A Civilização Feudal
A Civilização Feudal
A Civilização Feudal
A civilização
f eu dai
Do ano mil à colonização da América
Prefácio cte Jacques Le Goff
EDITORA
Gt080
A C I V I L I Z A Ç ÃO F E U D A L.
Jérôme Baschet
A CIVILIZAÇÃO FEUDAL
tradução:
IVlarcelo Rede
Professor do Departamento de História
da Universidade Federal Fluminense
prefácio:
Jacqucs Le Goff
Copyright © Éditions Flammarion, Paris, 2004
Copyright da tradução © 2006 by Editora Globo S.A.
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pude ser utilizada
ou reprodu1.ida- em qualqut•r m(•in ou forma, seja mecânico ou l'll•tri"mit:o,
fotocópia, wavação etc. - nem apropriada nu estocada em sistema de han<·ns
de dados, sem a cxpn.•ssc1 iiUtorização da editora.
Título original:
La civilization féodale - De l'an mil à la
colonization de l'Amérique
Preparação: Beatriz de Freitas Moreira
Revisão: Valquíria Della Pozza e Maria Sylvia Corrêa
fndice remissivo: Luciano Marchiori
Capa: Ettore Bottini, sobre iluminuras de Les tres riches
heures du Duc de Berry (1410-16), dos irmãos Limbourg
(Musée Condé, Château de Chantilly)
Baschet, Jérôme
A civilização Feudal : do ano I000 à coloni1.ação da América I
Jérôme Baschet ; tradução Marcelo Rede ; prefácio Jacqucs Le Guff. -
São Paulo : Globo, 2006.
06-IR63 Cl>l>-940.1
IWRODUÇÃO
PRIMEIRA PARTE
SEGUNDA PARTE
EsTBLTUBAS FUNDA\IE:'n:A.IS DA SOCIEDADE IVIEDIEVAL
Referências bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5 51
t\ CIVII.I/,.\~',.\0 I'I'LIIJ,.\1. ~~
transmitiram-me os conceitos essenciais c o quadro interpretativo que a presen-
te obra reivindica: se ela possui um pouco de coerência que seja, é a eles qut•
isso se deve. Jean-Ciaude Bonne e jean-Claude Schmitl, em cuja estimulante
amizade eu me formei para o estudo da Idade Média c de suas imagens, sabem
que as idéias expostas aqui são, com freqüência, as suas, antes mesmo de st•rem
minhas. A jean-Claudc Schmitt devo, além disso, agradt•cimentos muito parti-
culares: não somente mt•us anos mexicanos não conseguiram quebrar sua um-
fiança, como ainda ele fez questão de desviar este livro de seu destino latino-
americano inicial para confiá-lo às edições Aubier, na qual Monique Labrunc o
acolheu com um interesse atento e Hélene Fiamma o beneficiou com seus cui-
dados benevolentes. Gostaria de poder citar todos os amigos e colegas cujos tra-
balhos e palavras acompanharam e orientaram meu percurso: este livro lhes
deve muito, mas a lista seria ou excessivamente longa ou excessivamente curta.
juan Pedro Viqueira preocupou-se amavelmente com a evolução mexicana
deste livro. Suas observações judiciosas permitiram corrigi-lo e, sobretudo,
reduzir, na medida em que pude seguir seus conselhos, as falhas de minhas alu-
sões à história da Nova Espanha.
Jean e Claudine foram cobaias desta iniciação à Idade Média e a influen-
ciaram com os comentários ajuizados que fizeram retumbar na espessa noite da
floresta de Tikal. Enfim, sem Rocío Noemí, que alterou o sentido de minha
escapada para Chiapas, este livro jamais teria visto o dia. Sem Vincent, nascido
deste encontro, ele seguramente teria sido escrito mais rápido, mas com infini-
tamente menos alegria.
16 Jérôme Baschet
PREFÁCIO
jÉHÔME BASCHET teve a notável idéia de "estudar a Idade Média em terras ame-
ricanas", o que, por um lado, lhe permitiu observar a Idade Média européia com
a dupla distância do tempo e do espaço, e, por outro, esclarecer a história do
México e da América Latina, mostrando uma "herança medieval do México",
segundo uma expressão- sugestiva, ainda que merecedora de correção- de
Luis Weckmann. Assim, ao buscar proporcionar uma história ampla a seus estu-
dantes de Chiapas, e ao querer mostrar-lhes como uma das principais fontes da
história do México é a história medieval européia, ele escreveu uma obra de gran-
de originalidade e amplos alcances, que renova a história americana e a história
européia, a primeira mediante o passado, a segunda mediante o porvir.
Evidentemente, sinto-me feliz por ver que Jérôme Baschet justifica, melhor
do que eu havia podido sugerir, a concepção de uma longa Idade Média que
supera, ou melhor, apaga a falsa ruptura de um século XVI, de um Renascimento
que seria sua negação e que a remeteria às trevas do obscurantismo.
O mais esclarecedor é ter superado a idéia de que a conquista do Novo
Mundo surgiu de um simples apetite de riqueza ou de um desejo de conversão
dos índios, tornada possível graças às caravelas, e ter estabelecido que ela se
deveu ao dinamismo próprio do sistema feudal, que está longe de ser um sis-
tema de estagnação e é muito mais um regime construído para o crescimento
e o desenvolvimento interno e externo, em torno de um poder senhorial de
dominação.
Do mesmo modo, Jérôme Baschet mostra com clareza que o motor e a ins-
tituição dominante do feudalismo é a Igreja. Por isso, não é surpreendente que,
no México e na América Latina, voltemos a encontrá-la com seu poderio abso-
luto. Mas esta igreja dinâmica não é imóvel, e evoluiu no transcorrer da Idade
Média européia. No século XIII, ela adotou formas c estilos novos, em particular
com as ordens mendicantes, ordens urbanizadas que mantinham novas relações
com os laicos c que difundiam os novos saberes da escolástica. Enfrentou cem-
testadores, os hereges, assim como o questionamento das "supcrsliçõt•s" c da
18 jérôme Baschet
colonial americano, que o prolonga, Jérôme Baschet estuda, em uma segunda
parte, "as estruturas fundamentais da sociedade medieval".
Em primeiro lugar, ele mostra a construção das estruturas espaciais e tem-
porais, marco fundamental de toda sociedade e de toda civilização. O espaço do
feudalismo articula-se em torno da terra e dos mortos, e a rede de paróquias,
povoados c cemitérios faz com que, a partir do século XI, a sociedade fique atada
ao solo, enquanto as redes de peregrinações (e. de maneira secundária, de rotas
comerciais) permitem que ela se desloque e que se torne concreta a definição
do cristão como homo viator.
Na primeira parte, Jérôme Baschet havia insistido sobre os transtornos
acarretados pelo crescimento urbano. As cidades conferem ao espaço medieval
centros mais ou menos vigorosos (as ordens mendicantes o notaram, tanto que
vincularam grande parte de seus conventos à hierarquia demográfica das cida-
des). A Igreja é a articulação do local e do universal. A estruturação do tempo
resulta ainda mais complexa. O tempo medieval deixa subsistir a diversidade do
tempo vivido e dos tempos sociais, nos quais, diferentemente dos sinos rurais,
os sinos urbanos desaparecem no século XIV ante os relógios mecânicos. O calen-
dário cristão, que se imiscui por entre as estruturas do calendário Juliano antigo,
ritmando-o segundo uma liturgia construída na memória e na repetição da vida
terrena de Jesus e segundo as festas dos santos, não consegue que um tempo
linear, a partir da nova data original da Encarnação, se desprenda do tempo cir-
cular das estações retomadas pela lit.urgia, nem que se unifique a multiplicida-
de dos tempos naturais e sociais.
O tempo medieval sofre, assim, um abalo profundo devido à maneira como
o cristianismo transforma profundamente a sensibilidade relativa ao passado, ao
presente e ao futuro. Embora a Encarnação dê ao desenvolvimento do tempo um
sentido, começando pelo passado, os clérigos da Idade Média não lograram cons-
truir uma história (a história não é ensinada nas escolas ou nas universidades
medievais) com um caráter racional: ela encontra-se submetida aos caminhos
impenetráveis da Providência e a uma ideologia da regressão e da decadência, que
combate os ganhos do trabalho reabilitado, e do crescimento na ausência de pro-
gresso. O presente é promovido mediante a transformação da eucaristia, a partir
do duplo ponto de vista da teologia e da prática: a promulgação, nos séculos XI e
XII, da doutrina da transubstanciação, que impõe a crença na presença real de
Jesus Cristo na eucaristia, substitui um sacrifício de memória ("farão isto em
minha memória") por um sacramento de presença, de presente. Por fim, a Igreja
medieval, que luta desde santo Agostinho contra o milenarismo- crença em um
futuro messiânico com conotações heréticas - . tem sun•sso em maior ou menor
grau (os medos do ano mil são uma lenda em um contexto de paixões milenaris-
i\ l"IVIII/.•\~Ao I·I"LII>.-\1. /9
tas) e legitima uma concepção do futuro, que é a de um porvir: o Juízo final, que
dá ao tempo da humanidade um final escatol6gico.
Os homens e as mulheres da Idade Média vivem o cristianismo essencial-
mente como uma religião de salvação. Marcados, por outro lado, pelo caníter
guerreiro de sua socil•dadc, vivem sua existência terrena em uma l6gica de sal-
vação que é uma lógica de combate: luta entre virtudes e vícios, combate con-
tra Satanás, inimigo do gênero humano que recorre a todas as tcntm;iícs inter-
nas e externas. Santo Antônio é um modelo simbólico do homem.
Jérôme Baschet, autor de uma extraordinária obra sobre "As justiças do
além", mostra sem dificuldade que as lutas humanas ocorrem l'm um duplo
campo de batalha que se reflete como espelho: a vida terrena c o além. A Igreja
orquestra uma dualidade que se consolida na Idade Média mediante um refina-
mento das relações entre os vivos e os mortos, e uma elaboração mais sofisticada
da localização do além; entre o inferno c o paraíso insinua-se o purgatório l' apa-
rece um sistema de cinco lugares. Os três principais -dois eternos e um inter-
mediário - são completados pelos dois limbos: o limbo vazio dos patriarcas e o
limbo das crianças não batizadas, privadas da visão beatífica de Deus.
Neste mundo de oposições e de combates singulares, que uma imagem
obscura e depreciada da Idade Média deformou e exagerou, um dualismo e um
connito parecem ter uma importância particular, aquele de corpos e almas, pro-
jeção da pessoa humana Uá definida por Boécio, em princípios do século VI) na
sociedade cristã.
1\'las Jérômc Baschet, que publicou um notável estudo sobre as relações do
corpo e da alma no cristianismo, em paralelo com essas relações nas sociedades
ameríndias pré-colombianas, sublinha que o homem medieval é uma união da
alma e do corpo. Não há alma por completo desprovida de carne; inclusive a
alma do morto, que escapa de seu corpo elevando-se até o céu, tem um invólu-
cro corporal; e nas moradas eternas, o paraíso e o inferno, tanto os eleitos como
os condenados voltarão a encontrar um corpo, corpo de glória na claridade da
visão beatífica, corpo de sofrimento nas torturas infernais. A Igreja, modelo
social, representa a articulação do carnal com o espiritual. Sempre sensível à
longa duração, Jérôme Baschet sublinha, com razão, que a Idade Média Central
talvez tenha sido o período menos dualista da história do cristianismo, enquan-
to o dualismo encontrará sua forma radical no século XVII, com Descartes.
A tendência da cristandade medieval à totalização e o estabelecimento de
relações entre a natureza e a sociedade levaram o sistema feudal a conferir,
igualmente, um lugar central ao parentesco. Mas, também neste caso, trata-se
de uma dupla rede. Ao parentesco carnal, que a Igreja controla pelo matrimô-
nio e pelas regras de incompatibilidade do matrimônio entre parentes pr6ximos,
20 jérôme /luschet
são acrescentados os parentescos espirituais (ou "artificiais"), criados pela insti-
tuição do apadrinhamento e do madrinhado, e as diversas formas de confrater-
nidadc que reúnem, com a bênção da Igreja, os indivíduos de ambos os sexos
em uma vasta rede que faz da humanidade uma ampla parentela. Esta tendên-
cia para um parentesco universal é encontrada, inclusive, na elaboração de um
parentesco divino que se articula nas relações pai-filho, virgem mãe e filho divi-
no, c que se prolonga na terra mediante a maternidade da Virgem-Igreja.
Não é de surpreender que Jérôme Baschet, que é, antes de tudo, um gran-
de historiador das imagens medievais, tenha caracteri1.ado, por último, o dina-
mismo medieval com uma expansão das imagens que estabelece a diferença
entre a civilização ocidental e as civilizações anicônicas do judaísmo e do islã.
Durante a Idade Média, instaura-se no Ocidente uma "cultura da ima~:o"- cul-
tura que será herdada pela América com a conquista e a colonização-, na qual
as representações humanas e terrestres, e em primeiro lugar o próprio homem,
foram criados à imagem e semelhança de Deus e do mundo divino.
Usando de maneira judiciosa e profunda as idéias dos historiadores
Immanuel Wallerstein e Fernand Braudel, no que se refere aos impérios, e as
de Marc Auge, para os paganismos, Jérôme Baschet mostra que o sistema feu-
dal se opõe à lógica imperial (a Roma antiga, a China medieval e a moderna são
contrapontos do Ocidente medieval e da América colonial) e que o sistema eclc-
sial se opõe à lógica do paganismo.
A perfeição desta exposição corria o risco de conduzir a dois perigos maio-
res, que Jérôme Baschet conseguiu evitar de maneira notável.
O primeiro era fazer com que aqueles que incensam a Idade Média ganhas-
sem importância mediante o elogio de uma idade de fé e de ordem. Mas ele
mostrou muito bem a parte sombria do sistema feudal medieval, que engendra,
ao mesmo tempo, caritas e perseguição.
O outro risco era fortalecer os partidários, temíveis em nossos dias, da
"superioridade ocidental". Jérôme Baschet conseguiu aplicar ao sistema medie-
val a formosa e acertada fórmula de Walter Benjamin: "Não existe documento
de cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento de barbárie".
Por último, Jérôme Baschet sugere, neste livro, quando l' como termina
nossa "longa Idade Média": na segunda metade do século XVIII, com o
Iluminismo (que, em certos aspectos, a prolonga) e a Revolução Francesa. Três
componentes de um novo sistema aparecem em cena então: o mercado e a eco-
nomia, o tempo linear c a história, a razão e a ciência. Aí termina o sistema feu-
dal que Jérôme Baschet descreveu c explicou com tanta precisão para a Europa
e a América Latina.
A CI\'11.1/.A~:,.\o I'EUilAI. 2/
INTRODUÇÃO
A IDADE MÉDIA TE!\·1 MÁ REPUTAÇAO. Talvez, mais do que qualquer outro perío-
do histórico: mil anos de história da Europa Ocidental, entre os séculos v c XV,
entregues às idéias preconcebidas e a um menosprezo inextirpável, cuja função
é, sem dúvida, permitir que as épocas ulteriores forjem a convicção de sua pró-
pria modernidade e de sua capacidade em encarnar os valores da civilização.
A obstinação dos historiadores em desafiar os lugares-comuns não fez nada con-
tra isso, ou muito pouco. A opinião comum continua sendo associar a Idade
Média às idéias de barbárie, de obscurantismo e de intolerância, de regressão
econômica e de desorganização política. Os usos jornalísticos e da mídia confir-
mam esse movimento, fazendo apelo regularmente aos epítetos "medieval", ou
mesmo "medievalesco'", quando se trata de qualificar uma crise política, um
declínio dos valores ou um retorno do integralismo religioso.
24 JértJme Baschel
lorização. Media aetas, medium aevum, em latim, e as expressões equivalentes
nas línguas européias significam a idade do meio, um intervalo que não poderia
ser nomeado positivamente, um longo parêntese entre uma Antiguidade presti-
giosa e uma época nova, enfim, moderna. Foram os humanistas italianos da
segunda metade do século XV- como Giovanni Andrea, bibliotecário do papa,
em 1469 -que começaram a utilizar tais expressões para glorificar seu próprio
tempo, ornando-o com prestígios literários e artísticos da Antiguidade e diferen-
ciando-o dos séculos imediatamente anteriores. Mas é preciso esperar o século
XVII para que o recorte da história em três idades (Antiguidade, Idade 1\ilédia,
Tempos Modernos) se torne um instrumento historiográfico corrente, notada-
mente nas obras dos eruditos alemães (Rausin, em 1639; Voetius, em 1644; e
Horn, em 1666). Enfim, no século XVIII, com o Iluminismo, essa visão da histó-
ria se generaliza, enquanto se urde a assimilação entre Idade Média e obscuran-
tismo, da qual se percebem os efeitos ainda hoje. Quer se trate dos humanis-
tas do século XVI, dos eruditos do século XVII ou dos filósofos do século XVIII, a
Idade Média aparece claramente como o resultado de uma construção histo-
riográfica que visa valorizar o presente através de uma ruptura proclamada com
o passado próximo.
Nessa matéria, é a época das Luzes que constitui o momento fundamen-
tal. Para a burguesia, que cedo se apropria do poder político, a Idade Média
constitui um contraponto perfeito: Adam Smith evoca a anarquia e a estagna-
ção de um período feudal enterrado nos corporativismos e nas regulamentações,
por oposição ao progresso tra.zido pelo liberalismo. Voltaire e Rousseau denun-
ciam a tirania da Igreja e forjam a temática do obscurantismo medieval, a fim
de melhor valorizar as virtudes da liberdade de consciência. É então que toma
corpo, de maneira decisiva, a visão da Idade Média que perdura até nossos dias,
pois o Iluminismo se define em oposição a ela e a imagem das trevas medievais
torna mais estrondosa a novidade deste. Ele deve, então, mostrar que tudo "o
que o havia precedido era somente arbitrário na política, fanatismo na religião,
marasmo na economia" (Aiain Guerreau). A construção historiográfica da Idade
Média permite, assim, exaltar os valores em nome dos quais a burguesia se apro-
pria do poder c recompõe a organização social, ao mesmo tempo que legitima a
ruptura revolucionária com a ordem antiga. Ora, não apenas o pensamento do
Iluminismo conduz a uma radical denúncia das trevas anteriores, mas também
leva a tornar incompreensível a época medieval, o que só faz acentuar sua des-
valorização. Criando conceitos inteiramente novos de economia (Smith) l' de
religião (Rousseau), os pensadores do Iluminismo provocam o que Alain
Guerrl·au nomeia a "dupla fratura conceitual". Ocultando as noções que dão
sentido à sociedade feudal, eles tornam impossível toda captação da lógica pró-
pria à sua organizaçiio e fazem-na afundar na incoerência e na irracionalidade,
contribuindo, assim, para justificar a necessidade de abolir a ordem antiga.
Uma vez que ela constitui uma época manchada por um preconceito infa-
mante excepcionalmente vigoroso, a Idade Média convida, com particular acui-
dade, a uma reflexão sobre a construção social do passado e sobre a função pre-
sente da representação do passado. Como acaba de ser dito, a idéia de um
milênio de obscurantismo corresponde a interesses precisos: a propaganda dos
humanistas, de início, e, mais tarde, o elii revolucionário dos pensadores bur-
gueses ocupados em solapar os fundamentos de um regime antigo, do qual a
Idade Média é a quintessência. É preciso considerar que ainda vivemos no
mundo ao qual eles deram forma, pois sua visão da Idade Média continua a
exercer o papel de lugar-comum. Sem dúvida, a necessidade de tal contraponto
não é mais tão imperiosa como era no fim do século XVIII. Entretanto, esse pas-
sado, tão longínquo como bárbaro, ainda presta bons e leais serviços t' o caráter
quase inextirpável das idéias preconcebidas sugere que não se renuncia facil-
mente ao muito cômodo contraponto valorizador medieval. Este contribui a nos
convencer das virtudes da nossa modernidade e dos méritos de nossa civiliza-
ção. A maior parte das culturas teve grande necessidade da imagem dos bárba-
ros (ou dos primitivos), pertencentes a um lugar distante exótico ou presentes
para além de suas fronteiras, a fim de se definirem elas mesmas como civiliza-
ções. O Ocidente não é exceção, mas ele apresenta também essa particuhuida-
de de ter uma época bárbara alojada no seio de sua própria história. Em todo
caso, o alhures ou o antes bárbaro são decisivos para constituir, por contraste, a
imagem de um aqui e agora civilizado. Interrogar-se sobre as noções de barbá-
rie c de civilização e pôr em dúvida a possibilidade de julgar as sociedades
humanas em função de tal oposição: é também a isso que nos convida a histó-
ria da Idade Média.
Mas que sentido existe em estudar o Ocidente medieval a partir das terras ame-
ricanas e, em particular, mexicanas? Por que se interessar, a partir do México,
por uma sociedade tão longínqua no tempo e no espaço? A data de 1492, ponto
de articulação convencional entre Idade IVIédia e Tempos Modernos, fornece
um primeiro elemento de resposta. Este ano é marcado por uma notável cons-
telação de eventos de primeira importância para a Península Ibérica e para o
Ocidente: além da chegada de Colombo às ilhas das Caraíbas, o glorioso fim do
cerco de Granada levado a cabo por Fernando de Aragão e Isabel. a Católica, a
26 jérôme llt~schet
expulsão dos judeus dos reinos de Aragão e Castela, sem falar na publicação da
primeira gramática de uma língua vernácula, a Gramática castellana, de Antônio
de Nebrija. A conjunção desses eventos em alguns meses não se deve ao acaso,
mas corresponde, ao contrário, a um encadeamento lógico, bem sublinhado por
Bernard Vincent. Interessa-nos, particularmente, aqui, o laço entre o fim da
Reconquista e o início da aventura marítima lançada em direção ao Oeste, que
rapidamente conduzirá à Conquista. Os dois fatos - assim como a expulsão
dos judeus - participam de um mesmo projeto de consolidação da unidade
cristã, da qual os Reis Católicos pretendem, entre os soberanos ocidentais, ser
os campeões. Igualmente, uma vez eliminada a dominação muçulmana na
Península Ibérica e afirmada a unidade cristã desta, era lógico que Fernando e
Isabel pusessem um fim à longa espera de Colombo e aceitassem, finalmen-
te, apoiar seu empreendimento, na esperança de projetar essa unidade para
além dos territórios recentemente conquistados, para a maior glória de Deus
e de seus servidores reais. Nesse sentido, Reconquista e Conquista revestem-
se de uma profunda unidade e participam de um mesmo processo de unifica-
ção e de expansão da cristandade. Em 1552, o cronista López de Gómara o
diz, de resto, com uma extrema clareza: "Desde que foi terminada a conquis-
ta sobre os mouros [... ] começou a conquista das Índias, de modo que os espa-
nhóis estiveram sempre em luta contra os infiéis e os inimigos da fé''.
Outra marca de continuidade: os conquistadores das terras americanas
adotam como protetor e santo padroeiro Santiago Matamoros, como no tempo
da Reconquista contra os muçulmanos. Pouco importa que não exista nenhum
"mouro" por aqui; basta que os "índios" façam suas vezes, de onde a perpetua-
ção, até nossos dias, da dança dos mouros e dos cristãos, praticada na Espanha
desde o século XII. De resto, a cristianização dos "índios" prolonga e reproduz a dos
mouros de Granada, seu prelúdio imediato. É verdade que a Conquista deve ser
compreendida em decorrência da luta simultânea contra o islã e, particularmen-
te, contra o perigo otomano, que preocupa então os soberanos hispânicos ainda
mais do que as Índias (até que eles percebam em suas riquezas uma útil ajuda
para fazer face a ofensiva turca [Hernán 'Iàboada]). No entanto, mesmo se a refe-
rência antiislâmica da Conquista é tanto presente como passado, pode-se enfa-
tizar que existe uma forte continuidade entre um fenômeno tipicamente medie-
val como a Reconquista e um outro fato, a via~J;em para o Oeste c a conquista
americana, que é geralmente considerada profundamente moderna. Nesse sen-
tido, 1492 não é a linha divisória entre duas épocas tão estranhas uma à outra,
como o dia l' a noite, mas sim o ponto de junção de dois momentos históricos
dotados de uma profunda unidade. É verdade que a Conquista não{> uma rcpro-
dw;ão idêntica da Reconquista, mas ela é seu inegável prolongamento. É preciso,
portanto, reconhecer que o recorte tradicionalmente admitido entre Idade Médi:
e 'lempos Modernos deve ser amplamente repensado e que a Conquista mer-
gulha suas raízes na história medieval do Ocidente.
Os espanhóis que tomam pé no continente americano são impregnados d 1
uma visão de mundo c de valores medievais. Os primeiros dentre eles ignorare,
que atingiram um mundo desconhecido. Cristóvão Colombo encontra o que nã
procurava e não sabe que o que ele encontra não é o que procurava. Pode-se, ~.
verdade, nuançar a oposição tradicional entre Colombo, descobridor malgrad-
ele mesmo, e Vespúcio, verdadeiro "inventor" do continente americano, notamk
que o primeiro, quando de sua terceira viagem, evoca uma terra muito grande "d~.
qual ninguém jamais teve conhecimento". Permanece o fato, no entanto, de qu,\
ele morre sem renunciar a acreditar que atingira seu objetivo, quer dil.l'r, as ter-
ras que pertencem ao que nós chamamos Ásia. Colombo não tem nada de un1
moderno. E é preciso, se ainda há necessidade disso, dissipar um eventual mal·
entendido: seu gênio não está absolutamente no fato de ter defendido a esferici-
dade da Terra, já admitida na Antiguidade e, depois, por uma hoa metade dos tcú1
logos medievais, como Alberto, o Grande, ou Pedro de Ailly. O verdadeiro mérit••
de Colombo, além de seus talentos de navegador e de organizador, está ligado ,.
acumulação de uma série de erros de cálculo. O debate suscitado pelo projeto d,_
Colombo. ao longo dos anos que precederam sua aprovação, não diz respeito ao
caráter esférico ou não da Terra, mas à avaliação da distância marítima a ser perr;
corrida, a partir da Europa, para atingir o Japão pelo Oeste e, por conseqüêncié~
ao caráter factível da rota ocidental para as Índias. É por que Colombo estima 1
na base de uma interpretação errônea dos dados incompletos disponíveis em sei-
tempo, que o limite terrestre ocidental e as terras do oriente extremo são separa-
dos somente por "um mar estreito", que tem a audácia de se lançar ao mat-
Finalmente, a despeito das conseqüências imprevistas de sua aventura, Colomhu
é um viajante medieval, inspirado por Marco Polo, mercador veneziano do sécu.-
lo XIII, e por Pedro de Ailly, cardeal e teólogo escolástico da virada do século Xlt,
para o século XV. Fundando o essencial de suas teorias sobre a lmaRo mundi desttfr
último, que não é uma obra particularmente inovadora, ele se obstina em qucreo
encontrar o Grande Khan, a fim de concretizar as esperanças de conversão dcio
xadas por Marco Polo, e em procurar o acesso para o Japão, que ele chama d~
Cipango, porque este autor enfatiza que, lá, as casas são feitas de ouro. 0
1\ CIVII.I/..1~:..\Il l'l'l'l>,.\1. 3/
o século XVI colonial. Ao longo das obras, pergunta-se se este ou aquele persona-
gem é medieval ou moderno: Colomho, medieval ou moderno? Cortés, nobre feu-
dal ou humanista? Bartolomeu de Las Casas, precursor da modcrnidadt• dos direi-
tos do homem ou herdeiro tardio da escolástica tomista? Só um pouco menos
artificiais são as tentativas para separar as duas facetas de uma mesma personali-
dade, uma moderna e outra medieval. Assim, Colombo poderá ser julgado moder-
no por sua audácia de aventureiro, mas medieval por seu misticismo. Como se uma
não fosse intimamente ligada à outra, e como se o misticismo católico, com 'Ieresa
de Ávila e muitos outros, não alcançasse os cumes durante a época dita moderna!
Todas essas interrogações e hipóteses repousam sobre uma visão convencional
(e largamente pejorativa) da Idade Média, e supõem que exista uma ruptura tão
radical entre a Idade Média e o Renascimento que eles constituiriam duas catego-
rias exclusivas, e que, mesmo se renunciamos a uma data fronteiriça única, conti-
nue possível classificar cada ser ou cada fato conforme essa alternativa. Mas se se
admite que essa visão deva ser criticada, chega-se à idéia de que a maior parte das
leituras da Conquista repousa sobre uma visão dramaticamente deformada da
Idade Média e sobre uma idéia insustentável da ruptura entre esta e os 'lcmpos
Modernos. Pode-se, ao menos, sugerir que é duvidoso que se chegue a uma leitu-
ra satisfatória da Conquista enquanto não se esteja livre da visão convencional do
milênio medieval como um contraponto que valoriza a modernidade.
Sejam quais forem as reservas suscitadas pela análise de Luis Weckmann
e sua noção de "herencia medieval", pode-se retomar uma parte de sua tese. Com
a Conquista, é o mundo medieval que toma pé deste lado do Atlântico, de modo
que é apenas um pouco exagerado afirmar que a Idade Média constitui a meta-
de das raízes da história do México. Como já foi dito, não se trata exatamente de
registrar uma herança recebida, cujos elementos poderiam ser enumerados em
uma interminável lista. Uma visão histórica mais global deveria, inevitavelmente,
reconhecer o peso de uma dominação colonial surgida da dinâmica ocidental, que
conduz à transferência e à reprodução de instituições c de mentalidades euro-
péias, mas sem ignorar que uma realidade original, irredutível a uma repetição
idêntica, toma forma nas colônias do Novo Mundo. Tratar-se-ia, então- mas tal
objetivo transborda as possibilidades do presente livro - , de articular de manei-
ra global sociedade medieval e sociedade colonial e de captar a dinâmica históri-
ca que as une, em um processo em que se misturam reprodução c adaptação,
dependência e especificidades, dominação e criação. É nesse sentido que não é
inútil, se quisermos compreender minimamente a formação histórica do país que
hoje é o México, ter alguma idéia sobre o que foi a civilização do Ocidente medie-
val - e não somente da Espanha medieval, como se pensa geralmente, pois,
mesmo que cada reino ou cada região européia apresentasse importantes parti-
32 }<'rrime Ba.,chel
cularidades, a cristandade medieval constituía uma entidade unitária e larga-
mente homogênea, que não pode ser compreendida sem que se a considere em
seu conjunto. Aplicar à Idade Média o quadro de uma história nacional, herdada
do século XIX, significa privar-se de compreender sua lógica profunda. A histó-
ria do México apresenta, é verdade, certos laços particularmente estreitos com a
da Espanha; mas, através desta, é na dinâmica de conjunto da cristandade medie-
val que aquela mergulha a parte mais ignorada e a mais rejeitada de suas raízes.
Estudar a Idade Média européia é, então, voltar o olhar para a civilização
que está na origem da conquista da América. Esta não é o resultado de uma
sociedade que, repentinamente, rompeu com a estagnação medieval e foi brus-
camente iluminada pela claridade do Renascimento. Se a Europa se lança nessa
aventura, que é somente a primeira etapa de um processo mais geral que con-
duz, sob formas variadas, à dominação ocidental de todo o planeta, não é sob o
efeito do toque da varinha mágica de um Renascimento autoproclamado. Defen-
der-se-á, aqui, a idéia de que a conquista e a colonização não são ações de uma
sociedade européia liberada do obscurantismo e do imobilismo medievais e já
inseridas na modernidade. São muito mais o resultado de uma dinâmica de
crescimento e de expansão, de uma lenta acumulação de progressos técnicos e
intelectuais, próprios aos séculos medievais e dos quais o momento mais inten-
so toma forma por volta do ano mil. Também nisso pode ajudar a história da
Idade Média: a compreender como a Europa encontrou a força e a energia para
se engajar na conquista do novo continente e depois, finalmente, do mundo
inteiro, a tal ponto que o Ocidente constitua ainda hoje, através de seu apêndi-
ce norte-americano, a potência que domina a humanidade. É por isso que o pre-
sente livro terá como eixo principal a análise dessa dinâmica de expansão e de
dominação que se afirma pouco a pouco na Europa medieval e que a conduz,
finalmente, até as terras americanas. Pretende-se compreender o choque vio-
lento entre a Antiguidade indígena e o Ocidente medieval, que é uma parte
determinante da história do México.
1\ C I V I I 1/. •I ~· .\ o I· I. LI I H I. 33
cuja di~nidade é, doravantc, concentrada unicamente pelo soberano bizantino.
Além disso, o declínio do Império do Ocidente era, havia muito tempo, um fato
consumado, do mesmo modo que a instalação progressiva dos povos ~crmâni
cos sobre seus territórios, inclusive até Roma, com freqüência abandonada em
proveito de outras capitais, c já ocupada brevemente, em 41 O, pelo visigodo
Alarico e suas tropas. Apesar de tudo, 476 é uma referência cômoda, que marca,
ao termo de uma longa história, o fim de uma capital e o desaparecimento do
Império Romano do Ocidente. No que se refere ao fim da Idade IVIédia, o r(•cur-
so a uma data-limite é menos unânime. Al~uns retêm 1453, quando o Império
Romano do Oriente, depois de ter sobrevivido um milênio à sua contrapartida
ocidental, vê Constantinopla e os ma~ros territórios que ela ainda controlava
caírem nas mãos dos turcos otomanos. Mas é a data de 1492 que será privile-
giada aqui, pois ela se reveste de uma importância hem maior, tanto para a his-
tória da Europa Ocidental (cuja unidade e "pureza" são coroadas pela tomada
de Granada e pela expulsão dos judeus dos reinos hispânicos) como para a his-
tória do continente americano e do mundo inteiro.
Na verdade, as datas retidas importam pouco, pois toda periodização é uma
convenção artificial, em parte arbitrária, e enganadora se lhe são conferidas
mais virtudes do que ela pode oferecer. Reter-se-á apenas que a idéia tradicio-
nal da Idade Média refere-se a esse milênio de história européia, que se esten-
de do século V ao século XV. Ora, seria difícil, e pouco conforme à experiência
do saber histórico, pensar que mil anos de história possam constituir uma época
homogênea. Falar da Idade Média é, então, um procedimento redutor c peri~o
so, se permitirmos que se entenda por esta expressão tratar-se de uma época
igual a si mesma desde seu início até seu fim e, então, imóvel. É justamente
para valorizar o contrário - quer dizer, a idéia de uma intensa dinâmica de
transformação social- que este livro gostaria de se empenhar. Nessa ótica, não
é inútil recorrer a uma periodização interna da Idade Média, apesar de todas as
precauções requeridas por este procedimento, que seria ainda necessário repe-
tir. A periodização interna da Idade Média é mais delicada do que a preceden-
te, pois os usos variam fortemente segundo os países ocidentais e podem facil-
mente levar a confusões e qüiproquós terminológicos. Para não confundir
inutilmente o leitor, serão evocadas somente duas opções. Alguns (especialmen-
te na Itália e na Espanha) distinguem uma "Alta Idade IVIédia", que se estende
do século V ao século X, e, depois, uma "Baixa Idade Média", do século XI ao
século XV. Essa divisão tem a aparente vanta~em da simetria: duas metades
i~uais, s111paradas pela data fetiche do ano mil. Entretanto, será preferível recor-
rer, aqui, a uma divisão tripartite, com uma Alta Idade Média (séculos V a x),
seguida da Idade Média Central, época de apogeu e de dinamismo máximo
34 }érôme Baschet
(séculos XI a XIII), enquanto os séculos XIV e XV, mais sombrios, marcados pela
peste negra, pelas crises e dúvidas, podem ser qualificados de Baixa Idade
Média (ter-se-á o cuidado de evitar a confusão com as tradições inglesa e alemã,
que nomeiam Alta Idade Média - em referência à elevação de seus méritos e
não ao seu distanciamento temporal - o que se chama, aqui, Idade Média
Central). Trata-se, então, de três épocas extremamente diferentes umas das
outras, e a comparação de algumas imagens emblemáticas - duas para cada
subperíodo - permitirá, talvez, fazer sentir as profundas transformações c as
contradições de um milênio que não tem nada de estático e que não se pode-
ria, em nenhum caso, resumir em uma só palavra (figuras I a 6, a seguir).
As duas periodizações evocadas têm em comum a importância que ambas
conferem ao ano mil como limite entre a Alta Idade Média e os séculos seguin-
tes. Com efeito, esse momento reveste-se de uma importância considerável, pois
ele marca um ponto de articulação, uma reversão de tendência. Passa-se, então,
de uma época desigual -que acumula, de início, crises e recuos, e cujos ganhos
pacientemente acumulados levam somente a um desenvolvimento pouco visível
- para um período de franca expansão, de crescimento rápido e de dinamismo
criador. Que o ano mil não poderia constituir, sozinho, o momento preciso dessa
mudança de tendência é algo que vai por si mesmo. Um fenômeno de tal impor-
tância só pode ser inscrito em uma perspectiva de duração. De fato, ele foi len-
tamente preparado, pelas bases institucionais criadas no momento carolíngio
e pela silenciosa acumulação de forças ao longo desse século X, cuja reputação é
tão execrável que ele, durante muito tempo, foi chamado de "século de ferro".
No mais, a reversão de tendência só ganha corpo, no Ocidente, pouco a pouco,
e, em muitos aspectos, claramente depois do ano mil. Não se poderia, então,
conferir uma data precisa a essa agitada alteração c o recurso ao ano mil. como
símbolo desse fenômeno, vale somente o que valem todas as periodizações.
Assim, quando se ceder a essa facilidade de linguagem, dever-se-á compreen-
der que se evoca um processo que toma forma ao longo dos séculos X c XI.
Seja qual for a maneira como se define o limiar que as separa, o importante
é essa inversão de tendência, que dá sentido à oposição entre Alta Idade Média e
Idade i\lédia Central. A confrontação dos dois mapas, feitos a partir de Roberto
S. López, permite ter uma idéia do contraste entre as duas épocas (ilustrações I
e 11). O primeiro, que evoca os séculos IV a x, mostra uma Europa que padece,
uma Europa entregue às migrações de numerosos povos vindos do l'Xtcrior, prin-
cipalmente germânicos e árabes. Enquanto as flechas apontam, nesse momento,
para o coração da Europa Ocidental, na segunda carta, relativa aos séculos XI a
XIV, das se invertem. A Europa Ocidental torna-se, então, conquistadora; em vez
de ceder terrmo, ela avança de um triplo ponto de vista, militar (cruzadas,
projt'lo do rt'II,J..,t ÍIIH'Illllt.ll'tlhllgio. r\,·.,1.1 ll;Íglllôl pi111.uL. t'IIIIHII'jliiLI, co1 IIIIIH'IIal. ot'\,111~:1'11'.,1.1 .1p.11l'tT l'tllllo
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111l'11[rl . [t;r\.1 o...t' ti(' l1111t·o...lrlt\o1tl\t'110...II p.r1.1t'\l'l111lll" o1 \t 1"tl.1tlt· d,1...,1ortll.r<. t'lh .1111.HI.t" tl.r 111t'11'>.1~~~·111 d1\I1LI
-1. A .'\ssun\·:io tia Virg,c.·n1 em um sahc.~rio do '\Jorll· da ln~latc.·rra. c.·. 1170-7=i (.sah«.'·rio c..lc..· York. (;i:J!o.J.?,O\·\,
Univl'rsilv I ihrarv. llun1<·r U. {.2 .. n. 1'1\·. ).
l·~sLt t1tini-.tlur,t .,f~Tt"n· umo1 l'l'jll"<'"t'JtloH,·:to t'\<.·qwion.d da .\..,~tiiH,·."ut d<' 1\l.tri,L .q>c··~ lt't ..,ido dc·po,ll.ult, n.t
111111h.t pt'loo.; <tpt)~toJo..,, t·· o corpfl IIHIJ"Io d.t \'irgt'lll que oo.; illljo .... <"lt'\ ;un .ro n"•tt. tl.J prt·,t·n~·a d(' ( ·n..,lo (.tn P·'"'o
qul' .1 op~·:·to dotttrinalt· fi~tlfali\.t dt•,tíno~da ,, triunLtr lllll'lr;t \laria rc..,sll"l·it.tda. dt'\,tlldll '\t' tlit glori.t dl' '\t'll
rorpn ,·in11. No m;ti .... l''"' ohr.t t·· l'\l'111pLtr d.t l<igiv.t do~ planittulc t.' da ortJ.tlllt'IILtlito~\·.to que <".tr.tt"tt•rita :1
miniatur:t rom:11Jica. C) primt·irn ""'IHT!o tr.ultu o.;t· pt·Lt "'"rprt't'tlllt·nh· frontalttbdt· do t.ula\t'l" d.t \"'11Vt'lll t' dt•
~t.'ll slld;írio ~tptt' 'l' cotHhinil. tod.t\ i.t. cu111 lllllil h.ihil 'õiiJH'rpo . . i~··lo do~ pLIItn' . ..,_.,J,tqu,..,to-. dt· Ira ... para .t fn·n
ll', IHI nu·..,r11o t 0111 11111 t·t"cito dt· <'lllrt·l.t~illllt'lllo. p•n t'\t'IIIJllo, qu.nulo ·'' lltao' do, .11qo' P·'"""'"ll di.lllh' do
'll<l.írio. qlll', p•11 "'''" \"l'/, P·''"" 'ohn· Sl'IIS hr,tt.,;o,·· () "'''glllldo pritu·tpio lllilllil"t·..,t~t "<'por lllllil ,!.!<'OII!t'lri;.l~·;'to
muito .tprnllllld.ul.t. h;t..,l.lllll' ~t'lhtn·l 11.1 ..,,·rit• d<" 'l'llltt"lrt uJo..., fntm.ulo.., Jll'l.t hotd., d,' '"d.llto t' I til di..,JIO"'t~·:to
rl'gtdat ,. l"l'JH'Iilt\a du.., ;llljfl' t· dt• '\llil" .t~as. l·~..,h· dt"'l"'"""o prlldllt 11111.1 '''IWl"h' tlt· ltlillldorl.t <jlll' t'\,dla o
l'orpo111nrto dt· \1.trt.tt' ..,llllllnh.tn pri\ tlt;gio t'\n'Jll"ÍIIIl.tl dt· ~11a ('ll'\.t~·.to n·lt·,h·. \1,·-.ttlll ' l ' .1 ima~t·m d..,a nm
\"l'llnT .... ohw 11 c.tr.tlt·r t orpor.tl da ·\..,..,tm~·;-\11. ,; llll'IHI' pur <.,llii"' ,·irludc, t'tll·:ll·lliltl:l, lJIIt' o di\ i no,: po,to t'lll
t'\ idi·nl'i.t. illJIIÍ. do <JIII' por 11111.1 orn:llllt'lllali;a~·;tu ..,llgl'rtndo 11111a outra ordt·nt dt· rt'.tlul.ult·.
Ci. Uma ima~em alornwntada do1 mort«.': o ja11go dl' 1-'rancisnJ dl· la Sarn11. \ itimado por '''~"Pt'llh'' t' ... a pu ....
"L'II idc.d de \id;J !t•rrt·strc O:L·;J\,dl'iros em.tnnadllr<lt' ... q.?,tH.JrHio a co..,pad.t. rei~ t' r;Jin!J.t, t'lll \t'...,lt'" tk .1p.11.t\11
.1 , . ...,,.tdtllr.t ftllll'r.Írla do funda ld.tdt· .\lt·,lJ,J..,Iilunl'lt' ,...., cmpo~ 111r1rtrJ~ .to.., t.ft·Jto..., dt'\a...,t;ulort·..., d11 lt'ltlpo ,\J,,
.... l.'l'ldtt \ \ , t i (l',lll~i lOiliO O do l'.rldt•,d l.t ( rl'.lllgc·, l'lll .\\Ígllllll oftTl't'l' ."1 lllnii\,J\':10 dn . . \ l\0" ll l .rd.t\t I
dl'"l',ll'll,Hin. illl' 1\ll''-lllll I),JJ'l'i,dllll'lllt' dt·rompo...,lt• .\qut. 11111 polllll lll.li" t't'do. ti "~'IIIIOr dt'l'lllllnt·ol1...,t'l\.l 11111.1
ptt..,!JJI',I dt• I"Cf)OII ... II (' lllll,ll·.dH•It•lr.l \.11 h('lll fll'lllt'Jd,tt'OIIlt11Hidt.ltk "l'll'- fiiiH'I'.II" ..... II.Jt,ll11t' 1\!1.1 .IIJIII.tc·...,!t
111L1l'1.1. 111a~ I•Í ,. prt'"d dt· \tTillt':-. t' "'Jil•l~ qlh. dt· llltJdll tlliJito ... ugc ... ti\11, ol'u-.cam .1 lcllll'l.lllt.• l de· "'"• l.11 c
\lt;lll tJj..,..,o, L· difít·iltldtt pt'lhill' 11.1.., Ílli.J~l'll" tio.., l't!"ligo~ illl't·m;Jis. cpw 1111)..,\l'.llll l'ntn frt'lf'ÍI.'Ih i.1 .1 111\tlllil<.,t
lt'IHio 11.., "l'Ío,t· •1.., ,·1rg:ln..., ~t·tll!.tl:-. ltlO did1" pl'lo..,llH'o..,llJtJ.., ,JIIllll.li ..... -..;,.,I arll' lll.tt.dH,l c .llfllt'l.l dl' 11111.1 quu.t
11\an·;td.l pela IW"ilt' ,. pt·l"" .tllgll..,ll<l..., t'\,1\ ~·rh.HI.Is tb rnort1', t'l.1 t·· t.llllhclll o t'i'cii1J dt· 11111.1 .lt 1'11\llill.·lll d11 til'·
t'lll''-O IIIOI'id do.., tlt··rigo ..... que prnl'lll'illll lt~<~l' pt·n-.atlh'll\11 ...,IIJJn· .1 mnrlt'. oh...,, ...,..,.lo du pt'l .ul11. IJII"t .. l d.t .... d\.1
~.• 111 fl<'"~u.d I' .ltkqu.u,:.ultlct.., t'tllllllt•rl,llllt'llltl..., 't't'l.ll...,
h.(), l'sposo' :\rnolfini. pintado~ t.'lll Brugc.·~ 1•or Jan \illl l:~ck. 14.~4 (1\alional (,all(.'r~. I ondn·~).
( ;,IJ\dlllll .-\nudl ir1r. IIH'I"l .Hior th· l.trlt .• l lll~l.d.tdo t'lll t:nl)..!,l'". t'llt.lo a l·lwdrt·'· .• p.nt'Lt' l 11111
pnncip.rlnd.ulc dt·
~11.1 t""P'"·'· ( :Jo\a1111.1l 1"11.11111, dt· dor111ir l'lq.!,alllt', 111.1~ ..,l.lll lu\n...,llpt·rlluo 1_,,..,..,111\tlllllll .... 11.1.., \t'"
t'lll "l'll tpr;ll·lo
ll':-.l"orr.ul.r..,t·onl p•·lt· ... ~ 1~ .• prnluro~ fl.rlllt'llg:l d.t t'jHIL .. I. ;1 "l'llH'Ih.nu,·;l do .... tl"il\"1)' mdi, idr1:11.., •· olr.ti.IIIH'IIIo t'..,CIII
pulo..,o do dl'l.rllw do.., ol,wto .... tnllll)ill.llll -.t· t"lllll 11111 ... unholr..,rnflnt·Jdto. rmprq.!ll.ulo dt' \irlolt'" • tl..,t.Jn.., ·\ rnnl
dnr.r do t'"lwlho t' orrr.ul.1 .. upn. dt· dt'/ tt'll.l..,, lllrllto pnllt'll \ ,...,,, .•. ,..,, d.1 l'.ti\.10 dl' ( :, '"''" () 1 o~tlu11rc1 ,. 11111 ""nl,olo
d.1 l"rdt·lrd.rdt· t onprg.d t" .r llllll .. l t .tiHit·ra .tt , ...,,t t'. "t'lll drl\ 1d.r. .1 t illlllt·r.t do t :l..,,lllh'lll•• qrw .r, ...,,,.,..,,! lt'\,J\,1 .ttt· o
qu.rrlo t' qllt' dt'\ 1.1 ..,t·r ·if'.t.~.ul.r tjll.tlldo d.1 t Oll..,lllll.I~.. Jo .!.1 tllllao. "'q..!,tiiHio .r 1111l"t ['r t'l.u.,.ltl • \;,..,..,lt .r tlt' I 1"\\ 111
P.mof,l,,, 0 qu.rdn 1 1 ollll'lll•ll .r 11 t .r-.;llllt'lllo do . . .-\rnolf1111, t'lt· 't'' i.r .rlt· llll'"IIH' corno", c·r 1rlrt .ui•• qtw 11 .ltllt'lll i
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d.iJilt'lllt· a p.11111 dn l.tlo d,· qrw o p1111or llóltl n·pn·-..t'lll.t .r 111111,.111 d.1-. d11.1.., 111.111..., dl!t'll.l'· elo-. , ...,JHt...,o-.. ~·o11111 o
pH'Sl"l'('\t' o 1·o-.l1111lt' lll;rlllllHtlll.ll. ~·.t·r.riiiH'IIIt' n·..,pt·ti.Jtlntwb ll"tlli''~~r.ll"l.l. \.llltt-..lt.tl•.riiHt"I"'"'''I"!Oit'..,l)llt'lllt'lll
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dru. t"CIII..,Irtllljll "I'}'.IIIHIII ,,.., lq.',t·l" 1'-.(lrl.r-.. d.t pt·t-..pnll\,r. Jlillt'l"l' ll'jll"lll ,J 1'\[ll'llt'llt"l.l dt" J:llllll'llc·-.t·hr. pntll"tl
illilt'I"ÍUI, rlllt.t \C'/ '1111" 11 jltlll!O dt· 1"11g.1 "I' t'lllll!ill".l !llt't l..,;llllt'lllt" 1\111 1'111111 do t'"JI..Iho. orult- 11 Jlii!ICII" .tpan•u·.
t"OIIII"rdlndu. ·'"'"'""· t 11111 o ptHIIH dt· \1-.1.1 tjlll' dt·u· ..,,., Otllp.rdu pelo ~"'Jit'l"!.Hior do qu.tdt"
D
D Zona de florestas /...-;.-r :::>- :· Invasões dos séculos
.:;::::--~..:::_...r IVeV
O Zona de estepes
44 Jérôme llaschet
ele constitui ainda menos uma ruptura, visto que a idéia de renascimento é con-
substanciai à própria Idade Média. Se se fala de renascimento carolín~io, de renas-
cimento do século XII e, depois, dos séculos XV e XVI, e se, ainda no fim do século
XVIII, os revolucionários têm necessidade do mito do retorno à Anti~uidade para
romper com a ordem antiga, é porque a incapacidade de pensar a novidade de
outro modo que um retorno a um passado glorioso é uma das marcas de continui-
dade da longa Idade Média (com a qual a modernidade começará a romper na vira-
da do século XVIII para o século XIX, dando nascimento à idéia moderna da história,
como mostrou Reinhart Koselleck). "Longe de marcar o fim da Idade Média, o
Renascimento - os Renascimentos - é um fenômeno característico de um longo
período medieval, de uma Idade Média sempre em busca de uma autoridade no
passado, de uma idade do ouro que ficou para trás'' (Jacques Le Goff). É inútil
acrescentar que, em tal quadro teórico, a questão "medieval ou renascentista?",
"medieval ou moderno?" perde toda pertinência. Longe de toda análise em termos
de categorias exclusivas, trata-se doravante de dar conta das evoluções e das trans-
formações no seio de uma coerência de muito longa duração.
É preciso, enfim, dissipar um possível menosprezo. Se a longa Idade Média
se aproxima de nós cronologicamente (em três séculos, em relação à sua versão
tradicional), ela não é menos fundamentalmente separada de nosso presente.
O mal-entendido é ainda mais ameaçador pelo fato de ter havido um esforço em
defender uma Idade Média próxima - muito mais próxima do que crê a opi-
nião comum - e tornada parte integrante da história do México. Entretanto,
a despeito de sua contribuição fundamental ao desenvolvimento do Ocidente e à
sua dominação sobre a América e o mundo, a (longa) Idade Média deve ser con-
siderada um universo oposto ao nosso: mundo da tradição anterior à moderni-
dade, mundo rural anterior à industrialização, mundo da todo-poderosa Igreja
anterior à laicização, mundo da fragmentação feudal anterior ao triunfo do
Estado, mundo de dependências interpessoais anterior ao assalariamento. Em
resumo, a Idade Média é para nós um antimundo, anterior ao reinado do mer-
cado. Essas rupturas não devem ser creditadas ao Renascimento, mas, no essen-
cial, à Revolução Industrial e à formação do sistema capitalista. Aí está a barrei-
ra histórica decisiva, que faz da Idade Média um mundo longínquo, um tempo
de antes, no qual tudo se torna opaco para nós. É por isso que o estudo da Idade
i\ilédia é uma experiência de alteridade, que nos obriga a nos desprendermos de
nós mesmos, a abandonar nossas evidências c a cn~ajar um paciente trabalho
para captar um mundo do qual mesmo os aspectos mais familiares dizem res-
peito a uma ló~ica que se tornou estranha para nós.
A organização do presente livro é ditada pelas questões que acabaram de Sl'r
apresentadas. Se, para abordá-las, é indispensável dispor de uma informa~·•io
suficiente sobre a Europa medieval, não se poderia pretender propor, aqui, uma
síntese completa dos conhecimentos atuais, e certos aspectos tiveram de ser
negligenciados ou minimizados. Era inevitável fazer escolhas, c teria sido des-
mesurado estudar, em sua totalidade, a longa Idade Média da qual se acaba de
falar. Não somente se retornou, nas páginas que seguem, aos limites tradicio-
nais desse período, como também se enfatizou a Idade Média Central. julgan-
do que se tratava do momento decisivo de afirmação do desenvolvimenlo Ol'i-
dental e que, a despeito dos laços mais imediatos com a Baixa Idade l\1{·dia, a
preocupação com os motores fundamentais da dinâmica ocidental e dl' suas
conseqüências coloniais convidava a concentrar a atenção sobre esse monwnto.
A obra é dividida em duas partes, entre as quais existe uma forte dualidade.
A primeira, sem dúvida mais convencional, esforça-se em introduzir a um conlw-
cimento elementar da Idade Média e de sintetizar as informações relativas ao
estabelecimento e à dinâmica da sociedade medieval. Entre um primeiro capítu-
lo consagrado à Alta Idade Média e um último que se esforça em fazer a jun~·üo
entre a Europa medieval e a América colonial, suas duas palavras-chave são "fl'll-
dalismo" e "Igreja". Essa primeira parte não esconde suas orientações historiogrií-
ficas: a preocupação com a organização social (que inclui essencialml•ntl' a
Igreja) prepondera sobre o relato factual dos conflitos entre os poderes; os qua-
dros "nacionais" são pouco mencionados e a história da formação das entidades
políticas, monárquicas ou outras, é evocada apenas sumariamente. A segunda
parte esforça-se em avançar mais profundamente na compreensão das engrena-
gens da sociedade feudal: sem dúvida, ela exige mais do leitor. làlvez sejam nota-
das, nela, as impressões da história dita das mentalidades, mas gostaria, sobretu-
do, de sublinhar que se trata de abordar as estruturas fundamentais da sociedade
medieval através de uma série de temas transversais: o tempo, o espaço, o siste-
ma moral, a pessoa humana, o parentesco, a imagem. A questão é compreender
como são organizados e pensados o universo e a sociedade, evitando as distinções
que nos são habituais (economia-sociedade-política-religião) e esforçando-
se para ligar, tão estreitamente quanto possível, a organização material da vida
dos homens e as representações ideais que lhe dão coerência e vitalidade. *
,. Ao longo do texto são indicados os autores que serviram mais diretamente de inspiração. mas as
referências bibliográficas foram remetidas para o final do volume.
46 Jér6me Baschet
PRIMEIRA PARTE
FORMAÇÃO E DESENVOLVIMENTO
DA CRISTANDADE FEUDAL
CAPÍTULO
Invasões bárbaras?
50 ]érôme Baschet
dos na Itália (com Teodorico, que reina a partir de 493), dos burgúndios no
Leste da Gália, dos francos ao norte desta e na Baixa Renânia e, finalmente, a
partir de 570, os anglos e os saxões, que estabelecem na Grã-Bretanha (com
exceção dos territórios da Escócia, da Irlanda e do País de Gales, que permane-
cem celtas) os numerosos reinos que se dilacerarão no decorrer da Alta Idade
Média (Kent, Wessex, Essex, Ânglia Oriental, Mercia, Northumbria). Sem con-
seguir, de qualquer modo, inverter a fragmentação que caracteriza então o
Ocidente, um fenômeno notável desse período é o aumento do poderio dos
francos, conduzidos pelos soberanos da dinastia merovíngia, fundada por Clóvis
(t 511) e ilustrada por Clotário (t 561) e Dagoberto (t 639). Os francos conse-
guem, com efeito, expulsar os visigodos da Aquitânia (na batalha de Vouillé, em
507), incorporar os territórios de outros povos, especialmente aquele dos bur-
gúndios, em 534, para finalmente dominar o conjunto da Gália (salvo a Armá-
rica celta). Eles adquirem, assim, uma primazia no seio dos reinos germânicos,
o que reforça ainda mais o peso, já dominante demograficamente, da Gália. Um
pouco mais tarde, no decorrer do século VI, os últimos dos povos germânicos a
chegarem, os lombardos, instalam-se na Itália, contribuindo para arruinar a
reconquista de uma parte do antigo Império do Ocidente, levada a cabo pelo
imperador do Oriente, Justiniano (t 565).
Mesmo após a instalação dos povos germânicos, o Ocidente alto-medieval
continua a ser marcado pela instabilidade do povoamento e pela presença dos
recém-chegados. A expansão muçulmana submerge a Península Ibérica e põe
fim ao reino vis igótico em 711, enquanto bandos armados muçulmanos avançam
até o centro da Gália com a intenção de pilhar Tours, até serem vencidos em
Poitiers, em 732, pelo chefe franco Carlos Martel, o que os obriga a bater em
retirada para além dos Pireneus. Depois, na segunda parte da Alta Idade Média,
é preciso mencionar as incursões tumultuosas dos húngaros, no século X, e,
sobretudo, dos povos escandinavos, também chamados vikings ou normandos
(literalmente "os homens do Norte"). Guerreiros valentes e grandes navegadores,
estes últimos atacam incessantemente as costas da Inglaterra desde o fim do
século VIII e submetem os reinos anglo-saxões ao pagamento de um tributo, até
que o dinamarquês Cnut se imponha como rei de toda a Inglaterra (1016-35).
No continente, os homens do Norte aproveitam-se do enfraquecimento do
Império Carolíngio e, a partir dos anos 840, não se contentam mais em atacar as
regiões costeiras, mas penetram profundamente em todo o oeste dos territórios
francos, evocando suas divindades pagãs e semeando pânico c destruição.
Finalmente, os soberanos carolíngios são obrigados a ceder, e o Tratado de Saint-
Clair-sur-Epte (911) concede aos normandos a região que, no Oeste da França,
A c 1 v 1 1. 1z 11 ~:A o n: u ll A 1. 5I
tem ainda hoje seu nome. Mas o expansionismo dos vikings não pára por aí e, a
partir desta base continental, o duque da Normandia, Guilherme, o Conquis-
tador, se lança sobre a Inglaterra da qual ele se torna rei na seqüência da vitória
obtida em Hastings (1066) sobre Haroldo, que se esforçava para reconstruir um
reino anglo-saxão. Por outro lado, a família normanda dos Hauteville arrisca-se
ainda mais longe, conquistando o Sul da Itália com Roberto Guiscardo, em I 061,
e, depois, a Sicília, em I 062, até que Roger 11, reunindo o conjunto desses terri-
tórios, termine por obter o título de rei da Sicília, da Apúlia e da Calábria, em
1130. Finalmente, os vikings da Escandinávia, sob a condução do legendário
Érico, o Vermelho, implantam-se, a partir do fim do primeiro milênio e por muitos
séculos, nas costas da Groenlândia (que eles já denominam "país verde"). A par-
tir dali, Leif Eriksson e seus homens aventuram-se, no início do século XI, até os
rios do Canadá e, sem dúvida, da Terra Nova, mas são logo expulsos pelos seus
habitantes. Eles foram, assim, os primeiros europeus a pisar em solo americano,
mas sua aventura sem continuidade não teve o menor efeito histórico.
A fusão romano-germânica
52 )érôme Baschet
(Chris Wickham). O desabamento da estrutura fiscal fez do Ocidente, a partir
do meio do século VI, um conjunto de regiões sem relação entre si; e os reinos
germânicos, mesmo quando levam mais longe a conquista, permanecem atrela-
dos a essa profunda regionalização. Eles são incapazes de restaurar o imposto
ou mesmo de exercer um verdadeiro controle sobre seus territórios e sobre as
elites locais. Assim, se os reis germânicos têm uma intensa atividade de codifi-
cação jurídica, redigindo códigos e editos onde se misturam breviários de direi-
to romano e compilações de costumes tradicionais de origem germânica (lei
sálica dos francos, leis de Etelberto, editos de Rotário etc.), esse frenesi jurídi-
co corresponde à ausência de todo o poder real efetivo e toda tentativa séria de
aplicação se revela um imenso fracasso. A força de um rei germânico é essen-
cialmente um poder de fato: protegido por uma corte ligada a ele por um laço
pessoal de fidelidade, ele é um guerreiro inconteste, conduzindo seus homens
à vitória militar e à pilhagem. O processo que confunde a coisa pública com as
possessões privadas do soberano, iniciado desde o século 111, conduziu, no caso
dos reis germânicos, a uma completa confusão. Resulta disso um patrimonialis-
mo do poder que permite, notadamente, recompensar servidores fiéis através da
concessão de um bem público. Em resumo, é impossível considerar Estados os
reinos da Alta Idade Média.
Entretanto, seria um engano crer que o fim do Império signifique a substi-
tuição completa das estruturas sociais e culturais de Roma por um universo
importado, próprio dos povos germânicos. Mais do que isso, constata-se um pro-
cesso de convergência e de mistura do qual as elites romanas locais são, sem
nenhuma dúvida, os atores principais. Elas compreendem que lhes é possível
manter suas posições sem o apoio de Roma, desde que consintam em compor
minimamente com os chefes de guerra germânicos. É claro, custa-lhes negociar
com esses "bárbaros", vestidos de peles de animais e de cabelos longos, que
tudo ignoram dos refinamentos da civilização urbana. Mas o interesse prevale-
ce e os chefes bárbaros recebem sua parte da riqueza romana - terras e escra-
vos - , a ponto de tornarem-se membros eminentes das elites locais. Pouco a
pouco, e inicialmente na Espanha e na Gália, as diferenças entre aristocratas
romanos e chefes germânicos atenuam-se, e com maior intensidade ainda devi-
do aos casamentos que, com freqüência, unem suas linhagens. Assim, opera-se
a unificação das elites, que terminam por partilhar um estilo de vida comum,
cada vez mais militarizado, mas também fundado sobre a propriedade da terra
e o controle das cidades. Essa fusão cultural romano-germânica é um dos tra-
ços fundamentais da Alta Idade Média e foi, sem dúvida, entre os francos que
teve maior êxito, o que é um dos ingredientes de sua expansão. Essa fusão é, de
A CIVII.IZAÇAO I'EUIJAI. 53
resto, precocemente ilustrada pelo selo de Childerico (t 481 ), o pai de Clóvis,
no qual o rei aparece retratado com os longos cabelos do chefe de guerra fran-
co caindo sobre as pregas de uma toga romana (Peter Brown).
54 }érôme Baschet
Junto com o grande comércio, as cidades, não menos emblemáticas da civi-
lização romana, conhecem um profundo declínio. Suas dimensões reduzem-se de
modo considerável: Roma, que deve ter atingido l milhão de habitantes, tem
ainda 200 mil depois de 410, mas somente 50 mil no fim do século VI; para tomar
um outro exemplo, bem mais comum, uma cidade do centro da Gália, como
Clermont, que antes se estendia por duzentos hectares, encerra em estreitas
muralhas um território reduzido a três hectares.~Desde 250, tem início a diminui-
ção do ritmo das construções públicas que faziam as honras das cidades romanas
e que cessam completamente após 400 (com a exceção dos edifícios episcopais).
Os antigos edifícios públicos caem em ruínas e seus materiais são muitas vezes
reutilizados para edificar igrejas ou casas particulares. As elites senatoriais, antes
associadas ao prestígio da capital, voltam-se para os seus domínios (villae),
enquanto as instituições urbanas (como a curia, antiga instância de governo autô-
nomo das cidades) vacilam diante do poder crescente dos bispos. Em suma, as
cidades, e com elas a cultura urbana que compunha o coração da civilização roma-
na, não são mais do que a sombra delas mesmas. Mas, a despeito de seu declínio
considerável, as cidades do Ocidente jamais desaparecem completamente. Pode-
se mesmo dizer que, aproveitando-se da fraqueza do controle exercido pelos reis
germânicos, elas se mantêm como os principais atores políticos no nível local,
durante os séculos VI a VIII (Chris Wickham). Seu papel é, por certo, apagado,
mas, graças à ampla autonomia das elites urbanas e ao desenvolvimento da fun-
ção episcopal, elas conseguem sobreviver à crise final do sistema romano.
Enquanto as cidades declinam, a ruralização constitui um traço essencial
da Alta Idade Média. As desordens já mencionadas são sentidas também nos
campos e os séculos V e VI sãoJCaracterizados por i.Jma crise de produção agríco-
la. Seria, porém, imprudente estender essa conclusão ao conjunto do período
considerado aqui. Ao contrário, apesar da raridade de fontes de informação, os
historiadores acumularam indícios que põem em causa a idéia tradicional de
uma recessão generalizada dos campos durante a Alta Idade Média. Evidente-
mente, a diminuição - de cerca de um terço - do tamanho dos animais de
~
criação entre o Baixo Império e a Alta Idade Média indica o recuo do grande
domínio e o abandono da comercialização do rebanho, em benefício de uma
criação para uso local. Entretanto, constata-se também, durante a Alta Idade
Média, a difusão lenta de certas inovações técnicas (moinho d'água, instrumen-
tal metálico), assim como uma leve expansão das superfícies cultivadas. Trata-
se, é claro, de um primeiro desenvolvimento, limitado e frágil, muitas vezes
interrompido e periodicamente posto em causa por circunstâncias adversas,
mas, em todo caso, fundamental na medida em que ele acumula as forças silen-
ciosas que se afirmarão durante o período seguinte.
56 ]érôme Baschet
de escravos e as guerras incessantes levadas a cabo pelos reinos germamcos,
entre si ou contra as populações anteriormente estabelecidas (os celtas, vítimas
do avanço dos anglo-saxões nas Ilhas Britânicas, são massacrados, condenados ao
exílio na Armórica ou reduzidos à escravidão), asseguram a manutenção de um
m~nancial de novos fornecimentos ao longo dos séculos VI e VIl, do mesmo modo
que, no século IX, as razias carolíngias na Boêmia e na Europa Central. Mas,
enquanto o escravo antigo era um estrangeiro, ignorando a língua de seus senho-
res, não ocorre mais o mesmo com o escravo desse período, com freqüência cap-
turado no decorrer de uma guerra entre vizinhos, o que contribui ainda mais para
reduzir sua dessocialização e a distância que o separa dos homens livres.
Rejeitando as explicações ligadas aos contextos religioso e militar, a historio-
grafia, desde Marc Bloch, insistiu sobre as causas econômicas do declínio da
escravidão: uma vez desaparecido o contexto bastante aberto da economia antiga,
que permitia obter grandes benefícios da produção agrícola, a escravidão deixa de
ser adaptada. Os grandes proprietários se dão conta do custo e do peso da manu-
tenção da mão-de-obra escrava, que é preciso alimentar durante todo o ano, inclu-
sive durante as estações não produtivas. Doravante, revela-se mais eficaz instalá-
la em terrenos situados às margens do domínio, o que lhe permite obter sua
subsistência, em troca de um trabalho realizado nas terras do senhor ou de uma
parte da colheita obtida. Tal é o processo de chasement, já praticado no século 111
e bem atestado entre o século VI e o IX. Ele leva à Formação do grande domínio,
considerado a organização rural clássica da Alta Idade Média e, em particular, da
época carolíngia. Muitas vezes tão extenso como aqueles da Antiguidade (por
vezes, superando 10 mil hectares), ele se caracteriza por uma dualidade entre a
reserva ("terra dominicata"), explorada diretamente pelo senhor (graças à mão-de-
obra servil e ao pesado trabalho que os camponeses vinculados devem realizar em
suas terras, em geral três dias por semana), e os mansos ("mansi"), parcelas onde
estes últimos são instalados e graças às quais eles asseguram sua subsistência.
Modificações importantes devem ser, entretanto, acrescentadas ao esquema
acima. A importância do grande domínio deve ser relativizada. Se ele constitui a
forma de organização que assegura, de modo privilegiado, o poderio dos grupos
dominantes - aristocracia e Igreja - , convém sublinhar a importância, duran-
te a Alta Idade Média, de pequenos camponeses livres, que cultivam terras inde-
pendentes dos grandes domínios, denominadas alódios. Esses homens livres
beneficiavam-se de uma posição privilegiada, particularmente em matéria judi-
ciária, mas sobre eles pesam obrigações, especialmente militares, que são difíceis
de suportar, já que são bastante pobres. É por isso que se enfatizou que eles
deveriam se interessar de perto pelas possibilidades oferecidas pelas inovações
técnicas e por tudo que pudesse aumentar sua produção. Enquanto alguns his-
A CIVILIZ,\~·Ao 1'1-.UI>AL 57
toriadores associam o primeiro desenvolvimento dos campos, a partir do século
VIII, aos grandes domínios, outros se perguntam se ele não foi, antes, obra dos
camponeses alodiais e se estes últimos não constituíam, então, a maioria da
população rural. Em todo caso, a dinâmica atinge os grandes domínios, onde ter-
mina por acentuar o processo de vinculação (chasement) dos antigos escravos, a
descentralização de satélites que dependem do domínio principal, e o enfraque-
cimento do controle sobre os mansos. A dificuldade de organização dos grandes
domínios e os inconvenientes da mão-de-obra escrava foram, certamente, causas
decisivas da decadência da escravidão, mas intervêm não no contexto de reces-
são suposto por Marc Bloch, mas em interação com o relativo desenvolvimento
posto em marcha pelo campesinato alodial.
Críticas posteriores à obra de Marc Bloch sugerem que as causas econômi-
cas não são suficientes. Assim, alguns quiseram sublinhar que o fim da escravi-
dão era a obra dos próprios escravos e de suas lutas (de classe) pela libertação
(Pierre Dockes). Pode-se, com efeito, dar relevo à importância das guerras
bagaudas, 1 revoltas de escravos que explodem no século 111, e, depois, em mea-
dos do século V (assim como a revolta dos escravos das Astúrias, em 770), ou,
ainda, sublinhar que existem várias outras formas de resistência, desde a reti-
cência ante o trabalho ou simplesmente sua sabotagem até a fuga que, no decor-
rer da Alta Idade Média, se faz cada vez mais maciça, suscitando preocupação
crescente das camadas dominantes. Entretanto, tendo em vista a cronologia, se
é difícil atribuir o papel determinante às lutas dos 1dominados, as observações
de Pierre Dockes estimularam a sublinhar o papel das transformações políticas.
Com efeito, a manutenção de um sistema de exploração tão rude como a escra-
vidão supõe a existência de um aparelho de Estado forte, garantindo sua repro-
dução pelas leis que lhe conferem legitimidade ideológica e pela existência de
uma força repressiva- utilizada ou não, mas sempre ameaçadora - , indispen-
sável para garantir a obediência dos dominados. Do mesmo modo, quando
declinou o aparelho do Estado antigo, os proprietários fundiários tiveram cada
vez mais dificuldade em manter sua dominação sobre seus escravos. É verdade
que cada sobressalto do poder político- inclusive, ainda, durante a época caro-
língia - parece propício a uma defesa da escravidão, mas trata-se sempre de
tentativas limitadas e cada vez menos capazes de frear uma evolução cada vez
mais irresistível. Assim, é uma mutação global, ao mesmo tempo econômica,
social e política, que conduz os senhores a transformar grandes domínios, que
haviam se tornado incontroláveis e pouco adaptados às novas realidades, c a
renunciar progressivamente à exploração direta do rebanho humano.
I. Palavra, de origem celta que significa ''combate", "tropa de guerreiros" ou "bandidos". (N. T.)
58 ]érôme Baschet
A cronologia da extinção da escravidão não está menos sujeita à controvérsia.
Pode-se, entretanto, renunciar às teses mais extremas. Assim, a maior parte dos
historiadores marxistas, obnubilados pelos escritos dos clássicos do materialismo
histórico, associa o fim do escravagismo à crise do Império Romano, que se supõe
ter marcado, nos séculos 111 a V, a transição decisiva do modo de produção antigo
para o modo de produção feudal. Mas as pesquisas realizadas desde há mais de
meio século demonstraram o caráter insustentável dessa tese, uma vez que nume-
rosas fontes atestam a manutenção maciça, durante a Alta Idade Média, de uma
escravidão essencialmente idêntica àquela da Antiguidade. Assim, nas leis germâ-
nicas dos séculos VI a VIII, a condição infra-humana do escravo é reiterada sem
modificações substanciais: o escravo é comparado a um animal, como o confir-
mam as freqüentes menções que dele são feitas nas rubricas consagradas ao gado.
A fim de obter sua obediência pelo terror, ele pode ser espancado, mutilado (abla-
ção do nariz, das orelhas, dos lábios, ou escalpo, opções que têm a vantagem de
não diminuir a sua força de trabalho) e mesmo morto, se necessário. Ele é privado
de todo direito de propriedade plena, não pode se casar e seus filhos pertencem a
seu senhor, que pode vendê-los a seu critério. Enfim, a interdição das relações
sexuais do escravo com uma mulher livre, equiparadas a um ato de bestialidade
punível com a morte dos dois culpados, confirma a segregação radical de que são
vítimas os escravos. Assim, a manutenção da escravidão produtiva durante a Alta
Idade Média é bem atestada, mas nem por isso se poderia pensar em empurrar
seu desaparecimento para o extremo fim do século X, ou mesmo para o início do
século XI, como o faz notadamente Guy Bois. É possível que, por volta do ano mil,
ainda existam escravos nos domínios rurais (denominados, nos textos, servus ou
mancipium), mas, além do fato de podermos discutir sua situação, sua importân-
cia é doravante limitada, até mesmo marginal, e eles deixaram de sustentar o
essencial das tarefas produtivas. Admitir-se-á, então, com Pierre Bonnassie, que
"a extinção do regime escravagista é uma longa história que se estende por toda a
Alta Idade Média". O essencial do processo consuma-se, sem dúvida, entre os
séculos v e VIII, enquanto os testemunhos dos séculos IX e X manifestam os últi-
mos esforços para salvar um sistema que se tornara insustentável e que, finalmen-
te, agoniza e morre definitivamente.
Tendo já evocado as principais modalidades de extinção da escravidão, serão
suficientes apenas algumas observações complementares sobre esse ponto. Uma
das vias é a liberação dos escravos (manumissio), que passam a engrossar as filei-
ras desse pequeno campesinato livre, ao qual se pode atribuir o primeiro cres-
cimento dos campos da Alta Idade Média. Entretanto, a liberação nem sempre
se dá sem restrições, c a prática bastante freqüente da manumissio cum obsequio
prevê uma ressalva de obediência e a obrigação de prestar serviços ao senhor.
CONVERSÃO AO CRISTIANISMO
E ENRAIZAMENTO DA IGREJA
60 jérôme Baschet
religião em um momento em que, sem dúvida, somente um décimo dos habi-
tantes do Império aderia a elal Depois, em 392, o imperador Teodósio faz do
cristianismo a única religião lícita no Império. Ao longo do século IV, benefician-
do-se da paz, das riquezas e dos meios para consolidar posições de força locais
outorgadas pelo imperador, a Igreja cresce tirando proveito das estruturas impe-
riais. A rede das dioceses, que se consolida então e que perdurará, no essencial,
até a época moderna, superpõe-se àquela das cidades romanas (em conseqüên-
cia, nas regiões antigamente romanizadas, como a Itália ou o Sul da Gália, onde
existia um número elevado de cidades antigas/ observa-se uma rede densa de
pequenas dioceses, enquanto no Norte, onde ri rede urbana antiga era mais flá-
cida, as dioceses são menos numerosas e bem mais extensas). Um outro exem-
plo dessa aliança entre o Império tardio e a Igreja é a estreita associação que se
opera entre a figura do imperador e a de Cristo, da qual a abundante iconogra-
fia dessa época fornece testemunho.
62 )érôme Buschet
Escandinávia (batismo dos reis Haroldo Dente Azul, da Dinamarca, em 960;
Olavo Tryggveson da Noruega, em 995, e Olavo da Suécia, em 1008) e da
Islândia (no ano mil, pelo voto da assembléia camponesa reunida em Thingvellir
após um ritual de xamanismo realizado por seu chefe). Mesmo se as datas indi-
cam apenas a conversão dos líderes e não uma difusão geral do cristianismo,
doravante o Ocidente é por inteiro uma cristandade (católica) c a fronteira
móvel- mas sempre presente durante a Alta Idade Média- em que cristãos
e pagãos entravam em contato só continua a existir de maneira residual.
i\ CI\'111/\~:Ao I'IUilill 63
capaz de cuidar de sua clientela, um personagem influente na corte celeste -
como, anteriormente, os aristocratas na corte imperial - , intercedendo pelas
palavras (suffrap,ia) pronunciadas em defesa dos clientes que lhe rendem as
homenagens devidas à sua posição.
Desde então, a reputação do santo padroeiro, de quem a catedral gcralmt•n-
te conserva o corpo, é um elemento decisivo do prestígio do bispo encarrt•gado
dela e é compreensível que estes tenham tido o cuidado de estabelecer e t•mhe-
lezar a biografia de seus heróis, de divulgar seus milagres e de dar ao seu túmu-
lo um fausto cada vez maior. Um exemplo espetacular é o de são Martinho, sol-
dado romano convertido no século IV, que se tornou bispo de Tours c apústolo
do Norte da Gália. É somente nos anos 460, todavia, que um de seus sucesso-
res à frente da diocese transforma o seu túmulo, até então modesto, c constrói
para ele uma imensa basílica, ornada de mosaicos mostrando os milagres reali-
zados por Martinho, testemunhando um poderio sempre ativo, do qual os visi-
tantes, vindos de toda a Gália, esperam se beneficiar. O renome do santo con-
fere o prestígio da sede episcopal e não é surpreendente que um dos grandes
prelados desse período seja Gregório de Tours, bispo desta cidade de '573 a '594,
cuja História dos francos nos informa sobre sua época e sobre a importância de
uma devoção aos santos que o bispo partilha plenamente com seus mais humil-
des fiéis. Todo o Ocidente desse período se cobre de santuários luxuriantes,
imagens terrestres do paraíso; e as cidades, onde pululam as igrejas, parecem se
transformar em centros cerimoniais votados ao culto dos santos. Em breve, as
relíquias tornam-se objetos tão sagrados e tão essenciais à influência das igrejas
que se está sempre pronto a encontrá-las. Multiplicam-se, então, os roubos de
relíquias, concebidos não como atos de vandalismo, mas como empreendimen-
tos piedosos, justificados para o próprio bem do santo, tido como maltratado na
sua morada anterior e clamando pelos cuidados da nova comunidade que o aco-
lhe (Patrick Geary). Um dos mais célebres roubos de relíquia é cometido pelos
venezianos, que se apossam do corpo do evangelista Marcos em Alexandria, em
827, e o levam para sua cidade, da qual ele se tornará o símbolo e o tesouro
supremo. Mas este é apenas um episódio dentre muitos outros, muitas vezes
mais modestos e nos quais não faltam as atuações de traficantes que negociam
suas intervenções para o benefício espiritual dos futuros depositários de relí-
quias prestigiosas. Ao longo da Antiguidade tardia e da Alta Idade Média, o culto
dos santos torna-se um dos fundamentos da organização social, fazendo das relí-
quias os bens mais preciosos que se pode possuir sobre a terra e os instrumen-
tos indispensáveis de contato com o mundo celeste.
Nessa época, os bispos são ainda mais importantes, pois não dependem
de nenhuma hierarquia. O bispo de Roma (que se reservará mais tarde o título
64 }ér6me Baschet
de papa) beneficia-se, então, apenas de um privilégio honorífico, reconhecido
desde a Antiguidade, ao mesmo título que os patriarcas de Constantinopla,
Antioquia e Alexandria. Sua eminente opinião é habitualmente solicitada por
diferentes partes do Ocidente, mas também por Constantinopla, onde ela tem
peso nos debates teológicos. De fato, nos séculos v e VI, o bispo de Roma tem
os olhos voltados, sobretudo, para o Império do Oriente, do qual se considera
parte integrante. Não existe, então, nenhuma estruturação hierarquizada da Igreja
ocidental. Nela, cada diocese é praticamente autônoma e o bispo é senhor de
seu domínio, mesmo se, por vezes, ele é convocado para concílios "nacionais",
como os que aconteceram em Toledo, na Espanha visigótica do século VIl.
O mesmo ocorre ainda nos tempos de Gregório, o Grande (papa de 590 a 604),
apesar de alguns sinais de mudança: voltando-se cada vez mais para o Ocidente,
Gregório envia a missão de Agostinho às Ilhas Britânicas e faz com que sua
chancelaria redija cerca de 20 mil cartas em resposta a solicitações referentes a
questões administrativas ou eclesiásticas vindas de todo o Ocidente.
Entretanto, se sua opinião conta, como aquela de uma fonte de sabedoria ou,
por vezes, de um árbitro, Gregório não dispõe de nenhuma superioridade insti-
tucional sobre os demais bispos e de nenhum poder disciplinar para intervir nos
negócios de suas dioceses. Se ele é uma das figuras maiores da Igreja medieval,
isso se deve, sobretudo, à sua obra teológica e moral. Sua mensagem, particular-
mente clara, dá a medida da afirmação da instituição eclesial de seu tempo. Ele
estabelece para a sociedade doravante cristã (e, por conseqüência, para os sobe-
ranos que as dirigem) um objetivo fundamental: a salvação das almas. O pecado
e o diabo estando em todos os lugares, não é fácil consegui-la, e menos ainda para
os homens engajados nos negócios do mundo e no governo dos homens. Para essa
questão tão delicada, Gregório recomenda que, então, os cristãos se confiem a
uma elite de especialistas do sagrado, que ele qualifica de "médicos da alma", que
sabem melhor do que ninguém como salvá-los dos múltiplos perigos que os cer-
cam. O propósito é exigente para os clérigos, em particular para esses aristocratas
tomados bispos, suspeitos de serem mais dotados para o comando dos homens do
que para os exercícios espirituais. Mas, acima de tudo, isso oferece um testemu-
nho da distância cada vez maior entre clérigos e laicos e da posição dominante rei-
vindicada por um clero que pretende, dali para a frente, guiar a sociedade e enun-
ciar as normas que convêm ao "governo das almas" (Peter Brown).
Além dos bispos, uma outra instituição, totalmente nova, tem seu início
durante os séculos da Alta Idade Média, terminando por moldar de maneira
decisiva a face do cristianismo ocidental: o movimento monástico. É no início
do século v que ele finca o pé no Ocidente. Vindo do Oriente, João Cassiano
chega a Marselha com a idéia de aclimatar a experiência dos eremitas do deser-
1\ CIVII.IZA~:Ao FEUDAL 65
to egípcio, de quem ele descreve, em suas Instituições cenobitas, as realizações
penitenciais e a sabedoria, enquanto santo Honorato funda, não longe dali, o
monastério de Lerins, rígida escola onde são formados os filhos da aristocracia
meridional destinados à carreira episcopal. Mas é sobretudo no século VI que as
fundações monásticas se multiplicam, como tantas outras iniciativas particula-
res, assumidas com freqüência pelos bispos ou, por vezes, a título privado.
Assim, Cesário, bispo de Arles, cria, em 512, um monastério para sua irmã e
outras duzentas monjas (para as mulheres, muitas vezes originárias da aristocra-
cia, o ideal fundamental é a preservação da virgindade). Em meados de mesmo
século, Cassiodoro (490-580) funda um monastério no Sul da Itália, o qual
busca ser, sobretudo, um lugar de cultura, consagrado à preservação da retórica
e da gramática latinas e à difusão da literatura cristã. Um pouco mais tarde,
Gregório, o Grande, saído de uma família 'romana, renuncia à sua carreira de
funcionário imperial e decide transformar sua casa no Aventino em um retiro
onde leva uma vida de penitência extremamente severa. Várias obras que se
esforçam para codificar as regras da vida monástica circulam na Itália desse
tempo, tais como a anônima Regra do senhor ou a Regra de são Bento, destinada
a ter um futuro mais glorioso. Morto em 54 7, este é apenas um fundador den-
tre outros e seu monastério do Monte Cassino é destruído, pouco tempo depois,
pelos lombardos. Sem dúvida, é Gregl'>rio, o Grande, o verdadeiro inventor da
figura de Bento, de quem ele conta a vida e os milagres no livro 11 de seus Diálogos,
em 594, preparando, assim, a origem mais tardia do movimento monástico que
será chamado beneditino. Enfim, mais ao norte, em 590, Colombano, um santo
homem vindo da Irlanda, funda Luxeuil, nos Vosges, onde a aristocracia franca
faz educar seus filhos. Por volta de 600, existem, ao todo, cerca de duzentos
monastérios na Gália e, um século depois, mais 320, alguns dos quais são imen-
samente ricos, possuindo por vezes até 20 mil hectares de terras. O conjunto
desses estabelecimentos, geralmente fundados em lugares isolados, permite ao
.cristianismo fincar pé nos campos: ao lado da rede urbana dos bispos, existe
agora uma plantação rural de fundações monásticas.
O sucesso dessa instituição é considerável. A tal ponto que, no século VI,
a palavra "conversão" adquire um novo sentido. Ela não significa mais apenas a
adesão a uma nova fé, mas também a escolha de uma vida resolutamente dis-
tinta, marcada pela entrada em um monastério. Com efeito, se os primeiros dis-
cípulos de Cristo eram uma elite cuja escolha árdua podia ser vista como sinal
seguro da eleição divina, a partir de agora, em uma sociedade tornada inteira-
mente cristã, alguns se perguntam se a qualidade de cristão é uma garantia sufi-
ciente para alcançar a salvação. Como conseguir, pois, a própria salvação em
meio das atribulações do mundo secular? Como se preservar do pecado quan-
66 }érôme Baschet
do se participa dos negócios de um tempo tumultuoso? Aos laicos devotos, o
ideal de vida cristão parece cada vez mais inacessível e mesmo a carreira ecle-
siástica, estreitamente ligada às preocupações mundanas, parece muito pouco
segura. A exigência de uma escola mais rude impõe-se: esta será o monastério,
lugar de estudo e de prece, de mortificação de si mesmo pela obediência alie-
nante ao abade, pela penitência e pela privação. Espiritual e ideologicamente, a
aparição do movimento monástico é, então, o contragolpe da formação de uma
sociedade que se quer inteiramente cristã, mas se admite necessariamente
imperfeita. Ele é o refúgio de um ideal ascético em meio a um mundo que a teo-
logia moral de Agostinho e de Gregório entrega à onipresença do pecado. Mas
ele é também o instrumento de um aprofundamento da cristianização do espa-
ço ocidental e da penetração da Igreja nos campos.
68 ]érôme Baschet
lugar, um oratório dedicado a são Pedro. A segunda opção, não menos eficaz,
procura pontos de contato que permitam que o cristianismo recubra o paganis-
mo de um modo menos brutal. Pode-se, por exemplo, tolerar a crença na virtu-
de protetora dos amuletos, desde que estes carreguem a cruz. Mas é sobretudo
o culto dos santos que tem aqui o papel decisivo, permitindo uma cristianização
relativamente fácil de numerosas crenças e ritos pagãos: mais do que destruir
um lugar de culto antigo, confere-se-lhe uma sacralidade legítima, afirmando
que se trata de uma árvore benzida por são Martinho ou de uma fonte onde se
vê o traço do casco de seu asno. Assim, o culto dos santos deu ao cristianismo
uma excepcional maleabilidade para iniciar, com uma mistura de sucesso e de
realismo, sua luta, sempre renovada contra o paganismo. Para dizer a verdade,
essa maleabilidade marca também o limite da conversão do Ocidente medieval
ao cristianismo e da formação de uma sociedade cristã no seio da qual a Igreja
começa a adquirir uma posição dominante. Sua luta contra o paganismo é, ao
mesmo tempo, um triunfo- à imagem dos santos abatendo os dragões- e uma
meia vitória, pois ela se impõe somente ao preço de um sério compromisso com
uma visão de mundo enraizada no mundo rural, animada por ritos agrários e
impregnada por um sobrenatural onipresente.
0 RENASCIMENTO CAROLÍNGIO
(SÉCULOS VIII E IX)
70 }érôme Baschet
imperial, que ocorreu nesse dia, desenrola-se em circunstâncias ambíguas e
pouco claras, a tal ponto que alguns historiadores sugerem que o papa teria posto
a coroa imperial sobre a cabeça de Carlos Magno de surpresa e quase à sua reve-
lia. Em todo caso, é provável que a coroação imperial respondesse mais a uma
iniciativa de Leão 111 do que a uma intenção de Carlos Magno. Com efeito, além
de confirmar a aliança já estabelecida em 751, o papa sinaliza ao franco que este
tem sua dignidade a partir da Igreja. Ele se esforça, com isso, em manter seu con-
trole sobre um poder que se tornou considerável e que se exercia excessivamen-
te longe de Roma para o seu gosto. Além do mais, para o bispo de Roma, trata-
se de uma maneira de romper os laços com o imperador de Constantinopla, que
deixa de encarnar a universalidade ideal da ordem cristã a partir do momento em
que reina um outro imperador legitimado por Roma. Tal distanciamento não
poderia ter ocorrido se Constantinopla não se encontrasse enfraquecida, como
se verá abaixo, pela crise iconoclasta e pela pressão muçulmana. Mas são as con-
seqüências que importam aqui: o bispo de Roma deixa de estar sob a dependência
de uma autoridade longínqua (a partir de 800, ele não mais data seus documen-
tos em função dos anos de reinado do imperador do Oriente, como havia feito
1000 km
~ Império Romano
(inicio do século IV}
C Império Carollngio
(em 814)
0 Império Bizantino ~ Califado de Bagdá
(inicio do século IX) (inicio do século IX)
72 }érôme Baschel
cristã, especialmente no que diz respeito às estruturas de parentesco (segunda
parte, capítulo v).
Voltemos, no entanto, ao Império, do qual a Igreja não é o único pilar. Entre
os poderes do imperador, o principal é, sem dúvida, o de convocar, no mês de
maio de cada ano, todos os homens livres para o combate. Forma-se, assim, por
alguns meses de campanha, o exército ao qual o imperador deve suas conquis-
tas. Mas é duvidoso que se reúnam, a cada vez, todos os homens com os quais
o imperador pode teoricamente contar (cerca de 40 mil}. De resto, logo ele
renuncia a exigir de todos tal obrigação, sobretudo porque numerosos homens
livres, bastante pobres, não dispõem dos recursos necessários para adquirir um
armamento pesado e custoso. Quanto à imagem de uma administração bem
organizada e fortemente centralizada, como sugerem as capitulares (nome dado
às decisões imperiais transmitidas para as províncias), ela é, sem dúvida, ilusó-
ria. O Império é, de fato, dividido em trezentos pagi, à frente dos quais estão os
condes, enquanto as zonas fronteiriças são defendidas por duques ou marque-
ses. Mas, na verdade, o essencial do controle das províncias é confiado às aris-
. tocracias locais ou, por vezes, a guerreiros que o imperador quer compensar e
que vivem dos rendimentos de seus cargos. O controle dos territórios repousa,
no essencial, sobre os laços de fidelidade pessoal, solenizados por um juramen-
to ou pela recomendação vassálica entre o imperador e os aristocratas encarre-
gados das províncias. De fato, a ideologia carolíngia, formulada pelos clérigos,
subordina o grupo aristocrático ao soberano, considerado a única fonte das
"honras" (em particular o encargo das províncias): o fato de deter tais honras e
de servir ao imperador torna-se, então, um elemento fundamental do poder da
aristocracia, que define e legitima sua posição.
A despeito da fraqueza política do Império, a unidade reencontrada permi-
te importantes avanços. Além de um primeiro desenvolvimento das zonas rurais,
acompanhado de um salto demográfico desde os séculos VIII e IX, observa-se
uma retomada do grande comércio. Mas este é obra, sobretudo, de mercadores
exteriores ao Império: no Sul, os muçulmanos, que ainda abastecem de produ-
tos orientais as cortes principescas ou imperiais; no Norte, os navegadores
escandinavos, que importam madeiras, peles e armas. Assim, Dorestad, no mar
do Norte, se torna o principal porto da Europa, onde se estabelecem as trocas
entre o continente, as Ilhas Britânicas e os reinos escandinavos. Embora elas
permaneçam, no essencial, exteriores ao Império, tais correntes comerciais obri-
gam a uma reorganização monetária. De fato, Carlos Magno toma uma decisão
de grande importância para os séculos medievais, renunciando à cunhagem do
ouro e impondo um sistema fundado sobre a prata, metal menos raro e mais
adaptado ao nível real das trocas. A libra de prata é, então, fixada em 491 gra-
mas (50% a mais que na Antiguidade), com sua divisão em vinte soldos de doze
denários cada um, que serão a base da organização monetária durante toda a
Idade 1\lédia.
74 Jérôme Baschet
separar as palavras umas das outras, assim como as frases, graças a um sistema
de pontuação, ao contrário do sistema antigo, que o ignorava totalmente. Essas
inovações, de aparência modesta, constituem, na verdade, grandes avanços na
história das técnicas intelectuais.
Graças a essas modificações e a uma melhor organização dos scriptoria,
onde os monges que se dedicam às cópias dos manuscritos trabalham agora em
equipes, partilhando entre si as diversas seções de uma mesma obra, a produ-
ção de livros aumenta de modo considerável (estima-se que cerca de 50 mil
manuscritos foram copiados na Europa do século IX). O essencial dessas obras
responde à necessidade do culto cristão, mas outras, menos numerosas, é ver-
dade, pertencem à literatura latina clássica. Elas são copiadas porque permitem
aprender as regras do bom latim; é por isso que Loup de Ferrieres, um abade do
século IX, preocupa-se em encontrar os melhores manuscritos de Cícero. Mas
esses livros informam também sobre o passado pagão, que os cristãos têm
necessidade de conhecer, certamente para melhor afastarem-se dele, quer se
trate do passado de Roma, quer do dos povos germânicos (do qual dá testemu-
nho, por exemplo, a História de Amiano Marcelino, que não conheceríamos hoje
se um monge de Fulda não a tivesse copiado no século IX). É preciso, então,
relembrar este fato em geral esquecido: é aos clérigos copistas da Alta Idade
Média e a seu trabalho obstinado, em um meio, não obstante, pouco favorável,
que devemos a conservação do essencial da literatura latina antiga.
Outro instrumento decisivo da propagação dos textos antigos é a manuten-
ção de um conhecimento satisfatório das regras do latim, o que faz da gramáti-
ca e da retórica as disciplinas mestras do saber carolíngio. Em um momento em
que a língua latina evolui de modo diferente segundo, as regiões, os clérigos
carolíngios tomam uma decisão que sela o destino lingüístico da Europa. Eles
optam por restaurar a lfngua latina, não exatamente em sua pureza clássica, mas
ao menos em sua versão corrigida, ainda que simplificada. Eles consideram esta
escolha indispensável à transmissão de um texto bíblico correto e à compreen-
são dos fundamentos do pensamento cristão. Mas, ao mesmo tempo, eles reco-
nhecem que as línguas faladas pelas populações distanciam-se inexoravelmen-
te do bom latim, a ponto de recomendarem que os sermões sejam traduzidos
para as diferentes línguas vulgares de suas audiências. Assim, d(•s abrem a via
ao bilingüismo que caracteriza toda a Idade Média, com, de um lado, uma mul-
tiplicidade de línguas vernáculas faladas localmente pda população e, de outro,
uma língua erudita, aquela do texto sagrado e da Igreja, tornada incompreensí-
vel para o comum dos fiéis. Essa dualidade lingüística aprofunda, então, o fosso
entre os clérigos e os laicos, assegurando, ao mesmo tempo, uma unidade mar-
cante à Igreja ocidental.
76 }érôme Baschet
esboçar reformas que favoreçam o acesso dos fiéis às relíquias. Quanto às ima-
gens, elas impregnam-se de reminiscências clássicas, especialmente o gosto
pelos plissados delicados, que conferem às figuras dos evangelistas, com fre-
qüência representados nos manuscritos bíblicos com um aspecto de escribas
antigos, um dinamismo poderoso e uma forte energia corporal, evocando a
intensidade da inspiração divina (figura 2, na p. 37). Poder-se-ia, igualmente,
multiplicar os exemplos no domínio literário. Assim, Eginhardo redige a biogra-
fia de Carlos Magno, tomando como modelo a Vida de Augusto, de Suetônio.
O poeta Angilberto faz-se chamar de Homero, enquanto o círculo de letrados da
corte imperial, orgulhosos por possuírem obras clássicas, como Cícero, Salústio
ou Terêncio, é comparado à Academia ateniense por Alcuíno Horácio. Enfim,
em todos os domínios, em Aix-Ravena e em torno de Carlos Magno-Augusto,
morre-se de vontade de fazer reviver a Antiguidade, pois ela é, por excelência, a
época do esplendor do Império. Trata-se de multiplicar os sinais que são tam-
bém reivindicações políticas da restauração imperial (renavatio imperii) e que
fazem de Carlos Magno e de seu filho os dignos sucessores dos imperadores de
Roma (estando entendido que tal referência encontra sua legitimidade na uni-
dade finalmente realizada do Império e da Igreja).
A experiência carolíngia foi de curta duração. Ela mantém-se e consolida-
se, em certos aspectos, durante o reinado de Luís, o Piedoso (814-40), mas,
com a sua morte, a concepção patrimonial do poder conduz à partilha de
Verdun, em 843, que divide o Império entre seus três filhos. Se este tratado é
importante para a Frância ocidental (esboço do futuro reino da França, do qual
fixa por vários séculos as fronteiras orientais no eixo Ródano-Saône), ele não
chega a apaziguar as rivalidades no seio da dinastia carolíngia, que apenas se
ampliam. A estas dificuldades somam-se as desordens provocadas pelas incur-
sões normandas e a pressão sobre a fronteira oriental, bem como o rápido agra-
vamento das fraquezas internas do Império, cujas províncias se revelam cadá vez
mais incontroláveis. O imperador não consegue assegurar a fidelidade dos con-
des e de outros aristocratas encarregados das unidades territoriais, mesmo ao
preço de concessões importantes, como a promessa de não destituir o dignitá-
rio ou o compromisso de escolher seu filho após sua morte. Nada funciona, a
tendência centrífuga é irreversível. Desde meados do século IX, os condes come-
çam, a despeito das interdições imperiais, a erigir suas próprias torres ou caste-
los e também a lançar as bases de um poder autônomo. Em HHH, quando morre
o imperador Carlos, o Gordo, ninguém se preocupa em lhe dar um sucessor.
O episódio tem seus admiradores incondicionais e seus mais céticos juízes, que
o percebem como um breve parêntese ou até mesmo como um acidente, o que é
inegável em termos de unificação política, mas, sem dúvida, muito modesto se
A <11'111/.\~'AII I'I,Uil,\1. 77
considerarmos outras aquisições mais duráveis. Questiona-se, por vezes, se o
Império Carolíngio marca o fim da Antiguidade ou o início da Idade Média.
Alguns postulam uma forte continuidade entre o Império Romano e aquele de
Carlos Magno e chegam, por vezes, a afirmar que os carolíngios dispunham de
um sistema fiscal idêntico ao do Baixo Império e que a Igreja era apenas um
agente do governo imperial. Tais visões, que romantizam ao extremo o mundo
carolíngio, repousam sobre uma leitura de fontes que foi seriamente criticada e
que parece dificilmente sustentável. Parece mais razoável, então, perceber o
episódio carolíngio como sendo, ao mesmo tempo, o resultado das transforma-
ções dos séculos da Alta Idade Média (no mínimo, porque a escolha de Aix-la-
Chapelle como capital imperial institucionaliza o peso adquirido pela Europa do
Noroeste) e uma primeira síntese que prepara o despontar dos séculos posterio-
res da Idade Média (retomada da produção e das trocas, uso do juramento de
fidelidade como base da organização política e, sobretudo, afirmação da Igreja).
Através de sua aliança com o reino, depois Império, dos francos, a Igreja conso-
lida sua organização e lança as bases de sua posição dominante no seio da socie-
dade (dízimo, reforma dos cabidos das catedrais, reforço dos grandes monasté-
rios, unificação litúrgica, fixação e difusão dos textos de base e dos instrumentos
gramaticais indispensáveis para a manutenção de uma unidade lingüística eru-
dita da cristandade, afirmação da autoridade romana, definição das regras do
casamento e do parentesco).
Antes de terminar este capítulo, gostaria de alargar o campo de visão, tanto cro-
nológica como geograficamente, a fim de situar os amplos espaços no interior
dos quais se produzem a formação e depois o desenvolvimento da cristandade
ocidental. É indispensável evocar, ao menos sucintamente, os poderosos vizi-
nhos, em meio aos quais esta conquistou seu lugar com grande dificuldade
(ilustração 111, na p. 71 ).
O declínio bizantino
78 Jérôme Baschet
Império Romano, o único possível, o mesmo de Augusto, Diocleciano e Constan-
tino, ou seja, a Roma Eterna, transferida para a nova capital fundada por este
último. Esta continuidade reivindicada, esta afirmação de permanência, a des-
peito de todas as transformações, é uma característica decisiva deste Império
que chamamos bizantino e que se pretende tão-somente romano. Isto é, sem
dúvida, justificado para a época de Leão I (457-527) e Justiniano (527-65), pois
o Império vive então um período de esplendor, ao mesmo tempo que o Ocidente
conhece um de seus momentos de maior confu~ão. Sua riqueza é considerável
e ele controla toda a bacia oriental do Mediterrâneo: a Grécia, a Anatólia, a
Síria, a Palestina e, sobretudo, o rico Egito, que envia para Constantinopla um
imposto anual de 80 mil toneladas de grãos. A reconquista de Justiniano, que
recupera temporariamente as costas do Adriático, a Itália e o Norte da África,
apóia-se sobre esse poderio e manifesta a intenção de manter o Ocidente sob
sua tutela e, portanto, de governar o conjunto da cristandade. Mas a epid@R1Ía
de peste, a partir de 542, dizima o Império e a reconquista fracassa. Em pouco
tempo, sobram apenas alguns fragmentos dele: o exarcado de Ravena, "posto
avançado" de Constantinopla no Ocidente, criado em 584 e que cai nas mãos
dos Iom bardos em 751; a laguna de Veneza, onde surgirá uma cidade-refúgio
antinatural, mas que goza de vantagens conferidas por sua autonomia ante os
poderes ocidentais e por um laço privilegiado com o Império do Oriente; a
Sicília, conquistada pelos muçulmanos ao longo do século IX, e a Calábria, que
os normandos arrancam de Constantinopla em 1071, com a tomada de Bari.
Desde o princípio do século VII, os ventos mudam devido ao avanço dos per-
sas, que tomam Damasco e Jerusalém, em 613-14, e, depois, da ofensiva do Islã,
que leva à perda da Síria e do Egito. Se acrescentarmos, ao norte, a pressão dos
eslavos e, logo depois, dos búlgaros, em face dos quais o imperador Nicéforo
encontra a morte em 811, Bizâncio aparece como um Império sitiado, reduzido
doravante a uma parte dos Bálcãs e à Anatólia, e cuja população é, agora, essen-
cialmente grega. É nesse contexto de graves ameaças exteriores que a crise ico-
noclasta divide longamente o Império (730-843). Para os imperadores iconoclastas,
o culto às imagens é a causa das infelicidades do Império e o povo dos que foram
batizados deve, tal como os hebreus do Antigo Testamento, reencontrar a benevo-
lência de Deus expurgando suas tendências idólatras. Mais tarde, depois da vi-
tória definitiva dos partidários das imagens, que a tradição chama de "Triunfo
da Ortodoxia" (843), assiste-se a uma recuperação que se prolonga até o início do
século IX. É o esplendor macedônio, especialmente sob Basflio I (867-86), Leão
VI (886-912) e Basílio 11 (976-1025). O poder imperial, poderoso e estável, chega
a recuperar certos territórios, como Creta e Chipre, e, momentaneamente, a
Síria e a Palestina, a Bulgária oriental e, depois, a ocidental. A !~reja de Cons-
i\ t I V I I I I. A ~ A o FEU I>.~ L 79
tantinopla, que em breve será chamada de ortodoxa, aproveita esse momento
para iniciar sua expansão. Após as primeiras missões de Cirilo e Metódio, no
século IX, Basílio 11 obtém, em 989, a conversão do grão-príncipe rus', Vladimir,
célebre pela construção da basílica de Santa Sofia, em Kiev.
Entretanto, o declínio acentua-se. As estruturas internas, políticas, fiscais
e militares do Império enfraquecem-se. Apesar de sucessos temporários, em
particular sob os primeiros imperadores da dinastia dos Comnenos, o território
bizantino diminui como uma pele enrugada (constituição do sultanato de lcônio
-ou de Rum-, que subtrai a metade da Anatólia, em 1080, e aumenta ainda
mais após sua vitória de 1176; reconstituição de um Império Búlgaro indepen-
dente de Bizâncio, em 1187). Depois do parêntese dos Estados latinos, encer-
rado em 1261, o Império não é mais do que a sombra de si mesmo, reduzido ao
quarto noroeste da Anatólia, pouco a pouco engolido pelos turcos, e a uma parte
da Grécia, progressivamente diminuída pela potência sérvia e, depois, pelo
avanço otomano, que contorna Constantinopla e ganha terreno na parte euro-
péia do Império. Os apelos de ajuda ao Ocidente permanecem sem efeito e,
mais tarde, em 1453, o inevitável acontece: o cerco e a queda de Constantinopla,
que se torna Istambul, capital do Império Turco.
No geral, o Império Bizantino conhece duas fases particularmente brilhan-
tes, de meados do século V até meados do século VI, e, depois, de meados do
século IX ao início do século XI; mas, globalmente, suas forças em declínio lhe
permitem resistir cada vez menos às múltiplas pressões exteriores (desde os per-
sas, os árabes e os eslavos até os búlgaros, os sérvios e os turcos). Apesar de
tudo, o orgulho de Constantinopla, sua pretensão de encarnar os valores eter-
nos de Roma e de constituir o Império eleito por Deus, assim como seu menos-
prezo por todos os povos do exterior, aí incluídos os cristãos do Ocidente, assi-
milados mais ou menos explicitamente a bárbaros, permanecem intactos por
longo tempo (André Ducellier). É verdade que o Império não carece de vanta-
gens e que, durante muito tempo, é portador de um poderio respeitado e de
modelos admirados: basta pensar na arte bizantina, cuja influência é profunda
no Ocidente, em particular na Itália, ou na riqueza da cultura helênica, de que os
humanistas do século XV se apropriam com avidez no momento em que Bizâncio
desmorona. Se, com o passar dos séculos, a distância entre a realidade e o ideal
do Império se aprofunda perigosamente, a vontade de preservar esse ideal a
qualquer custo explica, sem dúvida, essa impressão de lentidão e de permanên-
cia sugerida pela história de Bizâncio: esta "repousa sobre a idéia de que nada
deve mudar" (Robert Fossier). Assim, uma vez passados os grandes debates rela-
tivos à Trindade e, depois, às imagens (segunda parte, capítulos v e VI), em
Bizâncio, a teologia parece muito mais fortemente dominada por uma exigência
80 }érôme Baschet
de fidelidade aos textos fundadores do que no Ocidente. Lá não se nota nadl!
que se pareça com a vitalidade das discussões escolásticas e da reflexão que per-
mite o aparecimento das escolas e das universidades ocidentais. Um papel
determinante deve ser atribuído à manutenção do princípio imperial como pilar
da organização bizantina (apesar de uma corrosão devida às concessões e aos
privilégios outorgados, especialmente aos grandes monastérios). Mais importan-
te ainda é do fato de que, ao longo de toda a história bizantina, a Igreja funcio-
na em estreita associação com o poder imperial: o patriarca e o imperador são, ali,
as duas cabeças de uma entidade unificada pela idéia de Império cristão, con-
forme o modelo de Constantino, que ainda é observado no Ocidente na época
carolíngia. A disjunção entre o Império e a Igreja não se produz em Bizâncio,
enquanto a Igreja do Ocidente consegue adquirir sua autonomia e até mesmo
se constituir como instituição dominante. Este é, sem dúvida, um dos fatores
decisivos da evolução divergente do Oriente e do Ocidente e uma das molas
capitais da dinâmica deste último.
O esplendor islâmico
82 ]érôme Baschet
pelo avanço dos mongóis, que se infiltram, desde o século IX, no Império, onde
eles adotam o islã e formam, desde cedo, a guarda de todas as cortes muçulma-
nas. A primeira dinastia turca impõe-se no Afeganistão, em 962, enquanto, no
século XI, são constituídos o sultanato de Rum, na Anatólia, e o Império Seljú-
cida, na. Mesopotâmia (1055). Depois, os turcos otomanos assumem com
Osman I (1281-1326). O Império que se forma então se torna uma potência
ameaçadora, que termina por tomar Constantinopla, atinge o seu apogeu sob
Soliman, o Magnífico (1520-66), controla longamente os Bálcãs, a Mesopotâmia
e o Mediterrâneo oriental, e perdura até o fim da Primeira Guerra Mundial.
Apesar da divisão do califado omíada e, em seguida, do abássida, e da alter-
nância entre fases de poderio e d~ dificuldade, o Islã constitui, sem nenhuma
dúvida, a civilização mais brilhante do Mediterrâneo na época medieval. Ela
caracteriza-se por um urbanismo plenamente desenvolvido, que retoma parcial-
mente os modelos romanos, completando-os com fundações e inovações impor-
tantes. Damasco, capital omíada, cresce sobre uma base romana reformulada,
enquanto Bagdá, criação abássida e mais claramente oriental, atinge meio
milhão de habitantes, tirando o brilho de Constantinopla. Como nas demais
cidades muçulmanas - começando por Córdoba, da qual se diz ter ultrapassa-
do 100 mil habitantes por volta do ano mil - , desenvolvem-se, em torno de
imponentes mesquitas, o luxo e o refinamento de uma alta cultura, da qual o
Palácio de Alhambra, em Granada, é um dos exemplos mais capazes de impres-
sionar os ocidentais. A prosperidade do Islã e seus sucessos culturais e intelec-
tuais, por muito tempo claramente superiores aos do Ocidente, manifestam-se
com toda a evidência quando se salienta a amplitude dos empréstimos que os
cristãos da Idade Média tomaram do mundo árabe. Estes ~ão particularmente
importantes nas regiões conquistadas pelo Islã e, em seguida, retomadas pelos
cristãos, sobretudo a Sicília e a Espanha. Na primeira, tolera-se uma população
muçulmana útil à exploração agrícola da ilha e ao funcionamento das engrena-
gens da organização administrativa e fiscal muçulmana, retomada pelos reis nor-
mandos em seu proveito. A arte de sua corte é inspirada pelo virtuosismo das
técnicas ornamentais muçulmanas (notadamente, a capela Palatina de Palermo,
em torno de 1140). Um pouco mais tarde, o imperador Frederico 11 cerca-se de
uma guarda sarracena e corresponde-se com numerosos letrados árabes.
Enquanto essa presença muçulmana na Sicília termina n<J primeira metade do
século XIII, na Espanha reconquistada as comunidades muc;ulrnan<Js mudé_iares 2
mantêm-se até o fim da Idade Média (sobretudo no campo, pois, na cidade, as
expulsões permitem, em geral, apenas a sobrevivência de moururia.~ muito redu-
A (1\'111/.AI.AII llll(),\1 83
zidas). Também aí, a interação das populações e o prestígio da cultura islâmica
traduzem-se no domínio arquitetônico e ornamental, com a arte moçárabc dos
séculos IX a XI, sobretudo nas regiões em que se implantam populações cristãs
arabizadas caçadas da al-Andalus e, depois, com a arte mudéjar, particularmen-
te em Aragão, a partir do século XIII.
Mais do que os empréstimos artísticos, na verdade limitados a elementos
parciais integrados em uma produção propriamente cristã, as contribuições téc-
nicas apresentam uma importância considerável. Pode-se, assim, mencionar a
adaptação de culturas novas, tais como, na Sicília, os frutos cítricos e a cana-de-
açúcar (destinada a adquirir importância estratégica na aventura atlântica), ou
ainda o bicho-da-seda, implantado na Espanha sob os omíadas. O papel, utili-
zado desde fins do século VIII pela administração dos califados, chega mais tarde
ao Ocidente, assim como a cerâmica esmaltada, o jogo de xadrez (de origem
oriental e introduzido no Ocidente no século XI) e, sem dúvida, as armas de
fogo, conhecidas primeiro pelos muçulmanos e que terão papel tão importante
tanto na tomada de Constantinopla pelos turcos como na tomada de Granada pelos
Reis Católicos. A medicina árabe torna-se, especialmente graças a Constantino, o
Africano, cartaginês que se tornou monge em Monte Cassino (c. 1087), a base
da reputação da Escola de Salerno, a partir da segunda metade do século XI, e
continua por muito tempo a nutrir, graças às traduções latinas de obras árabes,
o saber ocidental. No domínio das matemáticas, o avanço muçulmano é igual-
mente claro e é isso que estimula, por volta de 970, Gerberto de Aurillac, o futu-
ro papa Silvestre 11, a estudar na Catalunha, onde ele adquire uma formação
matemática excepcional entre os clérigos de seu tempo. Assim, os muçulmanos
dominam precocemente a numeração posicional graças ao uso dos algarismos
chamados arábicos (mas que são de origem indiana) e do zero, cuja vulgarização
no Ocidente é assegurada pelo Tratado do ábaco, de Leonardo Fibonacci, de
Pisa, escrito em 1202.
Mais amplamente, é preciso sublinhar a importância da cultura grega antiga
no mundo muçulmano e o papel deste em sua transmissão para o Ocidente, gra-
ças à tradução latina de numerosas obras árabes presentes na Península Ibérica.
Os comentaristas árabes da obra de Aristóteles -Avicena, morto em 1037, e
Averróis, mestre de origem andaluza, morto em 1198 - têm, neste domínio, uma
posição proeminente. O primeiro é traduzido em Toledo no século XII, gnu,·as à
colaboração entre um judeu conhecedor do árabe, que o traduz em castelhano,
e um cristão, que o restitui em latim. O segundo é traduzido por Geraldo de
Cremona, que se estabelece em Toledo, onde ele aprende o árabe e traduz até
sua morte, em 1187, numerosas obras, dentre as quais as de Averróis c do pró-
prio Aristóteles. Se, no século XIII, as obras de Aristóteles têm um papel central
84 ]érôme Raschet
nos meios universitários ocidentais, é preciso não esquecer que elas circulam
sempre acompanhadas de seus comentaristas árabes traduzidos em latim.
Aristóteles é, então, recebido e compreendido no Ocidente através do prisma de
sua leitura árabe. De fato, "é no mundo muçulmano que é efetuada a primeira
confrontação entre o helenismo e o monoteísmo", segundo um modelo trans-
posto posteriormente para o Ocidente (Aiain de Libera). Convém, então, reco-
nhecer a importância da mediação árabe para a formação da cultura ocidental.
Preocupado em pôr em evidência a dívida árabe do Ocidente, Alain de Libera
conclui: "A razão ocidental não se teria formado sem a mediação dos árabes e
dos judeus" e, de modo ainda mais lapidar, "o Ocidente nasceu do Oriente".
Mas, se esta contribuição árabe foi por muito tempo ocultada, ela não deve,
contudo, ser exagerada (não mais, aliás, do que aquela do aristotelismo, que os
teólogos distorcem para enquadrar no pensamento cristão). E é preciso notar,
com Pierre Guichard, que "o movimento das traduções acompanhou a Recon-
quista. Os ocidentais iam, de início, procurar na ponta da espada o enriqueci-
mento de conhecimentos necessários para o desenvolvimento de sua ciência.
Eles selecionavam o que lhes era útil, no mesmo momento em que o pensamen-
to árabe, incapaz de renovar-se, esclerosava-se em uma fidelidade aos mestres
antigos". No geral, ante o Islã, o Ocidente experimenta um sentimento ambiva-
lente de "fasCínio-repulsa" bem ilustrado por Raimundo Lulle, ao mesmo tempo
entusiasta da cultura árabe e partidário virulento da cruzada e da conversão dos
muçulmanos. O Ocidente apropriou-se, então, de um conjunto de técnicas.
materiais e intelectuais, forjadas ou difundidas no mundo árabe, para fortificar
uma sociedade e uma cultura totalmente diferentes e, finalmente, para reforçar
sua superioridade sobre o Islã.
O Ocidente será suficientemente tratado neste livro, o que permite falar apenas
brevemente dele aqui. É preciso mencionar, entretanto, que a decomposição
carolíngia não significou o fim da idéia de império no Ocidente. Sua rt•stauração
é obra de Oto I, que, fortalecido por sua conquista do reino lombardo em 952 e
por suas vitórias sobre os húngaros e os eslavos em 955, é coroado imperador
pelo papa em Roma, em 962. Se a idéia imperial ainda tem para cll· apmas um
alcance limitado, designando um tipo de autoridade suprema dominando vários
reinos, seu neto Oto 111 lhe confere brevemente todo o seu brilho, antes de sua
morte em 1002, assumindo plenamente a idéia de renovm,·;io do Império
Romano (renovatio romani imperii), pondo Roma no centro das prl'ol·upações
t\ CI\'IIII~~·AII I Lllll/\1. 85
que ele partilha com o papa Silvestre 11. A idéia de império está, então, associa-
da àquela de um poder superior e sagrado, recebido diretamente de Deus, e a um
princípio de universalidade que confere teoricamente ao imperador a vocação de
unificar sob a sua direção o conjunto da cristandade. Ele deve ser seu chefe tem-
poral, assim como o papa é seu chefe espiritual (ilustração 7, a seguir).
Mas, desde o início, a restauração imperial dos otonianos padece de uma
forte limitação (ilustração 4 ). Longe de reconstituir o Império de Carlos Magno,
seu poder estende-se apenas sobre os reinos da Germânia e da Itália (aos quais
Conrado 11 acrescenta o reino da Borgonha, em 1033). Eletiva, a Coroa impe-
rial passa, a seguir, à família dos Sálicos, de 1024 a 1125, e, depois, à dos
Hohenstaufen, cuja força se concentra na Suábia e na Francônia (seu castelo
de Waibligen dá seu nome aos gibelinos, os partidários do imperador na Itália).
Frederico I Barba-Ruiva ( 1155-90) aumenta o prestígio da Coroa. Henrique VI
( 1191-97) acrescenta aos seus títulos a Coroa da Sicília graças a seu casamen-
to com a filha do rei normando Rogério li; seu filho, Frederico 11 ( 1220-50),
órfão educado em uma Palerma cosmopolita e atípica, homem de cultura liga-
do ao mundo árabe, cristão que desafia o papa e que é periodicamente exco-
mungado, é um dos personagens mais singulares da Idade Média. Depois do fim
dos Hohenstaufen, o imperador continua a ser respeitado, mesmo se não dispõe
de nenhum poder temporal real. Apesar disso, a dignidade imperial não deixa de
ter um papel notável nas relações européias, como o testemunha ainda Carlos
Quinto, o imperador em nome do qual se realiza a conquista do México e ao
qual Cortés deve prestar contas de seus atos.
A despeito de brilhantes avanços, a história do Império na Idade Média é
aquela de um inexorável declínio. Do século XI ao século XIII, o imperador está
envolvido em um conflito incessante com o papa, o que enfraquece as bases de
seu poder e manifesta, finalmente, a supremacia pontifícia. Aliás, se, na Germânia,
o imperador dispõe apenas de uma base territorial fragmentada e de apoios polí-
ticos limitados, no sul dos Alpes a dominação do imperador é decididamente
rejeitada e, apesar de séculos de tentativas desgastantes, ele é obrigado a ver a
Itália setentrional e a Itália central emanciparem-se e governarem-se sob a
forma de cidades autônomas. Em breve (mesmo se a expressão "Sacro Império
Romano-Germânico" não é medieval), o Império será apenas germânico e a dis-
tância entre o ideal e a realidade torna-se flagrante: "O Império Romano com
vocação universal reduz-se, pouco a pouco, até se confundir com o reino ale-
mão, mas sem dar a este um verdadeiro soberano" (Michel Parisse). Ao mesmo
tempo, o reforço dos reinos ocidentais confirma o caráter ilusório da universali-
dade do poder imperial, a tal ponto que se impõe, no século XIII, o preceito
segundo o qual "o rei é o imperador em seu reino".
86 }érôme Baschet
7. O impt·rador Oto 111 represt•ntado em majestade,< e. YYO (Evangdhos de Leutardo, Tesouro da
Catedral. Aix-la-Chapdle. 11. 16).
() imperador, sentado no trono l' scgumndo o globo, aparc..·ct· inserido em uma mandorla, signo de dignidade
geralmente reservado ~·ls pc..·ssotls divinas. Sustentado pelos símbolos dos l'Vang<:listas. o 1·\angclho. em su.1
forma original de llln rolo l'nlico, atravessa seu peito. cmno que indicando que o imperador assume a Bíblia
como lei suprema. ah.-· no interior de seu coração. Se esta rai\a n;io pode ser considerada a imagem do firma-
mento. como de rende a leitura cltíssica c muito discul ida dl' Ernst Kanloro\vÍc/. ao llll'IHJs c: la sugeriria um<1
divisão entre o mundo terrestre. l'Jn que aparcn.•n1 os dignitários lail·os l' cclcsi:ísticos. <.' o nnltHio n:leste.
() impl'rador l"at., entcio, a jun,·;io cnlrl' os dois: seu trono l· sustentado por uma alq.!,oria da tl'ITil, t'IHJll.lllto sua
calw1,;a akan,·a a 1.ona divina, onde l'la (·coroada (_ou ahen,·oadal pt'la moio de Dl'll!-.. A"sim. a ima~l'm l'\alta
vigoro~aTncntt· a figura do imperador, sublinhando, por(·rn, qut· !-.t'll poder sú tem legitimidade soh .1 condi,·;io
de conformar-st· aos preceitos das l·:scrilurols (cuja intcrprt'l<I\"<'Hil' dominada pelos dl•ri).!,os).
.~. Na dcscri1;iio inmo~rúlka, o termo (eu ~11ajesté. no ori~inal l'ranci:·s) indica a reprt•st·ntaf;ão do
persona~cm (rei. santo, a Vir~em. Cristo. Deus) em atitude de solwrano. ~eralmente sentado ao
trono.(:'\. T.)
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A CIVII.II.A~:Ao FI-.UilAL 89
Nogent, no século XII, recusam a idéia de uma idolatria muçulmana). Uma outra
forma da negação ocidental do islã consiste em ver nele apenas um cisma, um
desvio do cristianismo: circulam, assim, diferentes variantes da lenda de um am-
bicioso cardeal da Igreja Romana, por vezes chamado Nicolau, que, frustrado por
não chegar ao pontificado, provoca um cisma e se torna o fundador da seita mao-
metana. Quer se assimile o islã à idolatria pagã ou a uma seita herética, vê-se
bem que é inconcebível para a cristandade considerá-lo uma fé específica e coe-
rente. É por isso que aqueles que chamamos de muçulmanos só podiam ser
designados, na época, como "infiéis", ou ainda como "sarracenos" ou "agarenos"
(quer dizer, descendentes de Agar e de seu filho Ismael). No entanto, isso não
exclui, sobretudo na Espanha das três religiões, uma convivencia, que é, de fato,
uma situação de coexistência e de interação regulares, em que se misturam tro-
cas e pactos, coabitações e conflitos, tolerância e esforço de subordinação.
A afirmação progressiva do Ocidente ante o Islã é evidente. Durante a Alta
Idade Média, o mundo cristão em seu conjunto está na defensiva, amputado
e sob ataque. O Império Islâmico dispõe de uma força esmagadora comparada à
de Bizâncio (território dez vezes mais extenso, com rendimentos quinze vezes
superiores, exército cinco vezes mais volumoso). Aos olhos do Islã, o Ocidente
mal existe, mesmo se o califa al-Rashid trata com deferência Carlos Magno e se
dá o trabalho de enviar para sua corte um elefante como presente. Um primei-
ro sinal da mudança da relação de força intervém após a morte de al-Mansur,
em I OI 5-I6, quando os homens de Pisa e de Gênova tomam a Sardenha dos
muçulmanos da Espanha. Na Península Ibérica, os séculos VIII e IX permitem
uma primeira reorganização (a fundação do reino das Astúrias, os condados pire-
naicos de Aragão e de :\lavarra, a "marca hispânica" e, um século mais tarde, o
condado de Barcelona). A partir dessas bases, os cristãos empreendem, sem
embates frontais, o repovoamento de espaços desertos até a bacia do Douro,
que constitui, por volta do ano mil, a zona-tampão entre al-Andalus e os reinos
do Norte. Depois, a idéia de uma reconquista dos territórios dominados pelo
Islã ganha terreno e é beneficiada com o fim do califado de Córdoba. Os pri-
meiros avanços significativos ocorreram sob o reino de Fernando I (I 035-65),
que junta Leão a Castela e conquista Lamego, Viseu e Coimbra. No mesmo
momento em que o papado confia a Roberto Guiscardo a missão de reconquis-
tar a Sicília (1059), ele decide também enviar uma "cruzada" para a Espanha
(I 064 ). Se acrescentarmos que Pisa e Gênova começam a lançar ataques con-
tra o litoral magrebino (eles serão imitados, no século XII, pelos normandos, que
tomarão Malta e, temporariamente, Trípoli, Djerba e Mahdia), os meados do
século XI aparecem como o momento decisivo em que se engaja a contra-ofen-
siva ocidental para fazer recuar o Islã.
90 }érôme Baschet
Uma vez que Palermo foi retomada, em I 072, a principal frente é a da
Reconquista ibérica. Suas etapas principais podem ser sumariamente mencio-
nadas (ilustração 5, abaixo). Em I 085, a tomada de 'l(>ledo, a antiga capital vis i-
gótica, é revestida de alto valor simbólico, no qual Alfonso VI de Castcla se esco-
ra para atribuir-se o título de "imperador de toda a Espanha" (segue-se, porém,
uma reação dos muçulmanos que, apoiados pelos almorávidas, oht<:•m, um ano
mais tarde, a vitória de Sagrajas). Durante a segunda metade do século XII,
Aragão, ajudado por forças vindas do Sul da frança, desobstrui Zaragoza em
li IH e, depois de sua união com o condado de Barcelona, em 1137, libera
Tortosa c Lérida em 1148. A tomada de Ouriquc permite a Portugal constituir-se
como reino em I 140, antes de conquistar Lisboa, em I 14 7, com o apoio de cru-
zados ingleses e flamengos. Al-AIUÚllus controla, agora, apenas um terço da penín-
sula, mas sua integração ao Império almôade põe novamente os cristãos na
defensiva e permite a última grande vitória muçulmana em Alarcos, em I 19'5.
o 200 km
V. As l'lapas da lkconquisla.
No início do século XIII, os esforços do papa Inocêncio 111 e do arcebispo de
Toledo chegam a restabelecer a paz entre os reinos de Navarra, Castela e Leão,
novamente independentes desde 1157, de modo que sua coalizão, incentivada
pela pregação de uma cruzada, permite a vitória decisiva de um exército consi-
derável em Las Navas de Tolosa, em 1212. Abrindo aos cristãos o controle do
Guadalquivir, ela permite a Fernando 111 (1217-52), que reunifica definitivamen-
te Castela e Leão, retomar Córdoba, em 1236, Múrcia, em 1243, e Sevilha, em
1248, enquanto Tiago I de Aragão ( 1213-7 6) se apodera de Baleares, em 1229, e
de Valência, em 1238. Em meados do século XIII, a Península Ibérica é dominada
por três reinos cristãos, Castela, Aragão e Portugal, enquanto Navarra, acantona-
da entre seus poderosos vizinhos, jamais conseguiu crescer, e o Islã retraía-se no
reino de Granada, de onde será expulso pouco depois da união de Castela e
Aragão, engajada pelo casamento de Isabel e Fernando, em 1469.
Mesmo que se duvide, hoje, que a Reconquista tenha sido concebida como
uma cruzada antes mesmo que o projeto lançado em direção à Terra Santa
tomasse forma, ela é acompanhada, ao menos no século XII, da afirmação de uma
ideologia própria, difundida pela pregação e pela imagem. Longe de ser um sim-
ples empreendimento de conquista, ela deve aparecer como uma guerra justa,
legitimada pela infidelidade e pelos vícios dos "sarracenos" e pela superioridade
dos cristãos, que combatem em nome da verdadeira fé e, por isso, merecem o
perdão dos seus pecados e o acesso ao paraíso em caso de morte em combate:
como o exprime sem nuanças a Canção de Rolando, "os pagãos estão errados e os
cristãos têm o direito". Mas é, evidentemente, com as cruzadas que este espírito
floresce em toda a sua amplitude. Ao longo do século XI, a peregrinação a
Jerusalém conhece sucesso crescente, pois a conquista da Hungria toma prati-
cável a via terrestre, sempre mais fácil que a viagem por mar, e, ao mesmo tempo,
porque ela constitui uma forma de penitência tingida de grande feito, o que con-
vém bastante bem à mentalidade dos laicos, em particular a dos príncipes e dos
nobres. Pouco a pouco, em um contexto de cristianização da cavalaria, a conde-
nação cristã do uso de armas é revista a fim de justificar a defesa dos peregrinos
contra os muçulmanos, visto que os turcos, recentemente instalados, multipli-
cam os incidentes. Após a vitória dos seljúcidas sobre os bizantinos em
Mantzikert, em I 071, o papa Gregório VII convoca a ajudar o Império do Oriente
e a liberar os Lugares Santos. Mas é a pr~gação de Urbano 11 em Clermont, em
1095, que lança verdadeiramente o movimento. Não sem antes se ter comprazi-
do em descrever os massacres e destruições cometidos pelos infiéis, ele convida
a uma "guerra de Deus" para reconquistar Jerusalém e os Lugares Santos, e
esclarece que, para os combatentes revestidos com o sinal-da-cruz, ela valerá
como penitência devida por seus pecados e assegurará a salvação de suas almas.
· 92 }érôme Baschet
Sem dúvida, em um momento em que o poder pontifício se afirma de maneira
decisiva, ele também vê nesta santa empreitada a oportunidade de pôr o papa na
posição de chefe da cristandade. Assim, os exércitos dirigidos principalmente por
Roberto da Normandia, Roberto de Flandres, Godofredo de Bouillon, Raimundo
de Toulouse e Boemundo de Tarento, sob a autoridade do legado pontifício
Adernar, tomam Antioquia, em I 098, onde a miraculosa descoberta da Santa
Lança da crucificação inflama os espíritos. No ano seguinte, os exércitos con-
quistam Jerusalém, em um ambiente de sacralidade avivada por preces e procis-
sões litúrgicas, bem como, sem dúvida, para alguns, no clima de espera escato-
lógica do fim do mundo ou, ao menos, da realização da Jerusalém celeste na
terra. Os principados latinos do Oriente organizam-se: principado da Antioquia,
condados de Edessa e de Trípoli, enquanto Jerusalém cabe a Godofredo de
Bouillon e, depois, a seu irmão Balduíno, que assume o título de rei ( lll 0-18).
O sucessó
__..,....._._. --
da cristandade
·-
latina é brilhante.
-
Mas a defesa dos territórios
coriquistaaos, em um contexto hostil, é difícil, apesar da criação de ordens espe-
cíficas -Templários, Hospitalários e Cavaleiros Teutônicos - que, encarrega-
dos no início d~·àcolher e proteger os peregrinos, logo adquirem papel propria-
mente militar. A implantação latina mantém-se sólida por somente um século.
Já em 1144, Edessa, excessivamente avançada, cai, e a cruzada, pregada dessa
vez por são Bernardo e dirigida pelo imperador Conrado 111 e por Luís VII da França,
divide-se e nada consegue. Em 1187, Saladino do Egito retoma Jerusalém.
O imperador Frederico Barba-Ruiva se lança na cruzada, obtém a vitória de
Iconium, mas morre afogado em 1190. Ricardo Coração de Leão e Filipe
Augusto ganham São João de Acre e assinam um armistício com Saladino.
Durante o século XIII, os ocidentais não controlam mais do que algumas cidades
costeiras, como Beirute, Sidon, Tiro e São João de Acre, e todos os seus esfor-
ços permanecem vãos ou efêmeros: em 1229, Frederico 11, já excomungado e
tornado ainda mais suspeito por causa desse procedimento, negocia com o sul-
tão a recuperação de Jerusalém, que continuará cristã até 1244. São Luís, que
quer vencer o Egito, é inicialmente vitorioso em Damieta, mas torna-se vergo-
nhosamente prisioneiro em Mansurah, em 1254, antes de morrer durante uma
segunda expedição em Túnis, em 1270. Enfim, em 1291, os mamelucos do
Egito tomam São João de Acre, eliminando, assim, os últimos restos dos princi-
pados latinos da Terra Santa. Apenas Chipre será mantida de modo durável até
1489, enquanto o espírito de cruzada e a esperança de retomar Jerusalém per-
manecerão tão vivos quanto vãos, mesmo além da Idade Média.
Em suma: uma vitória estrondosa e eminentemente simbólica sobre o Islã
(I 099), um século de forte presença latina na Terra Santa e, depois, ainda um
séc~lo durante o qual essa presença não é mais do que sua própria sombra,
1\ C I V I I. 1/. A ~: .\ O I 1·: ~ ll .A I. 93
desesperadamente defendida. As cruzadas são liquidadas com um fracasso, do
mesmo modo que as tentativas missionárias das ordens mendicantes (o próprio
são Francisco esforça-se inutilmente para convencer o sultão do Egito, em 1219).
Entretanto, elas atestam um evidente reequilíbrio das forças. C,ercJlSlo pelas for-
ças do Islã durante a Alta Idade Média, o Ocidente contra-ataca f~nclo-as recuar
a partir do século XI, constrangendo-as à defensiva durante o século XII e, mesmo
se o projeto da Terra Santa é abreviado, a presença ocidental no Mediterrâneo
oriental é durável, a tal ponto que, durante o século XIII, o Egito depende das
frotas cristãs para seu abastecimento. É certo que o Império Otomano se torna
uma potência considerável, que conquista os Bálcãs e leva a ameaça até Viena,
em 1529, e novamente em 1683. Assim, o Islã não está prestes a desaparecer,
pois está presente hoje da África Negra até o Casaquistão e a Indonésia, e
alguns insistem em ver nele um dos principais focos de oposição ao Ocidente.
1".ntretanto, a mudança de equilíbrio operada durante a Idade Média Central,
da qual a Reconquista e as cruzadas são os sinais mais claros, é inegável. A esse
-propósito, a historiografia dos países árabes é, sem dúvida, pertinente ao ver nas
cruzadas um empreendimento injustificável de conquista e a primeira manifes-
tação do imperialismo ocidental.
A afirmação do Ocidente ante Bizâncio é ainda mais notável. Até o início
do século VIII, em virtude da universalidade do título imperial, Constantinopla
tem vocação para assegurar a tutela sobre o Ocidente. Os soberanos germâni-
cos, em particular ostrogodos e francos, estão, em princípio, submetidos ao
imperador e lhe prestam obediência e fidelidade. A Itália, em particular, é con-
siderada uma terra imperial; e o próprio papa depende da autoridade do impe-
rador e toma o cuidado de manifestar o respeito que é devido à sua jurisdição.
Entretanto, pouco a pouco, os laços distendem-se e o Ocidente libera-se da
tutela de Constantinopla. A primeira ruptura é provocada pela aliança entre o
papa e Pepino, o Breve, especialmente quando este último oferece ao pontífice
o exarcado de Ravena, que fora reconquistado dos lombardos. A doação de
Constantino, forjada nesse momento, segundo a qual este teria cedido ao papa
Silvestre o poder sgbre Roma e a Itália, funda o poder temporal do papado e
solapa os fundamentos das pretensões bizantinas sobre a Itália. A coroação de
Carlos Magno é uma nova etapa da autonomização do Ocidente; mas a rebelião
é tão inaceitável para Bizâncio que Carlos Magno deve, finalmente, conceder
um acordo pelo qual renuncia ao título de imperator Romanorum, que o identi-
ficaria com o senhor de Constantinopla, ao mesmo tempo que é estabelecida a
idéia de dois impérios irmãos, procedendo-se a uma partilha territorial de sua
missão em comum. O conflito é mais frontal ainda com Oto I, que, pouco
depois da restauração de 962, se proclama autêntico imperador dos romanos.
94 jérôme Baschet
Constantinopla, então, desdenha o seu embaixador, Liutprando de Cremona,
enviado em 968, mas a crise é resolvida em seguida pelo casamento de Oto 11 e
de Teófano, parente do imperador de Bizâncio.
De ambos os lados, as incompreensões acumulam-se com maior facilidade
ainda, uma vez que cada um, agora, ignora a língua do outro (logo se falará de
gregos e de latinos para opor orientais e ocidentais). A crise iconoclasta, na qual
o papa intervém ativamente - a tal ponto que Gregório 11 excomunga o impe-
rador Leão 111 - , suscita a desconfiança dos latinos em relação à doutrina dos
gregos. À rivalidade no empreendimento de conversão das populações eslavas,
quer dizer, pela definição das esferas de influência na Europa Central, acres-
centa-se logo a disputa pelo controle da Itália do Sul. Conflitos velados de inte-
resses mesclam-se às discussões doutrinárias, dentre as quais a questão da pro-
cessão do Espírito Santo no seio da Trindade torna-se rapidamente, a despeito
de sua aparência fútil, o ponto central de confronto. Ao lado de outras divergên-
cias, especialmente litúrgicas (os gregos continuam a utilizar o pão fermentado
para as hóstias, enquanto os latinos recorrem ao pão não fermentado), a rejei-
ção à idéia segundo a qual o Espírito Santo emana, ao mesmo tempo, do Pai e
do Filho (filioque, em latim) torna-se o núcleo e o símbolo da ortodoxia que
Bizâncio reivindica perante o Ocidente. De fato, é a querela do filioque que dá
o pretexto da ruptura, consumada em 1054, pelas excomunhões recíprocas
do patriarca de Constantinopla, Miguel Cerulário, e dos legados pontifícios.
Doravante, existem duas cristandades separadas por um cisma: a ortodoxa, cuja
herança será recolhida, após a queda de Constantinopla, pela Rússia, e a roma-
na, cuja autoridade suprema, o papa, pode afirmar sem entraves o caráter uni-
versal de seu poder, uma vez afastada a tutela oriental.
As cruzadas são a ocasião de uma ruptura e de um afrontamento ainda mais
vivos. Desde o início, impondo um juramento de fidelidade aos cruzados, o
imperador do Oriente recusa o próprio princípio do empreendimento ocidental,
não lhe dando nenhum apoio e vendo nela um empreendimento ordinário de
conquista que só poderia ter legitimidade sob a condição de restituir ao Império
os territórios retomados aos muçulmanos (Michel Balard). Assim, os bizantinos
não ficam surpresos quando a quarta cruzada se desvia de seu objetivo para lan-
çar-se de assalto contra sua capital: para eles, era um ato premeditado de longa
data. Do lado ocidental, desde o retorno da primeira cruzada, difunde-se o tema
da traição dos gregos, acusados de não ter dado nenhuma ajuda aos nuzados,
ao mesmo tempo que, no decorrer do século XII, são suspeitos de criar obstáculos
aos esforços dos ocidentais c de tratá-los com infidelidade. Mesmo as cidades
italianas tradicionalmente aliadas de Bizâncio, Gênova e Veneza, guardum suas
distâncias. A ruptura torna-se cada vez mais aberta e denunciam-se de bom
t\ t' IV li 1/,.H: A o I· I. U ll A I. 95
grado os crimes dos gregos, tidos por partidários do cisma, enquanto os latinos
seriam os defensores da verdadeira fé. É nesse contexto que os cruzados embar-
cados pela frota veneziana sitiam Constantinopla e a saqueiam com grandes vio-
lência e pilhagem em 1204 - o que ocorre pela primeira vez em sua história e
pelas mãos de outros cristãos! O Império é, então, partilhado em diferentes
entidades que são atribuídas aos chefes dos cruzados (Império Latino, em torno
da capital, reino da Tessalônica, ducado de Atenas e principado da Aquéia),
enquanto Veneza, que fortalece suas posições comerciais por toda parte, contro-
la Creta e numerosas ilhas do Egeu. É verdade que os gregos reconquistaram
seu Império em 1261, com o apoio de genoveses, e logo o papado se preocupa-
rá com a união das Igrejas grega e latina, rudemente imposta no Concílio de
Lyon 11 (1274) e, em seguida, de modo mais diplomático, mas igualmente inú-
til, no Concílio de Florença (1439). Nada impede, porém, que o sentido dos
eventos de 1204 seja bastante claro: a ruptura entre as duas cristandades é pro-
funda e a relação de forças é, sem nenhum equívoco, favorável ao Ocidente.
,. ,. ,.
CONCLUSÃO: EM DIREÇÃO A UMA
REVERSÃO DE TENDÊNCIA.
96 }ér6me Baschet
do Noroeste; a síntese romano-germânica; o estabelecimento das bases do
poderio da Igreja, que recompõe em seu benefício uma sociedade doravante
cristã (fundando-se sobre os três pilares que são o poder dos bispos, uma rede
de poderosos monastérios e o sucesso ilimitado do culto dos santos). Enfim, o
fracasso carolíngio demonstra a inviabilidade da forma imperial da cristandade
ocidental; ele confirma a diluição da autoridade pública no seio dos grupos
dominantes e deixa o campo livre para a Igreja como a única instituição exten-
siva ao Ocidente cristão e capaz de reivindicar sua direção. Assim, no fim da
Alta Idade Média, pode-se iniciar a mudança de equilíbrio entre o Ocidente e
seus rivais bizantinos e muçulmanos. A cristandade romana concentra suas for-
ças no mesmo momento em que o Islã e Bizâncio se fragilizam. Os sinais dessa
reversão de tendência, tão hesitante quanto decisiva, multiplicam-se no sécu-
lo que cerca o ano mil, com a eliminação da pirataria sarracena e a retomada
da Sardenha, o início da Reconquista e o cisma de I 054. É nesse momento que
é preciso retomar o exame do Ocidente, quando eclodem em seu seio fenôme-
nos determinantes e lentamente preparados.
t\ CIVII.II.'\~·Ao l'l.l:llAI. 97
I I
ÜRDEM SENHORIAL E
CRESCIMENTO FEUDAL
A REFERÊNCIA AO ANO MIL pode servir para marcar o momento em que se afirma
um movimento de desenvolvimento, agora bem visível e não mais preparado sub-
terraneamente, associado a um processo de reorganização social cujas bases foram,
é verdade, lançadas anteriormente, mas cujos resultados se manifestam sobretudo
a partir do século XI. É verdade que, como já se disse, ninguém pretende que o ano
mil tenha sido, por si mesmo, um limiar decisivo entre conturbações do "século de
ferro" e o elã da Idade Média Central. Se o ano mil é evocado aqui, é para desig-
nar um conjunto de processos que se estendem no decorrer dos séculos X e XI.
Mesmo entendido assim, o ano mil foi, recentemente, objeto de um debate opon-
do os medievalistas que, na seqüência de Georges Duby, associam esse período a
uma mutação social de grande alcance e, por vezes, convulsiva, e aqueles que, aler-
tando para as deformações de perspectiva devidas a uma documentação repentina-
mente mais abundante, faziam prevalecer a continuidade para além da mudança
de milênio (Dominique Barthélemy). Essa polêmica não foi isenta de confusão, na
medida em que estava associada ao velho debate sobre_9s terrores do aua._mil,. que
supostamente haviam atormentado as populações com um.pânico..medonho do fim
do mundo no momento do milênio do nascimento (ou da Paixão) de Cristo.
Na segunda parte voltaremos ao milenarismo, mas já se pode sublinhar que
o tema dos terrores do ano mil é essencialmente um mito historiográfico forjado
no século XVII, aperfeiçoado pelo Iluminismo para melhor encobrir a Idade
Média em um véu de obscurantismo poeirento e de superstições ridículas, e,
finalmente, retomado pela verve romântica. Denunciado pela erudição positivis-
ta como uma invenção sem fundamento documental (Ferdinand Lot), a idéia de
uma explosão escatológica em torno do ano mil foi, entretanto, reabilitada e com-
binada às aquisições da historiografia recente, especialmente por David Landes.
No geral, existem atualmente três teses em vigor. Alguns notam, por volta do ano
98 }érôme Baschet
mil, sérios indícios de uma espera particularmente intensa do fim dos tempos e
interpretam-na como uma reação popular diante da violência ~enhorial e das con-
vulsões_da mutação feudal. Para outros, os textos não permitem fundamentar essa
visão renovada pela história social de um medo do ano mil; mas há, de fato, um
momento de tensões sociais exacerbadas pela instauração da nova ordem feudal.
Outros, enfim, consideram que não se passou nada de particular em torno do ano
mil, nem medos escatológicos, nem mutação feudal.
Admitir-se-á, aqui, que se alguns documentos deixam transparecer marcas
de inquietações (e de esperanças) milenaristas no fim do século X e no início do
século XI, notadamente sob a pluma do abade Abbon de Fleury, tais sentimentos,
que por vezes tomam a forma de explosões de impaciência, encontram-se ao logo
de toda a Idade Média e, sem dúvida, não são mais intensos em torno do ano
mil do que em pleno século XIII. De outro lado, as teses "mutacionistas" arriscam-
se, por vezes, a cair no excesso e é preciso entender que a dinâmica de afirma-
ção do feudalismo estende-se ao longo dos séculos, desde a época carolíngia, ao
menos, até o século XIII. Em todo caso, uma fase aguda, e muitas vezes confli-
tuosa, de profunda reestruturação da sociedade pode ser situada no século (ou
pouco mais de um século) que se estende em torno do ano mil, mesmo se ela
intervém em datas e com ritmos diferentes segundo as regiões. Enfim, o mais
importante, se se faz questão absoluta de evocar o ano mil, consiste em inverter
a perspectiva tradicional e a transformar o sinistro símbolo de obscurantismo
medieval em uma etapa no surgimento e na afirmação do Ocidente cristão. No
mais, a consciência de uma nova era aparece em alguns textos medievais, dos
quais o mais célebre se lê nas Histórias que o monge de Cluny Raul Glaber redi-
ge entre 1030 e 1045, tendo por objetivo celebrar os eventos notáveis que mar-
caram o milênio do nascimento e da morte do Salvador:
[... ]como se aproximava o terceiro ano que se seguiu ao ano mil, vê-se em quase
toda a terra, mas sobretudo na Itália e na Gália, renovarem-se as basílicas das
igrejas; embora a maior parte, muito bem construída, não tivesse nenhuma
necessidade disso, uma emulação levava cada comunidade cristã a ter uma igre-
ja mais suntuosa do que as outras. Era como se o próprio mundo fosse sacudi-
do e, despindo-se de sua vetustez, tenha-se coberto por toda parte com um ves-
tido branco de igrejas. Então, quase todas as igrejas das sedes episcopais, os
santuários monásticos dedicados aos diversos santos e mesmo pequenos orató-
rios das aldeias foram reconstruídos ainda mais bonitos pelos fiéis.
Este texto indica de modo notável que a reconstrução das igrejas mais belas
e mesmo suntuosas não se deve a nenhuma necessidade material, mas antes à
A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 99
emulação dos grupos e das instituições, preocupados em manifestar, pela bele-
za dos edifícios dedicados a Deus, o ardor com o qual eles se esforçam para
aproximar-se dele. Raramente colocou-se em evidência com tanta clareza a fun-
ção social da arquitetura que, intimamente ligada à sua eficácia sagrada, cons-
titui, para as comunidades locais, um sinal de reconhecimento, uma garantia de
unidade interna, ao mesmo tempo que um meio de se medir com seus vizinhos
e, se possível, se afirmar como superior a eles. Longe de ser característica de
uma sociedade em declínio, tal lógica sugere, ao contrário, que uma parte cres-
cente da produção é subtraída do consumo para ser consumida em uma compe-
tição sagrada generalizada. Raul Glaber nos fala de um mundo novo, na aurora
do segundo milênio, não sem um notável toque de otimismo. A célebre metáfo-
ra do "vestido branco de igrejas" o diz ainda melhor, já que ela se orna de uma
conotação batismal: do mesmo modo que o batismo é uma regeneração, um
renascimento pelo qual o fiel se desfaz do pecado e do antigo homem que esta-
va nele, para ser, uma vez purificado, revestido de uma túnica branca, a Europa
renasce então e, desvencilhando-se do que havia de antigo nela, abre-se aos
horizontes de uma história nova. Longe de afundar nas trevas do obscurantis-
mo, o Ocidente do ano mil faz-se luminoso e inaugura um novo começo.
A pressão demográfica
É impossível preservar (ou quase) da fome uma população reduplicada sem uma
forte alta da produção agrícola. O desmatamento e a ampliação das superfícies
cultivadas (geralmente denominadas "essarts··. ou seja, clareiras) são o primeiro
meio desse desenvolvimento agrícola. Por volta do ano mil, a Europa do Norte
é ainda uma zona selvagem de vastas florestas pontuadas por encraves humani-
zados; no mundo atlântico, as áridas terras arbustivas dominam, do mesmo
modo que, nas regiões mediterrâneas, dominam os terrenos pantanosos, pedre-
gosos ou excessivamente escarpados. Por toda parte, o Ocidente é caracteriza-
do por uma natureza rebelde ou apenas parcialmente domada, por culturas iti-
nerantes e incapazes de ultrapassar rendimentos derrisórios, apesar dos esforços
da Alta Idade Média, e por um povoamento frágil e instável. Três séculos depois,
a paisagem européia é radicalmente diferente: estabelece-se a rede de aldeias,
tal como ela irá subsistir, no essencial, até o século XIX, e a relação quantitativa
entre as zonas incultas ou de matas (o saltus) e o território humanizado (o ager)
mais ou menos inverteu-se. Em um primeiro tempo, as aldeias estendem pro-
gressivamente seu domínio cultivado (sobretudo no século XI), depois, novos
estabelecimentos, aldeãos ou monásticos, multiplicam-se no coração das zonas
anteriormente virgens (sobretudo no século XII). Entre estes últimos, os monas-
térios cistercienses, que uma ética de austeridade leva a se implantarem nos
lugares mais retirados, são particularmente atentos à melhoria técnica da agri-
cultura e do artesanato. Enfim, a ampliação das superfícies cultivadas é obtida
pela exploração de terrenos julgados anteriormente pouco propícios (encostas
escarpadas, margens de cursos d'água, zonas pantanosas agora drenadas).
Segundo Marc Bloch, a Europa conhece então "o mais intenso aumento das
superfícies cultivadas desde os tempos pré-históricos", quer dizer, desde a pró-
pria invenção da agricultura.
Mas esse fenômeno não teria sido suficiente para nutrir uma Europa mais
numerosa. Era necessário, ainda, obter uma alta dos rendimentos das culturas
cerealíferas, que fornecem a base da alimentação, especialmente pão e min-
gaus. Se se tenta uma estimativa média, que não tem sentido na medida em que
uma das características desse período é a extrema irregularidade dos rendimen-
tos, submetidos a inconstâncias climáticas, são obtidos, apesar de tudo, dados
significativos: passa-se, com efeito, de dois (ou 2,5) grãos colhidos para cada
grão plantado, durante a Alta Idade Média, para quatro ou cinco por um, por
volta de 1200 (e até seis ou oito por um, nos solos mais férteis, como, por exem-
plo, na Picardia). Dentre todos os fatores que se combinam para obter o difícil
aumento dos rendimentos ocidentais, deve-se contar a densidade crescente das
A FEUDALIDADE E A ORGANIZAÇÃO
DA ARISTOCRACIA
Nobreza" e 11Cavalaria"
11
4. Embora freqüente na literatura especializada sobre a Idade Média, esta tradução literal do
termo francês adoubement não é correntemente dicionarizada (ver, no entanto, as observações do
Dicionário Houaiss da língua portuguesa em s.v. adub- ). Na antiga língua dos francos, a raiz dubban
significava "bater", "golpear"; o verbo adouber ("investir como cavaleiro", ''armar um guerreiro")
remete, assim, à cerimônia em que o aspirante era golpeado ritualmente e admitido no seio da
cavalaria. (N. T.)
I I é ]érôme Baschet
te. um sinal importante das transformações desse grupo (ilustração 8). A partir
do fim do século X, e sobretudo ao longo do século XI, multiplicam-se às cente-
nas, e mesmo aos milhares, os castelos em madeira construídos sobre mottes,
montículos artificiais de terra que podem atingir dez ou quinze metros de altu-
ra e protegidos por um fosso. Depois, sobretudo a partir do século XII, embora
se continue a construir "montes castrenses", o castelo é cada vez com mais fre-
qüência edificado em pedra e, pouco a pouco, deixa de ser uma simples torre
ou donjon, à medida que se acrescentam a ela diversas extensões, muralhas con-
cêntricas e defesas cada vez mais sofisticadas. Se a função defensiva é eviden-
te, e até mesmo exibida, o castelo é, a princípio, um lugar de habitação para o
senhor, seus próximos e seus soldados. Geralmente associado a edifícios agríco-
las, em particular à área para criação de animais, ele é também um centro de
exploração rural e artesanal, bem como um centro de poder, pois é nele que os
camponeses pagam os seus tributos e também é nele que se reúne o tribunal
senhorial. Muitas vezes, ele se apropria do terreno mais elevado (e, quando não
é este o caso, a motte ou a arquitetura põem em evidência a mesma procura de
verticalidade). O castelo domina, assim, o território, como o senhor domina seus
habitantes. Símbolo de pedra ou de madeira, ele manifesta a hegemonia da aris-
tocracia, sua posição dominante e separada no seio da sociedade.
A principal atividade da aristocracia, e a mais digna a seus olhos, é segura-
mente a guerra. Na maior parte do tempo, ela consiste em razias breves e pouco
mortíferas. Nos séculos XI a XIII, as guerras entre reis ou entre príncipes são
raras, e as grandes batalhas, como a de Bouvines, em 1214, são excepcionais, a
tal ponto que Georges Duby pôde escrever que a batalha era o contrário da
guerra cavaleiresca. É preciso evitar, entretanto, reproduzir a visão tradicional
da guerra privada entre senhores, violência sem limites característica das desor-
dens da idade feudal. Com efeito, a guerra corresponde, então, a uma lógica
própria, que predomina particularmente ao longo dos séculos X e XI: a dafaide 5
(Dominique Barthélemy). Seu fundamento é o código de honra, que impõe um
dever de vingança, não apenas dos crimes de sangue, mas também dos ataques
contra os bens. Disso resulta uma violência entre senhores, inegável mas regu-
lamentada e codificada: o sistema da faide associa episódios guerreiros limita-
dos, cuja finalidade é menos matar do que capturar inimigos a serem trocados
por um resgate, e uma prudente procura de compromissos negociados. A guerra
Sb. A fortaleza de Loarre, com suas três muralhas sucessivas, é muito mais elaborada. Base da Reconquista levada
a cabo pelos aragoneses, a construção inicial remonta a meados do século XI. Os reis de Aragão residem nela com
freqüência e aí fundam uma comunidade de cônegos regulares. É para ela que eles edificam, no início do século
XII, sobre a segunda muralha, uma notável igreja românica, cuja cúpula é recoberta com um teto octogonal.
9. A conquista da Inglaterra pelo duque Guilherme na batalha de Hastings, último terço do século XI (bordado dito da rainha Matilda. catedral de Bayeux).
Obra excepcional pela sua extensão i setenta Jlletros de largura) e por seu vigoroso sentido da narrativa, o bordado de Bayeux (que não é uma tapeçariaj relata os céle-
bre\ sucessos militares do duque Guilherme, assim como os eventos que o conduziram à sua vitória decisiva contra o rei Haroldo. em Hastings (1066). Esta obra de pro·
paganda, que justifica a ascensão de Guilherme ao trono da Inglaterra assimilando Haroldo a um petjuro cuja coroação era ilegítima. deve. sem dúvida, parte decisiva
de ma e<mc·t·pção ao c".ero, em particular ;iO bispo Eucies de Bayeux. Muitas questões permant'ccm abertas: Eudes é o comanditário do bordado? Foi ele realizado para
a immguração de sua nova catedral em 1077? Foi exposto temporariamente em outras igrejas do reino conquistado por Guilherme? Pelo menos. sabe-se que, no século
XVI. "'" '"" P<tl"ndidf> !'!a catedr~! dumntc n~ f.:; tas a suas mais preciosas relíquias, as mesmas que Haroldo havia utilizado- se!Zuncio o testemunho do bordado- para
pre> raro juramento nau respeitado que fez dele um perjuro inapto à dignidade real. Foi, então, no tesouro da catedral de Bayeux que foram reencontrados o objeto sagra-
do qt!e determina o poder legltlmo e a imagem que celebra a sua força. O detalhe reproduzido aqui põe em evidência o eia cios cavalos e mostra o armamento dos guer-
reiros do século XI: cota de malha, escudo oblongo, capacete protegendo o nariz e longa lança de arremesso. Dinan, sitiada pelos milites de Guilherme, permite que se
te11ho uma idéia de apar~ncia de um "monte castrense": uma elevação do terreno, uma construção ctmtral e uma paliçada em madeira para protegê-la, que os sitiantes
se apressam em incendiar.
do tipo _li lide é menos o sinal de um caos social incontroiável do que uma práti-
ca que permite a reprodução do sistema senhorial, mobilizando as solidarieda-
des no seio da ;1ristocracia, regulando in fine as lutas entre senhores concorren-
tes. mas também manifestando quanto os camponeses. principais vitimas das
pilhagens. têm necessidade da proteção de seus senhores. Em todo caso. a guer-
ra nobre é um compromisso a cavalo, sendo o combate a pé reputado indigno
1ilustra\·üo 9). O equipamento requerido aperfeiçoa-se no coração da Idade
:\lédia: além do indispensável Ca\alo, que deve ser adestrado para o combate. e
a espada de lâmina dupla. que a literatura indica ser o objeto de uma verdadei-
ra veneração. a loriga (ou cota de malha em ferro) ~ubstitui a veste de couro
grosso reforçada por placas metálicas da época carolíngia. Do mesmo modo, o
simples capacete é substituído pelo elmo, que cohre a nuca. faces e nariz. Se
acrescentarmos o escudo e. a partir do fim do século \1. a lan\·a longa, mantida
horimntalmente no momento da carga rápida destinada a derrubar da sela o
adversürio (o que se tornou mais difícil pela invenção dos estribos). são cerca de
quinze quilos de armamento que o cct\·aleiro lc\·a com ele. Além disso, o conjun-
to é bastante custoso. pois estima-se que, no início do século XII, é preciso dis-
por de cerca de I :;o hectares de bens fundiários para poder assumir os gastos
m·cessürios ao exercício da ath idade de cavaleiro. Enfim. embora eles sejam
desprezados pelos ca\'aleiros. os infartes, originados das milícias urbanas ou de
homens livres do campo. t(·m um papel cada \'e; n1<1is importante, como com-
plemento e ajuda aos ct\·aleiros. até que. nos finais da Idade Média. arqueiros
e besteiros determinem com freqü(·ncia o resultaco dos combates.
Atestados a partir do início do século XII. os torneios são uma outra manei-
ra de exibir o estatuto dominante da aristocracia e de regular as relações em seu
seio. Demonstrações de força destinadas a impressionar, são batalhas ritualit.a-
das. que reúnem várias equipes, provenientes de regiões diferente~; e que. em
geral. se opõem de modo a reproduzir as tensões entre as facções aristonüticas.
Os cavaleiros armados com suas longas lan~·as fazem cargas coletiVas. levanc'o a
combates muitas \'etcs confusos. cujo objetivo é derrubar das selas os adversá-
rios e. se possível, fazer prisioneiros com os quais serão obtidos resgates. Prova
de proeza que põe l·m igualdade modestos ca\'aleiros e grandes príncipes. o tor-
neio é. para os c:speciahstas mais reputados. procurados e pagos pelas melhores
equipes. a ocasião de rl'ceber grandes somas de dinhe,ro: por vezes. ele permi-
te que os filhos cadetes, desprovidos de herança. como o ct:·lebre Guilherme. o
iVhu echa:, sejam recompensados com um casamento com uma herdeira de aáa
posição e adquiram. assim. uma posição social invejável. i\ las tais (míticas. que
permitem~~ aristocracia redistribuir parcialmente as posi~·ões em seu seio, espe-
cialmente através do acesso ao casamento. suscitam vivas condenações por
1 I 8 jérôme Baschet
vezes, parecer com caridade, ela é diferente, pois esta é virtude cristã por exce-
lência, que deve ser realizada, de preferência, na humildade de um laço frater-
nal. Para o nobre, trata-se de distribuir e de consumir com excesso e ostentação,
para melhor afirmar sua superioridade e seu poder sobre os beneficiários de sua
prodigalidade.
Mas esses valores essenciais não demoram a se revelar insuficientes, pois,
muito cedo, a Igreja exerce um papel importante na estruturação da cavalaria
e sua unificação em torno de um mesmo ideal. Isso supõe distinguir entre os
maus cavaleiros, realizadores de pilhagens, tirânicos e ímpios, e aqueles que
põem sua força e sua coragem a serviço de causas justas, tais como a prote-
ção da Igreja e a defesa dos humildes. A Igreja esforça-se, assim, para trans-
mitir aos cavaleiros os antigos valores reais de justiça e de paz (Jean Flori).
Durante as assembléias da paz de Deus, no fim do século X e, depois, ao longo
dos séculos seguintes, a Igreja tenta obter dos guerreiros que eles não ata-
quem aqueles, clérigos ou simples laicos, que não podem se defender e que
respeitem certas regras, tais como o direito de asilo nas igrejas e a suspensão
dos combates durante os domingos e as principais festas. Pouco a pouco, a
Igreja insiste também sobre os inconvenientes das guerras entre cristãos e
esforça-se para desviar o ardor combativo da nobreza contra os infiéis muçul-
manos. É isso que ela obtém com sucesso com a Reconquista e, mais ainda,
com a cruzada que, segundo a pregação de Urbano II em Clermont, em 1095,
confere um objetivo verdadeiramente digno à cavalaria: "Que aqueles que se
batem contra seus irmãos e seus parentes lutem, agora, de bom direito, con-
tra os bárbaros". Esse ideal, que tende a fazer do cavaleiro um servidor de
Deus e, da cavalaria, uma milícia de Cristo (militia Christi), não é, por certo,
inteiramente novo (a militia já era, na época carolíngia, o nome que unificava
os servidores de um Império ordenado por Deus), mas ele é, então, reformu-
lado de maneira a constituir o eixo que estrutura especificamente o grupo dos
milites. Assim, a aristocracia beneficia-se de um importante acréscimo de legi-
timidade, pois, ao mesmo tempo que os clérigos se esforçam para canalizar e
enquadrar a atividade e a ideologia cavaleirescas, eles afirmam que o ofício
das armas foi desejado por Deus e se mostra necessário, desde que seja posto
a serviço de fins justos.
É verdade que existem inumeráveis conflitos e rivalidades entre clérigos
e cavaleiros, e os valores de uns e outros estão longe de convergir em todos os
pontos, como o lembra principalmente a oposição clerical à caça e aos tor-
neios, ocupações favoritas dos nobres. No centro das divergências, pode-se
identificar, de uma parte, a violência guerreira, que a Igreja condena quando
é ameaçada por ela e aprova quando serve a seus interesses, e, de outra parte,
A CIVILIZAÇÃO fEUDAL J /9
a sexualidade e as práticas matrimoniais, objeto de concepções conflitantes
(segunda parte, capítulo v). E, no entanto, mesmo nesses terrenos, uma vez pas-
sada a primeira metade do século XII, as tensões tornam-se menos agudas e as
aproximações acentuam-se. Um exemplo, que as análises de Anita Guerreau-
Jalabert tornaram particularmente esclarecedor, é o amor cortês (expressão
do século XIX, à qual preferirei a terminologia medieval de fin'amors, quer
dizer, o amor mais fino, mais puro). Antes de ser retomado nos romances do
Norte da França a partir da segunda metade do século XII, esse tema é, de iní-
cio, uma criação da poesia lírica meridional, gênero cantado nas cortes aristocrá-
ticas e ilustrado, em primeiro lugar, pela produção de Guilherme IX, duque de
Aquitânia (1071-1127).
O fin'amors é a afirmação de uma arte refinada do amor, que contribui para
marcar a superioridade dos nobres e distingui-los dos dominados, cujo conheci-
mento do amor só pode ser vulgar ou obsceno (como mostram os fabliau.x, estes
"contos para rir'' que entram no repertório dos trovadores a partir da segunda meta-
de do século XII, ridicularizam clérigos, vilãos e burgueses, e permitem que o públi-
co nobre se divirta com a baixeza deles). Mas o fin'amors contém também, ao
menos em suas primeiras expressões meridionais, uma dimensão subversiva. Com
efeito, ele põe em cena um amor adúltero, como no caso exemplar de Lancelote
do Lago, apaixonado por Guinevere, esposa do rei Artur. Além disso, ele inverte a
norma social de submissão da mulher em benefício de uma exaltação desta, que
assume, em face do seu pretendente, a posição de um senhor feudal em relação a
seu vassalo: através da relação amorosa, é a fidelidade vassálica que é, então, exal-
tada ou posta à prova. Se a relação sexual não está excluída, só pode ser atingida ao
fim de uma longa série de provas, das quais a dama fixa o ritmo e as modalidades
(a mais elevada consiste em partilhar o mesmo leito, nus, evitando todo contato fí-
sico). O amor cortês é, então, uma ascese do desejo, mantido irrealizado tanto
tempo quanto possível para, com isso, crescer em intensidade e ser sublimado pelos
feitos cavaleirescos realizados em nome da amada. O fin'amors enseja, assim, um
culto do desejo, um amor do amor: convencido de que a paixão cessa quando atin-
ge o seu objetivo, faz de sua impossibilidade a fonte do mais alto júbilo (joy).
Fazendo isso, o fin'amors abre a via para uma aproximação com a ideologia
clerical, pois estabelece, como signo da distinção nobiliária, a sublimação do
desejo sexual e a busca de um amor elevado, o mais distante possível da vulga-
ridade de um amor carnal consumido sem regras. O fin'amors chega mesmo a
tender a uma mística do amor, que salienta o decalque do sagrado cristão: ele
não está longe da Senhora adorada na Notre-Dame e seu corpo é por vezes
venerado como o de uma relíquia sagrada. E se Tristão e /solda ilustra as canse-
I ~ ~ }érôme Baschet
deve a seu vassalo proteção e respeito; ele lhe demonstra sua solicitude (e, então,
também a sua superioridade) por meio de presentes e assume geralmente a edu-
cação dos filhos do vassalo, que deixam a casa paterna durante a adolescência
aara viver junto ao senhor. Enfim, e sobretudo, o senhor provê o seu vassalo de
um feudo que lhe permite manter sua posição e preencher suas obrigações. Mais
do que um bem ou uma coisa, o feudo deve ser considerado a concessão de um
poder senhorial, que pode dizer respeito a uma terra e seus habitantes, mas pode
também limitar-se a um direito particular, por exemplo, o de exercer a justiça, de
recolher uma taxa ou cobrar um pedágio.
A.relação vassálica é instituída por um ritual, a homenagem, que, em sua
forma clássica, parece característica, sobretudo, das regiões ao norte do
Loire. Pode-se decompô-la em três partes principais. A homenagem propria-
mente dita consiste em um engajamento verbal do vassalo, que se declara o
homem do senhor, seguido do gesto da immixtio manuum, pelo qual o vassa-
lo, ajoelhado, põe suas mãos juntas entre as do senhor (este gesto, que expri-
me claramente uma relação hierárquica na qual a proteção corresponde à
fidelidade, é tão importante na sociedade feudal que transforma as modali-
dades da prece cristã, que não se realiza mais à moda antiga com os braços
separados e as mãos elevadas para o céu, mas com as mãos juntas, sugerindo,
assim, uma relação de tipo feudal entre o cristão, o fiel, e Deus, o Senhor).
A segunda parte do ritual, denominada fidelidade, consiste em um juramen-
to, prestado sobre a Bíblia, e um beijo entre vassalo e senhor, por vezes na
mão, mas com mais freqüência na boca (osculum), segundo um uso corrente
na Idade Média. Finalmente, ocorre a investidura do feudo, expressa ritual-
mente pela entrega de um objeto simbólico, tal como um punhado de terra,
um bastão, um galho ou um ramo de palha. No geral, esse ritual forma um
conjunto simbólico elaborado, do qual participam gestos, palavras e objetos,
com a finalidade de construir uma relação ao mesmo tempo hierárquica e
igualitária. Como bem demonstrou Jacques Le Goff, o ritual de vassalagem
instaura, de maneira visível e concreta, uma "hierarquia entre iguais", estru-
turando, assim, as diferenças internas de um~que~ seu conjunto,
se quer acima do homem comum.
As origens da relação vassálica remontam à época carolíngia. Desde meados
do século VIII observa-se a prática de um juramento de fidelidade pelo qual o rei
ou o imperador esforça-se para garantir a fidelidade dos grandes, aos quais confia
as "honras" que são os encargos públicos, especialmente o governo das províncias.
Depois, na época de Carlos Magno e de Luís, o Piedoso, o engajamento vassáli-
co, que é uma forma de "recomendação" pela qual se é posto sob a proteção de
um personagem eminente, reconhecendo deveres em relação a ele, generaliza-se
6. O écu indica, a princípio, o escudo medieval e a utilização de sua imagem nos brasões; por
extensão, também a moeda portando tais armas. (N. T.)
1 ~r }érôme Baschet
dros elementares do poder sobre os homens (uma dominação que, num tal con-
texto. hesitaríamos em qualificar, conforme o nosso vocabulário, de "política").
A norma da lógica feudal consiste, assim, em ~ma disseminação da autoridade
até os níveis mais locais da organização social. E preciso, ainda, notar que, se ela
faz dos reis personagens dotados de uma capacidade muito fraca de comando, a
generalização do quadro senhorial amplia-se ainda mais no fim do século XII e no
século XIII, enquanto já se esboça uma retomada da autoridade real.
Para a historiografia do século XIX, estreitamente associada ao projeto da bur-
guesia, engajada na construção do Estado nacional e que concebia sua gesta como
uma luta contra o Antigo Regime feudal, tal fragmentação senhorial aparecia
como o cúmulo do horror e o complemento lógico do obscurantismo medieval.
Considerava-se, então, um dever insistir sobre as desordens e as destruições pro-
vocadas pelas guerras privadas entre senhores, a fim de melhor revelar a "evidên-
cia": a anarquia feudal e, em contraste, a ordem trazida por um Estado nacional
centralizado, fundado sobre um direito unificado (do qual o direito romano é,
então, constituído como referência mítica). É difícil não ver quanto essa visão de-
preciativa da Idade Média está ligada à ideologia do século XIX e aos interesses ime-
diatos daqueles que a promoveram. Era, então, mais do que tempo de os historia-
dores submeterem essa herança à crítica; e é revelador, a este propósito, que se
tenha podido, recentemente, intitular uma obra consagrada à França dos séculos
XI e XII A ordem senhorial. Como indica o seu autor, é preciso para isso "imaginar
que, antes do Estado moderno, certo equilíbrio social e político possa ter existido
graças aos poderes locais e de feição privada" (Dominique Barthélemy). Mesmo
se ela é limitada e regulamentada pelos códigos dafaide, não se poderia negar a
violência dessa ordem, nem a rude exploração que ela impõe à maioria dos produ-
tores. A expressão não poderia, então, ser entendida como um julgamento de
valor, mas somente como um julgamento de fato: a ordem reina no mundo feudal,
e não sem eficácia, sem o que não poderíamos explicar o impressionante desen-
volvimento do mundo rural que se opera ao mesmo tempo que a dispersão feudal
da autoridade. De fato, esta deve ser analisada menos em termos de fragmenta-
ção (percepção negativa a partir de um ideal estatal) que de maneira positiva,
como processo de "ancoragem espacial do poder" Ooseph Morse!). A concentra-
ção de poderes de origens diferentes nas mãos de senhores próximos e exigentes
poderia mesmo ser considerada um dos elementos decisivos do crescimento oci-
dental. Ao menos, deve-se admitir que essa forma de organização era suficiente-
mente adaptada às possibilidades materiais de produção e à lógica social global
para que essa combinação dê lugar a uma potência dinâmica que, de resto, não se
limita apenas à quantificação econômica, mas abrange o conjunto dos fenômenos
que concorrem para a afirmação da civilização feudal.
Uma vez que a vassalidade, restrita aos grupos dominantes, concerne apenas a
uma ínfima proporção dos homens (e menos ainda das mulheres), ela não pode-
ria constituir a principal relação social no seio do sistema feudal. Esta deve
engajar o essencial da população e definir o quadro fundamental no qual se rea-
lizam a produção e a reprodução social: assim, só pode tratar-se da relação entre
os senhores e os produtores que dependem deles (notar-se-á, aqui, que o termo
"senhor" designa aquele que controla um senhorio, na relação com seus depen-
dentes, e não tem o mesmo sentido que na relação feudo-vassálica; de resto,
aquele que tem um senhorio recebeu-o, geralmente, como vassalo de um
senhor mais poderoso). Serão seguidas, aqui, as análises de Alain Guerreau, que
dá a esta relação entre senhores e dependentes o nome de dominium (ou domi-
nação feudal), pois ela engaja- segundo os termos da época-, de um lado,
um dominus (mestre, senhor) e, de outro, produtores postos em posição de depen-
dência. Estes últimos são qualificados de homines propii (homens do senhor) ou
de "vilãos" (villani, quer dizer, os habitantes do lugar, originalmente a villa).
O termo "vilão", que de início não é pejorativo, é sem dúvida o mais adequado,
em primeiro lugar porque a noção moderna de "camponês" não tem equivalen-
te nas concepções medievais. Nelas, os homens rurais não eram definidos por
suas atividades (o trabalho da terra), mas pelo termo "vilão", que abrange todos
os aldeãos, seja qual for sua atividade (aí incluídos os artesãos), e que indica
essencialmente residência local. Ele também não designa um estatuto jurídico
(livre/não-livre), questão que parece relativamente secundária. A base funda-
mental dessa relação social é antes de ordem espacial: ela designa todos os habi-
tantes de um senhorio, os vilãos (ou, se quisermos, aldeãos) que sofrem a domi-
nação do senhor do lugar. Além disso, assim como o laço vassálico, essa relação
enuncia-se nos mesmos termos que a relação do fiel com Deus (homoldominus).
Perante o senhor feudal, os vilãos estão, então, na mesma posição que os
homens diante de Deus, de modo que as duas relações se reforçam mutuamen-
te, como em um jogo de espelhos. Antes de precisar a natureza da relação de
dominium, é indispensável definir o quadro espacial no qual ela se estabelece e
que, pela razão já dita, é aspecto decisivo.
1 ~ 8 ]érôme Baschet
0 nascimento da aldeia e o encelulamento dos homens
Seja resultante da vinculação dos escravos aos mansos, seja relacionado aos
detentores dos alódios, o habitat rural do fim da Alta Idade Média é disperso e
instável. Ele consiste de construções leves, cuja armação é em madeira (e que
deixam aos arqueólogos apenas traços superficiais ou inexistentes). Fora alguns
edifícios mais importantes, que exercem o papel de pontos fixos, estas frágeis
moradias são periodicamente abandonadas. Se lembrarmos, aliás, que a agricul-
tura de então é extensiva e parcialmente itinerante, podemos concluir que,
ainda por volta de 900, as populações rurais do Ocidente estão imperfeitamen-
te fixadas. Depois, em momentos diferentes segundo as regiões (no essencial,
na segunda metade do século X e no decorrer do século XI, mas por vezes mais
tardiamente, como no Império), opera-se um amplo remanejamento da zona
rural. Ao lado da transformação das terras em terrenos cultiváveis e da conquis-
ta de novos solos, deve-se mencionar a reestruturação dos patrimônios eclesiás-
ticos que, além do crescimento das doações piedosas de que eles se beneficiam
então, enseja uma intensa prática de cessões, vendas ou troca, o que permite
aos domínios da Igreja uma maior coesão espacial. Isso contribui -junto com
outros fenômenos que afetam as terras laicas, como o declínio dos alódios, obri-
gados a se pôr na dependência de um poderoso - para uma fixação mais clara
do loteamento, bem como para uma estabilização da rede de caminhos. Mas o
essencial é, sem dúvida, o reagrupamento dos homens (congregatio hominum)
e a fixação do habitat rural, cada vez mais feito em pedra. O resultado é "o nas-
cimento da aldeia no Ocidente", desde que se admita, seguindo Robert Fossier,
que uma aldeia supõe "um agrupamento compacto de casas fixas, mas também
[... ] uma organização coerente do território em torno e, sobretudo, o apareci-
mento de uma tomada de consciência comunitária, sem a qual não há 'aldeãos',
mas apenas 'habitantes"'. Por volta de 900, não existem aldeias conforme essa
definição; por volta de 11 00, o essencial dos campos ocidentais é organizado
dessa maneira. Entre os dois momentos, organizou-se o essencial da rede de
habitações rurais que (com o acréscimo das novas aldeias implantadas ao longo
dos séculos XII e XIII, nas zonas de colonização, e levando em conta o abandono
de certos lugares) vai perdurar até o século XIX. Evidentemente, se não é uma
revolução, como tentou dizer Robert Fossier, é, ao menos, uma mutação consi-
derável, pois ela desenha a fisionomia dos campos por cerca de oito séculos.
Longe de ser homogêneo, esse processo se realiza segundo cronologias e
modalidades muito variadas conforme as regiões (e no interior de cada uma
delas). Particularmente precoce na Itália central, onde começa antes de meados
do século X por iniciativa dos senhores, ele enseja o reagrupamento do habitat
A relação de dominium
Hoje não se crê mais, como queria a historiografia tradicional, que todos os pro-
dutores dependentes do senhor feudal fossem servos. Uma das contribuições
mais marcantes da obra de Georges Duby é a de ter mostrado que a servidão
7. Os "droits quérables" são aqueles direitos que o senhor deve ir buscar (quérir) junto aos seus
dependentes. (N. T.)
8. Talha. (N. T.)
13 ~ ]ér6me Baschet
é possível, se se faz questão disso, atribuir-lhe uma origem no ban, pois preten-
de-se que ela seja cobrada em contrapartida da proteção dos aldeãos. O senhor
gostaria de estipulá-la como bem entendesse, mas os camponeses exigem dele o
"abornement", 9 quer dizer, a fixação nos limites estabelecidos pelo costume. E pre-
ciso pagar também ao censo, que parece ser o arrendamento da terra e que con-
siste em uma parte da colheita, entregue in natura (o champart}. A porcentagem
varia fortemente segundo os tipos de solo e as regiões, entre um terço e um quin-
to. sem excluir taxas particularmente baixas ou outras excepcionalmente eleva-
das. Mas existem também outras opções, como na Itália, onde o contrato live-
lar, IO arrendamento de trinta anos renovável, é particularmente vantajoso para os
camponeses, ou como a meação, repartição pela metade quando o senhor forne-
ce sementes e parelhas de animais, solução esta que conhecerá grande sucesso
no fim da Idade Média. A evolução mais importante do censo é sua progressiva
transformação, a partir do início do século XII, em uma renda paga em dinheiro,
o que não ocorre sem dificuldade, na medida em que o senhor se esforça por
impor sua própria estimativa da contrapartida monetária, que raramente é do
gosto dos produtores. É preciso acrescentar, ainda, o direito de hospedagem
(abrigar e sustentar o senhor e sua corte um certo número de dias por ano}, os
"presentes" e ajudas excepcionais que o senhor exige em certas ocasiões, tais
como o pagamento de um resgate, uma peregrinação, um casamento ou uma
celebração familiar, mas que tendem a ser convertidos em uma soma paga anual-
mente. Outros elementos concorrem, igualmente, para a dominação dos senho-
res, que mandam construir o moinho da aldeia, mas também o lagar e o forno, e,
sobretudo a partir do século XII, obrigam os habitantes a utilizá-los, em troca de
pesadas taxas, como por exemplo um décimo dos grãos trazidos (é por isso que o
moleiro é visto como um homem do senhor e deixado à margem da comunidade
aldeã). Enfim, os direitos de mutação ("lods et ventes""}, e, para os senhores que
podem cobrá-los, os pedágios sobre as mercadorias, na passagem de rios ou em
certos pontos dos caminhos, ou, ainda, no momento da venda no mercado local,
oferecem um rendimento razoável e, por vezes, considerável.
Um outro aspecto fundamental do poder do senhor é a possibilidade de
exercer ele próprio a justiça, que se torna ainda mais efetiva visto que a justiça
do conde se enfraquece e se revela incapaz de realizar sua tarefa. Também nisso
Tensões no senhorio
12. Jogo ritual que consiste em capturar e, eventualmente, decapitar a ave; não deve ser confun-
dido com a caça com auxílio de pássaros, em geral o falcão. (N. T.)
\<1\11111<,\DIIll"" /-/j
também se concentra uma produção de tecidos em lã de grande reputação,
exportados para a Alemanha e até para a Rússia, mas principalmente para as
regiões mediterrâneas, em especial por meio das feiras de Fréjus e de Arles.
A esse eixo Norte-Sul, sem dúvida a principal via comercial de então, é preciso
acrescentar um eixo Leste-Oeste, que se afirma a partir de meados do século
XII, com o desenvolvimento do comércio na região báltica, dominada pelos mer-
cadores alemães, organizados em uma vasta rede de cidades e de armazéns: a
Hansa. Eles exportam sobretudo grãos, peles e madeiras provenientes do leste
do Báltico, até a Europa Ocidental e a Inglaterra.
Enfim, o Mediterrâneo ocidental é liberado da dominação muçulmana, sob
a ação dos pisanos e genoveses, dos catalães e dos normandos, que recuperam a
Córsega, a Sardenha, a Sicília, as ilhas Baleares, e devolvem a segurança aos por-
tos do Sul da França. Resulta disso um desenvolvimento das cidades costeiras
italianas: Amalfi e Salerno, as precursoras, são logo destronadas em proveito, de
início, de Pisa e, em seguida, de Gênova e Veneza. Estas últimas encarregam-se,
então, das trocas entre Ocidente e Oriente, beneficiando-se de privilégios e de
monopólios em Bizâncio, como é o caso de Veneza, e, depois, instalando arma-
zéns e desenvolvendo seus interesses em todo o Mediterrâneo oriental, até
Antioquia e o mar Negro. Aí, eles compram produtos cada vez mais requeridos
no Ocidente - seda, algodão, açúcar, especiarias, marfim, ouro, perfumes - e
vendem tecidos do Norte -lãs, óleo ou sal. Essa expansão em direção ao comér-
cio distante fortifica as cidades italianas e leva, no século XII, a uma evolução
notável. Os mercadores do Norte têm menos razão de descer para a península
para vender os produtos que os italianos levam até o Oriente. A produção meta-
lúrgica aumenta na própria Itália, assim como o artesanato têxtil, estimulado pela
invenção do tear horizontal. Trata-se fundamentalmente da fabricação do tecido
de lã, que fará a fortuna de Florença (o cânhamo e o linho permanecem secun-
dários, assim como a seda que, entretanto, começa a se desenvolver no fim do
século XII). Doravante, são os mercadores italianos, qualificados genericamente
de "1ombardos", que atravessam cada vez com mais freqüência os Alpes para ven-
der seus produtos na França e na Alemanha. É o seu avanço que conduz a situar
no centro da Europa a zona das trocas comerciais mais intensas, originando,
assim, as feiras de Champagne. Ali são negociados os produtos do Norte e do
Sul, em particular das duas regiões mais ativas- Itália e Flandres. Diferentes
dos mercados, mais regulares, as feiras são aglomerações de periodicidade fraca,
com freqüência anual, por vezes semestral ou trimestral, dotadas de privilégios
pela autoridade fundadora e estreitamente controladas por ela. Elas existem em
todas as regiões do Ocidente desde, pelo menos, o século X. As feiras de
Champagne, fundadas em Provins, Troyes, Bar e Lagny, conhecem um sucesso
I -H }érôme Baschet
excepcional desde a primeira metade do século XII e durante o século XIII, ao
termo do qual começa seu declínio. Nota-se aí a vontade manifesta do conde de
Champagne, que se preocupa com sua boa organização, garante a proteção àque-
les que delas participam e destina uma parte importante dos rendimentos que
delas tira para a Igreja. Sinal deste desenvolvimento das trocas, a cunhagem do
ouro, abandonada desde Carlos Magno e, de início, tentada em vão com finali-
dades de prestígio por certos príncipes, é retomada com sucesso por iniciativa
das cidades italianas (o genovês, em 1252; no mesmo ano, em Florença, o flo-
rim, que será o modelo de todas as moedas de ouro do fim da Idade Média; final-
mente, o ducado de Veneza, em 1284). Esta é a melhor prova do desenvolvimen-
to dessas cidades e de seu papel no grande comércio.
A reafirmação do fenômeno urbano na Idade Média Central está associa-
da ao desenvolvimento das atividades artesanais e comerciais. Mas a função
militar e, sobretudo, a presença de uma autoridade episcopal, condal ou princi-
pesca, que suscita a manutenção de uma corte numerosa e cria um efeito de.
atração, são igualmente decisivas. \Estas últimas permitiram, de resto, a manu-
tenção dos núcleos urbanos durante a Idade Média e, mesmo quando o desen-
volvimento artesanal e comercial faz sentir seus efeitos, elas continuam com fre-
qüência a ter papel significativo no desenvolvimento urbano. Além disso, no
contexto específico da Reconquista ibérica, o rei, grande distribuidor de terras,
apóia-se nas cidades para controlar o território. Em especial em Castela e Leão,
ele concede precocemente fueros aos núcleos de povoamento preexistentes ou
recém-criados. Ele estabelece, assim, autoridades urbanas (Concejos), às quais
concede o conjunto de bens reais (realengo) situados nos territórios (alfoz), que
dependem da cidade. Se as numerosas cidades estabelecidas ao norte do Douro,
durante os séculos XII e XIII, devem compor com os poderes senhoriais e eclesiásti-
cos, que são como enclaves em seu domínio de competência, as cidades situadas
entre o Douro e o Tejo, que correspondem a uma segunda fase da Reconquista,
ganham um alfoz extraordinariamente extenso (por exemplo, Segóvia ou Ávila)
e muito mais homogêneo. Um outro traço original da política dos reis de Castela
é a implantação consciente de uma rede de pequenas cidades, por vezes criadas
pelo reagrupamento de algumas aldeias e destinadas a reunir uma população da
ordem de oitocentos a 2 mil habitantes. Esse modelo da villa, que permite uma
forma de controle do território intermediária entre a da aldeia e a das cidades
mais importantes (civitas, ciudad), terá papel significativo na implantação hispâ-
nica no Novo Mundo (Pascual Martinez Sopena). Se os motivos e as circuns-
tâncias variam, a tendência é manifesta: as cidades do Ocidente conhecem um
forte crescimento durante a segunda metade da Idade Média. De início, for-
mam-se burgos em torno das muralhas antigas: símbolo da renovação urbana,
VII. Duas cidades novas com plantas em tabuleiro, criadas na segunda metade do
século XIII: Mirande (ao norte dos Pireneus, fundada em 1285) e Soldin (Brande-
burgo, fundada entre 1262 e 1280).
A tensão realeza/aristocracia
13. Vestis dalmatica: túnica manchada, de mangas curtas e amplas, utilizada pelos imperadores
romanos; na Idade Média, manto reservado a altos dignitários eclesiásticos. (N. T.)
14. Figura um tanto enigmática de rei-sacerdote de Salem (talvez o nome arcaico de Jerusalém),
que aparece na gesta de Abraão no Gênesis 14, 18-20. (N. T.)
15. Trata-se da tuberculose ganglionar linfática. (N. T.)
I ;; 8 ]érôme Baschet
O rei medieval deve ser- este é um elemento decisivo de seu poder- um rei
cristão, e os reis ocidentais rivalizam neste aspecto: vários se dizem "muito cris-
tãos", em particular o francês, que monopolizará este título a partir do século
XIV, enquanto os reis hispânicos reivindicarão o de "católicos". Neste sentido, o
poder real repousa sobre uma adequação às normas ideológicas definidas pela
Igreja. E ninguém preencheu melhor esta exigência do que Luís IX da França,
levada, no seu caso, até os mais extremos escrúpulos de uma devoção e de uma
penitência quase monásticas. O italiano Salimbene diz que ele parece mais um
monge que um guerreiro. Ele é, em todo caso, o rei cristão ideal, completamen-
te laico conforme o modelo desejado pelos clérigos, o que lhe terá valido as hon-
ras de uma canonização única entre os reis da Europa Ocidental depois do sécu-
lo XII (Jacques Le Goff).
O poder monárquico concentra-se, no essencial, na pessoa do próprio rei.
É por isso que os soberanos do período considerado aqui são itinerantes; eles
têm, é verdade, uma capital privilegiada, ou com freqüêcia duas, mas devem
deslocar-se incessantemente, pois sua presença física é decisiva para dar força
a suas decisões. O rei, entretanto, não está sozinho: sua família muitas vezes
exerce um papel político, benevolente (o rei capetiano confia territórios como
apanágio a seus irmãos) ou hostil (revolta dos filhos de Henrique 11 Plantage-
neta); sua corte doméstica divide os encargos da casa real, que se tornam, pouco
a pouco, funções políticas que permitem participar do conselho do rei (o condes-
tável é encarregado dos cavalos e também da guerra, o camarista faz o papel de
tesoureiro, o chanceler, geralmente um homem da Igreja, redige e autentica as
escrituras reais). Enfim, os grandes vassalos reúnem-se na corte do rei, em com-
panhia de um número crescente de especialistas, clérigos e juristas, mas também
astrólogos e médicos. É somente durante o século XIII que a corte real tende a se
fracionar em órgãos especializados, como o Parlamento, que se consagra aos
negócios de justiça, ou a corte de contas, encarregada dos rendimentos reais.
O poder do rei repousa, de início, sobre seu domínio, que durante muito
tempo forneceu o essencial de suas finanças. O rei da Inglaterra, que controla
uma sólida porcentagem do solo de seu reino, em particular as florestas, assim
como, em menor grau, o rei da França, pode "viver do que é seu", o que atrai o
ciúme do imperador. A administração do domínio é confiada a agentes reais
(prebostes dominiais, na França), que se encarregam de canalizar seus rendi-
mentos para os cofres reais. Somam-se a isso diversos direitos econômicos, que
ainda não se diferem totalmente, a não ser talvez em termos de quantidade, da
norma senhorial - direitos de pedágio ou de aduana na Inglaterra, taxa sobre o
sal (gabelle) na França - , algumas ajudas excepcionais, no caso de cruzadas,
por exemplo, e diversas cobranças sobre a Igreja (recebimento dos rendimentos
16. Do latim hostis, indica, na Idade Média, o exército de um senhor ou soberano. (N. T.)
17. A fórmula tradicional, em francês, deixa claro os vínculos com o direito de comando militar:
"le ban et l'arril!re-ban". (N. T.)
Três relações sociais fundamentais foram evocadas até aqui para dar conta da orga-
nização feudal: a relação senhores/dependentes; a distinção nobres/não-nobres; a
interdependência e a oposição cidades/campos. É preciso acrescentar as relações
de vassalidade, que configuram parcialmente as hierarquias no seio do grupo domi-
nante e lhe conferem uma coesão entremeada de rivalidades. Esta relação, entre
um senhor e o vassalo que se declara seu "homem", por vezes "de mão e de boca",
é muito próxima daquela que liga um senhor do senhorio a seus dependentes;
ambas, de resto, são pensadas em termos da relação entre o homem e Deus (domi-
nus). Elas são, entretanto, de natureza e de importância radicalmente diferentes.
A primeira concerne à ínfima minoria das classes dominantes, mas se beneficia da
solenidade do ritual da homenagem; a segunda engaja a quase totalidade da popu-
lação e põe em jogo o essencial das relações feudais de produção.
Desde que se renuncie a considerar as relações vassálicas o coração da
sociedade medieval, como queria a historiografia centrada nos aspectos institu-
cionais e políticos, surge uma polêmica semântica. Mais do que continuar a falar
de sociedade feudal, o que parece pôr a ênfase sobre o feudo e sobre as institui-
ções da vassalidade que regulamentam sua transmissão, não seria melhor prefe-
rir a noção de sociedade senhorial? O que é certo é que o senhorio é, de fato, a
unidade de base, no seio da qual se instaura a relação de dominação e de explo-
ração entre dominantes e dominados. O argumento é bastante válido, pois ele
procura deslocar a ênfase da vassalidade para o senhorio e para a relação de
dominium que nele se estabelece. Mas se pode também notar que a especifici-
dade do senhorio - a junção do poder sobre as terras e do poder sobre os
homens - é estreitamente associada ao desenvolvimento da feudalização, ou,
melhor, à disseminação da autoridade da qual ela é uma das modalidades. E, se
as instituições vassálicas têm um papel na afirmação da dominação senhorial,
elas contribuem de modo notável, embora em associação com outros laços, em
particular os de parentela ou de amizade, para a distribuição das posições domi-
nantes no seio da relação de dominium. Mas, sobretudo, os termos clássicos
sociedade feudal e feudalismo remetem a uma convenção tão solidamente anco-
rada que é mais fecundo transformar a sua compreensão do que modificar seu
nome: "Se feudal serve com freqüência para caracterizar sociedades nas quais o
feudo certamente não foi o traço mais significativo, não há nada nisso que con-
tradiga a prática universal de todas as ciências [... ]. Ficaríamos escandalizados se
1 r, r }érôme Baschet
I I I
A
IGREJA, INSTITUIÇÃO
DOMINANTE DO FEUDALISMO
1- ~ jérôme Baschet
O ritual eucarístico não é menos fundamental. Golpe de mestre do cristianis-
mo, pelo qual o sacrifício do deus supera definitivamente o sacrifício ao deus, a
missa (durante a qual "se oferece o deus a ele próprio", segundo a expressão de
Mareei Mauss) reafirma constantemente a coesão da sociedade cristã. Pela rei-
teração do sacrifício redentor de Cristo, ela garante a incorporação dos fiéis à
comunidade eclesial e, enquanto sacrifício oferecido por esta, assegura a circu-
lação das graças na esperança de salvação dos justos.
Na segunda parte retornaremos aos sacramentos, e particularmente ao
casamento (os que já foram citados formam -com a confissão, a crisma, a
extrema-unção e a ordenação - o septenário que se constitui no século XII).
Mas, desde já, constata-se claramente que esses ritos são indispensáveis para
assegurar a coesão da sociedade cristã, assim como o desenvolvimento de cada
vida individual em seu seio. Eles marcam suas etapas principais (nascimento,
casamento e morte) e autorizam, por si sós, a esperança de salvação no outro
mundo, sem o que a vida terrestre seria privada de sentido cristão. Ora, todos
esses ritos só podem ser realizados pelos sacerdotes (por vezes, discute-se se um
laico pode, em caso de urgência, proceder a um batismo, mas trata-se de um caso-
limite, que não tem nenhum efeito prático e não põe em causa a regra funda-
mental). Assim, os clérigos, especialistas do sagrado e dispensadores exclusivos
dos sacramentos necessários a toda vida cristã, dispõem de um monopólio
decisivo: não se pode nem viver em cristandade nem realizar sua salvação sem
o seu concurso. Os fiéis não podem se beneficiar da graça divina sem fazer
apelo à mediação dos clérigos, sem recorrer aos gestos que a ordenação sacer-
dotal dota de um poder sagrado. O clero é um intermediário obrigatório entre
os homens e Deus.
Seria absurdo - mas bem em conformidade com nossos hábitos de pensa-
mento- separar a parte material e a parte espiritual do poder da Igreja. Na lógi-
ca do sistema medieval, tal divisão não tem sentido, pois a Igreja se define nela
pelo fato de ser, ao mesmo tempo, uma instituição encarnada, fundada sobre
bases materiais bastante sólidas, e uma entidade espiritual, sagrada (mesmo se
a maneira de articular estas duas dimensões esteja longe de não apresentar difi-
culdades, como veremos). Ela não teria nenhum poder material se não lhe fosse
reconhecido um imenso poder espiritual: nenhuma doação de terras ou de bens
ocorreria sem o arrependimento que nasce ao termo de uma vida sobre a qual
pesa a reprovação dos clérigos, sem a preocupação de salvação da alma e sem a
idéia de que a Igreja pode ajudar os defuntos no além. Além disso, não se faz
um dom à Igreja para que ela acumule, mas para que, por sua vez, ela também
doe (uma ajuda material aos pobres e aos enfermos, graças espirituais aos doa-
dores e a seus próximos). Convém, então, retificar a expressão utilizada acima:
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12. A procissão do papa Gregório, o Grande, estanca a peste que assola Roma, c. 1413 (Riquíssimas
horas do duque de Berry, Museu Condé, Chantilly, 65, fls. 71 v.-72).
Esta suntuosa miniatura, habilmente disposta às margens de salmos penitenciais e de litanias, põe em cena um
milagre atribuído a Gregório, o Grande: em 590, o arcanjo Gabriel lhe aparece acima do castelo de Sant'Ângelo
embainhando sua espada para indicar o fim da epidemia de peste (chamada de Justiniano). Claramente, a ima-
gem tem pouco a ver com as realidades do século vr e evoca mais o fausto da igreja romana do fim da Idade
-:lédia. Roma aparece como uma cidade gótica e a hierarquia clerical é representada de maneira cuidadosamen-
e ordenada, sob a autoridade do papa, que porta a tiara e está associado ao colégio dos cardeais. A abundância
los objetos litúrgicos é impressionante: cruzes e estandartes de procissão, incensórios e aspersórios, livros orna-
.os de pesadas encadernações, ostensórios e relicários. A imagem mostra, além disso, uma forma freqüente de
•rática litúrgica do espaço: a deambulação processional em torno das muralhas, que fortifica simbolicamente a
lelimitação entre interior e exterior a fim de preservar a cidade das ameaças que pesam sobre ela.
se a Igreja é dotada de uma excepcional capacidade de acumular terras e
riquezas, é porque se lhe reconhece uma força distributiva ainda maior; é por-
que ela está apta a garantir uma circulação generalizada das benesses mate-
riais e espirituais.
Desde o início do século XX, adquiriu-se o hábito de considerar que os fiéis dão
à Igreja bens materiais em troca de graças recebidas ou esperadas (proteção,
cura, salvação), referindo-se de maneira mais ou menos precisa à lógica do dom
e contradom analisada por Mareei Mauss (a qual não supõe absolutamente um
jogo de resultado nulo entre participantes situados em um plano de igualdade).
Vários estudos recentes nos convidam a modificar essa leitura. Com efeito, ao
menos quatro pólos intervêm: além dos clérigos e dos doadores, é preciso inte-
grar os pobres, encarnações do próximo e duplos de Cristo, aos quais é destina-
da uma parte dos dons feitos à Igreja e, sobretudo, não esquecer de incluir Deus
e os santos, únicos dispensadores possíveis da graça espiritual e verdadeiros des-
tinatários das doações, que os monges recebem em seu nome (figura 11, na
p. 172). Além disso, a operação que ocorre aqui é bem mais coletiva do que
parece: conforme a lógica da laudatio parentum, as doações engajam igualmen-
te a parentela e os atos especificam que elas são feitas para servir de amparo não
somente à alma do doador, mas também às almas de seus próximos e (se seguir-
mos Michel Lauwers, talvez principalmente) às de seus ancestrais; a isso pode-
mos acrescentar que, se as preces dos monges mencionam especificamente o
nome dos doadores, elas visam, ao mesmo tempo, assegurar a salvação de toda
a cristandade. Enfim, numerosos traços escapam à lógica do dom e contradom:
aquele que doa não é necessariamente o que recebe, de modo que ninguém
pode estar seguro do que receberá (os clérigos não poderiam comprometer de
modo infalível o Todo-Poderoso, que é o único a conceder a salvação); o que
dá é, de fato, aquele que já recebeu (os clérigos insistem sobre o fato de que os
doadores apenas restituem uma parte dos bens dados por Deus); o que se rece-
be nunca é direta e proporcionalmente ligado ao que foi dado (pois, em toda
graça espiritual, intervêm de modo determinante o tesouro dos méritos acumu-
lados pelos santos e os efeitos favoráveis de sua intercessão permanente junto a
Deus, assim como a totalidade das oferendas eucarísticas realizadas no conjun-
to da cristandade).
É verdade que os aristocratas que doam terras esperam que esse gesto lhes
valha, a eles e a seus ancestrais, graças espirituais e, em primeiro lugar, a salva-
I 8. Igreja colegiada é aquela que, sem ser catedral, possui um cabido de cônegos próprio. (N. T.)
O sistema esboçado acima não se formou nem se consolidou sem lutas, por vezes
violentas. Ele é o resultado de um processo ao longo do qual o poderio da insti-
tuição eclesial se reforçou e do qual é necessário evocar as principais etapas.
Mesmo se os fenômenos descritos aqui prolongam uma dinâmica iniciada desde
os séculos IV a VI, trata-se também, em certos aspectos, de uma reforma (sobre
bases, em parte, antigas). Como já se disse, o insucesso da tentativa carolíngia
livra a Igreja Romana de uma associação como irmã gêmea do Império, que, ao
contrário, perdurará em Bizâncio. No século X, a disseminação do poder de
comando faz da Igreja a única instituição capaz de conclamar à ordem pública e
à "paz de Deus". Ao mesmo tempo, o processo de encelulamento e o estabeleci-
mento dos senhorios obrigam-na a uma viva reação para evitar tornar-se prisio-
neira da malha senhorial e a fim de, ao contrário, ser sua principal ordenadora.
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13. A notação musical, invenção de Cuido de Arezzo, fim do século XI (Biblioteca da Abadia de Monte-
cassino, ms. 318, n. 291).
Por volta de 1030, o monge cluniacense Cuido de Arezzo (morto em Ravena ao redor de 1090) estabelece um
sistema de notação musical que está na origem do nosso. Enquanto antes os "neumas" forneciam apenas indi-
cações de ritmo e de entonação, Cuido chega a dar conta, de modo inequívoco, da altura dos sons, definindo
seis notas (Ut, re, mi, fa, sol, la- as primeiras sílabas das palavras de um hino a são João) e dispondo-as sobre
linhas. Além disso, a "mão guidoniana" é uma espécie de ferramenta mnemotécnica, que permite aos cantores
percorrerem várias oitavas. Não é nada surpreendente que esta invenção seja devida a um monge cluniacense,
considerando-se a importância e o fausto de que a liturgia -e, então, o canto -era revestida nos estabeleci-
mentos monásticos dependentes de Cluny.
clero desaparece em torno de Cluny, como o lembram os conflitos de todos os
tipos e as maldições monásticas, com as quais os cluniacenses e os demais mon-
ges dos séculos X e XI se esforçam por fazer escudos eficazes. Ao uso das maldi-
ções é preciso associar o ritual do clamor pelo qual os monges, na presença das
relíquias dos santos, imploram a seus protetores celestes que defendam sua
comunidade e os protejam das intenções diabólicas de seus inimigos. Mas o
socorro dos protetores celestes nem sempre é suficiente: não se hesita, então,
em proceder a um ritual de humilhação dos santos, depositando suas relíquias
no solo, ao pé do altar, como se eles devessem fazer penitência, ao mesmo
tempo que os monges se prosternam, a fim de que a misericórdia divina os
recarregue de eficácia (Patrick Geary).
Fortalecida pelas vantagens acima indicadas, a Igreja de Cluny atinge o seu
apogeu sob os abadados excepcionalmente longos de Ma'ieul (954-94), Odilon
(994-1046) e Hugo de Semur (1049-1109), que estão entre os personagens
mais eminentes de seu tempo. Beneficiando-se de uma sólida base senhorial
local, os cluniacenses logo geram rivais em toda a cristandade. Eles ajudam
Guilherme, o Conquistador, a reorganizar os monastérios da Inglaterra, depois
de I 066, e fazem o mesmo junto aos soberanos hispânicos da Reconquista, o
que lhes vale o apoio financeiro tanto dos reis da Inglaterra como dos de
Castela-Leão, que enviam anualmente a Cluny um censo de mil (depois, 2 mil)
moedas de ouro cobradas dos sarracenos. No total, em 1109, a Igreja de Cluny
forma uma vasta rede de 1180 estabelecimentos, espalhada nas dimensões da cris-
tandade (e até a Terra Santa). Sua formidável capacidade de acumulação de
riquezas lhe permite construir, a partir de 1088, uma nova igreja abacial (cha-
mada Cluny m), consagrada em 1130 e que, com seus 187 metros de compri-
mento, é a maior igreja do Ocidente, superando todas as de Roma (figura 14, na
p. 188). Compreende-se que os cluniacenses tenham freqüentemente tendido
a confundir sua igreja e a Igreja universal, e mesmo a identificar Cluny e Roma.
No século XI, o coração vivo da cristandade é monástico mais do que secular,
tanto borguinhão como romano.
Cluny encarna um ideal monástico exigente, mas bastante presente nos
negócios do mundo. Enquanto a missão dos monges durante a Alta Idade Média
consistia em uma retirada para longe do mundo secular, os abades e as princi-
pais figuras de Cluny são levados a participar ativamente das lutas contra os ini-
migos da Igreja. Pedro, o Venerável, abade de Cluny de 1122 a 1156, engaja-se,
apoiado em tratados, em todas as frentes, tanto contra os heréticos como con-
tra os judeus e os muçulmanos. Essa evolução reduz a distância entre os regu-
lares e os seculares, tanto que os monges cluniacenses, que quase sempre rece-
beram o sacerdócio, assumem o encargo das igrejas que lhes são confiadas,
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14. A igreja abacial de Cluny, no fim do século XVIII (litografia feita antes de sua destruição).
Sucedendo a dois edifícios mais modestos e construída, no essencial, entre I 088 e 1130, a igreja abacial deno-
minada Cluny 111 é, então, a maior igreja da cristandade medieval, com seus 187 metros de comprimento. 38.5
metros de largura e 29,5 metros de altura na nave central (ela continuará a sê-lo até a reconstrução de São
i-'edro do Vaticano, no século XVI). Realização acabada dos princípios da arquitetura românica, é guarnecida com
fortes torres e dotada de um duplo transepto. Sua abside em andar é formada por elementos estruturalmente
distintos, que parecem justapostos uns aos outros. O arranjo em degraus de suas elevações deixa facilmente
adivinhar a organização do espaço interno: nave central do coro, abside principal, deambulatório circundando
esta tiitima, e, finalmente, absidíolas dotadas, cada uma, de seu próprio altar
implantando-se, assim, na rede paroquial e engajando-se nas tarefas pastorais.
Isso não ocorre sem que haja afrontamentos com os seculares, ao longo dos
séculos XI e XII, até que seja reconhecido o direito dos monges de exercer tare-
fas pastorais, sob a condição de que eles se submetam à autorização e ao con-
trole do bispo. Entretanto, o próprio sucesso de Cluny e seu engajamento nos
negócios seculares começam a ser objeto de críticas; a interpenetração com as
linhagens aristocráticas não está isenta de inconvenientes, e a dependência em
relação às doações se faz sentir desde que t~eu ritmo começa a decair; enfim, a
proteção direta do papa, por muito tempo garantia de autonomia, transforma-se
em uma pesada tutela.
De fato, no fim do século XI e durante o século XII, aparecem novas ordens
monásticas que, cada qual à sua maneira, se empenham em reafirmar a dimen-
são eremita do ideal monástico, a qual, sem a negar, Cluny havia contrabalan-
çado com poderosas interações com a vida secular. Uma opção eremita radical
é assumida pela Ordem dos Camáldulos, criada por são Romualdo, pelos
Cônegos Regulares Premonstratenses, ordem fundada por são Norberto de
Xanten, pela Ordem de Fontevraud, criada por Roberto De Arbrissel, e, sobre-
tudo, pela Ordem dos Cartusianos, fundada por Bruno e santo Hugo de
Grenoble, em 1084, e cuja organização é codificada por Guigo 1. Os monges
cartusianos, que dispõem de celas individuais no interior do monastério - em
vez do dormitório e do refeitório coletivos previstos pela Regra de são Bento -,
têm a experiência de uma solidão quase total, inteiramente devotada à penitên-
cia e à prece. Do mesmo modo, a Ordem Cisterciense, fundada por Roberto de
Molesmes, em I 098, e cujo desenvolvimento é obra de são Bernardo de Claraval
(I 090-1153), encontra-se, sob vários aspectos, em contraposição ao tipo monás-
tico cluniacense, mesmo se Bernardo é igualmente um dos personagens mais
influentes de seu tempo e, principalmente, um ardente pregador da cruzada.
Assim, os "monges brancos" (em sinal de austeridade, eles recusam a cor negra
das vestes dos cluniacenses) implantam-se muitas vezes nas zonas mais isoladas
e mais selvagens e esforçam-se para evitar que os seus monastérios se tornem o
centro de burgos, como foi o caso de Cluny, desde o fim do século X. Em opo-
sição à riqueza e ao ouro resplandecente dos rituais cluniacenses, são Bernardo
impõe a maior severidade à vida dos monges, assim como aos edifícios em pedra
nua que os abrigam, proscrevendo toda escultura ou toda imagem que pudesse
desviar a sua atenção da prece e da meditação piedosa. Enfim, os cistercienses
recusam possuir igrejas e receber dízimos, por respeito à função própria aos
seculares, e afirmam que os monges devem sobreviver graças ao seu próprio
labor (suscitando, assim, o horror dos cluniacenses, que julgam tal atividade de-
gradante e incompatível com o dever da prece). É verdade que os cistercienses
A C I V I L I Z A Ç À O FEUDAL / S 'J
logo recorrem aos irmãos conversos, laicos encarregados de tarefas produtivas,
mas, ao menos, conservam a idéia de uma exploração direta de seus domínios,
mais do que um recurso ao quadro senhorial, o que em geral lhes permite
obter resultados notáveis em matéria de exploração agrícola e de produção
metalúrgica. Mas, também nisso, o sucesso- a ordem tem 343 estabeleci-
mentos quando da morte de são Bernardo e perto de seiscentos no final do
século XII - tem conseqüências paradoxais: os dons acumulam-se e a deco-
ração das igrejas e dos manuscritos distancia-se rapidamente dos princípios
austeros do fundador.
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VIII. Dimensões comparadas da catedral gótica de Leão e do edifício românico que ela substitui.
Em Leão, os trabalhos empreendidos no século XIX permitiram revelar as fundações do edifício românico situa-
do sob a construção gótica que o substituiu (o caso de Salamanca permite, ao contrário, observar uma situação
excepcional, pois a catedral gótica é construída ao lado daquela de época românica, sinal bastante raro de res-
peito por um edifício anterior). O edifício românico (consagrado em l 073) comporta três naves, terminadas
cada uma por uma abside semicircular. Um século mais tarde, a construção de uma nova catedral é iniciada
pelo bispo Manrique de Lara ( 1181-1205), com o apoio do rei Alfonso IX. Interrompidos, os trabalhos são reto-
mados durante o episcopado de Martín Fernández ( 1254-89), que leva a cabo a edificação dos portais da facha-
da ocidental. A nova catedral multiplica de modo considerável o espaço interno utilizável, sinal ao mesmo
tempo do crescimento urbano e da vontade de poderio da Igreja.
17. A nave em berço da igreja abacial de Conques, segunda metade do século XI.
Realizada, em grande parte, na época do abade Odolrico (morto em I 065), a abadia beneditina de Conques pare-
ce ter sido terminada quando o abade Begon III (1087-1107) manda edificar a clausura. Na arquitetura români-
ca clássica, os arcos são em pleno cimbre e repousam sobre pilares, colunas ou semicolunas, geralmente orna-
dos de capitéis, como se vê aqui nas partes altas da nave principal. A abóbada central de berço, reforçada por
arcos cruzeiros, prolonga a mesma forma semicircular. A luz penetra apenas indiretamente na nave central, inclu-
sive na parte superior, onde as tribunas - andar sobreposto às naves secundárias - contrabalançam o repuxo
exercido pela abóbada central. Do mesmo modo, a abside, onde aparece o altar principal, é vazada apenas por
janelas estreitas (somente o cruzeiro do trdnsepto, encimado por uma torre ortogonal que data do século XIV, é
mais vivamente iluminado). Em uma nave românica, os contrastes de sombra e luz são fortemente marcados.
Do românico ao gótico
Os dois planos estão em escalas muito diferentes e levar-se-á em conta o fato de que a catedral de Bourges é mais de
duas vezes maior que a de Notre-Dame-du-Port.
atribuído habitualmente à igreja abacial de Saint-Denis, necrópole dos reis da
França (Roland Recht), observa-se nela uma das primeiras formulações, ainda
que parcial, desse projeto, entre 1130 e 1144, quando da reconstrução pelo
abade Suger do coro e da fachada do edifício. Durante as décadas seguintes, o
gótico afirma-se, adaptando-se a necessidades diversificadas, quando das obras
de numerosas catedrais do centro do reino da França (Sens, a partir de 1140;
Notre-Dame de Paris, a partir de 1163). Depois, atinge sua maturidade nos anos
1220-70, segundo modalidades em geral contrastantes (Chartres é terminada,
no essencial, por volta de 1220; Amiens e Reims, por volta de 1240; Bourges,
por volta de 1250). Pouco a pouco, o que se chama de opus francigenum (mar-
cando, assim, que a Ilha de França é o seu berço) é adotado através de todo o
Ocidente, com variantes múltiplas e cada vez mais refinadas, e torna-se, de
Burgos até Praga e de Canterbury até Milão, a técnica de construção dominan-
te até o início do século XVI.
Para explicitar esse novo sistema construtivo, sem equivalente na história,
pode-se partir do cruzeiro de ogivas, formado por duas nervuras em pedra que se
cruzam em ângulo reto e capaz de sustentar o restante da abóbada, feita de mate-
riais mais leves (figura 18, na p. 204). Todo o peso da abóbada é, assim, direcio-
nado para as quatro colunas que a sustentam, de modo que, mediante um con-
trapeso a essas forças assegurado por contrafortes e arcobotantes, os muros
laterais perdem seu papel de sustentação e podem ser substituídos por amplas
aberturas. Assim, têm-se os grandes vitrais que chamam a atenção tanto pela pro-
fusão quase impossível de captar das representações que contêm como pela
luminosidade colorida com a qual eles inundam o edifício. A realização da arqui-
tetura gótica é o desaparecimento tão radical quanto possível desses muros que
caracterizam o edifício românico e a invasão do lugar de culto por uma lumino-
sidade que, por certo, é rutilante e cambiante, mas que reduz os contrastes de
sombra e claridade e tende a fazer do edifício uma unidade de luz. Se o români-
co era uma arte do muro, o gótico é uma arte da linha e da luz, sinal indubitável
de uma relação com o mundo mais aberta, menos inquieta com o contato com
as realidades mundanas, tão presentes nas próprias portas das catedrais.
Através ou além da importância da luz, dois princípios estão no coração da
busca gótica. Em primeiro lugar, a unificação do espaço interior não é apenas a
conseqüência da luz colorida e contínua difundida pelos vitrais; ela é, de início,
ligada à adoção de plantas que tornam o edifício cada vez mais homogêneo
(supressão das tribunas, atenuação dos transeptos, integração do deambulatório
e das capelas laterais na unidade arquitetônica do coro) e que utilizam para todas
as partes da igreja medidas coordenadas fundadas sobre um módulo único (ilus-
tração X, na p. 202) Até no detalhe do desenho das colunetas ou molduras, tudo
Entre os séculos XI e XIII, não é apenas a igreja de pedra que muda, mas também
a Igreja como instituição. A criação das ordens mendicantes é um dos aspectos
mais marcantes dessas transformações. Para começar, evocar-se-á a figura de são
Francisco, personagem ao mesmo tempo singular e revelador das tensões de seu
século. Para isso é preciso recorrer às diferentes Vidas redigidas por seus discípu-
los conforme as regras do gênero hagiográfico, com a intenção de atestar a san-
tidade de Francisco e de fortalecer o seu culto. Trata-se, então, menos de uma
"verdade" biográfica que deve ser procurada nos textos do que a expressão dos
modelos e dos valores ideais de uma época. Francisco nasceu em 1181 ou 1182,
em Assis, uma das cidades da Itália central em que o comércio floresce precoce-
mente. Ele é o filho de um rico mercador, do qual lhe incumbe continuar os
negócios. Mas o jovem Francisco põe-se em busca de ideais mais elevados, sinal
de que o desenvolvimento das atividades urbanas não significa, necessariamen-
te, a formação de uma "burguesia" dotada de valores próprios bem assentados.
Interiorizando inconscientemente as hierarquias de seu tempo, ele sonha, de iní-
cio, com as proezas cavaleirescas e se prepara para partir para a guerra no Sul da
Itália. Mas uma visão sobrenatural o dissuade disso. Depois, enquanto ele ora na
igreja de San Damiano, diante da imagem de Cristo na cruz, este dirige-se a ele
e o convida a reconstruir a sua igreja. Como bom laico, que as realidades mate-
riais ainda impedem de elevar-se até as verdades espirituais, Francisco acredita
dever tornar-se pedreiro para reconstruir o edifício que ameaça cair em ruínas.
Mas, evidentemente, é para uma missão mais alta que Cristo o chama.
Francisco, cuja conduta o põe em conflito com seus pais, pouco a pouco toma
consciência disso e renuncia à herança paterna. Em um ato definitivo de conver-
são, ele se desnuda para restituir a seu pai os tecidos com os quais este faz
comércio e põe-se, nu, sob a proteção do bispo (figura 19, na p. 206). Em vez da
comodidade material que seu nascimento devia lhe proporcionar, ele abraça a
exigência de uma pobreza radical e escolhe "seguir nu o Cristo nu".
Sua mensagem, que começa então a pregar pela palavra, e sobretudo pelo
exemplo, surpreende por sua simplicidade: viver com o Evangelho por única
regra, fazer penitência. Francisco a põe em prática através de uma devoção que
associa o imediatismo e uma certa alegria, manifestação de uma comunhão com
21 O }érôme Baschet
21. O Triunfo da Igreja e dos dominicanos, 1366-68 (afrescos de Andrea di Bonaiuto, capela dos Espanhóis,
Santa Maria Novella, Florença).
Fazendo face à representação do Triunfo de São Tomás (adequadamente localizado na sala capitular de um con·
vento dominicano), esta vasta alegoria da Igreja põe o acento sobre práticas que se tornaram essenciais duran-
te os últimos séculos da Idade Média, especialmente a pregação e a confissão. Embaixo, à esquerda, um impo-
nente edifício eclesial é associado à hierarquia clerical, reunida em torno do papa. Adireita, os dominicanos
têm o papel principal: eles pregam e combatem os heréticos, enquanto cães devoradores lembram que sua mis-
são está inscrita em seu nome (dornini canes). Acima, quase no centro do afresco, um sacerdote recebe a con-
fissão de um fiel ajoelhado diante dele (o confessionário não existe durante a Idade Média). A confissão está
no cruzamento dos caminhos: aqueles que recorrem a ela são convidados por são Domingo a avançarem para
o paraíso. Tais como almas puras vestidas com túnicas imaculadas, eles são ali acolhidos por são Pedro, símbo-
lo da instituição eclesial e guardião da porta do céu. Uma vez transposto esse limiar, os eleitos gozam da visão
beatífica, quer dizer, da contemplação da essência divina, que aparece em meio a uma corte de anjos. Tal é a
recompensa suprema, à qual os cristãos chegam seguindo os ensinamentos da Igreja e recebendo, graças a ela,
os sacramentos salvadores. Assim, o afresco sobrepõe notavelmente os três sentidos da palavra "igreja": o ediff.
cio, a instituição clerical e a comunidade dos fiéis, chamada a se reunir na glória celeste.
de Fanjeaux, logo acompanhado por alguns discípulos que levam uma vida evan-
gélica, depois funda um primeiro convento em Toulouse. Em 1217 o papa apro-
va a nova ordem, posta sob a regra de santo Agostinho. Domingo vê na prega-
ção, apoiada pelo estudo e pela penitência, uma arma indispensável contra os
inimigos da Igreja. Os novos conventos daqueles que são chamados, justamen-
te, de frades pregadores multiplicam-se rapidamente, e Domingo morre à fren-
te de uma ordem poderosa, em 1221 (sua canonização ocorre em 1234). O per-
curso do fundador castelhano não se parece nada com o do santo dé Assis:e-te
é, logo de início, estreitamente ligado à instituição eclesiástica e, em_particutar,
à luta contra a heresia. De resto, os dominicanos tornar-se-ão especialistas nas
tarefas inquisitoriais e assumirão com orgulho essa função, considerando-se os
"cães do Senhor" (domini canes, de acordo com um jogo de palavras que o seu
nome permite em latim; figura 21, na p. 211). Os dominicanos também orien-
tam imediatamente suas atividades para o estudo e o esforço intelectual indis-
pensável para argumentar ao serviço da Igreja. Eles multiplicam, então, os studia
destinados à formação de seus membros, enquanto os primeiros franciscanos
procuram formas mais simples e mais imediatas de contato com Deus. Entre-
tanto, a despeito dessas diferenças iniciais, a evolução das duas ordens as apro-
xima, e muito em breve estarão, ao mesmo tempo, unidas por objetivos e práti-
cas bastante semelhantes e opostas por uma intensa rivalidade.
O sucesso das duas ordens que são chamadas de mendicantes, pois elas
querem, em seus inícios, nada possuir e viver apenas de dons de caridade, esten-
de-se logo a toda a cristandade. Os frades pregadores, caracterizados pela sua
vestimenta branca recoberta por um manto negro, são cerca de 7 mil por volta
de 1250 e dispõem de setecentos conventos no fim do século XIII, enquanto os
franciscanos (também chamados frades menores, em razão de sua humildade),
vestidos com um hábito de lã crua ou bege (nem pintado, nem embranquecido)
e reconhecidos, como Francisco, pela simples corda com um nó atada à sua cin-
tura, são talvez 2.500 por volta de 1250 e se repartem em cerca de 1.600 esta-
belecimentos meio século mais tarde. Outras ordens mendicantes de menor
importância também surgem, mas o Concílio de Lyon 11 (1274) limita seu
número a quatro: além dos franciscanos e dos dominicanos, trata-se dos carme-
litas, ordem fundada em 124 7, e dos eremitas de santo Agostinho, ordem cria-
da em 1256. Cada ordem, sob direção de um superior-geral e de responsáveis
provinciais, é dotada de uma coesão muito mais forte que as redes monásticas
anteriores. Cada uma delas conta, além de seu ramo masculino, com um com-
ponente feminino - como a Ordem das Clarissas, fundada por santa Clara de
Assis, associada aos franciscanos- e uma ordem terceira, na qual são acolhi-
dos os laicos que desejam viver devotadamente. O ideal de pobreza, associado
21 ~ Jérôme Baschet
à humildade e à penitência, é a característica primeira das ordens mendicantes.
Mas, como todas as outras aventuras monásticas anteriores, esbarra no parado-
xo do sucesso, que leva à multiplicação dos dons e à acumulação dos bens. Se
as ordens tradicionais impunham que cada monge não possuísse nada a título
individual, mas aceitavam as doações feitas à instituição, as ordens mendican-
tes, preocupadas em dar sentido ao ideal de pobreza, recusam essa opção. Mas,
logo, precisam forjar a teoria segundo a qual os bens recebidos por elas são pro-
priedades do papa e que a ordem tem apenas o seu uso, o que os franciscanos
espirituais não deixam. de denunciar como uma ficção hipócrita. •
A contribuição das ordens mendicantes tem a ver ainda mais com uma con-
cepção original do papel do clero regular. Mesmo aceitando uma regra de vida
comunitária e ascética, os mendicantes não optam por uma fuga do mundo.
Mesmo quando se referem idealmente ao exemplo dos eremitas do deserto (Alain
Boureau), assumem, na prática, viver em meio aos fiéis para pregar pela palavra e
pelo exemplo (na verdade, essa vocação pastoral caracteriza somente os ramos mas-
culinos das ordens; as mulheres permanecem confinadas em uma clausura tradi-
cional, o que, sem dúvida, favorece o desabrochar, particularmente entre as domi-
nicanas, de uma intensa devoção mística, que vem compensar a sua exclusão das
tarefas assumidas pelos frades). O século XII já havia visto certa aproximação entre
regulares e seculares, mas os mendicantes dão o passo suplementar instalando-se
no coração das. cidades (estes estranhos regulares, urbanos e pregadores, são, de
resto, chamados de frades, não de monges). As ordens mendicantes aportam,
assim, uma contribuição decisiva à Igreja de seu tempo, assumindo um enquadra-
mento e uma atividade pastoral ada~tados aos meios urbanos. Agindo assim, inter-
vêm em um terreno que é, normalmente, do clero secular, e os conflitos entre men-
dicantes e seculares não faltam, por exemplo, no seio da Universidade de Paris e,
mais amplamente, nas cidades, onde os bispos vêem com desconfiança esses pre-
gadores extremamente bem preparados, cujos sermões têm mais sucesso que aque-
les dos seculares e que captam para suas vastas igrejas os dons dos fiéis. O laço
entre ordens mendicantes e fenômeno urbano é, de resto, tão claro que se pôde
estabelecer uma correlação entre a importância das cidades medievais e o número
de conventos mendicantes que elas abrigam Qacques Le Goff). Em todas as cida-
des da Europa, sua implantação se faz segundo uma mesma lógica: tendo necessi-
dade de um amplo terreno, os conventos mendicantes se estabelecem nos limites
da zona construída e, considerando a concorrência existente entre eles, o mais
longe possível uns dos outros, segundo uma geometria bastante regular. Se uma
cidade abriga dois conventos mendicantes, o meio da linha que os liga é ocupado
pelos edifícios principais da cidade; se eles são três, o centro urbano ocupa aproxi-
madamente o ponto central do triângulo formado por eles.
.? 1 -1 }ér6me Baschet
características essenciais: o ensino não é mais submetido à autoridade do bispo
e diz respeito unicamente à corporação de mestres, os quais definem suas nor-
mas. A partir dali, a universidade é "um corpo profissional incorporado na
Igreja a título de instituição autônoma que, subtraída da jurisdição dos bispos
e dos senhores, é submetida unicamente ao poder pontifício e a seu controle
doutrinai" (Franco Alessio). Entre as primeiras universidades européias, dota-
das de estatutos no primeiro quartel do século XIII, é preciso citar ainda
Cambridge para a teologia, Montpellier para a medicina, Salamanca, Nápoles,
Pádua e, apenas pouco mais tarde, Toulouse (1234). Passada esta data, as
numerosas universidades criadas têm, em geral, apenas uma importância limi-
tada e um recrutamento regional.
Em cada universidade, a autonomia permite à assembléia dos mestres, sob
a condução de seu reitor, decidir sobre sua organização interna (distingue-se,
em geral, a faculdade de artes, propedêutica em que são ensinadas as artes libe-
rais do trivium - retórica, gramática e dialética - e do quadrivium - aritmé-
tica, geometria, astronomia e música - e as "grandes" faculdades, de teologia,
direito ou medicina), bem como sobre o recrutamento de alunos e a cooptação
de professores, sobre os programas e autores ensinados, sobre os métodos utili-
zados e os graus conferidos (bacharelado, licenciatura, mestrado ou doutorado).
Mas o exercício da autonomia não se dá sem conflitos. Assim, o lugar prepon-
derante que os frades mendicantes começam a ocupar nas universidades a par-
tir dos anos 1230 suscita a hostilidade dos mestres seculares, que se queixam
notadamente da concorrência desleal daqueles que, pelo fato de pertencerem a
uma ordem, podem ensinar gratuitamente. Mas a posição dos mestres mendi-
cantes, que logo monopolizam as cátedras de teologia mais renomadas, é siste-
maticamente confirmada pelo papado, especialmente por Alexandre IV em
1225. É bem o sinal de que as ordens mendicantes exercem papel central na
instituição eclesial de seu tempo. Por decorrência, só pode ser dominante seu
lugar no seio das universidades, cuja função principal é fornecer à Igreja seus
fundamentos ideológicos mais firmes, ao mesmo tempo que a parte mais ins-
truída de seus prelados (muitos dos quais entram para o serviço das administra-
ções principescas ou reais).
O exercício de autonomia é combinado com a relativa homogeneidade dos
ensinamentos e das formas de organização, o que manifesta a universalidade do
poder pontifício, do qual dependem as universidades. A escolástica é seu méto-
do por excelência. Suas raízes remontam ao século XII: Anselmo de Canterbury
(1033-1109) esforça-se, notadamente em seu Por que Deus se fez homem, para
associar a fé e o intelecto (''fides quaerens intellectum") e convencer tanto por
raciocínios demonstrativos como pelo recurso aos argumentos de autoridade (as
20. Do latim quolibet, "não importa para onde"; proposição sustentada aleatoriamente, ao bel-pra-
zer do autor ou orador. (N. T.)
A partir do fim do século XII, uma insistência nova sobre certas práticas refor-
muladas leva a uma configuração inédita, cujo centro é ocupado pelo tríptico
pregação-confissão-comunhão. Como se disse, profundas transformações afeta-
ram a comunhão, sacramento "terrível", ato capital que assegura, ao mesmo
tempo, a coesão da comunidade cristã e sua divisão hierárquica entre os cléri-
gos e os laicos (assim, no decorrer do século XII, a comunhão sob as duas san-
tas espécies, o pão e o vinho, é progressivamente reservada aos clérigos, ao
passo que os laicos têm acesso somente à primeira). Convém, então, relembrar
aos laicos, tornados talvez hesitantes pela sacralidade esmagadora do rito, a
necessidade de comungar regularmente. É por isso que, na seqüência de várias
assembléias diocesanas, mas dessa vez por intenção de toda a cristandade, o
Concílio de Latrão IV (1215) torna obrigatório a todos os fiéis receber a comu-
nhão ao menos uma vez por ano, na Páscoa (cânone Omnis utriusque sexus).
Exigência mínima, que diz muito sobre os limites da participação sacramental
dos laicos ordinários, essa regra enseja uma conseqüência considerável, pois
ninguém poderia, sob pena de graves riscos espirituais, receber a eucaristia sem
estar previamente purificado de seus pecados. A obrigação da comunhão anual
impõe, então, o dever de uma confissão igualmente anual.
Na Antiguidade tardia e nos primeiros séculos da Alta Idade Média, a Igreja
havia admitido a possibilidade de uma penitência que permitia purificar-se dos
pecados cometidos após o batismo. Tratava-se, então, de um ritual público que
só podia ser realizado uma única vez e era, por conseqüência, em geral retarda-
do até a aproximação da morte. Depois, a partir do século VII, os monges irlan-
deses introduzem em toda a cristandade o sistema de penitência tarifada/ 1 em
vigor até o século XII. Renovável, ela dava lugar a um ritual de reconciliação
pública, com freqüência realizado no portal norte das igrejas, que os penitentes
deviam atravessar arrastando-se sobre os joelhos e os cotovelos, depois de terem
cumprido escrupulosamente as indicações do Livro de penitências, que fixa para
cada falta o nível das penitências requeridas, sob forma de preces, jejuns, mor-
tificações diversas ou peregrinações (figura 50, na p. 498). No século XII, o for-
malismo rígido de tal sistema devia parecer cada vez mais inadaptado, ao passo
que os mestres em teologia, como Abelardo, definiam o pecado como uma pro-
pensão interior e sublinhavam a necessidade de avaliar os atos humanos levan-
do em conta sua intenção. De fato, uma prática penitenciai renovada surge
21. Na qual a cada falta corresponde uma penitência precisa, como uma espécie de "taxação" dos
pecados. (N. T.)
~ I ~ }érôme Baschet
tudes, assim como os tratados morais destinados aos laicos, uma quantidade
considerável de manuscritos é, então, votada ao aperfeiçoamento das técnicas
de introspecção da alma cristã. Mas se, de certa maneira, a confissão prefigura
a psicanálise, notadamente pelo papel regenerador que confere à palavra e à
declaração da falta, ela também se distingue radicalmente: enquanto a psicaná-
lise não confere nenhuma absolvição, a confissão articula a declaração liberta-
dora ao reforço do poder da instituição clerical, intermediária obrigatória para a
salvação (figura 21, na p. 211 ). Como preço do perdão que ela concede, a Igreja
se atribui, graças à confissão, um temerário instrumento de controle dos com-
portamentos sociais e se imiscui no mais secreto das consciências individuais.
O desenvolvimento da confissão é acompanhado daquele da pregação.
A prática dos sermões e das homilias remonta, é verdade, à Antiguidade, mas,
durante séculos, a pregação permaneceu integrada à missa e concebida como
um exercício erudito destinado principalmente aos próprios clérigos. No século
XII, entretanto, ela se amplia notavelmente e os laicos são seus destinatários
prioritários, tanto da parte dos regulares, como são Bernardo, ardente pregador,
como dos seculares, como Jacques de Vitry ( 1165-1240) ou Alain de Lille, autor
de uma importante Arte de pregar. Mas são principalmente os frades mendican-
tes que fazem da pregação um instrumento central de instrução dos laicos.
Dominicanos e franciscanos tornam-se "verdadeiros profissionais da palavra"
(Hervé Martin), formados na arte de pregar nos studia de suas ordens, difundin-
do em toda a cristandade "uma palavra nova" (Jacques Le Goff e Jean-Ciaude
Schmitt). A pregação é também um aspecto inerente ao ministério pastoral dos
seculares, mas o papado apóia decididamente a intervenção desses especialis-
tas que são os frades mendicantes, aos quais o Concílio de Latrão IV confia a
missão de "ajudar os bispos no ofício da santa pregação". Doravante, os sermões
são com freqüência pronunciados nas praças públicas, aos domingos e nos dias
festivos; eles também são organizados em vastos ciclos na época de Natal,
Quaresma, Páscoa, Pentecostes ou quando da passagem de um pregador itine-
rante reputado. Sobretudo, a nova palavra afasta-se dos modelos eruditos ante-
riores e pretende transmitir a mensagem divina ao mesmo tempo que "fala de
coisas concretas e palpáveis que os fiéis conhecem por experiência". O estilo
vivo e, por vezes, teatralizado dos pregadores, assim como o recurso constante
aos exempla, anedotas ou breves narrativas divertidas, destinadas a captar a
atenção do público, dando lugar a uma lição de moral, dos quais o dominicano
Estevão de Bourbon ( 1190-1261) compôs a mais ampla coletânea, completam
o dispositivo de uma palavra que se pretende eficaz.
Mas, eficaz para quê? A pregação visa, evidentemente, "fazer crer", quer
A heresia não existe em si e nada mais é do que aquilo que a abtoridade ecle-
siástica definiu como tal. A própria noção de heresia (etimologicamente, "esco-
lha") só adquire sentido na medida em que a Igreja se transforma em uma ins-
tituição preocupada em fixar a doutrina que fundamenta sua organização e seu
domínio sobre a sociedade. O problema da heresia emergiu, então, apenas na
medida em que a Igreja se transformou em uma instituição preocupada em defi-
nir os dogmas que baseavam sua organização e seu domínio sobre a sociedade.
De fato, é durante o século que vai de Constantino a Agostinho que explode
uma primeira crise doutrinai maior, que leva à elaboração da ortodoxia trinitária
e cristológica e à rejeição de um conjunto de heresias, das quais a principal é o
arianismo. Agostinho pode, então, fazer uma lista de 88 heresias, que servirá de
reservatório de argumentos e de prisma deformador para todos os autores ulte-
riores que trataram da heresia. Com raras exceções, as heresias medievais só são
conhecidas através dos textos dos clérigos que as condenam, de modo que é
muito difícil separar os amálgamas e os exageros ligados às necessidades da
polêmica e da repressão. A abordagem da heresia medieval permanece insepa-
rável da atitude da Igreja em relação a ela.
Os clérigos não devem apenas afrontar a contestação aberta dos hereges. As práti-
cas de numerosos fiéis, que a Igreja não expele para fora dos quadros da ortodoxia,
fornecem igualmente algumas preocupações. É necessário, quando elas são julga-
das inconvenientes ou desviantes, eliminá-las, como a gramínea que pode estragar
o cereal. É uma tarefa certamente muito mais complexa que a aniquilação dos
focos heréticos relativamente circunscritos. No mais, uma vez que a vitória foi asse-
gurada nas heresias, ela mantém os clérigos ocupados por um tempo maior, em par-
ticular os inquisidores. Como qualificar essas práticas e crenças? A noção de "reli-
gião popular" foi objeto de diversas críticas; e seria mais satisfatório evocar uma
"cultura folclórica", mesmo se ela não constituía um conjunto coerente e autôno-
mo e sabendo que essa expressão engloba práticas diversas relativas ao mundo
camponês e à aristocracia, aos meios urbanos, mas também à parte menos instruí-
da do baixo clero (Michel Lauwers). De fato, o que dá à "cultura folclórica" uma
unidade suscetível de justificar esta noção é a distânda que a separa da cultura cle-
rical (ainda que se trate menos de uma confrontação dual do que de múltiplas inte-
rações complexas entre realidades múltiplas). Talvez fosse melhor, então, conceber
a cultura folclórica como um pólo dominado (o que não quer dizer, necessariamen-
te, passivo ou desprovido de criatividade) no campo das representações sociais, no
seio do qual a cultura clerical ocupa uma posição tão hegemônica que pretende
ocupá-lo ou controlá-lo inteiramente. Assim, para delimitar as práticas e as crenças
aqui evocadas, não é sem pertinência, como propôs Jean-Claude Schmitt, recorrer
ao termo pelo qual os clérigos medievais as designavam: "superstições". Para a
Igreja, este termo é, ao mesmo tempo, uma explicação dos fenômenos que convém
expurgar (são sobrevivências do paganismo, segundo o próprio sentido do latim
superstitio) e uma condenação (são inspiradas pelo diabo). Retomar esta palavra,
dotada de uma pesada carga depreciativa, não deveria significar que se adira ao
ponto de vista da Igreja. Sua vantagem, para nós, é de lembrar que as práticas e as
crenças evocadas aqui não são dissociáveis do olhar reprovador que a Igreja lança
sobre elas e que esta, em seu empreendimento de dominação, batalha sempre na
frente das sobrevivências e dos erros que pretende fazer recuar.
22. Daí a designação desses seres fabulosos ser formada a partir do verbo changer:: "trocar, mudar,
substituir". (N. T.)
O poderio da instituição eclesial é tal que ela parece, na maior parte do tempo,
capaz de controlar a zona fronteiriça onde se entrechocam a ordem normal das
coisas e as desordens da subversão, ou mesmo de integrá-la ao funcionamento
23. Termo de origem russa (cuja tradução literal é "destruir inteiramente") que indica um movi-
mento popular de violência contra os judeus. (N. T.)
No geral, em todos os domínios evocados, a atitude da Igreja se faz cada vez mais
excludente e repressiva. Isso foi constatado em relação aos hereges, às "supersti-
ções" e às formas integradas de expressão dos valores de oposição, aos judeus e,
mais tarde, aos feiticeiros, e seria possível dizer o mesmo de outros grupos margi-
DA EUROPA MEDIEVAL
À AMÉRICA COLONIAL
.! 50 }érôme Baschet
aristocratas é diminuída na mesma proporção, mesmo se estes desdenhem essas
novidades julgadas indignas e se escorem na ética da guerra cavaleiresca. Por
outro lado, a importância dos mercenários e das tropas a soldo aumenta.
Constituem-se, então, "companhias" que, sob a liderança de um chefe de guer-
ra, alugam seus serviços a quem lhes puder pagar. Mas o seu interesse é de pro-
longar tanto quanto possível as hostilidades que lhes permitem viver, o que é
também, por vezes, o interesse dos príncipes que sabem que as companhias
desocupadas entregam-se facilmente à pilhagem e ao banditismo, transforman-
do-se, assim, em um flagelo dos mais temidos pelas populações.
À lista de males da época é preciso ajuntar o Grande Cisma, que divide a
Igreja romana entre 1378 e 1417. O fato é que, depois de 1309, pouco após a elei-
ção de Clemente v, o papa e a cúria romana se instalaram em Avignon, o que
numerosos contemporâneos denunciam como "o cativeiro da Babilônia". Após
várias tentativas infrutíferas, Gregório XI decide, em 13 77, retornar a Roma, sede
normal do sucessor de Pedro (ele, então, instala sua residência no Vaticano, e
não no Palácio de Latrão, como sempre havia feito o bispo de Roma); mas, quan-
do ele morre, uma parte da cúria encontra-se ainda em Avignon e os cardeais
mergulham na confusão, elegendo, primeiro, Urbano VI, que se instala em
Roma, e, depois, Clemente VII, que retoma a Avignon. A Igreja tem, doravante,
duas cabeças, e, durante quarenta anos, a luta entre o papa de Avignon e o de
Roma dilacera o Ocidente. Cada um deles se esforça para obter o apoio dos
príncipes e das cidades, excomungando seus adversários e lançando sobre
suas terras a proibição litúrgica. O funcionamento da estrutura eclesial en-
contra-se gravemente afetado por essa divisão na cúpula e é grande o espan-
to nos espíritos. Todas as tentativas de arbitragem tendo falhado, termina-se
por admitir, ao fim de quatro decênios, que a solução só pode vir de um con-
cílio geral, reunindo todos os bispos da cristandade ocidental. É isso que tenta
o concílio reunido em Pisa em 1409, depondo os dois papas rivais e elegendo
um novo pontífice: mas o remédio é pior que o mal, pois os dois primeiros
recusam a decisão, de modo que a Igreja se encontra, por um tempo, tricéfa-
la. Depois, o Concílio de Constança (1414-18) consegue realizar a operação
e impõe um novo e único pontífice, Martinho v (1417-31), mas não sem ter
previamente emitido um decreto consagrando a nova importância adquirida
pela assembléia conciliar.
Retornos periódicos da peste negra, efeitos destruidores das guerras e das
grandes companhias, Grande Cisma da Igreja: os contemporâneos tinham
razões para se sentir assolados pela Providência e as cores outonais pintadas por
Johan Huizinga não saíram do nada. O pessimismo invade os espíritos e o sen-
timento de viver em um mundo que agoniza, que chega ao seu fim, se faz mais
~ 5~ }érôme Baschet
casas, cujos espaços interiores são mais separados, ou ainda na diversificação do
mobiliário e das vestimentas. Entretanto, nem todos se aproveitam disso e os
camponeses mais pobres são arrastados para uma espiral descendente, enquanto
a margem servil da população rural aumenta novamente a partir de 1300. O fato é
que muitos preferem a servidão, que ao menos lhes confere um estatuto, à men-
dicância ou à vida errante. A afirmação desta segunda servidão, que na Ingla-
terra e em outras regiões atinge até um terço dos aldeãos, mostra que o quadro
senhorial está longe de ter desaparecido.
Convém também estabelecer uma distinção entre a pequena aristocracia
de senhores, com freqüência em dificuldades, e a alta aristocracia dos príncipes
e barões, cujo vigor, ao contrário, aumenta (figura 27, na p. 256). Não apenas
estes se aproveitam dos dissabores dos primeiros comprando numerosos senho-
rios, mas sua força, mantida ou mesmo ampliada, lhes permite melhorar os ren-
dimentos de seus domínios ao mesmo tempo que resistem eficazmente à auto-
ridade real. Estes grandes aristocratas continuam a ocupar a frente da cena. Se
sua função militar é atingida pelas modificações da arte da guerra, eles mantêm,
devido ao seu lugar nos conselhos e nos ofícios reais, papel político dominante,
ao mesmo tempo que o fausto de suas cortes e seu prestígio social se acentuam
cada vez mais. No geral, se a aristocracia atravessa uma fase de dificuldades
sérias, ela se adapta e se renova. As transformações não são, entretanto, negli-
genciáveis, e afetam a definição do próprio grupo social (Joseph Morse!). No
século XV, a oposição entre nobres e não-nobres adquire uma rigidez inédita
(para designar grupos sociais e não somente qualidades). A partir dali, é possí-
vel falar da "nobreza" como um grupo do qual, além do mais, é o príncipe que
domina a definição, especialmente porque ele tem a capacidade de desenobre-
cer. Doravante, o poder monárquico tem um papel maior na reprodução da
nobreza, assegurando-lhe uma parte notável de seus rendimentos, por meio dos
postos que ele confere, de soldos militares e mesmo de feudos de bolsa (em
dinheiro), que permitem, principalmente aos nobres aragoneses, manter a sua
posição. Com isso, os valores nobiliárquicos são reafirmados com maior vee-
mência ainda, especialmente através da multiplicação das ordens cavaleirescas
(das quais o príncipe é o chefe) e a organização de grandes torneios, verdadei-
ras cerimônias de autocelebração, com fausto crescente, pelas quais os nobres
procuram se distinguir da elite camponesa e dos citadinos enriquecidos, exibin-
do, paralelamente, sua coesão e sua força. Ao mesmo tempo, os nobres opõem-
se com sucesso às ambições dos soberanos, seja por uma mistura de fidelidade
a seus engajamentos vassálicos e de resistência aos novos costumes, seja pela
revolta aberta, em caso de necessidade, como várias vezes ocorre na França do
século XV. No geral, não há, na Baixa Idade Média, ruptura social fundamental:
2 5 ~ }érôme Baschet
de um sacerdote). Mesmo se nada prova que ela animava o conjunto das revol-
tas inglesas, a aspiração igualitária de um mundo sem senhores, sem bispos e sem
príncipes (segundo a expressão de Robert Fossier) nunca é mais bem expressada
do que nessa ocasião.
Com uma exceção, todas essas sublevações terminam em derrota, esmaga-
das de modo selvagem e facilmente controladas desde que a aristocracia orga-
niza as suas forças. A despeito das vítimas individuais e das perdas pontuais,
nenhuma dessas explosões de violência constituiu perigo sério para os dominan-
tes. Igualmente, apesar da diferenciação social crescente no seio das aldeias e
de sua adaptação a uma conjuntura diferente, os vilãos, servos ou dependentes
permanecem a classe dominada, sobre cuja exploração se funda o essencial da
organização social.
25. Também chamada contabilidade com lançamento duplo, ou d!grafa: sistema de notação que,
registrando origem e destino das entradas e das saídas, permite um controle atuarial mais apura-
do. (N. T.)
26. La tkme à la licorne, série de seis tapeçarias (cinco das quais correspondendo aos cinco senti-
dos humanos), realizada nos Países-Baixos; encontra-se atualmente no Museu Nacional da Idade
Média de Cluny, em Paris. (N. T.)
O poder monárquico também continua a afirmar-se, a tal ponto que alguns histo-
riadores situaram nesse período, em particular entre os anos 1280 e 1360, a
"gênese do Estado moderno" (Jean-Philippe Genet). Se não se pode negar as notá-
A Igreja, ainda
27. Na tradição jurfdica latina, a pragmatica sanction refere-se a um edito que visa solucionar defi-
nitivamente uma questão importante. (N. T.)
De tudo o que precede, pode-se deduzir que a noção de capitalismo não é mais
aplicável à América colonial do que à Europa da época. Mas nada indica também
que a noção de feudalismo lhe convenha melhor. Não poderíamos chegar even-
tualmente a tal conclusão sem analisar em que medida as características funda-
mentais da sociedade feudal do Ocidente reproduzem-se no mundo colonial.
2 .~ ~ }érôme Baschet
A relação de dominium, quer dizer, a fusão do poder sobre as terras e sobre
os homens, foi reproduzida no mundo colonial? A resposta é claramente negati-
va. É verdade que, no essencial, os conquistadores eram, fossem nobres ou não,
animados por um ideal aristocrático característico da hidalguia ibérica (Ruggiero
Romano). Eles fizeram tudo que lhes era possível para reproduzir, na América, o
sistema feudal europeu. Berna) Díaz dei Castillo fornece uma prova particular-
mente clara disso quando se refere à Reconquista e às terras então concedidas
pelos reis hispânicos para afirmar que os conquistadores deveriam ser recompen-
sados da mesma maneira, quer dizer, pela distribuição de feudos: "[ ... ] e também
quando se conquistou Granada[ ... ] os reis deram terras e senhorios àqueles que
os ajudaram nas guerras e batalhas. Lembrei tudo isso a fim de que, se se olhar
os bons e numerosos serviços que prestamos ao rei nosso senhor e a toda a cris-
tandade, e se os puser em uma balança, pesada cada coisa segundo seu justo
valor, vê-se que somos dignos e merecemos ser recompensados como os cavalei-
ros de que falei acima". Entretanto, o que eles recebem é a encomienda, pela qual
a Coroa põe sob seu controle a população indígena de um dado território e lhes
atribui o direito de exigir dela um tributo em produtos e em trabalho.
O caráter feudal ou não da encomienda foi amplamente discutido. De um
lado, pode-se afirmar que se trata de uma instituição de tipo feudal (no sentido
estrito do termo), pois a encomienda é um bem concedido por uma autoridade
superior como recompensa a um serviço, essencialmente militar (Solorzano
Pereira, em sua Polttica indiana, de 164 7, admite a validade da comparação
entre encomienda e feudo e estabelece uma aproximação com os feudos ditos
"irregulares"). De resto, é típico da lógica feudal que ela- ao mesmo tempo
que a Coroa espanhola, instruída pela experiência desastrosa da colonização das
Caraíbas, tenta, quando da conquista do continente, evitar a implantação da
encomienda - seja finalmente obrigada a ceder, não tendo outro meio para
recompensar os conquistadores e para se esforçar em manter sua fidelidade,
indispensável ao controle das terras conquistadas. Igualmente característico da
dialética feudal é o esforço da Coroa para limitar as prerrogativas· dos encomen-
deros (especialmente pela Leyes Nuevas de lndias, de 1542) e, em particular,
para frear a transmissão hereditária da encomienda, enquanto seus beneficiários
lutam para anular juridicamente essas limitações ou para contorná-las na práti-
ca. Os historiadores continuam a debater o impacto da encomienda e a duração
de sua existência - seu papel decai manifestamente a partir do fim do século
XVI - , mas é claro que ela se baseia em uma tensão entre duas lógicas, carac-
terística do feudo: uma, favorável a quem recebe o bem; outra, favorável a quem
o concede. É verdade que a Coroa espanhola dispõe, então, de força suficiente
para bloquear de maneira significativa, embora não sem dificuldade, a deriva
ESTRUTURAS FUNDAMENTAIS
DA SOCIEDADE MEDIEVAL
ÜS QUADROS TEMPORAIS
DA CRISTANDADE
UNIDADE E DIVERSIDADE
DOS TEMPOS SOCIAIS
Como indica Jacques Le Goff, "as medidas do tempo e do espaço são um instru-
mento de dominação social da maior importância. Aquele que as controla aumen-
ta fortemente o seu poder sobre a sociedade". Desse ponto de vista, a Igreja pre-
pondera inegavelmente. A lenta adoção da era cristã (cálculo dos anos a partir da
Encarnação de Cristo) indica que o Ocidente se constitui, pouco a pouco, como
uma unidade sob a forma da "cristandade". Entretanto, por muito tempo, perma-
necem em vigor sistemas de datação inspirados na Antiguidade pagã, tendo como
referência os cônsules ou os reinos dos imperadores e, depois, dos soberanos, ou
ainda a fundação de Roma ou a suposta Criação do mundo. Em 525 um monge
oriental estabelecido em Roma, Dioniso, o Pequeno, publica suas Tábuas pascais:
julgando que o costume em vigor, que tomava como parâmetro o reino de
Diocleciano, honrava indevidamente a memória de um tirano, ele decide nume-
rar os anos a partir da Encarnação de Cristo. Obra de grande impacto no
Ocidente, na medida em que põe fim às controvérsias relativas à data da Páscoa,
o tratado de Dioniso é também o canal pelo qual se difunde a noção de era cris-
tã (Georges Declercq). Os progressos são, entretanto, muito lentos, e foram as
A Idade Média ignora um tempo unificado por sua medida e puramente quan-
titativo, um "tempo universal" que pretendesse se impor igualmente a todos.
Prevalece uma diversidade de tempos sociais, qualitativamente marcados e dife-
3 1O )érôme Baschet
cidade têm necessidade de uma indicação precisa e específica para marcar o
início e o fim das atividades cotidianas. Como expõe um documento de 1355,
"convém que a maior parte dos trabalhadores jornaleiros vá e volte de seu traba-
lho em horas fixas". Os inícios do trabalho assalariado- mesmo se este ainda
não se parece em nada com o assalaríamento do século XIX - tornam necessária
uma medida dos horários mais ou menos precisa. Esta, no entanto, é objeto de
múltiplos conflitos, especialmente em razão da tendência dos mestres artesãos
em atrasar a campainha que anuncia o fim da jornada de trabalho. Os relógios
urbanos, com muita freqüência postos na torre do palácio municipal, encontram-
se sob a responsabilidade das autoridades comunais, das quais eles salientam
o prestígio.
A difusão dos relógios mecânicos põe em causa o monopólio da medição do
tempo, até aqui detido pela Igreja, cujos sinos pontuavam tradicionalmente a jor-
nada, ao ritmo impreciso e mutável das horas canônicas. Jacques Le Goff pôde,
assim, analisar a emergência de um conflito entre o tempo da Igreja e o tempo
dos mercadores: "Esses relógios levantados em todos os lugares diante dos cam-
panários das igrejas são a grande revolução do movimento comuna) na ordem do
tempo". Em seus trabalhos, no entanto, ele evitou exagerar essa oposição, pois
constatamos igualmente, entre esses dois tempos, uma coexistência ou, ao menos,
uma transição suave. O primeiro relógio mecânico atestado no reino da França
encontra-se no campanário da catedral de Sens (1292), e a metade dos relógios
do século XIV é igualmente construída para catedrais. Aliás, em York, a catedral
associa os sinos, que soam as horas canônicas, e aquela do trabalho, que indica
o início e o fim da jornada. A Igreja não é, portanto, hostil ao tempo medido e
regular dos relógios, e não hesita a assumir ela própria o seu controle.
Resta, em todo caso, o fato de que o desenvolvimento dos relógios marca a
emergência de um tempo unificado, mensurável e breve, ligado às formas de
vida urbanas e à pré-história do assalariamento. Entretanto, pelo menos até o
século XVI, esse tempo permanece largamente incerto e os relógios são muitas
vezes defeituosos. Ele contínua sendo também um tempo mal unificado, pois
mesmo se a hora avança mais ou menos regularmente, é ainda preciso saber a
partir de que parâmetro ajustá-la. Tal unificação é tentada por Carlos v, quan-
do este ordena que todos os relógios do reino da França marquem a mesma hora
que a de seu palácio parisiense (no mais, em 13 70, ele manda substituir o velho
mecanismo, instalado por Filipe, o Belo, em 1300, por um relógio mais confiá-
vel). Mesmo se a execução dessa decisão permanece duvidosa, ela mostra bem
que o tempo dos relógios não é somente o dos mercadores; ele é também um
tempo do poder real, que busca, então, afirmar-se. Enfim, o relógio mecânico e
as experiências sociais que lhe são associadas acentuam o sentimento do tempo
3 I ~ }érôme Baschet
então, ela é legítima; em revanche, utilizar o próprio dinheiro para engendrar
dinheiro é uma perversão contra a natureza. A condenação da usura é brutal e
total, e a reabilitação de numerosos ofícios ilícitos ao longo dos séculos XII e XIII
beneficia apenas marginalmente o usurário (Jacques Le Goff). Os teólogos
admitem, no entanto, que o empréstimo a juros possa ser tolerado em certos
casos, em particular se ele é útil ao bem comum (empréstimo às autoridades)
ou se é praticado por necessidade e a uma taxa moderada. Eles elaboram, assim,
um conjunto de justificativas, fundadas sobre o risco corrido pelo credor, sobre
o trabalho que sua atividade ocasiona, enfim, sobre o incômodo que lhe causa o
fato de não poder utilizar o dinheiro emprestado. Uma outra maneira, bastante
surpreendente, de aceitar o empréstimo (a juros) é desenvolvida pelos teólogos
espanhóis do século XVI: deve-se emprestar por caridade, sem nada esperar em
troca; e é por caridade que se devolve, acrescentando - sem a menor obriga-
ção- um suplemento para exprimir sua gratidão ao que emprestou. Nesse sis-
tema, judiciosamente esclarecido por Bartolomé Clavero, é somente na medida
em que ele é pensado e percebido como prática desinteressada, excluindo,
então, toda idéia de interesse, que o empréstimo (a juros) é possível. O que nós
nomeamos impropriamente empréstimo a juros pode ser, então, lícito, à condi-
ção de se integrar a um sistema de valor estranho a toda lógica propriamente
econômica e, pelo contrário, característico das normas ideológicas feudais fun-
dadas sobre a caritas.
Mas o usurário não se encontra em situação irremediável. A legislação tra-
dicional da Igreja lhe reconhece um meio de obter sua salvação: restituir todos
os benefícios da usura. Durante os últimos séculos da Idade Média, a Igreja man-
tém sua pressão para obter tais restituições e numerosas obras de arte, sobretu-
do na Itália, são financiadas desse modo, por exemplo, os afrescos que Giotto
realiza, por volta de 1305, na capela da Arena, em Pádua, por encomenda de
Enrico Scrovegni, filho de um dos usurários mais célebres de seu tempo, que
Dante põe no inferno. Mas, desde o século XIII, o purgatório entreabre para o
usurário uma outra porta: desde que tenha se confessado, ele pode ser salvo
depois de um tempo de sofrimento no fogo purificador. Conforme a lógica da
intenção que é subentendida pela prática da confissão, é possível, então, crer-
e certas narrativas exemplares convidam a fazê-lo- que sua contrição verdadei-
ra pode ser suficiente para que Deus lhe conceda a salvação. Os usurários
podem, então, graças ao purgatório e à confissão, conservar a bolsa aqui na terra,
ao mesmo tempo que obtêm a vida eterna no além (Jacques Le Goff). No geral,
a atitude da Igreja leva a permitir certas práticas usurárias, sem ceder sobre os
princípios que as condenam: o arrependimento sincero exigido do usurário não
equivaleria a renegar as atividades de uma vida inteira? A combinação de uma
··Para os clérigos da Idade Média, o tempo é história e esta história tem um sen-
tido", lembra Jacques Le Goff. E se Marc Bloch afirma que "o cristianismo é
uma religião de historiadores", não é somente porque os cristãos têm como tex-
tos sagrados livros de história ou porque a liturgia é um ato de memória que
celebra e repete a vida de Cristo e dos santos. É principalmente porque os even-
tos fundadores do cristianismo, o nascimento e a crucificação de Jesus, em vez
de estarem associados a um tempo imemorial ou mítico, como a Criação ou o
Pecado Original, constituem fatos bem atestados e situados em um tempo ver-
dadeiramente histórico: Jesus nasceu sob Augusto e morreu sob Tibério (mesmo
se os Evangelhos não permitem fixar datas incontestáveis). Foi Dioniso, o
3 I ~ Jérôme Baschet
Pequeno, que, pela correlação estabelecida entre a era cristã e os reinados impe-
riais, situa a Encarnação em 25 de março do ano 1 (depois de Cristo) e sua
morte em 33 ou 34. Fazendo isso, ele se afasta das opiniões mais tradicional-
mente aceitas, inspiradas notadamente por Tertuliano e Eusébio de Cesaréia
(dos quais a invenção de Dioniso leva a dizer, não sem paradoxo, que situavam
a Encarnação em 3 ou 2 antes de Cristo). Ora, os cálculos de Dioniso, o
Pequeno, repousam sobre uma série de erros (ou, ao menos, escolhas orienta-
das), que não escaparam a Beda, o Venerável, e incitaram alguns autores do
século XI, como Abbon de Fleury, a valorizar outras datas, mais justificadas. Mas
a "invenção" de Dioniso já estava excessivamente difundida e ninguém, até nos-
sos dias, pensou seriamente em deslocar todos os anos da era cristã. De resto,
todas essas discussões apenas confirmam o caráter resolutamente histórico do
tempo cristão. Tantos esforços para calcular o verdadeiro ano da Encarnação
não têm sentido a não ser que visem responder às exigências de um tempo his-
tórico e, em primeiro lugar, a de uma datação precisa e verificável. As implica-
ções não são pequenas, pois, através de sua Encarnação, o próprio Deus inscre-
ve-se na história.
Além disso, o tempo cristão é um tempo linear, que se desenrola desde um
início (a Criação do mundo e o Pecado Original) até um fim (o Juízo Final), pas-
sando pela Encarnação, pivô central que altera o curso da história oferecendo a
salvação aos homens. Linear, esse tempo é também orientado, pois seu termo
é fixado previamente e descrito pela Bíblia, mesmo se esta precisa que não se
pode conhecer seu dia e sua hora. É um ponto de doutrina indiscutível crer no
Juízo Final, que marcará o fim dos tempos e fixará o universo e os seres na eter-
nidade. Do ponto de vista cristão, a história da humanidade é, então, dividida
em duas épocas: a do Antigo Testamento, profundamente ambígua, pois é mar-
cada pela Aliança de Deus com o povo eleito e contém em germe as verdades
reveladas por Cristo, mas permanece dominada pelo pecado e a impossibilida-
de de alcançar a salvação; depois, a época do Novo Testamento, inaugurada pelo
sacrifício de Cristo, que permite aos homens receber a graça divina e vencer o
mal. Essa divisão binária é fundamental e, no século XIII, Tomás de Aquino
ainda relembra seu valor essencial (contra os milenaristas que anunciam a imi-
nência de um novo período da história humana). De resto, a oposição dos dois
Testamentos declina-se em múltiplas realidades: confrontação entre a Sinagoga
e a Igreja, a Lei e a Graça, Adão e Cristo. Esse recorte binário da história pode
também dar lugar a subdivisões que não lhe alteram o sentido principal. Assim,
é freqüente distinguir o tempo de antes da Lei (ante lege), desde o Pecado
Original até Moisés, o tempo da Lei (sub legem), inaugurado pela entrega dos
dez mandamentos, e, enfim, o tempo da Graça (sub gratiam), que começa com
28. Ou nauás, grupo de tribos da região do México, dentre as quais se encontravam os astecas. (N. T.)
Um tempo semi-histórico
29. A Roda da Fortuna, c. 1180 (Hortus Deliciarum, fl. 215; segundo Gérard Carnes, o manuscrito foi
destruído em 1870).
A personificação da fortuna aciona a roda que submete todos os destinos humanos ao caráter aleatório da ascen·
são e da queda. À esquerda, dois homens elevam-se a altas posições; no alto, um rei em majestade acumula poder
e bens materiais; à direita, o poderoso cai e perde sua coroa. Representada em geral nas miniaturas e na arte
monumental a partir do século XII, a Roda da Fortuna é, por vezes, acompanhada de inscrições que explicitam o
seu sentido. Elas podem ser mais sintéticas do que aqui, associando aos diferentes personagens as seguintes fór-
mulas: "eu reinarei", "eu reino", "eu reinei", "eu estou sem reino". A articulação do tempo- passado, presente,
futuro - desenha o círculo de um eterno recomeço, sublinhando assim o caráter vão das coisas terrestres.
rigos usam muitas vezes para incitar a pensar no além e na salvação. Além disso,
a insistência, melancólica ou dramática, sobre a irreversibilidade do tempo de
cada vida individual pode muito bem ser combinada com um tempo repetitivo,
desde que se considere uma escala mais ampla, englobando a sucessão das gera-
ções e a história humana em seu conjunto. Entretanto, entre os séculos XIII e XV,
o fato de atribuir a este tempo da vida que passa uma expressão crescente é um
modo de legitimar e ampliar sua experiência. Assim, mesmo se ele não chega a
dominar a visão da história, a erupção do tempo irreversível é, ao menos, senti-
da. no fim da Idade Média, sob a forma de uma obsessão da morte. No geral,
resulta da coexistência dessas diferentes percepções do tempo histórico uma
"dualidade da concepção do mundo" (Aaron Gourevitch). O tempo que retoma
ou que não passa é corroído pelo tempo irreversível da história. Mas a Idade
Média permanece dominada por um tempo semi-histórico, que combina, aqui
embaixo, Ull) pouco de tempo irreversível e muito de tempo repetitivo.
ÜS LIMITES DA HISTÓRIA E OS
PERIGOS DA ESCATOLOGIA
A escritura da história
A CIVILIZAÇÃO FEUDAL ) )/
cômputos cristãos parece ser, assim, a dos rejuvenescimentos sucessivos do
mundo, que são igualmente adiamentos do final do prazo escatológico. Certas
particularidades de calendário, no entanto, podem fazer também com que a fe-
bre aumente; Abbon de Fleury informa que "quase no mundo inteiro corria o
rumor de que, quando a Anunciação coincidisse com a Sexta-Feira Santa, sem
dúvida seria o fim do mundo" (esta conjunção produziu-se em 970, 981, 992,
1065 e 1250; ela caracteriza também o ano 1, que Dioniso, o Pequeno, escolhe,
sem dúvida por esta razão, como parâmetro da era cristã).
No século X, o abade Odon de Cluny está convencido da vinda próxima do
Anticristo, mesmo que, como se viu, o ano mil não focalize as preocupações
escatológicas mais do que as outras datas .. No século XII, as primeiras cruzadas
desenrolam-se em um clima de espera do fim do mundo, "em vista dos tempos
próximos do Anticristo", como Guiberto de Nogent faz o papa Urbano 11 dizer; do
mesmo modo, os conflitos entre o papa e o imperador são em geral considerados,
especialmente -pôr Oto de Freising, tumultos anunciadores dos últimos tempos.
O século XIII não é menos escatológico: entre 1197 e 1201 corre o rumor de que
o Anticristo já nascera; pouco depois, Frederico 11 é candidato a este papel e o
ano de 1260 vê surgir, especialmente na Itália, diversos movimentos de penitên-
cia, especialmente o dos flageladores, suscitado em Perúgia por Raniero Fasani,
enquanto, no fim do século, o médico Arnaldo de Vilanova, em seu tratado sobre
o Anticristo, prediz o fim do mundo para 13 78. A peste negra de 1348 reaviva a
inquietude e suscita um novo movimento de flageladores que se esforçam para
apaziguar a cólera divina e conjurar a ameaça de destruição do mundo (figura 25,
na p. 249). Durante o Grande Cisma que divide a Igreja entre 1378 e 1417, cada
papa é qualificado de Anticristo pelos seus adversários, enquanto as profecias
pululam. Por volta de 1380, o dominicano catalão Vicente Ferrier anuncia que o
cisma durará até a chegada do Anticristo; em sua pregação, que agita as massas
da Europa meridional, ele exorta os fiéis a fazerem penitência diante da iminên-
cia do fim do mundo e sugere, em uma carta ao papa, que o Anticristo já pode-
ria ter nove anos. Enfim, o próprio Lutero não pára de repetir que o fim dos tem-
pos virá no ano seguinte e o Anticristo é um tema onipresente nas polêmicas
suscitadas pela Reforma protestante. Assim, se existem ciclos breves, ao longo
dos quais a febre escatológica aumenta e, em seguida, diminui, na longa duração
medieval a espera escatológica não parece nem se reforçar nem diminuir, mas
parece, antes, constante.
A espera escatológica, tal como a Igreja consegue enquadrá-la, integra-se
precariamente em seu ensinamento e em sua ação pastoral (mesmo se nem
sempre é fácil dissociar escatologia e milenarismo e se muitos movimentos evo-
cados há pouco têm colorações milenaristas). Nessa ótica, a iminência do fim dos
3 ) ~ }érôme Baschet
tempos não convida absolutamente a transformar as realidades sociais, mas
antes a fazer penitência e a renunciar urgentemente a seus pecados. O futu-
ro ameaçador da escatologia é uma advertência insistente em favor da salva-
ção da alma e em benefício da Igreja que é sua melhor garantia. A espera do
fim do mundo é, então, um fator de integração social, que reforça a domina-
ção da Igreja, ao menos desde que nenhuma data precisa e nenhum cenário
excessivamente detalhado sejam fixados. Se isso fosse feito, a escatologia arris-
caria, ao contrário, tornar-se "um fator de desintegração", retirando da Igreja
o controle sobre esse futuro tornado muito próximo, ou até mesmo minando a
necessidade das instituições terrestres. Se é claro que a Igreja, que "quer se per-
petuar no tempo" (Claude Carozzi), se consagra a controlar as tensões escato-
lógicas, a oposição crucial talvez não seja tanto entre os perigos de uma escato-
logia imediata e a remissão do fim do mundo para um tempo longínquo que
faria diminuir a tensão. A questão, para a Igreja, consiste mais em afastar toda
profecia com data a fim de pôr em cena um futuro próximo mais indeciso e, por
conseqüência, sempre suscetível de ser postergado. Esta estratégia de uma imi-
nência incessantemente retardada pode funcionar na medida em que a certeza
da previsão no longo termo é mais importante do que a justeza ou a inadapta-
ção das esperas imediatas. É preciso, sobretudo, que a Igreja guarde o monopó-
lio como "a organização deste fim do mundo que não chega, de modo que ela
mesma possa se estabilizar sob a ameaça de um fim de mundo possível e na
esperança da parúsia [retorno de Cristo]". Confiante nesta afirmação, Reinhart
Koselleck afirma que o futuro escatológico não corresponde ao fim de um
tempo concebido como linear, mas se integra, de fato, ao tempo presente, como
elemento constitutivo da estabilidade da Igreja e de sua dominação.
A ESTRUTURAÇÃO ESPACIAL
DA SOCIEDADE FEUDAL
XI. O reagrupamento das populações em torno da igreja e do cemitério: alguns exemplos na região de Gers.
Aqui, são observados reagrupamentos de dimensões fracas, iniciados no século XI e comparáveis aos suscitados pelas
sagrera catalãs. O princípio é o mesmo quando se trata de aldeias mais importantes. Eo caso da aldeia de Cezeracq
(no alto), onde se nota a presença de um monte castrense, um pouco distante do núcleo do povoamento.
O que foi dito antes não deve, entretanto, nos reconduzir ao estereótipo de um
mundo feudal fragmentado, formado por senhores isolados e que pratica uma
economia de auto-subsistência. O que define o feudalismo não é a fragmenta-
ção, nem a inserção local, mas antes a relação entre essa fragmentação e a pos-
sibilidade de deslocamentos e de trocas, inclusive de larga escala. O feudalismo
caracteriza-se, assim (e essa formulação sugere o forte potencial dinâmico de tal
sistema), por uma tensão entre estabilidade e mobilidade, entre fragmentação e
unidade, entre inserção local e o fato de pertencer a uma área continental sim-
bolicamente unificada. O encelulamento não significa o estabelecimento de
células sociais isoladas e autárquicas. É verdade que senhorios e paróquias se
Além da pilhagem, que, em sua rude brutalidade, constitui uma forma impor-
tante de circulação dos bens, as trocas comerciais põem em relação entidades
locais no interior das quais se organiza o essencial da vida social. Como já se viu,
o desenvolvimento do comércio e o crescimento das cidades não são processos
estranhos ao feudalismo e opostos à sua lógica, pois são, ao contrário, estimula-
dos pelo desenvolvimento da zona rural e o reforço da dominação senhorial,
enquanto os próprios senhores tiram proveito deles recebendo uma infinidade
de direitos de pedágio. O comércio feudal desenvolve-se em diferentes níveis,
que se distribuem entre dois extremos: de um lado, os mercados locais, geral-
mente hebdomadários, animados pelos próprios produtores e pelos oficiais
senhoriais, bem como por alguns mercadores rurais, e, de outro lado, as gran-
des feiras anuais ou semestrais, dotadas de privilégios e de uma proteção parti-
cular, como a de Champagne, que, nos séculos XII e XIII, põem em relação a Itália
e Flandres, as duas regiões da Europa em que a produção artesanal é a mais
dinâmica. Entretanto, seja qual for o desenvolvimento dos mercados e das fei-
ras, e das trocas que eles favorecem, é preciso sublinhar, com Alain Guerreau,
que não existe, na Idade Média, nada que se pareça com o mercado, no senti-
do 'Ejue esta noção ganha a partir do fim do século XVIII. Com efeito, o mercado
supõe\um espaço homogêneo, de tal modo que, do ponto de vista da economia
política que define seu funcionamento, a dimensão espacial constitui um parâ-
metro que deve ser tendencialmente eliminado. É justamente o contrário que
se produz na Idade Média, pois os deslocamentos são, então, difíceis- em vir-
30. Em francês, cellule indica tanto a unidade de base dos seres vivos como uma unidade carce-
rária, sentido que, em português, foi conservado nas palavras "cela" e "célula", etimologicamente
vizinhas. Daf a precisão do autor. (N. T.)
Por mais importantes que sejam, as trocas comerciais contribuem apenas debil-
mente para a unidade do mundo ocidental, pois a proporção dos que são afeta-
dos pelas trocas de longa ou média distância é ínfima. Insistir-se-á, então, sobre
um outro fator de unidade, mais amplamente partilhado. Com exceção dos
judeus, dos hereges e dos excomungados, todos os habitantes da Europa Ociden-
tal fazem parte da cristandade. Todos sabem de modo mais ou menos confuso
que o batismo os faz entrar nessa ampla comunidade, em parte visível, em parte
invisível, porque eles se tornaram, então, filhos de Deus e, no mesmo ato,
irmãos de todos os outros cristãos.
É preciso ainda indagar como essa unidade da cristandade pode ser
vivenciada.local e concretamente pelo conjunto das populações. A peregrina-
ção, grande fenômeno medieval, contribui notavelmente para isso. Toda pere-
grinação é, na Idade Média, uma aventura, um risco; se o destino é longínquo,
as pessoas redigem o seu testamento antes da partida ou, ao menos, tomam o
cuidado de pôr em ordem os seus negócios, como se a viagem fosse sem volta.
A peregrinação pode ser decidida individualmente, na seqüência de uma pro-
messa ou na esperança de uma cura; mas, nos séculos XI e XII, ela pode tam-
bém ser imposta pelo clero a título de penitência ou, a partir do século XIII,
por um tribunal, como sanção penal. Qualquer que seja a situação que a pro-
voque, ela se reveste de um contorno penitenciai, no mínimo em função das
penas e sofrimentos que o caminho impõe. Além disso, a opção peregrina apa-
rece como uma ruptura - mais ou menos profunda segundo a amplitude da
viagem - com o mundo cotidiano, com o quadro familiar da vida normal.
O peregrino escolhe tornar-se um estrangeiro e é assim que ele é percebido
nos lugares por onde passa (peregrinus, a palavra latina que designa o peregri-
no, significa primeiramente "estrangeiro", "exilado"). A peregrinação é uma
partida para alhures, antes mesmo de ser uma caminhada até um objetivo: de
resto, nos primeiros séculos da Idade Média, a viagem penitenciai é mais
importante que o destino da viagem, e é na época carolíngia que a andança
errante penitenciai, sem objetivo, cede lugar em proveito da peregrinação a
um lugar fixado antecipadamente e regida por critérios estritos (em particular,
a indispensável autorização clerical). A peregrinação é uma viagem do interior
para o exterior, um exílio do país de conhecimento com destino ao universo
em que cada um é estrangeiro.
Isso é válido para todas as peregrinações, quer seu raio de atração seja local,
regional ou se estenda à escala da cristandade. Muitas vezes negligenciadas, as
peregrinações locais revestem-se, todavia, de uma grande importância, pois per-
Pode-se, então, tentar sintetizar as funções espaciais assumidas pela prática das
peregrinações na sociedade feudal. De um lado, é necessário sublinhar a impor-
tância dos santos e das relíquias como referenciais simbólicos do espaço cristão.
Com efeito, são os corpos dos santos que permitem constituir, através de toda a
Europa, uma rede de lugares sagrados que atraem peregrinações mais ou menos
importantes. Desde a Alta Idade Média, vê-se constituir uma geografia sagrada
através do estabelecimento de túmulos santos e da difusão das relíquias. Uma
das razões que levam, então, clérigos e soberanos para Roma é aproveitar do
imenso tesouro de mártires romanos e trazer relíquias suscetíveis de conferir
maior dignidade às igrejas e aos monastérios dos quais eles desejam assegurar
a promoção. Estabelece-se, então, toda uma graduação de sacralidade, desde o
A IGREJA, ARTICULAÇÃO DO
LOCAL E DO UNIVERSAL
A LÓGICA DA SALVAÇÃO
3 74 }érôme Baschet
A oposição entre o aqui embaixo e o além é inseparável da dualidade moral
que estrutura o pensamento cristão. Essa dualidade é, de resto, o fundamento
do modelo das duas cidades, que Agostinho lega à Idade Média e em virtude do
qual o mundo se divide em dois conjuntos opostos: a cidade de Deus, que reúne
os justos daqui de baixo e a Igreja celeste; a cidade do Diabo, da qual fazem
parte tanto os seres vivos atormentados pelo pecado como os danados e os dia-
bos que povoam o inferno. Segundo essa visão, a oposição entre o bem e o mal
prevalece sobre aquela entre o aqui embaixo e o além, pois cada cidade englo-
ba uma parte deste mundo e uma parte do outro. Não é menos verdade que a
dualidade do além submete o universo à sua polaridade, pois ele é a residência
privilegiada das forças sobrenaturais: Deus em seu trono no reino dos céus, cer-
cado pela corte de anjos e de santos; Satã, "imperador do reino de dor", segun-
do as palavras de Dante. O além é, igualmente, o ponto de perspectiva que obri-
ga a ler cada ato humano através de uma grade moral dual, como pecado
passível da danação ou como virtude merecedora da beatitude do céu. A Regula
bullata, aceita pela Ordem Franciscana, não resume, do modo mais lapidar pos-
sível, o objetivo da pregação dos frades, "anunciar aos fiéis os vícios e as virtu-
des, a pena e a glória"? O conjunto dessas dualidades morais concorre para ati-
var a exigência fundamental em nome da qual a Igreja pretende governar a
sociedade cristã: prover a sua salvação.
;\ CIVILIZA~: À O F C L: I) A L 3 77
~--
•
34. A árvore dos vícios, c. 1300 (Verger de Soulas, Bibliothcque Nationalc de France, Paris, ms. fr. 9220, fi. 6).
A "árvore dos vícios', como a nomeia a inscrição, emerge da garganta do inferno. Em meio às 11amas. um cava-
leiro com um falcão no punho e caindo de sua montaria simboliza o orgulho, ··raiL de todos os vícios· e. por
excelência, pecado dos dominantes. Do tronco da árvore nascem sete galhos que terminam com um medalhão
correspondendo a um dos pecados capitais, com suas subdivisões indicadas nas folhas. Da esquerda pma a di-
reita: a avareza (um homem tranca suas riquezas em um cofre); a ira (uma mulher arranca seus cabelos); a gula
(Janus à mesa); a luxúria (uma mulher nua segurando um espelho e tentada pelo diabo); a preguiça (um per-
sonagem sentado, como que prostrado); a vanglôria (uma mulher segurando uma taça e um livro); a inveja (uma
mulher com uma serpente em torno do pescoço).
Discurso sobre os vícios, discurso sobre a ordem social
Por trás do combate entre vícios e virtudes perfila-se uma outra luta, ainda mais
fundamental. Com efeito, o diabo e suas tropas demoníacas tentam os homens
e os induzem ao pecado, enquanto Deus e seus exércitos celestes esforçam-se
para protegê-los e incitá-los à virtude. O mundo é o teatro desse afrontamento
permanente e dramático entre o Criador e Satã. Uma das criações mais origi-
nais do cristianismo e praticamente ignorado no Antigo Testamento, seu papel
é valorizado principalmente pelo Evangelho, que faz dele "príncipe deste
mundo" (Jo 12), "o deus deste mundo secular" (11 Cor 4). Ele sintetiza, então, a
multidão dos espíritos demoníacos que pululam no judaísmo popular, ao mesmo
tempo que procede da dissociação da figura ambivalente de Jeová, deus tanto
de cólera e de castigo como benfeitor. É então, recorrendo principalmente à lite-
ratura apócrifa judaica (sobretudo o Livro de Henoch, do século 11 a.C.), que é
precisado o mito da queda dos anjos, que constitui o ato de nascimento do diabo
e marca a entrada do mal no universo. Se no relato inicial a queda é a conse-
qüência do desejo dos demônios, que foram seduzidos pela beleza das mulhe-
res, a partir do século IV ela é explicada pelo orgulho do primeiro dos anjos,
Lúcifer, desejoso de se igualar a Deus e por isso expulso do céu junto com todos
os anjos rebeldes aliados à sua pretensão insana.
Ao longo da Idade Média, a importância da figura do Maligno é constante-
mente reforçada, tanto nos textos como nas imagens, nas quais ele só aparece a
partir do século IX. No mais, é somente por volta do ano mil que encontra um
lugar digno dele, quando se desenvolve uma representação específica que subli-
nha sua monstruosidade e sua animalidade, manifestando assim seu poderio hos-
til de modo sempre mais insistente (figuras 36 e 37, nas pp. 390 e 398).
Entretanto, mesmo se o cristianismo faz do universo o teatro de uma luta entre
Deus e Satã, não se poderia assimilá-lo às doutrinas dualistas. Ao contrário,
opondo-se à religião de Mani (216-77) e de seus discípulos, os maniqueus, e,
mais tarde, ao catarismo, o cristianismo medieval procura se distanciar do dua-
lismo (segundo o qual o mundo material é a criação de um princípio do mal,
totalmente independente de Deus). A doutrina cristã tem Deus por senhor e
criador de todas as coisas, e a narrativa da queda dos anjos mostra que Satã e os
diabos são criaturas, anjos caídos que, como repetem os clérigos disputando
entre si para ver quem o diz melhor, não podem agir senão com a permissão de
Deus. Preocupado em afastar o mais possível o risco dualista, são Tomás insiste
mesmo sobre o fato de que os demônios foram criados bons e que eles são maus
por vontade, e não por natureza. Entretanto, o poder do "príncipe deste mundo"
é aparentemente tão extenso que a doutrina parece, por vezes, eclipsar-se um
pouco em proveito de um aspecto profundamente vivido, que lhe concede de
facto uma ampla autonomia de ação. Toda a história do mundo parece marcada
pela intervenção do Maligno, desde a queda dos anjos até o desencadeamento
escatológico anunciado pelo Apocalipse. A tentação de Adão e Eva é a primeira
revanche de Lúcifer, e, na seqüência de Agostinho, é dito que, graças ao pecado
original, o diabo possui um verdadeiro direito de propriedade sobre o homem.
Mas Cristo, através de seu sacrifício, resgata esse direito do diabo e pode, então,
liberar Adão, Eva e todos os justos do Antigo Testamento, que Satã retinha, até
então, como prisioneiros no inferno. A guerra entre as forças do mal e as forças
do bem é, a partir daí, mais equilibrada, com as primeiras reivindicando em seu
benefício o pecado original e as últimas encontrando na Encarnação um argu-
mento ainda mais poderoso e relembrando que o homem tem, desde então, os
meios de reencontrar a harmonia perdida com Deus.
A luta não é por isso menos incerta e obstinada, e numerosos relatos deta-
lham as ações maléficas daquele que se nomeia, a justo título, o Inimigo. Diz-se
que ele é responsável por todos os males e todos os infortúnios: ele provoca tem-
pestades e borrascas, apodrece os frutos da terra, causa as doenças dos homens
e do gado. Ele faz afundar os navios, desabar os edifícios e bloqueia as melho-
res intenções (conta-se, por exemplo, que ele se opõe à construção da catedral
de York, tornando as pedras impossíveis de ser levantadas). Com suas armas
favoritas, que são a tentação e o engodo, ele procura insinuar no coração dos
homens desejos culpáveis, suscitando maus pensamentos por meio do sonho
(sempre suspeito de ter uma origem diabólica) ou da aparição (a célebre Vida de
Antônio, o eremita do deserto, fornece, desde 356, o arquétipo dessas tentações
diabólicas, com freqüência retomadas e expressadas por imagens). Para tal, ele
pode usurpar uma aparência humana, em particular a de uma mulher sedutora
ou a de um belo jovem, ou até mesmo a de um santo. Nada é impossível para o
diabo, verdadeiro campeão da metamorfose, nem mesmo tomar as feições do
arcanjo Gabriel, da Virgem ou de Cristo. As tentações da carne e do dinheiro,
do poder e das honrarias são as mais temíveis: são aquelas às quais sucumbe
Teófilo - prefiguração medieval de Fausto - depois de feito seu pacto com o
diabo, segundo a lenda bizantina conhecida no Ocidente a partir do século IX
Não se poderia considerar o diabo de modo isolado. Por maior que pareça ser
seu poderio, ele não pode ser avaliado corretamente se não se leva em conta o
conjunto das forças celestes que se lhe opõem. As legiões angélicas infligem aos
(,r n:nph1 !n'.fmpk. '! ll prtf" mrm. 7 mabàmt fatt';.:•' t--!·-*<:-::·.~-. ::!-'
.:::::
f<~ra"" alt'l;,
35. Tcófilo prestando homenagem ao diabo, c. 121 O (saltério da rainha lngcburge. Museu Condé,
Chantilly, ms. 9, fi. 35v.).
O saltério de lngcburge. esposa repudiada pelo rei Filipe Augusto, é ricamente iluminado c seus planos de
fundo em ouro sáo particularmente bem conservados. 1\:dc, o milagre de Teófilo desenrola-se por várias pági-
nas. i\Jo alto, aqui, o pacto que Teófilo faz com o diabo toma a forma de uma homenagem vass1ilica: ajoelhado,
ele junta as mãos, como para o imnixtio mamtttm do rito feudal. O diabo, em pé, põe somente uma de suas
mãos sobre as de Tcófilo, pois, com a outra, segura o pacto que contém uma inscrição- pouco visível - evo-
cando claramente a relação entre um vassalo c seu senhor (''eu sou teu homem", "ego sum lznmo tuus").
Embaixo. Teófilo, arrependido, encontra-se no interior de uma igreja (lugar este que o altar c a lamparina sus-
pensa siio suficientes para indicar); ele se prosterna. em prece (o gesto das mãos é. desde o século XI, o do vas-
salo prestando homenagem a seu senhor c, por conseqüência, o mesmo que Teófilo realiLa acima. diante do
diabo). É provâvel que ele ore diante de uma cstJtua da Virgem, posta sobre o altar, mas, aqui, ela parece lhe
aparecer em pessoa e lhe falar. Nas cenas seguintes, a Virgem rl'toma o pacto. lilwrtando Tcófilo de suas obri-
gações para com o diabo. A homenagem legítima à Virgem pôde. então. apagar a homenagem negativa a Satã.
anjos rebeldes sua primeira derrota. Mesmo sendo as vítimas favoritas das ten-
tações diabólicas, os santos conseguem sempre superar a provação, que se
transforma, assim, em uma ocasião para confirmar sua força espiritual. Nas nar-
rativas hagiográficas, o diabo é aquele que acaba por valorizar os santos heróis
que triunfam sobre ele. O exército dos santos, inalteravelmente vitorioso,
demonstra, assim, que é um dos recursos mais eficazes para os homens que se
põem sob sua proteção. Enfim, mais ainda do que os santos, a Virgem torna-se
a protetora suprema, sobretudo quando é Satã em pessoa que ameaça, e é ela
que liberta Teófilo de seu pacto diabólico (figura 35, na p. 384). Nos últimos
séculos da Idade Média, o par Virgem/Satã adquire importância determinante,
como indica principalmente o tema do "processo de Satã", que ele intenta con-
tra uma humanidade de quem a Virgem é a advogada. A dualidade do diabo e
de Maria parece, então, quase tão importante quanto a oposição entre Satã
e Cristo, mesmo se a superioridade de Deus sobre o diabo permanece o funda-
mento do feixe de oposições que acabamos de evocar.
O homem medieval não está, então, sozinho diante dos demônios. Todas
as forças divinas, angélicas e santas -cuja multiplicação incita a questionar a
existência, no seio do cristianismo medieval, de uma deriva politeísta -
encontram sua unidade e sua coesão na luta contra ele, de modo que o equilí-
brio assim produzido sugere, finalmente, considerar o cristianismo medieval
um monoteísmo complexo. Além disso, o fiel dispõe de práticas, de gestos e de
ritos para se proteger do Inimigo. A Igreja, em sua totalidade, é uma muralha
contra o diabo, através dos sacramentos que dispensa (o batismo, a penitên-
cia), dos ritos que pratica (o exorcismo ou, ainda, a consagração das igrejas,
que interdita seu acesso aos diabos), as preces e bênçãos que pronuncia e que
afastam o Maligno. Os objetos sagrados - hóstia, relíquia, cruz, mas também
amuletos diversos - mantêm igualmente o demônio a distância. Enfim, do
mesmo modo que os clérigos sublinham que o diabo nada pode contra aqueles
que têm fé, existe um gesto simples e familiar cuja infalível virtude salva de
todos os perigos satânicos: o sinal-da-cruz. O diabo, contraponto valorizador
das potências celestes que triunfam sobre ele, também é, então, o contrapon-
to valorizador da instituição eclesial, através da qual os fiéis são convidados a
recolher os frutos dessa vitória.
É, então, lógico que o diabo tenha sido considerado o inspirador dos ini-
migos da Igreja. Para os cristãos, os deuses adorados pelos pagãos são apenas
demônios e, após os muçulmanos e os judeus, os hereges também são demo-
nizados. Iniciado desde o século lll, esse processo acentua-se com as heresias
do ano mil e, mais tarde, no momento da luta contra os cátaros. Não somente
os heréticos passam por seres inspirados pelo diabo, mas são descritos, de acor-
É preciso, agora, percorrer com maior atenção cada um dos lugares do além para
descobrir a diversidade de suas representações e interrogar-se sobre suas pró-
prias implicações.
A C J \' J L I Z A Ç .:i O F EU lJ !1 I. 40 J
nião dos fiéis com o Criador, que é nomeada "visão de Deus" de acordo com
Agostinho, embora ela não tenha, evidentemente, nada em comum com a visão
através dos olhos do corpo. O que se chama igualmente de visão beatífica per-
mite conceber a salvação cristã como um acesso a Deus, uma participação plena
em sua presença, que os escolásticos definem como uma compreensão pura-
mente intelectual do Ser absoluto, intangível e invisível aqui embaixo. Ela é um
conhecimento perfeito do princípio divino, que eleva a criatura finita até a reve-
lação do infinito. Ela tende, então, a uma quase-divinização do homem, sinal
desse radicalismo da antropologia cristã que os pagãos julgam monstruoso.
De maneira mais imagética, a representação do jardim paradisíaco mostra
os eleitos em um lugar verdejante e luminoso, que exprime conforto e alegria,
simbolizando o desabrochar fecundo da vida eterna. Tal imagem corresponde à
etimologia da palavra "paraíso", que designa um jardim ou um lugar repleto de
árvores, como diz Agostinho, e que, na Bíblia, só é aplicado ao Éden, onde
foram criados Adão e Eva. O jardim da beatitude manifesta, então, uma relação
essencial entre o paraíso celeste e o paraíso terrestre: a história da humanidade
é destinada a se fechar num ciclo, de modo que a esperança do paraíso que
anima os homens é também o desejo de um retorno à felicidade perdida das ori-
gens. Em oposição a este paraíso bucólico, a recompensa dos justos é muitas
vezes associada à Jerusalém celeste, cidade quadrangular cujos muros de pedras
preciosas são vazados por doze portas, segundo a descrição do Apocalipse de
João (figura 30, na p. 330). A importância desse tema, que inspirou amplamen-
te a criação artística e se encontra presente nas pinturas, nas esculturas e na
decoração de numerosos objetos litúrgicos, é facilmente entendida quando se
sabe que o edifício é ele próprio percebido como uma antecipação da Jerusalém
celeste. No entanto, nos séculos XII e XIII, a principal evocação da felicidade
paradisíaca mostra os eleitos no seio do patriarca Abraão, conforme a parábola
de Lázaro e do mau rico e ecoando a liturgia dos mortos, cujas preces pedem
que as almas dos defuntos ascendam ao repouso no seio de Abraão - e, por
vezes, de Isaac e Jacó (figura 36, na p. 390). Esta representação goza de uma
grande força figurativa e mostra o paraíso como uma reunião junto a uma figu-
ra paterna, que agrupa e protege sua progenitura: o patriarca Abraão, qualifica-
do "de pai de todos os crentes" (Rom 4, ll ). Os eleitos reunidos no seio de
Abraão são, de resto, figurados como crianças a fim de melhor manifestar sua
posição de filhos do patriarca e para marcar esse retorno à infância espiritual,
da qual o Evangelho faz uma condição de acesso ao reino dos céus (Mat 18, 3).
O seio de Abraão propõe, assim, uma imagem perfeita da Ecclesia celeste, fra-
ternidade de todos os cristãos reunidos com seu pai comum em uma harmonio-
sa unidade.
Para marcar a realização dos processos analisados até aqui, pode-se referir à
coroação da Virgem pintada por Enguerrand Quarton para o convento cartusia-
no de Villeneuve-les-Avignon (1454). Esse retábulo oferece uma visão notavel-
mente sintética do universo, tal qual podiam imaginar os homens do fim da
Idade Média, integrando, conseqüentemente, o aqui embaixo e o além (figura
38, na p. 406). O mundo terrestre aparece sob a forma condensada de seus
principais lugares simbólicos, Roma e Jerusalém, que definem sua polaridade
horizontal, enquanto, no centro, a crucificação esboça o eixo vertical da salva-
ção. Quanto ao além, ele é apresentado sob a forma dos quatro lugares que exis-
Do século XII ao século XV, acentua-se o esforço dos clérigos para impor as dua-
lidades morais que estão no coração da visão cristã do mundo. O discurso sobre
os vícios e as virtudes se faz cada vez mais presente, ramificado e totalizante.
A insistência sobre a culpabilidade do homem e a preocupação com o outro
mundo progridem na base da geografia do além, que se forma a partir do sécu-
lo XII. A figura de Satã, investida de uma potência crescente, torna-se objeto de
verdadeira obsessão. Mas a onipresença do pecado, a majestade de Satã e a coe-
rência do sistema penal do inferno obrigam as forças do bem a um combate que,
para ser sempre vitorioso, deve ser mais obstinado. Assim, ao longo da Idade
Média, a intensidade das dualidades morais se faz mais viva e o mundo se pola-
riza ainda mais. Nesse sistema, do qual não se deve exagerar a eficácia, o poder
do diabo permanece sob controle e a ameaça do inferno jamais vence sobre a
esperança do paraíso. O pânico amedrontador da danação oprimiu ainda menos
as populações medievais pelo fato de que as armas da salvação em geral o dis-
sipam com a maior facilidade. As concepções dos vícios e das virtudes, do com-
bate entre Satã e as forças celestes, assim como as representações do além são,
sobretudo, uma poderosa incitação a agir conforme as regras definidas pelos clé-
rigos, a se confessar regularmente e a realizar os ritos necessários ao desenrolar
de toda vida cristã. O discurso moral e a insistência sobre o além participam de
um conjunto de crenças e de ritos que justificam a organização da sociedade
aqui embaixo e, em particular, o lugar dominante dos clérigos, mediado~es obri-
gatórios que dispõem dos meios que permitem a todos superar as tentações do
Inimigo e alcançar o paraíso. À imagem da Virgem de misericórdia que reúne os
fiéis sob seu manto (figura 25, na p. 249), a Igreja é a grande protetora. Seu
imenso poder liga-se ao fato de que ela é a instância que salva do pecado, de
Satã e do inferno. Obter sua salvação: tal é o imperativo que, na medida em que
ordena as práticas sociais, confere sentido à dominação da instituição eclesial.
A MANEIRA PELA QUAL UMA SOCIEDADE pensa a pessoa humana constitui muitas
vezes um aspecto central de seu sistema de representação e um revelador pre-
cioso de suas estruturas fundamentais. O Ocidente medieval não é exceção, de
modo que seus principais motores não poderiam ser compreendidos sem anali-
sar as representações da pessoa que nele prevalecem e, mais precisamente, as
formas aí assumidas pela dualidade entre corpo e alma. Crê-se, geralmente, que
o monoteísmo cristão é caracterizado por uma separação radical entre o corpo-
ral e o espiritual. Entretanto, o cristianismo - do qual não se conhece essên-
cia intemporal, mas somente encarnações sócio-históricas sucessivas - é, ao
menos em sua fase medieval, um monoteísmo complexo, de modo que o fun-
cionamento da dupla alma/corpo revela-se aí menos simples do que parece.
Assim, a concepção dual da cristandade medieval (que reconhece, com efeito,
duas entidades fundamentais: a alma e o corpo) será distinguida do dualismo,
ao qual o cristianismo foi confrontado sob a forma do maniqueísmo e, depois,
do catarismo, e do qual sempre procurou se diferenciar (o dualismo postula
incompatibilidade total entre o carnal e o espiritual, conferindo positividade
somente a um espiritual inteiramente puro). É, então, em uma faixa interme-
diária que é preciso situar as concepções medievais da pessoa: entre a separa-
ção absoluta do dualismo maniqueísta e a fluidez das entidades múltiplas dos
politeísmos. É, então, possível analisar o significado social do modelo ideal da
pessoa e da relação alma/corpo, e ver nele uma matriz ideológica fundamental
da sociedade medieval ocidental.
i\ C I V I L ll ,\ Ç ,\ O F E U ll ,\ L 409
0 HOMEM, UNIÃO DA ALMA E DO CORPO
32. No sentido de governo da pessoa, de controle sobre si, c não de forma política de governo. (N. T.)
4 1O }éràme Basclzet
racional (própria ao homem). Além disso, a dualidade da alma - de um lado,
princípio animador do corpo; de outro, entidade que tem nela mesma seu pró-
prio fim - é ainda sublinhada por numerosos autores, entre eles Alberto, o
Grande. Parece, então, que a noção cristã da alma engloba ao menos dois ele-
mentos: o princípio de força vital que anima o corpo (a anima de Paulo; as potên-
cias sensitiva e animal dos escolásticos) e a alma racional, que aproxima o homem
de Deus. Ou a teologia dissocia esses dois aspectos e tende, então, para uma
antropologia ternária, ou ela os reúne em uma mesma entidade, de modo que a
alma é um princípio duplo, que remete ao corpo carnal que ela anima e, ao
mesmo tempo, partilha com Deus suas mais altas qualidades. É, ainda, a esco-
lástica do século XIII que, pensando uma alma única dotada de três potências,
oferece uma das soluções mais satisfatórias a essa contradição.
Se a alma e o corpo constituem dois princípios de naturezas tão diferentes,
como pode existir um contato ou uma troca entre as realidades materiais e espi-
rituais? Por isso, a maior parte dos teólogos atribui à alma potências sensíveis,
que lhe permitem chegar, por si só e independentemente do corpo, a um conhe-
cimento do mundo sensível. Mas, em seu radicalismo antropológico, Tomás de
Aquino nega a existência de tais potências sensíveis, o que retira da alma toda
capacidade de contato direto com o mundo material e torna mais necessária
ainda sua união com o corpo. Uma outra questão delicada consiste em definir
em quais partes do corpo se encontra a alma. A idéia tradicional segundo a qual
a alma, espiritual e, portanto, privada de toda dimensão espacial, não pode ser
contida no corpo por nenhuma forma de localização, é demolida pela revolução
que leva, no século XII, a reconhecer que a alma é localizável (ver o capítulo pre-
cedente). Nem por isso ela é contida de maneira simples no corpo, e Tomás de
Aquino afirma que a alma engloba o corpo, muito mais do que está nele. Entre-
tanto, emerge uma dualidade de centros anímicos. o_~()ração, já. percebido
p~_los_p_Ij_JTl~iros eremitas do deserto do Egito como o centro da pessoa, "o ponto
de encontro..e.nt.re o corpo e a alma, entre o humano e o divino", beneficia-se,
n~ Idade 1\'l~~t~~--de uma promoção crescente que assegura seu triunfo como
Í~·~~ü~;çã~ da alma. Mas a idéia da cabeça como sede da alma resiste, de modo
que a rivalidade entre esses dois centros anímicos continua bastante ativa. Seja
como for, a alma encontra-se também expandida por todo o corpo. Mesmo
Tomás de Aquino, que, entretanto, retira da alma suas potências sensíveis, insis-
te sobre os espíritos animais, esses "vapores sutis pelos quais as forças da alma
são difundidas nas partes do corpo''. Assim, são explicadas todas as interferên-
cias entre a alma e o corpo. A alma habita o corpo, em sua totalidade e em cer-
tos centros privilegiados, cabeça e coração, mesmo se, por sua natureza, escape
aos limites de tal localização.
Dois momentos conferem toda a sua força à visão dual da pessoa: o da concep-
ção, em que a alma e o corpo se unem, e o da morte, em que eles se separam.
A origem da alma individual permanece, por muito tempo, uma questão delicada
para os autores cristãos. Declarando que se trata de um "mistério insolúvel",
Agostinho não chega a escolher entre as diferentes teses presentes: a teoria, ela-
borada por Orígenes, de uma preexistência das almas, todas criadas de uma só vez
quando da Criação e que formam um vasto "estoque", esperando para encarnar à
medida da concepção dos indivíduos; o "traducianismo", defendido por Tertu-
liano, segundo o qual a alma seria transmitida pelos pais e formada a partir de
sua semente; enfim, o "criacionismo", admitido por são Jerônimo, segundo o qual
cada alma é criada por Deus no momento da concepção da criança e imediata-
mente infundida no embrião. Ao longo dos séculos medievais, esta última tese
impõe-se em um processo lento e indeciso, que leva finalmente, nos escolásticos
dos séculos XII e XIII, a uma escolha clara. Precisa-se, ainda, como o faz Tomás de
Aquino, que o embrião é primeiramente animado por uma alma vegetativa e,
depois, por uma alma sensitiva, ambas sendo provenientes de um desenvolvimen-
to próprio do corpo engendrado pela semente paterna, antes que a alma racional,
criada por Deus, seja infundida no embrião, no qual ela substitui a alma sensitiva
(mas recuperando as potências vegetativas e sensitivas desta última). Repara-se,
então, uma tripla origem da pessoa: o corpo, saído da procriação; a alma animal,
produzida pela força paterna; a alma racional, criada por Deus. Mas, no ser aca-
bado, esta tripla origem funde-se em uma dualidade essencial. E reteremos,
sobretudo, que a alma intelectual, substância imaterial e incorpórea, não poderia
ser resultado da geração. A parte superior da pessoa não é engendrada por seus
no século XII, o monge Guiberto de Nogent explica que, no outro mundo, ne-
nhuma alma pode ser designada pelo seu nome pessoal. É verdade que ela é
reconhecida - ela não desaparece em um anonimato dos mortos - , mas per-
deu um aspecto fundamental de sua identidade singular; doravante ela perten-
ce à comunidade alargada dos mortos, no seio da qual todos experimentam um
interconhecimento generalizado. As concepções medievais oscilam, então, em
uma zona intermediária: a alma separada do corpo não é nem um vago espectro
impessoal, nem uma pessoa no sentido pleno do termo:
No geral, as concepções medievais da pessoa não se reduzem a uma duali-
dade simples. Nota-se nelas uma tensão entre uma representação dual onipre-
sente e uma tentação ternária que afiara em certas ocasiões. Uma das implica-
ções disso é o estatuto acordado ao princípio de força vital (espiritual, mas des-
tinado à animação do corpo), assim como à função da interface entre o material
e o espiritual (imagens mentais das coisas corporais, potências sensíveis da alma
ou outras modalidades de percepção das realidades materiais). Mas a evolução
das concepções medievais faz aparecer um deslocamento da concepção terná-
ria para formulações mais binárias. Então é preciso ao mesmo tempo sublinhar
a complexidade da pessoa cristã e reconhecer que um processo histórico tende a
privilegiar uma estrutura dual. Se a dualidade alma/corpo não é suficiente para
dar conta da pessoa cristã, ela define, em todo caso, sua estrutura fundamental,
como sublinham muit~s representações da concepção e da morte.
A alma não desce, então, para uma sinistra prisão, mas para uma casa, na
qual se regozija por habitar, sobretudo porque ela a constrói segundo suas exi-
gências. A abadessa pode, então, concluir que o atrelamento do corpo e da alma
é um fato positivo, desejado por Deus e odiado por Satã.
O caráter positivo desse laço é igualmente expresso pelos mestres de teo-
logia dos séculos XII e XIII, que indicam que Deus favoreceu a adequação do
corpo e da alma estabelecendo entre eles uma relação de comensurabilidade e
dotando a alma de uma aptidão natural a se unir com o corpo (unibilitas). Para
o bispo de Paris, Pedro Lombardo, o estatuto da pessoa humana mostra que
"Deus tem o poder de unir as naturezas disparates da alma e do corpo para rea-
lizar um conjunto unificado por uma profunda amizade". O que define o homem
não é, então, nem a alma, nem o corpo, mas a existência de uma composição
unificada, formada por essas duas substâncias. Quanto ao tema da amizade
entre o corpo e a alma, ele apenas se amplia, tanto na literatura moral, na qual
o gênero dos Debates do corpo e da alma sublínha a tristeza que sentem ao se
separar, como na especulação teológica, na qual, em meados do século XIII,
Boaventura analisa a inclinação da alma para se unir ao corpo.
Tomás de Aquino leva essa dinâmica a seu ponto extremo. Conforme o
hilemorfismo de Aristóteles (que analisa a conjunção da matéria e da forma que
se inscreve nela), o homem não é mais pensado como a união de duas substân-
cias. A alma não é uma entidade autônoma associada ao corpo, mas a "forma
substancial" do corpo. A interdependência da alma-forma e do corpo-matéria é
total: "Contra todo dualismo, o homem é constituído de um único ser, no qual
a matéria e o espírito são os princípios consubstanciais de uma totalidade deter-
minada, sem solução de continuidade, pela sua inerência mútua: não duas coisas,
Assim, a alma separada, em sua imperfeição, deseja o seu corpo e está impacien-
te pelos reencontros que a escatologia cristã lhe promete como prelúdio do Juízo
Final. A ressurreição dos corpos é, com efeito, um ponto essencial da doutrina
cristã, q~o~e conta, sem dúvida, entre seus aspectos mais originais - e mais difí-
ceis de admitir (figura 36, na p. 390). Fundada no Evangelho, mencionada no
Credo e defendida por todos os teólogos medievais, a doutrina da ressurreição
geral dos corpos no final dos tempos não sofre nenhuma contestação (a não ser
entre os heréticos, notadamente os cátaros). Entretanto, admitir que os corpos
de todos os mortos serão reconstituídos e sairão de suas tumbas para se reunir
Deus
l<a)--,
I alma \
I \
a) b)
t
o
o
A C I V I L I Z A Ç Ã O F E U I),\ L 44]
Tal dinâmica permite assumir até o amor terrestre. Heloísa e Abelardo já o
haviam tentado, após terem conhecido deploráveis desventuras. Por volta de
1130, a amante, agora abadessa, escreve a seu amado de sempre, tornado
monge depois de sua castração, que ele é "seu único depois de Cristo, seu único
em Cristo". O amor divino deve primar, mas, uma vez feito esse reconhecimen-
to, o amor de um homem pode ser assumido - não sem dificuldades - até
confundir-se com aquele de Deus. Mais, de um século e meio depois, Dante dá
uma outra amplitude a essa espiritualização do amor. Na Divina comédia, Beatriz,
a mulher de carne e osso que ele amou, torna-se "uma figura ou uma encarna-
ção da revelação", que o guia no paraíso, em direção à visão de Deus (Eric
Auerbach). De resto, é notável que Virgílio lhe sirva no início de guia, através
do inferno e do purgatório. Poeta admirado, ele é a realização da "plenitude das
perfeições deste mundo", que conhecem, através dele, uma notável valorização.
Entretanto, esta esbarra em um limite: Virgílio, que continua pagão apesar de
suas premonições, deve abandonar Dante no limiar do reino celeste e cede,
então, o lugar à beleza de Beatriz.
Todos esses elementos não são o sinal de uma suposta laicização ou de uma
autonomização da cultura profana, fazendo recuar o controle dos valores cris-
tãos. Eles marcam, ao contrário, uma etapa suplementar na dinâmica de articula-
ção entre o espiritual e o corporal, capaz de assumir ainda mais do que antes as
realidades do mundo material. Assim, enquanto a igreja românica se apresenta
como a imagem de uma Jerusalém celeste fortificada, protegendo-se do munda-
no, o gótico tende, pela dinâmica ascendente das abóbadas e pela onipresença
da luz a uma espiritualização da arquitetura, e ao mesmo tempo testemunha um
maior reconhecimento do mundo e das aparências sensíveis dos corpos e da
natureza. Se se quer considerar o modelo antropossocial analisado anteriormen-
te (ilustração Xlll, na p. 432) uma espécie de "elevador simbólico", pode-se
sugerir que dá mostras de sua eficácia na medida em que é capaz de levantar
as cargas mais pesadas. É assim que ele permite uma melhor consideração do
mundo terrestre, suscetível de satisfazer os laicos e que, por vezes, responde à
sua pressão, sem por isso questionar a preeminência dos valores espirituais,
afirmada pelos clérigos. Esta lógica, testemunhada notadamente pela concep-
ção dos corpos gloriosos, demonstra que uma realidade material pode estar ao
lado do espiritual: é o caso, em primeiro lugar, da própria Igreja, cujas posses-
sões são spiritualia.
A oposição entre o carnal e o espiritual é, então, dissociada da dualidade do
corpo e da alma, pois ela é fundamentalmente relaciona] e dinâmica: é espiri-
tual toda armação no seio da qual o princípio espiritual exerce um governo firme
sobre os corpos; é carnal toda articulação na qual esta dominação do espiritual
***
CONCLUSÃO: AS AMBIVALÊNCIAS
DA PESSOA CRISTÃ
A C I V I L I Z.~ Ç Â O F EU I) AL 44 7
da de um laço carnal; trata-se de laços que derivam de um exercício socialmen-
te regulamentado da reprodução sexuada. Chamá-lo-ei carnal apenas para dar
conta das concepções medievais que o opõem a uma outra forma de parentes-
co, dito espiritual. Por "parentesco espiritual" serão designadas as relações entre
indivíduos, ou entre homens e figuras sobrenaturais, que são pensadas a partir
do modelo do parentesco (aliança, filiação, irmandade), embora reivindiquem
expressamente a ausência de todo laço carnal entre as pessoas concernidas.
Essa forma de parentesco é chamada "espiritual" porque transmite a vida, não
do corpo, mas da alma, e dá direito a uma herança, não material, mas espiritual
(a beatitude celeste). Enfim, acrescentar-se-á um terceiro grau, distinto embo-
ra próximo do parentesco espiritual: assim como este, o "parentesco divino"
exclui toda referência ao exercício da reprodução sexuada, mas une, por sua vez,
figuras divinas ou sobrenaturais.
Desde muito cedo, a Igreja se interessa pelas instituições familiares para intro-
duzir nelas alterações consideráveis, postas em evidência por Jack Goody. Duas
fases testemunham tensões particularmente vivas. Nos séculos IV e v, enquan-
to a Igreja passa da perseguição à posição de instituição e o Império Romano
se desagrega, a maior parte dos elementos-chave das estruturas antigas do
parentesco está periclitante ou desaparece no Ocidente (notadamente, a ado-
ção, a concubinagem, o divórcio e o levirato). Ao contrário, novas práticas
desenvolvem-se, em particular o apadrinhamento a partir do século VI, assim
como o· conjunto de relações associadas ao parentesco batismal. A concepção
do casamento é também profundamente transformada. É preciso lembrar que,
nos primeiros séculos do cristianismo, a ruptura evangélica com a moral judai-
ca da fecundidade e, sobretudo, com a exigência de natalidade que impunha
ao cidadão romano um dever de dar filhos à Cidade, conduz a desvalorizar radi-
calmente o casamento, ligado ao contato sexual e, portanto, ao pecado: somen-
te a continência e a virgindade parecem ser, então, dignas de exaltação. Não
pode haver salvação senão na fuga para fora do mundo e da sociedade, quer
dizer, para fora da família. Depois, assumindo as conseqüências da mudança
de estatuto da Igreja, Agostinho inaugura um processo fundamental, que pros-
4 50 }érome Baschet
tudes e as diversas posturas sexuais proibidas. Esse papel repressivo da Igreja
é, entretanto, contrabalançado pela reabilitação crescente do ·casamento, que
conduz, por exemplo, Tomás de Aquino a considerar legítimo o prazer sexual.
Mesmo se a condição é que ele se manifeste no quadro de uma união legítima
e seja associado à preocupação de procriar, trata-se de uma novidade notável
em relação à condenação inapelável do prazer físico nos autores anteriores. Um
aspecto decisivo da reabilitação do casamento intervém no século XII, quando
este, concebido como imagem da união mística de Cristo com a Igreja, ganha
lugar entre os sete sacramentos. É o resultado de um longo processo e, final-
mente, de uma reviravolta completa em relação à atitude dos primeiros cris-
tãos diante do casamento. No mesmo momento - enquanto, antes, o casa-
mento constituía um ato privado que dizia respeito à exclusiva competência
das famílias - , o desenvolvimento da liturgia nupcial manifesta o esforço dos
clérigos para intervir no ritual da aliança através das bênçãos, especialmente
do quarto dos esposos ou pela celebração do casamento diante da porta da
igreja, na presença de um padre. Mas o sucesso dessas intervenções é muito
variável segundo as regiões e, em todo caso, elas não são absolutamente
necessárias: segundo a norma canônica insistentemente lembrada desde o
século IX, é essencialmente o consentimento dos esposos que confere valida-
de à união. A intervenção do sacerdote no ritual matrimonial só se tornará
obrigatória após o Concílio de Trento.
O processo de enquadramento do casamento dos laicos ocorre paralela-
mente a uma reafirmação do celibato dos sacerdotes, que é uma das questões
da reforma da Igreja. É verdade que o celibato clerical, enquanto norma consti-
tutiva de um estado social (e não como simples ideal pessoal), começa a afir-
mar-se no fim do século VI, mas sua realização efetiva ainda está longe de ser
garantida no início do século XI. Além de sua intenção moral, ele permite, então,
traçar uma delimitação radical entre clérigos e laicos, o que é o objeto central
da reorganização da sociedade engajada pela Igreja. De um lado, os laicos são
destinados ao casamento e à reprodução corporal da cristandade; de outro, os
clérigos, caracterizados pelo celibato e pelo abandono dos laços desvalorizados
da carne, tornam-se aptos a uma tarefa mais nobre, a reprodução espiritual da
sociedade. Através do prestígio conferido pela renúncia à carne, eles afirmam-
se como especialistas do sagrado, como os intermediários que reivindicam a
exclusividade nas relações com o mundo divino: o liturgista Guilherme Durand,
em fins do século XIII, qualifica-os explicitamente de "mediadores" entre os
homens e Deus.
A C I I' 11.1 Z ~ Ç A O r EU DA I. 4 5}
Transmissão dos patrimônios e reprodução feudal
Uma parte essencial desses laços é urdida pelo batismo. Além de sua função de
purificação indispensável para alcançar a salvação pessoal, esse rito fundamen-
tal marca o verdadeiro nascimento social do indivíduo. É o momento em que ele
recebe seu nome e se torna membro da comunidade dos fiéis. Sem batismo,
nada de identidade, nada de existência aqui embaixo, e nada de salvação no
além. É então que se instituem os mais ativos laços de parentesco espiritual,
que são o apadrinhamento e o compadrio (que une os pais carnais e os pais espi-
rituais). Tendo a responsabilidade do nascimento físico da criança, em virtude
do qual o pecado original lhe é transmitido, os pais carnais são, na Idade Média
4 S 6 }érôme Baschet
- e contrariamente ao ritual ainda praticado até o século v, antes da institui-
ção do apadrinhamento-, rigorosamente excluídos do rito báfismal, que asse-
gura seu nascimento social e sua regeneração na graça. Nessa ocasião, eles
devem ceder lugar aos pais espirituais, padrinhos e madrinhas, que seguram a
criança sobre a pia batismal, pronunciando, no lugar dela, as palavras rituais,
dando-lhe seu nome e apresentando-se como garantia de sua educação cristã.
Essa substituição dos pais carnais pelos pais espirituais no momento do batis-
mo, que manifesta a indignidade dos primeiros de participarem da parte mais
nobre da reprodução dos membros da comunidade, torna sensível a todos a
preeminência do parentesco espiritual e a desvalorização do parentesco carnal.
O papel do padrinho na educação religiosa da criança é, na maior parte do
tempo, teórico, de acordo com os princípios que prescrevem sua intervenção
unicamente no caso de os pais faltarem. De resto, em certos meios, os pais pare-
cem procurar menos padrinhos para seus filhos do que compadres para si mes-
mos, como se depreende dos estudos de Christiane Klapisch-Zuber. O compa-
drio permite, com efeito, estabelecer uma relação horizontal, pensada em
termos de amizade e de fraternidade, que alarga o círculo dos aliados e é susce-
tível de apaziguar tensões sociais ou políticas. No século VI, os reis merovíngios
já utilizam o compadrio para pôr fim a suas lutas fratricidas e restaurar entre
eles relações pacíficas. Em outros contextos, o compadrio conserva uma dimen-
são mais vertical e sobrepõe-se às relações de clientelismo, por exemplo, na
Florença do fim da Idade Média: ter como compadre um rico comerciante sig-
nifica beneficiar-se de sua proteção e, ao mesmo tempo, integrar-se à sua clien-
tela política e econômica. Num caso como noutro, é sem dúvida porque ele per-
mitia multiplicar os laços de solidariedade e reforçá-los por um caráter
sacralizado que o parentesco espiritual gozou de tamanho favor entre os laicos.
Não se poderia, portanto, subestimar a importância do apadrinhamento, em
razão de seu papel no ritual batismal e de seu lugar eminente na economia geral
do sistema de parentesco. É o que confirma o desenvolvimento das interdições
matrimoniais por causa do parentesco espiritual. Se as proibições principais -
entre padrinho e afilhada, madrinha e afilhado, compadre e comadre- são esta-
belecidas desde o Código Justiniano, em 530, ou pouco depois, outras são acres-
centadas no Ocidente no século XII (por exemplo, entre o afilhado e a filha ou
entre a afilhada e o filho de uma mesma pessoa; entre os cônjuges daqueles que
são unidos pelo compadrio). Assim como para o parentesco carnal, esta é a
época em que a Igreja enuncia as regras mais constritivas, a fim de reforçar sua
posição de árbitro das práticas matrimoniais.
É também pelo batismo que se estabelece a filiação dos homens em rela-
ção a Deus. A criança, nascida de seus pais no pecado original, renasce da água
Definir a posição do clero nessa rede não é fácil em virtude da diversidade dos
estatutos em seu seio (posições hierárquicas; ordens menores/maiores; secula-
res/regulares; tradicionais/novos) e das situações que se inscrevem na fronteira
que separa clérigos e laicos (clérigos tonsurados, mas não ordenados, conversos,
ofertados e membros das ordens terceiras). Mas, como se viu, a divisão entre
clérigos e laicos, asperamente defendida, permanece socialmente determinan-
te. Portanto, as análises seguintes serão concentradas nos indivíduos, cujo fato
de pertencer ao clero é manifestado pela realização de um ritual - ordenação,
aquisição do hábito ou votos - e por um modo de vida discriminante - essen-
cialmente, o celibato (de resto, é a aparição, no século III, de um rito de orde-
nação, conferindo um papel exclusivo na celebração da eucaristia, que consti-
tui a origem da separação entre clérigos e laicos).
Como os demais cristãos, os clérigos são filhos de Deus e da Igreja. Sua
função confere, entretanto, uma posição específica na rede de parentesco: eles
também são pais. É através do sacramento batismal que o estatuto paternal do
pai se manifesta mais claramente. Ele exerce, então, o papel de representante
de Deus na terra; ou melhor, ele permite a realizaÇão do ato de parir por Deus
e pela Igreja, em virtude de seu estatuto de lugar-tenente de Deus e de mem-
bro da Igreja-instituição. É verdade que a paternidade dos sacerdotes não pode-
ria pretender a mesma dignidade que a de Deus, entretanto ela é o agente indis-
pensável à sua propagação (o papel eminentemente ativo do sacerdote é
sublinhado pela evolução da liturgia batismal, pois, no Ocidente, a fórmula "eu
te batizo" supera o gesto passivo, mantido em Bizâncio, pelo qual o celebrante
anuncia que o fiel 'é batizado em nome de Deus". Na sociedade medieval, os
sacerdotes, únicos habilitados a conferir os sacramentos, são os mediadores
obrigatórios do parentesco divino. É através deles que se instaura, para os cris-
tãos, a paternidade de Deus e a maternidade da Igreja.
Os títulos empunhados dos clérigos manifestam claramente essa paterni-
dade: abade (de "abbas", pai) e, sobretudo, papa (papa, papatus, termos utiliza-
dos por todos os bispos e, depois, reservados somente ao pontífice romano a par-
tir do século XI). É onipresente esse modo de tratamento dos clérigos: pater,
33. Fn?res, no original francês, que corresponde tanto a "irmãos" como a "frades". (N. T.)
0PARENTESCO DIVINO,
PONTO FOCAL DO SISTEMA
A natureza da filiação entre Pai e Filho constitui uma das principais questões
das controvérsias trinitárias. Enquanto Árius (256-336), sacerdote em
Alexandria no início do século IV, nega a plena divindade de Cristo e reconhe-
ce o Pai como único Deus verdadeiro, a ortodoxia, que se forma em reação ao
arianismo, deve conceber um laço entre o Pai e o Filho que seja uma verdadei-
ra filiação e que, todavia, assegure sua igualdade divina. Decisivo a esse propó-
sito, o Concílio de Nicéia, em 325, seguido por outros concílios ecumênicos do
século IV, proclama o Credo trinitário, em virtude do qual o Filho é dito "verda-
4 72 Jér6me Baschet
e à supersacralização da instituição eclesial a partir dos séculos XI e XII que a
Virgem se torna uma figura onipresen~e e sobreeminente do "pani:eão cristão",
cada vez mais perto de chegar a uma posição de igualdade com Cristo: uma
farsa do século XV não tem necessidade de forçar muito o traço para imaginar o
processo ao longo do qual Cristo acusa sua mãe de tê-lo desbancado junto aos
homens. Mesmo se nos ativermos prudentemente, aqui, à idéia de uma quase
divinização da Virgem, é possível relembrar a feliz expressão de Michelet a pro-
pósito do desenvolvimento da devoção mariana na Idade Média: "No século XII,
Deus mudou de sexo".
34. Também conhecidas como Bíblias alegorizadas ou historiadas, são exemplares abundantemen-
t\
te ilustrados, em que as imagens correspondem às passagens bíblicas e seus comentários textuais;
normalmente uma intenção morali7.ante e aleg6rica. (N. T.)
O sistema descrito até aqui é dotado de uma notável coerência. É verdade que
a tripartição apresentada não o é totalmente. Com efeito, parentesco espiritual
e parentesco divino são fundamentalmente da mesma natureza, pois remetem,
um e outro, ao espiritual, por oposição ao carnal. É, no entanto, pertinente dis-
tingui-los (combinando, assim, oposição dual e estrutura ternária), pois suas
regras de funcionamento são parcialmente distintas. Existe uma especificidade
do núcleo divino, ponto de perspectiva que ordena o conjunto do sistema, em
oposição diametral com os modos de funcionamento do parentesco carnal,
enquanto, entre os dois, o parentesco espiritual aparece como uma instância
VI
A EXPANSÃO OCIDENTAL
DAS IMAGENS
Fazer imagens não é algo que vai por si mesmo. Como outras, a sociedade medie-
val enfrentou estas questões: É lícito fazer imagens? De que tipos e para quais
usos? As respostas a essas interrogações formam a história ocidental das imagens,
que pode ser assim resumida: aceitação progressiva da representação do sagrado,
ampliação dos usos das imagens e diversificação de suas funções, desenvolvi-
mento maciço de sua produção. Vários fatores induziam, entretanto, a uma forte
resistência às imagens. A interdição das imagens materiais figura nas Tábuas da
Lei de Moisés (Ex 20,4), e numerosas passagens do Antigo Testamento denun-
ciam as recaídas idólatras do povo eleito, tais como a adoração do Veado de Ouro.
De resto, o judaísmo e o islã, que permaneceram, em princípio, fiéis ao manda-
mento divino, não deixam de denunciar o caráter idólatra da prática cristã da
imagem. Os clérigos ocidentais devem defender-se contra tal crítica, notadamen-
te nos tratados antijudaicos que se multiplicam a partir do século XII e exageram
a polêmica até inverter paradoxalmente a acusação de idolatria contra os judeus
e os muçulmanos (Michel Camille). Além disso, o cristianismo dos primeiros
séculos (por exemplo, em Tertuliano) dá provas de um verdadeiro ódio do visível,
assimilado - conforme a tradição platônica - ao mundo das aparências e do
engano, ainda mais porque é necessário, naquele momento, distinguir-se das prá-
ticas da imagem características do paganismo.
36. Próximo de iconofilia, o termo iconodulia (formado a partir do grego douleia, servidão, submis-
são) indica uma postura favorável à veneração das imagens, sendo menos comprometido que ico-
nolatria, que, sobretudo no discurso dos seus opositores, denota negativamente uma adoração
(indevida) da imagem, aproximando-se de idolatria. Mais abaixo, o autor estabelece outra distin-
ção entre dulia e latria. (N. T.)
37. Do grego anagogé, "ato de elevar, fazer subir"; no domínio religioso, refere-se à elevação espi-
ritual através da contemplação da dimensão divina das coisas. (N. T.)
A C I V I L ll AÇÃO F EU O A L 48 5
de dulia (que se manifesta pela "proskynese", ou prosternação, diante das ima-
gens e objetos sagrados) apaga-se, especialmente em Alberto, o Grande, e
Tomás de Aquino. Este último dá o passo decisivo, afirmando que a imagem de
Cristo merece a honra de latria tanto quanto o próprio Cristo: a partir daí, o
culto prestado à imagem torna-se inseparável do culto prestado ao protótipo que
ela dá a ver (Jean Wirth).-As imagens do Ocidente e suas práticas encontraram
plenamente, então, sua justificação teológica.
A revolução das imagens, iniciada a partir do século XI, não se limita somente à
sua expansão quantitativa. Ela lhes confere também uma potência eficaz aumen-·
tada, para além do que sugere a tríade das justificações clericais da imagem (ins-
truir, rememorar, emocionar). Ainda não foram mencionadas, aqui, as imagens
mais miraculosas, aquelas que o são pelo seu próprio modo de produção. São,
conforme as tradições inicialmente orientais, as imagens acheiropoiétes, quer
dizer, não feitas pela mão do homem. Assim ocorre com a Verônica, véu ofere-
cido a Cristo no momento da subida ao Calvário e sobre o qual sua face teria
sido miraculosamente impressa. Conservada na basílica de São Pedro do
Vaticano desde o século XII, seu culto ganha ímpeto a partir de 1216, na seqüên-
cia de um milagre ao qual Inocêncio III dá sua caução. Inicialmente considera-
do uma relíquia, este objeto é, desde então, significativamente assimilado a uma
ÜS MECANISMOS DA REPRESENTAÇÃO
51 O }érôme Raschet
já foi dito, este distingue três gêneros de visão (segunda pqr.te, capítulo IV). Não
sendo nem visão corporal nem visão intelectual, a visão espiritual - que englo-
ba o conjunto de atividades da imaginação e, muito particularmente, as imagens
de sonho e as visões - é um elemento intermediário, uma potência mediadora
(Jean-Claude Schmitt). Ela pode ser submetida ao peso dos corpos, de modo
que o sonho, por muito tempo, foi objeto de grande desconfiança, especialmen-
te na cultura monástica: suas imagens pareciam perigosamente ligadas às pul-
sões da carne, na ausência de todo controle da vontade, ou, então, eram inter-
pretadas como tentações diabólicas. Mas o sonho, como a visão desperta, pode
também ser instrumento de uma comunicação com as potências celestes, e a
este título ele é valorizado, sobretudo a partir do século XII. A imaginação torna-
se, assim, o meio assumido da experiência de devoção ou mística. As interações
entre a imagem material e a imagem mental multiplicam-se: se o sonho justifi-
ca a novidade das estátuas-relicários do século XI, é em geral a imagem material
que, sobretudo a partir do século XII, desencadeia a visão espiritual Uá foram
mencionados o caso de Bernardo, Francisco e Liutgarda); igualmente, no fim da
Idade Média, certas místicas fazem representar imagens em conformidade com
as sugestões de suas visões. Imagem material e imaginação reforçam-se mutua-
mente para estabelecer uma relação privilegiada com as pessoas celestes.
É preciso, enfim, considerar a questão da imagem de maneira mais global.
A imagem é, com efeito, um caso particular de signo, ou seja, segundo a defini-
ção de Agostinho, uma coisa que, através da impressão que ela produz sobre os
sentidos, faz chegar uma outra ao conhecimento. Ora, o mundo inteiro é, para
o pensamento medieval, uma vasta rede de signos, que é preciso se esforçar
para decifrar como indícios da vontade divina. A Criação é "um livro escrito pela
mão de Deus" (Hugo de Saint-Victor): tudo aí são metáforas, símbolos, imagens.
Pode-se, então, perguntar se as imagens materiais, signos dentre outros em um
mundo de signos, não têm o mesmo estatuto que o conjunto das realidades sen-
síveis presentes no universo. Em todo caso, a natureza presta-se à interpretação,
exatamente à maneira das Sagradas Escrituras: "Que se interrogue a natureza ou
que se consultem as Escrituras, elas exprimem um único e mesmo sentido, de
um modo equivalente e coincidente" (Ricardo de Saint-Victor). Em conseqüên-
cia, as técnicas exegéticas empregadas para a compreensão da Bíblia podem
também ser aplicadas, ao menos em parte, ao universo. Desde Agostinho e Gre-
gório, o Grande, os clérigos insistem sobre a pluralidade das significações das
Escrituras e, em particular, sobre a distinção entre sentido literal e sentido ale-
górico. O segundo é o mais importante, mesmo se o sentido literal é objeto de uma
atenção reforçada a partir do século XII, como testemunha o sucesso da Historia
Scholastica, de Pedro, o Cantor, explicação literal das narrativas bíblicas. Ao
39. Ao longo deste capítulo foram respeitados os neologismos do autor (ou usados por ele) refe-
rentes aos estudos de iconografia, tais como omamentalização (por oposição a ornamentação), pla-
nitude (contra platitude) e nwstração (distinto de exibição). (N. T.)
40. Técnica, conhecida em italiano como tinta piatta, que consiste em aplicar uma camada uni-
forme de tinta em uma superfície. (N. T)
51 8 Jérôme Ba.~chet
generalidade (primeira parte, capítulo IV). Estabelecer tall~ço cria, entretanto,
muitas dificuldades, pois se trata de dar conta de uma dinâmica das formas de re-
presentação que é anterior ao occanismo e que se afirma progressivamente do
século XII ao w. Essa evolução deveria, então, ser vinculada a tendências mais
gerais e não é certo que o nominalismo, mesmo tomado em seu conjunto, desde
suas primeiras formulações no século XII, possa ter esse papel. É verdade que,
nos séculos XII e XIII, numerosos autores considerados realistas admitem princí-
pios de tipo nominalistas e afastam a idéia de que os universais sejam coisas.
É o caso de Tomás de Aquino, para quem os universais só existem no intelecto e
a universalidade só é apropriada à essência na medida em que ela é pensada pelo
homem. Mas deve-se, então, notar que muitos outros aspectos do tomismo
podem ser postos em relação à evolução das imagens. Assim, para Tomás, a ima-
gem permite um movimento que une o sensível ao inteligível, de modo que ela
permite um conhecimento, ao mesmo tempo, da essência das coisas (compreen-
dida pelo intelecto) e de suas particularidades individuais (percebidas pelos sen-
tidos). Um pouco mais tarde, Gilles de Roma e outros tomistas admitem que a
imagem permite conhecer o indivíduo em sua própria individualidade, o que
sugere uma evolução bastante paralela àquela que as obras visuais exibem.
CAPÍTULO CONCLUSIVO
o FEUDALISMO, OU O SINGULAR
DESTINO DO OCIDENTE
Mas qual é o efeito produzido por todas essas figuras? Pode-se, de início, ver
nesta oposição-conciliação dos contrários o motor de uma inegável elasticidade,
que torna o sistema cristão capaz de adaptações e de negações, ao sabor de
necessidades sociais cambiantes. O fato de o cristianismo feudal ser um mono-
teísmo complexo que integra certos aspectos geralmente associados ao politeís-
mo- como a diversidade de seu "panteão" (um deus trino associado à Mãe
celeste e cuja potência ativa é retransmitida por uma multidão de santos), a
multiplicação da encarnação espacial do sagrado ou, ainda, a iconicidade -lhe
confere uma capacidade de abarcar tradições pagãs, o que facilita, ao que tudo
indica, sua tarefa evangelizadora. Isso é claramente percebido no Novo Mundo:
o cristianismo feudal teria podido impor-se da mesma maneira se ele não tivesse
admitido o culto dos santos e o recurso generalizado às imagens? Evitaremos,
no entanto, louvar a flexibilidade ou a arte do compromisso da instituição eclesial,
cujo reforço leva, ao contrário, à formação de uma "sociedade de persecução",
que estende seu controle normativo e acentua sua lógica de repressão e de
exclusão. Quanto aos ameríndios, pode-se duvidar que eles tenham podido sen-
Nesse ponto, convém fazer um retorno à questão inicial: por que e como a
Europa pôde engajar-se na conquista do mundo, e em primeiro lugar das Índias
Ocidentais? Isso não foi, já se disse, o resultado de um tempo tornado moder-
no de repente, nem de um Renascimento que, magicamente, pôs fim a um sis-
tema feudal petrificado em sua imobilidade milenar e que a ''crise" dos séculos
XIV e XV teria liquidado para dar lugar ao reinado do capitalismo comercial e do
Estado moderno. Ao contrário, o Renascimento é a marca de uma Idade Média
prolongada e a modernidade dos Tempos Modernos deve ser '"guardada entre as
velharias" (Jacques Le Goff). A expansão da Europa no século xvr deve, portan-
to, ser analisada menos em relação às cores melancólicas do outono da Idade
Média, ou aos esplendores do humanismo renascente, do que na lógica de uma
longa duração feudal, cujo coração é o elã que toma forma nos séculos XI e XII.
As páginas precedentes parecem ter atribuído, a fim de compreender a dinâ-
mica expansiva do Ocidente, um papel fundamental ao cristianismo. Ora, uma
dimensão central da obra de Max Weber é procurar compreender a originalida-
de do Ocidente (o que, ao menos implicitamente, pode ser tido como a chave de
sua "superioridade" histórica). No coração dessa especificidade, Max Weber
situa o nascimento do capitalismo, que põe em relação à teologia calvinista da
predestinação, não para fazer desta última, é verdade, a causa do primeiro, mas
para estabelecer afinidades entre ambos e notar aquilo que, no protestantismo,
atua como fator favorável, sob certas condições, ao desenvolvimento do espírito
capitalista. Além disso, Max Weber tende a opor a afirmação da família nuclear
no Ocidente, adaptada ao desenvolvimento do capitalismo, e o peso dos grupos
de parentesco alargado no Oriente, que, supostamente, lhe criam obstáculos.
Ele atribui essa particularidade da Europa às "religiões éticas" (notadamente o
Para começar, dois clássicos indispensáveis: Marc Bloch, La société féodale ( 1939-40), Paris,
Albin Michel, 1968, e Jacques Le Goff, La civilisation de l'Occident médiéval, Paris, Arthaud,
1964. No mais, me limitarei às obras gerais que subsidiam o tratamento proposto aqui: Alain
Guerreau, Le féodalisme. Un horizon théorique, Paris, Le Sycomore, 1980, e L'Avenir d'un passé
inceru1in. Quelle histoire du Moyen Âge au xxt€ siecle?, Paris, Seuil, 200 I, assim como Robert
Fossier, Le Moyen Âge, Paris, A. Colin, 1983, 3 vols., e La société médiévale, Paris, A. Colin,
1991. Um instrumento de trabalho precioso: Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt (orgs.),
Oicctionnaire raisonné de l'Occident médiéval, Paris, Fayard, 1999 (daqui em diante abreviado
DB<>M). Agora, deve-se levar em conta a síntese inovadora de Joseph Morse!, L'Aristocratie
médiévale. La domination sociale em Occident (Ve-XVe siecles), Paris, A. Colin, 2004 (que for-
nece um panorama das evoluções sociais ao longo do milênio medieval).
Introdução
Neste capítulo, inspirei-me na obra de Peter Brown, que oferece uma visão renovada da
Antiguidade tardia e da Alta Idade Média: ver notadamente Genese de l'Antiquité tardive,
Paris, Gallimard, 1983; Le culte des saints, Paris, Cerf, 1984; La suciété et le sacré dans
l'Antiquité tardive, Paris, Seuil, 1985; L'essor du christianisme occidental. 200-1000, Paris,
Seuil, 1997, ou ainda La vie de saint Augustin, Paris, Seuil, 1971. Baseio-me igualmente nos
trabalhos de Chris Wickham, notadamente "The other transition: from the Ancient World to
feudalism", Past and Present, 103, 1984, pp. 3-36 et "La transición en Occidente", in:
Transiciones en la Antigüedad y feudalismo, Madri, fiM, 1998, pp. 83-90; assim como Pierre
Bonnassie, Del esclavismo al feudalismo en Europa Occidental, Barcelona, Crítica, 1993 (igual-
mente utilizado no capítulo 11). Para uma crítica das teorias que estabelecem uma continuida-
de entre Baixo Império e Império Carolíngio, Chris Wickham, 'The fali of Rome will not take
place", in: Lester K. Little e Barbara H. Rosenwein (orgs.), Debating the Middle Ages. Issues
and Readings, Oxford, Blackwell, 1998.
Sobre o renascimento carolíngio, Michel Sot, "Renaissançe et culture carolingiennes",
in: Michel Sot, Jean-Patrice Boudet e Anita Guerreau-Jalabert, Histoire culturelle de la France,
1. Le Moyen Age, Paris, Seuil, 1997; Pierre Riché, Écoles et enseignements dans le Haut Moyen
Age, Paris, Picard, 1989; Caro[ Heitz, Recherches sur les rapports entre architecture et liturgie
à l'époque carolingienne, Paris, Sevpen, 1963, e L'Architecture religieuse carolingienne. Les for-
mes et les fonctions, Paris, Picard, 1980. Sobre a reforma litúrgica, Eric Palazzo, Histoire des
livres liturgiques. Le Moyen Age, des origines au Xl/le siecle, Paris, Beauchesne, 199 3.
No que concerne a Bizâncio e o Islã, as referências bibliográficas serão encontradas nos
artigos do DHO/vl (Michel Balard, André Ducellier e Pierre Guichard) e nas obras já citadas
(notadamente Robert Fossier, Le Moyen Age, op. cit., e Peter Brown, L'Essor, op. cit.); refiro-
me também a Gilbert Dagron, Empereur et prêtre. Étude sur le "césaropapisme" byzantin, Paris,
Gallimard, 1996, e Alain de Libera, Penser au Moyen Age, Paris, Seuil, 1991.
Sobre a Reconquista c o mundo hispânico, ver notadamente Adeline Rucquoi, Histoire
médiévale de la Péninsule lbérique, Paris, Seuil, 1993, e Paulino lradiel, Salustiano Moreta
e Esteban Sarasa, Historia medieval de la Espana cristiana, Madri, Cátedra, 1995. Sobre o
Império no Ocidente, Robert Folz, L'idée d'empire en Occident du ve au X/Ve siecle, Paris, 1953,
e Michel Parisse, "Empire", DROM.
Sobre os supostos pânicos e a "mutação" do ano mil, ver notadamente Georges Duby, L'an mil,
Paris, Gallimard/Julliard, 1980; Dominique Barthélemy, La mutation de l'an mil a-t-elle eu
lieu?, Paris, 1997; Sylvain Gouguenheim, Les faus.çes terreurs de l'an mil, Paris, Picard, 1999,
assim como as diversas contribuições ao debate reunidas em L'an mil en 2000, Médiévales,
1999, 37. Uma bela síntese engloba e supera essa questão: Robert Moore, La premiere révo-
lution européenne (xe-xwe siecles), Paris, Seuil, 2001.
Os conceitos-chave deste capítulo (dominium, encelulamento), assim como os dados
essenciais, são tomados de empréstimo de Alain Guerreau (Le féodalisme, op. cit.; L'Avenir,
op. cit., e "L'Étude de l'économie médiévale. Genese et problemes actuels", in: Jacques Le
Goff e Guy Lobrichon (orgs.), Le Moyen Age aujourd'hui. Trois regard.~ contemporains sur le
Moyen Age: histoire, théologie, cinéma, Paris, Le Léopard d'Or, 1997, pp. 31-82), e de Robert
Fossier (Enfimce de l'Europe. X/e-XIle siecles. Aspects économiques et sociaux, Paris, PU!', 2 vols.,
1982, e Villages et villageois au Moyen Age, Paris, Christian, 1995. Entre os estudos sobre a
sociedade feudal, distinguir-se-á o papel historiográfico da obra de Georges Duby, La société
aux X/e et xrre siecles dans la région mâconnaise (1953), Paris, EHESS, 1971; L'économie rurale
et la vie eles campagnes (1962), Paris, Flammarion, 1977; Guerriers et paysans. Vlle-Xlle siecles,
premier essor de l'économie européenne ( 1969), Paris, Gallimard, 1973, e de Pierre Toubert, Les
structures du Latium médiéval. Le Latium et la Sabine du /Xe à lafin du Xl/e siecle, Rome, Ecole
Française de Rome, 1973. Para um balanço crítico das pesquisas surgidas a partir da obra de
Pierre Toubert, ver Etienne Hubert, L'"incastellamento" en ltalie centrale. Pouvoir, territoire et
pettplement dans la vallée du Turano au Moyen Age, Rome, Ecole Française de Rome, 2002
(B.E.I'.A.R., 309). Remeto, igualmente, entre os trabalhos recentes, a Daniel Pichot, Le village
éclaté. Habitat et société dans les campagnes de l'Ouest au Moyen Age, Rennes, P.U.H., 2002;
Monique Bourin e Stéphane Boisselier (orgs.), L'espace rural au MoyenAge. Portugal, Espagne,
France (Xlle-XlVe siecles), Rennes, P.U.H., 2002; Monique Bourin e Pascual Martínez Sopena
(orgs.), Pour une anthropologie du prélevement seigneurial dans les campagnes médiévales (Xle-
X!Ve sit?cles). Réalités et représentations paysannes, Paris, Presses de la Sorbonne, 2004; Julien
Demade, Ponction féodale et société rurale en Allemagne du Sud (Xle-XVIe siecles). Essaí sur la
fonction des transactions monétaires dans les économies non-capitalistes, tese de doutorado na
Universidade de Strasbourg 11, 2004, e Benolt Cursente (org.), Habitats et territoires du Sud,
Paris, CTI IS, 2004.
Sobre a aristocracia, remeto principalmente ao livro de Joseph Morse!, L'aristocratie
médiévale, op. cit., bem como aos trabalhos citados de Georges Duby, em particular seu
Guillaume le Maréchal, Paris, Fayard, 1984; Jean Flori, L'Essor de la chevalerie (Xle-X/Ile síe-
cles), Geneve, Droz, 1986; Hervé Martin, Mentalités médíévales, XI-XVe siecles, Paris, PUF, 2
vols., 1996-200 I. Sobre a guerra e a lógica da 'faide' ver Dominique Barthélemy, Chevaliers et
miracles. La violence et le sacré dans la société féodale, Paris, 2004, assim como Georges Duby,
La bataille de Bouvines, Paris, Gallimard, 1973, e Philippe Contamine, La guerre au Moyen
Âge, Paris, PUF, .J 980. A interpretação do fin'amon retomada aqui (e na segunda parte, capí-
tulo IV) é desenvolvida nos trabalhos de Anita Guerreau-Jalabert, notadamente "La culture
courtoise", in: Michel Sot, Jean-Patrice Boudet e Anita Guerreau-Jalabert, Hístoire culturelle
de la France. l. Le Moyen Age, Paris, Seuil, I 997, cap. 7.
Sobre a vassalidade, aiém das obras já citadas, ver sobretudo Jacques Le Goff, "Le rituel
symbolique de la vassalité", in: Pour un autre Moyen Age, Paris, Gallimard, 1977. Faz-se refe-
rência aqui a Dominique Barthélemy, L'ordre seigneurial, Xle-Xlle siecles, Paris, Seuil, 1990, e
O conceito de Ecclesia, como instituição englobante, é desenvolvido por Alain Guerreau (Le
Jéodalisme, op. cit., e L'avenir, op. cit.). Leva-se bastante em consideração a análise de
Dominique Iogna-Prat, Ordonner et exclure. Cluny et la société chrétienne face à l'hérésie, au
judai'sme et à l'islam (I 000-1150), Paris, Aubier, 1998. No que concerne à instituição eclesial e
ao papado durante a Idade Média Central, ver também Agostino Paravicini Bagliani, Le corps
du pape, Paris, Seuil, !996, e li trono di Pietro. L'universalità de! papato tU! Alessandro I/1 a
Bonifacio V111, Rome, 1996, assim como Girolamo Arnaldi, "Eglise et papauté", DROM. Sobre
a noção medieval de fé, ver Jean Wirth, "La naissance du concept de croyance, Xlle-XVIIe siecles",
reeditado em Bibliotheque d'Humanisme et Renaissance, 45, 1983, pp. 7-58. Faz-se referência
também a Dominique Barthélemy, "La paix de Dieu dans son contexte (989-1041)", retomado
em La mutation de l'an mil, op. cit., pp. 297-36!, e André Vauchez, La sainteté en Occident aux
derniers siecles du Moyen Age d'apres les proces de canonisation et les documents hagiographiques,
Rome, École Française de Rome, 1981.
Para uma caracterização da Baixa Idade Média, faz-se referência a Joan Huizinga, L'automne
du Moyen Age, Paris, Payot, 1980; Jacques Chiffoleau, La comptabilité de l'au-delà. Les hom-
mes, la mort et la religion dans la région d'Avignon à la fin du Moyen Age (vers 1320-vers 1480),
Rome, École Française de Rome, 1980, e "La religion flamboyante (v. 1320-v. 1520)", in:
Jacques Le Goff e René Rémond (orgs.), Histoire de la France religieuse, Paris, Seuil, vol. 2,
1988, pp. ll-183; Jean-Patrice Boudet, "Le bel automne de la culture médiévale", in: Histoire
culturelle de la France, op. cit. Sobre a peste negra, Noel Biraben, Les hommes et la peste en
France et dans les pays européens et méditerranéens, Paris-La Haye, Mouton, 2 vols., 1976;
Elisabeth Carpentier, Une ville devant la peste: Orvieto et la peste noire de 1348, 2" edição
revista, Bruxelas, De Boeck, 1993, e La peste nera: dati di una realtà ed elementi di una inter-
pretazione, Convegno de! Centro di Studi sul Basso Medioc.'Vo di Todi, Todi, 1994. A apreciação
de Robert Fossier encontra-se em La société médiévale, op. cit.
Abordagens gerais sobre o tempo: Reinhart Koselleck, Le futur passé. Contribution à la sémanti-
que des temps historiques, trad. &., Paris, EHESS, 1990; assim como L'expérience de l'histoire, trad.
fr., Paris, EHESS-Gallimard-Seuil, 1997; Norbert Elias, Du temps, Paris, Fayard, 1996. Também
Krzysztof Pomian, L'ordre du temps, Paris, Gallimard, 1984; Enrique Florescano, Memoria mexi-
cana, México, FCE, 1994; Giorgio Agamben, lnfanzia e storia, Turin, Einaudi, 1978.
Para o tempo medieval, os trabalhos decisivos são os de Jacques Le Goff, "Au Moyen
Age: Temps de I'Eglise et temps du marchand" e "Le temps du travail dans la "crise" du XVIe
siecle: du temps médiéval au temps moderne", in: Pour un autre Moyen Age, Paris, Gallimard,
1978, assim como Jean-Claude Schmitt, Le corps, les rites, op. cit. Ver também Aron
Gourevitch, Les catégories de la culture médiévale, Paris, Gallimard, 1983, e Hervé Martin,
Mentalités médiévales, op. cit. Sobre Dioniso, o Pequeno, e a difusão da era cristã, Georges
Declercq, Anno Domini. Les origines de l'ere chrétienne, Turnhout, Brepols, 2000. Sobre o
Neste capítulo, recorre-se ao quadro interpretativo elaborado por Alain Guerreau, notadamente
em '"Quelques caracteres spécifiques de !'espace féodal européen", in: Neithard Bulst, Robert
Descimon e Alain Guerreau (orgs.), L'Etat ou le roi. Les fondations de la modemité monarchique
en France (xiVe-xvme sitkles), Paris, EIIESS, 1996, pp. 85-1 OI; "Le champ sémantique de I'espace
dans la vita de saint Maieul (Ciuny, début du Xie siecles)", Journal des Savants, 1997, pp. 363-
419 e "11 significato dei luoghi neii'Occidente medievale: struttura e dinamica di uno 'spazio' spe-
cifico", in: Enrico Castelnuovo e Giuseppe Sergi (orgs.), Arti e Storia nel Medioevo. I. Tempi,
Spazi, Istituzioni, Turin, Einaudi, 2002, pp. 201-39, e "Chasse", no DROM (assim como "Avant le
Marché", artigo já citado). Ver também Paul Zumthor, LA mesure du monde, Paris, Seuil, 1993,
e, para a história do conceito de espaço, M. Jammer, Concepts of space. The history of theories of
space in physics, Cambridge, Harvard University Press, 2" ed., 1970.
Sobre o cemitério e as práticas funerárias, ver (além da síntese proposta por Alain
Guerreau) Michel Fixot e Elizabeth Zadora-Rio (orgs.), L'environnement des églües et la topo-
graphie religieuse des campagnes médiévales, Paris, Ed. de la Maison des Sciences de I'Homme,
1994; Cécile Treffort, L'Eglise carolingienne et la mort, Lyon, PUL, 1997; Michel Lauwers, La
mémoire des ancêtres, le souci des morts. Morts, rites et société au MayenAge, Paris, Beauchesne,
1997, e Naissance du cimetiere. Espace sacré et terre des morts dans l'Occident médiéval, Paris,
Aubier, 2005. Faz-se referência igualmente aos estudos de Dominique Iogna-Prat, Ordonner
et exclure; Claude Gauvard, "De grâce especial", e de Jacques Chiffoleau, La comptabilité
(assim como sua própria reformulação crítica em "Note sur le polycentrisme religieux urbain
à la fin du Moyen Age", in: Patrick Boucheron e Jacques Chiffoleau (orgs.), Religion et socié-
té urbaine au Mayen Age. Etudes offertes à Jean-Louis Biget, Paris, Presses de la Sorbonne,
2000, pp. 227-52.
Sobre a rede de peregrinações, um modelo de análise foi proposto por Alain Guerreau,
"Les pelerinages du Mâconnais. Une structure d'organisation symbolique de !'espace",
Ethnologie française, 12, 1982, pp. 7-30; ver igualmente Denis Bruna, Enseignes de pelerina-
ges et enseignes profanes (Catalogue du Musée National du Mayen Age), Paris, RMN, 1996;
Denise Péricart-Méa, Compostelle et cultes de saint Jacques au Mayen Age, Paris, PUF, 2000, e
Michel Sot, "Pelerinage", no DROM. Para a constituição da geografia sagrada medieval, Sofia
Boesch-Gajano e Lucetta Scaraffia (orgs.), Luoghi sacri e spazi della santità, Turin, Rosenberg,
Sobre os vícios e as virtudes, ver os trabalhos de Carla Casagrande e Silvana Vecchio, Histoire
des péchés capitaux au Moyen Age, Paris, Aubier, 2003, e Les péchés de la Zangue. Discipline et
éthique de la parole dans la culture médiévale, Paris, Cerf, 1991; ver igualmente Mireille
Vincent-Cassy, "L'envie au Moyen Age", Annales ESC, 35, 1980, pp. 253-71. Sobre Satã, ver
Jeffrey 8. Russell, Lucifer. The Devil in the Middle Ages, Ithaca-Londres, Cornell University
Press, 1984, assim como meu artigo "Diable", no DROM.
As pesquisas sobre o além foram renovadas pelos trabalhos de Jacques Le Goff, La nais-
sance du purgatoire, Paris, Gallimard, 1981; devem ser mencionados igualmente Michel
Vovelle, La mort et l'Occident de 1300 à nos jours, Paris, Gallimard, 1983; Emmanuel Le Roy
Ladurie, Montaillou, op. cit., e Jean-Claude Schmitt, Les revenants. Les vivants et les morts
dans la société médiévale, Paris, Gallimard, 1994. Neste capítulo, faz-se referência a Eric
Auerbach, Studi su Dante, 1984, e Figura, 1993.
Para uma bibliografia mais detalhada, eu me permito remeter a Jérôme Baschet, Les jus-
tices de l'au-delà. Les représentations de l'enfer en France et en Italie (XIIe-xve siecles), Rome,
E.F.R., 1993, e Le sein du pere. Abraham et la paternité dans l'Occident médiéval, Paris,
Gallimard, 2000 (assim como "Jugement de l'âme, Jugement dernier: contradictíon, complé-
mentarité, chevauchement?", Revue Mabillon, 6, 1995, pp. 159-203, e "I mondi dei
Medioevo: i luoghi dell'aldilà", in: Enrico Castelnuovo e Giuseppe Sergi (orgs.), Arti e storia
nel Medioevo. I. Tempi, Spazi, Istituzioni, Turin, Einaudi, 2002, pp. 317-4 7). Serão menciona-
dos igualmente Christian Trottmann, La vision béatifique des disputes scolastiques à sa défini-
tion par Benoít XII, Rome, E.F.R.,1995, e Yves Christe, L'Apocalypse de Jean, Paris, Picard, 1997.
No que concerne aos lugares intermediários, além do livro já citado de Jacques Le Goff,
ver seu artigo "Les limbes", Nouvelle Revue de PS}'chanal}'se, 34, 1986, pp. 151-73; Anca Bratu,
Images d'un nouveau lieu de l'au-delà: le purgatoire. Emergence et développement (c. 1250-c.
1500), ainda inédito; Michelle Fournié, Le ciel peut-il attendre? Le culte du purgatoire dans le
midi de la France (vers 1320-vers 1520), Paris, Cerf, 1997. Para o limbo das crianças, ver
Didier Lett, L'enfant des miracles. Enfance et société au Moyen Age (Xlle-Xllle siecles), Paris,
Aubier, 1997. Faz-se também referência, neste capítulo, às obras de Peter Brown, L'Essor,
Dominique Iogna-Prat, Ordonner et exclure, Jacques Chiffoleau, La comptabilité, assim como
a Elie Konigson, L'espace théâtral médiéval, Paris, CNRS, 1975.
A dualidade espiritual/corporal foi posta em relevo e articulada em seus diversos aspectos por
Anita Guerreau-Jalabert, "Spiritus et caritas. Le baptême dans la société médiévale", in:
Françoise Héritier-Augé e Elisabeth Copet-Rougier (orgs.), La parenté spirituelle, Paris,
Archives Contemporaines, 1996, pp. 133-203 (assim como nos trabalhos citados). Propus
uma primeira síntese das questões tratadas aqui em Jérôme Baschet, "Ame et corps dans
I'Occident médiéval: une dualité dynamique entre pluralité et dualisme", Archives de Sciences
Sociales des Religions, 2000, 112, pp. 5-30. Além do estudo particularmente notável de Peter
Brown, Le renoncement à la chair. Virginité, célibat et continence dans le christianisme p~mitif,
trad. fr. Paris, Gallimard, 1995, faz-se referância a Edouard-Henri Weber, La personne humai-
ne au Xl/le siecle, Paris, Vrin, 1991; Jacques Le Goff, "Anima", Enciclopedia dell'Arte
Medievale, Romc, 1991, I, pp. 798-804, e L'imaginaire, op. cit.; Carla Casagrande e Silvana
Vecchio (orgs.), Anima e corpo nella cultura medievale, Florence, Ed. dei Galluzzo, 1999, e
Jean-Ciaude Schmitt, Le corps, les rites, op. cit. (e "Corps et âme", no DROM). Cita-se também
Marie-Dominique Chenu, Saint Thomas d'Aquin et la théologie, Paris, Seuil, 1959.
Sobre a concepção dos corpos gloriosos, ver Caroline W. Bynum, The resurrection of the
body in Western Christianity, 200-1336, Nova York, Columbia University Press, 1995. Sobre o
anjo da guarda, cf. P. Faure, "L'homme accompagné. Origine et développement du theme de
l'ange gardien en Occident", Cahiers de Saint-Michel de Cuxa, 28, 1997, pp. 199-216; par~ o
diabo pessoal, Jérôme Baschet, "Diable", no DROM.
Sobre o corpo eclesial, Henri de Lubac, Corpus mysticum, op. cit.; Yves Congar, L'Eglise
de saint Augustin à l'époque moderne, Paris, 1970, e "Homo spiritualis", in: Études
d'ecclesiologie générale, Londres, Variorum Reprints, 1983. Sobre a imagem de Cristo morto,
Marie-Christine Sepiere, L'image d'un Dieu souffrant. Aux origines du crucifix, Paris, Cerf,
1994. Sobre as fadas, Anita Guerreau-Jalabert, "Fées et chevalerie. Observations sur !e sens
social d'un theme dit merveilleux", in: Miracles, prodiges et merveilles au Moyen Age, Paris,
Sorbonne, 1995, pp. 133-50, e "Des fées et des diables. Observations sur le sens des récits
'mélusiniens' au Moyen Age", in: Jeanne-Marie Boivin e Proinsias MacCana (orgs.), Mélusines
continentales et insulaires, Paris, Champion, 1999, pp. 105-37.
Para uma análise completa da imagem da alma de Tomás de Aquino, cf. Jérôme Baschet
e Jean-Ciaude Bonne, "La chair de J'esprit (à propos d'une image insolite de Thomas
d'Aquin )", in: L'ogre historien. Autour de Jacques Le Goff, Paris, Gallimard, I 999, pp. 193-221.
Para as comparações com o domínio mesoamericano, ver Pedro Pitarch Ramón, Ch'ulel:
una etnografia de las almas tzeltales, México, FCE, 1996; Esther Hermitte, Control social y poder
sobrenatural en un pueblo maya contemporaneo ( 1970), 2" ed., Tuxtla Gutierrez, Instituto
Chiapaneco de Cultura, 1992; Calixta Guiteras Holmes, Los peligros del alma. Visión del
mundo de un tzotzil, México, FCE, 1965; Mario H. Ruz, Copanaguastla en un espejo. Un pue-
blo tzeltal en el virreinato, San Cristobal de las Casas, UNACH, 1985; Alf~edo López Austin,
Cuerpo humano e ideología. Las concepciones de los antiguos nahuas ( 1980), 3a ed., México,
UNAM, 1989. Faz-se referência igualmente a Jean-Pierre Vernant, "Corps obscur, corps écla-
tant", in: Corps des Dieux, Le temps de la réflexion, VII, Paris 1986, pp. 19-45.
Neste capítulo, faz-se referência particularmente aos trabalhos de Jean-Ciaude Schmitt, nota-
damente Le corps des images. Essais sur la culture visuelle au Moyen Age, Paris, Gallimard,
2002, (e "lmage", no DROM), e aos de Jean-Ciaude Bonne, notadamente L'art roman de face et
de profil. Le tympan de Conques, Paris, Le Sycomore, 1984; "Entre ambigui:té et ambivalence.
Problématique de la sculpture romane", La part de l'oeil, 8, 1992, pp. 147-64; "Les ornements
de l'histoire", Annales HSS, 1996, 1, pp. 37-70 e "Images du sacre", in: Le sacre royal, op. cit.
Eu me permito também remeter ao meu artigo "lnventivité et sérialité des images médiévales.
Pour une approche iconographique élargie", in: Annales HSS, 1996, 1, pp. 93-133.
Para uma visão geral sobre as imagens medievais e os problemas de método: Emile Mâle,
L'art religieux du XJ/Je siecle. Etude sur l'iconographie du Moyen Age et sur ses sources
d'inspiration ( 1898), 8" ed., Paris, A. Colin, 1948; Erwin Panofsky, La Renaissance et ses avant-
courriers dans l'art d'Occident (1960), Paris, Flammarion, 1976, e Les primitifs flamands
(1953), Paris, Hazan, 1992; Pierre Francastel, La figure et le lieu, Paris, Denoel, 1967; Meyer
Schapiro, Words and pictures, Paris-La Haye, Mouton, 1973; Romanesque art. Selected papers,
Londres, Chatto and Windus, 1977, e Style, artiste et société, Paris, Gallimard, 1982; Hans
Belting, L'image et son public au Moyen Age (1981 ), Paris, 1998, et lmage et culte. Une histoi-
re de l'art avant l'époque de l'art (1990), Paris, Cer( 1998; Jean Wirth, L'image médiévale.
Naissance et développements (Vle-xve siecles), Paris, Klincksieck, 1989, et L'image à l'époque
romane, Paris, Cerf, 1999; Jérôme Baschet e Jean-Ciaude Schmitt (orgs.), L'image. Fonctions
et usages des images dans l'Occident médiéval, Cahiers du Léopard d'Or, 5, Paris, Léopard d'Or,
1996 (notadamente os artigos de J. Wirth, D. Rigaux, G. Ortalli, M. Pastoureau e J.-C. Bonne
aos quais se faz referência aqui); Herbert L. Kessler, Spiritual Seeing. Picturing God's invisibi-
lity in Medieval Art, Philadelphia, Pennsylvania University Press, 2000, e Medieval Art,
Toronto, Broadview Press, 2004.
Outros pontos mais específicos são tratados por Otto Pacht, L'enluminure médiévale,
Paris, Macula, 1997; Enrico Castelnuovo, Vetrate medievali, Turin, Einaudi, 1994; François
Boesptlug e Nicolas Lossky (orgs.), Nicée 11. Douze siecles d'images religieuses, Paris, Cerf,
1987; Michael Camille, The gothic idol. Ideology and image-making in Medieval Art,
Cambridge University Press, 1989; Jean Wirth, "L'apparition du surnaturel dans l'art du
Moyen Age", in: L'image et la production du sacré, Françoise Dunand, Jean-Michel Speser e
Jean Wirth (orgs.), Paris, Klincksieck, 1991, pp. 139-64; Otto K. Werckmeister, "The lintel
fragment representing Eve from Saint-Lazare, Autun", ]ournal of the Warburg and Courtauld
Institutes, 35, 1972, pp. 1-30; Jérôme Baschet, Lieu sacré, lieu d'images. Les fresques de
Bominaco (Ahruzzes, 1263). Themes, parcours, fonctions, Paris-Roma, La Découverte-École
Française de Rome, 1991.
Quanto à perspectiva, ver Erwin Panofsky, La perspective comme forme symbolique, trad.
fr., Paris, Minuit, 1975; Jean-Ciaude Bonne, "Fond, surfaces, support (Panofsky et l'art
roman)", in: Cahiers pour un temps: Erwin Panofsky, Paris, Centre Pompidou, 1983, pp. 117-
34, e Hubert Damisch, L'origine de la perspective, Paris, Flammarion, 1987.
Para as referências ao mundo americano, Bartolomé de Las Casas, Apologética historia
sumaria, Edmundo O'Gorman (org.), México, UNAM, 2 vais., 1967; Alfredo López Austin,
Hombre-Dios. Religión y política en el mundo náhuatl, México, UNAM, 1973; Serge Gruzinski,
La guerre, op. cit.; Dolores Aramoni Calderón, Los refugias del sagrado, México, Conaculta,
1992. Faz-se igualmente referência a Jean-Pierre Vernant, Religions, histoires, raisons, Paris,
Maspero, 1979; Élie Konigson, L'espace théâtral, op. cit., e Eric Auerbach, Figura, op. cit.
ÍNDICE REMISSIVO