Potentados E Conflitos Nas Sesmarias Da Comarca Do Rio Das Mortes
Potentados E Conflitos Nas Sesmarias Da Comarca Do Rio Das Mortes
Potentados E Conflitos Nas Sesmarias Da Comarca Do Rio Das Mortes
POTENTADOS E CONFLITOS
NAS SESMARIAS DA COMARCA DO RIO DAS MORTES
NITERI
2010
FRANCISCO EDUARDO PINTO
POTENTADOS E CONFLITOS
NAS SESMARIAS DA COMARCA DO RIO DAS MORTES
Niteri
2010
FRANCISCO EDUARDO PINTO
POTENTADOS E CONFLITOS
NAS SESMARIAS DA COMARCA DO RIO DAS MORTES
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
Profa. Dra. Mrcia Maria Menendes Motta - orientadora
Universidade Federal Fluminense
_____________________________________________
Prof. Dr. Luciano Raposo de Almeida Figueiredo
Universidade Federal Fluminense
_____________________________________________
Prof. Dr. ngelo Alves Carrara
Universidade Federal de Juiz de Fora
_____________________________________________
Profa. Dra. Jnia Ferreira Furtado
Universidade Federal de Minas Gerais
_____________________________________________
Prof. Dr. Rafael Ivan Chambouleyron
Universidade Federal do Par
_____________________________________________
Profa. Dra. Sheila de Castro Faria - suplente
Universidade Federal Fluminense
Niteri
2010
Aos meus pais, que no tendo nada, deram-me tudo.
professora Mrcia Maria Menendes Motta, que orientou esta pesquisa. Seu rigor intelectual
e suas leituras meticulosas contriburam no s para a realizao da pesquisa e a elaborao
deste texto, como tambm para a minha prpria formao como historiador. Espero que esta
tese possa estar altura de sua orientao, permeada com estmulos instigantes com os quais
sempre soube tornar frteis nossas discusses;
aos colegas da rea de licitaes do Banco do Brasil Valria Becker, Azambuja e Vera
Bustamante que, generosos, souberam compreender a importncia desta pesquisa;
ao doutor Gilson Barros, pela ajuda na cura das dores do corpo, resultado das inumerveis
horas de estudos e trabalhos;
ao meu irmo Rosalvo, que to generosamente revisou todo o meu texto, deixando nele as
marcas da sua inteligncia e sabedoria;
aos funcionrios da Torre do Tombo (doutora Odete Martins, doutor Paulo Tremoceiro e dona
Maria do Cu), da Seo de Manuscritos da Biblioteca Nacional de Portugal (dona Maria
Helena e dona Joaquina), do Arquivo Histrico Ultramarino (doutor Jos Sintra Martinheira)
e do Arquivo do Tribunal de Contas em Lisboa, que me acolheram com extrema simpatia e
competncia ao longo de quatro meses de prazerosas pesquisas em Portugal;
ao Instituto Cultural Amlcar Martins (ICAM) e USIMINAS, pela concesso de uma bolsa
ao longo de seis meses, com cujos recursos pude adquirir equipamentos e livros necessrios
pesquisa;
aos professores Sheila de Castro Faria e Luciano Raposo de Almeida Figueiredo, pelas
criteriosas crticas durante o exame de qualificao;
aos amigos historiadores Antnio Gaio, Jos Antnio Dab-dab, Marcos Andrade e Daniel
Domingues os quais, cada um sua maneira, ajudaram-me a trilhar este longo caminho e
fizeram aumentar em mim o gosto pelo ofcio de historiador. Os professores Gaio (na
graduao) e Dab-dab (no mestrado) ensinaram-me que possvel ser, ao mesmo tempo, um
excelente professor e uma excelente pessoa;
aos colegas pesquisadores do Ncleo de Referncia Agrria da Universidade Federal
Fluminense, pelas constantes oportunidades de interlocuo e troca de experincias nos
diversos encontros que temos realizado no decorrer dos ltimos anos;
ao Luiz Carlos Villalta, professor e amigo. Foi durante um curso por ele ministrado na UFMG
que nasceu a ideia do projeto desta tese. Agradeo-lhe ainda a ateno dispensada durante o
perodo no qual pesquisamos juntos na Torre do Tombo. Ao professor ngelo Carrara, pela
gentileza com a qual me socorreu em algumas dvidas sobre a histria econmica de Minas
colonial;
aos professores ngelo Alves Carrara, Jnia Ferreia Furtado, Luciano Raposo de Almeida
Figueiredo, Rafael Chambouleyron e Sheila de Castro Faria que gentilmente acederam ao
convite para participar da banca examinadora desta tese;
ao Jos Campos de Resende, nascido e criado na roa, dono de uma cultura e de uma viso de
mundo invejveis. Com esse amigo tenho aprendido muitos segredos do campo e do dia-a-dia
dos camponeses;
aos meus pais, Antnio e Trindade, j falecidos, que com pobreza e dignidade educaram e
fizeram de todos os seus onze filhos cidados trabalhadores, honestos, justos e ticos.
Esforaram-se para proporcionar a todos ns a melhor educao formal, mesmo sem recursos
financeiros, alegrando-se imensamente com os nossos xitos na escola primria, no antigo
ginsio, no seminrio, no colgio de freiras, na escola tcnica, na universidade, pois sabiam
que a nica herana que teriam a nos legar eram os princpios fundamentais de uma educao
humana e religiosa;
ao sofrido povo brasileiro, sobretudo aos negros, ndios, trabalhadores sem-terra, bias-frias,
operrios, desempregados, muitas vezes marginalizados e analfabetos os quais, como
humildes contribuintes, sustentaram a minha formao escolar, sempre em escola pblica, do
ensino fundamental universidade. Alm do agradecimento, quero de alguma forma retribuir
o seu sacrifcio com o meu trabalho, tanto na docncia responsvel, como na militncia
gratuita nos movimentos sociais.
Resumo
Nesta tese ns nos propomos a investigar a ocupao territorial das regies mais remotas da
extensa Comarca do Rio das Mortes, em Minas Gerais, na segunda metade do sculo XVIII e
no primeiro quartel do XIX atravs das doaes de sesmarias. Observamos que medida que
a comarca foi ganhando destaque no abastecimento do Rio de Janeiro acirrou-se a disputa
pelas terras de agricultura resultando em conflitos com as populaes marginais da capitania:
ndios, quilombolas e colonos pobres. Para isso, abordamos o processo de conquista dos
sertes das nascentes do rio So Francisco, a oeste, e dos sertes dos rios Pomba e Peixe, a
leste, avanando sobre as terras indgenas, imediatamente distribudas em sesmarias.
Estudamos ainda as partes dos autos de medio e demarcao de algumas sesmarias da
comarca e os conflitos judiciais da decorrentes. Para a percepo desses conflitos
focalizamos alguns poderosos proprietrios de terras. Procuramos entender o funcionamento
dos processos de medio e demarcao das sesmarias, marcados pelo inevitvel
envolvimento das autoridades judiciais e administrativas em benefcio desses potentados.
Apontamos as dificuldades enfrentadas por sesmeiros absentestas para a conservao das
suas propriedades usurpadas por administradores e ocupadas por posseiros, como foi o caso
dos nobres portugueses da famlia Souza Coutinho. Por fim, observamos a disputa pela posse
de uma grande sesmaria entre diversos moradores da freguesia da Campanha do Rio Verde e
o coronel Incio Jos de Alvarenga Peixoto, ouvidor da Comarca do Rio das Mortes e um dos
homens mais ricos e influentes da capitania.
Cette recherche examine loccupation territoriale des rgions les plus lointaines de
limportante commune (Comarca) do Rio das Mortes, dans la province (capitania) de Minas
Gerais, qui sest donn par le systme de donation de terres, appel sesmarias, dans la
seconde moiti du XVIIIme. et le premier quart du XIXme. Nous avons pu observer que, au
fur et mesure que la Comarca do Rio das Mortes gagnait de limportance dans le
ravitaillement de la ville de Rio de Janeiro, la dispute des terres sest accentue, dbouchant
sur des conflits avec les populations de la priphrie de la province: des indiens, des
communauts de noirs (quilombolas) et des colons pauvres. Dans cette approche, nous
examinons le processus de conqute des rgions peu peuplieus, les sertes, partir des
sources du fleuve So Francisco, louest, et des sertes des fleuves Pomba et Peixe, lest,
jusquaux terres indiennes, qui ont t distribues en sesmarias depuis le dpart. Notre tude a
port galement sur la documentation de lpoque contenant les registres de mesure de surface
et de bornage des sesmarias de la Comarca do Rio das Mortes, ainsi que les conflits
judiciaires qui en dcoulrent. Nous nous sommes particulirement intresss aux conflits
dont lune des parties tait un gros propritaire de terre. Nous avons cherch comprendre le
fonctionnement des procdures de mesure et de bornage des sesmarias, marqu par
linvitable parti-pris des autorits judiciaires et administratives en faveur des gros
propritaires. Nous montrons aussi les difficults vcues par des propritaires des sesmarias,
les sesmeiros absentistes, pour conserver leurs proprits prises par des administrateurs et
occups par des envahisseurs, comme cela a t le cas des portugais de la famille noble Souza
Coutinho. Finalement, nous avons observ le conflit pour la possession dune grande
sesmaria entre plusieurs habitants du lieu-dit Campanha do Rio Verde et le colonel Incio
Jos de Alvarenga Peixoto, juge dans la Comarca do Rio das Mortes et lun des hommes les
plus riches et plus prestigieux de la province.
Mots-cls: sesmarias, sesmeiros, Minas Gerais, conflits agraires, histoire coloniale du Brsil.
Lista de Figuras
Figura 1
Mapa das comarcas de Minas Gerais (1821)............................................................................ 21
Figura 2
Mapa da Comarca do Rio das Mortes (1821)........................................................................... 21
Figura 3
Mapa da Comarca do Rio das Mortes (1809)........................................................................... 52
Figura 4
Recolhimento das Macabas, edificao do sculo XVIII (2009). .......................................... 55
Figura 5
Mapa da Conquista do mestre-de-campo, regente Incio Correia Pamplona (cerca de 1784). 68
Figura 6
Fazenda do Engenho Velho dos Cataguases: casa, capela, coberta grande e muros (2008). ... 93
Figura 7
Fazenda do Engenho Velho dos Cataguases: casa e capela (2008).......................................... 94
Figura 8
Distribuio geogrfica dos mineirdios................................................................................. 108
Figura 9
Mapa da sesmaria da fazenda da Fortaleza do alferes Manoel Freire (1797). ....................... 213
Figura 10
Mapa de toda a extenso da Campanha da Princesa (1799)................................................... 298
Figura 11
Carta de confirmao da sesmaria de Francisco Xavier Correia de Mesquita (1741). .......... 307
Figura 12
Fazenda da Paraopeba, termo da vila de So Jos, de Alvarenga Peixoto (2007). ................ 319
Figura 13
Mapa da sesmaria da fazenda da Boa Vista, apresentado por Alvarenga Peixoto (1778). .... 341
Figura 14
Mapa da sesmaria da fazenda da Boa Vista, apresentado por Gaspar Vaz da Cunha (1778).342
Lista de Quadros
Quadro 1
Mapa geral das sesmarias nas quatro comarcas de Minas Gerais (1700-1768)......... 53
Quadro 2
Quadro 3
Quadro 4
Quadro 5
Planejamento do padre Francisco da Silva Campos para aldear 3.000 ndios no rio
Pomba (1801)........................................................................................................... 123
Quadro 6
Mapa dos portugueses existentes com cultura nas vertentes do rio Ub, territrio dos
ndios Coroados (1819)............................................................................................ 153
Quadro 7
Quadro 8
Com vistas a facilitar a leitura e a compreenso dos trechos de documentos transcritos nesta
tese, adotamos alguns critrios para atualizao ortogrfica. Tais critrios seguiram, de perto,
o que preconiza Emanuel Arajo em A construo do livro, p. 213-246, para textos da histria
do Brasil:
Introduo ..................................................................................................................... 14
Captulo 1
2.4 Padre Manoel Lus Branco: letrado, sertanista e fazendeiro ............................. 135
2.5 Francisco Pires Farinho: fazendeiro e diretor dos ndios................................... 139
2.6 As sesmarias do Pomba e Peixe distribudas nos aldeamentos indgenas ........ 141
2.7 Paragem do Faco: um conflito levado ao juzo das sesmarias ......................... 164
Captulo 3
Captulo 4
A Hidra de Sete Bocas: as sesmarias dos Souza Coutinho nas Minas setecentistas225
Captulo 5
Fontes........................................................................................................................... 369
Anexos.......................................................................................................................... 410
Introduo
A legislao que regulou a distribuio de terras devolutas no Brasil colnia teve suas
origens em Portugal, no baixo medievo. Criada por D. Fernando I,1 em meados do sculo
XIV, a Lei das Sesmarias2 no s regia o domnio das terras incultas e abandonadas, como
tambm obrigava os mendigos, vadios, ociosos e os que tivessem hereditariamente o ofcio de
lavrador a se vincularem terra. A modificao substancial que essa lei sofreu foi somente a
supresso desse vnculo por ocupao, que restringia a liberdade pessoal, como se fosse um
tipo de servido, prevalecendo somente o domnio do solo. Alm disso, de acordo com Cirne
Lima, entre as Ordenaes de D. Manuel e as de D. Filipe II, nenhuma modificao
substancial se operou na instituio das sesmarias, e tanto se pode verificar, ou confrontando
os respectivos textos, ou consultando a compilao das leis intermedirias, aprovada pelo
Alvar de 14 de fevereiro de 1569".3 No Brasil, para se ter uma ideia do quanto a legislao
sobre a posse da terra pouco evoluiu, no hiato de vinte e oito anos entre a abolio das
sesmarias, em 1822, e a promulgao da Lei de Terras, de 1850, nas contendas judiciais
envolvendo a posse da terra prevaleceram as Ordenaes Filipinas.4
1
GUIMARES. Quatro sculos de latifndio, p. 43: Quando, no reinado de D. Fernando I escreve Cirne
Lima [Terras Devolutas] se publicou a Lei das Sesmarias, era velha j a praxe de se tirarem aos donos as terras
cultivadas, que estes desleixavam, para entreg-las, mediante foro ou penso devidamente arbitrada, a quem as
quisesse lavrar ou aproveitar. FAORO. Os donos do poder, p. 42, d uma data aproximada para a Lei das
Sesmarias: 1375. RAU. Sesmarias medievais portuguesas, p. 89-90 confirma o ano de 1375.
2
Para esclarecimento do significado do termo sesmaria, sugerimos a leitura de Rui Cirne Lima. Segundo esse
autor: Dentre aquelas sugestes filolgicas, a mais amplamente aceita a que tem a voz sesmaria por derivada
de sesma (seisma) ou sesmo (seismo), sua vez derivaes do baixo latim seximus-a, ou sextimus-a.
Procederia sesmaria de sesma, ou sesmo e, enfim, de seis ou sex, por isso que, j se acenou ao fato, as dadas de
terras, assim designadas, eram feitas com o foro da sexta parte dos frutos. (grifos do autor) p. 20. LIMA.
Pequena histria territorial do Brasil, p. 19-22. Pode-se valer tambm dos esclarecimentos de COSTA PORTO.
O sistema sesmarial no Brasil, p. 30-33.
3
LIMA. Pequena histria territorial do Brasil, p. 24.
4
MOTTA. Nas fronteiras do poder, p. 52-53.
15
Quando de sua criao, a Lei das Sesmarias parecia ser necessessria e um tanto
quanto ousada, ao desafiar interesses de proprietrios de terras no cultivadas. No Portugal do
sculo XIV, assolado pela fome, pela peste e pela queda demogrfica, a ao de D. Fernando I
denota claramente a boa inteno de um governante para com seu povo. O esprito da lei era
bastante claro: visava ao abastecimento e ao repovoamento do pas.
D. Fernando refere Duarte Nunes de Leo nas suas crnicas vendo que,
nos tempos passados, este reino era um dos mais abundantes de Espanha de
trigo, cevada, e mantimentos, e por falta de ordem e polcia, era pelo
contrrio no seu tempo, em Cortes que para isso ajuntou, fez algumas leis,
mui teis repblica e queles tempos mui necessrias. [...] E que quando os
donos das herdades as no aproveitassem, ou dessem a aproveitar, que as
justias as dessem a quem as lavrasse por certa coisa; a qual seu dono no
houvesse, mas fosse despesa em proveito comum do lugar, onde a herdade
estivesse. [...] E no querendo o dono da herdade convir em coisa razoada,
que perdesse a herdade para sempre, e fosse para o comum do lugar, em cujo
termo estivesse.5
5
LIMA. Pequena histria territorial do Brasil, p. 17-18.
6
SANTOS. Direito agrrio, p. 40-45. O autor faz um apanhado muito incipiente do direito indgena sobre a
posse da terra. Seria bom ressaltar que o conceito de propriedade pode parecer anacrnico, em se tratando da
ocupao da terra pelos povos indgenas do Brasil colnia. Mesmo no Imprio e na Repblica essa questo no
tinha muita definio e os povos indgenas remanescentes so como que tutelados pelo Estado. Sobre os
conflitos com povos indgenas pela posse da terra, no Brasil colnia, conferir o artigo de FARIA. A questo da
terra livre no Brasil colnia e conflitos sociais.
7
LIMA. Pequena histria territorial do Brasil, p. 25.
8
Idem, ibidem, p. 35.
9
Fundada por D. Diniz em 1319 para substituir a Ordem dos Cavaleiros Templrios, a Ordem de Cristo foi
sendo gradativamente absorvida pela Coroa desde os tempos do Infante D. Henrique. A partir desse reinado, por
bula papal, os reis portugueses passaram a ser os governadores e administradores perptuos da Ordem. A
divulgao da f crist nas novas conquistas era um dos princpios basilares da Ordem. A Coroa, para cumprir a
sua misso apostlica, pois tinha a convico de que Portugal era a nao missionria por excelncia no mundo
16
prtica, da Coroa portuguesa que tinha uma grande ascendncia sobre a Ordem.10 Por outro
lado, mesmo sendo menor a existncia de terras devolutas em Portugal, as Ordenaes
Manuelinas e Filipinas j previam seu uso e destinao,11 como tambm a Lei das Sesmarias
de D. Fernando I. Segundo Cirne Lima, salvas as modificaes provenientes da diversidade
entre o aparelho administrativo da colnia e o do reino, a instituio das sesmarias no Brasil
se regia pelo teor das Ordenaes.12
O esprito da legislao previa que as sesmarias fossem dadas queles que fossem
capazes de cultiv-las. Todavia, h notcias de doao de grandes extenses a uma s famlia.
Alberto Passos, citando Felisbello Freire, d ideia dos exageros cometidos: as concesses no
norte abrangiam em geral uma maior extenso territorial do que no sul. Com exceo feita da
donataria do visconde de Asseca, em Campos, as sesmarias no sul no excediam de trs
ocidental, teria grandes despesas (BOXER. O imprio martimo portugus, p. 245). Para compensar esses
elevados encargos, em contrapartida, detinha os privilgios do Padroado. Com isso, a Coroa passou, ento, a ter
direito sobre todos os postos, cargos, benefcios e funes eclesisticas no reino e nos territrios ultramarinos
conquistados e por conquistar. Poderia arrecadar os dzimos do que se produzia nas terras ocupadas para
compensar as suas despesas com os encargos missionrios. A arrecadao nem sempre era suficiente, mas o
Padroado dava-lhe considervel poder poltico.
Se, na origem, a ideia fundamental era a dilatao da f crist, com o passar do tempo, a Ordem de
Cristo foi se transformando numa instituio de nobilitao, distino e prestgio no seio da sociedade do Antigo
Regime, mais do que as outras duas ordens militares de Avis e de Santiago. Os reinis e colonos, para
ingressarem como membros da prestigiosa Ordem de Cristo, passavam por um rigoroso crivo cujas exigncias
variaram de intensidade ao longo do tempo. Se, por um lado, poderiam ser considerveis os trabalhos e as
despesas para tornar-se cavaleiro, por outro, eram compensadores os prestgios, privilgios e rendas pecunirias
que auferiam os que ingressavam na Ordem. O que se pode afirmar, sem sombra de dvida, que a concesso
das mercs da Ordem de Cristo funcionou como uma importante moeda de troca entre Coroa e vassalos durante
toda a sua existncia. H, porm, uma condio nessa contabilidade que rege a relao rei/vassalo no Antigo
Regime: se o monarca no for liberal na recompensa dos servios prestados pelo sdito, este desgosta de fazer
cousa lustrosa. SILVA. Ser nobre na colnia, p. 76.
Como um maior entendimento dessa instituio extrapola a finalidade da nossa pesquisa, sugerimos a
leitura de SILVA. Ser nobre na Colnia, no seu todo e, em particular, as p. 76-81, 96-122 e 198-212; BOXER. O
imprio martimo portugus, p. 242-245 e COSTA PORTO. O sistema sesmarial no Brasil, p. 35-38. Temos
notcia de que a pesquisadora portuguesa Fernanda Olival uma das mais respeitveis investigadoras sobre o
tema na atualidade. OLIVAL. As ordens militares e o Estado moderno.
10
FAORO. Os donos do poder, p. 141: [...] O rei, em nome da Ordem de Cristo, j longamente absorvida pela
Coroa, distribuiu, por meio dos donatrios, o cho arvel sem nenhum encargo a no ser o dzimo. [...].
11
LIMA. Pequena histria territorial do Brasil, p. 35, nota 71.
12
LIMA. Pequena histria territorial do Brasil, p. 39.
17
Foi do gigantismo dessas propriedades rurais que veio a ideia, defendida por diversos
autores clssicos brasileiros, da permanncia do feudalismo na colnia.15 Ideia superada,
considerando-se a insero da colnia no mundo mercantilista:
Considerando essa polmica tambm resolvida, uma boa razo para desenvolver as
pesquisas cujos resultados ora apresentamos justamente a carncia de estudos especficos
sobre a distribuio das sesmarias em Minas Gerais, durante o perodo colonial. Conhecemos
abordagens pontuais, artigos em revistas de histria, captulos de dissertaes ou teses.
Desconhecemos, porm, um trabalho que tenha se dedicado integralmente ao assunto. O que
tem sido feito com maior frequncia para Minas, em matria de histria agrria, so estudos
13
GUIMARES. Quatro sculos de latifndio, p. 51.
14
FAORO. Os donos do poder, p. 137-139: O contraste com as colnias inglesas, um sculo depois fundadas,
sobressai de modo patente. [...] A Inglaterra dispunha, no momento da transmigrao, de um arsenal de homens e
mulheres acostumados ao duro trabalho agrcola, sem que o desdm do cultivo da terra pelas prprias mos os
contaminasse, desdm aristocrtico e ibrico. Uma classe mdia o yeomen - proprietria de pequenas
fazendas, industriosa e de esprito livre, fornecia o modelo das ambies do proletariado agrcola, liberto da
servido h dois sculos. (grifos nossos)
15
GUIMARES. Quatro sculos de latifndio, p. 34: O monoplio feudal e colonial a forma particular,
especfica, por que assumiu no Brasil a propriedade do principal e mais importante dos meios de produo na
agricultura, isto , a propriedade da terra. [...]. DUARTE. A Ordem Privada e a Organizao Poltica Nacional,
p. 24: Donatrios, donos de sesmarias, senhores de engenhos e de fazenda e de currais, embora s os primeiros
detivessem, por outorga legtima, a jurisdio civil e a governana, continuaram a desenvolver longe e
indiferentes, ou refratrios a um poder de Estado to distante, a ndole feudal ou feudalizante da sociedade.
(grifos nossos)
16
FAORO. Os donos do poder, p. 148 passim. Inmeros estudos atuais sobre o escravismo tm demonstrado no
ser a terra o fator determinante do modelo econmico do Brasil, tanto na colnia quanto no Imprio. O prprio
Faoro, p. 150, afirma o seguinte: A terra, em si, pouco valia no conjunto da empresa, valor relativo no sculo
XVI, como ainda no sculo XIX: a riqueza necessria, para a empresa, era o escravo.
18
17
ZEMELLA. O abastecimento da capitania das Minas Gerais no sculo XVIII; SILVA. Subsistncia e poder: a
poltica do abastecimento alimentar nas Minas setecentistas; LENHARO. As tropas da moderao: o
abastecimento da Corte na formao poltica do Brasil 1808-1842; GUIMARES e REIS. Agricultura e
caminhos de Minas (1700-1750); GUIMARES. Quilombos e brecha camponesa Minas Gerais (sculo XVIII)
e CARRARA. Agricultura e pecuria na capitania de Minas Gerais (1674-1807), entre outros.
18
RAU. Sesmarias medievais portuguesas.
19
ALVEAL. Converting land into property in the Portuguese Atlantic World, 16th-18th century. Para as
sesmarias nas ilhas atlnticas, ver o captulo 3, p. 124-151.
20
LIMA. Pequena histria territorial do Brasil; COSTA PORTO. O sistema sesmarial no Brasil.
21
COSTA PORTO. O sistema sesmarial no Brasil, p. 7.
19
verdade que a maior parte dos posseiros era, de fato, grandes fazendeiros
muitos deles com prestgio e poder em sua localidade. Mas tambm
verdade que havia um sem-nmero de pequenos posseiros que poderiam se
beneficiar com a nova lei. Assim, em certo sentido, ela abria uma brecha no
processo de concentrao fundiria em curso, permitindo uma possibilidade
de democratizar o acesso terra, ao salvaguardar os interesses dos
lavradores que haviam ocupado pequenas parcelas de terras, antes da
aprovao da lei.22
22
MOTTA. Nas fronteiras do poder, p. 142.
20
Escolhemos como recorte geogrfico para a pesquisa a Comarca do Rio das Mortes, ao
invs de tomar como base toda a capitania das Minas Gerais. Nossa opo se deve s razes
seguintes: o excessivo volume de fontes disponveis, a indefinio geogrfica da capitania ao
longo do sculo XVIII e, sobretudo, a inconvenincia de se trabalhar com um recorte muito
amplo, conforme sugerem historiadores considerados referncia em histria agrria.24
A prpria Comarca do Rio das Mortes no tinha limites muito claros durante o sculo
XVIII. Foi criada em 1714, junto com as de Vila Rica e do Rio das Velhas, seguidas pela do
Serro Frio, em 1720. Durante o sculo XVIII permaneceram somente as quatro. A do Paracatu
s foi estabelecida em 1815. J em 1818, Auguste de Saint-Hilaire, profundo conhecedor da
regio, dizia ser a do Rio das Mortes, com cabea em So Joo del-Rei, a mais meridional das
cinco que compunham a Provncia de Minas Gerais. Assim o viajante francs descreveu seus
limites: a leste a comarca de Vila Rica; ao norte as de Sabar e Paracatu; a oeste as
Provncias de Gois e So Paulo; ao sul esta ltima e a do Rio de Janeiro. O mesmo autor
aponta que, em sua poca, havia controvrsias quanto aos limites das comarcas mineiras.25
23
MOTTA. Direito terra no Brasil: a gestao do conflito, 1795-1824. Mrcia Motta tambm responsvel
pela criao e articulao do NRA Ncleo de Referncia Agrria. Trata-se de um grupo de pesquisadores de
diversas partes do pas cujos objetos de estudo e pesquisa giram em torno da histria agrria desde o sculo XVI
at o sculo XX. O conjunto da obra de Mrcia Motta livros e artigos publicados um importante
instrumento terico e metodolgico para os pesquisadores preocupados em estudar a ocupao da terra no Brasil,
dando a necessria ateno aos conflitos que marcaram esta ocupao.
24
LINHARES; SILVA. Estudos histricos. p. 17-26. Regio e histria agrria.
25
SAINT-HILAIRE. Viagem pelo Distrito dos Diamantes e litoral do Brasil, p. 105, nota 1. Essas indefinies,
contudo, no devem causar grandes embaraos ao pesquisador. Quem nos tranquiliza a respeito Marc Bloch:
[...] absurdo aferrar-se a fronteiras administrativas tomadas da vida presente, e no o muito menos utilizar
fronteiras administrativas do passado [...] necessrio que a zona escolhida tenha uma unidade real; no sendo
necessrio que tenha fronteiras naturais dessas que no existem mais do que na imaginao dos cartgrafos.
LINHARES; SILVA. Estudos histricos, p. 21.
21
Bloch, o que constitui uma regio no espao colonial a sua localizao numa colonizao de
explorao, nos quadros do Antigo Sistema Colonial:
Quanto ao recorte temporal, adotamos o ano de 1750 para incio e 1822 para trmino.
O ano de 1750 foi marcante para a histria de Portugal e de suas colnias, pelas considerveis
mudanas de cunho econmico e poltico, fruto da ascenso do marqus de Pombal ao poder.
Segundo Francisco Falcon e Fernando Novais,27 o perodo que se inicia com a Viradeira de
26
MATTOS. O tempo saquarema, p. 23-25.
27
FALCON. A poca pombalina: poltica econmica e monarquia ilustrada, p. 225. NOVAIS. Brasil e Portugal
na crise do antigo sistema colonial (1777-1808), p. 224 passim.
23
1777 e vai at 1820 caracterizava-se pela continuidade e pela adaptao da ilustrao da era
pombalina, sem grandes rupturas.28 Em 1822, Portugal perde definitivamente o Brasil, sua
mais importante colnia, e o regime das sesmarias, j demasiadamente catico, suprimido
pelo novo governo brasileiro, sem, contudo, deixar de servir de instrumento para a
legitimao das posses at que, em 1850, fosse promulgada a Lei de Terras.
Com a expanso das fronteiras agrcolas, o que teria acontecido com os povos
indgenas que ocupavam essas reas? provvel que eles tenham sido simplesmente expulsos
ou sua mo de obra foi explorada pelos colonos que se apossavam das terras. Se isso de fato
ocorreu, queremos conhecer quais foram as justificativas usadas pelo Estado portugus e
pelos colonos para ocuparem a terra indgena.
28
Apesar da inexistncia de grandes rupturas, achamos necessrio relativizar essa continuidade entre os dois
perodos. Jnia Furtado salienta que a crescente presso da elite metropolitana pelo fortalecimento dos laos
coloniais levou derrubada de Pombal e a chegada ao poder de Martinho de Mello e Castro, que tentou
implantar uma poltica mercantilista clssica e bastante rgida. FURTADO. O livro da capa verde, p. 32.
Segundo Maxwell, com Martinho de Mello e Castro, a proteo dos interesses da poderosa oligarquia
comercial-industrial metropolitana significava o abandono do flexvel sistema pombalino e a implantao, em
seu lugar, de um neomercantilismo mais rgido e efetivo. MAXWELL. A devassa da devassa, p. 98.
24
Uma das exigncias fundamentais das doaes de sesmarias era o cultivo da terra e a
necessidade de confirmao dos ttulos pelo rei, atravs do seu Conselho Ultramarino, aps
cumpridas todas as obrigaes prescritas nas cartas. Em Minas Gerais, menos de 15% dos
sesmeiros requereram e receberam a confirmao de seus ttulos. Quanto ao cultivo, torna-se
mais difcil mensurar, mas sabemos, inclusive por depoimento de fontes contemporneas,29
que era humanamente impossvel cultivar as enormes glebas dadas em sesmaria. Como a
Coroa e os sesmeiros contornaram essas dificuldades?
A posse da terra, smbolo de distino social e de poder, no era dada a qualquer um.
Em geral, os que a requeriam alegavam ser detentores de cabedais para o seu amanho.
Desejamos verificar quais foram os critrios adotados pela Coroa para agraciar seus vassalos
com as glebas de terra e at que ponto as redes de relaes clientelares interferiam nesses
critrios, determinando o tamanho das propriedades, a sua localizao mais privilegiada ou a
sua manuteno no caso de ocorrerem conflitos pela posse. Pretendemos perceber as relaes
de poder ou redes de influncia entre as partes interessadas nos processos de medio e
demarcao e as autoridades que representavam a coroa portuguesa na capitania e na Comarca
do Rio das Mortes.
29
MOTTA. Direito terra no Brasil, p. 103-126. O Governador Francisco Maurcio de Souza Coutinho e o
sistema de sesmarias.
25
Dado que esses cerca de 80% de autos de medio e demarcao, em que os conflitos
de interesses parecem ausentes, tm uma estrutura processual relativamente simples e formal,
acreditamos que eles seriam uma corriqueira formalidade jurdica, ficando a maior parte das
terras, de fato, sem demarcao e medio, sujeitas mais fora econmica e poltica dos seus
proprietrios.
medida que aumentava a valorizao das terras da Comarca do Rio das Mortes, o
seu carter de propriedade mercantilizada ficava mais patente, acompanhando o que ento j
havia se consolidado na Europa ocidental.
No perodo colonial, a terra no era dada a qualquer um. Se os cabedais alegados nas
peties das sesmarias nem sempre existiam e estavam ali escritos somente para cumprir as
formalidades da lei, os peticionrios teriam de ser portadores de, no mnimo, algum ttulo ou
cargo, possuir relaes clientelares ou de parentesco com as autoridades ou ter prestado
servios Coroa pelos quais cobravam a retribuio. Poderia haver ainda o interesse maior da
Coroa em povoar os sertes e, portanto, doar as terras queles que tivessem concorrido com
suas fazendas ou com o risco de suas vidas. Neste ltimo caso, poderia acontecer que
alguns intrpidos entrantes sem cabedais recebessem alguma terra. No geral, os ricos e
27
abastados fazendeiros30 que financiavam as entradas eram os que ficavam com as maiores e
melhores parcelas.
Devido ao fato de se tratar de uma regio de expanso, a posse das terras no era
tranquila. Dentre todos os autos de sesmaria da Comarca do Rio das Mortes, os prprios
processos que se limitam medio e demarcao das terras, que so a maioria, so
resumidos e parecem cumprir somente uma formalidade, sem deixar explcito qualquer
questionamento sobre a terra medida e demarcada, podem estar mascarando outras realidades.
O estudo mais pormenorizado desses processos pode indicar, por exemplo, a dificuldade de
acesso justia formal por parte dos posseiros mais pobres. Para tanto, analisar as custas
processuais poderia indicar at que ponto um pequeno proprietrio poderia arcar com elas.
Conhecer as autoridades envolvidas (juzes, escrivos, meirinhos, medidores) tambm tem
30
Ao longo do texto, fazemos uso da palavra fazendeiro, que, de fato, no encontramos na documentao do
perodo colonial. Na documentao so usados os termos sesmeiro, lavrador, roceiro, proprietrio etc.
Em geral, queremos designar fazendeiro ao grande lavrador, grande criador de gados e grande proprietrio de
terras. J quanto palavra fazenda para designar a propriedade rural, seu uso no incomum nos autos de
sesmaria e outros documentos do perodo colonial. Por exemplo: Diz Manoel Lopes da Cruz, morador da
freguesia da Itaverava, que ele senhor e possuidor da sua fazenda chamada o Paraso (1773) e Digo eu,
abaixo assinado, Joo Moreira que verdade que eu vendi, que com efeito tenho vendido, desde hoje para todo
sempre, a Manoel Lopes da Cruz uma fazenda cuja [ilegvel] rio da Piranga acima (1758) (grifos nossos).
Autos de sesmaria do padre Jos de Oliveira cessionrio e do padre Manoel Nunes Ascensso cedente, 1758,
caixa 25, fl. 23 e 25. Tambm na Seo de Manuscritos da Biblioteca Nacional de Portugal pudemos localizar
diversas cartas do marqus do Lavradio com o uso corrente da palavra fazenda designando a terra, a
propriedade rural. Entre as que coletamos, transcrevemos trechos de duas: Recebo a carta de V. Merc com a
relao dos paus de Peroba que [se] acham nos matos das fazendas dessa vila [...] e Os moradores do distrito
no querem dar conta dos mantimentos que plantaram e colheram nas suas fazendas, receosos de alguma finta,
aos quais V. Merc far certo que toda esta diligncia s para eu saber se eles tm cultivado todas as terras que
possuem, na forma das condies que lhes foram concedidas para, do contrrio, as dar por devolutas [...]. Cartas
do marqus do Lavradio ao capito mandante da vila de Paraty, Rio de Janeiro, 4 de setembro de 1773 e ao
mestre-de-campo Alexandre lvares Duarte Azevedo, Rio de Janeiro, 17 de junho de 1774. Cartas do
Expediente do Ilmo. e Exmo. Sr. marqus do Lavradio, vice-rei e capito-general de mar e terra do Estado do
Brasil, BNP, Cdice 10.614, fls. 142 e 218. Mais um exemplo a INSTRUO por que se deve governar Joo
Pedro Fortes sendo encarregado da administrao da minha Fazenda chamada o Registo de Matias Barbosa. D.
Francisco de Souza Coutinho, Luanda, 1764. ANTT/ACL, mao 56, doc. 64.
31
Consideramos necessrio explicar que o termo posseiro no era usado no perodo colonial. Todavia, faremos
uso frequente no sentido de caracterizar a pessoa que ocupava a terra sem nenhum ttulo, exclusivamente pela
posse pura e simples. J o termo posse, este sim, era usual na colnia. MORAIS E SILVA. Diccionario da
Lngua Portugueza. POSSE: o ato de ocupar lugar, herdade, ofcio; o logro destas coisas e o t-las em seu
poder: v.g. estou de posse da quinta, da fazenda, do benefcio.
28
32
WEHLING e WEHLING. Direito e justia no Brasil colonial, p. 114-117.
33
HESPANHA. As vsperas do Leviathan, p. 440.
29
extenso e disperso, sujeito a frequentes rebelies,34 com to parcos recursos, seno atravs de
uma constante negociao de cargos, favores e benefcios. Essas relaes, obviamente,
davam-se em vias de mo dupla: receber mercs e prestar servios, mantendo, na medida do
possvel, os vassalos quietos e a realeza tranquila. liberalidade do rei que poderia traduzir-
se na distribuio de cargos e na doao de terras deveria corresponder a retribuio de
servios o desbravamento dos sertes e a prestao gratuita de servios militares. Era a
economia do dom estabelecendo complexas redes de relaes polticas e econmicas.35
Segundo Jnia Furtado, interpretando e citando Hespanha:
34
Sobre as rebelies na Amrica portuguesa existe uma bibliografia que desejamos destacar: ANASTASIA.
Vassalos rebeldes; FIGUEIREDO. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial na Amrica portuguesa;
FIGUEIREDO. Furores sertanejos na Amrica portuguesa; MAXWELL. A devassa da devassa; MELLO. A
fronda dos mazombos; SOUZA. Motins, revoltas e revolues na Amrica portuguesa sculos XVII e XVIII.
35
HESPANHA. A Fazenda e As Redes Clientelares. In: MATTOSO, Jos (org.) Histria de portugal: o
Antigo Regime, v. 4, p. 203-239 e 381-393. Sobre a economia do dom ver tambm GURY. Finance et
Politique: le Roi Dpensier: le don, la contrainte, et lorigine du systme financier de la monarchie franaise
dAncien Rgime.
36
FURTADO. Homens de negcio, p. 49.
37
Idem, ibidem, p. 63.
30
Da ser fundamental saber quem eram os sesmeiros, que relaes mantinham com o
poder e as autoridades portuguesas, por que eram doadas sesmarias alm da medida limite e
por que algumas famlias ou parentelas recebiam diversas doaes, contrariando a legislao
que no permitia o acmulo. O caso emblemtico o do mestre-de-campo Incio Correia
Pamplona e de sua parentela. Grandes glebas lhes foram doadas na extremidade oeste da
Comarca do Rio das Mortes. De certa forma isso se deve ao poder acumulado por esse
poderoso chefe de um cl feudal ou parental, no dizer de Oliveira Vianna.38 Mas Pamplona
no era o nico. Havia outros pequenos Pamplonas espalhados pela comarca.
38
VIANNA. Instituies polticas brasileiras, p. 161-215.
39
COSTA PORTO. O sistema sesmarial no Brasil, p. 70 (grifo nosso).
40
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formao do Estado e civilizao, p. 26.
31
41
LEVI. A herana imaterial, p. 51.
42
BOURDIEU. O poder simblico, p. 217.
32
entender da legislao da poca, preciso ter alguma noo da geografia dos locais onde as
medies e demarcaes aconteciam: relevo, hidrografia, vegetao, vias de acesso,
existncia de povoaes nas proximidades. preciso, com o auxlio de documentos e estudos
j realizados, ter conhecimento da presena de quilombos e povos indgenas na regio.
necessrio procurar saber quem eram os vizinhos de determinada sesmaria que tenhamos
elegido para anlise e se havia minerao nas proximidades. No possvel a compreenso de
um processo de sesmaria isolado da sua conjuntura. Por fim, o historiador, com o auxlio de
outras reas do conhecimento, precisa ser capaz de compreender como se fazia a medio.43
Para tanto, bom estarmos atentos para o que Motta aponta:
A crescente importncia que a Comarca do Rio das Mortes vai adquirindo como
regio de abastecimento medida que avana o sculo XVIII, especialmente por sua
proximidade com o Rio de Janeiro, torna-se um dos fatores da disputa pelas suas terras. Isso
pode explicar, inclusive, a razo de se limitarem as doaes a meia lgua de terra em quadra
43
Uma boa leitura auxilar para o estudo dessa questo COSTA. Roteiro prtico de cartografia. Auxilia-nos
ainda um curioso documento localizado na Torre do Tombo o qual ajuda a compreender como se faziam e como
deveriam ser feitas as medies e demarcaes de sesmarias no Brasil colonial. O autor annimo usou como
exemplo uma sesmaria de uma lgua de frente por trs de fundo concedida no Rio de Janeiro em 1750. No seu
estudo, com desenhos e clculos, ensinava a localizar esse retngulo de terra com o uso da bssola ou agulho
relacionando a sua localizao com a escala de graus, minutos e segundos da cartografia da poca. Erros
sobre as sesmarias das terras da Amrica: verdadeira forma de os emendar e regular. ANTT, coleo Papis do
Brasil, cdice 4, fls. 292 a 294, microfilme 699 A.
44
MOTTA. Direito terra no Brasil, p. 118.
45
MOTTA. Direito terra no Brasil, p. 119, 121-122.
33
nas proximidades das vilas de So Joo e So Jos por volta de 1759, enquanto ainda se
doavam trs lguas de terra por ser serto nas cabeceiras do rio So Francisco em 1767.
Fato tambm indicativo da valorizao das terras desse serto das cabeceiras do So Francisco
que, em 1796, ali se concedeu sesmaria de meia lgua em quadra a um filho de Incio
Pamplona.46 um caso isolado, mas no deixa de ser um indcio de que, passados trinta anos,
a terra j havia valorizado naquelas paragens, visto que algum de famlia to poderosa tenha
recebido um lote pequeno. O que estamos tentando compreender o valor da terra, o tamanho
das glebas e, naturalmente, o prestgio necessrio para receber em doao mais ou menos
terras, mais prximas ou mais distantes dos centros de poder poltico e econmico.
Costa Porto afirma que, a partir de 1753, a Coroa interveio a favor dos indivduos,
isolados ou em grupos, determinando que entre cada sesmaria deve mediar uma lgua de
terra para logradouro de herus e confinantes.48 Isso seria um indicativo da preocupao ora
com conflitos de divisas, ora com outras categorias de ocupantes do solo que no os sesmeiros
legalmente constitudos pelas cartas de doao.
46
Arquivo Pblico Mineiro (daqui para adiante APM), Seo Colonial (SC), cdice SC 125, fls. 5 a 6 verso,
microfilme 28 para a carta de sesmaria passada a Jos de Resende Costa em 12 de junho de 1759; cdice SC
156, fls. 61verso e 62, microfilme 34 para a primeira carta de sesmaria passada a Incio Correia Pamplona em 1
de dezembro de 1767 e cdice SC 265, fls. 140 verso a 142, microfilme 56 para a carta de sesmaria passada a
Joo Jos de Correia Pamplona em 23 de setembro de 1796.
47
COSTA PORTO. O sistema sesmarial no Brasil, p. 73.
48
COSTA PORTO. O sistema sesmarial no Brasil, p. 124.
34
Como fatores geradores de conflitos pela posse da terra, acreditamos ter havido um
frequente desrespeito s dimenses doadas pelas cartas de sesmarias, ficando as medidas
somente no papel. Devido a esse fato, estariam os sesmeiros apossando-se de muito mais
terras do que receberam, at mesmo atravs do esbulho de seus vizinhos, sem deixar de
considerar tambm a possvel sobreposio de doaes.49 A legislao, a partir de 1744,
previa que as cmaras seriam responsveis pela informao de que as terras que estavam
sendo doadas estavam desocupadas.50 Sabemos que as reas de jurisdio das cmaras das
vilas de So Joo e So Jos eram enormes. Era praticamente impossvel que os homens
bons dessas cmaras tivessem total conhecimento e controle destes vastos territrios.
Alis, essa doao a D. Maria da Cruz merece especial destaque. Um nome comum e
uma pessoa bastante incomum. D. Maria da Cruz havia desafiado a autoridade metropolitana
em 1736, nos conhecidos Motins do Serto, em que a populao e os potentados se
49
REQUERIMENTO de Isabel Maria Guedes de Brito, viva do coronel Antnio da Silva Pimentel, solicitando
a D. Joo V a merc de ordenar ao governador de Minas no conceda sesmarias em terras que lhe pertenam.
AHU - Projeto Resgate MG, caixa 2, doc. 62. O plural do termo que grifamos um indcio de que as terras de
Isabel seriam to extensas que comportariam vrias sesmarias nos seus limites. O documento 47, da caixa 15,
vem confirmar essa hiptese ao indicar que a requerente era filha do mestre-de-campo Antnio Guedes de
Brito, descobridor dos sertes da Bahia, rio de So Francisco e rio das Velhas. AHU - Projeto Resgate MG,
caixa 15, doc. 47.
50
COSTA PORTO. O sistema sesmarial no Brasil, p. 120-121.
51
COSTA PORTO. O sistema sesmarial no Brasil, p. 122.
52
Revista do Arquivo Pblico Mineiro (daqui para adiante RAPM), ano III, 1898, p. 891.
35
levantaram contra a cobrana das taxas de capitao. J era povoadora antiga das terras que
pedia em sesmaria. Diz a carta de sesmaria que lhe foi dada, no Arraial do Tejuco, em 4 de
maio de 1745, que era D. Maria da Cruz, moradora do serto do rio de So Francisco,
comarca da Vila Real, que ela era senhora e possuidora de uma fazenda chamada o Capo,
situada no serto do rio So Francisco, que compreenderia trs lguas de terra [...].
A doao da terra a esse vassalo rebelde vem confirmar a tese de Carla Anastasia de
que nos motins reativos, ocorridos nas minas, pode ser detectada uma forte disposio do
Rei, ou dos seus representantes na colnia, de acatar as reivindicaes da populao.53 Essa
doao poderia tambm ser interpretada como uma simples legalizao do espao j ocupado
pela requerente, como diz a prpria carta. mais provvel que a requerente j se encontrasse
anistiada, em 1745, quando lhe foi concedida a carta de sesmaria. D. Maria da Cruz foi uma
das cabeas desses motins, tendo sido, inclusive, presa junto com seu filho, Pedro Cardoso, e
outros envolvidos em 1738. Essa doao nada mais era do que a legitimao pelo ttulo de
uma posse antiga que a Coroa, usando de suas prerrogativas, concedia a esse potentado
rebelde no intuito de coopt-lo.
53
ANASTASIA. Vassalos rebeldes, p. 138. Sobre D. Maria da Cruz e seu filho, Anastasia nos d as seguintes
informaes: Pedro Cardoso era filho de D. Maria da Cruz, moa da famlia da Torre [Garcia dvila], educada
pelas carmelitas e figura lendria no Serto, considerada nas devassas como pea fundamental da sedio de
1736, e sobrinho de Domingos do Prado Oliveira. Pedro Cardoso possua extensa fazenda de gado, alm de se
ocupar do comrcio de sal, ferragens e gneros da Bahia. Era considerado um dos principais potentados do
noroeste de Minas e possuidor de uma fortuna incalculvel., p. 80.
54
BOSCHI. Os cdices coloniais do Arquivo Pblico Mineiro, p. 24.
36
inventrios e testamentos, cartas trocadas entre os dois lados do Atlntico e documentos das
autoridades da capitania que tratam da ocupao do territrio e da distribuio das terras por
sesmarias.
Para tanto, indispensvel analisar essa documentao luz dos textos de Hespanha,
Thompson e Bourdieu, que nos do as chaves de compreenso das estratgias tanto do Estado,
quanto da sociedade colonial para a ocupao do territrio das Minas. Tais textos servem,
outrossim, para questionar as generalizaes histricas que veem a conquista dos sertes
exclusivamente como produto de intrpidos fazendeiros e a reduo da terra condio de
propriedade privada e sua transformao em mercadoria como processos pacficos e naturais.
Para Karl Polanyi, por exemplo, a terra, que apenas outro nome para a natureza, que no
produzida pelo homem, no mercadoria, sendo sua descrio como tal inteiramente
fictcia.55 Detalhando essas fontes de pesquisa:
55
POLANYI. A grande transformao, p. 94.
56
RAPM, Catlogo de sesmarias, ano XXXVII, 1988, p. 11.
57
BARBOSA. Dicionrio histrico-geogrfico de Minas Gerais e COSTA. Toponmia de Minas Gerais.
37
A Coleo dos Documentos Avulsos da Casa dos Contos, cuja parte guardada no
Arquivo Pblico Mineiro contm cerca de 15.000 documentos microfilmados, ao contrrio do
que se poderia imaginar, no se limita a fontes de natureza fiscal. Possui documentao a mais
diversificada possvel, tendo, evidentemente, um maior volume de documentos fiscais.
ngelo Carrara, no II Colquio de Histria Agrria de Juiz de Fora, em outubro de 2007,
chamou-nos a ateno para a importncia desse acervo no qual, alis, j vnhamos
pesquisando. Percorremos todo o seu banco de dados e seus 17 livros de catalogao na busca
de documentao que nos fosse til. Os documentos que localizamos nos foram de grande
valia. Sobre essa imensa e valiosa coleo, da qual o Arquivo Pblico Mineiro possui somente
uma parte, escreve Luciano Figueiredo:
58
FIGUEIREDO. [CEDEPLAR 2006], p. 6.
59
Arquivo Histrico do Escritrio Tcnico II da 13 SR/Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional
Minas Gerais/So Joo del-Rei (daqui para adiante AHET/IPHAN-MG/SJDR) AUTOS de sesmaria de Joo
Chrisstomo da Fonseca Reis, 1778; AUTOS de sesmaria do alferes Manoel Freire, 1797, e Luza Felcia
Sinfroza de Bustamante, 1799. Devido recente separao entre IPHAN e IBRAM, tais mapas ficaram sob os
cuidados do IBRAM no Museu Regional de So Joo del-Rei. Todos eles foram reproduzidos nesta tese.
38
Dois outros tipos de fontes que nos foram de grande valia so a coleo Documentos
Histricos da Biblioteca Nacional e as Revistas do Arquivo Pblico Mineiro. Nessas
publicaes encontram-se fontes primrias cujos manuscritos foram transcritos e impressos. O
primeiro permitiu o acesso a diversas cartas rgias e de sesmarias anteriores a 1700 que foram
importantes para entender o sistema sesmarial na colnia. O segundo trouxe centenas de
cartas de sesmarias: um trabalho de transcrio zeloso e paciente dos primeiros funcionrios
do Arquivo Pblico Mineiro at o ano de 1933. Nelas, h doaes feitas por diversos
governadores desde Antnio de Albuquerque, em 1710. A grande maioria dos documentos
transcritos na Revista concentra-se no perodo de governo de Gomes Freire de Andrada,
conde de Bobadela, o que no de se estranhar, visto que foi ele quem governou Minas por
mais tempo, de 1735 a 1763, segundo Joo Camillo de Oliveira Torres.61
60
LINHARES; SILVA. Regio e histria agrria. Estudos Histricos, p. 17-26.
61
TORRES. Histria de Minas Gerais.
62
Arquivo Regional do IPHAN de So Joo del-Rei - Banco de Dados de Sesmarias (arquivo formato Excell).
Daqui para adiante AHET/IPHAN-MG/SJDR/BDS. Os autos de medio e demarcao de sesmarias esto
guardados em 44 caixas, das quais nove, com cerca de 120 processos, ainda no estavam catalogadas. Para
indicar esta parte da documentao nas notas de rodap usamos a referncia NC (No Catalogada) 01 a 09.
Fotografamos, ento, o fundo inteiro. So cerca de 17.000 fotografias, cada uma reproduzindo duas pginas,
posteriormente gravadas em 45 CDs. Todo esse trabalho de digitalizao foi entregue ao Arquivo para uso de
outros pesquisadores.
63
AHET/IPHAN-MG/SJDR/BDS.
39
Nessa pesquisa nos arquivos de So Joo, duas questes nos chamaram a ateno. A
primeira o perodo compreendido por essa documentao: 1746-1819. A outra a aparente
baixa incidncia de litgios. Embora no includos em nosso recorte temporal, resta-nos a
curiosidade de saber em que arquivos estariam os processos anteriores a 1746. Eles
certamente existem, visto que encontramos aproximadamente 125 cartas de sesmaria para a
Comarca do Rio das Mortes no Arquivo Pblico Mineiro entre os anos 1714 e 1745. Seria
bom lembrar que s estamos considerando as doaes posteriores a 1714, ano da criao da
comarca.
64
DE PLCIDO E SILVA. Vocabulrio jurdico. LOUVADO indica ou designa o prprio perito escolhido
pelas partes, num processo judicial. importante informar que, no Brasil, devido, sobretudo, carncia de
agrimensores com formao tcnica, a figura dos louvados leigos permaneceu e teve ou ainda tem f pblica
nos processos de medio e demarcao de terras at os nossos dias, desaparecendo medida que suas funes
vo sendo assumidas por profissionais de formao tcnica ou superior. Ns, pessoalmente, conhecemos alguns
deles em atuao no municpio mineiro de Resende Costa. Um deles, semi-alfabetizado, o senhor Onsimo de
Sousa Lima, falecido aos 90 anos em 2006, foi, por muitos anos, avaliador oficial da comarca local.
40
65
APM-SC, cdices 02, 12, 30, 31, 43, 96, 120, 132, 146 e 299.
41
De grande utilidade para quem pesquisa temas referentes ao perodo colonial mineiro
so os registros do Arquivo Histrico Ultramarino relativos a Minas Gerais/Projeto Resgate.66
No seu inventrio h 1.163 documentos diversos referentes a sesmarias. Desses documentos,
1.001 referem-se a requerimentos de confirmao. curioso observar que desses
requerimentos, 487, ou seja, 48,65%, partem da Comarca do Rio das Mortes. Fizemos uma
pesquisa por amostragem (10%) nesse universo de 1.001 peties de confirmao.
Percebemos que 87,25% das peties obtiveram ratificao das doaes de sesmaria pelo
soberano, atravs do Conselho Ultramarino. Na melhor das hipteses, o ndice de
confirmaes tambm no passaria de 15% do total das cerca de 8.000 doaes para a
capitania.
Por fim, resultado de nossa pesquisa em arquivos lisboetas, patrocinada pelo Programa
de Doutorado no Pas com Estgio no Exterior PDEE/Capes, percorremos todos os 114
maos do Arquivo dos Condes de Linhares, com cerca de 12.000 documentos, guardado na
Torre do Tombo. A pesquisa minuciosa buscou levantar dados das propriedades rurais que a
famlia Souza Coutinho possuiu em Minas Gerais por mais de cem anos. Uma grande parte
dessa documentao constituda de cartas trocadas entre os membros da famlia Souza
Coutinho ou entre esses membros e os representantes dos seus interesses no Rio de Janeiro e
Minas Gerais.67 Alm desse fundo, quase indito porque foi recentemente incorporado aos
arquivos da Torre do Tombo, coletamos documentos esparsos na Biblioteca Nacional de
Portugal, no Arquivo Histrico Ultramarino e no Arquivo Histrico e Biblioteca do Tribunal
de Contas que tratassem das sesmarias do Brasil. A partir da anlise de toda essa
documentao, estruturamos a tese da seguinte forma:
66
BOSCHI. Inventrio dos manuscritos avulsos relativos a Minas Gerais existentes no Arquivo Histrico
Ultramarino (Lisboa). Para nossa comodidade, adquirimos tanto os trs volumes do Inventrio quanto os 54 CDs
dos documentos.
67
Jnia Ferreira Furtado ao estudar as cartas comerciais de Francisco Pinheiro, negociante portugus da primeira
metade do sculo XVIII, salienta a importncia desse tipo de documentao como fonte de pesquisa.
FURTADO. Homens de negcios, p. 21-22.
42
colonial mineira. Ao mesmo tempo, o estudo da trajetria desse potentado permite reconstruir
a histria da ocupao da regio oeste da comarca, cujos sertes frteis, extensos e bem
servidos de gua, muita riqueza trariam para engrossar os cabedais que fariam do sul de
Minas o principal abastecedor do Rio de Janeiro.
No quarto captulo fazemos uma incurso nas propriedades rurais que os fidalgos
portugueses da famlia Souza Coutinho possuam em grandes extenses em Minas Gerais,
inclusive na Comarca do Rio das Mortes. O interessante atentar para alguns aspectos: a
riqueza que essas terras, juntamente com a minerao, lhes proporcionaram; a decadncia das
propriedades devido ao absentesmo dos donos; o relaxamento de seus correspondentes e
advogados; a m conduta dos administradores; a invaso de posseiros e o trato com os
escravos, entre outros. Analisamos as cartas desses nobres portugueses com as autoridades
metropolitanas e coloniais, seus correspondentes comerciais e os administradores de suas
fazendas. Dessa anlise, percebemos as relaes de poder que permitiam que a Casa Senhorial
dos Condes de Linhares ainda tivesse um lucrativo negcio com as fazendas na colnia,
apesar dos prejuzos causados por administradores e representantes devido ao distanciamento
dos donos.
Captulo 1
68
SOUZA. Norma e conflito, p. 111-137. Captulo Violncias e prticas culturais no cotidiano de uma
expedio contra os quilombolas. Minas Gerais, 1769. AMANTINO. O mundo das feras, p. 182-205, tambm
estudou o carter civilizador das expedies militares organizadas por particulares e/ou pelo Estado em Minas
44
vez sobre a mesma documentao69 com vistas a explorar aspectos no considerados pela
pesquisadora. Desejamos, outrossim, luz de novos documentos possivelmente por ela
desconhecidos , traar uma trajetria maior da vida desse potentado colonial que foi
Pamplona, indo alm do ano de sua morte, no rastro da riqueza que acumulou.
Gerais durante o sculo XVIII, sobretudo, a partir de 1750. Tratou especialmente da entrada que fez Incio
Correia Pamplona em 1769.
69
NOTCIA diria e individual das marchas e acontecimentos mais condignos da jornada que fez o Senhor
mestre-de-campo, regente e guarda-mor Incio de Correia Pamplona, desde que saiu de sua casa e fazenda do
Capote conquista do Serto (1769). In: Anais da Biblioteca Nacional, v. 108, 1988, p. 53-113. Daqui para
adiante NOTCIA diria.
70
uma sucesso to grande e confusa de Incios na famlia do coronel Pamplona que nos veio mente a saga
da famlia do coronel Aureliano Buenda, em Cien aos de soledad, com seus inmeros Arcdios e Aurelianos.
diferena da histria dos Pamplona, a brilhante fico com fundo de realidade, fruto da genialidade de Gabriel
Garca Mrquez, no encadeia tantos padres filhos de padres, fato to costumeiro na sociedade brasileira da
colnia e do Imprio. Curiosamente, tambm em torno da famlia Buenda, desdobrada em inmeras geraes,
45
luz que se irradia dessas laudas amarelecidas pelos anos e rendadas pelas
traas, vemo-las surgirem vagarosamente do fundo indeciso do passado e
fixarem-se nas encostas vermelhas da colina fundamental, as casas
primitivas de taipa de mo e de pilo. Recompe-se por encanto o mobilirio
que as guarnece. Sobre as mesas se dispem as baixelas de prata suntuosa ou
de estanho plebeu. Mos invisveis abrem as arcas e arejam as alfaias
domsticas e o fato de vestir. As paredes se enfeitam de espelhos, armas ou
painis. Logo, porm, as cores empalidecem, as linhas se dissolvem, a
miragem se desmancha; e no horizonte alargado outro cenrio emerge pouco
a pouco e ganha forma e colorido. o stio da roa, que aparece, com o
casaro solarengo, posto a meia encosta, protegido do vento sul; as palhoas
de agregados e escravos; os algodoais pintalgados de branco; o verde
anmico dos canaviais, em contraste com o verde robusto e lustroso da mata
convizinha; e, arranhando o silncio, cantiga montona de um moinho
moente e corrente.71
que gira um ficcional processo civilizador dos sertes de um pas imaginrio que deve ser a Colmbia de
Garca Mrquez.
71
MACHADO. Vida e morte do bandeirante, p. 23.
72
INVENTRIO post-mortem (daqui para frente IPM) do coronel Pamplona, fl. 13. AHET/IPHAN-MG/SJDR,
caixa 100
46
sua chcara de So Joo del-Rei.73 No pudemos apurar se tinha outros escravos e gados nas
sesmarias do serto do rio So Francisco, mas provvel que sim.
O serto brasileiro sempre foi um espao que gerou inquietao na mente de viajantes
estrangeiros e dos moradores da colnia e do Imprio. Ora na condio de estrangeiros ou
autoridades, ora na condio de simples sditos da Coroa portuguesa ou cidados do Brasil
independente, as pessoas muitas vezes olharam para o serto como um espao multifacetado:
maravilhoso, paradisaco, promissor de riquezas, repleto de gentios a evangelizar ou
pestilento, indmito, inspito, habitado por feras, sem lei... Vises negativas e positivas se
alternavam nesses olhares, muitas vezes carregados de preconceitos.
73
IPM do coronel Pamplona, fls. 17 a 19. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 100. Esses nmeros so
considerveis se levarmos em conta os dados coletados por Andr Figueiredo Rodrigues nos sequestros dos
inconfidentes de 1789. Os maiores proprietrios de animais eram Francisco A. de Oliveira Lopes e Jos Aires
Gomes com 430 e 378 cabeas, respectivamente. As maiores escravarias pertenciam a Alvarenga Peixoto, Jos
Aires Gomes e Francisco A. de Oliveira Lopes com 134, 133 e 74 cativos, respectivamente. RODRIGUES.
Estudo econmico da Conjurao Mineira, p. 146 e 190.
47
Srgio Buarque de Holanda, que nos d a exata dimenso do quanto durou esta ideia de uma
terra sem males:
medida que essa viso foi sendo superada, de forma lenta e gradativa, como
salientou Srgio Buarque de Holanda, o que se comeou a construir nas mentes foi o inverso.
A Amrica portuguesa e, sobretudo, o seu hinterland foram assumindo forma e figura no to
agradveis s vontades e aos sentidos. Os primeiros desbravadores desse misterioso interior
foram os bandeirantes, em sua maioria paulistas, e os padres da Companhia de Jesus. Foram
tambm eles os primeiros a padecer sob as flechas, as feras e as febres. Isto para no falar da
sede, da fome, dos insetos sobretudo os mosquitos e as formigas de variadas espcies, causa
de variados males, e os bichos-de-p , das cobras peonhentas e traioeiras, das regies
excessivamente midas ou abrasadoramente trridas. Para dificultar ainda mais, esses
sertanistas encontravam os obstculos naturais dos caminhos praticamente inexistentes: rios
intransponveis e encachoeirados, florestas fechadas, terrenos alagadios ou ridos e serras
elevadas. Nos primeiros tempos, as longas distncias s podiam ser vencidas a p, atravs de
picadas na mata que muitas vezes no permitiam a passagem de montarias ou cargueiros, ou
de canoas pelo perigoso leito dos rios. Ora, com o tempo, para minorar os sofrimentos dos que
desbravavam o serto, remdios, alimentos e tcnicas foram sendo aprendidos com o gentio
que nele habitava. Disso tudo tambm nos d notcia Srgio Buarque de Holanda em
Caminhos e fronteiras.75
74
HOLANDA. Viso do paraso, prefcio segunda edio, p. XXV.
75
HOLANDA. Caminhos e fronteiras, especialmente o captulo 7: Frechas, febres e feras.
48
verdadeiras caadas.76 Ainda no alvorecer do sculo XIX, sob a regncia de D. Joo, moveu-
se cruenta guerra contra os ndios Botocudos,77 habitantes relativamente prximos do litoral e
da capital do reino. Com as feras tambm eram identificados mestios e homens brancos de
vida instvel, os vadios e facinorosos, termos recorrentes na documentao colonial.
O serto podia estar a centenas de lguas do litoral ou a umas poucas lguas dos
maiores e mais importantes centros urbanos coloniais. A cidade do Rio de Janeiro no estava
muito distante das imensas e ininterruptas matas que separavam a capitania fluminense das
capitanias das Minas Gerais e do Esprito Santo, onde viviam os ferozes Botocudos. Vila Rica
tambm ficava poucas lguas a oeste dessas mesmas matas e a antiga cidade do Salvador
conviveu durante vinte anos com um quilombo de tamanho considervel a menos de seis
lguas de seu centro.78
76
SOUZA. Norma e conflito, p. 83-110.
77
VARNHAGEN. Histria geral do Brasil: antes da sua separao e independncia de Portugal, v. 3, t. V, p. 99.
Na grafia dos nomes indgenas, a conveno estabelecida pela Associao Brasileira de Antropologia, em 1953,
recomenda que os nomes e lnguas de povos indgenas sejam empregados de forma invarivel, sem flexo de
gnero e nmero. Revista de Antropologia, 2(2), 1954. p. 150-154. No entanto, respeitando a forma que aparece
nas fontes histricas e por considerarmos que no h comprometimento de qualquer natureza, recorremos, neste
texto, aos padres da Lngua Portuguesa e optamos por utilizar iniciais maisculas.
78
SCHWARTZ. Escravos, roceiros e rebeldes. Sobre a proximidade dos quilombos dos centros urbanos ver o
captulo 5 Repensando Palmares: resistncia escrava na colnia, e para o caso de Salvador, especialmente o
trecho Etnografia dos mocambos: o caso do Buraco de Tatu, p. 235-242.
79
Essa questo se prolonga no perodo republicano e aparece refletida em duas obras monumentais da literatura
nacional, as quais retratam a resistncia desse mundo ao processo civilizador vindo do centro: Os sertes e
Grande serto: veredas. Convm destacarmos a diferena de estilos e o contexto histrico peculiar de seus
autores e das duas produes literrias. A primeira, da pena de Euclides da Cunha, claramente localizada no
tempo, mostra a garra e a fibra do sertanejo no enfrentamento com um projeto de nao construdo
artificialmente de cima para baixo. As campanhas contra o arraial de Canudos e o Conselheiro, seu lder
milenarista, demonstraram o quanto o aparato tcnico se mostrou frgil em um meio hostil e diante de uma
populao muito diferenciada daquela que habitava o litoral. Ficou tambm escancarada a inexistncia de uma
nao nica, de uma s comunidade poltica republicana. Ficou patente que o projeto positivista de repblica que
derrubou a monarquia levaria alguns anos para ser aceito por um serto que ainda guardava a imagem paternal
do imperador. CUNHA. Os sertes. A segunda, obra maior de Joo Guimares Rosa, que no tem a preocupao
de definir uma temporalidade, descreve a longa durao de valores de honra, coragem, lealdade: permanncias
de uma sociedade nos moldes da Europa medieval em pleno Brasil republicano. Aponta a sobrevivncia do
Sebastianismo e o apelo figura paternal do imperador Pedro II, tal como em Canudos. Coronis e jagunos, em
andanas e guerras por aqueles sertes, como que querendo colocar ordem no caos. Esse mundo estaria
delimitado pela margem esquerda do rio So Francisco. Na outra margem, estaria a civilizao, com seus
progressos e suas instituies. O rio seria o divisor dos dois mundos. Guimares Rosa enxergava o serto e o
sertanejo com olhos mais compreensivos. Os moradores da margem esquerda tinham uma tica prpria e um
49
senso de justia e autoridade que no eram os mesmos dos moradores da outra margem que os queriam
civilizar. ROSA, Joo Guimares. Grande Serto: veredas.
J Euclides da Cunha, mesmo se indignando com o massacre do arraial e concluindo que o sertanejo ,
antes de tudo, um forte, via Canudos como o homizio de famigerados facnoras [que] ali chegavam, de
permeio com os matutos crdulos e vaqueiros iludidos, sinistros heris da faca e da garrucha. Ali, o sertanejo
simples transmudava-se, penetrando-o, no fantico destemeroso e bruto. Compartilhando o esprito do
darwinismo social do seu tempo, o escritor acreditava que a mistura de raas diversas , na maioria dos casos,
prejudicial e que a mestiagem extremada um retrocesso. Mesmo considerando que aquela rude sociedade,
incompreendida e olvidada, era o cerne vigoroso da nossa nacionalidade, a descrio feita dos sertanejos que
seguiam o Conselheiro est eivada de esteretipos. Para ele, o sertanejo de Canudos era um agitador, do qual a
revolta era um aspecto da prpria rebeldia contra a ordem natural, adversrio srio, estrnuo paladino do extinto
regime, capaz de derruir as instituies nascentes. CUNHA. Os Sertes, p. 99, 161, 159, 93, 87, 166 e 171.
Em ambos os casos, mesmo que Guimares Rosa tenha um olhar mais benevolente, o serto e seus
moradores esto colocados como um mundo rebelde, uma anttese e uma negao do governo e da ordem
republicana.
Sobre a ideia de que os moradores do serto eram feras, Guimares Rosa tem ainda um texto
interessantssimo, considerado obra prima e por alguns, como uma das duas maiores do autor ao lado do Grande
Serto. Trata-se do conto (ou mesmo obra, segundo alguns crticos) MEU TIO O IAUARET, do livro
Estas Estrias: monlogo/dilogo no qual o interlocutor (o tio - sertanejo) identifica-se a si mesmo diante do
outro (o sobrinho moo da cidade) como ona, ser personificado da ona iauaret. ROSA, Joo Guimares.
Estas Estrias, p. 126-159.
80
DUARTE (org.). Tefilo Otoni: notcia sobre os selvagens do Mucuri.
50
Essa ideia de uma capitania rebelde permaneceu at o fim do sculo XVIII. O ministro
Martinho de Melo e Castro em carta ao visconde de Barbacena, datada de 24 de janeiro de
1788, s vsperas de mais uma rebelio, a Inconfidncia Mineira, registrava sua queixa:
Entre todos os povos de que se compe as differentes capitanias do Brasil, nenhuns talvez
custaram mais a sujeitar e reduzir devida obediencia e submisso de vassalos ao seu
Soberano como foram os de Minas Geraes.82 Ao longo desse perodo, por diversas vezes as
autoridades metropolitanas se viram assombradas pelo territrio infestado de quilombos e
pelos levantes de seus sditos. Dentre os maiores movimentos de insubordinao, podemos
citar: a Guerra dos Emboabas (1707-1709), os motins de Pitangui (1717-1719), de Catas Altas
(1718) e da Barra do Rio das Velhas (1719), a Sedio de Vila Rica (1720), os Motins do
Serto (1736), a Inconfidncia de Curvelo (1776) e a Inconfidncia Mineira (1789).83 O
drama do longo processo e das condenaes que resultaram desse ltimo movimento parece
ter mergulhado a capitania num longo perodo de letargia. Somente os anos turbulentos da
Regncia e do Segundo Reinado voltaram a esquentar os nimos com a Revolta do Ano da
Fumaa, em 1833, e com a Revoluo Liberal em 1842.
81
SOUZA. Norma e conflito, p. 88.
82
MAXWELL. A devassa da devassa, p. 108.
83
Para maiores detalhes sobre essas rebelies vide ANASTASIA. Vassalos rebeldes; VASCONCELOS. Histria
Antiga; Histria Mdia de Minas Gerais; MAXWELL. A devassa da devassa; SOUZA. Motins, revoltas e
revolues na Amrica portuguesa sculos XVII e XVIII; FIGUEIREDO. Revista Oceanos, p. 128-144.
FIGUEIREDO. A poesia dos inconfidentes, p. XIX-L.
51
Durante todo o sculo XVIII existiam somente quatro comarcas na capitania de Minas:
Vila Rica, Rio das Velhas, Serro Frio e Rio das Mortes. Cada uma delas com enormes e
imprecisas extenses territoriais para administrar. Poucas vilas contavam com o aparato
administrativo e militar necessrio disseminao e manuteno da ordem: os senados das
cmaras, as cadeias, as estruturas judicirias, a tropa paga. Com a escassez de recursos, o
aparato militar, como no resto da colnia, dependia em larga escala das milcias e ordenanas
que, apesar das hierarquias, estavam, de certa forma, sob o controle do poder local, com o
qual a Coroa nem sempre podia contar e que em diversas ocasies se insurgiu contra ela. A
nica instituio que tinha uma penetrao maior no territrio era a Igreja que, sob o regime
do padroado, cumpria diversas funes de carter administrativo.
A Comarca do Rio das Mortes, com cabea na vila de So Joo del-Rei, ocupava
quase um quinto do que hoje conhecemos por Minas Gerais. Durante quase todo o sculo
XVIII, seu imenso territrio estava subordinado s nicas duas vilas: So Joo e So Jos
(atual cidade de Tiradentes). O termo dessa segunda que se estendia em direo ao serto do
oeste mineiro. A vila, ento, estava localizada bem na extremidade leste, distante duas lguas
de So Joo e a uma centena de lguas de seus indefinidos limites ocidentais, nas margens do
rio So Francisco. A administrao eclesistica dessa regio era, inclusive, disputada entre as
arquidioceses de Pernambuco e Mariana. A maior parte do territrio do termo da vila de So
Jos era o serto.84
84
A ideia de serto, para essa extensa regio do termo da vila de So Jos permaneceu na memria e no uso
coloquial dos moradores da regio de So Joo del-Rei e Tiradentes at as dcadas de 1950 ou 1980. Muitos
trabalhadores rurais que se deslocavam das cidades desse entorno para os municpios do oeste mineiro, at a
dcada de 50, diziam que estavam indo para o serto de Santo Antnio do Amparo, de Bambu..., mesmo
sabendo que a regio j possua centros urbanos desenvolvidos como Divinpolis, Arax, Uberlndia e Uberaba.
Tambm a moderna locomotiva a leo da E.F.O.M. partindo de So Joo del-Rei e atingindo Uberaba, j no
Tringulo Mineiro, acompanhando o vale do rio Grande, que circulou at o princpio da dcada de 1980, era
conhecida por todos como o Trem do Serto.
52
FIGURA 3 Mapa da Comarca do Rio das Mortes com os termos das vilas de So Joo del-Rei (cor) e So Jos
(branco) (1809).
Fonte: COSTA et al. Cartografia das Minas Gerais, 2002.
que reproduzimos abaixo, assinala que das quatro comarcas existentes, a do Rio das Mortes
era que detinha a maior quantidade de sesmarias doadas desde o ano 1700 at 1768. Vejamos
o Mappa geral das sesmarias, com declarao das legoas, que se tem dado em as quatro
commarcas pertencentes ao Governo de Minas Geraes desde o anno 1700 at 17 de Julho de
1768:
Quadro1
Mapa geral das sesmarias nas quatro comarcas de Minas Gerais (1700-1768)
Comarcas Sesmarias Legoas
Villa Rica 842 481 1/4
Rio das Mortes 1.072 693 1/2
Rio das Velhas 920 951 1/2
Serro Frio 218 153 1/2
Total 3.052 2.279 3/4
Fonte: AHU - Projeto Resgate MG, 1768, caixa 93, doc. 58. (grifos nossos)
85
LENHARO. As tropas da moderao; GRAA FILHO. A Princesa do Oeste.
54
Foi nessa comarca promissora e em expanso, cuja vocao parecia ser a agricultura e
o comrcio, que chega, por volta de 1760, o portugus Incio Correia Pamplona. Vindo da
Ilha Terceira, arquiplago dos Aores, onde nasceu em 1731, permaneceu por algum tempo
no Rio de Janeiro de onde passou a comerciar com as Minas. Fixou-se na freguesia dos
Prados, termo da vila de So Jos do Rio das Mortes. Tornou-se proprietrio, nessa mesma
freguesia, de duas grandes fazendas nos arredores do arraial de Lagoa Dourada: Capote e
Mendanha.
Casou-se com Eugnia Luza da Silva, que seria negra ou mulata forra, filha de me
africana e pai desconhecido, em data que no podemos precisar.87 Desse casamento teve seis
filhos: o padre Incio Correia Pamplona Corte Real, Teodora, Rosa, Incia, Simplcia e
Bernardina que se casou com um parente, Joo Jos Correia Pamplona. Foi em nome dessa
famlia que Pamplona acumulou um vasto latifndio88 no serto.
Diz o testamento de Incio Correia Pamplona, datado de 1810, que desde o ano de
1771 que recolhi no Recolhimento de Macaba, minhas filhas e uma prima por nome
Teodora, Rosa, Incia, Simplcia e a prima Bernarda, com seus dotes de 3.000 cruzados cada
uma das cinco propinas (sic) e 900$000 de juros enquanto no paguei os dotes e mais selas
[celas?] a 300$000 cada, que com as mais despesas diariamente e assistncias como consta do
dito livro e at o presente importam, salvo erro, em quantia de 14:936$103. Na colnia,
numa sociedade de mentalidade marcadamente patriarcal, na qual a cor da pele era um fator
de forte distino social, entre seis filhos legtimos ter cinco filhas mulatas era um grande
86
MAXWELL. A devassa da devassa, p. 110.
87
SOUZA. Norma e conflito, p. 116.
88
Faz-se necessrio explicar que o termo latifndio no do perodo colonial. Eventualmente ser usado no
texto, quando nos referirmos a grandes propriedades. Para uma informao mais ampliada desse conceito
sugerimos a consulta a MOTTA (org.). Dicionrio da terra, p. 272-276.
55
problema que Pamplona tinha nas mos para resolver. As filhas de um potentado no se
casariam com qualquer um. Alm de encontrar algum de boa famlia, era preciso bem dot-
las para o casamento. Cas-las todas significava dividir o patrimnio da famlia, transferindo a
maior parte para genros estranhos em prejuzo do nico filho varo. Era preciso tambm
manter a sucesso hereditria da famlia. Casou ento a filha Bernardina com o parente Joo
Jos Correia Pamplona e importou o seu dote em que entrou uma fazenda chamada Tapada
com escravatura, gados, guas, burros e burras e o enxoval que se lhe deu para o seu
casamento [...] o que tudo importa em 6:573$500. As outras quatro, junto com uma prima,
enclausurou-as no Recolhimento das Macabas,89 o que, na prtica lhe custou muito menos do
que cas-las, pois parece que no pagou todas as despesas. Quanto ao filho, foi enviado para o
clero, o que no impediu que tambm ele perpetuasse a linhagem do pai. Seu filho padre, por
sua vez, teve um filho, tambm destinado ao sacerdcio, o padre Jos Maria Correia
Pamplona, o qual, em 1822, veio a substituir seu pai como inventariante do falecido av, o
coronel Pamplona, perpetuando-lhe ainda mais a linhagem.
89
BARBOSA. Dicionrio histrico-geogrfico de Minas Gerais, p. 191. O autor traz maiores informaes sobre
esse antigo convento na regio de Sabar, fundado em 1714. Uma grande ala do convento foi construda pelo
mestre-de-campo Incio Correia Pamplona. No nosso entendimento, essa foi uma forma por ele encontrada para
conseguir a recluso de suas filhas mulatas e para o pagamento de parte dos dotes. De acordo com Mary del
Priore, garantia de sustento de quem ingressasse na vida religiosa, o dote podia ser parcelado ou ainda
convertido em escravos, animais, propriedades ou na construo de celas e cmodos na prpria instituio.
PRIORE. Histria da vida privada no Brasil, v. 1, p. 289.
56
A atividade comercial que comeou no Rio de Janeiro parece ter sido constante em sua
vida e a exerceu em diversos pontos da capitania. Declarou no seu testamento que mais se
me devem outras [dvidas] que parecem incobrveis e so as seguintes: pelo importe do que
me devem vrias pessoas da Comarca do Serro Frio por crditos e contas que se acham em
um mao em meu poder: 1:330$575; pelo que me devem vrias pessoas de Vila Rica e de
Sabar por crditos que se acham em meu poder 509$387; pelo que me devem vrias pessoas
dessa Comarca do Rio das Mortes por crditos que se acham em outro mao em meu poder
344$700.90 Pamplona tambm lucrou com o fornecimento de vveres s tropas que se
deslocaram do Rio para as Minas para sufocar a Inconfidncia Mineira.91
Quando realizou sua marcha para o serto, em agosto de 1769, Pamplona residia na
fazenda do Capote. Seu inventrio no a descreveu, mas ela permaneceu na posse de seus
herdeiros at pelo menos 1855, quando foi avaliada pela morte de seu neto, o padre Jos
Maria Correia Pamplona, e se tratava de uma rica propriedade. No apareceu na avaliao por
j ter sido vendida ao seu filho e inventariante, o padre Incio em 1805.92 Da outra fazenda,
Mendanha, temos uma descrio bastante pormenorizada. Foi minuciosamente descrita em
seu inventrio, em virtude de ter sido vendida de porteira fechada,93 logo aps sua morte, em
1814. No h referncia sua rea, como era comum nas descries das propriedades rurais
da poca. Somente so apresentadas suas confrontaes e a escritura assim a descreveu:
90
IPM do coronel Pamplona, fls. 08-09. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 100.
91
Autos de Devassa da Inconfidncia Mineira, vol. 10, p. 39.
92
IPM do coronel Pamplona, fl. 17. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 100.
93
Expresso usual no meio rural dos dias atuais no na colnia para significar que a propriedade rural foi
vendida com tudo que dentro dela havia.
94
IPM do coronel Pamplona, fl. 17. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 100.
57
outro sexo, de maiores e menores, que por seus nomes, qualidades naes, idades, oficios,
defeitos e preos em que foram avaliados. Tudo importou em 19:558$200. A descrio
completa impressiona pelos nmeros e pela sugesto de auto-suficincia da propriedade com
sua carpintaria, sua tenda de ferreiro, sua fbrica de acares e aguardente e todas as demais
benfeitorias de uma grande fazenda. Dentre as benfeitorias da fazenda, a capela, segundo
Sheila de Castro Faria, estaria ligada diretamente ostentao de poder e riqueza.
Como a legislao da poca no permitia que se desse mais de uma sesmaria a uma
mesma pessoa, o artifcio que usou foi colocar uma em seu nome a do Desempenhado e as
outras sete em nome dos seis filhos e do genro.97 Na prtica, controlava tudo, porque quatro
filhas estavam recolhidas em Macabas e os demais filhos andavam debaixo de sua
95
FARIA. A colnia em movimento, p. 361, citando os Manuscritos de Manoel Martins do Couto Reys - 1785.
96
IPM do coronel Pamplona, fls. 02-03. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 100.
97
MOTTA. Direito terra no Brasil, p. 182-188.
58
influncia. Era um imenso latifndio. Para se ter uma ideia de sua extenso, uma lgua
quadrada representa 43,56 km. Cada sesmaria de trs lguas ocupava uma rea de 130,68
km. Eram seis sesmarias de trs lguas: 784,08 km e duas de meia lgua: 21,78 km.
Pamplona tinha nada menos do que 805,86 km em terras. Eram, aproximadamente, 80.586
hectares98 de terras nessas sesmarias do oeste de Minas. Nos arredores de Lagoa Dourada
tinha as fazendas do Mendanha, Capote e Glria, cujas extenses desconhecemos.
98
O hectare (ha), correspondente a 10.000m, uma medida do sistema mtrico decimal do perodo napolenico.
Esse sistema no era adotado no Brasil colnia e creio que nem fosse usual durante o Imprio. Ainda hoje,
algumas comunidades rurais do interior do pas continuam se referindo terra em alqueires, que variam de
tamanho conforme a regio: 2,42 para o entorno de So Joo del-Rei e 4,84 para o oeste mineiro.
99
IPM do coronel Pamplona, fls. 02-03. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 100.
100
Tal prtica persistiu por muitos anos, mesmo depois da promulgao da Lei de Terras de 1850. Mrcia Motta
nos diz que preciso entender por que as medies e demarcaes das terras feriam os interesses dos grandes
fazendeiros, fazendo com que eles insistissem em descumprir as Ordens Rgias. MOTTA. Nas fronteiras do
poder, p. 37. Essa ideia tambm compartilhada por FARIA. A colnia em movimento, p. 251. Segundo essa
autora, os limites imprecisos de sesmarias serviam como justificativa para apropriaes, que s o poder
individual instauraria. Tambm Hebe MATTOS (apud FARIA, A colnia em movimento, p. 251) considera que
as propriedades poderiam alargar-se ou reduzir-se, no decorrer do tempo, na dependncia dos recursos de poder
de seus proprietrios legais.
101
Sesmarias - AHET/IPHAN-MG/SJDR.
59
Riscos sempre correriam os que agora entravam, pois quilombos menores ainda se
formavam a partir dos que foram atacados e o serto sempre reservava surpresas, da constar
o trem do dito Senhor de 58 escravos seus, com armas de espingarda, clavinas, faces,
patrona, plvora, chumbo e bala.104 Mas, nos cinco meses de entrada, os relatos de encontro
com negros fugidos so fortuitos e de pouca monta.
102
Revista do Arquivo Pblico Mineiro, ano VIII, fascculos I e II, 1903, p. 619-621.
103
BARBOSA. Dicionrio histrico-geogrfico de Minas Gerais, p. 39.
104
NOTCIA diria, p. 53.
60
Como bem sugere Laura de Mello e Souza, expedies dessa natureza tambm faziam
parte dos projetos de ocupao da Amrica portuguesa iniciados no final do governo de D.
Joo V e continuados pelo marqus de Pombal aps os tratados de definio de fronteiras com
a coroa espanhola em 1750.105
Uma das formas de pagamento pelos servios prestados ao rei por Pamplona, em suas
entradas no serto, foi sua nomeao como sesmeiro. Pamplona foi sesmeiro nos dois sentidos
da palavra: recebeu e concedeu sesmarias. Distribuir terras em sesmaria era um privilgio do
rei que, no Brasil, foi facultado aos governadores. O governador das Minas, conde de
Valadares, estendeu essa regalia a Pamplona. Waldemar Barbosa informa que em 1769 ele
105
SOUZA. Norma e conflito, p. 114.
106
Idem, ibidem, p. 116.
107
BARBOSA. Dicionrio histrico-geogrfico de Minas Gerais, p. 40.
61
havia doado cento e tantas sesmarias.108 O relato de sua campanha de 1769, que parece ser
desconhecido por esse autor, relaciona 234 sesmeiros.109 Para administrar um Imprio to
grande e com to parcos recursos, a Coroa portuguesa necessitava, inmeras vezes, da
colaborao de seus sditos. Esses, por sua vez, no se cansaram de solicitar mercs para
compensarem o quanto arriscaram de suas vidas e fazendas em prol da Coroa.
108
Idem, ibidem, p. 40.
109
NOTCIA diria, p. 96.
110
Norbert Elias, analisando as estruturas de poder do perodo medieval e considerando a sua sobrevivncia em
algumas sociedades modernas, nos traz elementos importantes para compreender os motivos que levaram o
Estado portugus a delegar poderes bastante amplos a um sdito do perfil de Incio Correia Pamplona: Os reis
eram forados a delegar a outros indivduos poderes sobre parte de seu territrio. As condies dos meios
militares, econmicos e de transporte na poca no lhes deixavam alternativa. A sociedade no lhes
proporcionava fontes de receita tributria que lhes permitissem manter um exrcito profissional ou delegados
oficiais remunerados em regies remotas. A nica forma de pag-los ou remuner-los consistia na doao de
terras em volume grande o suficiente para garantir que eles seriam realmente mais fortes que todos os demais
guerreiros ou donos de terra da regio. ELIAS. O processo civilizador: formao do Estado e Civilizao, p. 26.
111
NOTCIA diria, p. 64.
112
NOTCIA diria, p. 80.
113
NOTCIA diria, p. 58, 80 e 88.
62
Algumas vezes, uma das partes envolvidas nos conflitos pela terra era o prprio
regente que no se esperaria outra coisa , deliberava em seu favor. Isso fica notrio na
refrega que teve com Alexandre Pereira Brando. Alegava Brando:
Que ele suplicante era Senhor de uma fazenda intitulada as Perdizes, e que
agora a achava medida e demarcada em nome dele, Senhor mestre-de-
campo, j com benfeitorias feitas, gados de estabelecimento e gentes de
moradia, e que tinha dispendido quatrocentos e tantos mil ris em duas
entradas que fizera, uma ou primeira havia seis anos e a segunda havia trs, e
que vista disto vinha ver se o Senhor mestre-de-campo lhe dava a sua
fazenda, e quando assim no [o] fizesse logo lhe pedia licena para se
queixar disto ao Ilustrssimo e Excelentssimo Senhor Conde General.114
O relato, em extensas duas ou trs pginas, o mximo que se escreveu sobre qualquer
assunto no texto todo, mostra Pamplona tentando negociar com o suplicante, que no
concordou com os termos da negociao. Pamplona props entregar-lhe a metade das terras o
que, segundo o relato, Brando no aceitou. Isso depois de desqualificar Brando como
proprietrio, alegando que ele no possua a concesso da sesmaria e no tinha beneficiado a
terra: so as terras suas, sem haver ali um porco, nem boi, nem vaca, nem gua, nem cavalo,
nem uma pessoa, nem um gro de milho plantado, nem ranchinho de beira no cho, nem
caminho, nem carreira, nem totalmente nada [?].115 Continua com Pamplona enaltecendo os
seus feitos pessoais, a sua urbanidade e seu conhecimento das regras de repartio das
sesmarias. Depois de ter dito ao suplicante: para que vossa merc saiba quem eu sou,116
termina, por fim, com a seguinte fala em tom de sentena:
Est vossa merc desenganado em que [eu] lhe dava a metade daquilo que
era meu, tanto por real concesso, como pelas mesmas chamadas de
posses117 s por conservar o bom nome que sempre tive; e como vossa merc
114
NOTCIA diria, p. 73.
115
NOTCIA diria, p. 74.
116
NOTCIA diria, p. 74.
117
COSTA PORTO. O sistema sesmarial no Brasil, p. 156. As chamadas de posses devem ser as formalidades
e prticas antigas adotadas na hora da demarcao e posse da sesmaria. O exemplo dado por Costa Porto muito
curioso: [...] fui aonde chamam a guarita de Joo de Albuquerque e nela gritei, em alta e intelligivel voz,
dizendo: h pessoa ou pessoas que tenham embargos a esta posse que dou desta terra a Manoel da Silva Pinto? E
logo o dito Manoel da Silva Pinto cavou na terra e a lanou para o ar, dizendo, eu tabelio, uma e repetidas
vezes: h pessoa ou pessoas que tenham embargos a esta posse que dou a Manoel da Silva Pinto? E por no me
sair pessoa alguma, o houve por empossado e lhe dei a dita posse [...]. O texto mais longo e a pergunta era
feita repetidas vezes em diversos pontos da sesmaria. Tal ritual talvez ficasse s no papel, talvez de fato fosse
realizado. Quem teria ouvido Pamplona e algum tabelio gritarem se que gritaram naqueles sertes
inspitos? Sobre como se procedia na Amrica portuguesa nos rituais ou cerimnias de posse, sugerimos a
leitura de Patrcia Seed. A autora reala o quanto havia de impreciso e imaginrio nas demarcaes
portuguesas do Novo Mundo, inclusive das terras de sesmaria. SEED. Cerimnias de posse na conquista
europia do Novo Mundo (1492-1640), p. 143-207.
63
abusou e desprezou este favor que [eu] lhe fazia, agora lhe digo que lhe no
quero mais fazer, visto que se no soube aproveitar da cortesia e ateno
com que o tratei. Nesse dia se mataram algumas perdizes.118
Quem era o legtimo dono da terra no sabemos. Sabemos que ficou na posse de
Pamplona at 1808, quando foi vendida.
Ocupao das terras e combate aos quilombos eram as duas principais razes da
entrada de 1769. Nos quatro meses de durao da campanha, somente nos relatos de nove de
outubro percebemos evidncias de combates com quilombolas e sem muito xito. Duas
bandeiras formadas por parte da entrada e comandadas pelos capites Jos Cardoso e Jos
Vieira de Faria voltavam com a notcia dos negros que tinham morto, dos que lhe tinham
fugido e de um que trouxeram amarrado. Pamplona reclamou do pouco tempo que
118
NOTCIA diria, p. 74-75. O escrivo da marcha termina o trecho com ironia, porque a sesmaria em disputa
era exatamente a denominada Perdizes.
119
NOTCIA diria, p. 81.
120
QUEIROZ. O mandonismo local na vida poltica brasileira e outros ensaios, p. 19. Foi graas ao compadrio
com o coronel Carlos Jos da Silva que Pamplona no foi incriminado na Inconfidncia. Uma pesquisa em
arquivos eclesisticos reforaria essa nossa tese, uma vez que poderiam indicar relaes de parentesco ou
compadrio entre Pamplona e os sesmeiros por ele beneficiados.
64
permaneceram no mato e, depois de um largo espao em que contemplou o pouco fruto que
da expedio das duas bandeiras se tinha adquirido, respondeu no estava satisfeito com a
utilidade que tinha percebido de to custosa expedio o ser quase nenhuma. Outros pontos
do relato limitam-se a falar de que acharam rastos de negros que nos andavam espreitando,
os negros talvez tendo nos avistado por meio de suas espias desertaram, h poucos [anos]
se tornou a retificar um quilombo chamado o Catigu, de mais de cento e cinquenta jiraus [...]
e agora de prximo se retiraram timoratos das nossas bandeiras e os negros calhambolas os
tinham andado espiando de noite.121 Havia tambm rumores de grandes aglomerados de
negros, como o do Catigu, e que os quilombos eram muitos para aquela parte, segundo os
sinais dos mesmos fogos e que era publicamente notrio que havia para ali quilombo que se
compunha de mais de duzentos negros.122 Parece-nos que nessa expedio no houve
grandes pelejas com os negros fugidos que estariam adotando a estratgia de espreitar o
invasor e fugir, no lhe dando combate.
121
NOTCIA diria, p. 64, 74, 75 e 79.
122
NOTCIA diria, p. 71.
123
NOTCIA diria, p. 57.
124
NOTCIA diria, p. 58.
65
perplexo, porque a todos queria satisfazer, a todos queria aquietar e pr em paz.125 A maior
parte dos conflitos relatados estavam ligados questo distribuio da terra.
125
NOTCIA diria, p. 86, 57, 83, 85, 88 e outras. BARBOSA. Dicionrio histrico-geogrfico de Minas
Gerais, p. 163-164, a respeito do desassossegado povo de Tamandu.
126
O padre Gabriel no entrou de graa no serto. Foi recompensado pela doao de uma sesmaria e irmos e
parentes seus tambm receberam outras (NOTCIA diria, p. 93).
127
SOUZA. Norma e conflito, 120.
128
NOTCIA diria, p. 58.
129
NOTCIA diria, p. 59-60.
66
tratava-se de uma obra de tamanho admirvel, com extenso de trezentos e tantos palmos de
comprido, e sessenta e tantos de altura, desde o lume dgua at estiva.130
Erigir novos arraiais era tambm uma condio necessria fixao dos novos
moradores no serto. A fundao desses pequenos ncleos urbanos era sempre iniciada com a
construo de uma capela. Atravessado o rio So Francisco, j servido da ponte de madeira,
construiu-se uma matriz feita de novo no novo arraial de Santa Ana de Bambu, em distncia
grande. Depois de subir a serra da Marcela, outro arraial da Senhora da Conceio, passando
outra distncia que diz o Dirio nas lguas, outro arraial demarcado de Santa Maria de
Cortona do Salitre.131 A maioria desses arraiais ficou por muitos anos restrita a um pequeno
nmero de casas habitadas por uma gente pobre e desprezada pelos fazendeiros, que s os
frequentavam aos domingos para os ofcios religiosos. Saint-Hilaire, que visitou a regio j no
primeiro quartel do sculo XIX, percebeu que a populao permanente dessas vilas , com
efeito, composta, tanto aqui como no resto da provncia das Minas, em grande parte, de
homens ociosos e de mulheres de m vida, e debaixo dos ranchos dos mais humildes vilarejos
uma vergonhosa libertinagem se mostra, s vezes, com um impudor de que no h exemplo
nas nossas cidades mais corrompidas.132
O interesse pela descoberta de novas jazidas de ouro e pedras preciosas esteve sempre
presente, alimentado pelo esgotamento das antigas regies mineradoras. No dia 17 de
setembro, entrou o Senhor mestre-de-campo a distribuir a gente da sua comitiva, a metade
para fazerem em todos os crregos e ribeires circunvizinhos midos exames dos socaves e
buracos at o centro dos seus cascalhos e piarra, para se perceber se havia algumas mostras
de ouro.133 A essa altura, no muito crdulos dessa possibilidade, j cuidavam aqueles
fazendeiros de iniciar o cultivo daquelas terras que logo seriam divididas. Para assegurar,
inclusive, sua sobrevivncia no serto, maneira dos antigos bandeirantes paulistas, com a
outra metade da gente foi o Senhor mestre-de-campo roar, queimar e coivarar terra para
plantar milho, andando todo o dia ao sol, trabalhando e lidando e fazendo assim da mesma
sorte, fazendo trabalhar os mais, em cujo violento exerccio suou neste dia 3 camisas.134 No
130
NOTCIA diria, p. 96. Trata-se de uma ponte com mais de sessenta metros de comprimento (na pgina 100,
o escrivo fala em 95 passos) e doze metros de altura da flor da gua.
131
NOTCIA diria, p. 96 e 77.
132
SAINT-HILAIRE. Viagem s nascentes do rio So Francisco e pela provncia de Gois, p. 122.
133
NOTCIA diria, p. 68, 61 e outras.
134
NOTCIA diria, p. 68.
67
se encontrou o ambicionado metal amarelo. Mas o ouro verde, de grande valor, comeava a
brotar naqueles sertes. J iniciando o caminho de volta para casa, em 11 de novembro,
relatam: chegamos ao Quilombo do Ambrsio ainda cedo e tivemos tempo de ir ver o milho
que estava plantado, e o achamos todo nascido e bem bonito.135 Muitas vezes eles
aproveitavam a terra que j havia sido amanhada pelos quilombolas ou, em algumas ocasies,
colhiam as roas plantadas por esses negros que as tinham abandonado. No somente as
plantaes, mas tambm os gados que para o interior foram conduzidos davam sinal da
fertilidade das novas terras.
Dessa empresa tambm resultou um importante trabalho cartogrfico que foi o Mapa
da Conquista do mestre-de-campo, regente, chefe da Legio Incio Correia Pamplona,138
anterior a 1784, de autoria de Manoel Ribeiro Guimares, que, ao que tudo indica, foi o
escrivo da Notcia diria. Encerrando a Notcia, o autor, faz uma descrio dos pontos
geogrficos que demarcavam a antiga Picada de Gois. E, por fim, resume todo o caminho
percorrido, preocupando-se em destacar pontos geogrficos e distncias em lguas. Retoma a
135
NOTCIA diria, p. 79.
136
NOTCIA diria, p. 81.
137
NOTCIA diria, p. 79, 69 e 76.
138
MINAS GERAIS EM MAPAS: Documentos dos perodos Colonial, Reino Unido e Imperial. Catlogo do
Acervo do Centro de Referncia em Cartografia Histrica CRCH. Belo Horizonte: IGC/UFMG; Diamantina:
Instituto Casa da Glria, 2003. (arquivos em CD). A procedncia/registro desse mapa AHU, 258/1165. No
mapa, h o seguinte cabealho: Fiel cpia do mapa que entreguei ao Ilmo. Luiz da Cunha Meneses que por ele
foi criada a legio com dois regimentos de Cavalaria e Infantaria e 14 Esquadras de Mato, feito na Conquista do
Campo Grande e seus anexos da Comarca do Rio das Mortes no ano de 1784.
68
FIGURA 5 Mapa da Conquista do mestre-de-campo, regente Incio Correia Pamplona (cerca de 1784).
Fonte: COSTA et al. Cartografia das Minas Gerais, 2002.
139
NOTCIA diria, p. 97-103.
140
IPM de Jos Venncio de Carvalho, 1871, AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 50.
69
Nesse processo civilizatrio, Incio Correia Pamplona, que havia jurado lealdade Coroa
portuguesa, teve destacado papel. Alguns anos depois, em 1789, essa lealdade era posta sob
suspeio.
Ceclia Meireles
Romanceiro da Inconfidncia
141
MAXWELL. A devassa da devassa, p. 156.
142
NOVAIS. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808), p. 288-293 e MAXWELL. A
devassa da devassa, p. 24.
70
importncia de se tratar os negcios do Brasil com bastante prudncia, porque bem se deixa
ver que, posto em uma balana o Brasil, e na outra o reino, h de pesar com grande excesso
mais aquella que esta; e assim, a maior parte e a mais rica no soffrer ser dominada pela
menor, mais pobre; nem a este inconveniente se lhe poder achar fcil remdio.144
Justamente por ser uma revolta da elite que a Inconfidncia Mineira preocupava
tanto as autoridades metropolitanas. Desde o final do sculo XVI e incio do XVII tericos
europeus, como Daniel Drouin, j advertiam para os maiores riscos que envolviam uma
rebelio da elite.145 Enquanto as revoltas se circunscreviam arraia mida e ral,
acreditava-se que seriam turbulncias passageiras e sem carter poltico, como fora em
Npoles e Siclia (1647-48). Ao contrrio, a participao direta da elite, como na Catalunha
(1640), ou a sua omisso talvez interessada na represso da revolta popular, como nas
Alteraes de vora (1637), punha em xeque a soberania e a unidade do Imprio.146 Em como
conduzir essas questes, Portugal j acumulara larga experincia desde a Unio Ibrica. Como
monarquia independente, desde a Restaurao de 1640, enfrentou um grande nmero de
revoltas, a maioria delas tendo a elite como participante.147 Outro fator importante a se
destacar que grande parte dessas revoltas tinha entre seus motivos ou era o motivo central
questes de ordem fiscal-fazendria. A Inconfidncia Mineira tambm teve essa
caracterstica.
143
MAXWELL. A devassa da devassa, p. 84.
144
Revista do IHGB, 3. ed. t. 7, vol. 7, 1847, p. 475-482. Este curioso documento nos foi apresentado pelo
Professor Luciano Raposo de Almeida Figueiredo no curso Revoltas na Amrica portuguesa moderna:
historiografia, discursos e prticas, Universidade Federal Fluminense, primeiro semestre de 2006.
145
VILLARI. O rebelde, p. 100-102.
146
ELLIOTT. Revueltas en la monarqua espaola e La rebelion de los catalanes: un estudio sobre la
decadencia de Espaa (1598-1640); VILLARI. Revoluciones perifricas y declive de la monarqua espaola;
OLIVEIRA. Poder e oposio poltica em Portugal no perodo filipino (1580-1640), para as Alteraes de
vora.
147
SOUZA. Motins, revoltas e revolues na Amrica portuguesa sculos XVII e XVIII, para uma viso
panormica dos movimentos ocorridos somente na Amrica portuguesa. frica e sia tambm foram palcos de
diversas revoltas contra a metrpole no mesmo perodo.
71
Devassa a avaliao dos bens sequestrados de 24 rus. As quatro maiores fortunas, segundo
Furtado, so de Alvarenga Peixoto (84:115$260), Jos Aires Gomes (65:066$236), Francisco
Antnio de Oliveira Lopes (22:716$464) e Cludio Manuel da Costa (10:115$540).148 A
nica avaliao que temos em mos dos bens de Pamplona o seu inventrio post-mortem,
iniciado em 1810 e que se arrastou em litgios at 1834. Em 1822, o monte bruto de seus bens
somava 31:802$534.149 Mesmo atentando para a distncia de trinta anos entre as duas
avaliaes e deixando de considerar as enormes dvidas que esses senhores costumavam
acumular, principalmente com o Errio Rgio, no h como no concluir que a fortuna de
Pamplona o colocaria entre os mais abastados inconfidentes.
Inserir Pamplona entre os rebeldes de 1789, nas Minas Gerais, tarefa penosa. Penosa
no pelo fato de se ter ou no certeza de seu papel na inconfidncia, mas sim pela exiguidade
de relatos acerca de seu envolvimento. As fontes oficiais, os Autos de Devassa, atravs dos
depoimentos, deixam fortes indcios de sua participao. Pelo poder militar e econmico que
acumulava, ele teria sido pea fundamental no levante, se ele viesse a se concretizar. Todavia,
os prprios estratagemas utilizados pelo mestre-de-campo e pelas autoridades que o
protegeram, no o arrolando como investigado ou facilitando para que ele se esquivasse dos
depoimentos, deixaram-nos poucos registros nesse corpus documental bsico que so os
Autos. No somente Pamplona, mas outros poderosos ficaram fora do processo como o rico
comerciante Joo Rodrigues de Macedo.150 No caso de Pamplona, para escapar das garras das
autoridades portuguesas, bastaram seus laos de amizade e compadrio ou precisou pagar caro
por esse benefcio? Os Autos e os estudiosos que os organizaram sinalizam que ele foi
protegido por amigos e compadres. O inventrio e o testamento de Pamplona nos trazem
informaes sobre os 20 anos atormentados que ele viveu aps esse processo, indicando que
pode ter pago caro pela liberdade.
148
FURTADO. O manto de Penlope, p. 107: Tabela 7: Resumo geral dos bens sequestrados aos inconfidentes
(1788-1792), por avaliao dos bens e volume de riqueza em ris.
149
IPM do coronel Incio Correia Pamplona, fls. 107 verso e 108. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 100.
150
FIGUEIREDO. A poesia dos inconfidentes, p. XLIV.
72
Procurando proteg-lo, Barbacena disse aos ministros repetidas vezes, que o dito mestre-de-
campo tinha ido para a Serra da Canastra, que ficava em grande distncia, a uma importante
diligncia do servio de Sua Majestade, sobre um descoberto de diamantes. Disse, outrossim,
que ele havia jurado na devassa sobre a mesma matria que tirava em Vila Rica o ouvidor e
corregedor da dita Comarca. Os mesmos ministros, de passagem por Lagoa Dourada, em
setembro de 1789, tiveram notcia de que Pamplona estava em sua fazenda do Mendanha e
no tinha ido Serra da Canastra. Mandaram cham-lo para interrogatrio. Pamplona no
obedeceu notificao, dando, segundo os ministros, insuficientes razes atravs de uma
carta.151 Certamente estava orientado a no aparecer para depor na segunda devassa que
escapava ao controle do visconde de Barbacena. Alis, uma das razes para se iniciar o novo
processo foi a desconfiana de Lisboa quanto imparcialidade do governador. Tambm as
informaes sobre a devassa que o desembargador lvares da Rocha prestou ao vice-rei, em 2
de agosto de 1791, indicavam falhas na primeira devassa. O juiz percebeu que tem-se feito
perguntas aos trs ltimos [Jos de Resende Costa e seu filho e Vicente Vieira da Mota], para
desembaraarem o mestre-de-campo [Pamplona] e Baslio de Brito Malheiro.152 O vice-rei,
em carta de 8 de janeiro de 1790, a Martinho de Melo e Castro, j reclamava de seu sobrinho,
o visconde de Barbacena, que criava dificuldades para a devassa, dizendo que nem um
depoimento to necessrio, como o do mestre-de-campo Incio Correia Pamplona se pde
tirar, usando-se de todos os meios, at com incoerncia manifesta, para estorvar essa
diligncia.153
Pamplona, ardiloso e escolado nas prticas polticas de seu tempo, soube muito bem
dissimular sua participao no levante. Primeiro denunciando, depois sendo encarregado da
captura do padre Rolim e de Luiz Vaz de Toledo Piza154 e, por fim, colaborando com as
autoridades ao fornecer mantimentos para as tropas que vinham do Rio para as Minas. De
acordo com Luciano Figueiredo, a leitura dos autos e da documentao permite enxergar a
sede persecutria da administrao e da Coroa portuguesas, reala tambm os expedientes de
dissimulao dos denunciados, envolvidos ou no.155
151
ADIM, vol. 7, p. 36-38.
152
ADIM, vol. 7, p. 95.
153
ADIM, vol. 4, p. 280.
154
ADIM, vol. 8, p. 181. Ordem do visconde de Barbacena ao mestre-de-campo Incio Correia Pamplona para
captura do padre Jos da Silva e Oliveira Rolim e de Luiz Vaz de Toledo Piza. Vila Rica, 10 de junho de 1789.
Esse foi mais um artifcio de dissimulao do envolvimento de Pamplona no levante.
155
FIGUEIREDO. A poesia dos inconfidentes, p. XXVII.
73
Com exceo de Tiradentes, que recebeu a pena capital, muitos outros tiveram o
enforcamento comutado para degredo, e mesmo o degredo reduzido em anos. Pamplona foi
poupado no s porque colaborou, mas tambm porque a prtica da represso s revoltas no
era de se condenar todos os envolvidos, principalmente em se tratando da nobreza da terra.159
156
VILLARI. Elogio della dissimulazione, p. 18.
157
VILLARI. Elogio della dissimulazione, p. 42.
158
TORGAL, Lus Reis. Ideologia poltica e teoria do Estado na Restaurao, p. 39.
159
Mesmo nas alteraes de vora (1637), que envolveram algumas milhares de pessoas, em sua maioria do
povo, a represso espanhola executou um reduzido nmero de indivduos. OLIVEIRA. Poder e oposio poltica
em Portugal no perodo filipino (1580-1640), p. 221-225. Para o caso da Amrica portuguesa, Evaldo Cabral de
Mello ilustra bem essa prtica, quando da represso aos mazombos da Guerra dos Mascates, no incio do
Setecentos, aconselhada pelo sempre sbio Conselheiro Antnio Rodrigues da Costa: Reconhecia Rodrigues da
Costa no ser factvel nem aconselhvel punir todos os envolvidos nas alteraes, sendo, como eram, numerosos
e homens de prol. Mas no se devia perder a oportunidade de dar uma lio inesquecvel nobreza. Bastava para
tanto a condenao morte de um total de at oito ou dez indivduos, e a penas extraordinrias, de uns vinte ou
trinta, anistiando-se os demais. MELLO. A fronda dos mazombos, p. 409. Sobre quem participava da nobreza
da terra na Amrica portuguesa vide SILVA. Ser nobre na colnia.
74
Foi nessa atmosfera barroca, carregada de medos, que morreu Pamplona em 1810, em
So Joo del-Rei. Uma liturgia prdiga em admoestaes pesadas visava a frear os vcios dos
crentes. Se sua riqueza, fama e prestgio no foram suficientes para que se entoasse uma missa
160
O Libera me a pea final de uma missa de rquiem. As missas de rquiem eram muito comuns na Europa e
mesmo compositores do barroco brasileiro, como o carioca padre Jos Maurcio Nunes Garcia e o mineiro
Joaquim Emerico Lobo de Mesquita, compuseram msica para a letra que se seguia liturgia fnebre catlica. A
traduo do texto latino a seguinte: Livra-me, Senhor, da morte eterna, no dia tremendo, quando o cu e a terra
se moverem e vieres julgar os sculos pelo fogo. Tremo e temo, pois o julgamento chegar e tambm a ira,
quando o cu e a terra se moverem. Nesse dia, o dia da ira, da calamidade e da misria, grande e amargo dia,
quando vieres julgar os sculos pelo fogo. D-lhes, Senhor, o repouso eterno, e que a luz perptua os ilumine.
Texto extrado do folheto do Requiem de Francesco Durante (1684-1755) interpretado pelo coral Ars Nova
(UFMG) e pela Orquestra de Cmara do SESIMINAS sob a regncia do maestro Carlos Alberto Pinto Fonseca
em homenagem pstuma ao maestro Srgio Magnani.
75
de rquiem completa, como a rica sociedade daquela vila faria questo de a ela assistir, no
mnimo, teriam retumbado nas grossas paredes da capela do Carmo as severas palavras do
Libera me que Pamplona tantas vezes teria ouvido no sepultamento de seus contemporneos.
Nos seus ltimos meses, vivia atormentado por vises, talvez alimentadas pelo pavor da
danao eterna que a doutrina catlica infundia no esprito de seus fiis.
Testar para bem morrer: Pamplona no fugiu regra da maioria dos ricos moribundos.
Seu longo testamento possivelmente teve a interferncia do seu filho padre, nomeado seu
testamenteiro. A preocupao com a salvao da alma era bastante comum nos testamentos da
poca. Os temores dos castigos pelos males cometidos em vida faziam com que os
agonizantes se preocupassem com a ira divina. Pamplona mandou que fossem celebradas 374
missas por sua alma e de sua esposa, em diversas igrejas e capelas da comarca, do Rio de
Janeiro, de Lisboa, da Ilha Terceira e determinou o ritual de suas exquias:
161
IPM do coronel Incio Correia Pamplona, fls. 88-89. Trecho da carta do coronel Incio Correia Pamplona
enviada ao seu filho, padre Incio Correia Pamplona Corte Real, em 21 de abril de 1810, quatro meses antes de
sua morte. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 100.
76
Declaro que meu corpo ser sepultado na capela de Nossa Senhora do Monte
do Carmo da vila de So Joo del-Rei e envolto no hbito da mesma Ordem
Terceira de donde sou irmo professo e remido e acompanhado pelos irmos
da mesma na forma de seus estatutos e pelo das Irmandades do Santssimo
Sacramento, das Almas e do Senhor dos Passos da mesma vila de onde sou
irmo remido, e por todos os sacerdotes que se acharem ao tempo do meu
falecimento, e o que se dar a cada um ser de meia Libra e todos celebraro
pela minha alma missa de corpo presente no dia do meu falecimento ou
enterramento, e se lhes dar a esmola do costume.162
Segundo Joo Jos Reis, a morte tambm era um momento de reparao moral e
fazer justia aos que ficavam significava limpar-se para enfrentar a justia divina.163 Talvez
teria sido com esse propsito que Pamplona deixou alforriados, em seu testamento, 14
escravos que o serviram nos ltimos anos de vida. Afinal, em sua memria, poderiam ainda
estar ntidas as atrocidades cometidas nos quilombos do serto do So Francisco. Dos 14
escravos, oito receberam a alforria imediata e seis foram deixados coartados. Segundo
Eduardo Frana Paiva, consisitia essa coartao num acordo que permitia ao escravo ou
escrava parcelar o valor total de sua alforria e saldar as prestaes semestrais ou anuais em
trs, quatro ou cinco anos.164 Depois de nomear cada um dos escravos beneficiados pela
alforria disse que o meu testamenteiro entregar a cada um deles, por meu falecimento, a sua
respectiva carta e ser obrigado a defend-los minha custa quando haja algum mal
intencionado que se atreva a [ilegvel] suas liberdades.165 No temos certeza se essa vontade
testamentria foi plenamente respeitada. Em 17 de junho de 1829, anexou-se ao inventrio
uma certido do padre Joo Rodrigues de Mello, coadjutor de Prados, sobre a liberdade dos
14 escravos de Pamplona, sendo quatro j falecidos naquela data e tendo morrido libertos.166
Seria uma mera praxe de avaliao ou algum estaria questionando a liberdade desses
escravos no processo de inventrio?
162
IPM do coronel Pamplona, fl. 01. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 100.
163
REIS. Histria da vida privada no Brasil, v. 2. p. 103. PRIORE. Histria da vida privada no Brasil, v. 1, p.
318-328, para uma viso rpida e esclarecedora de como a sociedade colonial preparava-se para morrer,
arrumando bem a sua vida, acertando contas com os santos de sua devoo.
164
PAIVA. Histria de Minas Gerais, v. 1, p. 506 e 509.
165
IPM do coronel Pamplona, fls. 04-05. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 100.
166
IPM do coronel Pamplona, fl. 118. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 100.
77
em 1789, sobre seus ltimos vinte anos de vida pesaram o descaso das autoridades
metropolitanas e as enormes dvidas que consumiriam boa parte de sua fortuna.
167
ADIM, vol. 8, p. 250.
168
ADIM, vol. 8, p. 328.
169
ADIM, vol. 1, p. 192, nota 1.
170
ADIM, vol. 9, p. 31.
171
MAXWELL. A devassa da devassa, p. 255.
78
seu testamento, que das ditas sesmarias se acham algumas vendidas s pessoas abaixo
declaradas a saber, a 10 de setembro de 1801 vendi a sesmaria de So Simo ao alferes
Antnio Lus de Noronha por escritura pela quantia de 800$000; a 31 de outubro de 1803
vendi a sesmaria do Desempenhado ao alferes Joo Crisstomo de Magalhes, e a seus scios
por escritura e pela quantia de 1:600$000, a qual foi tirada em meu nome; em 16 de julho de
1808 vendi a sesmaria das Perdizes a Maria Alves de Souza, viva de Alexandre Ferreira por
escritura e pela quantia de 1:200$000.173 A carta escrita ao filho padre Incio, em 5 de
setembro de 1809, ilustra bem que o velho Pamplona no tinha mais o poder e o respeito que
gozava dos moradores do serto, logo que ali entrou no ltimo lustro da dcada de 1770.
Nessa carta, escrita na chcara Palestina, no arraial de Matozinhos, subrbios de So Joo del-
Rei, comprada a prazo pelo padre Incio do capito Joo Baptista Machado174 que parecia
estar cobrando de Pamplona as parcelas em atraso e ameaando executar a dvida dava
notcia da invaso de suas sesmarias e sugeria a sua venda para quitar os dbitos:
E quanto a sua ida ao serto, pense na venda, como lhe for possvel, da
sesmaria de Santo Estvo, porque os intrusos ladres, se que l os tem,
ho de vir missa na Matriz e logo se h de saber os nomes para os expulsar.
Assim como da venda do Arco e do Servo, para me poder manter estes
tristes dias.175
172
IPM do coronel Pamplona, fls. 107 verso e 108. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 100.
173
IPM do coronel Pamplona, fls. 02-04. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 100.
174
LUCCOCK. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil, p. 314. bastante provvel que
esse credor de Pamplona seja um dos mais ricos comerciantes de So Joo del-Rei, conhecido pela alcunha de
Meio-Milho. Sobre sua riqueza ver tambm GRAA FILHO. A Princesa do Oeste, p. 81.
175
IPM do coronel Pamplona, fls. 56-58. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 100.
176
SOUZA. Norma e conflito, p. 132.
79
datada de 5 de setembro de 1809, demonstra que Pamplona, com seus 78 anos idade
avanadssima para a poca , ainda d boa notcia de seus bens. A outra, da qual extramos o
trecho citado anteriormente, de 21 de abril do ano seguinte, j o encontra um pouco
perturbado.177 A essa altura as artimanhas j estavam feitas.
177
IPM do coronel Pamplona, fls. 56-58 e 88-89. A primeira carta parece-nos ser do seu prprio punho. Na
segunda, menos extensa, a assinatura, j muito trmula, diverge da letra da carta que deve ter sido ditada.
AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 100. BARBOSA. Dicionrio histrico-geogrfico de Minas Gerais, p. 39,
aponta-nos a prtica de missivista de Pamplona: talvez nenhum outro portugus tenha escrito to copioso
nmero de cartas ao governador e, em todas, nota-se a preocupao do auto-elogio.
178
IPM do coronel Pamplona, fls. 02-03. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 100.
179
IPM do coronel Pamplona, fl. 17. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 100.
180
IPM do coronel Pamplona, fl. 20 verso. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 100.
80
de 1805, dia em que o reverendo autor comprou a seu pai as fazendas, [trabalhou] mediante
dez anos e nove meses em que nada recebera.181
Em 1854, quando foram inventariados os bens do filho do padre Incio, o padre Jos
Maria Correia Pamplona, ainda constava entre os bens da famlia a fazenda do Capote. Era
uma grande propriedade. O inventrio apresenta um monte bruto de 70:584$230 e lquido de
58:943$740, sendo descritos minuciosamente 61 escravos entre os bens.183 Os herdeiros eram
os oito filhos, cuja legitimidade fora reconhecida pelo padre, sendo um deles, tambm clrigo:
o padre Incio Correia Pamplona.
Ficamos por entender por que alguns dos inconfidentes condenados, tais como o padre
Carlos Correia de Toledo, os dois Resende Costa e o coronel Francisco Antnio de Oliveira
Lopes inocentaram Pamplona em alguns de seus depoimentos e acareaes. No pairam
dvidas acerca do envolvimento do mestre-de-campo no levante. Isso as prprias autoridades
portuguesas da poca perceberam. Teriam esses inconfidentes produzido seus depoimentos
sob presso para no incriminarem Pamplona? Ou teriam os juzes e escrivos lavrado os
181
IPM do coronel Pamplona, fls. 119-148. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 100.
182
VARNHAGEN. Histria geral do Brasil, v. 3, t. V, p. 92 sobre Paulo Vianna. Desembargador da Relao do
Rio de Janeiro desde 1798, Vianna foi nomeado intendente geral de polcia por D. Joo em 1808, permanecendo
no cargo por doze anos. O cargo era de grande importncia, porque a Intendncia mais do que polcia comum era
polcia poltica. Como o intendente morreu em 1821, e no sabemos exatamente a data de tramitao do processo
no Desembargo do Pao, s podemos conjeturar a respeito da sua interferncia na sentena.
183
IPM do padre Jos Maria Correia Pamplona, 1854. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 564. GRAA FILHO. A
Princesa do Oeste, p. 165, para se ter uma ideia da riqueza desse inventrio, cujo monte-mor de 70 contos de
ris. Graa Filho, em sua extensa pesquisa sobre a riqueza de fazendeiros e comerciantes em So Joo del-Rei,
encontrou somente 1,6% de inventrios dentro de uma faixa de 50 a 200 contos de ris entre 1831-1855.
81
autos isentando-o de culpa? Pamplona tambm teria subornado os juzes da Alada do Rio de
Janeiro para no ser inquirido e acareado, como possivelmente o fez em Minas Gerais? So
questes que permanecem ainda abertas. O que nos parece evidente que Pamplona soube
jogar com bastante maestria no tabuleiro da poltica colonial, dissimulando e corrompendo
autoridades venais para escapar da condenao. O preo pago no deve ter sido baixo, porque
os reflexos sobre o seu patrimnio foram sensveis. Nesse tabuleiro, Pamplona jogou nos dois
campos sem ser retirado do jogo: combateu a rebeldia de uma populao indcil a servio da
monarquia e, visando a seus prprios interesses, transitou no meio dos rebeldes de 1789.
quilombolas.184 Para ns, sem deixar de v-lo com um pouco de antipatia pelos mesmos
motivos, o mestre-de-campo era um homem de seu tempo como muitos outros potentados,
para os quais ndios e negros fugidos deveriam ser caados com chumbo, plvora e balas.
Muita coisa ainda est por se escrever sobre Pamplona, mas o que nos interessa agora
entender a ocupao de largo territrio nos limites ocidentais da Comarca do Rio das Mortes,
nas extremidades do termo da vila de So Jos. Conhecer um pouco de Pamplona
importante para conhecer um pouco daqueles que ocuparam, e de que maneira ocuparam, essa
extensa e ambicionada regio.
Para tanto, partimos de um rol do escrivo da entrada que Pamplona fez no serto do
Campo Grande em 1769, Manoel Ribeiro Guimares.185 No final do documento foram
listados 234 nomes que o escrivo nomeia de entrantes e diz estarem situados,
estabelecidos ou aplicados nos quatro novos ncleos de povoamento criados: freguesia da
Senhora Santa Ana de Bambu; ribeiro das Araras e Andai; arraial de Nossa Senhora da
Conceio da Conquista do Campo Grande e Nossa Senhora do Livramento do arraial do
Pium-hi.
184
SOUZA. Norma e conflito, captulo Violncias e prticas culturais no cotidiano de uma expedio contra os
quilombolas. Minas Gerais, 1769, p. 111-137.
185
NOTCIA diria. Manoel Ribeiro Guimares foi tambm o cartgrafo da expedio, sendo de sua autoria o
Mapa da Conquista do mestre-de-campo, regente, chefe da Legio Incio Correia Pamplona, de data
imprecisa, porm, anterior a 1784, o qual reproduzimos mais acima.
186
A maior dificuldade que encontramos e o maior risco de erro esto relacionados s imprecises onomsticas,
tanto das toponmias quanto dos antropnimos, destes mais do que daquelas. A prpria lista do escrivo denota
essa impreciso ao se referir a nomes incompletos como Ana de Jesus, Maria Joaquina, Jos Joaquim, Antnio
Batista, Pedro Francisco, Jos Lus, Caetano Jos, Manoel Afonso, para no se falar de Pedro de Tal. O
problema continua com nomes como Manoel da Silva ou Manoel Gonalves, nomes e sobrenomes os mais
comuns. Manoel, como era de se esperar numa colnia portuguesa, o nome mais presente nos ndices de alguns
cdices. H ainda casos de repeties como Felipe Nri, Antnio Afonso e Manoel Gonalves. Esse ltimo
aparece trs vezes e no sabemos se se refere mesma pessoa ou a indivduos distintos. Os topnimos, que
encabeam cada uma das quatro sees que compem a lista, ajudam pouco, como no caso de Antnio Batista
[morador] no ribeiro das Araras, Andai at a barra do rio do Pico, porque designam regies muito amplas.
83
Jernimo da Costa, situado no ribeiro das Araras, seja, na verdade, Jernimo Cardoso. No
cotejo com as fontes que pesquisamos Jernimo Cardoso era confrontante com Gaspar Vaz
dos Santos no crrego das Araras e tambm com Incio Correia Pamplona;187 Jos Nunes da
Cruz poderia ser o cabo Jos Nunes de Carvalho que pediu e recebeu trs lguas de terra
alm do rio de So Francisco, na Perdio e rio Bambu.188 Enfim, a fonte de que partimos
constitui uma constante armadilha.189
O que nos pde assegurar melhor a definio de cada sesmeiro foram duas variveis
das cartas de sesmarias: a localizao da terra e os nomes dos confrontantes. A certeza
aumentava na medida em que o documento situava o peticionrio na Comarca do Rio das
Mortes, termo da vila de So Jos, freguesias de So Bento do Tamandu, Bambu ou Pium-
hi. Os acidentes geogrficos como serra da Marcela, cabeceiras do rio So Francisco e outros
tambm contribuam para esclarecer dvidas. A dvida diminua com a coincidncia dos
confrontantes, tambm recebedores de terras na regio, cujos nomes aparecem na relao do
escrivo da Conquista. Por outro lado, a incerteza aumentava se a carta era datada de trinta ou
quarenta anos aps 1769.190 Entre os cdices da Seo Colonial do Arquivo Pblico Mineiro
que registram sesmarias, deparamo-nos com mais documentos que contriburam para localizar
outros sesmeiros do Campo Grande e alguns conflitos pela posse de terras na regio.
187
APM-SC 289, rolo 61, fl. 156.
188
APM-SC 286, rolo 60, fl. 267.
189
No pudemos deixar de nos lembrar da obra de Jos Saramago, Todos os nomes, e do receio de se perder
entre os infinitos documentos e nomes de vivos e de mortos da Conservatria Geral do Registro Civil.
190
nos impasses dessa natureza que as teorias da micro-histria podem ser extremamente teis ao historiador.
De acordo com Carlo Ginzburg, as linhas que convergem para o nome e que dele partem, compondo uma
espcie de teia de malha fina, do ao observador a imagem grfica do tecido social em que o indivduo est
inserido. GINZBURG. O nome e o como, p. 175. No podemos tambm desprezar a contribuio dos
genealogistas. Para no fazermos um uso arriscado das genealogias, ouvimos os sbios conselhos de Laura de
Mello e Souza que, sem desprez-las, procura us-las com cautela. A autora, na construo da trajetria de
algumas personagens da administrao portuguesa, faz uso de diversos trabalhos dessa natureza. Todavia, o faz
de maneira bastante crtica. SOUZA. O sol e a sombra, p. 19, 20, 146, 356. Maria Beatriz Nizza da Silva
tambm recorre criteriosamente aos genealogistas na escrita de seu texto. SILVA. Ser nobre na colnia, p. 28-
40.
84
A tentativa de ocupao dessa regio, que remonta dcada de 1740, no teve muito
xito. Algumas sesmarias foram doadas, mas h notcias de que logo foram abandonadas.
Quinze anos aps a ocupao mais sistemtica iniciada em 1765, escrevendo do quartel das
cabeceiras do rio Dourados, em 28 de abril 1781, Pamplona informava que aqui se
encontram nestas vertentes do Parnaba, aonde ns estamos, as fazendas seguintes [cita oito
de trs lguas em quadra] tiradas por sesmarias a mais de trinta anos. Tambm relatava a
explorao [que] pertende V. M. fazer nestas assim como no mbito que V. M. diz vai
explorar de Santa F, aonde pela capitania de Minas e seus moradores se acham pedidas cento
e oitenta e tantas na Secretaria de Minas.193 Toda a sua fala tinha a preocupao de
comprovar a antiguidade e o pioneirismo dos mineiros na posse da regio. Para consolidar
essa ocupao, quatro situaes precisavam ser contornadas: os quilombos, os ndios hostis, a
precariedade dos caminhos e as questes de limites.
191
ELIAS. O processo civilizador, p. 26.
192
SOUZA. O sol e a sombra, p. 7.
193
CARTA de Incio Correia Pamplona a D. Rodrigo Jos Meneses sobre os progressos na conquista de novos
territrios depois de novas rendies (sic). Novo quartel das cabeceiras dos Dourados, 28 de abril de 1781. APM
- Documentos Avulsos da Casa dos Contos (daqui para adiante APM-CC), caixa 87, planilha 20.256. O curioso
que percorrendo com bastante ateno os cdices de sesmarias posteriores a 1760, no nos recordamos de ver
tantas cartas (180) para essa regio (Santa F), que por estar nas proximidades do nosso recorte espacial teria nos
chamado a ateno.
85
A disputa pela terra nos confins da Comarca do Rio das Mortes, antes de acontecer
entre fazendeiros, se deu contra negros fugidos e ndios. Afastados esses primeiros
incmodos, desbravados os sertes e abertos os primeiros caminhos, alm da j antiga Picada
de Gois, as frteis terras foram, ento, objeto da cobia dos moradores de capitanias
vizinhas. Alm de alguns descobertos de ouro, como no Desemboque, a notcia de que as
terras eram salitrosas e, portanto, dispensavam a necessidade de dar sal ao gado, tambm
despertou o interesse de muitos fazendeiros.
194
A citao, desprovida da necessria crtica, est em artigo de SILVEIRA. Guerra de usurpao, guerra de
guerrilhas, p. 142, nota 20. Incomparavelmente mais lcidas so as pginas de VASCONCELOS. Histria
Mdia de Minas Gerais, p. 188-190, que, criticando respeitosamente Pedro Taques, acredita no terem sido
mortos mais do que cinquenta negros.
195
GUIMARES. Os cabeas e as cabeas, p. 113.
86
Pernambuco. A esta ltima pertenciam, por exemplo, a parquia de Paracatu e boa parte da
margem esquerda do rio So Francisco. No mbito da prpria influncia do bispado de
Mariana, procos, para vexame da populao, travavam embates pelo controle das freguesias
e das rendas que delas poderiam auferir.
Ilmo. e Exmo. Sr. Remeto a V. Excia. um mapa e uma instruo dele, dos
confins dessa minha e sua capitania no qual se v o terem entrado, escusado
o pouco tempo, pessoas dessa capitania, o territrio desta, cometendo desta
sorte esbulho, e dano gravssimo ao Real interesse, ao bem dos povos, e
sossego pblico, e Administrao da Justia, e que espero que V. Excia.,
pelo servio de Sua Majestade evite, mandando retirar todas as gentes que
esto no dito territrio, e juntamente declarar na conformidade do mapa e
sua instruo os limites destas capitanias. Deus guarde a V. Excia. Vila Rica,
19 de novembro de 1768. Conde de Valadares // Ilmo. e Exmo. Sr. Joo
Manoel de Mello. (grifo nosso)196
196
APM-SC 143, rolo 32, fls. 185-187 verso. O mapa citado no est junto do documento. provvel que esteja
arquivado em outro fundo. Esse conflito de limites parece no ter sido solucionado imediatamente, pois uma
Planta Geral da Capitania de Minas Gerais, cerca de 1800 (vide Anexo 1), traz a Serra da Marcela como limite
com Gois, ficando, ento, a regio alm e que estava em questo, dentro do territrio goiano. O que sabemos
que o julgado de Arax, localizado nesse territrio, tambm chamado de Serto da Farinha Podre, teria
pertencido a Gois. No princpio do sculo XIX seus habitantes fizeram peties a D. Joo VI para que Arax
fosse incorporado a Minas Gerais, no que foram atendidos em 1816. RAPM, ano IX, p. 875-882.
197
APM-SC 260 (1788-1797), rolo 53, fls. 10 e 11, Requerimento de Francisco da Ressurreio e outros.
87
cultivar por no possuir bens alguns, exceto uma gua em que anda. Procuravam
desqualificar ainda o negro dizendo ser o tal suplicado favorecido do sargento-mor Manoel
Garcia de Carvalho e deixando margem para entendimento de que o dito Joo seria homem-
de-palha do sargento-mor na posse das terras.198
O texto do documento, pela clareza e objetividade da escrita, parece ter sido escrito
por algum que tivesse o mnimo conhecimento do direito, possivelmente um advogado, um
solicitador de causas ou algum clrigo. O manuscrito deixa transparecer, pela argumentao, o
peso do direito costumeiro ou a interpretao da legislao portuguesa para a legitimao da
posse. Alegavam os suplicantes que fizeram as suas posses na forma que por antigo estilo se
tem rompido os muitos e mais diversos sertes e recorreram ao mestre-de-campo regente,
para na forma das Portarias e Ordens deste Governo lhas conceder por sesmarias.
Afirmavam, outrossim, que no tm a menor dvida em fazerem certa a sua primazia pelo
Direito e possesso que lhes assiste e que o sargento-mor ao pretender impedir que eles
cultivassem a terra, agia contra todo o direito e o [que] permite a natural Razo. Os
suplicantes procuravam fundamentar o seu direito pela antiguidade, pela racionalidade da lei,
pela certeza da posse e pela coerncia199 ao imputarem ao suplicado ter sido incoerente ao no
impugnar a posse no tempo legal: se aquele conhecia ser este o lugar da sua sesmaria, dever
mostrar que impugnncia (sic) fez no presente caso aos suplicantes, no tempo de quatro anos,
sendo certo, Exmo. Sr., que no mostrando o suplicado com individuao esta to relevante
circunstncia, bem conhecido est que o tal sesmeiro no tinha posse nem residncia para
fazer justos [os seus] motivos. No conhecemos a verso de Joo Manoel, mas o governador
deu despacho favorvel aos trs peticionrios, acatando suas razes, desprezando o negro ou
desafiando as autoridades goianas.
198
Idem, ibidem.
199
THOMPSON. Costumes em comum, p. 422, nota 93. Thompson enumera alguns fundamentos para tornar os
costumes aceitveis.
88
suplicante alegava que j comprara as terras medidas e demarcadas por D. Teodora e seus
herdeiros e nelas fez diversas benfeitorias. Relatou, a seguir, que:
[...] Lhe veio avanar com conhecido dolo e malcia na divisa um Joaquim
Ribeiro de Moraes, estabelecendo o seu stio ou parte dele ainda em terras do
suplicante e sobre o seu aude e rego dgua, que tudo se acha para dentro
das divisas do suplicante [...], inquietando e perturbando o suplicante tanto,
que no ltimo dia do ms de dezembro do ano prximo passado de 1795 foi
o suplicado armado com pistolas, e uma azagaia, e com negros, e vazou o
dito aude e rego dgua da servido do moinho e monjolo do suplicante
[...]. J por duas vezes foi ao terreiro deste armado com pistolas e espingarda
e atirou em um cachorro que estava ao p da mulher do suplicante que, por
pouco a no ofendeu e, tornando segunda vez ao terreiro do suplicante, deu
outro tiro em outro cachorro, desafiando ao suplicante que lhe faria o mesmo
[...].200
200
APM-SC 260 (1788-1797), rolo 53, fls. 57 verso a 59.
201
Idem, ibidem.
202
O papel desempenhado por Pamplona casa-se bem com o conceito de mediador que constri Giovanni Levi
em A herana imaterial. Segundo Levi, o papel de mediadores entre a periferia e o Estado, desempenhado pelos
grupos locais de importncia, um aspecto fundamental da realidade poltica em muitas naes modernas.
LEVI. A herana imaterial, p. 51, nota 3. Para uma discusso mais ampla do conceito, ver o captulo IV, A
autoridade de um homem ilustre: Giulio Cesare Chiesa. Levi utiliza tambm o conceito de redes de relaes e
de alianas, que no estenderemos aqui, mas que foi uma das estratgias adotadas pelo mestre-de-campo ao
longo de sua tumultuada vida de comerciante, fazendeiro, militar e funcionrio da Coroa. Foi graas a essa rede
que escapou, inclusive, do processo contra os inconfidentes de 1789.
89
do Rio das Velhas, ambos interessados na posse das terras. Interesses que eram sobretudo
seus, pois era, seguramente, o maior proprietrio e se enxergava como dono de tudo ao seu
redor, por ter sido conquista sua. Em duas longas cartas ao governador de Minas, D. Rodrigo
Jos de Meneses, datadas de maro e abril de 1781, Pamplona repetidas vezes frisava que
forasteiros de Gois, alguns vindos de Paracatu, invadiam a sua conquista. Alm de tentar
preservar os seus prprios interesses, de certa forma, zelava tambm pelos interesses daqueles
que orbitavam em torno de sua pessoa. Aos novos sesmeiros que, em sua maioria, eram
originrios do termo da vila de So Jos e l tambm eram proprietrios, interessava que a
jurisdio administrativa dessa vila estivesse bem definida naqueles sertes. Uma das
preocupaes de Pamplona na carta de 6 de maro de 1781 era com os marcos de demarcao
de limites do termo da vila de So Jos por ele colocados, da qual um extenso trecho merece
ser citado:
[...] fatal a minha consternao que coubesse na cabea destes [os de Paracatu
e de Gois], que o mesmo (sic) era demolir os marcos, como se dissessem que
neles havia poder de mudarem as serras e montes e rios, assim como o fizeram
na ocasio presente, que a estes lugares todos lhes deram novos nomes, para
desta sorte fazerem a confuso de seguirem as suas paixes, e a ocuparem a V.
Excia. como se eles tivessem o poder de rasgar os autos das posses mais antigas.
No souberam eles aonde eu meti o marco em outubro de 1769, nessas
vizinhanas, e auto de posse na serra chamada da Bexiga, seno tambm o
arrancariam. Como ho de eles escurecer os autos possessrios que eu l fiz, os
socaves em crregos e ribeires foram muitos, no lhe do volta as cruzes em
pau sucupira, as posses de roas que mandei roar? [...].203
203
CARTA do mestre-de-campo Incio Correia Pamplona a D. Rodrigo Jos de Meneses sobre a desordem no
arraial e descoberta de ouro, Bambu, 6 de maro de 1781. APM-CC, caixa 75, planilha 20.023. Sobre a
importncia dos marcos e de sua antiguidade, fala-nos E. P. Thompson em Costumes em comum, especialmente
no captulo Costume, Lei e Direito Comum. Embora estejamos tratando no dos interesses das classes
subalternas, mas dos das classes proprietrias, o conceito de direito costumeiro que Thompson desenvolve,
poderia ser tambm aplicado aqui. O que Pamplona fazia, percorrendo as divisas da Comarca e investido no
cargo de mestre-de-campo, representando os camaristas e os proprietrios do termo da vila de So Jos,
guardadas as devidas propores, era o mesmo que faziam os camponeses ingleses na luta pela preservao dos
direitos comunais: a inspeo seguia os antigos cursos dgua, as sebes das propriedades, e em cada ponto
limtrofe colocava-se no cho uma cruz ou um marco. THOMPSON. Costumes em comum, p. 87.
90
Uma hiptese seria o possvel extravio de algum cdice que registrava sesmarias na
Secretaria de Governo. Pesquisamos, inclusive, os quatro livros de registro de peties e
requerimentos para os anos posteriores a 1769 e nada encontramos.205 Porm, restariam ainda
algumas alternativas de buscas: os vinte seis livros de despachos da Secretaria de Governo e
dezessete catlogos de documentos avulsos do fundo da Casa dos Contos. Percorrendo
204
THOMPSON. Costumes em comum, p. 422, nota 93. Mrcia Motta discute esses princpios ao escrever sobre
um conflito ocorrido em 1837 entre pequenos lavradores e Joo Correia Abrao, um grande fazendeiro de
Paraba do Sul. Segundo ela, no caso em questo, dois importantes pilares de sustentao do direito posse
estavam em confronto: posse mansa e pacfica (o que remete antiguidade da ocupao) versus cultura efetiva e
morada habitual. MOTTA. Nas fronteiras do poder, p. 45-53.
205
AMP SC 103 (1752-1771), rolo 34; SC 154 (1766-1771), rolo 34; SC 186 (1771-1787), rolo 40 e SC 260
(1788-1797), rolo 53.
91
A hiptese que mais nos convence a de que a grande maioria dos que ocuparam as
terras no requereram formalmente a sesmaria, por razes vrias que poderamos aventar. A
principal delas seria o interesse em dispor da terra com o menor controle possvel. Como
assevera Mrcia Motta:
206
MOTTA. Nas fronteiras do poder, p. 38.
207
APM-SC 286 (1798-1800), rolo 60, fl. 267 para as cartas de sesmaria e SC 299 (1801-1825), rolo 64, fl. 19
para a sua confirmao.
208
APM-SC 275 (1797-1798), rolo 58, fl. 10 verso; APM-SC 286 (1798-1800), fl. 122 verso; APM-SC 286
(1798-1800), rolo 60, fl. 192 e respectiva confirmao em APM-SC 299 (1801-1825), rolo 64, fls. 01 a 50.
209
Entre essas exigncias envolvendo prazos, havia as de medir e demarcar, em um ano, povoar e cultivar, em
dois, que provavelmente foram atendidas com extrema m vontade e ao bel-prazer dos beneficiados com a terra.
92
teve a confirmao das terras que pediu em 1 de dezembro de 1767 para si e para suas filhas
Teodsia, Incia, Simplcia, Rosa e Bernardina em 1 de fevereiro de 1802. O mesmo
aconteceu com seu companheiro de jornada, Antnio Afonso Lamounier, que tendo pedido
terras no mesmo dia, s as teve confirmadas em 22 de dezembro de 1806.210 No h,
entretanto, como negar que os sesmeiros tenham manifestado algum interesse pela
confirmao das suas cartas de sesmaria aps o Alvar de 1795 que insistia nessa
obrigatoriedade de confirmao.
210
APM-SC 156 (1767-1769), rolo 34, fls. 56-75 para as cartas de sesmaria e SC 299 (1801-1825), rolo 64, fls.
01-50 para suas confirmaes.
211
Para essas definies, como tambm para a localizao de diversas sesmarias, foi fundamental a observao
das reprodues de MINAS GERAIS EM MAPAS: Documentos dos perodos Colonial, Reino Unido e Imperial.
Catlogo do Acervo do Centro de Referncia em Cartografia Histrica. Trata-se de 25 mapas de Minas Gerais de
meados do XVIII a meados do XIX em tamanho 0,40 x 0,50 cm. Segundo BARBOSA. Dicionrio histrico
geogrfico de Minas Gerais, p. 72-73, a denominao Campo Grande muito confusa e sua localizao
bastante controversa. Observando cartas de sesmarias, percebeu que mesmo o entorno do arraial de Oliveira,
bem prximo da vila de So Jos, era conhecido como Campo Grande da Picada de Gois. Para ele, ento, o
Campo Grande poderia ter incio nessa localidade e estender-se para alm da serra da Marcela at encontrar o rio
Paranaba. Todavia, na folha 70 da NOTCIA diria..., o escrivo de Pamplona localiza o recm criado arraial
de Nossa Senhora da Conceio prximo ao rio das Onze Mil Virgens e Quilombo do Ambrsio, portanto,
dentro da rea disputada com a capitania de Gois.
212
SILVA. Genealogia mineira, p. 12.
93
povoou a regio com famlia numerosa 13 filhos , abastada e de prestgio. Joo era
proprietrio de uma das mais antigas fazendas da freguesia de Nossa Senhora da Conceio
dos Prados: o Engenho Velho dos Cataguases. A fazenda do Engenho confrontava com as
terras das fazendas do Mendanha e do Capote, propriedades de Incio Correia Pamplona, que
havia se instalado na freguesia dos Prados em meados da dcada de 1750.
Quando Pamplona chegou, Joo de Resende Costa j tinha os 13 filhos e era um dos
moradores pioneiros da freguesia, onde havia chegado em 1716. Dois de seus filhos, Joo e
Gabriel eram sacerdotes. Fortes laos de compadrio ligavam as duas famlias, a antiga e a
nova. A origem era a mesma: o arquiplago dos Aores. As relaes devem ter se estremecido
pela delao de Pamplona na Inconfidncia de 1789, que resultou no degredo do capito Jos
de Resende Costa e de seu filho homnimo. Contudo, por fim, a sorte foi diferente para as
duas famlias. Os Resende se multiplicaram em sucessivas geraes de fazendeiros abastados
na Comarca do Rio das Mortes.213 Os Pamplona no desapareceram, sobretudo, graas
virilidade dos padres da famlia, mas no tiveram a mesma sorte.
Nada menos do que seis membros da primeira gerao dos Resende Costa e seis da
segunda teriam pedido terras na nova fronteira. O capito Jos Antnio da Silva, marido de
Maria Helena de Jesus, outra filha de Joo de Resende Costa, e seis filhos do casal tambm
constam da lista dos que receberiam terras: Manoel, Elias, Julio, Jos, Joo e Gabriel, todos
com o sobrenome da Silva Resende. Quase todos eles deveriam ser muito novos em 1769, j
que seus pais se casaram em 1749. O intrigante que nenhuma das cartas de sesmaria para
esses doze membros da famlia Resende foram encontradas.
95
As alegaes dos pioneiros do serto do alto rio So Francisco nas peties das
primeiras cartas de sesmaria poderiam no passar de retrica e estilo. Em uma sequncia de
22 cartas de sesmaria datadas de 1 de dezembro de 1767, repetia-se um mesmo bordo, com
pequenas variaes. Dizia, por exemplo, Antnio Afonso, que ele se achava com escravos e
criaes de vrias qualidades e sem terras para o seu estabelecimento, e por necessitar delas,
entrara com grande risco de calhambolas e outros mais, em companhia de Incio Correia
Pamplona a povoar o serto do rio So Francisco para dentro, serra da Marcela e quilombo do
Ambrsio.216 Tanto Antnio Afonso, como Manoel de Medeiros, Domingos Antnio da
Sylveira, Manoel Bernardes de Christo e tantos outros, j possuam suas sesmarias nos
arredores da vila de So Jos.
213
SILVA. Genealogia mineira.
214
Nesse momento, a micro-histria, sobretudo Giovanni Levi com suas reflexes no campo da histria agrria,
traz elementos importantes para a compreenso das estruturas sociais. Espada Lima, investigando as
contribuies da micro-histria italiana, e, neste caso, de Giovanni Levi, nos lembra que: As histrias das
famlias, permitiam colocar em evidncia o sentido estratgico das alianas horizontais entre as famlias no co-
residentes, de modo a ampliar a possibilidade de previsibilidade das aes alheias. Essa mesma lgica de
interdependncia estava presente nas alianas sociais verticais, que ligavam as famlias camponesas, por
intermdio de redes de clientela, proteo e fidelidade, s famlias de notveis locais: relaes que
funcionavam como um contrapeso s tenses latentes que o conflito de interesses continuamente produzia.
LIMA. A micro-histria italiana, p. 267-268.
215
Como defende Mrcia Motta, o domnio sobre os homens passava tambm pelo domnio sobre as terras,
medida que os grandes proprietrios procuravam impedir no sem resistncia e algum sucesso o acesso
terra por parte de pequenos posseiros. MOTTA. Nas fronteiras do poder, p. 39 passim.
216
APM-SC 156, rolo 34, fls. 56-75.
96
definio e localizao de muitos outros ocupantes do serto que no apareceram atravs das
cartas de sesmarias.
Em 1818, a Relao das pessoas que se acham estabelecidas com fazendas no termo
da vila de So Bento do Tamandu219 faz parte desse esforo de controle do espao da
capitania. Dada a localizao desse documento entre os papis avulsos da Casa dos Contos,
fica tambm razovel perceb-lo como um controle fiscal sobre as propriedades, com o fim de
submet-las taxao. Essa , ento, uma razo, entre outras, para que seus dados sejam
observados com ligeira desconfiana e se desconfie da sua exatido. No conhecemos, no
momento, o motivo que levou a esse cadastramento e nem sabemos ainda se foi feito em
outros termos da capitania. muito provvel que tenha sido uma iniciativa voltada para um
217
RAPM, ano VIII, fascculos I e II, 1903, p. 424.
218
Idem, p 556-558.
219
APM-CC, rolo 526, planilha 20.207. Vide Anexo 2.
97
220
Situao semelhante observou Levi para o caso do Piemonte do final do sculo XVII. Uma de suas fontes
bsicas foi a Perequao realizada no Piemonte, em 1701, por Vittorio Amedeo II. Esse cadastro ou senso visava
cobrana de impostos sobre a terra e a produo agrcola. LEVI. A herana imaterial, p. 139. Para o caso que
estudamos, suspeitamos que a perquirio de 1818 tenha relao com o Alvar de 21 de outubro de 1817.
Levantamos essa possibilidade aps a leitura de recente trabalho de MOTTA. Direito terra no Brasil, p. 237.
221
SILVA. Genealogia mineira, p. 427-582. Citamos, por exemplo, os filhos do capito Jos Antnio da Silva,
genro do patriarca Joo de Resende Costa.
222
SILVA. Genealogia mineira, p. 427-582, p. 12.
223
Segundo Carlo Ginzburg, se o mbito da investigao for suficientemente circunscrito, as sries documentais
podem sobrepor-se no tempo e no espao de modo a permitir-nos encontrar o mesmo indivduo ou grupos de
indivduos em contextos sociais diversos. O fio de Ariana que guia o investigador no labirinto documental
aquilo que distingue um indivduo de um outro em todas as sociedades conhecidas: o nome. GINZBURG. O
nome e o como, p. 173-174. O recurso micro-histria para interpretao das fontes no se limita s classes
subalternas. Giovanni Levi ao reconstruir meio sculo de histria da comunidade de Santena, mesmo
privilegiando os pequenos proprietrios ou arrendatrios, no deixa de considerar as famlias nobres que
dominavam a posse da terra. Levi tambm aplica sua abordagem microanaltica numa comunidade pequena,
cujos terrenos eram medidos e explorados em pequenas unidades pelos camponeses: as giornate, que
corresponderiam aproximadamente a um tero do hectare. Boa parte dessas terras pertencia Igreja e aos nobres
ou estava ligada a eles pelos direitos feudais. Apesar de centrar sua ateno no pequeno territrio de Santena,
no desconsiderava toda uma regio maior do Piemonte, crivada de povoaes, nas vizinhanas de Turim. Ns
estamos tratando de extensas propriedades rurais, num cenrio em que os ncleos urbanos eram poucos e
insignificantes e se afastavam uns dos outros lguas e lguas de distncia. Mesmo considerando a diferena de
escalas, o olhar microanaltico sobre alguns casos pode desvendar situaes individuais que, somadas umas s
outras, compunham uma teia maior do tecido social capaz de esclarecer as relaes de poder pela posse da terra
numa determinada regio da capitania. LEVI. A herana imaterial, sobretudo o captulo VII As aparncias do
poder: a paz no feudo, p. 253-265. Ver tambm as p. 183-186.
98
Baldado nosso esforo, cotejando nome a nome nas duas relaes, para nossa surpresa,
entre os 633 indivduos listados em 1818, s nos foi possvel localizar sete dos entrantes de
1769: o capito Julio lvares de Mendona, o padre Incio Correia Pamplona, filho de
Pamplona, o capito Manoel da Silva Brando, Antnio Jos Bastos, Jos da Silva de
Queirs, Joo Teixeira Camargos e Lus Antnio da Silva Vilella Moo. Alm desses,
buscando pelos sobrenomes, oito proprietrios seriam provveis filhos dos que requisitaram
sesmarias em 1769. No nos foi possvel ir alm desse limitado nmero no momento. Apenas
uma pesquisa detalhada em outras fontes cartoriais batizados, casamentos, bitos,
inventrios e testamentos poderia nos dar a certeza de que muitos outros dos nossos
proprietrios de terras do inqurito de 1818 seriam descendentes diretos daqueles que
ocuparam a regio no ltimo quartel do sculo XVIII. Como veremos a seguir, a maioria dos
proprietrios informou, em 1818, que adquirira a terra por compra, o que pode sinalizar que as
propriedades mudaram das mos dos pioneiros para as de forasteiros adventcios. Seria a
prpria colnia em movimento no entendimento de Sheila de Castro Faria.224
224
FARIA. A colnia em movimento.
99
Com que inteno o capito-mor teria informado em seu mapa que o coronel Manoel
da Silva Brando no estava cultivando duas de suas grandes fazendas? Eles no eram
vizinhos nas confrontaes. provvel que os dois maiores proprietrios tivessem
225
SAINT-HILAIRE. Viagem s nascentes do rio So Francisco, p. 74-75.
226
MOTTA. Nas fronteiras do poder, p. 122.
227
Isto vem confirmar a opinio de Mrcia Motta ao acreditar que o processo de ocupao de terras pelo
apossamento praticado pelos fazendeiros permitia que outros agentes sociais reconhecessem o seu direito
ocupao tambm pelo sistema de apossamento. Seria, utilizando a terminologia de Bourdieu, um direito
vivido. MOTTA. Nas fronteiras do poder, p. 102.
100
Dos os 633 proprietrios, somente quatro afirmaram ou Joo Quintino afirmou por
eles no estar cultivando suas terras. possvel suspeitar que muitos dos outros estariam
prestando informaes falsas. Mesmo sabendo que diversas propriedades eram cultivadas com
o brao livre, s vezes com famlias numerosas, o maior peso do trabalho estaria nas mos dos
cativos.228 Possivelmente, seria tambm por essa razo que a Relao pedia que se informasse
a posse de escravos. Cruzando o nmero de cativos com as extenses das reas declaradas,
encontramos uma quantidade considervel de propriedades de tamanho nada desprezvel com
nenhum ou com um nico escravo. Antes de apontar alguns casos concretos, convm
compreender um pouco o complicado sistema de agrimensura das datas de terra.
Uma lgua em quadra de sesmaria (3.000 braas de testada por 3.000 de fundos)
corresponderia a 4.356 ha. Porm, nem sempre as sesmarias eram medidas em quadra e, por
exemplo, meia lgua poderia no ser 1.500 braas em quadra (1.089 ha) e sim, tal como
aparece na Relao de 1818, 750 x 750 (272,25 ha), 750 x 500 (181,50 ha), 675 x 500 (163,35
ha), 1.125 x 1.125 (612,56 ha) ou outras variaes. Por outro lado, quase certo que no
havia essas precises de medidas, sobretudo nos lugares em que existiam terras devolutas.
228
SAINT-HILAIRE. Viagem s nascentes do rio So Francisco, p. 75.
229
MOTTA (org.). Dicionrio da terra, p. 289-290. O litro corresponde rea necessria para o cultivo de um
litro de sementes de milho, cobrindo uma rea de 605m e a quarta corresponderia quarta parte de um alqueire,
ou seja, 10 litros ou 6.050m, se o alqueire for de 2,42ha.
101
de obra necessria para isso. bom lembrar que no estamos considerando as demais posses,
com dois ou mais escravos. Com to escassa mo de obra, provvel que o valor dessas terras
no mercado fosse pequeno. Tal valor difcil de ser mensurado, salvo com uma minuciosa
pesquisa em escrituras de compra e venda ou inventrios dos proprietrios.
230
SAINT-HILAIRE. Viagem s nascentes do rio So Francisco, p. 97.
231
Sobre a questo do trabalho escravo em Minas Gerais no perodo colonial, sugerimos a leitura de Carlos
Magno Guimares, Douglas Cole Libby, Eduardo Frana Paiva, Liana Maria Reis e Tarcsio Botelho.
Resumidamente, adiantamos que tais autores trabalham com quilombos, populao, religiosidade, criminalidade
e estrutura familiar, respectivamente. Uma amostra de seus trabalhos pode ser vista em RESENDE; VILLALTA
(org.). Histria de Minas Gerais, v. 1, p. 401-521.
232
SAINT-HILAIRE. Viagem s nascentes do rio So Francisco, p. 76.
102
Quadro 2
Posse de escravos por proprietrio no termo da vila de So Bento do Tamandu (1818)
Escravaria: nmero de Total de proprietrios Percentual
escravos
Nenhum 120 18,96
1 54 8,53
2 70 11,06
3 62 9,79
4 59 9,32
5 29 4,58
6 a 09 115 18,17
10 a 20 94 14,85
21 a 30 16 2,53
31 a 40 9 1,42
41 a 49 1 0,16
50 ou mais 4 0,63
Total 633 100,00
Fonte: APM Casa dos Contos rolo 526, planilha 20.207.
Quadro 3
Posse de cativos por proprietrio escravista no termo da
vila de So Bento do Tamandu (1818)
Escravaria Total de proprietrios Percentual
Pequenos: 1 a 3 186 36,26
Mdios: 4 a 9 203 39,57
Grandes: 10 a 49 120 23,39
Muito Grandes: 50 ou + 4 0,78
Total 513 100,00
Fonte: APM Casa dos Contos rolo 526, planilha 20.207.
A partir da informao prestada sobre qual era a titulao que os proprietrios tinham
de suas terras, foi possvel estabelecer o seguinte quadro:
233
PAIVA. Populao e economia nas Minas Gerais do sculo XIX, p. 211. Clotilde Paiva professora da
Faculdade de Cincias Econmicas/UFMG e referncia obrigatria para os estudos de populao e economia
em Minas Gerais. A pesquisadora trabalhou pioneiramente com os Mapas de Populao de 1831-1832 e 1838-
1840, as famosas e muito conhecidas Listas Nominativas.
103
Quadro 4
Declarao da forma de aquisio da terra no termo da
vila de So Bento do Tamandu (1818)
Modalidades de Ttulos Total de propriedades Percentuais
Estamos apontando a existncia desse mercado de terras somente com base nessas
declaraes de 1818.234 Para que tivssemos maior certeza, seria necessrio o estudo de outros
documentos cartoriais.235 Mas esse, sem dvida, no deixa de ser um forte indcio. At mesmo
a reduo dos direitos comuns de uso das camadas mais baixas no impossvel de ser
percebida na regio que estudamos. Saint-Hilaire nos arredores da serra da Canastra,
observou a existncia de um chapado despovoado e sem cultivo. Segundo ele, suas terras
nem mesmo tm dono [1819], mas os proprietrios das fazendas localizadas na base da
montanha levam seus animais para pastarem ali.236 Seriam terras de uso comum que
desapareceriam medida que o conceito de propriedade rural exclusiva se incorporasse
plenamente entre os proprietrios. Seria interessante saber quem as ocuparia. E saber tambm
se os cursos dgua necessrios e suficientes para movimentar moinhos, monjolos, engenhos e
engenhocas caberiam nos contornos das 25 braas de Maria Pereira, no distrito de So
Francisco de Paula, ou se ela teria que recorrer fazenda do capito Manoel de Sousa
Resende, seu vizinho, deixando l parte de sua j minguada colheita.
Nas franjas, ou no meio dos enormes latifndios, como os trs exemplos dados mais
acima, e das mdias e grandes propriedades, viviam, de acordo com a perquirio de 1818,
160 proprietrios com at um quarto de lgua de rea. Esse um quarto poderia, na melhor das
hipteses, medir 750 braas em quadra, ou 272,25 ha. Tambm poderiam ser 375 braas em
quadra, equivalentes a 68 ha, ou at menos. At o limite desses 68 hectares encontravam-se
86 proprietrios, alguns com umas poucas braas. Confrontando com a enorme fazenda de
So Miguel e Almas, dos herdeiros do capito-mor Jos Rodrigues da Costa e donos de 70
234
Se, de fato, pudermos considerar, a partir das declaraes de titularidade da terra por compra, a existncia
efetiva de um mercado de terras, Thompson tinha toda razo ao afirmar que o conceito de propriedade rural
exclusiva, como uma norma a que outras prticas devem se adaptar, estava ento se estendendo por todo o globo,
como uma moeda que reduzia todas as coisas a um valor comum. E ainda, segundo ele, para os proprietrios
de terra, a propriedade fundiria estava se tornando cada vez mais subordinada ao contrato, isto [...]
assumindo as qualidades e funes de capital pela liquidez das hipotecas e pelas formas complexas de dotes de
casamento, fideicomissos, vinculao de bens de raiz etc. Porm, ao mesmo tempo, em nome da propriedade
individual e absoluta, os direitos comuns e de uso das camadas mais baixas eram minados. THOMPSON.
Costumes em comum, p. 134 e 132, respectivamente.
235
Sobre a existncia desse mercado de terras em Minas Gerais vide CARRARA. Minas e currais, p. 166 e
MOTTA. Direito terra no Brasil, p. 161.
236
SAINT-HILAIRE. Viagem s nascentes do rio So Francisco, p. 108.
105
escravos, estava Joo Ferreira, com seu meio quarto 375 braas em quadra e nenhum
escravo para ajudar nas suas lidas. Espremido entre o rio So Francisco e o coronel Manoel da
Silva Brando, maior proprietrio de terras declarado, estava Lus Jos de Medeiros lavrando
sozinho ou com seus familiares suas 200 braas em quadra ou quatro alqueires de terra.
***
237
LENHARO. As tropas da moderao; GRAA FILHO. A Princesa do Oeste. Caio Prado Jnior considera a
segunda metade do sculo XVIII como o perodo de renascimento da agricultura no Brasil. Culturas como a do
algodo, alavancadas pelos progressos tcnicos da Revoluo Industrial na Europa, espalharam-se,
principalmente pelo interior, onde o clima seco era mais propcio ao seu cultivo. Mas, segundo sua opinio, em
geral, a agricultura voltada para a exportao desenvolvia-se mais nas regies litorneas, ficando o interior mais
envolvido com a pecuria. Mesmo que ele esteja coberto de razo ao apontar o final do Setecentos como o
perodo do ressurgimento da agricultura, as novas pesquisas indicam a presena da agricultura voltada para o
comrcio tambm no hinterland. PRADO JNIOR. Histria econmica do Brasil, p. 79-93; Formao do
Brasil contemporneo, p. 119-156.
106
termo da vila de So Bento do Tamandu de 1818. Esta ltima, principalmente, possui uma
gama enorme de dados a serem explorados. Para tanto, seria ainda necessria a elaborao de
um banco de dados que permitisse uma maior visualizao das informaes nela contidas. Do
rol de entrantes de 1769, muitos nomes no puderam ser localizados e dos que o foram, sobre
poucos foi possvel tecer maiores consideraes. Tambm ele deixa em aberto espao para
novas buscas nos arquivos, para as quais as teorias da micro-histria poderiam muito
contribuir.
Captulo 2
Djavan
Cara de ndio
238
OLIAM JOS. Indgenas de Minas Gerais, p. 14-15.
108
Com o crescente esgotamento das minas, os demais obstculos, a duras penas, seriam
lentamente removidos. Os projetos de encontrar novos veios aurferos sempre estiveram na
mente das autoridades da capitania. medida que viam-se frustradas as descobertas de metais
109
raros, a riqueza seria a prpria terra que, removidos os obstculos, se manifestaria frtil e
seria, em meados do sculo XIX, rea de expanso da nova riqueza: o caf. A fertilidade era
quase evidente, dada a presena da exuberante mata atlntica, sinal de solo rico e propcio s
atividades agrcolas. Isso tambm era sinalizado por uma rica bacia hidrogrfica formada
pelos caudalosos afluentes da margem direita do rio Doce e esquerda do Paraba, com seus
inmeros rios, ribeires e crregos caudatrios.
Como o foco desta pesquisa so as reas de jurisdio da Comarca do Rio das Mortes,
a princpio procuraremos definir a regio em estudo como de influncia dessa comarca. A
seguir, perseguiremos os projetos e as polticas de expanso levadas a cabo pelos sucessivos
governadores da capitania a partir de 1750 em direo aos sertes orientais. Esses projetos
tiveram como resultado o surgimento de potentados locais e, posteriormente, as disputas pela
posse da terra entre os mesmos e deles com as naes indgenas aldeadas e com os colonos
adventcios que se deslocaram para a regio entre 1790 e 1820.
Esta regio no levantava maiores dvidas quanto aos limites com as capitanias
vizinhas do Rio de Janeiro e do Esprito Santo, como frequentemente ocorreu com as divisas
de So Paulo e Gois. As serras do Mar e dos Aimors e os rios Paraba e Guandu eram claros
divisores geogrficos.
A confuso de limites, no entanto, dava-se, com a comarca de Vila Rica. Para dirimir
tais dvidas e conciliar os interesses dos povos da capitania, o governador D. Antnio de
Noronha, em 5 de outubro de 1779 fez publicar um bando sinalizando, mesmo que de maneira
no muito precisa, a regio de jurisdio da comarca de Vila Rica e, por conseguinte,
definindo as terras dos rios da Pomba e Peixe como pertencentes Comarca do Rio das
Mortes.
110
[...] Fao saber aos que este Bando virem, que sendo incertos os limites das
comarcas de Vila Rica, Sabar, Rio das Mortes e Serro Frio, pela parte do rio
Doce e mais rios que dele fazem barra, [...] a esta mesma comarca de Vila
Rica ficam pertencendo todas as vertentes do rio Doce que emanam da parte
do sul do mesmo rio e formam os rios Piranga, Chopot, Turvo, Casca,
Matip, Sacramento, Cuyet, Mayguassu, Guandu e outros que vo
finalmente desaguar no mesmo rio Doce.239
Os distritos espalhados pelos vales dos rios Pomba margem direita e Peixe
aparecem nitidamente incorporados ao Termo de Barbacena quando da Organizao Civil da
Provncia de Minas Gerais do ano de 1823, reproduzida por Thephilo Feu de Carvalho:
Mercs do Pomba, Pomba e Peixe, Mello, Santo Antnio de Ub e Rio Novo. Os distritos de
Piranguinha, Lamim e Morro do Chapu, distribudos pelos vales dos rios Piranga e Chopot,
surgem registrados no termo de Queluz (1790), vila que, juntamente com a de Barbacena
(1791), foi criada na ltima dcada do Setecentos, ambas sob a jurisdio da Comarca do Rio
das Mortes.
Todavia, necessrio dizer que a questo de limites das comarcas continua sendo
polmica entre os estudiosos que se detm sobre o assunto. Consultando o rol de sesmarias
concedidas em Minas Gerais, percebemos que a localizao referida por quase uma centena
de peticionrios relaciona diversas paragens requeridas nos rios Pomba, Peixe, Chopot e
Piranga, ora com o termo de So Jos (os mais antigos), ora com o termo de Barbacena (os
mais recentes) ou simplesmente com a Comarca do Rio das Mortes.240 Exemplos disso so as
sesmarias requeridas por Jos Fernandes Teles no serto do rio Chopot, termo da vila de So
Jos, em 1758, por Manoel da Motta de Andrade no ribeiro de Nossa Senhora da Conceio,
freguesia da Pomba, termo da vila de So Jos, em 1789 e por Carlos de Abreu Ferrugento na
margem direita do rio da Pomba, termo de Barbacena em 1813.241 Essas pessoas reconheciam
esses lugares como pertencentes Comarca do Rio das Mortes. Alguns autos de medio e
demarcao de sesmarias tambm foram conduzidos pelas autoridades de So Joo del-Rei,
como o de Francisco Soares Maciel na paragem do Bom Retiro da freguesia do Mrtir So
Manoel do Rio da Pomba, em 1784 ou o de Jos Gonalves Viana na paragem do ribeiro de
239
CARVALHO. Comarcas e termos: criaes, supresses, restauraes, incorporaes e desmembramentos
de comarcas e termos em Minas Gerais (1709-1915), p. 64 e 65, 71-96. Feu de Carvalho adota o topnimo
Chopot, ao passo que Waldemar de Almeida Barbosa utiliza Xopot, como costuma aparecer nos
documentos coloniais. Seguiremos a forma usada por Feu de Carvalho, atualizando, inclusive, outras formas
antigas de escrita que surgem na documentao pesquisada tal como Xipot.
240
RAPM ano XXXVII, 1988, vol. 1 e 2.
241
RAPM, ano XXXVII, 1988, vol. 1, p. 49 e 263, e vol. 2, p. 206.
111
So Joo, Matos Gerais do Pomba em 1782.242 Por outro lado, muitos tambm informaram
que as terras solicitadas estavam no termo de Mariana. A confuso de limites era tamanha que
ocorria, inclusive, entre os termos de uma mesma comarca. Por volta de 1800, a vilas de
Barbacena e de So Joo del-Rei entraram em disputa pelas terras que divisavam com o Rio
de Janeiro, no serto dos rios Pinho e Preto.
Grosso modo, poderamos dizer que a regio em foco estaria localizada no tringulo
formado pelas terras compreendidas direita de quem vinha do Rio de Janeiro pelo Caminho
Novo, pela margem direita do rio da Pomba e esquerda do Paraba. Antes, porm, de
cuidarmos de traar as linhas gerais da ocupao dos sertes do Pomba e a distribuio de
suas terras em sesmarias, examinaremos as aes empreendidas pelos governadores da
segunda metade do Setecentos para efetivamente incorporar toda a regio ao sul do rio Doce
capitania. Estendemos o estudo a essa regio mais ampla, em sua quase totalidade pertencente
ao termo de Mariana, pois entendemos que as vertentes dos rios Pomba e Peixe tambm
recebiam influncia da colonizao que se dava mais ao norte, nos afluentes do rio Doce.
A conquista deste territrio se inicia na dcada de 1760, recebe maior flego a partir
de 1780 e se consolida na virada do sculo e primeiro quartel do XIX. emblemtica a fala
do governador D. Rodrigo Jos de Meneses, quando escreveu para os comandantes dos
distritos de ordenanas dos mais diversos pontos da capitania requisitando braos para a
conquista dos sertes orientais. Ordenava aos oficiais que recolhessem os vadios, malfeitores,
libertinos, desordeiros e desocupados de suas jurisdies e os enviassem presos para Vila
Rica. Ali, teriam esses vagabundos duas alternativas: a farda para o Rio Grande ou a foice
para o Cuiet. Na verdade, no s para a Conquista do Cuiet, mas tambm para o serto do
rio da Casca e serra dos Arrepiados, serto dos rios da Pomba e Peixe, enfim, para toda a mata
geral margem direita do rio Doce. A margem esquerda ainda esperaria quase cem anos para
242
AHET/IPHAN-MG/SJDR autos de sesmarias.
112
ser desbravada e foi, ento, o refgio dos ndios bravos que no quiseram se submeter aos
aldeamentos.
Para se ter uma ideia do perfil dos degredados, em dois de julho de 1784 saam de
Mariana, para serem entregues a Antnio Veloso de Miranda, coronel-regente da Conquista
dos Arrepiados, Jos Manoel, pardo, Manoel Jos, pardo, Flis de Arajo Silva, pardo e
Francisco Pinto, crioulo, que sendo ferrador, no trabalhava pelo seu ofcio, mas sim, andava
desencaminhando vrias negras, fazendo-as fugir de casa de seus senhores, tendo-as ocultas
por algum tempo sem cuidar em outra vida mais do que passear, beber e jogar, o que foi por
um ano.244 A maioria das listas encontradas apresenta o mesmo perfil. Em geral
compunham-se de homens negros, pardos ou cabras e solteiros. O estado de casado, a
princpio, livraria o vadio do recrutamento forado. O alferes Magalhes, acima citado, do
Papagaio, que mais condenados enviou, levantou esta questo: Tambm neste distrito vivem
vrios vadios compreendidos na mesma ordem, casados, que supondo-se privilegiados pelo
estado, costumam utilizarem-se dos gados alheios, vivendo com procedimentos escandalosos.
Eu desejo que V. Excia. sirva determinar-me se estes tambm so compreendidos na dita
ordem [...]. Mais rigoroso foi o capito do Inficcionado que degredou por um ano os casados
Martinho Jos, pardo, e Alexandre, cabra, alegando que se encontravam divorciados de suas
mulheres.245 Mas nem todos os comandantes seguiram a determinao do governo.
243
Vide Anexo 3.
244
CARTA de Joo Caetano de Almeida, Mariana, dois de julho de 1784. APM-CC, caixa 150, planilha 21.454.
245
CARTA do alferes comandante do distrito de Papagaio Francisco de Moura Magalhes, Santo Antnio de
Curvelo, seis de julho de 1784. APM-CC, caixa 151, planilha 21.480. CARTA do capito comandante Manoel
da Silva Souza, Inficcionado, 20 de junho de 1784. APM-CC, caixa 153, planilha 21.509.
113
Foram consultadas cerca de trinta cartas dos comandantes distritais acusando terem
recebido as ordens de remessa de degredados no ano de 1784. Em pelo menos dezesseis
respostas, os oficiais de ordenana afirmaram no existirem vadios nos seus distritos, oito
listaram os degredados e os demais esquivaram-se, dizendo que receberam as ordens em
atraso ou somente acusaram o seu recebimento, no tomando nenhuma providncia. Assim, o
capito Antnio Nunes de Resende, da Capela da Laje, afirmou que no seu distrito no
consta nenhum com este perfil.246 Ora, o relativo sucesso desses recrutamentos deveu-se ao
fato de que nos povoados, em regra, os vadios mais nocivos eram rapazes protegidos por
figures, criados em casas ricas, e muitos filhos bastardos de gente poderosa.247 Os
poderosos no poderiam ficar de todo desprevenidos de seus marginais que, em alguns
momentos, lhes poderiam ser teis. Outra possvel explicao para no ter sido o
recrutamento de maior xito, foi que nos anos de 1781 e 1782 o governador anterior, D.
Rodrigo de Meneses, j havia adotado a mesma prtica para povoar o Cuiet, o que, de fato,
pode ter deixado os distritos livres de muitos indesejados. Como informa Diogo de
Vasconcelos, s do Serro lhe vieram 53 recrutas, como consta da lista fechada no ofcio de 4
de setembro de 1782.248
As penas arbitradas aos vadios foram de seis meses a um ano de degredo, mas muitos
no voltavam do desterro. Teriam seu tempo de servio dilatado, morreriam de fome, febres
ou flechas ou, simplesmente, desertariam, internando-se naqueles matos.249 O pardo Flis de
Arajo Silva foi degredado de Mariana por um ano pelo capito Joo Caetano de Almeida
por ser sua vida furtar bestas e cavalos e ainda outras coisas de mais considerao. Lus
Gomes Pereira, do Papagaio, teve um pouco mais de sorte e foi mandado a ferros por seis
meses por ser vadio desencaminhador de gados alheios.250 Na Inglaterra, a Lei Negra de
246
CARTA do capito comandante Antnio Nunes de Resende, Laje, cinco de junho de 1784. APM-CC, caixa
154, planilha 21.535.
247
VASCONCELOS. Histria Mdia de Minas Gerais, p. 254.
248
VASCONCELOS. Histria Mdia de Minas Gerais, p. 254.
249
Coincidncia ou no, em muitos municpios da regio leste de Minas Gerais, sobretudo na divisa com o
Estado do Esprito Santo, ainda hoje assustadora a presena de pistoleiros, com os quais se pode encomendar
mortes por motivos diversos (polticos, disputas por terras, limpeza da honra etc.).
250
CARTA de Joo Caetano de Almeida, Mariana, dois de julho de 1784. APM-CC, caixa 150, planilha 21.454.
CARTA do alferes comandante do distrito de Papagaio Francisco de Moura Magalhes, Santo Antnio de
Curvelo, seis de julho de 1784. APM-CC, caixa 151, planilha 21.480.
114
1723, que existia para preservar a propriedade e, incidentalmente, as vidas e liberdades dos
proprietrios condenava pena capital aqueles que roubassem cavalos ou gados.251
A construo de estradas foi uma das principais estratgias de ocupao dos sertes
orientais. Antes de sua abertura, o acesso queles sertes s era possvel descendo o rio Doce
em canoas e subindo pelos seus afluentes da margem direita que em alguns pontos eram
encachoeirados. Estradas que, a princpio, no passavam de picadas na mata por onde s
poderiam transitar pedestres, tais caminhos foram sendo alargados permitindo a passagem de
cavalos e mulas, facilitando o transporte das cargas que antes seguiam na cabea dos escravos
e dos ndios mansos.
251
THOMPSON. Senhores & caadores, p. 21-25.
252
CARTA de Antnio Veloso de Miranda, Presdio da Casca, 26 de junho de 1782. APM-CC, caixa 150,
planilha 21.446.
253
CARTA de Manuel Rodrigues [corrodo] para Pedro Maria Xavier de Atade e Melo, Barra do Cuiet, 14 de
maio de 1807. APM-CC, caixa 17, planilha 10.358.
115
254
CARTA de sesmaria de Joo Pereira Martins. APM-SC 172, fl. 167 verso; CARTA de sesmaria de Antnio
Lopes dos Santos. APM-SC 156, fl. 111 verso.
255
CARTA do padre Manuel Lus Branco, Joo Pereira Martins e Antnio Lopes dos Santos para D. Rodrigo
Jos de Meneses, 13 de setembro de 1780. APM-CC, caixa 146, planilha 21.379.
256
VASCONCELOS. Histria Mdia de Minas Gerais, p. 277-281.
257
ANASTASIA. A geografia do crime, p. 96-104.
116
258
CARTA de Antnio Veloso de Miranda, Barra do Bacalhau, 18 de abril de 1782. APM-CC, caixa 150,
planilha 21.446.
259
CARTA do sargento-mor Pedro Afonso Galvo de [So] Martinho para Luiz da Cunha Meneses, So Manuel
do Pomba, 12 de maio de 1784. APM-CC, caixa 13, planilha 10.266.
117
Pelos relatos transcritos acima, possvel se ter uma ideia parcial da movimentao
pelas picadas do serto do Pomba. Picadas largas que j comportavam o trnsito de alimrias
carregadas. Importante observar que certamente no seriam picadas abertas com patrocnio do
Estado, j que conduziam para as mineraes clandestinas. Transitaram por essas picadas, a
darmos crdito a esses relatos, no mnimo 129 bestas carregadas e 21 escravos. Bestas e
escravos que levavam farinha, feijo, arroz, toicinho e outras fazendas mais, secas e
molhadas. A denncia da presena dos alferes de ordenanas demonstra o quanto o poder
oficial no poderia confiar nos milicianos, prontos para se aventurar, em busca de riquezas,
pelos matos vedados contra as ordens do Estado portugus. Isso foi o que disse o prprio
sargento-mor Pedro Afonso, nos seus preparativos para atacar o Macacu: necessrio que V.
Excia. me mande doze soldados [...] que se no devem (sic) fiar de auxiliares e
ordenanas.260
260
Idem, ibidem. APM-CC, caixa 13, planilha 10.266.
261
CARTA de Jos de Deus Lopes, do Presdio de So Joo Batista, relatando exploraes feitas no rio Pomba e
Buruye. 1797. APM-CC, microfilme rolo 506, planilha 10.349; REQUERIMENTO do capito do distrito do Rio
da Pomba e Peixe, do termo da vila de Barbacena, Manoel Monteiro de Pinho, solicitando licena para entrar,
procurar e descobrir ouro neste serto do Rio da Pomba e Peixe at s margens e barrancas da Paraba. Petio
indeferida pelo governador, face proximidade com a capitania do Rio de Janeiro. 14 de novembro de 1806.
APM-CC, microfilme rolo 544, planilha 21.390.
262
CARTA do sargento-mor Pedro Afonso Galvo de [So] Martinho para Luiz da Cunha Meneses, So Manuel
do Pomba, 12 de maio de 1784. APM-CC, caixa 13, planilha 10.266.
118
Em 23 de julho de 1797, o cabo Jos de Deus Lopes partiu com quarenta homens do
Presdio de So Joo Batista. Percorreram dez lguas at o Porto das Canoas e mais 12 de
canoa at a barra do Pomba com o Paraba. Relatou ao governador, em pormenores, as
distncias que percorreram, o encontro com gentios Puris e com os religiosos Barbonos (sic)
no aldeamento de So Fidlis. O principal objetivo de sua entrada seria dar informaes sobre
caminhos, distncias e povoamento, tanto que ao final, mapeou toda a distncia que separava
o litoral do Rio de Janeiro de Vila Rica.264 Seu relato demonstra como as sesmarias foram
sendo distribudas nas terras antes ocupadas pelo gentio Puri. Sesmarias cujas doaes feitas
pelo governador Bernardo Jos de Lorena seriam mais tarde contestadas e algumas anuladas
por terem sido dadas em terras indgenas. Os sesmeiros deixaram as terras? mais certo que
no, conforme escreveu o cabo ao governador.
263
Idem, ibidem. APM-CC, caixa 13, planilha 10.266.
264
Distncias e sesmarias medidas da parte do sul, dadas pela Capitania do Rio de Janeiro. Vide Anexo 4.
CARTA de Jos de Deus Lopes sobre o relato das exploraes feitas no rio Pomba e rio Buruy, Presdio So
Joo Batista, julho de 1797. APM-CC, caixa 17, planilha 10.349.
119
265
CARTA de Jos de Deus Lopes sobre o relato das exploraes feitas no rio Pomba e rio Buruy. Presdio So
Joo Batista, julho de 1797. APM-CC, caixa 17, planilha 10.349.
266
CARTA de Antnio Veloso de Miranda, Presdio de So Loureno, 20 de novembro de 1783. APM-CC,
caixa 75, planilha 20.023.
267
CARTA do capito comandante Manoel dos Santos e Castro para D. Rodrigo Jos de Meneses, Ibitipoca, dois
de junho de 1780.APM-CC, caixa 147, documento 01, planilha 21.384 .
120
em 26 de maio daquele ano, havia publicado em edital, que tinha recebido ordens do ouvidor
geral e corregedor da Comarca do Rio das Mortes, doutor Luiz Ferreira de Arajo Azevedo,
para que se informasse das faisqueiras e pintas de ouros (sic) que h em os Gerais Vedados,
acometidos proximamente pelos povos, para a vista do que houver se deliberar tal
acometimento. O edital ainda mandava que fossem fechadas todas as entradas aos Gerais
Vedados. Em 27 de julho de 1780, tomou essa providncia o sargento Joo de Souza
Monteiro que, aps feita a leitura do edital em voz alta na entrada das missas de Ibitipoca e
Santa Rita, informou que havia fechado todas as entradas que haverem (sic) para os matos
gerais vedados, derrubando matos sobre elas e entupindo no modo possvel.268
268
CARTA do sargento Joo de Souza Monteiro, 27 de julho de 1780. APM-CC, caixa 147, documento 03,
planilha 21.384.
269
CARTA dos oficiais da Cmara de Mariana, Vila Rica, 12 de novembro de 1803. APM-CC, caixa 75,
planilha 20.024.
270
REQUERIMENTO do capito do distrito do Rio da Pomba e Peixe, termo da vila de Barbacena, Manuel
Monteiro de Pinho, quatro de fevereiro de 1807. APM-CC, caixa 102, planilha 20.502.
121
271
CARTA do capelo Manuel Lus Branco. APM-CC, caixa 76, planilha 20.058.
272
A palavra puaya no foi encontrada nos dicionrios de lngua portuguesa, sendo consultado, inclusive,
Antnio de Morais Silva. Acreditamos tratar-se de palavra de origem tupi-guarani. O seu significado foi-nos
revelado em um requerimento de sesmaria que o padre Jesus Maria fez em 1783: [...] puayas que so razes que
produzem os matos do dito serto que so medicinais e muito procuradas e, por isso, atualmente seguem
negociando aos mesmos ndios para com eles negociarem as ditas puayas. REQUERIMENTO do padre Manuel
de Jesus Maria, 1782. APM-CC, caixa 87, planilha 20.251.
273
REQUERIMENTO do padre Manuel de Jesus Maria, freguesia do Mrtir So Manuel dos Sertes e Rio da
Pomba e Peixe, sem data. APM-CC, caixa 35, planilha 30.054.
274
HOLANDA. Caminhos e fronteiras, p. 76. Para uma viso maior do assunto, confira o captulo 6 Botica da
Natureza. AMANTINO. O mundo das feras, p. 62-63, ressalta a importncia que as autoridades metropolitanas
e coloniais, sobretudo o governador, conde de Valadares, davam ao aproveitamento e estudo das plantas e
animais do serto, certamente imbudos dos ventos iluministas que sopravam sobre Portugal na segunda metade
do sculo XVIII.
122
Manoel do Rio da Pomba em 1810, relatava ao Prncipe Regente sobre o estado miservel em
que se encontravam os ndios Coroados. Propunha ao Prncipe um projeto audacioso de
recuperao dos decadentes aldeamentos.
Oferecia-se, ento, para aldear 3.000 ndios. A proposta previa aldeamentos com 150
ndios cada. A construo de casas, igrejas e escolas dar-se-ia, a princpio, com o auxlio de
72 escravos, sendo 62 homens e 10 mulheres. Do total, 60 seriam rudes e novos para o
275
AVISO do secretrio do Conselho Ultramarino Jos Gomes de Carvalho aos governadores e vice-
governadores do Brasil referente criao de escola para catequizar os ndios de Minas Gerais sobre a
coordenao do padre Francisco da Silva Campos, Lisboa, 18 de setembro de 1801. APM-CC, caixa 109,
planilha 20.626.
276
Idem, ibidem. APM-CC, caixa 109, planilha 20.626.
277
Idem, ibidem. APM-CC, caixa 109, planilha 20.626.
123
trabalho no eito, e doze que tenham alguma instruo de lavrar madeiras de machado e enx
debaixo do risco de um mestre, necessrios para as edificaes.
Quadro 5
Planejamento do padre Francisco da Silva Campos para aldear 3.000 ndios no rio
Pomba (1801)
Investimentos Valor em ris
60 escravos rudes e novos a 100:000 ris 6:000$000
12 escravos ladinos a 200$000 ris 2:400$000
Total de 72 escravos 8:400$000
Engenhos de fazer farinha e fiar e moinhos de serrar madeiras 710$000
Total geral de investimentos 9:110$000
Despesas anuais com salrios por conta da Real Fazenda Valor em ris
Cura 300$000
Regente 300$000
Ajudante do regente 200$000
Mestre de leitura 250$000
Dois feitores 200$000
Cera, hstias e vinho 30$000
Total das despesas anuais da Real Fazenda 1:280$000
Fonte: APM-CC, caixa 109, planilha 20.626.
124
A Coroa deveria ainda concorrer com sal, ferramentas, pregos e ferros para as
construes e arcar com os salrios anuais dos padres, mestres das escolas e inspetores.
Calculava um custo anual de oito a dez contos de ris. O curioso era que a empresa, como
ele mesmo dizia, deveria se auto-sustentar e ser capaz de pagar o investimento real. Se a
proposta fosse do agrado do Prncipe Regente, seria, ento, apresentada ao governador.
Amparado nos insucessos anteriores, que acreditava terem sido fruto da improbidade dos
administradores, e na superao dos escandalosos, horrorosos e notrios abusos que se tem
cometido sobre a educao dos Tapuias, apresentou:
278
Idem, ibidem. APM-CC, caixa 109, planilha 20.626.
279
Idem, ibidem. APM-CC, caixa 109, planilha 20.626.
125
irmos Joo Romeiro Furtado de Mendona como diretor dos ndios, com a graduao de
coronel ou capito-mor, e de Joaquim da Silva Campos como tenente-coronel ou capito
comandante do distrito.
O que outro documento, sem data, apontou foi que o padre que desejava educar os
gentios, caminhava na contramo de alguns religiosos e autoridades locais que condenavam o
uso da cachaa pelos ndios. Ao defender a construo de engenhos justificava, entre outras
razes, que:
280
BARBOSA. Dicionrio histrico-geogrfico de Minas Gerais, p. 370.
126
Mesmo que possamos dar algum crdito s boas intenes originais de civilizao dos
ndios promovida a partir do perodo pombalino, possivelmente, resultado dos ventos
iluministas que sopravam sobre Portugal, houve, por trs de tudo, outros interesses que no s
o bem estar dos selvagens. O aldeamento dos ndios e a criao dos Diretrios282 para
administr-los datam, na regio, de 1768.
281
REQUERIMENTO do padre Francisco da Silva Campos, sem data. APM-CC, caixa 110, planilha 20.645.
282
Sobre o Diretrio dos ndios de 1757 e demais legislao indigenista portuguesa, sugerimos a leitura de
PERRONE-MOISS. Histria dos ndios do Brasil, p. 115-132. No caso especfico do Diretrio dos ndios,
elaborao do perodo pombalino, um de seus princpios bsicos foi a assimilao definitiva dos ndios aldeados,
incentivando a presena de brancos nas aldeias para acabar com a separao entre uns e outros, com vistas
civilizao dos ndios e explorao do seu trabalho. necessrio esclarecer que o Diretrio dos ndios foi
abolido em 1798, ainda que muito de seus preceitos continuassem vigorando em algumas regies, at o sculo
XIX. O prprio padre Manoel de Jesus Maria continuava a recorrer a ele, no ano de 1805, na sua queixa contra o
alferes Eugnio Jos da Silva e outros. REQUERIMENTO do padre Manuel de Jesus Maria, freguesia do Mrtir
So Manuel dos Sertes e Rio da Pomba e Peixe, sem data. APM-CC, caixa 35, planilha 30.054.
127
283
ANASTASIA. A geografia do crime, p. 84.
284
VASCONCELOS. Histria Antiga das Minas Gerais, p. 338.
285
CARTA do mestre-de-campo Incio Correia Pamplona para D. Rodrigo Jos de Meneses, Desempenhado,
quatro de junho de 1781. APM-CC, caixa 144, planilha 21.333. Nesse extenso relato, Pamplona queixava-se da
presena de soldados de Gois na rea que considerava de sua regncia.
128
povo e autoridades e cobrassem o seu preo pelas despesas de conquista e pelos riscos a que
estiveram expostos.
O padre Manoel de Jesus Maria foi o responsvel pela criao da freguesia do Mrtir
So Manoel do Rio da Pomba e Peixe dos ndios Corops e Coroados, desmembrada da
freguesia de Guarapiranga.286 O religioso, que exerceu forte influncia por quase cinquenta
anos nesta freguesia, pode no ser somente o grande apstolo dos ndios, como escreveu
Waldemar Barbosa ou o novo Anchieta nas selvas, implantando o Evangelho e vencendo o
demnio do gentilismo na fala do catlico conservador que foi Diogo de Vasconcelos.287
Apesar de Diogo de Vasconcelos no citar as fontes a partir das quais constri a herica
histria do padre Jesus Maria, trabalhamos com os mesmos registros entre os documentos
avulsos da Casa dos Contos. De uma anlise mais atual dos documentos, com toda a
considerao pelo historiador que foi Vasconcelos, uma outra figura do religioso pode ser
revelada, mesmo que concordemos, at certo ponto, com a imagem positiva que dele ficou
registrada.
Padre Jesus Maria, de acordo com o esprito de seu tempo, catequizou e reduziu os
ndios Corops e Coroados em aldeamentos. Desses aldeamentos resultou a aculturao
forada desses povos da floresta, a ocupao silenciosa de suas terras e a sua transformao
286
Para a uma rpida notcia da histria remota da freguesia de Guarapiranga, sugerimos a leitura da
Informao das antiguidades da freguesia de Guarapiranga. Cdice Costa Matoso, p. 255-260.
287
BARBOSA. Dicionrio histrico-geogrfico de Minas Gerais, p. 370; VASCONCELOS. Histria Mdia de
Minas Gerais, p. 208.
129
em mo de obra barata para os colonos que em sucessivas levas repartiram o espao antes
ocupado pelos ndios em sesmarias. Coube aos aldeamentos capitaneados por uma autoridade
religiosa (padres seculares ou regulares) e outra civil (o diretor dos ndios) domesticar e tornar
dceis os antes brabos gentios. So eles, provavelmente, a curiosa categoria denominada
empregados que aparece, ao lado dos escravos, lavrando a terra de 69 famlias
portuguesas arroladas por Guido Thomas Marlire, capito diretor geral dos ndios nas
vertentes do rio Ub em 1819.288 Famlias de portugueses, alis, contra os quais os ndios
fizeram diversas queixas ao governador de que estavam invadindo suas terras.
Em vista das restries legais escravizao dos ndios, previstas por uma
srie de leis, os colonos em Minas Gerais acabaram reproduzindo o costume
secular do instituto da administrao. Isso significava que os colonos
assumiam a posio de curadores particulares dos ndios dados como
incapazes. Em contrapartida, obtinham a prerrogativa de, sob o pretexto de
catequizar os nefitos, exercer sobre eles todo o controle, sem que isso
pudesse ser caracterizado como escravido, que, como se sabe, feria os
princpios legais. De fato, contornavam, assim, os problemas de ordem
jurdica e moral, justificando a sujeio pela necessidade de administrar a
doutrina aos ndios infiis. Na prtica, escamoteavam a manuteno das
relaes escravistas.290
O padre Jesus Maria, se foi o defensor dos ndios, foi tambm dos brancos que com ele
entraram para o serto. Talvez a melhor qualificao que podemos atribuir ao religioso fosse a
de mediador.291 Protegeu os gentios da cobia desmedida dos colonos por terras e mo de
obra, protegeu os colonos aplacando a ferocidade dos ndios e auferiu vantagens para si
prprio. Acumulou terras e escravos. Das terras que recebeu gratuitamente, depois de
benefici-las com benfeitorias, vendeu quatro fazendas entre 1775 e 1790 como veremos
288
MAPA dos portugueses com cultura nas vertentes do rio Ub, territrio dos ndios Coroados, aplicao da
Capela de So Janurio. Guidoval, 1 de abril de 1819. APM-CC, caixa 80, planilha 20.131.
289
RESENDE. Histria de Minas Gerais, v. 1, p. 225.
290
RESENDE. Histria de Minas Gerais, v. 1, p. 224.
291
LEVI. A herana imaterial, p. 51, nota 3. Vide, sobretudo, o conceito de mediador discutido por Giovanni
Levi ao longo do captulo IV, p. 173-201.
130
adiante , vendeu outra parcela em data que no sabemos precisar292 e ainda morreu
proprietrio em 1811. Tambm foi mediador entre aquela sociedade composta, de um lado,
por ndios, escravos e colonos e de outro por um Estado incapaz de dar conta da
administrao colonial sem a participao de sujeitos como ele.
Mesmo que a ocupao das terras indgenas fosse inevitvel, o vigrio dos ndios tinha
em seu poder, desde dois de maro de 1768, um documento que lhe dava amplas garantias
para ocupar as ditas terras, no s a ele mas tambm aos seus protegidos. Esse despacho que
292
CARTA de sesmaria de meia lgua em quadra do padre Francisco da Silva Guerra, 26 de outubro de 1818. Na
referida carta, o peticionrio declarou serem terras devolutas que compem de capoeiras e matos virgens entre o
dito rio de So Manoel e as quais o suplicante houve por compra feita ao falecido vigrio Manoel de Jesus
Maria. APM-SC 377, fl. 223.
293
CARTA de Manuel Jesus Maria, vigrio dos ndios Corops e Coroados, para D. Rodrigo de Souza Coutinho,
27 de agosto de 1799. AHU - Projeto Resgate MG, caixa 149, doc. 062.
131
alcanou do governador Lus Diogo que foi quem lhe deu a tarefa de catequizar os ndios
era para ele to importante que teve o cuidado de requerer de cada um dos sucessores de Lus
Diogo a sua confirmao. Referendaram a petio o conde de Valadares em 29 de junho de
1768, Furtado de Mendona em 27 de setembro de 1773, D. Antnio de Noronha em 31 de
maio de 1775, D. Rodrigo em 22 de fevereiro de 1780 e Luiz da Cunha Meneses em 21 de
novembro de 1783. Talvez receoso de problemas com esta constante necessidade de
confirmao, Jesus Maria, por volta de 1780, dirigiu-se diretamente Coroa e, trs anos
depois, em 23 de janeiro de 1783, recebia de D. Maria I, por seu Conselho Ultramarino, a
ratificao do que requeria desde 1768 e que tinha o teor seguinte:
O vigrio ganhava carta branca para si e para os seus e reclamava de quem mais
quisesse estabelecer-se na terra dos ndios. Assim fez nas diversas peties que encaminhou,
ora ao governador, ora a Lisboa, queixando-se dos muitos colonos que no s invadiam as
terras dos gentios, como tambm os escravizavam, ludibriavam, molestavam e os levavam
degradao pela cachaa. Em 1784, pedia providncias para que o alferes Eugnio Jos da
Silva e Joo de Almeida tirassem as suas criaes das capoeiras295 e plantaes dos ditos
ndios, que Joo Gracia sasse das invases que fizera e que o guarda-mor ngelo Gomes
no se fizesse senhor das terras da aldeia dos ndios herdeiros do falecido ndio Toms, que
se compem de muitas capoeiras e um grande laranjal.296
294
REGISTROS relativos posse de terra por parte do padre Manuel de Jesus Maria na freguesia de Mrtir So
Manuel, dos Sertes do Rio da Pomba e Peixe, aldeamento e catequizao dos ndios no perodo de 1768 a 1813.
APM-CC, caixa 109, planilha 20.629.
295
GUIMARES. Dicionrio da terra, p. 90. Capoeira a denominao empregada para as terras que j
haviam sido utilizadas para a produo de uma lavoura de gneros ou do produto de exportao e que se
encontravam em pousio. No perodo de descanso, essas terras desenvolviam uma vegetao secundria. Depois
de seis ou sete anos de pousio, a vegetao era derrubada cedendo lugar a uma nova cultura de alimentos.
296
APM-CC, microfilme rolo 504, planilha 10.266.
132
defendia os ndios, s que o fiel da balana inclinava-se discretamente para o lado dos brancos
quando estes eram seus protegidos.
Para sua sorte quem governava era Bernardo Jos de Lorena, conde de Sarzedas, que,
como percebemos, foi quem mais distribuiu sesmarias nas terras indgenas, desrespeitando,
inclusive, a referida Portaria de 1770 e as disposies do Diretrio dos ndios de trs de maio
de 1757. No seu despacho, de oito de maio de 1798, o governador foi taxativo: passe carta de
sesmaria. Antes, porm, como de praxe, Sarzedas consultou a cmara da Cidade de Mariana
que, em dez de maro, assim exarou seu parecer:
No pode haver dvida na concesso das terras que pretende por sesmaria o
reverendo Toms de Aquino Ferreira Quinto [...], por quanto esto
devolutas, posto que dentro das terras da Portaria dos ndios, mas sem que
prejudique a estes, antes til atual residncia do pretendente para a sua
civilizao.298
297
REQUERIMENTO do padre Toms de Aquino Ferreira Quinto, capelo na capela de Nossa Senhora da
Conceio do Turvo Grande do Chopot, 23 de dezembro de 1797. APM-CC, caixa 101, planilha 20.494.
298
Idem, ibidem. APM-CC, caixa 101, planilha 20.494. CARTA de sesmaria do padre Toms de Aquino Ferreira
Quinto. APM-SC 285, fl. 01.
133
No entanto, preciso que no nos esqueamos de que o padre Jesus Maria, como
praticamente todos os outros sacerdotes, era um funcionrio pago pela Coroa. Cumpriu
perfeitamente o papel que dele esperavam as autoridades coloniais e mesmo as de Lisboa.
Mesmo considerando que ele tenha acreditado profundamente na cristianizao dos ndios,
como um novo Anchieta, o fato que pacificou e civilizou os ndios tambm com o
objetivo de transform-los em mo de obra barata e, ao reuni-los nos aldeamentos, liberou a
grande rea que ocupavam para que os sesmeiros se espalhassem pelo serto do Pomba.
299
REGISTROS relativos posse de terra por parte do padre Manuel de Jesus Maria na freguesia de Mrtir So
Manuel, dos Sertes do Rio da Pomba e Peixe, aldeamento e catequizao dos ndios no perodo de 1768 a 1813.
APM-CC, caixa 109, planilha 20.629.
300
REQUERIMENTO do padre Manuel de Jesus Maria, freguesia do So Manuel dos Sertes do Rio da Pomba
e Peixe, 1782. APM-CC, caixa 87, planilha 20.251.
301
REQUERIMENTO do padre Manuel de Jesus Maria, freguesia do Mrtir So Manuel dos Sertes e Rio da
Pomba e Peixe, sem data. APM-CC, caixa 35, planilha 30.054.
134
de trs mil pessoas de toda a qualidade e j dando utilidade a Nossa Alteza Real nos seus
dzimos e na extrao de ouro, o que no podia o povo fazer enquanto o suplicante, por ordem
do dito general Lus Diogo no passou com grave risco de sua vida a residir nos incultos
matos entre gentios (grifos nossos). Depois de desfiar esse longo rosrio, terminou pedindo
a poro de terras em que planta sem ttulo de sesmaria. A essa altura, j havia vendido trs
pores de terra a Manoel Vieira de Souza por 180$000 ris, em 1775, a Antnio Vieira de
Souza por 160$000 ris, em 1778, e a Pedro Lemes Duarte por 350$000 ris em ano no
declarado, como tambm no declarou a roa das guas Claras vendida a Andr do Couto
Pereira em 1781 por 100$000 ris. Recebeu a merc desejada atravs de parecer do Conselho
Ultramarino de 20 de janeiro de 1783.302
A venda dessas terras, que renderam 790$000 ris, deve ter sido motivo de grandes
desassossegos para o reverendo. Seus inimigos o inquietavam e o acusavam de vender a terra
dos ndios. Queixava-se o padre de que estes servios que o suplicante tem feito a Vossa
Alteza Real se acham em esquecimento para com alguns que se atrevem a desabonar ao
suplicante, porque vivem fartos e cheios de vcios e no pesam nem ponderam o quanto custa
domar gentios (grifos nossos). Ele prprio procurava justificar-se dizendo que as vendas
tinham sido necessrias para cobrir grandes despesas que tivera com a cristianizao dos
ndios: fez o suplicante as ditas vendas para satisfazer parte de seu empenho, pagando juros e
ameaado de ser executado. Disse ter feito essas dvidas com a compra de bestas para levar
mantimentos aonde os tropeiros no iam por medo dos gentios, nas primeiras entradas, bem
como com a compra de escravos para plantar mantimentos e tudo quanto plantam at o
presente se consome no lugar, no s com os ndios, mas com todos os que entram para
povoar o serto, e nada vende, antes compra. Tinha o padre no somente o Evangelho a
proteg-lo, pois alegava que fizera tambm despesas para pagar camaradas para abrir picadas
e para defesa do suplicante, porque o medo natural em toda a gente.303 Nesse requerimento,
que data de 1782, bem no princpio da sua ao missionria, dizia que a escola do aldeamento
j estava fechada por falta de recursos. Quando morreu, em 6 de dezembro de 1811, deixou
uma fazenda. Seria necessrio localizar o seu testamento e o seu inventrio para que se
pudesse apurar sua riqueza ou saber se continuou sendo a miservel criatura de 1782,
quando se queixava das dvidas, tentava explicar a venda das terras e pedia outra sesmaria.
302
REQUERIMENTO do padre Manuel de Jesus Maria, freguesia do So Manuel dos Sertes do Rio da Pomba
e Peixe, 1782. APM-CC, caixa 87, planilha 20.251.
303
REQUERIMENTO do padre Manuel de Jesus Maria, freguesia do So Manuel dos Sertes do Rio da Pomba
e Peixe, 1782. APM-CC, caixa 87, planilha 20.251.
135
O padre Manoel Lus Branco nos deixou um curioso relato de suas expedies aos
sertes do rio da Casca e serra dos Arrepiados. Seguiu como capelo da entrada capitaneada
por Joo Pereira Martins e Antnio Lopes dos Santos, em setembro de 1780. Cartas
caprichosamente redigidas em um portugus refinado e enviadas a D. Rodrigo Jos de
Meneses a partir do serto, dizem mais respeito a um letrado a servio da Coroa ou a um
fazendeiro a servio de si prprio do que a um religioso preocupado com a catequese dos
ndios.
304
VASCONCELOS. Histria Mdia de Minas Gerais, p. 240.
305
CARTA do padre Manuel Lus Branco, Joo Pereira Martins e Antnio Lopes dos Santos para D. Rodrigo
Jos de Meneses , 13 de setembro de 1780. APM-CC, caixa 146, planilha 21.379.
306
MAPA da viagem realizada pelo padre Manuel Lus Branco para a serra dos Arrepiados por ordem do
governador Rodrigo Jos de Meneses. APM-CC, caixa 79, planilha 20.110.
136
primeira vista, poderamos considerar que suas observaes seriam meras anotaes
do que observaram os capites ou demais membros das entradas que acompanhou. Mas no,
ali esto as impresses de um homem conhecedor dos sertes e pessoalmente interessado em
explor-lo, tanto que, dois anos aps a primeira entrada, galgou novamente a abrupta serra dos
Arrepiados, acompanhando o sargento-mor Antnio Rodrigues da Costa, e cuidou de algumas
roas nas matas vizinhas ao rio Manhuau, conforme escreveu ao governador o coronel
Antnio Veloso de Miranda em sete de junho de 1782.307
Passados alguns anos, em 1790, o capelo, mesmo tendo terras para alm da serra dos
Arrepiados, j se encontrava estabelecido em sua sesmaria situada no morro e vertentes do
crrego do Sabo na barra do Bacalhau, freguesia de Guarapiranga. Essa sesmaria, alis, foi
medida e demarcada debaixo do protesto dos confrontantes e posseiros instalados naquelas
terras. Em 27 de setembro de 1790, ao fazer a citao, o escrivo Francisco de Paula Oliveira
e Silva listou diversos nomes, uns confrontantes e outros empossados das terras para
medio e demarcao. Entre eles estavam D. Ana Maria do Nascimento e seu filho Manoel
Caetano da Silva e Sousa. Ambos tentaram embargar a posse. D. Ana Maria era viva do
sesmeiro Jos de Sousa Borges que havia recebido carta de sesmaria naquela paragem em
1772. O doutor Antnio Jos Ferreira da Cunha Muniz, juiz das sesmarias do termo de
Mariana, no acolheu os embargos e deu a posse ao padre Manoel Lus Branco declarando na
sua sentena que os embargantes no apresentaram ttulo algum que sufragasse os seus
requerimentos nem as suas chamadas posses, totalmente nenhumas pelas referidas Ordens
Rgias. O juiz referia-se s Ordens Rgias de 13 de abril de 1738 e 27 de maro de 1757.
Tais ordens determinavam a medio e demarcao das posses no prazo de um ano.
Provavelmente, as terras mencionadas na carta de sesmaria que o falecido Jos de Sousa
Borges recebera em 1772 no haviam sido medidas e demarcadas, ficando, assim, a viva sem
o ttulo que exigia o juiz. D. Ana Maria denunciava, na sua petio, que o reverendo sesmeiro
j possua, alm da sesmaria que estava medindo e demarcando, uma na nova conquista dos
Coroados, outras na conquista dos Arrepiados.308
307
CARTA de Antnio Veloso de Miranda, Arrepiados, sete de junho de 1782. APM-CC, caixa 150, planilha
21.446.
308
AUTOS de sesmaria do padre Manoel Lus Branco, 1790. Casa Setecentista de Mariana, cdice 3, auto 116,
cartrio do 1 ofcio. Citaes das folhas 2 verso, 17 verso e 18 e 10 verso, respectivamente. CARTA de
sesmaria do padre Manoel Lus Branco, 1790. APM-SC 256, fl. 100. CARTA de sesmaria de Jos de Sousa
Borges, 1772. APM-SC 172, fl. 149.
137
Antes, porm, em 1780, entrou em atrito com o capito Francisco Farinho que o havia
impedido de acompanhar seu irmo, Manoel Farinho, em experincias minerais no rio
Chopot. Na troca de acusaes entre eles, Farinho enviou uma extensa carta ao governador
em que colocava em dvida a ao apostlica do padre e o acusava de invadir as terras
indgenas e de explorar a mo de obra dos nativos. Acusao que deve ser vista com reservas,
uma vez que Farinho, diretor dos ndios, tambm abusava de seu cargo, como veremos
adiante.
Da catequese dos ndios, por obra sua, temos parcas informaes, atravs dos relatos
das entradas. Parece-nos que mais do que a cruz, desejava oferecer aos ndios o machado e a
foice, a confiarmos nas queixas que o capito Farinho fazia dele. Nas duas ltimas semanas de
setembro de 1780, aps terem feito uma coivara e plantado a roa no meio das cinzas,
registrou o seguinte:
Antes que dela [da roa] nos apartssemos, resolvemos deixar sobre o altar
em que eu celebrava o sacrossanto sacrifcio da missa, um presente de
ferramentas que constou de um machado, uma foice, duas facas grandes e
trs pequenas, para que os gentios que sempre rodeavam a nossa comitiva o
viessem achar e recebessem com um sinal de ramo verde atado a cada pea,
e venha (sic) no conhecimento de que a nossa inteno toda cheia de
humanidade e que amamos a paz e s queremos, com afabilidade, reduzi-los
nossa Santa Religio.310
O zelo pela Santa Religio parece ter ficado nas bem traadas linhas. No final do ano
de 1783, o coronel-regente dos Arrepiados, escrevendo do Presdio de So Loureno,
queixava-se ao governador da falta de assistncia religiosa por onde o padre andava
309
CARTA de Francisco Pires Farinho, Rio Pomba, 28 de abril de 1780. APM-CC, caixa 36, planilha 30.072.
310
MAPA da viagem realizada pelo padre Manuel Lus Branco para a serra dos Arrepiados por ordem do
governador Rodrigo Jos de Meneses. APM-CC, caixa 79, planilha 20.110.
138
procurando ouro e terras: devo lembrar a V. Excia. que h grande necessidade de sacerdote
para desobrigar do preceito da quaresma passada a muitas pessoas desta Conquista.311
A explorao dos servios de ndios aldeados pelos religiosos j foi observada para
outros lugares da colnia. Em So Paulo, ao longo dos sculos XVII e XVIII, os padres
jesutas fizeram uso constante dos aldeamentos para, alm da catequese, disciplinar e
incorporar nos povos indgenas uma nova concepo do tempo e do trabalho, na qual a
diviso sexual do trabalho e a organizao rgida do tempo produtivo necessariamente
esbarravam nos conceitos pr-coloniais. Da mesma forma procederam os padres carmelitas,
franciscanos e beneditinos nos seus conventos e fazendas paulistas.313
311
CARTA de Antnio Veloso de Miranda sobre a situao da regio do presdio. Presdio de So Loureno, 20
de novembro de 1783. APM-CC, caixa 75, planilha 20.023.
312
AMANTINO. O mundo das feras, p. 72.
313
MONTEIRO. Negros da terra, p. 36-51, 47, 217 passim.
139
O capito Francisco Pires Farinho entrou para o serto com seu irmo Manoel Pires
Farinho como parte da escolta do padre Manoel de Jesus Maria. Sua presena e autoridade na
regio do Pomba e Peixe foram, a partir de ento, marcantes. Foi de 1768 a 1812 o diretor do
aldeamento, mas ele mesmo informa que desde novembro de 1757 j tivera os primeiros
contatos com os ndios Corops e Coroados. Segundo ele, em carta, com bastante risco de
vida e despesa de sua fazenda, despojado dos seus arrimos reduziu os referidos ndios paz,
que andavam matando e queimando casas, causando vrios distrbios na freguesia de Nossa
Senhora da Conceio de Guarapiranga.314 Farinho era, outrossim, quem informava cmara
de Mariana a respeito dos requerimentos de sesmarias.
As relaes entre eles no deveriam ser muito tranquilas. Nas cartas que o padre Jesus
Maria enviou, em 1799, ao governador e a Lisboa, o religioso atacou Francisco Farinho, ento
diretor dos ndios, ao reclamar da doao de sesmarias nas terras indgenas, o que vem
dividir os ndios e usurpar as suas melhores terras, observando a inao e silncio do diretor,
314
REQUERIMENTO do capito comandante Francisco Pires Farinho, diretor dos ndios Coroados no Mrtir
So Manuel do rio Pomba e Peixe, sem data. APM-CC, caixa 79, planilha 20.113.
315
REQUERIMENTO do padre Manuel de Jesus Maria, freguesia do So Manuel dos Sertes do Rio da Pomba
e Peixe, 1782. APM-CC, caixa 87, planilha 20.251.
140
assaz agravado de anos e trabalhos.316 Alis, essa idade provecta foi um dos motivos para
que, em 1806, fosse, a princpio, recusado o pedido de Farinho para sua manuteno no cargo
que vinha ocupando havia quase quarenta anos. Informou o capito-mor Antnio Alves
Pereira ao governador D. Pedro Xavier de Atade e Mello que a decrpita idade do
pretendente e mesmo o no estar livre de um crime e morar muito distante do lugar de que
capito e diretor, no pode o continuar em empregos de tanta ponderao.317 Mas ele
continuou, pois, ainda em 1812, o alferes Felisberto Antnio Leal reclamava contra o diretor
dos ndios Coroadoss, o capito Francisco Pires Farinho, que o perturba e inquieta da posse
das suas terras e de outras que possui por ttulo de compra.318 No sabemos com exatido se
Farinho perturbava o alferes, que era portugus, para proteger os ndios, ou se era porque os
antigos moradores, como ele, no viam com bons olhos a chegada dos portugueses freguesia
do Pomba.
Apesar de Francisco Farinho ter ocupado o cargo de diretor dos ndios por muitas
dcadas, ainda no tivemos acesso a documentao que pudesse melhor esclarecer sua
presena nos sertes dos rios da Pomba e Peixe. Talvez a consulta a outras fontes, tais como
inventrio e testamento se existirem , contribua para nos trazer uma imagem mais ntida
desse potentado. Talvez os mais de trezentos cdices da Seo Colonial do Arquivo Pblico
Mineiro, cujos contedos s em pequena parte esto inventariados, possam elucidar outros
aspectos dessa ainda plida figura. Todavia, at que as fontes digam o contrrio, no que afeta
s questes indgenas, sobretudo as relativas s suas terras, ficou-nos uma impresso positiva
do diretor Farinho, se comparada com a imagem estampada pela documentao em outros
colonos que se diziam civilizadores dos gentios. Entretanto, uma outra busca na
documentao colonial de Minas e a localizao do seu inventrio podem apagar de vez essa
primeira impresso.
316
CARTA de Manuel Jesus Maria, vigrio dos ndios Corops e Coroados para D. Rodrigo de Souza Coutinho,
1799. AHU - Projeto Resgate MG, caixa 149, doc. 062.
317
REQUERIMENTO do capito Francisco Pires Farinho, freguesia de So Manuel do Rio da Pomba e Peixe,
11 de janeiro de 1806. APM-CC, caixa 81, planilha 20.148.
318
CARTA do brigadeiro e deputado Antnio Jos Dias Coelho, Vila Rica, 24 de abril de 1812. APM-CC, caixa
34, planilha 30.030.
141
319
REQUERIMENTO do capito comandante Francisco Pires Farinho, diretor dos ndios Coroados no Mrtir
So Manuel do rio Pomba e Peixe, sem data. APM-CC, caixa 79, planilha 20.113.
320
Idem, ibidem. APM-CC, caixa 79, planilha 20.113.
142
Mesmo que o religioso no tivesse previsto a demarcao da terra indgena, ela deve ter
acontecido, caso o seu projeto tenha vingado, mas, como de costume, mais provvel que
tenha sido invadida.
A proposta do diretor dos ndios Corops, capito Silvestre Antnio Vieira, 42 anos
depois da portaria de 1770, de reunir os gentios no distrito da freguesia de So Manoel do Rio
da Pomba tambm era complicada. A sesmaria que propunha reservar para todos os ndios
seria de sete lguas em quadra, acompanhando as duas margens do rio da Pomba. No
requerimento datado de 1 de junho de 1812, fazia uma proposta um tanto quanto complicada.
Por um lado, previa a incorporao dos ndios no mundo civilizado e nas rotinas do trabalho,
por outro conferia ao seu diretor poderes para castig-los caso no cumprissem suas
determinaes. O documento deixa transparecer tambm que a sesmaria de sete lguas, rio
Pomba abaixo, principiando a sua medio na divisa da fazenda do falecido vigrio Manoel
de Jesus Maria at onde inteirar as ditas sete lguas321 j estava parcialmente ocupada por
portugueses, com os quais deveriam ser feitos acordos para sua permanncia tambm na
demarcao. Sugeria que os portugueses s ficassem com quantidade de terras necessrias
para as suas lavouras e que, mesmo essas, fossem indenizadas aos ndios em metade do seu
valor. No defendia a desocupao e sim, esse pagamento:
Vista a sua injusta aquisio, pois que os que aqui se acham no referido
terreno, quando se estabeleceram, j estas terras estavam cultivadas pelos
ndios, a quem uns enganaram com contratos capciosos e lesivos; outros
deitaram fora os ndios possuidores, espancando-os e ameaando-os,
obrigando-os, desta sorte, a entranharem-se mais nos matos, o que
diametralmente oposto sua civilizao.322
321
REQUERIMENTO de Silvestre Antnio Vieira, capito do distrito e diretor dos ndios Corops, 1812. APM-
CC, caixa 109, planilha 20.629. Por tratar-se de documento extremamente curioso e esclarecedor para a
compreenso da mentalidade dos colonos em relao aos autctones, reproduzimos o requerimento
integralmente no Anexo 5.
322
Idem, ibidem. APM-CC, caixa 109, planilha 20.629.
323
CARTA de sesmaria de Silvestre Antnio Vieira, 26 de outubro de 1798. APM-SC 285, fl. 116. Ver tambm
os cdices SC 286, SC 289, SC 293 e SC 299.
143
ndios era cargo a que muitos aspiravam, sobretudo, em se tratando de fazendeiros instalados
nas terras indgenas ou nas suas proximidades.
Alm das terras ocupadas logo que chegou nova freguesia nas proximidades do
arraial de So Manoel do Rio da Pomba, a famlia comprou duas fazendas do padre Jesus
Maria. Na primeira compra, em 1775, Manoel Vieira de Souza pagou 180$000 ris por uma
fazenda [que] se compe de terras de cultura com capoeiras e matos virgens e confrontam
pelo dito ribeiro acima com terras de Antnio Vieira e, em certo lado, parte tambm com o
crrego em que mora o ndio Domingos Ferreira, que pertence aos ndios. Trs anos depois,
o irmo Antnio Vieira de Souza comprou, por 160$000 ris, as terras [que] se compem de
matos virgens e partem correndo ribeiro [de So Manoel] acima com Manoel Vieira de
Souza e pelas mais partes, com quem deva e haja de confrontar.324 Em 1797, o reverendo
Jos Vieira de Souza e seu irmo Joaquim Vieira de Souza pediram sesmaria na paragem da
Boa Vista. Como seus confrontantes foram citados os seus irmos Manoel, Antnio e seus
primos ou irmos Francisco Vieira de Souza e Silvestre Antnio Vieira, alm de Sebastio
da Silva e Francisco de Souza Lima, sendo que esses dois confrontantes cujos nomes os
declarantes omitiram foram informados pela cmara de Mariana no seu parecer.325 No
mesmo ano, Francisco e Silvestre tambm pediram sesmaria na paragem do Crrego Novo e
tambm reconheceram seus parentes Manoel e Antnio como confrontantes. Mais uma vez, a
cmara incluiu os nomes dos j mencionados Sebastio da Silva e Francisco Lima e um
terceiro, Alexandre Pereira Caramona.326 Dos trs confrontantes que os irmos Vieira
324
REGISTROS relativos posse de terra por parte do padre Manuel de Jesus Maria na freguesia de Mrtir So
Manuel, dos Sertes do Rio da Pomba e Peixe, aldeamento e catequizao dos ndios no perodo de 1768 a 1813.
APM-CC, caixa 109, planilha 20.629. Entre esses documentos esto algumas escrituras de venda de terras do
padre Manoel de Jesus Maria, cujas cpias foram lavradas em oito de agosto de 1800.
325
APM-CC, caixa 101, planilha 20.494 (documento original).
326
APM-CC, caixa 101, planilha 20.494 (documento original). Segundo OLIAM JOS. Indgenas de Minas
Gerais, p. 19, Caramons eram povos indgenas que habitavam as serras que serviam como divisores entre os
rios Doce e Pomba, exatamente na regio dessas sesmarias, aos quais os portugueses tambm chamavam
caramonas.
144
omitiram nos seus requerimentos, Caramona, com certeza, era ndio e os demais
provavelmente tambm eram. Podemos afirmar que, passados cerca de vinte anos das
referidas compras, os ndios desapareceram, na documentao, como confrontantes das terras
da famlia Vieira de Souza.
327
REQUERIMENTO do alferes Manuel Vieira de Souza e seu irmo Antnio Vieira de Souza, 19 de dezembro
de 1797. APM-CC, caixa 101, planilha 20.495.
328
CARTA de sesmaria de Maria Joaquina Caetana da Silveira, trs de abril de 1797. APM-SC 265, fl. 165
verso.
329
CARTA de sesmaria de Antnio Vieira de Souza, 26 de outubro de 1798. APM-SC 285, rolo 60, fl. 114.
330
CARTAS de sesmaria de Jos Ribeiro Forte, 1753 e 1772. APM-SC 106, fl. 16 verso e APM-SC 172, fl. 139
verso.
331
CARTA do brigadeiro e deputado Antnio Jos Dias Coelho, Vila Rica, 24 de abril de 1812. APM-CC, caixa
34, planilha 30.030.
332
ATESTADO do brigadeiro e deputado Antnio Jos dias Coelho sobre a compra integral das terras
pertencentes aos ndios na freguesia de So Manuel da Pomba. Vila Rica, 24 de abril de 1812. APM-CC, caixa
01, planilha 10.035.
145
Dizemos que seus pareceres eram relativamente imparciais, j que ele no teria
instrumentos para reverter a avalanche de ocupaes que passaram a ser feitas nas terras
indgenas a partir de 1797. Mostrava-se, no entanto, sensibilizado com a questo e propunha
uma soluo mediadora:
333
CARTA do brigadeiro e deputado Antnio Jos Dias Coelho, Vila Rica, 24 de abril de 1812. APM-CC, caixa
34, planilha 30.030.
334
No desnecessrio lembrar que as margens do rio Doce prximas do Esprito Santo, sobretudo a esquerda,
permaneceram devolutas at quase o final do sculo XIX e habitadas pelos Botocudos e muitos trechos at
mesmo meados do sculo XX, como a regio da atual cidade de Governador Valadares, antigo Porto da Figueira
do Rio Doce, somente desbravada a partir de 1930.
335
Sobre o coronel Marlire sugerimos consultar AGUIAR. Memrias e histria de Guido Thomaz Marlire.
146
O padre Jesus Maria, numa petio sem data, mas provavelmente de 1805, queixava-
se ao governador de que o alferes Eugnio Jos da Silva, Joo de Almeida Lima, o guarda-
mor ngelo Gomes e Joo Gracia andavam todos [a] tomarem as terras, capoeiras e
plantaes dos ditos ndios e mandando queimar alguns ranchos dos ndios. A queixa maior
do padre era a respeito da fabricao de cachaa entre as aldeias. Dizia ser gnero muito
perniciosssimo (sic) e proibido entre ndios na forma do Rgio Diretrio, pargrafo 41.
Pedia que se proibisse aos suplicados alferes Eugnio e Joo de Almeida Lima de levantar ou
assentar [a]lambique ou fabricar cachaa e que tivessem parol ou pipa de cachaa para
vender aos ndios, pois gnero com que enganam aos ndios e os costumam levar por todo
o serto para ganharem cachaas.336
336
REQUERIMENTO do padre Manuel de Jesus Maria, freguesia do Mrtir So Manuel dos Sertes e Rio da
Pomba e Peixe, sobre as providncias com relao ao alferes Eugnio Jos da Silva e Joo de Almeida Lima pela
invaso e incndio nas terras indgenas e fabricao de cachaa para os ndios, sem data. APM-CC, caixa 87,
planilha 30.054.
337
REQUERIMENTO de Pedro Fernandes, Manuel Incio, Antnio Vicente e Francisco Vicente sobre a
proteo aos ndios corops contra invasores, 23 de setembro de 1805. APM-CC, caixa 102, planilha 20.506.
147
lguas de terras de ndios.338 Mas o tal Lino Moreira, nem beira da morte, desistia de
instalar-se nas terras indgenas. Dois anos depois, o brigadeiro Dias Coelho continuava a
queixar-se do invasor, que havia sido expulso da primeira localizao e invadira outra:
Essas denncias precisam ser vistas com muito cuidado, porque elas podem revelar
outros interesses alm da defesa dos ndios. O diretor Francisco Farinho ao denunciar a
invaso de terras indgenas pelo padre Manoel Lus Branco, deixava transparecer um conflito
antigo entre ele o sacerdote. As frequentes reclamaes de ocupao das demarcaes de
terras dos ndios por portugueses tambm podem ser resultado de uma inquietao dos mais
antigos moradores com a crescente chegada de adventcios muitos deles portugueses para
disputarem com eles a expanso das fronteiras.
338
CARTA de Francisco Pires Farinho, Rio Pomba, 19 de junho de 1820. APM-CC, caixa 81, planilha 20.148.
339
CARTA do brigadeiro e deputado Antnio Jos Dias Coelho, Vila Rica, 24 de abril de 1812. APM-CC, caixa
34, planilha 30.030.
340
APM-CC, caixa 102, planilha 20.501 (documento original).
148
Para responder aos suplicantes, Lorena, em cinco de dezembro de 1803, deu o seguinte
despacho na petio: se o suplicado [Joo Henriques] apresentar carta de sesmaria, no tem
lugar o requerimento do[s] suplicante[s], que deve[m] usar dos meios competentes.341 De
fato, Joo Henriques tinha a carta de sesmaria para aquela paragem passada no ano de
1769.342 Nenhum dos suplicantes aparece com requerimento de sesmaria nos livros da
Secretaria de Governo da capitania.343 A paragem estava nas proximidades das terras
indgenas. Os tais meios competentes que o governador sugeriu seriam a justia comum.
No sabemos o desdobramento da histria, mas tudo nos leva a crer que os suplicantes eram
ndios e que tiveram suas terras usurpadas. O indcio que nos leva a essa crena a
coincidncia dos nomes de dois deles, Antnio Vicente e Luciano, com os listados numa
petio de 1805 em que se queixavam contra um alferes Eugnio e Joo de Almeida na
mesma regio.
[...] Principiando a medio donde findar uma sesmaria que tem pedido
Manoel [Carvalho] Gonalves, correndo ribeiro [de So Geraldo] acima,
fazendo pio de qualquer das partes do mesmo ribeiro ou onde e mais
conveniente for, cujas terras e matos correndo ribeiro acima, confrontam
com terras e matos gerais devolutos.344
341
APM-CC, caixa 102, planilha 20.501 (documento original).
342
CARTA de sesmaria de Joo Henriques, 30 de outubro de 1769. APM-SC 172, fl. 20 verso.
343
RAPM , ano XXXVII, vol. 1 e 2 (Catlogo de Sesmarias).
344
CARTA de sesmaria de Manoel Carvalho Gonalves, 30 de outubro de 1769. APM-SC 172, fl. 20 verso e fl.
18.
149
345
REQUERIMENTO do ndio Francisco Rodrigues, de nao Coroado, ao governador da capitania de Minas
Gerais, Presdio de So Joo Batista, 1814. APM-CC, caixa 34, planilha 30.030.
346
RESPOSTA de Guido Thoms Marlire representao feita pelo ndio Coroado Francisco Rodrigues contra
Antnio Gomes dos Santos e, indiretamente, contra o prprio Marlire, Quartel do Presdio de So Joo Batista,
trs de junho de 1815. APM-CC, caixa 34, planilha 30.030.
150
confessou dera 30$000 pelas ditas terras, depois de haver entrado nas mesmas com mo
armada e passado um ano dentro, motivo pelo qual foi expulso por ordem do governador
anterior, conde da Palma.
Enfim, o diretor dos ndios fez o maior malabarismo para desqualificar a petio de
Francisco, isentar da culpa a Antnio Gomes, envolver Francisco de Oliveira se que este
de fato existia para, por fim, ficar com as terras como ele mesmo declarou:
O suplicado [neste caso Marlire], desde ento, est na pacfica posse da sua
aldeia e terras adjacentes, da qual ningum mais o perturbou. As terras
intermedirias entre aquele ndio e o suplicado [neste caso Antnio Gomes],
a rogo deles mesmos, foram adjudicadas a ele, com a condio de erigir um
moinho de igual valor neste Presdio para os ndios, cujo rendimento ser
aplicado para o sustento dos meninos ndios que vierem aula de primeiras
letras instituda pela Junta Militar em 1 de abril de 1814 [...]; e espero que
uma instituio to Pia ter a sano de V. Excia, que pode ficar persuadido
que todo o meu desvelo empregado a benefcio dos mesmos ndios, at
com muita despesa minha.347
347
Idem, ibidem. APM-CC, caixa 34, planilha 30.030.
348
No seria exagero trazer para a realidade colonial portuguesa na Amrica, guardadas as devidas propores, o
que Thompson apontava para a sociedade inglesa do mesmo perodo: [...] Foi essa combinao especfica de
fraqueza e fora que criou a iluminao geral em que todas as cores desse sculo esto imersas, que atribuiu
aos juzes e aos magistrados o seu papel, que tornou necessrio o teatro da hegemonia cultural e escreveu o seu
roteiro paternalista e libertrio, que proporcionou multido a sua oportunidade de protestar e exercer presso,
que formulou os termos de negociao entre a autoridade e os plebeus, e que estabeleceu os limites que a
negociao no podia ultrapassar. THOMPSON. Costumes em comum, p. 78.
151
Guido Marlire, antes de se tornar diretor dos ndios, j havia sido agraciado em 1812,
ou melhor, presenteado, por ser dia de natal, com uma sesmaria na paragem do Rio Novo,
caminho do Rio de Janeiro, termo de Barbacena.
Nos anos de 1811 a 1819 h uma sequncia de dezenas de sesmarias doadas ao longo
da nova estrada que se abriu do Pomba para os Campos dos Goitacases. Em muitas delas
declarava-se ser em terras devolutas no cultivadas por outra alguma pessoa, partindo por
todos os lados com o serto, como a do sargento-mor Manoel Escrcia da Fonseca, morador
no termo de Macacu, no Rio de Janeiro.349 Todas elas recebiam parecer favorvel da cmara
de Mariana que, s vezes, limitava-se a informar, laconicamente, que no se ope por ser
serto devoluto.
349
REQUERIMENTO de sesmaria do Sargento-mor Manoel Escrcia da Fonseca, Macacu, 23 de abril de 1813.
APM-CC, caixa 34, planilha 30.030. No citamos aqui os demais requerimentos que constam da mesma caixa e
planilha. CARTA de sesmaria do Sargento-mor Manoel Escrcia da Fonseca, dez de maio de 1814. APM-SC
363, fl. 9 verso.
350
RESENDE. Histria de Minas Gerais. v. 1, p. 224-226.
351
CARTA do capito e diretor geral Guido Thoms Marlire ao governador D. Manuel de Portugal e Castro,
Quartel do Guidovale, 1 de abril de 1819. APM-CC, caixa 47, planilha 30.288. Para melhor visualizar o local
descrito por Marlire, vide mapa do Anexo 1.
152
De toda essa enorme extenso territorial, pela informao do coronel Marlire, grande
conhecedor da regio, somente uma pequena rea foi, de fato, demarcada aos ndios. Tratava-
se da demarcao de duas lguas e meia de comprido por trs quartos de lgua de largura
determinada pela portaria de 1770, no ribeiro do Turvo, vertentes do rio Chopot, alis,
muitas vezes desrespeitada e invadida. Na descrio de Marlire, corresponderia s vertentes
da serra de So Geraldo, ao norte da freguesia do Pomba. No foi feita outra demarcao, o
prprio Guido Marlire atesta isso ao dizer que tais so os limites que conheo e em que
nasceram os ndios, porm, no me consta que houvesse ato algum de demarcao jurdica
mais e [corrodo] exceo da freguesia de So Manoel /da qual era anexo o Presdio de So
Joo Batista, hoje freguesia/ a favor dos ndios Coroados e Corops. Ele estava se referindo
demarcao da Portaria de 1770 numa concluso recheada de mentiras que, segundo ele:
Esse documento, mesmo sucinto, diz muito da figura de Marlire. Enaltecido pela
historiografia tradicional353 no podemos negar a importncia do conhecimento e dos
estudos que fez das culturas indgenas com as quais teve contato , mentia, explorava a mo
de obra, usurpava e vendia as terras indgenas. O seu quartel era uma referncia a si prprio:
GuidoWal vezes Guidowale, Guidoval, Guidovale. Trazia da sua formao militar
francesa, da sua erudio e das lnguas alem, inglesa e francesa uma exaltao sua pessoa.
As palavras de origem alem Wald (floresta, bosque), inglesa Wall (fortaleza, muralha) e
352
CARTA do capito e diretor geral Guido Thoms Marlire ao governador D. Manuel de Portugal e Castro,
Quartel do Guidovale, 1 de abril de 1819. APM-CC, caixa 47, planilha 30.288. Este documento, apesar de ser o
encaminhamento do Mapa dos portugueses existentes com culturas nas vertentes do rio Ub..., foi encontrado
por acaso, pois estava separado do dito mapa que foi localizado na caixa 80, planilha 20.131, do mesmo fundo.
353
OLIAM JOS. Indgenas de Minas Gerais, p. 145-161.
153
francesa Val (pequeno vale) que formam o topnimo so significativas: Floresta do Guido,
Fortaleza ou Quartel do Guido ou Vale do Guido.354
Quadro 6
Mapa dos portugueses existentes com cultura nas vertentes do rio Ub, territrio dos
ndios Coroados (1819)
Lugares Pessoas da Escravos Empregados Soma
famlia
Boa Vista 6 32 17 55
Barra do Ub 15 27 - 42
Mira-Paya 6 24 - 30
Santo Anastcio 5 16 2 23
So Janurio 11 4 - 15
Atalaya 5 3 - 8
Ub 67 68 20 155
Cachoeira 20 21 5 46
Santo Antnio 130 44 78 252
Serra 12 7 2 21
Pinhal 1 3 - 4
Pinhal do Ub 6 5 - 11
Bom Retiro 2 14 3 19
Crrego Alegre 34 4 10 48
Glria 6 - 22 28
Feijo Mido 6 - 1 7
Arrayal de So Janurio 20 - - 20
Total de pessoas 352 272 160 784
PERCENTUAIS 44,90% 34,70% 20,40% 100,00%
Fonte: APM-CC, caixa 80, planilha 20.131.
354
H na Zona da Mata mineira duas cidades cujos nomes so Guidoval e Marliria. O coronel foi duplamente
homenageado em Minas Gerais.
154
A anlise do mapa e da tabela que dele se extraiu nos sugere algumas consideraes. A
primeira que dos 69 fazendeiros listados, somente quatro aparecem nos cdices coloniais
com requerimentos de sesmarias. Como veremos logo a seguir, o mapa demonstra que muitos
desses fazendeiros tinham mo de obra suficiente para movimentar grandes parcelas de terra.
A inexistncia da carta de sesmaria de forma alguma os desqualifica enquanto proprietrios,
ficando os mesmos na condio de posseiros. Condio que, segundo Mrcia Motta, foi se
tornando cada vez mais frequente:
355
MOTTA. Nas fronteiras do poder, p. 123.
155
(37,04%) empregados. Estamos sempre destacando essa ltima categoria, pois suspeitamos
que, a essa altura, ela estaria formada de ndios ou seus descendentes j usurpados de suas
terras e reduzidos ao cativeiro. Chegamos a essa afirmativa a partir de uma leitura atenta do
requerimento de Silvestre Antnio Vieira, diretor dos ndios Coroados, j mencionado
anteriormente.
Alm dos dados quantificveis, o mapa ainda nos esclarece que os principais gneros
agrcolas cultivados por esses portugueses eram, pela ordem de maior ocorrncia nos
registros: mantimentos (61), cana (14), milho (6), algodo (5) e mandioca (1). Esta ltima
informao do mapa bastante nebulosa, j que no gnero mantimentos podem ser
considerados todos os citados, exceto o algodo, e muitos outros no especificados por serem,
talvez, de menor importncia econmica.
156
De qualquer maneira, algumas reflexes preliminares podem ser feitas com base
nessas esparsas informaes, sendo o desejvel a busca de dados mais seguros em novas
pesquisas. Mas mais provvel que a inteno dos informantes Marlire e os prprios
fazendeiros ao declararem os gneros que cultivavam estivesse mais atrelada necessidade
de legitimar a posse dessas terras que, como vimos, no tinham ttulos de sesmaria. Para
Mrcia Motta:
356
MOTTA. Nas fronteiras do poder, p. 126.
357
CARTA do brigadeiro e deputado Antnio Jos Dias Coelho, Vila Rica, 24 de abril de 1812. APM-CC, caixa
34, planilha 30.030.
157
decisivo na ocupao das vertentes do rio da Pomba.358 Pela leitura das cartas de sesmarias
concedidas a partir de 1810, possvel perceber as seguintes regies de fixao dos novos
colonos, caminhando na direo do rio Paraba, na divisa com o Rio de Janeiro: Rio Novo,
estrada do Presdio de So Joo Batista a So Fidlis, nova estrada do Rio Novo a Cantagalo,
barra do rio da Pomba com o rio Paraba. Muitos tambm se instalaram nas vertentes dos
ribeires e crregos que desaguavam no rio da Pomba, j prximo sua barra com o Paraba,
ou dos cursos dgua que vertiam para a margem mineira do Paraba. Outros tantos pediram
sesmarias, no mesmo perodo, mais ao sul, nos sertes do rio Preto ou direita do Caminho
Novo de quem sobe do Rio de Janeiro, no rio Cgado (atual Mar de Espanha), termo da vila
de Barbacena.359 Se pudssemos, observando a cronologia das cartas de sesmaria e os mapas,
esboar, grosso modo, uma figura dessa marcha, ela teria uma forma triangular. Um dos
vrtices desse tringulo estaria no arraial de Guarapiranga, por onde comearam as entradas
por volta de 1750 e os outros dois na barra do Pomba com o Paraba, ao norte, e nas
cabeceiras dos rios do Peixe e Preto ao sul.
358
FARIA. A colnia em movimento, p. 195-205. A autora j indicou a presena marcante de portugueses na
regio de Campos dos Goitacases ao longo do sculo XVIII. Segundo ela, o cultivo da cana-de-acar tornou
ainda mais atraente a entrada de homens e de capitais. Grande parte deles era natural de Portugal. Dada a
proximidade das regies, a abertura de estradas e o crescente cultivo da cana-de-acar, aventamos a hiptese da
possibilidade de parte dessa migrao ter se deslocado, no final do XVIII e incio do XIX, para a regio do rio da
Pomba.
359
APM-SC 352 (1810-1814), SC 363 (1814-1817), SC 377 (1817-1819) e SC 384 (1819-1821).
158
da Purificao, Joaquim Jos de Moura Basto e Felisberto Antnio Leal diziam que
confrontavam por todos os lados com matos devolutos. Todavia, alguns dias antes, Clara
Eugnia Ferreira pedira sesmaria na mesma localizao e informara que Rita Ferreira da
Purificao era sua vizinha por um lado e pelos demais eram matos incultos.360 Foi tambm
assim que declararam em suas peties os primeiros primeiros? moradores do ribeiro do
Joo no caminho novo para os Campos dos Goitacases, da outra parte do rio da Pomba:
Antnio Escrcia da Fonseca, Jos de Amorim Lima, Incio da Veiga Barbuda de
Vasconcelos, Francisco da Costa Albornoz, Antnio Francisco de Vasconcelos e Manoel
Escrcia da Fonseca. Eles pediram as terras no final do ms de abril e incio de maio de 1814
e afirmaram que dividiam por todos os lados com o serto.361
Na leitura dos onze ltimos cdices que registram as cartas de sesmaria (1797 a 1821)
foram rarssimos os casos em que os sesmeiros, pedindo terras nos territrios indgenas,
apontavam algum ndio como confinante. Percebemos que medida que se caminhava para o
final do perodo colonial, a pessoa do ndio reconhecida como confrontante e possuidor de
terras vai desaparecendo. No seu lugar fica somente o serto.
360
REGISTROS de sesmarias (1797-1798). APM-SC 275, microfilme rolo 58, fl. 64-67 verso.
361
REGISTROS de sesmarias (1813-1814). APM-SC 363, microfilme rolo 84.
159
1817, Manoel Gomes da Silva e Domingos Coelho Leal, em 1818, e Luiz Gomes de Oliveira
Freitas, em 1819, registravam ndios em suas confrontaes. Usando expresses pejorativas,
Manoel Gomes dizia confrontar com a terra dos caramona, Domingos Coelho com os
herdeiros do caramona e Luiz Gomes com o ndio chamado Miguel Gordo.362
Essa queixa dos ndios Coroados, do ano de 1805, um dos documentos mais
esclarecedores sobre a ocupao das terras indgenas dos sertes da Pomba e Peixe, em geral,
e da usurpao das terras reservadas pela Portaria de 1770, em particular. Reclamaram os
362
Na sequncia das citaes: APM-SC 285, fl. 64; SC 275, fl. 182; SC 285, fl. 124; SC 286, fl. 12 verso; SC
275, fl. 122; SC 275 fl. 260, 262 verso e 264; SC 289 fl. 151verso; SC 363, fl. 194 e SC 377, fl. 188, 219 e 280.
363
CARTA de sesmaria de Antnio Ferreira de Barros, 1798. APM-SC 275, fl. 262 verso.
160
ndios ou algum em seu nome ao governador Pedro Xavier de Atade e Mello, num texto
um tanto quanto confuso:
Dizem os ndios dos sertes das vertentes do rio Chopot dos Coroados que
de presente tm notado que se medem sesmarias que por engano que fizeram
os consorciados dos mesmos ao Ilmo. Sr. Bernardo Jos de Lorena; por ele
dito senhor foram concedidas sobre as terras e aldeamentos dos suplicantes,
sendo eles mesmos interessados [sesmeiros] os informantes uns dos outros e
assim fizeram o engano ao dito senhor e Cmara da Cidade [de
Mariana].364
364
CARTA dos oficiais da cmara de Mariana sobre a retirada dos ndios nos sertes do rio Chopot, Mariana,
cinco de novembro de 1805. APM-CC, caixa 81, planilha 20.148.
365
Idem, ibidem. APM-CC, caixa 81, planilha 20.148.
366
Idem, ibidem. APM-CC, caixa 81, planilha 20.148.
161
sesmarias, no est entre os 1.000 sesmeiros que pediram confirmao de suas sesmarias
Coroa367 e nem foi mencionado como confrontante por cerca de 150 sesmeiros da regio,
cujas cartas de doao observamos mais detidamente. Seria proprietrio de terras por compra
ou herana ou era um simples posseiro?
O coronel Joo Antnio Rodrigues dos Santos, por sua vez, numa longa resposta, dizia
que o local da contenda havia sido desamparado pelos ndios em sua natural inclinao de se
entranharem aos matos. Segundo ele, na rea do conflito j habitavam mais de quatrocentos
portugueses e cem escravos, mais ou menos. Esclarecia que a princpio aquelas reas
sempre foram proibidas, no tanto a respeito dos suplicantes ndios, [mas] como por se
evitarem extravios [de ouro] pelos Campos dos Goitacases. Todavia, a partir de 1788,
continuava o coronel-fazendeiro, se franqueou nestas mesmas reas um quarto de terra a
quem fosse de boa vida e costumes, que habitasse entre os suplicantes ndios sem prejuzo dos
seus terrenos. Acontece, que os ditos portugueses no contentes com o indulto de um quarto
de terras entraram a maquinar sesmarias e precedendo (sic) informaes de no serem reas
proibidas, conseguiram muitas cartas em aquele ribeiro do Ub, tantas que, a medirem-se,
nele no cabem.
367
BOSCHI (org.). Inventrio dos manuscritos avulsos relativos a Minas Gerais existentes no Arquivo Histrico
Ultramarino (Lisboa).
368
APM-SC 275, microfilme rolo 58, gaveta G4.
162
coronel Joo Antnio, no fecho da sua informao cmara, dizia que nos ditos sertes se
no poder medir sesmaria alguma sem compreender capoeiras de ndios. Ou seja, a nica
forma para se instalar ali como sesmeiro era atravs da invaso da terra indgena j de alguma
maneira amanhada: as capoeiras.
Passada por toda essa cadeia hierrquica de oficiais das ordenanas, todos eles
fazendeiros do termo de Mariana, a petio recebeu o desabono da cmara e o silncio do
governador, que no deu nenhum tipo de despacho.
Esses casos nos despertaram para uma questo inquietante: que inteno estaria por
detrs das sesmarias requeridas em nome de mulheres da capitania de Minas Gerais? Para
toda a capitania, desde o princpio do sculo XVIII, das 7.985 sesmarias doadas, 762 foram
para mulheres, ou seja, 9,53%.370 Maria e Rita seriam parentas entre si e de Francisco Pereira?
Estariam pedindo terras para elas mesmas? Ou pediam para seus maridos ou irmos, como
estratgia de burlar a legislao que proibia aos sesmeiros possuir mais de uma sesmaria em
seu prprio nome? Responder a essa questo um tanto quanto difcil, at porque muitas
mulheres no tinham os sobrenomes dos maridos, o que facilitaria a sua identificao. S para
que tenhamos uma ideia desse complicador, os nomes femininos que terminam com de
Jesus no catlogo de sesmarias so 95. Clara Pires Farinho pediu sesmaria na outra parte do
rio Chopot, freguesia de Guarapiranga em 14 de outubro de 1773.371 Pela data e localizao
da terra ela pode ser esposa, irm ou cunhada do capito Francisco Pires Farinho que, diga-se
369
CARTA de sesmaria de Maria da Rocha Pereira e Rita Pereira da Assumpo, dez de abril de 1802. APM-SC
293, fl. 211 verso, microfilme rolo 62, gaveta G4.
370
RAPM, ano XXXVIII, vol. 1 e 2. A presena de mulheres sesmeiras na colnia seria um instigante objeto
para novas pesquisas, tal como tambm seria uma investigao sobre o papel desempenhado pelos padres na
conquista dos sertes e na ocupao das sesmarias.
371
CARTA de sesmaria de Clara Pires Farinho, 14 de outubro de 1773. APM-SC 172, microfilme rolo 37,
gaveta G3.
163
de passagem, tinha terras e no tinha carta de sesmaria. Pode ser que tais mulheres pediam a
terra para elas mesmas cultivarem. Estudos recentes de histria demogrfica tm apontado um
nmero considervel de mulheres chefiando os fogos em Minas Gerais, sobretudo no sculo
XIX, a partir da anlise de listas nominativas.372 No entanto, ainda no temos elementos
confiveis para responder questo das sesmarias requeridas por mulheres.
372
BOTELHO. Famlia e domiclio no serto mineiro.
373
APM-SC 275, 285, 286, 289, 293, 299, 305, 352, 363, 377 e 384.
374
CARTAS de sesmaria de Francisco Antnio Junqueira e de Jos lvares Lima, 1821. APM-SC 384, fl. 92 e
95 verso.
164
375
MOTTA. Direito terra no Brasil, p. 113.
376
AUTOS de sesmaria de Manoel Teixeira de Sousa (embargado) e alferes Antnio Dias Soares e sargento-mor
Jos lvares Maciel (embargantes), 1761. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 29.
377
DECRETO de D. Joo V concedendo a Jos lvares Maciel a serventia do ofcio de escrivo dos rfos da
vila de So Joo del-Rei, Comarca do Rio das Mortes, Lisboa, 14 de fevereiro de 1752. AHU Projeto Resgate
MG, caixa 59, doc. 35.
165
arredores de Ouro Preto, por carta de sesmaria que alcanou em 6 de dezembro de 1757, da
qual obteve confirmao rgia em 28 de setembro de 1758.
Alm dos honrosos ttulos que acumulava, cujas patentes vinha renovando, consta nos
documentos avulsos do Arquivo Histrico Ultramarino que esteve preso em 1765 por estar
inadimplente com os contratos que havia arrematado.378 Como sinal de sua fortuna, ficou
registrado que deu entrada em nove arrobas de ouro na Real Casa de Fundio de Vila Rica
em 1767, para pagar seus dbitos com a Coroa.379 Como se no lhe bastasse a riqueza
acumulada, as tentativas de fraudar a Real Fazenda e a sesmaria que j possua, envolveu-se
num litgio de terras na regio da Mantiqueira, nas proximidades do Caminho Novo, freguesia
de Nossa Senhora da Piedade da Borda do Campo, termo da vila de So Jos, em 1761.
Manoel Teixeira alegou, em 22 de setembro de 1761, que havia conseguido uma carta
de sesmaria em 20 de setembro de 1758 para as terras chamadas Faco, na freguesia de
Nossa Senhora da Piedade da Borda do Campo. Dizia ter comprado a terra a Manoel Diniz de
Carvalho e que compreendia outras terras que foram do defunto Fabio Palhano e de
Antnio Rodrigues. Declarara, ainda, que no tinha cincia se o seu antecessor possua as
terras da dita zona por sesmaria, e, por esta razo, e por no ter o suplicante outras em que
trabalhasse requeria a posse legtima das ditas terras. Citou como seus confrontantes o
defunto Jos Ribeiro, Martinho de Faria, Manoel lvares e Joo de Arajo. Com base nessas
informaes e nas que por ventura os camaristas da vila de So Jos teriam prestado,
conforme reza a carta, o governador Jos Antnio Freire de Andrada concedeu-lhe a sesmaria
com a condio, entre outras, de que demarcasse judicialmente as terras dentro de um ano.
378
REQUERIMENTO de Jos lvares Maciel, capito-mor de Vila Rica, pedindo que se lhe passe alvar de
folha corrida, a fim de se mostrar livre das culpas que impedem (sic) sobre a sua pessoa, dois de novembro de
1774. AHU Projeto Resgate MG, caixa 106, doc. 13.
379
CERTIDO de Lus Diogo Lobo da Silva, governador das Minas, confirmando que o capito Jos lvares
Maciel fez entrar na Real Casa de Fundio de Vila Rica mais de nove arrobas de ouro, 23 de dezembro de 1767.
AHU Projeto Resgate MG, caixa 91, doc. 83.
166
No cumprida essa condio, rezava a carta que as terras ficariam devolutas e poderiam ser
dadas a quem o denunciasse.
Por razo de molstias, que o suplicante tem tido, lhe no tem sido possvel
o ter-se medido a mesma sesmaria, e tambm por causa do mesmo ministro
[juiz] ter andado em outras diligncias nestes termos, requer a V. Sa. seja
servido dignar-se de lhe prorrogar mais o tempo de um ano, visto como se
acha quase findo o ano que lhe permitido na mesma, para efeito de poder
gozar do benefcio e graa que se lhe acha feita.380
Sabedor de que estava sendo embargado por algum poderoso e influente, Manoel
Teixeira cuidou de se prevenir. Contratou os advogados doutor Jos da Silva e doutor Diogo
Gomes e o solicitador de causas Manoel Ribeiro. Antnio Dias Soares contratou o doutor
Antnio Jos de Mello. lvares Maciel, at o dia 22 de setembro, data em que muitos
requerimentos e partes do processo foram firmados, no havia nomeado nenhum letrado para
defend-lo. Este, alis, foi um dos argumentos de defesa de Manoel Teixeira. O juiz havia
estipulado o prazo de vinte e quatro horas para que o embargante apresentasse um letrado para
a causa. Prazo que no foi possvel cumprir.
380
AUTOS de sesmaria de Manoel Teixeira de Sousa (embargado) e alferes Antnio Dias Soares e sargento-mor
Jos lvares Maciel (embargantes), 1761. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 29. fl. 13.
167
As terras que lvares Maciel alegava serem suas eram denominadas Palhano,
situadas na fazenda do Faco. Ora, Manoel Teixeira requereu em sua carta de sesmaria essas
terras que tinham pertencido a Fabio Palhano. Elas possivelmente faziam parte da sesmaria
do padre Leonardo Francisco Palhano que as tinha requerido por sesmaria em 1738, um ano
depois de se aventurar pelos sertes de Paracatu, onde tambm requereu sesmaria em 1737,
aldeando ndios e entrando em confronto com o padre Antnio Curvelo, potentado da regio.
Jos lvares Maciel tambm havia requerido uma sesmaria na paragem da Quarta
Repartio, junto ao rio Chopot, no ribeiro da Cachoeirinha em cinco de fevereiro de 1759,
poucos meses depois da carta de sesmaria de Manoel Teixeira. Trata-se da mesma regio em
que o conflito se deu. A carta do embargante Antnio Dias Soares, na paragem do Faco,
freguesia da Borda do Campo, foi concedida em cinco de janeiro de 1759.
Manoel Teixeira estava cometendo esbulho nas terras dos embargantes? Eram os
embargantes, de fato, confrontantes do embargado, j que Teixeira no os reconhece como
vizinhos? No haveria entre eles uma faixa de terras devolutas (o Palhano) da qual cada parte
queria se apropriar e para tanto associaram-se os embargantes, vizinhos no Tripu? No temos
respostas definitivas. Porm, o embargo parece ter surtido efeito, pois na parte dos autos que
localizamos, foram nomeados os louvados, que fizeram seus juramentos, medida a corda e
examinado o agulho, mas no existe o auto de medio e demarcao nem o termo de posse
para Manoel Teixeira.
Enfim, o que desejamos salientar, ao fechar este captulo com um estudo de caso de
conflito pela terra na entrada dos sertes dos rios da Pomba e Peixe, freguesia da Borda do
Campo, que as relaes com ou entre as autoridades coloniais poderiam interferir no
desfecho dos processos de ocupao, medio e demarcao das sesmarias. Somente com o
estudo de outros autos de sesmaria que poderemos ratificar essa afirmativa. Este ser o
escopo do prximo captulo, no qual alguns processos de medio e demarcao de sesmarias
381
RESENDE. Histria de Minas Gerais, v. 1, p. 221.
169
sero analisados, dissecadas suas partes internas, com vistas a observar at que ponto as
relaes de poder interferiam nos seus trmites e resultados.
382
Apud MOTTA. Direito terra no Brasil, p. 118-119.
383
Para uma viso mais ampliada das limitaes das reformas pombalinas vide MAXWELL. Marqus de
Pombal: paradoxo do iluminismo.
171
A partir da minuciosa anlise de alguns autos de sesmarias que envolvem disputas pela
terra, percebemos que as mudanas que aconteciam em Portugal pouco reflexo tiveram nas
prticas jurdicas do direito agrrio (avant la lettre) na capitania de Minas entre os anos 1750
e 1822. Os processos continuavam a seguir procedimentos jurdicos adotados na primeira
metade do sculo XVIII. At mesmo o importante, porm efmero, Alvar de 1795387 no
refletiu diretamente nas prticas forenses no que diz respeito aos procedimentos de medio e
demarcao de terras e na conduo de seus eventuais conflitos.
384
NUNES. Lus Antonio Verney (1713-1792): um pensador atrevido? Vale lembrar o excelente artigo da autora
sobre a influncia exercida por Verney na reforma do Estado portugus no perodo pombalino, sobretudo, na
remodelao da Universidade de Coimbra. A influncia de Verney na reforma dos estudos jurdicos portugueses
tambm pode ser vista em SILVA. Histria do direito portugus, p. 273-275.
385
SILVA. Histria do direito portugus, p. 282; 285.
386
GOUVEIA. Estratgias de interiorizao da disciplina, p. 387.
387
Mrcia Motta realiza um minucioso estudo do Alvar de 1795. MOTTA. Direito terra no Brasil, p. 81-96.
172
Medir e demarcar suas terras no era algo acessvel a qualquer proprietrio da colnia.
Se a maior razo para no medir e demarcar era, como aponta Mrcia Motta,388 no impor
limites dominao que os senhores e possuidores de terras exerciam sobre seus vizinhos e
agregados, seria necessrio tambm considerar os elevados custos envolvidos nas medies e
demarcaes. Esses altos custos so, certamente, uma das considerveis razes que levaram,
ao longo de um sculo, somente cerca de 1.150 proprietrios da Comarca do Rio das Mortes a
fazerem a medio e a demarcao de suas sesmarias. Providncia, alis, estabelecida nas
diversas cartas rgias e alvars sobre as concesses de sesmarias e frequentemente
descumprida.
Para que tenhamos uma ideia aproximada, das 8.000 mil cartas de sesmaria passadas
em Minas Gerais at 1822, 35,12% das doaes, ou seja, cerca de 2.800 cartas, foram para a
Comarca do Rio das Mortes. Fazemos esta estimativa considerando que, at a independncia,
manteve-se a mesma proporo de doaes feitas para as quatro comarcas mineiras, at 1768,
resumidas por um mapa enviado ao Conselho Ultramarino.389 Todavia, como j se sabe, a
segunda metade do sculo XVIII foi marcada por um acentuado declnio da minerao e um
crescimento das atividades agropastoris, sobretudo na referida comarca, sendo acompanhados,
inclusive, de uma expanso de sua populao. Esses fatores nos fazem crer que o cmputo das
doaes oficiais de terras na comarca seguramente ultrapassou a casa das 3.000,
principalmente se considerarmos a incorporao dos sertes das nascentes do So Francisco,
do sul de Minas e dos rios da Pomba, Paraibuna e margem esquerda do Paraba, a partir de
1750 e, com maior intensidade, no ltimo quartel do sculo XVIII. Da possvel concluir
que somente cerca de um tero dos proprietrios da comarca cumpriram a obrigao de medir
e demarcar suas terras, pois s localizamos 1.150 autos de medio e demarcao na comarca.
388
MOTTA. Nas fronteiras do poder, p. 38.
389
AHU - Projeto Resgate MG, 1768, caixa 93, doc. 58.
390
CARTA de sesmaria de Constantino Barbosa da Cunha, 19 de abril de 1765. APM-SC 140, f. 111v.
173
Constantino pagou ao juiz 17$712 ris, ao tabelio 38$215 ris e ao medidor 15$200 ris,
totalizando 71$127 ris, ou, 59,27 oitavas de ouro,391 valor suficiente para comprar vinte rolos
de 50 metros de fumo na Demarcao Diamantina.392 Evidentemente, esses gastos poderiam
ser maiores se, no decorrer do processo, houvesse outros fatores, tais como os embargos s
medies e demarcaes, que protelassem a sua concluso, obrigando maiores custos que
poderiam, ou no, ser pagos pelo sesmeiro. As medies e demarcaes das terras de
Constantino, no decorrer do processo, no foram questionadas por nenhum de seus
confrontantes. Isso talvez se explique pelo fato de que as terras medidas e demarcadas
estavam localizadas nos ermos sertes que duas dcadas antes abrigavam o temido quilombo
do Ambrsio.
Desejamos sugerir que posseiros pobres no teriam como arcar com custos elevados.
Isso no quer dizer que, de alguma outra forma, no conseguissem a regularizao de suas
posses. No momento da medio solicitada por algum de seus vizinhos mais abastados,
poderiam, ao serem reconhecidos como confrontantes ou, ao embargarem o processo, terem
suas posses legitimadas.394
Junia Furtado, ao escrever sobre o peso da tributao imposta pela Coroa na capitania
de Minas, cita uma petio dos moradores do arraial do Tejuco, de dezembro de 1772, que
achamos pertinente reproduzir:
391
CARRARA. Minas e currais. Para a correta converso e notao de oitavas de ouro em ris e suas fraes, e
vice-versa, p. 123-124.
392
CARRARA. Minas e currais, p. 336. O preo do fumo, no atacado, na Demarcao Diamantina era de 2.100
ris o rolo de 50 varas (cada vara 1,1 metro) no ano de 1777. Sabemos que o fumo era artigo valorizado e que os
preos na regio mineradora, sobretudo na Demarcao Diamantina, eram elevados. Na tese de doutoramento de
Carrara, as tabelas de preos so mais completas do que no livro. Nela, muitos outros gneros podero ser
encontrados para comparao.
393
AUTOS de sesmaria de Manoel Teixeira de Souza (embargado) e Antnio Dias Soares alferes e Jos
lvares Maciel sargento-mor (embargantes), 1761. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 29.
394
Foi o que observou Mrcia Motta para casos do municpio de Paraba do Sul em meados do sculo XIX.
MOTTA. Nas fronteiras do poder.
174
[...] as excessivas custas que se faziam nas medies das sesmarias [...]
porque os mesmos juzes ordenam um ajuntamento a pretexto de pilotos e
medidores, todos com salrios avantajados que vencem em cada dia [...] os
pobres que no podem sofrer estas despesas ficam obrigados a largar as
terras aos que lhas tiram a pretexto de devolutas utilizando-se das
benfeitorias regadas com o suor alheio que aqueles ficam perdendo [...].395
Na mesma poca em que Manoel Teixeira mediu e demarcou suas terras, o padre Jos
de Oliveira, da freguesia de Guarapiranga, ao requerer a medio e demarcao de sua
sesmaria, tambm pagou elevadas custas pelo processo. Suas terras no estavam muito longe
das terras de Manoel Teixeira, que litigava com Jos lvares Maciel. Para a infelicidade do
padre sesmeiro, suas despesas mais que dobraram porque era senhor e possuidor de duas
sesmarias contguas e a regularizao de sua posse no foi to tranquila como gostaria.
Examinemos detalhadamente o seu caso, que se inclui na conjuntura do primeiro momento de
nossas anlises, ou seja, antes da Lei da Boa Razo.
No ano de 1758, o reverendo Jos de Oliveira quis transferir a posse de meia lgua de
terra em quadra que alegava ter comprado do padre Manoel Nunes Ascenso.396 A posse
situava-se junto ao ribeiro chamado So Loureno, no serto do rio Piranga, freguesia de
Itaverava, termo da vila de So Jos.
395
FURTADO. O livro da capa verde, p. 127.
396
AUTOS de sesmaria do padre Jos de Oliveira cessionrio e padre Manoel Nunes Ascenso cedente,
1758. Daqui para adiante AUTOS de sesmaria do padre Jos de Oliveira. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 25.
397
VASCONCELOS. Histria Antiga de Minas Gerais, p. 122-124.
175
leste, serviam de fronteira entre a antiga e ainda dinmica regio mineradora e os sertes dos
rios Piranga, Xopot e Pomba. Nesses, ainda se davam os primeiros passos para o
desbravamento e conquista do territrio que, no ltimo quartel do sculo XVIII, constituiria a
extensa freguesia do Mrtir So Manoel do Rio da Pomba.
Por razes ainda no esclarecidas, as terras que estavam sendo transferidas tinham
sido compradas pelo padre Nunes Ascenso ao padre Jos de Oliveira em 1752. Em trs de
dezembro de 1756, o padre Nunes foi a Vila Rica e solicitou carta de sesmaria dessas terras.
No mesmo dia, as transferiu trespassou ou cedeu como se dizia ento , novamente ao padre
Jos de Oliveira, de quem as havia comprado em 1752. Em 23 de setembro de 1756, o padre
Jos de Oliveira tambm havia requerido outra carta de sesmaria no mesmo serto.398 O padre
Oliveira ficava, ento, com duas sesmarias: a que requerera em 23 de setembro de 1756 e a
que lhe fora devolvida por Nunes Ascenso em dezembro do mesmo ano.
398
APMSC 112, fl. 160 e 120 para as duas doaes, respectivamente.
176
sertes onde o ribeiro de So Loureno faz barra no rio da Piranga e, no dia 12 de maio, j se
encontravam aposentados na casa do sesmeiro que requerera a medio, demarcao e posse
judicial daquelas terras.
As autoridades judiciais deram incio, ento, ao ritual que servia para oficializar e
sacramentar todos os autos de medio, demarcao e posse de sesmarias. No mesmo dia 12,
em casa do sesmeiro cessionrio, o meirinho Jos Ribeiro, a mando do doutor Rabello, citou
os confrontantes que o sesmeiro, padre Jos de Oliveira, indicou em uma petio anexada aos
autos. Na petio, o padre disse que suas terras:
Confrontam por uma parte com terras que vendeu Jorge Arruda a Incio de
Souza, j defunto, e dos bens que dele ficaram cabea do casal uma mulher
Maria da Fonseca, e com Jos Pinto e Antnio Rodrigues e do outro com o
capito Francisco Arajo de Azevedo e Antnio Jos de Frias e nas
cabeceiras com Francisco Barroso Pereira, Antnio Furtado e o capito
Francisco Bernardo, os quais quer o referido suplicante fazer notificar para
no dia e hora que vossa merc designar para medio, dizerem a dvida que
tiverem e dar posse ao reverendo suplicante.399
Este era, talvez, o momento mais delicado do processo. Neste caso, observamos que o
prprio sesmeiro apresentou os nomes de seus vizinhos e se esqueceu de mencionar as
mulheres de dois deles. Muitos confrontantes tambm sabiam que a sua citao era uma forma
de se verem legalmente reconhecidos como proprietrios ou at mesmo poderia ser a hora de
tentar ratificar os seus direitos. Foi o que fez Francisco Barroso Pereira, na mesma data,
alegando que:
399
AUTOS de sesmaria do padre Jos de Oliveira, fl. 6. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 25.
400
MOTTA. Nas fronteiras do poder, p. 76.
177
Terminado todo esse ritual de abertura dos autos, iniciou-se o que, seguramente,
poderamos chamar de centro de todo esse processo: o auto de medio e demarcao. Do dia
401
AUTOS de sesmaria do padre Jos de Oliveira, fl. 8. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 25.
402
CARTA de sesmaria de Francisco Barroso Pereira. APMSC 156, fl. 4.
178
Estavam medidas e demarcadas as terras e o padre Jos de Oliveira, que antes vendera
e depois as comprara do padre Manoel Nunes Ascenso, recebeu judicialmente a posse. Por
todos estes trabalhos, foram cobradas do reverendo as custas de 65$403 ris, cerca de 54,50
oitavas de ouro, sendo: 20$837 pagas ao escrivo, 28$790 ao ministro (juiz), 10$238 ao
meirinho e 5$538 aos medidores.
Mas a histria no terminou por a. Seguem os autos indicando que, naqueles mesmos
dias, mediu-se e demarcou-se outra sesmaria que havia posto o reverendo sesmeiro na mo
do escrivo que foi deste Juzo, o sargento-mor Antnio de Morais Sarmento em seis de
novembro de 1756 [...] para efeito de se proceder por virtude dela a medio, demarcao e
posse das terras nela concedidas.403 Era a terra que, na carta de sesmaria trasladada para os
403
AUTOS de sesmaria do padre Jos de Oliveira, fl. 1 da segunda parte. Os autos tm duas numeraes. A
primeira, com quatorze folhas corresponde sesmaria cujo cedente era o padre Manoel Nunes Ascenso. A
segunda, com 73 folhas, comea com os autos de medio e demarcao da sesmaria do prprio padre Jos de
Oliveira (fl. 1 a 11) e continua com os embargos (fl. 12 a 73) que fez Manoel Lopes da Cruz remedio que o
capito Jos Veloso Carmo procedeu nas terras que comprou ao padre Jos de Oliveira. O pesquisador desatento
pode tropear nas diversas partes deste documento confuso e meio desordenado, porm completo, com 87 folhas.
AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 25.
179
autos, o padre alegava ser senhor e possuidor de umas roas no serto do rio da Piranga, por
ttulo de compra que delas fizera a vrias pessoas e nas quais continuava o reverendo
aposseando-se h mais de vinte anos na cultura delas, com muito dispndio, trabalho, crises
e pouco lucro (grifos nossos).404 Talvez estas crises e pouco lucro possam explicar porque
ele vendera a parte das terras ao padre Nunes Ascenso em 1752, recuperando-as em 1756.
Isso, se no foi algum artifcio, como j apontamos, para que ele regularizasse a posse de
todas essas terras, tanto em uma quanto em outra sesmaria, as quais estavam envolvidas em
litgios com seus confrontantes.
Na petio que o sesmeiro fez para que fossem citados seus vizinhos confrontantes e
suas mulheres, foi mencionado o nome de Manoel Lopes [da Cruz] e sua mulher. Este
vizinho, anos mais tarde, entraria em atrito com o comprador das terras do padre. Citados os
vizinhos, seguiu-se com o mesmo ritual de nomeao e juramento dos louvados, juramento da
corda e o auto de medio e demarcao. Este, pela sua clareza e porque sobre os marcos e
medidas dele litigariam, no futuro, outros proprietrios, transcreveremos em boa parte:
[...] seguindo os rumos que mais convenientes lhes parece, sem prejuzo da
Real Fazenda e do reverendo sesmeiro, e pblico, fazendo medio com a
corda que lhes havia entregado (sic) de quinze braas de comprido, fazendo
primeiro pio no lugar que melhor convier, pondo todas as balizas que forem
necessrias, em cumprimento deste mandado, fizeram pio no terreiro das
casas do reverendo sesmeiro, e para baliza deste, o assinalaram com a cruz
do mesmo terreiro, que de pau de sucupira, que verte para o rio da Piranga,
e logo estes medidores do pio foram demandar o rumo do sueste e por ele
mediram cinquenta cordas, cada uma de quinze braas de comprido, que
findaram num espigo de morro, vertente para o dito ribeiro de So
Loureno, que confrontando [linha corroda] e por baliza [ilegvel] um pau
nativo chamado jequitib, virado para o mesmo rumo e voltando os
medidores ao lugar do pio, seguiram rumo de noroeste e mediram quarenta
e nove cordas do mesmo comprimento, de quinze braas cada uma, que
findaram num espigo de morro, no caminho que vai para o arraial de
Itaverava, que verte para um crrego chamado da Ponte, que faz barra no
ribeiro de So Jos e confronta com as terras de Antnio Maciel Aranha e
Miguel Nunes e para divisa o marcaram com uma cruz que lavraram em um
pau chamado goarit [guariba?], virada para o mesmo riacho e buscando
segunda vez o lugar do pio, dele fizeram os medidores derrota pelo rumo
nordeste e por ele mediram cinquenta e uma cordas do referido
comprimento, que findaram com um espigo de morro que verte de uma
parte para terras do referido reverendo sesmeiro e para outra para terras que
foram do defunto Incio de Souza e para demarcao lavraram uma cruz em
um pau nativo chamado goarit, olhando para o mesmo rumo. E neste
momento, tornando os dois medidores a buscar o lugar do pio, foram
seguindo o rumo de sudoeste e por ele mediram cinquenta cordas do mesmo
404
AUTOS de sesmaria do padre Jos de Oliveira, fl. 2 da segunda parte. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 25.
180
comprimento que findaram em uma grota de matos que vertia para o crrego
de Santa Tereza, que parte com terras de Francisco de Souza, por diviso
abriram uma cruz com um pau nativo chamado acoubacavalos [?],
apontando o mesmo rumo. E por esta forma e por esta solenidade [linhas
corrodas] sem que dela se opusesse pessoa alguma [...]. (sublinhados do
original, mas feitos por outra tinta)405
Logo a seguir, o juiz deu sua sentena, imediatamente publicada. Lavrou-se o auto de
posse sem contradio de pessoa alguma. Assinaram este documento as autoridades
presentes, o sesmeiro e Antnio Maciel Aranha e Nicolau Gonalves Filgueiras que, alm de
testemunhas, foram os nicos vizinhos citados como confrontantes que compareceram para
ratificar a posse.
Com mais essa sesmaria as custas dos autos subiram para 146$283 ris, o
correspondente a 121,90 oitavas de ouro, ficando o escrivo com 36$517, o ministro com
62$390, o meirinho com 25$038 e os medidores com 15$138 e mais um acrscimo de 7$200.
Essas contas foram feitas, em So Joo del-Rei, no dia 15 de julho de 1758. O valor no era
desprezvel e o padre no conseguiu pagar de uma s vez, pois anotou-se nos autos que deu
conta, em 1 de dezembro de 1758, 105$600 e no p da folha que deve mais da certido
por uma via 400 ris.
405
AUTOS de sesmaria do padre Jos de Oliveira, fl. 8 e seu verso da segunda parte. AHET/IPHAN-MG/SJDR,
caixa 25.
181
406
AUTOS de sesmaria do padre Jos de Oliveira, fl. 16 verso. No verso da carta de confirmao, alm dos
muitos registros nos livros de Lisboa e de Vila Rica, h, do prprio punho e letra do padre Jos de Oliveira, a
cesso e trespasso da sesmaria ao capito Jos Veloso Carmo com data de 25 de outubro de 1770.
AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 25.
407
REQUERIMENTO do capito Jos Veloso Carmo, capito da ordenana de cavalaria dos subrbios de Vila
Rica, solicitando a merc de o confirmar no exerccio do referido cargo, 29 de agosto de 1763. AHU - Projeto
Resgate MG, caixa 81, doc. 85.
408
CARTA de Lus Diogo Lobo da Silva, governador das Minas Gerais, a D. Jos, propondo Jos Veloso Carmo
para o posto de capito da Cavalaria Ligeira Auxiliar do distrito de Tripu e parte de Vila Rica, 20 de agosto de
1765. AHU - Projeto Resgate MG, caixa 85, doc. 72.
409
REQUERIMENTO do capito Jos Veloso Carmo pedindo merc do Hbito da Ordem de Cristo e tena, por
ter feito entrar na Real Casa de Fundio de Vila Rica, durante um ano, mais de 11 arrobas de ouro 14 de
maro de 1766. AHU - Projeto Resgate MG, caixa 87, doc. 32.
410
REQUERIMENTO do capito Jos Veloso Carmo, solicitando a concesso do Hbito Cristo, em virtude da
quantidade de ouro que fez fundir na Casa de Fundio de Vila Rica 14 de dezembro de 1773. AHU - Projeto
Resgate MG, caixa 105, doc. 67.
182
Foi contra esse militar, minerador e fazendeiro poderoso, que Manoel Lopes da Cruz e
sua mulher, antigos vizinhos do padre Jos de Oliveira moveram um processo de embargo no
ano de 1773. Manoel Lopes havia comprado umas terras que pertenceram a Joo Moreira nas
divisas da antiga sesmaria do padre Jos de Oliveira que, por ocasio de sua medio e
demarcao, o reconhecera como confrontante. A compra da fazenda chamada Paraso, de
uma parte e outra do rio Piranga, aconteceu em 10 de janeiro de 1758, quando Joo Moreira
declarou que por no saber ler e escrever, pedi e roguei a Lus Rodrigues Milagres que este
por mim fizesse e assinasse. No mesmo documento, juntado por Manoel Lopes aos
embargos, Joo Moreira ainda declarou:
Assim mais lhe vendo com o milho que se acha plantado e um cavalo
cardo, seis alqueires de feijo e duas foices, duas enxadas, uma carabina, a
metade da criao das galinhas que se achar na dita entrega, um bananal e
rvores de espinhos e um rancho coberto com telha de palmito e outro
rancho coberto de capim, cuja venda fao muito de minha livre vontade, sem
constrangimento de pessoa alguma, e por este me obrigo a fazer-lhe a dita
venda boa de tudo nomeado acima, e passar-lhe uma escritura pblica a todo
o tempo que pedida me for.412
Nem Joo Moreira nem Manoel Lopes tinham cartas de sesmaria. A descrio dos
bens vendidos d-nos a impresso, seno do tamanho da terra, pelo menos da simplicidade de
suas benfeitorias. Esse acontecimento data do ano de 1758. Quinze anos depois da compra da
fazenda de Joo Moreira, Manoel Lopes certamente j tinha recursos para enfrentar um
processo judicial contra o seu rico vizinho. Mas voltemos ao princpio da histria.
Em 24 de outubro de 1773, o capito Jos Veloso Carmo, em sua petio ao juiz das
sesmarias da vila de So Jos, Comarca do Rio das Mortes, doutor Domingos Jos de Souza,
sem se esquecer de pedir a citao dos confrontantes e das suas mulheres, dentre eles Manoel
Lopes da Cruz, disse o suplicante que era:
411
REQUERIMENTO do coronel Jos Veloso Carmo, morador em Vila Rica, pedindo licena para estabelecer
engenho de cana nas suas duas fazendas, denominadas Mello e So Loureno, sitas na Comarca do Rio das
Mortes. AHU - Projeto Resgate MG, caixa 159, doc. 16. Segundo Maria Beatriz Nizza da Silva, o prprio
coronel Jos Veloso Carmo considerava-se um dos mineiros mais abastados da capitania de Minas Gerais e
comarca de Vila Rica. SILVA. Ser nobre na Colnia, p. 209 e 257.
412
AUTOS de sesmaria do padre Jos de Oliveira, f. 25. Conforme j informamos, das folhas 12 a 73, os autos
passam a ser de embargo de Manoel Lopes da Cruz contra o capito Jos Veloso Carmo. AHET/IPHAN-
MG/SJDR, caixa 25.
183
Qual teria sido a inteno do sesmeiro difcil precisar. Ele comprou terras que j
estavam medidas, demarcadas, com ttulo judicial de posse e, por fim, confirmadas. Veloso
alegava que, devido aos quinze anos transcorridos da primeira medio e demarcao, os
marcos feitos com paus nativos (sucupira, jequitib, goarit etc.) foram destrudos pelo tempo
e, por essa razo, queria colocar novas balizas de pedra. Mesmo que pudssemos considerar
que os marcos feitos em madeira de lei pudessem durar mais de quinze anos, o fato que ele
comprou a terra em 1770 e, nos mais de doze anos que separam os autos de medio do ato de
sua compra, seria possvel que os marcos pudessem ter sido movidos de seus lugares
originais. Estaria desconfiando de seus vizinhos ou, at mesmo incerto das dimenses da
compra que fizera. Considerando que os limites entre uma propriedade e outra eram muito
fluidos, a remedio poderia indicar ao sesmeiro a direo na qual ele poderia fazer aumentar
a sua terra. Observando os autos da primeira medio que transcrevemos mais atrs, talvez a
divisa mais confusa seria aquela, na poca, com Francisco de Souza, cujas 50 cordas medidas
a partir do pio findaram em uma grota de matos que vertia para o crrego de Santa Tereza.
As matas virgens e as capoeiras hoje raras em Minas Gerais, a 250 anos atrs eram comuns e
extensas, sobretudo nesta regio. Nada mais indefinido como divisa entre duas propriedades
do que um lugar de uma mata a qual poderia se estender por centenas de metros ou vrios
quilmetros at encontrar o vizinho confinante. Quando Mrcia Motta colheu diversos casos
de disputa pela posse de terras em meados sculo XIX, ou seja, quase 100 anos depois, em
geral era nas capoeiras e matas virgens, locais sui generis de indefinio, que esse tipo de
disputa ocorria. Esses locais eram propcios para se fazer derrubadas e atos possessrios com
a alegao de que no tinham donos e no estavam sendo cultivados, possibilitando ao
posseiro alegar que era o primeiro ocupante.414
413
AUTOS de sesmaria do padre Jos de Oliveira, fl. 13. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 25.
414
MOTTA. Nas fronteiras do poder, p. 39, 41, 46, 69, 71, 76, passim.
184
Mas o que provavelmente alertou os vizinhos do capito Veloso foi sua inteno nada
amistosa de querer esquadrejar nos rumos que lhe for conveniente. E isso significava,
praticamente, alterar todas as divisas.
Na carta de confirmao de sesmaria apresentada pelo capito Veloso para fazer parte
dos autos, o padre Jos de Oliveira, dono anterior da sesmaria, declarou que os limites
principiavam na margem do dito rio onde finalizava a roa sobre que litigava Jorge de
Arruda e Incio de Souza e findavam junto ao dito rio com terras de Francisco de Souza da
parte direita, a sinistra com Joo Moreira continuando por outras confrontaes. O vizinho
Francisco de Souza era justamente aquele confrontante pela grota de matos que vertia para o
crrego de Santa Tereza. Joo Moreira, confinante pela esquerda, era exatamente quem
vendera as terras a Manoel Lopes da Cruz. Nossa suposio de que o embargante Manoel
Lopes, junto com Francisco de Souza, tambm estava situado no ponto onde as divisas se
confundiam pelos matos.
No dia 26 de outubro, foram escolhidos para louvados Antnio de Arajo Frana, pelo
Juzo que tambm seria o piloto da corda e Antnio Maciel Aranha, pelo sesmeiro, que
fizeram seus juramentos. Jurou-se tambm a exatido do comprimento da corda e fez-se o
exame do agulho. Conferiu-se o lugar do pio, confirmando que ele era de pau brana feito
uma cruz que se acha no terreiro do reverendo cedente (sublinhado no documento original).
Definido o lugar do pio, deram incio remedio. Juiz, piloto e louvado substituram
todos os marcos de madeira por pedra. Lavrou-se o auto de remedio em 30 de outubro. Nele
percebem-se claramente duas alteraes em relao ao primeiro que foi feito pelo padre
Oliveira. Apesar de serem mantidas as mil e quinhentas braas quadradas de uma sesmaria de
meia lgua em quadra (3.300 metros de comprido por 3.300 de largo), as distncias em braas
a partir do pio foram alteradas, mudando-se, bvio, os lugares das divisas. E o mais
importante que, no relato dos lugares onde se fincaram os novos marcos de pedra, deveriam
ser mencionados todos os vizinhos citados pelo sesmeiro em sua petio de 24 de outubro de
1773 e que provavelmente seriam tambm confrontantes nessas divisas. Eram eles: Manoel
Lopes Cruz, Nicolau Gonalves, Antnio Manoel, Miguel Nunes, Pedro de Souza, o guarda-
mor Francisco Vieira da Silva e Vitorino de Almeida Gago. No auto de remedio s
mencionaram o nome do guarda-mor e de Jos de Souza Leal que nem foi citado na petio.
O indicador de maior malcia o aumento da indefinio das divisas. Em todos os pontos
cardeais, registrou-se que as remedies findavam-se em matos. No rumo ao nordeste, em
uma sorte de matos virgens, ao noroeste em um espigo de morro de capoeira, ao sudeste
185
em um espigo de morro de mato virgem que verte do ribeiro de So Loureno e, por fim,
ao sudoeste com uma grota de capoeiras em terras do mesmo sesmeiro. Como ficou
remedido e (re)demarcado, tanto melhor para o sesmeiro ampliar as suas mil e quinhentas
braas de terra em quadra. Traamos abaixo, grosso modo, os esquemas da primeira medio
e da remedio feita pelo capito Veloso:
Quadro 7
Esquema comparativo das medies e demarcaes da sesmaria do capito Jos
Veloso Carmo (1758 e 1773)
Agulho Primeira Medio - 1758 Remedio - 1773
Nordeste Espigo de morro que verte de uma parte para Sorte de mato virgem que parte com terras do
terras do referido reverendo sesmeiro e para guarda-mor Francisco Vieira da Silva.
outra para terras que foram do defunto Incio
de Souza.
Sudoeste Grota de matos que vertia para o crrego de Grota de capoeiras em terras do mesmo
Santa Tereza, que parte com terras de Francisco sesmeiro.
de Souza.
Noroeste Espigo de morro, no caminho que vai para o Espigo de morro de capoeira junto estrada
arraial de Itaverava, que verte para um crrego que vai da Piranga para a Itaverava que parte
chamado da Ponte, que faz barra no ribeiro de com terras de Jos de Souza Leal.
So Jos e confronta com as terras de Antnio
Maciel Aranha e Miguel Nunes.
Sudeste Espigo de morro que verte para o ribeiro de Espigo de morro de mato virgem que verte do
So Loureno. ribeiro de So Loureno.
415
Por mais que parea simples, dado que as retas so traadas num quadrado quadriltero teoricamente
perfeito , devido confusa descrio, no conseguimos fazer abstraes que nos favorecessem no entendimento
dessas medidas e de como elas funcionavam para esquadrejar a sesmaria.
186
Vejamos um caso da Comarca do Rio das Mortes o qual, mesmo ocorrendo em serto
isolado, seguiu prticas mais racionais de medio. A sesmaria de Constantino Barbosa da
Cunha, em pleno serto do So Francisco, na paragem do Quilombo do Ambrsio, a mais de
cinquenta lguas das vilas de So Jos e So Joo del-Rei, foi medida e demarcada em 1766.
O juiz executor das sesmarias, o doutor Salvador Pais Godoy dos Passos e o escrivo Mateus
Pereira Dutra estiveram, de fato, aposentados na casa do sesmeiro e, pelas datas e descrio
do auto de medio e demarcao, eles realmente palmilharam o terreno, registrando que, a
partir do pio, foram medidas 568 cordas de quinze braas no sentido norte-sul e 260 cordas
no sentido leste-oeste, pelos louvados Antnio de S Pinheiro e Antnio dos Santos de
416
Essa exatido no ser plenamente alcanada, nem mesmo nos dias atuais, pelos engenheiros agrimensores
portadores da mais alta tecnologia dos teodolitos que j vo virando peas de museu rapidamente
substitudos pelos equipamentos eletrnicos (computadores e GPS) e de telecomunicaes (satlites), com o
apoio das j antigas fotografias areas e das modernas fotografias tiradas por satlites.
417
COSTA PORTO. O sistema sesmarial no Brasil, p. 76.
187
Carvalho. Como rezava a carta de sesmaria trasladada na folha oito, foram concedidas, por
ser serto, trs lguas de terra de sesmaria. No auto de medio, lavrado em dois de junho de
1766 cinco dias aps a nomeao e juramento dos louvados a terra ficou medida com 2,84
lguas de comprido (18.744m) por 1,34 lgua de largo (8.844m). Sobre esses procedimentos,
o juiz exarou a sua sentena em belssima caligrafia e com grande pompa:
Mas bom lembrar, como j temos apontado, que os autos de medio e demarcao
no representam mais do que um tero das terras doadas na Comarca do Rio das Mortes,
percentual que devia se manter nas demais comarcas mineiras ou, como acreditamos, seria
ainda menor. Mas eles aconteciam, de fato, nas paragens em que as terras eram doadas.
Voltemos aos embargos que fez Manoel Lopes da Cruz aos autos de remedio da
sesmaria do capito Jos Veloso Carmo. Em 3 de novembro de 1773, dia consecutivo aos
autos de remedio e esquadrejamento, o juiz Domingos Jos de Souza mandou que se
juntassem esses autos aos da primeira medio e proclamou a seguinte sentena:
Vistos estes autos, carta de sesmaria etc., e como esta se acha confirmada
por S.M. Fidelssima, que Deus guarde, sem embargo, se os confrontantes
Manoel Lopes e Francisco Vieira pedirem vista para embargar, que se lhe
mandou dar sem suspenso por no juntarem ttulo Rgio, e Curial,
conforme as ordens do Rei. Hei por remedidas as terras mencionadas na dita
carta e, juntamente por esquadrejadas. Mando que seja o sesmeiro
conservado na sua posse como at agora e pague as custas dos autos.419
418
AUTOS de sesmaria de Constantino Barbosa da Cunha, 1766, fl. 13. Juramento dos louvados fl. 7 verso e
auto de medio e demarcao s fls. 11-12 verso. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 29.
419
AUTOS de sesmaria do padre Jos de Oliveira embargo de Manoel Lopes da Cruz contra o capito Jos
Veloso Carmo , fl. 20. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 25.
188
embargo enquanto judicialmente o no mostra.420 O juiz, ento, mandou que ele apresentasse
seu ttulo da terra. No dia seguinte, Manoel Lopes apareceu com uma declarao que Joo
Moreira lhe dera quando deste comprou a terra em 1758. Tal ttulo foi considerado
insuficiente pelo juiz que despachou nos autos visto que o ttulo que se apresenta no na
forma que determina o Soberano, no pode o suplicante embaraar a medio e mais
procedimentos do suplicado, portanto, querendo vista, se lhe d sem suspender e ser em 24
horas. Francisco Vieira [da Silva], o outro confrontante que, pela sentena do juiz, parecia
ter inteno de embargar, no se pronunciou. Por no possurem os ttulos de sesmaria, no
lhes foi possvel suspender a remedio e o esquadrejamento. A carta de sesmaria, se no era
suficiente para garantir a posse plena da propriedade era, contudo, ttulo de enorme valor.
Para Mrcia Motta o direito posse, mesmo que reconhecido pelas Ordenaes, no seria
suficiente para questionar o poder expresso [pela] carta.421 Foi dada a posse da terra ao
capito Veloso que, por todos os procedimentos, pagou as custas de 50$125 ris.
420
AUTOS de sesmaria do padre Jos de Oliveira embargo de Manoel Lopes da Cruz contra o capito Jos
Veloso Carmo , fl. 23. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 25. Segundo De Plcido e Silva, agravo, na linguagem
do direito processual sempre foi tido para designar o recurso interposto contra deciso interlocutria ou mesmo
definitiva. Podendo, segundo o mesmo dicionarista, agravar quem, mesmo no sendo parte, quando o
despacho a agravar veio ferir seus interesses ou prejudicar seus direitos. SILVA. Vocabulrio jurdico, p. 113.
421
MOTTA. Nas fronteiras do poder, p. 108.
422
FARIA. A colnia em movimento, p. 207. Estamos entendendo por prestgio algumas caractersticas
levantadas pela autora: Para caracterizar o grupo que se reconhecia e era reconhecido enquanto homens bons
ou principais, necessrio levar em conta condies fundamentais: brancura da pele, prestgio familiar,
ocupao de postos administrativos importantes, atividade agrria, acesso escolaridade e fortuna anterior ou no
presente, se no dos envolvidos, pelo menos de parentes prximos, principalmente no caso de serem herdeiros.
De qualquer maneira, no temos como fazer afirmao sobre a brancura da pele do capito Veloso.
189
Argumentava o advogado, sem provas documentais, mas por ouvir dizer424 ao prprio
Manoel Lopes, que tanto estava de posse e pertenciam as ditas terras ao embargante que o
embargado por tal o reconheceu e pretendeu comprar ao embargante haver cinco anos.
A presteza e rapidez que teve o advogado do embargante em acudir aos autos, no nos
pareceu as mesmas do embargado e de seus procuradores. O juiz, aps vistos os embargos do
doutor Rabello, disponibilizou-os para que a outra parte os aceitasse ou os contrariasse em 26
423
MORAIS E SILVA. Diccionario da Lngua Portugueza: Espigo da serra, ou do muro; a parte superior e
como aguada dele, oposto encosta, fralda, cumiada.. Segundo o Novo Dicionrio Aurlio da Lngua
Portuguesa, espigo o pico de serra, de monte ou de rochedo. Muito frequente nos documentos que
descrevem glebas de terras, ou as suas partilhas, o espigo servia como divisor das terras, ficando, muitas vezes,
as localizadas em uma vertente pertencentes a um dono e as da vertente oposta a outro.
424
FARIA. A colnia em movimento. Segundo a autora, a sociedade colonial era uma sociedade que baseava a
sua verdade no ouvi dizer ou no que era pblico e notrio. p. 35. MOTTA. Nas fronteiras do poder, p. 77.
Mrcia Motta tambm aponta o costume das pessoas testemunharem nos processos sustentando sua fala no por
ouvir dizer, cujo testemunho era aceito pelas Ordenaes Filipinas.
190
1.) a procurao, passada em Vila Rica, estava com data de 4 de setembro de 1773,
portanto, anterior a todo o processo de remedio iniciado em 24 de outubro desse ano e
Seus argumentos poderiam ser facilmente contrariados pela leitura dos autos, com
exceo da posse de ttulos legtimos, como carta de sesmaria e sua confirmao. O advogado
apela, inclusive, para a antiguidade da linha de transferncia da terra desde o seu primeiro
povoador, Domingos Gonalves da Costa, que a teria vendido ao padre Jos de Oliveira, em
1742, para pagamento de dvidas pelo preo de trinta e cinco oitavas de ouro. Como prova,
425
REQUERIMENTO de Domingos Jos de Sousa solicitando confirmao no posto de capito de ordenanas
do Morro de Santo Antnio, termo da Cidade de Mariana em 1781. AHU - Projeto Resgate MG, caixa 117, doc.
65. Por se tratar de um nome relativamente comum, o procurador do capito Veloso pode ser este oficial de
ordenanas, como o prprio oficial de ordenanas pode ser o juiz das sesmarias do termo da vila de So Jos.
Ainda no temos elementos para confirmar estas suposies.
426
Segundo Mrcio Jardim, o tabelio Antnio de Afonseca era fazendeiro no termo da vila de So Jos e teria
se envolvido na inconfidncia de 1789, quando ocupava o cargo de sargento-mor do Regimento de Cavalaria
Auxiliar da mesma vila. JARDIM. A Inconfidncia Mineira, p. 247-248.
191
o doutor Freitas anexou o prprio documento da venda assinado por testemunhas e pelos
vendedores que gostariam que este tenha a mesma fora e vigor como se fosse escritura
pblica pela dificuldade, distncia e incmodos a ir se passar as vilas aonde se acham os
tabelies. No era um ttulo legtimo, mas foi aceito pelo juiz como prova nos autos, ao
passo que o mesmo juiz recusara de Manoel Lopes o mesmo tipo de documento quando este
quis embargar a medio no ano anterior.
Iniciado o ano novo de 1775, sem motivo explcito nos autos, o doutor Domingos Jos
de Souza, juiz das sesmarias, saiu de cena, sendo substitudo pelo doutor Jos Antnio
Rodrigues Rego, que acompanhou o caso at o final do ano, quando tambm o deixou nas
mos de outro, doutor Luiz Caetano de Almeida, que o levou at o fim. Do que se seguiu da
leitura dos autos, no nos pareceram fortuitas essas trocas de magistrados, no deixando de
192
considerar a instabilidade desses cargos gerada, inclusive, pela sua venalidade no perodo
colonial. O que sabemos que no ano de 1775, outro processo de sesmaria do termo da vila
de So Jos j estava sendo conduzido pelo juiz Rodrigues Rego.427 Interessa-nos dizer,
contudo, que a ausncia do juiz Domingos Jos de Souza pode ter relao com os
surpreendentes rumos que os autos tomariam em meados de 1775.
427
AUTOS de sesmaria de Domingos Andr Marques Carvalho (cessionrio) e Sebastio Marques de Carvalho
(cedente), 1775. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 21.
428
DE PLCIDO E SILVA. Vocabulrio jurdico. FALSIDADE. Derivado do latim falsus, de que se formou
falsitas (falsidade, mentira, impostura), indica-se a qualidade ou estado de tudo que falso ou contrrio
verdade ou realidade. a supresso ou alterao da verdade. A falsidade, assim, revelada em tudo o que se
faz ou se afirma, contrariando, no todo ou em parte, a verdade dos fatos ou das coisas. Pode ser crime e pode no
ser. Se a ningum nociva, no se pune: falsitas, nemine nociva, non punitur, a mxima. Mas, se delito, deve
ser a suposio dolosa para esconder, ou alterar a verdade. E, neste caso, no se faz mister ou no essencial a
seu carter a existncia de dano real ou potencial: tanto basta o dolo em que se funda. [...] A falsidade pode ser
moral ou material. [...] A falsidade material a que se comete pela fabricao de coisa falsa, pela elaborao de
documento falso, ou pela alterao da verdade em coisa ou documento, dizendo-se formal, quando o falsrio ou
falsificador a comete de propsito, com m inteno, com perfeito conhecimento da verdade, que procura
substituir ou alterar.
193
dos documentos, ditos falsificados. Pedia que o juiz reformasse o seu mandato, para que fosse
citado o embargante Manoel Lopes e no seus procuradores para o exame dos documentos.
Procurava, com isso, afastar o advogado da outra parte do dito exame. Como artifcio retrico,
assumia que sem dvida que a primeira pena do que oferece em juzo qualquer escritura ou
instrumento falso, ajuntando-o causa, perder o direito dela, assim o determina todo o
Direito e Lei do Reino.430 Entregou essas consideraes no dia 30 de agosto e o juiz, no
mesmo dia, deu vista s partes interessadas.
Cumprida a carta precatria que fazia a citao do sesmeiro embargado, foi possvel
fazer o exame dos documentos presentes nas folhas 36 e 37 dos autos. Os peritos foram o
tabelio dos prprios autos, Antnio de Afonseca Pestana, o tabelio Antnio de Oliveira
Pinto e o escrivo da cmara, Iplito Jos da Fonseca. Eles constataram a alterao de peas
dos autos, tendo sido trocada a contrariedade original por uma outra acompanhada do papel de
venda da terra que fez Domingos Gonalves da Costa ao padre Jos de Oliveira. Atestaram,
ainda, que a nova contrariedade se acha escrita e assinada pela prpria letra e firma do doutor
429
FARIA. A colnia em movimento, p. 35; MOTTA. Nas fronteiras do poder, p. 65.
430
AUTOS de sesmaria do padre Jos de Oliveira embargo de Manoel Lopes da Cruz contra o capito Jos
Veloso Carmo , fl. 48. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 25.
194
Joo Ribeiro de Freitas, por termos da dita letra e firma pleno conhecimento e o termos visto
escrever muitas vezes431 e que o referido papel de venda no fazia parte dos autos, pois,
segundo o tabelio, quando, por parte de advogados ou parte, se me do autos com algum
documento, que costumo fazer meno dele no Termo de Data.432 Estava complicado o
advogado do embargado e, qui tambm a sua causa.
431
AUTOS de sesmaria do padre Jos de Oliveira embargo de Manoel Lopes da Cruz contra o capito Jos
Veloso Carmo , fls. 60-61. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 25.
432
DE PLCIDO E SILVA. Vocabulrio jurdico. DATA. Derivado do latim datus (dado), usado, de modo
geral, para indicar o momento (tempo) e o local, em que o ato executado ou em que o documento dado e
passado. Desse modo, a data a indicao do lugar, do dia, do ms e do ano, e em certos casos, a hora, em que
o ato se realizou ou vai se realizar. Em Direito, a indicao da data, exarada no documento, faz-se regra
necessria, para perfeio do ato que nele se contm e, em consequncia, para a sua prpria validade jurdica.
195
Da leitura das duas contrariedades seguidamente substitudas nos autos das quais o
advogado de Manoel Lopes apresentou as cpias , percebemos uma srie de palavras, termos
e artigos inteiros que, mal formulados pelo advogado, poderiam comprometer o capito
Veloso. Mencionemos apenas alguns para ilustrar.
433
AUTOS de sesmaria do padre Jos de Oliveira embargo de Manoel Lopes da Cruz contra o capito Jos
Veloso Carmo , fls. 61, 62 e 63. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 25.
434
CDIGO FILIPINO, v. 2.
196
Mesmo faltando a(s) ltima(s) folha(s), o mais provvel que Manoel Lopes da Cruz,
tendo ou no invadido as terras que o capito Jos Veloso Carmo havia comprado do padre
Jos de Oliveira, saiu vitorioso dos autos, graas, sobretudo, aos erros processuais, pois, ao
contrrio, no seria fcil sobrepujar o peso de uma carta de confirmao de sesmaria como
ttulo de propriedade da terra na colnia.
A regio do rio Inga foi uma daquelas primeiras palmilhadas pelos paulistas no
territrio das Minas na segunda metade do sculo XVII. Afluente do rio Grande, o Inga
cortava a antiga freguesia de Carrancas, no Caminho Velho, a cerca de 25 lguas da garganta
do Emba, por onde os bandeirantes paulistas atravessavam a serra da Mantiqueira,
transcorridos dois teros da viagem a p at as minas do Ribeiro do Carmo e do Ouro Preto.
De So Paulo at o Inga gastava-se em torno de 44 dias e outros 24 at as minas. Para se ter
uma ideia da beleza e da abundncia dessas terras do entorno do Inga, nada melhor que a
descrio do Caminho Velho de autoria de Antonil:
197
435
ANTONIL. Cultura e opulncia do Brasil, p. 182-183.
436
CARTA de sesmaria de Francisco Rodrigues Neves, 1 de fevereiro de 1753. APM-SC 94, fl. 172 verso;
CARTA de sesmaria de Antnio Pacheco, trs de agosto de 1757. APM- SC 119, fl. 14; CARTA de sesmaria de
Francisco lvares Barbosa, nove de fevereiro de 1758. APM- SC 119, fl. 59 e CARTA de sesmaria de Antnio
Leite Coimbra, nove de fevereiro de 1758. APM- SC 119, fl. 59.
437
AUTOS de sesmaria de Antnio Leite Coimbra e Francisco lvares Barbosa, 1758. AHET/IPHAN-
MG/SJDR, caixa 01, fl. 9.
438
AUTOS de sesmaria de Antnio Pacheco, 1758. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 02 NC (no catalogada),
fls. 6 e 8.
439
AUTOS de sesmaria de Francisco Rodrigues Neves, 1758. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 32, fl. 6.
198
excees de Jos de Souza Correia e Francisco Carneiro, dos quais no localizamos nenhuma
referncia, todos os demais vizinhos reconhecidos pelos quatro sesmeiros, tambm eram
grandes proprietrios de terras. Podemos afirmar isso porque seus nomes aparecem ora como
peticionrios de sesmarias, ora se dirigindo ao juzo das sesmarias da vila de So Joo del-
Rei, requerendo as medies de suas terras.440 O que desejamos sinalizar como hiptese que
os grandes fazendeiros no tinham o menor interesse em reconhecer os pequenos como
proprietrios ou confrontantes.
Alm disso, ser sesmeiro no era prerrogativa de qualquer um. Cultivar uma sesmaria
dependia de cabedais tais como escravos, alimrias, ferramentas e, qui, algum dinheiro em
espcie. Esse algum dinheiro no seria somente para tocar as lides das roas e criaes at a
gerao de alguma renda no local. preciso no nos esquecermos de que, uma vez alcanada
a doao da sesmaria, era necessrio cumprir a obrigao de, dentro de um ano, medi-la e
demarc-la. Como temos observado, as despesas com essa medio no eram desprezveis e,
em alguns processos, os sesmeiros demoravam a pagar as custas judiciais. Antes da medio
havia despesas com a emisso da carta de sesmaria e seu registro na Secretaria de Governo da
capitania. Aps a medio, se o sesmeiro desejasse cumprir a obrigatoriedade de confirmao
o que pouqussimos cumpriram , deveria ser formalizado um processo que tramitaria, at
1808, na burocracia lisboeta, acarretando-lhe mais gastos.
440
CARTA de sesmaria de Manoel Carneiro. APM-SC 122, fl. 166; CARTA de sesmaria de Antnio Leite da
Fonseca. APM- SC 140, fl. 67 verso; CARTAS de sesmaria de Jos Ferreira Villa Nova. APM- SC 90, 94, e 156,
fls. 138 verso, 162 e 135. O padre Joo Gomes Salgado, Martinho da Silva e Francisco de vila Fagundes
aparecem como peticionrios em autos de medio de terra da Comarca do Rio das Mortes (AHET/IPHAN-
MG/SJDR Sesmarias caixas 15, 18 e 01, respectivamente). Por fim, quanto a Bento Francisco Simes:
Francisco Rodrigues Neves dotou com aquelas terras tiradas por sesmaria, medidas e demarcadas, a sua filha
Maria Rodrigues, para casar com Bento Francisco Simes que nelas moraram e cultivaram-nas sem contradio
199
O capito Coimbra, to logo conquistada sua segunda sesmaria, fez dela negcio:
passou parte dela para Domingos da Silva, que a comprou junto com as contendas.
Recorrendo a autores contemporneos, tanto Mrcia Motta quanto Sheila de Castro Faria j
alertaram que, fantasiosamente, alguns sesmeiros alegavam possuir cabedais ou j terem feito
alguma. (AUTOS de sesmaria de Manoel Freire embargado por Jos Gonalves Lopes. AHET/IPHAN-
MG/SJDR, caixa 35, fl. 17 verso).
441
AUTOS de sesmaria do capito Antnio Leite Coimbra e seu scio Francisco lvares Barbosa, 1758.
AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 01, fl. 2.
442
AUTOS de sesmaria do capito Antnio Leite Coimbra, 1760. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 18, fl. 2
verso.
200
atos possessrios na terra: posse de escravos, criaes, culturas, existncia de ranchos e cercas
etc., para justificar o pedido da merc e, uma vez conseguida a doao, ela era logo vendida.
Segundo Mrcia Motta, Antnio Jos Gonalves Chaves, ilustrado portugus radicado no sul
do Brasil, escreveu, em 1817, que o governador do Rio Grande, D. Diogo de Souza, em 1810,
queixava-se do escandaloso comrcio que tm manejado [pessoas poderosas], apropriando-
se de diferentes terras por aqueles [violentos] ou diversos modos que a sagaz ambio lhes
subministra, para venderem umas e conservarem outras.443 O curioso testemunho de Manoel
Martins do Couto Reis, em 1785, na regio de Campos dos Goitacases, ilustra o que tambm
temos visto na documentao:
[...] Porm, a cultura, que um e outro faziam, era a de mandar deitar quatro
rvores abaixo, queim-las, plantar quatro ps de mandioca, fincar 2
forquilhas e formalizar um rancho de palha muito insignificante, e muitas
vezes sem nenhuma destas fantasmas [sic], tinha a posse tomada, contanto
que procedesse os exames de Juiz, Escrivo e Piloto na forma do costume.
Acabada a cerimnia, e muitas vezes sem ela, estava tambm acabada a
cultura, e entravam no projeto de vend-la, a quem desejava terras, e as no
alcanava por no ter amigos, que a fomentassem, e se interessassem,
naquelas execrandas negociaes [...].444
443
MOTTA. Direito terra no Brasil, p. 249.
444
Manoel Martins do Couto Reis. Descrio Geogrfica, Poltica e Cronolgica do Distrito de Campos dos
Goitacases [...] (manuscrito de 1785), p. 71-72, apud FARIA. A colnia em movimento, p. 121-122.
445
REQUERIMENTO de Antnio Leite Coimbra, capito, pedindo carta de confirmao de sesmaria de meia
lgua de terra em quadra na paragem da Fortaleza, freguesia das Carrancas, termo da vila de So Joo, Comarca
do Rio das Mortes, 1767. AHU - Projeto Resgate MG, caixa 90, doc. 75.
446
AUTOS de sesmaria do capito Antnio Leite Coimbra, 1765. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 32, fls. 4
verso, 3 e 10.
201
447
DECRETO de D. Joo V nomeando Antnio Leite Coimbra para o cargo de inquiridor, contador e
distribuidor da vila de So Jos, 1748. AHU - Projeto Resgate MG, caixa 52, doc. 21.
448
AUTOS de sesmaria de Antnio Leite da Fonseca, 1764. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 36, fl. 3.
449
AUTOS de sesmaria de Jos Ferreira Vila Nova, 1751. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 01, fl. 10.
450
AUTOS de sesmaria do padre Bento Ferreira de Arajo, 1756. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 04 NC (no
catalogada), fl. 10; AUTOS de sesmaria de Alexandre de Souza Sobral (cedente) e reverendo doutor Jos Sobral
de Souza (cessionrio), 1752. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 07 NC (no catalogada).
451
AUTOS de sesmaria do padre Joo Gomes Salgado, 1752. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 15, fl. 12 verso;
AUTOS de sesmarias do capito-mor Mathias Gonalves Moinhos Vilhena, 1770. AHET/IPHAN-MG/SJDR,
caixas 04, 32 e 36; AUTOS de sesmaria de Domingos Leito Coelho, 1752. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 21.
452
AUTOS de sesmaria do Francisco de vila Fagundes e Maria Alves da Porcincula (mulher), 1754.
AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 01, fl. 8.
202
sua vez, ao medir sua sesmaria na paragem chamada a Caveira quer fazer citar a Francisco
Dvila Fagundes e sua mulher para dizer a dvida que tiver a dita medio.453 Esses nomes
se estenderiam por uma infinidade de outros e nossa hiptese j apontada acima de que os
grandes fazendeiros no tinham o menor interesse em reconhecer os pequenos como
proprietrios ou confrontantes seguiria confirmada. como se estivssemos construindo
uma teia em que raramente aparecem os pobres e pequenos proprietrios, mas evidente que
eles existiam.
Prova disso o fato ocorrido no dia 16 de outubro de 1766, quando a parda forra
Maria Pereira, analfabeta, protestou nos autos de medio de terra do capito Antnio Leite
Coimbra que estavam sendo embargados por Incio Antnio de Miranda. Se ela foi instigada
por outros ou se agiu por si mesma, no o sabemos. Mas, o fato que tentou evitar que sua
nesga de terra fosse aambarcada na medio feita pelo sesmeiro Domingos da Silva o qual,
em meio contenda dos dois primeiros, comprou metade da sesmaria do capito Coimbra.
Diz Maria Pereira, parda forra, que sendo-lhe concedidas pelo senado desta
vila trinta braas de terra de que tomou posse na paragem vizinha chapada
do Morro Grande, entre a da casa do capito Antnio Leite Coimbra e a de
Antnio da Costa, tem por notcia que Domingos da Silva e outros mais
scios pretendem medir sesmaria nas vizinhanas das ditas 30 braas de terra
e compreender na mesma medio as terras concedidas suplicante, que
esto de fora de uns valos at os quais o suplicado tem medido terras e
campos onde possa preencher a sesmaria, o que se deve s dar, entender e
medir em terra desocupada e sem prejuzo de terceiros.454
Cercada de grandes propriedades, Maria Pereira vivia de suas 30 braas que, se eram
em quadra, significavam, no mximo, meio hectare de terra. Se as 30 braas eram de testada
com fundos indefinidos, talvez correspondessem a um terreno um pouco maior.
Provavelmente pensando tal como os grandes proprietrios, Maria Pereira achava ser
interessante que as terras devolutas na sua vizinhana ficassem indefinidas. De outra forma,
ela no teria como criar suas cabeas de gado declaradas cmara da vila de So Joo a
453
AUTOS de sesmaria do capito Domingos Teixeira Villela, 1756. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 21, fl. 7.
454
AUTOS de sesmaria do capito Antnio Leite Coimbra (embargado) e Incio Antnio de Miranda
(embargante), 1762. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 34, fl. 169. Na fl. 157 h a declarao de cesso da
sesmaria para Domingos da Silva. A suplicante Maria Pereira alegou fl. 176 verso que Domingos da Silva s
havia comprado a metade da sesmaria e a outra metade a comprou Mateus Pereira Dutra com quem ela
confrontava. Esses autos esto incompletos e com lacunas. Seus fragmentos esto separados em pelo menos trs
caixas diferentes do fundo de sesmarias: a primeira parte na caixa 18, a segunda na caixa 05 das sesmarias no
catalogadas e a terceira na caixa 34.
203
qual, por meia pataca de foro, lhe deu o ttulo das trinta braas assinado pelos seus
vereadores, como se v nos autos. Como sabemos, em meio hectare mal se podem criar
alguns porcos e galinhas e se Maria Pereira possua suas cabeas de gado, elas deveriam
estar pastando nas terras devolutas e a medio, portanto, s poderia prejudic-la. No dia 18
de outubro de 1766, o doutor Francisco Jos de Souza, advogado de Maria, juntou ao
processo o auto de posse das 30 braas de terra lavrado pelo senado da cmara. Em cinco de
dezembro de 1766, o advogado tambm fez suas contrariedades pedindo a nulidade da
medio de Domingos da Silva. O sossego de Maria Pereira pouco durou. Em 13 de agosto do
ano seguinte, Domingos entrou com uma petio declarando que ela, ou seu advogado, deixou
de cumprir o prazo de trs dias que o juiz lhes havia dado para apresentar provas da
autenticidade dos ttulos de posse emitidos pela cmara. Acatando essa petio do sesmeiro, o
juiz Alexandre da Silva Barros, no mesmo dia, sentenciou no aceitando os embargos de
Maria Pereira e determinando que ela pagasse as custas a que deu causa. Com essa
sentena, o juiz mandou que se desse a posse das terras medidas e demarcadas ao
embargado Domingos da Silva, possivelmente privando Maria Pereira de sua pequena posse.
No possvel saber se a parda forra recorreu dessa sentena, j que o processo est
incompleto. mais provvel que no, pois, de cinco de dezembro de 1766 at a oito de
novembro de 1767, ela no mais se apresentou nos autos.455 No duvidamos de que sua cor e
condio social possam ter influenciado na deciso do juiz.456
Ao mesmo tempo em que Maria Pereira apresentou seu protesto, Francisco Jos de
Arajo tambm pedia embargos da medio de Domingos da Silva. Pela descrio que
Domingos da Silva fazia do pedao sobre o qual o embargante reclamava estarem suas terras
sendo includas na medio, tem-se a impresso de que Arajo era mais um pequeno
proprietrio sendo espoliado. Domingos da Silva declarou que no sua teno (sic), nem
nunca foi, que a dita sesmaria de que se trata compreenda na sua respectiva medio o
ranchinho com seu pedao de campo valado sobre si, que foi de Antnio da Costa, de quem
o houve o mesmo suplicado, nem l chegou a medio (grifos nossos).457 primeira vista,
parece que o sesmeiro fazia referncia a um estreito pedao de terra, mas as palavras podem
455
Idem, ibidem, fls. 170 a 188 (ltima folha dos autos).
456
FARIA. A colnia em movimento. Para uma discusso mais ampliada sobre o significado da cor como um
estigma social, sugerimos consultar as pginas 135-139.
457
AUTOS de sesmaria do capito Antnio Leite Coimbra (embargado) e Incio Antnio de Miranda
(embargante), 1762. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 34, fl. 160.
204
Como entender a existncia de homens livres sem a posse da terra, onde a terra
sobrava, seno pela presso que recebiam dos poderosos para no se apossarem dessas
sobras? No caso que vamos analisar a seguir, sesmarias inteiras de meia lgua em quadra
foram requeridas em terras devolutas nas sobras da sesmaria que foi concedida a Antnio
Leite Coimbra ou nas sobras da sesmaria de Francisco Rodrigues Neves. A contenda se
deu entre grandes fazendeiros, mas os pequenos, em diversos momentos, tambm acionavam
a justia para tentar se defender dos grandes ou entravam na refrega desses, impulsionados
por uma das partes. Este ltimo aspecto pode ser percebido na queixa do fazendeiro Jos
Gonalves Lopes, no embargo que fez da medio da sesmaria de Manoel Freire. Freire
declarou, atravs de seu advogado, que nunca teve pleitos alguns sobre terras, salvo as que
lhe move o embargado, sem justa causa, nesta sua fazenda da Fortaleza e as que lhe movem
os agregados do embargado por sua insinuao.459
As sobras das terras das sesmarias do capito Coimbra e de Francisco Neves seriam
motivo de discrdia 40 anos depois que eles as pediram por sesmarias. Essas sesmarias no
seriam apropriadas pelos agregados, mas pelo alferes Manoel Freire, genro do capito
Coimbra, e pelo fazendeiro Jos Gonalves Lopes. Em sobras desse tipo, sesmarias inteiras se
pediam. Mrcia Motta, analisando as cartas de confirmao do Arquivo Histrico
Ultramarino, j havia percebido que uma sesmaria anteriormente adquirida abria a
possibilidade de expanso da rea, com a alegao de sobras e sobejos de terras limtrofes.
A impreciso dos limites aqui flagrante e no havia nenhuma disposio da coroa em
relao a esses restos de terra.460 Os autos de medio, ao descreverem a situao das
sesmarias registrando a quantidade de cordas medidas a partir do pio nas direes dos pontos
cardeais, podem deixar transparecer aos incautos uma figura geomtrica perfeita com sua rea
definida. Ledo engano. Uma sesmaria de meia lgua de terra em quadra teria, legal e
teoricamente, 1.089 hectares de rea. Mas, na prtica, sua rea e suas limitaes poderiam
458
AUTOS de sesmaria de Francisco Jos de Arajo, 1798. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 02.
459
AUTOS de sesmaria - alferes Manoel Freire (embargado) e Jos Gonalves Lopes (embargante).
AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 35, fls. 3, 8 e 48 verso.
205
variar, para mais ou para menos, em funo da existncia desses sobejos e sobras e dos
enfrentamentos entre proprietrios mais ou menos poderosos, ambiciosos ou inescrupulosos.
A segunda maneira de ocupao seria atravs da petio das sobras e sobejos por
pessoas de outras paragens que detinham o conhecimento da disponibilidade dessas terras,
situao muito recorrente nas peties das sesmarias nesta pesquisa.
Por fim, numa ltima maneira, as terras ainda poderiam ser ocupadas sem nenhuma
comunicao formal s autoridades, ou seja, sem nenhuma forma de titulao. Isso deixava o
posseiro em situao delicada, se outro interessado apresentasse algum tipo de ttulo de posse.
Todavia, isso no quer dizer, necessariamente, que o detentor do ttulo ficaria com a posse,
visto que, de alguma forma, a legislao portuguesa protegia aquele que estava cultivando a
terra. Contudo bom lembrar que, no perodo colonial, inmeros alvars, leis, cartas rgias,
provises, bandos e portarias foram emitidos no sentido de regulamentar a ocupao da terra e
tentar obrigar os posseiros a providenciar o seu ttulo de posse. O fato que nem a Coroa
portuguesa, nem o Imprio do Brasil e a Repblica que o sucedeu deram conta dessa
regularizao fundiria, situao que se verifica at os dias de hoje.
Jos Gonalves Lopes foi um dos que contenderam pelas sobras das sesmarias nas
paragens do Inga e Morro da Fortaleza. Ele era filho de Manoel Gonalves Lopes, morador
na Ponte Nova do Rio Grande, distante dali algumas lguas em direo vila de So Joo del-
Rei. Manoel Lopes havia sido tutor dos filhos rfos do casal Bento Francisco Simes e
Maria Rodrigues. Ela, como j dissemos, era filha do sesmeiro Francisco Rodrigues Neves. O
460
MOTTA. Direito terra no Brasil, p. 170.
206
casal morava nas terras de Francisco Neves. Passados alguns anos Manoel Lopes alegou ter
comprado as terras dos herdeiros do casal e para l mandou seu filho Jos Gonalves Lopes.
A co-residncia dos filhos nas terras dos pais ou o seu deslocamento para outras regies, no
sculo XVIII, tambm foram notados por Sheila de Castro Faria no norte fluminense:
Um aspecto observado neste trabalho foi o fato de filhos morarem dentro dos
limites das terras dos pais, em casas construdas para eles, em locais
determinados. Inicialmente considerei que isto se dava principalmente para
propiciar um local de residncia para o novo casal, como se fosse uma
espcie de ajuda. Outros dados, entretanto, me foraram a uma reviso. Num
engenho, por exemplo, importava manter terras de pastagens para gado em
stios distantes das terras onde se plantava cana de acar. Tambm era
importante definir limites e controlar invasores em locais estratgicos da
propriedade. Filhos, ento, deslocavam-se para estes pontos. Contribuam,
assim, para a manuteno ou ampliao de um patrimnio.461
O outro interessado nas ditas sobras das sesmarias do Inga foi o alferes Manoel
Freire. Genro do poderoso capito Coimbra, Manoel Freire parece expressar bem a ideia
defendida por Faria de que era o genro, e no o filho, a herdar a posio social de um
casal.462 Parece-nos que o capito Coimbra tinha outros filhos, alm da filha que se casou
com o alferes, mas o fato digno de observao que, quando as extensas terras de Coimbra ou
as de seus vizinhos tiveram suas medies contestadas, quem aparecia para defend-las era o
genro. Manoel Freire, em seis de setembro de 1788, j assinava como parte interessada no
auto de exame, vistoria, remedio e demarcao da Fazenda Fortaleza, de propriedade dos
rfos de Bento Francisco Simes, seus vizinhos, e cujo procurador era Jos Gonalves
Lopes.463 O procurador dos rfos, alguns anos depois, pediria essas terras em sesmaria e por
elas demandaria com Manoel Freire. Vejamos como se deu essa contenda judicial.
461
FARIA. A colnia em movimento, p. 51.
462
Idem, ibidem, p. 380. O mesmo foi possvel observar para Bento Francisco Simes, genro do sesmeiro
Francisco Rodrigues Neves, que herdou as terras do sogro.
463
AUTOS de sesmaria do capito Antnio Leite Coimbra (cessionrio embargado), Francisco Rodrigues Neves
(sesmeiro cedente) e Andr de Souza Travassos (embargante), 1788. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa NC 06
(fragmentos).
207
outubro daquele mesmo ano. No final do ano seguinte, o sesmeiro, insistindo na medio de
sua sesmaria, reportou-se novamente ao juiz, porque at o presente a no tem medida por o
impedimento de Vossa Merc e do seu escrivo por ocorrncia de outras medies.464 No
somente esse, mas outros autos tambm indicam a morosidade da justia at mesmo para
iniciar as medies e demarcaes de terras. Morosidade causada pela escassez de oficiais,
pelas dificuldades de deslocamento e pelas longas distncias a serem percorridas desde as
cabeas de comarca ou vilas em que residiam os juzes e demais autoridades judicirias. Arno
Wehling usando comentrios de Saint-Hilaire, aponta, entre outros problemas da justia
colonial, as distncias geogrficas e a morosidade. Para ele:
A lentido da justia colonial, com a delonga dos pleitos, era proverbial e foi
inmeras vezes criticada por diferentes escritores e autoridades. Saint-
Hilaire, alm de apontar o problema, destacou que s vezes, s a interveno
de um governador o que era ilegal conseguia abreviar o curso de um
processo que provocava manifestos prejuzos ao litigante.465
A lentido da justia tambm era fruto das inmeras demandas envolvendo conflitos
de terra. Em primeira instncia, os litgios pela posse da terra tramitavam no juzo das
sesmarias, podendo haver recursos para o ouvidor da Comarca, as Relaes e a Casa de
Suplicao. Cabia ao juzo das sesmarias no somente medir e demarcar terras, como dar
andamento nos autos litigiosos. No caso ora em anlise, Jos Gonalves Lopes tanto
embargava a medio do alferes Manoel Lopes quanto, ao mesmo tempo, demandava com D.
Antnia Francisca de Paula, filha solteira do capito Coimbra, na mesma paragem.466
Manoel Freire teve sua petio atendida no dia 17 de novembro de 1797. Deste dia at
27 do mesmo ms, todos os oficiais do juzo das sesmasrias: juiz, escrivo, meirinho e
medidor aposentaram-se na fazenda da Fortaleza em casas de morada do alferes Manoel
464
AUTOS de sesmaria do alferes Manoel Freire (embargado) e Jos Gonalves Lopes (embargante).
AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 35, fl. 2. O doutor Joaquim da Silva Tavares, juiz das sesmarias, tambm era
sesmeiro na regio e envolveu-se numa disputa de terras contra Pedro Domingos de Carvalho na vila de So
Joo del-Rei em 1800. AUTOS de sesmaria do doutor Joaquim da Silva Tavares (apelado) e Pedro Domingos de
Carvalho (apelante), 1800. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 34. Tavares foi juiz das sesmarias por diversos
perodos. O senado da cmara de So Joo del-Rei, em 20 de agosto de 1785, fez o registro de uma nominata de
juiz das sesmarias para o Ilmo. e Exmo. Sr. General em que se lhe participava reconduzir a cmara desta vila ao
doutor Joaquim da Silva Tavares no mesmo cargo, para ele o prover. Papis da cmara PAP 150 (1784-
1785), fl. 89. (grifos nossos)
465
WEHLING; WEHLING. Direito e justia no Brasil colonial, p. 116.
466
AUTOS de sesmaria de D. Antnia Francisca de Paula (embargada) e Jos Gonalves Lopes (embargante),
1797. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 11.
208
Freire. Poderamos dizer que esse juizado era, de certa forma, itinerante. Em geral, era nas
vilas que sediavam os juzos das sesmarias que o sesmeiro ou seu procurador apresentava
sua petio e carta de merc da terra solicitando a medio. Poderia levar meses ou mais de
ano para ser atendido. Tudo indica que as autoridades esperavam que outras medies na
mesma rea fossem solicitadas, com vistas a evitar longas, desgastantes e at mesmo
perigosas viagens. Nos dez dias que permaneceram na fazenda da Fortaleza, os oficiais
fizeram tambm medio da sesmaria de D. Antnia Francisca de Paula, cunhada de Manoel
Freire. Encerrada essa primeira parte, na qual os oficiais despachavam nas prprias fazendas,
sendo a mesmo ajuntadas algumas peties de embargo e/ou procuraes quando havia
discordncias insolveis, o restante dos autos passava a ser despachado nas casas de morada
do doutor juiz das sesmarias ou mesmo do escrivo, j nas vilas.467 Tambm aconteciam
algumas audincias pblicas na Casa do Concelho das vilas de So Jos ou So Joo del-
Rei, conforme a freguesia em que se situava a sesmaria.
As duas medies corriam sob os olhos atentos de quem queria embarg-las. Nos dias
18 e 21, Jos Gonalves Lopes apresentou suas peties pedindo o embargo das medies. No
caso da sesmaria de Manoel Freire, pedia Lopes que fosse suspensa a medio e demarcao
e posse somente na parte que [Manoel Freire] quer medir sobre as terras do suplicante, ao
mesmo tempo em que alegava que a sua sesmaria, comprada dos herdeiros de Francisco
467
FARIA. A colnia em movimento, p. 385-386. Corrobora-se aqui a ideia defendida pela autora da ausncia de
limites claros entre os espaos do pblico e do privado no perodo colonial: Lugar de viver e de produzir, as
casas de vivenda ou de morada eram tambm lugar de articulaes polticas, administrativas e sociais. Era em
suas casas que os tabelies recebiam as informaes sobre a morte dos habitantes e iniciavam os inventrios [...]
Todos sabiam muito de todos, j que frequentar casas era o mesmo que frequentar lugares hoje absolutamente
especializados. Sabiam quem tinha falecido, quem tinha vendido (o qu e para quem) e sabiam mais uma
infinidade de pequenos detalhes da vida dos outros, o que transparece nos documentos.
209
468
AUTOS de sesmaria do alferes Manoel Freire (embargado) e Jos Gonalves Lopes (embargante).
AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 35, fl. 8.
469
AUTOS de sesmaria de D. Antnia Francisca de Paula (embargada) e Jos Gonalves Lopes (embargante),
1797. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 11, fl. 10.
470
AUTOS de sesmaria de D. Antnia Francisca de Paula (embargada) e Jos Gonalves Lopes (embargante),
1797. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 11, fl. 3.
210
pediu ao juiz que mande se esquadrejar a nova sesmaria com marcos de pedra que s carreta
possa mudar, pondo-se, assim, por pio, rumos e nos quatro ngulos para que se no possam
mudar com facilidade, evitando-se, assim, o poder dizer o suplicado maliciosamente que o
suplicante os fez mudar pelo conhecimento que h da conduta do suplicado. Pediu, ento, a
colocao de nove marcos de pedra (pio, quatro pontos cardeais e vrtices dos quatro
ngulos retos). O juiz deu a palavra ao alferes embargado. Este disse que, em vez de se
esquadrejar a nova sesmaria, que se procedesse remedio da sesmaria que fora de
Francisco Neves e que agora era a do embargante. Declarou ainda o embargado que h anos
que minha custa fiz remedir e quadrijar (sic) [ilegvel] a sesmaria de Francisco Rodrigues
Neves.471 Com base na fala das partes, o juiz deu a sua sentena:
471
AUTOS de sesmaria do alferes Manoel Freire (embargado) e Jos Gonalves Lopes (embargante), 1797.
AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 35, fl. 12-12 verso.
472
AUTOS de sesmaria do alferes Manoel Freire (embargado) e Jos Gonalves Lopes (embargante).
AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 35, fl. 13.
211
tambm juntaram sua procurao, nomeando, entre outros, o doutor Gomes da Silva Pereira
como seu procurador. A partir da a contenda teve como palco a vila de So Joo del-Rei.
473
AUTOS de sesmaria do alferes Manoel Freire (embargado) e Jos Gonalves Lopes (embargante), 1797.
AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 35, fl. 16-18 verso.
212
Que o mapa junto pelo embargante fl. 19, se acha inteiramente desordenado
e disconforme (sic), porque o rio Capivari que a se pinta ao p de n 11,
segundo a sua verdadeira situao, faz um saco grande a procurar o rio do
Ingahi com o qual se ajunta, e o ribeiro de Miguel Pereira, que vem do n
10, vai desaguar quase direito ao saco do Capivari, muito diferente do que se
pinta no mesmo mapa, e por isso, certo que a respeito dele se no pode
fazer juzo certo, como so as terras da contenda, achando-se em tudo
disconforme (sic) como diro as testemunhas, sendo-lhe para isso
mostrado.476
difcil afirmar que o tal mapa guardava correspondncia com o local que procurava
retratar. Somente sua plotagem sobre mapas do presente poderia elucidar essa dvida. De
qualquer maneira, os rios Capivari e Inga, retratados no mapa, tm, ainda hoje, o mesmo
nome e no seria difcil localizar o exato local em que o primeiro faz barra no segundo. A
Serra Branca e o Morro da Fortaleza, tambm desenhados, so acidentes geogrficos que
ainda podem ser identificados. A regio do conflito, pelos relatos nos autos, estava localizada
entre a confluncia dos dois rios, ao norte, o Morro da Fortaleza ao sul, o rio Capivari a leste e
474
AUTOS de sesmaria do alferes Manoel Freire (embargado) e Jos Gonalves Lopes (embargante), 1797.
AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 35, fl. 18.
475
O referido mapa um documento bastante precioso, mesmo que seja olhado com desconfiana. Para se ter
uma ideia do seu valor, dentre todos os autos de medio e demarcao de sesmarias da Comarca do Rio das
Mortes, com ou sem litgio, s existem quatro mapas. Eles, se no dizem da verdade com iseno, so
instrumentos extremamente teis para esclarecer o confuso processo de medio de terras. Atravs de um deles
possvel, por exemplo, perceber como uma sesmaria era artificialmente traada num quadriltero perfeito (mapa
dos autos de sesmaria de Joo Chrisstomo da Fonseca Reis e Gaspar Vaz da Cunha, 1778, produzido pelo
embargado, mapoteca do IBRAM/MRSJDR) ou, por mais que os contemporneos se esforassem para
esquadrejar uma sesmaria de meia lgua de terra em quadra ela estaria quase sempre torta devido aos
acidentes geogrficos e s confrontaes j existentes quando de sua concesso (mapa dos autos de sesmarias do
alferes Manoel Freire (embargado) e Jos Gonalves Lopes (embargante), 1797. AHET/IPHAN-MG/SJDR,
caixa 35, e de Luza Felcia Sinfroza de Bustamante, 1799, mapoteca do IBRAM/MRSJDR, Anexo 6).
476
AUTOS de sesmaria do alferes Manoel Freire (embargado) e Jos Gonalves Lopes (embargante), 1797.
AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 35, fl. 51 verso.
213
477
MOTTA. Nas fronteiras do poder, p. 23 e 201-203. A autora nos alerta para as dificuldades e riscos de tentar
plotar os conflitos num espao geogrfico dinmico. Entretanto, preferimos correr os riscos e, quem sabe, no
final das pesquisas, admitirmos ser impossvel tal tarefa, dada a impreciso dos documentos que utilizamos como
fontes primrias.
214
ponto do pio (n. 1). O mapa, talvez intencionalmente, no registra a quantidade de cordas478
nas medidas que partem do pio em direo a cada um dos quatro rumos. Lendo o auto de
medio e demarcao da sesmaria de Francisco Rodrigues Neves, de 1758, depreendemos o
seguinte, quanto s medidas: partindo do pio para o norte, 53 cordas, para o sul, 50 cordas,
para o leste, 63 cordas e para o oeste, 36 cordas.479 No mapa, as distncias retratadas do pio
para o norte e para o sul so mais ou menos equivalentes em escala,480 pois no h anotao
de medidas medio de 1758. Porm, as distncias entre o pio e o nascente e entre o pio
e o poente parecem ser exatamente o inverso do que se registrou em 1758, ou seja, a distncia
encolheu sensivelmente do lado do nascente e se expandiu, tambm sensivelmente, do lado do
poente. Teria errado o desenhista? O embargante, pelo seu advogado, j dissera que a sua
sesmaria era a mesma que fora medida para Francisco Neves. Seus adversrios, no entanto,
consideravam que a sesmaria do embargante pela primeira vez foi ela medida a olho com
excesso extraordinrio de cordas.481 Quem dizia a verdade? Difcil afirmar, mesmo porque
no nos cabe esse tipo de julgamento.482
478
Temos observado que, em geral, as cordas das medies eram de 15 braas, ou seja, 33 metros de
comprimento. As cordas das medies nos autos aqui analisados tambm obedeciam a esse padro.
479
AUTOS de sesmaria de Francisco Rodrigues Neves, 1758. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 32, fls. 7 verso e
8.
480
Esse mapa, na verdade, no traz nenhum tipo de escala. Estamos chamando de escala, aqui, as propores que
podemos medir no documento com uma rgua.
481
AUTOS de sesmaria do alferes Manoel Freire (embargado) e Jos Gonalves Lopes (embargante), 1797.
AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 35, fl. 51 verso.
482
MOTTA. Nas fronteiras do poder, p. 38. Segundo a autora: No cabe ao historiador o papel de juiz. Como
afirmou Stephen Bann, o direito partilha com a histria o mtodo controverso e a questo do julgamento, e os
historiadores tiveram (e a meu ver ainda tm) que lutar muito para se dissociarem do seu abrao
institucional[...]. Ainda segundo a autora, para os acontecimentos histricos no possvel afirmar que h
uma, apenas uma, verso possvel. Uma discusso terica bastante aprofundada sobre histria e verdade poder
ser encontrada em Histria & Teoria, de Jos Carlos Reis. No captulo 4, Histria e Verdade: posies, o autor
faz um excelente apanhado entre historiadores e filsofos de muito prestgio. A sua concluso, no entanto,
resume bem a questo: A verdade histrica no pode se reduzir a um enunciado simples, fechado, homogneo e
atemporal. Obtm-se algo prximo dela examinando todas as leituras possveis de um objeto. O exame
exaustivo, multifacetado, nuanado de um tema que diz a sua verdade. Como as possibilidades novas de
abordar um tema histrico so infinitas, as novas leituras so mltiplas no presente e ao longo do tempo.
Conhecer a verdade de um tema histrico reunir e juntar todas as interpretaes do passado e do presente sobre
ele. A verdade histrica um poliedro de infinitos lados-posies, que jamais poder ser visto integralmente por
olhos humanos. REIS. Histria & Teoria, p. 175.
215
terra ao sul do embargante (29 cordas de largo, no sentido N-S, por 69 de comprimento, no
sentido L-O) e D. Antnia outra faixa ao norte do embargante (74 cordas de largo, no sentido
N-S, por 99 cordas de comprimento, no sentido L-O). Considerando o ponto do pio da
medio de Manoel Freire e o marco sul por ele indicado (Morro da Fortaleza) e o ponto do
pio da medio de D. Antnia e o seu marco norte, com alguma chance de erro, podemos
aventar trs hipteses:
Primeira: Os dois sesmeiros mediam com justia suas sesmarias, deixando no meio a
do embargante Jos Gonalves Lopes, ou seja, mediam nas sobras, como haviam pedido ao
governador. O embargante reclamava porque ele prprio havia realmente excedido nas
medidas de sua sesmaria, tambm querendo se apropriar das mesmas sobras.
Encerrando essa necessria anlise do mapa da sesmaria, voltemos aos embargos nos
autos. Passou-se mais de um ano para que os embargados, pelo seu advogado, replicassem as
contrariedades feitas pelo embargante em 1798. Eles somente compareceram em juzo para
replicar em janeiro de 1799. Justificaram o atraso na medio por impedimento do juiz.
Afirmaram que o capito Coimbra somente alcanou duas sesmarias e no trs, como
falsamente alega o embargante. Disseram que s mediram terras nas sobras e no dentro
das terras do embargante. Apontaram que, sobre as terras que mediam nem o embargante
nem Francisco Rodrigues Neves tiveram jamais domnio algum nelas com ttulo legal, como
diro as testemunhas. Os embargados continuaram sustentando que nunca foi possvel
apresentar ele [embargante] algum papel de compra e venda de tais terras. Manoel Freire, de
fato, tinha um argumento de peso contra Jos Gonalves Lopes: o embargante no conseguia
apresentar nenhum ttulo da terra. E mais, o alferes Manoel Freire j se achava munido
preventivamente, desde outubro de 1796, de uma certido da cmara de So Joo del-Rei na
216
qual se demonstrava que Lopes no havia conseguido a sesmaria que pedira naquela
paragem.483
O doutor Silva, advogado do sesmeiro Manoel Freire, ofereceu sua ltima trplica nos
autos atravs de um arrazoado de dez artigos, alguns deles repetitivos. Apresentou mais uma
justificativa para o atraso na medio: a doena de uma filha do juiz. Sustentou ainda que seu
cliente no media terras na sesmaria do embargante, mas sim em sobras, que o embargante
no possua ttulos de propriedade das terras e que o mapa apresentado pelo adversrio no
era confivel. Por fim, considerava que o agitador deste pleito e outros muitos que tem tido a
respeito de diversas terras daquela vizinhana que quer chamar suas era o pai, Manoel
Gonalves Lopes, maior demandista, para se aproveitar do alheio e acostumado mesmo a
sustentar pleitos injustos por quantias insignificantes, que repugna a pagar, sendo verdadeiras
como diro as testemunhas.484 E procurou, ainda, desqualificar a participao do embargante
no processo argumentando que:
483
AUTOS de sesmaria do alferes Manoel Freire (embargado) e Jos Gonalves Lopes (embargante), 1797.
AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 35, fls. 35 verso a 45.
484
AUTOS de sesmaria do alferes Manoel Freire (embargado) e Jos Gonalves Lopes (embargante), 1797.
AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 35, fl. 52 verso.
485
AUTOS de sesmaria do alferes Manoel Freire (embargado) e Jos Gonalves Lopes (embargante), 1797.
AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 35, fl. 52 verso.
217
Antes do incio da tramitao dos processos na vila de So Joo, nos dias em que a
contenda ocorria nas casas de morada do sesmeiro alferes Manoel Freire, no h como
negar o constrangimento que seria para a outra parte, Jos Gonalves Lopes e seu pai, intervir
no processo. Em diversas passagens dos autos, as partes envolvidas referiam-se uma outra
em tons agressivos, de forma crescente. Acusaram-se reciprocamente de maliciosos e o
alferes suspeitava de seu vizinho por consider-lo desobediente justia e por ser de pouca
conduta. No final de seus embargos, os advogados sempre ressaltavam que seu cliente era
pessoa de verdade e conscincia e, ao mesmo tempo, procuravam detratar a parte contrria.
Assim o fez o doutor Jos lvares do Couto Saraiva, advogado de Jos Gonalves Lopes,
dizendo nos autos:
No mesmo tom respondeu o advogado de Manoel Freire, alegando que seus clientes
eram pessoas de probidade, bom conceito, verdade e conscincia, tementes a Deus, quietos e
pacficos, e nunca capazes de ofender aos seus vizinhos, nem de querer o alheio. E no artigo
13 das contrariedades que fez nos autos, continuou atacando a parte adversria, procurando
desqualific-la:
486
AUTOS de sesmaria do alferes Manoel Freire (embargado) e Jos Gonalves Lopes (embargante), 1797.
AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 35, fl. 19-19 verso.
487
AUTOS de sesmaria do alferes Manoel Freire (embargado) e Jos Gonalves Lopes (embargante), 1797.
AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 35, fl. 37.
218
Com essas citaes foi nosso objetivo demonstrar que muitas vezes os argumentos das
partes perdiam de vista o objeto da contenda e se calavam em questes da vida cotidiana que
poderiam, naquele tipo de sociedade, influenciar a deciso dos juzes. Os advogados de ambas
as partes tambm faziam apelo constante a que se chamassem testemunhas para atestar o que
alegavam, dado o valor que elas tinham no contexto da sociedade colonial. Outro aspecto a
ser notado: em determinado momento do processo, o embargante Jos Gonalves Lopes pediu
que, ao invs de testemunhas, fossem constitudos louvados para vistoriar as medies.
Haveria pelo menos duas explicaes possveis para essa atitude: ele estaria mentindo ou
receava que as testemunhas pudessem complic-lo. No podemos esquecer que a famlia do
capito Coimbra estava instalada naquela regio a mais de sessenta anos e era grande
proprietria de terras. Os Lopes, ao contrrio, tinham a sede de suas propriedades a algumas
lguas de distncia, na Ponte Nova do Rio Grande. Se pudermos acreditar na fala dos seus
adversrios, Manoel Gonalves Lopes que igualmente agita este pleito e outros muitos que
tem tido a respeito de diversas terras daquela vizinhana que quer chamar suas. Jos
Gonalves Lopes dizia no ter demandas com ningum da vizinhana, mas, quando foi
preciso escolher louvados para a vistoria que requereu, impugnou o nome de Manoel Martins
[que] traz demandas com ele embargante.488 Foram necessrias seis audincias para que as
partes chegassem a um acordo quanto aos nomes dos louvados que fariam a vistoria. Houve
uma sucesso de impugnaes de nomes por ambas as partes, demonstrando o quanto era
arriscado, mesmo debaixo do juramento dos Santos Evangelhos, aceitar louvados e
testemunhas que pudessem colocar em risco o resultado considerado favorvel a cada parte.
488
AUTOS de sesmaria do alferes Manoel Freire (embargado) e Jos Gonalves Lopes (embargante), 1797.
AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 35, fls. 52 verso e 58 verso.
219
489
AUTOS de sesmaria de D. Antnia Francisca de Paula (embargada) e Jos Gonalves Lopes (embargante),
1797. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 11, fl. 14 verso.
490
AUTOS de sesmaria de D. Antnia Francisca de Paula (embargada) e Jos Gonalves Lopes (embargante),
1797. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 11, fls. 30 a 32 verso para todas as citaes da rplica da embargada.
220
mesma parte dos autos o advogado escreveu que deste Martinho da Silva passaram as
referidas terras a outros possuidores e ultimamente as houve por compra o capito Antnio
Leite Coimbra.491 Primeiro a sesmeira disse que as terras medidas eram devolutas, depois
apresentou uma sucesso de possuidores at chegar ao nome de seu pai. Qual seria sua
verdadeira inteno?
As duas causas seguiram paralelamente. A uma delas pouco faltava para ser
considerada irm siamesa da outra. A partir de janeiro de 1798, algumas questes levantadas
nos autos de Lopes contra Manoel Freire tambm aparecem refletidas nos autos contra D.
Antnia Francisca de Paula.
Uma questo nos dois autos, que se arrastou por quase trs meses (de janeiro a de
maro de 1798), emperrando na prtica os processos por um ano, dizia respeito s custas dos
processos. Em ambos os processos houve uma longa discusso sobre quem deveria dar fiana
nas custas, se o embargante ou os embargados. Foi necessrio, inclusive, que o embargante
agravasse para o ouvidor da Comarca para se livrar da fiana que o juiz das sesmarias j o
havia condenado a pagar. Os advogados das partes concordavam, segundo um Assento da
Casa de Suplicao datado de 1788, que o autor dos processos deveria dar fiana s custas. A
partir da, a disputa era para definir quem era o autor e quem era o ru nos processos. O
advogado de Jos Gonalves Lopes, que embargava os autos, recorreu at s citaes latinas
do jurisconsulto romano Ulpiano, para provar que seu cliente no estava na condio de autor
dos processos. O ouvidor, aps vistos os argumentos dos advogados das partes, decidiu que os
embargados eram os autores nos autos e, portanto, deveriam ser os fiadores. Com essa deciso
da instncia superior, o juiz das sesmarias reformou sua sentena e condenou o alferes Manoel
Freire e D. Antnia a pagarem as fianas. Esse enfadonho debate entre os advogados no teria
nenhum interesse para nosso objeto, se no fossem alguns aspectos subjacentes a ele.
491
AUTOS de sesmaria de D. Antnia Francisca de Paula (embargada) e Jos Gonalves Lopes (embargante),
1797. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 11, fls. 39 a 41.
221
vez que o escrivo passava os autos para o despacho do juiz, no olvidava a sua rasa.492 Tudo
era pago, cada papel, cada certido. Antnio da Costa Braga, escrivo da cmara de So Joo
del-Rei, forneceu uma certido ao alferes Manoel Freire e anotou no final: Pagar-se- de
feitio desta minha presente certido, por parte do suplicante alferes Manoel Freire, que a
pediu e a requereu e a cujo requerimento se lhe deu e passou ao todo na forma do novo
regimento observado nestas Minas a quantia de um mil, duzentos e sessenta ris. Poucos
foram os que estudaram to detalhadamente as relaes entre cargos, remuneraes e poder
no Antigo Regime como Antnio Manuel Hespanha. Seus estudos podem nos ajudar a
entender por que a indefinio de quem pagaria as contas de um processo poderia paralis-lo
por mais de um ano. Segundo ele:
Outro aspecto a se considerar era o fato de que os processos poderiam se estender por
anos a fio, levando runa quem tivesse que pagar suas custas. Da todos pretenderem se
esquivar desse nus. No foi toa que as partes se enfrentaram na questo da fiana s custas,
agravando, inclusive, para o ouvidor. As despesas no se limitavam s custas judiciais. A elas
era necessrio acrescentar os honorrios dos advogados e solicitadores de causas, os gastos
com viagens e, se perdida a causa, perdiam-se as prprias fazendas dos envolvidos. Fazendas
aqui, no seu sentido mais amplo, no somente a propriedade rural, mas tambm os
investimentos j realizados na terra.
492
DE PLCIDO E SILVA. Vocabulrio jurdico. RASA. Do latim rasa, forma feminina de rasus (aplainado,
raspado, gravado), entende-se o total de linhas manuscritas ou datilografadas em uma escritura, sobre o qual se
devem pagar certos emolumentos, calculados pela taxa estabelecida para cada linha ou por um nmero certo de
palavras. Deste modo, a rasa revela-se a contribuio que corresponde ao trabalho executado pelo escrivo,
oficial ou escrevente, na trasladao da escritura ou da certido, computada pelo nmero de linhas ou de
palavras, como elaborada. , portanto, o estipndio pelo que se gravou ou se escreveu.
493
HESPANHA. s vsperas do Leviathan, p. 176.
222
A concomitncia dos autos tambm pde ser observada na escolha dos louvados para
uma vistoria que o embargante Jos Gonalves Lopes pedira. As audincias de 7, 10 e 14 de
julho de 1800, cuja finalidade exclusiva era a nomeao dos ditos louvados, foram feitas para
atender aos dois processos. As partes, repetidamente, no aceitavam os nomes indicados pelos
adversrios. No dia 14 de julho de 1800, chegou-se a um acordo, depois de uma enfadonha
disputa, e os nomes dos louvados, finalmente aceitos pelas partes, foram os mesmos nos dois
autos. Nada mais foi registrado nos processos nos seis meses seguintes. No dia 26 de janeiro
de 1801, foram acrescidas aos dois autos custas de 4$520 ris para o alferes Manoel Freire e
de 4$490 ris para sua cunhada, clculos que ocupavam as ltimas folhas de ambos os
documentos. Devido s coincidncias, ficamos com algumas perguntas pendentes. Foram
feitas as vistorias? Os dois processos foram agrupados em um s? As partes que faltam nos
dois processos esto em outro fundo dos arquivos de So Joo del-Rei, ou foram
irremediavelmente perdidas? Os inventrios das partes poderiam elucidar o desfecho dos
conflitos?
pouco provvel, pois, em diversos momentos, Manoel Freire e sua cunhada reconhecem que
os Lopes estavam de posse da sesmaria que pertencera a Francisco Neves. Os dois sesmeiros
tambm disseram, pelo seu advogado, que j se averiguou por vistoria haver excesso
extraordinrio na primeira medio pelo conluio que fez [Lopes] com os medidores para lhe
acrescentarem maior nmero de cordas, como pblico e notrio e melhor diro as
testemunhas.494 Neste caso, haveria sim as sobras e era sobre elas que os sesmeiros
mediam suas sesmarias.
Da leitura completa dos trs autos de sesmaria que apresentavam litgios pelas
medies e demarcaes, o primeiro do perodo de 1758-1777 e os dois ltimos de 1797-
1801, e de outros tantos processos menores, apontamos duas consideraes gerais.
A segunda, que trata da forma como eram conduzidos os autos em que se impetravam
embargos durante e aps as medies, os documentos examinados no indicam nenhuma
mudana considervel nas prticas jurdicas no tocante ao direito no mbito da Comarca do
Rio das Mortes. A leitura dos autos de sesmaria de Joo Crisstomo da Fonseca Reis, o qual
analisamos detalhadamente no ltimo captulo da tese, verbi gratia, demonstra o uso, em
1782, de jurisconsultos que a Lei da Boa Razo, de 1769, j desaconselhava nos processos:
Brtolo, por exemplo. Diz Nuno Gomes da Silva, comentando a Lei da Boa Razo: como
sabemos, Brtolo recebido nas Ordenaes Afonsinas, porque he communalmente mais
conforme aa razom; agora, expulso porque se no conforma s boas razes. Sai, assim,
Brtolo do quadro das fontes pela mesma porta por onde entrara.495 Os autos conservam
estruturas semelhantes ao longo do perodo, no sendo perceptveis grandes variaes. Talvez
494
AUTOS de sesmaria do alferes Manoel Freire (embargado) e Jos Gonalves Lopes (embargante), 1797.
AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 35, fl. 35 verso.
495
SILVA. Histria do direito portugus, p. 278-279. Sobre a Lei da Boa Razo, vide MOTTA. Direito terra
no Brasil, p. 59-61.
224
uma anlise mais refinada, conduzida por um especialista da histria do direito portugus, seja
capaz de perceber nuances que nos escaparam primeira vista.
Fernando Pessoa
O Quinto Imprio Mensagem
496
MONTEIRO. O crepsculo dos Grandes, p. 262, 263 e 267.
226
partir de 1796, quando D. Rodrigo de Souza Coutinho, primeiro conde de Linhares, foi
nomeado Secretrio de Estado da Marinha e Domnios Ultramarinos (1796-1801).497
Nossa inteno, neste captulo, demonstrar que as propriedades rurais que os nobres
portugueses da famlia Souza Coutinho possuram em Minas Gerais tiveram um princpio e
um fim bastante diferentes daquelas ocupadas por alguns sesmeiros da Comarca do Rio das
Mortes, que j estudamos nos captulos anteriores. As sesmarias apropriadas por sesmeiros
residentes nessa capitania, como os coronis Incio Correia Pamplona, Manoel da Silva
Brando e Jos Aires Gomes e pelo capito-mor Joo Quintino de Oliveira, progrediram,
tornando seus proprietrios ricos. Ao contrrio, as sesmarias dos ilustrados fidalgos Souza
Coutinho, sempre ausentes das suas fazendas, entraram em decadncia e caminharam para
uma completa destruio, fazendo valer dois adgios populares: o olho do dono que
engorda o gado e pai rico, filho nobre, neto pobre. O primeiro, uma possvel variao do
antigo provrbio lusitano perdido o gado onde no h co que ladre,498 estaria diretamente
ligado presena marcante do proprietrio cuidando de perto de seus cabedais, cujas
extenses e rendas auferidas conhecia com clareza. O segundo ditado estaria associado a um
ethos aristocrtico que afastava a fidalguia do trato direto de suas propriedades, deixando-as,
muitas vezes, nas mos de administradores nem sempre zelosos e confiveis. Sobre isso,
Gilberto Freyre extraiu da leitura de Joaquim Nabuco a seguinte reflexo: poucos so os
netos de agricultores que se conservam frente das propriedades que seus pais herdaram; o
adgio pai rico, filho nobre, neto pobre expressa a longa experincia popular dos hbitos da
escravido, que dissipam todas as riquezas, no raro no estrangeiro.499
497
SILVA. Portrait dun Homme dtat; SILVA. D. Rodrigo de Souza Coutinho: textos polticos, econmicos e
financeiros. Informaes pormenorizadas a respeito da famlia Souza Coutinho podem ser consultadas nessas
duas obras de Andre Mansuy Diniz Silva. Ambas as obras sobretudo a primeira , organizadas em dois
volumes, buscam reconstruir a trajetria biogrfica, poltica e intelectual de D. Rodrigo de Souza Coutinho,
primeiro Conde de Linhares. Na segunda obra, interessa-nos particularmente a introduo que a autora faz na
antologia de textos do estadista portugus. Dados biogrficos e genealgicos da famlia informados neste
captulo foram compulsados nos maos do Arquivo dos Condes de Linhares/ANTT e cotejados, sempre que
possvel, com essas obras.
498
BLUTEAU. Vocabulario Portuguez & Latino. GADO: Adagios Portuguezes do Gado: Perdido he o Gado,
onde no ca q ladre.
499
FREYRE. Casa-grande & Senzala, p. 281-282.
227
extenses , algumas sesmarias passaram pelas mos de Casas senhoriais500 portuguesas. Esse
fator poderia diferenci-las das sesmarias cultivadas pelos nativos ou colonos portugueses
sem nenhuma nobreza, sobretudo quanto sua administrao e explorao.
500
Aplicamos aqui e em outras partes deste texto o conceito de Casa que adota Nuno Gonalo Freitas
Monteiro: um conjunto de bens simblicos e materiais a cuja reproduo alargada estavam obrigados todos os
que nela nasciam ou dela dependiam. Cada um no seu lugar, por demais conhecido e bem definido. Na poca
histrica a que nos reportamos, a casa representava um valor fundamental para (quase) todas as elites sociais. A
famlia ou linhagem nobre, de origem remota, consubstanciada no apelido (e/ou varonia), deixara de constituir a
referncia essencial, para se tornar apenas em um elemento do capital simblico de cada casa. MONTEIRO. O
crepsculo dos Grandes, p. 95-96.
501
Jos de Souza Martins observa: Sendo a terra um fator natural, sem valor porque no o resultado do
trabalho humano, teoricamente no deveria ter preo. Mas, antes do advento do capitalismo, nos pases europeus,
o uso da terra estava sujeito a um tributo, ao pagamento da renda em trabalho, espcie ou dinheiro. Essas eram
formas pr-capitalistas decorrentes unicamente do fato de que algumas pessoas tinham o monoplio da terra,
cuja utilizao ficava, pois, sujeita a um tributo. O advento do capitalismo no fez cessar essa irracionalidade.
Ao contrrio, a propriedade fundiria, ainda que sob diferentes cdigos, foi incorporada pelo capitalismo,
contradio essa que se expressa na renda capitalista da terra. Tal renda nada mais tem a ver com o passado pr-
capitalista, no mais um tributo individual e pessoal do servo ao senhor; agora um pagamento que toda a
sociedade faz pelo fato de que uma classe preserva o monoplio da terra. MARTINS. O cativeiro da terra, p.
20. Mrcia Motta reconhece a importncia do trabalho de socilogos como Jos de Souza Martins, mas ressalta
que ao terem subestimado a contribuio dos juristas, os historiadores no puderam considerar a existncia de
outras interpretaes possveis sobre as leis agrrias. Para ela, tanto a legislao portuguesa das sesmarias, na
colnia, ou a Lei de Terras, no Imprio, no deveriam ser compreendidas apenas como a expresso jurdica da
classe dominante. MOTTA. Nas fronteiras do poder, p. 20. A autora, influenciada por Thompson, procurou
desnaturalizar a propriedade privada, compreendendo o sistema de sesmarias e o seu mais importante
fundamento: a obrigatoriedade do cultivo. MOTTA. Direito terra no Brasil, p. 20. A partir dessas
formulaes tericas, o monoplio da terra apontado por Martins pode ser questionado. Para o caso especfico
de Minas Gerais, conferir CARRARA. Minas e currais, p. 154-167.
502
Mrcia Motta em Nas fronteiras do poder, p. 15-25, avana e amplia a compreenso que Maria Yedda
Linhares e Francisco Carlos Teixeira da Silva, em Histria da agricultura brasileira, p. 130, tm da propriedade
camponesa, quando afirmam que nas regies de maior adensamento das fazendas de cana e demais produtos de
exportao tornava-se impossvel o surgimento de um campesinato livre face grande presso exercida pelos
homens bons sobre os mecanismos de distribuio de terras. (grifos nossos).
228
Esse estado de risco foi exatamente a situao enfrentada pelos Souza Coutinho em
relao s terras que possuam na capitania de Minas Gerais. Em carta datada de 23 de janeiro
de 1761, de Vila Rica, o advogado doutor Manoel da Rocha Martins alertava a Antnio do
Valle Moreira, correspondente dos negcios dos Souza Coutinho no Rio de Janeiro, que o Sr.
D. Francisco ainda no est desenganado com esta Hidra de Sete Bocas, no obstante avisar-
lhe com miudeza nas cartas que lhe escrevi o ano passado.504 Nessa carta, o advogado
Martins referia-se dilapidao dos bens que a famlia de D. Francisco Inocncio de Souza
Coutinho tinha nas Minas: fazendas, escravos, lavras de ouro, objetos, crditos a receber etc.,
nas mos do reverendo doutor Manoel Ribeiro de Carvalho, um advogado inventariante com
quem litigavam pela posse desses bens.
503
FURTADO. Homens de negcios, p. 7286.
504
CARTA do doutor Manoel da Rocha Martins para Antnio do Valle Moreira, 23 de janeiro de 1761. Arquivo
Nacional da Torre do Tombo/Arquivo dos Condes de Linhares (daqui para adiante ANTT/ACL), mao 56, doc.
12.
505
O capito Joaquim de Lima e Mello e Pamplona eram, possivelmente, velhos conhecidos. Segundo Mrcio
Jardim, o funcionrio do Errio Rgio era um dos nomes envolvidos na inconfidncia de 1789 e, tal como
Pamplona, foi deixado ao largo da investigao. JARDIM. A Inconfidncia Mineira, p. 265.
229
capito Joaquim de Lima dirigiu-se a Pamplona, porque era ele o coronel regente da
Conquista do Campo Grande naquela ocasio. Pamplona, profundo conhecedor daquelas
paragens, as quais conquistara com suas entradas e onde tambm tinha extensas sesmarias e
por elas transitava havia mais de trinta anos, esquivou-se de uma resposta precisa: as
Fazendas a que chamam a Babilnia, Arages e Almas, melhor se conhecer quais elas sejam
das partes que haviam [de] dar os Administradores que ao princpio as povoaram. Continuou
informando que as desordens daqueles goianos tm confundido e mudado os nomes quele
vastssimo terreno, tirando, com subterfgios, o que nos custou por tantas vidas e avultadas
despesas e tudo se tem conservado neste dissabor por poltica e padecem os povos e a
capitania demolida. Antes de encerrar a carta com os costumeiros e extensos elogios,
somente sugeria que consultassem as portarias e ordens dos passados Senhores Generais
Martinho de Mendona e conde de Bobadela, e dos mais Excelentssimos Senhores, e vero
onde se funda esta fina poltica, e eu conservo abundantes documentos e no so respeitados,
mas as sesmarias se acham registradas em nmero grande daquele tempo [de] 1736.506
A documentao pesquisada tambm nos fez pensar que, para o caso das Minas Gerais
Setecentistas, no possvel estudar a ocupao da terra sem levar em conta a atividade
mineradora, mesmo que de passagem. Para isso, alguns outros pesquisadores j tm nos
chamado a ateno. Segundo Jos Newton Coelho Meneses, a minerao estimulou a
produo agro-pastoril e artesanal/manufatureira, alm da prestao de servios e da
construo civil, constituindo, na rea mineradora, uma economia diversificada e complexa,
506
CARTA de Incio Correia Pamplona para o capito Joaquim de Lima e Mello, fazenda do Mendanha, quatro
de novembro de 1799. ANTT/ACL, mao 85, doc. 27.
230
com inclinao acentuada para o atendimento das demandas do mercado interno.507 Charles
Boxer observa que, nas regies aurferas, as pessoas que se arranjaram melhor no fizeram
fortuna apenas atravs da minerao, mas com uma judiciosa combinao minerao, lavoura
e comrcio de escravos e mercadorias.508 Essa combinao esteve sempre explcita nas
propriedades dos Souza Coutinho, como veremos mais adiante. Esses nobres proprietrios no
abriam mo das minas e nem da agricultura. Com essa ltima garantiam a alimentao e o
vesturio de uma escravaria que, em determinados momentos, chegou a ultrapassar duas
centenas de cativos, vendendo os excedentes agrcolas dentro e fora da colnia. Para Maxwell
a fazenda de Minas, muitas vezes combinava o engenho de acar com a mina, ou esta
ltima com a pecuria. Muitos latifndios de Minas tinham lavra aurfera, grande lavoura e
engenhos de acar e de farinha.509
Uma outra questo que nos despertou o interesse foram os danos causados s
propriedades por administradores de proprietrios absentestas, fato comum no extenso
territrio das Minas. Um caso tpico o de Manoel Nunes Viana, figura emblemtica da
Guerra dos Emboabas, no alvorecer da atividade de minerao. Esse reinol, potentado na
Comarca do Rio das Velhas, era procurador de D. Isabel Guedes de Brito, da poderosa famlia
da Casa da Ponte. Filha do capito Antnio Guedes de Brito, D. Isabel reivindicava a
propriedade de dezenas de lguas de sesmarias no vale do So Francisco, que foram doadas
ao seu pai.510 Nunes Viana administrava essas terras cobrando foros e rendas dos colonos.
Alguns documentos indicam o pouco zelo do administrador no governo dessas propriedades.
D. Isabel, residente na Cidade da Bahia, em uma carta datada de 1720, queixava-se de que
sesmarias estavam sendo distribudas a outros sesmeiros dentro do que ela considerava sua
posse.511 Outro caso tpico foi o do marqus de So Joo Marcos, bisneto de Garcia Rodrigues
507
MENESES. Histria de Minas Gerais, v. 1, p. 274-275. Nesse bloco do livro, outros autores comungam com
a mesma ideia. Assim, Joo Antnio de Paula afirma que a minerao no deve ser secundarizada na histria de
Minas Gerais, mas sim que tenha sido uma atividade nuclear, decisiva, responsvel pela especificidade do
processo de constituio histrica da regio (p. 279) e que as minas estimularam a ampliao da agricultura de
alimentos (p. 285). Tambm para Carlos Magno Guimares e Flvia Maria da Mata Reis, no artigo Agricultura
e minerao no sculo XVIII, as atividades agropastoris eram fundamentais para os mineradores, e no raras
vezes encontravam-se intimamente articuladas com o trabalho nas lavras, constituindo um todo que garantia a
base para a explorao aurfera (p. 327-328).
508
BOXER. A idade do ouro no Brasil, p. 75.
509
MAXWELL. A devassa da devassa, p. 111.
510
VASCONCELOS. Histria Antiga das Minas Gerais, p. 240; Histria Mdia de Minas Gerais, p. 31-32.
511
AHU - Projeto Resgate MG, caixa 2, doc. 62: Requerimento de Isabel Maria Guedes de Brito, viva do
coronel Antnio da Silva Pimentel, solicitando a D. Joo V a merc de ordenar ao governador de Minas no
conceda sesmarias em terras que lhe pertenam.
231
Para entender por que os Souza Coutinho, cujas razes se encontravam na isolada
provncia de Trs-os-Montes, com propriedades rurais nos arredores de Vila Real, Chaves e
Bragana, chegaram a ser senhores e possuidores de terras em Minas, faz-se necessrio traar,
mesmo que rapidamente, a trajetria da famlia na colnia, desde a ltima dcada do sculo
XVII.
4.1 A famlia
A histria das propriedades dos Souza Coutinho na capitania de Minas Gerais comea
no primeiro quartel do sculo XVIII com o coronel Matias Barbosa da Silva. Matias Barbosa
no possua linhagem nobre, sua ascenso social dera-se pelos servios militares prestados ao
reino e pelo enriquecimento na colnia. J dono de algum cabedal, casara-se com D. Luza de
Souza de Oliveira, pertencente famlia dos Souza Coutinho que, apesar de nobres, no
pertenciam ao crculo da Grande Nobreza de Portugal; eram fidalgos de provncia, cujas
razes se encontravam no norte de Portugal, em Trs-os-Montes. Regio reconhecidamente
pobre do reino, a provncia de Trs-os-Montes era um celeiro de imigrantes para o Brasil,
vidos pelo enriquecimento rpido. Do casamento de Matias Barbosa e D. Luza nascera
somente uma filha: D. Maria Barbosa da Silva. Tal filha nasceu no Brasil, tendo sido batizada
em 16 de janeiro de 1703 na igreja da Candelria, no Rio de Janeiro, onde seu pai exercia
funes militares, na primeira dcada do sculo XVIII, tendo participado, inclusive, dos
combates para repelir as invases francesas.
512
MOTTA. Nas fronteiras do poder.
232
1699, teve conhecimento com uma mulata, da qual no se lembrava do nome, e que ela
tivera um filho e o batizou como sendo dele. Sem ter certeza da paternidade e estando
desaparecido o presumido filho, Matias Barbosa pedia aos seus herdeiros que, aps
consultados conselheiros espirituais e homens doutos porque eu neles descarrego a minha
conscincia , o aceitassem como herdeiro, caso aparecesse.513 O filho ilegtimo nunca
apareceu. Os nicos herdeiros de toda a sua fortuna seriam a viva, a filha nica e o genro. O
testamento, que dispensaria o inventrio e serviria para agilizar a distribuio dos bens e fazer
valer as vontades do morto, no teve um desenrolar to tranquilo. Primeiro, porque os legados
de sua tera envolvendo doaes e determinando rendas definitivas para os clrigos da
Colegiada514 dos Anjos, criada pelo testador em Lisboa, dificultavam a sua execuo.
Segundo, porque o testamenteiro, doutor Manoel Ribeiro de Carvalho, criou uma srie de
dificuldades no processo, desde o falecimento de Matias Barbosa , em 1744, at o ano de
1765, quando entrou em acordo com os herdeiros. Veremos isso mais frente, ao tratarmos da
herana.
Em seu testamento, Matias Barbosa declarou que deveriam ser seus ossos trasladados
do Brasil para a igreja de Nossa Senhora dos Anjos em Lisboa. Nessa parquia, instituiu uma
Colegiada, em 1737, qual estavam vinculados onze clrigos os quais, segundo o testamento,
teriam cada um, renda anual de cem mil ris pagos pela tera do testador. Por sua alma, entre
as igrejas do Brasil, em Minas e no Rio de Janeiro, e de Portugal deveriam ser celebradas
nada menos do que 5.200 missas com todas as esmolas de costume.
513
TESTAMENTO de Matias Barbosa da Silva. ANTT/ACL, mao 95, doc. 19. Localizamos o original do
testamento no Arquivo Histrico da Casa Setecentista de Mariana, Livro de Registro de Testamentos n 72, fl. 58
verso a 66, Cartrio do 1 Ofcio.
514
MORAES SILVA. Diccionario da Lingua Portugueza Collegiada: Igreja, cujos cnegos tm por chefe a
um Abade ou Prior. O padre Raphael Bluteau em seu Vocabulario Portuguez e Latino acrescenta: Chama-se
Collegiada, porque como um colgio de clrigos que se juntam a celebrar os ofcios divinos. A fundao e a
onerosa manuteno dessa colegiada conferiam a Matias Barbosa o prestgio que talvez sua origem sem
linhagem no conferiria.
515
TESTAMENTO de Matias Barbosa da Silva. ANTT/ACL, mao 95, doc. 19.
233
com a Espanha, Teixeira consolidou sua carreira militar e, em 1706, recebeu uma patente de
ajudante de mestre-de-campo. Dois anos depois, em 1708, foi nomeado sargento-mor de
infantaria no exrcito que est no Principado da Catalunha e, em 20 de maro de 1713
recebeu a merc do Hbito da Ordem de Cristo. J no Brasil, em 1731, pedia licena do cargo
de mestre-de-campo do Tero Velho do Rio Janeiro, alegando problemas de sade, para
retornar a Portugal. Domingos Teixeira e D. Maria Barbosa passaram, ento, a residir em
Chaves, onde ele desempenhou diversos cargos na conturbada fronteira com a Espanha. Em
1735, teve carta patente de brigadeiro; em 1750, de sargento-mor de batalha com governo da
Praa de Miranda e governador de armas da provncia de Trs-os-Montes.516 Enquanto Matias
Barbosa viveu, seu genro foi seu scio e correspondente em Portugal, onde tambm exercia as
suas prprias atividades comerciais.
516
ANTT/ACL, mao 90, docs. 86, 87, 84, 88, 91.
517
ANTT/ACL, mao 93, doc. 86.
518
ANTT/ACL, mao 94, doc. 22. Pedro Francisco Vanzeller foi tambm Governador do Forte de S. Neutel de
Chaves, filho de Joo Vanzeller, Residente de El Rei da Prssia em Lisboa e de sua mulher D. Francisca Piper de
Moura. Teve como herdeira D. Joanna Delfina Vanzeller Teixeira de Andrade Pinto, mulher do 1 visconde de
Montalegre Manoel Pinto de Moraes Bacellar. O nome de Pedro Vanzeller, muito incomum, aparece recebendo
trs lguas de terras em quadra, junto com Matias Barbosa, entre os sesmeiros da Picada de Gois em 1737
(Revista do Arquivo Pblico Mineiro, ano III, p. 818-819, 1898).
234
D. Domingos Teixeira de Andrade somava aos ordenados e soldos que recebia pelos
cargos administrativos e militares que exercia em Trs-os-Montes, desde que voltou a
Portugal em 1731, uma srie de outras rendas. A escriturao contbil feita por Francisco
Barbosa Rego, representante da famlia em Lisboa, para o perodo de 1736 a 1738, indica que
D. Domingos tinha uma grande soma em crditos pelos quais recebia juros, rendas com
aluguis de casas e terras, tenas e comendas. D. Domingos tambm participava do comrcio
martimo entre as partes do Imprio portugus. Em 1737, foi registrado o valor de 625$960
ris que foi o lquido rendimento de sete fardos de roupas que vieram da ndia e vendi, e
outro fardo, com que fazia oito, mandei para o Rio de Janeiro, que so os dois mil lenos que
ficam ditos e pela importncia do vestido que foi para o vice-rei da ndia - 45$410 ris
(grifos nossos).520
Os dois homens que deram riqueza famlia Souza Coutinho, Matias Barbosa e seu
genro Domingos Teixeira de Andrade, no tinham linhagem nobre. Os Souza Coutinho que
ostentavam uma origem nobilirquica que as muitas rvores genealgicas presentes na sua
documentao pretendiam provar. Mas, dos poucos bens que a famlia possua, quase nada
herdara D. Francisco Inocncio, pois era filho secundognito de D. Rodrigo de Souza que
tambm j era filho secundognito de D. Fernando de Souza, primeiro conde de Redondo. As
origens familiares dos Souza retrocediam aos primeiros anos de fundao da monarquia
519
ANTT/ACL, mao 93, doc. 99.
520
ESCRITURAO CONTBIL (Deve/Haver) feita por Francisco Barbosa Rego para as contas de Domingos
Teixeira de Andrade, nos anos de 1736, 1737 e 1738. ANTT/ACL, mao 93, docs. 29, 30 e 31. Para se ter uma
ideia desses valores, 625$960 ris era um valor alto, pois, poderiam comprar de 3 a 4 escravos jovens em Minas
Gerais (cada um valeria de 150 a 200$000 ris). Carrara d exemplo de uma escritura de venda, de 1752, na qual
6 escravos foram avaliados por 1:000$000 ris. CARRARA. Minas e currais, p. 200. D. Francisco Inocncio
apresentava o custo de compra, transporte e impostos de entrada nos portos do Rio e Bahia de escravos
embarcados em Benguela e Angola. At ser vendido no Rio ou Bahia, um negro mais caro daria despesas de
62$750 e segundo D. Francisco, no Rio de Janeiro no se achar negro bom e escolhido por menos de 90 at
100:000 [ris]. CARTA de D. Francisco Inocncio de Souza Coutinho para [sem identificao], Lisboa, 17 de
junho de 1774. ANTT/ACL, mao 46, doc. 10. No caso de venda do escravo para Minas, mais despesas e mais
atravessadores e, ento, mais caro ainda.
235
portuguesa, como se v nas genealogias. Por elas, eles descendiam, em linha direta, de D.
Afonso III.521 Por no ser primognito, a D. Francisco estava reservada a carreira militar e
poltica, envolvendo-se tambm no comrcio colonial.
D. Francisco Inocncio foi governador de Angola por nove anos consecutivos, entre
1764 e 1772, quando tambm esteve possivelmente ligado ao trfico de escravos, sobretudo
para o Rio de Janeiro; ocupou o cargo de ministro plenipotencirio de Portugal junto corte
espanhola, entre anos de 1776 e 1780, e morreu em seis de fevereiro deste ltimo ano, poucos
meses aps casar-se, pela segunda vez, com uma jovem da nobreza espanhola da idade de 14
anos.522 Durante sua embaixada junto corte madrilenha, foi assinado o Tratado de Santo
Ildefonso, buscando definir os limites entre as colnias das duas coroas ibricas na Amrica.
521
Genealogia da famlia SOUZA (Coutinho). ANTT/ACL, mao 90, doc. 10. Percebemos na leitura desse
documento, o qual transcrevemos na ntegra, que a preocupao estava em buscar a origem nobre mais remota da
famlia. Pela observao do documento, o apelido mais antigo e de maior reputao era o SOUZA. O mao 94
composto quase somente por documentos de genealogia da famlia. Percebemos que houve um esforo em
buscar informaes que pudessem resgatar origens de nobreza e fidalguia da parte de Matias Barbosa e de seu
genro Domingos Teixeira, mas isso parece no ter se confirmado. A fidalguia alcanada por esses dois senhores
fundou-se mais em servios prestados Coroa do que no sangue. Nas anotaes genealgicas de Matias Barbosa
ficou registrado que ele era Fidalgo Cavaleiro por merc de D. Pedro 2, e Alvar de 21 de novembro de 1687,
Livro 4 do dito Rei, fl. 35, no Registo de Mercs. ANTT/ACL, mao 94, doc. 22. Outro registro indica o
parentesco com as famlias Noronha e Meneses das quais saram alguns governadores de Minas Gerais.
ANTT/ACL, mao 94, doc. 04.
522
Petio de D. Francisco Inocncio Rainha. Trata-se de sucinto resumo de 31 anos (1749 a 1780) de servios
prestados para pedir a merc do ttulo de conde. ANTT/ACL, mao 90, doc. 69. O indcio de envolvimento de D.
Francisco com o trfico de escravos pode ser notado num minucioso e informal documento escrito por sua
prpria mo, em 17 de junho de 1764, sobre preos e etnias de escravos mais indicados para o trabalho nas
fazendas e mineraes. ANTT/ACL, mao 46, doc. 10.
523
As informaes sobre os filhos de D. Francisco foram extradas das genealogias. ANTT/ACL, mao 94, docs.
01 e 02.
524
MONTEIRO. O crepsculo dos Grandes, p. 179-181. O autor destaca o prestgio e a riqueza da S Patriarcal
de Lisboa, cujos rendimentos conjuntos do patriarca e das diversas dignidades eclesisticas alcanavam em
1747 mais de 500 contos.
236
do Gro-Par e Maranho entre os anos de 1790 e 1803.525 As duas ltimas eram mulheres: D.
Marianna de Souza Coutinho, solteira, e D. Maria Balbina de Souza Coutinho, casada com D.
Francisco de Noronha, Senhor de Pancas. Dos filhos homens, o nico que se casou foi o
primognito e morgado da casa D. Rodrigo.
D. Rodrigo de Souza Coutinho, que seguiu como o pai a carreira diplomtica, foi
embaixador em Turim, entre 1779 e1796, onde se casara com uma filha da nobreza do
Piemonte, D. Gabriela Asinari de St. Marzan. Desse casamento nasceram cinco filhos
homens: D. Victorio (2 conde de Linhares), D. Joo Carlos, D. Francisco (marqus de
Macei), D. Jos Maria e D. Rodrigo, todos educados em Coimbra.526
As duas ltimas geraes desfrutaram das enormes riquezas acumuladas pelas duas
geraes antecedentes. Se o prestgio veio do apelido, a riqueza veio do ouro, do comrcio e
das lavouras do Brasil. Aps essa rpida notcia das cinco geraes da famlia que viveram o
longo sculo XVIII, vamos tentar compreender de onde veio a maior parte de sua riqueza e
como funcionava a rede de agentes que trabalhavam para os fidalgos portugueses.
So impressionantes os nmeros das remessas de ouro que fez Matias Barbosa para
Portugal e do valor de contratos nos quais ele foi scio. As maiores remessas ocorreram
justamente no auge da minerao. Como h lacunas na documentao, no pudemos apurar os
nmeros de todos os anos, mas h notcias de valores expressivos. No ano de 1730, Matias
Barbosa registrou na sua escriturao contbil (deve/haver) a remessa de 8:000$000 ris em
ouro ao seu genro D. Domingos Teixeira.527 Em 1731, o representante no Rio de Janeiro,
Antnio Pires dos Santos, embarcou nos cofres das naus capitnia e almiranta, da frota que
partira no primeiro semestre, o valor de 29:622$600 ris. Esse valor estava constitudo por
2.311 dobras e um dobro de ouro mais algum dinheiro mido. Em 1734, remeteu 4:128$000
525
MOTTA. Direito terra no Brasil, p. 103-126. A autora fornece maiores informaes sobre D. Francisco
Maurcio, seu governo na capitania do Par e suas instigantes consideraes sobre o sistema sesmarial na
colnia.
526
SILVA. D. Rodrigo de Souza Coutinho: textos polticos, econmicos e financeiros, p. XI-LII. SILVA.
Portrait dun Homme dtat: II Lhomme dtat 1796-1812.
527
ESCRITURAO CONTBIL das contas (Deve/Haver) entre Matias Barbosa da Silva e Domingos Teixeira
de Andrade no ano de 1730. ANTT/ACL, mao 95, doc. 15.
237
ris em dobras de ouro nos cofres da nau almiranta e da nau capitnia Nossa Senhora da
Madre de Deus. Antnio Pires procurava carregar os valores em navios separados, por conta e
risco do remetente, devido possibilidade de naufrgio e ataque de piratas. Em 1738,
Francisco Barbosa Rego, representante de Matias Barbosa em Lisboa, recebia pela frota do
Rio de Janeiro conhecimentos que somavam 3:556$723 ris.528 Todas essas remessas
somavam 41:750$600 ris equivalentes a cerca de 104.376,50 cruzados.529
A ltima remessa feita por Matias Barbosa foi em 1738, conforme registrado na carta
de 1749 que Francisco Barbosa Rego escreveu para D. Domingos Teixeira. Nessa carta, o
representante de Lisboa acreditava que Matias Barbosa, at o ano de 1738, teria enviado ao
reino cerca de 300.000 cruzados ou 120:000$000 ris. Esse montante, todavia, teve
destinaes diversas Colegiada dos Anjos: cinquenta e tantos mil cruzados; cento e
oitenta e tantos [mil cruzados] para entregar a partes interessadas nos negcios com o dito
Senhor Matias Barbosa e mais algumas remessas que fez o dito senhor para dar
cumprimento aos legados e capelas da testamentria de Henrique Lopes e outras miudezas.
Francisco Rego continuava relatando que Matias Barbosa havia declarado, no testamento, que
a filha e o genro j tinham recebido 250.000 cruzados: em dote, cerca de 200.000 cruzados e
em doao, cerca de 50.000 cruzados em remessas de ouro.530 Quanto aos bens na colnia, o
prprio Matias Barbosa declarou, como se l em seu testamento, que atendendo s falncias
do Pas e as dificuldades das cobranas, julgo prudentemente que o mais que se poder apurar
528
CARTAS de Antnio Pires dos Santos para o mestre-de-campo Domingos Teixeira de Andrade, Rio de
Janeiro, 13 de agosto de 1731 e seis de maio de 1734. ANTT/ACL, mao 56, doc. 36. Para o ano de 1738,
conferir a escriturao contbil feita por Francisco Barbosa Rego (representante da famlia em Lisboa) para as
contas de Domingos Teixeira de Andrade, nos anos de 1736, 1737 e 1738. ANTT/ACL, mao 93, docs. 29, 30 e
31. Conhecimento era como se denominavam os recibos dos valores embarcados nas naus das frotas, assinados
pelos seus capites. Para se ter uma dimenso do valor da remessa feita em 1731, basta lembrar que se uma
dobra tinha 28 gramas de ouro, 2.311 dobras corresponderiam a 64,7 quilos de ouro que iam amoedados, ou seja,
quintados.
529
CARRARA. Minas e currais, p. 73-74. Segundo o autor, em relao concordncia da moeda, deve-se antes
de tudo certificar-se da taxa de cmbio do ouro em p em relao aos ris, que variou algumas vezes durante a
primeira metade do sculo XVIII. At 31 de janeiro de 1725, e entre 30 de junho de 1735 e 31 de julho de 1751,
a oitava de ouro em p valeu 1.500 ris. [...] A partir de agosto de 1751 at 1823, valeu a oitava de ouro em p
1.200 ris. O autor esclarece, ainda, que um cruzado de ouro equivalia a 937,5 ris nos perodos considerados
at 1751 e, aps essa data, o cruzado passou a valer 750 ris at 1823. Todavia, nos valores que convertemos de
cruzados para ris e vice-versa adotamos o cmbio de 400 ris cada cruzado, pois, como moeda escritural, um
cruzado valeu sempre 400 ris. SIMONSEN. Histria econmica do Brasil (1500-1820), p. 464. Consideramos
nossas converses sempre como aproximadas, devido a certo grau de dificuldade de se trabalhar com valores no
perodo colonial. Esclarecemos tambm que uma dobra de ouro valia, no perodo considerado, 12.800 ris e
um dobro 24.000 ris.
530
CARTA de Francisco Barbosa Rego para o brigadeiro Domingos Teixeira de Andrade, Quinta da Cruz de
Almada, quatro de outubro de 1749. ANTT/ACL, mao 56, doc. 29.
238
em todo o monte, pagas algumas dvidas e desfeitos alguns embaraos, que por minha morte
se acharem ou acontecerem, sero trezentos mil cruzados.531
Enfim, ao longo de sua vida, Matias Barbosa acumulou para a famlia, no mnimo,
550.000 cruzados (ou 220:000$000 ris), entretanto deve ter movimentado cerca de um
milho de cruzados (ou 400 contos de ris). Para se ter uma ideia do significado desses
valores, basta considerar que, ainda conforme Leonor Freire Costa e Maria Manuela Rocha,
todo o ouro remetido do Brasil para Portugal no ano de 1751 para agentes privados no est
considerado o que veio para a Fazenda Real atingiu o montante de 3.783 contos. Outro dado
a comparar que nesse mesmo ano de 1751 a maior remessa para particulares atingiu o
mximo de 25 contos e 585 mil ris,532 e a remessa de Matias Barbosa em 1731, 20 anos
antes, atingiu a cifra de 29 contos e 622 mil ris.
531
TESTAMENTO de Matias Barbosa da Silva. ANTT/ACL, mao 95, doc. 19.
532
COSTA; ROCHA. Remessas do ouro brasileiro, p. 80-81. Francisco Eduardo de Andrade indica o taubateano
Salvador Fernandes Furtado como o dono de uma das grandes fortunas acumuladas nas Minas. No inventrio de
Furtado, datado de 1725, foram relacionados 62 escravos no testamento de Matias Barbosa, de 1738, foram
mais de 300 , sendo a fortuna de Salvador Fernandes avaliada em 27.902 oitavas de ouro (41:853$000 ris ao
cmbio de 1.500 ris a oitava). Se o autor no estiver equivocado nos seus dados, nem ns prprios nos clculos
da fortuna de Matias Barbosa, percebemos que este acumulou seis vezes mais que Salvador Fernandes. Continua
o autor: Riqueza vultosa para as Minas Gerais, caso se compare com os proprietrios de escravos de Vila Rica,
Carmo, So Joo del-Rei e Pitangui em 1718. Salvador Fernandes fez parte do restritssimo grupo de
proprietrios que possuam mais de vinte escravos em torno de 6% dos senhores e que detinha cerca de 27%
de todos os escravos arrolados (LUNA, 1983, p. 28-31). Alm disso, sua fortuna esteve bem acima da riqueza
total mdia inventariada em Mariana no ano de 1750 (que no chegava a 5 mil oitavas, caso se considere a oitava
no valor mdio de 1.200 ris). Cf. ALMEIDA [Carla M. Carvalho de], 1995, p. 91 (TABELA 1). ANDRADE.
A inveno das Minas Gerais, p. 216.
533
NOVAIS. Histria da vida privada no Brasil, v. 1, p. 31-32 e 448 (nota 15). Depois de assinalar que alguns
historiadores recalcitram em admitir o que ele chama de sentido profundo da colonizao, Novais, em nota,
resume um dos mais importantes debates acerca da colnia: [...] Acumulao para fora, externa, refere-se
tendncia dominante do processo de acumulao, no evidentemente sua exclusividade; claro que alguma
poro do excedente devia permanecer (capital residente) na Colnia, do contrrio no haveria reproduo do
sistema. No se trata, desde logo, de uma formao social capitalista que se elabora sem acumulao originria;
mas com um nvel baixo dessa acumulao. [...] No cabe, portanto, a increpao de obsesso com as relaes
externas (porque no estamos falando de nada externo ao sistema), nem de desprezo pelas articulaes internas,
pois estas no so incompatveis com aquelas; trata-se, simplesmente, de enfatizar um ou outro lado, de acordo
com os objetivos da anlise. Nesta mesma linha, os trabalhos recentes e de grande mrito sobre o mercado
interno no fim do perodo colonial no refutam (como seus autores se inclinam a acreditar) de maneira nenhuma
aquele esquema que gostam de apodar de tradicional; o crescimento do mercado interno , pelo contrrio, uma
239
contestado por pesquisas mais recentes que defendem a existncia de um mercado interno e a
acumulao de capitais na colnia.534 De qualquer forma, nossas fontes indicaram que Matias
Barbosa da Silva remeteu o grosso de sua riqueza para o reino e s no fez sua ltima
travessia do Atlntico porque os achaques e a velhice no o permitiram, morrendo no
Brasil.
Matias Barbosa tambm foi, entre 1731-1736, caixa e administrador do contrato dos
direitos das entradas caminhos do Rio de Janeiro, So Paulo, Bahia, Pernambuco e
Maranho em sociedade com Loureno de Amorim Costa. Arrematou, novamente, os
contratos de entrada no trinio seguinte, 1736-1739, tambm em sociedade mas, ao que nos
parece, com Jos lvares de Mira.536 O contrato desse ltimo trinio foi arrematado por 50
arrobas de ouro e o anterior por 61 arrobas. Uma carta de 1745 do doutor Domingos Ribeiro
Guimares, que foi caixeiro do contratador e seu primeiro testamenteiro, indica que o ltimo
decorrncia do funcionamento do sistema ou, se quiserem, a sua dialtica negadora estrutural. Ver tambm
NOVAIS. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808); PRADO JNIOR. Formao do
Brasil contemporneo, p. 19-32; HOLANDA. Razes do Brasil, p. 31.
534
FRAGOSO. Homens de grossa aventura.
535
CARTA de Matias Barbosa da Silva para sua filha D. Maria Barbosa da Silva e seu genro Domingos Teixeira
de Andrade, Vila Rica, 20 de julho de 1731. ANTT/ACL, mao 56, doc. 49. Para uma viso mais detalhada da
minerao de diamantes em Minas Gerais, consultar os trabalhos de Jnia Ferreira Furtado. Uma boa sntese
pode ser lida no seu artigo O Distrito dos Diamantes: uma terra de estrelas, in: Histria de Minas Gerais: as
Minas Setecentistas, p. 303-320.
536
CONSULTA do Conselho Ultramarino sobre a petio de Matias Barbosa da Silva e de Jos lvares de
Mira, contratadores das Passagens das Minas Gerais, solicitando a cobrana dos direitos dos novos
descobrimentos do distrito de Carlos Marinho (1739). Os dois scios disputavam o direito de cobrana das
entradas com Bernardo Fernandes Guimares no dito distrito. Guimares havia arrematado, no governo da
capitania de So Paulo, o contrato das entradas das novas minas de Gois. O distrito de Carlos Marinho estava
situado nas divisas [quase sempre indefinidas] de Gois com Minas. Matias Barbosa e seu scio sentiram-se
lesados e apelaram ao Conselho Ultramarino que lhes foi favorvel. Esse fato ilustrativo do quanto era
complexa e arriscada a arrematao dos contratos na colnia. A prpria indefinio das divisas das capitanias era
um fato gerador de demandas. AHU - Projeto Resgate MG, caixa 38, doc. 9.
240
contrato foi arrematado em sociedade com outras pessoas e dele s foram pagas Real
Fazenda 20 arrobas.537 No pudemos apurar qual era o percentual de participao de Matias
Barbosa nesse contrato. Uma parte da dvida de 30 arrobas com a Coroa deve ter sido quitada
pela famlia, na proporo da participao que tinham no contrato, e isso ajuda a explicar
porque, na dcada de 1740, as cartas pouco registram remessas de ouro para Portugal. Essa
carta de 1745 revela que no ano anterior, 1744, foram mineradas 1.700 oitavas (seis quilos) de
ouro e produzidas quase 300 arrobas de acar, mas no localizamos registro de remessas do
Rio de Janeiro para Lisboa de nenhum valor para o ano 1744.
Matias Barbosa foi scio de Ambrsio Caldeira Brant538 e, por causa dessa sociedade,
foi obrigado a tocar demandas contra seus herdeiros para receber dvidas na Comarca do Rio
das Mortes. Com esses contratos, Matias Barbosa acumulou riquezas e deixou dvidas
prprias e como fiador de terceiros pendentes de quitao. Em 1785, o Tesoureiro da Real
Fazenda, Carlos Jos da Silva, cobrava dos herdeiros um saldo [que] se acha devedor da
quantia de 1:251$264 ris que so 1:042:51: [oitavas de ouro], pois Matias Barbosa havia
sido fiador do contrato de entradas dos Caminhos Novo e Velho do Rio de Janeiro e So
Paulo, cujo arrematante era o mestre-de-campo Francisco Ferreira de S, no trinio de 1724 a
1727. O contrato foi arrematado por 108:608/8 oitavas de ouro em p, equivalentes a 42
arrobas e meia de ouro, acrescidas de outras 1:858:41: oitavas de propinas totalizando
110:466:41 oitavas de ouro. O arrematante pagou 109:423:62 oitavas, deixando um dbito
para os fiadores.539
Para fazer circular essa riqueza entre as colnias e a metrpole, a famlia construiu
uma verdadeira rede de representantes e procuradores ao longo dos anos. Essa rede se fazia
necessria, sobretudo, porque a famlia se encontrava sediada na terra de seus ancestrais,
Trs-os-Montes. A Casa senhorial instalara-se em Chaves desde 1731, quando D. Domingos
Teixeira retornou para Portugal. De l partia e para l se dirigia a maior parte das cartas
tratando dos seus negcios. Somente no final do sculo XVIII, com a morte da matriarca, D.
537
CARTA de Domingos Ribeiro Guimares para o brigadeiro Domingos Teixeira de Andrade, Vila Rica, 21 de
dezembro de 1745. ANTT/ACL, mao 56, doc. 04.
538
Ambrsio Caldeira Brant, portugus residente na Comarca do Rio das Mortes, participou ativamente na
Guerra dos Emboabas. Era pai de Felisberto Caldeira Brant, que arrematou, em sociedade, o terceiro contrato
dos diamantes em 1748. Esse ltimo foi acusado de sonegao de impostos e contrabando de diamantes. Foi
enviado para Lisboa sendo encarcerado na cadeia do Limoeiro.
539
Dvida do contrato de entradas dos Caminhos Novo e Velho do Rio de Janeiro e So Paulo. Arrematante:
mestre-de-campo Francisco Ferreira de S; Trinio: 1724-1727. Carlos Jos da Silva, Tesoureiro da Real
Fazenda, 25 de setembro de 1785. ANTT/ACL, mao 91, doc. 169.
241
Maria Barbosa da Silva, e com a ascenso poltica de D. Rodrigo de Souza Coutinho, titular
do morgadio da Casa, que a Quinta de Arroios, em Lisboa, passou a ser a sede da famlia em
Portugal.540
540
ANTT/ACL. Depreendemos isso da leitura de documentos de diversos maos. Com a morte de D. Maria
Barbosa da Silva, as cartas, em sua maioria, eram remetidas do Brasil para Quinta de Arroios e vice-versa.
541
TESTAMENTO de Matias Barbosa da Silva. ANTT/ACL, mao 95, doc. 19.
242
que deixaram o Brasil, nenhum deles voltou colnia. O sucessor nos negcios da casa, D.
Francisco Inocncio, ocupado nos cargos militares, no governo de Angola e na embaixada de
Madri, passou curtas temporadas no Rio de Janeiro e deve ter se deslocado poucas vezes para
o interior, indo at o Registro, talvez. No de se duvidar que jamais tenha se aventurado na
penosa viagem de 15 dias pelas serranias at as fazendas do Crasto e da Barra, nas nascentes
do rio Doce.
542
MONTEIRO. O crepsculo dos Grandes, p. 234. Ocorre que no caso do qual tratamos, as administraes
foram, ao contrrio, prejudiciais aos bens da Casa dos Souza Coutinho. Esses fidalgos tambm j vinham se
imbuindo dos ideais de valorizao do comrcio no governo de Pombal, do qual eram muito prximos.
FURTADO. Homens de negcios, p. 33-34. A autora defende, todavia, que a averso que a nobreza possua
pelo comrcio efetivava-se mais como aparncia do que como prtica, pois a partir do sculo XVII a riqueza
advinda desta atividade atlntica, especialmente aps a efetiva colonizao do Brasil, era muito maior do que os
proventos oriundos da terra. Esta foi a razo que levou vrias famlias nobres a se envolverem na explorao das
riquezas coloniais.
243
principalmente, ao ritmo das frotas. Uma ou outra nau de guerra ou mercante que se
aventurasse sozinha pelo oceano, sempre sob o risco da pirataria e dos naufrgios, tambm
poderia servir de ligao entre as partes do Imprio, mas, o mais seguro mesmo era esperar a
partida das frotas. Nesse ritmo, at que uma ordem partisse de Chaves, passasse por Lisboa ou
Porto, e atingisse as fazendas em Minas, depois de passar pelo Rio de Janeiro, mais de meio
ano j teria se esgotado. Leonor Freire Costa e Maria Manuela Rocha observam o Atlntico
como:
Em Lisboa, desde 1736, Francisco Barbosa Rego era quem fazia a administrao das
remessas oriundas do Brasil e conciliava as contas de Matias Barbosa e Domingos Teixeira de
Andrade. At 1760, Rego esteve no exerccio dessas funes e, a partir do governo de D.
Francisco Inocnio em Angola, entre 1764 e 1772, os banqueiros Paulo Jorge e Francisco
Moreira Rossi talvez devido ao endividamento crescente da Casa aparecem intermediando
interesses da famlia, recebendo e enviando valores do ultramar para Trs-os-Montes, de
Lisboa para Madri e vice-versa, de Lisboa para Turim.544
No Rio de Janeiro, o capito Antnio Pires dos Santos esteve a servio da famlia entre
os anos 1730 e 1750, sendo sucedido pelo seu genro o doutor Manoel Pinto da Cunha. Este,
que se dizia sobrinho de Matias Barbosa, controlou parte dos interesses da Casa de 1745 at a
sua morte em 1770. Alm das remuneraes que recebia e dos provveis desfalques que
praticava, conseguiu, por influncia dos Souza Coutinho, uma cadeira de cnego da S do Rio
de Janeiro para um dos seus filhos e o cargo de ouvidor em Angola para outro.545 Como
543
COSTA; ROCHA. Remessas do ouro brasileiro, p. 87. Para um conhecimento bastante aprofundado do
funcionamento e do significado das frotas nos domnios coloniais portugueses entre os sculos XVI e XVIII,
sugerimos a leitura de BOXER. O imprio martimo portugus, p. 219-241; PINTO. O ouro brasileiro e o
comrcio anglo-portugus, p. 133-183; ALENCASTRO. O trato dos viventes, p. 57-63.
544
CARTA de D. Francisco Inocncio de Souza Coutinho para o banqueiro Paulo Jorge, Aranjus, nove de maio
de 1776. ANTT/ACL, mao 59, doc. 04. ESCRITURAO contbil Deve/Haver do Ilmo. e Exmo. Sr. D.
Rodrigo de Souza Coutinho com Francisco Moreira Rossi. ANTT/ACL, mao 91, doc. 99.
545
FURTADO. Homens de negcios, p. 46-57. No texto Toda oferenda espera sua recompensa, a autora trata
da prtica costumeira da troca de favores, na economia do dom que poderia se materializar na oferta de
244
veremos mais adiante, Manoel Pinto seria acusado de extraviar capitais da famlia. Nesse
mbito so vlidas as consideraes de Costa e Rocha que apontam a prtica vulgar, de os
correspondentes no Brasil utilizarem capitais alheios (leia-se dos principais) em negcios
pelos quais estes ltimos no eram retribudos, porque deles no eram informados,
naturalmente.546
Por um curto perodo de tempo, Manoel Pinto fora sucedido pelo seu filho, doutor
Joo Pinto da Cunha. Mas documentos indicam que, desde 1765, o doutor Jos Maurcio da
Gama e Freitas vinha assumindo o papel de representante, o que fez at o ano de 1775. Doutor
Jos Maurcio, Cavaleiro Professo na Ordem de Cristo, desempenhou esse papel ao mesmo
tempo em que exercia os cargos de juiz de fora, desembargador e intendente geral do ouro do
Rio de Janeiro. Em 1761, Antnio do Valle Moreira aparecia nas cartas como agente da
famlia na mesma cidade. A existncia concomitante de dois ou mais correspondentes no Rio
de Janeiro no causa estranhamento. Costa e Rocha tambm estudaram as redes de agentes e
procuradores envolvidos nas remessas de ouro da colnia para o reino e concluram que as
relaes no se estabeleceram com qualquer carter de exclusividade. Os negociantes do reino
recorriam a contatos variados no Brasil e os negociantes da colnia utilizavam diversas
ligaes na metrpole.547
Nas fazendas de Minas Gerais estavam os administradores que deviam obedincia aos
senhores portugueses e aos seus agentes do Rio. O coronel Matias Barbosa, que cuidava de
suas prprias fazendas e mineraes nas cabeceiras do Doce, ao morrer em 1742, deixou a
administrar os bens a viva e um testamenteiro, doutor Domingos Ribeiro Guimares que
havia sido seu caixeiro. Na fazenda da Barra, Antonio Nunes Gomes servia como
administrador desde os tempos de Matias Barbosa e l ficou at 1746. Como a execuo do
testamento de Matias Barbosa comeou a se complicar por uma srie de demandas judiciais,
foi enviado de Portugal, em 1745, o advogado doutor Antnio Loureiro de Medeiros,
sobrinho de D. Domingos Teixeira e ele no conseguiu resolver a partilha dos bens, morrendo
ofcios, cargos e patentes pelos negociantes do reino aos seus agentes na colnia. Fazendo uso de seu poder
econmico e/ou de sua influncia poltica, os negociantes poderiam comprar ou obter gratuitamente mercs junto
Coroa para compensar seus correspondentes. Sobre a economia do dom, sugerimos tambm a leitura de
ANDRADE. A inveno das Minas Gerais. A leitura do captulo 3, Razo de Estado e suas mercs, ajuda-nos
a compreender o motivo pelo qual Matias Barbosa da Silva, rico em cabedais, descobridor de metais preciosos,
tenha alcanado a patente de coronel de milcias, mas no tenha sido agraciado com a cobiada merc do Hbito
de Cristo.
546
COSTA; ROCHA. Remessas do ouro brasileiro, p. 87.
547
COSTA; ROCHA. Remessas do ouro brasileiro, p. 96.
245
em 1761. Em 1759 foi mandado outro advogado do reino, o doutor Manoel da Rocha Martins,
que permaneceu no servio da Casa at 1770, quando j se tinha conseguido terminar a
partilha dos bens. Os doutores Medeiros e Martins no se limitavam a porfiar pela herana
nos tribunais de Vila Rica e Mariana. Foi-lhes atribudo tambm o papel de administrar as
fazendas, quando elas no se encontravam judicialmente sob o controle dos adversrios na
contenda pelos bens.548
Esses foram alguns dos nomes que as cartas mostram como elementos de ligaes com
os Souza Coutinho, intermediando seus negcios. Outros nomes tambm existem para as
propriedades em Portugal, dos quais no trataremos. Esse emaranhado de nomes, ao longo de
548
ANTT/ACL, mao 56, doc. 29, sobre a administrao de Antnio Nunes Gomes; ANTT/ACL, mao 56, doc.
07, sobre o advogado/administrador Antnio Loureiro de Medeiros e ANTT/ACL, mao 56, doc. 11, sobre o
advogado/administrador Manoel da Rocha Martins.
549
RODRIGUES. Um potentado na Mantiqueira, p. 99-100.
246
quase cem anos, teceu, desmanchou e voltou a tecer a verdadeira teia que foi a herana
deixada por Matias Barbosa. Muito difcil precisar at que ponto dificultaram a administrao
dos negcios da famlia no Brasil ou contriburam para o seu sucesso.
550
Os documentos da famlia e o prprio Matias Barbosa insistiam em ser D. Maria Barbosa da Silva sua nica
filha. A longa partilha dos bens terminou apontando somente essa filha como herdeira. Todavia, no seu
testamento, Matias Barbosa no descartava a possibilidade de ter tido um filho ilegtimo. Declarou que no ano
de 1699 chegando eu vila de Santos tomei nela conhecimento com uma mulata de quem me no lembro o
nome, a qual quando principiou a tratar-se comigo me disse que se achava pejada de outrem havia trs meses,
sendo que, depois da minha subida para a Cidade de So Paulo, me constou parira um filho e que no batismo me
declarou por pai, com cujo pretexto, sem embargo de ter para mim que no era meu filho, pelo que a mesma me
me havia afirmado no princpio, o mandei educar e tive em casa alguns anos e no duvido que algumas pessoas
vendo-me cuidar dele julgassem ser meu filho, como tambm por dizerem se parecia comigo. E vindo depois a
estas Minas a me e, lembrando-lhe o que me tinha dito, respondeu que estava, ento, zombando. Termos em
que fiquei sempre na dvida de ser ou no ser coisa minha. E muito mais porque a So Paulo se me mandou
dizer que a dita mulata parira uma menina e depois de criado mandou um menino, desculpando-se de que me no
certificara de que o era, porque logo lho no mandasse pedir, pelo que posso tambm presumir e ter para mim ser
suposto este parto, no qual deixei de observar o tempo que mediou do primeiro trato que tive com a me at
nascer o dito filho que se chamava Joo Barbosa e, da Cidade do Porto, e casa de Francisco Martins Braga
desapareceu h de haver dez anos, sem mais se saber, at o presente, dele. Se algum dia aparecer, fao isto saber
a meus herdeiros legtimos para que, consultando Padres Espirituais e homens Doutos, saibam e averigem o que
devem fazer, porque eu neles descarrego a minha conscincia. ANTT/ACL, mao 95, doc. 19. No impossvel
que tivesse filhos ilegtimos, excludos da herana, pois Francisco dos Santos, em 1739, requeria ao Conselho
Ultramarino que uma ao de cobrana de dvidas que movia contra Manoel Fernandes Serra no fosse julgada
em Mariana e sim, em Vila Rica, devido grande influncia exercida em Mariana pelo coronel Matias Barbosa
da Silva, sogro do seu oponente. Ou Matias Barbosa teria mais uma filha casada com o tal Manoel Fernandes
Serra, ou o suplicante usava a expresso sogro com um sentido diferente do que hoje utilizamos. AHU -
Projeto Resgate MG, caixa 38, doc. 56.
247
O segundo fator que dificultava a partilha dos bens foi o fato de D. Luza de Souza,
viva do testador, com mais de setenta anos de idade, ter se casado segunda vez com um
advogado de Vila Rica, o doutor Manoel Ribeiro de Carvalho, no ano de 1748. A viva
551
TESTAMENTO de Matias Barbosa da Silva. ANTT/ACL, mao 95, doc. 19.
552
CARTAS de Domingos Ribeiro Guimares para o brigadeiro Domingos Teixeira de Andrade, Vila Rica, 21
de dezembro de 1745, 20 de fevereiro de 1749 e 28 de abril de 1751. ANTT/ACL, mao 56, doc. 04.
553
CARTA de Policarpo Baptista Velasco para D. Maria Barbosa da Silva, Vila Rica, 28 de outubro de 1766.
ANTT/ACL, mao 56, doc. 09. CARTA do doutor Jos Maurcio da Gama e Freitas para D. Francisco Inocncio
de Souza Coutinho, Rio de Janeiro, oito de fevereiro de 1766. ANTT/ACL, mao 53, doc. 09.
554
INVENTRIO de Domingos Ribeiro Guimares (1786). No rol dos bens foram avaliados treze livros, entre
os quais uma Prtica Judicial. AHMI, cdice 34, auto 405, Cartrio do 1 Ofcio.
248
faleceu onze anos depois em 1759. Esse casamento gerou uma longa disputa judicial pelos
bens deixados pelo casal, criando um imbrglio de difcil soluo, responsvel pela dissipao
de boa parte da riqueza.
O doutor Manoel Ribeiro de Carvalho nasceu em Braga e passou a residir nas Minas
Gerais, na cidade de Mariana, onde exercia sua profisso de advogado. O doutor Antnio
Loureiro de Medeiros escreveu para seu tio, Domingos Teixeira de Andrade, que h poucos
anos que [Ribeiro de Carvalho] veio para o Ribeiro [do Carmo] muito pobre e assim viveu
advogando, at que morreu um homem rico que o deixou por testamenteiro, com o que entrou
logo a empolar e a ter tratamento grande. Medeiros dizia ainda que o advogado havia gasto
mais de 80.000 cruzados da dita testamentaria sem pagar nenhum legado e que muita parte
deste cabedal, se diz, tem despendido com ministros para que o ajudem nos seus intentos.555
Carvalho tambm tornou-se proprietrio de uma fazenda em Senhora de Oliveira, termo da
vila de So Jos, Comarca do Rio das Mortes, vendida para ser paga no tempo dilatado de 40
anos, conforme parecia ser costume nas Minas.556 Depois dessa venda, at o ano de 1766,
quando se fez o acordo para a partilha dos bens de Matias Barbosa, foi o doutor Manoel o
principal administrador do esplio do falecido. Essa administrao deu-se em constante
disputa com o testamenteiro doutor Domingos Ribeiro Guimares e com os procuradores dos
herdeiros, o doutor Antnio Loureiro de Medeiros e o doutor Manoel da Rocha Martins. A
justia entregava a execuo do testamento e, com a morte de D. Luza de Souza, tambm do
inventrio ora a uma parte, ora a outra. O advogado da famlia suspeitava que o doutor
Manoel Ribeiro de Carvalho havia subornado o Provedor da Fazenda que mandou remover o
depsito [dos bens] que estava na mo de Domingos Ribeiro [Guimares] para a do novo
marido [doutor Manoel Ribeiro de Carvalho], e por mais requerimentos para o impedir, a
nada se me deferiu.557 Como o casamento fez dele tambm um herdeiro indireto da fortuna
de Matias Barbosa fato que certamente desagradou aos herdeiros diretos ele se via na
liberdade de escrever aos adversrios dando a entender que zelava pelos seus interesses.
Em 1749, quando ainda vivia D. Luza de Souza, o doutor Manoel Ribeiro escreveu a
D. Domingos Teixeira de Andrade, em Trs-os-Montes, informando que haviam sido presos,
555
CARTA de Antnio Loureiro Medeiros para Domingos Teixeira de Andrade, Vila Rica, s/d. ANTT/ACL,
mao 56, doc. 15.
556
CARTA de Manoel Pinto da Cunha para D. Francisco Inocncio de Souza Coutinho, Rio de Janeiro, 16 de
abril de 1762. ANTT/ACL, mao 56, doc. 03.
249
557
CARTA de Antnio Loureiro Medeiros para Domingos Teixeira de Andrade, Vila Rica, s/d. ANTT/ACL,
mao 56, doc. 15.
558
CARTA do doutor Manoel Ribeiro de Carvalho para Domingos Teixeira de Andrade, Mariana, seis de maro
de 1749. ANTT/ACL, mao 56, doc. 22. Francisco Eduardo de Andrade comenta os conselhos que Gomes Freire
de Andrada, conde de Bobadela, dava ao seu irmo, governador interino das Minas, para precaver-se do peso que
tinha o dinheiro nos trmites da administrao da Justia: O conde chama a ateno para as certides falsas,
produzidas ao sabor das convenincias e das amizades pelos escrives. Quando sobem esses documentos aos
tribunais, os desembargadores, sendo parentes, amigos e partidrios dos potentados locais, fazem valer tais
certides. interessante notar que o conde de Bobadela no critica propriamente as prticas clientelistas, mas os
abusos produzidos pela riqueza de alguns habitantes das Minas Gerais. ANDRADE. A inveno das Minas
Gerais, p. 93.
559
CARTA do doutor Manoel da Rocha Martins para Cypriano de Souza M. de Carvalho, de Vila Rica para
Lisboa, dez de fevereiro de 1760. ANTT/ACL, mao 56, doc. 13.
250
Tentava-se todo tipo de artifcio para afastar o doutor Manoel Ribeiro de Carvalho da
testamentaria e do controle dos bens. O doutor Antnio Loureiro de Medeiros chegou a fazer
uma sugesto a D. Domingos Teixeira que deixava escancarada a venalidade dos ministros da
justia portuguesa na colnia: o Procurador que serve da Fazenda Real tem obrado quanto
pode contra ns e, se o tivramos favorvel, outra coisa havia de ser e ele pretende o ofcio de
propriedade. Se o empenhar algum Conselheiro de Ultramar pela dependncia e pelo seu
gnio, me persuado desfar quanto tem feito.560
Em 1752, j passados dez anos da morte de Matias Barbosa e sem soluo para a
partilha de seus bens, seu genro, D. Domingos Teixeira, tomou a primeira medida mais severa
para por termo na partilha. Alcanou um Decreto Real determinando a nomeao de um dos
desembargadores da Relao do Rio de Janeiro, como juiz privativo da partilha. Em 28 de
janeiro de 1752 escrevia da cidade fronteiria de Miranda, em Trs-os-Montes, ao capito-
general Gomes Freire de Andrada, no Brasil, comunicando-lhe desse sucesso.561 No ano
seguinte, o Secretrio de Estado Diogo de Mendona Corte-Real encaminhava ao mesmo
capito-general uma nova Carta Rgia, datada de quatro de maio de 1753, ordenando a
nomeao de outro desembargador para juiz da partilha, sem embargo de j existir juiz
privativo.562 Foi designado o doutor Manoel da Fonseca Brando. Logo em seguida, em 1759,
o advogado doutor Manoel da Rocha Martins foi enviado de Trs-os-Montes com procurao
da famlia para acompanhar a partilha.
Desde as medidas tomadas em 1752 e 1753, mais dez anos se passaram entre
embargos, sequestros de bens e outros artifcios jurdicos sem que se tivesse uma soluo. A
famlia apelou, mais uma vez, sua rede de relacionamentos para desembaraar a partilha dos
bens de Matias Barbosa que o doutor Manoel Ribeiro de Carvalho dificultava havia quase
560
CARTA de Antnio Loureiro Medeiros para Domingos Teixeira de Andrade, Vila Rica, s/d. ANTT/ACL,
mao 56, doc. 15. Mary del Priore, da leitura do borrador de um senhor de engenho baiano, extraiu o trecho de
uma carta que o fazendeiro enviara ao seu pai: Falo em ministros para que V. M. no se descuide de me mandar
alguma coisa com que os presentear e mimar para os ter propina. Pois quem no d, no vence demandas; e no
mau negcio despender com ministros anualmente 100 mil ris. DEL PRIORE. Histria da vida privada no
Brasil, v. 1, p. 288.
561
CARTA de Domingos Teixeira de Andrade para Gomes Freire de Andrada, Miranda, 28 de janeiro de 1752.
ANTT/ACL, mao 91, doc. 09.
562
CARTA de Diogo de Mendona Corte-Real para Gomes Freire de Andrada, Lisboa, quatro de maio de 1753.
ANTT/ACL, mao 91, doc. 03. CARTA RGIA de D. Jos I para Gomes Freire de Andrada, governador do Rio
de Janeiro e de Minas Gerais ordenando-lhe nomear um dos desembargadores da Relao [do Rio de Janeiro]
para juiz do inventrio dos bens que ficaram por morte de Matias Barbosa da Silva nas Minas Gerais, quatro de
maio de 1753. AHU - Projeto Resgate MG, caixa 62, doc. 56.
251
vinte anos. Em agosto de 1763, D. Francisco Inocncio, recm chegado a Luanda para
governar Angola, escreveu ao seu primo Lus Diogo Lobo da Silva que, naquele ano, tomava
posse do governo de Minas Gerais, pedindo que interferisse no processo de partilha dos bens
de Matias Barbosa.
Parece natural que o termo das vexaes que a minha Casa tem sofrido no
espao de dezessete anos tenha chegado, porque devo esperar da amizade de
V. Excia. e da sua natural equidade, vena esta cruel Hidra. Eu lhe facilito os
meios, propondo uma justa composio, no desejo de deixar estas
dependncias desembaraadas ao tempo de acabar este governo e de voltar a
Portugal. Rogo a V. Excia. queira animar as minhas disposies,
favorecendo os meus Procuradores do mesmo modo que eu praticaria
sempre, se tivesse a honra de ser til ao servio de V. Excia.563
563
CARTA de D. Francisco Inocncio para Lus Diogo Lobo da Silva, Luanda, s/d (provavelmente 1764 por ser
o ano de posse de D. Francisco no governo de Angola). ANTT/ACL, mao 56, doc. 64.
564
CARTA de Lus Diogo Lobo da Silva para D. Francisco Inocncio, Vila Rica, 18 de novembro de 1763.
ANTT/ACL, mao 58, doc. 03.
252
V. Excia. sabe que meu filho Jos Francisco se acha ajustado a casar com a
Senhora D. Izabel Juliana de Souza, filha de D. Vicente de Souza Coutinho,
cujo irmo, D. Francisco Inocncio de Souza Coutinho, atual governador e
capito-general do reino de Angola tem nessa capitania dependncias muito
importantes ao estabelecimento essencial de sua Casa. E sendo o motivo
deste parentesco to indispensvel ainda o mais por ser a dita Noiva
sobrinha da condessa minha Senhora. Para eu esperar que V. Excia. tenha a
bondade no s de escusar o discmodo (sic) desta minha recomendao,
mas tambm para, em efeito dela, proteger as dependncias daquele
Fidalgo, nosso comum parente, em tudo que couber na Justia e no favor
que V. Excia. sabe regular e concordar perfeitissimamente, fazendo, V.
Excia., lugar na sua ateno entre os graves negcios pbicos desse governo
a esta dependncia familiar para me obrigar a mim, como V. Excia. far
sempre que me der ocasies de o servir. (grifos nossos)566
No mesmo dia, Sebastio de Carvalho e Mello dirigiu-se por carta com semelhantes
termos ao chanceler da Relao do Rio de Janeiro.567 A partir dessas intervenes de Pombal,
as coisas comearam a tomar um rumo favorvel famlia, perdida boa parte dos bens no
demorado processo, o qual s chegou a termo aps um acordo com o adversrio. Escreveu o
doutor Manoel da Rocha Martins, de Vila Rica, a D. Maria Barbosa da Silva, em 1766: a
demanda com o doutor Manoel Ribeiro est de todo finda, em virtude de uma composio que
se fez por ordem do Exmo. Sr. D. Francisco, em que obteve o perdo de 53 contos e tantos
mil ris, cuja composio foi entregar ele todo o existente e ser-lhe perdoado tudo o mais, que
era o que ele desejava.568
Como j sabemos, boa parte da riqueza acumulada pela famlia no Brasil foi enviada
para Portugal nas grandes remessas de ouro. O que estava em disputa, no Brasil, seriam
principalmente os bens que ficaram: fazendas, escravos, casas de morada em Vila Rica e Rio
de Janeiro, objetos, roupas, ouro, prataria, pedras preciosas e crditos a receber. Um formal de
partilha feito em 1765, no qual consta a parte devida a D. Maria Barbosa, e uma adjudicao
de bens sem data do uma ideia da riqueza deixada por Matias Barbosa. Trata-se de dois
documentos de difcil compreenso, mas algumas informaes e consideraes podem ser
deles extradas.
565
CARTA de Lus Diogo Lobo da Silva para D. Francisco Inocncio, Vila Rica, 18 de junho de 1765.
ANTT/ACL, mao 58, doc. 03.
566
CARTA do conde de Oeiras, futuro marqus de Pombal, para o Conde da Cunha, Lisboa, sete de setembro de
1765. ANTT/ACL, mao 91, doc. 85.
567
CARTA do conde de Oeiras, futuro marqus de Pombal, para o chanceler da Relao do Rio de Janeiro,
Lisboa, sete de setembro de 1765. ANTT/ACL, mao 91, doc. 85.
568
CARTA do doutor Manoel da Rocha Martins para D. Maria Barbosa da Silva, Vila Rica, dois de novembro
de 1766. ANTT/ACL, mao 56, doc. 11.
253
Para por fim longa demanda, a famlia foi obrigada a fazer uma composio/acordo
com seu adversrio, o reverendo doutor Manoel Ribeiro de Carvalho, perdoando-lhe
53:694$795 ris que ele havia usufrudo/desviado do montante dos bens. Do monte, retirando-
se a tera e a composio, restou para a famlia o total de 120:590$743 ris. Esse valor pode
ser ainda menor, visto que o documento de adjudicao no datado aponta que o total dos
bens menos a tera era de 160:420$913 ris que, deduzida a composio, deixava lquidos
106:726$118 ris. A documentao no nos permitiu apurar qual dos dois resultados
prevaleceu, mas provvel que seja o segundo, pois o formal de partilha deve ser mais antigo
do que a adjudicao. De toda maneira, qualquer um dos valores lquidos era composto por
uma gama variada de bens. Os mais valiosos eram as duas fazendas da Barra e do Crasto com
suas escravarias, lavras e roas. As sesmarias do serto do rio So Francisco pouco valiam.
Uma parcela considervel do que se apurou era composta por crditos, muitos deles
incobrveis.569
Escaldados com as demandas, os herdeiros usaram algumas estratgias para evitar que
parte dos bens passasse para o controle do doutor Manoel Ribeiro de Carvalho. D. Francisco
Inocncio cercou-se de precaues para segurar a posse da fazenda do Registro, no Caminho
Novo. Tal propriedade pertencia famlia desde o princpio do sculo XVIII e em 1730 j
fazia parte do dote de casamento de D. Maria Barbosa da Silva. D. Francisco, seu genro, em
569
FORMAL DE PARTILHAS (cpia do) julgadas por sentena em 4 de novembro de 1762. ANTT/ACL,
mao 95, doc. 18. BENS ADJUDICADOS Ilma. e Exma. Sra. D. Maria Barbosa da Silva da legtima de seus
pais o Sr. coronel Matias Barbosa da Silva e Sra. D. Luza de Souza e Oliveira, sem data, mas provavelmente de
1765 ou 1766. ANTT/ACL, mao 95, doc. 17.
254
21 de julho de 1766, como precauo e por conselho do advogado doutor Manoel da Rocha
Martins, requereu carta de confirmao dessa antiga sesmaria.
Alcanada a composio das partilhas com o reverendo doutor Manoel Ribeiro e com
o testamenteiro doutor Domingos Guimares, em 1766, as pendncias no terminaram. Em
1770, ainda permanecia sem soluo o litgio que movia a famlia contra Francisco de Abreu
Lima pela fazenda do Crasto. Francisco de Abreu Lima era scio de Matias Barbosa nessa
fazenda. Aps a morte deste, aquele comprou a metade da fazenda que no lhe pertencia, mas
no pagou.
4.4 As fazendas
Pelas mos da famlia Souza Coutinho, desde Matias Barbosa at seu trineto D.
Victorio, passaram as fazendas do Registro no Caminho Novo, da Guarapiranga, do Brumado
na Freguesia do Furquim em que morou Matias Barbosa, at 1734, antes de se mudar para a
fazenda da Barra , da Barra do Rio Gualaxo, do Crasto e as sesmarias do serto do rio So
Francisco: Babilnia, Arages, Almas e Glria. Foram donos de pelo menos nove grandes
propriedades, sendo que duas foram vendidas. A do Brumado foi vendida por Matias Barbosa
e a do Registro, em 1767, por D. Francisco Inocncio. As quatro fazendas do serto ficaram
perdidas pouco depois que foram recebidas em sesmarias no ano de 1736. Perdidas porque
poucos anos depois sofreram ataques de gentios que mataram a escravaria, ficando
abandonadas por largo tempo at serem invadidas por posseiros vindos de Gois.570 As
fazendas da Barra e do Crasto permaneceram nas mos da famlia at o ano de 1832. Todas as
sesmarias foram adquiridas por doao ou compra no tempo do coronel Matias Barbosa.
570
BENS ADJUDICADOS Ilma. e Exma. Sra. D. Maria Barbosa da Silva da legtima de seus pais o Sr.
coronel Matias Barbosa da Silva e Sra. D. Luza de Souza e Oliveira. ANTT/ACL, mao 95, doc. 17; CARTA
de Incio Correia Pamplona para o capito Joaquim de Lima e Mello, Fazenda do Mendanha, quatro de
novembro de 1799. ANTT/ACL, mao 85, doc. 27.
255
Paraibuna, partindo com a roa de Simo Pereira e de Antnio de Arajo h terras devolutas
onde Alberto Dias queria fazer roa, na qual paragem quer ele suplicante que V. Excia. lhe
faa merc mandar dar por sesmaria uma lgua de terras de testada, correndo pelo Caminho, e
trs lguas de serto, cortando pela banda da mesma testada, para nele fazer uma roa e
plantar mantimentos para o sustento dos passageiros e aumento dos reais quintos de Sua
Majestade.571 Tal como pediu Matias Barbosa, foi-lhe concedido e, apesar de sempre se
exigir que se fosse confirmada a doao, somente o marido de sua neta o fez 57 anos depois.
571
CARTA DE CONFIRMAO de sesmaria de D. Francisco Inocncio de Souza Coutinho, 21 de julho de
1766. ANTT, Registro Geral de Mercs de D. Jos I, livro 20, fl. 184 verso.
572
TESTAMENTO de Matias Barbosa da Silva. ANTT/ACL, mao 95, doc. 19.
256
da Conceio, duas rocinhas, uma no princpio da fazenda, indo de Simo Pereira com casas
trreas de vivenda, paiol e rancho, tudo coberto de telha; outra no fim da mesma com casas
abatidas e ranchos ratificados (sic) de novo cobertos de telha.573 No se mencionaram mais
as trs lguas que a fazenda tinha de fundos pelo serto, conforme descrito na carta de
sesmaria.
O inventrio da fazenda indica que nela viviam 94 escravos, entre homens e mulheres,
africanos e crioulos. Era uma escravaria razovel, pois 39 deles tinham entre 15 e 45 anos de
idade, 44 eram crianas menores de 15 anos, oito estavam na casa dos 46 a 59 anos e somente
trs tinham 60 anos. Cerca da metade estava em condies de trabalhar. Todos os menores de
15 anos eram crioulos, com grande possibilidade de terem nascido na fazenda, j que so
listados como filhos, denotando uma prtica que esses senhores tinham de tentar reproduzir a
mo de obra no cativeiro. Somente 13 eram africanos e bem velhos, apesar de D. Francisco
ser traficante de escravos: quatro Benguela, quatro Mina, dois Angola e um Congo, um
Monjolo e um Nag. Como o inventrio foi feito logo que se iniciou a administrao de Joo
Pedro Fortes, nele no foram listados os 26 escravos que ele trouxe consigo de Angola.
Percebemos isso, porque todos os africanos listados eram velhos. Isso eleva a quantidade de
cativos na fazenda para 120. Para o trabalho desses negros, entre outras ferramentas, foram
registradas 40 foices, 31 enxadas, 15 machados e duas cavadeiras. Havia pouco gado: 21 bois
e 40 porcos e as roas pareciam no produzir muito, pois no paiol foram encontrados 302
alqueires de milho e 86 de feijo.574 Considerando o volume da mo de obra e o ponto
estratgico em que se situava a fazenda, beira do Caminho Novo e perto do registro e
passagem do Paraibuna, local onde muita gente passava e parava, sua pequena produo
indica que estava decadente e mal administrada. No sobrado havia poucos trastes, situao
bastante comum nas casas da colnia.575 A capela estava paramentada e tinha alguns objetos
de prata.
573
INVENTRIO da fazenda do Registro. ANTT/ACL, mao 56, doc. 17.
574
INVENTRIO da fazenda do Registro. ANTT/ACL, mao 56, doc. 17.
575
ALGRANTI. Histria da vida privada no Brasil, v. 1, p. 105-112.
257
576
CARTA de Manoel Pinto da Cunha para D. Maria Barbosa da Silva, Rio de Janeiro, cinco de maro de 1764.
ANTT/ACL, mao 56, doc. 02.
258
Cunha de ser desonesto e estar mancomunado com os administradores para roubar a famlia:
sempre direi que Manoel Pinto tem roubado muito bem a casa de V. Excia. e que ainda o
est fazendo, rebutando-se com os administradores das fazendas, tambm j fez aviso ao
Ilmo. Sr. [D. Francisco] que eu tambm era ladro. Continuando a sua queixa contra o
correspondente, sobrinho do falecido marido de D. Maria Barbosa, Joo Pedro Fortes rogava-
lhe que no reparasse que a carta no fosse pela mo de Manoel Pinto, porque em
semelhantes casos, costuma abri-las e no as remete quando lhe faz conta, para que s as suas
velhacadas possam ter aceitao. E, se V. Excia. me no acreditar, estou certo que o tempo
mostrar o erro em que V. Excia. tem vivido a tantos anos; os que conheceram a Casa e
tambm a Manoel Pinto, avaliam que ele [a] tem roubado em 30 ou 40 mil cruzados.577
No foi essa imagem de decadncia pintada pelas cartas que encontrou o doutor
Caetano da Costa Matoso, ouvidor de Vila Rica, quando de sua passagem pelo Registro a
caminho das Minas em 1749. Referindo-se fazenda talvez por estar mal informado disse
o seguinte:
577
CARTA de Joo Pedro Fortes para D. Maria Barbosa da Silva, fazenda do Registro, no Caminho Novo de
Minas, 30 de dezembro de 1765. ANTT/ACL, mao 56, doc. 26.
578
CDICE COSTA MATOSO, p. 891. Francisco Eduardo de Andrade acentua a importncia estratgica das
fazendas margem do Caminho Novo, principalmente, durante o auge da minerao. Segundo ele, essa
importncia transcendia o aspecto econmico. Escrevendo sobre Garcia Rodrigues Pais, cujas extensas sesmarias
localizavam-se bem prximas da Fazenda do Registro, diz-nos: Na realidade, seus interesses (ou lucros) no
deviam ser meramente econmicos, implicavam tambm prestgio poltico. Sabe-se que as autoridades da Coroa
(governadores, ouvidores, oficiais da Justia, da Fazenda e militares), alm dos coloniais ricos e poderosos que
rumavam para a Capitania de Minas Gerais, usavam da sua hospitalidade, que estava longe de ser
desinteresseira. Aquele era um momento privilegiado para Garcia estreitar laos, iniciando, com o oferecimento
do pouso e do abastecimento da comitiva a ttulo gratuito, a troca de favores ou presentes que dava forma
interdependncia entre clientes e amigos. Estrategicamente, o agrado no Paraba bem podia depois retornar na
forma de uma ligao com os agentes do Estado, benfica para o poder e a riqueza da parentela ou da casa de
259
Garcia Rodrigues. p. 182-183. ANDRADE. A inveno das Minas Gerais, p. 175-183. Sobre a importncia
estratgica dos pousos no Caminho Novo, ver tambm SOUZA. Histria da vida privada no Brasil, v. 1, p. 64.
579
CARTA do padre Antnio Sarmento Vaz para o mestre-de-campo Domingos Teixeira de Andrade, Roa do
Caminho Novo, dois de novembro 1732. ANTT/ACL, mao 56, doc. 30.
580
CARTA de Antnio Pires dos Santos para o mestre-de-campo Domingos Teixeira de Andrade, Rio de
Janeiro, seis de maio de 1734. ANTT/ACL, mao 56, doc. 36.
581
S foi possvel encontrar registros, pelas cartas, para os anos de 1733, 1745, 1751, 1757, 1758, 1759, 1760,
1764, 1765 e 1766. Para 1767, 1768, 1779 e 1771 h informao da remessa anual dos valores das parcelas de
venda da fazenda que nem sempre era o mesmo. Em 1770, essa parcela foi enviada com a deduo de 324$720,
importncia retida para pagamento de dzimos atrasados. Tudo indica tambm que o comprador no honrou as
demais parcelas, sendo feito um acordo, em ano posterior, com prejuzo para os vendedores.
260
que partiam entre os meses de maro e maio. Valores muito menores do que os milhes que
colonos asseguraram ao ouvidor Costa Matoso. H muitas lacunas na documentao quanto
movimentao financeira proveniente das propriedades da colnia. Dos 36 anos em que a
fazenda do Caminho Novo ficou nas mos de administradores (1731 at 1767), s temos
registros das remessas de 14 anos esparsos. Das informaes fragmentadas que as cartas para
Portugal nos do, podemos fazer o seguinte quadro das remessas:
Quadro 8
Rendimentos remetidos da fazenda do Registro para Portugal (1733-1771)
Valor/
Ano Remetente Administrador/Histrico
ris
Padre Antnio Sarmento de
1733 Antnio Pires dos Santos 3:200$000
Vasconcellos
1745 Antnio Pires dos Santos 457$200 Felipe lvares
1751 Manoel Pinto da Cunha 1:064$490 Padre Jos Machado Morais*
1757 Idem 808$800 Idem
1758 Idem 475$200 Idem
1759 Idem 574$800 Idem
1760 Idem 730$213** Idem
1764 Idem 179$557*** Joo Pedro Fortes
1765 Idem 148$020 Idem
1766 Idem 179$557*** Idem
Parcela da venda da fazenda
1767 Policarpo Baptista Velasco 800$000
(2.000 cruzados)
Parcela(s) da venda da
1769 Manoel Pinto da Cunha 1:200$000
fazenda (3.000 cruzados)
Parcela da venda da fazenda,
1770 Joo Pinto da Cunha e Souza 1:275$028 deduzidos 324$720 ris pagos
de dzimos atrasados.
1771 Idem 1:600$000 Parcela da venda da fazenda
Fonte: ANTT - Arquivo dos Condes de Linhares. Os valores em oitavas de ouro e cruzados foram convertidos
para ris. *Padre Jos Machado Morais administrou a fazenda at o ano de 1763, no apresentando os
rendimentos de 1761, 1762 e 1763. **Manoel Pinto da Cunha dizia, em carta, que no remeteria tal valor, pois
seria gasto no processo de partilha dos bens deixados por Matias Barbosa; *** Valores calculados por
estimativa: 507$135 ris foi o valor relativo a trs anos (1764-1765). Deduzido o valor do ano de 1765, fizemos
uma mdia para os anos de 1764 e 1766.
Em 1767 a fazenda do Registro seria vendida ao capito Manoel do Valle Amado por
40.000 cruzados que deveriam ser pagos em 20 parcelas anuais de 2.000 cruzados. Em 1771,
o correspondente da famlia no Rio de Janeiro, remetendo o valor de uma das parcelas para
Lisboa, comentava em carta a D. Francisco que esta venda foi boa e se h de cobrar com
muito sossego, assim permitisse Deus que as fazendas das Minas merecessem outros tais
compradores como este, porque s assim seria V. Excia. feliz, em pouco tempo veria V.
261
Excia. algum fruto destes restantes e infelizes bens.582 O comprador pagou algumas parcelas
em valores diferentes do combinado. Quando morreu D. Francisco Inocncio, em 1780, a
fazenda ainda no havia sido quitada, pois, anos depois, recebeu D. Rodrigo de Souza
Coutinho, por composio que fez com os compradores desta fazenda de Minas,583 o valor
de 4:000$000 ris.
Esse tipo de golpe deveria ser mesmo comum em Minas. John Luccock, em Notas
sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil, registrou um artifcio semelhante que
se usava para ampliar uma propriedade em Minas:
582
CARTA de Joo Pinto da Cunha e Souza para D. Francisco Inocncio de Souza Coutinho, Rio de Janeiro, 16
de fevereiro de 1771. ANTT/ACL, mao 48, doc. 05.
583
ANTT/ACL, mao 91, doc. 73.
584
CARTA do doutor Manoel da Rocha Martins para D. Maria Barbosa da Silva, Rio de Janeiro, 20 de abril de
1762. ANTT/ACL, mao 56, doc. 11.
585
CARTA do doutor Manoel da Rocha Martins para D. Maria Barbosa da Silva, Vila Rica, dois de novembro
de 1766. ANTT/ACL, mao 56, doc. 11.
262
586
LUCCOCK. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil, p. 321.
587
ANDRADE. A inveno das Minas Gerais, p. 213-214. De acordo com o prprio Karl Polanyi: A funo
econmica apenas uma entre as muitas funes vitais da terra. Esta d estabilidade vida do homem; o local
da sua habitao, a condio da sua segurana fsica, a paisagem e as estaes do ano. Imaginar a vida do
homem sem a terra o mesmo que imagin-lo nascendo sem mos e ps. E, no entanto, separar a terra do
homem e organizar a sociedade de forma tal a satisfazer as exigncias de um mercado imobilirio foi parte vital
do conceito utpico de uma economia de mercado. POLANYI. A grande transformao, p. 214.
588
CARTA de Manoel Pinto da Cunha para D. Maria Barbosa da Silva, Rio de Janeiro, 20 de julho de 1757.
ANTT/ACL, mao 56, doc. 02.
263
meados de 1764, com 30 negros com destino fazenda. Passou pelo Rio de Janeiro onde
permaneceu dois meses para curar as molstias dos negros, e, no final do ano, chegou
fazenda com 26 escravos, tendo morrido quatro antes de desembarcarem no Rio de Janeiro,
todos repletos de sarnas e bexigas. Um ano depois, o administrador recebia do Porto uma
remessa de 30 machados, 70 foices, 30 enxadas e duas alavancas. Com toda essa mo de obra
e ferramentas, deveria por em execuo a instruo que trouxe da frica.
589
INSTRUO por que se deve governar Joo Pedro Fortes sendo encarregado da administrao da minha
Fazenda chamada o Registo de Matias Barbosa. D. Francisco de Souza Coutinho, Luanda, 1764. ANTT/ACL,
mao 56, doc. 64.
264
O documento orientava que se desse a todos os negros uns bocados de terra para seu
sustento nos quais eles trabalhariam em um dia da semana, que no fosse o domingo.590
Todavia, sabendo que os negros costumavam furtivamente vender esse sustento, devia cuidar
para que se vendesse primeiro tudo o que produzia a fazenda. Concentraria seus esforos na
produo do milho, por ser o maior fruto da fazenda, fazendo grandes derrubadas para
aumentar as roas.591 O administrador no descuidaria do cultivo da mandioca, a que chama
farinha de pau, e deveria criar muitas galinhas, muitos porcos e muitos gados.
Como o Registro era passagem obrigatria para todos os que transitavam pelo
Caminho Novo, fossem eles homens de prol (governadores, autoridades, tropeiros, homens
bons) ou gente pobre (agregados, escravos), a instruo previa levar vantagem com todos.
Como era preciso hospedar a todos, conforme sua condio e de todos tirar algum proveito
lembrava que no Rio de Janeiro achar camas para os passageiros limpos, roupas de mesa,
louas. Quando, porm, passarem as carregaes de negros para cima, paguem os
Senhores o que eles gastam.
590
CARDOSO. Agricultura, escravismo e capitalismo, p. 133-154. Os trechos extrados da Instruo de D.
Francisco Inocncio representam a clara manifestao da brecha camponesa tratada pelo autor. Tambm
demonstram as fragilidades dos sistemas de dominao escravistas, geradores de contradies de classe. Mesmo
que no estejamos tratando do feudalismo, aplicam-se as consideraes de Witold Kula: O sistema, ao dominar
os homens, despertou o esprito de rebelio contra ele prprio. Se o nosso modelo compreende realmente fatores
que, acumulando-se, poderiam levar destruio do sistema, creio que o mais importante foram os atos
incoerentes, espontneos, mas orientados sempre na mesma direo uma vez que eram determinados pela
mesma situao de classe , das massas camponesas disseminadas por centenas de milhares de quilmetros
quadrados: a sabotagem do trabalho obrigatrio, as fugas, a sua luta para entrar em contato com o mercado.
KULA. Teoria econmica do sistema feudal, p. 179.
591
KULA. Teoria econmica do sistema feudal, p. 85. No caso de sistemas de economia agrria extensiva, tal
como o presente, o aumento da produo tambm estava diretamente associado ao aumento da superfcie
cultivada.
592
INSTRUO por que se deve governar Joo Pedro Fortes sendo encarregado da administrao da minha
Fazenda chamada o Registo de Matias Barbosa. D. Francisco de Souza Coutinho, Luanda, 1764. ANTT/ACL,
mao 56, doc. 64.
265
Encerra-se a instruo com a exigncia de uma prestao de contas a cada trs meses
remetendo-a, junto com os rendimentos, para o representante da famlia no Rio de Janeiro. O
autor da instruo, D. Francisco, apresenta Joo Pedro Fortes como um administrador fiel e
verdadeiro, fiando-se da sua honra, da sua conscincia e da sua probidade, que, apartando-
se das trapaas e ladroeiras de alguns dos seus antecessores merea sempre a sua gratido e
aumente os seus interesses na dita fazenda.
A administrao de Joo Pedro Fortes parece ter sido complicada para os interesses da
fazenda do Registro. Em 1769, quatro anos aps sua chegada, o doutor Jos Maurcio da
Gama e Freitas, outro correspondente da famlia no Rio de Janeiro, escrevia a D. Francisco
Inocncio:
593
CARTA de Manoel Pinto da Cunha para D. Maria Barbosa da Silva, Rio de Janeiro, 29 de junho de 1765.
ANTT/ACL, mao 56, doc. 16.
266
tempo que V. Excia., em nenhum dos captulos da sua Geral Instruo, que
ele me mostrou, lhe ordena expressamente toda aplicao ao aumento das
sobreditas criaes como notvel subsistncia daquela Fazenda.594
A decadncia da fazenda do Registro chegou a tal ponto que no mereceu nem uma
linha do sempre arguto Saint-Hilaire, quando passou por ela a caminho de Minas em 1816.
John Luccock tambm nada observou da antiga fazenda e ainda referiu-se ao lugar do registro
como Mateus Barbosa. Em 25 de abril de 1823, o brigadeiro Raimundo Jos da Cunha
Matos, referindo-se antiga sede da fazenda, s observou que o edifcio tem uma capela;
acha-se muito arruinado, e est arrendado ao Governo. As poucas observaes que os
viajantes fizeram foram a respeito da atividade fiscal que ali ainda se exercia.595 Isso no de
se estranhar tanto, pois at mesmo os netos do ltimo proprietrio, D. Francisco Inocncio,
em suas viagens s fazendas de Minas, passavam pela fazenda do Registro e nas suas cartas
nada diziam sobre a propriedade. Um deles, D. Victorio, em 31 de maio de 1813, escreveu
uma longa carta sua me, na qual relatava detalhes da viagem, da fertilidade das fazendas
margem do caminho e nada sobre a fazenda de seus antepassados, de onde escreveu a carta.596
O abandono parecia ser a sina das fazendas fundadas por mineradores. Como muitos
que se dirigiram para Minas Gerais na primeira metade do sculo XVIII, Matias Barbosa
ambicionava metais e pedras preciosas e deslocou-se, ento, para a regio mineradora,
instalando-se na fazenda do Brumado, na freguesia do Furquim. Numa carta datada de 26 de
abril de 1734, Matias Barbosa escreveu ao genro e filha, j residentes em Trs-os-Montes, e
suas linhas estamparam o estilo de colono que ele era. Como tantos outros colonos em busca
de riqueza, Matias Barbosa comprava ou recebia em doao e vendia fazendas, sempre
correndo atrs do ouro e das pedras preciosas, que era o que mais interessava aos poderosos
da capitania. O colono informava na dita carta que vendera a fazenda do Brumado por
setenta e tantos mil cruzados e s me falta a disposio da nova em que me acho ribeiro
594
CARTA do doutor Jos Maurcio da Gama e Freitas para D. Francisco Inocncio, Rio de Janeiro, sete de
julho de 1769. ANTT/ACL, mao 48, doc. 08. Procuramos cuidadosamente, entre os Arquivos dos Condes de
Linhares, os tais cadernos de administrao desta e das outras fazendas. No encontramos esse tipo de
documentao, nem mesmo para as quintas em Portugal, o que nos gerou certo estranhamento, pois, por mais de
cem anos a famlia administrou propriedades rurais. No caso do Brasil, tais cadernos, devem ter ficado nas
mos dos administradores e representantes da famlia. Tambm certo que o fundo Arquivo dos Condes de
Linhares, guardado no ANTT, possui somente parte da documentao da famlia.
595
SAINT-HILAIRE. Viagem pelas provncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, p. 49-51; LUCCOCK. Notas
sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil, p. 279; CUNHA MATOS. Itinerrio do Rio de Janeiro
ao Par e Maranho pelas provncias de Minas Gerais e Gois, p. 17.
596
CARTA de D. Victorio de S. Coutinho para sua me, a condessa de Linhares, Registro de Matias Barbosa, 31
de maio de 1813. ANTT/ACL, mao 68, doc. 01.
267
597
CARTA de Matias Barbosa da Silva para sua filha D. Maria Barbosa da Silva e seu genro Domingos Teixeira
de Andrade, Vila Rica, 26 de abril de 1734. ANTT/ACL, mao 56, doc. 49. Ver tambm a Expedio na zona
do rio Doce pelo mestre-de-campo Matias Barbosa da Silva (1734). Consideramos interessante reproduzir parte
desse extenso documento, pois mostra semelhanas com a conquista que o mestre-de-campo Incio Correia
Pamplona faria trinta anos aps no serto oeste da capitania. Tal como Pamplona, Matias Barbosa pretendia se
arvorar em distribuidor de sesmarias. O entrante, pedindo mercs ao rei, relatou ao Conselho Ultramarino o
seguinte: [...] municiou a Bandeira sua custa provendo a comitiva e guarnio dela de todo o necessrio, assim
de armas, plvora e bala, como de mantimentos que mandou carregar at certa altura por 50 escravos seus, de
que destinou muitos para se segurarem o acampamento at o regresso da viagem, como com efeito fizeram com
excessivo trabalho prprio e despesa do suplicante, e, alm disso, enviou socorros por repetidas vezes depois de
entrarem na explorao dos sertes, expediu ordens, deu direes, [s]ocorreu as dificuldades que pareciam
invisveis e que a nenhuma pessoa se tinha arrojado, e desempenhado cabalmente a eleio que o Governador
tinha feito da sua pessoa, valor, experincia e capacidade, porque conseguiu o chegar-se com a Bandeira
paragem que se determinou, e para maior segurana do bom sucesso e se poderem continuar os descobrimentos,
deu providncia de se derrubarem pelo caminho alguns matos e se plantarem mantimentos para sustento das
pessoas com que mandasse adiantar as exploraes nas sees seguintes, condio precisamente necessria em
razo das muitas distncias e perigo de alguns assaltos que se fizessem aos mantimentos conduzidos para aquela
conquista. E querendo-se vrias pessoas intrometerem-se a explorarem e continuarem a [a]veriguao das ditas
terras descobertas, por lhes parecer fcil depois da primeira diligncia e descobrimento do suplicante, o mesmo
Governador os proibiu, por achar que um negcio de tanto peso se no podia fiar de outros ombros, e que o
suplicante estava pronto de todo zelo para prossegui-lo, assim por terra como por gua, expondo-se a todos os
perigos dessa difcil empresa, para que, desse modo, se alcanasse a reduo do gentio brbaro e se
acrescentassem os interesses da Real Fazenda, cujo zelo se tinha experimentado em repetidas ocasies por ter
acrescentado os Dzimos e os Quintos reais, e ter feito subir os contratos dos caminhos a muitas arrobas de ouro
[...]. Continuou sua ladainha de descrio das inmeras vantagens para a real fazenda, a conquista e civilizao
dos gentios, a descoberta de ouro, a criao de novas povoaes e abertura de novas terras de agricultura.
Encerrou solicitando conceder-lhe por hora, em trs vidas, as passagens de todos os rios da nova conquista que
tem entrado, e a de outro em que se acha estabelecida a sua fazenda da Barra dos Goalaxos do Norte, como
tambm a poder dar de sesmarias todas as terras do seu descobrimento, por quanto todas essas mercs se
concederam aos descobridores das minas dos Guayases, como se v das Provises cujas cpias se oferecem; e,
alm disso, lhe queira confirmar a determinao do Conde Governador por que proibiu que outra pessoa alguma
268
Resultou dessa expedio pelo rio Gualaxo do Norte a primeira carta de sesmaria que
consta em nome do coronel Matias Barbosa nos registros da capitania. Trata-se da fazenda da
Barra do Gualaxo do Norte requerida em sete de setembro de 1736, na qual o sesmeiro
alegava j estar de posse da dita terra e requeria uma lgua em quadra de sesmaria. Foi-lhe
concedida oficialmente meia lgua de terra em quadra, mas os relatos de seus descendentes,
anos mais tarde, indicam ser a propriedade muito maior. Certamente, essa no foi a primeira
posse de Matias Barbosa. Como j foi dito anteriormente, em 1709, j ocupava uma sesmaria
no Caminho Novo.
As fazendas do serto do So Francisco das quais nos deu notcia a carta escrita por
Pamplona em 1799 tinham, no mnimo, trs lguas de terras em quadra. No temos como
afirmar, mas parece-nos que Matias Barbosa foi um dos colonos que recebera terras quando
da abertura da Picada dos Goiases, em 1737, por iniciativa do Governador Martinho de
Mendona de Pina e de Proena. margem desse novo caminho que partia de Pitangui, os
colonos recebiam as suas glebas com o objetivo de desbravar as suas concesses em pontos
determinados para darem ranchos e pousos ao longo do caminho, obrigando-se a construir por
a casas e pastos para cmodo dos tropeiros, e tambm roas para o farto abastecimento dos
itinerantes.599 No entanto, a infestao de gentios bravos e quilombolas frustrou parte do
projeto de ocupao, mas a picada continuou sendo frequentada, pois servia de caminho tanto
para as minas de Gois quanto para as minas de Paracatu, descobertas anos depois, entre 1743
e 1744. Muitos sesmeiros abandonaram suas fazendas e a regio s foi efetivamente
reconquistada no ltimo tero do sculo XVIII com as entradas de Pamplona. As trs lguas
se intrometesse no sobredito descobrimento e conquista [...]. (grifos nossos) Revista do Arquivo Pblico
Mineiro, v. 3, p. 769-772.
598
CARTA de Francisco Barbosa Rego para o brigadeiro Domingos Teixeira de Andrade, Lisboa, 29 de janeiro
de 1746. ANTT/ACL, mao 56, doc. 29.
599
VASCONCELOS. Histria Mdia de Minas Gerais, p. 171.
269
em quadra de terras que Matias Barbosa possua em um stio chamado o ribeiro Feyo, onde
acabava a sesmaria de Jos Pires Monteiro e findava na ponte do Olho Dgua onde
principiava a fazenda de Lus Manoel tambm se encontravam perdidas naquele caos.600
Pamplona, em 1799, nomeava as fazendas de Babilnia, Arages e Almas. Mas outro
documento, parte da adjudicao dos bens que se fazia do esplio de Matias Barbosa a sua
filha, D. Maria Barbosa, lhes atribua outros nomes, somente conservando o da Babilnia:
Com a confuso dos nomes, a impreciso da localizao e a indefinio das reas dos
terrenos ocorrncias to comuns na documentao das terras do perodo colonial fica
difcil afirmar se todos aqueles stios estavam compreendidos nas trs lguas ou se,
posteriormente, outras terras foram adquiridas aumentando, com isso, toda essa rea. Essa
hiptese bem plausvel, pois Matias Barbosa, no seu testamento, relacionou quatro stios
sucessivos e continuados no Caminho Novo dos Goiases e duas sesmarias, de que comprei
uma de Andr Barbosa de Barros e vrios escravos que andam nos ditos stios trabalhando por
minha conta. Os tais quatro stios parecem ser os que foram relacionados na adjudicao de
bens a D. Maria Barbosa. Das duas sesmarias, uma seria a comprada do dito Andr Barbosa
de Barros e da outra ainda no sabemos sua origem. No localizamos qualquer carta de
doao para Matias Barbosa nessa regio, apesar de Diogo de Vasconcelos o listar entre os
que receberam mercs de terras na Picada de Gois em 1737 e no citar o nome de Andr
Barbosa de Barros.602 Talvez essas duas sesmarias sejam as fazendas denominadas Arages e
Almas.
600
RAPM, ano III, 1898, p. 814-815. O tenente-coronel Pedro Vanzeller que se casou com uma das netas de
Matias Barbosa, filha do brigadeiro Domingos Teixeira, tambm recebeu sesmaria de trs lguas em quadra na
Picada dos Goiases, no mesmo ano de 1737 (p. 818-819).
601
BENS ADJUDICADOS Ilma. e Exma. Sra. D. Maria Barbosa da Silva da legtima de seus pais o Sr.
coronel Matias Barbosa da Silva e Sra. D. Luza de Souza e Oliveira, sem data, mas provavelmente de 1765 ou
1766. ANTT/ACL, mao 95, doc. 17.
602
VASCONCELOS. Histria Mdia de Minas Gerais, p. 171-173.
270
Andr Barbosa de Barros recebera sua sesmaria em oito de abril de 1737,603 por meio
de doao que fazia parte do empreendimento de abertura e povoamento da Picada de Gois.
Para isso, uma sequncia de doaes foram feitas, entre 1 e oito de abril de 1737, pelo
governador Martinho de Mendona. O instigante aqui que Andr Barbosa de Barros,
imediatamente, vendeu a gleba recebida a Matias Barbosa, que j havia recebido uma doao,
no ano anterior, na barra do rio Gualaxo, e, pela norma, no poderia receber outra. Podemos,
contudo, suspeitar que o tal Andr somente emprestou o seu nome, pois, to logo recebeu a
doao da terra, fez a venda dela para quem realmente tinha interesse em possu-la. Matias
Barbosa, demonstrando conhecer bem as regras do jogo, j havia se desvencilhado da
sesmaria recebida em doao em 1709, passando-a para o seu genro e filha e ficando livre
para receber outra, a da Barra.
Dias depois, em agosto, D. Joo Carlos reportava-se ao seu tio, clrigo da S Patriarcal
de Lisboa e governador do reino, D. Jos Antnio de Meneses, fazendo um minucioso relato
da situao das fazendas de Minas, as quais, em sua opinio, encontravam-se em franca
decadncia, mas que poderiam melhorar se lhes pusessem mo de obra. Sobre as fazendas do
serto, em especial, dizia:
603
CARTA de sesmaria de Andr Barbosa de Barros no stio de So Marcos, Caminho Novo dos Goiases. APM-
SC 42, fl. 74.
604
CARTA de D. Joo Carlos de Souza Coutinho para D. Gabriela Asinari, Fazenda do Crasto, seis de julho de
1813. ANTT/ACL, mao 68, doc. 3.
271
Os problemas dos Souza Coutinho com as ocorrncias de invases nas terras que
herdaram no se limitaram s sesmarias do serto. Mesmo nas fazendas da Barra e do Crasto,
nas proximidades de Mariana, percebemos, pelas cartas, a presena indesejada de intrusos. Na
Barra, houve compradores que no pagaram a compra das terras e agregados que cultivavam
parte dessas terras sem a anuncia dos donos. Policarpo Baptista Velasco, um dos agentes da
famlia, relatou em carta que, tendo ido a Vila Rica, encontrou um labirinto de demandas
em torno dos compradores da fazenda da Barra que, por no a terem pago, foi-lhes feito
sequestro dos bens. Para evitar longas demandas, disse ter feito um acordo com tais
compradores, recebendo a fazenda de volta depois de alguns ajustes no quais tinham a pagar e
a receber pelo que nela fizeram. Nessa mesma carta, escrita em outubro de 1766, o agente
assegurava que, com as duas composies, se acha V. Excia. [D. Maria Barbosa] de posse
mansa e pacificamente, sem uma nica demanda, de tudo quanto existia ao tempo da minha
chegada, que o mais a que eu podia aspirar. No acordo, ficaram suspensos os pagamentos
605
CARTA de D. Joo Carlos de Souza Coutinho para D. Jos Antnio de Meneses de Souza Coutinho,
Principal de Souza, nove de agosto de 1813. ANTT/ACL, mao 71, doc. 13.
606
CARTA de D. Victorio de Souza Coutinho, 2 conde de Linhares, para D. Jos Antnio de Meneses de Souza
Coutinho, Principal de Souza, sem data. ANTT/ACL, mao 71, doc. 10.
272
futuros e foram retidas 400 arrobas de acar e algumas benfeitorias.607 Mas, se Policarpo
havia resolvido as querelas com os compradores inadimplentes, restavam ainda os indesejados
agregados. D. Maria Barbosa da Silva j havia pedido ao doutor Manoel da Rocha Martins
que pusesse fora da fazenda da Barra todos os brancos, mulatos e negros forros. Em 1766, o
advogado da famlia relatava-lhe o que fizera com os agregados que cultivavam as terras da
grande fazenda da Barra, procurando-os e dizendo-lhes que ou se pusessem logo fora ou me
haviam de pagar quatro oitavas por cada alqueire de planta. Aceitaram esse partido que me
parece conveniente em razo da fazenda ter muitas terras e ser pouco o dano que causam; e
quando isto no seja do agrado de V. Excia., farei o que me mandar.608
607
CARTA de Policarpo Baptista Velasco para D. Maria Barbosa da Silva, Vila Rica, 28 de outubro de 1766.
ANTT/ACL, mao 56, doc. 09.
608
CARTA de Manoel da Rocha Martins a D. Maria Barbosa da Silva, Vila Rica, dois de novembro de 1766.
ANTT/ACL, mao 56, doc. 11.
609
CARTA de Policarpo Baptista Velasco a D. Maria Barbosa da Silva, Vila Rica, 28 de outubro de 1766.
ANTT/ACL, mao 56, doc. 09.
610
CARTA de Policarpo Baptista Velasco para D. Maria Barbosa da Silva, Vila Rica, 16 de dezembro de 1767.
ANTT/ACL, mao 56, doc. 09.
273
As cartas escritas no mesmo perodo por Policarpo Baptista, administrador enviado de Angola
por D. Francisco Inocncio, e pelo advogado Manoel da Rocha Martins, enviado de Trs-os-
Montes pela famlia, demonstram nas entrelinhas, nas incoerncias e nos claros, que um deles
ou ambos enganava a famlia. O doutor Manoel da Rocha Martins no se limitava
funo de advogado, mas administrava, junto com Policarpo Baptista, os bens da famlia em
Minas. Enquanto os donos insistiam na venda, o advogado os desanimava e propunha que
investissem mais capitais nas terras. Fazia promessas de conseguir rendas to elevadas, que o
histrico das remessas de dinheiro feitas, ao longo de muitos anos, do Brasil para Portugal
(segundo coligimos na documentao) francamente contradizia. Ou o advogado estava sendo
sincero com seus senhores ou desejava continuar na administrao das fazendas, tirando as
possveis vantagens da indefinio que havia com a distncia dos proprietrios. Vejamos a
opinio do advogado/administrador dada sua senhora D. Maria Barbosa:
611
CARTA de Manoel da Rocha Martins para D. Maria Barbosa da Silva, Vila Rica, dois de novembro de 1766.
ANTT/ACL, mao 56, doc. 11.
274
alforrias, todos os dzimos por pagar, uma quantidade de dvidas. Enfim, conclua
enfaticamente: s com vergalho que se podia agradecer tanta amizade dos tais tratantes.612
612
CARTA de D. Joo Carlos de Souza Coutinho para D. Jos Antnio de Meneses de Souza Coutinho,
Principal de Souza, nove de agosto de 1813. ANTT/ACL, mao 71, doc. 13. A ausncia de livros de receitas e
despesas e de outros registros na administrao das fazendas coloniais do Brasil crnica. Se, no caso especfico
de que estamos tratando, a ausncia de registros criava dificuldades para os proprietrios, dificuldades maiores
so criadas para os estudiosos da histria agrria do perodo colonial. Nossa expectativa, na pesquisa do Arquivo
dos Condes de Linhares era de que livros dessa natureza estivessem presentes, o que no aconteceu. Da, fomos
obrigados a dissertar sobre a administrao das fazendas a partir de fragmentos encontrados em cartas, muitas
vezes mal redigidas e pouco detalhadas, e em algumas raras instrues passadas aos administradores. Witold
Kula, alerta-nos para o seguinte: As antigas investigaes sobre a histria agrria apoiavam-se principalmente
em fontes de tipo normativo, comeando pela legislao histrica e acabando nas instrues aos administradores
das grandes propriedades. Rutkowski, cujos estudos marcaram uma viragem, desconfiava manifestamente desse
tipo de fontes. E tinha toda a razo. Negava-se a tirar concluses acerca de como foi a partir de uma fonte que
dizia como devia ser. Da que, para Rutkowski, o tipo preferido de fontes fossem os inventrios (incluindo a
categoria especial constituda pelas atas de inspeo): descrio positiva do estado de coisas em cada
propriedade num dado momento. KULA. Teoria econmica do sistema feudal, p. 40. Sabemos, contudo, que o
cruzamento de fontes censitrias, fiscais (registros de dzimos e outros impostos) e cartorrias (inventrios) seria
uma alternativa ausncia de livros de registros das fazendas para o entendimento da maneira de como eram
administradas as unidades agrrias coloniais, tal como fez com brilhantismo CARRARA em Minas e currais.
Todavia, o uso dessa metodologia complexa foge ao escopo deste captulo, que o de entender o funcionamento
das propriedades rurais (sesmarias) de uma famlia nobre portuguesa absentesta no corao da colnia.
613
TESTAMENTO de Matias Barbosa da Silva. ANTT/ACL, mao 95, doc. 19.
614
CARTA do doutor Manoel da Rocha Martins para D. Maria Barbosa da Silva, Rio de Janeiro, 20 de abril de
1762. ANTT/ACL, mao 56, doc. 11.
275
abandonadas. A ltima fase da minerao nas suas terras, esgotado o ouro de aluvio e das
catas, j foi com a presena de capitais ingleses e com o uso de tcnicas menos rudimentares.
Quando a famlia percebeu que o ouro havia minguado, deu maior ateno
agricultura e grandes projetos foram planejados para retirar dessas fazendas as rendas iguais
ou superiores s que o ouro havia dado em tempos pretritos. A localizao das fazendas na
bacia do rio Doce e os projetos de navegao desse caudaloso rio eram um dos maiores
atrativos para nelas se implantarem culturas que poderiam torn-las lucrativas: o algodo, a
cana-de-acar, a cochonilha615 e, sobretudo, o caf. A essa altura, um dos maiores
empecilhos explorao daquelas terras j havia sido contornado, com a expulso dos ndios
Botocudos, atravs da sistemtica guerra que lhes foi declarada a partir de 1808. Os
indesejados vizinhos que conseguiram escapar do extermnio refugiaram-se nas matas da
margem esquerda do rio Doce, mais ao norte.
615
A cochonilha um inseto do qual se extrai um corante vermelho de alto valor comercial ainda nos dias atuais.
A planta a que se refere o administrador devia servir para hospedar e alimentar o dito inseto. Em alguns lugares
do Brasil, como no Nordeste, a cochonilha virou uma praga que passou a danificar outras culturas.
616
CARTA de Antnio Pires dos Santos para o mestre-de-campo Domingos Teixeira de Andrade, Rio de
Janeiro, 18 de outubro de 1731. ANTT/ACL, mao 56, doc. 36.
276
final da dcada de 1760, a chcara aparece na documentao sendo administrada pelo agente
de D. Francisco Inocncio, no Rio de Janeiro, doutor Manoel Pinto da Cunha. Como outras
tantas chcaras da Tijuca, ali seriam cultivados os primeiros cafeeiros que fariam a riqueza
dos fazendeiros fluminenses.
Tal como seu ilustrado marido ou qui mais do que ele , a condessa de Linhares,
D. Gabriela, participava da administrao dos bens da Casa no Brasil fazendo uso da maior
racionalidade possvel, passando-nos a impresso de que tinha uma clara viso de suas
propriedades rurais como empresas.618 Delas pretendia extrair a maior renda, o maior lucro
possvel. Nessa empreitada, foi muitas vezes auxiliada por seus filhos, quando no estavam
fora do Brasil a servio da Coroa. Desse clculo racional, resultado de sua ilustrao e da
leitura na rica biblioteca de D. Rodrigo, brotavam consideraes e ideias avanadas como as
que percebemos em suas cartas.
617
CARTA de D. Gabriela Asinari para seu filho D. Victorio de Souza Coutinho, Rio de Janeiro, 25 de outubro
de 1819. ANTT/ACL, mao 107, doc. 1. Em sua maioria as cartas da condessa de Linhares para seus parentes e
amigos em Portugal ou em outras partes da Europa esto redigidas em francs nos originais.
618
MORAES SILVA. Diccionario da Lingua Portugueza. Empresa: Hoje, dizemos empresa qualquer
negociao, ou estabelecimento, que algum tenta s suas custas para lucrar, v. g. edificando para outros,
levantando fbricas, traando negociaes, e avanando os fundos para elas.
277
619
CARTA de D. Gabriela Asinari de St. Marzan para o Sr. Joo Paulo Bezerra, Rio de Janeiro, 23 de julho de
1810. ANTT/ACL, mao 66, doc. 25.
620
CARTA de D. Gabriela Asinari para seu filho D. Victorio de Souza Coutinho, Rio de Janeiro, 14 de maro de
1820. ANTT/ACL, mao 107, doc. 1. O interesse dos proprietrios de latifndios no interior em atingir mais
facilmente o litoral confirmado por Witold Kula: a possibilidade de chegar diretamente ao mercado mundial
(isto , cidade porturia), a que s tinha acesso o grande produtor e vendedor, proporcionava-lhe um enorme
privilgio econmico, dado que as condies de troca nesse mercado eram muito mais favorveis do que no
mercado local. KULA. Teoria econmica do sistema feudal, p. 140.
278
altos lucros aos donos das tropas. A condessa queixava-se, ao mesmo tempo, de Jos Antnio
de Freitas, o administrador desobediente, e dos preos dos fretes:
Nas fazendas dos Souza Coutinho em Minas, o caf j vinha sendo cultivado desde
1788. D. Rodrigo, escrevendo de Turim para seu irmo em Lisboa, tratou da ltima obra do
Abade Raynal, que salientava as vantagens da cultura da cochonilha na Amrica, cultura essa
que se esforaram para implantar nas fazendas de Minas, mas sem xito. Nessa mesma carta,
percebe-se que a cultura do caf ainda interessava pouco, pois se a cochenilha (sic) de boa
qualidade, seria muito interessante, a do caf ser sempre de pouco valor,624 escreveu D.
621
CARTA de D. Gabriela Asinari para seu filho D. Victorio de Souza Coutinho, Rio de Janeiro, 31 de maio de
1820. ANTT/ACL, mao 66, doc. 23.
622
CARTA de Jos Antnio de Freitas para a condessa de Linhares, Fazenda do Crasto, cinco de julho de 1820.
ANTT/ACL, mao 77, doc. 63.
623
PRADO JUNIOR. Histria econmica do Brasil, p. 80-84.
624
CARTA de D. Rodrigo para um dos seus irmos em Lisboa (D. Jos de Meneses?), Turim, 21 de outubro de
1788. ANTT/ACL, mao 62, doc. 19.
279
Rodrigo. Talvez o fidalgo no soubesse das ms notcias que Manoel de Miranda Pires,
administrador das fazendas da Barra e do Crasto, mandara no incio do mesmo ano para sua
av, D. Maria Barbosa da Silva, em Trs-os- Montes. Em extenso relatrio sobre o estado das
fazendas, o administrador informara: a cochonilha no quis permanecer que, tendo eu
plantado tanta que julguei lhe poderia fazer uma remessa grande, no ficou uma s planta e
eu, com tanto trabalho, e [ilegvel] e servios perdidos veremos se no caf podemos
avultar.625
Passados pouco mais de trinta anos, D. Gabriela Asinari, em uma carta escrita entre os
dias 6 e 20 de novembro de 1819, participava aos filhos que se plantavam 33.500 ps de caf
no Crasto e 12 alqueires de algodo semeados no Crasto e 12 alqueires na Barra. A missiva
confirma que a considervel quantidade de algodo que comerciavam era no s comprada,
mas tambm cultivada por eles em Minas e que o administrador Manoel Jacinto prometia
plantar 20.000 ps de caf no meio [do ms] de novembro; ele tinha j a terra preparada.
Manoel Jacinto tambm anunciava que tinha j 100 arrobas de algodo em saco para expedir
na primeira ocasio.626
625
CARTA de Manoel de Miranda Pires para D. Maria Barbosa da Silva, Fazenda do Crasto, 18 de janeiro de
1788. ANTT/ACL, mao 98, doc. 08.
626
CARTA de D. Gabriela Asinari para seu filho D. Victorio de Souza Coutinho, Rio de Janeiro, novembro de
1819. ANTT/ACL, mao 107, doc. 1.
280
627
CARTA de D. Francisco Inocncio de Souza Coutinho para [sem identificao], Lisboa, 17 de junho de 1774.
ANTT/ACL, mao 46, doc. 10. D. Francisco se corresponde com alguma autoridade graduada, pois a pessoa
tratada de V. Excia. Em trs pginas fala com bastante clareza da escolha mais acertada de escravos para as
minas e para a agricultura. Apresenta todos os custos de diversos tipos de escravos desde a compra na frica at
a entrega no Brasil: [...] Para um estabelecimento novo e permanente no Brasil, preferira eu os negros do
Bembe, que confina com o Presdio das Pedras, os do Libolo, que se vendem na feira de Dembo, os do Novo
Redondo [?] e os de Benguela [...].
628
CARTA de Manoel de Miranda Pires para D. Maria Barbosa da Silva, Fazenda do Crasto, 18 de janeiro de
1788. ANTT/ACL, mao 98, doc. 8.
281
A desordem que tinha cado a escravatura principia a cessar e creio que com
os novos regulamentos que conto deixar, tudo mudar. Os escravos casveis,
desta vez, todos ficaram arrumados e o antigo prejuzo totalmente banido,
para o que me serviu um castigo a propsito que fiz e que transtornou a
opinio geral. Uma grande parte dos incurveis que haviam foram
descansar no seio de Abrao e a bela vergntea que os indeniza j mudou a
aparncia do todo. verdade que a diferena numrica por ora nula,
contudo j est longe no valor intrnseco dos indivduos e, de ora em diante,
tudo o que nascer vai aumentar. (grifos nossos)630
629
CARTA de D. Victorio de Souza Coutinho para sua me, condessa de Linhares, Fazenda do Crasto, 26 de
junho de 1813. ANTT/ACL, mao 68, doc. 1.
630
CARTA de D. Victorio de Souza Coutinho para sua me, condessa de Linhares, Fazenda do Crasto, oito de
setembro de 1818. ANTT/ACL, mao 68, doc. 1.
282
Boa parte das rendas que eram geradas pelas propriedades da famlia nos dois lados do
Atlntico era canalizada para pagamentos de dvidas que vinham sendo postergados desde
meados do sculo XVIII. As duas geraes mais ricas da famlia a de Matias Barbosa e a de
sua filha tambm no escapavam do endividamento crnico em que viviam as famlias
aristocrticas portuguesas.632 Nuno Gonalo Monteiro analisando os bens patrimoniais da alta
nobreza de Portugal, portadores de ttulos de Grandeza, aponta o seu elevado grau de
endividamento. Segundo ele:
631
CARTA do conde DEscragnolle para D. Victorio, Rio de Janeiro, s/d. ANTT/ACL, mao 77, doc. 1. A carta
no foi datada, mas provvel que seja de 1820 ou 1821, pois, em 30 de abril de 1820, a condessa de Linhares
escreveu para o administrador Jos Antnio de Freitas comunicando-lhe que D. Victorio havia comprado as
mquinas na Inglaterra. ANTT/ACL, mao 66, doc. 24. Os Souza Coutinho contavam com a colaborao do
conde dEscragnolle nos seus negcios no Brasil. Havia poucas pessoas to entendidas, na poca, do cultivo dos
cafeeiros como o conde dEscragnolle. Essa famlia de aristocratas emigrados da Frana depois do perodo
revolucionrio dedicou-se ao cultivo do caf nas chcaras da Tijuca. Um forte lao de amizade unia a famlia
Souza Coutinho ao conde dEscragnolle. Por mais de uma vez ele viajou a Minas acompanhando os filhos de D.
Rodrigo nas suas visitas s fazendas da Barra e do Crasto.
632
MONTEIRO. O crepsculo dos Grandes, p. 354-364.
633
MONTEIRO. O crepsculo dos Grandes, p. 354-355.
283
A famlia Souza Coutinho no fazia parte dos nobres com ttulos de Grandeza em
Portugal, pelo que se depreende da leitura de Nuno Monteiro. Os Souza Coutinho eram, no
mximo, nobres de provncia e o que os aproximou do trono foram os servios prestados ao
Estado. De qualquer forma, a prtica do endividamento foi algo que observamos na
documentao dos condes de Linhares.
Matias Barbosa deixou uma grande fortuna, mas tambm, como contratador, deixou
dbitos com a Coroa que precisavam ser quitados com a sua morte. Dvidas cujos
pagamentos, costumeiramente, eram adiados anos a fio. Na finalizao do seu inventrio, um
rol de dvidas no datado, mas posterior a 1760 listava, entre outros itens, o seguinte:
Deve aos interessados nos contratos dos caminhos de 1731 a 1736, de que o
dito Sr. coronel foi caixa, a parte que lhe[s] toca dos restos que se cobraram
depois de dadas as contas. E nela[s] [o] que os scios o no procuram e ho
de ser cinco at seis mil cruzados. Deve ao capito Manoel Ribeiro dos
Santos, o que lhe tocar na perda que experimenta o contrato dos dzimos, de
que o dito Sr. coronel era fiador, por cujo motivo, por seu falecimento, se fez
sequestro nos bens de seu casal.634
634
Dvidas com que ainda se acha onerado o Casal do defunto Sr. coronel Matias Barbosa da Silva que Deus
em santa glria haja. ANTT/ACL, mao 56, doc. 27.
635
ESCRITURAO contbil da conta de D. Francisco Inocncio de Souza Coutinho com o banqueiro Paulo
Jorge, agosto de 1772 a setembro de 1780. ANTT/ACL, mao 93, doc. 64. Pela anlise da sequncia de extratos,
D. Francisco Inocncio estava sempre em dbito com o banqueiro em valores que variavam de dois a cinco
contos de ris anuais, todavia, em maro de 1776, provavelmente devido aos gastos com seu cargo de
embaixador na corte madrilenha, sua dvida atingiu 9:986$725 ris, at que no ano de sua morte (1780), o ltimo
extrato que temos registrava um dbito de 2:677$996 ris; ESCRITURAO contbil (Deve/Haver) do Ilmo. e
Exmo. Sr. D. Rodrigo de Souza Coutinho com Francisco Moreira Rossi. ANTT/ACL, mao 91, doc. 99. Pelos
extratos, D. Rodrigo encerrou os anos de 1796 e 1797 com dbitos de 5:118$064 ris e 5:547$006 ris,
respectivamente.
636
MONTEIRO. O crepsculo dos Grandes, p. 370.
284
O exerccio de altos ofcios pblicos, por parte dos nobres, nas colnias do Ultramar e,
principalmente, nas embaixadas nos pases europeus exigia tantos gastos que muitas vezes os
ordenados no cobriam. Alguns voltavam ricos das colnias, envolvendo-se em negcios que,
s vezes lhes eram defesos.637 D. Francisco Inocncio, no governo de Angola com suas
frequentes idas ao Rio de Janeiro traficou escravos, pedras preciosas e outras tantas
mercadorias. Seu ordenado como governador era de 1:200$000 ris anuais. Quando saiu de
Angola, de passagem pelo Rio de Janeiro, por volta de 1773, deixou escrituradas as suas
contas. No campo das receitas, cujo total era de 16:286$534 ris, uma das rubricas era
Poupei de Angola: 3:868$800 ris. Descontadas as despesas e os valores que devia a
terceiros, remeteu para Lisboa 10:000$000 ris em dinheiro e 819$000 ris em topzios
amarelos e brancos.638 Em 1777, j se encontrava na corte espanhola como Ministro
Plenipotencirio de Portugal. Morreu em Madri, em seis de fevereiro de 1780, septuagenrio e
casado em segundas npcias com uma nobre de 14 anos. Os valores apurados em seu
inventrio foram insuficientes para quitar os 593$234,8 maravedis de vellos que devia a 31
credores: de forma que faltan para el total pago dos acredores 83$674,7 maravedis de
vellos.639
637
FURTADO. Homens de negcios, p. 34. Furtado cita o Alvar Rgio que proibia o comrcio s autoridades
coloniais: os Vice-Reis, Capites-generais e Governadores, como os Ministros e oficiais de justia e fazenda e
cabos de guerra, s me podero servir obstando-se de todo gnero de negcio, para que este cuidado os no
embarace, nem impea a por toda a sua ateno e desvelo no cumprimento de suas obrigaes. Sobre o mesmo
tema SOUZA. O sol e a sombra, p. 269-271.
638
ESCRITURAO CONTBIL de D. Francisco Inocncio, s/d (possivelmente entre 1773 e 1775, depois do
governo de Angola e antes da embaixada de Madri). ANTT/ACL, mao 93, doc. 38.
639
Razon de los acredores y resumen geral de la almoneda del Exmo. Sr. D. Francisco Inocncio de Souza
Coutinho. ANTT/ACL, mao 91, doc. 180.
640
PETIO de D. Francisco Inocncio Rainha D. Maria I. ANTT/ACL, mao 90, doc. 69.
285
A ttulo de crditos, entraram, ao todo, 988$460 ris das remessas das propriedades de
Trs-os-Montes e da Quinta da Lagoalva em Portugal. As remessas dos negcios do Brasil
tambm foram creditadas nessa conta nos anos de 1772 (12:871$544 ris) e de 1776 a 1780
(5:464$106 ris, dando uma mdia anual de 1:092$822 ris). Considerando-se que, a essa
altura, D. Maria Barbosa da Silva ainda morava no norte de Portugal e ficava com parte da
renda ali gerada e considerando-se que quaisquer outros valores poderiam no ter passado
pelas mos do banqueiro Paulo Jorge, fica claro o quanto as remessas do Brasil eram
superiores ao que rendiam as propriedades da famlia nesse perodo em Portugal. O Errio
Rgio tambm repassava ao banqueiro os soldos do cargo de capito-general no governo de
Angola (600$000 ris semestrais seguidos de alguns valores de acertos difceis de calcular) e
as mesadas como embaixador na corte de Madri (1:200$000 ris mensais) levados a crdito
da conta. Por a percebemos a grande vantagem financeira do segundo cargo em relao ao
primeiro, sem levar em conta o prestgio. Mas a elevao dos ordenados e o prestgio eram
acompanhados por grandes despesas. No ltimo trimestre de 1779, D. Francisco ainda devia a
Paulo Jorge 2:677$996 ris.
641
ESCRITURAO CONTBIL da conta de D. Francisco Inocncio com o banqueiro Paulo Jorge de agosto
de 1772 a setembro de 1780. ANTT/ACL, mao 93, doc. 64.
642
Ayres de S e Mello foi quem ocupou o cargo de Secretrio de Estado dos Negcios Estrangeiros antes de
Martinho de Mello e Castro.
286
pois tens por mais de dois anos a desculpa da falta de Casa em estado de receber, para no
dar de comer a ningum. O pai, criticando a si mesmo, dizia:
Como creio que do costume tomar o Hbito [de Cristo] antes de partir, te
mando o segundo que tenho, que aqui passou sempre por Brilhantes, e, se tu
guardares o segredo, passar tambm em Turim, assim poupars agora a
grande despesa de o fazeres de Diamantes. Manda-o limpar e p-lo em
estado de servir, porm, necessitas comprar um mais pequeno para todos os
dias e um sem pedras para o Luto.644
643
CARTA de D. Francisco Inocncio para seu filho, D. Rodrigo, Madri, 26 de agosto de 1778. ANTT/ACL,
mao 61, docs. 01 e 02.
644
Idem, ibidem.
645
SILVA. D. Rodrigo de Souza Coutinho, p. LII.
287
A educao dos filhos tambm foi um sorvedouro de recursos. Todos os filhos homens
de D. Francisco passaram pela Universidade de Coimbra e, da mesma forma, todos os filhos
de seu primognito, D. Rodrigo, estudaram naquela universidade. Alguns foram alunos
brilhantes. Entre os filhos de D. Rodrigo, por exemplo, notvel o esclarecimento de D. Joo
Carlos que criticava a estupidez do clero, a Faculdade de Direito que acabou cursando e a
Universidade de Coimbra como um todo, como notamos em seus escritos:
Para que se ajuze bem o que a fora da estupidez, contar-lhe-ei este fato:
perguntei a um lavrador daqui que extenso de terreno tinha. Respondeu-me
24 lguas quadradas. Perguntei-lhe como entendia essas lguas. Disse-me
que eram andando roda delas. Eu disse-lhe que isso no era assim, que o
modo de medir, matematicamente, qualquer superfcie era multiplicar a
646
ANTT/ACL, mao 96, docs. 01 a 07.
647
CARTA de Joo Carlos de Souza Coutinho para sua me, a condessa de Linhares, Coimbra, nove de
dezembro de 1815. ANTT/ACL, mao 68, doc. 03.
288
Essa ilustrao, somada aos luxos e outros gastos, custou caro famlia. Em 20 de
junho de 1812, D. Jos de Meneses, Principal de Souza, escrevia ao Prncipe Regente pedindo
mais uma vida nos bens da Coroa que possuiu o conde de Linhares recentemente falecido
para seu filho D. Victorio. Precisavam dessa graa real, pois a famlia devia cerca de 76.000
cruzados (30:400$000 ris) a diversos credores de Lisboa.649 Em 1832, a situao estava ainda
mais crtica: D. Victorio, envolvido em negcios com os ingleses, acumulava uma dvida de
85:337$532 ris (10.311 libras),650 que no pudemos apurar se inclua ou no os antigos
dbitos de Lisboa.
648
CARTA de Joo Carlos de Souza Coutinho para sua me, a condessa de Linhares, Vila Rica, 20 de julho de
1813. ANTT/ACL, mao 68, doc. 03.
649
CARTA de D. Jos Antnio de Meneses, Principal de Souza, para o Prncipe Regente, Lisboa para o Rio de
Janeiro, 20 de junho de 1812. ANTT/ACL, mao 72, doc. 08.
650
CARTA de D. Victorio de S. Coutinho para sua mulher D. Catarina, Ouro Preto, 19 de fevereiro de 1832.
ANTT/ACL, mao 97, doc. 09.
651
Entre diversas cartas que indicam animosidades entre os filhos de D. Rodrigo, pinamos um trecho no qual D.
Francisco, visconde de Macei, achaca D. Victorio, seu irmo mais velho: [...] Adeus, meu amigo. Deixa-te de
inimizades comigo e acredita que eu e minha mulher somos muito amigos de ti, da mana Condessa, dos
sobrinhos e do Alferes D. Jos, apesar de que todos nos tenham desprezado. Macei (grifos nossos).
CARTA de D. Francisco S. Coutinho, visconde de Macei, para D. Victorio de Souza Coutinho, 2 conde de
Linhares, Rio de Janeiro, 27 de julho de 1826. ANTT/ACL, mao 77, doc. 02.
289
Ora, j que estamos neste artigo, queira explicar-me porque motivo permites
a Jos Antnio [o administrador] de ser o dono das fazendas do Crasto e
Barra e de me roubar impunemente e como possvel que desaparecessem
as grandes plantaes de caf que deixei feitas e em vspera de produzirem.
As suas ltimas contas me parecem verdadeiros enigmas que no sei decifrar
e, por elas vejo que Jos Antnio longe de dever, como era razovel, se faz
ainda em cima credor. Alm de que, a escravatura que deixei em um
progressivo melhoramento acha-se de novo de todo arruinada, o que no
pode ser seno um horrvel descuido. Queira pois por-me nesta confidncia e
remeter-me um estado atual e efetivo destas fazendas e dado diretamente por
quem as rege, para que eu conhea o mal e lhe d algum remdio, caso
ainda o tenha. Estimaria saber tambm alguma coisa das minhas aes do
Banco e que particularmente pertencem ao Morgado.654
652
CARTA de D. Francisco S. Coutinho, marqus de Macei, para uma de suas tias em Lisboa, Rio de Janeiro,
28 de agosto de 1827. ANTT/ACL, mao 81.
653
CARTA de D. Victorio para sua me, a condessa de Linhares, Fazenda do Crasto no Ribeiro do Carmo, 19
de setembro de 1818. ANTT/ACL, mao 68, doc. 01.
654
CARTA de D. Victorio, 2 conde de Linhares, para seu irmo, marqus de Macei, Lisboa, 22 de agosto de
1827. ANTT/ACL, mao 77, doc. 259.
290
Uma das ideias de D. Rodrigo era aplicar parte do dinheiro em Minas, apesar de
muitas vezes tratar com desprezo as fazendas do Brasil. Em 1795, escreveu ao seu irmo,
cnego da S de Lisboa: de Minas nada me dizes, e tambm pouco espero.655 Repetia
tambm a mesma ladainha de seus avs e pais que titubeavam entre a explorao e a venda
das fazendas - mais provvel que no as tenham vendido por receio de nada receberem.
Estava fresca em sua memria a lembrana amarga dos calotes. Para receber, com prejuzo, o
valor da venda da fazenda do Registro foi obrigado a compor com o comprador. Foi vendida
em 1767 e a composio da dvida feita por volta de 1780. Para recuperar a fazenda do Crasto
de outro mal pagador, a famlia teve de enfrentar longa disputa judicial. Mesmo assim,
planejava, em 1786, pedir a S. M. a graa de poder importar para as fazendas dAmrica 300
ou 400 escravos, sem pagar direitos, para efeito de as levantar.656 Esse plano tambm no se
concretizou.
655
CARTA de D. Rodrigo para seu irmo D. Jos de Meneses, Turim, 29 de agosto de 1795. ANTT/ACL, mao
62, doc. 16. Suspeitamos que D. Rodrigo nunca tenha colocado os ps em Minas Gerais, mesmo tendo morado
quatro anos no Rio de Janeiro (1808 a 1812).
656
CARTA de D. Rodrigo para seu irmo D. Jos de Meneses, Turim, 1 de novembro de 1786. ANTT/ACL,
mao 62, doc. 6.
291
juzo, mas no posso deixar de conhecer que ele tem razo, pois duro ver
erigir em Mestres quem dificilmente mereceria o nome de Discpulo hbil.657
Da leitura dos planos para sanear as contas da famlia, fica claro que as fazendas de
Minas representavam 20% de toda a renda da Casa. Dizia D. Rodrigo a respeito das rendas:
eu avalio Arroios a 500$000 ris; Lagoalva a 1:400$000 ris; Trs-os-Montes a 1:300$000
ris; o Brasil a 800$000 ris, o que faz montar a Casa a 4:000$000 de ris (grifos nossos).658
As propriedades que os Souza Coutinho tinham em Portugal no eram desprezveis.
A Quinta de Arroios foi arrematada em praa pblica por D. Domingos Teixeira pelo
preo de 11.000 cruzados, em 1730. Situada nos arredores de Lisboa, foi nela que residiu toda
a famlia de D. Francisco Inocncio e de D. Rodrigo e era constituda por casas, quinta e
terras que D. Rodrigo avaliara entre 40 e 50.000 cruzados em 1788. Parte dessa quinta era
formada por terrenos arrendados S Patriarcal de Lisboa, desde os tempos de D. Domingos
at os de D. Rodrigo. Arrendamentos que eram feitos por at trs vidas ou geraes e
sucessivamente renovados. A famlia no tinha, ento, a propriedade plena de toda a quinta,
mas esses terrenos arrendados S estavam sob seu controle desde 1736. Como j dissemos
anteriormente, o irmo de D. Rodrigo, D. Jos de Meneses, Principal de Souza, era um dos
cnegos da S e, durante os anos de permanncia da corte no Rio de Janeiro, foi governador
do reino, o que facilitava esses arrendamentos. O arrendamento e a enfiteuse estavam entre as
principais e mais frequentes formas de uso e ocupao do solo em Portugal. Os valores desses
arrendamentos ou prazos , possivelmente pagos ao final de cada ano, no eram muito
elevados. De 1736 a 1791, a famlia vinha pagando S o foro de 316 ris, 2 galinhas e 3
frangos. Renovou-se o mesmo prazo a D. Rodrigo S. Coutinho pelo foro de 1$096 ris no
ano de 1791. Eram tambm arrendatrios, na Quinta de Arroios, de outro terreno pertencente
Baslica Patriarcal de Santa Maria por Proviso do Eminentssimo Senhor Cardeal
657
CARTA de D. Rodrigo para um de seus irmos [possivelmente o Mons. Jos de Meneses], Turim, 28 de
dezembro de 1785. ANTT/ACL, mao 62, doc. 6. Pelo texto da carta D. Rodrigo parece, discretamente, suspeitar
da capacidade de seu irmo D. Francisco Maurcio. Mas D. Rodrigo, to enaltecido por todos, no deixou de ser
discretamente criticado por um seu contemporneo. Saint-Hilaire, em nota de um de seus escritos, disse o
seguinte: D. Rodrigo, conde de Linhares, ministro do Rei D. Joo VI, por ocasio da chegada deste ao Brasil,
tinha grandes ideias, e uma imaginao ativa, mas no se ocupou bastante do conjunto; seus planos de mincias
foram excessivamente latos relativamente aos meios de execuo que estavam em seu poder; julgava, enfim,
facilmente, que bastava conceber um plano para poder realiz-lo. Um homem de esprito caracterizava o tipo de
instruo desse ministro dizendo que sua cabea continha as primeiras linhas de todos os artigos de uma
Enciclopdia. SAINT-HILAIRE. Viagem pelas provncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, p. 51.
292
658
PLANO que se prope para a administrao e regulamento da Casa, s/data, mais possivelmente de 1788,
pois est arquivado junto s cartas de D. Rodrigo de Souza Coutinho do mesmo ano. ANTT/ACL, mao 62, doc.
19.
659
ANTT/ACL, mao 111, docs. 03 e 08 a 16. MONTEIRO. O crepsculo dos Grandes, p. 219-227: As
imagens e os problemas (II): forais, enfiteuse e propriedade. Sugerimos consultar o autor para uma
compreenso bsica do significado dos arrendamentos e da enfiteuse em Portugal. Para um conhecimento mais
ampliado do tema, consultar MOTTA. Direito terra no Brasil, sobretudo a parte I. Do pagamento dos
arrendamentos com galinhas, no podemos inferir da valores irrisrios, pois, segundo Leila Algranti as aves
alcanavam elevados preos tanto em Portugal como na colnia no sculo XVIII. De acordo com Algranti,
enquanto a carne de boi, mais barata, custava em Lisboa 26 ris [a libra?], uma franga engordada custava 480
ris. ALGRANTI. Histria da vida privada no Brasil, v. 1, p. 128 e nota 96.
293
Ainda no nos foi possvel descobrir em que mos foram parar as fazendas de Minas
aps 1832. Nesse ano, o 2 conde de Linhares, D. Victorio, fazia sua ltima viagem a Minas,
quando ele estava profundamente endividado com banqueiros ingleses. As ltimas atividades
de minerao que se desenvolviam em Minas passavam para as mos dos ingleses. Esses,
como se sabe, foram os que passaram a lucrar com o ouro da regio, cuja explorao j
necessitava de grandes capitais e maior tecnologia, ainda com intenso uso da mo de obra
cativa.661 D. Victorio escrevia para sua mulher de Ouro Preto:
Espero em tudo que a nossa conta [com Mr. Young] se fazer (sic) em
32:312$865 e que no terei mais juros a pagar, pois, agora, tudo depende
dele e no de mim. E bastante prejuzo tenho nos cmbios, principalmente
pagando j as letras no vencidas. [...] Eu me ocupo da venda da [fazenda
da] Barra, que creio muito til, de restabelecer a outra [do Crasto], enquanto
se no oferece outro plano melhor. O Mr. Pralon tem feito maravilhas e creio
que algum resultado haver, este plano que um nico a seguir para no
perder tudo, poder ter boas vantagens, se o pas continuar sossegado.
(grifos nossos)662
660
ANTT/ACL, mao 113, docs. 10, 32 e 39. O doc. 10 um Plano para a cultura da Lagoalva proposto em
Novembro de 1802 pelo Exmo. e Revmo. Sr. Principal de Souza e dedicado Exma. Sra. D. Gabriela.
661
LIBBY. Transformao e trabalho em uma economia escravista, p. 257-344.
662
CARTA de D. Victorio de S. Coutinho para sua mulher D. Catarina, Ouro Preto para o Rio de Janeiro, 19 de
fevereiro de 1832. ANTT/ACL, mao 97, doc. 09.
294
663
LIBBY. Transformao e trabalho em uma economia Escravista, p. 257.
664
ANTT/ACL, mao 83, docs. 36, 37 e 47.
665
FAORO. Os donos do poder, p. 150
295
Ceclia Meirelles
Romanceiro da Inconfidncia
666
BLOCH. Introduo histria, p. 66.
297
Mas, para quem consulta o fundo de sesmarias do arquivo do IPHAN de So Joo del-
Rei, pouca ateno chamariam os nomes lanados para as partes envolvidas nesse processo
datado de 1778. No banco de dados, como embargado foi registrado o nome de Joo
Crisstomo da Fonseca Reis e como embargante, Gaspar Vaz da Cunha.667 Se o pesquisador
tomar o prprio processo, ver que a capa do documento estampa esses mesmos dados e
poderia iniciar a sua leitura, atrado pelo grande volume de 210 folhas manuscritas (420
pginas), ou, dependendo dos critrios e da metodologia de sua pesquisa, tambm poderia no
lhe dar importncia, deixando-o de lado.
O outro elemento que nos atraiu para a leitura desse documento foi o fato de, no todo
do fundo das sesmarias, somente trs autos apresentarem mapas feitos pelas partes em litgio
como instrumento de prova nos processos. Por fim, entre esses nicos mapas, no h dvida
de que um dos mapas traados para o caso que tratamos neste captulo em muito se distancia
dos demais quanto ao cuidado que se teve no seu desenho, de tal forma que os outros venham
a parecer meros esboos.
Surpresa maior foi, aps lidas as primeiras folhas manuscritas do processo, descobrir
que, encoberto pelo nome de Joo Crisstomo da Fonseca Reis, estava o do futuro
inconfidente coronel Incio Jos de Alvarenga Peixoto, ouvidor da Comarca do Rio das
Mortes entre 1776 e 1780. Na abertura dos autos o escrivo Almeida registrou o nome de Joo
Crisstomo como sesmeiro. Joo Crisstomo era somente o administrador de uma fazenda,
chamada de Boa Vista e pertencente a Alvarenga Peixoto, do qual ele era o procurador.
667
AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo da Fonseca Reis (sesmeiro embargado) e Gaspar Vaz da Cunha e
outros (embargantes), 1778. Museu Regional de So Joo del-Rei IBRAM. Daqui para adiante AUTOS de
sesmaria de Joo Crisstomo.
298
Veremos mais adiante por que o seu nome foi registrado como sesmeiro, aps algumas
informaes sobre a regio em que se localizava a sesmaria. Tratava-se de um processo de
medio e demarcao de sesmaria no qual havia tambm um conflito entre o sesmeiro e
alguns moradores de So Gonalo da Campanha do Rio Verde.
Segundo Alfredo Vallado, os sertes dos rios Verde e Sapuca j haviam sido
percorridos por uma bandeira fluminense encabeada por Martin de S, em 1597, o qual,
partindo de Parati, atravessou a serra do Mar, o rio Paraba e a serra da Mantiqueira pela
garganta do Buquira. A partir da, viajaram os bandeirantes por uma extensa regio de campos
668
VALLADO. Campanha da Princesa, p. 77-86, 98-105.
669
ANASTASIA. A geografia do crime, p. 67-68.
300
altos, drenada pelos rios Verde e Sapuca e seus afluentes, donde vem o nome Campanha do
rio Verde.670
O Caminho Velho continuou sendo frequentado. A regio, contudo, servia mais como
passagem, pois o destino cobiado por todos eram as faustosas minas distantes dali cerca de
trinta ou sessenta lguas no rio das Mortes, ribeiro do Carmo e rio das Velhas. De acordo
com Vallado, havia notcia de descoberta de ouro no alto rio Verde e Sapuca, mas devido ao
fato de ser ouro de lavagem e no to abundante no lhe foi dada muita importncia.672 O
memorialista acredita que o desprezo pelas minas mais escassas da regio no impedira um
certo afluxo de pessoas interessadas, sobretudo, pela minerao clandestina e pelo extravio do
ouro. O silncio serviria para no despertar a ateno das autoridades, burlando, assim, o
fisco. Achamos pouco provvel que as autoridades desconhecessem essas minas, pois estavam
nas proximidades de um caminho ainda muito frequentado e elas no deveriam ser muito
promissoras nas primeiras dcadas do XVIII.
670
VALLADO. Campanha da Princesa, p. 39-50. O autor esclarece, contudo, quanto ao nome da regio, que a
palavra campanha, no sculo XVIII, aplicava-se a qualquer terreno plano e inexplorado, desconhecido,
equivalia a serto (p. 52). No entanto, Rafael Bluteau (1712-1721) e Moraes (1813) no do esse significado
palavra campanha, o que nos faz crer que a toponmia se deve mesmo existncia de extensos campos.
671
Idem, ibidem, p. 42.
672
Idem, ibidem, p. 46-47.
301
possvel que com o desfecho da Guerra dos Emboabas (1709-1710) muitos paulistas
expulsos das principais reas mineradoras, na fuga ou retorno para So Paulo, tenham se
fixado na regio da Campanha continuando ali suas atividades, tanto de minerao quanto de
agricultura.
673
Idem, ibidem, p. 31-39.
674
INQUIRIO de testemunhas dos embargantes Gaspar Vaz da Cunha e outros e do embargado, o doutor
Incio Jos de Alvarenga. AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fl. 140 a 184 verso.
675
PETIO do doutor Incio Jos de Alvarenga ao governador D. Rodrigo Jos de Meneses. AUTOS de
sesmaria de Joo Crisstomo, fl. 20 a 21 verso.
676
ANASTASIA. A geografia do crime, p. 60. Sugerimos a leitura do captulo Terra de Ningum, p. 53-85.
302
sua jurisdio. A autora identificou Jos Rodrigues Braga entre os poderosos desse serto,
patrono de facinorosos.677
677
ANASTASIA. A geografia do crime, p. 63, 54.
678
INQUIRIO da testemunha Antnio Martins Leme, da parte dos embargantes Gaspar Vaz da Cunha e
outros. AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fl. 158.
679
CARTAS de sesmaria de Jos Rodrigues Braga no Caminho Velho das Minas, 15 de novembro de 1717, no
Rio Verde, 13 de fevereiro de 1719 e 10 de novembro de 1727 e no Caminho Velho, paragem do rio Verde, 17
de junho de 1729. APM-SC 12, fls. 05 e 13 verso, SC 28, fl. 173 e SC 31, fl. 152, respectivamente. O nome de
Jos Rodrigues Braga aparece, s vezes, referido nos autos como Jos Rodrigues Barbosa, o Braguinha, mas
trata-se da mesma pessoa. Braga talvez se refira sua origem em Portugal.
680
INQUIRIO da testemunha, o sargento-mor Brs Alves Antunes, da parte do embargado Incio Jos de
Alvarenga. AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fl. 183.
303
atividade a minerao, sendo a agricultura mais para o sustento da primeira, embora ele
tambm auferisse ganhos com a segunda. J seus opositores, sem se duvidar de que tambm
desejavam usufruir das terras e guas minerais da Boa Vista, com algum ou nenhum escravo,
possvel que viviam mais da agricultura. Vejamos como comearam os enfrentamentos entre
o ouvidor e os ocupantes e confrontantes da Boa Vista.
Certifico que vendo os ris, desde o primeiro que acho desta freguesia da
Campanha at o ltimo, achei no primeiro, que de 1743, ter-se desobrigado
nesta Freguesia Manoel Vieira mbar e sua mulher Beatriz Gomes e at o de
1748 no achei nele nem a Thom de Gouveia nem a Loureno Jos Correia.
No de 1749, porm, achei a Thom de Gouveia e no de 1763 para c. E a
Loureno Jos no de 1767 para c. Passo o referido na verdade, o que juro.
(grifos do original)682
681
O sobrenome mbar aparece muitas vezes nos autos escrito como Ambre.
682
CERTIDO de desobriga da quaresma, freguesia de Campanha do Rio Verde, 26 de dezembro de 1781.
AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fl. 116.
304
Na data desse testemunho j havia trs anos que a sesmaria fora vendida. Esses
depoimentos indicam que os herdeiros de Mesquita ficavam muito tempo ausentes e distantes
das suas fazendas. Tom de Gouveia parecia ter pouco interesse pelas terras que lhe vieram
pelo casamento com a viva de Mesquita, conhecedor que era dos problemas com posseiros,
alguns deles gente poderosa. Isso transparece na declarao feita por ele no mesmo
testemunho: Joo Francisco Grillo mediu a sua sesmaria em que compreendeu muita parte
das terras da sesmaria que hoje do embargado e escreveu a ele, testemunha, que se achava
no Rio de Janeiro. Continuou Tom de Gouveia declarando que alguns destes que
683
INQUIRIO da testemunha, o guarda-mor Tom de Gouveia S Queiroga, da parte do embargado Incio
Jos de Alvarenga, So Gonalo da Campanha, 15 de junho de 1782. AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo,
fls. 179-183.
684
Idem, ibidem.
305
plantaram em terras da sesmaria que hoje do embargado, foi com licena dele, testemunha,
como foi Bento Correia de Mello e outros de que se no lembra.685
Esse era o contexto no qual se inseria a sesmaria da fazenda da Boa Vista que, durante
mais de trinta anos, pertenceu a proprietrios que muitas vezes a deixavam nas mos de
administradores e procuradores, como foram Caetano Jos de Gouveia, sobrinho de Tom de
Gouveia e o capito Bento Correia de Mello. Loureno Jos Correia de Mesquita, filho do
primeiro sesmeiro, que a vendeu em 1778, no apareceu em momento algum dos autos para
dar qualquer tipo de depoimento, o que nos pareceu muito estranho. Quem comprou a
sesmaria da Boa Vista comprou tambm um n difcil de desatar. Comprou uma fazenda j
ocupada por diversos posseiros com uma longa histria de conflitos. Vejamos como se deu
todo esse processo.
685
Idem, ibidem.
686
VALLADO. Campanha da Princesa, p. 63-65.
687
CARTA de sesmaria de Joo Francisco Grillo, 27 de janeiro de 1753. APM-SC 94, fl. 167 verso; CARTA de
sesmaria de Bento Correia de Mello, 12 de setembro de 1752. APM-SC 94, fl. 157 verso.
688
ANASTASIA. Vassalos rebeldes, p. 113-122. Rebeldes do rio Sapuca: motim de Campanha do Rio Verde.
689
REQUERIMENTO do capito Heitor S de Sottomaior, Joo Francisco Grillo e de outros moradores da vila
de So Joo del-Rei pedindo proviso para que qualquer desembargador da Relao do Rio de Janeiro proceda
contra aqueles que tentarem espoli-los da posse da sua terra, 13 de abril de 1753. AHU Projeto Resgate MG,
caixa 62, doc. 16.
306
ao juzo das sesmarias como o proprietrio da fazenda. No dia 20 de julho de 1778, o escrivo
Manoel de Jesus Pereira de Almeida e o doutor Joaquim da Silva Tavares, juiz das sesmarias,
davam incio aos procedimentos legais da remedio solicitada. O doutor Joaquim da Silva
Tavares, encarregado da remedio, estava no final do seu segundo trinio no cargo de juiz
das sesmarias. Em 20 de agosto de 1785, o senado da cmara de So Joo del-Rei havia
proposto, em lista trplice enviada ao governador, sua reconduo ao cargo por mais um
perodo.690
690
REGISTRO de uma nominata de juiz das sesmarias para o Ilmo. e Exmo. Sr. General em que se lhe
participava reconduzir a cmara desta vila ao doutor Joaquim da Silva Tavares no mesmo cargo, para ele o
prover. Papis da cmara PAP 150 (1784-1785), fl. 89.
691
CARTA de sesmaria do capito Francisco Xavier Correia de Mesquita, 18 de fevereiro de 1741. APM-SC 72,
fl. 182 verso.
692
AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fl. 02.
307
FIGURA 11 Carta de confirmao da sesmaria do capito Francisco Xavier Correia de Mesquita na paragem
de So Gonalo o Velho (1741).
Fonte: Museu Regional do IBRAM - So Joo del-Rei, Sesmarias.
308
Ento, quem seria Joo Crisstomo da Fonseca Reis? Rodrigues Lapa nos informa que
era o filho mais velho do defunto alferes Dionsio da Fonseca Reis e de D. Maria do
Nascimento.698 Ocupava o cargo de juiz ordinrio do julgado da Campanha do Rio Verde no
693
AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fl. 02.
694
AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fl. 02 verso.
695
AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fls. 26 a 27 verso.
696
AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fls. 27 verso a 28.
697
TRASLADO da escritura de doao e cesso que faz Sebastio de Alvarenga Braga ao seu sobrinho, o doutor
Incio de Alvarenga. AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fls. 37 a 39 verso. Quanto questo dos artifcios
usados por Alvarenga Peixoto na compra dessa sesmaria, o historiador Tarqunio B. J. Oliveira, possivelmente
por desconhecer os autos que estamos analisando, tambm equivocou-se: Quanto proibio de adquirir
propriedades, lanou mo de um subterfgio: compeliu Manoel Teixeira Ribeiro, seu jurisdicionado em So
Gonalo do Sapuca, a vender-lhe a fazenda Boa Vista e respectivas lavras, em julho de 1777. Para tal fim, usou
como preposto Loureno Jos Correia de Mesquita e simulou, atravs deste, a doao dos imveis por um tio
residente em Santos, Sebastio de Alvarenga Braga, em dezembro de 1778. OLIVEIRA. Um banqueiro na
Inconfidncia, p. 51-52. Andr Figueiredo Rodrigues, possivelmente, baseando-se nesse historiador, tambm
acompanha o equvoco. RODRIGUES. Estudo econmico da Conjurao Mineira, p. 79-80.
698
LAPA. Vida e obra de Alvarenga Peixoto, p. 223.
309
ano de 1782. Em 13 de outubro de 1778, Joo Crisstomo, casado com D. Maria Rodrigues
do Nascimento, batizou uma filha e um dos padrinhos foi Alvarenga Peixoto.699 Andr
Figueiredo Rodrigues parece equivocar-se ao afirmar que Joo Crisstomo era irmo do
coronel Joaquim Silvrio dos Reis, delator do movimento da Inconfidncia Mineira de
1789.700
Mulher de fibra, com a morte do marido, D. Maria do Nascimento ficou com dez
filhos, por cuja tutela foi obrigada a recorrer proteo da Coroa em 1768 para a qual obteve
proviso rgia. Em 1775, recorreu novamente Coroa para a manuteno da tutela de seus
rfos. No era gratuita a sua luta, pois ela prpria declarou que para aumentar os bens dos
ditos seus filhos empreendeu, entre outros servios de minerar, um da gua chamada Santa
Rita em que tem continuado com cento e tantos escravos.703 A maioria dos escravos era
alugada e, temendo que os bens do inventrio fossem repartidos pelos credores do falecido
marido, ela pedia para continuar na administrao desses bens e queria impedir que o juiz de
699
VALLADO. Campanha da Princesa, p. 111-112. Vallado nos d outras informaes sobre Joo
Crisstomo, mas no informa de onde as tirou: Estudou latim com o padre-mestre Francisco Jos de Sampaio;
no era, porm, nas letras que tinha ele de primar. Entregando-se bem cedo ao estudo da msica com o padre-
mestre Francisco Justiniano, que esteve muito tempo aperfeioando-se nesta arte na Itlia, logo mostrou Joo
Crisstomo que o discpulo tinha que exceder o mestre. Insigne pianista, perito na rabeca, foi em vrias
composies musicais que seu gnio se revelou. Essas composies so ainda hoje devidamente apreciadas, e os
entendidos colocam-nas a par de muitas de Bellini., p. 73.
700
RODRIGUES. Estudo econmico da Conjurao Mineira, p. 161-162. Mrcio Jardim, uma boa fonte factual
sobre a inconfidncia mineira, ao se referir ao coronel Joaquim Silvrio dos Reis, menciona dois irmos seus,
sendo que nenhum deles tem o nome em questo. JARDIM. A Inconfidncia Mineira, p. 155.
701
CARTA de sesmaria de D. Maria do Nascimento, 18 de outubro de 1769. APM-SC 156, fl. 231.
702
AUTOS de sesmaria de D. Maria do Nascimento, 1770. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 30.
REQUERIMENTO de D. Maria do Nascimento pedindo confirmao de meia lgua de terra que possui na
paragem de So Gonalo, na Comarca do Rio das Mortes, 12 de maio de 1773. AHU Projeto Resgate MG,
caixa 104, doc. 57.
703
REQUERIMENTO de D. Maria do Nascimento, moradora na Comarca do Rio das Mortes, pedindo para que
se lhe permita continuar na administrao dos bens dos seus filhos, sete de janeiro de 1775. AHU Projeto
Resgate MG, caixa 108, doc. 1.
310
rfos nomeasse outro tutor e abrisse novo inventrio. Do seu requerimento extramos uma
pgina importante para entender a luta das mulheres na colnia para serem respeitadas e
poderem administrar a sua prpria casa. Dizia D. Maria do Nascimento que, junto com seus
dez filhos:
704
Idem, ibidem.
705
Pelas Ordenaes do Reino, Livro 4, Ttulo 15: Os Corregedores das Comarcas e Ouvidores [...] durando o
tempo de seus ofcios, no podero fazer casas de novo, nem comprar, nem aforar, nem escaimbar, nem arrendar
bens alguns de raiz, nem rendas algumas, nem podero receber doao de nenhuns bens mveis, ou de raiz, que
lhe seja feita por alguma pessoa de sua jurisdio; salvo de for de seus ascendentes, ou descendentes, ou
transversais dentro do segundo grau, inclusive, contado segundo Direito Cannico. CDIGO FILIPINO, vol. 3.
706
LAPA. Vida e obra de Alvarenga Peixoto, p. XII. O mesmo autor tambm trata dos conflitos (p. 219-234).
Andr Figueiredo Rodrigues, ao analisar os bens sequestrados aos inconfidentes da Comarca do Rio das Mortes,
percebeu a simulao feita por Alvarenga Peixoto para comprar a sesmaria da Boa Vista atravs da doao do
tio. Nas suas pesquisas no Arquivo do IPHAN de So Joo del-Rei no localizou o processo que estamos
tratando, possivelmente pelos motivos que apresentamos no princpio do captulo, orientando suas afirmaes
atravs da obra de Rodrigues Lapa. No h citao desse processo nas fontes relacionadas na sua tese.
RODRIGUES. Estudo econmico da Conjurao Mineira, p. 80.
311
Um segundo indcio o fato de que foram includas duas peties nos autos para a
retirada de documentos originais, ficando em seus lugares os respectivos traslados. Uma das
peties era de Sebastio de Alvarenga Braga, tio do ouvidor Alvarenga Peixoto, requerendo
que se lhe devolvesse a carta Rgia de confirmao de S. Majestade da mesma sesmaria.707
Em outro momento, era o prprio Joo Crisstomo a pedir que aos autos de remedio de
sesmaria que comprou a Loureno Jos Correia de Mesquita juntava uma escritura de compra
e venda da mesma e de outros bens a qual quer se lhe entregue fazendo o traslado nos
autos.708 O juiz Joaquim da Silva Tavares atendeu a ambos substituindo os documentos
originais, - se de fato existiram , pelos traslados. Mais adiante, outros documentos foram
trasladados dos livros do cartrio da comarca para os autos. Tratava-se dos primeiros autos de
medio da sesmaria do capito Francisco Xavier Correia de Mesquita, com uma cpia da
carta de sesmaria e dos autos de posse. Essa prtica constante de retirada de documentos
originais dos autos , no mnimo, suspeita. A ligao que havia entre os juzes e escrives do
juzo das sesmarias com os ouvidores Alvarenga Peixoto e Lus Ferreira de Arajo Azevedo,
seu sucessor e amigo, certamente facilitava o troca-troca de papis, comprometendo a
fidelidade dos autos. Lus Manoel de Sousa Almeida, por exemplo, ocupava ao mesmo tempo
os cargos de escrivo das sesmarias e de tabelio da vila de So Joo del-Rei, em 1778.
Um terceiro indcio seria a declarao do alcaide Jos Ribeiro de Coura, de ter citado
cerca de vinte pessoas como confrontantes e outros como ocupantes da sesmaria em 20 de
julho de 1778.709 Essa citao pode no ter ocorrido de fato. O primeiro sinal disso que
nenhum dos confrontantes ou ocupantes da sesmaria citados e eles eram mais de vinte,
segundo a citao , compareceu para defender seus direitos, tendo sido o auto de posse,
707
AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fl. 04. Traslado da carta de sesmaria: fls. 4 a 9 verso. A petio no
est datada, mas o traslado foi feito em 24 de novembro de 1778.
708
AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fl. 10. Traslado da escritura: fls. 10 a 11 verso. A petio no est
datada, mas o traslado foi feito em 17 de agosto de 1778. Esta data por si s prova a incoerncia na numerao
do processo, uma vez que este ltimo traslado mais antigo (17 de agosto) do que o da carta de sesmaria (24 de
novembro), mas foi inserido nos autos depois do mais recente.
709
AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fl. 03. Dizemos cerca de vinte pessoas, pois o registro da citao
feito pelo alcaide nos autos tem letra quase ilegvel e o documento apresenta diversos buracos, mas foi possvel
transcrever e contar, no mnimo, vinte nomes.
312
lavrado em 12 de agosto, testemunhado e assinado por duas pessoas que nem sequer foram
mencionadas na citao do alcaide: o tenente Lus Antnio da Silva e Jos Leme. Este era um
antigo morador do arraial de So Gonalo710 e aquele, amigo e credor de Alvarenga Peixoto711
e morador na distante vila de So Joo del-Rei. Outro sinal que as datas do mandado do juiz
determinando que fossem citados os confrontantes e ocupantes da sesmaria e a data do
documento de citao so as mesmas: 20 de julho de 1778. Seria difcil o alcaide Jos Ribeiro
de Coura percorrer, a p ou a cavalo, os limites e o interior de uma grande sesmaria de trs
lguas de comprido por uma de largura no mesmo dia no qual recebeu o mandado.
O fato de todos os ritos dos autos de remedio e demarcao terem transcorridos sem
a oposio de ningum, como declarou o juiz das sesmarias em sua sentena de posse,
constitui um quarto indcio. Isso era pouco provvel se os ritos tivessem mesmo sido feitos
percorrendo a sesmaria na qual moravam muitos posseiros e com a qual confrontavam
diversos proprietrios. De acordo com o juiz, citados os confrontantes, e como por parte
destes no houve oposio alguma, julgo as terras por demarcadas e a remedio por finda e
por sentena que mando se cumpra como nela se contm.712 No final da mesma sentena,
talvez j um pouco tarde, ele ainda mandou citar ao capito Joo Rodrigues Moreira e a
Manoel [Marcondes?] Ribeiro, os quais no se manifestaram nos autos. No dia 12 de agosto
de 1778, foi lavrado o auto de posse sem oposio de pessoa alguma.
Outro forte indcio, o quinto, a constatao de que a partir da folha 30 dos autos, h
srias suspeitas de que cerca de 10 folhas foram retiradas do processo. H rasuras na
numerao em muitas folhas e dois nmeros na mesma folha, sendo um deles riscado.
Quando em alguma parte dos autos se faz referncia a documento de folha anterior,
percebemos que tal documento tem numerao diferente (um intervalo de dez folhas). Isso
percebemos claramente no auto de posse dado em 20 de setembro de 1780, aps a segunda
remedio. Na sentena, o juiz se referiu ao requerimento de Gaspar Vaz da Cunha se
710
LAPA. Vida e obra de Alvarenga Peixoto, p. 225. provvel que Jos Leme seja o mesmo homem branco
de mais de sessenta anos que testemunhou na diligncia que D. Rodrigo Jos de Meneses mandou fazer no final
do ano de 1780, quando interferiu na disputa que Alvarenga Peixoto movia contra seus vizinhos na sesmaria da
fazenda Boa Vista.
711
LAPA. Vida e obra de Alvarenga Peixoto, p. XLII. Segundo Lapa, Lus Antnio da Silva era, em So Joo
del-Rei, tesoureiro dos ausentes e, que por vezes, o acompanhava [a Alvarenga] em suas viagens ao sul [da
capitania].
712
AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fl. 17 e verso.
313
mandou suspender [s] folhas 72 verso.713 Ao buscar nos autos, notamos que tal
requerimento estava na folha 62.
Por fim, no h nenhum registro nos autos de que o sesmeiro Joo Crisstomo
tivesse pago as custas processuais determinadas na sentena dada pelo juiz para o auto de
posse, em 12 de agosto de 1778, quando da primeira remedio.
Em 16 de agosto de 1780, passados dois anos e seis dias da posse dada a Joo
Crisstomo, o ouvidor Incio Jos de Alvarenga Peixoto entra com uma petio nos autos.
Grande conhecedor da legislao portuguesa da poca, o ouvidor esperou o prazo mais
conveniente para interferir no processo e, nesse intervalo de dois anos, a sesmaria j havia
passado das mos do sesmeiro Joo Crisstomo para as de Sebastio de Alvarenga Braga e
deste para seu sobrinho Alvarenga Peixoto.714 At a poca dessa petio 16 de agosto de
1780 os autos de remedio sugerem uma pea produzida em cartrio.
713
SENTENA do juiz das sesmarias Nicolau Barbosa Teixeira Coutinho, Boa Vista de So Gonalo da
Campanha, 20 de setembro de 1780. AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fl. 64 a 65.
714
MOTTA. Nas fronteiras do poder, p. 221-222. Mrcia Motta demonstrou, com um exemplo envolvendo o
senador Jos Sarney, do Maranho, como uma propriedade mudando, inclusive, de tamanho pode ser
apropriada por algum que no deseja ter o nome exposto, dadas as irregularidades do processo, as quais
poderiam trazer problemas para um ocupante de cargo pblico to elevado. Mutatis mutandis, foi o que fez o
ouvidor doutor Incio Jos de Alvarenga duzentos anos antes do senador Jos Sarney.
715
ANTONIL Cultura e opulncia do Brasil, p. 75.
716
VALLADO. Campanha da Princesa, p. 133-134.
314
terras no sul de Minas.717 Foram tambm esses laos de parentesco e, bvio, as minas de
ouro que levaram Alvarenga para So Gonalo da Campanha. Andr Figueiredo Rodrigues
afirma que foi Matias Gonalves Moinhos, pai do seu concunhado, quem sugeriu a Alvarenga
Peixoto a compra de terras no sul de Minas.718
Julgamos necessrio tecer algumas consideraes sobre a vida do doutor Incio Jos
de Alvarenga Peixoto. Essas informaes biogrficas so indispensveis para a compreenso
das atitudes que ele tomou contra os moradores de So Gonalo que viviam dentro ou nas
confrontaes da sesmaria da Boa Vista.
717
CARTAS das sesmarias do capito Matias Gonalves Moinhos, 16 de abril de 1751 e sete de maio de 1770,
ambas no serto do Cervo, freguesia de Carrancas. APM-SC 94, fl. 83 verso e SC 172, fl. 29 verso.
718
RODRIGUES. Estudo econmico da Conjurao Mineira, p. 123.
719
LAPA. Vida e obra de Alvarenga Peixoto, p. IX-XVII. OLIVEIRA. Um banqueiro na Inconfidncia, p. 51-
60. Quanto data de nascimento de Alvarenga e ao local onde teria feito seus primeiros estudos h controvrsias
entre diversos autores as quais no temos inteno de solucionar aqui. Rodrigues quem afirma ter localizado o
documento de batismo de Alvarenga determinando a data de 1 de fevereiro de 1742 e Braga como o local de
estudos anteriores universidade, alm de trazer maiores informaes biogrficas sobre seus pais.
RODRIGUES. Estudo econmico da Conjurao Mineira, p. 11-13.
315
19 de agosto 1776 nele permanecendo at a data de dois de abril de 1780.720 Rodrigues Lapa
afirma que Alvarenga escolheu a Comarca do Rio das Mortes, pois tinha interesses no sul de
Minas.721 No nosso entendimento, Lapa enganou-se, pois, o interesse pelas terras de
agricultura e lavras de ouro na Campanha foi posterior chegada do ouvidor comarca. Diz o
bigrafo, cujos escritos nos servem como fontes, que quer-nos parecer que em 1762 ou 1763
Alvarenga estaria em Minas, talvez por motivo da compra e doao da lavra da Boa Vista, por
seu tio Sebastio, e travaria nessa altura o primeiro contato com o doutor Cludio Manoel da
Costa.722 Equivocou-se novamente Lapa, possivelmente por desconhecer os autos de
sesmaria da fazenda da Boa Vista. Como vimos, as articulaes para a compra da sesmaria s
aconteceram a partir de 1778, sendo Joo Crisstomo e o tio Sebastio Braga usados somente
como instrumento da negociata.
720
CERTIDO do senado da cmara da vila de So Joo del-Rei, sete de novembro de 1782. AUTOS de
sesmaria de Joo Crisstomo, fl. 197 verso. Estando correta essa certido, Andr Figueiredo Rodrigues
equivocou-se com a data final do mandato, quando assinalou o dia 22 de abril. RODRIGUES. Estudo econmico
da Conjurao Mineira, p. 275.
721
LAPA. Vida e obra de Alvarenga Peixoto, p. XXVII-XXVIII. O cargo de ouvidor de comarca nas capitanias
foi criado em 1534 e sua nomeao dava-se por proviso real. Algumas das atribuies desse cargo podem ser
consultadas em SALGADO. Fiscais e meirinhos, p. 357-358. Para se ter uma informao mais detalhada sobre
essa autoridade judicial e administrativa do Estado portugus, sugerimos consultar WEHLING; WEHLING.
Direito e justia no Brasil colonial, p. 71-84. Segundo os historiadores, a justia profissional era exercida no
Brasil pelos juzes de fora, pelos ouvidores e pelos tribunais da Relao. Era de competncia dos ouvidores, de
acordo com a legislao, receber aes novas e recursos de decises judiciais; supervisionar a aplicao da
justia, tanto cvel quanto criminal, na comarca; propor a nomeao de tabelies; promover a eleio para a
Cmara Municipal e receber as queixas de qualquer sdito real. Tal como os juzes de fora, estavam sujeitos
superviso dos governadores e vice-reis e agiriam como pea fundamental do mecanismo absolutista com a
finalidade de acentuar o carter justiceiro do rei e de quebrar resistncias locais. Ainda, segundo Wehling,
dispunha o ouvidor, assim, de considervel parcela de poder, como agente do Estado. A preocupao em captar
as simpatias populares e minar os poderes concorrentes autoridade real, apresentando a justia do rei como
anteparo aos poderosos, fazia os magistrados receberem a recomendao de, em suas correies, no oprimirem
a populao nem as cmaras com requisies de material ou servios alm do necessrio. Os magistrados no
deveriam extrapolar de seu poder e os requisitados para auxiliar nas correies deveriam ser remunerados em seu
justo preo. WEHLING; WEHLING. Direito e justia no Brasil colonial, p. 77, 78 e 81.
722
LAPA. Vida e obra de Alvarenga Peixoto, p. XIV.
316
Essa situao, certamente aliada a insatisfaes de diversa natureza que outras pessoas
da vila alimentavam contra Alvarenga Peixoto, o seu sogro doutor Jos da Silveira e Sousa e o
prprio ouvidor, Lus Ferreira de Arajo Azevedo, sucessor de Alvarenga na ouvidoria,
suscitou uma acrrima disputa com o alferes Caetano Jos de Almeida e com os seus primos
(os irmos capito Manoel da Costa Vilas Boas e Gama, doutor Antnio Caetano de Almeida
Vilas Boas vigrio colado da freguesia de Nossa Senhora do Pilar da mesma vila e doutor
Jos Baslio da Gama). Os dois ltimos eram contemporneos e amigos de Alvarenga em
Coimbra, mas devido a esses fatos a amizade descambou para uma contenda de baixo nvel
que se iniciou em 1777 e s terminou em 1783. Depois de um processo conturbado o ouvidor
Arajo Azevedo baniu o padre Vilas Boas da comarca, obrigando o clrigo a recorrer
Relao do Rio Janeiro.726 A atitude do ouvidor e dos demais envolvidos Alvarenga e o seu
sogro foi considerada to arbitrria que os juzes da Relao reabilitaram o padre Vilas Boas
e passaram nos autores da contenda uma forte repreenso:
723
FIGUEIREDO. Barrocas famlias. A pesquisa do professor Luciano Figueiredo um referencial
indispensvel para se compreender as estratgias usadas pela Igreja Catlica, ps Conclio de Trento, e pelo
Estado portugus, para disciplinar a vida familiar dos colonos na Amrica portuguesa.
724
WEHLING; WEHLING. Direito e justia no Brasil colonial, p. 75.
725
JARDIM. A Inconfidncia Mineira, p. 137.
726
JARDIM. A Inconfidncia Mineira, p. 235-274.
727
JARDIM. A Inconfidncia Mineira, p. 274.
317
Se pudssemos dar crdito ao contido numa petio enviada rainha atribuda aos
moradores da vila de So Joo del-Rei, mas possivelmente de autoria de Alvarenga Peixoto ,
contra o vigrio Vilas Boas, na opinio desses moradores o motivo principal das desavenas
foi a rematao que o dito vigrio fez da fazenda da Fortaleza, pertencente aos rfos de
Antnio Leite Coimbra, fingindo carta e consentimento do tutor Incio Xavier de Toledo, o
qual vindo logo queixar-se ao doutor ouvidor [Alvarenga Peixoto], como provedor dos rfos,
este fez anular a dita rematao.728 A fazenda da Fortaleza, em 1796-1798, seria palco das
desavenas do alferes Manoel Freire (genro) e de D. Antnia Francisca de Paula (filha)
herdeiros do capito Antnio Leite Coimbra , com Manoel e Jos Gonalves Lopes (pai e
filho), das quais tratamos no terceiro captulo.
No calor dessa refrega, o vigrio Vilas Boas foi acusado de diversos delitos e
relaxamentos de conduta, com um procedimento to escandaloso que at tem sido infamado
com as suas prprias comadres. Acusaram-no tambm do trato ilcito que geralmente se diz
ter com algumas primas suas em 2 grau de consanguinidade que padecem h muitos anos a
infmia de desonestas. Chegaram a dizer que o dito vigrio tem sido visto dentro do banho
com algumas das primeiras primas, esfregando-o e lavando-o.729 Acusaes verdadeiras ou
no, elas faziam parte do cotidiano da capitania. Luciano Figueiredo afirma que a extenso
dessas prticas colheria membros da prpria Igreja envolvidos na difcil tarefa de equilibrar os
negcios da paixo e da religio. O historiador acentua ainda que na colnia,
particularmente em Minas Gerais, parecia difcil falar de um triunfo do celibato eclesistico.
Desrespeito ao estado de clrigo, violncias e escndalos seriam ingredientes comuns s
relaes que alguns padres estabeleceram.730
Boa parte dessa querela entre Alvarenga Peixoto e o padre Vilas Boas pode ser lida em
diversos documentos reproduzidos por Rodrigues Lapa. Para ns o breve relato dessa
contenda serve apenas para esclarecer a maneira como Alvarenga Peixoto costumava conduzir
as suas questes na comarca, como ouvidor ou amigo do ouvidor Lus Azevedo que o sucedeu
no cargo. Mostra-nos ainda o quanto o ouvidor Lus Azevedo estava ligado a ele. Ocorre que
728
PETIO dos moradores da vila de So Joo del-Rei rainha, 1778. In: LAPA. Vida e obra de Alvarenga
Peixoto, p. 189-198.
729
Idem, ibidem, p. 197.
730
FIGUEIREDO. Barrocas famlias, p. 106.
318
O arremate em praa das fazendas da Paraopeba, na Comarca de Vila Rica, foi mais
um captulo dos complicados negcios do ouvidor na Comarca do Rio das Mortes. As
fazendas Ponte Alta e Bom Retiro do contratador coronel Joo de Sousa Lisboa, foram
leiloadas aps o seu falecimento para se pagar as dvidas que o falecido tinha com a Fazenda
Real.732 Como Alvarenga no desejava aparecer como comprador das fazendas, por ocupar o
cargo de ouvidor, o fez em nome do doutor Jos da Silveira e Sousa, seu sogro, por 35.000
cruzados (14:000$000 ris). Queixou-se Francisco Jos e Silva Guimares, que tambm deu
um lance de 42.000 cruzados (16:800$000 ris), mas no foram aceitos os seus fiadores, tendo
sido as fazendas entregues ao comprador de Alvarenga por menos 7.000 cruzados. Guimares
denunciou, em requerimentos rainha, a pouca abonao dos fiadores daquele arrematante,
pois ele por si no paga a ningum. Esses mesmos requerimentos de Guimares vm
esclarecer que as tais fazendas s podiam alcanar os valores dos lances porque nelas existiam
731
CARTAS de sesmaria do capito Manoel da Costa Vilas Boas e Gama, cinco de fevereiro de 1793. APM-SC
256, fl. 177; Antnio Caetano de Almeida Vilas Boas, 14 de junho de 1798. APM-SC 285, fl. 33 verso. AUTO
de sesmaria do reverendo doutor Antnio Caetano Vilas Boas, 1782. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 10. Esses
autos de medio indicam que o vigrio havia recebido a cesso de duas sesmarias no novo descoberto do serto
da Mantiqueira, fazendo-nos cogitar a ideia de que ele era proprietrio de duas ou mais sesmarias na Comarca do
Rio das Mortes. Com o mesmo sobrenome Vilas Boas h mais de uma dzia de sesmeiros na Comarca do Rio
das Mortes, os quais no podemos precisar se eram da mesma famlia.
732
REQUERIMENTO do contratador Joo de Sousa Lisboa solicitando a confirmao de duas sesmarias de
meia lgua em quadra compradas por ele a dois sesmeiros em 14 de outubro de 1761. A primeira delas foi
concedida a Plcido Ferreira, morador na Paraopeba da Piedade, termo da Vila Real de Sabar, pelo governador
Jos Antnio Freire de Andrada, em So Joo del-Rei, 12 de outubro de 1759. Situava-se na paragem da Ponte
Grande e Ribeiro Vermelho, Comarca do Rio das Velhas. A segunda comprou de Antnio Jos da Silva
Brando na paragem chamada Jos Lopes, freguesia da Cachoeira do Campo, termo de Vila Rica, em 20 de
fevereiro de 1758. Em 23 e 26 de outubro de 1761, Joo de Sousa Lisboa alcanou carta de confirmao das
duas sesmarias que comprou. Apresentou ao Conselho Ultramarino as duas cartas de sesmaria e duas certides
de que as mesmas estavam medidas, demarcadas e de posse dos primeiros sesmeiros. AHU Projeto Resgate
MG, caixa 79, doc. 54. Pelo que nos parece, as fazendas da Paraopeba compradas por Alvarenga Peixoto so
somente as da sesmaria que foi de Plcido Ferreira. Estavam localizadas nas imprecisas divisas das comarcas do
Rio das Mortes, Rio das Velhas e Vila Rica, onde hoje esto os municpios de So Brs do Suau e Congonhas
do Campo.
REPRESENTAO dos scios e fiadores do coronel Joo de Sousa Lisboa, contratador das entradas de Minas
Gerais, do trinio de 1762 a1764, solicitando rainha, que por graa especial, lhe concedesse uma iseno do
pagamento da dvida resultante dos prejuzos causados pela guerra no valor de 131:680$505 ris, 26 de janeiro
de 1786. O contrato das entradas foi arrematado pelo coronel Joo de Sousa Lisboa e seus scios em 1761, para
o trinio de 1762-1764, pelo valor de 244:680$000 ris em cada ano, ou seja, o montante de 734:040$000 ris,
[...] submetendo-se expressa condio de serem presos logo que faltassem a qualquer dos pagamentos que
deviam aprontar dentro de trinta dias da chegada da Nau. No o cumpriram assim, e por isso o Provedor da
Fazenda de Minas Gerais os fez prender depois de ter procedido ao sequestro em todos os seus bens [...]. Trata-
se de um documento de 187 folhas de grande valor para os pesquisadores da histria econmica da capitania de
Minas Gerais. Lamentavelmente, um tero desse documento est em pssimas condies de leitura. AHU
Projeto Resgate MG, caixa 124, doc. 8.
319
noventa escravos. Os valores de ambos os lances seriam pagos em prestaes anuais pelos
prazos de cerca de vinte anos. Guimares chegou a oferecer outro lance vista de 25.000
cruzados (10:000$000 ris) ou 46.500 cruzados (18:600$000 ris) a prazo, mas tambm foi
recusado.733 Cludio Manoel da Costa, o renomado advogado de Vila Rica, foi quem
defendeu Alvarenga nessa questo, da qual saiu vencedor. Como essas fazendas estavam no
nome de Jos da Silveira e Sousa, elas no foram objeto de sequestro na devassa da
Inconfidncia de 1789.
Em 1780, o doutor Alvarenga Peixoto envolveu-se numa disputa por terras e guas
minerais com o compadre e amigo Joo Crisstomo e sua me, D. Maria do Nascimento.
Crisstomo ocupava, ento, o cargo de juiz ordinrio do julgado da Campanha. O alferes
Dionsio da Fonseca Reis, o falecido marido de D. Maria do Nascimento, havia pedido as
terras que sobejassem por fora do ttulo de terras que foram do capito Manoel Teixeira
Ribeiro e que passaram, por compra, para a posse de Alvarenga Peixoto.734 As terras e
733
REQUERIMENTOS de Francisco Jos e Silva Guimares rainha, Vila Rica, 1 e oito de julho de 1780.
LAPA. Vida e obra de Alvarenga Peixoto, p. 206-212.
734
REQUERIMENTO que fez ao Ilmo. Exmo. Sr. General [D. Rodrigo Jos de Meneses] o doutor Incio Jos
de Alvarenga. LAPA. Vida e obra de Alvarenga Peixoto, p. 220-228.
320
735
Nas grandes empresas de minerao, os cursos dgua eram de fundamental importncia para a extrao do
ouro. Grandes canais eram construdos para conduzir a gua para a lavagem da terra e do cascalho com vistas a
separar o ouro. Andr Figueiredo Rodrigues nos d notcia de que Alvarenga Peixoto chegou a construir um
canal de 70 quilmetros de extenso para levar guas do ribeiro de So Vicente para as minas do Ouro Fala,
So Gonalo Velho, Boa Vista e Ba, lavras, possivelmente, de grupiara. RODRIGUES. Estudo econmico da
Conjurao Mineira, p. 158-261. Sobre o ouro e os processos de minerao adotados na capitania de Minas,
podem ser consultados HOLANDA. HGCB, tomo 1, vol. 2, p. 259-310. Metais e pedras preciosas; LIMA
JNIOR. A capitania das Minas Gerais, p. 43-53.
736
CARTA de D. Rodrigo Jos de Meneses ao capito Manoel Teixeira Ribeiro, Vila Rica, 20 de maro de
1782. LAPA. Vida e obra de Alvarenga Peixoto, p. 228-229.
737
CARTA de D. Rodrigo Jos de Meneses ao juiz ordinrio do julgado da Campanha do Rio Verde, Joo
Crisstomo da Fonseca Reis, Vila Rica, 8 de abril de 1782. LAPA. Vida e obra de Alvarenga Peixoto, p. 233-
234.
738
CARTA do capito Manoel Teixeira Ribeiro a D. Rodrigo Jos de Meneses, So Gonalo, quatro de abril de
1782. LAPA. Vida e obra de Alvarenga Peixoto, p. 230-233.
321
739
Idem, ibidem. Para De Plcido e Silva, a expresso pessoa interposta tambm usada para designar a
pessoa que, em um negcio, se apresenta como o contratante, para ocultar a identidade da pessoa, que realmente
o fez. Assim, entende-se a pessoa que figura, num negcio ou numa relao jurdica, em lugar de outra, sendo,
por isso, um emprestador do nome. SILVA. Vocabulrio jurdico, p. 368.
740
AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fls. 15 a 17 (primeira remedio) e fl. 19 verso (segunda
remedio).
741
AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fls. 43 a 44.
322
742
INQUIRIO da testemunha capito Manoel Teixeira Ribeiro, da parte dos embargantes Gaspar Vaz da
Cunha e outros e da parte do embargado o doutor Incio Jos de Alvarenga. AUTOS de sesmaria de Joo
Crisstomo, fls. 151 verso a 156 e 170 verso a 173 verso.
743
MAXWELL. A devassa da devassa, p. 189.
744
FURTADO. O manto de Penlope, p. 40.
745
FURTADO. O manto de Penlope, p. 29, 253, nota 12.
746
RODRIGUES. Estudo econmico da Conjurao Mineira, p. 258-259.
323
1804, mais 8:134$293 ris de principal, juros e custas processuais eram reclamados de sua
viva, Brbara Eliodora, da parte de Dionsio Chevalier.747
Andr Figueiredo Rodrigues, num dos estudos mais rigorosos que at ento j se
fizeram sobre os aspectos econmicos da Inconfidncia Mineira, relativiza a figura de mau
pagador atribuda a Alvarenga Peixoto:
747
LAPA. Vida e obra de Alvarenga Peixoto, p. XXV-XXVI. RODRIGUES. Estudo econmico da Conjurao
Mineira, p. 260, 261 e 276.
748
LAPA. Vida e obra de Alvarenga Peixoto, p. XXXI. De acordo com Andr Rodrigues, foram fornecidos
mantimentos (farinha de milho e mandioca), tecidos (estopa, algodo e linhagem) e cordas, couro e animais.
RODRIGUES. Estudo econmico da Conjurao Mineira, p. 269.
749
LAPA. Vida e obra de Alvarenga Peixoto, p. XXXII e XXV-XXVI.
324
Em fins de 1788, o leal vassalo, coronel Incio Jos de Alvarenga Peixoto, converteu-
se num desleal vassalo, tramando contra a Coroa portuguesa junto com outros colonos e
reinis num movimento sedicioso: a Inconfidncia Mineira.752 Alvarenga foi apontado por
Joo Pinto Furtado como o mais rico dos inconfidentes, tendo o montante dos seus bens
750
RODRIGUES. Estudo econmico da Conjurao Mineira, p. 288.
751
CARTA PATENTE de Incio Jos de Alvarenga Peixoto, 24 de junho de 1785. In: LAPA. Vida e obra de
Alvarenga Peixoto, p. 285-286.
752
Salientamos que nossas consideraes sobre a Inconfidncia Mineira so rpidas, dada a complexidade do
assunto e por no se tratar do nosso objeto de pesquisa. No mais, o enfrentamento de Alvarenga Peixoto com os
posseiros de sua sesmaria da Boa Vista ocorreu alguns anos antes da Inconfidncia. Na anlise que fazemos dos
autos de sesmaria mais nos interessa a figura do ouvidor da comarca e menos a do inconfidente. A Inconfidncia,
de forma alguma, tema esgotado, mas j existe uma considervel bibliografia sobre ela. Dezenas de artigos,
dissertaes, teses e livros j foram escritos sobre o assunto. Exemplificamos com os seguintes: FIGUEIREDO.
A poesia dos inconfidentes; FURTADO. O manto de Penlope; JARDIM. A Inconfidncia Mineira;
MAXWELL. A devassa da devassa; SANTOS. A Inconfidncia Mineira; RODRIGUES. Estudo econmico da
Conjurao Mineira. Uma bibliografia bem elaborada sobre o tema pode ser consultada em FURTADO. O
manto de Penlope.
325
sequestrados atingido a elevada cifra de 84:115$260 ris, dos quais mais de setenta contos de
ris eram em bens de raiz.753 Valores que possivelmente eram maiores, pois Andr Figueiredo
Rodrigues defende a tese de que houve sonegao de bens e foram baixas as avaliaes feitas
pelos funcionrios metropolitanos quando dos sequestros de vrios inconfidentes.754 Apesar
do enorme drama em que sua famlia se envolveu entre 1789-1792, culminando com a morte
do inconfidente no degredo em Angola, Andr Figueiredo Rodrigues demonstra que a maior
parte dos seus bens escapou dos confiscos feitos pela Fazenda Real pela meao concedida a
Brbara Eliodora e pelo arremate em praa da outra parte por Joo Rodrigues de Macedo. A
Coroa pouco lucrou com os bens sequestrados de Alvarenga.755
753
FURTADO. O manto de Penlope, p. 63, 107.
754
RODRIGUES. Estudo econmico da Conjurao Mineira, p. 295.
755
RODRIGUES. Estudo econmico da Conjurao Mineira, p. 68, 277 e 286.
756
MAXWELL. A devassa da devassa, p. 144.
757
FURTADO. O manto de Penlope, p. 63.
758
RODRIGUES. Estudo econmico da Conjurao Mineira, p. 282, 287 e 288.
759
RODRIGUES. Estudo econmico da Conjurao Mineira, p. 23 e 13.
326
Alvarenga, por seu turno, embora podendo eventualmente ser inscrito nesse
grupo de atitudes tendentes radicalizao, talvez tenha levado um pouco
mais em conta sua prpria origem e as vantagens de que dispunha, e,
dividido entre seus interesses mais propriamente materiais, sua insero
aristocrtica e seus privilgios estamentais, acabou optando pela
acomodao e tentou por todos os meios, a partir de meados de maro de
1789, entrar em acordo com a metrpole.760
A primeira descrio que temos da sesmaria da fazenda Boa Vista a que consta na
carta de confirmao do capito Francisco Xavier Correia de Mesquita obtida em dezembro
de 1741, no mesmo ano da doao. Assim, imprecisamente, Mesquita descreveu a terra que
requeria: na paragem de So Gonalo o Velho em [a]t o rio de Sapuca e da outra [ilegvel]
760
FURTADO. O manto de Penlope, p. 100.
761
JARDIM. A Inconfidncia Mineira, p. 132-142.
327
o aterrado at a roa de Manoel Correia h muitas terras de sertes devolutas.762 Anos mais
tarde, em 1778, quando foram feitas as articulaes para a compra da sesmaria, a escritura
tambm era vaga quanto ao que nas terras havia: uma fazenda de cultura com sesmaria de
trs lguas de matos, capoeiras e campos [...] que se acha medida e demarcada, com casas de
vivenda, paiol, moinho e todos os mais pertences da mesma fazenda e as lavras da Boa Vista,
Ba e Sexta-Feira, com todos os ttulos assim de terras como de guas.763
762
AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fls. 23 a 25 verso. Interessante observar que o sesmeiro conseguiu a
confirmao da sesmaria com bastante rapidez, pois obtivera a carta de doao em 28 de fevereiro de 1741 e, em
22 de novembro do mesmo ano, o Conselho Ultramarino j havia dado o seu despacho confirmando a merc.
Trata-se da carta original de confirmao, o que podemos observar pelas assinaturas das autoridades lisboetas
(oito firmas) e do governo da capitania de Minas (duas firmas) que podem ser conferidas com outros documentos
de poca, o que nos faz crer tratar-se de documento autntico.
763
ESCRITURA de venda e compra. AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fls. 26 a 27 verso.
328
senzalas no acordo feito. Cristina Maria de Jesus era analfabeta e o padre Francisco Xavier
Fortes de Bustamante e S assinou, a seu rogo, sendo testemunha Lus Antnio da Silva.764
Francisco Rodrigues Franco, talvez um pouco mais abastado que o casal Jos da
Fonseca e Cristina, em nove de janeiro de 1779 j havia feito acordo para deixar as terras no
prazo de seis meses, recebendo 80 oitavas de ouro, ou 96$000 ris. Reconhecia que se achava
arranchado e estabelecido em terras compreendidas na sesmaria de trs lguas de Francisco
Xavier Correia de Mesquita, hoje [pertencente] a Sebastio de Alvarenga Braga e tambm
deixava para trs benfeitorias, casas, monjolos, seis ou sete alqueires de planta de milho,
feijo, bananal, rvores de espinho, mandioca, regos e valos e tudo o mais que respeitar a
benfeitorias.765
Alvarenga Peixoto parecia querer se livrar de antigos laos, pois em dez de maro de
1779, fez um acordo com Gaspar Vaz da Cunha para que ele deixasse suas terras. No se
tratava de um agregado qualquer. Ele e sua mulher, Marcela Maria da Conceio,
reconheciam estar arranchados e estabelecidos em terras compreendidas na sesmaria que
pertencera aos Correia de Mesquita. Tinham relaes mais estreitas com os proprietrios, na
fazenda do Engenho, dentro da mesma sesmaria. Eram um misto de administradores e scios
dos sesmeiros anteriores. No saram imediatamente, por ficarmos administrando as mesmas
terras e fazenda do Engenho, sendo entregadas (sic) no tempo, entrando para isso com seis
escravos e o dito Senhor com doze, e entrando mais com os nossos bois e carros e com todos
os mais mveis e cobres pertencentes ao mesmo Engenho e fazenda. A eles foi preciso pagar
200$000 ris, ou 166 oitavas de ouro. Deram quitao do valor afirmando que a todo tempo
que l irmos s levaremos os nossos bens mveis, por lhe havermos vendido tudo o mais e
tambm uma roa de cinco alqueires de planta.766 Receberam e no saram, pois Gaspar Vaz
da Cunha seria, mais tarde, um dos cabeas do grupo de ocupantes e confrontantes que
enfrentaria Alvarenga Peixoto pela posse da sesmaria. Foram testemunhas desse acordo Pedro
Vieira mbar e Narciso Vieira mbar, que tambm resistiriam ao despejo.
764
DECLARAO de Jos da Fonseca Osrio e sua mulher Cristina Maria de Jesus, ribeiro de So Vicente da
fazenda da Boa Vista, 18 de outubro de 1779. AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fl. 47 e verso.
765
DECLARAO de Francisco Rodrigues Franco, So Gonalo, nove de janeiro de 1779. AUTOS de sesmaria
de Joo Crisstomo, fl. 45.
766
DECLARAO de Gaspar Vaz da Cunha e sua mulher Marcela Maria da Conceio, So Gonalo, dez de
maro de 1779. AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fl. 46.
329
Gaspar Vaz da Cunha, como procurava evidenciar Alvarenga Peixoto, fora feitor e
administrador das terras de planta dentro da sesmaria pelo salrio de 300$000 ris durante um
ano. Como prova, Alvarenga apresentou um rol dos gastos que fiz [Gaspar Vaz] para a
fazenda do Sr. Ouvidor com recibo de pagamento de 203 5 oitavas de ouro.767
Apresentou tambm o seguinte documento atribudo escrita do administrador:
Tambm Antnio Pinheiro Cardoso e sua mulher Ana Maria, analfabetos, foram
despejados da sesmaria pagando-se-lhes cento e trinta e trs oitavas e dois vintns, ou seja,
159$675 ris. Seu stio, chamado do Pinheiro, era por seu prprio nome uma indicao de
sua morada fixa naquela paragem. Mas, declarando ele e sua mulher que por conhecermos
que o sobredito stio nos no pertence e deve passar ao seu direito Senhor pelo justo ttulo que
conserva, vendiam tudo. Seu cabedal, que no era to diminuto, constitua-se de oitenta
cabeas de porcos de terreiro, sem nenhum de chiqueiro, a preo de meia pataca [ilegvel],
cinco alqueires em planta a sete oitavas por alqueire, seiscentas mos no paiol de milho, por
catorze oitavas e dois vintns de ouro, as casas de vivenda em quinze oitavas e quarenta e
767
AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fl. 123 e verso.
768
AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fl. 111.
769
INQUIRIO das testemunhas Caetano Jos de Gouveia, Guarda-Mor Joo de Almeida da Fonseca e
Manoel Jos Correia e Castro, da parte do embargado o doutor Incio Jos de Alvarenga. AUTOS de sesmaria
de Joo Crisstomo, fls. 161 a 166.
330
cinco pelas mais benfeitorias do terreiro, dois monjolos, benefcio do pomar de espinho e
mais plantas midas cercadas a valos [...] uma caixa e uma banca pequena e dois bancos.770
A situao de alguns desses agregados parecia-se bem com o que Afonso de Escragnolle
Taunay percebia no meio rural brasileiro, j nos tempos do Imprio:
O nico recurso que ao pobre cabe, pedir ao que possui lguas de terras a
permisso de arrotear um pedao de cho. Raramente lhe recusada tal
licena, mas como pode ser cassada de um momento para outro, por
capricho ou interesse, os que cultivam o terreno alheio e chamam-se
agregados, s plantam gros cuja colheita pode ser feita em poucos meses,
tais como o milho e o feijo.771
770
DECLARAO de Antnio Pinheiro Cardoso e sua mulher Ana Maria, Stio do Pinheiro, cinco de janeiro de
1779. AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fl. 48 e verso.
771
Apud SAMARA. Lavoura canavieira, trabalho livre e cotidiano, p. 124.
772
AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fl. 111, 123 e verso. Nesses dois documentos um recibo e um rol
de despesas , o padre Francisco Xavier Fortes de Bustamante e S aparece como intermedirio entre Alvarenga
Peixoto e Gaspar Vaz da Cunha, fazendo acertos e pagamentos a este ltimo.
773
CARTA de sesmaria de Francisco Xavier Fortes de Bustamante e S de 24 de maio de 1799. APM-SC 285,
fl. 236 verso. O padre Francisco era filho do doutor Luiz Fortes de Bustamante e S e Lusa Maria Xavier da
Fonseca, portugueses que vieram para o Rio de Janeiro nos incios do sculo XVIII, dirigindo-se, depois, para
Minas Gerais onde se instalaram na freguesia da Borda do Campo. Diversos membros da famlia foram
sesmeiros nessa freguesia: o prprio padre e seus dois irmos Joo Pedro de Bustamante e S (APM-SC 122, fl.
25, 1758) e Rita Luza de Bustamante e S (APM-SC 256, fl. 07 verso, 1788); dois sobrinhos, filhos de Rita:
Manoel de S Fortes de Bustamante Nogueira (APM-SC 256, fl. 34 verso, 1789) e Luza Felcia Sinfroza de
Bustamante (AUTO de sesmaria Museu Regional de So Joo del-Rei IBRAM).
331
Alvarenga Peixoto, muito diferentemente dos seus agregados, soube muito bem
defender os seus direitos nesses acordos selados em curtos documentos de uma ou duas
laudas. Neles, os agregados sempre declaravam estar arranchados, morando de favor ou
compreendidos dentro da sesmaria e sempre reconheciam Sebastio de Alvarenga Braga
como o verdadeiro Senhor das terras a quem pagariam os valores das benfeitorias que
deixavam ao sair. Mais tarde, quando resolveram enfrentar Alvarenga Peixoto pela posse das
terras, alguns deles passaram a alegar e tentaram provar que suas terras no estavam dentro
da sesmaria da Boa Vista. Segundo eles, o sesmeiro da Boa Vista, mudando os marcos de
lugar, incluram suas posses na rea compreendida pela sesmaria.
Feitos esses acordos, Alvarenga Peixoto, dono da sesmaria que recebera em doao
de seu tio, desde sete de setembro de 1778, nomeava, em 20 de maio de 1780, Joo
Crisstomo como o seu procurador para acompanhar mais um processo de remedio e
demarcao da mesma terra. Lembremo-nos de que o procurador j havia feito a primeira
remedio no ano de 1778, quando era dono das terras que depois vendeu a Sebastio de
Alvarenga. De forma sumria, descrevemos como se deram os autos dessa segunda
remedio.
774
PETIO do doutor Incio Jos de Alvarenga. AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fl. 19.
332
demarcarem a terra. O piloto ou medidor do juzo era Jos Antnio de Andrade775 e seu
auxiliar, escolhido pelo procurador, era Antnio de Oliveira Lopes.776 Conforme o ritual,
foram feitos os juramentos dos louvados, a medio da corda de comprimento de quinze
braas (33 metros) e o exame do agulho.
Pedro Espnola informava que Tom, filho e testamenteiro do capito Joo Martins
Ribeiro, havia lhe vendido uma fazenda com casas de vivenda, paiol e moinho de telha,
matos, capoeiras, campos com duas sesmarias por quantia de duzentos mil ris [qu]e ainda
est a dever (grifos nossos). Afirmava ter comprado sem ter conhecimento de que na
remedio se compreende quase todas as terras das ditas duas sesmarias. Pedia a presena
de Tom Martins Ribeiro para dar suas explicaes, sem a qual ficaria o suplicante
desobrigado do pagamento da dita compra em razo de se no poder defender.777 Conseguiu
do juiz que Tom fosse citado, ficando resguardado no direito de no pagar a compra da terra.
775
PROVISO de Jos Antnio de Andrade como piloto dos rumos e medidor das sesmarias do termo da vila de
So Joo del-Rei, Vila Rica, 28 de julho de 1780. Proviso passada pelo governador D. Rodrigo Jos de
Meneses. Tomou posse em oito de agosto do mesmo ano na casa do juiz das sesmarias doutor Nicolau Barbosa
Teixeira Coutinho. Papis da cmara PAP 147 (1775-1781), fls. 38 a 39.
776
JARDIM. A Inconfidncia Mineira, p. 188-189. Trata-se do inconfidente Antnio de Oliveira Lopes. Segundo
Mrcio Jardim, ele nascera na Vila de Abranches, Comarca da Guarda, Portugal, em 1726. [...] Era carpinteiro e
agrimensor, vivendo de medir propriedades rurais.
777
PETIO de Pedro Jos de Espnola. AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fl. 57.
333
Interessante observar que em momento algum dos autos o nome do defunto Joo Martins
Ribeiro aparece citado como confrontante da sesmaria que estava sendo remedida.
Alm de Pedro Espnola, apareceram com suas peties, para se queixarem contra a
segunda remedio Gaspar Vaz da Cunha, Joo de Almeida Lara, Faustino Vieira mbar,
Narciso Vieira mbar e Pedro Vieira mbar e outros colonos. Desde o dia 18 de agosto esses
colonos j haviam providenciado uma procurao778 e aberto uns autos de apelao cvel para
o juzo da Ouvidoria Geral da Comarca, pedindo a suspenso da posse.
778
PROCURAO bastante que fazem Pedro Vieira mbar, Narciso Vieira mbar, Gaspar Vaz da Cunha, Joo
de Almeida Lara, Faustino Vieira mbar e outros, paragem do Ouro Fala, 18 de agosto de 1780. AUTOS de
sesmaria de Joo Crisstomo, fls. 69 a 70 verso. Prevendo os desdobramentos da causa que iniciavam, sua
procurao dava poderes amplos para advogados na cabea da comarca, no Rio de Janeiro e at na cidade de
Lisboa.
779
LAPA. Vida e obra de Alvarenga Peixoto, p. XXXVI. Andr Figueiredo Rodrigues nos esclarece que Lus
Ferreira tambm foi acusado de favorecer Brbara Eliodora Guilhermina da Silveira, esposa do coronel
Alvarenga Peixoto, no processo de sequestro e na meao de seus bens. Amigo de Alvarenga, a quem sucedera
na ouvidoria e aliara-se numa srie de situaes suspeitas, foi acusado, juntamente com Alvarenga, pelo padre
Antnio Caetano de Almeida Vilas Boas, de promover arbitrariedades na vila de So Joo del-Rei. O ouvidor
Azevedo ocupou o cargo por trs trinios consecutivos. RODRIGUES. Estudo econmico da Conjurao
Mineira, p. 78. JARDIM. A Inconfidncia Mineira, p. 245-246.
780
TRASLADO dos autos de apelao cvel entre partes apelantes Gaspar Vaz da Cunha e outros e apelado o
doutor Incio Jos de Alvarenga. AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fls. 62 a 64.
334
possa ofender aos suplicantes.781 Mas o juiz das sesmarias, que na cabea da comarca
acolhera e despachara essa apelao, parecia querer ignorar os embargos, sendo necessrio
que os suplicantes, por petio, o lembrassem de consider-los nos autos.782 Assim, tais
embargos foram trasladados para os referidos autos.
No primeiro grupo, o advogado dos embargantes anotou nos autos os nomes dos
colonos que no juntam procurao pela amizade e grande respeito que tm ao embargado
uns, e outros em razo da suma pobreza que lhe[s] assiste de sorte que nem ainda tm com
que paguem essa procurao. Entre esses que no tiveram interesse, foras ou recursos para
enfrentar Alvarenga Peixoto estavam Joo da Cunha, Pedro da Silva, Antnio da Silva, Maria
Rodrigues e Manoel da Silva, no rumo do leste; Joo Rodrigues Moreira, Valrio Jos
Rodrigues, Jos Caetano, Joo Crisstomo, Jos de Afonseca, Francisco Rodrigues Franco,
Antnio Pinheiro e Joo de Andrade, no rumo do pio, e Joo Lopes, Antnio Pires,
Manoel de Sintra, Vitoriano Jos de Almeida, D. Maria da Visitao, Manoel de Andrade,
Manoel Francisco e Maria da Conceio, no rumo do este.
781
TRASLADO dos autos de apelao cvel entre partes apelantes Gaspar Vaz da Cunha e outros e apelado o
doutor Incio Jos de Alvarenga. AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fls. 62 a 64.
782
PETIES de Gaspar Vaz da Cunha e outros. AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fls. 61 e 62.
335
783
PROTESTO de Narciso Vieira mbar e outros, Fazenda da Boa Vista do distrito de So Gonalo da
Campanha do Rio Verde, sete de setembro de 1780. AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fl. 82 e verso.
784
AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fl. 83 e verso.
785
SAMARA. Lavoura canavieira, trabalho livre e cotidiano, p. 93-100. Estamos atribuindo a agregado o
conceito amplo assumido pela autora. Nesse grupo poderiam estar presentes tanto estranhos, quanto membros da
prpria famlia, tais como genros, noras, irmos solteiros etc. Alcntara Machado nos d um conceito clssico de
agregado na sociedade colonial: Avoluma a classe dos agregados, que constituem o squito do grande senhor
territorial. o mameluco. o companheiro das jornadas sertanejas. o capanga destemido, sempre disposto a
dar a prpria vida ou a tirar a alheia, a mando do potentado em arcos a que est ligado pela gratido, pelo
interesse e tambm, amide, pelo sangue. No o renegam os outros membros da famlia. Aceitam-no, porque tm
a conscincia mais ou menos clara de que se trata de um elemento inferior, mas necessrio, do organismo de que
fazem parte. MACHADO. Vida e morte do bandeirante, p. 152.
336
Havia tanta gente envolvida porque, alm da grande extenso da sesmaria tinha vinte
quilmetros de comprimento , ela confrontava com o arraial de So Gonalo pelo lado norte.
A regio no devia ser muito despovoada, pois havia por ali a presena de atividades de
minerao, o que atraa muita gente. As lavras eram, sem dvida, o fator que aumentava a
cobia de Alvarenga e o levava a mover os marcos da sesmaria, procurando incluir nela terras
aurferas.
Depois de pintar com bastante retrica esse quadro dramtico, Alvarenga Peixoto
anexou uma gama de documentos que pretendiam provar a legitimidade do seu domnio e no
simplesmente a posse sobre a sesmaria da Boa Vista, visando a obter o apoio de D. Rodrigo
Jos de Meneses. Junto a sua petio estavam a carta de confirmao da sesmaria em
786
PROCURAO bastante que fazem Joo Barbosa Raposo, Manoel Peres de Camargos, Simo Dias do Prado
e outros abaixo declarados, 25 de outubro de 1780; PROCURAO do doutor Incio Jos de Alvarenga
Peixoto, 20 de maio de 1780. AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fls. 76 a 78 e 52, respectivamente.
787
PETIO do doutor Incio de Alvarenga Peixoto ao governador D. Rodrigo Jos de Meneses. AUTOS de
sesmaria de Joo Crisstomo, fls. 20 a 21 verso.
337
O respaldo que recebia de D. Rodrigo Jos de Meneses pode ter outra explicao mais
razovel, alm do zelo que aquele governador pudesse ter com os negcios da capitania: os
interesses econmicos. Podemos perceb-los no estreito vnculo que uniu os interesses de
Alvarenga Peixoto aos de Joo Rodrigues de Macedo, mesmo depois da priso e da morte do
primeiro no presdio de Ambaca, em Angola. Macedo passa, praticamente, a gerenciar as
fazendas e lavras de Alvarenga. Joo Rodrigues de Macedo foi um dos maiores, seno o
maior, financiadores das empresas de Alvarenga Peixoto. A prpria nomeao para o cargo de
ouvidor da Comarca do Rio das Mortes, alm da indicao de Pombal, teve o apoio de
Macedo, pois o cargo teria que ser arrematado e o foi pela vultosa quantia de 8:400$000 ris.
Quem nos d essas preciosas informaes Andr Figueiredo Rodrigues. Segundo ele, o
relacionamento de Alvarenga Peixoto com Macedo baseava-se em negcios que visavam a
788
PETIO do doutor Incio de Alvarenga Peixoto ao governador D. Rodrigo Jos de Meneses e anexos.
AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fls. 20 a 48.
789
LAPA. Vida e obra de Alvarenga Peixoto, p. 219.
338
790
RODRIGUES. Estudo econmico da Conjurao Mineira, p. 265-266. Joo Rodrigues de Macedo foi
contratador dos dzimos (1777-1783) e das entradas (1776-1783). Uma breve biografia do contratador pode ser
lida em OLIVEIRA. Um banqueiro na Inconfidncia.
791
LAPA. Vida e obra de Alvarenga Peixoto, p. XLI.
792
PEIXOTO. Canto Genetlaco. Apud LAPA. Vida e obra de Alvarenga Peixoto, p. 33.
339
Comigo escrivo veio o doutor juiz das sesmarias desta vila e seu termo,
Nicolau Barbosa Teixeira Coutinho, e Joo Crisstomo da Fonseca Reis,
procurador do sesmeiro, doutor Incio Jos de Alvarenga e os medidores, o
piloto do juzo Jos Antnio de Andrade e o nomeado por parte do sesmeiro,
Antnio de Oliveira Lopes, para o efeito de se proceder a vistoria em o
lugar onde se havia de formar o pio da sesmaria para dele se seguirem os
rumos dela e, sendo a, depois de examinadas as terras, se remediram trs
lguas de comprido correndo de norte a sul em direitura pelo Aterrado e roa
que se averiguou ter sido de Manoel Correia Neves e de uma lgua de
largura de oeste para leste da forma seguinte: elegeram o (sic) beneplcito de
todos para o lugar do pio um morro de campo alto que fica nas fraldas da
serra de So Vicente, fazendo frente a esta da parte do sul e vertendo a um
ribeiro tambm chamado de So Vicente para a parte do norte e a, ao p de
um mato, meteram na terra os louvados uma pedra grande com quatro
pequenas ao p e em a qual lavraram quatro cruzes viradas para os rumos
que se haviam (sic) de seguir. E do mesmo pio seguiram os ditos louvados
o rumo do leste pelo qual mediram cem cordas que findaram na descida de
um espigo de capoeira que fica adiante das casas em que morou Beatriz
Gomes e nasce da dita serra de So Vicente ao p de um corguinho (sic)
chamado da Faisqueira que verte e desgua para o dito ribeiro e abaixo de
uma cachoeirinha e a, para demarcao, nele meteram um marco de pedra
grande com trs pequenas em o qual lavraram trs cruzes, uma virada para o
pio duas para os lados e confronta este rumo com terras que dizem ser de
Incio da Rocha. E indo os ditos louvados ao lugar do pio, seguiram o rumo
do oeste, pelo qual mediram cem cordas que findaram em um espigo de
mata [ilegvel] do dito ribeiro de So Vicente e a, para demarcao,
meteram um marco de pedra grande com trs pequenas em o qual lavraram
trs cruzes, uma virada para o pio duas para os lados e confronta este rumo
com terras que dizem ser de D. Maria da Visitao. E tornando os ditos
louvados ao lugar do pio, dele seguiram o rumo do sul, pelo qual mediram
trezentas cordas que atravessaram os ribeires do Areado, Turvo e foram
findar em um morro alto de campo que verte de uma parte para o dito
ribeiro do Turvo e da outra fronteia (sic) a um morro que verte ao rio de
Sapuca e a, ao p de um mato e pouco por cima da estrada que vai do dito
Turvo para Santa Catarina, meteram um marco de pedra grande com trs
pequenas em o qual lavraram trs cruzes, uma virada para o pio duas para
os lados e confronta este rumo em terras que dizem ser do falecido capito
Joo Rodrigues Moreira de cujo marco do sul, fazendo a lgua de largura e
testada, mediram para o rumo do leste cem cordas que findaram em um
capo de mato que verte para ao dito ribeiro do Turvo acima, aonde
puseram um marco de pedra grande com duas pequenas em o qual lavraram
duas cruzes, uma virada para o dito marco e outra para o norte, e para o
rumo de oeste mediram outras cem cordas que findaram em o alto de uma
barrocada que forma um campo que verte ao rio Sapuca, ficando salva a
margem do mesmo rio, tudo [trs palavras ilegveis] do sobredito [duas
linhas ilegveis] meteram um marco de pedra com duas pequenas ao p em
que lavraram duas cruzes, uma virada para o marco e outra para o norte. E
tornando os ditos louvados ao lugar do pio, seguiram o rumo do norte, pelo
qual mediram trezentas cordas que findaram ao p do arraial de So Gonalo
em um [ilegvel] de campo que verte para o ribeiro que passa no dito arraial,
e a por cima do [ilegvel] pinheiro em frente do lugar das casas antigas que
teve o primeiro sesmeiro Francisco Xavier Correia de Mesquita, na fazenda
de que se trata, e pouco distante das em que agora mora o presente sesmeiro,
donde se verificou haver existido o marco da primeira medio desta
sesmaria de que faz meno o sobredito instrumento, meteram um marco de
340
pedra grande com trs pequenas ao p, em que lavraram trs cruzes, uma
virada para o pio e duas para os lados, fazendo, a, a lgua de largura. Se
mediram para o leste cem cordas que findaram em uma vargem de mato
junto cabeceira do ribeiro de Santa Rufina e paragem de So Gonalo
Velho onde meteram um marco de pedra grande com duas pequenas ao p,
em que lavraram duas cruzes, uma virada para o marco e outra para o sul; e
para o este outras cem cordas que findaram em um espigo de campo que
verte ao dito ribeiro de So Gonalo abaixo, onde meteram um marco de
pedra grande com duas pequenas ao p, em que lavraram duas cruzes, uma
virada para o marco e outra para o sul. E, por este modo, houveram o dito
Ministro e louvados esta remedio por finda. (grifos nossos)793
793
AUTOS de vistoria, remedio e demarcao, 16 de setembro de 1780. AUTOS de sesmaria de Joo
Crisstomo, fls. 58 verso a 60.
794
AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fl. 29.
795
PETIO do doutor Incio Jos de Alvarenga ao governador D. Rodrigo Jos de Meneses. AUTOS de
sesmaria de Joo Crisstomo, fls. 20 a 21 verso.
796
AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fl. 117.
341
FIGURA 13 Mapa da sesmaria da fazenda da Boa Vista, So Gonalo do Rio Verde, apresentado por
Alvarenga Peixoto (1778).
Fonte: Museu Regional do IBRAM - So Joo del-Rei, Sesmarias.
342
FIGURA 14 Mapa da sesmaria da fazenda da Boa Vista, So Gonalo do Rio Verde, apresentado por Gaspar
Vaz da Cunha e outros (1778).
Fonte: Museu Regional do IBRAM - So Joo del-Rei, Sesmarias.
No h como negar que o mapa apresentado pelo embargado foi produzido pelas mos
de algum especialista, um cartgrafo talvez, que infelizmente no o assinou. O mapa dos seus
adversrios, ao contrrio, prima pela simplicidade. O leigo que observasse o primeiro deparar-
se-ia, de imediato, com alguns elementos cartogrficos tais como a rosa dos ventos, o petip
com a escala em lguas, os pontos cardeais, a proporo das medidas, as representaes do
relevo, da hidrografia e das matas etc. Numa sociedade do Antigo Regime, na qual as
aparncias tinham peso, um mapa com aparncia cientfica no teria mais aceitao do que
um outro sem os tais elementos da cartografia? Todos esses elementos coloridos com um
cuidado que agrada ou mesmo distrai e engana aos olhos, ainda hoje, foram observados
pelo advogado dos embargantes o qual declarou nos autos em suas razes finais:
343
No sei que estrela a sua to errante que lhe escurece o decurso, no reflete
nem em o que diz, nem em o que faz. Ele assevera, em as [suas] razes finais
que o mapa fl. 29 afetado e incoerente, e s especifico o de fl. 117, junto
pelos embargantes, porque neste se mostra que as terras dos embargantes
esto fora da concepo da sesmaria do embargado, porm, como faz certa a
afetao de um e especfica do outro, mostrar este conhecimento no de
obrigao do patrono dos embargantes. Basta que o diga para que haja de se
lhe dar crdito. Porm, que crdito se h de dar ao patrono dos embargantes
de um mapa ser afetado e outro ser especfico, quando ao 5 artigo da
rplica, fl. 114, confessa e alega que [n]o mapa fl. 29 est bem figurada a
paragem e lugar da contenda e que s as remedies esto fora das
confrontaes do pedido? E eis aqui como se contradiz a si mesmo, porque
implica estarem [n]o mapa bem figurada a paragem e lugar da contenda e,
ser esse mapa afetado e incoerente. Isso s sucede a quem no espera a
verdade ou a quem, inteiramente, de propsito, se quer afastar dela.798
Primeiro, o mapa do embargado guarda uma total coerncia com o auto de medio e
demarcao da segunda remedio realizada em 16 de setembro de 1780 que transcrevemos
mais acima e o outro, o dos embargantes, escapa-lhe completamente.
797
RAZES finais do doutor Vicente Ferreira Alves Eborense, advogado dos embargantes Gaspar Vaz da Cunha
e outros. AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fl. 195 verso.
798
RAZES finais do doutor Jos da Silveira e Sousa, advogado do embargado, o doutor Incio Jos de
Alvarenga. AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fls. 205 verso e 206.
344
do Ouro Fala) e 10 (crrego do Braguinha) esto colocados do lado de fora do ponto 14 (linha
da da medio por onde se devia fazer), porque nos autos eles insistem sempre que so
moradores na paragem do Ouro Fala e/ou nas vizinhanas das terras que foram do referido
Braguinha. Se o mapa do embargado prima pela exatido das linhas (mesmo que deslocadas
da realidade), o fato que o mapa dos embargantes mais indefinido (suposto que ele seja o
mais prximo da realidade).
Tais mapas, observados com um maior rigor por um gegrafo, sobretudo o mapa dos
embargantes, poderiam ser considerados simples esboos ou croquis. No sculo XVIII os
345
Antnio Gilberto Costa, em seu Roteiro prtico de cartografia, apresenta cinco cartas
topogrficas de propriedades rurais produzidas, segundo ele, para demarcaes e
levantamentos privados.800 Uma delas, a de uma fazenda prxima a Vila Rica, guarda alguns
elementos de semelhana com o mapa da sesmaria da Boa Vista apresentado pelo embargado.
Isso nos faz crer que os documentos que analisamos com a funo de representar
cartograficamente as terras do conflito eram vistos por ambas as partes como mapas que
poderiam dar fora aos seus argumentos e aos depoimentos das testemunhas, para juzes
distantes do desconhecido espao geogrfico em disputa.
799
COSTA. Roteiro prtico de cartografia, p. 64.
800
COSTA. Roteiro prtico de cartografia, p. 212.
346
Correia Neves. No rumo do sul o marco foi colocado confrontando com terras que dizem
ser do falecido capito Joo Rodrigues Moreira. Dirigindo-se para o leste, a medio
terminou em um espigo de capoeira que fica adiante das casas em que morou Beatriz
Gomes. Por que no foram mencionados os herdeiros de Beatriz Gomes ou os atuais
proprietrios? Os herdeiros estavam entre os embargantes. Os dois primeiros confrontantes
eram sesmeiros antigos801 e no havia como desconsider-los. J Beatriz Gomes Viegas era
mulher de Manoel Vieira mbar, os falecidos pais de Catarina Maria de Jesus.802 Muitos
membros da famlia Vieira mbar, inclusive Catarina, faziam parte do grupo dos que
embargavam a remedio da fazenda da Boa Vista.
[...] Em cujo ato disse eu, escrivo, trs vezes em voz alta e perceptvel: h
algum [que] se oponha a esta posse que dou ao sesmeiro, pelo dito
procurador, de todas as terras remedidas, menos daquelas em que por
despacho do sobredito Ministro e requerimento de Gaspar Vaz da
Cunha se mandou suspender [s] folhas 72 verso [?]. E porque proferidas
as ditas palavras no houve pessoa alguma se opusesse por modo algum, o
dito Ministro e eu, escrivo, [ilegvel] ao dito sesmeiro por empossado.
(grifos nossos)803
801
CARTA de sesmaria de Manoel Correia Neves, adiante do arraial de So Gonalo, 1 fevereiro de 1753.
APM-SC 94, fl. 171. O capito Joo Rodrigues Moreira j havia sido citado quando da primeira remedio feita
por Joo Crisstomo em 1778 e reconhecido como confrontante no auto de remedio. AUTOS de sesmaria de
Joo Crisstomo, fls. 15 a 16 verso.
802
PROCURAO bastante que fazem Pedro Vieira mbar, Narciso Vieira mbar, [...], Catarina Maria de
Jesus, paragem do Ouro Fala, distrito da Campanha do Rio Verde, 18 de agosto de 1780. AUTOS de sesmaria de
Joo Crisstomo, fls. 69 a 70 verso.
803
AUTO de posse da sesmaria do doutor Incio Jos de Alvarenga. AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo,
fls. 65 verso e 66.
347
Cunha gastou 71$127 ris para medir sua sesmaria na paragem do Quilombo do Ambrsio,
em 1766,804 ou seja, menos de um tero do que gastou Alvarenga Peixoto. A sesmaria de
Constantino tambm era de trs lguas de comprido por uma de largo. Teria havido alguma
liberalidade interesseira de Alvarenga com as autoridades que remediram sua sesmaria?
Foi somente em janeiro de 1781 que os embargantes apelaram nos autos contra a posse
das terras j sentenciada a favor de Alvarenga Peixoto. Constituram o doutor Vicente Ferreira
Alves Eborense como seu advogado. Em 11 de janeiro o doutor Eborense j apresentava ao
juzo das sesmarias 24 artigos em defesa dos direitos dos embargantes.805 O advogado dividiu
sua defesa em duas partes. Na primeira, procurava argumentar que na apelao nos autos feita
na segunda quinzena de agosto de 1780, apelava-se para a ouvidoria e o juzo das sesmarias
devia e deve mandar remeter esta causa e com os autos para o referido ordinrio
competente, ou seja, para o ouvidor da comarca. Na segunda parte, seus 17 artigos, pedindo
sempre que fossem ouvidas testemunhas nos autos, centravam-se em cinco questes:
804
AUTOS de sesmaria de Constantino Barbosa da Cunha, 1766. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 29.
805
EMBARGOS oferecidos pelo doutor Vicente Ferreira Alves Eborense, 11 de janeiro de 1781. AUTOS de
sesmaria de Joo Crisstomo, fls. 72 verso a 75.
348
Terceira: as artimanhas montadas por Alvarenga Peixoto para ter o domnio e a posse
da sesmaria dentro da comarca na qual ele era ouvidor, o que lhe era defeso. O advogado dizia
que o embargado entrou a dominar e a possuir os ditos bens, desfrutando-os e fazendo-os
cultivar por seus feitores e administradores nesse tempo e o mais que serviu de ouvidor geral
e corregedor desta comarca. Alvarenga teria usado os nomes de Joo Crisstomo e do tio
Sebastio de Alvarenga para usufruir da terra enquanto estava proibido de t-la em seu
prprio nome.
No podemos deixar de considerar que um dos fatores que gerou tanto interesse pelas
terras, talvez mais do que a agricultura, tenham sido mesmo as terras minerais. No dia trs de
maro de 1788, escrevendo ao sargento-mor Joo da Silva Ribeiro de Queirs para justificar
atraso no pagamento de dvidas, Alvarenga Peixoto dizia a respeito das lavras: bem certo
que no ano de oitenta e sete tirei pouco, porque esperando de vinte e cinco mil cruzados para
cima, pouco me passou de treze.806 Descontando algum exagero e os elevados custos de
minerao, seguro afirmar que as lavras eram interessantes.
Momento delicado dos processos, a inquirio de testemunhas foi sendo adiada pelas
partes em sucessivos requerimentos entre 26 de fevereiro e 13 de setembro de 1782.807 Para
Mrcia Motta, longe de se constiturem em atores secundrios, estas testemunhas eram peas
fundamentais na consolidao de um processo. Era importante que a sua escolha fosse
bastante criteriosa.808 Os embargantes, mesmo sendo muitos, conseguiram produzir oito
testemunhas e o embargado, doze. Eram todos homens maiores de 38 anos. Entre as
testemunhas dos embargantes, somente uma foi registrada como homem branco. J o
embargado trouxe oito homens brancos para testemunhar nos autos. Sete das oito
testemunhas dos embargantes tinham 60 anos ou mais, sendo dois capites, um licenciado e
um juiz ordinrio. Oito dos doze depoentes do embargado tinham 50 anos ou menos, um deles
era sargento-mor, dois capites, trs guardas-mores. Desses trs ltimos, um era Tom de
Gouveia S Queiroga, Cavaleiro Professo na Ordem de Cristo, de 84 anos e antigo
proprietrio da sesmaria.
806
LAPA. Vida e obra de Alvarenga Peixoto, p. 69-70.
807
AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fls. 125 a 137.
808
MOTTA. Nas fronteiras do poder, p. 65.
350
declarou ser morador no Rio Abaixo, na paragem chamada o Bengo, arredores da vila de So
Joo del-Rei e ter servido por duas vezes no referido cargo, o que o aproximava do crculo de
influncias de Alvarenga Peixoto. Estava tambm o sargento-mor Brs Alves Antunes,
homem branco, de 63 anos, correspondente de Joo Rodrigues de Macedo no Rio das
Mortes.809 Em 13 de abril de 1780, o capitalista escrevia-lhe uma sucinta carta de Vila Rica:
Hoje, passei uma letra sobre V. Merc a pagar ao Sr. Dr. Ouvidor que vai para essa vila, Lus
Ferreira de Arajo Azevedo, da quantia de 256$532 ris que ir pagar prontamente. Deus
guarde V. Merc muitos anos. Meses depois, em 29 de novembro de 1780, outra carta de
Joo Rodrigues de Macedo esclarecia que Alvarenga Peixoto pagava contas do juiz das
sesmarias do termo de So Joo del-Rei na sua loja de Vila Rica: Doutor Nicolau Barbosa
Teixeira Coutinho, remeti a petio despachada pela qual V. Merc me determinou, e esta
serve de dizer a V. Merc que tenha a bondade de mandar-me dizer quanto ficou devendo
nesta loja de fazendas que nela comprou, e porque querendo o doutor Alvarenga pagar essa
quantia, no me apresentaram os assentos [...].810
O fato de serem todos homens, de idade provecta, alguns titulares de cargos e patentes
no era gratuito. Era uma preocupao das partes apresentar testemunhas qualificadas e,
portanto, de maior crdito. Quanto cor da pele, as brancas, perante o juiz, poderiam vir a
ser melhor compreendidas, numa sociedade marcada pela escravido e pelo racismo.811
As testemunhas eram chamadas para provar o que os advogados haviam alegado nos
embargos, rplica e trplica. Alm do peso que teriam as qualidades dos sujeitos, tambm
pesava, nos testemunhos, a maneira como haviam declarado o que sabiam dos quesitos sobre
os quais foram inquiridas. A testemunha ao dizer que sabe pelo ver, sabe pelo ver e
presenciar, sabe pelo ver e ser notrio teria maior crdito do que a que declarasse: sabe
por ser pblico, sabe por ser voz pblica e constante, sabe pelo ouvir dizer, sabe pelo
ouvir dizer a pessoas de que se no lembra, sabe pelo ouvir dizer e por ser fala pblica ou
disse que sabe, regulando-se pelo consenso do pas, e lhe dizerem algumas pessoas de cujos
nomes se no lembra.812
809
INQUIRIO das testemunhas o capito Francisco Neri Bravo e capito Brs Alves Antunes, da parte do
embargado doutor Incio Jos de Alvarenga Peixoto. AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fls. 183 a 185.
810
OLIVEIRA. Um banqueiro na Inconfidncia, p. 17 e 181.
811
MOTTA. Nas fronteiras do poder, p. 65.
812
INQUIRIO de testemunhas dos embargantes Gaspar Vaz da Cunha e outros e do embargado, o doutor
Incio Jos de Alvarenga Peixoto. AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fls. 140 a 184 verso.
351
Antnio Martins Leme, natural de Curitiba, tambm roceiro e com 77 anos, disse que
sabe pelo ver e acompanhar o dito escrivo Neri, que este no [levou] em sua companhia juiz,
louvados, medidores ou outra alguma [pessoa] nem l as teve [ilegvel] como daria a dita
medio da referida sesmaria na qual deu posse ao mesmo Mesquita sem mais diligncia que
andar a cavalo pela estrada que ficava prxima s mesmas terras sem fazer picada ou entrar
por elas [ilegvel] com tanta brevidade que no mesmo dia que deu princpio quela diligncia
voltou com ela feita na forma que tem declarado. Disse tambm que que sabe pelo ver que a
medio do capito Neri foi imaginria e, portanto, ia sem averiguar os rumos, seguir as terras
ou medi-las.
813
Idem, ibidem.
352
O capito Francisco Neri Bravo, homem branco, minerador, maior de 50 anos, afirmou
que certo que, no tempo em que ele, testemunha, deu posse da mesma sesmaria de que se
trata, aquela paragem era ainda muito pouco povoada, principalmente nas matas, pois s tinha
alguns moradores pelo crrego acima, [...] junto com o juiz ordinrio que ento era Osrio
Nunes, junto com outras mais pessoas foram passar o rio Sapuca e, da parte de l, fizeram
atos possessrios a fim de ficar pertencente aquele distrito a esta comarca. Ainda disse que
verdade que a sesmaria de que se trata, a qual ele, testemunha, deu posse ao dito capito
Francisco Xavier se mediu e demarcou com as solenidades que se praticavam naquele
tempo.
Sapuca, atravessaram (sic) essa confrontao apanhando terras dos embargantes. Tambm
disse que sabe pelo ver que as terras dos stios dos embargantes so sitas fora das porteiras
da fazenda da Boa Vista, para que foi pedida a sesmaria de que se trata e sem que o sesmeiro
e seus sucessores plantassem em terras fora das mesmas porteiras. Declarou mais que sabe
pelo ver que o sesmeiro e seus sucessores nunca cultivaram terras para fora das porteiras da
fazenda da Boa Vista, de forma que junto, digo, desviado das mesmas porteiras se mediram
duas sesmarias em que ele, testemunha, tambm foi interessado e hoje so pertencentes
sociedade do Campo Grande, as quais ficam de permeio da dita fazenda e da do embargante
Gaspar Vaz da Cunha.
O guarda-mor Tom de Gouveia S Queiroga disse que verdade que Joo Francisco
Grillo mediu a sua sesmaria em que compreendeu muita parte das terras da sesmaria que hoje
do embargado e escreveu a ele, testemunha, que se achava no Rio de Janeiro, que
compreendendo a sua sesmaria algumas terras dele, testemunha, que no as queria e por esta
razo se no ops o procurador dele, testemunha, Bento Correia de Mello e, desta medio,
porm, vindo ele, testemunha, do Rio de Janeiro para a dita fazenda e sesmaria que hoje do
embargado, falou ao dito Grillo que nada queria delas e isto mesmo reconheceram e souberam
os sucessores do dito Grillo, tanto assim que alguns destes que plantaram em terras da
sesmaria que hoje do embargado, foi com licena dele, testemunha, como foi Bento Correia
de Mello e outros de que se no lembra.
814
AUTOS de sesmaria de Joo Francisco Grillo, 1756. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 04.
815
AUTOS de sesmaria de Incio Alves Pimenta, 1756. AHET/IPHAN-MG/SJDR, caixa 13.
355
Francisco Grillo vendeu essas terras ou parte delas a Alvarenga Peixoto, por intermdio de
Joo Crisstomo da Fonseca Reis.816
816
DECLARAO de Joo Crisstomo da Fonseca Reis, Campanha do Rio Verde, 20 de agosto de 1778.
AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fls. 43 e 44.
356
5.7 O desfecho
Foi curioso observar que muitas das citaes latinas dos juristas clssicos, que nos
esforamos para traduzir,817 repetiam ou explicavam os textos em portugus que as
antecediam, pouco acrescentando a eles. Com a citao literal dos antigos juristas,
sacralizavam o que j havia sido escrito em portugus, cumprindo, talvez, o formalismo que
envolve o prprio uso e domnio dos hermticos textos jurdicos. bvio que tambm, como
fazemos todos ns, cientistas sociais do presente, as citaes tinham o peso da autoridade
consolidada dos antigos e prestigiados juristas. Como nos ensina Bourdieu:
817
A compreenso das citaes em latim s foi possvel com a ajuda de um latinista, o professor Joo
Evangelista Magalhes, ex-padre catlico. Mais curioso ainda foi constatar uma excessiva quantidade de erros
nos excertos latinos. Segundo o professor Magalhes, muitas das citaes contm erros referentes tanto ao uso
das declinaes dos nomes, quanto s conjugaes das formas verbais, dificultando o entendimento dos textos.
Como a letra das citaes no processo a dos prprios advogados ou de auxiliares seus e no dos escrives ,
possvel apontar algumas razes para isso: uma certa ignorncia do latim, uma cpia apressada ou erros nos
livros nos quais foram feitas as consultas. Tudo isso sem deixar de considerar, bvio, as prprias limitaes da
transcrio do documento, a qual, embora por ns feita com o maior cuidado, pode no estar isenta de
incorrees.
818
BOURDIEU. O poder simblico, p. 212.
357
porteiras da sesmaria e a realizao de duas remedies (1778 e 1780) cada uma delas
alterando os rumos dos marcos e avanando mais sobre as terras dos embargantes.819 Vicente
Ferreira Alves Eborense estruturou seu arrazoado em quatro partes.
819
RAZES finais do doutor Vicente Ferreira Alves Eborense, advogado dos embargantes Gaspar Vaz da Cunha
e outros. AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fls. 187 verso a 196. Todas as citaes dos arrazoados do
advogado referem-se a essas folhas dos autos.
358
820
RAZES finais do doutor Jos da Silveira e Sousa, advogado do embargado, o doutor Incio Jos de
Alvarenga Peixoto. AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fls. 198 verso a 208. Todas as citaes dos
arrazoados do advogado referem-se a essas folhas dos autos.
359
extenso de terras pertenceriam ao sesmeiro? evidente que no. Quanto s terras estarem
ou no cultivadas, uma das principais exigncias das doaes, argumentou:
Donde importa pouco, ou nada, que se no tenha plantado das porteiras para
fora, porque da se no segue que a sesmaria no compreenda terras da parte
de fora das porteiras, e menos que se tenha perdido o domnio dessas terras
em que se no tenha plantado, e ainda que os embargantes alcanassem,
depois, carta de merc de sesmaria, por no estarem cultivadas essas terras,
lhe no poderia valer, porque no da inteno do Soberano conceder terras
j concedidas, ainda que parte delas estejam incultas.821
E respondendo, por fim, questo do direito posse dos embargantes pelos trinta anos
ou mais de moradia no lugar da contenda, o doutor Jos da Silveira e Sousa, afirmou: os
embargantes que nem domnio nem posse tm em as terras em que se intrusaram (sic).
Domnio no, porque nem alegam que tenham ttulo, nem mesmo o mostram. Posse, da
mesma forma no, porque intrusa e lhe no pode aproveitar ainda que fosse imemorial,
como so expressas Leis do Reino ex livro 2, ttulo 28. Disse ainda que os embargantes no
poderiam alegar prescrio da posse e domnio dos proprietrios da sesmaria da Boa Vista,
pois mesmo com a morte do capito Mesquita, em 1742, a fazenda da sesmaria sempre fora
administrada por procuradores e mais pessoas que a se nomeiam, como se eles fossem os
rfos ou como ainda que estes pessoalmente administrassem a fazenda.
821
RAZES finais do doutor Jos da Silveira e Sousa, advogado do embargado, o doutor Incio Jos de
Alvarenga Peixoto. AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fl. 202.
360
e detalhado, no faz a menor meno a elas e nem o mapa apresentado pelos embargantes as
considera.
De fato, seria uma tautologia falar em imparcialidade das sentenas proferidas pelos
juzes, mesmo que fundamentadas nos termos dos autos, na legislao, nos juristas, nas provas
e nos testemunhos. Para Pierre Bourdieu, a interpretao da lei nunca o ato solitrio de um
magistrado ocupado em fundamentar na razo jurdica uma deciso mais ou menos estranha,
pelo menos na sua gnese, razo e ao direito que ele mesmo v como um instrumento
dcil, adaptvel, flexvel, polimorfo. Decorreria da, ento, que as sentenas tambm so
um trabalho de racionalizao, ao fazer aceder ao estatuto de verdicto uma deciso judicial
que deve, sem dvida, mais s atitudes ticas dos agentes do que s normas puras do direito.
822
BLOCH. Introduo histria, p. 121-122.
361
Tal racionalizao confere a esta deciso judicial a eficcia simblica exercida por toda a
ao quando, ignorada no que tem de arbitrrio, reconhecida como legtima.823
823
BOURDIEU. O poder simblico, p. 223-225.
824
AUTOS de sesmaria de Joo Crisstomo, fls. 208 verso e 209.
362
Maria Jos e Arno Wehling nos chamam a ateno para as interferncias polticas que
podiam permear as decises do Tribunal da Relao do Rio de Janeiro. Segundo eles,
existem muitos fatos e indcios que desmentem o desejado afastamento dos magistrados da
sociedade por eles jurisdicionada. Os autores de Direito e Justia no Brasil Colonial
apontam as relaes pessoais de negcio e de parentesco dos desembargadores do Tribunal da
Relao, no deixando dvidas quanto insero deste grupo na elite colonial, podendo-se
inferir que os mecanismo de cooptao, familiares ou econmicos, certamente contriburam
para dar voz ativa aos interesses locais, fossem ou no legtimos e legais luz dos valores e
das leis ento vigentes.826
825
BOURDIEU. O poder simblico, p. 241-242.
826
WEHLING; WEHLING. Direito e justia no Brasil colonial, p. 288, 320. Vide tambm captulo 15 A
magistratura e sua rede de relaes sociais, p. 287-320.
827
ADIM, v. 6, p. 171.
363
de 1796 e 1798, foram produzidos 1.157 carros de milho, 1.904 alqueires de feijo e 163
alqueires de arroz.828 Com a priso, o degredo e a morte de Alvarenga Peixoto, em Angola, no
ano de 1792, a administrao da fazenda dos Pinheiros, antiga Boa Vista, passou para o
controle de Joo Rodrigues de Macedo que arrematou a parte sequestrada dos bens do
inconfidente em 1795.829
Para alm do prestgio, do poder e das relaes mantidas pelo antigo ouvidor,
pudemos perceber que ter um ttulo de sesmaria confirmado era um argumento extremamente
poderoso para ter o pleno domnio da propriedade, muito mais do que o cultivo e a
antiguidade da posse. Quando foi feito o sequestro dos bens do inconfidente Incio Jos de
Alvarenga Peixoto, em outubro 1789, a sesmaria da fazenda Boa Vista, agora chamada
fazenda do Engenho dos Pinheiros, no tinha mais a extenso de trs lguas de comprido por
uma de largo. Ficou registrado no sequestro que contavam trs lguas de terras de cultura de
comprido e lgua e meia de largo.830 De norte a sul, na extenso de vinte quilmetros, a
fazenda foi acrescida de uma faixa de meia lgua, ou mil e quinhentas braas, para o lado
leste. Como foi dito anteriormente, Alvarenga Peixoto comprou mais terras do capito
Manoel Teixeira Ribeiro para o lado leste. Mas, ao que tudo indica, essas terras ficavam na
extremidade norte, prximas serra de So Gonalo, perto do arraial. Ser que ocupava toda
essa nova faixa de meia lgua de norte a sul, rea suficiente para compreender seis sesmarias
de meia lgua em quadra? Possivelmente no. As remedies e mudanas de pio e dos
marcos fizeram a antiga sesmaria da Boa Vista aumentar a sua rea.
828
RODRIGUES. Estudo econmico da Conjurao Mineira, p. 137-138.
829
RODRIGUES. Estudo econmico da Conjurao Mineira, p. 277-278.
830
ADIM, v. 6, p. 171.
Consideraes Finais
A disputa violenta pela terra tambm assola Minas Gerais. As regies norte, noroeste
(margens do rio So Francisco) e nordeste (vales dos rios Jequitinhonha, Doce e Mucuri) so
onde os conflitos mais explodem. Terras pblicas devolutas griladas por fazendeiros
poderosos, que de l expulsam posseiros, e latifndios ocupados por posseiros dos
movimentos dos trabalhadores rurais sem-terra so o estopim da violncia no campo. Muitas
vezes a disputa termina em massacres, como o ocorrido em Felisburgo, vale do Jequitinhonha.
831
Jornal Folha de So Paulo, edies de 7, 8, 11 e 12 de maio de 2008.
365
832
Jornal Estado de Minas, edio de 23 de novembro de 2004.
366
Como podemos observar pelos mapas antigos, a Comarca do Rio das Mortes era muito
extensa. Entretanto, devido nossa opo metodolgica, foi possvel ter uma viso
relativamente ampliada de sua ocupao. Isso porque abordamos situaes de ocupao e
conflito espalhadas por todos os seus limites: da conquista do serto das nascentes do So
Francisco, a oeste, ao povoamento dos sertes dos rios Pomba e Peixe e do Caminho Novo a
leste; da freguesia de Itaverava, ao norte, s freguesias de Carrancas e Campanha, no
Caminho Velho, ao sul.
sesmaria, se no era suficiente para garantir a posse plena da propriedade, era, contudo, ttulo
de enorme valor. Para Mrcia Motta o direito posse, mesmo que reconhecido pelas
Ordenaes, no seria suficiente para questionar o poder expresso [pela] carta.833 Foi o que a
documentao da Comarca do Rio das Mortes pde tambm nos mostrar. Alm disso, para
alm da segurana que o ttulo dava ao grande proprietrio, ter o ttulo oficial de sesmeiro era
tambm um sinal de prestgio e distino.
Prestgio e distino que, segundo Vera Ferlini, associados riqueza produzida custa
do trabalho escravo, permitiam a transferncia da ordem estamental portuguesa para a
colnia. Citando o eminente Florestan Fernandes, Vera Ferlini, conclui: em si mesmo, a terra
no era uma riqueza e iria demorar algum tempo para que ela assumisse esse significado
(mesmo como conexo do capital mercantil), mas erigia-se na base material da transferncia e
da perpetuao de uma arraigada estrutura de privilgios.834 Entretanto, sempre bom
lembrar que as mercs no se limitavam doao de terras. Cargos e honras poderiam ser
muito mais cobiados e tambm compunham o conjunto de privilgios que cimentavam essa
relao rei-vassalos. Relao marcada, da parte dos colonos, por um sentimento de amor e
lealdade ao rei, o que no impedia que se rebelassem com frequncia.
833
MOTTA. Nas fronteiras do poder, p. 108.
834
FERLINI. Terra, trabalho e poder, p. 36.
835
Esse desinteresse dos colonos quanto a medir, demarcar e registrar as terras de sesmaria pode estar associado,
entre outros fatores, ao receio de se verem obrigados ao pagamento de mais impostos. Foi o que observou Marc
Bloch para a Frana do sculo XVIII no seu estudo sobre o cadastramento e as plantas parcelares das
propriedades rurais francesas. BLOCH. A terra e seus homens, p. 35-100.
368
Joo de Sousa Lisboa, o coronel Joaquim Silvrio dos Reis Montenegro e Joo Rodrigues de
Macedo.
Fontes
CARTA do alferes comandante Jos Luis Frana Lira, sobre a ordem de envio de
homens vadios, relaxados e libertinos para conquista de Arrepiados. Mariana, dois de
junho de 1784. Rolo 546, caixa 153, planilha 21.509.
CARTA do alferes comandante Jos Vicente de Almeida sobre a ordem para priso de
vadios e envio para Conquista dos Arrepiados. So Jos, 23 de junho de 1784. Rolo
545, caixa 151, planilha 21.465.
CARTA do capito comandante Antnio Nunes de Resende sobre a ordem para que se
envie para a conquista de Arrepiados todos os vadios e malfeitores. Laje, cinco de junho
de 1784. Rolo 546, caixa 154, planilha 21.535.
CARTA do capito comandante Jos Ferreira da Costa sobre a ordem recebida de envio
de vadios que no possuem estabelecimento para conquista de Arrepiados. Vila Nova da
Rainha, 12 de junho de 1784. Rolo 545, caixa 148, planilha 21.412.
CARTA do capito comandante Manoel da Silva Souza sobre o envio de quatro homens
para a Conquista dos Arrepiados e Abre Campo. Inficcionado, 20 de junho de 1784.
Rolo 546, caixa 153, planilha 21.509.
CARTA do capito Jos Pereira dos Granitos sobre o envio de relao de vadios a
serem mandados para a Conquista dos Arrepiados. Suau, 26 de junho de 1784. Rolo
545, caixa 151, planilha 21.464.
CARTA de Felipe Gomes de Brito a D. Luis da Cunha Meneses sobre o envio de dois
presos para Arrepiados e distrito do Morro. Itamb, 26 de julho de 1784. Rolo 546,
caixa 151, planilha 21.464.
CARTA de Francisco Pires Farinho sobre as terras indgenas tomadas por um padre
para distribuio entre seus amigos. Rio Pomba, 28 de abril de 1780. Rolo 511, caixa
36, planilha 30.072.
CARTA de Joo Caetano de Almeida sobre a lista das pessoas a serem enviadas para a
Conquista dos Arrepiados. Mariana, dois de julho de 1784. Rolo 545, caixa 150,
planilha 21.454.
CARTA de Jos de Deus Lopes sobre o relato das exploraes feitas no rio Pomba e rio
Buruy. Presdio So Joo Batista, julho de 1797. Rolo 506, caixa 17, planilha 10.349.
CARTA de Jos Fernandes Paiva sobre o envio da lista das pessoas empregadas na
conquista de Arrepiados. Antnio Pereira, dez de setembro de 1784. Rolo 544 A, caixa
146, planilha 21.372.
CARTA de Jos Pereira da Fonseca sobre o envio de lista dos homens remetidos a
Conquista dos Arrepiados. Rio do Peixe, 1 de junho de 1784. Rolo 547, caixa 156,
planilha 21.565.
CARTA de Manuel Rodrigues [corrodo] a Pedro Maria Xavier de Atade e Melo sobre
a presena de degredados e pedido de remdios e plvora. Barra do Cuiet, 14 de maio
de 1807. Rolo 506, caixa 17, planilha 10.358.
CARTA dos oficiais da cmara de Mariana que informa sobre a extrao de ouro e
descobrimento de novos lugares na freguesia da Pomba aos Campos dos Goitacases.
Vila Rica, 12 de novembro de 1803. Rolo 523, caixa 75, planilha 20.024.
CARTA dos oficiais da Cmara de Mariana sobre a retirada dos ndios nos sertes do
Rio Chopot. Mariana, cinco de novembro de 1805. Rolo 525, caixa 81, planilha
20.148.
CARTA do padre Manuel Lus Branco, de Joo Pereira Martins e Antnio Lopes dos
Santos para D. Rodrigo Jos de Meneses sobre a expedio de terras minerais, 13 de
setembro de 1780. Rolo 544 A, caixa 146, planilha 21.379.
MAPA dos portugueses com cultura nas vertentes do rio Ub, territrio dos ndios
Coroados, aplicao da Capela de So Janurio. Guidoval, 1 de abril de 1819. Rolo
525, caixa 80, planilha 20.131.
374
MAPA da viagem realizada pelo padre Manuel Lus Branco para a serra dos Arrepiados
por ordem do governador Rodrigo Jos de Meneses. Rolo 525, caixa 79, planilha
20.110.
REGISTROS relativos posse de terra por parte do padre Manuel de Jesus Maria na
freguesia de Mrtir So Manuel, dos Sertes do Rio da Pomba e Peixe, aldeamento e
catequizao dos ndios no perodo de 1768 a 1813. Rolo 533, caixa 109, planilha
20.629.
APM-SC 001 (1605/1799), rolo 01/G3: Registro de alvars, regimentos, cartas e ordens
rgias, cartas patentes, provises, confirmaes de cartas patentes, sesmarias e doaes.
376
APM-SC 002, (1605/1753) (8), rolo 01/G3: Registro de alvars, regimentos, cartas,
ordens rgias, cartas patentes, provises, confirmaes de cartas patentes, sesmarias e
doaes.
APM-SC 007, (1710/1713), rolo 02/G3: Registro de resolues, bandos, cartas patentes,
provises, patentes e sesmarias.
APM-SC 021, (1721/1725), rolo 05/G3: Registro de cartas, ordens, bandos, instrues,
patentes, provises e sesmarias.
APM-SC 030, (1725-1733) (3), rolo 07/G3: Registro de provises rgias, alvars,
confirmaes de patentes e sesmarias.
APM-SC 042, (1733/1739), rolo 09/G3: Registro de sesmarias (com ndice no incio).
APM-SC 072, (1739/1742), rolo 15/G3: Registro de sesmarias (com ndice no final).
APM-SC 080, (1743/1745), rolo 16/G3: Registro de sesmarias (com ndice no incio).
APM-SC 085, (1745/1746), rolo 17/G3: Registro de sesmarias (com ndice no incio).
APM-SC 090, (1746/1749), rolo 19/G3: Registro de sesmarias (com ndice no incio).
APM-SC 094, (1749/1753), rolo 20/G3: Registro de sesmarias (com ndice no incio).
APM-SC 106, (1753/1754), rolo 23/G3: Registro de sesmarias (com ndice no final).
APM-SC 112, (1754/1757), rolo 25/G3: Registro de sesmarias (com ndice no final).
377
APM-SC 119, (1756/1758), rolo 26/G3: Registro de sesmarias (com ndice no final).
APM-SC 122, (1758/1759), rolo 27/G3: Registro de sesmarias (com ndice no final).
APM-SC 125, (1759), rolo 28/G3: Registro de sesmarias (com ndice no final).
APM-SC 127, (1759/1760), rolo 28/G3: Registro de sesmarias (com ndice no incio).
APM-SC 129, (1760/1764), rolo 29/G3: Registro de sesmarias (com ndice no final).
APM-SC 132, (1760/1772) (2), rolo 29/G3: Registro de provises rgias, cartas de
confirmao de sesmaria e provises.
APM-SC 140, (1764/1767), rolo 31/G3: Registro de sesmarias (com ndice no incio).
APM-SC 172, (1769/1774), rolo 37/G3: Registro de sesmarias (com ndice no incio).
APM-SC 206, (1774/1782), rolo 43/G3: Registro de sesmarias (com ndice no incio).
APM-SC 234, (1782/1788), rolo 48/G3: Registro de sesmarias (com ndice no final).
APM-SC 256, (1788/1794), rolo 53/G3: Registro de sesmarias (com ndice no final).
APM-SC 265, (1794/1797), rolo 56/G3: Registro de sesmarias (com ndice no final).
APM-SC 275, (1797/1798), rolo 58/G4: Registro de sesmarias (com ndice no final).
APM-SC 285, (1798/1799), rolo 60/G4: Registro de sesmarias (com ndice no final).
APM-SC 286, (1798/1800), rolo 60/G4: Registro de sesmarias (com ndice no final).
APM-SC 293, (1800/1808), rolo 62/G4: Registro de sesmarias (com ndice no final).
APM-SC 305, (1803/1809), rolo 66/G4: Registro de sesmarias (com ndice no incio).
APM-SC 352, (1810/1814), rolo 77/G4: Registro de sesmarias (com ndice no final).
378
APM-SC 363, (1814/1817), rolo 84/G4: Registro de sesmarias (com ndice no final).
APM-SC 377, (1817/1819), rolo 89/G4: Registro de sesmarias (com ndice no final).
APM-SC 384, (1819/1821), rolo 92/G4: Registro de sesmarias (com ndice no final).
APM-015 Capitania das Minas Gerais nos fins da Era Colonial Jos Ferreira
Carrato MAP 5/2- ENV. 1.
2.2 Sesmarias
AUTOS de sesmaria de Alexandre de Souza Sobral (cedente) e reverendo doutor Jos
Sobral de Souza (cessionrio), 1752, caixa 07 NC (no catalogada).
AUTOS de sesmaria do reverendo doutor Antnio Caetano Vilas Boas, 1782. caixa 10.
AUTOS de sesmaria do capito Antnio Leite Coimbra e Francisco lvares Barbosa,
1758, caixa 01.
PETIO de sesmaria de Antnio Lopes Pereira (PAP 151, fl. 70 verso e 71, 1785-
1791).
PROVISO de Jos Antnio de Andrade como piloto dos rumos e medidor das
sesmarias do termo da vila de So Joo del-Rei, Vila Rica, 28 de julho de 1780. Papis
da cmara PAP 147 (1775-1781), fl. 38 a 39.
REGISTRO de uma nominata de juiz das sesmarias para o Ilmo. e Exmo. Sr. General
em que se lhe participava reconduzir a cmara desta vila ao doutor Joaquim da Silva
Tavares no mesmo cargo, para ele o prover. So Joo del-Rei, 20 de agosto de 1785
(PAP 150, fl. 89, 1784-1785).
INVENTRIO de Domingos Ribeiro Guimares (1786), cdice 34, auto 405, Cartrio
do 1 Ofcio.
INVENTRIO de Matias Barbosa da Silva (1742), cdice 101, auto 1.257, Cartrio do
1 Ofcio.
LIBELO Cvel (1739): Matias Barbosa da Silva (autor); Incio de Azevedo Carvalho
(ru), cdice 646, auto 25.486, Cartrio do 2 Ofcio.
SESMARIA (1790) BRANCO, Manoel Luiz (Padre), cdice 3, auto 116, Cartrio do
1 Ofcio.
383
CARTA de Lus Diogo Lobo da Silva, governador das Minas Gerais, a D. Jos,
propondo Jos Veloso Carmo para o posto de capito da Cavalaria Ligeira Auxiliar do
distrito de Tripu e parte de Vila Rica, 20 de agosto de 1765, caixa 85, doc. 72.
CARTA de Manuel Jesus Maria, vigrio dos ndios Corops e Coroados para D.
Rodrigo de Souza Coutinho, expondo o prejuzo para os ndios na concesso de
sesmarias pelo governador das Minas, 1799, caixa 149, doc. 062.
CERTIDO de Lus Diogo Lobo da Silva, governador das Minas, confirmando que o
capito Jos lvares Maciel fez entrar na Real Casa de Fundio de Vila Rica mais de
nove arrobas de ouro, 23 de dezembro de 1767, caixa 91, doc. 83.
MAPA geral das sesmarias, com declarao das lguas que se tem dado em as quatro
comarcas pertencentes ao Governo de Minas Gerais desde o ano 1700 at 17 de Julho
de 1768. 1768, caixa 93, doc. 58.
rainha, que por graa especial, lhes concedesse uma iseno do pagamento da dvida
resultante dos prejuzos causados pela guerra no valor de 131:680$505 ris, 26 de
janeiro de 1786, caixa 124, doc. 8.
BENS LIVRES que devem ser incorporados ao Morgado [dos Souza Coutinho] em
compensao da diminuio que ele tem tido, sem data. ANTT/ACL, mao 91, doc. 73.
CARTA de Antnio Loureiro Medeiros para Domingos Teixeira de Andrade, Vila Rica,
s/d. ANTT/ACL, mao 56, doc. 15.
CARTA de D. Francisco Inocncio de Souza Coutinho para Lus Diogo Lobo da Silva,
Luanda, s/d (provavelmente 1763 por ser o ano de posse de D. Francisco no governo de
Angola). ANTT/ACL, mao 56, doc. 64.
CARTA de D. Francisco de Souza Coutinho, marqus de Macei, para uma de suas tias
em Lisboa, Rio de Janeiro, 28 de agosto de 1827. ANTT/ACL, mao 81.
CARTAS de D. Gabriela Asinari para seu filho D. Victorio de Souza Coutinho, Rio de
Janeiro, 25 de outubro de 1819, novembro de 1819 e 14 de maro de 1820. ANTT/ACL,
mao 107, doc. 1.
CARTA de D. Gabriela Asinari de St. Marzan para o Sr. Joo Paulo Bezerra, Rio de
Janeiro, 23 de julho de 1810. ANTT/ACL, mao 66, doc. 25.
CARTA de D. Gabriela Asinari para seu filho D. Victorio de Souza Coutinho, Rio de
Janeiro, 31 de maio de 1820. ANTT/ACL, mao 66, doc. 23.
387
CARTA de Incio Correia Pamplona para o capito Joaquim de Lima e Mello, Fazenda
do Mendanha, quatro de novembro de 1799. ANTT/ACL, mao 85, doc. 27.
CARTA de D. Joo Carlos de Souza Coutinho para sua me, a condessa de Linhares,
Coimbra, nove de dezembro de 1815. ANTT/ACL, mao 68, doc. 03.
CARTA de D. Joo Carlos de Souza Coutinho para sua me, a condessa de Linhares,
Vila Rica, 20 de julho de 1813. ANTT/ACL, mao 68, doc. 03.
CARTA de Joo Pedro Fortes para D. Maria Barbosa da Silva, fazenda do Registro, no
Caminho Novo de Minas, 30 de dezembro de 1765. ANTT/ACL, mao 56, doc. 26.
CARTAS de Lus Diogo Lobo da Silva para D. Francisco Inocncio de Souza Coutinho,
Vila Rica, 18 de novembro de 1763 e 18 de junho de 1765. ANTT/ACL, mao 58, doc.
03.
CARTA do doutor Manoel da Rocha Martins para D. Maria Barbosa da Silva, Vila
Rica, dois de novembro de 1766. ANTT/ACL, mao 56, doc. 11.
CARTA do doutor Manoel da Rocha Martins para D. Maria Barbosa da Silva, Rio de
Janeiro, 20 de abril de 1762. ANTT/ACL, mao 56, doc. 11.
388
CARTAS de Manoel Pinto da Cunha para D. Maria Barbosa da Silva, Rio de Janeiro,
20 de julho de 1757 e cinco de maro de 1764. ANTT/ACL, mao 56, doc. 02.
CARTA de Manoel Pinto da Cunha para D. Maria Barbosa da Silva, Rio de Janeiro, 29
de junho de 1765. ANTT/ACL, mao 56, doc. 16.
CARTAS de Matias Barbosa da Silva para sua filha D. Maria Barbosa da Silva e seu
genro Domingos Teixeira de Andrade, Vila Rica, 20 de julho de 1731 e 26 de abril de
1734. ANTT/ACL, mao 56, doc. 49.
CARTA de Policarpo Baptista Velasco para D. Maria Barbosa da Silva, Vila Rica, 28
de outubro de 1766 e 16 de dezembro de 1767. ANTT/ACL, mao 56, doc. 09.
CARTA de D. Rodrigo de Souza Coutinho para um dos seus irmos em Lisboa (D. Jos
de Meneses?), Turim, 21 de outubro de 1788. ANTT/ACL, mao 62, doc. 19.
CARTA de D. Rodrigo de Souza Coutinho para seu irmo D. Jos de Meneses, Turim,
29 de agosto de 1795. ANTT/ACL, mao 62, doc. 16.
CARTA de D. Rodrigo de Souza Coutinho para seu irmo D. Jos de Meneses, Turim,
1 de novembro de 1786. ANTT/ACL, mao 62, doc. 6.
CARTA de D. Victorio de S. Coutinho para sua mulher D. Catarina, Ouro Preto para o
Rio de Janeiro, 19 de fevereiro de 1832. ANTT/ACL, mao 97, doc. 09.
CERTIDO que mostra que em praa pblica desta Cidade se arrematou ao coronel
Domingos Teixeira de Andrade uma quinta ao Chafariz de Arroyos, Lisboa, 22 de
agosto de 1730. ANTT/ACL, mao 111, doc. 03.
DVIDAS com que ainda se acha onerado o Casal do defunto Sr. coronel Matias
Barbosa da Silva que Deus em santa glria haja. ANTT/ACL, mao 56, doc. 27.
INSTRUO por que se deve governar Joo Pedro Fortes, sendo encarregado da
administrao da minha fazenda chamada o Registo de Matias Barbosa. D. Francisco de
Souza Coutinho, Luanda, 1764. ANTT/ACL, mao 56, doc. 64.
PLANO para a cultura da [Quinta da] Lagoalva proposto em novembro de 1802 pelo
Exmo. e Revmo. Sr. Principal de Souza e dedicado Exma. Sra. D. Gabriela.
ANTT/ACL, mao 113, doc. 10.
RAZON de los acredores y resumen geral de la almoneda del Exmo. Sr. D. Francisco
Inocncio de Souza Coutinho. ANTT/ACL, mao 91, doc. 180.
RECIBO de duzentos mil ris de que fez esmola o Exmo. Sr. D. Francisco Inocncio de
Souza Coutinho ao Convento de Santa Joana pela desistncia que sua cunhada, a Sra. D.
Antnia Xavier, fez das suas legtimas, Lisboa, 13 de junho de 1750. ANTT/ACL, mao
93, doc. 86.
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Anexos
ANEXO 1
ANEXO 2
Relao das pessoas que se acham estabelecidas com fazendas no termo da vila de
So Bento do Tamandu, Bambu e Pium-hy fac-smile da folha 1 de 34
ANEXO 3
Amostragem do perfil dos vadios degredados para a Conquista dos Arrepiados, sertes orientais da capitania de Minas Gerais,
por ordem do governador Lus da Cunha Meneses de sete de janeiro de 1784
10 Alexandre Cabra Por ter se divorciado tambm da mulher sem causa, deixando-a ao desamparo e aos filhos. Um ano
Inficcionado Casado
11 - Joo Francisco Pardo Revoltoso, inquietando os vizinhos, valento, relaxado em vcios, desobediente ao pai e descorts a toda Um ano de
qualidade de pessoa. degredo
Rio do Peixe
12 - Lus Pinto Branco Desobediente ao pai, mui relaxado em vcio, valento, sem ofcio. Um ano de
degredo
Rio do Peixe
13 - Calisto Correia da Silva Caboclo Valento, vadio sem domiclio, desinquietando as pessoas. Um ano de
degredo
Rio do Peixe
14 - Antnio Gomes Brabo Pardo Vadio, sem ofcio algum, ruim [de] sujeitar-se ao trabalho. Seis meses de
degredo
Rio do Peixe
15 - Francisco de Souza Bocarro Rio do Caboclo Vadio sem ofcio algum e sem domiclio. Seis meses
Peixe
16- Jos Floarianno Crioulo Vadio sem ofcio, ruim [de] sujeitar-se ao trabalho, vivendo pelas fazendas. Seis meses
Rio do Peixe
17 - Antnio Jos de Oliveira Papagaio No Desobediente ao seu pai, com procedimento escandaloso. Seis meses
(Curvelo) declarados
18 - Joo Gualberto da Silva Papagaio Idem Vadio sem domiclio certo. Seis meses
(Curvelo)
19 - Nicolao Roiz Idem Acostumado a fazer desordens. Seis meses
Papagaio (Curvelo)
20 - Igncio Ferreira Idem Vadio sem domiclio certo. Seis meses
Papagaio (Curvelo)
21 - Joaquim Lopes Pena Idem Vadio sem estabelecimento certo. Seis meses
Papagaio (Curvelo)
22 - Joo Pereira Idem Vadio sem estabelecimento certo. Seis meses
Papagaio (Curvelo)
415
23 - Lus Gomes Pereira Idem Vadio desencaminhador de gados alheios. Seis meses
Papagaio (Curvelo)
24 - Theodozio Gomes Idem Vadio e com mau procedimento. Seis meses
Papagaio (Curvelo)
25 Marcos Idem Vadio sem domiclio certo e desinquietador do sossego pblico. Um ano
Papagaio (Curvelo)
26 - Antnio Martins Idem Vadio sem estabelecimento certo. Seis meses
Papagaio (Curvelo)
27 - Flix da Silva Idem Vadio sem domiclio certo. Seis meses
Papagaio (Curvelo)
28 - Manoel Baslio Idem Vadio sem domiclio certo. Seis meses
Papagaio (Curvelo)
29 Joz Fernandes No Por ser vadio, sem domiclio algum, revoltoso e inquietador da vizinhana. Um ano
declarados
Olhos Dgua
30 Euzbio Dias Pardo Desobediente Trs meses
Santa Ana dos Ferros
31 Joo Lucas Pardo Muito revoltoso e malfeitor Um ano
Santa Ana dos Ferros
32 Francisco Maxado Pardo Por ser ladro de gados e cavalos e tudo o mais que podia furtar, causando, com este proceder, prejuzo Um ano
grande aos moradores do dito distrito.
Antnio Pereira
33 Joz Gonalves Crioulo Por ser vadio e no se sujeitar ao trabalho. Seis meses
Antnio Pereira
Fontes: APM-CC microfilmes rolos/planilhas: 01 a 04 (rolo 545/21.454), 05 e 06 (rolo 545/21.464), 07 a 10 (rolo 546/21.509), 11 a 16 (rolo 547/21.565), 17 a 28
(rolo 546/21.480), 29 (rolo 547/21.565), 30 e 31 (rolo 520/30.592) e 32 e 33 (caixa 146/21.372).
416
ANEXO 4
ANEXO 5
Senhor,
princpio certo que a verdadeira riqueza e poder de qualquer nao sempre proveniente do
seguimento da populao, a agricultura, artes, comrcio e, que promovendo-se isto, se tem conseguido
a felicidade dos povos que os soberanos so essencialmente obrigados a procurar; por isso que o
Prncipe Regente Nosso Senhor e nosso verdadeiro Pai tem procurado sempre a civilizao destes
primevos ncolas deste pas, porque sem ela no pode crescer nem a populao, nem a agricultura,
nem as artes, nem o comrcio.
bem conhecido o carter indolente e preguioso destes indivduos, assim como tambm
sabida a aptido que eles tm para as artes e cincias. , portanto, necessrio que procuremos todos os
meios aptos a destruir este hbito pernicioso para assim os tornarmos teis a si, Ptria e ao Estado.
O primeiro passo que eu julgo indispensvel para este fim instru-los nos Dogmas da nossa
Santa Religio, porque um bom catlico no pode deixar de ser um bom cidado; para conseguir isto,
claro ser primeiro necessrio instru-los na nossa lngua e, para isto, julgo indispensvel estabelecer
na Aldeia que se determinar para a residncia dos ditos ndios um Mestre das Primeiras Letras, a cujo
cargo, e debaixo das vistas do Diretor, devero ser educados os menores, ensinando-lhes a nossa
linguagem e os princpios acima indicados. E para que melhor se consiga o fim a que se prope, ser
inteiramente vedado a estes menores o sarem da Aldeia para os matos e s lhes ser permitido ir s
roas de seus pais, quando j instrudos nestes primeiros princpios, estiverem em estado de poder com
eles trabalhar, no s porque este um meio de os fazer perder o amor aos matos, mas mesmo porque,
deste modo, indiretamente se obriga aos pais deixarem de ser vagabundos, o que assaz precioso aos
fins que se pretende.
Depois de instrudos, tendo chegado idade competente, dever-se-o fazer casar com pessoas
da sua igualdade e dever-se-o, ento, empregar ou na cultura de terras ou em os ofcios mecnicos, e
isto ao arbtrio do Inspetor, que dever espreitar a inclinao natural de cada um para, segundo ela,
empreg-lo.
Pelo que pertence aos menores do sexo feminino, creio [que] nunca se poder conseguir os
fins de uma boa civilizao, se no forem logo, em idade de dois anos, tirados a seus pais e postos em
casas de portugueses estabelecidos, e sero os pais obrigados a trabalhar para a sua sustentao, tanto
quanto for necessrio, o que ser regulado pelo Inspetor, o que dever vigiar muito sobre esta matria
para que se no abuse e ser responsvel pela omisso. E os ditos portugueses sero obrigados a
instru-las nos dogmas e [a] ensinar-lhes a fiar, tecer e cozer, e tudo o mais que indispensvel a este
sucesso, at idade de se casarem, sem que elas, por este trabalho, tenham outro direito que o de as
tratar; e chegando dita idade, lhes ser livremente permitido casarem-se com pessoas de sua escolha,
contanto que lhes sejam iguais.
Logo que se casar qualquer ndio, ser-lhe- demarcado terreno suficiente para a sua lavoura
pelo Diretor.
418
Isto pelo que pertence educao dos mesmos, digo, dos menores, enquanto ao que pertence
aos adultos, eu julgo que o meio mais capaz de os civilizar vem a ser o seguinte:
Primeiro que tudo, devem demarcar-lhes sete lguas em quadra pelo rio Pomba abaixo, de um
lado e outro, principiando a sua medio na divisa da fazenda do falecido Vigrio Manoel de Jesus
Maria at onde inteirar as ditas sete lguas. Deve-se igualmente fazer com que alguns portugueses que
j se acham estabelecidos neste terreno s tenham a poro de terra que lhes chegue para a sua lavoura
e que destas mesmas restituam quela nao metade do seu valor ou quantia que V.A. julgar justa,
vista a sua injusta aquisio, pois que os que aqui se acham no referido terreno, quando se
estabeleceram, j estas terras estavam cultivadas pelos ndios, a quem uns enganaram com contratos
capciosos e lesivos; outros deitaram fora os ndios possuidores, espancando-os e ameaando-os,
obrigando-os, desta sorte, a entranharem-se mais nos matos, o que diametralmente oposto sua
civilizao.
Depois de demarcado o terreno de que se tem feito meno, deve-se obrigar aos ndios a que
faam uma povoao maneira de uma vila ou arraial e para edificao de casas se deve dar uma
ajuda de custo aos ndios para comprarem ferramentas e pagarem algum Mestre de Obras que haja de
erigir isto, porque os outros oficiais podem-se j tirar dos mesmos ndios que, segundo o mtodo j
proposto devem aprender toda a qualidade de ofcios mecnicos; e esta mesma despesa se pode fazer
sem dispndio da Real Fazenda, porque pode-se aplicar para esta despesa o dinheiro que, segundo
V.A.R. arbitrar, devem repor os portugueses estabelecidos nas ditas terras; e mesmo lembro outra
coisa que pode muito bem ser um manancial de fundos, no s para estas despesas, mas ainda para
outras que so absolutamente precisas e vm a ser a seguinte:
constante a grande abundncia da raiz de epiacuanha (sic) que tiram os ndios, assim como
tambm certo o grande comrcio e extrao desta droga. Todos sabem o grande lucro que d este
gnero de negociao, pois que comprando-se ordinariamente aos ndios por trezentos ris a libra,
vende-se tambm, ordinariamente, no Rio de Janeiro, a seiscentos ris, e sendo esta negociao como
at o presente livre de todo o direito, julgo ser muito a propsito estabelecer-lhe algum imposto, cujo
modo e arrecadao V.A. melhor o decidir e o produto deste imposto, com o dinheiro j mencionado,
posto em uma boa administrao, pode concorrer muito para o bom resultado do que se pretende.
No deve igualmente ser permitido a ndio algum sair desta povoao, salvo para as suas
lavouras, ou para outra qualquer parte sem licena do Diretor, o qual dever examinar com muita
circunspeco as causas para conced-la, e deve igualmente estar autorizado para castigar no caso de
contraveno.
Deve igualmente o Diretor estar autorizado para fazer instruir estes adultos nos dogmas; em
caso de resistncia, deve tambm ter autorizao de castigar brandamente.
Ser tambm do dever do dito Diretor mandar, no tempo prprio de fazer roas, um
explorador que deve, com exatido, examinar qual foi o ndio que fez a roa e qual o que a no fez, e a
este ltimo, obrig-lo a faz-la, para o que tambm deve estar autorizado.
Depois de demarcado o terreno mencionado, o Diretor deve estar autorizado para vender
alguns retalhos de terras dos ndios que, por dispersas, lhes no servir, e seu produto dever arrecadar
para consumir-se em ferramentas dos ndios, vesturio das ndias, quando se casarem, ou ter outra
qualquer aplicao que V.A.R. julgar conveniente. E para este efeito, ter um livro de Receita e
Despesa e que ser obrigado a apresentar a pessoa que V.A. determinar para dar a sua conta.
Para evitar os dolos e enganos com que ordinariamente so lesados nas suas negociaes os
ndios, o Diretor dever ter, nesta matria, como debaixo de uma tutela, e no poder ndio algum
fazer negcio de ponderao sem o consentimento do Diretor, e no caso de contraveno, dever
tambm ser autorizado para castig-lo segundo sua matria (sic). V.A.R. determinar, alm disto, as
419
penas em que devem incorrer os portugueses que com eles contratarem sem as referidas licenas e sem
o que, ser inteiramente intil esta providncia.
O Diretor deve fazer tambm que os ndios vo assistir as funes da Igreja. O Reverendo
Proco que V.A.R. houver por bem mandar dever administrar com prontido os sacramentos sem
exigir primeiro salrio algum. E se (sic) haver infalivelmente, todos os domingos e dias santos a
doutrina crist. Enfim, deve preencher em tudo exatamente as funes do seu ministrio e dever
vigiar-se muito sobre isto, fazendo-o muito responsvel por qualquer omisso.
So estas, Real Senhor, as providncias que a experincia me tem feito conhecer serem
absolutamente necessrias para a dita civilizao. V.A.R. suprir e adotar as que lhe parecerem com a
sua costumada sabedoria.
Deus felizmente guarde a V.A.R. como havemos mister. Rio da Pomba, primeiro de junho de
1812.
ANEXO 6
ANEXO 7