Autismo (The Best) PDF
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A Saúde Mental Infantil na Saúde Pública Brasileira: Delgado e Col.
Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública
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“Linha de Cuidado na Atenção Integral às Pessoas com Transtorno do espectro do autismo e suas
famílias no SUS”
3
Desafios da Reforma Psiquiátrica no Brasil: Benilton Bezerra JR.
Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública
Bibliografia
- Saúde Mental no SUS. As novas fronteiras da reforma Psiquiátrica. Relatório de Gestão. 2007-
2010. Janeiro de 2011.
- Caminhos para uma política de saúde mental Infanto-juvenil. MS, Brasília, 2005.
- Lauridsen-Ribeiro, E.Tanaka, O. Atenção em Saúde Mental para crianças e adolescentes no
SUS. Org. . Editora Hucitec, Saõ Paulo, 2010.
-Campos, W.G. e col. Apoio matricial e equipes de referência: uma metodologia para gestão do
trabalho interdisciplinar em saúde. Cadernos de saúde Pública, Rio de Janeiro, 23, numero 2,
pp. 399, fev., 2oo7.
- Ranna, W. A saúde mental da criança na atenção básica. Detecção e intervenção a partir do
programa da saúde da família e do apoio matricial. Em: Atenção em Saúde Mental da Criança e
do Adolescente no SUS. Edith Lauridsen-Ribeiro e Oswaldo Tanaka, org. Ed. Hucitec, São paulo,
2010, pp.170.
- Onocko Campos, R., Gama, C. Saúde Mental na Atenção Básica. Manual de Práticas de
Atenção Básica. Campos, G. & Guerrero, A. (org.). Editora Hucitec, São Paulo, 2008, pp.221-
246.
- Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Atenção Básica.
Saúde da criança: acompanhamento do crescimento e desenvolvimento infantil / Ministério da
Saúde. Cadernos de atenção básica nº 11. Secretaria de Políticas de Saúde. – Brasília:
Ministério da Saúde, 2002.
- Ministério da Saúde. Brasília- Manual do Crescimento e Desenvolvimento. 2001
- Delgado, P. Couto Maria Cristina, Duarte, Cristiane: A Saúde Mental Infantil na Saúde Pública
Brasileira: situação atual e desafios, Rio de Janeiro, Rev. Bras. Psiquiatria 2008;30(4) : 390-8
- Bezerra Jr, Benilton, “Desafios da reforma Psiquiátrica no Brasil” in Phisis, Rev. Saúde
Coletiva, Rio de janeiro, 17920 243-250, 2007
- Milman, Lulli; Bezerra Jr, Benilton, in Casa da Arvore: uma experiência inovadora na Atenção
à Infância, Rio de Janeiro, Ed Garamond
- Caros Amigos, ano XVI, Edição Especial Saúde, no 059, novembro 2012
Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública
Resumo: Este texto apresenta uma revisão do material francês sobre psicanálise e
autismo. Ele foi realizado por um grupo de trabalho pertencente ao Movimento
Psicanálise, Autismo e Saúde Pública. Em função da pluralidade de autores, o texto
apresenta uma leitura singular sobre os fatos, que fala das relações de transferência de
trabalho que os autores apresentam com os interlocutores franceses. Uma visão mais
ampliada será feita em um trabalho futuro.
Aflalo (2012, p. 19) destaca que essas ações, sob a aparência de uma proteção
aos cidadãos, destinavam-se a permitir que o Estado tomasse o poder e deliberasse em
seu lugar, confiscando a liberdade dos sujeitos.
Em 2 de outubro de 2003, o Ministério da Saúde francês anunciou a elaboração
de um Plano Global de Saúde Mental, com base no Plano de Ações do doutor Cléry-
Melin. Nas reuniões para a sua construção, foram excluídos os representantes da
psicanálise, da psicologia clínica e das psicoterapias. O Plano complementava a
"emenda Accoyer" e, no bojo de ambos, encontrava-se a proposta de submissão dos
psicoterapeutas e psicanalistas aos médicos.
A mobilização dos psicanalistas foi bastante intensa: até fevereiro de 2004,
inúmeros fóruns psis ocorreram quinzenalmente, e grande parte dos intelectuais
franceses participou dessas sessões, aprofundando cada vez mais essas discussões.
Em novembro de 2003, surgiu um "Manifesto Psi" reunindo psis de todas as
linhas e tendências: psicanalistas, psicoterapeutas, psicólogos clínicos e psiquiatras em
torno da petição para que fossem suprimidos o Comunicado de 2 de Outubro e o
bloqueio da “emenda Accoyer”. A base desse documento se assentava no atentado às
liberdades individuais e à intimidade da vida privada. Nele, dois princípios foram
propostos: o direito da pessoa em sofrimento de escolher seu psi sem a interferência do
Estado, e o dever dos psis de apresentarem publicamente suas garantias, por meio de
suas associações e escolas, (AFLALO, 2012, p. 20).
Em meados de dezembro de 2003, Bernard Accoyer reconheceu que muitos
pontos precisavam ser revistos, e Laurent Fabius pediu ao Primeiro-Ministro francês,
Jean-Pierre Raffarin, a retirada da Emenda e a discussão de um acordo. Mas o
Ministério da Saúde solicitou que fossem entregues a eles os registros das instituições
psicanalíticas.
A Escola da Causa Freudiana não concordou desde o início com essa proposta,
que acabou tendo o aval da Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP), a Associação
Psicanalítica da França (APA), ambas filiadas à Associação Internacional de Psicanálise
(IPA), fundada por Sigmund Freud em 1910. Outras instituições se incorporaram a elas
também, como a Organização Psicanalítica de Língua Francesa (OLP), a Associação
Lacaniana Internacional (ALI) e a Sociedade de Psicanálise Francesa (SPF).
Como destaca Aflalo (2012, p. 21), foi a primeira vez que, na França, “o Estado, sem
ter competência para isso, decidira imiscuir-se num debate entre sociedades eruditas.”.
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sobre o assunto realizadas por J. Nadel, nas quais ele comprova que as imitações
espontâneas do tipo precoce não estariam comprometidas nas pessoas com autismo, mas
sim, a imitação quando solicitada.
Quanto às funções emocionais, é importante ressaltar que o manual apresenta
uma leitura simplista e organicista, ao afirmar que distúrbios sociocognitivos de
aprendizagem da pessoa com autismo ocorrem graças à hipoativação de zonas cerebrais,
associadas à percepção das emoções, as quais estariam comprometidas desde o início da
vida e impossibilitam a compreensão das emoções e a capacidade de dividir e
harmonizar a percepção emocional do sujeito.
Em contrapartida aos trabalhos de abordagem psicodinâmica, como os de
Trevarthen (1989) “[...] as relações entre autismo e desenvolvimento sociocultural
normal: argumentos em favor de um transtorno primário de uma regulação do
desenvolvimento cognitivo pela emoção.”, sublinham que a desregulação emocional
seria própria do funcionamento autístico, o que implica associar o autismo “[...] a uma
dificuldade de regulação primária, e não, propriamente, a um déficit.”.
Trabalhos neurofisiológicos que mostram efetivamente uma hipoativação na
relação da troca do olhar e uma hiperativação quanto aos mecanismos de evitação,
revelam uma diferença do funcionamento dos circuitos neurológicos entre o sujeito
normal e o sujeito autista, reforçando, desse modo, a necessidade de promover um
espaço de diálogo entre clínicos de abordagem psicodinâmica, pesquisas cognitivistas e
pesquisas em neurofisiologia.
Quanto ao processo da avaliação do diagnóstico precoce do autismo, o manual
toma em consideração apenas sinais gerais, tais como: ausência ou raridade do sorriso,
recusa do olhar, ausência de brincadeiras. Essas observações já estão presentes na
caderneta de saúde da criança do sistema de saúde público francês.
No entanto, nenhuma observação sobre a pesquisa Preaut (Laznik et al. 1998) é
feita. Essa pesquisa de abordagem psicanalítica foi realizada em diversas regiões da
França, e toma como um dos sinais importantes do autismo precoce a ausência de trocas
jubilatórias entre mãe e bebê, dada uma falha no fechamento do circuito pulsional da
criança.
Ainda sobre a avaliação diagnóstica, o manual enfatiza que o diagnóstico dos
TID e do autismo permanece ainda como de caráter clínico, mas seria importante contar
também com o auxílio de certos instrumentos internacionais, por meio dos quais se
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pode chegar a uma precisão diagnóstica da patologia do autismo, tais como o ADI e o
ADOS.
Embora o documento cite o teste psicomotor de Bullinger, que leva em conta o
desenvolvimento psicomotor da criança segundo um viés psicodinâmico, não se
menciona a grade de avaliação clínica das etapas da evolução do autismo (HAAG,
1995), nem tampouco, testes projetivos psicodinâmicos, tais como o Rorschach e o
Scenotest.
Quanto ao programa de inclusão escolar de pessoas com autismo, o manual faz
referência à igualdade de direitos quanto ao acesso à saúde, a educação e a vida social e
ao campo do trabalho, tal como explicita a lei de 11 de fevereiro de 2005, na qual as
crianças autistas, na condição de deficientes, podem usufruir de todos os direitos dos
cidadãos comuns.
No que concerne às propostas de intervenções, tanto individuais quanto
institucionais, com pessoas com autismo, o documento faz referência ao trabalho
psicanalítico, embora se constate uma preferência a uma leitura orgânica e educativa.
Nesse sentido, percebe-se uma grande incoerência quanto à elaboração do documento
final e a sua proposta inicial, pois, segundo a HAS, o objetivo principal da elaboração
desse documento era fundamentar diretrizes de base para o tratamento do autismo,
independentemente das posições teóricas e ideológicas. E, assim sendo, como explicar
que o resultado desse documento científico seja marcado por uma forte inspiração
biológica, na qual se explicita claramente a preferência por intervenções de caráter
educativo e cognitivo, ao mesmo tempo em que se consideram outras práticas de
tratamento como obsoletas?
Como enfatiza o psicanalista Claude Bernard (2010), da Universidade de Lyon,
esse documento que compõe o Plano do autismo 2008-2011, nada mais é do que o
reflexo da psiquiatria atual, sustentada por indústrias farmacêuticas e regida pela lógica
econômica dos planos de assistência de saúde, dos quais, se esperam resultados rápidos
e eficazes.
Bernard acrescenta ainda que esse documento denuncia a maneira como a
psicanálise tem sido transmitida à nova geração de profissionais, isto é, como uma
ciência ultrapassada e com poucas produções científicas capazes de demonstrar sua
eficácia no tratamento do autismo.
E Bernard denuncia que a comissão científica do Plano Autismo priorizou,
arbitrariamente, bibliografias psiquiátricas recentes (a partir do ano 2000) e apenas
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4
Cf: http://www.assemblee-nationale.fr/13/propositions/pion4211.asp
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5
Cf: http://www.thierry-sibieude.com/article-lettre-au-depute-daniel-fasquelle-a-l-issue-des-journees-
parlementaires-de-l-autisme-le-12-janvier-99321232.html.
6
http://www.lemonde.fr/m_helene_hochmann.
7
http://www.youtube.com/watch?v=-yXGnPL39IA.
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e tratamentos do autismo.
No filme, as entrevistas são entremeadas por depoimentos de pais e de crianças
autistas que descrevem e legitimam a ineficácia da psicanálise em comparação aos
resultados tangíveis e rápidos dos métodos cognitivo-comportamentais. Os discursos
dos entrevistados são cortados, e misturados com narrativas de Sophie Robert que
interpreta, segundo seu ponto de vista, o que escolhe apresentar de cada depoimento. A
ênfase é atribuir a culpa aos pais e ao necessário distanciamento desses, para que o
tratamento se efetive. Desse modo, a edição do filme demonstra claramente um
posicionamento militante da realizadora, que pretende comprovar a ineficácia do
método psicanalítico e o perigo que a França estaria correndo, já que 80% dos
psiquiatras da infância são psicanalistas.
As repercussões foram imediatas e de grande impacto. Associações de pais se
reuniram e juntaram esforços para divulgar amplamente o filme, não apenas na França,
mas, também, no exterior. Os psicanalistas entrevistados, por sua vez, entraram na
justiça contra Sophie Robert, alegando que seus depoimentos haviam sido deturpados
em seu propósito após os cortes, e exigindo que o material fosse confiscado. Após
meses de tramitação, Sophie Robert é condenada e a exibição do filme é proibida em
território francês.
Além dessa posição legal, alguns dos psicanalistas entrevistados apresentaram
respostas em um dossiê da CIPPA, intitulado “Alerte aux méconnaissances concernant
la psychanalyse et l'autisme”8 (Alerta aos mal-entendidos referentes à psicanálise e ao
autismo). Golse, Delion e Dannon-Boileau (2011) relatam como a edição do
documentário e os cortes realizados pela realizadora nas entrevistas de
aproximadamente duas horas que eles realizaram modificaram radicalmente o conteúdo
de seus depoimentos, tendo como resultado um filme incompreensível e ridicularizador
da psicanálise.
Todos referem terem sido cortadas partes dos depoimentos em que eles
declaravam a importância da multidisciplinaridade no trato do autismo, enfatizando ser
fundamental a integração de métodos educativos, pedagógicos e terapêuticos, para que
um tratamento seja realmente efetivo.
A respeito desse episódio, Golse alerta para um fenômeno que ele nomeia
“contaminação do autismo”. Segundo ele, é como se os profissionais passassem a
8
http://old.psynem.org/Cippa/Ressources/cippa.pdf.
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9
http://www.psynem.org/Hebergement/Cippa.
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10
http://www.liberation.fr/societe/01012386622-autisme-la-psychanalyse-en-proces.
11 Psicanalista, doutoranda da Université Paris VII em cotutela com o Instituto de Psicologia da USP. Membro do Preaut-Brasil.
gabrieladearaujo@usp.br
12 Professora Livre Docente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), Psicóloga, psicanalista e socióloga.
Coordenadora do Núcleo de Pesquisa de Psicanálise e Educação da FEUSP, Coordenadora da área de Pós-Graduação de Psicologia e
Educação da FEUSP e Vice-chefe do Departamento de Metodologia e Educação Comparada da FEUSP, membro do Conselho da Escola
Brasileira de Psicanálise.
13 Psicóloga, psicanalista, Doutora pela Université Paris VII, Pós-doutoranda pelo Instituto de Psicologia da USP, membro do Lugar de
Vida- Centro de Educação Terapêutica.
14 Psicóloga do PECP (Programa Einstein na Comunidade Paraisópolis) do HIAE (Hospital Israelita Albert Einstein) e Acompanhante
Terapêutica da Equipe HIATO de Acompanhamento Terapêutico.
15 Psicanalista, com Master Profissional de Psicologia e Psicopatologia Clínica na Universidade René Descartes - Sorbonne, Paris;
especialista em "Tratamento e Escolarização de Crianças com Transtornos Globais do Desenvolvimento" pela Pré- Escola Terapêutica
Lugar de Vida do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo - IPUSP (2000); membro do Lugar de Vida- Centro de Educação
Terapêutica.
16 Doutora em psicologia clínica pela UNIVERSITÉ PARIS DESCARTES, psicóloga do CRIA-Centro de Referencia da Infância e
Adolescência e professora de psicologia médica do departamento de psiquiatria da UNIFESP- Universidade Federal de São Paulo.
17 Professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutora em Ciências Cognitivas e Psicolinguística pelo
LSCP-Paris. Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Pós-doutoranda no Departamento de Psiquiatria Infantil do Groupe
Hopitalier Pitié-Salpetrière-Université Pierre et Marie Curie - Paris. Co-coordenadora Nacional do PREAUT-Brasil.
18 Psicanalista, mestre pela Université Paris VII.
19 Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Membro da CLIPP - Clínica Lacaniana de Atendimento e
Pesquisas em Psicanálise, Mestre em Filosofia – Epistemologia da Psicologia e da Psicanálise pela Universidade Federal de São Carlos,
UFSCAR
Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública
Referências Bibliográficas
produção simbólica, tais como brincar de faz de conta e participar dos hábitos da
cultura. Em lugar dessas produções e pela ausência das mesmas surgem estereotipias
que privilegiam uma autoestimulação sensorial.
A complexidade desse quadro exigiu que as pesquisas e intervenções nesse campo
não pudessem ser reduzidas a uma única área do conhecimento, tornando necessária
sua articulação. Por isso a psicanálise não intervém nem avança no conhecimento
sobre o autismo de modo isolado e, portanto, a interdisciplinaridade é um dos
princípios que fazem parte da metodologia dos psicanalistas ao tratar de pacientes
com quadros de autismo. Isto é necessário dado que, com grande frequência, o
autismo aparece associado a outros problemas que tornam imprescindível uma
intervenção conjunta.
Nas diversas pesquisas médicas realizadas por geneticistas, neurologistas e
psiquiatras encontram-se correlações entre a incidência de autismo e algumas
patologias orgânicas, mas não uma única causa que possibilite centrar seu diagnóstico
em exames orgânicos ou seu tratamento em uma solução medicamentosa.
Se desde o aspecto orgânico esse é o atual estado das coisas, há consenso sobre o
benefício produzido por tratamentos que intervenham na relação da pessoa com
autismo com os outros, possibilitando que suas produções possam ocorrer em uma
circulação familiar, escolar, social e cultural.
Nesse sentido, a psicanálise produz sua contribuição ao intervir seguindo passo a
passo o caminho que torna possível a constituição psíquica, e assim também procede
com pacientes que nele tropeçam devido a patologias orgânicas.21
Dessa articulação do conhecimento decorre que algumas das principais
descobertas das neurociências e da psicanálise sejam confluentes: a linguagem incide
decisivamente em nossa constituição, e a possibilidade de representar, na linguagem,
o que nos afeta no corpo, é o que nos tira de produções puramente reflexas e
automáticas, desde os primórdios da vida.
Por isso é central que possamos interrogar: o que afeta, o que comove
singularmente esse paciente? Para onde se dirige seu olhar? Qual som se repete em
sua vocalização? O que o detém ou o lança em seu movimento? Uma vez localizadas
21
Veja-se a esse respeito todo o amplo trabalho da psicanálise com crianças que apresentam quadros
genéticos, deficiências sensoriais ou lesões cerebrais.
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22
Com isso denotamos que, além da intervenção do psicanalista em si, é preciso considerar a concepção
psicanalítica como corte epistemológico considerado por outras áreas de intervenção em sua práxis, tais
como pedagogia, psicopedagogia, fonoaudiologia, psicomotricidade, terapia ocupacional. Sublinha-se aí o
paradigma psicanalítico como um corte epistemológico de referência para a intervenção em outras áreas e
não só a intervenção do psicanalista em si.
23
Kandel, E.R., Shuartz, J.H., Jessell, T.M. (1995). Essentials of Neural Science and Behavior,
Appeton & Lange, Prentice Hall International (UK) Limited, London.
24
Ansermet, F. e Magistretti, A. A cada uno su cerebro: plasticidad neuronal e inconsciente - 1a ed. -
Buenos Aires : Katz, 2006.
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psíquica, Freud já afirmava que temos bons motivos para acreditar que a capacidade
de receber e reproduzir impressões nunca é maior do que na infância.25 Aí, mais uma
vez, as descobertas da clínica psicanalítica coincidem com as das neurociências, que
apontam, por meio desses conceitos, que nem tudo está decidido em nosso organismo
quando nascemos e que os processos epigenéticos, as experiências de vida, têm nisso
um papel decisivo.
Por isso, a idade em que uma intervenção ocorre conta, e é preciso intervir a
tempo quando algo não vai bem sem precisar esperar a plena configuração de um
quadro psicopatológico para proceder com um tratamento.
Ao nascer, todos contamos com os elementos de uma história familiar e com
uma herança genética já estabelecidas. Porém ainda não está dado de antemão como
o sujeito vai se posicionar a partir dessas estruturas orgânicas e simbólicas. Diante
disso, algumas vertentes da psicanálise sublinham que, na infância, a estrutura
psíquica do sujeito não está decidida, testemunhando experiências clínicas com
crianças e bebês que chegam com quadros de autismo ou outros quadros
diagnosticados e que, ao longo do tratamento e por efeito deste, apresentam
mudanças de rumo nessa constituição em andamento, não realizando um desfecho
patológico. Outras vertentes da psicanálise sublinham que, em função do tratamento,
o que se realiza é uma importante modulação nas construções de sentido, no modo de
o paciente estruturar-se em sua constituição psíquica e de situar-se na vida.26
É preciso, nesse sentido, advertir que as classificações psicopatológicas partem
de um princípio adultomorfo, do já constituído, que não é aplicável à infância de modo
geral e menos ainda ao tempo dos bebês. Realizar uma aposta na constituição do
sujeito é central na metodologia psicanalítica. Por isso, invés de por em primeiro lugar
o diagnóstico, é preciso destacar a condição da infância como um tempo de abertura a
inscrições.
25
Freud, S. (1905). Os três ensaios, Obras Completas, Rio de Janeiro, Imago.
26
Acerca desse importante debate dentro da psicanálise apontamos as contribuições de: Bernardino,
L.M.F. As psicoses não decididas da infância: um estudo psicanalítico. São Paulo: Casa do Psicólogo,
2004; Psicose e autismo na infância: uma questão de linguagem. In: Psicose – Revista da Associação
Psicanalítica de Porto Alegre, n. 9. Porto Alegre: Artes e Ofícios, novembro de 1993, p. 62-73; Laurent,
É. O que os autistas nos ensinam. In: Murta, A (org). Autismo(s) e atualidade: uma leitura
lacaniana. Escola Brasileira de Psicanálise. Belo Horizonte: Scriptum Editora, 2012; França, M.T.B. e
Haudenschild, T.R.L. (Orgs.). (2009). Constituição da vida psíquica. São Paulo: Hirondel Editora;
Barros, I.G. (2011) Autismo e Psicanálise no Brasil : História e desenvolvimentos. In Schwartzman J.S. e
Araújo, C. A. (Orgs)Transtornos do Espectro do Autismo. Pp. 27 –36. São Paulo: Memnon.
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27
A partir da pesquisa IRDI e da pesquisa AP3, na qual se realizou posterior avaliação das crianças que
fizeram parte da pesquisa de IRDI -indicadores precoces de risco para o desenvolvimento infantil-, esses
tradicionais eixos de avaliação da clínica psicanalítica com crianças foram formalizados e validados como
pesquisa acadêmica, considerando como nessas produções comparecem operações centrais da
constituição psíquica: suposição de sujeito, estabelecimento da demanda, alternância presença-ausência e
função paterna. (Kupfer, A. Jerusalinsky, Rocha, Infante ET ali, 2009).
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primordial dos pais com o bebê. O fato é que a psicanálise não centra a sua
intervenção em decorrência desses fatores etiológicos (em uma falsa questão de
divisão orgânico-psíquica). Ao tratarmos de um bebê/criança com comprovados
problemas orgânicos de base, ou sem patologias orgânicas detectadas, a aposta do
clínico é a mesma: supomos que há ali um sujeito e buscamos seus traços de interesse,
pois tratamos do que pode vir a fazer com o organismo que tem.
Os pais fazem parte dessa aposta ao levar o filho a tratamento. E, portanto, a
intervenção não consiste nem em culpá-los28, nem em desculpabilizá-los pelas
dificuldades que comparecem. Acima de tudo eles estão intrinsecamente implicados
nos cuidados do filho pela sua condição de pais e, por isso, podem contar com a
interlocução do psicanalista, ora fazendo parte das sessões da criança (testemunhando
o trabalho que vai sendo realizado e participando dele); ora em sessões em que
elaboram situações em relação ao filho com o psicanalista que o atende, a fim de,
junto com este, poderem ir reconhecendo limites e possibilidades que a criança coloca
em sua produção e em seu modo de situar-se com os outros.
A práxis da clínica psicanalítica permitiu, ao longo do tempo, ir reconhecendo
certos passos chaves na direção do tratamento de bebês e crianças que apresentam
uma exclusão dos outros de seu campo29. Iremos referir-nos aqui à intervenção diante
do autismo nesta manifestação mais específica de exclusão dos outros de seu campo
com o estabelecimento de estereotipias e forte empobrecimento da linguagem ou
total ausência da mesma, pois se bem o conceito de “espectro autístico” tenha criado
uma categoria vasta em sua abrangência, tornou-a, em certa medida, inespecífica, o
que faz com que seja impossível unificar todos os critérios terapêuticos relativos aos
diferentes quadros que o “espectro autístico” passou a comportar, já que cada um
deles apresenta pontos de intervenção específicos (no que se refere aos nomeados
como “autismo de alta performance”, “Síndrome de Asperger”, entre outras formas).
Explicitamos a seguir esses passos chaves na direção do tratamento:
28
Cabe apontar que aqueles que acusam a psicanálise de culpar os pais pelas dificuldades do filho,
servindo-se de chavões, tais como os de “mãe geladeira”, que há muito caíram em desuso, estão em um
discurso anacrônico que ignora os avanços da prática psicanalítica nesse campo. O próprio autor desse
termo, Bruno Bettelheim, em 1953, no livro “Fugitivos da Vida”, retratou-se e considerou sua hipótese
inicial equivocada e, a partir de então, ele mesmo deixou de usá-lo.
29
Jerusalinsky, A. Considerações preliminares a todo tratamento possível do autismo. Psicologia
Argumento. Curitiba V.28, n.61: Pontifícia Universidade Católica do Paraná, jun.2010, p. 121-125.
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Esses jogos, assim denominados por diferentes autores da clínica psicanalítica com crianças. Esses
jogos constituintes do sujeito são precursores do jogo do Fort-da descrito por Freud e logicamente
necessários para que o Fort-da possa vir a se produzir.
Freud (1920). Além do Princípio do Prazer, Obras Completas, Rio de Janeiro, Imago.
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31
Jerusalinsky, J. Jogos de litoral na direção do tratamento de crianças em estados autísticos. In: Revista
da APC, n.22, Curitiba, 2011, p. 77-89.
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Bibliografia:
32
Associação Serpiá, Clínica Interdisciplinar Mauro Spinelli, CAIS, Carretel – Clínica
Interdisciplinar do Laço, CAPSi Guarulhos, CAPSi Lapa, CRIA-HSP, DERDIC/PUC-
SP, Espaço Escuta, Escola Trilha, Grupo Laço, Instituto da Família, Lugar de Vida,
Instituto Sedes Sapientiae.
Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública
Indicações bibliográficas:
Esclarecimento aos pais e familiares das pessoas com autismo sobre a especificidade
do tratamento psicanalítico
seguir em frente. Eu me senti bem e a relação com meu filho fluía mais naturalmente.
A cada sessão a psicanalista conquistava mais sua confiança. Tinha uma brincadeira
que ela fazia da formiguinha que ele adora até hoje. Naquele momento eles já
estavam totalmente conectados e as trocas de olhares eram intensas. Arthur se
deixava ser tocado e vi que ele estava mais aberto ao novo. O Re-conto da nossa
história foi fundamental para mim e para Arthur. Percebi que tudo era importante em
qualquer relação. Elas (essas crianças) percebem no ato quando as coisas não estão
bem. “(FERNANDA, MÃE DE ARTHUR).
geneticamente podem ter sua expressão alterada de acordo com o ambiente, com
as vivências subjetivas e a qualidade de vida de cada um. É isto que possibilita
tanta riqueza no desenvolvimento do bebê e em suas trocas interativas com o
meio. Principalmente no início da vida, quando a natureza das experiências e as
vivências relacionais, com seus correlatos neuroquímicos, têm uma capacidade de
influir na formação das redes de funcionamento dos neurônios. É essa
maleabilidade que propicia que intervenções nesse momento oportuno sejam
muito mais eficazes e duradouras, podendo evitar que essas dificuldades se
potencializem, como bola de neve, instalando-se como quadros cujo tratamento
será mais difícil após a primeira infância.
A avaliação e as intervenções do psicanalista sempre levam em
consideração a constituição subjetiva do bebê, ou seja, estamos atentos aos
processos particulares e aos sinais que indicam falhas, dificuldades, impedimentos
nesse processo de constituição. É importante destacar esse ponto porque a
avaliação ou a intervenção psicanalítica sempre é feita considerando que um sinal
sozinho não indica nada, ele precisa estar associado a uma série de outros sinais,
compondo um sentido ou tendo assim uma significação. Diante disso, é necessário
considerar que os fenômenos subjetivos precisam de uma sucessão de observações
ao longo do tempo. Dessa forma, não há uma avaliação momentânea e pontual,
assim como os efeitos de uma intervenção só são verificados num momento
posterior.
Vale lembrar que, muitas vezes, um bebê ou uma criança pequena pode dar
mostras de uma diversidade de distúrbios, geralmente leves ou até moderados,
quando está respondendo a questões relacionadas a algum conflito passageiro que
está enfrentando em algum momento de sua vida ou da vida de sua família. Nessas
situações, é importante a família contar com uma rede de sustentação formada por
pessoas de referência para os pais.
Na condição de psicanalistas, ficamos alertas quando um bebê se mostra
impossibilitado de exercer suas competências, tanto no contexto das interações
quanto na organização de sua funcionalidade, ao longo de seu desenvolvimento
físico, que lhe permita prosseguir nas etapas do crescimento neuro-sensório-motor
(rolar, andar, sentar, pegar usando as mãos, olhar direcionado, atenção a sons,
mastigar) até a organização dos seus ritmos de sono/vigília, fome/saciedade,
Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública
Por tudo isso que se passa nesses encontros, dizemos que o psicanalista “se
empresta” como mediador e tradutor durante os atendimentos, nomeando o
sofrimento de ambos (pais e bebê), desculpabilizando os pais e legitimando a força
e o potencial do bebê.
Geralmente cabe ao psicanalista estender essas palavras e sua compreensão
da dinâmica relacional da família, a partir de sua percepção e leitura dos fatos
clínicos, aos outros profissionais que estão em contato com a família e o bebê. Em
nossa prática, na troca com outros profissionais, fica evidente o quanto é
organizador para a equipe a compreensão do psicanalista que os ajuda a ver com
igual importância as dificuldades do bebê e as dos seus pais.
As dificuldades encontradas por essas famílias, em tempos tão iniciais do
desenvolvimento de seus pequenos filhos, geralmente causam um grau de
desorganização intensa, que inclui desde as mudanças nos ciclos de sono e vigília,
alimentação, até as várias situações de adoecimentos do bebê e cansaço extremo
dos pais. Nesse contexto de alterações na rotina da casa, e desafios para a
convivência do casal e família, damos muita importância à rotina dos
atendimentos, que pode marcar a constância das trocas interativas entre o
psicanalista, os pais e o bebê, e favorecer a regularização dos ritmos interativos
dos pais com seu bebê no ambiente familiar.
Há duas operações fundamentais no trabalho do psicanalista: a primeira
operação é a detecção precoce, e a segunda operação é a intervenção precoce. Mas,
situamos aí uma sutileza clínica que tem enormes consequências, porque a
detecção precoce refere-se ao risco psíquico para o desenvolvimento em geral, e
não somente ao risco de autismo.
Atualmente, o fato de a categoria TEA (Transtorno de Espectro Autista)
englobar quase todos os transtornos especificamente psíquicos tem tido as
seguintes consequências: 1) uma falsa epidemia do autismo; 2) uma supressão de
categorias causando confusão e diagnósticos inespecíficos e; 3) significativos
atrasos para o tempo de início das intervenções precoces, porque os profissionais
ficam induzidos, paradoxalmente, a esperar a definição do autismo para indicar
intervenção. E isso faz grande diferença em relação aos resultados que se obtêm
quando as intervenções são tardias.
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1. Introdução
33
Um amplo estudo crítico sobre o DSM e suas consequências pode ser encontrado em O livro negro da
psicopatologia contemporânea, A. Jerusalinsky e S. Fendrik (orgs.), 2011.
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34
Em decorrência de uma ampla revisão dos temas diagnósticos patrocinada pela OMS, surgiram
simultaneamente a segunda edição do DSM e a oitava versão da CID.
35
O sistema multiaxial funciona a partir de cinco eixos, o que permite descrever um sujeito por um
conjunto de fatores clínicos.
36
A terceira revisão do DSM foi pensada junto com a nona versão da CID, mas publicada depois.
37
Transtornos Globais de Desenvolvimento - TGD é a tradução utilizada por Cláudia Dornelles para
Pervasive Developmental Disorders - PDD na quarta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais (APA, Porto Alegre, Artmed, 2002).
38
Na classe diagnóstica “Transtorno Global do Desenvolvimento”, encontrada na seção “Transtornos
geralmente diagnosticados pela primeira vez na infância ou adolescência” do DSM-III, figuram como
subtipos “Autismo Infantil”, “Transtorno Global do Desenvolvimento na Infância” e “Transtorno Global
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43
O TDAH é outro diagnóstico que mostra uma grande incidência a partir das novas edições do DSM (A.
JERUSALINSKY, 2010).
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44
A indústria farmacêutica, cuja força maior está nos Estados Unidos da América do Norte – mas não só
lá -, espraia sua atuação, conforme observação de S. L.de Oliveira e J. L. de Oliveira (2004): “O uso do
poder na indústria farmacêutica passa a ser uma estratégia indispensável para prover a harmonia dos
canais de marketing”.
45
Sobre o controle e domínio do autismo pela ciência e sua exploração pelo capitalismo e pela mídia, v.
"Efeitos do discurso capitalista sobre o autismo", de S. S. Ferreira, comunicação apresentada no II
Congresso Interdisciplinar sobre a criança e o adolescente: a linguagem, o corpo e a escrita. Porto Seguro
(BA), 2012.
46
De se notar que junto com o lançamento da quinta edição do DSM está sendo anunciada a publicação
de livros de psicofarmacologia e terapia cognitivo-comportamental para crianças e adolescentes, cf.
www.appi.org/Pages/Psychopharmacology.aspx e
www.appi.org/SearchCenter/Pages/SearchDetail.aspx?itemid=62406. Acesso em 14.03.13.
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si mesmo. Essa observação leva Hochmann a supor uma história do autismo antes
do autismo (J. HOCHMANN, 2009).
Em 1912, Bleuler usa o termo “autismo” - do grego auto (si próprio) e do
sufixo ismo (estado) – para indicar um dos sintomas das crianças que tinham
recebido o diagnóstico de “Esquizofrenia”: a predominância relativa ou absoluta do
mundo interior.47 Somente mais tarde, com a descrição de L. Kanner (1943, 1983,
1997), o autismo passou a definir um conjunto de distúrbios (“Distúrbios autísticos
inatos do contato afetivo”) e, logo depois, uma síndrome, designada “Autismo
Infantil Precoce” (KANNER, 1946), nomeação que põe em evidência a precocidade
do aparecimento das manifestações.48
47
Nos primórdios do século XX, o interesse da psiquiatria está voltado para crianças que não são
portadoras de deficiência mental, parecendo normais até apresentarem “sinais de loucura”. Inicialmente
chamado “demência precocíssima”, esse quadro é renomeado, em 1911, com o termo “Esquizofrenia”
(mente dividida) por E. Bleuler (1964, apud BERQUEZ, 1983, pág. 44; S.S.F.O. FERREIRA, 2004). O
termo “autismo” foi criado a partir da noção de autoerotismo, desenvolvida por Freud (1905/1972) para
definir o comportamento sexual infantil precoce, através do qual o indivíduo obtém satisfação recorrendo
ao seu próprio corpo. Por discordar da posição freudiana quanto ao papel essencial da sexualidade na
constituição do psiquismo, Bleuler extraiu da palavra “autoerotismo” a referência à sexualidade designada
por Eros, e estabeleceu o termo autismo para se referir ao investimento em si mesmo, investimento que,
no entanto, não seria da ordem da sexualidade e da libido (CAVALCANTI E ROCHA, 2001; TAFURI,
2003). No entanto, para GAUDERER (1993 apud PRAÇA 2011) o termo autista foi usado pela primeira
vez, na Psiquiatria, por Plouller em 1906, que na época estudava o processo de pensamentos de pacientes
com esquizofrenia. (GAUDERER 1993 apud PRAÇA, 2011).
48
Anos depois, justificando o nome dado à síndrome, Kanner (1958) esclareceu que a escolha tinha sido
efetuada (em 1944) com o objetivo de excluir o autismo do grupo das “Esquizofrenias Infantis”, alegando
que nesse grupo somente se verificava uma evasão da realidade depois de um período de
desenvolvimento normal, enquanto que no “Autismo Infantil Precoce” a criança não estabelecia relações
usuais com o entorno desde o princípio.
49
Aqui, a palavra “espectro” faz referência à definição usada no campo da Farmácia: “espectro contínuo”
é o espectro formado por faixa luminosa sem interrupções, apresentando todas as cores do arco-íris. (Cf.
Dicionário de Língua Portuguesa, São Paulo: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações, 1989).
Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública
50
No entanto, mesmo de acordo com a atual versão do DSM, tanto pode tratar-se de um caso de
Transtorno Autista, de Transtorno de Asperger, de Transtorno Desintegrativo da Infância, de Transtorno
de Rett ou de Transtorno Global do Desenvolvimento sem Outra Especificação, que inclui Autismo
Atípico, um subgrupo que a APA diferencia dos outros justamente por não satisfazer os critérios para
Transtorno Autista.
51
Muito embora o DSM-5 deixe de considerar a existência de uma tríade de alterações no autismo, a ideia
de um contínuo autista permanece sendo utilizada.
52
Críticas aos dois primeiros rascunhos do DSM-5 apresentados no site da APA para comentário público
resultaram em 50 milhões de acesso de cerca de 500 mil pessoas e mais de 10.000 comentários, em
grande parte com “duras críticas” (cf. Ferris Jabis, 2013, pág. 34). Uma série de manifestos contrários à
quinta edição foi produzida, entre eles o “Para acabar com a camisa de força do DSM” (França), “Por una
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psicopatologia clínica, que no estadística”, com a coordenação de ESPAI Freud (Barcelona), “Por uma
abordaje subjetivante del sufrimiento psíquico em niños y adolescentes, no al DSM”, com a coordenação
de FORUMADD (Buenos Aires), “Em prol de uma psicopatologia clínica” (São João Del Rei – MG),
produzido em conjunto pelo Núcleo de Pesquisa e Extensão em Psicanálise da Universidade Federal de
São João Del Rei (MG), Laboratório Interunidades de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP,
PSILACS – Grupo de Pesquisa Psicanálise e Laço Social no Contemporâneo, do CNPq, e Laboratório de
Psicopatologia e Psicanálise da UFMG (IPB, 2011). Convergência, Movimento Lacaniano para a
Psicanálise Freudiana e Intersecção Psicanalítica do Brasil também se opuseram expressamente ao DSM-
5 (IPB, 2011, 2012).
Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública
53
Muitas vezes se constata que os filhos são submetidos a uma espécie de “superinvestimento”,
caracterizado pelo acompanhamento simultâneo da criança por múltiplos profissionais de saúde, que, de
modo geral, não adotam uma linha de conduta uniforme, característica de uma equipe transdisciplinar, o
que pode causar graves prejuízos para a constituição psíquica infantil.
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6. A tarefa da Psicanálise
Nota 1
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Antecedentes Históricos
SOBRE OS AUTORES:
Anna Aline Coutinho - Integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisa
Psicanálise com Bebês e Crianças, segmento de
Intersecção Psicanalítica do Brasil – IPB Recife/PE;
Cristiane Carrijo - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” - UNESP – Bauru/SP;
Daniely Siqueira - Membro integrante do Núcleo de Estudos e
Pesquisa Psicanálise com Bebês e Crianças,
segmento de Intersecção Psicanalítica do Brasil –
IPB Recife/PE; participante da Pesquisa PREAUT -
Eixo Recife/PE;
Denize Bomfim - Centro de Orientação Médico-Psicopedagógica da
Secretaria de Estado de Saúde do DF
(COMPP/SES/DF); Associação Brasileira de
Neurologia e Psiquiatria Infantil – DF (ABENEPI –
DF - Presidente da gestão 2012/2013)
Gertrudes Pastl - Membro de Intersecção Psicanalítica do Brasil –
IPB Recife/PE;
Ione Silva - Membro integrante do Núcleo de Estudos e
Pesquisa Psicanálise com Bebês e Crianças,
segmento de Intersecção Psicanalítica do Brasil –
IPB Brasília/DF; gerenciadora do GT 11 do
Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública;
Juliana Tavares - Membro de Intersecção Psicanalítica do Brasil –
IPB Brasília/DF
Juliana Torres - Integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisa
Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública
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www.worldcat.org/title/dsm-iii-and-the-revolution-in-the-classification-of-mental-
illness.oclc/110617347&referer=brief_results. Acesso em 14.03.13.
comportamental). Esse pode ser um ponto delicado para psicanalistas que, diante de
algumas estratégias de intervenção construídas conjuntamente com os pais, tenham a
impressão de estar impondo um comportamento para a criança, o que não é o caso,
decididamente.
Da mesma forma que o uso, temporário e pontual, da medicação, é uma
condição para que o tratamento ocorra ou para auxiliar os familiares no cotidiano da
criança, a intervenção sobre o comportamento pode se fazer necessária não como
objetivo terapêutico, mas como simples intervenção educativa, pois a orientação de
guardar os brinquedos ao final da sessão é válida para qualquer criança, com ou sem
autismo. Entretanto, o modo de realizar essa intervenção será muito diversa da
maneira como os comportamentalistas trabalham.
Entendidos tais apontamentos, passamos a uma breve apresentação das
diversas abordagens sobre o autismo e suas propostas de intervenção.
A TEORIA COMPORTAMENTAL
A teoria comportamental, por seu princípio estritamente ambientalista, não
tem como objetivo buscar explicações psicológicas para os comportamentos que
observa. Ela se atém exclusivamente a neles intervir, a fim de modificá-los, ou seja,
eliminar comportamentos indesejáveis, “instalar” (na linguagem da análise do
comportamento) novos comportamentos que não fazem parte do repertório do
indivíduo, ou aumentar a frequência de comportamentos desejáveis que já fazem
parte de seu repertório.
As propostas terapêuticas comportamentalistas (ABA e TEACCH) têm como
objetivos programáticos do tratamento com o autista: a) a promoção de um
desenvolvimento normal dos aspectos cognitivo, linguístico e social; b) a promoção da
aprendizagem; c) a redução da rigidez e da estereotipia; d) a eliminação dos
comportamentos desadaptados inespecíficos; e) o alívio do sofrimento familiar e f) a
educação e a conscientização da comunidade para a aceitação do indivíduo.
Elas propõem um método de ensino baseado em uma teoria sobre as leis que
regem o comportamento. Entendem que os comportamentos são operantes, ou seja,
quando um indivíduo se comporta, esse comportamento opera sobre o ambiente,
promovendo uma resposta do ambiente que funciona como reforçador positivo ou
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• O método TEACCH
O método TEACCH — Treatment and Education of Autistic and Related
Communication Handicapped Children ou Tratamento e Educação de Autistas e
Crianças com Deficiência Relacionadas à Comunicação —, criado em 1966 por Eric
Schopler, nos Estados Unidos, é resultante da composição entre o cognitivismo e o
condicionamento operante, sendo uma adaptação dos princípios da terapia cognitivo-
comportamental ao autismo e àquelas crianças com deficiências na área da
comunicação.
Ela utiliza os princípios e técnicas da análise do comportamento, mas introduz
alguns aspectos que auxiliam as dificuldades específicas encontradas no autismo.
Os pais são fundamentais nessa forma de tratamento, pois não somente
colaboram no conhecimento sobre seu filho e na elaboração de um programa
individual a ele destinado, como também aplicam as atividades TEACCH no ambiente
de casa, estabelecendo-se como coterapeutas.
Vê-se aqui uma diferença conceitual em relação à psicanálise, pois esta
considera fundamental que os pais cultivem a “parentalidade”, sua função maior, com
seus modos próprios de ver e lidar com o filho. Esse lugar referencial é importante e
não deve ser substituído pela função de professor ou de terapeuta. Ademais, uma das
tarefas dos pais é a de educadores, mas sem perderem sua subjetividade ao se
colocarem nesse papel. Quando treinados como coterapeutas por uma técnica que
lhes vem de fora, se perdem entre esta e os rompantes de subjetividade que os
acometem, espontaneamente.
Schopler hipotetizou que a falta de estrutura ambiental aumenta a ausência de
objetivo na ação e piora o comportamento estereotipado da criança. Assim, propõe o
uso de um ambiente estruturado: a sala de aula TEACCH possui ambientes separados,
um local reservado para atividades individuais com o terapeuta, outro para atividade
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pela qual são introduzidas pequenas modificações, que são percebidas e aceitas pela
criança como não contendo alterações de padrão, até que se atinjam mudanças
importantes em seu comportamento.
A eliminação de comportamentos considerados inespecíficos e desajustados —
ataques de raiva, agressões, medos, enurese noturna — também é feita por análise
funcional do comportamento e aplicação dos princípios da aprendizagem com que
trabalha a terapia comportamental.
Para aliviar o sofrimento familiar, orienta-se a família sobre o que fazer nas
diversas situações domésticas. O esclarecimento do diagnóstico, a discussão sobre o
prognóstico e o estabelecimento da família, sobretudo dos pais, como coterapeutas do
tratamento do filho, juntamente com indicações de leituras voltadas para leigos,
ajudam a obter algum alívio no sofrimento familiar. Os irmãos também são escutados
e orientados, bem como toda a comunidade que participa do cotidiano daquela
criança.
Acredita-se que a ausência da busca de vínculos e de resposta à tentativa de
aproximação dos outros pode ser modificada mediante a intrusão deliberada dos pais
ou terapeuta nas atividades solitárias da criança, de modo que, para exercer essas
ações prazerosas, ela tenha, obrigatoriamente, que interagir com os outros. Tem-se,
ainda, a exigência de, por meio desse recurso, tornar a interação social gratificante
para o autista. Suas incapacidades sociais generalizadas, entretanto, não são sanadas,
e a terapia comportamental reconhece sua ausência de conhecimentos que serviriam
para suprir esse déficit. Sugere-se, no entanto, não deixar de abordar, com essas
crianças, um treinamento em habilidades sociais.
Há, na concepção prévia que a terapia educativa faz do autista, uma ênfase
dada ao déficit — nesse caso, o mental — e a tentativa de superá-lo, com exaustivo
treinamento de comportamentos socialmente adaptados.
O que se pode dizer com segurança sobre esses métodos é que se preocupam
exclusivamente com a mudança de comportamento dos indivíduos, e que essa
determinação é externa à criança.
Uma observação relevante a ser feita retoma a questão do déficit cognitivo
suposto no autismo. A fala enunciativa dessas crianças, verificada em inúmeros casos,
em que uma frase é verbalizada e dirigida a alguém por um autista que “não fala”,
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objeta essa convicção de deficiência, uma vez que, nessas situações específicas, o
autista demonstra capacidade de elaborar corretamente sua verbalização, inclusive
com o apropriado uso do pronome “eu”.
A metodologia psicanalítica com crianças com autismo enfatiza que os
comportamentos, seus sintomas, são uma resposta ou um meio de comunicação do
seu mal-estar, que na cena terapêutica são reproduzidos, entendidos e modificados e
não tratados apenas como uma falha a ser suprimida.
“Isto porque a exclusão do outro que a criança faz não é um
superficial problema de comportamento a ser corrigido. É uma
profunda resposta que se produziu, é uma forma de estar no mundo.
Por isso não se pode suprimir essa resposta antes que se constituam
para ela (em tratamento) outras formas possíveis de estar com os
demais.” (Movimento “Psicanálise, Autismo e Saúde Pública” ―
Grupo 7, 2013).
Para a psicanálise, a ética requer que, nos cuidados com essas crianças, seu
sofrimento e sua posição subjetiva sejam levados sempre em consideração.
(Movimento “Psicanálise, Autismo e Saúde Pública” ― Grupo 8, 2013).
O MÉTODO SON-RISE
O método Son-Rise foi desenvolvido por um casal estadunidense na década de
1970 na tentativa de ajudar o filho autista. Son-Rise em inglês é homófono a sun rise
(“nascer do sol”), podendo ser traduzido livremente como “o despertar do filho”.
Esse método tem se expandido rapidamente no Brasil, assim como em outros
países. Está ligado a algumas instituições, como a “Inspirados pelo Autismo”, que
adverte, no entanto, ter criado uma metodologia própria a partir de sua formação
inicial no Son-Rise.54
Trata-se de um programa domiciliar dirigido aos pais, que conta com um grupo
multidisciplinar de profissionais e voluntários, que os ajuda a construir “experiências
interativas estimulantes” para o filho no dia a dia. Busca motivar a criança a expandir
seu mundo a partir de suas ações e de uma atitude afetuosa e não crítica dos adultos.
54
Conforme observação constante da Newsletter da Inspirados pelo Autismo, de janeiro de
2013.
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atividades propostas. Esses são seus méritos. A despeito disso, suas intervenções se
mantêm no campo das atividades lúdicas e educativas controladas, sendo esse
ambiente diverso daquele do âmbito social em que o autista circula (escola, padaria,
transporte coletivo etc), o que faz questionar, tal como ocorre com as intervenções
comportamentais, a possibilidade de generalização desses aprendizados e aberturas
ao outro.
PSICOFARMACOTERAPIA
A mudança da compreensão dos mecanismos do autismo no seio da psiquiatria
como sendo eminentemente cognitivos tem como corolário a prescrição de terapias
cognitivas e comportamentais aliadas à farmacoterapia em seu tratamento.
A farmacoterapia tem a finalidade de minimizar os “sintomas-alvo”. No caso do
autismo, manifestações e comportamentos expressos que lhe são específicos
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CONCLUSÃO
As concepções aqui elencadas não esgotam a quantidade de abordagens
terapêuticas existentes para o autismo. E sua diversidade não apaga o comum a todas
elas: a questão de como lidar com a recusa à interação social manifestada pelo autista.
Entretanto, a despeito desse unicismo de objetivos, não se deve desconsiderar
que várias abordagens partem de campos epistemológicos distintos que não se
mesclam. Reconhecer essas visões antagônicas como discursos que se impõem no
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campo das práticas terapêuticas faz com que se possa confrontá-los, explicitando suas
diferenças. (Cavalcanti & Rezende, 2010).
Uma vez as diferenças explicitadas, pode se promover o diálogo e acompanhar
os avanços científicos conquistados em várias disciplinas que pesquisam o autismo.
Assim, essas conquistas podem ser articuladas para melhorar a abordagem da
complexidade no tratamento do autismo, visando a benefícios que contemplem as
pessoas com autismo e suas famílias. Se todos se propõem a esse objetivo comum, um
diálogo entre a diversidade passa a ser possível.
Referências Bibliográficas:
Ribas, D. (1992). Un cris obscur. (Trad. Paulina Rocha, especialmente para o atual
trabalho). Paris: Calman-Levy, pp. 103-143.
“dorme!”– tem como efeito o surgimento de sintomas que não se apresentam como
respostas do sujeito. (p. 147)
Segundo Quinet:
A inclusão do sujeito no tratamento tem duas vertentes
que devem caminhar juntas: por um lado, a inclusão do
sujeito do inconsciente, com sua fala, sua história e
seus sintomas, manifestações de sua singularidade. Isto
significa incluir o sujeito no saber sobre sua patologia,
seu pathos, seu padecimento. (...) A inclusão no campo
social é também tributária do conceito de sujeito em
Lacan, na medida em que não há sujeito sem Outro (...)
O conceito de sujeito, portanto, é ao mesmo tempo
individual e coletivo. Não há sujeito sem Outro – daí a
dificuldade de encontrarmos as manifestações do
sujeito no autismo, onde há um curto-circuito da
alteridade” (Quinet,2006,p.49)
Como então pensar a questão da inclusão do sujeito no caso de pessoas
que, por princípio, são consideradas fora do laço com o Outro, como é o caso dos
autistas? Eis o desafio da Psicanálise, ao considerar o sujeito autista um analisante
de pleno direito.
II. INCLUSÃO, EXCLUSÃO E SEGREGAÇÃO
(pathos) com esse fora, conservando uma distância e extraindo um afeto primário
– a angústia anterior a todo recalque”.
Nessa mesma direção, Nogueira (1997) sustenta que “a pesquisa feita por
Lacan situa epistemologicamente o campo freudiano da linguagem considerando a
materialidade do significante”. E acrescenta que “há aí uma exigência de rigor de
pesquisa que coloca esta clínica no nível de promissoras conquistas científicas da
realidade propriamente humana”.
vista entre os pares desse campo como algo necessariamente negativo, ou algo que
deva ser eliminado a priori, mas, antes, como um fato decorrente do estado atual
de nossa práxis, e cujo debate livre deve ser reconhecido e aprofundado pelos
atores que participam do próprio campo, como é prática comum nas
Universidades, Institutos e Escolas destinadas à formação dos psicanalistas. Essa
diversidade, é importante ressaltar, é amplamente reconhecida por diversos
Estados de Direito, inclusive o Brasil.
O reconhecimento dessas diferenças não nos impede de afirmar, entretanto,
que o objetivo geral da Psicanálise com sujeitos autistas é o de minimizar suas
angústias, ampliar suas capacidades de aprendizagem, permitir que eles
encontrem prazer nas trocas emocionais e afetivas e proporcionar uma ampliação
de seu campo de escolha, bem como de sua possibilidade de laço social. Trata-se,
evidentemente, de um trabalho a longo prazo, cujos resultados não podem ser
avaliados através de critérios mecanicistas ou quantitativos.
Se por um lado a Psicanálise, em sua origem, permitiu à criança tomar seu
lugar enquanto ser falante, por outro é fundamental que uma pessoa em estado
autístico possa encontrar, na cultura, um outro que não o trate de forma anônima
tal como ele mesmo parece se colocar: sem nome, sem desejo. Sabemos que o
tratamento dos ditos autistas toca no limite do insuportável: deparar com alguém
que recusa um laço com o outro. Para suportar esse encontro, é fundamental
sustentar uma posição em que o único desejo em jogo, da absoluta diferença,
permita uma aposta constante de que o nascimento do Outro seja possível.
A partir de nossa experiência com esses sujeitos, podemos afirmar que a via
da Psicanálise é a da ética que aposta na diferença absoluta: da repetição
estereotipada extrair um gesto que faça laço; da ecolalia, uma voz que se faça
escutar. Sabemos que não há garantia de que um Outro venha a nascer, como
diziam Rosine e Robert Lefort; mas sem essa aposta, é certeza que o anonimato e a
segregação continuarão sendo o destino para essas pessoas.
Como diz Nominé (2001), para isso “é preciso situar o encontro com um
psicanalista que saiba produzir, com tato e prudência, um pouco de alteridade para
fazer suplência a este Outro que tarda a nascer.”(RevistaMarraio,n.2)
Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública
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SOLER,C.“Autismo e Paranoia” In: Autismo e esquizofrenia na clínica da esquize. Rio
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Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública
55
Freud, S. (1932-1936) 38ª Conferência Introdutória à psicanálise. Sobre a Visão de Mundo. Sigmund
Freud Obras Completas, Buenos Aires, Amorrortu: 168.
Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública
56
Chertock, L. & Stengers, I. (1989) O Coração e a Razão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar: 50.
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em torno de uma pessoa que sofre. Não há que se considerar, argumentam certos
críticos, que a criança autista, ela mesma sofre, sem falar em seus familiares:
bastaria abordar a questão como um problema de recuperação de desempenho e
funcionalidade na vida pragmática. Quanto ao resto, deixemos isso com a
metafísica. Ora, essa atitude é profundamente anticientífica.
Mas voltemos ao problema dos fundamentos.
Para uma abordagem específica da dimensão propriamente epistemológica da
psicanálise remeto vocês aos trabalhos57 nos quais tenho defendido a ideia de que a
psicanálise ocupa o lugar do que Kuhn chamava de anomalia cientifica. Para o autor
de “Tensão Essencial”58 a anomalia era originalmente um fenômeno reconhecido
por uma comunidade científica como explicável por um determinado paradigma,
mas que, não obstante, era refratário à sua decifração. Admitido o estado de ciência
normal, a anomalia deve ser incluída ou neutralizada pelo paradigma. Quando isso
não ocorre, a anomalia pode induzir crise e subsequentemente revolução científica,
fazendo emergir um novo paradigma. Considero que a psicanálise é o análogo de
uma anomalia desse tipo, tomada como um fenômeno histórico parasitário da
epistemologia, uma vez que ela não pode nem ser propriamente incluída, nem
propriamente expelida como um epifenômeno inconsequente.
Essa tese da paradoxalidade científica da psicanálise não é nova nem original. Ela
decorre de uma leitura de afirmações lacanianas tais como: “o sujeito da psicanálise é o
sujeito da ciência”, “a psicanálise é a ciência da linguagem habitada pelo sujeito” ou
ainda, que a “a psicanálise visa introduzir o Nome-do-Pai na consideração científica”.
Mas creio que essa discussão está muito longe do impasse que se apresenta em
nosso momento. E ele é um impasse curioso, porque parte de afirmações ridiculamente
banais contra a cientificidade da psicanálise. Desde a mudança epistemológica dos anos
1980 a ciência passou a ser um assunto legislado e definido pela existência de uma
comunidade de cientistas. A ciência é o que os cientistas fazem e o que os cientistas
fazem é ciência. Podemos nos indignar com essa tautologia, mas ela representa o estado
de coisas em vigor hoje no mundo. Ocorre que por este critério não há a menor
possibilidade de que uma disciplina que conta com milhares de teses, dezenas de
milhares de artigos científicos em revistas científicas “controladas”, centenas de
Grupos de Pesquisa cadastrados no Diretório Nacional de Pesquisa do CNPq, que está
57
Dunker, C.I.L. (2011) Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica. São Paulo: Annablume.
58
Kuhn, T.S. (1997) A Tensão Essencial. São Paulo, UNESP, 2011.
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prática. Ou seja, a clínica, seja ela qual for, médica, psicanalítica, psicológica ou
psiquiátrica jamais foi e jamais será um ciência. Isso não significa que seus
procedimentos e seus fundamentos não nos rematam a modalidades de ciência. Mas
assim como anatomia não é medicina e genética não é clínica, a psicanálise não é uma
ciência. Surgem aqui duas estratégias que vêm conferindo resultados positivos ou
incertos, quando se considera esses dois escopos da questão:
Há, por um lado, uma série de estudos comparativos sobre eficácia e eficiência da
psicanálise como forma de tratamento clínico. Após um primeiro momento, no qual a
psicanálise era descartada do “páreo”, uma vez que não se sabia como enquadrar seus
resultados de forma comparativa, e segundo os critérios que ela mesma poderia
oferecer, seguiu-se mais recentemente uma série de pesquisas científicas e meta-
análises, mostrando como a “psicoterapia psicodinâmica de longo prazo”59 apresenta
efeitos mais consistentes60, mais permanentes e mais abrangentes que a maior parte das
psicoterapias conhecidas61. Essas pesquisas utilizam métodos estatísticos complexos
capazes de incorporar dados obtidos por meios e modalidades de apresentação muito
divergentes entre si. Nessa via o problema se desdobra indefinidamente para a
comparação entre tipos de patologias, diferença para adultos ou crianças62, contextos
culturais e institucionais63, extensão e qualidade da experiência do psicanalista,
linhagens e sublinhagens psicanalíticas. Para todos estes casos há pesquisas que
comprovam a eficácia do tratamento psicanalítico. Note-se que esses estudos não
comprovam a cientificidade da psicanálise, mas a sua eficácia. Um xamã amazônico que
utiliza plantas mágicas, que contêm princípios ativos insabidos ao próprio agente da
cura, não está praticando ciência, mesmo que ele seja extremamente eficaz. A eficácia
simbólica64 é um fenômeno interveniente na cura, assim como o efeito placebo,
nenhuma dos dois é um argumento de cientificidade, mas de efetividade técnica. A
cientificidade é um atributo do método, a efetividade um predicado da técnica. Nesse
59
Falk Leichsenring, DSc; Sven Rabung (2008) Effectiveness of Long-term Psychodynamic
Psychotherapy A Meta-analysis. JAMA. 2008;300(13):1551-1565.
60
Dorothea Huber; Johannes Zimmermann; Gerhard Henrich; Guenther Klug (2012) Comparison of
cognitive-behaviour therapy with psychoanalytic and psychodynamic therapy for depressed patients – A
three-year follow-up study. Z Psychosom Med Psychother 58/2012, 299–316.
61
Doidge N. (1997) Empirical evidence for the efficacy of psychoanalytic psychotherapies and
psychoanalysis: an overview. Psychoanal Inq1997;102-150.
62
Fonagy P, Target M. (1996) Predictors of outcome in child psychoanalysis: a retrospective study of
763 cases at the Anna Freud Centre. J Am Psychoanal Assoc 1996;44:27-77.
63
Lucie Cantin (1999) An Effective Treatment of Psychosis with Psychoanalysis in Quebec City, since,
1982. Annual Rewiew of Critical Psychology.
64
Lévi-Strauss, C.L. (1953) A eficácia simbólica. Antropologia Estrutural, Civilização Brasileira, 1988.
Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública
65
Freud, S. (1915) Pulsão e suas vicissitudes. Sigmund Freud Obras Completas, Amorrortu, Buenos
Aires, 1988.
66
Milner, J.C. A Obra Clara. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
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67
Lapeyre, M.; Sauret, J.M. (2008) A psicanálise como ciência. Tempo Psicanalítico, Rio de Janeiro,
v.40.
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68
Psicanalista, supervisor clínico territorial dos CAPSis Pequeno Hans (1998-2011), Eliza Santa Roza
(2000-2010) e da cidade de Vitória (2009-2012), Consultor da Área Técnica do Ministério da Saúde para
a Saúde Mental de Crianças e Adolescentes (2003-2010), professor titular de Psicanálise do Instituto de
Psicologia da UERJ, membro do Laço Analítico Escola de Psicanálise.
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práxis, mais claramente ainda nas políticas públicas, que envolvem dinheiro,
reconhecimento, ação. Mas sempre se tenta dar algum fundamento aos atos de guerra
ideológica. Neste caso, no mundo de hoje, as formas do poder estão tão bem assentadas,
o capitalismo selou seu casamento com a ciência de forma tão sólida que é como se
tivessem a certeza antecipada da mais integral impunidade no que fizerem. Junto com
Freud, Marx, Lacan e Althusser, Foucault teria que retornar ao mundo para nos
orientar em nossa luta. Mas, como isso não vai acontecer, teremos que inventar um
modo de derrotar essa cruzada da frente única ciência-capital contra inimigos que não
se reduzem à Psicanálise, de que tratamos aqui, mas que nomeio logo: o pensamento
dialético, a perspectiva histórico-crítica, e a fenomenologia como método são
igualmente rechaçados (por exemplo, do ponto de vista pseudocientífico que vige, um
usuário de drogas não deve nunca ser considerado em sua perspectiva histórica e social -
isso não seria “científico”, entendem? -, em sua realidade transindividual e
psicossocial. Do ponto de vista do que se quer chamar de ciência (e se consegue, por
força do poder, unicamente, que sustenta esse obelisco de palha no vento, e que de outro
modo nem ficaria de pé por um segundo), o usuário de drogas (crack) é dependente
químico, um organismo cuja dependência é atribuída a algum fator bioquímico ou
transtorno jamais teorizado de conduta. A dialética da história social, e a experiência
imediata de sua relação com a droga, como fenômeno, são tão rechaçados quanto a
tomada da questão pela Psicanálise, como uma experiência do sujeito e do
inconsciente, que precisa ser tomada a partir de seu dizer.
No caso do autismo, o ataque é exclusivo e frontal à Psicanálise, porque é só a
Psicanálise que se tem revelado eficaz na prática clínico-institucional, territorial, para
fazer avanços importantes, em clínica e em pesquisa sobre o autismo. Mais do que na
questão do uso de drogas, o autismo coloca em evidência a questão da própria
constituição de um sujeito no quadro.
Mas, vamos aos fundamentos, que eu comecei afirmando que precisam ser dados à
afirmação de que as formas de pesquisa e de exercício clínico que rechaçam a
Psicanálise, as neurociências aplicadas e a medicina do comportamento, não são
científicas. Digo neurociências aplicadas porque as neurociências têm toda a dignidade
metodológica da ciência, e o cérebro é um mundo a ser pesquisado, estudado, e
urgentemente, diria eu. Mas quando as NC estão a serviço da ideologia psicomédica
comportamental (e ela tem estado sempre), então ela se nivela por baixo na ideologia
dominante.
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Toda ciência, desde seu surgimento como ciência moderna com Galileu, parte de uma
formulação teórica (não precisa ser uma hipótese clara), mas de um ponto de vista,
uma posição no simbólico e se dirige ao real que ela pretende tornar inteligível. Não
estou falando de idealismo e racionalismo, mas do método galileano, fundador da
ciência no sentido moderno. Galileu fez importantes formulações sobre a astronomia,
sobre as posições e movimentos dos astros, e as submeteu à observação pelo telescópio,
por exemplo. Mas não foi o telescópio que informou Galileu. Foram conceitos
esboçados por Galileu que o levaram a construir o telescópio e observar astros. O
telescópio é o instrumento, não é o gênio do saber. Disse então coisas que levaram a
Igreja e a Inquisição a interrogá-lo, detê-lo, fazê-lo desmentir para não ser queimado,
como Giordano Bruno foi. Galileu, mais malandro, negou legal o que ele disse lá dentro
da câmera de torturas, mas na saída, gritou: “Mas que se move, se move”, e deu no pé,
porque não era besta de ficar ali esperando as labaredas. Estamos mais ou menos na
posição de Galileu, sendo queimados em fogueiras secularizadas, expulsos da cidade
da ciência e da política pública.
Mas prossigamos nos fundamentos. Galileu introduziu letras, álgebra, literalizou o real
da física, recorreu à matemática. Com isso chegou a um elevado grau de inteligibilidade
deste real, permitindo que seu filho e sucessor, Newton, viesse a formular leis que
violentaram a compreensão imediata dos fenômenos físicos (queda do corpo pela lei
da gravitação universal, o que permitiu a Kant filosofar sobre a racionalidade universal
e transcendental). O que o método científico faz é munir o cientista de recursos para
enfrentar o real e simbolizá-lo, passível de entendimento. Mas de forma alguma o
método científico admite que se inicie qualquer investigação com o que se chama de
petição de princípio. Seu princípio é uma ideia, que deverá ser submetida à
experiência. Por isso método hipotético-dedutivo, do qual a última etapa – e não a
primeira – é a prova experimental.
O que faz a medicina do comportamento hoje? Ela deliberadamente despreza toda e
qualquer possibilidade de que o real seja diverso daquilo que sua petição de princípio
estabelece. Vamos ao autismo, que nos interessa aqui a todos, e que é um excelente
exemplo disso. Um psicólogo comportamental não olha para o autismo com o olhar
instigado por um enigma do real, perguntando: “o que será isso, meu Deus, ou se me
permitem, que porra é essa, esse menino que se bate, que não fala, mas entende, desde
que alguém se digna a dirigir-lhe atos de fala e linguagem, que tapa os ouvidos para o
verbo não entrar demais, que anda meio de lado, enviesado, que não fixa o olhar, que
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se cobre de cocô, que joga tudo longe, que acende e apara interruptores
ininterruptamente, que se rejubila com água corrente, etc. etc. etc.”. O psicólogo
comportamental diz: esse transtorno invasivo do desenvolvimento (observem que essa
denominação não problematiza, mas afirma, implícita e indiscutidamente, a ideia de
desenvolvimento que Galileu, ou seja, a posição científica, mesmo que com toda a
liberdade de ideias que deve assistir à ciência, no caso a ideia de desenvolvimento, teria
colocado à prova. Há uma petição de princípio: trata-se de um transtorno de
desenvolvimento, transtorno invasivo, marcado por condutas típicas que precisamos
remover para aumentar o nível de competência pragmática e social desta criança.
Nenhum enigma, nenhum real a ser elucidado. Nenhuma ciência.
Isso me faz recordar de um episódio real que presenciei: um psiquiatra, atendendo a
uma mãe de autista que lhe diz que só se deu conta de que estava grávida do filho (que
veio a se tornar autista) aos 7 meses de gravidez (e que pretendia contar ao referido
psiquiatra as circunstâncias - de resto, preciosíssimas - de como se deu conta disso, mas
não conseguiu fazer isso), disse a ela que isso não tinha a menor importância no quadro
clínico e que o que importava era que ela levasse o filho para um exame para detectar
áreas cerebrais afetadas nas crianças autistas. O instrumento assume o comando sobre as
ideias e conceitos, e um fragmento espantoso do real - o relato da mãe sobre esse
incomum desconhecimento de uma gravidez - é declarado "sem importância alguma no
quadro". Que cientista sério despreza o real que se lhe apresenta em nome do
abstracionismo imaginário (das imagens cerebrais, e do imaginário da compreensão de
todo sentido)?
Há, assim, outras petições de princípio complementares: HÁ DE HAVER uma base
orgânico-cerebral para esse comportamento todo assim descrito. Entendem isso? Há de
haver... Não faltará esse componente. Uma vez, em um debate na cidade de Belém,
2009, o CONPSI, Congresso Norte-Nordeste de Psicologia, ao qual fui convidado para
uma mesa especialmente criada pelos próprios organizadores, não resultante do
acolhimento das propostas dos participantes inscritos, portanto, em função do que eu
andava dizendo aos quatro ventos sobre isso, e que ofendeu a sociedade de psicologia
comportamental, também presente à mesa, uma pesquisadora, aliás do Rio, da PUC-
Rio, ao ser perguntada por uma pesquisadora crítica sobre o estatuto de um tal fator
biológico obscuro que estaria (necessariamente) na base da etiologia do autismo,
respondeu: “É, as pesquisas ainda não conseguiram detectar que fator é esse”. Mas,
diante da perplexidade da outra pesquisadora, que dizia: Mas como, então, vocês
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afirmam que um fator obscuro ainda não detectado existe na base da etiologia de um
quadro como o autismo? Que espécie de rigor científico norteia vocês? A pesquisadora
da PUC respondeu: “A comunidade científica internacional – da qual ela
sistematicamente excluía a Psicanálise, como não fazendo parte desta comunidade –
avalia que este fator existe”. Bem, ele há de existir, não importa se o caminho
metodológico fará encontrá-lo ou não. Isso, meus caros, não é ciência, é dogma,
religião, mais do que ideologia.
Confrontemos esse procedimento com o de Freud, num exemplo clássico, o das
paralisias motoras. Em 1891, vejam bem, antecedentes da Psicanálise, primórdios, pré-
história, Freud, excelente pesquisador neurologista, cientista rigoroso, encontra-se com
uma perna paralisada. Ele conhecia melhor que ninguém a ciência neurológica, que
dispunha de uma lei chamada CÉFALO-CAUDAL E PRÓXIMO-DISTAL, segundo a
qual toda paralisia motora, e toda paralisia era organicamente determinada, deveria
seguir, ao longo de um feixe neuronal, a LEI (científica) de atingir primeiro as áreas
motoras controladas por segmentos MAIS PRÓXIMOS do encéfalo e depois os mais
distantes, na cauda medular (céfalo-caudal e próximo-distal). No entanto, pacientes
que ele atendia paralisavam movimentos ligados a áreas mais distantes E NÃO
PARALISAVAM movimentos ligados a áreas mais próximas (por exemplo,
paralisavam o braço mas moviam o ombro). Isso era um contrassenso, um absurdo
fenomênico, um refutador empírico, um escândalo, enfim. Ou aquela paciente estava
FINGINDO, simulando, como se diz, ou teriam que rever a lei neurológica das
paralisias motoras orgânicas. Acontece que essa lei era sólida, gozava do que Popper
chamaria de alto grau de corroboração empírica, não seria fácil nem cientificamente
plausível derrubá-la não. Ocorreu então a Freud a posição do cientista: ”que é isso?”
“que porra é essa”?, o enigma que o real coloca a um espírito verdadeiramente
científico. Será que não estamos diante de um fenômeno até hoje desconhecido da
ciência neurológica? Bem, o que resultou disso? Freud postulou, como Galileu, a
possibilidade CIENTÍFICA da existência de paralisias motoras que NÃO FOSSEM
ORGANICAMENTE DETERMINADAS. Conceituou-as (produziu conceito)
PARALISIAS MOTORAS HISTÉRICAS, que não respeitavam a LEI CÉFALO-
CAUDAL PRÓXIMO-DISTAL sem com isso precisar derrubar a teoria neurológica,
consistente em seu campo. Pois que disse mais, disse que as paralisias motoras
histéricas decorrem do conhecimento que o SENSO COMUM tem da anatomia.
Imaginam isso? Alguém dizer, no ambiente científico, que o senso comum – e não o
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conhecimento científico dos feixes neuronais em sua distância para com os centros
cerebrais – é que rege a geografia, o mapa anatômico de uma paralisia histérica? Freud
não sabia que sua coragem científica o levaria à criação de um campo novo, a
Psicanálise.
O que faria um psicólogo comportamental, um psiquiatra organicista, um gestor público
atual, um deputado comprado pelo lobby dos laboratórios de psicofármacos de controle
comportamental? Manteriam a histérica como simuladora? Depende, se a histérica fosse
um IMENSO MERCADO em uma época como a de hoje, os psicólogos e psiquiatras
médico-comportamentais fariam o que estão fazendo com o autismo, iam querer se
apropriar da histeria e dizer que a Psicanálise é ineficaz com a histeria.
Será? Mas a histérica é por demais rebelde a esse tipo de manobra de mestre, pois ela,
como demonstra Lacan, já vem com o pão da castração quando o mestre vai com a
farinha do significante que a vela. Ela sabe que o mestre é castrado, aliás, ela sabe
porque ela É O MESTRE CASTRADO exibindo sua divisão no laço social. Os
psicólogos e pseudocientistas de hoje não teriam tido sucesso com as histéricas não.
Com os autistas, pareceria que sim, eles se deixariam moldar. Será? Penso que não. Os
pseudocientistas têm sucesso com as famílias dos autistas, assim como os gestores da
direita tecnocrática, da internação compulsória, têm sucesso com a classe média, refiro-
me à clássica, aquela que vive ansiando por uma ordem social higienista e fascistóide.
Os autistas, estes, são ainda mais rebeldes do que as histéricas. E proponho que os
tomemos no mesmo lugar, homólogo, que elas ocuparam há 100 anos. A psicanálise
está diante de um desafio bastante diferente, talvez refundador, porém homólogo àquele
que resultou na sua fundação.
Que refundemos, reinventemos, pois, a Psicanálise, desta vez com inimigos sociais mais
armados, um capitalismo que aprendeu o micro político além do macro, que perverteu
as estratégias que poderiam combatê-lo, colocando-as a seu favor. Sejamos mais
estratégicos ainda, guerrilheiros do discurso (e talvez de outros instrumentos também...),
saibamos como reinventar a relação da pesquisa com uma verdadeira ciência na
Universidade, na Clínica e na Política Pública. Mas, atenção: o momento é de guerra.
Obrigado.
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Universidades:
FEUSP (professores: Leny Mrech, Rinaldo Voltolini, Leda Bernardino)
FMUSP (professor Wagner Ranna)
Grupo de estudo sobre a criança (e sua linguagem) na clínica psicanalítica -
GECLIPS/UFUMG
IPUSP (professores Cristina Kupfer, Christian Dunker, Rogerio Lerner)
PUC /RJ (professora Beatriz Souza Lyma)
Psicologia PUC /SP (professores (Silvana Rabello, Isabel Khan)
Fono PUC/SP (professores Claudia Cunha, Luiz Augusto P. Souza, Regina Freire)
UERJ (professor Luciano Elia)
UFBA - ambulatório infanto-juvenil da Residência em Psicologia Clínica e Saúde Mental
do Hospital Juliano Moreira/UFBA-SESAB (professora Andréa Fernandes)
UFMG (professora Angela Vorcaro)
Laboratório de Estudos Clínicos da PUC Minas (professor Suzana Faleiro Barroso).
UFPE (professora Joana Bandeira de Melo)
UFRJ (professora Ana Beatriz Freire)
UFSM (professora Ana Paula Ramos)
UnB (professores Izabel Tafuri, Marilucia Picanço)
Unesp Bauru (professores Edson Casto, Erico B. Viana, Cristiane Carrijo)
UNICAMP (Nina Leite)
Univ. Católica de Brasília (professora Sandra Francesca)
Setor de Saúde Mental do Departamento de Pediatria da UNIFESP
Centro de Referência da Infância e da Adolescência - CRIA/UNIFESP
DERDIC/PUCSP (professores Sandra Pavone, Yone Rafaele, Lucia Arantes e Carina Faria)
Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais (FCMMG) (professora Paula Pimenta)
Instituições de Psicanálise
Associações
Hospitais
Revista
Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública
Grupo de pesquisa
PREAUT BRASIL
Grupo de pesquisa IRDI nas creches