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O Bode Expiatório e Deus (Deus Uma Invencao) by Rene Girard

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a mais para pregar a luz.

Aliás, o próprio Santo Tomás


o diz, visto que define dessa forma o ato de fé: "Um ato
de inteligência determinado por uma única posição sob a
dominação da vontade".41 Quanto a Pascal, ele co.nsidera­
va a fé como uma aposta, ou seja, como um comprome­
timento durável, um ato de vontade pelo qual o homem
escolhe um caminho : o seu caminho.42

"Deus é uma invenção?", eis uma pergunta à qual res­


pondo sem hesitar: "Não".

Entre as várias concepções de Deus nas sociedades arcai­


cas, por mais numerosas que sejam, há semelhanças de­
mais para que a hipótese de uma pura "invenção" possa
ter a menor chance de ser verdadeira.

Em primeiro lugar, Deus é a personalização do que


chamamos de sagrado. E o sagrado é uma experiência
da violência tão súbita, temível e opressora nas comuni­
dades, que os homens acreditam reconhecer aí um poder
superior a eles, uma força literalmente transcendente que
temem demais para desobedecê-la, e a fortiori para negar
a sua existência.

Deus é essa experiência perso nalizada, repito. Os deu- ·

ses arcaicos não são o verdadeiro D eus, evidentemente,


tampouco são invenções gratuitas, mas interpretações
inexatas, embora necessárias, de violências sociais,
" Santo Tomás de Aquino, Summa, llae; q. 4; par. 1 . entendimentos sem os quais, para mim, jamais teria
•2 Jean-Claude Guillebaud, La Forre de Conviction. Paris, Seuil, 2005, p. 274-77. existido a humanidade. São elas, de fato, que durante

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muito tempo respeitaram a violência que nos ameaça, em relação aos modos de fala r e de se com
portar, mas
a violência que todos produzimos. São interpretações em relação ao desejo. Os hom ens imi tam
os desejos uns
sobre as quais podemos dizer de forma muito legítima, dos outros e, por isso, estão destinados
ao que cha mo
creio, que são inseparáveis do verdadeiro Deus, qo Deus de riva lidade mim ética, processo que exis
te entre pa� ­
que tampouco é inventado, mas formidavelmente real e ceiros sociais e que ten de a se agravar constan
temente
que, aos meus olhos, é o Deus judaico e cristão. Tentarei pelo próprio fato de que a imitação repercu
te de alguma
explicar o meu pensamento. forma ent re os doi s parceiros. Quanto mai
s desejo esse
objet� que você já deseja, mai s ele lhe par
ecerá desejável,
A presença constante de deus observada pela antropolo­ e mais, por sua vez, ele se mostrará desejáv
el aos meu s
gia revela imposições de ordem social. O maior sociólogo olhos. Dessa forma, sab emo s que todas as
rivalida des
francês, Émile Durkheim, disse: "O social e o religioso são tendem a se exasperar. Nos anim ais, as rivalida
des se ma­
a mesma coisa". Essa frase é frequentemente mal interpre­ nifestam nos com bates, em particu lar pela
s fêmeas. p0_
tada: aqueles que creem, no campo francês, tendem a ver rém, esses com bates não são mortais. O
m ime tism o não
em Durkheim um ateu que reduziu o religioso ao social, é tão pod eroso a pon to de só par ar qua ndo
um dos doi s
enquanto que, curiosamente, os anglo-saxões o conside­ com batentes morrer. O com bat ent e mai s
fraco se sub mete
ram como uma espécie de místico que reduziu a sociedade ao vencedor que por isso não o mat a. Há
mui to pou cos
ao religioso. Na verdade, creio que nenhuma das visões crimes intraespecíficos nas esp écie s anim
ais, mes mo entre
é verdadeira. Para compreender o religioso, se formos os mais mim éticos. No hom em, é diferen
te, poi s sab emo s
modernos e acreditarmos na ciência - e, de certa maneira, que o com bat e mimético pod e se torn
ar infi nito, e leva r a
é preciso crer nisso; aliás, tento tornar o meu trabalho essa primeira inv enç ão hum ana : a vin
gan ça.
científico -, temos de admitir que o religioso começa com
a própria humanidade. Creio mesmo que, de certa forma, Vingar-s� é devolver ao adversá
rio a vio lênc ia que ele
a humanidade é filha do religioso: não existiria sem ele. exerceu. E, portanto, o assassinato
. A vin gan ça transcen­
de os individuas, visto que env
olv e os parentes, as fam i­
O homem evolui num meio social que lhe impõe determi­ lias. D�. certa � ane ira, ela tran
scende o tem po e o espaço,
nadas obrigações, as quais não estão presentes no plano o que Jª lhe da, por ass im dize
r, alg o de religioso.
animal, edibora, hoje, falemos em "sociedades" para
descrever os grupos animais. Eu analiso essas obrigações Se, nas sociedades, a vingan
ça fosse tolerada, é evidente
a partir da noção de "mimetismo'', que os gregos cha­ que a espécie hum ana se
destruiria mu ito rap ida mente.
mavam de mímesis e que fazia Aristóteles dizer que o Quando hoje, os me ios de
vin gan ça se tor nam extre­
homem é o animal mais mimético de todos. Isso signi­ mamen te poderosos, a des
truição da vida no pla neta se
fica que, se os animais são miméticos, os homens são toma poss1ve .
· 1 . Que r que iram os ou não , vem o-n os hoj e
ainda mais. A imitação deve ser concebida não somente n uma s"tu
1 açao pro pna men te apo
-
· calí ptic a, no sentido de

66 Deus: uma invenção? capit ulo 2 o bode expiatório e Deus


-
67
revelação drástica da violência humana. A violência do
do desejo mimético. Quando dois individuos desejam a
homem é delatada pelo que acontece hoje, e como ela
rnes ma coisa, virá juntar-se a isso um terceiro ; quando
ultrapassa as possibilidades humanas, coloca também a há três, logo chegará um quarto, e a partir desse momen­
espécie em perigo. Essa espécie que, boje sabemqs ser
to, já se pode prever, as sociedades primitivas tendem
mais antiga do que imaginávamos, mesmo sendo muito
to das a se mobilizar em lutas insanas. Passam então a ser
recente em relação à duração cosmológica.
ameaçadas pela destruição total.

Se a humanidade se perpetua, isso significa que algum


E m todas as épocas arcaicas, inúmeras sociedades foram
processo interrompeu a vingança, impedindo, assim, que
destruídas, pois não encontraram solução para esse pro­
os homens se matem uns aos outros. Portanto, a pergun­
blema. Mas há uma solução natural para esse problema?
ta mais interessante é: "O que impediu que os homens Creio que sim.
se massacrassem completamente, visto que a vingança
não tem fim?". Essa vingança sem fim é uma contradição Chega um momento em que a rivalidade se toma tão
viva, pois ela é proibida em todos os lugares pelo fato forte que os objetos do debate são destruídos. Quando os
de poder destruir a sociedade, e a vingança não é senão homens brigam pela posse de um objeto, nunca podem
um esforço para dar um fim à vingança. Aliás, é por se entender; vão continuar a lutar até que o combate seja
essa razão que, com muita frequência, as medidas sociais decidido. Mas, durante a batalha, esse objeto vai muitas
tomadas contra a vingança não funcionam. vezes ser destruído, e, a partir desse momento, o antago­
nismo passará a ser "puro": ele sempre será mais forte,
Quando as sociedades estão em crise, ou seja, quando mas, o mimetismo não será mais relativo ao objeto, mas
t o do mundo deseja a mesma coisa e procura obtê- aos próprios antagonistas.
J a pela força, há o que denomino de crise mimética,
extremamente violenta, pois cada individuo participa Uma reconciliação paradoxal toma-se possível : se todos
dessa violência. Sabemos que uma sociedade pode se os homens que desejam a mesma coisa nunca se enten­
desorganizar a ponto de levar a uma crise que ameaça dem, porém, aqueles que odeiam juntos o mesmo adver­
a sua sobrevivência. sário se entendem com muita facilidade. De certa forma,
essa harmonia é o que chamamos de política ! Também é
Ao observar os mitos, constata-se que a maioria come­ o que chamo de mecanismo da vitima única, o mecanis­
ça por uma crise dessas. Por exemplo, a peste do mito mo do bode expiatório.
edipiano é uma imagem dessa violência espalhada por
todas as partes. Às vezes, é uma crise social, às vezes, é Quando individuos são contaminados pelo contágio
uma crise natural, ou que se mostra como natural, mas do adversário, ou seja, quando esquecem o seu próprio
que dissimula de fato o que estou descrevendo: a crise adversário para adotar o adversário do seu vizinho que

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capítulo 2 o bode expiatório e Deus
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parece mais atraente, chega um momento em que toda a
E rn outras palavras, por trás do deus, há algo real, um
comunidade está do mesmo lado contra um único indiví­
rn eca nismo que chamo aqui de bode expiatório. Muitas
duo, e não se sabe por que finalmente ele é o escolhido.
vezes pensamos que as pessoas que têm um bode expia­
Se estudarmos os mitos, o de Édipo, por exemplo, vere­
tório deveriam saber. Mas é exatamente isso: ter um bode
mos que essa passagem acontece no próprio momento em
expiatório é não saber que se tem um, é ver essa vítima
que se acredita descobrir o culpado da crise: Édipo. Mas
como o verdadeiro culpado.
Édipo é, entre outras coisas, um manco, um homem dife­
rente dos outros. Não se sabe de onde vêm os seus pais, a
Po rtanto, nas sociedades arcaicas, o deus é sempre cul­
sua família, etc.
pado , e muito mau, muito perigoso, mas às vezes ele se
tra nsfo rma em um salvador, ele decide nos salvar, não se
Finalmente, o herói mítico é uma vítima unânime: ele será
sabe muito bem por quê. Vamos, então, prestar um culto
morto por todo mundo. Todo mundo está contra ele, todo
a ele para tentar tomá-lo favorável .
mundo transferiu a violência - e utilizo a palavra trans­
ferência com conhecimento de causa -, a ponto de toda
O sacrifício, que a meu ver é a primeira instituição
a sociedade matar esse indivíduo. Esse fenômeno existe e humana, consiste, para uma comunidade que conheceu
tem um nome: chama-se linchamento unânime. Nos gran­
esse fenômeno e que se reconciliou, em procurar repetir
des textos sagrados, inclusive os textos bíblicos, percebe­
o assassinato de uma vítima, como na primeira vez em
se que o linchamento tem um papel extraordinário; nos
que essa primeira vítima que todos matamos juntos, em
mitos, na Bíblia, e finalmente nos próprios Evangelhos, de
nome da comunidade, nos salvou. Se recomeçássemos,
uma forma apenas atenuada. Em outras palavras, o assas­
talvez fôssemos novamente salvos. Essa é a razão pela
sinato coletivo tem em todos os textos religiosos um papel
qual creio que o sacrifício é eficaz, pois é o sucedâneo
tão importante que pede uma explicação, e essa explica­
do fenômeno do bode expiatório. Entretanto, ele perde a
ção é o mimetismo, e não a culpa real da vítima.
sua eficácia aos poucos, embora as sociedades arcaicas
funcionem baseadas nele.
O linchamento, por sua unanimidade, reconcilia a
comunidade, e o personagem que foi linchado é vísto
Temos exatamente o mesmo processo no cristianismo.
como muito mau, pois causou a violência na comuni­
Uma comunidade inteira - os sacerdotes do Sinédrio,
dade. Talvez tenha causado um parricídio e um i ncesto
Pilatos, e mesmo Herodes em São Lucas - quer que a ví­
segundo a tese edipiana, muito frequente nos mitos (ao
tima morra, mesmo que fosse somente para desfrutar do
contrário do que Freud acreditava), mas parece muito
espetáculo da sua morte. Dessa forma, nos Evangelhos,
bom a partir do momento em que a sua morte reconcilia
vemos a reformulação desse linchamento, e é a vítima
a comunidade. Ele se torna, então, o deus arcaico, ao
desse linchamento que é divinizada. Aliás, essa é a razão
mesmo tempo muito bom e muito mau.
pela qual os antropólogos da grande época, que eram

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capítulo 2 o bode expiatório e Deus
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todos anticristãos, puderam dizer que os mitos e o cristia­ O que é preciso compreender, então, é essa inversão absoluta
nismo eram parecidos e que o erro dos cristãos foi buscar do sacrifício que faz de Cristo uma pessoa absolutamente
um mito a mais para ter a verdade. Esse religiocentrismo ún ica. Aliás, a Paixão está cheia de fórmulas que nos dizem
é uma forma de etnocentrismo. ex atamente o seguinte: "A pedra desprezada pelos constru­
tores tomou-se a pedra angular''. O que isso quer dizer? Cris­
É muito inquietante. Tão inquietante que o cristianismo to pergunta aos seus ouvintes e ninguém responde. Pode-se
não o aceitou, e não entendeu que poderia tê-lo aceita­ imagin ar que os teólogos medievais e modernos retomaram
do, e que estava prestes a compreender a superioridade uma pergunta colocada por Cristo, para tentar respondê-la.
infinita do bíblico e do cristão a partir do momento em Vocês já viram um teólogo se interessar por essa questão
que via que nos dois casos os mecanismos enganadores colocada pelo próprio Cristo? Nunca ! Ele se interessa por
do bode expiatório agiam. filosof1a grega e por todas as coisas que não estão nos Evan­
gelhos, mas não pela pergunta feita por Cristo.
O que as pessoas não viam e que, no entanto, é de uma
simplicidade desconcertante, é a diferença fundamen- "É melhor que um só homem morra e que o povo seja
tal que há entre os mitos e os Evangelhos. Nos mitos, a salvo''. Isso quer dizer que Cristo é o bode expiatório? Cer­
vítima é sempre culpada, enquanto que na Bíblia, e em tamente: ele próprio aceita tomar-se esse bode expiatório
particular no cristianismo, a mesma vítima é inocente. e mostrar-nos o que nós todos fazemos. Vejam, por exem­
Dessa forma, os textos evangélicos nos dizem a verdade e plo, como nós, os países, nos tratamos. Isso chama muito
o funcionamento do mecanismo, em vez de mentirem. a minha atenção, pois, quando volto dos Estados Unidos,
eu reencontro exatamente a mesma coisa: os culpados são
É a coisa mais simples que existe. Contudo é, ao mesmo os americanos ao invés de serem os franceses. É sempre
tempo, a de mais difícil entendimento na minha tese. igual dos dois lados, e há poucos que compreendem essa
Quando a compreendemos verdadeiramente, compreen­ igualdade na responsabilidade, na culpa.
demos que a Bíblia e o cristianismo têm uma dimensão
da verdade que nenhuma outra religião pode ter, pois Eu tentei explicar a vocês, de maneira muito sumária
retomam o mesmo fenômeno, e em vez de ir até o fim e desajeitada, por que eu penso que os deuses arcai-
da mentira, eles a contradizem e na realidade revelam a cos, mesmo não sendo reais, não são de forma alguma
mentira tal como ela é. inventados. São a interpretação equivocada, porém,
inevitável da nossa própria violência, por muito tempo
Graças à Paixão, Cristo quer que os homens reconheçam indispensável para a humanidade, pois ela permite que
o seu papel de criadores de vitimas, de perseguidores. É os individuos e as comunidades com ela coexistam, com
por proclamar as regras do Reino e renunciar totalmente a violência que não paramos de produzir e de atenuar.
à violência sacrificial, que o próprio Cristo é sacrificado. O fenômeno do bode expiatório unânime coloca um fim

72 Deus: uma invenção? capítulo 2 o bode expiatório e Deus


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nas crises violentas das sociedades arcaicas e estabelece A. H . : Ah, é? Todavia, são muito signi ficativos ... Dessa
a ordem "sacrificial", a ordem que consiste em repetir o forma, para o senhor, Deus aparece como um personagem
fenômeno catártico nos sacrifícios rituais. num jogo social, num funcionamento que o senhor des­
creve de maneira bastante convincente. Mas Deus existe
O cristianismo, e antes dele, a Bíblia, são ao mesmo independentemente dos homens?
tempo muito parecidos e muito diferentes. A Paixão é
um fenômeno de bode expiatório quase unânime, mas R. G.: Claro, porém, sem dúvida, para intervir na situa­
os Evangelhos, em vez de se deixarem enganar por essa ção de que estou falando, é preciso que ele se tome um
mentira, como fazem os mitos e as religiões arcaicas, de­ homem para ser exposto aos mesmos perigos que os ho­
nunciam na crucificação o que ela é de fato: uma inj usti­ mens vivem, e reagir de forma diferente. Ou stja, ele não
ça detestável que os homens devem agora evitar, pois ela reage de forma defensiva, nem utilizando a violência que
nunca será compensadora. todos nós utilizamos, visto que não somos crucificados.

rmos Há uma ligação direta com a predicação do Reino de


A crise do mund o mode rno vem do fato de refuta
ão e, Deus, hoje, ou seja, a ausência de todas as represálias,
essa mens agem , de recusarmos a sua comp reens
ça­ cujo resultado é fazer que Jesus não participe do jogo da
sobretudo, de segu i-la. Somos cada vez mais amea
que cultura, um jogo defensivo e ofensivo num sistema em
dos por nossa própr ia violê ncia e não fazem os nada
agem que a violência é dominante.
seja razoável ou eficaz para compreender a mens
armo s a
bíblic a e evan gélic a, e, sobretudo, para nos adapt
ríamos A. H.: O senhor diria que Cristo é Deus?
ela. Essa mens agem vai tão além de nós que deve
que nos
recon hecer nela a palavra do verdadeiro Deus,
R. G. : Evidentemente. Mas há etapas intermediárias entre
ensina a renúncia de toda violên cia.
o que eu disse e essa conclusão. Não há outro Deus senão
* em Cristo. Os outros deuses são deuses fa lsos, que repou­
sam nesse mecanismo não resolvido e não compreendido.

Alain Houz iaux: O seu discu rso é extre mame


nte des­
o senh or O que digo é que temos aí uma via de acesso nos ra­
conce rtant e para um teólogo como eu, pois ou
r cria ciocínios antropológicos profundos para mostrar que o
apresenta Deus como um personagem, ou o senho
de certos cristianismo nos traz uma visão absolutamente diferente
um quali ficati vo que atribui a diversas funções
da nossa, e que nos leva a uma certa noção do divino
seres como Jesus Cristo .
que corresponde perfeitamente àquela que os Evangelhos
Deus descrevem. Portanto, não tenho nenhum conflito com a
René Girar d: Sim, a teologia atual se recus a a levar
teologia. O que há de milagroso com a teologia é que ela
a sério. Mas, não é esse medo que é ridícu lo?

capítulo 2 o bode expiatório e Deus


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74 Deus: uma invenção?
diz muitas coisas verdadeiras a partir de raciocínios que, raciocínios análogos ... A partir daí, os aspectos dire­
de certa maneira, são falsos, a partir de um tipo de pen­ tamente transcendentes da metafísica e da teologia se
samento muitas vezes incompreensível, sem ver os textos tornam para mim um pouco mais acessíveis. Mas, ao
da forma mais simples, nem ver que há no cristianismo mesmo tempo, tenho a impressão de não ter de forma
uma singularidade absoluta que ninguém percebe porque alguma talento para isso. O que não quer dizer que ou­
é muito fácil de ser vista. tros não tenham, e que a sua postura não seja legítima.
Porém, o que constato é que vivemos em um mundo em
A. H. : A singularidade do cristianismo estaria então no que, justamente, a velha metafísica e a teologia não têm
seu caráter verdadeiro, portanto, divino. André Gounelle, nenhuma ação sobre os homens. E tenho a impressão que
o senhor acredita que Deus existe independentemente um a abordagem antropológica é preferível, dado que ela
dos homens? é compreensível.

André Gounelle: Eu não retomaria, nesse contexto, a pa­ Falando num plano científico, e creio que a ciência é
lavra existir, mas pensando que René Girard pode reagir muito importante para a nossa época, o que aconteceu
dizendo que uso a füosofia grega, utilizarei de preferên­ nesses últimos tempos é que todas as ciências foram
cia a palavra ser. Existir quer dizer situar-se (sistere) fora historicizadas. Elas, que eram completamente imóveis e
de si (ex). Existimos sempre em função de uma exteriori­ estát icas, como a astro nomia, se tornaram astrofísicas...
dade e de uma alteridade, sendo que se "é" em si. Deus é De certa forma, eu gostaria de dizer a mesma coisa :
independentemente dos homens, ele não existe indepen­ entre o mundo arcaico, onde se fez religião do bode
dentemente deles. expiatório, e o mundo j udaico-cristão, há uma ascensão
histórica, a qual aliás os Evangelhos e Paulo levam em
Depois de ter lido René Girard e, mais ainda depois de conta, posto que nos dizem que chegou a hora de passar
tê-lo ouvido, tenho vontade de lhe fazer uma pergunta : de um ali mento de crianças a algo m ais forte e difícil.
segundo a sua perspectiva, podemos pensar, perceber Esse valor educativo do religioso é um tema constante
alguma coisa de Deus fora da humanidade? Sei que o para Paulo, assim como chegar a um mundo em que
senhor é antropólogo e que, nessa qualidade, o senhor esse alimento mais forte se tornou necessário e, de certa
busca e percebe vestígios de Deus no homem e na socie­ forma, inevitável.
dade humana. Volto a formular a pergunta da seguinte
maneira: o senhor acha que a sua abordagem é abran­ A. H.: André Gounelle, para o senhor, uma boa religião é
gente e exclusiva? uma religião educativa, ou antes, uma religião que leva
ao bem, ou ainda que ensina o que é verdadeiro? Qual
R. G.: Minhas próprias tendências me levam mais para o seria o verdadeiro critério para uma religião autentica­
tipo de raciocínio que expus nesta noite. Restam alguns mente divina?

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A. G.: Cada pal avra da sua pergunta necessitaria de lon­ interiores do ser humano - grandeza/miséria - continua
gas definições! Creio, de fato, que uma religião se avalia sendo pertinente ou o seu argumento o substitui?
em sua capacidade de melhorar o destino do homem, de
melhorar a sociedade, e de levar ao bem. R . G. : A crise mimética está presente de certa forma nos
textos de Pascal, mas de uma maneira mutilada, pelo fato
Dou razão ao senhor Girard sobre um ponto : penso como del e jamais ter vivido uma certa experiência. Se pegarmos
ele que a teologia clássica utiliza categorias e fórmulas de a França dos séculos XVI e XVIl, é surpreendente consta­
outra época. Elas foram pertinentes no seu tempo, mas, tar que, em relação à Inglaterra, os dois grandes escrito­
hoje, não funcionam mais, não nos dizem m ais nada. res que se respondem e se correspondem são Montaigne
e Pasc al. E também constatar que os dois tinham uma
Em certos aspectos, a abordagem do senhor Girard evoca pequ ena experiência justamente no plano das rivalida-
para mim o que vemos se insinuar em Blaise Pascal. Ele des miméticas. Porque, para os dois, e por razões muito
pretende chegar a Deus não por provas ontológicas, cos­ diferentes, a sexualidade, por exemplo, não teve nenhum
mológicas e metafísicas, mas a partir do funcionamento papel. Pascal, sabe-se, tomou-se uma espécie de santo - e
do ser humano, e em particular da dualidade entre a sua era doente, a ponto de tomar-se inválido - e Montaigne
miséria e a sua grandeza. Essa argumentação apologética também, pela razão inversa, pois, mesmo sendo um
era, no século xvn, extraordinariamente nova : el a reno­ pouco menos "pequeno aristocrata" do que dizem, ele era,
vou a problemática, mesmo tendo parecido chocante para entretanto, um privilegiado que devia "seduzir" todas as
alguns, como podem parecer chocantes as suas teses, mas mulheres da vizinhança sem nunca ter que entrar numa
ela era fecunda. relação de rivalidade. Portanto, é surpreendente observar
que esses dois grandes escritores são mais limitados no
Embora haja semelhança na abordagem, não há paren­ campo da rivalidade do que Shakespeare ou Cervantes,
tesco na análise da realidade humana: Pascal não me que tiveram uma experiência mais completa de homens.
parece insistir, como o senhor faz, na crise mimética.
Não contesto, de forma alguma, a pertinência das suas Contudo, na análise de Pascal sobre o divertimento, há
análises, que mostraram alguma coisa que não havíamos aspectos de crise mi mética muito fortes.
visto antes. Contudo, a crise mimética é aos seus olhos a
única chave, ou uma chave privilegiada para compreen­ A. H. : Voltando à noção de sacrifício, o senhor pensa que
der as sociedades humanas, a religião e Deus, ou o senhor é algo especificamente religioso, ou ele também tem uma
acredita que se trata de uma chave dentre outras? Dito de existência profana e, poderíamos dizer, laica?
outra maneira : o senhor crê que o raciocínio de Pascal,
análogo ao seu no movimento, mas com um conteúdo R. G. : O sacrifício é o elemento intermediário entre o re­
diferente, por basear-se nas contradições e contrariedades ligioso e todas as culturas, que são sacrificiais num certo

78 Deus: uma invenção? capitulo 2 - o bode expiatório e Deus 79


plano. Basta ver instituições que são ligadas a formas de Quando dizemos que o cristia nismo é sacrifi cial, isso é
hierarquia. Elas exigem formas de disciplina ou deixam verdade. Para ver o probl ema do sacrifício no seu plano
de funcionar: são sempre derivadas do sacrifício. Tentei m ais nítido , é preciso ir nesse texto extraordinário que é
mostrar como o sacrifício se transformava em justiça. o Julgamento de Salom ão, no prime iro livro dos Reis. Há
Quando se sacrifica uma vitima, em geral de preferência duas prostitutas, e as duas querem a criança viva. Talvez
um inocente, decide-se sacrificar "o" culpado, e somente te nham trocado essa crianç a a noite inteira. Salom ão
uma instituição muito forte pode fazer isso, porque as ouve o que têm a dizer, Salom ão repete o que dizem , e as
instituições arcaicas têm medo de sacrificar o culpado, duas dizem exatamente as mesmas palav ras: "A crian-
pois incita a vingança. Ao contrário, o sacrifício evolui ça viva é minha , a criança morta é dela ". Salom ão diz:
para o assassinato de individuos que não têm nenhuma "Tragam minha espad a, vou cortar a criança no meio". E
relação direta com a situação considerada, o que, aos a mãe má, ou seja, a sacrifi cial, considera que está certo
nossos olhos, é muito mais injusto. assim, pois a sua rival tampo uco ficará com a crianç a. A
mãe boa, ao contrário, deixa a criança para a sua rival
A. G.: No cristianismo, a eliminação do sacrifício, ou an­ para que possa viver. E Salom ão reconhece nela a ver­
tes, o inverso, que faz com que não seja mais o culpado o dadeira mãe. A frase de Salom ão é válida mesmo que
ser sacrificado, ou que o sacrificado não seja mais decla­ essas mães tenha m trocado a crianç a a noite inteir a, e
rado culpado, segundo o senhor, tem um papel essencial que nenhu ma das duas saiba de quem é a criança viva. A
e, de certa forma, constitui a especificidade do cristianis­ mãe verdadeira é aquel a que é capaz de deixa r a c�i ança
mo. Eu me pergunto sobre essa especificidade. Não é uma longe dela para que ela viva. É um texto marav ilhoso que
critica, e de fato não sei qual é a resposta para essa per­ também é uma metáfo ra da educa ção cristã, em relaçã o
a
gunta: o senhor fala do cristianismo e de religiões arcai­ uma educação egoísta.
cas; ora, o mundo religioso é maior; não vemos também o
desaparecimento do sacrifício em outras religiões - penso A. H . : Opõe-se, com frequência, o Deus do Antigo
no budismo, mas também um pouco no islamismo? Testamento ao Deus do Novo Testa ment o. Acontece
que
se considera o Deus do Antigo Testa mento como
uma
R. G.: Há uma leve tendência nas outras religiões ao invenção da vontade de violê ncia, uma legiti maçã
o da
desaparecimento do sacrifício, mas só o cristianismo o agress ividade do povo de Israe l para conqu istar
a sua
eliminou completamente. Não nos damos conta da revo­ terra. A partir dessa perspectiva, haver ia uma dífere
nça
lução extraordinária que isso representa. O sacrifício é, de fundamental entre o Deus do Antigo Testamento
e o do
forma universal, em quase todas as sociedades, um meio Novo Testa ment o. O que o senhor acha ?
de pacificação admirado, querido, em particular no terre­
no budista. Se o senhor for ao Sri Lanka, por exemplo, o A. G. : Ficou impo ssíve l para mim (e não sou
o úni­
senhor se dará conta. co nesse caso) falar do Deus do Antig o
Testa ment o (e

80 Deus: uma invenção? capitulo 2 o bode expiatório e Deus


-
81
talvez também até do Deus do Novo Testamento) de humano, ' ele anuncia o movimento em direção à não
maneira inequívoca e no singular. O Antigo Testamen- violência absoluta que não é senão de Cristo.2 É um mo­
to compreende um conjunto de escritos redigidos por vimento progressivo : quanto mais avançamos no Antigo
seres humanos que expressam neles a sua experiência Testamento, mais nos dirigimos para a visão profética.
espiritual, ou seja, a sua maneira de compreender e O profeta é sempre um homem, primeiramente, idola­
viver Deus. Não se tem "uma" concepção de Deus, ou trado pela multidão entusiasmada pela mensagem que
"uma" imagem de Deus no Antigo Testamento ; há várias ele traz, mas, após algum tempo, quando a multidão se
e, mesmo quando se trata do mesmo Deus, elas estão dá conta das consequências temerosas do seu discurso,
em conflito. É verdade que há no Antigo Testamento a ela se volta contra ele. Hoje, toda a nossa sociedade se
compreensão arcaica de Deus, mas também encontramos volta contra Cristo de uma forma admiravelmente sim­
outras concepç'ães de Deus. O conflito não se situa entre ból ica ! Em todos os países do mundo, basta ler os textos
Israel (falo, é claro, de Israel de antigamente) e os outros, da imprensa ou da televisão para constatar essa posição
mas em Israel, da mesma forma que há um debate dentro radical do mundo contra Cristo, numa espécie de tota­
do Novo Testamento. Pode-se falar maciçamente do lização dos próprios Evangelhos, que já nos mostram o
"Deus do Antigo Testamento em oposição ou continui­ mesmo movimento na existência de Cristo, que sempre
dade do Deus do Novo Testamento?". Há muitas aborda­ vai para a Paixão.
gens, visões, posturas, no mundo bíblico, no judaísmo,
no cristianismo. É a personalidade de Cristo que nos
permite ter um critério de discernimento entre elas.

A. H . : René Girard, o senhor pode explicar o que entende


por: " Cristo é Deus"?

R. G.: Vemos que Cristo tem um conhecimento do


homem que é mais humano. Nesse sentido nenhuma
filosofia, nenhum pensamento laico, nenhuma outra
religião percebeu no homem essa violência que ele per­
cebe, e que ele próprio aceita sofrer para revelá-la aos
homens, p ara revelar o que eles são, de forma alguma
para "fazer sacrifícios".
' Ver o sacrifício do primogênito, que aliás tem uma relação simbólica com
o sacrifício de Cristo, pois a própria história é única.
O que faz a grandeza do Antigo Testamento é que, ' Pois o não violento absoluto q ue ele é será destruído por uma sociedade
enquanto os primeiros livros têm um fundo de sacrifício tão violenta quanto a nossa.

capitulo 2 o bode expiatório e Deus 83


82 Deus: uma i nvenção?
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