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Acreditaram Os Gregos Nos Seus Mitos by Paul Veyne

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A NOVA HISTÓRIA, Jacques Le Goff, Le Roy Ladurie, Georges Duby

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PARA UMA HISTÓRIA ANTROPOLÓGICA, W. G. L. Randles,

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Nathan Wachtel e outros

OS GREGOS
A CONCEPÇÃO MARXISTA DA HISTÓRIA, Helmut Fleischer

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SENHORIO E FEUDALIDADE NA IDADE MÉDIA, Guy Fourquin

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EXPLICAR O FASCISMO, Renzo de Felice

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NOS SEUS MITOS ?
A SOCIEDADE FEUDAL, Marc Bloch
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O FIM DO MUNDO ANTIGO E O PRINCÍPIO DA IDADE MÉDIA,

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Ferdinand Lot
O ANO MIL, Georges Duby
ZAPATA E A REVOLUÇÃO MEXICANA, John Womack Jr.

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HISTÓRIA DO CRISTIANISMO, Ambrogio Donini
A IGREJA E A EXPANSÃO IBÉRICA, €. R. Boxer
HISTÓRIA ECONÓMICA DO OCIDENTE MEDIEVAL, Guy Fourquin

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GUIA DE HISTÓRIA UNIVERSAL, Jacques Herman
O IMPÉRIO COLONIAL PORTUGUÊS, €, R. Boxer
INTRODUÇÃO A ARQUEOLOGIA, Carl-Axel Moberg
A DECADÊNCIA DO IMPÉRIO DA PIMENTA, A. R. Disney

Âê1 3É E Ê I
O FEUDALISMO — UM HORIZONTE TEÓRICO, Alain Guerreau
A ÍNDIA PORTUGUESA EM MEADOS DO SEC. XVII, €. R. Boxer
REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA, Jacques Le Goff
COMO SE ESCREVE A HISTÓRIA, Paul Veyne
HISTÓRIA ECONÓMICA DA EUROPA PRÉ-INDUSTRIAL,
“Carlo Cipolla
MONTAILLOU, CATAROS E CATÓLICOS NUMA ALDEIA
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FRANCESA, (1294-1324) E. Le Roy Ladurie


OS GREGOS ANTIGOS, M. I. Finley
O MARAVILHOSO E O QUOTIDIANO NO OCIDENTE MEDIEVAL,
Jacques Le Goff
AS INSTITUIÇÕES GREGAS, Claude Mossé
A REFORMA NA IDADE MÉDIA, Brenda Bolton
ECONOMIA E SOCIEDADE NA GRÉCIA ANTIGA, Michel Austin e
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Pierre Vidal Naquet
O TEATRO ANTIGO, Pierre Grimal
A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL NA EUROPA DO SÉC. XIX,
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Tom Kemp
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O MUNDO HELENÍSTICO, Pierre Lévêque


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O Éditions du Seuil, 1983
Tradução
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Capa de Edições 70
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Ilustração da capa: vaso grego de cerca de 515 a. C.
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Presume-se que seja da autoria do oleiro EUXITHÉOS

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Todos os direitos reservados para a língua portuguesa


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EDIÇÕES 70, LDA., Av. Duque de Ávila, 69 r/c Esq. — 1000 LISBOA
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Esta obra está protegida pela Lei. Não pode ser reproduzida,
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Qualquer transgressão à Lei dos Direitos de Autor será passível


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pais. Então, acreditarão verdadeiramente no Pai Natal? Acreditam, e a
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por verdadeiro não só que os leopardos jejnam, mas também que comem
todos os dias; os leopardos são perigosos todos os dias: sabe-o por experiên-
cia; são cristãos: a tradição garante-lho».
Partindo do exemplo da crença dos Gregos nos seus mitos, propa-
sera-me estudar a pluralidade das modalidades de crença: acreditar nas
informações, acreditar por experiência, etc. Este estudo projecton-me, por
dnas vezes, um pouco mais longe.
Foi preciso reconhecer que, em vez de falar de crenças, devíamos, afinal,
falar de verdades. E que as verdades eram elas próprias imaginações.
Não faxemos uma falsa ideia das coisas: é a verdade das coisas que, através
dos séculos, é estranhamente constituída. Longe de ser a mais simples das
experiências realistas, a verdade é a mais histórica de todas elas. Home
tempo em que os poetas ou historiadores fabulavam inteiramente dinastias
reais, com o nome de cada potentado e a sua árvore genealógica; não eram
falsários, nem estavam de má-fé: seguiam o método então normal para
obter verdades. Levemos esta ideia às suas últimas consequências e vere-
mos que consideramos verdadeiro, à sua maneira, aquilo a que chamamos
ficções, uma vez o livro fechado: a Ilíada ou Alice são verdadeiras, nem
mais nem menos do que Fustel de Coulanges. Do mesmo modo, temos por
divagações, seguramente interessantes, a totalidade das produções do passado

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e só consideramos verdadeiro, muito provisoriamente, o «sltimo estádio da cién-


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o nosso mundo, em vez de ser o seu fermento ou o sem demónio. Só que,
e isto faria desmaiar de desprezo todo o kantiano responsável, este trans-
cendental é histórico, pois as culturas sucedem-se e não se assemelham. Os Gregos acreditavam na sua mitologia? A resposta é difícil,

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Os homens não descobrem a verdade: fazem-na, tal como fazem a sua bistó- pois «acreditar» quer dizer tantas coisas... Nem todos acreditavam
ria, e elas pagam-lhes na mesma moeda, que Minos continuasse a ser juiz nos Infernos!, nem que Teseu
Os meus amistosos agradecimentos vão para Michel Foncanlt, com quem tivesse combatido o Minotauro2, e sabiam que os poetas «mentem».

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falei acerca deste livro, para os meus colegas da Associação de Estudos Todavia, a sua maneira de não acreditar não deixa de ser inquietante;

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Gregos, Jacques Bompaire e Jean Bousquet, e para François Wabl, pelas suas porque Teseu nem por isso tinha deixado de existir, a seus olhos;
sugestões e críticas, só é preciso «depurar o Mito pela Razão»? e reduzir a biografia do
companheiro de Hércules ao seu núcleo histórico. Quanto a Minos,
Tucídides, no termo de um prodigioso esforço de pensamento,
extrai a seu respeito o mesmo núcleo: «De todos aqueles que conhe-

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cemos pot ouvir dizer, Minos foi o mais antigo a possuir uma frota»4;
o pai de Fedra, o esposo de Pasífaa, não passa de um rei que
foi dono do mar. À depuração do mítico pelo /ogos não é um
episódio da luta eterna— das origens a Voltaire e Renan— entre
a superstição e a razão, que faria a glória do génio grego; o mito
e o Jogos, contrariamente ao que diz Nestle, não se opõem como

1. Os mortos continuam, debaixo de terra, a ter a mesma vida que enquanto

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vivos; Minos, nos Infernos, continua a julgar, tal como Oríon, debaixo de terra,

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continua a caçar (M, Nilsson, Geschichte der griech. Religion, 2.2 ed., Munique,

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Beck, 1955, vol. 1, p. 677). Não deve dizer-se, como Racine, que os deuses fize-
tam de Minos o juiz dos mortos. Acerca das mentiras muito conscientes dos
poetas, cf. Plutarco, Quomodo adulescens petas, II, p. 16 F-17 F.

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2 Plutarco, Vida de Teseu, 15,2 — 16,2. Cf. W. Den Boer, «Theseus, the

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Growth of a Myth in History», em Greece and Rome, XVI, 1969, p. 1-I3.
3 Plutarco, Vida de Teseu, 1,5: «o meythôdes deputado pelo /ogos»; a oposi-
ção do logos ao mythos vem de Platão, Górgias, 523 À.
4 Tucídides, 1, 4, 1; «conhecer pot ouvit dizer», é conhecer através do
mito; comparar, por exemplo, Pausânias, VIII, 10, 2. Heródoto, IH, 122, tinha
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a mesma ideia de Minos. Cf. Aristóteles, Política, 1271 B 38.

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o erto e a verdades, O mito era um tema de reflexões gravesó deixar de acreditar nas lendas? Como é que se deixou de acreditar

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e os Gregos ainda não o tinham dado por concluído, seis séculos em Teseu, fundador da democracia ateniense, em Rómulo, funda-
após esse movimento dos Sofistas que se diz ter sido o seu dor de Roma, e na historicidade dos primeiros séculos da história
Anfklarmmg. Longe de ser um triunfo da razão, a depuração do mito romana? Como é que se deixou de acreditar nas origens troianas

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pelo Jogos é um programa muito datado, cujo absurdo surpreende: da monarquia franca?
porque é que os Gregos se deram a tanto trabalho para nada, que- Em relação aos tempos modernos, as coisas tornaram-se mais

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rendo separar o trigo do joio, em vez de atirarem, de uma penada, claras graças ao belo livro de George Huppert sobre Estienne Pas-
para a fabulação, tanto Teseu como o Minotauro, como a própria quier?. A história, tal como a concebemos, nasceu, não quando
existência de um certo Minos como as inverosimilhanças que a ttra- se inventou a crítica, pois há muito que fora inventada, mas sim no
dição atribui a esse fabuloso Minos? Ver-se-á a amplitude do pro- dia em que o ofício de crítico e o de historiador se tornaram coin-

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blema quando se souber que esta atitude perante o mito durou cidentes: «A investigação histórica foi praticada, durante séculos,
dois bons milénios; num livro de história em que as verdades da sem afectar seriamente o modo de escrever a história, pois as duas
religião cristã e as realidades do passado se apoiam umas nas actividades permaneceram estranhas uma à outra, por vezes no espí-

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outras, o Discurso sobre a história umiversal, Bossuet retoma por rito de um mesmo. homem». Terá acontecido o mesmo na
conta própria a cronologia mítica, em concordância com a crono- Antiguidade e existirá uma via real da razão histórica, a única e a
logia sagrada desde a criação do mundo, e pode assim situar na sua mesina em todas as épocas? Usaremos, como fio condutor, uma ideia
data, «pouco depois de Abimelec», os «famosos combates de de A. D. Momiglianol0: «O método moderno de investigação
Hércules, filho de Anfitrião»?, e a morte de «Sarpédon, filho de histórica baseia-se inteiramente na distinção entre fontes originais
Júpiter». O que é que se passava no espírito do bispo de Meaux e fontes de segunda mão». Não é muito seguro que esta ideia de
no momento em que escrevia isto? Que é que se passa no nosso um grande cientista seja justa; creio-a mesmo não pertinente.

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espírito quando acreditamos, ao mesmo tempo, em coisas contta- Mas tem o mérito de nos fazer equacionar, nem que seja opondo-
ditórias, como fazemos constantemente em política ou acerca da -nos a ele, um problema de método e tem as aparências do seu
psicanálise? lado. Pensemos em Beaufort e em Niebuhr, cujo cepticismo rela-
Passa-se o mesmo com os nossos folcloristas perante o tesouro tivo aos primeiros séculos da história de Roma se baseava na
das lendas, ou com Freud perante a logorreia do presidente Schreber: inexistência de fontes e de documentos contemporâneos dessas idades
que fazer dessa massa de historietas? Como é que tudo isso não recuadas; ou, pelo menos, justificava-se por essa inexistência ll,
teria um sentido, uma motivação, uma função ou, pelo menos, uma
estrutura? À questão de saber se as fábulas têm um conteúdo
autêntico nunca se põe em termos positivos: para saber se Minos munhos sobre Auschwitz se tornem incríveis. Também nunca ninguém demons-

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existiu, é preciso decidir primeiro se os mitos não passam de trou que Júpiter não existia, Ver os exemplos das notas 11, abaixo, e 15 do
contos vãos, ou se são história alterada; nenhuma crítica positivista cap. «Quando a verdade histórica era tradição e vulgata»,
9 G. Huppert, Lºldée de Dhistoire parfaite, Paris, Flammation, 1973, p. 7.
liquida a fabulação e o sobrenatural8. Então, como é que se pode 10 Citado por Huppert, p. 7, n. 1. Os diferentes ensaios de À, D. Momi-
gliano relativos a estes problemas de história e de método da historiografia
podem agora encontrar-se comodamente nas suas duas recolhas: Szudies in His-
toriography, Londres, Weidenfeld and Nicholson, 1966, e Essays in Ancient and
5 W. Nestle, Vom Mythos zum Logos, Estugarda, Meteler, 1940. Outro Modern Historiography, Oxford, Blackwell, 1977.
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livro importante para as diferentes questões que estudamos aqui é o de John 11 Se se quiser ver até que ponto o «rigor», o «método», a «crítica das
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Forsdyke, Greece before Homer: Ancient Chronology and Mythology, Nova Iorque, fontes» de pouco servem nestes domínios, bastará citar as linhas em que, ainda
1957. em 1838, V. Leclerc julga refutar Niebuhr: «Proscrever a história de um século
6 A. Rostagni, Poeti Alessandrini, nova ed., Roma, Bretschneider, 1972, por se encontrar infiltrada por fábulas é proscrever a história de todos os séculos.
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p. 148 e 264. À comprová-lo, temos a exegese histórica ou naturalista dos mitos, Os primeiros séculos de Roma são-nos suspeitos por causa da loba de Rómulo,
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por Tucídides ou Hforo; a exegese alegórica dos estóicos e dos retóricos; o dos escudos de Numa, da aparição de Castor e de Pólux. Apague-se, pois, da
evemerismo; a estilização romanesca dos mitos pelos poetas helenísticos, história romana toda a história de César, devido ao astro que apareceu aquando
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7 Citado por G.Couton, num importante estudo sobre «Les Pensées de Pascal da sua morte; e a de Augusto, visto que o diziam filho de Apolo disfarçado
contre la thêse des Trois Imposteurs», em XVIle siêcle, XXXII, 1980, p. 183. de serpente» (Des journaus chez les Romains, Paris, 1838, p. 166). Por onde se vê
8 Como dizia, mais ou menos, Renan, basta admitir a existência do sobre- que o cepticismo de Beaufort e Niebuhr não tem como fundamento. a distinção
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natural para deixar de poder demonstrar a inexistência de um milagre. Basta entre fontes primárias e de segunda mão, mas sim a crítica bíblica por parte dos
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ter interesse em acreditar que Auschwitz não existiu para que todos os teste- pensadores do século XVII.
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A história das ciências não é4 a da descoberta progressiva do

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bom método e das autênticas verdades. Os gregos têm uma maneita,

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a sua, de acreditar na sua mitologia ou de ser cépticos, e essa

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maneira só falsamente se assemelha à nossa. Têm também a sua

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maneira de escrever a história, que não é a nossa; ota essa maneira

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assenta num pressuposto implícito, de tal forma que a distinção

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entre fontes originais e fontes de segunda mão, longe de ser ignorada
por um vício de método, é estranha à questão. Do que Pausânias
é um exemplo como qualquer outro, e citá-lo-emos muitas vezes.
Este Pausânias não é, de modo algum, um espírito a subesti-
matr, e não se lhe faz justiça ao escrever-e que a sua Descrição da
Hélade foi o Baedeker da Grécia antiga. Pausânias é o equivalente de

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um filólogo ou de um arqueólogo alemão da época de ouro; para QUANDO A VERDADE HISTÓRICA

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da Grécia, vasculhou as bibliotecas, viajou muito, cultivou-se,

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viu tudo com os seus próprios olhost2; põe tanto ardor em recolher
de viva voz as lendas locais como um erudito de província entre Há uma boa razão para que um historiador antigo raramente

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nós, no tempo de Napoleão III; a precisão das indicações e a

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nos dê ocasião de saber se distingue fontes primárias e informação

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amplitude da informação são surpreendentes, bem como a segu- de segunda mão: um historiador antigo não cita as suas fontes, ou


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tança do golpe de vista (à força de observar esculturas e de se antes, fá-lo raramente, de forma irregular e de modo nenhum pelas

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informar da sua data, Pausânias aprendeu a datar a estatuária com mesmas razões que no-las fazem citar. Ora, se procurarmos o que

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base no critério estilístico). Enfim, Pausânias foi obcecado pelo este silêncio implica e se seguirmos o fio das consequências, toda a

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problema do mito e debateu-se com este enigma, como veremos. trama virá atrás: veremos que a história só tinha em comum, com
aquela que conhecemos, o nome. Não quero dizer que fosse imper-

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feita e tivesse ainda que fazer progressos pata se transformar na

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Ciência que sempre foi: no seu género, ela era tão acabada, como
meio digno de crédito, como o nosso jornalismo, com o qual

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se parece muito. Essa «parte escondida do iceberg» do que foi,

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outrora, a história é tão grande que... não é o mesmo iceberg.

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Um historiador antigo não «faz notas de rodapé». Quer faça
investigações originais ou trabalhe em segunda mão, pretende que

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acreditem no que diz; a menos que se orgulhe de ter descoberto

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um autor pouco conhecido, ou que queira tirar partido de um texto


taro e precioso, que é pot si só uma espécie de monumento, mais

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do que uma fontel. O mais das vezes, Pausânias contenta-se em

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1 Fórmulas tais como «as pessoas da região dizem que...» ou «os teba-

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nos contam...» podem muito bem corresponder, em Pausânias, aquilo a
que chamaríamos uma fonte escrita. Simplesmente, aos olhos de Pausânias,
12 Perguntava-se, outtora, se Pausânias não teria viajado sobretudo nos este escrito não é uma fonte; tem por fonte a tradição, evidentemente oral, da
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livros. Podemos afirmar que isso não é certo: Pausânias viajou sobretudo no qual é meta transcrição. Nas suas investigações atcádicas (VIII, 10, 2), Pausá-
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terreno; ver a página tão actual de Ernst Meyer na sua tradução resumida de nias declara, por exemplo: «Soube disto por akoé, por ouvir dizet, tal como
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Pausânias: Pansanias, Beschreibung Griechenlands, 2º ed., Munique e Zutique, todos os meus antecessores»; da mesma maneira, é por akoé que é conhecida
Artemis Verlag, 1967, introdução, p. 42. — Sobre Pausânias, ver em último a história de Tirésias (IX, 33, 2); o que quer dizer que Pausânias e os seus ante-

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lugar K, E. Muller, Geschichten der antiken Etbnographie, Wiesbaden, Steiner, cessotes (que consideraríamos como as fontes de Pausânias) não viram a coisa
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1980, vol, II, p. 176-180. com os seus olhos (cf. IX, 39, 14), limitaram-se a transcrever o que a tradição
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dizer: «soube que...» ou «segundo os meus informadores...»,

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por ele encontrados durante as suas viagens?. Este silêncio acerca


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e credibilidade à sua obra, o tempo encarregar-se-ia disso por si


das fontes não deixa de ser curioso... e deu lugar à Quellenforschung.

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só; afinal de contas, as obras dos Antigos não se embaraçavam com

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Voltemos a Estienne Pasquier, cujas Investigações sobre a França

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citações, e todavia a sua autoridade afitmara-se com o tempo;

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que Pasquier deixasse o tempo sancionar o seu livro!

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a nossa concepção da história de uma outra concepção, que foi a
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hábito de indicar, amiúde, as referências das

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fontes que citava; de todos os historiadores da Antiguidade e que era ainda a dos

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esse procedimento, observaram-lhe, fazia lembrar demasiado «a som-

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contemporâneos de Pasquier. Segundo esta concepção, a verdade
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histórica era uma vulgata consagrada pela concordância dos espí-
ritos ao longo dos séculos; esta concordância sanciona a verdade,
oral dizia; como se vê, Pausânias distingue perfeitamente a fonte primária (akoé)
das secundárias, Os seus antecessores
tal como sanciona a reputação dos escritores considerados clássicos
são-nos conhecidos: Pausânias menciona
incidentemente e de uma vez por todas, no princípio das suas investigações ou ainda, imagino, a tradição da Igreja. Em vez de dever estabe-
arcádicas, um poeta épico, Ásios, que ele leu muito € que cita muitas vezes nou- lecer a verdade a poder de referências, Pasquier deveria esperar ser
tros passos (VIII, I 4: «Sobre este assunto, há estes versos de Asios»; sete linhas ele próprio reconhecido como texto autêntico; ao fazer notas de
acima, Pausânias escrevia: «Os Arcádicos dizem que...»). Asios reproduz, ditía-
mos nós, as tradições arcádicas, A única fonte autêntica, para Pausânias, é o rodapé, ao fornecer as suas provas como fazem os juristas, pro-
testemunho dos contemporâneos do acontecimento, daqueles que o presencia- curou, indiscretamente, forçar o consenso da posteriodade sobre
tam; trata-se, pois, de uma perda irreparável quando esses contemporâneos a sua obra. Numa semelhante concepção da verdade histórica, não
não cutam de transmitir por escrito o que viram (I, 6, 1); cf. também Flávio se pode pretender que a distinção entre fontes primárias e secun-
Josefo, Guerra dos Judeus, I, prefácio, 5, 15. Os histotiadores mais não fazem
do que reproduzir esta fonte, oral ou escrita, estabelecendo
dárias seja descurada, nem tão-pouco que ela seja ignorada e não
incessantemente
a versão cottecta do acontecimento, A coisa é óbvia, de tal modo que eles só tenha ainda sido descoberta: ela não tem muito simplesmente nem
citam a sua fonte quando dela se afastam (assim, Pausânias, I, 9, 8, só cita Hieró- sentido nem uso e, se se tivesse feito notar aos historiadores antigos
nimo de Cardia no momento de se separar dele acerca de um potmenot), o seu pretenso esquecimento, eles teriam respondido que essa dis-
A verdade é anónima, só o erro é pessoal, Em certas sociedades, este princípio
é levado muito longe; tinção não lhes serviria para nada. Não digo que não fizessem mal,
cf. o que escreve Renan sobre a formação do Pentateuco
(Obras Completas, vol, VI, p. 520): «A alta Antiguidade não fazia ideia da auten- mas apenas que, não sendo a sua concepção da história e mesma que
ticidade do livro; toda a gente queria que o seu exemplar fosse completo, fazen- a nossa, esta lacuna não podetia ser uma explicação.
do-lhe todas as adições necessárias para o manter actualizado, Naquela época, Se quisermos compreender esta concepção da história como tra-
não recopiavam os textos, refaziam-nos combinando-os com outros documentos,
Todos os livros eram compostos com uma objectividade absoluta, sem título, dição ou vulgata, podemos compará-la à maneira, muito semelhante,
sem nome de autor, incessantemente transformados, recebendo adições sem como se editavam os autores antigos, ou mesmo os Pensamentos de
fim». Nos nossos dias, na Índia, publicam-se edições populares de Upanichades, Pascal, há pouco mais de um século e meio, O que se imprimia
com um ou dois milénios de idade, mas ingennamente completadas, pata setem era o texto aceite, a vulgata; o manuscrito de Pascal era acessível
verdadeiras; menciona-se, por exemplo, a descoberta da electricidade. Não se
trata de uma falsificação; quando se completa ou se corrige um livro simples- a qualquer editor, mas não iam consultá-lo à Biblioteca do Rei:
mente verdadeiro, como a lista telefónica, não se comete qualquer falsificação. teimprimia-se o texto tradicional, Os editores de textos latinos e gre-
Por outras palavras, o que está aqui em jogo não é a noção de verdade, mas sim gos, esses, recorriam aos manuscritos; mas nem por isso estabele-
a noção de autor. Cf, também H, Peter, Wabrheit und Kumnst: Geschichischreigung ciam a árvore genealógica dessas cópias, não tentavam construir o
und Plagiat im klass. Altertum, 1911, reimp, 1965, Hildesheim, G. Olms, p. 436.
— Acerca do conhecimento histórico por ouvir dizer, cf. agora F. Hartog, Le Miroir texto em bases inteiramente críticas fazendo daquelas tábua rasa:
d"Hlérodote: essai sur la représentation de Pantre, Paxis, Gallimard, 1981, p. 272 sg. pegavam num «bom manuscrito», enviavam-no ao impressor e
2 Os informadores («exegetas»), que Pausânias menciona umas vinte limitavam-se a melhorar, em alguns pormenores, o texto tradicional,
vezes, nem todos foram ciceroni do nosso autor; por «exegetas», Pausânias designa recorrendo a outro manuscrito que tivessem consultado ou des-
também as fontes escritas (Ernst Meyer, p. 37, citando 1, 42, 4). Sobre estes
exegetas, cf. também W. Kroll, Szudien zum coberto; não refundiam o texto, mas completavam ou melhora-
Verstânduis des rômischen Literatur,
Estugarda, Metzler, 1924, p. 313. Ver nota 36 do cap, «Como devolver ao mito vam a vulgata,
a sua verdade histórica», Quando contam a guerta do Peloponeso ou os séculos lendá-
3 Huppert, p. 36. rios da mais antiga história de Roma, os historiadores antigos

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recopiam-se uns aos outros. Não é só porque fossem obrigados a e documento; ou antes, a história não se elabora a partir das fontes:

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isso, à falta de outras fontes ou de documentos autênticos; pois nós ela consiste em reproduzir o que delas disseram os historiadores,
próprios, que dispomos de menos documentos ainda e apenas dis- corrigindo e completando, eventualente, o que nos dão a saber.

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pomos das afirmações desses historiadores, nem pot isso acredi- Acontece, por vezes, que um historiador antigo assinale que
tamos mais neles. Vemos neles simples fontes, ao passo que as suas «autoridades» apresentam divergências sobre certo ponto,
eles próprios consideravam a versão transmitida pelos seus predeces- ou mesmo que declare renunciar a saber qual era a verdade sobre esse

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sores como uma tradição. Mesmo que tivessem podido fazê-lo, não ponto, de tal modo as versões diferem. Mas estas manifestações de

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teriam procurado refundir essa tradição, mas apenas melhorá-la. espírito crítico não constituem um aparelho de provas e de vatian-

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De resto, para os períodos em relação aos quais dispunham de docu- tes que suportaria todo o seu texto, à maneira do aparelho de refe-
mentos, não os utilizaram, ou, se o fizeram, utilizaram-nos muito rências que ocupa os todapés de todas as nossas páginas de
menos do que nós o faríamos e de modo totalmente diferente. história: são unicamente pontos desesperados ou duvidosos, por-
Tito Lívio e Dinis de Halicarnasso contatam, pois, imper- menotes suspeitos. O historiador antigo acredita em primeiro lugar,
turbavelmente os quatro séculos obscuros da primitiva história e só duvida dos pormenores em que não pode mesmo acreditar.
de Roma, reunindo tudo o que haviam afirmado os seus predeces- Acontece também que um historiador cite um documento,
sores, sem perguntarem a si próprios: «será verdade?», mas limi- o transcreva ou descreva algum objecto arqueológico. Fá-lo pata

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tando-se a excluir os pormenores que lhes pareceram falsos ou, acrescentar um pormenor à tradição, ou então pata ilustrar a sua
sobretudo, inverosímeis e fabulosos; presumiam que o predeces- narrativa e abrir um parêntese por amizade para com o leitor.
sor dizia a verdade. Este predecessor podia muito bem ser vários Numa página do seu livro IV, Tito Lívio faz as duas coisas ao

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mesmo tempo. Interroga-se se Cornelius Cossus, que matou em

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séculos posterior aos acontecimentos que contava. Dinis ou Tito

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Lívio nunca fizeram a si próprios esta pergunta, que nos parece tão combate singular o tei etrusco de Veios, era tribuno, como afirmavam

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simples: «Mas, afinal, como é que ele sabe isto?» Suporiam que esse todas as suas autoridades, ou se era cônsul, e opta pela segunda
predecessor tivera predecessores, o primeiro dos quais teria sido solução, porque a inscrição colocada sobre a couraça desse rei,
contemporâneo dos próprios acontecimentos? De modo nenhum; que Cossus vencedor consagrou num templo, o diz cônsul: «Bu
sabiam pertinentemente que os mais antigos historiadores de Roma próprio ouvi», escreve, «dizer a Augusto, que fundou ou restaurou
haviam sido quatro séculos postetiores a Rómulo e, de resto, pouco todos os templos, que ao penetrar nesse santuário em ruínas lera a
se preocupavam com isso: a tradição era aquela e ela eta a verdade, palavra cônsul escrita sobre a couraça do rei; então, eu achatia
simplesmente. Se tivessem sabido como se formara essa tradição quase sacrílego tirar a Cossus e ao seu troféu o testemunho do pró-
ptimeira entre os primeiros historiadores de Roma, que fontes, que prio imperador». Tito Lívio não procurou documentos: encon-
lendas e que recordações eles haviam fundido no seu cadinho, teriam trou um por acaso, ou antes, recebeu o testemunho do imperador
visto nela apenas a pré-história da tradição: não a teriam consi- sobre o assunto, e esse documento é menos uma fonte de conhe-
cimento do que uma curiosidade arqueológica e uma relíquia, em

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derado como um texto mais autêntico; os materiais de uma tra-
dição não são a própria tradição. Esta apresenta-se sempre como que o prestígio do soberano se acrescenta ao de um herói do
um texto, uma narrativa que faz autoridade: a história nasce passado. Muitas vezes, os historiadores de outrora, e ainda de hoje,
como tradição e não se elabora a partir de fontes; vimos que, citam assim monumentos sempre visíveis do passado, menos como
segundo Pausânias, a recordação de uma época está definitivamente provas do que dizem do que como ilustrações, cujo papel é mais
perdida se aqueles que se abeiram dos grandes descuram o relato receberem luz e brilho da história do que esclarecerem a própria
da história do seu período; no prefácio da sua Guerra dos Judens, história. -
Josefo considera que o historiador mais louvável é aquele que faz Visto que um historiador é uma autoridade para os seus

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o relato dos acontecimentos do seu tempo para uso da posteri- sucessores, acontecerá muitas vezes que os seus sucessores O
dade. Por que é que escrever uma história contemporânea consti- critiquem. Não que tenham refeito o seu trabalho pela base:
tuía maior mérito do que escrever uma história dos séculos pas- mas encontraram-lhe defeitos e rectificam-nos; não reconsttoem, mas

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sados? Pelo seguinte: o passado tem já os seus historiadores, ao corrigem. Ou então desancam-no; porque o levantamento dos erros
passo que a época contemporânea espera que um historiador se pode ser um processo de tendência com base numa amostragem.

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torne fonte histórica e estabeleça a tradição; como se vê, um historia- Em suma, não se critica uma interpretação de conjunto ou de
dor antigo não utiliza as fontes e documentos: é ele próprio fonte pormenor, mas pode empreender-se a demolição de uma reputação,

20 21
mirar uma autoridade imetecida;

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a narrativa

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oto mere- de Heród

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Timeu; não discute com base em documentos, salvo num caso

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§'§r §,irs'gÊ.§r;Hsilç;§x
cerá ser tida como uma autotidade, ou
não passará Heródoto de (a fundação de Locros), em que Políbio, por acaso, pisou os mes os
um mentiroso? Em sede de autoridade,
de tradição, é como em trilhos de Timeu. Um bom historiador, diz Tucídides, vão aco
sede de ortodoxia: é tudo ou nada.
Um historiador não cita as suas autoridades cegamente todas as tradições que lhe telatam*: deve saber ver

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porque ele próprio ficar a informação, como dizem os nossos repórteres. a aos
se sente uma autoridade em potência. Gosta

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ríamos de saber de Só que o historiador não porá todo este estendal diante o
onde é que Políbio sabe tudo aquilo que sabe, Gostatíamo
mais de o saber sempre que a sua narrativa oua s ainda olhos dos seus leitores. Fá-lo-á tanto menos quanto mais exigen e
de Tucídides atingem for consigo próprio; Heródoto compraz-se a relatar 's a crentes
uma beleza estilizada e parecem mais verdadeiras
do que o verdadeiro tradições contraditórias que conseguiu recolher; Tuci ides, S e
Porque se conformam com qualquer racionalidade políti
gÉgffigÉgrgFsffig§ffàigffffiffffffiá
tégica. Quando um texto é uma vulgata, é
O Seu autor escreveu materialmente com
ca ou estra-
tentador confundir o que
quase nunca o faz: relata apenas a que considera boas; assume
suas responsabilidades. Quando afirma categoricamente que, o é te
o que deveria ter escrito nienses estão enganados no que se refere ao assassínio de E s
para ser digno de si próprio; quando uma histór
ia é uma vulgata, e fornece a versão que considera verdadeiraó, limita-se a afirmar;
distingue-se mal o que se passou efectivamente do que não pôde não fornece nenhum começo de prova; aliás, não se vê como
deixar de se passar, em nome da verdade
todo o acon- das coisas; poderia ter fornecido aos seus leitores meios para verificarem o que
tecimento se conforma com o seu tipo e é por
isso que a história
§f$§ff ʧí§l;§
dos século s obscuros de Roma se encontra recheada de
narrativas e historiadores modernos propõem uma interpretação dos
muito pormenorizadas, cujos pormenores estão para
a realidade como factos e dão ao leitor os meios para verificarem as informações e
as restaurações à Viollet-le-Duc estão para
a autenticidade. Seme- formularem outta interpretação; os historiadores antigos, esses»
lhante concepção da reconstituição histórica
oferecia aos falsários, verificam eles próprios e não deixam esse trabalho ao tor: é farei A
como veremos, facilidades que a historiografia
universitária deixou sua. Distinguiam muito bem, diga-se o que se disser, a on e E
de lhes oferec
er.
Se nos é permitido fazer uma suposição
acerca do lugar de
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i mária (testemunho visual ou, na sua falta, tradição) e o on s de
segunda mão, mas guardavam esses pormenores pata si. orque eu

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nascimento deste programa de verdade em
que a história é uma leitor não era ele próprio historiador, do mesmo mo o que S
Eg.;:
vulgata, acreditaremos que o respeito dos historiadores antigos
tradição pela leitores de jornais não são jornalistas: aquele e estes confiam no pro
que lhes transmitem os seus predecessores
m de, prové

na Grécia, a história ter nascido, não da contro


vétsia, como entre dido e porque é que a relação do historiador com os seus
nós, mas da investigação (é justamente este
O sentido da palavra leitores mudou? Quando e porque é que se começou a dar refe-
grega historia). Quando se investiga (quer se
seja viajante, geógrafo, rências? Não sou grande especialista em história moderna, mas
etnógrafo ou repórter), apenas se pode dizer:
eis o que observei, alguns pormenores surpreenderam-me. Gassendi não dá re crén-
â:t

eis o que me disseram nos meios geral


mente bem informados; cias no seu Syutagma philosophie Epicurea; patafraseia ou pe
seria, inútil acrescentar a lista dos informador
es: quem iria veri- funda Cícero, Hermarco, Orígenes, sem que o leitor possa a er
ficar? Do mesmo modo, não é pelo seu respeito
pelas fontes que se
eííÍ*§

julga um jornalista, mas por crítica interna, ou se lhe apresentam o pensamento do próprio Epicuro ou o de Cas
ainda por algum sendi; é que este último não faz erudição, mas pretende res eita
pormenor em que, por acaso, o apanharmos
em flagrante delito o epicurismo na sua verdade eterna, bem como a seita epicu ,
de erro ou de parcialidade. As linhas espant
osas de Estienne Pas- Na sua História das variações das Ierejas protestantes, Bossuet, em con
quier já não teriam nada de espantoso se fossem
aplicadas a um dos trapartida, dá as suas referências, e Jurieu dá-las-á também nas suas
nossos repórteres e poderíamos divertir-nos
a desenvolver a analo- réplicas; mas trata-se de obras de controvérsia. de cias as suas
gia entre os historiadores antigos e a deontologi
a ou a metodologia Esta palavra é a chave da questão:o hábito e ci a ouas
n§}ãlÊ?

da profissão de jornalista. Entte nós, um


repórter não acrescentaria autoridades, a anotação científica, não foi uma invenção dos histo
nada à sua credibilidade se precisasse inutilmente à identi
seus informadores; julgamos do seu valor por dade dos
critérios internos:
basta-nos lê-lo para saber se é inteligente, imparc
ial, preciso, pos-
suidor de
uma sólida cultura geral; é precisamente 4 Tucídides, I, 20-22. no

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deste modo

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que Políbio, no seu livro XII, julga e condena

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s Momigliano, Srudies in Historiography, p. 214.

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tiadores, antes provém das controvérsias teológicas e
da prática Se um historiador desse a ler, à comunidade científica, factos

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jurídica, em que se alegava a Escritura, as Pandectas
ou as provas ou lendas em que ele próprio não acreditasse, atentaria contra a

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do processo; na Summa contra Gentiles, São Tomás não
remete para probidade da ciência. Os historiadores antigos têm, senão uma ideia
as passagens de Aristóteles, pois assume a responsabilidade de as
reinterpretar e tem-nas como a própria diferente da probidade, pelo menos leitores diferentes, que não são
verdade, que é anónima; profissionais e que compõem um público tão heterogéneo como o
em compensação, cita a Escritura, que é Revelação e não verdade de um jornal; é por isso que têm um direito e mesmo um
da anônima razão. No seu admirável comentário do Código de
de Teodósio, em 1695, Godefroy dá as suas referências: dever de reserva e que dispõem de uma margem de manobra.
este histo- A verdade autêntica não se exprime pela sua boca; é ao leitor que
tiador do direito, como dizemos hoje, considerava-se a si próprio cabe formar uma ideia dessa verdade; eis uma das numerosas

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um jurista c não um historiador. Em suma, a anotação científica tem particularidades pouco visíveis que revelam que, apesar de grandes

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uma origem chicaneira e polémica: atiraram as provas à cabeça semelhanças, o género histórico, entre os Antigos, é muito diferente
uns dos outros, antes de as partilharem com os outros
membros do dos modernos. O público dos historiadotes antigos é compósito;
da «comunidade científica». A grande razão disto
é a ascensão da certos leitores procuram um divertimento, outros lêem a história
Universidade, com o seu monopólio cada vez mais
exclusivo sobre com uím olho mais crítico, alguns são mesmo profissionais da polí-
a actividade intelectual. A causa é económica e social:
já não há tica ou da estratégia. Cada historiador faz a sua escolha: escrever
proprietários fundiários, que vivem no ócio, como Montai
gne ou para todos, agradando às diversas categorias de leitores, ou espe-
Montesquieu, e também já não é honroso viver na depend
ência cializar-se, como Tucídides e Políbio, na informação tecnicamente
de um Grande, em vez de trabalhar.
segura, que proporcionará dados sempre utilizáveis aos políticos e

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Ora, na Universidade, um historiador já não escreve
para sim- aos militares. Mas a escolha era possível: além disso, a heterogenei-
ples leitores, como fazem os jornalistas ou os «escrit
ores» mas para dade do público deixava uma certa margem ao historiador; podia
Os outros historiadores, seus colegas; o que não era o caso dos apresentar a verdade sob cores mais cruas ou mais edulcoradas, à sua
historiadores da Antiguidade. É por isso que estes
têm, perante vontade, sem por isso a trair. Não há, por isso, motivo para espanto
O rigor científico, uma atitude aparentemente laxista
que nos sut- ou para escândalo na carta, muito comentada pelos modernos, em
preende ou nos choca. Chegado ao oitavo dos dez livros
que for- que Cicero pede a Lucceius «para exaltar as acções do seu consu-
mam a sua grande obra, Pausânias escreve, a dado moment
o: «No lado» mais do que provavelmente ele o teria feito e para «não fazer
princípio das minhas investigações, não via mais do que
tola cre- demasiado caso da lei do género histórico»; simples questão de
dulidade nos nossos mitos; mas, agora que as minhas investigações
incidem sobre a Arcádia, tornei-me mais prudente. Na
camaradagem, que não excede o que se poderia pedir sem dema-
época arcaica siada desonestidade a um jornalista, que terá sempre uma parte do
com efeito, aqueles a que chamamos Sábios exprim
iam-se por seu público por si.
enigmas, e não abertamente, e suponho que as lendas
relativas à Por detrás das aparentes questões de método científico ou de
Cronos sejam um pouco dessa sabedoria». Esta
confissão tardia probidade desenha-se outra, a da relação do historiador com os seus
dá-nos, pois, a saber, retrospectivamente, que Pausânias não acre- leitores. Momigliano estima todavia que, no Baixo-Império, aparece
ditou numa palavra das inúmeras lendas inverosímeis que nos uma nova atitude perante os documentos, que anunciaria o futuro
relatou imperturbavelmente ao longo das seiscentas páginas ante- bom método da história cientificamente praticada: a História Angusta
tiores. Faz-nos pensar noutra confissão não menos tardia, a de e, sobretudo, a História eclesiástica, de Eusébio, dariam provas de
Heródoto no fim do sétimo dos seus nove livros: terão os um new value attached to documents 8. Confesso que estas obras me
Argivos traído a causa grega em 480, aliando-se aos Persas, que
pre- deixaram uma impressão bastante diferente; a História Angusta
tendiam ter o mesmo antepassado mítico que eles, a saber,
Perseu? não cita as suas fontes, transcreve de tempos a tempos, a título de
«Pela minha parte», escreve Heródoto, «o meu
dever é dizer o que peça curiosa e de monumento da Antiguidade, um texto prove-
me disseram, mas não acreditar em tudo, e o que
acabo de declarar
vale para todo o resto da minha obra»7,
Hardt, IV, 1956): em HI, 9, 2, Heródoto relata duas versões, embora pouco

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mente as suas fontes, mas extractos; compila «narrativas parciais», poder até à quarta geração»10. o
como ele próprio o diz nas primeiras linhas da sua história. Encai- Como se vê, Pausânias separou o trigo do joio; extraiu, da

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xar trechos preciosos e poupar-se ao trabalho de redigir a história lenda de Teseu, o núcleo autêntico. Como é que o extratu? Por

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tecopiando os seus predecessores: longe de testemunhar uma ati- meio daquilo a que chamaremos a doutrina das coisas actuais: o
tude nova, Eusébio confitma «a objectividade absoluta», de acordo passado é semelhante ao presente ou, se preferirem, o maravilhoso

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com uma frase de Renanº, com que a Antiguidade tardia conside- não existe; ora, nos nossso dias, não se vêem homens com cabeça
tava o livro de história. O método dos extractos maciços é já o de de touro e existem reis; logo, o Minotauro nunca existiu e Teseu,

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Porfírio (que nos conservou assim textos de Teofrasto ou de Her- esse, foi muito simplesmente um rei. De facto, Pausânias não duvida

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marco) e Eusébio recorre a ele também na sua Preparação evangélica da historicidade de Teseu, e Atistóteles11, cinco séculos antes dele,

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(o que nos permite ler ainda Oinomaos, o Cínico, ou Diogeniano, o também não duvidava. Antes de ter tomado a atitude crítica que
Peripatético). reduz o mito ao verosímil, a atitude do grego médio era diferente:
Apagar-se perante a objectividade: antes da idade da contto- conforme a sua disposição, ora encarava a mitologia como contos

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vétsia, com efeito, e antes da idade de Nietzsche e de Max Weber, de velhinha ingénua ora tinha, perante o maravilhoso longínquo,

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os factos existem. O historiador não tem nem que interpretar (visto uma atitude tal que a questão da historidcidade ou da ficção não
que os factos existem), nem que provar (visto que os factos não fazia sentido.
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são objecto de uma controvérsia); basta-lhe relatar os factos, quer A atitude crítica, a de Pausânias, de Aristóteles e mesmo de

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como «repórter», quer como compilador, Não ptecisa para isso de Heródoto!2, consiste em ver no mito uma tradição oral, uma fonte
dons intelectuais vertiginosos; basta-lhe possuir três virtudes, que histórica, que é preciso criticar; é um excelente método, mas que

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são as de todo o bom jornalista: diligência, competência e impar- criou um falso problema de que os Antigos não conseguitam ver-se
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cialidade. Deverá informar-se diligentemente nos livros, junto de livtes em mil anos; foi preciso uma mutação histórica, o cristianismo,
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testemunhas, se ainda as houver, ou tecolhendo tradições, «mitos»; para lho fazer, não resolver, mas esquecer. Essa problemática era
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a sua competência nas matérias políticas, tais como a estratégia, a a seguinte: a tradição mítica transmite um núcleo autêntico que,

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geografia, permitir-lhe-á compreender as acções dos homens públi- ao longo dos séculos, se foi rodeando de lendas; só estas lendas é
cos e criticar a sua informação; a sua imparcialidade fará que não que põem problemas, mas não o núcleo. Foi a propósito destas

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minta por comissão ou omissão. O seu trabalho e as suas virtudes
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fazem que o historiador acabe por saber a verdade sobre o pas-


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sado, ao contrário da multidão; porque, diz Pausânias, «contam-se
muitas coisas não verdadeiras na multidão, que não compreende nada 10 Pausânias, 1, 3, 3. . .

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11 Com efeito, tal como Tucídides (II, 15), Aristóteles também não

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nos coros e nas tragédias. É o que acontece acerca de Teseu, por

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(Constituição de Atenas, XLI, 2) e seduz à verosimilhança o mito das crianças


atenienses deportadas pata Creta e entregues ao Minotauro (Constituição dos
Boieenses, citada por Plutarco, Vida de Teseu, 16, 2); quanto ao Minotauro, o
historiador Filócoro, mais de quatro séculos antes de Pausânias, teduzia-o tam-
9º Quanto à frase de Renan, cf. nota 1 do cap. «Quando a verdade histó- bém à verosimilhança, pretendendo ter recolhido uma tradição (oral ou trans-
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sabe; mas trata-se do pasticbe do gosto de toda a Antiguidade helenística não devotadas pelo Minotauro, mas dadas como ptémio aos atletas vencedo-
e somana pelas colecções de cutiosidades de toda a espécie, Do mesmo modo, res de um concurso gímnico; este concurso foi ganho por um homem cruel

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Suetônio ou Diógenes Laércio citam cartas de Augusto ou testamentos de e muito vigoroso, que se chamava Touto (citado por Plutarco, 16, 1). Como

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filósofos não para estabelecerem os factos, mas como peças curiosas e raras; este Touro comandava o exército de Minos, eta, de facto, o Touro de Minos,
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o documento é aqui um fim em si e não um meio; estes autores não tiram ou Minotauro,
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nenhuma conclusão nem qualquer argumento das peças que citam, as quais 12 Heródoto, III, 122: «Polícrates foi, dos Gregos que conhecemos, o
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não são, de modo algum, «peças justificativas», Sobre o modo de citar de Por- primeiro a ter pensado na soberania marítima, com excepção de Minos de Cnossos
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fírio no De Abstimentia, cf. W. Potscher, Theopbrastos, Peri Ensebeias, Leyde, e dos outros, se os houve, que antes deste reinatam no mar; mas, na época das
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Brill, 1964, p. 12 e 120; cf, Diodoro, II, 55-60, que cita “ou transcreve Iâmbulo, gerações a que chamamos humanas, Polícrates foi o primeiro». Já na Jíada,
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Cf, também P. Hadot, Porphyre es Victorinus, Paris, Études Augustiniennes, aquilo a que chamámos racionalismo homérico limita a intervenção dos deuses
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1968, vol, 1, p. 33. nos negócios humanos às gerações míticas.

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adjunções lendárias, e só delas, que o pensamento de Pausânias evo-

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mito assemelha-se não menos falsamente à nossa; saudamos na

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lenda uma história engrandecida pelo «génio popular»; para nós,

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um determinado mito será o engrandecimento épico de um grande

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dadeiros, visto que não têm nada de maravilhoso, tais como o nome PLURALIDADE E ANALOGIA

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insistir: se professaizmos que as lendas transmitem, muitas vezes,
recordações colectivas, acreditaremos na historicidade da guerra de
De facto, a mitologia grega, cuja ligação com a religião era das

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ocasião de verificar que o sentimento da verdade é muito amplo

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(engloba facilmente o mito), mas também que «verdade» quer dizer

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muitas coisas... chegando a englobar a literatura de ficção.

1 M, Nilsson, Geschichte der griech. Religion, 2.» ed., vol. I, p. 14 € 371;

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A, D. Nock, Essays on Religion and the Ancient World, Oxford, Clarendon ires
1972, vol. 1, p. 261. Nem sequer tenho a certeza de que se devam consi crar
separadamente os mitos etiológicos; há muito poucos mitos gregos que expli-
quem ritos e os que o fazem devem-se menos à invenção de sacerdotes que pre-
tendem fundar um rito do que à imaginação de engenhosos espíritos locais
que inventaram uma explicação romanesca para esta ou aquela particularidade de
13 Pausânias, VHI, 8, 3; para os Gregos não existe problema do mito, culto que intrigava os viajantes; o mito explica o rito, mas este rito não passa
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contadas pelos Helenos: fr. 1 Jacoby); cf. no próprio Pausânias, HI, 25, 5, dizer, os da mitologia; e os dos filósofos, continua a ser fundamental (P. Boyancé,
a crítica do mito de Cérbeto por Fecateu. Ésudes sur la religion romaine, Bcole française de Rome, 1972, p. 254). Quanto às
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14 H. Hitzig, «Zur Pausaniasfrage», em Festschrift des philologischen Kránz- relações entre o mito, a soberania e a genealogia na época arcaica, à questão
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chens in Ztirich zm der in Ziúrich im Herbst 1887 tagenden 30. Versamnlung dentscher foi renovada por J. P. Vermant, Les Origines de la pensée grecqne, Paris, Eu
“,
Philologen ud Scbulmánmer, p. 57. 1962, e Mythe et Pensée chez les Grecs, Patis, Maspero, 1965; e por M. 1. Fin
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15 Eis um exemplo. Newton verifica que os sete reis de Roma reinaram, «Myth, Memory and History», em Flistory and Theory, IV, 1965, p. 281-302;
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ao todo, 244 anos e apercebe-se de que uma tão longa duração de reinos não tratamos muito superficialmente deste pensamento mítico, porque o nosso
tem par na história universal, em que a duração média de um reino é de 17 anos; tema é a sua transformação na época helenístico-romana, mas afitmamos aqui
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poderia ter concluído daí que a cronologia da Roma real era lendária; mas con- a nossa concordância com a doutrina da historicidade da razão em J. P. Vernant,

Iii §
clui simplesmente que ela é falsa, redu-la a sete vezes dezassete e reporta, conse- Jul istoires, Raisons, Patis, Payot, 1979, P. 97.
quentemente, a data da fundação de Roma a 630 antes da nossa era. Cf, Isaac er exemplo entre mil, mas muito bonito: Pausânias, VII, 23; sobre
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Newton, La Chronologie des anciens royaumes, traduite de 'anglois, Paris, 1728. os eruditos locais, W. Kroll, Siudien qum Verstândnis..., 308.

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foi inventada por um contador desconhecido e, mais recentemente, lado desse horizonte de tempo, num outro mundo. É este o mundo

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por um desses inúmeros eruditos locais que Pausânias leu e a que mítico em cuja existência os pensadores, de Tucídides ou Hecateu

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chama exegetas. Cada um destes autores ou contadores conhecia a Pausânias ou Santo Agostinhos, continuarão a acreditar; só que

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as produções dos seus colegas, visto que as diferentes lendas têm deixarão de o ver como um outro mundo e quetrerão reduzi-lo às

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sofrem contradições demasiado sensíveis. Toda esta literatura que
se ignorava faz lembrar uma outra: as vidas de mártites ou de santos

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locais, da época merovíngia à Lenda dourada; A. van Gennep 5 Santo Agostinho não duvida da historicidade de Ebeias; mas, como o
mostrou que estas hagiografias apócrifas, cuja falsidade os Bolan- mito é reduzido à verosimilhança, Eneias não é mais filho de Vénus do que
distas tiveram dificuldade em provar, eram na realidade uma Rómulo de Marte (Cidade de Deus, 1, 4 e IH, 2-6), Veremos que Cícero, Tito
literatura de sabor muito popular: princesas raptadas, horrorosa- Lívio e Dinis de Halicarnasso também não acreditavam no nascimento divino
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de Rómulo. .
mente tortutadas ou salvas por santos cavaleiros; snobismo, sexo, 6 A pluralidade das modalidades de crença é um facto demasiado banal para
sadismo, aventura. O povo encantava-se com estas narrativas, que se torne útil insistir. Cf. Piaget, La Formation du symbole chez Penfant, Patis,
a arte ilustrava-as e uma vasta literatura em verso e em prosa reto- Delachaux et Niestlé, 1939, p. 177; Alfred Schutz, Collected Papers, Haia, Nijhoff,
mava-as 3. col. «Phaenomelogica» 1960-1966, vol. 1, p. 232: «On multiple realities»; vol, 2,
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p. 135: «Dom Quixote and the problem of reality»; Pierre Janet, De Pangoisse
Estes mundos de lenda eram tidos por verdadeiros, no sentido à Pextase, Paris, Alcan, 1926, vol I, p. 244. Não é menos banal acreditar-se simul-
em que não se duvidava deles, mas não se acreditava neles como se taneamente em verdades diferentes acerca do mesmo objecto; as crianças sabem,
acredita nas realidades que nos rodeiam. Para o povo dos fiéis, as ao mesmo tempo, que os bringuedos são trazidos pelo Pai Natal e dados pelos
pais. J. Piaget, Le Jugement et le Raisonnement chez Penfant, Paris, Delachaux et
vidas de mártires, recheadas de maravilhoso, situavam-se num pas-
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Niestlé, 1945, p. 217, cf. 325: «Na criança, há várias realidades heterogéneas:
sado intemporal, de que apenas se sabia que era anterior, exterior o jogo, o real observável, o mundo das coisas ouvidas e contadas, etc.; estas
e heterogéneo ao tempo actual; era «o tempo dos pagãos». O mesmo realidades são mais ou menos incoerentes e independentes umas das outras.
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acontecia com os mitos gregos; passavam-se «antes», durante as

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sendo assim, quando a criança passa do estado de trabalho ao estado de jogo,
gerações heróicas, em que os deuses ou do estado de submissão à palavra adulta ao estado de exame pessoal, as suas
ainda se misturavam com os opiniões podem variar singularmente». M. Nilsson, Geschichte der griech. Reli-
humanos. O tempo e o espaço da mitologia eram secretamente hete- gion, vol, 1, p. 50: «Uma criança de treze anos que estava a tomar banho num
rogéneos aos nossost; um grego situava os deuses «no céu», mas riacho cheio de pequenas ondas dizia: “O riacho está a franzir as sobrancelhas”;
ficaria estupefacto se os visse no céu; ficaria não menos estupefacto se esta expressão fosse tomada à letra, seria um mito; mas a criança sabia pet-
se o tomassem à letra, a propósito do tempo, e lhe dissessem que feitamente, 20 mesmo tempo, que o riacho era água, que podia beber-se, etc.
Da mesma maneita, um primitivo pode ver almas pot todo o lado na natureza,
Hefesto acabava de voltar a casar ou que Atena envelhecera muito pode situar numa árvore qualquer força sensível e actuante que deverá apaziguar
nos últimos tempos. «Compreenderia» então que, aos seus próprios ou venerar; mas, noutra ocasião, não deixará de cortar essa árvore pata a trans-
olhos, o tempo mítico não tinha mais do que uma vaga analogia formar em matetiais de construção ou em combustível». Cf, também Max Weber,
com a temporalidade quotidiana, mas também que uma espécie Wirtschaft und Geselischaft, Tubinga, Mohr, 1976, vol, E, p. 245. Wolfgang Leo-
natd, Die Revolution entlisst ibre Kinder, Francoforte, Ullstein Bucher, 1955,
de letargia sempre o impedira de se aperceber dessa heterogenei- p. 58 (o autor tem dezanove anos e é koyssomol no momento da Grande Purga de
dade. A analogia entre esses mundos temporais camuflava a sua 1937): «Minha mãe fora presa, eu assistita à prisão dos meus professores e dos
pluralidade secreta. Não é óbvio que se pense que a humanidade meus amigos e, é claro, há muito que repatrata que a realidade soviética não se
tem um passado, conhecido ou desconhecido; não distinguimos o patecia, de modo algum, com a sua representação na Pravda. Mas, de certa
maneira, separava as coisas, bem como as minhas expressões e experiências
limite dos séculos de que conservámos a memória, do mesmo pessoais, das minhas convicções políticas de princípio. Era um pouco como
modo que não discernimos a linha que limita o campo visual; para se existissem dois planos: o dos acontecimentos quotidianos ou da minha pró-
além desse horizonte, não vemos estenderem-se séculos obscuros ; ptia experiência (sobre o qual não eta rato dar provas de espírito crítico) e um
deixamos de ver, e é tudo. As gerações heróicas situavam-se do outro outto plano, o da Linha Geral do Partido, que continuava, apesar de um certo
mal-estar, a considerar justa, “pelo menos no fundamenta, Creio que muitos
komsomols conhecem este corte». Não parece, pois, de modo nenhum que se
tenha tomado o mito pot história, que se tenha abolido a diferença entre lenda
3 A. van Gennep, Religions, Menrs et Légendes, Patis, 1911, vol. II, p. 150; e história, ao contrário do que diz E. Kohler, 1” Aventure chevaleresque: idéal
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4 Cf. Veyne, Le Pain et le Cirque, Patis, Seuil, 1976, p. 589. nas mesmas condições que na história; as crianças também não exigem aos
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para lá do horizonte da memória colectiva, um mundo ainda mais o merecer, até ao seu mundo, tratando-o como igual e falando-lhe
belo do que o dos bons velhos tempos, demasiado belo para ser desse mundo mítico que será, daí em diante, o seu, graças a Píndaro

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empírico; esse mundo mítico não era empírico, era nobre. Não que nele o introduz. Não há necessariamente qualquer relação

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quer dizer que tenha encarnado ou simplificado os «valores»; não nos estreita entre a personalidade do vencedor e as questões de que o
parece que as gerações heróicas tenham cultivado mais as virtudes poeta lhe fala; não é pata Píndaro um ponto de honta fazer com
do que os homens de hoje; mas tinham mais «valor» do que estes; que o mito contenha sempre uma alusão delicada à pessoa do ven-
um herói é mais do que um homem, tal como aos olhos de Proust cedor; o importante é que ele trate o vencedor como um par,
uma duquesa tem mais valor do que uma burguesa. falando-lhe familiarmente desse mundo mítico.

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Deste snobismo (se nos é permitido recorrer ao humor para No nosso século, a inclinação natural é explicar sociologica-

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sermos mais breves), Píndaro será um bom exemplo. O problema
§ 3 §l mente as produções do espírito; perante uma obra, interrogamo-

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é conhecido: que é que faz a unidade, se é que há unidade, -nos: «Que é que ela estava destinada a trazer à sociedade?» É ser
das epinikia de Píndaro? Por que é que o poeta contatá ao ven- demasiado expeditivo. Não se deve reduzir a explicação da litera-
cedor este ou aquele mito, cuja relação com o sujeito não é visí- tura, ou a sua hermenêutica, a uma sociologia da literatura. Em
vel? Será um real capricho do pocta? Ou não será o atleta um Paideia, Werner Jaeger parece-nos ter confundido as instâncias.
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mero pretexto que permite a Píndaro exprimir pontos de vista que Segundo ele, quando a aristocracia helénica travou os seus últimos
lhe são caros? Ou ainda: será o mito uma alegoria que faz alusão combates, encontrou em Píndato um poeta que foi o seu poeta e
a alguma particularidade da biografia do vencedor ou dos seus conseguiu satisfazer, graças a ele, uma necessidade social; com efeito,
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antepassados? À explicação acertada foi dada por H. Frankel: essa classe aristocrática de guerreiros via-se, segundo jaeger, ele-
Píndaro eleva o vencedor e a sua vitória ao mundo superior que é vada, com os seus valores, ao mundo do mito; os heróis teriam,
o do poeta”; de facto,

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Píindaro, como poeta, é familiar do pois, sido outros tantos modelos pata esses guerreiros; Píndaro
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teria feito o elogio dos heróis míticos para exaltar o coração dos
seus nobres ouvintes; nos seus versos, o mundo mítico seria a
seus pais o dom da levitação, da ubiquidade e da invisibilidade que atribuem
imagem sublimada dessa aristocracia.
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ao Pai Natal. Crianças, primitivos e crentes de toda a espécie não são ingénuos.
«Nem os primitivos confundem uma relação imaginária com uma relação real» mito não serve, de modo algum, em Píndaro, para exaltar a atisto-
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(Evans Pritchard, La Religion des primitifs, Patis, Payot, col. «Petite Bibliothêque cracia, mas sim pata realçar a posição do poeta em relação aos
Payot», p. 49); «O simbolismo dos Huichol admite a identidade entre o trigo
e o veado; o st. Lévy-Bruhl não quer que se fale aqui de símbolo, mas antes
seus interlocutores; como poeta, ele digna-se elevar até si o ven-
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pensamento pré-lógico, Mas a lógica do Huichol só seria ptré-lógica no dia em cedor cujo elogio faz, não é este que se eleva a si próprio. O mito,
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que ele preparasse uma papa de trigo pensando estar a fazer um guisado de em Píndaro, não preenche uma função social, não tem por con-
veado» (Olivier Letoy, La Raison primitive, Paris, Geuthner, 1927, p. 70). «Os teúdo uma mensagem; desempenha aquilo a que a semiótica chama,
Sedang Moi da Indochina, que instituítam meios que permitem ao homem desde há pouco tempo, um papel pragmático: estabelece uma certa
renunciar ao seu estatuto de ser humano e tornar-se javali, reagem, todavia,
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de forma diferente, consoante se encontrem perante um javali autêntico ou perante relação entre os ouvintes e o próprio poeta. À literatura não se
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um javali nominal» (G. Devereux, Etbnopsychanalyse complémentariste, Paris,


Flammation, 1972, p. 101); «Apesar das tradições verbais, raramente se toma
um mito no mesmo sentido em que se tomaria uma verdade empírica; todas as
doutrinas que floresceram no mundo acerca da imortalidade da alma pouco «mundo dos valores»? Mas não se vê que deuses e heróis sejam santos; eles vene-

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ou nada afectaram o sentimento natural do homem perante a morte» (G. San- ram os valores tal como o fazem os próprios mortais distintos, nem mais nem
tayana, The Life of Reason, HI, Reason in Religion, Nova Iorque, 1905, p. 52). menos. Aqui, uma vez mais, não menosprezemos o «snobismo» mitológico: o

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Múltiplas são, pois, as maneiras de acreditar ou, para dizer melhor, os regimes mundo dos heróis tem valor, é mais elevado que o dos mortais, Da mesma maneira,
de vetdade de um mesmo objecto. para Proust, uma duquesa é mais elevada que uma burguesa, não por cultivar

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7 Hermann Frankel, Wege und Formen friibgriech. Denkens, 2.º ed., Munique, todos os valores e todas as virtudes, mas sim por ser duquesa. E claro que, como
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Beck, 1960, p. 366. Ao falar-lhe do belo mundo dos heróis, Píndaro venera duquesa e porque duquesa, ela terá distinção moral e cultivá-lo-á, mas por via
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mais o vencedor do que se pronunciasse o seu elogio; ser recebido pelos Guer- de conseguência, É por essência e não pelos seus méritos, que o mundo heróico

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mantes é mais lisonjeito que receber elogios; é por isso, diz Frankel, que «a tem mais valor do que o mundo mortal. Se se achar que a palavra snobismo,
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imagem do vencedor é, muitas vezes, mais vaga que a dos heróis». Deveremos mesmo dita cum grano salis, é demasiado forte para Píndaro e para os seus vence-

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pot isso dizer, com o mesmo Frankel (Dichtung und Pbhilosophie des friiben Griechen- dores, releia-se um divertido passo do Lisis de Platão, 205 CD, que mereceria

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tums, Munique, Beck, 1962, p. 557), que esse mundo heróico e divino é um ser usado como epígrafe de todas as edições de Píndaro,

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reduz a uma relação de causa ou efeito com a sociedade, nem a do catálogo dos vasos de guerra e o conto galante, digno de Boccac-

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língua se reduz a um código e a informação; ela comporta também cio, dos amores de Vénus e Marte, surpreendidos na cama pelo mari-
uma ilocução, quer dizer, o estabelecimento de diversas relações do? Se acreditavam realmente na fábula, sabiam, ao menos, distin-
específicas com o interlocutor; prometer ou ordenar são atitudes guir a fábula da ficção? Mas, precisamente, seria necessário saber
irredutíveis ao conteúdo da mensagem; não consistem em informar se a literatura ou a religião serão mais ficções do que a história ou
de uma promessa ou de uma ordem, À literatura não reside por a física, e inversamente; digamos que uma obra de arte é, à sua
inteiro no seu conteúdo; quando Píndaro entoa o elogio dos heróis, maneira, tida por verdadeira, mesmo quando passa por uma ficção;
não fornece aos seus ouvintes uma mensagem relativa aos seus porque a verdade é uma palavra homónima que só deveria empre-
valores e a eles próprios; estabelece com eles uma certa relação gar-se no plural; apenas existem programas heterogéneos de vet-
em que ele próprio, poeta a quem os mitos são abertos, ocupa uma dade, e Fustel de Coulanges não é nem mais nem menos verdadeito
posição dominante. Píndaro fala de cima para baixo, é precisa- do que Homero, embora o seja diferentemente. Só que acontece
mente por isso que pode atribuir elogios, honrar um vencedor, com a verdade o mesmo que com o Ser, segundo Aristóteles: ela é
elevá-lo até si. O mito instaura uma elocução do elogio. homónima e analógica, pois todas as verdades nos parecem análo-
Longe de assimilar a aristocracia às figuras heróicas do mito, gas entre si, de tal modo que Racine nos parece ter pintado a ver-
Pindaro separa, pelo contrário, vigorosamente o mundo mítico dade do coração humano.
do dos mortais; ele não se cansa de recordar aos seus nobres ouvin- Partamos do facto de que todas as lendas, guerra de Tróia,
tes que os homens valem muito menos do que os deuses e que é pre- Tebaida ou expedição dos Argonautas, passavam por globalmente
ciso ser modesto; não seria possível, sem Aybris, igualar-se aos deuses. autênticas; um ouvinte da Ilíada estava, pois, na posição em que
Releia-se a décima Pítica; dará Píndaro o herói Perseu como está entre nós um leitor de história romanceada. Esta última reco-
modelo ao guerreiro de que faz o elogio? Não senhor. Ele fala de nhece-se pelo facto de os seus autores porem em cena os factos
lendas espantosas, de um povo longínquo e iancessível, das proezas autênticos que contam; se escreverem sobre os amores de Bonaparte
sobre-humanas de Perseu, que uma deusa ajudou. Mais do que os e Josefina, pô-los-ão em diálogo e colocatão na boca do ditador
seus métitos, o favor dos deuses honta os heróis julgados dignos corso e da sua amada palavras que, à letra, não têm qualquer auten-
do seu apoio, ao passo que incita os mortais sobretudo à modéstia, ticidade; os seus leitores sabem-no, estão-se nas tintas e nem sequer
visto que mesmo os heróis não conseguiriam ser bem sucedidos pensam nisso. O que não quer dizer que esses mesmos leitores
sem a ajuda de uma qualquer divindade. Píndaro aumenta a glória vejam, nesses amores, uma ficção: Bonaparte existiu e amou vet-
do seu vencedor exaltando essoutro mundo mais alto, onde a glória, dadeiramente Josefina; este crédito global basta-lhes, e não vão
é, ela própria, maior. Esse mundo superior será um modelo ou uma descascar o pormenor, o qual, como se diria em exegese neo-testa-
lição de modéstia? Uma coisa ou outra, segundo o uso que um pre- mentária, é apenas «redaccional». Os ouvintes de Homero acre-
gador dele fizesse, e Píndaro, que não é um pregador, faz dele um ditavam na verdade global e não totciam o nariz ao prazer do conto
pedestal; exalta a festa e o vencedor, exaltando-se a si próprio. de Marte e Vénus.
É precisamente porque o mundo mítico é definitivamente outro, Seja como for, a biografia de Napoleão é não só verdadeira
inacessível, diferente e espantoso, que o problema da sua autenti- como verosímil; em contrapartida, dir-se-á, o mundo da Ilada,
cidade permanece em suspenso e que os ouvintes de Pindaro hesi- cuja temporalidade é a dos contos e em que os deuses se misturam
tavam entte o espanto e a credulidade. Não se dão fantasmagorias com os humanos, é um universo de ficção. É certo, mas madame
como exemplo: se Perseu fosse dado como modelo, à maneira de Bovary acreditava verdadeiramente que Nápoles era um mundo
Bayard, esse mundo heterogéneo derunciar-se-ia imediatamente diferente do nosso; a felicidade durava aí, intensamente, vinte e
como pura ficção, e os D. Quixotes seriam os únicos e os últimos quatro horas em vinte e quatro, com a densidade de um em-si
a acreditar nele. sartriano; outros acreditavam que, na China maoísta, os homens e as
Há, pois, um problema que não podemos deixar de equacio- coisas não tinham a mesma humilde quotidianeidade que entre
nar: os Gregos acreditavam nestas efabulações? Mais concreta- nós; tomavam infelizmente essa verdade feérica por programa de
mente, faziam a distinção entre o que tinham por autêntico, histo- verdade político. Um mundo não pode ser fictício em si próprio,
ticidade da guerra de Tróia ou existência de Agamémnon ou de isso depende de se nele acreditamos ou não; entre uma realidade
Júpiter, e invenções evidentes do poeta, desejoso de divertir o seu e uma ficção, a diferença não é objectiva, não está na própria coisa,
público? Escutavam com os mesmos ouvidos as listas geográficas mas sim em nós, se subjectivamente nela vemos ou não uma

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outra particularidade: como
ficção: o objecto nunca é incrível em si próprio e o seu desvio mito tem uma

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em relação «à» realidade não pode chocar-nos, pois nós nem uma narrativa, mas anónima, que se pode recolher e repetir,
racio-
sequer dele nos apercebemos, uma vez que as verdades são todas de que não seria possível ser-se o autor. E que os espíritos

analógicas. nalistas, a partir de Tucídides, interpretarão como uma «tradiçã
como uma recorda ção que os contemp orâneos dos acon-
Einstein é verdadeiro, aos nossos olhos, num certo programa histórica,
assim
de verdade, o da física dedutiva e quantificada; mas, se acredi- tecimentos transmitiram aos seus descendentes. Antes de ser
disfarçado em história, o mito eta outra coisa: consistia, não
tarmos na Ilíada, ela será não menos verdadeira, no seu programa em repetir aquilo que


em comunicar aquilo que se tinha visto, mas
de verdade mítica. E também Alice no País das Maravilhas. De facto, for-
«se dizia» dos deuses e dos heróis. Como é que se reconhecia
mesmo que consideremos Alice ou Racine como ficções, acreditamos facto de o exegeta falar desse mundo
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choramos na nossa cadeira, no teatro. malmente um mito? Pelo
neles enquanto os lemos, o:
mundo de Alice, no seu programa de fantasmagoria, oferece- superior dando o seu próprio discurso como um discurso inditect
O logos diz que...» não
tão plausível, tão verdadeiro como o nosso, tão real «diz-se que...» «a Musa canta que...» «um
-se-nos como a própria Musa não
por assim dizer; mudámos de esfera de aparecendo nunca O locutor directo, pois
em relação a si próprio, esse discurso, que era ele
verdade, mas continuamos no verdadeiro, ou na sua analogia. fazia mais do que «redizer», recordar
próprio o seu próptio pais. Quando se trata dos deuses e dos
É por isso que a literatura realista é, ao mesmo tempo, uma é o «diz-se», e esta fonte
heróis, a única fonte de conhecimento
apatência enganosa (não é a realidade), um esforço inútil (o feérico haja impostores: as Musas,
tem uma misteriosa autoridade. Não que
não pareceria menos real) e a mais extrema sofisticação (fabricar
real com o nosso real, que preciosismo!). Longe de se opor à ver-
6 Hesíodo, sabem dizer a verdade e mentir?. Os poetas que men-
menos das Musas, que inspiraram
tem nem por isso se reclamam
dade, a ficção não é mais do que um seu subproduto: basta-nos
na ficção, como se diz, e perdermos o tanto Homero como Hesíodo.
abrir a Ilíada para entrarmos há pessoas informadas que estão
informação;

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O mito é uma
norte; a única diferença é que a seguir não acreditamos nela.
Há sociedades em que, uma vez o livro fechado, se continua a acre-
ligadas, não a uma revelação, mas muito simplesmente a um
ditar e outras em que se deixa de acreditar.
conhecimento difuso que tiveram oportunidade de recolher; se
as, que lhes
de verdade quando, da nossa quotidiancidade, pas- forem poetas, setão as Musas, suas informadoras encartad

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Mudamos se sabe e se diz; o mito nem por isso se trans-
de darão a saber o que
samos a Racine, mas não nos apercebemos disso. Acabamos faz
vel, que desmen- forma numa revelação do alto ou num arcano; à Musa não

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escrever uma carta de ciúmes confusa e interminá um recurso
mais do que repetir-lhes o que se sabe e que está, como
timos precipitadamente uma hora mais tarde, por telegrama, e pas-
natural, à disposição dos que nele vierem beber.
samos a Racine ou a Catulo, em que um grito de ciúme, denso como de pensamento específico; não é mais

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O mito não é um modo
o em-si, também ele, dura quatro versos, sem uma falha; achamos por informação, aplicado a domínios de
que o conhecimento
este grito tão verdadeiro! A literatura é um tapete mágico que
do
entação, etc.
saber que, para nós, relevam da controvérsia, da experim
nos transporta de uma verdade para outra, mas em estado de letar-
gia; quando acordamos, chegados à nova verdade, julgamo-nos ainda
aos
na precedente e é por isso que é impossível fazer compreender
ingénuos que Racine ou Catulo nem pintaram o coração humano pot
ainda na Encida, 1, 8: Musa, mibi causas memora;

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que ele tivesse
têm, contudo, razão, à sua maneita; as verdades todas parecem o que «se diz» acerca de Eneias, e não que lhe «recorde» algo
são filhas
reduzir-se a uma única; Madame Bovary é «uma obra-prima para quem esquecido ou ignorasse. É pata isso, poderia dizer-se, que as Musas
de Memória (conira Nilsson, Gesch d. griech. Religion, vol. 1, p. 254).
se confessou na província». É a analogia dos sistemas de verdade 9 W. Kroll, Studiom qum Verstândnis..., p. 49-58. Os versos 27
€ 28 da

::
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que nos permite entrar nas ficções romanescas, achar «vivos» também verdades.

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Teogonia não são simples; as Musas inspitam mentiras, mas

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seus heróis e também encontra r um sentido interessa nte nas filo- A posterida de compreen derá muitas vezes que todos os poetas misturam ver-

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as verdades (cf. Estrabão, 1, 2, 9, C; 20,
sofias e nos pensamentos de outrora. E nos de hoje. Às verdades, dades com as mentiras, ou mentiras com
epopeia, que mente,
luz acerca de Homero). Outros verão nisto a oposição entre a
a da Ilíada e à de Einstein, são filhas da imaginação e não da

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que, sem se
e a poesia didáctica, que é sincera, Mais vale sem dúvida entender
própria versão das
natural. apresentar como poeta «didáctico», Hesíodo opõe a sua

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seu rival €
Literatura de antes da literatura, nem verdadeira, nem fictícia, genealogias divinas e humanas à versão de Homero, que considera
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porque exterior ao mundo empírico, mas mais nobre do que ele, o predecessor,

36 37
de letras, ela satis-

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e mesmo até mais tatdelO, Obra de homens

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Como escreve Oswald Ducteto em Dire et ne pas dire, a infor-
mação é uma ilocução que só pode realizar-se se o destinatário fazia menos o gosto pelo maravilhoso do que o desejo de conhecer
reconhecer antecipadamente ao locutor competência e honestidade; as origens. Pensemos, entre nós, na lenda das otigens troianas
da: monarquia franca, de Fredegário a Ronsatd; visto que foram
de modo que uma informação se situa de antemão fora da alter-
nativa do verdadeiro e do falso. Se se quiser ver este modo de os Troianos que fundaram os reinos dignos desse nome, foram,
portanto, eles que fundaram também o dos Francos e, visto que a

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conhecimento em funcionamento, leia-se uma página em que o onomástica dos lugares tem por otigem a dos homens, o troiano
admirável padre Huc conta como convertia os tibetanos, há um em questão só podia chamar-se Francus.
século e meio: «Havíamos adoptado um modo de ensino totalmente Para as suas investigações sobre a Messénia, Pausânias utilizou,
histórico, tendo o cuidado de banir dele tudo o que pudesse ter a assim, um poeta épico da alta época helenística, Riano, bem como

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ver com disputas e espírito de contenção; nomes próprios e data o historiador Míton de Prienall; para a Arcádia, seguiu uma

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bem precisas faziam-lhes muito mais impressão do que os mais «genealogia contada pelos arcádios», isto é, uma tradição pretensa-
lógicos raciocínios. Quando sabiam bem o nome de Jesus, de mente recolhida por um poeta do ciclo épico, Asiosl2; o nosso
Jerusalém, de Pôncio Pilatos e a data de quatro mil anos após a autor conhece assim a dinastia dos reis da Arcádia durante nume-
criação do mundo, já não duvidavam do mistério da Redenção rosas gerações, de Pelasgo, contemporâneo de Cécrope, à guerra
nem da ptédica do Evangelho; de resto, nunca notâmos que os mis- de Tróia; conhece os seus nomes, o seu patronímico, os nomes dos
térios ou os milagres constituíssem para eles o menos obstáculo. seus filhos; projectou essa genealogia sobre a trama do tempo his-
Estamos persuadidos de que é por via de ensino, e não pelo método tótico e pôde assim estabelecer que Oinotropia, fundada por Oino-
de controvérsia, que se pode trabalhar eficazmente na conversão tros, filho de Licáon, à terceira geração, é necessariamente a mais
dos Infiéis». antiga colónia fundada pelos Gregos, e de longe.
Esta literatura genealógica, na qual Pausânias viu uma historio-

EÊ!
Existia, do mesmo modo, na Grécia um domínio, o do sobre-
natutal, em que todo o saber devia procurar-se junto de pessoas grafia, contava na realidade aítia, otigens, quer dizer, a fundação da
que estavam informadas; esse domínio era composto por aconteci- ordem do mundo; a ideia implícita é a de que o nosso mundo está
terminado, constituído, completo!3 (dizia-me uma criança, não sem

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mentos e não por verdades abstractas às quais o ouvinte pudesse
opot a sua própria razão. Os factos eram precisos: os nomes dos espanto, ao ver os pedreiros a trabalhar: «Papá, então as casas ainda
heróis e os seus patronímicos nunca faltavam, e a indicação do local não estão todas construídas?»). Fundação que se situa, por defi-
da cena não era menos precisa (Pélion, Citéron, Titaresco...; há nição, antes do começo da história, no tempo mítico dos heróis;
na mitologia grega uma música dos nomes de lugares). Fste estado
de coisas poderia ter durado mais de mil anos; não se modificou
10 Sobre esta historiografia, cf. por exemplo J. Forsdyke, citado na nota 5

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pot os Gregos terem descoberto a razão ou inventado a demo-

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cracia, mas pot o campo do saber ter visto o seu quadro alterado pela da introdução; M, Nilsson, Geschichte der griech, Religion, 2.º ed., Vol, II, p. 51-54.

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11 Pausânias, IV, 6, 1, quanto a Míton; quanto a Riano, ler IV, 1-24

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formação de novos poderes de afirmação (a investigação histórica, passim. Sobre este Riano, À, Lesky, Geschichie des griech. Literatur, Berna e Muni-

s
a física especulativa) que faziam concorrência ao mito e que, ao que, Francke, 1963, p. 788; não li Pausanias und Rhianos de J. Kroymann, Berlim,

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contrário do mito, punham expressamente a alternativa do verdadeiro 1943, nem os Messenische Studien de F. Kiechle, Kallmunz, 1959. Sobte as fontes
da atqueologia arcádica de Pausânias, W, Nestle, Vom Mythos zum Logos, p. 145 sq.
e do falso. Sobre as noções de começ o, to (katastasis) e «arqueologia», cf,
. estabelecimen
Eis, pois, esta mitologia que cada historiador vai criticar, sem E. Notden, Agnostos Theos, Darmstadt Wiss. Buchg. 1956, p. 372.
se entregar ao gosto do maravilhoso, mas sem por isso reconhecer 12 Pausânias, VIIE 6, 1. Mas todo o princípio do livto VII deveria ser
o seu catácter: tomá-la-á por uma historiografia; tomará o sythos citado. Quanto à fundação de Oinótria, cf. VIII, 3, 5.
13 Diga-se o que se disser, as concepções mais difundidas sobre o tempo

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por uma simples «tradição» local; tratará a temporalidade mítica não são nem a do tempo cíclico, nem a do tempo cíclico, nem a do tempo linear,

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como se ela fosse tempo histórico. Mas não é tudo. O historiador mas sim a do declínio (Lucrécio tem-na por uma evidência): tudo está feito e

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lidava igualmente com uma segunda espécie de literatura mitológica, inventado, o mundo é adulto e só lhe resta, pois, envelhecer; cf. Veyne, Como
em versos épicos ou em prosa: a das genealogias míticas, que se Escreve a História, p. 95, nota 4 da edição portuguesa (Lisboa, Ed, 70, 1983).

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começa com as Grandes Eias, etiologias, natrativas de fundações, Esta concepção é a chave implícita de uma frase difícil de Platão, Leis, 677 €,
pata o qual já não haveria lugar para invenções (que não passam de reinvenções),

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histórias ou epopeias locais; essa literatura floresceu a partir do se a maior parte da humanidade não fosse periodicamente destruída, com todas
século VI e perdura ainda, na Ásia Menor, na época dos Antoninos as suas conquistas culturais,

36 39

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tudo se reduz a contar de onde é que um homem, um costume, genecalogista nem sequer se interroga: a analogia das palavras

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uma cidade tiram a sua existência. À cidade, uma vez nascida, só basta-lhe e o seu modo de explicação favorito é arquetipal; o mesmo

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restará viver a sua existência histórica, que deixa de pertencer à seria perguntar que relação concreta existe entre Fauno e os Faunos,

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etiologia. entre Helen e os Helenos, entre Pelasgo e os Pelasgos ou entre

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pois, em explicar uma coisa pelo seu começo: uma cidade, pelo seu otigens, os elefantes não tinham tromba, mas um deus puxou o

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fundador; um rito, por um incidente que lhe serviu de precedente, nariz do Elefante para o punir por qualquer embuste* e, desde

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pois o repetiram; um povo, por um indivíduo primeiro, nascido esse dia primeiro, todos os elefantes têm uma tromba». Pausânias

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da terra, ou primeiro rei. Entre esse facto primeiro e a nossa época já não compreende esta lógica arquetipal e toma o arquétipo, que,

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histórica, que começa com a guerra de Tróia, estende-se a suces- como Adão, era o único a ser, para o primeiro rei da região; «os

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são das gerações míticas; o mitógrafo reconstitui, ou antes, efabula Arcádios», diz eleló, «dizem que Pelasgos foi o primeiro habi-

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uma genealogia real sem lacunas que se estende através de toda a tante da sua região, mas seria logicamente mais plausível pensar

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idade mítica e, após tê-la inventado, sente a satisfação de um que não estava sozinho e que havia outros homens com ele; de
saber completo. De onde tira ele todos os nomes próprios que outro modo, sobre que súbditos teria esse rei reinado? Eram a

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apõe a todos os patamares da sua genealogia? Da sua imaginação, sua estatura, a sua força, a sua beleza que o distinguiam e tam-
pot vezes da alegoria e, mais frequentemente, dos nomes de bém a sua inteligência e foi por isso, imagino, que foi escolhido

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lugares; os rios, os montes e as cidades de uma região provêm pata reinar sobre eles. Por seu lado, o poeta Ásios compôs sobre
dos nomes dos indivíduos que a habitaram primitivamente e que se ele os seguintes versos: Pelasgos igual aos denses foi produzido pela

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supõe terem sido os reis da região, mais do que os seus únicos negra terra nas montanhas silvestres, para gre a raça dos humanos exis-

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habitantes; o vestígio humano sem idade que são os topónimos tisse». Estas poucas linhas são uma espécie de «colagem»: aí, a velha

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tem por origem a onomástica humana dos tempos míticos. Quando verdade mítica é aplicada sobre a espécie de racionalismo praticada

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o nome de um rio deriva de um nome de homem, isso faz remon- por Pausânias, o qual parece pouco sensível à diferença entre esses

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tar à presença humana otiginária a partir da qual a região se tornou materiais.
um território de homens1s,
Mas na sequência de que acontecimento é que o nome de

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tal rei de outrora passou ou foi dado a esse rio? Sobre isso, o
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14 Políbio, X, 21 (sobre as fundações de cidades); XII, 26 D (jactâncias n


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de Timeu sobre as fundações e os patrentescos de cidades); XXXVIII, 6 (relatos


históricos que se limitam a contar as origens e nada dizem da sequência da his-
tória). O pensamento popular opunha o passado das «fundações» ao monótono
presente, o primeiro dos quais eta encantador: quando Hípias ia fazer confe-
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tências a Esparta, falava «de genealogias hetóicas, ou humanas, da fundação


de cidades na época primitiva, e mais em geral do que se referia à época antiga»
(Platão, Hípias maior, 285 E). Esta instauração do mundo estabelecido (e mesmo
declinante) que é o nosso compreende três elementos: «a fundação das cidades,
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a invenção das artes e a redacção das leis» (Josefo, Contra Apion, 1, 2, 7). Heró-
àir;

doto percorre o mundo, descreve cada povo como se descrevetia uma casa e
passa ao subsolo: aqui está a origem deste povo,
15 De todos estes factos, encontrar-se-ão exemplos em todas as páginas
de Pausânias e, em particular, nos primeiros capítulos dos seus diversos livros. * Tromperie, que no texto faz um jogo de palavras, intraduzível, com

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gens humanas, de tal modo que se ptefetia explicar uma montanha chamada 16 Pausânias, VIII, 1, 4; do mesmo modo, em Tucídides, I, 3, «Helen

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«pastagens», o que seria, evidentemente, a explicação correcta, como o próprio míticos, como o Elefante em relação aos elefantes; trata-se de uma dinastia

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Pausânias insinua (VII, 38, 11); era assim que Pausânias pretendia explicar o real, que teinou sobre uma multidão de humanos. Se se quiser saber o que é

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nome de Aigialeia pela palavra aigialos, «margem», mas os Aqueus preferiram uma etiologia histórica, o mais simples é ver o pastiche que dela faz Aristófanes,

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inventar, para o explicar, um rei chamado ÀAigialeus (VIII, 1, 1,). Aves, 466-546,

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1 Sobre a posse e a repartição da verdade, cf. o belíssimo livro de Marcel
Detienne, Les Maítres de vérité dans la Grêce archaigue, Paris, Maspero, 1967; sobre
a distribuição do saber, cf. Alfred Schutz, Collected Papers (Col. «Phaenome-
nologica», vol, XI e XV), vol. 1, p. 14: «The Social Distribution of Knowledge»,
e vol. 2, p. 120: «The Well-Informed Citizen»; G. Deleuze, Différence et Répéti-
tion, Patis, PJU.F., 1968, p. 203. Os pensadores cristãos foram levados a apro-
fundar esta ideia, sobretudo Santo Agostinho; não é a Igreja uma sociedade
de crença? O De utilitate credendi de Santo Agostinho explica que acreditamos
sobretudo pot confiança, que existe um comércio dos conhecimentos desigual-
mente repartidos e ainda que, ao forçarmos as pessoas a acreditar, elas acabam
por acreditar realmente; é o fundamento do dever de perseguir e do tristemente
célebre compelle intrare. E preciso fazer o bem das pessoas mesmo contra elas
(as desigualdades de saber e de poder andam a par), e o saber é um bem, Esta
sociologia da fé lia-se já em Otígenes, Contra Celso, 1, g-10 e HI, 38. Daí a dou-
trina da fé implícita: quem confia na Igreja será reputado saber tudo o que ela
professa. Problema: a partir de que grau de ignorância é que um cristão fiel
já só será cristão de nome? Ter-se-á fé quando o único artigo de fé que se
conhece é que a Igreja, essa, sabe e tem razão? Cf. B. Groethuysen, Origines de
Pesprit bourgeois en France: P Église et la bourgeoisie, Patis, Gallimard, 1952, p. 12.
Sobre tudo isto, e sobre Santo Agostinho, cf. Leibniz, Novos Ensaios, IV, 20,
Além das suas consequências políticas e sociais, a distribuição do saber tem
efeitos sobre o próprio saber (só aprendemos e inventamos quando temos
esse direito socialmente reconhecido; senão, hesitamos, duvidamos de nós
próprios). Quando não temos o direito de saber e de questionar, ignoramos
sinceramente e ficamos cegos; por isso, Proust dizia: «Nunca confessem». As
fontes e as provas do saber são elas próprias históricas. Por exemplo, «se a ideia

43

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geógrafos e as agências de viagens em enganar-me?. Esta moda-

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estes programas que explicam os graus subjectivos de intensidade
das crenças, a má-fé, as contradições num mesmo indivíduo. Acre- lidade pode durar enquanto o crente confiar em profissionais ou
ditamos em Michel Foucault: a história das ideias começa verdadei- não existirem profissionais que façam lei na matéria; os ocidentais,
ramente quando se historiciza a ideia filosófica de verdade. ou pelo menos aqueles de entre eles que não são bacteriólogos,
Não existe sentido do real e também não é necessário, muito acreditam nos micróbios e multiplicam as precauções de assepsia pela
pelo contrário, que sc represente aquilo que é passado ou estranho mesma razão que os Azandé acreditam nos feiticeiros e multiplicam

E
como análogo ao que é actual ou próximo. O mito tinha um as precauções mágicas contra eles: acreditam por confiança. Para os
contemporâneos de Píndaro ou de Homero, a verdade definia-se,
conteúdo que se situava numa temporalidade nobre e platónica,
tão estranha à experiência individual e aos seus interesses como fra- quer a partir da experiência quotidiana, quer a partir do locutor, que
ses ministeriais ou teorias esotéricas aprendidas na escola e acredi- é leal ou enganador; as afirmações que permaneciam estranhas à
experiência não eram nem vetdadeiras nem falsas; também não etam
tadas sob palavra; o mito era, aliás, uma informação obtida com
base na palavra de outrém. Foi esta a primeira atitude dos Gregos mentirosas, pois a mentira não existe quando o mentiroso não
perante o mito; nesta modalidade de crença, estavam em estado ganha nada com ela e não nos faz mal algum: uma mentira desin-
teressada não é um embuste. O mito era um Zertium quid, nem

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de dependência em relação à palavra de outrém. Daí, dois efeitos.
Em primeiro lugar, uma espécie de indiferença letárgica ou, pelo verdadeiro, nem falso. Einstein seria isso para nós se a sua verdade
menos, de hesitação perante a verdade e a ficção; em seguida, esta não viesse de uma terceira fonte, a da autoridade dos profissionais.
Naqueles tempos longínquos, esta autoridade não havia nas-

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dependência acabará por suscitar uma revolta: eles pretenderão
julgar de tudo por si próprios, segundo a sua própria experiência, cido e não existiam teologia, física ou história. O universo intelec-
e será precisamente este o princípio das coisas actuais que fará tual era exclusivamente literário; os mitos verdadeiros e as inven-
avaliar o maravilhoso pela realidade e passar a outras modalidades. ções dos poetas sucediam-se aos ouvidos dos auditores, que escuta-
A crença que não tem meios para agir poderá ser sincera? vam docilmente o homem que sabia, não tinham interesse em separar
Quando uma coisa está separada do nosso alcance por abismos, a verdade da mentira e não se chocavam com ficções que não iam
nós próprios não sabemos se acreditamos nela ou não; Píindaro contra a autoridade de nenhuma ciência. Escutavam assim do
já hesitava perante o mito e a linguagem da décima Pítica, por mesmo modo os mitos verdadeiros e as invenções; Hesíodo ver-se-á
obrigado a fazer escândalo ao proclamar que, muitas vezes, os poetas

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muito respeitosa que seja, deixa entrever alguma hesitação: «Nem
por terra, nem por mar se encontra a estrada que leva às festas dos mentem, a fim de tirar os seus contemporâneos dessa letargia;
com efeito, Hesíodo pretenderá constituir para seu proveito um

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povos do Extremo Norte; o audacioso Perseu, outrota, conseguiu
chegar até eles, até essas gentes felizes: Atena era o seu guia, e cle domínio de verdade em que já não se conte «uma coisa qualquer»
matou a Górgona! Pela minha parte, nada me espanta nem me parece acerca dos deuses.
incrível, quando os deuses permitem realizá-lo». A crença com base na palavra de outrém, com a sua dissimetria,
A modalidade de crença mais difundida é aquela em que se podia, com efeito, servir de suporte a empreendimentos individuais
acredita na palavra de outrém; acredito na existência de Tóquio, que opunham a sua verdade ao erro geral ou à ignorância. E o que
aonde ainda não fui, porque não vejo que interesse teriam os acontece com a teogonia especulativa de Hesíodo, que não é uma
revelação dada pelos deuses: Hesíodo recebeu das Musas o seu
conhecimento, quer dizer, da sua própria reflexão. Meditando sobre
tudo o que se diz dos deuses e do mundo, compreendeu muitas coi-
grega de verdade é a de uma proposição verdadeira porque não contraditória
sas e pode traçar um repertório verdadeiro e completo das gencalo-
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gias: primeiro, houve Caos e Terra, bem como Amor; Caos engen-
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e verificável, a ideia judaico-cristã de verdade refere-se à sinceridade, à ausência


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de fraude ou de duplicidade nas relações pessoais» (R. Mehl, Traité de sociologie drou a Noite, Terra deu à luz o Céu e o Oceano; este último teve
du protestantisme, Paris e Neuchâtel, Delachaux et Niestlé, 1966, p. 76). Daí, quarenta filhas, cujos nomes Hestodo diz: Peitho, Adméto, Ianthé,
ao que suponho, a estranha conclusão do Quarto Evangelho, em que o grupo
de discípulos de São João declara: «Sabemos que o seu testemunho é verídico»
(XXI, 24); se se tratasse de um testemunho no sentido grego da palavra (a tes-
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temunha estava lá e viu a coisa com os seus olhos), a frase seria absurda; como
Esta ideia, cuja importância em Santo Agostinho é conhecida, em par-
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a impressão de que Hesíodo leva os seus deuses-conceitos mais a não era metafísica nem ontológica, mas antes alegórica e... quí-
sério do que os Olímpicos. Mas como sabe ele tantos pormenores mica: as coisas são feitas de água, da mesma maneira que, para
e tantos nomes? Porque é que todas as velhas cosmogonias são nós, o sal marinho é feito de cloro e de sódio, e, visto que
verdadeiros romances? Devido à dissimetria que caracteriza o tudo é de água, tudo passa, tudo corre, tudo muda, tudo foge.
conhecimento baseado na palavra de outrém; Hesíodo sabe que Estranha química: como pretenderá ela recompor a diversidade dos
acreditarão na sua palavra e trata-se a si próprio como os outros compostos a partir de um único corpo simples? Não pretende;
o tratarão: é o primeiro e acreditar em tudo o que lhe passa pela não é uma explicação, mas sim uma chave, e uma chave deve ser
cabeça. simples. Monismo? Nem sequer isso: não é por monismo que
Sobre os grandes problemas, diz o Fédon, quando não conse- falamos no singular da «chave» de um enigma. Ota uma chave não
guimos encontrar por nós próprios a verdade nem recebemos a é uma explicação. Ao passo que uma explicação dá conta de um
revelação de algum deus, só nos resta adoptar o que se diz de me- fenómeno, uma chave, por seu lado, faz esquecer o enigma, apaga-o,
lhor ou instruir-nos junto de outro que saiba3. O «diz-se» do mito toma o seu lugar, tal como uma frase clara eclipsa uma primeira
muda então de sentido; o mito deixa de ser uma informação que formulação confusa e pouco compreensível. Tales, tal como o repre-
flutua no at, um recurso natural cujos receptadotres apenas se dis- sentará a tradição filosófica grega, não dá conta do mundo na sua
tinguem pot mais sorte ou mais habilidade; é um privilégio dos gran- diversidade; dá-nos o seu verdadeiro sentido, que é «água» e que
des espíritos, cujo ensinamento se transmite, «Diz-se que, quando vem substituir uma confusão enigmática, logo esquecida. Com
morremos, nos tornamos como astros no ar», declara um herói efeito, esquecemo-nos do texto de uma adivinha, que só serve para
de Aristófanes que ouviu falar do alto saber detido por certas seitas nos fazer chegar à sua solução.
da época?. Uma explicação procura-se e demonstra-se; a chave de um
A par das especulações mais ou menos esotéricas, a verdade enigma, essa, adivinha-se e, uma vez adivinhada, actua instantanea-
com base na confiança tinha um outro tipo de herói: o decifrador mente; nem sequer é preciso argumentar; os véus caem e os olhos
de enigmas; a física ou a metafísica nascente foi isso, quer dizer, abrem-se, basta enunciar o «abre-te, Sésamo!». Cada um dos primei-
nada menos do que os inícios presumíveis do pensamento ociden- tos físicos da velha Grécia abrira tudo sozinho, de uma só vez;
tal. Fazer uma física consistia em encontrar a chave do enigma do dois séculos mais tarde, a física de Epicuro será ainda um romance
mundos, pois havia enigma, e, uma vez decifrado este, todos os deste género. O que pode dar-nos uma ideia disso é a obra de
segredos se abriam de súbito, ou antes, o mistério desapatrecia, os Freud, cuja estranheza é surpreendente que surpreenda tão pouco:
véus caíam-nos dos olhos. esses opúsculos que desentolam a carta das profundezas da psique,
Eis como, por exemplo, a tradição grega pintará os princípios sem a sombra de uma prova, sem nenhuma argumentação, sem
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da filosofia. Tales foi o primeiro a encontrar a chave de todas as uma exemplificação, mesmo para fins de clareza, sem a menor
coisas: «Tudo é água». Professaria ele a unidade do mundo, estaria ilustração clínica, sem que se possa entrever de onde é que Freud
na via que iria levar ao monismo, aos problemas do Ser e da uni- tirou tudo aquilo e como é que o sabe. Da observação dos seus
pacientes? Ou, mais provavelmente, de si próprio? Não espantará
que essa obra tão arcaica tenha sido continuada por uma forma
de saber não menos atcaica: o comentário. Que outra coisa fazer
3 Platão, Fédon, 85 Ce 99 CD.
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a não ser comentar, quando foi encontrada a chave do enigma?


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4 Aristófanes, Paz, 832; cf, Aves, 471 sq.


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5 Nietzsche, Aurora, $ 547: «Nos nossos dias, a matcha da ciência já Além disso, só um génio, um inspirado, quase um deus, pode adi-
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não é entravada pelo facto acidental de o homem viver cerca de setenta anos, vinhar a chave de semelhante enigma: Epicuto é um deus, sim, um
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mas foi durante muito tempo o caso (...) Outrora, todos queriam, durante esse deus, proclama o seu discípulo Lucrécio. O decifrador é acreditado
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lapso de tempo, chegar ao termos do saber e os métodos de conhecimento sob palavra e não exigirá mais de si próprio do que os seus admita-
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eram apreciados em função desse desejo geral (...) Dado que o universo inteiro
dores exigem dele. Os seus discípulos não continuam a sua obra,
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era otganizado em função do homem, pensava-se que a possibilidade de conhe-


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cer as coisas estava igualmente adaptada à escala da vida humana (...) Tudo transmitem-na de uns para os outros sem lhe acrescentarem nada;
tesolver de uma só vez, com uma só palavra, era esse o desejo secreto; enca- limitam-se a defendê-la, a ilustrá-la, a aplicá-la.
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tava-se essa tarefa sob o aspecto do nó górdio ou do ovo de Colombo; não se Acabamos de falar de discípulos e de mestres. E precisamente,
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duvidava de que fosse possível (...) liquidar todas as questões com uma única
para voltarmos ao mito, a incredulidade a seu respeito veio de
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tesposta; o que havia pata tesolver eta um enigma».


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pelo menos dois focos: uma brusca indocilidade em relação à palavra Regime após terem inspeccionado a sua diocese: cada aldeia tinha

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de outrém e a constituição de centros profissionais de verdade. os seus descrentes, os quais, não ousando furtar-se à obrigação
Perante as lendas, a aristocracia grega hesitava entre duas atitu- dominical, ficavam ao fundo da igreja durante a missa, ou permane-
des, como acontecerá ainda no século XVII: partilhar utilmente ciam mesmo no adro. Cada sociedade teve os seus preguiçosos
a credulidade popular, pois o povo acredita tão docilmente como da fé, mais ou menos numerosos e descarados, consoante a maior
obedece, ou então recusar por conta própria uma submissão humi- ou menor indulgência da autoridade. A Grécia teve os seus, a dar-
lhante, sentida como um efeito da ingenuidade; as Luzes são o mos crédito a um verso notável dos Cavaleiros de AristófaneslO;
primeiro dos privilégios. um escravo, desesperado com a sua sorte, diz ao seu companheiro
lglgl No primeiro caso, os aristocratas
de poderem reclamar-se de gencalogias míticas; o Lísis de Platão
tinha um antepassado que era um bastardo de Zeus e que recebera
ganhavam ainda com o facto de infortúnio: «Já só nos resta lançarmo-nos aos pés das imagens
dos deuses», e o seu camarada responde-lhe: «Ah sim] Ouve lá,
acreditas de facto que há deuses?» Não creio que os olhos deste
em sua casa o seu meio-irmão Héracles, outro bastardo do deusó. escravo lhe tenham sido abertos pelas Luzes dos Sofistas; ele per-
Em contrapartida, outras pessoas distintas tinham o bom gosto tence à franja incompressível de incrédulos cuja recusa se deve
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de ser esclarecidas e de pensarem diferentemente da multidão. menos a raciocínios e ao movimento das ideias do que a uma teac-
Xenófanes não quer que, nos banquetes, os convivas discutam ou ção contra uma forma subtil de autoridade, precisamente aquela que
digam parvoíces e, consequentemente, proíbe que se fale «dos Titãs, Políbio atribuía ao Senado romano e que virá a ser praticada por
dos Gigantes, dos Centauros, tudo invenções dos Antigos»?. À lição todos aqueles que aliarão o trono ao altar!1, Não quer isto dizer que
foi ouvida; no final das Vespas de Aristófanes, um filho que pro- a religião tenha, necessariamente, uma influência conservadora,
cura inculcar um pouco de distinção a seu pai, cujas ideias são vul- mas certas modalidades de crença são uma forma de obediência
gates, informa-o de que à mesa não é conveniente contarem-se mitos; simbólica; acreditar é obedecer, O papel político da religião não
deve falar-se de coisas humanas8; é assim, conclui, a conversação é, de modo algum uma questão de conteúdo ideológico.
das pessoas educadas. Não acreditar em tudo era uma qualidade Uma segunda razão para se deixar de acreditar em tudo o que
grega por excelência; «não foi de fresca data, diz Heródoto, que a se diz foi que, em matéria de informação, o mito começou a sofrer
nação grega se distinguiu das populações bárbaras por estar mais a concorrência de especialistas do verdadeiro, os «inquiridores»
desperta e mais desembaraçada de uma tonta credulidade». ou historiadores, os quais, como profissionais, começaram a fazer
A insubmissão à palavra de outrém é mais um traço de carác- autoridade. Ora, aos olhos destes, os mitos deviam concordar com
ter que uma questão de interesse de classe, e enganar-nos-íamos o testo da realidade, visto que se apresentavam como reais. Ao
fazendo dela um privilégio da aristocracia; enganar-nos-famos menos inquirir no Egipto, Heródoto descobre aí um culto de Héracles12
supondo-a como própria de certas épocas, que alternam com épocas (de facto, um deus é em toda a parte um deus, tal como um car-
de fé. Pense-se nas páginas de Éxudes de sociologie religiense em que valho é em toda a parte um carvalho, mas cada povo dá-lhe um nome
Gabriel Le Bras9 analisa os relatórios feitos pelos bispos do Antigo diferente, de tal modo que os nomes divinos se traduzem de língua
para língua, da mesma maneira que os nomes comuns); como a data
que os Egípcios atribufam a este Héracles não coincidia, de modo
algum, com a cronologia lendária dos gregos, Heródoto tentou
6 Platão, Lísis, 205 CD.
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7 Xenófanes, fragmento 1.
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8 Aristófanes, Vespas, 1179; Heródoto, I, 60. atribuítam a seu próprio Herácles, mas a sua attapalhação foi ainda
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9 G. de Bras, Eudes de sociologie religiense, Paris, PUF, 1955, pp. 60, 62,
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68, 75, II2, 190, 240, 249, 267, 564, 583. Esta relação de docilidade no campo
do saber (o campo simbólico de Bourdieu) parece-nos pelo menos tão impor-
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tante como o conteúdo ideológico da religião, mais fácil de ver, mais fácil de 10 Aristófanes, Cavaleiros, 32; cf. Nilsson, Geschichse der griech. Religion,


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referir a interesses sociais, mas também mais equívoco, Para Proudhon, o culto vol. 1, p. 780.

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católico ensinava o respeito pela hierarquia social, visto que, na missa e em toda 11 Políbio, VI, 56; para Flávio Josefo, Contra Apion, Moisés viu na religião
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a patte em que existem precedências marcadas, a prática põe em relevo a hierar- um meio de fazer respeitar a virtude (II, 160). Mesma ligação utilitária entre a

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quia social; sem dúvida, mas há no Dictionnaire philosopbigue de Voltaire uma religião e a moral em Platão, Leis, 839 Ce 838 BD, E em Aristóteles, Meiaf.,

cr.,
frase, anticristã na intenção do seu autor, que não deixa de ser curiosa: «Uma 1074 B 4.
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populaça grosseira e supersticiosa (...) que acorria aos templos por ociosidade i2 Heródoto, II, 42-45, citado por M, Untersteiner, La Fisiologia del mito,
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e porque, aí, os pequenos são iguais aos grandes» (artigo Ídolos).

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2,2 ed., Florença, La Nuova Italia, 1972, p. 262.
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concluir foi que todos os homens Em compensação, aparece outra tarefa, não menos interessante:

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conseguiu

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maior; tudo o que

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antigo e
estavam de acordo em vet em Héracles um deus muito
explicitar os contornos imprevisíveis desse polígono, que deixa
uindo dois de ter as formas habituais, o amplo panejamento que faz da histó-
também que era possível resolver a questão disting
ria uma nobre tragédia. Restituir aos acontecimentos a sua silhueta
Héracles.
coisas
Mas não é tudo: «Os Gregos dizem muitas outras
original, dissimulada sob trajos de empréstimo. Porque, de tão

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menos crédulo é um mito que dizem acerca inesperadas, não vemos, literalmente as verdadeiras formas; os pres-
irreflectidamente: não
deste país supostos «são óbvios», passam despercebidos e, em seu lugar, vemos
de Héracles: quando este foi ao Egipto», os habitantes
se teria deixado generalidades convencionais. Não entrevemos o inquérito nem a
teriam tentado imolá-lo a Zeus, mas Héracles não
morto a todos. Impossí vel, protest a Heródoto; controvétsia; vemos o conhecimento histórico através dos séculos
dominar e tê-los-ia
s não sacrifi cam seres vivos, como sabem os que e os seus progressos; a crítica grega do mito torna-se um episódio
os Egípcio
apenas um do progresso da Razão, e a democracia grega seria a Democracia
conhecem as suas leis; e, além disso, Héracles ainda era
diz (só se tornou deus após a morte, efectiva- eterna, não fora a tara do esclavagismo.
homem, ao que se
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«seria natural que um único homem tivesse conseguido | Se a história se propuser arrancar esses panejamentos e expli-
mente); ora
longe está citar o óbvio, deixará de ser explicativa; tornar-se-á hermenêutica,
matar miríades de outros homens»? Vê-se bem quão
imento baseado na palavra de outrém. Este Não perguntatemos, pois, que causas sociais estarão na origem da
Heródoto do conhec
reino? Quais
procura informações: qual é a cidade capital deste
crítica do mito; a uma espécie de história santa das Luzes. ou da
são os laços de parentesco de fulano de tal? Qual
é a data de Sociedade, preferimos uma perpétua redistribuição ao acaso de pe-
Os que nos informam estão, pois, informados e, neste quenas causas sempre diferentes, que engendram efeitos não menos
Héracles?
a infor- casuais, mas que passam por grandes e reveladoers do destino
domínio, o que se opõe é menos a verdade ao erro do que
inquiri dor profiss ional não tem a do homem. Esquema por esquema, o de Pierte Bourdieu, que con-
mação à ignorância. Só que um
outros homens perante a informa ção: confere -a € cebe a especificidade e autonomia de um campo simbólico parti-
docilidade dos
assim transfo rmada: lhado entre centros de força, parece-nos preferível ao esquema
vetifica-a. A distribuição social do saber vê-se
ncia a este
doravante, os outros homens terão de se referir de preferê
pelas classes sociais; dois esquemas valem mais do que um.
pena de não passate m de espírito s incultos . E, como Abra-se aqui o que patecerá, à primeira vista, um parêntesis
profissional, sob
realida de a obrigaç ão de algumas páginas, mas que nos levará de facto ao coração do
o inquiridor verifica a informação, impõe à
de coerência; o tempo mítico deixa de poder manter-se secretamente nosso problema do mito. Para dizer tudo, resignamo-nos tanto
heterogéneo à nossa temporalidade; torna-se simples passado.
A crítica do mito nasceu dos métodos
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de inquérito; não tem
mais facilmente a não explicar quanto somos levados a pensar que a
imprevisibilidade da história tem menos a ver com a sua contin-
nada à vet com o movimento dos Sofistas, que conduzia mais a gência (que não impediria a explicação post eventum) do que com
crítica da religião e da sociedade, nem com as cosmologias da a sua capacidade de invenção. À ideia provocará sorrisos, pois toda
uma
Física. a gente sabe que é místico e anticientífico acreditar em começos
sei, absolutos. Torna-se então aborrecido verificar que o pensamento
Qual é a explicação para semelhante transformação? Não
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ávido de sabêlo. A história foi, durante muito científico e explicativo assenta, sem o saber, em pressupostos não
e nem estou muito
um relato explicativo, uma narração com menos arbitrários. Falemos um pouco do assunto, em proveito
tempo, definida como
his- daqueles que, na sua vida pública ou privada, deram consigo
causas; explicar passava por ser a parte sublime do ofício de
ar, uma bela manhã, a fazer ou pensar coisas de que ainda na véspera
toriador. Com efeito, achava-se que explicar consistia em encontr
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de causas, uma razão, quer dizer, um esquem a (a ascensão não faziam a menor ideia; em proveito também daqueles que se
à guisa
que descobriram incapazes de prever o comportamento do seu amigo
da burguesia, as forças de produção, a revolta das massas)
grandes ideias apaixon antes. Mas suponh amos que mais íntimo, mas que, após o acontecimento, foram desencantar
punha em jogo
explicar se reduzia a encarar um polígono de pequenas causas, que
retrospectivamente, no carácter ou no passado desse amigo, um traço
não são as mesmas de conjuntura para conjuntura, nem vêm ocupar
que se revelou anunciador.
; Nada de mais empírico nem de mais simples, aparentemente
os lugares específicos que um esquema lhes attibuitia de antemão
neste caso, 2 explicação, tornada conjuntural e anedótica, não pas- do que a causalidade; o fogo faz ferver a água, a ascensão de uma
todo classe nova traz consigo uma nova ideologia. Esta aparente simpli-
satá de uma acumulação de acasos e perderá, pouco a pouco,
o interesse. cidade camufla uma complexidade ignorada: uma polaridade entre

50 51
a acção e a passividade. O fogo é um agente que se faz obedecer, só comporta sujeitos activos, as regulatidades causais que aí reapa-
a água é passiva e faz o que o fogo lhe manda fazer. Para sabermos recem de lugar para lugar se tornam incompreensíveis. Não neces-
o que se irá passar, bastar-nos-á, pois, ver que direcção é que a sariamente: se pusermos sempre em combate um boxer peso-pesado
causa faz tomar ao efeito, que não pode inovar mais do que uma bola e outro peso-pluma, o vencedor será regularmente o actor mais
de bilhar empurrada por outra numa direcção determinada. Mesma pesado. Mas suponhamos que, pelo mundo fora, os boxeurs são
causa, mesmo efeito: causalidade significará sucessão regular. À inter- misturados e emparelhados totalmente ao acaso; essas regularida-
pretação empirista da causalidade não é diferente; renuncia ao antro- des na vitória deixarão de ser a regra geral e o mundo do boxe
pomorfismo de um efeito escravo que obedeceria regularmente à tornar-se-á um arco-íris que irá de uma plena regularidade à irre-
ordem da sua causa, mas conserva o essencial: a ideia de regulari-
gularidade total e ao golpe de génio. Daremos, assim, conta da
dade; a falsa sobriedade do empirismo dissimula uma metáfora.
característica mais evidente do devir histórico: ele é feito de uma
Ora, metáfora por metáfora, poderíamos falar do fogo e da
ebulição ou de uma classe ascendente e da sua revolução em termos gradação de acontecimentos que vai do mais previsível e regular
diferentes, em que já só haveria sujeitos activos; diríamos então ao mais imprevisível. O nosso energetismo é um monismo de
que, quando se encontra reunido um dispositivo que compreende acasos, quer dizer, um pluralismo; não opomos, de maneira mani-
fogo, uma caçatola, água e uma infinidade de outros pormenores, queísta, a inércia à inovação, a matéria ao Impulso vital e outros
a água «inventa» ferver; e que o reinventará de cada vez que a avatares do Mal e do Bem. A mistuta ao acaso de actores desiguais
pusermos ao fogo. Como um actor, ela responde a uma situação, dá conta tanto da necessidade física como da inovação radical;
actualiza um polígono de possibilidades, desenvolve uma actividade tudo é invenção ou reinvenção, caso a caso.
canalizada por um polígono de pequenas causas; estas, mais do À bem dizer, a parte de sucessão regular, de reinvenção, é
que motores, são obstáculos que limitam essa energia. À metáfora efeito de uma organização post eventum ou mesmo de uma ilusão
já não é a de uma bola lançada numa direcção determinada, mas retrospectiva. O fogo explicará a ebulição e o piso escorregadio
a de um gás elástico que ocupa o espaço que lhe é deixado. explicará um tipo frequente de acidentes de automóvel, se abstrair-
Já não é considerando «a» causa que saberemos o que esse gás mos de todas as outras circunstâncias, infinitamente variadas, dessas
irá fazer ou, melhor ainda, já não há causa; o polígono, em vez de inúmeras intrigas. E assim que os historiadores e os sociólogos
permitir prever a configuração futura dessa energia em expansão, podem perfeitamente nunca prever nada e ter sempre razão. Como
é revelado pela própria expansão. A esta elasticidade natural cha- escreve Bergson no seu admirável estudo sobre o possível e o real,
ma-se também vontade de poder. a inventiva do devir é tal que o possível só por uma ilusão retros-
Se vivêssemos numa sociedade em que este esquema metafó- pectiva é que parece pré-existir ao real: «Como não ver que, sc o

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tico estivesse consagrado, não sentiriamos qualquer dificuldade acontecimento é sempre explicável, a posteriori, por estes ou aqueles
em admitir que uma revolução, uma moda intelectual, um acesso acontecimentos antecedentes, um acontecimento totalmente dife-
de imperialismo ou o êxito de um sistema político não respondem rente seria igualmente explicado, nas mesmas circunstâncias, por
à natureza humana, às necessidades da sociedade ou à lógica das antecedentes diferentemente escolhidos — que digo eu? pelos mes-
coisas, mas que são modas, projectos nos quais nos empenhamos. mos antecedentes, diferentemente organizados, diferentemente dis-
Não só a Revolução de 1789 teria podido não rebentar (uma vez tribuídos, diferentemente percepcionados, enfim, pela atenção retros-
que a história é contingente), como a burguesia ainda teria podido pectiva?». Por isso, não nos apaixonaremos pró ou contra a análise
inventar outra coisa. Em conformidade com este esquema energé- post eventum das estruturas causais na população estudantil de
tico e indeterminado, conceberíamos o devir como a obra mais Nanterre, em Abril de 1968; em Maio de 68 ou em Julho de 89,
ou menos imprevisível de sujeitos exclusivamente activos, que não se os revolucionários, por qualquer pequena causa, tivessem inven-
obedecem a qualquer lei. tado apaixonarem-se por uma relgiosidade nova, acabariamos por
Poderia objectar-se a este esquema que ele é tão inverificável encontrar, na sua mentalidade, o meio de tornar essa moda compre-
e metafísico com o os outros, que não o são menos, é certo; mas ensível a posteriori. O mais simples será ainda analisar comodamente,
tem sobre eles a vantagem de ser uma solução alternativa, que nos em vez das suas causas, o próprio acontecimento; se Maio de 68
desembaraça de falsos problemas e que liberta a nossa imaginação. é uma explosão de descontentamento administrativo (rodeado,
Estávamos a começar a aborrecer-nos na prisão do funcionalismo infelizmente, de um escarcéu que, sendo exagerado, não existe
social e ideológico. Poderia igualmente objectar-se que, se o devir verdadeiramente), a verdadeira explicação de Maio de 68 estará

52 53
do sistema univer- com contingência. Uma pedrinha pode bloquear ou desviar o

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certamente na má organização administrativa

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s§Élífi§i
sitário da época. móvel, a guarda pode não obedecer (e, se tivesse obedecido, escreve
Ttrotski, não teria havido revolução em Leninegrado, em Fevereiro
O espírito de seriedade faz com que, desde Marx, tenhamos
de 1917) e a revolução pode não rebentar (e, escreve ainda
vindo a encarar o devit histórico ou científico como uma sucessão
equaciona ce resolve, ao passo Trotski, se tivesse existido uma pedrinha na bexiga de Lenine, a
que a humanidade

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de problemas
revolução de Outubro não teria rebentado). Pedras tão mínimas
que, com toda a evidência, a humanidade actuante ou sapiente
que não têm nem a dignidade de esquemas inteligíveis nem a de
não cessa de esquecer cada problema para pensar em outra coisa.

ÊÉã§ãlã:Í àé rf § ; ât âà+s§§; lÉi âã*§Ê


desqualificar os ditos esquemas.
De tal modo que o realismo estaria menos em dizer: «Como é que
Mas suponhamos que, em vez de uma causa, corrigida pela
tudo isto irá acabar?» do que em perguntar: «Que é que eles
contingência, tenhamos elasticidade e um polígono com um número
itão ainda inventar, desta vez?» Que haja capacidade de invenção
indefinido de lados (pois, muitas vezes, a determinação dos lados
quer dizer que a história não se conforma com esquemas: O hitle-
far-se-á à luz retrospectiva do acontecimento). O acontecimento
tismo foi uma invenção, no sentido em que não é explicável pela
produzido é, ele próprio, activo; ocupa, como um gás, todo o
política eterna nem pelas forças de produção; foi um encontro
espaço deixado livre entre as causas, e ocupa-o, de preferência
de pequenas séries causais. À ideia famosa de que «os factos não exis-
a não o ocupar; a história gasta-se por nada e não se limita a satis-
tem» (estas palavras são de Nietzsche e não de Max Weber) não se
fazer as suas próprias necessidades. A possibilidade de predizer de-
refere à metodologia do conhecimento histórico nem à pluralidade
penderá da configuração de cada polígono e será sempre limitada,
das interpretações do passado pelos diferentes historiadores; descreve
pois nunca seremos capazes de tomar em consideração um número
a estrutura da realidade física e humana; um facto (a relação de
«Poder», a «necessidade religiosa» ou as exigências in(de)finito de lados em que nenhum é mais determinante do que
produção, o
os outros. O dualismo da inteligibilidade corrigida pelo reconhe-
do social) não desempenha o mesmo papel, ou antes, não é a mesma
cimento de uma contingência apaga-se, ou antes, é substituído
coisa de conjuntura pata conjuntura; o seu papel é identidade são
de circunstância.
pela contingência num sentido diferente e, a bem dizer, mais rico
nos deve espantar, será menos a do que o do nariz de Cleópatra: negação de um primeiro motor da
De resto, se alguma coisa
história (como, por exemplo, a relação de produção, o Político, a
explicação das formações históricas do que a própria existência
vontade de poder) c afirmação de pluralidade dos motores (diría-
de semelhantes formações. A história é tão complicada quanto inven-
mos antes: a pluralidade desses obstáculos que são os lados do
tiva: que vem a ser essa capacidade que os homens têm de actualizar,
polígono). Mil pequenas causas tomam o lugar de uma inteligibi-
por nada e a propósito de nada, essas amplas construções que são as lidade. Esta desaparece também porque um polígono não é um es-
obras e práticas sociais e culturais, tão complexas e inesperadas como quema; não há esquema trans-histórico da revolução, nem preferên-
as espécies vivas, como se possuíssem energia que não soubessem
cias sociais em matéria de literatura ou de cozinha. À partir
utilizar?
daqui, todo o acontecimento se assemelha mais ou menos a uma
A elasticidade natural, ou vontade de poder, explica um
invenção imprevisível. Explicitar esse acontecimento será mais
paradoxo conhecido pelo nome de efeito Tocqueville: as revoluções
interessante do que enumerar as suas pequenas causas e, em qual-
rebentam quando um regime opressor começa a liberalizar-se. quer dos casos, será a tarefa prévia. Enfim, se tudo for história e se
De facto, as sublevações não são semelhantes a uma marmita que, existirem tantos polígonos diferentes como revoluções, de que
à força de ferver, faz saltar a tampa; é, pelo contrário, um ligeiro
é que as ciências humanas poderiam ainda continuar a falar? Que
levantamento da tampa, devido a qualquer causa estranha, que faz poderiam elas, afinal, ensinar-nos sobre o mito grego que a his-
a marmita entrar em ebulição, o que acaba por derrubar a tampa. tória nos não ensinasse?
Este longo patêntese leva-nos ao coração do nosso tema:
a eflorescência do mito e das quimeras de toda a espécie deixa de ser
misteriosa pela sua gratuidadee pela sua inutilidade se a própria
história fot invenção incessante e não levar a vida sensata de uma
pequena aforradora. Temos o hábito de explicar os acontecimentos
por uma causa que empurra o móvel passivo numa direcção pre-
visível («Guardas, obedeçam-me!»); mas, se o devir for imprevisí-
vel, resignar-nos-emos à solução bastarda de caldear a inteligibilidade

54

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DIVERSIDADE SOCIAL DAS CRENÇAS
E BALCANIZAÇÃO DOS CÉREBROS

Não sabemos aquilo que não temos o direito de procurar


saber (daí a sincera cegueira de tantos maridos e de tantos pais)
c não duvidamos daquilo em que outros acreditam, se forem respei-
táveis: as relações entre verdades são relações de força. Daí aquilo
a que se chama a má-fé.
Distinguiam-se dois domínios: o dos deuses e o dos heróis;
porque não se conhecia fábula ou função efabuladora em geral, mas
julgavam-se os mitos segundo o seu conteúdo. À crítica das gera-
ções heróicas consistia em transformar os heróis em simples
homens e em tornar as suas gerações homogéneas em relação àquilo
a que se chamava as gerações humanas, quer dizer, à história desde
a guerra de Tróia. O primeiro acto desta crítica consistia em eli-
minar da história a intervenção visível dos deuses. À própria exis-
tência desses deuses nem por sombras era posta em dúvida; mas,
nos nossos dias, os deuses mantêm-se, o mais das vezes, invisíveis
aos homens; assim acontecia já antes da guerra de Tróia e todo
o maravilhoso homérico não passa de invenção ou credulidade.
É claro que existia uma crítica das crenças religiosas, mas era
muito diferente: alguns pensadores negaram, pura e simplesmente,
quer a existência de todo e qualquer deus, quer talvez apenas
de todos os deuses em que se acreditava. À atitude da imensa maioria
dos filósofos, em contrapartida, bem como dos espíritos cultos,
consistia menos em criticar os deuses do que em procurar uma
ideia que não fosse indigna da majestade divina; a crítica religiosa
consistia em salvar a ideia dos deuses, depurando-a de toda a supers-
tição, e a crítica dos mitos heróicos salvava os heróis tornando-os
tão verosímeis como os simples homens.
As duas críticas eram independentes, e os espíritos mais pie-
dosos teriam sido os primeiros a eliminar, da época dita heróica,

57
as pueris intervenções, milagres e batalhas dos deuses que Homero possuir os objectos mágicos do herói Perseu: o gorro que o tornava

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conta na Jada; ninguém pensava em esmagar o Infame, nem em invisível e a máscara de Medusa que lhe permitia transformar os
fazer da crítica dos heróis uma máquina de guerra ou uma guer- importunos em estátuas. Não fala por parábolas: acredita em todas
trilha de alusões contra a religião. É este o paradoxo: houve estas matavilhas. Na mesma época, doutos pertencentes à classe
espíritos capazes de não acreditarem na existência dos deuses, mas alta e que eram escritores célebres, como Plínio, o Jovem, inter-
nunca ninguém duvidou da dos heróis. E por razões evidentes: rogavam-se sobre se deviam acreditar nos fantasmas tão grave-
os heróis foram simples homens a quem a credulidade atribuiu mente como, ao que me dizem, acontecerá ainda na Inglaterra de
características maravilhosas, e como duvidar de que os seres huma- Shakespeare.
nos existem e existiram? Nem toda a gente estava disposta, em Não se pode duvidar de que o povo grego tenha acreditado

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compensação, a acreditar na realidade dos deuses, pois não os na sua mitologia durante todo o tempo em que as amas ou as
vemos com os nossos olhos. Resulta daqui que, durante o período mães lha contavam. «Ariadne! foi abandonada, enquanto dormia

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que vamos estudar e que se estende por quase um milénio, do na ilha de Dia, pelo pérfido Teseu; a tua ama deve ter-te contado

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século V a.C. ao século IV d.C., absolutamente ninguém, incluindo este conto, pois são sábias, nesta matéria, as mulheres desta con-

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os cristãos, emitiu a menor dúvida acerca da historicidade de Eneias, dição e choram facilmente enquanto contam; não preciso pois,
de Rómulo, de Teseu, de Hércules, de Aquiles e mesmo de meu rapaz, de te dizer que é Teseu que vai no navio e que é
Dionísio, ou melhor, toda a gente afirmou essa historicidade. Expli- Dionísio que se vê na margem...» Defenderemos pois que «a fé
citaremos mais à frente os pressupostos desta longa confiança; nos mitos? é a aceitação de acontecimentos inautênticos e inven-
itemos agora descrever que Gregos acreditavam em quê durante tados, tais como os ímitos relativos a Crono, entre outros; há, de
esses nove séculos. facto, muita gente que acredita neles».
Existia, entre o povo, uma caterva de superstições folclóricas Mas que mitos é que as amas contavam às crianças? Falavam-

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que, por vezes, se encontravam também naquilo a que já se cha- lhes dos deuses, sem dúvida, pois a piedade e a superstição

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mava mitologia. Nas classes sociais em que se lia, essa mitologia assim o exigiam; assustavam-nas com papões e Lâmias; contavam-

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encontrava inteiro crédito, tanto quanto na época de Píndatro; o lhes, de moto próprio, novelas sentimentais, Ariadne ou Psigué, e

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grande público acreditava na realidade dos Centauros e não subme- choravam. Mas falar-lhes-iam dos grandes ciclos míticos, Tebas,
tia a qualquer crítica as lendas de Héracles ou de Dionísio. A can- Édipo, os Argonautas? Não teria o rapazinho, bem como a rapa-
dura dos leitores da Lenda dourada setá a mesma, pelas mesmas
razões; acreditarão nos milagres de S. Nicolau e na lenda de Santa
Catarina (essa «Minerva dos papistas», como lhe chamarão os 1 Filostrato, Imagines, 1, 14 (15), Ariadne. O tema da ama ou da mãe que

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protestantes) por docilidade em relação à palavra de outrém, por conta fábulas remonta a Platão, República, 378 €, e Leis, 887 D. Às amas con-

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ausência de sistematização da experiência quotidiana e por um tavam contos aterradores sobre as Lâmias, ou então sobte os cabelos do Sol,
escreve Tertuliano, 4d Valentinianos, 3. Pata Platão, trata-se de contos ingénuos

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estado de espírito respeitoso e edificante. Os doutos, enfim, faziam
(Lísis, 205 D); são os aniles fabule de que fala Minucius Félix, XX, 4, que her-
a crítica histórica dos mitos com o êxito que conhecemos. O resul- dámos dos nossos ixperiti parentes (XXIV, 1). No Heróico, de Filostrato, o Vinha-
tado, sociologicamente curioso, é o seguinte: a candura do público teiro pergunta ao autor: «Quando é que começaste a achar incríveis as fábulas»,

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e a crítica dos doutos não travavam qualquer combate pelo triunfo c Filostrato, ou o seu porta-voz, responde: «Há muito tempo, quando era ado-

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lescente; de facto, quando era criança, acreditava nessas fábulas e a minha ama

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das Luzes, nem a primeira eta culturalmente desvalorizada. Pro-
divertia-me com esses contos, que acompanhava com uma linda canção; algumas

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duzia-se, assim, no campo das relações de força simbólica, uma dessas fábulas faziam-na mesmo chotat; mas, ao chegar a jovem, pensei que já

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coexistência pacífica que cada indivíduo, mesmo que pertencesse não devia aceitar essas fábulas irteflectidamente» (Heroikos, 136-137 Kayser;

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ao clã dos doutos, interiotizava; o que provocava nele meias p. 8 De Lannoy). Também Quintiliano fala de aniles fabule (Inst., 1, 8, 19). No
crenças, hesitações, contradições, por um lado, e, por outro, Hipólito, de Eurípides, a ama compromete os Doutos na seguinte questão: antes
de relatar a fábula de Sémele, alega que os Doutos vitam livros acerca desta
a possibilidade de jogar em vários tabuleiros. De onde, em par- lenda (451). Num notável epitáfio métrico de Quíos (Kaibel, Epigrammata, 232),

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ticular, um uso «ideológico», ou melhor, retórico, da mitologia. duas velhas damas «de uma excelente família de Cós» lamentam, saudosas, a
No Satiricon, um novo-tico ingénuo conta que viu com os luz: «6 doce Aurota, tu, para quem cantámos, à luz do candeeiro, os mitos dos

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semi-deuses!». Efectivamente, talvez as canções que andavam em todas as bocas
próprios olhos uma Sibila, magicamente miniaturizada e fechada

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tivessem por assunto um mito: em Horácio, Odes, 1, 17, 20, a bela Tíndaris can-

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numa garrafa, como se se tratasse de um génio das Mile Uma Noites; tará a Horácio, na intimidade, Penelopen vitreamgne Circen,

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no Atrabiliário de Menandto, um misantropo daria tudo para 2 Sextus Empiricus, Hipotiposes pirrónicas, 1, 147.

58 59

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tiguinha3, de esperar pela autoridade do gramático para conhecer se vê, esta história de culto dos heróis é também uma história de

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as grandes lendas?4 fantasmas?. À sequência do diálogo é uma fantasia homérica
Há que referir aqui um texto célebre, mas ainda pouco estu- como as apreciadas na época, em que o vinhateiro revela uma infi-

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dado, o Discurso heróico de Filostrato; texto difícil, pois a estilização, nidade de pormenores desconhecidos acerca da guerra de Tróia e
a fantasia e a ideologia passadista, como acontece frequentemente os seus heróis, pormenores esses que lhe são facultados pelo seu

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na Segunda Sofística, misturam-se com a realidade contemporânea. amigo Protesilau em pessoa; esta parte do diálogo é a mais

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Filostrato travou conhecimento com um pobre camponês* que cul- comprida e, aos olhos de Filostrato, a mais importante. Tem-se

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tivava a vinha não longe do túmulo do herói Protesilau; o vinhateiro a impressão de que Filostrato conheceu a existência de uma supers-
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deixa inculta uma parte das suas terras (cultiva-as ele próprio e tição campesina em torno de um velho santuário rústico e de que a

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tirou-as aos seus escravos, que lhe davam muito pouco lucro), relacionou com a mitologia, tornada clássica e escolat; mergulha

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porque essas terras haviam sido consagradas ao herói pelo proprie- assim os leitores, seus compatriotas, num helenismo sem idade,

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tário anterior, a quem o fantasma de Protesilau aparecera. Este o de Luciano ou de Longo, na Grécia eterna, tão cara ao classi-

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fantasma continua a aparecer ao nosso vinhateiro c aos campo- cismo nacionalista do seu tempo, em que o patriotismo helénico

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neses da vizinhança, bem como os fantasmas de Aqueus que haviam reagia contra o domínio romano. Sem dúvida que os campo-

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participado com Protesilau no cerco de Tróia; as suas sombras neses que lhe serviram de modelos nada sabiam da guerra de Tróia;

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engalanadas vêem-se, por vezes, na planície. Longe de meter medo, não custará acreditar que o seu culto ingénuo tenha tido por

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o fantasma do herói é muito amado; dá conselhos aos agricultores, centro um velho túmulo de Protesilau; mas que saberiam ainda do

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é presságio de chuva e de bom tempo; a gente da região dirige herói a quem continuavam a dar esse nome?
pedidos ao herói, garatuja as suas orações sobre a estátua), tor- O povo tinha as suas lendas, em que se falava de certos

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nada disforme, que coroa o seu túmulo, pois Protesilau cura todas mitos; havia também heróis, como Héracles, de que toda a gente

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as doenças. Ele favorece também as empresas dos amantes que conhecia o nome e a natureza, senão as aventuras em pormenor;
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procuram os favores de um adolescente, mas, em compensação, outtas lendas, perfeitamente clássicas, eram conhecidas através das

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é impiedoso para com os adúlteros, pois tem sentido moral. Como canções$. Em qualquer caso, a literatura oral e a iconografia davam

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a conhecer a todos a existência e a modalidade de ficção de um mundo


mitológico cujo sabor era sentido, mesmo que se ignorassem os

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De facto, as rapariguinhas seguiam o ensino do gramático, mas paravam pormenores. Esses pormenores só eram conhecidos por aqueles
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antes de passarem à férula do retórico; acrescento que as classes cram «mistas»: que haviam frequentado a escola. Mas, de uma maneira um pouco
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raparigas e rapazes ouviam, lado a lado, o gramático. Este pormenor, que parece
diferente, não fora sempre assim? Acreditar-se-á, de facto, que a
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pouco conhecido, lê-se em Marcial, VIII, 3, 15 e IX, 68, 2, c em Soranos, Sobre
as doenças das mulheres, cap. 92 (p. 209 Dietz); cf, Friedlander, Szttengeschichte Romes, Atenas clássica fora uma grande colectividade cívica onde os
espíritos formavam um único bloco, onde o teatro selava a unidade

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92 ed., Leipzig, Hirzel, 1919, 1, 409. À mitologia aprendia-se na escola.
4 Sobre as Lâmias e outros papões gregos, cf, sobretudo Estrabão, 1, 8, €. dos corações e onde o cidadão médio sabia tudo sobre Jocasta e o
19, num capítulo, de resto, importante para o estudo das atitudes perante o mito.
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Sobre Amor e Psiqué, O. Weinreich, Das Márchen von Amor und Psyche und andere
F§E regresso dos Heraclidas?
A essência de um mito não consiste em ser conhecido por

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Volksmárchen im Altertum, na nona edição da Sittengeschichte Roms de Friedlander,
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§ 3;i i: ii? ã !ã'


vol. IV, p. 89. todos, mas em supor-se que o seja e que seja digno disso; e, de facto,
Ss Tão pobre que, embora não vivendo em autarcia, ignora o uso da em geral não era conhecido. Há na Poética? três observações que
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moeda e troca o seu vinho e o seu trigo por um boi ou um carneiro (1, 129,
7 Kayser). Isto é plausível; cf. J. Crawford em Journal of Roman Studies, LX, 1970,
vão longe; não devemos, diz Aristóteles, limitar-nos aos mitos
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acerca da raridade dos achados monetários nos locais não utbanos. consagrados quando escrevemos uma tragédia: «Tratar-se-ia de um
6 Heroikos, IX, 141, 6. Nas nascentes do Clitumne, as paredes e as colunas escrúpulo bizarro, uma vez que mesmo os assuntos conhecidos o
§§;3Ei16r

do santuário estavam cobertas de graffiti «que celebtavam o deus» (Plínio, Cartas,


VIII, 8). Cf. em Mitteis-Wilcken, Chrestomathie d. Papyruskunde, Wildesheim,
Olms, 1963, uma carta de um certo Nearco (n.º 117). É conhecida a existência
de semelhantes graffiti de «proscinema» no Egipto (por exemplo, sobre as pedras 7 Sobre a «querela dos fantasmas» no século II, cf. Plínio, Cartas, VII,

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de um templo, em Talmis: A, D. Nock, Essays, Oxford, Clarendon Press, 1972, 27; Luciano, Filopsendes; Plutarco, prefácio da Vida de Dion.

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p. 358). À primeira peça das Priapeias (de que possuímos também uma cópia 8 Sobre estas canções, cf. nota 1 deste capítulo, ad finem. Acrescentar

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epigráfica, Corpus inscr. lat., V, 2803... a menos que se trate do original) alude Eurípides, Jon, 507.

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a isto: «O pouco que valem estes versos, que nas paredes do teu templo escrevi 9 Aristóteles, Poética, IX, 8. W. Jaeger, Paídeia, Paris, Gallimard, 1964,

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sem peias, digna-te recebê-los em bom lugar, rogo-te (6 Priapo)». vol. 1, p. 326.
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são apenas por poucos; e nem por isso deixam de agradar a toda titui a mitologia tal como a encontramos, por exemplo,

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a gente». O público ateniense conhecia globalmente a existência Luciano; será ela que se ensinará aos estudantes da Europa clássica.

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de um mundo mítico, onde se desenrolavam as tragédias, mas Restava o lado sério da questão: que pensar desta massa de relatos?

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ignorava os pormenores das fábulas. De facto, não precisava de Neste ponto, há duas escolas, erradamente confundidas sob o termo

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conhecer os mínimos pormenores da lenda de Édipo para seguir demasiado moderno de tratamento racional do mito: pot um lado,

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Antígona ou As Fenícias; o poeta trágico tinha o cuidado de infor- os ctédulos, tais como Diodoro,

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mas também Evémero; por outro,

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mar o seu público acerca de tudo, como se tivesse inventado a sua os doutos.
intriga. Mas o poeta não se colocava acima do seu público, Existia, com efeito, um público crédulo, mas culto, que exigia

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visto que o mito era suposto ser conhecido; não sabia mais do que um maravilhoso novo; este maravilhoso já não podia situar-se, para

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os outros, não fazia literatura erudita. além do verdadeiro e do falso, num passado intemporal; preten-

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Tudo muda na época helenística: a literatura pretende-se douta. dia-se que fosse «científico», ou melhor, histórico. De facto, já não

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ou Ésquilo não eram precisamente escritores populares), mas não reside, creio, na Aufklarumg dos Sofistas, mas no êxito do
exige do público um esforço cultural que afasta os amadores. Os género histórico. Para merecer crédito, o mito terá, doravante,
mitos dão então lugar precisamente àquilo a que ainda hoje chama- de passar por história, o que dará a esta mistificação a aparência

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mos mitologia e que sobreviverá até ao século XVIII. O povo enganosa de uma racionalização. E daí o aspecto falsamente contra-

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continuava a ter os seus mitos e as suas superstições, mas a mitolo- ditório de Timeu, um dos gtandes fornecedores do género; Timeu
gia, tornada erudita, afastava-se dele, possuindo, a seus olhos, escreveu uma história «repleta de sonhos, prodígios, relatos incrí-

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o prestígio de um saber de e/ite10, que distingue os que o partilham. veis, numa palavra, de superstições grosseiras e contos ingénuos»13;
Na época helenística, em que a literatura se tornou uma o mesmo Timeu fornece uma interpretação racional dos mitos.
actividade específica que autores e leitores cultivam por si própria, Muitos historiadores, escreve Diodoro14, «evitaram, como uma

§
a mitologia torna-se uma disciplina que não tardará a ser ensinada dificuldade, a história dos tempos fabulosos»; ele próprio levará

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§
na escola. Nem por isso se tornará coisa motta, pelo contrário: a peito o preenchimento dessa lacuna. Zeus foi um rei, filho de um

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continuará a ser um dos grandes elementos da cultura e não deixará certo Crono, que reinou ele próprio sobre todo o Ocidente; este

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de ser uma pedra de toque para os lettados. Calímaco recolhia Zeus foi verdadeiramente dono do mundo; não se confundirá

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variantes ratas das grandes lendas e dos mitos locais, não com este Zeus com um dos seus homónimos15, que não passou de rei de
frivolidade (nada menos frívolo que o alexandrinismo), mas com Creta e teve dez filhos, chamados Curetes. É o mesmo Diodoro16
uma devoção de pattiota; há mesmo quem tenha suposto que ele que acredita piamente, cem páginas mais adiante, nas viagens imagi-

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e os seus émulos percortiam o mundo grego com o propósito
deliberado de recolher tais lendasll. Quatro séculos mais tarde,
Pausânias percorreu a Grécia e vasculhou as bibliotecas com a mesma
13 Políbio, XII, 24, 5.

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paixão. Tornada livresca, a mitologia continuava a cresccr, mas as

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14 Diodoro, 1, 3.

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publicações adaptavam-se ao gosto da época; a nova literatura

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IS Diodoro, II, 61; os livros IV e VI são consagrados às gerações herói-

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cas e divinas da Grécia. A guerra de Tróia figurava, sem dúvida, no livro VII.

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máticos e aos retóricos, a Fábula, posta em manuais, irá conhecer uma 16 Em V, 41-46, e num fragmento do livro VI conservado por Eusébio,

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versão oficial e deixando cair no esquecimento as variantes. É uma Kommagene», Abhandil. Akad. Gottingen, III, 60, 1964, p. 218, pensa que o

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romance de Evémero eta uma utopia política e um espelho dos príncipes; for-
vulgata escolar, destinada 20 estudo dos autores clássicos, que cons-

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necia o modelo ou a justificação do rei evergeta, Talvez; todavia, a parte de

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matavilhoso e de pitoresco ultrapassa de longe a das alusões políticas; para

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mais, a ilha de Pancaia não obedece só a um rei; encontra-se também aí uma

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10 Ta ideia que deles faz Trimalcião (Petrônio, XXXIX, 3-4; XLVII, 7; cidade, uma espécie de república sacerdotal. Com efeito, a ideia de que os deuses
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11 E. Rhode, Der griech. Roman, Beslim, 1876, p. 24 e 99. a patte e ultrapassa largamente a obra de Evémero, que se limitou a tirar partido
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12 Nilsson, Geschichte d. griech. Religion, vol. 1, p. 58. dela para escrever um conto.
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nárias de Evémero a ilhas maravilhosas, uma das quais teve por reis

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como provam as inscrições gravadas na língua desse país, e que

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xistência não pacífica de dois programas de verdade, um dos quais
«entre nós» são tidos por deuses. Terá Evémero disfarçado numa

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era crítico e o segundo respeitoso20, O conflito fizera passar os
ficção alguma empresa de desmistificação religiosa ou mesmo polí-

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partidários do segundo, da espontaneidade, à fidelidade a si pró-
tica? Ou não pretenderá antes fornecer aos seus leitores razões
prios; doravante, possuíam «convicções» e exigiam que fossem res-
modernas para acreditar no mito e no maravilhoso? Havia rios de
peitadas; a ideia de verdade passava para segundo plano; o desres-
indulgência em relação aos efabuladores. Não se dava grande
peito era escandaloso e o que era escandaloso era, pois, falso, Uma
importância às fábulas lidas nos próprios historiadores, mesmo que

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vez que todo o bem era também verdadeiro, só era verdadeiro o que
não confessassem ter mitografado, visto que, diz Estrabão 17, se
era bem. Diodoro, que se vende ao seu público, faz aqui de homem
sabia que a sua intenção tinha sido apenas divertir e surpreender
dos sete instrumentos; chega a ver as coisas com os olhos de
por um maravilhoso de invenção. Só que o maravilhoso da época

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ambos os campos, a dar a impressão, aos que pensam bem, que
helenística tem matizes racionalistas, de tal modo que os modernos
lhes concilia o ponto de vista dos críticos, e a incluir-se final-
são tentados a saudar nele, por inadvertência, um combate pela
verdade e pelas luzes. mente ele próprio no partido dos bem-pensantes. Parece estar de

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Na verdade, havia leitores para quem a exigência de verdade má-fé porque exprime a crença de respeito de uns na linguagem
crítica dos outros. O que nos prova, pelo menos, que os crentes
existia e outros para quem não existia, Um passo de Diodoro pôr-
continuavam a ser numerosos; na sua versão modernizada, Hér-
-nos-á ao corrente. É difícil, diz este historiador, contar a história

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dos tempos míticos, quanto mais não seja devido à imprecisão da
cules e Baco já não etam figuras divinas, mas sim deuses que eram
homens ou homens divinos a quem a humanidade devia a civili-
cronologia; esta imprecisão faz com que muitos leitores não tomem
zação. E, com efeito, de tempos a tempos, um incidente sensacio-
a sériol8 a história mítica. Além disso, os acontecimentos desta

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nal21 revelava que a multidão e as elites continuavam a acreditar
época recuada são demasiado longínquos e demasiado inverosi-
neste maravilhoso semidivino.
meis para se acreditar facilmente neles19. Que fazer? As proezas de

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Héracles são tão gloriosas como sobre-humanas; «ou se silenciam
alguns destes altos feitos, saindo assim a glória do deus diminuída;
20 Por volta de 1873, o jovem filólogo Nietzsche escrevia: «Que liberdade
ou então contam-se todos, não se encontrando crédito. De facto,

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poética não usavam os Gregos com os seus deuses! Nós adquirimos demasiado
certos leitores exigem injustamente o mesmo rigor nas velhas lendas o hábito de, em história, opor a verdade e a não-verdade; quando se pensa que
e nos acontecimentos do nosso período; avaliam proezas que são é absolutamente necessário que os mitos cristãos se apresentem como historica-
contestadas com base no vigor físico tal como ele é nas condi- mente autênticos! (...) O homem exige a verdade e cumpte-a (/eistet sie) no
comércio ético com os outros homens; toda a vida colectiva assenta nisto; ante-
ções actuais e representam a força de Héracles pelo modelo da fra- cipamos os efeitos nefastos de mentiras recíprocas; é daqui que nasce o dever
queza dos homens actuais». Estes leitores que aplicam a Héracles de dizer a verdade. Mas petmite-se a mentira ao natrador épico, porque aí não
o falso princípio das coisas actuais cometem, além disso, o erro há que temer qualquet consequência nociva; a mentira é, pois, permitida quando
de pretenderem que as coisas se passem no palco como na cidade, proporciona deleite; beleza e graça da mentira, mas com a condição de não
fazer mall É assim que o sacerdote inventa os mitos dos seus deuses; a mentira
o que é falta de respeito pelos heróis: «Em matéria de história serve para provar que os deuses são sublimes. Nós temos a maior dificuldade em
lendária, não devemos reclamar intransigentemente a verdade, reviver o sentimento mítico da liberdade de mentir; os grandes filósofos gregos
pois tudo se passa como no teatro: aí, não acreditamos na existência viviam ainda inteiramente neste direito à mentira (Berechtigung zur Luge). À pro-
de Centauros meio humanos e meio animais, nem na de um Gérion cura da verdade é uma aquisição que a humanidade fez com extrema lentidão».
(Philodophenbuch, 44 e 70, no tomo X da edição Kroner; retraduzo o texto),
com três corpos, mas não deixamos de aceitar as fábulas deste 21 Dion Cássio, LXXIX, 18, encontrando-se na Ásia, foi, em 221, teste-
género e, ao aplaudi-las, prestamos homenagem ao deus. De facto, temunha próxima do seguinte acontecimento, no qual acredita sem reservas:
Héracles passou a vida a tornar a terra habitável; seria chocante «Um daimon que dizia ser o famoso Alexandre Magno da Macedónia, que se
lhe parecia de rosto e se encontrava equipado exactamente como ele, surgiu
das regiões danubianas, onde aparecera não sei como; atravessou a (Mésia?)
c a Trácia, comportando-se como Dionísio, com quatrocentos homens, munidos
17 Estrabão, 1, 2, 35, p. 43 €.
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18 Diodoro, IV, 1, 1.
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pitaram-se, com os governadores e procuradores à cabeça; «transportou-se


19 Diodoro, IV, 8. Na Preparação evangélica, no livro II, Eusébio cita demo-
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(ou: «fizeram-lhe cortejo») até Bizâncio, de dia, como anunciara, a seguir deixou
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radamente as mitografias de Diodoro sobre Cadmos ou Héracles,


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ditava nas lendas acerca de Cronos, diz Sextus Empiricus; acredita estende-se a idade histórica, em que «os acontecimentos são rela-
no que as tragédias contam de Prometeu, Níobe e Teseu, escrevem tados em livros de história verídicos».
Artemidoro e Pausânias. E porque não? Não acreditavam os doutos, Os doutos, como se vê, não estão dispostos a deixar-se intru-
também eles, em Teseu? A multidão limitava-se a não depurar o jat; mas, por um primeiro paradoxo, duvidam muito mais facilmente
mito. Como na época arcaica, o passado da humanidade era, pois, dos deuses do que dos heróis. O que acontece com Cícero, por
precedido, a seus olhos, por um período maravilhoso que era outro exemplo. Em política, como em moral, é sensivelmente igual a
mundo. Real em si próprio e irreal em relação ao nosso. Quando Victor Cousin e é muito capaz de acreditar no que convém aos seus
uma personagem de Plauto22, em apuros financeiros, declara: interesses. Tem, em contrapartida, um temperamento religiosamente
«Rogarei a Aquiles que me dê o ouro que recebeu pelo resgate de frio e, neste dominio, é incapaz de professar algo em que não acre-
Heitor», está a designar graciosamente o meio mais fantástico possí- dite; qualquer leitor do seu tratado sobre a natuteza dos deuses estará
vel de obter ouro. Nesta civilização, não se enxetgava nada para de acordo em que ele não acredita muito neles e que nem sequer
além de um horizonte temporal muito próximo; interrogavam-se, tenta fazer crer o contrário por cálculo político. Deixa entrever
como Epicuro, se o mundo teria um milénio ou dois, não mais; que, na sua época, os indivíduos estavam divididos, como na nossa,
ou, como Aristételes e Platão, se não seria eterno, mas devastado em matéria de religião; Castor e Pólux teriam realmente aparecido
por catástrofes periódicas, recomeçando tudo como anteriormente a um tal Vatieno num caminho dos arredores de Roma? O assunto
após cada uma delas, o que equivalia a pensar como Epicuro. era discutido, entre devotos à moda antiga e cépticos25. Havia
Sendo tão curto o ritmo de vida do nosso mundo, o mundo não também divisões acerca da fábula: segundo Cícero, a amizade de
deixou de passar por evoluções consideráveis; a época homérica, as Teseu e Pirítoo e a sua descida aos Infernos não passa de uma inven-
gerações heróicas constituíam a Antiguidade aos olhos desta civilização ção, uma fabula fita. Poupemos, pois, ao leitor as considerações de
antiga. Quando Virgílio pretende pintar a Cartago arcaica, tal como rigor acerca do interesse de classe da religião e da mitologia. Ota o
deveria ser onze séculos antes da sua época, atribui-lhe um carácter próprio Cícero, que não acredita nem no aparecimento de Castor
homérico; nada de menos flaubertiano do que a cidade de Dido... e de seu irmão, nem, sem dúvida, na própria existência de Castor,
Já Heródoto opunha as gerações heróicas às gerações huma- e que não o esconde, admite plenamente a historicidade de Eneias
nas. Muito mais tarde, quando Cicero pretender encantar-se com e de Rómulo; aliás, essa historicidade só foi posta em dúvida
um sonho filosófico de imortalidade, dando a esse sonho o carácter no século XIX.
de um idílio nos campos elísios23, alegrar-se-á ao pensar que, Segundo paradoxo: quase tudo o que se conta acerca destes
nessas doutas pradarias, a sua alma conversará com a do sábio Ulis- personagens não passa de fábula oca, mas o total desses zeros faz
ses ou a do sagaz Sísifo; se a fantasia de Cícero fosse menos uma soma positiva; Teseu existiu de facto. No seu Tratado das leis,
feérica, teria antes prometido a si próprio dialogar com figuras Cicero, desde a primeira página, graceja afavelmente acerca da pre-
históricas tomanas, Cipião, Catão ou Marcelo, cuja memória evoca tensa aparição de Rómulo após a morte e das entrevistas do bom
quatro páginas adiante. Um erudito, na mesma época, dera uma cla- rei Numa com a sua ninfa Egéria. Na sua Repáblica26, tão-pouco
teza didáctica e estes problemas: segundo Varrão?4, de Deucalião
ao Dilúvio estendia-se a idade obscura; do Dilúvio à primeira
olimpíada (quando a cronologia se tornava segura), era a idade
mítica, «assim chamada porque comporta muitas fábulas»; da pri- 25 Cícero, De natura deormm, NI, 5, 11. Da mesma maneira, na Arze de

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(cf. Hermann Frankel, Ovid, eim Dichter swischen zwei Welten, Darmstadt, wiss
Buchg, 1974, 0. 98 em. 65, p. 194). Filémon escrevera: «Artanja deuses e pres-
ta-lhes um culto, mas não inguiras nada acerca deles; a tua investigação não te

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esta cidade e partiu para Calcedónia; aí, realizou ritos nocturnos, enterrou
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traria nada de novo; não pretendas saber se existem ou não; adora-os como
debaixo de terra um cavalo de madeira e desapareceu». existentes e como próximos de ti» (fragmento 118 AB Kock, em Stobée, II,

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22 Plauto, Mercator, 487, comentado por Ed. Fraenkel, Ellementi plautini
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1, 5). Cf. já Aristófanes, Cavaleiros, 32. Quanto à amizade de Teseu e de Pirítoo


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in Plauto, Flotença, La Nuova Italia, 1960, p. 74. Quanto a Sextus Empiricus,
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como fabula ficta, cf. o De finibus, I, 20, 64.


Artemidoro e Pausânias, cf, as notas 2 deste capítulo, 11 do cap. «Como devol- 26 Cícero, De re publica, II, 2, 4 e 10, 18. Acreditou-se na historicidade

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vet o mito...» e 10 do cap, «Quando a verdade histórica...».
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de Rómulo até pleno século XIX, mas por razões diferentes das de Cícero, como
23 Cf, nota 12 do cap, «Quando a verdade histórica...» se verá; Cícero acredita em Rómulo, fundador de Roma, por o mito conter

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24 Varrão, citado por Censorinus, De die natali, 21 (Jahn, p. 62).
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um núcleo histórico (não há fumo sem fogo) e por a história ser a política do

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acredita que Rómulo seja o filho do deus Marte, que teria empre- naco de passado lendário. Éforo recusaria as narrativas mais antigas

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nhado uma Vestal: fábula venerável, mas fábula apesar de tudo. como falsas? Dir-se-ia antes que perdera a esperança de destrinçar
Também não dá mais crédito à apoteose do fundador de Roma: nelas a verdade e que preferia abster-se. Com efeito, via-se doloro-

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a divinização póstuma de Rómulo não passa de uma lenda, boa para samente obrigado a renunciar à tendência dos historiadores antigos

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as idades ingénuas. Rómulo não deixa de ser uma personagem para aceitarem em bloco toda a tradição, à maneira de uma vulgata.
historicamente autêntica e o que a sua divinização, segundo Cícero, Éforo abster-se-á de aprovar, mas tanto ele como os seus pares
tem de curioso é precisamente o facto de ter sido inventada em plena se absterão igualmente de condenar. É aqui que começa o segundo

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idade histórica, pois se situa após a sétima olimpíada. De Rómulo movimento de que falávamos antes: o regresso à credulidade, vei-
e de Numa, Cícero põe tudo em dúvida, excepto, precisamente, à culada por uma crítica metódica. Há um fundo de verdade em todas
sua existência. Mais exactamente, há aqui um terceiro paradoxo: as lendas; pot conseguinte, quando passam do conjunto, que é
os doutos, ora parecem muito cépticos acerca da fábula no seu con- suspeito, ao pormenor e aos mitos um a um, tornam-se prudentes.
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junto e se descartam dela com algumas frases expeditivas; ora Duvidam dos mitos em bloco, mas nem um só deles negou o fundo
parecem de novo perfeitamente crédulos e este regresso à creduli- de historicidade de nenhuma lenda; a partir do momeno em que já
dade produz-se de cada vez que, perante algum episódio da não se trata de emitir uma dúvida global, mas de pronunciar uma
fábula, pretendem ser pensadores sérios e responsáveis. Má fé, meia- sentença sobre um ponto determinado e de empenhar a sua palavra
-crença? Não, antes oscilação entre dois critérios do verdadeiro, de erudito sério, o historiador torna a acreditar. Dedica-se a peneirar
um dos quais era a rejeição do maravilhoso e o outro a convicção e a salvar o fundo de verdade.
de que era impossível mentir radicalmente. Mas atenção: quando Cicero, no seu De re publica, ou Tito Lívio,
A fábula será verdadeira ou falsa? Ela é suspeita; daí o seu no seu prefácio, confessam que os acontecimentos «que precederam
movimento de mau humor: são contos de mulher simplória. a fundação de Roma» só são conhecidos «embelezados por lendas
As diferentes cidades, escreve um retórico27, devem a sua origem, boas para poetas, em vez de transmitidos por monumentos não con-
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quer a algum deus, quer a um herói, quer ao homem que foi o taminados», não estão a vislumbrar a crítica histórica moderna,
seu fundador; «destas diferentes etiologias, as que são divinas ou nem a ptefigurar Beaufort, Niebuhr ou Dumézil; não denunciam a
heróicas são lendárias (zythódes) e as que são humanas são mais incerteza geral dos quatro séculos seguintes à fundação nem a ausên-
§

dignas de crédito». A palavra mito mudou de valor desde a época cia de qualquer documento contemporâneo desse período. Quei-
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arcaica; quando um autor deixa de assumir pessoalmente um xam-se sim de que os documentos relativos a um período mais
relato e narra em estilo indirecto: «um mito diz que...», já não pre- antigo ainda não sejam seguros, pois esses documentos existem:
tende tornar notória aos olhos de todos uma informação que andava são tradições, mas suspeitas. Não por serem muito posteriores aos
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no at, tenciona tirar o cavalo da chuva e deixar cada um pensar O factos, mas porque a credulidade os contaminou. O que Tito
que quiser. «Mito» tornou-se uma palavra ligeiramente pejorativa Lívio ou Cicero se recusam a afitmar por conta própria é o nasci-
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que qualifica uma tradição suspeita. Há um texto marcante: Isócra- mento divino de Rómulo ou o milagre dos navios de Eneias meta-
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tes28 sentiu um dia a necessidade de protestar virtuosamente que morfoseados em ninfas,


havia uma lenda que não tinha incrédulos; «Zeus», escreve ele, O conhecimento dos períodos lendários passará, pois, a depen-
«engendrou Héracles e Tântalo, como dizem os mitos e como der de um modo de saber que nos é perfeitamente habitual, mas
toda a gente acredita»; este zelo desajeitado trai alguma má cons- que punha os Antigos pouco à vontade quando se tratava de
ciência. Não sabendo já o que pensar, o historiador Éforo começou história: a crítica, o conhecimento conjectural, a hipótese cientí-
a sua história com a narrativa do regresso dos Heraclidas29 c recu- fica. À conjectura, a eikasis, toma o lugar da confiança na tradição.
sou-se a ir mais para trás; aos nossos olhos, isso dava ainda um belo O seu fundamento será o seguinte: o passado é semelhante ao pre-
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sente. Havia já sido este o fundamento sobre o qual Tucídides, ao


procurar saber mais do que a tradição, erguera a sua reconstrução
passado; Boussuet acredita em Rómulo ou em Hércules por respeito pelos textos, genial e perfeitamente falsa e gratuita dos primeiros tempos da

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que distingue mal da realidade, Grécia.


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vol. IH, p. 359, 9 Spengel. parte de maravilhoso, torna-se possível acreditar em todas as lendas,
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28 Isócrates, Démonicos, 50.


e foi o que os melhores espíritos desta grande época fizeram. Aristó-
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29 Diodoro, IV, 1, 2.
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teles, por exemplo, é dono das suas palavras e, quando quer dizer das fábulas, as guerras de Tróia e de Tebas não suscitam qualquer

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«conta-se que...» ou «ao que se crê», di-lo; distingue o mito do que dúvida: trata-se dos mais antigos acontecimentos conhecidos.

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não é mítico30, Ora vimo-lo não duvidar da historicidade de Concluamos com o grande Políbio37. Quando se encontra em pre-
Teseu e dar uma versão racional do conto do Minotauro31, sença de uma versão oficial, relata-a sem comentários: «Os Aqueus

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Tucídides32, que tão-pouco duvidava da historicidade de Minos, tiveram pot primeiro rei um filho de Otestes, Tisameno, que foi

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acreditava também na de Heleno, antigo rei dos Helenos, e recons- exilado de Esparta aquando do regresso dos Heraclidas». Quando
truía o verdadeiro papel político que tinham tido Ítis, Pandíon, relata um mito menor, guarda as suas distâncias: determinada cida-
Procne e Filomela (que, segundo a lenda, foram metamorfoseados dezinha na região acaica «fora construída por Héracles, de acordo
em pássaros). Mas, em compensação, recusa-se a fornecer explica- com o que dizem os mitos». Mas, quando empenha a sua tespon-

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ções sobre os Ciclopes e os monstruosos Lestrigões: que cada um sabilidade de historiador, submete os mitos aos métodos críticos
deles pense o que quiser ou o que dizem os poetas?3! De facto, já comprovados e pode adiantar que «Eolo indicava a direcção a
uma coisa é acreditar que no passado houvera já reis, outra coisa tomar no estreito de Messina, onde uma dupla corrente torna a

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é acreditar que tenham existido monstros, que já não existem. passagem difícil devido ao refluxo; por isso se contou que ele era
Estavam estabelecidos os princípios da crítica das tradições para o o gestor dos ventos, tomaram-no pelo tei dos ventos; da mesma

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milénio seguinte; são já os de Platão34, | maneira, Dánao, que ensinou a técnica das cisternas que se vêem
Estrabão poderá então, como respeitável sábio, separar o ver- em Argos, ou Atreu, que ensinou o movimento retrógrado do Sol,
dadeiro do falso; Dionísio e Héracles existiram, foram grandes são descritos como reis, adivinhos, áugures».
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viajantes, geógrafos, de tal modo que a lenda pretendeu que haviam Objecto de credulidade ingénua, de cepticismo hesitante e
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percorrido triunfalmente a terra inteira; Ulisses existiu, mas não tea- de conjecturas arriscadas, o mito tornou-se algo de que passou 2

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lizou todas as viagens que lhe atribui Homero, que recorteu a essa falar-se com mil precauções. Mas estas precauções eram muito
ficção pata inculcar conhecimentos geográficos úteis aos seus calculadas. Quando esmiuçam alguma lenda, os escritores da época

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auditores; quanto a Jasão, à nave Argo, a Aietes, «toda a gente helenística e romana parecem hesitantes; muitas vezes, recusam-se
está de acordo em acreditar neles» e, até aqui, «Homero está de acordo a expressat-se em seu próprio nome; «diz-se que...», escrevem, ou
com os dados históricos»; a ficção começa quando o poeta pretende «de acordo com o mito»; mas, na frase seguinte, serão muito

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que os Argonautas chegaram ao Occano. Quanto a outtos grandes afitmativos acerca de outto ponto da mesma lenda. Estas alter-
viajantes, Teseu e Pirítoo, eles exploraram o mundo tão vasta- nâncias de audácia e de reserva não devem nada ao acaso; seguem

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mente que a lenda pretendeu que haviam ido até aos Infernos35. três regras: não se pronunciar sobre o maravilhoso e o sobrena-
Os espíritos não conformistas não raciocinavam diferentemente tural, admitir um fundo de historicidade e esquivar-se aos porme-

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deste geógrafo estóico; para o epicurista Lucrécio36, grande inimigo notes. Um exemplo bastará. Ao contar à fuga de Pompeu em
direcção a Brindisi e Durazzo, depois de César ter passado o
Rubicão, Apiano relata a propósito oas origens da cidade de
30 Cf, por exemplo, Política, 1284 A: «O mito que se conta acerca de os
Durazzo, a antiga Dirráquio, no mar Jónio. A cidade deve o seu
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Argonantas terem abandonado Héracles»; Erica a Nicómaco, 1179 À 25: «Se os


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este Dírraco, afirma Apiano, «teve Hércules por aliado» numa guerra
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deuses têm alguma preocupação com os negócios humanos, como se crê...»


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Aristóteles não crê em nada disto; os deuses-astros são primeiros motores que travou contra os ptíncipes seus irmãos e é pot isso que o herói
e não providências, é hontado como um deus pelas gentes da região; estes indígenas
31 Cf, notas 2 da introdução e 11 do cap. «Quando a verdade histórica, ,.»;
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«dizem que, durante a batalha, Hércules matou pot engano Jónio,


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pata Palaifato, cap. 2, o Minotauto foi um belo jovem, chamado 'Tauros, de


quem Pasífae se enamotrou; Tucídides também não duvida de Cécrope ou de o próprio filho do seu aliado Dírraco, e que atitou o cadáver ao matr
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Teseu (II, 15). a fim de que esse mar tomasse o nome do infeliz». Apiano actedita
32
33
Tucídides, 1, 3 e II, 29.
Tucídides, VI, 2.
em Hércules e na guerra, não acredita na paternidade neptuniana e
34 Quanto às idades míticas em Platão (Política, 268 E — 269 B; Timen, deixa aos indígenas a responsabilidade de uma anedota.
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21 A-D; Leis, 677 D — 685 E), que as rectifica e acredita nelas tanto ou tão
pouco como Tucídides ou Pausânias, cf, Raymond Weil, L" Archéologie de Platon
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Paris, Klincksieck, 1959, PD. I4, 30, 44. ,


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35 Estrabão, 1, 2, 38, c. 45: 40, €. 46; 1,3, 2, C. 48.


37 Políbio, IL 41, 4; IV, 59, 5; XXXIV, 4.

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36 De natura rerum, V, 324.

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Entre os doutos, a credulidade crítica, por assim dizer, alter- e de outros seres absurdos e impossíveis do mesmo género; se,

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nava com um cepticismo global e misturava-se com a credulidade sem acreditarmos na sua realidade, tentarmos reconduzi-los à vero-
irreflectida dos menos doutos; estas três atitudes toleravam-se e a similhança, em nome de uma sabedoria um tanto rústica, estaremos a

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credulidade popular não era culturalmente desvalorizada. Esta esforçar-nos inutilmente». Se ninguém, no tempo de Galeno, tomasse
coexistência pacífica de crenças contraditórias teve um efeito socio- à letra a lenda dos Centauros, que necessidade teriam os filósofos
logicamente curioso: cada indivíduo interiorizava a contradição de deles falarem gravemente e de os reduzirem à verosimilhança?
e pensava sobre o mito coisas inconciliáveis, pelo menos aos olhos Se ninguém neles acreditasse, que necessidade teria o próprio Galeno

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de um lógico. Mas não sofria com estas contradições, muito pelo de distinguir expressamente aqueles que não acreditavam? Aliás,
contrário: cada uma delas servia objectivos diferentes. Galeno, no seu grande livro sobre a finalidade das partes do

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Tomemos como exemplo uma cabeça filosófica de primeira organismo, batalha demoradamente contra a ideia de que possam

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ordem, o médico Galeno38, Ele acredita ou não na realidade dos Cen- existir naturezas mistas como a dos Centautos; não o teria feito sem
tauros? Varia. tidículo se os Centauros não tivessem os seus crentes.

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Quando se exprime como sábio e expõe as suas teorias pessoais, Mas quando o mesmo Galeno procura, não já impor as suas

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fala dos Centauros em termos que implicam que, para si e pata os ideias, mas antes ganhar novos discípulos, parece passar-se para o
seus leitores mais escolhidos, estes seres maravilhosos tinham muito lado dos crentes; ao resumir em cem páginas toda a sua medicina e
pouca actualidade; a medicina, diz, ensina conhecimentos pondera- decidido a dar a mais alta ideia dessa ciência, narta-nos a sua origem
dos ou «teoremas» e a primeira condição de um bom teorema é elevada; os Gtegos, diz, atribuem a descoberta das diferentes artes
ser evidente aos sentidos; «de facto, se o teorema for irrealizável, a filhos de deuses ou da familiares dos deuses; foi Apolo que ensi-
como o seguinte: a bílis de centanro alivia a apoplexia, ele é inútil, nou a medicina a seu filho Esculápio. Antes dele, os homens apenas
visto que escapa à nossa percepção»; os Centauros não existem ou, possuíam uma experiência limitada a alguns remédios, a simples,

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pelo menos, nunca ninguém viu um único. «e, na Grécia, era esse, por exemplo, todo o saber do centauro
Os Centauros pertenciam a um bestiário matavilhoso que equi- Quiron e dos heróis de que se tornou educador».
valia ao da nossa Idade Média e pressente-se que a realidade desse Este papel históxico atribuído a um Centauro não passa de lin-
bestiário era um motivo de embaraço ou de irritação. Galeno acha guagem pomposa e de convenção, seguramente; é seguramente
pueril a gravidade com que os estóicos perscrutavam as ficções aquilo a que a Antiguidade chamava retórica, e a retórica era a atte
poéticas e a sua obstinação em dar um sentido alegórico a tudo o que de ganhar, mais que de ter razão; para ganhar, quer dizer, pata
os poetas contavam dos deuses; por tão bom caminho, acrescenta, convencer, era preciso partir do que as pessoas pensavam, seguta-

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imitando Platão, ir-se-á até «rectificar a ideia dos Centauros, das mente, em vez de tomar ao arrepio os jurados dizendo-lhes que
Quimeras, e irromperá então a caterva das Górgonas e dos Pégasos estavam redondamente enganados e que deviam mudar de visão
do mundo, pata absolver o acusado; Paris vale bem uma missa e
um discípulo a mais vale bem um Centauro. Simplesmente, seria
38 Citaremos sucessivamente: Galeno, De optima secta ad Thrasybulum, 3 especioso opor a retórica, como atitude interessada, à filosofia ;
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(Opera, vol. 1, p. 110 Kiúhn); De placitis Hippocratis et Platonis, III, 8 (V, 357 não quero com isto dizer que a retórica não possui dignidade filo-
Kiihn; quanto à expressão «reduzir a lenda à verosimilhança», cf. Platão, Fedro, sófica; entendo, ao contrário, que a filosofia e a verdade são inte-
229 E, transcrito quase literalmente por Galeno); De usu partium, III, 1 (II, ressadas; não é verdade que os intelectuais mintam quando são
169 Kiúhn; 1; 123 Helmreich); Isagoge seu Medicus, 1 (XIV, 675 Kiúhn). Note-se
que Galeno menciona aqui Esculápio num espírito retórico; mas, ao mesmo interessados e que sejam desinteressados quando dizem a verdade.
tempo, votata a Esculápio uma devoção privada (vol. XIX, p. 19 Kiúhn) de Galeno tinha todo o interesse em dizer a vetdade acerca dos Cen-
cuja sinceridade não podemos duvidar, a julgar pelo exemplo do seu contempo- tauros, em negar a sua existência, quando punha o seu interesse

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râneo e companheiro de devoção Aélio Aristides; o que não impedia que o na vitória das suas ideias pessoais junto dos seus discípulos, mais do
mesmo Galeno tivesse uma ideia desmitologizada dos deuses; como muitos
que na obtenção de discípulos novos. De facto, segundo os momen-
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doutos, pensava que o politeísmo grego eta a deformação popular do verdadeiro


conhecimento dos deuses, os quais não são literalmente diferentes dos astros, tos, os investigadores têm diferentes objectivos de guerra e dife-
das estrelas, considerados como outtos tantos seres vivos, no sentido corrente rentes estratégias; nenhum de nós foge a isto, mesmo quando
da palavra, mas dotados de faculdades mais perfeitas que as dos homens; cf. as tomamos as nossas invejas por santas indignações e fazemos uma
páginas espantosas escritas por este anatomista sobre a perfeição desses corpos
ideia elevada do nosso desinteresse científico e ético e os nossos
divinos: De usa partium corporis bumani, XVII, 1 (vol. IV, p. 358 sg. Kúhn; cf.
âbid., 10, vol, III, p. 238 Kuhn). discípulos também. Fazemos a guerra por aquilo a que Jean-Claude

72 73
Passeron chama a partilha do bife simbólico e as nossas políticas
são tão diversas como a das nações e dos partidos: conservar as
nossas posições, montar uma liga de entreajuda, uma liga de
conquista, reinar sem governar, estabelecer a pax Romana, talhar
um império, defender as nossas platibandas, procutat terras virgens,
ter uma doutrina Montoe, tecer uma teia de public relations para
controlar um grupo de ajuda mútua...
Mas como esta política das ideias se ignora frequentemente a
si própria, interioriza-se; é difícil por exemplo, não nos pormos
a acreditar um pouco em dogmas estranhos com os quais fizemos
uma liga ofensiva ou defensiva. É que pomos as nossas crenças
de acordo com as nossas palavras. De tal modo que acabamos por
já não saber o que pensamos ao certo. Portanto, no momento em SOB ESTA SOCIOLOGIA,

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que se apoiava na crença popular nos Centautos, Galeno, falho de UM PROGRAMA IMPLÍCITO DE VERDADE

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nobre e indulgente, sem saber já muito bem o que pensar. É assim
que nascem estas modalidades hesitantes de crença, esta capacidade As relações de força, simbólicas ou não, não são invariantes;

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de acreditar, ao mesmo tempo, em verdades incompatíveis, que possuem o carácter arbitrário de formações analógicas, sem dúvida,

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caracterizam os períodos de confusionismo intelectual: a balcani- mas diferentes: a sua aparência trans-histórica é uma ilusão analó-

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zação do campo simbólico reflecte-se em todos os cérebros. Este gica. À sua sociologia inscreve-se nos limites de um progtama arbi-

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confusionismo corresponde a uma política de aliança entre seitas. trário e histórico.
No que diz respeito ao mito, os gregos viveram mil anos neste Criticar os mitos não era demonstrar a sua falsidade, mas antes

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estado. À partir do momento em que queremos convencer e fazer- recuperar o seu fundo de verdade, pois essa verdade fora coberta

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-nos aceitar, temos de respeitar as ideias estranhas, se fotem forças, com mentiras. «Desde sempre, ao erguet-se um edifício de ficções
e somos obrigados a pensá-las um pouco. Ora sabemos que os sobre um fundamento de verdade, desviou-se a maioria das pessoas
doutos respeitavam as ideias populares acerca do mito e que eles de acreditarem em factos que se produzitam outrora, ou mesmo
próprios estavam divididos entre dois princípios: a rejeição do mara- que continuam a produzir-se; aqueles que gostam de ouvir miti-
vilhoso e a convicção de que as lendas tinham um fundo de ver- ficações são igualmente levados a acrescentar-lhes as suas próprias
dade; daí a sua consciência confusa. patranhas; com isso, não fazem senão prejudicar a verdade, a que

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Aristóteles ou Políbio, tão desconfiados em relação à Fábula, misturam mentiras»l. Mas de onde vêm estas mentiras e para que
não acreditaram na historicidade de Teseu ou de Éolo, rei dos servem? É uma questão com que os Gregos não se preocuparam

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ventos, por conformismo nem por cálculo político; mas também muito, pois uma mentira não tem nada de positivo: é um não-ser,
não procuraram recusar os mitos, simplesmente rectificá-los. Por- eis tudo. Não perguntavam muito por que é que alguns haviam
quê rectificá-los? Porque nada é digno de fé se não existir actual- mentido, mas antes por que é que os outros haviam acreditado;
mente. Mas, então, porque não recusar em bloco? Porque os Gre- é entre os modernos, de Fontenelle a Cassirer, Bergson e Lévi-
gos nunca admitiram que a efabulação pudesse mentir totalmente; -Strauss que o problema do mito é o da sua génese. Para os Gregos,

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a problemática antiga do mito, como veremos, está limitada por essa génese não constituía dificuldade; no seu fundo, os mitos são
dois dogmas ignorados, pois eram óbvios: ninguém pode mentir autênticas tradições históricas; de facto, como é que se poderia falar

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inicial ou totalmente, pois o conhecimento não passa de um espe- do que não existe? Pode alterar-se a verdade, mas não seria possível
lho; e o espelho confunde-se com aquilo que reflecte, de tal maneira falar-se de nada. Acerca deste ponto, os modernos perguntam antes

ã ar
que o medium não se distingue da mensagem. se se pode falar para nada, sem ter nisso qualquer interesse; mesmo
Bergson, que deu toda a sua amplitude à ideia de efabulação gra-

1 Pausânias, VII, 2, 6-7.

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tuita?, começa por postular que a efabulação tem, inicialmente, efabula para dizer o que é verdadeiramente verdadeiro; o mais

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uma função vital; simplesmente, essa função desregula-se e cai verdadeiro nas lendas é precisamente o maravilhoso; é nele que se
frequentemente no vazio. Fontenelle foi, sem dúvida, o primeiro a traduz a emoção da alma nacional. Com razão ou sem ela, antigos

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dizê-lo3: as fábulas não têm nenhum núcleo de verdade e nem e modernos acreditam na historicidade da guerra de Tróia, mas
sequer são alegorias; «Procuremos, pois, apenas, nas fábulas, a pot razões opostas; nós acreditamos nela por causa do seu mara-

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história dos erros do espírito humano». vilhoso, cles acreditaram apesar do maravilhoso. Para os Gregos,
Os Gregos procuravam uma verdade através das mentiras; a guerra de Tróia existira porque uma guerra não tem nada de

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perguntavam de quem era a culpa: era da candura, da ingenuidade, maravilhoso; se extirparmos Homero do maravilhoso, resta essa
da esetbeia*, pois eta essa a palavra consagrada. Por candura, dá-se guerra. Para os modernos, a guerra de Tróia é verdadeira por causa
crédito «aquilo que de falso se vem misturar com o fundo histórico» de que Homero a rodeia; só um acontecimento

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do maravilhoso
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e a essas falsidades que vieram mistutar-se com o mito chama-se o autêntico, que tenha comovido a alma nacional, dá nascimento à

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mythódes6. É, a candura a verdadeira responsável pelas mentiras; epopeia e à lenda.
haveria menos efabuladores se existissem menos ingénuos7. À anti- Uma tradição mítica, para os Gregos, é verdadeira apesar do

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qua credulitas explica que a maior parte dos mitos remonte às épocas maravilhoso. Orígenes dilo muito bemi0: os acontecimentos his-
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antigas8. O mito é relação de factos verdadeiros, a que se juntam tóricos não podem ser objecto de demonstração, mesmo quando são
lendas que se multiplicam com o tempo: quanto mais antiga é uma autênticos; pot exemplo, seria impossível demonstrar que a guerra
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tradição, mais obstruída ela é pelo zzythôdes?, que a torna menos de Tróia aconteceu de facto, se alguém o negasse com base em que

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digna de crédito. o relato dessa guerra comporta inverosimilhanças, a saber: que Aqui-
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Para os modetnos, ao contrário, o mito será antes a narração les era filho de uma deusa, que Encias era filho de Afrodite, e Sar-

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de um grande acontecimento e daí o seu aspecto lendário. Esse pédon de Zeus. A demonstração seria tanto mais difícil quanto

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acontecimento é menos alterado pot elementos adventícios do que seríamos estorvados por «todas as ficções míticas que se encon-

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epicamente aumentado, pois a alma popular aumenta os grandes tram inextricavelmente misturadas com a crença universal segundo
factos nacionais; a lenda tem por origem o génio dos povos, que a qual houve, tealmente, uma guerra em Tróia»; suponhamos ainda,

8
continua Orígenes, que alguém «se recusa a acreditar em Édipo,
Jocasta, Etéocles e Polinices, porque essa história está ligada à
2 Sobre a função efabuladota, cf. o admirável segundo capítulo das Deux Esfinge, esse monstto meio-humano: uma vez mais, a demonstração

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sources de la morale et de la religion, Paris, PUF, 1932, Pp. III, I24, 204. seria impossível; outro tanto se dirá dos Epígonos, embora a sua
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3 Fontenelle, De Porigine des fables, em Oeuvres diverses, Amesterdão, 1742,


história não comporte nenhum elemento fictício, e do regresso dos
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p. 481-500. À concepção de Fontenelle é perfeitamente original, não se confun-


dindo nem com Voltaire nem com as ideias do século XX; pata ele, o mito fala Heraclidas, bem como de mil outras histórias». Os mitos têm, pois,
de nada e pata nada. Com efeito, em Fontenelle, o mito não encerra nenhuma um fundo de verdade e, se a historicidade das guerras de Tróia e de
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verdade, mas a efabulação também não existe; tudo se explica pelo fatal encontro Tebas, que toda a gente reconhecia, não é demonstrável, é porque
de inúmeras particularidadezinhas inocentes: ignorância, entusiasmo, gosto pela
nenhum acontecimento pode ser demonstrado.
anedota, vaidade de autor, curiosidade louvável, etc. Não existem dois campos,
Mas então, se o mito, a par de falsidades, contém verdades, o

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o dos vígaros e o dos ingénuos; todos os homens se enganam a si próprios. O
homem é feito de pequenas «particularidades», não existem grandes essências, mais urgente não será fazer a psicologia do efabulador, mas sim
4 A palavra segue-se de Heródoto, 1, 60 e H, 45, a Estrabão e a Pausânias, aprender a precaver-se contra o falso: a vítima é mais interessante
IX, 31, 7, VIII, 29, 3, e VIII 8, 3. Encontra-se também em Dinis.
5 Estrabão, 1, 1,8, €. 6.
6 A palavra segue-se de Tucídides, 1, 21, a Estrabão, citado na nota pre-
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10 Orígenes, Contra Celso, 1, 42 (Patrologica Graca, XI, 738); Orígenes

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cedente, a Plutarco, citado nota 3 da introdução e a Filostrato (nota 1 do cap.

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«Como devolver ao mito a sua verdade etiológica»). Acrescente-se Isócrates, acrescenta: «Para sermos justos, mas sem nos deixarmos enganar, devemos

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7 Cícero, De re publica, TI, 10, 18: zrinus eruditis hominum sacculis, ut fingendi

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que foram escritos para deleitar» (o texto é duvidoso; há quem leia: «que foram

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escritos para lisongear»). Sobre o problema antigo da história e do empirismo,

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8 Séneca, De constantia sapientis, M, 2.

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cf. as páginas notáveis de Galeno, Da melhor seita, a Trasíbulo, cap. 14-15 (1, 149

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Kiuhn). Sobre a historicidade da guerra de Tróia, partilhamos o cepticismo de

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são as pessoas que afirmaram uma tradição através dos séculos, mais esse con-

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sentimento secular prova a sua verdade. Finley, Journal of Hellenic Studies, 1964, Pp. 1-9.

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que todo o mito tem uma intenção instrutiva e que o poeta não escre-

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do que o culpado. Os Gregos sempre pensaram que as ciências

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humanas eram mais notmatívas do que descritivas, ou antes, nem via a Odisseia para divertir, mas para ensinar geografia. À condenação
sequer pensaram em distinguirll; uma ciência do mito, a seus racionalista do imaginário como falso, responde a apologia do
olhos, não se proporia fazer compreender o erro, mas sim ensinar imaginário como conforme a suma razão oculta, pois seria impossí-

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a precaver-se contra ele. Em vez de perguntar se o mito explica o vel mentir.
É, pois, impossível que um mito seja inteiramente mítico. Os

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tito, se pela sua estrutura revela a do espírito humano, se é uma

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efabulação funcional ou tornada louca, etc., far-se-á mais utilmente Gregos fotam capazes de criticar pontualmente as fábulas, mas não
a polícia do pensamento: denunciar-se-á a ingenuidade humana e de as menosprezar. O único debate consistia em decidir se a mito-
logia só era verídica em parte ou se o era por completo. As viagens

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separat-se-á o trigo do joio.
E, visto que há polícia, é menos urgente compreender os moti- de Ulisses são um curso de geografia em que tudo é verídico e a

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vos do falsário do que identificá-lo. Qual é o autor da mitologia? lenda de Minerva nascida da cabeça de Júpiter prova, segundo
Crisipo, que as técnicas são veiculadas pela palavra, cuja sede é a

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Quem inventou essa massa de lendas inverosímeis e, pior ainda,
indecentes, que dão às crianças de mama uma falsa ideia dos cabeça. O mito é verídico, mas em sentido figurado; não é ver-
deuses? Quem atribuiu aos deuses um comportamento indigno dade histórica misturada com mentiras; é um alto ensinamento
da sua santidade? Pois bem, não se sabia muito bem; ignorava-se filosófico inteiramente verdadeiro, desde que, em vez de o tomar-
o nome do inventor da mitologia; todavia, como era preciso um cul- mos à letra, vejamos nele uma alegoria. Duas escolas, pois: a
crítica das lendas pelos historiadores e a interpretação alegórica

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pado, designaram-se Homero, Hesíodo e outros poetas!2, «pois
foram sem dúvida eles que deram aos homens esses contos mentito- das lendas pela maior parte dos filósofos, entre os quais os Estói-
sos», ou pelo menos forjaram alguns mitos. Além disso, quem cost6; é daqui que sairá a exegese alegórica da Bíblia, destinada a
teria inventado as mentiras, senão os profissionais da invenção men- quinze séculos de triunfo.

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A razão do alegorismo estóico era a mesma do alegorismo

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tirosa? Mesmo que essas invenções tivessem um sentido alegórico
elevado, não deixariam de ser pedagogicamente perigosas. É por isso bíblico: o texto considerado era tido por uma verdadeira autori-
que Homero será expulso da cidade!3; Homero, como se vê, não dade; tudo o que dizia Homero ou os outros poetas constituía
é aqui o poeta que conhecemos; não é o autor da I/fada, mas sim o prova. Trata-se de um aspecto do pensamento grego acerca do qual
suposto autor de toda a mitologia. Platão não regula as relações há que dizer algo. Para demonstrar qualquer coisa ou persuadir
entre o Estado e as belas-letras, mas sim as do Estado com a cons- de qualquer verdade, um pensador podia fazê-lo pelo menos de
ciência colectiva; a sua posição não se explica pela ideia grega de três maneiras: desenvolver um raciocínio reputado rigoroso, tocar
que todo o poeta forja mitos, mas sim por essoutra ideia de que todos o coração do ouvinte pela retórica, invocar a autoridade de Homero

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os mitos foram forjados pelos poetas14, ou de outro poeta antigo. Os Estóicos, escreve Galenol7 irritado,
Para racionalista, racionalista e meio. Poderá acreditatr-se seria- são virtuoses em matéria de lógica; mas, assim que se trata de
mente que os poetas forjaram a mitologia por prazer? Poderia a pôr essa lógica em prática acerca de algum problema determinado,

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imaginação ser fútil? Não basta dizer-se, com Platão, que os mitos
podem ser educativos, se forem bem escolhidos; Estrabão!5 pensa
tado mais tarde, sob uma forma mítica, com vista a persuadir a multidão e a

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servir as leis e os interesses comuns; assim, dá-se aos deuses a forma humana (...);
se separarmos da narrativa o seu fundamento inicial e o considerarmos apenas a

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11 G. Granger, La Théorie aristotélicienne de la science, Paris, Armand Colin,
ele (...), aperceber-nos-emos de que se trata de uma tradição verdadeiramente
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divina; enquanto, segundo toda a verosimilhança, as diferentes artes e a filo-


1976, Pp. 374.

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12 Platão, República, 377 D. sofia fotam levadas tão longe quanto possível por várias vezes, e de cada vez
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perdidas, estas opiniões são, pot assim dizer, relíquias da sabedoria antiga con-

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13 República, 378 D e 382 D. Sobre o sentido figurado e alegórico, cf.
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Orígenes, citado nota 10 deste capítulo, Já Xenófanes protestava contra as servadas até ao nosso tempo» (trad. Tricot). A religião astral dos pensadores
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ndignidades atribuídas aos deuses; cf, também Isócrates, Bsiris, 38, gregos, tão surpreendente pata nós, foi excelentemente caracterizada por

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P. Aubenque, Le Problême de º Étre chez Aristote, Paris, PUF, 1962, p. 335 sg.

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t4 Fédon, 61 B, Estes mitos poéticos podem ser sinceros (Fedro, 259 C-D;
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16 Cf, nota 5 deste capítulo, Aristóteles, esse, pertencia à primeira escola


Leis, 682 A),
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e detestava a alegoria: «As subtilezas mitológicas não merecem ser submetidas


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15 Estrabão, E, 1, 10, C. 6-7; 1, 2, 3, C. 15. Cite-se também o texto sensa-


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cional da Metafísica de Aristóteles, 1074 B 1: «Uma tradição, vinda da mais a um exame sério» (Metaf., B 4, 1000 À 19).
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17 Galeno, De placitis Hippocratis et Platonis, II, 3 (vol. V, p. 225 Kuhn),

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recuada antiguidade e transmitida sob a forma de mito aos séculos seguintes,
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diz-nos que os astros são deuses (...); todo o resto desta tradição foi acrescen- tendo em conta o contexto,
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não valem nada e recorrem ao modo de argumentação mais oco que e particularmente de Homero. Galenot? indigna-se ao ver um

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há: amontoam citações de poetas como outros tantos testemunhos. Crisipo renunciar com tanta frequência a demonstrar cientifica-

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Raciocínio rigoroso? Grande leitor dos Segundos Analíticos, mente e preferir multiplicar as citações de Homero, do mesmo
Galeno18 não conhece demonstração que não seja silogística (vai modo que os retóricos procuram impressionar os juízes chamando

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ao ponto de dizer: geométrica); creio que cle tenha cumprido as à barra o maior número possível de testemunhas, Era assim que

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suas promessas no De xsu partinm, em que demonstta a finalidade Crisipo, ao pretender provar que a razão governante residia no

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de cada um dos órgãos do corpo humano por analogia com os enge- coração e não no cérebro, enchia longas páginas com citações

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nhos construídos pelos homens. A pretensão de rigor e mesmo poéticas deste género: «Aquiles resolveu, no seu coração, puxar
de dedução, de acordo com o ideal aristotélico, reduz-se habitual- da espada». Não sei se se reconheceu a verdadeira natureza desta
mente a uma atitude ética (devemos ser sóbrios, não diremos nada prova pela poesia entre os Estóicos, cuja teoria eles próprios pare-
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ao acaso) e a uma certa relação com outrém: distinguir-se-á entre cem não ter feito; mas a sua prática constitui uma teoria implícita.
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demonstração e persuasão, evitando agir sobre a sensibilidade dos O prestígio de Homero20 como clássico, ou melhor, como

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leitores, como o faz a retórica. É certo que a arte retórica fornecia signo nacional de reconhecimento por parte de toda a nação grega,
também, aos conferencistas ou pregadores, discursos-tipo, modelos

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de argumentação, lugares, comuns ou não, que bastava desenvol-
ver; mas a sua especificidade não deixava de residir na recusa da
aparência técnica e da frieza, para persuadir pelo entusiasmo comu- 19 De placitis, VI, 8 (vol, V, p. 583 Kiihn). Sobre as citações de poetas

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nicativo, pelo envolvimento insinuante, por movimentos arrebata- célebres, de Homero a Eurípides, que Crisipo multiplicava, pretendendo demons-
dores ou, por vezes, por tensão nervosa cativante. Esta arte de trar que o hegemonikon estava sediado no cotação e não na cabeça, cf. De placitis, III,

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2e3 (p. 293 sq). Segundo Galeno, Crisipo imaginava que quanto mais poetas
pregadores laicos era reconhecida como um modo de persuasão

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citasse como testemunhas, mais provaria, o que não passa de um processo de


perfeitamente legítimo, ou antes, o público dividia-se entre este retor (III, 3, p. 310). Como justificariam os Estóicos este recursoà poesia e aos
modo e o precedente. mitos como autoridades? Como exptessões do senso comum? É, sem dúvida,
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a resposta que teriam dado; todos os homens titam, dos dados dos sentidos,
Mas existia ainda um terceiro modo de persuasão, pelo menos

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noções comuns, todos acreditam na realidade dos deuses, na imortalidade da
entre os fundadores do estoicismo: invocat o testemunho dos poetas
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alma, etc. (Bréhier, Chrysippe, p. 65). Além dos mitos e da poesia, a etimologia das
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palavras era outro testemunho deste senso comum (sobre o etymon, ao mesmo

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tempo sentido primeiro e sentido autêntico de um vocábulo, cf. Galeno, vol. V,

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p. 227 e 295). Os provérbios, ditados e maneiras de falar também constituíam
18 De placitis, II, 3 (p. 222 Kiúhn), quanto ao Segundos Analíticos; quanto prova. Mas, também aqui, consideramos menos o que os estóicos julgavam fazer

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ao silogismo e à lógica de Crisipo, p. 224, em que Galeno opõe a demonstração do que aguilo que faziam inconscientemente. Em qualquer caso, coexistem neles
científica à dialéctica, com os seus tópicos, à retórica, com os seus lugares, e à pelo menos duas ideias: em todos os tempos, os homens possuem noções comuns
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escolástica, com os seus jogos de palavras capciosos, Galeno considera-se a que são verídicas, por um lado; por outro, os homens possuíram, nas origens,
si próprio um espírito rigoroso, ávido de apodicticidade (De iibris propriis,
§g§ um conhecimento da verdade maior e mais divino que o dos homens de hoje;
II; vol, IS, p. 39 Kihn), e, em medicina, prefere as «demonstrações gtã- as duas ideias, dificilmente conciliáveis, tentam ambas justificar atabalhoada-

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micas», isto é, geométricas às «pisteis retóricas» (De foetrmim formatione, 6; mente essa misteriosa autoridade que os Estóicos atribuíam à palavra mítica,

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vol, IV, p. 695 Kiuhn); acontecia aos próprios retores fingirem recorrer à poética e timológica. Sobre a poesia como detentora do dom de sinceridade,
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demonstração científica (De pracenotione ad Epigenem, 1; vol, 14, p. 605). ver sobretudo Platão, Leis, 682 A. À poesia é, pois, inspirada e todo O texto

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Na distinção que faço aqui entre rigor e eloquência, descrevo duas atitu- inspirado (por exemplo, o de Platão) será aparentado à poesia, mesmo que em

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des: não tomo no sentido antigo e em toda a sua precisão aquilo a que as prosa (811 €). Se a poesia é aparentada ao mito, não é que os poetas contem

escolas filosóficas chamavam demonstração, dialéctica, retórica; a retórica fazia mitos, é que mito e poesia são ambos inevitavelmente verdadeiros e, pode
uso de silogismos ou, pelo menos, de entimemas; e a demonstração, ainda que dizer-se, de inspitação divina, Compreende-se então a verdadeira razão por que
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inconscientemente, era amiúde mais dialéctica e até mais retórica que demons- Epicuro condenava a poesia; o que condenava não eta o facto de se escrever
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trativa (P. Hadot, «Philosophie, dialectique, trhétorique dans PAntiquité, em em vetso e não em prosa, nem sequer, precisamente, o conteúdo mítico e por isso,
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Studia pbilosopbica, XXXIX, 1980, p. 145). Estudamos aqui menos os métodos a seus olhos, mentiroso de muitos versos; condenava a poesia como autoridade,
de persuasão do que as atitudes perante a persuasão e a verdade; a este respeito, como pretensa fonte de verdade, e condenava-a ao mesmo título e no mesmo

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é interessante ver-se Galeno recusar certos meios de persuasão; ele não quer plano que o mito. Condenava igualmente um outro pretenso modo de persuasão

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acreditar sem provas, «como se acredita nas leis de Moisés e de Cristo» (De pul- de que também falâmos: a retórica,
20 Esta superstição acerca de Homero e da poesia em geral mereceria

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summa differentiis, vol. VII, p. 579 e 657); não é menos interessante ver-se que,

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entre os Estóicos, «as condições objectivas da persuasão se confundem com uma um estudo. Ela durará até ao fim da Antiguidade; no princípio do século V,
forte convicção subjectiva» (E, Bréhier, Chrysippe et P Ancien Stoicisme, Pais, os espíritos dividir-se-ão do mesmo modo acerca de Virgílio: uns considera-
PUE, 1951, p. 63). vam-no um simples poeta, um autor de ficções, ao passo que outros viam nele

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não tem grande coisa a ver com o caso, nem o prestígio da poesia fosse possível falar do que não existe22. A poesia é espelho, invo-

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em geral; Crisipo não é Heidegger; além de Homero, ele invocava luntário e verídico, e era por ela reflectir involuntariamente que
muitos outros, e mesmo poetas trágicos, esquecendo-se de que os Crisipo se não cansava de acumular os testemunhos dos poetas; se
Trágicos punham na boca das suas personagens sobretudo o que o os poetas fossem, a seus olhos, pensadores reflectidos que assu-
papel exigia21 e não a verdade. E, além da poesia, Crisipo e todos missem a responsabilidade de uma doutrina, uma única citação
os outros Estóicos invocavam os mitos, cuja interpretação alegó- ter-lhe-ia bastado, como observa Galeno; mas eles dizem a verdade
rica haviam desenvolvido sistematicamente. como que sem pensar; Crisipo, maravilhado, não se cansa de mos-
Nem por isso consideravam que os mitos e a poesia transmi- trat como o subsolo sobre o qual repousa a sua própria filosofia

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tissem uma sabedoria revelada, visto que invocavam também fre- não pára de deixar emergir a verdade por todos os lados.
quentemente, ao mesmo título, máximas e etimologias; o sentido Visto que os Estóicos estão de antemão seguros de que mitos
«etimológico» era, a seus olhos, o sentido «autêntico», o sentido e poesia dizem a verdade, só lhes resta tortutarem-nos, para os fazer
«verdadeiro» (é esta a significação da palavra eymon); não viam, encaixar nessa verdade; a alegoria será o seu leito de Procustes.
portanto, na actividade poética um método mais privilegiado de Não recuaram perante nada. Um belo dia, mostraram a Crisipo
acesso à verdade. Que havia de comum entre poesia, mitos, eti- uma pintura onde a imaginação salaz dos ciceroni pretendia reconhe-
mologias e provérbios? Seria uma prova pelo consentimento geral? cer Juno infiigindo a Júpiter um agradável tratamento que não é
Não, pois nesse caso a prosa teria sido igualmente concludente, possível nomear decentemente; pois Crisipo conseguiu reconhecer
tal como muito simplesmente, uma frase ouvida a um homem da nela uma alegoria da matéria absorvendo a Razão espermática a
tua. Seria a antiguidade desses testemunhos? Não, visto que também fim de engendrar o cosmos.
Eurípedes era chamado como reforço. Para o filósofo, o mito era, pois, uma alegoria das verdades
A explicação, suponho, é que a poesia está do mesmo lado filosóficas; para os historiadores, era uma ligeira deformação das
que o vocabulário, o mito e as expressões feitas; longe de tirar verdades históricas. Diga-se de passagem, em Platão encontram-se
a sua autoridade do génio do poeta, ela é, apesat da existência do ambas as versões
— mas passemos por alto sobre este assunto,
poeta, uma espécie de fala sem autor; não tem locutor, é o que capaz de fazer recuar os comentadores mais intrépidos. Platão, ora
«se diz»; não pode, pois, mentir, pois só um locutor poderia fazê-lo. forja os seus próprios mitos, que são aproximações da Ideia; ora,
A prosa possuí um locutor, que diz a verdade ou então mente ou se como brevemente indicámos anteriormente, encontra no seu cami-
engana; mas a poesia não tem mais autor do que o vocabulário; nho alguns dos mitos históricos gregos e os submete, então, ao
assemelha-se ao mito, e a razão profunda que levava os Gregos a mesmo género de crítica praticada pelos historiadores do seu tempo.
dizerem que um poeta contava, por definição, mitos talvez tenha Todavia, em Platão, a alegoria filosófica, essa meia-verdade, corres-
menos a ver com a frequência das alusões mitológicas nas obras pondia simultaneamente à participação do sensível na verdade das
poéticas do que com o facto de mito e poesia titarem ambos de si Ideias e, todavia, à impossibilidade de uma ciência rigorosa do
próprios a sua autoridade; a verdade brotava da boca dos poetas sensível, Como é que os Estóicos explicavam que os poetas disses-
tão naturalmente como da das crianças; eles não faziam mais do sem a verdade por alegoria? Para esconderem e mostrarem a ver-
que reflectir as próprias coisas. Exprimiam a verdade tão natural- dade num enigma? Por alguma antiga ingenuidade? Talvez também
mente como as fontes que correm, e não poderiam reflectir o que não esses pensadores não tenham pensado na seguinte questão: paara os
existe; era como se, tanto para Crisipo como pata Antístenes, não Gregos, o medinm desaparece por detrás da mensagem.
Alegorias ou tradições um pouco alteradas, os mitos encon-
travam geralmente crédito, de tal modo que, em plena Metafísica,
um Aristóteles23, pouco inclinado a desenvolver críticas fáceis,
um poço de ciência, cujo mínimo verso eta verdadeiro e merecia ser explorado
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até aos escaminhos; cf. Macróbio, Saturnales, 1, 24, e II-V. Trata-se aqui de
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um outro problema: o das supostas relações entre um texto e o seu referente.


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Sobre a verdade da poesia nos estóicos, as indicações de M, Pohlenz, Die Stoa, aqueles que desconfiavam dos mitos não ousavam recusá-los no es-
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Góttingen, Vandenhoeck e Ruprecht, 1978, vol, 1, p. 183 e 235, são menos ela-
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boradas que o resto do livro,


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21 Galeno, De placitis, V, 7 (vol. V, p. 490 Kiúhn). Sobre Crisipo, Homero


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e Galeno, cf, F, Bufhere, Les Mytbes dºHomtre et la pensée grecque, Paris, Les Belles 22 P. Aubenque, Le Problime de PÉsre chez Aristote, Pp. 100.

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Lettres, 1956, p. 274.
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23 Aristóteles, Metafísica, B 4, 1000 À 12.

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sencial, e daí o seu embaraço; é por isso que, tantas vezes, parecem tar o trono, o que supõe um mérito muito superior ao daqueles que

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acreditar apenas a so % nas suas lendas, ou julgar acreditar... Mas apenas se deram ao incómodo de herdar; todavia, partilha esse mérito
existirão assim modalidades parciais de crença? Não hesitariam antes com Ciro, Rómulo e Teseu, que também conquistaram o poder,
entre dois progtamas de verdade? Não era a sua fé que estava divi- e «embora não se deva falar de Moisés, visto que ele não fez mais

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dida, mas sim o mito que se encontrava meio pôdre a seus olhos, do que executar a vontade de Deus, no entanto», concordar-se-á
pois relevava de duas verdades: uma crítica do inverosímil ou do que os seus métodos «não parecem ser muito diferentes» dos dos
indigno, que incidia sobre o conteúdo, e um racionalismo da ima- outros príncipes; «aquele que ler a Bíblia com o seu bom-senso
ginação, segundo o qual era impossível que o continente não conti- verá que Moisés, para assegurar a observância das tábuas da Lei,
vesse nada e que se imaginasse no vazio. O mito misturava se viu obrigado a mandar matar uma infinidade de pessoas». Mas
pois, sempre, o verdadeiro e o falso; a mentira servia para enfeitar Maquiavel não precisa de modo algum da Bíblia para dar esta
a verdade24 a fim de a fazer engolir, ou então dízia a verdade versão política de Moisés; bastara-lhe ler as Antiguidades judaicas
por enigma e alegoria, ou ainda viera aglutinar-se a um fundo de de Flávio Josefo, que inflige a Moisés o tratamento que Tucídides
verdade. Mas não era possível mentir inicialmente. O mito tem de ou Aristóteles infligiam o Teseu ou a Minos27. E provavelmente
transmitir quer algum ensinamento útil, quer uma doutrina física com o mesmo sentimento secreto de que se não deve fazer uma
ou teológica sob a capa de alegoria25, quer a recordação de ideia pueril dos príncipes: essa grande e sublime coisa chamada
acontecimento do tempo passado. Como diz Plutarco26, a ver- política não foi feita pata os ingénuos. Ora nada é mais ingénuo
dade e o mito têm entre si a mesma relação que o sol e o arco-íris, do que a lenda; ela vê os ptíncipes com olhos de criança; tudo são
que dissipa a luz numa variedade matizada. amotes com os deuses, proezas extravagantes, milagres feitos para
O que nos interessa nesta questão é o mito como tradição embasbacar as velhinhas. Como devolver ao texto da mais antiga
histórica. De facto, como a forma mítica nunca era posta em história a sua seriedade política? Por sorte, a coisa é possível; porque,
causa, a crítica antiga diversificou-se segundo o conteúdo: dar dos se as puerilidades inverosímeis são evidentemente falsas, o falso,
deuses míticos uma versão mais piedosa, transformar os heróis em por seu lado, nada mais é do que verdadeiro deformado. É pois
personagens históricas. Com efeito, as lendas relatam-nos anedotas possível restituir o verdadeiro texto da história, e já vimos que
ou narrações relativas a grandes personagens dos tempos heróicos, Políbio ou Aristóteles recuperaram o sentido original de Éolo ou
outras tantas fontes pata a história. Mas o que é a história? É a polí- do Minotauro; mas o mais magistral dos cotrectores foi Palaifato.
tica de outrora. O mito será, pois, puxado num sentido político. Os seus princípios são muito sãos: a menos que sejam instruídos,
Não serão os Gregos os últimos a agir assim e Maquiavel fará ainda os homens acreditam em tudo o que se lhes conta, mas os sábios,
o mesmo. Segundo ele, Moisés foi um príncipe que teve de conquis- esses, não acreditam em nada; no que fazem mal, pois tudo aquilo
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de que se fala existiu (senão, como seria possível falar disso?);


simplesmente, respeitar-se-á firmemente a regra segundo a qual
só é possível o que existe ainda hoje em dia28.
24 Sobre o mito como ornato ou como deleite pata fazer tragar a vet-
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dade, cf. Lucrécio, I, 935; Aristóteles, Metafísica, 1074 B 1; Estrabão, 1, 6, 19, Para se passar do mito à história, bastará pois rectificar erros que
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€. 27. Sobre a ideia de que não é possível mentir inicialmente, cf. P, Aubenque, são, muitas vezes, simples confusões de palavras. Os Centauros
Le Problôme de PÉtre chez Aristote, p. 72 e nota 3 da introdução, de que falam os poetas são impossíveis, pois, se tivessem existido
25 Sobre o vastíssimo assunto da interpretação alegórica dos mitos e seres híbridos, eles existiriam ainda hoje. Um instante de reflexão
em primeiro lugar, de Homero, haveria tantas coisas a dizer que, depois de
mencionarmos o libro de Jean Pépin, Mythe et Alégorie, Paris, Les Belles Lettres, permite ver de onde veio a lenda: para matar touros selvagens,
1958, e de recordarmos que ela é muito anterior aos estóicos, que se tomara
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francamente popular (Diodoro, HI, 62: interpretação física de Dionísio como


sendo a uva; cf. Artemidoro, Chave dos sonhos, II, 37, p. 169, 24 Pack e IV, 47,
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p. 274, 21) e que irá desembocar no alegorismo bíblico, limitar-nos-emos a 27 Maquiavel, O Príncipe, capítulo 61; Discurso sobre Tito Lívio, WI, 30;

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mencionar o Antro das ninfas de Porfírio, as Alegorias boméricas de Heraclitos, o cf. também o Contra Apion de Josefo, 157 sq. (note-se, no capítulo 60, a ideia

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Besumo de teleologia de Cornuto, e a remeter para F. Cumont, Recherches sur le de que a religião serviu a Moisés para tornar o povo dócil).
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spmbolisme funéraire, Paris, Geuthner, 1942, p. 2 sg.:; F, Buffitre, Les Mythes 28 Para Palaifato, apenas dispus de uma edição de 1689, nos Opuscula

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dºHomêre et la pense grecque, Paris, Les Belles Lettres, 1956; P. Decharme mytholegica, physica et etbica publicados em Amesterdão pot Th. Gale. Sobre

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La Critique des traditions religienses chez les Grecs, des origines à Plutarque, Patis, 1905. Palaifato, cf. Nestle, Vom Mythos zum Logos, p. 149; K. E. Miller, Geschichte
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26 De Iside, 20, p. 358 F, Plotino aprofundará uma ideia muito semelhante der antiken Etbnographie, vol. 1, p. 218; F. Jacoby, .4zthis, tbe Local Chronicles
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(Enciadas, MI, 5, 9 24). of Ancient Athens, Oxford, Oxford University Press, 1949, p. 324, nota 37.

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alguém inventou montar a cavalo e trespassá-los com um dardo Factos avulsos cuja memória se conservou até aos nossos dias

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(Rentó). Dédalo também não fabricou estátuas vivas e moventes, devido ao maravilhoso que a eles se veio aglutinar. Mas somos nós

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mas possufa um estilo mais subtil e vivo que o dos seus rivais. Pélope que o dizemos: não eram os Gregos. Estes nunca se interrogaram
nunca teve um cavalo alado, mas tinha um navio onde estavam sobre a causa e o modo como as tradições se transmitiam. Elas
pintados cavalos alados. Palaifato, note-se, nem por um instante estavam aí: não era preciso mais nada. Os Gregos nem por um ins-

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pôs em dúvida a historicidade de Dédalo, de Pélope ou de Éolo tante se espantam de haver entre eles reflexos do passado; recolhem
(que explica do mesmo modo que Políbio). Admite também que,
mitos por toda a parte. Como é que esses aerólitos chegaram até
eles? Não pensam nisso; não vêem o medinm, só se apercebem da
naqueles tempos longínquos, os deuses se mistutavam com os
mensagem. Também não se espantam de que o passado tenha dei-
humanos; Atena e Apolo tomaram parte no suplício de Mársias, e xado uma recordação: é óbvio que todas as coisas têm o seu reflexo,
Apolo amou de facto Jacinto, mas seria puetil acreditar que esse da mesma maneita que os corpos têm sombra. A explicação do
deus tenha escrito o nome do seu eromeno nas pétalas de uma mito está na realidade histórica que reflecte, pois uma cópia explica-se
flor; a verdade é que Apolo se limitou a dar a essa flor o nome do pelo seu modelo. Não perguntam como é que os reflexos consegui-
belo adolescente. tam atravessar tantos séculos, por que vias nem com que intenções.
Vê-se até onde Palaifato leva o optimismo tacionalista; o texto Do mesmo modo, no Crátilo, as palavras explicam-se pelas coisas
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da verdade não está irremediavelmente danificado, e por razões que pintam; o tempo limita-se a alterar as palavras e essas altera-
óbvias: não seria possível mentir ex níbilo, só é possível deformar ções quase não merecem o nome de história, pois não obedecem a
a verdade. O pensamento de Palaifato deixa de ser surpreendente se leis fonéticas, são aleatórias e inessenciais, não apresentam regulari-
reparatmos que ele assenta nesta ideia, cara aos Gregos, e nessoutra dade nem qualquer interesse. Tão-pouco se deverá pensar que o
ideia de que o problema de recuperar o texto otiginal se encontra mito possa ter deformado a verdade por razões positivas, tais
estreitamente definido, pois o erto é múltiplo e o bom-senso como a admitação ou a emoção nacional; a causa dessas alterações
é uno. é apenas negativa, reside numa falta de espírito crítico. Os Gregos
E como descobrir esse bom-senso? Indo a contta-corrente. nunca possuíram uma ciência do mito como tal, mas simplesmente
Existe, com efeito, nos homens, uma corrente que leva à defor- uma ciência da história transmitida pelos mitos.
mação, que os leva a tropeçar em todos os obstáculos constituídos De facto, o modo de transmissão não conta; a palavra é um
pelas relações das coisas com as suas palavras; tomam uma palavra simples espelho; por palavra, os Gregos entendiam o mito, o léxico,
por uma coisa, uma palavra por outta, uma pintura pela realidade, ou melhor, a etimologia, a poesia, os provérbios, em suma, tudo
uma coisa por uma ideia. Está a ver-se a otiginalidade de Palaifato o que «se diz» e fala por si (visto que não fazemos mais do que
perante a crítica dos mitos tal como eta praticada desde Hecateu: repeti-la). Sendo assim, como é que a palavra poderia falar de nada?
pata ele, o mito não recebeu adjunções estranhas, sofreu altera- É sabido como a existência do vazio constituiu um grave problema
ções. É por isso que Palaifato é o único a deixar subsistir a inter- para a filosofia grega, até Platão; é outro sintoma deste «discurso»
venção dos deuses: ele não mede o passado mítico pela realidade do espelho que acabamos de encontrar no problema do mito. Para
presente, onde os deuses já não intervêm, mas considera o mito em nos enganarmos, mentirmos ou falatmos no vazio, temos de falar
si próprio e acha-o caricaturado por contra-sensos ou trocadilhos do que não existe; é pois necessário que o que não é seja, para
involuntários. Em vez de o expurgar do sobrenatural, rectifica que se possa falar dele; mas que é um vazio que não é nada?
deformações semiológicas. Platão decidiu-se a dobrar 6 cabo, a matar «o nosso pai Parménides»
O mito é uma cópia do passado e essa cópia está menos inter- e, por um golpe de força tão grande como o dos matemáticos que
polada do que alterada. Palaifato não considera que o mito veicule tinham acabado de admitir a existência de números não numerá-
história, transmita a memória de teis, de fundadores, de donos do veis (os famosos «irtacionais»), a admitir que o não-ser seja.
matr; ou, pelo menos, os únicos mitos que crítica são anedotas pti- Espantamo-nos com a dificuldade do esforço. Mas, se a palavra
vadas, simples factos avulsos do antigamente que as deformações é um espelho, essa dificuldade é compreensível: como poderia um
semióticas tornaram falsamente maravilhosos; um mito nasce de espelho reflectir um objecto que lá não está? Reflectir o que não existe
um trocadilho. Palaifato reduz assim a lenda de Pândora (não equivale a não reflectir; inversamente, se o espelho reflecte um
importa como o faz) à anedota de uma dama rica que gostava de objecto, esse objecto existe; logo, o mito não poderia falar de
se pintar. nada. Conclusão: temos de antemão a certeza de que mesmo o mito

86 87
mais ingénuo tem um fundo de verdade; e, se nos interrogarmos,
com Palaifato, sobre a origem dos erros que nele se detectam, veti-
ficaremos que esses erros são simples acidentes de reprodução;
o original era autêntico, mas, ao reflecti-lo, tomámos uma palavra
por outra, uma coisa por uma palavra, etc.
Reflectir o vazio é não reflectir; reflectir o nevoeiro será, do
mesmo modo, reflectir confusamente; quando o objecto é pouco
nítido, o espelho é-o também. Os graus do saber serão, pois, para-
lelos aos do ser; todo o platonismo reside aqui. O jovem Aristó-
teles enredar-se-á ainda no seguinte problema: o princípio segundo
o qual tudo é perecível deve, pois, ser ele próprio perecível, mas,
se esse princípio perece, então as coisas deixam de perecer...
O que se diz das coisas partilha a sorte das coisas; uma ciência do COMO DEVOLVER AO MITO

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ciência conjectural, Contrariamente, uma ciência será nobre se as
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como é que os acontecimentos antigos se desenrolaram efectiva- histórica, bastará eliminar tudo o que não tem equivalente detectado
mente, fazemos de modo a que a falsidade tenha, o mais possível, o na nossa eta histórica; «Sou de humor incrédulo em relação ao

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aspecto da verdade»29, Platão não está a ironizar; a falsidade, como mythôdes e por uma razão óbvia: nunca vi ninguém que o tivesse
se sabe, não é mais do que inexactidão e rectificamos, pois, as verificado com os seus olhos; um diz que outro lho contou, o
tradições inexactas para recuperarmos o que parece ser a verdade; segundo que é da mesma opinião, e o terceiro esquece tudo assim
em termos modernos, formulamos hipóteses históricas verosímeis. que um poeta se põe a falar»!. Limitemo-nos, pois, às realidades
Perante a sua idade mítica, os Gregos tiveram duas atitudes: a actuais que foram devidamente verificadas. Dizem-me que Hércules,

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ingenuidade que quer acreditar para se encantar e esse sóbrio de mortal que era, conseguiu tornar-se deus? «Muito gstaria então
regime perpetuamente em suspenso a que se chama hipótese cien- que me explicassem como é que uma coisa foi possível outrora

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tífica. Mas nunca recuperaram a tranquila segurança com a qual, e já não o é hoje»2. As coisas actuais fornecem a medida do que

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assim que se ocupam do período propriamente histórico, acreditam é naturalmente possível; «Diz-se que os heróis tinham dez côvados
na palavra dos historiadores, seus predecessores, que reproduzem, de altura; é uma mitologia encantadora, mas mentirosa e incrível,
Exprimiam atabalhoadamente o estado de dúvida científica que con- se tivermos em conta a natureza, de que os indivíduos actuais são
servavam perante o mito, dizendo que a época heróica era demasiado a medida»3. A redução do mito à história exigirá duas operações;
longínqua, demasiado apagada pelo tempo para que fosse possível Palaifato limitava-se a purificar as tradições do que nelas era
delimitar os seus contornos com toda a certeza30, fisicamente incrível; resta expurgá-las daquilo que é historicamente

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impossível, a saber, a coexistência dos deuses e dos mortais, pois,
na nossa idade histórica, os deuses tetiraram-se para longe dos

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homens. A evolução agitada de Pausânias, a quem iremos buscar a

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maior parte dos nossos exemplos, desenrola-se entre estes dois

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termos.
tem, senão leis que obriga-


A natureza, dizem os Epicuristas,

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tiam a fazer isto ou aquilo, pelo menos pactos ou fuedera que lhe

* Filostrato, Heroikos, VII, 9, p. 136 (p. 7, 26 De Lannoy).

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proíbem certas coisas e, nomeadamente, alterar as fronteiras entre espécie de classificação das tradições míticas segundo a sua digni-
espécies vivas. Portanto, não poderiam existir metamorfoses; conta-se dade cultural. Certas tradições são verosímeis, tanto histórica como
que, nas margens do Pó, um músico se tornou rei da região e que, à naturalmente, de modo que são verdadeiras; as tradições em que os
sua morte, a vontade de Apolo o transformou em cisne; «pela deuses intervêm, mas que se mantêm fisicamente plausíveis, «não são
minha parte», escreve Pausânias 4, «creio, com efeito, que um músico verdadeiras no fundo, mas são assumidas de antemão como verda-
foi rei nessa região; mas que um homem se torne pássaro não é, a deiras pela multidão», por exemplo «as narrativas referentes a Pro-
meus olhos, coisa digna de fé» Também não seria possível exis- meteu, a Níobe e aos vários heróis de tragédia». Em compensação,
tirem monstros. Que fazer de Cérbero? No Ténaro, mostrava-se as lendas contrárias à natureza, tais como «a Gigantomaquia, os guer-
a gruta através da qual Héracles trouxera para terra o cão do reiros nascidos dos dentes do dragão na Cólquida e em Tebas, e
Inferno; infelizmente, diz ainda Pausânias, «não há, no fundo outras lendas semelhantes», não têm «absolutamente nenhum fun-
dessa gruta, qualquer via que conduza ao subsolo, nem se deve acre- damento e estão cheias de tolices e de inépcias». Mitos verdadeiros,
ditar que os deuses tenham uma espécie de morada subterrânea onde verosímeis, inverosímeis; em história, só se aceitam os primeiros,
arrumem as almas»; foi Hecateu de Mileto em pessoa que encon- mas os segundos são admitidos em cultura geral, pois podem
trou «uma explicação verosímil»: o «cão» do Inferno eta, na tirar-se deles temas para tragédias e citá-los como exempla retóricos12,
realidade, uma serpente gigante cujo veneno eta mortal e que foi da mesma maneira que os psicólogos e filósofos modernos alegam
morta por HéraclesS. Os doutos não acreditavam nos monstros, exemplos tirados dos romances; estes exempla, dizem Quintiliano
hipocentauros, quimeras e Cilaó, e Lucrécio” confitmou esse cepti- e Díon, senão acreditados, são pelo menos aceites como atgu-
cismo por meio da física epicurista. E era por isso que também mentos. Se se sonhar com um mito falso, mas verosímil, Artemi-
ninguém acreditava na Gigantomaquia; que os deuses tenham tido doro aconselha que se interprete o sonho em sentido literal; mas,
de combater gigantes com os pés feitos de serpentes é uma concep- se se sonhar com um mito inepto, as esperanças alimentadas serão vás.
ção indigna da sua majestade e biologicamente impossível8. O historiador, esse, tem obrigação de eliminar os deuses do
Pausânias é um novo Palaifatos. Mas é mais do que isso; período mítico. Nem Cícero nem Tito Lívio acreditavam que o pai
Homero, que mostrava os deuses misturados com os homens na de Rómulo fosse Marte e Pausânias não acredita que a mãe de
época heróica, admitia tacitamente que isso acabara desde então. Otfeu tenha sido uma ninfa 13. É por isso que aquilo a que chamamos
Mas, visto que a hitória de outrora se assemelha à de hoje, nos evemerismo agradava tanto aos pensadores desse tempo; é impos-
tempos heróicos isso também não pode ter acontecido. Um mito sível acreditar no deus Hércules14, mas é historicamente são consi-
histórico será um mito sem deuses. Quando deuses, homens e derar Hércules, Baco e os Dioscuros como grandes homens que,
felinos conviviam familiarmente, era a idade de ouro : mas, desde por reconhecimento, foram considerados deuses ou filhos de
que o mundo se tornou real, os deuses escondem-se e já não deuses15, Pausânias, que é mais um especialista dos mitos do que
é possível qualquer comunicação?; «infelizmente», conclui Pausã- um historiador propriamente dito, narra sem pestanejar a maior
nias, «hoje, que a perversidade atingiu o nível que se sabe, os parte das lendas que lhe contaram, mas, por vezes, explode e exclui
homens já só se transformam em deuses na vã retórica que a lisonja dos mitos a intervenção dos deuses; Actéon foi, diz-se, dilacerado
dirige ao soberano»tO,
A partir daqui, torna-se possível, com Artemidorol1, uma
rice Blanc, Gilbert Casimiri e Jacques Cheilan, haviam feito comigo, em 1968,

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Artemidoro, Chave dos sonhos, IX, 44 (p. 178, 7): IV, 47 (p. 272, 16 Pack).
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Lucrécio, V, 878; IV, 730. Cícero, De re publica, M, 10, 18; Tito Lívio, prefácio, 7; em 1, 4, 2, ele

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Platão, República, 378 €; Cícero, De natura deorum, II, 28, 70; Pausânias,
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VIII 29, 3; Artemidoro, Chave dos sonhos, IV, 47, p. 274, 16 Pack; Aeina, 29-93. assim acreditava de facto, quer para esconder a sua culpa sob uma ilustre pater-
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º Reuni referências em Pain et Cirque, p. 581 € nota 102, p. 741; citemos nidade», Pausânias, IX, 30, 4; em IX, 37, 7, escreve também, com uma precisão
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sobretudo Xenofonte, Memoráveis, IV, 3, 13. reveladora: «os reis Ascalfo e Ialmeno, que se dizia serem filhos de Ares, e Astíoque,
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10 Pausânias, VII, 2, 4-5. filha de Azeus».
11 Artemidoro, IV, 47, p. 274, 2-21 Pack; é óbvio que tenho debaixo
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14 Cícero, De natura deorum, II, 16, 40 sq.


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dos olhos a admirável tradução de Festuge; três dos meus estudantes, os srs. Mau-

15 Cícero, Tusculanas, I, 12 27 sq.


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pelos seus cães, por vontade de Ártemis, «mas eu creio que, sem
a sua falsidade, uma vez que a verdade é mais natural que a mentira;

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intervenção divina, os cães de Actéon contrafram a taiva é o dila-
não insistem os nossos filólogos, com uma lógica um tanto
ceraram como teriam dilacerado outra pessoa qualquer»16. O nosso
confusa, que o texto dos manuscritos deve ser considerado verda-
mitógrafo vai mais longe que o seu confrade Palaifato. Dionísio
deiro desde que não seja insustentável?...
nada tem a ver com a morte de Tritão, ou de um tritão, ou dos
Não é, pois, uma história edificante a que aqui contamos da
tritões; mais vale acreditar numa outra versão da lenda, que vê em razão contra o mito. Porque, como veremos, a razão não ganhou
Dionísio uma alegoria física e explica que os pescadores de Tânagra
(o problema do mito foi mais esquecido do que resolvido), não
deitaram vinho ao mar para embebedarem um tritão que andava
era por uma boa causa que ela se batia (o princípio das coisas
a devastar a costa e poderem matá-lo mais facilmente. Efectivamente,
actuais foi um refúgio para todos os preconceitos: Epicuro e Santo
Os tritões existem, e Pausânias viu-os: em Roma, o procurador Agostinho negavam, em seu nome, a existência dos .antípodas)
imperial a sirabilibus mostrou-lhe um, cujos restos se encontravam
e, enfim, não era ela que se batia, mas simplesmente um programa

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conservados nas colecções do príncipel7.
de verdade cujos pressupostos são suficientemente estranhos para
O critério das coisas actuais como medida de todas as coisas nos escapatem, ou para nos espantatem quando os identificamos.

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é um princípio são, mas delicado de manejar; Pausânias duvida de

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Não temos nunca, sobre o verdadeiro, o falso, o mito, a supetsti-
muitas coisas, mas não dos tritões e também não duvida dos pás-
ção, uma visão completa, uma evidência, um index sm. Tucídides
saros do lago Estinfalo, pois podem ver-se ainda destes pássaros na
acreditava nos oráculos23, Aristóteles na adivinhação pelos sonhos,
Arábia18. Não devemos, com efeito, medir as coisas actuais pelo
Pausânias obedecia aos seus sonhos24,
que delas conhecemos1º; um certo Cléon, de Magnésia do Sípilo, Uma vez rectificadas as inexactidões da tradição, obtêm-se factos
autor de Paradoxa, observara que aqueles que nada viram negam autênticos. À literatura mitológica, oral ou escrita, com os seus
erradamente certas coisas estranhas20; e Pausânias admite que, inúmeros autores, conhecidos ou desconhecidos e as suas múltiplas
quando se fazem sacrifícios a Etéocles e Polinices, a chama que
variantes, terá, doravante, de fazer concotrência ao registo civil;
sobe do altar consagrado aos irmãos inimigos se divide miraculo-
terá de possuir a coerência cronológica, prosopográfica e biográfica
samente em duas partes, pois esta maravilha entra em série e Pausâ-
da história. Se é verdade que existe, em Atenas, um túmulo de
nias viu-a com os seus olhos21, O problema está, pois, em conhecer Édipo, será preciso pôr esse dado de acordo com o resto: «À custa
as fronteiras da realidade. Deverá acreditar-se que Aristómenes,
de longas investigações, descobri que as ossadas de Édipo haviam
o campeão dos Messénios contra Esparta, tomou parte, após a sido transportadas de Tebas para Atenas; porque, Homero», que
morte, na batalha de Leuctros? Se os Caldeus, os Indianos e Platão diz que Édipo morrera e fora enterrado em Tebas, «impedia-me de
têm razão em afirmar que a alma é imortal, torna-se difícil recusar
acreditar no que diz Sófocles acerca da morte de Edipo»2s.
g

esse mitoZ2, Que não se replique que a alma pode ser imortal é o
áffi

O tempo mítico não tinha nem profundidade nem medida 26;


mito em questão não passar de uma invenção; presume-se que todo
é o mesmo que perguntar se as aventuras do Polegarzinho aconte-
o mito é verdadeiro e é ao crítico que cabe a obrigação de provar
ceram antes ou depois das da Gata Borralheira. No entanto, os
heróis, essas nobres personagens, possuíam uma árvore genealó-
16 Pausânias, IX, 2, 3-4.
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17 Pausânias, IX, 20, 4 e IX, 21, 1. É um procurator a mirabilibus, ou um


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minister a mirabilibus, ou qualquer outro título equivalente, que há que reconhecer


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23 Tucídides, IH, 17. .


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creio, por detrás do grego de Pausânias (VIII, 46, 5): oi êmt toiç Oouúuaoiu

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24 Pausânias, 1, 38, 7 e IV, 33, 5. Estes sonhos impediram-no de revelar

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Acerca destes thaumata que se visitavam em Roma, cf. ainda Pausânias, IX, certos mistérios sagrados. Nada de mais frequente entre os literatos desta época
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21, 1; não tenho lembrança de que esta função esteja epigraficamente atestada.

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do que obedecer a sonhos; Artemidoro recebeu de Apolo, em sonho, a ordem de


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18 Pausânias, VIH, 22, 4. Mesmo raciocínio em 1 24, 1: não teria o Mino- escrever a sua Chave dos sonhos (Onir., II, prefácio, ad finem); Díon Cássio recebeu

§sãt §§
tauro sido um homem, sendo um monstto apenas na lenda (cf. nota 11

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do cap. dos deuses, em sonho, a ordem de escrever a sua História romana (XXI, 2);
g'l ৠ$:

«Quando a verdade histórica...»). Não é certo, pois vemos frequente

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§ E:;

mente Galeno dedicou-se à medicina na sequência dos sonhos do seu pai, que via no
mulheres darem à luz monstros.

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filho um médico (vol. X, 609 e XVI, 223 Kuhn); um sonho enviou-lhe a com-
19 Santo Agostinho di-lo-á ainda para explicar a longa vida de Matu-

E s§

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à

posição de um remédio,
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salém (Cidade de Deus, XV, 9).


25
Pausânias, I, 28, 7. .
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20 Pausânias fala deste Cléon


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LT. Radermacher, Myzhos und Sage bei den Griechen, 1938, reimp. 1962,
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21 Pausânias, IX, 18, 3-4.
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p. 88 F, Prinz, Grandungsmytben und Sagenchronologie, Munique, 1979, é estranho


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22 Pausânias, IV, 32, 4.
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ao nosso problema,
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92
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93

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De qualquer modo, esta obsessão de rigorosa cronologia é
gica; acontecia também que uma predição anunciasse a um herói

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significativa. A lei do género histórico exigia, e exige ainda, que

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que as desgraças da sua família teriam fim cinco ou dez gerações

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se contem os acontecimentos fornecendo as suas datas, e mesmo
depois dele27. Alguns mitógrafos puderam, pois, estabelecer desde

ã}i §gI §ÊÉÉ{tEilIIʧfl{


o dia exacto, se possível, Porquê esta precisão, tantas vezes inútil?
muito cedo uma cronologia das gerações míticas, que acabou com

E
Porque a cronologia é o olho da história e permite controlar ou
a limitação que consistia em dizer: «era uma vez um tei e uma
refutar hipóteses? É verdade que o permite, mas não é por isso

1§ É $E [H Êt€
ãsãgilgEt*E

[
ninfa». Tornou-se possível derrotar os que duvidavam das lendas

i{*:Híf
que é tida em tão alta conta; a cronologia, tal como, aliás, a geogta-
por elas não comportatem cronologia28 e, graças aos sincronis-
fia e a prosopografia, num primeiro momento basta-se a si própria,
mos2º, foi possível distinguir as falsas lendas das verdadeiras; já
Isócrates pôde vingar Busíris das calúnias de um retórico, provando num programa de verdade em que se conhece o tempo e o espaço,
distribuindo neles o seu conteúdo, homens, acontecimentos e
que Busíris eta seis séculos anterior a esse Héracles que, ao que se pre- da história. Quando se
lugares. É a mais cândida das concepções
tendia, o teria punido por certos crimes30, A prosopogtafia tornou-se

gül$§rE§,§
é capaz de saborear uma pintura, é-se esteta, mas, se se for capaz de
não menos coerente; discutiram-se e dissiparam-se homonimias
dizer a sua data, é-se historiador de arte: sabe-se de que é feito o
Igit §Ê íÉ;ããÊE il

(Pausânias estabeleceu que o Télamon cujo túmulo se vê em Féneo


passado da pintura. Os Gregos editaram pois uma cronologia his-

â{ E E;{:g$Ê
não é o pai de Ajax, mas um obscuro homónimo31). Foi também
tórica da genealogias heróicas, e o tempo mítico, tornado homo-
necessário desdobrar certos acontecimentos. Como a mais antiga

i§H
géneo ao nosso, precedeu-o, até à data fatídica de cerca de 1200,
vitória olímpica de que se conservara memória remontava a 776, que começa a história
que é a da guerra de Tróia, altura em
í;ã$íEãà
+ll E íé EsE 1

concluíta-se ser também essa a data da fundação do concurso;


puramente humana?3.
mas, como se sabia que Apolo vencera Hermes e Ares em Olímpia,

ৠI
imaginar a instituição de um primeiro con- Que era preciso saber pata se conhecer a história das idades
tornara-se necessário
heróicas? Genealogias. A fundação de Patras, para escolher este
curso olímpico em tempos muito antigos, que depois caíra em
;;tf

exemplo entre cem, foi obra de Patreus, filho de Prêugenes e neto


desuso, vindo a ser renovado em 776. Invenção de algum historia-

I F is
de Agenor, e foi ele que deu o seu nome à cidade; este Agenor
dor à Diodoro ou de algum filólogo para quem os textos eram a
íl^ tivera por pai Ateus, filho de Ampis, ele próprio filho de Pélias,
própria realidade; Estrabão e Pausânias, pela sua parte, nem por
em tal coisa32; têm dos deuses uma con- filho de Aiginetes, filho de Dereites, filho de Hárpalo, filho de Ami-
um instante acreditam
I

clas, filho de Lacedemónio34. Conhecer completamente o passado


;
-E,

cepção menos pueril.


reduzia-se a conhecer a lista completa dos reis ou arquétipos, sem
ignorar, além disso, os laços de parentesco que os ligam entre si:
estava-se assim de posse da trama dos tempos. Poetas e historiadores
locais teceram por toda a parte essa trama; o mito, esse boato sem
27 Ésquilo, Prometeu agrilhoado, 774 e 853. autor que se confunde com a verdade, foi reinterpretado como recor-
3gʧ*láuts üsEàài§gr

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28 Diodoto, IV, 1, 1.
dação histórica ou cultural que se teria transmitido de geração em
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29 Exemplos de discussão das variantes lendárias por meio dos sincro-


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nismos: Pausânias, IIL, 24, 10-11; IX, 31, 9; X, 17, 4. Sobre as cronologias geração a partir das testemunhas oculares, Se se quisessem conhecer
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l§t u;; Hs q; r,,E

lendárias, W. Kroll, Siudien zum Verstânduis..., cap. HI e p. 310. Pretendia-se as origens de uma cidade era preciso interrogar as gentes da
que os nomotetas Onomácrito, Tales, Licurgo, Carondas e Zaleuco haviam
âE§ã§s I=

sido discípulos uns dos outros; Aristóteles faz a isso uma objecção cronológica
(Política, 1274 A 28); Tito Lívio prova da mesma maneita que Numa Pompílio
não pode ter sido discípulo de Pitágoras (1, 18, 2). Ver também Dinis, Antigui- Pausânias, V, 4,5; V, 8, 5; VII, 26, 4;

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algum digno de confiança»);

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dades, II, 52. Sobre os sincronismos na historiografia grega, A. Momigliano, acetca do início do cômputo olímpico, VI, 19, 13 e VII, 2, 2 (na sua datação

i
Essays in Ancient and Modern Eistoriography, p. 192, e Siudies in Historiography, dos sincronismos dos mais antigos concutsos gregos, Pausânias recusa-se a tomat
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§ iiE E I §:E.
7,oiÀií)H
p. 213. em conta o ptimeiro concurso olímpico, aquele em que participaram Héracles

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30 Isócrates, Buris, 36-37. e Apolo). Pausânias sabe, aliás, ter existido uma época em que os Elcienses ainda
Pausânias, VII, 15, 6-7. Pausânias discute outras homonímias em VII,
ü§Ef.Ê{

31 dos vencedores (VI, 19, 4). Sobre o sincronismo


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não conservavam os nomes

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19, 9-10 6 VII, 22, 5. Foi para resolver problemas cronológicos e prosopográficos entre o ano 776, o rei Ifito, que fundou («refundou») o concurso, e Licurgo,

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que, na época helenística, se acabou por concluir terem existido vários Héracles

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cf. Pausânias, V, V, 5, e Plutarco, Vida de Licurgo, 1.

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(dizem-no Diodoro, Estra-
33 Sobre esta data, cf. Timeu, citado por Censorino, De die natali, SXI, 3.

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vários Zeus
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homónimos, vários Dionísios e mesmo

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bão, mesmo Cícero; cf. Pausânias, IX, 27, 8). Sobre a ligação entre o tempo mítico e o tempo histórico, cf. por exemplo Pau-
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32 Acerca deste primeiro concurso olímpico, cf. Estrabão, VII, 3, 30, sânias, VIII, 1-5 e 6.
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C. 355 (que distingue, nesta ocasião, o Héracles filho de Alcmena do Héracles

34 Pausânias, VII, 18, 5; outro exemplo, VIH, 4, 1.
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de várias maneiras, não sendo

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e conclui: «Tudo isto é contado
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dos Coreutas,

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região; o gramático Ápion, que queria saber a que jogo jogavam Hélade; o conflito comportou vários períodos, cercos, guerra de

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os pretendentes de Penélope, sentados, com fichas, diante da porta movimento, batalhas decisivas.

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do megaron, fez a pergunta a um habitante de Ítaca35. Pausânias Assim se constituiu, ao longo do período helenístico e romano,

rg í l íÊ ír rg § s s; I i? if g ls ig
não actua diferentemente: visitou a Grécia, cidade por cidade e, essa enorme historiografia local, magistralmente estudada pelo nosso
em cada uma delas, dirigia-se aos notáveis que se interessavam pelas mestte Louis Robert, que dava a cada cidade as suas origens, Os

l
otigens locais e que, muitas vezes, possuíam um exemplar de seus antepassados, o que permitia aos homens políticos invocarem,
um historiador pouco conhecido; esses eruditos e esses livros como fundamento de uma aliança ou de um pedido de serviços,
formam conjuntamente aquilo a que Pausânias chama os «exegetas grandes ou pequenos, parentescos lendários entre cidades, paren-

+IíirI ti ãí§É$É §Fg}l§€I


das antiguidades», nos quais se cometeu o erro de ver ciceroni ou tescos esses muitas vezes inesperados: entre Lanúvio e Centúripes,
sacristãos
36, Pausânias, o mais das vezes, não nos diz os seus nomes: Esparta e Jerusalém, Roma e Ílion40. Trata-se, pode dizer-se, de
um historiador antigo, como sabemos, não faz notas de rodapé...
§ãiãfãi B§ flgl,s ãÉÉ$§i uma historiografia de falsários, em que tudo é inventado a partir

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Mas porque é que a trama dos tempos era cronológica? Por- de índices minúsculos ou da imaginação do autor; os tempos moder-
que os mitos contavam as biografias de heróis, de reis, de arqué- nos, até uma época muito recente, tiveram uma historiografia dinás-
tipos; essa velha literatura oral só falava de origens, de fundações, tica não menos imaginárias,
de gestas guerreiras, de dramas de família cujos actores eram Não se veja nesta ideologia das otigens um tormento meta-
principescos. Vimos que os arquétipos, Hélen ou Pelasgo, foram físico; não se tratava de uma busca mal orientada que procurasse,
considerados como antigos reis assim que o próprio mito passou nos tempos recuados, a profundidade de um fundamento. À etio-
a ser interpretado como tradição histórica; a história da cidade foi logia era muito simplesmente uma necessidade de identidade política.
={tgterç

a da sua família real; e também os próprios heróis eram personali- O que havia de estranho, com efeito, nesta historiografia
dades principescas. Do que se concluiu que «por toda a parte, na local, era o facto de se reduzir às origens: não contava a vida da
Grécia, outora, houve reis e não cidades livres»37. A patética lite- cidade, as recordações colectivas, os grandes momentos. Sabia-se
ratura mítica dos dramas familiares foi, também ela, travestida em o bastante quando se sabia quando e como é que a cidade havia sido
história séria; a história arcaica da Aqueia38 foi não menos recheada fundada; uma vez nascida, à cidade só lhe restava viver a sua vida,
de revoluções de palácio do que a dos Selêucidas ou dos Lágidas; que podia presumir-se comparável ao que pode ser uma vida de cidade
sob a pena de Pausânias, a guerra dos Sete contra Tebas transforma-se e que seria aquilo de que ela fosse capaz. Não importava: uma vez
numa espécie de guerra do Peloponeso e «na mais memorável de contada a sua fundação, a cidade estava fichada no espaço e no tempo:

todas as que os Gregos fizeram entre si durante o período heróico», possuía a sua ficha de identidade.
como escreve o nosso autor, imitando candidamente Tucídides39;
sg

Argos e Tebas, tinham ambas cidades suas aliadas por toda a


l

40 É sabido que, desde a época clássica, os parentescos entre cidades

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:íàtãEi§ti?it*§tãã*ãi
eram um argumento diplomático (cft., por exemplo, Heródoto, VII, 150; Xeno-
fonte, Helénicas, VI, 3, 6). Quanto a Lanúvio e Centúripes, cf. J. e L. Robert,
«Bulletin épigraphique», Revue des études grecques, LXKVII, 1965, p. 197, n.º 499;
35 Ateneu, I, 16 F-17B (Odisseia, I, 107). quanto a Esparta e Jerusalém, Segundo livro dos Macabeus, IV; os Etruscos conhe-
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Éc'Eâ.H§;§§§-Ê,8§"ca
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36 Cf, nota 14. Pausânias cita, por exemplo, um certo Calipo de Corinto, ciam também o resto da lenda troiana e tinham por mitologia a mitologia grega;
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autor de uma história de Orcómeno (IX, 29 2 e 38, 10). Diz ter interrogado o que de modo algum quer dizer que tenham conhecido uma lenda de Eneias
«as pessoas da região», «o povo» (VIII, 41,5), que, por vezes, não sabe; dirige-se fundador de Roma; em contrapartida, este género de invenção vai exactamente
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então «aqueles indígenas a quem foram transmitidos velho livros históricos no sentido da pseudo-história helenística e, pela minha parte, creio que a tese
(bypomnémata)»; de outra vez, o velho da aldeia é o único que sabe a origem de J. Perret é acertada. É sabido, aliás, que a leitura do nome de Eneias num
de um costume (VIII, 42, 13 e VI, 24, 9). Entre os seus informadores, há um cipo de Tor Tignosa é uma tresleitura (Aunée épigraphique, 1969-1970, n.º 2).
E§?§filiff

nomopbylax de Elis (VI, 23, 6), as Tíades de Atenas (X, 4, 3), O seu anfitrião em 41 Jacques de Voragine, o autor da Lenda dourada, escreveu igualmente
.E

Larissa (IX, 23, 6), um Efésio (V, 5, 9). Cf. todavia F. Jacoby, .4sthis, the Local uma história de Génova, sua pátria, na qual somos informados de que aquela
§ rE§

Chronicles of Ancient Athens, p. 237, nota 2 e add, p. 399. cidade teve por fundador Janus, primeiro rei de Itália, em seguida, como segundo
CI"iÀ'!§ ,,

37 Pausânias, IX, 1, 2. Sobre todas estas questões de genealogia e etio- fundador, um segundo Janus, homónimo do precedente e cidadão de Tróia,
a

..

logia, cf. o 4ztbis de F. Jacoby, particularmente p. 143 sg. e 218 sg, A importância como Eneias. A história da arte no Sul de Itália foi, durante muito tempo, fal-
iã;
E.€

política da história local mítica é confirmada pela epigrafia (Mármore de Paros, seada por um erudito napolitano que, em 1743, inventou totalmente os artistas,
lista dos sacerdotes de Poseidon em Halicarnasso, Crónica de Lindos). com nomes, datas, biografias (E. Bertaux, L” Art dans [Italie méridionale, nova
38 Pausânias, VII, 1 e 2. ed., Escola francesa de Roma, 1980, prefácio). Imagino que este falsário pre-
3º Pausânias, IX, 9. tendia dar um Vasari à Itália meridional.

96 97
Este conhecimento das identidades por fichagem era familiar

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aos Antigos. Alguns epitáfios identificavam assim o defunto, e

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Virgílio imita-os em dois belos versos sobre a morte do guerreiro

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Eolus: «eram pois esses os teus limites de mortal: uma alta morada

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ao pé do Ida, em Lirnésio, uma alta motada, e, em terra lautentina,

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i
um túmulo»; e será assim também o epitáfio do próprio Vergílio:

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«Mântua deu-me a vida, a Calábria titou-ma». Leio de modo seme-
lhante, no Petit Larousse de 1908, as seguintes linhas: «Zichy (Eugêne
de), homem político e explorador húngaro, nascido em Zichyfalva
em 1837; Ziegler (Claude), pintor francês, nascido em Londres
(1804-1856)».
Assim, graças à etiologia, mesmo a mais minúscula das cida-

s:lgt

H{;1fiHHr
des gregas terá a sua personalidade; será uma pessoa moral, mem-
bro de pleno direito da sociedade das cidades. Será comparável a «LÍNGUA DE PAU»

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s? EE§,8cÀEil;{
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um homem plenamente homem, a um homem nascido livre; cida-
des destas, «desde o seu nascimento que são homens notáveis, não
começatam por ser escravos», escreve Menandro, o Retórico4? Pot conseguinte, dizer que o mito se tornara uma ideologia

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no tratado que consagrou aos discursos solenes em que os conferen- política nem sequer é falso, mas apenas pouco instrutivo. Um por-

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cistas faziam o elogio de uma cidade perante os seus habitantes. menor levat-nos-á mais longe do que estas generalidades: é frequente
H

os Gregos darem a impressão de não acreditarem muito nos seus

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mitos políticos, e eram eles os primeiros a rir-se nas cerimónias em

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que esses mitos eram exibidos. Faziam um uso cerimonial da

tgÊàlBi lígil*êEErE
etiologia; o mito tornara-se, efectivamente, verdade retórica. Com-
preender-se-á assim melhor a sua reacção perante O carácter con-
vencional desta mitologia: mais do que de descrença, tratava-se,
a bem dizer, de um sentimento de convenção ou de irrisão.
Daí uma modalidade particular de crença: o conteúdo dos discursos

i}âi It
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cerimoniais não era sentido como verdadeiro nem como falso,

Ir
mas como verbal. As responsabilidades desta «língua de pau» não
devem procurar-se junto dos poderes políticos, mas sim de uma

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instituição própria da época, a saber: a retórica. Mas os visados

I* fii{§*
não a rejeitavam, pois sabiam distinguir a letra da boa intenção:
se não era verdadeito, era bem visto.

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Os Gregos tinham uma velha complacência em relação ao

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EgÉ$§ã
bene trovato, O que confirma uma ideia do jovem Nietzsche: não há

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mentira quando o mentiroso não tem interesse em mentir!; não é

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possível estar-se a mentir quando se diz, dos valores, mais bem
do que, em todo o rigor, se deveria. O hino homérico a Hermes é


uma ilustração humorística deste zelo piedoso; segundo o poeta,
tX..-,

1 Cf nota 20 do cap. «Diversidade social das crenças...» Sobre este

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ponto, é com ptazet que citamos o livto original e corajoso de Paul Feyerabend,

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42 «Sobre os discursos epidícticos», em Rhezores Graeci, vol, II, p. 356 Contre la méthode: esquisse d'une théorie anarchiste de la comnaissance, tr. £t., Paris,
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30 Spengel. , , Seuil, 1979, p. 302 e nota 1, sobre mentira e ficção na Grécia atcaica.,
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o deus Hermes, jovem prodígio de malícias mil, ainda mal saíra

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do ventre da mãe e já estava a inventar a arte das canções; a primeira míticos, bem como os parentescos lendários entre povos?, faziam as

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vezes de salamaleques na sociedade internacional; cada cidade

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composição desta testemunha privilegiada consistiu em contar os
lendárias às suas pares, que tinham a

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amotes entre o pai e a mãe. A multidão de peregrinos que ouviu afirmava as suas origens

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pela primeira vez a recitação deste hino deve ter-se sentido público gentileza de não as pôr em causa; era uma maneira de se afirma-

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tem como pessoas. A sociedade das cidades era, assim, composta

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cúmplice, aplaudindo gostosamente; ninguém levava a sério a enge-
nhosa ficção, mas não se esperava menos de Hermes e agradecia-se por pessoas nobres, que possuíam os seus laços de parentesco;
ao poeta o ter inventado essa lenda. ao aceitarem estas ficções como artigos de fé, mostravam o seu

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Porque estes peregrinos eram pessoas de bem, respeitavam respeito pelas regras da vida internacional das cidades civilizadas.

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os valores. Com efeito, as pessoas sérias, os indivíduos respon- Coisa curiosa, a afirmação da personalidade de cada cidade,
sáveis resolvem generosamente o seguinte caso de consciência: bem como a individuação por fichagem, desempenhavam igualmente

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poderá, sem pedantismo, condenar-se alguém que abraça com zelo um papel importante em política interna; com efeito, é inimaginá-
a boa causa, a do Bem (que é também a da Verdade), por razões vel o prazer dos cidadãos ao ouvirem um orador pronunciar o pane-

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que só na letra não são verdadeiras? Não valerá mais ignorar este gírico da sua cidade; estes discursos laudatórios eram uma moda

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erto de pormenor puramente verbal? Esta indiferença em relação que durou um milénio, até ao fim da Antiguidade. Falava-se tanto
à veracidade, quando os verdadeiros valores se encontram assegura- de origens míticas e de parentescos de cidades, na Grécia, como de
dos, define toda uma série de comportamentos historicamente genealogia nos salões do faubourg Saint-Germain, e pelas mesmmas
divetsificados. Na Grécia, estes comportamentos verbais em que a razões4. Quer fosse indígena ou natural de outra cidade, o orador
linguagem, mais do que informar, desempenha uma função, obser- celebrava as origens da cidade, o que estava longe de ser a parte
vam-se nas relações internacionais; em política interna, eram repre- menos importante do seu elogio; os cidadãos ouviam-no com enor-

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sentados por um género literário, o panegírico da cidade, pronun- me prazer. «Quando ouço celebrar, diz ironicamente Sócratess,
ciado perante os cidadãos. aqueles que acabam de morrer na guerra e, com eles, a nossa
cidade e nós próprios, sinto-me mais nobre, mais ilustre, e cada
Em 480, a seguir ao seu triunfo sobre os Persas em Salamina,
os Gregos reuniram-se em congresso; a vitória definitiva estava
à vista e Atenas, que salvara a Hélade do Bárbaro, aparecia já como
3 Em matéria diplomática, o tecurso ao mito preenche o intervalo even-

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a cidade hegemónica; não lhe faltava o poder e usava já a linguagem

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catacterística. Como uma outra cidade se lembrara de opor, a esta tual entre os interesses em jogo e os compromissos tomados. Os Judeus afirmam

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aos Espartanos, que não se atrevem a duvidar, que os dois povos são irmãos

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primazia nova, os seus privilégios tradicionais, os Atenienses repli- em Abraão; a fraternidade assim selada raramente tem ocasião de ser posta à
caram que os seus próprios direitos não eram menos antigos; Atenas prova, de tal modo que se torna necessário renovar periodicamente os salamale-

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havia já sido vitoriosa no tempo dos Heraclidas, da Tebaida e da ques (Primeiro livro dos Macabeus, XII); serve de quando em quando, e o grande
sacerdote Jazão, vencido, irá acabar os seus dias a Esparta; cf. B. Cardanus,
invasão das Amazonas?; toda a gente compreendeu o que se queria XCV, 1967, p. 314. Quando, em contra-
«Juden und Spartaner», em Hermes,
dizer e Atenas saíu vencedora. Os títulos míticos haviam servido partida, uma aliança ou uma inversão de alianças assenta em interesses vivos

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para designar as relações de força, justificando-as e dispensando a € actuais, não vem ao caso invocar patentescos lendários e seria até tidículo

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o que se encontta bem sublinhado nas Helénicas de Xenofonte, VI, 3,
sua nomeação directa. Cobertura ideológica? Não se trata de uma fazê-lo,

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relação de sobreposição, como a da cobertura com o coberto, que opõe o discurso pomposo e ridículo de Cálias ao dos outros deputados
atenienses.

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mas antes da relação do papel-moeda das palavras com a reserva 4 Cf, um passo divertido do Hépias maior, 285 DE. Esta moda dos elogios
de ouro do poder. Ameaça disfarçada de elogio? Não só: ao ale- atinge o auge na época imperial; Apuleio pronunciou por várias vezes o elogio
garmos tazões elevadas em vez de mostrarmos a nossa força, de Cartago (Florides, 18 e 20); Favorino, o de Corinto (este elogio foi posto
sob o nome de Dion de Prússia e forma o seu discurso XXXVID; e Tertuliano,
incitamos o outro a uma submissão deliberada e por razões hon-
o dos seus compatriotas cartagineses. Em todos estes casos, notar-se-á que Cat-

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rosas, que salvam a face. À ideologia não é uma pedra falsa, ela tago e Corinto, colónias romanas, são consideradas cidades antigas; Corinto é
suposta continuar a velha cidade grega, destruída pelos romanos há mais de
dois séculos e substituída por uma colónia com o mesmo nome; Cattago é do
mesmo modo suposta continuar a cidade de Dido e Aníbal. Vemos aqui em
. 2 Heródoto, IX, 26-28. O papel de Atenas na guerra das Amazonas é funcionamento o pensamento etiológico, que apaga a história e individualiza
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5 Platão, Menexenas, 235 AB.


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um dos ouvintes, pot seu lado, experimenta o mesmo sentimento, ao ouvitdes isso, abríeis as pernas» Num outro poeta cómico,
de tal modo que todo o corpo cívico se vê engrandecido; e preciso um mercador de raparigas que tem razões de queixa contra um dos
de uns bons três dias para me recompor dessa emoção». seus clientes lembra aos jurados que a sua justiça deve mostrar-se
Nos ridículos, nas irritações, nas pequenas ironias da vida digna dos fundadores da cidade, Hércules e Esculápio. O mal-estar
quotidiana, afloram à consciência processos mais sérios. Todas as e a dúvida podem também nascer de uma disfunção. No campo
cidades, grandes ou pequenas, tinham as suas origens e era possível as vezes
diplomático, a invocação dos grandes antepassados fazia
fazer o elogio de todas elas; os manuais de retórica forneciam tecei- das boas razões, na ausência de interesses mais substanciais ; mas
tas para descobrir algum mérito mesmo à mais insignificante cida- tornava-se ridícula e verbal7 quando esses interesses existiam e à
dezinha. Era por isso que estes panegíricos, mais do que exaltar uma hora exigia que se falasse de negócios. o
cidade acima de todas as outras, visavam reconhecer à cidade a sua Uma outra fonte de cepticismo era a presença da retórica,
dignidade de pessoa. E esse elogio era menos dirigido ao gtupo transformada em técnica consciente de si própria; aquela gente
do que aos indivíduos; nesses panegíricos pronunciados perante aprendera na escola a arte de fazer acreditar ou de fazer frases, e não
a cidade congregada, não era o grupo que se adorava a si próprio, tinha ilusões acerca do que fazias. A má-fé era, por vezes, levada
como em Nuremberga; o elogio da cidade fazia cada cidadão sentir-se, até ao didactismo; no seu Panegírico de Atenas, Isócrates? pretende
não transportado por uma força colectiva, mas antes possuidor, que se vá procurar, «muito para além da guerra de Tróia», as pto-
para além dos seus méritos, de uma dignidade pessoal extra, a saber, vas da grandeza e da generosidade atenienses, e acrescenta que,
a qualidade de cidadão. A glorificação do grupo era glorificação «embora a narrativa dessas provas seja mytbôdes, não deixa de ser
dos indivíduos, como se se fizesse o elogio da nobreza perante conveniente fazê-lo»; como pode este otador ser tão desajeitado
nobres. Não era um orgulho patriótico; o indivíduo orgulhava-se, que desminta assim as suas próprias afirmações? É que ele é igual-
não de pertencer a esta cidade em vez daquela, mas de ser cidadão mente professor de retórica e comenta todos os seus efeitos orató-
em vez de o não ser. À cidadania não era, efectivamente, uma tios para instrução dos seus leitores. º o
característica sentida como universal, uma espécie de grau zero da Uma fonte extra era a não-profissionalização da actividade
individualidade, como entre nós se é francês ou alemão porque não de historiador. Já vimos que o bom nome de historiador era usado
se pode deixar de ser alguma coisa; toda a gente pertencia a uma igualmente por autores, como Diodoro, que visavam sobretudo dis-
cidade, mas ninguém deixava de sentir orgulho em ser cidadão. trair os seus leitores ou alimentar-lhes as suas piedosas convicções
Para explicar porquê, teríamos de ir procurar na parte oculta do e por historiadores «sérios», mesmo «pragmáticos», que pretendiam
iceberg da política antiga; digamos apenas que a cidade não era deixar instrutivas lições aos políticos. Ao que diziam. Na verdade,
uma «população»; não era a fauna humana que os acasos do nas- visavam sobertudo contar aos políticos do futuro histórias interes-
cimento fazem surgir nos limites deste ou daquele espaço terri- santes, senão instrutivas, que punham em cena colegas da corpo-
torial; a cidade sentia-se a si própria como uma espécie de corpo ração política, pois o sapateiro gosta de ouvir falar de sapateiros.
constituído, à maneira de uma corporação do nosso Antigo Regime A isto se reduziam o ktéma es aci de Tucídides e as suas lições de
ou da Ordem dos advogados ou dos médicos. Estranho privilégio, história. Havia, pois, livros de história sérios, havia também muitos
nessa Hélade ou nesse Império romano em que todo o homem livre, que o não eram, mas o mais grave era que nenhum sinal exterior
ou quase, era cidadão de alguma cidade; é compreensível que a separava os primeiros dos segundos; o público era obrigado a apre-
contradição de um privilégio universal suscitasse algum mal-estar ciar caso a caso. A não-profissionalização tinha efeitos nefastos,
no subconsciente dos visados; esse vago tormento provocava um como se vê. Acrescente-se imediatamente que a actual profissionali-
agudo prazer quando se ouvia um panegírico em que um dos dois
termos da contradição era exaltado, à exclusão do outro.
Temos, com efeito, a capacidade de reagir afectivamente à
Aristófanes, Acarnianos, 636 (cf. Cavaleiros, 1329); Herodas, IH, gs.

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contradições de que não possuímos inteira consciência. Como, não

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Xenofonte, Helénicas, VI], 3 (cf. nota 3 deste capítulo).

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sabemos porquê, por vezes sentimos essa espécie de irritação a que É assim que Pausânias (citado na nota 10 do cap. «Como devolver ao
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se chama sentido do ridículo. Os Gregos eram os primeiros a ritem-se mito a sua verdade etiológica») e Santo Agostinho (Confissões, VI, 6) ironizam

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do seu gosto pelos panegíricos cívicos: «Sois, Atenienses, um povo acerca de uma outta espécie de panegíricos, dirigidos aos imperadores; «podia

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ter a certeza de que as minhas mentitas de panegirisia obteriam a aprovação dos

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de tansos; quando os delegados das cidades submetidas queriam

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que todavia sabiam a verdade», escreve


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enganar-vos, começavam por chamar-vos a brilhante Atenas, e vós, 9 Isócrates, Panegírico de Atenas, 54 (cf. 68) e 28.

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zação universitária tem outros não menos perversos, embora os Se somos capazes de acreditar em coisas contraditórias, isso
de um
sociólogos universitários (ó surpresa!) pareçam ter mais dificul- deve-se pois a que, em certos casos, O Nosso conhecimento
mente,
dade em os entrever. De qualquer modo, a indistinção do melhor objecto é falseado por influências interessadas. Existem, natural
s na esfera da realida de que nos são reflecti dos
e do pior despistava os espíritos, arruinava o moral dos leitores e objectos inscrito
chega até nós
alimentava um cepticismo dissimulado. Os historiadores desse tempo por uma luz natural do espírito; só que o raio, ora
como
tinham, pois, toda a conveniência em conciliar todas as tendências directamente, ota é inflectido pela imaginação ou pela paixão,
pelo inte-
de um público bastante heteróclito; quando Tito Lívio ou o De re se dizia no Século de Ouro, ou então pela autoridade ou
a um mesmo objecto
publica escrevem que Roma é uma cidade de tal grandiosidade que resse, como dizemos hoje; de tal modo que
correspondem dois reflexos, dos quais o segundo está falseado.
merece o respeito das fábulas com que embelezava as suas origens inevi-
não estão a fazer lavagem ao cérebro ideológica, muito pelo contrá- A ideologia é um Zertium quid paralelo à verdade e às avarias
é um erro constante
tio; como bons historiadores-repórteres, deixam desdenhosamente táveis e aleatórias da vetdade que são os erros;
o facto
a cada uma das diferentes tendências dos seus leitores a escolha da e orientado. O que confere plausibilidade a este esquema é
ão: O inte-
sua versão preferida dos factos; mas não deixam de dar a entender de ele fazer lembrar a velha ideia de tentação e de corrupç
ncias.
que, pela sua parte, não acreditam numa única palavra dessas resse, o dinheiro podem fazer flectir a mais recta das consciê
A noção de ideologia é uma tentativa louvável e falhada de
fábulas.
corrigir a lenda de um conhecimento desinteressado, nos termos
Estamos a ver quão longe da ditadura ideológica ou dos pre- autónoma,
tensiosismos edificantes estava a antiga candura. À função criava, da qual existiria uma luz natural que seria uma faculdade
diferente dos interesses da vida prática. Essa tentativa conduz,
de facto, o órgão, a saber, a «língua de pau» da etiologia ou da duas con-
retórica, mas nenhuma autoridade política ou religiosa vinha acres- infelizmente, a um erro de cálculo: a ideologia mistura
inconciliáveis do conhecimento, a do reflexo e a da
centar-lhe o seu peso. Comparada com os séculos cristãos ou cepções
é redi-
marxistas, à Antiguidade tem, muitas vezes, um ar voltairiano; operação. Pouco evidente à primeira vista, esta contradição
se reflect irmos por um instante ; O conhec imento não pode
dois áugures não podem encontrar-se que não sorriam um do bitória,
classe
outto, escreve Cícero; sinto que estou a tornar-me um deus, dízia ser agora correcto e logo oblíquo; se forças como o interesse de
forças ope-
um imperador agonizante. , ou o poder o desviam quando é falso, então, as mesmas
forças,
O que põe um problema geral. Tal como os Dorzé, que crêem ram também quando diz a verdade; ele é produto dessas
simultaneamente que o leopardo jejua e que é preciso precaver-se não reflexo do seu objecto.
contra ele todos os dias, os Gregos acreditam e não acreditam nos Mais valeria teconhecer-se que todo o conhecimento é interes-
para
seus mitos; acreditam, mas servem-se deles e deixam de acreditar sado e que verdades e interesses são duas palavras diferentes
faz. Pretend eu-se dis-
quando não lhes convém; é preciso acrescentar, em sua defesa uma mesma coisa, pois a prática pensa o que
es apenas para tentar explicar as limi-
que a sua má-fé residia mais na crença do que na utilização interes- tinguir a verdade e os interess
seira; o mito não passava de uma superstição de meios-letrados tações da verdade; pensava-se que ela era limitada pela influência
es são
que os doutos repunham em dúvida. À coexistência, numa mesma dos interesses. É esquecer que também os próprios interess
históricos,
cabeça, de verdades contraditórias não deixa de ser um facto limitados (inscrevem-se em todas as épocas em limites
ios no seu feroz interes samento ) e que têm os mesmos
universal, O feiticeiro de Lévi-Strauss acredita na sua magia e são arbitrár
-
manipula-a cinicamente, o mágico segundo Bergson só recorre limites que as verdades correspondentes; inscrevem-se nos horizon
programas.
à magia quando não existem receitas técnicas seguras, os Gtegos tes que os acasos da história conferem aos diferentes
não fosse, acabarí amos por achar paradox al que cer-
interrogam a Pítia sabendo que, por vezes, essa profetiza faz pro- Se assim
própria ideolog ia. Se esque-
paganda em favor dos Persas ou da Macedónia, os Romanos falsi- tos interesses possam ser vítimas da sua
que práticas e interesses são limitados e raros, encararia-
ficam a sua teligião de Estado para fins políticos, deitam à água cêssemos
dois
os frangos sagrados quando eles não predizem o que seria preciso mos o imperialismo ateniense e o imperialismo hitleriano como
do eterno imperialismo e, nesse caso, O racismo hitle-
e todos os povos dão um jeitinho aos seus oráculos ou aos seus exemplos
é certo,
índices estatísticos para obterem a confirmação daquilo em que dese- tiano não passaria de uma cobertura ideológica, vatiegada O
justificar
jam acreditar. Ajudate a ti próprio que o céu te ajudará; o mas que importa? Se a única função do racismo fosse
passaria de uma superst ição
Paraíso, sim, quanto mais tatde melhor. Como poderíamos resistir totalitarismo ou o fascismo, ele não
de uma aparência. Surpreendidos, verificatiamos então que
à tentação de falar em ideologia? ou

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104
Hitler, com o seu racismo, comprometeu, por vezes, o êxito do Estado e que a considera uma impostura útil inventada pelos homens.
seu imperialismo totalitário. A verdade é mais simples do que isso; Mais provavelmente ainda, pensará que há que defender todos os
Hitler limitava-se a pôr em prática as suas ideias racistas, que eram valores conjuntamente, religião ou pátria, e que uma razão nunca
o que lhe interessava; como mostraram Jackel e Trevor-Roper, tinha é má quando se trata de apoiar uma boa causa.
realmente como objectivo de guerra a aniquilação dos Judeus e o A nossa vida quotidiana é composta por um grande número
recomeço da colonização germânica dos países eslavos; Russos, de programas diferentes e a impressão de mediocridade quotidiana
Judeus e bolcheviques eram realmente a mesma coisa para ele, que nasce precisamente dessa pluralidade, a qual, em certos estados
não pensava poder comprometer a sua vitória sobre os últimos ao de escrúpulo neurótico, é sentida como uma hipocrisia; passamos
perseguir os dois primeiros... Não é por se ser «interessado» que se incessantemente de um programa para outro, como se muda de
é racional; até mesmo os interesses de classe são filhos do acaso. comprimento de onda na rádio, mas fazêmo-lo sem nos darmos
Visto que interesses e verdades não provêm «da» realidade conta. Ora a religião é apenas um desses programas que pouco ou
nem de nenhuma poderosa infra-estrutura, antes são conjuntamente nada interfere nos outros.
limitados por programas de acaso, pensar a sua eventual contta- Como diz Paul Pruyser na sua Dynamic Psychology of Religion,
dição como desconcertante seria conceder-lhes demasiadas hontas; a religiosidade ocupa, num dia, apenas uma parte mínima dos pen-
não há verdades contraditórias num mesmo cérebro, mas simples- samentos de um homem relígioso, mas pode dizer-se o mesmo dos
mente programas diferentes, cada um dos quais encerra verdades pensamentos de um desportista, de um militante, de um poeta.
e interesses distintos, mesmo quando essas verdades usam o mesmo Ela ocupa uma estreita faixa, mas ocupa-a sincera e intensamente.
nome. Conheço um médico que, sendo homeopata apaixonado, tem O autor destas linhas andou muito tempo irritado com os historia-
no entanto a prudência de prescrever antibióticos quando a doença dores das religiões que, por vezes, lhe pareciam fazer uma ideia
É grave e reserva a homeopatia para os casos anódinos ou desespera- monolítica do seu objecto (quando o pensamento não é uma
dos. À sua boa-fé é total, gatanto-o; por um lado, é louco por pedra), atribuindo à religião uma predominância efectiva sobre as
remédios não conformistas e, por outro, acha que tanto o interesse outras práticas, tão grande como a sua importância teórica. Quando,
do médico como o do doente estão em que o doente se cure; de facto, o quotidiano desmente essas nobres ilusões sa religião,
estes dois programas nada têm de contraditório, nem sequer de a política ou a poesia podem bem ser as coisas mais importantes
comum, c a contradição aparente reside apenas na letra das verda- deste mundo ou do outro e nem por isso deixam de ocupar um
des correspondentes, que pretende que ou se é homeopata ou não. espaço reduzido na prática; e toleram tanto mais facilmente verem-se
Mas as verdades não estão inscritas como estrelas na esfera celeste; aí contrariadas quanto, em geral, são insensíveis à contradição. Mas
elas são o pequeno círculo de luz que aparece na ponta da luneta de não são menos sinceras e intensas; a importância metafísica ou a
um programa, de tal modo que a dois programas diferentes corres- sinceridade individual de uma verdade não se medem pela ampli-
pondem, evidentemente, duas verdades diferentes, ainda quando o tude da sua banda de frequência; por isso falamos de verdades
seu nome é o mesmo. no plural, e acreditamos que a história das religiões tem algo a ganhar
O que não é insignificante para a história das crenças. O nosso com isso. o
espírito não se apoguenta quando, parecendo contradizer-se, muda Sentimo-nos mais à vontade para estudar as crenças, religiosas
subrepticiamente de programa de verdade e de interesse, o que ou outras, quando compreendemos que a verdade é plural e analó-
acontece vezes sem conta, Não se trata de ideologia, é a nossa gica. Esta analogia da verdade faz com que a heterogeneidade dos
maneira de ser mais habitual. Um Romano que manipula a religião programas passe despercebida; continuamos na verdade quando
de Estado segundo os seus interesses políticos pode estar de tão mudamos inadvertidamente de comprimento de onda; a nossa
boa-fé quanto o meu amigo homeopata; se estiver de má-fé, será sinceridade é total quando nos esquemos dos imperativos e usos
por não acreditar num dos seus dois programas, apesar de o da verdade de há cinco minutos pata adoptarmos os da nova
utilizar, mas não por acreditar em duas verdades contraditórias. verdade.
Aliás, a má-fé nem sempre está onde se julga; o nosso Romano As diferentes verdades são todas verdadeiras aos nossos olhos,
pode ser sinceramente piedoso; quando afecta um escrúpulo reli- mas não as pensamos com a mesma parte da nossa cabeça. Em
gioso em que pouco ou nada acredita, a fim de interromper uma Das Heilige, Rudolf Otto analisa de passagem o medo dos fan-
reunião eleitoral em que está iminente uma má votação, isso não tasmas. Precisamente: se pensássemos os fantasmas com o mesmo
prova que não acredite, mas antes que não acredita na religião de espírito que nos faz pensar os factos físicos, não teríamos medo

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deles, ou pelo menos não da mesma maneira; temê-los-íamos como Sastre dizia que o imaginário é um analogon do real; poderia

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a um revólver ou a um cão feroz, ao passo que o medo dos dizer-se que o imaginário é o nome que damos a certas verdades
fantasmas é medo perante a intrusão de um mundo diferente. e que todas as verdades são analógicas entre si. Estes diferentes mun-
Pela minha parte, considero os fantasmas como simples ficções, dos de verdade são eles próprios objectos históricos, e não cons-
mas não deixo por isso de sentir a sua verdade; tenho deles um tantes da psique. Alfred Schutz tentou traçar uma lista filosófica
medo quase neurótico, e os meses que passei a seleccionar os destes diferentes mundos e podem ler-se, nos seus Collected Papers,
os seus estudos, cujos títulos dizem bastante acerca do assunto:
papéis de um amigo morto foram um longo pesadelo; neste
«On multiple realities» e «Don Quixote and the problem of reality».
preciso momento em que dactilografo estas frases, um arrepio de um historiador os lê, sente uma ligeira decepção: as reali-
Quando
terror começa a subir-me nuca acima. Nada me tranquilizaria mais dades múltiplas que Schutz descobre na psique são aquelas em que
do que dizerem-me que os fantasmas existem «realmente», pois o nosso século acredita, mas um pouco descoradas, um pouco
passariam a ser um fenómeno como os outros, que estudaríamos vagas, o que lhes dá um ar de eternidade; esta fenomenologia
com os instrumentos adequados, máquina fotográfica ou contador é história contemporânea sem o saber e seria vão procutar nela um
Geiger. É por isso que a ficção científica, longe de me dar medo, me lugar para as crenças míticas dos Gregos.
tranquiliza deliciosamente. Schutz não deixa de ter o mérito de afirmar a pluralidade dos
- Estamos a fazer fenomenologia? Não; é história, e duplamente. nossos mundos, que os historiadores das religiões por vezes não reco-
É verdade que devemos a Husserl, em Erfabrmg und Urteil, uma nhecem. Consideremos uma outra dessas línguas de pau que serviam
descrição sugestiva daquilo a que chama o mundo do imaginário: de ideologia aos Antigos: a divinização dos soberanos. Os Egípcios
o tempo c o espaço dos contos não são iguais aos daquilo a que consideravam o faraó como um deus, os Greco-Romanos diviniza-
chama o mundo da experiência real, e a individuação permanece vam os imperadores mortos ou vivos e estarão lembrados de que
aí inacabada; Zeus não passa de uma figura de conto, sem verda- Pausânias só via nestas apoteoses a «vã lisonja». Crença verdadeira?
deiro estado civil, e seria absurdo perguntar se ele seduziu Danai Um facto mostra até onde vai a nossa duplicidade para connosco
antes ou depois de Leda. próprios: se os imperadores eram deuses e se os arquólogos encon-
Simplesmente Husserl, muito classicamente, acha que existe traram dezenas de milhares de ex-voto consagrados aos diferentes
um solo trans-histórico de verdade. Ora, primo, afigura-se pouco deuses, para cura, feliz regresso, etc., não existe contudo um único
histórico distinguir, da experiência, um mundo do imaginário cuja ex-voto consagrado a um imperador-deus; quando os fiéis tinham
verdade seria, não apenas diferente, mas menor; secundo, o número necessidade de um verdadeiro deus, não se dirigiam ao imperador.
e a estrutura dos mundos experienciais ou imaginários não são uma E, no entanto, há provas não menos gritantes que mostram que os
constante antropológica, mas variam historicamente. De constante mesmos fiéis consideravam o soberano como uma personagem mais
a verdade apenas tem a sua pretensão a ser, e essa pretensão é só que humana, uma espécie de mago, de taumaturgo.
formal; o seu conteúdo de notmas depende das sociedades, ou É vão tentar determinar a todo o custo «o» verdadeiro pensa-
melhor, na mesma sociedade existem várias verdades que, apesar mento dessa gente, e não menos inútil pretender resolver esses
de serem diferentes, são tão verdadeiras umas como as outras. pensamentos contraditórios, atribuindo um deles à religião popular
Que quer dizer imaginário”. O imaginário é a realidade dos outros, e o outro à classe social privilegiada. Os fiéis não consideravam
da mesma maneira que, segundo uma frase de Raymond Aron, as o seu senhor todo-poderoso como um homem comum, e a hipér-
ideologias são as ideias dos outros. «Imaginário» não é uma palavra bole oficial que fazia desse mortal um deus era verdadeira em
de psicologia ou de antropologia, ao contrário de «imagem», mas espírito, pois correspondia à sua devoção filial e, nas asas desse
um juízo dogmático sobre certas crenças de outrém. Ora, se não verbalismo, eles sentiam mais fortemente ainda esse sentimento de
for nossa intenção dogmatizar acerca da existência de Deus ou dos dependência; a ausência de ex-voto prova, todavia, que não tomavam
deuses, deveremos limitar-nos a verificar que os Gregos consi- a hipérbole à letra. E também não ignoravam que o seu senhor
deravam verdadeiros os seus deuses, embora esses deuses tenham sublime era, ao mesmo tempo, um pobre homem, tal como em
existido para eles num espaço-tempo secretamente diferente daquele Versalhes se adorava o Rei-Sol e se mexericava acerca dos seus
em que viviam os seus fiéis; esta crença dos Gregos não nos obriga mínimos gestos. Nos contos populares do antigo Egipto, G. Pose-
a acreditar nos seus deuses, mas diz muito sobre o que é a verdade ner mostrou que o faraó não passa de um potentado banal e por
para os homens. vezes ridículo. Seja como for, nesse mesmo Egipto, intelectuais,

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t_ toda uma ideologia do tei-deus não podiam deixar de ter algum

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teólogos, elaboraram uma teologia faraónica em que o faraó não é

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divinizado por simples hipérbole ou deslize metonímico; essa interesse em fazê-lo, nem que fosse o de se presentearem com um
doutrina foi «uma descoberta intelectual, fruto de raciocínios meta- romance exaltante. Durante o nosso Antigo Regime, acreditava-se,

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físicos e teológicos», escreve François Daumas, que a qualifica, numa desejava acreditar-se na bondade do rei, e todo o mal provinha

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expressão contraditória e engenhosa, como realidade verbal, Por- exclusivamente dos seus ministros; o contrário seria desesperante,
que não? Os textos constitucionais do século XIX e do século XX, visto que era impossível pensar em expulsar o rei como se
a Declatação dos Direitos do Homem ou o marxismo oficial não expulsa um simples ministro. Como se vê, a causalidade é sempre
são menos reais nem menos verbais. Na Grécia e em Roma, em activa, mesmo entre os pretensos causados; o senhor não inculca
compensação, a divindade dos imperadores nunca foi objecto de dou- uma ideologia ao escravo, basta-lhe mostrar-se mais poderoso do

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trina oficial e o cepticismo de Pausânias eta de regra entre os inte- que ele; o escravo fará o que puder para reagir, nem que seja for-

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lectuais, ou entre os próprios imperadores, que eram por vezes jando uma verdade imaginária para si próprio. O escravo procede
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os primeiros a rir-se da sua divindade. àquilo a que Léon Festinger, psicólogo instrutivo, porque malicioso
Com efeito, tudo isto é história, visto que mitos, apoteoses ou nato, chama uma redução da dissonância,

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Psicologia, efectivamente, pois muitas vezes a contradição dos

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Declaração dos Direitos, imaginários ou não, não deixaram de ser
forças históricas e visto que um mundo imaginário, em que os deuses comportamentos torna-se observável e trai o movimento das forças
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podem ser mortais e são machos ou fêmeas, é datado: é anterior ao subjacentes; afloram, então, a má consciência e a má-fé, ou o
cristianismo. É ainda história por uma terceira razão: porque farisaismo que povoam toda a nossa vida quotidiana; há toda

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estas verdades são apenas a roupagem de forças, são práticas e não uma psicologia anedótica que permite despachá-los de modo rápido
luzes. Quando os homens dependem de um homem todo-poderoso, e expeditivo. Visto que as forças são a verdade das verdades, só
relacionam-se com ele como homem e vêem nele um simples mortal, sabemos aquilo que nos deixam saber, ignorando sinceramente O

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segundo a óptica dos criados de quarto, mas relacionam-se com que não temos o direito de saber. «Nunca confesse», aconselhava
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ele também como seu senhor, vendo-o, portanto, também como um Proust ao autor de Corydon; assim ninguém verá o que salta à
deus. À pluralidade das verdades, chocante para a lógica, é conse- vista, pois a justiça dos salões só aceita as confissões e reprova aquele
quência notmal da pluralidade das forças. O junco pensante orgulha- que se institui em inquisidor dos seus pares. Do mesmo modo, os
-se humildemente de opor a sua débil e pura verdade às forças brutas, maridos enganados são cegos porque não têm o direito de suspeitar
mas essa verdade é ela própria uma dessas forças; o pensamento da mulher sem ptincípio de prova; resta-lhes ignotar, até que um
faz parte do monismo infinitamente plutalizado da vontade de poder. facto lhes caia diante dos olhos. Mas ignoram demais: ouvimo-los
Forças de todo o tipo: poder político, autoridade dos profissionais a calarem-se.
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Há, no Tristão do velho Béroul, um episódio que nos deixa

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do saber, socialização e domesticação. E é por o pensamento ser uma
força que se não distingue da prática como a alma se distingue perplexos. Isolda abandonou o rei Marco e fugiu com Tristão
do corpo, faz antes parte dela. Marx falou de ideologia para pata a floresta. Ao cabo de três anos, os dois amantes despertam,
frisar bem que o pensamento era acção e não pura luz, mas, um dia, sem já nada sentitem um pelo outro; o filtro de amor, em
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materialista à moda antiga, ligou a alma ao corpo, em vez de cujos efeitos eternos Béroul não acredita, esgotou a sua virtude ;
não a distinguir sequer dele e de manipular a prática em bloco; Tristão decide que o mais sensato é Isolda regressar para junto do
o que obrigou os historiadores a exercícios dialécticos (a alma reage marido. Devolve-a, pois, a Marco, desafiando em duelo judiciário
sobre o corpo) para reparar essa trapalhada. quem ouse afirmar ter ele alguma vez tocado em Isolda; ninguém
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A verdade é balcanizada por forças e bloqueada por forças. apanhou a luva e a inocência da rainha manteve-se inalterável. Que
A adoração e o amor do soberano são esforços impotentes para pensavam disto Béroul ou o seu público? Nada pode substituir
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dominar a submissão: «uma vez que eu o amo, ele não pode querer- aqui o texto e a sua insondável candura.
Com efeito, Béroul sente que, como amante ciumento, Marco

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-me mal» (um amigo alemão contou-me que o pai votara em
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Hitler para se tranquilizar: visto que voto nele, apesar de judeu, sabia tudo, mas, como marido e rei, não tinha o direito de saber.
é porque no fundo ele pensa como eu). E, se o imperador se fazia Em Matco e em Béroul, este conflito desenrola-se na consciência,
ou, o mais das vezes, se deixava adorar, isso servia como «infor- ou melhor, num nível situado imediatamente abaixo da consciência
mação de ameaça»: visto que ele é adorável, que ninguém se lembre no qual sabemos muito bem de que é que não devemos tornat-
de contestar a sua autoridade. Os teólogos egípcios que elaboraram -nos conscientes; maridos enganados ou pais cegos vêem apro-

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ximar-se de muito longe aquilo que não devem ver e o tom de gação e a invenção vêem-se paralisadas; não ousamos dar um

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voz furioso e angustiado com que montam rapidamente uma cena passo sozinhos.
de diversão não deixa dúvidas sobre a sua lucidez que se ignora. Numa visão melíflua das coisas, a distribuição social do
Dessa cegueira à má-fé e à verborreia dos salamaleques, todas as saber (ninguém sabe tudo e cada um beneficia da competência
gradações psicológicas são concebíveis; acontecia o mesmo entre dos outros) conduz a efeitos tão neutros e benéficos como a troca
os Gregos, em matéria de mito, a partir de Isócrates. Platão trai dos bens no mercado perfeito dos economistas; haverá algo mais
um estado de consciência desconfortável quando diz, no livro VII inocente, mais desinteressado que o conhecimento da verdade?
das Leis, que tem duas razões para acreditar que as mulheres são Ela é o contrário das relações brutais. É verdade que há compe-

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aptas pata o ofício tência e competência; no livro EV das Leis, desta vez, Platão
das armas: «Por um lado, tenho fé num mito
opõe o saber servil do escravo do médico, que aplica, sem os

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que se conta», o das Amazonas, «e, por outro, sei (pois é essa a pala-

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compreender, os processos que o seu senhor lhe ensinou, à ver-
vra) que, nos nossos dias», as mulheres da tribo dos Saurómatas dadeira competência do homem livre, do médico, que sabe o
praticam o tiro com arco. Dito isto, as anedotas psicológicas são porquê desses processos e que, tendo levado a efeito estudos
uma coisa e a imaginação constituinte é outra; apesar da sua liberais, «conhece segundo a natureza». É bem verdade que os
má consciência, ou antes, por causa dela, Platão não lança os mitos longos estudos dos nossos engenheiros e dos nossos médicos
borda fora, mas procura o seu indubitável núcleo de verdade, pois lhes permitem compreender a razão das técnicas que a seguir apli-
era ptisioneiro desse programa, bem como todos os seus contem- catão e, pot consequência, talvez inventar outras novas; é não menos
porâneos. verdade, e talvez mais verdade ainda, que a verdadeira virtude des-
De qualquer modo, só sabemos (ou só acreditamos, é a mesma ses estudos está em lhes fornecer confiança na sua legitimidade;
coisa) aquilo que temos o direito de saber; a lucidez é prisioneira eles são os senhores no seu domínio, têm o direito de falar e os
desta relação de força, que se toma facilmente por superioridade outros limitam-se a ouvir. Não são paralisados pela ideia de uma
de competência. Daí um certo número de casos de espécie. Já vimos competência oficialmente superior.
que é importante saber que as opiniões são divididas e isso leva à balca-
nização dos cérebros; a menos que cultivemos o irrespeito como
método heurístico, não condenamos com uma palavra aquilo em que
muitos acreditam e, logo, também não o condenamos em pensa-
mento; nós próprios acreditamos um pouco. Não menos impor-
tante é saber que é possível saber; Raymond Ruyer escreveu, algures,
que, para fabricarem por sua vez uma bomba atómica, os Russos
não precisavam para nada de espiar os Americanos; bastava-lhes
saber que era possível fabricá-la, o que souberam a partir do
momento em que souberam que os Americanos o haviam feito.
A superioridade dos «herdeiros» culturais está toda nisto, o que
podemos ver por contraste no caso dos autodidactas; o que é
decisivo para estes não é que lhes indiquem bons livros, mas que
lhes sejam indicados por outros autodidactas; achatão, então, pos-
sível compreender esses livros, uma vez que os seus pates os
compreenderam. Um herdeiro é alguém que sabe que não existem
arcanos; julga-se capaz de fazer tanto como os seus pais conse-
guiram fazer e, se existissem arcanos, os seus pais teriam chegado
até eles. Com efeito, é capital saber que há outros que sabem ou,
ao contrário, saber que não existe, fora do pequeno campo de
conhecimentos que possuímos, uma zona armadilhada em que só
outros, mais competentes, são capazes de se aventurar; se acredi-
tarmos que existem atcanos que só outros conhecem, a investi-

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dos deuses que lhe haviam sido contadas pelos Gregos; todavia,

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Aceitaria ele tudo o que não criticava e seria uma alma crente,
ou seria um espírito voltairiano que demolia alguns mitos pata os
abalar a todos? Vamos retomar o estudo da «questão Pausânias»,
pois tem o interesse de ser complicada, mostrando ao mesmo
tempo a estreiteza do programa em que se debatiam os espíritos

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mais sinceros. Porque, na última parte da sua obra, Pausânias

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fielmente, mas só acredita nas suas linhas gerais; o que retém no seu

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aliás menos que as absurdidades acerca dos deuses. É esta a sua sentimentos pessoais. Adivinhamos qual era esse programa ao
atitude até ao fim do livro VII. Ela subsiste nos últimos três lermos o que escreve Dinis de Halicarnasso, no seu Julgamento
sobre Tucídides, acerca dos historiadores do século V: «Têm um
livros, depois de Pausânias ter encontrado, na Arcádia, um cami-
nho de Damasco, mas doravante interroga-se se não existirá, por único fim, sempre o mesmo: levar ao conhecimento de todos os

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vezes, uma vetdade alegórica, ou mesmo literal, nas lendas que homens tudo aquilo que haviam podido recolher em matéria de
a princípio o escandalizaram. Nada disto surpreenderá os nossos recordações próprias das diferentes cidades e que a gente da região
leitores; mas, como o nosso autor é reservado e de um humor conservara, ou cujos monumentos se encontravam consagrados
nos santuários; não acrescentam nada nem cortam nada; havia,
ligeiro, nem sempre é fácil de deslindar. Pausânias tem personali-
dade (muito mais que um Estrabão, por exemplo). entre essas recordações, mitos em que se acreditou ao longo dos

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Por duas ou três vezes, a pena escorrega-lhe das mãos1; «ponha- séculos, bem como aventutas romanescas que hoje nos parecem
mos o mito de lado», escreve então e, recusando-se a contar a bastante pueris». Estes velhos historiadores não recolhiam as tra-
dições locais sem acreditarem nelas, como fazem os nossos folclo-

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fábula de Medusa, fornece-nos duas vetsões racionais, entre as quais
não é capaz de escolher; Medusa foi uma rainha morta na guerra, ristas, nem se abstinham de as condenar por respeito pelas crenças

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Medusa foi um animal monstruoso como os que ainda podem estrangeiras; consideravam-nas como verdades, mas verdades que
não lhes pertenciam, como não pertenciam a ninguém, mas apenas

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ver-se no Sahara, de acordo com o testemunho de um historiador
cartaginês. Racionalização política ou física dos mitos. Por três ou às gentes da região; com efeito, os indígenas são os mais bem
colocados para saberem a verdade acerca de si próprios e, sobre-

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quatro vezes, diverte-se?; vê-se em Mantineia um veado, agora
bastante velho, com uma coleira onde se lê: «Fui capturado por tudo, essa verdade sobre a sua cidade pertence-lhes, tal como a
Agapenor aquando da sua partida para a guerra de Tróia»; o que cidade a que se refere. É uma espécie de princípio de não-ingerência
prova que os veados vivem ainda mais tempo que os elefantes. nas verdades públicas de outrém.
Seis séculos mais tarde, Pausânias podia ainda imitar a sua

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Humor que esconde alguma exasperação? por ver Helenos tão
ingénuos como os Bárbaros. Acabará por confessar? que as fábulas neutralidade, porque os mitos conservavam ainda, e continuatão

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lhe parecem relevar de uma pura e simples ingenuidade, recusando-se, a conservar, uma alta dignidade cultural. A fábula não era folclore,
por vezes, a empenhar a sua responsabilidadeS: «Repito o que tal como os concursos atléticos, em Olímpia ou alhures, não eram
dizem os Gregos», escreve nesse caso. espectáculos «bons para a multidão»6; eram costumes nacionais.
Mas, na gtande maioria dos casos, abstém-se de julgar, limi- Há inúmeras definições possíveis do folclore, e uma delas não o carac-
tando-se a relatar o que diziam os Gregos; o que era efectivamente, teriza por critérios internos, mas pelo facto de ele ser atirado pata

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e desde há muito, um programa de verdade específico por detrás fora do círculo de uma cultura que se considera a si própria

6 EH. W, Pleket, «Zur Soziologie des antiken Sports», em Mededelingen

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1 Pausânias, II, 21, 5; cf. também I, 26, 6 e VI, 18, 7, 4. Encontrar-se-á
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outra interpretação «racionalista» de um mito em V, 1, 4: Endímion, em vez de van bet Nederlands Institunt te Rome, XXXVI, 1974, p. 57. Em plena época impe-
rial, os atletas recrutam-se amiúde na classe dos notáveis (cf. o estudo de F, Millar
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amante da Lua, casou com uma princesa de quem teve filhos, que são os epó-
nimos dos Etólios e dos Paiónios. Para Pausânias, trata-se de história, pois, como sobre Dexipo no Journal of Roman Studies de 1969) e é por isso que os desportos
atléticos não são abandonados apenas à cultura dita popular. Quando os Cínicos
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discípulo de Tucídides, acredita nas realezas dos tempos heróicos e nos antepas-
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ou Díon de Prússia ironizam, nas suas diatribes, contra os concursos atléticos,


sados epónimos. Em II, 21, 1, Pausânias recusa-se a discutir, Ver também II,
17% 4 o que censuram é a loucura e as vãs paixões dos homens, ou melhor, dos Gregos
2 Pausânias, VII, 10, 9; mesmo humor em VII, 10, 4; V, 13, 6; VI, 26, 2. em geral, mas não manifestam desdém por um divertimento que fosse bom
Sobre este último texto, cf. R. Demangel em Revue internationale des droits de P Anti- apenas pata o povo miúdo. Outra coisa muito diferente aconteceu em Roma,
quité, II, 1949, p. 226, que põe «a questão da boa-fé na devoção antiga» e que onde, como mostra G. Ville no seu grande livro sobre La Gladiainre, Escola
admite que podem existir mistificações piedosas e, portanto, sinceras. francesa de Roma, 1982, os espectáculos eram considerados bons pata O povo;
3 Pausânias, VI, 26, 2. Cícero ou Plínio, o Jovem, frequentavam-nos todavia, mas afectando certo
desdém. Mas, precisamente em Roma, os actores dos espectáculos, longe de

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4 Pausânias VII, 8, 3.
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5 Pausânias, VIII, 3, 6; com efeito, os Gregos contam aqui uma fábula, a de serem tecrutados na boa sociedade, eram vis saltimbancos, como mostra Ville.
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Pausânias tem, além disso, perante o passado grego, a atitude passadista que era

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Zeus amante de Calisto, que é indigna da majestade dos deuses; não é menos
pueril e mitológico acreditar que os deuses transformam as suas amantes em comum à sua época; cf, É. L. Bowie, «Grecks and their past in the Second So-
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astros, phistic», em Past and Present, XLVI, 1970, p. 23.

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como a boa e a verdadeira. Pausânias, esse, não rejeita as tradições ou deixa de acreditar na historicidade do rapto de Core; como vimos

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nacionais que eram os mitos. Respeita também a sua especialidade, antes, segundo ele, «não devemos imaginar que os deuses possuem

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pois a sua vocação consiste em reunir as curiosidades de cada uma motada subterrânea».
cidade, lendas e monumentos, e não é de bom tom nem de boa Pausânias, como filólogo, aceita tacitamente todas as lendas que

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consciência ironizar acerca daquilo que se estuda. É por isso que não critica, mas tecusa-as como homem. Calisto, amante de Zeus,

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molha a pena no tinteiro dos seus autores e entra no jogo deles. não foi metamorfoseada em constelação, uma vez que os Arcádios
Acontece-lhe frequentemente declarar que esta versão de uma lenda mostram a sua tumba; trata-se da exigência de coerência interna, e
é mais provável que aqueloutra; livremo-nos de acreditar que fala é o filólogo que fala. «Repito aqui o que dizem os Gregos», estipu-
então em seu próprio nome7; fala como filólogo, colocando-se na lara ele inicialmente; eis o homem que transparece, guardando as
perspectiva do seu autor c aplicando-lhe os seus critérios de autor. suas distâncias em relação a uma lenda ridícula e ímpia. Concluir-

§
À crítica racionalista dos mitos sucede, então, uma crítica de -se-á, pois, que Zeus se limitou a dar à constelação o nome de Calisto ;

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coerência interna. Os habitantes de Fénco dizem que Ulisses, que eis o historiador racionalista que se põe às ordens do filólogo,

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perdera os seus cavalos, os encontrou ao passar por ali, tendo então fornecendo uma interpretação crível para um mito em cuja histo-
erguido uma estátua de bronze a Poseidon; é plausível acreditar na ricidade o homem não acredital 1. Pausânias possuí um pensamento
lenda, mas não na estátua, pois no tempo de Ulisses ainda não se claro e uma escrita subtil.

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sabia fundir o bronze. As duas críticas são, por vezes, justapostas. É por piedade que Pausânias não acredita em quase nenhuma

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A lenda de Narciso, morto por gostar do seu próprio reflexo e que das lendas que recolhe fielmente; dissociemos a desmitologização
deu origem à flor que tem o seu nome, releva «de uma total inge- da irreligião. Nessa época, a descrença não se reconhecia pela cri-

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nuidade», pois não é natural que um rapaz já crescido ainda não tica dos mitos, mas antes pela dos oráculos; Cícero, Oinomao e
soubesse distinguir a realidade do seu reflexo, e porque o narciso Diogenianol2 não são seguramente almas piedosas; ao tidicula-

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já existia antes; toda a gente sabe que Core estava a brincar com tizarem os oráculos, não pretendiam, nem por um instante, desculpar
um na pradaria em que Hades a surpreendeu e raptou?. Quando os deuses. Pausânias, esse, acredita nos deuses e mesmo nos seus

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Pausânias aplica assim a um mito a necessidade de coerência interna milagres; a «epifania» da divindade em Delfos, aquando da inva-

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a que obedece a realidade, não deveremos concluir daí que acte- são gálata, é para ele um facto indubitável!3. o
dita na historicidade desse mito; quantos filólogos, que não acte- À pequena revolução que se produziu em Pausânias, por oca-
ditam na historicidade de Trimalcião ou de Lady Macbeth, não sião das suas investigações sobre as antiguidades arcádias, consis-
confundem realidade e ficção, forçando Petróneo e Shakespeare a tiu em se ter apercebido de que certas lendas, longe de caluniartem

I
fazerem concorrência ao estado civill0O; pretendem determinar os deuses, podiam ter um sentido elevado14. Já lhe acontecera ter

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em que estação do ano se desentolou o festim em casa de
Trimalcião e pôr de acordo as contradições do texto, em que figuram
frutos de estações diversas; pretendem estabelecer quantos filhos 11 Pausânias, VIII, 3, 6-7; cf, nota 5 deste capítulo, Jogando sempre

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tinha ao certo Lady Macbeth. Não é por isso que Pausânias acredita o jogo filológico da coerência interna, Pausânias infere todavia que «a taça

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dos Silenos» é mortal, visto que são mostrados túmulos de Sileno(s) em diver-
sos lugares (VI, 24, 8); é óbvio que Pausânias acredita tanto ou tão pouco nos

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Silenos como os contemporâneos de Carnéades acreditavam nas ninfas, nos
Pãs e nos Sátiros (Cícero, De natura deorum, III, 17, 43). o. .
7 Preciso, pois acontece que Pausânias fala em nome próptio
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quando
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12 Cícero nega os otáculos do mesmo modo que nega a «adivinhação


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declara uma versão preferível a outra; em IX, 20, 4, ele opõe, assim, a boa expli- natural» (De divinatione, 1, 56, 115); Oinomao lê-se no livro H da Preparação
H;lâg fàÉÉf §§

cação dos tritões à explicação mítica (cf, nota 17 do cap. «Como devolver ao evangélica de Eusébio; cf. P. Valleite, De Oenomao Cynico, Paris, 1908; Diogeniano
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mito...»); em VIII, 39, 2, Pausânias não diz porque é que mais vale acreditar lê-se nos livtos IL e V de Eusébio. Plotino, pelo contrário, acredita nos oráculos
que Pigalo é filho de Licáon, e não autóctone; a única explicação é que Pau- (Enciadas, II, 9, 9, 41). . . .
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sânias acredita na genealogia dos reis da Arcádia (cf. VIII, 3, 1); de resto, ele 13 Em VII, 10, 9, Pausânias interroga-se seriamente sobre a intervenção
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declara expressamente que acredita na histoticidade de Licáon (VHI, 2, 4). de um deus numa guerta e invoca o precedente indiscutível do oráculo de
À Arcádia, como se sabe, foi a sua estrada de Damasco. Delfos protegido por um milagre; com efeito (Pausânias, X, 23), os Gálatas
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8 Pausânias, VIII, 14, 5-8; outro exemplo, VIH, 12, 9. foram espantados por uma tempestade, um tremor de terrae um pânico colec-
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9 Pausânias, IX, 31, 7-0.


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tivo. Sobre as «epifanias» divinas que protegem um santuário, cf, P. Roussel,


I0 Remetemos pata o estudo clássico de L. C, Knights, Explorations, Lon- «Un miracle de Zeus Panamaros», em Bulletin de correspondance béllénique, LV,
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dres, 1946; «How many children had lady Macbeth?», cf. R. Wellck e A, Warren, 1931, p. 70; e a quarta secção da Crónica de Lindos,
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La Théorie littéraire, Pazis, Eeuil, 1971, p. 35. 14 Pausânias, VIII, 8, 3; cf. nota 19.

118 119
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perfilhado a interpretação «física» (como se dizia) dos deuses; Licáon por a sua tradição ser muito antiga20; não se trata de

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ao visitar o santuário de Égia, encontrara um fenício que dissera uma dessas imaginações que vêm cobrir posteriormente a verdade

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que Asclépio era o ar e Apolo o sol, porque ar e sol dão a saúde1s, original. Em primeiro lugar, é preciso recordar que Pausânias é

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e ele aquiescera. Mas, agota que se encontra a estudar a Arcádia, desprovido de superstição, mas de modo nenhum de religião;

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encara além disso a possibilidade de uma exegese alegórica, visto além disso, saltando por sobre três ou quatro séculos de mitologia

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que os sábios de outrora «tinham o costume de falar por enigmas»; tornada escolar, retomou um contacto, livresco mas não banal, com

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a espantosa história, contada pelos Arcádios, de Reia ter dado a a vida local das lendas desconhecidas; é um explorador de biblio-

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Cronos, para o enganar, um potro, salvando assim Poseidon tecas, e os velhos livros fazem-no sonhar. E também a Arcádia;

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desse pai monstruoso, não deve ser uma inépcia ló; tem qualquer essa região rude, pobre, tão pouco idílica, levara já ao sonho, pelo seu

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sentido profundo, físico ou talvez teológico. Foi este o primeiro arcaísmo, um Calímaco e passava por não ter alterado nada dos
passo: deixar de se apegar à letra dos mitos!7. costumes e crenças originais. Pausânias é muito sensível ao arcaís-

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O segundo foi mais impressionante: renunciar ao princípio das mo, que aprosima da verdade. Temos uma prova curiosa disso;

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coisas actuais e admitir que, nos tempos míticos, as condições tenham desde os seus trabalhos de juventude sobre Ateans que Pausânias?1

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podido ser diferentes das nossas. Efectivamente, uma lenda arcádia dera muito apreço aos hinos de um certo Panfos, que os modernos

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dizia que Licáon, por ter sacrificado um bébé a Zeus, fora meta- situam na época helenística e que Pausânias acreditava ser mais

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morfoseado em lobo; «e esse relato convencera-me», escreve antigo que o próprio Homero; vêmo-lo agora acreditar ter sido

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Pausânias, «pois os Arcádios de há muito que o contam e tem por junto dos Arcádios que Panfos se instruíra então. Em suma, opri-

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seu lado a verosimilhança. Os homens dessa época eram, efecti- mido pela inépcia de tantos mitos, mas não podendo supor, como

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vamente, hóspedes dos deuses e partilhavam as suas refeições, em bom grego que era, que fosse possível mentir de fio a pavio, Pau-
virtude da sua justiça e da sua piedadel8; a recompensa ou a sânias acabou pot admitir, ora que os mitos diziam a verdade por ale-

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cólera vinham-lhes dos deuses sem equívoco, consoante fossem gotias e enigmas, ora até que diziam a verdade literal, sendo tão

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bons ou injustos»; de tal modo que houve, nesses tempos longin- antigos que não era possível pensar que pudessem ter sido defor-

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quos, homens elevados à categoria de deuses. Porque não? Um mados pela mentira. Revolução espiritual? Não sei; evolução per-

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espírito pouco supersticioso, Epicuro 19, convencido de que o mundo feitamente lógica, por certo.
datava de ontem e estava ainda em plena arrumação (só neste sentido
é que acredita no «progresso»), concluía que, em poucos séculos, ele
havia sofrido transformações consideráveis; admitia pois que os 20 Pausânias, VIII, 2, 6-7. Acerca da Arcádia como conservatório da

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homens de outrora, mais vigorosos que os de hoje, possuíam olhos mais antiga civilização, recordemos que Calímaco escrevera uma Arcadia e que
é na Arcádia que situa a cena do seu hino a Zeus, Os Atcádios impressionavam
suficientemente bons para distinguirem os deuses em pleno dia, os espíritos pela sua piedade (Políbio, IV, 29) e pela sua virtuosa pobreza: os
enquanto nós já só conseguimos captar as emissões dos seus áto- livres cidadãos, os chefes de família estavam reduzidos a trabalhar a terra com
mos através do canal do sonho. as suas próprias mãos, em vez de comandatem servos (Políbio, IV, 21). Os Atcá-

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O próprio Pausânias, como se vê, relaciona expressamente a sua dios haviam-se alimentado de bolota, primeiro sustento da humanidade, durante
mais tempo que todos os outros Gregos (Galeno, vol. VI, p. 621 Kihn). O tema é

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evolução com o que descobriu na Arcádia, e dá crédito à lenda de revelador. Os Arcádios não são um povo atrasado, conservaram foi um estádio
antigo; este estádio permaneceu intacto, não foi alterado. Que as tradições arcá-

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dias sejam muito antigas, isso não quer dizer que temontem a um passado mais
recuado que outras, mas sim que essas tradições permitem remontar sem alte-

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ração a um passado cuja memória, noutros povos, foi corrompida e interpolada;

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15 Pausânias, VII, 23, 7-8.
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por outras palavras, as tradições arcádias devolvem-nos um estádio autêntico.


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16 Pausânias, VIII, 8, 3, As duas ideias de Pausânias são que o passado transmitido pela tradição é a

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17 Para Salústio, De diis es mundo, 4, por exemplo, no sentido dos físicos, pouco e pouco, demasiadas vezes, coberto pot falsas lendas (mas não é este o
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Crono é Chronos, o tempo que devora os seus próprios instantes; no sentido caso da Arcádia); e também que é possível reconstituir o passado a partir dos
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dos teólogos, Crono devorando os seus próprios filhos é um «enigma» que quer vestígios que dele restam no presente, o passado redescobre-se no presente,
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dizer que a Inteligência se confunde com o Inteligível, isto é, com os seus pró- o que eta já o princípio aplicado por Tucídides na sua Arqueologia.
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prios objectos; já para Plotino, Crono era a Inteligência, Pausânias pode ter 21 Pausânias, VII, 35, 8; este Panfos é mais antigo que Homero (VII, 37,
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sido ouvinte de Médios-platónicos ou de Estóicos, grandes alegotistas. 9) e só Olen é mais antigo que ele (IX, 27, 2). E preciso dizer que Pausânias
18 Pausânias, VIII, 2, 3-4.
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fizera investigações particulares sobre a época em que viveu Homero, mas renun-

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19 Lucrécio, V, 1170. Poucas ideias haverá mais estranhas ao neoplato- ciou a publicat as suas conclusões devido ao dogmatismo reinante entre os es-
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nismo, que ignora a historicidade. pecialistas da poesia homética (IX, 30, 3).
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Evolução que se mantém na linha do pensamento grego desde Simplesmente, a sua globalidade não é a nossa, é a de Tucídides,

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Tucídides e Platão; na sua piedade como nas suas inquietações, quando este escreve que Helen deu o nome aos Helenos e que
Pausânias permanece um clássico, e não há nada nele que nos Atreu, que era filho de Eurístenes, adulava o povo e se tornou

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possa levar a pensar no neo-platonismo e na religiosidade futura. tei; o que é autêntico são as personagens principais e os factos de

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Nem por isso Pausânias é um autor fácil, e devo confessar ao ordem política. E os nomes próprios.
leitor as minhas incertezas: se os fios da trama complicada tecida Há com efeito um passo em que, por fim, pensamos discernir o

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pelo nosso autor se deixam desenredar, em compensação, é difi- que pensa Pausânias, e há que citá-lo25, para acabarmos mais

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cil decidir, nos pormenores, se fala por conta própria ou simples- depressa: «A etnia dos Beócios tira como tal o seu nome de
mente como filólogo. Os Arcádios, sim, os Arcádios, contam-lhe Boiotos, gue dizem filho de Itono e da ninfa Melanipo, e neto
que o combate entre os deuses e os Gigantes se efectuou na região, de Anfictião; se considerarmos os nomes das suas diferentes
nas margens do Alfeu; irá ele deitar-se a acreditar nessas fábulas cidades, os Beócios tiram-nos de homens e, sobretudo, de mulheres.

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de Gigantes de que já Xenófanes não quetia ouvit falar? Alega As gentes de Plateias, em compensação, são, ao que me parece,

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argumentos tirados da história natural, discute demoradamente
22; de origem autóctone; o seu nome vem de Plateia, que é tida

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joga o jogo ou acredita de facto? Renuncio a escolher. De outra vez23, por filha do rio Asopos. É claro que, de facto, também eles tiveram
mostram-lhe, em Queroneia, o ceptro de Agamémnon, que fota ptimitivamente reis, pois o regime monárquico era geral na Grécia;

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forjado por Hefestos em pessoa, como no-lo conta a Iiada; mas os Plateenses não conhecem reis, a não ser Ásopos e, ainda
ele discute demoradamente esta relíquia, elimina, por critérios de antes dele, Citéron; eles dizem que o segundo deu o nome à

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datação estilística, outras pretensas obras de Hefestos e conclui: montanha e o primeiro ao tio. Pela minha parte, creio que Plateia,
«As verosimilhanças inclinam-nos a considerar este ceptto, e só de quem a sua cidade tira o nome, era filha do rei ÁAsopo e

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ele, como obra de Hefestos». Se este passo não pertencesse ao não do rio Asopos». Quando se quer saber o passado de uma

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livro IX, veríamos nele uma atitude de filólogo que finge acreditar cidade, pergunta-se aos indígenas, na esperança de que eles tenham

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em tudo, mas com uma ponta de humor; simplesmente, como conservado uma recordação pormenorizada, e não se vê razão
Pausânias nos disse, no livro VIII, que nesses séculos antigos pata pôr em dúvida essas recordações, salvo puerilidades, ninfas

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os deuses se misturavam com os homens, já não sei que pensar. e rios-pais, facilmente tectificáveis. Tito-Lávio não duvidava da auten-

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Como também não sei num terceiro caso24, quanto à genealogia ticidade da lista dos reis de Roma (só duvidava das fábulas beatas
dos reis da Arcádia, pois, ao falar de história, Pausânias tem a anteriores a Rómulo); porque teria Pausânias duvidado das listas
mesma sinceridade e as mesmas velhacarias de quando fala das lendas reais da Arcádia e mesmo da Acaia?
religiosas. Deixemo-nos de hesitações e confessemos que o faz
propositadamente; este grego, que tem sido tomado por um com-

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pilador, por um Baedeker, diverte-se a lançat-nos na dúvida, como
Valéry ou como o falecido Jean Paulhan. Digamos antes: como

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Calímaco; porque o humor alexandrino consistia nisso.
Pausânias historiador: o seu método é o mesmo que para os
mitos religiosos, e as nossas dúvidas por vezes são também as
mesmas (a genealogia dos reis da Arcádia...); assumirá ele a res-
il

ponsabilidade de uma outra ladainha, a dos reis da Acaia? Em


religião, acredita nas divindades, mas não na mitologia, e em

história, acredita na autenticidade global dos tempos heróicos.

22 Pausânias, VII, 29, 1-4. Quanto a Xenófanes, cf, nota 7 do cap.


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23 Pausânias, IX, 40, II até 41, 5.


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24 Cf. nota 29 do cap. «Como devolver ao mito...»; não desenvolvo pot


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receio de cansar o leitor. 25 Pausânias, IX, 1, 1-2.

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ALGUMAS OUTRAS VERDADES:
A DO FALSÁRIO, A DO FILÓLOGO

Não, ele não duvidava dessas listas imaginárias, que enganavam


tanta gente, a começar pelo seu próprio inventor. Esta historiogra-
fia de falsários sinceros é tão estranha que temos de nos deter nela;
veremos que, se investigarmos este problema do falsário, se tor-
nará impossível distinguir o imaginário do real.
De todos os pensamentos bizarróides que temos passado em
revista neste livro e que compõem aquilo a que se convencionou
chamar a Razão helénica, o mais bizarro é sem dúvida este, em
que a ficção atinge a sua materialidade mais bruta. Como decidir
que um rei se chamava Ampix? Porquê esse nome em vez de
um milhão de outros? Existiu, pois, um programa de verdade
em que se admitia que alguém, Hesíodo ou outro qualquer,
falava verdade ao despejar os nomes próprios que lhe passavam
pela cabeça, ou as fantasias mais desenfreadas, à la Svedenborg.
Nestas pessoas, a imaginação psicológica é fonte de veridicidade.
Esta atitude, normal num fundador de religião, também não
é incompreensível num historiador. Os historiadores pouco mais
são do que profetas às avessas que dão corpo e alma às suas pre-
dições a golpes de imaginação, post eventum; chama-se a isso a retro-
dição histórica ou «síntese» e esta faculdade imaginativa é a respon-
sável por três quartas partes de toda a página de história, provindo
a quarta dos documentos. Mas há mais. A história é também um
romance, com factos e nomes próprios e já vimos que acreditamos
ser verdadeiro tudo aquilo que lemos enquanto o estamos a
ler; só a seguir é que o consideramos ficção e mesmo assim só se
pertencermos a uma sociedade em que exista a ideia de ficção.
Porque é que um historiador não havia de inventar os nomes
dos seus heróis? É o que faz um romancista. Mas, a bem dizer,
nenhum dos dois inventa; eles descobrem, na sua cabeça, um nome

125
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em que não tinham pensado. O mitógrafo que inventou a lista dos nas da cidade de Génova, no dia em que um antecessor de Frede-

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teis da Arcádia descobria assim em si uma realidade estranha que gário encontrou na sua as da monarquia franca, não deixaram de

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não pusera lá deliberadamente e que lá não estava antes; encon- ser razoáveis: formaram juízos sintéticos baseados no a priori de
trava-se no estado de espírito em que se encontra um romancista um progtama do seu tempo. Já vimos que todos os grandes impé-
quando «as suas personagens lhe escapam». E podia entregar-se rios eram fundados pelos descendentes de Eneias, na ocorrência

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a essa realidade porque então não era costume perguntar-se aos Francus, e que todas as terras tiravam os seus nomes de um homem,

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historiadores: «Como é que sabe tudo issoP». na circunstância a Francia. Restava explicar o que é que esse filho

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Quanto ao leitor... De uma narrativa pode esperar-se prazer de Eneias poderia ter ido fazer às costas da Frígia, habitat original
ou informação; a própria narrativa pode apresentar-se como vetí- dos Francos; a resposta de Fredegário não é mais hipotética nem
dica ou como fictícia, e no ptimeito caso, podemos acreditar nela menos apoiada em índices sérios do que as nossas hipóteses
ou teputá-la mentira de falsário. A Ilíada aptesentava-se, em grande sobre a otigem dos Etruscos ou os séculos obscuros de Roma.
parte, como histórica; mas, como os leitores esperavam dela diver- Cada coisa a seu tempo, todavia. Os antigos genealogistas
timento, o poeta podia acrescentar-lhe invenções suas, no meio puderam inventar nomes de deuses ou de antigos reis; toda a gente
da indiferença geral. Em contrapartida, os leitores de Castor, inven- compreendeu que haviam chegado até eles mitos até então não
tivo historiador da longa série dos reis lendários de Argos, liam-no captados. Mas quando, em 1743, um émulo napolitano de Vasari
pata se informatem e acreditavam em tudo, em vez de levitatem inventou inteiramente a existência, os nomes, as datas dos artistas
no prazer, que não é nem verdadeiro nem falso. Mas, precisamente, da Itália meridional, cento e cinquenta anos mais tarde passou por
a fronteira entre a informação e o divertimento é ela própria con- mitómano, na altura em que a falsificação foi ventilada. Com efeito,
vencional e outras sociedades, diferentes da nossa, praticatam cién- por volta de 1890, a história de arte tinha outros programas,

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cias divertidas; a mitologia, como parte da «gramática» ou erudição, hoje muito académicos e obsoletos.
era uma dessas ciências entre os Antigos. Saboreavam-se nela as Distingamos pois os pretensos falsários, que só fazem o que
virtudes da erudição, as delícias do diletantismo: quando o pai os seus contemporâneos acham normal mas que divertem a posteri-
de um aluno, fino letrado, fazia ao gramático do filho perguntas dade, dos falsários que o são aos olhos dos seus contemporâneos.
delicadas acerca do «nome da ama de Anquises ou da madrasta de Para irmos bustar os nossos exemplos a animais mais pequenos,
Anquêmolo», como diz Juvenal, pouco se importava com a sua digamos que este segundo caso é o de uma personagem de que
historicidade. Mesmo entre nós, existe o praezer da história como mais vale rir que chorar, tanto mais que nunca existiu, uma vez
equivalente do tomance policial e a obra estranha de Carcopino, que todas as provas da sua realidade podem ser postas em dúvida.
sob os seus ares universitários, releva amplamente da história-ficção, Um impostor tomara o seu lugar perante os tribunais, os seus
a começar pelo seu grosso volume sobre Virgílio e Óstia. livros haviam sido escritos por outros e as pretensas testemunhas
A bem dizer, o problema está em distinguir a história-ficção oculares da sua existência eram, quer patciais, quer vítimas de uma
da história que se pretende séria. Deveremos julgá-las com base alucinação colectiva. Logo que sabemos que ele não existiu, as
na sua verdade? Mesmo o sábio mais grave pode enganar-se e, vendas caem-nos dos olhos e vemos que, por conseguinte, as

f§É§iI
sobretudo, a ficção não é o esto. Com base no rigor? Ele é igual pretensas provas da sua realidade são falsas; bastava não termos
num falsário, cuja imaginação segue inconscientemente os ditames ideias preconcebidas. Este ser mítico chamava-se Faurisson. À acre-
de um programa de verdade tão determinado como o que seguem, ditarmos na sua lenda, após ter elucubrado obscuramente acerca
sem o saber, os historiadores considerados sérios; ainda por cima, de Rimbaud e Lautréamont, atingiu, por volta de 1980, alguma
esse programa é, por vezes, o mesmo. Com base nos processos notoriedade, ao defender que Auschwitz não existira. Foi apu-
psíquicos? São os mesmos; a invenção científica não é uma faculdade pado. Declato que o pobre homem por pouco não conseguiu a

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exclusiva da alma, é igual à invenção simples. Com base nos cri- sua verdade. Aproximava-se, com efeito, de uma variedade de
térios da sociedade a que o historiador pertence? Ora aqui é que iluminados com que os historiadores destes últimos dois séculos
a porca torce o rabo; o que é conforme com o programa de verdade esbartam por vezes: anticlericais que negam a historicidade de
de uma sociedade será visto como impostura ou elocubração noutra. Cristo (o que tem o dom de exasperar o ateu que sou), cabeças ocas
Um falsário é um homem que se enganou no século. que negam a de Sócrates, Joana d'Arc, Shakespeare ou Moliêre,
No dia em que Jacques de Voragine, conhecido sobretudo como se extasiam com a Atlântida ou descobrem na ilha de Páscoa monu-
autor da Lenda dourada, descobriu na sua imaginação as origens troia- mentos erigidos pelos extraterrestres. Noutro milénio, Faurisson

126 127
poderia ter feito uma bela carreira de mitólogo ou, ainda há três É claro que a existência ou a não-existência de Teseu e das
séculos, de astrólogo; uma qualquer limitação na personalidade ou câmaras de gás, num ponto do espaço e do tempo, tem uma teali-
na inventiva não lhe permitia ser psicanalista. Não deixava de dade material que nada deve à nossa imaginação. Mas essa realidade
ter o gosto pela glória, como o autor destas linhas e toda a alma ou irrcalidade é percepcionada ou ignorada, é interpretada de uma
bem nascida. Havia, infelizmente, um mal-entendido entre ele e os maneira ou de outra, de acordo com o programa em vigor; não se
seus admiradores; estes desconheciam que, uma vez que a verdade impõe por si própria, as coisas não nos saltam aos olhos. O mesmo
é plural (como nos lisonjeamos de ter estabelecido), Faurisson rele- acontece com os próprios programas; um bom programa não
vava da verdade mítica, mais que da verdade histórica; como a ver- emerge naturalmente. Não existe verdade das coisas e a verdade
dade é igualmente analógica, esses leitores julgavam-se, com Fau- não nos é imanente,
risson, no mesmo programa que com os outros livros relativos Pata se rejeitar o mito ou o Dilúvio, não basta um estudo
a Auschwitz, opondo candidamente o seu livro a esses; Faurisson mais atento ou um método melhor; é preciso mudar de programa;
facilitava a sua letargia imitando o método desses livros, eventual- não reconstruímos o que estava mal construído, vamos habitar
mente por meio de operações que, na gíria dos historiadores da con- para outro lado. Efectivamente, o maiter of facts só é conhecível
trovérsia, se chamavam falsificações da verdade histórica. numa interpretação. Não quero dizer que os factos não existem;
O único erro de Faurisson consistiu em se ter colocado no a matetialidade existe incontestavelmente, é actuante; mas, como
terreno dos seus adversários; em vez de afitmar sem rodeios, como dizia o velho Duns Scot, não é prova de nada. A materialidade
o historiador Castor, pretendia controverter; ora, com o seu das câmaras de gás não arrasta consigo o conhecimento que delas
delírio de interpretação sistematizado, punha tudo em dúvida, podemos ter. Distintos em si próprios, matter of facts e interpretação
mas unilateralmente; era dar o pau com que lhe haviam de bater. encontram-se sempre ligados. para nós, à maneira daqueles refe-
Precisava de acreditar nas câmaras de gás ou de duvidar de tudo, rendos em que de Gaulle pedia aos votantes uma única resposta
como os taoístas que se interrogavam se não seriam borboletas para duas perguntas diferentes.
a sonhar que etam humanos e que houvera câmaras de gás... Mas Por outras palavras, aos erros em determinado programa e em
Faurisson pretendia ter razão contra os seus adversários e como telação a ele, à Ja Faurisson ou à Ja Carcopino, vem juntar-se a ertân-
eles; a dúvida hiperbólica acerca do universo inteiro não eta o que cia de todos os programas, pois não é possível distinguir as imagi-
lhe convinha, nações da Imaginação. Segundo as palavras de Heidegger em
Abandonemos este homenzinho às suas pequenas obsessões; Holzwege, «a reserva do ser pode ser recusa ou mera dissimulação»,
o paradoxo do falsário (é-se sempre o falsário de outro programa) errância ou erro; «não temos nunca a certeza directa de saber se
passa muito acima da sua cabeça. Este paradoxo exige que se dis- é uma ou outra coisa». É sabido como Heidegger impôs ao nosso
tinga o erro, que o século de Outro imputava à imaginação século a ideia de que os seres permanecem na sua reserva; só apare-
psicológica, da errância histórica da verdade, ou daquilo que a ima- cem numa aberta, numa clareira e, de cada vez, nós acreditamos
ginação constituinte instaura como verdade. Que se distinga o que essa clareira não tem limites; os seres existem para nós, tal como
falsário que abusa do seu programa do estrangeiro que usa outro as evidências. Poderíamos ver nessa clareira um pleno, dizer que
programa; Hesíodo não era um falsário ao descobrir, na sua não há floresta em redor, que nada existe fora do que a nossa imagi-
cabeça, todos os nomes das filhas do mar. Subsistirá, através dos nação constitui; que os nossos programas, longe de serem limitados,
sucessivos programas, um núcleo de factos adquiridos passível são suplementos que acrescentamos ao ser. Mas Heidegger pensa,
de ser objecto de um progresso cumulativo? pelo contrário, que a clareira não é tudo; a ponto de ter acabado
A discussão dos factos passa-se sempre no interior de um por descobrir um fundo de verdade e mesmo de verdade por
programa. É verdade que tudo pode acontecer, e talvez um dia vezes bem gasta, que deixa perplexos os historiadores, e não só
venha a descobrir-se que os textos gregos são uma falsificação eles («uma das maneiras de 2 verdade manifestar a sua presença
inteiramente forjada pelos eruditos do século XVI. Mas esta é a instauração de um Estado»). Pressente-se que um pouco de crí-
dúvida hiperbólica, no caso de Faurisson em sentido único, esta tica histórica e sociológica valeria mais do que montes de ontologia.
possibilidade nunca excluída do erro são uma coisa; o cepti- Um falsário é um peixe que, por razões caracteriais, não entrou
cismo no vazio não se confunde com o reconhecimento de que no aquário adequado; a sua imaginação científica segue métodos
nenhum programa se impõe; ainda há um século e meio se acre- que já não fazem parte do programa. Que este programa seja
ditava no Dilúvio e, há quinze, nos mitos. amiúde, ou mesmo sempre, tão imaginário quanto a do falsário,

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acredito de boamente. Mas vemos que existem dois tipos de imagi-

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na obra de Cicero3. Quanto à atitude inversa, ela é mais rara,

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nação, uma das quais decreta os programas, enquanto a outra

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mas também existe; consiste em nos setvirmos de um texto para

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serve para os executar. Esta última, que é a faculdade psicológica ilustrarmos a realidade a que ele se refere e que é, para o filólogo
bem conhecida, é intra-histórica. A primeira, ou imaginação cons- historiador, o objectivo principal. É a atitude de um Estrabão;

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tituinte, não é um dom de invenção que resida nos indivíduos; é conhecido o amor cego de Esttabão por Homero, a exemplo

e
é uma espécie de espírito objectivo a que os indivíduos se acultu-

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do seu mestre Crisipo; de tal modo que o livro VIII da sua


ram. É ela que constitui as paredes de cada aquário, que são imagi- Geografia, que contém a descrição da Grécia, se ocupa, antes do
nárias, arbitrárias, pois foram e serão erguidas, no decurso dos
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mais, de identificar os nomes de lugares que se lêem em Homero.

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séculos, mil paredes diferentes. Não é pois trans-histórica, mas antes Visaria Estrabão fazer compreender melhor o texto de Homero

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inter-histórica. É tudo isto que nos retira os meios de distinguir ou, pelo contrário, pôr em relevo o esplendor das diferentes cida-

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radicalmente as obras culturais que se pretenderam verdadeiras dos

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des dotando-as de uma referência homérica? À segunda interpre-
produtos da imaginação. Voltaremos ao assunto, mas antes conte- tação é a única boa, senão a frase seguinte seria incompreensível:
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mos o breve epílogo da nossa intriga. «Seria difícil dizer onde se encontravam Ripé, Estratié e a ventosa

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O que permitiu o nascimento da ciência histórica tal como Enispé, de que fala o Poeta e, se o descobríssemos, não serviria de

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os modernos a imaginaram não foi a distinção entre fontes pri- nada, visto que essa região é hoje desabitada»*,
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márias e secundárias (essa distinção foi feita desde muito cedo Mas existe ainda uma terceira atitude, muito difundida, em que
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e não é nenhuma panaceia); foi sim a distinção entre as fontes e a


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nem sequer se distingue a realidade do texto que dela fala; é já

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tealidade, entre os historiadores e os próprios factos históricos. a de Eusébio, através de quem a história mítica, tal como a
Ora, após a época de Pausânias, ela foi-se apagando progressiva- encontramos num Pausânias, chegou até Bossuet. Não que Eusé-
mente, até chegarmos a Bossuet, que estabelecia ainda um sincro- bio seja incapaz de distinguir um acontecimento de um texto!
nismo entre Abimelec e Hércules porque repetia o que dissera Mas, pata ele, as fontes fazem elas próprias parte da história; set

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a Crónica de Eusébio. É com uma abordagem desta nova maneira historiador é relatar a história e é também telatar os historiadores.
de acreditar nos mitos que terminaremos. Será que a maior parte dos nossos filósofos e dos nossos psicanalistas
As relações entre o género histórico e aquilo a que, dutante
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muito tempo, se chamou gramática ou filologia não são simples.


A história pretende conhecer «o que
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o mais das vezes, é ser historiador da filosofia, é saber o que os
respectivos? Ser filósofo,

realmente se passou», mas diferentes filósofos julgaram saber; saber o que é o complexo
cigentlich geschebem istl (dizia Ranke), enquanto a filologia é pensa- de Édipo consiste, antes do mais, em saber ou em comentar o
mento do pensamento, conhecimento do conhecido, Erkenntnis que Freud dele disse.
des Firkamien? (dizia Boeckh). Mais precisamente, nesta indistinção entre O livro e as coisas
Muitas vezes, o conhecimento do que se passou é um simples de que o livro trata, o acento ota é posto nas coisas, ora no
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meio de explicar um texto clássico, nobre objecto de que a histó- próprio livro. O primeiro caso é o de todo o texto tido por revelado
tia é apenas o referente; é o que acontece quando a história da ou revelador; comentar Aristóteles, Marx ou o Digesto, aprofundar
República romana apenas serve para melhor se compreender Cícero. o texto, supor-lhe coerência, creditá-lo de antemão com a inter-
Mais amiúde, os dois objectos são confundidos; aquilo a que outrora pretação mais inteligente ou mais ag giornata possível é supor que
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se chamava «história literária» (quer dizer, história conhecida atra- o texto tem a profundidade e a coerência da própria realidade.
vés da literatura) e a que hoje se chama humanismo visa Cícero A partir daí, aprofundar o texto será o mesmo que aprofundar a
s= a-

através dos acontecimentos do último século da República e visa


a história do século através dos inúmeros pormenores contidos


3 M, Riffaterre, La Production du texte, Paris, Seuil, 1979, Pp. 176: «Todo

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o esforço da filologia consistiu em reconstituir realidades desaparecidas, com

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receio de que o poema motresse com o seu referente». º

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4 Estrabão, VIII, 8, 2, C. 388. Citemos de modo mais geral Estrabão, VIH,
1 A, Momigliano recordou que esta frase clássica de Ranke vem, na rea-
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3, 3, €. 337: «Comparo o estado actual dos lugares com o que diz Homero, o
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lidade, de Luciano, Como escrever a história, 30.
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que é de facto necessário, de tal modo o poeta é ilustree nos é familiar; os meus

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2 A, Boeckh, Envklopádie und Metbodenlebre der philologischen WWissenschaften,

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leitores acharão que só terei realizado o meu objectivo se em nada for con-
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vol. 1, Formale Theorie der philol, Wiss., 1877, reimp. 1967, Darmstadt, Wiss.
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traditado pelo que diz, por seu lado, este poeta em quem se tem uma tão grande
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realidadeS; o texto será dito profundo porque será impossível

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mitos. Um belo exemplo seria a História natural de Plínio. Encontra-

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sobrescavá-lo para além do que o seu autor escreveu; aquilo que mos aí8 uma lista das grandes invenções: a teoria dos ventos
assim se escava confunde-se com as próprias coisas. deve-se a Éolo, a invenção das tortes «aos Ciclopes, segundo Aris-
Mas o acento pode também ser posto no livro, tomado como tóteles», a botânica a Quiron, filho de Saturno, a astronomia
objecto de superstição corporativa. Era essa a atitude que a a Atlas e o trigo a Ceres, «que, pot isso, foi considerada deusa».
Antiguidade atribuía aos seus filólogos, a que se chamava gramá- Como acontece frequentemente, o método de pensamento, a saber,

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ticos. Atitude que não se limitava a considerar os textos como o questionário, tornou-se criador de pensamentos. Plínio sucum-

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clássicos cujas afirmações, verdadeiras ou falsas, de qualquer modo biu à lei do género; em vez de reflectir sobre as próprias coisas,
íera importante conhecer; o que o livro dizia era considerado a lista a completar pôs este infatigável leitor perante o desafio de
autêntico. Acontecia assim que o gramático apresentasse como responder a perguntas: «sabe-se quem inventou X?», e ele res-
verdadeiras lendas nas quais, como homem, não acreditava. Con- pondeu: «Éolo, Atlas», pois sabia tudo o que se encontrava em
tava-se6 que o maior erudito da Antiguidade, Dídimo, que escre- todos os livros.
vera mais livros do que era capaz de se lembrar, se indignou um Eusébio também. As suas Tábuas cronológicas ou Sirmeula de todas
dia com uma anedota histórica que lhe contaram e que, segundo as histórias tecapitulam nove séculos de pensamento sobre os mitos
ele, não tinha qualquer fundamento; tornaram-no mais crédulo e estarão na base do saber histórico até Dom Calmet, inclusive”.

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mostrando-lhe uma das suas próprias obras em que a história era Encontramos aí as genealogias, a dos reis de Sícion e a dos reis

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dada como verdadeira. de Argos, o primeiro dos quais foi Ínaco, e a fonte é o historia-
Atitude diferente da do mito, em que um discurso fala por

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dor Castor; a de Micenas, com Atreu, Testes, Orestes, e a de
si como tendo autoridade. Diferente também da de um Tucídides, Atenas, com Cécrope e Pandíon. Temos todos os sincronismos:
de um Políbio, de um Pausânias; estes, à maneira dos nossos no tempo em que Abimilec reinava sobre os Hebreus, verificou-se

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repórteres, não citam as suas fontes e parecem pretender ser acte- a batalha entre os Lápitas e os Centauros, «que Palaifato, nas suas

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ditados com base na confiança, porque escrevem mais para o Coisas para não se acreditar, diz terem sido famosos cavaleiros tessá-
público que para os seus colegas. Também Eusébio não cita as suas lios». Temos as datas: Medeia seguiu Jasão e deixou seu pai

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fontes, transcreve; não que acredite nelas por confiança, e ainda Aijetes 780 anos depois de Abraão e, por conseguinte, 1235 anos

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menos que anuncie a história «verdadeiramente científica»; é que antes do nascimento do Salvador. Eusébio é um racionalista:
O que está escrito faz parte das coisas a conhecer; Eusébio não dis- em 650 de Abraão, foi por um príncipe da vizinhança que Gani-
tingue entre saber as coisas e saber o que está nos livros. Con-
funde a história com a gramática” e, se acreditarmos no progresso, r Éç : Iüsj E§i
deveremos dizer que o seu método é um recuo.
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8 Plínio, Nat. bist., VII, 56 (57), 191. Enconttamos uma outra lista de

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Uma atitude destas, em que se trata de saber o que já se sabe, inventores em Clemente de Alexandria, Stromates, 1, 74; Atlas inventou a nave-
eta muito apropriada para se transformar no conservatório dos gação, os Dáctilos o ferro, Ápis a medicina e Medeia a pintura para os cabelos;
mas Ceres e Baco desapareceram da lista... Baco, que foi um simples homem,
é apenas 63 anos anterior a Héracles, segundo Clemente, grande cronologista;
não tem a prioridade de nenhuma invenção. Plínio ou Clemente foram arrastados
* P, Hadot, «Philosophie, exégtse et contresens», em Aces du XIVe
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§ aqui por serem um esquema, um instrumento da razão, o questionário: quem
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Congrês international de philosophie, Viena 1968, p. 3335-337. inventou o quê? Com efeito, o questionário era uma das técnicas de pensamento
6 A anedota lê-se em Quintiliano, 1, 8, 21. Sobre tudo isto, cf. M. Foucault, do tempo (havia outras, por exemplo, as listas de excelências: as sete maravilhas
g,g

Les Mots et les Choses, Paris, Gallimard, 1966, p. 55 € 141, acerca das ciências do mundo, os doze grandes oradores...). Como escreveu, recentemente, J.-C. Pas-
no século XVI: «À grande tripulação, tão simples na aparência, entre a observa-
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seron, «listas e quadros, cartas e classificações, conspectos e diagramas não são


são, o testemunho e a fábula, não existia... Quando há que fazer a história de a pura e simples transcrição de enunciados preexistentes, antes fazem surgir,
um animal, é inútil e impossível escolher entre o ofício de naturalista e o de sob as exigências da lógica gráfica, asserções, aproximações, adjunções» («Les
compilador; é preciso recolher numa única e mesma forma de saber tudo o que Yeux et les Oreilles», prefácio a LºOeil à la page, GID.E.S., Vov. 1979, Paris,
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foi visto e ouvido, tudo o que foi contado», Para sermos breves, limitemo-nos
p. II).
a remeter para Quintiliano, Inst, orat., 1, 8, 18-21. 9 O leitor que estas coisas divertizem poderá ler Yves-Paul Pezron,
7 A, Puech, Histoire de la littérature grecque chrétienne, Paris, Les Belles Lettres,
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*§§;

Lantiquité des temps rétablie et défendne contre les Juifs et les nouveaux chronologistes,
1930, vol. II, p. 181: «A história geral só aparece, em Eusébio, através da his- Paris, 1687, em que ficará a saber que, em 2538 da criação do mundo, Júpiter
tória literária e por meio da história literária». Por história literária, Puech teve de Europa três filhos, Conheci este autor graças a G. Couton (cf. nota 7
entende, no sentido antigo da expressão, a história contada através da literatura
§

da introdução). Quanto a Dom Calmet, a sua história universal, que muito delei-
que nos conserva a sua memória, tava Voltaire, apateceu em 1735.

132 133
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medes foi raptado («vã fábula», portanto, a de Zeus com a sua antigos e dos modernos despojava esses textos da sua auréola.

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ave de tapina); a Górgona, a quem Perseu cortou a cabeça em Depois, veio Fontenelle, que pensou que podia não haver uma
670 de Abraão, era muito simplesmente uma cortesã de fascinante única palavra de verdade na fabulação. Nem assim nos vimos livtes
beleza. Concluamos citando de novo o Discurso sobre a história uni- do problema do mito, que, pelo contrário, se agravoull; já não
versal do bispo de Meaux: a guerra de Tróia, «quinta idade do perguntamos: «Que verdade existe na fábula? Porque ela contém

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mundo», é uma «época apropriada para reunit o que os tempos algo de verdadeiro, visto que ninguém pode falar de nada», mas
fabulosos», em que a verdade se encontra «envolta» em falsidades, antes: «Que significação ou que função tem o mito? Porque não
«têm de mais certo e de mais belo»; com efeito, «é nela que vemos é possível falar ou imaginar para nada». Pois sim.

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os Aquiles, os Agamémnons, os Menelaus, os Ulisses, Sarpédon, Esta necessidade de encontrar uma razão de ser para a fabu-
filho de Júpiter, Eneias, filho de Vénus». lação trai algum mal-estar da nossa parte perante o erro e é o reverso
De Hérodoto até Pausânias e Eusébio, ia dizer até Bossuet, da nossa própria mitologia da verdade e da ciência. Como é que a

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os Gregos nunca deixaram de acreditar no mito, de o problema- humanidade, pensamos, pôde enganar-se tão longa e maciçamente?
tizat e O seu pensamento pouco avançou sobre os dados desse pro- Mito contra razão, erro contra verdade, deveria ter havido uma
blema, nem mesmo sobre as suas soluções; durante meio milénio, hipótese em duas. Como a verdade permanecia una e insuspei-
houve muitos espíritos, como Carnéades, Cícero ou Ovídio, capa- tável, talvez a explicação esteja em modalidades de crença desiguais

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zes de não acreditarem nos deuses, mas ninguém duvidou de Héra- em intensidade e em valor. Talvez a humanidade tenha cometido
cles ou de Éolo, nem que fosse à custa de racionalizações; os o erro de ser, por demasiado tempo, dócil perante o argumento de
cristãos trespassaram os deuses da mitologia, em que ninguém autoridade ou as representações sociais. Mas acreditaria fortemente?
acreditava l0, mas nada disseram dos heróis mitológicos, pois Os espíritos voltairianos propendem secretamente para duvidar
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acreditavam neles como toda a gente, Aristóteles, Políbio e Lucré- de que o próximo acredite verdadeiramente nessas patranhas;
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cio incluídos. vêem hipocrisia por debaixo de cada fé. E não se enganam de todo;
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Como é que, por fim, se deixou de acreditar na historicidade não acreditamos nos neutrões, nos mitos ou no anti-semitismo como
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de Eolo, de Héracles ou de Perseu? Nem o são método científico acreditamos no testemunho dos sentidos ou na moral da tribo;
nem a dialéctica, materialista ou não, tiveram a ver com o assunto. é que a verdade não é una. Mas estas verdades não deixam de ser
E raro que os grandes problemas políticos ou intelectuais desem- analógicas entre si (parecem ser a mesma) e a sua sinceridade é
boquem numa solução, sejam resolvidos, liquidados e ultrapassa- igual em todas elas, visto que todas elas fazem agir os seus
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apagados. À cristianização apagou um problema para o qual os crença é, de facto, pluralidade dos critérios de verdade.
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Gregos não haviam encontrado a chave e de que também não Esta verdade é filha da imaginação. A autenticidade das nossas
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conseguiam desembaraçar-se. É-nos permitido supor que se tenham crenças não se mede pela verdade do seu objecto. Mas é preciso
apaixonado por ele por razões não menos acidentais. compreender porque é que assim é, e é simples: somos nós que
Desde há séculos que as amas tinham deixado de falar às crian- ]I §-H€E§§ fabricamos as nossas verdades e não «a» realidade que nos faz
ças dos heróis e dos deuses, mas os eruditos, à sua maneira, ainda acreditar. Porque ela é filha da imaginação constituinte da nossa
acreditavam neles, Deixaram de o fazer por duas razões. Nascida tribo. Se assim não fosse, a quase totalidade da cultura universal
do inquérito, da reportagem, a história acabara, com Eusébio, começatia a ser inexplicável, mitologias, doutrinas, farmacopeias,
numa história confundida com a filologia; entre os modernos falsas ciências e ciências falsas. Enquanto falarmos de verdade,
nasce uma coisa muito diferente, mas que usa também o nome de
história, a partir da controvérsia e de um divórcio em relação à
filologia. Deixou de se confundir num mesmo respeito a realidade
histórica e os textos que a relatavam, enquanto a Querela dos 11 “Tudo parece dever sex retomado pela base, com efeito. Um belo estudo

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de F. Hampl, Geschichte als kritische Wissenschaft, Darmstadt, Wiss Buchg. 1975,

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vol. II. p. 1-50: «Mythos, Sage, Marchen» mostra que seria vão distinguir o

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conto, a lenda e o mito atribuindo-lhes um grau diferente de veracidade ou
uma diferente relação com a religião. O «mito» não é um elemento trans-histó-

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t0 Santo Agostinho confessa-o, Cidade de Deus, no princípio do capítulo 10 tico, um invariante; os géneros praticados pelo pensamento mítico são tão
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de algazarra em torno dos falsos deuses do que um modo racional de persuasão. das literaturas de todos os povos e de todos os séculos, O mito não é uma essência.
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não compreenderemos nada da cultura nem conseguiremos ter, era mais importante do que este ponto de vista intelectual, impli-
em relação à nossa época, o mesmo recuo que temos em relação aos cava sobretudo que não se queria ouvir falar mais deles, pois não
séculos passados em que se falava de mitos e de deuses. mereciam existir. Quando se torna necessário, por escrúpulo de pen-
O exemplo dos Gregos mostra neles uma incapacidade milenar sador, traduzir em doutrina esta indignidade, dir-se-á, com Eusé-
para se libertarem da mentira; nunca foram capazes de dizer: bio, que os deuses pagãos são menos deuses falsos do que falsos
«o mito é inteiramente falso, visto que não tem qualquer funda- deuses; trata-se de demónios que, pata enganarem os homens, se
mento», e Bossuet também o não dirá. O imaginário como tal fazem passar por deuses, nomeadamente por meio do seu conhe-
nunca é recusado, como por um pressentimento secreto de que, cimento do futuro; eles impressionaram os homens com oráculos
se o fosse, mais nenhuma verdade subsistiria. Ou esquecemos os vetídicos.
mitos de outrora, para falarmos de outra coisa e mudarmos de É menos difícil eliminar uma imaginação do que negá-la;
imaginações, ou então pretendemos descobrir a todo o custo o é muito difícil negar um deus, nem que seja o deus dos outros
núcleo de verdade oculto na fabulação ou que a fazia falar. e mesmo o judaísmo antigo dificilmente o conseguia. Afirmava
Verificaremos a mesma coisa se passarmos dos mitos heróicos, antes que os deuses estrangeiros eram menos fortes que o deus
os únicos que estudámos, à crença nos deuses propriamente ditos. nacional, ou então que não eram interessantes; desprezo ou horror,
Em Avheism in Pagan Antiguity, AB. Drachmann mostrou que o mas não negação, o que, para um patriota, é a mesma coisa. Os
ateísmo antigo, menos do que negar a existência de deuses, deuses dos outros existem? Pouco importa a sua existência; o
criticava a ideia popular dos deuses, não excluindo uma concepção importante é que os deuses dos outros nada valem, são ídolos de
mais filosófica da divindade. Cristãos à sua maneira, não foram madeira ou de pedra que têm orelhas incapazes de ouvir; essou-
mais longe na negação dos deuses do paganismo; disseram menos tros deuses, «não os conhecemos», são deuses «que não nos cou-
«fábulas ocas» do que «concepções indignas». Uma vez que que- beram em lote», repete o Deuteronómio, e os livros mais antigos
riam pôr o seu deus no lugar do dos pagãos, poderia pensar-se são ainda mais candidamente explícitos. Quando a Arca foi
que o programa ideal consistiria em mostrar que Júpiter não introduzida no templo de Dágon, no dia seguinte foram encontrar
existia, para, num segundo tempo, exporem as provas da existência o ídolo deste Dágon, deus dos Filisteus, prosternado, de rosto em
de Deus. Não foi este o seu programa; menos do que censuraerm terra, perante o deus de Israel; é o que conta o livro de Samuel,
os deuses pagãos por não existirem, parecem acusá-los de não e o salmo XCVI dirá: «Todos os deuses se prosternam perante
serem os bons; parecem menos ansiosos em negar Júpiter do Javé». Só se deseja conhecer os deuses dos outros nas negociações
que em o substituirem por um rei menos indigno de ocupar o trono internacionais; quando se diz ao Amorreu: «Como é possível que
divino. É por isso que a apologética do cristianismo antigo nos não possuas o que Camos, teu deus, te faz possuir?», isso é uma
deixa uma impressão de estranheza; parece-nos que, para estabelecer maneira de lhe prometer respeito pelo seu território. As nações
Deus, bastaria expulsar os outros deuses. Menos do que destruir passam bem sem a noção do verdadeiro e do falso, que só pra-
ideias falsas, o que se pretendia era suplantá-las; mesmo quando os ticam ou crêem praticar certos intelectuais em certas épocas.
cristãos parecem atacar o paganismo quanto à sua veracidade, não Se refectitmos um instante, a ideia de que a verdade não existe
é de nada disso que se trata. Como já vimos, criticavam inutilmente não é mais paradoxal nem mais paralisante que a de uma verdade
a puerilidade e a imotalidade de narrativas mitológicas em que os científica perpetuamente provisória e destinada a ser falsificada.
pagãos nunca haviam acreditado e que nada tinham de comum com O mito da ciência impressiona-nos; mas não confundamos a ciência
a concepção elevada ou sofisticada própria do paganismo tardio; com a escolástica; a ciência não encontra verdades, matematizáveis
é que o objectivo dessa polémica consistia menos em convencer ou formalizáveis, descobre factos desconhecidos que podem ser
adversários do que em excluir rivais; em fazer sentir que o Deus glosados de mil maneiras; descobrir uma partícula subatómica, uma
cioso não toleraria nenhuma partilha, ao contrário dos deuses dos receita técnica eficaz ou a molécula do ADN não tem nada de mais
paganismos, que se toleravam todos entre si (pois todos eram ver- sublime do que descobrir os infusórios, o cabo da Boa Esperança,
dadeiros e nenhum excluía os outros); pouco importava que os o Novo Mundo ou a anatomia de um órgão. Ou a civilização
ataques contra os deuses da fábula fossem pouco pertinentes; o suméria. As ciências não são mais sérias do que as letras ce uma
importante era dar a entender que não se toleratiam raciocínios apa- vez que, em história, os factos não são separáveis de uma interpre-
ziguadores. Os deuses pagãos eram indignos, e é tudo; a sua tação e que podemos imaginar todas as interpretações que quiser-
indignidade implicava certamente a sua falsidade; mas, e isso mos, deve acontecer o mesmo com as ciências exactas.

136 137
ENTRE A CULTURA E A CRENÇA,
HÁ QUE ESCOLHER

Acreditou-se durante muito tempo nos mitos, segundo pro-


gramas muito diferentes de época para época, é certo. Normalmente,
acreditamos nas obras da imaginação. Acreditamos nas religiões,
em Madame Bovary dutante a leitura, em Einstein, em Fustel de
Coulanges, na origem troiana dos Francos; todavia, em certas
sociedades, algumas destas obras são consideradas ficções. O domí-
nio do imaginário não fica por aqui; a política, entenda-se as prá-
ticas políticas e não apenas as pretensas ideologias, possui o arbi-
trário e a esmagadora inércia dos programas estabelecidos; a «parte
ocuita do iceherg» político da cidade antiga resistiu quase tanto como
o mito; sob o amplo plissado pseudo-clássico com que a envolve
o nosso racionalismo político banalizador, teve contornos bizarros
que só a ela pertencem. À própria vida quotidiana, longe de ser
um imediatismo, é encruzilhada de imaginações e é aí que acre-
ditamos activamente no racismo ou no mau olhado. O empirismo
e a experimentação são quantidades desprezáveis. Atribuiremos à
imaginação a sua justa parte se pensarmos que Einstein, para
ismos buscar esse exemplo lendário, não tem nada de terra-a-terra;
ele ergueu um arranha-céus teórico que aínda não pôde ser tes-
tado; mesmo que um dia venha a sê-lo, a sua teoria nem por isso
seria verificada, mas apenas não infirmada.
Mas não é aqui que está o pior. Estes sucessivos palácios de
sonho, todos eles tidos por verdadeiros, possuem os mais diver-
sos estilos de verdade; a imaginação que constitui estes estilos
não tem qualquer sequência nas ideias; caminha ao acaso das causa-
lidades históricas. Não muda apenas de planos, mas também de
critérios; longe de ser um índice eloquente em si próprio, a verdade
é a mais variável das medidas. Ela não é uma invatiante trans-his-
tórica, mas uma obra da imaginação constituinte. Não é muito grave

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que os homens tenham ideias diferentes aquém e além dos vés das idades, pensamos que os nossos antepassados ocupavam

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objectivo das nossas afirmações divergentes, os critérios e os modos nacional se encontrava prefigurado e que teriam bastado uns poucos

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de obtenção das ideias verdadeiras, em suma os programas, variam progressos para a acabar. Se há alguma coisa que mereça o nome de

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sem disso nos apetcebermos. ideologia, essa coisa é, sem dúvida, a verdade.
Como acaba de escrever Guy Lardreaul, «dizer que o transcen- Será preciso repetir? Este transcendental é a consegrência de
dental é historicamente constituído é dizer do mesmo passo que as coisas se passarem assim, é a sua descrição; não existe uma
ele não poderia ser afectado de universalidade; é preciso pensar um instância uma infra-estrutura que as faça passarem-se assim. Que que-
transcendental particular. Mas não há nada de mais misteroso, afinal reria dizer semelhante logomaquia? Não se pode, pois, pretender
de contas, do que aquilo a que se chama correntemente uma cul- que se trata de reduzir a história a um processo tão implacável
tura». O programa de verdade histórica em que o presente livro quanto irresponsável. Confesso que a irresponsabilidade é uma coisa
se inscreve não consiste em dizer como é que a razão progride, bastante reles e que, visto que é teles, é certamente falsa (Diodoro

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como é que a França se construiu, como é que a sociedade no-lo diria); mas, por Deus, não é disso que se trata. À «virtude

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vivia ou pensava sobre as suas bases, mas em reflectir sobre a cons- dormitiva» descreve os efeitos do ópio, que se explicam por causas

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tituição da verdade através dos séculos, em virar a cabeça para químicas. Os programas de verdade, esses, têm causas históricas;
vet O traçado do caminho percorrido; é um produto da reflexivi- a sua inércia, a sua lenta sucessão é ela própria muito empírica,
dade. Não quer isto dizer que este programa seja mais verdadeiro deve-se àquilo a que chamamos socialização (Nietzsche dizia «domes-
que os outros, e ainda menos que tenha mais razões para se impor ticação», o que é a ideia menos racista e biologista que pode
e para durar que os outros; mas apenas que podemos pronunciar haver). Esta lentidão, infelizmente, não é o lento «trabalho» de
nele, sem nos contradizermos, a seguinte frase: «A verdade é que a parto do negativo, também chamado regresso do recalcado; não é
verdade varia». Nesta concepção nietzscheana2, a história dos discur- choque da realidade ou progresso da razão e outros ideais respon-
sos e das práticas desempenha o papel de uma crítica transcendental. sáveis. A constituição e a sucessão dos programas explicam-se pelas
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Imaginação constituinte? Estas palavras não designam uma mesmas causas que os historiadores estão habituados a manejar,
faculdade da psicologia individual, antes designam o facto de que pelo menos quando não se conformam com esquemas. Os progra-
cada época pensa e age no interior de quadros arbitrários e inertes mas edificam-se como as construções, por filas de pedras sucessi-
(é óbvio que, num mesmo século, estes programas podem contra- vas e cada episódio se explica pelos pormenores dos episódios
dizer-se de um sector de actividade para outro e que estas contra-
dições, o mais das vezes, serão ignoradas). Uma vez que estamos áâiisug precedentes (a inventiva individual e os acasos do êxito que
«vinga» ou não vinga fazem eventualmente parte deste polígono
dentro de um destes aquários, é preciso génio para dele sairmos de causas inúmeras); a construção do edifício, com efeito, não é
e inovarmos; em contrapartida, quando a genial mudança de aquá- otientada por grandes razões, tais como a natureza humana, as neces-
rio se opera, as criancinhas podem ser socializadas no novo sidades sociais, a lógica das coisas que são o que são ou as forças
programa desde a mais tenra idade. Encontram-se tão satisfeitas de produção. Mas não minimizemos o debate; um pensador marxista
com ele como os seus antepassados com o seu e não vêem maneira de tão grande estatura como Habermas não vai estorvar-se com
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de sair dele, uma vez que não avistam nada para além dele3; hipostasias dormitivas como as forças ou relações de produção;
quando não vemos o que não vemos, nem sequet vemos que não desembaraça-se delas em duas linhas. Mas desembaraçamo-nos menos
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vemos. Com mais forte razão ainda, desconhecemos à forma extra- facilmente da razão; Habermas resume algures a sua filosofia nestas
vagante desses limites, pois julgamos habitar dentro de fronteiras palavras: «O homem não pode deixar de aprender»; aqui é que
naturais. Além disso, como a falsa analogia da verdade actua atta- está toda a questão, ao que me parece. À oposição Habermas-
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“Foucault, quer dizer Marx-Nietzsche, ressuscita, na idade da modet-


na trindade incoerente Matrx-Freud-Nietzsche, o conflito entre o
1 Guy Lardreau, «Histoire comme nuit de Walpurgis», nos Cahiers racionalismo e o irracionalismo4,
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histórica. Má quarenta ou há oitenta anos que a historiografia de secretamente enorme; a Polígica eterna variou tanto, de Luís XIV

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ponta tem como programa implícito a ideia de que escrever a his- aos nossos dias, como as realidades económicas e é a explicitação
tória é escrever a história da sociedade. Já praticamente não se acre- desse progtama que permite explicar a poalha dos tratados-e-bata-
dita que exista uma natureza humana e deixa-se aos filósofos da lhas e achar-lhes interesse. Dir-se-ia outro tanto da história literária;
política a ideia de que existe uma verdade das coisas; mas acre- relacioná-la com a sociedade é uma empresa que ninguém realizou
dita-se na sociedade e isso permite tomar em conta o espaço que se e que talvez seja menos falsa que oca; a historicidade da história
estende daquilo a que se chama economia áquilo que pode classi- literária não está aí, reside nas enormes mudanças inconscientes
ficar-se sob a etiqueta de ideologia. Mas então, que fazer de todo que, em três séculos, afectaram aquilo a que não deixou de se cha-
o resto? Que fazer do mito, das religiões (visto que elas não têm mar, por palavras enganadoras, literatura, belo, gosto, arte; não
só função ideológica?), das patranhas de toda a espécie ou, mais foram só as relações d'«a» literatura com a «sociedade» que muda-
simplesmente, da arte e da ciência? É muito simples: ou a história ram, foi o Belo em si próprio, a Arte em si própria. O coração
literária, para ir buscar esse exemplo, se liga à história social, ou destas realidades, com efeito, nada tem de um invariante a aban-
então, se não quiser ou puder ligar-se-lhe, não será história e esque- donar aos filósofos; é histórico e não filosófico; não existe coração.
cer-se-á a sua existênica; será abandonada a uma categoria espe- E as forças e relações de produção... Aceitemos que determinam
cífica, a dos historiadores da literatura, que só serão historiadores o resto (esta proposição é menos falsa do que verbal: o dito «resto»
no nome, é ele próprio um elemento dessas forças e relações que o determi-
A maior parte da vida social e cultural fica assim de fora do nam; mas deixemos isso); a produção e as suas relações não são elas
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campo da historiografia, mesmo que não factual. Ora, se tentarmos próprias casuais, não são óbvias; são determinadas de maneira
tomar em conta essa maioria, a fim de um dia nela podermos variável pelo todo da história nos seus diferentes momentos,
abrir essas arroteias que Lucien Febvre atribuía como carreira inscrevendo-se em programas que ficam por explicitar. Um pouco
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à historiografia de ponta, aperceber-nos-emos de que só é possível como, num mesmo território, dotado dos mesmos recursos, duas
fazê-lo recusando todos os racionalismos, gtandes ou pequenos, variedades próximas de uma mesma espécie animal têm modos de
de tal modo que essa massa de imaginações deixe de poder ser vida tão diferentes que uma é insectívora e a outra é carnívora.
considerada falsa, nem tão-pouco verdadeira. Mas então, se che- Dizíamos acima que não vemos como é que um comportamento
gatmos a elaborar uma doutrina tal que, nela, as crenças não possam pode não ser arbitrário, à sua maneira; o mesmo é dizer que todo
ser falsas nem verdadeiras, — por ricochete, os domínios supostos o comportamento é tão irracional como qualquer outro. Como
racionais, tais como a história social e económica, também eles acaba de escrever Ramsay MacMullen em Past and Present (1980),
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terão de deixar de ser considerados verdadeiros ou falsos, pois «este interesse que dedicamos hoje ao irracional deveria provocar
não se justificarão por um esquema que erija as suas causas em uma importante mudança na natureza da historiografia que se
razão; no termo dessa estratégia de envolvimento, teremos de pretende mais séria».
matcar uma cruzinha em tudo aquilo que nos ocupa de há algumas Temos tentado, ao longo deste livro, fazer aguentar de pé
décadas a esta parte, renunciando a esses domínios: ciências humanas, a nossa intriga cantonando-nos na hipótese irracionalista; não
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marxismo, sociologia do conhecimento. concedemos qualquer papel a uma só investida da razão, a uma luz
À história política, por exemplo, não é certamente a de vinte natural, a uma telação entre as ideias e a sociedade que fosse fun-
ou cinquenta milhões de franceses; mas, por ser factual e de cional. À nossa hipótese pode igualmente enunciar-se assim: em
rápida duração, nem por isso é anedótica. À poalha dos pormenores cada momento, não há nada que exista ou actue no exterior destes
factuais não se explica por realidades eternas: governar, dominar, palácios da imaginação (a não ser a semi-existência de realidades
o Poder, o Estado. Estes nobres panejamentos não passam de abs- «materiais», quer dizer, de realidades cuja existência ainda não
foi tomada em consideração nem recebeu a sua formas, fogo de arti-

ções de produção, cf. Connaissançe et Intérêt, do mesmo J. Habermas, Paris, Galli-


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matd, 1974, p. 61 e 85. A densa crítica ao materialismo histórico feita por R. Aron, 5 F.F. Jacob, La logigue du vivant, une histoire de 1º bérédité, Paris, Gallimard,

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fício ou explosivo militar, se se tratar de pólvora de canhão). ficção deixará de aparecer como secundária e histórica; a distinção
Estes palácios não se erguem, portanto, no espaço, são o único entre o imaginário e o real não o é menos. Às concepções menos
espaço disponível, fazem surgir um espaço, O seu, ao erguerem-se; absolutas da verdade como simples ideia reguladora, ideal da inves-
não existe, à volta deles, uma negatividade recalcada que procure tigação, não podem servir de desculpa para a amplitude atingida
entrar. Só existe pois aquilo que a imaginação, que fez surgir o pelos nossos palácios de imaginação, os quais possuem a espon-
palácio, constituiu, taneidade das produções naturais e, provavelmente, não são nem
Estas espécies de clareitas no vazio são ocupadas por interes- verdadeiros nem falsos. Também não são funcionais, e nem todos
ses sociais, económicos, simbólicos e tudo o que se quiser; o mundo são belos; têm, pelo menos, um valor muito poucas vezes nomeado,
da nossa hipótese terá a mesma ferocidade daquele que conhe- de que só falamos quando não sabemos dizer exactamente qual
cemos; estes interesses não são trans-históricos, são o que conse- É O interesse de uma coisa
— são interessantes. Porque são com-
guem ser, a partir das possibilidades oferecidas por cada palácio; plicados.
são o próprio palácio, sob outro nome. Se agora o polígono das Alguns destes palácios pretendem referir-se a um modelo de
causas se modificar, o palácio (que é o polígono sob outro nome verdade prática e realizar a verdadeira política, a verdadeira moral...
ainda) será substituído por outro palácio, que constituirá outro Seriam falsos se o modelo existisse e a imitação falhasse; mas, como
espaço; esta substituição parcial ou total comportará, eventualmente, não existe modelo algum, não são mais falsos do que verdadeiros.
a consciencialização de virtualidades que se haviam mantido pura- Outros palácios são construções doutrinais que pretendem reflectir
mente materiais até então; mas se semelhante consciencialização a verdade das coisas; mas, como esta pretensa verdade não passa
se produzir, ficará a dever-se a um feliz concurso de circunstâncias de uma iluminação arbitrária que lançamos sobre as coisas, o seu
e não a uma necessidade constante. Nenhum destes palácios, enfim, programa de verdade não vale nem mais nem menos que qualquer
é obra de um partidário da arquitectura funcional; ou melhor, nada outro. De resto, a verdade é a menor das preocupações destas dou-
será mais variável que a concepção que terão, da nacionalidade, ttinas que pretendem reclamar-se dela; a efabulação mais desenfreada
os sucessivos arquitectos, nem haverá nada de mais imutável que não é feita para as assustar; a sua investida profunda não vai em
a ilusão pela qual cada palácio passará por apropriado à realidade, direcção ao verdadeiro, mas à amplitude. Relevam da mesma
pois cada estado de facto será tomado pela verdade das coisas. capacidade organizadora que as obras da natureza; uma árvore
A ilusão de verdade fará que cada palácio passe por se encontrar é nem verdadeira nem falsa, é complicada.
plenamente instalado dentro das fronteiras da razão. Nenhum dos palácios da cultura tem qualquer função de uti-
Nada iguala a segurança e a perseverança com as quais conti- lidade para a «sociedade», do mesmo modo que as espécies vivas
nuamos incessantemente a abrir, no vazio, estes amplos prolon- que compõem a natureza não são úteis à natureza; aquilo a que cha-
gamentos. À oposição entre a verdade e o erro não está à escala mamos sociedade não é, aliás, mais do que o conjunto pouco
deste fenómeno: é pequenina, A da razão e do mito não se aguenta estrutural destes palácios culturais (é assim que uma burguesia
melhor: o mito não é uma essência, mas sim um baú de arruma- se sente tão bem na companhia das Luzes como na de uma piedade
çõesó e a razão, por seu lado, dissemina-se em mil racionalidade- puritana). Agregado informe, mas também proliferante. À efabulação
zinhas arbitrárias. Nem sequer a oposição entre a verdade e a mítica é um belo exemplo desta proliferação da cultura,
Proliferação que põe em xeque os nossos racionalismos, os quais
precisam de cortar o mais rente possível essas excrescências tão
nhecido, toda uma fauna imprevisível que o instrumento, subitamente, torna gratuitas como a vegetação. O reducionismo da efabulação tem-se
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acessível à observação. Mas o pensamento de então não sabe o que fazer com feito de várias maneiras, mas todas têm em comum o serem egocên-
esse mundo. Não tem nenhum emprego a propor a esses seres microscópicos, tricas, pois todas as épocas se tomam pelo centro da cultura.
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nenhuma relação para os unit ao resto do mundo vivo; esta descoberta per- Primeiro processo: o mito diz a verdade. É espelho alegórico
mite simplesmente alimentar as conversas». Semelhante concepção da matéria
das verdades eternas que são as nossas. À menos que seja o espelho
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(que, teria dito Duns Scot, é actuante, mas não prova nada) é que explica a
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frase famosa de Nietzsche, amiúde atribuída a Max Weber e tornada a pedra ligeiramente deformador dos acontecimentos passados; esses acon-
angular do problema da objectividade histórica: «Os factos não existem», Ver tecimentos serão semelhantes aos acontecimentos políticos de hoje
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Der Wille zur Macht, n,º 70 e 604 Ktoner: «Es gibt keine Tatsachen», À influên- (o mito é histórico), ou então estarão na origem das individualida-
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cia de Nietzsche sobre Max Weber, que foi considerável, mereceria ser estudada,
6 Cf, nota 11 do cap. «Algumas outras verdades: a do falsário, a do
des políticas de hoje (o mito é etiológico). Ao reconduzitem o
filólogo». mito a história ou a aítia, os Gregos foram levados a fazer começar
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o mundo pouco mais de dois milénios antes deles; vinha primeiro outros; ela saíu ou vai sair da sua pré-história. A nossa filosofia

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um prólogo mítico, a que se sucedia o seu passado histórico, de tem sempre por missão reconfortar e abençoar, mas o que pre-
cerca de um milénio de duração. Efectivamente, não duvidaram, cisa agora de ser confortado é a (rjevolução. Aos nossos olhos, o
nem por um momento, de que a mais antiga humanidade de que mito deixou de dizer a verdade; mas, em contrapartida, passa por
se conservara memória não tivesse sido também a primeira huma- não ter falado para nada, teve uma função social ou vital, à falta
nidade existente. O mais antigo ser conhecido é o fundador; a certo de uma verdade. A verdade, essa, permanece egocentricamente
nobre do nosso Antigo Regime, a distinção não lhe passava mais nossa.
pela cabeça, quando notava o seguinte na sua crónica familiar: À antiga função social do mito garante-nos que estamos na
«O fundador da nossa raça foi Godron de Bussy que, em 931, verdade das coisas quando explicamos a evolução pela sociedade;
deu uma terra à abadia de Flavigny»; com efeito, essa doação era dir-se-ia outro tanto da função da ideologia e é por isso que esta
o mais antigo documento conservado pelo seu secretário. última palavra nos é tão cara. Tudo isto é muito bonito, mas aqui
Todavia, alguns pensadores gregos achavam que o mundo, é que está o busílis: e se não houvesse verdade das coisas?
com a sua fauna animal, humana e divina, era muito mais antigo, Quando se lança em pleno deserto uma cidade ou um palácio,
ou mesmo existente desde toda a eternidade. Como reduzir às nossas o palácio não é nem mais verdadeiro nem mais falso do que os rios
razões essa imensa extensão? À sua solução consistiu em acredi- e as montanhas, que não têm montanha nenhuma com a qual seriam
tarem numa verdade das coisas e do homem; o devit do mundo é conformes ou não; o palácio é e, com ele, começa a ser uma ordem
um perpétuo recomeço, pois tudo é destruído pelas catástrofes das coisas, sobre a qual haverá algo a dizer; os habitantes do
periódicas e a idade mítica é simplesmente o último desses príodos. palácio acharão que essa ordem arbitrária é conforme com a pró-
É o que ensina Platão no livro III das Leis; no decurso de cada pria verdade das coisas, pois essa superstição ajuda-os a viver, mas
um desses ciclos, reaparecem as mesmas realidades e as mesmas alguns historiadores e filósofos, entre eles, limitar-se-ão a tentar
invenções, à maneira de uma rolha que a natureza das coisas faz falar verdade acerca do palácio e a recordar que ele não poderia ser
voltar incessantemente à superfície das águas mais agitadas, Encon- conforme a um modelo que não existe em parte alguma. Para mudar
tramos no livro H da Política de Aristóteles um exemplo impres- de metáfora, nada brilha na noite do mundo; a materialidade das
sionante desta confiança na verdade natural; «Há muito tempo», coisas não é naturalmente florescente e também não há qualquer
escreve o filósofo, «que a teoria política reconheceu que, nas cida- baliza luminosa que trace o itinerário a seguir; os homens não
des, a classe dos guerreiros devia ser distinta da dos lavradores»; podem aprender nada, visto que ainda não há nada para aprender.
quanto à instituição das refeições em comum (em que todos Mas os acasos da sua história, tão pouco orientados e esquemáticos
os cidadãos, todos os dias, comiam em conjunto, oferecendo da como as sucessivas distribuições muma partida de póquer, fazem
cidade o espectáculo de um refeitório monacal), ela não é menos com que eles lancem à sua volta uma iluminação incessantemente
antiga, e tem por autores Minos, em Creta, e Ítalo, em Itália; «toda- vatiável;
só então é que a materialidade das coisas se ilumina de
via», acrescenta Aristóteles, «mais vale pensar que estas instituições, determinada maneira. Esta iluminação não é nem mais verdadeira
como muitas outras, foram inventadas grande número de vezes ao nem mais falsa que qualquer outra, mas começa a fazer existir
longo das idades, ou antes um número infinito de vezes». Estas últi- um certo mundo que é criação ad libitum, produto de uma imagina-
mas palavras devem ser tomadas à letra; Aristóteles acredita na ção. Quando existe assim uma clareira de luz, ela é geralmente
eternidade do mundo e, por conseguinte, no Eterno Retorno. tomada pela própria verdade, uma vez que não há mais nada para
Não o vê como mistura de «distribuições» sempre diferentes numa ver; podem também fazer-se frases, que serão verdadeiras ou fal-
espécie de póquer cósmico, em que a recorrência inevitável dos sas, acerca do que a iluminação faz surgir a cada passo. Produtos
mesmos conjuntos, longe de ter uma razão, confirmaria que nada da imaginação, dado que essas iluminações sucessivas não podem
passa de combinatória ao acaso (e não esquema causal); consi- ser conformes a uma materialidade que não existe aos nossos olhos
dera-o, de maneira mais reconfortante, como regresso cíclico das independentemente da iluminação, nem a sua sucessão se explica
mesmas realiades, que a verdade das coisas nos faz encontrar pelas exigências dialécticas de uma vocação para a racionalidade.
de novo; é um happy end. O mundo não nos prometeu nada e não podemos ler nele as nossas
Nós, os modernos, deixámos de acreditar no ciclo, mas acre- verdades.
ditamos na evolução. À humanidade foi, durante muito tempo, A ideia de que não é possível reclamarmo-nos do verdadeiro
criança, agora tornou-se grande e já não contamos mitos uns aos permite distinguir a filosofia moderna das suas falsificações. É ver-

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dade, a imaginação está na moda, o irracionalismo está em melho- e de que as filosofias que dão razões para viver são mais verdadeiras

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res graças do que a razão (ele pretende dizer que os outros não do que as outras. Além disso, estas perguntas são menos naturais do
são verdadeiramente razoáveis) e o não-dito fala de abundância. que se julga, não se fazem espontaneamente; a maior parte dos
Mas aqui é que bate o ponto: este não-dito limitar-se-á a existir séculos não duvidaram de si próprios nem as fizeram. Efectivamente,
ou será uma boa coisa a que devemos dar a palavra (ou, o que aquilo a que chamamos filosofia tem servido de pavilhão às mais
vai dar ao mesmo, uma má coisa a que devemos recusá-la, pois diversas mercadorias interrogativas: o que é o mundo? Como ser
existe uma verdade, que é a autodisciplina civilizadora)? Será seme- feliz, isto é, autárcico? Como pôr as nossas perguntas de acordo
lhante ao natural (ou, o que vai dat ao mesmo, à barbárie sempre com os livros revelados? Qual é a via de autotransfiguração?
renascente)? Expulso pela porta para qualquer vazio circundante Como organizar a sociedade de maneira a estarmos no sentido da
ao actual palácio, procurará ele fatalmente regressar ao palácio e história? Esquecemos a pergunta antes de conhecer a resposta.
deveremos abrir-lhe a janela? Existirá assim, inscrita nas coisas, A reflexão histórica é uma crítica que menospreza as preten-
uma tendência natural que seja a nossa vocação, de tal modo que, sões do saber e que se limita a dizer a verdade acerca das verdades,
se a seguirmos, seremos pessoas de bem? Vertidos em odres sem pressupor que exista uma política verdadeira ou uma ciência
novos, trata-se de velhíssimos vinhos que tiveram por nome razão, com maiúscula. Não será esta crítica contraditória e não poderá
motal, Deus e verdade. Estes vinhos patecerão ter um sabor dizer-se que é verdade que não há verdades? Claro que sim, e não
moderno se os vertermos na desmistificação, na questionação da estamos aqui a jogar 20 jogo, tomado dos Gregos, do mentiroso
consciência e da linguagem, na filosofia como mundo invertido, na que mente ao dizer «minto», o que é, pois, verdade. Não somos
crítica das ideologias; simplesmente, estes romances rudes e dra- mentirosos em geral, mas sim quando dizemos isto ou aquilo. Um
máticos acabam bem, como os de outrora, o happy end é-nos prome- indivíduo que dissesse: «Sempre efabulei» não estaria a efabular
tido; existe uma via, o que é tranquilizador, e essa via é a nossa ao dizer isso, se precisasse: «A minha efabulação consistia em acre-
carreira, o que é exaltante. As falsificações reconhecem-se, pois, ditar que as minhas efabulações sucessivas eram verdades inscri-
facilmente pelo calor humano que libertam. Nathanael, não me dês tas nas coisas».
fervor, por amor de Deus! Seria demagógico não especificar que a De facto, se a minha presente verdade do homem e das coisas
análise reflexiva de um programa ou «discurso» não conduz à fosse verdadeira, então a cultura universal tornar-se-ia falsa, ficando
instauração de um programa mais verdadeiro nem à substituição por explicar esse reino da falsidade e o meu privilégio exclusivo da
da sociedade burguesa por uma sociedade mais justa, mas simples- veracidade. Deveríamos, então, procurar um núcleo de verdade
mente a outra sociedade, a outro programa ou discurso. É perfei- na falsidade, à maneira dos Gregos? Deveríamos atribuir à efabula-
tamente lícito preferir esta nova sociedade ou esta nova verdade; ção uma função vital, como Bergson, ou social, como os sociólo-
basta abstermo-nos de a declarar mais verdadeira ou mais justa. gos? O único meio de resolver a questão consiste em estabelecer
Não pretendemos, pois, que a prudência seja a verdadeira via que a cultura, não sendo falsa, também não é verdadeira. Para
e que baste deixar de divinizar a história e travar o bom combate isso, recorri a Descartes. O qual confiava por cattas aos seus
contra as ideologias que tanto mal nos fizeram; este programa de amigos, sem ousar imprimi-lo, que Deus não só criara as coisas,
conservantismo é tão arbitrário como qualquer outro. Se quisermos mas também as verdades, de tal modo que, se assim o tivesse
medir em milhões de mortos, o patriotismo, de que já ninguém fala, desejado, dois e dois não seriam quatro. Com efeito, Deus não
fez e fará tantas vítimas como as ideologias com que nos indigna- criava O que era previamente verdadeiro, era verdadeiro o que
mos exclusivamente. Então, que fazer? Esta é precisamente uma ele criava como tal, e o verdadeiro e o falso só existiam depois de
pergunta que não se deve fazer. Ser contra o fascismo e o comunismo, Ele os ter criado. Basta darmos, à imaginação constituinte dos
ou o patriotismo, é uma coisa; todos os seres vivos vivem de ideias homens, este poder divino de constituir, quer dizer, de criar sem
preconcebidas e as do meu cão consistem em ser contra a fome, modelo prévio.
a sede e o carteiro e em exigir brincar com a bola. Mas nem por A ptincípio, é uma sensação estranha, pensar que nada é ver-
isso pergunta a si próprio o que deve fazer nem o que lhe será dadeiro nem falso, mas habituamo-nos rapidamente. E por boas
permitido esperar. Pretendemos que a filosofia responda a estas razões: o valor de verdade é inútil, é sempre redundante. À verdade
perguntas e julgamo-la pelas suas respostas; mas só um antropo- é o nome que damos às nossas opções, de que não queremos desfa-
centrismo convicto é que pressupõe que um problema comporta zer-nos; se nos desfizéssemos delas, considerá-las-famos decidida-
uma solução, pela simples razão de que essa solução nos faz falta mente falsas, de tal modo respeitamos a verdade; até as nazis a respei-

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tavam, pois diziam que tinham razão, não diziam que estavam terá respondido de antemão: «Claro que acreditavam nos seus

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que nós e, além disso, é platónico taxar de falsidade um tremor cias desta verdade primeira.

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Será preciso bradar que a condição humana é trágica e infeliz
porque os homens não têm o direito de acreditar no que fazem
e estão condenados a verem-se a si próprios com os mesmos olhos
com que vêem os seus antepassados, os quais acreditaram em Júpi-
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ter ou em Hércules? Esta infelicidade não existe, é de papel, é um
tema retórico, Só poderia existir para a reflexividade, que apenas
os historiadores cultivam; ora os historiadores não são infelizes,
interessam-se. Quanto aos outros homens, a reflexividade não os
sufoca nem paralisa os seus interesses. Da mesma maneira, os
programas de verdade permanecem implícitos, ignorados daqueles
que os praticam e que chamam verdade âquilo a que aderem. A ideia
de verdade só faz a sua aparição quando tomamos os outros em
conta; ela não é primeira, antes revela uma secreta fissura. Como
é possível que a verdade seja tão pouco verdadeira? É que cla é a
película de auto-satisfação gregária que nos separa da vontade
de poder.
Só a reflexão histórica pode explicitar os programas de ver-
dade e mostrar as suas variações; mas essa reflexão não é uma luz
constante nem marca uma fase na via da humanidade. Via sinuosa
cujas curvas não são orientadas pela verdade, no horizonte, nem
se moldam pelos poderosos relevos de uma infta-estrutura; o cami-
nho serpenteia ao acaso e, durante a maior parte do tempo, os via-
jantes não se preocupam com isso; todos acham que a sua estrada
é a verdadeira e os desvios que vêem fazer aos outtos pouco ou
nada os perturbam. Mas acontece, em raros momentos, que uma
volta do caminho deixe ver retrospectivamente um longo troço
de estrada, com todos os seus ziguezagues, e que o estado de espí-
rito de alguns viajantes seja de modo a que essa ertância os comova.
Esta visão retrospectiva é sincera, mas nem por isso torna o
caminho mais falso, pois ele não poderia ser verdadeiro. Por isso,
as centelhas de lucidez retrospectiva não são muito importantes;
são um simples acidente de percurso, não permitem encontrar o
caminho recto nem marcam uma fase da viagem. Nem sequer
metamorfoseiam os indivíduos que afectam; não se vê que os
historiadores sejam mais desinteressados que o comum dos motr-
tais, nem que votem de maneira diferente, pois o homem não é um
junco pensante. Seria por estar a escrever este livro no campo
que invejava a placidez dos animais? .
O propósito deste livro era, pois, muito simples. À simples
leitura do título, qualquer pessoa com a mínima cultura histórica

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ÍNDICE

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Quando a verdade histórica era tradição e vulgata 17

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Pluralidade e analogia dos mundos de verdade 29

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Repartição social do saber e modalidades de crença 43

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Diversidade social das crenças e balcanização dos cérebros 57

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Sob esta sociologia, um programa implícito de verdade 75

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Como devolver ao mito a sua verdade etiológica 89

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O mito empregue como «língua de pau» 99

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Pausânias incapaz de escapar ao seu progtama 115

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Algumas outras verdades: a do falsátrio, a do filólogo 125

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Entre a cultura e a crença, há que escolher 129

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LUGAR DA HISTÓRIA

Tal como as «verdades» (ou ideias),


também o critério de verdade ou falsidade
tem uma história.
Ao inventarem a história dos tempos míticos,
os Gregos não estavam a fazer uma falsificação.
Mais tarde, a verdade consistiu em copiar.
essa história «que se conhecia».
A causalidade histórica não passa
de uma ilusão retrospectiva.
Existe sempre a novidade e o que é novo
“não é verdadeiro nem falso.

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