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Luiz Roncari

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Luiz Dagobert de Aguirra Roncari

MEMORIAL

2º semestre de 2007
1

Alguns, na estrutura de sua personalidade e por


conseguinte também em suas relações de amizade e
amor, são pessoas da descontinuidade; outros, quando
evoluem, sentem continuamente a necessidade de
reatar os fios de seu próprio tecido.
Quando eu dava aulas de filosofia no colégio de
Toulouse e falava da memória, explicando aos alunos o
que era uma fabricação de si, dizia-lhes, creio, algo do
tipo: “Entendam: na medida em que caminhamos,
sentimos a necessidade, para sabermos quem somos,
de termos um passado mais ou menos coordenado.
Essa construção se faz por meio do contexto social,
mas também pela remoldagem de nosso próprio
passado. É como uma donzela que caminha, usando
um vestido com uma longa cauda; quando muda
bruscamente de direção, com um leve pontapé ela
coloca a cauda novamente atrás de si”. É também o
que nós fazemos.
Jean-Pierre Vernant 1

Uma Estátua de Sal – Eu tenho certo receio de, ao olhar para trás, virar uma
estátua de sal, congelar na imobilidade o que poderá ainda vir a ser. Desse modo,
a intenção deste memorial não é a de um ponto final, mas a de um balanço
provisório de quem vive na periferia de um mundo passando por mudanças
profundas. Viver na periferia é como estar nas franjas do furacão: enquanto o
centro guarda ainda certa fixidez e o indivíduo pode sonhar com o controle de seu
destino, quanto mais se afasta dele, mais sente o turbilhão e a dificuldade de dizer

1
Entre Mito & Política, trad. de Cristina Murachco, São Paulo, EDUSP, 2001, p. 37
2

para onde está indo. Se algo me permite ainda alguma confiança em dizer para
onde vou, é estar vinculado a uma universidade pública e ser apoiado na pesquisa
por uma agência estatal, o CNPq, as quais me garantem ainda um mínimo de
autonomia, estabilidade e recursos para o trabalho crítico constante, com
perspectivas de médio e longo prazos.

O Brasil de Rosa – O estudo que apresentei na minha livre-docência, em 2002, O


Brasil de Rosa – O Amor e o Poder, eu dizia ser um trabalho de confluência e
maturidade. Tudo o que me parecia anteriormente conflitivo e excludente, nele se
reunia e podia ter um enriquecimento mútuo: o interesse pelos estudos históricos,
pela prática literária, pelos estudos literários e pela reflexão político-social sobre o
Brasil. Se, em meus trabalhos anteriores, cada experiência parecia me puxar para
um lado diferente, seccionando-se e isolando-se das demais, na ocasião, o estudo
da obra de Guimarães Rosa teve um efeito catalisador, ou, numa visão mais
rosiana, produziu quase um milagre: fez com que todos os interesses e
experiências confluíssem e se tornassem importantes para a compreensão do que
eu tinha por objeto de estudo. Desse modo, o meu encontro com a obra de Rosa
eu considerava ser um encontro feliz, na medida em que reconhecia também
como uma exigência dela que eu enveredasse por todos esses caminhos e
aproveitasse no seu entendimento as minhas diferentes experiências. Isto me
permitiu soldar num todo intelectual coerente e homogêneo o que até então havia
estado, para mim, muito dividido. Depois de um longo percurso em ziguezague,
sentia-me então como chegado a um bom porto. Tivesse caminhado em linha reta,
teria ancorado antes, mas acho que não saberia o que aprendi no vasto mar, sem
ter desde logo uma rota previamente definida. Penso ser isso a maturidade: a
aceitação dos desvios e o reconhecimento do caminho, de quem se encontrou se
perdendo.

O Espaço e o Tempo – O meu interesse cultural começou um pouco tarde, só


aos quinze anos, quando minha família mudou-se para Campinas. Até então,
havíamos morado em Jaú, quando para lá mudamos vindos de mais longe ainda,
3

de Iacanga, onde morei até os cinco anos de idade, e diziam que lá era “a boca do
sertão do Batalha”. Jaú era uma cidade interiorana, fazendeira, com uma
população muito estratificada e preconceituosa. Na época, ela era ainda uma
região do café, dominada por uma aristocracia rural que começava a compartir o
prestígio com comerciantes, industriais e usineiros de origem principalmente
italiana e sírio-libanesa. Era uma cidade já centenária, de mais ou menos
cinqüenta mil habitantes, mas sem nenhuma biblioteca pública, somente
particulares, pertencentes a alguns fazendeiros, médicos e, como não poderia
deixar de ser, a um farmacêutico ateu e socialista, o “Toninho da farmácia”. Mas
eu era muito novo para ter acesso a ela, nem minha mãe deixava, como ela dizia,
chegava já meu primo mais velho, Vicente, que a freqüentava e, para ela, se
perdia. Como a cidade era uma região de colonização, aberta com a expansão do
café para o Oeste do estado, seguindo a mancha de terra roxa, o valor maior
socialmente difundido era o da riqueza, particularmente a fundiária, que
acrescentava ainda mais prestígio aos sobrenomes das famílias tradicionais.
Todos os que tinham ido para lá, fazendeiros e imigrantes, só tinham em vista isto:
terra e enriquecimento. O colégio em que estudei, o São Norberto do Jaú, de
cônegos belgas, estava mais preocupado em disciplinar, instruir e doutrinar do que
propriamente despertar maior interesse cultural. “Amansar as bestas”, era esse o
termo que usavam os cônegos, para expressar a missão de que se achavam
imbuídos junto daqueles “bichos do mato”, na maior parte internos, filhos de
fazendeiros e sitiantes de mais ainda do interior e que, de certo modo, faziam jus
ao que diziam deles. Entretanto, fazia parte da pedagogia do colégio a música e a
habilidade das mãos, treinadas nas artes manuais, nos brinquedos e nos jogos. O
estabelecimento desse elo entre o uso da inteligência e o das mãos, e a aquisição
de uma noção das dificuldades de se fazer esse trânsito entre a idéia e a sua
objetivação, foi muito importante para a minha concepção posterior de obra e de
arte, e que sempre procurei levar em conta na atividade central a que depois me
dediquei, de estudioso da literatura. Como não tinha também por parte da família
muito estímulo de ordem cultural, tudo reforçava o que era da cidade: os valores
4

típicos da colonização, aqueles mesmos de que fala Paulo Prado, no Retrato do


Brasil, e procuram explicar por que o brasileiro é um triste.
Já a cidade de Campinas, em 1960, quando minha família mudou-se para
lá, era um centro urbano bem mais desenvolvido e complexo, com um interesse
político e cultural muito mais difundido. Isso era particularmente sensível nos
colégios públicos nos quais estudei, famosos no tempo, o Culto à Sciência (sic) e
a Escola Normal Carlos Gomes, que instigavam os alunos à leitura e ao debate de
idéias. Esse mesmo interesse era reforçado por algumas instituições públicas da
cidade, como a Biblioteca Municipal, o Museu de Arte, o Teatro Municipal, o
Centro de Ciências, Letras e Artes – uma fundação criada por antigos fazendeiros
de café, mas muito aberta e democrática –, os cinemas, com sessões de filmes de
arte, os auditórios das rádios, que promoviam encontros musicais e concertos, a
orquestra sinfônica, os grupos de teatro amador, e uma série de eventos artísticos
e culturais promovidos pelo Município e pela PUC, uma universidade bem mais
integrada à cidade, física e culturalmente, do que viria a ser mais tarde a
UNICAMP. Além disso, o tempo, a primeira metade dos anos sessenta, tinha um
apelo político e cultural tão forte e amplo, que fica em minha memória como um
momento invejável da vida brasileira. A absorção cultural era feita e trocada em
diferentes espaços, por isso circulava e era mais compartilhada, não ficando tão
enclausurada nos limites de nossas individualidades, como hoje. Uma cidade
média, de vida amena com relação ao que é hoje, com muitas praças, espaços
públicos e bondes abertos, e uma época em que tudo estava em discussão e se
vivia a crença de que poderíamos participar de suas soluções, creio que foram os
dois elementos fundamentais de minha juventude. Foram eles que contribuíram
para me despertar o interesse pela literatura e pela cultura em geral. Considero,
hoje, uma grande sorte ter sido levado para lá, naquele tempo e com aquela
idade. Tinha uma sede muito grande de ler e conhecer; foi então que passei a me
interessar pela História, começando a ler já no colegial Caio Prado Jr., Celso
Furtado, Nelson Werneck Sodré; pela literatura brasileira e universal, dando
preferência aos autores mais críticos, seja de nossa vida social, como Jorge
Amado, Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade, seja na sociedade
5

burguesa moderna, como Balzac, Eça de Queirós, Sartre, Camus, e a minha


maior admiração na época, Dostoiévski; pela filosofia, com uma professora que
nos fazia ler Simone de Beauvoir, os diálogos de Platão e nos introduzia em
Descartes; pela política, lendo Lenine, Trotsky, Marx, Engels e a literatura do
pensamento de esquerda que se difundia naqueles anos. As diferentes vertentes
do marxismo e do existencialismo eram as correntes de idéias dominantes, cujos
autores líamos e discutíamos, fazendo deles os fundamentos de nossas escolhas.
Sem dizer da forte influência que havia sobre nós também do cinema, da música,
do teatro e de nossos professores do colégio, em boa parte pessoas cultas e que
admirávamos. Foi neles que me espelhei quando decidi ser professor, eram
pessoas íntegras, respeitadas e confiantes. No tempo, essa era uma escolha
considerada e estava no horizonte de um jovem ao pensar o seu futuro e a sua
profissão.

A USP, Quarenta Anos Atrás – Em 1967, eu vim para São Paulo fazer o cursinho
do Grêmio. O meu interesse era o de estudar História; achava que tanto ela era
fundamental para a compreensão da literatura, como esta contribuía em muito
para ampliar a percepção da história. Tinha começado a ler com mais assiduidade
Sartre, Lukács e Gramsci, autores cujas obras remetiam a esses três campos de
reflexão e de meu interesse: a História, a Literatura e a Política. O meu primeiro
ano do curso de História na USP, em 1968, foi intenso; eu me desdobrava para
poder assistir as conferências, os seminários, além dos cursos de professores
como Florestan Fernandes, Paulo Emílio Sales Gomes, Sérgio Buarque de
Holanda, Caio Prado Jr. e tantos outros. Além disso, morava no CRUSP e
participava da política estudantil. Estava assim inteiramente mergulhado numa
vida cultural e política, sentia-me no centro do mundo e como um peixe dentro
d’água. O AI 5 e as cassações de vários professores da USP, em 1969, foram dois
golpes que sentimos fortemente, tanto na vida universitária, quanto no clima
cultural efervescente que ainda se vivia no país, apesar do Golpe de 64. Começou
um período de perseguições, medo e fechamento. A possibilidade de vida política
foi banida e os nossos problemas individuais começaram a ganhar proporções;
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com isso, outros autores se tornaram mais atraentes, como, por exemplo, Freud,
Nietzsche e os que, num ensaio seu, o prof. Paulo Eduardo Arantes chamou,
parodiando Marx, de “a ideologia francesa”: Foucault, Lacan, Deleuze, Derrida.
Foram os anos da contra-cultura e dos estruturalismos. Os cursos que fiz na
História foram importantes, pelos professores que tive e pelos novos autores que
li. Fiz cursos inteiros ou assisti palestras e seminários com os professores
Fernando Novais, Emília Viotti da Costa, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado
Jr., Maria Odila da Silva Dias, Boris Fausto (quando ainda estudioso das greves
de 1917 e da Revolução de 30), Otávio Ianni, Alice Canabrava, George Lefebvre e
outros, de dentro e de fora do Departamento de História. Pude me iniciar nos
autores clássicos e modernos da historiografia brasileira, nos da historiografia
marxista inglesa, como Maurice Dobb e Eric Hobsbawm, mas, principalmente nos
da escola dos Annales, os fundadores franceses do curso de História da USP,
como Fernand Braudel, Marc Bloch, Lucien Febvre. Desde 1969, já vinha
lecionando História do Brasil em cursinhos de madureza e, em 1971, comecei a
dar aulas no Colégio Equipe, que, no tempo, tinha se tornado num centro de
resistência cultural importante.

Os Primeiros Escritos – Em 1973, fui convidado por Ricardo Maranhão e Antônio


Mendes Jr. (o saudoso Paxá) a participar da elaboração de uma série de livros
didáticos de História do Brasil. Esse projeto foi pensado por Antônio Mendes e
Caio Prado Jr., quando estiveram na mesma cela no presídio Tiradentes. Eles
tinham em vista a elaboração de uma série de livros de difusão dos resultados da
nova produção historiográfica acadêmica, que tinha então uma circulação muito
restrita e não chegava a transpirar no ensino médio. Desse modo, a intenção não
era a de se fazer uma nova História Nova do Brasil, como a de Nelson Werneck
Sodré, Joel Rufino dos Santos e outros, que havia sido proibida, mas renovar a
história que se ensinava no secundário, introduzindo nela os novos resultados e
as novas interpretações que estavam sendo produzidas nas universidades. Foram
feitos quatro volumes, dos quais participei dos três primeiros, que foram
patrocinados e editados pela Editora Brasiliense, dirigida então pelo Caio Graco
7

da Silva Prado, filho do historiador: Brasil História: texto e consulta, vols. 1, 2 e 3


(São Paulo, Editora Brasiliense, 1976, 1977 e 1979, respectivamente).
Posteriormente, escrevi uma apreciação crítica desses livros, que apresentei na
31ª Reunião da SBPC, em 1979, em Fortaleza, e publiquei-a com o título: “Brasil
História: um livro do tempo de ser do contra” (Plural, revista de debates, no. 6, São
Paulo, ano III, julho/agosto de 1980). Falava de como eles eram livros escritos
durante um tempo de resistência, o que os datava muito, mas que não poderia ter
sido de outro modo, pois tinham cumprido também para nós a função de tábua de
salvação intelectual e ideológica naqueles tempos duros.

Machado de Assis: o começo e o fim – Em 1974, comecei a fazer pós-


graduação em História Social, com a professora Sônia Apparecida de Siqueira.
Embora estivesse ensinando História do Brasil e escrevendo esses livros sobre o
mesmo assunto, queria aproximar-me mais da Literatura. Por isso escolhi fazer o
mestrado sobre Machado de Assis, porém ainda dentro do campo dos estudos
históricos. Nele, procurei analisar as relações de sua obra com os projetos
culturais do tempo, final do século XIX e início do XX. Eu reconhecia como as
principais expressões de nosso pensamento crítico-literário José Veríssimo,
Araripe Jr. e Sílvio Romero. Estudá-los todos, mais a obra de Machado de Assis e
o período histórico, numa tese de mestrado, era muita coisa; mas valeu a pena,
pela leitura que iniciei deles, em especial de Machado de Assis, a qual nunca mais
parei. Também pude fazer alguns cursos durante o mestrado que contribuíram
muito para complementar a minha formação: “A Filosofia das Ciências Políticas –
o Romantismo: Natureza, Indivíduo e Criação”, com a profa. Maria Sylvia de
Carvalho Franco; “Análise e Interpretação de Memorial de Aires, de Machado de
Assis”, com o prof. Alfredo Bosi; “O Brasil e os Estados Unidos no Século XIX
(Duas sociedades escravocratas)”, com o prof. Richard Graham; e “História das
Instituições Políticas (História das Sociedades Políticas e dos Partidos Políticos na
Província de São Paulo: 1821 e 1842)”, com a minha orientadora, curso que
complementava um outro, que havia assistido como ouvinte, sobre as instituições
políticas do Segundo Império, dado por Sérgio Buarque de Holanda, quando ele
8

ainda preparava um volume sobre o assunto para a coleção que dirigia, História
Geral da Civilização Brasileira. Fiz também, como ouvinte, um curso de leitura de
textos de Antonio Gramsci, com o prof. Francisco Weffort. Gostaria ainda de
lembrar, que no primeiro semestre de 1974, comecei fazendo o curso do prof.
Antonio Candido sobre o romance de Aluísio Azevedo, O Cortiço. Por motivos
exteriores a minha vontade, fui forçado a interrompê-lo no meio. Quando retornei,
para assistir a última aula, o professor fez questão de combinar comigo a
reposição das aulas que eu havia perdido; o que de fato o fez, nas tardes de
quarta-feira, na salinha que tinha no bloco C do CRUSP, justamente no que eu
havia morado. Entretanto, pelos transtornos que havia sofrido, “às vezes a vida
desanda”, comentou comigo o professor, não consegui fazer o trabalho final de
aproveitamento de curso e, com isso, não obtive os créditos respectivos. Foi a
partir do curso do prof. Alfredo Bosi sobre o Memorial de Aires, que decidi estudar
mais a fundo o último romance de Machado, na minha dissertação de mestrado,
que se chamou: “Machado Manifesto - o nacional e a utopia em Machado de
Assis. Um estudo sobre a cultura brasileira”, defendida em 1981. Dela só publiquei
partes de dois capítulos: “Memorial de Aires: a alma em compasso” (Travessia,
Revista de Literatura Brasileira 19, Florianópolis, Editora da UFSC, 2º sem. de
1989) e “Entre a arte a e política” (Rumos, ano 1, no. 2, Brasília, mar./abr. de
1999). Este último trabalho apresentei como comunicação no XX Simpósio
Nacional de História (ANPUH), em Florianópolis, em julho de 1999, com o título:
“Machado de Assis: federação política / unidade literária”. Sempre me interessou
esse cruzamento dos estudos históricos com os literários e é o que ainda hoje
tenho priorizado. Nessa perspectiva, escrevi um pequeno ensaio sobre A
Educação Sentimental, de Flaubert, e a Revolução de 1848, em Paris, que chamei
de “Os chinelinhos de cetim e o rufar dos tambores numa cena de Flaubert” (Com
Textos, Revista do Departamento de Letras, UFOP, Mariana, v. 9, 1999/2000),
originalmente apresentado na VII Semana de Ciências Sociais, Geografia e
História, na PUC-São Paulo, em maio de 1994. Em 1980, pude participar, com
uma série de intelectuais, na Editora Ática, de uma mesa redonda sobre Machado
de Assis, organizada por Alfredo Bosi, José Carlos Garbuglio, Mario Curvelo e
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Valentim Facioli, que resultou na publicação: Machado de Assis, antologia e


estudos (São Paulo, Editora Ática, 1982). Como resultado de minhas leituras de
Machado de Assis, que ainda hoje continuo, como veremos adiante, devo
mencionar dois outros ensaios: “Brás Cubas: sob os signos do Sol e do vento”
(Revista USP, São Paulo, no. 5, março/abril/maio de 1990) e “Dom Casmurro e os
retratos dos pais”, publicado no livro Olhares sobre o Romance, organizado pela
professora do Departamento de Teoria Literária Maria Augusta Fonseca (São
Paulo: Nankin Editorial, 2005). Este ensaio apresentei-o pela primeira vez no
Teatro Municipal de São Paulo, por ocasião da montagem da ópera Dom
Casmurro, em 15 de maio de 1992.

As Experiências Literárias – No final dos anos acadêmicos da década de 70,


resolvi parar um tempo para compor um livro de contos que vinha escrevendo.
Publiquei-o com o título de Os Olhos de Sebastião Valadares (São Paulo, Editora
Espaço, 1980). Eram experiências literárias realizadas durante a ditadura militar.
Falavam muito de mim, da subjetividade e do tempo carregado de perplexidades e
erotismo. Agradou-me a experiência e resolvi continuá-la. Escrevi um pequeno
romance satírico, onde reunia também cartas verdadeiras e poesias que havia
escrito para namoradas, que chamei de Assim não brinco mais (Rio de Janeiro,
Codecri, 1983). Esse livro, embora escrito também como um desabafo, como
revela o próprio título, elaborava uma observação de caráter histórico, que só vim
a perceber com mais clareza posteriormente, mas que considero importante. Na
vida social brasileira, a índia, a escrava negra e, depois, a mulher pobre, sempre
foram usadas como uma reserva abundante de vida sexual para o desfrute dos
homens das camadas dominantes. A vida patriarcal brasileira fechou os olhos e
aceitou o fato como natural, assim permitiu ao homem ter a mulher oficial para a
prole legítima, a índia, a escrava ou a amante pobre para a vida sexual, e o amigo
íntimo para a confissão ou a interlocução política, literária, filosófica, além do
convívio. A misoginia é um fato muito presente e pouco estudado na literatura
brasileira (não seria também o caso entre Riobaldo e Diadorim?). Era o que via na
literatura brasileira, particularmente em Machado de Assis, nos romances, como
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Helena, e nos contos, como “Singular ocorrência”, “Missa do galo” e outros, e que
ele chamava de “a mulher resignada”. Sobre isso escrevi o ensaio: “Ficção e
história: o espelho transparente de Machado de Assis” (Teresa, Revista de
Literatura Brasileira, no. 1, São Paulo, 1º sem. de 2000). Ele derivou de um
trabalho que apresentei no XX Simpósio Nacional de História (ANPUH), em
Florianópolis, em julho de 1999. Nos anos 70, muito por conta das mudanças nos
campos dos valores e dos costumes que se difundiam desde a década anterior,
pela primeira vez, a mulher rica esteve acessível ao homem pobre; a sensação
que se tinha é que haviam suspendido as barreiras e tudo se inverteu nas
relações amorosas entre as classes. Esse era um fato impensável e que havia
sido duramente reprimido, considerado como ato grave e promíscuo, como o que
Alencar ousara propor em O Guarani, o encontro de Ceci com Peri. De repente, o
homem pobre e o negro tiveram acesso à Casa Grande, e a mulher da varanda
desceu para ver o que se passava na festa popular. E isso acontecia fora
daquelas relações que Gilberto Freyre chamava de genrismo, quando o patriarca
escolhia entre os homens pobres talentosos um para casar com a filha solteirona,
mas se dava em relações casuais e informais, o que tinha sido até então
características das estabelecidas nas camadas inferiores. Foi sobre a confusão
criada por esses fatos e os dilaceramentos resultantes deles que falei nesse
romance.
Essas experiências literárias foram para mim como abrir uma picada numa
mata fechada e sentia que poderia avançar e ir mais longe. Ao mesmo tempo,
queria continuar a minha vida acadêmica, considerava importante o estudo
disciplinado e sistematizado. Tinha deixado também o Colégio Santa Cruz, onde
lecionava História do Brasil, desde 1975, e ido para o ensino universitário, em
1981, na PUC/São Paulo, para a cadeira de literatura (Diacronia das Técnicas
Jornalísticas e Teoria do Texto!) no Departamento de Comunicação Jornalística,
do qual cheguei a ser chefe de departamento. E para complicar mais ainda, havia
começado a trabalhar como editor de texto numa coleção de livros chamada
Povos Indígenas no Brasil, editada pelo CEDI (Centro Ecumênico de
Documentação e Informação, hoje Instituto Sócio-Ambiental), que reunia
11

documentos e informações de indianistas, indigenistas, sertanistas, antropólogos,


missionários, historiadores, médicos e sanitaristas, sobre todas as populações
indígenas do Brasil, com o propósito de subsidiar os movimentos de defesa e luta
pela demarcação das terras indígenas. Foi o trabalho de maior relevância social
que fiz até hoje e do qual tenho muita satisfação de um dia ter participado dele:
Povos Indígenas no Brasil, JAVARI, vol. 5, e AMAPÁ/NORTE DO PARÁ, vol. 3
(São Paulo, CEDI, 1981 e 1983, respectivamente).
Como tentativa de reunir essas diferentes atividades em que me via
dividido, ingressei no doutorado de Literatura Brasileira (DLCV/FFLCH/USP), sob
a orientação do professor Antonio Dimas de Moraes, propondo-me a fazer um
estudo sobre a crônica literária no Brasil; porém, senti logo que a pesquisa sobre a
intersecção da literatura com o jornalismo não me satisfazia inteiramente. Mesmo
assim acabei publicando alguns estudos sobre o assunto: “A crônica: duas ou três
coisas que penso dela” (Folhetim, Folha de São Paulo, 9 de janeiro de 1983); “A
estampa da rotativa na crônica literária” (Boletim Bibliográfico, Biblioteca Mário de
Andrade, São Paulo, v. 46, no. 1/4, jan./dez. 1985); e “Sermão, folhetim e crônica:
três gêneros fora do lugar” (Ciência Hoje, Revista de Divulgação Científica da
SBPC, vol. 11, no. 65, agosto de 1990).
Eu continuava escrevendo, interessado na experiência literária, desse modo
resolvi assumir e levar mais a fundo essa prática, sempre no sentido de ver até
onde poderia chegar e orientar numa única direção as diferentes atividades que
exercia. Com o apoio de meu orientador, submeti à FAPESP um projeto de
doutoramento que integrava a experiência de escrever um romance com o estudo
do gênero, tendo sido aprovado. Com isso, passei a dedicar-me integralmente a
essas duas atividades que confluíam: a leitura e o estudo do romance, juntamente
com a criação de um. Durante o doutorado, como já havia transitado inteiramente
da História para as Literatura, fiz três cursos que me foram também de grande
valia para me firmar nessa área do conhecimento: “Teoria da Poesia (Poesia e
Modernidade em João Cabral de Melo Neto)”, com o prof. João Alexandre
Barbosa; “A Crônica de Jornal no Século XIX”, com o meu orientador; e um curso
sobre o Grande Sertão: Veredas, com o prof. Davi Arrigucci Jr., cujo
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aproveitamento, infelizmente, não pôde constar no meu currículo, por tê-lo feito
fora do prazo. Como trabalho de conclusão deste último curso escrevi um ensaio
que publiquei, com o título: “Lugar do Sertão” (Folhetim, Folha de São Paulo, 16
de dezembro de 1984; e reeditado in Revista UFG, ano VIII, no. 2, dezembro de
2006). As inquietações levantadas durante o curso e as novas leituras que fiz do
romance foram muito importantes para a minha decisão posterior de vir a estudar
Guimarães Rosa. Concluí o trabalho de doutoramento e defendi-o em 1988,
chamando-o: “Anatomia do Romance: a teoria e a experiência na construção do
romance Rum para Rondônia”. A parte teórica e crítica continua inédita, mas o
romance ganhou o prêmio Oswald de Andrade, da Secretaria de Estado da
Cultura, de 1990, e foi publicado com o nome de Rum para Rondônia (São Paulo,
Edições Siciliano, 1991). Nesse livro, eu representava, num tom satírico, uma
percepção que tinha de que estava se encerrando um ciclo da vida brasileira: o da
migração do interior para as grandes cidades. Era um movimento que havia
marcado a sociedade brasileira dos séculos XIX e XX, inclusive a minha geração,
o da busca da cidade grande. Eu falava do esgotamento, da deterioração e do teor
violento da vida na metrópole paulista, e do início de um movimento contrário, de
anseio de volta para o interior e reedição da busca do Eldorado ou da
Sabarabuçu, atualizada então como Rondônia, para onde se tinha estendido a
nossa fronteira de colonização, na década de 70. Era um romance que tematizava
o eterno retorno, tanto no plano da vida individual e subjetiva, como no da social,
na medida em que alegorizava uma viagem de volta ao campo, que reeditava as
primeiras penetrações das entradas e bandeiras no Brasil, em busca do lugar
paradisíaco e das esmeraldas salvadoras. Daí a expressão de saudação do título,
Rum para Rondônia, como uma homenagem irônica a essa determinação cíclica
da vida brasileira. A realização desse trabalho permitiu-me continuar
aprofundando a leitura do romance brasileiro, do romance universal, da teoria do
romance e familiarizar-me com a realização romanesca: saber dos problemas
intrínsecos que enfrentava o romancista na sua prática e da premência que vivia
pela necessidade de soluções. Como estava transitando dos estudos históricos
para os estudos literários, sabia das lacunas de minha formação. Procurei supri-
13

las, deixando de lado, talvez em demasia, a História, para dedicar-me inteiramente


à leitura literária, tanto das obras como da crítica e das teorias. Nos anos oitenta,
estavam ainda em discussão as teorias estruturalistas e formalistas, além das
desconstrucionistas. Procurei dar conta delas, embora continuasse lendo Lukács e
as teorias críticas, Adorno e Benjamin, principalmente. Li, e nesse tempo
influenciou-me muito, Bakhtin. Sobre essa leitura publiquei alguns pequenos
textos, como: “Bakhtin e a sabedoria”, in Uma introdução a Bakhtin (Curitiba,
Editora Hatier, 1988); “Ensaio e erro” (Língua e Literatura, Revista dos
Departamentos de Letras, USP, São Paulo, ano XIV, vol. 17, 1989); “Prefácio”, in
Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade, Diana Luz Pessoa de Barros e José Luiz
Fiorin (orgs.) (São Paulo, EDUSP, 1994). Foram anos de procura e formação, os
mais difíceis, talvez, por serem os de mais indefinições. Vivendo de bolsa e de
algumas poucas aulas no curso de jornalismo da PUC, não me encontrando muito
num meio onde predominava o interesse pela semiótica e pela teoria da
comunicação, resolvi me preparar para entrar numa universidade pública e como
professor de Literatura Brasileira, embora estivesse muito interessado também no
estudo da teoria literária, particularmente na do romance.

A Opção Acadêmica – Depois de passar num concurso para a Área de Literatura


Brasileira, na USP, comecei lecionar, no início de 88, ano em que defendi também
o meu doutorado. Para mim, isso ajudou a resolver um número enorme de
indefinições e divisões intelectuais. Fiz um compromisso comigo mesmo de que,
por haver escolhido a vida acadêmica, iria me dedicar inteiramente a ela e, pelo
que tinha conhecido do trabalho no ensino privado, ali eu encontrava não só
melhores condições de ensino e pesquisa, como também autonomia e liberdade
de crítica e pensamento, duas condições vitais para o trabalho intelectual. Sem
elas, ele se desqualifica e não vale a pena. É essa uma das principais razões de
meu empenho na defesa da escola pública, incluindo o ensino universitário público
e gratuito, pois só ele, além de abrir alguma perspectiva para o estudante pobre,
garante o que é decisivo para o conhecimento: a autonomia e a liberdade de
crítica e pensamento. Condições difíceis de serem conseguidas no ensino privado,
14

seja por pressão dos administradores das instituições, seja muitas vezes dos
próprios alunos, que pagam e exigem mais instrução do que formação pelos
recursos “investidos”, interessados nas suas inclusões no mercado de trabalho.
Em função disso, foi-me muito gratificante participar, a convite do prof. Alfredo
Bosi, da Comissão de Defesa da Universidade Pública, instituída junto ao Instituto
de Estudos Avançados – IEA e pela Reitoria da USP, participando da elaboração
do documento “A Presença da Universidade Pública” (USP – Gabinete do Reitor,
janeiro de 2000). Produzi também um outro documento, que chamei de
“Universidade e Sociedade” (IEA – coleção documentos, no. 18, março de 2000).
Tendo assumido inteiramente a vida acadêmica, eu suspendi a experiência
literária, na medida em que via na sua continuidade a aceitação de uma
dependência cada vez maior do mercado, de editores, da autopromoção, da
mídia, além do espírito muito egocêntrico que alimenta as atividades artística e
literária, nas condições em que elas são exercidas hoje. A vida acadêmica, se
bem conduzida, pelo que eu via, poderia levar a um trabalho mais coletivo e
cooperativo, humanamente mais saudável e melhor afinado com os valores que
eu elegia e defendia. Desse modo, dedicar-me a ela seria, antes de tudo, conviver
com interlocutores e procurar aí um ganho de conhecimento e contribuir também
para o enriquecimento de outros, principalmente com a produção de novos
resultados no campo dos estudos literários. Foi isso que me levou à escolha de
um autor para estudar, que, felizmente, optei por Guimarães Rosa, que considero,
hoje, como tendo sido muito acertada. Ele remetia-me tanto ao estudo da
Literatura Brasileira, como da Universal, e levava-me a resgatar o interesse pela
História, que havia deixado um tanto de lado. Em 1990, tive que, senão
interromper, pelo menos reduzir o ritmo da pesquisa específica sobre ele, pois fui
convidado a participar de um projeto da Reitoria da USP, junto à EDUSP e ao FDE
(Fundação de Desenvolvimento do Ensino do Estado de São Paulo), de
renovação do livro didático do ensino médio. A intenção era a de se criar um novo
padrão para o livro didático, voltado mais para a qualidade e preocupado com a
formação do aluno. Escolhi fazer um volume de iniciação ao estudo da Literatura
Brasileira, dos seus inícios até o final do romantismo; coube a um outro professor
15

escrever a continuação, do realismo à literatura mais contemporânea, o qual


acabou não realizando. A mim interessava mais o primeiro volume, na medida em
que me forçava a suprir uma lacuna de minha formação no campo dos estudos
literários brasileiros, a relativa à literatura do período colonial, o que significava,
entre outras coisas, ler a poesia barroca e arcádica e os sermões do padre
Antônio Vieira, o que fiz com grande satisfação. Sobre o último, escrevi um ensaio
que chamei “O espelho católico de Vieira” (inédito), onde comparava a noção de
espelho de seu “Sermão do Demônio Mudo”, com a do espelho pagão do templo
de Demeter, descrito por Pausânias. Escrevi esse volume de literatura brasileira,
que foi publicado com o título: Literatura Brasileira: dos primeiros cronistas aos
últimos românticos (São Paulo, EDUSP, 1995). Em 2001, fiz uma revisão de todo
ele e incluí um sistema de boxes, com notas sobre diversos assuntos e citações
de estudiosos da literatura colonial e romântica brasileira, e incorporei uma nova
bibliografia, boa parte dela publicada depois de 1995. É a segunda edição, de
2002, muito revista e ampliada, que considero a definitiva e que estou
apresentando junto com o Memorial.

A Escolha de Guimarães Rosa – A partir de 1994, concluído o livro de literatura


brasileira, retomei com todo afinco os meus estudos sobre Guimarães Rosa. Dei
quatro cursos de pós-graduação sobre ele, aqui na USP: em 1994, dei um curso
sobre Sagarana (“Cosmovisão, História e Forma Literária em Guimarães Rosa”);
em 1998, um curso sobre a crítica de Guimarães, do qual resultou um trabalho
que chamei de “Formação de uma Tradição na Crítica de Guimarães Rosa”
(inédito); no primeiro semestre de 2002, um curso sobre “O Amor e o Poder no
Universo Rosiano”; e, no segundo semestre de 2005, o curso, no qual reuni os
estudos literários com os estudos políticos do Brasil: “O Estado de Violência e a
Violência do Estado em Dois Livros Marcos de Guimarães Rosa: Sagarana e
Primeiras Estórias”. Uma primeira versão do curso “O Amor e o Poder no Universo
Rosiano”, num formato reduzido, eu apresentei, também em nível de pós-
graduação, no II Seminário Internacional Guimarães Rosa, em Belo Horizonte, no
segundo semestre de 2001. Nesse II Seminário, fiz também uma comunicação,
16

que chamei de “10 teses para o estudo de Guimarães Rosa” (Revista SCRIPTA,
CESPUC/Minas, Belo Horizonte, v. 5, no. 10, 1º sem. de 2002). Em junho do
mesmo ano, apresentei em Moscou, no X Congresso da FIEALC (Federación
Internacional de Estudios sobre América Latina y el Caribe) um trabalho sobre “O
lugar da história na obra de Guimarães Rosa” (in Edilene Matos e outros, orgs., A
Presença de Castello, São Paulo: Humanitas, 2003). Antes da entrega do trabalho
de livre-docência, publiquei algumas de suas partes na forma de ensaios em livro
e revistas especializadas, posteriormente incorporadas à tese depois de
razoavelmente revistas e modificadas, como: “O engasgo de Rosa e a
confirmação milagrosa” (in Lélia Parreira Duarte e Maria Theresa Abelha, orgs.,
Outras Margens, Belo Horizonte: Autêntica, 2001); o mesmo ensaio, numa versão
anterior (in Remate de Males, 20, Revista do Departamento de Teoria Literária,
IEL, UNICAMP, Campinas, 2000); “Irmão Lélio, irmã Lina: incesto e milagre na
‘ilha’ do Pinhém” (Estudos Avançados, USP, vol. 15, no. 42, São Paulo,
maio/agosto de 2001); e “O tribunal do sertão” (Teresa, Revista de Literatura
Brasileira USP, no. 2, São Paulo, 2001).
Antes ainda da livre-docência, escrevi alguns ensaios de literatura brasileira
e fiz duas traduções que gostaria de mencionar. Os ensaios foram estes:
“Macunaíma: virar pedra, estrela ou romance” (inédito); “As Minas de Prata: um
romance histórico”, prefácio à edição do romance de José de Alencar As Minas de
Prata (São Paulo, Ática, 2001), estudo no qual aproveitei um outro, “Aventura e
rotina no romance histórico brasileiro”, apresentado na 108ava convenção do MLA
(Modern Language Association of America), em Nova Iorque, em 27 de dezembro
de 1992; e “O problema José Lins do Rego” (“O contador de histórias José Lins do
Rego”, Cultura, O Estado de São Paulo, 13 de maio de 2001). E foram estas as
traduções: História: análise do passado e projeto social, do historiador catalão
Josep Fontana, traduzido do espanhol e com revisão técnica do professor
Fernando Novais (Bauru, EDUSC, 1998) e Literatura e Engajamento, de Benoît
Denis, traduzido do francês (Bauru, EDUSC, 2002). Além disso, ao longo dos
anos, elaborei quatro reflexões sobre a vida cultural no Brasil, a qual foi sempre
objeto de minha preocupação, desde que comecei a participar dela: “Brasil, rádio e
17

papagaio” (Folhetim, Folha de São Paulo, 7 de agosto de 1983); “Identidade,


nação e atualidade” (Presença, 14, revista de política e cultura, São Paulo,
novembro de 1989); “O espírito do engenho: da visão do paraíso à the waste
land”, in Minorias Silenciadas, org. de Maria Luiza Tucci Carneiro (São Paulo,
EDUSP, 2002); e “O processo de globalização e o ponto de vista da mercadoria
na Literatura Brasileira”, (Leitura - Revista do programa de pós-graduação em
letras e lingüística – UFAL, no. 24, jul./dez. de 1999). Devo mencionar também,
como um apoio inestimável e sem o qual dificilmente o meu trabalho chegaria aos
mesmos resultados, a bolsa de Produtividade em Pesquisa que venho recebendo
do CNPq, desde 1997.

Depois de O Brasil de Rosa – O resultado mais importante de meu primeiro


projeto de pesquisa apoiado pelo CNPq (Processo 304557/90-0, modalidade PQ –
anos de 1997 a 1999) foi a minha tese de livre-docência, defendida em 2002,
posteriormente publicada pela Editora UNESP, com a colaboração da FAPESP: O
Brasil de Rosa (mito e história no universo rosiano) – o Amor e o Poder (São
Paulo: Editora UNESP / FAPESP, 2004; 1a. reimpressão revista, 2004/06). Como
só recebi a aprovação de publicação pela editora no final de 2003 e o apoio de
edição da FAPESP em meados de 2004, passei boa parte desse período ocupado
na preparação do livro: tive que rever integralmente o texto; incorporar as
sugestões de mudanças e correções feitas pela banca examinadora e por outros
leitores dos originais; procurei também atualizar a bibliografia e integrar ao texto
as novas leituras; e acompanhei de perto as revisões das provas feitas pela
editora. Uma vez encaminhado o livro, surgiu-me a possibilidade de publicar, pela
mesma editora, um segundo livro, o qual reuniria alguns ensaios meus inéditos e
uma seleção de outros já publicados em revistas especializadas e livros de
coletâneas. Desse modo, pude combinar, nos últimos anos, a preparação desse
livro com o desenvolvimento de meu projeto de pesquisa: “Mito e História na Obra
de Guimarães Rosa: Três Tempos” (Processo 301036/2003/9 – modalidade PQ –
período de 2003 a 2007). Felizmente, isso foi possível porque, por um lado, vi a
oportunidade de publicar nesse outro livro os resultados parciais da pesquisa, que
18

são os cinco novos estudos sobre Guimarães Rosa que compõem a sua Parte I e
sobre os quais discorrerei mais adiante. E, por outro lado, porque os demais
ensaios, sobre Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade e a questão do
ponto de vista na literatura brasileira, embora fossem trabalhados paralelos ao
projeto de pesquisa, não só desenvolviam os mesmos temas, como também
seguiam as mesmas orientações metodológicas. Sobre isso, discorri na
“Introdução” ao livro, que, entre outras coisas, dizia:

O nome do livro, O Cão do Sertão, tirado do título do primeiro ensaio


sobre Guimarães Rosa, “O cão do sertão no arraial do Ão”, serve de fato para
identificar o seu conjunto, pois ele se refere ao poder desmesurado do homem
na sociedade patriarcal brasileira, ou seja, à forma descompensada de
vivência do amor pelos homens e pelas mulheres, motivo que atravessa a
maior parte dos estudos. Isto não seria novidade, já que é um traço comum da
tradição patriarcal, se essa mesma sociedade não tivesse também as vistas
voltadas para as nações européias e americanas modernas, onde tal
realidade estava sendo superada pela vida republicana e pelo reconhecimento
da nova condição da mulher, também como cidadã. Ao mesmo tempo, as
camadas cultas do país procuravam imitar as novas formas de expressão
literária desses centros avançados, cujos temas se sustentavam nos conflitos
provocados pelas lutas por essa superação, o que tornava ainda mais
problemática aqui a sua efetividade.
Este era um dos fatos que se impunham aos grandes autores de nossa
literatura, o que os obrigava a se defrontarem com uma particularidade quase
exasperante. Mesmo quando a intenção era a de superar a crítica do local e
chegar a um tratamento universal dos temas, a particularidade competia com
ela e se mostrava inclusive como um motivo estético-literário muito mais rico e
fecundo de ser explorado. Os que souberam compreender essa
problematicidade foram os capazes das melhores realizações. (Roncari, 2007,
pp. 9 e 10)

Os “trabalhos já publicados” foram quase todos apresentados


primeiramente em Seminários, Simpósios e Congressos nacionais e
internacionais, cujas referências estão nas notas de rodapé, e só posteriormente
dei a eles um novo acabamento, embora não fosse ainda o final, e os selecionei
19

para o livro. São estes: “Antônio Conselheiro e Getúlio Vargas no Grande Sertão:
Veredas? As Fontes do Autor e os Caprichos da Representação” (Seminário
Guimarães Rosa – Anais 2006 – Governo de Minas Gerais – SEBRAE; O Eixo e a
Roda – Revista de Literatura Brasileira, FALE/UFMG, Belo Horizonte, v. 12, jan.-
jun. de 2006) 2; “Machado de Assis, Oswald de Andrade, Guimarães Rosa e
Marques Rebelo: variações em torno do mesmo tema” (Literatura SCRIPTA,
revista do CESPUC-Minas, Belo Horizonte, vol. 8, no. 15, 2º. sem. de 2004) 3; “A
tríade do amor perfeito no Grande Sertão” (Literatura SCRIPTA, revista do
CESPUC-Minas, v. 9, n. 17, 2º. sem. de 2005; e in Benjamin Abdala Jr/ Salete de
Almeida Cara orgs., Moderno de Nascença, São Paulo, Boitempo Editorial, 2006)
4
; o já mencionado, numa versão muito revista, “O lugar da história na obra de
Guimarães Rosa” (In Edilena Matos e outros orgs.. A Presença de Castello. São
Paulo: Humanitas, 2003) 5; “Machado de Assis: o aprendizado do escritor e o
esclarecimento de Mariana” (Teresa, revista de Literatura Brasileira, São Paulo,
USP/Editora 34, no. 6 e 7, 1º. sem. de 2006; e Clio – Nova Série, Lisboa, vol.
14/15 – 2006) 6; “Ficção e história: o espelho transparente de Machado de Assis”
(Teresa, revista de Literatura Brasileira, São Paulo, USP/Editora 34, no. 1, 1º.
sem. de 2000) 7; “Dom Casmurro e os retratos dos pais” (In Maria Augusta
Fonseca org.. Olhares sobre o Romance. São Paulo: Nankin editorial, 2005) 8; “O
terror na poesia de Drummond” (Revista do Instituto de Estudos Brasileiros,
IEB/USP, São Paulo, n. 43, setembro de 2006) 9; “Esboço para o estudo do ponto

2
Trabalho apresentado Colóquio Internacional Guimarães Rosa (UFRGS/SMC/UniRitter), de 10 a
12 de abril de 2006, em Porto Alegre; na I Jornada de Estudos sobre Guimarães Rosa (UNESP),
em São José do Rio Preto; e no Seminário Internacional 50o. de Grande Sertão: Veredas, de
Guimarães Rosa (UFMG/SECMG/SEBRAE), em 23 de maio de 2006, em Belo Horizonte
3
Trabalho apresentado no VII Congresso Internacional da BRASA (Brazilian Studies Association),
PUC/Rio de Janeiro, em 11 de junho de 2004
4
Trabalho apresentado no III Seminário Internacional Guimarães Rosa, PUC/Minas Gerais, em 27
de agosto de 2004
5
Trabalho apresentado no X Congresso da FIEALC (Federatión Internacional de Estúdios sobre
América Latina y el Caribe), em Moscou, em junho de 2001
6
Trabalho apresentado no I Simpósio Internacional Eça-Machado de Assis, PUC/São
Paulo/UNICAMP, em 17 de setembro de 2003
7
Trabalho apresentado no XX Simpósio Nacional de História – Fronteiras da ANPUH (Associação
Nacional de História), na UFSC/ Florianópolis, de 25 a 30 de junho de 1999
8
Trabalho apresentado no Teatro Municipal de São Paulo, em 15 de maio de 1992
9
Trabalho apresentado no IV Congreso Europeo CEISAL de Latino-americanistas, em Bratislava,
de 4 a 7 de julho de 2004
20

de vista da mercadoria na literatura brasileira” (Crítica Marxista, São Paulo, no. 17,
Editora Revan, nov. de 2003). O livro terá também um longo ensaio inédito sobre o
romance de Machado de Assis, Memorial de Aires, e a sua crítica, escrito no ano
de 2004: “O bom diabo e a marinha de Fidélia” (inédito). Porém, a parte mais
substantiva do livro será constituída pelos dois estudos de abertura, ambos sobre
Guimarães Rosa, os quais são os resultados parciais diretos de meu atual projeto
10
de pesquisa. São eles: “O cão do sertão no arraial do Ão” e “Antônio
Conselheiro e Getúlio Vargas no Grande Sertão: Veredas? As Fontes do Autor e
11
os Caprichos da Representação” . Todos esses estudos estão reunidos no meu
livro mais recente: O Cão do Sertão (Literatura e Engajamento: ensaios sobre
João Guimarães Rosa, Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade), São
Paulo: Editora UNESP, 2007.
Estes dois últimos ensaios realizam muito do que havia proposto no meu
projeto de pesquisa: a diferenciação e a especificação do tempo da ação da maior
parte das obras (Primeira República) e do tempo da escrita ou do autor (o período
getulista – 1930-1954) nos três primeiros livros de Guimarães Rosa; ressaltar a
importância dessa diferenciação para a apreciação do tratamento temático de
cada uma delas; a particularização nelas das formas de relação entre o mito e a
história; e a incorporação, no estudo conjunto que vinha fazendo dos três
primeiros livros do autor, Sagarana, Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas, do
livro Primeiras Estórias. Com isto, foi possível integrar também um terceiro tempo
histórico no estudo, o período do desenvolvimentismo posterior ao “getulismo”,
quando Guimarães aproxima o tempo da ação das estórias de seu próprio tempo,
o da escrita. Procurei mostrar como o traço de união desses dois tempos se dava
através do modo da presença do Estado no país, agora de forma mais efetiva,

10
Trabalho apresentado no Seminário Internacional João Guimarães Rosa – Grande Sertão:
Veredas e Corpo de Baile, promovido pelo IEB/USP, São Paulo, em 15 de maio de 2006; no VII
Seminário de Pesquisa “Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile: 50 anos” (UNESP), em 29 de
agosto, em Araraquara; e na abertura do evento “Guimarães Rosa: 50 anos de Grande Sertão:
Veredas e Corpo de Baile”, (UNESP), em 24 de outubro de 2006, em Assis.
11
Trabalho apresentado no Colóquio Internacional Guimarães Rosa, promovido pelas UFRGS e
UniRitter, Porto Alegre, em 12 de abril de 2006; na II Jornada de Estudos sobre Guimarães Rosa,
promovida pela UNESP, campus de São José do Rio Preto, em 2 de maio de 2006; e no Seminário
Internacional 50º. de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, promovido pela
SECMG/UFMG, em Belo Horizonte, em 24 de maio de 2006
21

tanto na ficção, como na vida política e institucional. Com os resultados iniciais da


integração e do estudo de Primeiras Estórias, pude desenvolver um curso de pós-
graduação, como já referi anteriormente, no segundo semestre de 2005, no qual
comparei os modos distintos da violência nesse livro e em Sagarana. Enquanto
neste o tempo da ação dos contos era o da Primeira República (1889-1930), e o
que se observava era o poder coronelístico e o domínio da violência de grupos
privados, uma espécie de estado de natureza e de luta de todos contra todos; em
Primeiras Estórias já era possível pressupor que o tempo da ação fosse posterior
à Revolução de 30, quando o Estado se fazia mais presente, como o “moço do
Governo”, no conto “Famigerado”, e o delegado Meu Amigo, no conto “Fatalidade”.
Agora, a violência privada podia ser melhor contida ou atenuada por um outro
poder de violência maior, o dos agentes do Estado. Era isso que justificava o título
do curso de pós-graduação que ofereci: “O Estado de Violência e a Violência do
Estado em dois livros-marcos de Guimarães Rosa: Sagarana e Primeiras
Estórias”.
Antes de tratar diretamente da parte mais conceitual e substantiva do
trabalho que venho desenvolvendo, gostaria de relacionar mais dois itens que
considero importantes como resultados parciais de meus trabalhos de pesquisa.
Um primeiro, foi o convite que recebi para dar um curso sobre o assunto
desenvolvido em meu livro, O Brasil de Rosa, na UNAM (Universidad Nacional
Autónoma de México), na cidade do México: “El Brasil de Guimarães Rosa”, em
março de 2005. E, um segundo, os convites que recebi para participar de boa
parte dos eventos ocorridos ao longo do ano de 2006, comemorativos dos
cinqüenta anos de publicação dos livros Grande Sertão: Veredas e Corpo de
Baile. Para mim, eles são relevantes pelas oportunidades que me abriram de
expor e discutir em diferentes espaços e universidades esses resultados:
Seminário Internacional João Guimarães Rosa – Grande Sertão: Veredas e Corpo
de Baile (IEB/USP), em São Paulo; Colóquio Internacional Guimarães Rosa
(UFRS/UniRitter), em Porto Alegre; II Jornada de Estudos sobre Guimarães Rosa
(UNESP), em São José do Rio Preto; Semana de Jornalismo – “Guimarães Rosa
e a Linguagem: 50 anos de Grande Sertão: Veredas”, PUC, em São Paulo; VII
22

Seminário de Pesquisa: Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile (UNESP), em


Araraquara; 52º. Congresso Internacional de Americanistas (52 ICA – 2006), em
Sevilha; Seminário Internacional 50º. de Grande Sertão e Corpo de Baile, Palácio
das Artes/FALE-UFMG, em Belo Horizonte; “50 Anos de Grande Sertão: Veredas
e Corpo de Baile”, (UNESP), em Assis; e X Feira Pan-Amazônica do Livro, em
Belém do Pará.
O Mito e a História em Guimarães Rosa – No ensaio “O cão do sertão no arraial
do Ão”, eu trabalho a novela de Corpo de Baile, “Lão-Dalalão Dão-Lalalão”, nos
seus dois planos constitutivos: o temático e o composicional. No primeiro, estudo a
figura do valentão do sertão (que não se distingue muito da do jagunço),
encarnada no protagonista da história, Soropita, e a sua relação com a prostituta
que ele quer transformar em santa da casa, Doralda, embora o que o atraía nela
eram os seus encantos e o seu poder como dama livre. É este o paradoxo que
vive o herói e a razão de seus tormentos: quer prendê-la em casa como mulher
doméstica e fiel, e, ao mesmo tempo, possuí-la à noite como prostituta. Como
aprecio o herói não só nos seus traços individuais de caráter, mas também como
tipo social, recorro aos antecedentes e descendentes do mesmo na própria obra
de Guimarães Rosa, nos livros Sagarana, particularmente no conto “Corpo
fechado”, e no Primeiras Estórias, em especial nos contos “Famigerado”,
“Fatalidade” e “Os irmãos Dagobé”. Posteriormente, desdobrei esse estudo num
outro trabalho sobre o tema da relação entre a violência e o Estado, já acima
referido. Quanto à composição da novela, estudo como ela começa a ser narrada
do ponto de vista de Soropita, que reproduz na sua visão a do mito de Pandora, tal
como narrado por Hesíodo nos seus dois poemas: “Teogonia” e “Os trabalhos e os
dias”. Esse mito representa a mulher como uma fonte de ilusão e enganos, um
presente enviado por Zeus aos homens para desgraçá-los e punir Prometeu,
como contrapartida aos benefícios dados a eles pelo filho de Iápetos com o fogo
roubado. No entanto, quando novas personagens são introduzidas na novela e,
com elas, outros pontos de vista, a visão do mito começa a ser substituída pela da
história, e as marcas da particularidade da vida social brasileira se tornam mais
patentes. No lugar do mito de Pandora, nós passamos então a apreciar uma nova
23

versão do Dom Casmurro, de Machado de Assis: o marido que suspeita da mulher


12
e do melhor amigo. Com isso, a narrativa se torna mais complexa e ambígua, e
a primeira reação do protagonista é o apelo à violência típica do patriarcalismo
brasileiro, como eu a estudo em sua particularidade no meu ensaio acima referido,
“Dom Casmurro e os retratos dos pais”, ainda que ela lhe custe a vida dos seus
dois entes mais queridos, em troca da manutenção de sua face pública e da
ordem social vigente, da qual ele é o esteio. Esse estudo foi de fundamental
importância para a continuidade de meu projeto, pois ele constitui a base do que
virá a seguir: a análise do jagunço Riobaldo, na segunda parte do Grande Sertão:
Veredas, quando ele chega à Fazenda dos Tucanos e daí para frente. O que
considero como “segunda parte” são os episódios que já não se referem mais à
formação do herói, como as suas heranças materna e paterna; o encontro com o
Menino, no rio de-Janeiro; a vida com o padrinho Selorico Mendes; as inquietudes
e esclarecimentos que lhe causa a canção de Siruiz; o segundo encontro com
Diadorim; todos analisados no “Capítulo I: Genealogia e Formação do Herói”, de
meu livro, O Brasil de Rosa. Os episódios posteriores à passagem de Riobaldo
pela Guraravacã do Guaicui tornam-se agora grandes desafios a serem
enfrentados pelo herói, seja utilizando-se da argúcia e experiência adquiridas para
saber decidir e escolher, seja apelando às forças extraordinárias e milagrosas,
como a tentativa de pacto com o diabo. Essa continuidade foi assim formulada na
“Introdução” ao meu livro, O Brasil de Rosa – o Amor e o Poder, a qual eu concluí,
dizendo o seguinte:

Neste volume procurei apenas armar a equação e levantar os


problemas. Analiso e apresento as principais personagens dessa grande
narrativa composta pelos três livros [Sagarana, Corpo de Baile e Grande
Sertão: Veredas] e tento decifrar os arquétipos e as múltiplas significações do
herói, dos seus amores, dos grandes chefes e da “jagunçama”. No futuro, num
outro volume, tratarei da Luta, dos desdobramentos das relações entre eles,
prenunciados em Sagarana e Corpo de Baile, e desenvolvidos principalmente

12
Sobre o assunto v. os dois ensaios de Roberto Schwarz no seu livro, Duas Meninas. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997; e o meu ensaio “Dom Casmurro e os retratos dos pais”, in O Cão do
Sertão.
24

nos episódios da segunda metade do Grande Sertão: na Fazenda dos


Tucanos; no processo de substituição das chefias; na hora do pacto nas
Veredas Mortas; no périplo da incrível armada Riobaldina; nas batalhas
mortais e reveladoras nos Campos do Tamanduá-tão e no Paredão; e no final
desencantado, no repouso “quase barranqueiro” do herói. 13

O ensaio “O cão do sertão no arraial do Ão”, que abre o livro de reunião de


ensaios, O Cão do Sertão, deverá ser a primeira parte do segundo volume do
livro: O Brasil de Rosa, que deverá ter o seguinte subtítulo: Luta, Violência e
Morte. E a continuidade do atual projeto deverá ser o que está acima anunciado, a
análise detida dos seguintes episódios do Grande Sertão: Veredas: os fatos
ocorridos na Fazenda dos Tucanos; o Pacto nas Veredas Mortas; a substituição
da chefia do bando de Zé Bebelo por Riobaldo; o encontro com os catrumanos; as
batalhas nos Campos do Tamanduá-tão e no Paredão; e o final do romance, com
o herói casado e acomodado “quase barranqueiro” (a segunda e bem-sucedida
tentativa de travessia do liso do Sussuarão, já a analisei no volume anterior).

Buriti do Brasil e da Grécia – Antes, porém, de retornar ao Grande Sertão,


deverei passar por um estudo sobre a última novela de Corpo de Baile, “Buriti”. Aí,
o meu interesse será o de estudar a crise do patriarcalismo e o seu ciclo de morte
e vida, ao mesmo tempo que a tensão entre dialética e repetição no mito do eterno
retorno. É o que de certo modo ela parece encenar: a agonia de uma antiga
família patriarcal, a de “iô Liodoro” (o livro Corpo de Baile havia iniciado com a
dispersão de uma falsa família patriarcal, a de Miguilim, na novela “Campo Geral”),
e os dilemas de sua continuidade, com a formação de dois pares: a efetivação do
encontro entre iô Liodoro e Lalinha, e o casamento entre Miguel/Miguilim e Glória,
a filha do patriarca. Nesse processo, podemos apreciar as complexas relações
entre a determinação e a liberdade, tema importante e de constante preocupação
do autor, além da reprodução dos mitos taurinos dionisíacos da mitologia grega.
Acredito que o estudo dessa novela contribuirá muito para uma melhor
compreensão da visão de Guimarães Rosa sobre as possibilidades do destino do

13
Idem ibidem, op. cit., p. 24, negrito meu.
25

sujeito – a relação entre a liberdade do indivíduo, o seu poder e capacidade de


escolha, e as determinações das circunstâncias, a sua prisão enquanto envolvido
nos e pelos eventos –; além da tentativa de contribuir para especificar o caráter e
o significado da religião e da religiosidade no conjunto de sua obra.
Apesar da necessidade que reconheço de voltar e estudar a novela “Buriti”,
de Corpo de Baile, já iniciei o estudo da segunda parte do Grande Sertão, e o que
fiz até agora resultou no trabalho: “Antônio Conselheiro e Getúlio Vargas no
Grande Sertão: Veredas? As fontes do autor e os caprichos da representação”,
que apresentei, em 2006, em três encontros comemorativos dos cinqüenta anos
de Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile. Eu parti de duas cenas do livro que
me chamaram a atenção por conterem vários indícios que remetiam às figuras de
Antônio Conselheiro e Getúlio Vargas. Eu já as havia apontado em meu livro O
Brasil de Rosa, onde eu dizia:

Só para citar como exemplos e adiantar dois episódios que analisarei no


volume seguinte: quem esperaria encontrar Getúlio Vargas no Grande Sertão?
No entanto, ele aparece, sugerido na figura de seo Ornelas, Josafá Jumiro
Ornelas, cujo nome ressoa o Dornelles, de Vargas; ele é o dono da fazenda
Barbaranha, que por sua vez lembra o influente Oswaldo Aranha dos
governos de Getúlio; e onde o herói – talvez para realizar algum desejo
secreto do autor – desconta o que o gaúcho fizera no obelisco do Rio de
Janeiro, é o Rio Baldo que vai agora amarrar o seu cavalo no pau da bandeira
de São João do seu Ornelas: “No mastro, que era arvorado para honra de
bandeira de santo, eu amarrei o cabresto do meu cavalo” (GSV, 1963, p. 426).
E quem esperaria encontrar também o messiânico Antônio Conselheiro,
sobrevivido no Grande Sertão? Deparamo-nos com ele, na figura do velho
‘goiano-baiano’, quer dizer, do fundo do sertão, Teofrásio (Teofrades, o que
pronuncia palavras divinas, o que anuncia a vontade dos deuses – v. Bailly,
1988, p. 927), prometendo messianicamente mundos e fundos, como o
profeta, “muito conselhante”, e “Homem no sistema de quase-doido, que
falava no tempo do Bom Imperador” (GSV, 1963, p. 488-9, grifos meus) 14

14
Idem ibidem, op. cit. pp. 317 e 318
26

Nesse trecho, cometi um pequeno equívoco, que foi o de confundir o


catrumano Teofrásio com o velho que me lembrava Antônio Conselheiro. Como o
livro se esgotou, na 1a. reimpressão, saída no final de 2006, pude revisá-lo e
corrigi-lo, pois são personagens distintas, embora próximas, pelo modo como
ambos são representados como “profetas armados”. Porém, no ensaio acima
citado, o que faço é justamente analisar as cenas e verificar como estava certo:
elas remetiam de fato a essas duas figuras históricas muito particulares e
significativas de nosso passado. Felizmente, nesse trabalho, não só pude
comprovar que elas remetiam às duas personagens históricas, como também
estas tinham significados opostos, além de importância grande, pelo menos do
meu ponto de vista, para a compreensão geral do livro. Isto, na medida em que
uma, Antônio Conselheiro, é nele representado como o passado e o regresso, e a
outra, Getúlio Vargas, como o futuro e a abertura ou um caminho para uma
possível vida civil, contrastante com a do sertão bravio (uma vereda no Grande
Sertão?). Analisando as cenas, pude ver como as duas figuras se opunham, na
medida em que Antônio Conselheiro apontava para o litoral e Getúlio Vargas para
o interior; as promessas do primeiro levavam à desordem e à desintegração
familiar do herói e as atitudes do segundo à ordem e a sua integração; o caminho
que lhe apontava o velho conselheiro poderia conduzir o herói ao seu antigo amor,
à prostituta Nhorinhá, e o grande fazendeiro patrocinava o seu casamento com
Otacília; enfim, enquanto o profeta armado significava a rebeldia desenfreada e a
volta às crenças ilusórias e falsas promessas, o político pacificador abria-lhe a via
da conciliação civilizatória. Acredito que a boa compreensão dessas cenas será
altamente esclarecedora do viés político-ideológico da visão de Guimarães Rosa,
pois, nas suas representações, encontramos um julgamento e uma avaliação do
nosso passado histórico.
Como contrapeso a esse foco histórico de que tenho me utilizado para a
leitura de Guimarães Rosa, fiz um trabalho no qual procurei resgatar um pouco
mais a dimensão mítica igualmente importante na composição de suas obras. Ele
se limita a registrar a presença do Sol e da Lua, como representações simbólicas,
que atravessam os três primeiros livros do autor, Sagarana, Corpo de Baile e
27

Grande Sertão: Veredas, mas cujos conteúdos intrínsecos ainda precisam ser
melhor investigados, o que pretendo fazer na continuidade de meus estudos. Eu o
chamei de “A dança do Sol e da Lua na Obra de Guimarães Rosa” e o apresentei
na X Feira Pan-Amazônica do Livro, em Belém do Pará (Via Atlântica – Publicação
da Área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa –
USP/DLCV, São Paulo, n. 9, 2006).

Coordenando o Futuro com o Passado – Na continuidade de minhas pesquisas,


eu manterei em boa parte a orientação metodológica que segui até agora e que,
para mim, tem se mostrado muito produtiva. Eu a formulei da seguinte maneira,
num projeto enviado ao CNPq:
No meu projeto anterior, concentrei-me na leitura imanente dos textos: através
da análise miúda e cerrada deles, procurei fazê-los falar e junto com eles o
autor, detendo-me muito nos comentários, para só depois tentar interpretá-los
e entendê-los dentro do contexto literário do tempo. Com isso, pretendia
revelar e distinguir o que era da intenção do autor e o que lhe escapava. Foi
um verdadeiro trabalho de escavação, procurando desentranhar de suas
camadas profundas o que me permitia decifrar o que se apresentava ao leitor
de modo muito enigmático. Na minha pesquisa atual, continuarei preso aos
textos, farei deles e de suas análises a principal fonte de sustentação de
minhas interpretações, porém acentuarei agora uma visão mais externa, de
fora, de modo a poder precisar melhor as semelhanças e afinidades, o modo
pelo qual ele participa do externo e dialoga com outras obras: não só com o
romance e a poesia de 30, mas também com o ensaio e os novos estudos
históricos que construíam na época uma nova visão do Brasil. Com isso,
tornarei mais patente o cruzamento da análise literária com os estudos
históricos, como este trabalho pretende ser, multidisciplinar e de fronteira, e
como os seus próprios temas exigem: os tempos históricos plasmados nas
composições literárias (ao mesmo tempo que organizadores delas também) 15.

15
Sigo aqui muito de perto estas considerações de Jean-Pierre Vernant, feitas quando recebeu
uma distinção pelo trabalho de seu grupo, acerca da orientação metodológica que deu às suas
pesquisas no CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Científica): “a união em um todo das ciências
sociais e das ciências humanas, o estabelecimento de passagens entre setores diferentes, a
criação de estruturas horizontais que recortam todo o campo dos diferentes saberes para recentrá-
28

Se no projeto anterior eu ia de dentro para fora do texto, das exigências de


análise e compreensão dos seus elementos internos para a interpretação e
correlação com o externo, na medida em que aqueles me remetiam para o
contexto literário, cultural, social e político, de forma a apreendê-lo na sua
especificidade e nas suas diferenças, agora inverterei um pouco o tratamento.
Procurarei entender as obras também nos variados contextos nos quais se
integram, dos mais específicos aos mais gerais, do literário ao histórico. A
busca de uma visão mais abrangente da obra de Guimarães Rosa, embora
apoiada ainda em elementos estruturadores de sua forma, as questões
relativas ao tempo e ao ponto de vista do autor (sem descuidar dos aspectos
temáticos já desenvolvidos no primeiro trabalho, como o do amor, do poder e
da formação do herói), dará ao meu trabalho também um caráter de história
literária, além do de estudo literário propriamente dito. Isso é o que também
procuro, situar agora a obra de Guimarães (importância e significado) na
História da Literatura Brasileira. Tentarei apreciá-la como uma obra integrada
num tempo em que se procurava construir uma interpretação e uma
representação do país, tendo em vista um juízo de como se resolviam nessa
formação específica as tensões entre ordem e desordem, civilização e
barbárie, oposições político-culturais, seja no plano das instituições jurídico-
políticas, seja no das formas literárias, que faziam muitas vezes a sua melhor
imagem (ou o seu retrato) parecer ser a “do diabo na rua, no meio do
redemoinho...” 16
Nos novos estudos que venho desenvolvendo, pretendo continuar esse
movimento duplo: de entrada no texto, tendo em vista a sua análise miúda, e a
leitura imanente, porém, não me furtando para isso do uso de informações e
elementos do contexto, particularmente do literário-cultural, para melhor
compreendê-lo; e de saída do texto, com perguntas e problemas cujas respostas e
soluções dependeriam também de pesquisas e informações externas, além de
entendê-lo numa relação dialógica dentro do universo literário e cultural brasileiro

los em torno de um mesmo tema. Essa é a primeira implicação simbólica dessa medalha, do meu
ponto de vista. Uma parte de seu brilho traz um pouco mais de luz para esses espaços marginais,
ainda pouco freqüentados, onde as fronteiras, em vez de serem obstáculos, tornam-se pontos de
cruzamento, passagens e encontros, postos de observação privilegiados”. Entre Mito e Política.
São Paulo: EDUSP, 2001, p. 48, grifo meu.
29

e universal. Como tenho afirmado em vários lugares, tanto o conhecimento de


nossa vida social, político-institucional e cultural tem me ajudado a estudar a
literatura brasileira, como esta tem contribuído muitíssimo para aprofundar a
minha visão daquela. Também, como pode ser visto nas bibliografias de meus
trabalhos publicados, tanto têm me interessado as fontes clássicas da literatura
universal, quanto as fontes brasileiras e particulares, que enraízam organicamente
a obra de Guimarães Rosa na nossa história literária. No entanto, tenho sentido
que houve um desequilíbrio e aprofundei-me mais no estudo das nossas fontes
históricas e literárias, por isso sinto a falta de maior domínio e conhecimento de
algumas outras fontes universais, particularmente da literatura e filosofia, que
tenho detectado e podem me ajudar a melhor enxergar determinados aspectos da
obra de Guimarães Rosa, sem descurar-me, entretanto, da primeira. As fontes às
quais pretendo agora dar maior atenção são a greco-romana, que já tenho
explorado razoavelmente nos trabalhos, e a neoplatônica renascentista. Sobre
esta eu pouco disse até agora, a não ser num momento, quando estudava os
arquétipos amorosos de Guimarães Rosa e identifiquei aí a presença da teoria
amorosa de Marsilio Ficino, apoiado numa observação de Erwin Ponofsky sobre a
sua filosofia do amor:

Esta primeira representação da teoria amorosa de Guimarães Rosa, num


primeiro momento, apóia-se na distinção que fazia Marsílio Ficino – tirada da
tradição platônica e neoplatônica – entre o amor ferinus, o amor humanus e o
Amor divinus, sendo que este “surge a partir de uma percepção ótica e
acústica e se eleva a uma contemplação extática daquilo que transcende não
apenas a percepção mas também a razão” (Panofsky, 1981, pp. 250 e 251)”.
17

Agora tenho encontrado mais elementos não só conceituais como também


iconográficos que me remetem ao estudo dessa escola italiana do pensamento e
da pintura do Quattrocento, presente também na pintura alemã e flamenga dos
séculos XV e XVI. Sobre a importância da pintura como fonte também de

16
V. Mito e História na Obra de Guimarães Rosa: Três Tempos (Processo 301036/2003-9), pp. 6 e
7
17
Luiz Roncari, op. cit., pp. 136 e 137
30

conhecimento e inspiração literária de Guimarães Rosa, podemos ver como ele a


apreciava com sistematicidade e a traduzia em versos, num texto que chama de
“catálogo esparso”, “O burro e o boi no presépio”, no livro, Ave, Palavra (1985, pp.
198). Desse modo, após concluir algumas pesquisas que ainda me faltam nos
arquivos e bibliotecas do Brasil, pretendo passar um tempo pesquisando essas
duas fontes em bibliotecas e museus de Roma, Florença e Paris: a greco-romana
e a neoplatônica renascentista.

Eis aí, muito sintetizado, o meu roteiro intelectual: um percurso um tanto


dispersivo, mas que aspirou sempre a unidade. Apesar das possíveis
contradições, inevitáveis a quem procura, investiga e não se conforma com o
estabelecido, as suas pautas foram as da crença na possibilidade do
conhecimento através da observação, experimentação, pesquisa e reflexão, e a
busca da interpretação e representação da vida social e espiritual de nosso
contexto sócio-cultural, de extração escravista, colonial e dependente. O que faz
da instabilidade a sua marca, por estar sempre sujeito a golpes de todo tipo,
vindos de fora e de dentro, que tolhem as suas possibilidades de acabamento,
fixidez e continuidade. Entendê-lo e criticá-lo através dos estudos literários e
históricos, foi a melhor forma que encontrei de atuação junto a ele, tendo em vista
a sua superação.

Prof. Dr. Luiz Dagobert de Aguirra Roncari


São Paulo, inverno de 2007

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