e nos estudos literrios essencial
para evidenciar em qual campo est situado o objeto deste artigo, a Literatura Afro-
Brasileira.
A Literatura Afro-Brasileira cresceu em um campo extremamente conservador e
foi relegada literatura de menor valor (quando reconhecida como literatura autnoma)
por apresentar um sistema diferenciado do cannico. Ela traz em seu cerne o selo da
resistncia, a incompreenso de seu valor esttico por quem no compartilha da mesma
linguagem subentendida e do no dito que fala mais do que estruturas lingusticas
sofisticadamente trabalhadas pela literatura tradicional/dominante. A potncia dessa
literatura muitas vezes usurpada e adequada por grupos no racializados e por eles
patenteadas. Isso faz com que a perspectiva de experienciar de forma completamente
distinta o conceito de arte em relao viso eurocntrica tambm fique comprometida,
o que, por sua vez, faz com que boa parte da riqueza da produo cultural afro-brasileira
se perca.
Obviamente, impregnada pela vivncia dos povos afro-amerndios no Brasil,
essa literatura apresenta valores distintos que s contemporaneamente tm sido
apresentados ao pblico mais amplo, estudados com maior comprometimento por
53
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pesquisadoras/es, com formulaes complexas sobre o que ela vem a ser, como se
diferencia, quais valores no cabem na estrutura j existente e com o que pode colaborar
para a democratizao do saber, para a multiplicidade das existncias e para o respeito
pelas diferenas.
O objetivo desse artigo mostrar como a Literatura Afro-Brasileira trata o tema
da ancestralidade por meio da religiosidade experienciada/praticada pelo povo de
santo 2 . Para isso, primeiro delineio o que compreendo que seja essa literatura e
apresento o coletivo de onde retiro os contos utilizados em minhas anlises. Depois fao
anlise de duas narrativas, procurando demonstrar a influncia das religies na estrutura
esttica, na composio ideolgica e/ou nos efeitos dessa combinao com alguns
instrumentos tradicionais da crtica eurocntrica e com outros que Eduardo de Assis
Duarte nos apresenta como especficos da Literatura Afro-Brasileira. Para finalizar o
artigo, teo consideraes sobre as contribuies dessa literatura, sobre a importncia da
religio na composio da esttica literria e sobre o quanto a religiosidade influencia
nessas narrativas.
2
Adeptos iniciados ou em processo de iniciao em religies afro-brasileiras.
3
A partir deste momento posso alternar a referncia aos Cadernos Negros como Cadernos e CNs para
facilitar a fluidez do texto.
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4
Disponvel em: http://www.revistaforum.com.br/2017/04/20/professor-branco-diz-que-obra-de-carolina-
maria-de-jesus-nao-e-literatura-e-provoca-embate-no-rj/. Acessado em 25/05/2017.
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ou se trata apenas de uma construo textual prxima de uma crnica; para aquelas/es
remete s prticas da literatura oral ancestralmente exercida pelas/os griots, para as
comunidades de terreiro das quais participam enquanto membros ou mesmo em
condies de visitantes - s experincias afrocentradas e ao reconhecimento de si na
representao literria.
Se h algo de livre, autnomo e emancipatrio na literatura, com certeza a leitura
de fruio o traz embutido em si, pois depende, a priori, do arcabouo cognitivo de
cada leitor/a:
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No conto, Tati faz oferendas a Oxum com o intuito de acalmar-lhe a fria, pois
Oxum a deusa da fertilidade que se mostra descontente fazendo com que no perodo
frtil para reproduo Tati tenha delrios, vises e sofrimento ao se lembrar do aborto.
Outro ponto importante a sororidade entre mulheres: Tati ajuda a irm Lau,
que por sua vez a ajuda de volta e as mulheres do terreiro acolhem Tati sem sequer
saberem quem ela . O que remete tradio de se acolher para a famlia de santo quem
precisa de ajuda independente de laos sanguneos (NOGUEIRA, 2016).
O conto contm poesias, anotaes pessoais e psicografias de Tati, por isso
cheio de figuras de linguagem como metfora, elipse, metonmia, sinestesia, eufemismo
eprosopopeia, cujos objetivos principais so falar indiretamente que a personagem sofre
pelo aborto feito, deseja perdo e que os orixs esto a acompanhando nesse processo.
Desde o incio do conto sabemos que Tatiana praticante de religio afro-
brasileira, pois ela faz oferenda para Oxum, toma banhos de folhas maceradas (ALVES,
1999, p. 72).
Os lugares para onde Tati saa para pensar e normalmente aconteciam seus
delrios tambm eram sempre junto natureza, na pedra de Xang junto ao mar de
Iemanj ela escrevia suas anotaes, Ians tambm aparece no conto:
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5
Experincia real acontecida no grupo de leitura voltado a analisar os Cadernos Negros. Estudantes na
fase final da graduao leram o conto e consideraram que a personagem tinha morrido e o rito das velas
era um velrio.
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Esse excerto mostra o chamado de Nan por sua filha, revela que, ao contrrio
de Oxum, que no aceita as oferendas de Tati, Nan a est resgatando de sua culpa, de
seus delrios e da vida que no lhe cabia mais.
Consideraes Finais
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cnone, uma elite e/ou uma hegemonia com a funo de apagar suas existncias, h por
outro lado quem delas se apodera e vive plenamente alheio/a ao que regras tentam
impor, fracassam as imposies porque no possvel controlar a vida individual de
cada pessoa.
Os sujeitos cientes de que no pertencem ao grupo hegemnico vm criando
seus prprios espaos com outras regras. Esses sujeitos vivem livres e distantes das
amarras da subjugao. Exercem outros papeis, criam outros sistemas e outras lgicas
nas quais no se submetem ao escrutnio limitador de descendentes dos colonizadores.
Referncias Bibliogrficas
BERND, Zil. Poesia Afro-Brasileira: 150 anos de conscincia negra no Brasil. Belo
Horizonte, Mazza, 2011.
LOBO, Luiza. Crtica sem juzo. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1993.
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NASCIMENTO, Wanderson Flor do. Sobre candombls como modo de vida: imagens
filosficas entre fricas e Brasis. In: Ensaios Filosficos. Volume XIII Rio de
Janeiro, Agosto/2016.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixs. So Paulo, Companhia das Letras, 2001.
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Gerlaine Martini1
Introduo
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Retomar o termo calundu nesse novo contexto - conforme o consenso produzido pelo
encontro de nosso grupo - coloca nfase nessa diversidade e na abertura que rene as
diversas tradies e comunidades religiosas numa convivncia positiva, nesses tempos
em que o combate intolerncia religiosa o que mobiliza encontros e atuaes mais
imediatas.
Nosso interesse enquanto grupo pelas religies afro-brasileiras, e pelo estudo de
autores que pensaram e pesquisaram nesse campo, logo se revelou para alm da
academia. Cada integrante tinha uma histria que o ligava s comunidades religiosas de
maneira muito pessoal, alguns tendo nascido e se criado nessa ambincia, outros tendo
sentido uma converso ao longo de seu contato ou trabalho com essas comunidades.
Assim, fomos entendendo que essa nossa especificidade nos fazia buscar revisitar e
rever os estudos afro-brasileiros, juntando dois mundos em um s. Esse artigo visa
comear a refletir sobre essa busca da reviso autoral mediada pelos vrios nveis de
pertencimento s tradies religiosas afro-brasileiras.
4
Refiro-me ao conceito de Bruno Latour (2009).
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de campo, por eles adotados, terminarem se consolidando como forma de atuao dos
pesquisadores dessa rea.
Deste modo, o pioneiro Nina Rodrigues, falando a partir do final do sculo XIX,
era mdico. Manuel Querino fez parte do movimento social como abolicionista, lder
operrio e professor de arte. Arthur Ramos foi um mdico que pretendia dar
continuao ao trabalho de Nina Rodrigues com o universo religioso afro-brasileiro nos
anos 30 embora tivesse se tornado posteriormente professor de antropologia da
Faculdade Nacional de Filosofia. dison Carneiro, na mesma dcada, era formado em
direito e atuava como jornalista e folclorista. Pierre Verger era fotgrafo francs um
ofcio que no est totalmente apartado do prprio ato da observao participante5. E as
mulheres pesquisadoras formaram um caso parte.
Porm, mesmo partindo de outras reas, de uma forma ou de outra, em sua maior
parte, os estudiosos terminaram se aproximando da abordagem antropolgica. Os
procedimentos adotados por esses autores clssicos e que se consolidaram foram em
grande medida justapostos tcnica da observao participante, reivindicada como
mtodo por excelncia da antropologia, em perodos mais recentes, por autores
comprometidos com a legitimao e profissionalizao dessa disciplina (SILVA, op.
cit.: 16). E foi assim que as religies afro-brasileiras vieram se conformando como um
dos mais explorados objetos de nossa antropologia.
Na poca da produo desses estudos clssicos6, num ambiente menos definitivo
institucionalmente, outros fatores interferiram na constituio de objetos etnogrficos de
maior relevncia. Determinados confrontos acabaram por emoldurar essa rea de
pesquisa, muito prximos das prprias rivalidades e disputas que despontavam entre as
diferentes vertentes das tradies afro-religiosas em pauta e que no deixavam de
possuir um sabor de regionalismo que tambm definiria determinados centrismos,
muito criticados posteriormente, em relao ao recorte e seleo de campos para o
trabalho da pesquisa.
Nesse sentido, Mariza Corra (2003) identifica dois grupos, um deles de baianos
(incluindo estudiosos de outros estados que fizeram suas carreiras na Bahia),
intelectuais de provncia que teriam se mudado para a o Rio de Janeiro, capital do pas
nesse perodo, onde atuaram conjuntamente numa espcie de operao de guerrilha
5
Aqui so mencionados autores que trabalharam com comunidades religiosas afro-baianas, e esse recorte
se relaciona com o pioneirismo e a uma configurao regional de intelectuais como veremos adiante.
6
Estamos falando num perodo inicial que abrange o final do sculo XIX e a primeira metade do sculo
XX.
73
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cujo objetivo parecia ser destronar a posio, que comeava a ganhar foros de
hegemonia, de Gilberto Freyre, no campo do estudo das relaes raciais (op. cit.: 167).
A outra vertente seria, portanto, a dos pernambucanos, e argumentos estratgicos foram
contrapostos pelos baianos a esta vertente com o objetivo mais imediato de questionar a
artificialidade de sua teoria da mestiagem:
74
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7
Definies em grande parte superadas no mbito acadmico. Em relao pureza ver discusso de
Beatriz Gis Dantas (1988) e seus desenvolvimentos.
8
Posteriormente foi sugerida a relao de Verger com resduos coloniais (SANTOS, 1982). Verger
recebeu bolsas do Institut Franais DAfrique Noir (IFAN) para realizar a pesquisa comparativa com o
Brasil, numa poca em que o regime poltico francs j comeava a enfrentar o processo de
independncia de pases africanos em relao ao seu domnio.
9
A disputa no caso no se constri sobre a representao da origem (nag em relao ao congo-angola ou
ao caboclo), mas sim sobre a deficincia regional brasileira de um culto que seria da mesma origem
africana.
10
Terreiro da Casa Branca (Il Ax Iya Nass Ok), matriz do Terreiro Op Afonj. Lima (op. cit.: 19)
observa que Aninha falava da origem deste, j que ela era descendente de grunces do norte de Gana.
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estudiosos nos terreiros afro-brasileiros. Lisa Earl Castillo (2008) faz relato minucioso
sobre essa situao, no caso baiano, de quem me valho substancialmente para essa breve
descrio, ainda que incompleta, sobre a integrao dos primeiros etngrafos s
comunidades.
De modo talvez surpreendente, parece que a Faculdade de Medicina da Bahia
em Salvador tinha relaes muito prximas com o Terreiro do Gantois (Il Iya Omi Ax
Iyamass) e que Raymundo Nina Rodrigues (1862-1906) inaugurou uma regra na
relao entre vrias geraes de pesquisadores ligados faculdade e o terreiro: professor
maranhense na Faculdade de Medicina, Rodrigues foi suspenso og11 do Gantois.
Tambm teve acesso ao peji pessoal de Martiniano do Bomfim (segundo o
prprio Martiniano) - um quarto de santo12 residencial com os assentamentos (objetos
de culto) herdados dos prprios pais consanguneos do religioso - que sinal de certa
considerao por parte deste respeitado e referido babala. Pode-se perceber como o
posicionamento terico de Nina Rodrigues13 no impedia que sua atuao
preservacionista (fruto do conservadorismo equivocado) fosse relativamente
interessante perante os terreiros.
Martiniano Elyseu do Bomfim (1859-1943), nascido no Brasil e filho de pais
africanos (origem ijex e egb), foi o jovem auxiliar de pesquisas de Nina Rodrigues,
justamente por ser letrado em ingls e na ortografia das palavras iorubanas, alm de
falar portugus, e de trazer consigo as experincias vividas na cidade de Lagos (atual
Nigria) quando l morou durante onze anos. Ele continuar sendo um dos principais
informantes entre duas geraes de pesquisadores e sua perspectiva centrada em
determinadas origens - que eram as das tradies familiares que lhe antecediam - das
prticas religiosas africanas no Brasil ser filtrada para as pesquisas.
O sacerdote e antroplogo Julio Braga (1999: 48-9) classifica Nina Rodrigues
como um og de fora, no escolhido na malha interna da comunidade, mas como
algum que prestava um precioso auxlio, humanizando assim as aes do mdico, que
no eram totalmente incoerentes com a mentalidade que este partilhava com teorias em
voga na poca, pela qual foi criticado posteriormente:
11
Um posto masculino e de prestgio na hierarquia religiosa, o que ser discutido mais adiante.
12
Um santurio, conforme classificavam etnograficamente os primeiros autores, que podemos considerar
um altar, mas no exatamente um altar com imagens antropomrficas elevadas.
13
Evolucionismo (darwinismo social, naturalizao de desigualdades sociais) e patologismo, marca de
todos os autores da poca (Monique Augras, 1983: 44).
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14
Maria Julia da Conceio Nazareth (1800-1910).
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conflitos entre ticas religiosas ou a uma aceitao dos valores da religio sem uma
adeso subjetiva a eles, e afirma que, nesse campo especfico, no se exigem provas de
uma converso internalizada:
15
Lembrando que ele conheceu Maria Jlia e foi suspenso antes de ser confirmado mais tarde por
Pulchria e que sua obra menciona a ambas frequentemente, ainda que de passagem (CASTILLO, op. cit.:
106). Ou seja, poderia haver um processo de inteirao e converso em continuidade.
16
Incluo aqui os desenvolvimentos (de forma indireta) que Dantas (1988:242) define como a
transformao da pureza nag de categoria nativa em analtica pelos antroplogos.
78
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17
Pierson (op. cit.: 24) identifica-o como og do Gantois.
18
Por exemplo, a referncia a favas brancas como oferenda em A Festa de Me-Dgua (1938), texto
que foi lido e debatido pelo Grupo Calundu.
19
Joo do Rio (2015), apesar de uma rica fonte histrica de cinco matrias pioneiras publicadas na Gazeta
de Notcias no incio de 1904, no se coloca como um pesquisador, mas como reprter que beira a fico.
79
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20
Nilma Lino Gomes (2006: 235-6) menciona este percalo no campo de Ruth Landes e o analisa.
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21
Embora Ruth Landes, aps a convivncia com as comunidades religiosas de Salvador, duvidasse que
Arthur Ramos fizesse trabalho de campo (CORREA, op. cit.: 245, nota 29).
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seja nas avaliaes desaprovadoras publicao do pai de dison Carneiro sobre mitos
africanos no Brasil, seja nas ameaas de pesar a mo da crtica sobre o trabalho de Ruth
Landes, a pesquisadora estrangeira com quem Carneiro teve uma relao amorosa
(OLIVEIRA; LIMA, 1987: 31; CORRA, op. cit.: 169; 241: nota 13; GOMES 2006:
251: nota 4) antroploga qual o prprio Ramos havia indicado Carneiro como guia.
Como era j de costume, Carneiro foi suspenso og (do orix Xang), s que
desta vez no terreiro da ento proeminente lder Me Aninha, o Il Ax Op Afonj,
que ir se destacar no mesmo papel que o Terreiro do Gantois cumpriu anteriormente.
Porm, Carneiro no se confirmou, o que lhe dava certa vantagem ao ser disputado por
outros dois terreiros que tambm o suspenderam (ou seja, o indicaram para
confirmao) - a casa matriz do Il Ax Iya Nass Ok (Terreiro do Engenho Velho) e o
Terreiro do Ogunj de Pai Procpio, conforme o prprio dison Carneiro em uma nota
do livro de Ruth Landes (2002: 197: nota 31): Eu era ento disputado como og pelo
Engenho Velho e pelos candombls de Aninha e de Procpio, mas no me confirmei
em nenhum. Julio Braga (op. cit.: 55) descreve como funcionava essa situao:
22
Reticentes em relao s exposies, principalmente na imprensa, por causada perseguio policial
acirrada desde a dcada de 20 e da extorso atravs de licenas para realizar cerimnias pblicas.
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(LIMA; OLIVEIRA, op. cit.: 30) que, como se pode perceber, mantinha relaes com
sucessivas geraes de estudiosos. Isto se refletiu at nos escritos dos estudiosos sobre
as contribuies no iorubas, como a dos congos e angoleiros, para as comunidades
religiosas de terreiro, segundo explica Castillo (op. cit.) e como vnhamos discutindo.
Desta contribuio, Manuel Querino havia falado pioneira e isoladamente sobre
candombls de caboclo23, enquanto dison Carneiro ensaiava escrever a respeito de
comunidades declaradamente preservadoras das tradies religiosas da regio africana
Congo-Angola - que tinham aportado ao territrio brasileiro havia longo tempo - mas da
perspectiva tendenciosa do seu informante babala.
Alis, em relao aos primeiros escritos de religiosos, o autor maranhense
Manoel Nunes Pereira (1892-1985) redigiu, ainda em 1942, A Casa das Minas.
Segundo Augras (op. cit.: 48) esta obra:
23
Num pequeno artigo de 1919 (CASTILLO, op. cit.: 110).
83
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24
Michel Dion (2002: 129: n. 16) cita Bastide afirmando que uma cerimnia de bori s poderia ser feita
aps sete anos da lavagem (a qual o tornava apenas um membro perifrico), e que ele o faria retornando
ao Brasil - mas nessa data, em 1958, vai frica com Verger. Silva (2006: 290) declara que Bastide
assentou seu santo no Op Afonj.
25
Cf. Nbrega (op. cit.: 14), embora as datas anuais do nascimento e da iniciao de Me Senhora
estivessem sendo revistas.
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o Daom e usou seu colar de Xang como passaporte ritual ao atingir regies nags-
iorubas.26 (VERGER, 1991: 173; LHNING, op. cit.: 47).
Verger ainda obteve iniciaes na regio de Ketu e na cidade de Saket (atual
Benim), entre 1952-53, inclusive como babala, recebendo um nome inicitico
(Fatumbi) e adotando uma postura assumida de adepto (embora tambm um estudioso),
por acreditar que isso lhe daria permisso para ter maior acesso e poder de preservao
da liturgia qual tinha sido iniciado no Brasil (VERGER 1982: 256): O fato de ter-me
tornado babala dava-me o direito e dever de aprender de meus confrades as histrias
simblicas sobre as quais repousa a adivinhao pelo If e cujo conjunto representa a
soma dos conhecimentos orais dos Iorubs. A funo de babala se tornava, para
Verger, como o equivalente tradicional africano-ocidental do estudioso e do
pesquisador, um detentor de saberes. Por isso, declarava estar tomando, a princpio,
notas para mostr-las a seus amigos do candombl mais do que qualquer outra coisa
(VERGER op. cit.: 255).
A regio africana onde se deram as iniciaes foi escolhida por ser um lugar
mais prximo das origens da comunidade baiana qual se via pertencente (LE
BOULER, 1994: 157). Depois, Verger adquiriu o cargo de oju ob (olho do rei) no Op
Afonj; tambm foi indicado para og na Casa Branca (SILVA, op. cit.: 292).
Verger levou s ltimas consequncias a viso de uma origem africana muito
local e especfica qual se deveria retornar, que teria sido elegida por casas que
terminaram, devido a condies histricas, direcionando o campo de pesquisa em seus
primrdios. Lima (1984: 22) define essa viso do fotgrafo como uma predisposio
valorizadora da cultura nag27 de Ketu: Muita gente, Arthur Ramos, recentemente
Roger Bastide e Pierre Verger, repetem essa forma etnocntrica, esse pequeno desvio
metodolgico e terico de considerar a teologia nag mais desenvolvida (...) (cf. LIMA
2003: 54). O fotgrafo tambm encontrou uma categoria local que acreditava definir o
papel de pesquisador nessa regio especfica: o babala justamente a profisso de
Martiniano do Bomfim.
26
Ao que parece, Verger (naquele momento) se situaria dentro da categoria masculina de og, por no
conseguir se deixar entrar em transe, como declarava publicamente (o que ele atribua sua mente
cartesiana). A categoria og abrange diferentes segmentos dentro dos candombls, como og de sala, og
alab (tocador), etc. (BRAGA 1999).
27
Os iorubas do Benim.
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28
Vivaldo da Costa Lima (2003: 88) v as equedes como funcionalmente distintas dos ogs, com deveres
de carter muito mais pessoal.
29
Para Gomes (op. cit.: 243), Landes tem uma viso idlica das relaes raciais no Brasil por causa mesmo
de um vis culturalista e pela insistncia na comparao apressada com os EUA.
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Janeiro, tornou Gisle uma figura nica. Porm, bem antes de chegar ao Brasil como
esposa do conselheiro cultural da embaixada da Frana, era familiarizada com diferentes
mundos africanos e j havia conhecido boa parte da frica, tendo vivido alguns anos no
continente e tendo inclusive nascido no Marrocos, quando sua famlia francesa ali
morou.
Gisle se tornou uma estudiosa realizando um percurso paralelo ao seu
amadurecimento dentro dos rituais afro-brasileiros, sempre enfrentando problemas de
permanncia no Brasil. Alguns anos aps sua iniciao, ainda novia, ela passou a
escrever artigos sobre temas das religies afro-brasileiras, como a msica ou o
comportamento da filha de santo, com enfoque no condicionamento do estado de transe
e em seu carter no patolgico, at obter seu doutorado na Frana:
Ela entra em contato com Roger Bastide e se inscreve para uma tese
de doutorado de terceiro ciclo em sociologia. Ela no tem uma
formao nem diploma de sociologia, mas Roger Bastide confia nela e
a orienta em suas leituras bsicas. Tambm lhe deixa a livre escolha
quanto ao contedo de sua pesquisa. No primeiro encontro, ele apenas
lhe disse: A senhora sabe muito mais do que eu, escreva! (DION,
op. cit.: 73)
Anos depois, em 1970, defendeu sua tese baseada no ritual angola ao qual ela
tinha sido iniciada, mas tendo descrito na realidade uma mistura de tradies iorub e
angola (DION, op. cit.: 75) e neste mesmo ano recebeu o grau ritual para se tornar uma
me de santo (sacerdotisa zeladora), fato que se consolidou apenas em 1976, aps
fundar seu prprio terreiro em Duque de Caxias (Baixada Fluminense). Foi deste modo
que terminou acessando uma parte central da religio (que mencionamos acima como a
rea do feminino dominante) ao mesmo tempo em que possua, ento, qualificao
acadmica. Preocupada em traduzir e legitimar aquilo que vivenciava, colocando a
religio em primeiro plano, no deixou de, por vezes, usar sua tese como um libi para
explicar suas relaes com o candombl em ambientes preconceituosos (op. cit.: 81).
Como pesquisadora, manteve-se em temas discutidos por Landes, ao falar sobre o transe
em geral vivido por uma mulher (AUGRAS, op. cit.: 76-7) e ao tentar abordar o papel
da mulher negra nas religies afro-brasileiras num artigo em 1974 (DION, op. cit.: 95).
Nas dcadas seguintes, seguiu sendo a francesa da Gomia, enquanto
estudiosos e religiosos atravessavam processos de mudana, at que reescreveu suas
descries do candombl num livro que foi lanado em 2006, corrigindo o que
considerava um ponto fraco em sua tese (op. cit.: 75) ao abordar explicitamente as trs
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_________ Entretien avec Emmanuel Garrigues. In: LEthnographie. Paris: Socit
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_________ 50 Anos de Fotografia. Salvador: Corrupio, 1982.
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Resumo: Este texto tem por objetivo abordar alguns aspectos do debate a respeito do
reconhecimento por parte do Estado brasileiro de bens culturais de matriz africana como
patrimnio cultural brasileiro. Alm de apresentar uma breve digresso histrica sobre
as prticas de preservao no Brasil e a relao institucional entre o Estado e os povos e
comunidades tradicionais de matriz africana, este trabalho procura ainda demonstrar
como este moderno/colonial Estado-Nao brasileiro por intermdio do seu Servio do
patrimnio elaborou at a dcada de 1980 uma narrativa histrica sobre a memria
nacional invisibilizando aspectos culturais ligados populao negra e s heranas
africanas no Brasil. Conclumos assim que pensar polticas pblicas de preservao
pensar as relaes raciais no Brasil e por isso a importncia de sabermos o lugar dos
bens culturais de matriz africana no rol dos bens elencados como representativos da
memria nacional. Somente aps o tombamento do Terreiro de Casa Branca, e as
presses da sociedade civil, principalmente os movimentos sociais e culturais negros e
de matriz africana, que o Iphan vem tentando construir um novo olhar patrimonial e
um novo lugar institucional para os bens culturais ligados aos povos e comunidades
tradicionais de matriz africana.
Palavras-Chave: Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana; Patrimnio
Cultural; Polticas Pblicas; Relaes tnico-Raciais.
1
Historiador, Mestre em Preservao do Patrimnio Cultural - IPHAN (2013), Mestrando em
Desenvolvimento Sociedade e Cooperao Internacional - UNB (2017) e Membro do Grupo de Estudos
sobre religies afro-brasileiras CALUNDU.
2
A escolha pela denominao povos e comunidades tradicionais de matriz africana vem antes de tudo
no por uma concordncia terica, mas para poder alinhar com a denominao mais comum, utilizada
pelo Estado brasileiro e construda pela SEPPIR e representantes dos povos e comunidades tradicionais
de matriz africana.
93
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3
O debate em torno da limitao administrativa do direito propriedade relacionada ao Decreto-Lei 22
longo e complexo e no ser objeto de nossa ateno neste momento; para saber mais a respeito deste
tema indico CASTRO, Snia Rabelo. O Estado na preservao de bens culturais: o tombamento. Rio de
Janeiro: IPHAN, 2009.
94
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4
Tombar significa, claramente, classificar, inscrever, prximo ideia de arquivar, de conservar, reter na
memria.
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que hoje e mesmo poca era facilmente desconstrudo. A narrativa oficial defendia
ainda que a existncia de apenas um instrumento jurdico e [com] foco na
materialidade do patrimnio tambm contriburam para que vestgios materiais
vinculados ao universo cultural negro e indgena no fossem valorizados a ponto de
fazerem parte do conjunto de bens culturais (LIMA, 2012, p.40-41).
No que fosse necessrio, mas o Sphan, quando recorre ao status de academia,
enquanto locus de produo de conhecimento, cria condies institucionais de produo
do discurso sobre a nacionalidade e sobre os exemplares a serem conservados como
correspondentes memria e histria do Pas. Dito isso, poderamos pensar na
existncia de uma operao patrimoniogrfica, isto , um saber-dizer oficial,
hegemnico, sobre os bens culturais que comporiam o patrimnio nacional. No
podemos analisar as polticas pblicas de preservao no Brasil pensando numa
separao entre cincia e Estado, pois a relao entre a produo acadmica de saberes e
a construo de polticas est posta desde a formao do Estado-nao moderno.
Entendemos que tanto os exemplos que fulguram nos livros de tombo, quanto os
que foram esquecidos, no so frutos de escolhas ingnuas ou mesmo fruto de
limitaes tcnicas ou jurdicas, trata-se de um conflito de memrias e do projeto de
nao elaborado pelo Estado-nao moderno/colonial que no apenas no abarcava
como previa eliminar a forte presena negra.
importante destacar que o modelo de sociedade patrocinada pelo Estado que
surgiu em terras brasileiras ps-1822 reconhecia que existiam indivduos, inclusive
nascidos no Brasil, que no eram cidados, mas propriedade de outros, estes sim,
cidados. Isto, por si s, impedia a existncia efetiva de uma comunidade nacional. Essa
estrutura se perpetua durante todo o sculo XIX, mesmo com o Estado Imperial
reconhecendo, ainda que fragilmente, a cidadania a alguns indivduos no-brancos
nascidos no Brasil.
O surgimento do candombl, e a construo de uma corte ligada a povos e a uma
religiosidade africana, reverenciando a outros deuses, reis e rainhas, mesmo que no em
contraponto deliberado, nos permite pensar que se constituiria assim o candombl uma
contraproposta de comunidade nacional, s de negros, os excludos do projeto
imperial? Este pode ser tema de uma outra reflexo futura.
Retomemos. Na dcada de 30 do sculo XX, a cultura mestia alada ao status
de representao oficial da nao. Cabe destacar que, no menos diferente de outras
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contingente, passou a ser tido como problema social e neste contexto que os negros
comeam a receber mais ateno no pensamento social e racial brasileiro.
Mais importante do que nominalmente dedicar a iniciativa a algum pensador, ou
mesmo um grupo bem definido, creio ser mais importante para ns sabermos que os
primeiros estudos se ancoravam em uma perspectiva colonialista e racista em funo
das teorias raciais europeias que dominavam as cincias sociais e humanas. Os
intelectuais defendiam veementemente a inferioridade inata aos homens de cor e a sua
inutilidade frente ao projeto de nao que o pas elaborava no incio do sculo XX. As
teorias raciais, de forma geral, defendiam uma coeso e homogeneidade das
estratificaes sociais e culturais a partir da noo de raa.
Podemos destacar que o debate racial assume grande importncia em espaos
institucionais e que os intelectuais sero peas fundamentais nos diferentes campos que
pensavam o negro no contexto brasileiro. Fato que o negro no aparecia como
objeto para alm do interesse folclrico e do problema social. Diante de um projeto
de repblica e de cidadania aos moldes do Estado-nao moderno/colonial, a forte
presena negra nos aspectos sociais e culturais da nao necessitava ser diminuda,
absorvida ou qui, apagada, e foi isso que se viu nos anos seguintes.
So exemplos o samba [de dana de negros cano brasileira para exportao],
a capoeira e o prprio candombl. No ano de 1938, o candombl passa a ser permitido
sem interferncia policial e, em 1939, Getlio institui o dia da Raa, 30 de maio.
Destacaramos ainda a padroeira dos catlicos, Nossa Senhora Aparecida5, que um
Macunama s avessas. Esses e outros exemplos pairam em torno dessa hiptese de
nacionalidade que tem na troca livre de traos culturais, modelos harmnicos de
convivncia racial, um forte objetivo.
Retomemos o conceito de memria como reconstruo do passado, memria
como trabalho segundo Ecla Bosi (1987). a memria coletiva que d suporte para
um sentido de continuidade na histria, perpassando a ideia de tempo vivido, uma vez
que a memria coletiva vai alm do tempo de vida de quem lembra e de quem narra. A
memria precisa ser entendida como uma construo social onde est sempre se
relacionando presente e passado e, de certa forma, conjecturando o futuro. Benjamim
(1940) nos ajuda, ao dizer que a memria mais efeito de esquecer do que de
5
O II Congresso Mariano, realizado em setembro de 1929, sugeria a proclamao de Nossa Senhora
Aparecida para o padroado, com o lema Unio indissolvel entre Religio e Ptria. Nossa Senhora
Aparecida e Brasil Unidade Nacional via www.vidapastoral.com. ltimo acesso em 05/06/2017.
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lembrar, o que refora a importncia de pensar o lugar dos bens culturais afro-
brasileiros no panteo do patrimnio nacional.
Pensando na patrimonializao dos bens afros e no Terreiro da Casa Branca como
o ato inaugural, recorremos ao pensamento de Lilia Schwarcz (2013) em Nem preto e
nem branco, onde a autora coloca a memria como uma xam do tempo: capaz de
trazer seus mistrios, d continuidade ao descontnuo e ao disruptivo. pensar a
memria como responsvel em trazer, ao presente, histrias e experincias e
ensinamentos do passado, assim, as oralidades, os lugares de memria, esto
prximos de um fazer lembrar.
O que lembrado tem um sentido, nada lembrado ou esquecido de forma
inocente. As memrias so construes sociais e, a todo momento, de forma consciente
e tendenciosa, ora so construdas, ora so revisitadas, alm de potencialmente serem
uma ferramenta para se construir identidade. As memrias [coletivas e individuais] so
frequentemente acionadas nos discursos, nos filmes, na literatura ou nas polticas
pblicas. Sempre se recorre s memrias para poder mostrar a qual lugar esses grupos
pertencem, quais as referncias que os identificam, seja enquanto negro, enquanto povos
tradicionais, isto , o que os diferencia dos outros grupos. Nesse ponto, o de construo
de uma identidade coletiva, a memria torna-se uma ferramenta fundamental.
E cientes disso, os movimentos sociais e culturais negros sempre cobraram do
Estado brasileiro o acautelamento de bens culturais afro-brasileiros, acreditando que
uma poltica pblica de preservao contribuiria para a promoo da insero
sociocultural de novas demandas e novos atores, e assim, fazendo com que diferentes
grupos sociais que compem a sociedade brasileira se reconheam nesse repertrio de
bens patrimoniais.
A partir da literatura existente, podemos afirmar que essa reivindicao foi
alcanada em partes, mas dentro de uma perspectiva de branqueamento da sociedade
brasileira e de policiamento da populao negra. com esse olhar que o Iphan, ainda
Sphan, tomba o seu primeiro bem cultural intimamente ligado aos povos e comunidades
tradicionais de matriz africana, o acervo do Museu de Magia Negra no Rio de Janeiro.
No caso deste exemplar, e arriscamos afirmar que em todo o incio do sculo XX
e em grande parte da sua histria, a legislao brasileira responsvel pela perseguio
e criminalizao das prticas religiosas de matriz africana, que em muitos casos
negociaram a clandestinidade em prol da sua sobrevivncia.
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Cabe aqui destacar ainda o fato de que vrias dessas manifestaes populares
afro-brasileiras e de matriz africana foram mapeadas e estudadas principalmente pelos
folcloristas, dentro de uma perspectiva que as tratava como pitorescas e exticas.
Algumas, inclusive j mencionadas, foram apropriadas e ressignificadas pelo Estado a
fim de reforar a aparente unidade nacional e integrao racial harmoniosa. Absorvidas
ao ponto de serem inseridas nas narrativas produzidas sobre o que faria do Brasil esta
nao da mistura. Isso no cessou, de forma que a patrimonializao integrou bens
culturais afro-brasileiros e de povos e comunidades tradicionais de matriz africana de
forma lenta e silenciosa s representaes da identidade nacional.
Objetivamos demonstrar at aqui, de forma sucinta, que ao longo de sua trajetria,
o Iphan, como agente estatal de construo de uma narrativa sobre a memria e a
histria da nao, no esteve distante da complexidade da questo racial no pas e do
lugar do negro na formao da sociedade e do pensamento social brasileiro.
A relao da instituio e das manifestaes afro-brasileiras foi bastante irregular,
e para citar dois exemplos, escolhemos dois marcos histricos: o tombamento do
acervo/coleo do Museu de Magia Negra no Rio de Janeiro em 1938 e o tombamento
do Terreiro da Casa Branca em Salvador no ano de 1986. So exemplos diretamente
ligados aos bens culturais dos povos e comunidades tradicionais de matriz africana e
que apresentam valores e conceitos diferenciados que se distanciam em seu princpio.
O primeiro, aps o acautelamento pelo Estado, sofreu uma profunda ao de
silenciamento e esquecimento e, ainda hoje, no conta com aes que prezem por sua
conservao e efetivo reconhecimento social. J o segundo bem, tombado em outro
momento histrico, sem sombra de dvidas a grande origem para uma efetiva
patrimonializao de bens culturais que no s no corresponde s matrizes no-
hegemnicas como foge ao escopo dos tipos de bens tombados at o momento.
6
Segundo descrio no site do Iphan, onde so inscritos os bens culturais em funo do valor
arqueolgico, relacionado a vestgios da ocupao humana pr-histrica ou histrica; de valor
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mistrios e tabus; ainda hoje tratado de maneira secundria e sobre este acervo recai
um enorme silncio.
Como se trata de um dos primeiros processos de acautelamento de bens pelo
Sphan, no h, pois no havia a praxe de ter, informaes ou pareceres tcnicos que
consigam nos informar sobre as justificativas para o tombamento.
O que podemos inferir desse esquecimento e silncio proposital a negao da
instituio em reconhecer qualquer valor patrimonial ao acervo/coleo tombada.
Segundo Corra (2005), a tendncia do Sphan e dos tcnicos e intelectuais do Servio
do Patrimnio, foi releg-la a um plano marginal. Por muitos anos, os documentos
oficiais da instituio no listavam, entre os bens culturais mveis e imveis
acautelados, a Coleo do Museu da Magia Negra. A primeira vez que o mesmo aparece
nos arrolamentos oficiais e pblicos no Livro Resumo do ano de 1984, momento
histrico em que a instituio, pressionada pela sociedade civil, reavalia sua relao
com os bens culturais afro-brasileiros e seus aportes conceituais e jurdicos.
Podemos afirmar, assim, que a coleo - hoje reserva tcnica junto ao Museu da
Polcia Civil do Rio de Janeiro - ocupou durante muitos anos, ou vem ocupando, dentro
do Iphan, o lugar do esquecimento, da negligncia, do desprezo institucional. Vem
sendo, durante anos, tratada como um patrimnio menor, uma vez que categorias
como etnogrfico e histrico sempre foram pouco valoradas institucionalmente,
principalmente at a dcada de 1980.
etnogrfico ou de referncia para determinados grupos sociais; e de valor paisagstico, englobando tanto
reas naturais, quanto lugares criados pelo homem aos quais atribudo valor sua configurao
paisagstica, a exemplo de jardins, mas tambm cidades ou conjuntos arquitetnicos que se destaquem por
sua relao com o territrio onde esto implantados, em http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/608,
ltimo acesso dia 15/06/2017 [grifos nosso].
7
Manchete do Jornal da Bahia de 10 de Maro de 1989. Acervo do Arquivo Noronha Santos Iphan/RJ.
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8
Em https://ordepserra.files.wordpress.com.
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projetada pelo Arquiteto Oscar Niemeyer. O convite foi feito pela Comisso de Defesa
da Casa Branca9 e confirmado pelos Bzios da Iyalorix do Terreiro.
A importncia poltica do processo de tombamento do Terreiro da Casa Branca
imensa, e as estratgias para a sua concretizao foram muitas. Numa visita realizada
em setembro de 1982, Marcos Vilaa, ento Secretrio de Cultura do MEC e Presidente
da Fundao Pr-Memria antigo Sphan/Iphan foi recebido com festa, o que o
Jornal da Bahia noticiou assim: Candombl baiano inicia o Secretrio de Cultura do
MEC no ritual Nag. Obviamente no ocorreu um ritual inicitico, como diz o jornal
- Vilaa recebeu uma conta de Oxagui e foi recebido com chuva de arroz. A razo de
sua visita era a assinatura de um convnio com a prefeitura de Salvador para o
mapeamento dos monumentos religiosos negros da Bahia, Pernambuco e Maranho
O Processo nmero 1.067-T-82 [Tombamento do Terreiro da Casa Branca] foi
objeto de seminrios tcnicos do Iphan, contando com a presena de tcnicos e
importantes intelectuais. Em uma dessas reunies tcnicas, ao ser questionada sobre o
que seria tombado em Casa Branca, uma funcionria do Iphan afirmou: nada, s tem
espao, demonstrando assim que o terreiro no correspondia aos valores patrimoniais
que a instituio historicamente reconhecia. Havia s o espao, bem distante da ideia
de lugar ou territrio com as quais a instituio trabalha, referia-se efetivamente a
nada. Se no havia valor material, o que se buscava preservar?
Era clara a falta de entendimento e alinhamento sobre a questo. No processo,
possvel ter contato com algumas questes levantadas pelos debates internos e externos
instituio. A peculiaridade e ineditismo da questo movimentaram os tcnicos e
intelectuais da poca. Aps algumas reunies, o grupo avaliador - que contava com
Dora Alcntara [Diretora do Setor de Tombamento], Snia Rabello [Assessoria
Jurdica] e os antroplogos Vivaldo da Costa Lima, Gilberto Velho e Peter Fry - chegou
concluso a respeito do valor da preservao desse local de culto, onde se manifesta
expresso cultural de significativa parcela da populao nacional de origem africana,
cujos antepassados participaram desde a fase inicial da formao brasileira (IPHAN,
Processo T 1067-T82, p.111).
Numa das consideraes da Coordenadora Dora Alcntara est o que aproxima e
distancia os dois tombamentos aqui analisados [museu e terreiro]: os valores
9
Composta pelos deputados Fernando Santana (PCB) e Haroldo Lima (PCdoB), pelo antroplogo
Olmpio Serra, pelo poeta Jos Carlos Capinam e por Dom Timteo Anastcio, Abade do Mosteiro de
So Bento.
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Estabelecido pelo Decreto 6.040 de 2007 teria a durao de 2 anos 2013/2015.
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Consideraes finais
11
Seminrio realizado em parceria com o Ministrio da Cultura, o Governo do Estado da Bahia e os
Terreiros de Casa Branca, Alaketu, Op Afonj, Gantois e Oxumar entre os dias 28 e 31 de julho de
2014 na cidade de Salvador na Bahia.
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podem ser alocados dentro dos cnones e paradigmas das cincias sociais
ocidentais/modernas. Trata-se de um conhecimento e de um modo de ser e estar no
mundo que questiona e tensiona com esse saber hegemnico e assim se prope a uma
outra episteme de interpelao e interpretao do mundo.
Diante disso, entendemos que pensar a preservao de bens culturais ligados aos
povos e comunidades tradicionais de matriz africana entender que esses sujeitos so
um povo tradicional, e que no se organizam nica e exclusivamente pela religio; no
queremos com isso silenciar ou negar, sob hiptese alguma, os aspectos religiosos e
espirituais que lhes so estruturantes, queremos chamar a ateno para o uso de uma
identificao religiosa em termos polticos, no sentido poltico de resistncia. Uma vez
que a histria da escravido e das relaes raciais e do racismo no Brasil desligou os
afro-brasileiros dessa memria e dessa histria, as comunidades tradicionais de matriz
africana cumprem esse papel, enquanto religio [no sentido de religare], desde a sua
fundao, de religar o povo negro a sua prpria memria e a sua prpria histria, de
reconstruir esse lastro que foi quebrado pela colonialidade.
Queremos afirmar com isso que a preservao, o reconhecimento e a salvaguarda
dos bens culturais no podem se resumir a tombamentos de terreiros enquanto templos,
e o Iphan, aps escuta e presso dos povos de matriz africana e de um esforo tcnico,
terico e conceitual interno nos ltimos anos, parece querer entender e melhor
estabelecer essa relao.
preciso pensar de que maneira as polticas pblicas de preservao do
patrimnio cultural podem dialogar com essas comunidades, de que maneira esses
sujeitos nos levam a estabelecer uma nova perspectiva e uma relao com a memria,
oralidade e tradio. As tipificaes das polticas pblicas que ainda pressupem um
mundo divido em dois ou que ainda so baseadas em pressupostos previamente
definidos parecem no conseguir dialogar com o universo dos povos e comunidades de
matriz africana. Sem a construo desse outro olhar patrimonial, as polticas de
preservao do patrimnio no sero suficientes para dar conta do que so as
comunidades tradicionais, seus interesses, seus anseios, desejos e conflitos prprios.
Mas no se trata, pois, de um foco na instituio e no seu pretenso papel central,
pelo contrrio, entendemos que as polticas pblicas hoje se constroem como uma
transversalidade de setores e de atores; e nosso objetivo ao longo desse texto foi
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ANEXO I
Inscries nos Livros
UF Municpio Nome do bem
do Tombo
Histrico; Arqueolgico,
Paisagstico, em 1986
Histrico; Arqueolgico,
Paisagstico, em 2000
Histrico; Arqueolgico,
Paisagstico, em 2005
Histrico; Arqueolgico,
Paisagstico, em 2004
Histrico; Arqueolgico,
Paisagstico, em 2005
Histrico; Arqueolgico,
Kwerebentan to Zomadun Terreiro Casa das
MA So Luiz Etnogrfico e
Minas Jeje
Paisagstico, em 2005
Histrico; Arqueolgico,
Il Osmr Arak As Ogodo - Terreiro Casa de
BA Salvador Etnogrfico e
Oxumar
Paisagstico, em 2013
112
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Histrico; Arqueolgico,
Zoguimodo Bogum Seja Unde Terreiro Roa
BA Cachoeira Etnogrfico e
doVentura.
Paisagstico, em 2014
Histrico; Arqueolgico,
Paisagstico, em 2016
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Bibliografia
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116
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Introduo
1
O presente trabalho foi realizado com apoio da CAPES - Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de
Nvel Superior. O texto versa sobre questes publicadas em sua dissertao de mestrado e em pesquisa pela
autora para sua Tese de Doutorado, orientada pela professora doutora Rebecca Lemos Igreja.
2
Doutoranda em Cincias Sociais pelo Departamento de Estudos Latino Americanos (ELA) - Universidade
de Braslia. Integrante do Calundu Grupo de Estudos sobre Religies Afro-Brasileiras.
nathaliavef@gmail.com.
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3
A intolerncia contra religies afro-brasileiras luz da constituio brasileira de 1988 e da declarao
universal dos direitos humanos de 1948.
4
Religies de matriz africana um termo geralmente utilizado para designar as prticas religiosas
desenvolvidas pelos negros no Brasil (ROCHA, 2011.p.1).
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5
Calundu at meados do sculo XVIII era o nome dado para os cultos afro-coloniais (SILVEIRA, 2006, p.
177).
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6
Cdigo Penal de 1890:
Art. 156. Exercer a medicina em qualquer de seus ramos, a arte dentria ou a farmcia; praticar a
homeopatia, a dosimetria, o hipnotismo ou magnetismo animal, sem estar habilitado segundo as leis e
regulamentos.
Penas de priso celular por um a seis meses, e multa de 100$000 a 500$000.
Pargrafo nico. Pelos abusos cometidos no exerccio ilegal da medicina em geral, os seus atores sofrero,
alm das penas estabelecidas, as que forem impostas aos crimes que derem casos.
Art. 157. Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilgios, usar de talisms e cartomancias, para despertar
sentimentos de dio ou amor, inculcar cura de molstias curveis ou incurveis, enfim, para fascinar e
subjugar a credulidade pblica:
Penas de priso celular de um a seis meses, e multa de 100$000 a 500$000.
Pargrafo 1. Se, por influncia, ou por consequncia de qualquer destes meios, resultar ao paciente
privao ou alterao, temporria ou permanente, das faculdades psquicas.
Penas de priso celular por um ano a seis anos, e multa de 200$000 a 500$000.
Pargrafo 2 Em igual pena, e mais na privao de exerccio da profisso por tempo igual ao da
condenao, incorrer o mdico que diretamente praticar qualquer dos atos acima referidos, ou assumir
a responsabilidades deles. (...)..
Art. 158. Ministrar ou simplesmente prescrever, como meio curativo, para uso interno ou externo, e sob
qualquer forma preparada, substncia de qualquer dos reinos da natureza, fazendo ou exercendo assim, o
ofcio do denominado curandeirismo.
Penas de priso celular por um a seis meses, e multa de 100$000 a 500$000.
Pargrafo nico. Se do emprego de qualquer substncia resultar a pessoa privao ou alterao,
temporria ou permanente, de suas faculdades psquicas ou funes fisiolgicas, deformidades, ou
inabilitao do exerccio de rgo ou aparelho orgnico, ou, em suma, alguma enfermidade:
Penas de priso celular por um a seis anos, e multa de 200$00 a 500$000.
Se resultar morte:
Pena de priso celular por seis a vinte e quatro anos.
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Neste ponto da histria, comea haver uma diferenciao das prticas medinicas
e o legislador comea a aceitar alguns tipos de espiritismo, os de matriz africana, contudo,
continuavam criminalizados e associados ao mal, como podemos observar a partir da
constatao da pesquisa de Yvonne Maggie7 em processos criminais no sculo XX: No
caso aqui estudado h os que conseguem fazer ouvir melhor suas acusaes.
Aparentemente, os negros pobres so, de um modo geral, os condenados. Os espritas das
federaes, por outro lado, conseguem, aos poucos, se defender das acusaes (op. cit.,
p. 120-1). Em outro trecho dos processos, fica claro que a ligao com os costumes
africanos o mais condenvel da prtica criminalizada: Dizendo-se do rito africano, os
acusados talvez queiram dizer que eram puros, alegar a sua pertena legtima tradio
dos orixs (...) no Rio, os sinais da africanidade eram justamente aqueles que
deslegitimavam (op. cit., p. 128). Em mais um achado de pesquisa, a acadmica relata
que os peritos comeam a estabelecer distines hierarquizadas dos rituais, adjetivando-
os como alto e baixo espiritismo, magia branca e negra, etc. (op. cit., p. 158).
Esses achados demonstram a associao clara dos cultos africanos ao mal, da
figura da religio negra ao menos evoludo, ao engano e ao charlatanismo. Tambm se
pode observar o aspecto moral e discriminatrio na criminalizao das prticas religiosas
negras, tanto no incio do sculo XIX como no sculo XX, onde h diferena na
comparao entre o tratamento e condenao dos ritos africanos e do espiritismo
branco.
A obrigatoriedade de registro nas Delegacias de Jogos e Costumes revogada
somente em 1976. As perseguies continuaram no perodo da ditadura militar e
arrefeceram com a Constituio Federal de 1988, ainda que casos de conflito destas
religies com a segurana pblica ainda sejam notificados.
Nos dias de hoje, o conflito se apresenta mais destacadamente em casos de
discriminao e intolerncia religiosa. Reportagens na mdia regular apontam para
diversos casos de intolerncia religiosa nos ltimos anos, apresentando um crescimento
das ocorrncias.
Em uma pesquisa da Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica
(SDH) de 2011 a 2015, sobre o tema da intolerncia religiosa contra as mais diversas
7
importante ressaltar que a autora Yvonne Maggie em seu trabalho no faz a relao entre esses achados
de pesquisa e manifestaes de racismo, como o ponto colocado neste artigo. A posio aqui defendida
diverge da autora em muitos de seus trabalhos, a opo por utilizar a autora deve-se qualidade da
etnografia realizada no assunto, tornando o trabalho imprescindvel para o artigo aqui proposto.
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religies, foram encontradas 94 reportagens sobre violncia fsica tendo como motivo a
crena religiosa da vtima, incluindo homicdios; 98 notcias sobre casos que relatem
ataque com reteno, subtrao, destruio parcial ou total de objetos religiosos, de
espaos fsicos que abriguem templos religiosos e casas e pessoas, em funo de sua
crena religiosa, alm da invaso dos mesmos (os casos mais comuns encontrados com
esse tema so os que relatam terreiros incendiados, destruio de esttuas e imagens); e
92 notcias de casos de violncia e intolerncias cotidianas, que ocorrem em situaes
comuns do dia a dia (so esses casos onde atividades do cotidiano so impedidas ou
prejudicadas por questes religiosas). Na mdia, notcias que trazem o assunto de
violncias e intolerncias religiosas ligadas ao racismo foram 13. Em uma de suas
concluses, a pesquisa aponta que os fiis das religies de matriz africana so os que mais
sofrem discriminao religiosa. (SDH-PR, 2016).
Segundo os dados do Disque Direitos Humanos, o Disque 100, da SDH, perodo
de 2011 a 2014, calcula-se que das denncias identificadas com a religio atacada, 35%
so denncias de discriminao contra religies de matriz africana (EBC, 2015, on-line).
Ainda sobre esses dados, a populao negra mais vitimada. Entre as 345 vtimas que
declararam a cor, 210 so pretas ou pardas. O nmero representa 35,2% do total de
vtimas e 60,8% do total de vtimas que declararam a cor de pele (EBC, 2015, on-line).
Os gestores do Disque 100 explicam e associam a cifra ao racismo e histria da
sociedade brasileira de negao dessa tradio religiosa (EBC, 2015, on-line). O
crescimento das religies neopentecostais em todo pas e o antagonismo que estas
religies promovem com as religies de matriz africana (DIAS, 2012 p.68) tambm
poderia explicar o crescimento das ocorrncias, ainda que esta anlise tivesse que ser feita
de forma cuidadosa.
Outro dado expe que, em 2015, as denncias de discriminao religiosa
computaram um aumento de 69,13% em relao ao ano anterior. Candomblecistas e
umbandistas so os mais recorrentes alvos dos ataques tambm segundo o Disque 100
(BDF, 2017, on-line). Os dados computam apenas os casos denunciados e, pelo perfil dos
praticantes da religio, includos nas camadas mais baixas da populao, e por seu
histrico com a institucionalidade, pode-se presumir que o nmero de ocorrncias dirias
seja muito maior. Quando denunciados, a maior parte dos casos no so punidos.
Somando o histrico brasileiro de criminalizao e demonizao das prticas
afrorreligiosas com os episdios recentes de discriminao classificados como
intolerncia religiosa, pode-se concluir que os praticantes dessas religies so um grupo
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Intolerncia Religiosa
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A intolerncia religiosa pode ser compreendida como uma prtica definida pelo
no reconhecimento da veracidade de outras religies. Relaciona-se ento com a
incapacidade dos indivduos em compreender crenas diferentes da sua e nos casos
concretos de manifestaes de intolerncia no campo prtico, segundo Silva Jr:
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Discriminao8
8
Essas reflexes sobre discriminao e sobre colonialidade tambm podem ser encontradas em minha
dissertao de mestrado: Fernandes, 2016. Vide bibliografia.
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Racismo
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9
O racismo cientfico uma teoria iniciada no sc. XVII, onde comea a ganhar terreno a ideia de origens
diferentes para os seres humanos e a hierarquizao evolucionista. So concebidas diferenas biolgicas
para explicar as diferenas sociais e psicolgicas entre os indivduos e as sociedades. A teoria ganha fora
no sculo XIX e incio do sculo XX.
10
Quijano (2004) liga o conceito de eurocentrismo ao do etnocentrismo, apontando caractersticas tnico-
raciais nas manifestaes do eurocentrismo.
11
uma atitude na qual a viso ou avaliao de um grupo sempre seria baseada nos valores adotados pelo
seu grupo, como referncia, como padro de valor. Trata-se de uma atitude discriminatria e preconceituosa
de um grupo tnico considerando-se como superior a outro. (MALGESINI, 2000).
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Concluso
O artigo teve por objetivo avanar nas reflexes acerca da discriminao religiosa,
contextualizando a relao histrica com a prtica religiosa a criminalizao da prtica
do perodo colonial at a dcada de 1970, passando pelos episdios contemporneos de
intolerncia, discutindo as categorias que podem ser utilizadas para caracterizar o
fenmeno intolerncia religiosa, discriminao e racismo, e por fim, trazendo os aportes
de autores decoloniais, especialmente no que concerne construo da categoria raa,
para compreender os reflexos da colonialidade do poder no fato aqui estudado, e auxiliar
na conceituao das aes direcionadas aos praticantes de religies de matriz africana no
Brasil como racismo religioso.
Podemos apontar trs elementos que no presente artigo se destacam para sustentar
a hiptese de racismo religioso, hipteses com diferentes relevncias no sentido
argumentativo, mas que valem a pena serem marcadas. O primeiro elemento o largo
histrico de marginalidade qual essas prticas foram submetidas, tanto no sentido social
como institucional - a demonizao, promovida pela Igreja Catlica, das entidades
africanas e a criminalizao do exerccio religioso deixaram marcas e estigmas ainda
visveis nestas religies, alm do fato, observado na etnografia de Yvonne Maggie, de o
elemento africano do culto ser o principal fator gerador do estigma.
O segundo elemento se refere discusso conceitual. Como pudemos observar, as
categorias comumente utilizadas para descrever as aes contra os religiosos contm
muitas semelhanas: a dificuldade de aceitar o outro; viso de sua cultura e suas
manifestaes como no corretas, no verdicas e no tolerveis; a hierarquizao a partir
de si, compreendendo o outro como inferior; a heterofobia (para usar a expresso de
Taguieff) e a caracterstica grupal (identidade como grupo) a coletividade como alvo -
so fatores comuns tanto nas definies de discriminao, intolerncia, etnocentrismo e
racismo.
A diferena principal para a discusso que aqui se pretende travar est nos usos
polticos das categorias sociais expostas. Exemplificando com a categoria da intolerncia
- observou-se no texto que a palavra tolerncia carrega um forte sentido de
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Referncias bibliogrficas
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LEE, Orville. Race after the cultural turn. In JACOBS, M.; HANRAHAN, N. W.
(Orgs). The Blackwell Companion to the Sociology of Culture. Malden: Blackwell
Publishing, 2005.
MAGGIE, Yvonne. Medo do Feitio: relaes entre magia e poder no Brasil. Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.
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SILVA JR, Hdio. Intolerncia religiosa e direitos humanos. In SANTOS, Ivanir dos
& ESTEVES FILHO, A. (Orgs). Intolerncia Religiosa X Democracia. Rio de Janeiro:
CEAP, 2009.
WADE, Peter. Raza y etnicidad en Latinoamerica. Quito: Ediciones Abya Yala, 2000.
Reportagens
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SILNCIO TAMBM AX
1
Graduanda em antropologia pela Universidade de Braslia (UnB) e graduanda em direito pelo Centro
Universitrio de Braslia (Uniceub). Iniciada do Candombl de nao Ketu. Integrante do Calundu
Grupo de Estudos sobre Religies Afro-Brasileiras.
2
O termo naes est sendo usado como nao religiosa, conforme comumente referido pelo povo de
santo.
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integrante da famlia de santo Pilo de Prata, uma casa de candombl Ketu. Alguns
rituais foram feitos nessa nova casa e Dona Ldia continuou sua caminhada na
espiritualidade na nao Ketu.
Este breve resgate no abarca toda a complexidade da mudana de nao, ou at
mesmo o nascimento em uma delas. Mas se faz necessrio para que a interlocutora seja
apresentada.
O ambiente da entrevista era marcado por dois ips amarelos, uma fonte, duas
cadeiras e um gravador. Conversamos por horas sem perguntas necessariamente prontas
sobre a complexidade do que aproxima e diferencia/distancia as naes de Angola e
Ketu.
Aps a entrevista e o dirio de campo prontos, deixei que minha interlocutora
lesse a composio da ento conversa/entrevista. Este processo modificou
completamente o foco deste trabalho. Foi na reflexo dela sobre suas palavras que me
apoiei para escrev-lo, alm da complexidade das linhas que unem e separam essas
naes, o silncio sobre os segredos de ambas foi o que mais as aproximou.
Dona Ldia, ao ler o texto quase pronto, pediu para que eu retirasse grande parte
das informaes ali contidas com a seguinte explicao: isso segredo de ax. A
exposio da forma que compe este material no somente uma justificativa do
formato do texto, estamos lidando com uma prtica muito comum na estrutura do
Candombl que seria o culto ao segredo.
O que a Iy Ldia nos deixou mostra diz respeito estrutura dos cultos; h que
ressaltar que Orix (nao Ketu) e Inquice (nao Angola) tm como base uma estrutura
na qual os elementos da natureza so essenciais, sem natureza no se tem culto nem em
Candombl de Angola, nem em Candombl de Ketu. Isso aproxima as naes, contudo,
ainda que esse seja um ponto de contato, no estamos falando das mesmas foras.
Segundo Iy Ldia, Orix a fora da natureza, a gua, a terra, o ar, o vento, o
fogo, a folha, os animais, assim como os Inquices. Mas os Orixs foram pessoas vivas,
os Inquices so a prpria natureza.
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3
H aqui uma relativizao, portanto, pode ligar no deve ser lido como liga. O Candombl diverso
e, ao passo que h casas que realizaro rituais de passagem sem diferenas entre naes, estas podem
existir em outros terreiros. Ao tratarmos de Candombl, jamais lidamos com absolutos.
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Bibliografia
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Esse texto faz parte das reflexes que embasaram a construo da minha
dissertao sobre racismo religioso e as religies afro-brasileiras. Tem o intuito de dizer
um pouco da minha trajetria acadmica como filha de santo e pesquisadora de um tema
imerso na grandeza e complexidade dessas religies que so, na verdade, portadoras de
modos de vida que se distinguem da sociabilidade ocidental.
O meu tema de mestrado, ou seja, o tema que escolhi para pesquisar durante o
percurso do meu mestrado nunca mudou. Independentemente das circunstncias que se
arrolavam no momento em que entrei no Programa de Ps-Graduao em Direitos
Humanos e Cidadania na Universidade de Braslia e de questes pessoais que vivi, meu
foco foi inabalado.
Contudo, foram muitas as dificuldades que encontrei como pesquisadora nesse
percurso que envolveu as relaes entre sujeito-sujeitos, entre pesquisadora e sujeitos da
pesquisa. Tambm foram muitas as dificuldades de tratar do tema tendo poucos
professores e professoras que se interessam pelo mesmo e merc de uma bibliografia
principalmente os trabalhos que iniciaram a discusso sobre as religies afro-brasileiras,
como Raimundo Nina Rodrigues e Arthur Ramos que, entre outras contribuies, no
deixou de explicitar as formas racistas como compreendia a afrorreligiosidade.
No houve uma trajetria linear na construo da minha dissertao, assim como
no houve uma linearidade na definio do foco a ser dado na mesma. Os caminhos
foram tortuosos e, em alguns momentos, mais que uma pretensa visualizao, pude
sentir as dificuldades e os obstculos impostos pelo tema. Afinal, falar das religies
afro-brasileiras, para alm do modismo e exotismo3 que parece cercar o tema assim
1
O presente trabalho foi realizado com apoio da CAPES - Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal
de Nvel Superior.
2
Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade de Braslia, orientada pela Professora Dra. Rita
Laura Segato. Integrante do Calundu Grupo de Estudos sobre Religies Afro-Brasileiras.
3
No mundo acadmico o tema ainda no deixou de ser exotizado, ainda resqucio de uma antropologia
que o trata como alternativas primitivas de formas de organizao dos povos no ocidentais e tendo os
ocidentais como um fim na sua escalada evolucionista, que culmina com o auge civilizacional das
sociedades do norte global.
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4
Regio Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno, microrregio reconhecida pela
Lei Complementar n. 94, de 19 de fevereiro de 1998, e regulamentada pelo Decreto n. 2.710, de 4 de
agosto de 1998 (BRASLIA, 1998), e alteraes posteriores. A designao entorno dotada de sentido
geopoltico e remete ao espao limtrofe entre o Distrito Federal e o Estado de Gois.
5
Faz parte de um dos rituais de iniciao a cerimnia em que h o anncio do nome de santo orunk, e
para conduzir a cerimnia escolhida uma madrinha ou um padrinho para este momento.
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das violaes que as religies afro-brasileiras tm sofrido ao longo dos anos. Elas no
podem ser esquecidas em nenhum momento.
Sim, as religies afro-brasileiras vm sofrendo violaes ao longo dos anos de
sua existncia, assim como as prticas dos povos africanos ressignificadas e
reproduzidas em terras brasileiras. Apesar da srie de ataques evidenciada no ano de
2015 pela mdia, sobre os casos que ocorreram no Distrito Federal e entorno, esses no
foram os primeiros e infelizmente no parece que sero os ltimos.
Quando fui estudar sobre a intolerncia religiosa, ao pesquisar, conversar sobre,
vi que a categoria intolerncia religiosa no daria conta do fenmeno, pois as suas
causas e as consequncias que envolvem omisses institucionais e falta de polticas
especficas para essas comunidades, referem-se a uma prtica, ou melhor, uma estrutura
racista das instituies estatais e da sociedade brasileira.
A dificuldade sobre a bibliografia a ser utilizada para se desenvolver tal
perspectiva retorna ainda com mais fora e se soma invisibilizao da questo do
racismo na sociedade brasileira.
No Brasil, apesar da existncia da Lei Ca (Lei 7.716/89) (BRASIL, 1989), que
tipifica como crime o racismo em suas variadas formas, uma srie de pesquisas e
mesmo dados jurdicos apontam para o fato de que so raros os casos em que as
discriminaes raciais tramitam enquadradas na referida lei6. Em sua grande maioria, os
casos de racismo so enquadrados como injria racial7, o que diminui, por fim, a
estrutura do racismo a uma ofensa individualizada, descaracterizando a estrutura racista
que envolve toda a sociedade.
No h como fazer um trabalho sobre as maravilhas comunitrias que desafiam
o projeto ocidental de desenvolvimento e modernidade, sem dizer que exatamente por
isso essas comunidades sofrem tentativas de destruio dirias com violncias racistas
simblicas e fsicas.
O tema religies afro-brasileiras tem um efeito. Alguns dizem que est na
moda. O fato que, estando na moda ou no, no mundo real, comunidades de terreiro
sofrem com as violncias impetradas pelo Estado e pela parcela da sociedade que se
6
Para detalhes ver livro Direitos Humanos e as Prticas de Racismo, de Ivair Santos (2013).
7
A injria tipificada como crime no artigo 140, pargrafo 3, do Cdigo Penal brasileiro (BRASIL,
1940). Refere-se a ofensas raciais dirigidas sempre de um indivduo a outro, ao passo que a Lei Ca
define crime de racismo como ofensa contra toda uma coletividade. Por exemplo, se algum disser que
uma pessoa negra desqualificada para algo em funo de sua cor, a compreenso a de que a ofensa a
todos os negros.
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quer ver como herdeira da branquitude e de seus ideais morais cristos. A realidade
que as tentativas de traduo dessas comunidades em termos acadmicos ocidentais
modernos no so possveis. Trata-se de outra coisa, de outros modos, outra
compreenso.
Trazer o conhecimento e a sabedoria dessas comunidades para a academia, um
ambiente em que a produtividade cientfica est baseada na replicao do que autores do
norte global disseram sobre os nossos corpos e nossas vidas, um enorme desafio.
Dentro de uma racionalidade que produz conhecimentos de forma binria, no
possvel se falar do tema das religies afro-brasileiras sem recair em problemas de
simplificao e incompreenso do tema. necessria uma outra abordagem.
Propus-me a este desafio em meu mestrado e no o enfrentei sem pagar o preo
da dificuldade e da angstia relacionada, pois, apesar do giro decolonial e da construo
de uma perspectiva que preze pelo reconhecimento de outros saberes, ainda h muito a
ser transformado na academia para ser um ambiente que no s utilize de forma
apropriadora as formas de produo e transmisso de conhecimento das religies afro-
brasileiras, mas que se abra para a forja de uma gira epistmica!
Referncias
BRASIL. Lei n 7.716 de 05 de janeiro de 1989. In: Dirio Oficial da Unio. Braslia:
DOU, 1989.
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