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A Civilização Feudal

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Jérôme Baschet

A civilização
f eu dai
Do ano mil à colonização da América
Prefácio cte Jacques Le Goff

EDITORA
Gt080
A C I V I L I Z A Ç ÃO F E U D A L.
Jérôme Baschet

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL

Do ano mil à colonização da América

tradução:
IVlarcelo Rede
Professor do Departamento de História
da Universidade Federal Fluminense

prefácio:
Jacqucs Le Goff
Copyright © Éditions Flammarion, Paris, 2004
Copyright da tradução © 2006 by Editora Globo S.A.
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pude ser utilizada
ou reprodu1.ida- em qualqut•r m(•in ou forma, seja mecânico ou l'll•tri"mit:o,
fotocópia, wavação etc. - nem apropriada nu estocada em sistema de han<·ns
de dados, sem a cxpn.•ssc1 iiUtorização da editora.

Título original:
La civilization féodale - De l'an mil à la
colonization de l'Amérique
Preparação: Beatriz de Freitas Moreira
Revisão: Valquíria Della Pozza e Maria Sylvia Corrêa
fndice remissivo: Luciano Marchiori
Capa: Ettore Bottini, sobre iluminuras de Les tres riches
heures du Duc de Berry (1410-16), dos irmãos Limbourg
(Musée Condé, Château de Chantilly)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CII')


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Baschet, Jérôme
A civilização Feudal : do ano I000 à coloni1.ação da América I
Jérôme Baschet ; tradução Marcelo Rede ; prefácio Jacqucs Le Guff. -
São Paulo : Globo, 2006.

Tftulo original: La civili7.ation féodale- de l'an mil à la culoni7.a·


tion de I'Amerique
ISilN R~-250-4139-4

I. Civilização medieval 2. Europa - História mediev-•1 3. Idade


Média I. Le Goff, Jacques. 11. Tftulo.

06-IR63 Cl>l>-940.1

fndice para catálogo sistemático:


I. Civilização medieval : História 940.1

Direitos de edição em língua portuguesa para o Brasil


adquiridos por Editora Globo S. A.
Av. Jaguaré, 1485- 05346-902- São Paulo- SP
www.globoliv;os.com.br
SUMÁRIO

Índice das ilustrações .............................................. . }()


Agradecimentos .. · · . · · . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 'i
Prefácio - ]acques Le Goff . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

IWRODUÇÃO

POR QUE SE INTERESSAR PELA EUHOPA MEDIEVAL?

A construção da idéia de Idade Média, 23 - Estudar a Idade Média em terras


americanas, 26 - Uma "herencia medieval de A1éxico"? 31 - Periodização e longa
Idade Média, 33

PRIMEIRA PARTE

FOR:VIAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DA CRISTANDADE FEUDAL

CAPÍTULO 1. GLI\LSE DA SOCIEIMDE CIHSTA: A ALii\ IDADE MÉDIA . . . . . . . . . . . . . . . 49


Instalação de novos povos e fragmentação do Ocidente . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
Invasões bárbaras?, 49 -A fusão romano-germânica, 52
A conturbação das estruturas antigas 54
() declínio comercial e urbano, 54 -O desaparecimento da escravidão, 56
Conversão ao cristianismo e enraizamento da Igreja . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60
A conversão dos reis germânicos, 6/ - Poderio dos bispos e florescimt•nlo do
movimento monástico, 63 -A luta contra o paganismo, 6 7
O renascimento carolíngio (séculos VIII e IX) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69
A aliam;<~ d<1 Igreja l' do Império, 69- Prestígio imperial c unilkm;ão crisl;1, 74
O Mediterrâneo das três civilizações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 78
() declínio hiwntino, 78 - O l'spll'ndor islâmico, 8/ - O dt•sl'nvolvinwnto mio
impl'rial do Ocidt•nll', 8'> - 1\•tudanç<~ dt• l'quilíhrio t•nlrt• as lrfos t•ntidadt•s, H<J
Conclusão: em direção a uma reversão de tendência 96
CAPÍTLI.O 11. 0HIJE\·I SENIIOHIAL E CHESCI~H ::'IITO f'EUI>t\1. . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . 'IX

O desenvolvimento dos campos e da população (século XI ao XIII) . . . . . . . . 100


1\ prcssiio demográfica, 100- Os progressos agrícolas. /02 -As demais transfor·
mações técnicas, 105- Como t•xplicar o dcsl·nvolvimcnto?, 107
A feudalidade e a organização da aristocracia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . /0'1
"Nohrcza"l' "cavalaria", /lO -As formas do poder aristocrático, 112- Ética cava·
lcircsca c amor cortês, I lll -As relações fcudo-vassálicas c o ritual de honll'na-
gcm, 122 - Disseminação c ancoragem espacial do poder, I26
A constituição do senhorio e a relação de dominium . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12X
O nascimento da aldeia c o cncclulamcnto dos homens, 129 -A relação dl' domi-
rzium, 132- Tensões no senhorio, 137- Uma dominação total?, 141
A dinâmica do sistema feudal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . I·B
O desenvolvimento comercial e urbano, I43 - O mundo das cidades, I47-
Cidades e trocas no quadro feudal, I 54 -A tensão realeza/aristocracia, I '>7
Conclusão: as três ordens do feudalismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16 'i

CAPÍTULO 111. A IC:HLJA, li\ISTITUI<,~Ao DOMINANTE DO I·ELDt\LISMO . . . . . . . . . . . . . . . 16 7


Os fundamentos do poder eclesial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . I6<J
lJnidade e diversidade da instituição cclesial, 169- Acumulação material e poder
espiritual, I71 -A circulação generalizada dos bens e das graças, I71l- O mono-
pólio da escrita e da transmissão da palavra divina, I R1
Reforma e crescente sacralização da Igreja (séculos XI e XII) . . . . . . . . . . . . . IH-I
O tempo dos monges e a fraqueza das estruturas seculares, I84 - Hcforma secu-
lar e sacralizaçiio do clero, I90- O poder absoluto do papa, I93
Século XIII: um cristianismo com novas entonações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . I <J7
Do românico ao gótico, 20 I -Ordens religiosas inovadoras: os mendicantes, 207
-A Igreja, a cidade e a universidade. 214- Pregação, confissão, comunhão: uma
nova tríade, 2I7- Bitualismo c devoção: uma mudança de equilíbrio?, 220
Limites e contestações da dominação da Igreja . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 222
As ofensivas heréticas e a reação da Igreja, 222- As "superstiçõt•s" e a cultura fol-
clórica, 228 -As margens e a suhversiio integrada dos valores, 230- O inimigo
necessário: judeus e feiticeiros, 236 - Em direção à sociedade de persecuçiio, 242
Conclusão: uma dinâmica milenar de afirmação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 244

CAPÍTULO 1\'. DA EUHOI'A MEDIEVAL,\ A:>.H'Hit'A COLONIAL . . . . . . . . . . . . . . 247


A Baixa Idade Média: triste outono ou dinâmica prolongada? .... . 247
As calamidades do século XIV: peste, guerra, cisma, 248- Crise do feudalismo ou
ajustes sociais?, 252- O desenvolvimento contínuo das cidades e do comércio,
2'i<J- Gênese do Estado ou afirmação da monarquia?, 263- A Igreja. ainda. 26<J
A Europa medieval finca o pé na América . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27-1
Feudalismo na América Latina: um debate, 275- Uma definição do feudalismo?,
2/X - Esboço de comparação entre a Europa feudal e a América colonial, 21l2 -
Um feudalismo tardio e dependente?, 293
Conclusão: além da nomenclatura, relações boas para pensar . . . . . . . . . . . 296

SEGUNDA PARTE
EsTBLTUBAS FUNDA\IE:'n:A.IS DA SOCIEDADE IVIEDIEVAL

CAPÍTULO I. Os (JUAI>HOS Tl'MPOHAIS DA CHIS"J/\i\I>AI>E . . . . . . . •. . . . . . . . . . . . . . . 30/


Unidade e diversidade dos tempos sociais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 302
As medidas do tempo vivido, 302 - Ciclo litúrgico e controle clerical do tempo,
305- "Tempo da Igreja c tempo do mercador", 3/0
As ambigüidades do tempo histórico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 314
História linear e "círculo do ano", 314 - Passado idealizado, presente menospre-
zado, futuro anunciado, 319 - Um tempo semi-histórico, 323
Os limites da história e os perigos da escatologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 326
A escritura da história, 326 - A iminência (adiada) do fim dos tempos, 329 -
A subversão milenarista: o futuro, aqui e agora, 333
Conclusão: um tempo semi-histórico, corroído pela história . . . . . . . . . . . . . 336

CAPÍlt.:I.O 11. A ESlHUTLHi\<,:;\o ESPACIAL l>i\ SOCILIMI>E I'ELI>AI. . . . . . . . . . . . • . . . . . 339


Um universo localizado, fundado sobre a ligação ao solo . . . . . . . . . . . . . . . 340
Rede paroquial c reunião dos homens em torno dos mortos, 340 - O universo do
conhecimento c a inquietante exterioridade, 3-l'i
O espaço polarizado do feudalismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34/l
Trocas sem mercado, 349- A cristandade, rede de peregrinações, 3 51 -Um des-
locamento para o exterior, garantia de coesão interna, 355
A Igreja, articulação do local e do universal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3 'i ll
Alteração da doutrina eucarística, 3 59 - Healismo eucarístico, lugar sagrado l'

comunhão t•desial, 364- A imagem concêntrica do mundo, 366


Conclusão: dominância espacial na Idade Média, dominância temporal hoje 371

CAPÍTULo 111. A Jú<:ICA I>A '>AI.VA<,:Ao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 374


A guerra entre o bem e o mal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 375
O mundo, campo de batalha entre vícios l' virtudt·s. 37'i - l>isn1rso sobre os
vícios, discurso sobre a ordl'lll social, 37<J- O diabo, "príncipt• deslt' nulml«,"', 3/l/
-Satã, contraponto valorizador das poti:·ncias n•lt•stt•s e da lgfl·j;~, Hl ~
O aqui embaixo e o além: uma dualidade que se consolida . . . . . . . . . . . . . . 3H7
Doutrina e relatos do além, 3H7- Nascimento de uma geografia do além, 392-
Práticas para o outro mundo: sufrágios, missas e indulgências, 395
O sistema dos cinco lugares do além . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 396
Formação do sistema penal no inferno, 396 -O inferno, incitamento à confissão,
399- O paraíso, perfeita wmunidade edcsial, 401 -Os lugares intermediários:
purgatório c limbos, 403 - Uma síntese em imagem, 405
Conclusão: a Igreja, ou a instância que salva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40H

CAI'ÍTL:LO IV. COBI'OS E ALMAS: PESSOA lllli\1IA:'-JA E SOCIEDADE CRISTÃ . . . . . •. . . . . . 409


O homem, união da alma e do corpo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 410
A pessoa, entre dualidade c concepção ternária, 410 - Entrada na vida, entrada
na morte, 412 -As núpcias da alma e do corpo, 415 - O corpo espiritual dos
eleitos ressuscitados, 417
A articulação entre o carnal e o espiritual: um modelo social . . . . . . . . . . . . 420
A Igreja, corpo espiritual, 420- A Encarnação, paradoxo instável c dinâmico, 423
-Uma instituição encarnada, fundada sobre valores espirituais, 429
A máquina de espiritualizar, entre desvios e afirmações . . . . . . . . . . . . . . . . 4.B
Perigos nos extremos: separação dualista e misturas impróprias, 433- Encarnação
do espiritual c espiritualização do corporal, 435 -Uma eficácia crescente, mas
cada vez mais forçada, 440
Conclusão: as ambivalências da pessoa cristã . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 443

CAPÍTULO V. 0 I'ABENTESCO: BEPBODUÇÃO FÍSICA E SIMBÚLICA DA CRISTANDADE . . . . . 446


O parentesco carnal e seu controle pela Igreja . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 448
A imposição de um modelo clerical do casamento, 448 - Transmissão dos patri-
Pnônios c reprodução feudal, 452
A sociedade cristã como rede de parentesco espiritual . . . . . . . . . . . . . . . . . 456
Parentesco batismal. paternidade de Deus e maternidade da Igreja, 456- A pater-
nidade dos clérigos: um princípio hierárquico, 460- Irmandade de todos os cris-
tãos e desenvolvimento das confrarias, 462
O parentesco divino, ponto focal do sistema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 464
O filho igual ao Pai: os paradoxos da Trindade, 464 - O Cristo: Pai-irmão, Pai-
mãe, 469 -A Virgem, emblema da Igreja, 470- A Virgem-Igreja, mãe, filha c
esposa de Cristo, 473- O parentesco divino, ou a antigenealogia, 475
Conclusão: o mundo como parentesco, a sociedade como corpo . . . . . . . . . 476
A EXPANSAO OCIDENTAL DAS IMAGENS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
CAPITULO VI. 481
Um mundo de imagens novas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 482
Entre iconoclastia e idolatria: a via média ocidental, 482 - Suportes de imagens
cada vez mais diversificados, 486 - Liberdade artística e inventividade iconográfi-
ca, 49/ - Práticas e funções das imagens, 495 - Imagens de uns, ídolos dos
outros, 500
Os mecanismos da representação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . '505
Lugares de imagens, lugares de culto, 506 -Cultura da imago e lógica figurai do
sentido, 509 - figurar Deus, olhar a Criação, 515 - Invenção da perspectiva e
dinâmica feudal, 5/9
Conclusão: imagem-objeto medieval, imagem-tela contemporânea........ 522

CAPITULO CONCLUSIVO. 0 FEUDALISMO, OU O SINGUL.AH DESTINO DO OCIDENTE . . . . 524


Uma lógica geral de articulação dos contrários, 525 -O rigor ambivalente do sis-
tema eclesial, 527 - A expansão do Ocidente (parâmetros teóricos}, 531 -
Sistema feudal versus lógica imperial, 535 - Sistema eclesial versus lógica dos
paganismos, 540- O Ocidente e seus outros: uma oposição dessimétrica, 547

Referências bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5 51

Créditos das ilustrações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 565

Índice remissivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 567


20. A estigmatização de são Francisco: relicário esmaltado contendo relíquias do
santo, c. 1228 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209
21. O Triunfo da Igreja e dos dominicanos, 1366-68 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 211
22. Danças e máscaras do charivari, c. 1318 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 232
23. Encontro amoroso nas margens de um livro de horas iluminado em Gand,
c. 1320-30 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 234
24. Uma cena do sabá dos feiticeiros e feiticeiras, c. 1460 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 241
25. A Virgem com manto e os penitentes, c. 1420 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 249
26. O Triunfo da Morte, c. 1440 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 253
2i. No mês de março, trabalhos e poda das vinhas no castelo de Lusignan, c. 1413 . . 256
28. O calendário litúrgico e a representação dos meses, 1263 . . . . . . . . . . . . . . . . . 31 O
29. A Roda da Fortuna, c. 1180 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 325
30. A Jerusalém celeste no Comentário do Apocalipse, de Beatus de Liébana, c. 950 . . 330
31. Cristo aparece miraculosamente na hóstia, c. 1255-60 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 363
32. Os povos lendários dos confins, segundo as miniaturas do Livro das maravilhas,
1411-12 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 368
33. Mappa mundi de Ebstorf, c. 1230-35 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 369
34. A árvore dos vícios, c. 1300 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 378
35. Teófilo prestando homenagem ao diabo, c. 121 O . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 384
36. O tímpano do Juízo final, na entrada da abadia de Conques, primeiro quartel do
século XII • . . . • . . • . . . . . • • • • . . . . • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • • • . . . • • • . 390
37. Satã e os castigos infernais, 1447 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 398
38. A coroação da Virgem, pintada por Enguerrand Quarton em 1454 . . . . . . . . . . . . . 406
39. A infusão da alma no momento da concepção da criança, 1486-93 . . . . . . . . . . . . . 414
40. A separação da alma e do corpo no momento da morte, c. 1165 . . . . . . . . . . . . . 415
41. Cristo na cruz triunfando sobre a morte, c. 1020-30 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 426
42. Cristo morto sofrendo na cruz, c. 1320 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 428
43. A morte ignominiosa de Judas, fim do século XV • . • . . . . . . . . . . . . . • . • . . • • . 437
44. A alma de são Tomás de Aquino elevada ao céu por Pedro e Paulo, c. 1420 . . . . 438
45. A Mãe-Igreja aleitando os fiéis, 1150-70 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 458
46. As metamorfoses da Trindade, c. 1300 ................................ 467-8
4 7. Cristo e a Virgem coroada juntos no trono, c. 1140-50 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 472
48. A majestade de Santa Fé de Conques, século X (?) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 489
49. A Virgem que se abre e a Trindade, c. 1400 ............................ 492-3
50. Eva.pt•cadora, c. 1130............................................ 498
51. Cristo em majestade e o lugar do trono real, c. 1143 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 501
52. A relação tipológica: lsaac conduzido ao sacrifício e Cristo portando a nuz, 1215-25 513
ILUSTRAÇÕES

1. A Europa sitiada: os movimentos de população do século IV ao X . . . . . . . . . . . • 42


11. A Europa em expansão, do século XI ao XIV . . . . . . . . . . . . . . . . • . . . . . • . . . . 43
lll. O Mediterrâneo das três civilizações: o Islã, Bizâncio e o Império Carolfngio no
infcio do século IX . . . • . . • . . . . . . . . . . . . . • • . . . . . . . . . . . • . • . . . . • • • . . • . 71
IV. A Europa do ano mil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . 88
v. As etapas da Reconquista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
VI. Planta de Florença: muralhas do fim do século IV, de 1172 e de 1299-1327 . . . 146
VII. Duas cidades novas com plantas em tabuleiro, criadas na segunda metade do
século XIII: Mirande e Soldin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147
VIII. Dimensões comparadas da catedral gótica de Leão e do edifício românico que
ela substitui . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 199
IX. Planta de um edifício românico, da primeira metade do século XII:
Notre-Dame-du-Port, em Clermont-Ferrand . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 202
X. Planta de um edifício gótico, da primeira metade do século Xlll: a catedral
de Santo Estevão, em Bourges . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 202
XI. O reagrupamento das populações em torno da igreja c do cemitério: alguns
exemplos na região de Gers . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 343
XII. Relação alma/corpo: a) o corpo glorioso, modelo ideal da pessoa cristã;
b) a concepção dualista da pessoa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4 31
Xlll. Homologias entre o corpo glorioso, a Encarnação de Cristo e a Igreja . . . . . . . . 432
Para Jacques Le Goff
..
AGRADECIMENTOS

EsTE LIVHO É O FRUTO de cinco anos de ensino na U niversidad Autónoma de


Chiapas, em San Cristóbal de Las Casas, no México. Gostaria de agradecer
àqueles que tornaram possível essa estada e, particularmente, a Jacques Revel,
presidente da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, que considerou
com uma constante benevolência um projeto que não tinha forçosamente todas
as aparências da razão. Jorge López Arévalo teve a gentileza de me convidar para
a Facultad de Ciencias Sociales da UNACII, da qual era então diretor, e me aco-
lheu com generosidade. Este trabalho foi beneficiado com o apoio do Consejo
Nacional para la Ciencia y la Tecnología, durante os anos 1997-99. Enfim, este
livro não poderia ter tomado sua forma se o ensino do qual ele é fruto não tives-
se sido recebido com atenção pelos estudantes de história da Ui'\ACH. A todos,
que embarcaram nesta travessia ao avesso do Atlântico, dirijo meus mais calo-
rosos agradecimentos, por sua paciência, assim como por suas impaciências, por
seu entusiasmo, como por suas dúvidas, que me ajudaram a dar sentido ao estu-
do da Idade 1\tlédia em terras mexicanas.
O gênero no qual se insere este livro - que chamamos síntese ou compi-
lação - supõe numerosos empréstimos, no mais das vezes voluntários, por
vezes talvez involuntários. As referências bibliográficas abreviadas e a ausência
de notas não permitem estabelecer sistematicamente as ligações de cada um
dos propósitos adiantados no texto com os autores dos trabalhos concernentes.
Mesmo que seja duvidoso que isso possa ser de alguma utilidade, apresento,
antecipadamente, minhas sinceras desculpas a qualquer um que possa se sen-
tir esquecido ou traído.
Devo um reconhecimento particular aos meus principais guias neste
empreendimento. Jacques Lc Goff, mestre incontf.'stávcl, é seu inspirador por
excelência c abriu a maior parte dos caminhos seguidos aqui: o fato de ele tl'r
considerado que o resultado não era excessivamente indigno muito contrihuiu
para derrotar meus escrúpulos no momento de destinar este livro a seus leito-
res. Anita c Alain Guerrcau, através de seus escritos e de numerosas discussões,

t\ CIVII.I/,.\~',.\0 I'I'LIIJ,.\1. ~~
transmitiram-me os conceitos essenciais c o quadro interpretativo que a presen-
te obra reivindica: se ela possui um pouco de coerência que seja, é a eles qut•
isso se deve. Jean-Ciaude Bonne e jean-Claude Schmitl, em cuja estimulante
amizade eu me formei para o estudo da Idade Média c de suas imagens, sabem
que as idéias expostas aqui são, com freqüência, as suas, antes mesmo de st•rem
minhas. A jean-Claudc Schmitt devo, além disso, agradt•cimentos muito parti-
culares: não somente mt•us anos mexicanos não conseguiram quebrar sua um-
fiança, como ainda ele fez questão de desviar este livro de seu destino latino-
americano inicial para confiá-lo às edições Aubier, na qual Monique Labrunc o
acolheu com um interesse atento e Hélene Fiamma o beneficiou com seus cui-
dados benevolentes. Gostaria de poder citar todos os amigos e colegas cujos tra-
balhos e palavras acompanharam e orientaram meu percurso: este livro lhes
deve muito, mas a lista seria ou excessivamente longa ou excessivamente curta.
juan Pedro Viqueira preocupou-se amavelmente com a evolução mexicana
deste livro. Suas observações judiciosas permitiram corrigi-lo e, sobretudo,
reduzir, na medida em que pude seguir seus conselhos, as falhas de minhas alu-
sões à história da Nova Espanha.
Jean e Claudine foram cobaias desta iniciação à Idade Média e a influen-
ciaram com os comentários ajuizados que fizeram retumbar na espessa noite da
floresta de Tikal. Enfim, sem Rocío Noemí, que alterou o sentido de minha
escapada para Chiapas, este livro jamais teria visto o dia. Sem Vincent, nascido
deste encontro, ele seguramente teria sido escrito mais rápido, mas com infini-
tamente menos alegria.

16 Jérôme Baschet
PREFÁCIO

jÉHÔME BASCHET teve a notável idéia de "estudar a Idade Média em terras ame-
ricanas", o que, por um lado, lhe permitiu observar a Idade Média européia com
a dupla distância do tempo e do espaço, e, por outro, esclarecer a história do
México e da América Latina, mostrando uma "herança medieval do México",
segundo uma expressão- sugestiva, ainda que merecedora de correção- de
Luis Weckmann. Assim, ao buscar proporcionar uma história ampla a seus estu-
dantes de Chiapas, e ao querer mostrar-lhes como uma das principais fontes da
história do México é a história medieval européia, ele escreveu uma obra de gran-
de originalidade e amplos alcances, que renova a história americana e a história
européia, a primeira mediante o passado, a segunda mediante o porvir.
Evidentemente, sinto-me feliz por ver que Jérôme Baschet justifica, melhor
do que eu havia podido sugerir, a concepção de uma longa Idade Média que
supera, ou melhor, apaga a falsa ruptura de um século XVI, de um Renascimento
que seria sua negação e que a remeteria às trevas do obscurantismo.
O mais esclarecedor é ter superado a idéia de que a conquista do Novo
Mundo surgiu de um simples apetite de riqueza ou de um desejo de conversão
dos índios, tornada possível graças às caravelas, e ter estabelecido que ela se
deveu ao dinamismo próprio do sistema feudal, que está longe de ser um sis-
tema de estagnação e é muito mais um regime construído para o crescimento
e o desenvolvimento interno e externo, em torno de um poder senhorial de
dominação.
Do mesmo modo, Jérôme Baschet mostra com clareza que o motor e a ins-
tituição dominante do feudalismo é a Igreja. Por isso, não é surpreendente que,
no México e na América Latina, voltemos a encontrá-la com seu poderio abso-
luto. Mas esta igreja dinâmica não é imóvel, e evoluiu no transcorrer da Idade
Média européia. No século XIII, ela adotou formas c estilos novos, em particular
com as ordens mendicantes, ordens urbanizadas que mantinham novas relações
com os laicos c que difundiam os novos saberes da escolástica. Enfrentou cem-
testadores, os hereges, assim como o questionamento das "supcrsliçõt•s" c da

!\ C I V li 1/.,\~: Ao I' E L 1>'1 I. J7


cultura folclórica. Fez com que surgissem os marginalizados e instituiu uma
"sociedade de persecução".
Jérôme Aaschet concedeu especial atenção aos últimos séculos da Idade
Média tradicional: os séculos XIV e XV. Com efeito, trata-se de saber se este feu-
dalismo marcado pelas calamidades do século XIV- fome, peste, guerras, cis-
mas, heresias- é um "triste outono" ou a continuação de um dinamismo triun-
fante de demonstrar.·ões econômicas, sociais, políticas l' religiosas. Para Jérôme
Aaschet, não há dúvida. A dinâmica medieval segue seu curso. E a Igreja conti-
nua à sua frente.
No momento de ver como a Europa medieval se estabelece na América,
Jérôme Baschet propõe algumas perguntas fundamentais: É possível falar-se de
feudalismo na América Latina? Como definir o feudalismo? Trata-se de um feu-
dalismo tardio e dependente?
No debate, que fez com que se enfrentassem os historiadores da América
Latina, entre uma América Latina já capitalista - ao menos setorialmente -
ou ainda feudal no século XVI, Jérôme Baschet situa-se claramente ao lado
daqueles que, como o historiador inglês de inspiração marxista Eric Hobsbawm,
pensam que todos os traços da história européia que, neste momento, "têm um
sabor de revolução 'burguesa' e 'industrial' não são mais do que o condimento de
um prato essencialmente medieval ou feudal".
Jérôme Baschet estima que, sejam quais forem as diferenças entre a
Europa medieval e a América colonial do século XVI, o essencial do feudalismo
medieval volta a ser encontrado na América: o papel dominante e estruturador
da Igreja; o equilíbrio da tensão entre monarquia e aristocracia modifica-se, sem
que se rompa, no entanto, a lógica feudal; as atividades cada vez mais importan-
tes dos homens de negócios, comprometidos com o comércio atlântico ou com
a exploração dos recursos minerais e agrícolas do mundo colonial, permanecem
dentro dos marcos corporativos e monopolistas tradicionais, e estes homens
seguem orientando seus ganhos para a propriedade da terra e a aquisição do
estatuto de nobre. No entanto, Baschet aceitaria sem emendas a expressão "feu-
dalismo tardio e dependente", dado que ela.mantém, mesmo admitindo certas
especificidades do feudalismo colonial americano, o essencial da referência ao
feudalismo, e dado que se trata de um mundo cuja lógica é completamente
alheia à nossa. Jérôme Baschet mostra uma vez mais, neste livro, que é um
autêntico historiador, que sabe reconhecer e definir o "outro". O próximo em
relação ao humano pode resultar longínquo em relação à história.
Assim, depois de ter mostrado de maneira clara, lúcida e matizada a evolu-
ção do feudalismo medieval europeu e a forma como dele surge o feudalismo

18 jérôme Baschet
colonial americano, que o prolonga, Jérôme Baschet estuda, em uma segunda
parte, "as estruturas fundamentais da sociedade medieval".
Em primeiro lugar, ele mostra a construção das estruturas espaciais e tem-
porais, marco fundamental de toda sociedade e de toda civilização. O espaço do
feudalismo articula-se em torno da terra e dos mortos, e a rede de paróquias,
povoados c cemitérios faz com que, a partir do século XI, a sociedade fique atada
ao solo, enquanto as redes de peregrinações (e. de maneira secundária, de rotas
comerciais) permitem que ela se desloque e que se torne concreta a definição
do cristão como homo viator.
Na primeira parte, Jérôme Baschet havia insistido sobre os transtornos
acarretados pelo crescimento urbano. As cidades conferem ao espaço medieval
centros mais ou menos vigorosos (as ordens mendicantes o notaram, tanto que
vincularam grande parte de seus conventos à hierarquia demográfica das cida-
des). A Igreja é a articulação do local e do universal. A estruturação do tempo
resulta ainda mais complexa. O tempo medieval deixa subsistir a diversidade do
tempo vivido e dos tempos sociais, nos quais, diferentemente dos sinos rurais,
os sinos urbanos desaparecem no século XIV ante os relógios mecânicos. O calen-
dário cristão, que se imiscui por entre as estruturas do calendário Juliano antigo,
ritmando-o segundo uma liturgia construída na memória e na repetição da vida
terrena de Jesus e segundo as festas dos santos, não consegue que um tempo
linear, a partir da nova data original da Encarnação, se desprenda do tempo cir-
cular das estações retomadas pela lit.urgia, nem que se unifique a multiplicida-
de dos tempos naturais e sociais.
O tempo medieval sofre, assim, um abalo profundo devido à maneira como
o cristianismo transforma profundamente a sensibilidade relativa ao passado, ao
presente e ao futuro. Embora a Encarnação dê ao desenvolvimento do tempo um
sentido, começando pelo passado, os clérigos da Idade Média não lograram cons-
truir uma história (a história não é ensinada nas escolas ou nas universidades
medievais) com um caráter racional: ela encontra-se submetida aos caminhos
impenetráveis da Providência e a uma ideologia da regressão e da decadência, que
combate os ganhos do trabalho reabilitado, e do crescimento na ausência de pro-
gresso. O presente é promovido mediante a transformação da eucaristia, a partir
do duplo ponto de vista da teologia e da prática: a promulgação, nos séculos XI e
XII, da doutrina da transubstanciação, que impõe a crença na presença real de
Jesus Cristo na eucaristia, substitui um sacrifício de memória ("farão isto em
minha memória") por um sacramento de presença, de presente. Por fim, a Igreja
medieval, que luta desde santo Agostinho contra o milenarismo- crença em um
futuro messiânico com conotações heréticas - . tem sun•sso em maior ou menor
grau (os medos do ano mil são uma lenda em um contexto de paixões milenaris-

i\ l"IVIII/.•\~Ao I·I"LII>.-\1. /9
tas) e legitima uma concepção do futuro, que é a de um porvir: o Juízo final, que
dá ao tempo da humanidade um final escatol6gico.
Os homens e as mulheres da Idade Média vivem o cristianismo essencial-
mente como uma religião de salvação. Marcados, por outro lado, pelo caníter
guerreiro de sua socil•dadc, vivem sua existência terrena em uma l6gica de sal-
vação que é uma lógica de combate: luta entre virtudes e vícios, combate con-
tra Satanás, inimigo do gênero humano que recorre a todas as tcntm;iícs inter-
nas e externas. Santo Antônio é um modelo simbólico do homem.
Jérôme Baschet, autor de uma extraordinária obra sobre "As justiças do
além", mostra sem dificuldade que as lutas humanas ocorrem l'm um duplo
campo de batalha que se reflete como espelho: a vida terrena c o além. A Igreja
orquestra uma dualidade que se consolida na Idade Média mediante um refina-
mento das relações entre os vivos e os mortos, e uma elaboração mais sofisticada
da localização do além; entre o inferno c o paraíso insinua-se o purgatório l' apa-
rece um sistema de cinco lugares. Os três principais -dois eternos e um inter-
mediário - são completados pelos dois limbos: o limbo vazio dos patriarcas e o
limbo das crianças não batizadas, privadas da visão beatífica de Deus.
Neste mundo de oposições e de combates singulares, que uma imagem
obscura e depreciada da Idade Média deformou e exagerou, um dualismo e um
connito parecem ter uma importância particular, aquele de corpos e almas, pro-
jeção da pessoa humana Uá definida por Boécio, em princípios do século VI) na
sociedade cristã.
1\'las Jérômc Baschet, que publicou um notável estudo sobre as relações do
corpo e da alma no cristianismo, em paralelo com essas relações nas sociedades
ameríndias pré-colombianas, sublinha que o homem medieval é uma união da
alma e do corpo. Não há alma por completo desprovida de carne; inclusive a
alma do morto, que escapa de seu corpo elevando-se até o céu, tem um invólu-
cro corporal; e nas moradas eternas, o paraíso e o inferno, tanto os eleitos como
os condenados voltarão a encontrar um corpo, corpo de glória na claridade da
visão beatífica, corpo de sofrimento nas torturas infernais. A Igreja, modelo
social, representa a articulação do carnal com o espiritual. Sempre sensível à
longa duração, Jérôme Baschet sublinha, com razão, que a Idade Média Central
talvez tenha sido o período menos dualista da história do cristianismo, enquan-
to o dualismo encontrará sua forma radical no século XVII, com Descartes.
A tendência da cristandade medieval à totalização e o estabelecimento de
relações entre a natureza e a sociedade levaram o sistema feudal a conferir,
igualmente, um lugar central ao parentesco. Mas, também neste caso, trata-se
de uma dupla rede. Ao parentesco carnal, que a Igreja controla pelo matrimô-
nio e pelas regras de incompatibilidade do matrimônio entre parentes pr6ximos,

20 jérôme /luschet
são acrescentados os parentescos espirituais (ou "artificiais"), criados pela insti-
tuição do apadrinhamento e do madrinhado, e as diversas formas de confrater-
nidadc que reúnem, com a bênção da Igreja, os indivíduos de ambos os sexos
em uma vasta rede que faz da humanidade uma ampla parentela. Esta tendên-
cia para um parentesco universal é encontrada, inclusive, na elaboração de um
parentesco divino que se articula nas relações pai-filho, virgem mãe e filho divi-
no, c que se prolonga na terra mediante a maternidade da Virgem-Igreja.
Não é de surpreender que Jérôme Baschet, que é, antes de tudo, um gran-
de historiador das imagens medievais, tenha caracteri1.ado, por último, o dina-
mismo medieval com uma expansão das imagens que estabelece a diferença
entre a civilização ocidental e as civilizações anicônicas do judaísmo e do islã.
Durante a Idade Média, instaura-se no Ocidente uma "cultura da ima~:o"- cul-
tura que será herdada pela América com a conquista e a colonização-, na qual
as representações humanas e terrestres, e em primeiro lugar o próprio homem,
foram criados à imagem e semelhança de Deus e do mundo divino.
Usando de maneira judiciosa e profunda as idéias dos historiadores
Immanuel Wallerstein e Fernand Braudel, no que se refere aos impérios, e as
de Marc Auge, para os paganismos, Jérôme Baschet mostra que o sistema feu-
dal se opõe à lógica imperial (a Roma antiga, a China medieval e a moderna são
contrapontos do Ocidente medieval e da América colonial) e que o sistema eclc-
sial se opõe à lógica do paganismo.
A perfeição desta exposição corria o risco de conduzir a dois perigos maio-
res, que Jérôme Baschet conseguiu evitar de maneira notável.
O primeiro era fazer com que aqueles que incensam a Idade Média ganhas-
sem importância mediante o elogio de uma idade de fé e de ordem. Mas ele
mostrou muito bem a parte sombria do sistema feudal medieval, que engendra,
ao mesmo tempo, caritas e perseguição.
O outro risco era fortalecer os partidários, temíveis em nossos dias, da
"superioridade ocidental". Jérôme Baschet conseguiu aplicar ao sistema medie-
val a formosa e acertada fórmula de Walter Benjamin: "Não existe documento
de cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento de barbárie".
Por último, Jérôme Baschet sugere, neste livro, quando l' como termina
nossa "longa Idade Média": na segunda metade do século XVIII, com o
Iluminismo (que, em certos aspectos, a prolonga) e a Revolução Francesa. Três
componentes de um novo sistema aparecem em cena então: o mercado e a eco-
nomia, o tempo linear c a história, a razão e a ciência. Aí termina o sistema feu-
dal que Jérôme Baschet descreveu c explicou com tanta precisão para a Europa
e a América Latina.

A CI\'11.1/.A~:,.\o I'EUilAI. 2/
INTRODUÇÃO

POR QUE SE INTERESSAR


PELA EUROPA l\IEDIEVAL?

A IDADE MÉDIA TE!\·1 MÁ REPUTAÇAO. Talvez, mais do que qualquer outro perío-
do histórico: mil anos de história da Europa Ocidental, entre os séculos v c XV,
entregues às idéias preconcebidas e a um menosprezo inextirpável, cuja função
é, sem dúvida, permitir que as épocas ulteriores forjem a convicção de sua pró-
pria modernidade e de sua capacidade em encarnar os valores da civilização.
A obstinação dos historiadores em desafiar os lugares-comuns não fez nada con-
tra isso, ou muito pouco. A opinião comum continua sendo associar a Idade
Média às idéias de barbárie, de obscurantismo e de intolerância, de regressão
econômica e de desorganização política. Os usos jornalísticos e da mídia confir-
mam esse movimento, fazendo apelo regularmente aos epítetos "medieval", ou
mesmo "medievalesco'", quando se trata de qualificar uma crise política, um
declínio dos valores ou um retorno do integralismo religioso.

A construção da idéia de Idade Média

É verdade que a imagem da Idade 1\ilédia é ambígua. Na Europa, pelo menos,


os castelos fortificados atraem a simpatia dos alunos c os cavaleiros da Távola
Redonda têm ainda alguns adeptos, enquanto a organização de torneios cavalei-
rescos ou de festas medievais parece ser um eficaz argumento turístico, inclusi-
ve nos Estados Unidos. Crianças c adultos visitam as catedrais góticas e são
impressionados pela audácia técnica de seus construtores; os mais espirituosos
impregnam-se com deleite da pureza mística dos monastérios romflnicos. O cará-
ter bizarro das crenças e dos costumes medievais excita os amadores do folclo-
re; a paixão pelas raízes, exacerbada pela perda generalizada de referências,

t\ (' I V I I 11 '' ~· ,\o I· E li lU I 23


empurra em massa para essa idade recuada e misteriosa. Já o romantismo, no
século XIX, tomando o contrapé do Iluminismo, comprazeu-se em valorit.ar a
Idade Média. Enquanto Walter Scott dava sua forma romanesca mais acabada
a esse entusiasmo cavaleircsco (lvanhoé), teóricos como Novalis ou Carlylc
opunham o maravilhoso e a espiritualidade medievais ao racionalismo frio e ao
reino egoísta do dinheiro, característicos de seu tempo. Do mesmo modo,
Ruskin, que via na Idade Média um paraíso perdido do qual a Europa havia
saído somente para cair na decadência, chegou a retomar a expressão "Dark
Ages" - com a qual o Iluminismo denegria os tempos medievais - , mas para
aplicá-la, a contrapelo da visão moderna, à sua própria época. Todo o século XIX
europeu se cobriu de um manto cinza de castelos e de igrejas neogóticas, fenô-
meno no qual confluem a nostalgia de um passado idealizado c o esforço da
Igreja Homana para mascarar- sob as aparências de uma falsa continuidade,
da qual o neotomismo é um outro aspecto- as rupturas radicais que a afirma-
ção da modernidade capitalista a obrigava a aceitar então.
Faz agora dois séculos, ao menos, que a Idade Média é balançada de um
extremo a outro, sombrio contraponto dos partidários da modernidade, ingênuo
refúgio daqueles a quem o presente moderno horroriza. Existe, de resto. um
ponto comum entre a idealização romântica e os sarcasmos modernistas: sendo
a Idade 1\lédia o inverso do mundo moderno (o que é inegável), a visão que se
oferece dela é inteiramente determinada pelo julgamento feito sobre o presen-
te. É assim que uns a exaltam para melhor criticar sua própria realidade,
enquanto outros a denigrem para melhor valorizar os progressos de seu tempo.
Se convém, agora, acabar com os julgamentos sumários sobre o "milênio obscuran-
tista", não se pretende substituí-los pela imagem de uma época idílica e lumi-
nosa, de florescimento espiritual e progresso partilhado. A questão não é a rea-
bilitação da Idade Média, ainda que não fosse totalmente inútil chegar a um
certo recquilíbrio na comparação com uma Antiguidade militarista e cscravagis-
ta, abusivamente ornada, pela burguesia dos séculos XVIII e XIX, de virtudes
ideais de um classicismo imaginado, ou ainda lembrar que a grande época da
caça às feiticeiras não é a Idade Média, como se acredita comumente, mas os
séculos XVI e XVII, que pertencem a estes Tempos que se chamam lVIodernos.
Mas o essencial é escapar da caricatura sinistra tanto quanto da idealização:
"nem legenda negra, nem legenda rosa", escreveu Jacques Le Goff. A Idade
Média não é nem o buraco negro da história ocidental nem o paraíso perdido.
É preciso renunciar ao mito tenebroso tanto quanto ao conto de fadas.
Não se pode sair dessa alternativa enviesada sem compreender como e por
que se formaram esta má reputação tenaz da Idade Média e seu reflexo inverti-
do. A Idade Média carrega até mesmo em seu nome os estigmas de sua desva-

24 JértJme Baschel
lorização. Media aetas, medium aevum, em latim, e as expressões equivalentes
nas línguas européias significam a idade do meio, um intervalo que não poderia
ser nomeado positivamente, um longo parêntese entre uma Antiguidade presti-
giosa e uma época nova, enfim, moderna. Foram os humanistas italianos da
segunda metade do século XV- como Giovanni Andrea, bibliotecário do papa,
em 1469 -que começaram a utilizar tais expressões para glorificar seu próprio
tempo, ornando-o com prestígios literários e artísticos da Antiguidade e diferen-
ciando-o dos séculos imediatamente anteriores. Mas é preciso esperar o século
XVII para que o recorte da história em três idades (Antiguidade, Idade 1\ilédia,
Tempos Modernos) se torne um instrumento historiográfico corrente, notada-
mente nas obras dos eruditos alemães (Rausin, em 1639; Voetius, em 1644; e
Horn, em 1666). Enfim, no século XVIII, com o Iluminismo, essa visão da histó-
ria se generaliza, enquanto se urde a assimilação entre Idade Média e obscuran-
tismo, da qual se percebem os efeitos ainda hoje. Quer se trate dos humanis-
tas do século XVI, dos eruditos do século XVII ou dos filósofos do século XVIII, a
Idade Média aparece claramente como o resultado de uma construção histo-
riográfica que visa valorizar o presente através de uma ruptura proclamada com
o passado próximo.
Nessa matéria, é a época das Luzes que constitui o momento fundamen-
tal. Para a burguesia, que cedo se apropria do poder político, a Idade Média
constitui um contraponto perfeito: Adam Smith evoca a anarquia e a estagna-
ção de um período feudal enterrado nos corporativismos e nas regulamentações,
por oposição ao progresso tra.zido pelo liberalismo. Voltaire e Rousseau denun-
ciam a tirania da Igreja e forjam a temática do obscurantismo medieval, a fim
de melhor valorizar as virtudes da liberdade de consciência. É então que toma
corpo, de maneira decisiva, a visão da Idade Média que perdura até nossos dias,
pois o Iluminismo se define em oposição a ela e a imagem das trevas medievais
torna mais estrondosa a novidade deste. Ele deve, então, mostrar que tudo "o
que o havia precedido era somente arbitrário na política, fanatismo na religião,
marasmo na economia" (Aiain Guerreau). A construção historiográfica da Idade
Média permite, assim, exaltar os valores em nome dos quais a burguesia se apro-
pria do poder c recompõe a organização social, ao mesmo tempo que legitima a
ruptura revolucionária com a ordem antiga. Ora, não apenas o pensamento do
Iluminismo conduz a uma radical denúncia das trevas anteriores, mas também
leva a tornar incompreensível a época medieval, o que só faz acentuar sua des-
valorização. Criando conceitos inteiramente novos de economia (Smith) l' de
religião (Rousseau), os pensadores do Iluminismo provocam o que Alain
Guerrl·au nomeia a "dupla fratura conceitual". Ocultando as noções que dão
sentido à sociedade feudal, eles tornam impossível toda captação da lógica pró-
pria à sua organizaçiio e fazem-na afundar na incoerência e na irracionalidade,
contribuindo, assim, para justificar a necessidade de abolir a ordem antiga.
Uma vez que ela constitui uma época manchada por um preconceito infa-
mante excepcionalmente vigoroso, a Idade Média convida, com particular acui-
dade, a uma reflexão sobre a construção social do passado e sobre a função pre-
sente da representação do passado. Como acaba de ser dito, a idéia de um
milênio de obscurantismo corresponde a interesses precisos: a propaganda dos
humanistas, de início, e, mais tarde, o elii revolucionário dos pensadores bur-
gueses ocupados em solapar os fundamentos de um regime antigo, do qual a
Idade Média é a quintessência. É preciso considerar que ainda vivemos no
mundo ao qual eles deram forma, pois sua visão da Idade Média continua a
exercer o papel de lugar-comum. Sem dúvida, a necessidade de tal contraponto
não é mais tão imperiosa como era no fim do século XVIII. Entretanto, esse pas-
sado, tão longínquo como bárbaro, ainda presta bons e leais serviços t' o caráter
quase inextirpável das idéias preconcebidas sugere que não se renuncia facil-
mente ao muito cômodo contraponto valorizador medieval. Este contribui a nos
convencer das virtudes da nossa modernidade e dos méritos de nossa civiliza-
ção. A maior parte das culturas teve grande necessidade da imagem dos bárba-
ros (ou dos primitivos), pertencentes a um lugar distante exótico ou presentes
para além de suas fronteiras, a fim de se definirem elas mesmas como civiliza-
ções. O Ocidente não é exceção, mas ele apresenta também essa particuhuida-
de de ter uma época bárbara alojada no seio de sua própria história. Em todo
caso, o alhures ou o antes bárbaro são decisivos para constituir, por contraste, a
imagem de um aqui e agora civilizado. Interrogar-se sobre as noções de barbá-
rie c de civilização e pôr em dúvida a possibilidade de julgar as sociedades
humanas em função de tal oposição: é também a isso que nos convida a histó-
ria da Idade Média.

Estudar a Idade Média em terras americanas

Mas que sentido existe em estudar o Ocidente medieval a partir das terras ame-
ricanas e, em particular, mexicanas? Por que se interessar, a partir do México,
por uma sociedade tão longínqua no tempo e no espaço? A data de 1492, ponto
de articulação convencional entre Idade IVIédia e Tempos Modernos, fornece
um primeiro elemento de resposta. Este ano é marcado por uma notável cons-
telação de eventos de primeira importância para a Península Ibérica e para o
Ocidente: além da chegada de Colombo às ilhas das Caraíbas, o glorioso fim do
cerco de Granada levado a cabo por Fernando de Aragão e Isabel. a Católica, a

26 jérôme llt~schet
expulsão dos judeus dos reinos de Aragão e Castela, sem falar na publicação da
primeira gramática de uma língua vernácula, a Gramática castellana, de Antônio
de Nebrija. A conjunção desses eventos em alguns meses não se deve ao acaso,
mas corresponde, ao contrário, a um encadeamento lógico, bem sublinhado por
Bernard Vincent. Interessa-nos, particularmente, aqui, o laço entre o fim da
Reconquista e o início da aventura marítima lançada em direção ao Oeste, que
rapidamente conduzirá à Conquista. Os dois fatos - assim como a expulsão
dos judeus - participam de um mesmo projeto de consolidação da unidade
cristã, da qual os Reis Católicos pretendem, entre os soberanos ocidentais, ser
os campeões. Igualmente, uma vez eliminada a dominação muçulmana na
Península Ibérica e afirmada a unidade cristã desta, era lógico que Fernando e
Isabel pusessem um fim à longa espera de Colombo e aceitassem, finalmen-
te, apoiar seu empreendimento, na esperança de projetar essa unidade para
além dos territórios recentemente conquistados, para a maior glória de Deus
e de seus servidores reais. Nesse sentido, Reconquista e Conquista revestem-
se de uma profunda unidade e participam de um mesmo processo de unifica-
ção e de expansão da cristandade. Em 1552, o cronista López de Gómara o
diz, de resto, com uma extrema clareza: "Desde que foi terminada a conquis-
ta sobre os mouros [... ] começou a conquista das Índias, de modo que os espa-
nhóis estiveram sempre em luta contra os infiéis e os inimigos da fé''.
Outra marca de continuidade: os conquistadores das terras americanas
adotam como protetor e santo padroeiro Santiago Matamoros, como no tempo
da Reconquista contra os muçulmanos. Pouco importa que não exista nenhum
"mouro" por aqui; basta que os "índios" façam suas vezes, de onde a perpetua-
ção, até nossos dias, da dança dos mouros e dos cristãos, praticada na Espanha
desde o século XII. De resto, a cristianização dos "índios" prolonga e reproduz a dos
mouros de Granada, seu prelúdio imediato. É verdade que a Conquista deve ser
compreendida em decorrência da luta simultânea contra o islã e, particularmen-
te, contra o perigo otomano, que preocupa então os soberanos hispânicos ainda
mais do que as Índias (até que eles percebam em suas riquezas uma útil ajuda
para fazer face a ofensiva turca [Hernán 'Iàboada]). No entanto, mesmo se a refe-
rência antiislâmica da Conquista é tanto presente como passado, pode-se enfa-
tizar que existe uma forte continuidade entre um fenômeno tipicamente medie-
val como a Reconquista e um outro fato, a via~J;em para o Oeste c a conquista
americana, que é geralmente considerada profundamente moderna. Nesse sen-
tido, 1492 não é a linha divisória entre duas épocas tão estranhas uma à outra,
como o dia l' a noite, mas sim o ponto de junção de dois momentos históricos
dotados de uma profunda unidade. É verdade que a Conquista não{> uma rcpro-
dw;ão idêntica da Reconquista, mas ela é seu inegável prolongamento. É preciso,
portanto, reconhecer que o recorte tradicionalmente admitido entre Idade Médi:
e 'lempos Modernos deve ser amplamente repensado e que a Conquista mer-
gulha suas raízes na história medieval do Ocidente.
Os espanhóis que tomam pé no continente americano são impregnados d 1
uma visão de mundo c de valores medievais. Os primeiros dentre eles ignorare,
que atingiram um mundo desconhecido. Cristóvão Colombo encontra o que nã
procurava e não sabe que o que ele encontra não é o que procurava. Pode-se, ~.
verdade, nuançar a oposição tradicional entre Colombo, descobridor malgrad-
ele mesmo, e Vespúcio, verdadeiro "inventor" do continente americano, notamk
que o primeiro, quando de sua terceira viagem, evoca uma terra muito grande "d~.
qual ninguém jamais teve conhecimento". Permanece o fato, no entanto, de qu,\
ele morre sem renunciar a acreditar que atingira seu objetivo, quer dil.l'r, as ter-
ras que pertencem ao que nós chamamos Ásia. Colombo não tem nada de un1
moderno. E é preciso, se ainda há necessidade disso, dissipar um eventual mal·
entendido: seu gênio não está absolutamente no fato de ter defendido a esferici-
dade da Terra, já admitida na Antiguidade e, depois, por uma hoa metade dos tcú1
logos medievais, como Alberto, o Grande, ou Pedro de Ailly. O verdadeiro mérit••
de Colombo, além de seus talentos de navegador e de organizador, está ligado ,.
acumulação de uma série de erros de cálculo. O debate suscitado pelo projeto d,_
Colombo. ao longo dos anos que precederam sua aprovação, não diz respeito ao
caráter esférico ou não da Terra, mas à avaliação da distância marítima a ser perr;
corrida, a partir da Europa, para atingir o Japão pelo Oeste e, por conseqüêncié~
ao caráter factível da rota ocidental para as Índias. É por que Colombo estima 1
na base de uma interpretação errônea dos dados incompletos disponíveis em sei-
tempo, que o limite terrestre ocidental e as terras do oriente extremo são separa-
dos somente por "um mar estreito", que tem a audácia de se lançar ao mat-
Finalmente, a despeito das conseqüências imprevistas de sua aventura, Colomhu
é um viajante medieval, inspirado por Marco Polo, mercador veneziano do sécu.-
lo XIII, e por Pedro de Ailly, cardeal e teólogo escolástico da virada do século Xlt,
para o século XV. Fundando o essencial de suas teorias sobre a lmaRo mundi desttfr
último, que não é uma obra particularmente inovadora, ele se obstina em qucreo
encontrar o Grande Khan, a fim de concretizar as esperanças de conversão dcio
xadas por Marco Polo, e em procurar o acesso para o Japão, que ele chama d~
Cipango, porque este autor enfatiza que, lá, as casas são feitas de ouro. 0

Os primeiros conquistadores exploram as terras americanas na esperança d-J


ver ali se materializar a geógrafia imaginária da Idade Média. Durante sua terceir:ç,
viagem, Colombo pensa ter localizado o paraíso terrestre na embocadura do Ore
noco; Cortés enforca-se para descobrir o reino das Amazonas, promessa de enor.-
mes riquezas, e escreve a Carlos Quinto que está prestes a atingir esse objetivo!!

2il Jérrlme llaschet


muitos outros partilham esses sonhos, quando não afirmam mesmo ter encontra-
do os povos monstruosos, como os panócios de grandes orelhas ou os cinocéfa-
los, descritos pela tradição enciclopédica medieval desde lsidoro de Sevilha, no
século VIl. Assim, mesmo quando se reconhece, algumas décadas após a primei-
ra viagem de Colombo, que as terras então atingidas formam um continente até
lá ignorado pelos europeus, e ao qual se começa a dar um nome novo - e
mesmo quando se reconhece que se tratava de um evento considerável, o mais
importante desde a Encarnação, diz Gómara - , a novidade do mundo assim
"descoberto" tem bastante dificuldade de ser assumida pelos contemporâneos.
Como sugeriu Claude Lévi-Strauss, os espanhóis deixaram suas terras menos
para adquirir conhecimentos inéditos do que para confirmar suas velhas crenças;
e eles projetaram sobre o Novo Mundo a realidade e as tradições do antigo. Não
há símbolo mais estrondoso desse espírito- preocupado em confirmar um saber
estabelecido mais do que descobrir o desconhecido - do que a atitude de
Colombo obrigando seus homens a professarem, sob juramento, que Cuba não
é uma ilha e prevenindo que castigaria os recalcitrantes, simplesmente porque
suas teorias requeriam que assim fosse (Tzvetan Todorov).
Neste ponto, é inevitável evocar os objetivos da descoberta e, depois, da
conquista. Tradicionalmente, são evocados três: a necessidade de uma via para o
ouro e para as especiarias das Índias, permitindo contornar o bloco otomano; a
busca de diferentes produtos de consumo corrente, como a madeira, o peixe
do Atlântico Norte e a cana-de-açúcar, cuja produção, desenvolvida na ilha da
Madeira e nas Canárias, está então em pleno desabrochar; c, enfim, o desejo
de converter e de evangelizar novas populações. Esses objetivos podem ser redu-
zidos a dois: um material (do qual o ouro é o símbolo) e outro espiritual
(a evangelização); ou, ainda, um político (a glória do rei) e outro religioso (a gló-
ria de Deus). Tal apresentação viola radicalmente a lógica dos quadros mentais
em vigor naquela época. No entanto, certos autores, como Pierre Vilar ou
Tzvetan Todorov, sublinharam corretamente que o ouro e a evangelização não
deviam ser percebidos como objetivos contraditórios. Eles combinam-se sem
dificuldade no espírito dos conquistadores; e se Colombo está preocupado até
a obsessão com o ouro, é notadamente porque este deve servir para financiar a
expansão da cristandade e, em particular, o projeto da cruzada destinada a reto-
mar Jerusalém dos otomanos, do qual ele espera convencer Fernando de Aragão.
A viagem indiana deve, fi11almente, reconduzir ú "!erra Santa, segundo o modelo
medieval da cruzada; seu objetivo último não é outro senão a vitória universal de
Cristo. Mais largamente, seria preciso se perguntar o que o ouro representava
para os homens desse tempo e deixar de considerar evidente que ele não pode-
ria significar nada além do que ele é para nós: um equivalente morwt<Írio, uma
riqueza material, um capital a entesourar ou a investir. Na Idade Média e no
século XVI, é verdade, o ouro é também um metal dotado de um valor extremo e,
secundariamente, de um uso monetário. !\·las sua significação é certamente
muito mais distante da4ucla de que ele é revestido hoje do que nós poderíamos
imaginar. O ouro dos conquistadores raramente é entesourado, sendo, antes,
objeto de atitudes dispendiosas, estranhas à mentalidade contemporfmea. Muito
mais do que um elemento de riqueza que vale por si mesmo, ele parece ser um
signo c uma ocasião de prestígio. Para Colombo, ele é a prova da import<lncia de
sua descoberta e uma esperança de alta dignidade. Para numerosos conquistado-
res, ele é o meio de alcançar uma posição social mais elevada, se possível a
nobreza. Assim, o ouro significa menos um valor econômico do que um estatuto
social ("ele confere a glória c o poder; ele é o símbolo tanto de uma como do
outro", sublinha Pierre Bonnassie). Além disso, ele não é apenas uma realidade
material, tão importantes são as virtudes mágicas e o simbolismo espiritual que
lhe são agregados. O ouro é menos matéria do que luz, e seu brilho o torna apto
a sugerir as realidades celestes; ele articula valores materiais e espirituais, segun-
do uma lógica totalmente medieval, que Colombo exprime maravilhosamente:
"[ ... ] el oro es excelentissimo; dei oro se hace tesoro y con él, quien lo tiene, hace
cuanto quiere en el mundo y llega a que echa las ánimas al paraiso". Em resumo,
a sede de ouro é um traço antigo, que em si não tem nada de moderno e tem
ainda menos a ver com uma lógica de tipo capitalista. Há, então, um grande peri-
go em ler os fatos da aventura americana creditando aos seus autores nossa pró-
pria mentalidade, quando é altamente provável que seus valores e a lógica de
seus comportamentos fossem, no essencial, aqueles dos séculos medievais.
Não é somente por suas formas de pensamento que o mundo medieval se
faz presente em terras americanas. Muitas das instituições essenciais da organi-
zação colonial são retomadas mais ou menos diretamente da Europa medieval.
Discute-se para definir em que medida a encomienda está ligada às instituiçõt•s
feudais. Quanto à Igreja, cujo papel na estruturação da dominação colonial é tiio
fundamental, teríamos dificuldade de encontrar muitas diferenças com a Igreja
Romana medieval. As ordens mendicantes, que têm o papel principal na con-
quista espiritual (e material) de numerosas regiões, são o fruto do século XIII
europeu, enquanto o culto dos santos e das imagens, que tanto facilita a obra de
conversão das populações indígenas, constitui uma das grandes invcnçücs
medievais. Para não prolongar de modo desmesurado a lista, como seria fácil
fazê-lo, lembro apenas alguns exemplos, como as universidades, outra grande
criação dos séculos XII e XIII que se reproduz no Novo Mundo (tão literalmente
que a Universidade do México, criada em 1551, adota os estatutos da U niversi-
dade Salamanca, que remontam ao século XIII), as cidades da América, que se
!(.

3() jàrhnc llasch<'l


edificam segundo a planta em tabuleiro das cidades novas européias do século
XIII, ou ainda as instituições comunais importadas da Europa (ainda hoje, um dos
funcionários municipais, o alcaide, deve seu nome ao termo árabe al-cadi, utili-
zado na Espanha medieval e que significa "juiz").

Uma "herencia medieval de México"?

Em resumo, existe o que Luis Weckmann chamou uma "herencia medieval de


México'". Entretanto, esta expressão, assim como o livro a que ela serve de título,
reclama diversas observações críticas. Como sempre, em história, a noção de
herança não deixa de ser arriscada, pois, como a noção de influência, sugere a
retomada passiva de elementos anteriores e incita o historiador a sucumbir a esta
"obsessão das origens" denunciada por Marc 13loch. No caso de Luis \Vcckmann,
ela conduz também a isolar os aspectos que, na sociedade medieval c na socie-
dade colonial, são idênticos ou similares, a fim de listá-los sob a forma do que
mais parece um catálogo (um inventário pós-morte, poder-se-ia dizer, pois se trata
de herança). Mas, do ponto de vista da análise histórica, tal procedimento perma-
nece impressionista e impede toda compreensão em profundidade tanto do
mundo medieval e do México colonial como da dinâmica histórica que os une. Ele
permanece muito distanciado de um verdadeiro empreendimento comparativo,
que deve se preocupar tanto com as diferenças como com as semelhanças e que
continua desprovido de toda pertinência se não se funda, primeiramente, sobre
uma abordagem global da lógica de conjunto das sociedades comparadas. Por
outro lado, Luis Weckmann permanece prisioneiro de uma concepção tradicio-
nal da oposição entre Idade Média e Tempos Modernos. Igualmente, para basear
a hipcítese- de resto, justificada- da importância do componente medieval na
formação do México colonial, ele deve recorrer ao argumento do atraso espanhol.
No início do século XVI, o Renascimento florescia em toda a Europa, mas a
Espanha seria ainda medieval. É um curioso paradoxo pensar que os reinos que
se lançam na ambiciosa aventura proposta por Colombo e, em seguida, na colo-
nização da maior parte do continente americano seriam justamente os mais retró-
grados do continente europeu. Mas a argumentação é tão inútil quanto pouco
crível: os reinos espanhóis eram, então, notavelmente sólidos e estavam em pleno
desenvolvimento, c tão pouco atrasados que fernando de Aragão serviu de mode-
lo ao Príncipe de Maquiavel.
Em vista dessas observaçôes, o mais sensato seria, sem dúvida, renunciar à
sacrossanta ruptura entre Idade Média c Hcnascimcnto. Este é um problema geral,
que ultrapassa amplamente o livro de Luis Weckmann c invade a bibliografia sobre

1\ CIVII.I/..1~:..\Il l'l'l'l>,.\1. 3/
o século XVI colonial. Ao longo das obras, pergunta-se se este ou aquele persona-
gem é medieval ou moderno: Colomho, medieval ou moderno? Cortés, nobre feu-
dal ou humanista? Bartolomeu de Las Casas, precursor da modcrnidadt• dos direi-
tos do homem ou herdeiro tardio da escolástica tomista? Só um pouco menos
artificiais são as tentativas para separar as duas facetas de uma mesma personali-
dade, uma moderna e outra medieval. Assim, Colombo poderá ser julgado moder-
no por sua audácia de aventureiro, mas medieval por seu misticismo. Como se uma
não fosse intimamente ligada à outra, e como se o misticismo católico, com 'Ieresa
de Ávila e muitos outros, não alcançasse os cumes durante a época dita moderna!
Todas essas interrogações e hipóteses repousam sobre uma visão convencional
(e largamente pejorativa) da Idade Média, e supõem que exista uma ruptura tão
radical entre a Idade Média e o Renascimento que eles constituiriam duas catego-
rias exclusivas, e que, mesmo se renunciamos a uma data fronteiriça única, conti-
nue possível classificar cada ser ou cada fato conforme essa alternativa. Mas se se
admite que essa visão deva ser criticada, chega-se à idéia de que a maior parte das
leituras da Conquista repousa sobre uma visão dramaticamente deformada da
Idade Média e sobre uma idéia insustentável da ruptura entre esta e os 'lcmpos
Modernos. Pode-se, ao menos, sugerir que é duvidoso que se chegue a uma leitu-
ra satisfatória da Conquista enquanto não se esteja livre da visão convencional do
milênio medieval como um contraponto que valoriza a modernidade.
Sejam quais forem as reservas suscitadas pela análise de Luis Weckmann
e sua noção de "herencia medieval", pode-se retomar uma parte de sua tese. Com
a Conquista, é o mundo medieval que toma pé deste lado do Atlântico, de modo
que é apenas um pouco exagerado afirmar que a Idade Média constitui a meta-
de das raízes da história do México. Como já foi dito, não se trata exatamente de
registrar uma herança recebida, cujos elementos poderiam ser enumerados em
uma interminável lista. Uma visão histórica mais global deveria, inevitavelmente,
reconhecer o peso de uma dominação colonial surgida da dinâmica ocidental, que
conduz à transferência e à reprodução de instituições c de mentalidades euro-
péias, mas sem ignorar que uma realidade original, irredutível a uma repetição
idêntica, toma forma nas colônias do Novo Mundo. Tratar-se-ia, então- mas tal
objetivo transborda as possibilidades do presente livro - , de articular de manei-
ra global sociedade medieval e sociedade colonial e de captar a dinâmica históri-
ca que as une, em um processo em que se misturam reprodução c adaptação,
dependência e especificidades, dominação e criação. É nesse sentido que não é
inútil, se quisermos compreender minimamente a formação histórica do país que
hoje é o México, ter alguma idéia sobre o que foi a civilização do Ocidente medie-
val - e não somente da Espanha medieval, como se pensa geralmente, pois,
mesmo que cada reino ou cada região européia apresentasse importantes parti-

32 }<'rrime Ba.,chel
cularidades, a cristandade medieval constituía uma entidade unitária e larga-
mente homogênea, que não pode ser compreendida sem que se a considere em
seu conjunto. Aplicar à Idade Média o quadro de uma história nacional, herdada
do século XIX, significa privar-se de compreender sua lógica profunda. A histó-
ria do México apresenta, é verdade, certos laços particularmente estreitos com a
da Espanha; mas, através desta, é na dinâmica de conjunto da cristandade medie-
val que aquela mergulha a parte mais ignorada e a mais rejeitada de suas raízes.
Estudar a Idade Média européia é, então, voltar o olhar para a civilização
que está na origem da conquista da América. Esta não é o resultado de uma
sociedade que, repentinamente, rompeu com a estagnação medieval e foi brus-
camente iluminada pela claridade do Renascimento. Se a Europa se lança nessa
aventura, que é somente a primeira etapa de um processo mais geral que con-
duz, sob formas variadas, à dominação ocidental de todo o planeta, não é sob o
efeito do toque da varinha mágica de um Renascimento autoproclamado. Defen-
der-se-á, aqui, a idéia de que a conquista e a colonização não são ações de uma
sociedade européia liberada do obscurantismo e do imobilismo medievais e já
inseridas na modernidade. São muito mais o resultado de uma dinâmica de
crescimento e de expansão, de uma lenta acumulação de progressos técnicos e
intelectuais, próprios aos séculos medievais e dos quais o momento mais inten-
so toma forma por volta do ano mil. Também nisso pode ajudar a história da
Idade Média: a compreender como a Europa encontrou a força e a energia para
se engajar na conquista do novo continente e depois, finalmente, do mundo
inteiro, a tal ponto que o Ocidente constitua ainda hoje, através de seu apêndi-
ce norte-americano, a potência que domina a humanidade. É por isso que o pre-
sente livro terá como eixo principal a análise dessa dinâmica de expansão e de
dominação que se afirma pouco a pouco na Europa medieval e que a conduz,
finalmente, até as terras americanas. Pretende-se compreender o choque vio-
lento entre a Antiguidade indígena e o Ocidente medieval, que é uma parte
determinante da história do México.

Periodização e longa Idade Média

É inevitável evocar os recortes habituais do milênio medieval. A data de 476


marca tradicionalmente o seu início: nesse momento, não h{J mais imperador
em Roma; Odoacro é ali proclamudo rei, até ser eliminado pelo ostrogodo
Teodorico. Sem dúvida, esta data não teve, na prúpria época, u ressonância que
lhe foi dadu depois, sobretudo porque Odoacro restitui, então, as insígnias
imperiais a Constantinopla, o que garante a continuidade do Império Homano,

1\ C I V I I 1/. •I ~· .\ o I· I. LI I H I. 33
cuja di~nidade é, doravantc, concentrada unicamente pelo soberano bizantino.
Além disso, o declínio do Império do Ocidente era, havia muito tempo, um fato
consumado, do mesmo modo que a instalação progressiva dos povos ~crmâni­
cos sobre seus territórios, inclusive até Roma, com freqüência abandonada em
proveito de outras capitais, c já ocupada brevemente, em 41 O, pelo visigodo
Alarico e suas tropas. Apesar de tudo, 476 é uma referência cômoda, que marca,
ao termo de uma longa história, o fim de uma capital e o desaparecimento do
Império Romano do Ocidente. No que se refere ao fim da Idade IVIédia, o r(•cur-
so a uma data-limite é menos unânime. Al~uns retêm 1453, quando o Império
Romano do Oriente, depois de ter sobrevivido um milênio à sua contrapartida
ocidental, vê Constantinopla e os ma~ros territórios que ela ainda controlava
caírem nas mãos dos turcos otomanos. Mas é a data de 1492 que será privile-
giada aqui, pois ela se reveste de uma importância hem maior, tanto para a his-
tória da Europa Ocidental (cuja unidade e "pureza" são coroadas pela tomada
de Granada e pela expulsão dos judeus dos reinos hispânicos) como para a his-
tória do continente americano e do mundo inteiro.
Na verdade, as datas retidas importam pouco, pois toda periodização é uma
convenção artificial, em parte arbitrária, e enganadora se lhe são conferidas
mais virtudes do que ela pode oferecer. Reter-se-á apenas que a idéia tradicio-
nal da Idade Média refere-se a esse milênio de história européia, que se esten-
de do século V ao século XV. Ora, seria difícil, e pouco conforme à experiência
do saber histórico, pensar que mil anos de história possam constituir uma época
homogênea. Falar da Idade Média é, então, um procedimento redutor c peri~o­
so, se permitirmos que se entenda por esta expressão tratar-se de uma época
igual a si mesma desde seu início até seu fim e, então, imóvel. É justamente
para valorizar o contrário - quer dizer, a idéia de uma intensa dinâmica de
transformação social- que este livro gostaria de se empenhar. Nessa ótica, não
é inútil recorrer a uma periodização interna da Idade Média, apesar de todas as
precauções requeridas por este procedimento, que seria ainda necessário repe-
tir. A periodização interna da Idade Média é mais delicada do que a preceden-
te, pois os usos variam fortemente segundo os países ocidentais e podem facil-
mente levar a confusões e qüiproquós terminológicos. Para não confundir
inutilmente o leitor, serão evocadas somente duas opções. Alguns (especialmen-
te na Itália e na Espanha) distinguem uma "Alta Idade IVIédia", que se estende
do século V ao século X, e, depois, uma "Baixa Idade Média", do século XI ao
século XV. Essa divisão tem a aparente vanta~em da simetria: duas metades
i~uais, s111paradas pela data fetiche do ano mil. Entretanto, será preferível recor-
rer, aqui, a uma divisão tripartite, com uma Alta Idade Média (séculos V a x),
seguida da Idade Média Central, época de apogeu e de dinamismo máximo

34 }érôme Baschet
(séculos XI a XIII), enquanto os séculos XIV e XV, mais sombrios, marcados pela
peste negra, pelas crises e dúvidas, podem ser qualificados de Baixa Idade
Média (ter-se-á o cuidado de evitar a confusão com as tradições inglesa e alemã,
que nomeiam Alta Idade Média - em referência à elevação de seus méritos e
não ao seu distanciamento temporal - o que se chama, aqui, Idade Média
Central). Trata-se, então, de três épocas extremamente diferentes umas das
outras, e a comparação de algumas imagens emblemáticas - duas para cada
subperíodo - permitirá, talvez, fazer sentir as profundas transformações c as
contradições de um milênio que não tem nada de estático e que não se pode-
ria, em nenhum caso, resumir em uma só palavra (figuras I a 6, a seguir).
As duas periodizações evocadas têm em comum a importância que ambas
conferem ao ano mil como limite entre a Alta Idade Média e os séculos seguin-
tes. Com efeito, esse momento reveste-se de uma importância considerável, pois
ele marca um ponto de articulação, uma reversão de tendência. Passa-se, então,
de uma época desigual -que acumula, de início, crises e recuos, e cujos ganhos
pacientemente acumulados levam somente a um desenvolvimento pouco visível
- para um período de franca expansão, de crescimento rápido e de dinamismo
criador. Que o ano mil não poderia constituir, sozinho, o momento preciso dessa
mudança de tendência é algo que vai por si mesmo. Um fenômeno de tal impor-
tância só pode ser inscrito em uma perspectiva de duração. De fato, ele foi len-
tamente preparado, pelas bases institucionais criadas no momento carolíngio
e pela silenciosa acumulação de forças ao longo desse século X, cuja reputação é
tão execrável que ele, durante muito tempo, foi chamado de "século de ferro".
No mais, a reversão de tendência só ganha corpo, no Ocidente, pouco a pouco,
e, em muitos aspectos, claramente depois do ano mil. Não se poderia, então,
conferir uma data precisa a essa agitada alteração c o recurso ao ano mil. como
símbolo desse fenômeno, vale somente o que valem todas as periodizações.
Assim, quando se ceder a essa facilidade de linguagem, dever-se-á compreen-
der que se evoca um processo que toma forma ao longo dos séculos X c XI.
Seja qual for a maneira como se define o limiar que as separa, o importante
é essa inversão de tendência, que dá sentido à oposição entre Alta Idade Média e
Idade i\lédia Central. A confrontação dos dois mapas, feitos a partir de Roberto
S. López, permite ter uma idéia do contraste entre as duas épocas (ilustrações I
e 11). O primeiro, que evoca os séculos IV a x, mostra uma Europa que padece,
uma Europa entregue às migrações de numerosos povos vindos do l'Xtcrior, prin-
cipalmente germânicos e árabes. Enquanto as flechas apontam, nesse momento,
para o coração da Europa Ocidental, na segunda carta, relativa aos séculos XI a
XIV, das se invertem. A Europa Ocidental torna-se, então, conquistadora; em vez
de ceder terrmo, ela avança de um triplo ponto de vista, militar (cruzadas,

t\ ll\111/\~'\11 lll'll.-\1 3'i


1. '>ão Marcos<' os símbolos dos quatro l'nmJ!.distas em um l'\·anJI.di;irio irlandi·s iluminado, c. 7';0-1>0
(Bihliol<'l'il dn Mnnaslérin. Saint-Gall, c!Íd. c; I, p. 7H).
( )s manuscritos rcalitados na Irlanda e no Norte da lnglahnél nos sc.~L·ulos \'11 t' \til ..,;io. muitas vetes, das..,J!'it".ldos
l'lllfl' as forma~ de ··arte h.írh.tra" da :\h a ldadt· .\k·di;L ( n·nl.u.le ljlll' no~ cJH.:ontr.uno~. il<llli. no ponto mai-. dJ~I;III
tt· das roll\'l'n,·út•s anti~··~ t' qul' o.., moiÍ\oS detorali\o~ da!'. mo~rgt·n~ l.ltl'rais l.t·ntrc.:l.!n:~. c~pirai!-., l'spir.li~ contl·ntri-
ra~ t'h.:.) inscrc\·t·m-"tc em uma tradi,·;itl n:ha anteric1r ;, t·ri-;t ÍilllÍ/;H,/11, <' alnmdantt·nwntt· ilustrada pt·la dt·t·cmu,)o du..
objetos de ouriH'!>.aria.t<~i~ t·omo júia~ ou fin·la~ de t·mturc·,t·~ l>c f.11o. a~sistt·-se. <l<jlll .• tu ma hust·o~ intc.·nl'ional. 'I""
,·ist~ a um.1 ~comc.·triJ<u~·~io l' 11111<1 ortl.lllll'lllil\;'iro ~~-lo m.u-rac.L1s quanto pos~in·l da rcprt.'!-.l'llla~·;u, humana r.c anirn.rl.
quando ~t·lr.ata dos !-.Ímholos dos t'\',lll).!.l'li~ta~. no~ canto' da .. p;i~inasi . .1\pl'llil' as rn;ios. o~ pt;s t' a l"<Lill'\_'il t'\OCillll .1
corporal idade de 1\larcos, l"LIJil fi~Lifil. h,ISiilllll' (."fÍ~Iit"il. (·. quol!'.l' intdrallll'llll' construída peJa rigorosa gl'Wll<'lria do~,
rudl'~ dohra~ de suas vt·stc.'!'> ..·\~curva~ domlllillll atl· no órculo <jLH.' dt'!-.l'llh<l o manto diante da~ pernil!'. do ..,anto
. dt·stacmdo. as...,im. por ccmlra!-.lt', o forrnatodo li\·ro, .lprt'!-.t'ntado fronl.rlnwnlt•. (Juanlo ias cu na!'> do . . olho...,t· da . .
!'>ohrancclh.ts. como qul' tra,·ada~ por llllll'III11Pil'!»o, t•la' p.IH'l"l'lll colll"l'lllr.ar tod.r a for\'•1 do pt·rsonagcnl. t'llllll·lll
to as sinuo~idadcs da h.arh.L <.llll' c<.:<Mill o~ cntn·l.tc.'l'!-. d.as mar~t'll!», poderiam t'\oc.·ar .1 prol"u..,.io da p.ala\Ta c..li\·in.1
() nmjuntcJ do trah<alhot'Sil'tiu> 'j..,.l l'olffl'g.u· tlc sat-ralidadc um.t fi~llfil dcptl~it.íri.t da rnt·n~•IJ.:c."llll't'leslt·. I)e rt·sto.
t• ~oh a foml.l ('~lrit.uncntc ornamt·nL.JI e mw.ic.tl ljllt' .1~ l"Oillpusi•JK.'~ latt'rais po~ta~ l"lltrl' o~ ~·\,tllgl'lisi.J' liu·lll't"l'lll a
chavl' da l'stnrlur.a~·;io da p;ígina: o L:no no t.Tillro. os quatro pl'lo qu.d t'll.' St' Irradia no 11H111do.
2. S;1o Jo:1o I \·an~cli\la t'lll 11111 manu~crilo t:arolín~io do início do ~t~ndo 1\ ! 1'\'allgl'llws l'hamados da
coro"\·;io, 1"""1 hi,luri"·h,., 1\1""'""' Wl'hli.-lw <.,,·h;Jlli-""mwr dn llolhur!\. Vi<'IJa, ll 17Xv.l.
llcalltadu 11.1 llll(t' dt" l :.nlo.., \ I.Jglw. ('111 .\1\ I a l :IJ.q,t'llt'. t"··ll' lll.lllll..,t'l i lo do.., I\ .lllgt·IIH •.., t' 1 .IL!t'll'l'l-.1 Íl'o do

projt'lo do rt'II,J..,t ÍIIH'Illllt.ll'tlhllgio. r\,·.,1.1 ll;Íglllôl pi111.uL. t'IIIIHII'jliiLI, co1 IIIIIH'IIal. ot'\,111~:1'11'.,1.1 .1p.11l'tT l'tllllo
Lllll ]clr.Jdtl ,JIJitgt•. "'')..!lll'.ltldtiU li\1'11 t' o Ldiilllll, t' \t'..,IHio .1 IIIOtLt ltllll.lll.t .\1u·,,11 d.1 dl'lt'IIUI.I\.111 dtJ piglllt'll
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-1. A .'\ssun\·:io tia Virg,c.·n1 em um sahc.~rio do '\Jorll· da ln~latc.·rra. c.·. 1170-7=i (.sah«.'·rio c..lc..· York. (;i:J!o.J.?,O\·\,
Univl'rsilv I ihrarv. llun1<·r U. {.2 .. n. 1'1\·. ).
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111111h.t pt'loo.; <tpt)~toJo..,, t·· o corpfl IIHIJ"Io d.t \'irgt'lll que oo.; illljo .... <"lt'\ ;un .ro n"•tt. tl.J prt·,t·n~·a d(' ( ·n..,lo (.tn P·'"'o
qul' .1 op~·:·to dotttrinalt· fi~tlfali\.t dt•,tíno~da ,, triunLtr lllll'lr;t \laria rc..,sll"l·it.tda. dt'\,tlldll '\t' tlit glori.t dl' '\t'll
rorpn ,·in11. No m;ti .... l''"' ohr.t t·· l'\l'111pLtr d.t l<igiv.t do~ planittulc t.' da ortJ.tlllt'IILtlito~\·.to que <".tr.tt"tt•rita :1
miniatur:t rom:11Jica. C) primt·irn ""'IHT!o tr.ultu o.;t· pt·Lt "'"rprt't'tlllt·nh· frontalttbdt· do t.ula\t'l" d.t \"'11Vt'lll t' dt•
~t.'ll slld;írio ~tptt' 'l' cotHhinil. tod.t\ i.t. cu111 lllllil h.ihil 'õiiJH'rpo . . i~··lo do~ pLIItn' . ..,_.,J,tqu,..,to-. dt· Ira ... para .t fn·n
ll', IHI nu·..,r11o t 0111 11111 t·t"cito dt· <'lllrt·l.t~illllt'lllo. p•n t'\t'IIIJllo, qu.nulo ·'' lltao' do, .11qo' P·'"""'"ll di.lllh' do
'll<l.írio. qlll', p•11 "'''" \"l'/, P·''"" 'ohn· Sl'IIS hr,tt.,;o,·· () "'''glllldo pritu·tpio lllilllil"t·..,t~t "<'por lllllil ,!.!<'OII!t'lri;.l~·;'to
muito .tprnllllld.ul.t. h;t..,l.lllll' ~t'lhtn·l 11.1 ..,,·rit• d<" 'l'llltt"lrt uJo..., fntm.ulo.., Jll'l.t hotd., d,' '"d.llto t' I til di..,JIO"'t~·:to
rl'gtdat ,. l"l'JH'Iilt\a du.., ;llljfl' t· dt• '\llil" .t~as. l·~..,h· dt"'l"'"""o prlldllt 11111.1 '''IWl"h' tlt· ltlillldorl.t <jlll' t'\,dla o
l'orpo111nrto dt· \1.trt.tt' ..,llllllnh.tn pri\ tlt;gio t'\n'Jll"ÍIIIl.tl dt· ~11a ('ll'\.t~·.to n·lt·,h·. \1,·-.ttlll ' l ' .1 ima~t·m d..,a nm
\"l'llnT .... ohw 11 c.tr.tlt·r t orpor.tl da ·\..,..,tm~·;-\11. ,; llll'IHI' pur <.,llii"' ,·irludc, t'tll·:ll·lliltl:l, lJIIt' o di\ i no,: po,to t'lll
t'\ idi·nl'i.t. illJIIÍ. do <JIII' por 11111.1 orn:llllt'lllali;a~·;tu ..,llgl'rtndo 11111a outra ordt·nt dt· rt'.tlul.ult·.
Ci. Uma ima~em alornwntada do1 mort«.': o ja11go dl' 1-'rancisnJ dl· la Sarn11. \ itimado por '''~"Pt'llh'' t' ... a pu ....

I {h0-70 \<"il)l<'la ..,anlo :\nlúnio de l.o ""rr'"· l'anl;io d<· Vaud).


·\p1i-. o-. .i;Jtigo~ ~t·n·noo.., doo.., ~l··ndns \llt' \lil, qth' p.ll'l'lt'lllt''>JH'LH .1 IT~'-tiiTl'ÍI.,,'·Io "'h 11~ tr.u.:o..., t'lt'IIIÍ/.ttlo·. de·

"L'II idc.d de \id;J !t•rrt·strc O:L·;J\,dl'iros em.tnnadllr<lt' ... q.?,tH.JrHio a co..,pad.t. rei~ t' r;Jin!J.t, t'lll \t'...,lt'" tk .1p.11.t\11
.1 , . ...,,.tdtllr.t ftllll'r.Írla do funda ld.tdt· .\lt·,lJ,J..,Iilunl'lt' ,...., cmpo~ 111r1rtrJ~ .to.., t.ft·Jto..., dt'\a...,t;ulort·..., d11 lt'ltlpo ,\J,,
.... l.'l'ldtt \ \ , t i (l',lll~i lOiliO O do l'.rldt•,d l.t ( rl'.lllgc·, l'lll .\\Ígllllll oftTl't'l' ."1 lllnii\,J\':10 dn . . \ l\0" ll l .rd.t\t I
dl'"l',ll'll,Hin. illl' 1\ll''-lllll I),JJ'l'i,dllll'lllt' dt·rompo...,lt• .\qut. 11111 polllll lll.li" t't'do. ti "~'IIIIOr dt'l'lllllnt·ol1...,t'l\.l 11111.1
ptt..,!JJI',I dt• I"Cf)OII ... II (' lllll,ll·.dH•It•lr.l \.11 h('lll fll'lllt'Jd,tt'OIIlt11Hidt.ltk "l'll'- fiiiH'I'.II" ..... II.Jt,ll11t' 1\!1.1 .IIJIII.tc·...,!t

111L1l'1.1. 111a~ I•Í ,. prt'"d dt· \tTillt':-. t' "'Jil•l~ qlh. dt· llltJdll tlliJito ... ugc ... ti\11, ol'u-.cam .1 lcllll'l.lllt.• l de· "'"• l.11 c
\lt;lll tJj..,..,o, L· difít·iltldtt pt'lhill' 11.1.., Ílli.J~l'll" tio.., l't!"ligo~ illl't·m;Jis. cpw 1111)..,\l'.llll l'ntn frt'lf'ÍI.'Ih i.1 .1 111\tlllil<.,t
lt'IHio 11.., "l'Ío,t· •1.., ,·1rg:ln..., ~t·tll!.tl:-. ltlO did1" pl'lo..,llH'o..,llJtJ.., ,JIIllll.li ..... -..;,.,I arll' lll.tt.dH,l c .llfllt'l.l dl' 11111.1 quu.t
11\an·;td.l pela IW"ilt' ,. pt·l"" .tllgll..,ll<l..., t'\,1\ ~·rh.HI.Is tb rnort1', t'l.1 t·· t.llllhclll o t'i'cii1J dt· 11111.1 .lt 1'11\llill.·lll d11 til'·
t'lll''-O IIIOI'id do.., tlt··rigo ..... que prnl'lll'illll lt~<~l' pt·n-.atlh'll\11 ...,IIJJn· .1 mnrlt'. oh...,, ...,..,.lo du pt'l .ul11. IJII"t .. l d.t .... d\.1
~.• 111 fl<'"~u.d I' .ltkqu.u,:.ultlct.., t'tllllllt•rl,llllt'llltl..., 't't'l.ll...,
h.(), l'sposo' :\rnolfini. pintado~ t.'lll Brugc.·~ 1•or Jan \illl l:~ck. 14.~4 (1\alional (,all(.'r~. I ondn·~).
( ;,IJ\dlllll .-\nudl ir1r. IIH'I"l .Hior th· l.trlt .• l lll~l.d.tdo t'lll t:nl)..!,l'". t'llt.lo a l·lwdrt·'· .• p.nt'Lt' l 11111
pnncip.rlnd.ulc dt·
~11.1 t""P'"·'· ( :Jo\a1111.1l 1"11.11111, dt· dor111ir l'lq.!,alllt', 111.1~ ..,l.lll lu\n...,llpt·rlluo 1_,,..,..,111\tlllllll .... 11.1.., \t'"
t'lll "l'll tpr;ll·lo
ll':-.l"orr.ul.r..,t·onl p•·lt· ... ~ 1~ .• prnluro~ fl.rlllt'llg:l d.t t'jHIL .. I. ;1 "l'llH'Ih.nu,·;l do .... tl"il\"1)' mdi, idr1:11.., •· olr.ti.IIIH'IIIo t'..,CIII
pulo..,o do dl'l.rllw do.., ol,wto .... tnllll)ill.llll -.t· t"lllll 11111 ... unholr..,rnflnt·Jdto. rmprq.!ll.ulo dt' \irlolt'" • tl..,t.Jn.., ·\ rnnl
dnr.r do t'"lwlho t' orrr.ul.1 .. upn. dt· dt'/ tt'll.l..,, lllrllto pnllt'll \ ,...,,, .•. ,..,, d.1 l'.ti\.10 dl' ( :, '"''" () 1 o~tlu11rc1 ,. 11111 ""nl,olo
d.1 l"rdt·lrd.rdt· t onprg.d t" .r llllll .. l t .tiHit·ra .tt , ...,,t t'. "t'lll drl\ 1d.r. .1 t illlllt·r.t do t :l..,,lllh'lll•• qrw .r, ...,,,.,..,,! lt'\,J\,1 .ttt· o
qu.rrlo t' qllt' dt'\ 1.1 ..,t·r ·if'.t.~.ul.r tjll.tlldo d.1 t Oll..,lllll.I~.. Jo .!.1 tllllao. "'q..!,tiiHio .r 1111l"t ['r t'l.u.,.ltl • \;,..,..,lt .r tlt' I 1"\\ 111
P.mof,l,,, 0 qu.rdn 1 1 ollll'lll•ll .r 11 t .r-.;llllt'lllo do . . .-\rnolf1111, t'lt· 't'' i.r .rlt· llll'"IIH' corno", c·r 1rlrt .ui•• qtw 11 .ltllt'lll i
(',J, ,!!.l"d\,1" ,J [)J"l'"l'IIL.·I do jllllllll". ljlll' .llll.ll"lllllO h''ll'lllllllh.l. dn qll.lj..,l'[H"II dtt" ,1 IIIIJIC'I! t"Jllr\t'j ..,rllllti'!,J 110 , . ..,,)("
lho t' l 111.1 ;t-.. .... III.IIIJI.,I jlt'lll \1..,1\t'l .ll 1111,1 \,rll.lt"orno itlt'"l.l\•10 •"loh,lllllt"" dt· I·.H k 11111 lw. I \l.t ..... ti~~IIIIHio 1101.1
d.iJilt'lllt· a p.11111 dn l.tlo d,· qrw o p1111or llóltl n·pn·-..t'lll.t .r 111111,.111 d.1-. d11.1.., 111.111..., dl!t'll.l'· elo-. , ...,JHt...,o-.. ~·o11111 o
pH'Sl"l'('\t' o 1·o-.l1111lt' lll;rlllllHtlll.ll. ~·.t·r.riiiH'IIIt' n·..,pt·ti.Jtlntwb ll"tlli''~~r.ll"l.l. \.llltt-..lt.tl•.riiHt"I"'"'''I"!Oit'..,l)llt'lllt'lll
dt-1\ 1d.t t'..,l.t ll'llllr.t. .1 po11t• • dt". p•n \ t'/1'"· {"tlll"idt·l ,11· 1111 t't t;r .1 tclt-nl 11 h .I~."· I'' d •• . , \r11t dlttll "'~"~·' 'nino l"or. c• tjllil
dru. t"CIII..,Irtllljll "I'}'.IIIHIII ,,.., lq.',t·l" 1'-.(lrl.r-.. d.t pt·t-..pnll\,r. Jlillt'l"l' ll'jll"lll ,J 1'\[ll'llt'llt"l.l dt" J:llllll'llc·-.t·hr. pntll"tl
illilt'I"ÍUI, rlllt.t \C'/ '1111" 11 jltlll!O dt· 1"11g.1 "I' t'lllll!ill".l !llt't l..,;llllt'lllt" 1\111 1'111111 do t'"JI..Iho. orult- 11 Jlii!ICII" .tpan•u·.
t"OIIII"rdlndu. ·'"'"'""· t 11111 o ptHIIH dt· \1-.1.1 tjlll' dt·u· ..,,., Otllp.rdu pelo ~"'Jit'l"!.Hior do qu.tdt"
D
D Zona de florestas /...-;.-r :::>- :· Invasões dos séculos
.:;::::--~..:::_...r IVeV
O Zona de estepes

• • • Limrte sul das migrações


em 376
... ~ ~v:~ dos séculos

Limite norte da expansão Invasões dos séculos


muçulmana em 632 ~ IX a XI

I.:\ Europa sitiada: os mm imentus de população do século 1\ ao\.


A Europa ocidental cristã Expansão da arte, das intituições,
no início do século XI do comércio
LimHe das Igrejas católicas / Influência cluniacense
e ortodoxas
Os grandes eventos da Cristandade
-==-á Influência cisterciense
(até o início do século XIV) lnstHuiçOes urbanas alemãs,
___ _.., flamengas, holandesas
~ As Cruzadas
._ Grandes correntes comerciais
-A A colonização gennãnica ~ marítimas

A reconquista O Possessões genovesas, venezianas


e catalãs, cerca de 1399

11. A Europa em expansão, do século XI ao XI\'.


Reconquista), comercial (estabelecimento de entrepostos c trocas com o Oril·nte)
e religioso (desenvolvimento das ordens religiosas, cristianização da Europa
Central e da área báltica). De um mapa a outro, o movimento inverte-se; de n·n-
trípeto ele se faz centrífugo, e a expansão sucede à contração.
Se é útil lembrar as periodizações convencionais, quero referir-me, illJUi, a
uma proposição que rompe com os quadros habituais c permite superar a ruptura
entre Idade Média c Renascimento. Preocupado em reconduzir este às suas justas
proporções ("um evento brilhante, mas superficial"}, e atento às permanências de
longa duração que ele não afeta, Jacqucs Le Goff propôs a hipótese de uma longa
Idade Média, do século IV ao XVIII, quer dizer, "entre o fim do Império Humano l' a
Revolução Industrial". É verdade que, não mais do que o tradicional milt•nio
medieval, esta longa Idade Média também não é imóvel e seria ahsurdo negar as
especificidades de sua última fase, que chamamos hahitualmcnte "li.·mpos
Modernos (efeitos da unificação do mundo e da difusão da imprensa, ruptura da
Reforma, fundação das ciências modernas com Galileu, Descartes c Newton,
Revolução Inglesa e Estado absolutista, afirmação do Iluminismo etc.). Essas novi-
dades são consideráveis, mas, finalmente, talvez não mais do que a duplica~·ão da
população e da produção que se opera entre os séculos XI e XIII e que constitui um
crescimento excepcional na história ocidental, de uma amplitude desconhecida
desde a invenção da agricultura e que não se reproduzirá antes da Rl·volu'-·ão
Industrial. A longa Idade Média, em seu conjunto, é um período de profundas trans-
formações quantitativas e qualitativas e, quanto a esse aspecto, não há mais dili.·-
renças entre os séculos XVI e XVII e os séculos XI a XIII do que entre estes e a Alta
Idade Média. Se todas essas evoluções são capitais, o conceito de longa Idade
Média convida a prestar atenção à unidade e à coerência desse período de quase
quinze séculos. As continuidades são múltiplas, dos ritos da realeza sagrada ao
esquema das três ordens da sociedade, dos fundamentos técnicos da prodw;ão
material ao papel central exercido pela Igreja. Sobretudo, uma análise global leva a
concluir que os quadros dominantes da organização social não são questionados,
de modo que as mesmas "estruturas fundamentais persistem na sociedade euro-
péia do século IV ao século XIX". Nessa perspectiva- e sem negar suas profundas
transformações, nem, sobretudo, a dinâmica que a caracteriza - , a longa Idade
Média, assimilada ao feudalismo, estende-se entre uma Antiguidade cscravagista e
as primícias da Revolução Industrial e do modo de produção capitalista.
A longa Idade Média de Jacques Le Goff é uma ferramenta preciosa para rom-
per com as ilusões do Renascimento e dos Tempos Modernos. Com relação a estes
últimos, transformados em uma fase da longa Idade Média, Jacques Le Goff subli-
nha com ênfase que "o conceito de modernidade aplicado aos Tempos i\lodl'rnos
deve ser descartado ou senão guardado entre as velharias". Quanto-ao século XVI,

44 Jérôme llaschet
ele constitui ainda menos uma ruptura, visto que a idéia de renascimento é con-
substanciai à própria Idade Média. Se se fala de renascimento carolín~io, de renas-
cimento do século XII e, depois, dos séculos XV e XVI, e se, ainda no fim do século
XVIII, os revolucionários têm necessidade do mito do retorno à Anti~uidade para
romper com a ordem antiga, é porque a incapacidade de pensar a novidade de
outro modo que um retorno a um passado glorioso é uma das marcas de continui-
dade da longa Idade Média (com a qual a modernidade começará a romper na vira-
da do século XVIII para o século XIX, dando nascimento à idéia moderna da história,
como mostrou Reinhart Koselleck). "Longe de marcar o fim da Idade Média, o
Renascimento - os Renascimentos - é um fenômeno característico de um longo
período medieval, de uma Idade Média sempre em busca de uma autoridade no
passado, de uma idade do ouro que ficou para trás'' (Jacques Le Goff). É inútil
acrescentar que, em tal quadro teórico, a questão "medieval ou renascentista?",
"medieval ou moderno?" perde toda pertinência. Longe de toda análise em termos
de categorias exclusivas, trata-se doravante de dar conta das evoluções e das trans-
formações no seio de uma coerência de muito longa duração.
É preciso, enfim, dissipar um possível menosprezo. Se a longa Idade Média
se aproxima de nós cronologicamente (em três séculos, em relação à sua versão
tradicional), ela não é menos fundamentalmente separada de nosso presente.
O mal-entendido é ainda mais ameaçador pelo fato de ter havido um esforço em
defender uma Idade Média próxima - muito mais próxima do que crê a opi-
nião comum - e tornada parte integrante da história do México. Entretanto,
a despeito de sua contribuição fundamental ao desenvolvimento do Ocidente e à
sua dominação sobre a América e o mundo, a (longa) Idade Média deve ser con-
siderada um universo oposto ao nosso: mundo da tradição anterior à moderni-
dade, mundo rural anterior à industrialização, mundo da todo-poderosa Igreja
anterior à laicização, mundo da fragmentação feudal anterior ao triunfo do
Estado, mundo de dependências interpessoais anterior ao assalariamento. Em
resumo, a Idade Média é para nós um antimundo, anterior ao reinado do mer-
cado. Essas rupturas não devem ser creditadas ao Renascimento, mas, no essen-
cial, à Revolução Industrial e à formação do sistema capitalista. Aí está a barrei-
ra histórica decisiva, que faz da Idade Média um mundo longínquo, um tempo
de antes, no qual tudo se torna opaco para nós. É por isso que o estudo da Idade
i\ilédia é uma experiência de alteridade, que nos obriga a nos desprendermos de
nós mesmos, a abandonar nossas evidências c a cn~ajar um paciente trabalho
para captar um mundo do qual mesmo os aspectos mais familiares dizem res-
peito a uma ló~ica que se tornou estranha para nós.
A organização do presente livro é ditada pelas questões que acabaram de Sl'r
apresentadas. Se, para abordá-las, é indispensável dispor de uma informa~·•io
suficiente sobre a Europa medieval, não se poderia pretender propor, aqui, uma
síntese completa dos conhecimentos atuais, e certos aspectos tiveram de ser
negligenciados ou minimizados. Era inevitável fazer escolhas, c teria sido des-
mesurado estudar, em sua totalidade, a longa Idade Média da qual se acaba de
falar. Não somente se retornou, nas páginas que seguem, aos limites tradicio-
nais desse período, como também se enfatizou a Idade Média Central. julgan-
do que se tratava do momento decisivo de afirmação do desenvolvimenlo Ol'i-
dental e que, a despeito dos laços mais imediatos com a Baixa Idade l\1{·dia, a
preocupação com os motores fundamentais da dinâmica ocidental e dl' suas
conseqüências coloniais convidava a concentrar a atenção sobre esse monwnto.
A obra é dividida em duas partes, entre as quais existe uma forte dualidade.
A primeira, sem dúvida mais convencional, esforça-se em introduzir a um conlw-
cimento elementar da Idade Média e de sintetizar as informações relativas ao
estabelecimento e à dinâmica da sociedade medieval. Entre um primeiro capítu-
lo consagrado à Alta Idade Média e um último que se esforça em fazer a jun~·üo
entre a Europa medieval e a América colonial, suas duas palavras-chave são "fl'll-
dalismo" e "Igreja". Essa primeira parte não esconde suas orientações historiogrií-
ficas: a preocupação com a organização social (que inclui essencialml•ntl' a
Igreja) prepondera sobre o relato factual dos conflitos entre os poderes; os qua-
dros "nacionais" são pouco mencionados e a história da formação das entidades
políticas, monárquicas ou outras, é evocada apenas sumariamente. A segunda
parte esforça-se em avançar mais profundamente na compreensão das engrena-
gens da sociedade feudal: sem dúvida, ela exige mais do leitor. làlvez sejam nota-
das, nela, as impressões da história dita das mentalidades, mas gostaria, sobretu-
do, de sublinhar que se trata de abordar as estruturas fundamentais da sociedade
medieval através de uma série de temas transversais: o tempo, o espaço, o siste-
ma moral, a pessoa humana, o parentesco, a imagem. A questão é compreender
como são organizados e pensados o universo e a sociedade, evitando as distinções
que nos são habituais (economia-sociedade-política-religião) e esforçando-
se para ligar, tão estreitamente quanto possível, a organização material da vida
dos homens e as representações ideais que lhe dão coerência e vitalidade. *

,. Ao longo do texto são indicados os autores que serviram mais diretamente de inspiração. mas as
referências bibliográficas foram remetidas para o final do volume.

46 Jér6me Baschet
PRIMEIRA PARTE

FORMAÇÃO E DESENVOLVIMENTO
DA CRISTANDADE FEUDAL
CAPÍTULO

GÊNESE DA SOCIEDADE CRISTÃ:


A ALTA IDADE MÉDIA

MESMO SE o" PRESENTE LIVRO tem por tema principal o desenvolvimento da


Idade Média Central, é impossível ignorar os processos fundamentais de desor-
ganização e de reorganização que caracterizam o meio milênio anterior e que
são, a este título, indispensáveis para a compreensão da dinâmica medieval.

INSTALAÇÃO DE NOVOS POVOS


E FRAGMENTAÇÃO DO ÜCIDENTE

Invasões bárbaras?

A tradicional expressão "invasões bárbaras" (que eram, normalmente, julgadas


responsáveis pela queda do Império Romano do Ocidente) convida a uma dupla
crítica. "Bárbaro": na origem, a palavra designa apenas os não-gregos e, depois,
os não-romanos. Mas a conotação negativa adquirida por este termo torna difí-
cil empregá-lo hoje sem reproduzir um julgamento de valor que faz de Roma o
padrão da civilização e de seus adversários os agentes da decadência, do atraso
e da incultura. Com efeito, os povos germânicos -expressão aceitável em sua
neutralidade descritiva - que se instalam pouco a pouco no território do
Império decadente, e mais tarde arruinado, ignoram de início toda a cultura
urbana tão estimada pelos romanos, não se entregam aos arcanos do direito e da
administração do Estado, desconhecendo a prática da escritura. No entanto,
sua coesão social e política em torno de seu chefe ou, ainda, sua habilidade em

A l" I V 11.1 Z ''~:A O F EU ll A L 49


matéria de artesanato e, principalmente, do trabalho com metais, superior à do
mundo romano, asseguram-lhes algumas vantagens e permitem que eles se
aproveitem das fraquezas de um Império em dificuldade. O termo "invasões"
não é mais satisfatório do que o termo "bárbaros". Houve vários episódios san-
grentos, conflitos militares, incursões violentas e ocupações de cidades - cer-
tamente, aqueles aos quais as narrativas dos cronistas deram maior relevo.
Entretanto, a instalação dos povos germânicos deve ser imaginada sobretudo
como uma infiltração lenta, durando vários séculos, como uma imigração pro-
-gressiva e muitas vezes pacífica, durante a qual os recém-chegados se instala-
ram individualmente, aproveitando-se de seus talentos artesanais ou pondo sua
força física a serviço da armada romana; ou também em grupos numerosos,
beneficiando-se então de um acordo com o Estado romano, que lhes concedia
o estatuto de "povo federado". O Império soube, então, em um primeiro
momento, absorver essa imigração ou compor com ela, antes de desaparecer sob
o efeito de suas próprias contradições, exacerbadas à medida que a infiltração
estrangeira se ampliava.
A historiografia recente demonstrou-o bem: a zona de fronteira (limes) ao
norte do Império teve um papel marcante, menos como separação, como se
imagina com freqüência, do que como espaço de trocas e interpenetração. Do
lado romano, a presença de exércitos consideráveis e a implantação de um cor-
dão de cidades importantes na retaguarda (Paris, Treves, Colônia) estimulam a
atividade dessas regiões e aumentam seu peso demográfico, lançando assim,
sem dúvida, as bases da importância adquirida pelo Noroeste da Europa a par-
tir da Alta Idade Média. Quanto aos grupos germânicos que vivem próximos do
limes, eles deixam de ser nômades e tornam-se camponeses, vivendo em aldeias
e praticando o pastoreio~ que lhes permite também serem guerreiros mais bem
nutridos que os romanoS]_ Devido à sua sedentarização, seu modo de vida é
menos diferente do que se poderia crer daquele dos povos romanizados, que,
aliás, comercializam de bom grado com eles. Assim, quando as razias dos hunos,
vindos da Ásia Central, se abatem sobre a Europa, f-s visigodos que pedem auto-
rização para entrar no Império são agricultores tão inquietos diante desse novo
perigo quanto os próprios romano~ A fronteira foi, então, o espaço em que
romanos e não-romanos habituaram-se a se encontrar e a fazer trocas, começan-
do a dar à luz uma realidade intermediária; ela torna-se "o eixo involuntário em
torno do qual os mundos romanos e bárbaros convergiam" (Peter Brown).
Mais tarde, a unidade imperial desloca-se definitivamente, cedendo o
lugar, no decorrer dos séculos V e VI, a uma dezena de reinos germânicos. Desde
429-39, os vândalos instalam-se no Norte da África com o estatuto de povo
federado; depois é a vez dos visigodos na Espanha e na Aquitânia, dos ostrogo-

50 ]érôme Baschet
dos na Itália (com Teodorico, que reina a partir de 493), dos burgúndios no
Leste da Gália, dos francos ao norte desta e na Baixa Renânia e, finalmente, a
partir de 570, os anglos e os saxões, que estabelecem na Grã-Bretanha (com
exceção dos territórios da Escócia, da Irlanda e do País de Gales, que permane-
cem celtas) os numerosos reinos que se dilacerarão no decorrer da Alta Idade
Média (Kent, Wessex, Essex, Ânglia Oriental, Mercia, Northumbria). Sem con-
seguir, de qualquer modo, inverter a fragmentação que caracteriza então o
Ocidente, um fenômeno notável desse período é o aumento do poderio dos
francos, conduzidos pelos soberanos da dinastia merovíngia, fundada por Clóvis
(t 511) e ilustrada por Clotário (t 561) e Dagoberto (t 639). Os francos conse-
guem, com efeito, expulsar os visigodos da Aquitânia (na batalha de Vouillé, em
507), incorporar os territórios de outros povos, especialmente aquele dos bur-
gúndios, em 534, para finalmente dominar o conjunto da Gália (salvo a Armá-
rica celta). Eles adquirem, assim, uma primazia no seio dos reinos germânicos,
o que reforça ainda mais o peso, já dominante demograficamente, da Gália. Um
pouco mais tarde, no decorrer do século VI, os últimos dos povos germânicos a
chegarem, os lombardos, instalam-se na Itália, contribuindo para arruinar a
reconquista de uma parte do antigo Império do Ocidente, levada a cabo pelo
imperador do Oriente, Justiniano (t 565).
Mesmo após a instalação dos povos germânicos, o Ocidente alto-medieval
continua a ser marcado pela instabilidade do povoamento e pela presença dos
recém-chegados. A expansão muçulmana submerge a Península Ibérica e põe
fim ao reino vis igótico em 711, enquanto bandos armados muçulmanos avançam
até o centro da Gália com a intenção de pilhar Tours, até serem vencidos em
Poitiers, em 732, pelo chefe franco Carlos Martel, o que os obriga a bater em
retirada para além dos Pireneus. Depois, na segunda parte da Alta Idade Média,
é preciso mencionar as incursões tumultuosas dos húngaros, no século X, e,
sobretudo, dos povos escandinavos, também chamados vikings ou normandos
(literalmente "os homens do Norte"). Guerreiros valentes e grandes navegadores,
estes últimos atacam incessantemente as costas da Inglaterra desde o fim do
século VIII e submetem os reinos anglo-saxões ao pagamento de um tributo, até
que o dinamarquês Cnut se imponha como rei de toda a Inglaterra (1016-35).
No continente, os homens do Norte aproveitam-se do enfraquecimento do
Império Carolíngio e, a partir dos anos 840, não se contentam mais em atacar as
regiões costeiras, mas penetram profundamente em todo o oeste dos territórios
francos, evocando suas divindades pagãs e semeando pânico c destruição.
Finalmente, os soberanos carolíngios são obrigados a ceder, e o Tratado de Saint-
Clair-sur-Epte (911) concede aos normandos a região que, no Oeste da França,

A c 1 v 1 1. 1z 11 ~:A o n: u ll A 1. 5I
tem ainda hoje seu nome. Mas o expansionismo dos vikings não pára por aí e, a
partir desta base continental, o duque da Normandia, Guilherme, o Conquis-
tador, se lança sobre a Inglaterra da qual ele se torna rei na seqüência da vitória
obtida em Hastings (1066) sobre Haroldo, que se esforçava para reconstruir um
reino anglo-saxão. Por outro lado, a família normanda dos Hauteville arrisca-se
ainda mais longe, conquistando o Sul da Itália com Roberto Guiscardo, em I 061,
e, depois, a Sicília, em I 062, até que Roger 11, reunindo o conjunto desses terri-
tórios, termine por obter o título de rei da Sicília, da Apúlia e da Calábria, em
1130. Finalmente, os vikings da Escandinávia, sob a condução do legendário
Érico, o Vermelho, implantam-se, a partir do fim do primeiro milênio e por muitos
séculos, nas costas da Groenlândia (que eles já denominam "país verde"). A par-
tir dali, Leif Eriksson e seus homens aventuram-se, no início do século XI, até os
rios do Canadá e, sem dúvida, da Terra Nova, mas são logo expulsos pelos seus
habitantes. Eles foram, assim, os primeiros europeus a pisar em solo americano,
mas sua aventura sem continuidade não teve o menor efeito histórico.

A fusão romano-germânica

Voltemos um pouco atrás para sublinhar os efeitos da fragmentação da unidade


romana e da instauração dos reinos germânicos. O conjunto desses movimentos
contribui para o deslocamento do centro de gravidade do mundo ocidental,
do Mediterrâneo para o Noroeste da Europa. Aos fatores já evocados (papel da
antiga fronteira romana, peso demográfico da Gália, expansão dos francos), é
preciso juntar a conquista duradoura da Espanha pelos muçulmanos, que con-
trolam igualmente o conjunto do Mediterrâneo ocidental, e a desorganização da
Itália, esgotada pelo insustentável projeto da reconquista justiniana e pela epi-
demia da peste que a devasta a partir de 570 e durante o século VII. Desde
então, o papel principal na Europa cristã transfere-se para o Norte. Outra con-
seqüência da desagregação do Império do Ocidente é o desaparecimento de
todo o verdadeiro Estado. Uma vez quebrada a unidade de Roma, seu sistema
fiscal desaba com ela. O ocaso da estrutura fiscal romana é, na verdade, um dos
fatores que favorecem a conquista pelos povos germânicos. Mesmo se a domi-
nação "bárbara" lhes custa do ponto de vista cultural, as cidades percebem
muito bem que ela é preferível ao peso crescente do fisco romano, ao mesmo
tempo que "os reis germânicos se dão conta de que o preço a ser pago por uma
conquista fácil é muitas vezes o de outorgar aos proprietários romanos privilé-
gios fiscais tão amplos que o sistema fiscal foi destruído a partir do interior"

52 )érôme Baschet
(Chris Wickham). O desabamento da estrutura fiscal fez do Ocidente, a partir
do meio do século VI, um conjunto de regiões sem relação entre si; e os reinos
germânicos, mesmo quando levam mais longe a conquista, permanecem atrela-
dos a essa profunda regionalização. Eles são incapazes de restaurar o imposto
ou mesmo de exercer um verdadeiro controle sobre seus territórios e sobre as
elites locais. Assim, se os reis germânicos têm uma intensa atividade de codifi-
cação jurídica, redigindo códigos e editos onde se misturam breviários de direi-
to romano e compilações de costumes tradicionais de origem germânica (lei
sálica dos francos, leis de Etelberto, editos de Rotário etc.), esse frenesi jurídi-
co corresponde à ausência de todo o poder real efetivo e toda tentativa séria de
aplicação se revela um imenso fracasso. A força de um rei germânico é essen-
cialmente um poder de fato: protegido por uma corte ligada a ele por um laço
pessoal de fidelidade, ele é um guerreiro inconteste, conduzindo seus homens
à vitória militar e à pilhagem. O processo que confunde a coisa pública com as
possessões privadas do soberano, iniciado desde o século 111, conduziu, no caso
dos reis germânicos, a uma completa confusão. Resulta disso um patrimonialis-
mo do poder que permite, notadamente, recompensar servidores fiéis através da
concessão de um bem público. Em resumo, é impossível considerar Estados os
reinos da Alta Idade Média.
Entretanto, seria um engano crer que o fim do Império signifique a substi-
tuição completa das estruturas sociais e culturais de Roma por um universo
importado, próprio dos povos germânicos. Mais do que isso, constata-se um pro-
cesso de convergência e de mistura do qual as elites romanas locais são, sem
nenhuma dúvida, os atores principais. Elas compreendem que lhes é possível
manter suas posições sem o apoio de Roma, desde que consintam em compor
minimamente com os chefes de guerra germânicos. É claro, custa-lhes negociar
com esses "bárbaros", vestidos de peles de animais e de cabelos longos, que
tudo ignoram dos refinamentos da civilização urbana. Mas o interesse prevale-
ce e os chefes bárbaros recebem sua parte da riqueza romana - terras e escra-
vos - , a ponto de tornarem-se membros eminentes das elites locais. Pouco a
pouco, e inicialmente na Espanha e na Gália, as diferenças entre aristocratas
romanos e chefes germânicos atenuam-se, e com maior intensidade ainda devi-
do aos casamentos que, com freqüência, unem suas linhagens. Assim, opera-se
a unificação das elites, que terminam por partilhar um estilo de vida comum,
cada vez mais militarizado, mas também fundado sobre a propriedade da terra
e o controle das cidades. Essa fusão cultural romano-germânica é um dos tra-
ços fundamentais da Alta Idade Média e foi, sem dúvida, entre os francos que
teve maior êxito, o que é um dos ingredientes de sua expansão. Essa fusão é, de

A CIVII.IZAÇAO I'EUIJAI. 53
resto, precocemente ilustrada pelo selo de Childerico (t 481 ), o pai de Clóvis,
no qual o rei aparece retratado com os longos cabelos do chefe de guerra fran-
co caindo sobre as pregas de uma toga romana (Peter Brown).

A CONTURBAÇÃO DAS ESTRUTURAS ANTIGAS

O declínio comercial e urbano

As desordens ligadas aos movimentos migratórios e ao fim da unidade romana


têm conseqüências econômicas de primeira importância. A insegurança, com-
binada à falta de espécimes monetários e à ausência de manutenção seguida
pela destruição progressiva da rede de estradas romanas, engendra o declínio e
o quase desaparecimento do grande comércio, antes tão importante no Império.
Evidentemente, alguns produtos de luxo continuam a alimentar as cortes reais
e as casas aristocráticas (especiarias e produtos do Oriente, armas e peles da
Escandinávia, escravos da Grã-Bretanha). Sem a manutenção, ainda que míni-
ma, de um fluxo de troca de longa distância, não se poderia explicar o tesouro
da tumba real de Sutton-Hoo (Suffolk, Inglaterra), do século VII, no qual foram
encontrados armas e paramentos escandinavos, peças de ouro da Frância, pra-
taria de Constantinopla e seda da Síria. Mas o esgotamento afeta o que compu-
nha o essencial da circulação de mercadorias no Império, ou seja, os produtos
alimentares de base, como os cereais, maciçamente importados da África para
Roma e que serviam até mesmo ao abastecimento das tropas concentradas na
fronteira norte, ou ainda os produtos artesanais que circulavam amplamente
entre as regiões. Pode-se mencionar, assim, graças ao testemunho da arqueolo-
gia, o caso da cerâmica africana, que tinha invadido todo o mundo mediterrâni-
co durante o Baixo Império e cujas exportações, embora poupadas pela conquis-
• ta vândala, declinam e desaparecem em meados do século VI, abrindo caminho
para o surgimento de estilos regionais de cerâmica. Com efeito, é do século VI
que se deve da~ar o declínio maciço de todos os setores do artesanato (exceto
da me\alurgia, para a qual os povos germânicos contribuem com um conheci-
mento superior) e o fim das ilhas de prosperidade econômica que tinham sido
preservadas até então. A produção realiza-se, doravante, em uma escala cada vez
mais local, o que acentua ainda mais o declínio das trocas. A regionalização das
atividades produtivas, paralela à fragmentação política, é justamente uma das ca-
racterísticas fundamentais da Alta Idade Média.

54 }érôme Baschet
Junto com o grande comércio, as cidades, não menos emblemáticas da civi-
lização romana, conhecem um profundo declínio. Suas dimensões reduzem-se de
modo considerável: Roma, que deve ter atingido l milhão de habitantes, tem
ainda 200 mil depois de 410, mas somente 50 mil no fim do século VI; para tomar
um outro exemplo, bem mais comum, uma cidade do centro da Gália, como
Clermont, que antes se estendia por duzentos hectares, encerra em estreitas
muralhas um território reduzido a três hectares.~Desde 250, tem início a diminui-
ção do ritmo das construções públicas que faziam as honras das cidades romanas
e que cessam completamente após 400 (com a exceção dos edifícios episcopais).
Os antigos edifícios públicos caem em ruínas e seus materiais são muitas vezes
reutilizados para edificar igrejas ou casas particulares. As elites senatoriais, antes
associadas ao prestígio da capital, voltam-se para os seus domínios (villae),
enquanto as instituições urbanas (como a curia, antiga instância de governo autô-
nomo das cidades) vacilam diante do poder crescente dos bispos. Em suma, as
cidades, e com elas a cultura urbana que compunha o coração da civilização roma-
na, não são mais do que a sombra delas mesmas. Mas, a despeito de seu declínio
considerável, as cidades do Ocidente jamais desaparecem completamente. Pode-
se mesmo dizer que, aproveitando-se da fraqueza do controle exercido pelos reis
germânicos, elas se mantêm como os principais atores políticos no nível local,
durante os séculos VI a VIII (Chris Wickham). Seu papel é, por certo, apagado,
mas, graças à ampla autonomia das elites urbanas e ao desenvolvimento da fun-
ção episcopal, elas conseguem sobreviver à crise final do sistema romano.
Enquanto as cidades declinam, a ruralização constitui um traço essencial
da Alta Idade Média. As desordens já mencionadas são sentidas também nos
campos e os séculos V e VI sãoJCaracterizados por i.Jma crise de produção agríco-
la. Seria, porém, imprudente estender essa conclusão ao conjunto do período
considerado aqui. Ao contrário, apesar da raridade de fontes de informação, os
historiadores acumularam indícios que põem em causa a idéia tradicional de
uma recessão generalizada dos campos durante a Alta Idade Média. Evidente-
mente, a diminuição - de cerca de um terço - do tamanho dos animais de
~

criação entre o Baixo Império e a Alta Idade Média indica o recuo do grande
domínio e o abandono da comercialização do rebanho, em benefício de uma
criação para uso local. Entretanto, constata-se também, durante a Alta Idade
Média, a difusão lenta de certas inovações técnicas (moinho d'água, instrumen-
tal metálico), assim como uma leve expansão das superfícies cultivadas. Trata-
se, é claro, de um primeiro desenvolvimento, limitado e frágil, muitas vezes
interrompido e periodicamente posto em causa por circunstâncias adversas,
mas, em todo caso, fundamental na medida em que ele acumula as forças silen-
ciosas que se afirmarão durante o período seguinte.

i\ CIVII.I/. ..1~ Ao I· EU DAl. 55


O desaparecimento da escravidão

O mais determinante, sem dúvida, são as profundas transformações das estru-


turas sociais rurais. No mundo romano, o essencial da produção agrícola era
assegurado no quadro do grande domínio escravista. Ora, é justamente esse tipo
de organização -começando pela própria escravidão - que desaparece. Essa
questão suscitou amplas discussões que, ainda hoje, estão longe de estar r<.•sol-
vidas e são esclarecidas apenas por informações imperfeitas. ~AtFtttaAts, 1:1ma
constatação essencial é capaz de obter unanimidade: quando se atinge o século XI,
a escravidão, que constituía a base da p~odução agrícola no Império Romano,
cessou de existir, de modo que, entre o fim da Antiguidade tardia e o fim da Alta
Idade Média, ocorre inegavelmente o desaparecimento da escravidão produtiva
(por outro lado, a escravidão doméstica, que não tem nenhum papel na produ-
ção agrícola, continua a existir, notadamente nas cidades da Europa mediterrâ-
nica, até o fim da Idade Média, e mesmo depois). Mas o acordo termina desde
que se levantem três questões determinantes para compreender o desapareci-
mento da escravidão: Por quê? Quando? Como?.
As causas religiosas, tradicionalmente evocadas, tiveram sua importância
limitada pela historiografia do último meio século. De fato, o cristianismo está
longe de condenar a escravidão, como atestam os escritos de são Paulo. Pelo con-
trário, ele se esforça para reforçar a sua legitimidade, a tal ponto que teólogos
como santo Agostinho e lsidoro de Sevilha, tão essenciais para o pensamento
medieval, vêem nela um castigo de Deus. É verdade que a Igreja considera a liber-
tação dos escravos (manumissio) um ato piedoso, mas ela própria não dá o exem-
plo, pois os escravos que possui em grande número são considerados pertencen-
tes a Deus e, assim, não poderiam ser retirados de um senhor tão eminente (para
não mencionar o fato de que um papa como Gregório, o Grande, compra novos
escravos). Entretanto, ainda que a Igreja em nada se oponha à escravidão, a difu-
são das práticas cristãs modifica profundamente a percepção dos escravos e ame-
niza, pouco a pouco, sua exclusão da sociedade humana. Com efeito, se, num pri-
meiro momento, a Igreja proíbe a redução à escravidão de um cristão, a seguir ela
reconhece que o escravo é um cristão: este recebe o batismo (sua alma deve, por-
tanto, ser salva) e ele partilha o mesmo lugar dos homens livres durante os ofícios.
Tal prática, que diminui a separação entre livres e não-livres, tende a solapar os
fundamentos ideológicos da escravidão, ou seja, a natureza infra-humana do
escravo e sua dessocialização radical (Pierre Bonnassie).
Causas militares também são tradicionalmente evocadas, pois o fim das
guerras romanas de conquista parece secar as fontes de abastecimento de escra-
vos. Mas as desordens do século v suscitam, ao contrário, uma alta do número

56 ]érôme Baschet
de escravos e as guerras incessantes levadas a cabo pelos reinos germamcos,
entre si ou contra as populações anteriormente estabelecidas (os celtas, vítimas
do avanço dos anglo-saxões nas Ilhas Britânicas, são massacrados, condenados ao
exílio na Armórica ou reduzidos à escravidão), asseguram a manutenção de um
m~nancial de novos fornecimentos ao longo dos séculos VI e VIl, do mesmo modo
que, no século IX, as razias carolíngias na Boêmia e na Europa Central. Mas,
enquanto o escravo antigo era um estrangeiro, ignorando a língua de seus senho-
res, não ocorre mais o mesmo com o escravo desse período, com freqüência cap-
turado no decorrer de uma guerra entre vizinhos, o que contribui ainda mais para
reduzir sua dessocialização e a distância que o separa dos homens livres.
Rejeitando as explicações ligadas aos contextos religioso e militar, a historio-
grafia, desde Marc Bloch, insistiu sobre as causas econômicas do declínio da
escravidão: uma vez desaparecido o contexto bastante aberto da economia antiga,
que permitia obter grandes benefícios da produção agrícola, a escravidão deixa de
ser adaptada. Os grandes proprietários se dão conta do custo e do peso da manu-
tenção da mão-de-obra escrava, que é preciso alimentar durante todo o ano, inclu-
sive durante as estações não produtivas. Doravante, revela-se mais eficaz instalá-
la em terrenos situados às margens do domínio, o que lhe permite obter sua
subsistência, em troca de um trabalho realizado nas terras do senhor ou de uma
parte da colheita obtida. Tal é o processo de chasement, já praticado no século 111
e bem atestado entre o século VI e o IX. Ele leva à Formação do grande domínio,
considerado a organização rural clássica da Alta Idade Média e, em particular, da
época carolíngia. Muitas vezes tão extenso como aqueles da Antiguidade (por
vezes, superando 10 mil hectares), ele se caracteriza por uma dualidade entre a
reserva ("terra dominicata"), explorada diretamente pelo senhor (graças à mão-de-
obra servil e ao pesado trabalho que os camponeses vinculados devem realizar em
suas terras, em geral três dias por semana), e os mansos ("mansi"), parcelas onde
estes últimos são instalados e graças às quais eles asseguram sua subsistência.
Modificações importantes devem ser, entretanto, acrescentadas ao esquema
acima. A importância do grande domínio deve ser relativizada. Se ele constitui a
forma de organização que assegura, de modo privilegiado, o poderio dos grupos
dominantes - aristocracia e Igreja - , convém sublinhar a importância, duran-
te a Alta Idade Média, de pequenos camponeses livres, que cultivam terras inde-
pendentes dos grandes domínios, denominadas alódios. Esses homens livres
beneficiavam-se de uma posição privilegiada, particularmente em matéria judi-
ciária, mas sobre eles pesam obrigações, especialmente militares, que são difíceis
de suportar, já que são bastante pobres. É por isso que se enfatizou que eles
deveriam se interessar de perto pelas possibilidades oferecidas pelas inovações
técnicas e por tudo que pudesse aumentar sua produção. Enquanto alguns his-

A CIVILIZ,\~·Ao 1'1-.UI>AL 57
toriadores associam o primeiro desenvolvimento dos campos, a partir do século
VIII, aos grandes domínios, outros se perguntam se ele não foi, antes, obra dos
camponeses alodiais e se estes últimos não constituíam, então, a maioria da
população rural. Em todo caso, a dinâmica atinge os grandes domínios, onde ter-
mina por acentuar o processo de vinculação (chasement) dos antigos escravos, a
descentralização de satélites que dependem do domínio principal, e o enfraque-
cimento do controle sobre os mansos. A dificuldade de organização dos grandes
domínios e os inconvenientes da mão-de-obra escrava foram, certamente, causas
decisivas da decadência da escravidão, mas intervêm não no contexto de reces-
são suposto por Marc Bloch, mas em interação com o relativo desenvolvimento
posto em marcha pelo campesinato alodial.
Críticas posteriores à obra de Marc Bloch sugerem que as causas econômi-
cas não são suficientes. Assim, alguns quiseram sublinhar que o fim da escravi-
dão era a obra dos próprios escravos e de suas lutas (de classe) pela libertação
(Pierre Dockes). Pode-se, com efeito, dar relevo à importância das guerras
bagaudas, 1 revoltas de escravos que explodem no século 111, e, depois, em mea-
dos do século V (assim como a revolta dos escravos das Astúrias, em 770), ou,
ainda, sublinhar que existem várias outras formas de resistência, desde a reti-
cência ante o trabalho ou simplesmente sua sabotagem até a fuga que, no decor-
rer da Alta Idade Média, se faz cada vez mais maciça, suscitando preocupação
crescente das camadas dominantes. Entretanto, tendo em vista a cronologia, se
é difícil atribuir o papel determinante às lutas dos 1dominados, as observações
de Pierre Dockes estimularam a sublinhar o papel das transformações políticas.
Com efeito, a manutenção de um sistema de exploração tão rude como a escra-
vidão supõe a existência de um aparelho de Estado forte, garantindo sua repro-
dução pelas leis que lhe conferem legitimidade ideológica e pela existência de
uma força repressiva- utilizada ou não, mas sempre ameaçadora - , indispen-
sável para garantir a obediência dos dominados. Do mesmo modo, quando
declinou o aparelho do Estado antigo, os proprietários fundiários tiveram cada
vez mais dificuldade em manter sua dominação sobre seus escravos. É verdade
que cada sobressalto do poder político- inclusive, ainda, durante a época caro-
língia - parece propício a uma defesa da escravidão, mas trata-se sempre de
tentativas limitadas e cada vez menos capazes de frear uma evolução cada vez
mais irresistível. Assim, é uma mutação global, ao mesmo tempo econômica,
social e política, que conduz os senhores a transformar grandes domínios, que
haviam se tornado incontroláveis e pouco adaptados às novas realidades, c a
renunciar progressivamente à exploração direta do rebanho humano.

I. Palavra, de origem celta que significa ''combate", "tropa de guerreiros" ou "bandidos". (N. T.)

58 ]érôme Baschet
A cronologia da extinção da escravidão não está menos sujeita à controvérsia.
Pode-se, entretanto, renunciar às teses mais extremas. Assim, a maior parte dos
historiadores marxistas, obnubilados pelos escritos dos clássicos do materialismo
histórico, associa o fim do escravagismo à crise do Império Romano, que se supõe
ter marcado, nos séculos 111 a V, a transição decisiva do modo de produção antigo
para o modo de produção feudal. Mas as pesquisas realizadas desde há mais de
meio século demonstraram o caráter insustentável dessa tese, uma vez que nume-
rosas fontes atestam a manutenção maciça, durante a Alta Idade Média, de uma
escravidão essencialmente idêntica àquela da Antiguidade. Assim, nas leis germâ-
nicas dos séculos VI a VIII, a condição infra-humana do escravo é reiterada sem
modificações substanciais: o escravo é comparado a um animal, como o confir-
mam as freqüentes menções que dele são feitas nas rubricas consagradas ao gado.
A fim de obter sua obediência pelo terror, ele pode ser espancado, mutilado (abla-
ção do nariz, das orelhas, dos lábios, ou escalpo, opções que têm a vantagem de
não diminuir a sua força de trabalho) e mesmo morto, se necessário. Ele é privado
de todo direito de propriedade plena, não pode se casar e seus filhos pertencem a
seu senhor, que pode vendê-los a seu critério. Enfim, a interdição das relações
sexuais do escravo com uma mulher livre, equiparadas a um ato de bestialidade
punível com a morte dos dois culpados, confirma a segregação radical de que são
vítimas os escravos. Assim, a manutenção da escravidão produtiva durante a Alta
Idade Média é bem atestada, mas nem por isso se poderia pensar em empurrar
seu desaparecimento para o extremo fim do século X, ou mesmo para o início do
século XI, como o faz notadamente Guy Bois. É possível que, por volta do ano mil,
ainda existam escravos nos domínios rurais (denominados, nos textos, servus ou
mancipium), mas, além do fato de podermos discutir sua situação, sua importân-
cia é doravante limitada, até mesmo marginal, e eles deixaram de sustentar o
essencial das tarefas produtivas. Admitir-se-á, então, com Pierre Bonnassie, que
"a extinção do regime escravagista é uma longa história que se estende por toda a
Alta Idade Média". O essencial do processo consuma-se, sem dúvida, entre os
séculos v e VIII, enquanto os testemunhos dos séculos IX e X manifestam os últi-
mos esforços para salvar um sistema que se tornara insustentável e que, finalmen-
te, agoniza e morre definitivamente.
Tendo já evocado as principais modalidades de extinção da escravidão, serão
suficientes apenas algumas observações complementares sobre esse ponto. Uma
das vias é a liberação dos escravos (manumissio), que passam a engrossar as filei-
ras desse pequeno campesinato livre, ao qual se pode atribuir o primeiro cres-
cimento dos campos da Alta Idade Média. Entretanto, a liberação nem sempre
se dá sem restrições, c a prática bastante freqüente da manumissio cum obsequio
prevê uma ressalva de obediência e a obrigação de prestar serviços ao senhor.

A ('lVII 1/..·\~!AO H l!llAI. 59


A outra via é a da vinculação (chasement) dos escravos. Em certos casos, esta
vem acompanhada de manumissio, mas isso, na maior parte do tempo, não
modifica formalmente a condição jurídica do beneficiário: este permanece
legalmente um escravo, mesmo se, na prática, o escravo vinculado não é mais
exatamente um escravo, sobretudo à medida que seguem as gerações. Isso não
significa, no entanto, que todo traço de escravidão desapareça, pois, ainda no
século x, um manso servil deve 156 dias de corvéia por ano (contra menos de
36 para um manso livre, no caso da abadia bavária de Staffelsee). Assim, quer
se trate de escravos vinculados ou de homens libertos cum obsequio, multipli-
cam-se as situações intermediárias que tornam fluida a delimitação anterior
entre livres e não-livres e prefiguram a consolidação da categoria medieval de
servidão. De fato, cada vez menos se distingue claramente um escravo vincula-
do, cujo modo de vida se afasta manifestamente daquele do antigo rebanho
humano, e um homem de origem livre, submetido a uma pressão cada vez mais
forte e cujos direitos são pouco a pouco solapados.
Uma modalidade fundamental da transição do escravagismo para o feuda-
lismo refere-se, então, à progressiva atenuação da diferença entre livres e não-
livres, não apenas pela multiplicação de situações intermediárias, mas igual-
mente pela perda da validade prática dessa distinção, devido aos motivos
militares e religiosos já evocados. Quando certos clérigos dos séculos VIII e IX
pleiteiam pela supressão da diferença entre livres e não-livres é porque, aparen-
temente, esta se encontra em via de perder todo significado real e porque é cada
vez mais impraticável pretender excluir da humanidade e da sociedade os indi-
víduos cujo modo de vida se aproxima daquele dos demais camponeses pobres.
Assim, o desaparecimento muito progressivo da escravidão se faz menos por
uma baixa dos efetivos (que seria facilmente mensurável) do que por uma trans-
formação lenta e por etapas das posições (o que torna o fenômeno muito mais
complexo e difícil de ser apreendido). Continua sendo verdade que a dinâmica
fundamental é a de uma extinção do grande domínio escravagista, base da eco-
nomia antiga, que, através de suas diversas formas de transição, levou a um novo
sistema cuja forma estabilizada será claramente perceptível a partir do século XI.

CONVERSÃO AO CRISTIANISMO
E ENRAIZAMENTO DA IGREJA

O Império tardio era cristão desde a conversão do imperador Constantino,


quando de sua vitória sobre Maxêncio na ponte Milvius, em 312. Esse evento
marca o fim das perseguições contra os cristãos e favorece a propagação da nova

60 jérôme Baschet
religião em um momento em que, sem dúvida, somente um décimo dos habi-
tantes do Império aderia a elal Depois, em 392, o imperador Teodósio faz do
cristianismo a única religião lícita no Império. Ao longo do século IV, benefician-
do-se da paz, das riquezas e dos meios para consolidar posições de força locais
outorgadas pelo imperador, a Igreja cresce tirando proveito das estruturas impe-
riais. A rede das dioceses, que se consolida então e que perdurará, no essencial,
até a época moderna, superpõe-se àquela das cidades romanas (em conseqüên-
cia, nas regiões antigamente romanizadas, como a Itália ou o Sul da Gália, onde
existia um número elevado de cidades antigas/ observa-se uma rede densa de
pequenas dioceses, enquanto no Norte, onde ri rede urbana antiga era mais flá-
cida, as dioceses são menos numerosas e bem mais extensas). Um outro exem-
plo dessa aliança entre o Império tardio e a Igreja é a estreita associação que se
opera entre a figura do imperador e a de Cristo, da qual a abundante iconogra-
fia dessa época fornece testemunho.

A conversão dos reis germânicos

Se o Império deixou de ser o inimigo do cristianismo, a ponto de certos clérigos


indagarem-se se a destruição de Roma não anunciaria o fim do mundo, a amea-
ça vem, doravante, dos povos germânicos, na maioria ainda pagãos. É verdade
que visigodos, ostrogodos e vândalos já estão convertidos quando penetram no
Império, mas eles optam pela doutrina ariana e não pela ortodoxia católica, que
Constantino fizera ser adotada pelo Concílio de Nicéia, em 325 (segunda parte,
capítulo v). Eles encontram-se, então, em dissonância com as populações cató-
licas dos territórios onde se instalam e, sobretudo, com o clero local, que ccm-
sidcra o arianismo uma heresia. Desse ponto de vista, os francos, ainda pagãos
no fim do século v, fazem uma escolha politicamente mais pertinente: seu rei,
Clóvis, que percebe muito bem a força adquirida pelos bispos de seu reino,
decide converter-se ao cristianismo (católico) e faz-se batizar, em companhia de
3 mil soldados de sua armada, por Remígio, bispo de Reims, em uma data que
as fontes não permitem estabelecer com certeza (496 ou 499?). Esse epis6dio
fará de Remígio um dos grandes santos da monarqui<J franca c de Reims, a cate-
dral obrigatória para a sagração de seus reis. De iml·diato, a t'scolha de Cl6vis
lhe permite estar em acordo com as populações e o clero de seu Tl'ino l' obter,
assim, o apoio dos bispos para seus empreendimentos militares contra os visi-
godos arianos. De resto, o reino visig6tico da Espanha juntar-Sl'-él tardiamente a
essa j,udiciosa unificação religiosa através da conversão ao catolicismo do rei
Recaredo, em 587.
No Norte da Europa, o paganismo perdura muito mais tempo. 'li.·m-se
conhecimento, no século v, da missão pioneira de Patrício, primeiro evangeliza-
dor da Irlanda (e seu futuro patrono). Entretanto, se o cristianismo finca pé no
mundo celta, é preciso esperar o fim do século VI para que ele se torne a fé
exclusiva dos clãs aristocráticos da ilha. Mesmo então, o passudo pré-cristão
persiste com uma forçu que seria inconcebível no continente, dundo lugar a um
sistema original entre uma cultura romano-cristã importada e a culturu local de
um mundo celta que jamais havia sido romanizado (do que são testemunhos us
cruzes de pedra em que se misturam símbolos cristãos e o imaginário celta;
como visto na fig!Jra I, na p. 36). A conversão ao cristianismo é ainda mais lenta
nos reinos anglo-saxões, que ainda são pagãos quando Gregório, o Grande,
envia, de Roma, uma primeira missão, em 597. Esta, dirigida pelo monge
Agostinho, chega a batizar o rei de Kent, Etelberto, assim como uma dct.ena de
milhares de anglos. O soberano julga a ocasião proveitosa e sua conversão, feita
sob u égide de Roma, permite-lhe assimilar seu gesto ao de Constantino. Mas a
missão de Agostinho esbarra em uma grande desconfiança e progride com difi-
culdade. Edwin, poderoso rei da Northumbria, converte-se apenas em 62H, não
sem antes tomar o cuidado de dar ao evento um sentido conforme os valores
guerreiros tradicionais de seu povo (no mais, quando de sua morte, quatro unos
mais tarde, o cristianismo desmorona em seu reino). De fato, é preciso esperar
a História eclesiástica do povo inglês, em 731, na qual Bedu, o Venerável. umu
das figuras mais eminentes da cultura da Alta Idade Média, relata as peripécius
dos reinos anglo-saxões e de sua lenta conversão, para poder considerar que esta
fase movimentada esteja terminada e que a Bretanha insular (que, u partir dali,
se pode nomear também Inglaterra) seja uma terra cristã.
Ao norte do continente, a progressão do cristianismo é ainda mais tardia.
No fim do século VIl, a partir de Utrecht e, sobretudo, de seu monastério de
Echternach, Vilibrordo inicia a conversão dos frisões instalados no Norte da Gália,
consolidando assim uma zona fronteiriça instável, para grande benefício dos so-
beranos francos. Quanto a Bonifácio (675-754), ele é enviado, com o apoio dos
reis francos e do pontífice romano, como bispo missionário das igrejas da Ger-
mânia, progredindo ao sabor das incursões dos francos contra os saxões do
Leste, uinda pagãos. Embora de maneira frágil, ele consegue estabelecer o cris-
tianismo na Bavária e na zona renana (onde ele funda o monastério de Fulda,
destinado a ter grande influência). Isso lhe vale o título de upóstolo du
Germânia, mesmo se é somente com as conquistas de Carlos l\lagno que a con-
versão dos saxões será verdadeiramente efetiva. A vinculação da Europa uo cris-
tianismo é uma longa aventura que termina por volta do ano mil, com u com·cr-
são da Polônia (966) e da Hungria (batismo do futuro rei Estevão I, em 985), da

62 )érôme Buschet
Escandinávia (batismo dos reis Haroldo Dente Azul, da Dinamarca, em 960;
Olavo Tryggveson da Noruega, em 995, e Olavo da Suécia, em 1008) e da
Islândia (no ano mil, pelo voto da assembléia camponesa reunida em Thingvellir
após um ritual de xamanismo realizado por seu chefe). Mesmo se as datas indi-
cam apenas a conversão dos líderes e não uma difusão geral do cristianismo,
doravante o Ocidente é por inteiro uma cristandade (católica) c a fronteira
móvel- mas sempre presente durante a Alta Idade Média- em que cristãos
e pagãos entravam em contato só continua a existir de maneira residual.

Poderio dos bispos e florescimento do movimento monástico

O processo de conversão seria incompreensível se não se considerasse o surgi-


mento da instituição eclesiástica. O tema será retomado no capítulo 111 desta
primeira parte, mas devemos sublinhar, desde já, o papel fundamental dos bis-
pos que, no Ocidente cristão dos séculos v a Vil, são os pilares incontestáveis da
Igreja. Eles captam em seu benefício o que subsiste das estruturas urbanas
romanas, de modo que, ao passo que seu prestígio cresce, a função episcopal é
investida pela aristocracia, especialmente a senatorial. Essa aristocratização da
Igreja, bastante saliente na Gália do Sul e na Espanha, assegura a manutenção
de uma rede de oidades episcopais nas mãos de homens bem formados, escora-
dos por famílias poderosas e que sabem governar. O bispo é, então, a principal
autoridade urbana·, concentrando em si poderes religiosos e políticos: ele é juiz
e conciliador, encarnação da lei e da ordem, "pai" e protetor de sua cidade. E o
bispo não pretende cumprir esse papel apenas com suas forças humanas; ele
tem necessidade, nesses tempos conturbados, de uma ajuda sobrenatural, que
ele encontra junto aos santos, cujo culto constitui uma extraordinária invenção
desse período. Ambrósio, bispo de Milão (mais tarde tido como um dos quatro
7- Doutores da Igreja ocidental, com Agostinho, Jerônimo e Gregório), está entre
os que dão um impulso decisivo a essa inovação quando procede, com grande
reforço do fasto litúrgico, à exumação dos corpos dos mártires Gervásio e Protásio
e à sua transferência para sua basílica episcopal, em 386. Pouco a pouco, a
Europa inteira põe-se a venerar os santos, "esses mortos muito especiais" ( Peter
Brown), cuja vida exemplar e a perfeição heróic<J transform<.~m os restos corpo-
rais (as relíquias) em um depósito de sacwlidade, um can<Jl privilegiado de
comunicação com a divindade e uma garantia de proteção celeste, até mesmo
de eficácia miraculosa.· C<.~da diocese tem, doravante, o seu santo padroeiro:
mártir ou bispo fundador mais ou menos lendário, ele é um patronus, no senti-
do que esta palavra tinha na sociedade romana, ou seja, um poderoso protetor

i\ CI\'111/\~:Ao I'IUilill 63
capaz de cuidar de sua clientela, um personagem influente na corte celeste -
como, anteriormente, os aristocratas na corte imperial - , intercedendo pelas
palavras (suffrap,ia) pronunciadas em defesa dos clientes que lhe rendem as
homenagens devidas à sua posição.
Desde então, a reputação do santo padroeiro, de quem a catedral gcralmt•n-
te conserva o corpo, é um elemento decisivo do prestígio do bispo encarrt•gado
dela e é compreensível que estes tenham tido o cuidado de estabelecer e t•mhe-
lezar a biografia de seus heróis, de divulgar seus milagres e de dar ao seu túmu-
lo um fausto cada vez maior. Um exemplo espetacular é o de são Martinho, sol-
dado romano convertido no século IV, que se tornou bispo de Tours c apústolo
do Norte da Gália. É somente nos anos 460, todavia, que um de seus sucesso-
res à frente da diocese transforma o seu túmulo, até então modesto, c constrói
para ele uma imensa basílica, ornada de mosaicos mostrando os milagres reali-
zados por Martinho, testemunhando um poderio sempre ativo, do qual os visi-
tantes, vindos de toda a Gália, esperam se beneficiar. O renome do santo con-
fere o prestígio da sede episcopal e não é surpreendente que um dos grandes
prelados desse período seja Gregório de Tours, bispo desta cidade de '573 a '594,
cuja História dos francos nos informa sobre sua época e sobre a importância de
uma devoção aos santos que o bispo partilha plenamente com seus mais humil-
des fiéis. Todo o Ocidente desse período se cobre de santuários luxuriantes,
imagens terrestres do paraíso; e as cidades, onde pululam as igrejas, parecem se
transformar em centros cerimoniais votados ao culto dos santos. Em breve, as
relíquias tornam-se objetos tão sagrados e tão essenciais à influência das igrejas
que se está sempre pronto a encontrá-las. Multiplicam-se, então, os roubos de
relíquias, concebidos não como atos de vandalismo, mas como empreendimen-
tos piedosos, justificados para o próprio bem do santo, tido como maltratado na
sua morada anterior e clamando pelos cuidados da nova comunidade que o aco-
lhe (Patrick Geary). Um dos mais célebres roubos de relíquia é cometido pelos
venezianos, que se apossam do corpo do evangelista Marcos em Alexandria, em
827, e o levam para sua cidade, da qual ele se tornará o símbolo e o tesouro
supremo. Mas este é apenas um episódio dentre muitos outros, muitas vezes
mais modestos e nos quais não faltam as atuações de traficantes que negociam
suas intervenções para o benefício espiritual dos futuros depositários de relí-
quias prestigiosas. Ao longo da Antiguidade tardia e da Alta Idade Média, o culto
dos santos torna-se um dos fundamentos da organização social, fazendo das relí-
quias os bens mais preciosos que se pode possuir sobre a terra e os instrumen-
tos indispensáveis de contato com o mundo celeste.
Nessa época, os bispos são ainda mais importantes, pois não dependem
de nenhuma hierarquia. O bispo de Roma (que se reservará mais tarde o título

64 }ér6me Baschet
de papa) beneficia-se, então, apenas de um privilégio honorífico, reconhecido
desde a Antiguidade, ao mesmo título que os patriarcas de Constantinopla,
Antioquia e Alexandria. Sua eminente opinião é habitualmente solicitada por
diferentes partes do Ocidente, mas também por Constantinopla, onde ela tem
peso nos debates teológicos. De fato, nos séculos v e VI, o bispo de Roma tem
os olhos voltados, sobretudo, para o Império do Oriente, do qual se considera
parte integrante. Não existe, então, nenhuma estruturação hierarquizada da Igreja
ocidental. Nela, cada diocese é praticamente autônoma e o bispo é senhor de
seu domínio, mesmo se, por vezes, ele é convocado para concílios "nacionais",
como os que aconteceram em Toledo, na Espanha visigótica do século VIl.
O mesmo ocorre ainda nos tempos de Gregório, o Grande (papa de 590 a 604),
apesar de alguns sinais de mudança: voltando-se cada vez mais para o Ocidente,
Gregório envia a missão de Agostinho às Ilhas Britânicas e faz com que sua
chancelaria redija cerca de 20 mil cartas em resposta a solicitações referentes a
questões administrativas ou eclesiásticas vindas de todo o Ocidente.
Entretanto, se sua opinião conta, como aquela de uma fonte de sabedoria ou,
por vezes, de um árbitro, Gregório não dispõe de nenhuma superioridade insti-
tucional sobre os demais bispos e de nenhum poder disciplinar para intervir nos
negócios de suas dioceses. Se ele é uma das figuras maiores da Igreja medieval,
isso se deve, sobretudo, à sua obra teológica e moral. Sua mensagem, particular-
mente clara, dá a medida da afirmação da instituição eclesial de seu tempo. Ele
estabelece para a sociedade doravante cristã (e, por conseqüência, para os sobe-
ranos que as dirigem) um objetivo fundamental: a salvação das almas. O pecado
e o diabo estando em todos os lugares, não é fácil consegui-la, e menos ainda para
os homens engajados nos negócios do mundo e no governo dos homens. Para essa
questão tão delicada, Gregório recomenda que, então, os cristãos se confiem a
uma elite de especialistas do sagrado, que ele qualifica de "médicos da alma", que
sabem melhor do que ninguém como salvá-los dos múltiplos perigos que os cer-
cam. O propósito é exigente para os clérigos, em particular para esses aristocratas
tomados bispos, suspeitos de serem mais dotados para o comando dos homens do
que para os exercícios espirituais. Mas, acima de tudo, isso oferece um testemu-
nho da distância cada vez maior entre clérigos e laicos e da posição dominante rei-
vindicada por um clero que pretende, dali para a frente, guiar a sociedade e enun-
ciar as normas que convêm ao "governo das almas" (Peter Brown).
Além dos bispos, uma outra instituição, totalmente nova, tem seu início
durante os séculos da Alta Idade Média, terminando por moldar de maneira
decisiva a face do cristianismo ocidental: o movimento monástico. É no início
do século v que ele finca o pé no Ocidente. Vindo do Oriente, João Cassiano
chega a Marselha com a idéia de aclimatar a experiência dos eremitas do deser-

1\ CIVII.IZA~:Ao FEUDAL 65
to egípcio, de quem ele descreve, em suas Instituições cenobitas, as realizações
penitenciais e a sabedoria, enquanto santo Honorato funda, não longe dali, o
monastério de Lerins, rígida escola onde são formados os filhos da aristocracia
meridional destinados à carreira episcopal. Mas é sobretudo no século VI que as
fundações monásticas se multiplicam, como tantas outras iniciativas particula-
res, assumidas com freqüência pelos bispos ou, por vezes, a título privado.
Assim, Cesário, bispo de Arles, cria, em 512, um monastério para sua irmã e
outras duzentas monjas (para as mulheres, muitas vezes originárias da aristocra-
cia, o ideal fundamental é a preservação da virgindade). Em meados de mesmo
século, Cassiodoro (490-580) funda um monastério no Sul da Itália, o qual
busca ser, sobretudo, um lugar de cultura, consagrado à preservação da retórica
e da gramática latinas e à difusão da literatura cristã. Um pouco mais tarde,
Gregório, o Grande, saído de uma família 'romana, renuncia à sua carreira de
funcionário imperial e decide transformar sua casa no Aventino em um retiro
onde leva uma vida de penitência extremamente severa. Várias obras que se
esforçam para codificar as regras da vida monástica circulam na Itália desse
tempo, tais como a anônima Regra do senhor ou a Regra de são Bento, destinada
a ter um futuro mais glorioso. Morto em 54 7, este é apenas um fundador den-
tre outros e seu monastério do Monte Cassino é destruído, pouco tempo depois,
pelos lombardos. Sem dúvida, é Gregl'>rio, o Grande, o verdadeiro inventor da
figura de Bento, de quem ele conta a vida e os milagres no livro 11 de seus Diálogos,
em 594, preparando, assim, a origem mais tardia do movimento monástico que
será chamado beneditino. Enfim, mais ao norte, em 590, Colombano, um santo
homem vindo da Irlanda, funda Luxeuil, nos Vosges, onde a aristocracia franca
faz educar seus filhos. Por volta de 600, existem, ao todo, cerca de duzentos
monastérios na Gália e, um século depois, mais 320, alguns dos quais são imen-
samente ricos, possuindo por vezes até 20 mil hectares de terras. O conjunto
desses estabelecimentos, geralmente fundados em lugares isolados, permite ao
.cristianismo fincar pé nos campos: ao lado da rede urbana dos bispos, existe
agora uma plantação rural de fundações monásticas.
O sucesso dessa instituição é considerável. A tal ponto que, no século VI,
a palavra "conversão" adquire um novo sentido. Ela não significa mais apenas a
adesão a uma nova fé, mas também a escolha de uma vida resolutamente dis-
tinta, marcada pela entrada em um monastério. Com efeito, se os primeiros dis-
cípulos de Cristo eram uma elite cuja escolha árdua podia ser vista como sinal
seguro da eleição divina, a partir de agora, em uma sociedade tornada inteira-
mente cristã, alguns se perguntam se a qualidade de cristão é uma garantia sufi-
ciente para alcançar a salvação. Como conseguir, pois, a própria salvação em
meio das atribulações do mundo secular? Como se preservar do pecado quan-

66 }érôme Baschet
do se participa dos negócios de um tempo tumultuoso? Aos laicos devotos, o
ideal de vida cristão parece cada vez mais inacessível e mesmo a carreira ecle-
siástica, estreitamente ligada às preocupações mundanas, parece muito pouco
segura. A exigência de uma escola mais rude impõe-se: esta será o monastério,
lugar de estudo e de prece, de mortificação de si mesmo pela obediência alie-
nante ao abade, pela penitência e pela privação. Espiritual e ideologicamente, a
aparição do movimento monástico é, então, o contragolpe da formação de uma
sociedade que se quer inteiramente cristã, mas se admite necessariamente
imperfeita. Ele é o refúgio de um ideal ascético em meio a um mundo que a teo-
logia moral de Agostinho e de Gregório entrega à onipresença do pecado. Mas
ele é também o instrumento de um aprofundamento da cristianização do espa-
ço ocidental e da penetração da Igreja nos campos.

A luta contra o paganismo

Através de que processos ocorreu a conversão do Ocidente ao cristianismo? Ao


que tudo indica, o batismo de um rei e de alguns guerreiros não é suficiente para
tomar um povo cristão.)Por volta de 500, o cristianismo é ainda essencialmente
uma religião das cidades (e bastante imperfeita, pois, por exemplo, em 495, ainda
são celebradas em Roma as Lupercais, festas pagãs de purificação, ao longo das
quais os jovens aristocratas correm nus através da cidade). Para se ter uma idéia,
basta saber que é então que a palavra "pagão" ganha o sentido cristão que conhe-
cemos ainda hoje. No entanto, como sublinha a História contra os pagãos de
Orósio, "pagão" (paganus) é também o homem do pagus, o camponês. Assim, o
politeísmo antigo é considerado uma crença de homens rurais atrasados. Ele não
somente é uma ilusão "fora de moda", como já o havia dito Constantino, mas, além
disso, é um resquício rural, objeto do desprezo dos citadinos. Para os cristãos, os
deuses antigos existem, mas são demônios, que é preciso caçar. A expulsão dos
demônios encontra-se, então, no centro de toda narrativa de propagação da fé cris-
tã contra o paganismo. A primeira forma disso é o batismo que, tanto quanto uma
adesão a Deus, é uma renúncia a Satã e aos demônios do paganismo ("Eu renun-
cio a todas as obras do diabo, Thunor, Wotan e Saxnot", diz uma fórmula para o
batismo dos saxões). Mas ele é geralmente insuficiente c é por isso que o exorcis-
mo, que visa caçar os demônios alojados no corpo dos fiéis, é praticado em gran-
de escala por clérigos especializados. A outra modalidade decisiva é a destruição
dos templos pagãos, de seus altares e estátuas, a fim de expulsar deles os demô-
nios. São Martinho de Tours é o próprio exemplo do bispo aplicado a essa dupla
tarefa, como exorcista e como destruidor de templos. É também o caso de são

i\ C I\ 11.11. ''~A O I L L I> i\ I. 67


Mareei de Paris, cuja legenda diz triunfar sobre um temido dragão, que encarna,
sem dúvida, tanto o diabo e o paganismo como as forças de uma natureza insub-
missa que o santo consegue domar. Ele aparece, então, como um herói duplamen-
te civilizador, encarnando conjuntamente a vitória do cristianismo sobre o paga-
nismo e do homem sobre a natureza.
No entanto, esse primeiro procedimento é insuficiente. É provável que mui-
tos dos cristãos da Alta Idade Média partilhassem as dúvidas dos auditores de
Agostinho: se é certo que o Deus único do cristianismo governa as coisas superio-
res, aquelas do céu e do além, seria também evidente que ele se preocupe com
negócios prosaicos e naturais deste mundo aqui embaixo? Não seria necessário
pensar, ao contrário, que estas são regidas por espíritos inferiores? Um século mais
tarde, os sermões de Cesário de Artes (470-542) dão uma versão típica dessa preo-
cupação dos clérigos em sua luta contra um paganismo que persiste, mesmo
quando os templos foram destruídos e os ídolos quebrados. Seus "restos" (é este
o sentido da palavra superstitio) estão em todos os lugares, como tantos outros
maus costumes e hábitos sacrílegos que é necessário erradicar. A dificuldade mais
grave diz respeito, sem dúvida, à sacralidade difusa do mundo natural que os
pagãos percebem como impregnado de forças sobrenaturais. Ainda em 690, na
Espanha, é preciso transferir para as igrejas as oferendas votivas acumuladas em
torno de árvores sagradas, de fontes, em cruzamentos ou no topo das colinas.
A visão cristã do mundo impõe dessacralizar totalmente a natureza, submetendo-
a inteiramente ao homem. Mas isso seria possível num mundo tão ruralizado
como o da Idade Média? O culto dos santos- que, segundo a doutrina da Igreja,
teriam o seu poder derivado do próprio Deus - é, certamente, o único compro-
misso eficaz e aceitável diante desse desafio impossível. Com efeito, se os ares
daqui de baixo continuam habitados pelos demônios, os bons cristãos devem se
recusar a se aliar com eles, como o fazem alguns, e devem se confiar aos santos,
capazes de controlá-los (e também, sem dúvida, de certa maneira, de substituí-los
e encarnar o conjunto dessas potências intermediárias entre os homens e De';ls).
Sua ação concreta se faz presente em todos os lugares da cristandade, de modo
que, através de seus gestos sensíveis, as múltiplas manifestações de uma sacrali-
dade difusa podem ser consideradas a expressão da vontade de Deus.
Essas dificuldades voltam à tona cada vez que a fronteira da cristandade
avança e põe os clérigos diante de um paganismo ainda vivo ou superficialmen-
te encoberto. Durante os séculos da Alta Idade Média, duas atitudes comple-
mentares são logo postas em marcha: destruir e desviar. A primeira é acompa-
nhada, de preferência, por uma substituição, como o gesto realizado por são
Bonifácio quando, em 730, ele derruba o carvalho de Thunor e, depois, utiliza
as tábuas tiradas dessa árvore sagrada dos saxões para construir, no mesmo

68 ]érôme Baschet
lugar, um oratório dedicado a são Pedro. A segunda opção, não menos eficaz,
procura pontos de contato que permitam que o cristianismo recubra o paganis-
mo de um modo menos brutal. Pode-se, por exemplo, tolerar a crença na virtu-
de protetora dos amuletos, desde que estes carreguem a cruz. Mas é sobretudo
o culto dos santos que tem aqui o papel decisivo, permitindo uma cristianização
relativamente fácil de numerosas crenças e ritos pagãos: mais do que destruir
um lugar de culto antigo, confere-se-lhe uma sacralidade legítima, afirmando
que se trata de uma árvore benzida por são Martinho ou de uma fonte onde se
vê o traço do casco de seu asno. Assim, o culto dos santos deu ao cristianismo
uma excepcional maleabilidade para iniciar, com uma mistura de sucesso e de
realismo, sua luta, sempre renovada contra o paganismo. Para dizer a verdade,
essa maleabilidade marca também o limite da conversão do Ocidente medieval
ao cristianismo e da formação de uma sociedade cristã no seio da qual a Igreja
começa a adquirir uma posição dominante. Sua luta contra o paganismo é, ao
mesmo tempo, um triunfo- à imagem dos santos abatendo os dragões- e uma
meia vitória, pois ela se impõe somente ao preço de um sério compromisso com
uma visão de mundo enraizada no mundo rural, animada por ritos agrários e
impregnada por um sobrenatural onipresente.

0 RENASCIMENTO CAROLÍNGIO
(SÉCULOS VIII E IX)

Os defensores da visão obscurantista da Idade Média surpreender-se-ão ao cons-


tatar que uma expressão amplamente consagrada pela tradição historiográfica
evoca um renascimento em pleno coração dos séculos mais sombrios das trevas
medievais. Mas, como se disse, a Idade Média é um longo rosário de "renascimen-
to(, e o desejo de um retorno à Antiguidade, que é a essência desse ideal, não é
o apanágio dos séculos XV e XVI- ele se manifesta desde o fim do século VIII.

A aliança da Igreja e do Império

A história dos carolíngios é, de início, a da ascensão militar de uma família aris-


tocrática franca. Carlos Martel, o prefeito do palácio, espécit• de vice-rei dos
francos, havia adquirido um grande prestígio militar depois de sua vitória con-
tra os muçulmanos em Poitiers. Tal prestígio recaiu sobre seu filho Pepino, o
Breve, que continuou sua obra de unificação militar l' adquiriu tal poder que

A C I V li 11. A~:,\ o I' EU DA L 69


pôde, em 751, pôr fim ao reinado de Childerico, o último rei merovíngio da
linhagem de Clóvis, e proclamar-se rei dos francos em seu lugar (o soberano
deposto tem sua barba raspada e é privado de sua longa cabeleira, símbolo do
poder dos chefes francos). Para tanto, Pepino beneficia-se do acordo com o
bispo de Roma, que procura o apoio da potência franca contra os lombardos que
ameaçam invadir Roma. O pontífice renova pessoalmente a coroação de Pepino
em 754, acrescentando a ela, além disso, a unção, à maneira dos reis do Antigo
Testamento, conferindo, dessa forma, ao soberano franco o benefício de uma
sacralidade divina legitimada pela Igreja. Começa a se urdir, assim, uma alian-
ça decisiva entre a monarquia franca e o pontífice romano. Com a morte de
Pepino, seu filho Carlos Magno herda o trono dos francos e inaugura um reina-
do particularmente longo (768-814 ). Ele se lança em uma vasta política de con-
quista militar, de início na Itália, onde vence os lombardos e apossa-se de sua
coroa, depois, contra os saxões, que haviam permanecido pagãos e cuja resistên-
cia obstinada impõe a Carlos Magno 32 anos de campanhas de uma violência
extrema, onde se mesclam massacres e deportações, terror e conversões força-
das. O resultado, importante para a história da Europa, é a conquista da Germânia
e sua integração à cristandade. Enfim, Carlos Magno leva a guerra mais longe,
contra os eslavos da Polônia e da Hungria e contra os avaros, mas tendo essen-
cialmente um objetivo defensivo. É por essa mesma razão que ele avança ao Sul
dos Pireneus, a fim de constituir a "marca hispânica", frágil zona de proteção
contra os muçulmanos. Não podemos crer, entretanto, que ele teve como pro-
jeto iniciar a reconquista da Península Ibérica, como quis fazer crer a lenda à
qual a Canção de Rolando conferiu eco considerável, a partir do fim do século
XI. Na base dessa narrativa épica, emblemática da cultura medieval, encontra-
se apenas um fato histórico sem importância: o aniquilamento, em 778, da reta-
guarda conduzida pelo sobrinho de Carlos Magno, sob os golpes dos bascos que
controlavam, então, as montanhas dos Pireneus.
Seja como for, Carlos Magno consegue reunificar uma parte considerável do
antigo Império do Ocidente: a Gália, a Itália setentrional e central, a Renânia, à
qual ele junta a Germânia (ilustração III, a seguir). Ele dispõe de recursos excep-
cionais e de um poder inédito desde o fim de Roma. Em 796, empreende a cons-
trução de seu palácio em Aix-la-Chapelle, cuja localização confirma a alteração
do centro de gravidade para a Europa do Noroeste, que já era sensível desde a
primeira afirmação do poderio franco, três séculos antes. O plano desse palácio,
centrado sobre uma grande sala circular, inspira-se, com uma clara intenção polí-
tica, na igreja-palácio de São Vital de Ravena, legado de justiniano. Também não
é uma coincidência que Carlos Magno se encontre em Roma no dia de Natal do
ano 800, importante aniversário do nascimento de Cristo. Entretanto, a coroação

70 }érôme Baschet
imperial, que ocorreu nesse dia, desenrola-se em circunstâncias ambíguas e
pouco claras, a tal ponto que alguns historiadores sugerem que o papa teria posto
a coroa imperial sobre a cabeça de Carlos Magno de surpresa e quase à sua reve-
lia. Em todo caso, é provável que a coroação imperial respondesse mais a uma
iniciativa de Leão 111 do que a uma intenção de Carlos Magno. Com efeito, além
de confirmar a aliança já estabelecida em 751, o papa sinaliza ao franco que este
tem sua dignidade a partir da Igreja. Ele se esforça, com isso, em manter seu con-
trole sobre um poder que se tornou considerável e que se exercia excessivamen-
te longe de Roma para o seu gosto. Além do mais, para o bispo de Roma, trata-
se de uma maneira de romper os laços com o imperador de Constantinopla, que
deixa de encarnar a universalidade ideal da ordem cristã a partir do momento em
que reina um outro imperador legitimado por Roma. Tal distanciamento não
poderia ter ocorrido se Constantinopla não se encontrasse enfraquecida, como
se verá abaixo, pela crise iconoclasta e pela pressão muçulmana. Mas são as con-
seqüências que importam aqui: o bispo de Roma deixa de estar sob a dependência
de uma autoridade longínqua (a partir de 800, ele não mais data seus documen-
tos em função dos anos de reinado do imperador do Oriente, como havia feito

1000 km

~ Império Romano
(inicio do século IV}
C Império Carollngio
(em 814)
0 Império Bizantino ~ Califado de Bagdá
(inicio do século IX) (inicio do século IX)

III. O Mediterrâneo das três civilizações: o Islã, Bit.<incio l' o Império


Carolíngio no início do século IX.

i\ " I v I I. I/"~: A() I' L u IJ A L 7I


até então); mais decididamente ainda do que no tempo de Gregório, ele se volta
para o Ocidente, onde começa a dispor de poder real. O evento do ano 800 sig-
nifica, então, a ruptura de uma das últimas pontes entre Oriente e Ocidente,
cujo distanciamento progressivo conduzirá ao cisma de I 054 entre as Igrejas
católica e ortodoxa.
O evento significa também uma emergência do papado como verdadeiro
poder. Ao longo do século IX, graças à aliança com o imperador carolíngio, o papa
começa a exercer um papel considerável nos negócios ocidentais. Nisso, ele se
beneficia da possessão do "Patrimônio de São Pedro" (território que atravessa a
Itália central, de Roma a Ravena), concedido e legitimado pelos soberanos caro-
língios graças à redação de uma das mais célebres falsificações da história: a
suposta "doação de Constantino". De resto, talvez resida nisso o significado
maior do Império Carolíngio: uma primeira afirmação do papado e, mais ampla-
mente, da Igreja ocidental. Se, mesmo antes, a Igreja havia se apoiado no poder
real, esforçando-se para institucionalizar e acentuar a distância que o separava do
grupo aristocrático, agora é o papa que consagra o poderio da dinastia carolíngia
e dela recebe, em troca, a confirmação de sua base territorial e material. O mo-
mento carolíngio repousa, assim, sobre uma aliança entre o Império e a Igreja,
que assegura, através de uma troca equilibrada de serviços e apoios, o desenvol-
vimento conjunto de um e de outro. O imperador, que nomeia bispos e abades,
dispõe de uma ampla rede de 180 igrejas-catedrais e cerca de setecentos monas-
térios, que são uma das bases mais firmes de sua ação. Numerosos clérigos lhe
aportam uma ajuda direta em sua obra de governo, pois eles são os personagens
principais de sua corte e põem a seu serviço suas competências e sua erudição.
Enfim, a Igreja encarrega-se de manter a aura do poder imperial, legitimando-o
pela consagração e esforçan~o-se sempre por fazer com que as ações do impera-
dor apareçam como as de um príncipe cristão, agindo conforme a vontade divi-
na. Em troca, a Igreja beneficia-se de uma proteção sem igual, garantida por cer-
tificados de imunidade que conferem às terras da Igreja uma autonomia
judiciária e fiscal, subtraindo-as da intervenção do poder real ou imperial, sem
falar da decisão carolíngia de 779 que toma obrigatório o dízimo, destinado à
manutenção do clero. A partir dali, a Igreja pôde aumentar e consumar sua orga-
nização. Instigado por Pepino, o Breve, Chrodegang de Metz organiza os clérigos
das catedrais, agora numerosos, em "cabidos", quer dizer, em comunidades de
cônegos, submetidos a uma regra de vida coletiva e quase monástica, enquanto
Bento, abade de Aniana, se esforça para homogeneizar os estatutos dos monas-
térios que se põem sob a Regra de são Bento. Muitos dos traços da instituição
eclesial dos séculos posteriores esboçam-se no Império Carolíngio, do mesmo
modo que muitas das regras pelas quais a Igreja pretende ordenar a sociedade

72 }érôme Baschel
cristã, especialmente no que diz respeito às estruturas de parentesco (segunda
parte, capítulo v).
Voltemos, no entanto, ao Império, do qual a Igreja não é o único pilar. Entre
os poderes do imperador, o principal é, sem dúvida, o de convocar, no mês de
maio de cada ano, todos os homens livres para o combate. Forma-se, assim, por
alguns meses de campanha, o exército ao qual o imperador deve suas conquis-
tas. Mas é duvidoso que se reúnam, a cada vez, todos os homens com os quais
o imperador pode teoricamente contar (cerca de 40 mil}. De resto, logo ele
renuncia a exigir de todos tal obrigação, sobretudo porque numerosos homens
livres, bastante pobres, não dispõem dos recursos necessários para adquirir um
armamento pesado e custoso. Quanto à imagem de uma administração bem
organizada e fortemente centralizada, como sugerem as capitulares (nome dado
às decisões imperiais transmitidas para as províncias), ela é, sem dúvida, ilusó-
ria. O Império é, de fato, dividido em trezentos pagi, à frente dos quais estão os
condes, enquanto as zonas fronteiriças são defendidas por duques ou marque-
ses. Mas, na verdade, o essencial do controle das províncias é confiado às aris-
. tocracias locais ou, por vezes, a guerreiros que o imperador quer compensar e
que vivem dos rendimentos de seus cargos. O controle dos territórios repousa,
no essencial, sobre os laços de fidelidade pessoal, solenizados por um juramen-
to ou pela recomendação vassálica entre o imperador e os aristocratas encarre-
gados das províncias. De fato, a ideologia carolíngia, formulada pelos clérigos,
subordina o grupo aristocrático ao soberano, considerado a única fonte das
"honras" (em particular o encargo das províncias): o fato de deter tais honras e
de servir ao imperador torna-se, então, um elemento fundamental do poder da
aristocracia, que define e legitima sua posição.
A despeito da fraqueza política do Império, a unidade reencontrada permi-
te importantes avanços. Além de um primeiro desenvolvimento das zonas rurais,
acompanhado de um salto demográfico desde os séculos VIII e IX, observa-se
uma retomada do grande comércio. Mas este é obra, sobretudo, de mercadores
exteriores ao Império: no Sul, os muçulmanos, que ainda abastecem de produ-
tos orientais as cortes principescas ou imperiais; no Norte, os navegadores
escandinavos, que importam madeiras, peles e armas. Assim, Dorestad, no mar
do Norte, se torna o principal porto da Europa, onde se estabelecem as trocas
entre o continente, as Ilhas Britânicas e os reinos escandinavos. Embora elas
permaneçam, no essencial, exteriores ao Império, tais correntes comerciais obri-
gam a uma reorganização monetária. De fato, Carlos Magno toma uma decisão
de grande importância para os séculos medievais, renunciando à cunhagem do
ouro e impondo um sistema fundado sobre a prata, metal menos raro e mais
adaptado ao nível real das trocas. A libra de prata é, então, fixada em 491 gra-
mas (50% a mais que na Antiguidade), com sua divisão em vinte soldos de doze
denários cada um, que serão a base da organização monetária durante toda a
Idade 1\lédia.

Prestígio imperial e unificação cristã

É no domínio do pensamento, do livro e da liturgia que o renascimento carolín-


gio conhece seus sucessos mais duradouros. Seu centro é a corte de Carlos
Magno e, depois, a de seu filho Luís, o Piedoso, para onde convergem os gran-
des letrados que se põem a serviço do imperador e que continuam a servi-lo
quando recebem um importante cargo eclesiástico. É o caso de Alcuíno, vindo
de York e principal inspirador dos círculos de letrados que cercam Carlos i\lagno
até ser nomeado abade de São 1\ilartinho de Tours, de Teodolfo, nomeado bispo
de Orleans, e, um pouco mais tarde, de Agobardo, feito bispo de Lyon, ou de
Rábano Mauro, abade de Fulda, cuja obra, destinada a ter enorme sucesso,
dá continuidade à ambição enciclopédica de lsidoro de Sevilha, que fora, na
Espanha visigótica, o primeiro autor cristão a tentar reunir, sobretudo em suas
Etimologias, a totalidade dos conhecimentos disponíveis. Se o imaginário popu-
lar confere a Carlos Magno o mérito (ou demérito) de ter inventado a escola, a
realidade é mais modesta: a Admonitio generalis, de 789, contenta-se em impor
a cada catedral e a cada monastério a obrigação de se dotar de um centro de estu-
dos. De resto, o próprio Carlos Magno é o primeiro soberano medieval que
aprendeu a ler (mas não a escrever). No contexto de seu tempo, já era bastante.
De fato, o objetivo principal dos letrados carolíngios é o de ler e difundir os
textos fundamentais do cristianismo. Trata-se de dispor de exemplares mais
numerosos e mais confiáveis de livros essenciais: em primeiro lugar, as Sagradas
Escrituras, mas também os manuscritos litúrgicos indispensáveis à celebração
do culto, bem como os clássicos da literatma cristã. Para tanto, não basta pro-
ceder, como ordena Carlos Magno, a uma revisão do texto da Bíblia, cuja tradu-
ção latina realizada por são Jerônimo, a Vulgata, tinha sido alterada ao longo dos
séculos. Dois instrumentos são igualmente indispensáveis. O primeiro é uma
escrita de melhor qualidade. É por isso que os clérigos carolíngios generalizam
o uso da "minúscula carolina", um tipo de letra menor e mais elegante que aque-
la dos séculos anteriores, o que torna os livros ao mesmo tempo mais manuseá-
veis e mais legíveis. Por uma bela ironia da história, essa caligrafia maravilhará
os humanistas do século XV, que a tomarão, por vezes, por uma criação da Anti-
guidade clássica e a utilizarão para desenhar os primeiros caracteres de impres-
são. Além disso, é na época carolíngia que os escribas passam a ter o hábito de

74 Jérôme Baschet
separar as palavras umas das outras, assim como as frases, graças a um sistema
de pontuação, ao contrário do sistema antigo, que o ignorava totalmente. Essas
inovações, de aparência modesta, constituem, na verdade, grandes avanços na
história das técnicas intelectuais.
Graças a essas modificações e a uma melhor organização dos scriptoria,
onde os monges que se dedicam às cópias dos manuscritos trabalham agora em
equipes, partilhando entre si as diversas seções de uma mesma obra, a produ-
ção de livros aumenta de modo considerável (estima-se que cerca de 50 mil
manuscritos foram copiados na Europa do século IX). O essencial dessas obras
responde à necessidade do culto cristão, mas outras, menos numerosas, é ver-
dade, pertencem à literatura latina clássica. Elas são copiadas porque permitem
aprender as regras do bom latim; é por isso que Loup de Ferrieres, um abade do
século IX, preocupa-se em encontrar os melhores manuscritos de Cícero. Mas
esses livros informam também sobre o passado pagão, que os cristãos têm
necessidade de conhecer, certamente para melhor afastarem-se dele, quer se
trate do passado de Roma, quer do dos povos germânicos (do qual dá testemu-
nho, por exemplo, a História de Amiano Marcelino, que não conheceríamos hoje
se um monge de Fulda não a tivesse copiado no século IX). É preciso, então,
relembrar este fato em geral esquecido: é aos clérigos copistas da Alta Idade
Média e a seu trabalho obstinado, em um meio, não obstante, pouco favorável,
que devemos a conservação do essencial da literatura latina antiga.
Outro instrumento decisivo da propagação dos textos antigos é a manuten-
ção de um conhecimento satisfatório das regras do latim, o que faz da gramáti-
ca e da retórica as disciplinas mestras do saber carolíngio. Em um momento em
que a língua latina evolui de modo diferente segundo, as regiões, os clérigos
carolíngios tomam uma decisão que sela o destino lingüístico da Europa. Eles
optam por restaurar a lfngua latina, não exatamente em sua pureza clássica, mas
ao menos em sua versão corrigida, ainda que simplificada. Eles consideram esta
escolha indispensável à transmissão de um texto bíblico correto e à compreen-
são dos fundamentos do pensamento cristão. Mas, ao mesmo tempo, eles reco-
nhecem que as línguas faladas pelas populações distanciam-se inexoravelmen-
te do bom latim, a ponto de recomendarem que os sermões sejam traduzidos
para as diferentes línguas vulgares de suas audiências. Assim, d(•s abrem a via
ao bilingüismo que caracteriza toda a Idade Média, com, de um lado, uma mul-
tiplicidade de línguas vernáculas faladas localmente pda população e, de outro,
uma língua erudita, aquela do texto sagrado e da Igreja, tornada incompreensí-
vel para o comum dos fiéis. Essa dualidade lingüística aprofunda, então, o fosso
entre os clérigos e os laicos, assegurando, ao mesmo tempo, uma unidade mar-
cante à Igreja ocidental.

A c I V 11.1/ ,, ~·A o I· 1: t' ll A I. 75


É, sem dúvida, a reforma litúrgica que melhor expressa o sentido do esfor-
ço carolíngio. Para ela, convergem, ao mesmo tempo, o desenvolvimento das
técnicas que permitem dispor de livros mais numerosos em sua forma e mais
seguros quanto ao seu conteúdo, a vontade de unificação, que é a seqüência do
projeto imperial, e, enfim, a convergência de interesses entre Roma e Aix. Na
Europa de meados do século VIII, existia uma grande diversidade de tradições
litúrgicas, cada região tendo desenvolvido maneiras particulares de celebrar as
festas e os ritos cristãos. Dizer que existiam liturgias romanas, galicanas e visi-
góticas daria apenas uma imagem incompleta dessa diversidade. Mas, a partir
do momento em que existe um Império, que se propõe a fazer respeitar a Lei
divina, necessariamente única, em todos os lugares, não é mais possível deixar
um negócio tão essencial à mercê da diversidade dos costumes locais. Logica-
mente, a escolha dos soberanos carolíngios consiste, então, em voltarem-se para
Roma, com o projeto de estender ao conjunto do Império a liturgia que ali era
utilizada. O sacramentário, livro indispensável à celebração da missa, que con-
tém todas as fórmulas que o sacerdote deve pronunciar, é o instrumento de base
dessa reforma litúrgica. E, finalmente, é o sacramentário dito gregoriano (pois
ele é abusivamente atribuído a Gregório, o Grande), enviado pelo papa a Carlos
Magno e revisado por Bento de Aniana, que se impõe no Ocidente cristão e per-
mite a unificação desejada pelo imperador. Do mesmo modo, a reforma litúrgi-
ca, questão fundamental para a Igreja, é realizada através de uma aliança entre
Aix e Roma, servindo aos interesses conjuntos dos dois poderes e manifestando
o novo papel e o prestígio conferido ao papa no Ocidente.
Lançado pela corte de Carlos Magno e fortalecido sob o reinado de Luís, o
Piedoso, o renascimento artístico, inseparável de uma visão da ordem social sob
a condução do poder eclesial e imperial, faz-se sentir em todos os domínios.
A arquitetura inova construindo igrejas muito mais imponentes e poderosas,
muitas vezes caracterizadas, como a abadia de Centula Saint-Riquier, pela pre-
sença de dois maciços de igual importância, um, oriental, dedicado aos santos,
e o outro, ocidental, dedicado ao santo Salvador (Caro) Heitz). Além de mani-
festar o desejo de associar os dois pólos do culto cristão (Cristo e os santos), este
dispositivo, bem como a multiplicação das capelas e dos altares, ilustra o desen-
volvimento de uma liturgia cada vez mais elaborada, que codifica cuidadosa-
mente as procissões e os ciclos anuais de celebrações. Por outro lado, ele pre-
para as robustas fachadas flanqueadas por duas torres do período românico e
contribui para a afirmação do plano cruciforme, que, então, suplanta o plano
basilical (retangular, com uma abside semicircular na extremidade), herdada da
arquitetura civil imperial e dominante até então. Desde o século VIII, o sucesso
do culto dos santos obriga, por vezes, a ampliar as igrejas de peregrinação e a

76 }érôme Baschet
esboçar reformas que favoreçam o acesso dos fiéis às relíquias. Quanto às ima-
gens, elas impregnam-se de reminiscências clássicas, especialmente o gosto
pelos plissados delicados, que conferem às figuras dos evangelistas, com fre-
qüência representados nos manuscritos bíblicos com um aspecto de escribas
antigos, um dinamismo poderoso e uma forte energia corporal, evocando a
intensidade da inspiração divina (figura 2, na p. 37). Poder-se-ia, igualmente,
multiplicar os exemplos no domínio literário. Assim, Eginhardo redige a biogra-
fia de Carlos Magno, tomando como modelo a Vida de Augusto, de Suetônio.
O poeta Angilberto faz-se chamar de Homero, enquanto o círculo de letrados da
corte imperial, orgulhosos por possuírem obras clássicas, como Cícero, Salústio
ou Terêncio, é comparado à Academia ateniense por Alcuíno Horácio. Enfim,
em todos os domínios, em Aix-Ravena e em torno de Carlos Magno-Augusto,
morre-se de vontade de fazer reviver a Antiguidade, pois ela é, por excelência, a
época do esplendor do Império. Trata-se de multiplicar os sinais que são tam-
bém reivindicações políticas da restauração imperial (renavatio imperii) e que
fazem de Carlos Magno e de seu filho os dignos sucessores dos imperadores de
Roma (estando entendido que tal referência encontra sua legitimidade na uni-
dade finalmente realizada do Império e da Igreja).
A experiência carolíngia foi de curta duração. Ela mantém-se e consolida-
se, em certos aspectos, durante o reinado de Luís, o Piedoso (814-40), mas,
com a sua morte, a concepção patrimonial do poder conduz à partilha de
Verdun, em 843, que divide o Império entre seus três filhos. Se este tratado é
importante para a Frância ocidental (esboço do futuro reino da França, do qual
fixa por vários séculos as fronteiras orientais no eixo Ródano-Saône), ele não
chega a apaziguar as rivalidades no seio da dinastia carolíngia, que apenas se
ampliam. A estas dificuldades somam-se as desordens provocadas pelas incur-
sões normandas e a pressão sobre a fronteira oriental, bem como o rápido agra-
vamento das fraquezas internas do Império, cujas províncias se revelam cadá vez
mais incontroláveis. O imperador não consegue assegurar a fidelidade dos con-
des e de outros aristocratas encarregados das unidades territoriais, mesmo ao
preço de concessões importantes, como a promessa de não destituir o dignitá-
rio ou o compromisso de escolher seu filho após sua morte. Nada funciona, a
tendência centrífuga é irreversível. Desde meados do século IX, os condes come-
çam, a despeito das interdições imperiais, a erigir suas próprias torres ou caste-
los e também a lançar as bases de um poder autônomo. Em HHH, quando morre
o imperador Carlos, o Gordo, ninguém se preocupa em lhe dar um sucessor.
O episódio tem seus admiradores incondicionais e seus mais céticos juízes, que
o percebem como um breve parêntese ou até mesmo como um acidente, o que é
inegável em termos de unificação política, mas, sem dúvida, muito modesto se

A <11'111/.\~'AII I'I,Uil,\1. 77
considerarmos outras aquisições mais duráveis. Questiona-se, por vezes, se o
Império Carolíngio marca o fim da Antiguidade ou o início da Idade Média.
Alguns postulam uma forte continuidade entre o Império Romano e aquele de
Carlos Magno e chegam, por vezes, a afirmar que os carolíngios dispunham de
um sistema fiscal idêntico ao do Baixo Império e que a Igreja era apenas um
agente do governo imperial. Tais visões, que romantizam ao extremo o mundo
carolíngio, repousam sobre uma leitura de fontes que foi seriamente criticada e
que parece dificilmente sustentável. Parece mais razoável, então, perceber o
episódio carolíngio como sendo, ao mesmo tempo, o resultado das transforma-
ções dos séculos da Alta Idade Média (no mínimo, porque a escolha de Aix-la-
Chapelle como capital imperial institucionaliza o peso adquirido pela Europa do
Noroeste) e uma primeira síntese que prepara o despontar dos séculos posterio-
res da Idade Média (retomada da produção e das trocas, uso do juramento de
fidelidade como base da organização política e, sobretudo, afirmação da Igreja).
Através de sua aliança com o reino, depois Império, dos francos, a Igreja conso-
lida sua organização e lança as bases de sua posição dominante no seio da socie-
dade (dízimo, reforma dos cabidos das catedrais, reforço dos grandes monasté-
rios, unificação litúrgica, fixação e difusão dos textos de base e dos instrumentos
gramaticais indispensáveis para a manutenção de uma unidade lingüística eru-
dita da cristandade, afirmação da autoridade romana, definição das regras do
casamento e do parentesco).

Ü MEDITERRÂNEO DAS TRÊS CIVILIZAÇÕES

Antes de terminar este capítulo, gostaria de alargar o campo de visão, tanto cro-
nológica como geograficamente, a fim de situar os amplos espaços no interior
dos quais se produzem a formação e depois o desenvolvimento da cristandade
ocidental. É indispensável evocar, ao menos sucintamente, os poderosos vizi-
nhos, em meio aos quais esta conquistou seu lugar com grande dificuldade
(ilustração 111, na p. 71 ).

O declínio bizantino

Do ponto de vista de Constantinopla, não existe nenhum "Império do Oriente"


e, a fortiori, nenhum "Império Bizantino" (nome que lhe é dado pelos conquis-
tadores turcos). Nela, o que estava em questão era, simplesmente, apenas o

78 Jérôme Baschet
Império Romano, o único possível, o mesmo de Augusto, Diocleciano e Constan-
tino, ou seja, a Roma Eterna, transferida para a nova capital fundada por este
último. Esta continuidade reivindicada, esta afirmação de permanência, a des-
peito de todas as transformações, é uma característica decisiva deste Império
que chamamos bizantino e que se pretende tão-somente romano. Isto é, sem
dúvida, justificado para a época de Leão I (457-527) e Justiniano (527-65), pois
o Império vive então um período de esplendor, ao mesmo tempo que o Ocidente
conhece um de seus momentos de maior confu~ão. Sua riqueza é considerável
e ele controla toda a bacia oriental do Mediterrâneo: a Grécia, a Anatólia, a
Síria, a Palestina e, sobretudo, o rico Egito, que envia para Constantinopla um
imposto anual de 80 mil toneladas de grãos. A reconquista de Justiniano, que
recupera temporariamente as costas do Adriático, a Itália e o Norte da África,
apóia-se sobre esse poderio e manifesta a intenção de manter o Ocidente sob
sua tutela e, portanto, de governar o conjunto da cristandade. Mas a epid@R1Ía
de peste, a partir de 542, dizima o Império e a reconquista fracassa. Em pouco
tempo, sobram apenas alguns fragmentos dele: o exarcado de Ravena, "posto
avançado" de Constantinopla no Ocidente, criado em 584 e que cai nas mãos
dos Iom bardos em 751; a laguna de Veneza, onde surgirá uma cidade-refúgio
antinatural, mas que goza de vantagens conferidas por sua autonomia ante os
poderes ocidentais e por um laço privilegiado com o Império do Oriente; a
Sicília, conquistada pelos muçulmanos ao longo do século IX, e a Calábria, que
os normandos arrancam de Constantinopla em 1071, com a tomada de Bari.
Desde o princípio do século VII, os ventos mudam devido ao avanço dos per-
sas, que tomam Damasco e Jerusalém, em 613-14, e, depois, da ofensiva do Islã,
que leva à perda da Síria e do Egito. Se acrescentarmos, ao norte, a pressão dos
eslavos e, logo depois, dos búlgaros, em face dos quais o imperador Nicéforo
encontra a morte em 811, Bizâncio aparece como um Império sitiado, reduzido
doravante a uma parte dos Bálcãs e à Anatólia, e cuja população é, agora, essen-
cialmente grega. É nesse contexto de graves ameaças exteriores que a crise ico-
noclasta divide longamente o Império (730-843). Para os imperadores iconoclastas,
o culto às imagens é a causa das infelicidades do Império e o povo dos que foram
batizados deve, tal como os hebreus do Antigo Testamento, reencontrar a benevo-
lência de Deus expurgando suas tendências idólatras. Mais tarde, depois da vi-
tória definitiva dos partidários das imagens, que a tradição chama de "Triunfo
da Ortodoxia" (843), assiste-se a uma recuperação que se prolonga até o início do
século IX. É o esplendor macedônio, especialmente sob Basflio I (867-86), Leão
VI (886-912) e Basílio 11 (976-1025). O poder imperial, poderoso e estável, chega
a recuperar certos territórios, como Creta e Chipre, e, momentaneamente, a
Síria e a Palestina, a Bulgária oriental e, depois, a ocidental. A !~reja de Cons-

i\ t I V I I I I. A ~ A o FEU I>.~ L 79
tantinopla, que em breve será chamada de ortodoxa, aproveita esse momento
para iniciar sua expansão. Após as primeiras missões de Cirilo e Metódio, no
século IX, Basílio 11 obtém, em 989, a conversão do grão-príncipe rus', Vladimir,
célebre pela construção da basílica de Santa Sofia, em Kiev.
Entretanto, o declínio acentua-se. As estruturas internas, políticas, fiscais
e militares do Império enfraquecem-se. Apesar de sucessos temporários, em
particular sob os primeiros imperadores da dinastia dos Comnenos, o território
bizantino diminui como uma pele enrugada (constituição do sultanato de lcônio
-ou de Rum-, que subtrai a metade da Anatólia, em 1080, e aumenta ainda
mais após sua vitória de 1176; reconstituição de um Império Búlgaro indepen-
dente de Bizâncio, em 1187). Depois do parêntese dos Estados latinos, encer-
rado em 1261, o Império não é mais do que a sombra de si mesmo, reduzido ao
quarto noroeste da Anatólia, pouco a pouco engolido pelos turcos, e a uma parte
da Grécia, progressivamente diminuída pela potência sérvia e, depois, pelo
avanço otomano, que contorna Constantinopla e ganha terreno na parte euro-
péia do Império. Os apelos de ajuda ao Ocidente permanecem sem efeito e,
mais tarde, em 1453, o inevitável acontece: o cerco e a queda de Constantinopla,
que se torna Istambul, capital do Império Turco.
No geral, o Império Bizantino conhece duas fases particularmente brilhan-
tes, de meados do século V até meados do século VI, e, depois, de meados do
século IX ao início do século XI; mas, globalmente, suas forças em declínio lhe
permitem resistir cada vez menos às múltiplas pressões exteriores (desde os per-
sas, os árabes e os eslavos até os búlgaros, os sérvios e os turcos). Apesar de
tudo, o orgulho de Constantinopla, sua pretensão de encarnar os valores eter-
nos de Roma e de constituir o Império eleito por Deus, assim como seu menos-
prezo por todos os povos do exterior, aí incluídos os cristãos do Ocidente, assi-
milados mais ou menos explicitamente a bárbaros, permanecem intactos por
longo tempo (André Ducellier). É verdade que o Império não carece de vanta-
gens e que, durante muito tempo, é portador de um poderio respeitado e de
modelos admirados: basta pensar na arte bizantina, cuja influência é profunda
no Ocidente, em particular na Itália, ou na riqueza da cultura helênica, de que os
humanistas do século XV se apropriam com avidez no momento em que Bizâncio
desmorona. Se, com o passar dos séculos, a distância entre a realidade e o ideal
do Império se aprofunda perigosamente, a vontade de preservar esse ideal a
qualquer custo explica, sem dúvida, essa impressão de lentidão e de permanên-
cia sugerida pela história de Bizâncio: esta "repousa sobre a idéia de que nada
deve mudar" (Robert Fossier). Assim, uma vez passados os grandes debates rela-
tivos à Trindade e, depois, às imagens (segunda parte, capítulos v e VI), em
Bizâncio, a teologia parece muito mais fortemente dominada por uma exigência

80 }érôme Baschet
de fidelidade aos textos fundadores do que no Ocidente. Lá não se nota nadl!
que se pareça com a vitalidade das discussões escolásticas e da reflexão que per-
mite o aparecimento das escolas e das universidades ocidentais. Um papel
determinante deve ser atribuído à manutenção do princípio imperial como pilar
da organização bizantina (apesar de uma corrosão devida às concessões e aos
privilégios outorgados, especialmente aos grandes monastérios). Mais importan-
te ainda é do fato de que, ao longo de toda a história bizantina, a Igreja funcio-
na em estreita associação com o poder imperial: o patriarca e o imperador são, ali,
as duas cabeças de uma entidade unificada pela idéia de Império cristão, con-
forme o modelo de Constantino, que ainda é observado no Ocidente na época
carolíngia. A disjunção entre o Império e a Igreja não se produz em Bizâncio,
enquanto a Igreja do Ocidente consegue adquirir sua autonomia e até mesmo
se constituir como instituição dominante. Este é, sem dúvida, um dos fatores
decisivos da evolução divergente do Oriente e do Ocidente e uma das molas
capitais da dinâmica deste último.

O esplendor islâmico

As origens do Islã podem ser evocadas, aqui, apenas brevemente: a hégira


(quando Maomé é obrigado a abandonar Meca, em 622); a unificação da Arábia,
praticamente completa quando da morte do Profeta, em 632; a fulgurante con-
quista, por um exército de cerca de 40 mil homens, da Síria e da Palestina, do
Império Persa dos sassânidas e do Egito, na época dos três primeiros califas
(632-56), e, em seguida, do Paquistão, do Norte da África e, em 711, da
Espanha visigótica. Embora a conquista imponha a dominação de um grupo
étnico bastante minoritário, ela é acompanhada da conversão ao islã da maioria
dos cristãos da Ásia e da África e dos adeptos do zoroastrismo da Pérsia. Assim,
alguns decênios depois da hégira, o Islã constitui um imenso Império comanda-
do por um chefe supremo, que concentra os poderes militares, religiosos e polí-
ticos. Pela primeira vez na história, as regiões entre o Atlântico c o Indo são inte-
gradas em um mesmo conjunto político.
De 661 a 750, os califas omíadas adotam Damasco como capital c estabe-
lecem um Império Islâmico estável. Apoiando-se sobre as elites locais e as prá-
ticas administrativas dos Impérios anteriores, Romano e Persa, clt.•s adotam uma
política de ruptura proclamada em relação ao passado, implil'm o árabe como
única língua escrita, cunham sua própria moeda. Em 692, o califa Ahd al-Malik
constrói a mesquita do Domo do Rochedoi em Jerusalém, l'm cima do antigo
Templo judaico e do Santo Sepulcro, afirmando, assim, a supn·mada do islã

i\ C I V I I. 1/ A ~· ,\ Cl I' I' L I>.-\ L 8J


sobre seus dois rivais monoteístas. A revolta de 750 põe fim à dominação da
dinastia omíada, cujos descendentes são massacrados (com exceção de Abd ai-
Rahman, que foge para fundar o emirado omíada de Córdoba, em 756). Se esse
movimento é, de início, promovido pelos árabes favoráveis às renovações c às
tendências persas presentes no Império, a hegemonia logo passa para as mãos
dos persas e a condução do Islã passa para os abássidas, que estabelecem sua
capital em Bagdá, fundada em 762 por ai-Mansur (754-75). No Iraque, coração
da nova dinastia, desenvolve-se uma agricultura competente e altamente produ-
tiva, que aclimata novas culturas de origem subtropical (especialmente arroz,
algodão, melão e cana-de-açúcar). O Império Islâmico, dotado então de sua fei-
ção definitiva e francamente oriental, conhece o seu apogeu, em particular com
Harun ai-Rashid, o califa das Mil e uma noites (786-809).
Posteriormente, a partir de meados do século IX, os fatores de divisão pre-
ponderam. As lutas, já antigas, avivam-se entre sunitas (que consideram a
"Suna", preceitos posteriores a Maomé, um fundamento da fé, no mesmo nível
que o Alcorão) e os xiitas (partidários de Ali, genro do Profeta, que rejeitam a
Suna). As revoltas xiitas do século IX favorecem a fragmentação do Império, que
se cinde em dinastias provinciais, das quais certos governantes assumem o título
de califa, a tal ponto que o califado de Bagdá perde, pouco a pouco, sua impor-
tância. Distinguem-se, então, vários conjuntos autônomos: a Mesopotâmia e as
zonas orientais, cada vez mais fragmentadas; o Egito, onde os fatímidas se im-
põem (969-II7I ), seguidos pela dinastia aiúbida, fundada por Saladino; o Norte
da África, dividido entre diferentes dinastias (dentre as quais, os aglábidas de
Kairouan, que conquistam a Sicília a partir de 827), e, em seguida, unificada pelos
almorávidas (I06I-63) e pelos almôades (I I47-I269); a Espanha (al-Andalus),
marcada pelo esplendor do califado dos omíadas de Córdoba. Além das terras
conquistadas, o Islã obtém igualmente o controle do Mediterrâneo. Em sua parte
ocidental, a pirataria sarracena atua sem resistência durante os séculos IX e X, a
partir da Espanha e do Magreb, tendo entre os seus objetivos a pilhagem e o
abastecimento de escravos. Razias terrestres também são feitas na Itália central,
inclusive contra os grandes monastérios de Farfa e do Monte Cassino, contra
Roma, pilhada em 846, assim como nos Alpes, a partir da colônia sarracena
implantada em 890 em La Garde-Freynet, na costa provençal, e que os cristãos
só conseguirão eliminar no fim do século X. Na Espanha, o vizir ai-Mansur (980-
I002) controla firmemente o território e envia terríveis expedições contra os rei-
nos cristãos do Norte; após a sua morte, porém, os conflitos entre as facções
levam à divisão e ao fim do califado (I 03I ), e os muçulmanos de al-Andalus serão
logo submetidos aos almorávidas berberes (I 086-II4 7) e, em seguida, aos
almôades do Magreb. Chega, então, a vez dos turcos, empurrados do Oriente

82 ]érôme Baschet
pelo avanço dos mongóis, que se infiltram, desde o século IX, no Império, onde
eles adotam o islã e formam, desde cedo, a guarda de todas as cortes muçulma-
nas. A primeira dinastia turca impõe-se no Afeganistão, em 962, enquanto, no
século XI, são constituídos o sultanato de Rum, na Anatólia, e o Império Seljú-
cida, na. Mesopotâmia (1055). Depois, os turcos otomanos assumem com
Osman I (1281-1326). O Império que se forma então se torna uma potência
ameaçadora, que termina por tomar Constantinopla, atinge o seu apogeu sob
Soliman, o Magnífico (1520-66), controla longamente os Bálcãs, a Mesopotâmia
e o Mediterrâneo oriental, e perdura até o fim da Primeira Guerra Mundial.
Apesar da divisão do califado omíada e, em seguida, do abássida, e da alter-
nância entre fases de poderio e d~ dificuldade, o Islã constitui, sem nenhuma
dúvida, a civilização mais brilhante do Mediterrâneo na época medieval. Ela
caracteriza-se por um urbanismo plenamente desenvolvido, que retoma parcial-
mente os modelos romanos, completando-os com fundações e inovações impor-
tantes. Damasco, capital omíada, cresce sobre uma base romana reformulada,
enquanto Bagdá, criação abássida e mais claramente oriental, atinge meio
milhão de habitantes, tirando o brilho de Constantinopla. Como nas demais
cidades muçulmanas - começando por Córdoba, da qual se diz ter ultrapassa-
do 100 mil habitantes por volta do ano mil - , desenvolvem-se, em torno de
imponentes mesquitas, o luxo e o refinamento de uma alta cultura, da qual o
Palácio de Alhambra, em Granada, é um dos exemplos mais capazes de impres-
sionar os ocidentais. A prosperidade do Islã e seus sucessos culturais e intelec-
tuais, por muito tempo claramente superiores aos do Ocidente, manifestam-se
com toda a evidência quando se salienta a amplitude dos empréstimos que os
cristãos da Idade Média tomaram do mundo árabe. Estes ~ão particularmente
importantes nas regiões conquistadas pelo Islã e, em seguida, retomadas pelos
cristãos, sobretudo a Sicília e a Espanha. Na primeira, tolera-se uma população
muçulmana útil à exploração agrícola da ilha e ao funcionamento das engrena-
gens da organização administrativa e fiscal muçulmana, retomada pelos reis nor-
mandos em seu proveito. A arte de sua corte é inspirada pelo virtuosismo das
técnicas ornamentais muçulmanas (notadamente, a capela Palatina de Palermo,
em torno de 1140). Um pouco mais tarde, o imperador Frederico 11 cerca-se de
uma guarda sarracena e corresponde-se com numerosos letrados árabes.
Enquanto essa presença muçulmana na Sicília termina n<J primeira metade do
século XIII, na Espanha reconquistada as comunidades muc;ulrnan<Js mudé_iares 2
mantêm-se até o fim da Idade Média (sobretudo no campo, pois, na cidade, as
expulsões permitem, em geral, apenas a sobrevivência de moururia.~ muito redu-

2. Mouriscos (N. T.)

A (1\'111/.AI.AII llll(),\1 83
zidas). Também aí, a interação das populações e o prestígio da cultura islâmica
traduzem-se no domínio arquitetônico e ornamental, com a arte moçárabc dos
séculos IX a XI, sobretudo nas regiões em que se implantam populações cristãs
arabizadas caçadas da al-Andalus e, depois, com a arte mudéjar, particularmen-
te em Aragão, a partir do século XIII.
Mais do que os empréstimos artísticos, na verdade limitados a elementos
parciais integrados em uma produção propriamente cristã, as contribuições téc-
nicas apresentam uma importância considerável. Pode-se, assim, mencionar a
adaptação de culturas novas, tais como, na Sicília, os frutos cítricos e a cana-de-
açúcar (destinada a adquirir importância estratégica na aventura atlântica), ou
ainda o bicho-da-seda, implantado na Espanha sob os omíadas. O papel, utili-
zado desde fins do século VIII pela administração dos califados, chega mais tarde
ao Ocidente, assim como a cerâmica esmaltada, o jogo de xadrez (de origem
oriental e introduzido no Ocidente no século XI) e, sem dúvida, as armas de
fogo, conhecidas primeiro pelos muçulmanos e que terão papel tão importante
tanto na tomada de Constantinopla pelos turcos como na tomada de Granada pelos
Reis Católicos. A medicina árabe torna-se, especialmente graças a Constantino, o
Africano, cartaginês que se tornou monge em Monte Cassino (c. 1087), a base
da reputação da Escola de Salerno, a partir da segunda metade do século XI, e
continua por muito tempo a nutrir, graças às traduções latinas de obras árabes,
o saber ocidental. No domínio das matemáticas, o avanço muçulmano é igual-
mente claro e é isso que estimula, por volta de 970, Gerberto de Aurillac, o futu-
ro papa Silvestre 11, a estudar na Catalunha, onde ele adquire uma formação
matemática excepcional entre os clérigos de seu tempo. Assim, os muçulmanos
dominam precocemente a numeração posicional graças ao uso dos algarismos
chamados arábicos (mas que são de origem indiana) e do zero, cuja vulgarização
no Ocidente é assegurada pelo Tratado do ábaco, de Leonardo Fibonacci, de
Pisa, escrito em 1202.
Mais amplamente, é preciso sublinhar a importância da cultura grega antiga
no mundo muçulmano e o papel deste em sua transmissão para o Ocidente, gra-
ças à tradução latina de numerosas obras árabes presentes na Península Ibérica.
Os comentaristas árabes da obra de Aristóteles -Avicena, morto em 1037, e
Averróis, mestre de origem andaluza, morto em 1198 - têm, neste domínio, uma
posição proeminente. O primeiro é traduzido em Toledo no século XII, gnu,·as à
colaboração entre um judeu conhecedor do árabe, que o traduz em castelhano,
e um cristão, que o restitui em latim. O segundo é traduzido por Geraldo de
Cremona, que se estabelece em Toledo, onde ele aprende o árabe e traduz até
sua morte, em 1187, numerosas obras, dentre as quais as de Averróis c do pró-
prio Aristóteles. Se, no século XIII, as obras de Aristóteles têm um papel central

84 ]érôme Raschet
nos meios universitários ocidentais, é preciso não esquecer que elas circulam
sempre acompanhadas de seus comentaristas árabes traduzidos em latim.
Aristóteles é, então, recebido e compreendido no Ocidente através do prisma de
sua leitura árabe. De fato, "é no mundo muçulmano que é efetuada a primeira
confrontação entre o helenismo e o monoteísmo", segundo um modelo trans-
posto posteriormente para o Ocidente (Aiain de Libera). Convém, então, reco-
nhecer a importância da mediação árabe para a formação da cultura ocidental.
Preocupado em pôr em evidência a dívida árabe do Ocidente, Alain de Libera
conclui: "A razão ocidental não se teria formado sem a mediação dos árabes e
dos judeus" e, de modo ainda mais lapidar, "o Ocidente nasceu do Oriente".
Mas, se esta contribuição árabe foi por muito tempo ocultada, ela não deve,
contudo, ser exagerada (não mais, aliás, do que aquela do aristotelismo, que os
teólogos distorcem para enquadrar no pensamento cristão). E é preciso notar,
com Pierre Guichard, que "o movimento das traduções acompanhou a Recon-
quista. Os ocidentais iam, de início, procurar na ponta da espada o enriqueci-
mento de conhecimentos necessários para o desenvolvimento de sua ciência.
Eles selecionavam o que lhes era útil, no mesmo momento em que o pensamen-
to árabe, incapaz de renovar-se, esclerosava-se em uma fidelidade aos mestres
antigos". No geral, ante o Islã, o Ocidente experimenta um sentimento ambiva-
lente de "fasCínio-repulsa" bem ilustrado por Raimundo Lulle, ao mesmo tempo
entusiasta da cultura árabe e partidário virulento da cruzada e da conversão dos
muçulmanos. O Ocidente apropriou-se, então, de um conjunto de técnicas.
materiais e intelectuais, forjadas ou difundidas no mundo árabe, para fortificar
uma sociedade e uma cultura totalmente diferentes e, finalmente, para reforçar
sua superioridade sobre o Islã.

O desenvolvimento não imperial do Ocidente

O Ocidente será suficientemente tratado neste livro, o que permite falar apenas
brevemente dele aqui. É preciso mencionar, entretanto, que a decomposição
carolíngia não significou o fim da idéia de império no Ocidente. Sua rt•stauração
é obra de Oto I, que, fortalecido por sua conquista do reino lombardo em 952 e
por suas vitórias sobre os húngaros e os eslavos em 955, é coroado imperador
pelo papa em Roma, em 962. Se a idéia imperial ainda tem para cll· apmas um
alcance limitado, designando um tipo de autoridade suprema dominando vários
reinos, seu neto Oto 111 lhe confere brevemente todo o seu brilho, antes de sua
morte em 1002, assumindo plenamente a idéia de renovm,·;io do Império
Romano (renovatio romani imperii), pondo Roma no centro das prl'ol·upações

t\ CI\'IIII~~·AII I Lllll/\1. 85
que ele partilha com o papa Silvestre 11. A idéia de império está, então, associa-
da àquela de um poder superior e sagrado, recebido diretamente de Deus, e a um
princípio de universalidade que confere teoricamente ao imperador a vocação de
unificar sob a sua direção o conjunto da cristandade. Ele deve ser seu chefe tem-
poral, assim como o papa é seu chefe espiritual (ilustração 7, a seguir).
Mas, desde o início, a restauração imperial dos otonianos padece de uma
forte limitação (ilustração 4 ). Longe de reconstituir o Império de Carlos Magno,
seu poder estende-se apenas sobre os reinos da Germânia e da Itália (aos quais
Conrado 11 acrescenta o reino da Borgonha, em 1033). Eletiva, a Coroa impe-
rial passa, a seguir, à família dos Sálicos, de 1024 a 1125, e, depois, à dos
Hohenstaufen, cuja força se concentra na Suábia e na Francônia (seu castelo
de Waibligen dá seu nome aos gibelinos, os partidários do imperador na Itália).
Frederico I Barba-Ruiva ( 1155-90) aumenta o prestígio da Coroa. Henrique VI
( 1191-97) acrescenta aos seus títulos a Coroa da Sicília graças a seu casamen-
to com a filha do rei normando Rogério li; seu filho, Frederico 11 ( 1220-50),
órfão educado em uma Palerma cosmopolita e atípica, homem de cultura liga-
do ao mundo árabe, cristão que desafia o papa e que é periodicamente exco-
mungado, é um dos personagens mais singulares da Idade Média. Depois do fim
dos Hohenstaufen, o imperador continua a ser respeitado, mesmo se não dispõe
de nenhum poder temporal real. Apesar disso, a dignidade imperial não deixa de
ter um papel notável nas relações européias, como o testemunha ainda Carlos
Quinto, o imperador em nome do qual se realiza a conquista do México e ao
qual Cortés deve prestar contas de seus atos.
A despeito de brilhantes avanços, a história do Império na Idade Média é
aquela de um inexorável declínio. Do século XI ao século XIII, o imperador está
envolvido em um conflito incessante com o papa, o que enfraquece as bases de
seu poder e manifesta, finalmente, a supremacia pontifícia. Aliás, se, na Germânia,
o imperador dispõe apenas de uma base territorial fragmentada e de apoios polí-
ticos limitados, no sul dos Alpes a dominação do imperador é decididamente
rejeitada e, apesar de séculos de tentativas desgastantes, ele é obrigado a ver a
Itália setentrional e a Itália central emanciparem-se e governarem-se sob a
forma de cidades autônomas. Em breve (mesmo se a expressão "Sacro Império
Romano-Germânico" não é medieval), o Império será apenas germânico e a dis-
tância entre o ideal e a realidade torna-se flagrante: "O Império Romano com
vocação universal reduz-se, pouco a pouco, até se confundir com o reino ale-
mão, mas sem dar a este um verdadeiro soberano" (Michel Parisse). Ao mesmo
tempo, o reforço dos reinos ocidentais confirma o caráter ilusório da universali-
dade do poder imperial, a tal ponto que se impõe, no século XIII, o preceito
segundo o qual "o rei é o imperador em seu reino".

86 }érôme Baschet
7. O impt·rador Oto 111 represt•ntado em majestade,< e. YYO (Evangdhos de Leutardo, Tesouro da
Catedral. Aix-la-Chapdle. 11. 16).
() imperador, sentado no trono l' scgumndo o globo, aparc..·ct· inserido em uma mandorla, signo de dignidade
geralmente reservado ~·ls pc..·ssotls divinas. Sustentado pelos símbolos dos l'Vang<:listas. o 1·\angclho. em su.1
forma original de llln rolo l'nlico, atravessa seu peito. cmno que indicando que o imperador assume a Bíblia
como lei suprema. ah.-· no interior de seu coração. Se esta rai\a n;io pode ser considerada a imagem do firma-
mento. como de rende a leitura cltíssica c muito discul ida dl' Ernst Kanloro\vÍc/. ao llll'IHJs c: la sugeriria um<1
divisão entre o mundo terrestre. l'Jn que aparcn.•n1 os dignitários lail·os l' cclcsi:ísticos. <.' o nnltHio n:leste.
() impl'rador l"at., entcio, a jun,·;io cnlrl' os dois: seu trono l· sustentado por uma alq.!,oria da tl'ITil, t'IHJll.lllto sua
calw1,;a akan,·a a 1.ona divina, onde l'la (·coroada (_ou ahen,·oadal pt'la moio de Dl'll!-.. A"sim. a ima~l'm l'\alta
vigoro~aTncntt· a figura do imperador, sublinhando, por(·rn, qut· !-.t'll poder sú tem legitimidade soh .1 condi,·;io
de conformar-st· aos preceitos das l·:scrilurols (cuja intcrprt'l<I\"<'Hil' dominada pelos dl•ri).!,os).

.~. Na dcscri1;iio inmo~rúlka, o termo (eu ~11ajesté. no ori~inal l'ranci:·s) indica a reprt•st·ntaf;ão do
persona~cm (rei. santo, a Vir~em. Cristo. Deus) em atitude de solwrano. ~eralmente sentado ao
trono.(:'\. T.)
I
_j

,,---./

~:-:~:-::- Territórios não convertidos


t.:.·.. ·... ·...._
ao Cristianismo

••••• Umites das cristandades


ortodoxa e católica

IV. A Europa do ano mil.


Ao mesmo tempo que o Império declina no Ocidente, o que se consolida,
de início, é a cristandade romana, cujo papa, agora solidamente implantado nos
territórios do "Patrimônio de São Pedro", é o chefe espiritual e o príncipe mais
poderoso. É ele quem lança o Ocidente na aventura das cruzadas, e não o impe-
rador, mesmo se um Barba-Ruiva se junta a elas com entusiasmo. O que se con-
solida é também a Europa dos Reinos, da qual as melhores bases são a
Inglaterra, sobretudo sob Henrique 11 Plantageneta ( 1154-89), a França, parti-
cularmente sob Filipe Augusto (I 180-1223) e Luís IX (1226-70), e Castela,
especialmente com Alfonso X, o Sábio (1226-84). É preciso acrescentar aqui a
Sicília, que se constitui enquanto reino com Rogério 11 (I 130-54) e que, assim
como a Itália do Sul, passa por um longo período para o domínio de Aragão, em
1282, e, enfim, os reinos escandinavos (Dinamarca, Suécia, Noruega) e centro-
europeus (Polônia, Hungria e, a partir de 1158, a Boêmia). Assim, no momen-
to em que o Ocidente se emancipa da tutela bizantina e da pressão muçulma-
na, e depois se lança na Reconquista e na cruzada, o poder imperial declina.
O Império não é, então, grandemente responsável pelo desenvolvimento euro-
peu e são outros quadros, não imperiais, que permitem iniciar e fortalecer o
dinamismo e a expansão da cristandade ocidental.

Mudança de equiUhrio entre as três entidades

Entre o Ocidente, Bizâncio e o Islã preponderam as rivalidades, as pilhagens e


os conflitos armados, o que não exclui as formas de coexistência mais ou menos
pacíficas e de trocas comerciais ou intelectuais. Trocas e conflitos, pilhagens e
comércio seguem, de resto, lado a lado, em um clima em que a admiração por
Bizâncio e pelo mundo árabe mistura-se às desqualificações recíprocas. Para os
muçulmanos, os cristãos de Bizâncio ou do Ocidente são apenas idólatras,
indignos do verdadeiro monoteísmo. Os cristãos, ainda numerosos, que vivem
nos territórios dominados pelo Islã são, entretanto, respeitados como "povos do
Livro" e são objeto de uma notável tolerância, desde que paguem a djizya, um
imposto que marca sua subordinação e que estimula à conversão muitos dentre
eles. Do mesmo modo, o ato de fé dos peregrinos cristãos que visitam os
Lugares Santos da Palestina é autorizado e, desde 680, o bispo de Arculfe leva
narrativas e descrições disso até na Irlanda.
Para os cristãos, os muçulmanos são infiéis, geralmente assimilados aos
pagãos e paradoxalmente qualificados de idólatras. Conta-se, com efeito, que
eles adoram os ídolos de Maomé, que seria seu Deus, o que é um modo radical
de contrapor-se à crítica do cristianismo pelo islã (mas alguns, como Guiberto de

A CIVII.II.A~:Ao FI-.UilAL 89
Nogent, no século XII, recusam a idéia de uma idolatria muçulmana). Uma outra
forma da negação ocidental do islã consiste em ver nele apenas um cisma, um
desvio do cristianismo: circulam, assim, diferentes variantes da lenda de um am-
bicioso cardeal da Igreja Romana, por vezes chamado Nicolau, que, frustrado por
não chegar ao pontificado, provoca um cisma e se torna o fundador da seita mao-
metana. Quer se assimile o islã à idolatria pagã ou a uma seita herética, vê-se
bem que é inconcebível para a cristandade considerá-lo uma fé específica e coe-
rente. É por isso que aqueles que chamamos de muçulmanos só podiam ser
designados, na época, como "infiéis", ou ainda como "sarracenos" ou "agarenos"
(quer dizer, descendentes de Agar e de seu filho Ismael). No entanto, isso não
exclui, sobretudo na Espanha das três religiões, uma convivencia, que é, de fato,
uma situação de coexistência e de interação regulares, em que se misturam tro-
cas e pactos, coabitações e conflitos, tolerância e esforço de subordinação.
A afirmação progressiva do Ocidente ante o Islã é evidente. Durante a Alta
Idade Média, o mundo cristão em seu conjunto está na defensiva, amputado
e sob ataque. O Império Islâmico dispõe de uma força esmagadora comparada à
de Bizâncio (território dez vezes mais extenso, com rendimentos quinze vezes
superiores, exército cinco vezes mais volumoso). Aos olhos do Islã, o Ocidente
mal existe, mesmo se o califa al-Rashid trata com deferência Carlos Magno e se
dá o trabalho de enviar para sua corte um elefante como presente. Um primei-
ro sinal da mudança da relação de força intervém após a morte de al-Mansur,
em I OI 5-I6, quando os homens de Pisa e de Gênova tomam a Sardenha dos
muçulmanos da Espanha. Na Península Ibérica, os séculos VIII e IX permitem
uma primeira reorganização (a fundação do reino das Astúrias, os condados pire-
naicos de Aragão e de :\lavarra, a "marca hispânica" e, um século mais tarde, o
condado de Barcelona). A partir dessas bases, os cristãos empreendem, sem
embates frontais, o repovoamento de espaços desertos até a bacia do Douro,
que constitui, por volta do ano mil, a zona-tampão entre al-Andalus e os reinos
do Norte. Depois, a idéia de uma reconquista dos territórios dominados pelo
Islã ganha terreno e é beneficiada com o fim do califado de Córdoba. Os pri-
meiros avanços significativos ocorreram sob o reino de Fernando I (I 035-65),
que junta Leão a Castela e conquista Lamego, Viseu e Coimbra. No mesmo
momento em que o papado confia a Roberto Guiscardo a missão de reconquis-
tar a Sicília (1059), ele decide também enviar uma "cruzada" para a Espanha
(I 064 ). Se acrescentarmos que Pisa e Gênova começam a lançar ataques con-
tra o litoral magrebino (eles serão imitados, no século XII, pelos normandos, que
tomarão Malta e, temporariamente, Trípoli, Djerba e Mahdia), os meados do
século XI aparecem como o momento decisivo em que se engaja a contra-ofen-
siva ocidental para fazer recuar o Islã.

90 }érôme Baschet
Uma vez que Palermo foi retomada, em I 072, a principal frente é a da
Reconquista ibérica. Suas etapas principais podem ser sumariamente mencio-
nadas (ilustração 5, abaixo). Em I 085, a tomada de 'l(>ledo, a antiga capital vis i-
gótica, é revestida de alto valor simbólico, no qual Alfonso VI de Castcla se esco-
ra para atribuir-se o título de "imperador de toda a Espanha" (segue-se, porém,
uma reação dos muçulmanos que, apoiados pelos almorávidas, oht<:•m, um ano
mais tarde, a vitória de Sagrajas). Durante a segunda metade do século XII,
Aragão, ajudado por forças vindas do Sul da frança, desobstrui Zaragoza em
li IH e, depois de sua união com o condado de Barcelona, em 1137, libera
Tortosa c Lérida em 1148. A tomada de Ouriquc permite a Portugal constituir-se
como reino em I 140, antes de conquistar Lisboa, em I 14 7, com o apoio de cru-
zados ingleses e flamengos. Al-AIUÚllus controla, agora, apenas um terço da penín-
sula, mas sua integração ao Império almôade põe novamente os cristãos na
defensiva e permite a última grande vitória muçulmana em Alarcos, em I 19'5.

REINO DAS ASTÚRIAS-LEÃO


CONDADO DA
BARCELONA

o 200 km

LEÃO Reinos no século IX ARAGÃO Reinos no século XIII

V. As l'lapas da lkconquisla.
No início do século XIII, os esforços do papa Inocêncio 111 e do arcebispo de
Toledo chegam a restabelecer a paz entre os reinos de Navarra, Castela e Leão,
novamente independentes desde 1157, de modo que sua coalizão, incentivada
pela pregação de uma cruzada, permite a vitória decisiva de um exército consi-
derável em Las Navas de Tolosa, em 1212. Abrindo aos cristãos o controle do
Guadalquivir, ela permite a Fernando 111 (1217-52), que reunifica definitivamen-
te Castela e Leão, retomar Córdoba, em 1236, Múrcia, em 1243, e Sevilha, em
1248, enquanto Tiago I de Aragão ( 1213-7 6) se apodera de Baleares, em 1229, e
de Valência, em 1238. Em meados do século XIII, a Península Ibérica é dominada
por três reinos cristãos, Castela, Aragão e Portugal, enquanto Navarra, acantona-
da entre seus poderosos vizinhos, jamais conseguiu crescer, e o Islã retraía-se no
reino de Granada, de onde será expulso pouco depois da união de Castela e
Aragão, engajada pelo casamento de Isabel e Fernando, em 1469.
Mesmo que se duvide, hoje, que a Reconquista tenha sido concebida como
uma cruzada antes mesmo que o projeto lançado em direção à Terra Santa
tomasse forma, ela é acompanhada, ao menos no século XII, da afirmação de uma
ideologia própria, difundida pela pregação e pela imagem. Longe de ser um sim-
ples empreendimento de conquista, ela deve aparecer como uma guerra justa,
legitimada pela infidelidade e pelos vícios dos "sarracenos" e pela superioridade
dos cristãos, que combatem em nome da verdadeira fé e, por isso, merecem o
perdão dos seus pecados e o acesso ao paraíso em caso de morte em combate:
como o exprime sem nuanças a Canção de Rolando, "os pagãos estão errados e os
cristãos têm o direito". Mas é, evidentemente, com as cruzadas que este espírito
floresce em toda a sua amplitude. Ao longo do século XI, a peregrinação a
Jerusalém conhece sucesso crescente, pois a conquista da Hungria toma prati-
cável a via terrestre, sempre mais fácil que a viagem por mar, e, ao mesmo tempo,
porque ela constitui uma forma de penitência tingida de grande feito, o que con-
vém bastante bem à mentalidade dos laicos, em particular a dos príncipes e dos
nobres. Pouco a pouco, em um contexto de cristianização da cavalaria, a conde-
nação cristã do uso de armas é revista a fim de justificar a defesa dos peregrinos
contra os muçulmanos, visto que os turcos, recentemente instalados, multipli-
cam os incidentes. Após a vitória dos seljúcidas sobre os bizantinos em
Mantzikert, em I 071, o papa Gregório VII convoca a ajudar o Império do Oriente
e a liberar os Lugares Santos. Mas é a pr~gação de Urbano 11 em Clermont, em
1095, que lança verdadeiramente o movimento. Não sem antes se ter comprazi-
do em descrever os massacres e destruições cometidos pelos infiéis, ele convida
a uma "guerra de Deus" para reconquistar Jerusalém e os Lugares Santos, e
esclarece que, para os combatentes revestidos com o sinal-da-cruz, ela valerá
como penitência devida por seus pecados e assegurará a salvação de suas almas.

· 92 }érôme Baschet
Sem dúvida, em um momento em que o poder pontifício se afirma de maneira
decisiva, ele também vê nesta santa empreitada a oportunidade de pôr o papa na
posição de chefe da cristandade. Assim, os exércitos dirigidos principalmente por
Roberto da Normandia, Roberto de Flandres, Godofredo de Bouillon, Raimundo
de Toulouse e Boemundo de Tarento, sob a autoridade do legado pontifício
Adernar, tomam Antioquia, em I 098, onde a miraculosa descoberta da Santa
Lança da crucificação inflama os espíritos. No ano seguinte, os exércitos con-
quistam Jerusalém, em um ambiente de sacralidade avivada por preces e procis-
sões litúrgicas, bem como, sem dúvida, para alguns, no clima de espera escato-
lógica do fim do mundo ou, ao menos, da realização da Jerusalém celeste na
terra. Os principados latinos do Oriente organizam-se: principado da Antioquia,
condados de Edessa e de Trípoli, enquanto Jerusalém cabe a Godofredo de
Bouillon e, depois, a seu irmão Balduíno, que assume o título de rei ( lll 0-18).
O sucessó
__..,....._._. --
da cristandade
·-
latina é brilhante.
-
Mas a defesa dos territórios
coriquistaaos, em um contexto hostil, é difícil, apesar da criação de ordens espe-
cíficas -Templários, Hospitalários e Cavaleiros Teutônicos - que, encarrega-
dos no início d~·àcolher e proteger os peregrinos, logo adquirem papel propria-
mente militar. A implantação latina mantém-se sólida por somente um século.
Já em 1144, Edessa, excessivamente avançada, cai, e a cruzada, pregada dessa
vez por são Bernardo e dirigida pelo imperador Conrado 111 e por Luís VII da França,
divide-se e nada consegue. Em 1187, Saladino do Egito retoma Jerusalém.
O imperador Frederico Barba-Ruiva se lança na cruzada, obtém a vitória de
Iconium, mas morre afogado em 1190. Ricardo Coração de Leão e Filipe
Augusto ganham São João de Acre e assinam um armistício com Saladino.
Durante o século XIII, os ocidentais não controlam mais do que algumas cidades
costeiras, como Beirute, Sidon, Tiro e São João de Acre, e todos os seus esfor-
ços permanecem vãos ou efêmeros: em 1229, Frederico 11, já excomungado e
tornado ainda mais suspeito por causa desse procedimento, negocia com o sul-
tão a recuperação de Jerusalém, que continuará cristã até 1244. São Luís, que
quer vencer o Egito, é inicialmente vitorioso em Damieta, mas torna-se vergo-
nhosamente prisioneiro em Mansurah, em 1254, antes de morrer durante uma
segunda expedição em Túnis, em 1270. Enfim, em 1291, os mamelucos do
Egito tomam São João de Acre, eliminando, assim, os últimos restos dos princi-
pados latinos da Terra Santa. Apenas Chipre será mantida de modo durável até
1489, enquanto o espírito de cruzada e a esperança de retomar Jerusalém per-
manecerão tão vivos quanto vãos, mesmo além da Idade Média.
Em suma: uma vitória estrondosa e eminentemente simbólica sobre o Islã
(I 099), um século de forte presença latina na Terra Santa e, depois, ainda um
séc~lo durante o qual essa presença não é mais do que sua própria sombra,

1\ C I V I I. 1/. A ~: .\ O I 1·: ~ ll .A I. 93
desesperadamente defendida. As cruzadas são liquidadas com um fracasso, do
mesmo modo que as tentativas missionárias das ordens mendicantes (o próprio
são Francisco esforça-se inutilmente para convencer o sultão do Egito, em 1219).
Entretanto, elas atestam um evidente reequilíbrio das forças. C,ercJlSlo pelas for-
ças do Islã durante a Alta Idade Média, o Ocidente contra-ataca f~nclo-as recuar
a partir do século XI, constrangendo-as à defensiva durante o século XII e, mesmo
se o projeto da Terra Santa é abreviado, a presença ocidental no Mediterrâneo
oriental é durável, a tal ponto que, durante o século XIII, o Egito depende das
frotas cristãs para seu abastecimento. É certo que o Império Otomano se torna
uma potência considerável, que conquista os Bálcãs e leva a ameaça até Viena,
em 1529, e novamente em 1683. Assim, o Islã não está prestes a desaparecer,
pois está presente hoje da África Negra até o Casaquistão e a Indonésia, e
alguns insistem em ver nele um dos principais focos de oposição ao Ocidente.
1".ntretanto, a mudança de equilíbrio operada durante a Idade Média Central,
da qual a Reconquista e as cruzadas são os sinais mais claros, é inegável. A esse
-propósito, a historiografia dos países árabes é, sem dúvida, pertinente ao ver nas
cruzadas um empreendimento injustificável de conquista e a primeira manifes-
tação do imperialismo ocidental.
A afirmação do Ocidente ante Bizâncio é ainda mais notável. Até o início
do século VIII, em virtude da universalidade do título imperial, Constantinopla
tem vocação para assegurar a tutela sobre o Ocidente. Os soberanos germâni-
cos, em particular ostrogodos e francos, estão, em princípio, submetidos ao
imperador e lhe prestam obediência e fidelidade. A Itália, em particular, é con-
siderada uma terra imperial; e o próprio papa depende da autoridade do impe-
rador e toma o cuidado de manifestar o respeito que é devido à sua jurisdição.
Entretanto, pouco a pouco, os laços distendem-se e o Ocidente libera-se da
tutela de Constantinopla. A primeira ruptura é provocada pela aliança entre o
papa e Pepino, o Breve, especialmente quando este último oferece ao pontífice
o exarcado de Ravena, que fora reconquistado dos lombardos. A doação de
Constantino, forjada nesse momento, segundo a qual este teria cedido ao papa
Silvestre o poder sgbre Roma e a Itália, funda o poder temporal do papado e
solapa os fundamentos das pretensões bizantinas sobre a Itália. A coroação de
Carlos Magno é uma nova etapa da autonomização do Ocidente; mas a rebelião
é tão inaceitável para Bizâncio que Carlos Magno deve, finalmente, conceder
um acordo pelo qual renuncia ao título de imperator Romanorum, que o identi-
ficaria com o senhor de Constantinopla, ao mesmo tempo que é estabelecida a
idéia de dois impérios irmãos, procedendo-se a uma partilha territorial de sua
missão em comum. O conflito é mais frontal ainda com Oto I, que, pouco
depois da restauração de 962, se proclama autêntico imperador dos romanos.

94 jérôme Baschet
Constantinopla, então, desdenha o seu embaixador, Liutprando de Cremona,
enviado em 968, mas a crise é resolvida em seguida pelo casamento de Oto 11 e
de Teófano, parente do imperador de Bizâncio.
De ambos os lados, as incompreensões acumulam-se com maior facilidade
ainda, uma vez que cada um, agora, ignora a língua do outro (logo se falará de
gregos e de latinos para opor orientais e ocidentais). A crise iconoclasta, na qual
o papa intervém ativamente - a tal ponto que Gregório 11 excomunga o impe-
rador Leão 111 - , suscita a desconfiança dos latinos em relação à doutrina dos
gregos. À rivalidade no empreendimento de conversão das populações eslavas,
quer dizer, pela definição das esferas de influência na Europa Central, acres-
centa-se logo a disputa pelo controle da Itália do Sul. Conflitos velados de inte-
resses mesclam-se às discussões doutrinárias, dentre as quais a questão da pro-
cessão do Espírito Santo no seio da Trindade torna-se rapidamente, a despeito
de sua aparência fútil, o ponto central de confronto. Ao lado de outras divergên-
cias, especialmente litúrgicas (os gregos continuam a utilizar o pão fermentado
para as hóstias, enquanto os latinos recorrem ao pão não fermentado), a rejei-
ção à idéia segundo a qual o Espírito Santo emana, ao mesmo tempo, do Pai e
do Filho (filioque, em latim) torna-se o núcleo e o símbolo da ortodoxia que
Bizâncio reivindica perante o Ocidente. De fato, é a querela do filioque que dá
o pretexto da ruptura, consumada em 1054, pelas excomunhões recíprocas
do patriarca de Constantinopla, Miguel Cerulário, e dos legados pontifícios.
Doravante, existem duas cristandades separadas por um cisma: a ortodoxa, cuja
herança será recolhida, após a queda de Constantinopla, pela Rússia, e a roma-
na, cuja autoridade suprema, o papa, pode afirmar sem entraves o caráter uni-
versal de seu poder, uma vez afastada a tutela oriental.
As cruzadas são a ocasião de uma ruptura e de um afrontamento ainda mais
vivos. Desde o início, impondo um juramento de fidelidade aos cruzados, o
imperador do Oriente recusa o próprio princípio do empreendimento ocidental,
não lhe dando nenhum apoio e vendo nela um empreendimento ordinário de
conquista que só poderia ter legitimidade sob a condição de restituir ao Império
os territórios retomados aos muçulmanos (Michel Balard). Assim, os bizantinos
não ficam surpresos quando a quarta cruzada se desvia de seu objetivo para lan-
çar-se de assalto contra sua capital: para eles, era um ato premeditado de longa
data. Do lado ocidental, desde o retorno da primeira cruzada, difunde-se o tema
da traição dos gregos, acusados de não ter dado nenhuma ajuda aos nuzados,
ao mesmo tempo que, no decorrer do século XII, são suspeitos de criar obstáculos
aos esforços dos ocidentais c de tratá-los com infidelidade. Mesmo as cidades
italianas tradicionalmente aliadas de Bizâncio, Gênova e Veneza, guardum suas
distâncias. A ruptura torna-se cada vez mais aberta e denunciam-se de bom

t\ t' IV li 1/,.H: A o I· I. U ll A I. 95
grado os crimes dos gregos, tidos por partidários do cisma, enquanto os latinos
seriam os defensores da verdadeira fé. É nesse contexto que os cruzados embar-
cados pela frota veneziana sitiam Constantinopla e a saqueiam com grandes vio-
lência e pilhagem em 1204 - o que ocorre pela primeira vez em sua história e
pelas mãos de outros cristãos! O Império é, então, partilhado em diferentes
entidades que são atribuídas aos chefes dos cruzados (Império Latino, em torno
da capital, reino da Tessalônica, ducado de Atenas e principado da Aquéia),
enquanto Veneza, que fortalece suas posições comerciais por toda parte, contro-
la Creta e numerosas ilhas do Egeu. É verdade que os gregos reconquistaram
seu Império em 1261, com o apoio de genoveses, e logo o papado se preocupa-
rá com a união das Igrejas grega e latina, rudemente imposta no Concílio de
Lyon 11 (1274) e, em seguida, de modo mais diplomático, mas igualmente inú-
til, no Concílio de Florença (1439). Nada impede, porém, que o sentido dos
eventos de 1204 seja bastante claro: a ruptura entre as duas cristandades é pro-
funda e a relação de forças é, sem nenhum equívoco, favorável ao Ocidente.

,. ,. ,.
CONCLUSÃO: EM DIREÇÃO A UMA
REVERSÃO DE TENDÊNCIA.

A despeito da antecipação narrativa a que nos conduz essa contextualização


geopolítica, para terminar é preciso voltar à Alta Idade Média, objeto principal
deste capítulo. Trata-se de uma época muito mais contrastada do que o afir-
mou a historiografia tradicional, que nela via apenas declínio e barbárie, desor-
dem e violência. Certos períodos, é verdade, correspondem parcialmente a
essa visão, especialmente entre 450 e 550 e, em menor grau, entre 870 e 950.
Mas convém afirmar que a Alta- Idade Média pertence plenamente ao milênio
medieval. Se ela não atinge ainda a síntese mais segura e altamente criativa da
Idade Média Central, os processos que ali se consolidam são indispensáveis
para compreender esta última e são, então, parte integrante da lógica de afir-
mação da sociedade feudal. Durante a transição da Alta Idade Média, os ele-
mentos de decomposição do sistema romano predominam de início: ruptura da
unidade romana e desaparecimento do Estado; regionalização política e econô-
mica da Europa; declínio acentuado das cidades e ruralização; desaparecimen-
to do modo de produção escravagista. Entretanto, os elementos de recomposi-
ção estão longe de ser negligenciáveis e logo esboçam certos traços essenciais
dos séculos seguintes: a lenta acumulação de forças produtivas; o deslocamen-
to do centro de gravidade do mundo ocidental do Mediterrâneo para a Europa

96 }ér6me Baschet
do Noroeste; a síntese romano-germânica; o estabelecimento das bases do
poderio da Igreja, que recompõe em seu benefício uma sociedade doravante
cristã (fundando-se sobre os três pilares que são o poder dos bispos, uma rede
de poderosos monastérios e o sucesso ilimitado do culto dos santos). Enfim, o
fracasso carolíngio demonstra a inviabilidade da forma imperial da cristandade
ocidental; ele confirma a diluição da autoridade pública no seio dos grupos
dominantes e deixa o campo livre para a Igreja como a única instituição exten-
siva ao Ocidente cristão e capaz de reivindicar sua direção. Assim, no fim da
Alta Idade Média, pode-se iniciar a mudança de equilíbrio entre o Ocidente e
seus rivais bizantinos e muçulmanos. A cristandade romana concentra suas for-
ças no mesmo momento em que o Islã e Bizâncio se fragilizam. Os sinais dessa
reversão de tendência, tão hesitante quanto decisiva, multiplicam-se no sécu-
lo que cerca o ano mil, com a eliminação da pirataria sarracena e a retomada
da Sardenha, o início da Reconquista e o cisma de I 054. É nesse momento que
é preciso retomar o exame do Ocidente, quando eclodem em seu seio fenôme-
nos determinantes e lentamente preparados.

t\ CIVII.II.'\~·Ao l'l.l:llAI. 97
I I

ÜRDEM SENHORIAL E
CRESCIMENTO FEUDAL

A REFERÊNCIA AO ANO MIL pode servir para marcar o momento em que se afirma
um movimento de desenvolvimento, agora bem visível e não mais preparado sub-
terraneamente, associado a um processo de reorganização social cujas bases foram,
é verdade, lançadas anteriormente, mas cujos resultados se manifestam sobretudo
a partir do século XI. É verdade que, como já se disse, ninguém pretende que o ano
mil tenha sido, por si mesmo, um limiar decisivo entre conturbações do "século de
ferro" e o elã da Idade Média Central. Se o ano mil é evocado aqui, é para desig-
nar um conjunto de processos que se estendem no decorrer dos séculos X e XI.
Mesmo entendido assim, o ano mil foi, recentemente, objeto de um debate opon-
do os medievalistas que, na seqüência de Georges Duby, associam esse período a
uma mutação social de grande alcance e, por vezes, convulsiva, e aqueles que, aler-
tando para as deformações de perspectiva devidas a uma documentação repentina-
mente mais abundante, faziam prevalecer a continuidade para além da mudança
de milênio (Dominique Barthélemy). Essa polêmica não foi isenta de confusão, na
medida em que estava associada ao velho debate sobre_9s terrores do aua._mil,. que
supostamente haviam atormentado as populações com um.pânico..medonho do fim
do mundo no momento do milênio do nascimento (ou da Paixão) de Cristo.
Na segunda parte voltaremos ao milenarismo, mas já se pode sublinhar que
o tema dos terrores do ano mil é essencialmente um mito historiográfico forjado
no século XVII, aperfeiçoado pelo Iluminismo para melhor encobrir a Idade
Média em um véu de obscurantismo poeirento e de superstições ridículas, e,
finalmente, retomado pela verve romântica. Denunciado pela erudição positivis-
ta como uma invenção sem fundamento documental (Ferdinand Lot), a idéia de
uma explosão escatológica em torno do ano mil foi, entretanto, reabilitada e com-
binada às aquisições da historiografia recente, especialmente por David Landes.
No geral, existem atualmente três teses em vigor. Alguns notam, por volta do ano

98 }érôme Baschet
mil, sérios indícios de uma espera particularmente intensa do fim dos tempos e
interpretam-na como uma reação popular diante da violência ~enhorial e das con-
vulsões_da mutação feudal. Para outros, os textos não permitem fundamentar essa
visão renovada pela história social de um medo do ano mil; mas há, de fato, um
momento de tensões sociais exacerbadas pela instauração da nova ordem feudal.
Outros, enfim, consideram que não se passou nada de particular em torno do ano
mil, nem medos escatológicos, nem mutação feudal.
Admitir-se-á, aqui, que se alguns documentos deixam transparecer marcas
de inquietações (e de esperanças) milenaristas no fim do século X e no início do
século XI, notadamente sob a pluma do abade Abbon de Fleury, tais sentimentos,
que por vezes tomam a forma de explosões de impaciência, encontram-se ao logo
de toda a Idade Média e, sem dúvida, não são mais intensos em torno do ano
mil do que em pleno século XIII. De outro lado, as teses "mutacionistas" arriscam-
se, por vezes, a cair no excesso e é preciso entender que a dinâmica de afirma-
ção do feudalismo estende-se ao longo dos séculos, desde a época carolíngia, ao
menos, até o século XIII. Em todo caso, uma fase aguda, e muitas vezes confli-
tuosa, de profunda reestruturação da sociedade pode ser situada no século (ou
pouco mais de um século) que se estende em torno do ano mil, mesmo se ela
intervém em datas e com ritmos diferentes segundo as regiões. Enfim, o mais
importante, se se faz questão absoluta de evocar o ano mil, consiste em inverter
a perspectiva tradicional e a transformar o sinistro símbolo de obscurantismo
medieval em uma etapa no surgimento e na afirmação do Ocidente cristão. No
mais, a consciência de uma nova era aparece em alguns textos medievais, dos
quais o mais célebre se lê nas Histórias que o monge de Cluny Raul Glaber redi-
ge entre 1030 e 1045, tendo por objetivo celebrar os eventos notáveis que mar-
caram o milênio do nascimento e da morte do Salvador:

[... ]como se aproximava o terceiro ano que se seguiu ao ano mil, vê-se em quase
toda a terra, mas sobretudo na Itália e na Gália, renovarem-se as basílicas das
igrejas; embora a maior parte, muito bem construída, não tivesse nenhuma
necessidade disso, uma emulação levava cada comunidade cristã a ter uma igre-
ja mais suntuosa do que as outras. Era como se o próprio mundo fosse sacudi-
do e, despindo-se de sua vetustez, tenha-se coberto por toda parte com um ves-
tido branco de igrejas. Então, quase todas as igrejas das sedes episcopais, os
santuários monásticos dedicados aos diversos santos e mesmo pequenos orató-
rios das aldeias foram reconstruídos ainda mais bonitos pelos fiéis.

Este texto indica de modo notável que a reconstrução das igrejas mais belas
e mesmo suntuosas não se deve a nenhuma necessidade material, mas antes à

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 99
emulação dos grupos e das instituições, preocupados em manifestar, pela bele-
za dos edifícios dedicados a Deus, o ardor com o qual eles se esforçam para
aproximar-se dele. Raramente colocou-se em evidência com tanta clareza a fun-
ção social da arquitetura que, intimamente ligada à sua eficácia sagrada, cons-
titui, para as comunidades locais, um sinal de reconhecimento, uma garantia de
unidade interna, ao mesmo tempo que um meio de se medir com seus vizinhos
e, se possível, se afirmar como superior a eles. Longe de ser característica de
uma sociedade em declínio, tal lógica sugere, ao contrário, que uma parte cres-
cente da produção é subtraída do consumo para ser consumida em uma compe-
tição sagrada generalizada. Raul Glaber nos fala de um mundo novo, na aurora
do segundo milênio, não sem um notável toque de otimismo. A célebre metáfo-
ra do "vestido branco de igrejas" o diz ainda melhor, já que ela se orna de uma
conotação batismal: do mesmo modo que o batismo é uma regeneração, um
renascimento pelo qual o fiel se desfaz do pecado e do antigo homem que esta-
va nele, para ser, uma vez purificado, revestido de uma túnica branca, a Europa
renasce então e, desvencilhando-se do que havia de antigo nela, abre-se aos
horizontes de uma história nova. Longe de afundar nas trevas do obscurantis-
mo, o Ocidente do ano mil faz-se luminoso e inaugura um novo começo.

Ü DESENVOLVIMENTO DOS CAMPOS


E DA POPULAÇÃO (SÉCULO XI AO XIII)

Indicaremos, de início, os dados relativos aos diferentes aspectos do desenvol-


vimento ocidental, antes de nos interrogarmos sobre a articulação desses dife-
rentes fatores.

A pressão demográfica

Como seria de esperar, é difícil oferecer dados demográficos confiáveis para a


Idade Média, pois não existiram na época recenseamentos regulares, nem regis-
tros de nascimentos e de mortes. Os parâmetros são quase inexistentes, com exce-
ção de alguns recenseamentos notáveis, realizados com finalidades administrati-
vas e, sobretudo, fiscais, como o Domesday Book, realizado na Inglaterra em 1086,
pouco depois de sua conquista pelos normandos, e tão extraordinário aos olhos de
seus contemporâneos que eles lhe deram o nome de Juízo Final. Com base em
estimativas e aproximações, pode-se, entretanto, aceitar as seguintes indicações.

I (11, }érôme Baschet


Entre 0 século XI e o início do século XIV, a população da Inglaterra teria passado
de 1,5 para 3,7 milhões de habitantes; a do domínio italiano, de 5 para lO milhões;
a da França, de 6 para 15 milhões (confirmando o peso já dominante da Gália no
final da Antiguidade). Esses dados são suficientes para indicar uma tendência
clara: em três séculos (de fato, essencialmente entre 1050 e 1250), a população
da Europa Ocidental dobra, ou mesmo triplica em certas regiões. Tal crescimen-
to demográfico jamais havia sido alcançado na Europa desde a revolução neolíti-
ca e a invenção da agricultura, e não será mais observada até a Revolução Indus-
trial. Trata-se, claramente, de um fato maior da história ocidental.
Esse resultado é obtido pela conjunção de uma alta da fecundidade (que
aumenta de quatro filhos por casal para cinco ou seis, beneficiando-se, em par-
ticular, do aumento do recurso às amas-de-leite, o que suprime a interrupção da
fecundidade durante o aleitamento) e de uma regressão das causas de mortalida-
de. Insistir-se-á, quanto a isso, sobre o recuo dos grandes períodos de fome.
Muito freqüentes durante a Alta Idade Média (em média um a cada doze anos),
eles cedem lugar, para tentar escapar a uma mortalidade maciça, inevitável ape-
sar de tudo, à procura de alimentos de substituição (pães fabricados à base de
grãos de uva ou de outras substâncias misturadas a um pouco de farinha, raízes
ou ervas), ao consumo de carnes normalmente julgadas impuras e impróprias à
alimentação (cães, gatos, ratos, serpentes ou carcaças de animais), e também,
como último recurso, ao indizível: a antropofagia, pelo consumo de cadáveres, ou
até pela morte de seu próximo, um fenômeno que as fontes dificilmente evocam,
mas que é regularmente assinalado durante a Alta Idade Média (Pierre Bonnassie).
Ao longo do período seguinte, as grandes fomes ainda ocorrem (especialmente
em 1005-06- última data para a qual uma fonte, no caso Raul Glaber, mencio-
na o canibalismo para sobrevivência- e, depois, em 1195-97 e 1224-26), mas
sua freqüência diminui claramente, a ponto de permitir uma longa pausa de um
século e meio sem que a fome se faça sentir de maneira generalizada (ela conti-
nua, entretanto, a manifestar-se de maneira local, em virtude de fenômenos cli-
máticos pontuais, ou sob a forma de uma penúria mais breve, que os alimentos
de substituição permitem superar). Disso decorre uma alta muito sensível da
expectativa de vida média das populações ocidentais. Mesmo se a aplicação
dessa noção às épocas antigas não é desprovida de dificuldade, a comparação é
significativa: enquanto ela não ultrapassava vinte anos no século II, apogeu de
Roma antiga, ela salta para 35 anos por volta de 1300. A "tenebrosa" Idade Média
realiza quase o dobro que as glórias do classicismo: onde está a barbárie e onde
está a civilização?

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL /!J/


Os progressos agrícolas

É impossível preservar (ou quase) da fome uma população reduplicada sem uma
forte alta da produção agrícola. O desmatamento e a ampliação das superfícies
cultivadas (geralmente denominadas "essarts··. ou seja, clareiras) são o primeiro
meio desse desenvolvimento agrícola. Por volta do ano mil, a Europa do Norte
é ainda uma zona selvagem de vastas florestas pontuadas por encraves humani-
zados; no mundo atlântico, as áridas terras arbustivas dominam, do mesmo
modo que, nas regiões mediterrâneas, dominam os terrenos pantanosos, pedre-
gosos ou excessivamente escarpados. Por toda parte, o Ocidente é caracteriza-
do por uma natureza rebelde ou apenas parcialmente domada, por culturas iti-
nerantes e incapazes de ultrapassar rendimentos derrisórios, apesar dos esforços
da Alta Idade Média, e por um povoamento frágil e instável. Três séculos depois,
a paisagem européia é radicalmente diferente: estabelece-se a rede de aldeias,
tal como ela irá subsistir, no essencial, até o século XIX, e a relação quantitativa
entre as zonas incultas ou de matas (o saltus) e o território humanizado (o ager)
mais ou menos inverteu-se. Em um primeiro tempo, as aldeias estendem pro-
gressivamente seu domínio cultivado (sobretudo no século XI), depois, novos
estabelecimentos, aldeãos ou monásticos, multiplicam-se no coração das zonas
anteriormente virgens (sobretudo no século XII). Entre estes últimos, os monas-
térios cistercienses, que uma ética de austeridade leva a se implantarem nos
lugares mais retirados, são particularmente atentos à melhoria técnica da agri-
cultura e do artesanato. Enfim, a ampliação das superfícies cultivadas é obtida
pela exploração de terrenos julgados anteriormente pouco propícios (encostas
escarpadas, margens de cursos d'água, zonas pantanosas agora drenadas).
Segundo Marc Bloch, a Europa conhece então "o mais intenso aumento das
superfícies cultivadas desde os tempos pré-históricos", quer dizer, desde a pró-
pria invenção da agricultura.
Mas esse fenômeno não teria sido suficiente para nutrir uma Europa mais
numerosa. Era necessário, ainda, obter uma alta dos rendimentos das culturas
cerealíferas, que fornecem a base da alimentação, especialmente pão e min-
gaus. Se se tenta uma estimativa média, que não tem sentido na medida em que
uma das características desse período é a extrema irregularidade dos rendimen-
tos, submetidos a inconstâncias climáticas, são obtidos, apesar de tudo, dados
significativos: passa-se, com efeito, de dois (ou 2,5) grãos colhidos para cada
grão plantado, durante a Alta Idade Média, para quatro ou cinco por um, por
volta de 1200 (e até seis ou oito por um, nos solos mais férteis, como, por exem-
plo, na Picardia). Dentre todos os fatores que se combinam para obter o difícil
aumento dos rendimentos ocidentais, deve-se contar a densidade crescente das

102 }érôme Baschet


semeaduras, permitida especialmente por um melhor uso de fertilizantes, seres
humanos e, sobretudo, animais. Era preciso, ainda, escolher judiciosamente os
cereais mais adaptados às características de cada região: trigos brancos e fru-
mento, mais exigentes e que cansam mais o solo, mas que são mais fáceis de tri-
turar e produzem uma farinha mais fina e de melhor conservação; centeio, de
menor rendimento, mas que é mais seguro e tolera solos mais pobres, embora
seja vítima de parasitas, como o esporão do centeio, cogumelo que provoca as
epidemias do "fogo de santo Antônio", uma doença que aterroriza as populações;
a cevada, que se presta pouco à panificação e que acompanha principalmente
os progressos do pastoreio; a aveia, bom cereal de primavera, menos exigente e
mais produtivo que o frumento, apreciado pelos cavalos e que serve também,
antes do surgimento do malte no século XII, para a fabricação da cerveja, ou da cer-
veja sem malte, bebida bem atestada desde o século VIJJ na Europa do Noroeste;
sem falar da espelta ou de uma gramínea como o milhete, freqüente no Sul.
Mas a solução mais eficaz é a de associar cereais diferentes (o méteil, uma mis-
tura de grãos de trigo e de centeio), o que permite obter equilíbrio entre a busca
de rendimentos superiores, especialmente com o frumento, e a necessidade de
garantir uma produção mínima diante dos riscos climáticos, recorrendo-se a
espécies menos produtivas, mas mais resistentes. Apenas o tempo longo de uma
busca paciente e de uma experiência acumulada podia garantir a obtenção de
tal equilíbrio.
Se os agrônomos antigos já tinham consciência da necessidade de deixar
repousar periodicamente o solo, a Alta Idade Média resolveu esse problema pelo
caráter extensivo e largamente itinerante de seus cultivos. Entretanto, a partir do
século XIL o desenvolvimento da produção e o uso mais intensivo do solo obrigam
a procurar soluções novas. É verdade que ainda se recorre a antigos sistemas,
como um repouso de dez anos ou uma utilização em dois de cada cinco anos. Mas
a opção mais freqüente consiste em cultivar um ano em cada dois anos, em alter-
nância com o pousio, que serve ao apascentamento dos animais. Depois, a partir
do século XII, o rodízio trienal (com uma parte em ,pousio, uma com cereais de
inverno, e uma com cereais de verão), já conhecido anteriormente, tende a gene-
ralizar-se, sobretudo no Sul, mas também no Norte. Mais exigente para os solos e
menos favorável ao pastoreio, esse sistema otimiza a produção cerealífera, já que
permite duas colheitas por ano, equilibrando, assim, os riscos climáticos. No
século XII, ele não supõe ainda uma rotatividade perfeitamente regular, e é somen-
te a partir do século XIII que essa opção leva à definição de zonas de rodízio e a
uma organização coletiva que se baseia no acordo da comunidade aldeã.
Intervém também uma melhor preparação do solo: generalização da prática
das três etapas sucessivas, capinar, revolver os torrões e arar. Mas o essencial é,

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL }03


seguramente, o progresso das técnicas de cultivo, com a passagem do arado roma-
no para a charrua (uma invenção da Alta Idade Média, provavelmente de origem
eslava, mas cuja difusão intervém sobretudo a partir dos séculos X e XI). O primei-
ro, que penetra fraca e dificilmente o solo, espalhando a terra em partes iguais de
cada lado, é adaptado aos solos maleáveis e leves do mundo mediterrâneo, enquan-
to a segunda permite explorar os solos pesados das planícies da Europa do Norte,
obtendo graças à relha (uma lâmina de metal que abre o solo e facilita a penetra-
ção da aiveca) cultivos mais profundos e mais eficazes. Mais ainda do que as rodas
que, por vezes, sustentam o equipamento, a charrua supõe o acoplamento de um
aparador, em madeira ou metal, que despeja a terra de um só lado e longe (figura
27. na p. 256). Assim, em vez de acumular os montículos que elevam a terra dos
dois lados da passagem do arado, o aparador compensa a fenda de cada sulco pela
terra retirada do sulco vizinho e reconstitui, dessa forma, um solo mais plano e uni-
forme, que o destorroamento fragmenta e prepara mais facilmente.
Mas esse progresso só tem verdadeiramente sentido na medida em que ele
se integra em um novo sistema técnico, igualmente caracterizado pela melhoria
da tração animal. Os bois, tradicionalmente utilizados, cedem progressivamen-
te lugar aos cavalos, mais fortes e mais enérgicos, capazes de puxar um apare-
lho mais pesado e de desentalar uma charrua encalacrada em um solo denso.
Para isso, é preciso desenvolver um novo tipo de atrelagem, não mais pelo gar-
rote, mas que, sem dúvida desde o fim do século XI, toma a forma da colhera de
espáduas, rígida e recheada com palha, que faz concentrar o esforço de tração
exatamente onde a potência do animal é maior. Enquanto para as atrelagens
bovinas o desenvolvimento de um jugo frontal constitui uma melhoria importan-
te, a atrelagem em fila dos cavalos mostra-se ainda mais eficaz. Acrescentam-se,
igualmente, entre os séculos IX e XI, a~ferraduras dos animais .. O uso dos cava-
los de cultivo é atestado, pela'rrimeira vez, no século IX, na Noruega, e parece
ter, desde a segunda metade do século XI, larga difusão. O recurso ao cavalo tem
ainda uma outra vantagem,-de início quase involuntária, mas que se revela de
grande influência. Com efeito, fora da época dos cultivos, o cavalo presta gran-
des serviços para o transporte de pessoas e de mercadorias, favorecendo espe-
cialmente a vinda dos camponeses à cidade e a comercialização de seus produ-
tos. O desenvolvimento do cavalo é, então, particularmente importante, não
somente porque, associado à charrua com aparador, ele permite a exploração de
solos pesados, férteis, mas difíceis de trabalhar, mas também em virtude de seus
efeitos sobre as relações entre cidades e campos (Alain Guerreau).
O desenvolvimento das zonas rurais é, portanto, também aquele da criação
de cavalos, de bovinos (para a atrelagem, bem como para a carne e o leite), de
ovinos (para o couro e a lã, assim como para a carne; mas o seu sucesso será

1(!~ ]ér6me Baschet


decisivo especialmente a partir do século XIV, à medida do desenvolvimento da
produção têxtil}, e, enfim, de _porcos, tão fundamentais na alimentação medie-
val e tão bem adaptados ao equilíbrio dos campos, pois são aproveitadas as zonas
incultas e, em particular, as florestas para nutri-los (com glandes). Quanto aos
outros animais, nota-se um contraste entre as zonas meridionais, onde se man-
tém um pastoreio extensivo, com recurso maciço e cada vez mais organizado à
transumância na Itália e na Espanha, e as zonas de forte produção cerealífera,
onde a criação tende a se concentrar seja nas terras reservadas à pastagem, seja
nos pousios (onde ela melhora o solo) e nas zonas de mata. Pode-se estimar que,
ao longo do século XII, o número de cabeças de gado dobra no Ocidente. Mas
atinge-se então, e principalmente a partir de meados do século XIII, um equilí-
brio cada vez mais frágil, pois o aumento das superfícies cultivadas restringe os
espaços necessários à alimentação do gado. A contradição entre cultivos e pas-
toreio é tal que toda modificação da relação entre ager e saltus pode alterar as
proporções das partes vegetal e animal da alimentação humana.
Finalmente, um complemento notável é trazido pelas culturas não cerealí-
feras, lentilhas ou ervilhas semeadas entre os farináceos, ou ainda legumes e
árvores frutíferas. A principal dentre elas é, seguramente, a vinha, importante
tanto pelo aporte nutritivo como pelo valor simbólico (eucarístico) do vinho, que
é tão grande que a cristandade não pode viver sem uvas. É por isso que a vinha,
produto exigente em cuidados e competências, que impõe um comprometimen-
to duradouro do solo e confere às parcelas um caráter específico, é cultivada em
toda a Europa, inclusive na Escandinávia. Quanto aos procedimentos medievais
de vinificação, eles produzem uma bebida muito diferente do vinho atual, por
vezes perfumado com especiarias e sempre fracamente alcoólico, mas que ense-
ja um grande consumo (até dois litros diários por pessoa).

As demais transformações técnicas

Não há nenhuma verdadeira invenção técnica da Idade Média, e, no entanto -


e isso é decisivo - , ocorre então uma difusão das técnicas já conhecidas anterior-
mente, mas que haviam permanecido, na maior parte do tempo, sem utilidade
prática. Na Idade Média, o progresso realiza-se, portanto, menos por acúmulo de
inovações do que pelo estabelecimento, em um contexto transformado, de um
"sistema técnico" novo (Bertrand Gille). A estrutura social teve nisso um papel
determinante, pois, se as técnicas conhecidas na Antiguidade eram pouco utiliza-
das então, foi em parte porque a escravidão permitia dispor de uma abundante
fonte de energia humana, pouco custosa e facilmente utilizável. Era, então, menos

A CIVILIZAÇÃ< FEUDAL {()~


necessário desenvolver o uso da força animal ou mecânica. Em sentido contrário,
o declínio da escravidão torna mais urgente o recurso a energias alternativas e
constitui, então, um fator notável do desenvolvimento técnico medieval. O moi-
nho d"água é, sem dúvida, o melhor símbolo disso. Conhecido desde o século I
antes de Cristo, pois Vitrúvio descreve perfeitamente sua técnica, ele permanece,
no Império Romano, como uma curiosidade intelectual, sem utilidade prática.
A realidade continua sendo a utilização do moinho movido no braço por escravos
(ou, eventualmente, o moinho movido a cavalos). O recurso ao moinho d"água
acompanha de muito perto a curva do declínio da escravidão: nós o vemos atesta-
do no Baixo Império, um pouco mais freqüentemente nos séculos VIII e IX, espe-
cialmente nos grandes domínios, enquanto a difusão se torna realmente significa-
tiva ~ntre meados do s~c~lo X e_o_século XI, a tal ponto que o Domesday Book
indica a existência de, em média, um moinho para cada três aldeias. Depois, o
século XIII é o momento da generalização. Em todos os lugares, utiliza-se a força
hidráulica para moer as farinhas e para prensar os óleos. O moinho d'água é, dora-
vante, parte integrante da paisagem rural ocidental, mas também das cidades
(Toulouse, por exemplo, conta então com cerca de quarenta moinhos).
Igualmente importante é o desenvolvimento de uma metalurgia artesanal.
É uma novidade em relação à Antiguidade romana que, centrada -sobre um
mundo mediterrânico caracterizado pela escassez do ferro e da madeira e pela
debilidade dos cursos de água, fazia apenas um fraco uso produtivo dos metais.
Com o deslocamento do centro de gravidade europeu para o Norte, as potencia-
lidades naturais aumentam e constata-se um claro desenvolvimento da metalur-
gia a partir de meados do século X, sobretudo nos Pireneus, na região alemã e no
Norte da França. As minas de onde é extraído o minério de ferro multiplicam-se,
como também a procura do carvão mineral, destinado a alimentar as forjas. Na
maior parte do tempo, estas são instaladas nas regiões de matas (pois a madeira
continua sendo o combustível principal) e beneficiam-se dos cursos de água
abundantes (cuja força é utilizada para mover os malhos e os foles). Decorre daí
uma rápida multiplicação, sobretudo nas regiões produtivas, das ferramentas em
ferro, machados para o desmatamento, enxadas e foices, peças metálicas para os
arados, ferraduras para os cavalos e também, evidentemente, uma alta da produ-
ção de espadas e armas em geral. O domínio das técnicas metalúrgicas aumenta
continuamente, em particular nas forjas que os monges cistercienses instalam
em seus domínios ao longo do século XII. Considerando a importância cada vez
mais crucial desses produtos, o forjador torna-se, muitas vezes em igualdade com
o padre, o primeiro personagem da aldeia. O moleiro não tem uma posição
menos eminente, mas, sendo homem ligado ao senhor, permanece suspeito aos
olhos dos aldeãos. Mais genericamente, o crescimento dos campos traduz-se em

1 (I! Jérôme Baschet


um desenvolvimento do artesanato rural que, ultrapassando o simples quadro da
produção destinada ao grupo familiar, é uma criação medieval. Além da forja
e do moinho, aparecem nas aldeias dos séculos XI e XII oficinas de trabalho com a
pedra e a madeira, vidrarias, fomos de cerâmica, cervejarias e fornos de pão.
Quanto à indústria têxtil, ela é sobretudo urbana, mas também, em parte, rural,
e as primeiras operações do trabalho com a lã, até a fabricação de fios, são feitas
em geral na aldeia (especialmente graças ao uso da roca, a partir do século XIII),
a menos que os produtos saiam da oficina senhorial ou dos monastérios cister-
cienses, que fizeram disso uma especialidade. O conjunto dessas produções
aldeãs não é destinado unicamente ao consumo interno e é parcialmente vendi-
do no mercado dos burgos próximos. No total, estima-se em cerca de 10% ou
15% a proporção dos artesãos rurais nas aldeias (estando subentendido que a
maior parte continua sendo camponesa ao mesmo tempo).
Finalmente, para terminar esse panorama dos componentes do desenvolvi-
mento rural, acrescentaremos um último fator, no qual certamente os homens não
têm nenhum papel ativo, mesmo se eles aproveitam de seus efeitos benéficos.
A história do clima, que adquiriu grande importância ao longo do último meio
século, pôde demonstrar a existência de variações climáticas significativas ao
longo da Idade Média. Após uma fase fria, que termina na época carolíngia, tem
início um aquecimento entre 900 e 950 que se prolonga até o fim do século XIII.
Essa leve alta da temperatura é suficiente para provocar o recuo das geleiras, um
avanço em altitude da vegetação (favorecendo o pastoreio de montanha) e, na
maior parte das regiões européias, uma elevação dos níveis de água subterrânea,
que aumenta as possibilidades de instalação das aldeias, ainda dependentes de um
acesso à água através de poços. Se a alta provoca um excesso de calor para as cul-
turas mediterrânicas, essa modificação climática cria condições favoráveis para os
cereais e as árvores da Europa do Norte, contribuindo, assim, um pouco mais para
o deslocamento do centro de gravidade europeu. Poder-se-ia, é verdade, duvidar
que o aquecimento climático possa explicar por si só o desenvolvimento rural da
Idade Média Central, mas a coincidência cronológica é tal que se deve ver aí um
importante fator favorável, que acompanha a tendência descrita anteriormente.

Como explicar o desenvolvimento?

É surpreendente constatar, seguindo Alain Guerreau, que um fenômeno tão deci-


sivo como o desenvolvimento europeu dos séculos XI a XIII - e, sobretudo, bas-
tante excepcional, pois a maior parte das sociedades tradicionais constitui siste-
mas em equilíbrio que não procuram o aumento da produção- não recebeu uma

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL j()-


explicação satisfatória, nem mesmo suscetível de obter minimamente unanimida-
de. Um exame historiográfico mostraria facilmente que as concepções mais diver-
sas foram formuladas, conduzindo a uma grande confusão teórica. Durante muito
tempo, foram privilegiados os fatores externos, como o surgimento do mundo
muçulmano, ao qual Henri Pirenne tinha atribuído um papel negativo, como
que por reação, ao passo que Maurice Lombard invertia a perspectiva para evo-
car o apelo do Oriente que, estimulando as trocas, teria sido o estopim do movi-
mento de crescimento ocidental. Hoje em dia, não se encontra mais um funda-
mento suficiente para essas hipóteses e volta-se, de preferência, para causalidades
internas. Para alguns, é o aumento da população que permite produzir mais: o
fator demográfico é, então, considerado a causa principal (Marc Bloch), como
"um pilar incontestável" (Robert Fossier), ou mesmo como o primus motus, "o
motor que põe tudo em marcha" (Roberto S. López). Mas o próprio Marc Bloch
nota que isso é apenas postergar o problema, pois por qual motivo a população
começa a aumentar então? Outros autores conferem o papel principal ao progres-
so técnico: iniciado já no fim da Alta Idade Média, ele permite aumentar a produ-
ção e, então, melhor alimentar uma população em crescimento (Lynn White).
A lógica inverte-se, mas é possível perguntar-se novamente o que dá início a esse
progresso, pois, como foi dito, ele não repousa sobre verdadeiras invenções, mas
sobre a difusão de técnicas conhecidas anteriormente, embora negligenciadas.
A partir de uma base parcialmente comparável, Pierre Bonnassie combina dois
fatores, que interagem durante a Alta Idade Média: a terrível pressão da fome inci-
ta a aumentar a produção a fim de satisfazer as exigências de sobrevivência dos
homens, enquanto o estabelecimento de novas técnicas, lentamente difundidas,
permite realizar esse objetivo explorando solos difíceis; o fenômeno começaria,
desse modo, levando a um recuo da fome e, então, a uma primeira alta da popu-
lação, permitindo, por sua vez, um novo crescimento da produção.
Quanto ao filão historiográfico aberto por Georges Duby, ele acentua uma
causalidade de tipo social. A reorganização feudal confere uma melhor base para
os senhores, doravante desejosos de obter rendimentos crescentes de seus domí-
nios e capazes de submeter as populações a um controle mais estrito. Nos ter-
mos de um vocabulário marxista, que vai de vento em popa na época ( 1969), o
impulso do crescimento rural do Ocidente "deve ser situado, em última análise,
na pressão exercida pelo poder senhorial sobre as forças produtivas" (ele preci-
sa que ''esta pressão, cada vez mais intensa, resultava do desejo que as pessoas
ligadas à Igreja e à guerra compartilhavam de realizar mais plenamente um ideal
de consumo para o serviço de Deus ou para a sua glória pessoal"). Outras cau-
sas de natureza social podem ser combinadas a estas, em particular, como já se
disse, o declínio da escravidão, que incita ao progresso técnico e explica, sem dúvi-

1(!8 }ér6me Baschet


da. a contribuição da aristocracia para a difusão das novas técnicas. Enfim, pode-
se mencionar o papel dos monastérios, cujo ideal ascético é traduzido por uma prá-
tica do esforço de redenção, concebido como uma forma de adoração divina e que
não deixa de dar resultados tangíveis, especialmente no caso dos cistercienses.
Mais genericamente, há nisso uma atitude característica da Igreja cristã, que mis-
tura concepção penitenciai do trabalho e uma atitude nova diante de uma nature-
za em via de dessacralização, da qual já se sublinhou, por vezes excessivamente,
quanto ela predispõe à inovação técnica (Lynn White, Perry Anderson).
Este breve apanhado é suficiente para sugerir que o problema da interpre-
tação do desenvolvimento ocidental dos séculos XI a XIII está longe de ser resol-
vido. Ao menos, pode-se excluir a explicação por uma causa única e, seja qual for
a solução adotada, um fenômeno essencial diz respeito, sem dúvida, aos efeitos
de feedback e de encadeamentos circulares entre os diferentes fatores (notada-
mente, entre aumento demográfico e desenvolvimento da produção). Parece,
então, indispensável adotar o quadro explicativo mais amplo possível. Desse
ponto de vista, as causalidades sociais parecem, de todas que foram evocadas, as
mais pertinentes, pois elas dizem respeito às causas de possibilidade, ao mesmo
tempo materiais e ideológicas, indispensáveis a um tal desenvolvimento produti-
vo, para além dos meios técnicos e humanos necessários para pô-lo em marcha.
É preciso, sem dúvida, ir ainda mais longe, pois falta explicar por que os senho-
res podem repentinamente exercer uma "pressão crescente sobre as forças pro-
dutivas", sem suscitar uma explosão social que anularia seus esforços. A hipóte-
se, então, só pode ser viável se for demonstrado que novas estruturas sociais são
estabelecidas. O que nos remete ao tema já evocado da "mutação feudal".
Finalmente, somos levados a admitir que é impossível compreender o desenvol-
vimento ocidental sem reconstituir a lógica global da sociedade medieval, que é,
definitivamente, a condição fundamental do desenvolvimento, sua causalidade,
não inicial, mas global. É, então, preciso empenhar-se em dar uma visão de con-
junto da sociedade feudal e de sua dinâmica, deixando para as conclusões toda
eventual interpretação do desenvolvimento ocidental.

A FEUDALIDADE E A ORGANIZAÇÃO
DA ARISTOCRACIA

Em uma primeira abordagem, pode-se considerar que a aristocracia, classe


dominante no Ocidente medieval, é caracterizada pela conjunção do comando
dos homens, do poder sobre a terra e da atividade guerreira. Entretanto, os cri-

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL /()9


térios de definição dessa oligarquia dos "melhores" não pararam de variar. É por
isso que Joseph Morse! convida a preferir a noção de aristocracia, que o histo-
riador deve construir pondo a ênfase sobre a dominação social exercida por uma
minoria cujos contornos permanecem por muito tempo bastante abertos e flui-
dos, no lugar da noção de nobreza. É verdade que a caracterização como "nobre"
(nobilis: "conhecido", e depois "bem-nascido") é freqüente, mas é somente no
fim da Idade Média que se pode conferir uma verdadeira pertinência à noção
de nobreza tal como nós a concebemos espontaneamente, quer dizer, como
categoria social fechada e definida por um conjunto de critérios estritos (dentre
os quais o sangue tem um papel primordial). A nobreza, como grupo social e não
como qualidade, é apenas a forma tardia e consolidada da aristocracia medieval.
Enfim, se a noção de aristocracia só tem sentido em função das relações de
dominação que as representações sociais da excelência vêm legitimar, é neces-
sário precisar que a caracterização como "nobre" não tem sentido fora da duali-
dade que a opõe aos não-nobres. Ser nobre é, antes de tudo, uma pretensão a
se dis-tmgHir do comum, por um modo de vida, por atitudes e por sinais de
ostentação que vão da vestimenta aos modos à mesa, mas sobretudo por um
prestígio herdado dos antecendentes. A nobreza é, de início, essa distinção que
estabelece uma separação entre uma minoria que exibe sua superioridade e a
massa dos dominados, confinados a uma existência vulgar e sem brilho.

Nobreza" e 11Cavalaria"
11

A formação da aristocracia medieval é um processo complexo, muito discutido


entre os historiadores. Considera-se, comumente, que a aristocracia, tal como é
observada nos séculos XII e XIII, é o resultado da convergência de dois grupos
sociais distintos. Tratar-se-ia, de um lado, de grandes famílias que remontam,
por vezes, àquela aristocracia romano-germânica cuja fusão já se evocou aqui,
ou, ao menos, aos grandes da época carolíngia, que receberam em troca de sua
fidelidade a honra de governar os condados ou outros principados territoriais
resultantes do Império. Esta aristocracia, que se define pelo prestígio de suas
origens, reais ou principescas, condais ou ducais (a menos que ela se atribua a
ancestrais míticos), perpetua um "modelo real degradado" (Georges Duby), quer
dizer, um conjunto de valores que exprime sua antiga participação na defesa da
ordem pública, mas deformados na medida em que esta se estampa em um pas-
sado cada vez mais longínquo. De outro lado, seria necessário falar dos milites,
que adquirem importância crescente. No início simples guerreiros a serviço dos
castelões, vivendo em sua corte, por volta do ano mil eles ainda parecem assi-

1 II, Jérôme Baschet


miJáveis a agentes militares e não formam um grupo coerente, mas sua ascen-
são parece clara no fim do século XI e durante o século XII, à medida que rece-
bem terras em recompensa de seus serviços. É preciso, no entanto, evitar per-
petuar o mito da ascensão da cavalaria dos milites, como se fosse, desde o início,
um grupo constituído, cujo estatuto foi melhorando para, finalmente, fundir-se
com a nobreza carolíngea. Se é certo que a aristocracia conhece, então, uma
renovação e integra em seu seio novos membros, em geral de estatuto modesto,
a fusão que se opera é bastante relativa, uma vez que continuam importantes as
distâncias, reconhecidas como tais, entre os grandes (magnates), que reivindi-
cam altas atribuições de origem carolíngia, e os simples cavaleiros (milites) do
castelo. Entretanto, a concepção mesma do grupo aristocrático conhece, então,
uma importante redefinição em torno do próprio qualificativo de miles e do fato
de pertencer à cavalaria, à qual se ascende pela celebração de um ritual (o adu-
bamento4) e que se dota de um código de ética cada vez mais estruturado. Num
primeiro momento, não há equivalência entre nobreza e cavalaria, pois numero-
sos não-nobres são designados cavaleiros. Entretanto, pouco a pouco, opera-se
uma fusão entre esses grupos de origens diferentes: mesmo se a unificação
jamais é perfeita, pode-se concluir por uma tendência à assimilação entre
nobreza de antiga linhagem e nova cavalaria (os termos miles e nobilis tendem a
ser sinônimos). A absorção da nobreza pela cavalaria é tal que se torna difícil rei-
vindicar-se nobre sem ser cavaleiro e a designação como miles termina por ser
considerada até mais valorosa do que a antiga terminologia de nobilis ou prin-
ceps. É verdade que o adubamento não faz o nobre (existem cavaleiros-servos na
Alemanha), mas a uniformização das duas noções tende a reservar o acesso à
cavalaria aos filhos dos nobres (como indicam, por exemplo, as constituições de
Melfi, de 1231, ou de Aragão, de 1235). É também pelo adubamento que se
realiza, sobretudo no século XIII, a integração à nobreza de homens novos, geral-
mente servidores que vivem na corte de um nobre. Sem tal abertura, de resto
cuidadosamente limitada, um grupo social tão reduzido como a aristocracia teria
rapidamente sido levado ao declínio, ou até mesmo à extinção.
A aristocracia feudal repousa, portanto, sobre um duplo fundamento dis-
cursivo. Ela é definida, de início, pelo nascimento: é-se nobre porque de origem
nobre, quer dizer, na medida em que se pode fazer prevalecer o prestígio social

4. Embora freqüente na literatura especializada sobre a Idade Média, esta tradução literal do
termo francês adoubement não é correntemente dicionarizada (ver, no entanto, as observações do
Dicionário Houaiss da língua portuguesa em s.v. adub- ). Na antiga língua dos francos, a raiz dubban
significava "bater", "golpear"; o verbo adouber ("investir como cavaleiro", ''armar um guerreiro")
remete, assim, à cerimônia em que o aspirante era golpeado ritualmente e admitido no seio da
cavalaria. (N. T.)

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL f/f


de seus ascendentes. Trata-se de uma inserção herdada. Mas à medida que a
cavalaria ganha importância e identifica-se com a nobreza, trata-se, ao mesmo
tempo, de uma inserção adquirida, que supõe a assimilação de valores do grupo
e de competências físicas que permitem receber o adubamento. Contrariamen-
te ao que se pensou durante muito tempo, o adubamento é uma criação tardia,
sem dúvida do fim do século XI: neste momento, ele é uma simples entrega das
armas, que basta para "fazer o cavaleiro'', e é apenas na segunda metade do
século XII que ganha uma forma ritualizada mais consistente. Geralmente, inter-
vém no final da adolescência, uma vez realizada a formação ideológica e militar
necessária à reprodução do grupo, e enseja várias festividades, mais muitas
vezes durante o Pentecostes. O jovem cavaleiro recebe então sua espada e suas
armas das mãos de um nobre tão eminente quanto possível, que realiza em
seguida o gesto da colação, golpe violento sobre a nuca ou o ombro com a mão
ou com a lateral da espada, rito de passagem simbolizando, sem dúvida, de uma
maneira bem apta a impressionar os espíritos, os ideais do grupo ao qual se inte-
gra o jovem promovido. A Igreja teve um papel importante no estabelecimento
do ritual de adubamento, que poderia muito bem derivar da liturgia de bênção da
atribuição das armas aos reis e aos príncipes, atestada durante a Alta Idade Média,
depois transformada e aplicada a personagens de nível mais baixo, como os prote-
tores das igrejas e os castelões do século XI. De todo modo, a cristianização do adu-
bamento, em sua forma bem elaborada a partir de meados do século XII, é paten-
te. O ritual é com freqüência precedido por uma noite de orações na igreja, e a
espada, antes de ser cingida na cintura do novo cavaleiro, é previamente deposi-
tada sobre o altar e benzida. Para além do próprio ritual, pode-se, então, insistir
sobre o papel fundamental da Igreja na estruturação da ideologia cavaleiresca.

As formas do poder aristocrático

Falta acrescentar às anotações precedentes um elemento essencial para carac-


terizar a aristocracia recentemente reconfigurada em torno do termo miles e dos
códigos da cavalaria: o castelo. Joseph Morse] enfatizou que a "castelanização
do Ocidente", entre os séculos X e XII, é o fundamento dessa reorganização.
A partir de então, os castelos são os pontos de ancoragem em torno dos quais se
define o poder aristocrático e "o termo miles serve, agora, para categorizar o con-
junto daqueles que realizam direta e exclusivamente a dominação social de um
espaço organizado pelos castelos". O castelo é o coração a um só tempo_prático
e_ simbólico_ do_poder da aristocracia, de sua dominação sobre as terras e os
homens. A evolução das formas de construção dos castelos é, conseqüentemen-

I I é ]érôme Baschet
te. um sinal importante das transformações desse grupo (ilustração 8). A partir
do fim do século X, e sobretudo ao longo do século XI, multiplicam-se às cente-
nas, e mesmo aos milhares, os castelos em madeira construídos sobre mottes,
montículos artificiais de terra que podem atingir dez ou quinze metros de altu-
ra e protegidos por um fosso. Depois, sobretudo a partir do século XII, embora
se continue a construir "montes castrenses", o castelo é cada vez com mais fre-
qüência edificado em pedra e, pouco a pouco, deixa de ser uma simples torre
ou donjon, à medida que se acrescentam a ela diversas extensões, muralhas con-
cêntricas e defesas cada vez mais sofisticadas. Se a função defensiva é eviden-
te, e até mesmo exibida, o castelo é, a princípio, um lugar de habitação para o
senhor, seus próximos e seus soldados. Geralmente associado a edifícios agríco-
las, em particular à área para criação de animais, ele é também um centro de
exploração rural e artesanal, bem como um centro de poder, pois é nele que os
camponeses pagam os seus tributos e também é nele que se reúne o tribunal
senhorial. Muitas vezes, ele se apropria do terreno mais elevado (e, quando não
é este o caso, a motte ou a arquitetura põem em evidência a mesma procura de
verticalidade). O castelo domina, assim, o território, como o senhor domina seus
habitantes. Símbolo de pedra ou de madeira, ele manifesta a hegemonia da aris-
tocracia, sua posição dominante e separada no seio da sociedade.
A principal atividade da aristocracia, e a mais digna a seus olhos, é segura-
mente a guerra. Na maior parte do tempo, ela consiste em razias breves e pouco
mortíferas. Nos séculos XI a XIII, as guerras entre reis ou entre príncipes são
raras, e as grandes batalhas, como a de Bouvines, em 1214, são excepcionais, a
tal ponto que Georges Duby pôde escrever que a batalha era o contrário da
guerra cavaleiresca. É preciso evitar, entretanto, reproduzir a visão tradicional
da guerra privada entre senhores, violência sem limites característica das desor-
dens da idade feudal. Com efeito, a guerra corresponde, então, a uma lógica
própria, que predomina particularmente ao longo dos séculos X e XI: a dafaide 5
(Dominique Barthélemy). Seu fundamento é o código de honra, que impõe um
dever de vingança, não apenas dos crimes de sangue, mas também dos ataques
contra os bens. Disso resulta uma violência entre senhores, inegável mas regu-
lamentada e codificada: o sistema da faide associa episódios guerreiros limita-
dos, cuja finalidade é menos matar do que capturar inimigos a serem trocados
por um resgate, e uma prudente procura de compromissos negociados. A guerra

5. Palavra do francês arcaico (correspondente ao alemão Fehde): indica um procedimento formali-


zado e ritualizado com finalidade de vingar uma injustiça. Em geral, é evocado por grupos restri-
tos, como as famílias e os clãs, e pode nomear as lutas fratricidas no interior das dinastias reais,
como a ".faide royale"que opõe os filhos de Clotário, no século VI. (N. T.)

A CIVILIZAÇAO FEUDAL //3


8 (a e b). Evolução da construção dos castelos: Sa. donjon de Houdan (primeira metade do século XII);
Sb. fortaleza de Loarre (Aragão).
Sa. Ao longo do século XI, e sobretudo do século XII, ao lado dos "montes castrenses", construções em madeira
estabelecidas no cume de uma elevação artificial do terreno, desenvolvem-se edifícios em pedra. Na maior parte
das vezes, trata-se, como em Houdan, de simples donjons, torres fortes com muros maciços, que concentram
as funções de habitação e defesa.
. . ~"' -'~~~_. ..·· . .
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Sb. A fortaleza de Loarre, com suas três muralhas sucessivas, é muito mais elaborada. Base da Reconquista levada
a cabo pelos aragoneses, a construção inicial remonta a meados do século XI. Os reis de Aragão residem nela com
freqüência e aí fundam uma comunidade de cônegos regulares. É para ela que eles edificam, no início do século
XII, sobre a segunda muralha, uma notável igreja românica, cuja cúpula é recoberta com um teto octogonal.
9. A conquista da Inglaterra pelo duque Guilherme na batalha de Hastings, último terço do século XI (bordado dito da rainha Matilda. catedral de Bayeux).
Obra excepcional pela sua extensão i setenta Jlletros de largura) e por seu vigoroso sentido da narrativa, o bordado de Bayeux (que não é uma tapeçariaj relata os céle-
bre\ sucessos militares do duque Guilherme, assim como os eventos que o conduziram à sua vitória decisiva contra o rei Haroldo. em Hastings (1066). Esta obra de pro·
paganda, que justifica a ascensão de Guilherme ao trono da Inglaterra assimilando Haroldo a um petjuro cuja coroação era ilegítima. deve. sem dúvida, parte decisiva
de ma e<mc·t·pção ao c".ero, em particular ;iO bispo Eucies de Bayeux. Muitas questões permant'ccm abertas: Eudes é o comanditário do bordado? Foi ele realizado para
a immguração de sua nova catedral em 1077? Foi exposto temporariamente em outras igrejas do reino conquistado por Guilherme? Pelo menos. sabe-se que, no século
XVI. "'" '"" P<tl"ndidf> !'!a catedr~! dumntc n~ f.:; tas a suas mais preciosas relíquias, as mesmas que Haroldo havia utilizado- se!Zuncio o testemunho do bordado- para
pre> raro juramento nau respeitado que fez dele um perjuro inapto à dignidade real. Foi, então, no tesouro da catedral de Bayeux que foram reencontrados o objeto sagra-
do qt!e determina o poder legltlmo e a imagem que celebra a sua força. O detalhe reproduzido aqui põe em evidência o eia cios cavalos e mostra o armamento dos guer-
reiros do século XI: cota de malha, escudo oblongo, capacete protegendo o nariz e longa lança de arremesso. Dinan, sitiada pelos milites de Guilherme, permite que se
te11ho uma idéia de apar~ncia de um "monte castrense": uma elevação do terreno, uma construção ctmtral e uma paliçada em madeira para protegê-la, que os sitiantes
se apressam em incendiar.
do tipo _li lide é menos o sinal de um caos social incontroiável do que uma práti-
ca que permite a reprodução do sistema senhorial, mobilizando as solidarieda-
des no seio da ;1ristocracia, regulando in fine as lutas entre senhores concorren-
tes. mas também manifestando quanto os camponeses. principais vitimas das
pilhagens. têm necessidade da proteção de seus senhores. Em todo caso. a guer-
ra nobre é um compromisso a cavalo, sendo o combate a pé reputado indigno
1ilustra\·üo 9). O equipamento requerido aperfeiçoa-se no coração da Idade
:\lédia: além do indispensável Ca\alo, que deve ser adestrado para o combate. e
a espada de lâmina dupla. que a literatura indica ser o objeto de uma verdadei-
ra veneração. a loriga (ou cota de malha em ferro) ~ubstitui a veste de couro
grosso reforçada por placas metálicas da época carolíngia. Do mesmo modo, o
simples capacete é substituído pelo elmo, que cohre a nuca. faces e nariz. Se
acrescentarmos o escudo e. a partir do fim do século \1. a lan\·a longa, mantida
horimntalmente no momento da carga rápida destinada a derrubar da sela o
adversürio (o que se tornou mais difícil pela invenção dos estribos). são cerca de
quinze quilos de armamento que o cct\·aleiro lc\·a com ele. Além disso, o conjun-
to é bastante custoso. pois estima-se que, no início do século XII, é preciso dis-
por de cerca de I :;o hectares de bens fundiários para poder assumir os gastos
m·cessürios ao exercício da ath idade de cavaleiro. Enfim. embora eles sejam
desprezados pelos ca\'aleiros. os infartes, originados das milícias urbanas ou de
homens livres do campo. t(·m um papel cada \'e; n1<1is importante, como com-
plemento e ajuda aos ct\·aleiros. até que. nos finais da Idade Média. arqueiros
e besteiros determinem com freqü(·ncia o resultaco dos combates.
Atestados a partir do início do século XII. os torneios são uma outra manei-
ra de exibir o estatuto dominante da aristocracia e de regular as relações em seu
seio. Demonstrações de força destinadas a impressionar, são batalhas ritualit.a-
das. que reúnem várias equipes, provenientes de regiões diferente~; e que. em
geral. se opõem de modo a reproduzir as tensões entre as facções aristonüticas.
Os cavaleiros armados com suas longas lan~·as fazem cargas coletiVas. levanc'o a
combates muitas \'etcs confusos. cujo objetivo é derrubar das selas os adversá-
rios e. se possível, fazer prisioneiros com os quais serão obtidos resgates. Prova
de proeza que põe l·m igualdade modestos ca\'aleiros e grandes príncipes. o tor-
neio é. para os c:speciahstas mais reputados. procurados e pagos pelas melhores
equipes. a ocasião de rl'ceber grandes somas de dinhe,ro: por vezes. ele permi-
te que os filhos cadetes, desprovidos de herança. como o ct:·lebre Guilherme. o
iVhu echa:, sejam recompensados com um casamento com uma herdeira de aáa
posição e adquiram. assim. uma posição social invejável. i\ las tais (míticas. que
permitem~~ aristocracia redistribuir parcialmente as posi~·ões em seu seio, espe-
cialmente através do acesso ao casamento. suscitam vivas condenações por

A Cllllltl<. " ' lllllll //7


parte da Igreja a partir de 1130. Esta enfatiza que os torneios fazem correr em
vão o sangue dos cristãos e desviam os cavaleiros dos combates justos que legi-
timam sua missão. A caça, outra atividade emblemática da nobreza, é igualmen-
te condenada pela Igreja. Sua função econômica é pouco importante, pois se
sabe, agora, que -longe da imagem deformada dada pelas descrições literárias
- menos de 5% da alimentação carnívora das mesas nobres é fornecida pelas
presas de caça. Retornaremos a isso na segunda parte (capítulo 11), mas já se
pode indicar que a caça preenche, sobretudo, uma função social (Anita e Alain
Guerreau). Ela manifesta, aos olhos de todos, o prestígio do nobre cavalgando,
dominando a natureza e o território. Livre para passar com sua tropa e sua mati-
lha de cachorros por todos os lugares que lhe convierem, ele afirma seu poder
sobre o conjunto do espaço senhorial, e particularmente sobre as matas e os
espaços incultos, objetos de grandes litígios com os aldeãos. Assim, todas as ati-
vidades da nobreza têm, ao mesmo tempo, uma finalidade material e uma sig-
nificação simbólica, visando manifestar prestígio e hegemonia social.

Ética cavaleiresca e amor cortês

À medida que se a profunda a unificação do_.grupo _cavaleiresco, consolida-se


também seu código de valores.:... Estes são notadamente exaltados desde a primei-
ra metade do século XII por canções de gesta (como a Canção de Rolando), nar-
rativas épicas que jograis e trovadores _cantavam nas cortes senhoriais e princi-
pescas e, um pouco mais tarde, pelos romances de cavalaria (primeiro gênero
literário não cantado da Idade Média, mas destinado a ser recitado durante as
festividades do castelo). Os primeiros desses valores são a "proeza", quer dizer, a
força física, a coragem e a habilidade no combate e, de maneira mais específica
à sociedade feudal, a honra e a fidelidade, sem esquecer um sólido menosprezo
pelos humildes, muitas vezes comparados à montaria que o nobre cavalga e con-
duz segundo sua vontade. Sua ética repousa também sobre a prodigalidade. Ao
contrário da moral burguesa da acumulação, um nobre ·distingue-se pela sua
capacidade de despender e distribuir. Ele se entrega facilmente à rapina pelas
costas de seus vizinhos, de modo que os não-nobres o descrevem como um
rapace ávido e cheio de cobiça. No entanto, se ele comete o butim, é para poder
se vestir com mais ornamentos, para oferecer festas mais suntuosas, para man-
ter uma corte mais numerosa que aumente seu prestígio, para manifestar sua
generosidade em relação aos pobres (sem se esquecer da necessidade de fazer
face às despesas militares indispensáveis para manter sua posição). Assim,
mesmo se os gestos suscitados pela prodigalidade aristocrática podem, por

1 I 8 jérôme Baschet
vezes, parecer com caridade, ela é diferente, pois esta é virtude cristã por exce-
lência, que deve ser realizada, de preferência, na humildade de um laço frater-
nal. Para o nobre, trata-se de distribuir e de consumir com excesso e ostentação,
para melhor afirmar sua superioridade e seu poder sobre os beneficiários de sua
prodigalidade.
Mas esses valores essenciais não demoram a se revelar insuficientes, pois,
muito cedo, a Igreja exerce um papel importante na estruturação da cavalaria
e sua unificação em torno de um mesmo ideal. Isso supõe distinguir entre os
maus cavaleiros, realizadores de pilhagens, tirânicos e ímpios, e aqueles que
põem sua força e sua coragem a serviço de causas justas, tais como a prote-
ção da Igreja e a defesa dos humildes. A Igreja esforça-se, assim, para trans-
mitir aos cavaleiros os antigos valores reais de justiça e de paz (Jean Flori).
Durante as assembléias da paz de Deus, no fim do século X e, depois, ao longo
dos séculos seguintes, a Igreja tenta obter dos guerreiros que eles não ata-
quem aqueles, clérigos ou simples laicos, que não podem se defender e que
respeitem certas regras, tais como o direito de asilo nas igrejas e a suspensão
dos combates durante os domingos e as principais festas. Pouco a pouco, a
Igreja insiste também sobre os inconvenientes das guerras entre cristãos e
esforça-se para desviar o ardor combativo da nobreza contra os infiéis muçul-
manos. É isso que ela obtém com sucesso com a Reconquista e, mais ainda,
com a cruzada que, segundo a pregação de Urbano II em Clermont, em 1095,
confere um objetivo verdadeiramente digno à cavalaria: "Que aqueles que se
batem contra seus irmãos e seus parentes lutem, agora, de bom direito, con-
tra os bárbaros". Esse ideal, que tende a fazer do cavaleiro um servidor de
Deus e, da cavalaria, uma milícia de Cristo (militia Christi), não é, por certo,
inteiramente novo (a militia já era, na época carolíngia, o nome que unificava
os servidores de um Império ordenado por Deus), mas ele é, então, reformu-
lado de maneira a constituir o eixo que estrutura especificamente o grupo dos
milites. Assim, a aristocracia beneficia-se de um importante acréscimo de legi-
timidade, pois, ao mesmo tempo que os clérigos se esforçam para canalizar e
enquadrar a atividade e a ideologia cavaleirescas, eles afirmam que o ofício
das armas foi desejado por Deus e se mostra necessário, desde que seja posto
a serviço de fins justos.
É verdade que existem inumeráveis conflitos e rivalidades entre clérigos
e cavaleiros, e os valores de uns e outros estão longe de convergir em todos os
pontos, como o lembra principalmente a oposição clerical à caça e aos tor-
neios, ocupações favoritas dos nobres. No centro das divergências, pode-se
identificar, de uma parte, a violência guerreira, que a Igreja condena quando
é ameaçada por ela e aprova quando serve a seus interesses, e, de outra parte,

A CIVILIZAÇÃO fEUDAL J /9
a sexualidade e as práticas matrimoniais, objeto de concepções conflitantes
(segunda parte, capítulo v). E, no entanto, mesmo nesses terrenos, uma vez pas-
sada a primeira metade do século XII, as tensões tornam-se menos agudas e as
aproximações acentuam-se. Um exemplo, que as análises de Anita Guerreau-
Jalabert tornaram particularmente esclarecedor, é o amor cortês (expressão
do século XIX, à qual preferirei a terminologia medieval de fin'amors, quer
dizer, o amor mais fino, mais puro). Antes de ser retomado nos romances do
Norte da França a partir da segunda metade do século XII, esse tema é, de iní-
cio, uma criação da poesia lírica meridional, gênero cantado nas cortes aristocrá-
ticas e ilustrado, em primeiro lugar, pela produção de Guilherme IX, duque de
Aquitânia (1071-1127).
O fin'amors é a afirmação de uma arte refinada do amor, que contribui para
marcar a superioridade dos nobres e distingui-los dos dominados, cujo conheci-
mento do amor só pode ser vulgar ou obsceno (como mostram os fabliau.x, estes
"contos para rir'' que entram no repertório dos trovadores a partir da segunda meta-
de do século XII, ridicularizam clérigos, vilãos e burgueses, e permitem que o públi-
co nobre se divirta com a baixeza deles). Mas o fin'amors contém também, ao
menos em suas primeiras expressões meridionais, uma dimensão subversiva. Com
efeito, ele põe em cena um amor adúltero, como no caso exemplar de Lancelote
do Lago, apaixonado por Guinevere, esposa do rei Artur. Além disso, ele inverte a
norma social de submissão da mulher em benefício de uma exaltação desta, que
assume, em face do seu pretendente, a posição de um senhor feudal em relação a
seu vassalo: através da relação amorosa, é a fidelidade vassálica que é, então, exal-
tada ou posta à prova. Se a relação sexual não está excluída, só pode ser atingida ao
fim de uma longa série de provas, das quais a dama fixa o ritmo e as modalidades
(a mais elevada consiste em partilhar o mesmo leito, nus, evitando todo contato fí-
sico). O amor cortês é, então, uma ascese do desejo, mantido irrealizado tanto
tempo quanto possível para, com isso, crescer em intensidade e ser sublimado pelos
feitos cavaleirescos realizados em nome da amada. O fin'amors enseja, assim, um
culto do desejo, um amor do amor: convencido de que a paixão cessa quando atin-
ge o seu objetivo, faz de sua impossibilidade a fonte do mais alto júbilo (joy).
Fazendo isso, o fin'amors abre a via para uma aproximação com a ideologia
clerical, pois estabelece, como signo da distinção nobiliária, a sublimação do
desejo sexual e a busca de um amor elevado, o mais distante possível da vulga-
ridade de um amor carnal consumido sem regras. O fin'amors chega mesmo a
tender a uma mística do amor, que salienta o decalque do sagrado cristão: ele
não está longe da Senhora adorada na Notre-Dame e seu corpo é por vezes
venerado como o de uma relíquia sagrada. E se Tristão e /solda ilustra as canse-

1.!!. Jérôme Baschet


qüências destrutivas do amor (o que explica, sem dúvida, o seu fraco sucesso
junto às cortes aristocráticas), os romances de Chrétien de Troyes, um clérigo
que escreve entre 1160 e 1185 para as cortes de Champagne e de Flandres,
empenham-se, ao contrário, em superar as contradições criadas pelas temáticas
de corte, em particular pondo em cena a compatibilidade entre o fin'amors e a
relação matrimonial. Esse objetivo apaziguador é claramente atingido em seu
Percival ou o conto do Graal (c. 1180), no qual, como em todos os romances pos-
teriores do abundante ciclo do Graal, a temática amorosa passa ao segundo plano,
enquanto se impõe como um ideal supremo da cavalaria a busca de um objeto que
não é outro senão o cálice que teria recolhido o sangue de Jesus crucificado.
Certamente, a literatura de corte não é o reflexo da realidade aristocrática.
Trata-se, sobretudo, de manifestar seus ideais e de tentar resolver, imaginariamen-
te, as tensões que a atravessam. Sublinhou-se com freqüência, na seqüência de
Erich Kohler, que a literatura de corte exprimia as aspirações da pequena nobre-
za dos milites, especialmente dos jovens que permaneceram sem terras, desejosos
de se integrar plenamente à aristocracia e perseguidos pelo sonho de uma aliança
com uma mulher de alta posição. É também possível que, nas formas clássicas
que as grandes casas nobres contribuem a lhe dar, essa literatura permita confor-
tar um ideal comum a toda nobreza, atenuando suas hierarquias internas. Sobre-
tudo, a aproximação progressiva com o pensamento clerical é considerável. É ver-
dade que os esforços das maiores cortes, como aquelas dos reis plantagenetas,
para pôr em um plano de igualdade cavalaria e "clergie" (o clero) estão longe de
corresponder à realidade. Também, nem todos os nobres se comportam como per-
feitos membros da militia Christi ou como réplicas de heróis de romance, preocu-
pados com uma superação de si mesmos e engajados em uma incessante busca
espiritual. Entretanto, no fim das contas, ainda resta algo desse ensinamento: no
fim do século XII, e mais tarde, o nobre que deseja manter sua posição, ou mesmo
se distinguir aos olhos de seus pares, não pode mais se contentar em ser um bravo
(corajoso e forte), ele deve ser também sábio, o que, além da obrigação vassálica
de ser homemde bom conselho, supõe incorporar uma ética marcada pelo ensi-
namento clerical e reconhecer que a dominação social não pode se legitimar ape-
nas pela força, mas impõe também a preocupação com a justiça e o respeito dos
valores espirituais promovidos pela Igreja ('Todo vosso sangue deveis verter para
a saúde da Igreja defender"', diz um tratado de cavalaria por volta de 1250).
Enquanto nos séculos X e XI a aristocracia se opunha à Igreja em quase todos os
seus valores, pontos de acordo cada vez mais comuns passam a ser estabelecidos,
a ponto de a primeira, finalmente, reconhecer o primado dos valores cristãos e
aceitar submeter-se a eles, ao menos idealmente. Sem dúvida, isso ocorre porque

A CIVILIZAÇÁO FEUDAL f_!/


a Igreja, através de sua contribuição à elaboração dos rituais e da ética cavaleires-
ca, forneceu à aristocracia a mais sólida justificativa de sua dominação social e um
dos melhores cimentos de sua coesão interna.

As relações feudo-vassálicas e o ritual de homenagem

A vassalidade é habitualmente considerada um dos traços mais característicos


da sociedade medieval. Entretanto, ao contrário das visões clássicas, que faziam
das "instituições feudais" um sistema homogêneo e bem estruturado, tende-se,
hoje, a restringir a importância do feudo e do laço vassálico, que dizem respei-
to a uma proporção ínfima da população (I% ou 2%1 Essa mudança de pers-
pectiva é operada com vigor por Robert Fossier quando qualifica as relações vas-
sálicas de "epifenômeno negligenciável", o que, apesar de tudo, não deveria
fazer esquecer que elas estruturam, ao menos parcialmente, as relações no seio
da classe dominante. Entretanto, mesmo entre os dominantes, nem todas as
concessões de bens ganham a forma do feudo e a vassalidade é apenas um dos
tipos de laço- ao lado dos pactos de amizade, juramentos de fidelidade, asso-
ciações entre senhores laicos e monastérios etc. - que asseguram as solidarie-
dades e a distribuição do poder no seio da aristocracia (Joseph Morsel).
Não se pode, entretanto, subtrair toda a importância da relação vassálica,
que formaliza entre os dominantes (ela pode incluir também os prelados) um
laço de homem para homem, entre um senhor e seu vassalo. Trata-se de uma
relação ao mesmo tempo muito próxima e hierárquica, que se colore de um valor
quase familiar, como indicam os termos empregados: o senior é o mais velho, o
pai; o vassus é o jovem, que também pode ser qualificado de homQ.. ou fidelis. Em
sua forma clássica, essa relação implica uma troca dissimétrica. O vassalo é o
homem de seu senhor e se engaja a servi-lo conforme as obrigações do costume
feudal. Este varia fortemente segundo as épocas e as regiões, mas três aspectos
tornam-se essenciais ao serviço vassálico: a obrigação de se incorporar às opera-
ções militares empreendidas pelo senhor (por um tempo de início flutuante, mas
que tende a ser reduzido a quarenta dias por ano, ao que se acrescenta um perío-
do de guarda do castelo senhorial), a _2juda financeira (em diversas circunstân-
cias que o senhor considera poder decidir segundo seu alvitre, mas, em seguida,
limitada, sobretudo na França e na Inglaterra, aos casos de adubamento e de
casamento dos filhos, de pagamento de um resgate, de partida para as cruzadas
ou peregrinação), e, finalmente, o dever de bem aconselhar o senhor. Entre essas
três obrigações importantes, a primeira é particularmente determinante, pois é a
base principal sobre a qual se formam os exércitos feudais. Em troca, o senhor

I ~ ~ }érôme Baschet
deve a seu vassalo proteção e respeito; ele lhe demonstra sua solicitude (e, então,
também a sua superioridade) por meio de presentes e assume geralmente a edu-
cação dos filhos do vassalo, que deixam a casa paterna durante a adolescência
aara viver junto ao senhor. Enfim, e sobretudo, o senhor provê o seu vassalo de
um feudo que lhe permite manter sua posição e preencher suas obrigações. Mais
do que um bem ou uma coisa, o feudo deve ser considerado a concessão de um
poder senhorial, que pode dizer respeito a uma terra e seus habitantes, mas pode
também limitar-se a um direito particular, por exemplo, o de exercer a justiça, de
recolher uma taxa ou cobrar um pedágio.
A.relação vassálica é instituída por um ritual, a homenagem, que, em sua
forma clássica, parece característica, sobretudo, das regiões ao norte do
Loire. Pode-se decompô-la em três partes principais. A homenagem propria-
mente dita consiste em um engajamento verbal do vassalo, que se declara o
homem do senhor, seguido do gesto da immixtio manuum, pelo qual o vassa-
lo, ajoelhado, põe suas mãos juntas entre as do senhor (este gesto, que expri-
me claramente uma relação hierárquica na qual a proteção corresponde à
fidelidade, é tão importante na sociedade feudal que transforma as modali-
dades da prece cristã, que não se realiza mais à moda antiga com os braços
separados e as mãos elevadas para o céu, mas com as mãos juntas, sugerindo,
assim, uma relação de tipo feudal entre o cristão, o fiel, e Deus, o Senhor).
A segunda parte do ritual, denominada fidelidade, consiste em um juramen-
to, prestado sobre a Bíblia, e um beijo entre vassalo e senhor, por vezes na
mão, mas com mais freqüência na boca (osculum), segundo um uso corrente
na Idade Média. Finalmente, ocorre a investidura do feudo, expressa ritual-
mente pela entrega de um objeto simbólico, tal como um punhado de terra,
um bastão, um galho ou um ramo de palha. No geral, esse ritual forma um
conjunto simbólico elaborado, do qual participam gestos, palavras e objetos,
com a finalidade de construir uma relação ao mesmo tempo hierárquica e
igualitária. Como bem demonstrou Jacques Le Goff, o ritual de vassalagem
instaura, de maneira visível e concreta, uma "hierarquia entre iguais", estru-
turando, assim, as diferenças internas de um~que~ seu conjunto,
se quer acima do homem comum.
As origens da relação vassálica remontam à época carolíngia. Desde meados
do século VIII observa-se a prática de um juramento de fidelidade pelo qual o rei
ou o imperador esforça-se para garantir a fidelidade dos grandes, aos quais confia
as "honras" que são os encargos públicos, especialmente o governo das províncias.
Depois, na época de Carlos Magno e de Luís, o Piedoso, o engajamento vassáli-
co, que é uma forma de "recomendação" pela qual se é posto sob a proteção de
um personagem eminente, reconhecendo deveres em relação a ele, generaliza-se

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL /.!3


como forma de subordinação, vinculando todos os homens livres a personagens
elevados e, indiretamente, ao imperador. É verdade que, hoje, não se acredita
mais que exista um quadro clássico da feudalidade, cujo berço seria o Norte da
França, em comparação com o qual as demais variantes seriam apenas formas
"degradadas". É preciso, então, reconhecer extrema diversidade regional, que se
pode evocar apenas brevemente aqui ("não existe uma feudalidade, mas feudali-
dades", sublinha Robert Fossier). Assim, no sul do Loire, o engajamento do vassa-
lo pode ser selado por um simples juramento de fidelidade, enquanto em certas
regiões mediterrânicas a relação vassálica, mais igualitária e menos impositiva,
estabelece-se em geral com base em um contrato escrito, como é o caso na
Catalunha, desde o século XI. Inversamente, no domínio germânico, a hierarquia
interna da nobreza é tão pronunciada que o beijo, considerado por demais iguali-
tário, é eliminado do ritual de vassalidade; além disso, em oposição à tendência a
tomar indissociável a homenagem e a investidura, mantém-se por muito tempo
um prazo de cerca de um ano entre o estabelecimento de um laço vassálico e a
cessão do feudo, enquanto a afirmação dos "ministeriales'', servidores de origem às
vezes servil, que se integram ao grupo dos milites e vivem na dependência direta
dos castelões, contribui para manter grande distância entre a cavalaria e a nobre-
za, retardando a sua unificação. Por fim, para tomar um último exemplo, o domí-
nio normando (inclusive Inglaterra), no qual os historiadores vêem habitualmen-
te o protótipo da fidelidade vassálica, beneficia-se da vigorosa reorganização
realizada por Guilherme, o Conquistador; ali, a obrigação militar dos vassalos per-
manece particularmente forte, se bem que seja habitualmente substituída, a par-
tir do século XII, por uma contribuição em dinheiro (a écuagé), que permite aos
grandes senhores e ao rei recrutarem mercenários, considerados mais seguros, ou
mesmo pagarem aos vassalos para garantir seu engajamento para além da duração
costumeira das campanhas.
Apesar das grandes diferenças regionais, é possível assinalar algumas evo-
luções de conjunto, a começar pela difusão da feudalização. Nos séculos X e
XI existem ainda muitos alódios, terras livres possuídas diretamente pelos seus
proprietários. Estes são beneficiados com privilégios, mas são igualmente
obrigados ao serviço militar e à participação nos tribunais do condado.
Depois, ao longo dos séculos XI e XII, as terras do Ocidente deixam, pouco a
pouco, de ser alodiais: enquanto os mais modestos se integram em um senho-
rio, os alódios mais importantes são geralmente cedidos a um poderoso antes
de ser retomado como feudo. No século XIII os alódios subsistem apenas de

6. O écu indica, a princípio, o escudo medieval e a utilização de sua imagem nos brasões; por
extensão, também a moeda portando tais armas. (N. T.)

1.2-J jér6me Baschet


modo marginal, o que significa, de um lado, que o conjunto das terras é dora-
vante integrado ao sistema senhorial e, por outro, mas de maneira menos
generalizada, que uma parte importante dentre elas é possuída como feudo. É ver-
dade que é preciso levar em conta as terras da Igreja, das quais uma propor-
ção notável escapa às relações feudo-vassálicas, e das regiões, especialmente
as meridionais, em que elas têm peso apenas relativo. No entanto, permane-
ce 0 fato de que uma parte significativa do controle exercido sobre as terras
(e sobre os homens) passa pelo estabelecimento dos laços vassálicos, o que
lhes confere inegável importância.
Ao mesmo tempo, os laços feudo-vassálicos são vítimas de seu sucesso e
sua eficácia tende a diminuir à medida que seu uso é mais freqüente e que
a rede de dependências vassálicas faz-se mais densa. Uma das principais difi-
culdades aparece quando se torna corrente um nobre prestar homenagem a
vários senhores diferentes. Essa pluralidade de homenagens, bem atestada
desde o século XI, é vantajosa para os vassalos, mas atrapalha a boa realização
do serviço vassálico e pode mesmo pôr em causa o respeito à fidelidade jurada
a partir do momento em que se tenha de servir dois senhores rivais entre si. Por
um momento, acredita-se ter sido encontrada a solução instituindo a homena-
gem-lígia, homenagem preferencial que convém respeitar prioritariamente; mas
a solução tem curta duração, pois, por sua vez, a homenagem-lígia também se
multiplica. Por fim, a evolução mais perigosa reside no fato de que o controle
do senhor sobre os feudos que outorga atenua-se incessantemente. Se se trata-
va, no início, de uma concessão feita pessoalmente ao vassalo e destinada a ser
recuperada quando de sua morte, o feudo é cada vez mais transmitido em
herança pelo vassalo aos seus descendentes, como expressa o adágio "o [vassa-
lo] morto investe o vivo". Por vezes, o senhor exige a homenagem de todos os
filhos do defunto (parage) ou se reserva o direito de escolher o filho que julga
mais capaz, mas geralmente, a partir de meados do século XII, apenas o primo-
gênito presta homenagem, e seus irmãos tornam-se, eventualmente, seus pró-
prios vassalos (jrérage). Seja como for, doravante, o feudo parece pertencer ao
patrimônio familiar do vassalo, que também se permite, às vezes, vendê-lo. Só
resta ao senhor esforçar-se para manter ao longo das gerações o reconhecimen-
to das obrigações vassálicas. É isso que manifestam a reiteração da homenagem
no momento de cada transmissão hereditária do feudo e o estabelecimento de
um direito de sucessão (direito de substituição, por vezes bastante elevado e
fixado arbitrariamente pelo senhor, mas geralmente estabelecido em um ano de
rendimento do feudo). Finalmente, o senhor conserva o direito de punir as fal-
tas dos vassalos e até mesmo a possibilidade de confiscar o feudo (direito de
arresto) em caso de falta grave. Mas, na prática, a confiscação é cada vez mais

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL /l'i


difícil de realizar e limitada aos casos de traição flagrante ou de agressão direta
contra o senhor. Em geral, a transmissão hereditária dos feudos modifica o equi-
líbrio da relação entre senhores e vassalos, distende o laço pessoal estabelecido
entre eles, restringe as exigências senhoriais e contribui para uma crescente
autonomização dos vassalos.

Disseminação e ancoragem espacial do poder.

Mais do que detalhar as regras do direito feudal, é importante captar as formas


de organização social e as dinâmicas de transformação, no interior das quais as
relações feudo-vassálicas puderam ter certo papel. Sem ser propriamente sua
causa, a difusão destas acompanhou um processo de disseminação da autorida-
de, inicialmente imperial ou real (quer dizer, do poder de comando e de justiça,
que chamamos de ban). Como vimos, desde a segunda metade do século IX os
laços de fidelidade que sustentavam a aparente unidade imperial revelam-se cada
vez mais frágeis e as entidades territoriais confiadas à alta aristocracia local afir-
mam sua crescente autonomia. O século X é, assim, o tempo dos "principados",
grandes regiões constituídas em condados ou ducados, cujo senhor confunde
aquilo que concerne ao seu próprio poder, militar e fundiário, com a autoridade
pública, que no passado era conferida pelo imperador ou pelo rei. A patrimoniali-
zação da função do conde, que assume a defesa militar e exerce a justiça, leva à
formação de comandos autônomos e transmitidos hereditariamente. O mesmo
processo se repete depois, em um nível inferior. Condes e duques utilizam a vas-
salidade como um dos meios que lhes permite, além dos laços de parentesco ou
de amizade, garantir a fidelidade dos nobres locais e dispor de um círculo con-
fiável e de um contingente militar tão considerável quanto possível. Depois, a
coesão dos principados acaba, por sua vez, cedendo, no fim do século X ou no
decorrer do século XI, o que só é acentuado pela evolução no sentido da trans-
missão hereditária dos feudos. Em ritmos diferentes e de acordo com modalida-
des variáveis segundo as regiões - aqui, desmoronamento precoce e total da
autoridade condal, como no Mâconnais estudado por Georges Duby; lá, presen-
ça mais duradoura desta, fazendo apenas concessões limitadas e revogáveis,
como no condado de Flandres; sem falar de uma infinidade de situações inter-
mediárias - , uma parte importante do poder de comando inscreve-se, doravan-
te, no quadro dos vice-condados e das "castelanias", que, por sua vez, encampam
o exercício da justiça e o direito de construir castelos, antes prerrogativas da auto-
ridade real e, depois, da autoridade condal. Por fim, senhorios de extensão ainda
mais reduzida tornam-se, no fim do século XI e durante o século XII, um dos qua-

1 ~r }érôme Baschet
dros elementares do poder sobre os homens (uma dominação que, num tal con-
texto. hesitaríamos em qualificar, conforme o nosso vocabulário, de "política").
A norma da lógica feudal consiste, assim, em ~ma disseminação da autoridade
até os níveis mais locais da organização social. E preciso, ainda, notar que, se ela
faz dos reis personagens dotados de uma capacidade muito fraca de comando, a
generalização do quadro senhorial amplia-se ainda mais no fim do século XII e no
século XIII, enquanto já se esboça uma retomada da autoridade real.
Para a historiografia do século XIX, estreitamente associada ao projeto da bur-
guesia, engajada na construção do Estado nacional e que concebia sua gesta como
uma luta contra o Antigo Regime feudal, tal fragmentação senhorial aparecia
como o cúmulo do horror e o complemento lógico do obscurantismo medieval.
Considerava-se, então, um dever insistir sobre as desordens e as destruições pro-
vocadas pelas guerras privadas entre senhores, a fim de melhor revelar a "evidên-
cia": a anarquia feudal e, em contraste, a ordem trazida por um Estado nacional
centralizado, fundado sobre um direito unificado (do qual o direito romano é,
então, constituído como referência mítica). É difícil não ver quanto essa visão de-
preciativa da Idade Média está ligada à ideologia do século XIX e aos interesses ime-
diatos daqueles que a promoveram. Era, então, mais do que tempo de os historia-
dores submeterem essa herança à crítica; e é revelador, a este propósito, que se
tenha podido, recentemente, intitular uma obra consagrada à França dos séculos
XI e XII A ordem senhorial. Como indica o seu autor, é preciso para isso "imaginar
que, antes do Estado moderno, certo equilíbrio social e político possa ter existido
graças aos poderes locais e de feição privada" (Dominique Barthélemy). Mesmo
se ela é limitada e regulamentada pelos códigos dafaide, não se poderia negar a
violência dessa ordem, nem a rude exploração que ela impõe à maioria dos produ-
tores. A expressão não poderia, então, ser entendida como um julgamento de
valor, mas somente como um julgamento de fato: a ordem reina no mundo feudal,
e não sem eficácia, sem o que não poderíamos explicar o impressionante desen-
volvimento do mundo rural que se opera ao mesmo tempo que a dispersão feudal
da autoridade. De fato, esta deve ser analisada menos em termos de fragmenta-
ção (percepção negativa a partir de um ideal estatal) que de maneira positiva,
como processo de "ancoragem espacial do poder" Ooseph Morse!). A concentra-
ção de poderes de origens diferentes nas mãos de senhores próximos e exigentes
poderia mesmo ser considerada um dos elementos decisivos do crescimento oci-
dental. Ao menos, deve-se admitir que essa forma de organização era suficiente-
mente adaptada às possibilidades materiais de produção e à lógica social global
para que essa combinação dê lugar a uma potência dinâmica que, de resto, não se
limita apenas à quantificação econômica, mas abrange o conjunto dos fenômenos
que concorrem para a afirmação da civilização feudal.

A CIVILIZAÇAO FEUDAL {_!-;


A CONSTITUIÇÃO DO SENHORIO
E A RELAÇÃO DE DOMINIUM

Uma vez que a vassalidade, restrita aos grupos dominantes, concerne apenas a
uma ínfima proporção dos homens (e menos ainda das mulheres), ela não pode-
ria constituir a principal relação social no seio do sistema feudal. Esta deve
engajar o essencial da população e definir o quadro fundamental no qual se rea-
lizam a produção e a reprodução social: assim, só pode tratar-se da relação entre
os senhores e os produtores que dependem deles (notar-se-á, aqui, que o termo
"senhor" designa aquele que controla um senhorio, na relação com seus depen-
dentes, e não tem o mesmo sentido que na relação feudo-vassálica; de resto,
aquele que tem um senhorio recebeu-o, geralmente, como vassalo de um
senhor mais poderoso). Serão seguidas, aqui, as análises de Alain Guerreau, que
dá a esta relação entre senhores e dependentes o nome de dominium (ou domi-
nação feudal), pois ela engaja- segundo os termos da época-, de um lado,
um dominus (mestre, senhor) e, de outro, produtores postos em posição de depen-
dência. Estes últimos são qualificados de homines propii (homens do senhor) ou
de "vilãos" (villani, quer dizer, os habitantes do lugar, originalmente a villa).
O termo "vilão", que de início não é pejorativo, é sem dúvida o mais adequado,
em primeiro lugar porque a noção moderna de "camponês" não tem equivalen-
te nas concepções medievais. Nelas, os homens rurais não eram definidos por
suas atividades (o trabalho da terra), mas pelo termo "vilão", que abrange todos
os aldeãos, seja qual for sua atividade (aí incluídos os artesãos), e que indica
essencialmente residência local. Ele também não designa um estatuto jurídico
(livre/não-livre), questão que parece relativamente secundária. A base funda-
mental dessa relação social é antes de ordem espacial: ela designa todos os habi-
tantes de um senhorio, os vilãos (ou, se quisermos, aldeãos) que sofrem a domi-
nação do senhor do lugar. Além disso, assim como o laço vassálico, essa relação
enuncia-se nos mesmos termos que a relação do fiel com Deus (homoldominus).
Perante o senhor feudal, os vilãos estão, então, na mesma posição que os
homens diante de Deus, de modo que as duas relações se reforçam mutuamen-
te, como em um jogo de espelhos. Antes de precisar a natureza da relação de
dominium, é indispensável definir o quadro espacial no qual ela se estabelece e
que, pela razão já dita, é aspecto decisivo.

1 ~ 8 ]érôme Baschet
0 nascimento da aldeia e o encelulamento dos homens

Seja resultante da vinculação dos escravos aos mansos, seja relacionado aos
detentores dos alódios, o habitat rural do fim da Alta Idade Média é disperso e
instável. Ele consiste de construções leves, cuja armação é em madeira (e que
deixam aos arqueólogos apenas traços superficiais ou inexistentes). Fora alguns
edifícios mais importantes, que exercem o papel de pontos fixos, estas frágeis
moradias são periodicamente abandonadas. Se lembrarmos, aliás, que a agricul-
tura de então é extensiva e parcialmente itinerante, podemos concluir que,
ainda por volta de 900, as populações rurais do Ocidente estão imperfeitamen-
te fixadas. Depois, em momentos diferentes segundo as regiões (no essencial,
na segunda metade do século X e no decorrer do século XI, mas por vezes mais
tardiamente, como no Império), opera-se um amplo remanejamento da zona
rural. Ao lado da transformação das terras em terrenos cultiváveis e da conquis-
ta de novos solos, deve-se mencionar a reestruturação dos patrimônios eclesiás-
ticos que, além do crescimento das doações piedosas de que eles se beneficiam
então, enseja uma intensa prática de cessões, vendas ou troca, o que permite
aos domínios da Igreja uma maior coesão espacial. Isso contribui -junto com
outros fenômenos que afetam as terras laicas, como o declínio dos alódios, obri-
gados a se pôr na dependência de um poderoso - para uma fixação mais clara
do loteamento, bem como para uma estabilização da rede de caminhos. Mas o
essencial é, sem dúvida, o reagrupamento dos homens (congregatio hominum)
e a fixação do habitat rural, cada vez mais feito em pedra. O resultado é "o nas-
cimento da aldeia no Ocidente", desde que se admita, seguindo Robert Fossier,
que uma aldeia supõe "um agrupamento compacto de casas fixas, mas também
[... ] uma organização coerente do território em torno e, sobretudo, o apareci-
mento de uma tomada de consciência comunitária, sem a qual não há 'aldeãos',
mas apenas 'habitantes"'. Por volta de 900, não existem aldeias conforme essa
definição; por volta de 11 00, o essencial dos campos ocidentais é organizado
dessa maneira. Entre os dois momentos, organizou-se o essencial da rede de
habitações rurais que (com o acréscimo das novas aldeias implantadas ao longo
dos séculos XII e XIII, nas zonas de colonização, e levando em conta o abandono
de certos lugares) vai perdurar até o século XIX. Evidentemente, se não é uma
revolução, como tentou dizer Robert Fossier, é, ao menos, uma mutação consi-
derável, pois ela desenha a fisionomia dos campos por cerca de oito séculos.
Longe de ser homogêneo, esse processo se realiza segundo cronologias e
modalidades muito variadas conforme as regiões (e no interior de cada uma
delas). Particularmente precoce na Itália central, onde começa antes de meados
do século X por iniciativa dos senhores, ele enseja o reagrupamento do habitat

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL /..:'9


em aldeias elevadas, cerradamente postadas em torno do castelo senhorial e cer-
cadas de uma muralha fortificada. Isso não quer dizer que essa opção tenha
uma causa essencialmente militar (ela é, antes, social e ideológica), nem que a
força seja seu único vetor (ela é muitas vezes acompanhada de contratos relati-
vamente favoráveis aos produtores e de certas vantagens jurídicas). Permanece
o fato de que ela mostra o exemplo de um processo fortemente marcado pela
vontade dos dominantes e, por vezes, também pela intervenção da Igreja. Essas
aldeias fortificadas ganham o nome de castrum, de onde a expressão "incastella-
mento", aplicada por Pierre Toubert a esta variante- a mais dirigida e a mais
autoritária - do reagrupamento dos homens, que, no entanto, não é tão geral
como se acreditou a princípio: se o castrum é seu elemento principal, o reagru-
pamento do habitat não se faz sempre em torno de um castelo e pode tomar a
forma de aldeias abertas, enquanto a maior parte dos castelos não é construída
com a finalidade imediata de reagrupar a população e só adquire essa função em
um segundo momento. Em outras regiões do Sul, mediterrâneas e pirenaicas,
as aldeias castrenses coexistem com as "aldeias eclesiais", igualmente fortifica-
das, mas centradas em um edifício de culto; ao mesmo tempo, convém subli-
nhar que, se o reagrupamento do habitat é precoce, a estruturação dos limites
da comunidade e, sobretudo, da territorialização das zonas incultas pode ser
retardada até o século XIV. Na Europa do Norte, o reagrupamento dos homens
começa mais tarde e pode-se notar nele um importante papel das comunidades
aldeãs em formação. Ao menos, o reagrupamento das casas camponesas, com
freqüência no interior de uma muralha de madeira, parece ser aí menos força-
do e mais voluntário, e a associação das habitações com um castelo pode se pro-
duzir em um segundo tempo, depois de o reagrupamento já estar realizado.
Finalmente, nas zonas de colonização, especialmente na Península Ibérica e no
Leste da Alemanha, trata-se tanto de reagrupar um habitat antigo como de dar,
desde o início, a forma de aldeias densas a uma implantação nova.
Em suas formas mais variadas, esse fenômeno pode ser definido como um
processo de "encelulamento", expressão forjada por Robert Fossier para desig-
nar o reagrupamento dos homens no interior de entidades sociais localizadas,
definidas por um centro - a aldeia, o castelo - , por uma delimitação estrutu-
rada pela rede de lotes e de caminhos e pelos limites que definem sua extensão.
Retornaremos, na segunda parte (capítulo 11), ao encelulamento e, em parti-
cular, ao papel que a igreja e o cemitério têm nele. Mas o resultado é, desde
logo, claro: dali em diante, os homens serão "encelulados", a um só tempo rea-
grupados em aldeias mais estáveis e fixados no interior dessas unidades de base
que se chamam senhorios. O encelulamento supõe, então, a formação de uma
rede de senhorios que cobre, mais ou menos, todo o território ocidental. "Por

13f. Jérôme Baschet


volta de li 00, todos os homens estão presos nas malhas de um tecido de senho-
rios, dos quais cada célula é o quadro normal de vida" (Robert Fossier). O ence-
Iulamento associa, portanto, vários processos: o nascimento da aldeia, a genera-
lização do senhorio, mas também o enquadramento paroquial (sobre o qual
retornaremos na segunda parte, capítulo II). Embora sejam paralelos e contri-
buam para o mesmo resultado, esses três processos não são estritamente sobre-
postos: as aldeias, o senhorio e a paróquia raramente coincidem. Enquanto no
século XI um senhorio reagrupa geralmente várias aldeias, a partir do século XII
e. sobretudo do XIII, constata-se, ao contrário, que vários senhores exercem sua
dominação no interior de uma mesma aldeia. Além dos co-senhorios, que asso-
ciam uma instituição clerical e um laico, ou dos consorzi italianos, que asso-
ciam, por vezes, uma dezena de senhores para um mesmo senhorio, acontece
cada vez com mais freqüência que, no interior da aldeia, terras e direitos espe-
cíficos remetam a senhores distintos (a tal ponto que um mesmo aldeão pode
depender de vários senhores para bens diferentes). O "encelulamento" não sig-
nifica a formação de uma rede uniforme de células homogêneas e unívocas, e
toda a dificuldade consiste, então, em delimitar como se articulam os diferen-
tes fenômenos mencionados. Pode-se, assim, ressaltar que o senhorio, que, de
resto, é menos uma entidade territorial do que um poder específico, se revela bas-
tante móvel, diferentemente da rigidez do quadro paroquial (assim, a estabilidade
dos lugares de culto contrasta com as freqüentes mudanças dos sítios castrenses).
No mais, em certas regiões, como a França do Oeste, o habitat permanece par-
cialmente disperso, sem que isso contradiga a lógica do encelulamento. É, então,
que a igreja e o quadro paroquial exercem um papel maior na formação de "al-
deias dispersas". A expressão sugere, de forma judiciosa, que o que faz a aldeia é
menos o reagrupamento de suas casas do que a coesão da comunidade dos aldeãos
(Daniel Pichot). No geral, os fenômenos que contribuem para o encelulamento
podem se combinar de maneiras diversas, ora mais firmes, ora mais tênues; mas
o fato de que eles se sobrepõem e se imbricam, sem coincidirem completamen-
te, parece fazer parte da dinâmica de conjunto do processo.
Pode-se, então, delimitar melhor as implicações do debate sobre o "ano mil"?
Para os defensores da mutação, o que se passa no século que circunda esta data é
nada menos que uma fase aguda do processo de encelulamento dos homens e de
formação do quadro senhorial. O que se nomeia mutação, ou mesmo revolução, é
um momento particularmente intenso de ancoragem da dominação senhorial, em
relação à multiplicação dos castelos e dos montes castrenses. Alguns procuraram
identificar as reações suscitadas por essas transformações, principalmente a "paz
de Deus", proclamação lançada pelos bispos e pelas assembléias conciliares a par-
tir dos anos 975-90, que condena os "maus costumes" dos senhores laicos, exor-

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 131


tando-os a respeitarem os clérigos e os pobres, chamando à restauração da ordem
pública e da paz. Assim, eles se apropriam de uma preocupação abandonada pelo
poder real e atraem o apoio popular. Entretanto, Dominique Barthélemy fez obser-
var que este movimento não é nem de origem popular nem anti-senhorial, pois a
Igreja denuncia a violência da aristocracia laica na medida em que ela própria é sua
vítima e, de fato, defende seus próprios senhorios em face de uma pressão aristo-
crática que ameaça incomodá-la. Em sua luta contra a nobreza, por vezes, ela faz
apelo ao povo, afetado pelas mesmas causas, o que não é isento de perigo e arris-
ca a transbordar seus próprios objetivos. Os movimentos da paz de Deus fazem,
então, intervir grupos populares, mas seu objetivo fundamental é a manutenção de
uma ordem senhorial que a Igreja pretende dominar. Os críticos das teses muta-
cionistas também enfatizaram que, nesse movimento, não se opera nenhuma
mudança de classe dominante. Seja antes, seja depois do ano mil, são sempre a
aristocracia e a Igreja que dominam a sociedade, mas ambas conhecem uma vigo-
rosa reorganização. Como dissemos, a partir de então a dominação aristocrática
ancora-se localmente e torna-se mais eficaz graças à remodelagem espacial dos
campos. Mas a questão cronológica levantada pelo debate sobre o "ano mil" per-
manece insolúvel: é evidente que o encelulamento não poderia ser reduzido aos
decênios próximos do ano mil; suas raízes remontam ao início do século IX e ele se
completa lentamente, até pleno século XII. A progressividade dos fenômenos e suas
discrepâncias, assim como a ausência de uma cronologia uniforme na escala do
Ocidente, impõem que se prevaleça essa dinâmica plurissecular? Ou, então, seria
possível identificar, por volta de 980-1060, uma aceleração do processo (castelani-
zação, senhoralização, edificação de igrejas, sem falar das transformações da ordem
eclesial, de que se falará no capítulo seguinte) em um número significativo de
regiões? A polêmica sobre o ano mil esgota-se e essas duas opções são, talvez,
menos incompatíveis do que parece. Enfim, o essencial consiste em reconhecer a
natureza dos processos em andamento: quer se recorra à noção de encelulamento,
quer sejam preferidos outros termos, a reconfiguração socioespacial- da qual o
castelo e o senhorio, a igreja e a paróquia, a aldeia e a comunidade são as facetas
diversamente combináveis -leva à formação de um sistema dotado de uma coe-
rência nova e que é o quadro de um desenvolvimento de amplitude inédita.

A relação de dominium

Hoje não se crê mais, como queria a historiografia tradicional, que todos os pro-
dutores dependentes do senhor feudal fossem servos. Uma das contribuições
mais marcantes da obra de Georges Duby é a de ter mostrado que a servidão

13.: Jér6me Baschet


não era a forma central de exploração do feudalismo. É verdade que esta exis-
tiu e pode ser considerada o resultado da evolução da Alta Idade Média, quan-
do, paralelamente ao eclipse da escravidão, a distinção entre livres e não-livres
perde sua clareza e não consegue mais dar conta das situações intermediárias
que se multiplicam. A servidão é, finalmente, a forma estabilizada de uma posi-
ção intermediária entre a escravidão e a liberdade: o servo não é mais uma pro-
priedade do senhor, assimilado ao gado, mas sua liberdade é marcada por impor-
tantes limitações. Se a escravidão é um cativeiro definitivo, o ritual de servidão,
utilizado em certas regiões e durante o qual o servo traz uma corda no pescoço,
parece indicar um cativeiro de que se é imperfeitamente resgatado pelo paga-
mento de uma obrigação. Três marcas principais exprimem a limitação da liber-
dade do servo: o chevage (ou captação), tributo pelo qual alguém se resgata do
cativeiro; a mainmorte, que significa a incapacidade à propriedade plena de um
patrimônio e que impõe o confisco pelo senhor de parte da herança transmiti-
da pelo servo; e, enfim, o formariage, taxa paga quando do casamento e que
manifesta a limitação da liberdade matrimonial. Finalmente, seria necessário
acrescentar a importância das corvéias, trabalho devido ao senhor, que não são
exclusivas dos servos, mas que, no caso destes, são deixadas em maior grau ao
arbítrio do senhor. Este quadro deveria se tornar muito mais complicado para
dar conta da diversidade regional e, sobretudo, pelo fato de que essas obrigações
pesam, por vezes, sobre camponeses livres. De resto, não é certo que a situação
material dos servos seja sempre mais dramática que a de seus vizinhos livres e
pode-se perguntar se o peso específico de sua condição não se refira sobretudo
à mancha humilhante de uma servidão que dá lugar a múltiplas situações de
exclusão ou de discriminação. Mas o essencial é sublinhar que a servidão é ape-
nas uma forma de exploração dentre outras. Se, por vezes, seguindo o caminho
aberto por Georges Duby, tenha-se talvez minimizado excessivamente o seu
papel, pode-se, sem dúvida, concluir atualmente que a escravidão medieval não
é nem dominante nem marginal. "Ela não é o coração do sistema, mas uma de
suas chaves", manuseada dentre outras formas de exploração, ora abandonada,
ora retomada (Dominique Barthélemy). Se a tendência do conjunto é sobretu-
do de declínio, a servidão pode, segundo as regiões e as épocas, abranger a
metade dos aldeãos ou desaparecer completamente. Pode-se admitir que, na
média, ela afete entre l 0% e 20% da população rural.
É preciso, então, analisar a forma mais geral da dominação feudal, aquela
que se instaura entre um senhor e os vilãos que, de maneira completa ou par-
cial, dependem dele. A relação de dominium estabelecida entre eles manifesta-
se por um feixe emaranhado e extraordinariamente variado de obrigações, às
quais é comum atribuir dupla origem. A primeira seria fundiária e se assentaria

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL /3i


sobre a posse eminente do solo, reivindicada pelo senhor. A segunda derivaria
da disseminação do poder político e da captação, no nível senhorial, das prerro-
gativas de autoridade pública, ou seja, essencialmente, o imperativo de defesa
militar, a manutenção da paz e o exercício da justiça. Como este poder de
comando, de origem real, é nomeado ban, quis-se forjar a expressão "senhorio
banal" (por oposição a um simples senhorio fundiário), para expressar o fato de
que a descida do poder, antes dos soberanos ou condes, para as mãos dos senho-
res constitui uma peça-chave do novo poderio destes últimos (Georges Duby).
Mas essa expressão, sem fundamento nos textos medievais, tem o inconvenien-
te de sugerir que se poderia distinguir claramente, no poder do senhor, o que se
refere ao ban e o que é de origem fundiária. Ora, o que caracteriza o senhorio
é, justamente, a fusão desses dois elementos em uma dominação única, o que
torna sem pertinência o cuidado de diferenciá-los.
O senhor explora diretamente uma parte do solo claramente mais reduzida
do que no sistema dominial da Alta Idade Média. Se esta parte pode atingir um
terço ou a metade das terras cultivadas, muita vezes ela se restringe a menos de
um décimo e observa-se uma forte tendência dos senhores a se afastarem da ati-
vidade produtiva em si. A maior parte do ager é, então, constituída pelas tenên-
cias (tenures: conjunto de parcelas dispersas em zonas distintas do território) que
os aldeãos cultivam individual e livremente, e que transmitem aos seus descen-
dentes. Mas eles têm, em relação ao senhor, um conjunto de obrigações e devem
lhe pagar múltiplas taxas, algumas sendo "quérables" (cobradas no próprio local
de produção)/ outras (que implicam reconhecimento do laço de dependência)
devendo ser levadas ao castelo, especialmente uma ou duas vezes por ano, em
uma cerimônia ritualizada, incluindo gestos de submissão. Esse ritual é a forma
visível da relação de dominação feudal, e como ele põe o senhor (ou seu repre-
sentante) na presença de seus dependentes, parece justificar a observação de
Marx sublinhando que a sociedade medieval é fundada sobre uma "dependência
pessoal", de modo que "todas as relações sociais aparecem como relações entre
pessoas". Pode-se evocar, aqui, a ampla panóplia de taxas e deveres impostos
pelos senhores, mas convém sublinhar que sua própria combinação, segundo
proporções e modalidades específicas, e, ainda mais, seu caráter extraordinaria-
mente variável (inclusive entre lugares vizinhos, entre senhores de uma mesma
aldeia ou entre dependentes de um mesmo senhor), são características principais
do dominium. Uma dessas taxas, tardiamente generalizada, chama-se "taille", 8 e

7. Os "droits quérables" são aqueles direitos que o senhor deve ir buscar (quérir) junto aos seus
dependentes. (N. T.)
8. Talha. (N. T.)

13 ~ ]ér6me Baschet
é possível, se se faz questão disso, atribuir-lhe uma origem no ban, pois preten-
de-se que ela seja cobrada em contrapartida da proteção dos aldeãos. O senhor
gostaria de estipulá-la como bem entendesse, mas os camponeses exigem dele o
"abornement", 9 quer dizer, a fixação nos limites estabelecidos pelo costume. E pre-
ciso pagar também ao censo, que parece ser o arrendamento da terra e que con-
siste em uma parte da colheita, entregue in natura (o champart}. A porcentagem
varia fortemente segundo os tipos de solo e as regiões, entre um terço e um quin-
to. sem excluir taxas particularmente baixas ou outras excepcionalmente eleva-
das. Mas existem também outras opções, como na Itália, onde o contrato live-
lar, IO arrendamento de trinta anos renovável, é particularmente vantajoso para os
camponeses, ou como a meação, repartição pela metade quando o senhor forne-
ce sementes e parelhas de animais, solução esta que conhecerá grande sucesso
no fim da Idade Média. A evolução mais importante do censo é sua progressiva
transformação, a partir do início do século XII, em uma renda paga em dinheiro,
o que não ocorre sem dificuldade, na medida em que o senhor se esforça por
impor sua própria estimativa da contrapartida monetária, que raramente é do
gosto dos produtores. É preciso acrescentar, ainda, o direito de hospedagem
(abrigar e sustentar o senhor e sua corte um certo número de dias por ano}, os
"presentes" e ajudas excepcionais que o senhor exige em certas ocasiões, tais
como o pagamento de um resgate, uma peregrinação, um casamento ou uma
celebração familiar, mas que tendem a ser convertidos em uma soma paga anual-
mente. Outros elementos concorrem, igualmente, para a dominação dos senho-
res, que mandam construir o moinho da aldeia, mas também o lagar e o forno, e,
sobretudo a partir do século XII, obrigam os habitantes a utilizá-los, em troca de
pesadas taxas, como por exemplo um décimo dos grãos trazidos (é por isso que o
moleiro é visto como um homem do senhor e deixado à margem da comunidade
aldeã). Enfim, os direitos de mutação ("lods et ventes""}, e, para os senhores que
podem cobrá-los, os pedágios sobre as mercadorias, na passagem de rios ou em
certos pontos dos caminhos, ou, ainda, no momento da venda no mercado local,
oferecem um rendimento razoável e, por vezes, considerável.
Um outro aspecto fundamental do poder do senhor é a possibilidade de
exercer ele próprio a justiça, que se torna ainda mais efetiva visto que a justiça
do conde se enfraquece e se revela incapaz de realizar sua tarefa. Também nisso

9. No francês antigo, abornement, do verbo aborner, significa estabelecer as fronteiras ou marcos


(bornes) de um campo; esses termos caíram em desuso, em benefício de bornage e borner. Daí o
sentido, no contexto, de restringir-se a um limite. (N. T.)
10. Do italiano livello: foro, censo. (N. T.)
11. Lods: termo do direito feudal que indica o consentimento do senhor para uma transação, impli-
cando o respectivo pagamento. (N. T.)

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL /3'i


as cronologias regionais são muito variáveis: em certos casos, como no Mâconnais
e na Catalunha, os "plaids" (tribunais) dos condes deixam de se reunir desde
I 030-40 e os tribunais senhoriais tomam rapidamente seu lugar; etn outros luga-
res, especialmente mais ao norte, a justiça condal resiste até o fim do século XI,
ou mesmo até meados do século XII, e é somente então que as cortes castelãs
estendem suas prerrogativas. Além disso, nem todos os senhores têm as mesmas
competências judiciárias. A justiça senhorial aprecia os delitos mais diversos
cometidos na aldeia, mas ela é, antes de tudo, uma justiça fundiária: ela impõe
multa ou o confisco de um bem para numerosas infrações, por exemplo, em
caso de não pagamento de uma taxa, de alteração de um limite de terras ou de
contravenção das regras de utilização das matas. Além do caráter bastante ren-
tável dessa justiça, vê-se a grande vantagem que o senhor pode tirar dela, sendo
ele em geral juiz e parte, para reforçar sua dominação sobre os dependentes.
Nisso, e em muitas outras ocasiões, ele é secundado por seus servidores, os
agentes que supervisionam as colheitas·e as corvéias, inspecionam as florestas
e aplicam as decisões de justiça, e ainda mais pelo preboste, responsável pela
manutenção do senhorio, recompensado por uma parcela e por uma parte das
taxas e das multas judiciárias, o que o incita a ser particularmente exigente e
explica que ele atraia sobre sua pessoa grande parte da animosidade aldeã. O se-
nhor e seu preboste devem, em princípio, respeitar os costumes locais, mas,
pelo menos até o século XIII, eles julgam sem que se tenha direito de apelar.
Enfim, certos senhores encampam uma competência total, que pode chegar até
a condenação à morte (direito de alta justiça). Mesmo se ela é pouco utilizada,
a forca, instalada na proximidade do castelo, é seguramente um símbolo do
poder senhorial, pronta, pelo menos, a imprimir no espírito dos dependentes um
respeito glacial.
As corvéias, trabalho devido nas terras do senhor e, por vezes, também ati-
vidade doméstica no castelo e nas áreas de criação de animais, acabam sendo o
emblema do sistema senhorial. Entretanto, é sobretudo no sistema dominial
característico da Alta Idade Média que elas têm papel central: os detentores dos
mansos deviam, geralmente, prestar serviço três dias por semana a fim de explo-
rar as terras da reserva do senhor. Por outro lado, no sistema senhorial, em que
a parte explorada diretamente pelos senhores restringe-se consideravelmente, as
corvéias são reduzidas na mesma proporção. Mesmo se a disparidade predomi-
na, uma situação corrente a partir do século XII consiste em corvéias limitadas
a três dias por ano, em outros lugares, a quatro ou seis, com eventual acréscimo
de um dia por mês. Além disso, a tendência é, também aqui, no sentido do paga-
mento anual de uma taxa em dinheiro que substitui a obrigação das corvéias.
Mesmo se considerarmos as corvéias de carroça (transporte de diversos grãos,

131 ]ér6me Baschet


feno. vinho ou outros produtos agrícolas), a participação na manutenção das for-
tificações do castelo ou na alimentação dos guardas e dos cavalos, ou, ainda, a
obrigação de participar das operações militares, tradicional para todos os
homens livres, inclusive os camponeses, podemos concluir que as corvéias dei-
xaram de ser um aspecto central da punção exercida pelos dominantes.
Entretanto, conservam um forte valor simbólico (como testemunha a refeição
surpreendentemente copiosa que o senhor oferece aos aldeãos que realizam a
corvéia) e concentram, muitas vezes, a animosidade dos dependentes, que não
param de reclamar sua limitação e sua monetarização: elas são julgadas ainda
mais humilhantes uma vez que contrastam com a ampla autonomia que carac-
teriza a atividade camponesa e aldeã. É assim que as corvéias se tornam símbolo
que exerce um papel no sentido de mascarar e desviar a atenção para um aspec-
to completamente secundário da dominação (Julien Demade). Inversamente, os
mecanismos que asseguram os melhores rendimentos aos senhores são, em
geral, os menos contestados. Àqueles que já foram assinalados, é preciso acres-
centar o endividamento de numerosos aldeãos (devido a diversas razões, como
o montante dos pagamentos em dinheiro ou a insuficiência das reservas de grão)
que duplica o laço de dependência. Pôde-se, aliás, observar como o controle dos
estoques cerealíferos dava uma vantagem importante para os senhores, reforça-
da pelo fato de que estes fixam as datas nas quais os pagamentos em prata
devem ser feitos: os camponeses devem, assim, vender seus produtos logo após
a colheita, no momento em que os preços estão mais baixos. Se os senhores os
compram para revender em seguida com grande lucro, como se levantou a hipó-
tese, ou não, parece que o pagamento em dinheiro das obrigações não tem ape-
nas vantagens para os dependentes. A partir do século XIII, ele acentua o endi-
vidamento destes e aumenta a discrepância, em favor dos senhores, no que diz
respeito ao controle dos estoques cerealíferos.

Tensões no senhorio

Se forem somadas todas as exigências senhoriais, a dominação mostra-se bas-


tante pesada. No entanto, será preciso, em decorrência disso, reproduzir o este-
reótipo do camponês medieval esmagado pela rapacidade brutal dos senhores e
reduzido à miséria, sem direito e sem iniciativa? Sem negar o poderio exorbitan-
te dos senhores, deve-se certamente dar maior atenção às nuanças e reparar a
diversidade das situações atestadas no seio do mundo aldeão. Para a minoria dos
servos, o jugo é, muitas vezes, esmagador, e muitas famílias livres dispõem ape-
nas de um mínimo vital (estimado em quatro ou cinco hectares, levando em
conta as taxas a serem pagas) e têm como única preocupação assegurar a sua

A CIVILIZAÇÃO fEUDAL /37


sobrevivência. Mas os aldeãos podem estar em uma situação mais vantajosa,
desde que disponham de uma superfície um pouco superior de boas terras (oito
ou nove hectares não são excepcionais), cujos rendimentos aumentam, desde
que eles também tenham conseguido resgatar suas obrigações, que baixam em
decorrência da desvalorização monetária. Eles liberam, então, um excedente
que é vendido no mercado local, graças ao qual eles podem comprar ferramen-
tas para melhorar o trabalho da terra, alimentos que lhes assegurem um regime
mais equilibrado, tecidos e diversos objetos que melhorem sua condição de
vida. Enfim, sobretudo no século XIII, quase sempre aparece na aldeia uma elite
de alguns trabalhadores (os meliores villani) que, dispondo das parcelas mais
produtivas e mais bem agrupadas, assim como de animais de trabalho fortes, se
elevam acima do vulgo, a tal ponto que recorrem ao trabalho dos aldeãos mais
desprovidos para explorar suas terras. Então, entre os séculos XI e XIII, produz-
se uma forte diferenciação interna no seio das aldeias. Isso significa que, se o
quadro senhorial beneficia inicialmente os senhores, ele também permite que
os dominados, ao menos alguns dentre eles, se aproveitem de uma melhoria
sensível de sua situação. Também aqui, é preciso evitar tanto a legenda negra
como a legenda rosa. Admitir-se-á, ao mesmo tempo - e é isso, sem dúvida,
que faz a força do sistema feudal-, que a dominação senhorial é extremamen-
te pesada, devido à ampla gama de prerrogativas que ela concentra nas mãos dos
senhores, e que ela concede aos dependentes uma considerável margem de
manobra e de iniciativa, que lhes permite também aproveitar, em certa medida,
do desenvolvimento da zona rural. Uma vez passados os sobressaltos da instala-
ção do quadro senhorial, e até meados do século XII, pelo menos, a manutenção
de um relativo equilíbrio no seio dos senhorios beneficia, em proporções variá-
veis, é verdade, tanto os dominantes como os dominados.
iSe esse equilíbrio é raramente rompido nos séculos XII e XIII por revoltas
abertas, ele permanece sempre frágil. Ele é urdido por infinitos conflitos, afron-
tamentos permanentes e resistências veladas, principalmente porque os aldeãos
se esforçam em fixar os pagamentos de obrigações, ao passo que a irregularidade
das cobranças é um aspecto característico de uma dominação da qual se denun-
cia de bom grado o caráter arbitrário. Na segunda metade do século XII e duran-
te o século XIII essas tensões acentuam-se notavelmente. Às querelas relativas ao
montante do resgate das corvéias ajuntam-se os efeitos da desvalorização mone-
tária, que leva os senhores a exigir um "sobrecenso", abuso considerado inaceitá-
vel pelos camponeses. Os conflitos para os direitos de uso do saltus também são
acirrados, pois os senhores se esforçam por controlar mais estritamente as flores-
tas, estabelecendo nelas zonas reservadas à caça e outras destinadas à renovação
da mata, regulamentando o corte de certas espécies, impondo multas para todas

138 }érôme Baschet


as infrações cometidas e procurando taxar os direitos de exploração e de pasta-
gem, enquanto os camponeses defendem seus direitos costumeiros e afirmam
que essas terras são communia (bens comunitários). Em resumo, em cada um
dos aspectos da dominação senhorial existem ásperas lutas entre dominantes e
dominados. Estas são fortemente agravadas pela crescente necessidade de liqui-
dez dos aristocratas, pois se estima que, especialmente em virtude da desvalori-
zação monetária, os gastos necessários para manter sua posição, militar e social,
dobram ao longo do século XIII. Evoca-se com freqüência uma tendência de baixa
das taxas de cobrança de rendimentos, a qual, uma vez atingido certo patamar,
provoca periódicas reações senhoriais a fim de restaurar uma pressão sobre os
produtores que vinha diminuindo. De fato, a "renda senhorial" está em perma-
nente recomposição, de modo que a evolução desfavorável de certos rendimen-
tos tende a ser compensada por novas formas de punção, o que pode levar até
uma reativação da servidão; mas os aldeãos, habituados a se beneficiar de uma
relativa melhora de sua condição, não podem senão lutar vigorosamente contra
todo questionamento dos costumes que lhes são favoráveis.
Não podemos terminar este breve apanhado das relações entre dominantes
e dominados sem sublinhar a emergência de formas de auto-organização da
população aldeã. Suas origens e suas modalidades diferem fortemente segundo
as regiões. As confrarias de aldeia, que desde o século XII reduplicam o quadro
paroquial, são muitas vezes sua primeira expressão. Associações de devoção e de
ajuda mútua que cimentam a unidade dos aldeãos, elas assumem as obrigações
da caridade para com os pobres, asseguram os enterros dos mais desprovidos e,
por vezes, adquirem terra que elas mesmas exploram. Em várias regiões, é a
comunidade aldeã que constrói e assegura a manutenção da igreja, de maneira
autônoma, embora em acordo com o pároco. Assumindo esta função, as confra-
rias aldeãs do século XIII, que tambéJl! organizam o banquete anual da comuni-
dade e são dotadas de poder econômico importante, acabam exercendo um
papel de primeiro plano. Elas contribuem para a cristalização de uma verdadei-
ra organização comuna! no seio da aldeia. A comunidade é, então, dotada de
uma personalidade moral: a partir do século XII, ela reúne-se em assembléia
(parlamentum, vicinium) para tomar as decisões importantes e elege por um ano
seus representantes. Esta "democracia na aldeia" é vivaz, sobretudo, até o sécu-
lo XIII, antes de se esgotar quando o papel da assembléia declina em proveito do
papel de seus representantes, ou mesmo de um conselho formado pelos mem-
bros mais influentes da comunidade (Monique Bourin).
As aldeias são em geral dotadas, nos séculos XII e XIII, de cartas de franquia
que fixam as respectivas obrigações do senhor e de seus dependentes. Dadas a
sua especificidade e a sua precocidade, elas não podem ser tidas como simples

A CIVILIZAÇÃO fEUIJAL /39


decalques das cartas das comunas urbanas. Raras na Inglaterra e substituídas
no Império por "declarações de direitos" (Weistum), que muitas vezes visam
separar os direitos que diferentes senhores exercem em uma mesma aldeia, as
cartas de franquia são numerosas na França, na Itália e nos reinos hispânicos,
onde os fueros são particularmente precoces. A diversidade das situações impe-
de o estabelecimento de um quadro homogêneo delas. Segundo o caso, elas satis-
fazem, em maior ou menor grau, as reivindicações dos aldeãos (supressão de
certas obrigações, monetarização de outros pagamentos de taxas e definição de
um montante fixo), mas também dão lugar a medidas desejadas pelos senhores;
isso quando não visam regular conflitos entre senhores diferentes. Mais do que
considerar as cartas de franquia conquistas arrancadas pelos vilãos, é preciso ver
nelas um compromisso resultante de uma relação negociada (pode-se mesmo,
por vezes, observar que a carta de uma mesma aldeia é periodicamente reescri-
ta ou modificada em um ritmo rápido, da ordem de uma dezena de anos; Benoit
Cursente). De fato, se os senhores facilmente dão consentimento para as car-
tas, mesmo se elas fortalecem as comunidades aldeãs, é, sem dúvida, porque
eles vêem nelas o meio de assentar sua dominação e mesmo de fazer da comu-
nidade aldeã a garantia de suas prerrogativas. É nesse espírito que as cartas de
franquia ratificam o abandono de certas exigências senhoriais, asseguram o uso
dos bens comunais reivindicado pelos dependentes e, por vezes, transferem
mesmo o recebimento de algumas obrigações e o exercício de uma competên-
cia judiciária para a comunidade. Esta dispõe, então, de um orçamento próprio
(especialmente, para a manutenção dos caminhos, da igreja ou de outras cons-
truções) e de um tribunal autônomo, mas que, em geral, julga apenas litígios
agrários e permanece parcialmente controlado pelo senhor, o qual pode se reser-
var o recebimento de uma parte das multas.
Os camponeses, portanto, estão longe de sofrer passivamente a domina-
ção senhorial e a aldeia sabe organizar-se independentemente do castelo e da
igreja. No entanto, não se poderia, em decorrência disso, idealizar a democra-
cia aldeã. Suas assembléias excluem as mulheres e as cartas de franquia expri-
mem, em larga medida, os interesses da elite camponesa (os maiores em opo-
sição aos minores), com a qual os senhores compreendem que é necessário
compor. Em muitos casos, as cartas de franquia são os instrumentos de uma
consolidação do poder senhorial. Mas, sejam quais forem os limites, a auto-
organização das comunidades aldeãs, a um só tempo unidas como coletivida-
des e atravessadas por clivagens internas, é um processo notável, que age tam-
bém a favor dos dominados. Entre os resultados mais consideráveis pode-se
reter uma melhor organização do trabalho camponês (por exemplo, a designa-
ção em rodízio de um pastor "comuna!" para vigiar os animais de todos os

1-f(. }érdme Baschet


aldeãos; por vezes, o estabelecimento e a vigilância de uma rede de irrigação),
a reivindicação dos bens comunais e de sua gestão (caminhos, riachos e zonas
incultas), e a defesa dos direitos coletivos, particularmente a livre pastagem
nas terras em que a colheita acaba de ser realizada. Finalmente, essa organiza-
ção reforça a consciência comunitária, que se manifesta notadamente pelas
procissões, nas quais se exibe a ordem aldeã, e pelos rituais apropriados, como
a plantação das árvores de maio ou a eleição anual de um rei da juventude na
seqüência de uma prova, tal como um combate de galos ou uma caça ao pás-
saro.12 Nessas práticas e representações, exprimem-se, ao mesmo tempo, uma
busca da unidade comunitária (a consciência de formar uma entidade especí-
fica) e o reconhecimento das diferenças e das hierarquias internas que carac-
terizam essa coletividade.

Uma dominação total?

Salvo exceção, os senhores intervêm cada vez menos na atividade produtiva em


si mesma. No essencial, esta é organizada no quadro da comunidade aldeã, de
maneira autônoma em relação aos senhores. No entanto, se a dominação senho-
rial permanece largamente exterior ao núcleo da atividade produtiva (o cultivo
das terras), ela é exercida ainda mais vigorosamente acima e abaixo desta.
Acima, porque - e aí está o papel do encelulamento - os dominantes orde-
nam o próprio quadro da vida social e da atividade produtiva através do reagru-
pamento do habitat, o estabelecimento de senhorios e do quadro paroquial, e
mesmo, de certa maneira, através do reforço da comunidade aldeã. Abaixo, pelo
feixe de obrigações e pagamentos que compõem a "renda senhorial", inclusive
as vantagens tiradas do endividamento e do controle diferenciado dos estoques
cerealíferos. Exercendo-se quer anteriormente quer posteriormente, a domina-
ção senhorial enquadra fortemente a atividade produtiva, embora esta seja livre-
mente realizada pelos dependentes, no quadro da comunidade aldeã. Do
mesmo modo, mesmo se os habitantes de uma mesma aldeia podem depender
de vários senhores diferentes, para direitos e terras diferentes, o dominium apa-
rece como uma forma de dominação "total", no sentido de que ele concentra,
nas mãos de um ou vários senhores, um poder localizado, é verdade, mas em
geral considerável, associando múltiplos aspectos que nós consideraríamos -
se eles não se encontrassem estreitamente imbricados - militares, econômi-

12. Jogo ritual que consiste em capturar e, eventualmente, decapitar a ave; não deve ser confun-
dido com a caça com auxílio de pássaros, em geral o falcão. (N. T.)

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL /-f/


cos, polítit:os e judiciários. Quer se atribua ou não a esses poderes uma dupla
ori~em, fundiária e li~ada ao ban, o importante é sublinhar que eles se combi-
nam de maneira a levar a uma fusão do controle da terra c d..1 dominação sobre
os homens (o comando militar c o exercício da justiça na ausência de qualquer
outra autoridade ef1ca7). Entre c~ses doi~ aspectos a imbricação é tal que não
há mais nenhum sentido em querer dissociá-los ou distingui-los, e é nisso que
consiste a Pssência do dominium (Aiain Guerreau). Cada um dos conceitos que
utili:t.amos para descrever a formação dessa fusão perde seu significado. Assim,
o poder senhorial sobre a terra não é uma propriedade, no sentido que damos a
este termo, e os senhores feudais não são proprietários. mesmo se eles procura-
rão se fazer passar por tais quando as revoluções vierem desintegrar o ~istema
feudal. Como mostra Edward Thompson, em um artigo célebre sobre a econo·
mia mural do Antigo Regime, "o conceito central da tradição feudal não era o de
propriedade. mas o de obrigações recíprocas··. Vê-se isso muito bem, pois o
aldeão livre dispôe de sua parcela e a transmite a seus descendemes, mas de\·e,
entretanto, pa~ar o censo ou champt~rt ao senhor; inversamente, este reivindica
uma forma de posse da terra, que justifica,o pagamento do arrendamento, mas
não pode dispor dela como bem entender. Na Idade Média, a relação com a
terra se expressa de modo diferente em relação ao nosso sistema fundado nos
conceitos de propriedade (e de locação). O senhor é aquele que "'possui a terra".
não porque ele pode exibir um título de propriedade, mas porque ele é aquele
que a protege e nela exerce a dominação sobre os dependentes. De certo modo,
trata-se de um sistema circular: o dominante exerce o poder porque possui a terra,
mas de possui a terra porque ele pode demonstrar que exerce nela o poder
(Joseph i\lorse\). :\lão é, então, totalmente desprovido de inconveniente afirmar.
como o faz Perry :\nderson, que o poder do senhor consiste em ·'um amálgama
de propriedade c soberania"", pois é preciso sublinhar imediatamente que essas
duas noçcies perdem, então, os seus significados: a primeira, por não ser plen<J
<.'total: a ~cF,unda. por se confundir com formas privadas de domin<Jção. É melhor
<ldmitir. então. que o dominium é '"uma dominação única sobre os homens e
sobre as tNras'" (Alain Guerreaul. de modo que as noções de propriedade
(plena) c de soberania (de Estado) não têm equi\·alentes na realidade mcdle-
\"al. Enfim, a fusão da dominação sobre os homens e Ja dominação sobre as
terras supôc uma condição indispensável: o vínculo dos homens com a terra.
f~ ju~lamenlc essa tcndt·nc1a de fixação dos homens ao !>CU lugar de \"Ida (c o
nmtrolc de ~ua capacidade de circulação) que as~eF,ura o <.'n<.·elulamento, em
relação ao qual se percebe, uma WL mais, quanto ele é um a~pecto decisivo
dJ dommação feudal. Será, então, ind1spens;ível retornar a e~te a~pcc.:lo na
se~unda parte. a fim de ver em <.JUe medida e por <.JUais meio!> é assq.~urado o
laço dos homens à terra, que se pode. desde já. considerar um dos traços fun-
damentais do sistema feudal.

A DINÂMICA LJO SISIEI\It\ t-'EUDAL

Fragmentação política, fixação espacial, encelulaml·nto: tantos termos que,


segundo a historiografia herdada do Iluminismo e do século XIX, deviam ser asso-
ciados a uma sttuação de desordem, de re~ressão ou, ao menos, de estaJ!,nação.
Ora, é o desenvolvimento e o dinamismo <.JUe preponderam. A descrição dessa
tendência deve, ainda, integrar dois elementos tidos, por muito tempo, como
contrários à lógica do ststema feudal. mas que, como se quer salientar aqui,
dizem respeito plenamente à sua dinâmica: a cidade e o poder monárquico.

O desenvolvimento comercial e urbano

Se as trocas comerciais não eram inexistentes anteriormente, a mudança é clara


no fim do século XI e início do século XII. Enquanto a Alta Idade Média era mar-
cada pela tripla supremacia bizantina, muçulmana c escandinava, uma altera-
ção de conjuntura opera-se, então. a favor do Ocidente cristão. permitindo um
desenvolvimento comercial mais vigoroso, tanto no nível local como no regional
ou no continental. Como foi visto. o dinamismo do senhorio implica, desde o
fim do século xr e, sobretudo. no século XII, um aumento das trocas locais.
\·lercados regulares, hcbdomadários ou mensais, na própria aldeia. na cidade
próxima ou, muitas veLes, também no antepáteo do monastério vizinho. dão
lugar a uma intensa circulação de produtos, também alimentada pelo desenvol-
vimento das oficinas senhoriais. Os camponeses vendem grãos. gado, ovos, aves
e diversos produtos de um artesanato rural emergente, tais como a cerâmica.
trabalhos em fibra, fios e modestas peças têxteis, ao mesmo tempo que traLem
da cidade ferramentas, cera, peixes salgados ou cerveja. entre outros produtos
(figura 10, nas pp.l52 e 153). Em um nível mais amplo, a tecelagem e a meta
!urgia são os dois suportes principai!o do com~rcio. Assim, a ln~latcrra vende
seus metais c. sobretudo, a lã de seus numerosos rebanhos a mercadores do
continente, antes de se lançar ela própria na produçüo de tecidos em lã, no
século XIII. Ela alimenlil as forjas c a produção de ferramentas agrícolas, de pre-
gos e file<ls, <.JUt' prosperam em Flandres, em Artoi~ c nas n•giücs vizinhas. Aí

\<1\11111<,\DIIll"" /-/j
também se concentra uma produção de tecidos em lã de grande reputação,
exportados para a Alemanha e até para a Rússia, mas principalmente para as
regiões mediterrâneas, em especial por meio das feiras de Fréjus e de Arles.
A esse eixo Norte-Sul, sem dúvida a principal via comercial de então, é preciso
acrescentar um eixo Leste-Oeste, que se afirma a partir de meados do século
XII, com o desenvolvimento do comércio na região báltica, dominada pelos mer-
cadores alemães, organizados em uma vasta rede de cidades e de armazéns: a
Hansa. Eles exportam sobretudo grãos, peles e madeiras provenientes do leste
do Báltico, até a Europa Ocidental e a Inglaterra.
Enfim, o Mediterrâneo ocidental é liberado da dominação muçulmana, sob
a ação dos pisanos e genoveses, dos catalães e dos normandos, que recuperam a
Córsega, a Sardenha, a Sicília, as ilhas Baleares, e devolvem a segurança aos por-
tos do Sul da França. Resulta disso um desenvolvimento das cidades costeiras
italianas: Amalfi e Salerno, as precursoras, são logo destronadas em proveito, de
início, de Pisa e, em seguida, de Gênova e Veneza. Estas últimas encarregam-se,
então, das trocas entre Ocidente e Oriente, beneficiando-se de privilégios e de
monopólios em Bizâncio, como é o caso de Veneza, e, depois, instalando arma-
zéns e desenvolvendo seus interesses em todo o Mediterrâneo oriental, até
Antioquia e o mar Negro. Aí, eles compram produtos cada vez mais requeridos
no Ocidente - seda, algodão, açúcar, especiarias, marfim, ouro, perfumes - e
vendem tecidos do Norte -lãs, óleo ou sal. Essa expansão em direção ao comér-
cio distante fortifica as cidades italianas e leva, no século XII, a uma evolução
notável. Os mercadores do Norte têm menos razão de descer para a península
para vender os produtos que os italianos levam até o Oriente. A produção meta-
lúrgica aumenta na própria Itália, assim como o artesanato têxtil, estimulado pela
invenção do tear horizontal. Trata-se fundamentalmente da fabricação do tecido
de lã, que fará a fortuna de Florença (o cânhamo e o linho permanecem secun-
dários, assim como a seda que, entretanto, começa a se desenvolver no fim do
século XII). Doravante, são os mercadores italianos, qualificados genericamente
de "1ombardos", que atravessam cada vez com mais freqüência os Alpes para ven-
der seus produtos na França e na Alemanha. É o seu avanço que conduz a situar
no centro da Europa a zona das trocas comerciais mais intensas, originando,
assim, as feiras de Champagne. Ali são negociados os produtos do Norte e do
Sul, em particular das duas regiões mais ativas- Itália e Flandres. Diferentes
dos mercados, mais regulares, as feiras são aglomerações de periodicidade fraca,
com freqüência anual, por vezes semestral ou trimestral, dotadas de privilégios
pela autoridade fundadora e estreitamente controladas por ela. Elas existem em
todas as regiões do Ocidente desde, pelo menos, o século X. As feiras de
Champagne, fundadas em Provins, Troyes, Bar e Lagny, conhecem um sucesso

I -H }érôme Baschet
excepcional desde a primeira metade do século XII e durante o século XIII, ao
termo do qual começa seu declínio. Nota-se aí a vontade manifesta do conde de
Champagne, que se preocupa com sua boa organização, garante a proteção àque-
les que delas participam e destina uma parte importante dos rendimentos que
delas tira para a Igreja. Sinal deste desenvolvimento das trocas, a cunhagem do
ouro, abandonada desde Carlos Magno e, de início, tentada em vão com finali-
dades de prestígio por certos príncipes, é retomada com sucesso por iniciativa
das cidades italianas (o genovês, em 1252; no mesmo ano, em Florença, o flo-
rim, que será o modelo de todas as moedas de ouro do fim da Idade Média; final-
mente, o ducado de Veneza, em 1284). Esta é a melhor prova do desenvolvimen-
to dessas cidades e de seu papel no grande comércio.
A reafirmação do fenômeno urbano na Idade Média Central está associa-
da ao desenvolvimento das atividades artesanais e comerciais. Mas a função
militar e, sobretudo, a presença de uma autoridade episcopal, condal ou princi-
pesca, que suscita a manutenção de uma corte numerosa e cria um efeito de.
atração, são igualmente decisivas. \Estas últimas permitiram, de resto, a manu-
tenção dos núcleos urbanos durante a Idade Média e, mesmo quando o desen-
volvimento artesanal e comercial faz sentir seus efeitos, elas continuam com fre-
qüência a ter papel significativo no desenvolvimento urbano. Além disso, no
contexto específico da Reconquista ibérica, o rei, grande distribuidor de terras,
apóia-se nas cidades para controlar o território. Em especial em Castela e Leão,
ele concede precocemente fueros aos núcleos de povoamento preexistentes ou
recém-criados. Ele estabelece, assim, autoridades urbanas (Concejos), às quais
concede o conjunto de bens reais (realengo) situados nos territórios (alfoz), que
dependem da cidade. Se as numerosas cidades estabelecidas ao norte do Douro,
durante os séculos XII e XIII, devem compor com os poderes senhoriais e eclesiásti-
cos, que são como enclaves em seu domínio de competência, as cidades situadas
entre o Douro e o Tejo, que correspondem a uma segunda fase da Reconquista,
ganham um alfoz extraordinariamente extenso (por exemplo, Segóvia ou Ávila)
e muito mais homogêneo. Um outro traço original da política dos reis de Castela
é a implantação consciente de uma rede de pequenas cidades, por vezes criadas
pelo reagrupamento de algumas aldeias e destinadas a reunir uma população da
ordem de oitocentos a 2 mil habitantes. Esse modelo da villa, que permite uma
forma de controle do território intermediária entre a da aldeia e a das cidades
mais importantes (civitas, ciudad), terá papel significativo na implantação hispâ-
nica no Novo Mundo (Pascual Martinez Sopena). Se os motivos e as circuns-
tâncias variam, a tendência é manifesta: as cidades do Ocidente conhecem um
forte crescimento durante a segunda metade da Idade Média. De início, for-
mam-se burgos em torno das muralhas antigas: símbolo da renovação urbana,

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL H=;


eles dão seu nome aos "burgueses", até que o termo seja retomado para desig-
nar o conjunto dos habitantes da cidade (a "burguesia" no sentido medieval não
tem, então, nada a ver com a classe que geralmente designamos por este termo,
pois ela inclui tanto cavaleiros como trabalhadores assalariados que residem na
cidade). Quando os burgos atingem certa extensão e não estão longe de se jun-
tar, são cercados por uma nova muralha, no mais das vezes construída ao longo
do século XII. Depois, como o atesta o exemplo de Florença, na primeira meta-
de do século XIV, o crescimento torna necessária a edificação de uma terceira
muralha que, no mínimo, dobra a superfície intra muros (ilustração VI). As maio-
res cidades atingem, então, 200 mil habitantes (Paris e Milão), 150 mil (Florença,
Veneza e Gênova), ou beiram as 100 mil almas (Gand, Bruges, Londres,
Colônia e Treves). Mas, fora estas prestigiosas exceções, a maior parte das cida-
des não passa de 1O mil ou 20 mil habitantes. É, aliás, no nível mais modesto
que convém considerar a escala do fenômeno urbano medieval e de seu desen-
volvimento: enquanto cerca de apenas trinta cidades atingem os 5 mil habitan-
tes antes do ano mil, elas são mais de 150 por volta de 1200. Enfim, além do

VI. Planta de Florença: muralhas do fim do século IV, de 1172 e de 1299-1327.

J-l(; ]ér6me Baschet


·mento de cidades antigas, numerosas cidades novas são criadas, tanto no
cres Cl
Sul da França e nos reinos hispânicos como na Alemanha. Sobretudo no sécu-
lo XIII, surgem em toda parte cidades cujos nomes não enganam: Bastide,
Villeneuve, Villanueva ... Suas plantas em tabuleiro, facilmente reconhecíveis,
indicam uma iniciativa planejada e as distinguem das cidades antigas, cujo cres-
cimento se opera, em geral, segundo um esquema concêntrico, determinado
pelas vias de acesso (ilustração VII).

VII. Duas cidades novas com plantas em tabuleiro, criadas na segunda metade do
século XIII: Mirande (ao norte dos Pireneus, fundada em 1285) e Soldin (Brande-
burgo, fundada entre 1262 e 1280).

O mundo das cidades

O desenvolvimento das cidades dá lugar a um fenômeno sobre o qual a histo-


riografia herdada do século XIX gostou de insistir: a formação das comunas, mui-
tas vezes apresentadas como o resultado da luta triunfante da "burguesia" em
''sua aspiração revolucionária por liberdade", rompendo com uma ordem aristo-
crática e feudal que tendia à imobilidade (José Luis Romero). É verdade que
começa a cii:cular, então, o ditado segundo o qual "o ar da cidade torna livre", e
que a constituição das populações urbanas em comunidades (communitas, uni-
versitas) dotadas de uma personalidade jurídica é em geral adquirida com gran-
de luta no decorrer do século XII. Mas seria errado decalcar sobre essa época
uma concepção moderna da liberdade, pois as liberdades naquele momento
consistem essencialmente em obter franquias urbanas (por exemplo, a isenção

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL J.l(


de direitos senhoriais, em especial sobre os mercados e os pedágios, ou a possi-
bilidade de cobrar taxas por sua própria conta) e privilégios permitindo uma
organização política autônoma (conselho e representantes eleitos), o exercício
de uma justiça própria e a formação de milícias urbanas. É verdade que o movi-
mento comuna!, por vezes, leva a afrontamentos violentos, como em Santiago
de Compostela, em 1116, ou em Laon, onde o bispo é assassinado em 1112
(é este último exemplo, longamente descrito pelo monge Guiberto de Nogent
que lhe inspira a famosa frase, tornada paradigmática na historiografia:
"Comuna, palavra nova, palavra execrável!"). Entretanto, com freqüência vemos
também duques ou condes, tais como os de Champagne, exercerem um papel
favorável para a origem das comunas. De fato, a formação das comunas urbanas
é paralela à afirmação das comunidades rurais e à multiplicação de suas cartas
de franquia. Assim como estas últimas, as cartas urbanas são muitas vezes obje-
to de um acordo negociado e sem violência, neste caso, entre mercadores, aris-
tocratas e autoridade condal, por exemplo, para a instituição do cargo dos côn-
sules, que exercem o poder nas cidades do Sul da França. Alhures, é o próprio
rei que concede franquias em massa, mas com freqüência ele se reserva o direi-
to de nomear as principais autoridades municipais, como em Castela e em
Paris, onde o rei da França evita permitir o que ele concede às outras cidades
do reino, nas quais vê um apoio e um útil reforço militar contra seus vassalos
insubmissos. A idéia de um choque entre a "burguesia" (tida, de saída, como
supostamente revolucionária) e a aristocracia (necessariamente feudal e conser-
vadora) aparece, então, como uma projeção historiográfica pouco fundada. De
fato, a principal hostilidade à formação das comunas vem dos clérigos, e é onde
o bispo conserva maior controle das cidades que o movimento leva mais facil-
mente ao afrontamento violento.
Assim como em relação à anacrônica noção de liberdade, devemos duvidar
da suposta "democracia" dos governos urbanos. A cidade, fortemente hierarqui-
zada, está nas mãos dos mais ricos. As comunas do século XII são fruto de uma
conivência entre a aristocracia cavaleiresca e a elite dos mestres de ofícios, ou
seja, apenas um punhado de homens. Por mais surpreendente que isso possa
parecer, a aristocracia é muito presente na cidade. Quer se trate das camadas
dominantes rurais que se instalam na proximidade da corte do bispo ou do conde,
dos quais são vassalas, quer de simples servidores que vivem no círculo de um
senhor, com freqüência o grupo de milites representa um décimo da população
urbana, em particular no Sul da França e na Itália, onde o fenômeno urbano se
desenvolve precocemente e com maior amplitude, mas também em outras
regiões, nas cidades em que residem reis e príncipes. As famílias aristocráticas
detêm a posição de destaque na cidade, impõem o respeito pela força militar,

1-+8 }érôme Baschet


impressionam por seus palácios, pela abundância de seus servidores domésti-
cos, pelo fausto de suas festas e de seus deslocamentos. Ao mesmo tempo que,
por vezes, investem nas atividades produtivas ou comerciais, como armação de
navios em Veneza, os aristocratas guarnecem a cidade de torres, superando a
centena em Florença, Verona e Bolonha, mas também fora da Itália, como em
Ratisbona, onde elas chegam a oitenta. A função militar dessas torres responde
à necessidade das lutas entre clãs e partidos, mas seu caráter simbólico é, pelo
menos, igualmente determinante e conduz a uma intensa competição para
ganhar em altura. Embora residindo na cidade, os aristocratas permanecem liga-
dos ao mundo rural pelos seus bens fundiários, cuja gestão delegam a homens
de confiança, e pelos seus laços familiares ou de associação política com os
dominantes que controlam as aldeias e os castelos rurais. As grandes famílias,
entre as quais os Colonna e os Orsini que, graças aos favores pontifícios, con-
trolam Roma e suas vizinhanças a partir do século XIII, os Bardi em Florença, os
Visconti em Milão ou os Ziani em Veneza, possuem o essencial do solo urbano,
controlam o alto clero (não é raro que a metade dos bispos e cônegos seja origi-
nária de suas fileiras). Muitas vezes, essa aristocracia urbanizada está na própria
origem das comunas e encampa seu governo, ao menos até o fim do século XII.
Considera-se com freqüência que o governo urbano tende a passar, então,
para as mãos dos principais mercadores e dos mestres de ofícios, que formam o
que se chama, na Itália, de popolo grasso, o qual se apóia sobre o popolo minu-
to para afastar seus antigos aliados aristocráticos. De fato, é preciso, de prefe-
rência, considerar que, ao menos nos séculos XII e XIII, os mercadores e os arte-
sãos não formam um grupo à parte, claramente separado da aristocracia dos
milites: eles estão amplamente misturados e se fundem, ao menos parcialmen-
te, no seio de uma elite urbana que combina atividades artesanais e mercantis
com reivindicação de "nobreza", espírito contábil e ética cortês. A despeito de
etiquetas por vezes enganadoras, os conflitos urbanos, em geral, põem em con-
fronto facções da elite, que são, é verdade, distintas, mas que se situam socio-
logicamente muito próximas. Nem por isso suas lutas são menos intensas e, por
vezes, dilaceram de maneira permanente e sem solução o tecido social urbano,
oferecendo, assim, um espaço ao popolo minuto. No entanto, mesmo quando
este obtém assembléias e representantes próprios (como o capitão do povo),
ainda se está longe de uma situação democrática. O verdadeiro poder é retido
pelos ofícios mais influentes, como os cardadores, joalheiros ou 'fabricantes de
peles, e exclui os ofícios considerados inferiores, pedreiros, carpinteiros, açou-
gueiros ou trabalhadores do couro. Na maior parte das vezes, algumas famílias
chegam a encampar os cargos municipais, por exemplo, em Flandres, onde são
constituídas verdadeiras dinastias de conselheiros municipais. É apenas no fim

A CIVILIZAÇÃO fEUDAL l-f9


do século XIII e durante o século XIV que o popolo minuto dos ofícios inferiores
e dos trabalhadores assalariados adquire mais força, faz valer suas reivindica-
ções e obtém um espaço de participação no seio das instituições urbanas,
como em Florença, em 1292, ou já em 1253, em Liege, e em 1274, em Gand,
onde o movimento dos tecelões, que deixam a cidade em sinal de protesto,
ganha toda Flandres. Mas, no fim da Idade Média, a camada superior dos mer-
cadores e artesãos retoma o controle. Na Itália, as famílias dos grandes merca-
dores e banqueiros, dos quais os Medici de Florença são o exemplo típico,
encampam um poder que se torna, finalmente, dinástico e assimilam-se à
nobreza. Do mesmo modo, e ao inverso de seu estatuto inicial, as cidades de
Castela passam, ao longo dos séculos XIV e XV, para o controle de uma nova
aristocracia e convertem-se, assim, em instrumentos de controle do território
nas mãos dos senhores.
Quanto às atividades especificamente urbanas - o comércio, a produção
artesanal e o início da atividade bancária - , elas estão longe de corresponder às
normas da racionalidade econômica que o sistema capitalista estabelecerá a par-
tir do século XVIII. É, então, mais do que perigoso falar, no que diz respeito à
Idade Média, de mercado regido pela lei da oferta e procura, ou ainda de livre
concorrência. Na cidade, as atividades produtivas são organizadas em ofícios,
cujos regulamentos detalhistas, estabelecidos a partir do século XII, fixam as nor-
mas de produção e de qualidade dos produtos, os preços, os salários e as condi-
ções de trabalho. Monopólio reservado aos habitantes da comuna e às pessoas
cooptadas pelos seus membros, os ofícios do artesanato são fortemente hierar-
quizados. O mestre de oficina dirige os companheiros que emprega, em geral por
dia ou por mês, a menos que, satisfeito com os melhores, ele os associe à sua ati-
vidade a longo prazo. Quanto aos aprendizes, contratados por oito ou dez anos,
abrigados e alimentados, mas privados de salário devido à sua ausência de quali-
ficação, sofrem uma pressão ainda mais forte. Tal estrutura corporativista, estra-
nha às regras do mercado, manifesta bem a "rejeição visceral da concorrência
pela Idade Média" (Robert Fossier). A exigência de qualidade, definida pelas nor-
mas dos ofícios, permanece mais importante que o aumento da produção; as
regras da rentabilidade não se impõem mais do que a preocupação de uma maxi-
mização dos rendimentos e do tempo de atividade, como o prova o fato de que,
ainda no século XVII, os artesãos trabalhem apenas cerca de 180 dias por ano.
O investimento permanece limitado e as considerações não econômicas determi-
nam largamente a utilização dos lucros (poupança para previsão de crises, aqui-
sição de terras, fundações piedosas, investimentos no além-túmulo). Enfim, a
relação salarial estabelecida entre mestres e companheiros conserva traços muito
diferentes daqueles que serão impostos pelo aparecimento do capitalismo. Trata-

l'iL )érôme Baschet


se, ainda, de uma relação muito personalizada, que não se estabelece segundo as
regras de um "mercado de trabalho", mas leva bastante em conta as pessoas e
suas relações interpessoais, como sugere notadamente o grande papel exercido
pelos pagamentos antecipados e pelas remunerações in natura.
Entretanto, a cidade é, incontestavelmente, a partir do século XII, um
mundo novo. Nela, desenvolvem-se atividades novas e esboçam-se mentalidades
singulares, ao passo que a Igreja demoniza a cidade, moderna Babilônia, lugar de
pecados e tentações. Mas os clérigos hesitam: a Jerusalém celeste não oferece
por acaso um outro modelo de cidade, desta feita ideal? Importantes setores da
Igreja abrem-se ao fenômeno urbano, optam por assegurar a redenção dos cita-
dinos e colaboram para o estabelecimento de uma "religião cívica", que entrela-
ce a reverência devida à instituição eclesial e a afirmação de uma identidade
urbana própria. A cidade supõe um modo de viver específico, marcado pela den-
sidade e pela diversidade de seus habitantes, e uma paisagem própria, cujos
afrescos do Bom Governo, pintados por Ambrogio Lorenzetti no Palácio Público
de Siena (1338-39), dão uma imagem exemplar (figura 10, pp. 152 e 153). É ver-
dade que é normal encontrar, no interior das muralhas das cidades medievais,
terras cultivadas e mesmo gado, o que, junto com a presença de torres e, mui-
tas vezes, de um castelo, atenua a distinção entre o mundo urbano e o mundo
rural (e mais ainda porque as próprias aldeias são fortificadas). Entretanto, ao
olhar, impõe-se a rua, estreita e mal iluminada, com suas casas assobradadas e
seus bazares abarrotados de diversos produtos, suas imundices difíceis de eli-
minar e seus porcos, que fazem o serviço de lixeiros (dedicados geralmente a
santo Antônio, eles se beneficiam, a esse título, de uma completa liberdade de
circulação). É preciso evocar, igualmente, a praça pública, onde se erguem a
administração municipal e a torre do sino, as numerosas tavernas, os "banhos
públicos" e outros lugares onde as autoridades municipais do fim da Idade
Média procuram organizar a prostituição, tida como um "serviço coletivo" útil
à paz pública.
A cidade é também um estado de espírito novo e, se é anacrônico fazer rei-
nar nela o "espírito de empresa", ao menos, fazem-se sentir nela a onipresença
do dinheiro, a valorização do trabalho e o espírito contábil ensinados pelos
manuais das escolas de comércio. A cidade é também, em alguns casos notá-
veis, uma atividade intelectual animada, que se concentra em torno de escolas
de catedrais, colégios e, mais tarde, universidades, e que sustenta uma produ-
ção crescente de livros manuscritos nos ateliês laicos que logo superam os scrip-
toria monásticos. Nos séculos XII e XIII, os meios escolares e universitários são
notavelmente abertos às novidades do mundo urbano, em interação fecunda
com ele, e são incitados pelas suas inovações a propor suas próprias novidades

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL I 'i I


I O. A cidade e os campos circundantes: os efeitos do Bom Governo, segundo os afrescos de Ambrogio Lorenzetti, I 338-39 (Palácio Público de Siena).
Na sala dos Nave, magistratura coletiva que governa Siena entre I287 e I355, Ambrogio Lorenzetti compõe um vasto afresco que dá forma aos fundamentos ideológi-
cos do poder que o conselho, reunido neste lugar, pretende encarnar. A tirania e suas conseqüências desastrosas, o artista opõe o Bom Governo que, inspirado pela sabe-
doria, faz reinar a justiça e a paz sociaL Os efeitos disso fazem-se sentir tanto na cidade como na zona rural submetida à sua autoridade (o contado). Nesta rcprcsenta-
c;ao exce'Ç)ciona\, misturam-se um olhar atento às realidades concretas da. vidil urbana e uma inten.;.•iio progrcnmítica, que produz um... vis.-a ide.# d~~J ddiJJde e de seu
·"'""\....... ,,~. AI.••'""· no çen'LTO da cidade. a dança exprhne a conc:6rclla q""'e reina entre ~ habitante• e • Ml.,.r..a 111.1•• JH'II!I'eno&. he •rua ca~-·· A•• ........... ••·••-- -•....,•·•• •
IJêiXêiN:s, dominados por ,·unstnr~·t)l.'S al'õsobrud~,,l,,,s, pnr \'(.'.l.l.'s L"Oill <.andares t.•m salii-m.:ia, ;.lssim c..·nmo por uhas turn·~. ~.:;.u.\a um ~ cn\n!P..,\ cnnl ftcTc"'"'"'""'' .\ ..."'"' "'""'"'d·
de: lá, pedreiros terminam de construir uma casa: aqui, um sapateiro oferece seus proJutns~ om lado. um m~:stn• dispensa seus cns\nnm~:nto'!l, c. um \lnucn ma\~ \nn\1."'·
um pastor conduz suas ovelhas. Se a cidade é bem delimitada por suas muralhas, as relações com a zona rural são, porém. intensas. N<l interior e nu exterior, n• nnhre•
cavalgam, tendo às vezes um gavião no braço, não hesitando em caçar através dos campos. Se Lorenzetti sintetiza voluntariamente todo o ciclo a(!,rário, da semeadura
até a colheita e a debulha, ele também insiste vigorosamente sobre o transporte: camponeses conduzem o seu gado e asnos carregados com suas colheitas para a cida-
de, onde eles compram diversos produtos artesanais.
no campo do pensamento (Jacques Le Goff). A efervescência intelectual é tão
intensa que toma facilmente a forma de discussões públicas que animam pra-
ças e ruas, assim como sugere, em fins do século XII, Estevão de Tournai, abade
de Santa Genevieve, em Paris: "A Trindade indivisa é separada e picotada nos
cruzamentos. Tantos erros quantos doutores, tantos escândalos quantos audito-
res, tantas blasfêmias quantas praças públicas". Entretanto, apesar de todas
essas novidades, a consciência de uma oposição entre o modo de vida urbano
(a civilidade) e o modo de vida rural, qualificado a partir dos anos 1380 de "rus-
ticidade", emerge apenas tardia e parcialmente. Os códigos de valores permane-
cem fortemente influenciados por oposições tradicionais (cortesia/vilania) e as
classes urbanas esforçam-se, na medida de seu sucesso, em imitar os modelos
aristocráticos. É o caso, em primeiro lugar, dos grandes mercadores e dos mes-
tres dos principais ofícios, muito próximos da aristocracia pelo seu modo de
vida, pelos valores corteses de que partilham e pelos laços familiares que eles se
esforçam para tecer.

Cidades e trocas no quadro feudal

Na impossibilidade de expor mais detalhadamente, aqui, as formas de desenvol-


vimento das realidades urbanas, limitar-se-á a evocar algumas questões gerais
relativas à relação entre cidades e campos e ao lugar do fenômeno urbano no
sistema feudal. É comum considerar a cidade e a "burguesia" que nela habita os
fermentos de um questionamento da ordem feudal, o que parece confirmar o
golpe fatal dado pelas revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII. José Luis
Romero expôs com coerência essa visão, chegando a considerar que a revolução
comercial e burguesa, iniciada no século XI, constituía, desde logo, um fenôme-
no radicalmente exterior à lógica do feudalismo e levava à justaposição de dois
sistemas econômicos e culturais distintos, um tendendo ao imobilismo de uma
ordem tradicional enraizada nos campos e dominada pela aristocracia, o outro
caracterizado pelo dinamismo do mundo urbano e o gosto da novidade próprio
à mentalidade burguesa. Hoje, no entanto, a tendência é fazer prevalecer uma
outra concepção, sublinhando que o desenvolvimento das trocas e das cidades
é produzido pela dinâmica do próprio feudalismo e que nele se integra final-
mente, apesar das tensões já mencionadas. Para Jacques Le Goff, existe, na
Idade Média, "uma rede urbana inscrita no espaço e no funcionamento do sis-
tema feudal". Tudo o que foi dito acerca do papel dos poderes senhoriais, epis-
copais e condais, no florescimento das cidades, do desenvolvimento paralelo das
comunidades rurais e das comunas urbanas, assim como do peso da aristocra-

I)~ ]érôme Baschet


cia nas cidades, confirma essa integração das cidades no sistema feudal. Como
também se viu anteriormente, o desenvolvimento urbano é suscitado pelo dina-
mismo da zona rural, especialmente pela produção de excedentes que campo-
neses e senhores vendem na cidade, e pela monetarização crescente dos paga-
mentos, o que obriga os dependentes a aumentarem suas vendas e fornece aos
senhores um numerário mais abundante. Isso representa um impulso decisivo
para as trocas e para o desenvolvimento urbano e uma necessidade vital para o
funcionamento dos senhorios, no caso para o pagamento das obrigações e a uti-
lização suntuária (socialmente indispensável) da renda senhorial. É, então, peri-
goso descrever o sistema feudal como uma economia dual, separando, de um
lado, uma economia rural de auto-subsistência e, de outro, uma economia de
mercado animada pelas cidades. Immanuel Wallerstein sublinhou-o vigorosa-
mente: "O feudalismo não é a antítese do comércio. Ao contrário, até certo
ponto, o sistema feudal e o desenvolvimento das trocas andaram juntos". Talvez
seja mesmo necessário sugerir, como fazem alguns, que a separação entre cida-
des e campos tenha sido desejada ou, ao menos, encorajada pelos senhores
(que, de fato, contribuíram para fortalecer comunidades aldeãs e comunas urba-
nas): a existência de populações urbanizadas, consumidoras e não produtoras,
não seria, então, a condição de uma circulação dos produtos e das espécies
monetárias tornada indispensável para a realização da renda senhorial?
Conviria, igualmente, refletir sobre a posição da "burguesia" medieval. O fato
de ver nos mercadores e artesãos dos séculos XII e XIII as primícias da burguesia
dos séculos XVIII e XIX é uma tendência difícil de combater na medida em que
os fundamentos ideológicos do estudo da Idade Média foram lançados no
momento do triunfo dessa classe. Entretanto, tal visão teleológica produz teme-
rosos erros de perspectiva, projetando sobre a "burguesia" medieval a imagem
daquela do século XIX (assim, lemos sob a pena de Henri Pirenne: "Nossas fon-
tes não permitem duvidar de que o capitalismo se afirma desde o século XII. O es-
pírito que anima o grande comerciante que se enriquece é, desde então, o espí-
rito do capitalismo"). O estudo das cidades e dos meios urbanos na Idade Média
deveria, então, tomar por tarefa fazer aparecer as profundas diferenças de prá-
ticas e de mentalidades, ocultas pelas similitudes aparentes e por uma continui-
dade postulada pelo senso comum. Além dos aspectos já mencionados, evitar-
se-á esquecer o caráter quantitativamente limitado do desenvolvimento urbano
(a Idape Média permanece um mundo essencialmente rural). Já se disse, é ver-
dade, que o sistema feudal tinha necessidade de um desenvolvimento das tro-
cas e, portanto, de grupos sociais encarregados da circulação das mercadorias;
mas é preciso enfatizar ainda, como faz Alain Guerreau, que isso se realiza sob
a condição de manter esses grupos, ou ao menos essas atividades, em posição

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL f''


dominada. Diferentes mecanismos são empregados para tanto, e é uma das fun-
ções do esquema das três ordens do feudalismo, de que se falará mais tarde,
relegar os novos grupos urbanos, confundidos com os camponeses, no seio da
ordem inferior de "trabalhadores" (lahoratores), e negar-lhes toda especificidade.
A lógica feudal encontra-se, aqui, em pleno funcionamento, e a manutenção
desse modelo ideológico, assim como sua institucionalização na organização dos
estados gerais até 1789, reforça estrondosamente a posição política e social-
mente dominada dos grupos urbanos.
Mas a atitude da própria "burguesia" manifesta ainda mais claramente a
sua subordinação. Com efeito, mercadores, artesãos e banqueiros enriquecidos
têm apenas um desejo: fixar-se na zona rural, adquirir feudos, se possível serem
consagrados cavaleiros, e esforçar-se para fazer acreditar que pertencem a uma
linhagem de antiga nobreza. Ainda no século XV, os mercadores de Barcelona,
dentre muitos outros, voltam-se para as rendas fundiárias ou senhoriais, insta-
lam-se nos quarteirões mais aristocráticos e enchem suas bibliotecas de obras
cavaleirescas. Não se poderia dizer mais claramente que, a despeito do apareci-
mento de um investimento na produção artesanal ou na troca, a Idade Média
permanece fundamentalmente dominada pela lógica do controle da terra (Marx
escrevia - em uma fórmula que não está isenta de toda crítica, mas que tem a
vantagem de convidar a considerar a lógica de um sistema social mais do que
julgar isoladamente certos de seus elementos - que, "na Idade Média, o pró-
prio capital, enquanto equipamento artesanal, tem o caráter de propriedade
fundiária", ao passo que "ocorre o inverso na sociedade burguesa"). Ora, um
"burguês", cujo ideal é a renda fundiária e a integração à nobreza, não tem nada
em comum com o que nós entendemos hoje pelo termo "burguesia" (que supõe
que o ganho tirado da atividade econômica seja essencialmente destinado a ser
reinvestido como capital). É verdade que o desenvolvimento das realidades
urbanas e burguesas conduzirá, dentro de certo tempo, à destruição do sistema
feudal, e é, então, tentador reparar, desde a Idade Média, os germes desse pro-
cesso. E, se é recomendável perseguir em toda realidade histórica aquilo que
antecipa seu futuro, convém, no entanto, evitar as falsas perspectivas da teleo-
logia. Esse problema, de grande complexidade, exigiria reflexões mais elabora-
das, mas, ao menos, pode-se sublinhar que, durante os séculos medievais, o sur-
gimento dos mercadores e das cidades permanece integrado à lógica do
feudalismo, que é suscitado pela sua dinâmica e, por sua vez, contribui para ela.
Produção artesanal, trocas comerciais, trabalho assalariado e grupos urbanos
são os elementos que formarão, a partir do século XVIII, os componentes essen-
ciais de um novo sistema. Mas, anteriormente, eles existem apenas como frag-

1 'i I }érôme Baschet


mentos modestos, isolados no seio de um sistema cuja lógica é totalmente outra.
Parece perigoso, então, conferir-lhes o sentido de que eles se revestirão uma vez
arranjados conforme a lógica do sistema capitalista.

A tensão realeza/aristocracia

Como se viu, os séculos IX a XI são marcados por uma disseminação da autori-


dade pública, finalmente encampada pelos castelões e pelos senhores. Desde
então, são eles que, com alguns condes e duques (assim como com os bispos e
os monastérios que detêm o poder senhorial), partilham o essencial do coman-
do sobre os homens. Como aquele do imperador, e com importantes diferenças
geográficas, o poder dos reis permanece apenas simbólico. Eles não controlam
o território de seus reinos e dispõem somente de um suporte administrativo
insignificante. Assim, o soberano francês tem poder real apenas no domínio
muito exíguo que possui diretamente, em torno de Paris e Orleans: o resto do
reino é concedido em feudos, tornados praticamente autônomos e detidos por
grandes nobres (duque de Borgonha, condes de Champagne, de Vermandois ou
de Flandres), enquanto todo o Oeste é, em breve, possuído na forma de feudo
pelo soberano inglês, Henrique 11 Plantageneta; quanto ao Sul - Toulouse e o
Languedoc - , ele escapa totalmente ao soberano capetiano. Na Alemanha,
onde o imperador é também rei da Germânia, o efeito de mosaico é ainda mais
acentuado e o soberano não se beneficia nem mesmo de um domínio direto tão
compacto como aquele do rei da França, o que o torna bastante insuficiente
para suas necessidades. Enfim, os reinos escandinavos e eslavos dispõem
somente de um poder extremamente restrito.
No entanto, os reis existem e até mesmo gozam de um prestígio que, em
geral, não é contestado. Sua legitimidade tem fontes diversas: a conquista mili-
tar, tida como sinal do favor divino; a eleição, princípio em decadência, mas ao
qual se recorre em certos casos de interrupção dinástica; a designação pelo rei
precedente ou a sucessão dinástica, que tende a prevalecer (mas a prudência em
geral incita a coroar o herdeiro durante a vida do seu predecessor). O prestígio
da figura real na Idade Média diz respeito, sobretudo, à consagração, já praticada
pelos visigodos e, depois, com estardalhaço, pelos carolíngios e, finalmente,
generalizada em todo o Ocidente (com a exceção de Castela, que permanece um
"reino sem consagração" e deve sempre se esforçar para compensar esse déficit
de sacralidade; Teófilo Ruiz). Durante esse rito, cuidadosamente codificado pela
liturgia e realizado por um colégio episcopal, o soberano é untado com óleo
santo, à maneira dos reis do Antigo Testamento, o que lhe confere caráter sagra-

A CIVILIZAÇAO FEUDAL /,-


do. Certos sinais, como o fato de vestir por um momento a dalmática 13 do sub-
diácono ou um manto à moda da casula do sacerdote, parecem fazê-lo adentrar
o corpo eclesiástico, do mesmo modo que as menções da unção sacerdotal
durante o rito. Entretanto, diferentemente do basileus bizantino, que tem o esta-
tuto de um sacerdote, os clérigos ocidentais apressam-se em ressaltar que o rei
permanece um laico e recusam com veemência toda evocação explícita dos reis-
sacerdotes bíblicos (Melquisedeque, 14 por exemplo). Mesmo na França, onde,
segundo a lenda, a unção é realizada com o óleo da ampola sagrada, miraculosa-
mente trazida por um pombo no momento do batismo de Clóvis, "o rei aproxi-
ma-se, sem chegar a ele, de um caráter propriamente sagrado" Qacques Le Goff).
Se a consagração não é suficiente para estabelecer uma "realeza sagrada", que
integraria o rei ao clero, ela, ao menos, eleva-o um pouco acima dos outros lai-
cos, uma vez que ele é investido de alta missão desejada por Deus (por vezes, ele
é mesmo dito "coroado por Deus"; veja a figura 51, na p. 501). O melhor sinal
dessa "aura" é o poder taumatúrgico conferido pela consagração aos reis da
França e da Inglaterra, reputados poderem curar, durante cerimônias públicas, a
doença chamada das escrófulas 15 (Marc Bloch). Mas, se a consagração contribui
inegavelmente para a afirmação da figura real, ela é uma faca de dois gumes.
Com efeito, inclui o juramento de defender o povo cristão e de lutar contra os
inimigos da Igreja; e os clérigos não se privam de insistir sobre as obrigações que
incumbem ao rei em virtude da consagração. Muito embora o ritual magnifique
o príncipe, mostrando que ele é escolhido por Deus, manifesta, de maneira ainda
mais vigorosa, que ele obtém seu poder da Igreja (e não somente em virtude dos
laços de sangue). Mesmo se a leitura real da consagração se esforça para supe-
rar esse obstáculo, o rito põe a realeza em uma forte dependência simbólica em
relação ao clero e seus representantes eclesiásticos.
Segundo os Espelhos dos príncipes, que estabelecem, com fins pedagógicos,
o retrato ideal do rei, este deve ser não apenas valente e corajoso na guerra, para
defender a paz e o bem comum, mas igualmente justo, humilde, caridoso e mag-
nânimo. Além do mais, quer-se que ele seja sábio, quer dizer, cuidadoso com as
verdades divinas e bem instruído em numerosas disciplinas, como foi mais do que
qualquer outro Alfonso X de Castela; e repete-se, seguindo o Policraticus de João
de Salisbury, o adágio segundo o qual "um rei iletrado é como um asno coroado".

13. Vestis dalmatica: túnica manchada, de mangas curtas e amplas, utilizada pelos imperadores
romanos; na Idade Média, manto reservado a altos dignitários eclesiásticos. (N. T.)
14. Figura um tanto enigmática de rei-sacerdote de Salem (talvez o nome arcaico de Jerusalém),
que aparece na gesta de Abraão no Gênesis 14, 18-20. (N. T.)
15. Trata-se da tuberculose ganglionar linfática. (N. T.)

I ;; 8 ]érôme Baschet
O rei medieval deve ser- este é um elemento decisivo de seu poder- um rei
cristão, e os reis ocidentais rivalizam neste aspecto: vários se dizem "muito cris-
tãos", em particular o francês, que monopolizará este título a partir do século
XIV, enquanto os reis hispânicos reivindicarão o de "católicos". Neste sentido, o
poder real repousa sobre uma adequação às normas ideológicas definidas pela
Igreja. E ninguém preencheu melhor esta exigência do que Luís IX da França,
levada, no seu caso, até os mais extremos escrúpulos de uma devoção e de uma
penitência quase monásticas. O italiano Salimbene diz que ele parece mais um
monge que um guerreiro. Ele é, em todo caso, o rei cristão ideal, completamen-
te laico conforme o modelo desejado pelos clérigos, o que lhe terá valido as hon-
ras de uma canonização única entre os reis da Europa Ocidental depois do sécu-
lo XII (Jacques Le Goff).
O poder monárquico concentra-se, no essencial, na pessoa do próprio rei.
É por isso que os soberanos do período considerado aqui são itinerantes; eles
têm, é verdade, uma capital privilegiada, ou com freqüêcia duas, mas devem
deslocar-se incessantemente, pois sua presença física é decisiva para dar força
a suas decisões. O rei, entretanto, não está sozinho: sua família muitas vezes
exerce um papel político, benevolente (o rei capetiano confia territórios como
apanágio a seus irmãos) ou hostil (revolta dos filhos de Henrique 11 Plantage-
neta); sua corte doméstica divide os encargos da casa real, que se tornam, pouco
a pouco, funções políticas que permitem participar do conselho do rei (o condes-
tável é encarregado dos cavalos e também da guerra, o camarista faz o papel de
tesoureiro, o chanceler, geralmente um homem da Igreja, redige e autentica as
escrituras reais). Enfim, os grandes vassalos reúnem-se na corte do rei, em com-
panhia de um número crescente de especialistas, clérigos e juristas, mas também
astrólogos e médicos. É somente durante o século XIII que a corte real tende a se
fracionar em órgãos especializados, como o Parlamento, que se consagra aos
negócios de justiça, ou a corte de contas, encarregada dos rendimentos reais.
O poder do rei repousa, de início, sobre seu domínio, que durante muito
tempo forneceu o essencial de suas finanças. O rei da Inglaterra, que controla
uma sólida porcentagem do solo de seu reino, em particular as florestas, assim
como, em menor grau, o rei da França, pode "viver do que é seu", o que atrai o
ciúme do imperador. A administração do domínio é confiada a agentes reais
(prebostes dominiais, na França), que se encarregam de canalizar seus rendi-
mentos para os cofres reais. Somam-se a isso diversos direitos econômicos, que
ainda não se diferem totalmente, a não ser talvez em termos de quantidade, da
norma senhorial - direitos de pedágio ou de aduana na Inglaterra, taxa sobre o
sal (gabelle) na França - , algumas ajudas excepcionais, no caso de cruzadas,
por exemplo, e diversas cobranças sobre a Igreja (recebimento dos rendimentos

A CIVILIZAÇÃO FEUI>AL I '19


dos postos episcopais vagos; dízimo - l 0% - para ocasiões particulares, mas
que tendem, pouco a pouco, a se generalizar). A despeito da emergência das
teorias da soberania real no século Xlll, o poder do rei conserva um sabor emi-
nentemente feudal. O rei é um nobre; ele partilha os valores e o modo de vida
da aristocracia, mesmo se pretende dispor de dignidade e de prerrogativas que
o põem acima desta. No mais, utiliza as regras da vassalidade em seu benefício,
na medida em que ele é reconhecido como senhor eminente de todos os vassa-
los enfeudados de seu reino. Esta qualidade lhe permite intervir em numerosas
ocasiões, tanto as familiares e matrimoniais como as ligadas à transmissão dos
feudos. Na posição de árbitro ou de juiz, garantia do costume feudal, ele conse-
gue fazer com que o direito de arresto atue em seu benefício e recuperar, assim,
o controle direto de certos feudos. É também, enquanto senhor feudal, que pre-
tende convocar para seu ost 16 "as primeiras e as últimas fileiras", 17 quer dizer, os
vassalos diretos e indiretos, o que só obtém no caso de poder fazer com que
estes últimos temam alguma punição em caso de falta. O rei recorre muitas
vezes ao serviço de infantes, camponeses livres ou milícias urbanas e, logo, a
mercenários, em número crescente.
O rei dispõe de uma gama variada de meios para estender seu domínio dire-
to ou seu reino. Inclui-se aí, além da arte de manusear o direito feudal, a arte
das boas alianças matrimoniais (Eleonora traz a Aquitânia para Luís VII e, depois
de um divórcio inoportuno para o capetiano, para o inglês Henrique II). Mas a
conquista é ainda o meio mais seguro, e aquele que dá ao poder real mais fir-
meza. É por isso que, após a vitória de Guilherme, o Conquistador, e durante o
século XII, o reino da Inglaterra, com suas extensões sobre o continente, é um
dos mais sólidos da Europa. O Conquistador atribui-se um quinto das terras, em
particular as florestas, e uniformiza as instituições feudais em seu proveito.
O exercício da justiça real ou ducal é mantido; os sheriffs (administradores dos
shires, equivalentes aos viscondes normandos) dependem diretamente do rei
que, caso único na Europa, conserva o direito exclusivo de erguer fortificações.
Mas se o poder dos sheriffs atinge o seu apogeu no início do século XII, em segui-
da ele é pouco a pouco corroído pela extensão dos direitos de justiça e pela auto-
nomia dos senhores laicos ou eclesiásticos e, depois, pelos privilégios dos bur-
gos. Com Henrique 11 Plantageneta ( 1154-89), os domínios continentais do rei
inglês estendem-se, além da Normandia, a Anjou, Bretanha, Poitou e Aquitânia.
Ora, este território considerável, que torna o inglês bastante ameaçador, é tam-

16. Do latim hostis, indica, na Idade Média, o exército de um senhor ou soberano. (N. T.)
17. A fórmula tradicional, em francês, deixa claro os vínculos com o direito de comando militar:
"le ban et l'arril!re-ban". (N. T.)

1r,r, }érôme Baschet


bém um ponto fraco. Não somente seus feudos continentais o obrigam a prestar
homenagem ao rei da França, como também Henrique 11 se esgota, durante todo
0 seu reinado, para manter a unidade de possessões desproporcionadamente
extensas e, além disso, divididas pelo mar. O sonho de Anjou e o fardo da
Aquitânia implicam necessidades em dinheiro que jamais são satisfeitas e contri-
buem, finalmente, para enfraquecer a realeza inglesa, mesmo se esta era dotada
de sólidas vantagens. Do mesmo modo, entre os reinos ocidentais mais firmes,
deve-se assinalar aquele que os normandos estabelecem na Sicília e na Itália do
Sul, no século XII, assim como os reinos hispânicos engajados na Reconquista.
Neles, o rei, senhor da guerra e da terra, goza de grande prestígio e chega, em
nome de suas funções na luta contra o infiel, a manter importantes prerrogativas,
especialmente o controle sobre os castelos, que são passíveis de restituição. Além
do ost feudal, pode exigir a ajuda das milícias urbanas, e uma parte importante de
seu poder repousa sobre os Concejos urbanos, cuja rede estabeleceu e aos quais
concedeu amplos privilégios. Assim, a realeza fundada sobre a Conquista chega,
melhor do que as outras, a ordenar o sistema feudal em seu proveito.
No caso francês, a guerra permite não aumentar o reino, mas recuperar o seu
controle. O reinado de Filipe 11 Augusto (I 180-1223) é decisivo: seu nome, que se
refere à extensão do domínio real durante o seu reino, não é usurpado, pois, diante
dos filhos de Henrique 11 - Ricardo Coração de Leão e João Sem Terra -, ele
recupera a Normandia, Anjou e Poitou, o que confirma sua vitória estrondosa em
Bouvines, em 1214, contra a coalizão formada por João Sem Terra e o imperador
Oto IV. No continente, mas muito longe de sua ilha, o rei da Inglaterra consegue
manter apenas a Aquitânia (Guyenne e Gasconha), mas a rivalidade franco-ingle-
sa, temporariamente estagnada, ressurgirá no século XIV. Depois, sob Luís IX
(1226-70), o fim vitorioso da cruzada contra os albigenses, celebrado pelo Tratado
de Paris ( 1129), permite ao rei controlar o Languedoc, enquanto as outras posses-
sões do conde de Toulouse são transmitidas à sua filha, que desposa um irmão de
Luís IX, e retornam, finalmente, para a Coroa, em 1271. A partir de então, o domí-
nio direto cobre três quartos do reino, e são Luís, depois da morte do imperador
Frederico II, aparece como o soberano mais poderoso do Ocidente.
Duas funções fundamentais são reconhecidas ao rei: ele deve garantir a paz
e a justiça. O cuidado de manter a paz, essencial ao bem público e assegurada pela
Igreja durante certo tempo, retoma, pouco a pouco, para os soberanos. Disso
decorre, sobretudo, o direito de levar a cabo guerras justas - e é, ainda, a Igreja
que reivindica com freqüência a capacidade de determinar a legitimidade do uso
das armas. Quanto ao respeito pela justiça, ele é o dever essencial dos reis, que se
incumbem, sobretudo a partir do século XIII, de exercer efetivamente esta função.
Os reis - e não mais somente o imperador - fazem valer, então, o seu direito de

A CIVII.IZAÇÃO FEUDAL Jl, f


legislar (por editos, ordenanças ou fueros), e reivindicam a lei como base de seu
poder. É o caso de Rogério 11 da Sicília e de Henrique 11 Plantageneta, seguidos,
mais tarde, por Luís IX, na França, e por Alfonso X de Castela, a quem está asso-
ciada uma obra jurídica considerável, incluindo, principalmente, a coletânea das
Siete Partidas; por sua vez, o imperador Frederico 11 desenvolve um verdadeiro
culto à justiça, cuja alegoria ele faz representar acima de seu busto, na porta de
Cápua. O rei pretende ser a encarnação da lei, a "lei viva" (lex animata). Mas, se
ele proclama a lei, deve também respeitá-la, pois ele é, ao mesmo tempo, seu
senhor e seu servidor. Na prática, os reis esforçam-se para chamar a si os casos
considerados de domínio régio e, sobretudo, para fazer valer a possibilidade de um
recurso das sentenças senhoriais ou condais. São Luís assegura, de modo muito
particular, a promoção de um apelo ao rei, sugerindo a imagem de um soberano
que promove pessoalmente a justiça, sob seu carvalho em Vincennes (na verdade,
embora ele próprio ouça os casos, ele transfere a resolução para juristas profissio-
nais). O sucesso do procedimento é tamanho que os processos afluem para os par-
lamentos reais na segunda metade do século XIII. Isso obriga a multiplicar os
representantes locais - sheriffs na Inglaterra, baillis e sénéchaux na França, cor-
regidores na Península Ibérica-, que recebem como delegação o poder de julgar
os recursos em nome do rei, ao que se acrescentam, em seguida, funções milita-
res e fiscais (em geral, eles são assalariados e, muitas vezes, transferidos de uma
região para outra para tentar garantir sua fidelidade). Essa recuperação da justiça
pelo rei é, então, um fenômeno geral, mas sempre parcial, que se opera desde o
início do século XIII na Inglaterra e em Castela, cinqüenta anos mais tarde na
França e em Aragão (mas nunca no Império).
Seguem-se profundas modificações da concepção de justiça. Nos séculos
XI e XII, quando os tribunais senhoriais ou condais julgam em última instância,
prevalece o costume, não escrito, mas periodicamente recitado, cuja autoridade
é fundada sobre sua antiguidade e sua filiação a uma memória que tem suas raí-
zes no tempo mítico dos ancestrais. Os tribunais preocupam-se menos em resol-
ver o caso, através de sentenças enunciando uma verdade absoluta, do que che-
gar a um compromisso entre as partes, suscetível de restabelecer a paz social ou,
ao menos, conter os conflitos nos limites aceitáveis. Essencialmente arbitral, a
justiça se esforça, então, para chegar a uma reconciliação ou, ao menos, a um
acordo negociado; e é por isso que, mesmo para os casos de sangue, ela recorre
mais freqüentemente às compensações financeiras que aos castigos corporais.
Enfim, seus meios são fracos e ela deve se limitar ao procedimento acusatório,
que põe as duas partes face a face, e deixa ao acusador o encargo de aportar a
prova que fundamenta sua queixa. Nos casos mais graves, não há outro recurso
a não ser se remeter ao "julgamento de Deus", que se chama também de "ordá-

1r,~ }érôme Baschet


lio". Organiza-se, então, um duelo judiciário: cada parte escolhe seu campeão e
a sentença depende do resultado de um combate a que se credita poder revelar
a vontade divina. Em outros casos, recorre-se a uma prova -no mais das vezes,
andar sobre brasas ardentes ou suportar a queimadura do ferro em brasa ou
da água fervente-, cujo resultado manifesta, como se pensa então, a vontade de
Deus. Na verdade, o processo pode se prolongar ao longo de dias seguidos, por
exemplo, para analisar a cristalização das chagas, o que deixa às parte presentes
e à comunidade o tempo de chegar a um consenso (Peter Brown). Mas a pers-
pectiva de um ordálio e, ainda mais, de um duelo judiciário pode também ter um
efeito dissuasivo, pressionando para a busca de um acordo negociado que permi-
ta suspender a prova. Mais tarde, ampliando as críticas emitidas desde o início
do século XII por numerosos bispos, tais como Yves de Chartres, o Concílio de
Latrão IV, em 1215, proíbe aos clérigos participar dos ordálios, o que os priva
das preces indispensáveis para o seu bom desenrolar. Seu declínio se acelera a
partir de então, embora sejam ainda utilizados no decorrer do século XIII.
Com a reivindicação da lei pelo rei, é o conjunto de concepções da justiça
que se transforma. Desde o século XII, o desenvolvimento do direito nas escolas e
universidades é notável e os juristas adquirem um papel crescente. Ao lado do
estabelecimento do "direito comum", que se refere a um direito romano ampla-
mente glosado e intercalado com o direito de origem eclesiástica (o direito canô-
nico), os reis do século XIII preocupam-se com os costumes, dos quais ordenam o
registro por escrito. A redação das compilações de costumes tem duplo aspecto,
pois, se ela manifesta o reconhecimento real dos costumes, estes são, ao mesmo
tempo, fixados e interpretados pelos juristas encarregados de transcrevê-los,
enquanto o rei manifesta, assim, seu controle sobre o próprio costume e sobre o
território onde ele se aplica. A legitimidade dos julgamentos do rei, diretos ou em
instância de recurso, fundamenta-se, doravante, sobre um corpus escrito do qual
ele é a garantia e que inclui direito comum (para todo o reino) e direito costumei-
ro (particular). Desde então, a concepção arbitral da justiça se apaga em benefí-
cio de uma preocupação em fazer surgir uma verdade em conformidade com a lei.
É por isso que, no fim do século XII e, sobretudo, no século XIII - e, de início,
para os casos mais graves de heresia e lesa-majestade (atentado contra a dignida-
de real) - , o procedimento acusatório é substituído pelo procedimento inquisitó-
rio: o juiz não é mais um árbitro e deve, dali em diante, punir todo atentado con-
tra a ordem pública; ele tem, então, a faculdade de iniciar a ação penal e é a ele
que cabe o ônus da prova. Bastante nova, essa concepção da justiça permanece
largamente impotente na prática (ela pronuncia a maioria de seus julgamentos em
contumácia) e percebe-se logo que a única prova digna de fé é o reconhecimento
de culpa pelos acusados. Se essa opção é lógica em um momento em que se

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL /(,3


desenvolve também a confissão religiosa, ela conduzirá, no fim da Idade Média e
durante os Tempos Modernos, à generalização da tortura como meio legítimo de
obtenção da confissão judiciária. Enfim, a nova concepção da justiça leva a um
recuo das compensações financeiras e, sobretudo a partir do século XIV, a um de-
senvolvimento das penas infamantes (exposição no pelourinho, rituais de humi-
lhação, tais como a procissão dos culpados, nus, através da cidade) e dos castigos
corporais adaptados à diversidade dos delitos (mutilações das mãos, da língua ou
do nariz, desmembramento, decapitação ou enforcamento, morte na fogueira
ou em água fervente, esquartejamento do corpo no caso das piores traições).
No século Xlll, a concepção do poder real mudou. Antes, o rei era, a um só
tempo, um senhor feudal dentre outros e um ser à beira do sagrado, que goza-
va de um paralelo com o Cristo-rei que ocupa seu trono nos céus. Doravante,
ele afirma sua preocupação com a coisa pública (res publica) e reivindica uma
soberania estendida ao conjunto de seu reino e fundada sobre a lei. É verdade
que os progressos do poder real são devidos, em boa parte, ao hábil manuseio
das regras feudo-vassálicas e, neste sentido, a aristocracia é motivada a defen-
der uma idéia do rei como "primus inter pares'' (primeiro entre iguais). Entre-
tanto, reivindicando uma legitimidade fundada sobre a lei, o rei se esforça, ao
menos em teoria, para escapar a essa lógica. Resulta disso uma crescente opo-
sição e as lutas entre reis e barões dão lugar a múltiplas intrigas. Assim, João
Sem Terra, derrotado, deve conceder a Magna Carta, em 1215, a qual prevê
o controle do rei por um conselho de barões, enquanto, de 1258 a 1265, a
Inglaterra é sacudida pela revolta destes últimos. Mais do que relatar os inúme-
ros episódios, deverá se sublinhar que o conflito entre monarquia e aristocracia
é consubstanciai à organização feudal. Ela está sempre ativa, seja quando atua
no sentido de uma disseminação da autoridade (sobretudo entre os séculos IX e
XI, mas, às vezes, também mais tarde), seja quando permite a recuperação
de certa unidade e o reforço dos poderes mais eminentes (sobretudo a partir do
século xm). Entretanto, este segundo movimento permanece limitado. A recupe-
ração do controle da justiça é de grande importância, mas sempre parcial.
O rei continua muito longe de exercer o monopólio do poder legítimo e de con-
trolar verdadeiramente o seu território; sua capacidade administrativa permane-
ce modesta. Em resumo, o reforço do poder real não significa, então, a forma-
ção de um verdadeiro Estado. A tensão monarquia/aristocracia, mesmo se ela
atua, agora, a favor da primeira, permanece no interior do quadro definido pela
lógica feudal. Trata-se de um jogo feito de rivalidade e de unidade, de conivên-
cias e de afastamentos, que esboça, é verdade, futuras rupturas, mas que não
atinge a intensidade de uma alternativa- a nobreza ou a monarquia- da qual
surgirá, no século XVII, o Estado.

1r,-1 ]érôme Baschet


CONCLUSÃO: AS TRÊS ORDENS
DO FEUDALISMO

Três relações sociais fundamentais foram evocadas até aqui para dar conta da orga-
nização feudal: a relação senhores/dependentes; a distinção nobres/não-nobres; a
interdependência e a oposição cidades/campos. É preciso acrescentar as relações
de vassalidade, que configuram parcialmente as hierarquias no seio do grupo domi-
nante e lhe conferem uma coesão entremeada de rivalidades. Esta relação, entre
um senhor e o vassalo que se declara seu "homem", por vezes "de mão e de boca",
é muito próxima daquela que liga um senhor do senhorio a seus dependentes;
ambas, de resto, são pensadas em termos da relação entre o homem e Deus (domi-
nus). Elas são, entretanto, de natureza e de importância radicalmente diferentes.
A primeira concerne à ínfima minoria das classes dominantes, mas se beneficia da
solenidade do ritual da homenagem; a segunda engaja a quase totalidade da popu-
lação e põe em jogo o essencial das relações feudais de produção.
Desde que se renuncie a considerar as relações vassálicas o coração da
sociedade medieval, como queria a historiografia centrada nos aspectos institu-
cionais e políticos, surge uma polêmica semântica. Mais do que continuar a falar
de sociedade feudal, o que parece pôr a ênfase sobre o feudo e sobre as institui-
ções da vassalidade que regulamentam sua transmissão, não seria melhor prefe-
rir a noção de sociedade senhorial? O que é certo é que o senhorio é, de fato, a
unidade de base, no seio da qual se instaura a relação de dominação e de explo-
ração entre dominantes e dominados. O argumento é bastante válido, pois ele
procura deslocar a ênfase da vassalidade para o senhorio e para a relação de
dominium que nele se estabelece. Mas se pode também notar que a especifici-
dade do senhorio - a junção do poder sobre as terras e do poder sobre os
homens - é estreitamente associada ao desenvolvimento da feudalização, ou,
melhor, à disseminação da autoridade da qual ela é uma das modalidades. E, se
as instituições vassálicas têm um papel na afirmação da dominação senhorial,
elas contribuem de modo notável, embora em associação com outros laços, em
particular os de parentela ou de amizade, para a distribuição das posições domi-
nantes no seio da relação de dominium. Mas, sobretudo, os termos clássicos
sociedade feudal e feudalismo remetem a uma convenção tão solidamente anco-
rada que é mais fecundo transformar a sua compreensão do que modificar seu
nome: "Se feudal serve com freqüência para caracterizar sociedades nas quais o
feudo certamente não foi o traço mais significativo, não há nada nisso que con-
tradiga a prática universal de todas as ciências [... ]. Ficaríamos escandalizados se

A CIVILIZAÇÀU FEUDAL [1,';


o físico persistisse nomear átomo, quer dizer, indivisível, o objeto de suas mais
audaciosas dissecações?" (Marc Bloch). Como diz Jacques Le Goff, as estrutu-
ras que funcionaram na Europa dos séculos IV ao XVIII têm necessidade de um
nome e "se é preciso conservar 'feudalismo' é porque, de todas as palavras possí-
veis, é a que melhor indica que nós estamos lidando com um sistema".
Evidentemente, é sob uma forma sensivelmente diferente - o que não tem
nada de anormal - que a sociedade medieval pensava a si própria. Para tal finali-
dade, os dominantes tinham elaborado o esquema de três ordens, estabelecendo
no seio da sociedade uma divisão funcional entre "aqueles que oram" (oratores),
quer dizer, os clérigos, "aqueles que combatem" (bellatores), reservando aos milites
uma atividade guerreira que era inicialmente o atributo de todos os homens livres,
e "aqueles que trabalham" (laboratores), ou seja, todos os demais. Se a complemen-
tariedade das três ordens - em que cada uma delas é considerada indispensável
às duas outras e necessária ao bom funcionamento do corpo social- prevalece de
início, logo ela se combina com uma clara hierarquia estabelecida entre elas. Esse
modelo aparece na época carolíngia, sob a pena de Aimon de Auxerre, e depois, no
início do século XI, em Adalberon de Laon e Geraldo de Cambrai, dois bispos liga-
dos ao poder real. Trata-se, então, de uma arma do clero secular contra o poderio
dos monges, e do rei contra a força da aristocracia. Durante um longo eclipse, em
meio ao qual predomina uma oposição dual entre clérigos e laicos, é no fim do
século XII que o esquema tripartite se impõe, nas cortes da Inglaterra e da França,
antes de se generalizar, mas sem destronar a dualidade clérigos/laicos, que conser-
va uma ampla pertinência. Suscetível de usos diversos, ele é, no mais das vezes,
posto a serviço da reafirmação do poder real em face dos senhores e dos bispos em
face dos monges, contribuindo para manter em posição subalterna os novos grupos
urbanos, fundidos com os dependentes rurais na massa daqueles que penam no
trabalho. Evidentemente, o modelo das três ordens não é uma descrição da reali-
dade social; é uma construção ideológica em conformidade com "o imaginário do
feudalismo" (Georges Duby). Em todo caso, ela se concretiza, embora tardiamen-
te, na organização em ordens separadas da assembléia dos Estados que a monar-
quia francesa convoca em caso de necessidade entre 1484 e 1789. Enfim, mesmo
sendo suscetível de servir aos interesses da realeza, o esquema trifuncional da
sociedade remete a uma visão dominada pelo clero, que continua sendo, até o fim
do Antigo Regime, a primeira ordem da sociedade. De fato, se se pôde identificar
a aristocracia como classe dominante do sistema feudal, essa constatação perma-
nece insuficiente, pois a ideologia do feudalismo põe acima desta a Igreja, cuja aná-
lise, tão indispensável, deve ser empreendida a seguir.

1 r, r }érôme Baschet
I I I

A
IGREJA, INSTITUIÇÃO
DOMINANTE DO FEUDALISMO

De tudo que se disse sobre o feudalismo, falta ainda um elemento fundamen-


tal, sem dúvida, o mais importante. Com efeito, o esquema das três ordens defi-
ne uma clara hierarquia, no topo da qual se encontram os que oram, antes da
própria aristocracia. Entretanto, mais do que ao clero como casta separada,
deve-se prestar atenção à relação social que se estabelece entre os clérigos e os
laicos. Seja exprimindo-se sob a forma de uma dualidade ou inscrevendo-se no
esquema das três ordens, esta relação-oposição constitui uma estrutura essen-
cial do mundo feudal, e os clérigos sempre precedem os laicos no cortejo social.
Mas o que é a Igreja na Idade Média? O termo, tomado de empréstimo do
grego (eklesia: assembléia), designa a princípio a comunidade dos fiéis; este é o
único sentido de que ele é revestido em Bizâncio, assim como no Ocidente
durante os primeiros séculos da Idade Média. Depois, a palavra "igreja" passa a
designar também o edifício onde se reúnem os fiéis e onde se desenrola o culto.
Na época carolíngia, os dois aspectos parecem ainda indissociáveis e o liturgis-
ta Amalário de Metz (t 850) afirma: "Esta casa é chamada ecclesia porque ela
contém a ecclesia". No século XII, os dois sentidos da palavra ganham mais auto-
nomia e Alain de Lille indica que a igreja é "tanto um lugar material, como a
reunião dos fiéis". Tal materialização das realidades espirituais, que inscreve
o sagrado nos lugares físicos, acompanha o reforço do poder dos clérigos e da ins-
tituição eclesiástica. De resto, ao mesmo tempo, o termo "igreja" é carregado de
um novo significado, designando a parte institucional da comunidade, quer
dizer, o clero. A partir daí, associações e deslocamentos constantes entre os três
sentidos da palavra "igreja" acabam constituindo um notável instrumento ideo-
lógico, por exemplo, quando se identifica a igreja material (edifício) com a igre-
ja espiritual (ao mesmo tempo, comunidade terrestre e Jerusalém celeste). Do
mesmo modo, quando se joga com a ambigüidade entre a Igreja como comuni-

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL /f,-;


dade e a Igreja como instituição, uma sinédoque (em que a parte vale pelo todo)
concentra nos guias clericais as virtudes associadas à comunidade de todos os
cristãos. Ora, a partir dos séculos XI e XII, o termo "igreja" é cada vez mais iden-
tificado com seus membros eclesiásticos, enquanto, para designar o conjunto
dos fiéis, se recorre à noção, já esboçada no século IX, de cristandade (christia-
nitas ou populus christianus). Essa questão semântica faz, assim, pressentir a
implicação de que este capítulo deverá dar conta: a acentuação da separação
entre clérigos e laicos e o reforço dos poderes da instituição eclesial.
Se o significado comunitário da Igreja tende a ser eclipsado, ele não pode
desaparecer totalmente. A fim de que a legitimidade da instituição seja funda-
da sobre a substituição do todo por sua parte mais eminente, a palavra deve
também significar a cristandade em seu conjunto. Assim, se a Igreja - identi-
ficada ao clero - ordena e dirige a sociedade, em seu sentido comunitário, ela
é a própria sociedade. "No Ocidente latino dos séculos XI e XII, Igreja e socieda-
de chegam a tornar-se noções coexistentes" (Dominique Iogna-Prat). É impos-
sível, então, tratá-la como se fosse um simples setor, dentre outros, da realida-
de medieval. No mais, se a Igreja é a própria sociedade, não há nenhum sentido
em recorrer à noção de religião tal como nós a entendemos hoje, enquanto cren-
ça pessoal livremente escolhida (esboçada no século XVI, por exemplo, por
Bartolomeu de Las Casas, é consolidada somente pelo Iluminismo, no século
XVIII). A fé medieval refere-se menos à crença íntima do que à fidelidade no sen-
tido feudal do termo, quer dizer, uma fidelidade prática, manifestada por atos,
palavras e gestos. Sobretudo, não seria questão de escolha pessoal: é-se cristão
porque se nasce no cristianismo. É uma identidade herdada (pelo ritual do
batismo), que não se discute.
Embora a religião no sentido contemporâneo do termo não exista na Idade
Média, as questões relativas à organização da Igreja, quer dizer, às relações entre
os clérigos e os laicos, de um lado, entre os homens e o mundo celeste, de outro,
são evidentemente centrais, mas nem por isso formam, em decorrência, um
setor autônomo e separado do restante da atividade coletiva. Elas são, pelo contrá-
rio, inseparavelmente imbricadas ("incrustadas", segundo a famosa expressão
de Karl Polanyi) no conjunto das realidades sociais. É preciso, então, cessar
de pôr o estudo da Igreja à margem da análise do feudalismo, sob o pretexto de
que ele diria respeito a um capítulo "religião", que tivesse apenas relações
acessórias com as estruturas sociais. Repitamos ainda uma vez: a Idade Média
ignora toda a autonomização do domínio religioso, pois a Igreja, como comu-
nidade, é a sociedade em sua globalidade, enquanto, como instituição, ela é
sua parte dominante, que determina suas principais regras de funcionamento.

1r, 8 }érôme Baschet


Como sugeriu vigorosamente Alain Guerreau, só se tem a ganhar em conside-
rar a Igreja a garantia da unidade da sociedade feudal, sua coluna vertebral e o
fermento de seu dinamismo.

ÜS FUNDAMENTOS DO PODER ECLESIAL

Unidade e diversidade da instituição eclesial

Diz-se que a Igreja é a instituição dominante do feudalismo: ela se reproduz


com sucesso como instituição, mas sem que as posições em seu interior sejam
transmitidas de maneira principalmente genealógica, como é habitual para uma
classe social. É verdade que se pode considerar o alto clero como a fração supe-
rior do grupo dominante, embora ele não forme, enquanto clerol' uma classe
propriamente dita. Aliás, as relações entre o clero e a aristocracia são awbiva-
lentes. Esses dois grupos são ainda mais próximos pelo fato de que os filhos da
aristocracia monopolizam o essencial dos cargos do alto clero", mesmo se não
existe nenhuma exclusividade nessa questão. Entretanto, a integração à Igreja
rompe- na teoria e, em boa parte, na prática- os laços que unem o clérigo
à sua parentela. Por vezes, um abade ou um bispo poderá obter mais facilmen-
te de seus parentes que permaneceram seculares concessões em favor da Igreja
(ou inversamente); porém, com mais freqüência, a diferença de posição faz pre-
valecer os contrastes de interesses entre clérigos e laicos. Clero e aristocracia
são, assim, cúmplices na obra de dominação, aliados perante os dominados, mas
também são concorrentes, como indica uma infinidade de conflitos, notada-
mente pelo controle das terras e dos direitos que estruturam a organização dos
senhorios, tanto laicos como eclesiásticos. As numerosas críticas que os clérigos
lançam contra os cavaleiros tirânicos e rapaces, acusados de "maus costumes",
são freqüentemente, e em especial durante a fase mais aguda do processo de
encelulamento, um meio de defender as prerrogativas da Igreja e de seus pró-
prios senhorios. Existe, então, uma rivalidade entre os dois pólos do grupo domi-
nante, mas que permanece submetida ao adequado exercício de sua superiori-
dade sobre os dominados.
A própria instituição eclesial não é homogênea. Além das contradições de
interesse ou dos conflitos doutrinais que podem opor em seu interior diferentes
tendências, existem importantes dualidades institucionais. Uma é hierárquica e
bastante simplificada quando se opõem ao alto e ao baixo cleros, mas pelo
menos nos lembra uma importante distância entre os grandes dignitários (aba-

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL f1,9


des, bispos, arcebispos, cardeais e papas), alguns dos quais estão entre os prín-
cipes mais poderosos de sua época, e simples monges e sacerdotes, cujo poder
e prestígio permanecem, em geral, circunscritos ao quadro local. Se bem que
ela se modifique sensivelmente no decorrer dos séculos, a diferença de posição
entre os clérigos regulares e os clérigos seculares não é de menor importância.
Entrando em uma ordem monástica, da qual eles aceitam a Regra, os primeiros
escolhem a fuga ao mundo e o isolamento penitenciai, consagrando-se ao servi-
ço de Deus pela prece, pelo estudo e, por vezes, pela atividade manual. Quanto
aos últimos, que se conservam na vida secular, em meio ao mundo e em conta-
to com os laicos, eles têm por missão o cuidado das almas (cura animarum, de
onde o nome dado aos curas, responsáveis pelas paróquias, cuja rede está se for-
mando então), através da administração dos sacramentos e do ensinamento da
palavra divina. Mesmo se alguns podem combinar as duas filiações ou passar
de uma a outra, e mesmo se, entre os séculos XI e XIII, as missões dos regulares
e dos seculares se imbricam cada vez mais, trata-se de duas concepções diferen-
tes do mundo, cuja fortuna se modifica, e de duas hierarquias paralelas (a pri-
meira, aberta parcialmente às mulheres; a segunda, estritamente reservada aos
homens), entre as quais a competição é muitas vezes rude.
Entretanto, apesar de numerosas diferenças internas, a Igreja existe como
unidade, definida, a um só tempo, institucional e liturgicamente. A dualidade
que separa clérigos e laicos é, a esse respeito, fundamental, mesmo se existe
uma zona intermediária e relativamente fluida na fronteira destes dois status.
Assim, indivíduos podem permanecer laicos, mesmo integrando-se ou aproxi-
mando-se do modo de vida monástico (os conversos de Cluny são integrados à
comunidade monástica, embora em posição subalterna, enquanto, entre os cis-
tercienses, eles são mantidos a distância dos monges e encarregados de tarefas
manuais; assinalemos, ainda, os membros das ordens terceiras mendicantes e as
beguinas do fim da Idade Média, mulheres laicas que vivem na cidade à manei-
ra das monjas). Além disso, alguns receberam apenas as ordens menores do
clero (ostiário, leitor exorcista, acólito), ou somente a tonsura que, conferida
pelo bispo, dá o status de clérigo (o que é, geralmente, requerido para seguir um
ensino universitário). A ligação com o clero parece, então, de uma dupla moda-
lidade: a tonsura e as ordens menores são suficientes para conferir o status de
clérigo, mas apenas o acesso às ordens maiores (subdiácono, diácono, sacerdo-
te) ou a entrada na ordem monástica investem de um verdadeiro poder simbó-
lico e impõem um modo de vida fora do comum, marcado pela abstinência
sexual. É por isso que, na França da Idade Média, um terço dos clérigos pode,
sem contradição, dizer-se casado (pois eles receberam apenas as ordens meno-
res ou a tonsura). Entretanto, essas situações intermediárias não diminuem em

1 -~I }érôme Baschet


nada a importância fundamental da dualidade clérigos/laicos (de resto, é da
natureza de toda realidade social ser um continuum de situações concretas, de
modo que a delimitação dos grupos sociais é sempre secundária em relação à
identificação das polaridades que estruturam o espaço social). Como afirma
com todo o vigor necessário, por volta de 1130-50, o Decreto, atribuído a
Graciano, obra fundadora do direito canônico, "existem dois tipos de cristãos",
os clérigos e os laicos. O modo de vida dos primeiros se caracteriza pela renún-
cia ao casamento, ao trabalho na terra e a toda posse privada. Graciano salien-
ta, ainda, que o estatuto destes é marcado pela tonsura, sinal de escolha divina
e de realeza dos clérigos - uma realeza evidentemente espiritual, pois o corte
dos cabelos significa também a renúncia às coisas materiais. Trata-se, igualmen-
te, de uma distinção de estatuto jurídico, pois os clérigos, beneficiando-se do pri-
vilégio do foro eclesiástico, não podem ser julgados pelos laicos, mas somente por
um tribunal eclesiástico, principalmente o do bispo. Que a simples tonsura per-
mita reivindicar este privilégio e que os tribunais devam, por vezes, cassar os fal-
sos clérigos que tentam arrogá-lo indevidamente não põe absolutamente em
causa essa dualidade. Tais disputas mostram, ao contrário, a sua força, para
além das dificuldades de classificação das pessoas. No geral, o clero constitui
um grupo privilegiado e investido de um prestígio sagrado, que engloba, segun-
do toda verossimilhança - mesmo incluindo nele suas margens inferiores - ,
bem menos de um décimo da população medieval.

Acumulação material e poder espiritual

O poder material da Igreja repousa, em primeiro lugar, sobre uma excepcional


capacidade de acumulação de terras e de bens. O processo inicia-se desde o
século IV, quando os cristãos começam a fazer doações à Igreja, especialmente
nas vésperas do trespasse, a fim de assegurar a salvação de suas almas no além.
Este fenômeno prolonga-se durante a Idade Média e as doações piedosas que
os príncipes e os senhores fazem aos monastérios são particularmente abundan-
tes no decorrer dos séculos XI e XII (figura 11, na p. 172). Eles também fundam
novos estabelecimentos monásticos, que dotam dos bens necessários ao seu
funcionamento, de modo a assegurar o apoio material e espiritual de "amigos
poderosos", tanto daqui debaixo como do além. É verdade que os dons em ter-
ras são, por vezes, menos generosos do que parecem: podem tratar-se, na verda-
de, da restituição de um bem usurpado, da compensação de uma outra vanta-
gem ou, ainda, de uma troca. Entretanto, para evitar que eles sejam contestados
pelos herdeiros do doador, adota-se a fórmula da laudatio parentum, que, desde

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL /-/


I I. L1rna cena de doação, simbolizada pela entrq!,a de uma igreja em miniatura. primeiro quartel do
século \11 (capitel da catl'dral dl' S;io Litaro, t•m :\utun).
SohrL" l'"ll' c..·.apitel. hoje no 11lll"'l'll, um laico. ,·, esqul'rd.l. t' um ck·rigo. com "'L'll c;ajado CUJa l'\tn·midtKil' cst.í
quehrad,J. ~egur.un um modl'lo dl' igrl'j.ac..·m mini.aturil. simholo dl' uma fural.u~;<io nm.a ou dl' um hcmcdc~ial
~endo objeto dl' um.a doou;.io. ():.... hra,·os e~tendidos do primeiro pcrsonagl'm indiL·am. prman.•lnwntl'. que o
laico oferece a igreja. enquanto o dl•rigo a fL't:l'be, tendo o hra,·o dobrado. Em todo ca~o. um anjo s.1i da nun·m
l' parecc aceitar o ~Iom ou, ao m<.·no~. hent.t·-lo. f: o sinal dl' que.· a~ doa,·f>e~ picdo~a~ c..·~l<io .~~~ociada~ .1 um ~i~­
lema triangular: Deus ou os ~antos s;.io ~t·u~ H'rdadciros destinat<írio~. <.'o~ cll•rigo~. simple~ "deposit.írio~".
logo, associa os parentes ao ato de doação e lhes permite compartilhar seus
benefícios espirituais.
O resultado é eloqüente. Desde o século VIII, a Igreja possui cerca de um
terço das terras cultivadas na França, porcentagem que continua idêntica no
século XIII (mas que parece baixar para lO% no Norte da Itália). Na Inglaterra,
a Igreja concentra um quarto das terras em 1066 e 31% em 1279. Sem multi-
plicar ainda mais os números, pode-se reter que, segundo os lugares e as épo-
cas, a Igreja em geral possui entre um quarto e um terço das terras. Isso quer
dizer que as diversas autoridades episcopais ou monásticas que a compõem são
poderosos senhores feudais. De fato, por ter sido objeto de uma doação piedo-
sa, numerosos senhorios, talvez um terço deles, têm em seu comando uma ins-
tituição da Igreja - um monastério e seu abade, um cabido de catedral ou um
bispo - que faz pesar sobre os dependentes os pagamentos e as obrigações
associados ao poder senhorial, inclusive o exercício da justiça (sem falar dos
casos de co-senhorios, partilhadas entre um laico e um monastério). Enfim, a
situação particularmente vantajosa da Igreja apenas se consolida, pois, se rece-
be muito, não transmite nada. Diferentemente dos bens aristocráticos, com fre-
qüência divididos e submetidos aos imprevistos dos destinos biológicos das
linhagens, tudo o que chega à instituição eclesial permanece em sua posse. Na
teoria, o patrimônio da Igreja. não pode ser diminuído e os doadores muitas
vezes enfatizam que seu bem lhe é dado de maneira perpétua, não podendo ser
nem cedido, nem mesmo trocado. Entretanto, os períodos de turbulência favo-
recem a usurpação dos bens da Igreja pelos laicos, e o conluio entre o alto clero
e a aristocracia pode apresentar algumas desvantagens, por exemplo, quando
um bispo desonesto concede bens diocesanos como feudo aos membros de sua
própria família. E mesmo se a Igreja deve arcar com despesas importantes, que
podem eventualmente obrigá-la a ceder algumas terras ou a penhorar bens
móveis, sua posição é tal que ela se beneficia de uma capacidade de acumula-
ção desigual no seio da sociedade feudal.
Além das terras, é preciso incluir entre os bens da Igreja os edifícios, tais
como os monastérios, as catedrais, as dependências e os palácios episcopais.
A maior parte é rica em objetos preciosos: decorações murais e tapeçarias, ves-
tes litúrgicas, retábulos e estátuas, altares e poltronas, livros e cruzes, cálices,
vasos e relicários, muitas vezes feitos de ouro ou de prata e incrustados de
pedras preciosas, todos dotados de um grande valor espiritual e material. Esses
objetos, por vezes também dons dos laicos, constituem o "tesouro" de cada igre-
ja: é assim que se nomeia, na época, a coleção de seus relicários, livros e obje-
tos mais preciosos (veja as figuras 20 e 48, nas pp.209 e 489). Tal tesouro, onde
o material e o espiritual se misturam indissoluvelmente, é o melhor meio de

A CIVILIZAÇAO FEUDAL J73


aumentar ainda mais os rendimentos de uma igreja, pois eles atraem os peregri-
nos, que não economizam suas dádivas para um santo prestigioso e para sua
"casa", na esperança de graças no futuro ou em agradecimento àquelas já rece-
bidas. Mas tais objetos também são os primeiros a ser pilhados e, tratando-se de
vasos litúrgicos, os primeiros a ser vendidos ou cedidos em penhor nos períodos
difíceis. Enfim, lembremos que Carlos Magno tornou obrigatório o dízimo, que
consiste, em média, em um décimo da colheita ou do produto das outras ativi-
dades produtivas e que é destinado, em teoria, ao sustento dos clérigos que se
encarregam das almas, pois estes não podem trabalhar a terra nem produzir com
suas próprias mãos (o que os faria decair para a ordem inferior da sociedade).
Como se verá, ao longo dos séculos X e XI os dízimos são com freqüência des-
viados pelos senhores laicos ou pelos monges; uma vez recuperados, cerca da
metade ou um terço do montante volta para o eclesiástico servidor da paróquia,
o restante sendo devido ao bispo e consagrado ao sustento dos pobres. Além de
sua destinação prática, o dízimo é também a garantia de um reconhecimento
do poder dos clérigos; ele é o "sinal da dominação universal da Igreja", segundo
a expressão do papa Inocêncio III (toda forma de resistência contra o clero é,
então, marcada logicamente por uma recusa ou, ao menos, por uma reticência
ao pagamento dessa obrigação).
Tudo o que precede seria incompreensível sem o poder espiritual associa-
do à própria função dos oratores. Seu ofício consiste em orar e em realizar ritos,
não apenas para eles mesmos, mas para o conjunto dos cristãos, que podem
assim, sem nem mesmo pensar que outros se encarregam pela sua salvação,
dedicar-se às atividades próprias à sua ordem, combater ou produzir (figuras 12,
pp. 176 e 177). Os especialistas da prece e da liturgia, que são os clérigos, ofi-
ciam para todos os seres vivos, e mais ainda para os mortos, o que se torna uma
grande especialidade monástica, sobretudo nos séculos. X a XII. As doações pro
remedio animae (para o apaziguamento da alma) permitem a inclusão entre os
familiares da comunidade monástica, em favor dos quais ela dirige suas preces
e celebra missas, ou mesmo ver seu nome incluído no livro da vida (ou necrolo-
gia) do monastério, a fim de que sua memória seja periodicamente evocada.
Além da prece para os mortos, os clérigos assumem duas funções principais, em
virtude do poder sagrado conferido pelo ritual de ordenação sacerdotal: transmi-
tir o ensinamento e a palavra de Deus e conferir os sacramentos, sem os quais
a sociedade cristã não poderia se reproduzir. Trata-se, em primeiro lugar, do
batismo, que, de uma só vez, abre a promessa de salvação (por isso ele é cha-
mado de "porta do céu") e dá acesso à comunidade cristã e, em conseqüência,
à vida em sociedade (não existe forma de registro da existência social indepen-
dente da Igreja antes do aparecimento do registro civil, em fins do século XVIII).

1- ~ jérôme Baschet
O ritual eucarístico não é menos fundamental. Golpe de mestre do cristianis-
mo, pelo qual o sacrifício do deus supera definitivamente o sacrifício ao deus, a
missa (durante a qual "se oferece o deus a ele próprio", segundo a expressão de
Mareei Mauss) reafirma constantemente a coesão da sociedade cristã. Pela rei-
teração do sacrifício redentor de Cristo, ela garante a incorporação dos fiéis à
comunidade eclesial e, enquanto sacrifício oferecido por esta, assegura a circu-
lação das graças na esperança de salvação dos justos.
Na segunda parte retornaremos aos sacramentos, e particularmente ao
casamento (os que já foram citados formam -com a confissão, a crisma, a
extrema-unção e a ordenação - o septenário que se constitui no século XII).
Mas, desde já, constata-se claramente que esses ritos são indispensáveis para
assegurar a coesão da sociedade cristã, assim como o desenvolvimento de cada
vida individual em seu seio. Eles marcam suas etapas principais (nascimento,
casamento e morte) e autorizam, por si sós, a esperança de salvação no outro
mundo, sem o que a vida terrestre seria privada de sentido cristão. Ora, todos
esses ritos só podem ser realizados pelos sacerdotes (por vezes, discute-se se um
laico pode, em caso de urgência, proceder a um batismo, mas trata-se de um caso-
limite, que não tem nenhum efeito prático e não põe em causa a regra funda-
mental). Assim, os clérigos, especialistas do sagrado e dispensadores exclusivos
dos sacramentos necessários a toda vida cristã, dispõem de um monopólio
decisivo: não se pode nem viver em cristandade nem realizar sua salvação sem
o seu concurso. Os fiéis não podem se beneficiar da graça divina sem fazer
apelo à mediação dos clérigos, sem recorrer aos gestos que a ordenação sacer-
dotal dota de um poder sagrado. O clero é um intermediário obrigatório entre
os homens e Deus.
Seria absurdo - mas bem em conformidade com nossos hábitos de pensa-
mento- separar a parte material e a parte espiritual do poder da Igreja. Na lógi-
ca do sistema medieval, tal divisão não tem sentido, pois a Igreja se define nela
pelo fato de ser, ao mesmo tempo, uma instituição encarnada, fundada sobre
bases materiais bastante sólidas, e uma entidade espiritual, sagrada (mesmo se
a maneira de articular estas duas dimensões esteja longe de não apresentar difi-
culdades, como veremos). Ela não teria nenhum poder material se não lhe fosse
reconhecido um imenso poder espiritual: nenhuma doação de terras ou de bens
ocorreria sem o arrependimento que nasce ao termo de uma vida sobre a qual
pesa a reprovação dos clérigos, sem a preocupação de salvação da alma e sem a
idéia de que a Igreja pode ajudar os defuntos no além. Além disso, não se faz
um dom à Igreja para que ela acumule, mas para que, por sua vez, ela também
doe (uma ajuda material aos pobres e aos enfermos, graças espirituais aos doa-
dores e a seus próximos). Convém, então, retificar a expressão utilizada acima:

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12. A procissão do papa Gregório, o Grande, estanca a peste que assola Roma, c. 1413 (Riquíssimas
horas do duque de Berry, Museu Condé, Chantilly, 65, fls. 71 v.-72).
Esta suntuosa miniatura, habilmente disposta às margens de salmos penitenciais e de litanias, põe em cena um
milagre atribuído a Gregório, o Grande: em 590, o arcanjo Gabriel lhe aparece acima do castelo de Sant'Ângelo
embainhando sua espada para indicar o fim da epidemia de peste (chamada de Justiniano). Claramente, a ima-
gem tem pouco a ver com as realidades do século vr e evoca mais o fausto da igreja romana do fim da Idade
-:lédia. Roma aparece como uma cidade gótica e a hierarquia clerical é representada de maneira cuidadosamen-
e ordenada, sob a autoridade do papa, que porta a tiara e está associado ao colégio dos cardeais. A abundância
los objetos litúrgicos é impressionante: cruzes e estandartes de procissão, incensórios e aspersórios, livros orna-
.os de pesadas encadernações, ostensórios e relicários. A imagem mostra, além disso, uma forma freqüente de
•rática litúrgica do espaço: a deambulação processional em torno das muralhas, que fortifica simbolicamente a
lelimitação entre interior e exterior a fim de preservar a cidade das ameaças que pesam sobre ela.
se a Igreja é dotada de uma excepcional capacidade de acumular terras e
riquezas, é porque se lhe reconhece uma força distributiva ainda maior; é por-
que ela está apta a garantir uma circulação generalizada das benesses mate-
riais e espirituais.

A circulação generalizada dos bens e das graças

Desde o início do século XX, adquiriu-se o hábito de considerar que os fiéis dão
à Igreja bens materiais em troca de graças recebidas ou esperadas (proteção,
cura, salvação), referindo-se de maneira mais ou menos precisa à lógica do dom
e contradom analisada por Mareei Mauss (a qual não supõe absolutamente um
jogo de resultado nulo entre participantes situados em um plano de igualdade).
Vários estudos recentes nos convidam a modificar essa leitura. Com efeito, ao
menos quatro pólos intervêm: além dos clérigos e dos doadores, é preciso inte-
grar os pobres, encarnações do próximo e duplos de Cristo, aos quais é destina-
da uma parte dos dons feitos à Igreja e, sobretudo, não esquecer de incluir Deus
e os santos, únicos dispensadores possíveis da graça espiritual e verdadeiros des-
tinatários das doações, que os monges recebem em seu nome (figura 11, na
p. 172). Além disso, a operação que ocorre aqui é bem mais coletiva do que
parece: conforme a lógica da laudatio parentum, as doações engajam igualmen-
te a parentela e os atos especificam que elas são feitas para servir de amparo não
somente à alma do doador, mas também às almas de seus próximos e (se seguir-
mos Michel Lauwers, talvez principalmente) às de seus ancestrais; a isso pode-
mos acrescentar que, se as preces dos monges mencionam especificamente o
nome dos doadores, elas visam, ao mesmo tempo, assegurar a salvação de toda
a cristandade. Enfim, numerosos traços escapam à lógica do dom e contradom:
aquele que doa não é necessariamente o que recebe, de modo que ninguém
pode estar seguro do que receberá (os clérigos não poderiam comprometer de
modo infalível o Todo-Poderoso, que é o único a conceder a salvação); o que
dá é, de fato, aquele que já recebeu (os clérigos insistem sobre o fato de que os
doadores apenas restituem uma parte dos bens dados por Deus); o que se rece-
be nunca é direta e proporcionalmente ligado ao que foi dado (pois, em toda
graça espiritual, intervêm de modo determinante o tesouro dos méritos acumu-
lados pelos santos e os efeitos favoráveis de sua intercessão permanente junto a
Deus, assim como a totalidade das oferendas eucarísticas realizadas no conjun-
to da cristandade).
É verdade que os aristocratas que doam terras esperam que esse gesto lhes
valha, a eles e a seus ancestrais, graças espirituais e, em primeiro lugar, a salva-

1-,, }éróme Baschet


ção no além. Mas, mais do que uma lógica do dom/contradom, trata-se, atra-
vés da doação aos santos e a Deus, de operar uma espiritualização dos bens
oferecidos, que os transforme em realidades espirituais mais úteis que os bens
materiais, enquanto a incorporação dos doadores em uma comunidade monás-
tica lhes assegura a ajuda de uma vasta rede de amigos piedosos e espiritual-
mente poderosos (Dominique logna-Prat). Sobretudo, a prática do dom na
sociedade cristã não pode ser analisada sem se considerar a noção fundamen-
tal de caridade (caritas), que designa o amor puro do qual o Criador é a fonte
e em virtude do qual o homem ama não apenas Deus, mas também o seu pró-
ximo, pelo amor por Deus (segunda parte, capítulo v). Anita Guerreau-Jalabert
demonstrou que, a partir de tais bases, não poderia existir senão um "sistema
de troca generalizada", "excluindo toda a reciprocidade estreita e exclusiva".
Nesse quadro, não se poderia dar para receber em troca: só existe dom válido
se ele é gratuito, realizado sem nada esperar, por amor a Deus, assim como o
próprio Deus se entregou gratuitamente à morte para a salvação da humanida-
de. O dom interessado, que espera algo em troca, é denunciado como sinal de
vaidade e de cupidez, de modo que há interesse em ser desinteressado, sem
que seja possível ser desinteressado por interesse. Na cristandade- e a des-
peito da aparência de comércio de que se pode revestir a relação com as figu-
ras sobrenaturais em certas narrativas de milagres, por exemplo, nas Cantigas
de Santa Maria, de Alfonso, o Sábio - , doa-se e recebe-se, mas não se pode-
ria dar para receber e, sobretudo, não se recebe porque se doou. Deve-se dar
para contribuir para o grande tesouro, a um só tempo material e espiritualiza-
do pelo dom, que cabe à Igreja gerir. E recebe-se, pois existe esse grande tesou-
ro de graças espirituais, conversíveis em graças materiais.
O dom gratuito feito a Deus e aos santos é, então, uma maneira privilegia-
da de se integrar à rede de troca generalizada dos bens e das graças, de contri-
buir para seu bom funcionamento, na esperança de que este acabará por difun-
dir para o indivíduo e seus parentes algumas de suas benesses, tanto aqui
embaixo como no além (ao inverso, o avaro, culpado de entesourar, e todos aque-
les que se mostram negligentes nas exigências do dom, excluem-se dessa rede e
expõem-se a pesadas conseqüências). No centro desse sistema, inegavelmente,
encontra-se a Igreja, operadora decisiva da transmutação do material em espiri-
tual e intermediária obrigatória nas trocas entre os homens e Deus. Pois é preci-
so ainda acrescentar que o sacrifício eucarístico é o motor indispensável para a
circulação das graças. É essencialmente pelas missas que os clérigos celebram
que os bens materiais oferecidos pelos doadores transformam-se em benesses
para as almas. Mais amplamente, é pela missa, sacrifício ao deus que só tem sen-
tido porque ele é sacrifício do deus, que são garantidas, a um só tempo, a coesão

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL /-:-9


do corpo social e a circulação, em seu seio, da graça divina. Finalmente, é por-
que ela ocupa essa posição de operadora decisiva e de intermediária obrigatória
na troca generalizada que a Igreja dispõe de tantos bens materiais, que os laicos
oferecem a Deus e aos santos e confiam a seus cuidados perpetuamente.
Não podemos terminar este primeiro esboço da organização da Igreja,
essencialmente fundado sobre sua capacidade de assegurar a coesão do corpo
social, sem evocar a parte coercitiva de seu poder. À capacidade de incluir os
fiéis na unidade da comunidade terrestre e potencialmente na glória da Igreja
celeste, corresponde um temível poder de exclusão detido pelos clérigos. A exco-
munhão consiste, com efeito, em rejeitar o pecador, deixando-o fora da socieda-
de cristã, interditando-lhe o acesso aos sacramentos, particularmente à comu-
nhão (a qual aparece como sinal tangível da integração social), e negando-lhe a
possibilidade de ser enterrado na terra consagrada do cemitério cristão. É ver-
dade que a excomunhão é somente uma pena terrestre, que não é assimilada à
danação eterna, mas, privando o culpado dos meios indispensáveis de salvação
que são os sacramentos, fazendo-lhe correr o risco de morrer em estado de
pecado mortal não confesso, ela o põe perigosamente sob a ameaça das flamas
do inferno. Aliás, o anátema é uma forma particular de excomunhão, que é asso-
ciada à maldição eterna dos culpados. Durante os primeiros séculos da Igreja,
ele era pronunciado contra os hereges, tais como os discípulos de Árius, aos
quais o abandono da verdadeira fé não deixava mais chances de salvação do que
aos que não tinham sido batizados. Em seguida, ele é utilizado contra todos os
inimigos da Igreja, em particular durante os séculos X e XI, época em que se
constatam também freqüentes recursos às maldições monásticas, pelas quais os
monges não hesitam em enviar seus adversários ao castigo eterno do inferno
(Lester Little). Além de seu uso contra os desvios heréticos, a excomunhão e,
em certa medida, o anátema são armas que a Igreja utiliza em suas lutas contra
a aristocracia e os príncipes (por exemplo, contra o imperador Henrique IV., nos
anos I 070, ou Filipe I, rei da França, entre I 094 e I 099). Os simples laicos são
freqüentemente afetados por tais medidas, pois a excomunhão de um grande
personagem pode ser acompanhada pela interdição lançada sobre seu domínio
ou seu reino: os clérigos recebem, então, ordem de suspender ali toda celebra-
ção litúrgica, fazendo pairar, assim, um risco de morte espiritual sobre toda a
população. Nessas condições, não há nenhum príncipe que possa se manter
muito tempo no estado de excomunhão e que não procure a reconciliação com
a Igreja, indispensável para suspender uma sentença tão pesada para ele e tão
incômoda ao exercício de sua autoridade.

181, Jérôme Baschet


O monopólio da escrita e da transmissão da palavra divina

A Igreja não se contenta em ter, no coração da ordem social, o papel decisivo


que acabamos de analisar. Ela estrutura quase todos os quadros importantes da
vida em sociedade e contribui de maneira decisiva para a sua reprodução, como
se verá na segunda parte. Ela tem a hospitalidade entre seus deveres (em geral
pesada para os monastérios, notadamente os beneditinos, abertos por princípio
a essa exigência e com freqüência o único refúgio dos peregrinos e dos viajan-
tes), assim como a assistência aos pobres e doentes (uma das principais justifi-
cativas dos bens possuídos pela Igreja). De fato, os cuidados que as técnicas
limitadas da medicina medieval tornam possíveis são quase exclusivamente dis-
pensados nos estabelecimentos que dependem do clero: o Hotel-Deus, associado
a uma catedral ou a uma colegiada, 18 e que combina, nem sempre os distinguin-
do, a assistência aos pobres e o cuidado com os doentes; os estabelecimentos da
Ordem dos Hospitalários de santo Antônio, criada em 1095 para acolher especial-
mente as vítimas do "mal dos ardentes" (ou "fogo de santo Antônio", provocado
pelo esporão do centeio); ou ainda os estabelecimentos para cuidar dos leprosos.
Limitar-se-á, aqui, a evocar o quase monopólio que os clérigos exercem
sobre a escrita e a transmissão da palavra divina. É verdade que, durante a Alta
Idade Média e até o século XI, a escrita tem apenas um lugar restrito na socieda-
de. A manutenção da escrita é, então, uma exclusividade dos clérigos, a tal ponto
que a oposição entre letrados (litterati) e iletrados (illitterati) recorta exatamente
a divisão entre clérigos e laicos. Isso é ainda mais reforçado pelo divórcio, consa-
grado na época carolíngia, entre as línguas faladas, que evoluem para formar as
línguas vernáculas européias, e o latim, que, na impossibilidade de ser restabele-
cido em sua pureza clássica, é mais ou menos estabilizado. O latim - tão pouco
entendido que, desde o século IX, é recomendado que os sermões sejam traduzi-
dos para a língua vulgar - ganha, então, o status de língua da Igreja, própria aos
clérigos, e de língua sagrada, veículo exclusivo e esotérico do texto bíblico. A opo-
sição latim/língua vernácula redobra, então, a dualidade litteratilillitterati, cons-
titutiva do poder sagrado dos clérigos. Somente estes últimos têm acesso à Bíblia,
fundamento da ordem cristã; eles são especialistas incontestáveis da escrita e
todos os livros copiados são feitos nos scriptoria dos monastérios.
A partir dos séculos XI e XII, os usos da escrita transformam-se e diversifi-
cam-se. A produção de manuscritos aumenta de modo considerável: na França
do Norte, ela é quadruplicada entre o século XI e o século XII, e ainda dobra
durante o século XIII, época em que essa atividade é partilhada por ateliês laicos

I 8. Igreja colegiada é aquela que, sem ser catedral, possui um cabido de cônegos próprio. (N. T.)

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL /,~/


urbanos, que utilizam métodos de cópia em série, aumentando o ritmo de pro-
dução e diminuindo sensivelmente o preço dos livros. Os monastérios redigem
atos (chartes) cada vez mais numerosos, logo copiados e reunidos nos cartulá-
rios, ao passo que se multiplicam as cartas e decisões emitidas pelas chancela-
rias - episcopais e pontifícias, mas também principescas e reais - , onde,
geralmente, são os clérigos que manuseiam a pena e ocupam o cargo de chan-
celer. Sobretudo, por volta de li 00, ocorre uma novidade notável, que rompe
com o sistema descrito anteriormente, em particular com a quase equivalência
estabelecida entre escritura, latim e Igreja. Com efeito, as cortes aristocráticas,
onde se havia desenvolvido uma importante literatura oral em língua vulgar,
conseguem, em geral com a ajuda dos clérigos, fazer com que esta seja posta por
escrito (num primeiro momento, canções de gesta, tal como a Canção de
Rolando, e poesias líricas), a despeito do menosprezo dos letrados por línguas
tidas, até ali, como indignas de ser confiadas à escritura.
Por mais notáveis que sejam, tais evoluções permanecem limitadas. Apesar
da crescente utilização da escrita, a oralidade e os gestos rituais continuam a
dominar a vida social. Mesmo se as obras literárias são conservadas por escrito,
continuam essencialmente feitas para ser contadas ou cantadas: a voz predomi-
na sempre sobre a letra (Paul Zumthor). O de costume é dito oralmente na
aldeia durante um ritual anual, enquanto as decisões importantes são anuncia-
das na cidade pelos arautos. A voz e o ouvido continuam a ser os canais essen-
ciais do verbo: uma carta, para ser bem entendida, será ouvida mais do que lida,
e mesmo a leitura não pode ser feita sem se pronunciar, ao menos em voz baixa,
o texto que os olhos percorrem (a leitura silenciosa, que nos parece tão eviden-
te, só faz sua aparição tardia e timidamente). No mais, entre os séculos XI e XIII
a educação dos laicos urbanos e dos aristocratas melhora sensivelmente, e mui-
tos dentre eles são ao menos semi-alfabetizados, tendo aprendido a ler mesmo
sem saber escrever. Os manuscritos são sinal de prestígio, tanto quanto instru-
mentos de leitura.
É posto, então, o problema do acesso dos laicos à Bíblia. Embora a Igreja
proíba com extrema severidade a posse do texto bíblico pelos laicos, em parti-
cular, quando confrontada com focos de heresia, geralmente se esforça para res-
tringir o acesso ao texto sagrado, mais do que impedi-lo totalmente. Assim, mui-
tas vezes os laicos possuem certos livros bíblicos, em particular o de salmos, no
qual se aprende a ler, mas não a Bíblia completa. Sobretudo, para eles, os cléri-
gos prescrevem o recurso a versões glosadas do texto bíblico, quer dizer, dota-
das da interpretação julgada correta. A partir da segunda metade do século XII
aparecem as traduções adaptadas da Bíblia em língua vulgar, mas trata-se, na

18~ }érôme Baschet


verdade, de histórias bíblicas recompostas, tais como a História escolástica, que
retoma o princípio da Historia Scholastica de Pedro Comestor, traduzida por
Herman de Valenciennes, ou a Bíblia Historial de Guiart des Moulins, um século
mais tarde. Será somente na segunda metade do século XIV, sob o impulso de
soberanos como Carlos v da França ou de Venceslau da Boêmia, que aparece-
rão as traduções literais e completas da Bíblia.
No geral, mais do que opor o escrito ao oral, é preciso insistir sobre suas
imbricações. Anita Guerreau-Jalabert indica que isso é, de resto, o modelo for-
necido pela "dupla natureza do verbo divino, que se manifesta sob as duas for-
mas: das Escrituras e da palavra". O cristianismo medieval é tanto uma religião
do Livro como da palavra, e o controle dos clérigos é exercido tanto através de
seu acesso privilegiado às Sagradas Escrituras como pela transmissão exclusiva
da palavra divina. A interação entre o escrito e o oral ocorre em todos os domí-
nios, desde os prazeres da corte até as liturgias da igreja: "O oral é escrito, o
escrito procura ser uma imagem do oral" (Paul Zumthor). A Bíblia é lida em voz
alta nos monastérios e durante a missa; os livros litúrgicos servem ao bom exer-
cício da palavra e dos gestos sacramentais, enquanto os sermões, consignados
em coletâneas cada vez mais numerosas e sofisticadas, são destinados a ser pre-
gados. Enfim, não poderíamos encontrar melhor exemplo dessa imbricação do
que a prática do juramento, que constitui um dos fundamentos das relações
sociais no mundo medieval. Validação indispensável a todo compromisso impor-
tante, a começar pela fidelidade vassálica, o juramento, geralmente prestado
sobre a Bíblia ou o Evangelho (a menos que se recorram às relíquias), tira sua
força do elo formado entre a sacralidade do Livro e o peso das palavras pronun-
ciadas. Assim, a escrita, dotada de uma sacralidade ainda maior, porque é rara,
e conferindo um prestígio ainda mais notável àqueles que sabem manuseá-la, só
tem sentido porque é associada a práticas sociais em que a palavra exerce papel
determinante. E se os clérigos perdem, entre os séculos XI e XIII, o monopólio
da escrita, conservam o essencial do domínio do dispositivo que articula a escri-
ta e o oral. Eles podem não ser mais os únicos a ler a Bíblia, desde que mante-
nham o monopólio de sua interpretação legítima e do ensino das disciplinas
encarregadas de estabelecê-la, como se verá a seguir. Mais do que o controle
absoluto da escrita, o que lhes interessa, sem dúvida, é sobretudo o direito
exclusivo de difundir a palavra de Deus, como indicam a estrita vigilância em
relação a toda tentativa de pregação laica e o papel estratégico dessa questão na
deflagração das heresias.

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL /SJ


REFORMA E CRESCENTE SACRALIZAÇÃO
DA IGREJA (SÉCULOS XI E XII)

O sistema esboçado acima não se formou nem se consolidou sem lutas, por vezes
violentas. Ele é o resultado de um processo ao longo do qual o poderio da insti-
tuição eclesial se reforçou e do qual é necessário evocar as principais etapas.
Mesmo se os fenômenos descritos aqui prolongam uma dinâmica iniciada desde
os séculos IV a VI, trata-se também, em certos aspectos, de uma reforma (sobre
bases, em parte, antigas). Como já se disse, o insucesso da tentativa carolíngia
livra a Igreja Romana de uma associação como irmã gêmea do Império, que, ao
contrário, perdurará em Bizâncio. No século X, a disseminação do poder de
comando faz da Igreja a única instituição capaz de conclamar à ordem pública e
à "paz de Deus". Ao mesmo tempo, o processo de encelulamento e o estabeleci-
mento dos senhorios obrigam-na a uma viva reação para evitar tornar-se prisio-
neira da malha senhorial e a fim de, ao contrário, ser sua principal ordenadora.

O tempo dos monges e a fraqueza das estruturas seculares

No século X e inícios do século XI, o poderio da Igreja anda debilitado. O poder


do papa continua fraco, submetido aos imprevistos da política imperial e dos
conflitos entre as facções da aristocracia romana. Do mesmo modo, os bispos
encontram-se entregues às pressões dos aristocratas locais. Os senhores laicos
apropriam-se do controle das igrejas, das quais nomeiam os servidores paro-
quiais e das quais recebem os dízimos e os rendimentos. A Igreja arrisca, então,
a ser absorvida nas novas estruturas resultantes da formação dos senhorios, em
posição de dependência em relação aos laicos, que são seus principais benefi-
ciários. O chamado a uma "paz de Deus", lançado repetidamente pelos clérigos
durante os decênios que circundam o ano mil, aparece como um primeiro esfor-
ço para evitar tal situação e defender a posição da Igreja (primeira parte, capítu-
lo 11). Mesmo se, por vezes, o movimento da paz de Deus mobiliza o povo contra
os maus costumes dos senhores laicos, seu objetivo essencial é a manutenção de
uma ordem senhorial que a Igreja pretende dominar.
Se o conjunto da hierarquia secular é enfraquecido, o século X e a primei-
ra metade do século XI são marcados por um considerável desenvolvimento
monástico, do qual o sucesso e a expansão de Cluny são o melhor testemunho.
Fundado em 910, graças a uma doação de Guilherme, duque da Aquitânia e
conde de Mâcon, o monastério borguinhão adota a Regra beneditina e sua voca-
ção é levar a cabo uma reforma das práticas monásticas, muitas vezes além das

18~ Jéróme Baschet


prescrições de são Bento. Três fatores, ao menos, contribuem para a constitui-
ção do que os historiadores não hesitaram em chamar "o império cluniacense".
Em primeiro lugar, o monastério dedicado a são Pedro e a são Paulo é posto sob
a proteção direta do papa e se beneficia, em 998, de uma isenção total perante
0 bispo, que é, em seguida, estendida a todos os cluniacenses onde quer que se
encontrem e, depois, a todos os estabelecimentos dependentes de Cluny
(1097). Se, desde o Baixo Império e, sobretudo, desde a época carolíngia, um
dos fundamentos da autoridade eclesial estava ligado ao privilégio de imunida-
de, que subtraía os bens da Igreja de toda intervenção dos agentes da autoridade
pública, essa questão não tem mais grande importância e a afirmação do poderio
dos monastérios, em Cluny e alhures, depende doravante da imunidade, que
retira do bispo, autoridade soberana em sua diocese, toda a jurisdição e todo o
direito de supervisão sobre os negócios dos monges. Por outro lado, a "igreja clu-
niacense" (ecclesia cluniacensis) adota uma estrutura muito centralizada, da qual
Dominique logna-Prat recentemente sublinhou as linhas mestras e o funciona-
mento. A princípio, é a título pessoal que o abade de Cluny é igualmente abade
dos monastérios que fazem apelo a ele para reformar seu modo de vida e seus
costumes litúrgicos. Em seguida, ele é um "arquiabade", chefe de todas as casas
postas sob sua dependência, abadias ou, com mais freqüência, conventos (que
estão sob a responsabilidade imediata de um simples prior). Forma-se, assim,
não uma verdadeira ordem religiosa, pois não há nem organização em províncias
nem instâncias colegiadas de direção, mas, antes, uma vasta rede de estabeleci-
mentos que adotam os mesmos costumes monásticos e estão submetidos à
autoridade única do abade de Cluny.
Enfim, Cluny sabe perfeitamente responder às necessidades de uma socie-
dade dominada pela aristocracia. Os monges cluniacenses são especialistas em
liturgia, à qual dão uma importância e um fausto consideráveis (figura 13, na
p. 186), em particular no que diz respeito à liturgia funerária e às preces para
os defuntos. Os aristocratas da Borgonha e de outras regiões onde os cluniacen-
ses estão implantados dirigem-se a eles, pois a liturgia dos mortos de Cluny, a
um só tempo, inscreve-os na memória dos homens e aporta-lhes uma ajuda pre-
ciosa em vista da salvação no além. Daí as múltiplas doações - sobretudo de
terras e de senhorios, mas também de igrejas e dízimos - que convergem para
o monastério e suas dependências e constituem a base principal de sua rique-
za. Ao mesmo tempo, essas doações ordenam as relações sociais no seio da aris-
tocracia, hierarquizando os doadores em função de sua generosidade para com
Cluny. Assim, existe uma "profunda implicação cluniacense na ordem senho-
rial", a tal ponto que Cluny aparece como o "espelho da consciência aristocráti-
ca" (Dominique logna-Prat). Mas nem por isso toda tensão entre aristocracia e

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL /S~


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13. A notação musical, invenção de Cuido de Arezzo, fim do século XI (Biblioteca da Abadia de Monte-
cassino, ms. 318, n. 291).
Por volta de 1030, o monge cluniacense Cuido de Arezzo (morto em Ravena ao redor de 1090) estabelece um
sistema de notação musical que está na origem do nosso. Enquanto antes os "neumas" forneciam apenas indi-
cações de ritmo e de entonação, Cuido chega a dar conta, de modo inequívoco, da altura dos sons, definindo
seis notas (Ut, re, mi, fa, sol, la- as primeiras sílabas das palavras de um hino a são João) e dispondo-as sobre
linhas. Além disso, a "mão guidoniana" é uma espécie de ferramenta mnemotécnica, que permite aos cantores
percorrerem várias oitavas. Não é nada surpreendente que esta invenção seja devida a um monge cluniacense,
considerando-se a importância e o fausto de que a liturgia -e, então, o canto -era revestida nos estabeleci-
mentos monásticos dependentes de Cluny.
clero desaparece em torno de Cluny, como o lembram os conflitos de todos os
tipos e as maldições monásticas, com as quais os cluniacenses e os demais mon-
ges dos séculos X e XI se esforçam por fazer escudos eficazes. Ao uso das maldi-
ções é preciso associar o ritual do clamor pelo qual os monges, na presença das
relíquias dos santos, imploram a seus protetores celestes que defendam sua
comunidade e os protejam das intenções diabólicas de seus inimigos. Mas o
socorro dos protetores celestes nem sempre é suficiente: não se hesita, então,
em proceder a um ritual de humilhação dos santos, depositando suas relíquias
no solo, ao pé do altar, como se eles devessem fazer penitência, ao mesmo
tempo que os monges se prosternam, a fim de que a misericórdia divina os
recarregue de eficácia (Patrick Geary).
Fortalecida pelas vantagens acima indicadas, a Igreja de Cluny atinge o seu
apogeu sob os abadados excepcionalmente longos de Ma'ieul (954-94), Odilon
(994-1046) e Hugo de Semur (1049-1109), que estão entre os personagens
mais eminentes de seu tempo. Beneficiando-se de uma sólida base senhorial
local, os cluniacenses logo geram rivais em toda a cristandade. Eles ajudam
Guilherme, o Conquistador, a reorganizar os monastérios da Inglaterra, depois
de I 066, e fazem o mesmo junto aos soberanos hispânicos da Reconquista, o
que lhes vale o apoio financeiro tanto dos reis da Inglaterra como dos de
Castela-Leão, que enviam anualmente a Cluny um censo de mil (depois, 2 mil)
moedas de ouro cobradas dos sarracenos. No total, em 1109, a Igreja de Cluny
forma uma vasta rede de 1180 estabelecimentos, espalhada nas dimensões da cris-
tandade (e até a Terra Santa). Sua formidável capacidade de acumulação de
riquezas lhe permite construir, a partir de 1088, uma nova igreja abacial (cha-
mada Cluny m), consagrada em 1130 e que, com seus 187 metros de compri-
mento, é a maior igreja do Ocidente, superando todas as de Roma (figura 14, na
p. 188). Compreende-se que os cluniacenses tenham freqüentemente tendido
a confundir sua igreja e a Igreja universal, e mesmo a identificar Cluny e Roma.
No século XI, o coração vivo da cristandade é monástico mais do que secular,
tanto borguinhão como romano.
Cluny encarna um ideal monástico exigente, mas bastante presente nos
negócios do mundo. Enquanto a missão dos monges durante a Alta Idade Média
consistia em uma retirada para longe do mundo secular, os abades e as princi-
pais figuras de Cluny são levados a participar ativamente das lutas contra os ini-
migos da Igreja. Pedro, o Venerável, abade de Cluny de 1122 a 1156, engaja-se,
apoiado em tratados, em todas as frentes, tanto contra os heréticos como con-
tra os judeus e os muçulmanos. Essa evolução reduz a distância entre os regu-
lares e os seculares, tanto que os monges cluniacenses, que quase sempre rece-
beram o sacerdócio, assumem o encargo das igrejas que lhes são confiadas,

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL /.\7


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14. A igreja abacial de Cluny, no fim do século XVIII (litografia feita antes de sua destruição).
Sucedendo a dois edifícios mais modestos e construída, no essencial, entre I 088 e 1130, a igreja abacial deno-
minada Cluny 111 é, então, a maior igreja da cristandade medieval, com seus 187 metros de comprimento. 38.5
metros de largura e 29,5 metros de altura na nave central (ela continuará a sê-lo até a reconstrução de São
i-'edro do Vaticano, no século XVI). Realização acabada dos princípios da arquitetura românica, é guarnecida com
fortes torres e dotada de um duplo transepto. Sua abside em andar é formada por elementos estruturalmente
distintos, que parecem justapostos uns aos outros. O arranjo em degraus de suas elevações deixa facilmente
adivinhar a organização do espaço interno: nave central do coro, abside principal, deambulatório circundando
esta tiitima, e, finalmente, absidíolas dotadas, cada uma, de seu próprio altar
implantando-se, assim, na rede paroquial e engajando-se nas tarefas pastorais.
Isso não ocorre sem que haja afrontamentos com os seculares, ao longo dos
séculos XI e XII, até que seja reconhecido o direito dos monges de exercer tare-
fas pastorais, sob a condição de que eles se submetam à autorização e ao con-
trole do bispo. Entretanto, o próprio sucesso de Cluny e seu engajamento nos
negócios seculares começam a ser objeto de críticas; a interpenetração com as
linhagens aristocráticas não está isenta de inconvenientes, e a dependência em
relação às doações se faz sentir desde que t~eu ritmo começa a decair; enfim, a
proteção direta do papa, por muito tempo garantia de autonomia, transforma-se
em uma pesada tutela.
De fato, no fim do século XI e durante o século XII, aparecem novas ordens
monásticas que, cada qual à sua maneira, se empenham em reafirmar a dimen-
são eremita do ideal monástico, a qual, sem a negar, Cluny havia contrabalan-
çado com poderosas interações com a vida secular. Uma opção eremita radical
é assumida pela Ordem dos Camáldulos, criada por são Romualdo, pelos
Cônegos Regulares Premonstratenses, ordem fundada por são Norberto de
Xanten, pela Ordem de Fontevraud, criada por Roberto De Arbrissel, e, sobre-
tudo, pela Ordem dos Cartusianos, fundada por Bruno e santo Hugo de
Grenoble, em 1084, e cuja organização é codificada por Guigo 1. Os monges
cartusianos, que dispõem de celas individuais no interior do monastério - em
vez do dormitório e do refeitório coletivos previstos pela Regra de são Bento -,
têm a experiência de uma solidão quase total, inteiramente devotada à penitên-
cia e à prece. Do mesmo modo, a Ordem Cisterciense, fundada por Roberto de
Molesmes, em I 098, e cujo desenvolvimento é obra de são Bernardo de Claraval
(I 090-1153), encontra-se, sob vários aspectos, em contraposição ao tipo monás-
tico cluniacense, mesmo se Bernardo é igualmente um dos personagens mais
influentes de seu tempo e, principalmente, um ardente pregador da cruzada.
Assim, os "monges brancos" (em sinal de austeridade, eles recusam a cor negra
das vestes dos cluniacenses) implantam-se muitas vezes nas zonas mais isoladas
e mais selvagens e esforçam-se para evitar que os seus monastérios se tornem o
centro de burgos, como foi o caso de Cluny, desde o fim do século X. Em opo-
sição à riqueza e ao ouro resplandecente dos rituais cluniacenses, são Bernardo
impõe a maior severidade à vida dos monges, assim como aos edifícios em pedra
nua que os abrigam, proscrevendo toda escultura ou toda imagem que pudesse
desviar a sua atenção da prece e da meditação piedosa. Enfim, os cistercienses
recusam possuir igrejas e receber dízimos, por respeito à função própria aos
seculares, e afirmam que os monges devem sobreviver graças ao seu próprio
labor (suscitando, assim, o horror dos cluniacenses, que julgam tal atividade de-
gradante e incompatível com o dever da prece). É verdade que os cistercienses

A C I V I L I Z A Ç À O FEUDAL / S 'J
logo recorrem aos irmãos conversos, laicos encarregados de tarefas produtivas,
mas, ao menos, conservam a idéia de uma exploração direta de seus domínios,
mais do que um recurso ao quadro senhorial, o que em geral lhes permite
obter resultados notáveis em matéria de exploração agrícola e de produção
metalúrgica. Mas, também nisso, o sucesso- a ordem tem 343 estabeleci-
mentos quando da morte de são Bernardo e perto de seiscentos no final do
século XII - tem conseqüências paradoxais: os dons acumulam-se e a deco-
ração das igrejas e dos manuscritos distancia-se rapidamente dos princípios
austeros do fundador.

Reforma secular e sacralização do clero

O processo que os historiadores se habituaram a nomear "reforma gregoriana" (a


partir do nome de Gregório VII, papa de 1073 a 1085) não pode ser reduzido a seus
aspectos mais factuais e mais ruidosos: a luta entre o papa e o imperador e a refor-
ma moral do clero. Movimento muito mais profundo e de mais ampla duração que
a fase aguda dos anos 1049-1122, ele visa a uma reestruturação global da socie-
dade cristã, sob a firme condução da instituição eclesial. Os seus eixos princi-
pais são a reforma da hierarquia secular sob a autoridade centralizadora do
papado e o reforço da separação hierárquica entre laicos e clérigos. Trata-se de
nada menos que reafirmar e consolidar a posição dominante da Igreja no seio
do mundo feudal.
Aparentemente, a exigência de reforma lançada pelo papa Leão IX ( 1049-54)
apresenta-se como um ideal de retorno à Igreja primitiva (de resto, durante mais
de um milênio, esta é a justificativa de toda intenção de transformar a Igreja,
conforme a lógica medieval dos "renascimentos"). De fato, trata-se de restaurar
a hierarquia eclesiástica, liberando-a do controle dos laicos e impedindo as inter-
venções destes nos negócios da Igreja, consideradas doravante ilegítimas. Assim,
um dos slogans dos primeiros reformadores- entre os quais Humberto da Silva
Candida (morto em 1061) e Pedro Damião (1007-72)- convoca à libertas eccle-
siae ("libertação da Igreja"), o que é preciso entender, evidentemente, como um
combate pela defesa da ordem sacerdotal. O imperador é o primeiro visado, pois
o modelo carolíngio e bizantino, ainda ativo, faz dele o chefe de todos os cristãos,
apto, a este título, a intervir nas questões eclesiásticas, e também porque, nessa
época, ele ainda impõe seus candidatos ao trono romano, a começar pelo próprio
Leão IX. Sem entrar nos detalhes da luta entre o papa e o imperador, que regala-
ram a historiografia tradicional da reforma gregoriana, pode-se indicar que ela atin-
ge sua intensidade máxima sob Gregório VII, com as excomunhões reiteradas de

1'!I. ]érôme Baschet


Henrique IV, sua penitência em Canossa, em 1077, com o intuito de suspender
a primeira delas, e, em troca, a tentativa imperial para depor o papa e a morte
deste no exílio em Salerno. Tal luta tem como implicação o confronto entre duas
supremacias doravante incompatíveis, como o indicam com toda a clareza os
Dictatus papae, o exaltado manifesto de Gregório VII.
É igualmente tradicional concentrar a atenção sobre a questão das investi-
duras dos bispos, que polariza o conflito entre o papa e o imperador. O proble-
ma certamente não é desprovido de importância, pois os bispos estão entre os
raros instrumentos da autoridade imperial e exercem, ao mesmo tempo, um
poder temporal e um cargo espiritual. Ora, dando-lhes investidura pelo cajado
e pelo anel, o imperador parece confiar-lhes tanto um como outro, e é isso que
Gregório VII considera inadmissível. Serão necessárias longas décadas de confli-
tos e de soluções inaplicáveis, como aquela do tratado de Sutri ( llll ), para que
o imperador Henrique v e o papa Calisto 11 cheguem a um compromisso viável, a
Concordata de Worms, em 1122. Distinguir-se-ão, então, os poderes temporais
do bispo (temporalia) e seus poderes espirituais (spiritualia), de modo que o
imperador pode transmitir os primeiros em um ritual de investidura pelo cetro,
enquanto os últimos são objeto de uma investidura pelo anel e pelo cajado, que
só pode ser realizada por outros clérigos. Sobretudo, o princípio da libertas eccle-
siae conduz a reafirmar que incumbe ao cabido da catedral eleger o seu bispo,
o tem como efeito retirar dos laicos (imperador, rei ou conde) o controle do
recrutamento episcopal. Enquanto este controle era, até ali, amplamente mono-
polizado pela alta aristocracia, a nova situação favorece a pequena e a média
aristocracia, que prevalece nos próprios cabidos. A partir disso, a elevação ao
episcopado constitui, para seu beneficiário, uma importante ascensão social, o
que apenas pode incitá-lo a exercer suas prerrogativas com maior intransigên-
cia, inclusive perante os membros de sua própria parentela. Essa modificação
no recrutamento dos bispos revela-se, então, propícia à defesa dos interesses da
Igreja e a uma separação (e uma concorrência) mais marcadas entre o alto clero
e a aristocracia laica, o que contrasta com a osmose que prevalecia anteriormen-
te. Assim, a aplicação do princípio de libertas ecclesia cria as condições sociais
de um reforço desta mesma libertas.
Além dos bispos, é o status do clero em seu conjunto que está em jogo.
Com efeito, os reformadores denunciam os sacerdotes considerados indignos e
incitam os fiéis a evitá-los e mesmo a desobedecer-lhes (o que Gregório VII legi-
tima afirmando que "com a exortação e a permissão do papa, os inferiores
podem se tornar acusadores"). Multiplicam-se, assim, os movimentos populares
de oposição ao clero, suscitados, é verdade, pela fração reformadora deste, mas
sempre suscetíveis de ir além de seus objetivos. Tal é o caso da "Pataria" que, a

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 191


partir de 1057 e durante duas décadas, subleva os milaneses contra seu arcebis-
po, arroga-se o direito de depor os sacerdotes acusados de corrupção e de no-
mear seus sucessores. De Leão IX até meados do século XII, a condenação de
dois males principais serve de palavra de ordem e de meio de ação aos reforma-
dores: a simonia, definida como a aquisição ilícita de coisas sagradas, por meio
de bens materiais (o nome vem de Simão, o Mago, que queria comprar de são
Pedro o poder de fazer milagres), e o nicolaísmo, que caracteriza os clérigos
casados ou que vivem em concubinato. Os dois são indícios de problemas mais
profundos. Sob o nome "simonia" combate-se toda forma de intervenção dos lai-
cos dos negócios da Igreja e, particularmente, a posse senhorial das igrejas e dos
dízimos. Com efeito, esta tem como conseqüência os clérigos receberem seus
encargos (sagrados) das mãos (impuras) dos laicos, enquanto estes últimos rece-
bem uma parte substancial dos rendimentos do benefício concedido. Assem-
bléias sinodais e decisões pontifícias reclamam, então, a restituição das igrejas
retidas pelos laicos, o que beneficia os monges, especialmente os cluniacenses,
sobretudo num primeiro momento, antes que as paróquias sejam com mais fre-
qüência entregues à tutela episcopal. O ritmo das restituições é bastante variá-
vel segundo as regiões, mas é, em geral, bastante lento: são raras as zonas onde
resultados notáveis são atingidos no início do século XII. É sobretudo na segun-
da metade deste século e na primeira metade do seguinte que o movimento se
acelera (assim, na bacia parisiense, os laicos não controlam mais do que 5% das
igrejas por volta de 1250), mesmo se, por vezes, como na Normandia, eles ainda
detenham, por volta de 1300, entre um terço e a metade das igrejas.
Quanto ao celibato dos clérigos, ele já era reivindicado pelos concílios
desde o século V; mas trata-se, então, de uma exigência moral mais do que uma
norma rigorosamente imperativa. Ainda no século XI, ela é respeitada muito rela-
xadamente e vários sacerdotes são casados ou vivem em concubinato, já que as
designações senhoriais não favorecem absolutamente a atenção a esses crité-
rios. Mas seria errado ver nisso apenas um problema de moral, pois se trata,
sobretudo, de definir o estatuto do clero. Fazendo da renúncia inapelável à
sexualidade - e, por conseqüência, do celibato - a regra definidora do estado
clerical, a reforma empenha-se em sacralizar os clérigos, o que segundo a eti-
mologia deste termo quer dizer colocá-los à parte, distingui-los radicalmente dos
laicos, no mesmo momento em que a Igreja estabelece, para estes últimos, um
modelo cristão de casamento (segunda parte, capítulo v). A obsessão da "pure-
za" do clero e o cuidado em afastar dele todo risco de mácula (que poderia ser
provocada por um contato intempestivo com os laicos, com as riquezas mate-
riais e com a carne) estão à altura da nova sacralidade reivindicada pelos cléri-
gos. Esta se manifesta principalmente pela evolução do ritual de ordenação que,

1'! ~ Jérôme Baschet


afastando-se da simplicidade dos séculos precedentes, multiplica os símbolos
da graça e do poder espiritual conferidos ao sacerdote. A transformação das con-
cepções eucarísticas (segunda parte, capítulo II) é um outro sinal disso, pois a
doutrina da presença real, de que o papado se apropria em meados do século XI,
confere ao sacerdote o poder "de produzir pela sua própria boca o corpo e o san-
gue do Senhor", segundo os termos de Gregório VIl, ou seja, realizar a cada dia
o incrível milagre de transformar o pão e o vinho em carne e sangue, verdadei-
ro corpo de Cristo realmente presente no sacramento.
Esta é uma das questões centrais das transformações que afetam a Igreja
durante os séculos XI e XII: produzir uma sacralização máxima do clero, que, ao
mesmo tempo, reforce o seu poder espiritual e interdite aos laicos toda interven-
ção profanadora no domínio reservado da Igreja. Sacralizar é separar. Ora, o movi-
mento de reforma só procede por separação. Ele distingue as spiritualia, que só
podem ser detidas e conferidas pelos clérigos, e as temporalia, às quais os laicos
devem se limitar. Ele impõe uma série de oposições paralelas, entre o espiritual e
o material, entre o celibato e o casamento, entre os clérigos e os laicos, e esforça-
se para evitar toda mistura entre essas categorias (que, é preciso notar, só é con-
denável no caso de contaminação do espiritual pelo material, de mácula dos clé-
rigos pela ação dos laicos - a relação inversa sendo considerada, ao contrário,
positiva). Ao fim desse processo de separação, Graciano pode afirmar, como se
viu, que "existem dois tipos de cristãos". É o que já era anunciado quase um sécu-
lo antes - a título de programa- por Humberto da Silva Candida em seu Livro
contra os simoníacos: "Assim como os clérigos e os laicos são separados no interior
dos santuários pelos lugares e pelos ofícios, eles também devem diferenciar-se no
exterior em função de suas respectivas tarefas. Que os laicos se consagrem
somente às suas tarefas, os negócios mundanos, e que os clérigos, aos seus, quer
dizer, os negócios da Igreja". A relação entre a instituição eclesial e a comunidade
cristã só pode ser profundamente transformada em decorrência, e é por isso que,
como já se disse, nos séculos XI e XII a palavra Igreja passa a significar principal-
mente o clero, parte eminente que vale pelo todo, do qual ele assegura a salvação,
enquanto se recorre com mais freqüência à noção de christianitas para designar o
conjunto da sociedade cristã, ordenada sob a condução de seu chefe.

O poder absoluto do papa

A autoridade pontifícia afirma-se em estreita conjunção com os processos já


mencionados. Um primeiro passo consiste em garantir a autonomia, graças ao
decreto de I 059 pelo qual Pascal li funda o colégio dos cardeais e atribui-lhe o

A CIVII.IZAÇAO FEUDAL /9)


encargo de eleger o papa, a fim de subtraí-la das intervenções do imperador ou
da aristocracia romana. Se, ao longo do século XII, a história do papado ainda é
marcada pela instabilidade (especialmente no momento do cisma de 1130) e
por uma situação financeira frágil, a estabilização impõe-se a partir dos anos
1190. Pouco a pouco, a cúria pontifícia reorganiza suas receitas e melhora suas
engrenagens administrativas, em particular para afirmar sua autoridade no
"Patrimônio de são Pedro". Paralelamente, suas intervenções em domínios cada
vez mais numerosos estendem-se ao conjunto da cristandade, a tal ponto que o
papado parece governar a cristandade "como uma única diocese" (Giovanni
Miccoli). Doravante, o papa tem jurisdição para intervir em todos os litígios
eclesiásticos e suas decisões, transmitidas pelos decretos papais, são reunidas
sob Gregório IX (1227-41) no Liber. extra, que forma, junto com o Decreto de
Graciano, a base renovada do direito canônico, quer dizer, o conjunto das nor-
mas aplicáveis no seio da Igreja. Além disso, os bispos, cuja eleição é cada vez
mais controlada pelo papa, são periodicamente obrigados às visitas ad limina aos
túmulos dos apóstolos Pedro e Paulo, como sinal de obediência à autoridade
romana. E se, de início, os reformadores se apoiaram nos monges contra bispos
excessivamente ligados aos poderes laicos, uma vez a hierarquia secular retoma-
da, Roma favorece cada vez mais os bispos, limitando as isenções monásticas
que amputam sua autoridade, e alia-se a eles a fim de garantir um melhor con-
trole das redes regulares, em particular as cluniacenses.
Enfim, numerosas decisões que antes eram da responsabilidade dos bispos
ou arcebispos passam para a alçada exclusiva do papa. Não há melhor exemplo
da centralização pontifícia do que a transformação dos procedimentos de cano-
nização, postos em evidência por André Vauchez. Se, durante a Alta Idade Média
e ainda no século XI, a santidade se revelava geralmente pelo desenvolvimento
de um culto popular, reconhecido e legitimado pelo bispo, pouco a pouco o papa
arroga-se a indispensável confirmação das canonizações e também, por decor-
rência, a possibilidade de proibir os cultos que se desenvolveram sem sua auto-
rização. Depois, Inocêncio III ( 1198-1216) edita as normas obrigatórias de todo
processo de canonização, sendo que sua parte essencial deve ser efetuada na
cúria romana. Mesmo se a distinção entre santos e beatos ainda permite conce-
der um pouco de espaço aos cultos locais, o poder de dar santos à cristandade
é doravante um privilégio estritamente pontifício. No geral, a instituição ecle-
sial ganha a forma de uma hierarquia bem ordenada, sob autoridade absoluta do
papa e os nomes de Inocêncio III e Gregório IX correspondem sem dúvida ao
apogeu do poder pontifício que, nesse momento, é a mais poderosa das monar-
quias do Ocidente, a mais parecida com a de Cristo.

1'H }érôme Baschet


Tal afirmação da autoridade do papa não pode ocorrer sem um amplo tra-
balho de justificação teórica e sem manifestações simbólicas ostensivas. Há
muito tempo, o papa beneficia-se de uma proeminência de honra como suces-
sor de são Pedro, tido como o primeiro bispo de Roma. Com efeito, o papa é,
como indica seu título, o "vícário de Pedro'', seu representante na terra, de onde
a importância dos discursos e das imagens que sublinham a proeminência de
Pedro, príncipe dos apóstolos, fundador da Igreja, investido do poder das cha-
ves e figurado, a este título, como porteiro do paraíso a partir do século XI (figu-
ra 21, na p. 211 ). Mas isso ainda é muito pouco e, ao longo do século XII, e
sobretudo com Inocêncio 111, o papa se reserva o título de "vicário de Cristo".
Proclamando-se a imagem terrestre do Salvador, ele manifesta o caráter monár-
quico de seu poder, à imagem da realeza de Cristo; ele se afirma como o chefe
da Igreja, desse corpo do qual Cristo é, justamente, a cabeça. A identificação de
Cristo e de seu representante terrestre é cada vez mais forte e Álvaro Pelayo
pode afirmar, em 1332, que "o fiel que olha o pontífice com os olhos da fé vê o
Cristo em pessoa".
Insígnias exclusivas vêm exprimir a natureza desse poder. Durante o século XII,
o papa porta uma tiara, em que a coroa, símbolo da realeza de Cristo, junta-se
à mitra dos bispos (depois, a partir de Bonifácio VIII, por volta de 1300, a tiara
pontifícia é ornada de três coroas; como visto na figura 12, nas pp. 176 e 177).
Ao longo do mesmo período, os rituais pontifícios assumem grandeza crescen-
te, mas, como mostrou Agostino Paravicini Bagliani, o caráter espiritual do
poder pontifício obriga sempre, diferentemente dos outros soberanos medievais,
a aliar fausto e humildade. Do mesmo modo que Pedro Damião insiste, ao exal-
tar a supremacia romana, sobre a fragilidade humana dos pontífices e a brevida-
de de seus reinos, numerosos rituais, a começar pelo da investidura, multipli-
cam os símbolos de rebaixamento e relembram o caráter mortal do papa, como
se fosse necessário enfatizar a humildade do homem para melhor exaltar a ins-
tituição. É que a identificação crescente do papa com Cristo e a tendência em
fazer do primeiro a encarnação verdadeira da Igreja universal impõem anteparos
para evitar confundir o homem e a função. O risco está longe de ser inexisten-
te, como mostra o caso de Bonifácio VIII ( 1294-1303 ), que, pretendendo exer-
cer um poder ainda mais absoluto do que seus predecessores, chega a confun-
dir o corpo da Igreja e seu próprio corpo pessoal a ponto de mandar pôr seu
busto sobre os altares e - o que lhe valerá uma acusação de magia - sonha
adquirir, pelo consumo de ouro comestível, a mesma imortalidade da instituição
de que ele é temporariamente o titular.
Ao mesmo tempo, entre os séculos XI e XIII, afirma-se a doutrina do primado
pontifício, em virtude da qual o papa se sobrepõe a todas as outras autoridades e

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL /9'i


constitui a fonte de todo poder na Igreja. Já encorajada por Inocêncio 111, encon-
tra-se uma clara expressão sua no liturgista Guilherme Durand (t 1296): o papa
"dirige, dispõe e julga todas as coisas"; ele pode "suprimir todo direito e governar
acima do direito [... ] ele próprio está acima de tudo e tem, na terra, a plenitude.
do poder''. Estamos longe do modelo legado por Gelásio I (492-96), que estabele-
cia uma partilha equilibrada entre a autoridade dos clérigos, que se sobrepõe-em.
matéria espiritual, e o poder dos laicos, que se impõe na esfera temporal. Mas isso
quer dizer que, agora, todos os poderes temporais concernem, ao menos indireta-
mente, ao papa? A questão continuou a ser debatida, sendo objeto de diversas for-
mulações, moderadas ou radicais. É verdade que Gregório VII afirma que "os
sacerdotes de Cristo devem ser considerados os pais e senhores dos reis, prínci-
pes e de todos os fiéis", e é provável que ele sonhasse em restabelecer a velha uni-
dade do poder temporal e do poder espiritual, mas, dessa vez, em proveito do papa
e não do imperador (Girolamo Arnaldi). Ele afirmava, de resto, nos Dictatus papae,
que "apenas o papa tinha o direito de uso das insígnias imperiais", tendência que
um texto dos anos 1160 (a Summa perusina) amplifica ainda mais, enfatizando-a:
"O papa é o verdadeiro imperador". Esta pretensão a um papado imperial, plena
realização na terra do poder real de Cristo, nem sempre é apenas teoria. Assim,
quando ele proclama a cruzada, em 1095, Urbano 11 usurpa manifestamente uma
prerrogativa imperial e põe o papa, de modo duradouro, na posição de guia da cris-
tandade, em um domínio que deveria ser próprio da competência do imperador.
Mas, no geral, a cristandade medieval não tomou exatamente a forma do que se
tem o hábito de chamar de uma teocracia, na qual a Igreja deteria efetivamente a
soberania nos negócios temporais. As afirmações mais combativas, sem dúvida,
visavam menos a ser inteiramente postas em prática do que a consolidar o essen-
cial: a proeminência da monarquia pontifícia sobre todos os outros poderes do
Ocidente e o reconhecimento do papa como guia da cristandade.
Ao término dos processos descritos aqui, o caráter dominante da institui-
ção eclesial está mais marcado do que nunca. Esta é reformada s_ob a_autatida-
de absoluta e centralizadora do papado, e a dominação dos clérigos sobre os lai-
cos é fortalecida graças a uma separação hierárquica cada vez mais vigorosa
entre uma casta sacralizada e o comum dos fiéis. Essa reorganização é acompa-
nhada por numerosas transformações que afastam a cristandade ocidental de
suas origens (por exemplo, no que concerne à associação de Constantino entre
a Igreja e o Império) e que não acontecem no Oriente bizantino. O cisma de
1054, consumado precisamente durante o pontificado de Leão IX, acompanha
muito logicamente o momento em que a forma ocidental da Igreja cristã se
desenha em toda a sua clareza.

1'I! }érôme Baschet


15. O monastério românico de San Pere de Roda, Catalunha, século XI.
Consagrada em 1022, a abside do edifício abacial de San Pere de Roda comporta um dos primeiros deambula-
tórios e sua nave, terminada na segunda metade do mesmo século, não é menos audaciosa. Do exterior, distin-
guem-se a igreja abacial e seu campanário, a muralha do claustro associada ao refeitório e ao dormitório, duas
outras torres e diversos edifícios que serviam às atividades dos monges. O monastério apresenta-se como uma
cidadela fortificada suspensa no flanco da encosta, dominando orgulhosamente a solitude em torno.

SÉCULO XIII: UM CRISTIANISMO


COM NOVAS ENTONAÇÕES

Entre os séculos XI e XIII, o Ocidente transforma-se de modo considerável. Se


fosse preciso escolher um edifício para simbolizar a Europa do século XI, este
seria, sem dúvida, um monastério beneditino, tal como o de San Pere de
Roda, na Catalunha, com ares de fortaleza suspensa no flanco de uma colina,
dominando, a partir de seu soberbo isolamento, os campos circundantes (figu-
ra 15, acima).
Para exprimir as realidades do século XIII, seria necessário pensar, ao con-
trário, em uma catedral gótica, tal como a de Bourges, audacioso edifício no
coração da cidade (figura 16, na p. 198). De um edifício a outro, passa-se de um
universo rural ainda fracamente povoado para um mundo mais densamente
ocupado, onde a cidade tem um papel notável (ilustração VIII, na p. 199). Ao
mesmo tempo, a dominação dos monges cede terreno diante da reafirmação do
clero secular.

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL /97


16. No coração da cidade, a catedral gótica de Bourges, primeira metade do século XIII.
A catedral, enaltecida pela arte gótica, inscreve-se no coração do tecido urbano, que ela domina a partir de sua
massa quase esmagadora. Dedicada a santo Estevão, a catedral de Bourges foi iniciada em 1195 e terminada,
no essencial, em meados do século seguinte. Ela se caracteriza pelas dimensões particularmente imponentes
(125 metros de comprimento; 50 metros de largura; 37,5 metros de altura) e uma notável homogeneidade, sen-
sível em seu plano (ilustração X, na p. 202). Percebe-se, à direita, a série de arcobotantes que sustentam a alta
nave central, desde a fachada até a abside, sem que nenhum transepto interrompa a regularidade. Projeção de
uma embarcação com cinco naves, a ampla fachada é inteiramente articulada pelos cinco portais cujos pés-
direitos se juntam uns aos outros.
CATEDRAL DE LEON
PLANTA DE LA ANTIOUA YGLBSIA RDMÁNICA RELACIONADA CDN LAACTUAL.

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VIII. Dimensões comparadas da catedral gótica de Leão e do edifício românico que ela substitui.
Em Leão, os trabalhos empreendidos no século XIX permitiram revelar as fundações do edifício românico situa-
do sob a construção gótica que o substituiu (o caso de Salamanca permite, ao contrário, observar uma situação
excepcional, pois a catedral gótica é construída ao lado daquela de época românica, sinal bastante raro de res-
peito por um edifício anterior). O edifício românico (consagrado em l 073) comporta três naves, terminadas
cada uma por uma abside semicircular. Um século mais tarde, a construção de uma nova catedral é iniciada
pelo bispo Manrique de Lara ( 1181-1205), com o apoio do rei Alfonso IX. Interrompidos, os trabalhos são reto-
mados durante o episcopado de Martín Fernández ( 1254-89), que leva a cabo a edificação dos portais da facha-
da ocidental. A nova catedral multiplica de modo considerável o espaço interno utilizável, sinal ao mesmo
tempo do crescimento urbano e da vontade de poderio da Igreja.
17. A nave em berço da igreja abacial de Conques, segunda metade do século XI.
Realizada, em grande parte, na época do abade Odolrico (morto em I 065), a abadia beneditina de Conques pare-
ce ter sido terminada quando o abade Begon III (1087-1107) manda edificar a clausura. Na arquitetura români-
ca clássica, os arcos são em pleno cimbre e repousam sobre pilares, colunas ou semicolunas, geralmente orna-
dos de capitéis, como se vê aqui nas partes altas da nave principal. A abóbada central de berço, reforçada por
arcos cruzeiros, prolonga a mesma forma semicircular. A luz penetra apenas indiretamente na nave central, inclu-
sive na parte superior, onde as tribunas - andar sobreposto às naves secundárias - contrabalançam o repuxo
exercido pela abóbada central. Do mesmo modo, a abside, onde aparece o altar principal, é vazada apenas por
janelas estreitas (somente o cruzeiro do trdnsepto, encimado por uma torre ortogonal que data do século XIV, é
mais vivamente iluminado). Em uma nave românica, os contrastes de sombra e luz são fortemente marcados.
Do românico ao gótico

De um edifício a outro, passa-se da arte românica à arte gótica, o que é bem


mais do que uma simples questão de "estilo". Do românico ao gótico é o mundo
que muda e, com ele, a maneira de conceber a função social e ideológica da
arquitetura. Da arte românica retêm-se, geralmente, o arco de pleno cimbre e a
abóbada de berço em pedra, ou seja, um avanço notável, pois a maior parte das
igrejas anteriores - à imagem das basílicas antigas, construções civis que ser-
viram de modelo aos primeiros edifícios de culto cristão - eram cobertas por
um vigamento em madeira, muito exposta ao risco de incêndio. Mas a abóbada
de berço repousa seu peso ao longo dos muros laterais que a sustentam, de
modo que estes só podem ser fendidos por janelas estreitas, que destilam uma
luz parcimoniosa e irregular (figura 17, na p. 200). Em uma igreja românica, as
zonas de sombra e de luz contrastam vigorosamente e entrecortam o espaço
interior. Essa impressão de fragmentação é ainda acentuada pela heterogenei-
dade das formas arquitetônicas e pela ausência de módulo comum às diferen-
tes partes do edifício, de modo que nave, naves secundárias, transepto, tribu-
nas, coros e cúpulas, deambulatórios e capelas laterais parecem mais elementos
autônomos agregados uns aos outros (ilustração IX, na p. 202). De outro lado, a
arte românica é uma arte da parede e da superfície: ela sublinha a importância
de amplas superfícies de muralhas espessas e densas, cuja constituição em
pedra é diretamente visível, no exterior, ou reproduzida por um estuque pinta-
do, no interior. As necessidades técnicas combinam-se, aqui, aos móbiles ideo-
lógicos, pois, à imagem da instituição de que ela é símbolo, a igreja quer ser uma
fortaleza que se defende contra o mundo exterior e, então, não pode, simbolica-
mente, deixá-lo penetrar em seu seio, a não ser com prudência. É preciso que
ela exalte esses muros que a protegem assim como as torres de campanários,
que enquadram então maciçamente a fachada, para dar exatamente o sentido
da vigilância da cidadela divina. É assim que a igreja românica aparece como
uma cidade santa fortificada, prefiguração terrestre da Jerusalém celeste, exi-
bindo suas muralhas de pedras preciosas, ilha de pureza espiritual em meio à
ameaçadora confusão do mundo.
Para qualificar a arquitetura gótica, enumeram-se, geralmente, o arco ogi-
va!, a abóbada sobre cruzeiro de ogivas e o arcobotante, mas, dos três, somente
o último talvez seja uma invenção gótica, uma vez que o cruzeiro de ogivas havia
se estabelecido desde o fim do século XI no domínio anglo-normando (em par-
ticular, na catedral de Durham). O que revela bem mais a especificidade do
gótico é uma combinação desses três elementos, a serviço de um projeto técni-
co-ideológico novo. Mesmo se, sem dúvida, convém temperar o papel inaugural

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL :!IJ{


IX. Planta de um edifício românico, da primeira X. Planta de um edifício gótico, da primeira meta-
metade do século XII: Notre-Dame-du-Port, em de do século XIII: a catedral de Santo Estevão, em
Clermont-Ferrand. Bourges.
Notre-Dame-du-Port oferece o exemplo típico de um A catedral de Bourges leva ao extremo a busca gótica
edifício em cruz latina. Identificam-se a nave central de homogeneização do lugar sagrado e de uniformiza-
flanqueada por duas naves secundárias sobrepostas ção construtiva. A nave central é flanqueada de qua-
por tribunas, o corpo ocidental associado à fachada, tro naves secundárias e completada por um duplo
o transepto, cujo cruzeiro é coberto de uma cúpula, deambulatório. As capelas, que se abrem sobre o
o coro cercado por um deambulatório com suas absi- deambulatório, são tão pouco profundas que se ins-
díolas. Nota-se que nenhum desses elementos utili- crevem na largura dos contrafortes, e o transepto foi
za um módulo de medida em comum: não há nem suprimido (nos lados da nave, as capelas laterais são
mesmo relação numérica entre a largura da nave cen- acréscimos posteriores). Principalmente, o mesmo
tral e aquela das naves secundárias, como também módulo de medida é utilizado de uma ponta a outra
não há entre o comprimento do vão da nave e o do do edifício (um abobadado das naves secundárias
transepto. equivalendo a um quarto do vão da nave central). Do
mesmo modo, todos os elementos, tais como moldu-
ras, colunetas e capitéis, têm a mesma dimensão em
todas as partes da igreja. A unidade do projeto arqui·
tetônico foi, então, definida desde o início da constru·
ção, por volta de 1195, e mantida ao longo da segun-
da campanha, iniciada por volta de 1225, até o seu
término, em meados do mesmo século.

Os dois planos estão em escalas muito diferentes e levar-se-á em conta o fato de que a catedral de Bourges é mais de
duas vezes maior que a de Notre-Dame-du-Port.
atribuído habitualmente à igreja abacial de Saint-Denis, necrópole dos reis da
França (Roland Recht), observa-se nela uma das primeiras formulações, ainda
que parcial, desse projeto, entre 1130 e 1144, quando da reconstrução pelo
abade Suger do coro e da fachada do edifício. Durante as décadas seguintes, o
gótico afirma-se, adaptando-se a necessidades diversificadas, quando das obras
de numerosas catedrais do centro do reino da França (Sens, a partir de 1140;
Notre-Dame de Paris, a partir de 1163). Depois, atinge sua maturidade nos anos
1220-70, segundo modalidades em geral contrastantes (Chartres é terminada,
no essencial, por volta de 1220; Amiens e Reims, por volta de 1240; Bourges,
por volta de 1250). Pouco a pouco, o que se chama de opus francigenum (mar-
cando, assim, que a Ilha de França é o seu berço) é adotado através de todo o
Ocidente, com variantes múltiplas e cada vez mais refinadas, e torna-se, de
Burgos até Praga e de Canterbury até Milão, a técnica de construção dominan-
te até o início do século XVI.
Para explicitar esse novo sistema construtivo, sem equivalente na história,
pode-se partir do cruzeiro de ogivas, formado por duas nervuras em pedra que se
cruzam em ângulo reto e capaz de sustentar o restante da abóbada, feita de mate-
riais mais leves (figura 18, na p. 204). Todo o peso da abóbada é, assim, direcio-
nado para as quatro colunas que a sustentam, de modo que, mediante um con-
trapeso a essas forças assegurado por contrafortes e arcobotantes, os muros
laterais perdem seu papel de sustentação e podem ser substituídos por amplas
aberturas. Assim, têm-se os grandes vitrais que chamam a atenção tanto pela pro-
fusão quase impossível de captar das representações que contêm como pela
luminosidade colorida com a qual eles inundam o edifício. A realização da arqui-
tetura gótica é o desaparecimento tão radical quanto possível desses muros que
caracterizam o edifício românico e a invasão do lugar de culto por uma lumino-
sidade que, por certo, é rutilante e cambiante, mas que reduz os contrastes de
sombra e claridade e tende a fazer do edifício uma unidade de luz. Se o români-
co era uma arte do muro, o gótico é uma arte da linha e da luz, sinal indubitável
de uma relação com o mundo mais aberta, menos inquieta com o contato com
as realidades mundanas, tão presentes nas próprias portas das catedrais.
Através ou além da importância da luz, dois princípios estão no coração da
busca gótica. Em primeiro lugar, a unificação do espaço interior não é apenas a
conseqüência da luz colorida e contínua difundida pelos vitrais; ela é, de início,
ligada à adoção de plantas que tornam o edifício cada vez mais homogêneo
(supressão das tribunas, atenuação dos transeptos, integração do deambulatório
e das capelas laterais na unidade arquitetônica do coro) e que utilizam para todas
as partes da igreja medidas coordenadas fundadas sobre um módulo único (ilus-
tração X, na p. 202) Até no detalhe do desenho das colunetas ou molduras, tudo

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL lfJ3


18. Abóbadas sobre cruzeiro de ogivas e amplas vidraçarias: o coro e a nave da catedral de Leão, segun-
da metade do século XIII.
A catedral de Leão mostra a realização da busca do gótico, da qual a abóbada sobre cruzeiro de ogivas é um dos
instrumentos técnicos privilegiados. Graças a este, formado por duas nervuras, cuja interseção é reforçada por
uma chave de abóbada, as forças criadas pelo peso .do abobadado concentram-se nos pilares laterais, escorados
no exterior pelos arcobotantes e seus contrafortes. As tribunas podem, assim, ser suprimidas, e os muros late-
rais, substitufdos por imensos vitrais rutilantes de cores e saturados de iconografia. Sob as altas vidraçarias apa-
rece o trifório, série de arcaturas diante de vidraçarias menores e, mais abaixo, os arcos quebrados que dão sobre
as naves secundárias. Poderfamos considerar a arquitetura gótica uma audaciosa combinação de pilares de sus-
tentação e de paredes em vidro (o que a catedral de Leão, com seus 1800 m 2 de vitrais, exprime claramente).
Não causará surpresa, então, que as vanguardas arquitetônicas do infcio do século XX, começando por Bauhaus,
tenham podido reivindicar o gótico como uma das prefígurações de suas próprias buscas.
se faz ainda mais sistemático, recorrendo a formas pouco numerosas, mas asso-
ciadas em múltiplas combinações. Diferentemente dos espaços hierarquizados e
diversificados do românico, a arquitetura gótica busca a unificação pela articula-
ção de elementos tão homogêneos quanto possível. É o que Erwin Panofsky
nomeava "o princípio de clarificação" em funcionamento na arquitetura gótica,
cuja preocupação de "auto-explicação" visava tornar perceptível o princípio cons-
trutivo do edifício, sintoma, aos seus olhos, de uma comunhão de pensamento e
de hábitos com a escolástica contemporânea: as Sumas teológicas do século XIII
não são, também elas, fundadas em um duplo princípio de recorte sistemático e
de coerência totalizadora, de divisão em partes constantes, englobadas em um
conjunto homogêneo, cuja estrutura é explícita com clareza?
O segundo princípio diz respeito a um desejo de espiritualidade. Um sinal
manifesto disso é a negação do muro material, em proveito da luz, que a Idade
Média considera espiritual e um símbolo de Deus ("a obra resplandece de uma
nobre luz. Que o seu brilho ilumine os espíritos a fim de que, guiados por ver-
dadeiras claridades, eles cheguem à verdadeira Luz, lá onde o Cristo é a verda-
deira porta", dizem os versos que Suger manda gravar na fachada de Saint-Denis).
A verticalização crescente das linhas arquitetônicas, sublinhada pelas colunetas
que articulam incessantemente os pilares, é uma outra manifestação sua, assim
como a busca de uma altura sempre mais audaciosa para as abóbadas. Essa altu-
ra atinge 36 metros em Chartres, 38 em Reims, 42 em Amiens, ao passo que a
intrepidez dos arquitetos góticos se eleva em vão até 48 metros em Beauvais,
cujo coro desaba em 1284. Uma vez atingido esse limite, o apelo do céu se
transfere para os acréscimos exteriores, e a flecha de pedra da catedral de
Estrasburgo, no início do século XV, ergue-se a 142 metros, altura que não será
superada por nenhum monumento até o século XIX. Imagina-se, então, sobretu-
do se se pensa no contraste com a fraca elevação das habitações urbanas, quan-
to os edifícios "superdimensionados" das catedrais deviam impressionar os con-
temporâneos (Roland Recht).
É verdade que as catedrais - associadas aos numerosos edifícios que as
cercam, palácio episcopal, claustro canônico, Hotel-Deus- constituem o cora-
ção das cidades medievais. Financiadas pelos dons dos fiéis, mas particularmen-
te pelos rendimentos senhoriais e eclesiásticos dos bispos e dos monges -quer
dizer, pelo excedente produtivo de seus dependentes rurais-, esta é, com efei-
to, a ocasião de canteiros de obras longos e consideráveis, e até mesmo nunca
terminados, que estimulam de modo notável a atividade urbana. A catedral e a
cidade entretêm, assim, uma relação, ao mesmo tempo, íntima e ambígua: visí-
vel de muito longe, emblema da cidade e de sua interação crescente com os

A CIVILIZAÇAO fEUDAL 2()';


19. São Francisco renunciando aos bens paternos, c. 1290-1304 (afrescos de Giotto na basílica de Assis).
Este é o episódio crucial da conversão: em um ato teatral, Francisco se desnuda e abandona as vestimentas que
obtivera de seu pai para significar sua remincia à herança familiar. O bispo o cobre pudicamente com o seu
manto, em um gesto carregado de um simbolismo de adoção, transposto aqui para o plano espiritual. Se a con-
versão se apresenta como um jogo têxtil (das vestimentas do pai ao manto do bispo), ela é, sobretudo, uma ques-
tão de parentesco: Francisco rompe com seus pais carnais para fazer prevalecer o parentesco espiritual que une
os membros da Igreja, enquanto seu gesto de prece aponta para a mão abençoadora do Pai divino. Um de seus
biógrafos lhe atribui, de resto, estas palavras, ditas neste preciso momento: "Em toda a liberdade, daqui por
diante, eu poderei dizer: Nosso pai que estás no céu! Pedro Bernadone não é mais meu pai". Quanto a Giotto,
ele dá ao sistema de parentesco medieval a forma de uma perfeita geometria (parentesco carnal, parentesco
espiritual, parentesco divino).
campos circundantes, a catedral parece, ao mesmo tempo, dominar a cidade,
quase esmagá-la com suas dimensões, o que talvez seja apenas uma maneira de
tornar sensível o poderio de uma instituição eclesial então triunfante.

Ordens religiosas inovadoras: os mendicantes

Entre os séculos XI e XIII, não é apenas a igreja de pedra que muda, mas também
a Igreja como instituição. A criação das ordens mendicantes é um dos aspectos
mais marcantes dessas transformações. Para começar, evocar-se-á a figura de são
Francisco, personagem ao mesmo tempo singular e revelador das tensões de seu
século. Para isso é preciso recorrer às diferentes Vidas redigidas por seus discípu-
los conforme as regras do gênero hagiográfico, com a intenção de atestar a san-
tidade de Francisco e de fortalecer o seu culto. Trata-se, então, menos de uma
"verdade" biográfica que deve ser procurada nos textos do que a expressão dos
modelos e dos valores ideais de uma época. Francisco nasceu em 1181 ou 1182,
em Assis, uma das cidades da Itália central em que o comércio floresce precoce-
mente. Ele é o filho de um rico mercador, do qual lhe incumbe continuar os
negócios. Mas o jovem Francisco põe-se em busca de ideais mais elevados, sinal
de que o desenvolvimento das atividades urbanas não significa, necessariamen-
te, a formação de uma "burguesia" dotada de valores próprios bem assentados.
Interiorizando inconscientemente as hierarquias de seu tempo, ele sonha, de iní-
cio, com as proezas cavaleirescas e se prepara para partir para a guerra no Sul da
Itália. Mas uma visão sobrenatural o dissuade disso. Depois, enquanto ele ora na
igreja de San Damiano, diante da imagem de Cristo na cruz, este dirige-se a ele
e o convida a reconstruir a sua igreja. Como bom laico, que as realidades mate-
riais ainda impedem de elevar-se até as verdades espirituais, Francisco acredita
dever tornar-se pedreiro para reconstruir o edifício que ameaça cair em ruínas.
Mas, evidentemente, é para uma missão mais alta que Cristo o chama.
Francisco, cuja conduta o põe em conflito com seus pais, pouco a pouco toma
consciência disso e renuncia à herança paterna. Em um ato definitivo de conver-
são, ele se desnuda para restituir a seu pai os tecidos com os quais este faz
comércio e põe-se, nu, sob a proteção do bispo (figura 19, na p. 206). Em vez da
comodidade material que seu nascimento devia lhe proporcionar, ele abraça a
exigência de uma pobreza radical e escolhe "seguir nu o Cristo nu".
Sua mensagem, que começa então a pregar pela palavra, e sobretudo pelo
exemplo, surpreende por sua simplicidade: viver com o Evangelho por única
regra, fazer penitência. Francisco a põe em prática através de uma devoção que
associa o imediatismo e uma certa alegria, manifestação de uma comunhão com

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL _!()-


Deus, que, entretanto, só poderia ser atingida pelo rude caminho da penitência.
Essas características fizeram freqüentemente comparar Francisco e seus com-
panheiros, ao quais ele recomenda ter "o semblante sorridente", ao jogral, ofício
por muito tempo condenado pela Igreja. Elas se exprimem também no famoso
Cântico do irmão Sol, em que Francisco faz o elogio da natureza e do prazer
que ela proporciona ao homem. Aí está uma das tensões constitutivas do per-
sonagem: a conjunção da penitência e do júbilo, ou, mais precisamente, a esco-
lha de uma penitência extrema que não leva à fuga do mundo, mas ao amor a
ele. Os habitantes de Assis, que vêem Francisco andar hirsuto e em trapos,
perguntam se não há nele alguma loucura e é um pouco isso que exprime o seu
apelido "Poverello". 19 Mas este exemplo vivo de pobreza e de penitência lhe vale
também um renome cada vez maior, que atrai para junto dele discípulos em
número crescente.
Logo, Francisco encontra-se à frente de uma pequena comunidade, que a
instituição eclesial poderia julgar perigosa e incontrolável, como indica a primei-
ra reação de Inocêncio III. Ela, no entanto, faz a escolha inversa e, em 1209, o
papa é convencido, embora com reservas, a aprovar o modo de vida proposto por
Francisco e a lhe conceder o direito de pregar. Mas o desejo de enquadrar essa
experiência e de lhe dar formas compatíveis com as estruturas de poder em vigor
na Igreja conduz Honório III a exigir a redação de uma regra formal: a de 1221
é recusada (Regula non bullata), até que novas modificações, atenuando ainda
mais o radicalismo do projeto inicial, permitam, finalmente, sua aprovação em
1223 (Regula bullata). À medida que a comunidade cresce, Francisco afasta-se
das necessidades impostas pela direção espiritual e material de uma ordem. Em
breve, renuncia a ser o seu chefe e escolhe viver como eremita, no monte La
Verna. Penitências e privações extremas acentuam-se, em um esforço para apro-
ximar-se ainda mais de Deus, até o ponto em que Francisco, doente, parece não
ser mais do que uma ferida viva. É nesse momento, em 1224, que a tradição
situa o milagre da estigmatização, cuja descrição toma forma ao longo das suces-
sivas biografias de Francisco, como demonstrou Chiara Frugoni. Segundo a
Legenda maior, que Boaventura, superior-geral da ordem franciscana, redige em
1263 e impõe como a única versão autorizada (a ponto de ordenar a destruição
das narrativas anteriores, em particular as duas Vidas, redigidas por Tomás de
Celano), Francisco teria tido uma visão divina, sob a forma híbrida de um sera-
fim e de Cristo na cruz, cujas cinco chagas da Paixão teriam sido impressas em
seu corpo, ainda visíveis quando de sua morte (figura 20, na p. 209). Tal mila-
gre, totalmente inédito e reconhecido pelo papado somente em 1237, provoca

19. Em italiano, pobrezinho, coitado. (N. T.)

208 }érôme Baschet


20. A estigmatização de são Francisco: relicário esmaltado contendo relíquias do santo, c. 1228 (Museu
do Louvre, Paris).
No reverso deste relicário, lentes de cristal permitem ver as relíquias do santo, recentemente canonizado. No
lado visível aqui, uma decoração em esmalte campeado (técnica altamente apreciada para a decoração dos obje-
tos litúrgicos) mostra uma das primeiras representações da estigmatização de Francisco. A aparição é a de um
serafim, mais do que a de Cristo na cruz, mas os pés e as mãos portando as chagas da Paixão são bem visíveis.
A impressão dos estigmas não está materializada por raios ligando o corpo do Cristo-serafim e aquele do santo
-como Giotto terá a idéia por volta de 1290-, mas Francisco, de braços afastados e inclinado, como para
se oferecer aos efeitos da aparição, carrega, no seu próprio corpo, as marcas do sacrifício de Cristo.
vivas polêmicas. Muitos contemporâneos permanecem incrédulos ou mesmo
hostis a uma inovação quase escandalosa, que põe Francisco excessivamente
alto a seus olhos, até o momento em que outros santos, a começar pela domini-
cana Catarina de Siena, imitam seu exemplo e reduzem, assim, o seu excessivo
privilégio. É que o alcance da estigmatização não deixa dúvidas a ninguém: para
Boaventura e os franciscanos que se constituíram em promotores do milagre,
ele transformava Francisco em um santo perfeito, quase angélico, e era a reali-
zação lógica de uma vida devotada à imitação de Cristo. Recebendo as marcas
mais eminentes do sacrifício divino, Francisco identificava-se, em sua própria
carne, com o Salvador. Ele se tornava um segundo Cristo, vivendo novamente
entre os homens, "um outro Cristo", segundo a expressão de Boaventura. Em
um prazo particularmente breve, dois anos depois de sua morte, ocorrida em
1224, Francisco de Assis era canonizado.
Durante a sua vida, Francisco não cessará de tomar as instituições e os cos-
tumes de seu tempo a contrapelo. Fundador de uma ordem, se bem que ele
continue um laico (um dos raros que a autoridade eclesial autorizou a pregar),
próximo dos pobres a ponto de permanecer um dos seus, apesar do sucesso de
seu empreendimento, sempre opondo o dever da penitência às necessidades
institucionais, ele evita, entretanto, atacar frontalmente a hierarquia: nesse sen-
tido, poderíamos defini-lo como um rebelde integrado. Ele é portador de uma
mensagem que, de um lado, corresponde às aspirações de seu tempo (a insis-
tência sobre a Encarnação e a Imitação de Cristo), mas cujo radicalismo evan-
gélico é, em parte, inassimilável pela Igreja. Era, então, lógico que a história da
Ordem Franciscana fosse marcada, ao menos durante um século, por violentos
conflitos entre uma corrente espiritual, partidária de uma fidelidade rigorosa ao
fundador, e os conventuais, defensores de uma acomodação com as regras da
instituição eclesial. A interpretação da vida de Francisco, imposta por
Boaventura, é uma clara vitória dos últimos, antes mesmo que a disputa se con-
centre sobre a questão da pobreza, exigência absoluta para os espirituais, que
argumentam que Cristo jamais havia possuído algo. No entanto, no início do
século XIV foi-lhes necessário ou aceitar uma maior moderação para se manter
na comunidade da ordem, ou derivar para a heresia, como fazem os "fraticelles".
Ao final desse processo tumultuoso, a figura de Francisco terá sido, então, inte-
grada à instituição eclesial e, finalmente, posta a seu serviço.
1 Evocar-se-á mais brevemente Domingo de Guzmán, nascido por volta de

1170 em Caleruega (Castela), em uma família da pequena aristocracia. Ele opta


por uma carreira eclesiástica tradicional e torna-se cônego da catedral de Osma.
Acompanhando seu bispo no Sul da França, ele descobre o impacto do cataris-
mo e decide consagrar-se à luta contra a heresia. Ele começa a pregar na região

21 O }érôme Baschet
21. O Triunfo da Igreja e dos dominicanos, 1366-68 (afrescos de Andrea di Bonaiuto, capela dos Espanhóis,
Santa Maria Novella, Florença).
Fazendo face à representação do Triunfo de São Tomás (adequadamente localizado na sala capitular de um con·
vento dominicano), esta vasta alegoria da Igreja põe o acento sobre práticas que se tornaram essenciais duran-
te os últimos séculos da Idade Média, especialmente a pregação e a confissão. Embaixo, à esquerda, um impo-
nente edifício eclesial é associado à hierarquia clerical, reunida em torno do papa. Adireita, os dominicanos
têm o papel principal: eles pregam e combatem os heréticos, enquanto cães devoradores lembram que sua mis-
são está inscrita em seu nome (dornini canes). Acima, quase no centro do afresco, um sacerdote recebe a con-
fissão de um fiel ajoelhado diante dele (o confessionário não existe durante a Idade Média). A confissão está
no cruzamento dos caminhos: aqueles que recorrem a ela são convidados por são Domingo a avançarem para
o paraíso. Tais como almas puras vestidas com túnicas imaculadas, eles são ali acolhidos por são Pedro, símbo-
lo da instituição eclesial e guardião da porta do céu. Uma vez transposto esse limiar, os eleitos gozam da visão
beatífica, quer dizer, da contemplação da essência divina, que aparece em meio a uma corte de anjos. Tal é a
recompensa suprema, à qual os cristãos chegam seguindo os ensinamentos da Igreja e recebendo, graças a ela,
os sacramentos salvadores. Assim, o afresco sobrepõe notavelmente os três sentidos da palavra "igreja": o ediff.
cio, a instituição clerical e a comunidade dos fiéis, chamada a se reunir na glória celeste.
de Fanjeaux, logo acompanhado por alguns discípulos que levam uma vida evan-
gélica, depois funda um primeiro convento em Toulouse. Em 1217 o papa apro-
va a nova ordem, posta sob a regra de santo Agostinho. Domingo vê na prega-
ção, apoiada pelo estudo e pela penitência, uma arma indispensável contra os
inimigos da Igreja. Os novos conventos daqueles que são chamados, justamen-
te, de frades pregadores multiplicam-se rapidamente, e Domingo morre à fren-
te de uma ordem poderosa, em 1221 (sua canonização ocorre em 1234). O per-
curso do fundador castelhano não se parece nada com o do santo dé Assis:e-te
é, logo de início, estreitamente ligado à instituição eclesiástica e, em_particutar,
à luta contra a heresia. De resto, os dominicanos tornar-se-ão especialistas nas
tarefas inquisitoriais e assumirão com orgulho essa função, considerando-se os
"cães do Senhor" (domini canes, de acordo com um jogo de palavras que o seu
nome permite em latim; figura 21, na p. 211). Os dominicanos também orien-
tam imediatamente suas atividades para o estudo e o esforço intelectual indis-
pensável para argumentar ao serviço da Igreja. Eles multiplicam, então, os studia
destinados à formação de seus membros, enquanto os primeiros franciscanos
procuram formas mais simples e mais imediatas de contato com Deus. Entre-
tanto, a despeito dessas diferenças iniciais, a evolução das duas ordens as apro-
xima, e muito em breve estarão, ao mesmo tempo, unidas por objetivos e práti-
cas bastante semelhantes e opostas por uma intensa rivalidade.
O sucesso das duas ordens que são chamadas de mendicantes, pois elas
querem, em seus inícios, nada possuir e viver apenas de dons de caridade, esten-
de-se logo a toda a cristandade. Os frades pregadores, caracterizados pela sua
vestimenta branca recoberta por um manto negro, são cerca de 7 mil por volta
de 1250 e dispõem de setecentos conventos no fim do século XIII, enquanto os
franciscanos (também chamados frades menores, em razão de sua humildade),
vestidos com um hábito de lã crua ou bege (nem pintado, nem embranquecido)
e reconhecidos, como Francisco, pela simples corda com um nó atada à sua cin-
tura, são talvez 2.500 por volta de 1250 e se repartem em cerca de 1.600 esta-
belecimentos meio século mais tarde. Outras ordens mendicantes de menor
importância também surgem, mas o Concílio de Lyon 11 (1274) limita seu
número a quatro: além dos franciscanos e dos dominicanos, trata-se dos carme-
litas, ordem fundada em 124 7, e dos eremitas de santo Agostinho, ordem cria-
da em 1256. Cada ordem, sob direção de um superior-geral e de responsáveis
provinciais, é dotada de uma coesão muito mais forte que as redes monásticas
anteriores. Cada uma delas conta, além de seu ramo masculino, com um com-
ponente feminino - como a Ordem das Clarissas, fundada por santa Clara de
Assis, associada aos franciscanos- e uma ordem terceira, na qual são acolhi-
dos os laicos que desejam viver devotadamente. O ideal de pobreza, associado

21 ~ Jérôme Baschet
à humildade e à penitência, é a característica primeira das ordens mendicantes.
Mas, como todas as outras aventuras monásticas anteriores, esbarra no parado-
xo do sucesso, que leva à multiplicação dos dons e à acumulação dos bens. Se
as ordens tradicionais impunham que cada monge não possuísse nada a título
individual, mas aceitavam as doações feitas à instituição, as ordens mendican-
tes, preocupadas em dar sentido ao ideal de pobreza, recusam essa opção. Mas,
logo, precisam forjar a teoria segundo a qual os bens recebidos por elas são pro-
priedades do papa e que a ordem tem apenas o seu uso, o que os franciscanos
espirituais não deixam. de denunciar como uma ficção hipócrita. •
A contribuição das ordens mendicantes tem a ver ainda mais com uma con-
cepção original do papel do clero regular. Mesmo aceitando uma regra de vida
comunitária e ascética, os mendicantes não optam por uma fuga do mundo.
Mesmo quando se referem idealmente ao exemplo dos eremitas do deserto (Alain
Boureau), assumem, na prática, viver em meio aos fiéis para pregar pela palavra e
pelo exemplo (na verdade, essa vocação pastoral caracteriza somente os ramos mas-
culinos das ordens; as mulheres permanecem confinadas em uma clausura tradi-
cional, o que, sem dúvida, favorece o desabrochar, particularmente entre as domi-
nicanas, de uma intensa devoção mística, que vem compensar a sua exclusão das
tarefas assumidas pelos frades). O século XII já havia visto certa aproximação entre
regulares e seculares, mas os mendicantes dão o passo suplementar instalando-se
no coração das. cidades (estes estranhos regulares, urbanos e pregadores, são, de
resto, chamados de frades, não de monges). As ordens mendicantes aportam,
assim, uma contribuição decisiva à Igreja de seu tempo, assumindo um enquadra-
mento e uma atividade pastoral ada~tados aos meios urbanos. Agindo assim, inter-
vêm em um terreno que é, normalmente, do clero secular, e os conflitos entre men-
dicantes e seculares não faltam, por exemplo, no seio da Universidade de Paris e,
mais amplamente, nas cidades, onde os bispos vêem com desconfiança esses pre-
gadores extremamente bem preparados, cujos sermões têm mais sucesso que aque-
les dos seculares e que captam para suas vastas igrejas os dons dos fiéis. O laço
entre ordens mendicantes e fenômeno urbano é, de resto, tão claro que se pôde
estabelecer uma correlação entre a importância das cidades medievais e o número
de conventos mendicantes que elas abrigam Qacques Le Goff). Em todas as cida-
des da Europa, sua implantação se faz segundo uma mesma lógica: tendo necessi-
dade de um amplo terreno, os conventos mendicantes se estabelecem nos limites
da zona construída e, considerando a concorrência existente entre eles, o mais
longe possível uns dos outros, segundo uma geometria bastante regular. Se uma
cidade abriga dois conventos mendicantes, o meio da linha que os liga é ocupado
pelos edifícios principais da cidade; se eles são três, o centro urbano ocupa aproxi-
madamente o ponto central do triângulo formado por eles.

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 2/3


A Igreja, a cidade e a universidade

Seria imprudente, como já se disse, pensar a cidade medieval sem a Igreja: a


catedral gótica é o sinal bastante visível da presença da instituição eclesial; as
ordens mendicantes são os agentes de uma atividade pastoral com destinação
essencialmente urbana; a "religião cívica" oferece à cidade seus principais
rituais e seus mais preciosos símbolos. Mas esta evocação seria excessivamente
incompleta se não se mencionasse o desenvolvimento das escolas urbanas e.das....._
universidades, uma das mais notáveis criações da Idade Média. Ao longo do
século X!!, importantes evoluções conturbam o quadro educacional em vigor
desde a Alta Idade Média. Enquanto as escolas monásticas declinam, as esco-
las de catedrais, ainda sob a responsabilidade dos bispos, conhecem rápido. cres-
cimento. Anteriormente dotadas de um recrutamento estritamente local e ofe-
recendo uma formação elementar aos futuros clérigos da diocese, algumas
dentre elas começam a exercer grande atração em decorrência da reputação de
seus mestres. O número de estudantes aumenta e a ambição dos ensinamentos
cresce,__tanto em direito e medicina como também em teologia. termo cuio uso
Abelardo é um dos primeiros a promover. Mestres e alunos, pouco a~o.
tomam consciência de que formam um meio específico, cuja atividade intelec-
tual constitui a tarefa característica. Mesmo se esta permanece intimamente
ligada à Igreja, é sem dúvida essa emergência dos "intelectuais" medievais,
segundo a expressão de Jacques Le Goff, que permite compreender a formação
das universidades. Estas correspondem a um desejo de auto-organiz~a
comunidade de mestres e estudantes, do mesmo modo que todo-outro-ofíe*>
urbano, e a uma vontade de autonomia em relação ao bispo, que mantinhaaté
então seu controle sobre as escolas e reafirmava seu direito exclusivo de confe.-
rir a licenciatura (autori:z;a~o-par-a ensinar).
Bolonha, que domina o ensino do direito civil e canônico na cristandade,
é, sem dúvida, a primeira universidade, formada desde o fim do século X!!, mas
seus mais antigos estatutos conservados, que a definem como a comunidade
apenas dos estudantes, datam somente de 1252. A "universidade de mestres e
escolares de Paris" é um agrupamento voluntário formado nos primeiros anos
do século XIII, ao qual o legado do papa confere seus estatutos e privilégios em
1215. Em seguida, eles são solenemente confirmados por Gregório IX, após
uma greve dos mestres, provocada pelos afrontamentos entre estudantes e
guardas reais. Depois, a proeminência intelectual de Paris, incontestada duran-
te certo tempo, enfrenta a concorrência de Oxford que, orientada de início
para o direito, impõe sua competência em matéria de teologia a partir dos anos
1220. Os estatutos de que se dotam então essas universidades consagram suas

.? 1 -1 }ér6me Baschet
características essenciais: o ensino não é mais submetido à autoridade do bispo
e diz respeito unicamente à corporação de mestres, os quais definem suas nor-
mas. A partir dali, a universidade é "um corpo profissional incorporado na
Igreja a título de instituição autônoma que, subtraída da jurisdição dos bispos
e dos senhores, é submetida unicamente ao poder pontifício e a seu controle
doutrinai" (Franco Alessio). Entre as primeiras universidades européias, dota-
das de estatutos no primeiro quartel do século XIII, é preciso citar ainda
Cambridge para a teologia, Montpellier para a medicina, Salamanca, Nápoles,
Pádua e, apenas pouco mais tarde, Toulouse (1234). Passada esta data, as
numerosas universidades criadas têm, em geral, apenas uma importância limi-
tada e um recrutamento regional.
Em cada universidade, a autonomia permite à assembléia dos mestres, sob
a condução de seu reitor, decidir sobre sua organização interna (distingue-se,
em geral, a faculdade de artes, propedêutica em que são ensinadas as artes libe-
rais do trivium - retórica, gramática e dialética - e do quadrivium - aritmé-
tica, geometria, astronomia e música - e as "grandes" faculdades, de teologia,
direito ou medicina), bem como sobre o recrutamento de alunos e a cooptação
de professores, sobre os programas e autores ensinados, sobre os métodos utili-
zados e os graus conferidos (bacharelado, licenciatura, mestrado ou doutorado).
Mas o exercício da autonomia não se dá sem conflitos. Assim, o lugar prepon-
derante que os frades mendicantes começam a ocupar nas universidades a par-
tir dos anos 1230 suscita a hostilidade dos mestres seculares, que se queixam
notadamente da concorrência desleal daqueles que, pelo fato de pertencerem a
uma ordem, podem ensinar gratuitamente. Mas a posição dos mestres mendi-
cantes, que logo monopolizam as cátedras de teologia mais renomadas, é siste-
maticamente confirmada pelo papado, especialmente por Alexandre IV em
1225. É bem o sinal de que as ordens mendicantes exercem papel central na
instituição eclesial de seu tempo. Por decorrência, só pode ser dominante seu
lugar no seio das universidades, cuja função principal é fornecer à Igreja seus
fundamentos ideológicos mais firmes, ao mesmo tempo que a parte mais ins-
truída de seus prelados (muitos dos quais entram para o serviço das administra-
ções principescas ou reais).
O exercício de autonomia é combinado com a relativa homogeneidade dos
ensinamentos e das formas de organização, o que manifesta a universalidade do
poder pontifício, do qual dependem as universidades. A escolástica é seu méto-
do por excelência. Suas raízes remontam ao século XII: Anselmo de Canterbury
(1033-1109) esforça-se, notadamente em seu Por que Deus se fez homem, para
associar a fé e o intelecto (''fides quaerens intellectum") e convencer tanto por
raciocínios demonstrativos como pelo recurso aos argumentos de autoridade (as

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL _!f';


Escrituras e os Padres da Igreja); Abelardo (I 079-1142) desenvolve, especial-
mente em seu Sic et non, os princípios da argumentação dialética e os métodos
visando resolver as contradições entre as diferentes autoridades bíblicas e
patrísticas. Mas a escolástica das universidades do século XIII amplifica e aper-
feiçoa os métodos de raciocínio e de argumentação, codificados segundo regras
admitidas pela comunidade de mestres. A leitura comentada dos textos bíblicos
e de obras servindo de manuais, como o Livro das sentenças de Pedro Lombardo,
mestre e bispo de Paris entre 1135 e 1160, continua sendo a base do trabalho
escolástico. Trata-se de estabelecer seu sentido autêntico, por um exame metó-
dico tão impessoal quanto possível. A quaestio (alternativa do tipo será isto ... ou
então ... ?) é a outra forma dominante da atividade intelectual: ela pode dar lugar
a um debate oral (disputatio) sobre um tema determinado pelo mestre (a menos
que se trate de questões "quodlíbetas"/0 as mais imprevisíveis), ou então ser
objeto de uma redação escrita, segundo uma organização quadripartida constan-
te (autoridades a favor da primeira solução; objeções e autoridades contrárias;
tese do autor; resposta às objeções).
A conjunção de um vasto conjunto de quaestiones, que formam um trata-
mento completo do respectivo campo, leva às grandes Sumas teológicas que
marcam o apogeu da escolástica universitária do século XIII. Os franciscanos
Alexandre de Hales (a Suma que leva seu nome, terminada por seus alunos, é a
primeira do gênero) e Boaventura ( 1221-7 4 ), os dominicanos Alberto, o Grande
(1193-1280) e Tomás de Aquino (1225-74 ), ilustram-se particularmente neste
gênero totalizador, cujas ambições são nada menos que sintetizar e esclarecer,
pela força do raciocínio, o conjunto dos problemas relativos a Deus, ao homem,
ao universo e à organização da sociedade. Além da teologia, os métodos escolás-
ticos do mundo universitário estendem-se ao estudo do direito e a certas disci-
plinas baseadas, em parte, na demonstração e na verificação, e cujos nomes apa-
rentam-se aos das ciências modernas (sobretudo a matemática, o estudo da
natureza e a astronomia). Estas florescem sobretudo em Oxford, onde se ilustra
Roberto Grosseteste (1175-1253). Apesar dos afrontamentos que a dividem,
particularmente quanto à recepção das obras de Aristóteles e de seus comenta-
dores árabes (eles levam à condenação, em 12 77, por Estevão Tempier, bispo de
Paris, de 219 teses atribuídas aos averroístas parisienses e, em certos casos, a
Tomás de Aquino), a escolástica do século XIII aparece como um monumento
coletivamente erigido à glória da Igreja triunfante e como a expressão mais aca-
bada da ideologia consubstanciai à ordem da sociedade cristã.

20. Do latim quolibet, "não importa para onde"; proposição sustentada aleatoriamente, ao bel-pra-
zer do autor ou orador. (N. T.)

..? I ( }érôme Baschet


Pregação, confissão, comunhão: uma nova tríade

A partir do fim do século XII, uma insistência nova sobre certas práticas refor-
muladas leva a uma configuração inédita, cujo centro é ocupado pelo tríptico
pregação-confissão-comunhão. Como se disse, profundas transformações afeta-
ram a comunhão, sacramento "terrível", ato capital que assegura, ao mesmo
tempo, a coesão da comunidade cristã e sua divisão hierárquica entre os cléri-
gos e os laicos (assim, no decorrer do século XII, a comunhão sob as duas san-
tas espécies, o pão e o vinho, é progressivamente reservada aos clérigos, ao
passo que os laicos têm acesso somente à primeira). Convém, então, relembrar
aos laicos, tornados talvez hesitantes pela sacralidade esmagadora do rito, a
necessidade de comungar regularmente. É por isso que, na seqüência de várias
assembléias diocesanas, mas dessa vez por intenção de toda a cristandade, o
Concílio de Latrão IV (1215) torna obrigatório a todos os fiéis receber a comu-
nhão ao menos uma vez por ano, na Páscoa (cânone Omnis utriusque sexus).
Exigência mínima, que diz muito sobre os limites da participação sacramental
dos laicos ordinários, essa regra enseja uma conseqüência considerável, pois
ninguém poderia, sob pena de graves riscos espirituais, receber a eucaristia sem
estar previamente purificado de seus pecados. A obrigação da comunhão anual
impõe, então, o dever de uma confissão igualmente anual.
Na Antiguidade tardia e nos primeiros séculos da Alta Idade Média, a Igreja
havia admitido a possibilidade de uma penitência que permitia purificar-se dos
pecados cometidos após o batismo. Tratava-se, então, de um ritual público que
só podia ser realizado uma única vez e era, por conseqüência, em geral retarda-
do até a aproximação da morte. Depois, a partir do século VII, os monges irlan-
deses introduzem em toda a cristandade o sistema de penitência tarifada/ 1 em
vigor até o século XII. Renovável, ela dava lugar a um ritual de reconciliação
pública, com freqüência realizado no portal norte das igrejas, que os penitentes
deviam atravessar arrastando-se sobre os joelhos e os cotovelos, depois de terem
cumprido escrupulosamente as indicações do Livro de penitências, que fixa para
cada falta o nível das penitências requeridas, sob forma de preces, jejuns, mor-
tificações diversas ou peregrinações (figura 50, na p. 498). No século XII, o for-
malismo rígido de tal sistema devia parecer cada vez mais inadaptado, ao passo
que os mestres em teologia, como Abelardo, definiam o pecado como uma pro-
pensão interior e sublinhavam a necessidade de avaliar os atos humanos levan-
do em conta sua intenção. De fato, uma prática penitenciai renovada surge

21. Na qual a cada falta corresponde uma penitência precisa, como uma espécie de "taxação" dos
pecados. (N. T.)

A CIVILI:lAÇÃO FEUDAL ~/-:-


então, sendo depois sancionada pelo Concílio de Latrão IV. A confissão -
declaração ao sacerdote dos pecados cometidos em ato, em intenção ou em
pensamento - é, doravante, a parte essencial da penitência: desnudando o
coração culpado do fiel e pela humilhação que ele experimenta com isso, ela
constitui uma pena que ele inflige a si mesmo. Como disse Pedro, o Cantor,
mestre em teologia de Paris, morto em 1197, "a confissão oral constitui o essen-
cial da expiação". Isso é tão verdadeiro que, dali em diante, o sacerdote conce-
de a absolvição tão logo a confissão esteja acabada e a contrição tenha sido
manifestada, sem nem mesmo esperar que a satisfação (o ato de penitência
imposto ao fiel) seja realizada. Esta, no entanto, permanece indispensável, e um
cristão que morre confesso, mas sem ter cumprido a penitência requerida, está
destinado às flamas do purgatório. É verdade que o recurso crescente às indul-
gências contribui, então, para evitar tais situações. Havia muito tempo, o dom
de caridade ou ainda a participação em uma cruzada podia valer uma indulgên-
cia, quer dizer, uma remissão de pena, anulando a necessidade de realizar a
satisfação penitenciai. Assim, a visita a um santuário e, sobretudo, a prece dian-
te de certas imagens permitem suspender as penitências a serem realizadas,
enquanto, a partir do século XIV, as indulgências prolongarão seus efeitos até o
além, encurtando os tormentos das almas do purgatório.
Uma tarefa delicada cabe, a partir de então, aos sacerdotes, que devem
conduzir o exame de consciência de todos os fiéis, obrigados a se confessar ao
menos uma vez ao ano (sem falar de um laico exemplar, como são Luís, que
recorre ao seu confessor, em média, uma vez por semana e o tem permanente-
mente à sua disposição, de dia e à noite, a fim de jamais permanecer em esta-
do de pecado mortal, o que ilustra bastante bem o papel central adquirido pela
confissão no sistema eclesial da época). Como interrogar o penitente com zelo
suficiente para cercar os pecados sem esquecer nenhum (a confissão seria,
então, nula), mas também com tato suficiente para evitar que a vergonha crie
obstáculos para uma confissão completa? Como mesurar com eqüidade atos e
pensamentos, levando em conta todas as circunstâncias particulares e avalian-
do as intenções que dão o verdadeiro sentido a cada gesto? As dificuldades são
tão grandes que o desenvolvimento da confissão auricular conduz à profusão de
novos tipos de obras. As Sumas de confissão, as primeiras das quais são devidas
a Tomás de Chobham ( 121 0-15), Raimundo de Penafort e João de Friburgo, for-
necem uma classificação dos pecados que permite guiar o trabalho do confes-
sor e examinam metodicamente todas as dificuldades e todos os "casos de cons-
ciência" que é possível encontrar. Os Manuais de confessores simplificam uma
matéria cada vez mais densa, a fim de poderem ser utilizados, na prática, por
simples sacerdotes. Se acrescentarmos as Sumas consagradas aos vícios e às vir-

~ I ~ }érôme Baschet
tudes, assim como os tratados morais destinados aos laicos, uma quantidade
considerável de manuscritos é, então, votada ao aperfeiçoamento das técnicas
de introspecção da alma cristã. Mas se, de certa maneira, a confissão prefigura
a psicanálise, notadamente pelo papel regenerador que confere à palavra e à
declaração da falta, ela também se distingue radicalmente: enquanto a psicaná-
lise não confere nenhuma absolvição, a confissão articula a declaração liberta-
dora ao reforço do poder da instituição clerical, intermediária obrigatória para a
salvação (figura 21, na p. 211 ). Como preço do perdão que ela concede, a Igreja
se atribui, graças à confissão, um temerário instrumento de controle dos com-
portamentos sociais e se imiscui no mais secreto das consciências individuais.
O desenvolvimento da confissão é acompanhado daquele da pregação.
A prática dos sermões e das homilias remonta, é verdade, à Antiguidade, mas,
durante séculos, a pregação permaneceu integrada à missa e concebida como
um exercício erudito destinado principalmente aos próprios clérigos. No século
XII, entretanto, ela se amplia notavelmente e os laicos são seus destinatários
prioritários, tanto da parte dos regulares, como são Bernardo, ardente pregador,
como dos seculares, como Jacques de Vitry ( 1165-1240) ou Alain de Lille, autor
de uma importante Arte de pregar. Mas são principalmente os frades mendican-
tes que fazem da pregação um instrumento central de instrução dos laicos.
Dominicanos e franciscanos tornam-se "verdadeiros profissionais da palavra"
(Hervé Martin), formados na arte de pregar nos studia de suas ordens, difundin-
do em toda a cristandade "uma palavra nova" (Jacques Le Goff e Jean-Ciaude
Schmitt). A pregação é também um aspecto inerente ao ministério pastoral dos
seculares, mas o papado apóia decididamente a intervenção desses especialis-
tas que são os frades mendicantes, aos quais o Concílio de Latrão IV confia a
missão de "ajudar os bispos no ofício da santa pregação". Doravante, os sermões
são com freqüência pronunciados nas praças públicas, aos domingos e nos dias
festivos; eles também são organizados em vastos ciclos na época de Natal,
Quaresma, Páscoa, Pentecostes ou quando da passagem de um pregador itine-
rante reputado. Sobretudo, a nova palavra afasta-se dos modelos eruditos ante-
riores e pretende transmitir a mensagem divina ao mesmo tempo que "fala de
coisas concretas e palpáveis que os fiéis conhecem por experiência". O estilo
vivo e, por vezes, teatralizado dos pregadores, assim como o recurso constante
aos exempla, anedotas ou breves narrativas divertidas, destinadas a captar a
atenção do público, dando lugar a uma lição de moral, dos quais o dominicano
Estevão de Bourbon ( 1190-1261) compôs a mais ampla coletânea, completam
o dispositivo de uma palavra que se pretende eficaz.
Mas, eficaz para quê? A pregação visa, evidentemente, "fazer crer", quer

A CIVILIZAÇÃO FEUIJAL _!f<J


dizer, inculcar os rudimentos doutrinais e as normas elementares da moral defi-
nida pela Igreja. Nesse sentido, é um instrumento decisivo de aprofundamento
da "aculturação cristã" nos últimos séculos da Idade Média (Hervé Martin).
Mas o desenvolvimento da pregação é também ligado ao da confissão: não
somente os sermões vangloriam os méritos da confissão (uma só lágrima de con-
trição tem "a virtude de apagar todo o fogo do inferno", explica o dominicano
Giordano de Pisa, nos primeiros anos do século XIV), mas, sobretudo, pela evo-
cação das faltas cometidas e da salvação que se arrisca perder, eles visam criar
um choque salutar, propício a pôr os fiéis no caminho da confissão. É por isso
que Humberto de Romans, um outro dominicano morto em 1277, pôde afirmar:
"Semeia-se pela pregação, colhe-se pela confissão". A pregação é justamente
uma incitação à confissão; e a tríade pregação-confissão-comunhão forma, a
partir do século XIII, um conjunto fortemente articulado, no coração das práti-
cas novas da cristandade.

Ritualismo e devoção: uma mudança de equillbrio?

De tudo isso, decorrem notáveis mudanças de tonalidade no seio da cristanda-


de. Não se trata, entretanto, de rupturas radicais, mas antes de inflexões de
equilíbrio no seio das tensões constitutivas do sistema eclesial. Nós nos conten-
taremos, aqui, com um exemplo (veja também a segunda parte, capítulo IV).
Durante a Alta Idade Média, e até o século XII, as práticas cristãs parecem
caracterizadas por um ritualismo generalizado, de que o clamor monástico e a
humilhação dos santos são bastante ilustrativos. Evocando um Deus distante
com traços veterotestamentários, o cristianismo parece quase se resumir à prá-
tica dos sacramentos essenciais, às múltiplas liturgias que ordenam a vida dos
clérigos e ao culto dos santos, que é, antes de tudo, o culto das relíquias. Seria,
é verdade, absurdo negar que o culto dos santos conserva um papel central até
o fim da Idade Média e mesmo bem depois. De resto, é o dominicano genovês
Jacopo de Varazze (1230-98) que compila um dos best-sellers medievais desti-
nado a um durável sucesso, a Legenda áurea, que é para a hagiografia o que as
Sumas são para a teologia. Mais ou menos no mesmo momento, o rei são Luís
desespera-se por causa da perda do Santo Cravo e acolhe como penitente, pés
nus e vestido com uma simples túnica, uma relíquia, bastante excepcional na
verdade, a coroa de espinhos, para cuja aquisição ele consagrou muitos esforços
e dinheiro e para qual fez construir, como um imenso relicário no centro de seu
palácio, a Sainte-Chapelle.

2~0 Jérôme Baschet


O deslocamento da ênfase está vinculado, aqui, a uma evolução dos crité-
rios e dos modelos da santidade. A importância relativa dos milagres, que
fazem dos santos heróis dotados de poderes excepcionais, tende a diminuir em
proveito da apresentação de comportamentos morais que devem servir de
exemplo aos fiéis (André Vauchez). É verdade que existem exceções retumban-
tes, como a estigmatização de Francisco, mas, no conjunto, os textos hagiográ-
ficos dão menos lugar aos milagres realizados em vida e há muitos santos
recentes cujo poder sobrenatural só se revela após a morte, pelas curas realiza-
das em suas tumbas. Durante suas vidas, eles não são super-homens, mas
somente cristãos exemplares, devotando-se à penitência e esforçando-se pela
perfeição moral. Quanto aos simples fiéis, se a prática dos sacramentos e a
intercessão dos clérigos continuam sendo os meios indispensáveis de acesso
à salvação, o desenvolvimento da confissão e do exame de consciência os obri-
ga a escrutar seus atos e, mais ainda, suas intenções. A preocupação moral e a
casuística dos pecados - sempre articulados à necessidade sacramental da
confissão - ganham então importância inédita. Decorre disso um desenvolvi-
mento do que se pode chamar a devoção pessoal: a prece e a meditação piedo-
sa, antes reservadas aos clérigos, são doravante acessíveis a uma elite laica,
para a qual é copiado um número crescente de obras de devoção em língua ver-
nácula, especialmente os livros de horas, que permitem a recitação cotidiana
das horas monásticas.
Por vezes, evoca-se, a propósito desses fenômenos, uma "promoção dos lai-
cos" no seio da Igreja. Mas trata-se antes da adoção pelos laicos de práticas reli-
giosas anteriormente reservadas aos clérigos. A conseqüência disso é a sua sub-
missão ainda mais estrita aos valores e às normas elaboradas pela Igreja,
sobretudo porque os clérigos não renunciaram então a nenhum de seus privilé-
gios essenciais em matéria de intercessão sacramental e a dominação ideológi-
ca da instituição eclesial parece mais absoluta do que nunca. Se há "promoção
dos laicos", esta expressão só pode significar uma maior difusão, no corpo social,
das normas clericais, uma melhor interiorização destas pelos laicos, que os con-
duz a participar mais ativamente da reprodução de um sistema eclesial domina-
do pelo clero. No mais, repitamo-lo, trata-se apenas de um deslocamento de
ênfase: o ritualismo absolutamente não desaparece; os sacramentos permane-
cem sendo a base da organização social, e uma narrativa alegórica do início do
século XIV, A via do inferno e do paraíso, ainda sugere que, para se salvar, é sufi-
ciente recitar cotidianamente a Ave-Maria.

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 2~/


LIMITES E CONTESTAÇÕES
DA DOMINAÇÃO DA IGREJA

Afirmar que a Igreja é a instituição dominante da sociedade feudal não quer


dizer que ela não se defronte com nenhuma contestação, nem que seu poder
seja ilimitado. Ao contrário, além das tensões internas que a animam, a institui-
ção eclesial afronta, em sua obra de dominação, hostilidades silenciosas e rebe-
liões abertas. Convém, então, analisar conjuntamente o exercício sempre mais
amplo de sua dominação e as resistências com as quais ela se depara. Percebe-
se que toda ordem tem necessidade de contestações e de desordens para melhor
impor sua legitimidade (a ponto de forjá-las se não as encontra à sua altura).
Nesse sentido, não é surpreendente que o processo de reforma da instituição
eclesial e de reforço da coesão da sociedade cristã, nos séculos XI e XII, seja
acompanhado de um ressurgimento das contestações, especialmente heréticas,
e de uma intensificação das formas de exclusão. "Ordenar e excluir'' - segun-
do a expressão de Dominique Iogna-Prat- são as duas faces indissociáveis de
uma mesma dinâmica.

As ofensivas heréticas e a reação da Igreja

A heresia não existe em si e nada mais é do que aquilo que a abtoridade ecle-
siástica definiu como tal. A própria noção de heresia (etimologicamente, "esco-
lha") só adquire sentido na medida em que a Igreja se transforma em uma ins-
tituição preocupada em fixar a doutrina que fundamenta sua organização e seu
domínio sobre a sociedade. O problema da heresia emergiu, então, apenas na
medida em que a Igreja se transformou em uma instituição preocupada em defi-
nir os dogmas que baseavam sua organização e seu domínio sobre a sociedade.
De fato, é durante o século que vai de Constantino a Agostinho que explode
uma primeira crise doutrinai maior, que leva à elaboração da ortodoxia trinitária
e cristológica e à rejeição de um conjunto de heresias, das quais a principal é o
arianismo. Agostinho pode, então, fazer uma lista de 88 heresias, que servirá de
reservatório de argumentos e de prisma deformador para todos os autores ulte-
riores que trataram da heresia. Com raras exceções, as heresias medievais só são
conhecidas através dos textos dos clérigos que as condenam, de modo que é
muito difícil separar os amálgamas e os exageros ligados às necessidades da
polêmica e da repressão. A abordagem da heresia medieval permanece insepa-
rável da atitude da Igreja em relação a ela.

2..' ~ }érôme Baschet


No Ocidente, alguns episódios isolados e de fraco alcance, mas significati-
vos pela sua concomitância, indicam o ressurgimento da questão herética pouco
depois do ano mil. Em 1022, uma dezena de clérigos da catedral de Orleans é
acusada de negar a eficácia dos sacramentos e queimada por ordem do rei da
França. Em 1205, uma comunidade de laicos, obrigada a comparecer diante
do Sínodo de Arras, parece tratada com clemência pelo bispo e convencida a aban-
donar suas críticas contra as práticas da Igreja. Por volta de 1028, no castelo de
Monteforte, no Piemonte, um grupo de homens e de mulheres que optaram por
uma forma de vida comunitária, casta e penitente, é interrogado pelo arcebispo
de Milão e, depois, condenado à fogueira sob a instigação dos aristocratas da
cidade. A esses primeiros sintomas de contestação da instituição eclesial suce-
de um tempo de latência em matéria de heresia. Isso se dá, sem dúvida, porque,
a partir de meados do século XI, a Igreja é absorvida pelo processo de reforma e
consegue integrar uma parte notável das ofensivas de evangelismo, em benefí-
cio de sua luta contra a fração conservadora do clero. De resto, ela não hesita
em caracterizar como heréticos os simoníacos, os nicolaítas e todos aqueles que
se opõem a ela (o papado afirma sem rodeios que "aquele que não reconhece as
decisões da Sé Apostólica deve ser tido por herege").
Nos anos 1120-40, o ressurgimento herético e a reação da Igreja tomam for-
mas e proporções novas. O primeiro testemunho notável é o tratado de Pedro, o
Venerável, redigido em 1139-40, contra o herético Pedro de Bruis e seus discí-
pulos (Dominique Iogna-Prat). Originário dos Alpes ocidentais, este parece ter
pregado na Provença nos anos 1120, profanando as igrejas e queimando cruzes,
até morrer queimado na fogueira de cruzes que ele próprio havia acendido perto
da abadia de Saint-Gilles du Gard. Pedro, o Venerável, atribui-lhe- assim como
a seu comparsa Henrique de Lausanne, iniciador de uma insurreição em Mans,
em 1116 - cinco teses heréticas: a recusa do batismo das crianças (pelo moti-
vo de que é preciso ser capaz de crer para ser salvo); a rejeição aos lugares de
culto consagrados (pois a igreja é comunidade dos fiéis e não os muros que a
abrigam); o menosprezo pela cruz (tida por um instrumento de tortura); a impos-
sibilidade de reiterar o sacrifício eucarístico (sendo a missa apenas um símbolo);
a inutilidade da liturgia funerária e das preces para os mortos Gá que estes estão
salvos ou condenados desde o seu trespasse, diz Henrique). Tantas práticas que
uma referência exclusiva e literal ao Evangelho seria suficiente para pôr em
causa, mas que são transformadas em fundamentos da instituição eclesial e,
muito particularmente, de sua ponta de lança cluniacense.
Mais importante ainda, por seu impacto durável, é a figura de Pedro Valdes
(ou Valdo), um mercador de Lyon que se converte em 1174, abandona seus
bens, faz traduzir a Bíblia e decide pregar segundo o Evangelho. O papa lhe con-

A CIVILIZAC,:ÃO fEUDAL 2.."!3


cede esse direito, submetendo-o, entretanto, à aprovação de seu bispo, que ter-
mina por opor sua recusa em 1181. Excomungado, Valdo prega, então, fora da
Igreja, fazendo adeptos que difundem sua palavra no Sul da França e no Norte
da Itália. A hostilidade das autoridades e as perseguições radicalizam suas críti-
cas contra o clero, de modo que se atribui, finalmente, aos valdenses concep-
ções semelhantes àquelas que Pedro, o Venerável, denuncia em Pedro de Bruis.
Entretanto, o procedimento inicial de Valdo não difere em absoluto daquele de
Francisco de Assis: como este, ele é um laico à procura de uma vida espiritual
fundada na pobreza e em um retorno sem mediação ao Evangelho. No mais,
num primeiro momento, ele é encorajado a pregar pelo arcebispo de Lyon, que
vê em sua mensagem de reforma uma vantagem no conflito que o opõe a seus
cônegos. Mas, nessa época, os movimentos populares que os reformadores do
século anterior não deixavam de encorajar não são mais correntes. A pregação
com conteúdo evangélico é, agora, uma opção com dois gumes: ela é tanto recu-
perada pela Igreja e integrada em seu seio - seu promotor torna-se, então, um
fundador venerado - como rejeitada, evoluindo para um radicalismo anticleri-
cal que converte seus adeptos em hereges perseguidos.
No entanto, a principal preocupação dos clérigos é a heresia que eles
nomeiam "cátara" (o termo deriva do grego "puro", mas os clérigos inventam
para ele etimologias negativas, das quais a principal se refere ao gato - cattus
- animal associado ao bestiário diabólico). As primeiras menções a essa here-
sia datam dos anos 1140: o socorro de são Bernardo é r~querido em Colônia,
em 1143, e, depois, na região de Toulouse, em 1145. Ao longo da segunda meta-
de do século XII, a Igreja organiza sua resposta, nas três regiões em que a here-
sia parece mais desenvolvida: o Languedoc, a Itália do Norte e a Renânia. Na
verdade, nossos conhecimentos sobre os cátaros são bastante hipotéticos e os
trabalhos impulsionados por Monique Zerner incitam à mais extrema prudên-
cia. Atribui-se aos heréticos o esboço de uma organização estruturada; fala-se -
mas a verdade do fato é discutida - de uma reunião cátara em São Félix de
Caraman, em 116 7, por ocasião da visita de um emissário oriental de nome
Nicetas (ou Niquinta), e durante a qual teria se procedido à organização de dio-
ceses e à ordenação de bispos. Quanto às crenças dos cátaros, é particularmen-
te difícil extraí-las das diatribes dos clérigos, que interpretam os movimentos
contemporâneos projetando sobre eles as categorias e as descrições das heresias
fornecidas por santo Agostinho (Uwe Brunn). Não se sabe muito bem se é per-
tinente distinguir no seio do catarismo, como se tem o costume de fazer, um
dualismo radical e um dualismo moderado. O primeiro professaria a existência
de duas divindades, um Deus do bem, que criou unicamente os anjos e as
almas, e um Deus do mal, ao qual se imputa a criação do mundo material e dos

2-'..J }érôme Bascl1et


corpos. De tal cosmogênese, decorre que estes últimos são inteiramente maléfi-
cos e não podem ser objeto de nenhuma redenção. A Encarnação de Cristo é,
então, impensável (Deus não pode se encarnar, pois isso seria entregar-se ao mal),
e a salvação pode ser atingida somente pela alma (de onde a negação da ressurrei-
ção dos corpos), através de uma rejeição de todo contato com a matéria e ao termo
de um ciclo de reencarnações concebidas como purificações progressivas.
Enquanto o dualismo radical nega os próprios fundamentos do cristianismo, o
dualismo moderado aproxima-se mais dele. Ele parece admitir a idéia de um Deus
único, sendo que a criação do mundo passa a ser imputada a um anjo decaído,
inferior a Deus, mas dotado de autonomia maior que na doutrina cristã. Nos dois
casos, entretanto, a recusa do casamento e da procriação carnal é total e a crítica
à Igreja é extrema: os clérigos são "lobos rapaces" e os sacramentos podem ser con-
feridos pelos laicos. De fato, os cátaros parecem atribuir verdadeiro valor a um só
sacramento, o consolamentum ritual de imposição das mãos que distingue os per-
feitos, que assumem uma vida totalmente pura, dos simples crentes.
Os clérigos reagem, de início, pela palavra. São organizadas reuniões, como
em Lombers, perto de Castres, em 1165 ou 1176, nas quais as opiniões dos
cátaros são discutidas pelos bispos de Toulouse e de Albi. O arcebispo da
Narbônia organiza uma controvérsia com os valdenses em 1189, que dá lugar a
um tratado redigido por Bernardo de Fontcaude, no mesmo momento em que
aparecem outras obras refutando cátaros e valdenses. A pregação também se
torna mais eficaz a partir do momento em que é confiada aos cistercienses e,
sobretudo, aos dominicanos; ela tem alguns sucessos, obtendo o arrependimen-
to de vários grupos dissidentes. Mas a repressão se faz igualmente sentir. Após
Lúcio III, que acentua as sanções contra os heréticos em 1184 (decretai Ad abo-
lendam), é sobretudo Inocêncio lll quem elabora os instrumentos jurídicos
indispensáveis a uma política repressiva vigorosa. Em 1199 ele assimila a here-
sia a um crime de lesa-majestade (divina), o que implica o mais extremo rigor
em sua perseguição e seu castigo. Durante o seu pontificado, o Concílio de
Latrão IV precisa o arsenal repressivo contra os hereges, que devem ser exco-
mungados, assim como todos aqueles que os protegem ou têm relações com
eles. Por fim, Gregório IX organiza os tribunais da Inquisição, cujo nome deriva
do procedimento inquisitório que põem em prática. Como já se viu, a queixa de
uma vítima não é mais necessária, nesse momento, para abrir um processo, e o
juiz pode decidir por si próprio lançar uma diligência, baseado em um rumor ou
uma suspeita. E, uma vez que não há mais queixosos para justificar a diligência,
a obtenção de uma confissão do acusado torna-se indispensável, se necessário
pela tortura, tida como um meio legítimo para fazer aparecer a verdade. E pre-
ciso ressaltar, ainda, que então a Inquisição não é mais que um tribunal assu-

A CIVILIZAÇÃO rEUDAL z_:c;


mido por um bispo ou confiado a frades mendicantes, dotado de meios limita-
dos e que funciona, nas ações anti-heréticas levadas a cabo até o início do sécu-
lo XIV, com relativa moderação. Trata-se, sobretudo, de obter uma confissão e
uma retratação, que permite ao acusado ser reintegrado à comunidade eclesial
após a satisfação de uma penitência; é somente em caso de obstinação ou de
recidiva que ele é entregue ao braço secular para ser castigado. Está-se ainda
longe da Inquisição dos Reis Católicos, transformada em um órgão da monar-
quia, e daquela da época moderna, engajada em um processo de exterminação
maciça de feiticeiros e feiticeiras. A Idade Média apenas lançou as bases de um
princípio repressivo do qual o Renascimento e os Tempos Modernos se encar-
regarão de tirar todas as conseqüências.
A ofensiva militar contra os cátaros é igualmente uma iniciativa de Inocên-
cio III. Após diversas manobras infrutíferas, o assassinato de Pedro de Castelnau,
legado pontifício, provoca o apelo à cruzada contra os albigenses. Os nobres do
norte do reino que responderam a ele formam fileiras sob as ordens de um
deles, Simão de Montfort, e a cruzada começa em 1209 com o saque de Béziers
(talvez 20 mil mortos, uma carnificina em meio à qual o legado do papa teria
pronunciado esta frase, cuja autenticidade é discutida: "Matai-os todos, Deus
reconhecerá os seus"). Os castelos controlados pelos cátaros ou que os prote-
giam são destruídos até o último, Montségur, que cai em 1229. O Tratado de
Paris celebra então o esmagamento dos heréticos e consagra o domínio da auto-
ridade real sobre o Sudoeste da França. A heresia .se apaga, mesmo se ela se
mantém, sob formas parcialmente atenuadas, nas regiões montanhosas, tais
como os Pireneus, onde o bispo de Pamiers, Jacques Fournier, a desembosca
ainda na aldeia de Montaillou, no início do século XIV (Emmanuel Le Roy
Ladurie). As heresias cátara e valdense, cujos perigos a Igreja - e o rei da
França - tinham provavelmente interesse em amplificar, e cujos adeptos
jamais foram muito numerosos (raramente mais que 5% da população das cida-
des do Languedoc), deixaram, então, de ser uma preocupação séria.
No geral pode-se, com algum artifício, distinguir diferentes fases nas mani-
festações heréticas. De início, elas são uma expressão do evangelismo dos lai-
cos, desejosos de um retorno à simplicidade e à pobreza das origens do cristia-
nismo, o que é apenas uma maneira mais ou menos forte de criticar o que a
instituição eclesial se tornou, principalmente na seqüência das transformações
dos séculos XI e XII. Mas o evangelismo, de resto presente nas temáticas dos
reformadores gregorianos, desemboca facilmente, se ele se radicaliza um pouco,
em um questionamento da mediação clerical. Chega-se, assim, à crítica dos
sacramentos (ou, mais exatamente, de uma concepção que liga sua eficácia aos
gestos realizados pelo sacerdote e não à participação dos fiéis), das práticas

22r jérôme Baschet


litúrgicas relativamente recentes (a liturgia dos mortos) e dos lugares e objetos
nos quais se encarna a instituição (igrejas, cemitérios, imagens e cruzes). O agui-
lhão parcialmente assimilável do evangelismo torna-se, então, uma crítica fron-
tal, e é todo o edifício construído pelo clero que é, desse modo, posto em causa
- tanto sua pretensão a ser o mediador obrigatório para a salvação como suas
intervenções estratégicas na organização social. Enfim, uma terceira fase, ilus-
trada somente pelo "catarismo radical", consistiria de uma negação da doutri-
na fundamental defendida pela Igreja (mito da Gênese, Encarnação de Cristo,
ressurreição final dos corpos). Mas ele teve, realmente, adeptos no Ocidente?
Temos alguns motivos para pensar que essa perspectiva foi exagerada sob o
efeito da lógica do amálgama polêmico e de um olhar clerical convencido de
encontrar a verdade e a coerência de todas as heresias em Agostinho. Seja
como for, é sem dúvida o evangelismo radicalizado até a crítica dos sacramen-
tos e o anticlericarismo levado até a recusa da mediação sacerdotal que cons-
tituem o pivô das atitudes dissidentes e o perigo maior contra o qual a Igreja
teve de reagir, atribuindo a seus adversários, se necessário, as concepções mais
aptas a desqualificá-los.
Não haveria nenhum sentido em se perguntar, como quer um velho tema
historiográfico, se as heresias constituem um fenômeno "social" ou um fato
"religioso". Seria igualmente absurdo negar que se trata de um fenômeno social
sob o pretexto de que o catarismo se expandiu, finalmente, em todos os meios
(mas, ao menos em sua fase crítica, ele é sobretudo característico de uma parte
das elites urbanas, aristocráticas e mercantis). É necessário, com efeito, lem-
brar que a Igreja é, na Idade Média, a própria forma de organização social e a
instituição que a domina. Atacar a Igreja e solapar os fundamentos de sua posi-
ção, como fazem as correntes heréticas, é uma questão que não é nem social
nem religiosa, porque ela é indissociavelmente social e religiosa. Atingindo sua
intensidade máxima aproximadamente entre 1140 e 1250, o fenômeno dito
herético - a um só tempo, dissidência real e construção dos clérigos - pode
ser tido por uma conseqüência da reformulação da instituição eclesial e da
sociedade feudal ao longo do século anterior. As temáticas evangélicas estavam
presentes no próprio seio do projeto reformador e o papado não hesitou em
dirigir o povo contra a fração julgada corrompida do clero, contribuindo, sem
dúvida, para excitar o anticlericarismo popular. Sobretudo, a reforma conduziu
a uma reafirmação da autoridade sagrada e dos privilégios dos clérigos, a uma
subordinação crescente dos laicos, postos à margem dos negócios da Igreja e
tornados os objetos passivos de uma eficácia sacramental inteiramente mani-
pulada pelos sacerdotes. O anticlericarismo laico só podia encontrar-se exacer-
bado, sob suas formas decretadas heréticas ou somente rebeldes, como no caso

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 2.!-


de Arnaldo de Brescia que, pregando contra o clero e suas riquezas, levanta as
massas romanas contra o papa e os cardeais em 1145. Assim, as dissidências
qualificadas de heréticas aparecem como formas de resistência laica em face
da acentuação do poder sacerdotal e da posição incessantemente mais domi-
nadora da instituição eclesial.

As "superstições" e a cultura folclórica

Os clérigos não devem apenas afrontar a contestação aberta dos hereges. As práti-
cas de numerosos fiéis, que a Igreja não expele para fora dos quadros da ortodoxia,
fornecem igualmente algumas preocupações. É necessário, quando elas são julga-
das inconvenientes ou desviantes, eliminá-las, como a gramínea que pode estragar
o cereal. É uma tarefa certamente muito mais complexa que a aniquilação dos
focos heréticos relativamente circunscritos. No mais, uma vez que a vitória foi asse-
gurada nas heresias, ela mantém os clérigos ocupados por um tempo maior, em par-
ticular os inquisidores. Como qualificar essas práticas e crenças? A noção de "reli-
gião popular" foi objeto de diversas críticas; e seria mais satisfatório evocar uma
"cultura folclórica", mesmo se ela não constituía um conjunto coerente e autôno-
mo e sabendo que essa expressão engloba práticas diversas relativas ao mundo
camponês e à aristocracia, aos meios urbanos, mas também à parte menos instruí-
da do baixo clero (Michel Lauwers). De fato, o que dá à "cultura folclórica" uma
unidade suscetível de justificar esta noção é a distânda que a separa da cultura cle-
rical (ainda que se trate menos de uma confrontação dual do que de múltiplas inte-
rações complexas entre realidades múltiplas). Talvez fosse melhor, então, conceber
a cultura folclórica como um pólo dominado (o que não quer dizer, necessariamen-
te, passivo ou desprovido de criatividade) no campo das representações sociais, no
seio do qual a cultura clerical ocupa uma posição tão hegemônica que pretende
ocupá-lo ou controlá-lo inteiramente. Assim, para delimitar as práticas e as crenças
aqui evocadas, não é sem pertinência, como propôs Jean-Claude Schmitt, recorrer
ao termo pelo qual os clérigos medievais as designavam: "superstições". Para a
Igreja, este termo é, ao mesmo tempo, uma explicação dos fenômenos que convém
expurgar (são sobrevivências do paganismo, segundo o próprio sentido do latim
superstitio) e uma condenação (são inspiradas pelo diabo). Retomar esta palavra,
dotada de uma pesada carga depreciativa, não deveria significar que se adira ao
ponto de vista da Igreja. Sua vantagem, para nós, é de lembrar que as práticas e as
crenças evocadas aqui não são dissociáveis do olhar reprovador que a Igreja lança
sobre elas e que esta, em seu empreendimento de dominação, batalha sempre na
frente das sobrevivências e dos erros que pretende fazer recuar.

2.!,' }érôme Bascl1et


O cristianismo foi confrontado a paganismos bem reais ao longo da evange-
lização do Ocidente, estendida tardiamente para suas margens orientais e nórdi-
cas. Praticada em larga escala, a destruição dos templos e lugares de culto pagãos
certamente não fez desaparecer em um dia práticas como a veneração das árvores
sagradas e os ritos que podiam lhes estar associados. Ainda em I 002, o Corrector
do bispo Buchard de Worms estabelece um quadro de numerosas práticas con-
denáveis: rituais de proteção, culto dos astros, crença nos lobisomens, rituais de
fecundidade etc. Mas a continuidade com o paganismo já parecia cada vez mais
duvidosa, e é, doravante, na relação com a realidade cristã contemporânea que
convém interpretar tais práticas. E se o século XII pôde ser considerado um
momento privilegiado de interação, permitindo que numerosas concepções fol-
clóricas aflorassem, inclusive nos textos clericais, o estabelecimento, durante o
século XIII, de novos instrumentos, como a confissão e a Inquisição, relança a
perseguição às "superstições", fazendo com que os clérigos, especialmente os fra-
des mendicantes, entrevejam a amplitude da tarefa que lhes cabe.
Um exemplo, que se tornou paradigmático pelo estudo de Jean-Claude
Schmitt, é aquele de Guineforte, o santo cão de caça cujo culto é descoberto
pelo dominicano Estevão de Bourbon, não longe de Lyon, onde ele oficia como
pregador e inquisidor. Segundo a lenda que Estevão recolhe junto aos habitan-
tes do _lugar, o cão teria sido injustamente morto pelo seu dono logo após ter aca-
bado de salvar um recém-nascido dos ataques de uma serpente, sendo, depois,
enterrado com remorsos, até se tornar objeto de veneração sob o nome de
Guineforte (por um processo complexo de assimilação com um mártir romano
do século III). O culto deste santo verdadeiramente muito especial consiste em
expor as crianças fracas ou doentes perto de sua tumba, situada na floresta.
Reputados serem changelins - criaturas que o diabo deixa após ter se apodera-
do das verdadeiras crianças22 - , eles são expostos sós entre velas e oferendas,
sendo depois mergulhados no riacho gelado. Ao termo desse rito de seleção, os
que resistiram são reintegrados à comunidade, segura de ter obtido, graças ao
santo cão, a cura e o fim do malefício diabólico. Horrorizado pela prática des-
sas "mães infanticidas", o dominicano procede à destruição da tumba e do sítio
ritual, exorta os fiéis a abandonarem tal superstição e inflige penas moderadas,
como a confiscação dos bens de certos adeptos do culto, o que não impedirá
que ele seja ainda atestado, sob formas atenuadas, no início do século XX.
Entretanto, o conjunto bastante coerente do rito e do mito descobertos por
Estevão de Bourbon não remonta absolutamente a uma religiosidade imemorial,

22. Daí a designação desses seres fabulosos ser formada a partir do verbo changer:: "trocar, mudar,
substituir". (N. T.)

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 2_1<)


e é provável que ele tenha se constituído no decorrer do século XII, em confor-
midade com as necessidades das comunidades rurais, então em formação.
Um outro conjunto importante testemunha a preocupação camponesa com
a fertilidade e a suficiência de alimentos. O teólogo Guilherme de Auvergne
menciona a crença em um espírito feminino, denominado Senhora Abundia,
que "traz a abundância às casas que ela visita", desde que seja aí bem acolhida
e que tenham sido dispostos para ela alimentos e bebidas suficientes. Um
pouco mais tarde, por volta de 1275, o Romance da Rosa de João de Meung
ataca aqueles que dizem ser levados em um vôo noturno com Senhora Abundia,
enquanto outros testemunhos associam crenças comparáveis à atividade de
espíritos denominados "Boas Coisas". Expressão de uma mesma preocupação, o
ritual nupcial que consiste em jogar grãos de trigo sobre os esposos gritando
"Abundância! Abundância!" é descrito e condenado por Jacques de Vitry. Pode-
se, então, perceber, através de uma série de testemunhos pontuais, a existência
de um conjunto de crenças e de rituais destinados a captar a benevolência de
forças positivas a fim de assegurar a boa marcha da vida camponesa e, sobretu-
do, a fertilidade e a renovação anual dos produtos da terra. São igualmente
rituais de fertilidade, bastante bem estruturados, que os registros da Inquisição
permitem ver no Frioul do século XVI (Carla Ginzburg). Aos benandanti, homens
investidos de poderes excepcionais de tipo xamanístico, são reputadas viagens
espirituais ao outro mundo, em momentos precisos do ciclo agrário. Lá, lutam
contra os espíritos hostis e assistem ao desfile das almas dos mortos, cujas for-
ças devem ser captadas a fim de assegurar à c~munidade dos vivos as benesses
e a fertilidade de que ela tem necessidade. Sob' uma forma ou outra, é provável
que os rituais camponeses de fertilidade tenham tido grande importância nas
zonas rurais do Ocidente feudal, em particular no momento dos solstícios, pon-
tos capitais do ciclo solar (calendas de janeiro e São João). Sem dúvida, também
não cessaram de se transformar, de se deslocar e de se recompor, especialmen-
te em função da reorganização senhorial e comunitária dos campos e sob o efeito
da pressão da Igreja. Dispondo de instrumentos de controle mais eficazes, esta
consegue, a partir do século Xlll, persegui-los metodicamente, lançando-os cada
vez mais no domínio das superstições e logo começando a demonizá-los.

As margens e a subversão integrada dos valores

O poderio da instituição eclesial é tal que ela parece, na maior parte do tempo,
capaz de controlar a zona fronteiriça onde se entrechocam a ordem normal das
coisas e as desordens da subversão, ou mesmo de integrá-la ao funcionamento

230 }érôme Baschet


regular da sociedade. O Carnaval é o exemplo mais claro disso. Mais do que
uma repetição das festas pagãs, pode-se ver nele uma "inovação da cidade
medieval", principalmente a partir do século XII (Jean-Claude Schmitt). Com
efeito, ele permanece totalmente integrado ao ciclo do ano cristão, e é impossí-
vel captar seu significado sem partir da tensão estabelecida entre o Carnaval e
a Quaresma (da qual a Igreja reforça progressivamente a importância, especial-
mente estabelecendo, a partir do século IX, quarenta dias de jejum contínuo
antes da Páscoa). O próprio nome dado ao Carnaval (derivado, sem dúvida, de
"carne vale' ou "carne levare"") define-o como o tempo antes da Quaresma,
durante o qual ainda é lícito comer carne. Mais amplamente, ele é um tempo
de transgressão autorizada e de liberação dos impulsos antes da retenção peni-
tenciai da Quaresma: ele só tem legitimidade porque precede a ela e exalta, por
contraste, sua significação. É nesse quadro que a oposição paganismo/cristianis-
mo pode se integrar à análise do Carnaval: não porque este seria efetivamente
uma reminiscência das saturnais ou das lupercais pagãs, mas na medida em que
ele explora figuras ou imagens associadas ao paganismo para pôr em cena esse
momento de inversão de valores e de liberação de forças diabólicas, sobre as
quais o cristianismo finalmente triunfa. Os transbordamentos festivos, e nota-
damente os prazeres da gula e da luxúria, são, assim, destinados a preparar e a
reforçar a vitória ulterior da penitência e da ordem cristãs. Enfim, o Carnaval
possui um outro aspecto essencial ligado ao calendário: festa de primavera, ele
corresponde ao momento da saída do urso, após sua longa hibernação, e marca
o fim do inverno nas concepções camponesas. As forças da fertilidade devem,
então, acordar para se pôr em ação, e o Carnaval, pelo seu transbordamento de
energias sexuais e festivas, é uma maneira de chamar essas forças vitais a exer-
cerem o seu papel fecundador. Além disso, as máscaras, que têm um papel cen-
tral no Carnaval -assim como no charivari (figura 22, na p. 232) - , são cer-
tamente uma materialização dos espíritos dos mortos, dotados do poder de
influenciar positiva ou negativamente o curso das potências naturais, e que con-
vém acolher a fim de assegurar sua ação benevolente. O Carnaval integra,
então, uma preocupação com a fertilidade e os ciclos naturais, que interessa
particularmente aos aldeãos, mas também o conjunto das populações, inclusive
urbanas, de um mundo estreitamente ligado aos ritmos da produção agrária.
Aceito esse momento de inversão generalizada dos valores, o Carnaval dura
apenas um tempo, limitado e bem circunscrito, antes que seja restabelecido o
curso normal das coisas, sob a forma acentuada das privações da Quaresma. Ele
é, então, uma escapatória, que permite integrar as forças da desordem na orga-
nização e na estabilização da ordem social. Pode-se dizer o mesmo da Festa dos
Loucos, que, embora recupere alguns aspectos dos ritos das calendas de janeiro,

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 2JJ


22. Danças e máscaras do charivari, c. 1318 (Romance de Fauvel, Bibliotheque Nationale de France.
Paris, ms. fr. 146, fl. 34 ).
O ritual do charivari se desenvolve no início do século XIV, apesar da firme oposição da Igreja. Através de dan·
ças em que se misturam gozações e algazarra, a comunidade urbana ou aldeã manifesta sua oposição a um casa-
mento que lesa seus interesses ou afronta suas tradições (casamento de uma viúva ou de um viúvo. casamen-
to de um homem idoso com uma mulher jovem, ausência de festividades públicas etc.). A miniatura mostra as
posturas agitadas dos dançadores (que podem chegar até a desnudar os seus traseiros); ela permite escutar a
gritaria do charivan (tambores, sinos, címbalos, pratos e outros instrumentos de cozinha). Vários personagens
têm máscaras de animais ou figuras com caretas (quando não se trata de uma fantasia completa do corpo).
Assim como durante o Carnaval, é provável que as máscaras do charivari estejam ligadas aos espíritos dos mor·
tos: também eles protestam contra um casamento que transgride os costumes (talvez seja este o caso, parti·
cularmente, do cônjuge defunto).
é uma criação do século XII urbano. Trata-se bastante explicitamente de uma
festa dos cônegos que, submetidos todo o ano à autoridade de seu bispo, proce-
dem então a um ritual de paródia. Eles elegem um falso bispo - por vezes, um
asno- que é conduzido à igreja, até o altar, onde é pronunciado um sermão gro-
tesco seguido de uma paródia de missa, em um registro freqüentemente sexual
e escatológico. Não sem algumas tensões, este ritual é então admitido por nume-
rosos clérigos como uma tradição normal, a tal ponto que as despesas que ele
gera podem aparecer nas contas da catedral. Ainda aqui, o ritual de inversão é
aceito, pois, limitado no tempo, permite liberar tensões sociais particularmente
vivas (como é muito freqüente o caso entre o bispo e os cônegos), a fim de
melhor assegurar, ao longo do ano, o bom exercício da autoridade. É, então, difí-
cil seguir inteiramente as célebres análises de MikhaYl Bakhtin, que defendia a
existência de uma cultura popular (ou carnavalesca) autônoma e totalmente
oposta àquela, oficial, dos clérigos: uma cultura da festa, do prazer e do riso, que
confere um papel central ao corpo e, em particular, ao "baixo corpo" (quer dizer,
à dimensão sexual e escatológica), que inverte os valores clericais, rebaixando o
espiritual ao plano corporal e insistindo na terra como força de fecundidade e de
fertilidade. A autonomia que Mikha!l Bakhtin atribuía a essas concepções foi
severamente criticada, especialmente por Aaron Gourevitch, e parece indispen-
sável enfatizar não somente a inter-relação entre as diferentes expressões socio-
culturais mencionadas, mas, sobretudo, o caráter dominante da Igreja. Ao mesmo
tempo que integra elementos estrangeiros aos valores clericais, o Carnaval e a
Festa dos Loucos concorrem, finalmente, ao reconhecimento e à imposição des-
tes. Se eles são aceitos pela Igreja, é no quadro de uma dialética cuidadosamen-
te controlada da ordem e da desordem, da liberação das energias potencialmente
subversivas e de seu enquadramento social.
As surpreendentes representações que se desenvolvem nas bordas dos
manuscritos com iluminuras, ou em certos locais marginais das igrejas, pude-
ram ser objeto de uma análise comparada, bem realizada por Michael Camille.
Nas margens dos livros de horas que se multiplicam entre os séculos XIII e XV,
em particular para o uso da elite laica, aparecem cenas que contrastam vigoro-
samente com a sacralidade das preces que se podem ler na mesma página e
com as cenas piedosas que as ilustram. Assim, à imagem de uma missa cele-
brada por um bispo, no centro da página, corresponde, na margem, a de um
cavaleiro em combate; alhures, as preces litúrgicas coabitam com uma cena de
sedução que se prolonga impudicamente na intimidade de um quarto de dor-
mir (figura 23, na p. 234). Por vezes, as margens se dão o direito de parodiar a
história santa: três macacos levando frutos fazem eco à imagem principal, mos-
trando a adoração dos Reis Magos; alhures, uma religiosa aleitando um maca-

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 23>


23. Encontro amoroso nas margens de um livro de horas iluminado em Gand, c. 1320-30 (Bodleian
Library, Oxford, ms. Oouce 6, fi. 160 v.).
Como muitos manuscritos dos séculos XIII e XIV, geralmente destinados à aristocracia, as ilustrações das mar·
gens contrastam fortemente com o texto. Aqui, este último indica as preces que os laicos devotos devem reei·
tar a cada uma das horas canônicas que dão ritmo ao dia, enquanto a cena da margem mostra, sem pudor, o
leito onde se unem dois amantes. Michael Camille sugeriu uma ligação possível com o primeiro verso desta
página que evoca "as portas do inferno" (ad portas inferi) e que o iluminador teria parodiado em metáfora sexual.
Seja como for, falta dar conta desta coabitação desconcertante entre a exigência de uma piedosa recitação e
uma imaginação, ao contrário, mundana.
co faz curiosamente alusão à Virgem com o Menino. As margens parecem ser
também o lugar privilegiado da expressão do baixo corpo caro a Mikhail
Bakhtin: sob as espirituais preces das horas canônicas, pode-se ver um perso-
nagem defecando e oferecendo à sua amada o resultado de seus esforços, ou
ainda outras cenas com conteúdo sexual alusivo ou explícito. Nos edifícios reli-
giosos, as gárgulas e as partes altas multiplicam as criaturas monstruosas e dia-
bólicas, ao passo que os modilhões são ornados de um homem ou uma mulher
exibindo órgãos genitais desproporcionais, quando não se trata de um casal em
pleno coito. No coro das igrejas, as estalas onde se sentam os cônegos são mui-
tas vezes decoradas com cenas de que se encontra, por vezes, o eco nos
fabliaux dos trovadores e nas quais a obscenidade e a virulência das relações
entre os sexos são cruelmente mostradas. Dessa vez, não se trata mais de ima-
gens marginais, pois elas se encontram no centro do edifício, na parte reserva-
da aos clérigos. Mas essas decorações só são visíveis quando as cadeiras estão
desocupadas; quando os cônegos se reúnem, as cadeiras giram e as esculturas
desaparecem sob seus traseiros. Um modo de dizer que o clero sabe dominar
as trivialidades do mundo laico!
Todas essas representações, em particular as surpreendentes margens dos
manuscritos de devoção, não podem ser entendidas sem levar em conta o valor
do lugar preciso em que elas aparecem. Com efeito, uma tensão é estabelecida
entre o centro, valorizado, do edifício ou do manuscrito, e as margens, locais
secundários e depreciados. A exuberância desrespeitosa das margens pode,
então, desenvolver-se porque ela aparece em posição de inferioridade e em
dependência hierárquica em relação às imagens principais, o que está em con-
formidade com os valores clericais. Entretanto, a despeito do ordenamento que
essa dialética do centro e da periferia assegura, a capacidade de juntar em uma
mesma página o sagrado e o profano não deixa de intrigar nosso olhar atual. No
entanto, é necessário ver nisso menos uma mistura do sagrado e do profano
que um estabelecimento de contato visando criar tensão entre eles, como entre
os dois pólos de uma pilha. Entre os séculos XII e XV, a Igreja assume- embo-
ra com reticência cada vez maior - os riscos de tal procedimento. Quer se
trate do Carnaval ou das imagens marginais, ela admite, no seio da ordem que
controla, a possibilidade de sua inversão regulamentada, quer dizer, limitada
a um tempo breve ou a uma localização pouco valorizada. A Idade Média é o
tempo dessas junções do sagrado e do profano, assumidas, ainda que perigosas
(pois a polarização hierárquica pode sempre se degradar em uma mistura inde-
vida). É assim que se pode evocar uma "cultura da ambigüidade", aceitando pôr
os contrários em contato, e que é, então, partilhada pelos laicos e pelos cléri-
gos (Bruno Roy).

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 235


Essa atitude desaparece progressivamente. No século XV, a Festa dos
Loucos é cada vez mais claramente condenada pelos clérigos, notadamente pela
Universidade de Paris, em 1444, enquanto o Carnaval é mais estritamente con-
trolado ou transformado pela aristocracia em espetáculo exaltando os dominan-
tes. Na segunda metade do século XV, as cenas escabrosas desaparecem das
margens dos manuscritos e cedem lugar, como nos livros impressos, a uma
decoração ornamental renascentista. No século XVI, a Contra-Reforma leva até
o paroxismo a rejeição de toda lógica da ambigüidade. Um exemplo disso é a
ordem dada pelo papa para vestir todos os personagens do Juízo Final da capela
Sistina, que Michelangelo havia pintado inteiramente nus. Mais do que um ato
de pudicícia, trata-se de eliminar do lugar mais espiritual do Ocidente (a cape-
la pontifícia) toda a presença do baixo corpo. A capacidade de jogar com zonas
de contato entre o sagrado e o profano, o puro e o impuro, o espiritual e o car-
nal, que tanto agradava à Idade Média, é doravante inexistente, e toda a possi-
bilidade de integrar ao sistema eclesial uma dimensão de paródia ou uma sub-
versão controlada se apaga.
A Igreja medieval havia sido, ao contrário, capaz de assumir uma expressão
marginal e enquadrada dos valores de oposição, e mesmo de colocá-los a servi-
ço da afirmação vitoriosa de seus próprios princípios. Entretanto, seria um enga-
no evocar, aqui, tolerância e intolerância. Trata-se, sobretudo, de deslocamen-
tos da fronteira entre o lícito e o proibido, que a Igreja não cessa de reposicionar
ao sabor de seu poderio. É também a maneira de conceber essa fronteira que se
transforma: enquanto a Contra-Reforma faz prevalecer uma separação sem con-
cessões entre o sagrado e o profano,~s clérigos da Idade Média Central, que
tinham uma concepção não menos estrita dessa separação, haviam preferido,
entretanto, jogar com os efeitos de polarização criados pelo estabelecimento de
contato entre os contrários, conferindo, assim, ao mundo profano e à inversão
momentânea dos valores, presença no seio de suas próprias representações.
A despeito da radicalização da separação hierárquica entre clérigos e laicos, e da
obsessão de pureza que dela deriva, a Igreja medieval não temia ser infecta-
da por tais coabitações e via nelas, ao contrário, um recurso útil para manifes-
tar com mais estrondo o triunfo de sua dominação.

O inimigo necessário: judeus e feiticeiros

As "superstições" e as manifestações carnavalescas estão longe de ser as únicas


a pagar por uma atitude clerical cada vez mais intransigente. Para captar essas
evoluções em sua totalidade, é preciso ainda analisar a hostilidade crescente de

231 Jérôme Baschet


que são vítimas os judeus e os "feiticeiros" (na falta de evocar, aqui, as atitudes
em relação aos leprosos e homossexuais).
Durante a Alta Idade Média, a presença das comunidades judaicas no
Ocidente cristão parece aceita, sem que crie tensões notáveis. Mais tarde ainda,
essa atitude se mantém em parte, especialmente no mundo ibérico e no Sul da
França. O termo convivencia, consagrado pela historiografia, pode ser retomado se
se entende por isso, seguindo Maurice Kriegel, que os judeus formam uma mino-
ria tida por dominada, mas aceita, com a qual existem formas admitidas de inter-
relações, o que lhes permite, por exemplo, ocupar funções nas cortes reais, espe-
cialmente de médico ou de administrador fiscal. Dotadas de uma fraca presença
total (talvez 100 mil pessoas na França e o mesmo número na Península Ibérica
no final da Idade Média), mas bem implantadas em certas cidades onde podem
representar até um quarto ou um terço da população, as comunidades judaicas se
beneficiam de uma proteção real (em contrapartida a uma sujeição direta em rela-
ção ao rei), imperial e pontifícia (pois a Igreja julga útil a presença dos judeus
enquanto povo que testemunhou a crucificação de Cristo). Para os cristãos, os
judeus são, então, "duplos, ao mesmo tempo respeitados e detestados, herdeiros
do Antigo Testamento, mas infiéis a essa herança" (Dominique Iogna-Prat).
A atitude cristã em relação aos judeus modifica-se progressivamente, talvez a
partir do século XI (acusações de blasfêmia aparecem por volta de 1020, suscitan-
do ataques contra judeus em diversas cidades), e mais seguramente ao longo dos
séculos XII e XIII. No contexto das cruzadas - que suscitam os primeiros massa-
cres maciços, notadamente nas cidades da Renânia - , os judeus parecem ter
cada vez menos seu lugar no seio de uma cristandade que se constitui como enti-
dade social fortemente integrada, sob a direção da Igreja. Para Pedro, o Venerável,
que escreve o tratado Contra os judeus, por volta de 114 3, estes representam um
perigo ainda pior que os sarracenos combatidos pelos cruzados: a coabitação com
eles contamina os cristãos e os reis fariam melhor se lhes retirassem sua proteção.
Em uma época em que Igreja e a sociedade se confundem, a situação dos judeus,
que estão, ao mesmo tempo, na sociedade e fora da Igreja, aparece como uma
anomalia cada vez mais inaceitável (Dominique Iogna-Prat). Em 1144, na Ingla-
terra, a acusação de praticar a morte ritual de crianças cristãs é lançada contra os
judeus pela primeira vez. Logo, acrescentam-se a elas outras narrativas recorren-
tes, notadamente de profanações de hóstias, que sugerem que os judeus conspi-
ram para destruir a sociedade cristã. Em l-182, Filipe Agusto procede à primeira
expulsão dos judeus do reino da França. Em seguida, a medida será suspensa e,
depois, repetida numerosas vezes, segundo uma lógica também atestada na Ingla-
terra e que parece parcialmente ditada pelos interesses materiais, pois cada expul-
são é acompanhada de um confisco dos bens dos judeus.

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 23:-


No século XIII, o distanciamento acentua-se e o Concílio de Latrão IV pres-
creve o uso de vestimentas distintivas para os judeus, justificadas principalmen-
te pela necessidade de evitar que os cristãos fossem induzidos, por ignorância,
a uniões carnais ilícitas. O esforço para converter os judeus redobra, especial-
mente sob o impulso de Raimundo de Penafort. Organizam-se disputas públi-
cas, como em Barcelona, em 1263, enquanto os judeus são obrigados a escutar
sermões pronunciados por pregadores cristãos em suas sinagogas. As atitudes de
segregação e a violência antijudaica acentuam-se ainda mais durante o século
XIV. Quando são acusados de ter causado a peste de 1348 envenenando os
poços, é a idéia de um complô generalizado contra a cristandade que ganha
forma, e se compreende que logo apareçam os primeiros pogroms, 23 tais como
aqueles de 1391, em Castela e em Aragão. A expulsão (definitiva) dos judeus,
decidida pelos Reis Católicos em 1492 (logo seguida por outros soberanos), é o
resultado de um processo de exclusão crescente, ao final do qual a população
judaica se torna apenas residual na Europa Ocidental.
Durante muito tempo considerou-se que a Idade Média conheceu apenas
o antijudaísmo, que se aplicava aos judeus como assassinos do Cristo e cegos à
verdadeira fé, diferentemente do anti-semitismo moderno, ideologia laica fun-
dada sobre um critério racial. Ao que tudo indica, a Idade Média ignora a noção
de raça, tal qual ela é formada no século XIX, e é antes a constituição da cristan-
dade como totalidade unificada que leva então à rejeição dos judeus, enquanto
não-cristãos e não como povo julgado inferior. De fato, uma conversão ao cris-
tianismo torna possível sua integraÇão social, mesmo se permanece sempre algo
da antiga condição que a conversão . não chega jamais a abolir completamente
(Jean-Claude Schmitt). De fato, este traço indelével pesa cada vez mais, até que
a obsessão da pureza de sangue (limpieza de sangre) na Espanha moderna con-
duza à perseguição dos judeus convertidos e de seus descendentes (conversos).
Entretanto, se a distinção entre antijudaísmo e anti-semitismo é útil, é necessá-
rio admitir, sem dúvida, que a Idade Média avançou além do que geralmente se
reconhece, sem, entretanto, chegar a elaborar uma teoria anti-semita articulada
(Dominique Iogna-Prat). Desde o século XII, Pedro, o Venerável, cuja virulência
certamente não é partilhada por todos os clérigos de seu tempo, pergunta-se -
é verdade que de modo parcialmente retórico - se os judeus da época, ator-
mentados pelas aberrações do Talmude, são realmente homens ou "bestas que
perderam todo acesso à verdade original" de sua própria fé. Ao mesmo tempo,
os adversários do papa Anacleto 11, um dos dois eleitos no cisma de 1130, fusti-

23. Termo de origem russa (cuja tradução literal é "destruir inteiramente") que indica um movi-
mento popular de violência contra os judeus. (N. T.)

23.' }érôme Baschet


gam este "papa judeu", como se a conversão de seu bisavô não tivesse sido sufi-
ciente para apagar a mancha de suas origens. Logo são atribuídos aos judeus tra-
ços físicos específicos, feiúra e nariz recurvado, que as imagens não deixam de
representar (figura 43, na p. 437), e alguns autores não hesitam em afirmar que
eles têm menstruação como as mulheres. No geral, a exclusão crescente dos
judeus aparece como uma conseqüência da afirmação da cristandade e de sua
ordenação sob a dominação da Igreja; acessoriamente e de maneira ainda não
sistemática, o processo que os proscreve da sociedade cristã lhes confere traços
que tendem a negar que pertençam à verdadeira humanidade, encarnada por
Cristo e seus fiéis.
Com maior violência ainda do que contra os judeus, a cristandade logo se
engaja em uma luta mortífera contra a feitiçaria. Como já se disse, a "caça às bru-
xas" é um fenômeno essencialmente moderno e será evocada, então, apenas a
sua lenta gênese medieval. A feitiçaria da qual é questão aqui é, na verdade, uma
concentração de elementos diversos, cujo estereótipo é forjado pela instituição
eclesial. Pode-se distinguir seus componentes e indicar as etapas de sua conjun-
ção. Desde a época de Agostinho, os clérigos condenam as práticas destinadas a
dirigir as forças sobrenaturais com o intuito de provocar doença ou impotência,
de atrair tempestades que destruam as colheitas ou de prejudicar o gado. Ao
longo de toda a Idade Média, atos de magia, tais como sortilégios, encantamen-
tos, amarrações ou feitiços com imagens, são bem atestados, mas aqueles que os
praticam nas zonas rurais são tanto curandeiros e desfazedores de feitiços como
feiticeiros ocupados em lançar malefícios sobre suas vítimas. Há aí um conjunto
de práticas que visam prever o futuro, dispensar cuidados, especialmente pelo
uso de plantas, ou ainda proteger animais e colheitas, que a Igreja recusa consi-
derar positivamente e que são, assim, remetidas para o campo da magia, fora do
sagrado eclesiástico. Não se trata unicamente de atitudes populares, pois a adi-
vinhação ou a evocação dos espíritos são também, até os últimos séculos da
Idade Média, obra de letrados, em geral de clérigos e, por vezes, mesmo de uni-
versitários (Jean-Patrice Boudet). Em segundo lugar, as práticas folclóricas con-
sideradas inaceitáveis pela Igreja tendem a ser igualmente integradas ao estereó-
tipo da feitiçaria. É o caso da crença no vôo noturno na companhia da Senhora
Abundia, de Diana ou de outros espíritos, ou ainda dos ritos xamanísticos, dos
quais Carlo Ginzburg delimitou, para além do exemplo dos benandanti, as mani-
festações no conjunto do continente eurasiático, cujo coração seria a "viagem
extática para o mundo dos mortos" e o combate pela fertilidade.
No entanto, nada disso teria sido suficiente·para criar a imagem do sabá
dos feiticeiros. Isso é tão verdadeiro que, de início, a Igreja adota uma atitude
prudente em relação às crenças mágicas. No início do século X, o cânone

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL _? .;q


Episcopi, retomado ainda no Decreto de Graciano, considera que aqueles que se
entregam à evocação dos espíritos maléficos são os ludibriados por ilusões pro-
vocadas pelo diabo, e que a crença no vôo noturno nada mais é que uma fanta-
sia que o Maligno incute nos sonhos, em cuja realidade os indivíduos crêem
erroneamente quando acordam. Mágicos e "feiticeiros" são, então, vítimas a
quem convém ajudar para que abandonem suas falsas crenças, mais do que
perigosos servidores de Satã que seria preciso eliminar. Depois, a atitude da
Igreja começa a mudar, no contexto da luta contra as heresias, no século XII, e
sobretudo no século XIII. Multiplicam-se, então, as narrativas que demonizam os
hereges e que serão, mais tarde, aplicadas aos feiticeiros. Os clérigos começam
a afirmar que o diabo preside às reuniões dos hereges e até mesmo que estes
consideram Lúcifer o verdadeiro deus, injustamente expulso do céu (bula Vox
in rama de Gregório IX, de 1233). Pouco a pouco, os hereges são transformados
pela Igreja em seitas de adoradores do diabo (Norman Cohn). Paralelamente,
para lutar contra a heresia, estabelece-se o dispositivo repressivo (Inquisição,
procedimento inquisitório, tortura), que terá um papel determinante no estopim
e na ampliação da caça às bruxas. O deslocamento da repressão, da heresia para a
feitiçaria, é, de resto, preparado desde 12 58, quando o papa Alexandre IV con-
fia aos inquisidores o cuidado de se interessar igualmente por "sortilégios e adi-
vinhações que tenham ares de heresia". Ao mesmo tempo, os teólogos do sécu-
lo XIII definem com maior precisão o controle das potências maléficas, e Tomás
de Aquino estabelece a noção de pacto voluntário com o diabo, que será, em
seguida, aplicada aos feiticeiros. -
Duas etapas ulteriores podem ser evocadas. No primeiro quartel do século
XIV, aparece uma série de casos judiciários, de caráter eminentemente político,
nos quais intervêm acusações de magia e de malefício (processo póstumo contra
Bonifácio VIII, sob instigação do rei Filipe, o Belo; acusação de Guichardo, bispo
de Troyes; condenação dos Templários e supressão de sua ordem). Outros pro-
cessos ocorrem ao longo do século (salvo durante os anos 1340-70), mas o fenô-
meno conserva uma amplitude limitada e as acusações permanecem circunscri-
tas ao malefício lançado contra uma outra pessoa. Depois, os anos 14 30 são
marcados por várias transformações substanciais e pelo início de uma verdadei-
ra perseguição, de que as regiões alpinas são o epicentro. Aparece, então, pela
primeira vez, a idéia de que os feiticeiros não agem isoladamente, mas formam
uma seita que prepara um complô para destruir a cristandade (assim, sobre eles
são transferidas as acusações lançadas contra os leprosos, especialmente em
1321. e contra os judeus, notadamente em 1348). Os primeiros tratados especi-
ficamente consagrados à feitiçaria são então redigidos, tal como o Formicarius do
dominicano João Nider, de 1437, em que aparecem os temas do assassinato

240 }érôme Baschet


24. Uma cena do sabá dos feiticeiros e feiticeiras, c. 1460 Qohannes Tinctoris, Tratado do crime de Vauderie,
Biblioteca Real, Bruxelas, ms. I I 209, fl. 3).
Muitos manuscritos do tratado de Johannes Tinctoris, teólogo que escreve em Toumai, por volta de 1460, foram
iluminados para altos personagens da corte de Borgonha. Nele, encontram-se as primeiras representações ico·
nográficas do sabá e de seu imaginário delirante: ao mesmo tempo que feiticeiros e feiticeiras voam montados
em criaturas monstruosas para chegar ao local da cerimônia, a cena principal mostra a adoração de Sata sob a
forma de um bode do qual é preciso beijar o ânus.
ritual das crianças e do canibalismo nas reuniões de feiticeiros (a obra contribui
para assentar uma visão claramente feminina da feitiçaria, enquanto, nas primei-
ras fases, as perseguições visam quase igualmente a homens e mulheres).
Desloca-se, então, da queixa de malefício para a acusação de pacto e de adora-
ção do diabo. Doravante, o estereótipo da feitiçaria é corrente: atribui-se, a feiti-
ceiros e feiticeiras, a prática do vôo noturno para participar de reuniões secretas
(que são nomeadas "sinagogas", até que o termo sabá venha a se impor, utilizado
pela primeira vez por Petrus Mamor, por volta de 1490); nelas, eles adoram Satã,
presente sob a forma de um bode do qual é preciso beijar o ânus, entregam-se
a orgias e queimam crianças das quais eles consomem as cinzas (figura 24, na
p. 241). A interpretação tradicional do cânone Episcopi é, então, completamen-
te aniquilada. Assim, segundo o Martelo das feiticeiras, dos dominicanos Jabobus
Sprenger e Henricus lnsistor (1486), verdadeira suma na matéria de feitiçaria
que a imprensa transforma em best-seller, o vôo noturno e todos os atos imun-
dos do sabá não têm nada de ilusão: são realidades que exprimem o verdadeiro
poder do diabo e que, então, exigem os mais severos castigos.
A evolução no decorrer da Idade Média é clara. Certa de estar sendo per-
seguida por uma seita de cúmplices de Satã, a Igreja tende, finalmente, a crer
na realidade do que ela, antes, considerava vã ilusão diabólica. Ela forja, então,
o "conceito cumulativo de feitiçaria" (Brian Levack), através de um amálgama
entre práticas mágicas e divinatórias, tais como o malefício, "superstições"
cobrindo, sem dúvida, ritos xam~písticos de fertilidade, acusações anteriormen-
te aplicadas aos hereges e, enfim, o fantasma do sabá como ritual de adoração
do diabo. Diante. de uma ameaça tão absoluta, todas as autoridades da cristan-
dade são convidadas a reagir com vigor e a luta contra a feitiçaria dá lugar, em
breve, a uma competição de zelo repressivo, a "uma escalada de ortodoxia" entre
a Igreja, as monarquias e os poderes locais (Jean-Patrice Boudet). E se a Idade
Média apenas começa a dar corpo a essa obsessão, enviando para a morte algu-
mas centenas de feiticeiros, tudo já está estabelecido para a perseguição em
grande escala que a "modernidade" dos séculos XVI e XVII exibirá (40 mil vítimas,
de acordo com as estimativas mais moderadas).

Em direção à sociedade de persecução

No geral, em todos os domínios evocados, a atitude da Igreja se faz cada vez mais
excludente e repressiva. Isso foi constatado em relação aos hereges, às "supersti-
ções" e às formas integradas de expressão dos valores de oposição, aos judeus e,
mais tarde, aos feiticeiros, e seria possível dizer o mesmo de outros grupos margi-

24~ }éróme Baschet


nais e discriminados, tais como os leprosos e os homossexuais. É por isso que, reu-
nindo o conjunto desses fenômenos e reparando neles o efeito de uma lógica
única, Robert Moore pôde ressaltar a "formação de uma sociedade de persecução"
na Europa a partir dos séculos XI a XIII. Por vezes, também se apresentou esse pro-
cesso como um aumento da intolerância, mas é preciso assinalar que o par tole-
rância/intolerância, do qual, é verdade, temos dificuldade de escapar, é uma arma-
dilha. Com efeito, mesmo em sua fase menos repressiva, a Idade Média não
poderia dar lugar a uma verdadeira tolerância, entendida como aceitação das dife-
renças e pleno reconhecimento da alteridade. No melhor dos casos, ela pode
"tolerar" o outro, no sentido em que ela suporta sua presença, sob a condição de
que sua submissão seja clara e, mais freqüentemente, para poder se vangloriar
de ter triunfado sobre o mal que ele representa. Entretanto, é preciso marcar a
diferença entre uma situação inicial, que se degrada pouco a pouco, e os picos de
fúria repressiva e de obsessão de pureza atingidos durante a época moderna: se
se compara, é tentador evocar uma relativa tolerância da Idade Média. Mas os
séculos medievais devem este traço ao fato de que eles não foram até o limite da
lógica que os anima, de que eles ainda não esquadrinharam totalmente o campo
das realidades a serem excluídas e dão provas, por conseqüência, de uma certa
maleabilidade, notadamente por sua capacidade de assumir situações em que o
bem e o mal, embora separados, estejam em contato um com o outro. A presen-
ça conjunta e separada do espiritual e do material (ou de outros pares de oposi-
ção) permanece aceitável e mesmo utilmente explorável durante a Idade Média,
enquanto a época moderna preferirá proceder a uma dissociação ainda mais radi-
cal e se preocupará em preservar, com um zelo infalível, a absoluta pureza dos
valores e dos lugares positivos.
Mas o essencial é, sem dúvida, associar a formação da sociedade de perse-
cução à dominação incessantemente mais marcada da instituição eclesial.
O fato de que os processos analisados começam a se manifestar no momento da
reforma gregoriana da Igreja e das primeiras cruzadas autoriza a estabelecer uma
ligação entre institucionalização e exclusão. A estruturação da cristandade, pen-
sada como uma comunidade homogênea sob a direção de uma instituição ecle-
sial reforçada, produz, com efeito, um duplo movimento, de integração para os
fiéis ajustados e de exclusão para os não-cristãos e os desviantes (Dominique
Iogna-Prat). A constituição ocidental da sociedade de persecução é, então, um
fenômeno cuja origem é possível situar nos séculos XI e XII e que se amplia regu-
larmente do século XIII ao século XV, e mesmo além. A institucionalização cria a
exclusão, e é a própria Igreja que molda os inimigos sobre os quais ela se dá por
tarefa triunfar. Por conseqüência, deveria ser possível medir o poderio da insti-
tuição eclesial (ou, ao menos, o seu desejo de poderio e seus esforços para

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 24)


aumentar ou conservar a sua posição dominante) a partir da natureza mais ou
menos temível dos inimigos que ela enfrenta. A guerra contra os sarracenos é,
sem dúvida, um feito que exalta a cristandade, mas trata-se, ainda, apenas de
inimigos exteriores. Ao contrário, a luta contra os heréticos manifesta uma von-
tade de se liberar de toda contaminação interna, conceito logo aplicado também
às "superstições" e às depravações carnavalescas, aos judeus, aos leprosos e aos
homossexuais. Enfim, o deslocamento que leva a luta para o "conceito cumula-
tivo de feitiçaria" indica que uma etapa nova é transposta. Se, desde o século XI,
os hereges, os muçulmanos e os judeus são facilmente considerados servidores
do diabo ou um avatar do Anticristo, não se poderia desejar adversário mais
temerário que a seita dos feiticeiros, que se entregam aos abomináveis rituais do
sabá e adoram Satã com deleite. Doravante a Igreja está engajada em um com-
bate mortal com o inimigo supremo, o próprio Satã (segunda parte, capítulo 111).
Se todo o poder se mede pela força do inimigo sobre o qual ele triunfa, a exis-
tência de uma contra-Igreja organizada em torno de Satã é o meio mais seguro
de reivindicar o poderio absoluto da Igreja Romana (e, secundariamente, dos
poderes temporais que reconhecem sua supremacia). A persecução da feitiçaria
é, então, uma manifestação do processo de reforço e de defesa da dominação
eclesial, que ocupa toda a (longa) Idade Média até o fim do século XVII, pouco
antes que ela comece a esboroar.

CONCLUSÃO: UMA DINÂMICA


MILENAR DE AFIRMAÇÃO

Dizer que a Igreja é a instituição dominante da sociedade medieval não signifi-


ca que seu poderio se imponha sem limites nem contestações. A Igreja sempre
deve afrontar inimigos criados pela dinâmica de sua própria afirmação e indis-
pensáveis à progressão dela: o paganismo de suas margens em via de integração
durante a Alta Idade Média; as heresias do século XI, e sobretudo as dos séculos
XII e XIII, cujo pivô é o anticlericarismo e o questionamento parcial ou total do
poder sacerdotal; as "superstições", fragmentos de uma cultura folclórica que
dá lugar importante aos rituais de fertilidade e admite relações com os mortos
distintas daquelas que prevalecem no sistema eclesial; e, enfim, a seita dos fei-
ticeiros, contra-Igreja satânica cuja ameaça mortal obriga os clérigos a uma
guerra total. Antes mesmo que essa fúria paranóica se desdobre, é possível esbo-
çar, em torno do núcleo central do sistema eclesial, quatro eixos principais de
tensões: a exigência evangélica de pobreza, as práticas e os valores da aristocracia

244 }éróme Baschet


laica, as práticas camponesas que visam garantir a fertilidade, as expressões car-
navalescas e de paródia dos valores de oposição. É difícil considerar que essas
forças divergentes levem à constituição de pólos autônomos que escapem à
dominação da instituição eclesial. Ao contrário, a Igreja parece conseguir esten-
der sua influência em todas as direções ou, ao menos, recuperar e integrar em
seu seio grande parte das tensões. Existem, entretanto, resquícios, impelidos
para as margens e destinados à exclusão e à perseguição. A dominação não
acontece sem resistências e limites, e essa mesma confrontação permite que a
dominação se reforce.
Acredito poder afirmar agora que a Igreja é o pilar fundamental do sistema
feudal. Sua dominação parece espacial e temporalmente coexistente ao feuda-
lismo, e não existe um traço que faça melhor sentir a unidade da Idade Média,
desde a Antiguidade tardia até os Tempos Modernos, do que a dinâmica perma-
nente de afirmação da instituição eclesial. Desde os séculos IV a VI, suas posses
fundiárias são consideráveis e as estruturas eclesiásticas, dominadas pelos bis-
pos, implantam-se no contexto da formação de uma civilização romano-germâ-
nica. Na época carolíngia, a uniformização litúrgica e monástica, na base das
normas romanas e beneditinas, acompanha uma primeira emergência da auto-
ridade pontifícia, enquanto se iniciam importantes evoluções teológicas, nota-
damente no que concerne à eucaristia e ao casamento. Depois, nos séculos XI e
XII, assiste-se a um reforço decisivo da instituição eclesial, que se pode conside-
rar uma verdadeira nova fundação. Não apenas a Igreja se livra de uma associa-
ção geminada com o Império - que caracteriza o modelo de Constantino, res-
taurado brevemente pelos carolíngios e perpetuado em Bizâncio - , como ela
também consegue dominar as estruturas senhoriais, evitando ser aprisionada
em seu interior. Impondo uma nova ordem de ruptura com o modelo carolíngio,
ela afasta as intervenções dos laicos nos negócios espirituais e estabelece uma
separação radical entre a sacralidade intocável e poderosa dos clérigos e o
mundo dos laicos, destinados aos negócios temporais e, em princípio, excluídos
de todo contato direto com Deus. Decorre disso um conjunto de reformulações
doutrinais que, mesmo sendo o resultado de uma dinâmica milenar de acentua-
ção da dominação eclesial, leva com freqüência a inverter radicalmente a posi-
ção inicial da Igreja. É o que ocorre com tudo o que reforça o poder sacerdotal:
eficácia dos sacramentos (eucaristia e batismo); transferência para o âmbito cle-
rical das práticas funerárias e dos sufrágios para as almas; sacralização dos edi-
fícios e dos lugares em que se materializa a Igreja. Mas essas transformações
não consistem apenas de uma acentuação da autoridade clerical; elas conduzem
também a uma reformulação generalizada da organização da cristandade, con-
cebida mais do que nunca como um corpo social homogêneo, ordenado e guia-

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 245


do pela instituição eclesial (pois esta não pode ser o seu próprio fim e só tem
legitimidade na medida em que se supõe que ela coloque em boa ordem o corpo
social, a fim de guiá-lo para a salvação). Depois, no século XIII, o processo de
centralização romana confere ao papa um poder inédito e extensivo a todo o
Ocidente, enquanto a Igreja se dota de novos meios para realizar sua capacida-
de de controle das atitudes e das consciências (ordens mendicantes, tríptico
pregação-confissão-comunhão, Inquisição).
Apesar das frentes de luta sempre abertas, a Igreja nunca pareceu se incor-
porar tão completamente como nesse momento à sociedade, ao mesmo tempo
que a subjuga a partir de tão alto. É, então, difícil duvidar que a Igreja tenha
sido a instituição dominante da Europa medieval. Falta, contudo, compreender
mais em detalhe seu papel na organização das estruturas sociais fundamentais,
quer dizer, ao mesmo tempo na reprodução da sociedade e na própria definição
das relações de produção. É somente assim que se poderá concluir que a Igreja
é "a principal força motriz do feudalismo" (Alain Guerreau), e este será um dos
objetivos da segunda parte deste livro.
IV

DA EUROPA MEDIEVAL
À AMÉRICA COLONIAL

Neste capítulo, gostaria de iniciar o propósito anunciado na introdução, procuran-


do estabelecer as ligações entre a Europa feudal e a América colonial. Trata-se
de proceder, tão sinteticamente quanto possível, à sua articulação histórica, ava-
liando suas respectivas organizações sociais e se preocupando com a dinâmica
que estabelece entre elas uma ligação genética. Previamente, é indispensável
precisar as características dos dois últimos séculos da Idade Média, dos quais
se falou muito pouco até aqui.

A BAIXA IDADE MÉDIA: TRISTE OUTONO


OU DINÂMICA PROLONGADA?

O livro clássico de Johan Huizinga, O outono da Idade Média, paramentou o


fim do milênio medieval com cores melancólicas, e a historiografia tendeu, na
sua seqüência, a evocar esse período somente sob a forma de uma crise pro-
funda e generalizada. Nessa perspectiva, a única virtude suscetível de salvar
essa época da evidência do desastre refere-se ao fato de que, percebida como
a agonia da Idade Média, ou mesmo do sistema feudal, ela parece necessária
para que nasça um mundo novo, aquele da Europa renascentista e moderna.
Hoje, deve-se ter uma posição mais nuançada. Mesmo reconhecendo as difi-
culdades desses tempos, devemos nos esforçar para medir com cuidado seu
alcance exato, o que conduz a adotar um esquema historiográfico sensivelmen-
te diferente.

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 247


As calamidades do século XIV: peste, guerra, cisma

É difícil traçar um limite cronológico preciso entre o desenvolvimento e o equi-


líbrio atingidos pela Idade Média Central e a inversão de tendência da Baixa
Idade Média. Desde o fim do século XIII, o crescimento rural parece atingir os
seus limites de possibilidades, chegando - em relação às condições da época
- a um "mundo pleno", segundo a expressão de Pierre Chaunu. Depois, ao
longo da primeira metade do século XIV, as dificuldades se acumulam. Em
1315-17, a fome geral, esquecida havia mais de um século, faz novos estragos,
antes que a peste negra de 1348 marque com estrondo uma ruptura radical.
Percebe-se, entretanto, que muitos fenômenos com freqüência tidos como con-
seqüência desse evento dramático iniciam-se nas décadas anteriores.
O ano de 1348 é, seguramente, uma data de grande importância. Transmitida
ao homem pela pulga do rato negro, a peste bubônica, que havia poupado a
Europa desde a época de Justiniano, ataca de novo. Trazida do Oriente pelas
galeras genovesas, ela se espalha por toda a Itália, na França, na Inglaterra e na
Península Ibérica ao longo do ano de 1348 e, no ano seguinte, no domínio ger-
mânico, centro-europeu e escandinavo. Brutal, a mortalidade provocada pelo
bacilo da peste espalha-se rápida e maciçamente. Os doentes sucumbem em
alguns dias, sem remédio nem alívio possíveis; cidades e aldeias são cobertas de
cadáveres, que os sobreviventes penam para enterrar com decência. No dizer das
testemunhas, toda a organiz~ção social, até os laços familiares, é violentamente
perturbada por isso. Segundo Guy de Chauliac, médico do papa, a mortandade
e o medo que ela suscitava eram tão vivos que "as pessoas morriam sem servidor e
eram enterradas sem sacerdote. O pai não visitava seu filho, nem o filho visitava
seu pai: a caridade estava morta e a esperança, abatida". Entretanto, as reações
são bastante contrastantes, com alguns fugindo dos lugares contaminados para
se abandonar às delícias de uma vida mais frágil do que nunca, tal como os per-
sonagens do Decamerão de Boccaccio (1313-75), e outros se entregando a atos
desesperados de penitência para tentar escapar do flagelo divino (figura 25, na
p. 249). Mas, em particular nas numerosas cidades italianas, os efeitos sociais
da epidemia são menos visíveis do que se poderia imaginar: passado o momento de
pânico, as autoridades têm o cuidado de fazer prevalecer a continuidade, e o
esforço de reorganização logo mobiliza um otimismo reencontrado. Assim, mais
do que o primeiro ataque da epidemia, é o seu retorno periódico que afeta as
almas e mina as energias. Ora, a epidemia, tornada pandemia, ataca de novo, de
modo generalizado, em 1360-61, 1374-75, 1400, 1412, até que os ataques setor-
nem mais localizados e menos mortíferos, sua última ocorrência na Europa
Ocidental tendo sido registrada em Marselha, em 1720. "Um terço do mundo

248 }érôme Baschet


25. A Virgem com manto24 e os penitentes, c. 1420 (painel pintado por Pietro di Domenico da Monte-
pulciano, Museu do Petit Palais, Avignon).
Este painel em madeira pintada, destinado a ser carregado durante as procissões, pertencia, segundo toda
verossimilhança, a uma confraria da qual ele devia constituir um dos emblemas privilegiados. Ele mostra a
Virgem segurando o Menino Jesus e protegendo os cristãos sob seu manto (os homens à sua direita, as mulhe-
res à sua esquerda). No primeiro plano, penitentes com os rostos mascarados flagelam-se e suas túnicas dei-
xam ver seus dorsos ensangüentados.

24. Denominação convencional do tema iconográfico também conhecido como a "Virgem de


Misericórdia". (N. T.)
morreu", sintetiza o cronista Froissart a propósito dos anos 1348-50. A estimati-
va está em conformidade com os dados que os historiadores puderam estabele-
cer, e pode-se, portanto, reter que a peste negra, em média, diminui em um terço
a população do Ocidente medieval, proporção que se eleva à metade em certas
cidades e regiões.
Compreende-se que os contemporâneos considerem esse evento uma
catástrofe, geralmente considerada um castigo divino (certas imagens mostram
Cristo lançando as flechas de sua cólera sobre a humanidade, que, então, só
encontra proteção junto à Virgem), a menos que certos grupos sirvam de bode
expiatório (assim, os judeus são acusados de ter contaminado os poços). Mas a
peste não é a única flecha que o Deus de cólera lança a partir de seu trono
celeste: a guerra é outra. A chamada Guerra dos Cem Anos opõe, a partir de
1328, os dois reinos mais poderosos do Ocidente, a França e a Inglaterra.
Quando os três filhos de Filipe IV, o Belo, morrem sem herdeiros, pondo fim,
assim, à linhagem dos capetianos diretos, a Coroa da França passa a um primo
dos reis defuntos, Filipe VI de Valois, que deve enfrentar a contestação de um
descendente mais direto, o rei da Inglaterra, Eduardo 111, neto de Filipe, o Belo,
pela parte de sua mãe. Durante mais de um século, os soberanos ingleses reivin-
dicam a Coroa da França, lançam a partir de suas possessões continentais sérias
ofensivas, ganhando importantes batalhas, como em Crécy (1346), em Poitiers,
onde o rei João, o Bom, é feito prisioneiro (1356) e, sobretudo, emAzincourt, onde
os arqueiros ingleses transform!lm as regras da guerra medieval (1415). Com o
Tratado de Troyes, em 1420, os ingleses parecem obter seus objetivos, impon-
do o casamento da filha de Carlos VI da França com Henrique v da Inglaterra e
prevendo o acesso do filho fruto de sua união, o futuro Henrique VI, ao trono
dos dois reinos. Além disso, ao afrontamento acrescenta-se uma guerra civil
entre o partido dos Bourguignons, favoráveis aos ingleses, e os Armagnacs, fiéis
ao "rei de Bourges", Carlos VII, que Joana d'Arc, jovem camponesa certa de estar
investida de uma missão divina, convence a crer em sua legitimidade, a se fazer
sagrar em Reims e a reconquistar o seu reino (I 429-31 ).
Ao lado de outros conflitos, tal como a Guerra das Duas Rosas, que põe em
disputa, entre 1455 e 1485, os Lancaster e os York, dois ramos reais que lutam
pela Coroa da Inglaterra, a Guerra dos Cem Anos testemunha o fato de que os
conflitos armados ganham, na Europa da época, uma amplitude nova, mais
devastadora do que antes, e afetam mais as populações rurais e urbanas. Não só
ela opõe de modo durável duas monarquias poderosas, mas também vê o desen-
volvimento de inovações notáveis na arte militar, em particular o uso dos arcos
e das bestas, e, em breve, das primeiras armas de fogo, arcabuzes e bombardas,
que tornam obsoletas as técnicas tradicionais da cavalaria. A função militar dos

.! 50 }érôme Baschet
aristocratas é diminuída na mesma proporção, mesmo se estes desdenhem essas
novidades julgadas indignas e se escorem na ética da guerra cavaleiresca. Por
outro lado, a importância dos mercenários e das tropas a soldo aumenta.
Constituem-se, então, "companhias" que, sob a liderança de um chefe de guer-
ra, alugam seus serviços a quem lhes puder pagar. Mas o seu interesse é de pro-
longar tanto quanto possível as hostilidades que lhes permitem viver, o que é
também, por vezes, o interesse dos príncipes que sabem que as companhias
desocupadas entregam-se facilmente à pilhagem e ao banditismo, transforman-
do-se, assim, em um flagelo dos mais temidos pelas populações.
À lista de males da época é preciso ajuntar o Grande Cisma, que divide a
Igreja romana entre 1378 e 1417. O fato é que, depois de 1309, pouco após a elei-
ção de Clemente v, o papa e a cúria romana se instalaram em Avignon, o que
numerosos contemporâneos denunciam como "o cativeiro da Babilônia". Após
várias tentativas infrutíferas, Gregório XI decide, em 13 77, retornar a Roma, sede
normal do sucessor de Pedro (ele, então, instala sua residência no Vaticano, e
não no Palácio de Latrão, como sempre havia feito o bispo de Roma); mas, quan-
do ele morre, uma parte da cúria encontra-se ainda em Avignon e os cardeais
mergulham na confusão, elegendo, primeiro, Urbano VI, que se instala em
Roma, e, depois, Clemente VII, que retoma a Avignon. A Igreja tem, doravante,
duas cabeças, e, durante quarenta anos, a luta entre o papa de Avignon e o de
Roma dilacera o Ocidente. Cada um deles se esforça para obter o apoio dos
príncipes e das cidades, excomungando seus adversários e lançando sobre
suas terras a proibição litúrgica. O funcionamento da estrutura eclesial en-
contra-se gravemente afetado por essa divisão na cúpula e é grande o espan-
to nos espíritos. Todas as tentativas de arbitragem tendo falhado, termina-se
por admitir, ao fim de quatro decênios, que a solução só pode vir de um con-
cílio geral, reunindo todos os bispos da cristandade ocidental. É isso que tenta
o concílio reunido em Pisa em 1409, depondo os dois papas rivais e elegendo
um novo pontífice: mas o remédio é pior que o mal, pois os dois primeiros
recusam a decisão, de modo que a Igreja se encontra, por um tempo, tricéfa-
la. Depois, o Concílio de Constança (1414-18) consegue realizar a operação
e impõe um novo e único pontífice, Martinho v (1417-31), mas não sem ter
previamente emitido um decreto consagrando a nova importância adquirida
pela assembléia conciliar.
Retornos periódicos da peste negra, efeitos destruidores das guerras e das
grandes companhias, Grande Cisma da Igreja: os contemporâneos tinham
razões para se sentir assolados pela Providência e as cores outonais pintadas por
Johan Huizinga não saíram do nada. O pessimismo invade os espíritos e o sen-
timento de viver em um mundo que agoniza, que chega ao seu fim, se faz mais

A CIVILIZAÇÁO FEUDAL _:;;f


presente do que nunca. A obsessão da morte explode em todos os lugares, nas
práticas funerárias assim como na literatura e na arte, onde os temas macabros,
tal como o Triunfo da Morte, e, depois, as Danças macabras ganham destaque
(veja as figuras 26, na p. 253, e 5, na p. 40). Entretanto, o balanço deve ser
moderado. Mundus senescit ("o mundo envelhece") é um topos que impregna o
pensamento clerical de longa data durante os séculos do desenvolvimento
medieval. A aguda preocupação com a morte, inscrita na lógica da pastoral esta-
belecida havia muito pela Igreja, não tem a peste como ónica causa, como
demonstra o fato de que certos temas macabros se desenvolvem já no século XIII
(Encontro dos três mortos e dos três vivos) e outros desde os anos 1330 (Triunfo
da Morte). Enfim, o Ocidente não se compraz na depressão demográfica.
Malgrado as dificuldades acumuladas e a despeito do retorno periódico da
peste, a recuperação se faz sentir desde o início do século XV, e ainda mais cla-
ramente após 1450. Se, no fim do século XV, a Europa não atinge exatamente os
níveis de população anteriores à epidemia, ela tende, ao menos, a aproximar-se
deles (o reino da França, que é ainda o que mais pesa, reencontra seus 15
milhões de habitantes em um território, é verdade, um pouco aumentado,
enquanto a Península Ibérica se eleva a 7 milhões de almas, por volta de 1500).
E a alta sensível da taxa de fecundidade em relação à Idade Média Central, que
permite ver com freqüência famílias de cinco, até mesmo seis a oito filhos, indi-
ca uma vitalidade e um desejo de reconstrução mais do que uma onipresença
do medo e da melancolia.

Crise do feudalismo ou ajustes sociais?

A propósito desse período, é freqüente insistir sobre a situação crítica da aristo-


cracia, confrontada a uma "baixa da taxa de arrecadação senhorial" (Guy Bois).
É verdade que a depressão demográfica gera numerosos abandonos de terras,
até mesmo de aldeias inteiras, o que provoca uma queda notável dos rendimen-
tos senhoriais. Além disso, a menor densidade do povoamento rural põe os cam-
poneses em uma relação de força mais favorável, que lhes permite exigir uma
baixa do censo ou um resgate generalizado das corvéias a um preço menor, a que
os senhores são obrigados a assentir para evitar perder seus homens. Enfim, a
evolução comparada dos preços dos produtos agrícolas e daqueles que os aris-
tocratas devem comprar lhes é desfavorável. Os mais fracos dentre eles endivi-
dam-se e são, por vezes, obrigados a vender suas terras: alguns partem, então,
para a cidade em busca de um ofício junto a um príncipe, enquanto outros per-
dem a posição de nobre. Assim, antigas linhagens senhoriais desaparecem e são

252 }érôme Baschet


26. O Triunfo da Morte, c. 1440 (Palácio Sclafani, Palermo).
Inovação dos anos 1330, inaugurada por Buonamico Buffalmacco no Campo;.Santo de Pisa, a iconografia do
Triunfo da Morte ganha destaque a partir do século XV. O afresco de Palermo, realizado pouco tempo depois
da transformação do Palácio Sclafani em hospital, é particularmente bem adaptado à nova função do edifício.
Ela é, como já ocorria em Pisa, associada a uma representação do Juízo Final (hoje perdida). Aqui, a Morte é
figurada por um esqueleto cavalgando uma montaria descarnada, cujo poder figurativo impressiona. As flechas
que ela lança acumulam, em sua passagem, montanhas de cadáveres: nobres damas e belos senhores, músicos
e letrados, papa e bispos, sacerdotes e monges. Nenhum poder terrestre, nenhuma riqueza material permite
~esistir à Morte. Os emblemas da vida aristocrática -jardins de cortes, caça com cachorros e com pássaros -
são representados com uma insistência particular: seus prazeres aparecem ainda mais vãos diante de uma morte
iminente. Apenas os pobres e os enfermos, à esquerda, imploram à Morte para pôr fim aos seus sofrimentos,
mas esta se desvia deles. A mensagem é menos a da universal fragilidade humana do que uma exortação moral:
é preciso pensar na morte para se afastar da vã glória do mundo e obter sua salvação.
substituídas por novos senhores, aristocratas mais poderosos, como os Sheppard
ou os Percy, na Inglaterra, ou citadinos enriquecidos que aproveitam a ocasião
para comprar terras (sobretudo videiras, mais rentáveis) ou mesmo senhorios
inteiros (em certas regiões, eles logo possuem até um quarto destes). No mais,
mesmo sem recorrer à aquisição de terras, os citadinos em geral orientam as ati-
vidades dos rurais, confiando-lhes as tarefas mais simples da cadeia têxtil, for-
necendo-lhes um adiantamento sobre a produção que os induz muitas vezes ao
endividamento, como no caso da lã na Inglaterra, ou ainda controlando as cul-
turas destinadas ao artesanato urbano, como as plantas de tinturaria da região
de Toulouse ou da Úmbria. Essa presença ativa e influente dos citadinos no
mundo rural é, seguramente, um elemento notável das transformações do fim
da Idade Média.
Esse quadro, pouco favorável à aristocracia tradicional, deve, entretanto,
ser nuançado. Em primeiro lugar, nem tudo vai mal na aldeia (figura 27, na p.
256). Se as superfícies cultivadas diminuem de modo notável (por vezes, até
20%, ou até 50%), o fenômeno é compensado por uma alta dos rendimentos
(ainda mais porque os abandonos atingem às terras menos férteis), por um
desenvolvimento do pastoreio e da horticultura, assim como por um avanço
sobre a floresta, que também beneficia o gado. Estabelece-se, assim, um equi-
líbrio entre ager e saltus, entre cultivo e pastoreio, que as fortes densidades
rurais do fim do século XIII tinham posto em perigo. Além do desenvolvimento
da transumância ovina na Itália e em Castela, a criação bovina avança conside-
ravelmente, dando lugar a uma transformação das paisagens rurais do domínio
atlântico, marcadas pelo cercamento dos prados e levando a uma modificação
dos hábitos alimentares (o que, sobretudo na cidade, realça o prestígio dos
açougueiros). Por outro lado, o abandono das terras permite um reagrupamento
das parcelas, que, por vezes, ocorre em benefício dos patrimônios aristocráticos
mais sólidos, especialmente na Alemanha e em Castela, mas também em favor
de compradores citadinos ou da elite camponesa de cultivadores. Estes últimos,
que se distinguiam já no século XIII, aproveitam a situação e, muitas vezes,
garantem para si domínios que vão até cinqüenta ou sessenta hectares. Existem,
agora, em cada aldeia, alguns "galos" que entram em acordo para controlar suas
instituições (confraria, assembléia). Abaixo deles, outros também tiram vanta-
gem das condições da época. Com efeito, os senhores recorrem cada vez mais
a contratos de arrendamento a longo termo, ou mesmo hereditários, que,
mesmo lhes garantindo um rendimento seguro, são geralmente favoráveis ao
arrendatário. Assim, a melhoria das condições de vida é bastante geral, tanto na
aldeia como na cidade. Além da melhor qualidade do grão e do aumento da pro-
porção de carne na alimentação, ela também é constatada na construção das

~ 5~ }érôme Baschet
casas, cujos espaços interiores são mais separados, ou ainda na diversificação do
mobiliário e das vestimentas. Entretanto, nem todos se aproveitam disso e os
camponeses mais pobres são arrastados para uma espiral descendente, enquanto
a margem servil da população rural aumenta novamente a partir de 1300. O fato é
que muitos preferem a servidão, que ao menos lhes confere um estatuto, à men-
dicância ou à vida errante. A afirmação desta segunda servidão, que na Ingla-
terra e em outras regiões atinge até um terço dos aldeãos, mostra que o quadro
senhorial está longe de ter desaparecido.
Convém também estabelecer uma distinção entre a pequena aristocracia
de senhores, com freqüência em dificuldades, e a alta aristocracia dos príncipes
e barões, cujo vigor, ao contrário, aumenta (figura 27, na p. 256). Não apenas
estes se aproveitam dos dissabores dos primeiros comprando numerosos senho-
rios, mas sua força, mantida ou mesmo ampliada, lhes permite melhorar os ren-
dimentos de seus domínios ao mesmo tempo que resistem eficazmente à auto-
ridade real. Estes grandes aristocratas continuam a ocupar a frente da cena. Se
sua função militar é atingida pelas modificações da arte da guerra, eles mantêm,
devido ao seu lugar nos conselhos e nos ofícios reais, papel político dominante,
ao mesmo tempo que o fausto de suas cortes e seu prestígio social se acentuam
cada vez mais. No geral, se a aristocracia atravessa uma fase de dificuldades
sérias, ela se adapta e se renova. As transformações não são, entretanto, negli-
genciáveis, e afetam a definição do próprio grupo social (Joseph Morse!). No
século XV, a oposição entre nobres e não-nobres adquire uma rigidez inédita
(para designar grupos sociais e não somente qualidades). A partir dali, é possí-
vel falar da "nobreza" como um grupo do qual, além do mais, é o príncipe que
domina a definição, especialmente porque ele tem a capacidade de desenobre-
cer. Doravante, o poder monárquico tem um papel maior na reprodução da
nobreza, assegurando-lhe uma parte notável de seus rendimentos, por meio dos
postos que ele confere, de soldos militares e mesmo de feudos de bolsa (em
dinheiro), que permitem, principalmente aos nobres aragoneses, manter a sua
posição. Com isso, os valores nobiliárquicos são reafirmados com maior vee-
mência ainda, especialmente através da multiplicação das ordens cavaleirescas
(das quais o príncipe é o chefe) e a organização de grandes torneios, verdadei-
ras cerimônias de autocelebração, com fausto crescente, pelas quais os nobres
procuram se distinguir da elite camponesa e dos citadinos enriquecidos, exibin-
do, paralelamente, sua coesão e sua força. Ao mesmo tempo, os nobres opõem-
se com sucesso às ambições dos soberanos, seja por uma mistura de fidelidade
a seus engajamentos vassálicos e de resistência aos novos costumes, seja pela
revolta aberta, em caso de necessidade, como várias vezes ocorre na França do
século XV. No geral, não há, na Baixa Idade Média, ruptura social fundamental:

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL ..?5'>


27. No mês de março, trabalhos e poda das vinhas no castelo de Lusignan, c. 1413 (miniatura de Pol de
Limbourg, Riquíssimas horas do duque de Berry, Museu Condé, Chantilly, 65. fl. 3v.).
Estando entre os manuscritos mais suntuosamente iluminados, as Riqufssimas horas foram realizadas para o
duque João de Berry, irmão do rei da França, Carlos V, e bibliófilo de grande renome. Um calendário. mais ou
menos ornado, é quase sempre integrado no topo dos livros de horas. Aqui, vê-se uma das duas páginas relati-
vas ao mês de março, com a indicação dos signos do zodíaco correspondentes, Peixes e Áries (na outra páwna
tiguram o caiendário propriamente dito e as indicações das festas litúrgicas). As tradicionais representações dos
trabalhos do mês são consideravelmente ampliadas: no primeiro plano, um vilão realiza o cultivo com uma char-
rua muniua d<· uma reina e de um aparador, ambos metálicos, puxada por uma parelha de bois; mais longe, dois
vin.' edos cercados em que se cortam os sarmentos e um pastor que guarda suas ovelhas. Como na maior parte
das miniaturas deste calendário, o duque de Berry fez representar um de seus principais castelos, realizando,
assim. um~ P.specie de inventário de seu domínio, demonstrativo de seu poderio: aqui, trata-se do castelo de
Lusignan, com seu burgo protegido por uma dupla muralha.
mesmo se, a partir dali, a reprodução da aristocracia depende, em parte, do
poder monárquico, ela continua sendo a classe dominante e o senhorio perma-
nece o quadro elementar da organização social.
As revoltas populares que explodem durante esse período parecem, entre-
tanto, tumultuar o jogo. Incontestavelmente, tanto no mundo rural como na
cidade, conflitos e tumultos sociais fazem-se mais visíveis e mais intensos do
que durante o século precedente. Serão evocadas, de início, quatro revoltas
rurais desse período, sem contar aquela de Flandres em 1323-27. A sublevação
dos "jacques", camponeses da Ilha de França, da Picardia e de Champagne, em
1358, choca tanto os espíritos que, por muito tempo, acaba por dar seu nome a
todos os tumultos da zona rural (jacqueries). No contexto da derrota francesa em
Poitiers e do cativeiro do rei, o que obriga à cobrança de um imposto especial,
cerca de 5 mil camponeses, dos quais Guilherme Carle aparece como um dos
principais organizadores, pilham os castelos e massacram os senhores, até ter-
minarem como vítimas de uma repressão não menos brutal conduzida por Carlos
de Navarra (vários milhares de mortos). A sublevação do centro da Inglaterra em
1381, que se inscreve na conjuntura particularmente agitada do Ocidente, é,
sem dúvida, a mais notável, por sua extensão geográfica, pela junção operada
entre cidade e campo, pelo seu grau de organização e pela clareza de suas rei-
vindicações. Seu estopim é, também aqui, um novo imposto (tax-poll) ligado à
guerra franco-inglesa. Mas a tropa dos camponeses que recusam sua cobrança
atinge rapidamente 50 mil homens e, sob a liderança de Wat Tyler, toma Canter-
bury, marcha sobre Londres, onde toma a Torre; aí ela obriga o rei a ceder a suas
reivindicações e, notadamente, a decretar a abolição da servidão. Mas Tyler é
assassinado e a aristocracia se organiza para massacrar o movimento e anular
seu efêmero triunfo. Iniciada nos anos 1380, a luta dos camponeses de Aragão
contra os "maus costumes" dos senhores- que, apesar de alguns decênios mais
favoráveis, impõem constrições próximas da servidão a dependentes qualifica-
dos de remensas - é menos uma breve explosão de violência do que um com-
bate obstinado e paciente, que se beneficia, de resto, da benevolência do rei.
Ele leva a uma vitória, consagrada por Fernando, o Católico, em 1486, quando
este abole o estatuto servil dos remensas. Enfim, a revolta lrmandina de 146 7-69,
que põe a Galícia à mercê dos camponeses revoltados contra os castelos, apare-
ce como a mais importante revolta antifeudal de Castela, mesmo se ela é, final-
mente, esmagada pela aristocracia coligada de Castela, Leão e Portugal.
A compreensão desses movimentos sociais é dificultada pelo fato de que as
fontes - o que era de esperar- raramente lhes são favoráveis e, em todo caso,
jamais emanam deles próprios. Se se capta o estopim dos tumultos (crise ali-
mentar, novo imposto etc.), é mais delicado avançar além desse elemento ime-

A <.:IVILIZhÇAO FEUDAL 257


diato. Tratar-se-ia da revolta dos mais desprovidos e dos mais oprimidos, joga-
dos na desesperança desde que um fardo suplementar vem tornar insuportável
uma situação já vacilante? Muitos historiadores, entretanto, se perguntaram se
esses movimentos não são, ao contrário, um protesto da elite camponesa, quan-
do esta crê que seus privilégios estejam ameaçados. É o que sugere a geografia
das revoltas, que absolutamente não corresponde às regiões mais pobres do
Ocidente. Assim, o movimento de Flandres, no início do século XIV, é liderado
pelo afortunado cultivador Zannequin; o da Galícia subleva as camadas superio-
res do campesinato; enfim, a Jacquerie de 1358 se estende por uma região
cerealífera próspera. Esta é, então, atingida por uma baixa dos preços dos grãos,
que afeta os camponeses mais ricos, que dependem, ainda mais que os outros,
da comercialização de sua produção.
A feição anti-senhorial desses movimentos parece evidente. Mas até que
ponto e com que grau de consciência e de ação críticas? Apenas o endurecimen-
to do regime senhorial parece ser denunciado pelo movimento aragonês dos
remensas, em nome de uma ligação com a antiga tradição, e é, sem dúvida, essa
moderação que explica o seu sucesso, de resto favorecido pela autoridade do rei.
Durante a Jacquerie, os castelos queimam, as filhas dos nobres são violentadas
e mortas com suas famílias, mas é bem possível que os insurgentes, mais do que
negar a ordem senhorial, agissem em nome de uma imagem perfeita dessa
ordem, da qual eles denunciam a alteração. Com efeito, a derrota diante dos
ingleses joga o descrédit9-sobre os nobres, que falharam em sua missão de defe-
sa. A dominação senhorial, duplicada por uma exigência fiscal régia, parece,
então, ainda mais injustificada, já que os nobres continuam a dar mostras de um
luxo ostentatório, julgado escandaloso em tal contexto. Acusados de corrupção
e de traição, os nobres aparecem como indignos de continuar a ser tratados
como nobres (Hugues Neveux).
Entretanto, é difícil traçar o limite entre tal atitude, que denuncia os
senhores em nome da idéia senhorial, e uma contestação dos fundamentos da
dominação social, sobretudo se se considera a dinâmica inerente a todo movi-
mento social. Uma crítica radical parece, em todo caso, bastante presente no
movimento inglês de 1381, como sugere a clareza de suas reivindicações, assim
como a célebre fórmula de John Ball pronunciada às portas de Londres:
"Quando Adão cultivava e Eva fiava, onde estava o gentil-homem?". De resto,
ele tira disso todas as conseqüências, precisando: "Boas gentes, as coisas não
podem ir bem na Inglaterra e elas só irão quando os bens forem possuídos em
comum, quando não mais haverá nem vilãos nem gentis-homens e quando for-
mos inteiramente iguais". Um igualitarismo radical, justificado pelo estado ori-
ginal da humanidade, exprime-se, assim, com força notável (no caso, pela voz

2 5 ~ }érôme Baschet
de um sacerdote). Mesmo se nada prova que ela animava o conjunto das revol-
tas inglesas, a aspiração igualitária de um mundo sem senhores, sem bispos e sem
príncipes (segundo a expressão de Robert Fossier) nunca é mais bem expressada
do que nessa ocasião.
Com uma exceção, todas essas sublevações terminam em derrota, esmaga-
das de modo selvagem e facilmente controladas desde que a aristocracia orga-
niza as suas forças. A despeito das vítimas individuais e das perdas pontuais,
nenhuma dessas explosões de violência constituiu perigo sério para os dominan-
tes. Igualmente, apesar da diferenciação social crescente no seio das aldeias e
de sua adaptação a uma conjuntura diferente, os vilãos, servos ou dependentes
permanecem a classe dominada, sobre cuja exploração se funda o essencial da
organização social.

O desenvolvimento contínuo das cidades e do comércio

Quanto aos aspectos mais notáveis da dinâmica feudal - o desenvolvimento


das cidades e do comércio, o reforço dos poderes monárquicos-, sua impor-
tância apenas aumenta. Se considerarmos globalmente os séculos XIV e XV,
e, apesar das baixas brutais provocadas pelas sucessivas passagens da peste, a
população das cidades ocidentais aumenta, embora a um ritmo mais modera-
do que antes. As características já mencionadas no capítulo 11 acentuam-se
e os meios urbanos continuam a diversificar-se. Se o entrelaçamento entre a
aristocracia urbana e os meios de negócios continua sendo a regra, algumas
cidades tomam medidas que os obrigam a se diferenciar mais claramente,
dando, assim, um novo relevo à oposição entre "nobreza" e elites urbanas. Ao
lado dos mercadores, artesãos e banqueiros, os homens da lei têm ali um lugar
crescente, do mesmo modo que os "oficiais", encarregados das tarefas do
governo urbano ou principesco, ou ainda os intelectuais, universitários ou os
primeiros "humanistas". As camadas populares tornam-se também mais visí-
veis e mais instáveis, atingidas por uma conjuntura pouco favorável aos salá-
rios (salvo quando a peste aparece, mas medidas de contenção dos salários
logo põem um fim a esta vantagem). Suas dificuldades aumentam, conduzin-
do ao endividamento junto aos senhores e ao desemprego, enquanto o fluxo
de imigrantes desqualificados aumenta a multidão de mendigos e de margi-
nais. A hierarquização entre mestres, companheiros e aprendizes é reforçada
e algumas medidas tornam mais difícil o acesso às corporações de ofícios. As
revoltas urbanas encontram aí uma parte de sua explicação. Assim, pequenos
artesãos e assalariados modestos formam o grosso das tropas que apóiam

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 25'!


Estevão Mareei em Paris, em 1358, mesmo se este defende os interesses da
oligarquia mercantil à qual pertence e promove, sobretudo, reivindicações
políticas, visando ao controle da monarquia pelas cidades. Isso é ainda mais
claro com a revolta dos Ciompi, sem dúvida a mais ampla e a mais organiza-
da desse período, que põe Florença a ferro e sangue, em 1378. Antes de serem
desviados e aniquilados pela onda de repressão, as reivindicações dos insur-
gentes atacam claramente a oligarquia urbana, impondo a igualdade das Artes
maiores e das Artes menores e criando três Artes suplementares, a fim de
garantir a representação social e a participação política dos artesãos mais
modestos e dos companheiros.
A despeito de tais explosões, a posição dos grandes mercadores e dos ban-
queiros se reforça. Suas companhias, cuja base é essencialmente familiar, mas
que admitem e remuneram o capital de vários participantes, estendem suas juris-
dições financeiras e geográficas. As técnicas comerciais e bancárias afinam-se, tais
como a contabilidade em dupla partida, 25 introduzida em meados do século XIV,
ou a letra de câmbio, ancestral do cheque, que facilita as operações comerciais a
longa distância. A importância das técnicas de cálculo é reforçada pela multipli-
cação dos tratados de aritmética comercial, ao mesmo tempo que outros manuais
se esforçam para ajudar os mercadores em suas atividades através da Europa; do
mesmo modo, as abundantes cartas trocadas, especialmente entre os mestres de
companhias e seus agentes, indicam a preocupação com uma informação indis-
pensável à condóta dos negócios. Desta preocupação, como da obsessão de tudo
registrar e de tudo contabilizar, é testemunho exemplar Francesco Datini, merca-
dor toscano do século XIV, hábil e prudente, que começou do nada e construiu
uma rede de companhias estabelecidas em Prato, Florença, Gênova e Barcelona,
e que deixa, quando de sua morte, 125 mil cartas, quinhentos registros de contas
e milhares de letras de câmbio. As atividades comerciais ganham amplitude cres-
cente, assim como o artesanato, que recorre mais ao moinho d'água e ao tear
(assim, Datini emprega setecentos trabalhadores somente nas oficinas têxteis de
Prato). Os mais empreendedores acumulam fortunas consideráveis: a dos Medici,
em Florença, corresponde a um quarto das despesas anuais da cidade; a de
Jacques Coeur, em Bourges, equivale à metade do imposto régio. São nomes que,
junto com os Fugger de Augsburgo, simbolizam o poderio a que os negócios
podem alçar no decorrer do século XV. Mas é preciso lembrar, com Fernand
Braudel, que as aventuras mais brilhantes do "capitalismo financeiro", aquelas dos

25. Também chamada contabilidade com lançamento duplo, ou d!grafa: sistema de notação que,
registrando origem e destino das entradas e das saídas, permite um controle atuarial mais apura-
do. (N. T.)

~t,Q }érôme Baschet


Bardi, dos Peruzzi e dos Medici de Florença, ou ainda dos banqueiros de Gênova
entre 1580 e 1620 e de Amsterdã no século XVII, terminam todas em fracasso; não
há sucesso neste domínio antes de meados do século XIX.
Não é seguro que o fim da Idade Média marque uma mudança fundamental
nas mentalidades urbanas. É verdade que a hostilidade clerical e aristocrática em
relação aos negócios, sem desaparecer, deixa um pouco mais de lugar a uma visão
positiva do mercador. Ela se exprime, por exemplo, nos Contos de Canterhury de
Chaucer (1373), na consciência de si e da dignidade de sua família que certos
mercadores consignam em seus livros de memória (as ricordanze dos italianos) ou
ainda nos painéis pintados, como o que comemora o casamento dos noivos
Amolfini (figura 6, na p. 41). A valorização do ganho e do trabalho e a utilidade
social atribuída às suas atividades são demonstradas mais abertamente; mas aos
olhos dos próprios mercadores, angustiados com os riscos dos negócios e inquie-
tos com a possibilidade de perderem tudo, a Providência continua sendo senhora
do jogo. Eles se fiam a Deus e à Igreja, aos quais pedem proteção e agradecem em
caso de sucesso, multiplicando doações e atos de piedade. Objetos de toda a aten-
ção das ordens mendicantes, os ricos citadinos aceitam o essencial dos quadros
eclesiais e são "cristãos comuns" (Hervé Martin). Acontece mesmo que, molda-
dos pela culpabilidade que o discurso dos clérigos instila, eles se tomem, em
idade avançada, devotos escrupulosos, tal como Datini, que lega quase toda a sua
fortuna aos pobres, obrigando, assim, à dissolução de suas companhias. Não resta
nada, então, de uma vida de esforços, e a acumulação que ela havia permitido dis-
solve-se in fine. Uma tão perfeita fidelidade às regras da caridade cristã reduz a
nada os imperativos do lucro, ainda muito longe de conquistar sua autonomia e
de afogar o mundo sob as "águas glaciais do cálculo egoísta".
À medida que seu sucesso é mais estrondoso, os ricos negociantes imitam
com maior ardor e fausto os costumes da aristocracia. Não somente as compras
de terras se multiplicam, mas a oligarquia urbana pode, então, permitir-se repro-
duzir o modelo cultural das cortes e, em particular, rivalizar com o mecenato dos
príncipes. Claramente, é a incorporação à nobreza que é, assim, buscada, o que
é também o caso dos grandes servidores dos monarcas. Assim ocorre com os Le
Viste, família saída da burguesia de Lyon e que se ilustra no alto funcionalismo
da monarquia francesa, e da qual um dos membros é o comanditário da célebre
tapeçaria da Dama com unicórnio, 26 no fim do século XV. Quanto a Jacques
Coeur, que se tornou o principal financista do rei Carlos VII, seu palácio de

26. La tkme à la licorne, série de seis tapeçarias (cinco das quais correspondendo aos cinco senti-
dos humanos), realizada nos Países-Baixos; encontra-se atualmente no Museu Nacional da Idade
Média de Cluny, em Paris. (N. T.)

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL :'.1> /


Bourges surpreende pelo esplendor principesco e por seu audacioso projeto ico-
nográfico, que sugere com insistência a incorporação do senhor do lugar à corte
real, associando visualmente os símbolos do rei e de seu banqueiro. Mas este
jogo, que manifesta com bastante evidência a ambição de ser indispensável ao
soberano, não deixa de ser perigoso e conduz, finalmente, à desgraça e ao bani-
mento. Assim, as condutas "burguesas" curvam-se aos escrúpulos cultivados
pelos clérigos, ao mesmo tempo que se extenuam no fascínio pela aristocracia.
Tais fenômenos, que predominam pelo menos até o século XVII, explicam em
boa parte por que o espírito de lucro não significa necessariamente o triunfo do
capitalismo e incitam a diferenciar claramente os "homens de negócios feudais",
que já sabem fazer bons negócios e estender seus horizontes, e a verdadeira bur-
guesia, cujo tempo ainda não chegara (Eric Hobsbawm).
Isso não impede a cidade de conservar e acentuar suas especificidades. Se
as cifras contam aí mais do que alhures, o mesmo ocorre com os letrados. A lei-
tura progride notadamente entre os citadinos e, em 1380, Villani afirma que
70% dos florentinos sabem ler e escrever. A demanda por livros cresce, anima-
da por milhares de universitários e, cada vez mais, pelos príncipes, aristocratas
e notáveis urbanos, dos quais os mais afortunados são, por vezes, bibliófilos
apaixonados, que acumulam suntuosos manuscritos com iluminuras (figura 27,
na p. 256), ao passo que os demais são obrigados a possuir, além de seus trata-
dos comerciais, ao menos um livro de horas, que, no século XV, se torna o
emblema indispensável da piedade laica. Por decorrência, a produção de manus-
critos é fortemente solicitada e os ateliês urbanos esforçam-se para aumentá-la
graças a novas técnicas. Após tímidas aparições, o papel, de origem chinesa,
torna-se de uso mais corrente a partir do início do século XIV, beneficiando-se
de uma dupla vantagem sobre o pergaminho (leveza e custo menor). No fim do
século XIV, a gravura em metal e, depois, em madeira, oferece os primeiros pro-
cedimentos de reprodução mecânica, particularmente em voga para a difusão
das imagens religiosas. Enfim, se outros artesãos procuram simultaneamente na
mesma direção, é ao ourives Gutenberg que permanece vinculada a invenção da
tipografia (letras metálicas móveis), dando lugar à impressão da famosa bíblia
de Mogúncia, por volta de 1450. Esta inovação, que ganha rapidamente todo o
Ocidente (cerca de 15 mil obras impressas antes do fim do século xv), está des-
tinada a transformar profundamente a difusão da escrita e o conjunto das práti-
cas socioculturais.
Se a imprensa- junto com o uso do papel que lhe é indispensável- é "uma
grande invenção medieval" (Alain Demurger), ela não é a única a ser creditada à
Idade Média que está terminando. Pode-se citar a difusão dos relógios mecâni-
cos (segunda parte, capítulo I) e dos óculos, uma descoberta engendrada, sem

~1,_: }érôme Baschet


dúvida, em Veneza, no fim do século XIII, ajuda considerável para os intelectuais
e outros amadores das letras e dos algarismos. Além das armas de fogo já men-
cionadas, as melhorias das técnicas de mineração e metalúrgicas ou, ainda, as
dos canteiros navais, têm notáveis conseqüências. Numerosos instrumentos
úteis à navegação aparecem ou são então aperfeiçoados de modo decisivo, como
a bússola (transmitida a partir da China, ela é objeto de um tratado de Alexandre
Neckam, em 1187, mas só se difunde realmente no século XIV), o astrolábio
(introduzido no Ocidente por Gerberto de Aurillac antes do ano mil e bem ates-
tado a partir do século XII), e os portulanos (devidos aos marinheiros pisanos,
genoveses e catalães, e que esboçam, sobretudo a partir do século XIV, os contor-
nos das costas). O estabelecimento dessas técnicas, como também da caravela,
acompanha e favorece a primeira aventura atlântica levada a cabo pelos genove-
ses e portugueses, que atingem as Canárias desde 1312, a ilha da Madeira e os
Açores um século mais tarde. A exploração sistemática das costas africanas é
empreendida sob a instigação dos reis de Portugal e, sobretudo, do infante Dom
Henrique, o Navegador (1394-1460): a tomada de Ceuta, em 1415, a inaugura,
e Bartolomeu Dias finalmente dobra o cabo da Boa Esperança em 1488. O pro-
cesso que conduz à viagem de Cristóvão Colombo enraíza-se, então, nos séculos
considerados os mais sombrios da "crise da Idade Média". Isso deveria conduzir
a reformular a articulação entre Idade Média e Renascimento, especialmente
porque a idéia de renascimento das artes e das belas-letras está na ordem do dia
desde o século XIV, notadamente com Petrarca (morto em 1378), não somente na
Itália, mas também ao norte dos Alpes onde, desde 1408, Nicolau de Clamanges,
secretário do papa de Avignon, se vangloriava: "Trabalhei para fazer como que
renascer na França a eloqüência desde há muito tempo enterrada". Então, talvez
fosse mais pertinente conceber a Baixa Idade Média, ou pelo menos o século XV,
como um tempo de transformações ativas, de invenções e de inovações - no
conjunto da Europa, e não somente na Itália - que, sem solução de continuida-
de, leva às grandes descobertas que são creditadas habitualmente ao Renasci-
mento. Ao menos, seria preciso considerar, como convida a fazê-lo Jacques
Chiffoleau, que os avanços criativos não sucedem às cores sombrias do fim da
Idade Média, mas que ambos são coexistentes.

Gênese do Estado ou afirmação da monarquia?

O poder monárquico também continua a afirmar-se, a tal ponto que alguns histo-
riadores situaram nesse período, em particular entre os anos 1280 e 1360, a
"gênese do Estado moderno" (Jean-Philippe Genet). Se não se pode negar as notá-

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL ..'f>3


veis evoluções, pode-se, contudo, interrogar sobre a pertinência dessa expressão.
De resto, o fenômeno concerne principalmente à França, à Inglaterra e à
Península Ibérica, em menor grau, à Boêmia e à Hungria e, sob uma forma bem
diferente, às cidades, especialmente italianas, que reforçam suas estruturas polí-
ticas e estendem seu controle sobre a planície, enquanto o poder imperial conti-
nua a declinar e os nobres alemães resistem eficazmente às pretensões políticas
dos príncipes territoriais. É inegável o desenvolvimento da administração real,
fundada doravante em uma separação mais marcada entre a função doméstica,
que se concentra no palácio do rei, e a função política, assumida pelo conselho
real dominado pelo chanceler e alguns próximos do rei. É verdade que, aí, este
último decide em última instância, mas deve também compor com a influência
dos príncipes. Os diferentes órgãos da administração real, pouco a pouco, confir-
mam sua autonomia. O Exchequer na Inglaterra ou a Câmara de Contas na
França, a partir de 1320 (embora igualmente composta por membros do conselho
real), têm a responsabilidade sobre as finanças reais. Do mesmo modo, o
Parlamento que, na França, distribui a justiça em nome do rei e é, a princípio,
uma cessão da corte do rei, torna-se, ao final de um processo concluído em 1360,
uma instituição autônoma, assim como a Corte de Apelações na Inglaterra ou a
Audiência, criada em Castela nos finais do século XIV. Finalmente, cada órgão
administrativo engendra uma especialização interna, que conduz à formação de
câmaras e unidades específicas, dotadas de um pessoal cada vez mais amplo, do
mesmo mo.do que a chancelaria, que expede um número incessantemente cres-
cente de cartas reais. Os representantes locais do rei multiplicam-se igualmente,
tais como, na França, os bailios e os senescais que, em 1328, realizam para o rei
um "Estado das paróquias e dos lares", recenseamento bastante notável, a despei-
to de seus erros, para permitir uma estimativa da população do reino. Depois, a
função polivalente dos bailios e dos senescais pouco a pouco cede o lugar a ofi-
ciais especializados, encarregados de tarefas distintas, fiscais (para o recolhedor),
militares (para o capitão-geral) ou judiciária (para o lugar-tenente). Compreende-
se, então, a multiplicação do número de oficiais reais: na França, por exemplo,
eles são somente algumas centenas sob são Luís, mas cerca de 12 mil no fim do
século XV, dos quais cerca de 5 mil no alto serviço da administração central. Com
a quantidade, a influência política cresce, a tal ponto que os mais influentes evo-
cam serviços prestados ao rei para pretender o enobrecimento. Mas eles conti-
nuam sendo malvistos pela população que, julgando-os excessivamente numero-
sos e indevidamente enriquecidos, está pronta a acusá-los de aconselhar mal o
soberano e de ser a causa dos males do reino.
As finanças reais também evoluem. É verdade que as receitas clássicas,
aquelas do domínio real, como os direitos de pedágio ou as taxas sobre certos

~I,.J )érôme Baschet


produtos, continuam sendo as principais. Assim, o poderio financeiro inédito
dos reinos da Boêmia e da Hungria no final da Idade Média repousa sobre a
exploração de minas de seus domínios, enquanto os Reis Católicos, que forta-
lecem notavelmente as finanças ibéricas, tiram a maior parte de seus recursos
da alcabala, imposto indireto sobre a totalidade dos produtos vendidos. Mas as
necessidades das monarquias mais poderosas não param de aumentar e os
recursos permanecem gravemente insuficientes. Os soberanos podem, é verda-
de, jogar com as variações monetárias, sobretudo porque a cunhagem, por muito
tempo partilhada com numerosos ateliês senhoriais, tende a transformar-se em
monopólio real ou, ao menos, uma atividade controlada pelo rei, na Inglaterra
desde os inícios do século XIV, na França, no final deste mesmo século, mas
somente um século mais tarde em Castela. No entanto, o mais notável é o esfor-
ço para estabelecer um imposto direto. Sem dúvida, existia antes, mas conser-
vava então um caráter excepcional, comparável ao das ajudas financeiras previs-
tas pelo costume vassálico. E se o cativeiro do rei João, o Bom, em 1356, pôde
ainda constituir um argumento eficaz para cobrar o imposto, trata-se doravante
de torná-lo regular, de torná-lo admitido menos como uma ajuda devida ao rei
feudal que como uma base normal do funcionamento da monarquia. Mas a
coisa está longe de ser fácil e continua sendo impensável, ao longo dos séculos
XIV e XV, cobrar o imposto sem o consentimento das assembléias representativas
do reino. O adágio segundo o qual "o que concerne a todo mundo deve ser apro-
vado por todos" (quod omnes tangit ab omnibus tractari et approbari debet) apli-
ca-se, em primeiro lugar, ao domínio fiscal e justifica a idéia de uma consulta ao
país pelo rei, já esboçada no século XIII, mas que toma, agora, a forma de assem-
bléias cada vez mais estruturadas, como as Cortes ibéricas ou o Parlamento
inglês. Órgão de consulta logo dotado de uma faculdade legislativa, e não uma
corte de justiça como na França, este último concede ao rei, cada vez que ele
solicita, uma taxa equivalente a 1/10 ou 1/15 dos bens mobiliários. Ocorre o
mesmo, na França, com os Estados Gerais, reunidos pela p.rimeira vez em 1302
e que resultaram, de início, de uma espécie de fusão do conselho de vassalos e
dos representantes das cidades, até serem mais claramente organizados confor-
me o esquema das três ordens a partir de 1484.
Por vezes, o imposto recai sobre os "fogos" (lares). É o caso da França,
onde, entretanto - signo de fragilidade do princípio de uma fiscalidade direta
permanente-, Carlos v manda aboli-lo em seu leito de morte, em 1380, até que
ele reapareça, em 1439, sob o nome de "talha real". Alhures, especialmente nas
cidades onde a área relativamente diminuta do território favorece o empreendi-
mento fiscal, o imposto é baseado em uma estimativa dos bens mobiliários e
imobiliários, que se nomeia "estime" em Toulouse ou cadasto na Toscana. Mas

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL .:'65


as dificuldades de implantação são imensas: a estimativa dos bens é dificilmen-
te controlável e muitos conseguem minimizar a sua fortuna a ponto de ficarem
isentos de todo o pagamento. Em princípio mais fácil de ser executado, o impos-
to de repartição, pelo qual o soberano fixa o montante total a receber, deixando
a seus agentes o cuidado de reparti-lo entre as províncias e, depois, entre os
contribuintes, dá lugar a inúmeras negociatas e favorece a corrupção. Por fim,
as isenções se multiplicam, de início em favor do clero, como na Inglaterra e na
França, enquanto Carlos VII, que pára, é verdade, de consultar os Estados
Gerais a partir de 1439, cede perante a nobreza, esperando que as cidades, por
sua vez, se beneficiem de privilégios. No geral, um imposto direto talvez tenha
sido cobrado regularmente, sem que se deixe, no entanto, de crer que ele fosse
'"extraordinário" e destinado, por conseqüência, a ser eliminado, para que se vol-
tasse a uma situação considerada normal, na qual o rei "vivesse do que é seu".
De resto, sua implantação é tão difícil que seu rendimento se revela fraco e até
mesmo claramente decrescente. Resta aos príncipes o recurso ao empréstimo:
os Bardi de Florença emprestam a Eduardo 111 da Inglaterra (o que os leva à
falência); Jacques Coeur empresta a Carlos VII e os Fugger, ao imperador
Maximiliano. Mas a intervenção dos grandes banqueiros é perigosa para todos
e o rei da França favorece uma outra via, emprestando de seus próprios oficiais.
O inconveniente finalmente não é menor, pois isso torna os servidores reais ina-
movíveis k mesmo livres para escolherem seus sucessores. Põe-se em prática,
assim, o sistema de venalidade dos ofícios, que servirá de entrave ao poder real
até o fim do Antigo Regime.
No fim da Idade Média, as funções esperadas do rei não mudaram, em
absoluto, e resumem-se ainda pelos termos de justiça e paz. Decorre disso um
reforço das justiças reais, pela extensão de suas competências, pela ampliação
do recurso ao rei e, durante o século XIV, pelo desenvolvimento da prática das
cartas de remissão. Redigidas pela chancelaria real, conferem o perdão do sobe-
rano, suspendendo a sentença (quer tenha ela sido emitida por um de seus
representantes, quer por uma justiça senhorial, urbana ou eclesiástica) e resta-
belecendo, em virtude unicamente da decisão real, o bom nome do condenado
(Claude Gauvard). A busca pelo ideal de paz acaba aumentando o fosso cada
vez mais voraz da guerra, o que explica as incessantes necessidades de dinheiro
dos soberanos. Embora suas obrigações sejam reforçadas, o todo da armada feu-
dal, mesmo apoiado pelas milícias urbanas, revela-se cada vez mais insuficien-
te. O tempo é dos mercenários e das grandes companhias, até o momento em
que começam a ser constituídos exércitos reais permanentes e assalariados,
como decide Carlos VII, em 1445. Através de meios combinados, os soberanos
dos séculos XIV e XV arregimentam exércitos consideráveis: por vezes, 30 ou 40

..!.IJI }érôme Baschet


mil combatentes sob as ordens dos reis da Inglaterra e da França, ou mesmo do
duque de Borgonha (suas lutas obstinadas, no essencial, dão vantagem ao fran-
cês, que recupera os territórios continentais da Inglaterra e, depois, sob Luís XI,
a Borgonha e a Picardia, ao passo que o Maine, Anjou e a Provença entram paci-
ficamente para o domínio real; além disso, Carlos VIII esposa Ana, a herdeira do
ducado da Bretanha em 1491 ). Se se acrescenta que as novas técnicas milita-
res, como a artilharia que faz evoluir de uma guerra de cerco para uma guerra
de movimento, contribuem igualmente para aumentar os custos dos empreen-
dimentos militares, compreende-se por que as monarquias reforçadas do fim da
Idade Média são dominadas pelos imperativos militares e pelas necessidades
financeiras que deles decorrem.
Não se pode terminar sem evocar o desenvolvimento do cerimonial real no
final da Idade Média. Aos rituais reservados do palácio, ajuntar-se-á a crescen-
te amplitude alcançada pelas aparições reais: procissões, representações, deco-
rações, carruagens ornadas e festividades devem manifestar a obediência dos
súditos e celebrar a glória do soberano em visita às cidades de seu reino. Do
mesmo modo, os funerais reais são objeto de um cerimonial cada vez mais ela-
borado. Na Inglaterra, em 1327, e depois na França, em 1422, aparecem os
rituais da efígie real, associado à teoria jurídica dos "dois corpos do rei": enquan-
to o cadáver, deixado nu, permanece invisível, todas as honras são rendidas a
uma efígie portando as vestes e as insígnias do rei (Ernst Kantorowicz). Quer-
se, assim, tornar sensível a idéia segundo a qual o rei vivo é a conjunção de dois
corpos, um corpo físico mortal e um corpo político que se encarna nele, mas
permanece imortal. Poder-se-ia pensar que a insistência sobre este corpo políti-
co, fundido-se com a pessoa do soberano, devia conduzir à sua maior sacraliza-
ção. Entretanto, a ficção dos dois corpos do rei parece antes ter como objetivo
garantir a permanência do corpo político para além da morte das pessoas que o
fazem viver momentaneamente. De fato, os rituais da efígie real visam assegu-
rar a continuidade dinástica do poder real e são, em breve, associados à fórmu-
la que liga automaticamente o falecimento do rei à aclamação de seu sucessor
- "o rei está morto, viva o rei" - , gritada pela primeira vez, sem dúvida, na
morte de Carlos VIII, em 1498. Este corpo político que não morre é também
chamado - sobretudo depois de O sonho do pomar, verdadeira suma de teoria
política ( 1378)- "a Coroa", entidade diferente do rei e pessoa fictícia que sim-
boliza o reino ou, mais exatamente, o "corpo místico do reino", segundo uma
expressão que transfere ao poder laico a noção que define a Igreja. Assim, afir-
ma-se a idéia de uma entidade política abstrata e perpétua, que se separa da
pessoa física do rei, mesmo se este a encarna temporariamente. A Coroa (ou o
reino) existe, ao mesmo tempo, acima dele (essencialmente) e nele (acidental-

A CIVILIZAÇÃO fEUDAL }.(,-;


mente). A continuidade de sua existência é, assim, posta ao abrigo dos destinos
mortais dos indivíduos e do seu arbítrio (o rei não pode alienar a Coroa; ele tem
o dever de preservá-la}.
Desenvolvimento da administração, retomada do controle sobre a moeda e
a justiça, instauração de um imposto direto regular (contudo, com grandes limi-
tes quanto ao seu princípio e à sua eficácia prática}, idéia abstrata do reino e da
instituição monárquica: tudo isso significa, sem nenhuma dúvida, um aumento
da potência dos poderes monárquicos. Mas é possível, por decorrência, falar em
Estado? Não seria confundir Estado e rei e precipitar excessivamente a marcha
da história? Não seria curvar-se ao esquema historiográfico tradicional, que quer
fazer morrer o feudalismo ao mesmo tempo que a Idade Média, e que não pode
ver a renovação do Renascimento e dos Tempos Modernos sem a glória do
Estado que, em breve, será absolutista? Não se pode avançar, aqui, sem dispor
de uma definição clara de Estado e será adotada a de Max Weber, retificada por
Pierre Bourdieu, que identifica o Estado à sua capacidade de "reivindicar com
sucesso o monopólio do uso legítimo da violência física e simbólica sobre um
território determinado e sobre o conjunto da população correspondente". Ora,
os soberanos da Idade Média estão longe de atingir tal objetivo, mesmo se eles
o intentam com mais ardor do que antes. O exercício da justiça e da força mili-
tar permanece, nessa época, eminentemente partilhado. O mesmo ocorre com
todos os m~canismos do poder monárquico, já que os príncipes territoriais (por
exemplo(os duques de Barganha, de Bourbon e de Berry, no caso do reino da
França} dispõem também de sua própria chancelaria, de sua Câmara de Contas
e de seus oficiais, enfim, de uma administração cuja afirmação não é menos
marcada do que aquela do rei- o qual protesta, ainda no fim do século XV, con-
tra essa situação, atentado patente contra a sua soberania. Eles possuem suas
próprias justiças, assim como as cidades e, por longo tempo ainda, os senhorios
rurais. Quanto às competências das justiças da Igreja, premidas entre o assédio
dos oficiais reais e a resistência do clero, são objeto de um vivo debate ainda ao
longo de todo o século XV. Se o seu campo de atuação se restringe, elas não dei-
xam de opor obstáculos ao monopólio monárquico da violência legítima. A com-
petição entre as justiças reais, principescas, senhoriais, urbanas e eclesiásticas
está destinada a durar e não será resolvida, na França, antes da ordenança de
16 70. Em resumo, a relação de força entre a monarquia, a aristocracia e a Igreja
é tal que parece aventureiro fazer renascer o Estado no Ocidente, na acepção
do termo retida aqui, antes do século XVII, no melhor dos casos. Durante a Baixa
Idade Média existe um reforço dos poderes monárquicos, mas este ainda está
longe de levar à constituição dos Estados europeus. Mesmo a afirmação vee-
mente da idéia de Estado, sob a forma de uma soberania real absoluta, não pres-

..?I>~ }érôme Baschet


supõe a existência do Estado; ela apenas dá a medida dos esforços realizados
para fazê-lo advir. Mais do que uma gênese do Estado, não se deveria evocar sua
pré-história?

A Igreja, ainda

Uma apreciação correta dos poderes monárquicos, principescos e urbanos é impos-


sível se não os mesurarmos em face do poderio da Igreja. Com efeito, nenhum
Estado poderia existir se não puder submeter a Igreja aos seus próprios quadros,
o que absolutamente não é realizável enquanto esta continua sendo a instituição
dominante no Ocidente. É verdade que dificuldades não faltam e já evocamos as
desordens e os tumultos criados pelo Grande Cisma, assim como pela desvalori-
zação da autoridade pontifícia perante o concílio que lhe impõe um fim. Mas o
sucesso das teses conciliares é efêmero e o Concílio de Basiléia, em 14 31, fracas-
sa em colocá-los em prática, de modo que, passada a crise, o poder da Sé romana
encontra-se intacto. Este tende até mesmo a se reforçar, pois, desde a estada em
Avignon, a cúria pontifícia e seus órgãos de governo aumentam notavelmente sua
capacidade administrativa. Desde muito tempo, a Igreja cobra um imposto geral,
o dízimo (poderia ela, por decorrência, ser qualificada de Estado?), mas, a partir
dali, outros se juntam a ele em benefício da Sé pontifícia, que capta, em particu-
lar, o primeiro ano dos rendimentos de todos os cargos eclesiásticos. Paralelo ao
reforço da centralização que anima os poderes monárquicos, o reforço pontifício
serve, por muitos aspectos, de modelo aos primeiros e lhes aporta um apoio dire-
to, a começar pelo dos clérigos instruídos no funcionamento da máquina eclesial
e que passam para o serviço dos poderes laicos.
É verdade que o crescimento dos poderes monárquicos obriga a Igreja a
recuos e novos arranjos. As justiças eclesiásticas cedem terreno perante os ofi-
ciais reais, e se a imunidade fiscal do clero o põe ao abrigo do imposto direto, o
papa muitas vezes cede aos reis uma parte importante dos dízimos que normal-
mente lhe cabem, enquanto os Reis Católicos obtêm do clero o pagamento de
subsídios excepcionais para financiar a guerra contra Granada, assimilada a uma
cruzada. O ponto mais crucial é o da nomeação aos benefícios eclesiásticos
(sobretudo episcopais e abaciais), que o papado tinha conseguido, em grande
parte, captar, e que agora os príncipes reivindicam, seja para se assegurarem do
controle dos postos importantes, seja para poderem recompensar seus servido-
res fiéis. Desde o século XIV, na Inglaterra, um acordo tácito prevê que o papa
nomeie o candidato escolhido pelo rei, mas continue a receber as taxas que lhe
cabem. Soluções comparáveis são obtidas, aproveitando do cisma, especialmen-

A C I V I L I Z AÇÃO F EU I> A L 2(,'i


te pelo soberano húngaro. Quanto ao rei da França, ele obtém a Pragmática
Sanção 21 de Bourges (1438), que restabelece a eleição dos benefícios maiores
(em particular, o de bispo pelos cônegos); no entanto, o recurso a este princípio
tradicional no seio da Igreja esconde, de fato, a intenção do rei de impor seus
homens, o que conduz a inumeráveis conflitos e a escassos sucessos da parte do
rei. Luís XI (1461-83) termina, então, por se render à tática de conciliação uti-
lizada vantajosamente por outros soberanos e assina a Concordata de Amboise,
em 1472, pela qual o papa confere os benefícios maiores com o acordo do rei.
Em quase toda a Europa tais compromissos predominam, garantindo ao papa o
respeito de sua autoridade espiritual e ao rei, a afirmação de seu poder político,
bem como a partilha negociada dos rendimentos. Enfim, deve-se mencionar a
criação, pelos Reis Católicos, do Conselho da Suprema Inquisição (1438).
Enquanto a Inquisição é uma tarefa episcopal exercida sob a autoridade do
papa, o inquisidor-geral e os membros do conselho que o assistem são nomea-
dos pelo rei e formam um temível mecanismo administrativo e judiciário a ser-
viço das Coroas de Castela e Aragão.
No geral, a relação entre a Igreja e os poderes laicos se modifica e se fala
cada vez com mais freqüência de uma Igreja galicana ou de uma Igreja anglica-
na, expressões desconhecidas antes do fim do século XIII. Mas pode-se, por
decorrência, concluir pela constituição de verdadeiras Igrejas nacionais duran-
te a Baixa Idade Média? Pode-se duvidar, se se considera que a partilha da tute-
la e dos bertéfícios continua corrente. No mais, os quadros da cristandade, espe-
cialmente o poder material e espiritual da Sé romana, continuam a pesar muito,
enquanto sua dimensão ideológica, da qual o espírito de cruzada é uma das
expressões, orienta ainda a política das monarquias, a começar pela dos Reis
Católicos. Ao longo do século XV, não menos de sete bulas de cruzadas são pro-
mulgadas e, a cada vez, o papado conta com o engajamento de um ou outro
soberano para transformar em realidade um sonho cada vez mais evanescente.
As forças que a reafirmação do poder monárquico concentra nas mãos dos sobe-
ranos parecem, então, postas tanto a serviço dos objetivos e dos ideais da cris-
tandade como de uma repentina razão de Estado. Assim, é em uma atmosfera
messiânica, marcada pelas profecias que vêem nele um novo Carlos Magno des-
tinado a libertar Jerusalém e a reinar sobre o mundo, que Carlos VIII engaja a
Coroa da França na aventura das guerras italianas, entrando em Nápoles em
1495, revestido do manto imperial e cingido pelas Coroas de Constantinopla e
de Jerusalém. É verdade que o desenvolvimento dos poderes laicos dificulta as

27. Na tradição jurfdica latina, a pragmatica sanction refere-se a um edito que visa solucionar defi-
nitivamente uma questão importante. (N. T.)

2:-0 Jérôme Baschet


reivindicações mais incisivas da teocracia pontifícia, vigorosamente contestada
pelo Defensor pacis de Marcílio de Pádua ( 1324 ), enquanto Dante, em seu De
monarchia, afirma a existência de duas vias dotadas de uma dignidade igual,
uma visando à beatitude celeste e dependendo exclusivamente dos clérigos,
outra tendo por objeto a felicidade terrestre e que se refere ao governo laico.
Mas o reforço dos poderes monárquicos não é acompanhado de uma margina-
lização dos valores defendidos pela Igreja e se opera, ao contrário, por meio de
uma "sobrecristianização do poder temporal" (Jacques Krynen).
No mesmo momento, o edifício escolástico, monumento erigido para a gló-
ria da instituição eclesial, deve colmatar novas fissuras e termina por se parali-
sar, no século XV, na autocontemplação petrificada de sua própria tradição.
Desde o fim do século XIII, a síntese tomista é posta em dificuldades pelos fran-
ciscanos Duns Scot (1266-1308) e Guilherme de Occam (1288-1349). Este
rompe com o papa em 1328 e ganha a corte de seu inimigo, Luís da Baviera.
Sob a cobertura do nominalismo radical que assinala sua tomada de posição na
querela dos universais, Guilherme introduz importantes inovações, especial-
mente em matéria de teoria do signo e de teoria do conhecimento. Já iniciada
no século XII e irrompendo novamente então, a querela dos universais, recente-
mente revisitada por Alain de Libera, diz respeito à relação entre as palavras, os
conceitos e as coisas, e, mais precisamente, à maneira de conceber a relação
entre os seres individuais e as espécies de que eles fazem parte: como, por
exemplo, dar conta do fato de que os homens, que só existem como sendo seres
individuais, partilhem, contudo, a mesma filiação à humanidade? Os termos do
debate, inspirado pelas Categorias de Aristóteles e seu comentário por Porfírio,
no século 111, consistem em questionar se os universais (quer dizer, o que pode
ser dito de muitos, a saber, segundo a terminologia de Aristóteles, o gênero e a
espécie) possuem alguma existência real (tese dos realistas) ou se são somente
nomes ou concepções que o homem forma em seu intelecto (tese dos nomina-
listas). Que os universais só existam como conceitos formados no intelecto já
havia sido professado por Abelardo e sua escola, e era admitido igualmente por
numerosos autores tidos por realistas, tanto no século XII como no século XIII
(por exemplo, por Tomás de Aquino). Mas Occam leva ao extremo a insistência
sobre o singular: para ele, todas as coisas existentes devem ser pensadas como
singularidades absolutas: nelas não há nenhuma universalidade (nem mesmo na
natureza das almas, que Tomás tomava, ao mesmo tempo, por singular e univer-
sal). Assim, a generalidade não está nas coisas, mas nos signos que permitem
designá-las. O nominalismo de Occam enfrenta, no entanto, uma forte reação,
mesmo em Oxford, onde ele havia ensinado, e mais ainda em Paris, onde ele
é objeto de uma primeira censura, em 1339-41, e, depois, em 1474-81, sob

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL _2;"/


ordem do rei Luís XI. A vulgata realista parece, então, tornar-se a doutrina ofi-
cial da universidade, contribuindo para bloquear os esforços de regeneração que
alguns de seus membros eminentes, como o chanceler João Gerson ( 1363-
1429), parecem, contudo, desejar.
A Igreja enfrenta outras contestações cujos efeitos são mais imediatos.
Radicalizando a idéia de que não existe poder a não ser em Deus, John Wyclif
(c. 1330-84), doutor em teologia em Oxford e conselheiro do rei da Inglaterra,
chega a um questionamento profundo da instituição eclesial. T~ta-se, a seus
olhos, de fazer prevalecer a Igreja dos predestinados, iluminados pela graça,
sobre a Igreja visível, instituição imperfeita e pecadora, cujo chefe, se ele não
imita o Cristo, não passa de uma encarnação do Anticristo. Mesmo se a verda-
deira Igreja só se revelará no final dos tempos, convém, enquanto se espera,
reduzir a Igreja visível a uma instituição pobre e espiritual, despojada do poder
que a converte em uma potência diabólica. As teses de Wyclif, embora tenham
sido condenadas, mas sem pôr em perigo seu autor, circulam e exercem influên-
cia notável nos meios universitários europeus, em particular em Praga, onde,
por sua vez, Jan Hus as retoma. Também para este, a Igreja institucional é a
Igreja do diabo, inspirada pelo Anticristo, e ele convoca a Igreja dos predestina-
dos a se mobilizar contra ela, para uma missão de purificação. Excomungado,
ele vai ao Concílio de Constança para ali defender suas teses, mas é preso e
queimado em 1415, o que dá início à sublevação de seus partidários e à insur-
reição mileRarista dos taboritas da Boêmia (segunda parte, capítulo 1). Claramente,
as teses de Wyclif e o movimento de Hus, que negam a legitimidade da institui-
ção eclesial e seu poder de mediação (em particular, o dogma da transubstan-
ciação), prenunciam a Reforma luterana. O sintoma e a advertência estão longe
de ser indiferentes, pois a Reforma remeterá em causa, dessa vez com sucesso,
o conjunto dos fundamentos da instituição eclesial e subtrairá de seu controle
uma parte importante da Europa.
No próprio seio da ortodoxia romana, não se cessa de denunciar, nos sécu-
los XIV e XV, o estado precário do clero e de se apelar para uma reforma da Igreja
"em seus membros e em sua cabeça", sinal de uma preocupação em geral retóri-
ca ou instrumentalizada. Paradoxalmente, pode-se, no entanto, indagar se não é
durante esses séculos que a ação pastoral da Igreja, resultado do esforço conju-
gado do clero secular e das ordens mendicantes, mais e mais implantadas e cada
vez mais influentes, atinge sua maior eficácia. Sem dúvida, nunca antes o "ofício
de pregador" (Hervé Martin) foi praticado com tanto impacto e estrondo como
nos tempos de um Vicente Ferrier, que atrai multidões, da Lombardia até Aragão,
e pronuncia um sermão por dia entre 1399 e 1419, de um frade Ricardo, que
prende a atenção do povo parisiense durante várias semanas (1429), ou de um

'- · }érôme Baschet


Bernardino de Siena, que acrescenta à arte da oratória os recursos da represen-
tação e da imagem. Sem dúvida, nunca antes a prática da confissão foi tão escru-
pulosa, nem a devoção à eucaristia tão intensa, nem a participação às confrarias
tão valorizada. Nunca antes circularam tantos manuais de confissão ou de pre-
gação, tratados de moral e de devoção, entre os quais podemos mencionar o ABC
das gentes simples, espécie de catecismo elementar e mnemotécnica devida a
João Gerson, o chanceler da Universidade de Paris, ou as Artes de morrer, em
voga no século XV e que depois a imprensa contou entre seus primeiros best-sel-
lers. Nunca antes a Igreja, servida por uma iconografia monumental, logo subs-
tituída pela imagem de devoção impressa, que faz sua entrada nos lares mais
humildes, pareceu assegurar um enquadramento tão reticulado da sociedade, ou
pretender, com tanto sucesso, impor até o fundo das consciências os valores e as
normas definidos por ela. Em resumo, não é abusivo considerar os séculos XIV e
XV "o tempo dos cristãos exemplares" (Hervé Martin).
A Igreja do fim da Idade Média é, então, objeto de uma dinâmica contradi-
tória. De um lado, ela faz frente a uma aspiração de renovação e a contestações
radicais que, em breve, porão fim ao seu monopólio espiritual sobre o Ocidente,
ao passo que a afirmação dos poderes monárquicos corrói suas prerrogativas e
obriga a concessões. Mas, ao mesmo tempo, a cúria romana reforça sua eficácia
centralizadora e a Igreja continua a aumentar seu domínio sobre a sociedade e
seu controle sobre as almas. De resto, passado o choque das rupturas protestan-
tes - e com exceção dos territórios perdidos então - , eles até mesmo se apro-
fundarão com a Reforma católica, marcada pelas cores sombrias de um cristia-
nismo mais do que nunca obcecado pela morte, pelo diabo e pelo inferno. Assim,
se o século XIII marca, sem dúvida, uma sorte de triunfo absoluto da Igreja, seu
poder continua a crescer em seguida, em um contexto marcado por uma concor-
rência mais viva, de modo que é talvez ao longo dos séculos XV e XVI que o con-
trole da Igreja tenha sido mais profundo. Dos conflitos que enfrenta e das resis-
tências que encontra, a Igreja sabe tirar partido para reformular seu poderio,
transformar seus inimigos em potências maléficas, cujo esmagamento acentua o
seu prestígio, compensar as perdas por um aprofundamento em outros domínios
e, apesar do declínio que se fará sentir em breve, preservar a posição do clero,
que permanece, até o fim do século XVIII, a primeira ordem da sociedade.

Seria, então, bastante abusivo considerar globalmente a Baixa Idade Média


como um tempo de crise e de retração. Sem ser ausentes, as cores outonais de
Johan Huizinga não lhe convêm senão parcialmente ou, ao menos, não são sufi-

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL _>;-3


cientes para defini-la. Os elementos de crise são inegáveis, mas são, sem dúvi-
da, menos profundos e mais limitados no tempo do que geralmente se diz.
Trata-se de um período eminentemente contrastado, durante o qual graves difi-
culdades não impedem a manutenção de uma forte dinâmica. Temos, então,
dificuldade em ver como fundamentar a idéia de uma "crise geral do sistema
feudal" (Rodney Hilton). Em tal esquema historiográfico, a crise deveria gerar
um novo sistema, característico dos Tempos Modernos e marcado pela afirma-
ção do Estado e do capitalismo. Seria preciso concluir, a partir disso, que a
Conquista e a colonização do Novo Mundo seriam o efeito da dinâmica desses
novos tempos, separados da Idade Média pela grande ruptura do Renascimento.
No entanto, a perspectiva muda claramente se se reduz o alcance da crise da
Baixa Idade Média, nuançando-a e considerando que nada permite ver nela a
crise final do feudalismo. Como já se viu, a sociedade da Baixa Idade Média
continua caracterizada pelas mesmas estruturas fundamentais de dois séculos
antes. Encontram-se nela os mesmos grupos dominantes principais e os mes-
mos grupos dominados; a Igreja continua sendo a instituição hegemônica,
enquanto prosseguem o desenvolvimento do mundo urbano e o reforço dos
poderes monárquicos. O balanço estabelecido por Robert Fossier é inapelável:
"Na histórV! da sociedade, nenhuma novidade fundamental separa a Baixa
Idade Média dos séculos XII ou XIII"; o que a caracteriza é somente a "acelera-
ção de movimentos esboçados muito mais cedo". Existe, então, uma continui-
dade entre o desenvolvimento da Idade Média Central e a dinâmica reencon-
trada do fim da Idade Média, de modo que o elã que conduz à Conquista das
Américas é fundamentalmente o mesmo que aquele que vemos em marcha
desde o século XI. A colonização ultra-atlântica não é o resultado de um mundo
novo, nascido sobre o húmus em que se decompõe uma Idade Média agonizan-
te. Para além das transformações, das crises e dos obstáculos, é a sociedade feu-
dal, prosseguindo a trajetória observada desde a aurora do segundo milênio, que
empurra a Europa para o mar.

A EUROPA MEDIEVAL FINCA O PÉ NA AMÉRICA

Se as análises precedentes são admitidas, será necessário concluir que é o


Ocidente medieval que finca o pé na América, com a chegada dos primeiros
exploradores e, depois, à medida que se consolida a colonização. Uma Europa
dominada ainda por longo tempo pela lógica feudal, com seus atores principais,
a Igreja, a monarquia e a aristocracia (os mercadores vindo em posição subordi-

274 }érâme Baschet


nada), e não uma Europa saída transfigurada da crise do fim da Idade Média e
agora portadora das luzes resplandecentes do Renascimento e do humanismo,
da racionalidade e da modernidade, tudo isso suscitado pelo desenvolvimento
do jovem, mas já conquistador, capitalismo comercial!

Feudalismo na América Latina: um debate

Qualificar sem maior consideração as colônias americanas como feudais equiva-


leria a ignorar o debate suscitado por esta questão nos anos 1950-70, não sem
interferência de importantes implicações práticas. Com efeito, a idéia de uma
imposição colonial de tipo feudal, com efeitos prolongados até o presente, condu-
zia os ortodoxos marxistas a sustentar que a América Latina não havia atingido o
estágio do desenvolvimento capitalista e que conviria, então, para remediar esse
atraso, promover uma aliança com os partidos burgueses progressistas. Ao contrá-
rio, aqueles que afirmavam que a América Latina tinha sido integrada ao sistema
capitalista mundial desde o século XVI denunciavam a inutilidade das estratégias
de união com as burguesias nacionais e proclamavam a atualidade das revoluções
proletárias e camponesas (Sérgio Bagú, Luis Vitale). Os termos desse debate foram
esclarecidos e superados por Ernesto Laclau, que rejeitou ambas as teses, demons-
trando os erros de cada uma delas, assim como seus fundamentos comuns. É ver-
dade que André Gunder Frank criticou, a justo título, a hipótese de uma América
Latina ainda feudal, que repousa, de fato, sobre os pressupostos dos liberais do
século XIX, e lançou as bases da teoria da dependência. Mas nem por isso se jus-
tificava concluir que o continente havia entrado na era capitalista desde o século
XVI. Isto seria, sublinha Ernesto Laclau, confundir capital e capitalismo e adotar
uma perspectiva que privilegia a circulação, contrária à obra de Marx, da qual uma
das implicações decisivas, enquanto crítica da economia política, é justamente
deslocar o centro da análise da esfera da circulação para a da produção. Em resu-
mo, é possível reconhecer os méritos de uma teoria da dependência, que enfatiza
o laço necessário entre o desenvolvimento das zonas centrais do sistema e a manu-
tenção do arcaísmo em sua periferia, sem por isso afirmar que a América Latina
estava integrada ao capitalismo mundial desde o século XVI. E é igualmente pos-
sível admitir que a América colonial permanecia pré-capitalista sem por isso fazer
o jogo das ortodoxias stalinistas: de fato, situar a integração do continente latino-
americano no mundo capitalista no decorrer do século XIX permite dissociar a aná-
lise da época colonial e as implicações do presente.
Nos anos 1970, o debate desvinculou-se, em parte, de suas conseqüências
políticas e numerosas obras esforçaram-se para obter uma caracterização global

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL ]7)


das realidades coloniais americanas. Enrique Semo (1973) analisa a existência
de uma formação socioeconômica na qual "despotismo tributário, feudalismo e
capitalismo embrionário estão presentes simultaneamente", precisando que
este capitalismo embrionário consiste de elementos isolados que "se inserem
nos poros da sociedade pré-capitalista" colonial. Sublinhando, na seqüência de
Ruggiero Romano ( 1972), que a Conquista instaura relações de produção feu-
dais e que a atividade de um grupo de mercadores não significa a existência do
capitalismo, Marcello Carmagnani ( 1974) conclui pelo caráter feudal da América
colonial, e prolonga a descrição até meados do século XX, na base de uma defi-
nição bastante vaga de feudalismo. Em 1973 e 1980, Ciro Cardoso propõe uma
discussão crítica aprofundada e insiste na necessidade de analisar as especifici-
dades dos diferentes modos de produção coloniais, irredutíveis à lista canônica
do marxismo dogmático. Na mesma época, Ángel Palerm, reivindicando uma
perspectiva marxista não menos contrária à teoria unilinear da evolução social e
aos estéreis esquemas ortodoxos, rejeita a noção de modo de produção colonial
e se esforça para analisar a integração dos "segmentos coloniais" no seio de um
sistema mundial do qual ele postula o caráter capitalista. Mais tarde, a partir
dos anos 1980, mesmo se nenhum consenso foi obtido, o debate parece estar
totalmente~dormecido. Isso não é nada surpreendente levando em conta a
transformação do contexto intelectual e o descrédito que afeta, desde então,
toda reflexão de teor minimamente marxista. Em uma obra publicada em 1999
(Para una historia de América), dois autores já citados, Marcello Carmagnani e
Ruggiero Romano, esboçam um panorama socioeconômico da América colonial,
abstendo-se de toda caracterização global. Ora, sem conferir aos conceitos de
feudalismo e capitalismo a virtude mágica de tudo explicar e rejeitando catego-
ricamente uma visão caricatura] e unilinear da história, reduzida à classificação
da sinistra vulgata stalinista, gostaria de sugerir que o abandono de um debate
inacabado nos priva de uma perspectiva útil para captar, em sua globalidade e
na longa duração, os fenômenos históricos de grande alcance.
O problema não concerne somente à América Latina, mas ao período
moderno em seu conjunto. No caso da própria Europa ou da economia-mundo
da qual ela é o centro, pode-se, com efeito, fazer prevalecer uma visão feudal ou
um domínio capitalista, a menos que se evoque uma fase de transição do feu-
dalismo ao capitalismo, fórmula ecumênica que pretenderia pôr todos de acor-
do, mas que parece, sobretudo, mascarar sérias divergências entre os autores
que recorreram a ela. Tal discussão ultrapassa amplamente o quadro do presen-
te livro, de modo que me limitarei a mencionar alguns elementos indispensáveis
aqui. Remeter-se-á, em particular, à sólida crítica à qual Ciro Cardoso submete
o conceito de capitalismo comercial e, especialmente, seu uso por Immanuel

.!-I }érôme Baschet


Wallerstein, cuja obra contribuiu para consolidar a idéia de uma economia-
mundo dominada, desde o século XVI, por uma lógica capitalista. Junto com
outros autores, Ciro Cardoso salienta que, se se pode falar então de um capital
investido nas atividades comerciais, isso não significa absolutamente a existên-
cia do capitalismo, sistema que toma forma apenas quando o capital passa a
controlar a esfera da produção. Para Marx, o capital usurário e o capital comer-
cial são "formas antediluvianas do capital, que precedem de longe o modo de
produção capitalista", no qual a própria produção é dominada pelo capital e fun-
dada sobre o trabalho livre e a "separação radical entre o produtor e os meios de
produção" ("as condições históricas de existência deste [o capital, aqui, sinôni-
mo de capitalismo] não são realizadas, nem de longe, pela circulação de merca-
dorias e de dinheiro. O capital aparece onde o proprietário dos meios de produ-
ção e de existência encontra no mercado o trabalhador livre como vendedor de
sua força de trabalho"). O capitalismo é uma organização da produção, e não
da circulação; ele supõe que as regras do mercado livre se imponham inclusive
na esfera da produção, de modo que a terra e a força de trabalho sejam consi-
deradas pura e simplesmente mercadorias. A existência do comércio, mesmo o
de longa distância, não poderia, então, constituir o seu critério, sem o que seria
necessário admitir, como nota ironicamente Marx, que o capitalismo existe, ao
menos, desde os fenícios. Para Eric Wolf, os comerciantes medievais não são os
ancestrais diretos do capitalismo e a passagem da riqueza mercantil para o capi-
tal não é um processo linear e quantitativo. Por conseqüência, a advertência de
Pierre Vilar permanece válida: "Não se pode empregar sem precaução a palavra
'burguesia', e a palavra 'capitalismo' deve ser evitada desde que não se trate da
sociedade moderna (isto é, contemporânea), na qual a produção maciça de mer-
cadorias repousa sobre a exploração do trabalho assalariado do não-proprietário
pelos proprietários dos meios de produção". Do mesmo modo, segundo
Ruggiero Romano, é bastante imprudente falar de capitalismo antes do início da
Revolução Industrial, o que nos reconduz aos fundamentos da idéia de uma
longa Idade Média.
Uma fórmula feliz de Eric Hobsbawm sintetiza bem a perspectiva adotada
aqui. Segundo o historiador inglês, antes do século XVII- que ele considera o
momento crucial da crise do feudalismo e de transição para o capitalismo - ,
todos os traços da história européia que "tiveram um pequeno gosto de revolu-
ção 'burguesa' ou 'industrial'" não são nada mais do "que o condimento de um
prato essencialmente medieval ou feudal". Esta impecável metáfora sublinha a
necessidade de uma análise global, em termos de sistema. Ela convida a fazer
a crítica das concepções duais da época moderna (de um lado, uma economia
de auto-subsistência, de outro, uma economia de troca já capitalista), mas tam-

A ClVILlZAÇÃO FEUDAL .2-:-


bém das teorias mais sofisticadas que raciocinam igualmente em termos de ati-
vidades suscetíveis de ser separadas umas das outras, isolando assim uma esfe-
ra dita capitalista ao lado do mundo da auto-subsistência e de uma economia de
mercado elementar (Fernand Braudel). Com efeito, seria enganoso atribuir a
uma esfera parcial de atividade seu verdadeiro significado sem integrá-la à lógi-
ca global do sistema social de que faz parte. As aparentes semelhanças entre
elementos isolados, inscritos, na verdade, em sistemas diferentes, constituem
um dos fatores de erro mais sério a que o historiadcr está exposto ("a distinção
real das etapas da evolução histórica exprime-se de maneira muito menos clara
e unívoca nas mudanças às quais são submetidos os elementos parciais isolados
do que nas mudanças de sua função no processo de conjunto da história, de
suas relações ao conjunto da sociedade", diz Georg Lukács). É aqui que o con-
ceito de modo de produção pode ser útil, em razão de sua notável virtude de
englobar. Sendo entendido minimamente em seu significado mais amplo -
e não no sentido restrito de formas concretas de organização produtiva, even-
tualmente combináveis no seio de uma mesma formação socioeconômica - ,
ele não designa nada mais do que a lógica global de um dado sistema social, que
dá sentido a seus diferentes componentes, determinando as relações que os
unem (como_sugere Ángel Palerm, deve-se conceber o conceito de modo de
produção como um instrumento analítico eminentemente abstrato, como um
modelo interpretativo dotado de forte virtude heurística, mas que não poderia
pretender descrever o conjunto dos traços de uma sociedade determinada: é por
isso que a identificação das características fundamentais de um modo de pro-
dução, por mais decisiva que seja, não dispensa absolutamente da análise deta-
lhada de suas configurações particulares e de suas dinâmicas específicas). Para
voltar à expressão de Eric Hobsbawm, convém, então - sem negar a presença
de ingredientes suscetíveis de assumir, na seqüência, um novo valor-, reco-
nhecer que, pelo menos até o século XVII, "o predomínio geral da estrutura feu-
dal da sociedade" consegue se manter e impedir que esses ingredientes contri-
buam para a formação de uma nouvelle cuisine capitalista ...

Uma definição do feudalismo?

De tudo o que precede, pode-se deduzir que a noção de capitalismo não é mais
aplicável à América colonial do que à Europa da época. Mas nada indica também
que a noção de feudalismo lhe convenha melhor. Não poderíamos chegar even-
tualmente a tal conclusão sem analisar em que medida as características funda-
mentais da sociedade feudal do Ocidente reproduzem-se no mundo colonial.

...'-; ,' Jérôme Baschet


Não é inútil, então, propor, na ausência de uma definição stricto sensu do feuda-
lismo, uma síntese dos principais elementos analisados nos capítulos anteriores.
A sociedade medieval é uma sociedade complexa, cuja estrutura é um
entrelaçamento de relações múltiplas. Pode-se identificar nelas algumas articu-
lações principais (senhores/produtores dependentes, clérigos/laicos, nobres/não-
nobres), outras cujo papel é importante sem ser tão fundamental (complemen-
taridades e tensões cidade/campo; cumplicidade-concorrência entre o clero e a
aristocracia, entre a monarquia e a aristocracia, entre a Igreja e a monarquia),
outras, enfim, que, por serem em geral muito visíveis, são claramente submeti-
das às precedentes (estruturação vassálica e lutas internas no seio da aristocra-
cia; alianças e afrontamentos entre os diferentes poderes políticos; unidade e
diferenciação social das comunidades aldeãs; identidades cívicas e lutas entre
os grupos urbanos; conflitos e divergências no interior de Igreja - alto/baixo
clero; regulares/seculares; ordens tradicionais/ordens novas; franciscanos/domi-
nicanos; tendências institucionais/inclinações evangélicas; radicais/moderados
etc.). Devemos, aqui, nos limitar ao essencial, que explica menos a proliferação
de eventos ou a extensão das experiências (muitas vezes situadas na ordem das
tensões secundárias) do que as estruturas mais profundas e as evoluções
menos imediatamente perceptíveis. Ainda que os laços vassálicos tenham um
papel na disseminação do poder de comando até mesmo no interior do senho-
rio, eles definem apenas as relações no seio da classe dominante, ou seja, I%
ou 2% da população. Em revanche, a relação de dominium e a posição domi-
nante da Igreja são os dois elementos fundamentais que permitem definir o
feudalismo como modo de produção e, indissociavelmente, de reprodução
social (precise-se que recuso a dualidade infra-estrutura/superestrutura, na
qual não se poderia fazer caber o papel da Igreja medieval sem contorções inú-
teis e, sobretudo, porque o conceito de modo de produção, no sentido já indi-
cado, tem a vantagem de convidar a captar uma lógica social tão global quan-
to possível, algo para o qual uma divisão em andares sobrepostos só poderia
criar obstáculos).
O dominium (relação entre senhores e produtores dependentes) assegura a
organização do essencial da produção no seio de unidades fortemente integradas
e largamente autônomas (os senhorios). Nesse quadro, o dominium é caracteri-
zado pelo fato de que os dominantes "exercem simultaneamente o poder sobre
os homens e o poder sobre as terras" (Alain Guerreau). Acrescentemos que é
através de sua articulação com essas entidades amplamente autônomas, como
são as comunidades aldeãs, que a dominação dos senhores pode se afirmar,
mesmo que a intervenção direta destes últimos na atividade produtiva seja muito
limitada. É comum analisar essa dominação por uma convergência da proprieda-

A CIVILIZAÇÃO FEUIJAL .!.7"'1


de da terra (poder econômico) e da autoridade pública (poder político) nas mãos
dos mesmos homens, mas esses conceitos perdem toda pertinência desde que se
opera a fusão que caracteriza o dominium. Pela mesma razão, deve-se superar a
definição segundo a qual o feudalismo seria fundado sobre a extração da renda
graças ao emprego da famosa "coerção extra-econômica" mencionada por Marx
(por exemplo, em Ernesto Laclau: "O excedente econômico é produzido pela
força de trabalho, submetida a uma coerção extra-econômica"). Em tal contexto,
a noção de economia não tem sentido e é, então, igualmente impossível isolar
uma esfera especificamente econômica ou um domínio extra-econômico (além
disso, a noção de coerção extra-econômica arrisca ser assimilada ao uso da força,
o que não é um elemento determinante nem discriminante para caracterizar as
realidades feudais). O que é claro é que a extorsão do excedente produtivo não
é, então, fundada sobre a propriedade do trabalhador (escravidão), nem sobre a
venda livre da força de trabalho (salariado), nem também sobre a imposição de
um dever em relação a um poder de Estado exterior às comunidades produtoras
(tributo). No feudalismo, a extorsão do excedente produtivo opera-se como efei-
to da ''fusão do poder sobre as terras e do poder sobre os homens" através de um
conjunto de obrigagões impostas localmente e a despeito do fato de que os pro-
dutores dispõem praticamente do uso dos meios de produção que lhes são neces-
sários (não se dirá, entretanto, que "a propriedade dos meios de produção perma-
nece nas mãos do produtor direto", como fez Ernesto Laclau, pois, como
sublinhou Edward Thompson, "o conceito central do feudalismo não é o de pro-
priedade, mas o de obrigações recíprocas"). O que caracteriza a dependência feu-
dal é ela ser indissoluvelmente econômica, jurídica, política e social, de modo
que não pode ser chamada nem de econômica; nem de jurídica, nem de políti-
ca, nem de social. A dependência feudal apresenta, assim, um caráter simulta-
neamente local (daí sua dimensão impessoal) e "total" (garantia de uma eficácia
bem atestada), ao mesmo tempo que se mostra relativamente equilibrada (uma
vez que concede aos produtores o uso parcial dos meios de produção e permite
a afirmação comunitária das aldeias e sua diferenciação interna). Enfim, a fusão
do poder sobre os homens e do poder sobre as terras que caracteriza o dominium
tem por conseqüência e por condição a tendência de fixação dos homens ao solo,
em unidades de residência e de produção fortemente integradas, no interior das
quais se exerce o essencial das relações de exploração e de dominação impostas
tanto pela aristocracia como pela Igreja.
A Igreja é a instituição dominante da sociedade feudal, seu pivô e sua princi-
pal força motriz. Não apenas o clero constitui a ordem dominante do feudalismo,
dispondo de uma riqueza material que só tem paralelo em seu poder espiritual,
mas, sobretudo, a Igreja, como instituição consubstanciai à cristandade, define o

.?.'lO ]érôme Baschet


essencial das estruturas necessárias à organização e à reprodução da sociedade, o
que quer dizer também à sua projeção em direção ao seu ideal, que é a salvação
individual e a realização perfeita da Igreja celeste. Será sublinhado, aqui, apenas 0
papel que a Igreja tem na definição das estruturas espaciais da Europa medieval
(segunda parte, capítulo 11). Com efeito, o estabelecimento da rede paroquial cons-
titui um elemento determinante do processo de encelulamento, e a reorganização
das aldeias em tomo das igrejas e dos cemitérios tem papel fundamental na fixa-
ção dos homens ao solo, indispensável ao bom funcionamento da relação de domi-
nium. Nesse sentido, as unidades de residência e de produção que formam as
comunidades aldeãs (e sobre as quais se implanta a relação senhorial) são também,
ao menos em tendência, aquelas em que se exercem, através da mediação clerical,
a relação entre os homens e as forças que regem o universo, o que contribui para o
caráter fortemente integrado que se acaba de reconhecer nelas. A presença dos
cemitérios no centro das cidades e das aldeias é tão importante que pode ser con-
siderada um sintoma, ou até mesmo um elemento marcante específico da socieda-
de feudal. Não há, portanto, nada de surpreendente em constatar que é a partir da
segunda metade do século XVIII que os cemitérios são expulsos para o exterior das
zonas habitadas, para onde a Antiguidade os havia igualmente relegado. O feuda-
lismo termina quando os mortos, que a Igreja havia posto no centro do espaço
social, são reconduzidos para fora das cidades e das aldeias.
Serão acrescentadas duas observações complementares. Ao contrário da
visão tradicional, que vê no feudalismo apenas imobilidade e estagnação, ele é
um sistema dinâmico. Além dos elementos de crescimento e de expansão que
o caracterizam, sobretudo em sua fase de apogeu (séculos XI a XIII), ele é capaz
de produzir, em seu próprio interior, importantes modificações. É, então, da lógi-
ca do feudalismo suscitar sua própria transformação, sem por isso se negar a si
mesmo, de modo que não se deveria ficar surpreso em observá-lo sob traços dife-
rentes segundo as fases de sua longa trajetória. Um dos aspectos importantes da
dinâmica feudal, sensível desde o fim do século XI, é o desenvolvimento das cida-
des e das atividades artesanais e comerciais. Isso não é um fato exterior à lógica
do feudalismo. Pelo contrário, a crescente monetarização e o desenvolvimento
dos mercados urbanos são suscitados pela própria dinâmica dos senhorios, de
modo que o feudalismo e o crescimento do comércio e das cidades caminham
juntos. De resto, segundo Eric Wolf, uma característica de numerosos sistemas
pré-capitalistas é a de serem associados a um desenvolvimento da riqueza mer-
cantil, ao mesmo tempo que delimitam estritamente o poderio e a influência dos
comerciantes. Assim, o sistema feudal admite a existência de um grupo social
encarregado das trocas e até mesmo tolera os valores que lhe são próprios, na
medida em que estes permanecem submetidos à lógica eclesial e aos ideais aris-

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL .!S/


tocráticos. Seja qual for o poderio que este grupo social chega a adquirir pontual
e localmente, ele deve continuar em uma posição subordinada, garantida pelo
esquema das três ordens, e deve, sobretudo, ser privado "de todo impacto sobre a
organização social e, particularmente, sobre os modos de dominação e de extração
do excedente produtivo" (Alain Guerreau). Durante toda a (longa) Idade Média, o
desenvolvimento do comércio e do artesanato mantém-se no quadro do sistema
feudal, ao passo que a verdadeira ruptura deve ser situada no fim do século XVIII,
quando da proclamação do livre mercado, supostamente auto-regulado e tenden-
cialmente homogêneo, pela economia política.
A partir do século XII, a dinâmica do sistema feudal conduz igualmente a
uma afirmação dos poderes monárquicos, principescos (no caso da Alemanha,
especialmente) e urbanos (sobretudo na Itália). Vê-se aí, com freqüência, uma
evolução contrária à lógica feudal, sobretudo se se considera que esse processo
conduz, desde o século XIV, à formação dos Estados modernos e a seu triunfo
sobre um feudalismo definido em termos jurídico-políticos. Entretanto, a repar-
tição do Estado, enquanto instituição que dispõe do monopólio da violência legí-
tima sobre um dado território, não se produz antes do século XVII, no melhor dos
casos. Até lá, 'O reforço dos poderes monárquicos não provoca ruptura dos qua-
dros do sistema'feudal. Admitiremos, então, que uma característica do feudalis-
mo diz respeito à existência de tensão entre monarquia e aristocracia, marcada
por uma mistura de conivência e de concorrência e suscetível de equilibrar diver-
samente suas relações e suas respectivas prerrogativas, sem, contudo, conduzir
à verdadeira alternativa (a nobreza ou a monarquia), de onde sairá, finalmente, o
Estado. Desenvolvimento dos poderes monárquicos, mas sem Estado; desenvol-
vimento das trocas, mas sem mercado: tais são os dois aspectos mais visíveis das
transformações induzidas pela dinâmica do sistema feudal, mas sem atingir o
ponto de ruptura que obrigaria a uma recomposição completa da estrutura social.

Esboço de comparação entre a Europa feudal


e a América colonial

Pode-se, com base nas características do feudalismo assim resumidas, esboçar


uma comparação com as realidades coloniais americanas. Esta só poderia ser
muito sumária e aproximativa (sobretudo porque o autor se aventura longe de
seu habitual universo de conhecimento). Em todo caso, essa tentativa não pre-
tende dar conta da complexidade do mundo colonial; sua única ambição é a de
depreender alguns traços maciços e de propor uma hipótese geral, cuja vanta-
gem eventual seria a de ajudar a aproximar mais eficazmente essas realidades.

2 .~ ~ }érôme Baschet
A relação de dominium, quer dizer, a fusão do poder sobre as terras e sobre
os homens, foi reproduzida no mundo colonial? A resposta é claramente negati-
va. É verdade que, no essencial, os conquistadores eram, fossem nobres ou não,
animados por um ideal aristocrático característico da hidalguia ibérica (Ruggiero
Romano). Eles fizeram tudo que lhes era possível para reproduzir, na América, o
sistema feudal europeu. Berna) Díaz dei Castillo fornece uma prova particular-
mente clara disso quando se refere à Reconquista e às terras então concedidas
pelos reis hispânicos para afirmar que os conquistadores deveriam ser recompen-
sados da mesma maneira, quer dizer, pela distribuição de feudos: "[ ... ] e também
quando se conquistou Granada[ ... ] os reis deram terras e senhorios àqueles que
os ajudaram nas guerras e batalhas. Lembrei tudo isso a fim de que, se se olhar
os bons e numerosos serviços que prestamos ao rei nosso senhor e a toda a cris-
tandade, e se os puser em uma balança, pesada cada coisa segundo seu justo
valor, vê-se que somos dignos e merecemos ser recompensados como os cavalei-
ros de que falei acima". Entretanto, o que eles recebem é a encomienda, pela qual
a Coroa põe sob seu controle a população indígena de um dado território e lhes
atribui o direito de exigir dela um tributo em produtos e em trabalho.
O caráter feudal ou não da encomienda foi amplamente discutido. De um
lado, pode-se afirmar que se trata de uma instituição de tipo feudal (no sentido
estrito do termo), pois a encomienda é um bem concedido por uma autoridade
superior como recompensa a um serviço, essencialmente militar (Solorzano
Pereira, em sua Polttica indiana, de 164 7, admite a validade da comparação
entre encomienda e feudo e estabelece uma aproximação com os feudos ditos
"irregulares"). De resto, é típico da lógica feudal que ela- ao mesmo tempo
que a Coroa espanhola, instruída pela experiência desastrosa da colonização das
Caraíbas, tenta, quando da conquista do continente, evitar a implantação da
encomienda - seja finalmente obrigada a ceder, não tendo outro meio para
recompensar os conquistadores e para se esforçar em manter sua fidelidade,
indispensável ao controle das terras conquistadas. Igualmente característico da
dialética feudal é o esforço da Coroa para limitar as prerrogativas· dos encomen-
deros (especialmente pela Leyes Nuevas de lndias, de 1542) e, em particular,
para frear a transmissão hereditária da encomienda, enquanto seus beneficiários
lutam para anular juridicamente essas limitações ou para contorná-las na práti-
ca. Os historiadores continuam a debater o impacto da encomienda e a duração
de sua existência - seu papel decai manifestamente a partir do fim do século
XVI - , mas é claro que ela se baseia em uma tensão entre duas lógicas, carac-
terística do feudo: uma, favorável a quem recebe o bem; outra, favorável a quem
o concede. É verdade que a Coroa espanhola dispõe, então, de força suficiente
para bloquear de maneira significativa, embora não sem dificuldade, a deriva

A CIVILI:I:AÇAO FEUI>AL ..!K3


feudal da encomienda e do mundo colonial (como o prova o descrédito que atin-
ge os principais atores da Conquista, a começar por Colombo e Cortés). Mas,
apesar de tudo, ela permanece excessivamente fraca para escapar à lógica da
concessão feudal e evitar esgotar suas forças na luta contra as tendências cen-
trífugas induzidas por esta.
Entretanto, como demonstrou Silvio Zavala, a encomienda não é baseada na
propriedade territorial, mas num direito tributário sobre a população indígena.
Isso gera uma forte diferença em relação ao sistema feudal. Com efeito, aos
encomenderos é reconhecido um poder sobre os homens postos sob sua prote-
ção: sua "missão" é de cuidar deles (do mesmo modo que o senhor feudal justi-
fica sua dominação pela proteção que oferece aos dominados), de assegurar o
respeito à ordem e a difusão da fé, e são autorizados a se valer desse "serviço
prestado" para impor um tributo, de início principalmente sob a forma de traba-
lho forçado, mas também em produtos ou em dinheiro. Em revanche, os enco-
menderos não conseguem se apropriar do poder sobre as terras: até o fim do
período colonial, é apesar de todos os ataques, as comunidades indígenas con-
servam, no essencial, sua posse, sob a proteção da Coroa, interessada no rece-
bimento do tributo real que supõe a preservação mínima das populações e de
seus meios de produção. Vê-se, então, que os encomenderos não são capazes
de reproduzir a fusão do poder sobre os homens e do poder sobre as terras, que
constitui o núcleo do dominium feudal. O fato de que muitas vezes denominem
a si próprios como "seiwres de vassalos"' (estes últimos sendo os indígenas, con-
siderados vassalos da Coroa) indica, ao mesmo tempo, sua pretensão a reprodu-
zir uma dominação com ares feudais e senhoriais e os limites desta, uma vez que
ela se exerce exclusivamente sobre os homens. Como reconhece um encomen-
dero em 1578, "por aqui, quem não tem índios não tem nada".
Assim, a encomienda, pela qual se impõe o poder dos recém-chegados
sobre as populações, reproduz apenas parcialmente a dominação feudal, o que
significa dizer que ela se distingue fundamentalmente desta última. Seria
necessário, entretanto, evocar aqui as outras formas de trabalho forçado, que
constituem, sem dúvida, uma característica profunda e durável da dominação
colonial (Marcello Carmagnani). Assim, quando a obrigação de trabalho devido
aos encomenderos é questionada pela Coroa, no decorrer do século XVI, o siste-
ma do repartimiento toma o seu lugar. Cabe, então, aos oficiais reais (corregido-
res, jueces repartidores) repartir as jornadas de trabalho devidas pelos indígenas
em benefício dos próprios encomenderos, mas também dos exploradores de
minas ou de terras, ou, ainda, para outras necessidades. Os representantes
da Coroa aparecem, assim, como a garantia da extorsão e da repartição do tra-
balho forçado indígena, para grande benefício das elites espanholas. Deve-se

.:'X~ jérôme Baschet


mencionar, além disso, a importância crescente da hacienda (ou finca), que apa-
rece no século XVII e desenvolve-se lentamente até adquirir papel dominante
durante o século XIX. Ao contrário da encomienda, a hacienda funda-se em uma
apropriação direta das terras, mas não inclui, a princípio, um poder sobre os
homens. Na hacienda, o trabalho é teoricamente livre e remunerado por salário,
mas ocorre nela um processo de vinculação dos trabalhadores (peones acasilla-
dos), que dispõem de lotes em troca de prestações em trabalho, enquanto dife-
rentes práticas, tais como as compras forçadas nos armazéns do patrão (tiendas
de raya), fontes de um endividamento hereditário, impõem um laço forçado ao
solo (a hacienda é qualificada de "instituição medieval" por Ruggiero Romano e
Marcello Carmagnani). Finalmente, é na hacienda, mais do que na encomienda,
que se reconstitui de maneira sub-reptícia, em particular nas zonas mais perifé-
ricas, onde ela sobrevive por vezes até a segunda metade do século XX, uma
forma de poder exercido ao mesmo tempo sobre as terras e sobre os homens,
que apresenta notáveis afinidades com a dominação feudal, mesmo se ela é
exercida então em um contexto global totalmente diferente. Jamais plenamente
realizada, a fusão do dominium feudal aparece, entretanto, como a tentação
sempre ativa dos mundos colonizados, como um riacho longínquo, tão obsessi-
vo quanto inacessível.
No que diz respeito ao papel da Igreja, a comparação é claramente mais
cômoda. Fazer a lista de similitudes entre a Igreja colonial e a Igreja medieval
significaria descrever novamente esta última, quase em sua totalidade: riqueza
material e imensidão de terras possuídas, estruturação interna do clero, papel
das ordens mendicantes, doutrina e rituais essenciais, formas de evangelização,
pregação e confissão como instrumentos de controle social, importância do
culto dos santos e das imagens ... Convém, é verdade, dar espaço às particulari-
dades e às criações originais de uma época marcada pela retomada da Contra-
Reforma e suas expressões barrocas e, mais tarde, pela afirmação de uma espe-
cificidade mestiça e crioula. Além disso, a Igreja colonial confrontou-se com
sociedades e com cosmovisões indígenas originais (sendo que um dos aspectos
mais resistentes à aculturação é a visão da pessoa humana, o que não foi o caso
do paganismo antigo). E, se a destruição dos lugares e a interdição dos ritos pré-
hispânicos, assim como a imposição das concepções ocidentais, constituem os
aspectos mais maciços, não se pode ignorar a existência de formas variadas de
interações desiguais entre o cristianismo e as culturas indígenas (esta expressão
será preferível a sincretismo). A substituição dos lugares de culto e das divinda-
des indígenas por santuários cristãos e figuras de Cristo, da Virgem ou dos san-
tos é, na verdade, um fenômeno propício a uma rápida evangelização, mas
mesmo assim ambíguo, pois ele favorece, ao mesmo tempo, a persistência de

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL .!S5


crenças antigas sob a roupagem cristã, como alguns prelados não deixaram de
notar, desde o século XVI (assim, Sahagún qualificou de "invenção satânica" a
assimilação de Tonantzin e da Virgem, no monte Tepeyac). A reinterpretação
dos elementos cristãos em função das crenças indígenas é em geral imperceptí-
vel, mas conduz, por vezes, a mal-entendidos abertos, então denunciados pelos
clérigos (por exemplo, quando eles proíbem a representação dos santos com
seus símbolos animais, que os indígenas interpretam como imagens de um
duplo anímico). Enfim, se o quadro geral dos cultos pré-hispânicos logo foi
desarticulado, elementos parciais são mantidos de maneira oculta (sacrifícios de
animais, "ídolos" escondidos atrás dos altares, uso de grutas sagradas, como as
grutas e montanhas). A Igreja colonial procedeu a adaptações particulares, inte-
grando em seus rituais certos aspectos da cultura indígena, admitindo algumas
de suas formas de expressão (os quadros de plumas, por exemplo) ou adaptan-
do espaços arquitetônicos inéditos (como as capelas abertas). No entanto, se
eles produzem resultados parcialmente originais, tais procedimentos são, desde
há muito tempo, cq,méterísticos da Igreja. As estratégias de luta contra o paga-
nismo e a idolatria (demonização, destruição, substituição) são mais que mile-
nares, enquanto as técnicas de aculturação mais eficazes se aperfeiçoaram ao
longo da Idade Média (culto dos santos e das imagens, modelos de pregação
e de confissão, mnemotécnica destinada à catequese), do mesmo modo que o
cuidado em emboscar as "superstições", logo assimiladas à feitiçaria e ao pacto
com o diabo, no Antigo ou no Novo Mundo.
No geral, mesmo se a incorporação rápida de um continente inteiro à Igreja
cristã é um fenômeno inédito, as adaptações e as criações originais inscrevem-
se em um quadro que é, no essencial, o da reprodução de uma continuidade.
O papel exercido pela Igreja no mundo colonial é, então, amplamente compa-
rável àquele que pudemos observar na Europa medieval. Segundo Antonio
Rubial, "de todos os setores sociais, a Igreja era o que possuía a maior coesão,
reforçada por uma forte presença econômica e política. Isenção tributária, tri-
bunais especiais e toda uma série de privilégios que vinham da Idade Média
faziam dos cleros os membros mais eminentes da sociedade. Seu controle sobre
a doutrina, a liturgia, a moral e, através desta, da arte, da atividade de impres-
são, da educação e da caridade conferia à Igreja uma excepcional influência
social e cultural". A esse respeito, a posição do clero colonial pode parecer mais
dominante ainda que no Ocidente, especialmente se se considera que a imuni-
dade eclesiástica se mantém intacta ao longo do período, ou ainda o fato de que
a Igreja é, de longe, a principal instituição fornecedora de crédito e que ela exer-
ce, assim, papel-chave nas atividades produtivas e comerciais do mundo colo-
nial. Felipe Castro pode, então, concluir com toda a clareza: "A Igreja foi o ver-

~SI }érâme Baschet


dadeiro pilar do regime colonial [... ] Ela contribuiu de maneira decisiva para
criar, difundir e reproduzir as normas e os valores que permitiram manter sua
estabilidade social e política durante cerca de três séculos. Não é sem razão que
o bispo Abad y Queipo, porta-voz dos interesses da Igreja no fim do período, exi-
gia para o clero o título de 'conquistador e garantia das conquistas"'.
Não se poderia dizer de forma melhor que, no mundo colonial, a Igreja é a
instituição dominante e estruturante, conforme uma das duas características
principais do feudalismo. Uma prova estrondosa disso é dada no fim do século
XVIII: quando os Bourbon da Espanha, em seu esforço para instaurar em suas
colônias um verdadeiro Estado moderno, atacam os fundamentos da dominação
eclesial, eles não fazem nada mais do que precipitar a sublevação independen-
tista e o desabamento do sistema colonial (Nancy Farriss). A supressão da imu-
nidade eclesiástica, iniciada por Carlos III e completada em 1812, assim como
o confisco dos bens da Igreja em benefício da Coroa, em 1804, explicam, em
grande parte, a participação ativa de numerosos clérigos na luta de independên-
cia e o fato de que vários dentre eles tiveram papel decisivo na mobilização
popular e sua transformação em uma sublevação armada contra o sistema colo-
nial. Uma testemunha inglesa da época pôde descrever este movimento como
uma "insurreição do clero", da qual uma das reivindicações mais ardentes era o
restabelecimento da imunidade eclesiástica. Finalmente, a independência só é
adquirida, em 1821, graças ao apoio unânime do clero, que obtém a restaura-
ção de seus privilégios e parece, então, mais forte do que nunca. Assim, das
reformas dos Bourbon, que quebraram uma colusão entre a Coroa e a Igreja
estritamente consubstanciai à ordem feudo-colonial, resultou que a gestação do
México independente encontrou-se, paradoxalmente, imbricada com a defesa
dos interesses da instituição que era o pilar do sistema anterior; ela só pôde,
então, significar uma ruptura parcial com este. De fato, durante a primeira
metade do século XIX, a Igreja conserva o essencial de seu poder e as tentativas
para limitar sua influência tiveram apenas efeitos limitados; os líderes liberais,
como José María Mora, viram nela o cimento indispensável da unidade nacio-
nal. Foi somente com as leis de Reforma, especialmente a Lei Juárez, de 1855,
que finalmente extingue a imunidade eclesiástica, e com a Constituição de
1857 que tem lugar o combate decisivo contra a Igreja (ao mesmo tempo que
intervém a fase decisiva de transição para o capitalismo, situada por Ciro Cardoso
nos anos 1854-80). Para os reformadores é claro que a construção do Estado é
impossível enquanto existe uma instituição mais poderosa que ele, e Melchor
Ocampo, por exemplo, explica que as leis de Reforma não têm outra finalidade
senão restituir ao Estado o direito de governar a sociedade. Isso indica suficien-
temente o papel central da Igreja na estrutura social anterior e a sobrevivência

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 11-17


desta até o terceiro quartel do século XIX. É também a confirmação do princípio
segundo o qual não pode existir verdadeiro Estado enquanto a Igreja ocupa uma
posição dominante. Sua construção supõe uma luta radical para solapar os fun-
damentos do poder da instituição eclesial.
Para retornar aos inícios do período colonial, a Igreja teve um papel decisi-
vo para instaurar, junto com a Coroa, uma ordem colonial mais estável que o
caos destruidor para o qual tendiam as exaltações desmesuradas dos conquista-
dores e dos primeiros encomenderos. Deve-se insistir, aqui, sobre sua contribui-
ção para o estabelecimento dos quadros espaciais do mundo colonial. Não
somente ela procede, então, a uma "sacralização do espaço" (Antonio Rubial),
quer dizer, à formação de um conjunto de grandes santuários destinados a estru-
turar o espaço e a apagar a geografia sagrada pré-hispânica, mas, sobretudo, ela
assegura uma reorganização geral do habitat que concentra as populações indí-
genas e as desloca dos principais lugares ocupados anteriormente, não sem
desestruturar as entidades territoriais pré-hispânicas (reducciones y congregacio-
nes de puehlos)._Jt>der-se-ia ver nesse processo, terminado nos anos 1550 na
província de Guatemala, sob a férula direta dos clérigos e conduzida de manei-
ra mais lenta e menos radical na Nova Espanha, uma sorte de caricatura do
encelulamento da Europa dos séculos XI a XIII. Há, bem entendido, importantes
diferenças, ligadas especialmente ao fato de que o fenômeno não é associado
aqui ao estabelecimento dos senhorios e que a rede paroquial, instaurada simul-
taneamente, é muito mais fluida. Ao menos, sente-se aí a experiência secular
da Igreja que, por ter contribuído de modo decisivo à estruturação espacial da
sociedade feudal, sabe muito bem - por instinto histórico, poder-se-ia dizer-
que uma dominação de tipo feudal deve imperativamente ser fundada sobre
uma organização específica do hábitat e do espaço.
De resto, as novas aldeias indígenas, com sua praça central onde se ergue
a igreja, não deixam de fazer eco ao modelo ocidental, já que no centro das cida-
des e das aldeias coloniais não encontramos somente a igreja, mas também o
cemitério. Esta inscrição dos mortos no coração do espaço dos vivos, conforme
a lógica do feudalismo, constitui uma transformação radical dos costumes pré-
hispânicos, a tal ponto que alguns missionários notaram que os indígenas "não
queriam entrar na igreja porque ela era a morada dos mortos" (Eisa Malvido).
Mesmo se este dispositivo espacial pôde conhecer ritmos de difusão variáveis e
limites, ele se tornou tão característico da sociedade colonial que seu questio-
namento, no fim do período, esbarra em temíveis resistências e só pôde avançar
com extrema lentidão. Conforme o processo engajado na Europa a partir de
meados do século XVIII, o decreto emitido em 1787 por Carlos III ordena a cria-
ção e o uso (salvo derrogação) de cemitérios situados exclusivamente fora dos

..! ·" ·' ]érôme Baschet


espaços habitados. No entanto, não mais nas colônias do que na própria
Espanha (onde o primeiro cemitério extra muros madrileno é criado em 1809 e
onde a maior parte das igrejas paroquiais conserva uma função funerária até
meados do século XIX), a medida não tem efeito imediato. Na capital da Nova
Espanha, a preocupação sanitária que move os partidários esclarecidos dos
novos costumes funerários conduz, é verdade, à criação de um primeiro cemi-
tério extra muros pelo arcebispo Nunez de Haro, desde 1786, mas ele não pode-
ria pretender dar conta de uma ampla demanda e seu uso permanece limitado.
De fato, embora o recurso aos cemitérios eclesiásticos extra muros seja desen-
volvido pouco a pouco, é ao longo de toda a primeira metade do século XIX que
as autoridades devem levar a cabo, a golpes de interdições tão reiteradas quan-
to ineficazes, a batalha contra a prática das sepulturas nas igrejas ou nos cemi-
térios das paróquias e dos conventos situados no interior do núcleo urbano.
Além disso, a despeito de vários relatórios sobre o estado sanitário catastrófico
dos cemitérios, e apesar da aprovação de diversos projetos, as autoridades da
cidade do México permaneceram incapazes, durante todo esse período, de criar
um cemitério geral municipal extra muros, que teria contrariado em muito os
interesses do clero. A fortiori, deveria ocorrer o mesmo nas zonas menos cen-
trais do mundo colonial, onde se observa uma cronologia pelo menos tão disten-
dida (por exemplo, em Saltilho, onde o primeiro cemitério extra muros data de
1825, o que só faz iniciar o longo processo de abandono dos cemitérios utiliza-
dos antigamente, ou ainda em San Cristóbal de Las Casas, onde os cemitérios
situados em torno da catedral e dos conventos principais só são transferidos
para fora da cidade nos anos 1850-60). Assim, a luta para abolir o sistema fune-
rário feudo-colonial durará mais de meio século, e é somente em meados do
século XIX que ela poderá ser considerada finalizada, quando chegam conjunta-
mente à sua conclusão o processo de exclusão dos mortos para fora dos espaços
habitados e a transferência do controle dos lugares de sepulturas e das obriga-
ções funerárias do clero para o Estado (a lei de criação do registro civil data de
1857 e a de secularização dos cemitérios, de 1861). No geral, se a história das
práticas funerárias e dos cemitérios pode ser considerada um elemento marcan-
te do feudalismo, como se estabeleceu por hipótese, seria possível dispor, aqui,
de uma confirmação do caráter feudal da sociedade colonial e da permanência
desse traço até os anos da Reforma, que, no México, podem ser considerados
os da transição ao capitalismo.
Acrescentar-se-á que a organização espacial das aldeias indígenas (pueblos
de indios), junto com as regras que lhe são impostas (especialmente, um gover-
no local decalcado no modelo castelhano) e com os elementos que conferem a
cada uma delas uma identidade específica (em primeiro lugar, o culto de seu

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL _','\'1


santo padroeiro), consegue impor um traço fundamental da lógica feudal que os
encomenderos permanecem incapazes de obter: a fixação tendencial dos homens
em seu lugar (sua realização prática jamais é absoluta, mas é significativo obser-
var que a obrigação tributária é indefectivelmente atrelada ao pueblo de origem,
mesmo em caso de mudança do lugar de residência). Não se pode, é verdade,
atribuir todo o mérito disso à Igreja, na medida que as sociedades mesoameri-
canas eram já sociedades de agricultores sedentários, dotadas de uma organiza-
ção espacial estável e fortemente articulada (em revanche, nas zonas áridas
americanas, onde os indígenas eram nômades, a encomienda não pode se implan-
tar e a própria Igreja só consegue com grande dificuldade e tardiamente estabilizar
as populações). No entanto, seja qual for o suporte das experiências anteriores à
Conquista, é incontestavelmente a Igreja que se encarregou da reestruturação
espacial dos territórios e populações e que pôde impor uma fixação tendencial
dos homens a seu lugar, conforme a lógica feudal.
Falta, enfim, considerar duas características secundárias do feudalismo.
A primeira diz_x'espeito ao fato de que o equilíbrio próprio à tensão entre monar-
quia e dominantes laicos é fortemente modificado ao longo dos séculos, mas sem
por isso romper com a lógica feudal. No que diz respeito às colônias hispânicas,
é preciso sublinhar a fraqueza estrutural da nobreza: a alta nobreza de títulos é
quase inexistente ali até o século XVIII (mesmo assim, ela soma, na Nova
Espanha, apenas uma centena de famílias), enquanto os hidalgos e os encomen-
deros, cuja situação se degrada a partir do século XVII, com freqüência não têm
nem a origem nem os meios materiais que correspondem a seu desejo de distin-
ção. Entretanto, a Coroa consegue apenas dificilmente tirar partido dessa situa-
ção, em geral impondo suas leis e regulamentos somente parcialmente e ao fim
de longos períodos de conflito e de negociação. A natureza feudal da contradição
entre monarquia e elite laica aparece mais claramente ainda se considerarmos
que, para garantir uma relação de força que lhe seja favorável e, especialmente,
para frear uma verdadeira deriva senhorial, a Coroa espanhola deve essencial-
mente apoiar-se na Igreja (de onde o seu apoio, até certo ponto, a Las Casas, por
exemplo). Este traço duplo- fraqueza relativa da nobreza e força da Igreja, favo-
recendo a Coroa - parece esclarecer o fato de que, no regime colonial, a fusão
característica do dominium não ocorre e que o laço dos homens com o solo seja
assegurado, em primeiro lugar, pela ação organizadora da Igreja. Ao mesmo
tempo, deve-se concluir, seguindo Felipe Castro, pela "virtual inexistência do
aparelho de Estado" na Nova Espanha, uma vez que suas características princi-
pais são a ausência de toda a verdadeira força militar e a corrupção da burocra-
cia, que deixa a aplicação das decisões reais nas mãos de indivíduos movidos por
poderosos interesses pessoais (em primeiro lugar, os múltiplos mecanismos de

.2'10 jérôme Baschet


fraude que se enxertam na cobrança de imposto e permitem um enriquecimen-
to considerável dos funcionários reais). Não se pode, é verdade, ignorar que 0
equilíbrio das forças se modifica ao longo dos três séculos do período colonial.
Se, a partir dos anos 1620, a crise de uma parte da Europa e as dificuldades da
monarquia espanhola afrouxam o controle sobre as colônias, favorecendo parti-
cularmente a formação, muitas vezes ilegal, das haciendas, constata-se, a partir
de meados do século XVIII, e principalmente com as reformas do reinado de
Carlos III, uma clara retomada do controle. Burocracia real mais eficaz e mais
bem controlada, pressão fiscal maior e exploração colonial sistemática: tudo indi-
ca a vontade de instaurar um verdadeiro poder de Estado. Mas esse esforço, que
perturba o equilíbrio instaurado desde a Conquista e incomoda, ao mesmo
tempo, a Igreja, os proprietários de haciendas e as comunidades indígenas, ape-
nas precipita a destruição da ordem colonial. Parece, assim, claramente que esta
supunha um poder monárquico bastante maduro para drenar para si o tributo e
evitar uma nova deriva feudal, mas cuja aliança necessária.com a Igreja ia de par
com a ausência de um verdadeiro Estado.
No que diz respeito à segunda característica, o comércio atlântico e a explo-
ração dos recursos minerais e agrícolas do mundo colonial têm um papel cada
vez mais notável. Do mesmo modo, as oficinas (obrajes), especialmente têxteis,
que exploram uma mão-de-obra em grande parte cativa (originada de uma con-
denação judiciária ou de um endividamento crescente), florescem ao longo do
século XVI e no início do século XVII, e os esforços das autoridades para submetê-
las a regulamentações corporativas progridem dificilmente. Entretanto, em 1632,
a decisão de proibir a exportação de têxteis da Nova Espanha para o Peru, a fim
de proteger os produtos castelhanos, é o primeiro de uma série de rudes golpes
que provocam seu declínio (até sua ruína total, quando sofrem a concorrência de
uma produção verdadeiramente capitalista, no caso inglesa, no início do século
XIX). As atividades artesanais e comerciais não escapam, então, às regulamenta-
ções dos ofícios e ao predomínio dos interesses metropolitanos, e isso até no
grande comércio, monopolizado pelo Consulado de Mercadores da Cidade do
México, que se opõe firmemente ao desenvolvimento do artesanato local e con-
segue, em particular, eliminar a produção de seda na Nova Espanha. É verdade
que, a partir dos anos 1620-30, o desenvolvimento do comércio de contrabando
esvazia o significado do monopólio comercial que a Espanha pretendia manter
sobre suas colônias. Ao contrário, a retomada de controle da segunda metade do
século XVIII se traduz pela reafirmação do controle real, especialmente com a
imposição do monopólio sobre a produção de tabaco e a ordem de fechar as ofi-
cinas têxteis, finalmente aplicada no extremo fim do século, após uma longa fase
de tolerância. Quanto ao setor mineiro, que se encontra no coração da importân-

A C lVI LIZAÇÃO FEUDAL ..''J f


cia adquirida pela Nova Espanha a partir das descobertas de meados do século
XVI (as minas de prata de Zacatecas, em 1548) e cujo novo desenvolvimento no
século XVIII é vigorosamente sustentado pela Coroa, quis-se com freqüência ver
nele "o princípio dominante da economia colonial" (Ángel Palerm). Mas sua
parte nos lucros da exploração colonial precisa ser ponderada e só é possível lhe
atribuir, finalmente, efeitos limitados de impulso (Ruggiero Romano). Enfim,
quer se trate de exploração mineira, das haciendas ou das atividades comerciais,
de resto muitas vezes associadas umas às outras, os sucessos mais significativos
desembocam com freqüência na procura de um título nobiliárquico, o que lem-
bra que os valores dominantes não deixaram de ser aqueles da ordem feudal.
É preciso, enfim, prestar atenção ao repartimiento de mercadorias (distinto
do repartimiento do trabalho), o qual, como mostrou um estudo exemplar de
Rodolfo Pastor, constituía o "eixo do sistema comercial e financeiro da colônia",
desde o fim do século XVI até seu questionamento ao longo do século xvm e sua
eliminação pelas reformas dos Bourbon. Nesse sistema, os oficiais da Coroa obri-
gam os indígenás a lhes comprar certas mercadorias, cujo montante devem pagar
posteriormente, através de uma venda obrigatória dos produtos de seu trabalho.
Essa integração forçada dos indígenas em um jogo de trocas fortemente desfavo-
rável é evidentemente fonte de grandes lucros para os oficiais, que fixam a seu
critério os preços de venda e compra dos produtos. Ora, através de uma comple-
xa cadeia de intermediações (incluindo especialmente as compras anteriores à
repartição das mercadorias e, depois, os circuitos de venda de produtos recebi-
dos), é quase todo o comércio de Nova Espanha que, de uma maneira ou de
outra, está articulado ao repartimiento. Além do mais, geralmente é um comer-
ciante do Consulado da Cidade do México que fornece ao oficial real o dinhei-
ro necessário à compra de seu posto e que, depois, paga à Coroa o tributo anual
que corresponde à sua jurisdição, em troca do que ele recebe, a fim de vendê-la,
uma parte dos produtos obtidos graças ao repartimiento. Quanto à Coroa, infor-
mada desses abusos, ela tolera uma prática que, apesar da corrupção, lhe asse-
gura uma entrada regular do tributo e permite vender mais caro os ofícios reais.
Assim, nesse sistema fortemente integrado, a Coroa, os oficiais reais corrompi-
dos e os comerciantes concorrem conjuntamente à extorsão do excedente produ-
tivo indígena pelo viés de uma troca imposta, que se sobrepõe à obrigação tribu-
tária e ao trabalho forçado. A atividade dos mercadores da colônia é, então,
estreitamente dependente do funcionamento do poder monárquico e da coerção
política ilegítima exercida pelos seus agentes; ela se desenrola em um quadro do
qual se pode dizer, no mínimo, que não deveria ser qualificado de livre mercado.

~'lê }érôme Baschet


Um feudalismo tardio e dependente?

Comparando a sociedade feudal européia e o mundo colonial mesoamericano,


observa-se a presença de um número suficiente de características comuns para
considerar pertinente aplicar ao segundo o conceito de feudalismo. Mas são
constatadas também diferenças suficientemente importantes para acrescentar
que seria ilegítimo defini-lo apenas por esse termo. Além disso, Ciro Cardoso
sublinhou que, se é indispensável propor uma análise global que leve em conta
o conjunto das relações de produção e, em conseqüência, o papel determinan-
te do laço entre a metrópole e suas colônias, convém também observar que as
realidades coloniais, animadas por dinâmicas internas próprias, não são a repro-
dução das estruturas ocidentais. Propondo definir o sistema colonial como uma
forma de feudalismo tardio e dependente (ou, para retomar um termo de Ángel
Palerm, como um "segmento" dependente do modo de produção feudal tardio),
espera-se fazer justiça a esta dupla necessidade de reconhecer, ao mesmo
tempo, o caráter determinante do laço com a metrópole e as especificidades da
organização colonial.
Na expressão proposta, "feudalismo" sublinha o laço com a metrópole e a
reprodução tendencial das características essenciais da longa Idade Média euro-
péia. "Tardio" indica que o sistema que se implanta no Novo Mundo correspon-
de à última fase desta ("o imperialismo espanhol" sendo o "estágio supremo do
feudalismo", segundo as palavras de Pierre Vilar). E, se a época da Conquista e
o século XVI, em seu conjunto, conservam um sabor inegavelmente medieval
(a despeito da Reforma, que subtrai uma parte da Europa do monopólio da
Igreja, fenômeno em parte compensado pela expansão ultra-atlântica e pelo
aprofundamento tridentino do controle eclesial), os séculos XVII e xvm são mar-
cados por uma crise que afeta uma ampla parte da Europa e pelo acúmulo de
transformações de grande alcance, cujas repercussões se fazem sentir no Novo
Mundo. Trata-se aqui, então, de um feudalismo ainda suficientemente podero-
so para bloquear toda evolução em direção a um outro sistema, quer dizer, ainda
dominante, mas já na defensiva, até mesmo em agonia, empregando as forças
que lhe restam para evitar que sua própria dinâmica se volte contra ele. No caso
do mundo colonial, esse caráter tardio manifesta-se especialmente pela impos-
sibilidade, para os conquistadores, de realizar plenamente seu sonho de senho-
rio e pela instauração de um equilíbrio entre dominantes laicos e monarquia,
globalmente favorável a esta última.
A noção de feudalismo dependente decalca a de capitalismo dependente
(ela faz igualmente eco à sugestão de Ciro Cardoso, que convida, para com-
preender as realidades coloniais, a elaborar a hipótese da existência de "modos

A CIVILli:AÇÃO FEUDAL ..!'13


de produção dependentes"). Trata-se de compreender as particularidades que
diferenciam zonas centrais (dominantes) e zonas periféricas (dominadas) como
componentes, em mesmo grau, de um sistema integrado. É assim que a noção
de capitalismo dependente tem o mérito de pôr em evidência os processos pelos
quais o desenvolvimento do centro produz o subdesenvolvimento da periferia.
Ela também faz aparecer que o sistema capitalista se funda, na periferia, sobre
a manutenção de formas pré-capitalistas de exploração, quer dizer, sobre diver-
sas modalidades de trabalho não-livre, tais como as que perduram no interior
das haciendas e fincas, inclusive quando estas têm por objetivo a comercializa-
ção de produtos destinados ao mercado mundial. De modo comparável, nas for-
mas dependentes do feudalismo, a relação de dominium característica do cen-
tro não chega a existir (não mais do que a afirmação da posse camponesa
familiar), pois prevalece uma síntese com as formas de exploração anteriores.
Assim, na Nova Espanha e na província da Guatemala, a Coroa contentou-se,
de início, em reorientar em seu benefício a dominação tributária pré-hispânica,
e é esta esco}ha que provoca as principais diferenças com o sistema feudal euro-
peu, mesmÓ se, além do século XVI, a importância relativa do tributo declina em
benefício de outras formas de apropriação do trabalho indígena (em particular,
o repartimiento de trabalho e de mercadorias).
Assim, as periferias dependentes, tanto feudais como capitalistas, caracteri-
zam-se pela possibilidade de recorrer a formas de exploração diferentes daquelas
que são praticadas nas zonas centrais. Geralmente, trata-se das formas mais fero-
zes ou mais abertamente injustas (escravidão, trabalho forçado, repartimiento,
vinculação ao solo nas haciendas), mas também das mais fáceis de ser implanta-
das (tributo). Nos dois casos, a solução de melhor relação benefícios/dificulda-
des é escolhida pelos senhores do centro que, poder-se-ia dizer prosaicamente,
estando longe de casa, estão prontos a fazer fogo com toda lenha, desde que a
lógica dominante do sistema global não seja posta em causa. Evidentemente,
convém que essas formas de exploração específicas permaneçam submetidas aos
interesses do centro e, por decorrência, à lógica que aí prevalece. No capitalis-
mo dependente, impõe-se uma lógica de exportação de matérias-primas, destina-
da a favorecer a industrialização do centro, muitas vezes ao preço da desindus-
trialização das periferias; isso perdura até o momento em que a dominação do
capital financeiro, concentrado pelas potências centrais, suscita, ao contrário,
um deslocamento das atividades industriais para as zonas periféricas. No feuda-
lismo dependente, observa-se igualmente a exploração dos recursos naturais das
colônias e sua transferência maciça para o centro (ouro e prata, açúcar, tabaco,
algodão e plantas para tintura). Mas eles não são destinados essencialmente a ali-
mentar as atividades produtivas da metrópole, pois esta permanece dominada

~'!~ Jérôme Baschet


por uma lógica feudal. ~ Coroa espanhola preocupa-se, antes de tudo, em utili-
zar os rendimentos das Indias para cobrir suas consideráveis despesas militares e
suntuárias (e, em se tratando da exaltação de uma monarquia que se quer como
campeã do catolicismo, a Igreja tem aí igualmente a sua parte). É bem conheci-
do que as riquezas do Novo Mundo- com exceção das que se materializam na
arquitetura e nas obras de arte - atravessam a Península Ibérica com destino a
Gênova e, sobretudo, à Europa do Norte, sem suscitar na primeira um verdadei-
ro desenvolvimento produtivo. Isso indica claramente o domínio de uma lógica
feudal, na qual acumulação material é subentendida por uma finalidade social e
política (aquisição de uma posição privilegiada, para as elites coloniais, e exalta-
ção do poder monárquico) e não propriamente econômica (preocupação com a
produção e com a acumulação de capital).
Que vantagens podemos tirar da noção de feudalismo tardio e dependen-
te? Trata-se, como dissemos, de levar em conta as especificidades da realidade
colonial, marcada por uma situação de dependência e uma posição periférica
que permitem a possibilidade de formas de organização e de exploração especí-
ficas e diversificadas, integrando esses traços singulares em um sistema em que
prevalece a lógica do centro. A expressão proposta reivindica uma virtude unifi-
cadora que parece ausente nas análises que descrevem o sistema colonial como
uma combinação de vários modos de produção e que, assim fazendo, arriscam
perder de vista a lógica dominante que engloba e articula as formas de ativida-
de e de exploração que coexistem em seu seio. Além disso, a terminologia suge-
rida parece fornecer uma caracterização mais positiva do que aquela à qual
chega Ciro Cardoso que, em seu cuidado em delimitar os modos de produção
coloniais, se limita, finalmente, a qualificá-los de dependentes e pré-capitalis-
tas, o que permanece vago. É verdade que a abordagem de Ciro Cardoso tem a
vantagem de revelar a diversidade dos sistemas coloniais americanos, principal-
mente de suas duas grandes variantes. Assim, nas zonas fracamente povoadas
no momento da Conquista e propícias ao desenvolvimento das culturas tropi-
cais, formam-se sociedades afro-americanas fundadas essencialmente sobre o
trabalho dos escravos. Nas zonas em que os ocidentais encontram populações
densas, sedentárias e integradas em organizações sociopolíticas estruturadas
(Mesoamérica e Andes), o sistema colonial opta pela exploração da mão-de-obra
indígena e, em primeiro lugar, pela retomada do sistema tributário. O que se
chama aqui de feudalismo tardio e dependente é, então, suscetível de recobrir
formas muito diferentes, que a análise deve, evidentemente, considerar com
atenção. Quanto a isso, reconhecer-se-á que a expressão proposta é insuficien-
te para caracterizar as diferentes configurações observáveis no Novo Mundo ao
longo dos três séculos da colonização. Ela apenas traça um quadro geral, que

A CIVILIZAÇAO fEUDAL 2'15


convém precisar segundo as condições locais, nas quais se exerce a relação de
dependência conducente a uma articulação dominante com a escravidão ou
com o tributo (e, um pouco mais tarde, com o repartimiento).

CONCLUSÃO: ALÉM DA NOMENCLATURA,


RELAÇÕES BOAS PARA PENSAR

Evidentemente, o importante não é determinar qual etiqueta colar nas realida-


des coloniais americanas. Reduzida a uma simples operação de nomenclatura,
o empreendimento seria derrisório, uma vez que arriscaria relembrar a desastro-
sa dogmática stalinista que pretendia forçar toda a história universal a se dobrar
ao esquema da sucessão inelutável dos cinco modos de produção canônicos. Só
se poderia, então, reconhecer alguma utilidade à noção de feudalismo tardio e
dependente sft ela nos ajudasse a melhor identificar a lógica fundamental que
serve de base à organização e à evolução do mundo colonial e se, longe de criar
obstáculo à identificação atenta das realidades sociais complexas e diversifica-
das que aí se manifestam, ela contribua a lhes dar um sentido. Sugerirei, então,
alguns benefícios possíveis da noção proposta. Em primeiro lugar, falar de feu-
dalismo tardio e dependente convida a reafirmar (ou a confirmar) o lugar cen-
tral ocupado pela Igreja nas sociedades coloniais. Longe de ser redutível a um
aspecto superestrutura! ou "religioso", a instituição eclesial assume, na organi-
zação e na reprodução da totalidade social, um papel de pivô, tão determinante
no mundo colonial como na Europa medieval e moderna. Em segundo lugar, a
conjunção de uma situação de dependência e da dominação feudal explica que
a imensa transferência de riquezas da América para a Europa atravessa a
Península Ibérica sem provocar ali transformações estruturais importantes.
Além disso, os dois traços postos em evidência- tardio e dependente -pare-
cem convergir para dar conta das principais características do sistema colonial
na área mesoamericana, quer dizer, a não realização da fusão característica do
dominium, uma fixação ao solo menos estrita e o recurso inicial à imposição tri-
butária. Com efeito, a situação periférica autoriza a preferir formas de explora-
ção da mão-de-obra localmente já experimentadas, enquanto a evolução do sis-
tema feudal, em sua fase tardia, confere à monarquia uma maior capacidade
de resistência diante das pretensões dos dominantes laicos, mas sem que por
isso ela disponha de um verdadeiro aparelho de Estado (do que decorre a auto-
nomização dos interesses dos agentes reais e o papel central adquirido pelo
repartimiento).

:''!f }érôme Baschet


Enfim, na medida em que a noção de feudalismo tardio e dependente pros-.
creve toda referência, mesmo parcial, ao capitalismo, ela lembra que se trata,
aqui, de mundos cuja lógica é totalmente estranha à nossa, a despeito das apa-
rentes similitudes nas quais poderia se apoiar uma análise despreocupada com
o sentido que cada totalidade social confere aos elementos que a constituem.
É verdade que, como parece de bom-tom desde o adormecimento do debate
evocado acima, se poderia renunciar a toda caracterização global das realidades
históricas, tanto medievais como coloniais. Mas isso seria arriscar reforçar o
senso comum, que se satisfaz com uma percepção fragmentada e com as ilusões
que ela favorece. Mais do que reproduzir o esquema de uma época de transi-
ção, já total ou parcialmente marcada pelo desenvolvimento do capitalismo, e
na qual seria fácil projetar concepções que pertencem às evidências contempo-
râneas, tais como mercado, propriedade, trabalho, religião e muitas outras, a
perspectiva sugerida aqui pretende excluir, por princípio, toda impressão de
familiaridade com um universo que, na verdade, é separado de nós pela fantás-
tica barreira levantada entre o mundo capitalista e as sociedades pré-industriais.
A noção que se propõe pretende, então, antes de tudo, um distanciamento, tal-
vez excessivamente brutal; ela é também um convite a aprofundar o esforço de
compreensão histórica, valorizando as dificuldades do desenraizamento de si
mesmo, condição prévia indispensável a toda abordagem de um universo radi-
calmente diferente, bem mais distante de nós do que parece.
A apresentação da sociedade medieval e de sua dinâmica, realizada nesta
primeira parte, nos conduziu até as paragens americanas. É preciso, entretan-
to, retornar agora ao nosso terreno inicial, pois, até aqui, apenas desenhamos o
esqueleto dessa sociedade. Falta ainda muito, pelo menos as carnes e as vísce-
ras, sem as quais o esqueleto não poderia nem se sustentar nem se animar.
É a esta tarefa que é preciso consagrar nossa segunda parte.

A CIVILIZAÇÃO fEUDAL :!_t)-


SEGUNDA PARTE

ESTRUTURAS FUNDAMENTAIS
DA SOCIEDADE MEDIEVAL
ÜS QUADROS TEMPORAIS
DA CRISTANDADE

O TEMPO E o ESPAÇO CONSTITUEM duas dimensões fundamentais de toda exis-


tência humana e de toda organização social. E seria enganoso pensar que se
trata de dados naturais, anistóricos. É verdade que existe um tempo astronômi-
co e um espaço natural, independentes do homem. Mas o tempo- assim como
o espaço - é também um fato social. O tempo é aprendido, mesmo se, uma
vez aprendido, ele pareça ser do domínio da evidência (Norbert Élias). É por
isso que, se o tempo é a própria matéria da história, convém igualmente fazer
dele um dos objetos da pesquisa histórica a fim de desnaturalizá-lo e de reparar,
por trás das falsas evidências, as normas sociais aprendidas.
Para melhor captar o caráter socialmente construído das representações do
tempo, não é inútil confrontar, mesmo que sumariamente, nossas próprias con-
cepções e as da Idade Média. Hoje, o tempo que aprendemos a ler nos relógios
é um tempo unificado e dividido em unidades precisas, mensurável até em suas
mais ínfimas frações (apesar dos limites encontrados pela metrologia contempo-
rânea) e coordenado mundialmente graças ao bem- ou mal- chamado "tempo
universal". Submetido à "tirania" dos relógios e à obsessão de saber que horas
são, de que fala Norbert Élias, o homem contemporâneo é um homem apressa-
do e estressado, cuja vida se parece com uma corrida contra o relógio. O tempo de
hoje é um tempo cada vez mais rápido, ao qual se impõe uma exigência de ren-
tabilidade incessantemente acentuada. Esta lógica manifestà-se de mil maneiras
pela ditadura dos tempos breves e de ritmos sincópicos, pelo ideal de imediatis-
mo e de instantaneidade, assim como pela denegação do tempo que passa e pela
subseqüente proscrição do envelhecimento, que dominam a esfera da comuni-
cação. Um eterno presente impõe-se, feito de instantâneos efêmeros que cinti-
lam com o prestígio de uma novidade ilusória, mas que apenas substituem, sem-
pre mais rapidamente, o mesmo pelo mesmo. Assim, a lógica da rentabilidade

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL i!J/


econômica e as formas cada vez mais exigentes que ela recobre inscrevem-se
impiedosamente nos nervos atormentados dos indivíduos. Busca de ganho de
tempo, maximização do tempo disponível e redução da duração de cada opera-
ção, fluxos tensos e rotatividade acelerada dos estoques, rapidez dos movimentos
de capitais e lucros-relâmpago da especulação; as leis exacerbadas da comercia-
lização lutam com afinco contra o parâmetro temporal. Elas competem com o
tempo para incessantemente reduzi-lo ainda mais e triunfar sobre ele.
Tal é o tempo hoje, dominante e conquistador (mesmo se subsistem, em
diversos lugares do planeta, os traços de uma temporalidade mais tradicional).
Ora, é uma realidade completamente inversa à nossa que a Idade Média convi-
da a captar, pois esta ignora o tempo unificado acelerado e sincópico do muntlo
moderno. No entanto, mais do que supor uma "grande indiferença em relação ao
tempo", que Marc Bloch afirmava ser característica dos homens da Idade Média,
tentar-se-á reconhecer, com Jacques Le Goff, que estes tinham uma concepção
diferente da;(ossa e se interessavam pelo tempo de um modo diferente do nosso.

UNIDADE E DIVERSIDADE
DOS TEMPOS SOCIAIS

As medidas do tempo vivido

Como indica Jacques Le Goff, "as medidas do tempo e do espaço são um instru-
mento de dominação social da maior importância. Aquele que as controla aumen-
ta fortemente o seu poder sobre a sociedade". Desse ponto de vista, a Igreja pre-
pondera inegavelmente. A lenta adoção da era cristã (cálculo dos anos a partir da
Encarnação de Cristo) indica que o Ocidente se constitui, pouco a pouco, como
uma unidade sob a forma da "cristandade". Entretanto, por muito tempo, perma-
necem em vigor sistemas de datação inspirados na Antiguidade pagã, tendo como
referência os cônsules ou os reinos dos imperadores e, depois, dos soberanos, ou
ainda a fundação de Roma ou a suposta Criação do mundo. Em 525 um monge
oriental estabelecido em Roma, Dioniso, o Pequeno, publica suas Tábuas pascais:
julgando que o costume em vigor, que tomava como parâmetro o reino de
Diocleciano, honrava indevidamente a memória de um tirano, ele decide nume-
rar os anos a partir da Encarnação de Cristo. Obra de grande impacto no
Ocidente, na medida em que põe fim às controvérsias relativas à data da Páscoa,
o tratado de Dioniso é também o canal pelo qual se difunde a noção de era cris-
tã (Georges Declercq). Os progressos são, entretanto, muito lentos, e foram as

30~ }érôme Baschet


obras de Beda, o Venerável, que asseguraram o verdadeiro sucesso do sistem<
de Dioniso: seu tratado Da medida do tempo (725) amplia suas tábuas de data!
pascais e as inscreve em uma concepção mais global do tempo; sua Historie
eclesi'ástica do povo inglês (731) é a primeira obra histórica que utiliza sistema·
ticamente a era cristã como instrumento de datação, chegando a incluir nc
final da obra uma cronologia resumida desde o ano 60 antes de Cristo até 731
depois de Cristo.
O mundo insular é realmente pioneiro nesse domínio: ao mesmo tempo, c
cartulário anglo-saxão é o primeiro a fazer uso da era da Encarnação, enquantc
Vilibrordo (em 728) e Bonifácio, missionários originários das ilhas, recorrem
igualmente a ela. Depois, nos séculos IX e X, a era da Encarnação ganha lenta-
mente terreno no continente, especialmente no domínio germânico. Mas é ape-
nas ao longo dos séculos XI e XII que seu uso se generaliza no Ocidente, nos
documentos pontifícios (a partir de Nicolau 11, em 1058), nos atos das chance-
larias reais, condais ou episcopais, assim como nas obras historiográficas (com
exceção do mundo ibérico, que utiliza a era da Espanha, adiantada em 38 anos
em relação à era da Encarnação). Acrescentemos, ainda, que a datação ao inver-
so dos eventos anteriores a Cristo, já tentada por Beda, só se difunde a partir do
século XIII e, sobretudo, do século XV. Quanto ao século, período de cem anos
calculado com base no primeiro ano da Encarnação, ele aparece timidamente
no século XIII, encontra apoio graças à proclamação do primeiro jubileu cristão
por Bonifácio, em 1300, mas não é utilizado como instrumento historiográfico
antes do século XVI. Assim, se o conjunto do sistema cronológico em vigor hoje
se estabeleceu lentamente ao longo da Idade Média, o costume do contar os
anos "ab incarnatione Domini ', segundo o sistema proposto por Dioniso, o
Pequeno, aparece, a partir do século XI, como um dos sinais mais manifestos da
unidade da cristandade, estabelecendo notadamente uma clara diferença com o
calendário muçulmano, cujo ano de referência é a Hégira.
Se o ano de referência do calendário unifica a cristandade a partir do século XI,
uma extrema diversidade permanece na escolha do dia que inaugura cada novo
ano. Desprovido de todo valor cristão, o 1:... de janeiro, adotado na Antiguidade,
cai em desuso, apesar da persistência dos ritos das calendas de janeiro e do hábi-
to de oferecer nesse dia as "estréias" (presentes como os quais os patroni roma-
nos asseguravam a fidelidade de seus clientes ao longo do ano e que a Igreja
denuncia como uma lógica do dom e contra-dom, contrária à caridade cristã).
Coexistem, então, diferentes "estilos" de datação, segundo se faça começar o ano
no Natal, na Anunciação, como faz o papado, ou na Páscoa, escolha particular-
mente complexa em razão do caráter móvel dessa festa. Notar-se-á o caso parti-
cular de Castela, que permanece fiel ao 1!! de janeiro romano até o século XIV,

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 31J)


deixando lugar em seguida, quando outras regiões européias seguem a evolução
inversa, à rivalidade entre o Natal e a Anunciação (isto não é sem conseqüência
para o Novo Mundo, onde a diversidade dessas escolhas repercute durante o
século XVI). Assim, se os diferentes estilos de datação referem-se a fatos essen-
ciais para a história da salvação e manifestam, então, igualmente o caráter cris-
tão dos quadros temporais, sua concorrência é o sinal da fragmentação política
da Europa feudal, a tal ponto que, durante certos meses, dois anos diferentes
podem coexistir no seio de um mesmo reino.
A Idade Média vive com o calendário estabelecido por Júlio César, ou seja,
um ano de 365 dias, com um dia suplementar a cada quatro anos. Entretanto,
os astrônomos medievais não demoram a constatar que decorre disso um des-
compasso em relação ao ritmo do Sol. Isso aparece claramente nos tratados de
Alfonso X, o Sábio, que calcula com maior precisão a duração do ciclo solar e
atesta, assim, os vários progressos da astronomia medieval e seus avanços em
relação aos conhecimentos antigos. Para remediar essa situação, é necessário
esperar a reforma do calendário adotada pelo papa Gregório XIII, que suprime
dez dias do ano de 1583 (de 5 a 14 de outubro), a fim de recuperar o atraso do
calendário em relação ao Sol. Essa medida é imediatamente aceita no Ocidente
e Filipe 11 ordena sua introdução nas Índias Ocidentais. É notável que tal inicia-
tiva tenha sido tomada pelo papado, que mostra, assim, que apesar da secessão
das regiões reformadas, há a continuidade de sua capacidade de controlar os
quadros temporais da sociedade.
Se o ano se divide em doze meses, segundo o sistema antigo (do qual os
calendários retomam igualmente o modo de designação dos dias de cada mês,
em idos e calendas), uma inovação decisiva é a introdução da semana, calcada
sobre o modelo bíblico dos sete dias da Criação do mundo. A semana ganha
uma importância extrema: desde a época paleocristã, ela constitui a base do
tempo litúrgico, pois é adotada, então, a regra de uma comemoração hebdoma-
dária do sacrifício do Cristo. O "dia do Senhor" (dies dominicus; dimanche em
francês; domingo em castelhano; domenica em italiano), torna-se, assim, um ele-
mento determinante do ritmo de vida. A Idade Média vive também uma duali-
dade entre seis dias de atividades, correspondendo aos seis dias da Criação, e o
sétimo dia de repouso, tanto para os homens como para Deus. Este dia fora do
comum deve ser consagrado ao culto divino e à sociabilidade (reuniões, festas
etc.), e a interdição das atividades guerreiras e do trabalho dominical é inces-
santemente relembrada pela Igreja, mesmo se ela tolera exceções em caso de
necessidade, por exemplo, em período de colheita. No fim da Idade Média, as
imagens do "Cristo do domingo" mostram Jesus ferido pelas ferramentas que
camponeses e artesãos utilizam ilicitamente no domingo, esforçando-se, assim,

30~ }érôme Baschet


para mostrar a que ponto trabalhar no dia do Senhor significa fazer-lhe uma
ofensa (Dominique Rigaux).
Mesmo se as 24 horas do dia romano não são ignoradas, elas não são utili-
zadas na prática. Ocorre o inverso com as horas canônicas, marcações decisivas
cuja duração varia em função da estação (matinas, no meio da noite; depois,
laudes, prima e terça; sexta, com o sol a pino; enfim, nona, vésperas, ao pôr-do-
sol, e completas). As horas canônicas são indicadas a todos pelos sinos dos
monastérios e das igrejas, pois elas correspondem às preces que dão ritmo à jor-
nada dos clérigos. Mas os sinos marcam também o trabalho dos camponeses,
assim como todas as atividades da população aldeã. O laço entre o som familiar
dos sinos e a vida rural é tão estreito que dá lugar a uma etimologia fantasiosa
estabelecida por João de Garlande no século XIII: "Os sinos (campanae) retiram
seu nome daqueles que vivem na campanha (in campo), pois eles não sabem
determinar as horas a não ser com a ajuda dos sinos". A partir do século XIV, a
recitação das horas canônicas estende-se à elite laica, graças à multiplicação dos
livros de horas, que indicam as preces que correspondem a cada uma das horas
em cada dia particular do ano.
Se o momento do dia é medido de maneira fluida, a alternância marcada entre
o dia e a noite não escapa a ninguém. A noite é um momento de medos materiais
(as agressões são mais fáceis, o que faz dela uma circunstância agravante aos olhos
da justiça) e de medos espirituais (a noite é ocasião das piores manifestações do
diabo e das lutas mais intensas contra as tentações). Objeto de inquietude, a noite
pode ser também, se o combate contra o mal é vitorioso, um tempo privilegiado de
encontro com Deus. Como em todas as sociedades em que faltam os meios de ilu-
minação, a dualidade entre o dia e a noite tem mais impacto que no mundo moder-
no, sem que, no entanto, a demonização da noite seja absoluta na Idade Média. No
mais, a utilização do vidro permite, a partir do século XIII, a fabricação de lampari-
nas a óleo mais eficazes, que reduzem os riscos de incêndio. Enfim, no que diz res-
peito à medição dos instantes breves, ela é bastante aproximativa em comparação
com nossos hábitos de horário: menciona-se com freqüência o tempo de uma vela
que se consome ou da recitação de uma Ave-Maria ou de um Pai-Nosso, ou seja,
ainda uma vez, tantas referências eminentemente cristãs.

Ciclo litúrgico e controle clerical do tempo

A Idade Média ignora um tempo unificado por sua medida e puramente quan-
titativo, um "tempo universal" que pretendesse se impor igualmente a todos.
Prevalece uma diversidade de tempos sociais, qualitativamente marcados e dife-

A CIVILIZAÇAO FEUDAL 305


rendados uns dos outros. É preciso, evidentemente, atribuir o papel principal
ao tempo clerical, que é, de início, aquele da liturgia e que impõe seus parâme-
tros a todos: com efeito, diz-se de preferência "o dia de são João" em vez de 24
de junho; diz-se mais "o dia depois do Natal" que 26 de dezembro. A estrutura
do ciclo litúrgico anual está estabelecida desde o século VII com as listas de perí-
copes, quer dizer, as leituras bíblicas adaptadas a cada dia do ano, que formam,
assim, o "temporal", ao qual logo se junta o "santoral", indicações relativas às
celebrações dos santos. O conjunto do ciclo, pouco a pouco consolidado, é con-
signado nos livros litúrgicos, que indicam os rituais, as fórmulas e as preces pró-
prias a cada festa do ano; ao mesmo tempo, os calendários litúrgicos multipli-
cam-se nos manuscritos.
O calendário litúrgico é estruturado principalmente pelas grandes festas
relacionadas a Cristo: o ciclo de Natal, começando com o Advento (quarenta
dias antes da Natividade) e prolongado pelos doze dias concluídos pela Epifania;
a Anunctação; o ciclo da Páscoa, precedido pela Quaresma (igualmente quaren-
ta dias), culminando na Semana Santa, do Dia de Ramos à Ressurreição, e pro-
longado até a Ascensão e o Pentecostes (dez e quarenta dias depois do domin-
go pascal). Ao longo do século IV, a Natividade é fixada no dia 25 de dezembro
(data antiga do solstício de inverno) e a Anunciação, por conseqüência, no dia
25 de março (então, equinócio de primavera). Móvel, a data da Páscoa (levan-
do com ela as festas que dela dependem) dá lugar, do século III ao v, a uma
longa controvérsia à qual as Tábuas pascais de Dioniso, o Pequeno, põem um
fim, com exceção do mundo insular, onde,ela se prolonga até o século VII: debate
bastante complexo, em que se misturam a vontade de se dissociar dos costumes
judeus (mesmo que, segundo os Evangelhos, a Crucificação tenha ocorrido no
próprio dia da Páscoa judaica ou no dia seguinte), interpretações conflitantes
das Escrituras e uma divergência entre as Igrejas de Roma e de Alexandria em
matéria de cômputo lunar. Finalmente, admite-se que a data da Páscoa deva ser
fixada no primeiro domingo depois da primeira lua cheia seguinte ao equinócio
de primavera (ou seja, entre 25 de março e 25 de abril), seguindo as normas do
cômputo dos alexandrinos, do qual Dioniso assegura o sucesso no Ocidente
(graças à sua tábua de 532 anos, grande ciclo, ao final do qual as datas da
Páscoa se repetem do mesmo modo). A data fundamental da Redenção carac-
teriza-se, assim, pela conjunção dos ciclos solar e lunar, em uma escolha cuja
complexidade proposital tem por efeito impor o recurso ao saber clerical em
matéria de cômputo (previsão de calendário) e reforçar a importância dos cen-
tros de autoridade dotados de sólidas competências astronômicas (de início,
Alexandria e, depois, Roma para o Ocidente).

30r ]érôme Baschet


O ciclo referente a Cristo aparece concentrado, sobretudo, entre novembro
e maio, época principalmente invernal, ao passo que o tempo das grandes ativida-
des agrícolas, em particular das colheitas, aparece menos denso em festas religio-
sas. Mas o ciclo anual é, evidentemente, mais equilibrado se são acrescentadas as
festas da Virgem (sobretudo a Assunção, em 15 de agosto) e dos santos, cuja
abundância contribui para cristianizar o tempo, quer se trate dos santos princi-
pais, festejados em toda a cristandade, ou daqueles cujo culto é atestado ape-
nas por costumes locais. A vontade de reequilibrar as duas partes do ano é, de
resto, confirmada pela transferência de certas festas, como a de Todos os Santos
que, no século VIII, é deslocado do 13 de maio para o 111 de novembro, para
depois se desenvolver na época carolíngia. Enfim, numerosas celebrações
importantes são acrescentadas ao longo dos séculos medievais, tais como a festa
do Dia dos Mortos, no século XI, ou o Corpus Christi, no século XIII. No geral,
o calendário litúrgico é uma notável criação da Igreja medieval, realizada sem o
menor fundamento nas Escrituras, mas destinada a um sucesso considerável.
O tempo litúrgico impõe-se, então, a numerosos aspectos da vida: ele determi-
na os ritmos do trabalho e do repouso, da alimentação (a abstinência da
Quaresma e de cada sexta-feira) e também da atividade sexual (proibida pela
Igreja aos domingos e nos dias de festas importantes).
Por suas ligações com o calendário astrológico e com os ciclos festivos agrá-
rios, o calendário litúrgico não deixa de ser atravessado por tensões. O caso mais
claro é o da Natividade, cuja data é fixada de modo a corresponder ao solstício de
inverno e a substituir a celebração antiga do renascimento do sol (Cristo sendo ele
próprio assimilado, durante a época paleocristã, à antiga divindade solar, "Sol
invictus"). O caso da Páscoa é diferente, mesmo se sua data toma como referên-
cia principal o equinócio de primavera que, marcando a renovação da natureza, se
associa à temática cristã da ressurreição. Do mesmo modo, a fim de lutar contra
as festividades e as mascaradas das calendas de janeiro, que marcavam, na
Antiguidade, o início do novo ano, a Igreja decide associar esse dia à circuncisão
de Jesus, da qual amplia a liturgia a partir do século VI e associa a uma obrigação
de jejum. Enfim, as festas dos santos importantes correspondem aos momentos
cruciais do ciclo anual, por exemplo, são João, ao solstício de verão, são Martinho,
comemorado em 11 de novembro, ao início do inverno popular (em relação à figu-
ra do urso, que começa, então, a hibernar, até seu despertar na época do
Carnaval). Enfim, nos séculos IV e v, a Igreja institui a liturgia dos Quatro Tempos,
que santifica o início de cada estação através de uma semana de jejum e de prece,
transformando, assim, um marcador festivo já praticado em Roma.
O sucesso das festas cristãs é explicado, em parte, por essas coincidências
com os ritmos naturais e agrícolas. Entretanto, a Igreja se esforça em negar,

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 30;-


tanto quanto possível, tais concordâncias. Sem falar de sua oposição aos costu-
mes que as tornam muito visíveis, como os fogos do dia de são João, ela se
empenha em desnaturalizar o calendário litúrgico, para atrelá-lo exclusivamen-
te à vida de Cristo e dos santos e não ao ritmo dos astros e vegetais. Constituem,
entretanto, exceções a liturgia dos Quatro Tempos e, sobretudo, as procissões
das Rogações, que, se não tinham significado agrário quando de sua instituição
no fim do século v, mais tarde permitem evocar, durante os três dias que prece-
dem a Ascensão, a proteção divina em favor das culturas e do gado. Quanto ao
Carnaval, ritual de fertilidade e explosão desenfreada das forças vitais, ele é in-
tegrado ao calendário cristão, mas cuidadosamente enquadrado e destinado a
ceder passagem para as exigências da Quaresma. O ciclo litúrgico deixa, então,
entrever uma relação ambígua com os ritmos naturais e agrários. Ele os segue,
em parte, mas sem admiti-lo realmente. Ele leva em conta as realidades da vida
dos campos, mas pretende deslocá-las para um outro plano, mais espiritual.
É por isso que existe uma fricção potencial entre o calendário espiritual da
Igreja e-o-calendário agrário do mundo rural, que se sobrepõem no essencial,
mesmo apresentando notáveis divergências de interpretação. A reticência cleri-
cal a assumir inteiramente os ritmos sazonais das atividades agrícolas explica,
sem dúvida, a persistência dos rituais de fertilidade, como o Carnaval ou os
transes xamânicos praticados à margem da Igreja.
A sobreposição dos ritos pagãos e, sobretudo, do ciclo natural pelas festas
cristãs é, entretanto, um eficaz instrumento de evangelização e de imposição
do sistema eclesial. De resto, ela é largamente reproduzida no Novo Mundo: do
mesmo modo que um lugar de culto pré-hispânico é ali com freqüência substi-
tuído por uma igreja cristã, a cristianização do tempo opera segundo uma estra-
tégia já bem testada no Ocidente medieval. Múltiplos exemplos mostram a
substituição de uma celebração pré-hispânica por uma festa cristã e a evicção
do deus protetor de uma comunidade ou de uma etnia por um santo padroeiro,
muitas vezes escolhido em razão da correspondência entre a data de sua festa e
a do antigo deus. Entretanto, os clérigos mais bem informados se inquietam por
essa coincidência que, mesmo ajudando a evangelização, contribui para a persis-
tência disfarçada de ritos e de crenças indígenas (o dominicano Diego Durán
denuncia, na Nova Espanha, "a mistura que pode se produzir entre nossas fes-
tas e as deles, pois, fingindo celebrar as festas de nosso Deus e dos santos, eles
misturam aquelas de seus ídolos, celebradas no mesmo dia com seus antigos
ritos"). A ambigüidade é a mesma que no Ocidente medieval.
O tempo agrícola concerne à imensa maioria, para não dizer à quase totali-
dade da população medieval. Para os vilãos, os ritmos de vida são indissociavel-
mente ligados à natureza e, em particular, aos ciclos solares (alternância do dia e

30,' Jérôme Baschet


da noite; retorno periódico das estações). Embora o tempo seja perturbado pelas
variações climáticas e meteorológicas, sendo, então, carregado de singularidades
e imprevistos, trata-se de um tempo cíclico. A cada ano, os mesmos fenômenos
essenciais reproduzem-se, permitindo a repetição das mesmas atividades. Esse
tempo é, em parte, compatível com o tempo litúrgico da Igreja. De resto, esta se
esforça para ampliar a correspondência entre o tempo agrícola e o tempo litúrgi-
co a fim de se encarregar dele e integrá-lo ao tempo litúrgico que ela controla.
Um sinal disso é a multiplicação das representações iconográficas dos trabalhos
dos meses, sobretudo a partir do século XI. Cada mês é ilustrado por uma ativi-
dade característica, no essencial, as atividades agrícolas ou o repouso de dezem-
bro, mas também por algumas cenas, como o cavaleiro de maio, e alegorias, como
Janus, deus antigo de duas faces ou, para o mês de março, a figura dos ventos
desencadeados (tema antigo que a arte medieval transforma em alusão à luxúria).
Geralmente, essas representações ocupam posições marginais na decoração das
igrejas (arcos dos portais, pinturas das arcadas ou partes inferiores das paredes).
Tais disposições, secundárias ou marginais, convidam a pensar que a integração
dos trabalhos dos meses na decoração dos edifícios não constitui verdadeiro
reconhecimento do tempo profano, em si mesmo desprovido de sentido para a
Igreja. Se a iconografia dos meses indica atenção ao tempo vivido pelos laicos,
este é inscrito em uma hierarquia e em uma perspectiva que o integram ao tempo
litúrgico, o que é ainda mais fácil por se tratar de duas temporalidades cíclicas
largamente passíveis de sobreposição. A Igreja concede um lugar, modesto e
dominado, ao tempo das atividades agrícolas e laicas, para melhor incluí-lo no
tempo dominante da sociedade cristã, que é aquele da liturgia (excepcionalmen-
te, a integração é tão enfática que os trabalhos dos meses, então associados a um
verdadeiro calendário litúrgico, ganham lugar no alto das paredes, em torno do
altar; como visto na figura 28, na p. 31 O).
O tempo senhorial escoa, em grande parte, nos quadros do tempo clerical.
É verdade que a convocação do ost, em maio, não corresponde a datas dotadas
de significação cristã, como também não é o caso dos torneios, organizados sem
periodicidade regular e fora de toda preocupação com o calendário litúrgico.
Mas, para o restante, as atividades que dão ritmo à vida senhorial inscrevem-se
no calendário cristão. As festas aristocráticas e reais, e notadamente aquelas que
são ocasionadas pelo adubamento dos novos cavaleiros, são geralmente organi-
zadas no dia de Pentecostes. E o tempo das cobranças de tributos, quando os
camponeses vêm pessoalmente entregar nas mãos de seu senhor os frutos de
suas colheitas, é santificado pela escolha de festas importantes, mas muito
variáveis segundo as situações locais, por exemplo, são João e são Miguel, ou
ainda Todos os Santos e Páscoa.

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 3()'1


28. O calendário litúrgico e a representação dos meses, 1263 (afresco da capela San Pellegrino, monas-
tério de Bom inaco, Abruzzo).
A representação dos meses aparece com freqüência na decoração pintada ou esculpida das igrejas, mas é abso-
lutamente excepcional que esteja associada a um calendário litúrgico. Aqui, na capela de San Pellegrino, cada
linha com inscrição indica uma festa de Cristo, da Virgem ou de um santo, celebrada pelos beneditinos do
monastério ·de Bominaco. E como se as páginas de um manuscrito litúrgico tivessem sido projetadas sobre os
muros em tomo do altar para indicar as celebrações realizadas ao longo do ano todo no próprio lugar. Vê-se,
aqui, a primeira metade do ano: associado ao mês de janeiro, panicularmente carregado em celebrações, um
homem se aquece perto do fogo; a poda das videiras corresponde, aqui, ao mês de fevereiro; o spinario de março
(um homem retirando um espinho do pé) é uma alegoria inspirada na Antiguidade e associada à luxúria; em
abril, um jovem porta flores, assim como o cavaleiro de maio, enquanto, em junho, procede-se à colheita.

"Tempo da Igreja e tempo do mercador"

O tempo das cidades introduz distanciamentos marcantes em relação aos tem-


pos da Igreja, dos senhores e da terra. Mesmo se muitos citadinos permanecem
em contato estreito com a vida dos campos, as atividades artesanais e comer-
ciais não são diretamente submetidas ao ritmo das estações. É na cidade, e para
a cidade, que o relógio mecânico público, cuja técnica aparece por volta de
1270-80, se difunde através da Europa ao longo do século XIV, por exemplo em
Paris, em 1300, em Florença e Gand, em 1325. A despeito da imperfeição dos
primeiros mecanismos, dispõe-se, então, de um tempo aritmético, mensurável,
formado de unidades teoricamente iguais, cujo controle é ampliado ainda mais
com a aparição dos relógios privados na segunda metade do século XIV, e, depois,
de relógios individuais no fim do século seguinte (será preciso, no entanto, espe-
rar o século XIX para que estes últimos tenham uso popular). O relógio mecâni-
co, que começa a inspirar a literatura e que Dante nomeia a "gloriosa engrena-
gem", é uma invenção notável, em grande parte associada a um tempo social
novo: o tempo do trabalho artesanal. Com efeito, os artesãos que trabalham na

3 1O )érôme Baschet
cidade têm necessidade de uma indicação precisa e específica para marcar o
início e o fim das atividades cotidianas. Como expõe um documento de 1355,
"convém que a maior parte dos trabalhadores jornaleiros vá e volte de seu traba-
lho em horas fixas". Os inícios do trabalho assalariado- mesmo se este ainda
não se parece em nada com o assalaríamento do século XIX - tornam necessária
uma medida dos horários mais ou menos precisa. Esta, no entanto, é objeto de
múltiplos conflitos, especialmente em razão da tendência dos mestres artesãos
em atrasar a campainha que anuncia o fim da jornada de trabalho. Os relógios
urbanos, com muita freqüência postos na torre do palácio municipal, encontram-
se sob a responsabilidade das autoridades comunais, das quais eles salientam
o prestígio.
A difusão dos relógios mecânicos põe em causa o monopólio da medição do
tempo, até aqui detido pela Igreja, cujos sinos pontuavam tradicionalmente a jor-
nada, ao ritmo impreciso e mutável das horas canônicas. Jacques Le Goff pôde,
assim, analisar a emergência de um conflito entre o tempo da Igreja e o tempo
dos mercadores: "Esses relógios levantados em todos os lugares diante dos cam-
panários das igrejas são a grande revolução do movimento comuna) na ordem do
tempo". Em seus trabalhos, no entanto, ele evitou exagerar essa oposição, pois
constatamos igualmente, entre esses dois tempos, uma coexistência ou, ao menos,
uma transição suave. O primeiro relógio mecânico atestado no reino da França
encontra-se no campanário da catedral de Sens (1292), e a metade dos relógios
do século XIV é igualmente construída para catedrais. Aliás, em York, a catedral
associa os sinos, que soam as horas canônicas, e aquela do trabalho, que indica
o início e o fim da jornada. A Igreja não é, portanto, hostil ao tempo medido e
regular dos relógios, e não hesita a assumir ela própria o seu controle.
Resta, em todo caso, o fato de que o desenvolvimento dos relógios marca a
emergência de um tempo unificado, mensurável e breve, ligado às formas de
vida urbanas e à pré-história do assalariamento. Entretanto, pelo menos até o
século XVI, esse tempo permanece largamente incerto e os relógios são muitas
vezes defeituosos. Ele contínua sendo também um tempo mal unificado, pois
mesmo se a hora avança mais ou menos regularmente, é ainda preciso saber a
partir de que parâmetro ajustá-la. Tal unificação é tentada por Carlos v, quan-
do este ordena que todos os relógios do reino da França marquem a mesma hora
que a de seu palácio parisiense (no mais, em 13 70, ele manda substituir o velho
mecanismo, instalado por Filipe, o Belo, em 1300, por um relógio mais confiá-
vel). Mesmo se a execução dessa decisão permanece duvidosa, ela mostra bem
que o tempo dos relógios não é somente o dos mercadores; ele é também um
tempo do poder real, que busca, então, afirmar-se. Enfim, o relógio mecânico e
as experiências sociais que lhe são associadas acentuam o sentimento do tempo

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 3//


que passa. Quanto mais o tempo é estritamente medido, mais ele parece pre-
cioso. O bom uso do tempo que foge torna-se, então, um tema comum aos lai-
cos urbanos e aos clérigos (sobretudo, das ordens mendicantes), mesmo se os
primeiros estão preocupados principalmente com seus negócios e os segundos,
inquietos com a salvação. Mas esse tempo que começa a passar excessivamen-
te rápido e a escapar melancolicamente ao homem é também muito mais coer-
citivo, de modo que os quadros rígidos do tempo medido não demoram a ser
denunciados: "As horas são feitas para o homem e não o homem para as horas",
protesta Rabelais em seu Gargântua.
O conflito entre o tempo da Igreja e o tempo dos mercadores manifesta-se,
ainda, de uma outra maneira. A igreja condena, com efeito, as atividades dos
mercadores e, em particular, o empréstimo a juros, qualificado de usura.
Segundo a argumentação dos clérigos, o credor é um ocioso que se enriquece
mesmo dormindo, o que é particularmente escandaloso. E como ele não produz
nenhuma riqueza nem benfeitoria, ele não faz outra coisa senão vender o tempo
(que cor~ntre o momento do empréstimo e o momento de seu reembolso).
Ora, o tempo pertence apenas a Deus, de modo que, vendendo o que não é
dele, o usurário comete, ao mesmo tempo, um roubo, um pecado grave e uma
ofensa ao Criador ("O usurário não vende ao seu devedor nada que lhe perten-
ça, mas somente o tempo que pertence a Deus", diz Tomás de Chobham no
século XIII). Além disso, vítima de seu dinheiro, que prospera continuamente, o
usurário apresenta essa singularidade de pecar em permanência, sem o menor
arrependimento, nem à noite, nem aos domingos e nos dias de festa, o que é
uma circunstância particularmente agravante.
Esse problema ilustra a hostilidade fundamental que a Igreja faz pesar sobre
as atividades dos mercadores e dos usurários, retomando nisso as Escrituras,
que opõe Deus e Mammon (o dinheiro), dois senhores a quem ninguém pode
servir ao mesmo tempo. De resto, é o que explica a manutenção, em despeito
do aggiornamiento do século XIX, de uma importante corrente anticapitalista na
Igreja católica, ilustrada com ardor por um Charles Péguy e que encontra na teo-
logia da libertação uma das suas expressões contemporâneas mais vigorosas.
Tratando-se da usura (definida pelo fato de exigir-se em retorno mais do que é
dado), a posição da Igreja medieval consiste em uma condenação invariavel-
mente repetida pelos teólogos, pelos concílios e pelo direito canônico, reforça-
da ainda nos séculos XII e XIII, em face do desenvolvimento da economia urbana,
e mantida até 1840. Assimilada a um roubo (infração ao quarto mandamento),
a usura é também um pecado particularmente grave e associada à avareza, o que
garante aos culpados um lugar no mais profundo do inferno. Além disso, os
escolásticos salientam que a moeda é feita para favorecer as trocas de bens:

3 I ~ }érôme Baschet
então, ela é legítima; em revanche, utilizar o próprio dinheiro para engendrar
dinheiro é uma perversão contra a natureza. A condenação da usura é brutal e
total, e a reabilitação de numerosos ofícios ilícitos ao longo dos séculos XII e XIII
beneficia apenas marginalmente o usurário (Jacques Le Goff). Os teólogos
admitem, no entanto, que o empréstimo a juros possa ser tolerado em certos
casos, em particular se ele é útil ao bem comum (empréstimo às autoridades)
ou se é praticado por necessidade e a uma taxa moderada. Eles elaboram, assim,
um conjunto de justificativas, fundadas sobre o risco corrido pelo credor, sobre
o trabalho que sua atividade ocasiona, enfim, sobre o incômodo que lhe causa o
fato de não poder utilizar o dinheiro emprestado. Uma outra maneira, bastante
surpreendente, de aceitar o empréstimo (a juros) é desenvolvida pelos teólogos
espanhóis do século XVI: deve-se emprestar por caridade, sem nada esperar em
troca; e é por caridade que se devolve, acrescentando - sem a menor obriga-
ção- um suplemento para exprimir sua gratidão ao que emprestou. Nesse sis-
tema, judiciosamente esclarecido por Bartolomé Clavero, é somente na medida
em que ele é pensado e percebido como prática desinteressada, excluindo,
então, toda idéia de interesse, que o empréstimo (a juros) é possível. O que nós
nomeamos impropriamente empréstimo a juros pode ser, então, lícito, à condi-
ção de se integrar a um sistema de valor estranho a toda lógica propriamente
econômica e, pelo contrário, característico das normas ideológicas feudais fun-
dadas sobre a caritas.
Mas o usurário não se encontra em situação irremediável. A legislação tra-
dicional da Igreja lhe reconhece um meio de obter sua salvação: restituir todos
os benefícios da usura. Durante os últimos séculos da Idade Média, a Igreja man-
tém sua pressão para obter tais restituições e numerosas obras de arte, sobretu-
do na Itália, são financiadas desse modo, por exemplo, os afrescos que Giotto
realiza, por volta de 1305, na capela da Arena, em Pádua, por encomenda de
Enrico Scrovegni, filho de um dos usurários mais célebres de seu tempo, que
Dante põe no inferno. Mas, desde o século XIII, o purgatório entreabre para o
usurário uma outra porta: desde que tenha se confessado, ele pode ser salvo
depois de um tempo de sofrimento no fogo purificador. Conforme a lógica da
intenção que é subentendida pela prática da confissão, é possível, então, crer-
e certas narrativas exemplares convidam a fazê-lo- que sua contrição verdadei-
ra pode ser suficiente para que Deus lhe conceda a salvação. Os usurários
podem, então, graças ao purgatório e à confissão, conservar a bolsa aqui na terra,
ao mesmo tempo que obtêm a vida eterna no além (Jacques Le Goff). No geral,
a atitude da Igreja leva a permitir certas práticas usurárias, sem ceder sobre os
princípios que as condenam: o arrependimento sincero exigido do usurário não
equivaleria a renegar as atividades de uma vida inteira? A combinação de uma

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 3/;


tolerância marginal e de uma maciça condenação de princípio permite à Igreja
manter os mercadores e os banqueiros em uma posição desconfortável, se não
submissa. Suas atividades não se beneficiam de uma verdadeira legitimidade e
eles permanecem sob a ameaça do castigo infernal e na dependência da autori-
dade clerical, que manipula de acordo com sua conveniência o rigor ou a malea-
bilidade. Assim, existe uma certa contradição entre o tempo da Igreja e o tempo
do mercador que, para além das acomodações pontuais e dos compromissos,
nada mais é do que a prefiguração da contradição entre o tempo do feudalismo,
ainda dominante na Idade Média, e o tempo do capitalismo, ainda por nascer.
No geral, como em todas as sociedades tradicionais, predomina na Idade
Média um tempo cíclico, ligado à natureza e às atividades agrícolas que depen-
dem de seus ritmos (e, sem dúvida, também ao ciclo humano da substituição das
gerações). Mas o tempo dominante da cristandade é, seguramente, o tempo litúr-
gico: criação da Igreja medieval, notável em complexidade e flexibilidade, parcial-
mente universal e parcialmente local, o calendário litúrgico, justamente nomea-
do o "crrc'ulo do ano" (circulus anni), é uma maneira de assumir um tempo cíclico
que se sobrepõe ao tempo natural e agrícola, mas o reformula e transfere seu
controle à Igreja. É verdade que o tempo urbano dos relógios mecânicos é um
primeiro questionamento do tempo da Igreja. Muito parcial, ele diz respeito ape-
nas ao ritmo do dia e revela-se largamente aceitável, ou mesmo controlável, pela
Igreja. Apesar dessas contradições, o tempo fluido e não unificado do dia, assim
como o tempo cíclico do ano, conserva ainda uma clara vantagem.

As AMBIGÜIDADES DO TEMPO HISTÓRICO

História linear e "círculo do ano"

··Para os clérigos da Idade Média, o tempo é história e esta história tem um sen-
tido", lembra Jacques Le Goff. E se Marc Bloch afirma que "o cristianismo é
uma religião de historiadores", não é somente porque os cristãos têm como tex-
tos sagrados livros de história ou porque a liturgia é um ato de memória que
celebra e repete a vida de Cristo e dos santos. É principalmente porque os even-
tos fundadores do cristianismo, o nascimento e a crucificação de Jesus, em vez
de estarem associados a um tempo imemorial ou mítico, como a Criação ou o
Pecado Original, constituem fatos bem atestados e situados em um tempo ver-
dadeiramente histórico: Jesus nasceu sob Augusto e morreu sob Tibério (mesmo
se os Evangelhos não permitem fixar datas incontestáveis). Foi Dioniso, o

3 I ~ Jérôme Baschet
Pequeno, que, pela correlação estabelecida entre a era cristã e os reinados impe-
riais, situa a Encarnação em 25 de março do ano 1 (depois de Cristo) e sua
morte em 33 ou 34. Fazendo isso, ele se afasta das opiniões mais tradicional-
mente aceitas, inspiradas notadamente por Tertuliano e Eusébio de Cesaréia
(dos quais a invenção de Dioniso leva a dizer, não sem paradoxo, que situavam
a Encarnação em 3 ou 2 antes de Cristo). Ora, os cálculos de Dioniso, o
Pequeno, repousam sobre uma série de erros (ou, ao menos, escolhas orienta-
das), que não escaparam a Beda, o Venerável, e incitaram alguns autores do
século XI, como Abbon de Fleury, a valorizar outras datas, mais justificadas. Mas
a "invenção" de Dioniso já estava excessivamente difundida e ninguém, até nos-
sos dias, pensou seriamente em deslocar todos os anos da era cristã. De resto,
todas essas discussões apenas confirmam o caráter resolutamente histórico do
tempo cristão. Tantos esforços para calcular o verdadeiro ano da Encarnação
não têm sentido a não ser que visem responder às exigências de um tempo his-
tórico e, em primeiro lugar, a de uma datação precisa e verificável. As implica-
ções não são pequenas, pois, através de sua Encarnação, o próprio Deus inscre-
ve-se na história.
Além disso, o tempo cristão é um tempo linear, que se desenrola desde um
início (a Criação do mundo e o Pecado Original) até um fim (o Juízo Final), pas-
sando pela Encarnação, pivô central que altera o curso da história oferecendo a
salvação aos homens. Linear, esse tempo é também orientado, pois seu termo
é fixado previamente e descrito pela Bíblia, mesmo se esta precisa que não se
pode conhecer seu dia e sua hora. É um ponto de doutrina indiscutível crer no
Juízo Final, que marcará o fim dos tempos e fixará o universo e os seres na eter-
nidade. Do ponto de vista cristão, a história da humanidade é, então, dividida
em duas épocas: a do Antigo Testamento, profundamente ambígua, pois é mar-
cada pela Aliança de Deus com o povo eleito e contém em germe as verdades
reveladas por Cristo, mas permanece dominada pelo pecado e a impossibilida-
de de alcançar a salvação; depois, a época do Novo Testamento, inaugurada pelo
sacrifício de Cristo, que permite aos homens receber a graça divina e vencer o
mal. Essa divisão binária é fundamental e, no século XIII, Tomás de Aquino
ainda relembra seu valor essencial (contra os milenaristas que anunciam a imi-
nência de um novo período da história humana). De resto, a oposição dos dois
Testamentos declina-se em múltiplas realidades: confrontação entre a Sinagoga
e a Igreja, a Lei e a Graça, Adão e Cristo. Esse recorte binário da história pode
também dar lugar a subdivisões que não lhe alteram o sentido principal. Assim,
é freqüente distinguir o tempo de antes da Lei (ante lege), desde o Pecado
Original até Moisés, o tempo da Lei (sub legem), inaugurado pela entrega dos
dez mandamentos, e, enfim, o tempo da Graça (sub gratiam), que começa com

A CIVILIZAÇAO FEUDAL 3/5


a Encarnação de Cristo. Essa representação tripartite indica uma progressão ao
seio da época veterotestamentária, criando uma etapa intermediária que ainda
não possui a graça mas conhece, ao menos, os mandamentos divinos.
Enfim, santo Agostinho lega à Idade Média uma periodização da história
em seis épocas, dispostas em correlação com os seis dias da Criação e com as
idades da vida humana (essa divisão das seis idades da vida, transmitida à Idade
Média por Isidoro de Sevilha, sofre a concorrência, a partir do século XIII, de um
recorte quadripartido, e os anos que limitam as etapas da vida variam fortemen-
te segundo os autores). As idades do mundo, segundo Agostinho, estendem-se
de Adão a Noé (correspondendo à primeira infância, infancia), de Noé a Abraão
(em paralelo com a infância, pueritia), de Abraão a David (adolescência), de
David ao cativeiro da Babilônia Uuventude), do cativeiro da Babilônia ao nasci-
mento de Cristo (maturidade) e, enfim, de Cristo ao fim dos tempos, terminan-
do na imobilidade da eternidade, do mesmo modo que o repouso do sétimo dia
sucede.u aos seis dias da Criação. A leitura agostiniana consiste, então, em um
recorte do Antigo Testamento, enquanto o tempo da Graça permanece unifica-
do. A associação deste último com a velhice pode surpreender, mas Agostinho
retoma a metáfora paulina do batismo, que liga o velho homem à regeneração
da vida espiritual. No geral, mesmo se esta periodização remete, em última ins-
tância, à bipartição dos dois Testamentos, reforça a visão linear da história
fazendo sentir uma progressão comparável àquela das idades da vida e com-
preendida entre um início e um fim inelutável.
As concepções cristãs introduzem uma forte ruptura em relação às concep-
ções antigas. Seja qual for a diversidade dos autores, na Antiguidade prevalece,
com efeito, uma visão cíclica do tempo, na qual tudo se repete em um eterno
retorno. Para os antigos gregos, o mundo era menos percebido através das cate-
gorias da mudança do que como um estado estático, ou como um movimento
circular. Para Aristóteles, "o tempo é um círculo", e Platão afirma que "'era·, 'é' e
'será' são os aspectos de um tempo que imita a eternidade, que corre em círculo
conforme as leis do número", sugerindo que os eventos retornam e que as épo-
cas se repetem, a tal ponto que tudo poderia parecer congelado em um presen-
te que integra nele o passado e o futuro. É contra essa visão cíclica, ainda par-
tilhada no essencial em Roma - e contra certos autores cristãos, como
Orígenes, que parecem excessivamente atrelados a ela - que Agostinho elabo-
ra uma nova concepção do tempo. Na Cidade de Deus, ele proclama a falsidade
do tempo cíclico, que conduziria a negar a aparição única de Cristo, em um
momento histórico preciso e sem repetição possível. Ele lhe opõe o "caminho
reto" de Deus que "destrói estes círculos em rotação". Entretanto, a visão histó-
rica e linear de Agostinho não é ilimitada. Com efeito, situando a realidade pre-

3I! }érôme Baschet


sente na sexta e última época da história humana, ele indica que, do ponto de
vista da salvação, nada de novo pode se produzir até o Juízo Final. Desde a
Encarnação de Cristo, a história é condenada a permanecer idêntica a si
mesma, na certeza de que nada de fundamental pode advir. Os homens vivem,
então, no que foi conquistado com a redenção e na espera do Juízo Final, tudo
o mais sendo apenas peripécias indiferentes à verdadeira história da salvação.
Se houve história desde a Criação do mundo, não há mais agora.
A confrontação entre as concepções cíclica e linear do tempo está desti-
nada a se repetir quando da conquista do Novo Mundo. O franciscano
Bernardino de Sahagún está para os nahuas 28 como Agostinho está para Platão,
e ele consigna no seu Codice florentino esse testemunho notável de um tempo
indígena dominado pela exaltação de um passado primordial e pelo gosto de
um eterno retorno: "Uma vez mais, será assim; uma vez mais, as coisas estarão
em um dado tempo, em um dado lugar. O que se fazia muito tempo atrás e não
se faz mais hoje, uma vez mais será feito; uma vez mais será assim, como foi
nos tempos antigos". Mas, por mais útil que ela seja, a oposição entre tempo
cíclico e tempo linear é parcialmente insuficiente. Mesmo nas sociedades tra-
dicionais em que o retorno periódico das estações e das atividades agrícolas
imprime sua marca a toda visão do tempo, existe sempre, em parte, uma expe-
riência do tempo irreversível, no mínimo porque cada um pode medir, pelo
tamanho de sua própria vida, o caminho que leva à morte. O problema não é,
então, de afirmar a ausência de um tempo irreversível, mas de saber em que
medida ele é ou não assumido como tal e se constitui ou não a forma dominan-
te do tempo social e o suporte da representação do porvir histórico. Mais do
que se ater a uma estreita oposição, trata-se, então, de analisar como o que se
chama de tempo linear e de tempo cíclico se combinam em articulações varia-
das, próprias a cada cultura. Quanto à própria idéia de tempo cíclico, ela é
necessariamente uma combinação entre a sucessão empírica de fatos e seres
diferentes e uma interpretação que os relacione a uma mesma essência (por
exemplo, dois soberanos que se sucedem são, evidentemente, indivíduos dife-
rentes, mas é possível chamar a atenção sobre o fato de que eles encarnam, no
fundo, um só e mesmo princípio). Um pensamento cíclico do tempo é, então,
uma maneira de englobar diferenças acidentais em uma mesma identidade
essencial. Mas ela pode também valorizar, malgrado o seu retorno, o apareci-
mento de uma certa parcela de diferença, dando lugar, assim, a uma visão em
espiral, de que o pensamento maia, que associa o tempo à figura do caramujo,
parece ser um exemplo.

28. Ou nauás, grupo de tribos da região do México, dentre as quais se encontravam os astecas. (N. T.)

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 3/-


No próprio cnstianismo, constata-se uma combinação de dois tipos de
tempo: o tempo linear da história humana, que avança inelutavelmente para um
evento singular, e o circulus anni da liturgia, que, a cada ano, repete as mesmas
festas. É verdade que os dois não se inscrevem na mesma ordem de duração e
podem, então, ser combinados sem muita dificuldade: o tempo litúrgico assu-
me o ciclo dos dias do ano, enquanto o tempo linear é o da longa duração atra-
vessada pela humanidade. Entretanto, a importância do tempo litúrgico no
mundo medieval sugere que os círculos que ele desenha interferem na visão do
tempo histórico. Com efeito, o tempo litúrgico faz reviver, a cada ano, os even-
tos fundadores da vida de Cristo e dos santos. Periodicamente, ele torna presen-
te um passado sempre idêntico a si próprio. O ciclo litúrgico, referência funda-
mental da sociedade cristã, manifesta um tempo repetitivo que remete
incessantemente o presente ao seu passado fundador. De resto, é talvez porque
o tempo da Graça - a velhice do mundo inaugurada pela Encarnação de
Cristo, segundo Agostinho - é um período imóvel, sem história, que ele deixe
tanto-espaço à incansável repetição litúrgica de seu momento inaugural. O tempo
linear cristão não está, então, ao abrigo dos retornos do tempo cíclico, que se
impõem parcialmente a ele.
Convém, então, avançar para além da dualidade das temporalidades cícli-
ca e linear. Reinhart Koselleck sugeriu que a concepção do tempo histórico é
construída através da tensão entre campo da experiência e horizonte de espera
(o campo da experiência é "o passado atual", quer dizer, além da memória, a
visão completa do passado a partir do presente; o horizonte de espera é um
"futuro atualizado", nutrido dos medos, das esperanças e de todas as maneiras
de apreender o futuro, a partir do presente). As diferentes maneiras de articular
experiência e espera desenham três configurações principais ao longo da histó-
ria ocidental. Na Antiguidade, como na maior parte das sociedades tradicionais,
os ritmos cíclicos da natureza e dos trabalhos agrícolas impõem sua marca às
representações do tempo histórico. O tempo é, então, menos aquele que passa
do que aquele que retoma, e o horizonte de espera sobrepõe-se estritamente ao
campo da experiência: o futuro só poderia ser a repetição do mundo dos ances-
trais. A sociedade medieval (prolongada até o século XVlll) apresenta uma con-
figuração ambivalente, desdobrada. O desenvolvimento de uma visão linear da
história libera um horizonte de espera inédito e massacrante, inscrito na pers-
pectiva escatológica do final dos tempos. Mas este horizonte de espera é intei-
ramente projetado no além e associado à preocupação com o destino no outro
mundo, enquanto, aqui embaixo, o campo da experiência continua a se impor
como referência dominante, segundo a lógica das sociedades rurais. Entre os
séculos XVI e XVII, espera e experiência tendem a distanciar-se ainda mais, sem

3 I ·' }érôme Baschet


chegar, entretanto, a uma recompos1çao verdadeiramente nova. Depois, no
século XVJII, o processo de dissociação chega a um nível de ruptura que dá nas-
cimento às noções fundadoras da modernidade: progresso, revolução, em uma
palavra, História. Abre-se, então, dessa vez no aqui embaixo, a impaciência de
um futuro novo, que, longe de ser submetido às experiências anteriores, se dis-
tingue cada vez mais delas. Nasce, assim, um tempo inteiramente histórico,
assumido em sua irreversibilidade e, no entanto, rapidamente retomado em
mãos e controlado, pois o século XIX o inscreve na linha previsível do progresso
que leva para um fim da História anunciada.·

Passado idealizado, presente menosprezado, futuro anunciado

É, então, preciso apegar-se a uma melhor compreensão da configuração dos


tempos históricos na Idade Média. Qual é, portanto, na época, a percepção do
passado, do presente e do futuro? No que se refere ao passado, convém indicar
que o tempo da memória oral, segundo o clérigo inglês Walter Map (século XII),
permite remontar cerca de cem anos para trás. Essa duração aproximativa forma
o tempo dos modernos (moderni), antes do qual se estende, fora do alcance da
memória, o alcance dos antigos (antiqui). É neste último, julgado melhor que o
presente, que a Idade Média procura seu ideal. Trata-se, muito particularmen-
te, do paraíso perdido de antes da Queda ou, ainda, do momento evangélico,
que realiza de imediato uma comunhão perfeita de Cristo e dos apóstolos. Além
desses momentos fundadores, resplandecendo de uma glória tornada inacessí-
vel, é o conjunto do passado que parece preferível ao presente: como indica
Walter Map, "cada idade prefere aquela que a precede".
Com efeito, o passado é o tempo da tradição, superior às novidades perigo-
sas que o presente traz. Em uma sociedade que se pretende consuetudinária, o
que deve ser é o que já foi, o que foi vívido pelos ancestrais. Toda realidade pre-
sente é legitimada pela referência a um fundador. O reino da França pretende
remontar aos troianos que escaparam do cerco de sua cidade; o papa funda o
seu poder sobre a proeminência de são Pedro e o imperador de Aix-la-Chapelle
se pretende o sucessor da antiga Roma (mediante o recurso ao tema da transla-
tio imperii, que admite um deslocamento geográfico para melhor valorizar uma
continuidade essencial). A tradição é, evidentemente, uma construção, elabora-
da no presente e que permite, muitas vezes, justificar as realidades novas ou
recentes; mas o que caracteriza o regime da tradição é o fato de que nenhuma
prática pode ser aceita nela se não for percebida como a repetição de uma expe-
riência antiga. Assim, durante a Idade Média, todo esforço para reformar ou

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 3/'1


transformar a realidade social deve aparecer como um retorno a um passado
fundador, como uma restauração de valores perdidos ao fio do tempo. A forma-
ção do Império Carolíngio, por exemplo, não é uma inovação, mas uma renova-
ção (renovatio imperii), uma ressurreição do Império Romano. A reforma dita
gregoriana não poderia pretender criar uma ordem nova- o que seria suspeito
- , mas somente restaurar a pureza evangélica da Igreja primitiva, como é
expresso por tantas referências arquitetônicas e artísticas, características do
"renascimento do século XII". Do mesmo modo, na história das ordens religio-
sas, os movimentos de reforma apresentam-se sempre como um esforço para
retornar à pureza perdida da regra original.
Assim, o gosto pelos retornos, renovações e renascimentos aparece como
um traço bem característico da visão medieval dos tempos históricos, de modo
que o Renascimento do século XVI deveria ser percebido como a continuidade
de tal percepção, e não como uma ruptura ("Longe de marcar o fim da Idade
Média;.. o Renascimento - os renascimentos - é um fenômeno característico
de um longo período medieval, de uma Idade Média sempre em busca de uma
autoridade no passado, de uma idade de ouro situada lá atrás", diz Jacques Le
Goff). Aqui, a longa Idade Média deve mesmo ser prolongada até meados do
século XIX, momento em que a modernidade começa a ser plenamente assumi-
da. De fato, se o Iluminismo elaborou a noção de progresso e afirmou a possi-
bilidade de uma revolução que avança para um mundo absolutamente inédito,
a burguesia revolucionária sentiu a necessidade de se vestir à moda romana e de
registrar as cenas de sua tomada de poder em uma decoração clássica. Em
revanche, o momento em que se consuma uma modernidade "pura", rompendo
inteiramente com os espíritos dos renascimentos, acha-se, talvez, na célebre
frase de Marx, afirmando que "a revolução social do século XIX não pode encon-
trar sua poesia no passado, mas somente no futuro", enquanto "as revoluções
anteriores tinham necessidade de reminiscências da história universal para defi-
nir seus próprios objetivos". Reter-se-á, portanto, que, em um regime de tradição,
a mudança é pensada como retorno ou renascimento, enquanto, com a moder-
nidade, ele é pensado como progresso ou como revolução (de resto, o século XVIII
inverte radicalmente o significado desse termo, que designava o movimento cícli-
co por excelência, aquele dos planetas).
Na mesma medida em que idealiza o passado, a Idade Média deprecia o
presente. Ao mesmo tempo que nota o gosto dos seus contemporâneos pelas
épocas anteriores, Walter Map indica que eles "sempre menosprezam o seu pró-
prio tempo". A percepção medieval da história é a de um declínio, de uma deca-
dência. "Os homens de antigamente eram belos e grandes; agora, são crianças
e anões··, diz Guyot de Provins no início do século XIII. Ainda com mais freqüên-

3-'0 }érôme Baschet


cia, o mundo é comparado a um velho homem que avança para seu fim (como
na periodização agostiniana). E não há lugar comum mais difundido do que
aquele do mundus senescit ("o mundo envelhece"). Como escreve Oto de
Freising (t 1158) em sua crônica: "Nós vemos o mundo decair e exalar o últi-
mo sopro da extrema velhice". E Orderico Vital (I 075-1142) indica em sua
História eclesiástica: "Hoje, tudo é diferente, o amor tornou-se frio, o mal triun-
fou. Os milagres, antes garantia da santidade, cessaram, e a tarefa do historia-
dor é apenas a de descrever crimes de toda espécie". A idéia de que, no presen-
te, não há mais tantos milagres como no passado ou, ao menos, que eles não
têm a mesma qualidade, é uma afirmação recorrente ao longo da Idade Média.
Além disso, esse sentimento de decadência e de envelhecimento está intima-
mente ligado à espera escatológica e à proximidade das desordens do fim dos
tempos. "O tempo do Anticristo aproxima-se", conclui Orderico Vital.
Os termos modernus, modernitas, assim como novus, possuem então, no
mais das vezes, uma conotação pejorativa. Ninguém pensava em reivindicá-los
e designar uma novidade ou uma inovação é, geralmente, uma maneira de des-
qualificação. Como indica o filósofo Guilherme de Conches, que se encontra,
no entanto, na ponta da reflexão do século XII (e talvez seja exatamente por isso
mesmo): "Nós expomos e formulamos idéias antigas e não inventamos nada de
novo". Entretanto, por vezes, a possibilidade de valorizar o presente se faz sen-
tir (de resto, é preciso sublinhar que a dualidade dos dois Testamentos, o Antigo
e o Novo, não reproduz o esquema do retorno às origens, mas fornece o mode-
lo de uma inovação que realiza uma antiga promessa e a ultrapassa, uma vez que
a Lei nova é superior à antiga). Assim, o texto de Raul Glaber, descrevendo o
entusiasmo de reconstrução dos fiéis, pouco depois do ano mil, e o "branco
manto de igrejas" que recobre a Europa da época, sugerem um desejo legítimo de
"renovação", uma visão positiva de um presente que parece mais florescente que
o passado imediato. O monge borguinhão chega mesmo a afirmar que o mundo
da época "desfez-se de sua velhice", para viver uma segunda juventude e tentar
um novo início. Tais argumentos são excepcionais na medida em que eles inver-
tem o topos do mundus senescit, mesmo se é necessário relembrar que a nova
juventude do mundo não poderia ser pensada senão sob uma espécie de purifi-
cação batismal (exatamente no mesmo momento, o monge Arnaldo de
Ratisbona adota uma atitude ainda mais radical: "Não somente é necessário que
o novo mude o antigo, mas, se o antigo carece de ordem, ele deve ser inteira-
mente varrido do mapa; e, se ele está em conformidade com a ordem desejada
das coisas, mas não mais é útil, ele deve ser enterrado com respeito").
Um outro exemplo notável é a afirmação de Bernardo de Chartres, teólogo
do século XII, que, comparando os pensadores de seu tempo aos filósofos da

A CIVII.IZAÇÃO fEUDAL 3-' I


Antiguidade e aos Padres da Igreja, nota: "Nós somos anões montados sobre os
ombros de gigantes, mas vemos mais longe que eles". Enunciado paradoxal e
sutil, pois se a primeira proposição respeita o lugar-comum que esmaga os
modernos sob o respeito devido aos antigos, a segunda transgride discretamen-
te essa visão e credita aos pensadores atuais um resultado superior àquele de
seus predecessores. É verdade que a imagem dos anões pousados sobre os
ombros dos gigantes relembra que nada seria possível sem o legado dos antigos,
mas, ao mesmo tempo, ela esboça uma concepção cumulativa do saber que per-
mite um avanço. Mesmo conferindo a indispensável marca de humildade e de
respeito para com os ancestrais, sem a qual sua afirmação seria apenas culpada
de vaidade, Bernardo reivindica o direito de superar seus ancestrais e de levar a
reflexão até um ponto ignorado por eles. Assim, a despeito do caráter largamen-
te dominante da visão depreciativa do presente, julgado inferior ao passado e
associado a uma vida que chega a seu fim, aflora, por vezes, uma concepção
mais otimista de um mundo que pode se "desfazer de sua velhice" e perceber a
novidade como uma melhoria mais do que como uma ameaça (uma crônica nor-
manda do início do século XIII indica que "Frades Menores e Pregadores foram
acolhidos pela Igreja e pelo povo com grande alegria por causa da novidade de
sua regra"). Esta atitude amplia-se pouco a pouco nos últimos séculos da Idade
Média, sem por isso reverter as concepções dominantes. Para se limitar a alguns
exemplos, a ars nova nomeia positivamente uma arte musical que se opõe às for-
mas anteriores, enquanto Marcílio de Pádua, em seu Defensor pacis, utiliza a
palavra "moderno" para valorizar a organização dos poderes laicos e eclesiásticos
que ele recomenda.
O futuro, enfim, tem um peso esmagador. O Novo Testamento fixa o fim
da espera: as desordens do fim do mundo, o Juízo Final, e, depois, uma eterni-
dade feita de beatitude celeste para uns e de castigos infernais para outros. Esse
futuro conhecido antecipadamente, objeto de esperança e de medo, é geral-
mente sentido como um futuro próximo, até imediato, mesmo que seja decisi-
vo para o funcionamento da instituição eclesial que não se possa fixar sua data.
Como afirma Agostinho, a história real desenrola-se "à sombra do futuro". Do
ponto de vista da Igreja, pode-se afirmar tanto que o mundo avança inexoravel-
mente para o seu fim quanto que não ocorrerá na história humana nenhum
evento importante, já que não há nada de essencial a esperar do futuro, fora a
realização de uma escatologia anunciada. É verdade que esta não constitui
a única experiência do futuro na sociedade medieval, cujos membros estão inevi-
tavelmente preocupados com o seu destino e o de seus próximos, com a sua sal-
vação e com o futuro de suas colheitas ou de seus negócios, de seus empreen-
dimentos guerreiros ou de seus projetos políticos. Para se convencer disso, é

3.2~ ]értJme Baschet


suficiente mencionar as tensões suscitadas pelo desejo de interpretar os pressá-
gios e os signos a fim de conhecer o futuro imediato dos homens Qean-Ciaude
Schmitt). Apesar da dimensão profética das Escrituras e da apropriação clerical
de certos procedimentos, a Igreja condena com a maior firmeza e com uma
constância infalível, de Agostinho até o Decreto de Graciano e mesmo além, as
práticas divinatórias e todas as atividades dos adivinhos e outras velhas mulhe-
res que pretendem descobrir o futuro: este é qualificado de "segredo de Deus",
que apenas a Igreja está em condição de interpretar legitimamente e com a pru-
dência necessária. Esta, então, arroga para si o monopólio do exercício proféti-
co ou, ao menos, o direito exclusivo de decidir sobre sua pertinência ou seu
caráter diabólico (ela o tolera no caso de pessoas destinadas à santidade, inte-
gradas à instituição ou, por vezes, evoluindo às suas margens, o que não deixa
de ser arriscado).
A adivinhação tem por objeto prever eventos a curto prazo, no melhor dos
casos no horizonte de uma vida individual (como no caso dos horóscopos, cuja
prática se desenvolve no seio das elites do fim da Idade Média), o que não afeta
absolutamente a concepção mais ampla do devir histórico. Segundo a visão que
Agostinho transmite à Idade Média, "tudo o que se passa sobre esta terra pode
estruturalmente repetir-se e é, em si mesmo, sem importância, mas esta expe-
riência revela-se única e de uma importância extrema na perspectiva do além e
do Juízo Final", de modo que o futuro "por assim dizer, metia-se de enviesado
nas histórias empíricas, mesmo se lhes conferia uma existência como histórias
consumadas" (Reinhart Koselleck). Prolongamento da fase derradeira e profun-
damente homogênea da história (embora circunstancialmente animada por
ciclos de decadência e de renascimento, e tilintando de eventos individuais, tão
acidentais quanto imprevisíveis), o futuro terrestre da humanidade perfila-se
como repetição da experiência passada, enquanto a espera de um horizonte
novo é projetada na escatologia. No entanto, quer se trate do horizonte dos fins
derradeiros ou das esperas terrestres dos homens, vê-se quanto o futuro é car-
regado de perigos para a Igreja. Mais do que qualquer outro tempo, ele exige um
controle estrito.

Um tempo semi-histórico

A análise faz, então, aparecer uma grande ambivalência, em decorrência da coe-


xistência de várias configurações dos tempos históricos na Idade Média. Em pri-
meiro lugar, horizonte de espera e campo da experiência recobrem-se no essen-
cial. Predomina, assim, um tempo que retoma e pretende repetir-se, que deprecia

A CIVILILAÇÀO FEUDAL '''


'-)
o presente e valoriza a volta a um passado considerado melhor (nesse ponto, o
tempo medieval é parecido com o tempo pré-hispânico, igualmente concebido
como um declínio). Sua imagem é, por excelência, a Roda da Fortuna, tema
introduzido na interpretação cristã da história pela Consolação da filosofia de
Boécio (século VI) e largamente utilizado na Idade Média, tanto nos textos como
nas imagens (figura 29, na p. 325). Sobre a roda acionada pela personificação
da fortuna, um homem eleva-se ao cume do poder, depois, nem bem atingido
seu objetivo, encontra-se derrubado de seu trono. Assim, aquele que se eleva
será rebaixado, e aquele que se rebaixa será elevado. Além de sublinhar a insta-
bilidade e a vaidade das coisas, a Roda da Fortuna propõe a imagem de um
tempo que reconduz inelutavelmente ao mesmo. De certo modo, essa visão cir-
cular do tempo avizinha-se da percepção de um tempo imóvel, pois os altos e os
baixos da Roda da Fortuna aparecem como tantas peripécias negligenciáveis e
nenhum evento pode trazer verdadeira novidade, ao menos até o fim dos tem-
pos. ~mpo que retoma transforma-se em um tempo que não passa. Assim, à
força de jogar com as correspondências entre passado e presente -como quan-
do Eginhardo recopia passagens inteiras das Vidas dos doze Césares de Suetônio
para compor sua biografia de Carlos Magno-, a diferença entre passado e pre-
sente tende a se apagar, deixando lugar, finalmente, a um sentimento de atem-
poralidade. Eric Auerbach analisou bem como tais conexões não podem ser
estabelecidas, a não ser que os fatos cronologicamente separados "sejam ligados
à Divina Providência". Esta aparece como o plano de inscrição temporal comum a
todos os eventos terrestres, que permite associá-los no olhar eterno de Deus,
desfazendo a disposição cronológica do tempo histórico.
O tempo cristão linear e irreversível, dominado pelo horizonte de espera, é
apenas um aspecto do tempo medieval. Ele é, no essencial, inscrito na perspec-
tiva escatológica e, tende, por este fato, a congelar a história humana, a imobi-
lizá-la na espera do fim dos tempos. Entretanto, foi possível notar indícios de
transformação, marcas excepcionais de valorização do presente ou de espera
não escatológica, que se distanciam da visão dominante do tempo, sem, entre-
tanto, dar lugar a uma concepção histórica nova. Do mesmo modo, se a cons-
ciência do instante fugaz é geralmente minimizada em relação a um tempo imó-
vel ou repetitivo, ela se afirma, porém, de maneira crescente, em particular no
romance e na poesia. Guilherme de Lorris, no Romance da rosa, evoca o tempo
"que parte noite e dia sem se repousar nem fazer uma pausa ... o tempo que não
pode ficar no mesmo lugar, mas que continua sempre sem retorno, como a água
que escoa por tudo e da qual nenhuma gota remonta". No entanto, mesmo que
sejam tão notáveis, tais afirmações inscrevem-se na continuidade do tema con-
vencional da fragilidade das coisas humanas e da brevidade da vida, que os clé-

324 }érôme Baschet


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29. A Roda da Fortuna, c. 1180 (Hortus Deliciarum, fl. 215; segundo Gérard Carnes, o manuscrito foi
destruído em 1870).
A personificação da fortuna aciona a roda que submete todos os destinos humanos ao caráter aleatório da ascen·
são e da queda. À esquerda, dois homens elevam-se a altas posições; no alto, um rei em majestade acumula poder
e bens materiais; à direita, o poderoso cai e perde sua coroa. Representada em geral nas miniaturas e na arte
monumental a partir do século XII, a Roda da Fortuna é, por vezes, acompanhada de inscrições que explicitam o
seu sentido. Elas podem ser mais sintéticas do que aqui, associando aos diferentes personagens as seguintes fór-
mulas: "eu reinarei", "eu reino", "eu reinei", "eu estou sem reino". A articulação do tempo- passado, presente,
futuro - desenha o círculo de um eterno recomeço, sublinhando assim o caráter vão das coisas terrestres.
rigos usam muitas vezes para incitar a pensar no além e na salvação. Além disso,
a insistência, melancólica ou dramática, sobre a irreversibilidade do tempo de
cada vida individual pode muito bem ser combinada com um tempo repetitivo,
desde que se considere uma escala mais ampla, englobando a sucessão das gera-
ções e a história humana em seu conjunto. Entretanto, entre os séculos XIII e XV,
o fato de atribuir a este tempo da vida que passa uma expressão crescente é um
modo de legitimar e ampliar sua experiência. Assim, mesmo se ele não chega a
dominar a visão da história, a erupção do tempo irreversível é, ao menos, senti-
da. no fim da Idade Média, sob a forma de uma obsessão da morte. No geral,
resulta da coexistência dessas diferentes percepções do tempo histórico uma
"dualidade da concepção do mundo" (Aaron Gourevitch). O tempo que retoma
ou que não passa é corroído pelo tempo irreversível da história. Mas a Idade
Média permanece dominada por um tempo semi-histórico, que combina, aqui
embaixo, Ull) pouco de tempo irreversível e muito de tempo repetitivo.

ÜS LIMITES DA HISTÓRIA E OS
PERIGOS DA ESCATOLOGIA

A escritura da história

Uma análise sucinta da historiografia medieval - com base nos trabalhos de


Bernard Guenée- permite confirmar essas ambivalências. O saber histórico é
seguramente importante para uma cultura fundada sobre a memória e que situa
no passado suas referências fundamentais. Benzo, bispo de Alba no século XI,
indica: "Se os livros dissimulam os fatos dos séculos passados, então, eu pergun-
to, sobre os passos de quem os descendentes devem andar? Os homens, seme-
lhantemente às feras, seriam privados de razão caso não fossem informados do
tempo das seis idades". Decorre disso uma produção historiográfica que tem,
entre suas obras mais difundidas, as Histórias de Gregório de Tours, que nos
informa sobre o século VI franco, a História eclesiástica do povo inglês de Beda,
o Venerável (731 ), e depois, no século XIII, o Espelho historiai de Vicente de
Beauvais e as Grandes crônicas da França. Estas são obras de clérigos - bispos
(como Gregório de Tours), monges trabalhando voluntariamente em equipe em
monastérios especializados nesse tipo de produção (como a abadia de Saint-Denis,
principal centro historiográfico da monarquia francesa) ou frades mendicantes
(como o dominicano Vicente de Beauvais) - até que autores laicos tomem o

3lr jérôme Baschet


seu lugar no fim da Idade Média (como Froissart ou Filipe de Commynes) e que
Carlos VIl -logo seguido por outros soberanos- crie, em 1437, o ofício de
cronista da França. Ao lado dos Anais (que põem em evidência os anos sucessi-
vos e indicam os eventos correspondentes) e das Histórias (que oferecem uma
narrativa mais guarnecida), o gênero mais eminente é o das Crônicas universais,
que apresentam a história humana desde a Criação do mundo até o momento
da redação da obra. Existem também, a partir do século XII, histórias mais locais,
regionais, urbanas, ou mesmo que expressam a preocupação genealógica de
uma linha nobre, como as História dos condes de Anjou.
A crônica universal parece dar corpo à história cristã linear. Isto, no entan-
to, está longe de ser certo; tanto é verdade que uma cronologia unificada fun-
dada sobre a Encarnação só se impõe muito tardiamente. Por muito tempo, a
historiografia medieval a ignora: a maior parte das crônicas universais é organi-
zada em função da sucessão dos imperadores e o Espelho historiai de Vicente de
Beauvais ainda faz dos reinos imperiais o eixo de sua cronologia. Pouco a pouco,
no entanto, e principalmente a partir do século XIV, o recurso à era da
Encarnação generaliza-se, contribuindo, assim, a integrar o conjunto dos fatos
em uma cronologia unificada. Para chegar a isso - e a despeito dos erros pon-
tuais - , um grande esforço é necessário a fim de estabelecer genealogias reais
imperiais e pontifícias, listas de soberanos e de grandes personagens (diferen-
ciados, então, por números), e para datar precisamente os reinos que serviam de
parâmetros para as obras históricas anteriores. Os historiadores medievais tor-
nam-se, assim, "virtuoses da cronologia", e "a grande realização da erudição
medieval foi situar todos esses dados dispersos em uma só era da Encarnação"
(Bernard Guenée). A produção de tal cronologia unificada é um instrumento
suscetível de confirmar uma visão linear da história, mas é claro que ela não a
pressupõe necessariamente.
A despeito desses avanços, a historiografia medieval esbarra em limites ter-
ríveis. As bibliotecas medievais permanecem pouco servidas de textos históricos
e, fora alguns best-sellers já mencionados acima, as obras, em particular as mais
recentes, circulam em número bastante reduzido, mesmo se a produção cres-
cente de manuscritos, entre os séculos XIII e XV, permite uma sensível melhora.
As fontes são igualmente restritas: o recurso aos arquivos é excepcional e limi-
ta-se, no melhor dos casos, aos que são possuídos pela instituição na qual o his-
toriógrafo trabalha. Os livros de história são, no essencial, compilações de obras
anteriores, completadas pelo testemunho do autor e dos contemporâneos que
ele pôde interrogar. Enfim, ignora-se quase tudo da crítica das fontes e os crité-
rios de verdade histórica são, acima de tudo, a verossimilhança e a autoridade

A CIVILIZAÇAO FEUDAL 3_:>;-


da fonte de informação (princípio acrítico segundo o qual uma narrativa vale
tanto quanto o prestígio, real ou suposto, de seu autor). Além disso, se a histó-
ria é um saber julgado importante, ela não é um ofício em tempo integral. Ela
também não é uma disciplina universitária, nem mesmo é ensinada entre as
artes liberais (nas quais se encontram, principalmente, a astronomia, a gramáti-
ca e a retórica). Os objetivos conferidos ao conhecimento histórico limitam
igualmente o seu alcance: ele deve ensinar e edificar (e, acessoriamente, diver-
tir), quer dizer, servir de exemplo. Quer se utilize ou não a fórmula historia
magistra vitae, corrente desde Cícero até o século XVIII, é bem desta concepção
que trata a historiografia medieval. Não poderia ser diferente em um regime de
historicidade que sobrepõe experiência e espera, e que ignora, então, toda ver-
dadeira separação entre o passado e o presente. É por isso que a história pode
pretender tirar do passado lições aplicáveis em situações idênticas que o presen-
te faz retornar.
Perce9e-se, então, o maior limite das concepções de história da Idade
Média (sem falar do fato de que o único verdadeiro ator dessa história é Deus;
os homens sendo apenas os instrumentos através dos quais se realiza o plano
divino). A ausência de separação clara entre o ontem e o hoje projeta sem freios
o presente no passado e vice-versa. Os personagens históricos raciocinam como
os contemporâneos dos cronistas. Atribui-se aos antigos romanos a ética cortês
dos cavaleiros do século XII, enquanto os artistas vestem os heróis da Bíblia e da
Antiguidade como clérigos medievais ou cavaleiros enfiados em suas armadu-
ras. Inversamente, o passado pode projetar-se no presente, fazendo de uma luta
contemporânea a repetição de um combate bíblico. Assim, "a consciência his-
tórica, na medida em que se pode empregar este termo para a Idade Média, per-
manecia essencialmente anti-histórica. Daí vem esse traço inerente da historio-
grafia medieval- o anacronismo" (Aaron Gourevitch). A despeito de um certo
desenvolvimento da cultura histórica, sobretudo entre os séculos XII e XV, a his-
toriografia partilha da mesma ambigüidade que a concepção medieval dos tem-
pos históricos. Ela se funda, no essencial, em uma visão acrítica e anti-históri-
ca, pois, inscrita em um tempo repetitivo ou imóvel, ela tem dificuldade para
diferenciar o passado e o presente. A historiografia medieval é, então, separada
da nossa própria concepção de história por uma dupla ruptura: a sistematização
das regras da crítica do documento histórico (a partir do século XVII) e a instau-
ração (um século mais tarde) de um regime moderno de historicidade fundado
sobre a distância entre experiência e espera, que permite, então, fazer do pas-
sado um objeto de estudo completo.

3l,' Jérôme Baschet


A iminência (adiada) do fim dos tempos

O eco suscitado pelo Apocalipse de João na cultura medieval é considerável,


tanto na teologia como na arte, desde as suntuosas miniaturas de Beatus de
Liébana (figura 30, na p. 330) até as tapeçarias de Angers (século XIV). Entre-
tanto, é importante precisar que o Apocalipse não concerne unicamente ao fim
do mundo: ele é lido pelos exegetas como uma recapitulação simbólica da his-
tória da salvação, em que se misturam passado, presente e futuro da Igreja (a par-
tir de 1100, precisa-se até mesmo que somente os últimos capítulos, a partir do
15 2 , referem-se ao Juízo Final). Na Idade Média, Apocalipse não é, então, sinô-
nimo de escatologia, termo que convém, no mais, distinguir claramente da noção
de milenarismo. A escatologia (do grego eschata, as coisas derradeiras) designa
o que tem relação com o fim do mundo e o Juízo Final, tal como são anuncia-
dos pelo Novo Testamento e pela tradição. O milenarismo é uma variante da es~
catologia, no sentido de que ele espera um futuro associado à última fase da his-
tória universal; mas, longe de esperar somente o fim dos tempos e a destruição
do mundo, ele anuncia antecipadamente o reino de Cristo sobre a terra, esta-
belecendo para todos os homens uma ordem paradisíaca de paz e justiça.
A considerável distância entre essas duas versões da espera - uma que vê
no aqui embaixo apenas destruição e remete toda promessa positiva para o
além, outra que inscreve seu otimismo na vida terrena - deriva de uma diver-
gência de interpretação do capítulo 20 do Apocalipse. Seus versículos 3 e 4 indi-
cam que, ao termo da primeira ressurreição, o diabo será aprisionado e começa-
rá, então, o reino dos justos com Cristo, durante mil anos (millenium), e depois
intervirão a segunda ressurreição e o Juízo Final. Se, segundo a expressão e a
análise de Guy Lobrichon, o Apocalipse é "uma formidável bomba" cuja retoma-
da em mãos e cujo aprisionamento exigiram longos esforços aos teólogos da
Idade Média, este é particularmente o caso desses versículos. Com efeito, sua
interpretação literal, imediata, parece dar razão às correntes milenaristas, e é
por isso que a Igreja, julgando essa leitura eminentemente perigosa, empenhou-
se em impor outras. Agostinho, a quem cabe papel determinante na questão,
afirma, na Cidade de Deus, que a primeira ressurreição mencionada pelo texto
sagrado corresponde à Encarnação (pois o batismo permite aos homens renas-
cer na graça). Em conseqüência, o millenium é o tempo presente da Igreja, reino
terrestre dos justos com Cristo, apesar da presença de pecadores e de ímpios
que a perseguem. Não é um período da história do futuro, mas sua fase atual,
destinada a ter fim com o Juízo Final. Aqui, uma interpretação literal da propo-
sição de Agostinho poderia conduzir a fixar no ano mil o termo do millenium e,

A CIVILIZAÇÃO F EU DA L 3.2 'I


.~o.,~Jerusulém <·clcstc no Comentário doApoculipse, de Beatus de Liébana, c. 950 (Biblioteca Nacional,
Madri, ms. Vit. 14-2, 11. 253v.)
Os manuscritos do Comentário do Apocalipse, de Beatus de Liébana, iluminados na Península Ibérica e no
Sudoeste da França, principalmente nos séculos X e XI, contam entre as obras-primas da arte moçárabe.
Seguindo a descrição do Apocalipse. a Jerusalém celeste é uma cidade quadrangular com doze portas e mura-
lhas de pedras preciosas (no centro, figuram são João, o anjo que mede a cidade e o cordeiro de Cristo, portan-
do a cruz). Esta miniatura leva ao extremo a lógica de planitude da arte medieval, pois todos os muros são nive-
lados no mesmo plano, o da página. Por este eficaz procedimento de mostração, o artista pode exibir na
totalidade os quatro lados da cidade celeste, sem submetê-la à arbitrária deformação do ponto de vista huma·
no. Ele figura, assim, sua perfeita geometria, ainda glorificada pelo vigor das cores.
então, o fim dos tempos. Mas Agostinho toma o cuidado de conciliar sua inter-
pretação com a indicação do Evangelho, segundo a qual "ninguém conhece nem
o dia nem a hora", acrescentando que os "mil anos" do Apocalipse não signifi-
cam uma duração precisa, mas designam simbolicamente um tempo perfeito,
cuja duração permanece ignorada pelos homens. Enfim, a partir do século XI,
uma outra interpretação identifica a primeira ressurreição àquela dos justos, no
final dos tempos, de modo que o millenium é excluído da temporalidade terres-
tre e englobado na temporalidade do Juízo Final.
A escatologia oficializada pela Igreja caracteriza-se, então, pela espera do
fim do mundo e dos eventos dramáticos que devem precedê-la. Além de nume-
rosos cataclismos naturais e as vagas de invasões de Gog e Magog- dois povos
mantidos, até então, prisioneiros no Oriente - , é sobretudo o Anticristo que
polariza essa espera. Evocada em uma Epístola de João, essa figura ganha con-
sistência em um comentário de são Jerônimo e, depois, em vários tratados
medievais, dentre os quais o do monge Adson de Montier-en-Der, redigido em
954 e destinado a uma ampla difusão a partir do século XII. Em relação a esse
personagem de origem supostamente judaica, nascido, sem dúvida, na Babilônia
e que é, em todos os aspectos, o contrário do Cristo, sua réplica maléfica, a ponto
de ser qualificado de "filho do Diabo", os clérigos avaliam que seu reino de três
anos e meio será marcado por grande desordem e pela perseguição dos cristãos
e que, após sua morte no Monte das Oliveiras em Jerusalém, a humanidade terá
somente alguns poucos dias para viver antes do Juízo Final. Em conseqüência,
as catástrofes observadas, os conflitos e os tumultos vividos na Idade Média são
regularmente interpretados como signos precursores da vinda do Anticristo, ou
até mesmo como manifestação de sua presença. Sendo o Anticristo "a figura
central do evento escatológico" (Bernhard Tõpfer), tal leitura dos fatos presen-
tes mantém, ao longo de toda a Idade Média, o sentimento da iminência do fim
dos tempos.
Por analogia com os seis dias da Criação, espera-se que o mundo deva durar
6 mil anos (um dia para Deus equivalendo a mil anos). Fundando-se na palavra
do Evangelho, que associa a vinda de Cristo à última hora (ou seja, o ano 5500
a partir da Criação), os primeiros cristãos fixaram o fim do mundo no ano 500, o
que pode explicar algumas inquietudes escatológicas atestadas em 493-96. É, no
entanto, no intuito de neutralizar essa interpretação literal dos seis dias de Deus
que Agostinho tinha proposto sua concepção das seis idades do mundo, enquan-
to outros autores, seguindo Eusébio de Cesaréia, adotaram uma outra contagem,
remetendo o fim do mundo até 800. Um pouco mais tarde, Beda, o Venerável, re-
toma novamente os cálculos e situa a Encarnação 3.950 anos depois da Criação,
recusando-se, como Agostinho, a quantificar a duração do mundo. A história dos

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL ) )/
cômputos cristãos parece ser, assim, a dos rejuvenescimentos sucessivos do
mundo, que são igualmente adiamentos do final do prazo escatológico. Certas
particularidades de calendário, no entanto, podem fazer também com que a fe-
bre aumente; Abbon de Fleury informa que "quase no mundo inteiro corria o
rumor de que, quando a Anunciação coincidisse com a Sexta-Feira Santa, sem
dúvida seria o fim do mundo" (esta conjunção produziu-se em 970, 981, 992,
1065 e 1250; ela caracteriza também o ano 1, que Dioniso, o Pequeno, escolhe,
sem dúvida por esta razão, como parâmetro da era cristã).
No século X, o abade Odon de Cluny está convencido da vinda próxima do
Anticristo, mesmo que, como se viu, o ano mil não focalize as preocupações
escatológicas mais do que as outras datas .. No século XII, as primeiras cruzadas
desenrolam-se em um clima de espera do fim do mundo, "em vista dos tempos
próximos do Anticristo", como Guiberto de Nogent faz o papa Urbano 11 dizer; do
mesmo modo, os conflitos entre o papa e o imperador são em geral considerados,
especialmente -pôr Oto de Freising, tumultos anunciadores dos últimos tempos.
O século XIII não é menos escatológico: entre 1197 e 1201 corre o rumor de que
o Anticristo já nascera; pouco depois, Frederico 11 é candidato a este papel e o
ano de 1260 vê surgir, especialmente na Itália, diversos movimentos de penitên-
cia, especialmente o dos flageladores, suscitado em Perúgia por Raniero Fasani,
enquanto, no fim do século, o médico Arnaldo de Vilanova, em seu tratado sobre
o Anticristo, prediz o fim do mundo para 13 78. A peste negra de 1348 reaviva a
inquietude e suscita um novo movimento de flageladores que se esforçam para
apaziguar a cólera divina e conjurar a ameaça de destruição do mundo (figura 25,
na p. 249). Durante o Grande Cisma que divide a Igreja entre 1378 e 1417, cada
papa é qualificado de Anticristo pelos seus adversários, enquanto as profecias
pululam. Por volta de 1380, o dominicano catalão Vicente Ferrier anuncia que o
cisma durará até a chegada do Anticristo; em sua pregação, que agita as massas
da Europa meridional, ele exorta os fiéis a fazerem penitência diante da iminên-
cia do fim do mundo e sugere, em uma carta ao papa, que o Anticristo já pode-
ria ter nove anos. Enfim, o próprio Lutero não pára de repetir que o fim dos tem-
pos virá no ano seguinte e o Anticristo é um tema onipresente nas polêmicas
suscitadas pela Reforma protestante. Assim, se existem ciclos breves, ao longo
dos quais a febre escatológica aumenta e, em seguida, diminui, na longa duração
medieval a espera escatológica não parece nem se reforçar nem diminuir, mas
parece, antes, constante.
A espera escatológica, tal como a Igreja consegue enquadrá-la, integra-se
precariamente em seu ensinamento e em sua ação pastoral (mesmo se nem
sempre é fácil dissociar escatologia e milenarismo e se muitos movimentos evo-
cados há pouco têm colorações milenaristas). Nessa ótica, a iminência do fim dos

3 ) ~ }érôme Baschet
tempos não convida absolutamente a transformar as realidades sociais, mas
antes a fazer penitência e a renunciar urgentemente a seus pecados. O futu-
ro ameaçador da escatologia é uma advertência insistente em favor da salva-
ção da alma e em benefício da Igreja que é sua melhor garantia. A espera do
fim do mundo é, então, um fator de integração social, que reforça a domina-
ção da Igreja, ao menos desde que nenhuma data precisa e nenhum cenário
excessivamente detalhado sejam fixados. Se isso fosse feito, a escatologia arris-
caria, ao contrário, tornar-se "um fator de desintegração", retirando da Igreja
o controle sobre esse futuro tornado muito próximo, ou até mesmo minando a
necessidade das instituições terrestres. Se é claro que a Igreja, que "quer se per-
petuar no tempo" (Claude Carozzi), se consagra a controlar as tensões escato-
lógicas, a oposição crucial talvez não seja tanto entre os perigos de uma escato-
logia imediata e a remissão do fim do mundo para um tempo longínquo que
faria diminuir a tensão. A questão, para a Igreja, consiste mais em afastar toda
profecia com data a fim de pôr em cena um futuro próximo mais indeciso e, por
conseqüência, sempre suscetível de ser postergado. Esta estratégia de uma imi-
nência incessantemente retardada pode funcionar na medida em que a certeza
da previsão no longo termo é mais importante do que a justeza ou a inadapta-
ção das esperas imediatas. É preciso, sobretudo, que a Igreja guarde o monopó-
lio como "a organização deste fim do mundo que não chega, de modo que ela
mesma possa se estabilizar sob a ameaça de um fim de mundo possível e na
esperança da parúsia [retorno de Cristo]". Confiante nesta afirmação, Reinhart
Koselleck afirma que o futuro escatológico não corresponde ao fim de um
tempo concebido como linear, mas se integra, de fato, ao tempo presente, como
elemento constitutivo da estabilidade da Igreja e de sua dominação.

A subversão milenarista: o futuro, aqui e agora

Apesar de tudo, o esforço da Igreja para dominar o tempo escatológico e arro-


gar-se o controle das profecias é apenas parcialmente coroado de sucesso. As
tendências milenaristas, ativas entre os primeiros cristãos em ruptura com o
mundo romano e, depois, eficazmente amordaçadas por Agostinho, não param
de reaparecer. É verdade que a esperança milenarista de um outro futuro ter-
restre nem sempre assumiu colorações contestadoras, como indica o tema do
último imperador que, nos séculos X e XI, anuncia um longo reino de paz duran-
te o qual este imperador deve converter o mundo inteiro ao cristianismo. Mas,
durante a Idade Média Central, o risco se torna ainda maior. Por volta de ll 00,
Tanchelm de Flandres levanta as multidões com sua violenta crítica do clero.

A CIVILIZAÇÃO FEUI)AL 3))


Sem dúvida, ele oferece aos seus discípulos a esperança de formar, aqui embai-
xo, uma comunidade perfeita, livre do pecado; porém, o caráter escatológico de
seu movimento permanece difícil de estabelecer, a despeito das acusações que
fazem dele um percursor doAnticristo. Quanto a Éon de l'Étoile, submetido ao
Concílio de Reims em 1148, ele é acusado de pretender ser um novo Cristo,
vindo para julgar os vivos e os mortos. Uma das figuras mais importantes para
o milenarismo medieval é, sem nenhuma dúvida, Joaquim de Piore, abade cis-
terciense da Calábria, morto em 1202. Partilhando o sentimento da iminência
do fim dos tempos, ele declara a Ricardo Coração de Leão, que viera consul-
tá-lo, que o Anticristo já havia nascido e que ele se tornaria papa. Mas sua prin-
cipal contribuição consiste em ter dividido a história humana em três épocas:
a passada, do Pai (o Antigo Testamento), a presente, do Filho (o Novo Testa-
mento), e a futura, do Espírito, durante a qual os fiéis encontrariam a plenitu-
de da revelação divina. Esta terceira idade, muito breve, não é explicitamente
associada ao millenium por Joaquim que, animado sobretudo por um ideal
monástico tradicional, o apresenta como a realização perfeita de uma Igreja
espiritual, sob o impulso de duas novas ordens religiosas, que substituem a
antiga hierarquia eclesiástica.
Se os escritos de Joaquim de Piore conhecem grande sucesso mais tarde, em
particular entre os franciscanos, convencidos de formar, com os dominicanos, as
duas ordens da profecia, numerosos autores influenciados por ele, especialmen-
te no ambiente dos franciscanos espirituais, radicalizam suas teorias. Geraldo de
Borgo San Donnino proclama, na sua Introdução ao Evangelho eterno, publicada
em 1254 em Paris, que o Evangelho do Espírito Santo anunciado por Joaquim
virá revogar o Antigo e o Novo Testamento. Tais idéias inspiram diferentes movi-
mentos, como o dos Frades Apostólicos, surgido em Parma por volta de 1260 e
dirigido, de início, por Geraldo Segarelli, até sua morte na fogueira, em 1300,
e, depois, por Fra Dolcino, que confia a seus discípulos a missão de salvar as
almas durante os últimos dias do mundo. A despeito de suas variantes, todos
esses movimentos denunciam a Igreja institucionalizada (dita carnal) e preten-
dem destruí-la para estabelecer uma outra Igreja (dita espiritual), destinada a
permanecer sob a condução direta do Espírito Santo até o fim dos tempos. No
início do século XIV, Ubertino de Casale, que radicaliza a crítica da Igreja carnal
até qualificar o papa Bonifácio VIII de Anticristo, confirma a transgressão de
Joaquim assimilando a terceira época do Espírito a uma sétima idade, que ele
adiciona à periodização agostiniana da história. Nesse ponto, todo o esforço cle-
rical de contenção do perigo milenarista desaba e Ubertino pode anunciar para
a humanidade um futuro do qual estima a duração em seis ou sete séculos e que

3 i.J }érôme Baschet


verá o triunfo de uma Igreja purificada, que realiza o ideal de pobreza absoluta
dos espirituais e a conversão da maior parte dos judeus e pagãos.
O ponto culminante do milenarismo medieval é atingido, sem dúvida, na
Boêmia, com a insurreição hussita. Em 1419, uma parte do movimento lança-
do por Jan Hus, condenado à fogueira por heresia pelo Concílio de Constança
em 1415, radicaliza-se, anunciando que Deus iria destruir todos os homens,
com exceção daqueles que encontrassem refúgio sobre o monte Tabor e nas
cinco cidades que aderiram às concepções hussitas. Em 1420, os "taboritas"
radicais arrogam-se a missão de erradicar o mal sobre a terra e de combater
pelas armas os que se opusessem ao estabelecimento do reino de Cristo: "Os
irmãos taboritas devem, a ferro e fogo, vingar-se contra os inimigos de Deus,
contra todas as cidades, aldeias e povoados", diz o seu regulamento, precisando
ainda que, "nestes tempos de fim dos séculos, que se chama dia da vingança,
Cristo chegou secretamente, como um ladrão", para "instituir aqui embaixo
a sua Igreja". Em seu sonho, o pecado não existe mais, a instituição eclesial e
os sacramentos são inúteis, toda autoridade secular é banida, a servidão e os
impostos são suprimidos, enquanto a comunidade de bens e a fraternidade espi-
ritual impõem-se a todos: "Nunca mais alguém constrangerá outra pessoa ao
que quer que seja, pois todos serão iguais entre eles, irmãos e irmãs". Mas, em
1421, os moderados sobrepõem-se no Tabor e massacram militarmente os dis-
sidentes milenaristas. A importância desse movimento é, entretanto, notável,
em razão de seu impacto popular e de seu radicalismo que, chegando a admitir
mesmo o emprego da força, ganha uma dimensão propriamente revolucionária.
Esse exemplo não deixou de ter sucessores e é possível notar um eco seu
quando Tomás Müntzer assume a liderança dos camponeses revoltados em 1525
e anuncia a realização em Mühlhausen, na Turíngia, da Jerusalém celeste na terra.
De resto, o milenarismo prolonga-se muito além e Eric Hobsbawm chamou a
atenção para a importância desse filão nos movimentos populares radicais dos
séculos XIX e XX, especialmente na Itália e na Espanha. O milenarismo comparti-
lha, então, de uma visão ambiciosa, até mesmo revolucionária, da mudança social,
capaz de conferir uma confiança absoluta em um mundo novo, mas que, por isso
mesmo, não está desprovida de fraqueza, pois leva a crer que esse mundo ideal
poderia advir sem esforço, quando do Grande Dia, como que por efeito da vonta-
de divina. Mesmo no mundo colonial se notou o eco do milenarismo, como duran-
te a rebelião tzeltale-tzotzile-chole 29 em Chiapas, em 1712. A insurreição é, com
efeito, pela jovem tzeltale Maria Candelária, que transmite as mensagens da
Virgem ordenando a seus fiéis que destruam a dominação colonial e instaurem

29. Designação de comunidades indígenas mexicanas. (N. T.)

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 335


uma ordem justa e uma igreja indígena (Antonio García de León). Também aqui,
é em nome de Deus (ou da Virgem) e de sua justiça que uma nova ordem terres-
tre é estabelecida, mas não é certo que se encontre, nesse caso, uma referência
precisa às concepções escatológicas medievais e ao millenium.

Forma medieval da utopia, o milenarismo permite a manifestação de um dese-


jo de transformação social radical. Tratando-se de um mundo no qual a Igreja
e a sociedade constituem realidades coexistentes, não é surpreendente que a
revolta contra a ordem estabelecida tome a forma que, hoje, diríamos "religio-
sa". Do mesmo modo, já que a Igreja controla estritamente os quadros tempo-
rais dessa sociedade, não seria surpresa ver que essa contestação subverte jus-
tamente a ordem dos tempos, aspecto tão importante de sua dominação.
A despeito de mtílrtplas opções intermediárias, duas visões radicalmente opos-
tas do fim dos tempos afrontam-se. Na escatologia da Igreja, a espera de um fim
do mundo iminente, mas incessantemente protelado, transforma-se paradoxal-
mente em garantia de um presente estável, governado pela instituição eclesial.
O milenarismo, ao contrário, retoma o futuro da história humana, acrescentan-
do uma terceira idade aos dois Testamentos ou uma sétima época à periodiza-
ção agostiniana. Acelerando os tempos e projetando o reino celeste de Cristo no
presente terrestre dos homens, ele esboça uma visão histórica aberta à promes-
sa de um futuro novo.

CONCLUSÃO: UM TEMPO SEMI-HISTÓRICO,


CORROÍDO PELA HISTÓRIA

A despeito das contradições, das contestações milenaristas e dos esboços de


tempos diferentes, a Igreja ordena o essencial das estruturas temporais da socie-
dade medieval. Os sinos que ela faz dobrar dão ritmo às atividades de cada dia;
a interdição ao trabalho dominical pontua a semana; o ciclo anual da liturgia for-
nece um parâmetro essencial para toda a vida social, assim como a cronologia
ordenada pela Encarnação de Cristo. Assim, a despeito das fricções com o
tempo agrícola dos produtores, com o tempo indeterminado dos torneios, com
o tempo dos mercadores que inaugura timidamente uma medida de horário liga-
da ao trabalho artesanal ou, ainda, com uma história profana calcada sobre
a sucessão dos impérios e dos reinos, o tempo dominante do feudalismo é o

336 }érôme Baschet


tempo da Igreja. Este é um dos traços notáveis do papel que exerce a Igreja na
sociedade medieval, pois não somente os tempos de que ela dá a medida forne-
cem os quadros e os parâmetros da maior parte das atividades sociais, mas tam-
bém informam a visão do mundo de seu devir.
É preciso, ainda, nuançar esta conclusão. Por mais cristianizado que seja,
finalmente o tempo impõe, na sociedade medieval, apenas uma coerção relati-
va. Fora o domingo e os dias de festas importantes, a maioria dos aldeãos, sem
dúvida, ignora o dia em que vivem, de modo que, caso alguma necessidade par-
ticular obrigue a sabê-lo, lhes é necessário consultar o padre, especialista do
tempo. Nem o momento da jornada, no melhor dos casos qualificado em rela-
ção a um sistema frouxo e pouco preciso, nem o ano são mais bem conhecidos
(sem falar do fato de que "os homens dessa época não pensavam normalmente
por número de anos e menos ainda por números claramente calculados a partir
de uma base uniforme"; Marc Bloch). Tal maneira de apreender o tempo é
quase impensável para o homem moderno, que não pode viver sem saber a data
e a hora exata e que, uma vez sem agenda, é inapto à vida social. A fortiori ele
tem dificuldade para imaginar que os homens comuns da Idade Média não
conheçam exatamente sua idade (muitas vezes ela é estimada por dezenas, indi-
cando nos documentos que a pessoa tem trinta, quarenta ou cinqüenta anos) e
que provavelmente ignorem também a data de seu nascimento. A despeito de
sua importância, o tempo talvez não seja o quadro mais coercitivo da sociedade
medieval, hipótese esta que conviria precisar depois de ter examinado a organi-
zação espacial.
É preciso sublinhar o caráter contraditório do tempo medieval. Como todas
as sociedades tradicionais, a Idade Média é dominada pelo passado, referência
ideal e legitimação dos fatos presentes; mas ela acrescenta aí o peso esmagador
do futuro, sob a forma da espera escatológica de um além eterno ou da esperan-
ça milenarista do paraíso sobre a terra. No mais, ela combina o tempo irreversí-
vel de uma história sagrada, que avança linearmente do seu início para seu fim,
e um tempo anti-histórico, que retoma incessantemente. Debatendo-se entre
cronologia e eternidade, o tempo do feudalismo é semi-histórico. Essa socieda-
de valoriza o passado e não pode pensar a novidade senão como retorno ou
renascimento, permanecendo, então, estrangeira à noção moderna de história,
que se impõe no fim do século XVIII. Entretanto, apesar dessas diferenças fun-
damentais, a visão linear e orientada do tempo cristão prepara, de certa manei-
ra, a afirmação do sentido moderno de história. A História abstrata dos filósofos
do Iluminismo aparece, de resto, como uma versão laicizada da Providência
divina. E, enquanto a escatologia vê a cristandade avançar para o fim dos tem-
pos e para o Juízo Final, a modernidade pensa uma humanidade marchando

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 337


com toda a certeza para um fim anunciado, que a fixará no melhor dos mundos
possíveis - triunfo autoproclamado do capitalismo ou o amanhã radiante do
comunismo. Então, no seio de um tempo medieval anti-histórico, mas já corroí-
do pela história, há uma alavanca de liberação potencial em face da tradição, ao
passado e à sua repetição sob a forma de renascimentos sucessivos, uma força
que participa provavelmente da dinâmica ocidental do feudalismo e de sua pró-
pria superação,

338 }érôme Baschet


I I

A ESTRUTURAÇÃO ESPACIAL
DA SOCIEDADE FEUDAL

ASSIM COMO o TEMPO, o espaço é uma dimensão fundamental de toda realida-


de humana, e o historiador deve estar atento tanto ao desenrolar temporal dos
fatos sociais quanto à sua distribuição espacial. Além disso, o espaço não é um
recipiente inerte, nem mesmo uma noção atemporal que seguiria por si mesma,
de modo que convém analisar as estruturas próprias do espaço feudal, seja a
organização material do espaço social como também as representações que lhe
dão sentido e consistência. De fato, o próprio emprego da noção de espaço pare-
ce problemático, pois, na Idade Média, esse conceito é ignorado, ao menos no
sentido que nós o entendemos, quer dizer, enquanto espaço contínuo e homo-
gêneo, infinito e absoluto (este último termo indica que a homogeneidade do
espaço, independentemente dos objetos que ele contém, não é afetada por
eles). Adotando uma concepção similar à de Aristóteles, a Idade Média prefere
a noção de lugar, definido como recipiente das coisas que se encontram nele.
Assim, a dimensão espacial não preexiste às realidades que ela contém e não
pode ser conc,kbida independentemente delas. Somente a partir das coisas exis-
tentes e de sflus valores respectivos é possível pensar o lugar que os engloba (no
mais, a palawa spatium designa principalmente o intervalo entre dois objetos).
"O lugar é o local onde se está", diz Isidoro de Sevilha em suas Etimologias: esta
fórmula é suficiente para definir o pensamento medieval do espaço e nos lem-
bra o trabalho necessário de distanciamento em relação à nossa própria visão,
sempre essencialmente cartesiana e newtoniana.
A natureza aristotélica ou não dessas concepções importa muito pouco. Em
revanche, sua adequação às necessidades de organização da sociedade é decisi-
va. "Na Europa feudal, o espaço não era concebido como sendo contínuo e
homogêneo, mas como descontínuo e heterogêneo, no sentido de que ele era
polarizado em cada lugar (certos pontos eram valorizados, sacralizados em reJa-

A CIVILIZAÇÃO FEUOAL 339


ção a outros, que eram percebidos - a partir dos primeiros e na relação com
eles- como negativos). Uma multidão de processos e de marcadores sociais
funcionava para singularizar cada ponto e opor-se a toda possibilidade de equi-
valência ou de permutação": seguiremos aqui as análises de Alain Guerreau, que
tendem a mostrar que tal lógica espacial é um elemento fundamental do feuda-
lismo, sistema cuja síntese organizacional foi definida como "encelulamento" e
cuja forma de dominação requer a fixação tendencial dos homens ao solo.

UM UNIVERSO LOCALIZADO, FUNDADO


SOBRE A LIGAÇÃO AO SOLO

Rede paroquial e reunião dos homens em torno dos mortos

Na primeira parte, já foram analisados a reorganização do hábitat e o reagrupa-


mento dos homens (congregatio hominum) que, em ritmos variáveis, segundo as
regiões, se opera, no essencial, entre a segunda metade do século X e o fim do
século XI. O encelulamento é um processo multiforme que, a um só tempo,
engloba os homens em suas estruturas novas do senhorio, faz nascerem as
aldeais cuja rede cobre as campanhas ocidentais e, sobretudo, leva à constitui-
ção das comunidades de habitantes, que se tornam o quadro essencial no qual
se organiza a atividade produtiva e sobre o qual se implanta a relação de domi-
nação senhorial. No entanto, se o castelo polariza com freqüência o reagrupa-
mento da população aldeã, é preciso considerar igualmente a igreja, sobretudo
porque a constituição da rede paroquial acompanha a formação dos senhorios e
das comunidades aldeãs. Durante a Alta Idade Média, a palavra "paróquia" (par-
rochia) designava, antes de tudo, os edifícios de cultos (como o termo "basíli-
ca"), e não extensões territoriais. Em algumas regiões havia, é verdade, subdivi-
sões das dioceses (por exemplo, as pieve italianas), mas se tratava de unidades
muito vastas que asseguravam apenas um fraco enquadramento das populações
rurais. E, mesmo se certas unidades já pudessem, em alguns lugares, reunir o
que se chamará mais tarde de paróquias, uma visão de conjunto - a única que
importa nesta matéria - obriga a uma constatação clara: "Por volta do ano mil,
a rede regular de paróquias não existe" (Robert Fossier).
Mais tarde, junto com o reagrupamento das populações em aldeias, estabe-
lece-se a rede paroquial que, nos séculos XII e XIII, termina por cobrir toda a
Europa Ocidental. Sem dúvida, o processo é mais precoce na Itália, favorecida
pelas subdivisões já existentes e pela antiguidade da cristianização. No entanto,

3-tO }ér6me Baschet


ali como no Norte, onde o processo é mais tardio, é preciso responder ao desen-
volvimento do mundo rural, à extensão das zonas habitadas e cultivadas, que
multiplica capelas e lugares de cultos secundários mal regulamentados, por
vezes controlados diretamente pelos senhores laicos. A formação da rede paro-
quial supõe, então, um duplo processo: de um lado, o desmembramento das
antigas estruturas, tais como a pieve italiana, e a construção de edifícios cultuais
associados aos novos centros de povoamento; e, por outro lado, a restituição das
igrejas e dos dízimos detidos pelos laicos. O resultado é a formação de um con-
junto de territórios paroquiais bem definidos, contíguos uns aos outros, contro-
lados pela autoridade diocesana e centrados na igreja, que constitui o coração
de uma aldeia recentemente formada (mesmo se, como se viu, paróquia, senho-
rio e aldeia raramente coincidam). Assim, o estabelecimento do quadro paro-
quial 2.;::--incomparavelmente mais estável que a implantação dos sítios castren-
ses e que a distribuição dos poderes senhoriais - aparece como um elemento
fundamental do encelulamento, que contribui para a estabilidade das popula-
ções rurais e, então, para a solidez do laço entre os homens e seu lugar, indis-
pensável ao funcionamento da dominação feudal.
Castelo e igreja, portanto; mas, "primeiramente, os mortos" (Robert Fossier).
A transformação das práticas funerárias é o sinal mais claro da mutação radical
que afeta a organização do mundo rural ao longo da Idade Média. Na Antigui-
dade romana, os mortos, considerados impuros, eram enterrados fora das cida-
des e longe dos espaços habitados. O culto cristão das relíquias e, então, o
sepultamento dos corpos santos nas igrejas urbanas, havia constituído uma pri-
meira infração dessa regra, suscitando a reprovação enojada dos pagãos. Mas,
quanto aos mortos comuns, os cristãos tinham, de início, seguido o costume
antigo, mesmo se alguns fiéis procuravam um sepultamento privilegiado ad
sanctos, quer dizer, próximo às relíquias santas, das quais esperavam a proteção.
Ao longo da Alta Idade Média, prevalece uma grande diversidade dos costumes
funerários, associada a um relativo desinteresse da Igreja por essa questão.
Segundo Agostinho, as práticas funerárias constituem costumes sociais, úteis ao
cons?lo dos vivos, mas sem efeito para a salvação da alma e, então, indiferentes
do pomto de vista da Igreja. Além do sepultamento ad sanctos, constata-se o
desenvolvimento das necrópoles em plena zona rural (os Reihengriiber germâni-
cos), assim como a abundância das sepulturas fora de toda estrutura coletiva,
nas casas ou terrenos privados. Em resumo, a Igreja de então não se encarrega
dos mortos de modo coletivo e sistemático.
A época carolíngia marca uma primeira etapa importante, caracterizada
pela afirmação da extrema-unção, pelo desenvolvimento da liturgia dos defun-
tos (ritual de funerais, missa pelos defuntos, ofício dos mortos) e pelo estabele-

A CIVILIZAÇAO fEUDAL 3-t/


cimento dos primeiros lugares coletivos de sepultura em contato com zonas
habitadas. Uma aproximação entre hábitat e zonas funerárias faz-se sentir, mas não
há ainda nenhuma regra estrita e o uso das sepulturas isoladas perdura. O pro-
cesso acelera-se no século XI e a implantação do cemitério em torno da igreja
generaliza-se (por vezes, a igreja é que é construída sobre sepulturas preexisten-
tes). Assiste-se, então, a um reagrupamento geral dos mortos em um lugar único
(em torno da igreja ou no interior dela, privilégio buscado pelos clérigos e aris-
tocratas) e a uma instalação dos mortos no centro do hábitat, tanto rural como
urbano (posição que ocuparão na Europa até o século XVIII, quando o discurso
higienista e, mais profundamente, a decomposição das estruturas feudais os re-
conduzirão para fora das cidades e burgos). Ao final de um processo que se ini-
cia no século VIII e se conclui para além do século XI, os vivos encontram-se,
então, reunidos em torno dos mortos (ilustração XI, na p. 343).
O estabelecimento do cemitério paroquial leva, assim, à inversão completa
da posição inicialmente adotada na seqüência de Agostinho. Doravante, a Igreja
passa a se ocupar, de maneira sistemática, dos defuntos e lhes confere um lugar
central (material e simbolicamente) no seio do espaço social. É testemunho
disso o estabelecimento de um novo ritual, atestado a partir do século X: a con-
sagração dos cemitérios faz deste um espaço separado, um lugar sagrado, do
mesmo modo que a igreja e em estreita associação com ela (Cécile Treffort).
Não somente ele é o coração da aldeia recentemente criada, mas tem, por
vezes, papel decisivo no próprio processo de encelulamento. Assim, na
Catalunha, o reagrupamento dos homens se faz (essencialmente entre 1030 e
1060) em torno da igreja e a sagrera, espaço geralmente dotado de uma exten-
são de trinta passos em torno do edifício (Pierre Bonnassie). Seu caráter sagra-
do, bem indicado pelo seu nome (sua violação é assimilada a um sacrilégio),
favorece o reagrupamento dos homens, oferecendo uma proteção das pessoas
e dos bens (colheitas, ferramentas etc.). É verdade que a sagrera não é apenas
uma zona funerária, já que ela inclui edifícios dependentes da igreja, tais como
o celeiro e a forja; mas, indiscutivelmente, o cemitério é uma parte importan-
te dela, às vezes ocupando-a inteiramente.
O reagrupamento dos vivos está, então, estreitamente associado ao reagru-
pamento dos mortos e, mesmo nas regiões onde este último não é seu motor, ao
menos ele se desenvolve como seu firme suporte e seu reflexo eficaz. A reunião
dos mortos no cemitério paroquial propõe -ou impõe - uma imagem forte da
congregatio hominum, pois ela é não somente obrigatória (doravante, as sepul-
turas isoladas são impensáveis), mas também comunitária: nele, as tumbas são
marcadas de modo tênue, no máximo por uma cruz, mas sem placa nem inscri-
ção do nome; e, quando falta espaço, a terra é revirada e os ossos juntados em

3-L }érôme Baschet


A

XI. O reagrupamento das populações em torno da igreja e do cemitério: alguns exemplos na região de Gers.
Aqui, são observados reagrupamentos de dimensões fracas, iniciados no século XI e comparáveis aos suscitados pelas
sagrera catalãs. O princípio é o mesmo quando se trata de aldeias mais importantes. Eo caso da aldeia de Cezeracq
(no alto), onde se nota a presença de um monte castrense, um pouco distante do núcleo do povoamento.

um d~s lados do cemitério, sem se considerar as identidades individuais ou as


contin~idades familiares. Tais práticas indicam que o cemitério paroquial quer
ser um lugar coletivo, onde cada um é destinado a se fundir na comunidade
indiferenciada dos mortos, como bem sublinhou Michel Lauwers: "É de modo
muito concreto que, na terra dos cemitérios, os defuntos transformam-se em
ancestrais". O cemitério, que os clérigos se preocupam em definir pela primei-
ra vez ao longo do século XII, é pensado como o "seio da Igreja", que unifica a
comunidade dos defuntos, do mesmo modo que o seio de Abraão, que, no além,

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 3·H


reúne a alma dos justos sob a sombra do patriarca (segunda parte, capítulo 111).
O cemitério paroquial, seio da Igreja, onde todos os corpos são materialmente
reunidos, é, ao mesmo tempo que o coração e o fundamento da unidade aldeã,
a contrapartida visível da invisível fraternidade das almas no além. Ele reproduz
na morte a comunidade dos vivos e constitui, por isso mesmo, uma representa-
ção ideal da reunião e da unidade do grupo aldeão. Mas seria preciso não esque-
cer que esse valor de fundamento comunitário tem como reverso a exclusão dos
excomungados, dos heréticos, dos infiéis, das crianças não batizadas e dos sui-
cidas, aos quais é negado o acesso ao cemitério paroquial (à imagem dos peca-
dores, excluídos da beatitude celeste e enviados aos castigos infernais). O cemi-
tério é um "espaço de inclusão/exclusão" (Dominique logna-Prat), que permite
à Igreja, a um só tempo, definir a unidade da comunidade e sua exterioridade.
O cemitério é um lugar importante para a vida social, que não serve somen-
te aos mortos, mas também aos vivos. Quer ele seja aberto e delimitado por cru-
zes, quer seja cercado~por um muro, o cemitério é um lugar muito animado. Ele
é atravessado todo domingo por quem vai à missa, de modo que esta é também
uma visita aos mortos; ele serve de refúgio, de lugar de regozijo e de danças; os
mercados ocorrem ali, a justiça é em geral feita nele e é onde as pessoas se reú-
nem para tratar de negócios ou concluir acordos. Não apenas os mortos não são
mais mantidos a distância, mas a terra onde eles repousam torna-se um lugar
privilegiado da vida coletiva. Com efeito, mesmo se os clérigos condenam algu-
mas atividades que se desenrolam no cemitério, elas beneficiam-se da caução
dos ancestrais e, mais precisamente, da referência à unidade comunitária que
encarnam. Os mortos são considerados a garantia da tradição e é, então, uma
legitimação pelo costume que o quadro do cemitério oferece aos atos dos vivos
(Michel Lauwers). É preciso ainda sublinhar o papel que exerce, aqui, a Igreja:
é ela que promove esse reagrupamento dos mortos e que permite a constituição
desse espaço privilegiado que é o cemitério, graças à proximidade do edifício
cultuai e à posição eminente que lhe confere o ritual de consagração.
A presença dos mortos no centro do espaço dos vivos, sem separação mar-
cada entre uns e outros, é um elemento decisivo do encelulamento e da fixação
dos homens em seu lugar. Doravante, a coesão e a estabilidade da comunidade
local são ordenadas a partir dos mortos, de modo que uma partida ou um bani-
mento para fora da aldeia é uma ruptura com os ancestrais, um sacrilégio em
relação aos pais. No geral, três elementos principais definem a paróquia, dora-
vante constituída, e os laços que ela faz prevalecer: as fontes batismais, a arre-
cadação do dízimo e o cemitério. A igreja paroquial é o lugar em que cada um
deve receber o batismo para entrar na comunidade dos cristãos, pagar as obri-
gações, selando o reconhecimento do poder sacerdotal, e ser enterrado para jun-

3-i-i }érôme Baschet


tar-se, na outra vida, à comunidade dos defuntos: assim é garantida a stahilitas
loci dos homens, desde o nascimento até o trespasse. A coincidência entre o
pagamento dos dízimos e a sepultura é particularmente determinante para a efi-
cácia do quadro paroquial. Esta, sem dúvida, só é obtida inteiramente na segun-
da metade do século XII. Assim, embora a malha paroquial se estabeleça geral-
mente ao longo do século XI, a consolidação funcional das entidades paroquiais,
indispensável para que elas cumpram seu papel na fixação dos homens ao solo,
é completada um século mais tarde.

O universo do conhecimento e a inquietante exterioridade

Segue-se-que o espaço vivido, percorrido concretamente pelos homens e pelas


mulheres da Idade Média, é, na imensa maioria dos casos, muito reduzido. Esse
espaço limitado não é, entretanto, homogêneo, e é possível lhe atribuir uma
estrutura globalmente concêntrica. No centro do centro encontram-se a igreja e
o cemitério; depois vem o espaço construído das casas aldeãs, por vezes cercado
de muros ou associado ao castelo. Em torno, estendem-se as terras cultivadas
(ager); depois, na borda das zonas de bosques, encontramos muitas vezes os ter-
renos recentemente conquistados, menos bem-ordenados e, por vezes, cultiva-
dos de maneira temporária (os essarts). Para além disso, começa o domínio incul-
to (saltus), geralmente composto de matas, mas controlado, pleno de perigos,
embora indispensável à economia agrária, já que é um lugar de coleta (frutos e
mel selvagem) e de pastagens para os animais, aves e porcos, em particular.
"Espaço de maravilha e de horror, de heróis e de monstros", a floresta é um lugar
marginal, refúgio privilegiado dos seres também marginais, como os homens sel-
vagens e as fadas, os bandidos e os eremitas. Para estes últimos ela é um lugar
de provação superada, onde se confirmam seus valores e sua força espiritual.
À imagem do deserto de areias tórridas onde os Pais egípcios procuravam Deus
na solidão e na ascese, ela permite fugir do mundo dos homens e entrar em con-
tatO) em meio aos perigos de um ambiente selvagem e hostil, com o divino e o
sobrehatural. Inverso do espaço socializado, a floresta é - paradoxo ecológico,
mas verdade simbólica- o deserto da Europa Ocidental (Jacques Le Goff).
A floresta é um espaço periférico, cujas características contrastam com aque-
las das zonas centrais que são a aldeia e o ager. E se esta dualidade entre o cen-
tro e a periferia, tão profundamente marcada na organização concreta dos espaços
vividos como no imaginário, é um aspecto fundamental das estruturas espaciais,
ela supõe uma outra dualidade que opõe interior e exterior. De resto, a palavra
francesa que designa o espaço de matas lforêt) tem por etimologia o latim foris

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 3-J5


(exterior), e foi utilizada a princípio para designar zonas que não eram necessaria-
mente compostas por bosques, mas que eram, todavia, consideradas socialmente
"exteriores" e nas quais os reis se reservavam direito exclusivo de caça, mais tarde
estendido à aristocracia. A caça, grande ritual de dominação aristocrática, foi ana-
lisada, justamente, como o estabelecimento prático da dualidade entre os espaços
interiores e exteriores (Alain Guerreau). Ela é um rito duplo, que diferencia a caça
com cachorro e a caça com ave. Esta última caracteriza-se pela estabilidade do
caçador e é praticada a partir de um lugar descoberto, por vezes mesmo cultiva-
do, próximo das zonas centrais. A caça com cachorro, em revanche, supõe uma
longa perseguição da presa através da floresta. Em oposição à caça com ave, fixa
e associada aos espaços interiores, ela é uma prática do movimento que atravessa
os espaços exteriores. Assim, ao passo que reivindica para a aristocracia uma
dominação completa do espaço, o ritual duplo da caça contribui para reforçar a
dualidade interior/exterior. Nesse sentido, ele fortalece o encelulamento e a per-
cepção concêntriC'ã do espaço que lhe é associada.
A esse respeito, convém sublinhar que o encelulamento não é uma estru-
tura que se impõe somente aos dominados, mas principalmente uma lógica
espacial partilhada por todos. A própria aristocracia torna-se localizada ao longo
dos séculos XI e XII. Assiste-se, então, a um enraizamento espacial dos dominan-
tes laicos, cujo poder se fundamenta na possessão dos castelos e das terras que
eles controlam; eles se fixam nessas terras às quais se vincula seu status de
dominantes e das quais, de resto, eles assumem geralmente o nome (segunda
parte, capítulo v). Desde então, o enraizamento local constitui mesmo a base
mais firme do fato de pertencer à aristocracia: "Enquanto, até o século X, os aris-
tocratas deviam sua posição, antes de tudo, à integração em uma rede de paren-
tesco, a partir do século XII a qualidade da aristocracia depende de uma ancora-
gem na terra" (Alain Guerreau). As linhagens aristocráticas, preocupadas tanto
com a permanência local como com a continuidade genealógica, constituem,
então, o que Anita Guerreau-Jalabert chamou de "topolinhagens", cadeias
genealógicas que garantem a transmissão de um poder que se pretende territo-
rial (segunda parte, capítulo v). Quanto aos filhos cadetes que partem em busca
de prestígio ou de um belo casamento- dos quais Guilherme, o Marechal, é
o exemplo típico e o cavaleiro errante dos romances, o eco literário-, seu ideal
não deixa de ser a aquisição de um bom feudo ou fixar seu destino e enraizar
sua descendência.
É necessário, agora, ir além dos limites da paróquia. Para além, estende-se
o exterior do exterior. Aqueles que de lá vêm são percebidos, na aldeia, como
estrangeiros, intrusos de quem se desconfia: mas sua própria existência não é
inútil, pois "eles manifestam as marcas da diferença para melhor fundar a iden-

3-tl ]ér6me l:aschet


tidade social" (Claude Gauvard). Por isso, para quase toda a população, o essen-
cial da vida social realiza-se em um raio de apenas quinze quilômetros, sendo
que somente a feira local pode suscitar periodicamente deslocamentos um
pouco mais amplos. Evidentemente existem exceções: com freqüência os cléri-
gos deslocam-se mais (por exemplo, para ir até a sede diocesana ou para uma
missão diplomática), assim como os aristocratas (por ocasião de uma visita ao
castelo de um suserano distante, de expedições guerreiras, de festas ou de tor-
neios). Mas os que se deslocavam assim são raros e, para a maior parte dos
dominados, o universo social não se estende além da paróquia, para englobar as
aldeias vizinhas, com as quais as relações são, em geral, tensas, a despeito dos
freqüentes laços individuais e familiares. Tal é, com efeito, a área no interior da
qual os casamentos são contraídos (na paróquia ou com um cônjuge originário
de uma aldeia vizinha) e onde são tecidas as relações de parentesco espiritual, de
trocas e de solidariedades. A paróquia forma assim, com as aldeias vizinhas
entre as quais o vaivém é permanente, o país amigo, familiar, o "país de conhe-
cimento", além do qual começa o desconhecido (Claude Gauvard).
Tal experiência social, que ainda caracteriza a fase derradeira da Idade
Média, é a marca da eficácia do encelulamento. É no seio de uma entidade
espacial restrita - paróquia e comunidade aldeã, mais do que no senhorio -
que os indivíduos são batizados, trabalham e pagam as obrigações que marcam
sua dependência, para depois repousarem, finalmente, na terra dos ancestrais.
É no seio do país de conhecimento, prolongado às aldeias vizinhas, que cada um
entretém as relações de família, de vizinhança, de amizade e de solidariedade
que tornam possível a existência social. Não há a menor necessidade de mura-
lhas para chegar a esse resultado; e mesmo a imposição de um estatuto jurídico
coercitivo como o dos servos não tem, aqui, o papel principal. É, antes, o pró-
prio tecido dessas relações sociais- de dependência e de solidariedade - , sem
esquecer os laços entre os vivos e os mortos, que impõe a stabilitas loci como
uma necessidade, como uma forma de existência costumeira e tida por natural.
Além disso, instaurando os fundamentos práticos de uma percepção concêntri-
'<:a do espaço, valorizando um centro positivo e sacralizado (por oposição à peri-
feria,) e uma interioridade protetora e reconfortante (por oposição ao exterior), a
Igreja e, em uma menor medida, a aristocracia elaboraram um sistema de repre-
sentação que contribui plenamente para o encelulamento e para a fixação dos
homens ao solo.
Existem, digamo-lo novamente, exceções a esse modelo. A colonização de
terras novas gera importantes deslocamentos de população, sobretudo nas mar-
gens da cristandade (mas o objetivo da colonização é instaurar uma nova esta-
bilidade espacial). O avanço da frente da Reconquista habitua a Península

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 3-1:-


Ibérica, e em particular Castela, a uma mobilidade que se prolonga com as 500
mil partidas espanholas para a América ao longo dos séculos XVI e XVII (Bernard
Vincent). Enfim, além de seu próprio crescimento, o desenvolvimento das cida-
des é nutrido por recém-chegados, provenientes dos campos. Entretanto, a imi-
gração atraída pelas cidades medievais comuns inscreve-se em um raio limita-
do, da ordem de dez quilômetros. Algumas raras cidades com forte atividade
artesanal dobram esse número, enquanto casos excepcionais, como os de Paris,
Londres, Sevilha e Florença, drenam populações num raio de até quarenta qui-
lômetros. Do mesmo modo, se ela rompe o laço com a paróquia de nascimento
para fazer prevalecer os vínculos duráveis com uma nova circunscrição, a imi-
gração para a cidade projeta-se apenas raramente para um universo desconhe-
cido, sobretudo porque a cidade de destino geralmente está em interação com
a zona de proveniência. É verdade que, nos séculos XIV e XV, o raio de atração
urbana aumenta, com mais freqüência, para 25 ou trinta quilômetros, e que, por
vezes, a concorrência entre cidades vizinhas para se apropriar de clientela e
mão-de-obra torna-se mais aguda. De resto, segundo a bela hipótese de Jacques
Chiffoleau, a extração dos novos citadinos de seu lugar de vida familiar e, sobre-
tudo, o sentimento de uma ruptura com os ancestrais e a tradição que eles
encarnam poderiam ter contribuído, certamente através das mediações de uma
retomada do controle pelas instituições eclesiásticas urbanas, para "a grande
melancolia do final da Idade Média" e sua obsessão com a morte. No entanto,
mesmo então, a proporção da população concernida pela migração para a cida-
de permanece mínima e não põe em causa o caráter dominante dos quadros
espaciais descritos até aqui.

0 ESPAÇO POLARIZADO DO FEUDALISMO

O que foi dito antes não deve, entretanto, nos reconduzir ao estereótipo de um
mundo feudal fragmentado, formado por senhores isolados e que pratica uma
economia de auto-subsistência. O que define o feudalismo não é a fragmenta-
ção, nem a inserção local, mas antes a relação entre essa fragmentação e a pos-
sibilidade de deslocamentos e de trocas, inclusive de larga escala. O feudalismo
caracteriza-se, assim (e essa formulação sugere o forte potencial dinâmico de tal
sistema), por uma tensão entre estabilidade e mobilidade, entre fragmentação e
unidade, entre inserção local e o fato de pertencer a uma área continental sim-
bolicamente unificada. O encelulamento não significa o estabelecimento de
células sociais isoladas e autárquicas. É verdade que senhorios e paróquias se

3-h }érôme Baschet


estruturam fortemente e se beneficiam de uma ampla autonomia, mas sua pró-
pria existência só tem sentido porque cada uma se inscreve em uma rede homo-
gênea (paroquial) e em um conjunto de obrigações dessimétricas (vassálicas).
Elas são apenas as unidades de base de uma organização social mais vasta, e a
metáfora que o conceito de encelulamento subentende não é carcerária, mas
biológica. 30 É preciso, então, ultrapassar a visão de um universo feudal localiza-
do e preferir a noção mais complexa de espaço polarizado, quer dizer, que englo-
ba a autonomia e a particularidade de cada entidade local em uma organização
espacial de conjunto, heterogênea e hierarquizada.

Trocas sem mercado

Além da pilhagem, que, em sua rude brutalidade, constitui uma forma impor-
tante de circulação dos bens, as trocas comerciais põem em relação entidades
locais no interior das quais se organiza o essencial da vida social. Como já se viu,
o desenvolvimento do comércio e o crescimento das cidades não são processos
estranhos ao feudalismo e opostos à sua lógica, pois são, ao contrário, estimula-
dos pelo desenvolvimento da zona rural e o reforço da dominação senhorial,
enquanto os próprios senhores tiram proveito deles recebendo uma infinidade
de direitos de pedágio. O comércio feudal desenvolve-se em diferentes níveis,
que se distribuem entre dois extremos: de um lado, os mercados locais, geral-
mente hebdomadários, animados pelos próprios produtores e pelos oficiais
senhoriais, bem como por alguns mercadores rurais, e, de outro lado, as gran-
des feiras anuais ou semestrais, dotadas de privilégios e de uma proteção parti-
cular, como a de Champagne, que, nos séculos XII e XIII, põem em relação a Itália
e Flandres, as duas regiões da Europa em que a produção artesanal é a mais
dinâmica. Entretanto, seja qual for o desenvolvimento dos mercados e das fei-
ras, e das trocas que eles favorecem, é preciso sublinhar, com Alain Guerreau,
que não existe, na Idade Média, nada que se pareça com o mercado, no senti-
do 'Ejue esta noção ganha a partir do fim do século XVIII. Com efeito, o mercado
supõe\um espaço homogêneo, de tal modo que, do ponto de vista da economia
política que define seu funcionamento, a dimensão espacial constitui um parâ-
metro que deve ser tendencialmente eliminado. É justamente o contrário que
se produz na Idade Média, pois os deslocamentos são, então, difíceis- em vir-

30. Em francês, cellule indica tanto a unidade de base dos seres vivos como uma unidade carce-
rária, sentido que, em português, foi conservado nas palavras "cela" e "célula", etimologicamente
vizinhas. Daf a precisão do autor. (N. T.)

A CIVJLIZAÇAO FEUDAL 3-f'J


tude da debilidade da malha de estradas e caminhos - e perigosos, não somen-
te por causa dos bandidos, mas também, e sobretudo, porque os mercadores
são, quando em rota, estrangeiros sem proteção, vítimas potenciais de todas as
imposturas possíveis. Eles também se debatem com procedimentos locais que
ignoram, sem falar de inumeráveis pedágios que são o tributo pago pelo comér-
cio à fragmentação feudal. Assim, as trocas ampliam-se em um meio que,
mesmo estimulando-as e tirando vantagem delas, esforça-se para lhes impor
obstáculos. A lógica feudal não tende a proibir ou a reduzir as trocas; ela esti-
mula seu desenvolvimento, não no espaço homogêneo do mercado unificado,
mas em meio às limitações do espaço heterogêneo, fragmentado e polarizado
criado pela rede celular do feudalismo.
O grupp social dedicado às trocas, o dos mercadores, é confrontado com a
mesma ambivalência. Muitas diferenças existem em seu seio, desde o modesto
mercador rural, o ambulante que circula de aldeia em aldeia, até um grande
negociante engajado no comércio com o Oriente, que em geral resolve os negó-
cios de sua companhia a partir de sua cidade natal. No entanto, a percepção do
mercador permanece sempre dupla. É verdade que se observa uma revalorização
de seu ofício: na primeira metade do século XII, Hugo de Saint-Victor louva o
mercador porque "seu ardor une os povos, reduz as guerras e consolida a pa/·.
enquanto, no século seguinte, Tomás de Aquino sublinha a utilidade de um ofí-
cio que consiste em transportar produtos de uma região para outra, "para que as
coisas necessárias à existência não faltem no território". Pela circulação de bens
que ele assegura, o mercador contribui para superar os conflitos que dividem os
fiéis e pode, então, ser percebido como um dos agentes da unificação fraternal
da cristandade. Entretanto, por mais úteis que sejam, os mercadores são manti-
dos em posição dominada e o modelo das três ordens, arma de combate contra
os novos grupos urbanos, os relega à ordem inferior dos laboratores, no mesmo
nível que os camponeses. Além disso, sua atividade só é aceita sob a condição de
que eles se submetam, em última instância, às concepções da Igreja, e tudo o que
poderia parecer de modo excessivamente brutal a valores próprios, como a busca
do lucro ou a valorização do dinheiro, corre o risco de ser acusado de avareza ou
usura. Os mercadores formam, assim, um grupo do qual se reconhece a utilidade,
mas que continua sendo, contudo, objeto de uma desconfiança que lhe impede de
afirmar plenamente os valores logicamente associados às suas atividades. Nesse
sentido, assegurar as trocas é algo reconhecido pela própria Igreja como uma
tarefa legítima, sob a condição de que esta permaneça secundária e cuidadosa-
mente controlada.

350 }érôme Baschet


A cristandade, rede de peregrinações

Por mais importantes que sejam, as trocas comerciais contribuem apenas debil-
mente para a unidade do mundo ocidental, pois a proporção dos que são afeta-
dos pelas trocas de longa ou média distância é ínfima. Insistir-se-á, então, sobre
um outro fator de unidade, mais amplamente partilhado. Com exceção dos
judeus, dos hereges e dos excomungados, todos os habitantes da Europa Ociden-
tal fazem parte da cristandade. Todos sabem de modo mais ou menos confuso
que o batismo os faz entrar nessa ampla comunidade, em parte visível, em parte
invisível, porque eles se tornaram, então, filhos de Deus e, no mesmo ato,
irmãos de todos os outros cristãos.
É preciso ainda indagar como essa unidade da cristandade pode ser
vivenciada.local e concretamente pelo conjunto das populações. A peregrina-
ção, grande fenômeno medieval, contribui notavelmente para isso. Toda pere-
grinação é, na Idade Média, uma aventura, um risco; se o destino é longínquo,
as pessoas redigem o seu testamento antes da partida ou, ao menos, tomam o
cuidado de pôr em ordem os seus negócios, como se a viagem fosse sem volta.
A peregrinação pode ser decidida individualmente, na seqüência de uma pro-
messa ou na esperança de uma cura; mas, nos séculos XI e XII, ela pode tam-
bém ser imposta pelo clero a título de penitência ou, a partir do século XIII,
por um tribunal, como sanção penal. Qualquer que seja a situação que a pro-
voque, ela se reveste de um contorno penitenciai, no mínimo em função das
penas e sofrimentos que o caminho impõe. Além disso, a opção peregrina apa-
rece como uma ruptura - mais ou menos profunda segundo a amplitude da
viagem - com o mundo cotidiano, com o quadro familiar da vida normal.
O peregrino escolhe tornar-se um estrangeiro e é assim que ele é percebido
nos lugares por onde passa (peregrinus, a palavra latina que designa o peregri-
no, significa primeiramente "estrangeiro", "exilado"). A peregrinação é uma
partida para alhures, antes mesmo de ser uma caminhada até um objetivo: de
resto, nos primeiros séculos da Idade Média, a viagem penitenciai é mais
importante que o destino da viagem, e é na época carolíngia que a andança
errante penitenciai, sem objetivo, cede lugar em proveito da peregrinação a
um lugar fixado antecipadamente e regida por critérios estritos (em particular,
a indispensável autorização clerical). A peregrinação é uma viagem do interior
para o exterior, um exílio do país de conhecimento com destino ao universo
em que cada um é estrangeiro.
Isso é válido para todas as peregrinações, quer seu raio de atração seja local,
regional ou se estenda à escala da cristandade. Muitas vezes negligenciadas, as
peregrinações locais revestem-se, todavia, de uma grande importância, pois per-

A CIVILIZAÇÃO fEUDAL 35J


mitem estruturar uma região e desenvolver as solidariedades entre aldeias vizi-
nhas (Alain Guerreau). Essas peregrinações, provocadas pela especialização
terapêutica ou profilática dos santos locais, podem ter por destino uma igreja
paroquial ou uma capela isolada, e desenrolam-se seja em uma data fixa, provo-
cando importantes reagrupamentos, seja sem periodicidade definida, ganhando
então um contorno mais individual, ao sabor das doenças a serem tratadas. No
entanto, sempre (diferentemente das procissões das Rogações que, em geral,
representam uma apropriação do território da comunidade), a peregrinação
local aponta para o exterior, seja porque é necessário sair do quadro paroquial,
seja porque conduz para as zonas periféricas de um território. As peregrinações
regionais, ou na escala de um reino, põem em cena as relíquias de santos pres-
tigiosos, abrigaãas em santuários, cujo sucesso é testemunhado pela grandeza e
pela qualidade arquitetônica. Tal é o caso da cabeça de João Batista, na catedral
de Amiens, ou do túmulo de Martinho de Tours, santo que se tornou protetor
da dinastia merovíngia e que, no século VI, atrai peregrinos vindos de toda a
Gália. Mesmo se, mais tarde, a abadia de São Martinho alterna fases de eclip-
se e de renome, a peregrinação conserva um raio notável, na escala do reino.
Enfim, é preciso insistir sobre as grandes peregrinações da cristandade.
Paradoxalmente, as cidades que as atraem não se encontram geografi91mente no
centro da cristandade, mas em suas margens, ou mesmo fora dela/É o caso, evi-
dentemente, de Jerusalém e dos Lugares Santos da Palestina; peregrinação por
excelência, ao mesmo tempo pela distância e pela dificuldade do caminho, que
fazem dela a provação mais alta, e porque ela permite entrar em comunhão direta
com o próprio Cristo, nos lugares de sua vida e de sua Paixão. Desde o século IV,
momento em que Constantino manda construir a basílica do Santo Sepulcro, a
peregrinação é bem atestada graças às descrições dos Lugares Santos e às narra-
tivas de viagem, como a do espanhol Egério. Depois, apesar dos ataques e das
destruições provocadas pelo persa Cosroés 11 e, a seguir, pela conquista muçul-
mana, o fluxo dos peregrinos nunca é interrompido. Mesmo após a retomada de
Jerusalém por Saladino, em 1187, tratados entre cristãos e muçulmanos regula-
mentam o acesso dos viajantes, mediante a imposição de taxas, enquanto sua
recepção é organizada sob a tutela de dois cônsules ocidentais, que asseguram
proteção e hospedagem. É durante o século XI que é preciso situar o desenvolvi-
mento mais marcante da peregrinação na Terra Santa, o que não deixa de estar
relacionado com a afirmação concomitante da cristandade. De resto, o fenôme-
no logo se combina com as cruzadas, que podemos definir como "peregrinações
armadas". Sem dúvida, é o caráter radicalmente exterior da viagem de peregrina-
ção que provoca logicamente a associação com o empreendimento militar. Em
todo caso, devido ao próprio fato de que ela põe em jogo o grau máximo de exte-

35_ }érôme Baschet


rioridade, projetando-se para além dos limites da cristandade, a peregrinação a
Jerusalém é a peregrinação suprema do Ocidente medieval.
Roma também se tornou um lugar periférico em uma cristandade cujo cen-
tro de gravidade se deslocou para o Norte, para fixar-se, como sublinha Marc
Bloch, entre o Loire e o Reno. Roma não está nada distante da fronteira que
separa os cristãos do mundo muçulmano e, durante muito tempo, fez face à
Sicília árabe. De resto, no século XIV, a escolha de uma localização mais central,
tornando mais fáceis as comunicações com o conjunto da cristandade, tem uma
responsabilidade na manutenção do papado em Avignon. A posição de Roma, é
verdade, é mais ambígua que a de Jerusalém ou de Compostela: se a Cidade
Eterna é uma fronteira geográfica, ela também é um centro institucional, o que
é ainda mais verdadeiro à medida que progride a centralização pontifícia (figura
12, nas pp. t-76 e 177). Destino, ao mesmo tempo, fundamental e orientado para
a margem, a peregrinação a Roma não tem rival durante a Alta Idade Média.
Nela, as pessoas visitam santos tão importantes como os apóstolos Pedro e Paulo,
assim como um número considerável de mártires sepultados nas catacumbas,
mais tarde parcialmente transferidos para as igrejas urbanas, entre os séculos VIII
e IX. A peregrinação a Roma é particularmente vigorosa enquanto ela permanece
como a única cidade do Ocidente a possuir corpos de apóstolos. Mas, logo, ela é
desafiada, nesse terreno, por Veneza, depois do roubo das relíquias de são
Marcos, e, mais tarde, por Compostela ou, ainda, Cluny, que adquire, sem dúvi-
da no início do século XI, relíquias de Pedro e Paulo e se arroga, então, como
"substituto da peregrinação a Roma" (Dominique logna-Prat). No entanto, Roma
se defende bem, pois o desenvolvimento da centralização pontifícia é acompa-
nhado de uma promoção da figura de são Pedro, cujo papel de fundador da Igreja
é posto cada vez mais em valor, o que lhe confere clara proeminência sobre os
outros apóstolos e amplia a atração constante suscitada por seu túmulo. As
imprevisibilidades da política romana criam, entretanto, dificuldades, e geram
momentos de declínio, especialmente nos séculos XII e XIII e, mais tarde, duran-
te o exílio em Avignon e o Grande Cisma. Nesse meio-tempo, Bonifácio VIII havia
dado um lustro retumbante à peregrinação a Roma, proclamando uma grande
indulgência de 25 de dezembro de 1299 até 24 de dezembro de 1300, outorgan-
do a plena remissão dos pecados aos peregrinos que então fossem a Roma. Assim
começa a história dos jubileus romanos (mesmo se Bonifácio não pronuncia esse
termo em sua bula, que menciona uma periodicidade de cem anos e não de cin-
qüenta, como na tradição judaica que inspira a instituição jubilar). Seja como for,
a afluência dos peregrinos é tão considerável que o sucesso leva a uma multipli-
cação dos anos jubilares, celebrados em 1390, 1400, 1423 e 1450, até que Sisto
IV, em 1475, fixa sua periodicidade definitiva em 25 anos.

A CIVILI:lAÇÀO FEUDAL 35;


Se é necessário mencionar também os santuários do arcanjo - o monte
Saint Michel, "sob ameaça do mar", e o monte Gargano - , a peregrinação a
Santiago de Compostela é a grande invenção medieval. Ela repousa sobre um
conjunto de fatos legendários, desprovidos de fundamento histórico e cuja
forma se precisa entre os séculos VIII e XI. Aparecem, então, a narrativa da inven-
ção das relíquias identificadas como sendo as de são Tiago, o Maior, e também
a legenda de uma pregação do apóstolo na Península Ibérica. Em um primeiro
tempo, a narrativa não obtém nenhum sucesso e a peregrinação permanece
local. O primeiro visitante estrangeiro é mencionado em 951 (um bispo da
região de Puy), mas a presença ameaçadora dos sarracenos limita o acesso ao
túmulo apostólico e, em 997, Compostela é tomada e a igreja do apóstolo é des-
truída. Conwrtli.orte de AI-Mansur, em I 002, a situação favorece a Reconquista,
e é ao longo do século XI que a peregrinação a Santiago conhece um floresci-
mento decisivo. Ela é favorecida pelos reis da Espanha cristã, que constroem
basílicas e edifícios no caminho de Santiago, e pelas ordens religiosas, como a
de Cluny, que promovem a peregrinação por toda a Europa. A suntuosa recons-
trução da catedral, iniciada em I 076 e terminada em 1188 com o portal da
Glória, obra-prima da arte românica assinada pelo mestre Mateo (figura 3, na p.
38), atesta o pleno desabrochar da peregrinação, do mesmo modo que o Codex
Calixtinus, dos anos 1150, que fornece a versão canônica d~ legenda de são
Tiago, e o Guia do peregrino de Santiago, redigido entre 1130 e 11140, que dá aos
viajantes todas as informações úteis sobre os caminhos a segu r e os santuários
a visitar durante o trajeto.
Todos os caminhos levam a Compostela, e as centenas de milhares de pere-
grinos que para lá foram tiveram de empregar todos os itinerários possíveis atra-
vés da Europa, inclusive a via marítima, particularmente importante para os
ingleses. Existem, entretanto, caminhos que devem sua posição um tanto privi-
legiada à sua menção no Guia do peregrino. Eles são quatro a atravessarem a
França, dependendo se se venha da Itália, passando por Arles e Saint-Gilles, da
Alemanha e da Borgonha, passando pela região de Puy, Conques e Moissac, ou
então por Vézelay e Limoges, de Flandres e do Norte da França, passando por
Tours e Poitiers. Uma vez transpostos os Pireneus, as diferentes rotas juntam-
se para formar o camino francés, pontuado, entre outras, pelas etapas de Estella,
Burgos, Fromista, Sahagún e Leão, e onde se concentram as criações mais notá-
veis da arte românica. Mas os caminhos de Santiago não são simples linhas que
levam ao destino final, tal como riscos que atravessam um espaço geométrico
homogêneo. Eles são traçados em função desses pontos de alta densidade sagra-
da que são os grandes santuários visitados no caminho pelo peregrino. Além das
vantagens materiais que oferecem (hospedagem, relativa segurança), esses cami-

35-1 }érôrne Baschet


nhos aparecem como rosário de Lugares Sagrados, que o andarilho desfia ao
longo de seus passos. Além disso, permitiram importantes trocas à escala da
cristandade, especialmente no domínio artístico, exercendo importante papel
na difusão das formas e dos temas românicos. Por esses caminhos mais percor-
ridos ou por outras vias chega-se a Santiago de toda a Europa, tanto das zonas
centrais como a partir de suas margens escandinavas ou orientais (Polônia,
Hungria e Boêmia); são mencionados até mesmo alguns visitantes exóticos,
indianos e etíopes, sem falar de um monge nestoriano da China, no século XIII.
Incontestavelmente, esta é uma das grandes peregrinações da cristandade, con-
correndo com Roma e mantendo seu sucesso até pelo menos o século XV. A in-
venção e a promoção de Compostela podem ser postas em relação à sua locali-
zação marginal. Não somente a Galícia é um "finisterra", um fim do mundo,
além do quàl se abre o desconhecido oceânico, mas é também, ao menos quan-
do a peregrinação ganha impulso, uma fronteira com o mundo infiel. O vínculo
com a Reconquista é patente: favorecida pelos soberanos hispânicos, a peregri-
nação reforça seus reinos e manifesta a unidade da cristandade, simbolicamen-
te convocada para fazer face aos mulçumanos. São Tiago transforma-se em ins-
pirador espiritual da Reconquista e a efígie de Santiago matamoros (matador de
mouros) figura em sua catedral galega. A peregrinação a Compostela não se
transforma diretamente em operação militar, como no caso das cruzadas, mas,
ao menos, ela se desenvolve em estreita relação a esta outra frente armada, que
opõe os cristãos e seus inimigos do exterior. A importância de uma peregrinação
parece, assim, ser medida segundo o grau de exterioridade (e, então, de perigo)
com que ela se defronta.

Um deslocamento para o exterior, garantia de coesão interna

Pode-se, então, tentar sintetizar as funções espaciais assumidas pela prática das
peregrinações na sociedade feudal. De um lado, é necessário sublinhar a impor-
tância dos santos e das relíquias como referenciais simbólicos do espaço cristão.
Com efeito, são os corpos dos santos que permitem constituir, através de toda a
Europa, uma rede de lugares sagrados que atraem peregrinações mais ou menos
importantes. Desde a Alta Idade Média, vê-se constituir uma geografia sagrada
através do estabelecimento de túmulos santos e da difusão das relíquias. Uma
das razões que levam, então, clérigos e soberanos para Roma é aproveitar do
imenso tesouro de mártires romanos e trazer relíquias suscetíveis de conferir
maior dignidade às igrejas e aos monastérios dos quais eles desejam assegurar
a promoção. Estabelece-se, então, toda uma graduação de sacralidade, desde o

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 35'1


lugar mais eminente, o que conseiVa os corpos dos apóstolos Pedro e Paulo, os
grandes santuários que abrigam o evangelizador de um povo, como Martinho,
Remígio ou Bonifácio, até os lugares que polarizam o espaço diocesano, geral-
mente associados ao prestígio de um bispo fundador, sem esquecer os santuários
locais dedicados a santos cuja identidade é, muitas vezes, incerta. No século XII,
o desenvolvimento do culto à Virgem, que capta a seu favor a titularidade de
numerosos edifícios anteriormente consagrados a santos, altera um pouco esse
esquema, sobretudo porque ela é, doravante, associada tanto a modestas igrejas
paroquiais, a catedrais, como a santuários cujo prestígio se estende a toda a cris-
tandade (o de Rocamadour, no Sudoeste da França, sendo um dos mais reputa-
dos e também dos mais visitados por se encontrar em um dos caminhos de
SaJ:ltiago). Entretanto, as imagens miraculosas ou as raras relíquias possuídas
(objetos como o cinto conseiVado em Prato, o leite ou traços diversos, pois a dou-
trina da Assunção interdita a produção de relíquias corporais de Maria) e, ainda
mais, a importância dos milagres atestados em cada lugar permitem diferenciar
e hierarquizar a multiplicidade dos santuários marianos. Assim, constituindo
uma rede hierarquizada de lugares sagrados cuja importância relativa é medida
por sua atração sobre os peregrinos, os santos e a Virgem aportam uma contribui-
ção determinante ao estabelecimento do espaço polarizado da Europa feudal.
De outro lado, as peregrinações ativam a dualidade interior/exterior, pois
elas são igualmente deslocamentos orientados para o exterior (exterior da paró-
quia, exterior da região, exterior ou periferia da cristandade). E é precisamente
porque ela faz sair do lugar interior, conhecido e familiar que a peregrinação
constitui um fator de unidade. De acordo com seu raio, ela favorece as trocas e
as solidariedades entre aldeias vizinhas ou dá testemunho da coesão das entida-
des diocesanas ou regionais. Quanto às grandes peregrinações, elas fazem pro-
var fisicamente, no próprio corpo dos peregrinos exaustos, a unidade da cristan-
dade. Embora ele seja estrangeiro em todos os lugares que atravessa, o peregrino
pode constatar que se encontra, apesar de tudo, em terra cristã, sempre encon-
trando asilo nas igrejas, em caso de necessidade. Em Jerusalém, Roma ou
Santiago, ele pode sentir, sem ao menos refletir, que a fé que o colocou na estra-
da é partilhada pela unidade de povos com línguas incompreensíveis, pelos cata-
lães ou pelos dinamarqueses, pelos bretões ou pelos húngaros. A travessia dos
territórios (a mais longa possível, pois o destino encontra-se na periferia) e a
convergência implicada pela peregrinação desenham, pela própria forma dos iti-
nerários, a unidade da cristandade.
A peregrinação é, então, uma experiência prática pondo em relação entida-
des celulares que são a base da organização social. É verdade que nem todos os
fiéis empreendem necessariamente uma peregrinação distante e, recentemen-

351 }érôme Baschet


te, questionou-se a idéia segundo a qual a afluência a Santiago tenha sido tão
considerável como o mito se deleitou por muito tempo em afirmar (Denise
Péricard-Méa). Entretanto, pode-se muito bem admitir que apenas uma propor-
ção limitada da população medieval empreendeu a viagem a Compostela (como
a Jerusalém ou a Roma) sem por isso diminuir a função unificadora da peregri-
nação. Para que esta função opere, é suficiente, com efeito, que cada um
conheça a possibilidade de realizar tal viagem, elabore o projeto ou experimen-
te somente o desejo. Cada fiel deve ter encontrado ao menos um peregrino
vindo de Compostela: este, pela narrativa das peripécias de sua viagem e pela
descrição dos lugares visitados, pelos objetos trazidos (o certificado entregue na
catedral galega, a concha ou outras insígnias compradas na vizinhança, talvez o
cajado e o bornal usados no caminho), dá testemunho do fenômeno peregrino
e inscreve na memória de todos que podem vê-lo ou escutá-lo a imagem desse
vasto mundo, ao mesmo tempo tão diverso e uno, que se nomeia cristandade.
A peregrinação é, então, um deslocamento para o exterior e uma marca de
unidade interna (e é voltando-se para o exterior que ela se torna garantia de coe-
são). Ctmfrontar-se, nem que seja apenas simbolicamente, com o mundo infiel
contribui para reafirmar a unidade da cristandade, enquanto, no nível mais
local, o contato com o exterior e a travessia de um mundo estrangeiro reforçam
a ligação com o lugar protetor e a valorização da stabilitas Zoei. O próprio suces-
so da prática da peregrinação, é verdade, engendra algumas suspeitas, e certos
clérigos, especialmente entre os cistercienses, não deixam de ironizar sobre via-
gens realizadas por vaidade ou curiosidade, para "ver lugares agradáveis ou belos
monumentos", como diz Honorius Augustodunensis no início do século XII. Eles
afirmam, então, a superioridade da penitência de coração, feita no local, e valo-
rizam, assim, uma exigência unilateral de estabilidade. Entretanto, apesar des-
sas críticas bastante limitadas, a rede hierarquizada das peregrinações medievais
permite experimentar a unidade da cristandade ocidental, ao mesmo passo que
reforça a coesão das estruturas locais. Os deslocamentos peregrinos e a ligação
ao solo criada pelo encelulamento senhorial e paroquial aparecem, assim, como
dois aspectos complementares da organização feudal do espaço. O princípio
desta é, finalmente, "assegurar o máximo de estabilidade sem proibir as trocas
necessárias" (Alain Guerreau). Nesse aspecto, a existência de um espaço pola-
rizado pelos corpos santos e pela rede hierarquizada de santuários que atraem
os fiéis é determinante.
Além disso, na Idade Média, a peregrinação não é apenas um deslocamen-
to material; ela também é uma metáfora fundamental: toda a vida terrestre é
pensada como uma peregrinação (entre muitos outros exemplos, o cisterciense
Guilherme de Digulleville, no século XIV, intitula uma de suas obras A Peregri-

A CIVILI;I;AÇÃO fEUDAL 35-


nação da vida humana). O homem na terra é um peregrino caminhando em meio
às provações mundanas e desejando atingir sua pátria celeste (o lugar do Pai
divino) a fim de gozar da "estabilidade da morada eterna" (santo Agostinho).
Poderia parecer paradoxal que o mundo do encelulamento, cujo ideal é a esta-
bilidade local, conceba a vida terrestre como um deslocamento e o homem
como um viajante (um homo viator, segundo um tema muito corrente na época).
É que, em vista das exigências cristãs, o aqui embaixo é um vale de lágrimas,
uma passagem transitória e exterior, por oposição ao verdadeiro lugar, objeto de
todas as esperanças, que é o além celeste. Nesse sentido, a única verdadeira
estabilidade é encontrada junto a Deus, enquanto o mundo terrestre, como todo
espaço exterior, é associado a um deslocamento, sinônimo de perigo e de inse-
gurança, de provação e de sofrimento.
De resto, tanto a peregrinação como a cruzada valorizam o movimento por-
que se trata de prática excepcional. Na cristandade existem, é verdade, alguns
grupos que se movimentam muito, mercadores que viajam para longe e clérigos
que, para estudar nas universidades mais reputadas, realizam longos périplos,
abades que visitam os estabelecimentos postos sob sua autoridade e, mais tarde,
frades mendicantes enviados de um convento a outro ao sabor das exigências da
ordem e que praticam habitualmente a pregação itinerante. Mas, ainda aqui,
esses deslocamentos só são valorizados na medida em que se constituem como
exceções e contribuem para reforçar as estruturas de dominação que garantem a
stabilitas loci da imensa maioria dos produtores. Além disso, tais viagens obede-
cem a imperativos precisos, diferentemente desses clérigos chamados giróvagos
(ou goliardos), que não são vinculados a nenhuma função ou a nenhum lugar, e
cuja instabilidade excessiva é vigorosamente denunciada. Entra-se, assim, na
categoria dos vagabundos: estes, escapando ao princípio da estabilidade local,
são incluídos por Bertoldo de Ratisbona ( 121 0-72) na "família do Diabo" e são
vítimas de uma repressão cada vez mais rigorosa a partir do século XIV.

A IGREJA, ARTICULAÇÃO DO
LOCAL E DO UNIVERSAL

Por "universal" designa-se, aqui, a cristandade romana tomada em sua globalida-


de, quer dizer, um universal relativo (de resto, não poderia ser diferente, pois os
valores universais nunca são mais do que a "universalização de valores particula-
res", segundo a expressão de Pierre Bourdieu). O valor que essa totalidade pôde
assumir através dos séculos medievais é, aliás, variável. Nos séculos v e VI, a

358 ]érôme Baschet


Igreja aparece essencialmente como uma coleção de dioceses, largamente autô-
nomas. Cada bispo, detentor de um poder espiritual e temporal considerável, é
senhor em seu domínio; e o bispo de Roma dispõe apenas de uma proeminência
simbólica ainda mal estabelecida. Depois, a época carolíngia marca uma primei-
ra afirmação da unidade cristã: sob instigação do imperador e do papa, Bento de
Aniana unifica o movimento monástico ocidental com base na regra beneditina,
enquanto a uniformização litúrgica difunde os hábitos romanos e eclipsa, pouco
a pouco, as outras tradições. Enfim, a reforma eclesial dos séculos xr e xrr e seus
prolongamentos até o século xrrr reforçam consideravelmente os poderes do papa,
bem como sua proeminência simbólica. A centralização pontifícia torna-se, então,
a forma concreta assumida pela unidade da cristandade. O papa é a sua encarna-
ção e a projeta além dela mesma conclamando à cruzada ou, mais tarde, conce-
dendo aos reinos ibéricos um direito de conquista, garantindo-lhes o monopólio
indispensável à exploração do Novo Mundo (bula Inter caetera de Alexandre vr,
em 1493; Tratado de Tordesilhas, em 1494).

Alteração da doutrina eucarística

A transformação da doutrina eucarística é, ao mesmo tempo, um indício e um


instrumento da reorganização espacial da cristandade. Nos primeiros séculos do
cristianismo, a celebração eucarística é concebida como um ato de memória
(conforme as palavras de Cristo, que convida seus discípulos, no momento da
Última Ceia, a refazer os mesmos gestos "em minha memória"). O pão c o vinho
utilizados são, então, apenas os símbolos do corpo e do sangue de Cristo, ser-
vindo para comemorar seu sacrifício. Para Agostinho, Cristo está presente no
sacramento como figura, de modo que entre a hóstia e o corpo de Cristo existe
a mesma diferença que entre um signo e a coisa que ele significa. Prevalece,
então, uma grande proximidade entre os fiéis e o altar, sobretudo porque os pães
utilizados para o ritual são idênticos àqueles destinados à alimentação corrente
. e são oferecidos pelos membros da assistência. Depois, esses pães (denomina-
dos "oblata") continuam a ser recebid"os pelos clérigos, mas não são mais leva-
dos para o altar; e, a partir do século rx, são utilizados para o sacrifício pães não
fermentados (ázimos). Essa distância em relação à- realidade profana contribui
para estabelecer uma separação entre- os laicos e o altar (é, de resto, um dos
aspectos da divergência com o Oriente bizantino, que conserva o uso do pão fer-
mentado). No século IX aparece também a primeira polêmica importante em
matéria eucarística. O liturgista Amalário de Metz e, sobretudo, Pascásio
Radberto introduzem noções que se distanciam da concepção simbólica do

A CIVJLIZA~:Ao I'EUDAL 359


sacramento em vigor até então. A reação é forte e clérigos como Rábano Mauro
e Ratramno de Corbie batalham para manter a teoria agostiniana. Mas o debate
se esgota rapidamente, sem dar lugar a nenhuma definição doutrinai, como se
tratasse de opiniões individuais que não requeriam a intervenção das autoridá-
des eclesiásticas.
A polêmica é retomada em meados do século XI, momento em que a teolo-
gia eucarística começa verdadeiramente a se desenvolver. Berengário de Tours,
um clérigo bem formado nas escolas da região do Loire e professor em Tours, pro-
voca, por volta de 1040, uma indignação geral, embora não faça mais do que
reafirmar as concepções tradicionais de Agostinho e de todos os autores ante-
riores ao século IX, confirmando-os com novas justificativas de natureza grama-
tical (em particular, uma análise profunda da fórmula central da missa "hoc est
corpus meum" 31 ). Numerosos autores, como Lanfranc du Bec ou Guitmond
de Aversa, apoiados pelo papa Leão IX e Gregório VIl e pelas principais figuras da
reforma gregoriana, opõem-se, então, a Berengário. Convocado por numerosas
assembléias eclesiásticas, ele é obrigado a retratar-se e suas concepções são
condenadas por uma bula pontifícia em 1059. Isso mostra claramente que uma
ortodoxia eucarística inteiramente nova está em vigor a partir de então. Não está
mais em questão uma evocação simbólica e espiritual de Cristo, mas uma pre-
sença substancial do corpo de Cristo na hóstia. A bula de 1059 não hesita em
afirmar que "o pão e o vinho são o verdadeiro corpo e o verdadeiro sangue de
Cristo; eles são fisicamente tomados e verdadeiramente comidos pelos fiéis".
Doravante, explica-se que existe uma unidade essencial entre as três formas do
corpus Christi (a hóstia consagrada, o corpo histórico de Cristo e a Igreja).
Como a hóstia é assimilada ao corpo histórico de Cristo, pode-se afirmar que
Cristo está realmente presente no sacramento. A hóstia não é mais, então, um
símbolo que dá suporte a um ato de memória; ela faz experimentar a presença
real de Cristo, presença não espiritual, mas material de seu "verdadeiro corpo".
Assim, quando o sacerdote consagra a hóstia, uma metamorfose se realiza (um
"milagre", diz Hugo de Saint-Victor): o pão e o vinho deixam de ser substancial-
mente pão e vinho; eles se transformam e se tornam essencialmente o corpo e
o sangue de Cristo, mesmo se as espécies acidentais (as aparências) do pão
e do vinho subsistam e permaneçam visíveis. É essa metamorfose que é nomea-
da pelo termo transubstanciação, atestado pela primeira vez na obra do teólogo
Roberto Pullus, por volta de 1140, e que insiste judiciosamente sobre a trans-
formação da substância sem fazer um prejulgamento acerca da manutenção das
aparências acidentais.

31. "Eis meu corpo.'' (N. T)

360 ]érôme llaschet


Tal teoria, qualificada de realismo eucarístico, não tem nenhum fundamen-
to nem nas Escrituras nem na tradição; ela supõe, então, resolver enormes difi-
culdades lógicas e intelectuais. Sua implantação é lenta, avançando à medida
que são aperfeiçoadas as argumentações lógicas que permitem contrapor as
múltiplas objeções possíveis. Além disso, em seu esforço para impor uma dou-
trina sem precedente, as proposições combativas do período entre I 050 e 1130
geram formulações bastante rudes, que insistem muito literalmente sobre a pre-
sença material do corpo de Cristo na hóstia e sobre sua ingestão pelos fiéis. Ora,
os autores ulteriores não tardam em perceber as dificuldades de semelhantes
afirmações, notadamente porque uma concepção exageradamente realista arris-
ca limitar Deus no tempo e no espaço. Finalmente, Tomás de Aquino propõe
uma síntese nuançada e moderada. Para ele, a presença física de Cristo na hós-
tia realiza-se de uma maneira que não é material, mas invisível e espiritual, de
modo que o corpo do Salvador é comido não sob sua forma natural, mas sob sua
espécie sacramental. O essencial não é, entretanto, absolutamente posto em
causa, a saber, a transubstanciação, a presença real e a identidade substancial
da hóstia e do corpo histórico de Cristo.
Práticas inéditas manifestam o brilho recentemente adquirido pelo Sélcra-
mento eucarístico. Assim, o gesto pelo qual o sacerdote eleva a hóstia, após suas
palavras de consagração, aparece justamente na região de Tours, no século XI,
como que para apoiar o realismo eucarístico em face dos perigos das teorias
declaradas heterodoxas de Berengário. Depois, entre 1198 e 1203, o bispo de
Paris, Eudes de Sully, prescreve o uso desse gesto em sua diocese, até que essa
nova prática termina por se difundir em todo o Ocidente. Compreende-se a
importância desse gesto, que torna sensível o efeito das palavras de consagração
e sublinha o caráter extraordinário da transubstanciação que provocam. A eleva-
ção exibe a presença real de Cristo e a submete à adoração de todos. Esse gesto
torna-se, então, tão importante que ele concentra a atenção dos fiéis, a tal ponto
que assistir à elevação lhes pareça um substituto aceitável da comunhão. Isso
não é surpreendente, se for lembrado que esta última permanece rara para a
maioria dos fiéis, que não têm razões para ir além da obrigação anual fixada pelo
Concílio de Latrão IV. É que a eucaristia é um objeto tão sagrado e, portanto, tão
perigoso para o homem exposto ao pecado, que é melhor não ser excessivamen-
te zeloso. Do mesmo modo, assistir à elevação parece uma maneira suficiente e
menos arriscada de adorar a Deus e, no século XIII, são conhecidos fiéis que cor-
rem de uma igreja a outra para testemunhar o maior número possível de eleva-
ções. E se os teólogos sublinham que a visão da hóstia não é um sacramento, eles
lhe atribuem, todavia, uma notável virtude espiritual, comparando-a à comunhão
e qualificando-a de "mastigação pela visão" (manducatio pervisum). Sem dúvida,

A CIVII.JZAÇÃO fEUDAL 36}


é para canalizar tal devoção e, mais largamente, para permitir o prolongamento
do triunfo da presença real que a Igreja instaura uma nova festa dedicada ao pró-
prio sacramento eucarístico: o Corpus Christi. Realizada em Liege desde os anos
1240, ela é oficializada pelo papa Urbano IV, em 1264, e floresce, sobretudo sob
o estímulo do papa de Avignon Clemente v, no início do século XIV. No momen-
to dessa festividade solene, a hóstia consagrada, exibida em um ostensório trans-
parente e, assim, tornada visível a todos os fiéis, é levada em procissão sob um
pálio através da cidade; depois, é celebrado um ofício especial, chamado Corpus
Christi (cuja redação é devida a Tomás de Aquino). A procissão, que faz sair
o objeto sagrado de seu próprio lugar (o que não deixa de ser perigoso), exibe o
poder sacralizado do clero, que toma posse do espaço urbano graças à deambu-
lação de seu emblema maior, a hóstia.
Nos últimos séculos da Idade Média, a devoção eucarística adquire inces-
. santemente importância crescente, cujo reverso é o horror suscitado pelas nar-
rativas de profanação da hóstia. Freqüentes a partir do século XIII, elas são co-
mumente utilizadas contra os judeus (que são acusados, assim, de repetir contra
o sacramento o crime cometido contra Jesus), mas, sobretudo, afiançam o rea-
lismo eucarístico: que prova da presença real é melhor do que uma hóstia que
sangra? De resto, fora as narrativas de profanação, milagres cada vez mais fre-
qüentes concorrem para exacerbar o culto eucarístico: assim, o Menino Jesus
aparece nas mãos do sacerdote no momento da elevação (como na visão do rei
Eduardo, o Confessor, relatada por Mateus Paris, no século XIII; como vista na
figura 31, na p. 363), a não ser que a hóstia sangre acima do altar ou se trans-
forme em carvão ardente na boca de um mau sacerdote. Enfim, entre os sim-
ples fiéis, o desejo de ver a hóstia não se enfraquece, concorrendo sempre com
a prática da comunhão. A eucaristia torna-se, assim, nos três últimos séculos da
Idade Média, um "supersacramento", superior a todos os outros, pois permite o
contato, de maneira repetida, com a presença corporal de Cristo (Miri Rubin).
Por que uma doutrina eucarística tão nova é formulada entre os séculos
XI e XII? Pode-se, sem muita dificuldade, sustentar que essa revolução doutri-
nai está em estreita relação com duas transformações sociais maiores desse
mesmo período: o encelulamento e a acentuação da separação entre clérigos e
laicos. Com toda a evidência, a doutrina da presença real ressalta a eminência
do ritual eucarístico e lhe confere uma sacralidade espetacular reforçada. Ela
atribui, então, um poder simbólico ampliado ao sacerdote, capaz de realizar um
ato tão extraordinário como a transmutação do pão em carne e do vinho em
sangue. A um só tempo, fora do domínio do natural (ou "contra-natureza", diz
o teólogo Simão de Tournai) e indispensável à salvação de todos, a operação
realizada pelo sacerdote reforça sua sacralidade e justifica a distância que sepa-

362 }érôme Baschet


31. Cristo aparece miraculosamente na hóstia, c. 1255-60 (abadia de Saint-Aibans ou Westminster,
História do santo rei Eduardo, Cambridge, University Library, Ee.3.59, p. 37/fl. 27)
Celebrando a missa, o sacerdote faz o gesto característico da elevação da hóstia. É então que, segundo o rela-
o
to por vezes atribuído a Mateus Paris, santo rei Eduardo, o Confessor, teria tido a visão do Menino Jesus nas
mãos do sacerdote, no lugar da hóstia. Esse tipo de milagre, mencionado em vários relatos a partir do século
XII, é uma maneira de confirmação exemplar da doutrina da transubstanciação e da presença real. Com efeito,
como fazer entender de melhor modo que a hóstia se torna realmente o corpo de Cristo c que este se torna real-
mente presente pelas palavras e pelos gestos do sacerdote?

ra clérigos e laicos. Podemos, então, afirmar a existência de um laço fundamen-


tal entre o reforço do poder clerical e o desenvolvimento da nova teologia da
eucaristia (Miri Rubin). Isso é tornado ainda mais claro pelo fato de que, no
século XII, no mesmo momento em que é instaurado o realismo eucarístico, o
cálice é, salvo casos excepcionais, retirado dos laicos e o sacerdote passa a ser
o único a comungar sob as duas espécies. A distância entre clérigos e laicos é
marcada, assim, por uma diferença ritual bem visível, e uma reivindicação dos

A CIVII.IZt\(.:t\o FEUDAL 363


partidários de Hus, no século XV, é que ela seja abolida e que se restitua aos
laicos a comunhão sob as duas espécies. De maneira ainda mais clara, a maior
parte dos hereges, notadamente os cátaros e os lolardos, e, depois, os reforma-
dos, contesta radicalmente a doutrina da presença real, transformada no fun-
damento do poder exorbitante reivindicado pela casta sacerdotal.

Realismo eucarístico, lugar sagrado e comunhão eclesial

Se o realismo eucarístico responde às necessidades de uma sociedade fundada


sobre a separação radical entre clérigos e laicos, contribui igualmente para o orde-
namento espacial do sistema feudal. Com efeito, a presença real valoriza o ritual
local que se realiza em cada igreja, sobre cada altar: ali, naquele exato lugar, está
·verdadeiramente presente o corpo de Cristo. Ora, um evento tão extraordinário
como a presença real do Salvador não pode se produzir senão em um lugar forte-
mente sacralizado, vigorosamente extraído do espaço terrestre normal. É por isso
que o realismo eucarístico está estreitamente ligado à nova doutrina do lugar ecle-
siástico, estabelecida no mesmo momento e igualmente desprovida de fundamen-
to nas Escrituras ou na Patrística, como bem demonstrou Dominique logna-Prat.
Nos primeiros séculos do cristianismo, a questão do lugar onde seria realizada a
celebração tem pouca importância; ela é quase sem interesse e qualquer mesa,
por mais modesta que seja, pode servir de altar. A "reticência em relação ao enrai-
zamento espacial das práticas de culto" domina então (Michel Lauwers), e
Agostinho faz ainda esta pergunta irônica: "São os mums que fazem os cristãos?".
Uma primeira transformação intervém no fim do século IV, quando a presença de
relíquias no altar é julgada útil e, mais tarde, em 401, considerada indispensável
para a celebração da missa (santo Ambrósio explica que, do mesmo modo que as
almas dos mártires aparecem sob o altar celeste do Apocalipse, os corpos dos san-
tos devem se encontrar sob o altar terrestre). O lugar deixa de ser indiferente e a
geografia sagrada de que falamos começa a se estabelecer: durante a Alta Idade
Média, os grandes santuários perfumados e rutilantes, em meio a um mundo mal
iluminado e malcheiroso, aparecem como "fragmentos de paraíso" (Peter Brown).
A prática conserva, entretanto, certa maleabilidade e, na época carolíngia, é
necessário condenar a celebração da eucaristia nas residências privadas e relem-
brar a indispensável presença das relíquias no altar.
É somente nos séculos XI e XII que o uso de um lugar sagrado é objeto de
uma justificativa precisa, tornada necessária pela contestação dos hereges.
Aqueles que são interrogados pelo Sínodo de Arras, em 1205, e os discípulos de
Pedro de Bruis, no século seguinte, pretendem voltar à prática antiga e negam

364 }érôme Baschet


radicalmente a necessidade do edifício cultuai. Trata-se, a seus olhos, de uma
realidade material desprovida de todo valor, enquanto somente a reunião dos fiéis
e seu engajamento espiritual no ato da prece deveriam importar. Diante desse
ataque, que visando à igreja-edifício ameaça a Igreja-instituição, os clérigos são
obrigados a reagir e afirmar uma doutrina do lugar eclesial, enfatizando seu cará-
ter necessário e sua sacralidade. Assim, embora seja necessário reconhecer com
Agostinho que "Deus está em todo lugar e não aprisionado em algum lugar", é
possível afirmar a necessidade "de um "lugar especial", onde Deus esteja "mais
presente" do que alhures (Atos de Arras), de um "lugar próprio", que é "a mora-
da privilegiada de Deus" e o quadro "das preces mais eficazes" (Pedro, o Venerável).
Se todas as justificativas sublinham que o edifício cultuai só tem sentido porque
abriga a assembléia dos fiéis, não é menos claro que ele seja o símbolo da insti-
tuição sacerdotal e de seu poder sagrado ('Toda religião demanda um lugar onde
os objetos do culto são venerados e onde as pessoas se ligam de modo mais ínti-
mo àquilo que foi instituído", diz ainda o abade de Cluny).
Doravante, o lugar sagrado é bem constituído pelo seu coração (o altar) e
seu duplo invólucro (a igreja, consagrada por um ritual de dedicação progressi-
vamente fundamentado, e o cemitério, também ele objeto de uma consagração).
Do ponto de vista dos clérigos, o lugar sagrado assim definido é o único onde se
opera, de maneira ao mesmo tempo tão permanente e tão intensa, o contato
entre os homens e Deus (todavia, ele pode se produzir alhures, em situações
excepcionais, até mesmo miraculosas, enquanto a simples prece, em qualquer
lugar, é dotada de uma eficácia mais limitada). Além disso, o lugar de culto con-
siste de uma conjunção particular do espiritual e do material (segunda parte,
capítulo IV). Ele é feito de pedras e um corpo material inscreve-se em seu cora-
ção (a relíquia), mas - e é isso que os contestadores não querem nem ouvir-
ele é espiritualizado pelo ritual da consagração, que o transforma em imagem da
Jerusalém celeste. É por isso que, nesse lugar e através do sacrifício ritual que
nele se desenrola, uma comunicação privilegiada pode se estabelecer entre a
terra e o céu, entre os homens e o divino. Assim, o realismo eucarístico, junto
com a doutrina do lugar eucarístico que o acompanha, aporta uma contribuição
decisiva para a valorização do centro de cada entidade paroquial e, então, para
a polarização do espaço feudal.
Mas o sacramento eucarístico não se contenta em exaltar (e exigir ao mesmo
tempo) a dignidade do lugar sagrado onde ele se realiza; ele introduz igualmen-
te à dimensão universal da Igreja. Como toda refeição, a eucaristia é um rito
comunitário, e, como aquele que é oferecido em sacrifício é o próprio Senhor,
faz a provação ritual não somente da comunidade de indivíduos presentes, mas
da comunidade de todos os cristãos, vivos ou mortos. A refeição eucarística faz
entrar, assim, na comunhão da Igreja universal, terrestre e celeste. Não se pode,
com efeito, ignorar que a expressão "corpo de Cristo" designa, ao mesmo tempo,
a hóstia consagrada e a Igreja (segunda parte, capítulo IV). Tornar realmente pre-
sente o corpo de Cristo na hóstia é, então, fazer existir a Igreja como corpo e
como comunidade universal. Incorporando o corpo de Cristo (a hóstia), os fiéis
incorporam-se ao corpo de Cristo (a Igreja). Então, o sacramento eucarístico,
valorizado ao extremo pela presença real, manifesta ritualmente a unidade da
cristandade.
A partir daí, todas as igrejas onde advém a presença real de Cristo podem
aparecer seja como centros, seja como microcosmos à imagem do macrocosmo
da cristandade e em estreita conjunção com ele. Mas a articulação do local e do
universal manifesta-se também por uma dualidade entre as relíquias, associadas
a uma figura santa que remete em geral a uma inserção local, e à hóstia que,
como corpo de Cristo, assume um valor sobretudo universal. Se o altar é o lugar
dessa dupla inserção, o edifício eclesial o é igualmente, pois, ao mesmo tempo,
é associado ao santo que é o seu titular e à Igreja celeste, do qual é a imagem.
No coração de cada paróquia se observa, então, o seguinte complexo: no centro
do centro, o altar associado tanto ao corpo-relíquia de um santo como ao corpo-
hóstia de Cristo; depois, o lugar eclesial sacralizado, reproduzindo, no mais das
vezes, a forma do corpo crucificado de Jesus; enfim, o cemitério consagrado,
lugar dos corpos-mortos. É esse dispositivo concêntrico de corpos associados
que assegura a polarização do espaço local e a estabilidade dos seres vivos que
o ocupam, ao mesmo tempo que põe cada lugar particular em comunhão com o
corpo-Igreja da cristandade e em correspondência com a Igreja celeste. A insti-
tuição eclesial consegue, assim, por um jogo de articulações e remissões, asso-
ciar a comunidade restrita (a paróquia) e a comunidade ampla (a cristandade),
reforçando a coesão tanto de uma como de outra.

A imagem concêntrica do mundo

Não se pode concluir este capítulo sem extravasar as fronteiras da cristandade


e evocar brevemente as concepções da terra e do universo. Estas prolongam, de
resto, a visão concêntrica do espaço analisada até aqui. Deve-se, de início,
relembrar a importância das margens da cristandade: zonas de conquista e de
integração tardia, tanto em direção ao Norte e Leste como na Península Ibérica.
Para além, estende-se o mundo não-cristão, aquele dos conflitos e das trocas
com os muçulmanos, e, mais longe, a África profunda e o Extremo Oriente.
Essas paragens não são totalmente ignoradas: desde antes da exploração metó-

366 ]érôme Baschet


dica das costas africanas pelos portugueses, o prestígio ameaçador dos tártaros,
nos ·anos 1220, e, desde a estabilização do Império Mongol, a esperança de
obter a conversão de seu chefe, o Grande Khan, suscita uma notável corrente
de viajantes e de trocas, que se esgota somente por volta de 1400. O papado
envia uma dezena de embaixadas, em particular a dos franciscanos João do Plan
Carpin, em 1245, e Guilherme de Rubrouck, em 1253. Procuram-se os discí-
pulos de são Tomás, suposto apóstolo das Índias, e algumas conversões são obti-
das. Os irmãos Polo, ao mesmo tempo movidos por seus negócios e embaixado-
res da cristandade, chegam à China pela primeira vez em 1266, de onde trazem
uma mensagem de Kubilai solicitando ao papa pregadores da fé católica; depois,
em 1275 (dessa vez com o jovem Marco, autor do Livro das maravilhas), fican-
do dezesseis anos a serviço do Grande Khan, voltando depois para Veneza, via
Sumatra e Índia. Embora os relatos desses viajantes tragam novas informações
sobre um mundo do qual sublinham a ordem e a riqueza, eles não impedem
absolutamente que o Oriente continue sendo o domínio do imaginário e do
maravilhoso: o conhecimento adquirido em campo "aglutina-se às lendas pree-
xistentes mais do que as substitui" (Paul Zumthor). Lá, vivem povos monstruo-
sos que são já descritos pelos autores antigos, como Plínio e Sulino e que lsidoro
de Sevilha e Rábano Mauro fazem entrar no saber compartilhado pelos clérigos
medievais, inclusive pelos mais doutos, como Alberto, o Grande, ou Roger
Bacon: os cinocéfalos, homens com cabeça de cachorro, que se comunicam
latindo, os panócios, bizarramente dotados de orelhas gigantescas, os ciapodos,
com um único pé, tão grande que eles o utilizam para se proteger do sol, os
homens sem cabeça que têm o rosto no tronco, os opistópodes, que têm os pés
invertidos, com os calcanhares virados para a frente, sem falar nos ciclopes, nos
pigmeus e outros gigantes (figura 32, na p. 368). Lá, ainda (na Grande Muralha
da China), são prisioneiros Gog e Magog, os povos que se abaterão sobre a cris-
tandade no final dos tempos. Na Ásia, igualmente (ou na Etiópia), encontra-se
o Preste João, soberano de um reino cristão onde reinam a justiça, a paz e a
abundância. A carta que se supõe que ele endereçou ao imperador de Bizâncio
circula no Ocidente a partir do século XIII e conhece difusão crescente até o
século XVI. O papa Alexandre III envia-lhe uma mensagem em 1177; numerosos
príncipes sonham selar uma aliança com ele e todos os viajantes que se aventu-
ram no Oriente esforçam-se para localizar o mítico reino de João.
Mesmo se o saber geográfico é objeto de maior atenção a partir do século
XII (e, sobretudo, a partir do fim do século XIII, com o aperfeiçoamento dos por-
tulanos, cartas costeiras fundadas sobre a observação e uma estimativa das dis-
tâncias), as mappae mundi (representações do mundo mais do que mapas) só
podiam ser extremamente esquemáticas e, no essencial, fantásticas. Assim, a

A CIVII.IZAÇÃO I'EUOAL 367


32. Os povos lendários dos confins, segundo as miniaturas do Livro das maravilhas, 141 1-12 (Biblio-
theque Nationale de France, Paris, ms. fr. 2810, fls. 29v. e 76v.)
Este manuscrito do Livro das maravilhas, compilação de relatos de viag<'m, foi encomendado pelo duque de Hor-
gonha, João Sem Medo, a fim de oferecê-lo a seu tio, o duque João de Berry. O relato, notadamente o de Marco
Polo, foi abundantemente ilustrado, muitas vezes forçando sua dimensão maravilhosa. Aqui, o iluminador, o
mestre de Boucicaut, mostra os cinocéfalos das ilhas Adamã, enquanto Marco Polo menciona somente homens
tão feios que se pareciam com cachorros. Do mesmo modo, quando o texto evoca as raças extremamente sel-
vagens da Sibéria, a pintura as traduz recorrendo ao repertório clássico dos povos legendários (um homem sem
cabeça com o rosto no tronco, um ciapodo protegendo-se do sol com seu enorme pé. e um ciclope). O fundo
da miniatura mostra esboços de paisagens características do início do século XV.
33. Mappa mundi de Ehstorf, c. 1230-3~ (Baixa-Saxônia, obra destruída).
Este vasto mapa-múndi de três metros e meio de diâmetro foi realizado pelo monastério beneditino de Ebstorf.
Ele retoma, adaptando-o, o esquema clássico dos mapas em "T' (a Ásia na metade superior; a Europa no quar-
to inferior esquerdo: a África embaixo. à direita, o conjunto formando um círculo cercado pelo oceano). Os dois
últimos continentes são separados pela principal zona marítima, de cor escura, que corresponde ao
Mediternineo. As diferentes rcgiôes são indicadas umas ao lado das outras, sem preocupação com a forma dos
territórios. O mapa-múndi é, entretanto, saturado de informaçiies (Jerusalém ao centro; edifícios emblemáticos
dos diferentes povos conhecidos; monstros c espécies dos confins da terra, por exemplo, Gog e Magog além da
Muralha da China). O mundo é circular c uno, à imagem de Cristo, cuja cabeça aparece a leste, os pés, a oeste,
e as mãos, ao norte e ao su I.
mappa mundi de Ebstorf, gigantesca imagem de três metros e meio de diâme-
tro, realizada em um monastério beneditino de Luxemburgo por volta de 1235,
retoma, como a maior parte das representações medievais, o esquema em "T'
que divide o disco terrestre em três partes: no alto, a Ásia; embaixo, à direita, a
África; embaixo, à esquerda, a Europa (figura 33, na p. 369). Jerusalém ocupa
o umbigo do mundo, ao mesmo tempo que aquele do corpo de Cristo, cuja
cabeça, as mãos e os pés aparecem nos quatro pontos cardeais. A terra-corpo de
Cristo forma um vasto e único continente, drenado por uma densa rede de rios
(entre os quais o Ganges, na Índia, e o Nilo, na África) e mares estreitos. Aqui,
o mundo terrestre é uno (porque ele é o Cristo) e sua periferia é ocupada pelo
oceano. Reencontra-se, assim, na escala do mundo, a visão concêntrica que
ordena os espaços da cristandade: um centro; espaços cada vez mais distantes,
todavia soldados pela metáfora corporal; depois, a periferia da periferia, o ocea-
no, imensidão líquida bem adequada para marcar o desconhecido supremo e a
exterioridade radical para um mundo fundado sobre o vínculo com a terra.
Tal imagem é unanimemente partilhada, independentemente do fato de que
se conceba a Terra como sendo plana ou esférica. As duas idéias coexistiram
durante a Idade Média, dando lugar muitas vezes a misturas mais ou menos coe-
rentes (William Randles). Para os partidários da Terra plana, como Cosmas
Indicopleustas e Isidoro de Sevilha, o oceano marca o limite do disco terrestre,
habitado de um só lado. Em revanche, João de Mandeville, cujo Livro, redigido
em 13 56 e destinado a grande sucesso, fornece uma espécie de síntese do saber
geográfico medieval, admitindo, na seqüência de autores como Beda, o Venerável,
Guilherme de Conches ou Brunetto Latini (1250), o caráter esférico da Terra:
"inteiramente redonda como uma maçã". Não sem contradições, ele afirma que o
mundo é habitado em todas as suas partes e estima ser possível explorar todos os
mares do globo, a despeito dos riscos de tal empresa. A concepção esférica do
mundo é confirmada pela redescoberta de Ptolomeu, autor grego do século 11, cuja
obra é traduzida e transformada em mapas em Florença (1409), depois em
Augsburgo (1482). Se, desde o século XIII, a esfericidade ganha terreno entre a
maioria de autores, ela se torna, ao longo dos séculos seguintes, a concepção unâ-
nime dos homens de saber. Assim, por volta de 141 O, é um mundo esférico que é
descrito pela !mago Mundi do cardeal Pedro de Ailly, uma obra sobre a qual
Cristóvão Colombo meditará e anotará abundantemente.
Mas a oposição entre as formas plana e esférica da Terra não é, talvez, a mais
determinante, sem dúvida porque este ponto é indiferente em relação à repre-
sentação concêntrica do espaço, então dominante. A questão principal que ocupa
os espíritos no final da Idade Média consiste principalmente em avaliar os ris-
cos em que se incorre ao se afastar do mundo habitado conhecido (o ecúmeno)

370 }érôme Baschet


e se lançar na imensidão do oceano que a bordeja (problema, desta feita, extre-
mamente dependente da percepção concêntrica e da oposição interior/exterior).
Para todos, tratando-se de zonas eminentemente periféricas, o perigo só pode
ser considerável. E, como se disse, a força de Cristóvão Colombo não está em
sua opção em favor da forma esférica, pouco singular e não desprovida de ambi-
güidade, mas no fato de estar convencido, em decorrência de erros de cálculos
que acentuavam os de Ptolomeu - e contra a opinião corrente, partilhada espe-
cialmente pela comissão encarregada de avaliar o seu projeto - , que, entre o
Ocidente e a Ásia havia apenas um "mar estreito", reduzindo consideravelmen-
te, assim, a exterioridade ameaçadora do desconhecido oceânico.
Enfim, a concepção do universo projeta na escala cósmica a representação
concêntrica do espaço. Ela se funda, com efeito, sobre o modelo grego das esfe-
ras celestes, formulado notadamente por Aristóteles. No centro, encontra-se a
Terra, cercada de esferas ocupadas pelos diferentes astros conhecidos (começan-
do pela Lua e pelo Sol, seguidos pelos planetas, como Marte e Vênus). A Idade
Média prolonga com freqüência essa imagem de esferas celestes, dispondo no céu
empíreo a hierarquia das nove ordens angélicas. Assim, o universo inteiro organi-
za-se segundo uma lógica concêntrica, de modo que macrocosmo e microcosmo
se correspondem, conforme a lógica cristã das correspondências. Até o fim da
Idade Média, a possibilidade de pensar um universo infinito, debatida pelos teó-
logos do século XIV, permanece marginal - o franciscano Tomás Bradwardine,
mestre em Oxford, é a exceção - e sem verdadeiro alcance. Ainda será preciso
esperar três séculos para que desabem "as esferas celestes que mantinham unido
o belo cosmo de Aristóteles" (Alexandre Koyré). Desde 1584, Giordano Bruno
lança, entretanto, afirmações tão contrárias à lógica do espaço polarizado medie-
val que elas acabam por lhe valer a fogueira: "Não existem pontos no espaço que
possam formar pólos definidos e determinados para a nossa Terra; da mesma
maneira, esta não forma um pólo definido e determinado para nenhum outro
ponto do espaço. [... ]A partir de pontos de vista diferentes, todos podem ser vis-
tos como centro ou como pontos da circunferência.[ ... ] A Terra não é o centro do
universo; ela só é central em relação ao nosso próprio espaço circundante ... Desde
que suponhamos um corpo de tamanho ínfimo, deve-se renunciar a lhe atribuir
um centro ou uma periferia" (De l'infinito universo e mundi).

A CIVJI.IZAÇÀO FEUDAL 37J


CONCLUSÃO: DOMINÂNCIA ESPACIAL NA
IDADE MÉDIA, DOMINÂNCIA TEMPORAL HOJE

A partir daqui, é possível contar entre as características fundamentais do feuda-


lismo a tensão entre fragmentação e unidade, a articulação entre encelulamento
paroquial e o fato de pertencer à cristandade, assim como a articulação entre sta-
bilitas loci e mobilidade (tratando-se deste último ponto, é possível distinguir, de
uma parte e outra da norma social de vínculo ao solo, distanciamentos positivos
- a deambulação penitenciai e, depois, a peregrinação e a cruzada - e distan-
ciamentos negativos - a vagabundagem e o banimento). Três elementos, ao
menos, concorrem para tal resultado. Em primeiro lugar, a criação da malha paro-
quial ordena cada célula em torno de um pólo formado pelo edifício cultuai sacra-
lizado e o cemitério consagrado, tendo, em seu coração, o altar e suas relíquias,
onde a eucaristia faz ocorrer a presença de Cristo e realiza a unidade da Igreja uni-
versal. Em segundo lugar, o desenvolvimento sistemático da oposição inte-
rior/exterior, notadamente pela prática de peregrinação, associa as experiências da
exterioridade ao perigo e reforça o vínculo com o próprio lugar, protetor e familiar.
Enfim, o estabelecimento de uma geografia sagrada estrutura um espaço hetero-
gêneo e hierarquizado, polarizado pelos santos e suas relíquias. Esta organização
que "assegura o máximo de estabilidade possível, ao mesmo tempo que permite
as trocas necessárias" e que fixa os homens na região de conhecimento, ao mesmo
passo que afirma o fato de pertencerem a uma entidade tida como universal, suge-
re quanto a contribuição da Igreja ao ordenamento da sociedade feudal é decisi-
va. Não é surpreendente que uma das contribuições maiores da Igreja à organiza-
ção das colônias americanas tenha consistido de uma prática sistemática de
deslocamentos e reagrupamentos das populações indígenas (as reducciones e con-
gregaciones), que criam novas aldeias cujo centro é, evidentemente, uma igreja (no
caso de Bartolomeu de Las Casas, por exemplo, nota-se, desde seus primeiros
projetos de colonização pacífica, em 1551 e 1520, uma verdadeira obsessão para
organizar os índios em aldeias). Como fruto de sua secular experiência na congre-
gatio hominum da Europa Ocidental, a Igreja sabe que o controle das populações
passa por seu reagrupamento e sua fixação ao solo. Tal é, em todo caso, o princí-
pio indispensável ao funcionamento da sociedade feudal ocidental e, igualmente
ao que parece, do "feudalismo dependente" implantado no Novo Mundo.
Se o feudalismo é caracterizado por uma "dominação espacial", isso não ocor-
re mais hoje. No mundo contemporâneo, é o tempo que parece constituir o ponto
nodal da organização social, pois, com base no assalariamento e no cálculo do
tempo de trabalho - forma sempre dominante das relações de produção - ,
desenvolveram-se conseqüências múltiplas para seres apressados, submetidos à
a
3 72 ]érôme Baschet
"tirania dos relógios" e à compulsão de saber que horas são. Uma regra faz sentir
seus efeitos sobre todos os aspectos da vida: "tempo é dinheiro". Inversamente, na
sociedade medieval, o coração da organização social e das relações de produção
dependia da relação com o espaço: a primeira condição do funcionamento do sis-
tema feudal era a fixação dos homens ao solo, sua integração em uma célula espa-
cial restrita, na qual se entrelaçam (sem se sobrepor) poder senhorial, comunidade
aldeã e quadro "paroquial - uma célula na qual deviam ser batizados, quitar as
obrigações eclesiais e senhoriais e, por fim, ser enterrados para se juntar na morte
à comunidade dos ancestrais. Hoje, quando o lugar está em via de não ser mais per-
cebido como uma dimensão necessária dos seres e dos eventos, quando as mani-
festações da mercadoria podem ocorrer indiferentemente em qualquer ponto do
globo, estamos em via de perder esse sentido da localização. Nós vivemos, é verda-
de, o paradoxo de uma "globalização fragmentada", que multiplica as fronteiras,
exacerba sangrentas loucuras de identidade e requer um desenvolvimento mundial
desigual. Entretanto, o mercado prolonga, nos domínios que o favorecem, sua
obra de homogeneização e de banalização espaciais, iniciada no século xvm, a tal
ponto que a uniformização mercantil mina sorrateiramente a especificidade dos
lugares e que as possibilidades técnicas de mobilidade e de comunicação levam,
por vezes, a esquecer a espacialidade como dimensão intrínseca da existência hu-
mana (a qual não poderia existir a não ser estando aí, em algum lugar). No momen-
to em que as fábricas e os escritórios são incessantemente deslocados em busca de
uma mão-de-obra menos custosa, poder-se-ia dizer que a deslocalização toma-se
uma característica geral do mundo contemporâneo, na medida em que a extensão
sem limites do mercado tende a eclipsar a dimensão espacial e a fazer desaparecer
a relação com o próprio lugar como traço fundamental da experiência humana.
É sintomático que o principal castigo imposto pelas justiças modernas -
fora a pena de morte e apesar do recurso à proibição de moradia - seja a pri-
são: privação de liberdade e entrave à capacidade de deslocamento, localização
forçada por decorrência. Na Idade Média, a prisão era uma pena muito acessó-
ria, enquanto o banimento era, ao contrário, essencial (Hannah Zaremzka).
Ruptura do laço entre o indivíduo e seu lugar, o exílio era uma quase-morte
social, pois os banidos tinham grande dificuldade para refazer sua vida alhures:
"Nesta sociedade de honra, vale mais ser um homem morto que um homem
ultrajado? De certo modo, o exílio é pior que a morte" (Ciaude Gauvard). Ao
inverso do princípio de stabilitas loci, o banimento constituía uma obrigação de
deslocamento, deslocalização forçada, ou seja, o exato inverso do castigo carce-
rário. Coerção principalmente espacial de um lado, coerção essencialmente
temporal do outro: aí está, dito de modo muito esquemático, uma das marcas
de distinção radical entre o mundo medieval e o mundo contemporâneo.

A CIVILIZA~:AO FEUDAL 373


I I I

A LÓGICA DA SALVAÇÃO

NÃO SE PODE COMPREENDER o homem medieval, sua vida em sociedade, suas


crenças e seus atos sem se considerar o inverso do mundo dos vivos: o domínio
dos mortos, onde cada um deve, finalmente, receber uma retribuição à sua altu-
ra, danação eterna ou beatitude paradisíaca. Não seria possível, então, apresen-
tar os espaços e as paisagens do Ocidente medieval sem se aventurar nesses rei-
nos invisíveis, aterrorizantes ou apaziguadores, onde habitam as almas dos
defuntos e onde os corpos ressuscitados após o Juízo Final devem encontrá-las.
Na Idade Média, o aqui embaixo não é concebido sem o além. Parte integrante
do universo do homem medieval, o além lhe confere seu verdadeiro sentido e
lhe traça sua verdadeira perspectiva. O medo do inferno e a esperança do paraí-
so devem guiar o comportamento de cada um; e a própria organização da socie-
dade é fundada sobre a importância do outro mundo, pois a posição dominante
dos clérigos se justifica, em última instância, pela missão que lhes incumbe de
conduzir os fiéis até a salvação.
Para a cristandade medieval, o além é o lugar onde se realiza a justiça divi-
na, onde se revela a verdade do mundo. Enquanto nas desordens do aqui embai-
xo a justiça é muitas vezes ultrajada e a verdade, violada, o além permite ver a
realização da ordem divina. A Idade Média concebe o aqui embaixo como um
universo "figurai", um mundo de pálidas figuras que só anunciam imperfeita-
mente as revelações futuras do outro mundo (Eric Auerbach). Não são os mor-
tos que são as sombras dos vivos, mas os vivos que são as sombras dos mortoP.
É por isso que Dante, quando quer estabelecer o atlas completo das realidades
humanas, abandona o aqui embaixo e se lança, para nos dar a sua Divina comé-
dia, na exploração tão exaustiva quanto possível dos lugares do além-túmulo.
O além ordena a visão medieval do mundo; ele é um modelo perfeito, em fun-
ção do qual se julga o aqui embaixo e cuja implicação é a maneira de reger a
sociedade dos homens.

3 74 }érôme Baschet
A oposição entre o aqui embaixo e o além é inseparável da dualidade moral
que estrutura o pensamento cristão. Essa dualidade é, de resto, o fundamento
do modelo das duas cidades, que Agostinho lega à Idade Média e em virtude do
qual o mundo se divide em dois conjuntos opostos: a cidade de Deus, que reúne
os justos daqui de baixo e a Igreja celeste; a cidade do Diabo, da qual fazem
parte tanto os seres vivos atormentados pelo pecado como os danados e os dia-
bos que povoam o inferno. Segundo essa visão, a oposição entre o bem e o mal
prevalece sobre aquela entre o aqui embaixo e o além, pois cada cidade englo-
ba uma parte deste mundo e uma parte do outro. Não é menos verdade que a
dualidade do além submete o universo à sua polaridade, pois ele é a residência
privilegiada das forças sobrenaturais: Deus em seu trono no reino dos céus, cer-
cado pela corte de anjos e de santos; Satã, "imperador do reino de dor", segun-
do as palavras de Dante. O além é, igualmente, o ponto de perspectiva que obri-
ga a ler cada ato humano através de uma grade moral dual, como pecado
passível da danação ou como virtude merecedora da beatitude do céu. A Regula
bullata, aceita pela Ordem Franciscana, não resume, do modo mais lapidar pos-
sível, o objetivo da pregação dos frades, "anunciar aos fiéis os vícios e as virtu-
des, a pena e a glória"? O conjunto dessas dualidades morais concorre para ati-
var a exigência fundamental em nome da qual a Igreja pretende governar a
sociedade cristã: prover a sua salvação.

A GUERRA ENTRE O BEM E O MAL

O mundo, campo de batalha entre vícios e virtudes

A oposição entre o bem e o mal é essencial no cristianismo medieval. Os peca-


dos e as virtudes constituem categorias fundamentais para ordenar a leitura do
mundo, tanto de sua história (desde a queda dos anjos e o pecado de Adão e Eva
até o Juízo Final) como de seu presente (todas as atitudes humanas devem ser
louvadas como virtudes ou denunciadas como vícios) e de seu futuro (o destino
no além é a conseqüência das boas ou das más ações realizadas na terra).
Nenhuma realidade escapa a esse crivo temerário, que dá lugar a um discurso
moral de amplitude estupenda, do qual a Igreja se esforça para assegurar os fun-
damentos teológicos, analisando a natureza de cada pecado e de cada virtude, e
para promover o uso pastoral, produzindo classificações eficazes e adaptando
incessantemente as categorias morais às realidades sociais. O enorme sucesso

i\ (:1\'ILIZA~:i\o FEUDAl. 375


da moral dos vícios e virtudes liga-se ao fato de que ela oferece um discurso
totalizante sobre o mundo ou, mais exatamente, um discurso sobre a ordem da
sociedade coRforme os critérios clericais. Ao mesmo tempo, a dualidade moral
é a justificativa fundamental da intervenção da Igreja na sociedade, que visa
liberar os homens do pecado, protegê-los do mal e mantê-los no correto cami-
nho que leva à salvação.
Entretanto, para chegar a isso, terá sido necessário o gênio de santo Agos-
tinho, que lega à cristandade medieval sua doutrina do pecado original. Ela é
forjada no decorrer de sua luta contra Pelágio e seus discípulos, os quais, para
melhor exaltar a liberdade do homem, afirmam que o pecado original não man-
chou inteiramente a vontade do indivíduo e que cada um pode, portanto, encon-
trar em si a força para elevar-se até Deus. Rejeitando essa visão otimista e herói-
ca, Agostinho insiste sobre o rebaixamento da natureza humana. Para ele, o
pecado original é transmitido a cada homem, que, então, nasce pecador antes
mesmo de ter realizado algo. E não é somente a pena do pecado original que é
transmitida assim (conforme a advertência que Deus enuncia a Adão e Eva),
mas também a própria falta. A humanidade inteira é parte integrante do peca-
do do primeiro casal e é coletivamente responsável por ele. O peso dessa falta
afeta, até o nível mais profundo, a vontade do homem e torna suspeito o exer-
cício de sua liberdade, que o leva, geralmente, para o mal. Igualmente, na mesma
medida em que ela deprecia o homem, a teologia agostiniana reforça a impor-
tância do batismo e valoriza com maior força sua necessidade indispensável: se
o sacramento purificador não restitui totalmente ao homem a pureza de suas
origens edênicas, ao menos apaga o peso massacrante da falta original e lhe ofe-
rece a oportunidade quase inesperada de sua redenção. A sombria teoria de
Agostinho demonstra, assim, que o homem não pode se salvar sozinho e que
tem necessidade, para tanto, do socorro insubstituível das instituições e, em pri-
meiro lugar, da Igreja; apenas a mediação desta pode atrair sobre ele a graça
divina e lhe permitir evitar as emboscadas que semeiam o caminho da salvação.
Entre as virtudes e os vícios, só pode existir uma luta sem tréguas. A Psycho-
machia do poeta Prudêncio (século v), obra destinada a amplo sucesso, descre-
ve os combates épicos a que se lançam as personificações armadas dos vício~
das virtudes (por exemplo, Fé contra Idolatria, Paciência contra Cólera, Humil-
dade contra Soberba). Entretanto, tratando-se das virtudes, as classificações
utilizadas ao longo da Idade Média são múltiplas e variáveis, e é possível men-
cionar notadamente as obras de misericórdia (Mat 25) e os sete dons do Espírito
Santo (Is li). Uma das principais tipologias é, sem nenhuma dúvida, a das sete
virtudes: quatro virtudes cardeais (prudência, justiça, temperança e força) e três

376 }érôme Baschet


virtudes teologais (caridade, fé e esperança). As primeiras são tomadas de em-
préstimo a Platão e Cícero, enquanto as últimas são criações especificamente
cristãs (I Cor 13). Embora de origens distintas, elas são associadas, a partir do
século XII, para formar o septenário das virtudes. O recurso a este não é, toda-
via, desprovido de problema, em primeiro lugar porque ele não se contrapõe,
ponto a ponto, aos sete pecados capitais, mas também porque ele não inclui cer-
tos valores cristãos fundamentais. É por isso que a humildade, particularmente
essencial no mundo monástico e considerada a mãe de todas as virtudes, deve em
geral ser acrescentada em epígrafe ao septenário ou à raiz da árvore do bem, da
qual florescem as virtudes. Entretanto, a preeminência da humildade pode ser
contestada em benefício da caridade, tida como a primeira das virtudes por São
Paulo e que se beneficia, também ela, no seio do septenário, da posição de mãe
das virtudes. Com efeito, no pensamento medieval, ela adquire importância
considerável, pois significa, a um só tempo, o amor ao próximo e o amor a Deus,
constituindo, assim, o próprio fundamento do laço social e da organização da
cristandade. Quanto às outras virtudes do septenário, são certamente a justiça
e a fé que se beneficiam do eco social mais manifesto.
Os pecados são ordenados muito mais precocemente em um septenário,
em primeiro lugar com João Cassiano, monge vindo do Egito para Marselha no
início do século V, e sobretudo na Moralia in ]oh, de Gregório, o Grande, que
lhe dá sua forma canônica para a Idade Média (orgulho, inveja, ira, preguiça,
avareza, gula e luxúria). Esses pecados são ditos capitais porque se engendram
uns aos outros e, sobretudo, porque cada um deles é o ponto de partida de rami-
ficações que dão nascimento a numerosos pecados derivados, assim como é
representado pelas árvores dos vícios que se multiplicam na seqüência do Liber
floridus- de Lamberto de Saint-Omer, por volta de 1120 (figura 34, na p. 378).
É verdade que o septenário sofre a concorrência de outras classificações e, por
vezes, deve dar lugar a categorias novas, como os pecados da fala que, a partir
do século XIII, reagrupam todas as faltas cometidas quando se fala, desde a blas-
fêmia e a injúria até a maledicência e a mentira - ou quando se cala indevida-
mente (taciturnitas). Entretanto, ao mesmo tempo, o papel do septenário ape-
nas se reforça, especialmente graças à Summa confessorum do inglês Tomás de
Chobham, em I 210-15, e, pouco depois, à Suma dos vícios e das virtudes do
dominicano Guilherme Peyraut, a mais importante no gênero. Ela consagra o
triunfo do septenário e faz dele o "ponto cardeal da pastoral cristã", bem estu-
dado por Carla Casagrande e Silvana Vecchio.

;\ CIVILIZA~: À O F C L: I) A L 3 77
~--


34. A árvore dos vícios, c. 1300 (Verger de Soulas, Bibliothcque Nationalc de France, Paris, ms. fr. 9220, fi. 6).
A "árvore dos vícios', como a nomeia a inscrição, emerge da garganta do inferno. Em meio às 11amas. um cava-
leiro com um falcão no punho e caindo de sua montaria simboliza o orgulho, ··raiL de todos os vícios· e. por
excelência, pecado dos dominantes. Do tronco da árvore nascem sete galhos que terminam com um medalhão
correspondendo a um dos pecados capitais, com suas subdivisões indicadas nas folhas. Da esquerda pma a di-
reita: a avareza (um homem tranca suas riquezas em um cofre); a ira (uma mulher arranca seus cabelos); a gula
(Janus à mesa); a luxúria (uma mulher nua segurando um espelho e tentada pelo diabo); a preguiça (um per-
sonagem sentado, como que prostrado); a vanglôria (uma mulher segurando uma taça e um livro); a inveja (uma
mulher com uma serpente em torno do pescoço).
Discurso sobre os vícios, discurso sobre a ordem social

O sucesso considerável do septenário é explicado por sua notável eficácia sinté-


tica e por sua capacidade de adaptar-se às realidades sociais em permanente
transformação. Tratar dos pecados significa, com efeito, sustentar um discurso
sobre a boa ordem da sociedade. O orgulho é, por excelência, o pecado dos
dominantes, clérigos ou aristocratas, que, exaltados pela sua posição, são víti-
mas de um excessivo desejo de elevação e terminam por infringir a obediência
e a submissão que convém manifestar perante Deus (figura 34, na p. 378).
A inveja é o ciúme que se exerce entre semelhantes (em particular, nos meios
em que a competição é viva, como entre cortesãos ou entre universitários),
mas ela é, sobretudo, o vício das classes inferiores, que repugnam sua posi-
ção de dominados e lançam um olhar maldoso em direção ao topo da socie-
dade. Enfim, a ira estigmatiza a violência e a agressividade que se manifes-
tam no corpo social, sob suas formas mais variadas, desde o insulto e o
homicídio até a blasfêmia e a rixa (figura 37, na p. 398). Esses três pecados
rompem, então, a harmonia hierárquica da sociedade cristã, atentando con-
tra a justa medida do poder exercido pelos dominantes, contra a submissão
que os dominados devem manifestar, e contra a concórdia que deve reunir a
todos no vínculo da caridade.
A evolução dos outros pecados capitais não é menos notável. A preguiça
(também chamada acédia e tristeza) é, sem dúvida, o pecado cujosentido se
transforma mais· claramente ao longo da Idade Média. No início, ela é um vício
essencialmente monástico, que traz a marca de sua origem (o pensamento dos
eremitas do deserto egípcio, transmitido por Cassiano e Gregório) e dos valores
dominantes durante a Alta Idade Média. Ela se refere, então, ao desalento do
monge, ao desgosto pela solidão e à melancolia que o assolam para desviá-lo
de Deus e lhe fazer abandonar sua vocação. Mas, no contexto da Idade Média
Central, ela muda radicalmente de sentido e visa principalmente, em Gui-
lherme Peyraut e aqueles inspirados por ele, à ociosidade, considerada, a partir
do século XIII, a mãe de todos os vícios (o que designa a contrario o trabalho
como a função legítima da terceira ordem da sociedade). Diferentemente de seu
sentido monástico inicial, a preguiça é, então, associada principalmente aos lai-
cos, que não cumprem seu ofício como laboratores ou que negligenciam seus
deveres para com Deus.
Uma outra evolução notável é a promoção da avareza que, a partir do sécu-
lo XII, rivaliza com o orgulho pelo primado no seio do septenário (Lester Little).
Se é verdade que o orgulho atenta contra a virtude cristã da humildade, ele apa-
rece, de início, como um pecado feudal e clerical; sua preeminência é iniciada

A CIVII.IZ.\ÇAO FEUDAL 379


pelas inquietudes suscitadas pela importância crescente do dinheiro na vida
social. Proliferam discursos e sermões sobre a avareza, e o capítulo que lhe é con-
sagrado nas Sumas, a começar pela de Guilherme Peyraut, é geralmente o mais
alentado. A condenação da avareza torna-se cada vez mais um ataque contra a
usura, pecado profissional dos mercadores e dos banqueiros. Ela é fundamen-
talmente uma manifestação do amor excessivo aos bens materiais, que a Igreja
opõe ao desejo dos bens espirituais. A avareza rompe, então, com a exigência de
circulação generalizada que Deus institui, sob o nome de caritas, como princí-
pio que rege a ordem social (e os clérigos medievais retomam, para denunciar
o entesouramento culpado do avaro, a metáfora de Ambrósio de Milão, que opõe o
poço inutilizado, cuja água estagnada se corrompe, e aquele em que a água
escoa, límpida e boa para beber). Enfim, se a condenação da luxúria está, desde
o princípio, no centro da cultura cristã do pecado, sua importância é ainda mais
reforçada, a partir do século XII, no momento em que o celibato é definido como
uma obrigação estrita dos clérigos e a nova doutrina do casamento impõe aos
laicos regras mais coercitivas. No geral, o discurso sobre os pecados, amplamen-
te assumido pelas ordens mendicantes a partir do século XIII, ecoa as transfor-
mações sociais e, em particular, o desenvolvimento das cidades. Ele confere
uma atenção crescente ao universo dos laicos, não para reconhecer positiva-
mente os seus valores específicos, mas para denunciar mais eficazmente seus
defeitos e para ordená-lo conforme os valores da Igreja.
O discurso dos vícios, ao mesmo tempo denúncia do mal e ocasião de
inculcar as atitudes legítimas, é um instrumento excepcional, pelo qual a Igreja
difunde seus valores no seio da sociedade e aumenta seu controle sobre ela. Se
consegue isso com tanto sucesso não é apenas porque ela empreende uma
exploração exaustiva e minuciosa dos sentimentos e das paixões, que se inscre-
ve em uma arqueologia da psicologia ocidental; é também porque ela faz ver, ao
mesmo tempo, o mal e o remédio que pode curá-lo. Melhor ainda, ela reivindi-
ca o monopólio dos meios que permitem apagar o pecado ou, ao menos, esca-
par de suas conseqüências funestas. Somente ela confere o batismo, que lava
a mancha do pecado original e abre as portas do paraíso. Somente ela concede o
perdão dos pecados capitais pelo sacramento da penitência, cuja forma por
excelência vem a ser a confissão, a partir do Concílio de Latrão IV, sem falar de
outros meios, como as indulgências, que diminuem ou anulam a penitência re-
querida para perdão das faltas. Assim, se a pastoral do pecado, cujo desenvolvi-
mento nos últimos séculos da Idade Média é considerável, visa aguçar a culpabi-
lidade dos fiéis, ela é também, e sobretudo, a valorização dos meios de salvação
oferecidos pelos clérigos. A confissão é, seguramente, o principal deles, e é, aliás,
para o uso dos confessores que o essencial do discurso sobre os vícios é produzido,

380 }érôme Baschet


através da profusão das sumas morais, dos manuais de confissão e dos exames
de consciência. A confissão adquire, com efeito, uma importância estratégica,
pois a condição do perdão é a declaração de culpa e, como preço da tranqüili-
dade da alma, os clérigos arrogam-se o direito de um olhar sobre a vida dos fiéis
que mergulha até o mais íntimo das consciências.

O diabo, "príncipe deste mundo"

Por trás do combate entre vícios e virtudes perfila-se uma outra luta, ainda mais
fundamental. Com efeito, o diabo e suas tropas demoníacas tentam os homens
e os induzem ao pecado, enquanto Deus e seus exércitos celestes esforçam-se
para protegê-los e incitá-los à virtude. O mundo é o teatro desse afrontamento
permanente e dramático entre o Criador e Satã. Uma das criações mais origi-
nais do cristianismo e praticamente ignorado no Antigo Testamento, seu papel
é valorizado principalmente pelo Evangelho, que faz dele "príncipe deste
mundo" (Jo 12), "o deus deste mundo secular" (11 Cor 4). Ele sintetiza, então, a
multidão dos espíritos demoníacos que pululam no judaísmo popular, ao mesmo
tempo que procede da dissociação da figura ambivalente de Jeová, deus tanto
de cólera e de castigo como benfeitor. É então, recorrendo principalmente à lite-
ratura apócrifa judaica (sobretudo o Livro de Henoch, do século 11 a.C.), que é
precisado o mito da queda dos anjos, que constitui o ato de nascimento do diabo
e marca a entrada do mal no universo. Se no relato inicial a queda é a conse-
qüência do desejo dos demônios, que foram seduzidos pela beleza das mulhe-
res, a partir do século IV ela é explicada pelo orgulho do primeiro dos anjos,
Lúcifer, desejoso de se igualar a Deus e por isso expulso do céu junto com todos
os anjos rebeldes aliados à sua pretensão insana.
Ao longo da Idade Média, a importância da figura do Maligno é constante-
mente reforçada, tanto nos textos como nas imagens, nas quais ele só aparece a
partir do século IX. No mais, é somente por volta do ano mil que encontra um
lugar digno dele, quando se desenvolve uma representação específica que subli-
nha sua monstruosidade e sua animalidade, manifestando assim seu poderio hos-
til de modo sempre mais insistente (figuras 36 e 37, nas pp. 390 e 398).
Entretanto, mesmo se o cristianismo faz do universo o teatro de uma luta entre
Deus e Satã, não se poderia assimilá-lo às doutrinas dualistas. Ao contrário,
opondo-se à religião de Mani (216-77) e de seus discípulos, os maniqueus, e,
mais tarde, ao catarismo, o cristianismo medieval procura se distanciar do dua-
lismo (segundo o qual o mundo material é a criação de um princípio do mal,
totalmente independente de Deus). A doutrina cristã tem Deus por senhor e
criador de todas as coisas, e a narrativa da queda dos anjos mostra que Satã e os
diabos são criaturas, anjos caídos que, como repetem os clérigos disputando
entre si para ver quem o diz melhor, não podem agir senão com a permissão de
Deus. Preocupado em afastar o mais possível o risco dualista, são Tomás insiste
mesmo sobre o fato de que os demônios foram criados bons e que eles são maus
por vontade, e não por natureza. Entretanto, o poder do "príncipe deste mundo"
é aparentemente tão extenso que a doutrina parece, por vezes, eclipsar-se um
pouco em proveito de um aspecto profundamente vivido, que lhe concede de
facto uma ampla autonomia de ação. Toda a história do mundo parece marcada
pela intervenção do Maligno, desde a queda dos anjos até o desencadeamento
escatológico anunciado pelo Apocalipse. A tentação de Adão e Eva é a primeira
revanche de Lúcifer, e, na seqüência de Agostinho, é dito que, graças ao pecado
original, o diabo possui um verdadeiro direito de propriedade sobre o homem.
Mas Cristo, através de seu sacrifício, resgata esse direito do diabo e pode, então,
liberar Adão, Eva e todos os justos do Antigo Testamento, que Satã retinha, até
então, como prisioneiros no inferno. A guerra entre as forças do mal e as forças
do bem é, a partir daí, mais equilibrada, com as primeiras reivindicando em seu
benefício o pecado original e as últimas encontrando na Encarnação um argu-
mento ainda mais poderoso e relembrando que o homem tem, desde então, os
meios de reencontrar a harmonia perdida com Deus.
A luta não é por isso menos incerta e obstinada, e numerosos relatos deta-
lham as ações maléficas daquele que se nomeia, a justo título, o Inimigo. Diz-se
que ele é responsável por todos os males e todos os infortúnios: ele provoca tem-
pestades e borrascas, apodrece os frutos da terra, causa as doenças dos homens
e do gado. Ele faz afundar os navios, desabar os edifícios e bloqueia as melho-
res intenções (conta-se, por exemplo, que ele se opõe à construção da catedral
de York, tornando as pedras impossíveis de ser levantadas). Com suas armas
favoritas, que são a tentação e o engodo, ele procura insinuar no coração dos
homens desejos culpáveis, suscitando maus pensamentos por meio do sonho
(sempre suspeito de ter uma origem diabólica) ou da aparição (a célebre Vida de
Antônio, o eremita do deserto, fornece, desde 356, o arquétipo dessas tentações
diabólicas, com freqüência retomadas e expressadas por imagens). Para tal, ele
pode usurpar uma aparência humana, em particular a de uma mulher sedutora
ou a de um belo jovem, ou até mesmo a de um santo. Nada é impossível para o
diabo, verdadeiro campeão da metamorfose, nem mesmo tomar as feições do
arcanjo Gabriel, da Virgem ou de Cristo. As tentações da carne e do dinheiro,
do poder e das honrarias são as mais temíveis: são aquelas às quais sucumbe
Teófilo - prefiguração medieval de Fausto - depois de feito seu pacto com o
diabo, segundo a lenda bizantina conhecida no Ocidente a partir do século IX

382 }érôme Baschet


e largamente difundida nos textos, nas pregações e nas imagens (figura 35, na
p. 384). E já que o Maligno intervém em todos os negócios deste mundo aqui
embaixo, não se hesita em manipulá-lo, a ponto de, em certos conflitos, cada
partido menctonar uma carta enviada por Lúcifer ao outro campo: esse estrata-
gema, utilizado notadamente durante o Grande Cisma, devia parecer um meio
eficaz para desacreditar os adversários.
Assim, o diabo pode insinuar-se no corpo dos homens, "possuí-los" e lhes
fazer perder toda a vontade própria. É por isso que o ritual de exorcismo, pelo qual
a Igreja libera os possuídos, adquire grande importância, particularmente durante
a Alta Idade Média. Todavia, passado o ano mil, a possessão recua em proveito da
obsessão diabólica, que toma de assalto as consciências, em particular a dos mon-
ges (assim, o demônio aparece a Raul Glaber como um pequeno homem esque-
lético, corcunda e "negro como um etíope"). Em numerosos relatos que põem em
cena os tormentos da alma perseguida pelas forças hostis, o diabo exprime tudo o
que a consciência julga negativo e não pode admitir como emanando dela ou de
Deus. Como sugere Freud, os demônios são formas personificadas e projetadas
para fora de si dos desejos reprimidos. As pulsões demonizadas são, muitas vezes,
de natureza sexual, como se constata nos numerosos relatos de sonho ou nos
casos das "poluções noturnas" (emissões involuntárias de esperma durante o
sono), que os monges atribuem à intervenção do diabo. Mas essas pulsões podem
também adquirir uma feição mórbida, como quando o diabo, tendo tomado a apa-
rência de são Tiago, ordena ao peregrino que se castre e se mate. De resto, é geral-
mente no momento da morte que o diabo se torna mais ameaçador. Ele se preci-
pita junto aos moribundos para lhes fazer provar uma última tentação e evitar que
aproveitem seus últimos momentos para arrepender-se, confessar-se e obter in
extremis sua salvação. Como indica abundantemente a iconografia, anjos e demô-
nios travam uma guerra terrível na cabeceira de cada moribundo para tomar posse
da alma do defunto (figura 40, na p. 415). E, quando é preciso recorrer a um ver-
dadeiro julgamento da alma, cujos relatos se desenvolvem a partir do século VIII,
o diabo revela seus talentos litigantes para obter ganho de causa ou, de maneira
mais grosseira, pendura-se em um dos pratos da balança em que são pesadas as
boas e as. más ações do morto.

Satã, contraponto valorizador das potências celestes e da Igreja

Não se poderia considerar o diabo de modo isolado. Por maior que pareça ser
seu poderio, ele não pode ser avaliado corretamente se não se leva em conta o
conjunto das forças celestes que se lhe opõem. As legiões angélicas infligem aos

A CIVII.IZA(,:,\0 FEUIJ,\L 383


·L.6

(,r n:nph1 !n'.fmpk. '! ll prtf" mrm. 7 mabàmt fatt';.:•' t--!·-*<:-::·.~-. ::!-'
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35. Tcófilo prestando homenagem ao diabo, c. 121 O (saltério da rainha lngcburge. Museu Condé,
Chantilly, ms. 9, fi. 35v.).
O saltério de lngcburge. esposa repudiada pelo rei Filipe Augusto, é ricamente iluminado c seus planos de
fundo em ouro sáo particularmente bem conservados. 1\:dc, o milagre de Teófilo desenrola-se por várias pági-
nas. i\Jo alto, aqui, o pacto que Teófilo faz com o diabo toma a forma de uma homenagem vass1ilica: ajoelhado,
ele junta as mãos, como para o imnixtio mamtttm do rito feudal. O diabo, em pé, põe somente uma de suas
mãos sobre as de Tcófilo, pois, com a outra, segura o pacto que contém uma inscrição- pouco visível - evo-
cando claramente a relação entre um vassalo c seu senhor (''eu sou teu homem", "ego sum lznmo tuus").
Embaixo. Teófilo, arrependido, encontra-se no interior de uma igreja (lugar este que o altar c a lamparina sus-
pensa siio suficientes para indicar); ele se prosterna. em prece (o gesto das mãos é. desde o século XI, o do vas-
salo prestando homenagem a seu senhor c, por conseqüência, o mesmo que Teófilo realiLa acima. diante do
diabo). É provâvel que ele ore diante de uma cstJtua da Virgem, posta sobre o altar, mas, aqui, ela parece lhe
aparecer em pessoa e lhe falar. Nas cenas seguintes, a Virgem rl'toma o pacto. lilwrtando Tcófilo de suas obri-
gações para com o diabo. A homenagem legítima à Virgem pôde. então. apagar a homenagem negativa a Satã.
anjos rebeldes sua primeira derrota. Mesmo sendo as vítimas favoritas das ten-
tações diabólicas, os santos conseguem sempre superar a provação, que se
transforma, assim, em uma ocasião para confirmar sua força espiritual. Nas nar-
rativas hagiográficas, o diabo é aquele que acaba por valorizar os santos heróis
que triunfam sobre ele. O exército dos santos, inalteravelmente vitorioso,
demonstra, assim, que é um dos recursos mais eficazes para os homens que se
põem sob sua proteção. Enfim, mais ainda do que os santos, a Virgem torna-se
a protetora suprema, sobretudo quando é Satã em pessoa que ameaça, e é ela
que liberta Teófilo de seu pacto diabólico (figura 35, na p. 384). Nos últimos
séculos da Idade Média, o par Virgem/Satã adquire importância determinante,
como indica principalmente o tema do "processo de Satã", que ele intenta con-
tra uma humanidade de quem a Virgem é a advogada. A dualidade do diabo e
de Maria parece, então, quase tão importante quanto a oposição entre Satã
e Cristo, mesmo se a superioridade de Deus sobre o diabo permanece o funda-
mento do feixe de oposições que acabamos de evocar.
O homem medieval não está, então, sozinho diante dos demônios. Todas
as forças divinas, angélicas e santas -cuja multiplicação incita a questionar a
existência, no seio do cristianismo medieval, de uma deriva politeísta -
encontram sua unidade e sua coesão na luta contra ele, de modo que o equilí-
brio assim produzido sugere, finalmente, considerar o cristianismo medieval
um monoteísmo complexo. Além disso, o fiel dispõe de práticas, de gestos e de
ritos para se proteger do Inimigo. A Igreja, em sua totalidade, é uma muralha
contra o diabo, através dos sacramentos que dispensa (o batismo, a penitên-
cia), dos ritos que pratica (o exorcismo ou, ainda, a consagração das igrejas,
que interdita seu acesso aos diabos), as preces e bênçãos que pronuncia e que
afastam o Maligno. Os objetos sagrados - hóstia, relíquia, cruz, mas também
amuletos diversos - mantêm igualmente o demônio a distância. Enfim, do
mesmo modo que os clérigos sublinham que o diabo nada pode contra aqueles
que têm fé, existe um gesto simples e familiar cuja infalível virtude salva de
todos os perigos satânicos: o sinal-da-cruz. O diabo, contraponto valorizador
das potências celestes que triunfam sobre ele, também é, então, o contrapon-
to valorizador da instituição eclesial, através da qual os fiéis são convidados a
recolher os frutos dessa vitória.
É, então, lógico que o diabo tenha sido considerado o inspirador dos ini-
migos da Igreja. Para os cristãos, os deuses adorados pelos pagãos são apenas
demônios e, após os muçulmanos e os judeus, os hereges também são demo-
nizados. Iniciado desde o século lll, esse processo acentua-se com as heresias
do ano mil e, mais tarde, no momento da luta contra os cátaros. Não somente
os heréticos passam por seres inspirados pelo diabo, mas são descritos, de acor-

A CIVILIZi\~:ÃO FEUDAl. 385


do com o tratado de Adson de Montier-en-Der sobre o Anticristo, como os
membros de um corpo do qual Satã seria a cabeça, réplica negativa do corpo
da Igreja, da qual Cristo é o chefe. Pouco a pouco, a crença em um complô
satânico, que ameaça a sociedade, amplia-se. A obsessão diabólica invade o
Ocidente. No mesmo momento em que o perigo herético foi estrangulado,
passa-se para a denúncia dos feiticeiros e feiticeiras que, aos olhos dos cléri-
gos, não passam mais por vítimas de uma ilusão diabólica que convém tratar
com clemência, como queria o cânone Episcopi, mas efetivamente por mem-
bros de uma seita diabólica que, no sabá, participam de um verdadeiro rito de
adoração de Satã (bula Vox in rama, 1233). Convencidos de que a sociedade
cristã está exposta a uma ofensiva de Satã sem precedente, os poderes eclesiás-
ticos, monárquicos e urbanos rivalizam em zelo e desencadeiam, a partir dos
anos 1430, e principalmente durante a época moderna, vasta perseguição, em
uma escala inédita, contra aqueles que considera seus inimigos mortais. Satã
aparece, então, como o adversário contra o qual se funda e se reforça o pode-
rio das instituições.
Acontece que Satã está sempre associado à questão do poder. Ao contrário
do corpo eclesial, ele é também a imagem do mau poder. Na época feudal,
Lúcifer é em geral descrito como o vassalo pronto à felonia e que quer igualar-
se a seu senhor, em vez de lhe prestar obediência. E é sobretudo a partir do
século XIV que se manifesta a majestade de Satã, mesmo se suas primícias teo-
lógicas já são encontradas em Tomás de Aquino. Este admite, com efeito, a exis-
tência de uma ordem e de um poder de comando no mundo demoníaco: o céu
e o inferno não se opõem mais, então, como dois contrários (ordem versus desor-
dem), mas como duas ordens estruturalmente idênticas, mas inversas (ordem
boa versus ordem má). A iconografia pode, então, acentuar o poderio de Satã,
sublinhando sua autoridade por meio de uma posição frontal e sentada, por
meio das insígnias de seu poder (trono, cetro, coroa), e por meio do respeito que
ele impõe à corte dos demônios. A majestade de Satã aparece, assim, ao mesmo
tempo, como a figura extrema do mau poder tirânico e como o inverso das for-
mas legítimas dos poderes monárquico e pontifício, que então se reforçam.
Assim, ao longo de toda a Idade Média, Satã amplia sua presença e seu
poderio ameaçador. Mas esse fenômeno não poderia ser compreendido sem
considerar, ao mesmo tempo, as potências que o controlam: figuras divinas e
santas, instituição eclesial e autoridades monárquicas, que afirmam seu poder
crescente no combate vitorioso que travam contra o mal absoluto. Diante de um
poderio incessantemente mais temível, são necessários protetores cada vez mais
eficazes. De seu afrontamento resulta uma tensão mais viva, uma polarização
mais intensa, que parece característica do sistema religioso do fim da Idade

386 }érôme Baschet


Média. A dramatização criada pelo reforço da soberania de Satã traduz, sem
dúvida, uma situação de crise, mas essa tensão contribui também para tornar
mais urgente o recurso às figuras protetoras e à mediação da Igreja. A majesta-
de temerária do príncipe das trevas é exatamente o inverso das instituições que
se esforçam, aqui embaixo, para manter ou reforçar sua dominação. De resto,
tal lógica não deixa de ter eco em nossas sociedades contemporâneas, nas quais
se observa como o poder encontra sua justificativa no mal do qual ele protege,
a ponto de ter interesse em pôr em cena, ou mesmo em produzir a imagem do
Satã sobre o qual ele pretende triunfar (a União Soviética como império do mal
para os Estados Unidos e vice-versa; os Estados Unidos como Grande Satã para
os islamitas radicais; os terroristas e a delinqüência para as potências ocidentais
desamparadas pelo desaparecimento do espectro soviético).

0 AQUI EMBAIXO E O ALÉM: UMA


DUALIDADE QUE SE CONSOLIDA

Doutrina e relatos do além

É um traço próprio do cristianismo estabelecer, como centro ativo de suas repre-


sentações, uma dualidade radical do além. Ao contrário, a Grécia antiga e o
judaísmo primitivo reagrupavam todos os mortos em um universo subterrâneo,
no essencial, unificado - Hades ou Sheol. Mesmo se, nestas duas civilizações,
opera-se uma progressiva diferenciação dos destinos post-mortem, esta não atin-
ge a clareza brutal da partilha moral profetizada por Cristo. O Juízo Final -
anunciado pelo Evangelho de Ma teus e pelo Apocalipse, tido por são Paulo como
um elemento de fé fundamental (Heb 6, 1-2) e integrado em todas as versões do
Credo- traça a perspectiva, no final dos tempos, da segunda vinda de Cristo,
que separa os bodes e as ovelhas, enviando os maus para o fogo eterno da dana-
ção e convidando os justos a se elevarem até o reino dos céus (Mat 25). A men-
sagem evangélica, ampliada pelos Padres da Igreja, funda, então, a crença em um
além dual, que divide a humanidade em dois destinos radicalmente opostos: a
glória celeste do paraíso para uns, o castigo eterno do inferno para outros.
Prevalece, então, o que nomearemos uma lógica da inversão: o destino no além
é conseqüência do comportamento aqui embaixo e produz sua exata reversão.
Como mostra exemplarmente a parábola de Lázaro e do mau rico (Luc 16),
aquele que vive no prazer sobre a terra deverá padecer as penas do outro mundo,
enquanto aquele que sofre aqui embaixo conhecerá a felicidade além-túmulo.

1\. CIVIL.ILAÇAO FEUDAL 387


Entretanto, essa visão terrível não se impõe sem dificuldades, e é necessá-
rio a santo Agostinho um livro inteiro da Cidade de Deus para defender a idéia
da eternidade das penas infernais. Pois como admitir que Deus condene todos
os não batizados e os cristãos mortos em estado de pecado mortal a um tormen-
to tão atroz, sem esperança de sair dessas temíveis flamas? Não seria contrário
à idéia de um Deus do amor e do perdão imaginá-lo repulsando para longe dele
uma parte tão importante de sua criação? Não seria preciso conceber apenas
penas provisórias, suficientes para fazer com que os pecadores paguem as faltas
cometidas? É o que defendem Orígenes e os partidários de um retorno final de
todas as criaturas a Deus (apocatástase), assim como aqueles a quem Agostinho
nomeia de misericordiosos. Mas o bispo de Hipona é intratável e combate sem
escrúpulos esses sentimentos demasiado humanos. O perdão tem seus limites,
explica ele, e o fogo da justiça divina impõe que o castigo dos pecados capitais
seja eterno. Ele fixa, assim, a doutrina da eternidade das penas infernais, que é
seguida por todos os teólogos da Idade Média depois dele. Há, entretanto, boas
razões para supor que numerosos fiéis dos séculos medievais compartilhassem
as concepções mais misericordiosas dos adversários de Agostinho. É ao menos
o que sugere, como se verá, o reiterado esforço dos pregadores, incessantemen-
te obrigados a reavivar o medo dos castigos eternos e a desemboscar os artifícios
com que os fiéis procuram se subtrair a esse piedoso terror ou, ao menos, com
que eles se esmeram em atenuar seus efeitos.
Sobre outros aspectos, as concepções do além conhecem, ao longo da
Idade Média, adaptações e evoluções. Durante os primeiros séculos do cristia-
nismo, predomina a espera do Juízo Final e da ressurreição dos corpos. Mesmo
se as preces pelos mortos já indicam uma preocupação com a salvação das
almas, uma grande incerteza cerca a sorte que elas experimentam esperando o
final dos tempos. No entanto, mesmo se é claro que elas não cheguem ao infer-
no ou ao reino celeste propriamente ditos, Agostinho deve admitir que as almas
recebam, desde o momento da morte, recompensas ou castigos. Na mesma
época, a tese oposta, segundo a qual as almas conheceriam um estado de sono
prolongado até o Juízo Final, é denunciada como heterodoxa. É que a esperan-
ça de uma justiça final não poderia ser suficiente: como a sociedade cristã ins-
tala-se pouco a pouco na existência e consolida sua estabilidade, era necessário
preocupar-se com o destino presente das almas, entre a morte individual e o
juízo Final. À imprecisão dos primeiros séculos, sucedem-se reflexões cada vez
mais desenvolvidas. Sobretudo a partir do século VII, a preocupação com o além
e com o destino das almas começa a se desenvolver no contexto de uma afirma-
ção das exigências do "governo das almas", caro a Gregório, o Grande (Peter
Brown). Já importante anteriormente, do ponto de vista do destino de cada fiel,

388 }érôme Baschet


a salvação das almas torna-se então o objetivo fundamental da sociedade cristã
e começa a ser o princípio de seu ordenamento.
A idéia de um julgamento da alma, que tem lugar logo após a morte, toma
forma em numerosas narrativas, notadamente em Beda, o Venerável, dando
lugar, depois, a cenários judiciais cada vez mais complexos. As representações
figuradas do julgamento da alma, que geralmente recorrem ao motivo da balan-
ça, aparecem no Ocidente no século X (cruz irlandesa de Murdach) e são desen-
volvidas sobretu~o a partir do século XII. Nesta época, teólogos como Abelardo
integram o exame da alma, ao qual dão o nome de iudicium, dentre as preocupa-
ções legítimas do pensamento erudito. A atenção dos vivos é direcionada, de
maneira cada vez mais explícita, para o destino da alma, aquele que cada um
espera e teme após a própria morte, mas também aquele dos defuntos próximos,
para os quais convém multiplicar preces e dons de caridade. Entretanto, a espe-
ra do Juízo Final permanece uma perspectiva fundamental, relembrada incessan-
temente e figurada com insistência cada vez maior, especialmente nos portais das
igrejas românicas e sobretudo das igrejas góticas (figura 36, na p. 390). Se, então,
o julgamento da alma adquire, durante a Idade Média, importância crescente,
esse desenvolvimento não implica nenhum eclipse do Juízo Final. Entre os dois
é preciso conceber menos uma relação de contradição ou de substituição que
uma relação de complementaridade. Todo o cuidado dos teólogos é no sentido
de pensar a articulação necessária entre esses dois julgamentos, que se reforçam
mutuamente, sem ter exatamente o mesmo objeto nem a mesma função: para
Ricardo de Saint-Victor ou Tomás de Aquino, o primeiro é oculto e individual;
apenas o segundo engloba os corpos ressuscitados e possui a plenitude de um
evento que engaja a humanidade inteira e recapitula toda a sua história.
O além é, então, uma realidade presente, contemporânea: mundo dos vivos
e mundo dos mortos coexistem simultaneamente. Mesmo se eles são cuidado-
samente separados pela fronteira da morte, as trocas entre eles são intensas
(preces dos vivos para os mortos; intercessões dos mortos e, em particular, dos
santos em favor dos vivos) e diversas formas de comunicação e de passagem
continuam sendo possíveis. Os mortos podem retornar aqui embaixo ou, ao
menos, aparecer para os vivos, geralmente para reclamar uma ajuda ou para
advertir sobre o destino do além-túmulo. Embora a parábola de Lázaro tenha
querido excluir tal possibilidade (é proibido ao mau rico sair das flamas para
informar seus irmãos sobre o destino que os espera), as narrativas dos espíritos
que retornam multiplicam-se na Idade Média, notadamente nos séculos XI e XII.
Eles não são, entretanto, o sinal de uma continuidade indistinta entre o aqui
embaixo e o além, nem de uma familiaridade harmoniosa assumida entre os
mortos e os vivos: os espíritos que retornam são, antes de tudo, o indício de um

A CIVII.IZAÇÃO FEUDAL 389


36. O tímpano do Juízo Final, na entrada da abadia de Conques, o primeiro quartel do século XII.
Sob seu pórtico avançado, o tímpano de Conques oferece uma das representações mais desenvolvidas do Juízo
Final do período românico. No centro, em sua mandorla, o Cristo-juiz levanta o braço direito c abaixa o esquer-
do, como que para indicar as respectivas moradas dos eleitos c dos danados. À sua direita, o cortejo dos justos
é guiado pela Virgem e por são Pedro, figuras simbólicas da instituição eclesial, seguidos principalmente por
um abade c um rei: à sua esquerda, aparecem os castigos infernais das três ordens da sociedade (oratores, hel-
latores. laboratores). No registro inferior, observa-se: à esquerda, Abraão abraçando contra si os eleitos, sob a
arcada central da Jerusalém celeste: no centro, a separação dos eleitos e dos danados e a ressurreição dos mor-
tos saindo de suas tumbas; à direita, o inferno, que se abre pela associação de uma porta c uma garganta mons-
truosa, e, ao redor de Satã no trono -caricatura da majestade de Cristo-, os castigos de vários pecados capi-
tais (por exemplo, o orgulho, simbolizado por um nobre jogado para baixo de seu cavalo por dois diabos, um dos
quais enfia um tridente em suas costas).

malogro do processo de separação entre os mortos e os vivos, normalmente asse-


gurado pela memória ritual e pelas suas formas diversas, progressivamente
ampliadas e difundidas no corpo social (Jean-Claude Schmitt).
Mesmo se ela é por vezes transgredida, existe entre o aqui embaixo e o
além uma barreira irredutível, e é justamente sobre esse ponto que as concep-
ções da Igreja se distinguem das representações folclóricas, tais como as que os
habitantes de Montaillou permitem perceber no início do século XIV. Segundo
estes últimos, os mortos não são repartidos entre inferno e paraíso, mas conhe-
cem um destino mais homogêneo, sofrendo a provação de um período errante
cuja duração é variável, ao fim da qual todos conquistam o repouso. Essa pro-

390 férôme Baschet


vação, embora invisível, desenrola-se em meio aos vivos. Mesmo os poucos
pecadores mais obstinados - que, de maneira mais condizente com a doutrina
cristã, são atormentados pelos demônios - sofrem seu castigo, mas não em um
universo subterrâneo e inacessível, e sim nas montanhas circundantes e fami-
liares (pensamos, aqui, nas crenças indicadas pela etnologia africana, nas quais
o mundo dos mortos é, por vezes, situado "atrás da colina" que bordeja a aldeia).
Em tais representações, mortos e vivos partilham os mesmos espaços e não exis-
te, a bem dizer, um além, entendido como conjunto de lugares separados do
aqui embaixo. Percebe-se a contrario a especificidade do modelo cristão, que
consiste em dar toda força à separação entre o aqui embaixo e o além.
As visões do além que os clérigos consignam por escrito ao longo de toda a
Idade Média - a começar pelas diversas versões da Visão de são Paulo, apócri-
fo cujo original remonta ao século !li - supõem, entretanto, uma continuidade
parcial entre o mundo dos vivos e o além-túmulo. É o caso das tradições que,
sobretudo na seqüência de Gregório, o Grande, situam no Stromboli ou no Etna
uma das principais bocas do inferno. De modo comparável, numerosas narrati-
vas maravilhosas põem em cena vivos que se aventuram em paragens longín-
quas, nas quais as paisagens terrestres se misturam aos lugares do outro mundo.
A Navegação de são Brandão descreve um périplo nos mares do Grande Norte à
procura do paraíso terrestre e conta a descoberta de ilhas demoníacas, onde
aparece notadamente Judas. As visões do além, em sentido estrito, dizem res-
peito a uma lógica diferente: elas contam como almas, provisoriamente separa-
das do corpo no decorrer de uma doença ou durante um momento de morte
aparente, atravessam o mundo dos defuntos, terminando por trazer um teste-
munho para os vivos. Esse gênero literário florescente, caracterizado por uma
forte reformulação clerical, permite descrever com muitos detalhes as paisagens
opostas do inferno e do céu. Se, nas visões da Alta Idade Média, como as de
Fursy ou de Drythelm, a descrição do além permanece parcialmente confusa e
conserva numerosas ambigüidades, as grandes visões do século XII, por exemplo
as do monge Alberico de Monte Cassino (c. 1130) ou do cavaleiro irlandês
Tnugdal (1149), descrevem de maneira mais estruturada as moradas do além,
em particular diferenciando os lugares onde são infligidos os múltiplos castigos
infernais. No fim da Idade Média, mesmo se ela não toma mais a forma de uma
viagem da alma separada do corpo, a visão do além continua a inspirar uma pro-
dução abundante, que conhece com a Divina comédia de Dante (1265-1321)
uma de suas maiores realizações.
Nascimento de uma geografia do além

Convém, agora, interrogar-se sobre a dualidade entre o aqui embaixo e o além,


de maneira a revelar a formação progressiva de uma verdadeira geografia do
além. Deve-se notar, a princípio, que a própria noção do "além" não funciona
por si mesma, pois ela não tem equivalente no latim medieval. É verdade que
numerosas expressões permitem identificar as diferentes moradas dos mortos
(paraíso, reino dos céus, inferno, lago de fogo etc.), mas se se trata de evocar o
outro mundo de modo global, os textos recorrem a fórmulas tais como "no século
futuro" ou "na vida futura", que não se referem a um lugar, mas a um tempo após
a vida terrestre. Nenhuma expressão espacial sintética permite designar global-
mente os lugares do além, cuja unidade é pensada somente sob o ângulo da
temporalidade. A razão disso deve, sem dúvida, ser buscada na disjunção moral
que estrutura a visão cristã: com efeito, q.ue sentido haveria em reunir, em uma
mesma denominação espacial, a eminência gloriosa do paraíso celeste e a pro-
fundidade tenebrosa do inferno subterrâneo? E isso não seria igualmente um
efeito do modelo agostiniano das duas cidades, que submete o universo à dis-
junção do bem e do mal e transcende a distinção entre o aqui embaixo e o além
(pois a cidade de Deus reúne os justos sobre a terra e no céu, enquanto os peca-
dores, mortos ou vivos, formam, com os demônios, a cidade do diabo)? Talvez,
a ausência da noção de espaço na Idade Média exerça também um papel: por
causa disso, só pode existir uma coleção de lugares específicos, cuja especifici-
dade impede de englobar uma visão espacial homogênea. Os trabalhos de Jacques
Le Goff mostraram, entretanto, que o século Xll procede a "uma profunda reor-
ganização da geografia do além" e que "é a um grande remanejamento cartográ-
fico que se dedica, entre 1150 e 1300, a cristandade sobre a terra e no além". No
entanto, talvez mais do que uma reorganização espacial, o que emerge então é
a própria possibilidade de elaborar uma geografia do além. O que nasce é a pos-
sibilidade legítima de uma representação, clara e unificada, do além das almas
em termos de lugares.
As transformações do século XII não são uma criação ex nihilo. Elas são, ao
mesmo tempo, a realização de um processo lento e uma verdadeira novidade, que
consiste em uma reformulação e uma clarificação de aspectos preexistentes.
Noções anteriormente presentes, mas agora encarnadas em um lugar e em um
substantivo (o purgatório, e não mais o fogo purgatório), adquirem uma presença
imaginária mais clara e uma eficácia social maior. Um elemento determinante da
transformação do século XII é a possibilidade teológica de uma representação loca-
lizada do destino das almas após a morte. Anteriormente isso era impossível, pois
a concepção dominante defendia que as almas não podiam conhecer seu destino

392 }érôme Baschet


definitivo senão no momento do Juízo Final. Essa teoria, chamada teoria da dila-
ção, repousa primeiramente sobre a necessidade de se confiar às sentenÇas emi-
tidas no momento do Juízo Final, antes das quais só poderia haver incertezas. No
mais, Agostinho havia indicado que, após a morte, as almas residem em "depósi-
tos secretos", que não podem ser nem o inferno nem o paraíso, pois estes são luga-
res materiais, destinados a receber os corpos ressuscitados no fim dos tempos.
Sendo a alma desprovida de toda dimensão local (ela não tem nem comprimento,
nem largura, nem profundidade), ela não pode ser situada em nenhum lugar: à
imagem de Deus, ela é não-localizável. A alma separada do corpo não poderia,
então, ser situada no paraíso ou no inferno material, mas unicamente em um lugar
da mesma natureza que a dela, quer dizer, um lugar espiritual feito à semelhança
dos corpos (como as percepções do sonho, que têm a aparência dos corpos e dos
lugares, mas sem serem dotados de nenhuma corporalidade). Embora Gregório, o
Grande, tenha tentado abandonar parcialmente a dilação, a tradição agostiniana
permanece forte até o início do século XII. Por volta de 1100, um manual muito
difundido, o Elucidarium de Honorius Augustodunensis, afirma ainda que os sim-
ples eleitos estão em um paraíso espiritual, pois as almas não poderiam estar con-
tidas em um lugar material; e, um pouco mais tarde, Abelardo retoma o argumen-
to de uma incompatibilidade entre a alma e o lugar.
Mais tarde, em meados do século XII, particularmente na obra de Hugo de
Saint-Victor e no Livro das sentenças do bispo de Paris, Pedro Lombardo, opera-
se uma mudança intelectual de alcance considerável: uma revolução no mundo
das almas, poder-se-ia dizer. Com efeito, doravante a alma é considerada locali-
zável, mesmo que não possa sê-lo do mesmo modo que os corpos. Desprovida
de toda dimensão local, ela não pode, é verdade, criar nenhuma extensão em seu
lugar; no entanto, ela é delimitada por um lugar, pois, estando presente em algu-
ma parte, ela não pode estar em toda parte (somente Deus possui o dom da ubi-
qüidade). Contrariamente aos argumentos agostinianos, ainda sólidos no sécu-
lo XII, valoriza-se, então, o fato de que o espírito está submetido à dimensão
local, mesmo que não possua nem dimensão, nem extensão. No século seguin-
te, a Suma teológica de Tomás de Aquino sintetiza e aprofunda essa transforma-
ção: o espírito pode ser considerado unido a um lugar corporal na medida em
que ele existe nesse lugar e em nenhum outro. E, ele explica, se as almas não
podem receber nada diretamente do lugar onde elas se encontram - pois
nenhuma conjunção é possível entre o espiritual e o corporal - , é pelo conhe-
cimento da natureza desse lugar que podem ser afetadas por ele, provando,
assim, alegria ou sofrimento. A alma danada, por exemplo, não poderia ser ator-
mentada pelo calor material do fogo infernal, mas sofre por apreendê-lo como
uma realidade hostil que a mantém cativa.

A CI\'ILIZAÇAO FEUDAL 393


Uma vez admitido o caráter localizável da alma, essa nova concepção é apli-
cada à compreensão do destino da alma após a morte. A partir dos anos 1170-80,
eliminando todas as situações que a necessidade de esperar as sentenças defi-
nitivas do Juízo Final obrigava a considerar, afirma-se, sem reserva, que as almas
encontram, desde a morte, os lugares definitivos que são o inferno e o paraíso,
a menos que um tempo de purificação imponha uma permanência no purgató-
rio. Uma dupla clarificação decorre disso. De um lado, a cada alma é atribuído,
no além, um lugar corporal preciso, definido e funcional (quer dizer, cuja fun-
ção corresponde a seu próprio valor moral, a seus méritos e a seus deméritos, e
hão às necessidades independentes dela, como a espera do fim dos tempos). De
outro lado, a estruturação geográfica do além das almas pode afirmar-se em toda
a sua legitimidade. Os contornos dos lugares do além precisam-se, então, pela
eliminação da dualidade entre situações de espera (antes do Juízo Final) e esta-
dos definitivos (após o Juízo Final). Ao mesmo tempo, os lugares se dissociam
uns dos outros, conforme suas funções específicas, o que leva ao nascimento
do purgatório do limbo dos pais e do limbo das crianças. Todos esses lugares
correspondem a situações que existiam anteriormente, mas de modo mal dife-
renciado. Doravante se inscrevem em lugares próprios e aparecem claramente
em suas especificidades. Elas mudam, assim, de natureza, e encontram um
novo tipo de existência social. Pode afirmar-se, então, o sistema escolástico dos
cinco lugares do além (inferno, paraíso, purgatório, limbo das crianças, limbo
dos pais), do qual são Tomás de Aquino dá uma explicação exemplar, defen-
dendo com ardor o número intangível de cinco lugares. Ainda não existe
nenhum termo designando o além em sua totalidade, mas, ao menos, o siste-
ma dos cinco lugares produz uma forma de unificação e sublinha a existência
de uma coerência global.
A ruptura da segunda metade do século XII, confirmada pelos escolásticos
do século Xlll, é decisiva. Pode-se então falar de uma verdadeira geografia do
além das almas, pois estas são definidas por uma inscrição local clara e sem
ambigüidade. O além das almas constitui-se em um conjunto de lugares, corpo-
rais, distintos uns dos outros e funcionais. O outro mundo é, mais claramente
do que antes, separado do mundo dos vivos, embora ele se estruture segundo as
regras de inscrição espacial que estão igualmente em funcionamento na socie-
dade feudal. Aliás, é notável que esse fenômeno se desenrole na esteira do ence-
lulamento e da reorganização dos cemitérios. A formação da geografia do outro
mundo e a separação do aqui embaixo e do além que ela encoraja são, com efei-
to, ainda mais necessárias, uma vez que, doravante, os mortos assumem um
lugar no coração do espaço dos vivos. No momento em que a parte morta dos
mortos (os cadáveres) mistura-se com os seres vivos, a parte viva dos mortos

394 Jérôme Baschet


(a alma) deve ser objeto de uma separação ainda mais rigorosa, a f~m de afastar
0 risco de confusão, cuja gravidade é indicada, de resto, pelo medo de "invasão"
dos mortos que retornam.

Práticas para o outro mundo: sufrágios, missas e indulgências

Se este processo está em estreita relação com a dominação espacial do feuda-


lismo, deve-se também indicar que a formação de uma geografia do além acom-
panha, sem nenhuma dúvida, a ampliação e a ritualização crescente das práti-
cas que os vivos realizam para os mortos. Enquanto o culto aos mortos
propriamente dito (que, na Antiguidade pagã, esperava dos ancestrais benefícios
para os vivos) concentra-se, no cristianismo, sobre "esses mortos muito espe-
ciais" que são os santos, a relação inverte-se, no essencial, pois doravante são os
vivos que devem prestar serviços aos mortos. Se Agostinho já reconhece três for-
mas de sufrágios úteis para as almas (o dom de caridade, a celebração eucarís-
tica e as preces), e se a liturgia dos mortos (as orações fúnebres e as celebrações
quotidianas do ofício dos mortos) é essencialmente codificada na época carolín-
gia, duas etapas posteriores merecem atenção. Nos séculos XI e XII, uma das
principais missões das comunidades monásticas consiste em assegurar a memó-
ria dos defuntos (de todos os fiéis, mas mais particularmente dos monges e dos
benfeitores laicos que, por meio de suas doações, são dignos de ser associados
à "família" monástica). Uma das razões de seu sucesso, notadamente em se tra-
tando da igreja cluniacense, é a de ajudar, pelas suas preces, a salvação das
almas e perpetuar, na memória dos vivos, o renome dos ancestrais. Os necroló-
gios, manuscritos litúrgicos nos quais são inscritos os nomes daqueles que se
beneficiam das preces da comunidade monástica, são os instrumentos privile-
giados dessa atenção para com os mortos, que se encontra, então, no centro das
relações entre a aristocracia e o clero regular. A festa de Finados, no dia 2 de
novembro, instituída por Odilon de Cluny por volta de 1030 para as instituições
que dependiam dele, e que é rapidamente adotada em toda a cristandade a par-
tir do século XI, é um outro sinal da importância que, doravante, a Igreja confe-
re ao culto aos mortos, que articula as relações sociais entre os vivos através da
comemoração dos defuntos.
A segunda etapa, amplamente favorecida, ou mesmo impulsionada pela for-
mação da geografia do além no século XII, é caracterizada por um alargamento
social do cuidado com os mortos, em particular nos meios urbanos. O desenvol-
vimento da prática testamentária, a partir do século XIII, e sobretudo do século XIV,
é seu primeiro instrumento. Desenvolve-se então uma verdadeira "contabilidade

A CIVIJ.IZ,\Ç.~O FEUDAL 395


do além" Qacques Chiffoleau), que recorre ainda aos dons feitos aos pobres, mas
se focaliza cada vez mais nas missas, cujo principal efeito esperado é a redução do
tempo de sofrimento no purgatório (a representação da missa de são Gregório, fre-
qüente no século XV, mostra, de resto, o benefício que as almas do purgatório
obtêm com a celebração eucarística). Segue-se uma verdadeira inflação do núme-
ro de missas solicitadas pelos fiéis, preocupados em fixar eles mesmos o preço de
sua salvação. Prever um montante de vários milhares de celebrações não é algo
raro no fim da Idade Média. E se em Cluny, no século XI, parecia já honroso rezar
novecentas missas em trinta dias por um monge falecido, a piedade cumulativa e
rutilante desses tempos obsessivos conduz ao recorde de 50 mil missas encomen-
dadas por um senhor do Sul da França no século XIV! As indulgências, outro meio de
abreviar os tormentos das almas no purgatório (antes aplicáveis unicamente à peni-
tência terrestre, mas cujos efeitos são estendidos ao além ao longo do século XIV),
dão lugar a uma contabilidade inflacionária da mesma ordem e cuja imbricação
demasiado visível com os interesses materiais da Igreja será um dos detonadores
da rebelião de Lutero. No final da Idade Média, a preocupação com os mortos,
estritamente controlada pelos clérigos (ajudados nisso pela estruturação da geo-
grafia do além), tomou-se um aspecto invasivo da prática eclesial, um elemento
capital das trocas espirituais e materiais no seio da cristandade.

0 SISTEMA DOS CINCO LUGARES DO ALÉM

É preciso, agora, percorrer com maior atenção cada um dos lugares do além para
descobrir a diversidade de suas representações e interrogar-se sobre suas pró-
prias implicações.

Formação do sistema penal no inferno

Comecemos o périplo pelo inferno, à maneira da Commedia de Dante. Os clé-


rigos admitem sua localização subterrânea e sublinham que os danados sofrem
aí duas espécies de penas, uma espiritual, a outra corporal. A mais terrível é a
danação, quer dizer, a privação de Deus, à qual se juntam diversos tormentos
psicológicos como a desesperança, o remorso ou a raiva de ver os eleitos goza-
rem da glória celeste. O fogo, que queima sem clarear, é a principal pena cor-
poral, mesmo se ele é muitas vezes acompanhado de vermes, do frio e das tre-
vas, igualmente mencionados nas Escrituras. Por vezes, os clérigos admitem

396 Jérôme Baschet


uma maior diversidade das penas, como no modelo das nove penas do inferno,
difundido pelo Elucidarium de Honorius Augustodunensis e·; ainda mais, nos
sermões que integram certos testemunhos das visões do além, gênero mais pro-
pício a uma descrição detalhada dos suplícios.
Assim como a pregação, a iconografia indica que a ameaça infernal toma-
se mais insistente ao longo dos séculos medievais. Se a representação do infer-
no aparece, por vezes, no século IX, seu verdadeiro desenvolvimento pode ser
situado no século XI, no momento em que a iconografia do Juízo Final começa
a se afirmar. Ainda na época românica, o lugar do inferno permanece geralmen-
te circunscrito, fora algumas exceções notáveis, como tímpano de Santa Fé de
Conques ou aqueles das igrejas do caminho de Compostela (figura 36, na p.
390). Mais do que isso, é principalmente o desenvolvimento decisivo do Juízo
Final na época gótica, especialmente nos portais das catedrais, que assegura a
difusão maciça das imagens do inferno. Fora da Itália, ele assume essencialmen-
te a forma da garganta do Leviatã, que abre suas grandes mandíbulas para engo-
lir os danados. O amontoamento desordenado das figuras no interior da gargan-
ta prevalece e não deixa espaço para uma figuração dos sofrimentos infligidos
aos pecadores. Assim, o inferno é evocado de maneira metafórica e sintética: ele
mostra mais o grande corpo de uma potência animal ameaçadora do que o lugar
onde são atormentados os corpos dos danados.
Depois, realiza-se uma importante mutação no século XIV, de início nos
afrescos de Buonamico Buffalmacco no Campo-Santo de Pisa, por volta de
1330-40, mais tarde no resto da Itália (figura 37, na p. 398), e, com um inter-
valo variável, em outras regiões do Ocidente. A gama dos suplícios conhece,
então, uma diversificação notável, e a visão dos corpos submetidos à tortura,
mutilados e violados em sua integridade atinge uma expressão paroxística.
Compartimentado por elementos rochosos, o inferno é objeto de uma estrutu-
ração interna que manifesta a constituição de um verdadeiro sistema penal do
além. Doravante existe uma lógica do castigo, pois cada um dos lugares assim
isolados é destinado à punição de um vício em particular, com mais freqüência
de um dos sete pecados capitais. Essa lógica penal é, por outro lado, tornada
sensível pela correspondência entre a natureza do castigo e a falta que ele pune:
os danados, postos diante de uma mesa bem guarnecida sem poder comer, são,
através dessa forma adaptada do suplício de Tântalo, facilmente identificados
como glutões; com toda a evidência, a avareza é punida pela ingestão de moe-
das fundidas; o casal de sodomitas é unido por um espeto que os transpassa da
boca até o ânus.
Esse princípio não é novo, mas a partir da obra de Buffalmacco ele conhe-
ce uma aplicação visual sistemática. A função do inferno é transformada por ele

A CIVILIZAÇ,\0 FEUDAl. 397


37. Satã e os castigos infernais, 1447 (painel do Juízo Final, de Fra Angélico, Staatsmuseum, Berlim).
O inferno pintado pelo dominicano Fra Angélico em seu retábulo do Juízo Final é uma homenagem aos afres-
cos inovad<>res que Buonamico Buffalmacco tinha realizado n<>s anos 1330 no Campo-Santo de Pisa. Ele reto-
ma deste, de maneira condensada, a estrutura e os motivos principais. O inferno é dividido em compartimen-
tos por rochedos c pela figura de Satã, monstro animal de três faces, devorando e evacuando os danados.
Observa-se, do alto para baixo: os preguiçosos prostrados e perseguidos pelos ganchos dos diabos; os glutões à
mesa, empanturrados c obrigados a comer serpentes; os irados, que se batem entre si ou devoram a própria mão;
os invejosos, com os rostos deformados e mergulhados em um caldeirão; os avaros sendo empanturrados de
ouro fundido; os luxuriosos, fustigados ou empatados. Como em Pisa, os orgulhosos não dispõem de um lugar
específico, mas são vítimas do próprio Satã (em torno de sua cabeça, lê-se a palavra "superbia"). Assim, Fra
Angélico relembra que, desde as inovações de Buffalmacco, o inferno é um sistema penal estritamente orde-
nado e fundado sobre o septcnário dos pecados.
e sua eficácia consideravelmente multiplicada. Assim, o suplício é legitimado:
ele explicita o crime que o justifica e o espetáculo de horror é convertido em
lição moral. A afirmação da ordem penal e da vocação moral que caracteriza o
inferno realiza-se também por um processo de fragmentação espacial.
Compartimentado, o inferno não é mais, como antes, o lugar da desordem gene-
ralizada e do pulular indiferenciado de corpos, de modo que, se o século XII é o
momento de formação de uma geografia geral do além, o século XIV a precisa,
assegurando o triunfo de uma topologia moral do inferno. A obra de Dante dá,
igualmente, testemunho disso, estando preocupada em ligar o ordenamento dos
nove círculos infernais a uma lógica bastante rigorosa das faltas, embora dife-
rente do septenário dos pecados, privilegiado pela imagem.

O inferno, incitamento à confissão

A divisão dos lugares é o instrumento privilegiado da ofensiva moral e pastoral


sempre relançada pelo clero e, notadamente, pelas ordens mendicantes. De
resto, convém apreender as representações infernais no seio de um conjunto
mais largo de crenças e práticas, pois o medo da danação que a contemplação
do inferno deve suscitar jamais é um fim em si. Ele se inscreve sempre em uma
tensão com o pensamento da salvação e a procura de meios que permitam che-
gar a ela. Nas imagens e nos sermões, o inferno funciona essencialmente como
uma incitação à confissão, tão importante desde o Concílio de Latrão IV. No
caminho que leva do pecado ao inferno, um cruzamento permite mudar de des-
tino: é a confissão que, tal como um novo batismo, lava o pecado ou mesmo o
apaga, como dizem por vezes os pregadores. Se a nova pregação do século XIII
refere-se abundantemente à importância e à eficácia do sacramento penitenciai,
a imagem do inferno contribui para o mesmo esforço, relembrando a utilidade
da confissão. Procurando suscitar um choque mental, uma tomada de consciên-
cia das faltas que atormentam a alma, ela quer encaminhar à via da confissão e
da salvação, à qual ela permite o acesso.
A utilização dos sete pecados capitais, que pressupõe a compartimentaliza-
ção dos lugares infernais, é vista sob nova luz. O septenárío dos pecados perma-
nece, com efeito, o principal esquema moral que guia o exame da consciência,
indispensável à confissão: é considerando sucessivamente os sete pecados capi-
tais (e suas subdivisões) que o cristão reconhece em si as faltas que deve confes-
sar para se libertar delas. A imagem do inferno não é, então, somente uma incita-
ção a se confessar, ela também indica ao fiel de que maneira ele deve proceder a
seu exame de consciência. O afresco prepara o trabalho do sacerdote, convidan-

A CIVII.lt.:.~ÇAD FEUD,\L 399


do o pecador a descobrir nele mesmo as faltas que deverá nomear. Inversamente,
mostrando as causas da danação com a ajuda de categorias bem conhecidas, a ima-
gem acrescenta a possibilidade de uma identificação do espectador com os dana-
dos, dos quais ele contempla os suplícios. A topografia infernal é, a um só tempo,
a projeção e o suporte privilegiado da grade moral através da qual os homens do
Ocidente são convidados a explorar sua consciência culpada.
No geral, a representação do inferno e sua evocação pastoral conhecem, ao
longo da Idade Média, uma ampliação progressiva. Todavia, a despeito do desen-
volvimento de sua importância e do estabelecimento de uma lógica penal mais efi-
caz, nada permite afirmar que essas representações suscitam um sentimento de
pânico amedrontador, de modo que se evitará utilizar a expressão "cristianismo do
medo", que Jean Delumeau propõe para qualificar os séculos XIV a XVII. Convém,
aqui, relembrar os limites da eficácia da ameaça infernal e, em particular, a persis-
tência de um sentimento misericordioso, inclinado a reservar a danação eterna aos
ímpios e aos criminosos mais abjetos, de modo que o comum dos mortais pode
sempre pensar que o inferno é para os outros. Muitas narrativas criam dificuldades
para a lógica clerical. Em uma fábula cantada do século XIII, o jovem senhor
Aucassin declara que não há o que fazer no paraíso, para onde vão "os velhos sacer-
dotes, os mancos e os manetas", e que ele prefere ir para o inferno "com os belos
estudantes e os belos cavaleiros que são mortos nos torneios e nas guerras magní-
ficas", desde que Nicolette, sua doce amiga, esteja com ele. No conto popular
(jabliau) São Pedro e o travador, o apóstolo liberta os danados jogando uma partida
de dados contra o diabo ... Menos distantes da doutrina da Igreja, outras tradições
ampliam os efeitos da misericórdia divina. Assim, a Visão redigida por Ansel, monge
em Auxerre na primeira metade do século XI, faz menção a uma repetição anual da
descida de Cristo ao inferno, ao longo da qual os diabos são regularmente espolia-
dos de suas vítimas. Mas insistiremos particularmente sobre os testemunhos do
fim da Idade Média, que evocam as numerosas táticas de evasão pelas quais os fiéis
se empenham em anular ou atenuar a ameaça infernal. Entre os pregadores que
listam essas atitudes para melhor combatê-las, o dominicano Giordano de Pisa, no
início do século XIV, indica que numerosos fiéis crêem na terrível ferocidade dos
tormentos infernais, mas pensam poder escapar deles à maneira desses ladrões
que, apesar da visão da forca, continuam persuadidos de que poderão escorregar
entre as malhas da rede da justiça. O inferno pode, então, ser objeto de uma cren-
ça não eficaz, o que constitui, para o funcionamento do sistema eclesial, um limi-
te bem mais temeroso do que reviravoltas caricaturais, que são excepcionais e efê-
meras. Não é, então, surpreendente ver os clérigos batalharem sem trégua, durante
séculos e mesmo além da Idade Média, para que seja provado o efeito dissuasivo
de uma pena tão capital como a danação.

400 }érôme Baschet


Mais importante que tudo, a representação do inferno visa menos aterrori-
zar do que fazer agir e, primeiramente, fazer confessar. O medô da danação é
como uma composição química instável: apenas formada e reconhecida, deve
se transformar, graças aos meios de salvação aos quais os clérigos convidam a
recorrer. Como lembra Nietzsche, o poder da Igreja repousa sobre a capacidade
de curar, e não de aterrorizar. Mesmo ampliadas, as representações e as evoca-
ções infernais permanecem, então, sempre integradas na dinâmica da salvação
que a Igreja traça para todos os batizados. Esta assume, para a maioria dos fiéis,
a forma privilegiada de uma valorização dos sacramentos e, em particular, de uma
incitação à confissão. É então desse modo que a presença reforçada do inferno
amplia o recurso à mediação dos clérigos e favorece o empreendimento de con-
trole social conduzido pela Igreja, ao mesmo tempo que cristaliza as angústias
dos homens dos últimos séculos da Idade Média.

O paraíso, perfeita comunidade eclesial

Já que o furor do inferno é sempre contrabalançado pela esperança do paraíso,


nós nos elevaremos diretamente em direção a ele, a fim de melhor sublinhar a
dualidade do além medieval. De resto, o inferno não pode existir sem o paraíso,
e a beatitude seria incompleta sem a danação: se a pena principal do inferno é a
privação de Deus, a recompensa dos eleitos refere-se, em parte, à satisfação de
ver os tormentos dos danados. Não somente a violência da exclusão infernal
confere maior valor à incorporação celeste dos eleitos (Gregório, o Grande,
argumenta que estes regozijam por ver os tormentos aos quais haviam escapa-
do), como também manifesta a gloriosa realização da perfeita justiça divina.
A justiça do além tem, realmente, bem pouco a ver com o amor divino, e as fron-
teiras do outro mundo estabelecem os limites da caridade cristã. As concepções
do paraíso, consideradas pelo senso comum insípidas e desprovidas dos aspec-
tos excitantes do inferno, revelam-se, entretanto, de grande interesse histórico
na medida em que elas pretendem oferecer uma imagem ideal do homem e da
sociedade. Como se verá no capítulo seguinte, o corpo glorioso dos eleitos defi-
ne uma antropologia cristã. Por outro lado, o paraíso faz pensar em uma socie-
dade perfeita, na qual os eleitos participam da comunidade da Igreja celeste, ao
mesmo tempo companhia dos anjos e assembléia dos santos e de todos os jus-
tos. É verdade que a Igreja celeste não é o modelo que os clérigos se esforçam
para reproduzir aqui embaixo, mas ela é, ao menos, a perspectiva ideal que jus-
tifica seu esforço para conferir ao mundo dos vivos sua ordem legítima. Enfim,
o terceiro elemento essencial da recompensa paradisíaca consiste em uma reu-

A C J \' J L I Z A Ç .:i O F EU lJ !1 I. 40 J
nião dos fiéis com o Criador, que é nomeada "visão de Deus" de acordo com
Agostinho, embora ela não tenha, evidentemente, nada em comum com a visão
através dos olhos do corpo. O que se chama igualmente de visão beatífica per-
mite conceber a salvação cristã como um acesso a Deus, uma participação plena
em sua presença, que os escolásticos definem como uma compreensão pura-
mente intelectual do Ser absoluto, intangível e invisível aqui embaixo. Ela é um
conhecimento perfeito do princípio divino, que eleva a criatura finita até a reve-
lação do infinito. Ela tende, então, a uma quase-divinização do homem, sinal
desse radicalismo da antropologia cristã que os pagãos julgam monstruoso.
De maneira mais imagética, a representação do jardim paradisíaco mostra
os eleitos em um lugar verdejante e luminoso, que exprime conforto e alegria,
simbolizando o desabrochar fecundo da vida eterna. Tal imagem corresponde à
etimologia da palavra "paraíso", que designa um jardim ou um lugar repleto de
árvores, como diz Agostinho, e que, na Bíblia, só é aplicado ao Éden, onde
foram criados Adão e Eva. O jardim da beatitude manifesta, então, uma relação
essencial entre o paraíso celeste e o paraíso terrestre: a história da humanidade
é destinada a se fechar num ciclo, de modo que a esperança do paraíso que
anima os homens é também o desejo de um retorno à felicidade perdida das ori-
gens. Em oposição a este paraíso bucólico, a recompensa dos justos é muitas
vezes associada à Jerusalém celeste, cidade quadrangular cujos muros de pedras
preciosas são vazados por doze portas, segundo a descrição do Apocalipse de
João (figura 30, na p. 330). A importância desse tema, que inspirou amplamen-
te a criação artística e se encontra presente nas pinturas, nas esculturas e na
decoração de numerosos objetos litúrgicos, é facilmente entendida quando se
sabe que o edifício é ele próprio percebido como uma antecipação da Jerusalém
celeste. No entanto, nos séculos XII e XIII, a principal evocação da felicidade
paradisíaca mostra os eleitos no seio do patriarca Abraão, conforme a parábola
de Lázaro e do mau rico e ecoando a liturgia dos mortos, cujas preces pedem
que as almas dos defuntos ascendam ao repouso no seio de Abraão - e, por
vezes, de Isaac e Jacó (figura 36, na p. 390). Esta representação goza de uma
grande força figurativa e mostra o paraíso como uma reunião junto a uma figu-
ra paterna, que agrupa e protege sua progenitura: o patriarca Abraão, qualifica-
do "de pai de todos os crentes" (Rom 4, ll ). Os eleitos reunidos no seio de
Abraão são, de resto, figurados como crianças a fim de melhor manifestar sua
posição de filhos do patriarca e para marcar esse retorno à infância espiritual,
da qual o Evangelho faz uma condição de acesso ao reino dos céus (Mat 18, 3).
O seio de Abraão propõe, assim, uma imagem perfeita da Ecclesia celeste, fra-
ternidade de todos os cristãos reunidos com seu pai comum em uma harmonio-
sa unidade.

402 Jérôme Baschet


No entanto, nenhuma dessas representações se refere dirc::t.amente à visão
beatífica que os teólogos consideram parte essencial da recompensa celeste.
Compreende-se, então, que o desejo crescente de exprimir a reunião dos elei-
tos junto a Deus leve ao desenvolvimento de uma outra representação, a corte
celeste, que se torna dominante no século XIV e sobretudo no século XV. Ela
mostra, com efeito, a assembléia dos anjos, dos santos e dos eleitos dispostos
em torno da divindade, no gozo de sua contemplação (figura 38, na p. 406). Mas
ela também mostra a Igreja ordenada em torno de seu chefe, em sua diversida-
de e suas hierarquias, e permite pôr em relevo a santidade dos clérigos (bispos,
monges e abades, fundadores das ordens, cardeais e papas). De resto, seja qual
for a forma escolhida, todas as representações do paraíso têm um forte alcance
eclesiológico. Elas são tanto variações que jogam com o sentido da palavra eccle-
sia, e que oscilam entre uma concepção mais comunitária, evocando a fusão de
todos os fiéis no seio de Abraão, como uma concepção mais institucional, que
sublinha a posição dominante dos clérigos no seio da corte celeste. Ao longo dos
séculos medievais, as representações do paraíso parecem, então, deslocar-se de
uma sociedade celeste igualitária, em que as distinções terrestres são ultrapas-
sadas em benefício de uma fraternidade espiritual que unifica os eleitos, para
uma corte em que a beatitude comum não exclui nem a referência a modelos
políticos, nem a legitimação das hierarquias e dos estatutos terrestres.

Os lugares intermediários: purgatório e limbos

É preciso, agora, introduzir um pouco de maleabilidade no esquema binário


apresentado até aqui. Uma das principais conseqüências da formação de uma
geografia do além ao longo do século XII é precisamente o nascimento do pur-
gatório, "terceiro lugar" intermediário entre inferno e paraíso (Jacques Le Goff).
Na verdade, a idéia de um tempo de provação e de purgação após a morte, per-
mitindo a salvação da alma e ajudado pelos sufrágios dos vivos, não é nova, pois
ela é expressa notadamente por Agostinho. Mas é no contexto já evocado do
século XII, mais precisamente ao longo dos anos 11 70-80, que o purgatório apa-
rece como nome e como lugar específico (no qual as almas se purificam dos
pecados veniais ou dos pecados mortais confessados, mas para os quais a peni-
tência prescrita não foi cumprida). O purgatório como terceiro lugar é admitido
como dogma no Concílio de Lyon (1274) e conhece um uso crescente na pre-
gação até que a Comédia de Dante ilustre com estrondo o seu triunfo, conce-
dendo-lhe a mesma importância do inferno e do paraíso. É que a distinção fun-
cional do purgatório como lugar é revestida de evidentes vantagens sociais,

A C I\' I L ll A Ç A O F EU() A L 403


pastorais e litúrgicas. Iluminando mais claramente a situação das almas inter-
mediárias- aquelas que têm necessidade dos sufrágios dos vivos-, ela favo-
rece a generalização de práticas ligadas ao cuidado das almas e prepara a infla-
ção de missas para os mortos. Além disso, o purgatório dá forma à esperança da
salvação para fiéis que sabem que são imperfeitos, em particular para grupos
sociais cuja atividade é considerada com suspeição pela Igreja. Sobretudo para
os usurários, o purgatório é realmente a esperança: a de um castigo temporário,
que permite conservar a bolsa aqui embaixo ao mesmo tempo que se obtém a
vida eterna no outro mundo Qacques Le Goff). Não seria preciso, entretanto,
exagerar as virtudes do lugar intermediário, pois este apenas confere um pouco
de jogo a um sistema que permanece fundamentalmente dual (ou, ao menos,
confirma a maleabilidade que este sistema já possuía anteriormente, conferin-
do-lhe uma força de exposição inédita). Não esqueçamos que só existem, in
fine, dois destinos possíveis, a danação infernal e a beatitude paradisíaca. De
resto, o purgatório, estada transitória das almas, é ele próprio um lugar provisó-
rio, que deixará de existir no momento do Juízo Final, quando o universo se fixa-
rá em sua eterna dualidade.
Falta fazer menção aos dois limbos. O limbo dos patriarcas (ou dos pais)
pertence ao passado: os justos do Antigo Testamento (de Adão e Eva a João
Batista) habitavam nele temporariamente, à espera da redenção. Com efeito,
antes do sacrifício de Cristo, ninguém poderia alcançar o paraíso celeste, nem
mesmo aqueles que haviam seguido os mandamentos divinos e mereciam,
então, a salvação. Segundo uma tradição fundada sobre os Evangelhos apócri-
fos, foi entre a sua crucificação e a sua ressurreição que Cristo desceu ao limbo
para libertar os justos do Antigo Testamento, a fim de conduzi-los até sua nova
morada celeste. O limbo dos pais, vazio desde a vinda de Cristo, é um domínio
subterrâneo e tenebroso que a iconografia não distingue em nada do inferno: ela
o figura à imagem da caverna infernal, na tradição bizantino-italiana, ou sob a
forma da garganta do Leviatã, ao norte dos Alpes. De fato, o limbo dos pais não
é concebido como um lugar específico, dissociado do inferno, antes da forma-
ção do além no século XII; e, de resto, até esta época, fala-se da descida do Cristo
aos infernos. É somente então, em um processo paralelo ao nascimento do pur-
gatório, que aparecem expressões específicas (limbus inferni e, depois, somen-
te limbus), fazendo do limbo dos pais um lugar separado, dotado de caracterís-
ticas próprias.
O segundo limbo, que acolhe as crianças mortas sem batismo, aparece
igualmente no século XII. Ao longo dos primeiros séculos medievais, as crianças
não batizadas estavam destinadas ao inferno pelo simples fato de que não
tinham recebido o sacramento indispensável à salvação. Talvez, sob a pressão

404 )érôme Baschet


dos pais, preocupados com a danação aparentemente injusta de_ ~ua progenitu-
ra, e no quadro de uma sociedade totalmente cristianizada que, a partir dos
séculos XI e XII, generaliza o batismo precoce dos recém-nascidos, a Igreja tenha
sido, pouco a pouco, conduzida a moderar a pena das crianças mortas antes de
terem recebido o sacramento purificador. Uma vez que elas trazem apenas a
mancha do pecado original, e não o peso de algum pecado pessoal, os clérigos
terminam por admitir que essas crianças sofram apenas a privação de Deus, sem
ser submetidas a todos os tormentos corporais da danação. Em um primeiro
tempo, todavia, suas almas permanecem integradas ao mundo infernal e sua
situação particular é pensada como uma atenuação do castigo aplicado aos
danados. Depois, no século XII, o processo de divisão funcional dos lugares do
além conduz a lhes atribuir uma morada distinta do inferno. Sua situação não
se altera fundamentalmente, mas a especificidade de sua sorte é posta em evi-
dência e a vantagem de que eles se beneficiam é mais claramente sublinhada.
Pode-se ver, na emergência do limbo das crianças, um compromisso que a
Igreja concede às exigências da sociedade: os pais podem dizer que seu filho,
morto sem batismo, não é destinado ao inferno. E parece que eles não se con-
tentam com este rearranjo, pois, na mesma época, desenvolvem-se os "santuários
de relaxamento das penas", para onde os fiéis acorrem esperando o milagre de
uma ressurreição momentânea, para dar tempo de poder conferir o batismo sal-
vador à criança que a morte chama. É que, na verdade, a Igreja não cede nada
no essencial: as crianças não batizadas ainda sofrem a principal pena da danação,
pois são privadas da reunião com Deus e permanecem eternamente excluídas
das alegrias do paraíso. É que a questão diz respeito à própria definição da cris-
tandade: sem o batismo, ninguém pode ser considerado membro da sociedade
cristã aqui embaixo, e ninguém poderia ser integrado à Igreja celeste no além.

Uma síntese em imagem

Para marcar a realização dos processos analisados até aqui, pode-se referir à
coroação da Virgem pintada por Enguerrand Quarton para o convento cartusia-
no de Villeneuve-les-Avignon (1454). Esse retábulo oferece uma visão notavel-
mente sintética do universo, tal qual podiam imaginar os homens do fim da
Idade Média, integrando, conseqüentemente, o aqui embaixo e o além (figura
38, na p. 406). O mundo terrestre aparece sob a forma condensada de seus
principais lugares simbólicos, Roma e Jerusalém, que definem sua polaridade
horizontal, enquanto, no centro, a crucificação esboça o eixo vertical da salva-
ção. Quanto ao além, ele é apresentado sob a forma dos quatro lugares que exis-

i\ CJVJI.IZAÇ.~O fEUJ>.-\L 405


38. A coroação da Virgem, pintada por Enguerrand Quarton em 1454 (Museu Picrre de Luxembourg,
Villencuve-les-Avignon).
Este retábulo foi encomendado pelo convento cartusiano de Villeneuve-les-Avignon c, mais precisamente, para a
capela da Santa Trindade, que abriga a tumba do papa Inocêncio VI. Ele oferece uma visão completa do universo,
associando o aqui embaixo c o além. Sob a terra, aparecem o limbo das crianças, rezando com os olhos fechados,
o purgatório, do qual uma alma (a de um papa) é libertada por um anjo, e o inferno, com o castigo dos sete peca-
dos capitais. Sobre a terra, o pintor quis representar Roma, com a missa de são Gregório (que tem por deito libe-
rar as almas do purgatório), e Jerusalém, com o edifício circular do Santo Sepulcro (à direita). Na corte celeste, os
santos são ordenados hierarquicamente (notamos, por exemplo, bispos, cardeais e o papa, à direita, c os fundado-
res de ordem religiosa, à esquerda, notadamente Domingo, Francisco e Bento). No centro, a Virgem é coroada
pela Trindade. Esta é representada segundo o modelo da "Trindade do saltério", freqüente desde o século XII (o Pai
e o Filho antropomórficos, com o Espírito Santo sob a forma de pomba entre eles). Trata-se de uma representa-
ção horizontal da Trindade, que insiste sobre a igualdade entre o Pai e o Filho, a ponto de não haver, aqui, nenhu-
ma diferença entre eles e de termos dificuldade em distingui-los. No centro do quadro, Cristo crucificado é o eixo
da salvação, que liga o céu c a terra c permite a ascensão das almas até a recompensa paradisíaca.
tem no presente da cristandade (falta o limbo dos patriarcas, há muito tempo
vazio). O inferno, o purgatório e o limbo das crianças são apresentados na estrei-
ta faixa atribuída ao mundo subterrâneo. Embora separados por rochedos e bem
distintos por seus próprios caracteres, eles são claramente associados por essa
posição inferior comum. A despeito do pouco espaço, o inferno mostra, ao redor
de Satã, o castigo dos sete pecados C"dpitais. As flamas do purgatório atormen-
tam as almas, enquanto os anjos se aproximam e conduzem para o céu a primei-
ra dentre elas (a de um papa!). E, como se as trevas subterrâneas às quais eram
condenadas as crianças não batizadas não fossem suficientes, o artista as repre-
senta em posição de prece e voltadas para a divindade, mas com os olhos fecha-
dos, como que para melhor sublinhar seu impossível desejo de ver Deus e para,
assim, tornar sensível que elas partilham com os danados a pior das penas.
Enfim, acima da paisagem terrestre que se perde nas brumas da distância apa-
rece a corte celeste em que os santos, repartidos nos registros segundo seu esta-
tuto, contemplam a divindade trinária associada à Virgem. Assim, esse retábulo
mostra de maneira exemplar a ordem total do mundo conforme as representa-
ções dominantes do fim da Idade Média. Nele, o além pesa esmagadoramente
sobre o aqui embaixo. Cada aspecto do outro mundo encontrou, doravante, seu
próprio lugar, sua justa localização, no seio de um sistema complexo, no centro
do qual se encontra a Igreja de Cristo, que governa o mundo em nome de sua
capacidade de produzir a salvação. Em torno do crucificado, almas elevadas ao
paraíso foram pintadas pelo artista com uma delicadeza tão extraordinária que
quase se confundem com as nuvens; entretanto, é essa ascensão fracamente
visível que dá o sentido ao retábulo inteiro. Ela é o efeito esperado da mediação
dos sacerdotes, que funciona quando eles celebram a missa sobre o altar que
orna o retábulo, e é apoiada sobre o tesouro dos méritos da multidão dos santos
que Enguerrand pintou com tanta precisão.
Entretanto, a despeito dos rearranjos substanciais que levam ao sistema
dos cinco lugares, o além medieval permanece finalmente um sistema dual. No
final, só existem a danação ou a salvação, acesso a Deus ou rejeição para longe
dele, e, a despeito da casuística desenvolvida pelos escolásticos, a perspectiva
última continua determinada por uma moral binária do bem e do mal. De resto,
é esta oposição dual que estrutura as representações medievais: quer se trate
das encenações litúrgicas no interior da Igreja a partir do século XII, ou dos mis-
térios encenados no meio urbano, que ganham, na Baixa Idade Média, dimen-
sões cada vez mais ambiciosas, o paraíso e o inferno constituem os dois pólos
obrigatórios, presentes em cena (Élie Konigson). Assim como o mundo de que
ele é a imagem, o espaço teatral é ordenado pela dualidade entre o bem e o mal,
que se encarna nos lugares do além aos quais cada um deles remete.

A CIVII.IZAÇÃO FEVIJAI. 4()7


CONCLUSÃO: A IGREJA, OU A
INSTÂNCIA QUE SALVA

Do século XII ao século XV, acentua-se o esforço dos clérigos para impor as dua-
lidades morais que estão no coração da visão cristã do mundo. O discurso sobre
os vícios e as virtudes se faz cada vez mais presente, ramificado e totalizante.
A insistência sobre a culpabilidade do homem e a preocupação com o outro
mundo progridem na base da geografia do além, que se forma a partir do sécu-
lo XII. A figura de Satã, investida de uma potência crescente, torna-se objeto de
verdadeira obsessão. Mas a onipresença do pecado, a majestade de Satã e a coe-
rência do sistema penal do inferno obrigam as forças do bem a um combate que,
para ser sempre vitorioso, deve ser mais obstinado. Assim, ao longo da Idade
Média, a intensidade das dualidades morais se faz mais viva e o mundo se pola-
riza ainda mais. Nesse sistema, do qual não se deve exagerar a eficácia, o poder
do diabo permanece sob controle e a ameaça do inferno jamais vence sobre a
esperança do paraíso. O pânico amedrontador da danação oprimiu ainda menos
as populações medievais pelo fato de que as armas da salvação em geral o dis-
sipam com a maior facilidade. As concepções dos vícios e das virtudes, do com-
bate entre Satã e as forças celestes, assim como as representações do além são,
sobretudo, uma poderosa incitação a agir conforme as regras definidas pelos clé-
rigos, a se confessar regularmente e a realizar os ritos necessários ao desenrolar
de toda vida cristã. O discurso moral e a insistência sobre o além participam de
um conjunto de crenças e de ritos que justificam a organização da sociedade
aqui embaixo e, em particular, o lugar dominante dos clérigos, mediado~es obri-
gatórios que dispõem dos meios que permitem a todos superar as tentações do
Inimigo e alcançar o paraíso. À imagem da Virgem de misericórdia que reúne os
fiéis sob seu manto (figura 25, na p. 249), a Igreja é a grande protetora. Seu
imenso poder liga-se ao fato de que ela é a instância que salva do pecado, de
Satã e do inferno. Obter sua salvação: tal é o imperativo que, na medida em que
ordena as práticas sociais, confere sentido à dominação da instituição eclesial.

408 }érôme Baschet


IV

CORPOS E ALMAS: PESSOA


HUMANA E SOCIEDADE CRISTÃ

A MANEIRA PELA QUAL UMA SOCIEDADE pensa a pessoa humana constitui muitas
vezes um aspecto central de seu sistema de representação e um revelador pre-
cioso de suas estruturas fundamentais. O Ocidente medieval não é exceção, de
modo que seus principais motores não poderiam ser compreendidos sem anali-
sar as representações da pessoa que nele prevalecem e, mais precisamente, as
formas aí assumidas pela dualidade entre corpo e alma. Crê-se, geralmente, que
o monoteísmo cristão é caracterizado por uma separação radical entre o corpo-
ral e o espiritual. Entretanto, o cristianismo - do qual não se conhece essên-
cia intemporal, mas somente encarnações sócio-históricas sucessivas - é, ao
menos em sua fase medieval, um monoteísmo complexo, de modo que o fun-
cionamento da dupla alma/corpo revela-se aí menos simples do que parece.
Assim, a concepção dual da cristandade medieval (que reconhece, com efeito,
duas entidades fundamentais: a alma e o corpo) será distinguida do dualismo,
ao qual o cristianismo foi confrontado sob a forma do maniqueísmo e, depois,
do catarismo, e do qual sempre procurou se diferenciar (o dualismo postula
incompatibilidade total entre o carnal e o espiritual, conferindo positividade
somente a um espiritual inteiramente puro). É, então, em uma faixa interme-
diária que é preciso situar as concepções medievais da pessoa: entre a separa-
ção absoluta do dualismo maniqueísta e a fluidez das entidades múltiplas dos
politeísmos. É, então, possível analisar o significado social do modelo ideal da
pessoa e da relação alma/corpo, e ver nele uma matriz ideológica fundamental
da sociedade medieval ocidental.

i\ C I V I L ll ,\ Ç ,\ O F E U ll ,\ L 409
0 HOMEM, UNIÃO DA ALMA E DO CORPO

A pessoa, entre dualidade e concepção ternária

A teologia medieval oferece centenas de ocorrências do seguinte enunciado: o ser


humano é formado pela conjunção da carne, perecível, e de uma alma, entidade
espiritual, incorporai e imortal. É o que se chama, aqui, uma concepção dual da
pessoa - mas não necessariamente dualista. Essa representação não é uma ino-
vação do cristianismo e já aparece na tradição platônica, que tem grande peso
sobre a teologia cristã. No Império Romano, reina entre a alma e o corpo um "dua-
lismo benevolente", mistura de hierarquia firme e solicitude: tal é então o "estilo
de governo" 32 que prevalece entre eles, segundo a bela expressão de Peter Brown,
que convida a estar atento às formas nuançadas da relação alma/corpo.
Vários aspectos parecem, entretanto, complicar a antropologia dual do cris-
tianismo medieval. Com efeito, este encontra na Bíblia (nas concepções judai-
cas e em são Paulo) uma representação ternária da pessoa: "espírito, alma,
corpo" (1 Tes 5, 23). A alma (anima, psique) é o princípio animador do corpo,
possuída igualmente pelos animais, enquanto o espírito (spiritus, pneuma), dado
somente ao homem, o põe em contato com Deus. É por isso que são Paulo afir-
ma que "g homem espiritual é mais elevado que o homem físico" (1 Cor l5, 40-
50). Essa trilogia, retomada por Agostinho, percorre a teologia até o século XII.
Do mesmo modo, Agostinho e a tradição que se inspira nele distinguem na alma
três instâncias, que dão lugar a três gêneros de visão: a "visão corporal", que se
forma na alma por meio dos olhos corporais e permite perceber os objetos mate-
riais; a "visão espiritual", que forma na imaginação imagens mentais ou oníricas,
possuindo a aparência das coisas corporais, mas desprovidas de toda substância
corporal; enfim, a "visão intelectual", ato de inteligência que atinge pura ccm-
templação desprendida de toda similitude com as coisas corporais. Mesmo se o
próprio Agostinho recorre com freqüência à oposição dual entre os "olhos do
corpo" e os "olhos da alma", tal esquema institui uma instância intermediária
entre a matéria e o intelecto.
Mas os escolásticos do século XIII refutam essas apresentações ternárias.
Tomás de Aquino afirma com toda a clareza que o espírito e a alma são uma só
coisa. A tripartição conserva, entretanto, um lugar limitado, pois a maior parte
dos teólogos admite que a alma é dotada de três potências: vegetativa (forma de
vida igualmente partilhada pelas plantas), animal (partilhada pelos animais) e

32. No sentido de governo da pessoa, de controle sobre si, c não de forma política de governo. (N. T.)

4 1O }éràme Basclzet
racional (própria ao homem). Além disso, a dualidade da alma - de um lado,
princípio animador do corpo; de outro, entidade que tem nela mesma seu pró-
prio fim - é ainda sublinhada por numerosos autores, entre eles Alberto, o
Grande. Parece, então, que a noção cristã da alma engloba ao menos dois ele-
mentos: o princípio de força vital que anima o corpo (a anima de Paulo; as potên-
cias sensitiva e animal dos escolásticos) e a alma racional, que aproxima o homem
de Deus. Ou a teologia dissocia esses dois aspectos e tende, então, para uma
antropologia ternária, ou ela os reúne em uma mesma entidade, de modo que a
alma é um princípio duplo, que remete ao corpo carnal que ela anima e, ao
mesmo tempo, partilha com Deus suas mais altas qualidades. É, ainda, a esco-
lástica do século XIII que, pensando uma alma única dotada de três potências,
oferece uma das soluções mais satisfatórias a essa contradição.
Se a alma e o corpo constituem dois princípios de naturezas tão diferentes,
como pode existir um contato ou uma troca entre as realidades materiais e espi-
rituais? Por isso, a maior parte dos teólogos atribui à alma potências sensíveis,
que lhe permitem chegar, por si só e independentemente do corpo, a um conhe-
cimento do mundo sensível. Mas, em seu radicalismo antropológico, Tomás de
Aquino nega a existência de tais potências sensíveis, o que retira da alma toda
capacidade de contato direto com o mundo material e torna mais necessária
ainda sua união com o corpo. Uma outra questão delicada consiste em definir
em quais partes do corpo se encontra a alma. A idéia tradicional segundo a qual
a alma, espiritual e, portanto, privada de toda dimensão espacial, não pode ser
contida no corpo por nenhuma forma de localização, é demolida pela revolução
que leva, no século XII, a reconhecer que a alma é localizável (ver o capítulo pre-
cedente). Nem por isso ela é contida de maneira simples no corpo, e Tomás de
Aquino afirma que a alma engloba o corpo, muito mais do que está nele. Entre-
tanto, emerge uma dualidade de centros anímicos. o_~()ração, já. percebido
p~_los_p_Ij_JTl~iros eremitas do deserto do Egito como o centro da pessoa, "o ponto
de encontro..e.nt.re o corpo e a alma, entre o humano e o divino", beneficia-se,
n~ Idade 1\'l~~t~~--de uma promoção crescente que assegura seu triunfo como
Í~·~~ü~;çã~ da alma. Mas a idéia da cabeça como sede da alma resiste, de modo
que a rivalidade entre esses dois centros anímicos continua bastante ativa. Seja
como for, a alma encontra-se também expandida por todo o corpo. Mesmo
Tomás de Aquino, que, entretanto, retira da alma suas potências sensíveis, insis-
te sobre os espíritos animais, esses "vapores sutis pelos quais as forças da alma
são difundidas nas partes do corpo''. Assim, são explicadas todas as interferên-
cias entre a alma e o corpo. A alma habita o corpo, em sua totalidade e em cer-
tos centros privilegiados, cabeça e coração, mesmo se, por sua natureza, escape
aos limites de tal localização.

A C:IVILIZAC,:ÃO FElJlUL 4J1


Para terminar esse exame dos elementos constitutivos da pessoa humana,
convém acrescentar, ainda, duas entidades que, ao menos a partir do século XI,
são associadas de maneira indefectível a toda vida cristã. Cada ser recebe, com
efeito, de seu nascimento até sua morte, um anjo da guarda que vela por ele e
também - menciona-se com menos freqüência - um diabo pessoal que se
esforça incessantemente em tentá-lo. Sem dúvida, esses dois espíritos são exte-
riores à pessoa, mas lhe são tão estreitamente atrelados que as ações do indiví-
duo e toda sua vida seriam incompreensíveis se não se levasse em conta a ação
desses dois representantes das forças divinas e maléficas. ~~_:ia gua._r~~~~~o
12.essoal podem, assim, ser considerados apêndices da pesso~s~~stã.: cujo papel no
processo da individualização cristã merece ser avaliado e~ sua j~~ta-"inedi~i: -~-~

Entrada na vida, entrada na morte

Dois momentos conferem toda a sua força à visão dual da pessoa: o da concep-
ção, em que a alma e o corpo se unem, e o da morte, em que eles se separam.
A origem da alma individual permanece, por muito tempo, uma questão delicada
para os autores cristãos. Declarando que se trata de um "mistério insolúvel",
Agostinho não chega a escolher entre as diferentes teses presentes: a teoria, ela-
borada por Orígenes, de uma preexistência das almas, todas criadas de uma só vez
quando da Criação e que formam um vasto "estoque", esperando para encarnar à
medida da concepção dos indivíduos; o "traducianismo", defendido por Tertu-
liano, segundo o qual a alma seria transmitida pelos pais e formada a partir de
sua semente; enfim, o "criacionismo", admitido por são Jerônimo, segundo o qual
cada alma é criada por Deus no momento da concepção da criança e imediata-
mente infundida no embrião. Ao longo dos séculos medievais, esta última tese
impõe-se em um processo lento e indeciso, que leva finalmente, nos escolásticos
dos séculos XII e XIII, a uma escolha clara. Precisa-se, ainda, como o faz Tomás de
Aquino, que o embrião é primeiramente animado por uma alma vegetativa e,
depois, por uma alma sensitiva, ambas sendo provenientes de um desenvolvimen-
to próprio do corpo engendrado pela semente paterna, antes que a alma racional,
criada por Deus, seja infundida no embrião, no qual ela substitui a alma sensitiva
(mas recuperando as potências vegetativas e sensitivas desta última). Repara-se,
então, uma tripla origem da pessoa: o corpo, saído da procriação; a alma animal,
produzida pela força paterna; a alma racional, criada por Deus. Mas, no ser aca-
bado, esta tripla origem funde-se em uma dualidade essencial. E reteremos,
sobretudo, que a alma intelectual, substância imaterial e incorpórea, não poderia
ser resultado da geração. A parte superior da pessoa não é engendrada por seus

412 }érôme Baschet


pais. Ela só pode proceder de Deus, e os teólogos sublinham que nada da alma
dos pais é transmitido aos seus filhos. É a própria idéia do "traducianismo" que é
assim descartada, enquanto, contrariamente à teoria da preexistência das almas,
o "criacionismo" singulariza o destino de cada alma, ligada à concepção do ser
individual que ela vem habitar. A decisão divina de criar o homem à sua imagem,
conforme o relato do Gênese, parece, assim, reapresentada quotidianamente, no
momento da formação de cada alma individual (figura 39, na p. 414). A concep-
ção de origem da alma contribui, então, para a individualização da pessoa cristã,
que se completa em uma relação de estrita dependência com relação a Deus.
Se a concepção junta a alma e o corpo, a morte cristã marca sua separação.
A iconografia mostra em profusão a alma s;i~do d·~ boca do moribundo sob a
forma de uma figura nua (figura 40, na p. 415). Segundo toda lógica, trata-se de
uma imagem transposta do parto, pois morrer de forma cristã é nascer para a
vida eterna. De fato, as concepções da alma estão intimamente ligadas à impor-
tância que o cristianismo medieval confere ao além. Uma vez que toda vida
humana é medida pelo patamar de sua retribuição após a morte, ? cristianismo
não pode se satisfazer com a imortalidade impessoal que caracteriza, por exem-
plo, o mund~-d~s~~~tos d~ .Gré~ià. antiga, nem aceitar que a morte desagregue,
mê_Il?_(~_que parcialmente, as entidades que compõem a pessoa, como é muitas
vezes o caso nas religiões politeístas (e também, por exemplo, nas concepções
do;-p~v~s maias da época). As representações cristãs devem, ao contrário, asse-
gurar, para além da morte, uma forte continuidade da pessoa, a fim de que a retri-
buição no além seja aplicada exatamente ao ser que, aqui embaixo, mereceu
seus rigores ou alegrias. Isso supõe, pelo menos, uma unidade indefectível da
alma e, sobretudo, uma identificação tão profunda quanto possível entre esta e
o homem que ela vivificava. De fato, o cristianismo medieval leva longe essa assi-
milação - e não somente porque ele segue a tradição ~~<?platônica para a qual
o homem é sua alma. A individualização da alma não é, entretanto, sem limites, e,
~-·~,,,,, ··•••-''''r.oo • •·•-.

no século XII, o monge Guiberto de Nogent explica que, no outro mundo, ne-
nhuma alma pode ser designada pelo seu nome pessoal. É verdade que ela é
reconhecida - ela não desaparece em um anonimato dos mortos - , mas per-
deu um aspecto fundamental de sua identidade singular; doravante ela perten-
ce à comunidade alargada dos mortos, no seio da qual todos experimentam um
interconhecimento generalizado. As concepções medievais oscilam, então, em
uma zona intermediária: a alma separada do corpo não é nem um vago espectro
impessoal, nem uma pessoa no sentido pleno do termo:
No geral, as concepções medievais da pessoa não se reduzem a uma duali-
dade simples. Nota-se nelas uma tensão entre uma representação dual onipre-
sente e uma tentação ternária que afiara em certas ocasiões. Uma das implica-

A CIVILil.AÇÃO FEUDAL 4J3


39. A infusão da alma no momento da concepção da criança, 1486-93 (Espelho da humildade, Biblioteca
do Arsenal, Paris, ms. 5206, fi. 174).
Este manuscrito, realizado por Balduíno de Lannoy, segundo camareiro do duque de Borgonha, contém uma das
raríssimas representações da infusão da alma. Em um interior com mobiliário sóbrio, domina o leito em que estão
deitados os dois esposos: a despeito de sua retidão pudica, esta disposição evoca, sem e<juívoco possível, a fun-
ção procriadora do casal (da qual a discreta representação das Tábuas da Lei confirma o caníter legítimo).
A Trindade, em um halo de nuvens, é como que tornada presente na intimidade do quarto conjugal no momen-
to em que envia a alma destinada a infundir-se no embrião da criança <JUC nascerá. Nesta Trindade do saltério.
o Pai e o Filho, embora sentados sobre o mesmo trono c segurando conjuntamente o globo, são claramente dis-
tintos, pois Deus, o Pai. aparece como ancião, como é corrente nesta época. O filactério que enlaça a Trindade
traz o versículo do Gênese (I, 26: "Façamos o homem à nossü imagem c semelhança''), o que sugere que a inten-
ção inicial da Criação divina é reaprescntada cotidianamente, no momento da infusão de cada alma individual.

ções disso é o estatuto acordado ao princípio de força vital (espiritual, mas des-
tinado à animação do corpo), assim como à função da interface entre o material
e o espiritual (imagens mentais das coisas corporais, potências sensíveis da alma
ou outras modalidades de percepção das realidades materiais). Mas a evolução
das concepções medievais faz aparecer um deslocamento da concepção terná-
ria para formulações mais binárias. Então é preciso ao mesmo tempo sublinhar
a complexidade da pessoa cristã e reconhecer que um processo histórico tende a
privilegiar uma estrutura dual. Se a dualidade alma/corpo não é suficiente para
dar conta da pessoa cristã, ela define, em todo caso, sua estrutura fundamental,
como sublinham muit~s representações da concepção e da morte.

414 ]érôme Baschet


40. A separação da alma e do corpo no momento da morte, c. 1165 (Liber scivias, de Hildegarda de Bingen,
manuscrito destruído).
No momento da morte, a alma separa-se do corpo. Ela sai dele pela boca, ao mesmo tempo que o último sopro
de vida. A gcstualidade particularmente dinâmica da alma exprime, aqui, a intensidade do combate de que ela
é objeto. Ela parece literalmente lutar contra o diabo que tenta capturá-la, enquanto os anjos estão prontos para
recolhê-la em um lençol. O resultado do combate parece particularmente incerto: se a corte dos anjos parece
já acolher a alma sob uma asa protetora, os pés da moribunda são mais do que acariciados pelas tlamas do infer-
no, de onde a tropa de diabos encoraja o seu enviado.

As núpcias da alma e do corpo

Pretender definir a pessoa por uma dualidade do corpo e da alma é insuficien-


te, pois tal enunciado nada diz sobre o "estilo de governo'' estabelecido entre
eles. Ora, esta relação é pelo menos tão importante quanto os termos que a
compõem. A tradição neoplatônica, retomada por são Paulo e expressa por
numerosos autores da Alta Idade Média, tais como Boécio ou Gregório, o
Grande, identifica o homem com sua alma e considera o corpo uma vestimen-
ta transitória e desnecessária, um instrumento a serviço da alma e exterior a ela,
ou até mesmo uma prisão que entrava o livre desenvolvimento do espírito.
Embora tais metáforas sejam com freqüência retomadas, a dinâmica das con-
cepções medievais deve ser analisada, sobretudo como uma superação desse
dualismo neoplatônico. Bem iniciada por Agostinho, que recusa a definição da

A CII'ILIZAÇÃO FEUDAl. 4J5


alma como prisão do corpo e sublinha a unidade da pessoa humana, esta dinâ-
mica floresce particularmente a partir do século XII e dá lugar, então, a magnífi-
cas formulações. Para a erudita abadessa Hildegarda de Bingen (I 098-1179),
a infusão da alma é o momento em que

o vento vivo que é a alma entra no embrião, fortifica-o e difunde-se em todas as


suas partes, como um verme que tece sua seda: ele se instala nele e fecha-se nele
como em uma casa. Ele preenche com seu sopro toda essa armação, do mesmo
modo que uma casa é inteiramente iluminada pelo fogo que se faz nela; a alma
conserva a carne, graças ao fluxo do sangue, em uma umidade permanente,
assim como os alimentos, graças ao fogo, cozinham na panela; ela fortalece os
ossos e fixa-os nas carnes, de modo que essas carnes não desabem, assim como
um homem constrói sua casa com madeira para que ela não seja destruída.

A alma não desce, então, para uma sinistra prisão, mas para uma casa, na
qual se regozija por habitar, sobretudo porque ela a constrói segundo suas exi-
gências. A abadessa pode, então, concluir que o atrelamento do corpo e da alma
é um fato positivo, desejado por Deus e odiado por Satã.
O caráter positivo desse laço é igualmente expresso pelos mestres de teo-
logia dos séculos XII e XIII, que indicam que Deus favoreceu a adequação do
corpo e da alma estabelecendo entre eles uma relação de comensurabilidade e
dotando a alma de uma aptidão natural a se unir com o corpo (unibilitas). Para
o bispo de Paris, Pedro Lombardo, o estatuto da pessoa humana mostra que
"Deus tem o poder de unir as naturezas disparates da alma e do corpo para rea-
lizar um conjunto unificado por uma profunda amizade". O que define o homem
não é, então, nem a alma, nem o corpo, mas a existência de uma composição
unificada, formada por essas duas substâncias. Quanto ao tema da amizade
entre o corpo e a alma, ele apenas se amplia, tanto na literatura moral, na qual
o gênero dos Debates do corpo e da alma sublínha a tristeza que sentem ao se
separar, como na especulação teológica, na qual, em meados do século XIII,
Boaventura analisa a inclinação da alma para se unir ao corpo.
Tomás de Aquino leva essa dinâmica a seu ponto extremo. Conforme o
hilemorfismo de Aristóteles (que analisa a conjunção da matéria e da forma que
se inscreve nela), o homem não é mais pensado como a união de duas substân-
cias. A alma não é uma entidade autônoma associada ao corpo, mas a "forma
substancial" do corpo. A interdependência da alma-forma e do corpo-matéria é
total: "Contra todo dualismo, o homem é constituído de um único ser, no qual
a matéria e o espírito são os princípios consubstanciais de uma totalidade deter-
minada, sem solução de continuidade, pela sua inerência mútua: não duas coisas,

416 }érôme Baschet


não uma alma que tem um corpo ou que move um corpo, mas uma alma-encar-
nada e um corpo-animado, a tal ponto que, sem corpo, seria impossÍvel que a
alma tomasse consciência dela mesma" (Marie-Dominique Chenu). Tomás não
se contenta em afirmar que a união com o corpo é, para a alma, natural e bené-
fica, ele chega até a desvalorizar radicalmente o estado da alma fora do corpo,
pois este é necessário não somente à plenitude da pessoa humana, mas também
à perfeição da própria alma, incapaz de realizar inteiramente suas faculdades
cognitivas sem o corpo. Ele considera o estado da alma separada do corpo
imperfeito e contra a natureza, e afirma pela primeira vez que a alma é uma ima-
gem de Deus ainda mais semelhante quando está unida ao corpo do que quan-
do está desligada dele.
O procedimento tomista caracteriza-se, assim, por um duplo aspecto notá-
vel. Ele formula de maneira tão definitiva quanto possível a dualidade do corpo
e da alma, distinguindo radicalmente suas respectivas naturezas e eliminando
entre eles toda mistura ou ponto de contato (tais como as potências sensíveis da
alma). Mas a acentuação dessa dualidade visa apenas melhor superar o dualis-
mo, reconhecendo o mais alto valor ao corpo e à sua união com a alma. Assim,
é na própria medida que a alma e o corpo são mais claramente distintos, quan-
to às suas respectivas naturezas, que sua interdependência aumenta e que sua
união se revela mais necessária. O pensamento tomista aparece, assim, como a
ponta avançada de uma dinâmica intelectual e social que atravessa os séculos
centrais da Idade Média. É verdade que o tomismo não é absolutamente a dou-
trina oficial de seu tempo, e a condenação de 1277, proclamada pelo bispo de
Paris, Estevão Tempier, que visa a alguns de seus aspectos, mostra que esse pen-
samento ultrapassa, em parte, a capacidade de recepção da instituição eclesial.
No entanto, resta o fato de que ele revela uma profunda dinâmica histórica.

O corpo espiritual dos eleitos ressuscitados

Assim, a alma separada, em sua imperfeição, deseja o seu corpo e está impacien-
te pelos reencontros que a escatologia cristã lhe promete como prelúdio do Juízo
Final. A ressurreição dos corpos é, com efeito, um ponto essencial da doutrina
cristã, q~o~e conta, sem dúvida, entre seus aspectos mais originais - e mais difí-
ceis de admitir (figura 36, na p. 390). Fundada no Evangelho, mencionada no
Credo e defendida por todos os teólogos medievais, a doutrina da ressurreição
geral dos corpos no final dos tempos não sofre nenhuma contestação (a não ser
entre os heréticos, notadamente os cátaros). Entretanto, admitir que os corpos
de todos os mortos serão reconstituídos e sairão de suas tumbas para se reunir

A (:1\'IIIZAÇAO FEUDAL 4/7


às suas almas não é algo desprovido de dificuldade, e os cristãos dos primeiros
séculos hesitaram entre uma concepção espiritual e uma interpretação material
dos corpos ressuscitados. Valendo-se de são Paulo, que evoca a ressurreição de
um "corpo espiritual" e afirma que a "carne e o sangue não podem herdar o
Reino" (1 Cor 15), autores como Orígenes ou Gregório de Nissa concebem para
os ressuscitados um corpo etéreo, parecido com o dos anjos, sem idade nem
sexo. Ao contrário, na seqüência de Agostinho, a tradição medieval ocidental
admite a plena materialidade dos corpos terrestres individuais, reformados com
todos os seus membros, inclusive os órgãos sexuais e digestivos, dos quais os
espiritualistas queriam livrá-los. Decorre disso uma obsessão quase maníaca da
integridade dos corpos ressuscitados, aos quais nem mesmo um grão de poeira
deve faltar e que, mesmo em caso de mutilação ou de devoração pelos animais,
devem ser inteiramente reformados. Es~a exigência conduz um pensador tão
sério quanto Agostinho a argumentar que a matéria das unhas e dos cabelos cor-
tados ao longo da vida deveria ser igualmente juntada ao corpo ressuscitado
(mas sob uma forma transformada, pois, caso contrário, ela produziria uma
assombrosa feiúra). Essa concepção pode nos parecer cômica, mas não sur-
preenderia absolutamente os tzotzils de Chenalho (Chiapas), onde a tradição
esperava que cada um conservasse em um saco todas as unhas e os cabelos cor-
tados desde seu nascimento (aqui, não em benefício de um improvável corpo
ressuscitado, mas para evitar à alma do morto a pena de procurar essas excres-
cências corporais).
Admitir a concepção material da ressurreição obriga a pensar a expressão
paulina "corpo espiritual" como um verdadeiro paradoxo: longe de se transformar
em espírito, o corpo ressuscitado conserva a plena materialidade de sua carne;
mas, ao mesmo tempo, ele pode ser dito espiritual, pois adquire qualidades novas
que são, normalmente, aquelas da alma. Assim, o corpo glorioso dos eleitos
torna-se, como a alma, imortal e imperturbável, escapando aos efeitos do tempo
e à corrupção. As argumentações teológicas consagradas às beatitudes do corpo
dos eleitos, notadamente em Anselmo de Canterbury, sublinham igualmente
sua perfeita beleza, pois ele é eternamente conservado na força da idade (aque-
la de Cristo no momento de sua morte) e dotado de proporções harmoniosas (os
defeitos do corpo daqui de baixo são eliminados). A clareza (claritas) torna-o
luminoso como o sol, até mesmo transparente como o cristal. Igualmente dota-
do de liberdade e de agilidade, o corpo glorioso tem o poder de fazer tudo o que
quer e de se deslocar como bem entender, sem o menor esforço e tão rapida-
mente como os anjos. O mundo celeste não é, então, essa ordem imóvel e con-
gelada que se imaginaria facilment-e; pois o movimento é tido por uma qualida-
de que convém à perfeição do corpo. Enfim, o corpo glorioso experimenta uma

418 }érôme Baschet


volúpia (voluptas), que resulta do exercício dos cinco sentidos e se manifesta em
cada um de seus membros. As limitações que os clérigos fixam à··sensualidade
paradisíaca são evidentes, mas, pelo menos, o reconhecimento de uma ativida-
de dos sentidos sublinha sua participação necessária à perfeição da pessoa
humana. No total, a doutrina medieval leva notavelmente longe a redenção do
corpo, julgado necessário à plena beatitude do paraíso (este "lugar de delícias
com os santos", como diziam os dominicanos do século XVI, encarregados de
evangelizar os tzeltals do Chiapas). Em sua materialidade carnal e completitu-
de de seus membros, o corpo, com suas virtudes de beleza, de força, de movi-
mento e de sensualidade, encontra direito de existir na sociedade perfeita de
Deus. Essa reabilitação do corpo baseia-se, entretanto, em duas exclusões: se o
corpo glorioso é completo (portanto sexuado), ele é, todavia, um corpo não-
sexual e não-alimentar, excluindo duas funções que remetem o homem à sua
efêmera condição mortal e à sua necessária reprodução, e que os clérigos jul-
gam incompatíveis com a natureza espiritual do corpo glorioso. A cozinha e o
sexo têm lugar apenas no inferno.
Para terminar essa análise, convém ainda notar que a relação entre o corpo
e a alma é equivalente àquela que une o homem a Deus. Como indica Hilde-
garda de Bingen, no fim dos tempos "Deus e o homem serão apenas um, como
a alma e o corpo". À imagem da unidade gloriosa dos corpos espirituais, os elei-
tos admitidos na sociedade celeste são reunidos em Deus; eles são de novo ple-
namente "à sua imagem", conforme a relação instaurada no momento da
Criação mas perturbada pelo pecado original. Como já se viu, a visão beatífica,
perfeita compreensão da essência divina, supõe uma união total com Deus, que
os teólogos reconhecem tender a uma quase divinização do homem. Essas con-
cepções da beatitude celeste chocaram particularmente os pagãos do Império
Romano: a assunção do humano até o mundo divino, junto com a glorificação
dos corpos dos eleitos que partilham doravante o "supercorpo" outrora reserva-
do aos senhores do Olimpo (Jean-Pierre Vernant), aparece para eles - do
mesmo modo que a Encarnação de Deus - como mistura escandalosa entre
o humano e o divino. Vê-se, assim, a contrario, que as relações entre o corpo e a
alma, de um lado, entre o humano e o divino, de outro, constituem dois aspec-
tos estritamente correlatos da antropologia cristã.
No geral, longe de definir sua separação como um ideal, o corpo glorioso
propõe à cristandade medieval o horizonte de uma articulação entre o corpo e a
alma. Todavia, é necessário ainda precisar que essa relação é fundamentalmen-
te hierárquica, pois o corpo glorioso caracteriza-se por sua obediência absoluta
às vontades da alma. São Boaventura, evocando o desejo mútuo de que a alma
e o corpo têm de se reunir, descarta a idéia de uma união igualitária, precisan-

A CI\"ILI/..~ÇAO FEUDAL 4J9


do a existência de uma "ordem de governo" pela qual o corpo obedece inteira-
mente à alma. Não poderia haver aí redenção do corpo senão ao preço de seu
total servilismo, segundo uma dialética bem cristã do rebaixamento e da glorifi-
cação. O corpo glorioso é, então, paradoxalmente um modelo da soberania da
alma, da dominação da alma sobre o corpo, e é somente nesse quadro que ganha
sentido a insistência sobre o aspecto corporal da ressurreição. O corpo dos elei-
tos convida a pensar uma relação entre o corporal e o espiritual que não seja
nem uma mistura ou um estado intermediário (nada de sincretismo aqui!), nem
uma total disjunção (que reconduziria ao dualismo). O "corpo espiritual" defi-
ne-se como a união de dois princípios no seio de uma mesma entidade - mas
uma união hierárquica (a alma domina o corpo) e dinâmica (através dessa sub-
missão, o corpo eleva-se e torna-se conforme a alma). Tal é a imagem ideal para
a qual o homem deve se dirigir desde sua vida terrestre, agindo de modo que a
alma domine o corpo e o ajude a progredir em direção às realidades espirituais,
ao invés de o corpo impor sua lei e seu peso à alma e aviltá-la no desejo das coi-
sas materiais.

A ARTICULAÇÃO ENTRE O CARNAL


E O ESPIRITUAL: UM MODELO SOCIAL

Além da dualidade entre o corpo e a alma, o debate sobre a definição da pessoa


humana implica duas categorias mais largas - o corporal e o espiritual - , que
contribuem para ordenar a concepção de conjunto das realidades do aqui
embaixo e do além. Tudo o que existe no universo se deixa repartir entre esses
dois pólos ou, antes, se caracteriza por uma modalidade particular, positiva ou
negativa, de articulação entre o corporal e o espiritual. Quer dizer que essa
dupla implica a concepção global da sociedade e do universo, e que o estatuto
da alma e do corpo na pessoa humana é uma ocasião privilegiada para abordar
questões de abrangência muito geral.

A Igreja, corpo espiritual

Definir a imagem ideal da pessoa humana como uma articulação hierárquica e


dinâmica entre a alma e o corpo constitui uma poderosa ferramenta de repre-
sentação social, em um mundo em que o clero, distinto justamente pelo seu
caráter espiritual, assume uma posição dominante. É significativo que a noção

420 }érôme Baschet


de "homem espiritual", pela qual são Paulo designa todo cristão inspirado por
Deus (1 Cor 2, 15), acaba, especialmente na época carolíngia e, sobretudo, na
obra de Alcuíno, por designar especificamente os clérigos. Quanto aos reforma-
dores dos séculos XI e XII, eles fazem do versículo de Paulo um princípio jurídi-
co que justifica a supremacia do papa e precisa que os homines spirituales for-
mam o clero em seu conjunto, por oposição aos laicos, qualificados de saeculares
homines (Yves Congar). Na sociedade medieval, conseqüentemente é impossí-
vel analisar a relação espiritual/corporal sem ver que ela é a imagem da distin-
ção entre os clérigos e os laicos: Hugo de Saint-Victor, entre muitos outros, jus-
tifica explicitamente a superioridade dos clérigos sobre os laicos pela
superioridade da alma sobre o corpo (a dualidade entre a alma e o corpo, homó-
loga àquela entre o homem e a mulher, legitima igualmente a relação de domi-
nação entre os sexos, não sem valorizar sua necessária colaboração e a harmo-
nia que deve instaurar o comando benevolente - e inspirado pelo amor em
Deus- do homem sobre a mulher). Como se verá no capítulo seguinte, o sis-
tema de representações, ao qual a reforma dos séculos XI e XII confere seu mais
extremo rigor, define o estatuto dos clérigos pela sua rejeição ao parentesco car-
nal e sua renúncia proclamada a toda sexualidade. Deixando aos laicos a tarefa
de reproduzir corporalmente a sociedade, eles se consagram à sua reprodução
espiritual, através da administração dos sacramentos. A partilha das tarefas é
das mais claras, de modo que o governo do espírito sobre o corpo aparece como
o modelo da autoridade dos clérigos sobre os laicos, meio da redenção de todos.
Com efeito, a sociedade em seu conjunto não pode esperar a salvação senão sob
a condição de se deixar guiar pela sua parte mais espiritual, a saber, o clero
sacralizado por sua renúncia aos laços da carne.
Para que o corpo glorioso funcione como modelo social, é preciso que haja
não somente hierarquia, mas também unidade. Esta é assegurada pela existên-
cia de um outro modelo, que convém pôr em relação com o modelo do corpo
glorioso: a metáfora, de origem paulina, que pensa a Igreja como um corpo, do
qual os fiéis são os membros e Cristo, a cabeça (1 Cor 11). Na época carolíngia,
a Igreja é designada a partir desta base como corpus Christi, enquanto a expres-
são corpus mysticum aparece, especialmente em Rábano Mauro, para designar
a hóstia. Depois, por volta do século XII, quando a doutrina da presença real é
bem estabelecida, um "curioso troca-troca" semântico inverte o sentido dessas
fórmulas, de modo que corpus Christi se refere doravante à eucaristia e corpus
mysticum, à Igreja (Henri de Lubac). A imagem do "corpo místico" significa,
assim, a Igreja como comunidade e lhe confere uma forte coesão, sejam quais
forem as variantes às quais se recorra. Assim, Hugo de Saint-Victor faz dos lai-
cos o lado esquerdo desse corpo e dos clérigos, seu lado direito (o mais valori-

A CIVILIZAÇÃO FEU01\L 42J


zado), enquanto Gregório, o Grande, já compara os diferentes grupos sociais aos
membros e órgãos corporais, cuja colaboração é indispensável. João de Salisbury
(mais tarde, bispo de Chartres) dá, em seu Policratius (I 159), uma versão céle-
bre da metáfora organicista da sociedade, considerada geralmente uma teoria do
corpo político. É verdade que o corpo que ele evoca é o reino e que o rei é sua
cabeça, mas seu propósito em nada é incompatível com as concepções tradicio-
nais da Igreja, uma vez que os clérigos são a alma desse corpo. Assim, mesmo
se conjuntos mais restritos podem retomar a metáfora por sua própria conta, a
imagem da Igreja como corpo exprime a solidariedade que unifica a comunida-
de dos cristãos, não sem afirmar as hierarquias que a ordenam, particularmen-
te a supremacia do clero. Isso aparece com toda a clareza quando Bonifácio VIII
funda as exigências teocráticas do papado sobre a noção de corpo místico,
decretando: "Nós devemos crer em uma única Santa Igreja católica e apostóli-
ca, sem a qual não há nem salvação nem remissão dos pecados, que representa
um só corpo místico, cuja cabeça é Cristo, e a cabeça de Cristo é Deus" (bula
Unam sanctam, de 1302).
A metáfora da Igreja como corpo místico, na qual atua uma vez mais a
ambigüidade entre instituição e comunidade, aparece, então, como um dos mo-
delos que permitem pensar a unidade da sociedade medieval, sob a condução
do clero. Trata-se, com toda a evidência, de um corpo de natureza bem particular,
ao mesmo tempo coletivo e espiritual (o que é indicado com toda a clareza por
Simão de Tournai, mestre em Paris na segunda metade do século XIII, quando
ele afirma, abordando uma questão que preocupa todos os teólogos de seu
tempo, que "Cristo tem dois corpos: o corpo material humano, que ele recebeu
da Virgem, e o corpo colegial espiritual, o colégio eclesiástico"). Não é interdito
considerar que esse corpo espiritual é homólogo aos corpos gloriosos, sem
esquecer de sua equivalência com figuras tão singulares como a Virgem e o
Cristo. Assim, a relação bem-ordenada do corpo e da alma produzida pelo corpo
glorioso não define somente a justa hierarquia entre clérigos e laicos como sua
inclusão no corpo coletivo que forma a cristandade. Ela corresponde igualmen-
te ao próprio estatuto da Igreja, instituição encarnada no solo de suas imensas
possessões, engajada plenamente na organização da sociedade dos homens e
dotada de uma materialidade ornamentada, cuja riqueza salta aos olhos de
todos, mas que, entretanto, só encontra legitimidade pelo princípio espiritual
que a anima e em nome do qual ela governa as almas e os corpos. A Igreja, em
sua unidade institucional, ideológica e litúrgica pode, então, ser definida como
um corpo espiritual que ordena o mundo material para fins materiais e celestes.
A Igreja é também pensada através da imagem do corpo da Virgem. O para-
lelo é de uma grande eficácia, pois Maria é um corpo que engendra um outro

422 }érôme Baschet


corpo, mas evitando a mácula do pecado, e que, por intermédio da car,ne, serve
às mais altas finalidades espirituais da divindade. É por isso que o éorpo virgi-
nal de Maria é apresentado, por Ambrósio de Milão e pelos clérigos medievais
depois dele, como a imagem da pureza da Igreja, que é necessário defender e
manter imaculada em meio às torpezas do mundo. E do mesmo modo que
Maria dá à luz o corpo de Jesus virginalmente, a Igreja é a mãe que reproduz o
corpo social pela virtude do Espírito. Mas se a aproximação entre o corpo ecle-
sial e o corpo virginal de Maria é de uma notável eficácia, a equivalência entre
a Igreja como corpo de Cristo é ainda mais importante. De fato, a Encarnação
pela qual o Filho divino adquire carne de homem constitui um outro modelo
essencial para a Igreja que, exatamente como o corpo glorioso, permite articular
o corporal e o espiritual.

A Encarnação, paradoxo instável e dinâmico

Ao lado da Trindade, a Encarnação tornou-se um dos núcleos da doutrina cris-


tã. Origines (t 254) foi um dos primeiros a sublinhar a divindade de Jesus
Cristo, que, em seguida, foi promulgada como dogma pelo Concílio de Nicéia,
em 325. Entretanto, no Império de Constantino, a vitória do cristianismo pare-
ce ser a de um estrito monoteísmo, que adora um Deus Todo-Poderoso que se
manifesta através de diversas representações terrestres, das quais Cristo é a
mais eminente (Eusébio de Cesaréia vê nele "uma espécie de prefeito do sobe-
rano supremo"; Peter Brown). Uma vez proclamado o caráter plenamente divi-
no de Jesus, as dificuldades inerentes ao paradoxo Deus-homem geram uma
multidão de debates e de condenações por heresia. Como compreender a dupla
natureza de Cristo, que deve ser ao mesmo tempo plenamente Deus e total-
mente homem? Como admitir que Cristo tenha sido inteiramente submetido
à finitude da espécie humana e, em particular, à morte, sem atentar contra a
plenitude infinita e eterna de seu ser divino? Aqui, o risco é atribuir a Jesus
apenas uma natureza humana e de se tornar, assim, culpável de nestorianismo,
doutrina condenada pelo Concílio de Éfeso, em 431 (Nestório, patriarca de
Constantinopla de 428 a 4 31, julga repugnante submeter Deus ~ desonra
da condição humana e desfaz a lógica da Encarnação, separando radicalmente
as duas naturezas, divina e humana, de Cristo: para ele, é somente o homem
que nasce de Maria e morre na cruz, de modo que a natureza divina de Cristo
não é em nada afetada por seu destino terrestre). Mas, inversamente, como
afirmar a plena divindade de Cristo sem negligenciar valorizar que ele sofreu
todos os aspectos da miséria humana e que morreu ignominiosamente na cruz?

A ('JVJLIZ;\ÇÃO FEUUAL 423


Aqui, o risco é privilegiar somente a natureza divina de Cristo ou até mesmo
reduzir seu destino terrestre a um jogo de aparências e cair, assim, no monofi-
sismo, condenado como heresia pelo Concílio de Calcedônia, em 451 (trata-se
da doutrina desenvolvida no seio da escola de Alexandria, que afirma que a
natureza de Cristo é una, ao mesmo tempo divina e humana, e até mesmo mais
divina que humana).
Mas o debate não cessa de reaparecer, pois a ortodoxia cristológica impõe
não apenas que sejam admitidas as duas naturezas de Cristo, mas também que
se reconheça entre elas uma unidade essencial, e não somente acidental. Ainda
no século XII, as modalidades de articulação das duas naturezas de Cristo susci-
tam muitas divergências entre os teólogos. Através de múltiplos episódios e
debates, trata-se de fortalecer o equilíbrio paradoxal suposto pela noção de
Encarnação. É preciso, então, afastar toda insistência excessivamente unilateral
sobre a divindade de Cristo, que minimizaria sua humanidade, e toda ênfase
excessivamente humana, que ocultaria, ao menos em parte, sua natureza divi-
na, ao mesmo tempo que estabelecer tão estreitamente quanto possível suas
duas naturezas. O objeto fundamental da ortodoxia cristológica consiste, então,
em articular, de maneira tão estreita quanto possível, esses dois pólos separados
que são o humano e o divino, segundo uma lógica que lembra a da relação entre
a alma e o corpo na pessoa humana. A Encarnação faz juntarem-se o humano e o
divino - imagens do corporal e do espiritual - e constitui, então, um modelo
privilegiado para pensar a Igreja.
Através da prolixidade das argumentações teológicas, a cristologia é, então,
um dos meios pelos quais a sociedade cristã elabora as _grandes questões relati-
vas ao seu funcionamento e às suas transformações. A evolução da figura de
Cristo, ao longo da Idade Média, pode, então, ser tomada como um bom indi-
cador da dinâmica do feudalismo. Sem sair do campo da ortodoxia, que impõe
pensar que Cristo é, ao mesmo tempo, homem e Deus, esses dois aspectos
podem ser associados segundo diferentes equilíbrios, como mostra notadamen-
te a iconografia. Assim, a imagem intemporal de Cristo em seu trono em majes-
tade, em sua mandorla dourada, põe em evidência sobretudo seu aspecto divi-
no (ela representa, de resto, tanto o Pai, sob as aparências de Cristo, como
o próprio Filho; como visto na figura 51, na p. 501 ). É dessa maneira que ele é
representado, sobretudo durante a Alta Idade Média. Nem por isso a Encar-
nação é esquecida, pois a figuração da Virgem com o Menino desenvolve-se
desde o século VI; mas os episódios da vida humana de Cristo, em particular os
da infância, permanecem pouco desenvolvidos. Ainda incerta e, por vezes, oca-
sião de escândalos durante os séculos VI e VIl, a iconografia da Crucificação
impõe-se, pouco a pouco, como um tema capital; mas ainda se hesita em figu-

424 .fér8me Baschet


rar Cristo morto. Na maior parte das vezes, ele é representado com os olhos
abertos e mesmo se, a partir da época de Constantino, ele pod'é excepcional-
mente aparecer com os olhos fechados, sempre tem os pés bem pousados
sobre seu suporte eparece manter-se firmemente em pé (figura 41, na p. 426).
O caráter humilhante do suplício na cruz é escamoteado e a reticência em mos-
trar Cristo submetido à morte continua grande. Mesmo na cruz, a glória divina
de Cristo deve predominar e sua postura evoca, sobretudo, a vitória de Deus
sobre a morte e seu triunfo salvador. A tônica é posta sobre o poderio glorioso
de Cristo mais do que sobre as peripécias humanas de seu destino terrestre.
É; sem dúvida, o sinal de que a Igreja, mesmo estando engajada no universo
mundano, ainda baseia fundamentalmente seus valores no desprezo do mundo
e na fuga monástica.
Mais tarde, a partir do século XI, opera-se uma ruptura, cujas manifestações
são cada vez mais sensíveis ao longo dos séculos XII e XIII. Esse movimento é
inseparável da elaboração da doutrina da presença real (segunda parte, capítu-
lo n). Com efeito, a eucaristia é, então, um outro modelo de articulação do cor-
poral e do espiritual, que torna o verdadeiro corpo de Cristo presente em todos
os lugares em que os cristãos celebram a missa. De resto, termina-se por con-
ceber a celebração eucarística como uma reiteração da própria Encarnação:
Cristo tomando corpo na hóstia como, antes, fizera no seio de Maria. São
Francisco afirma com toda a clareza: "Cada dia, [o Filho de Deus] humilha-se
como quando veio dos tronos reais no ventre de Maria; cada dia, ele vem a nós
sob uma humilde aparência". Paralelamente, os temas associados à Encarnação
ampliam-se consideravelmente. O aspecto humano de Cristo é exaltado pela
multiplicação das narrativas consagradas à sua infância (numerosas tradições
apócrifas encontram, então, espaço entre as concepções admitidas pelos cléri-
gos). Nos ciclos iconográficos da Infância, cada vez mais desenvolvidos, nota-se
uma insistência sobre a relação sensível entre Cristo e sua mãe. A representa-
ção da Virgem aleitando aparece no século XII, enquanto a ênfase sobre a nudez
do Menino - e, por vezes, até mesmo de seu sexo - atesta a plenitude da
Encarnação.
Os ciclos da Paixão são igualmente consolidados, em geral detalhando as
provações sofridas por Cristo (o coroamento de espinhos, a flagelação, as cenas
de sarcasmo contra ele, o carregamento da cruz) e multiplicando a imagem de
sua morte (além da crucificação, a descida da cruz e a deposição na tumba
fazem-se mais freqüentes). Na virada do século XII para o século XIII, inova-se
ao mostrar os pés do crucificado fixados um sobre o outro por um só cravo (em
vez de dois, como antes): renunciando à posição ereta e digna que prevalecia
anteriormente, a nova iconografia obriga a flexionar as pernas de Cristo e lhe

A C:IVII.IZAÇAO FEUDAl. 425


41. Cristo na cruz triunfando sobre a morte, c. 1020-30 (evangeliário da abadessa Uta, Staatsbibliothek,
Munique, clm. 13601, fi. 3v.).
Cristo na cruz está inteiramente vestido e mantém-se firmemente sobre seus pés, pousados um ao lado do outro
sobre seu suporte. Seus braços estão estendidos na horizontal; sua cabeça está pendente, mas seus olhos estão
bem abertos. Ele está inscrito em uma mandorla com fundo dourado que sublinha a glória divina. Esse tipo de
figuração da crucificação manifesta a vitória do Redentor sobre a morte, o que é expresso com uma claridade
particular: na parte inferior da miniatura, a alegoria da Vida contempla o crucificado, enquanto a personifica-
ção da morte cai para trás, como que atingida por uma excrescência ameaçadora da cruz (essa dualidade é ecoa-
da pela oposição entre a Igreja e a Sinagoga, nos medalhões semicirculares laterais).
inflige uma torção desconfortável que, de maneira progressivamente acentuada,
o faz se curvar sob o peso do próprio corpo. Em resumo, a parti{ ao século XIII
Cristo é cada vez mais ostensivamente submetido às conseqüências de sua
Encarnação: a morte e a decrepitude de um corpo que sofre e sangra. Nem por
isso seu caráter divino é esquecido. A iconografia continua a celebrar em profu-
são a glória intemporal de Cristo em sua majestade. E, mesmo quando ele é o
Juiz do último dia, mostrando suas chagas para indicar que é em virtude de sua
Encarnação e de sua Paixão que ele salva e condena, a referência à sua glória
divina não é em nada eclipsada. De fato, mesmo no caso das representações da
Crucificação, a oposição entre Cristo sofrendo e Cristo triunfando não é uma
alternativa marcada. Esses dois aspectos são sempre associados, embora em
proporções variáveis, e a insistência sobre o sofrimento da Paixão deve ser con-
siderada uma expressão do triunfo do Verbo encarnado.
A evolução observada indica somente que, sem excesso nem ruptura, a di-
vindade de Cristo apresenta-se mais facilmente em sua dime~são humana e
encarnada, sinal de uma atitude nova da Igreja em relação ao mundo. Poder-se-
ia falar, aqui, de um "cristianismo de encarnação" (André Vauchez), mas é pre-
ciso ter certa reserva quanto ao fato de que tal expressão não poderia designar
nada além de um cristianismo com acentos fortemente fundados na Encar-
nação, pois, da mesma forma que Cristo não poderia ser homem esquecendo-se
de ser Deus, o mundo terrestre não pode, de modo algum, ser um valor em si
mesmo na cristandade medieval. O que se constata é uma capacidade crescen-
te em assumir a dimensão humana da figura crística, com tudo o que isso supõe
de rebaixamento, de sofrimento e de humilhação. Ora, essa atitude de pensar
Cristo presente entre os homens significa também uma capacidade de valorizar
a dimensão material do mundo terrestre e de incluí-la inteiramente na lógica da
Encarnação de articulação entre o divino e o humano, entre o corporal e o espi-
ritual. Dito de outro modo, a ênfase na humanidade de Cristo não supõe de
modo nenhum um enfraquecimento de sua divindade. Ela contribui, ao contrá-
rio, para exaltar uma natureza divina tida como intacta, a despeito de todas as
humilhações e de todas as contingências humanas às quais ela se expõe. Nesse
processo, há apenas um ganhador: a própria dinâmica da Encarnação, que
manifesta sua potência com mais estrondo do que nunca, uma vez que o peso
acentuado da humanidade chega a se acoplar sem ruptura com toda a potência
divina. Pode-se ver nisso uma imagem ideal do triunfo da Igreja, uma Igreja ins-
crita no mundo e, no entanto, sacralizada, uma Igreja encarnada e, no entanto,
essencialmente unida à divindade. Enquanto a Alta Idade Média só via a salva-
ção na fuga e no desprezo ao mundo, a instituição eclesial, chegando ao todo de
seu poderio, manifesta a sua capacidade em assumir o mundo material, a encar-

A CIVILIZ,\ÇÃO FEUDAL 427


42. Cristo morto sofrendo na cruz, c. 1320 (catedral de Perpignan).
Este grande crucifixo em madeira mostra o Salvador submetido a uma morte dolorosa, para sua maior glória.
Sua cabeça tomba para a frente, traços tensos c olhos fechados. Seus pés estão um sobre o outro. fixados por
um só cravo, e seu corpo dobra sob o efeito de seu próprio peso, braços na diagonal c joelhos dobrados. As cos-
telas estão aparentes. assim como as veias de seus membros descarnados. Os sofrimentos de Cristo sublinham
a intensidade de seu sacrifício redentor c, então. o poderio de uma divindade capaz de assumir tal humilhação.
Eles são um apelo imperativo a amá-lo e a submeter-se a um Deus que se entregou voluntariamente aos ultra-
jes de um destino humano
regar-se dele para transformá-lo em uma realidade espiritual e o levar em dire-
ção ao seu destino celeste.
Nos séculos XIV e XV, a dinâmica da Encarnação amplia-se ainda mais, ao
mesmo tempo que é carregada de uma forte conotação de sofrimento. A insis-
tência sobre Cristo morto acentua-se a ponto de buscar posturas cada vez mais
contorcionistas, mostrando a cabeça do crucificado tombada para a frente e
seus traços deformados pela dor, abrindo em carne viva chagas das quais jorra
sangue, cada vez mais abundante (figura 42, na p. 428). Através de tantos sig-
nos acumulados de uma morte atormentada, é a intensidade do sacrifício con-
sentido por Deus que se procura sublinhar, e até mesmo dramatizar. Essa evo-
lução da figura de Cristo aprofunda ainda mais a lógica da Encarnação e
aparece, então, em conformidade com as necessidades da instituição eclesial na
medida em que esses temas fazem eco ao desenvolvimento experimentado
então pela devoção eucarística (O sangue do crucificado é também aquele que
jorra da hóstia profanada pelos judeus, prova da presença real exaltada pela festa
do Corpus Christi, tornada tão importante). Entretanto, pode-se perguntar se
essa evolução, em um período marcado pela onipresença da morte maciça, não
se distancia do triunfo mais equilibrado dos séculos XII e XIII. A Igreja ainda está,
é verdade, em posição dominante, mas parece que o controle do jogo dar-se-á,
doravante, ao preço de uma escalada suplicante, da inflação macabra do sangue
vertido e da enumeração obsessiva dos sofrimentos suportados.

Uma instituição encarnada, fundada sobre valores espirituais

A representação de Cristo ecoa, então, a posição da Igreja na sociedade. Quer


se trate de Cristo ou da Igreja, a questão central consiste em definir as justas
modalidades da articulação entre o humano e o divino, entre o espiritual e o cor-
poral, no seio de um sistema que, seja qual for o equilíbrio adotado, é fundado
necessariamente sobre a conjunção desses elementos. O problema posto·por
essa articulação tem duplo sentido: como justificar a inscrição material de uma
instituição cuja vocação é fundamentalmente espiritual? E, inversamente, como
construir o espiritual a partir do carnal, quer dizer, como espiritualizar o corpo-
ral? É somente na medida em que ela faz valer sua capacidade de espiritualizar
o corporal e de promover a ascensão do humano até o divino que a Igreja, ins-
tituição encarnada fundada em valores espirituais, pode ser legítima. Os sacra-
mentos, que estão no coração da missão da Igreja, não têm outro objetivo senão
o de assegurar essa espiritualização das realidades corporais. Assim, o batismo
sobrepõe um renascimento espiritual ao nascimento carnal; ele oferece ao

A CIVILIZA~:Ao l'EUflAL 429


homem de carne, nascido na mancha do pecado, a graça divina e a promessa do
paraíso celeste. Do mesmo modo, a eucaristia, concebida doravante como corpo
e sangue verdadeiros de Cristo, nutre a alma dos fiéis e funda ritualmente a sua
participação no corpo espiritual formado pela cristandade. Enfim, a evolução do
casamento, que se torna, justamente no século XII, um sacramento, mostra que
não se trata absolutamente de abandonar os laicos à carne e ao pecado: o casa-
mento, sacramentado e, pouco a pouco, tornado clerical, define o quadro legí-
timo da atividade reprodutora e a integra no seio de uma aliança de tipo espiri-
tual, concebida da mesma forma que a união de Cristo com a Igreja. Longe de
abandonar o casamento ao desprezo e à desvalorização suscitados pelas coisas
carnais, o processo que conduz à sua reabilitação como sacramento pretende
assumir positivamente a reprodução sexual, espiritualizando a aliança carnal.
Insistir-se-á, ainda, sobre um traço onipresente do pensamento clerical,
que consiste em fazer do material a imagem do espiritual. São incontáveis os
textos que se esforçam para associar esses dois planos, para pô-los em corres-
pondência. É assim, por exemplo, quando o deslocamento físico suposto por
uma peregrinação é concebido, ao mesmo tempo, como um percurso moral e es-
piritual em direção a Deus (do mesmo modo, todos os gestos e rituais que a
Igreja promove valem como sinais visíveis de realidades invisíveis e espirituais).
Tal associação de planos diferentes, suscetíveis de ser pensados um pelo outro,
poderia aparecer como uma degradante contaminação do espírito pela matéria.
Mas, para os clérigos, a dinâmica funciona· em sentido contrário: trata-se de
decodificar o significado simbólico das realidades terrestres, de atingir o senti-
do alegórico dos textos bíblicos por trás de seu sentido literal, enfim, de elevar-
se do material ao espiritual. As imagens de culto que se multiplicam então no
Ocidente não se justificam de outro modo: um pedaço de madeira ou de pedra
não tem, em si mesmo, nenhuma virtude, mas a imagem é legítima porque sua
contemplação permite à alma elevar-se até as pessoas santas ou divinas que ela
representa (segunda parte, capítulo VI). Esse fenômeno de elevação indica que
a associação constante do espiritual e do material produzida pelo pensamento
clerical só é pertinente se a dinâmica é corretamente orientada.
É inútil multiplicar os exemplos: quer se trate do estatuto do clero, do casa-
mento ou das imagens, o esquema é o mesmo, sempre fundado sobre uma
dupla relação de distinção hierárquica e de articulação dinâmica entre o mate-
rial e o espiritual. Este é um ponto fundamental da lógica das representações no
seio da Igreja medieval. As noções opostas, tais como o carnal e o espiritual, o
divino e o humano (e, sem dúvida, também o sagrado e o profano), não devem
ser nem confundidas, nem separadas (no sentido de serem mantidas sem rela-
ção). Elas devem ser estritamente distinguidas (quanto às suas respectivas natu-

430 ]érôme Baschet


rezas), hierarquizadas (a fim de que o mais digno comande o menos digno) e
articuladas (quer dizer, postas em relação no seio de uma entidade unificada).
Trata-se de produzir, em todas as ocasiões, uma articulação hierárquica entre
entidades simultaneamente distintas e reunidas em uma unidade forte (ilustra-
ções XII e XIII, a seguir). Tal é o esquema da pessoa humana já analisado. E tal
é também a imagem da cristandade, fundada sobre uma separação cada vez
mais estrita entre clérigos e laicos, no entanto, englobando esses dois grupos em
um só corpo destinado a um fim único. Nos dois casos, a articulação das enti-
dades contrárias é obrigada a ser estritamente hierárquica e dinâmica. Se a
Encarnação é uma descida do princípio divino, que vem se alojar no humano,
ela é a garantia de uma ascensão que permite a redenção da humanidade e eleva
a matéria dos corpos até as virtudes da alma. Do mesmo modo, a Igreja é uma
encarnação institucional dos valores espirituais, e é por isso que ela é o agente
de uma espiritualização das realidades mundanas e o instrumento indispensável de
um encaminhamento dos homens para ~ sua salvação.

Deus

l<a)--,
I alma \
I \

a) b)

XII. Relação alma/corpo: a) o corpo glorioso, modelo ideal da pessoa


cristã; b) a concepção dualista da pessoa.

A CIVILIZAÇÃO FEUDAl. 43J


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XIII. Homologias entre o corpo glorioso, a Encarnação de Cristo e a Igreja.


A MÁQUINA DE ESPIRITUALIZAR,
ENTRE DESVIOS E AFIRMAÇÕES

Perigos nos extremos: separação dualista e misturas impróprias

Essa articulação hierárquica de entidades distintas, que é notada no coração da


lógica eclesial, não se impõe sem contestações nem resistências. Ela repousa,
com efeito, sobre um equilíbrio instável, que pode ser posto em causa de duas
maneiras opostas: seja porque prevaleceria uma completa separação das entida-
des contrárias, seja porque estas se misturariam excessivamente, arriscando,
então, confundir-se e, sobretudo, provocar uma mácula no princípio mais emi-
nente. Como vimos, muitas heresias lançam o ataque na primeira frente de bata-
lha: o dualismo cátaro recusa toda associação entre o espiritual e o material, pre-
tendendo separá-los absolutamente e terminando, assim, na contestação mais
radical da lógica eclesial. Os cátaros combatem um clero comprometido com o
mundo e desnaturado por sua riqueza material, condenam numerosas práticas,
tais como o casamento e o culto às imagens, negam igualmente a presença real
e a ressurreição dos corpos. Afirmar que o espírito só se salva separadamente e
que toda aliança com a matéria é necessariamente uma corrupção significa sola-
par os fundamentos da instituição eclesial e da sociedade medieval em seu con-
junto. Ao contrário, reforçando sua própria lógica através da luta vitoriosa contra
as heresias, a Igreja apenas aparece mais claramente como uma imensa máqui-
na de espiritualizar o corporal, de conduzir o mundo terrestre na direção de seu
fim celeste. E a homologia dessas estruturas - a Encarnação, o estatuto dos clé-
rigos, os sacramentos, as imagens, a concepção da pessoa - é bem atestada pelo
fato de que elas são conjuntamente questionadas pelas heresias que, entre os
séculos XI e XIII, atacam o domínio da Igreja católica.
Na outra frente de batalha, toda confusão excessiva entre o material e o espi-
ritual arrisca pôr em perigo a posição da Igreja, pois esta repousa sobre a estrita
distinção entre eles. A luta contra tais misturas ocupa longamente os clérigos
durante os séculos XI e XII, quando lhes é necessário defender a "liberdade" da
Igreja e sua pureza, rejeitando a intrusão dos laicos nos negócios do clero, sub-
traindo as igrejas rurais do controle dos senhores feudais, e impondo aos prelados
um celibato que afasta deles as máculas da carne. Entretanto, o anticlericarismo,
manifestado abertamente durante os episódios da reforma gregoriana e sempre
pronto a ressurgir novamente para denunciar a riqueza excessiva dos clérigos, seus
interesses materiais e seus costumes pouco conformes à sua vocação, apenas
eleva a um grau suplementar uma exigência de que a própria Igreja se apropriou.

i\ CIVI!.IZA~!ÃO FEUVAL 433


Quer dizer que o limite entre a articulação legítima do corporal e do espiritual e
sua confusão indigna é tênue, instável e sujeita a contestações. O que a institui-
ção valoriza como equilíbrio positivo é sempre suscetível de ser denunciado -
seja pela crítica anticlerical dos laicos, seja por grupos clericais que fundam seu
prestígio sobre uma exigência mais ascética - como um compromisso degradan-
te com o mundo e com a matéria. A justa articulação entre o corporal e o espiri-
tual é, então, objeto de conflitos incessantemente relançados: isso não tem nada
de surpreendente, pois é a ordem legítima da sociedade que é aí definida.
Uma precisão de vocabulário pode, entretanto, ajudar a esclarecer esse
ponto importante. A oposição de base é aquela entre o corporal (corpus, caro) e
o espiritual (spiritus, anima), mas é somente seu modo de articulação (ou de
separação) que produz valores positivos ou negativos: se o corpo é entregue a si
mesmo, ou se ele domina o espírito, o mal vence e afundamos no carnal (cama-
lis); se o espírito impõe-se ao corpo, o bem triunfa e estamos diante de realida-
des espirituais, eventualmente de corpos espirituais (corpus spirituale). Parte
integrante deste último conjunto, as spiritualia designam tudo o que concerne à
Igreja, aos seus poderes sacramentais, à sua jurisdição, assim como aos seus bens
materiais. Elas opõem-se às temporalia, poderes e bens passíveis de ser assumi-
dos pelos laicos (mesmo se estes podem também ser controlados por uma auto-
ridade eclesiástica), as quais não são necessariamente condenáveis, mas, em
todo caso, incapazes de atingir por si mesmas um fim espiritual e devem, então,
aceitar a preeminência das spiritualia. O ponto determinante é, então, a orienta-
ção dada à articulação entre o espiritual e o corporal: a submissão da alma ao
corpo e a intrusão dos laicos nas spiritualia provocam uma mácula infamante,
enquanto a intervenção dos clérigos nos negócios dos laicos (por exemplo, o casa-
mento) é condutora de purificação e de espiritualização. É por isso que podem
existir bens materiais qualificados de spiritualia e, mais genericamente, corpos
espirituais, a começar pela própria Igreja.
Esta justa articulação do corporal e do espiritual supõe, em primeiro lugar,
sua clara separação. Toda idéia de mistura entre esses pólos opostos cria, então,
um obstáculo. Ora, notam-se os indícios disso em certas concepÇões da alma.
A idéia de que esta, ao invés de ser inteiramente espiritual, seja dotada de certa
corporeidade não é totalmente estranha ao pensamento da Igreja. Ela foi clara-
mente professada por Tertuliano no século 11 e, depois, por certos clérigos dos
séculos v a VII, até ser desmentida pelos teólogos posteriores. Além do argumen-
to de que apenas Deus é totalmente imaterial, a questão já evocada do castigo
infernal é uma boa ocasião para desenvolver tais concepções: com efeito, como
admitir que a alma separada do corpo possa sofrer sob o efeito do fogo do infer-
no sem considerá-la dotada de uma forma de corporeidade? No entanto, como

434 }érôme Baschet


se viu no capítulo precedente, essa dificuldade pôde ser resolvida, suprimindo,
assim, a necessidade de recorrer à idéia de uma corporeidade da alma. São
sobretudo as concepções laicas que tendem a se afastar da doutrina da Igreja,
sem por isso lhe parecer necessariamente inaceitáveis. De fato, elas tendem a
fazer da alma um duplo, dotado de uma realidade parcialmente física. Nesse
universo, por vezes qualificado de folclórico, o que concerne à alma deve encar-
nar-se nos gestos ou nos fatos materialmente constatáveis, como ocorre no
momento em que se retira uma telha do teto da casa de um moribundo para
facilitar a partida de sua alma, ou ainda quando a aparição de um morto que
retoma do além deixa uma marca física sobre o corpo do visionário. De resto,
tais testemunhos não são exclusivos dos laicos e abundam nos relatos transmi-
tidos pelos clérigos. Por exemplo, Jacques de Vitry e Estevão de Bourbon con-
tam como uma gota de suor que emana de uma alma danada, que ressurge do
inferno, perfura a mão do visionário. Mesmo se outros elementos devem ser
levados em conta, vê-se, aqui, como a necessidade de dar força aos rituais e às
crenças incita a conferir certa corporeidade aos seres espirituais.
Os habitantes de Montaillou, que partilham da idéia de uma presença
errante das almas em meio aos vivos, recomendam a estes últimos que não
andem com os braços separados do corpo, a fim de não "jogar no chão" algum
espírito penado (Emmanuel Le Roy Ladurie). Aqui, falta uma dupla separação:
as almas não se encontram em um lugar especial, separado dos vivos, como quer
a doutrina da Igreja; em conseqüência, o espiritual inscreve-se no campo mate-
rial, a tal ponto que as almas são suscetíveis de ser afetadas "fisicamente" pelos
atos dos homens de carne e osso. Este é um exemplo particularmente claro de
mistura, de não separação entre o espiritual e o material. Se tais infrações são
limitadas a crenças ou costumes pontuais, elas podem ser toleradas pela Igreja;
mas o caso de Montaillou, refúgio recuado onde os restos da heresia cátara mis-
turam-se a concepções folclóricas imperfeitamente submetidas ao molde cleri-
cal, mostra que elas ameaçam afetar aspectos importantes da organização social,
no caso, o monopólio da mediação entre os vivos e os mortos pretendido pela
Igreja (com efeito, os aldeãos reconhecem a certos laicos, qualificados de
"armeiros", a capacidade de estabelecer uma comunicação com os defuntos).

Encarnação do espiritual e espiritualização do corporal

No mais, a Igreja deve lutar contra as más interpretações das representações


que ela mesma difunde e, em particular, contra uma tendência a interpretar cor-
poralmente realidades que são, de fato, espirituais. O paradigma dessa percep-

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 435


ção laica é a reação de Francisco de Assis quando, ainda no limiar de sua con-
versão, o Cristo de San Damiano o intima a reconstruir sua igreja. O entusiasta
visionário põe-se, então, a reconstruir a capela, até compreender que a mensa-
gem de Cristo se referia a um sentido eminentemente mais espiritual de
"Igreja": exemplar representação do olhar erudito sobre a ingenuidade laica, que
se limita a uma leitura em primeiro grau, ao passo que a ciência clerical reivin-
dica a arte de decifrar os símbolos e de descobrir, através das aparências sensí-
veis, as significações mais espirituais. É contra uma tendência do mesmo tipo,
aplicada dessa vez à natureza da alma, que se eleva Guiberto de Nogent quan-
do ironiza aqueles que crêem que a alma possui um corpo, sob o pretexto de que
as imagens a representam como uma criancinha nua. Entretanto, é necessário
reconhecer que a Igreja favorece tais desvios ao optar sem reservas pela imagem
somatomórfica da alma, à qual confere todas as aparências de um corpo. É ver-
dade que, propriamente falando, a imagem não diz nada da natureza substan-
cial da alma e pode-se admitir que ela mostra, conforme a definição agostinia-
na, uma realidade espiritual dotada de uma similitude corporal. Resta o fato de
que a imagem se presta facilmente a uma leitura que tende a corporificar o espi-
ritual. A arte dos séculos XIV c XV acentua ainda a dificuldade ao figurar muitas
vezes um verdadeiro retrato da alma, duplo perfeitamente individualizado do
corpo que ela habita. No caso de Judas, o retrato não é nada lisonjeiro: o nariz
aquilino indica incontestavelmente uma alma judaica e a exibição de· seu sexo
sublinha a baixeza carnal do traidor (figura 43, na p. 437).
Mesmo a alma de um santo tão glorioso como Tomás de Aquino pode apre-
sentar, na imagem, uma surpreendente corporeidade, a tal ponto que, longe de
se levantar por si mesma como um corpo aéreo, ela precisa do apoio bastante
físico de são Pedro e de são Paulo para se subtrair ao peso e chegar ao paraíso
celeste (figura 44, na p. 438). Por que, então, a imagem insiste tanto sobre a
corporeidade aparente da alma - em oposição aos esforços teológicos daquele
que é nomeado o "doutor angélico''? Não é impossível explicá-lo no quadro da
lógica eclesial, que se esforça para estabelecer um jogo de correspondências
entre o espiritual e o corporal, e até se revela perfeitamente capaz de exprimir o
espiritual através do material, desde que esse rebaixamento seja finalmente jus-
tificado por uma dinâmica de ascensão. Mas é preciso também notar que essa
representação aparece em uma região da Itália central dominada, então, pelos
condes de Aquino, descendentes dos pais de Tomás, que se apoderam de seu
culto como de um negócio de família. Aqui, Tomás de Aquino é menos um sábio
da Igreja universal do que um ser próximo, familiar, enraizado em sua terra
natal. Não se pode, então, excluir que o peso dos interesses de sua parentela e
de uma apropriação laica do santo tenha contribuído para "corporificar" a alma

436 }érôme Baschet


43. A morte ignominiosa de Judas, fim do século xv (afresco de Giovanni Canavesio, Notre-Dame des
Fontaines, La Brigue).
O Novo Testamento relata que Judas se enforca após a traição e que seu ventre explode. Mas é a imagem que
julga sua alma indigna de sair pela boca (em um contexto completamente diferente, o poeta Rutcbeuf, no sécu-
lo XIII, em sua sátira das classes populares, diz que a alma de um vilão parte não pela boca, mas pelo ânus, como
um peido fedido que faz até mesmo o demônio fugir). Aqui, a alma de Judas é arrancada de suas vísceras san-
guinolentas por um diabo que tem, como é comum na iconografia do século XV, uma segunda face no baixo
ventre. O traidor Judas oferece a ocasião de um ataque contra os judeus: ele é representado com o longo nariz
aquilino que lhes é atribuído c mesmo sua alma reproduz seus traços nefastos. O fato de que uma alma seja
sexuada é excepcional e está, com toda a certeza, associado ao caráter maléfico do personagem
44. A alma de são Tomás de Aquino elevada ao céu por Pedro e Paulo, c. 1420 (afrescos de Santa Maria
del Piano, Loreto Aprutino, Abruzzo).
Em um amplo ciclo consagrado a são Tomás (morto em 1274) e encomendado por seu parente, o conde Fran-
cisco 11 de Aquino, a ascensão da alma ocorre entre a celebração dos funerais e a descida à tumba. Ela acumu-
la as singularidades iconográficas. Com efeito, a alma é dotada de uma corporcidade notavelmente saliente c
que, em vez de elevar-se ela mesma, como um corpo aéreo, é objeto de uma surpreendente manipulação físi-
ca: é preciso que ela seja ajudada por são Pedro e são Paulo, que lhe. fazem uma escadinha c a empurram pelas
nádegas, para que ela possa superar seu peso e seja alçada até o abraço de Cristo, que sai de sua mandorla celes-
te para acolhê-la

de Tomás. A tendência a encarnar o espiritual aparece, então, ao mesmo tempo


como uma das componentes da lógica do sistema eclesial e como o resultado de
uma conciliação com os interesses e as representações dos laicos.
De uma maneira mais geral, a posição da aristocracia laica introduz um
notável fator de tensão. É verdade que, uma vez passado o período de conflitos
violentos, envolvendo muito particularmente as regras de casamento, a ideologia
clerical penetra e informa, em grande parte, o grupo nobiliário (primeira parte,
capítulo 1!). A afirmação do fin'amors é um exemplo disso, sobre o qual já se evo-
cou a análise proposta por Anita Guerreau-Jalabert. Reivindicação de uma arte
refinada do amor, ela é um meio de se distinguir dos plebeus, condenados a amar
vulgarmente. Mas, promovendo a sublimação do desejo e a suspensão (ao menos,

438 }érôme Baschet


temporária) da consumação sexual, o fin'amors reproduz, à sua maneira, os valo-
res clericais. Com efeito, é por seu caráter mais elevado e mái"s espiritual que
pode constituir um meio de distinção e de legitimação da aristocracia. Reencon-
tramos, então, em funcionamento, na literatura e na cultura cortês, a lógica de
articulação do espiritual e do corporal c, sobretudo, o princípio de espiritualiza-
ção das realidades corporais, próprias à ideologia clerical. Mas se o fin'amors é uma
espiritualização do amor e se o ciclo do Graal confere um ideal espiritual à cava-
laria, nem por isso toda a tensão com o clero desaparece. Com efeito, a aristo-
cracia retoma a regra de superioridade do espiritual sobre o carnal, mas a desvia
em seu benefício e se afirma como sendo ela própria uma encarnação de valores
espirituais, independentemente da mediação dos clérigos.
Observações similares podem ser feitas a propósito das fadas, que apare-
cem na literatura cortês (Anita Guerreau-Jalabert). Associadas às florestas e aos
espaços exteriores, elas são caracterizadas por sua extraordinária beleza e seus
poderes mágicos, que as subtraem das constrições espaciotemporais. Elas são,
ao mesmo tempo, boas cristãs, que assistem à missa, e perfeitas damas corte-
ses, amigas e parentes dos prestimosos cavaleiros. Trata-se, então, de persona-
gens eminentemente positivas, que exprimem o ideal da aristocracia laica, ao
mesmo tempo que empregam os preceitos eclesiais. Aqui também reencontra-
mos a lógica da articulação do espiritual (principalmente as virtudes e os pode-
res sobrenaturais) e do corporal (principalmente a beleza física). No geral, a cul-
tura cortês não nega a superioridade dos valores espirituais proclamados pela
Igreja e inscreve-se, então, no quadro das estruturas fundamentais da socieda-
de cristã. Mas ela contesta o poder eclesiástico, reformulando estes mesmos
valores em seu benefício e pondo em cena um espiritual que não é encarnado
pelos clérigos, mas pelos próprios aristocratas ou pelas figuras imaginárias que
a representam. Através da espiritualização de seus objetivos, e da constituição
de uma forma própria de sobrenatural, a aristocracia promove a legitimidade de
sua dominação e reivindica uma autonomia em relação ao clero.
No geral, a instituição eclesial afirma-se em meio a fortes tensões que a
expõem às críticas de duas vertentes. De um lado, ela afronta-se periodicamen-
te às correntes mais espirituais do que ela mesma chega a ser. Ela deve, então,
combater aqueles que empurra para a heresia e reconduzir a uma maior mode-
ração aqueles que pode manter em seu seio. Mas, constantemente, deve des-
confiar dos que reivindicam um estado espiritual perfeitamente puro (e que
logo, com John Wyclif, pretendem fazer prevalecer a Igreja dos predestinados
sobre a Igreja institucionalizada, encarnação do Anticristo ), para não mencionar
os que pretendem falar em nome do Espírito Santo (tal como os discípulos radi-
cais de Joaquim de Fiare). Se o devoto é inspirado diretamente pelo Espírito

A CIVILIZAÇÃO FEUDAl. 439


Santo, e se ele alcança sozinho o estado espiritual, para que serve, então, a
Igreja? A instituição baseia-se em valores espirituais, mas excesso de espíiito
ameaça a instituição. Digamos mais uma vez: esta se pensa como um corpo espi-
ritual, quer dizer, também como uma encarnação de valores espirituais. O risco
inverso é o de uma atenuação ou de um desvio da dualidade espiritual/corporal.
Ele traz, em germe, um questionamento da posição separada pretendida pelos
clérigos, assim como de seu monopólio da mediação entre os homens e Deus.
Trata-se, então, com dois ataques inversos, mas que se juntam em sua contes-
tação comum da instituição eclesial. Não se poderia demonstrar melhor que a
Igreja-instituição funda-se sobre uma delicada conjunção do corporal e do espi-
ritual e, mais ainda, sobre uma dupla dinâmica, corretamente ordenada, da
encarnação do espiritual e da espiritualização do corporal.

Uma eficácia crescente, mas cada vez mais forçada

A evolução das modalidades de articulação entre o espiritual e o corporal deve,


agora, ser reconstituída com maior clareza. Com efeito, o modelo antropossocial
fundado na articulação hierarquizada de entidades separadas é dotado de uma
grande flexibilidade e de uma notável capacidade dinâmica. De fato, convém
precisar que, vinculando as concepções medievais da pessoa ao princípio de uma
dualidade não dualista, não se procura absolutamente fechá-los em uma doutri-
na única: esta formulação abre, ao contrário, uma ampla gama de possibilidades
e toda a história da antropologia medieval é a dos deslocamentos operados no
interior desse vasto campo. Esse processo traÇa seu caminho através de vários
desvios e contradições. Nos primeiros séculos do cristianismo, as ênfases dua-
listas mais rudes, bastante apoiadas em são Paulo, são conduzidas por uma lógi-
ca de ruptura com a sociedade romana. Depois, junto com outros, Agostinho
promove uma transformação doutrinária radical que impõe a mudança de esta-
tuto do cristianismo, de uma mensagem de ruptura para uma estreita associa-
ção com o Império. Essa mutação é realizada em um duplo movimento. A nova
teologia do pecado reduz o alcance do livre-arbítrio e rebaixa a natureza huma-
na, fazendo da instituição eclesial a mediação indispensável para se beneficiar
da graça divina e obter a salvação. Ao mesmo tempo, à rejeição total da ordem
carnal sucede não sua reabilitação, é verdade, mas, ao menos, sua integração na
ordem legítima do mundo. A interpretação carnal da ressurreição dos corpos,
imposta por Agostinho, é um indício notável disso, assim como sua leitura da vida
no Éden, que admite o exercício de uma sexualidade paradisíaca antes da Queda
e contribui, assim, para dar um esboço de legitimidade ao casamento humano.

440 }érôme Baschet


Esse contorno mais corporal, assumido pela teologia ocidental, responde às neces-
sidades de uma Igreja que se encarna e se engaja na organizaçã~ da sociedade ter-
restre. Com efeito, legitimar a existência da Igreja como instituição supõe fundar
teologicamente o lugar dos corpos na obra divina. Toda a força do pensamento de
Agostinho é a de conseguir oferecer um espaço de legitimidade aos corpos (con-
trariamente aos maniqueístas), acentuando paralelamente o peso do pecado e
tornando mais árduo o esforço a ser feito contra as ameaças da carne (contraria-
mente aos pelagianos). Sustentar os termos dessa contradição não deixava de
apresentar dificuldades, sobretudo porque deixava Agostinho sob o fogo cruzado
de adversários com posições opostas (os maniqueístas acusam-no de pelagianis-
mo e vice-versa). Ao menos, é com Agostinho que se engata, com tanto estrondo
quanto dificuldade, a lógica que permite salvar o corporal espiritualizando-o.
Mesmo se esta lógica não é renegada, observa-se, durante a Alta Idade
Média e, parcialmente, ainda no século XII, uma presença maciça de concep-
ções ascéticas e monásticas que valorizam a fuga do mundo. As ênfases dualis-
tas de inspiração neoplatônica e paulina podem pesar imensamente, como em
Gregório, o Grande, mesmo se elas são sempre bloqueadas por um movimento
antidualista, cujo vigor parece tender a se reforçar. Se os teólogos carolíngios
fazem frutificar ainda mais a herança agostiniana e preparam muitos outros
desenvolvimentos ulteriores, as transformações dos séculos XI a XIII permitem
dar todo o seu relevo à dinâmica da articulação do espiritual e do corporal. A re-
formulação eclesial esforça-se por uma franca distinção entre o espiritual e o
carnal, com a preocupaÇão de liberar o primeiro do controle invasivo dos laicos.
Mas ela se empenha, sobretudo, em articulá-los hierarquicamente, de onde
uma superação do dualismo, em geral obtido ao preço de um corpo-a-corpo tex-
tual ou figurativo com os enunciados paulinos. Já iniciado anteriormente, esse
processo é confirmado nos séculos XII e XIII, alcançando sua expressão final com
Tomás de Aquino. Se a Igreja desse período trava ásperos combates para sepa-
rar o espiritual e o carnal, desde que esses dois princípios estão claramente dis-
tintos e corretamente hierarquizados, torna-se possível aceitar e valorizar o prin-
cípio corporal, de onde uma atenção nova ao Cristo encarnado e ao mundo
criado. No início do século XIII, o Cântico do irmão Sol e de todas as criaturas
exalta a beleza dos astros e dos quatro elementos: "Louvado sejas tu, Senhor, com
todas as criaturas, especialmente o senhor irmão Sol através de quem tu nos dás o
dia, a luz; ele é belo, radiante, de um grande esplendor, e de ti, o Todo-Poderoso,
ele nos oferece o símbolo". Como se vê, a louvação da Criação permanece indis-
sociável daquela do Criador, e a natureza só é valorizada na medida em que ela
permite chegar a Deus (lembramos também que a singular alegria de Francisco
é inseparável da escolha da penitência mais extrema).

A C I V I L I Z A Ç Ã O F E U I),\ L 44]
Tal dinâmica permite assumir até o amor terrestre. Heloísa e Abelardo já o
haviam tentado, após terem conhecido deploráveis desventuras. Por volta de
1130, a amante, agora abadessa, escreve a seu amado de sempre, tornado
monge depois de sua castração, que ele é "seu único depois de Cristo, seu único
em Cristo". O amor divino deve primar, mas, uma vez feito esse reconhecimen-
to, o amor de um homem pode ser assumido - não sem dificuldades - até
confundir-se com aquele de Deus. Mais, de um século e meio depois, Dante dá
uma outra amplitude a essa espiritualização do amor. Na Divina comédia, Beatriz,
a mulher de carne e osso que ele amou, torna-se "uma figura ou uma encarna-
ção da revelação", que o guia no paraíso, em direção à visão de Deus (Eric
Auerbach). De resto, é notável que Virgílio lhe sirva no início de guia, através
do inferno e do purgatório. Poeta admirado, ele é a realização da "plenitude das
perfeições deste mundo", que conhecem, através dele, uma notável valorização.
Entretanto, esta esbarra em um limite: Virgílio, que continua pagão apesar de
suas premonições, deve abandonar Dante no limiar do reino celeste e cede,
então, o lugar à beleza de Beatriz.
Todos esses elementos não são o sinal de uma suposta laicização ou de uma
autonomização da cultura profana, fazendo recuar o controle dos valores cris-
tãos. Eles marcam, ao contrário, uma etapa suplementar na dinâmica de articula-
ção entre o espiritual e o corporal, capaz de assumir ainda mais do que antes as
realidades do mundo material. Assim, enquanto a igreja românica se apresenta
como a imagem de uma Jerusalém celeste fortificada, protegendo-se do munda-
no, o gótico tende, pela dinâmica ascendente das abóbadas e pela onipresença
da luz a uma espiritualização da arquitetura, e ao mesmo tempo testemunha um
maior reconhecimento do mundo e das aparências sensíveis dos corpos e da
natureza. Se se quer considerar o modelo antropossocial analisado anteriormen-
te (ilustração Xlll, na p. 432) uma espécie de "elevador simbólico", pode-se
sugerir que dá mostras de sua eficácia na medida em que é capaz de levantar
as cargas mais pesadas. É assim que ele permite uma melhor consideração do
mundo terrestre, suscetível de satisfazer os laicos e que, por vezes, responde à
sua pressão, sem por isso questionar a preeminência dos valores espirituais,
afirmada pelos clérigos. Esta lógica, testemunhada notadamente pela concep-
ção dos corpos gloriosos, demonstra que uma realidade material pode estar ao
lado do espiritual: é o caso, em primeiro lugar, da própria Igreja, cujas posses-
sões são spiritualia.
A oposição entre o carnal e o espiritual é, então, dissociada da dualidade do
corpo e da alma, pois ela é fundamentalmente relaciona] e dinâmica: é espiri-
tual toda armação no seio da qual o princípio espiritual exerce um governo firme
sobre os corpos; é carnal toda articulação na qual esta dominação do espiritual

442 }érôme Ba.•chet


não é respeitada. É assim com toda ordem espiritual, como com a Encarnação,
que é sua matriz fundamental: a materialidade dos corpos não poderia ser nega-
da, mas deve ser engajada em um processo de espiritualização e de elevação que
a torna positiva. Tal é a justificativa da Igreja, instituição ostensivamente encar-
nada, que só poderia, entretanto, reivindicar uma vocação espiritual. É assim
que a Igreja pode ser definida como uma vasta máquina de espiritualizar o cor-
poral: assumindo ainda mais o mundano e as realidades terrestres, graças ao fato
de estender sobre eles o império do princípio espiritual, ela demonstra que sua
mecânica redentora tem mais eficácia do que nunca.
Como já foi dito, isso não acontece sem contestações, notadamente da
parte de tendências intransigentes presentes no seio da Igreja ou rejeitadas
como heréticas. E, quanto mais se acentua a dinâmica de integração do corpo-
ral, mais se amplia o risco de crítica. Assim, a Igreja dos séculos XIV a XVI refor-
ça seu controle sobre a sociedade, mas ao custo de tensões crescentes, que
aumentam sua fragilidade e podem conduzir a rupturas violentas (como é a
Reforma protestante). Depois, para além do período tratado aqui, parece que as
disjunções entre o carnal e o espiritual sobrepõem-se pouco a pouco, até o
momento em que o dualismo encontra, com Descartes, uma formulação radi-
cal, que pesou fortemente sobre a con~ciência ocidental. Assim, é, sem dúvida,
durante a Idade Média Central, época da Igreja triunfante, que terá ocorrido o
período menos dualista da história do cristianismo, aquele que esteve em
melhor medida para experimentar a unidade da pessoa (que as concepções
modernas nos restituem de uma outra maneira) - e isso porque esse modelo
era, então, o mais pertinente para pensar o corpo social e eclesial, e, ao mesmo
tempo, suas marcadas hierarquias e sua utopia comunitária.

***
CONCLUSÃO: AS AMBIVALÊNCIAS
DA PESSOA CRISTÃ

Mostrar que as representações medievais da pessoa são menos simples e menos


dualistas do que em geral se crê não ameniza absolutamente sua diferença em
l relação às concepções não cristãs. Se, nas religiões politeístas em geral, e tam-
\ bém nas concepções tradicionais dos maias tzeltals, "a representação da pessoa
dá testemunho de uma relação recíproca com o mundo e de um destino parti-
lhado com outros seres" (Pedro Pitarch), essa dupla inter-relação com o meio e
com o grupo é eclipsada, no cristianismo, em proveito de um laço privilegiado
entre a alma e Deus. Não é, então, surpreendente que a concepção cristã da

A CJVILIZAÇ,\0 l·EUDAL 443


pessoa, unificada e individualizada através de sua relação com Deus, seja um
dos aspectos que os clérigos tiveram maior dificuldade de impor, notadamente
quando da evangelização do Novo Mundo. Essa relação entre a pessoa e o Deus
cristão é tida, geralmente, por uma das vias pelas quais avança o processo de
individualização cristã, desde as Confissões de Agostinho, que se descobre como
sujeito no sombrio espelho que Deus apresenta à sua alma, até a generalização
do cuidado de si, que a Igreja impõe a partir do século XIII através da obrigação
da confissão anual. Entretanto, se a autobiografia e o exame de consciência
desenvolvem diversas formas de experiência de si, a ponto de fazer do "eu" o
sujeito e o objeto de uma exploração quase infinita, sem dúvida ainda não che-
gou o tempo de proclamar o nascimento do "indivíduo". Com efeito, o cristão
não poderia se pensa~ como princípio soberano desse conhecimento reflexivo e
não pode se conhecer, através dele, a não ser como homem feito à imagem de
Deus e como pecador que corrompe essa imagem na dessemelhança. A própria
constituição da pessoa humana leva a marca desse selo divino, que exalta ainda
melhor cada "eu" que é conduzido para Ele: se o corpo é a obra dos pais, a alma
é a obra de Deus; e se a teoria da infusão individualiza o momento em que cada
alma é criada, é para melhor lembrar, nesse instante crucial, o papel determi-
nante da Trindade. Aposto em cada ser, o selo divino reproduz indefinidamente
o idêntico, de modo que a relação individualizante entre a pessoa e Deus é pro-
fundamente ambígua: ela acentua o caráter impessoal de todas as almas, unidas
por sua semelhança comum em Deus, e parece confortar a afirmação da comu-
nidade eclesial. Além disso, o laço entre a alma e Deus é largamente mediado
pelos clérigos, proclamados "médicos da alma" e especialistas obrigatórios dessa
relação.
De fato, seria muito difícil, na Idade Média, conceber a pessoa independen-
temente dos grupos e das comunidades no seio dos quais ela vive (parentesco car-
nal e espiritual, laços vassálicos, clãs e alianças, vizinhança, comunidade aldeã ou
urbana, confraria, corporação e ofício, paróquia, ordem religiosa, cristandade etc.).
O banimento equivale a uma morte social, o que confirma que o ser não poderia
existir- salvo exceção- fora da rede de relações tecida em torno dele. Como diz
ainda Nícolau Oresme, tradutor de Aristóteles no século XIV, "um homem sozinho
não poderia viver sem a ajuda de uma multidão bastante grande". A afirmação
do individual, do qual a arte do retrato e o nominalismo radical de Guilherme de
Occam parecem duas manifestações inovadoras no início do século XIV (segunda
parte, capítulo VI), é, então, estritamente circunscrita pela manutenção durável das
estruturas comunitárias e corporativas e pela afirmação de um laço indispensável
entre o indivíduo e seu ambiente social. Não é interdito, então, insistir novamente
sobre a equivalência entre a pessoa cristã e a Igreja, não somente porque a duali-

444 }érôme Baschet


dade entre o corpo e a alma remete à separação entre clérigos e laicos, mas sobre-
tudo porque a dinâmica da articulação que conduz à realização do c~rpo glorioso
dos eleitos é a que anima toda a organização eclesial da sociedade.
Para terminar, é preciso sublinhar o alcance da redenção do corpo glorioso
e da assunção divina do homem. Essa elevação da criatura até o seu Criador, do
corpo de argila até a virtude da alma, combina um duplo aspecto contraditório:
ela eleva o mais baixo até o mais alto e parece transcender as dualidades hierár-
quicas, mas sob a condição expressa de que o mais baixo dê mostra de obediên-
cia e de submissão. A perspectiva dessa assunção pode parecer ainda mais sur-
preendente devido ao fato de que a relação Deus/homem se formula, na Idade
Média, como uma relação entre Dominus e homo, ou seja, os termos da relação
de dominação entre o senhor feudal e seus dependentes. Convém, então, não
esquecer que a junção dos extremos deve realizar-se na utopia do outro mundo,
o que garante o respeito às preeminências terrestres, ao menos enquanto o mile-
narismo não precipita os tempos. Fora de tal contestação, a relação de inversão
que a doutrina estabelece entre o aqui embaixo e o além envolve as hierarquias
sociais no manto celeste da comunidade paradisíaca, e inscreve a dominação e
o controle dos corpos terrestres na espera de um corpo celeste glorificado.

A CIVILIZA<,:tiO FEUDAL 445


v

o PARENTESCO: REPRODUÇÃO FÍSICA


E SIMBÓLICA DA CRISTANDADE

NA CRISTANDADE MEDIEVAL, as relações entre os homens (sejam ou não paren-


tes), mas também as relações entre os homens e as figuras divinas, ou entre as
próprias figuras sobrenaturais, são, em grande parte, definidas como laços de
parentesco. Além das regras que, como em todas as sociedades, definem a filia-
ção e regem as práticas de aliança, constata-se a onipresença do parentesco
espiritual e divino. Mesmo se a rede dessas relações de parentesco não permi-
te dar conta da totalidade dos laços existentes no seio da sociedade medieval,
ela tem um papel considerável· na definição das relações sociais, assim como na
representação das relações entre os homens e as forças que regem o universo.
O fundamento desse sistema de representações é a instituição evangélica
de uma paternidade centrada em Deus. No Evangelho, é Cristo que estabelece a
existência de um Pai nos céus, do qual ele próprio é o filho e que, através dele, se
torna pai daqueles que o seguem. Tal é o sentido do Pater Noster (Mat 6, 9-13),
que Jesus ensina a seus discípulos e que lembra, no coração de toda prece cris-
tã, esse laço filial entre o homem e Deus. A afirmação de uma paternidade
celeste tem, no próprio Evangelho, dois corolários explícitos. Em primeiro lugar,
nele, o parentesco carnal encontra-se desvalorizado. O ato de fé é posto em con-
corrência com os laços do sangue e deve sobrepor-se a estes: "Aquele que vem a
mim, se ele não odeia seu pai e sua mãe, não pode ser meu discípulo" (Luc 14, 26).
O próprio Jesus dá o exemplo, recusando reconhecer sua mãe e seus parentes
que vêm a seu encontro: "Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?", diz
ele. Depois, designando seus discípulos: "Eis minha mãe e meus irmãos, pois,
qualquer um que faça a vontade de meu Pai, que está nos céus, este é, para
mim, um irmão, uma irmã e uma mãe" (Mat 12, 46-50). O segundo corolário é
expresso aqui, como em muitas outras passagens: sendo todos filhos de Deus,
os discípulos de Cristo são unidos entre eles por um laço de fraternidade. É isso

446 jérâme Baschet


que se chamará de irmandade generalizada de todos os cristãos. Esses dois pon-
tos, que permanecem fundamentais ao longo de toda a Idade Média, são expres-
sos nos Evangelhos com uma violência tão radical que a Igreja medieval não
poderá assumi-los totalmente, no mínimo pelo fato de que a rejeição de Maria
por seu filho não mais é conveniente em uma sociedade em que o culto à
Virgem adquiriu lugar central. Um revoltado como Pasolini será, finalmente,
mais adequado para reencontrar, nas imagens ardentes de seu Evangelho segun-
do Mateus, toda a carga subversiva desse episódio.
Como a época dos primeiros Padres da Igreja é aquela das conversões do
paganismo ao cristianismo, ela continua a opor radicalmente o parentesco
celeste e o parentesco terrestre. Tertuliano afirma que os cristãos são os mais
livres dos homens: somente eles não são adstritos à determinação da filiação
carnal e podem escolher seu pai (entendamos que eles podem escolher o Pai
divino contra o pai humano). É ainda assim nas Confissões de Agostinho, que
indica, no contexto de um batismo desejado, mas diferenciado: "Assim, então,
eu acreditava, minha mãe acreditava e toda a casa, com a única exceção de
meu pai[ ... ]. Minha mãe desejava fervorosamente que vós fôsseis, mais do que
ele, um pai para mim, meu Deus". Trata-se, então, de passar da paternidade car-
nal para a paternidade divina, por uma verdadeira substituição do pai terrestre
pelo Pai celeste. A partir de então, tal é o modelo de toda conversão (do paga-
nismo ao cristianismo e, a seguir, no seio do cristianismo): desviar-se do pai car-
nal para ir na direção ao Pai divino. Até Francisco de Assis, e mesmo após, toda
mudança de estado religioso é pensada como uma conversão de parentesco
(figura 19, na p. 206).
Embora a configuração descrita possa parecer consubstanciai ao cristianis-
mo e a seus Evangelhos, ela não forma, em absoluto, um sistema estático. Com
base nos fundamentos espirituais elabora-se, na Idade Média, uma construção
complexa e ramificada, que permite o afloramento de uma profusão de práticas,
de discursos e de representações, por vezes até abundantes. A importância e a
complexidade crescentes das representações de parentesco ao longo da Idade
Média sinalizam questões sociais tornadas particularmente intensas. Para dar
conta disso, os trabalhos de Anita Guerreau-Jalabert, que sublinha o papel
estruturante da oposição entre parentesco carnal e parentesco espiritual, cons-
tituem uma contribuição maior. Por "parentesco carnal" serão designados os
laços de consangüinidade e de aliança matrimonial, classicamente estudados
pela antropologia. Qualificá-los de "carnal" não quer absolutamente dar a enten-
der que esses laços concernem a dados puramente biológicos, pois o parentes-
co é sempre um fato socialmente elaborado. O parentesco carnal diz respeito a
laços definidos a um só tempo por normas instituídas e pela existência postula-

A C I V I L I Z.~ Ç Â O F EU I) AL 44 7
da de um laço carnal; trata-se de laços que derivam de um exercício socialmen-
te regulamentado da reprodução sexuada. Chamá-lo-ei carnal apenas para dar
conta das concepções medievais que o opõem a uma outra forma de parentes-
co, dito espiritual. Por "parentesco espiritual" serão designadas as relações entre
indivíduos, ou entre homens e figuras sobrenaturais, que são pensadas a partir
do modelo do parentesco (aliança, filiação, irmandade), embora reivindiquem
expressamente a ausência de todo laço carnal entre as pessoas concernidas.
Essa forma de parentesco é chamada "espiritual" porque transmite a vida, não
do corpo, mas da alma, e dá direito a uma herança, não material, mas espiritual
(a beatitude celeste). Enfim, acrescentar-se-á um terceiro grau, distinto embo-
ra próximo do parentesco espiritual: assim como este, o "parentesco divino"
exclui toda referência ao exercício da reprodução sexuada, mas une, por sua vez,
figuras divinas ou sobrenaturais.

0 PARENTESCO CARNAL E SEU


CONTROLE PELA IGREJA

A imposição de um modelo clerical do casamento

Desde muito cedo, a Igreja se interessa pelas instituições familiares para intro-
duzir nelas alterações consideráveis, postas em evidência por Jack Goody. Duas
fases testemunham tensões particularmente vivas. Nos séculos IV e v, enquan-
to a Igreja passa da perseguição à posição de instituição e o Império Romano
se desagrega, a maior parte dos elementos-chave das estruturas antigas do
parentesco está periclitante ou desaparece no Ocidente (notadamente, a ado-
ção, a concubinagem, o divórcio e o levirato). Ao contrário, novas práticas
desenvolvem-se, em particular o apadrinhamento a partir do século VI, assim
como o· conjunto de relações associadas ao parentesco batismal. A concepção
do casamento é também profundamente transformada. É preciso lembrar que,
nos primeiros séculos do cristianismo, a ruptura evangélica com a moral judai-
ca da fecundidade e, sobretudo, com a exigência de natalidade que impunha
ao cidadão romano um dever de dar filhos à Cidade, conduz a desvalorizar radi-
calmente o casamento, ligado ao contato sexual e, portanto, ao pecado: somen-
te a continência e a virgindade parecem ser, então, dignas de exaltação. Não
pode haver salvação senão na fuga para fora do mundo e da sociedade, quer
dizer, para fora da família. Depois, assumindo as conseqüências da mudança
de estatuto da Igreja, Agostinho inaugura um processo fundamental, que pros-

448 }érôme Raschet


segue na longa duração do milênio medieval. Com efeito, ele engaja o cristia-
nismo em uma prudente reabilitação do casamento, em particular·âfirmando
que este foi instituído por Deus no paraíso terrestre entre Adão e Eva (quer
dizer, antes do pecado original, no estado de inocência e de perfeição da huma-
nidade, desejado pelo Criador). Tal evolução se inicia, de maneira bem com-
preensível, a partir do momento em que se impõe a necessidade de compor
com a organização terrestre da sociedade e, em primeiro lugar, reproduzi-la fisi-
camente. Resulta disso uma concepção ambígua, na qual o casamento e a
reprodução sexuada são, ao mesmo tempo, depreciados em relação à castida-
de e, todavia, aceitos sob condição de serem controlados e associados a um
laço espiritual. Isso leva a desenvolver um modelo do casamento que impõe, a
um só tempo, a monogamia, a indissolubilidade Uá afirmada em Mat 19, 4-6)
e uma exogamia muito mais forte do que em Roma, mas que só se impõe pro-
gressivamente na prática. Tal combinação conduz a um modelo da aliança de
casamento inédito e extraordinariamente constritivo, que constitui provavel-
mente uma exceção histórica (Aiain Guerreau). Ele está associado a uma pri-
meira afirmação da posição da Igreja, no mínimo porque essas constrições têm
por efeito multiplicar o número de casais sem descendência. Junto com os obs-
táculos postos ao casamento das viúvas (em oposição ao levirato antigo, que
criava uma obrigação de novo casamento com o irmão do defunto), elas trans-
formam as modalidades de transmissão das heranças e favorecem sua concen-
tração em benefício da Igreja (Jack Goody). Mas, além das vantagens materiais
que a Igreja pode tirar dessas alterações, sua intervenção no domínio do paren-
tesco lhe fornece uma poderosa alavanca na obra de conversão e de controle
da sociedade.
Nos séculos XI e XII, a reestruturação da sociedade produz outro momento
de tensão máxima. As regras da aliança de casamento são objeto de numerosos
conflitos, muitas vezes uma ocasião para a Igreja manifestar sua força diante dos
laicos importantes, como, por exemplo, a excomunhão do rei da França, Filipe I,
em 1094 e 1095, acusado por Urbano 11 de bigamia e incesto (Georges Duby).
Tais termos apenas nomeiam (e condenam), de um ponto de vista eclesiástico,
as práticas aristocráticas do concubinato, do repúdio da esposa e do segundo
casamento, assim como a união entre parentes próximos, notadamente entre
; primos germânicos. Tais costumes eram correntes durante a Alta Idade Média
\e não encontram nenhuma oposição. Como outros povos germânicos ou escan-
dinavos, os francos praticavam, ao lado da aliança principal, um casamento
secundário (sem transferência de bens, mas formalizado), além do concubina-
to: Eginhardo, o biógrafo de Carlos Magno, enumera, sem se inquietar, as qua-
tro esposas e as cinco concubinas do imperador e contabiliza os filhos nascidos

i\ CIVII.IZ-\<,:.\0 I"EUDAL 449


de cada uma delas. Mesmo se a situação evolui do século IX ao século XI, nota-
damente no que concerne à exigência monogâmica (ou, ao menos, suas aparên-
cias), os costumes que a aristocracia considera lícitos perante suas próprias nor-
mas chocam-se frontalmente com o modelo clerical do casamento, que defende
a indissolubilidade e atinge então o seu maior grau de exigência exogâmica.
Com efeito, Pedro Damião e o papa Alexandre 11, em uma decretai de
I 065, relançam vigorosamente a interdição de aliança de casamento até o séti-
mo grau canônico (quer dizer, segundo o modo de cálculo mais exigente, que
conta as gerações até o ancestral comum das duas pessoas implicadas, e não
segundo o cômputo romano, que acrescenta as gerações indo de uma pessoa a
outra, passando pelo ancestral comum, o que dobra o número de graus).
Durante um século e meio, a Igreja brande essa regra, a despeito de seu cará-
ter impraticável. Ou melhor, diante de imperativos ao mesmo tempo tão rígi-
dos e tão impraticáveis, as estratégias do clero são eminentemente seletivas,
em decorrência de seus interesses. Seja interditando, seja negociando dispen-
sas, a Igreja se põe como censor da legitimidade dos casamentos no seio da
aristocracia - aspecto fundamental da organização da classe dominante, pois
ele determina a transmissão dos bens e do poder sobre os homens. Nesse sen-
tido, não é exagerado dizer que o casamento é a "chave de abóbada do edifício
social" (Georges Duby), e cujo controle a Igreja conseguiu assegurar ao final
dos conflitos dos séculos XI e XII. Quanto aos dominados, a prática do casamen-
to no quadro estreito do universo de conhecimento (a comunidade e as aldeias)
não parece confrontar as regras fixadas pela Igreja, graças, sem dúvida, a uma
estratégia coletiva tácita de esquecimento dos laços genealógicos, que permite
evitar o bloqueio das trocas matrimoniais. Mais tarde, o Concílio de Latrão IV
desloca os limites da interdição matrimonial para o quarto grau canônico. Mas
essa medida é, sem dúvida, menos uma marca de fraqueza da Igreja do que o
sinal de seu triunfo: uma vez que o modelo clerical do casamento impôs-se no
essencial, é possível dar mostras de mais moderação, abandonar uma arma de
combate concebida para um período de conflito aberto e adotar uma norma
mais moderada e mais realista.
Ao longo desse período, os clérigos empenham-se em reforçar e impor, na
prática, o modelo de casamento já delineado pelos teólogos carolíngios, quer
dizer, uma concepção espiritualizada do laço matrimonial, que limita o exercí-
cio da sexualidade ao único objetivo de procriação e faz do casal casto o ideal
supremo. O enquadramento da sexualidade matrimonial - sempre percebida
como ambivalente, como uma realidade ao mesmo tempo necessária e perigo-
sa - é assegurado principalmente pelo número elevado de dias festivos duran-
te os quais a atividade sexual é proscrita e mesmo pela insistência sobre as ati-

4 50 }érome Baschet
tudes e as diversas posturas sexuais proibidas. Esse papel repressivo da Igreja
é, entretanto, contrabalançado pela reabilitação crescente do ·casamento, que
conduz, por exemplo, Tomás de Aquino a considerar legítimo o prazer sexual.
Mesmo se a condição é que ele se manifeste no quadro de uma união legítima
e seja associado à preocupação de procriar, trata-se de uma novidade notável
em relação à condenação inapelável do prazer físico nos autores anteriores. Um
aspecto decisivo da reabilitação do casamento intervém no século XII, quando
este, concebido como imagem da união mística de Cristo com a Igreja, ganha
lugar entre os sete sacramentos. É o resultado de um longo processo e, final-
mente, de uma reviravolta completa em relação à atitude dos primeiros cris-
tãos diante do casamento. No mesmo momento - enquanto, antes, o casa-
mento constituía um ato privado que dizia respeito à exclusiva competência
das famílias - , o desenvolvimento da liturgia nupcial manifesta o esforço dos
clérigos para intervir no ritual da aliança através das bênçãos, especialmente
do quarto dos esposos ou pela celebração do casamento diante da porta da
igreja, na presença de um padre. Mas o sucesso dessas intervenções é muito
variável segundo as regiões e, em todo caso, elas não são absolutamente
necessárias: segundo a norma canônica insistentemente lembrada desde o
século IX, é essencialmente o consentimento dos esposos que confere valida-
de à união. A intervenção do sacerdote no ritual matrimonial só se tornará
obrigatória após o Concílio de Trento.
O processo de enquadramento do casamento dos laicos ocorre paralela-
mente a uma reafirmação do celibato dos sacerdotes, que é uma das questões
da reforma da Igreja. É verdade que o celibato clerical, enquanto norma consti-
tutiva de um estado social (e não como simples ideal pessoal), começa a afir-
mar-se no fim do século VI, mas sua realização efetiva ainda está longe de ser
garantida no início do século XI. Além de sua intenção moral, ele permite, então,
traçar uma delimitação radical entre clérigos e laicos, o que é o objeto central
da reorganização da sociedade engajada pela Igreja. De um lado, os laicos são
destinados ao casamento e à reprodução corporal da cristandade; de outro, os
clérigos, caracterizados pelo celibato e pelo abandono dos laços desvalorizados
da carne, tornam-se aptos a uma tarefa mais nobre, a reprodução espiritual da
sociedade. Através do prestígio conferido pela renúncia à carne, eles afirmam-
se como especialistas do sagrado, como os intermediários que reivindicam a
exclusividade nas relações com o mundo divino: o liturgista Guilherme Durand,
em fins do século XIII, qualifica-os explicitamente de "mediadores" entre os
homens e Deus.

A C I I' 11.1 Z ~ Ç A O r EU DA I. 4 5}
Transmissão dos patrimônios e reprodução feudal

Em numerosas sociedades, o laço de filiação (ou de descendência) é transmiti-


do por somente um dos dois sexos: cada indivíduo pertence, então, seja ao grupo
de parentesco de seu pai e de seus ascendentes em linha masculina (sistema
patrilinear), seja ao de sua mãe e de seus ascendentes em linha feminina (matri-
linear). Assim, o mundo romano antigo apresenta traços notáveis de patrilinea-
ridade. Estes desaparecem desde a Alta Idade Média, em benefício de um sis-
tema indiferenciado, no qual o laço de descendência é transmitido igualmente
pelos dois sexos. Cada indivíduo possui, então, sua própria "parentela", que
engloba todos os consangüíneos de seu pai e de sua mãe (sem contar os afins,
parentes do cônjuge). Este sistema indiferenciado (ou cognático), que perdura
até nossos dias, é característico do conjunto da Idade Média, mesmo se ele
conhece algumas adaptações. A principal está ligada à reorganização da aristo-
cracia e da sociedade feudal ao longo dos séculos XI e XII.
A historiografia com freqüência caracterizou esse movimento como um
nascimento da "linhagem aristocrática" (mas o termo é pouco adaptado, pois ele
designa, no vocabulário dos antropólogos, o grupo de descendentes de um
ancestral comum, o que supõe um sistema patrilinear ou matrilinear); evoca-se
também a passagem de uma organização horizontal - tal como a Sippe germâ-
nica da Alta Idade Média, grupo familiar alargado que mobiliza principalmente
as solidariedades entre irmãos e primos - para uma organização vertical, que
restringe o grupo familiar e põe o acento sobre uma linha de transmissão genealó-
gica de geração em geração. De fato, Anita Guerreau-Jalabert demonstrou que não
se trata de uma mudança das regras que definem a filiação (quer dizer, que de-
termina para cada indivíduo as pessoas socialmente consideradas parentes),
mas de uma adaptação das representações e dos costumes do parentesco à ter-
ritorialização da nobreza, que se generaliza na Idade Média Central. A partir daí
o que define a aristocracia é o enraizamento em uma terra - no mínimo, um
senhorio-, na qual se exerce seu poder e que funda sua posição social. A estra-
tégia ideal de reprodução social consiste, então, em transmitir em herança, de
maneira indivisa, essa terra e o poder sobre os homens que lhe é associado.
Formam-se assim "topolinhagens", cadeias de transmissão de geração em gera-
ção de um mesmo poder territorial. Dito de outro modo, linhagens de herdeiros
de uma mesma terra e da função de cominação que lhe é vinculada. A noção de
topolinhagem visa exprimir a dependência das estruturas de parentesco em rela-
ção à organização espacial da sociedade feudal e indica que a linhagem aristo-
crática "só recebe sua substância, sua coerência e sua continuidade através da
forma pela qual se insere em um território" (Anita Guerreau-Jalabert).

452 }ér6me Baschet


\_É nesse contexto que é necessário reinterpretar os traços que são, muitas
vezes, associados ao desenvolvimento de uma consciência dinástica. O mais
explícito deles é a difusão, nos meios aristocráticos, de uma literatura dita
genealógica, a partir de meados do século XI, e sobretudo durante os dois séculos
seguintes. De fato, esses textos estão menos preocupados em construir uma ver-
dadeira genealogia do que estabelecer, com fins de legitimação, as modalidades
de transmissão do poder detido por uma família condal ou senhorial e, em par-
ticular, do castelo que é seu coração. São, portanto, principalmente "topolinha-
gens" que são postas em cena por essa literatura, na qual, no mais, se faz men-
ção a parentes em linha paternal tanto quanto maternal (cada família nobre se
esforça para vincular-se a um ancestral tão distante e prestigioso quanto possí-
vel, considerado o fundador do castelo e das possessões que se encontram no
coração de seu poder. Para tanto, se ele privilegia essa "topolinhagem", o autor
ou o inspirador de uma genealogia nobre faz menção de seus parentes tanto em
linha paternal como em linha maternal (ainda mais porque, em razão da hiper-
gamia dominante - casamento com uma mulher de posição superior-, a
linha maternal é, em geral, a mais prestigiada). Em segundo lugar, ao longo do
século XI emerge um novo sistema antroponímico (um nome individual, segui-
do de um nome que exprime o vínculo familiar). Para os aristocratas, este últi-
mo nome designa sobretudo o lugar, ou até mesmo o castelo, no qual se enraí-
za o seu poder, como um modo muito claro e forte de tornar manifesto a ligação
entre estatuto social e inscrição espacial. Enfim, os brasões que, de início, apa-
recem nos estandartes para identificar os combatentes, se generalizam a partir
de meados do século XII, sem jamais se tornarem exclusivos da aristocracia.
Comumente associados ao princípio genealógico, eles podem, é verdade, expri-
mir um laço de descendência, mas, de igual modo, através do jogo de combina-
ções múltiplas, dão lugar a relações horizontais fundadas no casamento, na vas-
salidade e outras formas de aliança.
Uma transformação importante, que não deixa de estar relacionada com a
emergência das topolinhagens, diz respeito às regras de transmissão dos bens.
Enquanto a partilha igualitária das heranças prevalece durante a Alta Idade
Média, a espacialização do poder aristocrático incita a transmitir a um só her-
deiro a entidade territorial na qual se enraíza o status de uma linhagem. Embora
de maneira muito lenta e muito parcial para frear a fragmentação dos poderes
senhoriais, a indivisão sucessora! desenvolve-se pouco a pouco, sob diferentes
formas, das~quais o direito de primogenitura é a mais utilizada. Seu desenvolvi-
mento, ao longo dos séculos XI e XII, é visível e, mesmo se numerosas regiões do
Ocidente não recorrem a ele, o direito de primogenitura foi suficientemente
assimilado ao sistema feudal para ser violentamente posto em causa quando do

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 453


desmoronamento deste (o que é sancionado pelo Código Napoleônico). A trans-
missão privilegiada da herança tende a criar vários grupos de excluídos entre os
descendentes: as filhas, os cadetes e os filhos ilegítimos. Suas situações são,
entretanto, bastante distintas.
As filhas são muito menos excluídas da herança do que se crê comumen-
te. Como a preferência recai sobre a transmissão em linha direta mais do que
lateral, na ausência de um descendente masculino a sucessão era feita mais
facilmente em benefício de uma filha do que de um irmão ou de um sobrinho.
Não é raro, então, que uma mulher assuma o encargo de um senhorio, de um
condado ou até mesmo de um reino (que se pense em Isabel de Castela). É ver-
dade que a hierarquia dos sexos e a importância dos valores guerreiros no seio
da aristocracia são tais que sempre se valoriza mais a possibilidade de um her-
deiro masculino, tendência que se reforça ao longo da Idade Média (no caso do
reino da França, a regra de transmissão da coroa em linhagem exclusivamente
masculina é forjada de maneira circunstancial, a partir de 1328, para afastar as
pretensões inglesas). Além disso, desde a Alta Idade Média, as filhas recebem
um dote de seus pais no momento do casamento. É verdade que o dote exclui
o direito de herança e, nesse sentido, sua generalização contribui à concentra-
ção da parte principal do patrimônio nas mãos de um só herdeiro. Entretanto,
mesmo quando o dote é entregue em dinheiro, ele está longe de ser desprezível
(ele pode atingir uma parte importante dos bens familiares, sobretudo a partir
do século XIII). Do mesmo modo, podemos seguir os antropólogos que conside-
ram o dote uma participação antecipada das filhas na herança. O dote pode,
assim, ser tido por uma das modalidades da "devolução divergente", instituição
capital no conjunto das sociedades da Eurásia (por oposição à África), "em vir-
tude da qual as transferências se efetuam em benefício tanto das filhas como
dos filhos" (Jack Goody). E, assim como indica o mesmo autor, "a devolução
divergente dos bens tanto para as mulheres como para os homens é acompanha-
da de uma série de mecanismos de continuidade", que visam garantir a coerên-
cia no uso dos recursos familiares: é o que ilustra perfeitamente a formação feu-
dal das topolinhagens.
À medida· que a primogenitura ganha terreno, a situação dos cadetes torna-
se menos invejável do que a da filhas. Mesmo se muitas vezes uma compensa-
ção monetária lhes é acordada e se sua exclusão da herança é relaxada em certos
períodos, os cadetes são, na maior parte das vezes, separados do tronco familiar.
Isso é bastante claro quando eles são, desde a infância, oferecidos como oblatos
a um monastério ou quando, mais tarde, entram na carreira eclesiástica. É pro-
vável que a situação desvantajosa dos cadetes, afastados dos interesses materiais
de sua parentela, prepara e dá ainda mais força à conversão e à ruptura com a

454 }érôme Baschet


parentela carnal suposta pela integração ao clero. Junto com os efeitos da redis-
tribuição dos postos episcopais em benefício da pequena e da "média aristocra-
cia, isso ajuda a compreender por que, a despeito de uma mesma origem social,
as solidariedades e as conivências entre o alto clero e a aristocracia são, finalmen-
te, menos marcadas do que a afirmação, em face desta última, dos interesses e
dos valores próprios da Igreja. Quanto aos cadetes que permanecem laicos, eles
se lançam em busca de aventura. Roberto Guiscardo e o rei Rogério da Sicília,
que retomam dos muçulmanos a Itália do Sul e a Sicília, são os exemplos típicos
de cadetes privados de bens próprios e que chegam à mais alta glória. De modo
mais genérico, Robert Moore pôde sublinhar o papel decisivo dos cadetes nos
empreendimentos que caracterizam a expansão da Europa, na Península Ibérica
e na Terra Santa - e, deveríamos acrescentar, até na conquista da América.
Desvantagem individual, a exclusão dos cadetes parece, então, um fator de dina·
mismo social, pela proeza combativa e pela audácia de conquista às quais ela
i;;.peie aquele que deve adquirir, por si mesmo, a alta posição social que seu nas-
cimento lhe atribui ao mesmo tempo que lhe nega, ou ainda porque ela garante
à Igreja recrutas numerosos, saídos da elite da sociedade e, no entanto, predis-
postos a abraçar os interesses de um outro tipo de parentesco.
Enfim, durante a Alta Idade Média, os filhos ilegítimos, notadamente fru-
tos de uniões com concubinas, são em geral associados à herança ao mesmo
título que os filhos legítimos: Carlos Marte! é um bastardo, assim como
Bernardo, neto de Carlos Magno e rei da Itália em 811; ainda em meados do
século XI, a mesma situação não cria nenhum obstáculo a Guilherme, o Con-
quistador, quando ele ascende ao trono da Inglaterra. Entretanto, a partir do
século XII, e mais ainda do século XIII, a situação dos filhos ilegítimos degrada-se
sensivelmente. Mesmo se encontramos muitas exceções à regra, eles geralmen-
te são excluídos da herança e submetidos de maneira crescente ao menosprezo
e a regras discriminatórias (notadamente, a interdição de chegar ao sacerdócio).
É uma conseqüência lógica da imposição do modelo clerical do casamento, que
condena com virulência o adultério e o concubinato, só reconhecendo união legí-
tima no quadro da união matrimonial. Mas, aqui, as normas clericais vêm con-
fortar os interesses aristocráticos, excluindo uma categoria possível de herdei-
ros: de certa maneira, a estigmatização crescente dos bastardos acompanha a
territorialização da aristocracia (Robert Moore). Mais genericamente, pode-se
perguntar se o modelo clerical do casamento, por mais contrário aos costumes
da aristocracia que tenha podido parecer em um primeiro tempo, não acabou
servindo aos interesses desta como classe. A firme oposição à endogamia, ao
concubinato e ao repúdio contrariava, sem dúvida, a preocupação de não ficar
sem descendência; mas a afirmação do casamento monogâmico e indissolúvel e

A C:I\'ILIZ.AC,:AO FEUDAL 455


a desqualificação dos filhos ilegítimos limitavam o número dos herdeiros poten-
ciais e facilitavam uma melhor gestão dos patrimônios, assim como, em conse~
qüência, uma maior solidez das topolinhagens. Essas regras, sem dúvida incô-
modas enquanto a aristocracia ainda não se encontrava inteiramente desligada
de suas formas anteriores de organização, mesmo sendo individualmente fasti-
diosas, favoreciam, em uma época de desenvolvimento produtivo e demográfi-
co, as novas estruturas de dominação fundadas no encelulamento dos domina-
dos e na territorialização dos dominantes.
No geral, a intervenção da Igreja é bem mais constritiva e decisiva no que
concerne às regras de aliança, enquanto o sistema de filiação parece uma ques-
tão menos relevante, mesmo se ele é afetado pelo contragolpe da generalização
do modelo clerical do casamento. Dessa maneira, o clero pretende controlar a
reprodução física da sociedade, ao mesmo tempo que se impõe de modo deter-
minante sobre a organização da classe aristocrática, sua rival e sua cúmplice na
obra de dominação social. Mas, se o clero regula a prática de laços dos quais
ele próprio se subtrai, o parentesco espiritual é mais essencial ainda para defi-
nir seu próprio lugar e a preeminência que reivindica.

A SOCIEDADE CRISTÃ COMO


REDE DE PARENTESCO ESPIRITUAL

Não seria possível estudar as estruturas medievais do parentesco sem insistir,


seguindo Anita Guerreau-Jalabert, sobre a importâ~cia dos laços de parentesco
espiritual, que constituem um de seus aspectos mais originais.

Parentesco batismal, paternidade de Deus e maternidade da Igreja

Uma parte essencial desses laços é urdida pelo batismo. Além de sua função de
purificação indispensável para alcançar a salvação pessoal, esse rito fundamen-
tal marca o verdadeiro nascimento social do indivíduo. É o momento em que ele
recebe seu nome e se torna membro da comunidade dos fiéis. Sem batismo,
nada de identidade, nada de existência aqui embaixo, e nada de salvação no
além. É então que se instituem os mais ativos laços de parentesco espiritual,
que são o apadrinhamento e o compadrio (que une os pais carnais e os pais espi-
rituais). Tendo a responsabilidade do nascimento físico da criança, em virtude
do qual o pecado original lhe é transmitido, os pais carnais são, na Idade Média

4 S 6 }érôme Baschet
- e contrariamente ao ritual ainda praticado até o século v, antes da institui-
ção do apadrinhamento-, rigorosamente excluídos do rito báfismal, que asse-
gura seu nascimento social e sua regeneração na graça. Nessa ocasião, eles
devem ceder lugar aos pais espirituais, padrinhos e madrinhas, que seguram a
criança sobre a pia batismal, pronunciando, no lugar dela, as palavras rituais,
dando-lhe seu nome e apresentando-se como garantia de sua educação cristã.
Essa substituição dos pais carnais pelos pais espirituais no momento do batis-
mo, que manifesta a indignidade dos primeiros de participarem da parte mais
nobre da reprodução dos membros da comunidade, torna sensível a todos a
preeminência do parentesco espiritual e a desvalorização do parentesco carnal.
O papel do padrinho na educação religiosa da criança é, na maior parte do
tempo, teórico, de acordo com os princípios que prescrevem sua intervenção
unicamente no caso de os pais faltarem. De resto, em certos meios, os pais pare-
cem procurar menos padrinhos para seus filhos do que compadres para si mes-
mos, como se depreende dos estudos de Christiane Klapisch-Zuber. O compa-
drio permite, com efeito, estabelecer uma relação horizontal, pensada em
termos de amizade e de fraternidade, que alarga o círculo dos aliados e é susce-
tível de apaziguar tensões sociais ou políticas. No século VI, os reis merovíngios
já utilizam o compadrio para pôr fim a suas lutas fratricidas e restaurar entre
eles relações pacíficas. Em outros contextos, o compadrio conserva uma dimen-
são mais vertical e sobrepõe-se às relações de clientelismo, por exemplo, na
Florença do fim da Idade Média: ter como compadre um rico comerciante sig-
nifica beneficiar-se de sua proteção e, ao mesmo tempo, integrar-se à sua clien-
tela política e econômica. Num caso como noutro, é sem dúvida porque ele per-
mitia multiplicar os laços de solidariedade e reforçá-los por um caráter
sacralizado que o parentesco espiritual gozou de tamanho favor entre os laicos.
Não se poderia, portanto, subestimar a importância do apadrinhamento, em
razão de seu papel no ritual batismal e de seu lugar eminente na economia geral
do sistema de parentesco. É o que confirma o desenvolvimento das interdições
matrimoniais por causa do parentesco espiritual. Se as proibições principais -
entre padrinho e afilhada, madrinha e afilhado, compadre e comadre- são esta-
belecidas desde o Código Justiniano, em 530, ou pouco depois, outras são acres-
centadas no Ocidente no século XII (por exemplo, entre o afilhado e a filha ou
entre a afilhada e o filho de uma mesma pessoa; entre os cônjuges daqueles que
são unidos pelo compadrio). Assim como para o parentesco carnal, esta é a
época em que a Igreja enuncia as regras mais constritivas, a fim de reforçar sua
posição de árbitro das práticas matrimoniais.
É também pelo batismo que se estabelece a filiação dos homens em rela-
ção a Deus. A criança, nascida de seus pais no pecado original, renasce da água

A CIVILIZAÇÃO F~UOAL 457


45. A Mãe-Igreja aleitando os fiéis, I I 50-70 (desenho segundo os Comentários dos Evangelhos de são
Jerônimo, Stiftsbibliothek, Engelsberg, ms. 48, 11. I03v.).
A Igreja é a mile de todos os fiéis, a quem concebe nas águas do hatismo e a quem nutre com a palavra divina
c com o pão da vida. Não há, então, nada de deslocado, para um espírito impregnado do discurso clerical, em
mostrar a personificação da Igreja oferecendo seus seios aos fiéis. pois tal imagem apenas exalta sua generosa
maternidade.
lustrai como um filho de Deus. Ela torna-se, então, um filho de Deus, o que não
era em virtude de seu nascimento: o batismo é uma adoção divina.-Com efeito,
as concepções medievais fazem da paternidade de Deus não uma característica
de todos os homens, mas um privilégio somente dos batizados. É verdade que
Deus criou todos os homens à sua imagem e semelhança (Gen 1, 26), mas não
é em virtude dessa relação que eles são seus filhos, de modo que essa semelhan-
ça, pervertida pelo pecado original, só pode ser restaurada pelo batismo. Assim,
a paternidade de Deus não define toda a humanidade: historicamente inaugu-
rada pela Encarnação do Filho e transmitida a cada um pelo batismo, ela marca
o estatuto específico dos cristãos e os distingue dos outros homens, excluídos
da graça e da salvação.
Através do batismo, o cristão torna-se também filho da Mãe- Igreja. Esta
figura, que não tem nenhum papel no Novo Testamento, vê sua importância
ampliar-se à medida que se afirma a instituição eclesial. Ela não pára de jogar
com a ambigüidade que lhe confere a noção de ecclesia, situada entre sua acep-
ção original de comunidade de todos os cristãos e a tendência ulterior que a
identifica com seus membros clericais (primeira parte, capítulo lll). Mesmo se
a segunda acepção se impõe a partir do século IX e, mais ainda, do século XI, a
primeira jamais desaparece totalmente. Na época que nos ocupa aqui, a Mãe-
Igreja é a personificação da instituição ou da comunidade, jogando com essa
indefinição em benefício da primeira. A maternidade da Igreja aparece, então,
como a contrapartida da paternidade de Deus, tão importante como esta últi-
ma. Agostinho já afirmava: "A Igreja é uma mãe para nós. É dela e do Pai que
nascemos espiritualmente", e, sublinhando ainda mais seu caráter indissociável:
"Ninguém poderá encontrar junto a Deus uma acolhida paternal se menospre-
za sua mãe, a Igreja". Assim como Deus é Pai, a Igreja é verdadeiramente Mãe,
pois ela faz nascer o cristão no batismo. As pias batismais são o órgão desse nas-
cimento, e Agostinho, seguido pela tradição patrística e litúrgica, qualifica-as de
"matriz da Mãe-Igreja". A inscrição do batistério de Latrão, de cerca de 440, pre-
cisa que suas águas são fecundadas pelo Espírito Santo, de modo que "a Mãe-
Igreja concebe nestas águas o fruto virginal que ela concebeu pelo sopro de
Deus". Tais enunciados decalcam a procriação carnal a fim de melhor espiritua-
lizá-la: é que o batismo deve ser concebido como um verdadeiro parto espiritual.
Atribui-se também à Igreja uma função nutridora que reforça seu estatuto
maternal. Como indica Clemente de Alexandria, a Igreja "atrai para si os seus
filhos e aleita-os com um leite sagrado, o Logos dos lactentes". E se, por vezes,
as imagens figuram essa relação mostrando a Igreja oferecendo seus seios aos
fiéis (figura 45, na p. 458), é porque ela os nutre transmitindo o princípio divi-
no que permite crescer na fé através da palavra e do dom da eucaristia, alimen-

A CIVILIZIIÇAO FEUD,H 459


to espiritual e pão da vida. Enfim, a função maternal da Igreja declina-se em
múltiplos temas que a descrevem como uma mãe que cobre seus filhos de cui-
dados e amor. Segundo são Bernardo, por exemplo, a Igreja "embala" os fiéis e
os protege sob suas asas.

A paternidade dos clérigos: um princípio hierárquico

Definir a posição do clero nessa rede não é fácil em virtude da diversidade dos
estatutos em seu seio (posições hierárquicas; ordens menores/maiores; secula-
res/regulares; tradicionais/novos) e das situações que se inscrevem na fronteira
que separa clérigos e laicos (clérigos tonsurados, mas não ordenados, conversos,
ofertados e membros das ordens terceiras). Mas, como se viu, a divisão entre
clérigos e laicos, asperamente defendida, permanece socialmente determinan-
te. Portanto, as análises seguintes serão concentradas nos indivíduos, cujo fato
de pertencer ao clero é manifestado pela realização de um ritual - ordenação,
aquisição do hábito ou votos - e por um modo de vida discriminante - essen-
cialmente, o celibato (de resto, é a aparição, no século III, de um rito de orde-
nação, conferindo um papel exclusivo na celebração da eucaristia, que consti-
tui a origem da separação entre clérigos e laicos).
Como os demais cristãos, os clérigos são filhos de Deus e da Igreja. Sua
função confere, entretanto, uma posição específica na rede de parentesco: eles
também são pais. É através do sacramento batismal que o estatuto paternal do
pai se manifesta mais claramente. Ele exerce, então, o papel de representante
de Deus na terra; ou melhor, ele permite a realizaÇão do ato de parir por Deus
e pela Igreja, em virtude de seu estatuto de lugar-tenente de Deus e de mem-
bro da Igreja-instituição. É verdade que a paternidade dos sacerdotes não pode-
ria pretender a mesma dignidade que a de Deus, entretanto ela é o agente indis-
pensável à sua propagação (o papel eminentemente ativo do sacerdote é
sublinhado pela evolução da liturgia batismal, pois, no Ocidente, a fórmula "eu
te batizo" supera o gesto passivo, mantido em Bizâncio, pelo qual o celebrante
anuncia que o fiel 'é batizado em nome de Deus". Na sociedade medieval, os
sacerdotes, únicos habilitados a conferir os sacramentos, são os mediadores
obrigatórios do parentesco divino. É através deles que se instaura, para os cris-
tãos, a paternidade de Deus e a maternidade da Igreja.
Os títulos empunhados dos clérigos manifestam claramente essa paterni-
dade: abade (de "abbas", pai) e, sobretudo, papa (papa, papatus, termos utiliza-
dos por todos os bispos e, depois, reservados somente ao pontífice romano a par-
tir do século XI). É onipresente esse modo de tratamento dos clérigos: pater,

460 }érôme Baschet


meu padre ... Além disso, a relação de paternidade não exprime somente a dua-
lidade entre clérigos e laicos, mas também as hierarquias no seio do clero, como
lembram as posições de abade à frente de seu monastério e de papa no cume
da instituição eclesial. Do mesmo modo, os laços de dependência entre estabe-
lecimentos monásticos podem ser concebidos como relações de filiação espiri-
tual, por exemplo, quando se evoca a "descendência de Claraval" ou de outras
abadias cistercienses. São igualmente os laços de parentesco espiritual que são
mostrados, no século XV, pelas árvores monásticas, que crescem a partir do ven-
tre de um fundador de ordem, como são Bento ou são Domingo, e cujos ramos
abrigam a multidão de seus discípulos: embora essas representações se pareçam
fortemente com a árvore de Jessé e com as primeiras imagens de genealogia
familiar sob forma de árvore que aparecem então, é claro que elas não mostram
absolutamente o parentesco carnal do santo, mas exprimem a amplitude de sua
fecundidade espiritual através da exuberância da árvore que ele faz nascer (de
resto, esse tipo de figuração atravessa o Atlântico na época colonial e aparece
particularmente em Santo Domingo de Oaxaca, no México). Enfim, se a posi-
ção paternal dos clérigos é contestada pelas heresias e, por vezes, pela pressão
dos laicos, ela conhece uma evolução no próprio interior da Igreja. Assim, os
membros das ordens mendicantes fazem-se chamar "frades"B lfrater, fratello,
fray), inclusive pelos laicos, sinal de uma. inflexão menos hierárquica, embora
rapidamente retomada e atenuada. Mas, a despeito dessas nuanças e dessas
evoluções, a dualidade pais/filhos equivale, no essencial, à dualidade clérigos/
laicos. Não apenas exprime a hierarquia estabelecida entre eles, mas também
constitui uma justificativa desta. A paternidade espiritual dos clérigos é o enun-
ciado e a garantia de sua autoridade, ainda mais porque ela se articula à prática
do celibato. Como foi visto, o clérigo subtrai-se aos laços do parentesco carnal,
e é através dessa renúncia que ele adquire a faculdade de tornar-se espiritual-
mente pai. Agostinho, apresentando um novo bispo ao povo, já afirmava: "Ele
não quis ter filhos segundo a carne, a fim de tê-los mais ainda segundo o espí-
rito". Tal configuração (retração do parentesco carnal/posição de pai espiritual)
funda a dominação social do clero sobre uma dupla hierarquia (espiritual/car-
nal; pai/filho).
A posição do clero parece igualmente caracterizada por um outro elemen-
to específico: uma união matrimonial espiritual. Assim, as monjas são as "noi-
vas de Cristo", e o bispo esposa a sua igreja (quer dizer, sua diocese), em um
ritual marcado pela entrega do anel. Como o bispo é também filho da Igreja, ao
mesmo título que todos os batizados, a conjunção de uma relação de filiação e

33. Fn?res, no original francês, que corresponde tanto a "irmãos" como a "frades". (N. T.)

A CIVILIZ.\ÇÃO FI::UDAL 46J


de uma aliança matrimonial permitiu que se falasse, aqui, de "incesto simbóli-
co", e que se definisse essa infração como um diferencial que sacraliza, que jus-
tifica a posição dominante do clero (Anita Guerreau-Jalabert). Entretanto, o
casamento com a Igreja concerne apenas aos bispos (e, sobretudo, ao papa, que
é o único a esposar a Igreja universal). Além do mais, esse ritual, que se esboça
a partir do século IX e se afirma no século XII, não é o fundamento do poder espi-
ritual do bispo, recebido pela imposição das mãos ou pela unção, símbolos da
infusão do Espírito Santo. Essa relação de aliança não parece, então, exercer um
papel determinante na definição do estatuto do clero, mas constitui, antes, um ca-
ráter suplementar, próprio ao topo da hierarquia eclesiástica. O essencial, para
definir o clero como grupo dominante no seio de uma sociedade dual, seria
muito mais o caráter duplo do celibato e da paternidade espiritual. É aí que se
encontra o diferencial que sacraliza e que distingue os clérigos, associando
renúncia e poder simbólico.

Irmandade de todos os cristãos e desenvolvimento das confrarias

Uma outra relação de parentesco espiritual concerne a todos os batizados:


sendo filhos de Deus e da Igreja, os cristãos são irmãos entre si. Essa irmanda-
de generalizada é, também ela, instituída pelo batismo, de modo que caracteri-
za os membros da cristandade e traça uma linha de separação que exclui os
outros homens. Poderoso vetor de unidade da cristandade e de concórdia social,
essa relação é muitas vezes evocada pelos clérigos, em particular quando é
necessário apaziguar os conflitos e pregar a reconciliação. É verdade que, na
terra, esse laço permanece largamente virtual, ineficaz. Ele se apaga, impoten-
te na maior parte do tempo, diante da lógica das dominações sociais e das regras
familiares. A irmandade generalizada dos cristãos é um horizonte parcialmente
inacessível aqui embaixo, cuja plena realização é adiada para o além.
Certos laços sociais são, entretanto, suscetíveis de ativar essa irmandade
latente. O fato de os clérigos pertencerem à Igreja, a despeito das hierarquias
que a estruturam, torna mais ativo esse laço, muito particularmente no seio de
uma comunidade monástica. Ele pode ser estendido aos laicos que, através de suas
doações, notadamente a Cluny, são integrados àfamilia monástica ou, ao menos,
são associados a ela em suas preces. O compadrio é, igualmente, uma maneira
de tornar eficaz a irmandade de todos os batizados. A prática das esmolas aos
pobres, direta ou por intermédio da Igreja, é uma outra manifestação sua, emi-
nentemente característica da sociedade medieval. Enfim, o desenvolvimento

462 ]érôme Baschet


das confrarias, a partir do século XII, e sobretudo do século XIII, permite alargar
a consciência prática dessa fraternidade. Trata-se de um fênômeno de grande
amplitude, na escala da cristandade, tanto nos campos como nas cidades (e que
está destinado a prolongar-se no Novo Mundo, sob formas parcialmente origi-
nais). Segundo os lugares e as épocas, as confrarias podem tomar formas dife-
rentes, privilegiando tanto o aspecto devocional como a organização corporativa
de um ofício ou de um grupo profissional. Todas têm, entretanto, importantes
pontos em comum. São associações de ajuda mútua e de devoção, livremente
estabelecidas, que se empenham para tornar ativos os laços de amor fraternal
entre seus membros. Seu próprio nome (confraternitas, em latim; hermandad,
em castelhano), como o de "compadres", dado a seus participantes, indica bem
que elas se baseiam na noção de irmandade espiritual alargada, característica
das concepções cristãs do parentesco.
A unidade das confrarias manifesta-se pela devoção comum ao protetor do
grupo, um santo padroeiro ou a Virgem (figura 25, na p. 249), por formas de soli-
dariedade concreta, notadamente a responsabilidade dos funerais e a prece cole-
tiva para os membros defuntos, ou, ainda, por atividades ritualizadas, como o ban-
quete anual em que, em torno do alimento partilhado, se realiza simbolicamente
a unidade da corporação. A instituição das confrarias permitiu, assim, uma orga-
nização parcialmente autônoma dos laicos, embora sempre sob o olhar vigilante
dos clérigos. Ela é, sobretudo, um instrumento eficaz de integração dos laicos no
seio das estruturas sociais e ideológicas desenhadas pela Igreja. Poderosos meios
de integração, as confrarias com freqüência reduplicam as estruturas paroquiais e
são inteiramente fundadas sobre as regras do parentesco espiritual, cuja elabora-
ção e controle cabem à Igreja. No geral, a irmandade generalizada dos cristãos
aparece como uma forma ideal e não realizada do parentesco espiritual. A comu-
nidade ritual do batismo lhe confere uma existência objetiva, que reitera a parti-
cipação no sacramento eucarístico; mas o laço de amor espiritual que deveria
caracterizá-la não chega a se manifestar plenamente. Em revanche, o fato de per-
tencer a uma confraria cria um círculo de parentesco espiritual, tornado efetivo
por ritos apropriados e por formas de ajuda mútua. A confraria é - para retomar
uma noção de Pierre Bourdieu - a parte prática, "mantida em funcionamento",
da irmandade espiritual de todos os batizados.
Se se considera, agora, o conjunto das relações espirituais mencionadas aqui,
vê-se que a conjunção do parentesco carnal e do parentesco espiritual engendra
alguns paradoxos aparentes. Agostinho nota que o filho que chega ao episcopado
toma-se pai de seu pai, enuncíado paradoxal que se liga ao fato de que o laço espi-
ritual inverte o laço carnal. Ilustrando um outro caso, Agostinho sublinha que seus
próprios pais carnais se tornaram irmãos espirituais ("Eles, que foram meus pais, e

A C lVI LllAC,:,\0 ~tUDAI. 463


meus irmãos em vós, nosso Pai, e na Igreja católica, nossa mãe"). Dessa vez, o laço
espiritual não inverte o laço carnal, mas iguala uma relação hierárquica. O paren-
tesco espiritual projeta na horizontal um laço de natureza vertical. Assim, a super-
posição dos laços espirituais aos laços carnais, através de contorção ou reversão,
aparece como um instrumento eficaz de manipulação do parentesco. Enfim, a
abrangência simbólica desses laços é considerável, pois eles contribuem para defi-
nir a armação ideológica da sociedade. A irmandade de todos os cristãos enuncia
a unidade da cristandade, enquanto a paternidade espiritual dos clérigos funda a
dualidade hierárquica que, no seio desse conjunto unificado, os separa dos laicos.

0PARENTESCO DIVINO,
PONTO FOCAL DO SISTEMA

No coração mesmo do dogma, quer dizer, das representações que fundam a


visão de mundo e a organização da sociedade cristã, urde-se um novelo particular-
mente denso de relações de parentesco. Um laço de parentesco inscreve-se,
com efeito, entre as duas primeiras pessoas da Trindade, o Pai e o Filho. A ques-
tão do parentesco situa-se, então, no centro da definição do Deus cristão,
mesmo se o estatuto do Espírito Santo incita a sublinhar que nem tudo, nesse
sistema, é pensado em termos de parentesco (assimilado à efusão da graça e da
inspiração divinas, o Espírito Santo é o agente de uma expansão do amor entre
os homens e Deus e entre eles próprios: ele é uma potência de conjunção e de
concórdia, tanto entre as criaturas como no seio da Trindade, da qual ele asse-
gura a coesão, pois Tomás de Aquino qualifica explicitamente o Espírito de "nó
entre o Pai e o Filho").

O Filho igual ao Pai: os paradoxos da Trindade

A natureza da filiação entre Pai e Filho constitui uma das principais questões
das controvérsias trinitárias. Enquanto Árius (256-336), sacerdote em
Alexandria no início do século IV, nega a plena divindade de Cristo e reconhe-
ce o Pai como único Deus verdadeiro, a ortodoxia, que se forma em reação ao
arianismo, deve conceber um laço entre o Pai e o Filho que seja uma verdadei-
ra filiação e que, todavia, assegure sua igualdade divina. Decisivo a esse propó-
sito, o Concílio de Nicéia, em 325, seguido por outros concílios ecumênicos do
século IV, proclama o Credo trinitário, em virtude do qual o Filho é dito "verda-

464 }érôme Baschet


deiro Deus de verdadeiro Deus, consubstanciai ao Pai, engendrado e não cria-
do" (enquanto o anátema é lançado sobre aqueles que afirmam que "antes de
ser engendrado, ele não existia", ou que "o filho de Deus nasceu"). O Filho deve,
com efeito, ser engendrado, pois, do contrário, não seria filho; mas ele não pode
ser criado, pois seria uma criatura e não divino ao mesmo título que o Criador.
A diferença entre criação e engendramento é, então, decisiva para manter junto
o que os contestadores arianos - como também os pagãos e os judeus - con-
sideram inconciliável (a possibilidade de conceber Cristo como Filho e, ao
mesmo tempo, totalmente igual ao Pai).
Uma relação de paternidade, fundada sobre o engendramento, inscreve-
se, assim, no seio do núcleo divino, entre as figuras da Trindade, diferentes em
suas pessoas mas iguais em sua essência, a ponto de que nenhuma pode se
vangloriar de preeminência, qualquer que seja ela. Entre o Pai e o Filho exis-
tem, a um só tempo, verdadeira filiação e perfeita igualdade. Ou seja, uma equa-
ção ''Pai = Filho", na qual a igualdade é, ao mesmo tempo, hierárquica e essen-
cial, mas que nem por isso supõe uma identidade entre as pessoas. O dogma
trinitário produz, assim, o modelo de uma relação paradoxal, em total contra-
dição com os elementos da filiação na ordem carnal, pois ele iguala uma rela-
ção que, normalmente, é hierárquica. Mais precisamente, esse modelo nega o
que a filiação define aqui embaixo, quer dizer, seu caráter ordenado. Na espé-
cie humana, composta de seres mortais, essa relação supõe uma ordem, uma
sucessão das gerações. Ao contrário, o parentesco trinitário, unindo pessoas
divinas eternas, caracteriza-se por um modelo de filiação sem relação de gera-
ções e sem subordinação.
O dogma trinitário é um paradoxo insustentável (tanto no que concerne à
junção da filiação e da igualdade como pela delicada conciliação do "um" e do
"três"). Desde cedo, foi diante de dois perigos opostos que a ortodoxia teve
de se definir: de um lado, o arianismo, que só admite a divindade do Pai e nega
a do Filho; de outro, o sabelianismo ou o priscilianismo dos séculos III e IV, acusa-
dos de confundir o Pai, o Filho e o Espírito Santo em uma só pessoa. Por cami-
nhos inversos, tende-se, nos dois casos, à retomada de um monoteísmo estrito,
enquanto a ortodoxia procura sua via entre os perigos, para fundar o paradoxo
de um Deus único em três pessoas (uno em sua essência e trino na diversidade
das pessoas). Como se viu, as acusações de heresia não demoram a reaparecer,
apesar das decisões do Concílio de Nicéia: o nestorianismo desafia, na seqüên-
cia do arianismo, a lógica da Encarnação, separando radicalmente as duas natu-
rezas, divina e humana, de Cristo; no outro extremo, o monofisismo afirma a
natureza única de Cristo, indissociavelmente divino e humano.

A CIVILIZ,\ÇÀO I'EUllAI. 465


O debate ainda ressurge com o adocionismo, na Espanha do século VIII: dois
bispos, Elipando de Toledo e Félix de Urge!, preocupados em insistir sobre a huma-
nidade do Salvador, a seus olhos excessivamente negligenciada, separam novamen-
te as duas naturezas de Cristo e afirmam que este é o verdadeiro Filho de Deus por
sua natureza divina, mas que, enquanto homem, ele é apenas seu filho adotivo. Sua
doutrina, que deve ser situada no contexto da Península Ibérica e da confrontação
com o monoteísmo estrito dos mulçumanos e dos judeus, é condenada, notada-
mente por Beatus de Liébana (célebre pelo seu comentário do Apocalipse) e,
sobretudo, pela corte de Carlos Magno e pelo Concílio de Frankfurt, reunido pela
iniciativa deste último, em 794. Pouco após, o cisma entre gregos e latinos com-
porta uma dimensão trinitária, pois os primeiros continuam a afirmar que o Espírito
Santo procede somente do Pai, enquanto os segundos consideram que ele proce-
de do Pai e do Filho lfilioque), o que reforça ainda mais sua igualdade. Se, a partir
disso, a reflexão trinitária no Ocidente não sai mais dos limites da ortodoxia, ela não
deixa de conhecer um intenso desenvolvimento e é incessantemente relançada a
partir do século XII, pelas polêmicas contra os judeus e os mulçumanos e pela
necessidade de produzir argumentos que sustentem o empreendimento de conver-
são. É por isso que, embora o De trinitate de Agostinho continue uma base essen-
cial, produz-se uma profusão de tratados sobre a Trindade, como se fosse necessá-
rio incessantemente aperfeiçoar esse ponto central da doutrina, fortificá-lo e
eliminar as brechas por onde poderiam infiltrar-se os germes do desvio.
Todos os recursos da lógica e do raciocínio, aperfeiçoados pelos escolásticos,
não são demais para conter uma infinidade de objeções possíveis e atingir as pro-
posições mais bem protegidas da crítica. É que, em matéria de Trindade, o equilí-
brio dos enunciados é sempre instável, perigoso, pronto para cair no desvio de uma
excessiva identidade entre as pessoas ou, ao contrário, de uma suspeita diferença,
condutora de hierarquia. A dificuldade é ainda maior se se passa da abstração do
discurso teológico às fórmulas mais concretas, notadamente aquelas que as ima-
gens têm a vocação de inventar. Com efeito, como associar visualmente unicidade
e trindade, filiação e igualdade? Como mostrar a filiação do Filho ao Pai, sem intro-
duzir uma diferença de gerações e, então, uma subordinação contradizendo sua
necessária igualdade? Como inscrever uma relação que está em total ruptura com
a experiência terrestre do parentesco em formas que se refiram necessariamente às
realidades do aqui embaixo? É bastante raro que as escolhas iconográficas evitem
fazer com que a balança penda para um lado ou para outro (veja figuras 38 e 39,
nas pp. 406 e 414 e a figura 49, nas pp. 492 e 493). Mas é precisamente porque a
doutrina trinária põe os artistas diante do desafio de imaginar uma figuração impos-
sível que ela é o motor de uma considerável abertura das possibilidades figurativas
e, finalmente, de uma extraordinária inventividade visual (figura 46).

466 }érôme Baschet


46. As metamorfoses da Trindade, c. 1300 (Renânia, Cânticos Rothschild, Beinecke Library, Yale
University, ms. 404, fls. 75 e 84).
Os Cânticos Rothschild, realizados provavelmente por uma monja, são exemplares dos laços que se tecem, no
fim da Idade Média, entre a imagem e as práticas de devoção. Eles comportam uma excepcional série de vinte
miniaturas consagradas à Trindade, cada uma mais surpreendente que a outra. Aqui, o Pai e o Filho voam nas
asas da gigantesca pomba do Espírito Santo, à qual se associam três sóis radiantes. Esse caráter dinâmico das
três pessoas contrasta com a fixidez da Essência divina, figurada no centro, em um triplo enquadramento.
O paradoxo do Deus ao mesmo tempo trino e uno é, então, mostrado por uma justaposição, muito pouco pra-
ticada, da trindade das pessoas e da unidade da essência.
Desta feita, o Pai, o Filho e o Espírito Santo silo envoltos em um amplo tecido que toma uma forma bast<
surpreendente e cujas extremidades esboçam o movimento das asas da pomba. O tecido é uma metáfora vi
do laço entre as pessoas da Trindade; ele é associado muito particularment" ao Espírito Santo, que são To
define como o "nó entre o Pai c o Filho". No geral, esta série de imagens procura incitar o espírito devoto
uma busca sem-fim da contemplação divina, mas sugere também que o do~ma trinitârio se furta à figuraçi
que nenhuma imagem chc~a a dar conta de seus paradoxos.
Pode-se até mesmo perguntar se a doutrina trinitária não se tornou um dos
objetos exemplares da dinâmica de pensamento ocidental. Ná medida em que
ela se baseia em contradições insolúveis e obriga a um esforço para pensar o
impensável, deixa sempre abertas importantes possibilidades de jogo, fontes
inesgotáveis de argumentações e de raciocínios. Inscrevendo uma série de para-
doxos insustentáveis no coração de seu sistema, admitindo que mesmo esse
núcleo possa ser submetido ao questionamento e à reflexão racional, o cristia-
nismo ocidental, sem dúvida, desenhou o terreno e forjou os instrumentos de
uma vigorosa criatividade intelectual. Tais objetos de pensamento, cujo caráter
paradoxal abre uma fenda no interior dos limites estabelecidos pela doutrina,
poderiam muito bem ter fornecido mais do que a ocasião para uma ágil ginásti-
ca mental: algo como a alavanca de uma dinâmica de transformação.

O Cristo: Pai-irmão, Pai-mãe

A complexidade do estatuto do Filho é parte integrante desses paradoxos trini-


tários e das reviravoltas que, por vezes, eles permitem. A Encarnação do Deus
feito homem confere a Cristo uma posição crucial e multiforme. Ele é filho por
toda a eternidade, tendo em conta sua divindade, igual àquela do Pai; mas ele é
também Filho na temporalidade, em virtude de sua concepção virginal por
Maria - ou seja, duas filiações que não poderiam ser confundidas, apesar de
sua aparente sobreposição. Em conseqüência, perante os homens, Cristo está
em uma dupla relação. Por sua Encarnação, ele é irmão daqueles que seguem a
sua fé; e, no Novo Testamento, ele recusa o estatuto de senhor para aceitar
somente o de irmão mais velho, de "primogênito de um grande número de
irmãos" (Rom 8, 29). Todavia, o processo de aumento da divindade do Filho
conduz rapidamente a fazer prevalecer uma outra relação. Enquanto, durante a
Alta Idade Média, as preces eucarísticas da liturgia romana dirigem-se somen-
te ao Pai, a partir do século XI desenvolve-se a evocação de Cristo. Sendo igual
ao Pai, ele próprio torna-se Pai dos fiéis. A partir do século XII ele é explicita-
mente especificado como tal, e o título Dominus, que lhe é aplicado tanto quan-
to ao Pai, manifesta de modo onipresente a natureza hierárquica do laço que o
une aos homens. A relação Cristo/homens é, então, o lugar de uma poderosa
tensão, que associa, em equilíbrios variados, filiação e irmandade (ocorre exata-
mente o mesmo para a posição dos clérigos em relação aos laicos). O paradoxo
do Deus-homem é também aquele do Pai-irmão. A implicação disso é o estatu-
to do homem, submetido a Deus e miserável, e, no entanto, suscetível de ser
elevado até a redenção celeste.

A CIVILIZAÇAO FEULlAL 469


Se Cristo é Pai e irmão, ele é também mãe. Caroline Bynum insistiu sobre
essa parte maternal do Cristo e, mais amplamente, sobre a conivência do cris-
tianismo com o feminino. A representação de Jesus como mãe aparece, sobre-
tudo no século XII, na espiritualidade cisterciense, e, mais tarde, nos meios mís-
ticos do fim da Idade Média. Cristo, assim como o abade, é percebido como
uma mãe devido ao amor e à ternura que manifesta para com seu rebanho, e
sobretudo porque ele dá a vida e nutre os fiéis. O corpo de Cristo, que é ofere-
cido na eucaristia, é feminino porque ele é alimento. É necessário, ainda, preci-
sar que essas temáticas se desenvolvem em meios específicos e muitas vezes
concernem a personalidades bastante singulares. Elas não devem, então, fazer
esquecer a parte maciça do princípio masculino nas representações cristãs.
A esse respeito é preciso lembrar a evidência: Deus é Pai e a Trindade é estru-
turada por uma relação de paternidade, não de maternidade.

A Virgem, emblema da Igreja

As figuras da Virgem e da Igreja testemunham, entretanto, a necessidade de


conceder espaço ao feminino. Convém, de resto, integrá-los à esfera divina, pois
Maria é cada vez mais associada à soberania das figuras divinas, a tal ponto que
se pode falar de um processo de quase divinização da Virgem. De fato, é preci-
so tratar conjuntamente da Virgem e da Igreja, pois, a partir do século XII, a exe-
gese afirma que tudo o que se diz de uma pode ser aplicado à outra. É, então,
a figura da Virgem-Igreja que constitui um objeto pertinente para a análise.
A história da promoção da figura de Maria (e, evidentemente, a da Igreja)
segue muito de perto à da afirmação da instituição eclesial. No Evangelho,
Maria tem um papel limitado ao nascimento virginal de Jesus; e este, uma vez
adulto, renega os laços que o unem à sua mãe. Ainda na época paleocristã, por
exemplo na arte das catacumbas, a Virgem ocupa um espaço restrito. Uma pri-
meira etapa importante situa-se nos séculos IV e V: ao termo de virulentos deba-
tes, o Concílio de Éfeso, em 431, proclama que Maria, sendo mãe de Cristo-
o qual é igual ao Pai - , é, por conseqüência, "Mãe de Deus" (theotokos, em
grego). Associando-a estreitamente à divindade de Cristo, essa novidade dogmá-
tica sublinha com vigor a dignidade de Maria e seu papel eminente na história
da salvação. Ela dá, assim, um elã decisivo ao culto mariano e, pouco depois,
a basílica de Santa Maria Maggiore de Roma é a primeira igreja dedicada à
Virgem. A época carolíngia testemunha uma nova afirmação da figura de Maria,
sobretudo no domínio litúrgico. Concebidas em Roma no final do século VII, as
quatro grandes festas marianas (a Anunciação, a Purificação, a Assunção e a

470 }érôme Baschet


Natividade de Maria) difundem-se por todo o Ocidente, enquanto os textos
litúrgicos utilizados dessas celebrações consolidam-se ao longo dos séculos IX e x.
Depois, os séculos XI e XII marcam, ainda, uma segunda etapa decisiva, ao longo
da qual o culto de Maria se amplia consideravelmente. As peregrinações à
Virgem, desconhecidas até o século x, conhecem sucesso crescente (a de Puy é
uma das mais precoces). Bastante aptas a encorajar o culto, as primeiras com-
pilações de milagres marianos aparecem no fim do século XI e atingem seu pleno
desenvolvimento no século XIII, inclusive em língua vernácula, com os Milagres
de Nossa Senhora de Gautier de Coincy e as Cantigas de Santa Maria de Alfonso X,
o Sábio. Ao longo do mesmo período, numerosas igrejas são rebatizadas para
serem dedicadas a Maria, em detrimento dos santos que eram, até então, seus
padroeiros. De maneira cada vez mais invasiva, a Virgem assume o papel de
emblema das identidades locais, paroquiais ou urbanas. Tomada entre as rivali-
dades dos diferentes santuários marianos, sua figura se torna mais particular, até
mesmo se fragmenta, tornando-se local, como se a Virgem de tal santuário não
fosse a mesma que a de um outro lugar.
Engendrada pelo desenvolvimento do culto, a iconografia mariana conhece
verdadeiro florescimento, notadamente as estátuas da Virgem com o Menino no
trono que, a partir de 1050, se multiplicam no ritmo da reestruturação da Igreja.
É que a Virgem, apesar de suas ancoragens locais, jamais deixa de ser, ao mesmo
tempo, o símbolo privilegiado da Igreja universal e de sua reivindicada pureza.
Os temas iconográficos multiplicam-se, até a invenção da coroação da Virgem
por Cristo, que aparece em Santa Maria in Trastevere, em Roma (1140-50), e
em Notre-Dame de Senlis (1170) e, depois, impõe-se aos portais das catedrais
em igualdade de importância com os grandes temas cristológicos e teofãnicos,
como o Juízo Final (figura 47, a seguir). A coroação põe em evidência o novo
estatuto da Virgem, doravante em paridade com Cristo. Ela partilha com ele a
realeza, a soberania celeste e não demora a ser considerada co-redentora da
humanidade. Ela se torna a intercessora privilegiada, a advogada e a grande pro-
tetora dos homens, assumindo parcialmente o papel anteriormente atribuído a
seu filho.
Se não se esquece jamais de sublinhar os aspectos sensíveis da humanida-
de da Virgem - em particular o aleitamento de Cristo - , sua crescente digni-
dade a eleva, pouco a pouco, acima do comum dos mortais. O privilégio de uma
assunção de corpo e alma ao céu, bem atestada na época carolíngia e ampla-
mente admitida a partir dos séculos X! e XII, é uma primeira marca disso (figura
4, na p. 39). Mais radicalmente ainda, os defensores da Imaculada Conceição
af\rmam que Maria, embora nascida da união sexual de Ana e Joaquim, foi con-
cebida sem receber a mácula do pecado original. Mas a progressão dessa tese,

A CJVILIZAÇAO fEUDAL 471


47. Cristo e a Virgem coroada juntos no trono, c. 1140-50 (mosaico da abside de Santa Maria in Trastevere,
Roma).
A decoração da abside de Santa Maria in Trastevere constitui uma das primeiras ocorrências da coroação da
Virgem. Que ela esteja no trono, já coroada, com Cristo, como aqui, ou que se mostre mais precisamente o
momento em que ela recebe a coroa das mãos de seu filho, o significado da cena é fundamentalmente o mesmo:
ele associa estritamente a Virgem à soberania de Cristo. A elaboração do.tema da coroação da Virgem é indis-
sociável da exegese do Cântico dos Cânticos, do qual é tirado o versículo inscrito sobre o livro aberto de Cristo
(um versículo próximo também diz: "Vem, minha bem-amada, para ser coroada"). O Cântico dos Cânticos, que
canta o elã amoroso do Sponsus e da Sponsa (para utilizar os termos da Vulgata), é lido pelos clérigos medievais
como uma alegoria da união de Cristo e da Igreja e, depois, a partir do século XII, de Cristo e da Virgem. É esse
laço místico-matrimonial entre Cristo e a Virgem-Igreja que a figuração da coroação de Maria mostra de manei-
ra poderosamente eficaz.

a partir da instauração de uma festa da Conceição de Maria na Inglaterra dos


anos 1120, não ocorre sem provocar fortes oposições, notadamente a de são
Bernardo (Marielle Lamy). Após o consenso antiimaculatismo dos escolásticos
do século XIII, a polêmica explode com violência e, por vezes, degenera, nos
séculos XIV e XV, notadamente entre os franciscanos, favoráveis a essa inovação,
e os dominicanos, que se recusam a isentar Maria do pecado original. Nem o
decreto favorável do Concílio de Basiléia, em 1439, nem a aprovação da festa
da Conceição de Maria - é verdade que sem decisão relativa à doutrina - pelo
papa franciscano Sisto IV, em 1476, põem fim ao debate, e o dogma da Imaculada
Conceição não será proclamado até 1854. Em resumo, é paralelamente à reforma

4 72 Jér6me Baschet
e à supersacralização da instituição eclesial a partir dos séculos XI e XII que a
Virgem se torna uma figura onipresen~e e sobreeminente do "pani:eão cristão",
cada vez mais perto de chegar a uma posição de igualdade com Cristo: uma
farsa do século XV não tem necessidade de forçar muito o traço para imaginar o
processo ao longo do qual Cristo acusa sua mãe de tê-lo desbancado junto aos
homens. Mesmo se nos ativermos prudentemente, aqui, à idéia de uma quase
divinização da Virgem, é possível relembrar a feliz expressão de Michelet a pro-
pósito do desenvolvimento da devoção mariana na Idade Média: "No século XII,
Deus mudou de sexo".

A Virgem-Igreja, mãe, filha e esposa de Cristo

A integração da Virgem-Igreja na esfera divina manifesta-se pela existência de


complexos laços de parentesco em relação a Deus. Em virtude da Encarnação,
Maria é mãe de Cristo por uma maternidade virginal, subtraída às leis do dese-
jo sexual e do pecado, e por uma geração operada pelo Espírito de Deus, sem
genitor macho humano. Quanto à Igreja, ela também é mãe de Cristo, pois con-
cebe os cristãos que formam o corpus Christi. Os exegetas afirmam, então, que
ela dá à luz o Cristo e que pode ser qualificada de Dei genitrix, do mesmo modo
que a Virgem. Inversamente, a Virgem é filha de Cristo: sendo Deus, igual ao
Pai, ele é seu pai, como também de todos os seres que receberam a graça divi-
na. Afirma-se, então, segundo um paradoxo corrente desde Agostinho, que a
Virgem é a mãe de seu próprio pai. Assim como o expressa Inocêncio III, "a cria-
tura concebe o seu criador, a filha, seu pai". Como a Virgem, a Igreja é filha de
Cristo. As Bíblias moralizadas·l 4 do século XIII, que mostram a Eccesia saindo das
chagas do crucificado, explicitam uma exegese tradicional, segundo a qual a
Igreja se forma a partir da água e do sangue que jorram de Cristo, símbolos do
batismo e dà eucaristia. Desloca-se, então, facilmente em direção ao vocabulá-
rio do nascimento para afirmar que a Igreja é engendrada por Cristo, no
momento da Paixão. Embora com maior prudência do que para com a Virgem,
a exegese faz da Igreja a filha de Cristo, e o paradoxo mariano pode ser aplica-
do à Igreja, a um só tempo mãe e filha de Cristo.
Enfim, uma relação matrimonial liga Cristo à Virgem-Igreja. Apresentado
por são Paulo como referencial do casamento humano (Ef 5, 21-32), a união de

34. Também conhecidas como Bíblias alegorizadas ou historiadas, são exemplares abundantemen-

t\
te ilustrados, em que as imagens correspondem às passagens bíblicas e seus comentários textuais;
normalmente uma intenção morali7.ante e aleg6rica. (N. T.)

A CJVJLIZM,;Ão FEUDAL 473


Cristo ·com a Igreja é igualmente desenvolvida na exegese do Cântico dos
Cânticos, na qual a Igreja é a esposa de Cristo (sponsa Christi). Evidentemente,
trata-se de núpcias místicas, cujo objetivo não é o de legitimar um laço carnal,
mas de significar uma capacidade de engendrar espiritualmente. Se a imagem
não cede espaço a essa relação de aliança espiritual entre a Igreja e Cristo, a
relação homóloga entre Cristo e a Virgem afirma-se amplamente na iconografia,
a partir do século XII. Segundo a leitura mariana do Cântico dos Cânticos que
suplanta, então, a exegese eclesiológica, o casal Sponsus/Sponsa designa princi-
palmente Cristo e a Virgem. É, de resto, um dos fundamentos da coroação da
Virgem, que associa a Virgem à realeza de Cristo, ao mesmo tempo que exalta
o laço matrimonial que os une (figura 47;-na p.472). A coroação da Virgem glo-
rifica a Ecclesia unida a Cristo e, mais largamente, a iconografia mariana desse
período exalta a instituição clerical ordenada pela potência pontifícia, através de
sua união espiritual com Deus.
A Virgem-Igreja é, então, unida a Cristo por um duplo laço de filiação e de
aliança matrimonial. Como no caso do bispo, isso produz uma conjunção que
seria tentador qualificar de "incesto espiritual". Entretanto, esta expressão
levanta várias interrogações. Em primeiro lugar, a ausência de todo laço sexual
não faria desaparecer a própria implicação do incesto? Este não é proibido em
razão de uma conjunção material de pessoas consideradas excessivamente pró-
ximas, criando um contato de humores idênticos, ou ainda porque, conforme as
definições dos teólogos medievais, ele macula uma relação espiritual perfeita
através de uma relação carnal imperfeita? Por outro lado, o que caracteriza o
incesto é sua proibição e, por conseqüência, o caráter transgressivo de sua rea-
lização. Ora, o laço entre Cristo e a Virgem-Igreja (como aquele que une o bispo
e sua diocese) não é envolto em nenhum mistério e não é absolutamente res-
sentido como uma transgressão. Faltam, então, dois elementos específicos do
incesto, a realização sexual e a proibição; é preciso constatar que esse laço não
é considerado incestuoso. Ora, o incesto, como fato social, é o que a sociedade
define como tal. Talvez, então, não haja mais sentido em nomear de incesto
espiritual o laço entre Cristo e a Igreja do que haveria em qualificar de inces-
tuoso o casamento entre primos cruzados 35 nas numerosas sociedades que o
prescrevem, sob o pretexto de que as normas ocidentais o interditam.
É preferível propor uma outra formulação, considerando que, no domínio do
parentesco espiritual e divino, a conjunção da aliança e da filiação não é ilícita.

35. Na nomenclatura antropológica, filhos/filhas do irmão da mãe ou da irmã do pai, em relação a


Ego (indivíduo tomado como ponto de referência); em outros termos, filhos/filhas de irmãos de
sexo oposto. (N. T.)

474 }érôme Baschet


Nele, aplicam-se regras particulares, de modo que um laço que, no domínio car-
nal, seria incestuoso, não o é necessariamente no domínio espi~itual e divino.
Se se quer dar conta da lógica desse sistema, é preciso renunciar a falar de
incesto e considerar que a possibilidade assumida de uma junção aliança/filia-
ção liga-se às características específicas do parentesco espiritual e divino. Uma
vez reconstituída a lógica interna dessas representações, não é entretanto
impossível operar uma inversão de perspectiva, de modo que, se na lógica
medieval a posição da Virgem não pode ser definida como um incesto, ela não
poderia, todavia, ser pensada por nós independentemente de toda relação com
a esfera carnal, na qual tal posição seria incestuosa. É possível identificar, aqui,
um conteúdo de fantasia incestuosa que, tomando forma no seio da própria
esfera divina, é ativo sem ser, no entanto, socialmente percebido como tal.

O parentesco divino, ou a antigenealogia

No geral, o parentesco divino constitui, no coração da doutrina medieval, um


conjunto de representações fundadas sobre a inversão, ou até mesmo abolição,
dos fundamentos da reprodução humana segundo a ordem carnal:
- o Filho iguala o Pai, ou seja, uma filiação não hierárquica, sem relação
ordenada de geração, negando a sucessão das gerações como fato biológico e os
costumes sociais do parentesco como modelo de relação de autoridade e de
dominação;
- a Virgem é Mãe de seu Pai, enunciado que decorre logicamente do pre-
cedente e que manifesta o grau de indiferenciação na ordem das gerações à qual
leva à equação trinitária;
- a Virgem-Igreja é mãe e esposa de Cristo, enunciado que, na ordem car-
nal, remeteria ao incesto, mas que não é assim considerado no campo do paren-
tesco divino, pois as regras que regem a ordem das gerações deixam aqui de ser
válidas.
O conjunto dessas relações encontra-se reunido nas obras do século XV,
que mostram a coroação da Virgem pela Trindade (figura 38, na p. 406). Assim,
o retábulo de Enguerrand Quarton, pintado em 1454, sublinha a integração da
Virgem no núcleo divino, a tal ponto que se poderia falar aqui de uma
"Quaternidade". A identidade perfeita dos traços do Pai e do Filho, representa-
dos em espelho, sublinha sua igualdade essencial, enquanto a disposição diver-
sificada das dobras de suas vestes evoca mais discretamente a diferença entre
as pessoas. A Virgem é coroada tanto pelo Pai como pelo Filho, de modo que o
Filho iguala o Pai não somente em sua identidade essencial, mas também em

A CJVILIZAÇAO FEUDAL 475


sua relação comum com a Virgem. O Filho assume, em relação à mãe, a mesma
posição que o Pai. Um mesmo laço nupcial une a Virgem, ao mesmo tempo, ao
Pai e ao Filho: ela é mãe e esposa de Deus, esposa daquele que é, ao mesmo
tempo, seu Filho e seu Pai.
A articulação desses enunciados é notável. É a própria ausência de uma
sucessão ordenada das gerações, tal qual é proposta pela equação trinitária, que
autoriza a conjunção da aliança e da filiação entre Cristo e a Virgem-Igreja, con-
firmando que se trata, aqui, de uma relação não transgressiva, mas lícita. No
domínio carnal, o incesto perturba a ordem das cadeias genealógicas e entrava
o funcionamento do sistema de parentesco, conferindo ao indivíduo, em sua
relação com outrem, dois lugares em vez de um. Mas, no parentesco divino, que
não reconhece ordem de gerações e autoriza uma inversão das posições, a pró-
pria questão do incesto deixa de existir. O discurso e as figurações do parentes-
co divino produzem uma anulação radical das regras que baseiam a reprodução
humana. Trata-se de uma negação do que se pode chamar, seguindo Pierre
Legendre, a genealogia, quer dizer, o fato de que a produção humana é fundada
sobre o reconhecimento da ordem das gerações e sobre as normas sociais que
comunicam aos indivíduos o funcionamento dessa ordem. O parentesco divino
é, precisamente, o domínio de uma antigenealogia, trabalhada em todas as suas
conseqüências, em particular o fato de igualar a filiação e a conjunção filia-
ção/aliança. É assim que o parentesco divino constitui-se, para além da lei e de
sua transgressão, como esfera separada, funcionando segundo regras resoluta-
mente distintas das que regem o mundo dos homens -e, por isso mesmo, pro-
priamente divina.

CONCLUSÃO: O MUNDO COMO


PARENTESCO, A SOCIEDADE COMO CORPO

O sistema descrito até aqui é dotado de uma notável coerência. É verdade que
a tripartição apresentada não o é totalmente. Com efeito, parentesco espiritual
e parentesco divino são fundamentalmente da mesma natureza, pois remetem,
um e outro, ao espiritual, por oposição ao carnal. É, no entanto, pertinente dis-
tingui-los (combinando, assim, oposição dual e estrutura ternária), pois suas
regras de funcionamento são parcialmente distintas. Existe uma especificidade
do núcleo divino, ponto de perspectiva que ordena o conjunto do sistema, em
oposição diametral com os modos de funcionamento do parentesco carnal,
enquanto, entre os dois, o parentesco espiritual aparece como uma instância

476 }érôme Baschet


mediadora, necessariamente combinada aos laços carnais e se afastando menos
radicalmente das regras que os caracterizam do que o parenfésco divino.
É igualmente importante notar que as implicações principais desse sistema
encontram-se menos nas diferentes relações analisadas sucessivamente do que
nas interligações estabelecidas entre elas. Certas homologias já apareceram, por
exemplo, entre a posição do papa, filho, pai e esposo da Igreja, e a de Cristo,
filho, pai e esposo da Virgem. Pode-se também insistir sobre a correspondência
entre a paternidade de Deus em relação aos homens e a dos clérigos em relação
aos laicos. Que os clérigos sejam os substitutos de Deus, a liturgia o indica
abundantemente, assim como a iconografia que, a partir de 1400, chega a figu-
rar Deus dotado de todos os atributos do poder pontifício (François Boespflug).
A posição deles como pais dos laicos, como Deus o é de todos os cristãos, refor-
ça sua autoridade e legitima sua dominação social. É verdade que essas duas
relações de paternidade são moderadas por um laço de irmandade, pois Cristo
e os clérigos são, a um só tempo, pais e irmãos dos fiéis. Mas a relação vertical
se sobrepõe ao laço igualitário e um pouco de fraternidade é associada a muito
de paternidade. Que os clérigos sejam, a um só tempo, irmãos e pais dos laicos, de
resto, apenas exprime a dualidade da Igreja-comunidade e da Igreja-instituição.
Ora, aqui também o jogo é desigual e a verticalidade da organização social e ins-
titucional impõe-se, revestindo-se sob o véu da igualdade espiritual. Um efeito
maciço desse conjunto de representações, além da legitimidade que ele confe-
re às intervenções clericais no domínio do parentesco carnal, consiste em defi-
nir o lugar da Igreja na sociedade, em vincular a preeminência dos clérigos e sua
autoridade aqui embaixo à organização do universo divino.
Chega-se, aqui, a uma dualidade fundamental das representações medie-
vais da sociedade. Sensível nesta visão do mundo como parentesco, a dualida-
de é igualmente característica da outra grande metáfora social, que pensa a cris-
tandade como corpo. De resto, uma e outra se sobrepõem largamente, já que o
que se considera filiação em um caso é expresso como inclusão corporal no
outro. A fraternidade instituída pelo batismo assegura a unidade de todos os que
compõem o corpo eclesial. Ser irmãos em Deus e membros do corpo eclesial
concerne à mesma·lógica de unificação fundada pelo batismo. Além disso, esses
dois modelos combinam subordinação hierárquica e igualdade comunitária.
A imagem paulina sublinha que a Igreja é una e permite pensar a fusão de todos
em um grande corpo simbólico; mas ela não se esquece de que este corpo pos-
sui uma cabeça, que é Cristo, e também, como precisam seus comentadores,
\ a instituição da qual o papa é justamente o chefe. Tratando-se de parentesco, a
dualidade é claramente marcada, pois é possível afirmar simultaneamente que
todos os cristãos são unidos por um laço de irmandade espiritual (formando,

A ClVlLIZi\ÇAO FtUDAL 477


assim, uma comunidade igualitária) e que existe uma relação de filiação entre
os clérigos e os laicos (ou seja, a marca de uma subordinação). É assim igual-
mente com o laço vassálico, assimilado a uma forma de parentesco espiritual e
analisado como uma relação hierárquica entre iguais. Mesmo se este caso é par-
cialmente diferente, ele testemunha, sem dúvida, a mesma lógica, própria da
sociedade cristã medieval. Esta se arranja maravilhosamente bem para articular
comunidade e hierarquia ou, mais exatamente, para fundar hierarquias bem
reais nas representações ideais de um grande corpo coletivo ou da fraternidade
de todos os fiéis. A força desses modelos é de não se contentar em estabelecer
um princípio de comando: este é cuidadosamente associado a um ideal iguali-
tário, que produz a imagem de uma unidade social coerente e de uma cristan-
dade urdida pelo parentesco espiritual.
Quer a sociedade medieval seja pensada como um corpo, quer como uma
rede de parentesco espiritual, o mesmo elemento assegura sua ligação: a carida-
de. Na cristandade medieval, a caridade (caritas), noção cujas implicações
foram explicitadas por Anita Guerreau-Jalabert, é muito mais do que o gesto
pelo qual se dá o óbolo aos pobres na porta da igreja, mesmo se este é uma de
suas manifestações mais comuns e mais características. Ela é um atributo
essencial do próprio Deus ("Deus é caridade", I Jo 4, 16), e é associada de
maneira privilegiada ao Espírito Santo, que exerce o papel de "nó da Trindade"
e a difunde no coração dos homens (Rom 5,5). A caridade é a virtude por exce-
lência, que consiste em amar a Deus e amar a seu próximo em Deus. Ela é uma
efusão de amor espiritual que une o fiel a Deus, mas também os homens entre
si, através de sua relação comum com Deus. O amor espiritual da caridade,
oposto tanto ao amor carnal concupiscente quanto à avareza, é o laço funda-
mental que une os membros da cristandade, do mesmo modo, como dizem os
exegetas, que o cimento junta as pedras do edifício eclesial.
Fundamento da unidade da cristandade, a caridade é o princípio de uma
troca generalizada em seu seio. Ela é amor puro, inspirado por Deus, cujo exem-
plo supremo é o sacrifício do Pai que entrega seu Filho à morte para a salvação
dos homens. A caridade convida, então, a dar de maneira desinteressada, uni-
camente pelo amor do outro e de Deus, sem esperar do beneficiário nenhum
contradom. Aqui, moral cristã e ética aristocrática convergem parcialmente e,
como se viu, mesmo o empréstimo pode ser pensado como um dom gratuito
sem espera de retorno, mesmo se de facto ele é seguido de um outro dom gra-
tuito, sensivelmente aumentado. A cristandade repousa sobre uma rejeiÇão-·
explícita da lógica do dom e do contradom e constitui-se, ao contrário, como um
sistema de circulação generalizada, no qual cada um deve dar sem esperar retor-
no e pode, por isso mesmo, receber sem ter dado. O regime da caridade conhe-

478 }érôme Baschet


ce apenas dons gratuitos, inspirados finalmente por Deus e que lhe são destina-
dos em última instância. Na sociedade cristã, a circulação dos bens materiais e
espirituais jamais se dá somente entre os homens. Ela não pode ser pensada
sem se considerar Deus, fonte infinita de graças e benesses. A reciprocidade
não é a regra porque as relações que instituem a caridade são triangulares e
incluem Deus como pólo determinante.
Falar dos laços que instituem a caridade ou a fraternidade espiritual de
todos os cristãos são duas maneiras de exprimir uma mesma realidade. De resto,
a segunda é igualmente uma relação triangular, unindo os fiéis através de sua
filiação comum em Deus (e não se deve se surpreender em constatar que as con-
frarias, instituições fundadas sobre os laços de irmandade espiritual, são, por
vezes, chamadas de "caridades"). É preciso lembrar, ainda, que o amor de cari-
dade tem seus limites, assim como a fraternidade espiritual, que, como vimos,
exclui os não-cristãos. Se a caridade convida a amar o homem "pelo que há de
Deus nele", são Tomás se apressa em acrescentar que ela obriga, igualmente, a
detestar tudo o que não é divino nele, e conclui daí que se pode odiar os peca-
dores a ponto de matá-los por caridade. O amor cristão se transforma em ódio e
a unidade tem por reverso a exclusão que a reforça. É dessa maneira que a socie-
dade cristã é fundada sobre um laço de amor espiritual entre seus membros, pau-
tado na potência divina, e compreende-se que esse modelo, estreitamente asso-
ciado às representações do grande corpo coletivo e da fraternidade generalizada,
pretenda garantir-lhe uma coesão excepcional. Poder-se-á concluir daí que a cari-
dade, cimento da cristandade e fundamento de um regime de circulação genera-
lizada e desinteressada, é um princípio essencial do feudalismo, radicalmente
oposto às regras da troca mercantil, que se impõem no sistema capitalista.
Dessa oposição diametral entre caridade e capitalismo pode-se mencionar
uma ilustração exemplar em Chiapas, no início do século XX, onde o desenvol-
vimento do capitalismo é conjugado com formas de exploração de tipo feudal.
Mariano Nicolas Ruiz, surpreendente produto desses curtos-circuitos temporais
e representante do antícapitalismo dos grandes proprietários fundiários, não
hesita, para defender a servidão dos camponeses, em propor o que se pôde defi-
nir como um "socialismo feudal". Em seus Errares económicos del socialisnw,
publicado em Comitan, em 1921, ele procura justificar um sistema que consi-
dera um conjunto de prestações mútuas - subordinação e fidelidade exigidas
de uns, proteção oferecida pelos outros. Ele evoca para tanto a ajuda insubsti-
tuível da religião, precisando até mesmo que o complexo de relações que ele
deseja manter "é o fruto da caridade cristã". Não se poderia dizer de melhor
modo que o amor de caridade não supõe absolutamente uma comunidade igua-
litária, mas que seu objetivo é, ao contrário, garantir a solidariedade de relações

A Cl VI I.IZAC,:AO F EU IJAL 479


interpessoais, porém desiguais (de dependência e de fidelidade). A caridade
situa-se, assim, com toda a clareza, do lado do anticapitalismo, pois ela contra-
diz a constituição de relações mercantis independentes das relações interpes-
soais. Ela é absolutamente estranha a um universo dominado pela economia,
que reconhece o interesse material como valor essencial e a acumulação do
capital como objetivo principal. Poder-se-ia dizer, então, que na Idade Média é
lícito acumular bens materiais, como o faz a Igreja, por exemplo, sob a condição
de que eles sejam finalmente destinados a entreter o circuito da troca generali-
zada: então, a acumulação é aí submetida à exigência da troca, enquanto, no sis-
tema capitalista, o desenvolvimento das trocas contribui à acumulação - do
lucro e do capital. Característica das sociedades pré-capitalistas fundadas sobre
a "repulsa coletiva do lucro" e a produção de habitus desinteressados (Pierre
Bourdieu), a caridade pertence a um mundo que não é mais o nosso. E se a fra-
ternidade de todos os cristãos parece ter encontrado refúgio na divisa da revo-
lução francesa, é de outra coisa bem diferente que se trata desde então, pois as
regras do mercado progridem reduzindo a caridade a um simples gesto e des-
truindo a comunidade fraternal que, ao mesmo tempo que se associava a sóli-
das hierarquias sociais, lhe dava seu verdadeiro sentido.

480 ]érôme Baschet


.....
,..

VI

A EXPANSÃO OCIDENTAL
DAS IMAGENS

No OCIDENTE MEDIEVAL, as imagens adquirem uma importância que cresce


incessantemente. Elas dão lugar a práticas cada vez mais diversificadas e têm
papéis múltiplos no seio da complexidade das interações sociais. Essa importân-
cia das imagens é o resultado de um processo histórico lento e marcado por for-
tes tensões. Ao termo deste, as práticas das imagens tornam-se um dos traços
distintivos da cristandade medieval - na sua relação com o mundo judaico e o
islã-, e logo uma das armas da guerra de conquista que se trava em terras ame-
ricanas. Não pode haver, então, compreensão global do Ocidente medieval sem
uma análise de suas experiências da imagem e do campo visual.
Se o termo "imagem" é utilizado aqui, como os historiadores recentemen-
te adquiriram hábito de fazê-lo, é para escapar à noção de Arte que, esboçada
durante o Renascimento e forjada principalmente pela Estética a partir do
século XVIII, não é pertinente para a Idade Média. Não existe então finalidade
estética autônoma, independentemente da realização de edifícios ou de objetos
com uma função cultuai ou de devoção. Do mesmo modo, a noção de artista
não é distinguida da de artesão, mesmo se os criadores medievais (artifex, opi-
fex) são com menos freqüência anônimos do que se crê, e embora alguns den-
tre eles se beneficiem de um notável prestígio, em particular os arquitetos e os
ourives (um deles, Vuolvinus, já inscreve seu nome no altar em ouro de Santo
Ambrósio de Milão, por volta de 840). A noção de imagem tenta, então, esca-
par do anacronismo de uma categoria - a Arte - inadaptada à época medie-
val e ligada à percepção atual das obras, separadas de sua designação inicial e
transplantadas a um quadro de museu. A palavra "imagem" não deixa, entretan-
to, de apresentar perigos e seria lamentável se ela fizesse esquecer a dimensão
estética das obras, pois existe, na Idade Média, uma "atitude estética" e uma

A CIVILIZA<,:AO I'EUOAL 48J


noção do belo que são parte integrante das concepções e das práticas das ima-
gens (Meyer Schapiro). O funcionamento das obras repousa largamente sobre
suas virtudes formais e sobre os efeitos que elas são suscetíveis de produzir no
espectador. Se é melhor renunciar a incluir as obras medievais na categoria de
"arte", é forçoso, entretanto, admitir que nelas existe arte, quer dizer, um conhe-
cimento e valores formais que conferem a cada uma seu estatuto e a potência
que a torna eficaz. No mais, seria incômodo que a palavra "imagem" conduzis-
se a isolar a representação figurativa do suporte material em que ela se manifes-
ta, pois não existe, na Idade Média, representação que não seja vinculada a um
lugar ou a um objeto que tenha uma função (no mais das vezes, litúrgica).
Convém, então, considerar o que se pode nomear de imagem-objeto, quer dizer,
objetos ornados e sempre em uma situação, participando da dinâmica das rela-
ções sociais e das relações entre os homens e o mundo sobrenatural.

UM MUNDO DE IMAGENS NOVAS

Entre iconoclastia e idolatria: a via média ocidental

Fazer imagens não é algo que vai por si mesmo. Como outras, a sociedade medie-
val enfrentou estas questões: É lícito fazer imagens? De que tipos e para quais
usos? As respostas a essas interrogações formam a história ocidental das imagens,
que pode ser assim resumida: aceitação progressiva da representação do sagrado,
ampliação dos usos das imagens e diversificação de suas funções, desenvolvi-
mento maciço de sua produção. Vários fatores induziam, entretanto, a uma forte
resistência às imagens. A interdição das imagens materiais figura nas Tábuas da
Lei de Moisés (Ex 20,4), e numerosas passagens do Antigo Testamento denun-
ciam as recaídas idólatras do povo eleito, tais como a adoração do Veado de Ouro.
De resto, o judaísmo e o islã, que permaneceram, em princípio, fiéis ao manda-
mento divino, não deixam de denunciar o caráter idólatra da prática cristã da
imagem. Os clérigos ocidentais devem defender-se contra tal crítica, notadamen-
te nos tratados antijudaicos que se multiplicam a partir do século XII e exageram
a polêmica até inverter paradoxalmente a acusação de idolatria contra os judeus
e os muçulmanos (Michel Camille). Além disso, o cristianismo dos primeiros
séculos (por exemplo, em Tertuliano) dá provas de um verdadeiro ódio do visível,
assimilado - conforme a tradição platônica - ao mundo das aparências e do
engano, ainda mais porque é necessário, naquele momento, distinguir-se das prá-
ticas da imagem características do paganismo.

482 ]érôme Basche!


Os motivos da resistência à imagem são, então, numerosos e,,.de fato, o
mundo cristão conhece, ao longo de sua história, períodos de denúncia das ima-
ge!"ls e mesmo de iconoclastia. O mais intenso, já mencionado, concerne ao
Oriente bizantino que, entre 730 e 843, alterna fases de iconoclastia e icono-
dulia. 36 No Império assediado, submetido à mais intensa ofensiva do islã, per-
gunta-se com inquietude "como encontrar, em uma sociedade condenada a um
estado de mobilização perpétua, sinais bem visíveis de reagrupamento para
um povo batizado, atacado impiedosamente" (Peter Brown). Segundo os parti-
dários da iconodulia, as imagens fazem descer Cristo e os santos entre os fiéis,
para ajudar em sua defesa. Mas os imperadores que resistem mais eficazmente
à pressão muçulmana afirmam, ao contrário, que as imagens são a causa da
cólera de Deus contra seu povo - como no Antigo Testamento - e recomen-
dam que só sejam admitidos símbolos tão incontestes como a cruz, de modo que
se urde então uma associação entre um poder imperial forte e a ausência de
imagens. Depois, uma vez que o pior perigo passou e que o Império se reinsta-
la em sua estabilidade, a "ortodoxia" da iconodulia se impõe definitivamente
(843), na base de uma teologia do ícone, da qual João Damasceno é um dos
principais representantes. A aceitação das imagens se submete a certas restri-
ções, pois se os ícones tornam visível o invisível e ajudam o homem a se aproxi-
mar de Deus, eles não poderiam ser nem arbitrários, nem originais: "Podiam ser
veneradas apenas as imagens que os dirigentes do clero declaravam ter sido
transmitidas aos fiéis pela tradição da Igreja, sob uma forma bem precisa e, teo-
ricamente, imutável" (Peter Brown).
O debate bizantino não deixa de repercutir no Ocidente e a recepção das
decisões do Concílio de Nicéia 11 (787), que reabilita por uma primeira vez no
Oriente o culto às imagens, gera conflito entre a corte carolíngia e o papado.
Rejeitando a proposição do papa Adriano 1 de admitir no Ocidente um culto às
imagens idêntico ao dos ícones do Oriente, Carlos Magno e sua corte redigem
os Libri carolini (781-94), nos quais se defende uma posição muito restritiva em
relação às imagens. Se não é questão de destruí-las, deve-se, ao menos, descon-
fiar das ilusões de que elas são portadoras: não é somente pela inscrição de que
ela é provida que a imagem da Virgem se diferencia da de Vênus? Segundo a
corte carolíngia, as imagens só podem ter utilidade reduzida e é preciso evitar
homenageá-las excessivamente. Em conseqüência, a lista de objetos sagrados

36. Próximo de iconofilia, o termo iconodulia (formado a partir do grego douleia, servidão, submis-
são) indica uma postura favorável à veneração das imagens, sendo menos comprometido que ico-
nolatria, que, sobretudo no discurso dos seus opositores, denota negativamente uma adoração
(indevida) da imagem, aproximando-se de idolatria. Mais abaixo, o autor estabelece outra distin-
ção entre dulia e latria. (N. T.)

A CIVILIZAÇÃO ~EUDAL 483


que merecem ser associados ao culto cristão se reduz, para se limitar essencial-
mente às Escrituras, à hóstia, às relíquias e à cruz. Esta é, então, objeto de viva
exaltação, que relembra o Império constantiniano, fundado ideologicamente
sobre o signo triunfante da cruz, objeto da visão que assegura a Constantino a
vitória da ponte Milvius e conduz à sua conversão. E se a corte de Carlos Magno
procura se dissociar da idolatria.. atribuída aos gregos, sob Luís, o Piedoso, é o
excessivo inverso que é preciso combater (a iconoclastia do bispo Cláudio de
Turim), o que induz a uma atitude mais favorável às imagens, expressa notada-
mente por Jonas de Orleans. Na seqüência, explosões iconoclastas, ou pelo
menos rejeições de imagens, irrompem periodicamente no Ocidente, em rela-
ção aos movimentos heréticos, desde os de Orleans ou de Arras, no início do
século XI, até os hussitas e a Reforma, passando pelos valdenses e pelos cátaros.
Essa contestação é o signo de que as imagens tomaram-se, ·então, um dos ele-
mentos constitutivos do sistema eclesial.
Embora marcado por uma herança hostil à representação e, por isso mesmo,
trabalhada por uma tentação iconoclasta, o Ocidente cristão termina por assu-
mir as imagens e por reconhecer-lhes papel cada vez mais importante. Essa
abertura é realizada menos na esteira da teologia grega do ícone do que sob a
cobertura da posição moderada adotada pela Igreja Romana, na seqüência de
Gregório, o Grande. No ano 600, em sua carta ao bispo iconoclasta Serenus
de Marselha, o papa recrimina a destruição das imagens e justifica seu uso afir-
mando que elas preenchem uma útil função de instrução: elas permitem aos ile-
trados compreender a história sagrada ("nelas, podem ler aqueles que ignoram
a escritura"). Elas são um substituto do texto sagrado, que implicam, como este,
uma operação de leitura, mas desvalorizada pelo estatuto subalterno de seus
destinatários. Desenvolvend~s propósitos de Gregório, os clérigos qualificarão
muitas vezes as imagens, a partir do século XII, de "letras dos laicos" (litterae lai-
corum, litteratura laicorum). Mas isso autoriza a considerar as imagens medie-
vais a "Bíblia dos iletrados"? Deve-se, antes de tudo, recusar esse lugar-comum,
inspirado nos trabalhos pioneiros de Émile Male e que se reveste indevidamen-
te com a autoridade de Gregório, o Grande. Essa expressão tornou-se uma espé-
cie de fórmula mágica, criando obstáculos à compreensão do estatuto das ima-
gens na sociedade medieval, de suas funções e, mais ainda, de suas práticas.
As próprias concepções de Gregório, o Grande, não se deixam reduzir a
esse enunciado restritivo. De um lado, sua carta insere-se em um contexto mar-
cado pela preocupação de conversão dos pagãos e pela necessidade de defender
a imagem nas circunstâncias criadas pela iconoclastia de Serenus. É por isso
que o papa deve legitimar a imagem, aproximando-a da única fonte de verdade
reconhecida por todos: as Escrituras. De outro lado, Gregório não menciona

484 }érôme Baschet


somente a função de instrução das imagens, mas sublinha que elas contribuem
para entreter a memória das coisas santas e que emocionam o espfrito humano,
suscitando nele um sentimento de componction que eleva a uma adoração de
Deus. Tem início, assim, o reconhecimento de uma dimensão afetiva na relação
com as imagens, que aparece mais claramente ainda em uma outra carta de
Gregório, o Grande, destinada ao eremita Secundinus, na qual uma passagem
acrescida no século VIII compara o desejo de contemplar a imagem sagrada ao
sentimento amoroso. Instruir, rememorar, emocionar: tal é a tríade das justifica-
ções da imagem que os clérigos retomam ao longo de toda a Idade Média. Por
vezes, ela é ligeiramente alterada, como quando Honorius Augustodunensis
adota, como terceira razão, a necessidade de conferir às igrejas uma ornamen-
tação digna de Deus (uma função que poderíamos qualificar de estético-litúrgi-
ca). Mas, com mais freqüência, é mesmo a função emocional, pela qual a ima-
gem excita o fervor do fiel, que é sublinhada. E certos teólogos, como Tomás de
Aquino, admitem até que a devoção é mais facilmente suscitada pelas imagens
que vemos do que pelas palavras que escutamos.
Nos séculos XII e XIII, a teologia ocidental da imagem valoriza ainda mais o
papel espiritual das imagens, desenvolvendo a noção de transitus, processo pelo
qual, "através da semelhança das coisas visíveis, somos elevados até a contem-
plação das coisas invisíveis" (Hugo de Saint-Victor). Suger, abade de Saint-
Denis, leva particularmente longe essa concepção (chamada anagógica 37 ) da
imagem e empenha-se em colocá-la em prática na renovação de sua basílica.
Para ele, a profusão de imagens e a riqueza da decoração contribuem para trans-
portar o espírito humano para as esferas celestes; mas sua concepção bastante
"grega" da anagogia, inspirada pelas obras neoplatônicas do Pseudo-Dioniso, o
Aeropagita, longe de reduzir as imagens a uma espécie de meio instrumental,
conduz a assumir plenamente a materialidade e o valor estético das obras (Jean-
Claude Bonne). Por outro lado, os teólogos preocupam-se em definir compre-
cisão a atitude legítima em relação às imagens. Assim, para justificar o culto às
imagens, retoma-se de bom grado uma fórmula de João Damasceno, segundo a
qual "a honra prestada à imagem transita em direção ao protótipo", quer dizer,
a pessoa divina ou santa que ela representa. O culto não é prestado, então, à
própria imagem, como os idólatras são acusados de fazer, mas à figura represen-
tada pela imagem. Em todo caso, os teólogos qualificam as práticas suscitadas
pela imagem em termos cada vez mais valorizadores. Assim, a distinção clássi-
ca no Oriente entre o culto de latria (reservado unicamente a Cristo) e o culto

37. Do grego anagogé, "ato de elevar, fazer subir"; no domínio religioso, refere-se à elevação espi-
ritual através da contemplação da dimensão divina das coisas. (N. T.)

A C I V I L ll AÇÃO F EU O A L 48 5
de dulia (que se manifesta pela "proskynese", ou prosternação, diante das ima-
gens e objetos sagrados) apaga-se, especialmente em Alberto, o Grande, e
Tomás de Aquino. Este último dá o passo decisivo, afirmando que a imagem de
Cristo merece a honra de latria tanto quanto o próprio Cristo: a partir daí, o
culto prestado à imagem torna-se inseparável do culto prestado ao protótipo que
ela dá a ver (Jean Wirth).-As imagens do Ocidente e suas práticas encontraram
plenamente, então, sua justificação teológica.

Suportes de imagens cada vez mais diversificados

Não sem debates e conflitos, as concepções da imagem evoluíram muito ao


longo da Idade Média. Nem por isso os discursos sobre a imagem são os refle-
xos fiéis de seus usos efetivos. Convém, então, prestar atenção ao desenvolvi-
mento das práticas e, em primeiro lugar, à diversificação dos tipos de imagens
utilizadas. Se os primeiros cristãos ornavam com pinturas suas catacumbas
(séculos III e IV), a Igreja instituída encarna-se nos amplos edifícios ornados de
mosaicos que são as basílicas italianas dos séculos v e VI, nas quais a nave exibe
ciclos narrativos dos dois Testamentos e a abside mostra imagens de Cristo ou
da cruz (Santa Maria Maggiore e São Pedro, em Roma, Santo Apolinário Novo
e São Vital, em Ravena). Os modelos romanos são, então, exportados para o
resto do Ocidente, como testemunham as pinturas que o abade Bento Biscop
traz de Roma, por volta de 680, para ornar as igrejas de seu monastério de
Wearmouth-Jarrow, nas fronteiras com a Escócia. Em outros lugares, os santuá-
rios dedicados ao culto das relíquias começam a ser ornados com uma decora-
ção que exalta a g~ndeza do santo e a potência de seus milagres (por exemplo,
em torno do túmulÓ de são Martinho, em Tours, no século VI).
Embora ainda pouco numerosas e pouco diversificadas, as imagens conhe-
cem um primeiro desenvolvimento notável durante o período carolíngio. A des-
peito das teorias restritivas em vigor na corte imperial, certos testemunhos dei-
xam perceber, sobretudo a partir de meados do século IX, um desenvolvimento
das práticas associadas às imagens, essencialmente nos meios monásticos ou
para os personagens excepcionais conhecidos pelas narrativas hagiográficas. Se
as Escrituras e a cruz (desprovida de representação) devem, então, concentrar o
essencial das atitudes de adoração, diversas imagens desenvolvem-se sem ser
objeto de uma veneração ritualizada. Ao lado dos conjuntos monumentais de pin-
turas e de mosaicos, pouco freqüentes e raramente de grande amplitude, a arte
carolíngia excele principalmente na decoração pintada dos manuscritos (Bíblias,
Evangelhos e manuscritos litúrgicos), cuja encadernação é, no mais, muitas

486 }érôme Baschet


vezes ornada de placas de marfim finamente esculpidas. Es~es manuscritos de
grande luxo, realizados para o imperador, para seus próximos ou para os grandes
monastérios que são ligados a ele, contêm miniaturas muito apuradas, que repre-
sentam, em primeiro lugar, Cristo e os evangelistas, assim como outros santos e,
por vezes, o imperador e alegorias relativas ao seu poder (figura 2, na p. 37). Mas
não existe, na época carolíngia, nem pinturas realizadas em painéis de madeira,
que se pareceriam excessivamente com os ícones bizantinos, nem estátuas, que
evocariam excessivamente os ídolos pagãos.
Jean-Claude Schmitt sublinhou como se opera, a partir de meados do século
x e por volta do ano mil, "uma completa alteração de tendência, marcada pela
promoção de imagens cultuais tridimensionais autônomas". Enquanto nas igre-
jas, anteriormente, dispunha-se somente de um signum crucis, uma simples
cruz (como aquela da visão de Constantino, que portava somente a inscrição
"Por este signo, vencerás"), passa-se, agora, à imago crucifixi, quer dizer, a repre-
sentação em três dimensões de Cristo na cruz. Um dos mais antigos crucifixos
monumentais ·conhecidos é o do arcebispo Gero de Colônia, que desde logo se
torna célebre por seus milagres e é rapidamente imitado. No mesmo momento,
aparecem as primeiras estátuas-relicários, como a da Virgem com o Menino da
catedral de Clermont (por volta de 984) ou a de Santa Fé em Conques (figura
48, na p. 489). Totalmente inéditos, tais objetos, que são chamados então de
"majestades" (majestas), devem vencer muitas reticências e provar sua legitimi-
dade. Esta é assegurada, em primeiro lugar, pelo fato de que eles contêm relí-
quias. De fato, estas imagens-objetos são relicários antes de ser estátuas, e é
somente a partir do século XII, após uma etapa de legitimação pelas relíquias,
que se começa a pôr sobre os altares as estátuas da Virgem com o Menino ou
de um santo que não são mais, ao mesmo tempo, relicários. Uma outra legiti-
mação é fornecida pelos sonhos, que revelam aos vivos as virtudes da imagem,
graças a uma intervenção sobrenatural da figura santa que ela representa. Não
seria necessário menos para vencer as reticências que a novidade de tais obje-
tos poderia suscitar.
Assim, o mestre-escola de Tours, Bernardo de Angers, que descobre em
Conques e em outras igrejas do Sul da França as práticas às quais dão lugar
estas estátuas-relicários, vê nelas, de início, apenas idolatrias. Mas ele não
demora a se convencer das virtudes da majestade de Santa Fé, a ponto de com-
por a compilação de seus milagres (Livro dos milagres de Santa Fé, c. 1007-29).
Ele descreve, então, a estátua que os fiéis admiraram, tomados de fascínio pelo
olhar da santa que, sob a oscilação das velas, parece se animar; eles se proster-
nam aos seus pés, ou dormem ao seu lado na esperança de que ela se manifes-
te. De fato, a santa aparece em sonho, seja para gratificar seus fiéis, seja para

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 487


reclamar-lhes mais presentes, ou ainda para fustigar aqueles que denegriram
sua imagem. Como a de Santa Fé, outras estátuas-relicários são objeto de um
culto à altura de seu renome miraculoso e atraem peregrinações com freqüên-
cia consideráveis. Elas se tornam o emblema dos estabelecimentos eclesiásticos
que as detêm e seu principal tesouro de força espiritual, e são carregadas em
procissão cada vez que é necessário defender os direitos do clero sobre suas pos-
sessões. Assim, quando do sínodo de Rodez, em I 031, todas as "majestades" da
região, inclusive a de Santa Fé, participam do evento e reúnem-se em ordem
de batalha para fazer face à rapacidade dos laicos.
Uma vez realizada essa decisiva "revolução das imagens" (Jean-Claude
Schmitt), ao longo dos séculos X e XI o desenvolvimento se acelera. Os tipos de
imagens diversificam-se notavelmente. A pintura em painéis de madeira reapa-
rece no Ocidente (de início, sob forma de antependium, que decora a frente do
altar, quando este não é nem esculpido em pedra, nem trabalhado em metal).
Depois, no início do século Xlll, em relação à afirmação da transubstanciação e
do ritual da elevação, aparecem sobre o altar os primeiro retábulos, representan-
do o santo padroeiro ou a Virgem e com as laterais ornadas com episódios nar-
rativos (o mesmo ocorre com as cruzes pintadas, suspensas acima do altar).
Pouco a pouco, os retábulos ampliam-se e sua estrutura torna-se mais comple-
xa (acréscimo de painéis laterais na segunda metade do século XIII, multiplica-
ção dos pináculos e dos espaços secundários ornados de santos cada vez mais
numerosos, e distinção de uma zona inferior chamada predela). A partir do
século XIV trata-se em geral de polípticos, dotados de painéis que são abertos
durante as celebrações e que, dessa forma, prolongam o retábulo para além das
dimensões do próprio altar.
Não men~otável é o desenvolvimento da estatuária monumental, marca-
da especialmente pela invenção medieval dos capitéis povoados de animais,
figuras e cenas cada vez mais variadas. Se a Antiguidade atinha-se aos estilos
geométricos ou vegetais bem codificados, ao passo que raras tentativas para
escapar ao repertório antigo são reparáveis durante a Alta Idade Média (São
Pedro de la Nave, século VII), é no início do século XI que a decoração-dos capi-
téis começa a se diversificar e a animar-se, para tornar-se, no século XII, um dos
lugares favoritos onde se manifesta a inventividade dos criadores românicos
(figura li, na p. 172). No século XI, as portas das igrejas transformam-se, igual-
mente, em um outro suporte privilegiado da expansão da decoração esculpida.
O lintel é o elemento mais precocemente ornado (Saint-Genis des Fontaines,
no Roussillon, c. 1200), seguido pelo acréscimo de colunas e capitéis de ambos
os lados do portal. Por volta de li 00 aparecem os primeiros tímpanos esculpi-
dos, integrando-se em conjuntos cada vez mais complexos (pilastras centrais;

488 ]ér6me Baschet


48. A majestade de Santa Fé de Conques, século X (?) (Tesouro da Abadia).
Resplandecendo de ouro e de gemas, a estátua-relicário de Santa Fé contém, no busto, um fragmento de crâ-
nio, suposta relíquia da mártir. Ela é formada por elementos compósitos (a cabeça é, provavelmente, a de um
imperador romano do século IV ou do V; em seu vestido e em seu trono são incrustados vários camafeus e enta-
lhes antigos, um dos quais mostra o imperador Caracala; seus brincos são, provavelmente, jóias árabes etc.).
Particularmente impressionante, a estátua focaliza a atenção dos peregrinos, impressionados por uma intensa
fulguração que parece o signo da presença vivifkante da santa, e fascinados pela força que as duas pupilas de
esmaltado azul-escuro dão ao seu olhar.
multiplicação de aduelas e de pés-direitos, por vezes ornados de estátuas-colu-
nas, como em Chartres; associação de um pórtico em saliência, que, sem dúvi-
da, ecoa o arco do triunfo antigo, como em Moissac e em Conques, como visto
na figura 36, na p. 310). É bastante fácil entender essa insistência na decora-
ção das portas em um mundo no qual as representações espaciais estão funda-
das na oposição entre.o interior e o exterior (segunda parte, capítulo 11). Esta é
uma maneira de valorizar, cada vez mais vigorosamente, o limiar por excelência,
através do qual se deixa o mundo exterior para penetrar no lugar mais interior
possível, concebido à imagem da Igreja celeste. Além disso, uma equivalência
simbólica é estabelecida entre a porta e Cristo, o qual dá acesso à salvação. Se,
na época românica, a decoração das portas contrasta com o resto da fachada,
cujo muro permanece muitas vezes nu ou ornado somente de simples frisos,
pouco a pouco as esculturas ganham amplitude e terminam por articular a tota-
lidade da fachada, como é o caso, finalmente, nas grandes catedrais góticas
(figura 16, na p. 198). Além da ampliação da decoração dos objetos litúrgicos
(cálices e cruzes para procissões, vestimentas e tecidos, cajados e candelabros
[como visto nas figuras 12, nas pp. 176 e 177, e 20, na p. 209], assim como as
pias batismais, a cátedra do bispo, a tribuna do coro ou o trono, no mais das
vezes em pedra ou bronze) é preciso sublinhar a importância dos vitrais, grande
invenção medieval que aparece no século XI, cujo desenvolvimento é notável a
partir de 1100, e sobretudo no século XIII (figura 18, na p. 204).
Entre os séculos XI e XIII, a expansão das imagens opera-se tanto pela con-
quista de novos suportes - entre os quais, é preciso também considerar os
selos e as pequenas insígnias metálicas trazidas dos santuários de peregrinação
- , como pe!o recurso crescente aos antigos suportes. Tal é o caso da miniatu-
ra: à produçfo multiplicada de manuscritos, cada vez com mais freqüência des-
tinados às elites laicas, junta-se a crescente vastidão dos ciclos iconográficos e
de sua decoração. Se os suntuosos manuscritos carolíngios eram ilustrados com
algumas dezenas de páginas pintadas, os ciclos ilustrados atingem várias cente-
nas de imagens desde a primeira metade do século XI (por exemplo, na Paráfrase
de Aelfrico, adaptação anglo-saxônica do texto bíblico). Logo aparecem manus-
critos em que a imagem sobrepõe-se ao texto: a Bíblia de Pamplona, realizada
em 1197 pelo rei Sanchez VII de Navarra, inclui 932 ilustrações, mas não demo-
ra a ser superada pelas Bíblias moralizadas, pintadas pela corte do rei da França
a partir dos anos 1215-2 5, que comportam cerca de 5 mil medalhões decorados
com cenas (figura 52, na p. 513). Do mesmo modo, as decorações murais das
igrejas, pintadas no mais das vezes com técnica de afresco ou a seco (o mosai-
co sendo utilizado somente na Itália, como visto na figura 4 7, na p. 4 72),
ampliam-se e generalizam-se até nos edifícios rurais mais modestos. Elas apare-

490 }érôme Baschet


cem também nos palácios episcopais e pontifícios, depois n9~ palácios reais (por
exemplo, no quarto de Henrique III, em Westminster, c. 1220-30) e municipais
(no Palácio dos Priores de Perúgia, em 1297, depois em Siena, como visto na
figura lO, nas pp. 152 e 153), e, um pouco mais tarde, nas residências senho-
riais ou citadinas, até então ornadas principalmente com forrações murais e
tapeçarias. Assim, após ter estado muito próximo da recusa iconofóbica das ima-
gens durante a Alta Idade Média, e a despeito das contestações heréticas das
quais elas são periodicamente objeto, o Ocidente dos séculos X a XIII abre-se às
imagens; ele passa de uma iconicidade restrita a uma iconicidade sem reservas
e transforma-se em um universo de imagens, bastante diferente, é verdade,
segundo o meio social, mas abrigando, em todo caso, a totalidade da cristanda-
de em seu manto de cores e de formas.

Liberdade artística e inventividade iconográfica

Essas imagens, produzidas em quantidade crescente, não são absolutamente


uma arte estereotipada, normativa e imóvel, que reproduz passivamente a dou-
trina da Igreja. Émile Male pensava assim ("Os artistas foram somente os intér-
, pretes dóceis dos teólogos", contentando-se em traduzir "tudo o que os enciclo-
pedistas, os exegetas da Bíblia disseram de essencial") e valia-se dessa tese para
conceber o seu estudo da arte do século XIII como um decalque da obra enci-
clopédica do dominicano Vicente de Beauvais (Espelho da Natureza, Espelho
doutrinal, Espelho moral e Espelho historial). Ao contrário, eu defenderia, aqui,
que a Idade Média ocidental, a partir do século IX, e mais claramente ainda do
século XI, é um período de liberdade para as imagens e de excepcional inventi-
vidade iconográfica. Mas em que consiste essa "liberdade" da arte, uma vez que
não se deve esquecer absolutamente da intervenção dos comanditários, quer
dizer, no mais das vezes a Igreja, instituição que faz pesar sobre a sociedade uma
poderosa dominação? Não se poderia entendê-la em um sentido absoluto, que
suporia subtrair-se das condições históricas de produção e, em primeiro lugar,
do domínio da Igreja. A liberdade de que é questão aqui designa, antes, uma
abertura dos campos de possibilidades, no seio de um espaço social dominado
pela instituição eclesial, e até mesmo quase inteiramente desenhado por ela.
Mas, justamente, a Igreja é um corpo tão vasto, tão tentacular, que não poderia
ser homogêneo. Ela é atravessada por tensões e animada por contradições, por
vezes vivas. A doutrina também não é una; ela evolui, é objeto de debates, dá
lugar a conflitos, inclusive no seio da ortodoxia. Ela é modulada a partir da alta
especulação dos teólogos até as obras de divulgação, passando por suas repre-

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 49)


49. A Virgem que se abre e a Trindade. c. 1400 (Museu de Cluny, Paris).
Objetos originários dos séculos XIV e ~v. as Virgens que se abrem são estátuas de madeira dotadas de dois pai·
n<'is laterais móveis. Fechada, a estátua é uma representação clássica de Maria com o Menino Jesus em seus
braços. Aberta. ela mostra, diante do busto de lVIaria, a Trindade, objeto de veneração de altos dignitários (reis
c rainhas. papa e bispos). Aqui, a Trindade toma forma do 'Trono da graça": o Pai, sentado, segura Cristo cru-
cificado, enquanto a pomba do Espírito Santo (que se perdeu, nesta peç·a) inscreve-se entre eles, no eixo mediano.
Trata-se de urna figuração vertical da Trindade, que diferencia ainda mais o Pai do Filho, já que mostra este últi-
mo sob a forma de sua humanidade sofredora. O chance ler da Universidade de Paris, João Gerson ( 1'363-1429),
denuncia as Virgens que se abrem porque, a seus olhos, parecem sugerir que "toda a Trindade se tornou carne
humana na Virgem Maria". Há, entretanto, outras maneiras de compreender essa representação, que, certa-
mente, não pretende significar que as três pessoas da Trindade se encarnaram e que não tinha, no espírito de
seus comanditários, nada de heterodoxo.
sentações litúrgicas e teatrais, ou ainda suas expressões devotas e místicas. Os
discursos clericais podem integrar tradições que, tendo sido de início estranhas
à doutrina, fazem plenamente parte dela em seguida, como as narrativas apócri-
fas da vida de Cristo e da Virgem.
No mais, o Ocidente medieval caracteriza-se, diferentemente do mundo
bizantino, por uma fraca intervenção normativa dos clérigos no domínio das
imagens. A posição restritiva adotada pelos carolíngios teve, a esse respeito, um
efeito paradoxal: limitadas a funções pouco elevadas, sem interferência nos ritos
essenciais da Igreja, as imagens escapam, assim, às fortes constrições doutrinais
que pesam sobre ela em Bizâncio, sendo, aqui, um simples labor humano, dei-
xado ao controle dos artesãos. E se, durante a Idade Média Central, os clérigos
relembram com freqüência as funções das imagens e evocam por vezes certos
significados dos temas principais, raras são as intervenções que visam fixar, cor-
rigir ou condenar os modos de representação (será totalmente diferente após o
Concílio de Trento, quando o Tratado das imagens santas, de Molanus, torna-se
a expressão de uma vontade de controle clerical sobre a iconografia). Constata-
se, então, uma fluidez figurativa que contrasta, de maneira surpreendente, com
a estabilidade muito maior das fórmulas iconográficas da arte bizantina. Essa
"liberdade" da arte é admitida até mesmo teoricamente, como testemunha o
Racional dos divinos ofícios, de Guilherme Durand, que afirma que as pinturas
podem representar as cenas bíblicas "segundo sua conveniência" e retoma,
~o outros, o antigo Dictum Horatii ("Os pintores e os poetas sempre tiveram
igual faculdade de ousar tudo o que queriam").
Nesse contexto, as críticas de alguns clérigos, q~e condenam certos tipos
iconográficos, confirmam a contrario a margem de manobra da criação figurati-
va (assim, por volta de 1230, o bispo Lucas de Tuy troveja em vão contra essa
novidade que é, então, o crucifixo com três cravos). Tais protestos mostram, no
mais, que as imagens operam, por vezes, nas bordas da ortodoxia e criam repre-
sentações cuja ambigüidade faz com que pareçam ora lícitas, ora inadmissíveis.
No século XV, é conhecida a intervenção do arcebispo Antonino de Florença
contra as Anunciações que mostram Cristo descendo, sob a forma de uma
criança, para a Virgem (o que, segundo ele, sugere indevidamente que a huma-
nidade de Cristo preexiste à sua encarnação), ou ainda a de Gerson, o chance-
ler da Universidade de Paris, condenando as estátuas das Virgens que se abrem,
no interior das quais aparece toda a Trindade (e que não deixam de ser produ-
zidas por causa disso; figura 49, nas pp. 492 e 493). Mas tais críticas permane-
cem raras e constituem, no máximo, opiniões pessoais, eminentes é verdade,
mas que não têm força de decisões doutrinais ou disciplinares (no mais,

494 }érôme Baschet


Molanus proporá uma leitura alternativa, que isentará as Anunc!é!.ções incrimi-
nadas por Antonino de Florença).
Entretanto, as imagens, como a cultura medieval em seu conjunto, repou-
sam sobre o reconhecimento de um forte valor de tradicionalismo. O prestígio
de uma obra depende, muitas vezes, de sua referência a um protótipo venerá-
vel, que é uma maneira de reverência a uma obra dotada de uma irradiação
inconteste. Mas isso não impede em nada o artista de transformar seu modelo,
sob a cobertura da homenagem que ele lhe presta. É por isso que o tradiciona-
lismo da arte medieval deve ser pensado menos através da categoria de "mode-
lo", copiado passivamente, do que segundo a noção de "citação", quer dizer, de
referência ativa, que não exclui absolutamente uma criação própria (Herbert
Kessler). Tais citações têm, geralmente, um alcance ideológico claro, por exem-
plo, quando as obras produzidas em Roma na época gregoriana fazem referên-
cia ao estilo paleocristão para significar a vontade de reforma e de retorno evan-
gélico, ou quando a decoração mural de São Pedro se torna objeto de diversas
"cópias", que são ao mesmo tempo adaptações originais, mas cuja intenção
comum é manifestar o reconhecimento da autoridade pontifícia. Esse tradicio-
nalismo anunciado das imagens medievais não impede absolutamente, então,
sua inventividade. E é assim que, a partir do século XI, e sobretudo do século
XII, os temas iconográficos multiplicam-se, sem jamais se deixar reduzir aos
tipos figurativos imutáveis e estritamente codificados (este é o caso das figura-
ções trinitárias, das quais já se notou a variedade, como visto nas ilustrações 38
e 46, nas pp. 406 e 467-68). Aparecem mesmo diversos temas iconográficos
novos, tais como a coroação da Virgem (vista na ilustração 38) ou a árvore de
]essé. Ainda que se recorra, então, a diversas fontes das Escrituras e exegéticas
que legitimam a figuração, a imagem constitui uma criação original, sintética,
que não pode ser reduzida ao estatuto de ilustração de um versículo bíblico.
Assim, longe da idéia de uma arte homogênea, decalque passivo da doutrina da
Igreja, a vitalidade e o dinamismo da cristandade conferem à criação figurativa
uma notável margem de manobra e uma formidável inventividade.

Práticas e funções das imagens

Tratando-se de imagens associadas a práticas sociais múltiplas, a definição que


as reduziria a um papel de instrução dos illitterati é, evidentemente, insuficien-
te. As imagens medievais estão longe de ser destinadas apenas aos laicos, e elas
são, de resto, com freqüência postas em lugares reservados aos clérigos ou em
livros que só eles utilizam. Em uma igreja rural como São Martinho de Vicq, as

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 495


pinturas murais do século XII concentram-se no coro, onde apenas os clérigos
penetram e cujos muros são amplamente dissimulados aos olhares dos fiéis,
enquanto as paredes laterais da nave, onde se reúnem estes últimos, são, desde
a origem, recobertas por um simples revestimento desprovido de qualquer
representação. É verdade que a célebre diatribe de são Bernardo contra a deco-
ração dos claustros, culpada por distrair os monges em sua meditação, estabe-
lece uma distinção entre os lugares destinados aos clérigos, cuja austeridade
deve estar de acordo com a ascese da prece, e as igrejas abertas aos laicos, para
as quais o abade cisterciense admite a utilização de imagens. Mas, nessa época,
essa atitude limitativa em relação às imagens é rara e seus efeitos são pouco
duráveis. No mais, o uso abundante das inscrições no seio das imagens mostra
que não se pode opor de modo excessivamente enfático o mundo dos laicos, que
seriam espontaneamente familiarizados com as imagens, e o universo dos cléri-
gos, que chegam sem mediação às verdades das Escrituras. As obras medievais
em geral apresentam um caráter extremamente erudito, de modo que, mesmo
se elas podem produzir um efeito poderoso sobre um público laico, sua plena
compreensão requer uma cultura que apenas os clérigos possuem: o abade
Suger reconhece que a significação profunda das obras que ornam sua basílica
só é acessível aos mais sutis dos letrados.
Uma das funções mais maciças adquiridas pelas imagens diz respeito à sua
associação com o culto dos santos. Estátuas, retábulos, ciclos narrativos tornam-
se os ornamentos dos cultos dos santos ("ornamento" deve ser entendido, aqui,
não como um complemento agradável, mas no sentido que o latim clássico e
medieval dá a este termo, quer dizer, como um equipamento indispensável à rea-
lização de uma função, como as armas de um soldado ou a vela de um navio).
A partir do século XI, o culto dos santos, até lá inteiramente baseado nas relí-
quias, torna-se impensável sem as imagens. Estabelece-se, então, uma relação
triangular incessantemente mais estreita entre santos, imagens e milagres: são
as imagens que ordenam e tornam possível o culto dos santos; e, cada vez mais,
é às imagens dos santos, dotadas de grande potência, que se atribui a capacida-
de de realizar milagres. É verdade que o rigor do discurso clerical precisa sem-
pre que é o santo que faz milagres através de sua imagem (e pelo efeito da graça
divina). Pode-se falar, todavia, de imagem miraculosa, na medida em que é pela
peregrinação que ela atrai, pelas preces que são formuladas diante dela e pelos
dons que lhe são ofertados que os fiéis esperam a intervenção celeste. Se as
imagens miraculosas são, em um primeiro tempo, sempre associadas às relí-
quias, ocorre um deslocamento, sobretudo a partir do século XIII, das relíquias
para as imagens, de modo que o socorro da Virgem e dos santos pode ser obti-
do através de suas representações, sem que a eficácia destas seja apoiada pela

496 Jér{Jme Baschet


presença de relíquias. As imagens permitem, assim, uma ext~l)são do culto dos
santos, u~a multiplicação espacial das manifestações do poderio dos protetores
celestes. E o que ocorre com os painéis pintados (por vezes, transportáveis, como
0 do venerado Pedro de Luxemburgo, que é aplicado, em 1389, sobre o ventre
da princesa de Bourbon, para salvá-la de um parto difícil), insígnias e objetos
trazidos de peregrinações (o Livro de Santiago conta como um cavaleiro da
Apúlia é curado de uma intumescência da tireóide pelo contato de uma concha
trazida de Compostela) ou ainda com as pinturas murais (a captação do pode-
rio da imagem pode se dar pela visão, pelo toque e, por vezes, pela ingestão de
fragmentos raspados). O objetivo procurado é, no mais das vezes, a cura, a regu-
larização das variações climáticas, a preservação das colheitas e do gado, a pro-
teção contra os ataques do diabo, contra a doença ou, ainda, contra a morte
súbita (Dominique Rigaux). Em relação a esta última, clérigos e laicos partilham
a crença segundo a qual a visão da imagem de são Cristóvão protege de um des-
tino tão temido. É por isso que, no fim da Idade Média, se confere à sua efígie,
muitas vezes pintada no exterior das igrejas, uma dimensão monumental, a fim
· de assegurar a melhor visibilidade possível dele. De uma maneira mais geral, as
imagens encontram-se plenamente integradas ao sistema da salvação, desde o
momento em que, a partir do século XIII, a Igreja faz das preces recitadas dian-
te de algumas delas a ocasião de obter indulgências.
Desde o século XII, a importância das imagens nas práticas de devoção não
pára de crescer, de início, nos meios monásticos e nos círculos restritos de mís-
ticos, depois, para a elite laica. Esculpidas ou pintadas, nos muros ou nos livros,
elas são o suporte da mediação e de um esforço para estabelecer um contato pes-
soal com Deus, a Virgem ou os santos, fora do quadro litúrgico. Assim, imagens
aparecem nas casas dos simples fiéis (as de são Francisco são atestadas desde o
século XIII) e elas não demoram a se multiplicar, graças ao uso do papel e, em
breve, da xilografia e da imprensa. Tal busca dá lugar também a obras bem par-
ticulares, como os Cânticos de Rothschild, cujas imagens parecem criar uma
estrutura de mistério, bastante apta a cativar o desejo devoto e reativá-lo inces-
santemente (figura 46, nas pp. 467 e 468). Se tal processo é realizado, no mais
das vezes, no segredo do sentimento interior, a partir do século XIII multiplicam-
se os relatos nos quais a imagem contemplada fala, anima-se, põe-se a sangrar ou
a chorar, para não falar das visões, como a que é atribuída a são Bernardo, que
recebe em seus braços Cristo descido do crucifixo (segundo um relato atestado
somente meio século depois da morte do santo, que se torna, depois, um traço
comum na literatura hagiográfica). Tais experiências da imagem viva, atestadas
principalmente no final da Idade Média, podem ser alegres, como quando
Liutgarda, religiosa flamenga, vê o crucificado animar-se e convidá-la a beber

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 497


50. Eva pecadora, c. 1130 (lintel do portal norte da catedral de São Lázaro, conservado no Museu Rolin,
em Autun).
Esta obra é devida ao escultor Gislebertus, que assinou o Juízo Final, no portal ocidental do mesmo edifício.
Fragmento do lintel do portal norte (destruído no essencial), a escultura mostra Eva pecadora, apanhando o fruto
proibido. Conseqüência do pecado e da vergonha que ele faz nascer, sua nudez é parcialmente mascarada por
uma parreira. No entanto, ela se encontra amplamente despida e posta em evidência pelas formas arredondadas,
buscadas pelo artista. e por sua longa cabeleira devidamente penteada, lembrando assim que Eva é, por excelên-
cia, a mulher tentadora. Ela não está de pé, como em todas as imagens do pecado original, mas deitada, apoia-
da sobre seus joelhos e um de seus cotovelos. Durante muito tempo evocou-se, a seu propósito, uma pretensa
"lei do quadro", que obrigaria o artista medieval a adaptar cada figura a seu suporte, neste caso, a forma alonga-
da do lintel. É muito mais judicioso relacionar esta postura sing~lar aos ritos penitenciais que se desenvolviam
no portal norte: é por aí, com efeito, que, no momento de serem reintegrados na comunidade eclesial, os peni-
tentes deveriam penetrar na igreja rastejando sobre os cotovelos e os joelhos. Sofrendo a pena devida por seus
pecados, eles eram, portanto, à imagem de Eva (e de Adão), culpados da primeira e mais grave das faltas.

diretamente o sangue de sua chaga, ou dolorosas, como no caso de santa Catarina


de Siena (1347-80), que, contemplando o mosaico da "Navicella", pintado por
Giotto, em São Pedro do Vaticano, se sente esmagada pelo barco dos apóstolos
e, por decorrência, permanece paralisada até a sua morte.
Seria preciso, no entanto, não esquecer o papel que as imagens têm no qua-
dro da liturgia e dos sacramentos. Acontece de elas serem seus principais ato-
res. Assim, no momento da festa da Assunção em Roma, a partir do século X,
pelo menos, a imagem de Cristo conservada em Latrão é levada em procissão
através da cidade e "visita" a imagem da Virgem de Santa Maria Maggiore, onde,
diz-se, Cristo (quer dizer, sua imagem) se adianta para saudar sua mãe. O ritual
pascoal é também a ocasião de uma manipulação de imagens amplamente pra-
ticada no Ocidente: a deposição de Cristo no túmulo, na Sexta-Feira Santa, é
representada graças a uma simples cruz ou, por vezes, a partir do século XIII,

498 ]érôme Baschet


com ajuda de um grande Cristo esculpido, que é despregado d?.cruz para ser
posto no sepulcro, até se proceder, no domingo, à elevação simbolizando a res-
surreição. Muitas outras imagens são vestidas, coroadas ou cobertas de jóias no
dia de suas festas. Mas a maior parte exerce, sobretudo, um papel pelo fato de que
constitui a decoração do lugar onde são realizados os ritos essenciais da Igreja.
Os retábulos são, evidentemente, associados ao culto dos santos, mas também
multiplicam os temas com relação ao sacrifício eucarístico, a começar pela
Crucificação, presença visível de Cristo, ecoando aquela que a hóstia faz advir.
Na decoração que cerca o altar, com freqüência são encontradas, como já ocor-
re em São Vital de Ravena, as prefigurações veterotestamentárias do sacrifício
de Cristo - a oferenda de Abel ou o sacrifício de Abraão, de resto menciona-
das nas preces do cânone da missa. Os temas da infância de Cristo, ou mesmo
a Virgem com o Menino, têm também seu lugar nesse contexto, na medida em
que a eucaristia é concebida como a reiteração do nascimento terrestre do
Salvador, como uma encarnação cotidianamente repetida. Muitos outros luga-
res ligados a ritos litúrgicos específicos podem ser objeto de uma análise com-
parável, quer se trate do batistério ou de pias batismais, ou ainda da decoração
do portal norte das igrejas, que ecoa, por vezes, os rituais penitenciais realiza-
dos nesse lugar. É o caso da célebre figura de Eva, na catedral de Autun, cuja
estranha postura foi posta em relação, por Otto Werckmeister, com a dos peni-
tentes que atravessam o portal norte rastejando sobre os joelhos e cotovelos a
fim de serem·reintegrados à comunidade eclesial (figura 50, na p. 498).
As imagens prestam-se, ainda, a muitos outros usos. Elas servem de emble-
mas às instituições e aos poderes constituídos, constroem hierarquias e manifes-
tam relações de força (entre o papa e o imperador, por exemplo) ou de domina-
ção (entre os clérigos e os laicos). Seu alcance eclesiológico é onipresente, como
bastam para lembrar a figura de são Pedro, símbolo da autoridade do pontífice
romano, cuja iconografia se desenvolve significativamente a partir dos séculos XI
e XII, e a figura da Virgem, duplo da Igreja, que se une a Cristo pelo seu coroa-
mento real ou que acolht;. a comunidade dos fiéis sob seu manto. Além da Igreja
universal, a imagem pode também exaltar uma de suas instituições particulares,
a começar pelas ordens religiosas: entre os franciscanos é sobretudo a legenda de
Francisco que faz as vezes de manifesto, como no ciclo pintado por Giotto na
basílica de Assis (figura 19, na p. 206), enquanto entre os dominicanos a vida do
fundador é muitas vezes suplantada pela multidão de grandes figuras da ordem,
que são representadas em plena atividade intelectual ou, então, integradas nos
ramos da árvore que nasce de são Domingo.
As imagens contribuem também para construir a legitimidade do poder
temporal, por vezes diretamente, como, por exemplo, quando os mosaicos da

A CIVILIZAÇÃO fEUDAL 499


igreja da Martorana de Palermo ( 1140) mostram o rei Rogério 11 coroado por
Cristo, reivindicando, assim, uma dignidade igual à do imperador de Bizâncio;
mas também indiretamente: assim, na capela Palatina de Palermo, a imagem de
Cristo em majestade, que domina o trono em que o rei se encontra quando das
audiências e dos atos cerimoniais importantes, contribui para sacralizar o sobe-
rano pelo eco assim criado entre sua pessoa e a de Cristo (figura 51, na p. 50 I).
Um efeito comparável é produzido quando a imagem do Juízo Final serve de
decoração ao exercício da justiça, quer se trate da justiça do bispo (em geral dis-
tribuída diante do tímpano da catedral), do papa (sala de audiência do Palácio
dos Papas, em Avignon) ou das autoridades seculares (salas de justiça munici-
Prus). A justiça terrestre apresenta-se, então, como o reflexo da justiça divina, ao
mesmo tempo que convoca esta suprema referência na esperança de tirar dela
um acréscimo de autoridade. Usos judiciários mais diretos são atestados a par-
tir da segunda metade do século XIII, com o aparecimento da pintura infaman-
te: a figuração de certos condenados na fachada de um edifício público consti-
tui uma humilhação que é parte integrante do castigo (Gherardo Ortalli).
Enfim, a função da imagem como símbolo de identidade e garantia de coesão
de uma coletividade difunde-se no corpo social: as cidades não possuem melhor
sinal de união que as imagens de seus santos padroeiros (ou da Virgem); as con-
frarias fazem o mesmo com seus estandartes ou seus retábulos, enquanto
nenhuma instituição medieval poderia ter sua existência reconhecida ou agir
sem a identificação fornecida por seu selo e a imagem singular que ele porta
(Michel Pastoureau).

Imagens de uns, ídolos dos outros

A revolução das imagens, iniciada a partir do século XI, não se limita somente à
sua expansão quantitativa. Ela lhes confere também uma potência eficaz aumen-·
tada, para além do que sugere a tríade das justificações clericais da imagem (ins-
truir, rememorar, emocionar). Ainda não foram mencionadas, aqui, as imagens
mais miraculosas, aquelas que o são pelo seu próprio modo de produção. São,
conforme as tradições inicialmente orientais, as imagens acheiropoiétes, quer
dizer, não feitas pela mão do homem. Assim ocorre com a Verônica, véu ofere-
cido a Cristo no momento da subida ao Calvário e sobre o qual sua face teria
sido miraculosamente impressa. Conservada na basílica de São Pedro do
Vaticano desde o século XII, seu culto ganha ímpeto a partir de 1216, na seqüên-
cia de um milagre ao qual Inocêncio III dá sua caução. Inicialmente considera-
do uma relíquia, este objeto é, desde então, significativamente assimilado a uma

500 ]ér8me Baschet


51. Cristo em majestade e o lugar do trono real, c. 1143 (capela Palatina, Palerma)
Os reis normandos da Sicília ornaram seu palácio e suas fundações monásticas de ricos programas iconográficos,
recorrendo, no mais das vezes, à técnica do mosaico, que permanecera em uso no Império Bizantino. A capela
Palatina de Pai ermo servia também de sala de audiência: o lugar do trono é posto em evidência por vários degraus
c por uma decoração de mármores incrustados. Logo acima do lugar onde ficava o rei, o mosaico mostra Cristo
em maj~stade, sobre o trono, frontalmente e segurando o livro, entre Pedro c Paulo, que inclinam ligeiramente
a cabeça diante dele. As majestades de Cristo e do rei, que ocupa o lugar que lhe era destinado, atuam, assim,
em cumplicidade. Tal dispositivo manifesta que o soberano só tem legitimidade à medida que se conforma à von-
tade divina interpretada pelos clérigos; mas ele também é destinado a impressionar os visitantes, mostrando que
o soberano de carne e osso diante do qual eles se inclinam é a imagem terrestre do rei dos céus.
imagem, o que é ainda mais claro a partir do momento em que suas cópias, que
se difundem no Ocidente como irradiações de um símbolo do poder pontifício,
são consideradas tão mira,culosas quanto o original. Um outro exemplo é o Volto
Santo 38 de Lucca, grande crucifixo miraculoso cujo culto se consolida a partir
de 1200 e cuja lenda quer que um anjo tenha terminado de esculpi-lo Qean-
Ciaude Schmitt). Não se poderia esquecer, aqui, que a imagem da Virgem de
Guadalupe, emblema das reivindicações crioulas e mestiças da Nova Espanha
do século XVIII e, mais tarde, símbolo do México independente, remete a essa
tradição medieval das obras acheiropoiétes.
Nessas condições, pode-se interrogar sobre a fragilidade da distinção entre
as práticas da imagem que a Igreja considera legítimas e aquelas que ela denun-
cia como idólatras. Michael Camille chegou mesmo a qualificar ironicamente a
imagem cristã do século XIII de "ídolo gótico". Este era também, nós nos recor-
damos, o diagnóstico inicial de Bernardo de Angers quando de sua viagem a
Conques, e é verdade que a materialidade provocante das estátuas dos santos,
resplandecendo de ouro e de gemas preciosas, poderia facilmente suscitar uma
aproximação com o ídolo pagão: "Como esta prática parecia, com justiça,
supersticiosa aos olhos das pessoas ilustradas - elas pensavam que se perpe-
tuava nela um rito do culto dos antigos deuses ou, antes, dos demônios - , eu
também acreditei, ignorante, que este costume era mau e completamente con-
trário à fé cristã"; e, pergunta ele, um pouco depois, "Que pensas tu, irmão,
deste ídolo? Júpiter ou Marte não teriam concordado com tal estátua?". Do
mesmo modo, a majestade da Virgem de Clermont era posta atrás do altar, no
alto de uma coluna, segundo um dispositivo estranhamente similar ao dos ído-
los pagãos e às suas representações na iconografia medieval. No entanto, seria
possível, para além de um salutar efeito provocador, assimilar a imagem cristã e
o ídolo pagão em uma mesma concepção mágica, fundada sobre a indistinção
entre a representação e o protótipo que ela representa?
Na acepção mais ampla que os clérigos dão a esse termo, a idolatria desig-
na todo culto que, em vez de se dirigir a Deus, seu único destinatário legítimo,
é dirigido a uma falsa divindade, uma criatura (um homem, um animal) ou um
objeto material. Nesse sentido, fora do culto cristão, só poderia existir idolatria
(para Agostinho, tudo o que é feito sem a fé cristã é idolatria). É, então, muito
pouco dizer que a Igreja cristã vive na intransponível distinção entre a verdadei-
ra e as falsas religiões. Para ela, existe apenas uma só fé e um só culto possíveis;
a única oposição dotada de sentido é a que confronta a verdadeira fé dos cris-
tãos e a idolatria de todos os demais. No seio dessa definição geral, um aspecto

38. Literalmente, "face sagrada". (N. T.)

502 ]érôme Baschet


mais restrito da idolatria refere-se ao culto prestado às imagens pagji.s, obrigato-
riamente qualificadas de "ídolos", mesmo se a interpretação cristã oscila, desde
as origens, entre duas leituras. O ídolo é tanto tido como a marca do falso deus
que ele representa (quer dizer, um espírito diabólico), possuindo, então, potên-
cia malfeitora que é preciso desmascarar, como também é denunciado como
pura ilusão, um "nada", um simples pedaço de pedra. Mas aí está também 0
risco para a própria imagem cristã, que os clérigos devem defender de uma
potencial acusação de idolatria. É por isso que Guilherme Durand, na seqüên-
cia de vários outros, precisa que "os cristãos não adoram as imagens, não as
tomam por deuses, nem depositam nelas uma esperança de salvação". Com
efeito, é indispensável, para os clérigos medievais, afirmar uma dualidade entre
a imagem e o protótipo que ela figura. É a este que os fiéis se dirigem em últi-
ma instância ("A imagem sagrada não é tratada com sacrifícios, como um ídolo;
ao contrário, a reverência lhe é feita em memória do venerável martírio ou em
nome do Deus Todo-Poderoso", diz Bernardo de Angers para justificar a majes-
tade de Santa Fé). Nem por isso todo papel é retirado da imagem material, pois
a teoria do transitus reconhece que as coisas materiais ajudam a elevar-se até as
coisas invisíveis e admite a legitimidade da honra prestada à imagem, sob con-
dição de que ela esteja associada à honra prestada a seu protótipo.
Acontece, entretanto, que os próprios clérigos denunciem nos fiéis uma
tendência a adorar a imagem material, como se ela fosse realmente a pessoa
santa que representa. Esse lugar-comum da idolatria aparece logicamente na
primeira reação de Bernardo de Angers: "Eu pensava, então, que era verdadei-
ramente inapto e estranho ao bom senso que tantos seres dotados de razão diri-
gissem suas súplicas a um objeto mudo e desprovido de inteligência". Mas cre-
ditar aos fiéis tal confusão entre a imagem e seu protótipo é, sem dúvida, mais
o efeito de um elitismo desdenhoso da parte dos clérigos do que um testemu-
nho confiável sobre a piedade dos laicos. De resto, o desenvolvimento das ima-
gens, a partir do século XI, confirma que a Igreja deixa, então, de temer um res-
surgimento da idolatria em seu seio. A desconfiança que esse temor tinha feito
perdurar durante toda a Alta Idade Média em relação às estátuas não é mais cor-
rente e, a partir do século XII, numerosos amadores, entre os quais alguns cléri-
gos (como o bispo de Winchester, Henrique de Blois, em 1151), não hesitam
em admirar e em se apropriar das estátuas das ruínas antigas de Roma, sem
temer a acusação de idolatria. Poder-se-ia dizer o mesmo da imitação das for-
mas clássicas pela arte gótica, enquanto não se assiste, a partir do século XV, ao
retorno da figuração dos deuses pagãos no seio da arte cristã, que Walter
Benjamin interpreta como uma estetização que revela a neutralização de deuses
mortos. A recuperação estética da arte antiga progride, assim, ao mesmo passo

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 503


que a segurança da instituição eclesial, certa de ter liquidado os falsos deuses
do paganismo e de estar ela própria acima de toda suspeita de idolatria.
Assim, mais do que retornar, à maneira de Voltaire, a acusação de idolatria
contra as imagens cristãs, é possível vislumbrar entre as justificativas clericais e
as práticas efetivas uma ampla convergência e uma certa distância. Admitiremos
que existe entre o protótipo e sua imagem relações muito estreitas, como o mos-
tram os milagres realizados por ela ou, ainda, o fato de que ambos podem con-
fundir-se temporariamente no imaginário devoto. Nas situações cultuais, a vir-
tude da imagem é assegurar uma mediação, estabelecer um contato entre os
homens e o universo celeste. No entanto, mais do que atribuir aos fiéis a idéia
de que a imagem é Deus ou o santo- caso em que, efetivamente, eles adora-
riam um objeto material - , o importante é, sem dúvida, que a imagem seja
habitada por ele. Ela é uma de suas moradas, que ele visita por vezes ou pode
desertar; ela é, então, um dos lugares mais propícios para suas manifestações.
E se, ao que tudo indica, um poder considerável é conferido às imagens, não se
pensa necessariamente que elas se sustentam por si mesmas. Atribuir-lhes um
valor de mediação é, ao contrário, reconhecer que sua virtude é de mobilizar
potências situadas além delas, nos céus. Mas, ao mesmo tempo, sua importân-
cia como objeto é determinante, pois são os ritos, as manipulações e as preces
de que elas são o centro que permitem estabelecer a mediação (é justamente
disso que a evolução da teologia da imagem parece se dar conta). Em resumo,
a eficácia da imagem diz respeito menos à sua exclusiva materialidade do que à
relação que se estabelece entre imagem-objeto visível e o universo invisível com
o qual ela põe em contato. Na medida em que ela concentra um poder eficaz, a
imagem cristã não pode ser pensada somente como representação; ela é também
presença da força sobrenatural que figura e convoca.
O uso maciço das representações, a denúncia da idolatria, a proximidade
entre as imagens dos cristãos e as que eles denominam "ídolos": tudo isso é des-
tinado a reproduzir-se quase identicamente no Novo Mundo, onde a Conquista
toma a forma de uma "guerra das imagens" (Serge Gruzinski). A idolatria é,
então, uma categoria onipresente, que permite aos espanhóis dar conta de quase
tudo o que eles vêem nas terras que descobrem (com exceção das ilhas, onde Las
Casas e outros afirmam que a idolatria é irrelevante, sem dúvida porque eles
observam aí poucos ritos coletivos). Para os conquistadores e os missionários-
e, em particular, no Império Mexica (Império Asteca) - , tudo é superabundân-
cia de ídolos monstruosos, cultos e sacrifícios sanguinários a falsos deuses. López
de Gómara afirma que "a finalidade da guerra é retirar os ídolos desses Índios",
e o bispo da cidade do México, Zumárraga, vangloria-se, em 1531, que se tenha
destruído "mais de quinhentos templos e 20 mil ídolos". Acontece, entretanto,

504 }ér{;me Baschet


que a oposição tradicional se desfaça: assim, em sua Apologética, Las Casas afir-
ma que "a intenção dos que honram ídolos não é de honrar pedras, mas de vene-
rar pela religião [entendamos, aqui, pela devoção], nelas, como nas virtudes divi-
nas, este ordenador do mundo, seja qual for". Destruindo a argumentação
tradicional contra a idolatria, ele afirma que esta não é somente suscitada pela
perversão do diabo, mas também pelo desejo natural de procurar Deus. Resulta
disso uma situação paradoxal, pois Las Casas denuncia a idolatria dos índios, que
ignoram o verdadeiro Deus, ao mesmo tempo que reconhece existir em seus atos
uma devoção tão autêntica - se não maior- que a dos cristãos. O fato de que
para ele a palavra "idolatria" possa ser associada a termos positivos, tais como
"veneração" e "devoção" (ou seu sinônimo "religião"), transgride 6 sistema de
valores estabelecido durante a Idade Média.
Mas a obra de Las Casas é excepcional e de pouco efeito sobre a atitude
da Igreja colonial. Ainda no século XVII, os bispos das Índias tomam consciên-
cia dos limites da evangelização e engajam-se em uma luta para extirpar a ido-
latria, da qual descobrem os traços persistentes (por exemplo, Nufíez de la Vega,
sucessor de Las Casas em Chiapas). Tratava-se, então, fundamentalmente, para
bem conduzir a obra de conquista, de destruir os ídolos dos índios e impor, por
todo lado, as imagens cristãs, aproveitando-se das similitudes de seu funciona-
mento, evitando, no entanto, as ambigüidades excessivamente flagrantes. É ver-
dade que existem diferenças importantes, especialmente porque a noção indí-
gena de ixiptla (em língua nahuatl) designa tanto a estátua do deus como seus
representantes humanos (o sacerdote, o homem-deus ou o sacrificado que se
torna o deus), mas também porque, ao lado das estátuas que dão forma às divin-
dades, outros objetos sagrados (os "bultos") asseguram sua presença, sem pos-
suir a menor dimensão mimética (o que explica que os espanhóis não lhes
tenham absolutamente dado atenção, embora sua sacralidade fosse maior do
que a das estátuas que eles destruíam com fúria). Também no mundo amerín-
dio, as imagens eram formas de presença do divino, sem ser o próprio deus ("As
imagens dos deuses devem ser consideradas objetos sagrados capazes de servir
de traço de união entre os homens e as divindades"; Alfredo López Austin).

ÜS MECANISMOS DA REPRESENTAÇÃO

Após ter evocado a diversificação qualitativa e a expansão quantitativa das ima-


gens, convém analisar o alcance desse desenvolvimento das imagens na socie-
dade medieval.

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 505


Lugares de imagens, lugares de culto

-se-toda imagem na Idade Média adere a um objeto ou a um lugar, um aspecto


determinante de seu funcionamento diz respeito ao fato de que ela constitui sua
decoração e visa "celebrar a importância funcional e simbólica dos objetos ou
dos lugares" onde ela aparece (Jean-Claude Bonne). Assim, a riqueza da deco-
ração do Palácio dos Papas de Avignon e, em particular, o cuidado de Clemente VI
para que todos os seus muros, ou quase todos, fossem ornados de pinturas cor-
respondia a uma intenção muito consciente, que fazia do fausto uma arma
poderosa. Pode ser que o conteúdo das imagens não seja percebido aqui; para
que o poderio do pontífice seja manifesto, é suficiente que se seja atingido pela
riqueza e pela profusão da decoração (este poder impõe-se mesmo àqueles que,
sem penetrar no palácio, sabem, por ouvir dizer, qual é o seu luxo e tentam ima-
giná-lo). Habitando o palácio mais imponente da cristandade, o papa reforça
que ele é seu chefe supremo. Mais genericamente, as imagens, ou aquilo que é
melhor chamar aqui de decoração, é uma espécie de honra prestada ao objeto-
suporte, que indica, ao mesmo tempo, a posição e o prestígio da pessoa ou da
instituição que as utilizam. Nesse sentido, o ornamental, noção da qual Jean-
Ciaude Bonne mostrou o caráter operatório, é um instrumento de hierarquiza-
ção dos indivíduos e dos poderes, tanto terrestres como celestes. Ele elucida as
justas relações e as proporções que convêm à ordem harmoniosa do universo,
que os clérigos pensam, na seqüência de Agostinho, como uma musica.
No Ocidente medieval, sobretudo a partir do século XI, os objetos e os luga-
res que são os mais faustosamente honrados pelas imagens são as igrejas e seu
mobiliário (que é nomeado, de resto, os ornamenta ecclesiae). Essas imagens
devem convir a seu suporte, celebrá-lo em sua justa medida e corresponder-lhe
qualitativamente. Já foram mencionadas numerosas situações nas quais a repre-
sentação ecoa o rito que enquadra; mas é preciso pensar, igualmente, que as
imagens, enquanto decoração, se acordam de maneira global ao funcionamen-
to litúrgico do lugar de culto. Como sugere Honorius Augustodunensis, o valor
estético das imagens é, aqui, determinante, independentemente mesmo de seu
conteúdo iconográfico. Do mesmo modo que a beleza dos objetos contribui para
seu prestígio e reforça sua eficácia, o brilho da decoração torna o edifício digno
do serviço divino. Assim, a Igreja pode ser definida como um lugar de imagens,
do qual se percebem imediatamente o caráter luxuriante das cores, o rutilar das
luzes e, por vezes, o brilho dos ouros. Ela é uma totalidade colorida e luminosa,
em que a multiplicidade das formas sugere, sem que nem ao menos se procure
decifrá-las, uma saturação de significações. Opera-se, assim, uma separação do
mundo profano, que manifesta e acentua a sacralidade do edifício cultuai e dos

506 )érôme Baschet


ritos que ali se desenrolam. De resto, é isso que indicam os clérig~ a começar
por Suger, quando evocam o processo anagógico de estabelecimento de conta-
to com o divino, que se realiza, de modo indissociável, através da liturgia e pelo
efeito contemplativo induzido pela riqueza da decoração.
Mas a igreja não é um espaço sagrado unitário. A decoração torna sensíveis
também suas hierarquias internas (distinções entre a parte esquerda e a parte
direita, mais valorizada; gradação desde as zonas inferiores até as partes altas,
especialmente as abóbadas, assimiladas por sua decoração ao céu; oposição
entre o oeste, ligado à morte e ao diabo, e o leste, associado a Cristo, a
Jerusalém e à ressurreição; polaridade, indo da porta, limiar ambivalente marca-
do pelo contato com o mundo profano e, por isso, muitas vezes associado a
temas de partilha, como o Juízo Final, até a abside, lugar privilegiado de uma
plena presença teofânica e de representações da glória divina). A oposição que
estrutura mais vigorosamente a igreja - e à qual a disposição das imagens em
geral faz eco - é aquela entre a nave, destinada aos laicos, e o coro, acessível
unicamente aos clérigos. Marcada por uma cancela ou uma tribuna que, a par-
tir do século XII, separam cada vez mais hermeticamente as duas partes da igre-
ja, a ponto de muitas vezes ocultar dos laicos a visão do altar maior, essa dispo-
sição espacial não é nada mais que a materialização da divisão da sociedade em
dois grupos de cristãos, reafirmada então com um vigor novo. A igreja é, portan-
to, uma totalidade sagrada, globalmente separada do mundo (ativando, assim, a
oposição entre interior valorizado e exterior negativo), sendo, ao mesmo tempo,
dotada de uma estrutura interna diversificada que reproduz os eixos do mundo
e as divisões fundamentais da sociedade. Nesse sentido ela constitui referência
espacial que ordena a visão do universo e a torna sensível na experiência social
comum. A sacralidade do lugar liga-se ao fato de que se trata de um microcos-
mo onde, por contraste com a desordem do mundo exterior, Deus dá a cada
coisa seu justo lugar.
Mas não se poderia analisar a relação entre a igreja e sua decoração sem ter
em conta a liturgia, que é a razão de ser essencial do edifício cultuai. Um aspec-
to importante dos ritos tem a ver com o fato de que eles comemoram e repetem
eventos fundadores (o sacrifício de Cristo, sua vida, as vidas da Virgem e dos
santos). Ora, a imagem representa, de uma outra maneira, esses mesmos perso-
nagens que a liturgia evoca, celebra ou - em se tratando da eucaristia - torna
presentes. Uma e outra estabelecem uma junção paralela, embora de natureza
diferente, que põe o homem em contato com uma presença divina ou santa.
A imagem constitui, assim, uma reduplicação sensível da manifestação litúrgi-
ca das potências celestes (a menos que ela seja uma forma de substituição dela,
compensando, para os laicos, sua crescente exclusão da liturgia eucarística,
inclusive no plano visual, em razão da presença da cancela ou da tribuna).
A decoração participa, assim, da transferência de realidade realizada pela liturgia,
que. promove um deslocamento da esfera terrestre para a esfera celeste, da
eccUsia materialis para a ecclesia spiritualis (Guilherme Durand afirma que "a igre-
ja rhaterial significa a igreja espiritual"). E é por isso que, penetrando no edifí-
cio sagrado, os fiéis devem sentir que eles entram no Reino de Deus ou, pelo
menos, em uma ordem de realidade que é uma figura da Jerusalém celeste.
É no coração da missa que esse movimento é mais intenso. As preces do
cânone suplicam, então, que a oferenda consagrada pelo sacerdote seja levada
pelos anjos "sobre o altar celeste, na presença da majestade divina". No céu,
uma liturgia permanente é celebrada pelos anjos diante da Trindade, e no início
da missa pede-se que a voz dos homens seja admitida a juntar-se às louvações
dos coros angélicos. O sacramento supremo da Igreja não poderia se desenvol-
ver somente entre simples paredes de pedra, em meio às "sombras" figurais do
mundo aqui embaixo. Ao contrário, ele eleva-se até o altar divino e realiza a fusão
entre as liturgias terrestre e celeste ("Pelo sacrifício, as coisas terrestres e as coi-
sas celestes encontram-se", diz Gregório, o Grande). É na relação com tal pro-
cesso que é preciso perceber a decoração das igrejas, em particular as figurações
teofânicas da abside, que materializam a presença da majestade divina, e a satu-
ração de figuras angélicas, muitas vezes dotadas de instrumentos angélicos ou
associadas ao canto do Sanctus, que os anjos entoam para o céu. Mais generi-
camente, a profusão e a beleza da decoração contribuem para afirmar a igreja
como único quadro legítimo do culto, já que é ela a única digna de uma liturgia
transposta no céu. As imagens acompanham a suprema realização da liturgia;
talvez, multipliquem seu efeito ou, ao menos, tornem visível seu alcance e pro-
longuem sua memória.
Se a igreja material é a figura da Igreja celeste, unida a ela pela liturgia, é
também a imagem da Igreja espiritual, simultaneamente comunidade e institui~
ção. A decoração de imagens contribui para essa dupla correspondência, no
coração da qual é preciso inscrever a mediação clerical. É pelos gestos e pelas
palavras do sacerdote que a liturgia terrestre se une à liturgia celeste, ao passo
que a separação marcada pela cancela e pela tribuna consagra a hierarquia esta-
belecida entre os clérigos e os laicos. As igrejas, que são renovadas com apuro
ou reconstruídas com audácia a partir do século XI, e as imagens incessantemen-
te mais abundantes que honram sua sacralidade, contam entre as marcas mais
visíveis do poderio da instituição clerical. Não é, então, surpreendente que esse
desenvolvimento da decoração, signo ostentatório do caráter central do lugar de
culto na nova organização social, se produza no momento em que as dissidên-
cias, resistentes à afirmação do poder sacerdotal, questionam a utilidade dos

508 }érôme Baschet


lugares de culto (heréticos de Arras, Pedro de Bruis) e também das -imagens
(cátaros, hussitas). Do mesmo modo, a Reforma, que deitará por terra os fun-
damentos da Igreja, relançará, em grande escala, a prática da iconoclastia. Aos
olhos de todos, é evidente que as imagens estão intimamente ligadas ao poder
dos clérigos. Mediações entre os homens e as potências celestes, elas são, ao
mesmo tempo, um instrumento privilegiado da mediação clerical, a qual se encar-
na principalmente nos lugares de culto.
É verdade que, nos últimos séculos da Idade Média, a expansão das ima-
gens as faz penetrar nas habitações laicas e algumas podem orientar para uma
experiência mística, um contato pessoal direto com Deus. Mas, a menos que se
trate de beguinas ou de outros laicos que se esforçam para adotar um modo de
vida quase clerical, esses fenômenos concernem com mais freqüência aos meios
monásticos e, no essencial, aos ramos femininos das ordens mendicantes.
Quanto ao comum dos fiéis, as imagens lhes oferecem um suporte de devoção
para suas preces ou, eventualmente, para uma meditação à qual podem se
entregar ainda mais intensamente uma vez que tenham integrado os modelos
clericais. No entanto, existe nisso apenas um complemento das práticas sacra-
mentais, para as quais o recurso ao clero e a freqüência dos lugares sagrados
permanecem indispensáveis. De maneira geral, o desenvolvimento das imagens
contribui ao bom funcionamento da instituição eclesial e ao reforço de sua
dominação. Materializando eficazmente esses pontos de passagem em que o
mundo terrestre e o mundo celeste entram em contato, e exaltando, pela sua
beleza e pela sua crescente riqueza, a sacralidade das igrejas, as imagens mani-
festam e ativam o papel decisivo que os edifícios cultuais exercem na polariza-
ção do espaço feudal, reforçada ainda mais pelo encelulamento das populações.
Se, de início, as relíquias assumiram o essencial dessa função, as imagens asso-
ciaram-se a elas, a partir do século XI, e, logo depois, substituíram-nas, multipli-
cando, assim, os pontos de ancoragem do culto dos santos. O edifício cultuai e
sua indispensável decoração, que o transforma em um lugar fora do comum,
constituem, então, a forma privilegiada assumida pelos pólos sagrados que orde-
nam e hierarquizam o espaço social.

Cultura da imago e lógica figural do sentido

A despeito dos inconvenientes assinalados, a palavra "imagem" possui forte legi-


timidade no Ocidente medieval, a tal ponto que Jean-Claude Schmitt pôde defi-
ni-lo como uma "cultura da imago". Além das obras visuais, as quais ele serve
para designar, este termo abre, no pensamento medieval, uma rica constelação

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 509


de sentido. Ele está no centro da antropologia cristã, pois, segundo o Gênese,
Deus criou o homem "à sua imagem e semelhança" ("ad imaginem et similitudi-
nem nostram", Gen I, 26, como visto na figura 39, na p. 414). Essa relação, inter-
pretada pelos teólogos em um sentido essencialmente espiritual (é a alma racio-
nal que faz do homem a imagem da divindade), explica que o Criador possa ser
qualificado, por exemplo, por Guiberto de Nogent, de "bom realizador de ima-
gem" (honus imaginarius). Mas essa relação de imagem entre Deus e sua criatu-
ra é, ao mesmo tempo, imperfeita e submetida ao devir: "Ela não é uma situação
adquirida, mas deverá realizar-se no tempo" (Jean-Claude Schmitt). Com efeito,
o pecado original fez com que o homem perdesse uma parte importante de sua
"semelhança" divina e é por isso que o mundo terrestre, onde se desenrola a vida
dos homens, é concebido como uma "região de dessemelhança", marcada pelo
afastamento e pela intransponível distância entre o humano e o divino. A plena
restituição da imagem divina, instituída na origem do mundo, é, então, um pro-
jeto, uma promessa cuja realização é adiada para o fim dos tempos, quando os
corpos gloriosos dos eleitos serão reunidos às almas e a Deus.
A encarnação é, entretanto, uma etapa decisiva na história da relação de
imagem. O Filho é, com efeito, a imago perfeita do Pai divino, e os teólogos
sublinham que essa relação supera em dignidade aquela que existe entre o
Criador e o homem (que é apenas ad imaginem Dei, e não imago Dei).
Permanece o fato de que a Encarnação de Cristo relativiza a dessemelhança
aberta pela Queda e permite aos homens reconquistar a imagem divina perdi-
da. Uma vez que Deus consentiu em tornar-se carne e a transitar por uma vida
terrestre, a rejeição radical do mundo sensível torna-se impossível. É possível
conferir às coisas materiais, reabilitadas pela condescendência divina, um valor
positivo, sob a condição, todavia, de que elas não sejam um fim em si mesmas.
A "região de dessemelhança" é, então, parcialmente iluminada pela vinda da
imago perfeita de Deus e pelas manifestações repetidas de sua presença, da qual
a eucaristia é a principal. De resto, a Encarnação de Cristo é uma das princi-
pais justificativas da imagem material, que permite contrabalançar a proibição
do Decálogo: se Deus tomou forma humana, como se poderia renunciar a repro-
duzir a sua humanidade e a apoiar-se nela para elevar-se até sua divindade?
Existe, assim, uma poderosa afinidade entre a mediação que institui a Encarna-
ção e aquela que as imagens estabelecem entre o mundo terrestre e o mun-
do celeste, como é confirmado, de resto, pela coincidência cronológica, a partir do
século IX, e sobretudo do século XI, entre o desenvolvimento das imagens e a
ênfase nas temáticas da Encarnação.
Existe, igualmente, uma conexão explícita entre a imagem e a esfera da
imaginatio, tal como é definida pelos clérigos, na seqüência de Agostinho. Como

51 O }érôme Raschet
já foi dito, este distingue três gêneros de visão (segunda pqr.te, capítulo IV). Não
sendo nem visão corporal nem visão intelectual, a visão espiritual - que englo-
ba o conjunto de atividades da imaginação e, muito particularmente, as imagens
de sonho e as visões - é um elemento intermediário, uma potência mediadora
(Jean-Claude Schmitt). Ela pode ser submetida ao peso dos corpos, de modo
que o sonho, por muito tempo, foi objeto de grande desconfiança, especialmen-
te na cultura monástica: suas imagens pareciam perigosamente ligadas às pul-
sões da carne, na ausência de todo controle da vontade, ou, então, eram inter-
pretadas como tentações diabólicas. Mas o sonho, como a visão desperta, pode
também ser instrumento de uma comunicação com as potências celestes, e a
este título ele é valorizado, sobretudo a partir do século XII. A imaginação torna-
se, assim, o meio assumido da experiência de devoção ou mística. As interações
entre a imagem material e a imagem mental multiplicam-se: se o sonho justifi-
ca a novidade das estátuas-relicários do século XI, é em geral a imagem material
que, sobretudo a partir do século XII, desencadeia a visão espiritual Uá foram
mencionados o caso de Bernardo, Francisco e Liutgarda); igualmente, no fim da
Idade Média, certas místicas fazem representar imagens em conformidade com
as sugestões de suas visões. Imagem material e imaginação reforçam-se mutua-
mente para estabelecer uma relação privilegiada com as pessoas celestes.
É preciso, enfim, considerar a questão da imagem de maneira mais global.
A imagem é, com efeito, um caso particular de signo, ou seja, segundo a defini-
ção de Agostinho, uma coisa que, através da impressão que ela produz sobre os
sentidos, faz chegar uma outra ao conhecimento. Ora, o mundo inteiro é, para
o pensamento medieval, uma vasta rede de signos, que é preciso se esforçar
para decifrar como indícios da vontade divina. A Criação é "um livro escrito pela
mão de Deus" (Hugo de Saint-Victor): tudo aí são metáforas, símbolos, imagens.
Pode-se, então, perguntar se as imagens materiais, signos dentre outros em um
mundo de signos, não têm o mesmo estatuto que o conjunto das realidades sen-
síveis presentes no universo. Em todo caso, a natureza presta-se à interpretação,
exatamente à maneira das Sagradas Escrituras: "Que se interrogue a natureza ou
que se consultem as Escrituras, elas exprimem um único e mesmo sentido, de
um modo equivalente e coincidente" (Ricardo de Saint-Victor). Em conseqüên-
cia, as técnicas exegéticas empregadas para a compreensão da Bíblia podem
também ser aplicadas, ao menos em parte, ao universo. Desde Agostinho e Gre-
gório, o Grande, os clérigos insistem sobre a pluralidade das significações das
Escrituras e, em particular, sobre a distinção entre sentido literal e sentido ale-
górico. O segundo é o mais importante, mesmo se o sentido literal é objeto de uma
atenção reforçada a partir do século XII, como testemunha o sucesso da Historia
Scholastica, de Pedro, o Cantor, explicação literal das narrativas bíblicas. Ao

A CIVIJ.IZAt,;ÃO FEUDAL 51J


mesmo tempo, a importância do sentido alegórico é tal que ele se subdivide ern
dois (sobretudo no século XII) ou em três, dando lugar à concepção clássica, a
partir do século XII, da quádrupla significação das Escrituras: literal, alegórica
(o que é preciso crer), tropológica (a lição moral, que indica como agir) e ana-
gógica (ou mística, relativa à salvação e às verdades escatológicas). É verdade
que o esquema dos quatro sentidos é mais um modelo de referência do que urn
método prático de exegese e, de fato, a oposição dual entre a letra e o espírito,
refinada por diversas subdivisões, conserva uma força considerável. De todo
modo, o texto sagrado é caracterizado, então, por uma estratificação de signifi-
cações que, longe de ser tida por uma falta de coerência, faz, ao contrário, seu
pleno valor.
· Ocorre o mesmo com todas as coisas sensíveis que existem no mundo ter-
restre. Suas significações são múltiplas e, por vezes, mesmo contraditórias, se·m
que isso choque absolutamente a lógica medieval. Por exemplo, os Bestiários
indicam que o leão pode significar tanto Cristo (porque se conta que os seus
filhotes nascem mortos e são ressuscitados, três dias depois, pela sua mãe),
como o diabo, sob a forma das potências desencadeadas da natureza ou dos ini-
migos da Igreja (segundo a interpretação do episódio de Daniel no fosso dos
leões). Assim como as realidades sensíveis, as imagens materiais participam
dessa lógica. Ora, uma das especificidades da linguagem figurada é de não se
submeter às regras de um sentido idealmente unívoco. O pensamento figurati-
vo caracteriza-se, ao contrário, por sua capacidade em condensar significações
múltiplas e abertas. Uma mesma figura pode combinar em si várias identidades
(por exemplo, Judite e Salomé; Abraão e Deus; o Pai, ou ainda Moisés, Paulo e
João Evangelista). Uma mesma imagem pode associar significações contraditó-
rias, tal como o Cristo do tímpano da catedral de Autun, que está, ao mesmo
tempo, de pé e sentado, levantando-se e sentando-se, a fim de significar o laço
entre sua Ascensão e seu retorno no fim dos tempos (Jean-Claude Bonne).
Longe de ser uma deficiência, tal ambivalência - e, por vezes, também
uma capacidade de jogar com a ambigüidade, mantendo significações flutuan-
tes, vacilantes, entre as quais a incerteza impede de decidir - permite que a
imagem assuma aspectos importantes do modo de pensar medieval. Além da
estratificação das significações das Escrituras, é preciso sublinhar a importân-
cia da exegese dita tipológica, que põe em relação o Antigo e o Novo Testamento,
buscando no primeiro a prefiguração das verdades das quais o segundo é a plena
realização. Esta é uma outra modalidade de associação dos níveis de sentido,
que a imagem assume perfeitamente (por exemplo, multiplicando os indícios
visuais que fazem do sacrifício de Isaac a prefiguração do sacrifício de Cristo,
como visto na figura 52, na p. 513). Além disso, como pensamento da ambiva-

512 }érfime Baschet


52. A relação tipológica: lsaac conduúdo ao sacrifício e Cristo portando a cruz, 12 I 5-25 (Bíblia morali-
zada, Osterreichischen Nationalbibliothek, Viena, Codcx Vindobonensis 2554, fl. 5).
As Bíblias morali1adas da primeira metade do século \111 comportam oito medalhões por página, associados aos
textos correspondentes. Eles são concebidos dois a dois, conforme o princípio da exegese bíblica. Um primei-
ro medalhão ilustra o texto sagrado: aqui, o episódio do Gênese no qual Abraão conduz Isaac ao altar do sacri-
fício. O segundo põe na imagem a significar;ão alegórica da passagem concernida: no presente caso, o sacrifí-
cio de lsaac é interpretado. muito classicamente, como uma prefiguração do sacrifício de Cristo. representado,
aqui, portando a cruz para o Calvário. A justaposição dos dois medalhões faz ver. então, uma cena do Antigo
Testamento e sua realização no Novo Testamento. A primeira imagem apresenta a particularidade de conden-
sar em si mesma os dois Testamentos, pois a madeira carregada por lsaac já está disposta na forma de cruz.
lência, a imagem muitas vezes joga com os paradoxos fundamentais do cristia-
nismo e, muito particularmente, a junção do humano e do divino realizada pela
Encarnação (notadamente, nas imagens que combinam o sofrimento de Cristo
e sua vitória sobre a morte, tais como a imago pietatis, que mostra o busto de
Cristo acima de sua tumba, paradoxalmente, morto e vivo, ao mesmo tempo,
como mostrou Hans Belting). Habituados pela exegese a multiplicar os sentidos
aceitáveis para um dado texto, os clérigos podem ser facilmente levados a prati-
car, com as imagens, o mesmo tipo de encadeamento de significações. Existem,
então, afinidades profundas entre o funcionamento das imagens e a intensa pro-
dução exegética. Nos dois casos, trata-se de operar uma sobreposição de signi-
ficações, permitindo articular diferentes níveis de realidade, de modo a elevar-
se das aparências sensíveis até as verdades mais espirituais e mais próximas da
Unidade divina.
Em tal contexto, a questão do verdadeiro e do falso é posta de uma manei-
ra que desconcerta um pouco nossos hábitos modernos. Para nós, que sofremos
os efeitos da dissociação platônica entre o ser e o parecer (quer dizer, "a expul-
são da imagem para fora do domínio do autenticamente real, seu banimento para
o campo do fictício e do ilusório, sua desqualificação do ponto de vista do conhe-
cimento"; Jean-Pierre Vernant), a verdade está no real, enquanto a imagem diz
respeito à ilusão. Isso se dá de modo muito diferente no mundo medieval, no
qual o universo sensível é, ele próprio, concebido como uma imagem, um signo,
"uma sombra", segundo a expressão de Boaventura (de onde "a estranheza da
concepção medieval do real", sobre a qual Eric Auerbach judiciosamente cha-
mou a atenção). O verdadeiro é, em última instância, a vontade divina, mas tam-
bém tudo o que, no mundo sensível, é interpretado de forma suficientemente
correta para aproximar-se dele. O falso é a ilusão diabólica e tudo o que, no
mundo sensível, dá ensejo a esta. Cidade de Deus, cidade do Diabo ... É assim
que se pode compreender o estatuto do teatro medieval: longe de ser o reino da
ilusão, ele é útil revelação das verdades anunciadas pelas Escrituras. E é confor-
me a essa lógica que é enunciada a conclusão de uma representação do Juízo
Final no México, em 1539, bastante comparável àquelas que são conhecidas no
Ocidente no século XV: 'Vós vistes esta coisa abominável, terrível. Tudo é verda-
deiro como vós o vistes, pois ~stá escrito nos livros sagrados" (Serge Gruzinski).
Pode-se, então, falar, baseando-se nos estudos de Eric Auerbach, de uma lógica
figurai do sentido (ou de uma interpretação figurai da realidade). Em virtude
dessa lógica, é o além que é a "verdadeira realidade", enquanto "este mundo é
somente a sombra das coisas futuras". Tudo, aqui embaixo, é apenas figura, cuja
realização ''é eternamente presente no olho de Deus e no além, onde existe,
então, permanentemente, a realidade verdadeira e revelada". No entanto, se toda

514 ]érôme Baschet


a criação é uma linguagem figurada em que Deus se manifest!l, isso não signifi-
ca que sua realidade sensível deva se abolir no ato de interPretação que atinge
sua significação profunda (Eric Auerbach insiste sobre a especificidade da inter-
pretação figurai, que "considera a vida na terra como totalmente real [... ] e, no
entanto, ela não é, apesar de toda a sua realidade, senão uma umhra e uma figu-
ra da verdade autêntica, futura e derradeira, a verdadeira realidade que revelará
e manterá a figura"). É por isso que, notadamente, ''um personagem toma-se
ainda mais real à medida que é mais interpretado e mais intimamente associado
ao plano eterno da salvação". Assim, nas concepções medievais, a verdade está na
interpretação que alcança o sentido divino através de suas figuras, bem mais do
que na realidade imediatamente perceptível. E é de acordo com essa lógica figu-
rai que se pode dizer que a imagem medieval é verdadeira: porque ela contribui
para tornar presentes ou, ao menos, acessíveis as pessoas divinas ou santas.
Plenamente admitidas e legitimadas durante a Idade Média Central, as imagens
não são vãs aparências. Elas são figuras em um mundo que é inteiramente figura
e, como as demais figuras, permitem elevar-se até as verdades celestes. Mesmo se
as imagens nos mostrem apenas o aspecto exterior da coisa, Tomás de Aquino pre-
cisa ainda que, graças à sua mediação, o intelecto penetra o interior da coisa, de
modo que, como sublinha Jean Wirth, "as imagens mentais, mas também as ima-
gens em geral, contribuem para o conhecimento abstrato".

Figurar Deus, olhar a Criação

A expansão das imagens é acompanhada de profundas transformações dos modos


de figuração. No entanto, mais do que analisar essas evoluções como a passagem de
uma arte "simbólica" para uma arte "realista", como se diz comumente, convém
reparar aí uma alteração de equilíbrio no seio das tensões constitutivas de toda
figuração medieval. Entre essas tensões serão evocadas aquelas que articulam
ornamentação e representação, superfície e volume, essência e singularidade.
A arte medieval concede um lugar considerável e uma posição eminente à orna-
mentação, a ponto de proceder, sobretudo durante a Alta Idade Média e ainda até
o século XII, a uma ampla ornamentalização 39 das próprias representações, inclusi-
ve das figuras humanas e animais (figura I, na p. 36). Jean-Claude Bonne sugere
falar de omamentalização "quando as figuras, mesmo guardando uma silhueta ou

39. Ao longo deste capítulo foram respeitados os neologismos do autor (ou usados por ele) refe-
rentes aos estudos de iconografia, tais como omamentalização (por oposição a ornamentação), pla-
nitude (contra platitude) e nwstração (distinto de exibição). (N. T.)

A CIVILIZAC.:ÀO FEUDAL 5J5


formas identificáveis, expõem a literalidade dos traços ou das cores de que são fei-
tas, sem preocupação de ilusionismo". Longe de manifestar um déficit de conhe-
cimento técnico, tais procedimentos correspondem à sacralidade dos objetos
decorados e das figuras representadas, que convida a subtraí-las tanto quanto pos-
sível da ordem das aparências sensíveis. É assim, por exemplo, que "o ornamen-
tal enriquece a representação cristã do sagrado, exaltando a divindade sob formas
que contrabalançam ou sublimam, sem negá-lo, o antropomorfismo do Deus da
Encarnação" (Jean-Claude Bonne). Mais tarde, a partir do século XII, e sobretudo
do século XIII, um processo tende a separar a representação e a ornamentação,
esta sendo notadamente remetida para as margens da imagem. Mas, por estarem
menos intimamente imbricadas, representação e ornamentação não cessam de
entreter suas relações, no mais das vezes a distância, mas também no interior
mesmo da figuração, em que as vestimentas continuam sendo um dos lugares pri-
vilegiados de expressão do ornamental.
A oposição entre a superfície e o espaço, herdada do historiador da arte
Heinrich Wõlfflin, conduz geralmente a depreciar a arte medieval, considerada
incapaz de sugerir a tridimensionalidade, e faz da história da arte um processo
teleológico que tende para a conquista da perspectiva, única representação cor-
reta do espaço. Se quisermos, ao contrário, pensar a especificidade das repre-
sentações medievais e os valores positivos que as animam, é preciso admitir
a existência, ao longo de toda a Idade Média, de uma tensão entre planitude e
espessura (Jean-Claude Bonne). Se a arte medieval pode ser considerada a arte
do plano, é, antes de tudo, porque a imagem, destinada à celebração do lugar
ou do objeto em que ela se inscreve, ·deve dar mostra de respeito em relação a
seu suporte (página do manuscrito, parede da igreja, entre outros). Isso é parti-
cularmente verdadeiro a respeito da iluminura, tendo em conta o caráter sagra-
do dos livros em que são pintadas: como indica judiciosamente Otto Pacht,
"o cristianismo não fazia diferença entre o livro, instrumento de comunicação,
e a mensagem que ele transmitia. O livro não era apenas aquilo que continha o
Evangelho, ele era o Evangelho". Compreende-se, então, que a planitude do
suporte seja assumida positivamente, como um componente imediato da ima-
gem e que o fundo das imagens medievais não se deixe negar ou atravessar por
nenhum procedimento ilusionista, qualquer que seja ele. Não é raro, ao contrá-
rio, que o suporte material da imagem mostre-se diretamente (figura 1, na p. 36)
ou que ele exiba sua presença incontornável através de largos aplats 40 de cores,
desprovidos de todo alcance mimético, ou do brilho espelhado de um plano

40. Técnica, conhecida em italiano como tinta piatta, que consiste em aplicar uma camada uni-
forme de tinta em uma superfície. (N. T)

516 }érôme Baschet


dourado (figura 35, na p. 384). Quanto às próp~i9s figuras, elas são caracteri-
zadas por uma estreita relação com o fundo sobre o qual se erguem, e a reve-
rência devida a seu suporte as submete a uma forte lógica de planitude (figura
30, na p. 330). Por isso, as imagens medievais contribuem para uma certa cria-
ção de volume das figuras. Muita vezes, nota-se também uma sobreposição de
planos distintos (figura 4, na p. 39), assim como a presença de planos oblíquos
e de efeitos locais de relevo no tratamento de corpos e de objetos. Mas todos
esses procedimentos, que tiram a imagem de uma estrita planitude bidimensio-
nal, não criam, entretanto, um espaço tridimensional, que negaria todo o respei-
to ao plano do suporte e produziria uma unificação espacial da representação.
Eles apenas articulam espessura e lógica do plano.
Essa dinâmica amplia-se notadamente a partir do século XII, e sobretudo do
século Xlll. O volume dos corpos e a maleabilidade das dobras das vestimentas,
que caracterizam o "classicismo" da estatuária românica tardia, e sobretudo góti-
ca (figura 3, na p. 38), são imitados pela pintura, que utiliza os dégradés cromá-
ticos e as sombras para sugerir a plenitude das formas. Há, igualmente, uma
maior preocupação em exprimir a textura dos materiais representados, en-
quanto o dinamismo dos corpos é sugerido com mais freqüência (em oposi-
ção, a dimensão comumente hierática das obras da Alta Idade Média era ple-
namente justificada, pois principalmente Estrabão, no século IX, julgava a
impressão de movimento dada por uma figura como um signo negativo de ins-
tabilidade). Enfim, enquanto não ocorrem primeiros esboços de paisagem no
século XIV (figura 32, na p. 368), a representação dos animais e dos vegetais
torna-se mais cuidadosa com suas aparências. Se, a esse propósito, deve-se
excluir o termo "realismo" (que pressupõe uma concepção do real que não tem
nenhum sentido antes do século XIX), pode-se utilizar com prudência o de
"naturalismo" (que designa uma atenção às realidades sensíveis do mundo
natural criado por Deus). Seria, entretanto, errôneo interpretar esse fenôme-
no, que progride do século XII ao século XV, como um avanço dos valores pro-
fanos ou uma laicização do mundo.
Sigamos, de preferência, a análise de Jean Wirth: enquanto, até o século XII,
o universo era dividido em uma parte visível e outra invisível, o século XIII faz
prevalecer uma oposição entre natural e sobrenatural. À noção de natureza,
reinterpretada pelos teólogos desde o século XII, corresponde a de sobrenatural,
formalizada por Tomás de Aquino. Portanto, existe doravante um sobrenatural
visível, cuja representação é justamente um dos objetos maiores do desenvolvi-
mento das imagens. Assim, a nova estética gótica "não é determinada pela von-
tade de reproduzir um real exterior à arte[ ... ]. Sua função é, antes, conferir uma

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 517


presença real, visível e mesmo palpável a algo de novo, o sobrenatural" (Jean
Wirth). O que chamamos de "naturalismo" não tem por objetivo último a repre-
sentação da natureza, mas a manifestação visível do sobrenatural e das verdades
divinas que o mundo criado permite apreender. É preciso não esquecer que o
que é representado então sob as aparências do mundo natural são figuras, atra-
vés das quais o homem pode se aproximar de Deus. De resto, tal fenômeno ape-
nas é acentuado ao longo dos séculos, e Erwin Panofsky o analisou corretamen-
te como o pretenso "realismo" da arte flamenga do século XV, cuja virtuosidade
torna escrupulosa a atenção ao detalhe da aparência das coisas e das criaturas,
e é, de fato, saturado de um simbolismo complexo e, por vezes, oculto, que inci-
ta a um paciente trabalho de decifração (figura 6, na p. 41 ). Ocorre ainda o
mesmo no apogeu do Renascimento, e mesmo a arte de Michelangelo, campeão
da perfeição atlética dos corpos, não significa absolutamente a afirmação do
homem e do mundo terrestre como valores autônomos: para ele, o corpo huma-
no é a mais alta metáfora da ordem divina.
É preciso prolongar ainda esta análise. Assim, até o século XII, as imagens
evitam levar em conta a dimensão acidental dos fenômenos ou das figuras; elas
privilegiam formas genéricas, pouco particularizadas e encarregadas de exprimir
essências. Tratando-se, por exemplo, da imagem de um rei ou de um imperador,
julga-se sem pertinência, ou mesmo nocivo ao alcance da representação, confe-
rir-lhe caracteres singulares e, a fortiori, traços que evocassem a individualidade
do soberano reinante; importa apenas prover a figura de insígnias e traços que
sejam os mais aptos para exprimir a essência do poder real ou imperial (figura 7,
na p. 87). No entanto, a evolução já mencionada reduz o caráter genérico das for-
mas e as impregna, ao contrário, da existência concreta e palpável do mundo sen-
sível e do sobrenatural. Já no século Xlll, e mais ainda depois, os rostos e os cor-
pos diversificam-se para levar em conta, sempre com maior precisão, as
particularidades da idade, do sexo, da compleição e até mesmo da personalidade
individual. É assim que nasce o que se convencionou chamar de retrato no sen-
tido moderno do termo, quer dizer, uma imitação das singularidades físicas de
um indivíduo, permitindo que se o reconheça pelo aspecto (figura 6, na p. 41 ).
Entre os exemplos mais precoces, um dos mais bem atestados é o do cardeal
Jacopo Stefaneschi, no início do século XIV, que se fez representar em três ida-
des diferentes, em um manuscrito, em um retábulo de Giotto e em uma pintura
mural de Simone Martini, em Avignon.
Essa evolução, que desloca a ênfase das essências genéricas para as singu-
laridades individuais, foi muitas vezes posta em relação ao desenvolvimento
do nominalismo. Isso tem alguma aparência de credibilidade já que Guilherme de
Occam afirma que só existem seres singulares e que neles não há nenhuma

51 8 Jérôme Ba.~chet
generalidade (primeira parte, capítulo IV). Estabelecer tall~ço cria, entretanto,
muitas dificuldades, pois se trata de dar conta de uma dinâmica das formas de re-
presentação que é anterior ao occanismo e que se afirma progressivamente do
século XII ao w. Essa evolução deveria, então, ser vinculada a tendências mais
gerais e não é certo que o nominalismo, mesmo tomado em seu conjunto, desde
suas primeiras formulações no século XII, possa ter esse papel. É verdade que,
nos séculos XII e XIII, numerosos autores considerados realistas admitem princí-
pios de tipo nominalistas e afastam a idéia de que os universais sejam coisas.
É o caso de Tomás de Aquino, para quem os universais só existem no intelecto e
a universalidade só é apropriada à essência na medida em que ela é pensada pelo
homem. Mas deve-se, então, notar que muitos outros aspectos do tomismo
podem ser postos em relação à evolução das imagens. Assim, para Tomás, a ima-
gem permite um movimento que une o sensível ao inteligível, de modo que ela
permite um conhecimento, ao mesmo tempo, da essência das coisas (compreen-
dida pelo intelecto) e de suas particularidades individuais (percebidas pelos sen-
tidos). Um pouco mais tarde, Gilles de Roma e outros tomistas admitem que a
imagem permite conhecer o indivíduo em sua própria individualidade, o que
sugere uma evolução bastante paralela àquela que as obras visuais exibem.

Invenção da perspectiva e dinâmica feudal

A representação em perspectiva, afinada pela geração dos anos 1420, condensa


a maior parte das evoluções evocadas aqui. Após as tentativas parciais que são
observadas em certos quadros de meados do século XIV (Pietro Lorenzetti), a
experiência fundadora é a do arquiteto Brunelleschi, que, observando uma tabu-
leta representando o batistério de Florença através de um buraco feito na porta
da catedral, estabelece que existe uma coincidência necessária entre o ponto de
vista (do espectador) e o ponto de fuga (da representação); ele demonstra,
assim, que uma pintura construída em perspectiva só pode ser olhada correta-
mente de um único lugar (Hubert Damisch). No mesmo momento, os afrescos
de Masaccio, na igreja de Santa Maria del Carmine, em. Florença, constituem
uma das primeiras obras rigorosamente construídas segundo as regras da pers-
pectiva (1427). Essa inovação, que se pode incluir na lista das mais notáveis
invenções da Idade Média, transforma os princípios figurativos analisados até
aqui. Pensando o contexto da imagem como uma janela que se abre sobre a his-
tória representada, segundo a metáfora do humanista florentino Leon Alberti, a
representação em perspectiva reivindica a denegação do plano em que se ins-
creve, e que as obras anteriores tinham vocação de respeitar. Compreende-se,

A CIVILIZAÇAO FEUDAL 519


então, por oposição ao ponto de vista do olho humano que assume a perspecti-
va, que as imagens anteriores indiquem, pela reverência devida à superfície que
as suporta, "a dependência das figuras em relação a uma inscrição de uma outra
ordem que a delas", quer dizer, de "um princípio de autoridade transcendente"
Qean-Claude Bonne). De maneira um pouco metafórica, poder-se-ia dizer que
o único ponto de vista que, então, merece ser posto na imagem é o de Deus;
mas Deus, evidentemente, não vê através dos olhos do corpo, nem a partir de
um lugar particular, de modo que seu "olhar" engloba todos os pontos de vista
possíveis e não poderia se preocupar com aparências humanamente perceptí-
veis. Em tal lógica, importam apenas a essência das coisas, sua integridade e seu
valor simbólico. É por isso que a arte medieval recorre com insistência a proce-
dimentos de mostração, que asseguram a melhor visibilidade dos objetos e das
figuras: assim, embora pousados sobre um altar, um pão ou uma hóstia deverão
aparecer frontalmente a fim de respeitar sua perfeita circularidade. Pela mesma
razão, o bispo Lucas de Tuy protesta contra a representação de perfil ou de três
quartos da Virgem, que é, a seus olhos, mutiladora e que, por afetar uma figura
de santidade eminente, afronta ainda mais gravemente os princípios de mostra-
ção e de integridade. Ao contrário, a representação em perspectiva é uma visão
em primeira pessoa, que assume um ponto de vista individual e subjetivo. Ou,
ao menos, realiza uma "objetivação do subjetivo" (Erwin Panofsky), que confe-
re espaço ao ponto de vista do olho humano. Transita-se, assim, do reconheci-
mento da superfície de inscrição como referência assumida para sua negação,
e de uma visão transubjetiva e universalizante para uma percepção subjetiva e
individualizante.
Esse deslocamento é profundo, mas não mais do que aquele que faz passar
da concepção memorial da missa à doutrina da transubstanciação. É, então,
decisivo sublinhar que a perspectiva não rompe com as concepções medievais
do espaço. Notando o menosprezo de Erwin Panofsky, Hubert Damisch subli-
nhou que a perspectiva não supõe absolutamente um espaço geométrico homo-
gêneo, contínuo e infinito, tal como Descartes o concebe dois séculos mais
tarde: com efeito, a perspectiva ocupava-se "menos do espaço do que dos cor-
pos e das figuras dos quais ele era o receptáculo, ao mesmo tempo que se con-
formava à regra aristotélica de uma extensão finita e descontínua". A perspecti-
va não tem por objeto o espaço, mas as figuras que, não mais do que durante os
séculos precedentes, não poderiam ser pensadas independentemente do lugar
que elas ocupam. Ela é, então, uma maneira de conformação em que cada coisa
se inscreve no lugar que lhe corrcsponde. A perspectiva não rompe com a pro-
blemática medieval do locus, mesmo se ela produz uma modalidade nova de
articulação dos lugares ocupados pelos diversos objetos figurados. Com efeito,

520 Jérôme Baschet


estes são, doravantc, mais integrados em uma ordem !Jnificada, pois são relacio-
nados a um referente único e específico, ao mesmo tempo ponto de fuga e
ponto de vista.
As evoluções dos modos de representação na Idade Média são um dos
aspectos da grande dinâmica do sistema feudal. O desenvolvimento do natura-
lismo (como legitimação das manifestações visíveis das verdades divinas), a sin-
gularização (que não exclui o cuidado com as essências e com a hierarquização
das criaturas) e a afirmação da espessura (em tensão com o princípio de plani-
tude) podem ser tidos como modificações da maneira de articular o mundo ter-
restre e o mundo celeste, o humano e o divino. Não é absolutamente questão,
aqui, de uma separação radical, que consagre o triunfo de um pensamento laico
ou o aparecimento de um ~umanismo que exclui toda referência à Providência
e à Graça. Se as aparências sensíveis são cada vez mais abertamente assumidas
pela representação, isso é em virtude do processo, já evocado, de espiritualiza-
ção do carnal: o fenômeno avança ao mesmo passo que o desenvolvimento da
lógica da Encarnação e que o reforço do poderio da Igreja, instituição material
fundada sobre valores espirituais. Se o mundo criado pode chegar à representa-
ção - de uma maneira que sugere com deleitamento seus aspectos mais pal-
páveis e seus detalhes mais encarnados - é porque, mais do que antes, ele é
concebido como carregado de valores espirituais e como um meio legítimo de
chegar ao conhecimento de Deus (através do conhecimento do mundo criado
conforme sua vontade).
Até mesmo a perspectiva pode aparecer como um dos avanços extremos da
dinâmica do sistema feudal. Este é caracterizado pela articulação, no seio de um
espaço descontínuo e polarizado, entre um forte encelulamento local e a mani-
festação da unidade da cristandade. Sua dinâmica tende a reforçar seus aspec-
tos unificadores, sob a tripla forma do desenvolvimento das trocas, da recupe-
ração monárquica e da centralização pontifícia, sem com isso romper com a
organização celular da sociedade. Mais ainda do que a ampliação desses laços
intercelulares, é preciso sublinhar a importância das representações unificadoras
que aí atuam (a Igreja como corpo de Cristo, do qual a eucaristia permite par-
ticipar). A perspectiva poderia encontrar aí sua lógica, pois ela diz respeito a
essas ilusões unificadoras, sem por isso romper com a lógica do locus, nem fun-
dar uma concepção do espaço homogêneo e unificado. Pode-se, então, susten-
tar, como propôs Hubert Damisch, que o trabalho dos pintores preparou- sem
absolutamente pressupô-lo- o advento da geometria descritiva? Esta é uma
outra questão, mas isso não é, no fundo, mais improvável do que supor que o
tempo escatológico cristão prepara a concepção moderna de história, ao mesmo
tempo que está separado dela por uma ruptura radical.

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 52]


***

CONCLUSÃO: IMAGEM-OBJETO MEDIEVAL,


IMAGEM-TELA CONTEMPORÂNEA

Após haver tocado de perto a tentação iconoclasta e ater-se, durante séculos,


a uma iconicidade restrita e desconfiante, a cristandade ocidental conheceu, a
partir do século IX, e sobretudo do século XI, uma expansão crescente das ima-
gens, a tal ponto que elas se tornaram um dos elementos constitutivos do siste-
ma eclesial. Ornamentos indispensáveis do culto à Virgem e dos santos; ecos
sensíveis da presença real e da reiteração eucarística da Encarnação; emblemas
da Igreja e signos de alinhamento das múltiplas instituições que a compõem;
anúncios das verdades escatológicas, ao mesmo tempo que suportes de práticas
de devoção cada vez mais difundidas: tais são alguns dos papéis que as imagens
assumem na sociedade cristã. Seu poder de beleza e de resplendor cromático
orquestra, de maneira sensível, a sacralidade dos lugares de culto, de modo que
as imagens contribuem para o contato privilegiado que se estabelece ali entre os
homens e as potências santas ou divinas, ativam a junção entre a igreja material
e a Igreja triunfante e a fusão das liturgias terrestre e celeste. Mas essa media-
ção das imagens não é dissociável daquela assumida pelos clérigos; de resto,
são, no mais das vezes, vinculadas a objetos e a lugares destinados a ritos que
manifestam o poder sagrado dos sacerdotes. O desenvolvimento das imagens
acompanha, com uma bela simultaneidade, o reforço da instituição eclesial; e,
pouco a pouco, elas se tornam ornamentos indispensáveis do poderio da Igreja
e os adjuvantes emblemáticos da mediação sacerdotal. É por isso que elas são
tão estreitamente associadas à função dos lugares sagrados que polarizam o
espaço feudal, ao passo que a evolução de suas formas corresponde à dinâmica
geral da articulação entre o carnal e o espiritual, que anima a cristandade.
A despeito desse desenvolvimento considerável da iconicidade, evitar-se-á
fazer da Idade Média a origem de nossa civilização dita da imagem. A cultura
medieval da imago é, sem dúvida, o exato contrário disso (sem falar do fato de
que um homem da Idade Média via menos imagens, durante toda a sua vida,
do que nós vemos hoje em um só dia). Vinculada a um objeto ou a um lugar que
possui função própria, no mais das vezes cultuai ou de devoção, a imagem-obje-
to só tem sentido, na Idade Média, pelo seu caráter localizado. Ela também é
um objeto imaginário, um objeto imaginado, cujo funcionamento põe em jogo
interferências entre visão corporal e visão espiritual, entre visio e imaginatio.
Enfim, a representação é também presença, meio de uma manifestação eficaz
das potências celestes. Ora, à imagem-objeto pode-se opor a imagem-tela con-

522 }érôme Baschet


temporânea. Ou, mais ainda, pode-se considerar a tel~visão e o computador
como modos extremos de imagem-objeto, que asseguram um completo triunfo
da imagem sobre o objeto, pois este se torna o receptáculo de todas as imagens
possíveis, a tela em que se projeta a sombra do universo e que, através da super-
presença do real que ele permite, transforma e perverte a relação com o mundo.
À necessidade de localização da imagem-objeto medieval contrapõe-se o adven-
to ubíquo da imagem-tela, capaz de reproduzir-se identicamente em todos os
lugares, negando, assim, a particularidade dos lugares e contribuindo à desloca-
lização generalizada que caracteriza o mundo contemporâneo. À presença eficaz
-quer dizer, ao mesmo tempo real e imaginada- da imagem medieval con-
trapõe-se uma superabundância de imagens que se anulam mutuamente e que
são, no mais das vezes, desprovidas de efeito, porque não controladas e não sim-
bolizadas. É verdade que a presença que a imagem-objeto permite só tem ver-
dade uma vez que nos coloquemos no campo da crença cristã, de modo que, se
a imagem medieval participa de uma relação com a ilusão realmente vivida, a
imagem contemporânea induz a uma relação com a realidade vivida ilusoria-
mente. O estatuto e as práticas da imagem são indissociáveis da organização de
conjunto da sociedade, e é por isso que, também em matéria de imagens, e a
despeito de certas similitudes aparentes, a Idade Média é nosso antimundo.

A CIVILIZAÇÀO FEUDAL 523


(

CAPÍTULO CONCLUSIVO

o FEUDALISMO, OU O SINGULAR
DESTINO DO OCIDENTE

AFIRMANDO SEU CONTROLE sobre o tempo e o espaço, sobre as relações entre o


aqui embaixo e o além, sobre o sistema de parentesco, sobre as representações
figuradas e mentais, a Igreja joga com uma tripla oposição, entre o bem e o mal,
o espiritual e o carnal, os pais e os filhos, para definir sua própria posição e esta-
belecer, conjuntamente, a unidade da cristandade e a hierarquia que lhe atribui
sua preeminência. É assim que toma corpo, através de todas as contradições e
contestações notadas aqui, o estatuto dominante da instituição eclesial, que tal-
vez seja mais do que a coluna vertebral do sistema feudal: seu invólucro, até
mesmo sua forma. Nesse sentido, os aspectos examinados nos capítulos prece-
dentes concorrem também ao bom funcionamento da relação de dominium.
Aqui, é decisivo o ordenamento espacial que permite a vinculação dos homens
ao solo pelo encelulamento dos vivos em torno dos mortos e da igreja, não sem
garantir sua participação no quadro universal da cristandade. No entanto, outros
aspectos estão igualmente ligados a isso, ao menos indiretamente, na medida em
que contribuem para definir a posição da Igreja e, em conseqüência, para conso-
lidar sua capacidade de informar o domínio espacial da sociedade feudal. Por
exemplo, o entrelaçamento do espiritual e do carnal encontra-se em estreita rela-
ção com a polarização do espaço, pois é ele que permite dar corpo ao lugar sagra-
do, assim como aos demais vetores da inscrição local do sagrado cristão (cemité-
rio, relíquias, altar, eucaristia e imagens). No mais, a institucionalização da
Igreja, que, de certa maneira, não é nada mais do que um processo de encarna-
ção espacial, seria impensável se a onipresença da dualidade do bem e do mal
não fosse paralela a uma capacidade de superar o dualismo.

524 }érôme Baschet


Uma lógica geral de articulação dos contrários

Ao longo de toda a segunda parte, pudemos notar, em graus variados, as mani-


festações de uma mesma lógica visando pôr em tensão pólos contrários. É ver-
dade que, tratando-se do tempo, se observa principalmente uma contradição
entre a concepção anti-histórica de um tempo que se repete ou que não passa
e a visão histórica de um tempo linear e orientado, cujo ponto de articulação é a
Encarnação de Cristo. O conflito entre a cronologia e a eternidade, entre o gosto
pelos retornos, aprisionado na experiência do passado, e a espera de um futuro
novo, projetada essencialmente no além, mas, por vezes, também descida sobre
a terra, não permite uma junção elaborada dos contrários, mas dá lugar a um
regime híbrido qualificado aqui de semi-histórico. Entretanto, a coexistência
dessas concepções, cuja contradição não é superada, mas, antes, permanece
aberta, confere ao sistema medieval uma importante capacidade de transforma-
ção e de evolução.
Quanto ao bem e ao mal, trata-se de dois contrários irreconciliáveis. No
entanto, Satã não é um princípio independente de Deus, mas uma de suas cria-
turas: escapa-se, assim, ao dualismo, reavivado, no entanto, pelo espectro da
heresia cátara. Ao longo da Idade Média, Satã dá mostras de um poderio que
não pára de crescer; o vício e seus discursos tornam-se invasivos. Para assegu-
rar a vitória do bem, o combate deve ser mais furioso do que nunca. A tensão
entre as forças do bem e as do mal é acirrada; a intensidade das dualidades
morais aviva-se e o universo polariza-se ainda mais. Dar mais espaço ao mal e
reconhecer mais força em Satã acentua o risco de uma recaída dualista. Mas
o perigo é superado ao preço de uma maior dramatização, que exalta ainda
melhor a instituição eclesial, capaz de triunfar sobre as forças desencadeadas,
mas todavia controladas, do Inimigo.
Foi dito que o princípio do feudalismo não era a fragmentação ou a inscri-
ção local, mas a articulação entre fragmentação e unidade, entre inscrição local e
participação na universalidade cristã. De resto, é em um mesmo lugar - a igre-
ja paroquial e seu cemitério - que são urdidos, de um lado, o encelulamento e
a vinculação de cada um à comunidade dos mortos e à dos vivos, que é a ima-
gem daquela, e, de outro lado, a participação, através da comunhão eucarística,
no grande corpo da cristandade. A stabilitas loci, norma de vida mais amplamen-
te compartilhada, pode encontrar, então, na associação com a mobilidade pere-
grina e o desenvolvimento das trocas, uma ocasião para se reafirmar, e não um
questionamento.
A dualidade entre o espiritual e o carnal dá lugar a uma verdadeira articu-
lação dos contrários. Com efeito, esses dois princípios não devem ser nem con-

A CIVILI~AÇAO F~UDAL 525


fundidos nem separados, mas distinguidos, hierarquizados e associados em uma
unidade forte. É assim que são estruturados tanto o esquema da pessoa huma-
na, cujo ideal é o corpo glorioso dos eleitos, como a imagem da cristandade fun-
dada sobre uma separação cada vez mais estrita entre os clérigos e os laicos, uni-
dos, entretanto, em um só corpo destinado a um fim comum. Esse modelo
antropossocial, que institui uma articulação hierarquizada de entidades separadas,
é dotado de grande flexibilidade e de notável capacidade dinâmica.
O humano e o divino não são menos fortemente separados, hierarquizados
e articulados pela lógica da Encarnação. Em conseqüência, o homem é carac-
terizado, ao mesmo tempo, por sua proximidade e por sua distância em relação
a Deus: ser "à imagem e semelhança de Deus" significa também ser distinto
dele e, então, de Cristo, tido como a única imagem verdadeira do Pai. O homem
é aprisionado em uma tensão insuperável entre seu rebaixamento, que o subme-
te à potência divina e não lhe oferece salvação fora da mediação eclesial, e sua glo-
rificação como criatura racional, capaz de elevar-se até o bem supremo. A res-
surreição final dos corpos gloriosos e o acesso dos justos à plena compreensão
de Deus são as formas mais altas dessa redenção do humano, levada até uma
quase divinização, mas que só é possível pelo respeito às regras eclesiais e pela
submissão do corpo ao governo da alma.
O parentesco divino põe em jogo uma série de paradoxos, tais como a igua-
lização da filiação e a conjunção lícita entre a aliança e a filiação. Além disso, os
clérigos encontram-se em uma dupla posição em relação aos laicos, dos quais
eles são, ao mesmo tempo, os pais e os irmãos (assim como Cristo diante dos
homens). O sistema de parentesco fortifica, então, as hierarquias, pensadas
como relações pais/filhos, ao mesmo tempo que as inclui sob o manto igualitá-
rio da fraternidade generalizada de todos os cristãos, unidos pela caritas. Uma
das características maiores da sociedade cristã, discernível em múltiplos contex-
tos, a começar pela relação vassálica, consiste, assim, em articular comunidade
e hierarquia, igualdade e subordinação. É assim que é pensado, ao mesmo
tempo, a unidade orgânica do corpo social e seu ordenamento interno, a igual-
dade de princípio dos filhos de Deus e sua subordinação a hierarquias institu-
cionalizadas.
Acrescentar-se-á, ainda, uma articulação do uno e do múltiplo. O dogma
trinitário consiste em fazer admitir, além da igualdade entre Pai e Filho, a impro-
vável junção do trino e do uno. A ortodoxia cristã assume um Deus ao mesmo
tempo único e múltiplo, uno em sua essência e trino em suas pessoas. Mas
outras razões incitam, igualmente, a pensar que o cristianismo medieval excede
a definição de um estrito monoteísmo ("Deus é único [monos, em grego] e ele
não é único", escreve Tertuliano). Teologicamente, há apenas um Criador e

526 Jérôme Baschet


senhor do universo, e os clérigos repetem que é a potência d_ivina que age atra-
vés dos santos; mas pôde-se questionar se as práticas sociais associadas ao culto
dos santos e da Virgem não testemunhariam uma espécie de deriva politeísta.
Em todo caso, a multiplicação das figuras santas é forte (cada uma delas poden-
do mesmo ser fragmentada, ao sabor da concorrência entre seus diferentes san-
tuários). Ela inscreve-se em uma geografia sagrada diversificada e hierarquiza-
da, de modo que se deve, pelo menos, considerar o cristianismo medieval um
monoteísmo complexo e tendencialmente difrativo.
O ponto focal de todas as tensões mencionadas aqui é a Encarnação. O ato
fundador de Cristo, Deus feito homem e Eterno que se submete à morte, sub-
verte, em um processo de separação/articulação, a ordem dos níveis de realida-
de. Através da idéia de Encarnação, que pouco a pouco constrói e assume o epi-
sódio inaugural do cristianismo, estabelece-se um feixe de duplas de noções
paradoxalmente urdidas: divino/humano, espiritual/carnal, celeste/terrestre,
natureza/sobrenatural, eternidade/cronologia, além do espaço/localização,
pai/filho, pai/irmão, hierarquia/igualdade, glória/humildade, descida/ascensão ...
Mesmo as contradições constitutivas da arte medieval, que conjuga ornamenta-
lização e naturalismo, arte do plano e busca da espessura, podem fazer eco à
dualidade da Encarnação do humano e do divino, do terrestre e do celeste.

O rigor ambivalente do sistema eclesial

Mas qual é o efeito produzido por todas essas figuras? Pode-se, de início, ver
nesta oposição-conciliação dos contrários o motor de uma inegável elasticidade,
que torna o sistema cristão capaz de adaptações e de negações, ao sabor de
necessidades sociais cambiantes. O fato de o cristianismo feudal ser um mono-
teísmo complexo que integra certos aspectos geralmente associados ao politeís-
mo- como a diversidade de seu "panteão" (um deus trino associado à Mãe
celeste e cuja potência ativa é retransmitida por uma multidão de santos), a
multiplicação da encarnação espacial do sagrado ou, ainda, a iconicidade -lhe
confere uma capacidade de abarcar tradições pagãs, o que facilita, ao que tudo
indica, sua tarefa evangelizadora. Isso é claramente percebido no Novo Mundo:
o cristianismo feudal teria podido impor-se da mesma maneira se ele não tivesse
admitido o culto dos santos e o recurso generalizado às imagens? Evitaremos,
no entanto, louvar a flexibilidade ou a arte do compromisso da instituição eclesial,
cujo reforço leva, ao contrário, à formação de uma "sociedade de persecução",
que estende seu controle normativo e acentua sua lógica de repressão e de
exclusão. Quanto aos ameríndios, pode-se duvidar que eles tenham podido sen-

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 527


tir o gosto da conciliação dos europeus. Mesmo se os clérigos se esforçaram
para afastar as formas mais brutais de eliminação das populações, eles não
tinham, salvo exceção, sentimentalismos quando se tratava da necessidade de
destruir templos, estátuas, livros ou todo outro traço da cultura pagã.
Mais do que louvar a flexibilidade ou a tolerância do sistema medieval, tra-
tar-se-ia de identificar os efeitos de sua opção generalizada a favor da articula-
ção dos contrários. Quer se considere a Trindade, a Encarnação, a concepção
da pessoa humana ou as relações desta com o divino, equilíbrios instáveis estão
incessantemente em funcionamento. A Igreja-instituição deve fazer face a
numerosas contestações, que a põem com freqüência sob o fogo cruzado de
posições diametralmente opostas. Isso obriga a um esforço permanente de con-
junção dos contrários, geralmente orientado no sentido da busca de uma solu-
ção mediana (no sentido de uma mediação, mais do que de uma mistura). É o
que ocorre quando Agostinho combate simultaneamente os pelagianos e os
maniqueus, ou quando a Igreja dos séculos XI e XII repulsa, ao mesmo tempo, a
associação do espiritual e do temporal, herdada do modelo carolíngio, e a rejei-
ção radical do mundo carnal, preconizada pelos dissidentes. Sua postura nem
por isso é um meio-termo ou um compromisso, mas, sobretudo, a busca de uma
conjunção, que assume cada pólo em sua mais viva intensidade e cria entre eles
a mais forte tensão possível. É por isso que, embora o cristianismo medieval
repouse sobre a estrita codificação de uma ortodoxia definida pelo clero e que
remete para o domínio da heresia todos os seus adversários, a conjunção dos
contrários, que está no fundamento da doutrina, abre a possibilidade de um
debate interno e de uma ampla diversidade de opiniões. A cristandade medie-
val aparece, assim, como um quadro intangível, rigorosamente definido pela
Igreja, mas no interior do qual o jogo de suas tensões constitutivas abre um
espaço em que coexistem sempre várias posições possíveis.
Poder-se-ia, então, caracterizar o sistema eclesial medieval pelo seu rigor
amhivalente (expressão que designa sua capacidade de articular os contrários, ao
mesmo tempo que sublinha que a ambivalência em questão não é absolutamen-
te a marca de um defeito de coerência e não poderia ser associada a uma tole-
rância qualquer). Esse rigor ambivalente é suscetível de produzir no seio de um
sistema, embora inteiramente dominado pela instituição eclesial, a criatividade
intelectual de que é testemunho o desenvolvimento do pensamento escolástico
e a intensidade de suas discussões ou, ainda, a extrema inventividade das ima-
gens medievais. É o mesmo princípio que obriga a manter desafios permanen-
tes e a elaborar edifícios de raciocínio cada vez mais sofisticados para pensar o
impensável, para defender paradoxos insustentáveis e para dar a forma mais
racional possível à elucidação do mistério divino, que os próprios escolásticos

528 ]érôme Baschet


reconhecem, em última instância, que é impossível estabelec~r racionalmente.
As equações trinitárias e os paradoxos da Encarnação deve~iam ser contados
entre os mecanismos secretos da dinâmica ocidental?
O mais importante é, sem dúvida, sublinhar que as tensões consideradas aqui
não podem ser estáveis. Elas abrem a possibilidade de dosagens variáveis, inces-
santemente reformuladas. Longe de confirmar a idéia de uma Idade Média imó-
vel, elas são partes ativas de sua dinâmica (quer dizer, de sua capacidade para se
transformar radicalmente, sem por isso sair de sua lógica fundamental). Assim, no
seio de uma temporalidade informada pela repetição e pela força da tradição, emer-
ge um tempo novo, mais apto a ser medido, menos hostil à novidade e mais inquie-
to quanto à sua irreversibilidade. Do mesmo modo, a constituição de uma geogra-
fia sagrada dos lugares de culto e a reorganização geral do espaço social criam, ao
mesmo tempo, um enraizamento local forte e uma dinâmica unificadora que con-
figura progressivamente espaços mais amplos e permite um aumento da mobilida-
de e das trocas. Transbordando as fronteiras da morte, esse processo de estrutura-
ção espacial faz nascer uma verdadeira geografia do além, fundada sobre uma
dissociação crescente do aqui embaixo e do além e sobre uma divisão funcional dos
lugares do outro mundo. No que se refere ao carnal e ao espiritual, passa-se de uma
situação em que as referências dualistas pesam tanto quanto possível nos limites
que lhe são acordados pela ortodoxia a uma afirmação cada vez mais ativa de uma
superação do dualismo. Reafirmada pelo reforço da lógica da Encarnação, a espi-
ritualização do carnal ganha terreno e permite uma tomada de controle cada vez
mais profunda do mundo terrestre através de sua espiritualização.
É sobre tal base que seria preciso repensar fenômenos tradicionalmente
descritos como "humanismo cristão", "naturalismo figurativo", "desenvolvimen-
to do pensamento profano" ou "laicização", pois nenhuma dessas transforma-
ções se realiza contra a Igreja, mas sob sua dominação (e a afirmação dos laicos
é somente uma participação mais ativa e uma melhor integração destes aos qua-
dros eclesiais, concebidos e controlados pelos clérigos). Essas tendências são,
então, o produto da própria dinâmica do cristianismo medieval, graças à sua
capacidade sempre crescente de assumir as realidades carnais, tornando-as
espirituais. Em todos os casos nota-se uma dinâmica de clarificação/articulação,
que parece sustentar e acompanhar o crescimento feudal, do qual os princípios
construtivos do gótico podem ser tidos por uma das materializações formais.
Passado o século XIII, a mesma lógica continua a funcionar, mas a articulação
dos contrários não parece mais poder ser mantida, a não ser ao preço de uma
complexidade e de uma tensão crescentes. Uma crise geral está longe, mas a pró-
pria dinâmica do sistema feudal começa, então, a manifestar tendências à dis-
junção e a acumular dificuldades irresolutas.

A CIVILIZAÇÃO FEUI>AL 529


Para prolongar novamente até as paragens americanas, um exemplo notável
do rigor ambivalente do cristianismo medieval é o debate suscitado pela
Conquista. Com efeito, são afirmadas opiniões extremamente diversas que con-
cernem ao fato de os indianos pertencerem ou não à espécie humana e, na pri-
meira hipótese (adotada pelo papa Paulo 111, em 1537), sobre a origem deste
ramo, até então desconhecido da humanidade, ou, ainda, quanto à legitimidade da
guerra de conquista. Sobre esse ponto - e para não falar de outros autores - ,
as posições de Bartolomeu de Las Casas e de Juan Ginés de Sepúlveda, expres-
sas na Controvérsia de Valladolid (1550-51 ), são seguramente as mais antinô-
micas. Entretanto, elas afrontam-se no campo de debate interno à ideologia
cristã, pois os dois oponentes- dos quais nenhum é rejeitado pela heterodoxia
- são, cada qual à sua maneira, personagens respeitados e integrados à insti-
tuição. Nem por isso as opiniões são menos contrastadas. Para Sepúlveda, e
muitos outros com ele, a guerra de conquista é legítima, pois os índios são bár-
baros, quer dizer, humanos situados no limite da bestialidade, e porque é justo,
para impedi-los de sacrificar inocentes, submetê-los pela força à razão superior
dos cristãos. Para Las Casas, os índios são capazes de se governar por si mes-
mos de maneira racional, de modo que tudo o que os espanhóis fizeram desde
o início da Conquista não é nada mais do que roubo, tirania e ações ilegítimas
contrárias à fé; os índios dispõem, então, do direito de levar a cabo uma guerra
justa contra os cristãos para obter a restituição de seus bens e de seus Estados.
Por mais contrastantes que elas sejam, as posições em questão possuem
mais fundamentos em comum do que se poderia pensar. Como sugeriu Nestor
Capdevila, elas inscrevem-se no espaço de discussão característico da "lógica
ambígua" do cristianismo e possuem "uma unidade ideológica em sua oposição".
Assim, mesmo se Sepúlveda os compara, por necessidade da polêmica, a bes-
tas, ele não nega, a rigor, que os índios pertençam à espécie humana. Além
disso, ele reconhece que a idéia de Aristóteles, segundo a qual alguns são por
natureza destinados à escravidão, afronta os princípios cristãos, e ele não recor-
re a ela para justificar os excessos da encomienda ou da escravidão dos índios,
mas somente sua integração à ordem cristã. Quanto a Las Casas, partilhando as
categorias aristotélicas recebidas na cristandade, ele admite, seguindo Tomás de
Aquino, que diferentes aptidões justificam uma hierarquia de comando e rela-
tiviza a idéia de uma igualdade entre todos os homens, classificando os diferen-
tes grupos humanos segundo seu grau de civilização. É por isso que o ponto
decisivo de sua argumentação consiste em demonstrar, através de sua monu-
mental Apologética historia sumaria, que os índios não são bárbaros e que atin-
giram níveis de organização e de cultura iguais, ou mesmo superiores, aos das
civilizações do Mediterrâneo antigo e, em certos aspectos, da própria cristandade.

530 }érôme Baschet


Além disso, se ele condena a escravização dos índios (e, tardiamente, dos
negros), em virtude das modalidades que a instituíram, estima legítimo fazer
escravos em uma guerra justa. Não se poderia, então, opor o aristotelismo desi-
gual de um Sepúlveda e o igualitarismo cristão de um Las Casas. É preciso,
antes, reconhecer que a conjunção da hierarquia e da igualdade é uma das ten-
sões constitutivas do rigor ambivalente do sistema cristão. A intensidade dos
debates é a conseqüência disso e a pluralidade das posições deriva das variações
de equilíbrio no seio dessas tensões: se Las Casas tira mais partido da igualda-
de, jamais nega o princípio hierárquico; se Sepúlveda insiste sobre a hierarquia,
não abandona a regra igualitária.

A expansão do Ocidente (parâmetros teóricos)

Nesse ponto, convém fazer um retorno à questão inicial: por que e como a
Europa pôde engajar-se na conquista do mundo, e em primeiro lugar das Índias
Ocidentais? Isso não foi, já se disse, o resultado de um tempo tornado moder-
no de repente, nem de um Renascimento que, magicamente, pôs fim a um sis-
tema feudal petrificado em sua imobilidade milenar e que a ''crise" dos séculos
XIV e XV teria liquidado para dar lugar ao reinado do capitalismo comercial e do
Estado moderno. Ao contrário, o Renascimento é a marca de uma Idade Média
prolongada e a modernidade dos Tempos Modernos deve ser '"guardada entre as
velharias" (Jacques Le Goff). A expansão da Europa no século xvr deve, portan-
to, ser analisada menos em relação às cores melancólicas do outono da Idade
Média, ou aos esplendores do humanismo renascente, do que na lógica de uma
longa duração feudal, cujo coração é o elã que toma forma nos séculos XI e XII.
As páginas precedentes parecem ter atribuído, a fim de compreender a dinâ-
mica expansiva do Ocidente, um papel fundamental ao cristianismo. Ora, uma
dimensão central da obra de Max Weber é procurar compreender a originalida-
de do Ocidente (o que, ao menos implicitamente, pode ser tido como a chave de
sua "superioridade" histórica). No coração dessa especificidade, Max Weber
situa o nascimento do capitalismo, que põe em relação à teologia calvinista da
predestinação, não para fazer desta última, é verdade, a causa do primeiro, mas
para estabelecer afinidades entre ambos e notar aquilo que, no protestantismo,
atua como fator favorável, sob certas condições, ao desenvolvimento do espírito
capitalista. Além disso, Max Weber tende a opor a afirmação da família nuclear
no Ocidente, adaptada ao desenvolvimento do capitalismo, e o peso dos grupos
de parentesco alargado no Oriente, que, supostamente, lhe criam obstáculos.
Ele atribui essa particularidade da Europa às "religiões éticas" (notadamente o

A CIVILIZAÇÃO fEUDAL 53J


cristianismo "e, acima de tudo, a seita ética e ascética do protestantismo"), que
têm o mérito de "quebrar as cadeias do grupo de parentesco" e de instaurar
"uma comunidade superior de fé e um modo de vida ético comum, em oposição
à comunidade de sangue".
Essa tese foi submetida a uma forte crítica por Jack Goody, que, ao contrá-
rio, engloba em um mesmo conjunto as estruturas de parentesco européias e
asiáticas, dotadas de traços comuns determinantes (por contraste com as da
África). Mais amplamente, ele chama a atenção sobre os riscos de pressupostos
que enfatizam excessivamente a "unicidade do Ocidente", que tem como con-
seqüência acentuar artificialmente as distâncias, especialmente com o Oriente,
e "tornar primitivas as civilizações" extra-européias. Um esforço similar, embora
ainda mais amplo, é proposto por Eric Wolf: em seu desejo de associar a Europa
e o resto do mundo em um destino comum, ele engloba todas as grandes civili-
zações observáveis na superfície do globo por volta de 1400 - e até o século
XVIII- em um mesmo conceito (o modo de produção tributário), argumentan-
do que, se elas apresentam infinitas variantes, o núcleo das relações de produ-
ção obriga a reconhecer entre elas uma similitude fundamental. Mesmo se direi
mais adiante por que esta última argumentação não convence, parece razoável
dar crédito às críticas que alertam contra os riscos de tornar as diferenças entre
o Ocidente e todos os demais uma questão de essência.
Um outro aspecto da obra de Max Weber deve ser lembrado. Em oposição
às teses segundo as quais a modernidade só poderia nascer de uma laicização
do pensamento, ele põe a ênfase sobre aquilo que, na religião, favorece as con-
dutas racionais e se mostra "sensível às potencialidades racionalizantes das reli-
giões da transcendência" (Philippe Raynaud). Sobre tais bases, chega-se a atri-
buir bastante facilmente ao cristianismo um papel maior na formação da
racionalidade ocidental e na expansão européia. Max Weber não vê na novida-
de radical da temporalidade cristã uma das chaves da experiência única do
Ocidente e de seu destino hegemônico? Quanto à análise metodicamente rea-
lizada por Mareei Gauchet, ela inscreve no coração da dinâmica ocidental um
fenômeno justamente situado durante a Idade Média: a "libertação da dinâmi-
ca original da transcendência" (entendamos por isso a lógica que separa o huma-
no e o divino, a natureza e o sobrenatural, o visível e o invisível). Ora, é urdin-
do essas ordens de realidade que a Encarnação assinala seu distanciamento
irremediável. E, enquanto as religiões anteriores se propunham a reger o aqui
embaixo, o investimento no além que caracteriza a cristandade tende, a despei-
to dos efeitos contrários induzidos pela institucionalização da Igreja, a liberar
parcialmente o mundo do peso da relígião e a preparar a aceitação e o amor às
realidades terrestres. Assim, à medida que ele assume a dinâmica da transcen-

532 }éréJme Baschet


dência- à medida que, se quisermos, Deus se retira do,mundo - , 0 cristia-
nismo amplia a possibilidade de uma objetivação do real e de um conhecimen-
to racional dele. Com o tempo, a dinâmica da transcendência produz uma rup-
tura entre o ser e o dever ser, que torna capaz de se opor ao mundo, para
afrontá-lo e transformá-lo. Para Mareei Gauchet, o cristianismo seria, assim, "a
religião do fim da religião" e a modernidade resultaria não de seu enfraqueci-
mento, mas da radicalização de suas potencialidades.
A despeito da proximidade de certas das interrogações formuladas, não é o
filão weberiano que se pretende seguir aqui. É verdade que não é impensável
retomar certos aspectos de tais análises, mas integrando-as em uma perspecti-
va diferente. Assim, um autor como Michael Mann, que não reivindica uma
filiação weberiana, atribui ao cristianismo um papel decisivo na compreensão da
dinâmica ocidental, sublinhando em particular suas virtudes pacificadoras e sua
capacidade de conferir à cristandade uma unidade forte e uma notável coesão
social, distinta da "pacificação coercitiva" estabelecida na maior parte das outras
sociedades. Nem por isso a perspectiva adotada aqui é a de uma história
(mesmo política) das religiões, e gostaria de evitar tomar por eixo da análise o
cristianismo, como fato religioso dotado de uma essência intemporal, que se
revela mais ou menos ao sabor das circunstâncias históricas. Aqui, é questão
apenas de uma forma particular do cristianismo, desenvolvido no espaço oci-
dental, com todas as suas evoluções específicas e em contraponto especialmen-
te a Bizâncio, onde essas transformações não se produzem, onde perdura a
imbricação da Igreja e do Império e onde a submissão à tradição bloqueia toda
dinâmica teológica'.
A esse propósito, a especificidade da evolução ocidental, embora inscrita
em um processo milenar, pode ser considerada o produto de duas rupturas deci-
sivas. Em primeiro lugar, a época de Agostinho vê a fundação de um cristianis-
mo ordenado em torno de uma instituição eclesial doravante bem constituída (o
que implica a necessidade de reabilitar parcialmente certos aspectos das ativi-
dades terrestres, a começar pelo casamento, ao mesmo passo que se procede a
uma desvalorização do homem, esmagado sob o peso do pecado e incapaz de
atingir a salvação sem a mediação eclesial). Depois, nos séculos XI e XII, no
momento em que a separação com Bizâncio é consumida e em que a associa-
ção geminada entre a Igreja e o Império é definitivamente quebrada, a cristan-
dade latina afirma-se como um conjunto continental dotado de uma forte coe-
são, sob a condução de uma instituição sacerdotal centralizada e vigorosamente
sacralizada (o que é acompanhado por uma série de inversões das concepções
iniciais, a começar pela doutrina eucarística, o cuidado dos defuntos ou a trans-
formação do casamento em sacramento). Nessas condições, é ainda muito

A CIVILIZAÇÃO fEUDAL 533


pouco substituir como objeto de análise o cristianismo pelas especificidades do
cristianismo ocidental. Com efeito, se a noção de religião não tem pertinência
na Idade Média, seria melhor falar da cristandade como modelo social ordena-
do pela instituição eclesial, sobretudo porque o fator dinâmico que se percebe
é menos um fato religioso isolado como tal do que a Igreja, em sua dupla acep-
ção de corpo social formado pela comunidade de fiéis e de instituição dominan-
te do feudalismo. Considerando tudo, dever-se-ia adotar, então, uma perspecti-
va mais abrangente e considerar o conjunto do sistema feudal, no seio do qual
a Igreja tem papel decisivo.
Assim, eu me distancio de uma história das religiões e de uma insistência
weberiana sobre os fatores ditos religiosos. É, então, mais sob a ótica de uma
reflexão sobre a lógica de conjunto do feudalismo que serão feitas duas propo-
sições seguintes:
- Longe das idéias convencionais de estagnação e de imobilismo, a socie-
dade feudal produz um desenvolvimento demográfico e produtivo de uma
amplitude excepcional e que é somente uma das expressões de seu caráter dinâ-
mico. Mais amplamente, é na própria dinâmica do sistema feudal que seria neces-
sário procurar as razões da formação do capitalismo. É verdade que o sistema feu-
dal deve, finalmente, dissolver-se para dar lugar a uma lógica capitalista que lhe
é radicalmente oposta. Mas os elementos que conduzem à afirmação do capita-
lismo desenvolvem-se em seu próprio seio, não contra ele, mas pelo efeito de
sua própria dinâmica. Assim, mesmo se é o capitalismo que realiza plenamente a
dominação do planeta pelo Ocidente a partir do século XIX, é na existência do sis-
tema feudal que se pode situar a exceção histórica· da qual surge a primeira dinâ-
mica da Europa e os inícios de seu empreendimento de conquista do mundo.
Enfim, a análise deveria revelar, por comparação com outros sistemas históricos,
a conjunção de um fator dinâmico e de um princípio de economia, em funcio-
namento na organização da sociedade feudal.
-No seio da dinâmica feudal, pode-se atribuir um papel determinante, não
ao cristianismo como fato religioso, mas ao sistema eclesial na medida em que ele
é coexistente à sociedade. Sendo a Igreja, a um só tempo, coluna vertebral e invó-
lucro, e para dizer tudo, a própria forma da sociedade feudal, ela é sua princi-
pal força motriz. É, sem dúvida, em seu rigor ambivalente, que produz uma série
de articulações contrárias, que é necessário situar o motor de sua capacidade dinâ-
mica. Também aqui, gostaria de pôr em evidência, por comparação, a conjun-
ção de um fator dinâmico e de um princípio de economia, em funcionamento
no sistema eclesial ocidental.

534 }érome Baschet


Sistema feudal versus lógica imperial ,.. .-:·

Precisemos a primeira proposição. Numerosos fenômenos, tais como o desen-


volvimento comercial e urbano, que geralmente são considerados tendo se
desenvolvido contra o feudalismo, são, ao contrário, compatíveis com ele e até
mesmo o fruto" de sua própria dinâmica. A visão tradicional crê poder captar,
desde o século XII, a afirmação progressiva das trocas, das cidades e de uma clas-
se burguesa, que possuiriam, embora em um grau ainda modesto, como que em
germe, os mesmos caracteres que aqueles observados no capitalismo que se
toma dominante no século XIX, sem falar do fato de que este disporia, desde o
século XVI, de uma esfera de atividades própria, limitada, mas já autônoma.
É, entretanto, tão indispensável quanto difícil desprender-se dos efeitos da
teleologia e renunciar a uma visão linear dos processos históricos, segundo a
qual os ingredientes constitutivos do capitalismo contemporâneo contentar-se-
iam em crescer quantitativamente do século XII ao século XIX. Admitir-se-á, ao
contrário, que esses elementos, uma vez operada uma série de transformações
qualitativas, contribuem a uma recomposição completa da lógica social e para a
destruição do sistema feudal, desenvolvendo-se, de início, conforme a lógica
deste. Mesmo se eles evocam os negócios da burguesia, durante um longo
tempo são apenas "os condimentos de um prato essencialmente medieval ou
feudal", para retomar a expressão de Eric Hobsbawm. A despeito de sua visibi-
lidade (acentuada pela historiografia por motivos ideológicos), são mantidos em
posição subalterna e possuem características e significações muito diferentes
das que assumirão a partir do fim do século XVIII, quando a lógica da mercado-
ria se toma o princípio condutor da organização social. O desenvolvimento das
trocas durante a (longa) Idade Média não supõe a existência do mercado; e as
elites urbanas ainda são compostas apenas de "homens de negócios feudais",
muito distintos dos burgueses modernos. Se o capitalismo suplanta finalmente
o feudalismo, as forças que, reformuladas e qualitativamente transformadas,
permitem constituí-lo desenvolvem-se, durante séculos, não contra o sistema
feudal, mas conforme sua própria dinâmica.
As trocas comerciais não definem o capitalismo mais do que a autarquia
define o feudalismo. Existem trocas em quase todas as sociedades, e a uma
escala relativamente importante nas principais civilizações da história humana
(Femand Braudel). A questão, então, é compreender por que, diferentemente
do Ocidente, não evoluíram a partir delas mesmas para o capitalismo (uma vez
que a dominação européia se estabeleceu, esta possibilidade desaparece, mas a
questão permanece em toda a sua extensão para os períodos anteriores; quanto
ao Japão, que poderia constituir uma exceção, ele é também a única sociedade

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 535


não ocidental à qual se pode, ao que parece, atribuir, sem degradar excessiva-
mente o uso do termo, uma etapa de caráter feudal). lmmanuel Wallerstein
afrontou essa questão perguntando-se, particularmente, por que o mundo havia
sido conquistado pela Europa e não pela China, embora essas duas entidades
tenham atingido, entre o século XIII e XV, níveis de desenvolvimento muito com-
paráveis e tenham se engajado em uma política de exploração marítima. Entre
os principais elementos de resposta, o mais importante está ligado, segundo ele,
ao fato de que a China formava então um "império-mundo", no qual os custos
de manutenção da burocracia e, mais geralmente, os esforços para manter a
autoridade central eram exorbitantes e realizavam-se em detrimento do espírito
de inovação. Em revanche, a Europa Ocidental constituiu-se, pouco a pouco,
em uma economia-mundo, quer dizer, um conjunto cuja unidade era assegura-
da por laços econômicos e não pela integração em um conjunto unificado e cen-
tralizado (e ele acrescenta que, antes de constituir-se em economia-mundo, a
Europa Ocidental era uma "civilização", dotada de uma unidade fundada sobre
a cultura e a religião). Ora, segundo lmmanuel Wallerstein, o capitalismo só é
possível no quadro de uma economia-mundo, que evita o custo e a rigidez con-
servadora do sistema imperial. Fernand Braudel adota posições próximas, indi-
cando que, na China, o Império quebra o florescimento dos mercadores cada
vez que este atinge um grau excessivamente importante de desenvolvimento, ao
passo que o capitalismo "exige uma certa tranqüilidade da ordem social, assim
como uma certa neutralidade, fraqueza ou complacência do Estado".
Inspirando-se nessas idéias, mas modificando alguns de seus elementos,
poder-se-á opor lógica imperial e dinâmica feudal. Para além da diversidade de
suas formas históricas, a lógica imperial caracteriza-se pelo fato de orientar uma
parte considerável das forças sociais para o único objetivo da conservação de
uma unidade política. Concebido como um governo sem limites, o império
identifica-se com a totalidade do universo (ou, ao menos, do mundo civilizado,
o único que merece ser levado em conta). A expansão territorial, sob a forma da
conquista militar e da imposição de uma dominação política mais ou menos
centralizada, é sua primeira manifestação. Mas esta sempre conduz o império a
exceder suas possibilidades materiais de unificação e de controle, de modo que,
pelas despesas militares e administrativas incessantemente mais pesadas, ele
esgota suas forças para manter uma unidade incerta e frágil. Paralelamente,
uma vez que sua lógica expansiva é bloqueada, ele só pode salvar o seu ideal
ignorando ou, ao menos, depreciando cada vez mais o mundo exterior, ao mesmo
tempo que acentua suas tendências conservadoras. Essa caracterização, bastan-
te sumária, engloba também os sistemas tributários do mundo ameríndio, no
qual as estruturas de dominação mais desenvolvidas assumem a forma imperial,

536 }érome Baschet


embora, de modo geral, menos consolidada (em revanche,.ela não concerne ao
que se acostumou chamar de impérios português ou castelhano, que não estão
relacionados com a definição proposta aqui, nem que seja pelo fato de que cada
monarquia européia sabe que está em concorrência com suas rivais cristãs). Em
resumo, nos impérios e, em uma menor medida, nos sistemas tributários, a
sociedade tende a ser sufocada ou mesmo esmagada pelo Estado.
Ocorre diferentemente no sistema feudal, no qual o Estado é ausente e as
monarquias penam para fazer existir seus esboços iniciais. E, no entanto, seja lá
o que pretendem os antigos clichês, disso não resulta nenhuma "anarquia feu-
dal", mas somente uma grande quantidade de conflitos de alcance limitado, que
não são os mais mortíferos. O sistema senhorial, que se estabelece então,
demonstra mesmo ser uma ordem social notavelmente eficaz. Articulado à
estruturação da rede paroquial e à formação das comunidades aldeãs, ele se
beneficia de um enquadramento tão estrito dos dominados que o chamamos
"encclulamento'', e o controle assim exercido sobre os produtores pode ser
medido pelo excepcional crescimento dos séculos XI a Xlll. Poder-se-ia quase já
concluir que o feudalismo é caracterizado, na ausência de estruturas estatais,
por uma dominação social poderosa (o donúnium, poder "total", resultante da
fusão da dominação sobre as terras e da dominação sobre os homens), mas equi-
librada (as comunidades aldeãs organizam-se e melhoram seu destino) e nota-
velmente eficaz (de onde o desenvolvimento demográfico e produtivo).
Como se disse, Eric Wolf propôs englobar o feudalismo e as principais civi-
lizações que lhe são contemporâneas em uma mesma noção: o modo de produ-
ção tributário, caracterizado pela oposição entre os produtores e os chefes mili-
tares ou políticos que extorquem um tributo através do exercício do poder. Ele
sublinha, assim, um ponto comum entre o modo de produção feudal e o que se
entende geralmente por modo de produção tributário (característico, notada-
mente, das sociedades mesoamcricanas e andinas). Com efeito, em ambos os
casos, os produtores (que não são escravos) não são separados dos meios de pro-
dução: eles os usam conforme as regras garantidas pela comunidade e organi-
zam o trabalho produtivo de maneira largamente independente dos dominantes.
Entretanto, uma diferença essencial liga-se ao fato de que, num caso, o poder
do Estado, que capta o tributo, é inteiramente exterior às unidades de produção
e não intervém em sua organização, enquanto, no outro, os dominantes se
implantam nessas unidades coletivas a ponto de reivindicar delas não somente
a extração de um excedente de produção, mas também um controle direto do
território e um poder de comando e de justiça sobre os homens. Mesmo se sua
intervenção direta na atividade produtiva é limitada, eles têm uma forte influên-
cia sobre ela, na ponta (efeitos induzidos pela complexidade das obrigações de

A CIVILJZ,\ÇÀO FEUDAl. 537


pagamento e suas transformações) e, mais ainda, na base (pois os dominantes
- aristocracia e Igreja -dão forma ao quadro geral no qual se desenrola a pro-
dução, aí incluída a própria comunidade aldeã). A lógica dessas duas organiza-
ções parece suficientemente diferente para sugerir que se mantenha uma dua-
lidade conceitual: em um caso, o desenvolvimento do sistema tributário conduz
diretamente à afirmação de estruturas estatais incessantemente mais separadas
das comunidades produtivas e que tendem à forma imperial, ao passo que o
desenvolvimento feudal reforça, ao menos num primeiro tempo, a inscrição
localizada tanto de dominados como de dominantes. Dessa comparação, pode-
se reter que o feudalismo é caracterizado: a) pela imposição de uma forma de
poder sobre os homens totalmente imbricada na relação de produção; b) por
uma conjunção notável entre uma pesada dependência exercida localmente e uma
auto-organização da produção pelos próprios produtores: a dominação feudal
não se exerce através da própria produção, mas, a um só tempo, aquém e além
desta. É assim que se combinam, no desenvolvimento dos séculos XI a XIII, a
"pressão acentuada dos dominantes sobre as forças produtivas" e a vitalidade
das comunidades aldeãs, que, não sem sofrerem uma dominação "total", refor-
çam sua consciência coletiva e sua coesão prática, diversificando-se e tirando
proveito das melhorias produtivas. Essa conjunção de uma forte dominação
local e de uma auto-organização de produtores não separados dos meios de pro-
dução é, sem dúvida, um dos paradoxos mais ativos do sistema feudal.
No entanto, falta ainda um elemento decisivo, pois o Ocidente medieval
não é um agregado de "células'' locais. Em primeiro lugar, não se pode ignorar a
existência de poderes supralocais, notadamente monárquicos, mesmo se estes
constituem por muito tempo organizações fracas ou superficiais. Entretanto,
elas começam a dar provas de uma eficácia reforçada em certos domínios e são
servidas por um grupo de administradores mais bem formados. Se estes estão
longe de fazer funcionar o que se pode chamar de Estado, ao menos se esfor-
çam para isso, especialmente através da constituição de um corpo de teorias
destinadas à celebração da coisa pública e do poder soberano. Em contrast.e
com a ineficácia da burocracia imperial chinesa, paralisada por uma identidade
de recrutamento e de interesses com as aristocracias locais, Robert Moore suge-
re ver na "constituição de uma classe administrativa cujos membros identifica-
vam seus interesses com os de seus senhores e não com os de suas famílias" um
dos motores da evolução específica da Europa. Nesse processo, têm um papel
decisivo a formação proporcionada pelas universidades, a transmissão concen-
trada das heranças, em detrimento dos cadetes, e, sobretudo - seria preciso
acrescentar - , a concepção da Igreja como instituição que faz prevalecer os

538 ]érôme Baschet


laços de parentesco espiritual e impõe uma marginalização .do parentesco car-
nal. Com efeito, lendo as observações de Robert Moore, não se poderia esque-
cer que esta "classe administrativa" é, por muito tempo, composta essencial-
mente de clérigos e que o primeiro sucesso que é necessário lhe creditar é o
reforço da instituição cclesial e da centralização romana.
De fato, o Ocidente é um corpo social unificado principalmente pela Igreja.
É devido a ela, em primeiro lugar, que o feudalismo não é caracterizado unica-
mente pela força da inscrição local e do vínculo ao solo, mas pela articulação
desse poderoso localísmo com uma ampla unidade tendendo ao universalismo.
lmmanuel Wallerstein nomeava "civilização'' este tipo de coesão, mas é possível
lhe dar também seu nome próprio: cristandade. Aqui, o sistema eclesial revela-
se determinante, pois o estabelecimento da rede paroquial é, ao mesmo tempo,
o fundamento indispensável para a afirmação do poder sacerdotal e uma das
engrenagens principais do encelulamento e da organização social fundada sobre
o vínculo dos homens com o solo. Um de seus sucessos mais excepcionais é o
de ter podido articular a dupla dimensão do sistema feudal, ao mesmo tempo
ordenado de maneira estritamente local (e que dizemos politicamente fragmen-
tado) e dotado de uma unidade continental. Essa dualidade certamente não
teria sido possível sem a Igreja, que não se contenta em assegurar a coesão do
corpo social cristão e a unificação- ao menos simbólica- do Ocidente, mas
também o destina a uma pretensão universal, exercida desde cedo contra os
muçulmanos, pelas cruzadas e pela Reconquista, mais tarde, pelo sonho de con-
versão dos mongóis c, finalmente, pelo desejo de conquistar longínquas para-
gens para estender a fé católica até os limites do universo.
A cristandade jamais realizou, é verdade, os ideais de paz de sua doutrina,
mas ela pôde, ao menos, formar uma comunhão espiritual à altura da qual medir
seus conflitos e suas divisões. E se ela é teoricamente um espaço destinado à
troca generalizada da caritas, ela deve também, na prática, inventariar seus
egoísmos, não sem antes ter experimentado conjuntamente seus particularis-
mos e sua homogeneidade (os campos lingüístico, litúrgico e artístico são um
bom exemplo disso). Entretanto, é sem dúvida um dos caracteres mais originais
do feudalismo ter podido conciliar uma inscrição local tão forte com uma lógi-
ca universal não menos poderosa. Disso resultam, a um só tempo, uma notável
coesão interna, uma acumulação de forças materiais, um elã criativo e uma
força de expansão para o exterior. Pode-se, assim, ligar um primeiro fator dinâ-
mico e um primeiro princípio de economia: o feudalismo ci'ia uma poderosa
dinâmica que conduz ao desenvolvimento interno e à expansão externa, mas
sem os custos e os fardos que seriam impostos por uma unificação imperial.

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 539


Uma vez que toda realidade substancial é retirada do Império, é a Igreja que
assegura sua coesão, de maneira notavelmente eficaz em termos que poderão
ser considerados relativamente econômicos.

Sistema eclesial versus lógica dos paganismos

No que se refere à segunda proposição e ao papel do sistema eclesial, acaba-se


de enunciar seu aspecto principal: a conjunção de uma organização fortemente
localizada e de uma unidade ampla, que tende ao universalismo. Isso deveria ser
suficiente para sugerir o laço quase indissolúvel entre as duas proposições enun-
ciadas aqui. Gostaria, entretanto, de retornar ainda sobre a questão do univer-
salismo. Diferentemente do judaísmo - religião do Deus único paradoxalmen-
te reservado a um só povo- e do islã- que, mesmo se estendendo para além
do mundo árabe, introduz elementos de bloqueio, tal como a interdição de tra-
duzir o Alcorão - , o sistema eclesial ocidental leva o universalismo prosélito à
sua plena maturidade. A idéia já estava contida no Evangelho (Mar 16, 15: "Ide
por toda a terra e pregai o Evangelho a todas as criaturas"). Ao longo da Alta
Idade Média, a obra de conversão dos povos avança para o Norte e para o Leste,
inclusive, por iniciativa de Bizâncio, até os horizontes russos. Mas é somente
nos séculos XI a XIII, em estreita imbricação com o reforço da instituição ecle-
sial, a afirmação da potência pontifícia e o ordenamento da cristandade como
corpo social homogêneo, que se afirmam, de maneira decisiva, a mentalidade
missionária e o ideal de expansão desta mesma cristandade. Em meados do
século XII, no mesmo lugar em que são Bernardo lança o chamado à segunda
cruzada, o tímpano de Vézelay, estendendo a órbita da missão dos apóstolos até
os povos legendários da Ásia e da África, é a expressão acabada desse ideal cris-
tão de missão, cujo objetivo é o de "converter a integralidade dos povos da terra"
(Dominique logna-Prat). O que teria sido da conquista da América sem essa
ideologia universalista? De resto, o louco empreendimento de Colombo era
nutrido pelo desejo não somente de liberar Jerusalém com o ouro trazido das
Índias, mas também de converter o Grande Khan.
O universalismo cristão, é verdade, produz figuras tão singulares como
Bartolomeu de Las Casas, que denuncia a ilegitimidade da conquista européia
e é capaz de reconhecer as virtudes civilizadoras das sociedades indígenas mais
avançadas. No mais das vezes, é verdade, ele o faz a partir de valores cristãos
projetados sobre o mundo indiano. E pode-se conferir alguma verdade à idéia
segundo a qual, no esforço de (re)conhecimento do outro, o a priori de igualda-
de e amor ao próximo são ainda mais desfavoráveis do que o a priori de superio-

540 ]érôme Baschet


ridade. Tzvetan Todorov sugere, assim, que Las Casas ama os índios, mas os
desconhece (negando sua diferença), enquanto Cortés os conhece melhor, ao
mesmo tempo que está muito longe de amá-los. Entretanto, esta constatação
tem seus limites e o próprio Tzvetan Todorov deve reconhecer que Las Casas
avança, em certos momentos, até uma relativização dos valores ocidentais e uma
compreensão positiva das realidades indígenas, inclusive em suas diferenças em
relação à sua própria experiência. Las Casas leva a seu ponto extremo o amor ao
próximo e esboça um reconhecimento da cultura do outro, mas sem por isso sair
do quadro de uma cristandade que se pensa como universal e detentora de valo-
res superiores. Seria preciso citar ainda as obras de Bernardino de Sahagún de
Diego Duran, nas quais o empreendimento de conhecimento do mundo ame-
ríndio é feito de maneira mais sistemática e profunda, ao mesmo tempo que se
encontra submetido a uma finalidade ainda mais explícita de conversão total e
de aniquilamento do paganismo. A despeito de algumas manifestações ambí-
guas, o universalismo cristão não é absolutamente portador de um reconheci-
mento do outro. Como todo universalismo, ele é uma universalização de valores
particulares e, como já ocorria na cristandade dos séculos XI a XIII, a unificação
através de valores pensados como universais é acompanhada por uma lógica da
exclusão e da instituição de grupos que devem ser excluídos _da aplicação dos
valores universais.
É, então, indispensável associar universalismo e intolerância, sem o que a
insistência sobre o dinamismo inventiva do Ocidente e o sucesso de sua raciona-
lidade terminariam de maneira estranha com a apologética dos missionários ou,
ao menos, com uma auto-satisfação etnocêntrica. Marc Augé sugere que os poli-
teísmos historicamente sempre perderam "em razão de sua excepcional tolerân-
cia". Que se pense no Grande Khan, que admitia, nos dizeres de Marco Polo, a
existência de quatro deuses, Jesus Cristo, adorado pelos cristãos, Moisés, pelos
judeus, Maomé, pelos muçulmanos, e Sogomomba-kan, pelos mongóis, e que
afirmava: "Eu os honro e os respeito a todos os quatro e evoco seja qual for den-
tre eles que reine no céu". Que se pense em Montezuma, que abre a Cortés e
seus homens as portas de sua capital, alojando-os em seus suntuosos palácios,
até que estes, menosprezando todas as regras de hospitalidade, começam a tudo
destruir, embriagados por tanto ouro e pelas riquezas exibidas. Os espanhóis
haviam acabado de chegar e Montezuma havia também aceitado que as ima-
gens cristãs tomassem lugar, ao lado das de seus deuses, no topo do templo
maior de Tenochtitlán, ao passo que Cortés e seus homens só esperavam o
momento de quebrar os "ídolos" dos pagãos. Assim, pode-se considerar a intole-
rância um dos mecanismos principais da constante vitória histórica do Ocidente
cristão sobre os paganismos. Tal é o rigor ambivalente do universalismo que só

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 541


aumenta o interesse pelo outro - a ponto de, por vezes, admitir um verdadeiro
esforço intelectual de reconhecimento da alteridade - para melhor dominá-lo
ou destruí-lo. Tal é a força de uma religião de amor que só promove a redenção
e a assunção radical do humano até o divino acompanhadas da exclusão de uma
parte considerável da humanidade, enviada para os castigos eternos do inferno.
Tal é a dinâmica dupla e complementar da cristandade e da instituição eclesial
que a governa: excessivamente afetuosa e integradora e, ao mesmo tempo, exclu-
dente e intolerante, quer dizer, finalmente, conquistadora e evangelizadora.
É preciso, agora, retomar, com fins de comparação, os outros aspectos do rigor
ambivalente do sistema eclesial. Já observamos a conjunção de um tempo que
se repete e de uma visão histórica linear e orientada. Sem esse tempo linear que se
esboça na Idade Média sob as formas da história sagrada e da escatologia seria,
sem dúvida, impossível compreender a formação da temporalidade inteiramen-
te histórica assumida pelo Iluminismo, a começar pela noção de história que
parece ser, a princípio, apenas uma transposição profana da Providência.
Entretanto, é preciso também admitir que a concepção medieval ainda não tem
nada a ver com esse tempo, pois ela deve compor com um regime de repetição
em que a linearidade custa a inscrever suas conseqüências no devir terrestre dos
homens. A oposição com os paganismos, submetidos a um tempo que retoma
ou que só avança em espiral, não poderia, então, ser absolutamente radical, mas
a diferença nem por isso é menos notável. Examinemos a comparação entre as
atitudes de Montezuma e Cortés, proposta por Tzvetan Todorov. Segundo ele,
em um mundo da tradição, em que é impossível pensar um evento novo, a che-
gada dos espanhóis só pode ser interpretada por Montezuma e sua corte sob a
forma de um retorno, daí o mal-entendido provisório que leva a acolher Cortés
e seus homens como enviados esperados desde longa data. Decorre daí um
desequilíbrio na capacidade de comunicação inter-humana: enquanto o tlatoani
asteca é incapaz de produzir as mensagens apropriadas a um presente inédito,
Cortés demonstra excepcionais qualidades de flexibilidade e de improvisação, e
assume uma arte de adaptação que permite agir em situações imprevistas.
É necessário, entretanto, nuançar esta análise, pois esse contraste é, sem
dúvida, constitutivo da intencionalidade dos textos coloniais que nos permitem
conhecer o evento. Além disso, a leitura de Tzvetan Todorov parece reproduzir
a oposição weberiana entre o "comportamento tradicional", referindo-se ao pas-
sado e limitando as possibilidades de inovação e adaptação, e a "ação racional
em relação a um fim", inteiramente submetida à exigência de eficácia na reali-
zação do objetivo definido. De fato, os cristãos têm com muito freqüência ati-
tudes bastante próximas às de Montezuma, a começar pelo próprio Colombo,
incapaz de conceber uma distância entre sua experiência e seu projeto, a ponto

542 }érôme Baschet


de, como se viu, proibir que seus companheiros afirmem que Cl.lha é uma ilha.
Como, então, dar conta de uma distância tão manifesta entre Colombo e
Cortés a partir do momento em que se pôs de lado a velha oposição entre
o medieval e o renascentista? Pode-se, de início, evocar uma diferença conjun-
tural. Colombo é confrontado com uma situação inteiramente nova; nesse
aspecto, ele está em uma posição comparável àquela de Montezuma. Cortés,
por seu lado, beneficia-se do quarto de século de experiência aberto pela viagem
do genovês. E se a descoberta do Império Asteca coloca-o diante de uma reali-
dade nova, ao menos pôde ser preparada graças ao conhecimento já adquirido
sobre as populações indígenas. Cortés está em posição eminentemente favorá-
vel para desenvolver seu "sentido da adaptação e da improvisação" a partir do
momento em que tem a iniciativa em um projeto ofensivo que ele mesmo ini-
ciou. Ele sabe para onde vai (ou, ao menos, o que ele quer), enquanto
Montezuma, ignorando até mesmo de onde vêem seus visitantes, encontra-se na
defensiva e submetido a um temível efeito surpresa (de resto, uma vez desenca-
deada a violência conquistadora dos espanhóis, os astecas não demoram a se dar
conta de seu erro inicial). Mas, sem dúvida, há algo mais e a distância simboli-
zada aqui por Colombo e Cortés é também uma expressão do rigor ambivalente
da cristandade. Com efeito, esta é capaz de produzir atitudes tão contrastantes
como as que se atribui, de um lado, ao descobridor das Ilhas e, de outro lado, ao
vencedor de Tenochtitlán. Sem dúvida, as circunstâncias contribuem para isso,
mas essa própria flexibilidade de respostas só é possível em razão das ambivalên-
cias constitutivas do sistema ocidental, no caso, da dualidade entre um tempo da
repetição, que aprisiona a espera na experiência, e um tempo linear, que afrouxa
um pouco o controle. O fato de existir, no seio de um tempo anti-histórico, mas
já corroído pela história, uma força de liberação potencial em relação à tradição,
sem dúvida contribui profundamente para a dinâmica ocidental.
Uma ambivalência comparável é reencontrada quando se trata das relações
entre a natureza e o sobrenatural. Nas sociedades informadas pelo politeísmo, o
homem é parte integrante de um universo em que natureza e sobrenatural se
confundem. Uma sacralidade difusa reveste a natureza, como testemunham, por
exemplo, o culto das árvores no paganismo germânico ou a importância, no
mundo mesoamericano, das montanhas, a um só tempo reservas de água, de ger-
mes vegetais e de seres ainda por vir, mundo dos mortos e moradas das divinda-
des de quem depende a boa realização do ciclo agrário. Os próprios homens são
parte integrante do mundo natural, o que é indicado, com toda a clareza, pela
concepção dos naguals (ou labs entre os tzeltals), duplos animais, mas também
fenômenos atmosféricos, tais como o relâmpago ou o vento, que são simulta-
neamente presentes na pessoa e no mundo exterior. Entretanto, é impossível

A CIVILIZAÇÀO FEUDAL 543


opor radicalmente tais concepções às do Ocidente medieval, onde predomina
uma concepção simbólica da natureza, considerada desde Agostinho um univer-
so de signos no qual o homem deve decifrar a expressão da vontade divina. A na-
tureza é Deus; e cada lugar da Criação, desde que seja "lido" corretamente, é
uma ocasião de louvar o Criador (é assim com são Francisco e, ainda, com
Petrarca, que, chegado ao topo do monte Ventoux, se lembra de Agostinho).
A natureza não é, então, dissociada do sobrenatural; ela é, ao contrário, impreg-
nada dele. Entretanto, o que se instaura entre ambos é uma relação figurai que
liga o signo à verdade significada, mais do que uma verdadeira co-presença. No
mais, se convém reconhecer que Deus está em todos os lugares, a Igreja se
esforça para concentrar o sagrado em lugares ·específicos (construídos, no
essencial), "loci (locais de peregrinação, santuários) ou loculi, quer dizer, relicá-
rios em que se estabelecia uma relação privilegiada e ativa entre os homens e
Deus" (Jean-Claude Schmitt). Resulta disso uma dinâmica de relativo desmem-
bramento entre a natureza e o sobrenatural, que libera, pela primeira vez, um
espaço de autonomia, embora sua posição não deixe de ser inferior e submeti-
da à potência divina.
O duplo distanciamento entre a natureza e o sobrenatural, assim como
entre o homem e a natureza, é tido, geralmente, como uma das condições do
desenvolvimento ocidental, sob as formas do conhecimento racional do mundo
e de sua apropriação com finalidade de transformação. É verdade que tal atitu-
de é estranha às sociedades politeístas ou animistas, que, embora se dediquem,
na prática, a uma transformação da natureza, ou mesmo a uma melhoria das
técnicas de domínio desta, em geral abstêm-se de pensá-las como tais. Na
Grécia antiga, a agricultura não é uma ação sobre a natureza, que visa a trans-
formá-la, mas uma atitude virtuosa c piedosa: "Esta transformação, mesmo se
fosse possível, constituiria uma iniqüidade. O trabalho da terra é uma participa-
ção em uma ordem superior ao homem, ao mesmo tempo natural e divina"
(]ean-Pierre Vernant). Como em numerosas sociedades primitivas, o trabalho da
terra é considerado uma troca com os deuses e os mortos. Do mesmo modo, nas
culturas ameríndias o homem não colhe o que semeou, mas o que a divindade
lhe dá, em troca das oferendas e dos sacrifícios que lhe foram feitos (Nathan
Wachtel). A colheita não é, então, o resultado do "trabalho" realizado pelo cul-
tivador, mas da relação que ele entretém com os deuses. A atividade do homem
não é produtiva em si mesma, mas somente como prece c homenagem.
Também aqui, as concepções medievais, ambivalentes, não poderiam ser opos-
tas diametralmente a estas que acabam de ser evocadas. Em primeiro lugar, na
Idade Média não se deixa de procurar, por todos os meios, garantir a benevolên-
cia das potências (sobre)naturais, desde as diversas práticas apotropaicas e os

544 Jérâme Baschel


rituais camponeses de fertilidade (que a Igreja relega, em grange parte, para
junto das "superstições") até as procissões e bênçãos eclesiásticás implorando a
Deus para regular as forças úteis ou nefastas às culturas. Mas, sobretudo, a des-
peito do processo de reabilitação de certas atividades dos laboratores, não exis-
te, na Idade Média, noção assimilável ao conceito moderno de trabalho. A ati-
vidade produtiva permanece, então, indissociável de considerações morais, a
começar pelo fato de que ela é uma pena, um castigo ao pecado original. É toda-
via nesse contexto que uma concepção penitenciai do labor, ao mesmo tempo
desvalorizado e necessário, humilhante e, por isso mesmo, ocasião de salvação,
conjugada com a percepção de uma natureza em via de dessacralização e posta
por Deus à disposição do homem, pode favorecer a busca de uma melhora das
capacidades produtivas e predispor a uma relação com a natureza que reivindi-
ca seu controle e sua transformação.
As concepções sobre a pessoa humana são, em parte, ligadas àquelas sobre
a natureza. Nos diferentes paganismos, "toda individualidade é somente a união
efêmera de princípios distintos de origens diversas", de modo que predomina o
"caráter compósito da personalidade humana" (Marc Augé). É assim com a pes-
soa mesoamericana, na qual se conjugam diferentes componentes animistas,
dentre os quais um número de naguals (ou labs) variáveis segundo os indivíduos
e mesmo segundo as etapas da vida. No sistema cristão prevalece, ao contrário,
uma unificação da pessoa, concebida como a necessária conjunção de um corpo
e de uma alma, ambos singulares, as almas tendo sido criadas especialmente no
momento da concepção de cada ser, embora todas sendo igualmente à imagem
de Deus. Enquanto a concepção pagã da pessoa - que leva, após a morte, a
uma desintegração dos componentes que formam o indivíduo ou, ao menos, a uma
visão impessoal da imortalidade - está associada a uma ampla indistinção do
mundo dos mortos e ao fraco interesse pelo além, a continuidade da pessoa para
além da morte é indispensável em um sistema no qual a preocupação com a sal-
vação pessoal pesa enormemente. Mas a importância que as recompensas e os
castigos do outro mundo adquirem no sistema eclesial medieval é, ela própria,
ambivalente. O além é, em primeiro lugar, a perspectiva última de um universo
submetido às dualidades morais do bem e do mal, do pecado e da virtude, e o
fundamento da posição dominante adquirida pela instituição eclesial, detento-
ra exclusiva dos meios de salvação. O além é, assim, o mundo ideal em nome
do qual a Igreja ordena o aqui embaixo, controla as consciências e reforma as
condutas. Ao mesmo tempo, sua importância crescente indica uma distância
irremediável entre a desordem do mundo e a absoluta justiça de Deus. Ele é o
signo de que esta justiça está ausente aqui embaixo e só pode ser realizada ple-
namente no além. A insistência sobre os castigos do inferno e a onipresença do

A CJVILJZ;IÇÀO FEUD,\1. 545


mal, que se torna mais obsessiva do que nunca nos séculos XVI e XVII, é o signo
de que o mundo recusa a conformar-se às normas instituídas pela Igreja. Nesse
sentido, o investimento no além é, a um só tempo, um instrumento de poder,
que permite à Igreja governar os homens aqui embaixo em nome do Todo-
Poderoso, e a marca de uma lógica da transcendência, pela qual o divino tende
a retirar-se do mundo.
Além disso, as concepções pagãs da pessoa indicam que prevalecem uma
relação recíproca com o mundo e um destino partilhado com outros seres (como
testemunha, nas concepções dos antigos nahuas, o ciclo de reutilização dos
componentes animistas, após a decomposição de cada configuração individual),
enquanto, nas concepções cristãs, esta inter-relação com o meio e com o grupo
é apagada em proveito de um laço privilegiado entre o indivíduo e Deus. Chega-se,
aqui, a uma das dificuldades principais do rigor ambivalente do sistema eclesial.
Com efeito, a articulação do espiritual e do carnal permite escapar simultanea-
mente à rejeição radical do mundo e das instituições e à aceitação passiva da
realidade tal como ela é. Entre os dois pólos, a figura-chave da espiritualização
do carnal dá lugar a uma série de fenômenos contraditórios. De um lado, ela
permite assumir mais amplamente as realidades materiais, da qual um sintoma
patente é a capacidade de observar a natureza e os corpos e de dar conta deles
plasticamente. Ao mesmo tempo, o ato de cuidar do mundo é acompanhado de
uma tendência a superá-lo e esses dois movimentos podem ser combinados para
fazer emergir uma lógica de transformação da realidade. Assim, a imposição
hierárquica do parentesco espiritual ao parentesco carnal parece ter como efei-
to reduzir o papel das solidariedades familiares e dos grupos de parentesco, que
é mais consolidado na organização das sociedades anteriores ou concorrentes.
O parentesco espiritual aparece como uma alavanca poderosa que permite
manipular as regras que normalizam a reprodução social. Assim, a Igreja
,medieval altera o papel dominante assumido até então pelo parentesco e, ao
mesmo tempo que promove a instauração de regras mais favoráveis à transmis-
são circunscrita dos patrimônios e do poder, inicia a transição para outros prin-
cípios dirigentes (Anita Guerreau-Jalabert): de início, lógica principalmente
espacial, combinando fixação local e universalidade, até que a ênfase do uni-
versal e o enfraquecimento da inscrição local conduzam à substituição da
dominação espacial do feudalismo por uma coerção principalmente temporal
no seio do capitalismo (o que a própria Igreja preparou ao assumir um tempo
histórico que corrói o tempo da repetição).

546 ]érôme Baschet


O Ocidente e seus outros: ·uma oposição dessimétrica

Universalismo e intolerância, tempo linear conjugado com o peso da tradição,


afastamento da natureza e concepção penitenciai do trabalho, individuação e
unificação da pessoa à imagem de Deus: tais são algumas das principais singu-
laridades do sistema ocidental no momento em que ele se engaja na conquista
do hemisfério americano. É preciso, no entanto, sublinhar novamente que os
princípios da modernidade estão ainda longe de ser plenamente constituídos.
Mesmo se a liberação do horizonte de expectativa parece dificilmente pensável
sem séculos de exercício da linearidade do tempo cristão, e se a escatologia
anuncia todas as esperanças de um mundo melhor garantido pelo caráter inelu-
tável do progresso, a ruptura que leva à concepção moderna da história não se
produz antes da segunda metade do século XVIII. Do mesmo modo, se o progres-
sivo desmembramento da natureza e do sobrenatural, assim como a separação
hierárquica entre o homem e o mundo natural, prefigura a atitude moderna de
conhecimento racional e domínio instrumental da natureza, o Ocidente medie-
val ainda está longe de tais práticas,' no mínimo porque ignora uma concepção
do trabalho desembaraçada de todo imperativo moral e livre de toda transação
com as forças sobrenaturais. Além disso, se se pode louvar o desenvolvimento
escolástico das técnicas de raciocínio e dos procedimentos argumentativos, con-
vém manter uma distinção firme entre o racionalismo parcial, que a Idade
Média pratica como tantas outras sociedades tradicionais, e o racionalismo
moderno (o primeiro, "forma aplicada simplesmente à organização de sistemas
parciais isolados com exatidão", contém nele "a necessidade absoluta de se
afrontar com um limite ou com uma barreira de irracionalidade", sem que daí
surja "o menor problema metodológico para o próprio sistema racional, pois ele
é um meio para atingir um fim racional", enquanto o segundo "reivindica ter
descoberto o princípio da ligação entre todos os fenômenos" e "representar o
método universal para o conhecimento do conjunto do ser"; Georg Lukàcs).
Paralelamente, se a igualdade formal instituída como regra constitucional pela
burguesia revolucionária tem um antecedente no sistema cristão, que proclama
a igualdade diante de Deus e a fraternidade generalizada de todos os batizados,
tais valores se revestem, nesse sistema, de um sentido totalmente diferente,
uma vez que são estabelecidos somente na ordem do espiritual e são aí combi-
nados com hierarquias terrestres instituídas como tais. Enfim, a representação
em perspectiva prefigura, com d~is séculos de antecedência, a concepção de um
espaço contínuo e homogêneo, bastante congruente com a afirmação do merca-
do e o triunfo da racionalidade capitalista. E, no entanto, ela deve ser conside-
rada, a princípio, a realização do processo de espiritualização do carnal, carac-

A CIVII.I<!:AÇAO FEUDAL 547


terística da dinâmica do feudalismo, e expressão da lógica que leva a Igreja feu-
dal a se encarregar do mundo material, desde que o respeito à sua própria domi-
nação garanta a boa leitura desse mundo e assegure sua inclusão em uma pers-
pectiva espiritual.
Em resumo, o sistema eclesial medieval não se opõe diametralmente aos
paganismos que encontra em seu empreendimento expansionista (não nos
podemos contentar em confrontar o tempo linear de um com o tempo cíclico
dos outros ou, ainda, por exemplo, a família restrita e o monoteísmo dos ociden-
tais ao parentesco alargado e o politeísmo dos outros). Trata-se, mais do que
isso, de pensar suas confrontações como uma série de oposições dessimétricas
e ambivalentes (que poderiam ser expressas sob a forma +versus +1-, enquan-
to uma oposição simples e diametral seria +versus-). Espera-se, assim, evitar,
ao menos parcialmente, os perigos de transformar em essencial ou exagerada a
dualidade entre a Europa e os seus outros, mas não sem enfatizar que há certo
inconveniente em levar excessivamente longe o esforço inverso a fim de aproxi-
má-los: arrisca-se, então, a não mais se poder dar conta da conquista européia
do mundo senão por uma constelação de fatores acidentais e aleatórios. É por
isso que, falando de oposições dessimétricas, pretende-se insistir sobre o rigor
ambivalente do sistema eclesial que, em seu empreendimento expansivo, pare-
ce tirar proveito tanto dos aspectos que o fazem parecer com seus adversários,
como das diferenças que lhe permitem triunfar sobre eles.
Assim, seria muito radical opor uma concepção cristã da doença, que pro-
cura sua causa no pecado como uma falta interior, e uma concepção pagã, que
a atribui a uma força exterior ao indivíduo. O rigor ambivalente do sistema ecle-
sial faz com que haja sempre, nas épocas aqui consideradas, duas explicações
possíveis: a falta cometida pelo doente ou a intervenção exterior do diabo (sem
falar do malefício lançado por um feiticeiro). Pôde-se sublinhar "a vantagem" da
leitura pagã, que evita para a consciência o peso da culpabilidade, que deriva,
por vezes, em delírios melancólicos de auto-acusação (Marc Augé). No entan-
to, é a uma avaliação diferente que chegamos se nos pusermos em um plano
mais geral e, sobretudo, se tomarmos como parâmetro as principais civilizações
ameríndias. Nelas, a medida conjunta da dívida em relação aos deuses e ao
poderio dos governantes é esmagadora: é a imensidão das pirâmides, lembran-
ça de uma ávida exigência sacrificial, indispensável para assegurar a perpetuação
de um mundo considerado frágil, à espera da catástrofe. Em comparação, a missa
cristã, ato real e socialmente determinante, mas sacrifício simbólico (a despei-
to da doutrina da presença real), produz um abrandamento tendencial da dívi-
da humana, que se resolve principalmente sob a forma da falta. É verdade que
é impossível reduzir esta a um sentimento interior de culpabilidade, pois ela se

548 }érôme Baschet


manifesta também por muitos atos de penitência e pelo .fluxo maciço dos dons
que convergem para a Igreja. A figura do homem pecador, submetido ao julga-
mento de Deus, é o ponto em que se urdem o poder material e o poder espiri-
tual da instituição eclesial. Então, o sacrifício de Deus não elimina, longe disso,
a dívida humana, que se paga por uma dominação da Igreja, que se pode dizer
total, embora não seja sem contradições, nem sem limites. Entretanto, a dife-
rença com a economia sacrificial do mundo ameríndio é forte: o consumo dos
bens permanece limitado, pois, se as riquezas convergem para a Igreja, elas não
são absolutamente retiradas do uso social (mesmo a construção de catedrais
desmesuradas é uma contribuição ao dinamismo das economias urbanas).
Quanto às energias penitenciais, por vezes elas se esgotam em mortificações,
mas são com freqüência também canalizadas para atividades práticas, desde a
cópia monástica dos manuscritos, assimilada a uma penitência, até o trabalho
manual dos cistercienses. Resta a parte da dívida que cristaliza em sentimento
de culpabilidade. Este é o sombrio espelho que Deus mostra ao indivíduo para
convidá-lo a tomar consciência de si e a purificar-se visando à salvação. Mas o
perdão que abre a porta do céu tem um preço; na confissão, ele é trocado pelo
reconhecimento do poder da instituição eclesial; ao menos até o momento em
que a doutrina da predestinação põe fim a toda mediação clerical.

No geral, pode-se admitir a conjunção de um duplo caráter dinâmico e de um


duplo princípio de economia. Em prím~iro lugar, o sistema feudal impõe uma
dominação local pesada e quase "total", mas, em todo caso, equilibrada e nota-
velmente eficaz, enquanto sua associação com o sistema eclesial lhe confere
ampla unidade espacial e coerência que lhe permite se lançar em uma dinâmi-
ca expansiva, sem por isso ter de suportar os custos e as reações associadas às
formações imperiais. Em segundo lugar, o próprio sistema eclesial possui um
poderoso caráter dinâmico, do qual um dos motores está ligado às diversas figu-
ras de seu rigor ambivalente, que o diferencia radicalmente dos sistemas poli-
teístas aos quais, no entanto, ele se.parece em certos aspectos. E se ele se carac-
teriza pela dominação de uma instituição temivelmente onipresente, esta se
revela, entretanto, "econômica", no sentido de que ela não retira absolutamen-
te os bens do uso dos homens e tende, ao contrário, a cristalizar as energias
necessárias para produzi-los. Finalmente, se a Europa se lança ao assalto do
mundo a partir do século XVI, não é porque ela teria inventado o capitalismo,
mas, muito antes, porque ela inventou o feudalismo. A conquista da América
é o resultado da dinâmica feudal, mesmo se, no momento em que esta ocorre,

A CIVII.IZAÇÀO FEUDAL 549


o feudalismo esgotou o essencial de sua dinâmica. Doravante ele está na defen-
siva, sem deixar, no entanto, de se impor como lógica dominante. Mas ainda não
é chegado o momento de uma reformulação geral da ordem social, que é a única
que permitirá que os elementos cujo crescimento o feudalismo suscitou em seu
próprio seio ganhem um novo sentido. É nesses termos que se pode admitir, ao
mesmo tempo, que o feudalismo (do qual o essencial da coesão e da dinâmica
é devido ao sistema eclesial) constitui um mecanismo renegado da especificida-
de do Ocidente e de seu destino hegemônico, e que a Idade Média é nosso anti-
mundo, esse universo anterior à modernidade, da mercadoria e da racionalida-
de plena, cuja compreensão nos obriga a um esforço infinito para que nos
desprendamos de nossas categorias e de nossas evidências.
No momento de deixar que o Ocidente medieval se conclua nas costas ame-
ricanas, gostaria de conjurar um último risco. Salvo o caso de se cair na culpabi-
lidade pós-colonial, com efeito a evocação das razões da Conquista e, mais gene-
ricamente, da hegemonia do Ocidente, é raro que não se descambe para sua
celebração ou, ao menos, para o reconhecimento nele de uma superioridade que
não seria somente factual (Tzvetan Todorov não escapa a essa tendência, a partir
do momento em que associa a dominação do Ocidente à sua capacidade superior
na comunicação humana e na compreensão do outro). Do mesmo modo, é difícil
não atribuir ao rigor ambivalente do sistema eclesial o mérito de prefigurar certos
valores do mundo moderno. É por isso que se recorrerá à sólida muralha que
Walter Benjamin levanta contra tais riscos, enunciando esta insuperável contradi-
ção: "Não há nenhum documento de cultura que não seja também um documen-
to de barbárie". Se (até hoje) todo fato de civilização existe na medida das relações
de dominação que ele pressupõe, os julgamentos de valor em matéria de compa-
ratismo devem ser suspensos em proveito de um balanço da ambivalência. Os
conquistadores e os missionários chegam ao Novo Mundo, carregados de contra-
dições, ao mesmo tempo criadoras e destrutivas. Seu mundo é aquele em que se
impõe a obediência às normas herdadàs e no qual se insinua, entretanto, a possi-
bilidade de agir sobre elas. Um mundo em que a submissão às constrições comu-
nitárias não impede a liberação interior do indivíduo. Um mundo em que o ritua-
lismo dos gestos litúrgicos ou quase mágicos segue paralelamente com a formação
de uma impressionante casuística psicológica induzida pela luta contra o pecado.
Os conquistadores e os missionários são animados, ao mesmo tempo, pelo vil atra-
tivo do ouro e pela busca sublime do paraíso terrestre, os quais, por vezes, se con-
fundem. O universalismo cristão, do qual eles são a expressão, esboça pela primei-
ra vez a unidade da humanidade, ao mesmo tempo que é portador da mais brutal
negação do outro. Em suas caravelas, viajam juntos uma selvagem intolerância e
o amor ao próximo, a esperança da razão e a ameaça da barbárie.

550 ]érôme Basc.het


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A bibliografia apresentada aqui é necessariamente seletiva: fornece apenas


uma visão muito reduzida dos estudos consagrados aos temas tratados neste
livro. Ela privilegia os trabalhos mais diretamente utilizados, assim como obras
acessíveis nas quais se encontrará uma bibliografia mais completa.

Seleção de obras gerais sobre a Idade Média

Para começar, dois clássicos indispensáveis: Marc Bloch, La société féodale ( 1939-40), Paris,
Albin Michel, 1968, e Jacques Le Goff, La civilisation de l'Occident médiéval, Paris, Arthaud,
1964. No mais, me limitarei às obras gerais que subsidiam o tratamento proposto aqui: Alain
Guerreau, Le féodalisme. Un horizon théorique, Paris, Le Sycomore, 1980, e L'Avenir d'un passé
inceru1in. Quelle histoire du Moyen Âge au xxt€ siecle?, Paris, Seuil, 200 I, assim como Robert
Fossier, Le Moyen Âge, Paris, A. Colin, 1983, 3 vols., e La société médiévale, Paris, A. Colin,
1991. Um instrumento de trabalho precioso: Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt (orgs.),
Oicctionnaire raisonné de l'Occident médiéval, Paris, Fayard, 1999 (daqui em diante abreviado
DB<>M). Agora, deve-se levar em conta a síntese inovadora de Joseph Morse!, L'Aristocratie
médiévale. La domination sociale em Occident (Ve-XVe siecles), Paris, A. Colin, 2004 (que for-
nece um panorama das evoluções sociais ao longo do milênio medieval).

Referências específicas aos diferentes capítulos

Introdução

Sobre a construção da Idade Média pelo Iluminismo e os prolongamentos da "dupla fratura


conceitual" até hoje, baseio-me nas demonstrações de Alain Guerreau, L'Avenir, op. cit., e
"Fief, féodalité, féodalisme. Enjeux sociaux et réflexion historienne", Annales ESC, 1990, l,
pp. 137-66. Sobre a valori1.ação romântica da Idade Média, Michael Lõwy e Robert Sayre,
Revolte et mélancolie. Le romantisme à contre-courant de la modernité, Paris, Payot, 1992.
Dentre a ampla bibliografia sobre a Conquista americana, citarei somente: Edmundo
O'Gorman, La invenciôn de América. El universalismo de la cultura de Occidente, México, FCE,
1958; Pierre Chaunu, Conquête et e:xploitation des nouveau.x mondes, Paris, PUF, 1969 (5" edi-

A CIVILIZAÇÃO fEUDAL 55J


ção revista, 1995); Marianne Mahn-Lot, La découverte de l'Amérique; Tzvetan Todorov, La
conquête de l'Amérique. La question de l'autre, Paris, Seuil, 1982; Juan Gil, Mitos y utopías del
Descubrimiento, Madri, Alianza, 1989; Bernard Vincent, 1492. "L'année admirable", Paris,
Aubier, 1991; Thomas Gomez, L'invention de l'Amérique, Paris, Aubier, 1992 ; Hernán
Taboada, La sombra del Islam en la conquista de América, México, UNAM+CE, 2004.
Nesta introdução foi feita menção igualmente a Pierre Vil ar, Or et monnaie dans l'histoire,
Paris, Gallimard, 197 4; Luis Weckmann, La herencia medieval de México, México, EI Colegio
de México, 2 vols., 1983; Jacques Le Goff, "Pour un long Moyen Age", in: L'Imaginaire médié-
val, Paris, Gallimard, 1985, pp. 7-13 e prefácio a Bartolomé Clavero, La grâce du don.
Anthr.opologie catholique de l'économie moderne, Paris, A. Michel, 1996; Reinhart Koselleck,
Le futur passé. Contribution à la sémantique des temps historiques, Paris, EHESS, 1990, e
Roberto S. López, Naissance de l'Europe, Paris, A. Colin, 1962.

Primeira parte, capítulo 1 (Alta Idade Média)

Neste capítulo, inspirei-me na obra de Peter Brown, que oferece uma visão renovada da
Antiguidade tardia e da Alta Idade Média: ver notadamente Genese de l'Antiquité tardive,
Paris, Gallimard, 1983; Le culte des saints, Paris, Cerf, 1984; La suciété et le sacré dans
l'Antiquité tardive, Paris, Seuil, 1985; L'essor du christianisme occidental. 200-1000, Paris,
Seuil, 1997, ou ainda La vie de saint Augustin, Paris, Seuil, 1971. Baseio-me igualmente nos
trabalhos de Chris Wickham, notadamente "The other transition: from the Ancient World to
feudalism", Past and Present, 103, 1984, pp. 3-36 et "La transición en Occidente", in:
Transiciones en la Antigüedad y feudalismo, Madri, fiM, 1998, pp. 83-90; assim como Pierre
Bonnassie, Del esclavismo al feudalismo en Europa Occidental, Barcelona, Crítica, 1993 (igual-
mente utilizado no capítulo 11). Para uma crítica das teorias que estabelecem uma continuida-
de entre Baixo Império e Império Carolíngio, Chris Wickham, 'The fali of Rome will not take
place", in: Lester K. Little e Barbara H. Rosenwein (orgs.), Debating the Middle Ages. Issues
and Readings, Oxford, Blackwell, 1998.
Sobre o renascimento carolíngio, Michel Sot, "Renaissançe et culture carolingiennes",
in: Michel Sot, Jean-Patrice Boudet e Anita Guerreau-Jalabert, Histoire culturelle de la France,
1. Le Moyen Age, Paris, Seuil, 1997; Pierre Riché, Écoles et enseignements dans le Haut Moyen
Age, Paris, Picard, 1989; Caro[ Heitz, Recherches sur les rapports entre architecture et liturgie
à l'époque carolingienne, Paris, Sevpen, 1963, e L'Architecture religieuse carolingienne. Les for-
mes et les fonctions, Paris, Picard, 1980. Sobre a reforma litúrgica, Eric Palazzo, Histoire des
livres liturgiques. Le Moyen Age, des origines au Xl/le siecle, Paris, Beauchesne, 199 3.
No que concerne a Bizâncio e o Islã, as referências bibliográficas serão encontradas nos
artigos do DHO/vl (Michel Balard, André Ducellier e Pierre Guichard) e nas obras já citadas
(notadamente Robert Fossier, Le Moyen Age, op. cit., e Peter Brown, L'Essor, op. cit.); refiro-
me também a Gilbert Dagron, Empereur et prêtre. Étude sur le "césaropapisme" byzantin, Paris,
Gallimard, 1996, e Alain de Libera, Penser au Moyen Age, Paris, Seuil, 1991.
Sobre a Reconquista c o mundo hispânico, ver notadamente Adeline Rucquoi, Histoire
médiévale de la Péninsule lbérique, Paris, Seuil, 1993, e Paulino lradiel, Salustiano Moreta
e Esteban Sarasa, Historia medieval de la Espana cristiana, Madri, Cátedra, 1995. Sobre o
Império no Ocidente, Robert Folz, L'idée d'empire en Occident du ve au X/Ve siecle, Paris, 1953,
e Michel Parisse, "Empire", DROM.

552 }ér6me Baschet


Primeira parte, capítulo 1/ (Ordem senhorial e crescimento ff!U;.dal)

Sobre os supostos pânicos e a "mutação" do ano mil, ver notadamente Georges Duby, L'an mil,
Paris, Gallimard/Julliard, 1980; Dominique Barthélemy, La mutation de l'an mil a-t-elle eu
lieu?, Paris, 1997; Sylvain Gouguenheim, Les faus.çes terreurs de l'an mil, Paris, Picard, 1999,
assim como as diversas contribuições ao debate reunidas em L'an mil en 2000, Médiévales,
1999, 37. Uma bela síntese engloba e supera essa questão: Robert Moore, La premiere révo-
lution européenne (xe-xwe siecles), Paris, Seuil, 2001.
Os conceitos-chave deste capítulo (dominium, encelulamento), assim como os dados
essenciais, são tomados de empréstimo de Alain Guerreau (Le féodalisme, op. cit.; L'Avenir,
op. cit., e "L'Étude de l'économie médiévale. Genese et problemes actuels", in: Jacques Le
Goff e Guy Lobrichon (orgs.), Le Moyen Age aujourd'hui. Trois regard.~ contemporains sur le
Moyen Age: histoire, théologie, cinéma, Paris, Le Léopard d'Or, 1997, pp. 31-82), e de Robert
Fossier (Enfimce de l'Europe. X/e-XIle siecles. Aspects économiques et sociaux, Paris, PU!', 2 vols.,
1982, e Villages et villageois au Moyen Age, Paris, Christian, 1995. Entre os estudos sobre a
sociedade feudal, distinguir-se-á o papel historiográfico da obra de Georges Duby, La société
aux X/e et xrre siecles dans la région mâconnaise (1953), Paris, EHESS, 1971; L'économie rurale
et la vie eles campagnes (1962), Paris, Flammarion, 1977; Guerriers et paysans. Vlle-Xlle siecles,
premier essor de l'économie européenne ( 1969), Paris, Gallimard, 1973, e de Pierre Toubert, Les
structures du Latium médiéval. Le Latium et la Sabine du /Xe à lafin du Xl/e siecle, Rome, Ecole
Française de Rome, 1973. Para um balanço crítico das pesquisas surgidas a partir da obra de
Pierre Toubert, ver Etienne Hubert, L'"incastellamento" en ltalie centrale. Pouvoir, territoire et
pettplement dans la vallée du Turano au Moyen Age, Rome, Ecole Française de Rome, 2002
(B.E.I'.A.R., 309). Remeto, igualmente, entre os trabalhos recentes, a Daniel Pichot, Le village
éclaté. Habitat et société dans les campagnes de l'Ouest au Moyen Age, Rennes, P.U.H., 2002;
Monique Bourin e Stéphane Boisselier (orgs.), L'espace rural au MoyenAge. Portugal, Espagne,
France (Xlle-XlVe siecles), Rennes, P.U.H., 2002; Monique Bourin e Pascual Martínez Sopena
(orgs.), Pour une anthropologie du prélevement seigneurial dans les campagnes médiévales (Xle-
X!Ve sit?cles). Réalités et représentations paysannes, Paris, Presses de la Sorbonne, 2004; Julien
Demade, Ponction féodale et société rurale en Allemagne du Sud (Xle-XVIe siecles). Essaí sur la
fonction des transactions monétaires dans les économies non-capitalistes, tese de doutorado na
Universidade de Strasbourg 11, 2004, e Benolt Cursente (org.), Habitats et territoires du Sud,
Paris, CTI IS, 2004.
Sobre a aristocracia, remeto principalmente ao livro de Joseph Morse!, L'aristocratie
médiévale, op. cit., bem como aos trabalhos citados de Georges Duby, em particular seu
Guillaume le Maréchal, Paris, Fayard, 1984; Jean Flori, L'Essor de la chevalerie (Xle-X/Ile síe-
cles), Geneve, Droz, 1986; Hervé Martin, Mentalités médíévales, XI-XVe siecles, Paris, PUF, 2
vols., 1996-200 I. Sobre a guerra e a lógica da 'faide' ver Dominique Barthélemy, Chevaliers et
miracles. La violence et le sacré dans la société féodale, Paris, 2004, assim como Georges Duby,
La bataille de Bouvines, Paris, Gallimard, 1973, e Philippe Contamine, La guerre au Moyen
Âge, Paris, PUF, .J 980. A interpretação do fin'amon retomada aqui (e na segunda parte, capí-
tulo IV) é desenvolvida nos trabalhos de Anita Guerreau-Jalabert, notadamente "La culture
courtoise", in: Michel Sot, Jean-Patrice Boudet e Anita Guerreau-Jalabert, Hístoire culturelle
de la France. l. Le Moyen Age, Paris, Seuil, I 997, cap. 7.
Sobre a vassalidade, aiém das obras já citadas, ver sobretudo Jacques Le Goff, "Le rituel
symbolique de la vassalité", in: Pour un autre Moyen Age, Paris, Gallimard, 1977. Faz-se refe-
rência aqui a Dominique Barthélemy, L'ordre seigneurial, Xle-Xlle siecles, Paris, Seuil, 1990, e

A CIVILI:t.AÇÀO FEUDAL 553


"Qu'est-ce que le servage en France au Xle siecle?", Revue Historique, 187-2, 1992, pp. 235-
84, e "La mutation de l'an 1100", ]ournal des Savants, janeiro-junho de 2005, pp. 3-28.
Sobre a comunidade aldeã, além das obras citadas, ver Monique Bourin, Villages médié-
vaux en Bas-Languedoc. Genese d'une sociabilité (xe-x1ve siecles), Paris, L'Harmattan, 1987, e
Monique Bourin e Robert Durand, Vivre au village au Moyen Age. Les solidarités paysannes du
Xle au X1lle siecle, Rennes, P.U.H., 1984. Cito igualmente Edward P. Thompson, "The moral
economy of the English crowd in the eighteenth century", in: Customs in common, Londres,
Merlin Press, 1991.
Sobre as cidades, o comércio e os mercadores, um acesso à ampla bibliografia é forneci-
do pelos artigos "Marchands" (P. Monnet) e "Ville" (Jacques Le Goff) do DROM. Além dos apon-
tamentos sugestivos de Joseph Morse!, op. cit., duas introduções: Jacques Le Goff, Marchands
et banquiers du Moyen Age, Paris, PUF, 1956, e Arsenio e Chiara Frugoni, Storia di un giorno in
una città medievale, Rome-Bari, Laterza, 1997, e para grupos urbanos particulares, Jacques Le
Goff, Les intellectuels au Moyen Age, Paris, Seuil, 1957, e Jacques Rossiaud, La prostitution
médiévale, Paris, Flammarion, 1988. Sobre a religião cívica, André Vauchez (org.), La religion
civique à l'époque médiévale et moderne, Rome, Ecole Française de Rome, 1995. Faz-se referên-
cia também a José Luis Homero, La revolución burguesa en el mundo feudal, México, Siglo XXI,
1979, 2 vols. (que desenvolve uma visão distinta daquela que é apresentada aqui), e lmmanuel
Wallerstein, Capitalisme et economie-monde (1450-1640), Paris, Flammarion, !980.
Sobre a realeza medieval, ver Marc Bloch, Les rois thaumaturges, reedição, Paris,
Gallimard, 1983; Ernst Kantorowicz, L'empereur Frédéric 11, trad. fr., Paris, Gallimard, !987;
Jacques Krynen, L'empire du roi. Idées et croyances politiques en France (X111e-xve siecles), Paris,
Gallimard, !993; Jacques Le Goff, Saint Louis, Paris, Gallimard, 1996; Jacques Le Goff, Eric
Palazzo, Jean-Claude Bonne e Marie-Noel Colette, Le sucré royul à l'époque de suint Louis,
Paris, Gallimard, 2001; Teófilo Ruiz, "Une royauté sans sacre: la monarchie castillane du bas
Moyen Age", Annules ESC, !984, 3, pp. 429-53. Sobre a justiça, ver Peter Brown, Lu société et
le sucré dans l'Antiquité tardive, Paris, Seuil, 1985, e as obras citadas mais abaixo de Jacques
Chiffoleau (assim como seu artigo "Droit(s)" no DHOM). Sobre as três ordens, Georges Duby,
Les trois ordres ou l'imaginaire du Jéodalisme, Paris, Gallimard, 1978; Dominique logna-Prat,
"Le baptême du schéma des trois ordres fonctionnels: l'apport de l'école d'Auxerre dans la
seconde moitié du IXe siecle", Annales ESC, !986, pp. 106-26, e "Ordre(s)", no DRml.

Primeira parte, capítulo m (a Igreja)

O conceito de Ecclesia, como instituição englobante, é desenvolvido por Alain Guerreau (Le
Jéodalisme, op. cit., e L'avenir, op. cit.). Leva-se bastante em consideração a análise de
Dominique Iogna-Prat, Ordonner et exclure. Cluny et la société chrétienne face à l'hérésie, au
judai'sme et à l'islam (I 000-1150), Paris, Aubier, 1998. No que concerne à instituição eclesial e
ao papado durante a Idade Média Central, ver também Agostino Paravicini Bagliani, Le corps
du pape, Paris, Seuil, !996, e li trono di Pietro. L'universalità de! papato tU! Alessandro I/1 a
Bonifacio V111, Rome, 1996, assim como Girolamo Arnaldi, "Eglise et papauté", DROM. Sobre
a noção medieval de fé, ver Jean Wirth, "La naissance du concept de croyance, Xlle-XVIIe siecles",
reeditado em Bibliotheque d'Humanisme et Renaissance, 45, 1983, pp. 7-58. Faz-se referência
também a Dominique Barthélemy, "La paix de Dieu dans son contexte (989-1041)", retomado
em La mutation de l'an mil, op. cit., pp. 297-36!, e André Vauchez, La sainteté en Occident aux
derniers siecles du Moyen Age d'apres les proces de canonisation et les documents hagiographiques,
Rome, École Française de Rome, 1981.

554 }ér6me Baschet


Sobre as doações piedosas, ver Stephen White, Custom, kinship and gifts to saints. The
laudatio parentum in Estern France. 1051-1150, Chapel Hill, 1988~ Michel Lauwers, La
mémoire des ancêtres, le souci des morts. Morts, rites et société au MoyenAge, Paris, Beauchesne,
1997, e Dominique logna-Prat, op. cit. A crítica do modelo do dom e contradom é aprofun-
dada por Bartolomé Clavero, La grâce du don, op. cít., e sobretudo por Anita Guerreau-
Jalabert, "Caritas y don en la sociedad medieval occídental", Hispania, LXII, 204, 2000, pp. 27-
62 (para a discussão das análises de Mareei Mauss, ver Maurice Godelier, L'énigme du don,
Paris, Fayard, 1996). Por outro lado, faz-se referência a Lester K. Little, Benedictine maledic-
tions. Liturgical Cursing in romanesque France, Ithaca-Londres, !993, e Patrick Geary,
"L'humiliation des saints", Annales ESC, 1979, pp. 27-42. Sobre os cistercienses, Georges
Duby, Saint Bernard. L'Art cistercien, Paris, Arts et Métiers Graphiques, 1976.
Sobre a Bíblia e a articulação escrito/oral, Brian Stock, The implications of literacy.
Written Zanguages and models of interpretation in the eleventh and twelfth century, Princeton,
1983; Pierre Ríché e Guy Lobrichon (orgs.), Le Moyen Age et la Bible, Paris, Beauchesne,
1984; Beryl Smalley, The study of the Bible in the Middle Ages, Oxford, Blackwell, 1984;
Gilbert Dahan, L'exégese chrétienne de la Bible en Occident médiéval, xue-X/Ve sitkles, Paris,
Cerf, 1999; Paul Zumthor, La lettre et la voix. De la "littérature" médiévale, Paris, Seuil, 1987,
e a síntese proposta por Anita Guerreau-Jalabert, na Histoire culturelle de la France, op. cit.
Sobre a arquitetura românica e gótica, ver notadamente Erwin Panofsky, Architecture
gothique et pensée scolastique, Paris, Minuit, 1967; Jean Gimpel, Les hâtisseurs de cathédrales,
Paris, Seuil, 3" ed., 1986, e Roland Recht, Le croire et le voir. L'Art des cathédrales (Xlle-xve sie-
cles), Paris, Gallimard, 1999.
Sobre Francisco e os franciscanos, Chiara Frugoni, Francesco e l'invenzione delle stimma-
te. Una storia per parole e immagini fino a Bonaventura e Giotto, Turin, Einaudi, 1993, e Saint
François d'Assise. La vie d'un homme, Paris, Noêsis, !997. Faço referência igualmente a
Jacques Le Goff, "Ordres mendiants et urbanisation d~ms la France médiévale", Annales ESC,
1970, pp. 924-46. Sobre as universidades, ver Jacques Le Goff, Les intellectuels, op. cit., e,
em último lugar, os trabalhos de Jacques Verger, Culture, enseignement et société en Occident
au.x XIIe et Xli/e siecles, Rennes, PUH, 1999, assim como Franco Alessio, "Scolastique", DROM, e
Anita Guerreau-Jalabert, na Histoire culturelle, op. cit.
Sobre a confissão e a pregação, ver dentre uma ampla bibliografia, Jacques Le Goff e
Jean-Claude Schmitt, "Au Xllle siecle, une parole nouvelle", in: Jean Delumeau (org.), "Histoire
vécue du peuple chrétien", Toulouse, Privat, 1979, 1, pp. 257-79; Faire croire. Modalités de la
diffusion et de la réception des messages religieu.x du Xlle au xrve siecle, Rome, École Française de
Rome, 1981; Grupo de estudos de la Bussiere, Pratiques de la confession. Des Peres du désert à
Vatican Il. Quinze études d'hi.~toire, Paris, Cerf, !983; L'aveu. Antiquité et Moyen Age, Rome,
École Française de Rome, 1986; Nicole Bériou, L'Avenement des maitres de la parole. La prédi-
cation à Paris au Xl/le siecle, Paris, Études Augustiniennes, 2 vols., 1998; Jacques Berlioz e
Marie-Anne Polo de Beaulieu (orgs.), Les e:xempla médiévau.x: nouvelles perspectives, Paris,
Champion, 1998. Faz-se igualmente referência aos trabalhos de André Vauchez, La spiritualité
de l'Occident médiéval (Vllle-Xlle siecles), Paris, 1975; Les lares au Moyen Age. Pratiques et expé-
riences religieuses, Paris, Cerf, 1987, e de Ala in Boureau, La légende dorée. Le systeme narratif
de Jacques de Voragine, Paris, Cerf, 1984; L'événement sans fin. Récit et christianisme au Moyen
Age, Paris, Belles Lettres, 1993.
Tratando-se das heresias e da "sociedade de persecução", ver Jacques Le Goff (org.),
Hérésies et sociétés, Paris-La Haye, EHESS-Mouton, 1968; Amo Borst, Les cathares, Paris, Payot,
1974; Emmanuel Le Roy Ladurie, Montaillou, village occitan de 1294 a 1324, Paris,

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 555


Gallimard, 1975; Robert Moore, La persécution. Sa formation en E urope (xe-xme siecles ), Paris,
Belles-Lettres, 1991; Monique Zerner (org.), lnventer l'hérésie? Discours polémiques et pouvoirs
avant l'lnquisition, Nice, Centre d'Etudes Médiévales, 1998 (e "Hérésies", DROM); Dominique
Iogna-Prat, Ordonner et exclure, op. cit.; Uwe Brunn, "Cathari, catharistae et cataphrygae:
ancêtres des cathares du Xlle siecle?", Heresis, 36-37, 2002, pp. 183-200.
Sobre as "superstições" e as crenças folclóricas, ver sobretudo os trabalhos de Jean-
Ciaude Schmitt, Le saint lévrier. Guinefort, guérisseur d'enfants depuis le Xllle siecle, Paris,
Flammarion, 1979; "Les 'superstitions"', in: Jacques Le Goff e René Rémond (orgs.), Histoire
de la France religieuse, Paris, Seuil, vol. I, 1988, p. 419-5 51, e Le corps, les rites, les rêves, le
temps. Essais d'anthropologie médiévale, Paris, Gallimard, 200 I, assim como Carlo Ginzburg,
Les batailles nocturnes. Sorcellerie et rituels agraires en Frioul (XVle-XV//e siecles), Paris,
Flammarion, 1984; Michel Lauwers, "'Religion populaire', culture folklorique, mentalités.
Notes pour une anthropologie culturelle du Moyen Age", Revue d'Histoire Ecclésiastique, 82,
1987, pp. 221-58. Sobre as margens e o Carnaval, Claude Gaignebet e Marie-Christine
Florentin, Le Carnaval. Essai de mytlwlogie populaire, Paris, Payot, 1974; Aron Gourevitch, La
culture populaire au Moyen Age, Paris, Aubier, 1996; Mikhail Bakhtine, L'oeuvre de François
Rabelais et la culture populaire au Moyen Age et sous la Renaissance, Paris, Gallimard, 1970;
Bruno Roy, Une culture de l'équivoque, Paris-Montréal, Champion-Presses de l'Université de
Montréal, 1992; Michael Camille, lmages dans les marges. Aux limites de l'art médiéval, Paris,
Gallimard, 1997.
Sobre as relações entre judeus e cristãos, Gilbert Dahan, Les intellectuels chrétiens et les
juifs au Moyen Age, Paris, Cerf, 1990; Kenneth Stow, Alienated minority. The ]ews of Medieval
Latin Europe, Harvard, 1992; Maurice Kriegel, Les juifs à la fin du Moyen Age dans l'Europe
méditerranéenne, Paris, Hachette, 2• ed., 1994; Dominique logna-Prat, Ordonner et exclure,
op. cit.; Jean-Claude Schmitt, La conversion d'Hermann le ]uif Autobiographie, histoire et fic-
tion, Paris, Seuil, 2003. Sobre a magia e a feitiçaria, além de alguns trabalhos já citados a pro-
pósito das "superstições", ver Norman Cohn, Démonolâtrie et sorcellerie au Moyen Age.
Fantasmes et réalités, Paris, Payot, 1982; Brian Levack, La grande chasse aux sorcieres en Europe
au début des Temps Modernes, Seyssel, 1991; Carlo Ginzburg; Le sabbat des sorcieres, Paris,
Gallimard, 1992; Jean-Patrice Boudet, "La genese médiévale de la chasse aux sorcieres", in:
Nathalie Nabert (org.), Le mal et le diable. Leurs figures à la fin du Moyen Age, Paris,
Beauchesne, 1996, pp. 35-52; Jean-Claude Schmitt, "Sorcellerie", DROM.

Primeira parte, capítulo IV (Baixa Idade Média e colonização)

Para uma caracterização da Baixa Idade Média, faz-se referência a Joan Huizinga, L'automne
du Moyen Age, Paris, Payot, 1980; Jacques Chiffoleau, La comptabilité de l'au-delà. Les hom-
mes, la mort et la religion dans la région d'Avignon à la fin du Moyen Age (vers 1320-vers 1480),
Rome, École Française de Rome, 1980, e "La religion flamboyante (v. 1320-v. 1520)", in:
Jacques Le Goff e René Rémond (orgs.), Histoire de la France religieuse, Paris, Seuil, vol. 2,
1988, pp. ll-183; Jean-Patrice Boudet, "Le bel automne de la culture médiévale", in: Histoire
culturelle de la France, op. cit. Sobre a peste negra, Noel Biraben, Les hommes et la peste en
France et dans les pays européens et méditerranéens, Paris-La Haye, Mouton, 2 vols., 1976;
Elisabeth Carpentier, Une ville devant la peste: Orvieto et la peste noire de 1348, 2" edição
revista, Bruxelas, De Boeck, 1993, e La peste nera: dati di una realtà ed elementi di una inter-
pretazione, Convegno de! Centro di Studi sul Basso Medioc.'Vo di Todi, Todi, 1994. A apreciação
de Robert Fossier encontra-se em La société médiévale, op. cit.

556 ]érôme Baschet


Sobre as evoluções deste período: Guy Bois, Crise du féodalisme, Paris, EHESS, 1976; Joseph
Morse!, La noblesse contre le prince. L'espace social des Thüngen à la fin du MoyenAge (Franconie,
v. 1250-1525), Stuttgart, Thorbecke, 2000, e L'aristocratie, op. cit., assim como Alain Guerreau
"Avant le Marché, les marchés: en Europe, Xllle-XVllle siecles", Annales HSS, 2001, 6, pp. 1129-
75. Sobre as revoltas do fim da Idade Média, Michel Mollat e Philippe Wolff, Les révolutions
populaires en Europe aux XJ\Ie et xve siecles ( 1970), Paris, Flammarion, I 993; Alessandro Stella,
La révolte des Ciompi: les hommes, les lieux, le travail, Paris, EHESS, 1993; Hugues Neveux, Les
révoltes paysannes en Europe. XIVe-XVIIe siecles, Paris, A. Michel, 1997.
Sobre os poderes políticos, ver Emst Kantorowicz, Les deux corps du roi, Paris,
Gallimard, 1989; Bernard Guenée, L'Occident aux XIVe et xve siecles. Les Etats, Paris, PUF,
1971; Jacques Krynen, L'empire du roi, op. cit.; Jean-Philippe Genet, "Etat", no DROM. Faz-se
referência muito particularmente a Claude Gauvard, "De grâce especial". Crime, Etat et socié-
té en France à la fin du Moyen Age, Paris, Presses de la Sorbonne, 2 vols., 1991. Para a defini-
ção de Estado utilizada aqui, Pierre Bourdieu, Raisons pratiques. Sur la théorie de l'action,
Paris, Seuil, 1994.
Faz-se referência igualmente a Jean-Philippe Genet e Bernard Vincent (orgs.), Etat et
Eglise dans la genese de l'Etat modeme, Paris-Madrid, Casa de Velázquez, I 986; Hervé Martin,
Le métier de prédicateur en France septentrionale à la fin du Moyen Age, Paris, Cerf, 1988, e
Jacques Chiffoleau, Les justices du pape. Délinquance et criminalité dans la région d'Avignon
au X/Ve siecle, Paris, Presses de la Sorbonne, 1984. Sobre o nominalismo, ver Pierre Alféri,
Guillaume d'Ockham. Le singulier, Paris, Minuit, I 989, e Alain de Libéra, La querelle desuni-
versaux de Platon à la fin du Moyen Age, Paris, Seuil, 1996.
No que diz respeito aos debates relativos à caracterização das sociedades coloniais ame-
ricanas e do período moderno, faz-se referências a Michael Lõwy, El marxismo enAmérica lati-
na. Antología, México, Era, I 982 (textos de Luís Vitale e Sergio Bagú); Feudalismo, capitalis-
mo, subdesarrollo, Madri, Akal, 1977 (textos de Luís Vitale, Sergio Bagú e André Gunder
Frank); Ernesto Laclau, "Feudalismo y capitalismo en América Latina" (1971), in: Modos de
producción en América Latina, Cuademos de Pasado y Presente, 40, 1973, pp. 23-46; juan
Carlos Garavaglia, "lntroducción", ibid., pp. 7-21; Ciro Cardoso, "Sobre los modos de produc-
ción coloniales de América" (1973), ibid., pp. 135-5, e "Introducción", in: Ciro Cardoso (org.),
México en el siglo XIX. Historia económica y de la estructura social, México, Nueva Imagen,
1980, pp. 15-37; Ruggiero Romano, Les conquistadores. Les mécanismes de la conquête colo-
niale, Paris, Flammarion, 1972; Enrique Semo, Historia del capitalismo en México. Los oríge-
nes. 1521-1763, México, Era, 1973; Marcello Carmagnani, Formación y crisis de un sistema
feudal. América latina del siglo XVI a nuestros días (1974), México, Sigla XXI, 1976; Enrique
Florescano (org.), Ensayos sobre el desarrollo económico de México y América latina (1500-
1975), México, FCE, 1979 (em particular, Ángel Palerm, "Sobre la formación del sistema colo-
nial: apuntes para una discusión", pp. 93-127, autor do qual se consultará igualmente a coletâ-
nea Antropología y marxismo, México, CIESAS, 1999); Marcello Carrnagnani, Alicia Hemández
Chávez e Ruggiero Romano (orgs.), Para una historia de América. 1. Las estructuras, México,
FCE- Colegio de México, 1999.
Para o contexto geral, além de Immanuel Wallerstein, op. cit., ver Eric Hobsbawm, En
tomo a los orígenes de la revolución industrial, México, Sigla XXI, 1971 ("La crísis general de la
economia europea en el siglo xvu", pp. 7-70); Pierre Vilar, Crecimiento y desarrollo. Economía e
historia. Reflexiones sobre~~ caso espano!, Barcelona, Ariel, I 976; Fernand Braudel, Civilisation
matérielle, économie et capitalisme, Paris, A. Colin, 1979, 3 vols.; Jean-Yves Grenier, L'économie
d'Ancien Régime. Un monde de l'échange et de l'incertitude, Paris, A. Michel, 1996 (e a resenha

A CIYILIZAÇAO FEUDAL 557


já citada de Alain Guerreau, "Avant le Marché, les marchés ... ").Menciona-se igualmente Eric
R. Wolf, Europa y la gente sin historia (1982), México, fCE, 1987.
Para as formas de exploração colonial, faz-se referência a Silvio Zavala, La encomienda
indiana, México, Porrúa, 197 3; Rodolfo Pastor, "E I repartimiento de mercancías y los alcaides
mayores novohispanos. Un sistema de explotación de sus orígenes a la crisis de 1810", in:
Woodrow Borah (org.), El gobierno provincial de la Nueva Espana, 1570-1787, México, UNAM,
1985, pp. 201-36; Juan Pedro Viqueira, Encrucijadas chiapanecas. Economía, religión e identi-
dades, México, Tusquets-Colegio de México, 2002, e, para uma visão de conjunto, Murdo
MacLeod, Historia socio-económica de la América central espanola, 1520-1720, Ciudad
Guatemala, Piedra Santa, 1980; Historia general de México, México, Colegio de México, 2000;
Manuel Mifio Grijalva, El mundo novohispano. Población, ciudades y economía, siglas XVII y
XVIII, México, FCE-Colegio de México, 2001.
Para situar a Igreja no sistema colonial, faz-se referência, dentre uma ampla bibliografia,
a Robert Ricart, La conquista espiritual de México, México, Juspolis, 1947; Serge Gruzinski,
La colonisation de l'imaginaire, Paris, Gallimard, 1988, e La guerre des images, Paris, Fayard,
1990; Nancy Farriss, La carona y el clero en el México colonial (1579-1821). La crisis del pri-
vilegio eclesiástico, México, fCE, 1995; Felipe Castro Gutiérrez, La rebelión de los indios y la
paz de los espanoles, México, CIESAS, 1996, e Nueva Ley y nuevo rey. Reformas borbónicas y rebe-
lión popular en Nueva Espana, México-Zamora, UNAM-Colegio de Michoacán, 1996; Antonio
Rubial García, La santidad controvertidad, México, FCE-UNAM, 1999; William Taylor, Ministros
de lo sagrado. Sacerdotes y feligreses en el México del siglo XVIII, México-Zamora, Colegio de
Michoacán-Colegio de México, 2 vais., 1999.
Sobre os cemitérios e os costumes funerários, ver Anne Staples, "La lucha por los muer-
tos", Dialogas, 13, 5, 1977, pp. 15-20; José Luis Galán Cabilla, "Madrid y los cementerios en
el sigla XVIJI: el fracaso de una reforma", in: Equipo Madrid, Carlos III, Madrid y la Ilustración.
Contradicciones de un proyecto reformista, Madri, Sigla XXI, 1988; Ma. Dolores Morales,
"Cambias en las prácticas funerarias. Los lugares de sepultura en la ciudad de México, 1784-
1857", Historias, 27, 1992, pp. 97-102; Eisa Malvido, "Civilizados o salvajes. Los ritos ai cuer-
po humano en la época colonial mexicana", in: Eisa Malvido, Grégory Pereira e Vera Tiesler
(orgs.), El cuerpo humano y su tratamiento mortuario, México, INAH-CEMCA, 1997, pp. 29-49;
Alma Valdes, Testamentos, muerte y exequias. Saltillo y San Estebán al despuntar el siglo XIX,
Saltillo, Universidad de Coahuila, 2000.

Segunda parte, capítulo 1 (o tempo)

Abordagens gerais sobre o tempo: Reinhart Koselleck, Le futur passé. Contribution à la sémanti-
que des temps historiques, trad. &., Paris, EHESS, 1990; assim como L'expérience de l'histoire, trad.
fr., Paris, EHESS-Gallimard-Seuil, 1997; Norbert Elias, Du temps, Paris, Fayard, 1996. Também
Krzysztof Pomian, L'ordre du temps, Paris, Gallimard, 1984; Enrique Florescano, Memoria mexi-
cana, México, FCE, 1994; Giorgio Agamben, lnfanzia e storia, Turin, Einaudi, 1978.
Para o tempo medieval, os trabalhos decisivos são os de Jacques Le Goff, "Au Moyen
Age: Temps de I'Eglise et temps du marchand" e "Le temps du travail dans la "crise" du XVIe
siecle: du temps médiéval au temps moderne", in: Pour un autre Moyen Age, Paris, Gallimard,
1978, assim como Jean-Claude Schmitt, Le corps, les rites, op. cit. Ver também Aron
Gourevitch, Les catégories de la culture médiévale, Paris, Gallimard, 1983, e Hervé Martin,
Mentalités médiévales, op. cit. Sobre Dioniso, o Pequeno, e a difusão da era cristã, Georges
Declercq, Anno Domini. Les origines de l'ere chrétienne, Turnhout, Brepols, 2000. Sobre o

558 }érôme Baschet


tempo litúrgico, Eric Palazzo, Liturgie et société au Mayen Age, Paris, Aubier, 2000. Sobre a
Igreja e a usura, Jacques Le Goff, La bourse et la vie, Paris, HadÍette, 1986, e Bartolomé
Clavero, La grâce du don, op. cit. Sobre as idades da vida, Elizabeth Sears, The ages of man,
Princeton, 1986, e Agostino Paravicini Bagliani, "Ages de la vie", no DROM. Sobre a historio-
grafia medieval, Bernard Guenée, Histoire et culture historique au Moyen Age, Paris, Aubier,
1991 (e "Histoire", no DROM). Sobre a escatologia e o milenarismo, ver Norman Cohn Les
fanatiques de l'Apocalypse, Paris, Payot, 1983; Guy Lobrichon, "Jugement derni~r et
Apocalypse", retomado em La Bible au Mayen Age, Paris, Picard, 2005; Claude Carozzi,
Apocalypse et salut dans le christianisme ancien et médiéval, Paris, Aubier, 1999; Bernhard
Tõpfer, "Eschatologie et millénarisme", no OROM; L'attente des temps nouveaux. Eschatologie,
millénarisme et visions du futur du Mayen Age au xxe siecle, Turnhout, Brepols, 2002, assim
como, para os prolongamentos modernos e contemporâneos, Eric Hobsbawm, Rebeldes primi-
tivos. Estudios sobre las formas arcaicas de los movimientos sociales en los siglos XIX y XX,
Barcelona, Ariel, 1983; Antonio García de León, Resistencia y utopía, México, Era, 1985.

Segunda parte, capítulo 11 (o espaço)

Neste capítulo, recorre-se ao quadro interpretativo elaborado por Alain Guerreau, notadamente
em '"Quelques caracteres spécifiques de !'espace féodal européen", in: Neithard Bulst, Robert
Descimon e Alain Guerreau (orgs.), L'Etat ou le roi. Les fondations de la modemité monarchique
en France (xiVe-xvme sitkles), Paris, EIIESS, 1996, pp. 85-1 OI; "Le champ sémantique de I'espace
dans la vita de saint Maieul (Ciuny, début du Xie siecles)", Journal des Savants, 1997, pp. 363-
419 e "11 significato dei luoghi neii'Occidente medievale: struttura e dinamica di uno 'spazio' spe-
cifico", in: Enrico Castelnuovo e Giuseppe Sergi (orgs.), Arti e Storia nel Medioevo. I. Tempi,
Spazi, Istituzioni, Turin, Einaudi, 2002, pp. 201-39, e "Chasse", no DROM (assim como "Avant le
Marché", artigo já citado). Ver também Paul Zumthor, LA mesure du monde, Paris, Seuil, 1993,
e, para a história do conceito de espaço, M. Jammer, Concepts of space. The history of theories of
space in physics, Cambridge, Harvard University Press, 2" ed., 1970.
Sobre o cemitério e as práticas funerárias, ver (além da síntese proposta por Alain
Guerreau) Michel Fixot e Elizabeth Zadora-Rio (orgs.), L'environnement des églües et la topo-
graphie religieuse des campagnes médiévales, Paris, Ed. de la Maison des Sciences de I'Homme,
1994; Cécile Treffort, L'Eglise carolingienne et la mort, Lyon, PUL, 1997; Michel Lauwers, La
mémoire des ancêtres, le souci des morts. Morts, rites et société au MayenAge, Paris, Beauchesne,
1997, e Naissance du cimetiere. Espace sacré et terre des morts dans l'Occident médiéval, Paris,
Aubier, 2005. Faz-se referência igualmente aos estudos de Dominique Iogna-Prat, Ordonner
et exclure; Claude Gauvard, "De grâce especial", e de Jacques Chiffoleau, La comptabilité
(assim como sua própria reformulação crítica em "Note sur le polycentrisme religieux urbain
à la fin du Moyen Age", in: Patrick Boucheron e Jacques Chiffoleau (orgs.), Religion et socié-
té urbaine au Mayen Age. Etudes offertes à Jean-Louis Biget, Paris, Presses de la Sorbonne,
2000, pp. 227-52.
Sobre a rede de peregrinações, um modelo de análise foi proposto por Alain Guerreau,
"Les pelerinages du Mâconnais. Une structure d'organisation symbolique de !'espace",
Ethnologie française, 12, 1982, pp. 7-30; ver igualmente Denis Bruna, Enseignes de pelerina-
ges et enseignes profanes (Catalogue du Musée National du Mayen Age), Paris, RMN, 1996;
Denise Péricart-Méa, Compostelle et cultes de saint Jacques au Mayen Age, Paris, PUF, 2000, e
Michel Sot, "Pelerinage", no DROM. Para a constituição da geografia sagrada medieval, Sofia
Boesch-Gajano e Lucetta Scaraffia (orgs.), Luoghi sacri e spazi della santità, Turin, Rosenberg,

A CIVILIZAÇAO FEUDAL 559


1990. Sobre as relíquias, ver Patrick Geary, Le vol des reliques au Mo}'en Age, Paris, Aubier,
1993, e Edina Bozoky e Anne-Marie Helvctius (orgs.), Les reliques. Objets, cultes, S}'mboles,
Turnhout, Brepols, 1999.
Sobre a eucaristia, ver principalmente Henri de Lubac, Corpus Mysticum. L'Eucharistie
et l'Eglise au Moyen Age, 2" ed., Paris, Aubier, 1949, e Miri Rubin, Corpus Christi. The
Eucharist in Late Medieval Culture, Cambridge University Press, 1992.
Sobre as viagens, o Oriente e o saber geográfico, ver William Randles, De la terre plate
au globe terrestre, Paris, A. Colin, 1980 (Cahiers des Annales, 38); Claude Kappler, Monstres,
démons et merveilles, Paris, Payot, 1980; Michel Mollat, Les explorateurs du Xllfe au XVIe siecle.
Premiers regards sur les mondes nouveaux, Paris, 1984; Rudolf Wittkower, L'Orient fabuleux,
Paris, Thames and Hudson, 1991; Paul Zumthor, La mesure du monde, op. cit., e os trabalhos
de Patrick Gautier Dalché, notadamente La Descriptio mappe mundi de Hugues de Saint-
Victor, Paris, Études Augustiniennes, 1988. Faz-se referência igualmente a Hanna Zaremska,
Les bannis au Moyen Age, Paris, Aubier, 1996 (prefácio de Claude Gauvard).

Segunda parte, capítulo III (as dualidades morais)

Sobre os vícios e as virtudes, ver os trabalhos de Carla Casagrande e Silvana Vecchio, Histoire
des péchés capitaux au Moyen Age, Paris, Aubier, 2003, e Les péchés de la Zangue. Discipline et
éthique de la parole dans la culture médiévale, Paris, Cerf, 1991; ver igualmente Mireille
Vincent-Cassy, "L'envie au Moyen Age", Annales ESC, 35, 1980, pp. 253-71. Sobre Satã, ver
Jeffrey 8. Russell, Lucifer. The Devil in the Middle Ages, Ithaca-Londres, Cornell University
Press, 1984, assim como meu artigo "Diable", no DROM.
As pesquisas sobre o além foram renovadas pelos trabalhos de Jacques Le Goff, La nais-
sance du purgatoire, Paris, Gallimard, 1981; devem ser mencionados igualmente Michel
Vovelle, La mort et l'Occident de 1300 à nos jours, Paris, Gallimard, 1983; Emmanuel Le Roy
Ladurie, Montaillou, op. cit., e Jean-Claude Schmitt, Les revenants. Les vivants et les morts
dans la société médiévale, Paris, Gallimard, 1994. Neste capítulo, faz-se referência a Eric
Auerbach, Studi su Dante, 1984, e Figura, 1993.
Para uma bibliografia mais detalhada, eu me permito remeter a Jérôme Baschet, Les jus-
tices de l'au-delà. Les représentations de l'enfer en France et en Italie (XIIe-xve siecles), Rome,
E.F.R., 1993, e Le sein du pere. Abraham et la paternité dans l'Occident médiéval, Paris,
Gallimard, 2000 (assim como "Jugement de l'âme, Jugement dernier: contradictíon, complé-
mentarité, chevauchement?", Revue Mabillon, 6, 1995, pp. 159-203, e "I mondi dei
Medioevo: i luoghi dell'aldilà", in: Enrico Castelnuovo e Giuseppe Sergi (orgs.), Arti e storia
nel Medioevo. I. Tempi, Spazi, Istituzioni, Turin, Einaudi, 2002, pp. 317-4 7). Serão menciona-
dos igualmente Christian Trottmann, La vision béatifique des disputes scolastiques à sa défini-
tion par Benoít XII, Rome, E.F.R.,1995, e Yves Christe, L'Apocalypse de Jean, Paris, Picard, 1997.
No que concerne aos lugares intermediários, além do livro já citado de Jacques Le Goff,
ver seu artigo "Les limbes", Nouvelle Revue de PS}'chanal}'se, 34, 1986, pp. 151-73; Anca Bratu,
Images d'un nouveau lieu de l'au-delà: le purgatoire. Emergence et développement (c. 1250-c.
1500), ainda inédito; Michelle Fournié, Le ciel peut-il attendre? Le culte du purgatoire dans le
midi de la France (vers 1320-vers 1520), Paris, Cerf, 1997. Para o limbo das crianças, ver
Didier Lett, L'enfant des miracles. Enfance et société au Moyen Age (Xlle-Xllle siecles), Paris,
Aubier, 1997. Faz-se também referência, neste capítulo, às obras de Peter Brown, L'Essor,
Dominique Iogna-Prat, Ordonner et exclure, Jacques Chiffoleau, La comptabilité, assim como
a Elie Konigson, L'espace théâtral médiéval, Paris, CNRS, 1975.

560 ]érôme Baschet


Segunda parte, capítulo IV (corpos e alma) ...

A dualidade espiritual/corporal foi posta em relevo e articulada em seus diversos aspectos por
Anita Guerreau-Jalabert, "Spiritus et caritas. Le baptême dans la société médiévale", in:
Françoise Héritier-Augé e Elisabeth Copet-Rougier (orgs.), La parenté spirituelle, Paris,
Archives Contemporaines, 1996, pp. 133-203 (assim como nos trabalhos citados). Propus
uma primeira síntese das questões tratadas aqui em Jérôme Baschet, "Ame et corps dans
I'Occident médiéval: une dualité dynamique entre pluralité et dualisme", Archives de Sciences
Sociales des Religions, 2000, 112, pp. 5-30. Além do estudo particularmente notável de Peter
Brown, Le renoncement à la chair. Virginité, célibat et continence dans le christianisme p~mitif,
trad. fr. Paris, Gallimard, 1995, faz-se referância a Edouard-Henri Weber, La personne humai-
ne au Xl/le siecle, Paris, Vrin, 1991; Jacques Le Goff, "Anima", Enciclopedia dell'Arte
Medievale, Romc, 1991, I, pp. 798-804, e L'imaginaire, op. cit.; Carla Casagrande e Silvana
Vecchio (orgs.), Anima e corpo nella cultura medievale, Florence, Ed. dei Galluzzo, 1999, e
Jean-Ciaude Schmitt, Le corps, les rites, op. cit. (e "Corps et âme", no DROM). Cita-se também
Marie-Dominique Chenu, Saint Thomas d'Aquin et la théologie, Paris, Seuil, 1959.
Sobre a concepção dos corpos gloriosos, ver Caroline W. Bynum, The resurrection of the
body in Western Christianity, 200-1336, Nova York, Columbia University Press, 1995. Sobre o
anjo da guarda, cf. P. Faure, "L'homme accompagné. Origine et développement du theme de
l'ange gardien en Occident", Cahiers de Saint-Michel de Cuxa, 28, 1997, pp. 199-216; par~ o
diabo pessoal, Jérôme Baschet, "Diable", no DROM.
Sobre o corpo eclesial, Henri de Lubac, Corpus mysticum, op. cit.; Yves Congar, L'Eglise
de saint Augustin à l'époque moderne, Paris, 1970, e "Homo spiritualis", in: Études
d'ecclesiologie générale, Londres, Variorum Reprints, 1983. Sobre a imagem de Cristo morto,
Marie-Christine Sepiere, L'image d'un Dieu souffrant. Aux origines du crucifix, Paris, Cerf,
1994. Sobre as fadas, Anita Guerreau-Jalabert, "Fées et chevalerie. Observations sur !e sens
social d'un theme dit merveilleux", in: Miracles, prodiges et merveilles au Moyen Age, Paris,
Sorbonne, 1995, pp. 133-50, e "Des fées et des diables. Observations sur le sens des récits
'mélusiniens' au Moyen Age", in: Jeanne-Marie Boivin e Proinsias MacCana (orgs.), Mélusines
continentales et insulaires, Paris, Champion, 1999, pp. 105-37.
Para uma análise completa da imagem da alma de Tomás de Aquino, cf. Jérôme Baschet
e Jean-Ciaude Bonne, "La chair de J'esprit (à propos d'une image insolite de Thomas
d'Aquin )", in: L'ogre historien. Autour de Jacques Le Goff, Paris, Gallimard, I 999, pp. 193-221.
Para as comparações com o domínio mesoamericano, ver Pedro Pitarch Ramón, Ch'ulel:
una etnografia de las almas tzeltales, México, FCE, 1996; Esther Hermitte, Control social y poder
sobrenatural en un pueblo maya contemporaneo ( 1970), 2" ed., Tuxtla Gutierrez, Instituto
Chiapaneco de Cultura, 1992; Calixta Guiteras Holmes, Los peligros del alma. Visión del
mundo de un tzotzil, México, FCE, 1965; Mario H. Ruz, Copanaguastla en un espejo. Un pue-
blo tzeltal en el virreinato, San Cristobal de las Casas, UNACH, 1985; Alf~edo López Austin,
Cuerpo humano e ideología. Las concepciones de los antiguos nahuas ( 1980), 3a ed., México,
UNAM, 1989. Faz-se referência igualmente a Jean-Pierre Vernant, "Corps obscur, corps écla-
tant", in: Corps des Dieux, Le temps de la réflexion, VII, Paris 1986, pp. 19-45.

y Segunda parte, capítulo v (parentesco)

A abordagem apresentada aqui é bastante tributária dos trabalhos de Anita Guerreau-Jalabert,


"Sur les structures de parenté dans I'Europe médiévale", in: Annales ESC, 1981, 6, pp. 1028-

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 56]


49; "La parenté dans l'Europe médiévale et moderne: à propos d'une synthese récente",
L'Homme, 29, 1989, pp. 69-93; "El sistema de parentesco medieval: sus formas (real/espiri-
tual) y su dependencia con respecto a la organización dei espacio", in: Reyna Pastor (org.),
Relaciones de poder, de producción y parentesco en la edad media y moderna, Madri, C.S.I.C.,
1990, pp. 85-1 05; "Spiritus et caritas", artigo já citado; "Nutritus/oblatus: parenté et circulation
d'enfants au Moyen Age", in: Mireille Corbier (org.), Adoption et fosterage, Paris, De Boccard,
1999, pp. 263-90, (e "Parenté", no DROM). Faz-se referência também a André Burguiere,
Christiane Klapisch-Zuber, Martine Ségalen e Françoise Zonabend (orgs.), Histoire de la
famille, t. 1: Mondes lointains, mondes anciens, Paris, A. Colin, 1986; Dominique Barthélemy,
"Parenté", in: Georges Duby (org.), Histoire de la vie privée, t. 2, Paris, Seuil, 1985, pp. 96-161;
Georges Duby, Le chevalier, la femme et le prêtre. Le mariage dans la France féodale, Paris,
Hachette, 1981; Jack Goody, L'évolution de lafamille et du mariage en Europe (1983), trad. fr.,
Paris, A. Colin, 1985, e Famille et mariage en Eurasie, trad. fr., Paris, PUF, 2000; Joseph H.
Lynch, Godparents and kinship in Early Medieval Europe, Princeton University Press, 1986;
Christiane Klapisch-Zuber, La maison et le nom. Stratégies et rituels dans l'Italie de la
Renaissance, Paris, EHESS, 1990, e L'ombre des ancêtres. Essai sur l'imaginaire médiéval de la
parenté, Paris, Fayard, 2000; Didier Lett, Famille et parenté dans l'Occident médiéval. ve-xve
siecles, Paris, Hachette, 2000. Cito igualmente Robert Moore, La premiere révolution, op. cit.
Mais especificamente, sobre as atitudes cristãs em relação ao casamenteo e à sexualida-
de, ver Peter Brown, Le renoncement à la chair, op. cit.; Jean Gaudemet, Le mariage en
Occident. Les moeurs et le droit, Paris, Cerf, 1987; Elaine Pagels, Adam, Eve et le serpent, trad.
fr., Paris, Flammarion, 1989; Pierre Toubert, "La théorie du mariage chez les moralistes caro-
lingiens" e ;'L'institution du mariage chrétien de l'Antiquité à l'an mil", retomados em L'Europe
dans sa premiere croissance. De Charlemagne à l'an mil, Paris, Fayard, 2004, pp. 249-320.
Sobre o parentesco espiritual e a caritas, ver os trabalhos já citados de Anita Guerreau-
Jalabert, assim como Agnes Fine, Parrains, marraines. La parenté spirituelle en Europe, Paris,
Fayard, 1994, e Caroline W. Bynum, Jesus as mother. Studies in the spirituality of the High
Middle Ages, Berkeley, California University Press, 1982. Sobre as confrarias, G. Meersseman,
Ordo fraternitatis. Confraternite e pietá dei laici nel Medioevo, Roma, Herder, 1977, e
Catherine Vincent, Les confréries médiévales dans le Royaume de France, xme-xve siecles, Paris,
A. Michel, 1994.
Diversos pontos abordados neste capítulo, e notadamente aqueles que concernem ao
parentesco divino, são expostos de maneira mais profunda e com referências bibliográficas
mais completas em Jérôme Baschet, Le sein du pere, op. cit. Sobre a Virgem e seu culto,
Marie-Louise Thérel, Le triomphe de la Vierge-Eglise. Sources historiques, littéraires et icono-
graphiques, Paris, CNRS, 1984; Dominique Iogna-Prat, Eric Palazzo e Daniel Russo (orgs.),
Marie. Le culte de la Vierge dans la société médiévale, Paris, Beauchesne, 1996; Marielle Lamy,
L'Jmmaculée conception. Etapes et enjeux d'une controverse au Moyen Age (Xlle-xve siecles),
Paris, Etudes Augustiniennes, 2000. Sobre a Trindade, ver François Boespflug e Yolanta
Zaluska, "Le dogme trinitaire et l'essor de son iconographie en Occident de l'époque carolin-
gienne au !Ve Concile de Latran", Cahiers de Civilisation Médiévale, 37, 1994, pp. 181-240, e
François Boespflug, La Trinité dans l'art d'Occident (1400-1460), Strasbourg, PUS, 2000.
Faz-se igualmente referência a Pierre Legendre, Leçons IV. L'inestimable objet de la trans-
mission. Étude sur le principe généalogique en Occident, Paris, Fayard, 1985, assim como a
Pierre Bourdieu, Raisons pratiques, op. cit.

562 }érôme Baschet


Segunda parte, capítulo VI (imagens)

Neste capítulo, faz-se referência particularmente aos trabalhos de Jean-Ciaude Schmitt, nota-
damente Le corps des images. Essais sur la culture visuelle au Moyen Age, Paris, Gallimard,
2002, (e "lmage", no DROM), e aos de Jean-Ciaude Bonne, notadamente L'art roman de face et
de profil. Le tympan de Conques, Paris, Le Sycomore, 1984; "Entre ambigui:té et ambivalence.
Problématique de la sculpture romane", La part de l'oeil, 8, 1992, pp. 147-64; "Les ornements
de l'histoire", Annales HSS, 1996, 1, pp. 37-70 e "Images du sacre", in: Le sacre royal, op. cit.
Eu me permito também remeter ao meu artigo "lnventivité et sérialité des images médiévales.
Pour une approche iconographique élargie", in: Annales HSS, 1996, 1, pp. 93-133.
Para uma visão geral sobre as imagens medievais e os problemas de método: Emile Mâle,
L'art religieux du XJ/Je siecle. Etude sur l'iconographie du Moyen Age et sur ses sources
d'inspiration ( 1898), 8" ed., Paris, A. Colin, 1948; Erwin Panofsky, La Renaissance et ses avant-
courriers dans l'art d'Occident (1960), Paris, Flammarion, 1976, e Les primitifs flamands
(1953), Paris, Hazan, 1992; Pierre Francastel, La figure et le lieu, Paris, Denoel, 1967; Meyer
Schapiro, Words and pictures, Paris-La Haye, Mouton, 1973; Romanesque art. Selected papers,
Londres, Chatto and Windus, 1977, e Style, artiste et société, Paris, Gallimard, 1982; Hans
Belting, L'image et son public au Moyen Age (1981 ), Paris, 1998, et lmage et culte. Une histoi-
re de l'art avant l'époque de l'art (1990), Paris, Cer( 1998; Jean Wirth, L'image médiévale.
Naissance et développements (Vle-xve siecles), Paris, Klincksieck, 1989, et L'image à l'époque
romane, Paris, Cerf, 1999; Jérôme Baschet e Jean-Ciaude Schmitt (orgs.), L'image. Fonctions
et usages des images dans l'Occident médiéval, Cahiers du Léopard d'Or, 5, Paris, Léopard d'Or,
1996 (notadamente os artigos de J. Wirth, D. Rigaux, G. Ortalli, M. Pastoureau e J.-C. Bonne
aos quais se faz referência aqui); Herbert L. Kessler, Spiritual Seeing. Picturing God's invisibi-
lity in Medieval Art, Philadelphia, Pennsylvania University Press, 2000, e Medieval Art,
Toronto, Broadview Press, 2004.
Outros pontos mais específicos são tratados por Otto Pacht, L'enluminure médiévale,
Paris, Macula, 1997; Enrico Castelnuovo, Vetrate medievali, Turin, Einaudi, 1994; François
Boesptlug e Nicolas Lossky (orgs.), Nicée 11. Douze siecles d'images religieuses, Paris, Cerf,
1987; Michael Camille, The gothic idol. Ideology and image-making in Medieval Art,
Cambridge University Press, 1989; Jean Wirth, "L'apparition du surnaturel dans l'art du
Moyen Age", in: L'image et la production du sacré, Françoise Dunand, Jean-Michel Speser e
Jean Wirth (orgs.), Paris, Klincksieck, 1991, pp. 139-64; Otto K. Werckmeister, "The lintel
fragment representing Eve from Saint-Lazare, Autun", ]ournal of the Warburg and Courtauld
Institutes, 35, 1972, pp. 1-30; Jérôme Baschet, Lieu sacré, lieu d'images. Les fresques de
Bominaco (Ahruzzes, 1263). Themes, parcours, fonctions, Paris-Roma, La Découverte-École
Française de Rome, 1991.
Quanto à perspectiva, ver Erwin Panofsky, La perspective comme forme symbolique, trad.
fr., Paris, Minuit, 1975; Jean-Ciaude Bonne, "Fond, surfaces, support (Panofsky et l'art
roman)", in: Cahiers pour un temps: Erwin Panofsky, Paris, Centre Pompidou, 1983, pp. 117-
34, e Hubert Damisch, L'origine de la perspective, Paris, Flammarion, 1987.
Para as referências ao mundo americano, Bartolomé de Las Casas, Apologética historia
sumaria, Edmundo O'Gorman (org.), México, UNAM, 2 vais., 1967; Alfredo López Austin,
Hombre-Dios. Religión y política en el mundo náhuatl, México, UNAM, 1973; Serge Gruzinski,
La guerre, op. cit.; Dolores Aramoni Calderón, Los refugias del sagrado, México, Conaculta,
1992. Faz-se igualmente referência a Jean-Pierre Vernant, Religions, histoires, raisons, Paris,
Maspero, 1979; Élie Konigson, L'espace théâtral, op. cit., e Eric Auerbach, Figura, op. cit.

A CIVILIZAÇAO FEUDAL 563


Conclusão

Além da obras mencionadas na introdução e aquelas já citadas de Immanuel Wallerstein, Eric


Wolf et Jack Goody (Famille et mariage en Eurasie), faz-se referência a Nestor Capdevila, Las
Casas. Une politique de l'humanité, Paris, Cerf, 1998; Max Weber, L'éthique protestante et
l'esprit du capitalisme (l905), Paris, Flammarion, 2000; Philippe Raynaud, Max Weber et les
dilemmes de la raison modeme, Paris, PU!', 2" ed., 1996; Mareei Gauchet, Le désenchantement
du monde. Une histoire politique de la religion, Paris, Gallimard, 1985; Michael Mann, The
sources of social power, vol. I, Cambridge, 1986; Perry Anderson, Campos de batalla,
Barcelone, Anagrama, 1998; Fernand Braudel, La dynamique du capitalisme, Paris,
Flammarion, 1988; Marc Augé, Génie du paganisme, Paris, Gallimard, 1982; Jean-Pierre
Vernant, Mythe et pensée chez les Grecs, Paris, Maspero, 1966; Nathan Wachtel, Le retour des
ancêtres, Paris, Gallimard, 1990; Bartolomé de Las Casas, Apologética, op. cit.; Walter
Benjamin, "Theses sur la philosophie de l'histoire", Essais 2, Paris, Denoel, 1971; Georg
Lukàcs, Histoire et conscience de classe, Paris, Minuit, 1960.

564 }érí'hne Baschet


CRÉDITOS DAS FIGURAS

I. Stiftsbibliothek, St. Gallen; 2. Kunsthistorisches Museum, Viena; 4. Glasgow University


Library, Department of Special Collections; 6. National Gallery, Londres; 7. Domkapitel,
Aachen, foto Ann Münchow; 9. Bridgeman/Giraudon; 10. Foto Scala, Florença; 12. Bridge-
man/Giraudon; 13. Foto Scala, Florença; 16. Foto Yann Arthus-Bertrand!ALTITVDE; 20. Réunion
des Musées Nationaux, Paris; 21. Foto Scala, Florença; 22. Bibliotheque Nationale de France,
Paris; 23. The Bodleian Library, University of Oxford; 24. Bibliotheque Royale de Belgique,
Bruxelas; 25. Musée du Petit Palais, Avignon; 27. Bridgeman/Giraudon; 30. Bibliotéca
Nacional, Madri; 31. Com permissão do Syndics of Cambridge University Library; 32. Biblio-
theque Nationale de France, Paris; 33. Bibliotheque Nationale de France, Paris; 34. Bibliotheque
Nationale de France, Paris; 35. Bridgeman/Giraudon; 38. Musée Pierre de Luxembourg,
Villeneuve-les-Avignon; 39. Bibliotheque Nationale de France, Paris; 40. Bibliotheque Nationale
de France, Paris; 41. Bayerische Staatsbibliothek, Munique; 46. Beinecke Library, Yale Uni-
versity; 49. Paris, Musée National du Moyen Âge Foto RMN, Gérard Blot; 50. Autun, Musée
Rolin clichê S. Prost; 52. Ústerreichische Nationalbibliotheck, Bildarchiv d. õNB, Viena; i-vii.
Serge Bonin, em Robert S. Lopez, Naissance de l'Europe, Orléans, Armand Colin, 1962; xi.
Benoit Cursente, em Michel Fixot e Elisabeth Zadora-Rio (orgs.), L'environnement des églises
et la topographie des campagnes médiévales, Paris, Éditions de la Maison des Sciences de
I'Homme, 1994.

A CIVILIZAÇAO FEUDAL 565


~ ..

ÍNDICE REMISSIVO

Abad y Queipo, 287 Aix, 37, 76, 77, 87


abássidas, 82 Aix-la-Chapelle, 37, 70, 78, 87, 319
Abbon de Fleury, 99, 315, 332 Alain de Lille, 167, 219
Abd al-Malik, 81 al-Andalus, 82, 84, 90
Abd al-Rahman, 82 Alarcos, 91
Abel, 499 Alba, 326
Abelardo, 214, 216,217,271, 389, 393,442, Alberico, 391
Abraão, 158, 316, 343, 390, 402, 403, 499, Alberti, Leon, 519
512, 513 Alberto, o Grande, 28, 216, 367, 486
Açores, 263 Albi, 225
Adalberon de Laon, 166 Alcuíno, 74, 77, 421
Adão, 258, 315, 316, 375, 376, 382, 402, Alemanha, 111, 130, 144, 147, 157, 254,
404,449,498 282, 354
Adernar, 93 Alexandre de Hales, 216
Adriano I, papa, 483 Alexandre 11, papa, 450
Adson de Montier-en-Der, 331, 386 Alexandre III, papa, 367
Afeganistão, 83 Alexandre IV, papa, 215, 240
África, 50, 54, 79,81,82,94,366,369,370, Alexandre Neckam, 263
454, 532, 540 Alexandre VI, papa, 359
Agar, 90 Alexandria, 64, 65, 306, 424, 464
aglábidas, 82 Alfonso IX, rei, 199
Agobardo, 74 Alfonso VI, rei, 91
Agostinho, santo, 19, 56, 62, 63, 65, 67, 68, Alfonso X, dito Alfonso, o Sábio, 89, 158,
212, 222, 224, 227, 239, 316, 317, 318, 162, 179, 304
322, 323, 329, 331, 333, 341, 342, 358, Ali (genro de Maomé), 82
359, 360, 364, 365, 375, 376, 382, 388, ai-Mansur, 82, 90
393,395,402,403,410,412,415,418, almôades, 82
440, 441, 444, 447, 448, 459, 461, 463, almorávidas, 82, 91
466, 473, 502, 506, 510, 511, 528, 533, Alpe~82, 86,144,223,263,404
544 Álvaro Pelayo, 195
Aimon de Auxerre, 166 Amalário de Metz, 167, 359
aiúbida, 82 Amalfi, 144

A CIVILI:i.AÇÃO FEUDAL 567


Amboise, Concordata de, 270 Atlântico, 29, 32, 81, 461
Ambrósio, santo, 63, 364, 380, 423, 48 I Aucassin e Nicolette, 400
América, 17, 18, 21, 30, 33, 45, 46, 247, Augsburgo, 260, 370
274, 275, 276, 278, 282, 283, 296, 348, Augusto, imperador romano, 79, 314
455, 540, 549 Autun, 172,498,499, 5I2
Amiano Marcelino, 75 Auxerre, 400
Amiens, 203, 205, 352 Averróis, 84
Amsterdã, 26 I Avicena, 84
Ana de Bretanha, 26 7 Avignon, 40, 249, 251, 263, 269, 353, 362,
Ana, santa, 471 500, 506, 518
Anacleto 11, papa, 238 Azincourt, 250
Anatólia, 79, 80, 83
Andes, 295 Babilônia, 151, 25I, 316, 331
Andrea di Bonaiuto, 211 Bacon, Roger, 367
Andrea, Giovanni, 25 Bagdá, 82, 83
Angers, 329, 487, 502, 503 Bálcãs, 79, 83, 94
Angilberto, 77 Balduíno de Lannoy, 4 I 4
Ânglia Oriental, 51
Balduíno I, rei, 93
Anjou, 160, 161, 267, 327
Baleares, 92, 144
Ansel, 400
Ball, John, 258
Anselmo de Canterbury, 215, 418
Báltico, 144
Antioquia, 65, 93, 144
Bar, 144
Antonino de Florença, 494, 495
Barcelona, 90, 91, 156, 238, 260
Antônio, santo, 20, 40, I 03, 151, 181
Bardi, 149,261,266
Apúlia, 52,497
Bari, 79
Aquéia, 96
Basiléia, Concílio de, 269, 472
Aquitânia, 50, 51, 120, 160, 161, 184
Aragão, 27, 84, 89, 90, 91, 92, lll, 114, 115, Basílio I, papa, 79
162,238,257,270,272 Basílio 11, papa, 79, 80
Arculfe, 89 Baviera, 271
Arena (capela), 313 Bayeux, 116
Aristóteles, 84, 85, 216,271, 316, 339, 371, Beatriz, 442
416,444,530 Beatus de Liébana, 330, 466
Árius, 180, 464 Beauvais, 205, 326, 327, 491
Arles, 66, 144, 354 Beda, o Venerável, 62, 303, 315, 326, 331,
Armagnacs, 250 370, 389
Armórica, 51, 57 Begon 111, 200
Arnaldo de Brescia, 228 Beirute, 93
Arnaldo de Ratisbona, 321 Bento Biscop, 486
Arnaldo de Vilanova, 332 Bento, são, 66, 72, 185, 189, 461
Arnolfini, Giovanni, 41 Benzo, 326
Arras, 223, 364, 365, 484, 509 Berengário de Tours, 360
Artois, 143 Bernardino de Siena, 273
Artur, rei, 120 Bernardo de Angers, 487, 502, 503
Ásia, 28, 50, 81, 367, 369, 370, 371, 540 Bernardo de Chartres, 321
Assis, 499 Bernardo de Claraval, 189
Atenas, 96 Bernardo de Fontcaude, 225

568 ]érôme Baschet


Berry (João de França, duque de), 176, 256, Canterbury, 203, 257, 26l ·
268, 368 Cápua, 162
Béziers, 226 Caracala, imperador, 489
Bizâncio, 71, 79, 80, 81, 89, 90, 94, 95, 97, Caraíbas, 26, 283
144, 167, 184, 245, 367, 460, 494, 500, Carlos de Navarra, 257
533, 540 Carlos lil da Espanha, 287, 288, 291
Boa Esperança, cabo da, 263 Carlos Magno, 37, 62, 70, 71, 73, 74, 76, 77,
Boaventura, são, 208, 210, 216, 416, 419, 78, 86, 90, 94, 123, 145, 174, 270, 324,
514 455,466,483,484
Boccaccio, Giovanni, 248 Carlos Marte), 51, 69,455
Boécio, 20, 324, 415 Carlos Quinto (da Espanha), 28
Boêmia, 57, 89, 183, 264, 265, 272, 335, Carlos v, o Sábio, 183, 256, 265, 311
355 Carlos Vll da França, 250, 261, 266, 327
Boemundo de Tarento, 93 Carlos Vlll, rei, 267, 270
Bolonha, 149, 214 Carlos, o Gordo, 77
Bominaco (monastério), 310 carolíngios, 51, 69, 72, 74, 75, 76, 78, 157,
Bonifácio Vlll, papa, 195, 240, 334, 353, 422 245,441,450,490,494
Bonifácio, são, 68 Casaquistão, 94
Borgonha, 86, 157, 185, 241, 267, 268, 354, Cassiodoro, 66
368,414 Castela, 27, 89, 90, 91, 92, 145, 148, 150,
Bourbon, 268,287,292,497 157, 158, 162, 187, 210, 238, 254, 257,
Bourges, 197, 198, 202, 203, 250, 260, 262, 264,265,270,303,348,454
270 Castres, 225
Bourguignons, 2 50 Catalunha, 84, 124, 136, 197, 342
Bouvines, 113, 161 Catarina de Siena, santa, 21 O
Bradwardine, Tomás, 371 Cenami, Giovanna, 41
Brandão, são, 391 Cerulário, Miguel, 95
Bretanha, 62, 160, 26 7 Cesário de Arles, 68
Bruges, 41 , 146 Ceuta, 263
Brunelleschi, 41, 519 Cézeracq, 34 3
Brunetto Latini, 370 Champagne, 121, 144, 145, 148, 157, 257,
Bruno, Giordano, 371 349
Buffalmacco, Buonamico, 253, 397, 398 Chartres, 163, 203, 205, 422, 490
Bulgária, 79 Chaucer, Geoffrey, 261
Burgos, 203, 354 Chauliac, Guy de, 248
Chenalho, 418
Calábria, 52, 79, 334 Chiapas, 17, 335,418,419,479, 505
Calcedônia, 424 Childerico, 54, 70
Caleruega, 210 China, 21, 263, 355, 367, 369, 536
Calisto ll, papa, 191 Chipre, 79, 93
Calvário, 500, 513 Chrétien de Troyes, 121
Cambridge, 215, 363 Chrodegang de Metz, 72
Campo-Santo de Pisa, 253, 397, 398 Cícero, 75, 77, 328, 377
Canadá, 52 Cidade do México, 289, 292, 504
Canárias, 29, 263 Cirilo, são, 80
Canção de Rolando, 70, 92, 118 Clara de Assis, santa, 212
Canossa, 191 Cláudio de Turim, 484

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 569


Clemente de Alexandria, 459 Datini, Francesco, 260, 261
Clemente V, papa, 251, 362 Descartes, 20, 44, 443, 520
Clemente VI, papa, 506 Diana, 239
Clermont, 55, 92, 119, 202, 487, 502 Dias, Bartolomeu, 263
Clotário, 51 , 113 Díaz dei Castillo, Berna), 283
Clóvis, 51, 54, 61, 70, !58 Dinamarca, 63, 89
Cluny, 99, 170, 184, 185, 186, 187, 188, Dinan, 116
189,261,332,353,354,365,395 Diocleciano, imperador, 79, 302
Cnut, 51 Dioniso, o Pequeno, 302, 306, 332
Codex Calixtinus, 354 Djerba, 90
Coimbra, 90 Domingo de Guzmán, 210
Colombano, são, 66 Domingo, são, 211, 461, 499
Colombo, Cristóvão, 26, 27, 28, 29, 30, 31, Domo do Rochedo, 81
32, 263, 284, 370, 371, 540, 542, 543 Dorestad, 73
Colônia, 50, 146, 224, 487 Douro, 90, 145
Colonna, 149 Drythelm, 391
Comitan, 4 79 Duns Scot, John, 271
Commynes, Filipe de, 327 Duran, Diego, 541
Comnenos, 80 Durham, 201
Compostela, 38, 148, 353, 354, 355, 357,
397,497 Ebstorf, 369, 370
Conques,200,354,390,397,487,489,490, Echternach, 62
502 Éden,402,440
Conrado li, 86 Edessa, 93
Conrado 111, 93 Eduardo lll da Inglaterra, 250, 266
Constança, Concílio de, 251, 272, 335 Eduardo, o Confessor (santo), 362, 363
Constantino, imperador, 60, 61, 62, 67, 72, Edwin, rei, 62
79, 81, 94, 196, 222, 245, 352,423, 425, Éfeso, 423, 470
484,487 Eginhardo, 77, 324, 449
Constantino, o Africano, 84 Egito, 79, 81, 82, 93, 94, 377, 411
Constantinopla, 33, 34, 54, 65, 71, 78, 79, Eleonora de Aquitânia, 160
80,83,84,94,95,96,270,423 Elipando,466
Córdoba, 82,83,90,92 Éon de I'Étoile, 334
Cortés,28,32,8~284, 541,542,543 Érico, o Vermelho, 52
Cosmas Indicopleustas, 370 Escandinávia, 52, 54, 63, 105
Cosroés 11, 352 Escócia, 51 , 48(>
Crécy, 250 Espanha, 27, 31, 32, 33, 34, 50, 52, 53, 61,
Creta, 79, 96 63,65,68, 74,81,82,83,84,90,91, 105,
Cristóvão, são, 497 238, 287, 289, 290, 291, 303, 335, 354,
Cuba, 29, 543 465
Essex, 51
Dagoberto, 51 Estella, 3 54
Damasco, 79, 81, 83 Estevão de Bourbon, 219,229,435
Damieta, 93 Estevão de Tournai, I 54
Daniel, 512 Estevão I, rei, 62
Dante Alighieri, 271, 310, 313, 374, 375, Estevão Tempier, 216, 41 7
391,396,399,403,442 Estrabão, 51 7

570 }érâme Baschet


Estrasburgo, 205 Francisco li de Aquino (conde), 4)8
Etelberto, 53, 62 Francônia, 86 '
Etiópia, 36 7 Frankfurt, 466
Etna, 391 Frederico I Barba-Ruiva, 86
Eudes de Sully, 361 Frederico II, 83, 86, 93, 161, 162, 332
Eurásia, 454 Fréjus, 144
Eusébio de Cesaréia, 315, 331, 423 Froissart, João, 250, 327
Eva,258,375,376,382,402,404,449,498, Fromista, 354
499 Fugger, 260, 266
Fulda, 62, 74, 75
Fanjeaux, 212 Fursy, 391
Farfa, 82
Fasani, Raniero, 332 Gabriel (arcanjo), 176, 382
fatímidas, 82 Gales, País de, 51
Fausto, 382 Gália, 51, 52, 53, 55, 61, 62, 63, 64, 66, 70,
Fé, Santa, 397,487,488,489,503 99, 101, 352
Félix de Urgel, 466 Galícia,257,258,355
Fernández, Martín, 199 Gand, 146,150,234,310
Fernando de Aragão, 26, 29, 31 Ganges, 370
Fernando I, 90 Garde-Freynet, La, 82
Fernando Ili, 92 Gargano, monte, 354
Fibonacci, Leonardo, 84 Gasconha, 161
Filipe Augusto, 89, 384 Gautier de Coincy, 4 71
Filipe I, rei da França, 180, 449 Gelásio I, papa, 196
Filipe li de Espanha, 161, 304 Gênova, 90, 95, 144, 146, 260, 261, 295
Filipe IV, o Belo, 250 Geraldo de Cambrai, 166
Filipe VI de Valois, 250 Geraldo de Cremona, 84
Flandres, 41, 93, 121, 126, 143, 144, 149, Geraldo Segarelli, 334
150, 157, 257, 258, 333, 349, 354 Gerberto de Aurillac (Silvestre II), 263
Florença, 96, 144, 145, 146, 149, 150, Germânia, 62, 70, 86, 157
211, 26~ 261, 26~ 31~ 348,370,457, Gero de Colônia, 487
519 Gers, 343
Fontevraud, 189 Gerson, João, 272, 273, 493, 494
Fournier, Jacques (bispo de Pamiers), 226 Gervásio, são, 63
Fra Angélico, 398 Gilles de Roma, 519
Fra Dolcino, 334 Giordano de Pisa, 220, 400
França, 51, 77, 89, 91, 93, 101, 106, 120, Giotto, 206, 209, 313, 498, 499, 518
122, 124, 127, 131, 140, 144, 147, 148, Giovanni Canavesio, 437
157, 158, 159, 161, 162, 166, 170, 173, Gislebertus, 498
180, 181, 183, 203, 210, 223, 224, 226, Godofredo de Bouillon, 93
237, 248, 250, 252, 255, 256, 263, 264, Gog e Magog, 331, 367, 369
265, 266, 267, 268, 270, 311, 319, 326, Graciano, 171, 193, 194,240, 323
327, 330, 354, 356, 396, 449, 454, 487, Granada, 26, 27, 34,83,84,92,269,283
490 Grécia, 79, 80, 387, 413, 544
Frância, 54, 77 Gregório de Nissa, 418
Francisco de Assis, são, 210, 224, 436, 447 Gregório de Tours, 64, 326
Francisco de la Sarraz, 40 Gregório I, o Grande (papa), 56, 62, 65, 66,

A CIVILIZAÇAO FEUDAL 571


76, 176, 377, 388, 391, 401, 422, 441, Henrique de Blois, 503
484,485,508 Henrique de Lausanne, 223
Gregório 11, papa, 95 Henrique 11 Plantageneta, 89, 157, 159, 160,
Gregório IX, papa, 194,214, 225,240 162
Gregório VIl, papa, 92, 190, 191, 193, 196, Henrique 111, 491
360 Henrique IV, 180, 191
Gregório XI, papa, 251 Henrique v, 191, 250
Gregório XIII, papa, 304 Henrique VI, 86, 250
Gregório, são, 396, 406 Henrique, o Navegador, 263
Groenlândia, 52 Herman de Valenciennes, l 83
Grosseteste, Roberto, 216 Hildegarda de Bingen, 415, 416
Guadalquivír, 92 Hipona, 388
Guia do peregrino de Santiago, 354 Hohenstaufen, 86
Guiart des Moulins, 183 Homero, 77
Guiberto de Nogent, 148, 332, 413, 4 36, 51 O Honorato, santo, 66
Guichardo (bispo de Troyes), 240 Honório lll, 208
Cuido de Are1.zo, 186 Honorius Augustodunensis, 357, 393, 397,
Guigo I, 189 485, 506
Guilherme Carle, 257 Houdan, donjon de, 114
Guilherme da Normandia, 52 Hugo de Grenoble, santo, 189
Guilherme de Auvergne, 230 Hugo de Saint-Victor, 350, 360, 421, 485,
Guilherme de Conches, 321, 370 511
Guilherme de Digulleville, 357 Hugo de Semur, 187
Guilherme de Lorris, 324 Humberto da Silva Candida, 193
Guilherme de Occam, 271 Humberto de Romans, 220
Guilherme Durand, 196,451,494, 503, 508 Hungria,62, 70,89,92,264,265,355
Guilherme IX (duque de Aquitânia), 120 Hus, Jan, 272, 335
Guilherme Peyraut, 377, 379, 380
Guilherme, o Conquistador, 52, 124, 160, lcônio, 80
187,455 Ilha de França, 203, 257
Guilherme, o Marechal, 346 Ilhas Britânicas ver Inglaterra, 57
Guineforte, são, 229 Índia, 367, 370
Guinevere, esposa do rei Artur, 120 Indonésia, 94
Guitmond de Aversa, 360 lngeburge, 384
Gutenberg, Johannes Gensfleish, dito, 262 Inglaterra, 36, 39, 51, 52, 54, 57, 62, 65, 73,
Guyenne, 161 89, 100, 101, 116, 122, 124, 140, 143,
Guyot de Províns, 320 144, 158, 159, 160, 161, 162, 164, 166,
173, 187, 237, 248, 250, 254, 255, 257,
Hades, 387 258, 264, 265, 266, 267, 269, 272, 455,
Hansa, 144 472
Haroldo Dente Azul, rei, 63 Inocêncio 111, papa, 92, 174, 194, 195, 196,
Haroldo, rei, 52, 116 208,225,473,500
Harun ai-Rashid, 82 Inocêncio VI, papa, 406
Hastings, 52, 116 lraque, 82
Hauteville, 52 Irlanda,36, 51,62, 66,89
Heloísa, 442 Isaac, 402, 512, 513
Henricus Insistor, 242 Isabel, a Católica, 26

572 }érôme Baschet


lsidoro de Sevilha, 29, 56, 74, 316, 339, 370 Joaquim, são, 471
Islândia, 63 Johannes Tinctoris, í41
Ismael, 90 Jonas de Orleans, 484
Isolda, 120 Judas, 391,436,437
Itália, 34, 51, 52, 61, 66, 70, 72, 79, 80, 82, Júlio César, 304
86, 89, 94, 95, 99, 105, 129, 135, 140, Justiniano, imperador, 51, 70, 79, 176,248
144, 148, 149, 150, 161, 173, 207, 224,
248, 254, 263, 282, 313, 332, 335, 340, Kairouan, 82
349,354,397,436,455,490 Kent, 51, 62
Khan,28, 367,540,541
Jacó, 402 Kiev, 80
Jacobus Sprenger, 242 Kubilai, 367
Jacopo de Varazze, 220
Jacques Coeur, 260, 266 Lagny, 144
Jacques de Vitry, 219, 230, 435 Lamberto de Saint-Omer, 377
Janus, 309, 378 Lamego, 90
Japão, 28, 535 Lancaster, 250
Jerônimo, são, 63, 74, 331, 412, 458 Lancelote do Lago, 120
Jerusalém, 29, 79, 81, 92, 93, 151, 158, 167, Lanfranc du Bec, 360
201, 270, 330, 331, 335, 352, 353, 356, Languedoc, 157, 161,224,226
357, 365, 369, 370, 390, 402, 405, 406, Laon, 148
442, 507, 508, 540 Las Casas, Bartolomeu de, 32, 168, 290,
Jessé, 461, 495 372, 505, 530, 531, 540, 541
Jesus Cristo, 19, 29, 39, 41, 61, 66, 70, 76, Latrão IV, Concílio de, 163, 217, 218, 219,
87, 98, 106, 119, 121, 164, 175, 178, 225,238,361,380,399,450
193-6, 205, 207-10, 225, 227, 237-9, Lázaro, 387, 389, 402
249, 250, 272, 285, 302-4, 306-8, 31 O, Leãol,papa, 79
314-9, 329, 330-1, 333-6, 352, 359-64, Leão lll, papa, 71, 95
366, 369-70, 372, 382, 385-7, 390, 400, Leão IX, papa, 190, 192, 196, 360
404, 406-7, 418, 421-30, 432, 436, 438, Leão VI, papa, 79
441-2, 446, 451, 461, 464-6, 469-77, Leif Eriksson, 52
483,485-7,490,492,494,497-501,507, Lérida, 91
510, 512-4, 521, 525-7, 541 Lerins, 66
Joana d'Arc, 250 Leviatã, 397, 404
João Batista, são, 352 Liege, 150, 362
João Cassiano, são, 65, 377 Limbourg, Pol de, 256
João Damasceno, 483, 485 Limoges, 354
João de Friburgo, 218 Lisboa, 91
João de Garlande, 305 Liutgarda, santa, 497, 511
João de Salisbury, 158, 422 Liutprando de Cremona, 95
João do Plan Carpin, 36 7 Loarre, 114, 115
João 11, o Bom, 250, 265 Loire, 123, 124, 353, 360
João Nider, 240 Lombardia, 272
João Sem Medo, 368 Lombers, 225
João Sem Terra, 161 Londres,41, 146,257,258,348
João, são, 186, 306, 307, 308, 309, 330 López de Gómara, 27
Joaquim de Fiore, 334, 439 Lorenzetti, Ambrogio, 151, 152, 153, 519

A CIVJI.IZAÇÃO HUDAL 573


Loup de Ferrieres, 75 Meca, 81
Lucas de Tuy, 494, 520 Medici; 150, 260, 261
Lúcio 111, papa, 225 Mediterrâneo, 52, 71, 79, 82, 83, 94, 96,
Luís da Baviera, 271 144, 369, 530
Luís 1, o Piedoso, 74, 77, 123, 484 Melquisedeque, I 58
Luís IX, 89, 159, 161, 162 Mercia, 51
Luís VIl, 93, 160 Mesoamérica, 295
Luís XI, 267, 270, 272 Mesopotâmia, 82, 83
Lulle, Raimundo, 85 Metódio, são, 80
Lutero, 332, 396 México, 17, 26, 30, 31, 32, 33, 45, 86, 287,
Luxemburgo, 370, 497 289,291,317,461,502,514
Luxeuil, 66 Michelangelo Buonarroti, 236, 518
Lyon, 74,96, 212,223,224,229,261,403 Miguel (arcanjo), 309
Lyon 11, Concílio de, 96, 212 Milão, 63, 146, 149, 203, 223, 380, 423, 481
Milvius, ponte, 60, 484
Mâconnais, 126, 136 Mirande, 147
Madeira, ilha da, 29, 263 Mogúncia, 262
Magreb, 82 Moisés, 315,482,512,541
Mahdia, 90 Moissac, 354, 490
Mareul, 187 Molanus, 494, 495
Maine, 267 Montaillou, 226, 390, 435
Malta, 90 Monte Cassino, 66, 82, 84, 391
Mandeville, João de, 370 Montecassino, 186
Mani, 381 Monteforte, 223
Manrique de Lara, 199 Montezuma, 541, 542, 543
Mans, 223 Montpellier, 21 5
Mansurah, 93 Montségur, 226
Mantzikert, 92 Mühlhausen, 335
Maomé, 81, 82, 89, 541 Müntzer, Tomás, 335
Map, Walter, 319, 320 Múrcia, 92
Mareei, Estevão, 260 Murdach, 389
Marcílio de Pádua, 271, 322
Marco Polo, 28, 368, 541 Nápoles, 215,270
Marcos, são, 36, 38 Narbônia, 225
Maria, Virgem, 39, 356, 385, 422, 423, 425, Navarra, 90, 92, 257, 490
447,469,470,471,472,473,492,493 Navas de Tolosa, Las, 92
Marselha, 65, 248, 377, 484 Nebrija, Antônio de, 27
Martinho de Tours, são, 67, 74, 352 Nestório, 423
Martinho V, papa, 251 Nicéforo, imperador, 79
Martini, Simone, 518 Nicéia II, Concílio de, 483
Martorana de Palermo (igreja), 500 Nicéia, Concílio de, 61, 423,464, 465
Masaccio, 519 Nicetas (ou Niquinta), 224
Mateo, mestre, 38, 354 Nicolau de Clamanges, 263
Mateus Paris, 362, 363 Nicolau 11, 303
Mateus, são, 387, 447 Nicolau Oresme, 444
Matilda, rainha, 116 Nilo, 370
Maxêncio, 60 Noé, 316

574 Jérôme Baschet


Norberto, são, 189 378, 393, 414, 41~ 417, 422, 492, 493,
Normandia, 93, 160, 161, 192 494 .-
Northumbria, 51, 62 Parma, 334
Noruega, 63, 89, 104 Pascal !!, papa, 193
Notre-Dame de Paris, 203 Patrício, são, 62
Notre-Dame de Senlis, 471 Paulo !!1, papa, 530
Notre-Oame-du- Port (Clermont-Ferrand), Paulo, são, 56, 185,387,391,410,415,418,
202 421,436,438,440,473
Nova Espanha, 288, 290, 291, 292, 294, Pedro Comestor, 183
308, 502 Pedro Damião, 190, 195, 450
Novo Mundo, 29, 30, 32, 145, 274, 286, Pedro de Ailly, 28, 370
293, 295, 304, 308, 317, 359, 372, 444, Pedro de Bruis, 223, 224, 364, 509
463, 504, 527, 550 Pedro de Castelnau, 226
Nufiez de Haro (arcebispo), 289 Pedro de Luxemburgo, 497
Nufiez de la Vega, 505 Pedro Lombardo, 216, 393,416
Pedro Valdes, 223
Odilon, santo, 187, 395 Pedro, o Cantor, 218, 511
Odoacro, rei, 33 Pedro, o Venerável, 187, 223, 224, 237, 238
Odolrico, 200 Pedro, são, 69, 185, 194, 195,211,319, 353,
Odon de Cluny, 332 390,436,438,499
Olavo da Suécia, 63 Pelágio, 376
Olavo 1 Tryggveson, 63 Península Ibérica, 26, 27, 51, 70, 84, 90, 92,
omíadas, 81, 82, 84 13~ 162, 237, 248, 252, 264, 295, 29~
Orderico Vital, 321 330,354,366,455,466
Orenoco, 28 Pepino, o Breve, 72, 94
Orígenes, 316, 388, 412, 418 Percival, 121
Orleans, 74, 157, 223, 484 Percy, 254
Orósio, 67 Pérsia, 81
Orsini, 149 Peru, 291
Osma, 210 Perúgia, 332, 491
Osman !, 83 Peruzzi, 261
Oto de Freising, 332 Petrarca, 263, 544
Oto !, 85, 94 Petrus Mamor, 242
Oto !!, 95 Picardia, 102, 257, 267
Oto !!!, 85, 87 Piemonte, 223
Oto IV, 161 Pietro di Domenico da Montepulciano, 249
Ourique, 91 Pireneus, 51, 70, 106, 147, 226,354
Oxford, 214,216,234, 271, 272, 371 Pisa, 84, 90, 144,251, 253, 398
Plantageneta, 89, 157, !59, 160, 162
Pádua, 215,313 Platão, 316, 317, 377
Palermo, 83, 86, 91, 253, 500, 501 Plínio, 367
Palestina, 79, 81, 89, 352 Poitiers, 51, 69, 250, 257, 354
Pamplona, 490 Poitou, 160, 161
Paquistão, 81 Polônia, 62, 70, 89, 355
Paris, 50, 68, 146, 148, 154, 157, 161,209, Porfírio, 271
213, 214, 216, 218, 226, 232, 236, 260, Portugal, 91, 92, 257, 263
261, 271, 273, 310, 334, 348, 361, 368, Praga, 203, 272

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 575


Prato, 260, 356 Sagrajas, 91
Protásio, são, 63 Sahagún, Bernardino de, 286, 317, 354, 54!
Provença, 223, 267 Saint-Albans, 363
Provins, 144 Saint-Clair-sur-Epte, Tratado de, 51
Prudêncio (poeta), 376 Saint-Denis (abadia), 203, 205, 326
Pseudo-Dioniso, o Aeropagita, 485 Sainte-Chapelle, 220
Ptolomeu, 370, 371 Saint-Genis des Fontaines (abadia), 488
Puy, 354, 471 Saint-Gilles du Gard (abadia), 223
Saladino, 82, 93, 352
Quarton, Enguerrand, 405, 406, 475 Salamanca, 30, 199, 215
Salerno, 84, 144, 191
Rábano Mauro, 74, 360, 367, 421 Sálicos, 86
Rabelais, François, 312 Salimbene, I 59
Radberto (são Pascásio), 359 Salomé, 512
Raimundo de Peiíafort, são, 218, 238 Saltilho, 289
Raimundo de Toulouse, 93 Salústio, 77
Ratisbona, 149, 321, 358 San Cristóbal de Las Casas, 289
Ratramno de C:orbie, 360 San Damiano (igreja), 207, 436
Raul Glaber, 99, 100, 101, 321, 383 San Pellegrino (capela), 310
Ravena, 70, 72, 77, 79,94, 186,486,499 San Pere de Roda (monastério), 197
Recaredo, rei, 61 Sanchez VII, 490
Reims, 61, 203, 205, 250, 334 Sant'Ângelo, castelo de, 176
Remígio (bispo de Reims), 61, 356 Santa Fé de Conques (abadia), 200, 390, 489
Renâ~a. 51,7~22~237,467 Santa Maria del Carmine (igreja), 519
Reno, 353 Santa Maria del Piano (abadia), 438
Ricardo Coração de Leão, 93, 161, 334 Santa Maria in Trastevere (igreja), 471, 472
Ricardo de Saint-Victor, 389, 511 Santa Maria Maggiorc (igreja), 470, 486, 498
Roberto da Normandia, 93 Santa Maria Novella (basílica), 211
Roberto De Arbrissel, 189 Santa Sofia (basílica), 80
Roberto de Flandres, 93 Santiago de Compostela, 38, 354
Roberto de Molesmes, 189 Santiago matamoros, 355
Roberto Guiscardo, 52, 90, 455 Santo Apolinário Novo, 486
Roberto Pullus, 360 Santo Domingo de Oaxaca, 461
Rocamadour, 356 Santo Estevão de Bourges (catedral), 198
Ródano, 77 Santo Sepulcro, 81, 352, 406
Rogério 11, 86, 89, 162, 500 São Félix de Caraman, 224
Roma, 21, 33, 34, 37,49, 52, 53, 54, 55,61, São João de Acre, 93
62, 64,65,67, 70, 71, 72, 75, 76, 77, 79, São Lázaro de Autun (igreja), 172
80, 82, 85, 94, 101, 149, 176, 177, 187, São Martinho (abadia), 352
194, 195, 251, 302, 306, 307, 316, 319, São Martinho de Vicq (igreja), 495
353, 355, 356, 357, 359, 405, 406, 449, São Pedro de la Nave (igreja), 488
470,471,472,486,495,498,503 São Pedro do Vaticano, 498
Romualdo, são, 189 São Pedro e o trovador, 400
Rotário, editos de, 53 São Vital de Ravena (basílica), 499
Rum, 80, 83 Saône, 77
Rússia, 95, 144 Sardenha, 90, 97, 144
Rutebeuf, 437 sassânidas, 81

576 jérôme Buschet


Sat~ 67,240,241,242,244,375,381,382, Tenochtitlán, 541, 543
383, 384, 385, 386, 387, 390, 398, 407, Teodolfo (bispo de Orleans), 14
408,416,525 Teodorico, 33, 51
Saxnot, 67 Teodósio, imperador, 61
Sclafani (palácio), 253 Teófano, 95
Scrovegni, Enrico, 313 Teófilo, são, 382, 384, 385
seljúcidas, 92 Tepeyac, 286
Senhora Abundia, 230 Terêncio, 77
Sens, 203, 311 Terra Nova, 52
Sepúlveda, Juan Ginés de, 530, 531 Tertuliano, 315,412,434,447,482, 526
Serenus, 484 Tessalônica, 96
Sevilha,92, 348,367 Thingvellir, 63
Sheol, 387 Thunor, 67, 68
Sheppard, 2 54 Tiago 1 de Aragão, 92
Sibéria, 368 Tiago, são, 354, 383
Sicília, 52, 79, 82, 83, 84, 86, 89, 90, 144, Tibério, imperador, 314
161, 162, 353, 455, 501 Tiro, 93
Sidon, 93 T nugdal, 391
Siena, 151, 152,491,498 Toledo, 65, 84, 91, 92,466
Silvestre, papa, 84, 86, 94 Tomás de Aquino, santo, 216, 271, 315, 350;
Simão de Montfort, 226 362, 386, 389, 393, 394,410,411,416,
Simão de Tournai, 362, 422 436,438,441,451,464, 486, 515, 517,
Simão, o Mago, 192 519
Síria, 54, 79, 81 Tomás de Cclano, 208
Sistina, Capela, 236 Tomás de Chobham, 218, 312
Sisto IV, papa, 4 72 Tonantzin, 286
Sogomomba-kan, 541 Tordesilhas, Tratado de, 359
Soldin, 147 Tortosa, 91
Soliman, o Magnífico, 83 Toscana, 265
Solino, 367 Toulouse, 93, 106, 157, 161,212,215,224,
Solorzano Pereira, Juan de, 283 225, 254, 265
Sonho do pomar, O, 267 Tours, 51, 64, 354, 360, 361,486,487
Staffelsee, 60 Trento, Concílio de, 451, 494
Stefaneschi, Jacopo, 518 Treves, 50, 146
Stromboli, 391 Trípoli, 90, 93
Suábia, 86 Tristão, 120
Suécia, 89 Troyes, 144, 240, 250
Suetônio, 77, 324 Túnis, 93
Suffolk. 54 Turíngia, 335
Suger, 203, 205, 485, 496, 507 Tyler, Wat, 257
Sumatra, 36 7
Sutri, tratado de, 191 Ubertino de Casalc, 334
Sutton-Hoo, 54 Úmbria, 254
Urbano 11, papa, 92, 119, 196, 332, 449
Tabor, monte, 335 Urbano IV, papa, 362
Tanchelm de Flandres, 333 Utrecht, 62
Tântalo, 397

A ClVlLlZAÇÁO FEUDAL 577


Valênda, 92 Virgílio, 442
Valladolid, 530 Vísconti, 14~
Van Eyck, Jan, 41 Viseu, 90
Vaud,40 Viste, Le, 261
Venceslau da Boêmia, 183 Vitrúvio, I 06
Veneza, 79, 95, 96, 144, 145, 146, 149, 263, Volto Santo de Lucca, 502
353, 367 Vosges, 66
Ventoux, monte, 544 Vouillé (batalha), 51
Vênus, 483 Vuolvinus, 481
Verdun, 77
Vermandois, 157 Waibligen, 86
Verna, 208 Wearmouth-Jarrow, 486
Verona, 149 Wessex, 51
Verônica, santa, 500 Westminster, 363, 491
Vespúcio, 28 Worms, Concordata de, 191
Vézelay, 354, 540 Wyclif, John, 272, 439
Vicente de Beauvais, 326, 491
Vicente Ferrier, são, 272, 332 Xanten, 189
Viena, 37, 94, 513
Vilibrordo, são, 62, 303 York, 39, 74, 311, 382
Villani, Giovanni, 262
Villeneuve-les-Avignon, 405, 406 Zaragoza, 91
Vincennes, 162

578 }érôme Baschet

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