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Tese Fernando Silva PDF
Tese Fernando Silva PDF
Tese Fernando Silva PDF
Instituto de Geociências
CAMPINAS
2017
FERNANDO ANTONIO DA SILVA
CAMPINAS
2017
Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): CAPES, 1490940
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-3664-1518
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Geociências
Marta dos Santos - CRB 8/5892
Título em outro idioma: Poverty in the Sugarcane Region of Alagoas - Brazil in the 21st
century : from the Bolsa Família Program to the dynamics of the circuits of urban economy
Palavras-chave em inglês:
Citizenship
Poverty - Alagoas
Urban economy
Bolsa Família Program (Brazil)
Área de concentração: Análise Ambiental e Dinâmica Territorial
Titulação: Doutor em Geografia
Banca examinadora:
Adriana Maria Bernardes da Silva [Orientador]
Marcos Antonio de Moraes Xavier
Catia Antonia da Silva
Márcio Antonio Cataia
Rosana Icassatti Corazza
Data de defesa: 23-08-2017
Programa de Pós-Graduação: Geografia
EXAMINADORES:
A realização deste trabalho só foi possível graças à contribuição (direta e indireta; emocional,
financeira e intelectual) de muitas pessoas.
Primeiramente agradeço aos meus pais, Helena e Geraldo. É bastante difícil dizer (se é que é
possível, ou mesmo necessário) se a maior contribuição de vocês dois para este trabalho foi
emocional, financeira ou intelectual, já que vocês me ensinam sem pronunciar uma palavra
sequer, tiram recursos financeiros de onde não existe para que eu possa estudar e me dão
forças para enfrentar situações difíceis. É preciso registrar que se não fosse a coragem de um
trabalhador negro, analfabeto, para enfrentar o eito de cana de sol a sol, e a valentia de uma
mulher que enfrentou todas as privações possíveis para garantir a permanência dos filhos na
escola, este trabalho não teria jamais sido concebido.
À Professora Adriana Bernardes pela confiança depositada em mim, pela paciência e rigor na
condução do trabalho e pela amizade. Procurarei imitar a paciência e o rigor, assim como
preservar a amizade construída. Quanto à confiança, espero que o trabalho atenda pelo menos
algumas de suas expectativas...
Aos Professores Márcio Cataia e Marcos Xavier pelas sugestões apresentadas durante o
exame de qualificação.
Aos trabalhadores do circuito inferior da economia urbana das cidades alagoanas pela
prontidão em responder aos nossos questionários.
À geógrafa Marina Montenegro pela leitura do projeto que originou esta tese quando ele ainda
estava em construção.
Ao amigo Luciano Duarte pela elaboração dos mapas que compõem esta tese. Sua disposição,
paciência e habilidade foram fundamentais durante a etapa final do doutorado.
À equipe da Secretaria de Pós – Graduação do Instituto de Geociências da Unicamp,
especialmente à Valdirene, Gorete, Cristina e ao Valdir.
Aos Professores Vicente Eudes Lemos e Ricardo Castillo pela oportunidade de participar
como estagiário em suas disciplinas ministradas na graduação.
Ao amigo André Pasti pela oportunidade de participar como estagiário de geografia no Cotuca
– Unicamp. O período em que estive com os alunos desse Colégio foi constituído de
momentos bastante alegres, cheios de bons debates.
À amiga Melissa Steda pela disposição de sempre em traduzir meus resumos, inclusive o
desta tese.
Aos meus irmãos Laura, Lucas (futuro geógrafo de grande talento!), Cicera, Sivaldo e Josefa,
todos sempre presentes nos momentos bons e ruins.
À minha companheira, amiga, namorada, Wedja Nubia. Mulher verdadeira, flor das mais
belas que já se viu no interior das Alagoas.
Aos familiares que viabilizaram minha permanência inicial aqui em São Paulo, especialmente
minha tia Cleonice, minha irmã Cicera e meu cunhado Marcelo.
Aos amigos-irmãos Amistson, Antônio, Kleyton e Reinaldo, por vivenciarem comigo tantos
momentos importantes da vida acadêmica. Neste sentido devo um agradecimento especial ao
Reinaldo (orientador de iniciação científica e de monografia da graduação), que me conduziu
nos meus primeiros passos da vida acadêmica na geografia.
Aos amigos ex-professores Carlos Eduardo Nobre (Cadu), Clélio Santos e Jairo Campos pelo
incentivo constante.
Aos amigos de São José Laje Jussan, Edvaldo e Josina pela recepção calorosa sempre que
retorno a esta cidade.
Aos amigos de Santana do Mundaú Denes, Karla e Nilo pelo carinho de sempre.
Aos amigos haitianos, verdadeira família aqui em Campinas: Frantz, Diumettre, Berno,
Wesner, Ismane, Philémon, Ralph, Francois, Lanousse, Tomy, Guerby, Johnny, Josaphat,
Enock, Brisson, Oreste, Mackendy, Kelan, Sudly, Chandeline e André (um brasileiro quase
haitiano).
RESUMO
Na presente tese procuramos oferecer uma leitura geográfica do Programa Bolsa Família –
PBF, debatendo sua construção, funcionamento e implicações face à dinâmica da pobreza.
Preocupados em apreender as especificidades dessa política sem, no entanto, perder de vista o
contexto de modernização periférica no qual se insere o território brasileiro, buscamos problematizar
os significados da garantia de direitos sociais para o processo espacial no Brasil a partir de um esforço
direcionado a perceber as mudanças nos sistemas de objetos e de ações sob o processo de
racionalização capitalista.
Defendemos a tese de que a oferta de recursos, bens e serviços coletivos por parte do Estado
depende de um processo de racionalização não somente da ação social, mas do próprio espaço
geográfico. Para efetivar garantias sociais não basta apenas difundir certos valores na sociedade, é
necessário também concretizar esses valores através da presença de sistemas técnicos que devem
alcançar as pessoas nos lugares onde elas habitam. Neste caso não é suficiente, portanto, falar de ação
racional conduzida por valores, como fez Max Weber (1999), mas de um acontecer solidário
(SANTOS, 2009 [1996]), mais precisamente de um acontecer político-institucional. Sugerimos
compreender o PBF como uma manifestação desse acontecer na atual etapa de modernização do
território brasileiro.
Para fundamentar nossa tese estudamos as transformações no fenômeno da pobreza na Região
Canavieira do estado de Alagoas. Trata-se de uma das “velhas” regiões monocultoras do Nordeste, que
participando ao seu modo das sucessivas modernizações que alcançaram o território brasileiro, chegou
ao começo do século XXI como uma das regiões mais empobrecidas do País. Apresentamos as
mudanças na forma e, principalmente, no conteúdo dessa Região com o intuito de apontar como e por
que vão se acumulando as dívidas sociais. O destaque é dado para o período pós-Segunda Guerra
Mundial, quando a dinâmica da pobreza e da riqueza no Brasil se revela como “Espaço Dividido”,
cuja expressão mais fiel são os dois circuitos da economia urbana abrigados pelas cidades (SANTOS,
2008 [1975]). Dessa forma, problematizamos os significados de programas púbicos para a realidade
desse espaço dividido e compartilhado a partir da análise das transformações causadas pelo PBF na
Região Canavieira de Alagoas.
Os resultados demonstram mudanças importantes na forma como vivem, trabalham e
consomem as camadas sociais mais empobrecidas dessa Região. Essas transformações decorrem das
singularidades regionais da pobreza e da riqueza, do modo como o acontecer político-institucional
vem se conformando no Brasil e das especificidades do PBF. As populações que recebem as
transferências monetárias passaram a ter acesso a certos bens básicos, o que somente ocorreu também
em função da combinação de técnica, capital e organização particular das atividades econômicas que
vêm procurando atender a essa nova demanda. Concluímos que a falta de controle, por parte da
população beneficiária, sobre os sentidos dos sistemas de ações e sobre o funcionamento dos objetos
técnicos que operacionalizam o PBF tem dificultado sua transformação efetiva em um direito social e,
por isso, contribuído para perpetuar a subordinação das formas de trabalho desenvolvidas pelos
pobres.
Palavras-chave: cidadania; pobreza - Alagoas; economia urbana; Programa Bolsa Família (Brasil).
***
ABSTRACT
This PhD thesis seeks to provide a geographical approach of the Bolsa Família (PBF)
Program, debating its construction, functioning and implications facing the dynamics of poverty.
Concerned with apprehending the specificities of this policy without, however, losing sight of the
context of peripheral modernization in which the Brazilian territory is inserted, we seek to
problematize the meanings of the guarantee of social rights for the spatial process in Brazil. This is an
effort aimed at perceiving changes in the systems of objects and actions under the process of capitalist
rationalization.
We defend the thesis that the supply of resources, goods and collective services by the State
depends on a process of rationalization not only of social action but of geographic space itself. To
implement social guarantees, it is not enough to spread certain values in society; it is also necessary to
materialize such values by means of the presence of technical systems that must reach people in the
places where they live. In this case it is not enough, therefore, to speak of rational action driven by
values, as Max Weber (1999) did, but rather of a solidary event (SANTOS, 2009 [1996]) or, more
precisely, of a political-institutional event. We suggest the understanding of the PBF as a
manifestation of this event in the current stage of modernization of the Brazilian territory.
In order to ground our thesis, we investigated the transformations in the phenomenon of
poverty in the Sugarcane Region of the state of Alagoas – Brazil. It is one of the “old” monoculture
regions of the Brazilian Northeast, which, in its own way, participated in the successive
modernizations that reached Brazilian territory, and reached the end of the 20th century as one of the
most impoverished regions of the country. We present the changes in the form and, mainly, in the
content of this region, with the intention of pointing out how and why social debts accumulate.
Emphasis is given to the post-World War II period, when the dynamics of poverty and wealth in Brazil
are revealed as a “shared space”, whose most faithful expression are the two circuits of urban
economy (SANTOS, 2008 [1975]). Thus, we problematize the meanings of public programs for the
reality of this divided and shared space, from an analysis of the transformations caused by the Bolsa
Família Program in the Sugarcane Region of Alagoas.
Results show important changes in the way the most impoverished social strata in the region
lives, works and consumes. Such transformations come from the regional singularities of poverty and
wealth, from the way in which political-institutional events have taken shape in Brazil and from the
specificities of the PBF. Populations that receive money transfers now can access certain basic goods,
which was also due to the combination of technique, capital and a particular organization of the
economic activities that have been trying to meet this new demand. We conclude that the lack of
control of the meanings of the systems of actions and of the operation of the technical objects that
operationalize the PBF by beneficiary population has made it difficult to effectively transform it into a
social right and, therefore, contributed to perpetuate the forms of labor subordination developed by the
poor.
Keywords: citizenship; poverty - Alagoas; urban economy; Bolsa Família Program (Brazil).
***
LISTA DE MAPAS
Mapas 4 a 7 – Região Canavieira de Alagoas: Porcentagem de área colhida de cana sobre a área total
dos estabelecimentos agropecuários (1975-1995) ................................................................................. 87
Mapas 8 a 13 - Região Canavieira de Alagoas: Produto Interno Bruto (PIB) Municipal a preços de
2000 (1975-2010) .................................................................................................................................. 92
Mapas 30 e 31 – Região Canavieira de Alagoas: rendimentos nominais das pessoas com 10 anos e
mais (1980-1991) ................................................................................................................................ 111
Mapas 32 e 33 - Região Canavieira de Alagoas: rendimentos nominais das pessoas com 10 anos e
mais (2000-2010) ................................................................................................................................ 111
Mapas 40 a 45 - Região Canavieira de Alagoas: Domicílios com água canalizada (1970-2010) ....... 113
Mapas 46 a 51 – Região Canavieira de Alagoas: Domicílios com energia elétrica (1970-2010) ....... 114
Mapas 52 a 55 – Região Canavieira de Alagoas: hierarquia dos centros urbanos segundo o estudo
“Divisão do Brasil em Regiões Funcionais Urbanas” (1972) e “Regiões de Influência das Cidades -
REGIC” (1983, 1993, 2007) ............................................................................................................... 117
Mapas 58 – União dos Palmares: Localização de fixos selecionados em 1971 .................................. 130
Mapas 59 – União dos Palmares: Localização de fixos selecionados em 1994 .................................. 131
Mapas 60 – São Miguel dos Campos: Localização de fixos selecionados em 1972 ........................... 139
Mapas 61 – São Miguel dos Campos: Localização de fixos selecionados em 1994 ........................... 140
Mapas 62 e 63 – Região Canavieira de Alagoas: Usinas e destilarias que faliram nos anos 1990 e após
2000 ..................................................................................................................................................... 148
Mapa 64 – Alagoas: traçado dos principais cabos de fibra ótica (2016) ............................................. 158
Mapas 67 e 68 – Mundo: Países com programas de transferência condicionada de renda (1997 e 2008)
............................................................................................................................................................. 189
Mapa 70 – Porto Calvo: distribuição dos fixos da Caixa Econômica Federal (2016) ........................ 210
Mapa 71 – União dos Palmares: Fixos da Caixa Econômica Federal (2016) ..................................... 213
Mapa 73 – São Miguel dos Campos: Fixos da Caixa Econômica Federal (2016) .............................. 220
Mapa 74 - São Miguel dos Campos: Rota do transporte urbano (2016) ............................................. 222
Mapa 78 – São Miguel dos Campos: Procedência de insumos e produtos comercializados pelos
trabalhadores do circuito inferior da economia urbana das atividades pesquisadas na área central
(2015) .................................................................................................................................................. 258
Mapa 79 – São Miguel dos Campos: Procedência de insumos e produtos comercializados pelos
trabalhadores do circuito inferior da economia urbana das atividades pesquisadas na área periférica
(2015) .................................................................................................................................................. 259
Mapa 80 - Região Canavieira de Alagoas: distribuição dos fixos da Caixa Econômica Federal (2016)
............................................................................................................................................................. 273
Mapa 81 – Região Canavieira de Alagoas: cidades de origem das beneficiárias do Bolsa Família que
costumam receber em Porto Calvo, União dos Palmares e São Miguel dos Campos (2015) ............. 275
Mapa 90 - Região Canavieira de Alagoas: Distribuição das lojas das principais redes de
supermercados que atuam na região (2015) ........................................................................................ 293
Mapa 91 - Região Canavieira de Alagoas: Distribuição das lojas das principais redes de farmácias que
atuam na região (2017)........................................................................................................................ 296
LISTA DE QUADROS
Quadro 1: Região Canavieira de Alagoas - Indústrias têxteis segundo o município de localização e ano
de início do funcionamento ....................................................................................................................47
Quadro 2: Alguns aspectos da condição de vida do trabalhador da indústria têxtil na Região Canavieira
de Alagoas a partir de 1920 ................................................................................................................... 53
Quadro 4: Alguns aspectos da condição de vida do trabalhador rural na Região Canavieira de Alagoas
entre 1936 e 1937 segundo pesquisa do economista Humberto Bastos ................................................ 62
Quadro 7: década e formas de ocupação dos bairros de Porto Calvo - AL ......................................... 127
Quadro 9: década e formas de ocupação dos bairros de União dos Palmares - AL ............................ 136
Quadro 11: década e formas de ocupação dos bairros de São Miguel dos Campos - AL ................... 143
Quadro 12: Síntese de algumas informações sobre o “Acordo dos Usineiros” assinado pelo Governo
de Alagoas em 1988 e 1989 ................................................................................................................ 150
Quadro 13: Empresas alagoanas de economia mista que deixaram de existir em 2000 ..................... 155
Quadro 14: Origem e algumas características atuais do serviço de moto-táxi surgido em Porto Calvo e
nas cidades do entorno ........................................................................................................................ 162
Quadro 15: Origem e algumas características atuais do serviço de moto-táxi surgido em União dos
Palmares e nas cidades do entorno ...................................................................................................... 167
Quadro 16: Origem e algumas características atuais do serviço de moto-táxi surgido em São Miguel
dos Campos e nas cidades do entorno ................................................................................................. 171
Quadro 18: algumas características dos empréstimos feitos pelo Governo Federal ao Banco Mundial e
ao Banco Interamericano de Desenvolvimento destinados ao Programa Bolsa Família .................... 193
Quadro 19: consumo dos beneficiários do Bolsa Família nos elementos dos dois circuitos da economia
urbana de Porto Calvo – AL (2015) .................................................................................................... 230
Quadro 20: consumo dos beneficiários do Bolsa Família nos elementos dos dois circuitos da economia
urbana de União dos Palmares – AL (2015) ....................................................................................... 239
Quadro 21: Consumo dos beneficiários do Bolsa Família nos elementos dos dois circuitos da
economia urbana de São Miguel dos Campos – AL (2015)................................................................ 253
Quadro 22: alguns dados sobre a mobilidade da população beneficiária do PBF das cidades do entorno
de Porto Calvo, União dos Palmares e São Miguel dos Campos ........................................................ 280
Quadro 23: principais características das caravanas que saem das cidades de Porto Calvo e União dos
Palmares com destino ao Atacadão de Maceió e Caruaru (PE) .......................................................... 295
LISTA DE TABELAS
Tabela 2 – Região Canavieira de Alagoas: Cidades por Classes de Habitantes (1950) ........................ 49
Tabela 3 – Região Canavieira de Alagoas: População Economicamente Ativa por setor* (1920-1950)
.............................................................................................................................................................. .50
Tabela 4 - Alagoas: capital investido e valor da produção das fábricas têxteis em alguns anos (1907-
1931) ..................................................................................................................................................... 51
Tabela 8 – Brasil: Média de salário diário de um trabalhador de usina em alguns Estados (1942) ...... 60
Tabela 9 – Alagoas: Preço da diária do trabalhador rural em alguns municípios da Região Canavieira
de Alagoas entre 1936 e 1937 ............................................................................................................... 61
Tabela 12 – Região Canavieira de Alagoas: número médio de hectares para cada trator (1960-1980) 88
Tabela 13 – Região Canavieira de Alagoas: porcentagem irrigada da área total dos estabelecimentos
agropecuários (1975-1985) ................................................................................................................... 88
Tabela 17 – Região Canavieira de Alagoas: Número de cidades por grupos de habitantes e população
(1970-2010) ......................................................................................................................................... 103
Tabela 18 – Região Canavieira de Alagoas: Usinas com destilarias anexas, usinas e destilarias
autônomas segundo o município, a localização do escritório e o número de trabalhadores em 1984 e
1994 ..................................................................................................................................................... 106
Tabela 19 – Alagoas: Dívida total e das usinas e destilarias com a Companhia Energética de Alagoas -
CEAL (1996/2013).............................................................................................................................. 151
Tabela 20 – Alagoas: Alguns dados sobre o Banco da Produção do Estado de Alagoas – PRODUBAN
no momento de sua liquidação ............................................................................................................ 151
Tabela 21 – Porto Calvo, União dos Palmares e São Miguel dos Campos: Porcentagem de pessoas
consideradas pobres pelo critério da renda per capita (1991-2010) ................................................... 160
Tabela 22 – Porto Calvo, União dos Palmares e São Miguel dos Campos: Índice de Gini (1991-2010)
............................................................................................................................................................. 160
Tabela 23 – Brasil: Valores repassados pela União, número de municípios, valor médio do benefício e
número de famílias beneficiadas do Primeiro Bolsa Escola Federal (outubro de 2000) ..................... 184
Tabela 24 – Brasil: Número de benefícios em dezembro e valores anuais repassados pelos programas
de transferência de renda criados no Governo Fernando Henrique Cardoso (2001-2003) ................. 187
Tabela 25 – Brasil: Recursos repassados pelo Governo Federal aos municípios para gestão do
Programa Bolsa Família (de abril/2006 a dezembro/2014)................................................................. 196
Tabela 26 – Brasil: Evolução do número de famílias beneficiárias, dos valores repassados e dos
valores médios do benefício do Programa Bolsa Família (2004-2016) .............................................. 199
Tabela 27 – Brasil: Evolução dos valores e benefícios do Programa Bolsa Família (2003 – 2016) ... 200
Tabela 28 - Porto Calvo, União dos Palmares e São Miguel dos Campos: Evolução do número de
famílias e valores anuais repassados pelo PBF (2004 – 2016)............................................................ 206
Tabela 29 – Brasil: Valores destinados ao agente operador do Programa Bolsa Família* (2005 – 2015)
............................................................................................................................................................. 207
Tabela 30 – União dos Palmares: Número de carros e valores das passagens no transporte urbano
(2016) .................................................................................................................................................. 217
Tabela 31 – Porto Calvo, União dos Palmares e São Miguel dos Campos: Principais gastos com o
dinheiro do Programa Bolsa Família – PBF por parte das famílias beneficiárias (2015) ................... 225
Tabela 32 - Porto Calvo: formas de trabalho dos (as) chefes de famílias beneficiárias do PBF
pesquisadas (2015) .............................................................................................................................. 232
Tabela 33 - União dos Palmares: formas de trabalho dos (as) chefes de famílias beneficiárias do PBF
pesquisadas (2015) .............................................................................................................................. 242
Tabela 34 – São Miguel dos Campos: formas de trabalho dos (as) chefes de famílias beneficiárias do
PBF pesquisadas (2015) ...................................................................................................................... 252
Tabela 35 – Porto Calvo, União dos Palmares e São Miguel dos Campos: % de crianças e adolescentes
de 6 a 17 anos que tiveram frequência escolar acompanhada pelo Programa Bolsa Família sobre a
população total da mesma idade (2010) .............................................................................................. 262
Gráfico 2 – Porto Calvo: Evolução da População Economicamente Ativa* por Setor (1960-2010) .. 126
Gráfico 3 – União dos Palmares: Evolução da População Economicamente Ativa* por Setor (1960-
2010) ................................................................................................................................................... 137
Gráfico 4 – São Miguel dos Campos: Evolução da População Urbana e Rural (1960-2010) ............. 142
Gráfico 5 – São Miguel dos Campos: Evolução da População Economicamente Ativa* por Setor
(1960-2010) ......................................................................................................................................... 144
Gráfico 7 – Circuito da economia urbana onde gastam as beneficiárias do Bolsa Família de cidades
locais que costumam receber em Porto Calvo, União dos Palmares e São Miguel dos Campos (2015)
............................................................................................................................................................. 277
Gráfico 8 – Alagoas: Índice de volume de vendas no comércio varejista ampliado – base 100: 2003
(2003-2011) ......................................................................................................................................... 282
LISTA DE FOTOS
Foto 1 - Transporte interurbano de passageiros no terminal rodoviário de União dos Palmares (década
de 1980)............................................................................................................................................... 134
Foto 2: Transporte interurbano de passageiros no terminal rodoviário de União dos Palmares (2015)
............................................................................................................................................................. 134
Foto 3 - Ponto de transporte construído por trabalhadores do circuito inferior em União dos Palmares -
AL ....................................................................................................................................................... 216
Foto 4 – Uso de antiga estação ferroviária como ponto de transporte em União dos Palmares - AL . 217
Foto 5 – Mercadinho do circuito inferior no centro de Porto Calvo especializado na venda de cesta de
alimentos ............................................................................................................................................. 236
Foto 7 – Franquia da Farmácia do Trabalhador em antigo ponto de uma farmácia local (2016) ....... 241
Foto 8 – Uso da calçada por barracas e carrinhos do circuito inferior no centro de União dos Palmares
............................................................................................................................................................. 244
Foto 9 – Venda de produtos de bomboniere em uma Casa Lotérica do centro de União dos Palmares
............................................................................................................................................................. 244
Fotos 10 e 11 – Lojinhas de preço único no centro de União dos Palmares ....................................... 245
Foto 12 – Carrinho do circuito inferior na periferia de São Miguel dos Campos ............................... 256
Foto 13 – Supermercado do circuito superior na periferia de São Miguel dos Campos ..................... 256
Foto 14 – Comercialização de doces, balas e pipocas em frente em escola municipal de Porto Calvo
............................................................................................................................................................. 267
Foto 15 – Comercialização de doces balas e pipocas dentro de uma escola municipal de União dos
Palmares .............................................................................................................................................. 267
Foto 16 – Comércio de doces e balas em frente uma escola municipal de São Miguel dos Campos . 268
MS – Ministério da Saúde
INTRODUÇÃO .............................................................................................................................. 27
1.2. Entre o velho e o novo: transformações na rede urbana de uma região voltada para fora ..... 48
2.1. A integração da Região Canavieira de Alagoas ao território nacional e sua nova constituição
como um acontecer homólogo ...................................................................................................... 67
2.5. A Apreensão do Espaço Dividido: pobreza urbana em Porto Calvo, União dos Palmares e
São Miguel dos Campos .............................................................................................................. 119
3.2.2. A busca por acelerar o acontecer hierárquico e a necessidade de maior organização das
atividades do circuito inferior da economia urbana em União dos Palmares .......................... 164
3.2.3. São Miguel dos Campos: entre a política das empresas e a expansão do circuito inferior
................................................................................................................................................. 169
4.1. O debate brasileiro sobre transferência de renda e sua transformação em política nos anos
1990 ............................................................................................................................................. 176
4.2. A política brasileira de transferência de renda na busca por garantir direitos sociais aos mais
pobres: o Programa Bolsa Família .............................................................................................. 188
CAPÍTULO 5: A nova dinâmica dos dois circuitos da economia urbana em Porto Calvo,
União dos Palmares e São Miguel dos Campos ....................................................................... 203
5.1. Os dois circuitos da economia urbana na concretização do Programa Bolsa Família.......... 205
5.1.2. O Bolsa Família em União dos Palmares: entre a capacidade de orientar os fluxos do
circuito superior e a renovação do papel político do circuito inferior ..................................... 212
5.1.3. A concretização do Bolsa Família em São Miguel dos Campos em meio à busca por
normatizar elementos do circuito inferior ............................................................................... 219
5.2. O Programa Bolsa Família e as novas formas de reprodução do Espaço Dividido ............. 224
5.2.3. A atuação do circuito superior no centro e na periferia de São Miguel dos Campos e a
expansão subordinada do circuito inferior .............................................................................. 251
6.2. O atacado distribuidor como nexo entre os dois circuitos da economia na rede urbana
regional ........................................................................................................................................ 282
6.3. Formas recentes de atuação do circuito superior da economia: a rede urbana regional face à
política das empresas ................................................................................................................... 292
INTRODUÇÃO
A
discussão sobre as chamadas políticas de transferência de renda (isto é, políticas
que realizam transferências monetárias para pessoas que não contribuíram de
forma direta para algum fundo, mesmo que elas estejam capacitadas fisicamente
para vender sua força de trabalho), ganhou bastante força nos países do centro do sistema
capitalista depois dos anos 1970, em virtude da necessidade de encontrar saídas para a
desestruturação do Estado de Bem-Estar Social provocada pelo avanço do neoliberalismo.
Nessa mesma década, a ideia começou a se difundir no Brasil pela descrença na tese de que o
crescimento econômico apresentado pelo País resolveria automaticamente o problema da
pobreza e da desigualdade de renda. Mas foi somente com as novas situações de pobreza dos
anos 1990, originadas pela implantação das políticas neoliberais, que o debate sobre o tema se
robusteceu, levando à criação dos primeiros programas locais de transferência de renda em
Campinas (1995) e no Distrito Federal (1995). Dessa forma, o chamado “combate à pobreza”
terminou por se tornar a justificativa principal apresentada pela ciência e pela política para a
adoção de programas de transferência de renda no Brasil. Hoje, o País tem uma das principais
políticas desse tipo no mundo, o Programa Bolsa Família – PBF, com 13,5 milhões de
famílias beneficiárias (dados de dezembro de 2016), praticamente um quarto de toda a
população brasileira.
28
No seu texto “Reflexão Intermediária”, Max Weber (2013) destacava as tensões que o
avanço desse processo pelo tecido social originava, uma vez que a ação racional tem a
capacidade de invadir todos os interstícios da sociedade, mudando, deste modo, as
articulações entre as diversas esferas em que as relações societárias se realizam. A
problemática da ação social (RIBEIRO, 2014), caríssima aos estudos do espaço geográfico,
adquire toda a centralidade, pois permite ir além de separações aparentes geradas pelo
capitalismo, já que as modernizações no Estado, na economia, na cultura etc. condicionam e,
acima de tudo, indicam processos de racionalização da própria sociedade. Nos países
periféricos, onde o impulso modernizador vem de fora, dos países que comandam o fluxo de
capital e as técnicas mais avançadas de cada período histórico, a modernização termina sendo
social e geograficamente seletiva, isto é, nem todas as regiões, e nestas, nem todas as pessoas,
participam diretamente do processo (SANTOS, 2009 [1978], pp. 121-130; SOUZA, 2000). Aí
as tensões de que falava Max Weber têm reproduzido cisões na sociedade e no espaço (ainda
que este deva ser visto e analisado como totalidade), sendo tais cisões funcionais à reprodução
do modo de produção capitalista e reveladoras do uso do território na periferia do capitalismo.
Alterando as ações e os objetos, as modernizações autorizam novas formas de
organização técnica e social da produção e do trabalho, permitindo assim mudar os
mecanismos de produção da riqueza e sua repartição social e geográfica. É um processo que
revela toda a sua conflituosidade na capacidade desigual que os agentes envolvidos têm para
usar o território. Em outras palavras, a dinâmica dos sistemas de objetos e dos sistemas de
ações demonstra como os conteúdos da pobreza e da riqueza modificam-se a cada novo
período do capitalismo, variando também segundo a região e o país que se considere. É
imprescindível ter em conta que “[...] da mesma forma que a riqueza é ágil, e cada vez mais
volátil, a pobreza é um fenômeno complexo, dinâmico e mutante, não sendo possível a sua
compreensão como um objeto estanque” (RIBEIRO, 2001, p. 84).
Ao buscarmos explicar a pobreza por intermédio do espaço geográfico, tarefa não
somente possível como também extremamente necessária, deparamo-nos com a necessidade
de encontrar conceitos capazes de acompanhar o movimento da realidade. Nesse sentido,
entendemos que:
distribuição de cartões do Programa, pagamento de benefícios sem cartão etc., que só podem
ser realizadas nas agências bancárias. Tomando como base o estudo “Região de Influências
das Cidades” (BRASIL, 2007), as principais cidades da Região Canavieira são: Maceió
(capital regional A), São Miguel dos Campos (centro de zona A), União dos Palmares (centro
de zona A), Penedo (centro de zona A) e Porto Calvo (centro de zona B);
(ii) Não fazer parte da Região Metropolitana de Maceió. Embora a Região
Metropolitana de Maceió chegue ao início do século XXI como uma das mais pobres do País
entre as capitais, as transformações pelas quais seus circuitos da economia urbana vêm
passando estão relacionadas a um expressivo número de eventos, não sendo certamente a
política do Bolsa Família o principal deles;
(iii) Por fim, ter sua dinâmica interurbana contígua explicada no contexto da Região
Canavieira de Alagoas. Nesse sentido, a cidade de Penedo, alcançada pela expansão
canavieira da década de 1970, ao passo que se vincula a cidades da Região Canavieira como
Feliz Deserto, tem sua dinâmica interurbana vinculada também à cidade de São Brás, agreste
do Estado, e Santana do São Francisco, estado de Sergipe.
Optamos, então, pelas cidades de Porto Calvo, União dos Palmares e São Miguel dos
Campos. Nessas cidades aplicamos questionários às beneficiárias do Bolsa Família e aos
trabalhadores do circuito inferior da economia urbana, buscando assim apreender mudanças
causadas pelo PBF na dinâmica da pobreza. No total foram aplicados 329 (trezentos e vinte e
nove) questionários, distribuídos da seguinte forma:
(i) Porto Calvo: 42 (quarenta e dois) questionários para beneficiárias do PBF e 40
(quarenta) para proprietários de pequenos negócios do circuito inferior da economia urbana.
(ii) União dos Palmares: 67 (sessenta e sete) questionários para beneficiárias do PBF e
80 (oitenta) para proprietários de pequenos negócios do circuito inferior da economia urbana.
(iii) São Miguel dos Campos: 50 (cinquenta) questionários para beneficiárias do PBF e
50 (cinquenta) para proprietários de pequenos negócios do circuito inferior da economia
urbana
Também nessas cidades realizamos entrevistas, a partir de roteiros semi-estruturados,
com beneficiárias do PBF, procurando ouvi-las sobre as mudanças provocadas pelo Programa
em suas vidas, o acesso aos locais de recebimento, o entendimento do Bolsa Família enquanto
direito ou não etc. No total foram 16 (dezesseis) beneficiárias entrevistadas, sendo 6 (seis) em
Porto Calvo, 6 (seis) em União dos Palmares e 4 (quatro) em São Miguel dos Campos, o que
completou pouco mais de 4 (quatro) horas de gravação.
37
Ainda em Porto Calvo, União dos Palmares e São Miguel dos Campos entrevistamos
certos agentes do circuito superior da economia urbana (principalmente do comércio varejista
de alimentos e atacadista distribuidor) e do circuito inferior não contemplados pelos
questionários (principalmente presidentes de associações municipais de mototaxistas e de
sistemas de transporte por vans).
O avanço da pesquisa demonstrou a existência de um fluxo considerável de
beneficiárias de pequenos centros urbanos para as três cidades citadas no período de
pagamento do PBF, fluxo que se explicava pela impossibilidade de receber o benefício no
próprio município. Isso nos levou a aplicar um novo questionário para essas beneficiárias,
cuja quantidade ficou assim distribuída: 12 (doze) para beneficiárias de pequenas cidades que
estavam recebendo em Porto Calvo; 38 (trinta e oito) para beneficiárias de pequenas cidades
que estavam recebendo em União dos Palmares; e 25 (vinte e cinco) para beneficiárias que
estavam recebendo em São Miguel dos Campos. Posteriormente, visitamos cada uma dessas
cidades para realizarmos entrevistas, a partir de roteiros semi-estruturados, com as
beneficiárias aí residentes. Foram visitadas 12 (doze) cidades e gravadas pouco mais de 5
horas de conversas.
Por fim, fizemos um levantamento sistemático sobre a origem das associações de
mototaxistas e de transporte por vans nessas pequenas cidades, considerando o papel que elas
desempenham na mobilidade das beneficiárias que entrevistamos no período de pagamento do
Bolsa Família.
A maior parte dos dados primários são apresentados ao longo da tese em forma de
mapas, quadros, tabelas ou mesmo de texto, enquanto outras informações e relatos,
enriquecidos por leituras de livros, teses, dissertações e artigos, serviram de inspiração para
determinadas análises.
Portanto, a partir da problematização e da metodologia apresentadas procuramos
debater a construção, o funcionamento e as implicações do PBF face à dinâmica da pobreza
na Região Canavieira de Alagoas. Essa opção nos levou a trabalhar com dois planos de
análise: primeiro tratamos das mudanças que a pobreza conheceu em função dos novos
conteúdos técnicos e sociais que a Região foi incorporando ao longo do século XX; em
segundo lugar abordamos a construção política do PBF e as novas coesões geográficas
necessárias à sua concretização e/ou autorizadas pelo seu funcionamento. Dessa forma, a tese
foi organizada em duas partes, cada uma contendo três capítulos.
Na primeira parte, intitulada “As formas de pobreza na Região Canavieira de Alagoas
ao longo do século XX”, propomos uma periodização para o fenômeno da pobreza nessa
38
Região considerando a dinâmica dos sistemas de objetos e dos sistemas de ações. Para tanto,
procuramos levar em conta as transformações na forma e no conteúdo desse subespaço
promovidas pelas sucessivas modernizações, destacando as principais maneiras como esse
processo terminou empobrecendo a maior parcela da população. A linha de raciocínio adotada
nessa primeira parte pretende revelar nossa discordância com a bibliografia sobre Alagoas
que, destacando somente a permanência da produção sucroalcooleira como principal atividade
econômica ao longo do século XX, impede a atualização das causas explicativas da pobreza.
Nesse sentido, o primeiro capítulo aborda como, depois de quase três séculos de
transformações lentas, ritmadas pela produção realizada nos velhos engenhos de açúcar, a
Região Canavieira de Alagoas passou a conhecer, a partir das últimas décadas do século XIX,
mudanças fundamentais na produção da riqueza, autorizadas por certa mecanização do meio
geográfico, o que acabou por conferir nova dinâmica ao fenômeno da pobreza. Esta, na
ausência de regulação das condições de trabalho no campo, se manifestava pelos baixos
salários, pela fome, pelas migrações para o estado de Pernambuco e para o Sudeste etc. O
segundo capítulo trata da Região no período de racionalização do espaço geográfico, onde a
pobreza se manifesta como “Espaço Dividido”. A expulsão dos “moradores de condição” das
terras das usinas e a produção “racional” do desemprego fazem crescer o volume das
migrações, que agora se direcionam também para as principais cidades da própria Região,
alimentando o circuito inferior da economia urbana. O último capítulo dessa parte discute a
“pobreza estrutural globalizada” na Região Canavieira de Alagoas, ressaltando os fatores que
levaram esse subespaço a chegar ao final do século XX abrigando situações de pobreza das
mais graves do País.
Na segunda parte, sob o título “Programa Bolsa Família e circuitos da economia
urbana na Região Canavieira de Alagoas”, apresentamos nossa leitura sobre o PBF e as
transformações que esse Programa vem causando e autorizando na dinâmica dessa Região.
Para isso, o capítulo 4 (quatro) discute a incorporação das políticas de transferência de renda
pela formação socioespacial brasileira (SANTOS, 1977), a gênese e a conformação do PBF
enquanto um acontecer solidário de escala nacional. Cremos que com o Bolsa Família as
políticas de transferências de renda assumiram um papel na integração dos pobres aos direitos
sociais, passando a revelar, além das contradições derivadas da incompletude da cidadania no
País, as pressões oriundas do alargamento do acontecer hierárquico provocado pelo avanço da
globalização no território brasileiro. O capítulo 5 (cinco) procura avaliar as consequências do
PBF para a pobreza a partir da Região Canavieira de Alagoas. Para tanto, consideramos a
dinâmica dos circuitos da economia urbana nas três principais cidades do interior dessa
39
E
ntre as últimas décadas do século XIX e meados do século XX, o Estado de
Alagoas, e neste particularmente sua “velha região de monocultura açucareira”
(PRADO JÚNIOR, 1975), conheceu situações de pobreza das mais graves do Brasil.
Conforme registraram alguns pesquisadores (BASTOS (2010 [1938]; ANDRADE, 1973
[1963]; CASTRO, 1961 [1946]), a fome e a emigração, que apresentavam os piores índices
mesmo entre os estados açucareiros do Nordeste, eram manifestações comuns dessa
gravidade.
Podemos assegurar que são novas situações de pobreza, pois resultam de adaptações
locais às transformações na economia, na política e no território que alcançaram o País a
partir da segunda metade do século XIX (PRADO JÚNIOR, 1975; FERNANDES, 1975;
SANTOS E SILVEIRA, 2011 [2001]). Neste sentido, é correto afirmar que uma nova
necessidade imposta pelo sistema capitalista então em vigor, comandado a partir da Europa,
42
1
“A cada necessidade imposta pelo sistema em vigor, a resposta foi encontrada, nos países subdesenvolvidos,
pela criação de uma nova região ou a transformação das regiões preexistentes. É o que chamamos espaço
derivado, cujos princípios de organização devem muito mais a uma vontade longínqua do que aos impulsos ou
organizações simplesmente locais” (SANTOS, 2009 [1978], p. 123. Itálico no original).
43
Até boa parte da segunda metade do século XIX o meio técnico na “velha região”
Canavieira de Alagoas ficou praticamente restrito à mecanização da produção (DIÉGUES
JÚNIOR, 2006; SANT’ANA, 1970; CORRÊA, 1992). Em 1879, por exemplo, existiam cerca
de 632 engenhos produzindo açúcar, distribuídos por aproximadamente 16 municípios da
Zona da Mata e do litoral. Apesar da existência de alguns engenhos a vapor, a grande maioria
deles era movida à tração animal e buscava se localizar próximo aos pequenos portos, como o
de Porto Calvo, Porto de Pedras, Barra Grande (atual Maragogi) e o de Maceió (este já
começava a ganhar vulto e se diferenciar dos demais). Nessas condições, o crescimento da
produção decorria “[...] do crescimento do número dos engenhos e da expansão da área
cultivada e nunca do melhoramento da produtividade agrícola e/ou industrial” (ANDRADE,
1997, p. 30).
Segundo Florestan Fernandes (1975, pp. 24-25), é com a Independência do Brasil que
estamos devidamente autorizados a falar de uma acumulação interna do excedente. No caso
das regiões que tinham sua economia fundada na exportação do açúcar, havia pelo menos três
razões que, alimentando-se mutuamente, limitavam tal acumulação: 1) as oscilações do preço
deste produto no mercado externo; 2) a lentidão na absorção de inovações técnicas (tanto na
área agrícola como na industrial); e 3) a concorrência de outros produtores (especialmente de
44
Cuba, Java e do açúcar de beterraba europeu) (FURTADO, 2005 [1959]; ANDRADE, 1973
[1963]; PRADO JÚNIOR, 1975; RAMOS, 2007).
Agregavam-se a essas razões, de caráter mais geral, particularidades da Região
Canavieira de Alagoas. Sua “situação geográfica [...] colocada entre dois importantes centros
comerciais – Pernambuco e Bahia – nunca permitiu [que] tivesse o seu comércio a expansão
que seria de esperar, correspondente ao desenvolvimento agrícola”. Isto porque “pelo interior
escoavam-se os produtos para as Províncias vizinhas; o comércio da Capital não atraía os
produtos do interior, e isto talvez tivesse na existência de estradas más a sua causa principal”
(DIÉGUES JÚNIOR, 2006, pp. 133 e 138).
Essa acumulação interna era também fortemente condicionada pela escravidão, cujo
papel na repartição social da riqueza era, de fato, imensurável (SOUZA, 2000). Neste sentido,
lembra Manuel Correia de Andrade (1973 [1963], p. 108), que o trabalhador livre já era
largamente utilizado em Alagoas antes da Lei Áurea (1888), e que havia correlações, por
exemplo, entre fatores de mercado (oscilações no preço do açúcar, concorrência externa,
maior disponibilidade de mão de obra liberada pelo algodão etc.) e o salário desse
trabalhador. No entanto, sem a universalização do trabalho assalariado, numa sociedade em
que o número de escravizados beirava a cifra dos 49.000 para uma população total de 310.585
(1879), tais fatores certamente encontravam sérios obstáculos (FERNANDES, 1975, p. 20).
Em síntese, podemos afirmar que o meio geográfico limitava a localização dos
engenhos, a circulação, a expansão da produtividade e, por isso, junto ao sistema econômico,
limitava também a acumulação; por outro lado, notadamente o sistema político-social
obstaculizava a repartição social da riqueza porventura gerada.
A situação mudou bastante a partir do impulso do capital financeiro-industrial inglês
nas últimas décadas do século XIX. A bibliografia sobre o período não deixa dúvidas sobre a
profundidade das mudanças (DIÉGUES JÚNIOR, 2006; SANT’ANA, 1970; TENÓRIO,
1979; ANDRADE; 1997; LINDOSO, 2015). Os aportes do capital inglês, ao lado de novas
condições político-normativas, forneceram novas possibilidades de exploração dos recursos
naturais e da força de trabalho. Porém, uma vez que esse capital tinha como finalidade a sua
própria reprodução, viabilizá-lo significava também assegurar a drenagem de parte importante
do excedente regional na forma de juros. Trata-se de uma forma de “penetração planejada” do
capital a partir da ideologia do progresso (SANTOS, 2003 [1979], pp. 28-29), que cria na
Região um “espaço derivado” de novo tipo (SANTOS, 2009 [1978]).
À navegação a vapor nas lagoas Mundaú e Manguaba, realizada pela Companhia
Baiana de Paquetes a Vapor desde o final da década de 1860, vem juntar-se os primeiros
45
Para a Região Canavieira de Alagoas essa afirmação é ainda mais verdadeira porque,
como vimos, nem mesmo todas as áreas de produção açucareira foram conectadas à cidade de
Maceió pelas ferrovias.
Assim, entre 1892 e 1950 foram instaladas cerca de 46 usinas em Alagoas (embora
algumas só tenham moído poucas safras), “[...] construídas, quase sempre, por proprietários
de engenho ou por comerciantes radicados em Maceió e ligados ao comércio exportador do
açúcar. Poucas foram construídas por capitais estrangeiros” (ANDRADE, 1997, p. 40).
Aproximadamente 45% delas estavam localizadas em municípios ferroviários, “[...] o que
indica a grande importância desempenhada por esse meio de transporte na sua localização.
Elas iriam usar largamente a Great Western como transportadora de cana dos engenhos para a
usina e do açúcar e álcool para os portos de Maceió” (ANDRADE, 1997, p. 39).
Paralelamente, havia ainda uma produção expressiva realizada nos engenhos (em número de
587 em 1935) e de usinas cuja temporalidade da produção e da circulação não conheceu
grandes modificações.
Mas, as novas vicissitudes do meio geográfico orientaram também a localização da
“[...] outra metade dos capitais disponíveis nas Alagoas [que] foi aplicada na indústria têxtil”
47
(LESSA, 2013, p. 116). Se havia até 1890 apenas uma fábrica têxtil localizada em Maceió,
em função do mercado consumidor e da mão de obra aí existentes, até 1949 foram instaladas
mais 9 fábricas na Região Canavieira de Alagoas. “As fábricas procuravam estar perto dos
maiores mercados consumidores locais e das estradas que traziam o algodão do interior e
levavam tecidos para os municípios mais distantes e o Porto de Jaraguá, na capital 2” (LESSA,
2013, p. 120).
Conforme a tabela 1, o número de estabelecimentos industriais e de pessoas ocupadas
aumentou expressivamente nas primeiras décadas do século XX.
2
A distribuição das fábricas têxteis nos municípios da Região Canavieira de Alagoas era a seguinte:
Quadro 1 - Região Canavieira de Alagoas - Indústrias têxteis segundo o município de localização e ano de início
do funcionamento
Município Fábrica Ano que começou a funcionar
Maceió (Fernão Velho) Fábrica União Mercantil 1863
Rio Largo Fábrica Progresso 1890
Rio Largo Fábrica Alagoana 1893
Pilar Fábrica Pilarense 1893
Pilar Fábrica Pilarense 1909
Maceió (Bom Parto) Fábrica Alexandria 1911
São Miguel dos Campos Fábrica São Miguel 1913
Maceió (Jaraguá) Fábrica Santa Margarida 1914
São Miguel dos Campos Fábrica Vera Cruz 1926
Maceió (Saúde) Fábrica Norte de Alagoas 1926
Fonte: Relatórios Anuais das Fábricas Têxteis de Alagoas apud Lessa (2013, p. 118)
Organização: Fernando Silva (2017)
48
1.2. Entre o velho e o novo: transformações na rede urbana de uma região voltada para
fora
Quanto à ascensão de Maceió, que esteve ligada também à sua função administrativa
(DIÉGUES JÚNIOR, 2001 [1939]), os números sobre o crescimento populacional são
esclarecedores: se apenas 6,16% da população estadual vivia na capital em 1890, essa
porcentagem era de 11,07% em 1950. Isto apesar de a população estadual ter aumentado
113,74% no mesmo intervalo. Embora no período as taxas de crescimento de Maceió variem
49
bastante, o que, aliás, é uma característica comum às capitais brasileiras que dependiam
economicamente da agricultura (SANTOS, 2008 [1993], p. 27), os números absolutos
demonstram que o crescimento foi sustentado. De 31.498 habitantes em 1890 alcançou
120.980 em 1950. Antes de 1890, Maceió tinha esperado dezoito anos para aumentar 3.795
habitantes quando, por exemplo, entre 1900 e 1920 a população mais que dobrou.
Conforme a tabela 2, no Censo Demográfico de 1950 a Região Canavieira, então
formada por 19 cidades, tinha quase 90% dos seus centros com um total de população que não
ultrapassava 10 mil habitantes. Dessa forma, estava delineada uma característica dessa rede
urbana que Roberto Lobato Corrêa (1992) encontrou na década de 1960: de um lado uma
forte concentração urbana em Maceió e, de outro, a existência de um grande número de
pequenas cidades, simples centros locais sem importância econômica.
do pessoal ocupado na indústria (com destaque para Maceió com 33% do total). Por isso
havia apenas um centro urbano próximo a Maceió, Rio Largo, com uma população entre
10.000 e 20.000 habitantes.
Conforma-se, portanto, um quadro em que Maceió passa a concentrar os capitais, os
serviços, a população urbana da Região etc.3 Ao apreciarmos a tabela 3, isto fica bastante
nítido: enquanto Maceió acusava 33,06% de população ativa no setor secundário e 60,79 no
terciário, essas porcentagens eram respectivamente de 11,15% e 9,68% para os outros
municípios da Região. Mesmo que entre 1920 e 1950 os percentuais para estes últimos
tenham, proporcionalmente, aumentado de maneira significativa (contribuiu para isso a
instalação de usinas e de certos serviços atraídos pelas ferrovias, por exemplo) as cifras da
tabela deixam claro o papel da capital na rede urbana da Região no período em análise.
Tabela 3 – Região Canavieira de Alagoas: População Economicamente Ativa por setor* (1920-1950)
Região Canavieira de Alagoas (sem Maceió)
1920 1920 1940 1940 1950 1950
(Total) (Percentual) (Total) (Percentual) (Total) (Percentual)
Setor 109.194 86,78% 146.171 81,59% 128.512 79,16%
primário
Setor 10.796 8,58% 16.870 9,42% 18.106 11,15%
secundário
Setor 5.841 4,64% 16.102 8,99% 15.722 9,68%
terciário
Total 125.831 100% 179.143 100% 162.340 100%
Maceió
Setor 4.230 24,63% 2.338 8,72% 2.459 6,15%
primário
Setor 6.436 37,48% 8.154 30,40% 13.217 33,06%
secundário
Setor 6.506 37,89% 16329 60,88% 24.305 60,79%
terciário
Total 17.172 100% 26.821 100% 39.981 100%
* População de 10 anos e mais, excluídos os ativos em atividades domésticas, donas de casa, estudantes e
inativos
Fonte: BRASIL (1927; 1952; 1956)
Organização: Fernando Silva (2017)
3
De um total de aproximadamente 15 (quinze) instituições bancárias instaladas na Região entre as décadas de
1900 e 1940, 10 (dez) estavam localizadas em Maceió. As outras 5 (cinco) ou eram pequenos bancos locais, ou
agências do Banco do Brasil (CARVALHO, 2015, p. 250; MEDEIROS, 2013, várias páginas).
51
social da riqueza regional passa a ser, em alguma medida, uma questão político-espacial. É o
que pretendemos demonstrar nos próximos dois itens.
4
As 12 fábricas alagoanas chegaram a ter 8.941 operários, 3.391 teares e 112.132 fusos em 1945. Para
compreendermos melhor a evolução dessas fábricas, a tabela a seguir traz alguns dados sobre a evolução do
capital investido e o valor da produção. Vale lembrar que 9 delas estavam no que consideramos como a Região
Canavieira de Alagoas.
Tabela 4 – Alagoas: capital investido e valor da produção das fábricas têxteis em alguns anos (1907-1931)
Ano Capital (contos de Valor da produção (contos de réis)
réis)
1907 5.489:887 x
1912 8.450:000 x
1920 15.293:870 31.079:445
1931 57.633:800 32.652:717
X – Não foi possível obter dados
Fonte: BRASIL (1936) e COSTA (1932, p. 113)
Organização: Fernando Silva (2017)
52
Quadro 2: Alguns aspectos da condição de vida do trabalhador da indústria têxtil na Região Canavieira de Alagoas a partir de 1920
Relações de trabalho
Contrato As formas e condições de contrato variavam bastante, principalmente antes da década de 1930. O que era comum era o uso da
mão de obra de mulheres e crianças, bem como um disciplinamento rigoroso dos trabalhadores.
Condições oferecidas aos Casa na vila operária, escola, assistência médica, creche e cinema. Não se permitia fazer roçado, como no caso dos engenhos
trabalhadores pelas fábricas e usinas.
Retribuição exigida pelo Exclusividade do trabalho.
proprietário
Habitação
Características gerais da A maioria das casas eram construídas de alvenaria e coberta de telha. As vilas chegaram a dispor de certa infra-estrutura
habitação como sistema de esgoto, abastecimento de água e luz etc. Em troca, às vezes, se cobrava aluguel pela moradia e as taxas de
água e luz.
Salário
Salário médio diário Entre 1$500 e 3$000 (média para o fim da década de 1920).¹
Variação do salário Há indicações de variações significativas dos salários e dos benefícios indiretos (moradia, escola, creche etc.) segundo a
fábrica. Ainda com respeito ao salário, havia variações também de acordo com as condições técnicas das fábricas, já que
problemas na paralisação de alguma seção, com a consequente paralisação do trabalho, geravam descontos no salário do
trabalhador.
Comparação do salário médio
com outros Estados do
Nordeste
Consumo
Onde compram os Armazém da vila operária
trabalhadores
Principais alimentos consumidos e % do salário gasto com alimentação
Ceará (charque)
Bacalhau
Feijão
Açúcar bruto
Café
Farinha
Carne fresca
Rapadura
% do salário gasto com Geralmente chegava próximo aos 100%
alimentação
Principais consequências da pobreza
Como faz em tempo de Complementava os rendimentos com a pesca nas lagoas (principalmente no caso de trabalhadores de Maceió).
diminuição do trabalho
Medidas tomadas para lutar Greves; busca de trabalho em engenhos ou usinas (onde era permitido ter um pequeno roçado) e emigração.
contra a pobreza e exploração
do trabalho (trabalhadores)
Medidas tomadas para Nas primeiras décadas do século XX há indicações de repressões, mas depois os proprietários fizeram algumas concessões,
perpetuar a pobreza dos como: diminuição da jornada de trabalho, melhoria da moradia, das condições das vilas e da assistência médica, etc.
trabalhadores (proprietários)
Principais conclusões
Relações de trabalho e Tanto as relações de trabalho como o sistema de vila operária se colocavam como novos elementos de dominação. Os estudos
habitação não negam as boas condições das casas fornecidas pelas fábricas, a qualidade e facilidade do acesso às escolas, creches e
assistência médica, mas ressaltam como esses elementos aumentavam o controle dos proprietários das fábricas sobre a vida
dos trabalhadores.
Salário Como todo o salário era pago em dinheiro, e também pelo fato de trabalharem mulheres e crianças, principalmente antes do
advento da CLT, havia uma maior circulação monetária nas vilas operárias. O salário, porém, mal era suficiente para o
orçamento básico (alimentação e taxas referentes à aluguel, água etc. nas vilas operárias).
Consumo Resumia-se ao essencial para sobrevivência. Como não se permitia cultivar roçados, a dependência em relação ao salário era
bem grande. Novas necessidades de consumo são criadas pelo próprio trabalho, como a necessidade de trabalhar com roupas
limpas e específicas no espaço da fábrica.
¹Média com base em relato de Otavio Brandão (2007, pp. 303-305) trazido por Lessa (2013, pp. 130-132)
Fonte: Lessa (2013 várias páginas); Tenório (2013 várias páginas); Documentário “Tramas da memória, urdidura do tempo” (disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=Zbwcmx9fOrk); Documentário: “O comendador do povo” (disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WtNUBcaxsy4).
Organização: Fernando Silva (2017)
54
técnicas dependentes dos capitais regionais5. Por outro lado, o comando político sobre as
condições de vida dos trabalhadores continuava na própria Região. Algumas consequências
desses dois processos foram apontadas por Manuel Correia de Andrade (1973 [1963] pp. 108-
109):
[...] o escravo que se viu liberto de uma hora para outra, sem nenhuma ajuda,
sem terras para cultivar, sem assistência dos governos, sentiu que a liberdade
adquirida se constituía apenas no direito de trocar de senhor na hora que lhe
aprouvesse. Transformou-se em assalariado, em “morador de condição”,
continuando a habitar choupanas de palha ou senzalas, a comer carne seca
com farinha de mandioca e a trabalhar no eito de sol a sol por um salário que
oscilava entre 400 e 600 réis.
5
Conforme a tabela a seguir, o crescimento da produção de açúcar em Alagoas foi constante. É somente na
década de 1970, porém, que a produção vai ter grande ímpeto, em função dos novos capitais disponibilizados
para o setor.
Tabela 5 – Alagoas: Evolução da produção de açúcar segundo safras selecionadas (1933/34-1987/88)
Ano/safra Produção (sacos de 60 kg)
1933/34 752.915
1943/44 1.706.789
1953/54 2.433.842
1958/59 3.629.546
1968/69 7.839.076
1973/74 22.011.169
1983/84 27.453.193
1987/88 24.879.165
Fonte: IAA apud Andrade (1997, p. 101)
Organização: Fernando Silva (2017)
6
Desse modo, nos municípios da Região Canavieira, pelo menos até 1950, o aumento na produção de cana não
impedia a manutenção de outras culturas, como a mandioca, o milho e o feijão. A partir daí o quadro começou a
mudar, conforme mostra a tabela a seguir.
Tabela 6 – Região Canavieira de Alagoas: Produção de algumas culturas (1920-1960)
Produção em tonelada 1920 1940 1950 1960*
Cana 1.121.063 1.766.734 1.771.495 3.600.913
Mandioca 94.484 111.672 141.697 104.311
56
Beatriz Heredia (1988, p. 169), estudando exatamente essa situação, aponta ainda que
as disputas entre senhores de engenho e usineiros contribuíam para aumentar o número dos
chamados “moradores de condição”. Os senhores de engenho controlavam não somente a
terra, mas também a mão de obra: se as táticas de acesso à terra por parte das usinas
envolviam a invasão de propriedades pelas ferrovias, por exemplo, o acesso à mão de obra
envolvia a reprodução do “morador de condição”. Ofertas de melhores habitações nas usinas,
melhores salários em época de escassez de mão de obra e outros elementos que faziam parte
da condição de vida do morador também entravam nessa disputa.
Portanto, no campo encontravam-se, deveras, outras situações de pobreza, em nenhum
caso menos grave.
Em 1950, conforme apresenta o quadro 3, Alagoas estava entre os estados brasileiros
com as maiores taxas de natalidade, mas também de mortalidade. Essa dinâmica, somada às
altas taxas de emigração, apresentadas na tabela 7, explicam em boa medida o porquê de,
entre 1890 e 1950, Alagoas ter tido o segundo menor crescimento populacional entre todas as
unidades da federação: 113,74%, enquanto o Brasil cresceu 262,61%. Pelas mesmas razões
explica-se o crescimento lento, e às vezes até negativo, da população economicamente ativa.
Ente 1940 e 1950, enquanto Maceió aumentava a PEA em 49,07%, os outros municípios da
Região tiveram um decréscimo de 9,38%.
7
Segundo a explicação metodológica do Censo (1950), abrange “outras formas de ocupação, como a cessão de
moradias a famílias de trabalhadores que freqüentemente ocorre nos meios rurais” (BRASIL, 1955a, p. XXI).
58
Na grande plantação, o homem que sai ou entra em sua casa está saindo ou
entrando em uma parte da propriedade. Assim, nenhum aspecto de sua vida
escapa ao sistema de normas que disciplina sua vida de trabalhador. Dessa
maneira, a experiência da vida prática não lhe permite se desenvolver como
cidadão e se conscientizar de sua responsabilidade a respeito do seu próprio
destino. Todos os atos de sua vida são atos de um agregado, de um elemento
cuja existência, em todos os seus aspectos, integra a grande unidade
econômico-social que é a plantação de cana. Aqueles homens têm pouca ou
nenhuma consciência de integrar um município ou um distrito, que são as
formas mais rudimentares de organização política; mesmo quando suas
habitações estejam grupadas em algum vilarejo, esta se encontra dentro de
uma ‘propriedade’, razão pela qual a vinculação impessoal com uma
autoridade pública perde nitidez frente à presença ofuscante da autoridade
privada.
Neste sentido, Tereza Sales (1992, p. 6), pensando especialmente nos trabalhadores
rurais das regiões canavieiras do Nordeste, fala em “cidadania concedida”, que estaria “[...]
vinculada, contraditoriamente, à não-cidadania do homem livre e pobre, que dependia dos
favores do senhor territorial, que detinha o monopólio privado do mando, para poder usufruir
dos direitos elementares de cidadania civil”. O ajustamento da modernização à manutenção da
grande propriedade, na opinião da autora, teria prolongado esse tipo de cidadania até os anos
1960, quando ocorreu de fato a proletarização do trabalhador rural e sua expulsão das grandes
propriedades.
Mais conhecido ainda é, certamente, o conceito de “cidadania regulada” de Wanderley
dos Santos (1979, p. 75 grifos nossos), proposto para “[...] entender a política econômico-
social pós-30, assim como fazer a passagem da esfera da acumulação para a esfera da
equidade [...]”. Segundo o autor, o conceito quer expressar que no caso do Brasil são
considerados “[...] cidadãos todos aqueles membros da comunidade que se encontram
localizados em qualquer uma das ocupações reconhecidas e definidas em lei” e “[...] pré-
cidadãos, assim, todos aqueles cuja ocupação a lei desconhece”. Como bem notou Tereza
Sales (1992), o peso demasiado que o conceito de “cidadania regulada” conferiu às normas
ficou evidente quando Wanderley dos Santos, em texto posterior (1985), teve de dizer que
somente a criação do Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural – FUNRURAL rompeu com
a ordem regulada da cidadania brasileira.
59
Não há dúvidas quanto à importância das normas, por isso, não seria de todo correto
igualar as situações das “profissões reguladas” àquelas do trabalhador rural no período pós-
30. Todavia, como construir uma “vinculação impessoal com uma autoridade pública” se
mesmo depois da regulamentação de algumas profissões a moradia e certos serviços
continuaram na propriedade ou na vila operária? Como a falta de regulação pesou (e ainda
pesa) na “ausência de cidadania” para alguns trabalhadores, e o quanto a vinculação pessoal
herdou das velhas estruturas sociais e se projetou nas políticas posteriores são questões
importantíssimas. Mas não se pode esquecer que a garantia de bens e recursos passa agora a
envolver um conjunto de objetos técnicos pensados para esse fim. Daí que o problema seja o
tipo de racionalização que se imporá ao espaço, se este terá ou não um sentido para a
sociedade.
Em síntese, podemos afirmar que uma parcela apreciável do comando sobre a
repartição da riqueza acabava por ficar na própria Região. Em outras palavras, o Estado não
assumia essa repartição na forma de bens e recursos tidos como públicos, até mesmo porque
isso envolveria um sistema de objetos técnicos conectados pela informação, desvinculados da
propriedade privada e, em alguma medida, valorizados pela sociedade.
Tabela 8 – Brasil: Média de salário diário de um trabalhador de usina em alguns Estados (1942)
Estado Nº de usinas pesquisadas Média rural (Cr$) Média industrial (Cr$)
Rio de Janeiro 10 5,35 7,8
Minas Gerais 9 4,61 6,64
São Paulo 10 6,47 10,3
Bahia 10 3,2 4,65
Sergipe 9 3,56 4,89
Fonte: Torres (1945 pp. 129-139)
Organização: Fernando Silva (2017)
Tabela 9 – Alagoas: Preço da diária do trabalhador rural em alguns municípios da Região Canavieira
de Alagoas entre 1936 e 1937
Municípios Trabalhador de enxada Cortador de cana
Capela 3$000 2$500
Viçosa 2$000 2$000
Atalaia 3$000 2$500
S. José da Lage 2$500 2$500
Murici 3$000 3$000
S. Luzia do Norte 2$000 *
Porto Calvo 2$500 3$000
União dos Palmares 3$000 4$000
S. Miguel dos Campos 3$200 2$500
Porto de Pedras 2$500 2$000
*Sem informação
Fonte: Bastos (2010 [1938], pp. 104-106)
Organização: Fernando Silva (2017)
Quadro 4: Alguns aspectos da condição de vida do trabalhador rural na Região Canavieira de Alagoas entre 1936 e 1937 segundo pesquisa do economista
Humberto Bastos
N
o período pós-Segunda Guerra Mundial a pobreza terminou por ser, novamente,
uma das mais claras expressões dos novos processos de racionalização impostos à
sociedade e ao espaço na Região Canavieira de Alagoas. Às migrações, mais
volumosas e violentas, e ao crescimento populacional de Maceió, muito mais acelerado que
no período anterior, junta-se o crescimento, ainda que relativamente lento, de várias cidades
do interior. Assim, a pobreza se agrava tanto na capital como em um elenco de pequenas
cidades da Região. Em ambas as situações condicionadas pela perpetuação de uma estrutura
injusta da propriedade no campo, as cidades são chamadas a se adaptarem, não sem conflitos,
às formas de ocupação do espaço urbano possíveis a populações de baixíssimos rendimentos.
Isto somado à sazonalidade do trabalho nas usinas fazem avultar as formas de produção,
circulação e consumo dessas mesmas populações. As novas e velhas formas de manifestação
da pobreza são, desse modo, resultado do novo conteúdo social e geográfico da Região.
A maior dependência da produção açucareira alagoana do mercado interno, já desde as
primeiras décadas do século XX, aliada à pouca expressividade das ferrovias na Região,
requisitaram melhoras nos meios de transporte. Essas melhoras tornaram-se ainda mais
urgentes a partir das restrições impostas à navegação pela Segunda Guerra Mundial
(ANDRADE NETO, 1984, pp. 70-72). Mas, quando a circulação de mercadorias foi
facilitada, logo evidenciaram-se as fragilidades técnicas da produção regional e, desse modo,
novas racionalidades foram exigidas tanto na produção como nas relações sociais entre
usineiros e trabalhadores.
65
Dessa forma, alarga-se a demanda por racionalidades. Essa demanda seria doravante
um dos principais nexos das relações entre os velhos e os novos sistemas de objetos e sistema
de ações. As novas racionalidades impostas ao meio geográfico regional possibilitaram a
ampliação sem precedentes da escala de produção das usinas, a exploração dos recursos
minerais da Região (especialmente sal-gema e calcário) e, com isso, avolumou-se a riqueza
produzida. Mas, o comando político sobre a distribuição social e espacial dessa riqueza passa
a escapar cada vez mais da Região, o que se reflete no esgotamento do “sistema de morada”,
no novo papel assumido pela rede urbana regional etc. A questão seria, então, como, quem e
de que forma se reparte a riqueza.
Essa questão, no contexto da crescente integração da Região Canavieira de Alagoas ao
mercado e ao território brasileiros (ANDRADE, 1997, p. 79 e seguintes; FURTADO, 2005
[1959]; SANTOS e SILVEIRA, 2011 [2011]), torna-se, sobretudo, política (FERNANDES,
1975, p. 13; BRANDÃO, 2004, p. 53; RAMOS, 1991). O Estado nacional acaba assumindo a
distribuição de alguns bens, serviços e recursos, tanto para conciliar os conflitos entre as
diversas produções regionais de açúcar, como para conciliar os conflitos entre usineiros e
trabalhadores. Isto ocorreu ao mesmo tempo em que esse Estado estava ocupado em viabilizar
uma racionalização do território brasileiro a partir de sistemas técnicos externos. Essa
racionalização se torna um convite, ora tácito ora explícito, à transferência de uma parcela do
comando sobre a vida regional para agentes externos privados.
Estaríamos em face de uma nova forma de penetração do capital internacional nos
países pobres (SANTOS, 2003 [1979], p. 29; IANNI, 1977, p. 276), que por ocorrer com a
colaboração do Estado deforma não só a estrutura da produção e do consumo, mas também
condiciona de inúmeras maneiras a oferta de recursos, bens e serviços coletivos (SANTOS,
2007 [1987]). O resultado é a formação de dois circuitos da economia nas cidades, o circuito
superior e o circuito inferior da economia urbana (SANTOS, 2008 [1975]). Embora estejam
ligados entre si através de relações de complementariedade e de concorrência, cada um dos
circuitos tem lógicas próprias e se relaciona de maneira particular com o Estado, com a
sociedade e com a cidade. No circuito superior, onde o consumo é movido pelas camadas
sociais de altos ingressos, as atividades econômicas são desenvolvidas com altos graus de
técnica, capital e organização, geralmente com o apoio do Estado. Por outro lado, as
atividades do circuito inferior são realizados com baixos níveis de técnica, capital e
organização, e sobrevivem apoiadas na dinâmica societária e nos níveis de consumo dos mais
empobrecidos da cidade. Esta, então, pode ser compreendida como um verdadeiro “Espaço
66
Dividido”, evidenciado muito fortemente pela ausência de direitos sociais por parte da
população vinculada ao subsistema inferior da economia urbana.
Altera-se profundamente a dialética pretérita entre Estado – mercado e interno –
externo (SANTOS, 1997 [1988], pp. 95-101). Essa dialética se torna mais complexa, porque
mesmo no caso dos objetos e normas que atendem às solicitações políticas regionais
(inclusive dos trabalhadores do setor canavieiro), uma parte do comando político e das ações
que eles autorizam escapam ao controle da Região. Em outras palavras, as normas e os
objetos técnicos externos implantados localmente podem ter ou, no caso de representarem
interesses alheios, buscam impor um sentido à Região, mesmo que a sociedade local não os
tenha produzido nem os controle totalmente.
Se os novos objetos técnicos implantados na Região Canavieira de Alagoas, ainda que
muito restritos a alguns pontos, possibilitam um comando político por agentes externos, é
possível falar que pelos menos uma parcela do subsistema de objetos e ações locais coopera
com um sentido alheio. Mas, como pensar aqueles bens garantidos pelo Estado que resultam,
inclusive, de lutas políticas de trabalhadores, por exemplo? Esse Estado Ampliado
(GRAMSCI, 1978, p. 232) não envolveria agora, para garantir o resultado de tais lutas
políticas, vários sistemas técnicos que se misturariam ao aparato de dominação e às
instituições políticas?
Daí que uma possibilidade bastante fecunda de pensar as novas relações interno-
externo e Estado-mercado esteja na proposta do acontecer solidário apresentada por Milton
Santos (2009 [1996]). Trata-se de analisar o processo espacial a partir das qualidades dos
sistemas de ações e de objetos contemporâneos, racionalizados sob o capitalismo.
67
Pensando dessa maneira, podemos dizer para a situação em análise que a configuração
territorial (SANTOS, 1997 [1988], p. 75), isto é, a disposição do conjunto de objetos
existentes estava se impondo como uma verdadeira limitação às normas oficiais emitidas pelo
IAA. Isso não só indicava que novas normas jurídicas precisavam ser formuladas por essa
instituição para possibilitar, em alguma medida, o funcionamento concertado entre
subsistemas de ações de diversas regiões (como foi, aliás, a medida imediata tomada pelo
IAA); indicava mesmo a impossibilidade de alcançar um “desenvolvimento equilibrado”
diante de heranças sociais, culturais, econômicas e técnicas tão desiguais (RAMOS, 1991, p.
145).
Aprofunda-se, desse modo, a necessidade de uma maior integração da Região
Canavieira de Alagoas ao território nacional, para além da circulação de mercadorias e da
equiparação de normas (ANDRADE, 1997, pp. 53-76; IANNI, 1977, pp. 23-24; RAMOS,
1991). As complementaridades econômicas e políticas que essa Região já estabelecia,
principalmente com os estados do Sudeste, passam a exigir, cada vez mais, o funcionamento
concertado entre os sistemas de objetos e o sistema de ações (o que envolveria a articulação
crescente entre as normas e as técnicas) (ANDRADE, 1997; RAMOS, 1991).
Novas racionalidades terminariam por se impor ao meio geográfico regional com a
implantação de objetos técnicos aptos a assegurar o movimento mais rápido de pessoas e
mercadorias, assim como a circulação instantânea de informações por voz e texto. Agora
amparados por uma verdadeira “tecnoestrutura estatal” (IANNI, 1977, p. 25), que faz
convergir uma unicidade técnica, normativa e organizacional, e cujo nexo político-ideológico
é a ideia de desenvolvimento (SANTOS, 2003 [1979], p. 29), as rodovias, as linhas de
transmissão de energia elétrica partindo de Paulo Afonso, o novo sistema de telefonia e o
telex vêm juntar-se às ferrovias e ao telégrafo. Numa Região tão pobre, como seria orientada a
implantação de tais sistemas técnicos? A que tipo de cooperações econômicas e sociais
serviriam e quem comandaria os sentidos de tal cooperação?
Consideradas por Manuel Correia de Andrade (1981) como pré-requisitos para a
integração da economia do Nordeste às demais regiões brasileiras, as rodovias federais
reorientaram a circulação de pessoas e mercadorias na Região Canavieira de Alagoas a partir
da década de 1950. Viabilizadas pelo Departamento Nacional de Estradas e Rodagem –
DNER e impulsionadas principalmente pelo Plano de Reaparelhamento Econômico (1951-
1954) e pelo Plano de Metas (1956-1961) (IANNI, 1977, p. 153; XAVIER, 2011 [2001], p.
334), as rodovias BR – 101 (antiga BR – 11) e BR – 104 (antiga BR 10) cortaram a Região no
69
Para Luiz Cabral (2005, p. 62), as rodovias visavam beneficiar principalmente o setor
sucroalcooleiro, que necessitava escoar sua produção. Isto é verdade especialmente para o
caso dos municípios açucareiros da porção norte, como Porto Calvo, Maragogi, São Luís do
Quitunde etc., que não tinham sido contemplados pelo traçado das ferrovias. Mas, não se
pode, de forma alguma, equiparar essa situação ao que se passou no caso das ferrovias, já que
as rodovias autorizam acontecimentos que escapavam ao comando da Região (CORRÊA,
1992, pp. 108-110).
71
8
Em 1983 passou à denominação de Companhia Energética de Alagoas – CEAL.
9
Vide reportagem “Alagoas Eletrificada”. Jornal de Alagoas – Quarta Feira, 7 de maio de 1970.
72
10
Vide reportagem “Projeto de Telecomunicações do Estado”. Jornal de Alagoas – Quarta Feira, 8 de abril de
1970.
73
Em síntese, podemos afirmar que o novo meio geográfico regional estaria apto a
assegurar novas complementaridades locais campo-cidade e mesmo entre as próprias cidades
(ainda que de forma mais restrita), o que, em larga medida, terminaria atendendo às
necessidades dos usineiros da Região. Mas, ao mesmo tempo, novas possibilidades foram
abertas aos sistemas de ações externos, ou seja, estavam dadas as condições para que tais
sistemas se concretizassem localmente com certa precisão.
No limite, diríamos que estamos na presença da imposição/adoção sistemática de um
parâmetro externo não somente no âmbito da economia, da política, da sociedade, mas do
próprio espaço geográfico (PRADO JÚNIOR, 1975; FLORESTAN, 1975; SANTOS, 2008
[1975], pp. 293-305; SOUZA, 2000; BRANDÃO, 2004, pp. 85-86). Isto significa que
doravante não seriam apenas as populações que não se sujeitassem/acompanhassem o
parâmetro ocidental que empobreceriam (SOUZA, 2000, p. 266), mas os próprios lugares e
regiões estruturados por tais populações terminariam por ser desvalorizados e, portanto,
conheceriam situações de pobreza.
Por essas razões, as racionalizações impostas ao meio geográfico da Região
Canavieira de Alagoas podem ser vistas, ao mesmo tempo, como causa e consequência da
exigência de novas racionalidades na economia, na política e na sociedade.
Dependentes de uma matéria-prima oriunda de produtores que haviam incorporado
diferentes graus de técnica ao processo agrícola, estando o cultivo na maioria das situações
ainda sujeito aos tempos da natureza, e dependentes também dos esporádicos crescimentos do
mercado externo para expandir a produção, as fábricas têxteis se veem agora diante da
exigência de um novo patamar técnico-organizacional na produção (ANDRADE, 1973
[1963], p. 102; LESSA, 2013, p. 179; TENÓRIO, 2013). Desse modo, as condições regionais
que haviam num momento anterior assegurado o baixo custo da produção, a partir da segunda
metade do século XX vão se colocar como um verdadeiro empecilho à adaptação das fábricas
têxteis (OLIVEIRA, 1993, p. 47). Ainda que as relações de trabalho na indústria já tivessem
sido reguladas antes disso, até então na equação de lucros das empresas ainda continuava a
pesar bastante fatores ligados às especificidades regionais.
Com a constituição de um mercado propriamente nacional, momento a partir do qual a
organização da produção e do trabalho vigente no Sudeste do País passa a servir como
parâmetro para as demais regiões, assiste-se, então, à decadência da indústria têxtil e da
produção de algodão em Alagoas. O número de pessoas ocupadas nos estabelecimentos
industriais desse setor no estado despencou de 8.714 em 1960 para 2.669 em 1980 (BRASIL,
1960; 1984). As populações das vilas operárias agora habitariam especialmente as cidades da
75
Região Canavieira (TENÓRIO, 2013, p. 73). Tudo isso ocorre em meio a disputas políticas
regionais entre agentes do setor canavieiro e do têxtil (TENÓRIO, 1995), mas está claro que a
questão de fundo não é preponderantemente setorial. Trata-se de uma questão socioespacial.
Por isso, a demanda por racionalidades acabaria transformando também as situações de
pobreza no campo.
Segundo Joaquim de Andrade Neto (1984, p. 82), no pós-Segunda Guerra Mundial a
expansão dos preços do açúcar no mercado internacional e as facilidades trazidas às usinas
pelas estradas levaram à expansão da área cultivada de cana em Alagoas, “[...] medida que se
traduziu na tomada do sítio ao trabalhador ou na substancial diminuição dos mesmos [...]”. Os
tabuleiros, antes considerados impróprios para o cultivo da cana, passariam a ser a principal
área de expansão canavieira e, quando houvesse recursos financeiros, tal fato alteraria
profundamente a geografia do entorno de São Miguel dos Campos. Tinha ganhado impulso,
então, um gradativo processo de proletarização do trabalhador rural, porque à proporção que
“[...] a área cultivada com cana vai aumentando e os proprietários não só restringem os sítios
dos moradores, tirando-lhes as áreas mais favoráveis, como exigem dos mesmos cinco ou seis
dias de serviço por semana nos seus canaviais, o que impede os trabalhadores de cuidarem
dos seus roçados” (ANDRADE, 1973 [1963], p. 123).
Mas, não apenas isso contribuiria para transformar as velhas relações sociais na qual
originou-se a “cidadania concedida” (SALES, 1992). A construção das rodovias federais e a
expansão da produção no Sudeste não tardaram a revelar as deficiências técnicas do processo
agrícola em Alagoas, assim como as “irracionalidades” econômicas do chamado “sistema de
morada” (PALMEIRA, 1977; ANDRADE, 1973 [1963]). Dessa forma, na leitura dos
usineiros alagoanos duas principais medidas seriam necessárias: 1) aprimorar os diversos
aspectos do processo agrícola (aproveitamento do solo, planejamento das safras, etc.); e 2)
evitar “[...] as táticas oficiais, que, manhosamente, vão transferindo para a alçada das
empresas, certas obrigações de caráter marcadamente sociais, escusando-se o poder público
de exercitar a sua função tutelar, para exigi-la de entidades de finalidade econômica,
impróprias, portanto, para essa atuação” (LOUREIRO, 1970, p. 34).
Os trabalhadores/moradores passam a ser expulsos das propriedades e, desse modo,
intensificam-se os conflitos. Para Joaquim de Andrade Neto (1984, pp. 84-86), esse processo,
que na Região Canavieira de Alagoas foi maior do que em Pernambuco, teve três
consequências principais: 1) diminuição expressiva da oferta de alimento nas cidades; 2)
crescimento dos pequenos centros urbanos da Região, pois estes passaram a abrigar os
76
Quadro 5: alguns aspectos da condição de vida do trabalhador/morador na Região Canavieira de Alagoas a partir de três usinas em 1971, segundo pesquisa do
Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais
Informações sobre a pesquisa
Amostra da pesquisa 838 famílias, sendo 660 chefiadas por trabalhadores do setor agrícola e 178
chefiadas por trabalhadores do setor industrial
Usinas que serviram de amostra para a pesquisa Usina Cachoeira do Mirim (município de Maceió); usina Conceição do Peixe
(município de Flexeiras) e usina Santo Antonio (município de São Luís do
Quitunde)
Relações de trabalho
Contrato A maioria era regido pelo Estatuto do Trabalhador Rural
Condições oferecidas pelos proprietários Habitação, assistência médica, auxílios e donativos e, às vezes, possibilidade
de cultivar alimentos (p. 132).
Habitação
Regime de ocupação Mais de 99% das habitações eram cedidas
Estado de conservação Mais de 73% das habitações estavam mal conservadas
Material do piso, parede e cobertura Cerca de 70% das habitações tinham piso de chão batido; 81% tinham parede
de taipa e 71% eram cobertas de telha (mas ainda existia mais de 27%
cobertas de palha, sobretudo dos trabalhadores do setor agrícola).
Esgoto e procedência da água 77% das casas dispunham apenas do “mato” para necessidades fisiológicas
dos moradores e 58% utilizavam água do rio.
Rendimentos
Renda per capita (Cr$) A renda familiar média per capita era de Cr$ 38,29, sendo de Cr$ 50,46 para
os trabalhadores do setor industrial e Cr$ 34,57 para os trabalhadores do setor
industrial
Consumo
Principais gêneros alimentícios consumidos
Farinha
Banana
Açúcar
Café
Feijão
Laranja
Xarque
Pão
% dos rendimentos gastos com alimentação Em média 73,26% da renda era destinada à aquisição de alimentos, média que
chegava a 76,5% no caso dos trabalhadores do setor agrícola e caía para
67,3% no caso dos trabalhadores do setor industrial. Vale registrar que entre
as menores faixas de renda per capita (em média Cr$ 8,25) os gastos com
alimentação ultrapassavam os 100%.
Previdência social
Contribuição para o INPS (especialmente FUNRURAL) Em torno de 98% dos trabalhadores industriais e 62% dos trabalhadores
agrícolas contribuíam para a previdência. “A quase totalidade dos
trabalhadores, em ambas as áreas, contribui porém para o INPS, através do
FUNRURAL” (p. 172).
Principais consequências da pobreza
Principais medidas que os trabalhadores pretendem tomar contra a pobreza “A maioria veio de perto, porque não dispõe de condições para pretender ir
longe, almejando em geral a próxima cidade de Maceió como sua provável
esperança de êxodo, ficando o próprio Recife numa posição muito inferior,
apesar da distância não ser grande, nem os transportes difíceis” (p. 178).
“Com seu baixo nível de qualificação, suas aspirações de mobilidade vertical
surgem também precárias: a quase totalidade não deseja mudar de profissão,
até quando ela se apresenta a mais desqualificada possível, no manuseio
primitivo da terra. São poucos os especializados (motoristas, mecânico,
tratorista, operário em geral), o que evidencia um muito restrito mercado de
trabalho, que não pode enfim desportar bastante emulação. Quase todos
recebem a paga semanalmente, na clássica sexta-feira, quando a destinam ao
escasso consumo antes descrito, completando o círculo vicioso da sua vida
sem horizontes [...]” (p. 181).
Principais conclusões da pesquisa
Relações de trabalho e habitação “Frise-se que os complementos indiretos de renda, em especial no que tange à
habitação e assistência médica, concentram-se, qualitativa e
quantitativamente, em benefício dos trabalhadores industriais, diminuindo à
medida que se deslocam à periferia rural” (p. 133).
“Quase tôdas as residências colhem sua água no rio, o que explica, em grande
parte a persistência das endemias rurais, dada a poluição industrial, além do
natural deslizamento subterrâneo dos excrementos despejados em geral nas
proximidades fluviais. Também se pode suspeitar da contaminação dos poços,
uma vez que a rotação de abastecimento e dejetos se efetua num cômodo
circuito nas imediações das casas” (p. 159).
Renda per capita e consumo “Inexiste oferta suficiente e regular de alimentos, tanto ao nível de produção
quanto de comercialização, seja por conta da dedicação quase exclusiva dos
campos ao cultivo extensivo da cana-de-açúcar, seja por causa do pouco
atrativo que oferece tão frágil demanda de alimentos; as limitações de renda
impedem também a importação provinda doutras áreas”
“A referida demanda de alimentos, embora absorva parte substancial dos
rendimentos, restringe-se ao mínimo, por conta da baixa renda per capita” (p.
155).
Fonte: Azevêdo, Caldas e Chacon (1972, pp. 110-186)
Organização: Fernando Silva (2017)
78
Todo artefato, uma máquina por exemplo, somente pode ser interpretado e
compreendido a partir do sentido que a ação humana (com finalidades
possivelmente muito diversas) proporcionou (ou pretendeu proporcionar) à
sua produção e utilização; sem o recurso a esse sentido permanecerá
inteiramente incompreensível. O compreensível nele é, portanto, sua
referência à ação humana, seja como “meio” seja como “fim” concebido
pelo agente ou pelos agentes e que orienta suas ações (grifo no original).
Mas o que dizer quando o que serve como “meio” ou “fim” à racionalidade do outro é
o próprio meio geográfico de uma região? Ou melhor, na situação em análise, não seria a
própria Região que estaria sendo chamada a cooperar com um sentido alheio, já que a
racionalidade externa busca se inscrever tanto nos sistemas de objetos como nos sistemas de
ações?
Para Milton Santos (2009 [1996], pp. 290-294), a tese (como vimos, defendida por ele
mesmo) de que existe uma racionalidade do próprio espaço geográfico só pode ser aceita se
este for considerado como um híbrido de objetos e ações, sendo a racionalidade dos objetos
79
condição sine qua non para a racionalidade das ações, e vice versa. Por isso, “[...] a realidade
do “espaço racional” não seria possível sem que a técnica se desse tal como ela hoje se dá,
isto é, como “técnica informacional”” (grifo no original). Sem os objetos informacionais,
como vimos no capítulo 1, foi possível implantar uma racionalidade técnica europeia em
várias regiões da periferia capitalista, mas o controle sobre a disposição e o uso dos objetos
técnicos ainda ficava, em grande medida, nas próprias regiões. Não havia grandes
possibilidades para a circulação da informação à longa distância. Por isto, tal racionalidade
acabava sendo bastante limitada, tanto social como geograficamente.
Segundo Milton Santos (1994, p. 17; 2009 [1996], pp. 143-168), uma possibilidade de
pensar a materialidade e imaterialidade de maneira indissociável na geografia, a partir da
teoria da ação social (RIBEIRO, 2014), é dada pela teoria do evento. Os eventos,
obrigatoriamente, colocam em cooperação objetos e ações: uma manifestação contra um
governo, um congresso acadêmico, ou outro evento qualquer, todos ocorrem num espaço-
tempo específico. Para o autor, o processo de racionalização do espaço geográfico tornou
possível também colocar em cooperação regiões até mesmo distantes umas das outras,
sobretudo a partir das tecnologias da comunicação e informação. Neste caso da cooperação
entre diferentes subespaços, que implica assegurar a solidariedade ao mesmo tempo dos
objetos e das ações, seria possível falar de um acontecer solidário.
Levando em conta os fundamentos dessa cooperação (a contiguidade ou a
organização), assim como as variáveis do espaço que possibilitam que ela ocorra (as técnicas
e as normas), Milton Santos (2009 [1996], pp. 166-168) aponta três formas de acontecer
solidário no território: homólogo, complementar e hierárquico. Se os sentidos da cooperação
são dados e/ou incorporados localmente, temos o acontecer homólogo ou complementar, mas
quando ele é imposto de fora trata-se do acontecer hierárquico. O autor explica que
De fato, com o advento das técnicas da informação podemos dizer que estamos na
presença da imposição à Região Canavieira de Alagoas de uma racionalidade externa. Por
isso, o comando sobre a produção e distribuição da riqueza tende a escapar, cada vez mais,
80
dos agentes locais. Como a Região tende a empobrecer porque uma parcela expressiva dos
seus sistemas de objetos e sistemas de ações busca cooperar com um sentido alheio, podemos
doravante defini-la como um acontecer homólogo.
Dessa forma, a nova etapa de penetração do capital a partir da ideia de
desenvolvimento (SANTOS, 2003 [1979], p. 29; MARTTELART, 1994), no pós-Segunda
Guerra Mundial, se dá por meio da imposição sistemática de uma racionalidade externa que
intenta alcançar, simultaneamente, os sistemas de objetos e os sistemas de ações. De todas as
formas possíveis, as regiões seriam pressionadas a cooperar com essa racionalidade alheia, e
as regiões e lugares que ficassem de fora (não só pela seletividade do processo, mas também
pela falta de sentido do mesmo para a maior parte das populações) seriam desvalorizados,
suas populações reprimidas ou, no melhor dos casos, “ajudadas” a acompanhar o ritmo da
modernização. A pobreza daí resultante não poderia ser mais perversa, porque além de se
manifestar numa repartição social e geográfica extremamente injusta da riqueza, se verificaria
também na desvalorização e repressão das formas de trabalho dos pobres (SANTOS, 2008
[1975]; CACCIAMALI, 1991; TELLES, 1992; SILVEIRA, 2004).
Daí em diante, portanto, a pobreza na Região Canavieira de Alagoas resultaria, em
grande medida, da “[...] tendência à racionalização das atividades [...]” a partir de um
comando e de uma organização concentrados (SANTOS, 2009 [1996], p. 167), que leva a
Região a servir como “meio” para uma racionalidade instrumental alheia. É o acontecer
hierárquico, que une a racionalidade instrumental das ações (WEBER, 1999, p. 15) à
racionalidade instrumental dos objetos (SANTOS, 2009 [1996], p. 292). Mas, como pensar os
bens, recursos e serviços cuja distribuição o Estado é levado a assumir para garantir a
cooperação entre a produção açucareira da Região Canavieira alagoana e das demais regiões,
assim como entre os trabalhadores e usineiros?
A tese que defendemos, a ser melhor desenvolvida no próximo item e na segunda
parte do trabalho, é a de que com a racionalização do espaço a cooperação entre as diversas
regiões brasileiras implica também em um acontecer político-institucional, isto é, a ação
racional conduzida por valores (WEBER, 1999, p. 15; GRAMSCI, 1976), que no limite
confere coerência a uma sociedade racionalizada sob o capitalismo, passa a ser indissociável
dos sistemas de objetos.
81
11
Com o Estatuto do Trabalhador Rural os trabalhadores rurais passaram a ter direito ao salário mínimo, a férias
remuneradas, ao 13º salário, à Previdência Social etc.
12
Foi no âmbito do GTDN, sob a liderança de Celso Furtado, onde surgiram as propostas de desenvolvimento
econômico para a Região Nordeste que deram origem à Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste –
SUDENE.
83
É importante observar que entre 1970 e 1980 as pequenas cidades da Região acusaram
um aumento percentual da população urbana maior até mesmo que o de Maceió: enquanto
elas cresceram 80,09% a capital cresceu 57,54%. Mas o ritmo da urbanização nos demais
decênios foi sempre mais lento no interior, pois aí a população urbana alcançou apenas
60,91% do total no final do milênio, momento em que Maceió registrava tão somente 0,25%
de população rural. Tanto isso como a emigração têm a ver não apenas com a forma que os
trabalhadores rurais são integrados aos direitos sociais (ainda que muito parcialmente, como
veremos melhor nos próximos itens deste capítulo), mas também com o modo como os
usineiros e a estrutura de propriedade regionais passam a figurar no quadro nacional.
Na década de 1960, de acordo com a explicação de Pedro Ramos (1991), a expansão
do mercado internacional para o açúcar brasileiro, somada à necessidade de conciliar os
interesses dos usineiros do Nordeste e do Sudeste, levaram o Estado a eleger a adequação da
produção no setor a um parâmetro técnico externo como uma meta a ser perseguida pela
política econômica nacional. Por isso, esse setor acaba por conhecer profundas
transformações na sua dialética pretérita Estado-mercado. Como se não bastasse o impacto,
por demais negativo, da produção canavieira na estrutura da produção e do consumo
(especialmente com a tomada dos sítios dos trabalhadores rurais por parte dos usineiros para
plantarem cana), agora tratava-se também de mobilizar esforços coletivos e justificar o uso do
excedente gerado socialmente para “racionalizar” a produção canavieira.
Por isso, estamos autorizados a dizer que a valorização de sistemas técnicos alheios
aos quadros nacionais condicionaria, de inúmeras maneiras, a repartição social e espacial da
riqueza pelo Estado (SANTOS, 2008 [1975], pp. 161-177; IANNI, 1977, p. 276). Esse novo
nexo político-geográfico acaba se colocando, de certa forma, por cima das Regiões e nestas,
se soma à injusta estrutura de propriedade.
Alimentados por recursos oriundos da exportação de açúcar numa conjuntura
internacional bastante favorável, o Fundo de Recuperação da Agro-indústria Canavieira
(Decreto 51.104 de 1961), transformado no mesmo ano no Fundo de Consolidação e Fomento
da Agroindústria Canavieira (Decreto 156 de 1961), e o Fundo Especial de Exportação (Lei
4.870 de 1965), criaram as condições financeiras necessárias para satisfazer a demanda por
“racionalização” da produção açucareira alagoana (ANDRADE, 1997). Estamos diante da
busca pelo IAA de novas formas de cooperação entre as regiões açucareiras, que envolvem
principalmente a distribuição de recursos desses fundos por meio de programas. Como deve
ser sustada qualquer tentativa de Reforma Agrária, a tarefa agora assumida por esse instituto,
juntamente com vários ministérios, não poderia ser mais contraditória, porque no limite trata-
85
Mapas 4 a 7 – Região Canavieira de Alagoas: Porcentagem de área colhida de cana sobre a área total
dos estabelecimentos agropecuários (1975-1995)
Em 1960 existiam apenas 254 tratores nos municípios da Região, número que saltou
para 3.090 vinte anos depois. Enquanto isso, o número médio de hectares para cada trator
diminuiu consideravelmente.
Tabela 12 – Região Canavieira de Alagoas: número médio de hectares para cada trator (1960-1980)
Ano Área total dos estabelecimentos Número total de Número médio de hectares para
agropecuários (ha) tratores cada trator
1960 907.694 254 3.574
1970 991.308 716 1.385
1980 1.188.004 3.090 384
Fonte: BRASIL (1962; 1975; 1983)
Organização: Fernando Silva (2017)
Tabela 13 – Região Canavieira de Alagoas: porcentagem irrigada da área total dos estabelecimentos
agropecuários (1975-1985)
Ano Área total dos Área irrigada no ano % da área irrigada sobre a área
estabelecimentos (ha) (ha) total
1975 1.037.842 15.899 1,53%
1985 1.142.120 24.094 2,11%
1995 1.042.284 151.180 14,50%
Fonte: site do IPEAdata
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13
A obra é a transcrição de um curso ministrado pela socióloga Ana Clara Torres Ribeiro entre os dias 18 e 22
de novembro de 2002 no Departamento de Geografia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
14
Os outros dois “tipos ideias” da ação social são determinados “3) de modo afetivo, especialmente emocional:
por afetos ou estados emocionais atuais; 4) de modo tradicional: por costume arraigado” (WEBER, 1999, p. 15
grifos no original).
15
Segundo a explicação da autora: “o outro tipo ideal é a ação racional conduzida para valores, ou seja, eu
racionalmente tenho por meta a difusão de tal valor cultural. Eu quero difundir o valor da igualdade na minha
crença, sem o qual a sociedade é um desastre, vamos dizer assim. Isto é um valor, da mesma maneira que a
solidariedade é um valor cultural que precisa ser difundido senão não se afirma como um valor cultural. Como
eu farei para que isto aconteça? Esta é uma ação racional dirigida a difusão de um valor cultural. Portanto, nem
90
visam às transformações sociais, “boa parte da ação instrumental visa pura e exclusivamente à
materialidade, ou é uma ação instrumental que se prende nos instrumentos e já não se sabe
mais quais são os seus objetivos”. Argumentamos que ao aceitar a tese da racionalização do
espaço geográfico é importante levar em conta a distinção entre uma cooperação entre
subespaços estabelecida por uma racionalidade instrumental e outra estabelecida por uma
racionalidade orientada por valores.
É bem conhecida a análise de Antonio Gramsci (1987) a respeito da “Questão
Meridional” italiana, na qual o autor vê as desigualdades e as relações entre o norte e o sul da
Itália como uma questão de classes, especificamente como tais classes, a partir das alianças
feitas entre si, passam a governar a sociedade. O autor já considerava nesse texto que somente
os interesses específicos das classes não bastavam, era preciso fazer tais interesses avultarem
como valores coletivos, sem os quais seria impossível governar a sociedade nacional.
Carlos Brandão (2004, pp. 53-54) defende a tese de que a chave para compreender as
questões regionais e urbanas/rurais no Brasil, levando em conta que o País se estruturou sobre
heranças regionais extremamente diversas e desiguais, encontra-se no conceito gramsciano de
hegemonia. Para que cada região pudesse participar da dinâmica nacional tornou-se
necessário, de certo modo, retirar parte substancial do comando político que os agentes
hegemônicos locais exerciam sobre a economia e a sociedade. Para o autor, aí também se
acharia um caminho para desvendar uma das questões mais importantes quando se trata do
Brasil: compreender o significado e o porquê da persistência de uma massa de não-cidadãos
convivendo com uma pequena minoria de privilegiados que usufruem de várias garantias
sociais (BRANDÃO, 2004, p. 147).
De nossa parte, consideramos que colocar em cooperação subespaços nacionais, ainda
mais se tratando de regiões, lugares e populações tão desiguais como no Brasil, exige que o
Estado garanta o resultado das lutas políticas assumindo a distribuição de recursos, bens e
serviços. Para isso, são necessários fundos, programas etc. executados por diversas
instituições, exigindo assim que a ação racional conduzida por valores se conecte a um
sistema de objetos técnicos. Como esses programas revelam, então, os sistemas de objetos e
ações que se está buscando valorizar em uma sociedade, propomos que se acrescente às
formas do acontecer solidário propostas por Milton Santos (2009 [1996]) o acontecer político-
institucional.
toda ação racional é uma ação instrumental. Confundir racionalidade com instrumentalização da ação é um erro
do ponto de vista weberiano” (RIBEIRO, 2014, p. 250).
91
16
Para efeitos de comparação, o PIB brasileiro a preços de 2000 era de R$ 427.997.030,20 (mil) em 1975 e R$
869.256.194,00 (mil) em 1996.
92
Mapas 8 a 13 - Região Canavieira de Alagoas: Produto Interno Bruto (PIB) Municipal a preços de 2000 (1975-2010)
17
Hoje Polo Multisetorial Governador Luiz Cavalcante, localizado no bairro Tabuleiro dos Martins, às margens
da BR - 101.
94
Tabela 14 – Região Canavieira de Alagoas: principais indústrias vinculadas ao setor sucroalcooleiro (1984)
AL-101 sul e BR – 316, acabou por apresentar as condições técnicas adequadas. Para fornecer
infra-estrutura básica para o Polo (iluminação, afastamento etc.) foi criada a Companhia
Alagoas Industrial – CINAL (criada em 1982), que logo depois tornou-se fornecedora de
água, gás etc. para as indústrias que lá se instalassem. Por fim, normas, capitais e organização
extra-regionais vêm juntar-se aos objetos técnicos apropriados para concretizar esse acontecer
hierárquico na Região.
A tabela 15 traz a relação das empresas que foram instaladas no Pólo Cloroquímico de
Alagoas segundo o número de trabalhadores: 60% do total desses trabalhadores estava no
município de Marechal Deodoro, e o restante em Maceió.
20
A concessão para a exploração das reservas de calcário do município foi dada à Companhia de Cimento Atol
pelo Governo Federal através do Decreto nº 80.008, de julho de 1977.
99
Em 1960 o número total de pessoas ocupadas na indústria em Alagoas era 19.759 num
total de 1.594 estabelecimentos, números que passaram para, respectivamente, 18.718 e 458
em 1970 e atingiram 39.776 e 1.802 em 1980. Dessa forma, é entre 1970 e 1980 que o valor
da transformação industrial dá um salto, saindo de 1.99.313 (mil cruzeiros) para 14.008.103
(mil cruzeiros). A queda verificada entre 1960-1970 ocorreu em virtude da falência das
fábricas têxteis (de 8.714 pessoas ocupadas nos estabelecimentos têxteis em 1960 restavam
somente 4.214 em 1970) (BRASIL, 1960; 1974; 1984).
Embora as estruturas produtivas que se erguem na Região tenham uma distribuição
muito parecida com a das fábricas têxteis, e ainda que a capacidade das elites do açúcar de
perpetuar a concentração fundiária limite, mais uma vez, a atuação de outros setores, estamos
na presença de uma situação deveras diferente21. Colocados como exigência para a
participação da Região Canavieira de Alagoas na política econômica nacional, os objetos
técnicos e as formas de fazer externos acabam servindo como parâmetro para todos os setores,
21
Araken de Lima (2006, p. 3) defende a tese de que em Alagoas “[...] a centralidade da produção açucareira na
estrutura produtiva do estado e suas determinações de cunho mercantis, conjugados a força social, política e
econômica dos grupos sociais dirigentes dessa atividade criaram um efeito de “fechamento” e isolamento de suas
estruturas de produção em relação a possíveis alternativas de organização econômica”. O autor argumenta
utilizando como comparação os estados de Sergipe, Bahia, Ceará e Pernambuco e buscando contradizer, em
parte, a ideia de Leonardo Guimarães Neto de que a integração da região nordeste ao território nacional teria
provocado mudanças substanciais na estrutura de produção nordestina sob o comando de capitais extra-
regionais, notadamente Estatais. Para Araken de Lima (2006, pp. 144-145 grifos no original). “[...] Alagoas não
passou por profundas alterações na sua estrutura econômica, a dinamização de suas atividades produtivas
continuou fortemente dependente da sua principal atividade tradicional e, ademais, a modernização desta
atividade não se deu sob o controle de capitais extra-regionais”. É difícil concordar com esta tese. Embora
Alagoas tenha se modernizado mantendo a preponderância do setor canavieiro, a economia, a política, a
sociedade e o espaço conheceram transformações profundas como resultado desse processo de integração. Além
dos “focos de modernidade” que vimos relatando, a economia urbana de todas as cidades, impulsionada pela
pobreza, mudou completamente, conforme abordaremos melhor no item 2.5.
100
22
Os principais autores que discutiram sobre a permanência e ampliação do fenômeno da pobreza em Alagoas na
segunda metade do século XX (TENÓRIO, 1995; ANDRADE, 1997; LIRA, 1998; LIRA, 2007; CARVALHO,
2009 entre outros) concordam que isso se deveu, em boa medida, à perpetuação da forte concentração fundiária e
da agroindústria canavieira como principal atividade econômica do estado. O ingresso na modernização
tecnológica sem romper com a antiga estrutura de propriedade foi responsável, de fato, por uma pobreza das
mais perversas do País. No entanto, muitas vezes o problema é apontado como sendo preponderantemente de
caráter setorial, como se a atuação de outros setores econômicos na região, como ocorreu em outras unidades da
federação, pudesse eliminar automaticamente o fenômeno da pobreza. Defendemos que, como o comando sobre
a produção e a repartição do excedente não é mais exclusivamente dado pelos limites da propriedade, como era
em grande parte quando vigorava o sistema de morada, a pobreza deixa de ser somente local para ser ao mesmo
tempo local, nacional e mundial (SANTOS, 2011 [2000], pp. 53-57). Ao lado da Reforma Agrária, a luta contra
a pobreza deveria incorporar a resistência contra a valorização de objetos e formas de fazer externos, porque
estes significam, ao mesmo tempo, a desvalorização dos lugares que não podem acompanhar tais formas
hegemônicas.
101
Tabela 17 – Região Canavieira de Alagoas: Número de cidades por grupos de habitantes e população
(1970-2010)
1970 1980 1991 2000 2010
Classes de habitantes Cid. Pop. Cid. Pop. Cid. Pop. Cid. Pop. Cid. Pop.
Até 5.000 29 63.500 27 76.507 15 42.484 11 33.434 12 42.028
De 5.001 a 10.000 9 59.164 12 94.577 15 103.472 17 121.150 12 85.054
De 10.001 a 20.000 2 26.982 5 64.687 12 156.208 14 211.064 13 191.364
De 20.001 a 50.000 1 21.648 3 72.706 6 183.338 8 274.748 12 378.299
De 50.001 a 100.000 0 0 0 0 0 0 0 0 2 108.513
De 100.001 a 500.000 1 251.713 1 392.265 0 0 0 0 0 0
Mais de 500.000 0 0 0 0 1 583.343 1 795.804 1 932.129
Total 42 423.007 48 700.742 49 1.068.845 51 1.436.200 51 1.737.387
Fonte: BRASIL (1972; 1982; 1991, 2000; 2010)
Organização: Fernando Silva (2017)
Mapas 14 a 19 - Região de Canavieira de Alagoas: imigrantes que antes residiam no Estado de Alagoas (1960-2010)
Tabela 18 – Região Canavieira de Alagoas: Usinas com destilarias anexas, usinas e destilarias
autônomas segundo o município, a localização do escritório e o número de trabalhadores em 1984 e
1994
Usinas com destilarias anexas
Localização Usinas e Localização Início das Número de Número de
destilarias do escritório atividades trabalhadores trabalhadores
anexas (1984)* (1994)*
Joaquim Alegria Maceió 1974 612 582
Gomes
Messias Bititinga Maceió 1937 418 239
Destilarias autônomas
Localização Destilarias Localização Início das Número de Número de
autônomos do escritório atividades trabalhadores trabalhadores
(1984)* (1994)*
Coruripe Camaçari Maceió 1979 475 450
Coruripe Pindorama Coruripe 1956 28 *
Marechal Massagueira ** ** ** **
Deodoro
Roteiro Roteiro Maceió 1977 183 223
[...] na região da mata alagoana, como ocorre nas demais regiões canavieiras
nordestinas, as cidades interioranas à exceção de umas poucas, não exercem
a função de entrepostos ou centros de convergência da produção rural. São
as usinas que exercem tal função o que reduz a dinamicidade e o poder de
comando espacial dos pequenos centros urbanos existentes na região.
Convém salientar que as relações externas das usinas são mantidas apenas
com a capital, já que é em Maceió que se localizam seus escritórios,
armazéns de açúcar, estabelecimentos bancários, o porto de embarque do
açúcar, e enfim, os serviços que a usina precisa, para seu funcionamento,
receber de centros urbanos (FIAM, 1978, pp. 16-17)23.
É preciso lembrar, porém, que além de Maceió alguns poucos centros urbanos, como
São Miguel dos Campos e União dos Palmares, produziam certos bens exigidos pelas usinas,
como vimos no item anterior. Além disso, comércios e serviços menos exigentes de capital,
como serviços de transporte de mão de obra das cidades para o campo, oficinas e serviços de
borracharia, entre outros, passaram a ser ofertados nalguns centros urbanos do interior.
Parece-nos razoável supor também que os serviços bancários, pouco a pouco,
passaram a ser buscados fora de Maceió: em 1994, das vinte e duas cidades do interior da
Região Canavieira que possuíam agências bancárias, somente cinco não tinham usinas em
seus municípios (Anadia, Viçosa, Junqueiro, Messias e Novo Lino). Por outro lado, 77% dos
municípios que não sediavam usinas não tinham qualquer agência bancária. Esse raciocínio
faz ainda mais sentido se lembrarmos que nove das trinta e duas agências bancárias do interior
eram do Banco do Estado de Alagoas – PRODUBAN, Banco sobre o qual os usineiros tinham
a maior parte do comando político (LIMA, 1992).
Nesses pequenos centros do interior originados “[...] em função de engenhos e usinas
[...]” (CORRÊA, 1992, p. 94), os direitos do trabalhador rural, agora assegurados pelo Estado,
vêm acrescentar novos elementos à diferenciação da pobreza. Neste sentido, apresentamos
nos mapas a seguir a distribuição do número de aposentados e pensionistas de Instituto Oficial
da Previdência no período de 1991 a 2010. Vemos que há maior densidade no entorno de
Maceió e São Miguel dos Campos, e certa rarefação nos municípios próximos a Porto Calvo.
Dessa forma, mais uma vez as cidades com menos de 20.000 habitantes, especialmente os
pequenos centros que não chegam a alcançar a cifra de 5.000, tendem a empobrecer e perder
população (tabela 17). Ser pobre aí significa, além de tudo o mais, não ter acesso aos bens
23
No século XXI essa dinâmica conheceria alterações não desprezíveis. O pagamento dos salários aos
trabalhadores por parte das usinas, por exemplo, antes realizado nos barracões das fazendas ou nas próprias
usinas, passaria a ser feito através de bancos, o que terminaria por aumentar as complementaridades do campo
com certas cidades do interior, ao mesmo tempo que contribuiria para o empobrecimento daquelas pequenas
cidades que não abrigam usinas em seus municípios nem muito menos agência bancária no espaço urbano.
110
garantidos pelo Estado ou, por exemplo, ter que ir todo mês a uma cidade vizinha para receber
a aposentadoria.
Mapas 30 e 31 – Região Canavieira de Alagoas: rendimentos nominais das pessoas com 10 anos e
mais (1980-1991)
Mapas 32 e 33 - Região Canavieira de Alagoas: rendimentos nominais das pessoas com 10 anos e
mais (2000-2010)
24
Destaca-se, nesse sentido, o “Programa Luz Para Todos”, oficialmente chamado de “Programa Nacional de
Universalização do Acesso e Uso da Energia Elétrica”, criado pelo Decreto nº 4.873, de novembro de 2003. Até
2013, o estado de Alagoas teve cerca de 98 mil domicílios eletrificados através desse Programa. Dado disponível
em: http://gazetaweb.globo.com/gazetadealagoas/noticia.php?c=219756 Acesso em maio de 2017.
116
25
Além desses, há mais dois estudos realizados pela Secretária de Planejamento do Estado de Alagoas –
SEPLAN em convênio com a SUDENE, sob a coordenação do geógrafo Ivan Fernandes Lima. São eles:
“Estrutura urbana de Alagoas – interação por funções urbanas” e “Estrutura urbana de Alagoas – interação por
fluxos telefônicos” (GOVERNO DO ESTADO DE ALAGOAS, 1977a; 1977b). Ambos chegaram a resultados
muito semelhantes àqueles do IBGE, mesmo porque a base teórico-metodológica adotada foi idêntica, qual seja,
a teoria dos Lugares Centrais. Pensamos que tais pesquisas apresentam duas limitações principais. A primeira,
que de certa forma vimos apresentando nos dois itens anteriores deste capítulo, é que ao considerar-se alguns
bens e serviços ofertados por uma cidade pode-se ter a impressão de que o comando sobre uma dada região
encontra-se nesta cidade, quando na realidade ambas podem estar cooperando com subespaços longínquos
(SILVA, 2001; DIAS, 1995). A segunda limitação, que procuraremos contornar no próximo item, é reconhecida
amplamente nas explicações metodológicas do IBGE e diz respeito ao fato de a Teoria dos Lugares Centrais não
permitir compreender devidamente como os subsistemas de ações subordinados dinamizam a rede urbana de
maneira particular.
26
Há diferenças metodológicas importantes entre o estudo “Divisão do Brasil em Regiões Funcionais Urbanas”
(1972) e as REGICs. Por exemplo, no estudo de 1972, que não partiu da teoria dos Lugares Centrais, foram
investigados, além da distribuição de bens e serviços nos centros urbanos, relacionamentos com base na
comercialização de produtos agrícolas. Acreditamos que se a questão de fundo for tão somente identificar as
cidades do interior que passaram a se destacar na oferta de alguns bens e serviços aos centros locais da Região,
como é o que pretendemos aqui, tais diferenças não impedem de estabelecermos certas comparações entre eles.
117
Mapas 52 a 55 – Região Canavieira de Alagoas: hierarquia dos centros urbanos segundo o estudo “Divisão do Brasil em Regiões Funcionais Urbanas” (1972) e “Regiões de Influência das Cidades - REGIC” (1983, 1993, 2007)
De acordo com os mapas, apesar de outras cidades terem aparecido num momento ou
noutro com certa importância (o caso mais persistente é o de Viçosa), quatro centros urbanos
despontaram no interior: São Miguel dos Campos, Porto Calvo, União dos Palmares e
Penedo. Na realidade, este último já exercia há muito tempo um papel importante na rede de
cidades do baixo São Francisco, no entanto somente com a expansão da cana e a instalação de
duas destilarias nessa área é que ficamos autorizados a incluí-lo na Região Canavieira
(MONTEIRO, 2013 [1962], pp. 92-102). Mesmo assim, fica claro quando olhamos as cidades
com as quais Penedo se relaciona que a sua dinâmica urbana está para além da Região
Canavieira, e mesmo do estado.
Dessa forma, notadamente as cidades de São Miguel dos Campos, Porto Calvo e
União dos Palmares, encravadas no meio do canavial, são pressionadas, por um lado, a
adaptarem uma pequena parcela dos seus sistemas de objetos e ações a uma racionalidade
externa e à viabilização dos direitos do trabalhador rural; por outro lado, a presença de um
número significativo de pessoas de baixos rendimentos e sem direitos sociais garantidos, tanto
do próprio município quanto migrantes de municípios vizinhos, impulsiona a adaptação da
economia, da política e do espaço dessas cidades.
É dessa forma que o acréscimo desigual de técnica e informação aos lugares se torna
responsável pelas novas cooperações campo-cidade, e entre as próprias cidades. São
cooperações devidas não somente às possibilidades oferecidas à ação humana pelo quadro
natural, ou então apenas por sistemas técnicos articulados na escala regional, conforme
ocorreu nos períodos anteriores da história da Região. Os meios informacionais desempenham
agora um papel fundamental, daí que as relações horizontais não se expliquem sem a
referência aos comandos externos. Estamos, assim, diante do acontecer complementar.
Como se manifestaria a pobreza no espaço urbano de Porto Calvo, União dos Palmares
e São Miguel dos Campos? Como as populações mais pobres iriam habitar e trabalhar? Teria
continuidade, agora fora da grande propriedade do usineiro, a percepção de uma “cidadania
concedida” (SALES, 1992), ou presenciaríamos daí em diante a lógica da “cidadania
regulada” (SANTOS, 1979) se perpetuar nas cidades do interior da Região Canavieira? Como
os diferentes subsistemas de objetos e ações que intentam adaptar as cidades se relacionam
com as pequenas cidades do entorno?
Inicialmente abordaremos essas questões no próximo item, mas elas continuarão sendo
problematizadas até o final da tese.
119
2.5. A Apreensão do Espaço Dividido: pobreza urbana em Porto Calvo, União dos
Palmares e São Miguel dos Campos
a ascender como o principal centro de distribuição de bens e serviços para minúsculas cidades
extremamente pobres do norte de Alagoas.
A emancipação dos municípios de Jacuípe, Jundiá, Matriz de Camaragibe e
Japaratinga ao longo da década de 1950, que cria cidades isoladas no meio do canavial,
somada à construção da AL -101 norte27 acabam por colocar Porto Calvo no entrecruzamento
de várias estradas vicinais e de novas e velhas cidades localizadas entre a BR – 101 e o litoral
norte de Alagoas.
Adicionalmente, com a falência da usina São Francisco (1961) de São Luís do
Quitunde e da usina Santa Amália de Passo de Camaragibe (1973), Porto Calvo torna-se o
município do norte a leste da BR – 101 com maior número de unidades industriais, abrigando
a usina Santana (1957) e a destilaria Maciape (1974).
Se é possível afirmar que Matriz de Camaragibe foi no pequeno intervalo entre sua
emancipação e meados dos anos 1960 a principal cidade da porção norte da Região
Canavieira, momento em que a pavimentação da AL – 101 norte ainda estava em andamento,
a construção do Hospital Municipal São Sebastião e a instalação de uma agência do
PRODUBAN (viabilizada com cessão do prédio pela prefeitura municipal) em Porto Calvo,
no final da década de 1960, terminaram alterando essa dinâmica (SEPLAN, 1968, pp. 50-51).
O espaço urbano de Porto Calvo passava, então, a abrigar serviços que não estavam
disponíveis em nenhuma cidade do entorno.
Presenciamos, desta forma, o surgimento de uma dinâmica deveras nova no alto do
morro da cidade de Porto Calvo. Aí, primeiramente, “[...] se construíram armazéns, os
trapiches, em que se acumulavam, à espera das barcaças, o açúcar e os outros produtos de
exportação” e as “[...] casas que negociavam com produtos importados – sal, tecidos, etc. [...]”
(ANDRADE, 2010 [1968], pp. 145-16); em seguida, a feira-livre instalada nessa área, apesar
de não ser muito expressiva por conta da existência de outras feiras nas fazendas das usinas,
atraía os produtos da praia (coco e peixe) e dos pequenos roçados (SEPLAN, 1968, p. 50).
Com a instalação do Hospital e da agência do PRODUBAN podemos assegurar que estamos
em face de um intercâmbio geográfico que se explica em função da própria racionalidade do
espaço urbano sintetizada nos novos fixos.
27
Para o período em análise, estamos considerando a AL – 101 norte como consta no documento “Estudo de
Viabilidade de Estradas Vicinais” (1972), do Departamento de Estradas de Rodagem - DER AL. Aí essa rodovia
compreende o trecho que vai de Maceió até Maragogi via Porto Calvo. A pavimentação até esta última cidade,
conforme consta no mesmo documento, já havia sido concluída em 1972. Atualmente a nomenclatura mudou e o
trecho que corta Porto Calvo é denominado de AL – 105 (ver mapa 3)
121
Nos dois decênios posteriores, com a instalação, também no alto do morro, de uma
agência do Banco do Brasil e um posto do antigo Instituto Nacional da Previdência – INPS
esse intercâmbio foi ratificado. Como é possível notar nos mapas 56 e 57, os principais fixos
públicos e econômicos que a cidade passou a abrigar foram instalados na mesma área.
Um bom indicativo dessa nova dinâmica é, sem sombra de dúvidas, a maneira como
foi se organizando, pouco a pouco, um sistema de transporte regular entre os pequenos
centros urbanos da área e Porto Calvo. Se algumas empresas que passaram a realizar o
transporte de passageiro de Maceió até Recife podiam servir às cidades localizadas ao longo
da AL – 101, no caso das pequenas cidades, servidas por péssimas estradas, tratava-se de um
fluxo de pessoas bastante irregular que, ao que tudo indica, teve origem com as feiras e
123
Quadro 6 – Origem e algumas características do serviço de transporte interurbano surgido em Porto Calvo e nas cidades do entorno
Pelas informações apresentadas no quadro é possível dizer que as novas relações entre
as cidades expressam-se, sobretudo, na economia urbana de Porto Calvo, uma vez que foi
principalmente esta cidade que reuniu as condições necessárias para implementar o transporte
regular de passageiros entre as pequenas cidades do seu entorno.
Desse modo, o novo urbano de Porto Calvo é responsável, de várias formas, por um
processo de grandes mudanças nas atividades que esta cidade passa a abrigar. A redistribuição
da população total entre a cidade e o campo, assim como da população economicamente ativa
- PEA entre os setores da economia são, dentre outros, indicadores confiáveis de tais
mudanças.
Se no decorrer da década de 1960 a população urbana de Porto Calvo não conheceu
acréscimos, a partir de 1970 observamos que o crescimento da população total passa a ser
sentido, sobretudo, pela cidade (gráfico 1). Esta, adicionalmente, acolhe os migrantes do
campo, ainda que a migração campo-cidade aí ocorra lentamente devido ao peso das velhas
estruturas sociais, que contribuem para manter, ainda que com tendência ao desaparecimento,
algumas casas de moradores nas fazendas das usinas.
secundário, ainda que tenha tido certo impulso entre 1970 e 1980 com a instalação da
destilaria Maciape, tende a manter-se (exceção feita a década de 1990, quando diminuiu
consideravelmente).
Gráfico 2 – Porto Calvo: Evolução da População Economicamente Ativa* por Setor (1960-2010)
O lento acréscimo nos números totais, tanto da PEA como da população total, é
revelador da gravidade da pobreza em Porto Calvo. Estamos tratando de um município onde,
desde 1980, a porcentagem de pessoas que auferem mais de três salários mínimos, entre todas
aquelas de 10 anos e mais de idade, nunca alcançou sequer 4%. Se a partir dessa mesma
década formos considerar os que auferem rendimentos superiores a 10 salários mínimos,
chegamos ao número máximo de 84 pessoas alcançado em 2000. Na realidade, as grandes
variações nos rendimentos da população portocalvense, como em toda a Região Canavieira de
Alagoas, ocorrem entre os mais pobres: a primeira se dá entre 1991 e 2000, quando a
porcentagem de pessoas de 10 e mais sem rendimentos aumenta de 50% para 58%; e a
segunda, entre 2000 e 2010, quando essa porcentagem cai para 42%.
Paralelamente aos processos que vimos descrevendo, a cidade de Porto Calvo vai
sendo moldada de maneira mais flexível por outros sistemas de objetos e ações. Trata-se de
um processo que revela as especificidades do processo de racionalização das cidades dos
países periféricos (SANTOS, 2008 [1994], pp. 69-75). Acreditamos que um bom indicador
inicial dessa flexibilidade seja a forma de ocupação dos espaços urbanos pelas populações
127
pobres, ainda mais porque na situação em análise tais populações representam quase toda a
população urbana.
Pelas informações disponíveis no documento “Diagnóstico Habitacional” (FIPLAN,
1988), produzido pela Secretaria de Planejamento do Estado de Alagoas – SEPLAN em
convênio com a SUDENE, podemos dizer que durante a década de 1970 teve início a
ocupação de novos espaços na cidade de Porto Calvo. Vale lembrar que entre 1970 e 1980 a
população urbana desse município quase dobrou, passando de 4.977 para 8.480 pessoas.
Como o número da população urbana total ainda era pequeno, inicialmente essa ocupação
ocorreu descendo o morro em direção à várzea do Rio Manguaba. Em verdade, tratava-se da
criação apenas de novas ruas. Somente na década de 1990 é que observamos a criação do
Bairro da Mangazala e, nos anos 2000, do Oscar Cunha, ambos às margens da AL - 101.
Esses aspectos gerais da nova forma de constituição da cidade de Porto Calvo são
apresentados no quadro a seguir. Com ele, temos somente o objetivo de apontar como uma
característica do processo de racionalização das cidades brasileiras se revela nas cidades de
uma Região tão pobre.
Em resumo, podemos dizer que a própria evolução do espaço urbano de Porto Calvo,
assim como suas relações externas e internas, passam a resultar da convivência entre os
subsistemas de objetos e ações valorizados pela sociedade e todos os demais objetos e formas
de fazer. Estes últimos constituem, de longe, a grande maior parte da cidade, mas são
compelidos a se adaptar ou funcionar de maneira subordinada.
Uma expressão desse verdadeiro “Espaço Dividido” (SANTOS, 2008 [1975], p. 44) é
a diversidade de formas de organização social, espacial e política das atividades econômicas
que passam a conviver na cidade. Por isso, de acordo com Milton Santos, seria melhor de
agora em diante, tanto para fins operacionais como para buscar a compatibilidade das teorias
128
com a nova realidade urbana dos países periféricos, diferenciar tais atividades segundo os
graus de técnica, capital e organização a partir dos quais elas funcionam. Mesmo que, por
exemplo, o pequeno comércio e a feira-livre28 passem a funcionar em Porto Calvo na mesma
rua que o PRODUBAN e o Banco do Brasil, no caso dos primeiros o nível de capital é baixo,
e disso depende, em larga medida, suas possibilidades de organização. São atividades que
pertencem, na sua maior parte, ao circuito inferior da economia urbana, enquanto os bancos
fazem parte do circuito superior da economia urbana (SANTOS, 2008 [1975]).
Segundo o mesmo autor (2008 [1975], pp. 40-42), cada circuito pode ser definido a
partir do conjunto de atividades que abrange e da população que a ele recorre para trabalhar
e/ou para consumir. Não se trata de uma lista rígida de atividades que devem estar presentes
na cidade para que cada circuito seja delimitado, porque no caso de Porto Calvo, por exemplo,
ainda que não tenhamos o intuito de fazer um levantamento exaustivo de todas as atividades
que existiram nesta cidade no período em análise, já ficou claro que era pontual a presença do
circuito superior. Frequentemente ocorre de a população de um dos circuitos consumir um
bem ou serviço em outro, isto vai depender bastante da forma como se entrelaçam os dois
circuitos em cada contexto urbano-regional, assim como de cada época.
Os elementos do circuito superior são: os bancos, indústria e comércio urbano
modernos, indústria e comércio de exportação, serviços modernos, atacadistas e
transportadores. Cada um desses elementos relaciona-se de maneira específica com os demais,
com a cidade na qual está presente e com o outro circuito, o circuito inferior da economia
urbana. Este abrange o comércio não-moderno (geralmente de pequena dimensão), os serviços
não-modernos e as formas de fabricação que não exigem muito capital (SANTOS, 2008
[1975], p. 40).
28
Roberto Lobato Corrêa (1988, p. 72) lembra que, “no Nordeste brasileiro, os mercados periódicos ou feiras
constituem um dos componentes fundamentais da rede de localidades centrais, coexistindo com outros
componentes de localização fixa”. E que, “quanto maior for a importância da cidade, em termos de centralidade,
maior será a importância absoluta de sua feira, importância determinada segundo o número de participantes e a
área de atuação da mesma” (p. 73). Trata-se de um mercado tradicional do Nordeste, umbilicalmente ligado à
economia e à cultura dos lugares, que também se moderniza seletivamente e passa a participar ativamente da
conformação das redes urbanas nordestinas.
129
Mais jovem que Porto Calvo, a cidade de União dos Palmares, surgida às margens do
Rio Mundaú numa área em que a resistência negra havia inicialmente impedido a expansão da
cana (LIMA, 1992, pp. 81-83), acompanhou um pouco mais de perto a vida urbana regional
na primeira metade do século XX em função das possibilidades de circulação que foram-lhe
abertas pela chegada das ferrovias. A estação ferroviária, a cerca de 0,5 km das margens do
Rio Mundaú onde teve início a cidade, já havia direcionado a localização de alguns fixos,
como as agências do Banco do Brasil e dos Correios, para suas proximidades. Tudo isso
termina condicionando o ingresso de União dos Palmares no período de racionalização do
espaço urbano.
Entre as décadas de 1960 e 1990 a Praça Antenor Uchôa e a Avenida Monsenhor
Clovis Duarte de Barros passaram a abrigar mais duas agências bancárias (do PRODUBAN e
do Banco do Nordeste), além de um Posto do Instituto Nacional da Previdência – INPS, um
cinema etc. Nos mapas 58 e 59 podemos observar como se distribuíam no espaço urbano os
principais fixos que foram instalados nesse intervalo de tempo.
130
Até mesmo os fixos mais antigos estavam agora ingressando numa nova dinâmica.
Uma instituição de caridade como o Hospital São Vicente de Paulo, por exemplo, inaugurada
em 1937 para lidar com situações locais de pobreza e indigência do entorno de União dos
Palmares, teria vários equipamentos necessários ao seu funcionamento adquiridos pelo
FUNRURAL, além de uma sala específica para atender aos segurados do INPS
(MINISTÉRIO DO INTERIOR, 1971, p. 61). Neste caso, como em vários outros, o acontecer
132
político-institucional mediava parte importante do novo papel que a cidade de União dos
Palmares passa a exercer face aos pequenos centros urbanos do entorno.
Esse papel não é compreensível sem mencionarmos a construção da BR – 104 e a
instalação da Usina Lajinha (1936) no município. Embora o vizinho município de São José da
Laje sediasse uma das mais antigas e maiores usinas da Região Canavieira, a emancipação
dos municípios de Santana do Mundaú (cuja principal estrada demandava a cidade de União
dos Palmares) e de Branquinha (a cerca de 10 km de União dos Palmares) durante a década de
1960, assim como a ampliação dos serviços bancários e de saúde sediados no espaço urbano
palmarino, confirmaram as novas formas de intercâmbio geográfico de União dos Palmares
com os centros urbanos do seu entorno.
No quadro 8 procuramos mostrar como esse intercâmbio propiciou o surgimento de
um sistema interurbano de transporte de passageiros. Vejamos.
133
Quadro 8 – Origem e algumas características do serviço de transporte interurbano surgido em União dos Palmares e nas cidades do entorno
Ano em que passou a se
Cidade de Década do Linhas que perfaziam quando Algumas características no período de Perfil dos passageiros que circulavam
organizar como Algumas características atuais (2016) *
origem surgimento surgiu surgimento no período de surgimento
associação
Rodavam em média 15 carros do modelo
Kombi na linha Branquinha - União dos
São 12 carros (modelos van e ducato) que fazem a linha
Palmares. Não há registro sobre a Essencialmente trabalhadores de usinas e 2002 (antes disso os
Branquinha - União dos Palmares. A linha Branquinha –
Branquinha - União dos Palmares e quantidade de carros na linha Branquinha seus familiares, aposentados e trabalhadores estavam
Branquinha Década de 1990 Murici não existe mais. Toda a organização da linha é, desde
Branquinha - Murici – Murici. Para trabalhar no transporte funcionários públicos que buscavam vinculados à associação
2011, feita pela Agência Reguladora de Serviços Públicos
bastava comprar um carro e sair pegando bancos, INSS**, hospital etc. de União dos Palmares)
do Estado de Alagoas – ARSAL.
passageiros, não havia qualquer controle
sobre a entrada e saída de transportadores.
Os carros eram do modelo F 4.000 e D-20
(em função das péssimas condições da
rodovia AL - 205). Não há registro na São 22 carros (modelos van e ducato) que fazem a linha
associação sobre o número de carros que Santana do Mundaú - União dos Palmares. Toda a
Santana do Santana do Mundaú - União dos Trabalhadores de usinas, pequenos
Década de 1970 rodavam nesse período. Para trabalhar no 1997 organização das linhas é, desde 2013, feita pela Agência
Mundaú Palmares agricultores e funcionários públicos.
transporte bastava comprar um carro e Reguladora de Serviços Públicos do Estado de Alagoas –
sair pegando passageiros, não havia ARSAL.
qualquer controle sobre a entrada e saída
de transportadores.
Só há registro na associação de que o
São 14 carros na linha Murici - Maceió e 8 carros na linha
modelo de carro utilizado era Kombi.
Murici - União dos Palmares (modelos van, ducato e micro-
Para trabalhar no transporte bastava
Murici Década de 1980 Murici - Maceió Não soube informar. 1995 ônibus). Toda a organização das linhas é, desde 2010, feita
comprar um carro e sair pegando
pela Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de
passageiros, não havia qualquer controle
Alagoas – ARSAL.
sobre a entrada e saída de transportadores.
Rodavam em média 5 carros (modelos
caravan e veronez) dividindo-se entre as
linhas Ibateguara - União dos Palmares e
São 20 carros, sendo 15 na linha Ibateguara - União dos
Ibateguara - Maceió. Os carros não
Funcionários públicos, trabalhadores de Palmares e 5 na linha Ibateguara - Maceió (todos modelos
Ibateguara - União dos Palmares e rodavam todos os dias, e para Maceió iam
Ibateguara Década de 1980 usina e aposentados que buscavam 1993 van e ducato). Toda a organização das linhas é, desde 2011,
Ibateguara - Maceió somente 3 vezes por semana. Para
bancos, hospitais, feira e INPS**. feita pela Agência Reguladora de Serviços Públicos do
trabalhar no transporte bastava comprar
Estado de Alagoas – ARSAL.
um carro e sair pegando passageiros, não
havia qualquer controle sobre a entrada e
saída de transportadores.
São 7 carros na linha São José da Laje – Maceió e 9 carros
na linha São José da Laje – União dos Palmares (todos
São José da laje – União dos Funcionários públicos, trabalhadores de 1990 (vinculada à
modelos van e ducatos). Toda a organização das linhas é
São José da Laje Década de 1970 Palmares e São José da Laje – Não foi possível obter informações. usina e aposentados que buscavam associação de União dos
agora feita pela Agência Reguladora de Serviços Públicos
Maceió bancos, hospitais, feira e INPS**. Palmares)
do Estado de Alagoas – ARSAL (não foi possível saber
desde quando).
Eram carros dos modelos caravan e São 44 carros na linha União dos Palmares - Maceió; e 23 na
Kombi, sendo a maior parte (cerca de 50 Na linha União dos Palmares - Maceió linha União dos Palmares - São José da Laje. A linha União
União dos Palmares - Maceió; União carros) na linha União dos Palmares – predominavam populações de dos Palmares – Murici hoje é feita por trabalhadores da
União dos dos Palmares - São José da Laje; Maceió. Apesar de não estarem rendimentos mais elevados, mas nas associação de Murici e a linha União dos Palmares – Usina
Década de 1970 1990
Palmares União dos Palmares - Murici; União organizados em associação, havia certo demais circulavam principalmente Lajinha foi extinta com a falência desta usina em 2013. Toda
dos Palmares - Usina Lajinha controle da parte dos próprios trabalhadores de usinas e aposentados em a organização das linhas é agora feita pela Agência
trabalhadores sobre a entrada e saída de período de pagamento. Reguladora de Serviços Públicos do Estado de Alagoas –
novos transportadores nas linhas. ARSAL (não foi possível saber desde quando).
*Alguns dados sobre o número de praças atuais em cada linha, obtidos em nossas entrevistas, não conferem com os dados disponibilizados pela Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de Alagoas – ARSAL. Nesses casos optamos por manter os
números colhidos no trabalho de campo.
** Preservamos a sigla informada nas entrevistas realizadas com o presidente de cada associação.
Fonte: Trabalho de campo (2015-2016)
Organização: Fernando Silva (2017)
134
A busca por adaptação à realidade de cada cidade se revelava, por exemplo, na escolha
do carro para o transporte: enquanto nas cidades localizadas ao longo da BR – 104 utilizavam-
se, principalmente, os modelos Kombi e Caravan, na linha de Santana do Mundaú, em função
das péssimas condições da estrada, predominavam os caminhões e pickups. A mudança que
essa dinâmica foi conhecendo com o tempo pode ser visualizada nas duas fotos a seguir.
Foto 1 - Transporte interurbano de passageiros no terminal rodoviário de União dos Palmares (década
de 1980)
Foto 2: Transporte interurbano de passageiros no terminal rodoviário de União dos Palmares (2015)
Ainda no quadro 8 podemos observar que, diferentemente da área de Porto Calvo, aqui
esse sistema originou-se em cada centro urbano. Essa organização, contudo, não deixou de ser
sentida, sobretudo, pela economia urbana de União dos Palmares. Como ocorre até hoje,
notamos que os transportes de Branquinha e Santana do Mundaú tinham como destino, quase
que exclusivamente, a cidade de União dos Palmares. Dessa forma, passageiros com destino a
Maceió, por exemplo, passariam antes por União dos Palmares ou seriam levados pelos carros
que partissem desta cidade.
Ganharam ímpeto, deste modo, transformações importantes na economia urbana de
União dos Palmares, delineando um diverso e amplo circuito inferior da economia urbana.
Trata-se de uma das especificidades dessa cidade face às demais do interior da Região que
estamos focando. Veremos a população urbana crescer sustentadamente, assim como
observaremos o surgimento de bairros periféricos com quadros populacionais expressivos,
somente superados na Região por Maceió (FIPLAN, 1988).
A população urbana de União dos Palmares dobrou entre 1950 e 1970 (de 8.269 para
16.753), mesmo com o desmembramento de Santana do Mundaú, e dobrou novamente entre
1970 e 1991 (passou para 34.040). O maior crescimento ocorreu durante a década de 1980,
quando foram acrescentados 11.574 habitantes à população urbana. A partir de 1991 o
crescimento se deu de maneira mais lenta: em 2010 tínhamos o total de 47.651 habitantes
morando na cidade.
De acordo com o citado documento “Diagnóstico Habitacional”, União dos Palmares,
no final dos anos 1980, já tinha 15.480 moradores vivendo em condições precárias de
habitabilidade: quase todas as habitações sem título de posse da propriedade, sem
esgotamento sanitário, sem água encanada e sem energia elétrica. Para efeitos de comparação,
esse número de moradores era de 76.704 para Maceió, 8.100 para Penedo, 1.630 para Porto
Calvo e 300 para São Miguel dos Campos. No quadro a seguir, podemos observar as formas
de ocupação dos bairros criados em União dos Palmares.
136
de terrenos, ocupações de prédios públicos (caso da antiga Colônia Penal Santa Fé) ou doação
de terrenos por parte da prefeitura, igreja ou proprietários locais. Esse processo não contribuiu
para a continuidade da percepção de uma “cidadania concedida” (SALES, 1992)? Somente no
século XXI é que as casas para os desabrigados passaram a ser construídas por meio de
programas específicos direcionados às populações afetadas.
Ao processo de flexibilização da cidade, corresponde o crescimento de um terciário de
baixíssimo rendimento, que abriga tanto a PEA desempregada permanentemente como a que
trabalha apenas durante o período de safra da Usina Lajinha29. Observamos no gráfico 3 que a
partir da segunda metade do século passado a PEA do setor terciário cresce de maneira
sustentada, enquanto a do setor secundário cresce lentamente e, às vezes, até diminui.
Gráfico 3 – União dos Palmares: Evolução da População Economicamente Ativa* por Setor (1960-
2010)
29
A Companhia de Desenvolvimento de Alagoas – CODEAL, antes de ser extinta em 2000, ainda criou o
Distrito Industrial Floriano Rosa na cidade de União dos Palmares (Lei 760/1989). No Cadastro Industrial de
1993-94 a principal fábrica que aparece nesse Distrito é a Indústria de Laticínios São Domingos (com menos de
100 trabalhadores). Contudo, a dinâmica que o Distrito Industrial de União dos Palmares conheceu daí em diante
se explica, sobretudo, pela aceleração do acontecer hierárquico na Região, que veremos melhor no próximo
capítulo.
138
e quarenta e um) em 2000 e 172 (cento e setenta e dois) em 2010. Por outro lado, a
porcentagem de pessoas de 10 anos e mais que tinha rendimentos de até 3 (três) salários
mínimos nesse intervalo foi respectivamente de: 47%, 50%, 41%, 55%. Essa diminuição dos
anos 2000 se deu porque aumentou bastante o percentual dos sem rendimentos, ao contrário
do que verificamos em 2010.
São Miguel dos Campos foi, sem dúvida alguma, a cidade do interior da Região
Canavieira de Alagoas que participou com mais vigor dessa nova fase da urbanização.
Embora esse centro tenha conhecido uma vida urbana importante como entreposto comercial
no século XIX, e ainda que a fábrica de tecidos de Vera Cruz tenha aí aportado alguns dos
mais novos elementos de racionalização da sociedade na primeira metade do século XX, é
somente com a viabilização dos tabuleiros para o cultivo da cana que a cidade de São Miguel
dos Campos vai assumir um papel de destaque face aos pequenos centros urbanos de suas
proximidades.
É correto afirmar que até os anos de 1960 o espaço urbano de São Miguel dos Campos
relacionava-se com o seu entorno em função, sobretudo, da existência da Santa Casa de
Misericórdia (criada em 1926), que buscava lidar com manifestações locais de pobreza
(MINISTÉRIO DO INTERIOR, 1972, p. 128), e de sua feira-livre tradicional. Como
explicava Manuel Correia de Andrade (2010 [1958], pp. 85/93), no final da década de 1950,
se a generalização do uso do caminhão poderia ocasionar a perda da importância de uma feira
que surgiu pelo uso do Rio São Miguel como meio de transporte, a proximidade da Usina
Caeté da cidade de São Miguel dos Campos contribuía, ao contrário, para reforçar tal
importância. Dizia o autor que, diferentemente das outras usinas da área, “a Caeté não possui
feira uma vez que, situada a 1 km da cidade de São Miguel dos Campos, podem os seus
empregados se abastecer na feira da cidade [...]” (pp. 90-91).
O grande crescimento das usinas mais antigas da área, assim como a instalação de
novas grandes usinas a partir dos incentivos fornecidos pelos programas federais, tornam a
urbanização aí mais acelerada do que em qualquer outra parte da Região Canavieira de
Alagoas. Adicionalmente, as emancipações de Boca da Mata e Campo Alegre durante a
década de 1950, e de Roteiro nos anos 1960 (todos desmembrados do território de São Miguel
dos Campos), contribuem também para alterar a geografia urbana da área, porque criam
139
pequenos centros urbanos nas proximidades de São Miguel dos Campos que vão ficando
incapazes de atender a demanda local exigida pelo período que então se inicia.
A relação de São Miguel dos Campos com esses centros foi redefinida quando no
espaço urbano miguelense foram instalados novos fixos geográficos para atender a demanda
das populações locais. Conforme os mapas a seguir, esses fixos passaram a localizar-se a
noroeste das margens do Rio São Miguel onde teve início a cidade, sobretudo nas ruas Barão
de Jequiá e Visconde de Sinimbu.
Quadro 10 – Origem e algumas características do serviço de transporte interurbano surgido em São Miguel dos Campos e nas cidades do entorno
*Alguns dados sobre o número de praças atuais em cada linha, obtidos em nossas entrevistas, não conferem com os dados disponibilizados pela Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de Alagoas – ARSAL. Nesses casos optamos por manter os
números colhidos no trabalho de campo.
** Preservamos a sigla informada nas entrevistas realizadas com o presidente de cada associação.
Fonte: Trabalho de campo (2015-2016)
Organização: Fernando Silva (2017)
142
Gráfico 4 – São Miguel dos Campos: Evolução da População Urbana e Rural (1960-2010)
Quadro 11: década e formas de ocupação dos bairros de São Miguel dos Campos - AL
Bairro Década de surgimento Formas de ocupação
Centro Não foi possível obter Venda e doação de terrenos (não foi possível saber que
informações doou)
Rui Palmeira Não foi possível obter Não foi possível obter informações
informações
Canto da Não foi possível obter Não foi possível obter informações
Saudade informações
Bela vista Não foi possível obter Não foi possível obter informações
informações
Novo São Não foi possível obter Não foi possível obter informações
Miguel informações
Coité Não foi possível obter Não foi possível obter informações
informações
Bairro de Fátima Década de 1960 Construção pela Companhia de Habitação Popular de
Alagoas - COHAB
Humberto Alves Década de 1960 Terrenos doados pela prefeitura
Conjunto Paraíso Década de 1960 Terrenos doados pela prefeitura
Geraldo Década de 1960 Terrenos doados pela prefeitura
Sampaio
Bairro de Década de 1970 Terrenos doados pela prefeitura
Lourdes
Edgar Soares Década de 1980 Terrenos doados pela prefeitura
Palmeira
Esther Soares I Década de 1980 Terrenos doados pela prefeitura
Hélio I Década de 1990 Terrenos doados pela prefeitura
Hélio II Década de 2000 Terrenos doados pela prefeitura
Hélio III Década de 2000 Terrenos doados pela prefeitura
Fonte: FIPLAN (1988); Ministério do Interior (1972); e trabalhos de campo (2014-2016)
Organização: Fernando Silva (2017)
144
Em virtude de termos em São Miguel dos Campos três grandes usinas, que
empregavam em 1994 quase 5.000 trabalhadores, além de uma fábrica de cimento,
verificamos uma distribuição da PEA diferente do que ocorre nas demais cidades da Região.
Como sintetiza o gráfico a seguir, em alguns anos a parte da PEA no setor industrial quase se
equiparou à dos outros setores.
Gráfico 5 – São Miguel dos Campos: Evolução da População Economicamente Ativa* por Setor
(1960-2010)
Porém, pelos baixos rendimentos que essa PEA sempre apresentou podemos assegurar
que a grande maioria da população de São Miguel dos Campos pertence ao circuito inferior da
economia urbana e, portanto, pode ser considerada pobre. A porcentagem de pessoas de 10
anos e mais que auferiam mais de 3 salários mínimos nesta cidade nunca chegou a 10%: foi
de 5% em 1980, 4% em 1991, 7% em 2000 e 5% em 2010.
145
A
o final do século XX, a Região Canavieira de Alagoas apresentava situações de
pobreza que podiam ser incluídas entre as piores do Brasil. Sob o prisma de
diversos indicadores, tratava-se realmente das piores: a Região Metropolitana de
Maceió acusava o menor Índice de Desenvolvimento Humano – IDH dentre as vinte regiões
metropolitanas incluídas no Altas de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, e 71% da população total da Região Canavieira
tinha renda per capita inferior a meio salário mínimo. De fato, o quadro já bastante dramático
de pobreza que vimos apresentando no capítulo anterior agravou-se a partir de 1990.
Neste capítulo, demonstraremos que a reprodução das situações de pobreza na Região
passou por mudanças consideráveis na última década do século XX. Defenderemos que tais
mudanças estão diretamente ligadas à nova qualidade dos sistemas de objetos e de ações
hegemônicos através dos quais se busca colocar em cooperação os diversos lugares e regiões.
A princípio, vemos que essa nova forma revela-se nas relações externas e internas dos
agentes dominantes, isto é, do setor canavieiro. Mas como se trata de um parâmetro que
permeia, de diversas maneiras, todas as relações Estado-Sociedade (RIBEIRO, 1998),
pensamos ser extremamente necessário investigar também como ficam as formas de
distribuição da riqueza por parte do Estado para as populações pobres30.
Para seguir debatendo a tese da racionalização do espaço geográfico (SANTOS, 2009
[1994]), podemos afirmar que se busca, de várias formas, acelerar o acontecer hierárquico na
30
Como essa questão constitui o cerne de nossas preocupações, a segunda parte da tese será dedicada
exclusivamente ao seu tratamento.
146
A partir de 1990, com a extinção do IAA através da lei nº 8.029, teve início um
processo de grandes consequências para as relações externas e internas da Região Canavieira
de Alagoas, que terminou transformando profundamente a organização da produção, os níveis
de emprego, a pobreza e, com isso, aportou novos conteúdos à urbanização regional. Mesmo
com equações de lucro bastante díspares, usinas e destilarias de diferentes portes, pertencentes
sobretudo a grupos empresariais da Região, podiam continuar funcionando devido aos
programas públicos e à fixação de cotas pelo IAA, como ocorria em boa parte das regiões
açucareiras nordestinas (ANDRADE, 1997). A desativação desses programas, a eliminação da
reserva de mercado para o açúcar nordestino e a liberalização, pouco a pouco, dos preços dos
principais produtos desse setor mudaram completamente a situação. Em várias dimensões do
processo agrícola, industrial e de comercialização, cada unidade industrial seria agora
responsável por melhorar sua eficiência para competir com as demais de dentro e de fora da
Região.
De acordo com os estudos de Cícero Péricles de Carvalho (2001) e Araken Alves de
Lima (2006), podemos destacar três principais consequências desses processos: a) falência de
pequenas usinas e destilarias, o que causou o aumento expressivo do desemprego; b)
fortalecimento dos maiores grupos empresariais, que passaram a concentrar a produção de
cana, açúcar e álcool, investir em outros setores da economia31 e na criação de novas unidades
industriais, sobretudo no Sudeste e Centro-Oeste do País32; e c) gravíssima crise financeira
estadual, tanto porque cresceu vertiginosamente a insolvência dos usineiros com as
instituições cujo controle político havia ficado praticamente em suas mãos (especialmente o
PRODUBAN e a CEAL), como pelo que ficou conhecido como “acordo dos usineiros”.
31
“Os grupos empresariais mais importantes diversificam radicalmente seus interesses, expandindo suas
intervenções econômicas em várias direções, transformando-se em holdings com presenças em ramos e regiões
diferentes. São vários os exemplos. Criação de gado leiteiro e beneficiamento do leite: Seresta (Leite Boa Sorte),
Roçadinho (Ilpisa), Grupo Olival Tenório (Agropecuária Porto Rico); empresas de táxis aéreos: João Lyra (Lug
Táxi Aéreo) e Carlos Lyra (Sotam Táxi Aéreo); indústria têxtil: Grupo Carlos Lyra (Fábrica da Pedra, em
Delmiro Gouveia); fábricas de fertilizantes: Grupo Tércio Wanderley (Usi-Fertil), Grupo João Lyra (Adubos JL),
Grupo Carlos Lyra (Agrofertil), Seresta (Adubos Boa Sorte) e Maranhão (Adubos Sanfertil); madeireira: Grupo
Toledo (Amadeu Barbosa); beneficiamento do coco: Seresta e Triunfo (Socôco); construção civil: Grupo Tércio
Wanderley (Cipesa) e Grupo Toledo (Epasa); engarrafamento de água mineral: Usina Sta. Clotilde; venda de
automóveis: Grupo Olival Tenório (Importadora Comercial), Nivaldo Jatobá (Toyota) e Grupo João Lyra
(Mapel); meios de comunicação: João Tenório/Triunfo (TV Pajuçara); criação de cavalos de raça: Seresta e
Grupo Olival Tenório (Haras Porto Rico).” (CARVALHO, 2001, pp. 666-667).
32
Segundo estudo da UFSCAR (2004) apud Lima (2006, p. 164), na década de 1990 os principais grupos
usineiros alagoanos investiram mais de R$ 859 milhões para instalação de 15 novas unidades industriais no
Sudeste e Centro-Oeste do País.
148
Observamos nos mapas 62 e 63 que durante a década de 1990 faliram seis usinas e
destilarias anexas, além de cinco destilarias autônomas. Segundo o Cadastro Industrial de
Alagoas de 1994 (ano em que algumas dessas unidades industriais estavam prestes a falir e,
portanto, supõe-se que estavam com um número reduzido de trabalhadores), quase 8.000
empregos diretos foram eliminados em dez municípios da Região. Isto sem contar os
empregos gerados indiretamente pelas próprias unidades industriais e pelos fornecedores de
cana.
Mapas 62 e 63 – Região Canavieira de Alagoas: Usinas e destilarias que faliram nos anos 1990 e após
2000
Os mapas ainda mostram que a maior parte das unidades industriais que faliram estava
localizada nas áreas mais pobres da Região Canavieira. De 2000 para cá tivemos novas
falências, só que dessa vez faliram três unidades industriais de um dos maiores grupos do
estado (Grupo João Lyra), além de uma destilaria em Japaratinga que encerrou as atividades
em 2002. No total, quase 12.000 trabalhadores ficaram desempregados.
149
Quadro 12: Síntese de algumas informações sobre o “Acordo dos Usineiros” assinado pelo Governo de Alagoas em 1988 e 1989
Dois acordos assinados pelo então Governador Fernando Collor de Mello, respectivamente em julho de 1988 e abril de 1989, com 31
usineiros, pelos quais o estado reconhecia estar em débito com estas empresas por ter cobrado ICMS sobre cana plantada em terras
O que foi?
próprias. Nos acordos, o estado comprometia-se a devolver às usinas todo o ICMS que teria sido cobrado indevidamente nos últimos 5
anos, que segundo os cálculos totalizaria US$ 120.000.000 (cento e vinte milhões de dólares).
O dinheiro seria devolvido em forma de isenções de ICMS em 120 parcelas, durante 10 anos.
As usinas e destilarias que não utilizassem todo o crédito tributário poderiam transferi-lo para outras empresas (como muitos grupos
Principais termos do
usineiros já controlavam empresas de outros ramos, muitos deles transfeririam o crédito para empresas do próprio grupo. Por exemplo, o
acordo
Grupo João Lyra transferiu créditos de suas usinas Laginha, Gauxuma e Uruba para Mapel Maceió Veículos e Peças, Lug Táxi Aéreo etc.).
Os valores da restituição seriam corrigidos segundo o mais alto dos índices de correção existente na economia.
O acordo durou de 1988 até 1996, período no qual estima-se que foram transferidos para as usinas R$ 358,05 milhões, além de R$ 110,77
Vigência e valores
milhões de isenções usufruídas por empresas de outros ramos.
pagos pelo estado
Como se trata de um imposto indireto, quando reconhecido direito à restituição, esta deveria ter sido feita ao contribuinte de fato (Instituto
do Açúcar e do Álcool e consumidores finais, onde repercute de fato o tributo).
Ilegalidades
Os valores foram absurdamente superestimados em virtude da utilização do maior índice existente para correção do valor. Caso tivesse sido
utilizado índices oficiais para cobrança de créditos tributários, segundo cálculos realizados por técnicos da Secretária da Fazenda em 1996,
o valor total da restituição seria de R$ 131,80 milhões, ou seja, neste mesmo ano o estado já teria pago a mais R$ 291,81 milhões.
Como o ICMS respondia pela quase totalidade das receitas tributárias do estado, estas caíram drasticamente e teve início uma grave crise
financeira da máquina pública em Alagoas.
Principais
Os serviços públicos estaduais passaram a se deteriorar e os funcionários públicos chegaram a ficar oito meses sem receber salários. Em
consequências
1997 o Governador Divaldo Suruagy renunciou e o seu vice, Manoel Gomes de Barros, assumiu o governo.
Toda essa situação foi usada para engrossar o discurso em favor das privatizações, da “racionalidade”, da eficiência etc.
Fonte: Lima (2001, pp. 87-96); Carvalho (2009, p. 53); Lira (1998 várias páginas); Veras (1997 várias páginas); Reportagem da Folha (julho de 1997) “Usineiros de Alagoas
ganharam R$ 468,8 milhões em isenção”. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fol/pol/po26071.htm
Organização: Fernando Silva (2017)
151
Nesse mesmo processo de acionar o controle político sobre a repartição da riqueza que
restou em suas mãos, os usineiros foram ficando cada vez mais inadimplentes com a CEAL e
com o PRODUBAN. Como podemos observar nas tabelas 19 e 20, os usineiros eram
responsáveis por quase metade da dívida total que a CEAL tinha a receber, e por cerca de
15% da inadimplência total com o Banco do Estado.
Tabela 19 – Alagoas: Dívida total e das usinas e destilarias com a Companhia Energética de Alagoas -
CEAL (1996/2013)
Dívida Total
2013 167,8 milhões
Dívida de usinas e destilarias
1996 40 milhões
2013 80,2 milhões
Fonte: Befort (2000)33; Alves (2015)34
Organização: Fernando Silva (2017)
Tabela 20 – Alagoas: Alguns dados sobre o Banco da Produção do Estado de Alagoas – PRODUBAN
no momento de sua liquidação
Número total de agências (1996) 24 agências
Número total de funcionários (1996) 1.128 trabalhadores
Débito total que o Banco tinha a receber (2002) 2,5 bilhões
Débito de usinas, grandes redes hoteleiras, empresas públicas e políticos 700 milhões
conhecidos (2002)
Débito somente das usinas (2002) 366,3 milhões
Fonte: Banco Central apud Salviano Junior (2004, p. 20); Carvalho (2012, p. 56); Alves (2014) 35
Organização: Fernando Silva (2017)
33
Disponível em: http://www2.uol.com.br/JC/_2000/1012/ec1012_2.htm Acesso em agosto de 2016.
34
Disponível em: http://novoextra.com.br/outras-edicoes/2015/817/16890/ceal-cobra-na-justica-mais--de-r-80-
milhes-de-usinas Acesso em agosto de 2016.
35
Disponível em: http://novoextra.com.br/outras-edicoes/2014/795/15443/estado-pede-r-75-milhes-
pelo-produban Acesso em agosto de 2016.
152
37
Ver reportagem de Ari Cipola “Usineiros destroem casas e criam favelas”. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/5/28/brasil/34.html Acesso em dezembro de 2013.
153
em que o controle sobre a produção e repartição da riqueza era ainda fortemente local.
Podemos assegurar, todavia, que a nova situação não encontra semelhante na história da
Região. E isto não somente porque agora toda uma economia municipal estaria em jogo
quando da falência de uma usina (CASTILLO, 2015), mas também em virtude da exigência
de que os próprios empresários cuidem de boa parte das suas relações externas. Agora é mais
apropriado dizer que, com a disponibilidade de sistemas de engenharia construídos com a
riqueza tirada dos braços do cortador de cana, as usinas defrontam-se com uma maior
exigência/possibilidade de elaborar sua política particular. O que isso significa?
Conforme demonstra a bibliografia sobre o processo de modernização da sociedade e
do território brasileiros (FERNANDES, 1975; SANTOS, 2008 [1975]; IANNI, 1977;
SOUZA, 2000; SANTOS e SILVEIRA, 2011 [2001]), até a década de 1980 a participação do
Estado nacional em diversos setores da economia, com sua ideologia “desenvolvimentista” e
vultosos recursos oriundos do centro do sistema capitalista, respondeu, ao mesmo tempo, à
necessidade de integração das diversas regiões à dinâmica nacional38 e de inserção de agentes
externos privados. Neste sentido, é possível dizer que muitas regiões brasileiras vinham cada
vez mais sendo governadas, ao mesmo tempo, pelo Estado e por grandes empresas (SANTOS,
1998a).
Como esclareceram, dentro outros, Celso Furtado (1968, p. 16 apud SANTOS, 2008
[1975], p. 175) e Octávio Ianni (1977, p. 272), a dominação do mercado brasileiro por
grandes firmas norte-americanas, europeias e japonesas, especialmente a partir dos governos
ditatoriais nos anos 1970, terminou conferindo a tais firmas capacidade de normatização da
vida social. De modo que as firmas passaram cada vez mais a assumir um papel comumente
reservado às instituições (papel que, aliás, iria ganhar bastante nitidez a partir das duas
últimas décadas do século XX) (SANTOS, M. 1985; ANTAS Jr., 2005). Mas, segundo nosso
entendimento, a ideia de política das empresas (e, por conseguinte, de acontecer hierárquico,
que é a sua versão geográfica) tem ainda outro elemento fundamental, a partir do qual
poderíamos compreender melhor a natureza das transformações que alcançaram o território
brasileiro notadamente nos anos 1990.
Segundo Octávio Ianni (1999), o amplo desenvolvimento da mídia de massa
transformou radicalmente as condições de exercício da política, porque possibilitou a
ascensão do “príncipe eletrônico”. No século XVI, Maquiavel havia proposto que o príncipe
seria, genericamente, uma figura política capaz de articular sabiamente suas qualidades
38
Como vimos no item 2.1 do capítulo anterior para a situação da Região Canavieira de Alagoas.
154
pessoais às condições sociais e políticas adequadas visando transformar uma dada realidade.
Gramsci, quatro séculos mais tarde, diante de novas contradições do capitalismo, afirmou que
o partido político poderia ser considerado o príncipe, ao qual caberia alterar os valores sociais
para governar não só as classes aliadas, mas toda a sociedade. Para Ocátvio Ianni (1999, p.
17), com a grande mídia isso muda sensivelmente, pois ela pode atuar, de maneira sutil e em
diversas escalas, na construção de visões de mundo que facilitam, por exemplo, a aceitação de
um produto de uma grande empresa no mercado, como faz a propaganda.
A questão central, porém, é que no caso do Brasil a grande facilidade que as grandes
firmas tiveram para instrumentalizar subsistemas de objetos e ações resultou em que, “em
lugar do cidadão formou-se um consumidor, que aceita ser chamado de usuário” (SANTOS,
2007 [1987], p. 25 grifos no original). Isto porque realizou-se “[...] a metamorfose [...] do
mercado em democracia, do consumismo em cidadania” (IANNI, 1999, p. 17). Como a
sociedade poderia, então, diferenciar o acontecer político que busca unir os lugares daquele
que procura colocá-los em disputa? Em outras palavras, sob o patrocínio ideológico do
“desenvolvimentismo”, foram sendo criadas as condições políticas não somente para a
reprodução do acontecer hierárquico, mas também para a sua ampliação.
Entre as décadas de 1980 e 1990, observamos a ação instrumental alargar-se em
alguns setores da sociedade e em parcelas selecionadas do território brasileiro com certa
rapidez (RIBEIRO, 2014; SANTOS e SILVEIRA, 2011 [2001])39. Os agentes externos
privados, notadamente as grandes firmas com o apoio dos organismos internacionais,
procuraram acelerar o avanço, social e geográfico, dos processos de globalização na
economia, na cultura e na política (SANTOS, 2011 [2000]; CHESNAIS, 2005). É a busca por
ampliar o processo de instrumentalização de subsistemas de objetos e ações para servirem aos
objetivos delineados cada vez mais a partir de fora do País.
Deste modo, estaríamos ante a aceleração do acontecer hierárquico, o que significa, na
prática, criar possibilidades para alargar a política das empresas. A questão, portanto, não é
setorial (ainda que na Região em estudo se revele sobretudo no setor sucroalcooleiro), porque
39
Ana Clara Torres Ribeiro (2014, p. 77) sugere que a intensificação do processo de globalização no Brasil,
especialmente depois da crise da dívida externa dos anos 1980, seja visto em seu sentido amplo, como um
processo de transformação social que embora demonstre todo o seu vigor na economia, não deixa de ter
consequências muitíssimo fortes para todos os sistemas contemporâneos de ação social e, muito particularmente,
para os subsistemas de ação que visam à transformação das relações sociais vigentes. A autora vê esse processo
como “[...] uma espécie de pensamento único dirigido à ação social. Não é a globalização da economia, é a ação
social que a globalização da economia estimula. Ou, por outro lado, é a ação social que facilita a globalização da
economia, mas não é o econômico stricto sensu, é o econômico naquilo que ele interage ou que se articula com a
ação social”. Essa ação foi sendo possibilitada pelo aperfeiçoamento das redes técnicas (CASTILLO, 1999;
SILVA, 2001), como veremos melhor adiante para a situação da Região Canavieira de Alagoas.
155
Quadro 13: Empresas alagoanas de economia mista que deixaram de existir em 2000
Lei de criação Sociedades de economia mista Destino
Lei estadual nº. 2.777. Companhia de Habitação Popular de Transformada na Companhia Alagoana de
Maio de 1966 Alagoas – COHAB-AL Recursos Humanos e Patrimoniais - CARHP
Lei estadual nº. 4.100. Companhia de Desenvolvimento de
Dezembro de 1963 Alagoas – CODEAL
Lei estadual nº. 3.198. Serviços Gráficos de Alagoas S/A –
Dezembro de 1971 SERGASA
Empresa de Assistência Técnica e
Lei estadual nº. 3.466.
Extensão Rural de Alagoas –
Outubro de 1975
EMATER
Lei estadual nº. 4.023. Empresa de Recursos Naturais do
Incorporadas pela Companhia Alagoana de
Maio de 1979 Estado de Alagoas – EDRN
Recursos Humanos e Patrimoniais - CARHP
Empresa de Transportes Urbanos do
x
Estado de Alagoas – ETURB
Lei estadual nº. 4.120. Empresa de Pesquisa Agropecuária do
Dezembro de 1979 Estado de Alagoas – EPEAL
Empresa Alagoana de Turismo S/A –
x
EMATUR.
Lei estadual nº. 5.380. Companhia de Desenvolvimento
Julho de 1992 Agropecuário – COMAG
* Não foi possível obter informações.
Fonte: Lei estadual n.º 6.145, de janeiro de 2000 e SEPLAN (1981 várias páginas)
Organização: Fernando Silva (2017)
156
Além disso, as privatizações levadas a cabo pelo Governo Federal abriram ainda mais
espaço nos setores mais rentáveis para a atuação de grandes firmas. Com o Programa
Nacional de Desestatização – PND (1990) (SILVA, 2009), isso ocorreu principalmente nos
setores petroquímico e de telecomunicações. O Grupo Odebrecht terminou assumindo o
controle acionário da Salgema Indústrias Químicas S.A. - SALGEMA e da Companhia
Petroquímica de Alagoas - CPC, e com a privatização das telecomunicações a empesa
Telecomunicações de Alagoas S. A. – TELASA foi extinta.
Portanto, trata-se de um impulso que visa expandir a capacidade decisória dos agentes
privados na Região, a partir do aval do Estado em suas diversas escalas. De certa forma,
procura-se criar a possibilidade de utilizar permanentemente alguns meios específicos do
aparelho de Estado para finalidades particulares difundindo a ideia de que é desnecessário este
ente elaborar política (WEBER, 1970 [1918], pp. 61-62; RIBEIRO, 1998, p. 117).
Processaram-se, dessa forma, grandes mudanças no aparato normativo-organizacional
que viabilizava a implantação de racionalidades ao meio geográfico regional. Como a
aceleração da inovação nas técnicas informacionais vem somar-se às novas condições
políticas, aprofunda-se uma lógica que já vinha ganhando vulto com a criação das primeiras
redes técnico-corporativas: aos agentes privados é dada a possibilidade de atuar nos poucos
pontos da Região que lhes interessam (CASTILLO, 1999, p. 180).
Se até o final da década de 1970 as firmas e instituições localizadas na Região
Canavieira de Alagoas que necessitavam usar a teleinformática eram obrigadas a buscar
soluções próprias a partir do telex e da rede de telefonia, a criação pela EMBRATEL do
Serviço de Comunicação de Dados Não-Comutados, a Rede Transdata, alterou
completamente essa realidade. Esse sistema “[...] inaugurado em 1980, baseia-se em circuitos
privados ponto-a-ponto e é destinado a grandes usuários – cada um constituindo sua própria
rede” (CASTILLO, 1999, p. 173). Em 1990, Alagoas acusava 368 terminações ativadas desse
serviço, número que subiu para 497 em 1992 e começou a cair desde então (BRASIL, 1991;
1993).
Já a Rede Nacional de Comunicação de Dados por Comutação de Pacotes – RENPAC,
criada também pela EMBRATEL cinco anos depois, segundo Ricardo Castillo (1999, p. 40)
encanava a busca por reduzir as desigualdades entre as diversas regiões no uso dos serviços de
transmissão de dados, porque tinha como objetivo atender “[...] pequenos e médios usuários –
clientes cujo tamanho não justifica a locação de uma rede privada de tipo Transdata [...]”. Se
em 1990 Alagoas tinha apenas 9 acessos dedicados ativados nessa Rede, esse número
157
aumentou consideravelmente até o final da década, de modo que em 1999 alcançou o total de
222 acessos (BRASIL, 1991; 2001).
Em ambos os casos, porém, o Estado preocupava-se em contrabalançar a política das
empresas (DIAS, 1995), e como no interior da Região Canavieira predominavam os bancos
públicos faz bastante sentido supor que tais redes facilitaram também a efetivação de direitos
sociais pelo Estado. Todavia, a aceleração do acontecer hierárquico que vimos descrevendo
acaba por conferir maior seletividade à lógica das redes.
É o caso da comutação de dados pelo sistema Very Small Aperture Terminal – VSAT,
que se expandiu sobretudo na segunda metade da década de 1990. Esse sistema, que funciona
a partir da tecnologia do satélite, permite transmitir dados, imagens e voz para pontos remotos
do território, a partir de uma estação central e de pequenas estações pertencentes às próprias
empresas (CASTILLO, 1999, pp. 182-184). Em 1997, havia em Alagoas 13 micro – estações
VSAT gerenciadas pela EMBRATEL, sendo 7 na Região Canavieira. A concentração era
muito forte: apenas 3 cidades tinham micro – estações (Maceió, Penedo e União dos
Palmares), sendo que 5 delas estavam em Maceió (CASTILLO, 1999, pp. 291-303). Na
opinião desse autor (1999, p. 193), “considerando que os terminais VSAT não servem para
comunicar-se entre si (ao contrário dos terminais telefônicos), mas somente entre o local e a
sede da empresa (majoritariamente localizada em São Paulo), podemos afirmar que a rigidez
desta técnica reafirma o corporativismo do uso do território brasileiro” e, por isso, “os
destinos de cada lugar podem ser, assim, mais facilmente corrompidos por interesses
externos”.
Ainda que menos seletiva, sobretudo por oferecer um serviço cuja lucratividade está
relacionada à sua popularização, a telefonia celular se expande em Alagoas já expressando a
nova lógica pela qual se busca conectar as regiões e lugares. Mesmo que a exploração tenha
começado sob o monopólio estatal no início dos anos 1990 – a Banda A de telefonia celular –,
a separação desse serviço (deixada a cargo da Tele Nordeste Celular) da telefonia fixa (nesta a
Telemar era a empresa responsável) para o processo de privatização em 1997, além da criação
da Banda B que já nasce privatizada, reafirmam o novo posto que assume a política das
empresas (TOZI, 2009, p. 56). Desde o final do século XX Alagoas conheceu uma difusão
muito rápida do serviço móvel: de um total de 87 mil acessos em serviço em 1998, alcançou 1
milhão em 2005 e 3.7 milhões em 2015. Dessa maneira, dispondo de uma tecnologia mais
flexível, as estações radiobase, e de condições político-normativas favoráveis, as empresas
concessionárias de telefonia celular, segundo Fábio Tozi (2009, p. 56), foram ganhando a
permissão para uma unificação privada do território.
158
40
As situações de Porto Calvo, União dos Palmares e São Miguel dos Campos ante a essa nova realidade serão
analisadas no próximo item.
159
Para Milton Santos (1998b), deixar que qualquer território seja conduzido por políticas
particulares de agentes privados significa, na realidade, anular a verdadeira política e procurar
esconder as dívidas históricas que a sociedade tem para com os pobres. Isto porque, como
explica Ana Clara Torres Ribeiro (2014, p. 43), a ação política “[...] é projetada para além da
reprodução, ou seja, para além da coisa como ela está agora, das relações sociais como elas
estão desenhadas neste momento”, e o que a política desses agentes visa, na grande maioria
das vezes, é tão somente à reprodução das relações atuais. Teríamos alcançado, então, “[...]
uma espécie de naturalização da pobreza, que seria politicamente produzida pelos atores
globais com a colaboração consciente dos governos nacionais [...]” (SANTOS, 2011 [2000],
p. 56). Trata-se da pobreza estrutural globalizada.
Cremos não ser exagero dizer que os novos processos com os quais o urbano da
Região Canavieira de Alagoas se depara buscam, no limite, naturalizar o “Espaço Dividido”
(SANTOS, 2008 [1975]).
Mas, esses novos processos terminaram mudando também a qualidade dos meios do
acontecer solidário, isto é, das técnicas e das normas (SANTOS, 2009 [1996], p. 167). A
telefonia celular e a internet, por exemplo, são sistemas técnicos que, diferentes das redes de
comutação de dados que apresentamos, autorizam um conjunto de ações muito amplo por
parte dos usuários (ações muitas vezes nem mesmo previstas pelas empresas que os
colocaram no mercado), mesmo que as normas tentem cada vez mais limitar suas formas de
uso (TOZI, 2012). Em outros termos, torna-se possível, mais do que antes, estabelecer formas
de cooperação entre os lugares que não são instrumentais ao acontecer hierárquico. Na maior
parte dos casos essas formas não têm sido legitimadas pelo Estado, ao contrário, têm sido
reprimidas.
Assim, se desde o término da Segunda Guerra Mundial a política passa a ter como
tarefa colocar em cooperação, ao mesmo tempo, sistemas de objetos e sistemas de ações no
processo de transformação da realidade, poderíamos dizer que o exercício da política passou
pelas mãos dos partidos, das empresas e agora se dá principalmente entre os pobres
(SANTOS, 1998b). Daí o papel político que adquirem cada vez mais os princípios sociais e
espaciais de organização das atividades do circuito inferior da economia urbana. No próximo
item, buscaremos aprofundar esta questão tratando o surgimento e as formas organizacionais
do serviço de mototáxi face à expansão da pobreza e à reorganização das economias urbanas
das cidades de Porto Calvo, União dos Palmares e São Miguel dos Campos.
160
3.2. Transformações nos circuitos da economia urbana em Porto Calvo, União dos
Palmares e São Miguel dos Campos: a expansão do circuito inferior e a renovação do seu
papel no acontecer complementar
Tabela 21 – Porto Calvo, União dos Palmares e São Miguel dos Campos: Porcentagem de pessoas
consideradas pobres pelo critério da renda per capita (1991-2010)
Ano Porto Calvo União dos Palmares São Miguel dos Campos
1991* 79,32 80,39 77,76
2000** 75,08 68,70 62,78
2010*** 37,71 36,82 28,11
*Percentual de pessoas com renda per capita inferior a 50% do salário mínimo vigente em 1º de setembro de
1991
**Percentual de pessoas com renda per capita inferior a 50% do salário mínimo vigente em agosto de 2000
***Percentual de pessoas com renda per capita inferior a R$140,00 (linha oficial de pobreza usada no Programa
Bolsa Família) a preços de agosto de 2010
Fonte: IPEAdata e Atlas de Desenvolvimento Humano - PNUD. (Vários anos)
Organização: Fernando Silva (2017)
Vale sempre relembrar que embora a porcentagem de pessoas com renda per capita
inferior a meio salário mínimo tenha diminuído entre 1991 e 2000, a porcentagem da PEA
sem rendimentos (como vimos no capítulo 2) e a concentração da renda também aumentaram.
O Índice de Gini, que já era alto, subiu ainda mais nessa década, conforme mostra a tabela 22.
Tabela 22 – Porto Calvo, União dos Palmares e São Miguel dos Campos: Índice de Gini (1991-2010)
Ano Porto Calvo União dos Palmares São Miguel dos Campos
1991 0,52 0,54 0,57
2000 0,54 0,56 0,58
2010 0,47 0,53 0,51
Fonte: site do Atlas de Desenvolvimento Humano - PNUD
Organização: Fernando Silva (2017)
Tudo indica que, entre 1990 e os primeiros anos do século XXI, as transformações nos
elementos do circuito superior da economia urbana presentes na cidade de Porto Calvo foram
pontuais. Dentre as principais delas estão a extinção da agência do PRODUBAN e a
instalação de uma agência da Caixa Econômica Federal – CAIXA, que passou a localizar-se
na mesma rua que o antigo Banco Estadual. Se as cidades de São Luís do Quitunde e Novo
Lino já dispunham, nesse mesmo período, de agências do Banco do Brasil, somente em Porto
Calvo, dentre todas as quatorze cidades do entorno, existia agência da CAIXA, realidade que
perdurou até 2010.
Essa seletividade também contribuiu para que houvesse uma profusão sem precedentes
de atividades do circuito inferior da economia urbana, tanto em Porto Calvo como nas cidades
do entorno, assim como para que aumentassem os nexos desses pequenos centros com a
economia portocalvense. Defendemos que esses nexos passam a exigir cada vez mais a
definição local de princípios político-espaciais de organização por parte do próprio circuito
inferior da economia urbana.
Vimos no item 2.5 do capítulo anterior que ao final da década de 1990 o serviço de
transporte intermunicipal de passageiros, que havia surgido em Porto Calvo, passou a se
organizar como associação. Segundo as entrevistas que realizamos, desde então vários
aspectos técnico-organizacionais dessa atividade, como a entrada e saída de veículos, tipo de
carro, preços das passagens etc., começaram a ser regulamentados pela própria associação,
sem qualquer intervenção do poder público estadual.
O mesmo pudemos constatar no que se refere ao surgimento do serviço de moto-táxi.
Primeiramente esse serviço apareceu em Porto Calvo, por volta de 1999, e na primeira década
do século XXI passou a estar presente em quase todas as pequenas cidades próximas.
Vejamos o quadro 14.
162
Quadro 14: Origem e algumas características atuais do serviço de moto-táxi surgido em Porto Calvo e nas cidades do entorno
Ano aproximado Perfil dos passageiros que circulavam Ano em que passou a se organizar como
Cidade de origem Algumas características no período de surgimento Algumas características atuais (2016)
de surgimento no período de surgimento associação
Porto Calvo Por volta de 1999 Quando surgiu o transporte de passageiros com moto Não soube informar Não foi possível obter informação (há cerca de Hoje existe algo em torno de 200 moto-táxis trabalhando na
em Porto Calvo, rodavam em média 10 motos. Em 16 pequenas associações nas cidades, por isso cidade. Não há qualquer regulação por parte do poder
2000, há registro de que já havia cerca de 50 moto- ficou difícil obter informações detalhadas sobre municipal, para iniciar a atividade basta ter uma moto e fundar
táxis na cidade. A grande maioria era formada por ex- cada uma) a própria associação, ou conseguir em qualquer uma das
trabalhadores de usinas, que com o dinheiro recebido associações existentes a “permissão” para rodar. Algumas
como indenização pelo tempo de trabalho conseguia associações exigem habilitação para conceder autorização,
adquirir uma moto. Nunca houve qualquer regulação outras não. Com a expansão da cidade os próprios moto-
da parte do poder municipal taxistas vão observando a necessidade de fundar novas
associações nos bairros periféricos. A maior parte das corridas
é com destino ao Bairro da Mangazala e Oscar Cunha,
sobretudo nos dias de feira-livre e de pagamento aos
aposentados, funcionários públicos municipais e beneficiários
do Programa Bolsa Família.
Japaratinga Por volta de 2001 A única informação que foi possível obter foi a de que Principalmente moradores de povoados Não há associação (os trabalhadores informaram Hoje há 85 moto-taxistas na cidade, que atuam sem qualquer
os moto-táxis sempre rodaram na cidade sem qualquer localizados entre Japaratinga e Porto que o baixo rendimento obtido no serviço, em regulação por parte do poder municipal. Toda a organização
regulação por parte doo poder público municipal Calvo, e moradores de Japaratinga com torno de R$ 200,00 por mês, não compensa (preço da passagem, requisitos para ingressar no trabalho etc.)
destino a Porto Calvo em período de fundar uma associação e estabelecer normas é definida pelos próprios trabalhadores. A maior parte das
pagamento de aposentadoria e feira-livre para o serviço de moto-táxi, porque isto corridas ocorre nos dias de feira, pagamento de aposentados e
terminaria diminuindo ainda mais tal do Programa Bolsa Família.
rendimento).
Maragogi Por volta de 2005 Rodavam entre 5 e 10 motos, sem qualquer Não soube informar 2011 A prefeitura concedeu a permissão para rodarem 60 moto-
organização ou regulamentação do poder municipal táxis na cidade, mas trabalham apenas entre 25 e 30. Isto
porque os rendimentos obtidos ultimamente neste trabalho
têm sido muito baixos, de modo que uma parte preferiu viajar
para trabalhar no Sudeste e Centro-Oeste do País. Quem
define praticamente toda a organização (preço das passagens,
pontos, distribuição dos pontos etc.) é a própria associação.
Não foi possível obter informações sobre as características da
clientela atual.
Matriz de Não foi possível Não foi possível obter informações Não foi possível obter informações Não foi possível obter informações Há cerca de 120 moto-taxistas na cidade, distribuídos em 6
Camaragibe obter informação pontos (cada ponto se organiza de maneira diferente do outro).
Toda organização (preço de passagens, entrada e saída de
novos trabalhadores, localização dos pontos etc.) é feita pelos
próprios moto-táxis. A maior parte do fluxo é para os bairros
periféricos da cidade nos dias de feira-livre, pagamento aos
aposentados e aos beneficiários do Programa Bolsa Família.
Jundiá Não foi possível Não foi possível obter informações Devido às dificuldades de transporte para Até hoje não há associação de moto-táxi em Em Jundiá, a organização do serviço de moto-táxi é bastante
obter informações as principais cidades do entorno (os Jundiá. peculiar: não há qualquer regulação por parte do poder
transportes por Kombi só circulam até municipal, nem da parte dos trabalhadores enquanto grupo.
10:00hs da manhã) os moto-táxis Cada moto-táxi entra e sai quando deseja do trabalho,
tornaram-se a principal opção para combina os preços com o passageiro, e nenhum usa qualquer
qualquer pessoa que deseja ir até Porto identificação. Essa organização foi possibilitada, sobretudo,
Calvo ou Novo Lino, por exemplo, pela generalização do telefone: o moto-táxi geralmente só sai
quando não há transporte por Kombi. de casa quando recebe telefonema de alguém, normalmente
uma pessoa já conhecida, para uma corrida até uma cidade
vizinha. Por isso torna-se muito difícil saber a quantidade
exata de trabalhadores nesse serviço. A maior parte das
corridas é requisitada por pessoas que precisam resolver algo
urgente nas cidades vizinhas (aposentados e beneficiários do
Bolsa Família acabam usando pouco o serviço, principalmente
pelo alto preço em comparação com o transporte por Kombi).
Fonte: Trabalho de campo (2015-2016)
Organização: Fernando Silva (2017)
163
41
Somente para termos uma ideia, alguns entrevistados em Porto Calvo afirmaram ter gasto mais de R$ 1.000
com a compra da motocicleta ao final dos anos 1990, quando o salário mínimo vigente no País era de R$ 136,00.
No caso dos serviços de transporte intermunicipal, embora não tenha sido possível saber sobre valores, ficou
claro que o ingresso era praticamente impossível para um ex-trabalhador rural, mesmo que este trabalhasse por
164
No início dos anos 1990, com a instalação da Fábrica de Laticínios São Domingos no
Distrito Industrial Floriano Rosa42, União dos Palmares passou a ter a indústria urbana
moderna como outro elemento do seu circuito superior da economia urbana. Na época, essa
indústria não chegava a gerar sequer 100 postos de trabalho diretos (FIEA, 1994).
Trata-se de um Distrito que, de vários pontos de vista, inseriu-se numa dinâmica
bastante diferente da que se passou nos distritos de Maceió e Marechal Deodoro. Nestes dois
últimos casos, já havia uma demanda (respectivamente do setor sucroalcooleiro e do Pólo
Cloroquímico) que levou os governos federal, estadual e municipais a viabilizar sua criação.
Ademais, o Distrito Floriano Rosa foi criado num contexto em que a Companhia de
Desenvolvimento de Alagoas – CODEAL já estava praticamente sem capacidade de
coordenar uma política industrial abrangente para todo o estado (CABRAL, 2005).
Observamos o poder público municipal de União dos Palmares empreender esforços
no sentido de atrair empresas para a área, todavia sem nenhum sucesso. Além da lei nº. 760 de
1989, que ao criar o Distrito oferecia incentivos fiscais e doação de terrenos para as indústrias
vários anos sem ser dispensado nas entressafras. Hoje em dia, as possibilidades financeiras abertas pelas
concessionários de motocicletas e veículos a esses trabalhadores transformou todo esse quadro.
42
Esse Distrito conta com área total de 95.509,39 m², e localiza-se nas proximidades do núcleo urbano de União
dos Palmares. Dispõe de lotes distribuídos por cinco quadras, com dimensões entre 8.511,27 m² e 31.726,00 m²,
tendo a via de acesso principal pavimentada (FIEA, 2009, pp. 60-61).
165
que aí se instalassem, foram promulgadas mais duas leis neste mesmo sentido, a lei nº 829, de
1995, e a lei nº 921 de 2000. Mesmo numa cidade tão pobre defrontamo-nos, deste modo,
com a busca por acelerar o acontecer hierárquico43. Em nenhuma hipótese essa busca deixa de
ser nociva à política e ao território municipais, porque revela a tentativa de distanciar o
aparelho de Estado cada vez mais das populações pobres.
Da mesma maneira que em Porto Calvo, tivemos em União dos Palmares, ainda na
última década do século XX, a instalação de uma agência da CAIXA. Considerando União
dos Palmares e as cidades do entorno, essa agência era a única existente até 2010 (quando
então foi instalada uma agência desse banco em Murici). Isto contribuiu para renovar as
complementaridades entre União dos Palmares e os pequenos centros urbanos vizinhos.
Embora os trabalhadores do transporte interurbano de passageiros surgido nessas
cidades tenham começado a se organizar em associações já no início dos anos 1990, conforme
pudemos observar no capítulo anterior, as entrevistas que realizamos mostraram que, nessa
mesma década, começou haver uma pressão cada vez maior sobre tais trabalhadores por parte
de empresas que passaram a concorrer com essas atividades do circuito inferior da economia
urbana. O fato de a maioria das cidades estarem localizadas ao longo da BR – 104 (somente
Santana do Mundaú e Ibateguara dependem de estradas vicinais para alcançar esta BR),
facilitava a atuação de tais empresas.
Isso levou a Associação de União dos Palmares a buscar apoio no poder público
municipal, o que resultou na promulgação da lei nº. 864, de outubro de 1997, que estabelece o
Sistema de Transporte Alternativo no município de União dos Palmares. Embora a validade
dessa lei seja duvidosa44, o fato é que a entrada de novos trabalhadores nas linhas com destino
a Maceió, Branquinha e São José da Laje começou a ficar cada vez mais difícil, agora não
43
A partir de 2002, a Fábrica de Laticínios São Domingos passou a usar todas as suas instalações para produzir
para a Quaker Brasil, num acordo em que todos os insumos, parâmetros de qualidade etc., seriam delineados por
esta última empresa, que investiu inicialmente 9 milhões em equipamentos e na melhoraria das instalações.
Dessa forma, a Quaker procurava alcançar com mais facilidade o mercado do Nordeste sem ter que iniciar uma
fábrica do zero e lidar com todos fatores referentes à mão de obra (ver reportagem: “Fabricação de Toddynho no
Nordeste acirra a concorrência”. Disponível em: http://www.milkpoint.com.br/cadeia-do-leite/marketing-do-
leite/fabricacao-do-toddynho-no-nordeste-acirra-a-concorrencia-15669n.aspx). Segundo nossas entrevistas, a
Fábrica de Laticínio MUU, localizada no Núcleo Industrial de Murici, pretende fazer a mesma coisa que a
Fábrica São Domingos, com a diferença de que não vai produzir somente para uma marca, mas para várias. Há,
portanto, uma tendência a que essas fábricas percam cada vez mais suas ligações com os mercados locais. Além
disso, sem aumentar a quantidade de empregos nessas cidades, os agentes externos passam a controlar vários
aspectos da dinâmica desses distritos industriais.
44
O estranho é que se trata de uma lei municipal que, na realidade, estabelece normas tanto para o transporte de
passageiros dentro do município (como o número de veículos que seriam permitidos na linha União-Distrito
Rocha Cavalcante), como para o transporte intermunicipal (como o número de veículos autorizados nas linhas
para Maceió, Branquinha e São José da Laje) (Art. 5º, lei 864/1997).
166
somente em função do capital exigido para a compra do veículo, mas também por conta da
exigência de certa organização dos próprios trabalhadores45.
Para os nossos dias, poderíamos então relativizar a constatação de Milton Santos
(2008 [1975], pp. 206-208) sobre as facilidades de entrada nas atividades do circuito inferior
da economia urbana. Sobre isso, além dos requisitos de capital e de qualificação já apontados
por esse autor, pensamos ser necessário considerar também a exigência de organização do
próprio trabalhador. É o caso de este ter que participar de uma associação e ter carteira de
habilitação, por exemplo, pois em ambos os casos não se trata simplesmente de organização
da atividade.
No quadro 15 podemos constatar que o serviço de moto-táxi das cidades do entorno de
União dos Palmares, ainda que em menor grau que o transporte interurbano de passageiros,
revela maiores níveis de organização se compararmos ao de Porto Calvo. Mesmo nos casos
em que as próprias associações definem todos os aspectos referentes à organização do serviço,
elas estabelecem várias normas sobre a entrada e saída de novos moto-taxistas, condições das
motos, preços das passagens etc.
45
Exigia-se do transportador que fizesse parte da associação de União dos Palmares e que tivesse documento de
habilitação em dia. Sobre as exigências referentes ao veículo, trazemos o 6º artigo da mesma lei:
“Art. 6º - Para prestar serviço no SISTEMA ALTERNATIVO DE TRANSPORTE MUNICIAPL DE UNIÃO
DOS PALMARES, só será admitido o veículo que atenda as seguintes condições:
a) – Seja de propriedade de sócio residente em União dos Palmares;
b) – Ser licenciado no Município de União dos Palmares – Al., na categoria de aluguel;
c) – Estar sempre em boas condições de conservação, não podendo ter idade superior a 07 (sete) anos a partir da
data de fabricação”.
167
Quadro 15: Origem e algumas características atuais do serviço de moto-táxi surgido em União dos Palmares e nas cidades do entorno
Cidade de Ano aproximado de Perfil dos passageiros que circulavam Ano em que passou a se organizar como
Algumas características no período de surgimento Algumas características atuais (2016)
origem surgimento no período de surgimento associação
União dos Por volta de 1995 O serviço de moto-táxi começou sem qualquer Não foi possível obter informação 1997 Atualmente existem 200 moto-táxi na cidade. O número de
Palmares regulação do poder municipal. Havia cerca de 7 praças foi definido e ampliado por lei municipal (não tivemos
grupos, cada um contabilizando entre 5 e 10 moto-táxi, acesso à essas leis), mas vários aspectos da circulação
que acabavam diferenciando-se um do outro pelo continuam sendo definidos pela própria associação (valor da
ponto da cidade em que costumava pegar passageiros. passagem, distribuição dos pontos na cidade etc.). A clientela
A associação foi fundada em 09/12/1997, momento é bastante diversificada, e o fluxo aumenta sobretudo nos dias
em que foi promulgada uma lei municipal (não de feira-livre, pagamento aos aposentados e beneficiários do
conseguimos acesso a esta lei) definindo que o número Bolsa Família. Há também um número expressivo de moto-
total de moto-táxis permitido seria de 163, mas em taxistas que fazem “contratos” para levar crianças nas escolas
1997 só rodavam 80. todos os dias.
Ibateguara Por volta de 1997 No final da década de 1990 rodavam entre 5 e 10 Principalmente aposentados que 2002 Hoje são 27 moto-táxis. Esse número foi definido por lei
moto-taxistas na cidade. No início dos anos 2000 habitavam a área rural do município, municipal (não conseguimos ter acesso a esta lei), mas vários
apareceu outro grupo menor (com menos de 5 motos), sobretudo nos dias de feira-livre e de outros aspectos sobre o trabalho são regulados pela própria
e esses dois grupos deram origem à associação. Não pagamento. associação (requisitos para atuar como moto-táxi, modelo da
havia qualquer regulação por parte do poder moto, valores das passagens e distribuição dos pontos nas
municipal. cidades etc.). A maior parte da clientela é constituída por
populações pobres (aposentados, beneficiários do Bolsa
Família) que circulam principalmente nos dias de feira-livre.
Murici Por volta de 1997 Quando surgiu, rodavam dois pequenos grupos (cada O fluxo principal de passageiros era para 2003 Hoje existem 84 praças para moto-táxi na cidade, mas só
um tinha entre 5 e 10 motos), sem qualquer regulação as fazendas localizadas na área rural do rodam cerca de 60, porque uma parte dos trabalhadores viajou
do poder municipal. Esses dois grupos formaram a município em dias de feira-livre e para o Sudeste e Centro-Oeste do País em busca de trabalho.
associação. pagamento de aposentadoria. Esse número foi definido pela própria associação, sem
qualquer regulação do poder municipal (há um Projeto de Lei
tramitando na Câmara Municipal para regulamentar a
profissão). Todos os aspectos do trabalho são regulados pela
própria associação (modelo de moto, valor da passagem,
distribuição dos pontos na cidade etc.). O fluxo aumenta,
principalmente, nos dias de feira-livre, pagamento do Bolsa
Família e de aposentadoria.
São José da Por volta de 1994 Rodavam cerca de 5 moto-táxi sem qualquer regulação O fluxo principal era para a área rural do 2000 Hoje existem 80 moto-taxistas na cidade. Esse número havia
Laje por parte do poder municipal. município nos dias de feiras e de sido definido no momento da criação da associação, mas só
pagamento aos aposentados. foi completado recentemente pelo incentivo do poder
municipal, que distribuiu o restante das permissões que não
estavam sendo usadas. De modo que há aspectos do trabalho
que são regulados pelo poder municipal (definição do número
de trabalhadores, por exemplo), enquanto outros vão sendo
definidos pela própria associação (distribuição dos pontos na
cidade, valores das passagens, modelo de moto etc.). O fluxo
maior de passageiros hoje é para a periferia da cidade,
especialmente para o bairro construído para os desabrigados
da enchente de 2010, que fica a 3 km do centro da cidade. A
população desloca-se sobretudo nos dias de feira e de
pagamento aos aposentados e aos beneficiários do Bolsa
Família.
Santana do Por volta de 1998 Rodavam entre 5 e 10 moto-táxi. Na verdade, tratava- Principalmente pequenos agricultores da 2008 Hoje existem 38 moto-táxis na cidade, e todas as normas
Mundaú se de algumas poucas pessoas que tinham moto na zona rural sobre o serviço são formuladas pela própria Associação de
cidade e, às vezes, eram chamados para levar alguém moto-taxistas. O fluxo principal de passageiros ocorre no
numa cidade vizinha ou na área rural do próprio período de pagamento aos aposentados e beneficiários do
município. Bolsa Família, e se dá entre o centro e o novo bairro
construído para o desabrigados da enchente de 2010, que fica
a 5 km do centro da cidade. O fluxo para a área rural do
município e para as cidades vizinhas ainda ocorre, mas ficou
mais restrito aos horários em que as vans não circulam mais
(depois das 17:30).
Branquinha Por volta de 2003 Rodavam entre 10 e 15 motos. O fluxo era principalmente para a área 2005 Hoje são 22 moto-taxistas na cidade, e toda a organização,
rural da cidade (especialmente inclusive a definição dessa quantidade, é feita pela própria
168
3.2.3. São Miguel dos Campos: entre a política das empresas e a expansão do circuito
inferior
46
Ver reportagem: “Cimpor compra três fábricas brasileiras”. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi09099911.htm Acesso em dezembro de 2016.
47
Em 2012, o Grupo Camargo Corrêa, através da InterCement, adquiriu as ações da Cimpor, buscando sobretudo
ampliar sua participação no Nordeste num momento em que a construção civil se expandia bastante nesta
Região. Ver reportagem: “Camargo Corrêa conclui aquisição da Cimpor e avança no Brasil”. Disponível em:
http://exame.abril.com.br/negocios/camargo-correa-conclui-aquisicao-da-cimpor-e-avanca-no-brasil/ Acesso em
dezembro de 2016.
48
Isso ficou claro em várias das nossas entrevistas. Por exemplo, o presidente da Associação do Transporte
Complementar de Roteiro, quando indagado sobre o fluxo de passageiros para São Miguel dos Campos na
década de 1990, explicou: “[nessa época] tinha as fazendas no caminho que a gente vinha pegando, vinha
pingando. Hoje em dia não tem fazenda em canto nenhum, se a gente carregar no Roteiro tudo bem, se não
carregar não carrega mais em canto nenhum, se carregar de cá pra lá é a mesma coisa, nós não temos o pinga
não, é pegou carregou vai embora. Porque de primeiro tinha as fazendas né, nós saia nas fazenda, ia deixando,
mas agora tá mais difícil” (Entrevista realizada em junho de 2016).
170
Buscando atender a demanda crescente por circulação no espaço urbano, numa cidade
em que uma parcela razoável da população pobre tinha rendimentos fixos mas habitava áreas
distantes dos principais fixos públicos e econômicos, surgiu em 1994, na periferia
miguelense, a Associação dos Motoristas Autônomos do Bairro de Fátima. Durante a década
de 1990, toda a organização desse pequeno sistema de transporte urbano de passageiros era
feita pelos próprios associados. De acordo com as nossas entrevistas, alguns anos antes uma
média de 10 (dez) trabalhadores já realizavam esse transporte sem fazerem parte de qualquer
organização coletiva. A fundação da Associação, estabelecendo as primeiras normas sobre o
tipo de veículo, e requerendo exclusividade para os associados nessa linha, adiantou vários
aspectos organizacionais que viriam a ser ratificados pelo poder municipal no final da década.
A Lei municipal nº. 1.066, de janeiro de 1999, concedeu permissão à Associação dos
Motoristas Autônomos do Bairro de Fátima para explorar o transporte de passageiros na
cidade49. Hoje, 23 (vinte e três) carros de trabalhadores vinculados a essa Associação são
responsáveis pela circulação de pessoas dos bairros periféricos para o centro de São Miguel
(SILVA NETO, 2016, pp. 65-66)50.
Da mesma maneira, o serviço de moto-táxi, surgido nessa cidade por volta de 1995,
passou logo no início dos anos 2000 a ter o seu funcionamento regulado principalmente pelo
poder municipal. As cidades do entorno de São Miguel dos Campos são mais flexíveis nesse
sentido. No quadro 16 observamos que em Teotônio Vilela e Jequiá da Praia, por exemplo, a
organização desse serviço se assemelha ao que ocorre na área de Porto Calvo, isto é,
praticamente todos os aspectos são definidos pelos próprios trabalhadores, porque não há
sequer associações.
49
Informação obtida na Superintendência Municipal de Transportes e Trânsito – SMTT de São Miguel de
Campos, em julho de 2016. Não conseguimos ter acesso a essa lei.
50
Além dos carros da associação, uma empresa local, a Transportadora de Passageiros Miguelense Ltda-
TRANSPAM, também passou a realizar a circulação de passageiros no espaço urbano de São Miguel. Trata-se,
todavia, de uma dinâmica diferente das atividades do circuito inferior que foram se organizando em associação
(SILVA NETO, 2016, pp. 69-70).
171
Quadro 16: Origem e algumas características atuais do serviço de moto-táxi surgido em São Miguel dos Campos e nas cidades do entorno
Cidade de Ano aproximado de Perfil dos passageiros que circulavam Ano em que passou a se organizar como
Algumas características no período de surgimento Algumas características atuais (2016)
origem surgimento no período de surgimento associação
São Miguel Por volta de 1995 No ano de fundação da associação (2003), rodavam O fluxo era principalmente para os 2003 Hoje são 250 moto-taxistas na cidade, e praticamente toda a
dos Campos 100 moto-taxistas. bairros periféricos da própria cidade nos regulação do serviço é feita pelo poder público municipal. O
dias de feira-livre maior fluxo continua sendo entre o centro e os bairros
periféricos da cidade, especialmente nos dias de feira-livre. A
maior parte dos aposentados e beneficiários do Bolsa Família
prefere circular no transporte urbano feito por vans e micro-
ônibus, e não de moto-táxi.
Teotônio Por volta de 1998 Não foi possível obter informações O fluxo principal era para os povoados Não há associação Hão são aproximadamente 160 moto-táxis na cidade,
Vilela das usinas (especialmente da usina distribuídos por cerca de 8 pontos. Cada ponto tem uma
Gauxuma) nos períodos de pagamento da organização particular: define a quantidade de moto-táxi que
usina. Nesta época, a usina ainda não vão trabalhar, as exigências para ingressar na atividade etc.
fazia pagamento através de bancos, de Não há qualquer regulação por parte do poder municipal, e
forma que o fluxo de pessoas entre a nem mesmo uma organização geral por parte dos moto-
usina e a cidade era intenso. taxistas que seja seguida por todos. O fluxo hoje é pequeno, e
se dá principalmente entre os bairros periféricos e o centro,
assim como para as cidades vizinhas. O período de maior
movimento é quando começa o pagamento aos aposentados e
aos beneficiários do Bolsa Família.
Coruripe Por volta de 1999 Não foi possível obter informações Trata-se de um município com muitos Não foi possível obter informações (há cerca de Hoje são 165 moto-taxistas na cidade. Quanto à regulação, há
povoados rurais (inclusive em torno da 6 pequenas associações na cidade, por isso ficou alguns poucos aspectos (número de moto-táxis por ponto, por
Cooperativa Pindorama), por isso o fluxo difícil obter informações detalhadas de cada exemplo) que são estabelecidos pelo poder público municipal,
maior sempre foi com destino a esses uma). mas a grande maior parte das normas sobre o serviço
povoados. (distribuição dos pontos, modelo e condições das motos,
valores das passagens etc.) é formulada pelas próprias
associações em cada ponto. O fluxo maior é entre o centro da
cidade e os povoados rurais, especialmente nos dias de feira-
livre, pagamento aos aposentados aos beneficiários do Bolsa
Família.
Jequiá da Não foi possível obter Não foi possível obter informações O fluxo principal sempre foi para as Não há associação Estimamos que há em média 30 moto-taxistas na cidade.
Praia informações cidade de São Miguel dos Campos e Todos os aspectos referentes à organização da atividade ficam
Coruripe a cargo da própria associação, sem qualquer regular do poder
público municipal. O serviço supre (assim como faz desde o
seu surgimento) as deficiências do sistema interurbano de
transporte de passageiros, uma vez que há apenas um veículo
que faz duas vezes por dia a linha Coruripe – São Miguel dos
Campos via Jequiá da Praia. O fluxo maior de pessoas é para
Coruripe, principalmente no período de pagamento aos
aposentados e beneficiários do Bolsa Família.
51
O fluxo de pessoas nessa área de São Miguel dos Campos sempre foi do interesse de empresas do circuito
superior da economia urbana, sobretudo entre as cidades localizadas ao longo da BR – 101 (São Miguel dos
Campos e Teotônio Vilela). Nossas entrevistas mostraram que até os primeiros anos do século XXI isso não
havia gerado maiores conflitos, uma vez que quando essas empresas atuavam só paravam para embarque e
desembarque de passageiros nas cidades, enquanto os trabalhadores do circuito inferior iam fazendo o “pinga-
pinga” nas fazendas, na BR – 101 e nas estradas vicinais. Com a eliminação das fazendas, a princípio cresce a
necessidade de circulação entre as cidades, mas depois, com a instalação de agências bancárias, Casas Lotéricas
e, Caixa’s Aqui nesses centros acirram-se as disputas entre empresas do circuito superior da economia urbana
(geralmente de Maceió) e o transporte complementar de passageiros.
173
S
e nos países do centro do sistema capitalista, especialmente nos países da Europa, o
tema das políticas de transferência de renda52 se desenvolveu ligado à
problematização dos limites e possibilidades da mercantilização dos elementos da
produção (notadamente a terra e o trabalho), no Brasil (como de resto ocorreu na maior parte
dos países da periferia do capitalismo) o “combate à pobreza” constituiu tanto o leitmotiv da
discussão teórica, como a principal justificativa político-ideológico que levou à construção de
políticas dessa natureza.
Já nos anos de 1970, certos pesquisadores passaram a defender a implantação de um
Imposto de Renda Negativo no País (SILVA e SILVA, 1997; SPOSATI, 1997; FONSECA,
2001; SUPLICY, 2013 [2002]). Mas foi somente em 1991 que o Senador Eduardo Suplicy
(PT – SP) apresentou um Projeto de Lei propondo a criação de um Programa de Garantia de
Renda Mínima – PGRM de escala nacional, levando para a esfera político-institucional o
debate sobre o tema.
Desde então, extensas discussões foram travadas nas universidades, nas assembleias
de partidos políticos, em comissões do Senado Federal e em sessões da Câmara dos
Deputados. Criaram-se “teorias”, diversos Projetos de Lei, sistemas técnicos para o
52
O que a literatura, notadamente da ciência política, vem chamando de “programas transferências de renda”, ou
de “programas de garantia de renda mínima” compreende transferências monetárias para famílias e indivíduos
que não contribuíram de forma direta para algum fundo previamente, mas que estão fisicamente capacitados para
vender sua força de trabalho. Estaria, desse modo, para além dos direitos trabalhistas e da assistência social. Para
saber com certo grau de detalhamento como políticas desse tipo se inseriram na construção dos Estados de Bem-
Estar social na Europa e na América Latina ver, por exemplo, a tese de Rosa Helena Stein (2005).
175
cadastramento de beneficiários etc., tudo isso para reduzir, na ciência e na política, a pobreza
às dimensões da renda e da educação.
Por isso, com a contribuição ideológica do Banco Mundial e de outras instituições
internacionais, a política de transferência de renda tornou-se consensual entre diversos
partidos quando se trata de “combater a pobreza”. Partidos de diferentes vinculações
ideológicas se alimentam na mesma concepção reificadora de pobreza para “fazer política” e,
desse modo, o combate à pobreza se torna uma causa que toda a sociedade política brasileira
procura abraçar.
Na realidade, o fazer político nesse aspecto foi ficando cada vez mais restrito à
definição de “linhas de pobreza”, de critérios exigidos para ser beneficiário dos programas, do
percentual adequado de frequência escolar para que a criança saía por si só da pobreza no
futuro, além de outras questões dessa mesma natureza. Por essas razões cremos que o
acontecer político-institucional é chamado cada vez mais a colaborar com a naturalização do
“Espaço Dividido”. Como isso ficaria com a criação do Programa Bolsa Família – PBF
(2003)?
De fato, os processos que vimos relatando no capítulo anterior pressionam as formas
de repartição da riqueza pelo Estado de várias maneiras. Não é somente uma questão
orçamentária ou normativa, embora estas sejam por demais importantes. Por isso, no presente
capítulo buscamos considerar, ao mesmo tempo, os principais fatores técnicos e políticos
responsáveis pela transformação, no Brasil, de propostas de transferências de renda em
acontecer político-institucional. Um destaque especial será dado a construção e
funcionamento do PBF.
176
4.1. O debate brasileiro sobre transferência de renda e sua transformação em política nos
anos 1990
A “teoria” de José Márcio Camargo acabou por conectar definitivamente o tema das
transferências de renda à erradicação da pobreza no Brasil. Fez isto de uma maneira que ia ao
encontro das formulações que os organismos internacionais passaram a formular na mesma
década, assim como de vários setores da sociedade política brasileira. Além disso, a proposta
179
53
Ainda que a situação do PBF seja por nós considerada bastante diferente dos Programas construídos ao longo
dos anos 1990, esse papel que a educação assumiu inicialmente na política brasileira de transferência de renda
acabou por permanecer, e por isso será melhor abordado a partir de algumas situações concretas da Região
Canavieira de Alagoas no item 5.3 do próximo capítulo.
180
A concentração no Estado de São Paulo é notável, aí estavam 60% dos municípios que
haviam criado políticas de transferência de renda. Isto significa que somente os municípios de
maior orçamento, e que dispunham de razoável estrutura administrativa, puderam implantar
essas políticas. Ainda assim, sua difusão para as diversas regiões brasileiras foi possível, em
54
Os autores relatam que souberam da existência do programa estadual de transferência de renda em Alagoas
por meio de terceiros. Cremos que essa informação esteja equivocada, mas não foi possível confirmá-la ou negá-
la a partir de outras fontes.
181
boa medida, em função da adequação dos critérios de elegibilidade e dos valores das
transferências às condições financeiras de cada ente federativo, ou seja, o número de pobres e
os recursos necessários para “lutar contra a pobreza” poderiam ser manipulados de acordo
com a linha de pobreza utilizada.
Neste sentido, o quadro 17 nos fornece uma ideia do tamanho desses programas
trazendo o número de famílias beneficiárias de 24 (vinte e quatro) deles no ano 2001. Como
fica claro, essa número variava bastante de um programa para outro.
Do total de 37 (trinta e sete) programas que Maria Ozanira da Silva e Silva, Maria
Carmelita Yazbek e Geraldo di Giovanni (2008, p. 154) conseguiram investigar (30
municipais e 7 estaduais), 43% tinham sido criados por propostas de políticos do PT, 24% do
PSDB, 8% do PSB e 5% do PFL, enquanto os demais partidos foram responsáveis,
individualmente, pela criação somente de 1 (um) programa. De fato, “a luta contra a pobreza”
é assumida até mesmo pelos partidos mais conservadores, e as transferências de renda
vinculadas à educação passam a “agradar a gregos e troianos”.
O mesmo podemos afirmar sobre as propostas que surgiram na Câmara Federal e no
Senado. Na segunda metade da década de 1990, novos Projetos de Lei foram apresentados
“[...] pelos deputados Nélson Marchezan (PSDB-RS), Chico Vigilante (PT-DF) e Pedro
Wilson (PT-GO), pelos senadores Ney Suassuana (PMDB-PE), Renan Calheiros (PMDB-AL)
e José Roberto Arruda (PSBD-DF), propondo que se instituíssem projetos de renda mínima
associados à educação, ou Bolsa Escola” (SUPLICY, 2013 [2002], p. 180).
Nesse intervalo, o senador Eduardo Suplicy começou a ter contato com a proposta de
renda básica, também chamada de renda de cidadania,55 por intermédio da Basic Income
European Network (BIEN)56, mas, mesmo assim, passou a contribuir fortemente para a
aprovação de um programa de transferência de renda nacional vinculado à educação. Ele
relata (2013 [2002], p. 19) que, em 1996, levou o professor Philippe Van Parijs (um dos
fundadores da BIEN) para uma audiência com o Presidente da República Fernando Henrique
Cardoso e o Ministro da Educação Paulo Renato de Souza, na qual “Van Parijs explicou as
vantagens da renda básica incondicional, mas mencionou que iniciar um rendimento mínimo
garantido relacionando-o com as oportunidades educacionais seria um bom começo, uma vez
que significaria um investimento em capital humano”. O resultado foi a aprovação do Projeto
do deputado Nélson Marchezan (PSDB-RS), criando o primeiro programa Bolsa-Escola de
escala nacional.
55
Trata-se de uma proposta teórica de transferência monetária que defende o acesso à renda como mais um
direito social e, para isso, problematiza a própria mercantilização da força de trabalho. Neste caso, todas as
pessoas, independente dos seus rendimentos, receberiam a transferência. Autores como André Gorz e Philippe
Van Parijs passaram a defender com ardor esta proposta diante da grande expansão do desemprego que o
neoliberalismo provocou em todos os países, inclusive europeus (SILVA, 2014, p. 110). O senador Eduardo
Matarazzo Suplicy se convenceu a tal ponto das vantagens da proposta de renda básica que, em 2001, apresentou
um novo Projeto de Lei propondo a instituição da Renda de Cidadania no Brasil. O projeto foi aprovado e
transformado na Lei n.º 10.835, de janeiro de 2004, mas a renda básica ainda não foi implantada.
56
“A BIEN foi fundada em 1986, por um grupo de economistas, filósofos e cientistas sociais, para se constituir
num fórum de debates sobre todas as experiências, no mundo, de transferências de renda, como renda mínima,
imposto de renda negativo, renda básica, renda de cidadania, crédito fiscal por remuneração recebida, seguro
desemprego, renda de sobrevivência e outras afins, e também para propugnar para que em cada país da Europa e
do mundo venha a se instituir uma renda básica incondicional” (SUPLICY, 2008 [2004], pp. 8-9). Em 2004 foi
transformada em Basic Income Earth Network.
183
Criado pela lei nº. 9.533, de dezembro de 1997, esse primeiro Bolsa-Escola Federal,
na realidade, autorizava “[...] o Poder Executivo a conceder apoio financeiro a programas de
garantia de renda mínima instituídos por Municípios que não disponham de recursos
financeiros suficientes para financiar integralmente a sua implementação” (Art. 1º). Previa-se
uma implantação escalonada do programa, de forma que os recursos seriam destinados “[...]
aos Municípios com receita tributária por habitante, incluídas as transferências constitucionais
correntes, inferior à respectiva média estadual e com renda familiar por habitante inferior à
renda média familiar por habitante do Estado” (Art. 1º, § 1º). Os próprios municípios
deveriam instituir os programas e celebrar convênio com o Ministério da Educação – MEC,
além de arcar com 50% do total destinado às famílias, podendo entrar “[...] como participação
do Município e do Estado no financiamento do programa, os recursos municipais e estaduais
destinados à assistência socioeducativa, em horário complementar ao da freqüência no ensino
fundamental para os filhos e dependentes das famílias beneficiárias, inclusive portadores de
deficiência” (Art. 3º).
No âmbito do Executivo Federal, o programa seria “[...] custeado com dotação
orçamentária específica, a ser consignada a partir do exercício financeiro de 1998” (Art. 9º).
Os repasses (que, dessa forma, só ocorreriam a partir de 1999) seriam feitos para os
municípios, e estes ficariam responsáveis por realizar a seleção dos beneficiários,
operacionalizar o pagamento às famílias e prestar contas dos recursos recebidos. Segundo as
regras estabelecidas pelo Governo Federal, as famílias beneficiárias deveriam ter renda per
capita abaixo de meio salário e crianças entre 7 e 14 anos na sua composição57. Seria exigido
destas frequência escolar de 85%. O MEC fornecia o formulário para o cadastramento, mas
como a seleção ficava a cargo dos municípios, a dinâmica do programa acabava por se
diferenciar bastante entre diferentes localidades.
Com a tabela 23 podemos apreciar a dimensão que esse programa adquiriu até pouco
antes de ser criado um outro Bolsa-Escola em 2001. Nem todos os municípios chegaram a
participar da política, além do fato de o número de beneficiários e o valor médio do benefício
serem baixos.
57
O cumprimento dessas exigências não garantia o recebimento do benefício, porque o valor deste era dado pela
seguinte fórmula: Benefício por Família = R$ 15,00 (quinze reais) x número de dependentes entre zero e catorze
anos - [0,5 (cinco décimos) x valor da renda familiar per capita. Considerando que o salário mínimo em
dezembro de 1997 era de R$ 120,00, numa família com duas crianças onde a renda per capita fosse exatamente
igual a meio salário mínimo, o valor do benefício seria igual a zero (ROCHA, 2013, p. 49).
184
Tabela 23 – Brasil: Valores repassados pela União, número de municípios, valor médio do benefício e
número de famílias beneficiadas do Primeiro Bolsa Escola Federal (outubro de 2000)
Segundo pôde constatar Sonia Rocha (2013, pp. 52-57), houve sérias dificuldades para
que as transferências chegassem às famílias de mais baixa renda em cada município com
regularidade. Atraso nos repasses federais aos municípios por problemas orçamentários, falta
de recursos dos municípios para completar as transferências e para realizar o cadastramento,
dificuldades técnicas em realizar o pagamento por parte das prefeituras, além da ausência de
um sistema técnico-informacional de escala nacional para o cadastro dos beneficiários
185
58
As funções da CAIXA no âmbito do novo Bolsa-Escola Federal seriam as seguintes:
“§ 4o Caberá à Caixa Econômica Federal, na qualidade de agente operador, mediante remuneração e condições a
serem pactuadas com o Ministério da Educação, obedecidas as formalidades legais:
I - o fornecimento da infra-estrutura necessária à organização e manutenção do cadastro nacional de
beneficiários;
II - o desenvolvimento dos sistemas de processamento de dados;
III - a organização e operação da logística de pagamento dos beneficios; e
IV - a elaboração dos relatórios necessários ao acompanhamento, à avaliação e à auditoria da execução do
programa por parte do Ministério da Educação” (MP nº. 2.1240/2001, Art. 1º).
187
Desse modo, em duplo sentido a rede de fixos da CAIXA passava a assumir um papel
político: primeiro porque a sua distribuição no território nacional atuaria como norma para os
beneficiários (uma vez que, se em toda cidade há uma prefeitura, o mesmo não podemos
dizer, principalmente para o ano de 2001, sobre a rede de atendimento desse banco), que
precisariam, às vezes, se deslocar para receber a transferência; e, segundo, conforme assinalou
a autora, o uso do cartão contribuiria para convencer a população de que se trata de um bem
garantido pelo Estado (o uso do CAD.ÚNICO também contribuiria neste convencimento).
Estamos ante a construção do acontecer político-institucional.
Ainda em 2001, pela medida provisória nº 2.206-1, foi criado o Bolsa-Alimentação,
política de transferência de renda destinada “[...] à promoção das condições de saúde e
nutrição de gestantes, nutrizes e crianças de seis meses a seis anos e onze meses de idade,
mediante a complementação da renda familiar para melhoria da alimentação” (Art. 2º). O
Ministério da Saúde seria responsável, no nível Federal, pela gestão do Programa, e o repasse
dos benefícios se daria por intermédio da CAIXA, como no caso do Bolsa – Escola.
Por fim, embora com um sistema de financiamento próprio, mas destinado aos
beneficiários do Bolsa-Escola e do Bolsa-Alimentação, foi criado o Auxílio-Gás (MP nº 18,
de dezembro de 2001) com o objetivo de compensar a eliminação, que se efetivaria a partir de
janeiro de 2002, do subsídio universal embutido no preço do gás liquefeito de petróleo – GLP.
Para as famílias inseridas na política, seriam transferidos R$ 15,00 a cada dois meses.
A tabela 24 apresenta o número de beneficiários e os valores repassados pelos três
novos programas de 2001 a 2003. Vejamos.
Tabela 24 – Brasil: Número de benefícios em dezembro e valores anuais repassados pelos programas
de transferência de renda criados no Governo Fernando Henrique Cardoso (2001-2003)
2001 2002 2003
Benefícios Benefícios Benefícios
Programa Valores Valores Valores
(mil) (mil) (mil)
B. Escola 4.794 408.583.920 5.107 1.531.277.441 3.771 1.424.144.340
B.
_ 967 x 327 289.642.740
Alimentação
Auxílio Gás _ 8.847 x 6.932 796.577.453
Total 4.794 408.583.920 14.921 x 11.030 2.510.364.533
X – Não possível obter dados.
Fonte: Rocha (2013, p. 77 e 150) e Santana (2007, várias páginas)
Organização: Fernando Silva (2017)
188
4.2. A política brasileira de transferência de renda na busca por garantir direitos sociais
aos mais pobres: o Programa Bolsa Família
Conforme demonstraram, dentre outros autores, Rosa Helena Stein (2005, várias
páginas), Vivian Domínguez Ugá (2008, pp. 131-132) e Carla Guerra Tomazini (2010, pp.
184-186), embora vários elementos da política brasileira de transferência de renda tenham
sido definidos a partir de um debate interno, a busca por restringir cada vez a pobreza à renda
e à escolaridade está permeada, de fio a pavio, pelas influências dos organismos
internacionais, notadamente do Banco Mundial. Caberia mesmo perguntar, por exemplo, até
que ponto o exercício de discutir critérios para os beneficiários participarem das
transferências, quando a solução para a pobreza já foi previamente definida sem apoio na
realidade, pode ser chamado de fazer político.
Em 1997, havia programas de transferência de renda de escala nacional somente no
Brasil e no México. Conforme demonstram os mapas 67 e 68, onze anos depois mais quinze
países da América Latina, além de vários outros países pobres, tinham implantado programas
desse tipo.
189
Mapas 67 e 68 – Mundo: Países com programas de transferência condicionada de renda (1997 e 2008)
59
Ver reportagem: “Focalizar é bom, diz economista”. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2704200303.htm Acesso em agosto de 2016.
191
A primeira negociação para empréstimo foi feita no início de 2004, com o Banco
Mundial. De acordo com a explicação da mesma autora (que, aliás, participou de todo o
processo), houve sérias divergências entre os técnicos desse banco e o governo brasileiro,
sobretudo no que se refere aos critérios de renda e à frequência escolar exigidos dos
beneficiários. Quanto aos primeiros, os técnicos do Banco defendiam que boa parte dos
recursos “[...] deveria ser orientada para verificar se o Programa estava bem focalizado para
os pobres até a faixa de renda per capita então definida, que deveria ser seguida à risca. Já a
concepção do governo brasileiro consistia em que deveria haver uma margem de tolerância
nesse corte [...]” (COHN, 2012, p. 21). Sobre as condicionalidades, a discordância era mais
forte: enquanto os técnicos do Banco Mundial argumentavam que elas deveriam ter caráter
60
Ver reportagem: “Lula tem aula sobre plano social focalizado mexicano”. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2704200302.htm
192
Quadro 18: algumas características dos empréstimos feitos pelo Governo Federal ao Banco Mundial e
ao Banco Interamericano de Desenvolvimento destinados ao Programa Bolsa Família
Prazo para
Ano/Banco Valores Objetivo
pagamento
Visou, sobretudo, a consolidar a unificação dos programas
de transferência de renda existentes (Bolsa Escola, Bolsa
Alimentação, Cartão Alimentação e Auxílio-Gás), dando
apoio:
“à consolidação dos programas de transferência
condicional de renda e à redução nas falhas e
2004/Banco US$ 572,2 17 anos (incluindo 5
duplicações em sua cobertura;
Mundial milhões anos de carência)
ao fortalecimento do sistema, com o objetivo de
identificar a população alvo;
ao desenvolvimento de um sistema de
monitoramento e avaliação do programa; e
à maior eficiência da operação institucional básica
do programa”61.
Dentro do mesmo processo de unificação dos Programas de
transferência de renda, o empréstimo objetivou:
“expandir a cobertura do Bolsa Família a todas as
famílias elegíveis de forma eficiente e eficaz;
28 anos e meio
US$ 1 fortalecer o Programa de Erradicação do Trabalho
2004/BID (incluindo 3,5 anos
bilhão Infantil;
de carência
avaliar e melhorar a qualidade dos programas
complementares da rede de segurança social; e
fortalecer o ministério recém-criado, bem como a
estrutura de assistência social descentralizada”62.
Foi feito para aprimorar o gerenciamento e controle do
programa, buscando especificamente:
fortalecer “o cadastramento de beneficiários, a
gestão de benefícios e o acompanhamento das
condicionalidades;
consolidar o sistema de monitoramento e avaliação
2010/Banco US$ 200 30 anos (incluindo 5
do programa; e
Mundial milhões anos de carência)
integrar outros programas de proteção social com o
Bolsa Família, para promover inovações e
estratégias de saída da pobreza por meio de
investimentos em áreas como incentivos
educacionais e relações com o mercado de trabalho
e programas de produtividade”63.
Fonte: site do Banco Mundial e do BID (acesso em agosto de 2016)
Organização: Fernando Silva (2017)
61
Disponível no site do Banco Mundial, no link:
http://web.worldbank.org/external/default/main?pagePK=34370&piPK=34424&theSitePK=4607&menuPK=344
63&contentMDK=20215498
62
Disponível no site do BID, no link: http://www.iadb.org/pt/noticias/comunicados-de-imprensa/2004-12-
15/bid-aprova-emprestimo-de-us1-bilhao-para-expansao-e-consolidacao-da-protecao-social-no-brasil-baseada-
no-programa-bolsa-familia,1334.html
63
Disponível no site do Banco Mundial, no link: http://www.worldbank.org/pt/news/press-
release/2010/09/17/brazils-landmark-bolsa-familia-program-receives-us200-million-loan
194
a 2006, revelou que entre 2003 e 2006 o número de matérias sobre o tema foi praticamente o
dobro do que foi publicado durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Se em 2001 e
2002 prevaleceram as análises favoráveis às transferências, no governo Lula a mídia passou a
publicar matérias notadamente sobre fraudes no Programa, assunto que em 2004 chegou a
ocupar 50% das matérias sobre o tema (LINDERT e VINCENINI, 2010, várias páginas).64
Segundo a pesquisa desses autores, essa percepção se deve, em boa medida, aos
preconceitos que dominam o imaginário da sociedade brasileira. Para isso, o estudo aponta a
solução: a implementação “[...] de uma política social com adequados níveis de qualidade na
sua execução, não somente para a eficácia do programa, mas sobretudo para uma melhor
aceitação por parte da sociedade” (VIEIRA, 2011, p. 66). Caberia se perguntar de que
sociedade se está falando, e se tal aceitação não seria, antes de tudo, por parte do próprio
Banco e dos demais organismos internacionais.
Daí que também nas políticas sociais, os vínculos societários que alimentaram a
construção da cidadania incompleta no Brasil sejam usados para colocar, no Estado, na
sociedade e no espaço, a ação instrumental como parâmetro (RIBEIRO, 1998, p. 120), com
todas as consequências que isso pode ter para as formas de valorização dos sistemas de
objetos e ações em uma política tão sensível para as populações pobres, como é o caso do
Bolsa Família.
Desde então o MDS passou a criar novos sistemas técnico-informacionais e a
aperfeiçoar os já existentes para monitorar o CAD.ÚNICO65 e as condicionalidades do PBF.
Segundo a explicação de Ana Maria Machado Vieira (2011, pp. 87-159), isso só foi possível
em virtude dos recursos oriundos dos empréstimos que mencionamos, e implicou, a partir de
2005, rever as relações do MDS com a CAIXA e com os municípios no âmbito do PBF.
Nesse sentido, podemos citar a criação de uma nova versão do CAD.ÚNICO, a
denominada Versão 6. Trata-se de uma versão que permite a instalação em rede do programa
de inclusão de dados pelos municípios, conferindo a estes maiores possibilidades de manusear
os dados, gerar relatórios etc. Ao mesmo tempo, o MDS foi mudando sua relação com a base
nacional de dados do cadastro, sobretudo a partir do desenvolvimento do chamado sistema
64
Para uma boa análise dessa pesquisa, ver a dissertação de Ana Maria Machado Vieira (2011, pp. 63-68).
65
No começo de 2005, buscando responder às críticas da grande mídia, o MDS solicitou informações do
CAD.ÚNICO à CAIXA e realizou um Teste de Consistência da base de dados do Cadastro Único, no qual
comparou a renda declarada no Cadastro Único e a constante na Relação Anual de Informações Sociais – RAIS,
do Ministério do Trabalho e Emprego. Desse modo: “o governo federal dava sinais claros, aos municípios e às
famílias, que estava investindo em mecanismos para averiguar a fidedignidade das informações de renda, uma
vez que estas possuem caráter declaratório, sem a obrigatoriedade de comprovação, por parte da família”
(VIEIRA, 2011, p. 102).
196
Tabela 25 – Brasil: Recursos repassados pelo Governo Federal aos municípios para gestão do
Programa Bolsa Família (de abril/2006 a dezembro/2014)
Ano Valores repassados (R$
2006 161.360.379,71
2007 230.667.982,62
2008 256.671.070,21
2009 252.958.715,31
2010 287.651.567,49
2011 299.488.145,66
2012 489.048.301,21
2013 503.117.299,62
2014 468.745.004,04
Fonte: BRASIL (2014, p. 13)
Organização: Fernando Silva (2017)
Pela forma como opera o IGD, não nos parece estar descartada a hipótese de que o
argumento do desempenho possa atuar, no discurso e na prática, como uma verdadeira
66
“O desenvolvimento teve início no ano de 2007, contemplando informações necessárias à gestão do Programa
Bolsa Família e Cadastro Único, tais como: cadastro, benefícios, cartões, operações de pagamentos e
comparações com a RAIS” (VIEIRA, 2011, p. 127).
67
Por meio da Portaria nº. 76, de março de 2008 do MDS, foi criado também um IGD para os Estados, o IGD –
E, ratificado pela mesma lei nº. 12.058. No ano de sua criação, foram repassados R$ 11,3 milhões, ao passo que
em 2010 e 2011, quando temos novamente registro de repasses, os valores alcançaram o total de,
respectivamente, R$ 8,2 milhões e R$ 11,7 milhões (BRASIL, 2014).
197
ameaça: os municípios e estados que não alcançarem um bom desempenho podem ter os
recursos suspensos68.
No que se refere às condicionalidades, além das mudanças nas relações com a CAIXA
e com o MDS que vimos relatando, contribuiu para o seu constante acompanhamento a
construção de sistemas técnicos específicos. Esses somente se tornaram possíveis a partir da
Portaria GM/MDS nº 551, de 09 de novembro de 2005, que regulamenta a gestão das
condicionalidades do PBF. Essa Portaria estabeleceu as atribuições dos municípios, estados,
Ministério da Saúde - MS e Ministério da Educação - MEC no acompanhamento das
condicionalidades, assim como sanções gradativas para os beneficiários que não as
cumprissem69.
Se até setembro de 2006 a frequência escolar era registrada em um sistema
operacionalizado pela CAIXA, onde as informações sobre frequência escolar eram coletadas
em CDs e material impresso nos municípios e encaminhadas a esse banco, no mês de
dezembro do mesmo ano foi disponibilizado pelo MEC o “Sistema Presença” (LICIO, 2012,
pp. 237-238). Disponível na internet para os operadores municipais, esse sistema, diferente do
anterior, permitiu o acompanhamento de cada criança segundo a escola. Também em 2006 foi
criado um Módulo no Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional – SISVAN
especificamente para o registro das condicionalidades de saúde do PBF. Por fim, a criação do
68
O tom de ameaça passou a dominar as publicações do ministério gestor do PBF a partir de 2016, sob o
governo do presidente Michel Temer. Sobre isso ver, por exemplo, a reportagem: “94% dos municípios
prestaram contas dentro do prazo sobre gastos com Bolsa Família”. Disponível em: http://mds.gov.br/area-de-
imprensa/noticias/2016/setembro/94-dos-municipios-prestaram-contas-dentro-do-prazo-sobre-gastos-com-bolsa-
familia Acesso em novembro de 2016.
69
Vale aqui reproduzir parte do capítulo IV dessa Portaria, que trata das sanções a serem aplicadas no caso de
descumprimento das condicionalidades:
“Art. 14. As famílias beneficiárias do PBF que não realizarem as atividades previstas nos incisos do art 3° desta
Portaria ficam sujeitas às seguintes sanções do programa, sem prejuízo da penalidade prevista no art. 14, § 1°, da
Lei n° 10.836, de 2004, e das definidas em outras normas:
I – Bloqueio do benefício por 30 dias;
II - Suspensão do benefício por 60 dias; III - Cancelamento do benefício.
Parágrafo único. As sanções previstas neste artigo serão aplicadas pela SENARC, no âmbito de suas atribuições,
podendo ser aplicadas cumulativamente.
Art. 15. O bloqueio de benefício a que se refere o inciso I obedecerá às normas e procedimentos para a gestão de
benefícios do PBF e terá efeito sobre (01) uma parcela de pagamento do benefício a que faz jus a família,
havendo o subseqüente desbloqueio do benefício, e será aplicada a partir do segundo registro de inadimplência
quanto às obrigações previstas no art. 3° desta Portaria.
Art. 16. A suspensão de benefício a que se refere o inciso II obedecerá às normas e procedimentos para a gestão
de benefícios do PBF e terá efeito sobre (02) duas parcelas de pagamento do benefício a que faz jus a família, e
será aplicada a partir do terceiro registro de inadimplência quanto às obrigações previstas no art. 3° desta
Portaria.
Art. 17. O cancelamento de benefício a que se refere o inciso II obedecerá às normas e procedimentos para a
gestão de benefícios do PBF, e será imposto exclusivamente depois da aplicação acumulada de duas suspensões
a que se refere o art. 16”.
198
Quem financia [a política social] vai querer um relatório, então é preciso ter
um relatório. Isso vai ser dito e é chamado de transparência para a sociedade
que, todavia, não pediu nada, absolutamente nada disso. Mas, hoje o Estado
fala em nome da sociedade, algo que não há votação nem nada que
justifique, mas que virou tendência corrente. Portanto, o monitoramento da
aplicação de recursos ou a avaliação são traduzidos como transparência
democrática. No entanto, esta é muito mais uma preocupação dos gestores
do que exatamente da sociedade, porque ela nem sabe disso, mas
posteriormente isso é vendido como democracia para a sociedade.
As análises disponíveis sobre o PBF são unânimes em ressaltar como a construção dos
novos sistemas técnicos para viabilizar as transferências, no bojo desse processo de pressão
por eficácia e por resultados que assinala a autora, terminou por adquirir um duplo sentido
político. Em primeiro lugar, como vimos, tratava-se de dar respostas às críticas levantadas
pela grande mídia e pelas classes dominantes brasileiras. Segundo, como demonstrou Amélia
Cohn (2012) analisando cartas de beneficiárias do Programa dirigidas ao presidente Lula,
erros no cadastramento, por exemplo, dificultavam, até então, a percepção do benefício como
um direito, uma vez que geravam bastante instabilidade na população pobre no que se refere
ao recebimento dos repasses. Tratava-se também de enfrentar essas dificuldades.
É por isso que, impregnados por essa forma específica de construção do consenso, os
novos sistemas técnicos acabaram permitindo uma expansão jamais vista da política de
transferência de renda no Brasil. Na tabela 26 verificamos que os valores repassados às
famílias passaram de R$ 3,7 bilhões, em 2004, para R$ 28,5 bilhões em 2016, ao passo que o
número de famílias beneficiárias mais que dobrou no mesmo intervalo.
199
Tabela 26 – Brasil: Evolução do número de famílias beneficiárias, dos valores repassados e dos
valores médios do benefício do Programa Bolsa Família (2004-2016)
Tabela 27 – Brasil: Evolução dos valores e benefícios do Programa Bolsa Família (2003 – 2016)
Valores nominais e reais em meses de repercussão na folha de pagamento (R$)
Tipo de 2003 2007 BVJ/2008 2008 2009 2011 2011 Criação do 2014 2016
benefício Out. Ago. Mar. 2 Jul. 3 Set. 4 Abr. Set. 6 BSP em Jun. 8 Jun. 9
1 5 2012 Jun. 7
Básico 50 58 58 62 68 70 70 77 85
Variável 15 18 18 20 22 32 32 35 39
Jovens 30 30 33 38 38 42 46
BSP Variável Variável Variável
Máximo 95 112 172,00 182 200 242 306 Sem limite Sem Sem
limite limite
Fonte: site do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS)/legislação do Bolsa Família
Organização: Fernando Silva (2017)
Não há nenhuma norma sobre o cálculo a ser usado para o aumento nos valores dos
benefícios, nem mesmo a respeito de sua periodicidade. É possível afirmar que tal aumento
fica então bastante dependente das prioridades de cada governo, uma vez que o instrumento
legal mais utilizado para isso é o decreto.
Como destacaram, dentre inúmeras outras, as pesquisas de Tereza Cristina Silva Cotta
(2009), Renata Mirandola Bichir (2011) e Elaine Cristina Licio (2012) o PBF, diferente dos
programas de transferência existentes até 2002, foi construído vinculado à expansão de
diversas políticas sociais, notadamente de Assistência Social, Saúde e Educação. Além disso,
as transferências foram associadas a vários outros programas. O CAD.ÚNICO, por exemplo,
passou a ser utilizado para cerca de 20 (vinte) políticas, dentre elas o Programa Minha Casa,
Minha Vida - PMCMV, Tarifa Social de Energia Elétrica, Programa Nacional de Acesso ao
Ensino Técnico e Emprego – PRONATEC etc. Desenha-se, dessa maneira, uma nova fase de
busca pela integração dos pobres aos direitos sociais.
Um indicativo inicial de como o PBF se insere nessa integração é dado pela
distribuição dos beneficiários no território brasileiro. É o que trazemos no mapa 69.
201
O mapa deixa claro como as regiões e lugares mais pobres do Brasil se destacam no
que se refere à participação no Programa. No Nordeste, os estados com maior percentual de
beneficiários são Maranhão, Piauí e Alagoas, que desde 2004 alternam entre si as três
primeiras posições. Assim, um caminho que nos parece seguro para avançar na análise dos
limites e possibilidades do PBF quanto ao enfrentamento da problemática do “Espaço
Dividido” é entender como esta política vem somar-se às heranças espaciais.
Na realidade, o PBF se derrama sobre as formas diversas de manifestação dos circuitos
da economia urbana nas regiões brasileiras, conferido nova dinâmica aos elementos tanto do
subsistema superior como do inferior que participam diretamente na sua conformação. Além
disso, como tais elementos não se encontram isolados na economia urbana, nem muito menos
cada circuito pode se explicar por si mesmo, o que percebemos são novas e complexas
relações entre a pobreza e a riqueza nas cidades. Nos próximos capítulos procuraremos
demonstrar como isso vem se dando no contexto da Região Canavieira de Alagoas.
203
CAPÍTULO 5: A nova dinâmica dos dois circuitos da economia urbana em Porto Calvo,
União dos Palmares e São Miguel dos Campos
B
uscando seguir o caminho teórico-metodológico apresentado ao longo da tese
(melhor delineado no capítulo anterior), a partir do qual cremos ser possível lançar
um olhar geográfico sobre o PBF para avançar na sua problematização, no presente
capítulo procuramos apontar como esse Programa – tanto pela forma específica como
funciona nos diversos municípios, como pelas condições que pode oferecer à realização de
novos eventos (RIBEIRO e SILVA, 2004, pp. 357-358) – transformou as economias urbanas
de Porto Calvo, União dos Palmares e São Miguel dos Campos.
Se é possível dizer que, em diversos aspectos, o PBF foi moldado mais pela pressão da
ação instrumental/global do que pela referência à dinâmica concreta da pobreza, quando se
trata de compreender suas consequências para a realidade dos lugares parece-nos de suma
importância situá-lo em meio às novas possibilidades técnicas e normativas oferecidas pelo
meio geográfico regional à ação das empresas e dos pobres. Por isso, buscamos levar em
conta algumas mudanças e permanências nos principais elementos dos dois circuitos da
economia urbana presentes nas três cidades citadas, perscrutando, sempre que possível, o
sentido político-geográfico que tais mudanças podem revelar.
O papel assumido pela CAIXA como agente pagador das transferências do Bolsa
Família constitui a principal maneira pela qual atividades do circuito superior são chamadas a
participar diretamente na realização desse acontecer solidário nas cidades. Esse papel não
pode ser compreendido sem considerarmos a atuação de correspondentes que passam a prestar
204
serviços para esse banco, sobretudo Casas Lotéricas e Caixa’s Aqui (CONTEL, 2006, p. 248).
Por isso, negócios e trabalhadores do circuito inferior em áreas periféricas de Porto Calvo,
União dos Palmares e São Miguel dos Campos também passaram a realizar parte das
atividades atribuídas à CAIXA no âmbito do PBF.
Por outro lado, o aumento do fluxo de pessoas no espaço urbano nos dias de
pagamento do PBF cria não somente novas possibilidades econômicas para trabalhadores do
circuito inferior da economia urbana, mas também exige que estes elaborem formas de
organização que atendam às especificidades de populações que recebem pequenos valores
pelas transferências e habitam as periferias das cidades. Daí que faça sentido pensar que o
papel do circuito inferior na conformação desse acontecer não seja totalmente subordinado.
O crescimento do volume das transferências terminou se tornando um convite à
instalação de atividades comerciais do circuito superior nas cidades que vimos analisando.
São comércios de ramos ligados aos consumos básicos das famílias do Programa, com lojas
direcionadas especialmente às populações de menor poder aquisitivo. Localizados em pontos
selecionados do espaço urbano, esses comércios se empenham por abocanhar parte dos
valores transferidos aos beneficiários. Desse modo, a população pobre passa a estar mais
ligada ao circuito superior por intermédio do consumo. Como a quantidade de empregos nesse
circuito não cresce na mesma proporção dos valores que ele drena, os membros das famílias
beneficiárias continuam trabalhando predominantemente em atividades do circuito inferior,
ou sazonalmente nas usinas.
Uma das principais características do Bolsa Família reside no fato de transferir
pequenos valores para um número expressivo de beneficiários. Esse fator torna-se responsável
pela pulverização de atividades do circuito inferior no espaço urbano, surgidas para atender
uma demanda que, fosse outra a combinação entre técnica, capital e organização, poderia
parecer insolvente.
Mas num contexto em que as usinas começam novamente a falir, ou a não pagar o
salário dos trabalhadores em dia (como vem ocorrendo desde 2013 na Região), ao mesmo
tempo em que a busca por mais “eficácia” no PBF gera certa instabilidade na população
beneficiária quanto ao recebimento dos recursos (fato notável a partir de 2016), as disputas
entre os dois circuitos podem se tornar mais evidentes do que as cooperações. Se é necessário
procurar o menor preço e não comprar fiado “porque o Bolsa Família é hoje e amanhã só
Deus sabe” (Entrevista concedida por beneficiária do PBF em julho de 2016), certas relações
das atividades do circuito inferior com as populações pobres são fortemente pressionadas.
205
De certo modo, a tensão política entre os dois circuitos da economia urbana já era
especialmente realçada no papel desempenhado pelas condicionalidades de educação no
âmbito do PBF. Quando o grau de escolaridade requerido por uma economia seletiva é
colocado como exigência para que os pobres possam usufruir dos bens coletivos disponíveis
em uma sociedade, fica claro que essa sociedade vai continuar se constituindo de maneira
seletiva, assim como torna-se cada vez mais difícil fazer com que a educação formal sirva, ao
mesmo tempo, aos objetivos do indivíduo, do lugar e da nação (SANTOS, 2000). Por que
continuar virando as costas para os lugares, se inspirando nessa economia sem sentido para a
maior parte do País quando se trata de elaborar políticas públicas?
Tabela 28 - Porto Calvo, União dos Palmares e São Miguel dos Campos: Evolução do número de
famílias e valores anuais repassados pelo PBF (2004 – 2016)
Porto Calvo União dos Palmares São Miguel dos Campos
Nº. de Valores Nº. de Valores Nº. de Valores
Ano famílias* repassados famílias* repassados famílias* repassados
2004 2.820 1.643.597,00 5.791 2.885.633,00 2.916 1.870.574,00
2005 2.954 2.306.338,00 6.784 4.280.135,00 3.842 2.681.946,00
2006 3.540 2.516.417,00 8.402 5.403.526,00 3.786 2.849.190,00
2007 3.466 2.831.608,00 8.100 6.414.419,00 3.602 2.923.110,00
2008 3.665 3.442.814,00 8.222 7.769.517,00 3.207 3.242.557,00
2009 3.570 4.018.394,00 8.330 9.313.109,00 5.201 4.663.509,00
2010 3.869 4.642.755,00 9.623 11.299.517,00 5.374 5.716.124,00
2011 4.047 5.586.256,00 9.441 13.487.785,00 5.721 7.382.258,00
2012 4.148 6.403.088,00 10.070 15.015.086,00 6.385 9.413.010,00
2013 4.162 6.617.000,00 9.357 15.392.282,00 6.919 10.804.766,00
2014 4.400 7.281.826,00 9.809 16.519.264,00 7.161 12.215.516,00
2015 4.042 7.456.013,00 9.365 16.991.697,00 6.691 11.885.170,00
2016 4.141 7.933.293,00 9.355 17.034.201,00 6.155 11.538.340,00
*Quantidade referente a dezembro de cada ano.
Fonte: site do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS)
Organização: Fernando Silva (2017)
Tabela 29 – Brasil: Valores destinados ao agente operador do Programa Bolsa Família* (2005 – 2015)
Ano Valores pagos (mil)
2005 178.304
2006 523.980
2007 324.459
2008 191.765
2009 218.704
2010 231.294
2011 221.270
2012 _
2013 270.047
2014 _
2015 147.600
*Valores registrados na ação: “Despesas com Serviços de Concessão, Manutenção, Pagamento e Cessação dos
Benefícios de Transferência Direta de Renda”
Fonte: Sistema Integrado de Administração financeira do Governo Federal - SIAFI
Organização: Fernando Silva (2016)
É possível notar que, depois da estruturação do PBF, a despesa com o agente operador
não se elevou muito, e isto certamente se deve à estabilização do número de beneficiários e ao
70
O Decreto 5.209, de setembro de 2004, que regulou a lei de criação do PBF, estabelece as seguintes funções
para a CAIXA:
“Art. 16. Cabe à Caixa Econômica Federal a função de Agente Operador do Programa Bolsa Família, mediante
remuneração e condições pactuadas com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome,
obedecidas as exigências legais.
§1º Sem prejuízo de outras atividades, a Caixa Econômica Federal poderá, desde que pactuados em contrato
específico, realizar, dentre outros, os seguintes serviços:
I- fornecimento da infra-estrutura necessária à organização e à manutenção do Cadastramento Único do Governo
Federal;
II desenvolvimento dos sistemas de processamento de dados;
III organização e operação da logística de pagamento dos benefícios;
IV- elaboração de relatórios e fornecimento de bases de dados necessários ao acompanhamento, ao controle, à
avaliação e à fiscalização da execução do Programa Bolsa Família por parte dos órgãos do Governo Federal
designados para tal fim”.
208
71
Entre 2006 e 2009, por exemplo, enquanto foram gastos R$ 69,85 milhões para remunerar o agente pagador do
Benefício de Prestação Continuada e da Renda Mensal Vitalícia, as despesas do PBF com a CAIXA alcançaram
R$ 1,4 bilhões (SILVA, 2010, p. 120). No entanto, mesmo levando em conta esses dados fica difícil concordar
com a conclusão dessa autora de que o PBF tem priorizado a remuneração do capital financeiro, uma vez que
todos os recursos destinados a esse Programa são relativamente pequenos se compararmos aos gastos de outras
políticas sociais.
209
Para realizar o pagamento dos benefícios do PBF existe na cidade de Porto Calvo uma
agência da CAIXA e uma Casa Lotérica (ambas localizadas na mesma rua). Podemos
observar a distribuição desses fixos no mapa a seguir.
72
De acordo com as normas do MDS, o PBF pode ser sacado com o cartão exclusivo do Programa, com o Cartão
Conta Caixa Fácil ou com a Guia Avulsa de Pagamento fornecida pela Caixa para os beneficiários que por
algum motivo estejam sem cartão.
73
A Portaria do MDS n° 532, de 03 de novembro de 2005, estabelece as regras de fixação do calendário para o
pagamento dos benefícios do Programa Bolsa Família e Programas remanescentes. De acordo com essa Portaria
(Art. 1º, § 2º): “O ordenamento das datas de pagamento terá como base a sequência dos dígitos verificadores dos
Números de Identificação Social – NIS dos responsáveis legais das famílias beneficiárias, iniciando-se com final
1 (um), seguindo ordem crescente até o final 0 (zero)”.
210
Mapa 70 – Porto Calvo: distribuição dos fixos da Caixa Econômica Federal (2016)
Em nossos trabalhos de campo foi possível verificar que atividades do circuito inferior
da economia urbana, notadamente o serviço de moto-táxi e de transporte complementar
interurbano, tornaram-se essenciais para realizar os deslocamentos das populações
beneficiárias até onde esses fixos estão instalados. Para sabermos como isso vem se dando é
importante, antes de mais nada, considerarmos algumas características da população incluída
no PBF na cidade de Porto Calvo.
211
uma racionalidade mais ampla, social, recobrindo e organizando o conjunto das relações
sociais. [...] uma ‘correspondência’ funcional entre estruturas econômicas e não econômicas”
(GODELIER, 1969, p. 388).
A realidade é um pouco diferente para as beneficiárias que disseram se utilizar do
transporte interurbano de passageiros. Este, fazendo a linha Porto Calvo – Maceió, passa pela
periferia da cidade. Nesse caso, quase não há mais relações de confiança entre o motorista e
os clientes, e isto se deve às novas formas de organização exigidas desse transporte pelo
Governo Estadual, como pontuaremos no próximo capítulo. Daí que as beneficiárias que se
utilizam desse transporte, mas não têm o dinheiro da passagem de ida (o que é o mais
comum), nem conseguem emprestado com alguma vizinha, geralmente vão a pé, e somente o
utilizam para retornar às suas casas.
Não há dúvidas de que as novas formas de inter-relações entre os subespaços de Porto
Calvo viabilizadas pelo PBF reafirmam os papéis que vinha desempenhando a área central
dessa cidade. Por isso, a concretização desse acontecer solidário terminaria também por criar,
nessa mesma área, novas oportunidades tanto para atividades do circuito superior como para
as do circuito inferior da economia urbana.
5.1.2. O Bolsa Família em União dos Palmares: entre a capacidade de orientar os fluxos do
circuito superior e a renovação do papel político do circuito inferior
Essas beneficiárias moram, sobretudo, nas áreas periféricas de União dos Palmares,
relativamente distantes do centro: 21% no Conjunto Nilton Pereira (distante cerca de 3,5 km
do centro), 15% no Conjunto Nova Esperança (3 km do centro), 12% no Conjunto Sagrada
Família (3,8 km do centro), 6% no Bairro Roberto Corrêa de Araújo (2 km do centro), 6% no
Distrito Rocha Cavalcanti (13 km do centro), 5% no Bairro Santa Fé (5 km do centro), 5% no
Bairro Nossa Senhora das Dores (2,5 km do centro), sendo que o restante habita bairros nas
proximidades do centro. Como vimos no mapa, dentre todos esses bairros periféricos apenas
no Bairro Roberto Corrêa de Araújo funciona uma Casa Lotérica desde 2011.
Ainda de acordo com os dados obtidos a partir de nossos questionários, embora essa
Casa Lotérica da periferia tenha se tornado um local importante para pagamento às
populações beneficiárias do próprio Roberto Corrêa de Araújo e de bairros vizinhos, uma vez
que 9% disseram que agora costumam buscar exclusivamente esse fixo todo mês para receber,
e mais 14% o buscam esporadicamente, para as populações das demais periferias os
correspondentes do centro continuam a ser o principal local de recebimento: 60% das
mulheres afirmaram receber na Casa Lotérica mais antiga do centro. Essa dinâmica
condicionou o surgimento de um sistema urbano de transporte de passageiros, organizado por
trabalhadores do circuito inferior da economia urbana a partir de associações locais.
Vinculada à Associação de Transporte Complementar interurbano de União dos
Palmares, surgiu, em 2013, a primeira linha propriamente urbana de transporte com destino a
alguns bairros periféricos de União dos Palmares. Na realidade, os trabalhadores dessa linha
antes realizavam transporte de passageiros de União dos Palmares para a Usina Lajinha, mas a
enchente ocorrida na Bacia do Rio Mundaú em 2010 destruiu praticamente todas as casas de
moradores dessa usina. Como logo depois foram construídas habitações para os desabrigados
na periferia de União dos Palmares, os trabalhadores dos transportes viram nos fluxos de
pessoas dos novos bairros em direção ao centro novas oportunidades de rendimento.
Dois anos depois foi criada a Associação de Transporte Urbano Municipal de União
dos Palmares – ATUMUP, com o objetivo de realizar o transporte de passageiros para todas
as demais periferias da cidade. Segundo a entrevista que realizamos com o diretor dessa
Associação, a ideia de criá-la surgiu da observação de que a maior parte da população da
periferia que vinha receber algum dinheiro no centro (principalmente aposentadoria e Bolsa
Família) tinha dificuldade de voltar com compras para casa, pois a única possibilidade de
transporte existente até então era o serviço de moto-táxi. O diretor nos disse que, ainda em
215
2015, a Câmara Municipal aprovou e o prefeito sancionou uma lei conferindo à ATUMUP
permissão para explorar os serviços de transporte urbano74.
No mapa a seguir, apresentamos o trajeto que esses sistemas de transporte perfazem.
Todas as linhas buscam as periferias da cidade, convergindo na área central, e foram
estabelecidas pelas próprias associações.
74
Não tivemos acesso a essa Lei, e nos vários setores da Prefeitura que visitamos ninguém soube informar sobre
sua existência.
216
Foto 3 - Ponto de transporte construído por trabalhadores do circuito inferior em União dos Palmares -
AL
Foto 4 – Uso de antiga estação ferroviária como ponto de transporte em União dos Palmares - AL
Tabela 30 – União dos Palmares: Número de carros e valores das passagens no transporte urbano
(2016)
Bairro de destino Número de vans Valores da passagem
Conjunto Sagrada Família* 6 R$ 2,50
Nova Esperança 5 R$ 2,00
Várzea Grande 3 R$ 3,00
Padre Donald 2 R$ 2,00
Santa Fé** 18 R$ 3,00
Distrito Rocha Cavalcante 22 R$ 5,00
* Para os bairros Roberto Corrêa de Araújo e Nossa Senhora das Dores, que ficam na mesma linha, a passagem
custa R$2,00
** Nilton Pereira, que fica na mesma linha, custa R$2,50
Fonte: Trabalho de Campo (2015-2016)
Organização: Fernando Silva (2017)
218
do município. Para tanto, exigia-se, por exemplo, que a moto não tivesse mais que 7 (sete)
anos de uso, e que todo o emplacamento estivesse em dia75.
Portanto, aumentaram as despesas desses trabalhadores a partir da necessidade de
renovação constante do seu principal equipamento de trabalho, ao passo que o mercado agora
seria compartilhado com o serviço de transporte por vans. A passagem começou a aumentar
(para os bairros periféricos mais distantes chega a custar R$ 5,00), ficando difícil para a
população pobre pagar os novos valores. Nesse caso, como em muitos outros, a chamada
“regularização”, mesmo que diminua a perseguição por parte do poder público (SANTOS,
2008 [1975], p. 47), significa novas formas de empobrecimento para as populações e
atividades do circuito inferior da economia urbana.
5.1.3. A concretização do Bolsa Família em São Miguel dos Campos em meio à busca por
normatizar elementos do circuito inferior
No espaço urbano de São Miguel dos Campos os dois principais fixos que executam o
pagamento do PBF localizam-se na área central da cidade, próximos aos serviços públicos
mais antigos que conferiram a essa cidade um papel de destaque na rede urbana da Região
Canavieira. Há também um correspondente Caixa Aqui no loteamento Hélio Jatobá, maior
periferia da cidade, conforme observamos no mapa a seguir.
75
Alguns dos requisitos para formalização do serviço de moto-táxi adotados localmente foram estabelecidos pela
Lei nº. 12.009, de julho de 2009, que regulamenta a profissão do moto-taxista e do motoboy. Expansão da
“cidadania regulada” (SANTOS, 1979) ou efeitos do “paradigma administrativo” (RIBEIRO, 1998) (uma vez
que a política do poder público municipal para o transporte de passageiro foi sendo reduzida à aplicação de
normas)? Como esse processo foi acompanhado pela distribuição de permissões para novos moto-taxistas, não
faltou também a percepção da “cidadania concedida” (SALES, 1992).
220
Mapa 73 – São Miguel dos Campos: Fixos da Caixa Econômica Federal (2016)
Todavia, nos anos recentes temos visto o poder público municipal pressionar
fortemente essa organização, como se ela não estivesse imbricada a uma combinação de
técnicas e de capitais pensada para atender às especificidades das populações pobres
miguelenses.
Se a Lei nº 1.066, de janeiro de 1999, atribuiu a SMTT o papel de administradora do
transporte público municipal de passageiros, foi somente com a estruturação dessa
Superintendência ao longo da primeira década do século XXI que a prefeitura passou a
conceder alvarás para os trabalhadores da Associação do Bairro de Fátima para “regularizar”
o transporte público no município. Pelo alvará cada trabalhador passou a pagar uma taxa
anual de R$ 58,00. Tiveram início, desde então, constantes processos de fiscalização das
condições dos veículos, da documentação dos motoristas etc.
Como a renovação do alvará é anual, a necessidade de comprar novos veículos se
tornou uma constante. Uma vez que a vinculação à Associação por si só não garante mais o
trabalho, cria-se uma tensão entre a organização da Associação e as normas públicas. O alvará
é concedido por um ano, mas a dívida com o veículo geralmente é feita para um prazo muito
maior (SILVA NETO, 2016, p. 67). Na prática, o trabalhador pode ficar sem o rendimento,
mas com as dívidas. O resultado é o empobrecimento cada vez maior dos trabalhadores do
serviço de transporte inserido no circuito inferior da economia urbana.
Tudo isso é feito utilizando-se como justificativa a necessidade de melhorar o
transporte público na cidade. Não se questiona a importância desse objetivo, mas sim o
porquê de a única solução apontada para isso ser sempre aumentar os níveis de capital da
atividade. Desconsidera-se, a um só tempo, as especificidades socioeconômicas da população
e a necessidade de que o poder público participe não somente com normas, mas também com
recursos para subsidiar o transporte.
De fato, questões como meia passagem para estudantes (já em vigor nos ônibus da
Transpam, por uma iniciativa da própria empresa), isenção para idosos, acessibilidade para
deficientes etc., precisam ser urgentemente implantadas76. Mas quem vai arcar com esses
custos? As beneficiárias do PBF, para as quais o valor de R$ 1,75 da passagem já é alto? Os
trabalhadores das vans, que já enfrentam longas jornadas de trabalho para fazer face ao
aumento dos custos fixos da atividade (SILVA NETO, 2016, p. 67)?
76
Ver reportagem: “MP recomenda estudo para melhorar transporte público em São Miguel”. Disponível em:
http://www.alagoasweb.com/noticia/40745-mp-recomenda-estudo-para-melhorar-transporte-publico-em-sao-
miguel Acesso em: junho de 2016.
224
77
Ver reportagem: “SMTT inicia processo de regularização de mototaxistas em São Miguel dos Campos.
Disponível em: http://www.alagoasweb.com/noticia/17068-smtt-inicia-processo-de-regularizacao-de-
mototaxistas-em-sao-miguel-dos-campos Acesso em: junho de 2016.
225
Tabela 31 – Porto Calvo, União dos Palmares e São Miguel dos Campos: Principais gastos com o
dinheiro do Programa Bolsa Família – PBF por parte das famílias beneficiárias (2015)
% de beneficiários que destina o dinheiro para esse fim
Destino do dinheiro
Porto Calvo* União dos Palmares** São Miguel dos Campos***
Alimentação 67% 74% 60%
Material escolar**** 52% 62% 62%
Vestuário 52% 45% 44%
Remédios 17% 2% 2%
Gás 10% 12% 20%
Escola privada para filho 10% 2% 6%
pequeno
Luz 7% 12% 10%
Água 7% 12% 8%
Aluguel 5% 0% 0%
Móveis e eletrodomésticos 0% 2% 0%
Pagamento de faculdade 0% 0% 2%
*As porcentagens foram calculadas com base no total de 42 beneficiárias que responderam ao questionário.
** As porcentagens foram calculadas com base no total de 66 beneficiárias que responderam ao questionário
***As porcentagens foram calculadas com base no total de 50 beneficiárias que responderam ao questionário
**** Engloba também fardamento escolar.
Fonte: Trabalho de campo (2015)
Organização: Fernando Silva (2017)
[...] porque naquela época que a gente não tinha Bolsa Família a gente num
comprava o que a gente quer pros filhos da gente né. Hoje a gente [compra]
um remédio, eu mesmo compro remédio por meus filhos, compro calçado,
compro uma roupa pros meus filhos, já pago bojão né, às vezes eu não tenho
outra renda, já vou no dia e recebo e já compro uma mistura pra dentro de
casa né. Aí isso eu não vou dizer [que não é bom], eu gavo [elogio] o Bolsa
Família [...] Aí sempre o Bolsa Família melhorou a minha situação porque
naquela época que ninguém tinha Bolsa Família ninguém [comprava], a
gente comprava uma roupa quando né, quando às vez tinha um dinheiro a
mais, a gente cortava cana nera? Eu cortei muita cana naquela época, eu não
vou lhe dizer [que não], cortei muita, cortei e amarrei pra ajudar [em casa]. E
hoje em dia graças a Deus é o Bolsa Família né, eu não vou mentir. Eu
compro um perfume pra um, uma roupa pra um, um calçado pra outro (C. A.
S., 39 anos. Entrevista concedida em julho de 2016).
226
Em outras palavras, a maior parte dos que hoje são beneficiários do Programa na
Região não consumia regularmente os bens considerados básicos (como seguramente ocorria
em boa parte do Nordeste brasileiro). Mas, como o valor de cada benefício é pequeno, esse
consumo não é feito em grandes quantidades. Foi o que explicou uma beneficiária do Bairro
Nossa Senhora das Dores, periferia de União dos Palmares, quando perguntamos como ela faz
para passar um mês inteiro com apenas R$ 77,00: “De tudo eu compro um pedacinho: eu
compro mei rabo de sardinha, mei pedacinho de carne, e assim eu vou passando né” (J.M.S.,
53 anos. Entrevista concedida em julho de 2016).
Dessa forma, não há dúvidas quanto ao fato de que o PBF causa uma ampliação
significativa dos níveis de consumo em Porto Calvo, União dos Palmares e São Miguel dos
Campos, tanto porque torna-se praticamente impossível para qualquer beneficiária poupar
parte do valor que recebe por este ser muito baixo, como pela grande quantidade de famílias
que se tornaram beneficiárias nesses três municípios.
Inúmeras avaliações já foram realizadas no Brasil procurando “medir” as diversas
consequências econômicas do PBF78, como sintetizou Juliana Carolina Frigo Baptistella
(2012, pp. 10-14). A essas vieram somar-se estudos sobre os chamados impactos da
condicionalidade de saúde na nutrição e no peso das crianças beneficiárias, assim como da
condicionalidade de educação no desempenho escolar e na redução do trabalho infantil
(CAMPELLO e NERI, 2013). Da mesma maneira, como notaram, dentre outros, Walquiria
Leão Rêgo e Alessandro Pinzani (2013), não estão as mudanças na cidadania dos
beneficiários entre os principais efeitos do PBF? Tratando este Programa como um acontecer
político-institucional, qual dessas consequências devemos ressaltar?
Os autores que trataram a noção de evento ressaltaram que este, ao mesmo tempo em
que modifica a realidade pré-existente, enquanto dura fornece sua contribuição para novas
transformações na realidade (WHITEHEAD, 1994, p. 72; ELIAS, 1998, p. 57;
BACHELARD, 2007, p. 23). Neste sentido, Milton Santos (2009 [1996], p. 160) afirma que
“[...] um evento é uma causa de outro”, pelo fato de que um acaba se tornando um pré-
requisito para a existência do outro. O autor ressalta que só é possível analisar o evento dessa
78
Por exemplo, o estudo “Gasto com política social: alavanca para o crescimento com distribuição de renda”, do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA (2011) constatou que cada R$ 1,00 transferido pelo PBF
implica em um aumento de R$2,25 na renda das famílias, valor que para o Benefício de Prestação Continuada –
BPC e para o Regime Geral da Previdência Social é de, respectivamente, R$ 2,20 e R$2,10. Dados como esses
vêm sendo usados na construção do discurso que visa a legitimar o programa perante a sociedade. Sem
desconsiderar os avanços que PBF conseguiu se apoiando nessa forma de construção da legitimidade, é
necessário sublinhar que esse discurso se alimenta em processos que buscam naturalizar o “Espaço Dividido”: no
limite transmite-se a ideia de que é possível acabar com a pobreza gastando pouco, sem alterar as formas de
apropriação da riqueza.
227
Atualmente, segundo apontou Maria Laura Silveira (2009), a ampliação dos níveis de
consumo nos lugares mais pobres do País tem grandes consequências para a dinâmica dos
dois circuitos da economia urbana. A autora revela que as atividades do circuito superior
tendem a diminuir, por vários meios, a necessidade de utilização de mão de obra. Mas, por
outro lado, essas mesmas atividades terminam por se interessar pela demanda criada pela
elevação dos rendimentos dos mais pobres. Para conquistar os novos mercados os agentes do
circuito superior da economia se utilizam da informação (principalmente da propaganda) e de
produtos financeiros específicos. Observamos, desse modo, esse circuito construir novas
relações com as cidades brasileiras, alterando também a distribuição de seus estabelecimentos
nos espaços urbanos.
Conforme demonstrou Marina Regitz Montenegro (2011) para as situações de São
Paulo, Brasília, Fortaleza e Belém, o circuito inferior tende a arcar com o ônus desse
processo, porque além de perder uma parte da clientela, os preços praticados pelo circuito
superior, assim como os novos gostos por este difundidos, acabam servindo como parâmetro
para os pequenos negócios. Os pobres passam a ter jornadas mais longas de trabalho,
consumir mais no circuito superior e, por conseguinte, a empobrecer cada dia mais.
Como resultado dessas novas formas de concorrência e complementaridade entre os
dois circuitos, segundo revelou a pesquisa de Marcos de Moraes Xavier (2009), todo o
229
Quadro 19: consumo dos beneficiários do Bolsa Família nos elementos dos dois circuitos da economia
urbana de Porto Calvo – AL (2015)
Consumo de alimentação
Onde compra* % que compra Motivo % que alegou o
no comércio motivo
Menor preço 67%
Comércio do circuito superior filiado à Existência de crediário 20%
60%
Rede Smart próprio do estabelecimento
Faz entrega 13%
Menor preço 60%
Comércios do circuito superior Existência de crediário 20%
20%
independentes próprio do estabelecimento
Faz entrega 20%
Menor preço 20%
Comércios do circuito inferior 20%
Compra fiado 80%
Material escolar
Onde compra** % que compra Motivo % que alegou o
no comércio motivo
Menor preço 36%
Comércios do circuito superior Existência de crediário 55%
69%
independentes próprio do estabelecimento
Não informou 9%
Menor preço 20%
Comércios do circuito inferior 31% Compra fiado 60%
Não informou 20%
Vestuário
Onde compra*** % que compra Motivo % que alegou o
no comércio motivo
Menor preço 81%
Comércios do circuito inferior 100%
Compra fiado 19%
Remédios
Onde compra**** % que compra Motivo % que alegou o
no comércio motivo
Comércios do circuito superior 44% Menor preço 100%
independentes
Menor preço 40%
Comércios do circuito inferior 56% Compra fiado 40%
Proximidade da residência 20%
Gás
Onde compra***** % que compra Motivo % que alegou o
no comércio motivo
Supermercado do circuito superior 100% Faz entrega 100%
vinculado à Rede Smart
*25 beneficiárias, do total de 28 que usam o dinheiro para comprar alimentação, disseram onde compram
**16 beneficiárias, do total de 22 que usam o dinheiro para compra de material escolar, disseram onde compram
***16 beneficiárias, do total de 22 que usam o dinheiro para compra de vestuário, disseram onde compram
****9 beneficiárias, do total de 13 que usam o dinheiro para compra de remédios, disseram onde compram
*****1 beneficiária, do total de 4 que usam o dinheiro para compra do gás, disse onde compram
Fonte: Trabalho de campo (2015)
Organização: Fernando Silva (2017)
231
Os preços praticados e as formas de crédito ofertadas são os fatores que mais pesam na
escolha das beneficiárias. Nos ramos em que o circuito superior consegue oferecer preços
mais baixos, ao circuito inferior resta uma pequena parcela dessa nova demanda. Assim, com
exceção do consumo de vestuário, que tem se dado preponderantemente nos pequenos
negócios, é a possibilidade de se utilizar do fiado que ainda faz com que uma parte das
beneficiárias compre alimentação, material escolar e remédios nos comércios do circuito
inferior, mesmo que às vezes seja preciso pagar preços mais elevados.
Para o consumo de alimentação, um supermercado local filiado à Rede Smart é o mais
procurado. De acordo com Marcos de Moraes Xavier (2009, p. 153), essa Rede foi criada no
ano 2000 pelo Grupo Martins, uma das maiores empresas do ramo atacadista distribuidor do
Brasil surgida em Uberlândia-MG, com o objetivo de conceder aos varejistas independentes
apoio nas áreas de comercialização, tecnologia e capital, garantindo assim a reprodução da
clientela do seu atacado. Além de usar a marca Smart em suas propagandas na Rádio Calabar
e em carros de som pelas ruas da cidade, esse supermercado de Porto Calvo pratica um preço
que é, inclusive na opinião dos seus principais concorrentes, o mais baixo da cidade. Dessa
forma, a busca desenfreada pelo menor preço que verificamos entre as populações mais
pobres de Porto Calvo, justificada pelo baixo valor do benefício do PBF, facilita a política
dessa empresa.
Os supermercados do circuito superior da cidade também vêm ofertando formas
particulares de crédito que, segundo o que foi possível percebermos em entrevistas,
corresponde a uma espécie de “formalização do fiado”. Em um deles, por exemplo, o
proprietário criou um sistema online para registrar os dados dos clientes que compram para
pagar a prazo, onde constam dados como endereço, números de documentos de identificação
e valores de débito dos clientes. Para termos uma ideia da importância desse sistema, cerca de
250 (duzentos e cinquenta) pessoas compram para pagar mensalmente um total aproximado
de R$ 100.000,00, o que equivale à quase 20% das vendas totais do estabelecimento. É
importante mencionar que, do total de beneficiárias que responderam aos nossos
questionários, somente 29% possuíam cartão de crédito, que usavam regularmente para a
compra de alimentação, e mais 14% compravam em cartão de amigos. Daí que no
supermercado citado o volume de vendas no crediário próprio seja cerca de 20% superior às
vendas no cartão de crédito.
Por outro lado, são sobretudo as atividades do circuito inferior da economia urbana
portocalvense que oferecem ocupação e renda aos chefes das famílias beneficiárias do Bolsa
Família. Vejamos a tabela 32.
232
Tabela 32 - Porto Calvo: formas de trabalho dos (as) chefes de famílias beneficiárias do PBF
pesquisadas (2015)
Trabalho Total
Trabalhadores/proprietários de pequenos negócio do 5
circuito inferior
Trabalhadores de estabelecimentos de comércios e 1
serviços do circuito superior (com carteira assinada)
Trabalhadoras domésticas e faxineiras (sem Carteira 5
de Trabalho assinada)
Trabalhadores da construção civil (sem Carteira de 5
Trabalho assinada)
Trabalhadores que vivem de bicos em diversas 4
atividades
Trabalhadores de usinas (com Carteira de Trabalho 4
assinada)
Trabalhadores rurais (sem Carteira de Trabalho 6
assinada)
Pedinte de rua 1
Desempregado 4
Donas de casa 6
Não informou 1
Total 42
Fonte: trabalho de campo (2015-2016)
Organização: Fernando Silva (2017)
79
Todos os dados são relativos a dezembro de cada ano.
234
80
Abordaremos sobre o desenvolvimento do ramo atacadista distribuidor em algumas cidades da Região
Canavieira de Alagoas no próximo capítulo.
235
Foto 5 – Mercadinho do circuito inferior no centro de Porto Calvo especializado na venda de cesta de
alimentos
12 (doze) horas por dia. Ele tem perto de uma centena de clientes, vende mensalmente cerca
de R$ 60.000,00 (praticamente 100% fiado), mas até agora não conseguiu obter lucro algum
por conta das despesas que adquiriu com a compra da moto e com a manutenção desta. Sem
falar que há um descompasso entre as exigências dos atacadistas e as especificidades de sua
clientela: quando, por algum motivo, algum cliente não pode pagar toda a dívida no prazo
combinado, fica difícil pagar o boleto em dia e, em consequência, levar uma nova cesta básica
para o cliente. Não resta muitas opções: endivida-se cada vez mais ou perder clientes, o que
muitas vezes pode significar perder também as amizades e o trabalho. Por outro lado, os
clientes que confiaram na possibilidade de comprar fiado em alguma eventualidade podem
ficar, ao mesmo tempo, sem dinheiro e sem alimentos.
Dessa forma, a complementaridade hierárquica com o circuito superior tende a
pressionar as relações tradicionais que une as atividades às populações do circuito inferior por
intermédio do consumo. Esse processo, ao passo em que nos esclarece sobre a intensidade da
exploração contemporânea do circuito superior sobre o circuito inferior, torna mais nítido
como não somente do lado do consumo, mas também do trabalho, a dinâmica do sistema
inferior está colada à realidade da sociedade e do território portocalvenses. Nas atividades
pesquisadas trabalham, em média, 3 (três) pessoas em cada uma, e em 53% delas usa-se mão
de obra familiar. Pode-se argumentar que essa média é baixa, “[...] mas, em compensação, o
número global de pessoas ocupadas é considerável” (SANTOS, 2008 [1975], p. 45). Na
realidade, podemos afirmar que a reprodução das atividades do circuito inferior se baseia cada
vez mais na utilização da mão de obra disponível (MONTENEGRO, 2011, p. 247).
Nos casos em que os próprios agentes do circuito inferior da economia urbana são
responsáveis pela distribuição e comercialização dos seus produtos, ou até mesmo pela
produção, observamos uma situação bastante diferente. O exemplo principal nesse sentido são
os pequenos comércios de fardamentos escolares, produzidos na própria cidade81, e de peças
de vestuário em geral, que são comprados diretamente nas cidades pernambucanas de Caruaru
e Toritama. Em ambos os casos os negócios do circuito inferior podem oferecer o menor
preço e sofrer, na sua relação com as populações pobres, menos interferência do circuito
superior. Abordaremos melhor como isso vem se dando a partir da situação de União dos
Palmares, onde o processo tomou, sem sombra de dúvidas, proporções bem maiores.
81
A produção de fardamento escolar em Porto Calvo é realizada principalmente pela Associação das Costureiras
de Porto Calvo – ASSOCIART. Criada em 2004, essa associação reúne 36 costureiras que trabalham tanto na
sua sede, localizada em um prédio cedido pela prefeitura municipal, como em suas próprias residências. Segundo
as informações que obtivemos com as costureiras, a fabricação de fardamento escolar representa parte
significativa da produção total da Associart, havendo demanda até de municípios vizinhos, como Matriz de
Camaragibe e Maragogi.
238
Quadro 20: consumo dos beneficiários do Bolsa Família nos elementos dos dois circuitos da economia
urbana de União dos Palmares – AL (2015)
Alimentação
Onde compram* % que compra no Motivo % que alegou
comércio o motivo
Comércio do circuito superior 32% Menor preço 100%
pertencente à rede de lojas
Menor preço 82%
Proximidade de onde recebe 7%
Comércios do circuito superior PBF
66%
independentes Existência de crediário próprio 7%
do estabelecimento
Não informou 4%
Menor preço 18%
Comércios do circuito inferior 27% Compra fiado 55%
Proximidade da residência 27%
Material escolar
Onde compram** % que compra no Motivo % que alegou
comércio o motivo
Menor preço 90%
Comércios do circuito superior Existência de crediário próprio 5%
66%
independentes do estabelecimento
Não informou 5%
Menor preço 46%
Compra fiado 9%
Comércios do circuito inferior 34%
Proximidade da residência 36%
Não informou 9%
Vestuário
Onde compram*** % que compra no Motivo % que alegou
comércio o motivo
Comércios do circuito superior de 4% Menor preço 100%
Maceió
Comércios do circuito superior 10% Existência de crediário próprio 100%
independentes do estabelecimento
Menor preço 96%
Comércios do circuito inferior 86% Compra fiado 4%
Gás
Onde compram**** % que compra no Motivo % que alegou
comércio o motivo
Comércios do circuito superior 100% Existência de crediário próprio 100%
vinculados a distribuidores do estabelecimento
Remédios
Onde compram***** % que compra no Motivo % que alegou
comércio o motivo
Comércios do circuito superior 100% Menor preço 100%
vinculados a redes (franquias)
*41 beneficiárias, do total de 49 que usam o dinheiro para compra de alimentação, disseram onde compram
**29 beneficiárias, do total de 42 que usam o dinheiro para compra de material escolar, disseram onde compram
***28 beneficiárias, do total de 30 que usam o dinheiro para compra de vestuário, disseram onde compram
****3 beneficiárias, do total de 7 que usam o dinheiro para compra de gás, disseram onde compram
*****2 beneficiárias, do total de 3 que usam o dinheiro para compra de remédios disseram onde compram
Fonte: Trabalho de campo (2015)
Organização: Fernando Silva (2017)
240
Todavia, em União dos Palmares, se o grande mercado gerado pelo PBF acabou
despertando o interesse de firmas regionais e nacionais, a distribuição desse mercado por
grandes periferias, somada às dificuldades de transporte, tornaram-se o motor de uma
verdadeira pulverização das atividades do circuito inferior no espaço urbano, principalmente
das atividades comerciais82. Podemos ver no quadro que as beneficiárias do Bolsa Família
gastam no circuito inferior não apenas pela possibilidade de comprar fiado e de conseguir o
menor preço, mas também pela maior proximidade do comércio em relação às suas
residências.
Criado em 200683 pelo Grupo Walmart, a rede de Supermercados Todo Dia inaugurou
uma loja em União dos Palmares em 2012. Trata-se de um comércio projetado para a
população de menor poder aquisitivo, que aposta na oferta de baixos preços e na
desburocratização do crédito para conquistar o mercado constituído pelas populações mais
pobres. Desde a inauguração dessa loja, um carro de som circula pelas ruas da cidade
divulgando as principais ofertas, e alguns trabalhadores do supermercado assumiram
exclusivamente a função de oferecer e encaminhar pedidos de cartão de crédito. Ainda assim,
as nossas pesquisas revelaram que as compras das beneficiárias do PBF nesse supermercado
são, sobretudo, à vista, em virtude do medo de se endividar e do baixo valor do benefício do
PBF: 27% das beneficiárias que pesquisamos possuem cartão de crédito, sendo que mais 18%
usam, eventualmente, o cartão de crédito de amigas. Em ambos os casos elas compram,
essencialmente, alimentação.
É também em virtude do menor preço que as compras de remédios são realizadas
principalmente na Farmácia do Trabalhador do Brasil. Essa rede de farmácias surgiu na
cidade de Garanhus (PE), e mira, sobretudo, a população mais pobre da Região Nordeste,
82
Escrevendo na década de 1970, Milton Santos (2008 [1975], pp. 214-215) explicou que “[...] tal pulverização
das atividades de comércio tem explicações geográficas e socioeconômicas. De um lado, os habitantes dos
bairros pobres compram no local; o preço dos transportes não lhes permite ter acesso ao comércio moderno,
freqüentemente situado no centro das cidades ou nos seus arredores. A densidade e a distribuição das lojas estão
calcadas nas possibilidades de deslocamento a pé da clientela. De outro lado, a dimensão dos comércios é uma
adaptação a um consumo pequeno e irregular. A venda em microvarejo permite ao cliente pobre, que só dispõe
de magras rendas no dia-a-dia, abastecer-se em pequenas quantidades. Mas, é sobretudo o crédito, mais
difundido em certas zonas residenciais que no centro, que permite a vida do pequeno comércio”. Hoje em dia
tudo indica que o consumo das populações mais pobres de União dos Palmares se divide cada vez entre o
pequeno comércio do próprio bairro e os comércios do circuito superior da área central, e para que isso ocorra o
PBF contribui de maneira significativa.
83
A primeira loja do Supermercado Todo Dia foi inaugurada em Alagoas em 2011 em Maceió, em um dos
bairros mais populosos e pobres desta cidade. No Brasil, existem um total de 179 lojas, sendo 127 na Região
Nordeste e 13 no Estado de Alagoas (dados disponíveis no site da empresa). Trataremos da topologia desse
supermercado na Região Canavieira de Alagoas no próximo capítulo.
241
84
O sistema de franquias foi regulado pela Lei nº. 8.955, de dezembro de 1994. Segundo esta lei, “franquia
empresarial é o sistema pelo qual um franqueador cede ao franqueado o direito de uso de marca ou patente,
associado ao direito de distribuição exclusiva ou semi-exclusiva de produtos ou serviços e, eventualmente,
também ao direito de uso de tecnologia de implantação e administração de negócio ou sistema operacional
desenvolvidos ou detidos pelo franqueador, mediante remuneração direta ou indireta, sem que, no entanto, fique
caracterizado vínculo empregatício” (Art. 2º.)
242
Tabela 33 - União dos Palmares: formas de trabalho dos (as) chefes de famílias beneficiárias do PBF
pesquisadas (2015)
Trabalho Total
Trabalhadores/proprietários de pequeno negócio do 10
circuito inferior
Trabalhadores de estabelecimentos de comércios e 3
serviços do circuito superior (com Carteira de Trabalho
assinada)
Trabalhadoras domésticas e faxineiras (sem Carteira de 12
Trabalho assinada)
Trabalhadores da construção civil (sem Carteira de 10
Trabalho assinada)
Trabalhadores que vivem de bicos em diversas 11
atividades
Funcionários públicos 2
Trabalhadores de usinas (com Carteira de Trabalho 2
assinada)
Trabalhadores rurais (sem Carteira de Trabalho 6
assinada)
Pedinte de rua 1
Desempregado 6
Donas de casa 3
Total 66
Fonte: trabalho de campo (2015-2016)
Organização: Fernando Silva (2017)
Somente 3 (três) delas disseram que os chefes de famílias trabalham em atividades que
constatamos pertencer ao circuito superior da economia urbana palmarino. Tudo isso, somada
à falência da Usina Lajinha, decretada em 2012, conferem um papel importantíssimo aos
pequenos negócios na geração de ocupação e renda. Sem sombra de dúvidas, essa é uma das
cidades da Região Canavieira de Alagoas, depois de Maceió, em que o circuito inferior mais
vem crescendo.
Em 2007, tínhamos um total de 651 Micro e Pequenas Empresas – MPE’s em União
dos Palmares, número que em 2015 era de 2.504, ou seja, houve um aumento de quase quatro
vezes. A maior parte dessas empresas é do ramo do comércio varejista de vestuário e
acessórios (13%), do comércio varejista de mercadorias em geral com predominância de
produtos alimentícios (10%), e do comércio varejista de produtos alimentícios, bebidas e
fumo (9%). Verificamos uma distribuição semelhante no caso dos Micro – Empreendedores
Individuais – MEI’s. Em 2010 existiam 204 MEI’s nessa cidade, enquanto que em 2015 já
eram 1.332, sendo 14% do comércio varejista de vestuário e acessórios, 10% do comércio
varejista de mercadorias em geral com predominância de produtos alimentícios e 8% do
243
85
Todos os dados são relativos a dezembro de cada ano.
244
ensino médio, 4% estavam cursando o ensino superior e 10% já haviam terminado um curso
de nível superior. Esses dados indicam que, hoje em dia, é cada vez mais nesse subsistema
econômico que tanto os trabalhadores analfabetos, ou apenas com a educação básica
concluída, como uma parte importante da mão de obra qualificada de União dos Palmares tem
encontrado ocupação e renda. Isso ocorre porque no circuito inferior a educação formal não é
utilizada como um fator de exclusão ou inclusão do trabalhador. Daí que as ameaças de
instrumentalização da educação estejam muito mais distantes do que no caso do circuito
superior.
Sendo, ao mesmo tempo, causa e consequência da pobreza, a existência de grandes
áreas periféricas em União dos Palmares passou a revelar cada vez mais a sua importância
para a reprodução dos pequenos negócios. Se na área central 69% dos trabalhadores que têm
despesa com aluguel pelo uso do local onde desenvolvem a atividade pagam até R$ 500,00,
essa porcentagem chega a 86% no Bairro Roberto Correia de Araújo. Sem falar que neste
Bairro periférico 29% dos negócios funcionam na própria residência, porcentagem que é de
apenas 11% no caso do centro. Devido à valorização do centro pelo avanço do circuito
superior, observamos que em certas ruas tem restado às atividades pouco capitalizadas a
possibilidade de uso das calçadas (17% no caso do centro, contra 6% na periferia), ou mesmo
de atuar como vendedor móvel, como é o caso de um comerciante de balas, doces e pipocas
que encontramos que vai atrás dos beneficiários do PBF dentro da própria Casa Lotérica.
Foto 8 – Uso da calçada por barracas e carrinhos do circuito inferior no centro de União dos Palmares
Foto 9 – Venda de produtos de bomboniere em uma Casa Lotérica do centro de União dos Palmares
A proprietária de uma dessas lojinhas que respondeu aos nossos questionários paga
R$1.000,00 de aluguel e ainda assim consegue obter lucro. Para iniciar o negócio foi
necessária a quantia de R$ 8.000,00, gastos quase totalmente em peças de vestuários
compradas na cidade de Caruaru (PE). Ela explicou que embora as peças sejam vendidas por
um preço baixo, fazendo com que o lucro obtido em cada peça seja pequeno, o que importa é
o volume total das vendas, assim como o fato de praticamente toda clientela, constituída
majoritariamente por beneficiárias do PBF, pagar à vista. É um mercado cativo, pois como
essa proprietária afirmou, quase sempre as clientes que recebem Bolsa Família afirmam: “se
não fosse o Bolsa Família e essas lojinhas eu não sei como ia vestir meus filhos”.
De vários pontos de vistas essa realidade revela-nos mudanças importantes na
dinâmica das atividades de comercialização de vestuário inseridas no circuito inferior da
economia urbana de União dos Palmares, bem como das demais cidades da Região Canavieira
de Alagoas. Da venda fiado nas feiras-livres da cidade, ou mesmo no comércio que se
realizava na Usina Lajinha até o início dos anos 2000 (sobretudo para receber de acordo com
o calendário de pagamento desta empresa e da Previdência Social), à venda à vista nas
lojinhas de preço único, principalmente nos dias de pagamento do PBF, as transformações são
vistas não somente na localização e nas formas de uso do espaço urbano, mas também na
equação de lucro desses agentes e na relação com a clientela. No primeiro caso o lucro era
elevado por unidade e pequeno no conjunto (SANTOS, 2008 [1975], pp. 244-248), devido ao
pequeno número de clientes para cada vendedor; enquanto no segundo caso o lucro é obtido
por uma equação inversa, embora globalmente seja também pequeno, mesmo porque
aumentam as despesas fixas e o número de vendedores, inicialmente reduzido, tende a
crescer. Essas formas convivem, ainda, com lojas do circuito superior surgidas na própria
cidade, que disponibilizando formas próprias de crediário à população pobre disputam pelo
mesmo mercado. Dessa maneira, é muito difícil compreender a renovação das relações do
agreste pernambucano com os circuitos da economia urbana palmarinos sem considerarmos o
papel do acontecer político-institucional na reprodução do Espaço Dividido.
Foi na comercialização de fardamento escolar que constatamos maiores possibilidades
de os negócios do circuito inferior tecerem relações horizontais com a população pobre sem
grandes perturbações do circuito superior, pois aí geralmente os próprios trabalhadores do
circuito inferior, a partir dos insumos comprados em Caruaru (PE), produzem e vendem o
fardamento. Além de três negócios individuais que contabilizamos (sendo 2 na área central e
247
86
A Organização Mirim é uma instituição filantrópica de União dos Palmares que atende crianças em situação
de rua. Para completar seu orçamento, promove várias atividades econômicas, como fabricação de móveis,
sovertes e fardamentos. Informações disponível no site da instituição, no link:
http://organizacaomirim.com.br/index.html Acesso em abril de 2017.
248
Se 74% dos negócios pesquisados, tanto no centro como na periferia, vendem fiado
aos clientes, quando se trata de se abastecer somente 11% compram alguma mercadoria ou
insumo para pagar na confiança. Para o abastecimento predominam as compras à vista (73%)
e no boleto bancário (21%), sendo o uso do cartão de crédito (11%) geralmente restrito às
compras realizadas pela internet a vendedores de estados mais distantes. Já a utilização do
cheque mostrou-se inexpressiva (1%). Em um contexto em que a ocupação e o rendimento
nas usinas têm se tornado bastante instáveis, é cada vez mais o PBF que assegura que as
populações mais pobres paguem suas dívidas aos comércios do circuito inferior, e que estes
continuem se abastecendo. Uma beneficiária do Bolsa Família relatou:
Beneficiária: Porque eu tenho duas filhas que recebe Bolsa Família né, os
maridos delas trabalha mas quando vem receber num tem graça, nas usinas,
tem vez que não tem nada pros meninos comer às vez ela recebe já faz umas
comprinhas. Oxe, é uma felicidade. Trabalha mas a usina atrasa né, triste
dela se não fosse essa Bolsa Escola.
Pesquisador: Qual é a usina?
Beneficiária: Eles trabalha na Utinga [município de Rio Largo]. [...] Aí
pronto, as coitadas... a minha filha que mora nos Frios, quando atrasa ela tem
ali um supermercado, que ela conhece a menina do supermercado, aí ela já
faz umas comprinhas fiado, quando ela recebe Bolsa Família ela paga. Oia,
tem vez que passa mais de 15 dias sem meu genro receber, é coisa séria, e os
meninos só não passa fome porque essa Bolsa Escola ajuda (M. S., 57 anos.
Entrevista concedida em julho de 2016).
Desde 2016, porém, à essa instabilidade vem somar-se uma grande incerteza quanto ao
recebimento do Bolsa Família, agora não mais em virtude de problemas nos sistemas técnicos
que operacionalizavam o Programa, como ocorria até 2007 (COHN, 2012), mas, ao contrário,
em função do pleno funcionamento de tais sistemas87. Sobre isso, outra beneficiária
confessou:
Eu vou lhe dizer uma coisa: oie, quando eu vou receber o Bolsa Família eu
digo “meu Deus, tomara que meu dinheirinho teje lá”. Porque oie cortando
essa Bolsa Família minha que eu tiro hoje é mesmo que cortar minha duas
mãos, porque me ajuda muito, me ajuda num papel de água, num papel de
energia, comprar um caderno pros meninos, comprar uma roupa, um
87
No segundo semestre de 2016, sob o Governo de Michel Temer, o ministério gestor do PBF iniciou um
processo de cruzamento dos dados do CAD.ÚNICO com seis bases de dados do Governo Federal (Relação
Anual de Informações Sociais - RAIS; Cadastro Geral de Empregados e Desempregados - CAGED; Sistema de
Controle de Óbitos - SISOBI; Instituto Nacional do Seguro Social - INSS; Sistema Integrado de Administração
de Recursos Humanos - SIAPE; e Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas – CNPJ) com base no discurso de que
há irregularidades no Programa e de que é necessário maior controle dos recursos. 469 mil benefícios foram
cancelados (11.482 em Alagoas) e outros 654 mil bloqueados (19.246 em Alagoas) (site do Ministério de
Desenvolvimento Social e Agrário). O cruzamento com essas bases de dados passou a ser mensal, além de
tornar-se uma exigência para o ingresso de cada novo beneficiário no Bolsa Família. Sistemas técnicos são
mobilizados, discursos são construídos para cancelar um benefício de uma família porque esta, por exemplo,
aufere durante poucos meses do ano R$ 5,00 ou R$ 10,00 a mais do que o permitido para ingresso no Programa.
251
Pra mim tem duas respostas: seria bom se fosse pra sempre né, continuasse
sempre, e o temporário depende da cabeça deles lá né, dos grandãos né, que
ninguém num sabe da consciência deles, mas se fosse pra sempre seria bom
sim. Mas ninguém num sabe o pensamento de ninguém né, pra eles se disser
assim “vou cortar hoje”, corta e acabou né. Quem somos nós pra mudar?
Uma andorinha só não faz verão né (N. S., 28 anos. Entrevista concedida em
julho de 2016).
Esse processo vem contribuindo para que ora as populações pobres se endividem cada
vez mais com os comércios do circuito inferior, ora para que estes percam parte importante de
sua clientela, isso quando as duas coisas não ocorrem ao mesmo tempo. Se os proprietários
dos mercadinhos só podem vender “aquele tantinho” que as beneficiárias podem pagar
mensalmente e, por outro lado, não é possível confiar no recebimento do Bolsa Família, “[...]
por que comprar fiado se no Todo Dia é mais barato”? (C. A. S., 39 anos. Entrevista
concedida em julho de 2016). Nos dois casos a instabilidade do PBF vem juntar-se à ação do
circuito superior para perturbar ainda mais a coerência das relações socioeconômicas que se
desenrolam no seio do circuito inferior.
5.2.3. A atuação do circuito superior no centro e na periferia de São Miguel dos Campos e a
expansão subordinada do circuito inferior
Mesmo em São Miguel dos Campos, onde o número de usinas é maior do que nos
outros dois municípios que vimos analisando88, nossos trabalhos de campo revelaram que a
grande maioria das famílias beneficiárias do PBF sobrevive de atividades do circuito inferior
da economia urbana.
88
Em 2014 começou a funcionar em São Miguel dos Campos uma fábrica da empresa GranBio, a primeira no
Brasil destinada à produção de etanol a partir da palha e do bagaço da cana em escala comercial. Para instalação
da indústria foram obtidos R$ 300 milhões em financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento e Social –
BNDES, que participa como sócio com 15% das ações através do BNDESPar. Informações disponíveis em:
http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,granbio-inicia-producao-de-etanol-2g-imp-,1565785 Acesso em
outubro de 2016.
252
Tabela 34 – São Miguel dos Campos: formas de trabalho dos (as) chefes de famílias beneficiárias do
PBF pesquisadas (2015)
Trabalho Total
Trabalhadores/proprietários de pequenos negócios do 10
circuito inferior
Trabalhadores de estabelecimentos de comércios e 1
serviços do circuito superior (com Carteira de
Trabalho assinada)
Trabalhadoras domésticas e faxineiras (sem Carteira 9
de Trabalho assinada)
Trabalhadores da construção civil (sem Carteira de 8
Trabalho assinada)
Trabalhadores que vivem de bicos em diversas 3
atividades
Contratados da prefeitura 3
Trabalhadores de usinas (com Carteira de Trabalho 6
assinada)
Trabalhadores rurais (sem Carteira de Trabalho 0
assinada)
Pedinte de rua 0
Desempregado 4
Donas de casa 6
Não informou 0
Total 50
Fonte: trabalho de campo (2015-2016)
Organização: Fernando Silva (2017)
89
Ver reportagem: “Usina Roçadinho demite mais de 300 funcionários”. Disponível em:
http://www.alagoasweb.com/noticia/28653-usina-rocadinho-demite-mais-de-300-funcionarios Acesso em
outubro de 2016.
253
Quadro 21: Consumo dos beneficiários do Bolsa Família nos elementos dos dois circuitos da
economia urbana de São Miguel dos Campos – AL (2015)
Consumo de alimentação
Onde compra* % que compra Motivo % que alegou
no comércio o motivo
Comércio do circuito superior 19% Menor preço 100%
pertencente a redes
Menor preço 74%
Comércios do circuito superior Existência de crediário próprio 13%
59% do estabelecimento
independentes
Proximidade da residência 13%
Menor preço 17%
Compra fiado 50%
Comércios do circuito inferior 22%
Proximidade da residência 17%
Não informou 17%
Material escolar
Onde compra** % que compra Motivo % que alegou
no comércio o motivo
Comércios do circuito superior 56% Menor preço 100%
independentes
Menor preço 75%
Comércios do circuito inferior 44% Compra fiado 13%
Não informou 13%
Vestuário
Onde compra*** % que compra Motivo % que alegou
no comércio o motivo
Menor preço 83%
Comércios do circuito inferior 100%
Compra fiado 17%
Gás
Onde compra**** % que compra Motivo % que alegou
no comércio o motivo
Comércio do circuito superior vinculado 100% Existência de crediário próprio 100%
a grande distribuidores do estabelecimento
Remédios
Onde compra***** % que compra Motivo % que alegou
no comércio o motivo
Comércios do circuito superior 67% Menor preço 100%
vinculados a redes (franquias)
Comércio do circuito superior 33% Compra fiado 100%
independentes
*27 beneficiárias, do total de 30 que usam o dinheiro para comprar alimentação, disseram onde compram
**18 beneficiárias, do total de 32 que usam o dinheiro para compra de material escolar, disseram onde compram
***12 beneficiárias, do total de 22 que usam o dinheiro para compra de vestuário, disseram onde compram
****4 beneficiárias, do total de 11 que usam o dinheiro para compra de remédios, disseram onde compram
*****3 beneficiária, do total de 5 que usam o dinheiro para compra do gás, disseram onde compram
Fonte: Trabalho de campo (2015)
Organização: Fernando Silva (2017)
254
90
Todos os dados são relativos a dezembro de cada ano.
255
91
É importante destacar que nos bairros periféricos de São Miguel dos Campos, assim como ocorre em União
dos Palmares e Porto Calvo, as igrejas evangélicas aparecem como um das principais estruturas sociais
orientadoras da ação, tendo grande importância no condicionamento das formas de consumo dos mais pobres.
Essa realidade faz lembrar a explicação de Alain Touraine (1998, p. 67) sobre as possibilidades de expansão da
ação instrumental sob o capitalismo: “é porque tal racionalidade não é mais objetiva, substancial, mas formal,
instrumental, e portanto se situa no plano dos meios e não mais dos fins, que ela pode se combinar com
finalidades culturais ou psicológicas em cada ator individual. Não se pode ser ao mesmo tempo cristão e ateu ou
muçulmano, mas nada impede ser ao mesmo tempo especialista em informática ou vendedor e cristão,
muçulmano ou ateu”.
92
Ver reportagem: “Prefeita Rosiane Santos visita obras do novo hipermercado Unicompras”. Disponível em:
http://www.saomiguelweb.com.br/noticia/9116-prefeita-rosiane-santos-visita-obras-do-novo-hipermercado-
unicompras Acesso em outubro de 2016.
257
mas de avaliar até que ponto tais empregos compensam as consequências negativas derivadas
de sua instalação e funcionamento para a economia urbana como um todo. Além de a
valorização dos aluguéis no entorno dificultar a instalação dos pequenos negócios em um
ponto fixo, a oferta desburocratizada de crédito denuncia o interesse dessa empresa pelo
potencial de consumo das populações mais pobres de São Miguel dos Campos.
Quando analisamos as formas de abastecimento dos pequenos negócios, observamos
que o ônus com o qual os pobres têm de arcar não para por aí. Vejamos a procedência das
mercadorias e insumos para o circuito inferior da economia urbana de São Miguel dos
Campos nos mapas 78 e 79:
258
Mapa 78 – São Miguel dos Campos: Procedência de insumos e produtos comercializados pelos
trabalhadores do circuito inferior da economia urbana das atividades pesquisadas na área central
(2015)
Mapa 79 – São Miguel dos Campos: Procedência de insumos e produtos comercializados pelos
trabalhadores do circuito inferior da economia urbana das atividades pesquisadas na área periférica
(2015)
Em comparação a Porto Calvo e União dos Palmares, o mais notável aqui é a maior
participação da cidade de Arapiraca - AL. Essas mercadorias e insumos são comprados
principalmente à vista (70%) e no boleto bancário (16%), sendo os usos do fiado (14%) e do
cartão de crédito (8%) mais comuns nos casos das atividades que trabalham com
pequeníssimos estoques. Mas, quando se trata da venda ao cliente final, a realidade é bem
diferente: 54% vendem fiado. Assim, com exceção das atividades de comercialização de
peças de vestuário em geral e de fardamento escolar93 em que a necessidade de se abastecer
no circuito superior é bem menor, os trabalhadores do circuito inferior acabam ficando com o
trabalho pesado e com os riscos de inadimplência.
Desde 2016, além da incerteza com relação ao emprego e ao salário nas usinas, o
próprio recebimento do PBF tem se tornado instável para os mais empobrecidos da Região.
Se a ação instrumental é tomada como parâmetro para a política, ou melhor, se o acontecer
político-institucional se assemelha cada vez mais ao acontecer hierárquico, a quem as
populações pobres podem recorrer? Uma beneficiária do Bairro Hélio Jatobá que vem tendo
problemas constantes em relação ao recebimento do benefício relatou-nos:
Hoje em dia torna-se cada vez mais nítido que o circuito superior da economia não
somente distorce a criação de ocupação e renda nas cidades, mas também, ao ser tratado pelo
Estado como referência para a ação social e formas de fazer desejáveis para a sociedade, às
quais todas as populações e lugares devem se adequar (por força ou por hegemonia), impede a
garantia de direitos sociais para todas as pessoas. Isso fica mais evidente quando analisamos
sob o prisma do “Espaço Dividido” as condicionalidades do Bolsa Família, assunto do
próximo item.
93
Em São Miguel dos Campos constatamos que é principalmente na Associação das Artesãs da Usina
Roçadinho – COMEIA que os fardamentos escolares são produzidos. Criada em 2003, a Associação tem esse
nome porque surgiu na Usina Roçadinho, mas atualmente funciona em um prédio na Avenida do Luizinho, no
Bairro Hélio Jatobá. Reúne 15 costureiras, e todas máquinas foram doadas pela prefeitura municipal de São
Miguel dos Campos.
261
94
Amélia Cohn (2012, p. 23) relata que essa porcentagem foi uma herança do Bolsa Escola: “[...] no caso da
condicionalidade vinculada à educação, acabou por persistir, no Bolsa Família, uma aberração proveniente do
programa Bolsa Escola, que era a exigência de 85% da frequência escolar das crianças e adolescentes, enquanto
a legislação específica do MEC a respeito exige somente 75% de frequência para a aprovação do aluno.
Indagava-se por que filhos de famílias beneficiárias do Bolsa teriam obrigação de uma frequência escolar maior.
No entanto, acabou prevalecendo a permanência das regras anteriores”.
95
É importante lembrar que os beneficiários do PBF que somente recebem o benefício básico, destinado para
todas as famílias que se encontram na chamada situação de “extrema pobreza” (com renda per capita de até R$
85,00 mensal), não precisam cumprir nenhuma condicionalidade.
262
entre 6 e 17 (IBGE, 2010). Para a Região Nordeste essa porcentagem chegou a 55%.
Trazemos os dados para Porto Calvo, União dos Palmares e São Miguel dos Campos na tabela
35. Vemos que União dos Palmares se destaca novamente: quase 80% de toda a população
total entre 6 e 17 anos teve a frequência escolar acompanhada.
Tabela 35 – Porto Calvo, União dos Palmares e São Miguel dos Campos: % de crianças e adolescentes
de 6 a 17 anos que tiveram frequência escolar acompanhada pelo Programa Bolsa Família sobre a
população total da mesma idade (2010)
Município Total de crianças e Crianças e adolescentes % de crianças e adolescentes
adolescentes acompanhados na frequência acompanhados sobre o total
escolar*
Porto Calvo 6.725 4.327 64%
União dos 15.425 12.141 79%
Palmares
São Miguel dos 12.520 6.034 48%
Campos
* Maio de 2010
Fonte: BRASIL (2010) e Sistema de Condicionalidades do Programa Bolsa Família, site do MDS
Organização: Fernando Silva (2016)
[...] não há como negar que o fato de o Bolsa Família ser um programa de
transferência condicionada de renda favoreceu o apoio da sociedade a ele,
em que pesem os preconceitos dessa mesma sociedade quanto a qualquer
medida – seja ela um direito ou não – que implique transferência de recursos
para os pobres sem a contrapartida direta e imediata do trabalho (COHN,
2012, p. 30 grifo no original).
lugares onde as pessoas vivem cotidianamente, “[...] os direitos civis e políticos tornar-se-iam
inócuos” (FONSECA E LEITE, 2009, p. 6).
Não são esses os argumentos por trás da proposta de renda básica de cidadania? Na
opinião de Josué Pereira da Silva (2014, p. 141), para seguir essa proposta
[...] aqueles que querem avaliar o Bolsa Família, ou qualquer outro programa
de transferência de renda, procurando realçar sua dimensão emancipatória,
devem considerar os benefícios distribuídos como direitos de cidadania, cuja
cessão deve estar condicionada apenas à condição de cidadão ou cidadã.
Emancipação aqui deve, portanto, significar o fim das condicionalidades,
não seu reforço.
Mas, segundo Eduardo Suplicy (2008, p. 8), no Brasil a perspectiva da renda básica
encontra fortes objeções, até mesmo dos setores mais progressistas da sociedade. A principal
delas seria a seguinte: “[...] como pagar a renda-mínima a todos, quando o importante é
destiná-la aos que pouco ou nada têm”? O próprio autor confessa que demorou para se
convencer de que a renda incondicional seria a melhor opção de política de transferência de
renda para o Brasil, considerando nossas enormes desigualdades sociais e a necessidade de se
pensar políticas sociais para reduzi-las96.
De certo modo, pensamos que as resistências enfrentadas pela proposta de renda
básica no Brasil são compreensíveis. A defesa do direito à renda se baseia em leituras críticas
sobre as mudanças gerais no rumo do capitalismo nas últimas décadas, leituras inspiradas,
sobretudo, na realidade dos países do centro do capitalismo. No entanto, na formação
sócioespacial brasileira tais mudanças já encontraram um “Espaço Dividido”. Uma proposta
científica de política pública que não considera essa realidade não se efetiva, porque esse
espaço prévio acaba atuando como um condicionante. Em boa medida, a instalação e a rápida
expansão do PBF se devem à busca constante por adaptação desse Programa à realidade do
País. A questão central é se tal adaptação objetiva ou não transformações políticas.
Não é outra a razão pela qual o PBF reascendeu o debate sobre focalização e
universalização em políticas sociais. Se durante os governos de FHC a extrema focalização
96
O autor argumenta: “Será de fato o melhor chegarmos à incondicionalidade e virmos a garantir a toda e
qualquer pessoa o direito a uma renda básica, até mesmo às mais ricas? Sim, pois estas contribuirão para que elas
próprias e todas as demais venham a receber. Desta maneira, eliminaremos enormemente a burocracia envolvida
em se ter que saber quanto cada um ganha, no mercado formal ou informal. Eliminaremos o estigma ou
sentimento de vergonha de alguém precisar dizer “eu só recebo tanto e preciso tal complemento de renda”. Mais
importante, do ponto de vista da dignidade e liberdade do ser humano será muito melhor para cada pessoa saber
previamente que nos próximos doze meses, e daí para frente a cada ano, progressivamente mais com o progresso
do país, ela e cada pessoa na sua família irá ter o direito de receber uma renda modesta, na medida do possível
suficiente para atender suas necessidades vitais” (SUPLICY, 2008 [2004], p. 10).
266
dos programas de transferência de renda nos mais pobres expressava a subordinação das
políticas sociais ao ajuste fiscal (SILVA E SILVA, 2001, pp. 12-13; FONSECA, 2001),
podemos verificar em vários aspectos do Bolsa Família a preocupação com a noção de direito
social (BICHIR, 2011, pp. 90-91). Mas sendo este um Programa que continua voltado às
parcelas mais pobres da população, e que ainda objetiva “romper o ciclo inter-geracional da
pobreza”, como justificá-lo a partir da noção de cidadania?
Aqui avulta toda a problemática política do “Espaço Dividido”. Por um lado, fazer
parte da nação não assegura a fruição dos direitos sociais conquistados, mesmo porque do
ponto de vista político-institucional essa nação é seletiva (RIBEIRO, 1997, p. 19). Por outro,
como a pobreza deve ser combatida e eliminada, ser pobre também não constitui condição
legitima para obtenção de garantias específicas. Os pobres devem ser transformados não
somente do ponto de vista econômico, mas também sócio-político e espacial. Isto impede, no
limite, que as formas de fazer e de ser dos mais de 50 milhões de pessoas inseridas no PBF
sejam legitimamente reconhecidas como dignas de direitos. Assim, acreditamos que a própria
forma como o PBF foi direcionado às populações mais pobres dificulta sua efetivação
enquanto direito. Mesmo quando se trata de acentuar o papel do Estado no cumprimento das
condicionalidades, estas expressam como os pobres participam de maneira subordinada da
sociedade nacional.
Para Amélia Cohn (2012, p. 175) as condicionalidades de saúde e de educação
articulam-se de maneira diferente com o Bolsa Família. No caso da saúde, “[...] o benefício
vem complementar as insuficiências ainda presentes no SUS, em particular recursos para a
compra de medicamentos e/ou pagamento de transporte para outro local onde haja o serviço
demandado pela enfermidade”. Já no caso da educação, [...] o benefício significa ter
condições de comprar material escolar, calçado, alimentação, ou mesmo o uniforme exigido
pela escola para que as crianças possam frequentá-la”. Em outras palavras, é o consumo
possibilitado pelas transferências que termina garantindo a permanência das crianças pobres
na escola. Dessa maneira, embora não haja qualquer exigência de as famílias prestarem conta
do gasto do benefício, a contrapartida da frequência escolar acaba tendo um papel
determinante no consumo.
Em interessante pesquisa realizada no interior do estado da Paraíba com crianças
beneficiárias do PBF, Flávia Ferreira Pires (2013) constatou que as mulheres, além de
gastarem com material escolar, reservavam uma parcela das transferências para as próprias
crianças, uma vez que na visão da família os filhos terminavam por assumir certa
responsabilidade na continuidade do benefício. As crianças utilizavam o dinheiro para a
267
compra de doces, balas, pipocas etc. Se o benefício pertence à família, se pergunta a autora,
porque as crianças e adolescentes têm prioridade? Para Flávia Pires (2012, pp. 12-13), isto
acontece, em primeiro lugar, porque o PBF é compreendido como sucessor do Bolsa-Escola,
Programa em que as transferências eram destinadas exclusivamente às crianças; em segundo,
em virtude de “[...] o PBF utiliza-se da condicionalidade escolar como forma de garantia do
benefício, o que acaba por enfatizar o papel das crianças e dos adolescentes no recebimento
do dinheiro”.
Em Porto Calvo, União dos Palmares e São Miguel dos Campos observamos que o
dinheiro que as beneficiárias separam para as crianças cria oportunidades importantes para
pequenas atividades do circuito inferior da economia urbana. Trata-se de atividades que são
movimentadas, sobretudo, pelos centavos que as mães dão diariamente aos seus filhos quando
recebem o Bolsa Família, uma verdadeira “economia dos centavos” (MONTENEGRO, 2011,
p. 238). Dessa forma, devido à especificidade da demanda criada pelo consumo das crianças e
adolescentes, os pequenos comércios do circuito inferior se pulverizam dentro e nos arredores
das escolas municipais e estaduais, como podemos notar nas fotos a seguir. Mas, mais uma
vez, o circuito inferior da economia urbana termina estabelecendo diferentes nexos de
subordinação com o circuito superior pela forma como precisa se abastecer.
Foto 14 – Comercialização de doces, balas e pipocas em frente em escola municipal de Porto Calvo
Foto 15 – Comercialização de doces balas e pipocas dentro de uma escola municipal de União dos
Palmares
Foto 16 – Comércio de doces e balas em frente uma escola municipal de São Miguel dos Campos
pobres na sua capacidade de elaborar política. Enquanto isso não ocorre, reproduz-se o espaço
dividido, sendo os dois circuitos da economia urbana uma de suas expressões mais fiéis.
270
N
o presente capítulo demonstraremos que os diferentes níveis de cidade da Região
Canavieira de Alagoas participam de maneira específica da concretização do PBF.
Esse fato terminou por condicionar o desenvolvimento das articulações entre os
dois circuitos da economia urbana no subsistema regional de cidades. Procuramos analisar
como velhos e novos elementos de ambos os circuitos se envolvem nessas articulações,
buscando assim revelar como o Bolsa Família transforma (diretamente ou ao autorizar) a rede
urbana da Região. Nesse sentido, consideramos a rede urbana, esta “verdadeira armação de
cada região” (GEORGE, 2005, p. 206), como reflexo, condição e meio (CORRÊA, 1989, pp.
48-50) para a realização do acontecer solidário.
Cada um dos circuitos da economia urbana participa de maneira particular na
conformação da rede urbana regional. Podemos afirmar que, “cada cidade tem, portanto, duas
zonas de influência de dimensões diferentes, e cada zona varia em função do tipo de
aglomeração, do mesmo modo que o comportamento de cada um dos circuitos” (SANTOS,
2008 [1975], p. 353). A atuação do circuito superior é seletiva na rede urbana, ainda que sua
influência e consequências se façam sentir em todos os níveis de cidade. Dependente da
instalação dos vetores do meio técnico-científico-informacional, a presença das atividades
desse circuito diminui das maiores e mais complexas aglomerações urbanas em direção às
menores. O inverso ocorre com as atividades do circuito inferior da economia urbana, pois
sua zona de influência é maior nas cidades locais. Essa dinâmica é aqui tomada como sendo,
ao mesmo tempo, causa e consequência da hierarquia urbana regional e do empobrecimento
de certas cidades que tal hierarquia revela.
271
Nas principais cidades também vemos se expandir um circuito superior forâneo, que
atua a partir de formas organizacionais projetadas para as populações de baixa renda.
Autorizadas pelas condições técnicas e políticas do período, franquias, grandes redes do ramo
supermercadista e farmacêutico podem, a partir dessas cidades, abocanhar parte das
transferências recebida pelas populações de cidades locais. A política das empresas, destarte,
ganha cada vez mais importância nos fluxos descendentes de bens (SANTOS, 2008 [1975], p.
334) na rede urbana da Região. O circuito superior amplia sua área de influência, roubando
parte do mercado dos pequenos negócios localizadas nas cidades de nível inferior.
Assim, buscamos mostrar que, de vários pontos de vista, a pobreza na Região
Canavieira de Alagoas tem sido pressionada para se adequar as formas de fazer requeridas
pelo circuito superior. Devemos destacar como positivo o fato de que tudo isso se fez
principalmente através do acontecer político-institucional, isto é, de políticas públicas, única
forma de assegurar bens coletivos e a participação política dos pobres nas políticas sociais.
Nossos trabalhos de campo revelaram que as atividades que cabem à Caixa Econômica
Federal realizar nos municípios no âmbito do PBF implicou em mudanças importantes nas
relações entre os diferentes níveis de cidade da rede urbana da Região Canavieira de Alagoas.
Constatamos que, em boa medida, tais mudanças decorrem da participação dos
correspondentes bancários na execução de parte dessas atividades. Por serem fixos bancários
mais flexíveis quanto à localização, os correspondentes podem estar presentes nos diversos
escalões urbanos.
No mapa 80 temos a distribuição da rede de fixos da CAIXA na Região Canavieira
alagoana. Observamos que, embora as agências estejam concentradas nos principais centros
urbanos, os correspondentes Casa Lotérica e Caixa Aqui estão presentes em praticamente
todas as cidades.
273
Mapa 80 - Região Canavieira de Alagoas: distribuição dos fixos da Caixa Econômica Federal (2016)
áreas urbanas menos valorizadas como em cidades locais muito pobres. Foi o que procuramos
mostrar com o mapa acima.
Quanto à realização das atividades exigidas pelo PBF nos municípios, os
correspondentes (notadamente os Caixa’s Aqui), apresentam um certo número de limitações
que decorrem de três fatores principais. O primeiro deles está ligado às especificidades desse
Programa. Como vimos, há situações em que existe a necessidade de sacar o benefício sem o
cartão magnético, o que só é possível fazer em uma agência. Além disso, o grande número de
beneficiários em pequenas cidades pobres (como é o caso das cidades locais da Região
Canavieira de Alagoas) geralmente gera filas enormes nos locais de pagamento, quando não
torna impossível realizar o pagamento de todos os benefícios dentro do calendário
estabelecido pelo antigo MDS. Isso nos remete ao segundo fator, relacionado às instalações
físicas simples utilizadas principalmente pelos Caixa’s Aqui. Torna-se difícil manusear o
volume de recursos necessário ao pagamento do Bolsa Família dispondo de tais instalações,
mesmo porque o número de trabalhadores também é reduzido. Por fim, a própria
especificidade de certas cidades locais limitam a atuação do correspondentes. Muitas vezes
são cidades de difícil acesso, onde o número de assaltos é bastante alto, o que impede o
manuseio de altos valores.
Durante nossas pesquisas nas cidades de Porto Calvo, União dos Palmares e São
Miguel dos Campos entrevistamos um total de 75 (setenta e cinco) beneficiárias de pequenas
cidades do entorno que estavam ali para receber o benefício: 59% delas explicaram que
precisaram se deslocar por problemas de falta de dinheiro e de natureza técnica (manutenção
do sistema, Caixa Aqui quebrado, ou algo do tipo) no correspondente de sua cidade, 13% em
virtude da existência de grandes filas (filas que tornam praticamente impossível receber o
benefício no mesmo dia), 12% vieram com o intuito de fazer compras nessas cidades maiores,
3% pela necessidade de acessar outros serviços públicos, 3% porque estavam sem cartão
magnético e os 10% restantes por outros motivos. O mapa 81 apresenta as cidades de origem
dessas beneficiárias.
275
Mapa 81 – Região Canavieira de Alagoas: cidades de origem das beneficiárias do Bolsa Família que
costumam receber em Porto Calvo, União dos Palmares e São Miguel dos Campos (2015)
Gráfico 7 – Circuito da economia urbana onde gastam as beneficiárias do Bolsa Família de cidades
locais que costumam receber em Porto Calvo, União dos Palmares e São Miguel dos Campos (2015)
Semelhante ao que vimos para o consumo das beneficiárias de Porto Calvo, União dos
Palmares e São Miguel dos Campos, notamos aqui que o circuito superior da economia
urbana aparece principalmente no ramo de alimentação, onde se concentra o gasto das
beneficiárias, enquanto o circuito inferior atua, sobretudo, no ramo de vestuário. Observamos
ainda que este último circuito também aparece com certo destaque no consumo de material
escolar, sendo citada principalmente a feira-livre.
Localizados na área central desses principais centros urbanos da Região Canavieira,
supermercados do circuito superior independentes e pertencentes a redes de lojas
(notadamente o Todo Dia e o UniCompra), ofertando preços mais baixos, acabam roubando
parte do novo mercado criado pelo PBF nas cidades locais. O mesmo podemos dizer sobre as
redes de farmácias. Consideramos esse processo como “[...] um indício do fortalecimento do
circuito superior e da ampliação da brecha que o separa da baixa capitalização do circuito
inferior. Permanecem as interdependências entre ambos os subsistemas, mas o circuito
inferior é, a cada dia, mais subordinado” (SILVEIRA, 2015, p. 256).
A atuação do circuito inferior nessa demanda é, em boa medida, condicionada pelas
possibilidades de localização dos pequenos negócios nas áreas centrais dessas cidades, visto
ser aí onde as beneficiárias do PBF recebem o benefício e, portanto, por onde circulam (o que
explica porque a feira-livre foi bastante citada). Os trabalhadores do circuito inferior que
pesquisamos nos centros de Porto Calvo, União dos Palmares e São Miguel dos Campos nos
278
informaram que suas clientelas são constituídas também por populações dos municípios
vizinhos, que aumenta nos dias de pagamento aos aposentados, beneficiários do Bolsa Família
e de feira-livre. Já na periferia de São Miguel dos Campos e União dos Palmares a clientela de
outros municípios é pequena, sendo maior nesta última cidade pois aí se realiza uma feira-
livre aos domingos. É o que trazemos nos mapas 82 e 83:
Observamos que há ainda pequenos gastos que as beneficiárias realizam quando vão
receber em outras cidades, onde o circuito inferior encontra um mercado importante. São
gastos com lanches, doces, balas, pipocas etc., principalmente porque, muitas vezes, as
crianças acompanham as mães nesse deslocamento. É comum que tais atividades localizem-se
nos pontos de saída e chegada dos transportes.
279
É no fluxo de pessoas para Porto Calvo, União dos Palmares e São Miguel dos
Campos que os serviços de transporte do circuito inferior da economia são chamados a
participar diretamente na concretização do PBF na rede urbana regional. Porém, o Governo do
Estado de Alagoas vem, a partir de sua política de transporte, forçando alterações no grau de
capital e de técnica dessas atividades, o que termina por perturbar suas formas políticas de
organização e as relações que esses serviços estabelecem com as populações pobres que
necessitam de mobilidade.
Através do Decreto nº 1.171, de março de 2003, o Governo buscou regulamentar o
serviço complementar de transporte rodoviário intermunicipal, atribuindo à Agência
Reguladora de Serviços Públicos do Estado de Alagoas – ARSAL o papel de órgão
responsável por toda regulação, planejamento e fiscalização do transporte. Desde então, os
trabalhadores que estavam vinculados a Associações Municipais passaram a depender de
permissão concedida por essa agência, que além de estabelecer tarifas e itinerários, passou a
delimitar também o número de carros em cada linha e o tipo de veículo a ser utilizado no
serviço. Nesse sentido, o Decreto estabeleceu que os veículos deveriam ter no máximo 7
(sete) anos de uso.
Dessa forma, com o discurso baseado na necessidade de “racionalizar” o serviço de
transporte, estudos foram feitos, normas foram promulgadas, tudo isso para deslegitimar as
formas de organização dos trabalhadores do circuito inferior. Fazer parte de Associações não
constitui mais garantia alguma de trabalho, além do mais a exigência de veículos novos
causou um endividamento geral desses trabalhadores. Sem falar que a dívida adquirida com a
compra do veículo às vezes dura mais do que o período da concessão fornecida pela Agência
Reguladora, o que significa que é real a possibilidade de se ficar somente com a dívida, mas
sem o rendimento.
Não desconsideramos a necessidade de se pensar uma política abrangente para o
serviço de transporte, mas questionamos o porquê de se fazer tão pouco caso das formas
políticas de organização já existentes nas Associações, assim como da combinação entre
técnica e capital que estava umbilicalmente ligada a tais formas. Os acréscimos de capital
exigidos pela política estadual de transporte têm pressionado a equação de lucro dos
trabalhadores do circuito inferior, exigido aumentos constantes das passagens e, além do mais,
cerceado relações de confiança que se davam entre motoristas e passageiros. A necessidade de
pagar prestações fixas do veículo, por exemplo, impede que uma passagem seja deixada no
fiado, mesmo que muitas vezes esta seja a única forma de uma beneficiária do Bolsa Família
se deslocar para receber o benefício em outra cidade.
280
Quadro 22: alguns dados sobre a mobilidade da população beneficiária do PBF das cidades do entorno
de Porto Calvo, União dos Palmares e São Miguel dos Campos
Entorno de Porto Calvo
Valor da passagem Menor valor do PBF das % da passagem
Trajeto Distância
(ida e volta) beneficiárias entrevistadas sobre o PBF
Matriz do
Camaragibe-Porto 25 km R$ 7,00 R$ 77,00 9%
Calvo
R$ 233,00 7%
Jundiá-Porto Calvo 33 km R$ 17,00
Porto de Pedras*- R$ 147,00 10%
29 km R$ 14,00
Porto Calvo
Entorno de União dos Palmares
Valor da passagem Menor valor do PBF das % da passagem
Trajeto Distância
(ida e volta) beneficiárias entrevistadas sobre o PBF
Santana do Mundaú
- União dos 28 km R$ 12,00 R$ 77,00 16%
Palmares
São José da Laje - R$ 142,00 8%
23 km R$ 12,00
União dos Palmares
Branquinha-União R$ 147,00 6%
12 km R$ 9,00
dos Palmares
Entorno de São Miguel dos Campos
Valor da passagem Menor valor do PBF das % da passagem
Trajeto Distância
(ida e volta) beneficiárias entrevistadas sobre o PBF
Roteiro-São Miguel 5%
15 km R$ 7,00 R$ 134,00
dos Campos
Jequiá da Praia**-
R$ 147,00 5%
São Miguel dos 17 km R$ 8,00
campos
Boca da Mata - São R$ 112,00 12%
40 km R$ 13,00
Miguel dos Campos
Campo Alegre*** -
R$ 77,00 12%
São Miguel dos 24 km R$ 9,00
Campos
* A distância e o valor da passagem se explicam pelo fato de que as beneficiárias desse município tentam receber
primeiro em Matriz de Camaragibe, Porto Calvo acaba sendo procurada numa segunda tentativa.
** São beneficiárias que habitam o povoado da Usina Sinimbu, às margens da BR – 101.
*** São beneficiárias que habitam o Distrito de Luziápolis, às margens da BR – 101.
Fonte: site da Agência Reguladora de Serviços Públicos de Alagoas – ARSAL (fev. de 2016) e trabalho de
campo (2015)
Organização: Fernando Silva (2017)
às vezes, o motorista confia fiado para pagar na volta. No entanto, com a recente instabilidade
do Programa essas soluções têm se tornado complicadas. Por exemplo, uma beneficiária que
entrevistamos de Matriz de Camaragibe tomou dinheiro emprestado a uma vizinha para ir
receber em Porto Calvo, mas ao chegar lá seu benefício tinha sido bloqueado. Como pagar o
dinheiro da vizinha, ou antes disso, como voltar para casa?
Mais difícil ainda é, sem sombra de dúvidas, a situação de beneficiárias que habitam
cidades em que o transporte, além de muito caro para os níveis de rendimento das populações
urbanas, é irregular. Nesse sentido, podemos citar o caso de uma beneficiária que
entrevistamos na cidade de Jundiá, no entorno de Porto Calvo. Trata-se de uma cidade que
dispõe apenas de um Caixa Aqui, e diariamente saem 4 (quatro) carros às 6 horas para Porto
Calvo e 3 (três) para Novo Lino, sendo que as passagens de ida e volta custam,
respectivamente, R$ 17,00 e R$ 14,00. Quando questionada como faz para receber o Bolsa
Família diante de problemas constantes no correspondente da cidade e do baixo valor do
benefício, essa beneficiária explicou:
Entrevistada: Tem vez que eu vou de pé mais as meninas aqui pra Novo
Lino.
Pesquisador: A pé?
Entrevistada: Sim, eu já fui umas quatro vezes ou foi mais, foi não [marido]?
De pé.
Pesquisador: Tem que sair cedinho?
Entrevistada: É, tem que sair cedinho.
Pesquisador: Da quanto tempo, umas 2 horas?
Entrevistada: Da mais, dá umas três horas. Foi eu, minha vizinha e meu
menino.
Pesquisador: Mas quando vem a senhora vem de carro?
Entrevistada: Aí quando vem o menino conhece nós aí dá carona a nós.
Pesquisador: Carro é meio difícil né?
Entrevistada: É viu.
Pesquisador: A não ser de moto táxi né?
Esposo da entrevistada: Mas mototaxistas é no dinheiro, eles cobram R$
20,00 daqui pra lá oia. A pessoa vai receber um dinheiro pouco aí volta sem
nada [se for de moto táxi].
6.2. O atacado distribuidor como nexo entre os dois circuitos da economia na rede urbana
regional
Gráfico 8 – Alagoas: Índice de volume de vendas no comércio varejista ampliado – base 100: 2003
(2003-2011)
Isto levou a uma expansão sem precedentes dos comércios varejista e atacadista
alagoanos, segundo mostra a tabela 36:
283
97
GONÇALVES, Maurício. “Setor atacadista alagoano supera usinas de açúcar”. In: Jornal Gazeta de Alagoas.
Maceió: 02 de agosto de 2015. Disponível em:
http://gazetaweb.globo.com/gazetadealagoas/noticia.php?c=270742 Acesso em julho de 2016.
286
em áreas e cidades que outrora eram atendidas majoritariamente por comércios do circuito
inferior da economia urbana, exige, segundo defende Marcos de Moraes Xavier (2009), uma
verdadeira reorganização do setor atacadista brasileiro. Novos graus de capital, técnica e,
sobretudo, de organização são requeridos das empresas desse setor para que elas possam
manter o papel de elo que desempenham entre a indústria e o pequeno varejo. De acordo com
a explicação do autor, essa modernização termina por ampliar as funções das empresas
atacadistas distribuidoras, visto que estas passam também a prestar certos serviços e a gerir o
pequeno varejo.
Nesse processo de renovação dos nexos entre os dois circuitos da economia urbana
brasileira participam atacadistas de diferentes portes. Neste sentido, Marcos de Moraes Xavier
(2009, pp. 22-29) propõe, inspirado em Milton Santos (1998), uma tipologia das empresas do
setor com base no grau de capital, tecnologia e no alcance territorial. Primeiro vêm os
atacadistas do macro -circuito, que “[...] correspondem às empresas de grande porte que são
capazes de agir em todo o território brasileiro ou em mais de uma das grandes regiões” (p.
26). Estão entre as maiores do setor, como o Grupo Martins e o Grupo Peixoto que a partir de
Uberlândia – MG atuam nas diversas regiões do País. Já “os atacadistas do meso-circuito
apresentam as mesmas feições das empresas do macro-circuito, porém são menos
capitalizadas e seu campo de atuação é restrito às parcelas do território de menor extensão
[...]” (p. 26 grifos no original). Nesse caso o autor cita como exemplo, dentre outros, o Asa
Branca, maior atacadista de Alagoas localizada em Arapiraca. Por último vêm os atacadistas
do micro-circuito, que “são empresas de pequeno porte cujo alcance de suas ações é local” (p.
27). Lembra o autor que embora não se trate de atividades do circuito inferior da economia
urbana, esses negócios dependem da existência de um mercado contíguo, visto que não
dispõem de tecnologia e de capital para tirar proveito do crescimento do consumo de toda
uma região, por exemplo.
A distribuição dos supermercados filiados à Rede Smart na Região Canavieira de
Alagoas pode fornecer-nos uma ideia sobre a atuação dos atacadistas do macro-circuito.
Conforme o mapa 85, 11 (onze) cidades têm lojas filiadas à essa rede, sendo 4 (quatro) na
Região Metropolitana de Maceió. Mais da metade das lojas filiadas (12 de 23) estão em
Maceió.
287
Mapa 85 - Região Canavieira de Alagoas: distribuição dos supermercados filiados à Rede Smart
(2016)
Algumas das empresas que ascenderam nas cidades de Arapiraca e de Maceió podem
ser consideradas como atacadistas do meso-circuito, pois atuam em todos os municípios do
estado de Alagoas. Segundo dados da Relação Anual de Informações Sociais - RAIS
(BRASIL, 2016b), do total de 1.434 estabelecimentos de comércio atacadista existentes em
Alagoas em 2016, 60% se localizavam em Maceió e mais 20% em Arapiraca. Esses
estabelecimentos empregavam 12.663 trabalhadores com Carteira de Trabalho assinada,
sendo 54% em Maceió e 33% em Arapiraca. Nestas duas cidades está a grande maioria das
empresas que fazem parte da Associação do Comércio Atacadista e Distribuidor do Estado de
Alagoas – ACADEAL, principal associação que representa os interesses políticos do setor no
estado.
Em nossos trabalhos de campo constatamos ainda a existência de 4 (quatro)
atacadistas distribuidores nas cidades de Porto Calvo, União dos Palmares e São Miguel dos
Campos, que pelas suas características podem ser tratados como atacadistas do micro-circuito
da Região Canavieira.
Criado no ano de 2002, o Mercantil Andrade é um atacadista distribuidor da cidade de
Porto Calvo do ramo de mercadorias em geral, com predominância de produtos alimentícios.
Iniciou suas atividades como um pequeno atacado, abastecendo comerciantes da própria
cidade, mas a expansão do mercado em Porto Calvo e nas pequenas cidades do entorno levou
a empresa a aumentar o estoque e a investir também na distribuição. Hoje esse atacadista
distribuidor possui 2 (dois) prédios para armazenar mercadoria, um total de 21 (vinte e um)
funcionários e 2 (dois) caminhões para realizar entregas. Vende suas mercadorias no boleto e
no cheque, sendo o boleto a forma de pagamento mais utilizada pelos clientes. Realiza
propagandas em uma rádio local.
Também em Porto Calvo surgiu, no mesmo ano que o Mercantil Andrade, o
Comercial Cordeiro, atacadista distribuidor que também disputa pelo novo mercado criado
pela expansão do consumo de produtos alimentícios no Litoral Norte de Alagoas. Localizada
no centro da cidade, essa empresa possui 4 (quatro) depósitos e um total de 38 (trinta e oito)
funcionários, que trabalham desde a recepção da mercadoria até a entrega ao pequeno varejo.
Do ponto de vista do alcance territorial, o maior atacadista do micro-circuito que atua
no interior da Região Canavieira de Alagoas surgiu na cidade de União dos Palmares, no ano
de 2013. Trata-se da empresa Real Distribuidora. Dispondo de uma frota de 3 (três)
caminhões, um total de 20 (vinte) funcionários e um prédio localizado às margens da BR –
104, esse atacadista consegue realizar entregas em 30 (trinta) cidades da Região em cerca de
dois dias depois da realização do pedido. Ao alcançar os pequenos comércios até mesmo do
289
Litoral Norte, acaba disputando não somente com atacadistas do macro e do meso-circuito,
mas também com os do micro-circuito localizados na cidade de Porto Calvo.
Por fim, mencionamos o Bonzão Atacado, surgido também em 2013 na cidade de São
Miguel dos Campos. Com um total de 15 (quinze) funcionários e 2 (dois) caminhões, essa
empresa, localizada às margens da BR – 101, realiza entregas em algumas cidades do entorno
de São Miguel dos Campos, mas o prazo dessas entregas depende do volume dos pedidos
realizados pelos clientes, assim como da distância de cada cidade. Em termos de capital,
tecnologia e de alcance territorial trata-se do menor atacado dentre os 4 (quatro) que
identificamos, e acreditamos que a maior proximidade de Arapiraca, de certa forma, limita
sua atuação nas cidades do entorno.
Em suma, são empresas que pelo grau de técnica, capital e capacidade logística têm
um campo de atuação restrito a certas porções da Região Canavieira de Alagoas. Não deixam,
contudo, de subordinar pequenos comércios do circuito inferior da economia urbana,
especialmente aqueles localizados nas cidades locais.
6.3. Formas recentes de atuação do circuito superior da economia: a rede urbana regional
face à política das empresas
Não nos parece possível compreender a dinâmica atual dos dois circuitos da economia
na rede urbana da Região Canavieira de Alagoas sem considerarmos a capacidade que
grandes firmas vêm demonstrando em aproveitar as possibilidades criadas pelo PBF nos
diferentes níveis de cidade. Se, por um lado, essa capacidade evidencia a reprodução
subordinada do circuito inferior, por outro não deixa de revelar como a formação
socioespacial brasileira vem autorizando cada vez mais as políticas das empresas.
Legitimadas pela forma como o País ingressou na modernização tecnológica e robustecidas
pela abertura neoliberal dos anos 1990, essas políticas terminam por demonstrar, a partir de
2003, todo seu poder em reduzir potenciais efeitos positivos de programas públicos
endereçados às regiões mais pobres.
Principalmente nos setores supermercadista e farmacêutico, empresas com capacidade
de atuar em todo território brasileiro passaram a se interessar pela expansão do consumo na
Região Canavieira alagoana. Ao mesmo tempo, firmas surgidas no próprio estado, ou mesmo
em estados vizinhos, redesenharam sua topologia, abrindo novas lojas para também
disputarem pelos acréscimos dos rendimentos dos mais pobres. Todas essas empresas buscam
localizar seus estabelecimentos nas principais cidades da Região e, além disso, detêm certo
controle sobre as variáveis centrais do período (MONTENEGRO, 2011) – notadamente sobre
o crédito institucional e a propaganda -, apesar de apresentarem capacidades diferenciadas de
se utilizar de tais variáveis. Essas diferenciações vêm somar-se à especificidade do mercado
regional para explicar a diversidade de formas organizacionais adotadas pelas diferentes
firmas.
No mapa 90 representamos a distribuição das lojas das principais redes de
supermercados. Observamos que nas cidades do interior destacam-se dois grupos empresarias:
o Grupo UniCompra (como vimos, de origem na cidade de Arapiraca) e o Grupo Walmart,
através dos supermercados Todo Dia.
293
Mapa 90 - Região Canavieira de Alagoas: Distribuição das lojas das principais redes de
supermercados que atuam na região (2015)
98
Segundo dados do site Supermercado Moderno, trata-se do maior supermercado alagoano. Em 2016 possuía
2.349 trabalhadores nas suas 19 lojas, ano em que teve um faturamento de pouco mais de R$ 405 milhões.
Disponível em: http://www.sm.com.br/ Acesso em abril de 2017.
99
Dados de um propaganda disponível no site da empresa.
100
Trata-se de uma das maiores empresas de lojas de departamento do mundo, tendo lojas nas Américas, Europa,
Ásia e África. Sua sede fica no Estado de Arkansas, nos Estados Unidos.
101
Dados de 2016 mostram que o Walmart manteve-se como 3ª maior empresa supermercadista, atrás apenas do
Carrefour Comércio e Indústria LTDA e da Companhia Brasileira de Distribuição. Nesse ano eram 485 lojas e
65.229 funcionários. O faturamento foi de R$ 29,4 bilhões (dados do site Supermercado Moderno:
http://www.sm.com.br/ Acesso em abril de 2017). Para uma discussão sobre o tema ver a tese de Marcos de
Moraes Xavier (2009).
295
Quadro 23: principais características das caravanas que saem das cidades de Porto Calvo e União dos
Palmares com destino ao Atacadão de Maceió e Caruaru (PE)
Cidade de Tempo que Nº e modelo dos Frequência Valor da Cidade da
origem existe o serviço carros passagem Compra
Porto Calvo 3 anos São 5 carros, Os ônibus vão 1 vez a R$ 50,00 Maceió
sendo 2 ônibus, 1 cada 2 meses. Os
micro-ônibus, 1 outros carros vão uma
ducato e 1 doblô vez por semana
União dos 7 anos 1 ônibus 1 vez por mês (até R$ 30,00 Maceió e
Palmares 2013 saía uma vez por para Maceió Caruaru
semana) e R$ 40,00 (PE)
para Caruaru
(PE)
Fonte: trabalho de campo (2015)
Organização: Fernando Silva (2017)
Vale dizer que se trata do número de motoristas que conseguimos identificar, por isso
não descartamos a possibilidade de existirem outros. Ainda que não seja uma quantidade
muito expressiva, interessa-nos aqui destacar como esse processo vem se dando. Pelas
entrevistas que realizamos com os motoristas que organizam essas viagens ficou claro que são
principalmente as pessoas de menor poder aquisitivo, que habitam as periferias urbanas ou até
mesmo as pequenas cidades vizinhas, as que mais procuram o serviço. Essas pessoas
geralmente justificam a viagem pela busca do menor preço nas compras de alimentação.
Dessa maneira, os comércios do circuito inferior desses centros urbanos perdem parte
da clientela, mas, ao mesmo tempo, novas oportunidades de trabalho são criadas para o
serviço de transporte desenvolvido no âmbito do mesmo circuito. Observamos que para os
proprietários dos veículos essas viagens servem para complementar os rendimentos. Em Porto
Calvo, os dois proprietários de ônibus geralmente prestam serviço às usinas no período da
safra, transportando trabalhadores rurais das cidades para as áreas canavieiras. Já os
motoristas do micro-ônibus e do ducato transportam regularmente pessoas para comprarem
confecções no agreste pernambucano, enquanto o proprietário do doblô é taxista em Porto
Calvo. Já o proprietário de ônibus que realiza as viagens em União dos Palmares trabalha a
cerca de 20 (vinte) anos transportando feirantes e sacoleiras para comprarem confecções no
agreste de Pernambuco. O faturamento médio de uma viagem realizada por ônibus é de R$
1.000,00, sendo o lucro por volta de R$ 500,00.
Quanto à atuação das empresas do setor farmacêutico na Região Canavieira de
Alagoas, vejamos o mapa 91:
296
Mapa 91 - Região Canavieira de Alagoas: Distribuição das lojas das principais redes de farmácias que
atuam na região (2017)
102
Dados disponíveis no site da ABF: http://www.abf.com.br/ Acesso em abril de 2017. Ainda segundo esta
Associação o investimento inicial para abrir uma franquia da Farmácia do Trabalhador é de R$ 195.000,00.
103
Em 2016, do total de 3.039 redes franqueadoras existentes no Brasil, 53% eram do Estado de São Paulo,
sendo que o Rio de Janeiro, Estado que vinha em seguida, aparecia com 11%. Todavia, São Paulo detém apenas
36% das unidades franqueadas, e a expansão destas nos últimos anos tem se dado principalmente nos estados do
Nordeste. Em 2015, por exemplo, o crescimento das franquias em Alagoas foi de 10,7% em relação ao ano
anterior, enquanto no Brasil esse aumento foi de 8,3% (dados disponíveis no site da ABF).
104
Informações disponíveis do site da empresa.
298
três maiores farmácias do Brasil com um total de 1.015 lojas instaladas em todas as unidades
da federação. Em 2016 teve um faturamento de R$ 5,8 bilhões, e encerrou o ano com um total
de 20.694 trabalhadores. Como vemos no mapa, a loja de União dos Palmares foi a primeira
do interior da Região Canavieira de Alagoas105.
Por esses dados podemos afirmar que o circuito superior na Região aumenta os graus
de capital de suas atividades, adota novas formas organizacionais e, com isso, aumenta sua
capacidade de alcançar as populações pertencentes ao circuito inferior. Para usar as
expressões de Maria Laura Silveira (SILVEIRA, 2015, p. 257), o subsistema superior cresce
tanto intensiva (como demonstram os dados sobre o faturamento das empresas) como
extensivamente (como revela a distribuição de suas lojas), e embora não atue diretamente em
todas as cidades, sua ação se faz sentir nos diversos escalões da rede urbana, tendendo “[...] a
desvalorizar as demais formas de trabalho”.
Assim, as novas formas de combinação entre técnica e organização das atividades do
circuito superior podem ser vistas como fortes indícios de fortalecimento deste circuito, ao
contrário do que ocorre no âmbito do circuito inferior, onde as adaptações estão ligadas
essencialmente à sua condição subordinada na dinâmica econômica. Não se trata aqui de
desconsiderar as oportunidades de trabalho criadas para o subsistema inferior quando, por
exemplo, as populações pobres das cidades interioranas se deslocam para fazer compras em
lojas de grandes redes na capital. Mas se trata, na realidade, de apontar a drenagem do
dinheiro (já escasso) que chega aos centros locais da Região através das políticas sociais,
empobrecendo assim os pequenos negócios cuja atuação se restringe à escala do lugar.
105
Informações disponíveis do site da empresa.
299
CONCLUSÃO
D
efendemos a tese de que com os acréscimos de técnica, norma e informação ao
território das diferentes sociedades a existência da cidadania passa a depender de
um processo de racionalização do espaço geográfico, que respeitando as formas de
fazer e de ser de todos os grupos, assegure, através de recursos, bens e serviços coletivos, a
permanência dos valores cívicos definidos em lei. A possibilidade de que poucos agentes
utilizem essa base técnica para se apropriarem dos recursos coletivos coloca em risco
princípios de igualdade e liberdade, além de constituir uma verdadeira ameaça ao direito à
vida. Por isso, cremos ser muito difícil, senão impossível, construir um país a partir da
competição entre as pessoas e lugares, versão geográfica da “ação racional determinada pelos
fins” de que falava Max Weber. Assim, além dos aconteceres hierárquico, homólogo e
complementar propostos por Milton Santos, podemos falar também de um acontecer político-
institucional quando estamos diante de uma política como o Bolsa Família.
Especialmente nos países periféricos, a possibilidade de controlar os sentidos das
ações e dos objetos à distância terminou por alterar a face política da pobreza, pois esta
deixou de ser local para ser, ao mesmo tempo, local, nacional e, cada vez mais, global
(SANTOS, 2011 [2001], pp. 54-57). Ainda que essa mudança se expresse no funcionamento
das atividades econômicas, trata-se, na verdade, de perceber como a modernização
tecnológica conferiu possibilidades desiguais de ação aos distintos agentes da economia e da
política, autorizando novas formas de produzir a pobreza, assim como de perpetuá-la.
300
regionais não poderia resultar em algo mais irracional. A privatização e falência de empresas
públicas assim como a falência de usinas, somadas à apropriação ilegal de recursos dos cofres
públicos, levaram a um crescimento do desemprego e do circuito inferior da economia urbana
sem precedentes na história da Região. Todavia, a flexibilidade das técnicas do período
permitiu a esse circuito construir novas cooperações entre os lugares, de modo que a
capacidade de elaborar política dos pobres se tornou cada vez mais evidente.
Essa vaga de modernização condicionou, de diversas maneiras, a oferta de recursos,
bens e serviços coletivos por parte do Estado brasileiro. Cremos que a forma como as
propostas de transferência de renda foram transformadas em políticas no País revela muitos
desses condicionamentos. O chamado “combate à pobreza”, de forma racional, com poucos
recursos e por pouco tempo, veio a ser a principal justificativa apresentada pela ciência e por
certos partidos políticos para a criação de programas de transferência de renda. A chamada
tese da “reprodução inter-geracional da pobreza” acaba servindo perfeitamente a esses
objetivos. A forma como diversos partidos, notadamente os mais conservadores, passaram a
se empenhar no “enfrentamento da pobreza” revela-nos como a ação instrumental acaba se
tornando um verdadeiro parâmetro para a ação política (RIBEIRO, 2014).
O Programa Bolsa Família representa mudanças fundamentais na política de
transferência de renda no Brasil, que se expressam na busca por transformar esse Programa
em um direito. Cresce enormemente o número de beneficiários e o volume das transferências,
ao mesmo tempo em que os sistemas técnicos e normativos que operacionalizam as
condicionalidades e as transferências são aprimorados, o que resulta em certa estabilidade
dessa política pública. Mas a construção do PBF, não somente em virtude das heranças
deixadas pelo Bolsa Escola, Bolsa-Alimentação e Auxílio Gás, mas também pela pressão dos
organismos internacionais e das elites brasileiras através da grande mídia, indica-nos também
os condicionamentos da ação instrumental, que acabaram, contraditoriamente, contribuindo
para a sua rápida expansão.
Trata-se de uma nova dinâmica da formação socioespacial brasileira, em decorrência
da qual a pobreza na Região Canavieira de Alagoas conhece mudanças importantíssimas. As
populações mais empobrecidas dessa Região, depois de saírem das terras dos usineiros e
ficarem quase sem proteção alguma do Estado, passaram, neste século XXI, a ter acesso às
transferências de forma regular. A importância dessas transferências diante da gravidade das
situações regionais de pobreza é deveras imensurável, pois como resumiu certa beneficiária,
“se não fosse essa Bolsa Família as pessoas nunca ia ter nada” (J. A. S., 38 anos. Entrevista
303
concedida em julho de 2016). Neste sentido, o PBF promoveu o acesso principalmente aos
seguintes bens básicos:
ii) Vestuário: a vergonha de sair de casa por falta de vestimentas adequadas e o andar
descalço eram uma constante na vida das populações pobres da Região antes do PBF. Como
afirmou certa beneficiária, “naquele tempo a gente só comprava roupa de vez em quando pras
festas de fim de ano e andava descalço pra não gastar o chinelo. A gente remendava o chinelo
inter não dá mais” (M. F. S. 43 anos. Entrevista concedida em julho de 2016);
Por essas razões, é possível afirmar que na Região Canavieira de Alagoas o consumo
conheceu uma expansão sem precedentes neste século XXI, gerando novas oportunidades
para as atividades de ambos os circuitos da economia urbana. Em Porto Calvo, União dos
Palmares e São Miguel dos Campos percebemos as formas de reprodução subordinada do
circuito inferior da economia urbana, tanto em decorrência das relações que este subsistema
necessita estabelecer com o circuito superior, como em virtude de certas políticas públicas
que, apesar de reconhecerem a importância das formas de trabalho desenvolvidas pelos
pobres, fazem pouco caso da capacidade que estes demonstram em atuarem conforme a
realidade dos lugares.
Na rede urbana regional observamos as consequências dessa subordinação do circuito
inferior da economia para a mobilidade das beneficiárias do PBF, que necessitando com
urgência do dinheiro das transferências não podem acessá-lo nos municípios onde habitam.
304
Por um lado, os correspondentes não executam todas as atividades exigidas pelo Bolsa
Família nos municípios e, por outro, a política estadual para o serviço de transporte tem
elevado os custos da circulação intermunicipal na Região. Em meio a novas e velhas formas
de empobrecimento das cidades locais, novas relações de complementaridade, subordinação e
concorrência entre os dois circuitos da economia desenvolvem-se na rede urbana.
É importante pontuar também que outros gastos realizados pelas beneficiárias do PBF,
ainda que não apareçam entre os de maior relevância nas despesas das famílias pesquisadas,
revelam a precariedade do acesso aos demais direitos sociais por parte dos mais pobres. São
exemplos nesse sentido o pagamento de escolas para filhos menores de 5 (cinco) anos de
idade, ou então de faculdade para os filhos de 18 anos ou mais. Como vimos demonstrando ao
longo da tese, a ausência de garantias sociais no próprio lugar onde as pessoas habitam
termina por empobrecer cada vez mais os trabalhadores do circuito inferior da economia
urbana, seja pela necessidade de se deslocar para outra cidade para acessar um serviço
público, ou mesmo por ter que adquirir tal serviço em atividades do circuito superior da
economia urbana. A perpetuação de uma cidadania incompleta ficou evidente quando
observamos como “cada homem vale pelo lugar onde está: o seu valor como produtor,
consumidor, cidadão, depende de sua localização no território” (SANTOS, 2007 [1987], p.
107).
Essa cidadania incompleta também se manifesta no PBF de outra forma. Se o
tratarmos como acontecer político-institucional é necessário levar em conta como a população
beneficiária participa ou não na conformação dos sistemas de ações (definição do orçamento,
critérios e valores dos benefícios, necessidade ou não das condicionalidades etc.) e controle
dos sistemas de objetos (formas de uso da base de dados do CAD.ÚNICO, necessidade ou
não do sistema de condicionalidades, cruzamento ou não do CAD.ÚNICO com outras bases
de dados etc.). Nesse sentido, infelizmente vem ocorrendo (muito especialmente desde 2016)
como nos relatou uma beneficiária: “muita gente acha bom né, quando recebe que sai aquele
dinheirinho pra comprar o material de escola dos meninos, e assim vai. Agora quando diz que
tá cortando aí pronto, que bloqueia, aí fica difícil, fica muito complicado demais” (E. S. 28
anos. Entrevista concedida em julho de 2016). Outro diálogo com algumas beneficiárias
deixou claro o porquê dessa complicação. A conversa foi sobre o bloqueio do benefício de
uma delas:
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