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O INFANTIL NA PSICANÁLISE
Editores:
Maria Ângela Bulhões e Sandra Djambolakdjan Torossian
Comissão Editorial:
Beatriz Kauri dos Reis, Deborah Pinho, Gláucia Escalier Braga,
Maria Ângela Bulhões, Otávio Augusto W. Nunes, Valéria Machado Rilho.
Editoração:
Jaqueline M. Nascente
Consultoria linguística:
Dino del Pino
Capa:
Clóvis Borba
Linha Editorial:
A Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre é uma publicação semestral da APPOA que
tem por objetivo a inserção, circulação e debate de produções na área da psicanálise. Contém
estudos teóricos, contribuições clínicas, revisões críticas, crônicas e entrevistas reunidas em edições
temáticas e agrupadas em quatro seções distintas: textos, história, entrevista e variações. Além da
venda avulsa, a Revista é distribuída a assinantes e mem bros da APPOA e em permuta e/ou
doação a instituições científicas de áreas afins, assim como bibliotecas universitárias do País.
R454
Semestral
ISSN 1516-9162
CDU 159.964.2(05)
CDD 616.891.7
Bibliotecária Responsável Luciane Alves Santini CRB 10/1837
Indexada na base de dados Index PSI – Indexador dos Periódicos Brasileiros na área de
Psicologia (http://www.bvs-psi.org.br/)
Versão eletrônica disponível no site www.appoa.com.br
Impressa em agosto 2012. Tiragem 500 exemplares.
O INFANTIL NA PSICANÁLISE
SUMÁRIO
8
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 09-17, jan./jun. 2011
TEXTOS
INFANTIL, EU?1
Maria Lúcia Müller Stein2
INFANTILE, ME/I?
Abstract: This text intends to establish the psychoanalytic outlines of the concept
of infantile, its importance in the theoretical development of psychoanalysis, as
well as its relevance to clinical practice.
Keywords: infantile, theory, psychoanalytic clinic.
1
Trabalho apresentado na Jornada de Abertura da APPOA: O infantil na psicanálise, realizada
em Porto Alegre, abril de 2011.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Mestre em
Psicologia Social e Institucional/UFRGS. E-mail: mlpm@terra.com.br
9
Maria Lúcia Müller Stein
11
Maria Lúcia Müller Stein
3
De acordo com Alfredo Jerusalinsky (1996): “O trauma muda de posição da primeira para a
segunda teoria, onde o fundamental na sua elaboração não consiste em tratar dos restos
reais, mas do resíduo significante que Freud denomina fantasia inconsciente” (p.187).
4
“Assim, nos primórdios da investigação psicanalítica até os anos de 1915 e 1920, o infantil se
identificava com o registro da sexualidade, isto é, com o campo do desejo e com o que era
regulado pelo princípio do prazer. Após os anos 1920, em contrapartida, o infantil passa a ser
circunscrito como o que não pode ser erotizado e como o que é regulado por um além do
princípio do prazer. Vale dizer, o infantil passa a ser identificado com o real da angústia e com
trauma, com aquilo capaz de lançar o sujeito no desamparo e de promover seu esfacelamento”
(Birman, 1997, p.24).
13
Maria Lúcia Müller Stein
([1964] 1985), no seu seminário de 1964. Todos nós, que passamos pela
experiência de análise, sabemos o que é sentir essa ultrapassagem, esse instante
efêmero de encontro e perda, que é justamente a experiência do inconsciente.
Nessa mesma lição, Lacan utiliza um termo muito interessante para falar desse
encontro com o inconsciente: reachado. Vou citá-lo: “Ora, esse achado, uma
vez que ele se apresenta, é um reachado, e mais ainda, sempre está prestes a
escapar de novo, instaurando a dimensão da perda” (idem, p. 30).
Reachado. Soa horrível, provavelmente uma palavra que não existe em
bom português, talvez nem seja essa a tradução apropriada do francês, mas
achei-a particularmente interessante, pois traz em si mesma a noção de perda
e corte. Se racha, faz fenda, e na fenda se “reacha” algo que tenha se perdido.
E que se perderá de novo.
Mas, voltemos ao nosso pequeno analisante. Afinal o que havia se
processado para que eu estranhasse aquele toque de um menino que, há pouco
tempo, buscava meu colo para chorar como um bebê? Sem dúvida, um novo
elemento entrava em cena: o falo. Assim, se revelava o sexual, sempre traumático,
mas que, mediado pelo jogo simbólico, lançava o menino em outra condição
frente à ausência. Condição necessária de uma perda que pode se inscrever
como falta, como falo enquanto representante dessa falta, que nunca cessa de
se reinscrever através do eterno “pulsar do circuito”, mantendo em aberto os
caminhos do objeto do desejo.
O caso teria muitos aspectos a serem abordados, desde a intervenção
com os pais, com a escola, a transferência, mas o que gostaria de salientar
neste momento é o aspecto estrutural do infantil que se apresenta em construção
na clínica com crianças. Poderíamos pensar que essa análise pôde introduzir o
jogo do objeto, alternância entre presença/ausência, gozo/desejo, pôr em marcha
a passagem para um outro tempo, o tempo do Édipo, tempo do recalque. Mesmo
que isso só se confirme a posteriori, essa análise conduziu à possibilidade,
destaco a possibilidade, de constituição de uma neurose infantil do adulto que o
garoto virá a ser, na medida em que instaura o infantil num “extratempo”. Trata-
se aí da causa de toda temporalização possível, de toda procura possível – em
seus rachas e reachados.
Então, como já dissemos, essa dimensão estrutural do infantil se refere à
insuficiência fundamental do ser humano, ao desamparo comum a todos nós, e
que coloca a necessidade de nos inscrevermos numa ordem simbólica, o que
só poderá ser feito mediado pela construção de uma fantasia.
Assim, o trauma e a sedução, entendidos aqui em sua dimensão de
desamparo, se referem àquilo que se inscreve num registro temporal particular,
fora da dialética da temporalidade histórica. O trauma se apresenta como
15
Maria Lúcia Müller Stein
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: ensaio sobre a destruição da experiência. In:
______. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2005.
ARIÉS, Philippe. História social da criança e da família Rio de Janeiro: LTC – Livros
Técnicos e Científicos Editora, 1981.
BERNARDINO, Leda Maria Fischer. As psicoses não decididas da infância: um estudo
psicanalítico. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.
BIRMAN, Joel. Além daquele beijo!? Sobre o infantil e o originário em psicanálise. In:
______. Da análise da infância ao infantil na análise. Rio de Janeiro: Contra Capa
Livraria, 1997.
FLESLER, Alba. Os tempos do sujeito. Revista da Associação Psicanalítica de Porto
Alegre, Porto Alegre, n. 35, p.178-192, jul./dez. 2008.
FREUD, Sigmund. Escritores criativos e devaneio (1908[1907]). In:______. Obras
completas. Vol. IX. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1976. p.147-158.
______. Notas sobre um caso de neurose obsessiva (1909). In: ______. Obras
completas. Vol. X. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1976. p. 157-317.
GUINARD, Florence. O infantil ao vivo: reflexões sobre a situação analítica. Rio de
Janeiro: Imago Ed., 1997.
LACAN, Jacques. A angústia. Seminário 1962-1963. Publicação para circulação
interna do Centro de Estudos Freudianos do Recife. s/d.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise [1964]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
POMMIER, Gérard. O conceito psicanalítico de infância. In: Trata-se uma criança/I
Congresso internacional de psicanálise e suas conexões. Rio de Janeiro, Companhia
de Freud, 1999.
Recebido em 17/09/2011
Aceito em 20/10/2011
Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes
5
Fundamental referir aqui o texto de Ferenczi, Análise de crianças com adultos (1931): “[...]
não devemos nos dar por satisfeitos com nenhuma análise que não tenha levado à reprodução
real dos processos traumáticos do recalcamento original, sobre o qual repousa, afinal, a
formação do caráter e dos sintomas” (p.337).
17
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 18-30, jan./jun. 2011
TEXTOS AS INTERVENÇÕES DO
ANALISTA NA ANÁLISE
DE UMA CRIANÇA1
Alba Flesler2
Abstract: This article discusses the dimension of the psychoanalytic act from
the three registers proposed by Lacan: real, symbolic and imaginary, specifically
in the work with children.
Keywords: psychoanalytic act, children´s analysis, infantile.
1
Conferência apresentada nas Jornadas Clínicas da APPOA Dizer e fazer em análise, em
Porto Alegre novembro de 2010.
2
Psicanalista; Membro da Escuela Freudiana de Buenos Aires (Argentina); Supervisora da
Après-coup Psychoanalitic Association of the New York (USA).
É autora de El niño en análisis y el lugar de los padres (Editora Paidós, 2008); e El niño en
análisis y las intervenciones del analista (Editorial Paidós, 2011); Coautora dos livros Los
discursos y la cura e De poetas, niños y criminales: a proposito de Jean Genet. E-mail:
albaflesler@sion.com
18
As intervenções do analista...
3
Referência à conferência apresentada por Isidoro Vegh, nas mesmas Jornadas Clínicas da
APPOA, que está publicada na Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, n° 39:
tempo – ato – memória.
19
Alba Flesler
pela psicanálise; portanto, as crianças não são analisáveis. É a linha que segue
predominantemente a proposta de Anna Freud. É preciso realizar previamente
intervenções na linha pedagógica, porque a criança não pode ser analisada.
Em meu entender, tanto uma posição quanto outra deixam o problema
intacto: é que fazem as intervenções do analista oscilar entre a onipotência –
todo sujeito é analisável do mesmo modo teorizado por Freud – e a impotência
– não é analisável por não coincidir com a soma das características ideais
teorizadas por Freud para o trabalho psicanalítico – da abordagem. Estamos,
então, ante a onipotência ou a impotência do ato analítico. Como fazemos para
eludir essa dificuldade? Como sabemos, existem variadas formas de analisar
uma criança.
Alguns analistas trabalham exclusivamente com os pais e consideram
que tudo o que ocorre com a criança é determinado por eles. Recebem-os,
analisam-os, mandam-os à análise – mesmo que eles nunca cheguem a fazê-
lo. Outros trabalham exclusivamente com a criança: dão-lhe brinquedos, brincam
com a criança, pois consideram que se trata de que o analista intervenha somente
quando ela brinca.
Levantam-se outras vozes dizendo que não é assim, que o analista não
deve brincar com a criança. Brincar é um gozo e deve ser suspenso. Em todo
caso, precisa-se exclusivamente observar a brincadeira da criança e depois
interpretá-la.
Assinalo essas variantes porque podemos reconhecer nelas extremos.
Há analistas que não oferecem brinquedos às crianças, porque propõem que
devem ser sujeitos da palavra e as obrigam a associar “livremente”. Digo que as
obrigam porque entendo que há um forçamento.
Diria que estamos, mais que ante um leque de questões, ante uma salada.
Como situar-nos ante tão diversas perspectivas? E como fazê-lo –
perguntava-me – sem agregar mais uma perspectiva? Porque poderia somar-se
minha própria perspectiva à serie já apresentada. Creio que propor intervenções
do analista, e fazê-lo no plural, pode orientar-nos a uma saída lógica. Mas, para
alcançá-la, temos de nos perguntar que lógica é essa, que plural estamos
enunciando, quando dizemos intervenções. Trata-se, por exemplo, de uma lógica
serial? Não creio. Vejamos suas consequências.
A lógica da série, como vocês bem sabem, é a que poderia fazer-se
infinita, agregando sempre uma perspectiva nova ou chegando à conclusão de
que há tantas intervenções quanto analistas. Proponho, então, que façamos
uma formalização lógica das intervenções do analista, para poder responder a
uma pergunta que Lacan nos propõe desde o início de sua obra. É simples, mas
complexa, tanto quanto esta pergunta: o que fazemos quando analisamos? Como
20
As intervenções do analista...
podem apreciar, estamos em cheio no tema desta Jornada sobre o ato analítico:
fazer, dizer, que lógica? Para poder avançar naquela resposta, que tento aproximar
a essa pergunta, apresentarei um breve percurso para situar os elementos dessa
lógica.
Vou começar indicando que a criança não é o objeto da psicanálise. Toda
disciplina parte de delimitar seu objeto, e creio que seria um erro colocar que o
objeto da psicanálise é a criança. Isso levou às especialidades em psicanálise,
por exemplo, a crer que há especialistas em crianças. Não acredito na
especialidade, o que não quer dizer que não haja especificidades do ato analítico
quando atendemos à criança. Parece um paradoxo, vou tratar de esclarecer que
não é.
O objeto da psicanálise, então, não é a criança, mas o sujeito; por isso,
proponho que o analista atenda à criança, mas aponte ao sujeito. O sujeito, que
Lacan tentou definir ao longo de todo seu ensino, é um sujeito que não é só o
sujeito do significante – mesmo que, em um primeiro tempo, tenha precisado
acentuar a vertente simbólica do sujeito, porque estava em polêmica com os
pós-freudianos. Naquele momento, acentuou que o sujeito é o que um significante
representa para outro significante, mas, à medida que foi avançando em seu
ensino, o imaginário, que havia ficado tão desprestigiado no primeiro tempo do
ensino, adquiriu novo valor, quando Lacan pensa o sujeito da estrutura como
RSI. Ou seja, a estrutura do sujeito não é só simbólica: é o real, o simbólico e o
imaginário. E, como se isso fosse pouco, para Lacan, não apenas se trata dos
três termos, mas de um modo de relação entre eles, amarrados borromea-
namente.
Quero que tenhamos presente o nó, mais uma vez. É muito importante,
para mim, tê-lo presente, quando vamos trabalhar as intervenções do analista.
Retomo-o brevemente:
21
Alba Flesler
criança do Outro. Situar o que é uma criança para ele. Quando nos propomos a
atender a uma criança, nos ocupamos de localizar se foi realizada ou não essa
operação de alojamento, se foram cursados seus tempos, tempos da estrutura,
que vão se situando e delimitando no Outro. Por sua vez, se dizemos que a
criança é um lugar no Outro, agregaremos que o sujeito é uma resposta. Esclareço
a que me refiro.
Lacan diz: o sujeito responde ao Outro, mas também, com um texto
breve e condensado, nos aproxima distinções temporais que tratei de sublinhar.
Lacan ([1969] 2003) afirma que nem sempre responde; pode não responder, por
exemplo, em Duas notas sobre a criança, esse texto clássico de Lacan à
Madame Aubry, em que Lacan faz, segundo minha leitura, uma distinção. Há o
sintoma da criança que está em posição de responder ao que há de sintomático
na estrutura familiar; Le symptôme de l’enfant se trouve en place de répondre à
ce qu’il y a de symptomatique dans la structure familiale4 . Nesse caso, o sintoma
já é uma resposta. Mas nem sempre há resposta, esclarece Lacan: em outras
ocasiões, a criança realiza a presença do objeto no fantasma materno. Proponho,
então, fazer uma distinção entre responder e realizar, entre resposta do sujeito
e realização do objeto. Se o sujeito responde e, portanto, há uma resposta,
estamos já ante uma lógica.
Que lógica implica a resposta do sujeito? Implica uma lógica de não-
identidade.
Pois cada vez que há resposta, põe-se em jogo uma diferença entre o
lugar da criança como objeto do Outro e a resposta do sujeito. Com minhas
palavras, direi então que o sujeito responde à criança do Outro, à criança que o
Outro lhe demanda ser.
Quando responde sim, se aliena, ganha essa enorme operação constituinte
chamada “alienação”. Quando responde não, também dá um passo, essa vez
no sentido de uma “separação”, operação necessária para a constituição do
sujeito. A distinção entre resposta e realização é essencial para o analista, pois
delata um tempo constitutivo do sujeito ou bem uma falha em sua operação.
Quando recebemos os pais, atendemos à criança do Outro, e quando
recebemos a criança, fazêmo-lo para localizar a resposta do sujeito, caso haja.
Porque a resposta é necessária para que se constitua o sujeito, mas também é
4
[…] o sintoma da criança acha-se em condição de responder ao que existe de simtomático
na estrutura familiar (Lacan, ([1969]2003), p.369).
23
Alba Flesler
5
Personagem de quadrinhos argentino (N.T.).
27
Alba Flesler
REFERÊNCIAS
FLESLER, Alba. El niño en análisis y el lugar de los padres. Buenos Aires: Ed. Paidós, 2007.
______. El niño en análisis y las intervenciones del analista. Buenos Aires: Paidós,
2011.
FREUD, Sigmund. Introducción del narcisismo (1914) . In: ______. Obras completas.
Buenos Aires: Amorrortu editores. Tomo XVII, 1976. p.65-98.
______. Sobre las trasposiciones de la pulsión, en particular del erotismo anal
(1917). In: ______. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu editores. Tomo XVII,
1976. p.113-123.
29
Alba Flesler
Recebido em 09/08/2011
Aceito em 05/09/2011
Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes
30
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 31-42, jan./jun. 2011
TEXTOS
ALIENAÇÃO – ATO – DESEJO: o
que sabe uma criança?1
Abstract: This text is about the logic of the psychoanalytic act, as proposed by
Lacan in the Seminar The psychoanalytic act ([1967-1968] s/d). Through a case
of literature, illustrates the alienation, the act and the assumption of desire in
childhood, from the alienation of the body to the signifier and to the object a ,
according to unconscious inscriptions than are portable of a knowlegde, its
changes and effects.
Keywords: alienation, act, desire, object a , childhood.
1
Versão escrita a partir da fala de reabertura dos trabalhos do Cartel sobre o Seminário O ato
psicanalítico, ocorrida em 25 de maio de 2011.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). E-mail: liz-
ramos@uol.com.br
31
Liz Nunes Ramos
[...] o ato é, por sua dimensão, um dizer. O ato diz algo [...] A dimensão do
Outro, à medida que o ato vem testemunhar algo, não é mais eliminável [...] aí está
o verdadeiro ponto de inflexão, o centro de gravidade.
Jacques Lacan
33
Liz Nunes Ramos
dias – título do livro3 que escreve após a fuga. No dia de seus 10 anos, Natascha
decide que esse será o primeiro dia de uma nova vida. Na época, seus pais já
estão separados – o que implica uma severa fratura narcísica –, e ela não está
em boas relações com a mãe, que a humilha e a submete a maus tratos;
considera-se feia, é vítima de bullying na escola, sente-se sozinha e está bastante
deprimida. Nesse dia havia discutido com a mãe, que a esbofeteara no rosto. A
menina sai de casa sem se despedir, para ir sozinha à escola, tentando demarcar
com esse ato o início de um ciclo de restauração narcísica, de uma nova posição
subjetiva. Está amedrontada, mas aposta na coragem para fazer a travessia à
nova vida. Ao mesmo tempo, o trajeto é acompanhado da fantasia de atirar-se
na frente de um carro; assim, ao perdê-la, a mãe se arrependeria por maltratá-la.
Onde está inscrita para ela a castração da mãe, já que precisaria faltar no real
para reconstituir seu lugar no amor materno?
Quando avista o sequestrador, ele a olha insistentemente. Ela avança
em sua direção, tomada pelo medo, mesmo suspeitando de algo estranho em
seu olhar e no carro com a porta aberta. Diz que poderia ter atravessado a rua e
trocado de calçada, mas, ao invés disso, com olhar baixo, tenta passar entre a
porta do automóvel e o pedaço de calçada restante; momento no qual é capturada
e jogada para dentro do carro. Contudo, frente à decisão de subtrair-se ao universo
materno (primeiro tempo de seu movimento de separação), é evidente que ela
não poderia ter atravessado a rua. Ela não teria como recuar frente à decisão de
desvelar o desconhecido que essa travessia implicava, quanto ao outro universo
que ela teria de conquistar, sobretudo os interrogantes quanto ao sexo, com os
quais não se recusa a se confrontar. Assim iniciam anos de horror, escravidão e
tortura.
Ela fora advertida quanto aos riscos de andar só: “– Pense em tudo que
podia acontecer a você”, dizia a mãe, enquanto a menina acompanhava com
avidez os inúmeros casos de sequestro de garotas violentadas e mortas na
Áustria. Natascha pensava sobre isso, ou melhor, fantasiava, incluindo-se nas
cenas dos corpos mutilados, despedaçados, abandonados nos matos. De forma
que é possível supor a vigência de uma fantasia inconsciente relativa à
identificação ao objeto de gozo, ao dejeto, no campo sexual, fantasia conectada
ao que horrorizava a mãe, sempre preocupada em se excluir da miséria reinante
no entorno.
3
KAMPUCH, Natascha. 3096 dias. Campinas: Verua, 2010.
36
Alienação – ato – desejo...
Apesar de atrair olhares quando saía com o pai, pelas roupas bonitas, ela
percebera que a admiração não implicava um interesse genuíno. Não era mais o
pai da primeira infância. Sentia-se sozinha quando este a deixava de lado nos
bares, uma espécie de boneca, um corpo pouco animado pelas trocas discursivas
ou por traços de feminilidade transmitidos pela mãe. Ao contrário, esta situava
seu corpo feminino como prestes a ser violado. E o ciclo de presença-ausência
do pai tornava sua função pouco confiável. A “escolha” de Natascha, de se subtrair
a essas determinações, é corajosa, mas nessa intenção de desvelar que Outro
lugar o olhar de um homem lhe reservaria tem o infortúnio de se deparar com
alguém muito pouco qualificado para lhe responder.
Quanto a isso há passagens do relato a destacar.
A primeira se passa quando, decorridos muitos anos de cativeiro, Natascha,
interrogando-se sobre seu valor de mulher, sobre a posse de um atributo fálico,
pergunta ao sequestrador por que foi “escolhida”. Ele responde: “- Você veio até
mim como um gato de rua”. Ou seja, não havia atributo fálico; “gato de rua”
indicava um lugar sem ponto de arrimo, vadio e decaído. E ela o escolhera.
Mesmo que tentasse demonstrar coragem, o olhar baixo evidenciava sujeição. A
essas alturas, ela já fora submetida à fome e a trabalhos forçados, emagrecera
muitos quilos, tivera os cabelos raspados e a pele queimada; portava hematomas
e lesões musculares diversas e doloridas, e encontrava-se desorientada, por
sistemáticas destituições de referências temporais e simbólicas.
A s e g u n d a s e r e f e r e a o s e g u i n t e c o m e n t á r io d o s e q u e s t r a d o r : “– E u
s e m p r e q u is t e r u m a e s c r a v a ”. E la c o n t a q u e t r a b a lh a v a s e m in u a , e x p o s t a a o
o lh a r c o n s t a n t e e , a o s a í r e m à r u a , n ã o l h e e r a p e r m it i d o o l h a r p a r a n in g u é m ,
n e m u s a r c a lc in h a s , c o m o f o r m a d e c o n s t r a n g im e n to . O q u e d e v e r ia s e r v e la d o ,
r e l a t iv o à d if e r e n ç a s e x u a l, e r a e x p o s t o a t o d o o m o m e n t o , n ã o o p e r a n d o
e n q u a n t o r e p r e s e n t a ç ã o , n e m s e lig a n d o a o d e s e jo . N ã o h a v ia r e n ú n c ia , d o
s e q u e s t r a d o r, a o g o z o e s c ó p ic o p r o p o r c io n a d o p e lo o b je t o p u ls io n a l o lh a r. I s s o
n o s r e m e te à p o s iç ã o e s c r a v iz a d a d e N a t a s c h a , p e lo o lh a r d e p r e c ia tiv o d a m ã e ,
q u e lh e m a r c a o c o r p o c o m o e x c e s s iv o , g o r d o e d is f o r m e , n ã o d e s e já v e l, s e m
u m a p a la v r a d e e n la c e e n t r e s u a f e m in ilid a d e e a d a m ã e ; a o m e s m o t e m p o e m
q u e e v o c a a q u e d a n a r c í s ic a p a r a o p a i , o o lh a r d e s r e s p e it o s o d o s h o m e n s d e
b a r d o u n iv e r s o p a t e r n o . M a c a b r o c r u z a m e n t o f a n t a s m á t i c o d e e le m e n t o s d e
s u a h is t ó r ia c o m a d e m a n d a d o s e q u e s t r a d o r. N ã o e n c o n t r a o h o m e m q u e
p o d e r ia d e s e já - la , m a s u m q u e a a lie n a a o m e s m o o lh a r a u s e n t e / e s c r a v iz a n t e
d o q u a l p r e t e n d ia s e s a f a r. N e s s a é p o c a já t o m a r a u m a s e g u n d a d e c is ã o ,
im p o r t a n t e n a c o n s t r u ç ã o s ig n if ic a n t e d e s u a lib e r t a ç ã o . E la s e r e c u s a r i a a
se for pega será morta, a fuga é sem volta, então abre o portão, foge e procura
abrigo nos jardins das casas vizinhas. Tal ação se faz acompanhar de algo
particular: ao pronunciar seu nome a uma mulher, sente-se retornando do além.
Todos a consideravam morta, por isso, ao pronunciá-lo, sente-se renascer. Há
anos não o ouvira, nem o dissera para ninguém, pois o sequestrador a obrigara
a escolher outro nome. Escolhera Marie, seu segundo nome, mas este não lhe
soava seu. Deixara de ser Natascha, e não era Marie. A ação de fuga associada
à enunciação de seu nome o reinscreve no discurso do Outro e faz da ação, a
posteriori, um ato, ressignificando todas as decisões anteriores.
Poucas horas após a fuga, o sequestrador conta o que fez ao único amigo,
diz que “queria uma virgem intocada” e, a seguir, desce do carro e joga-se na
frente de um trem. Natascha chora ao saber de seu suicídio, pois ele fora a
única pessoa com quem tivera contato durante os anos de cativeiro, ele fora seu
Outro; o que divide a opinião pública, colocando-a sob suspeição de conivência.
Cabe esclarecer que, para sobreviver, Natascha teve de alienar-se à lógica do
sequestrador, o que é bem diferente de conivência. Sem Outro, não há sujeito;
Natascha precisava que alguém fosse suporte de suas representações
inconscientes, para que essas continuassem a valer para ela. O tempo de
compreender e o momento de concluir não são quaisquer. Antes desses
desdobramentos discursivos, certamente não poderia sustentar seu ato de
separação.
W olfgang Priklopil não era um perverso, mas um obsessivo – que a toma
numa montagem perversa – o que talvez tenha contribuído para ela safar-se viva.
Mas não só. O relato mostra que, se Natascha encontrou a saída, foi porque
percebeu que a recusa à castração era o motor do crime, cometido por não
haver inscrição de objeto perdido, e que havia sofrimento subjetivo em seu algoz
por isso. Soube lidar inconscientemente com a impossibilidade de o sequestrador
simbolizar a ausência do objeto. Ele era o cativo, cativo da necessidade de
apreender o objeto no real, ponto fraco do obsessivo, sempre a perseguir o gozo
absoluto. Ela “soube” (falo do saber inconsciente) “jogar” na linguagem (jogo de
significantes, simbólico, diferente do jogo de imagens) com o fato de que, para
o sequestrador, ela era esse objeto que ele precisava assegurar, algemar ao
corpo, bater, degradar, e que fazer semblante desse objeto seria seu trunfo,
ganhando tempo e margem de negociação. É essa degradação do objeto (do
sexual ao dejeto) que confere ao obsessivo um toque perverso, conforme o
sadismo da pulsão anal. A avareza do sequestrador indica seu aprisionamento
numa estrutura cujo falo se encontra positivado e degradado.
Ao conhecer a falta de Priklopil, Natascha o destituiu da pretensa mestria.
O mais marcante é que, para tanto, ela precisou alienar-se, ao mesmo tempo
39
Liz Nunes Ramos
palavras para contar o que aconteceu em seu livro, embora nada disso vá se
apagar de sua memória. A posteriori, a escrita diz do bem-sucedido de seu ato,
ela está advertida de que seu cativeiro é parte dela mesma, mas não é tudo, há
um nome. Para o sequestrador, contar a história não bastou. Para Natascha,
passar à ordem da escritura foi o que lhe permitiu representar-se no campo do
Outro de outra forma, não como vítima, concluindo seu projeto de ser outra ao
reinstalar o Outro da língua, o leitor, como referência. Não está aí o caráter
libertador do ato? Encontrar palavras para o indescritível... Não é essa a função
do psicanalista, a tarefa humanizante, por excelência?
Nessas lições do Seminário O ato psicanalítico, Lacan ([1967-1968] s/d)
sustenta que, para eliminar o objeto a da fantasia, o analista deverá suportar
fazer semblante desse objeto de gozo para operar a ruptura da identificação do
sujeito a ele, recortando um significante que o represente como sujeito. E, ainda,
suportar que o sujeito se dirija ao Outro; logo, o analista não pode encarná-lo,
deverá cair (desser) do lugar de sujeito suposto saber, para que o sujeito surja
como falta em ser, não preenchendo o que falta.
Essa queda do objeto a é operação irreversível para o psicanalista e o
confronta com o incurável da falta que funda o desejo, ou seja, não há objeto,
nem saber, que supra a demanda do Outro. Se há desejo do analista, ele sabe
que o ser é sem essência, como são todos os objetos a , sempre reevocados no
ato psicanalítico. Por isso, todo ato marca o impossível de reencontrar o gozo
absoluto, já que somos seres de linguagem, puros efeitos de uma marca
significante. O absoluto é mortífero, foi o que Natascha interpretou para Priklopil,
que passa ao ato, se deixa cair (se laisse tomber4 ), identificado ao a que Natascha
não mais encarna. Prova de que a relação do sujeito ao ato se modifica.
O que se formula nestes termos escorregadios, do ato em falso, do artefato
de um sujeito suposto saber sempre em queda, é a mais potente interrogação
lacaniana quanto à lógica do inconsciente: O sujeito pode advir? Um psicanalista
pode advir? Suportaremos os furos do saber para extrair consequências do
inconsciente, dos laços nos quais não haja unificação; ou reinstalaremos as
miragens que o objeto a coloca em jogo?
A clínica e o que chamamos de vida “real” nos mostram que sempre
poderemos, com benefícios, interrogar as crianças: sem saber que o fazem,
4
Ver Lacan ([1962-1963] 2005, p. 125).
41
Liz Nunes Ramos
elas costumam confiar no inconsciente e nas palavras para fazer frente ao real
do sexo. Quando não o conseguem, fazem sintomas; o que, para um bom
entendedor, conduz à interrogação quanto à posição ocupada por elas na
estrutura, no fantasma parental, para o qual precisarão encontrar respostas.
REFERÊNCIAS
KAMPUCH, Natascha. 3096 dias. Campinas: Verua, 2010.
LACAN, Jacques. O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada [1945]. In:
______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. p.197-213.
______. A lógica do fantasma [1966-1968]. CEF do Recife, 2008. 450 p. (Publicação
não comercial).
______. O ato psicanalítico [1967-1968]. Escola de Estudos Psicanalíticos, s/d. 282
p. (Publicação para circulação interna)
______. O seminário, livro 10: a angústia [1962-1963]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2005.
Recebido em 05/08/2011
Aceito em 09/09/2011
Revisado por Valéria Rilho
42
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 43-53, jan./jun. 2011
TEXTOS
DE ONDE SURGE O
BRINCAR E O DESENHAR?
Silvia Eugenia Molina1
Abstract: The text interrogates the possibility of thinking the drawing and play
as equivalent of the formations of the unconscious and free association of adults.
This hypothesis rests in the appearance of the drawing and playing as a product
of the transferential lace and also of the parent-son lace guided by parental
functions.
Keywords: transference, play, drawing, castration.
1
Psicóloga; Psicanalista; Especialista em Psicologia e Clínica; Professora do Centro de Estudos
Paulo Cesar D’Avila Brandão, do Centro Lydia Coriat de Porto Alegre; Membro da equipe de
direção do Centro Lydia Coriat de Porto Alegre; Membro da Associação Psicanalítica de Porto
Alegre (APPOA). E-mail: lydiacoriat@lydiacoriat.com.br
43
Silvia Eugenia Molina
2
A transferência na intervenção psicanalítica com crianças: estabelecimento de um laço
particular a partir do qual o paciente supõe no analista a capacidade da leitura do saber da
subjetivação: o saber da subjetivação provém do efeito que o discurso parental terá sobre as
marcas corporais registradas desde o estágio fetal no contato carnal, afetivo simbólico com a
mãe, até a época do domínio da linguagem, por volta dos três anos. A partir daqui, recalcadas,
essas marcas continuarão a se manifestar como revivescências durante a vida do sujeito.
Ess e retorno tem consequências emocionais que geram c ondições favoráveis para a
ressignificação. O analista, por sua vez, terá de fazer a leitura para depois traduzir em
palavras a expressão simbólica das manifestações da imagem inconsciente que o laço
transferencial provoca. Através da leitura da produção imaginária, terá de diferenciar o sintoma
clínico, o de estrutura e os diferentes momentos da subjetivação. Por se tratar de um sujeito
em constituição (bebê-criança), o analista terá de sustentar esse laço, encarnando os
personagens que facilitem a instalação e a ampliação da função simbólico-representativa. A
formação teórico-clínica tem de ser instrumentalizada via saber da subjetivação do próprio
psicanalista, processado pela análise pessoal. É precisamente isso que possibilita que as
crianças modifiquem o tipo de produção na presença do analista ou do profissional da área
instrumental.
44
De onde surge o brincar e o desenhar?
3
A modalidade do ato de filiação do bebê será efetivada a partir da estruturação fantasmática
do casal parental. A formação fantasmática contém os referenciais éticos, morais e estéticos
transgeracionais, e transmitirão os indícios significantes em relação aos lugares que o sujeito
como criança, adolescente ou adulto, ocupará nos espaços familiares e sociais (sincronia).
Tal transmissão configura a sabedoria do bebê, inscrevendo, portanto, a imagem inconsciente
do corpo, formação psíquica que cria o substrato significante, direcionando a existência
subjetiva que possibilita a progressã
o constitutiva do desenvolvimento do bebê, da criança e do adolescente no decurso do tempo
(diacronia). Portanto, a formação fantasmática familiar transmitida deverá conter o saber
inconsciente que possibilita a formulação das teorias sexuais infantis. Para que essa
transmissão de indícios de significantes se transforme em transmissão significante, será
preciso que as funções parentais operem encarnando a sustentação psíquica do filho, através
do laço filial, modulando as transmissões simbólico-imaginárias através do afeto, e em todos
os momentos da constituição subjetiva.
4
Nos referimos à pluralidade dos Nomes-do Pai.
45
Silvia Eugenia Molina
pulsionais parciais que a família e o social lhe indicam 5. Gabriela6 transita para
outro momento da constituição subjetiva, o de Pequena Criança. Ela nos mostra
que, por meio do brincar e do desenho, adquire competências para continuar
indagando os ganhos simbólicos de sua separação do corpo e do psiquismo
maternos. Separação que legitima seu estatuto de sujeito, livrando-se de ser
um subproduto do corpo materno, um cocô, para aceder à condição de sujeito,
através das teorias sexuais infantis, instituindo o desenho como uma via de
acesso ao simbólico.
Gabriela, com um ano e nove meses de idade, conta acerca dessa
experiência subjetiva, que podemos acompanhar passo-a-passo. Ela está
brincando com seus pais de procurar os ninhos dos ovos de Páscoa que ganhara,
abrindo as caixas de alguns brinquedos que também recebeu nessa
oportunidade. Uma dessas caixas contém fantoches da Turma da Mônica7. O
pai a está ajudando a abrir a embalagem quando, de dentro dos fantoches, sai
um rolo de papel que “dá corpo” àqueles. A saída desses enchimentos a
surpreende tanto, que começa a recolhê-los, mostrando-os para a mãe, que
está grávida, filmando a cena, e os nomeia de “cocô”. Coloca o primeiro deles na
cestinha que contém os ovos, fazendo uma alusão clara à teoria sexual infantil
(Freud, [1905] 1976a) de que tudo provém e depende de mamãe. Na saída do
segundo rolo de papel, ao qual ela denomina de “cocô”, o pai lhe indica que
5
Marcelo é filho de uma psicóloga-psicanalista e, frequentemente, vê sua mãe trabalhar com
o material, que, torna-se suporte para dramatizar essa vivência psíquica tão fundamental.
Chamo de metáfora do pontilhado da folha: a metáfora surge a partir da figura sugerida pela
brincadeira de Marcelo, interpretada à luz do esquema lambda, de Lacan. Nessa brincadeira,
ele rasga a folha em branco, obtendo dois pedaços, que logo reúne e afasta, reiteradamente.
Em cada ato, sempre observa o espaço resultante do rasgado da folha. Com essa brincadeira,
ele obtém os quatro elementos que constituem o número do simbólico: a mãe, o bebê, o
rasgado que indica a função do pai, que encarna a função paterna, e o resultado dessa
operação – o espaço virtual, não substancial, a falta gerada pelo destaque da folha.
6
Esta vinheta foi analisada a partir de filmagens realizadas no convívio familiar de Gabriela.
7
Características dos personagens da Turma da Mônica. O personagem Mônica, menina que,
apesar de se defender até com a força bruta, sabe manter laços de amizade, em especial com
Magali, demonstrando também um temperamento dócil e feminino, apaixonando-se pelos
rapazes bonitos do bairro. Magali, menina de apetite voraz, fundamentalmente por melancias,
sabe ser amiga. Horácio é o filhote de tiranossauro que conseguiu recalcar sua agressividade,
tornando-se meigo, amigo, gentil e solidário. Gosta de expressar sua opinião, filosofando.
46
De onde surge o brincar e o desenhar?
cesta vão se perder, sugerindo guardá-los dentro do ovo que já está aberto e que
ela mesma pintou. Ela aceita, pedindo ao pai para “segurar o ovinho”, ato que
metaforiza o filho que juntos concebem, para o qual ela contribuirá com as
estratégias femininas, para incrementar os encantos pessoais, conseguindo
assim acelerar os “tics-tacs do coração conquistado”.
Gabriela encena o coelho da Páscoa pulando: “puem, puem, puem!...
caia para cima... quer o baum” (ovo de Páscoa grande), o qual segura e deixa no
chão...continua batendo no ovo de casca de galinha e “descascando-o”, fazendo
“picadinho” dele...”coelho da Páscoa pulando, não gosto de balanço, não gosto
de balanço... um grandão, um grandão, outro grandão... o grandão esse”!
Vemos aqui que corre o risco de virar “picadinho”, com a ameaça de
vingança da Bruxa Má, caso ela persista nas suas tentativas de fazer algo que
está além do seu alcance – “pular”, para fazer filhinhos como os coelhos (um
dos animais mais prolíferos e, na nossa cultura, na Páscoa, simboliza a fertilidade
e, além disso, ao pular, metaforizam o ato sexual) coisa de gente grande. Por
essa razão, declara que “não gosta de balanço”, desse balanço que é coisa de
“grandões”.
No instante seguinte, fala: “Estou abrindo, quer abrir, abrindo... estou
mexendo no chocolate”. O pai diz que terão que tapar esse buraquinho. Ela diz
que “quer ver o buraquinho do chocolate”. Apesar de não ser fácil desistir de
mexer com o que é doce, pois ela é “uma dentucinha que nem a Mônica”,
Gabriela terá que metabolizar os significantes através do desafio, ou da
agressividade, para conseguir inscrever os significantes doados, apropriando-se
deles para construir uma diferença. Porém, o pai lembra que nesse buraquinho,
nessa brincadeira de imaginarizar como é que é, terão que colocar uma tampinha,
a tampinha do esquecimento operado pelo recalcamento.
Prossegue dizendo: “Descascar mais, descascar mais... picadinho, soltei
um pum!... Estou cortando... quero desenhar, quero desenhar, quero uma caneta,
tirar” (a tampa da caneta). Passa a desenhar num dos pedacinhos do ovo triturado.
Nesse momento, o pai oferece uma folha para desenhar. É essa ameaça
(representada pela Bruxa Má) de trituração que evidencia o risco da perda de
partes do corpo (e escapa um pum), vivência subjetivo-corporal que coloca a
necessidade da renúncia, da perda do objeto indevido (“estou cortando” expressa
o que quer dizer: é preferível aderir à castração). Isso a leva a tentar recuperar
aquele objeto através do desenho (“quero desenhar, quero uma caneta, tira a
tampa”). Apela assim ao recurso imaginário de reaver o objeto, simbolicamente
perdido, pela via do desenho, usufruindo, então dos benefícios da castração
simbólica (em lugar de sofrê-la) e obtém assim o aditamento de se apropriar de
um novo campo de representação do objeto.
48
De onde surge o brincar e o desenhar?
8
Como Bergès, J. e Balbo, G. (2001) resumem que o trânsito à subjetividade se dá através da
sexualização da teoria na infância (da teoria acerca de onde vêm as crianças) à sublimação
parcial da pulsão através da pulsão de investigação, com o simultâneo recalcamento da
pulsão de morte. No entanto, quando esse recalcamento não opera, não acontece a formulação
das teorias sexuais infantis, porque a teoria do nascimento das crianças não seria sexual (o
nascimento se daria pelo autoengendramento ou numa relação com Deus), razão pela qual a
libido busca um outro alvo que não o sexual: a pulsão de morte.
49
Silvia Eugenia Molina
REFERÊNCIAS
BERGÉS, J.; BALBO, G. A atualidade das teorias sexuais infantis. Porto Alegre: CMC
Editora, 2001.
FREUD, S. Três ensaios sobre as teorias da sexualidade [1905]. In:______.Obras
psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976a, v.VII. p. 123-253.
______. Sobre as teorias sexuais das crianças [1908]. In:______.Obras psicológicas
completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976b, v.IX. p. 213-230.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente [1957-1958].
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1999.
______. O seminário, livro 8: a transferência [1960-1961]. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editores, 1992a.
______. O seminário, livro 20: mais, ainda [1972-1973]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1992b.
Recebido em 18/10/2011
Aceito em 06/01/2012
Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes
53
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 54-62, jan./jun. 2011
TEXTOS
NOTAS DO INFANTIL1
Heloisa Marcon2
NOTES OF INFANTILE
Abstract: The article presents two dimensions of the music which are constituitive
of the subject. The first is about what the mothers’ language has of the language
structure; the second is about what, through the language structure, always
escapes the utterable – it is the dimension of voice as pure music or voice as
object a .
Keywords: psychoanalysis, music, symbolic matrix, object a , original repression.
1
Trabalho apresentado na Jornada de Abertura da APPOA: O Infantil na Psicanálise, realizada
em Porto Alegre, abril de 2011.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Mestre em
Filosofia/UFRGS. E-mail: heloisamarcon@yahoo.com.br
54
Notas do infantil
3
Giacomo Leopardi (1798-1837) é considerado por muitos o maior poeta romântico italiano e
um dos melhores líricos da literatura ocidental.
55
Heloisa Marcon
vitais são signos, marcas que representam um sujeito para alguém, ou seja, a
mãe antecipa uma posição de sujeito aderida ao ser” (Vorcaro,2005). O grito do
bebê, inicialmente apenas manifestação de seu fluxo vital, grito de necessidade,
é transformado pela mãe em demanda de um sujeito. “Na fugacidade desse ato
de supor um sujeito no grito situa-se o ponto de inseminação no simbólico”
(Vorcaro, 2005). Dessa forma, o grito, mesmo se for repetido idêntico pelo filho,
vai ser lido de forma diferente pela mãe, avançando “na direção significante, uma
vez que muda de valor a cada emissão” (Vorcaro, 2005). Inevitavelmente, em
algum momento, haverá um desencontro, e o termo alternante que devia
comparecer vai vir cedo demais ou tarde demais e vai ficar excluído. E, então, o
infans ocupará essa posição vazia com seu grito. Mas agora, nesse segundo
momento, momento de escansão, momento em que se explicita a impossível
sustentação da automaticidade tensão-apaziguamento, o grito e a coisa se
desconectam um do outro, e o grito surge como a primeira substituição do
infans!
O grito busca recuperar o que estava antes ali e agora não compareceu,
busca apagar a falta na qual para sempre o sujeito estará, no intervalo diferencial
que mobiliza o ciclo da repetição no campo do desejo. E “...o que o faz surgir
sujeito ao campo do Outro é um significante binário, por articulá-lo (S2) com o
que o teria satisfeito (S1)”(Vorcaro, 2005). Então, o que faz o sujeito surgir como
sujeito ao campo do Outro é o grito, S1, ser lido e interpretado pela mãe, e
nessa medida ele já ser S2 ali no campo do Outro, estando apenas nessa
medida (através da leitura da mãe) articulado ao S1, ao que o teria satisfeito.
Dado que vimos que o grito e a coisa já se desprenderam, então o S1 não é
propriamente o representante da coisa; é, antes disso, o traço da falta da coisa.
É nesse sentido que se pode dizer que o sujeito é arrancado de sua imanência
vital e lançado no campo do desejo, ficando, a partir de então, a buscar ou dizer
disso que o teria satisfeito (S1) a partir dos S2.
Dessa forma, da univocidade de signos e da transparência da linguagem
do primeiro momento (da alternância circular e recíproca),passamos, nesse
segundo momento, para a emergência da equivocidade e da opacidade da
linguagem, uma vez que haverá, para sempre, um indizível, verdade perdida e
irrecuperável no jogo de significantes em que entrou o sujeito a partir de S1-S2.
56
Notas do infantil
4
São dois filósofos que, cada um a seu modo, acreditaram e trabalharam intensamente no
desenvolvimento de teses que pretendiam demonstrar a possibilidade de uma linguagem sem
equívocos – Rousseau, a partir da idéia da transparência da linguagem, e Wittgenstein, a partir
da pretensão de formalização de toda a linguagem. Eles queriam evitar a todo custo a
equivocidade da linguagem e mantê-la no nível da univocidade dos signos.
5
Trata-se de uma oficina terapêutica sob minha coordenação, que acontece num CAPS II, uma
vez por semana, por uma hora e meia, e tem a participação de usuários desse serviço e
residentes do Programa de Residência Integrada em Saúde. A proposta da oficina, basicamente,
é estarmos ali reunidos e nos relacionarmos, tendo a música como ponto de ligação. A oficina
muda todo ano, de acordo com os participantes. Dessa forma, em alguns momentos da
mesma, trabalhamos apenas em composições do grupo e, em outros momentos, apenas
cantamos e tocamos as músicas sugeridas pelos participantes.
57
Heloisa Marcon
A voz como pura música ou a voz como objeto a é a voz como objeto da
pulsão invocante, cujo circuito se dá, como propõe Jean-Michel Vives (2009),
entre um “ser chamado”, um “fazer-se chamar” e um “chamar”. Mas, para chamar,
é preciso oferecer a voz, é preciso dispor de sua voz, sem ser obstaculizado
pela voz do Outro. E, como sabemos, esse pode ser todo o problema – conseguir
não ser obstaculizado pela voz do Outro. Podemos pensar nas diversas situações
em que a fala do Outro pode tomar o estatuto de mandamento e funcionar
como interpelação nas situações de passagem a ato ou nos surtos psicóticos.
Vives nos oferece um exemplo preciso da voz como objeto a e da possibilidade
de modificação do lugar do sujeito no circuito da invocação num início de
tratamento.
59
Heloisa Marcon
ele ficou sem voz diante das ondulações sonoras das palavras
maternas e o mais estranho é que ele não reconheceu a voz de
sua mãe, quando esta lhe tinha aparecido estranhamente diferente.
Parece interessante que, durante a primeira sessão, o paciente
introduza o animal e mais particularmente o pássaro, de quem se
tem o hábito de associar à voz, para tentar considerar o que
especifica sua relação com a mãe. O animal, sendo absolutamente
estranho ao significante, ao ser introduzido logo na nossa primeira
entrevista, fez o paciente pressentir que alguma coisa naquilo que
escuta do discurso de sua mãe, escapou ao registro da palavra: o
que escapa é a voz. Algumas semanas mais tarde, ele esclarecerá
esse aspecto, dizendo: “eu disse, inicialmente, que não tinha
reconhecido a voz dela, ora parece-me mais justo dizer que ouvi
sua voz, mesmo que não saiba muito bem o que eu quero dizer.Com
efeito, acrescenta ele, eu a ouvi novamente quase no fim, mas
desta vez, isso era diferente, eu também falava alto e mais forte
que ela (Vives, 2009, p.188-189).
6
Conforme trabalhei no texto Notas da pulsão, em Fundamentos da Psicanálise, Revista da
APPOA, n. 31, dezembro/2006, p. 68-75.
61
Heloisa Marcon
REFERÊNCIAS
CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das
Letras, 1990.
DIDIER-WEILL, Alain. Os três tempos da lei. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
DIDIER-WEILL, Alain. Nota azul: Freud, Lacan e a arte. Rio de Janeiro: Contra Capa
Livraria, 1997. p.57-104.
HARARI, Roberto. O seminário “A angústia” de Lacan: uma introdução. Porto Alegre:
Artes e Ofícios, 1997, p.188.
JERUSALINSKY, Julieta. Prosódia e enunciação na clínica com bebês: quando a
entoação diz mais do que se queria dizer. In: ______. Quem fala na língua? Salvador:
Ágalma Editora, 2004.
LACAN, Jacques. O seminário ,livro 10:a angústia [1962-1963]. Rio de Janeiro: J.
Zahar Ed., 2005.
LECOURT, Edith. Freud e o universo sonoro. Goiânia: Editora UFG, 1997.
Mann, Tomas.A montanha mágica.Rio de Janeiro:Ed.Nova Fronteira. 2006.
VIVES, Jean-Michel. A pulsão invocante e os destinos da voz. Psicanálise & Barroco
em revista, Juiz de Fora, v.7, n.1: 186-202, jul. 2009.
VORCARO, Ângela. Incidência da matriz simbolizante no organismo – condição
necessária ao advento da fala. Disponível em: < http://www.freud-lacan.com/
Champs_specialises/ Presentation/ Incidencia_da_matriz_simbolizante_no_
organismo> Acesso em: 16 out. 2011.
Recebido em 03/01/2012
Aceito em 01/03/2012
Revisado por Maria Ângela Bulhões
7
Conforme Didier-Weill, Nota azul, p.74-75 “É sua aptidão a supor no Outro um amor rasgado,
impossível, que secundariamente rasga o Sujeito e faz dele, para além de um sujeito amado,
um sujeito amante.”
62
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 63-73, jan./jun. 2011
TEXTOS
HANS – UMA ANÁLISE
DO INFANTIL
1
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Membro do
Centro Lydia Coriat; Mes tre em Ps icologia Soc ial e Ins tituc ional (UFRGS). E-mail:
gersonsmiech@gmail.com
63
Gerson Smiech Pinho
65
Gerson Smiech Pinho
2
Cabe sublinhar o comentário, feito por ele, de que se sua mãe tivesse um “faz-pipi”, seria
grande como o de um cavalo.
66
Hans - Uma análise do infantil
3
Além do despertar pulsional e do surgimento do pênis enquanto real, Lacan (1992) também
assinala o nascimento da irmã de Hans como um evento fundamental na modificação da
estrutura, que o retira da condição de representante do falo imaginário materno.
4
Após um curto período de angústia difusa, Hans organiza uma fobia a cavalos, a qual passa
por diferentes tempos e versões: temia que o cavalo o mordesse, que o cavalo caísse, tem
medo dos veículos puxados por cavalos, e assim por diante.
68
Hans - Uma análise do infantil
caminho que Hans vai tramando com o suporte desse e de todos os outros
inúmeros mitos que vai forjando no percurso de sua análise.
Se, no momento do encontro com a castração materna e diante da pouca
consistência do lugar do pai, Hans fica paralisado com a angústia produzida
pelo despertar sexual, encontramo-nos agora em um tempo em que é possível
começar a dar conta simbolicamente de todas essas questões. De acordo com
Pedó (2011), Hans passa a poder interpretar a avalanche pulsional de uma
sexualidade desconhecida, cujas exigências se via à mercê, na medida em que
cria teorias viáveis, que o orientem no mundo com referências relativas à sua
origem, a uma identidade sexual e a um esboço de escolha objetal. Com isso,
torna-se possível construir sua neurose.
Fica evidente como o percurso de análise de Hans não configura um
trabalho de levantamento do recalque, mas de sua introdução e viabilidade.
A cena das girafas é uma das pequenas narrativas míticas forjadas por
Hans. Ao longo do relato de sua análise, encontraremos inúmeras outras, que
vão compondo uma série cada vez mais extensa. Todos os elementos dessa
criação mítica têm um valor significante. Ou seja, nenhum deles tem uma
significação unívoca e, a cada tempo da análise, vão adquirindo sentido diferente
do original, a partir da nova posição que encontram na estrutura. Isso quer dizer
que cada elemento só pode ser concebido a partir de sua relação com os outros
significantes. Assim, um significante central nesse caso, como o cavalo, está
primeiramente associado à mãe, depois ao pai, mas também a Hans, ao falo, e
assim por diante.
O encaminhamento do imaginário em direção ao simbólico permite que
se construa uma organização mítica verdadeira, transposição simbólica
necessária a todo trânsito edípico. Ao longo de toda a observação, vemos como
a produção mítica de Hans reage e se modifica diante das intervenções de seu
pai.
Apesar de Lacan (1992) afirmar que a cura de Hans desembocou em uma
conclusão atípica, a mesma só foi possível devido à manifestação do pai real,
que tão pouco havia intervindo até então. Por outra parte, esse só pode aparecer
porque por trás estava o pai simbólico, sustentado pela posição de Freud. Dessa
forma, tudo aquilo que tendia a cristalizar-se de modo prematuro se relança para
reorganizar o mundo simbólico.
Cabe aqui sublinhar o quanto a intervenção de uma análise no período
infantil necessariamente implica a presença dos pais ou daqueles que encarnam
as funções parentais para a criança. Porge (1998) afirma que a neurose de
transferência da criança se manifesta quando aquele que está encarregado de
transmitir a mensagem familiar não sustenta a suposição de saber fazê-lo. Quando
71
Gerson Smiech Pinho
Para concluir
REFERÊNCIAS
BERNARDINO, Leda. As psicoses não-decididas da infância: um estudo psicanalítico.
São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.
FLESLER, Alba. El niño em análisis y el lugar de los padres. Buenos Aires: Paidós,
2008.
FREUD, Sigmund. Sobre as teorias sexuais das crianças [1908]. In: ______. Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro: Imago Editora, 1980.
FREUD, Sigmund. Análise de uma fobia em um menino de cinco anos [1909]. In:
______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1980.
LACAN. A relação de objeto e as estruturas freudianas. Porto Alegre: APPOA, 1992
(Publicação para circulação interna).
LÉVY, Robert. O infantil na psicanálise. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
PEDÓ, Marta. Sobre o infantil na psicanálise. Correio da APPOA, Porto Alegre, n. 201,
p. 07-14, maio. 2011.
PORGE, Erik. A transferência para os bastidores. In: ______. A criança e o psicanalista.
Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1998.
Recebido em 12/03/2012
Aceito em 21/04/2012
Revisado por Gláucia Escalier Braga
73
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 74-88, jan./jun. 2011
TEXTOS
O QUARTO TEMPO DO
CIRCUITO PULSIONAL1
Simone Mädke Brenner2
Abstract: This text discusses the targets of the drive in their clinical implications.
The fourth time of the drive circuit arises as an hypothesis from the daily observation
and clinic of children. The drive circuit presents the childish of us all.
Keywords: drive circuit, castration, repression, infantile.
1
Este texto só foi possível graças às valiosas contribuições de Fernanda da Silva Gonçalves,
Marta Pedó, Silvia Eugênia Molina, Alfredo Jerusalinsky, Simone Moschen e Ana Maria da Costa,
os quais me ajudaram a suportar os efeitos do quarto tempo em mim mesma, e assim me foi
possível escrever.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); E-mail:
smbrenner@sinos.net
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74
O quarto tempo do circuito funcional
3
Texto publicado no Correio da APPOA, número 203, julho de 2011.
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Simone Mädke Brenner
ela diz: “Tu não sabe o que o marido dela diz e faz!” (referindo-se à mãe, que se
encontrava dentro da mesma sala). Pergunto: “O marido dela é teu pai?”; e ela
responde: “É, parece... deveria ser....”.
Enquanto me contava isso, pede para desenhar com canetinhas e, logo
depois, afirma: “Já sei que tu vai me xingar. Não pode pintar com canetinhas e
eu pintei!” Respondo: “Podes, sim, pintar! “Se não pudesse eu não teria
deixado, teria te falado que não podias!” Ela parece admirada com minha
resposta e depois me fala: “Quando alguém me diz não, faço uma cara
muito feia!” (Faz uma cara ameaçadora). Afirmo que quando for preciso direi
os nãos necessários a ela. Ela logo olha para sua mãe e diz: “Preciso muito
vir aqui, muitas vezes!”
Relata muitos pesadelos que eram recheados de cenas de invasões, de
agressões de todos os lados e que, quando os narrava nas sessões, demonstrava
muito prazer em relatá-los. Nesses momentos chegava a dizer que pensava
muito em que quando tiver um filho fará com ele o mesmo que nesses sonhos
fazem com as pessoas, maltratá-lo.
Com frequência, quando se mostra irônica, debochada e gozando com a
sua tragédia, canta a seguinte música:
muito. Nessas horas, preciso fazer muito, muito xixi. Vou lá fazer xixi.” Vai ao
banheiro e quando volta comenta: “Meu pai sabe muito sobre o meu xixi!”
Na sua última sessão, sendo o tratamento interrompido pelo pai, ela canta:
4
As fantasias de flagelação possuem uma história evolutiva bastante complexa, em cuja trajetória
variam mais de uma vez quase todos seus elementos: sua relação com o sujeito, seu objeto, seu
conteúdo e sua significação (livre tradução).
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O quarto tempo do circuito funcional
que bordejam aquilo que caiu. Para Dolto, é essa operação que torna possível o
trabalho da sublimação, que é da ordem da cultura, da Lei.
No entanto, saber sobre o efeito simbólico da castração só é possível no
momento posterior, podendo-se saber então sobre os “frutos das castrações”,
que para Dolto representam:
se fechem. Quando será que um tempo pulsional pode vir a se fechar e, com
isso, pôr em risco o circuito?
Entendo que em qualquer um dos tempos o risco ocorre, quando o encontro
com o Outro por alguma razão fracassou. Às vezes fracassa, por exemplo, em
momentos quando o nascimento do bebê não coincide com o momento em que
o sujeito-mãe possa psiquicamente encontrá-lo, como nas graves depressões
maternas. Outras vezes, pelo fato de o pequeno sujeitinho nascente ter algo
que, em sua origem, dificulta muito a sutileza desse encontro (por exemplo:
crianças que nascem com patologias orgânicas que dificultam muito o encontro)
ou ainda pelo fato de a mãe ter uma condição psíquica que não passa pelos
efeitos da castração simbólica; portanto, não há de fato condição de encontro
com o Outro, mas, sim, o bebê é tomado como espelho da mãe. Neste último,
é como se o outro reconhecesse na criança puramente a si mesmo, não havendo
condição para a surpresa, para a dúvida, para a descoberta. Enfim, nesse tipo
de contato o sujeito-bebê não existe para a mãe, ele funciona como um reflexo
do espelho, uma imagem que sustenta aquele que olha, nada mais. Esses são
alguns dos momentos nos quais há o risco de o circuito se fechar, isto é, a
pulsão ilusoriamente atingiu o objeto e aí se fechou.
O quarto tempo de que falo, penso ser o tempo que confere o estatuto
simbólico da castração nos dois lados: no lado do bebê, que se entrega ao
outro, porém não todo (quando ele já pode decidir o quanto sua mãe pode se
“deliciar” com seu corpo) e do lado da mãe, que primeiro torna possível esse
endereçamento (tendo possibilitado que juntos construíssem os três tempos
anteriores), como também a retirada do corpo como objeto de deliciar-se, sendo
aquela que suporta e confere um valor inegável nessa declaração feita pelo bebê
de que ela é não toda para ele (e vice-versa). Enfim, ele também a castra.
Existem mães que nesse momento sucumbem, isto é, não toleram essa
castração que elas próprias deram condição para que o bebê ensaiasse. Aqui
penso ser um daqueles momentos em que Dolto fala da castração não
simbolígena na mãe, pois, para ter chegado ao quarto tempo, operou a castração,
porém sem a condição simbólica necessária para que ela produza seus frutos.
Os frutos da castração não sabemos quais são, essa é por excelência a
castração simbólica. Quando ela opera, todos estão marcados por ela. Uma
mãe, ou alguém na posição de mestria, sucumbe por ter a ilusão de que a
castração só é operada no outro, e não em si mesmo ao mesmo tempo. Tem a
ilusão de poder controlar a castração.
Falo de alguém na posição de mestria, pois abro aqui a minha tentativa
de entender, trabalhar e construir a ideia deste quarto tempo do circuito pulsional
a partir do que Freud, Lacan e Dolto trazem sobre o tema, não se restringindo às
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O quarto tempo do circuito funcional
na aposta de que o outro possa ser trapaceado, que sua insistência vai lhe
garantir aquilo que lhe foi proibido. Aqui, o brincar (fica a pergunta se de fato é
um brincar!), as invenções, mostram que a criança está fixada, presa, refém da
ineficácia de uma castração simbólica. Como muito bem nos fala a minha
paciente! Em outras palavras, a primeira tem o efeito de possibilitar que o sujeito
deslize, faça uma história (sua história!), enquanto na segunda o sujeito patina,
fica capturado por uma instância que o impede de seguir seu rumo.
No caso da criança anteriormente relatado, o quarto tempo não estava
inscrito no outro, isto é, na cena em que ela interdita que o outro goze no e com
seu corpo, o outro lhe diz: não. O que ela fala com seus sintomas e com suas
palavras é do quanto ainda padece de uma cena na qual o outro toma seu corpo
como objeto, o corpo dessa criança não está numa posição casta, e, sim,
altamente erotizada. O pedido por ser batida por todos mostra o quanto sua
posição sadomasoquista chega ao ponto de alienação em que ela se coloca
ativamente a ser passivamente destruída. Ora, as crianças nos ensinam muito
sobre essa lógica, a lógica de um adulto que, por não estar suficientemente
marcado pelos efeitos da castração, na relação com ela, revela aquilo que não
pôde ser recalcado e que é fruto simplesmente de uma repressão. Portanto, há
um não, um não à castração do interditor. Isso é o que impede que a criança
seja beneficiada pelos efeitos da lei simbólica.
Assim, para que o quarto tempo do circuito pulsional se inscreva, a criança
precisa que a declaração de amor do outro parental já possa também ter sofrido
o interdito do corpo. Sem essa inscrição simbólica no outro parental, a criança
fica na posição de dúvida se pode insistir nesse quarto tempo sem correr o risco
de se perder de seus pais.
Portanto, entendo que a mistura de pavor e de prazer nesta menina, quando
sofre as agressões do pai, diz disto: é no corpo, na invasão que ela se sente
amada, “mal amada”, mas amada. Ela só consegue suportar o risco de insistir
no quarto tempo quando sua mãe consegue lhe oferecer outra forma de amor,
um amor que passa pelas palavras, e não pelo corpo somente. Isso está dito na
poesia em que ela fala na última sessão: são palavras amorosas e não palavras
atos de corpo.
É rico como essa criança nos mostra que inoperância dos efeitos dos
significantes como sustentáculo da castração faz o corpo dela entrar em colapso.
Sua doença neurológica fala claramente disso: suas convulsões noturnas, sua
impermeabilidade às medicações, que a acalmariam e que diminuiriam suas
convulsões, seu funcionamento cerebral, que aponta importante alteração em
áreas do cérebro que “falam” dos efeitos do recalque, do interdito no real do
corpo, fazem com que seu cérebro funcione sem freio simbólico. Nada o acalma,
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O quarto tempo do circuito funcional
quer que ela coma, que a criança faça cocô e xixi no momento em que o adulto
quer (isso se inclui, na definição por parte deste, de quando as fraldas serão
retiradas), na insistência em manter uma higiene rigorosíssima, a qual impede
que a criança comece a poder cuidar sozinha de seu corpo...
Enfim, são alguns dos inúmeros exemplos de situações nas quais as
crianças nos ajudam a pensar que o abuso é algo muito mais sutil e complexo
do que muitas vezes podemos pensar. Abuso porque, para uma pequena criança
viver esses momentos que parecem tão simples, mas que são de fundamental
importância (são os momentos em que ela inaugura seu nascimento como sujeito
de fato, e que são as situações que possibilitam ou não o circuito pulsional), é
necessário que o outro tenha no seu inconsciente a marca desta castração.
Para o adulto ter a sutileza de interpretar o quanto uma criança precisa e deseja
comer, o quanto suas fezes e sua urina representam muito mais do que um
simples controle esfincteriano, e, sim, representam a saída daquilo que entrou
(e como entrou?!), de que suas roupas, que até agora sua mãe escolhia e vestia,
passam a ser quase sua própria pele (por isso brigam tanto para elas próprias
se vestirem e se despirem!), é necessário que esse adulto tenha diante do corpo
do seu filho a construção do interdito, o qual o possibilita saber até onde penetrar.
Talvez esses sejam os abusos mais difíceis de serem trabalhados: os
que são revestidos de “muito amor e muita dedicação”, aqueles que fazem não
só a criança, mas também a qualquer sujeito, ficar atado. Atado, porque no
outro está o imperativo de não transpor o terceiro tempo do circuito pulsional,
isto é, o não ousar interditar o Outro. Nessa lógica, a castração opera num lado
só: é como se a mãe dissesse para a criança que esta precisa comer para que
assim a mamãe se sinta feliz (aliás essa é uma frase comum de se escutar!),
pouco importando o que isso representa para a criança. E se, mesmo assim, a
criança brigar, lutar para não se submeter ao abuso, a mamãe a chantageia, a
pune, a faz comer à força, muitas vezes até vomitar. Isso é um abuso! Sabemos
que isso pode, sim, acabar com o circuito pulsional, fazer a criança se perder de
si mesma e ficar fixada ao outro. Ficar fixada, seja pelo direito, rendendo-se
como belo cordeiro que come pela sua mãe e toma assim um volume de corpo
que não é o seu (como alguns casos de obesidade), seja pelo avesso, numa
negativa que se torna um imperativo (como alguns casos de anorexia). De qualquer
maneira, nesses cenários o jogo de ir e vir, de se entregar e de poder receber, de
poder se desarmar sem ter medo de ser engolido pelo outro não está armado.
Arma-se um cenário de guerra, de quem domina quem, quem invade mais, quem
se submete mais, enfim, é um cenário que muitas vezes nos apavora quando
vemos uma pequena criança de dois anos enlouquecendo seus pais. Enlouquece-
os porque eles a enlouqueceram, deixando-a perdida com suas pulsões.
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Simone Mädke Brenner
REFERÊNCIAS
DOLTO, F. A imagem inconsciente do corpo (1984). São Paulo: Editora Perspectiva,
1992.
FREUD, S. Pegan a um nino [1919]. In: ______. Obras completas. Buenos Aires:
Santiago Rueda, 1953.
______. Pulsões e destinos da pulsão [1915]. In: ______ Obras completas. Rio de
Janeiro: Imago, 2004.
LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise[1964]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979.
Recebido em 15/12/2011
Aceito em 20/03/2012
Revisado por Maria Ângela Bulhões
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 89-98, jan./jun. 2011
Abstract: The article proposes to discuss the possible effects of the extension
of elementary school to nine years on the child´s play, with compulsory admission
at the age of six years. Its horizon is to sustain the importance of play as an
exercise able to give children the passport to the symbolic and to the possibilities
for invention which characterize play.
Keywords: children, play, elementary school of nine years.
1
Este texto foi produzido para apresentação na Mesa Redonda intitulada A infância e as novas
políticas para a educação. O tom oral da intervenção foi, neste artigo, mantido em grande parte.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Professora do
Pós-Graduação em Educação e em Psicologia Social e Institucional/UFRGS; Pesquisadora do
CNPq. E-mail: simonemoschen@gmail.com
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Simone Moschen
adulto lhe oferece. Esse espelho, porém, reflete os sentidos que o ser criança
tem naquela cultura, naquela formação familiar, nas fantasias daquele adulto
que, travestido de superfície refletora, devolve ao pequeno a significação de sua
imagem.
A condição de absoluta dependência do pequeno organismo humano
determina que tudo que seja humano, desde o início, passe por uma interpretação
simbólica, uma interpretação linguageira, que, por sua vez, é determinada
culturalmente. O modo como os pequenos ingressam no mundo faz com que
suas manifestações sejam necessariamente capturadas na ordem das palavras
dos outros que os recebem e lhes apresentam a vida, capturadas pelos sentidos
atualizados por esses outros, fazendo com que a dita Natureza humana nunca
se atualize de forma direta. Isso faz com que a Natureza seja uma referência
mítica a um organismo que, ao ser tatuado pelas palavras, se transformou em
um corpo desnaturado.
A necessidade que temos de nos ver através dos olhos, da voz, da
interpretação do outro, essa necessidade, radical na primeira infância, nos
acompanha pelo resto de nossa existência. A especificidade da criança está no
fato de que, quanto menor ela é, menos dispõe de instrumentos psíquicos e
cognitivos para falar em nome próprio. Quanto menor é a criança, maior é sua
colagem a esse outro/Outro3 – outro/Outro entendido tanto como semelhante,
quanto como tesouro dos significantes. Quanto menor a criança, maior é sua
dependência, para acontecer como sujeito, de encontrar alguém – seria melhor
dizer “alguéns” – disposto(s) a suportar sua condição inicial de profunda
dependência.
Uma boa forma de visualizarmos essa dificuldade de falar em nome próprio
é nos recordarmos do modo como a criança se refere a si mesma, quando está
iniciando seus primeiros ensaios pela fala. O pequeno, com frequência, se referirá
a si em terceira pessoa, dizendo: a Simone quer, a Simone gosta. A criança fala
de si colada à posição discursiva do outro. Fala de si deslocando-se para o lugar
desde onde o outro fala dela. Diríamos, em termos linguageiros, que, embora o
enunciado “a Simone gosta” seja próprio, o lugar da enunciação é ainda o do
outro. Só num segundo momento se abrirá uma fenda nessa colagem, e a criança
3
“Lugar onde a psicanálise situa, além do parceiro imaginário, aquilo que anterior e exterior ao
sujeito, não obstante o determina [...]. O que se tenta indicar com essa convenção escrita é que,
além das representações do eu e também além das identificações imaginárias, especulares, o
sujeito é tomado por uma ordem radicalmente anterior e exterior a ele, da qual depende, mesmo
que pretenda dominá-la” (Chemama, 1995, p.157).
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A infância como tempo de iniciação...
poderá tomar a palavra em nome próprio, para, então, dizer eu. O jogo entre o eu
e o tu retira sua complexidade do fato de que a fala não diz simplesmente do
uso de um instrumento de comunicação, mas nos informa do lugar desde o qual
estamos nos situando para falar.
Essa posição da criança, de colagem discursiva ao outro/Outro coloca-
nos, aos que trabalhamos com os pequenos, na extrema responsabilidade de
nos perguntarmos sempre sobre o que estamos antecipando como possibilidades,
como demandas e como sentidos para os filhotes humanos. Pois, se as crianças
mais facilmente se colam ao outro/Outro, o que este lhes disponibiliza tem um
impacto que não é de se negligenciar.
Assim, quando falamos de políticas públicas voltadas para a infância,
estamos falando sobre a construção de um terreno que antecipa discursos,
sentidos e práticas que podem tomar os pequenos sem muita mediação.
Particularmente neste momento, penso que se faz absolutamente necessário
que pensemos sobre o que estamos demandando das crianças, quando
elaboramos uma lei que amplia o ensino fundamental para nove anos e requer a
matrícula nesse ensino aos seis anos. Que experiência de infância estamos
construindo quando elaboramos esse texto legal – ou outros? Pois não se trata
somente de letras no papel. Trata-se de letras que constituirão práticas, que
produzirão sentidos, que dirão aos pequenos que chegam o que é ser criança
em nosso mundo. Os pequenos, por sua vez, ávidos de sentido, se identificarão
a essas proposições e assumirão, com maior ou menor facilidade, aquilo que
lhes transmitimos.
Façamos um pequeno parêntese para retomar algumas das proposições
de Philippe Ariés (1981), no trabalho intitulado História social da criança e da
família. Esse trabalho pode nos interessar na medida em que ele nos faz ver
como mudanças no mundo dos adultos introduzem novos sentidos e potencia-
lizam novas experiências para as crianças. Nessa pesquisa, o autor desdobra a
tese de que o sentimento de infância, tal como se desenha em nossa cultura,
teve seu nascimento por volta do século XVII. Estavam presentes na sala de
parto da infância ilustres convidados que apadrinharam tanto essa experiência
nascente como patrocinaram, se não o surgimento, o adensamento desse tempo
que chamamos de Modernidade. A infância, como tempo de preparo para a vida
adulta, como espaço de ensaio tutelado das responsabilidades e possibilidades
que o mundo público requer, faz parte do projeto civilizador que caracterizou a
Modernidade. Projeto que talvez estejamos questionando, em nosso tempo
presente, por conta da experiência de seus engodos e de seus limites.
A passagem de uma organização calcada de forma privilegiada no coletivo
a uma organização social que produziu a privatização dos conflitos, em que o
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Simone Moschen
em nossos tempos, é composta por gente que brinca. Desde que o sentimento
de infância, como um tempo de ensaios para a vida na pólis, passou a fazer
parte de nosso ideário compartilhado, o brincar como característica desse tempo
também passou a ocupar um plano privilegiado – talvez tão privilegiado que não
reconhecemos na adultez a necessidade de brincar.
Freud ([1920]1974), na década de 20, escreve um dos poucos textos em
que aborda diretamente o brincar. A essa atividade ele atribui três características:
a repetição, a passagem operada pela criança através da brincadeira da posição
passiva à posição ativa frente ao outro, e o vir-a-ser desdobrado pelo brincar.
Gostaria de dedicar algumas palavras a essa passagem da posição passiva à
posição ativa que está em curso sempre que uma criança se põe a brincar.
Lembremos por onde iniciamos: pela ideia de que a criança nasce nas palavras
dos adultos que lhes são próximos. É por esses adultos que ela é significada,
acontecendo como ser humano a partir dos sentidos que lhe são atribuídos.
Trocando em miúdos, a criança nasce como sujeito, assujeitada às nomeações
que lhe vêm do Outro. Nasce como sujeito numa posição passiva frente a esse
Outro. O passaporte que ela vai cunhar para a posição ativa, para o lugar de
sujeito de uma ação, para a condição de falar em nome próprio, é elaborado
com o material que lhe chega do brincar. É o brincar que vai armar a ponte do
lugar de assujeitamento ao lugar de sujeito. Por isso, o brincar é coisa tão séria
para a criança. Por isso, também é tão preocupante quando uma criança não
brinca, pois é como se ela tivesse aberto mão, ou não estivesse podendo dispor
dos instrumentos pelos quais ela vai armar uma posição ao mesmo tempo
enlaçada e diferenciada frente aos outros que a apresentaram ao mundo.
O brincar é a construção de uma versão própria sobre o mundo ao qual a
criança foi apresentada pelo adulto. Assim, quando observamos um achatamento
da infância operado pelo incremento das tarefas e pela diminuição do tempo livre
– o tempo do brincar – poderíamos nos perguntar o quanto não estamos
construindo como horizonte uma adultez em que os sujeitos vão se encontrar
cada vez mais reduzidos a uma posição de passividade frente ao Outro. Claro!
As coisas não são tão lineares assim; mas vale pensar sobre as consequências
de um mundo no qual o brincar fica cada vez mais rarefeito. Isso porque, tomando
a tese freudiana como pertinente, crianças que não brincam têm estreitadas as
suas possibilidades de construir uma posição ativa, de tomar a vida nas próprias
mãos e, nessa medida, essas crianças prenunciam uma adultez mais
dependente e vulnerável ao Outro.
Tomemos agora a outra perspectiva que Freud ([1920]1974) nos lança, a
de que a criança que brinca vai conformando as condições para assumir a posição
adulta. Brincar é brincar de ser grande, numa conjugação absolutamente
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Simone Moschen
não servia mais nem para pentear macaco. O menino que era
esquerdo e tinha cacoete para poeta, justamente ele enxergara o
pente naquele estado terminal. E o menino deu para imaginar que
o pente, naquele estado, já estaria incorporado à natureza como
um rio, um osso, um lagarto (Barros, 2003).
REFERÊNCIAS
ARENDT, Hanna. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
ARIÉS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981.
BARROS, Manoel de. Memórias inventadas – a infância. São Paulo: Planeta, 2003.
CHEMAMA, Roland. Dicionário de psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
FREUD, S. Além do princípio do prazer [1920]. In: ______. Ed. standart brasileira das
obras completas de Sigmund Freud. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
KRAMER, Sonia. A infância e sua singularidade. In: BRASIL. Ministério da Educação.
Ensino fundamental de nove anos: orientações para a inclusão da criança de seis
anos de idade. Brasília: FNDE – Estação Gráfica, 2006.
Recebido em 10/11/2011
Aceito em 20/12/2011
Revisado por Gláucia Escalier Braga
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 99-108, jan./jun. 2011
TEXTOS A EDUCAÇÃO
ESTRUTURANTE NA
EDUCAÇÃO INFANTIL
Dorisnei Jornada da Rosa1
Abstract: This article discusses the teacher’s role in the subjectivation process
of children attending kindergartens and nursery schools, to propose the
conceptualization of Structuring Education.
Keywords: teacher, education, structuring education, preschool education, play.
1
Psicóloga; Psicanalista da Clínica Palavra Viva; Membro da Associação Psicanalítica de Porto
Alegre(APPOA); Terapeuta em estimulação precoce; Pedagoga Especial para Deficientes Mentais;
Trabalha em Educação Precoce na Escola Municipal Lygia Morrone Averbuck, com bebês de 0
a 3 anos com problemas de desenvolvimento; Assessora de Educação Precoce e Psicopedagogia
Inicial nas escolas infantis da Prefeitura de Porto Alegre. E-mail:dorisneijornada@yahoo.com.br
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99
Dorisnei Jornada da Rosa
2
Estruturais: nomenclatura utilizada pelo Centro Lydia Coriat de Porto Alegre e de Buenos Aires
para referir os aspectos orgânicos, cognitivos e psíquicos que abatem os sujeitos.
3
Instrumentais: nomenclatura utilizada pelo Centro Lydia Coriat de Porto Alegre e de Buenos
Aires para referir os aspectos de linguagem, atividade de vida diária, sociais, desenvolvimento
motor, aprendizagem, etc.
4
SMED (Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre): formada por 96 escolas com cerca
de 4.000 professores e 1.200 funcionários. Essa estrutura atende a 55.000 alunos da Educação
Infantil, do Ensino Fundamental, do Ensino Médio, Educação Profissional de Nível Técnico, e da
Educação de Jovens e Adultos (EJA).
5
Educação Precoce: atendimento a bebês com problemas de desenvolvimento de 0 a 3 anos,
conjuntamente com os adultos que desempenham as funções maternas e paternas para a
criança. Doravante referida neste artigo por EP.
6
Psicopedagogia Inicial: atendimento instrumental de crianças com problemas de desenvolvimento
de 3 a 6 anos. Doravante referida neste artigo por PI.
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A educação estruturante...
formação teórica e prática para acolher esse tipo de clientela na escola infantil.
Em contrapartida, comprometíamo-nos a prestar capacitação aos educadores e
suas equipes, o que incluía: formações teóricas, acompanhamento e observações
na sala de aula mensais nas creches, além de reuniões sistemáticas com os
educadores que acolheriam essas crianças. Isso inaugurou o trabalho de
assessoria em EP e PI na escola infantil.
De início, quando as equipes de EP e PI chegavam às escolas infantis,
os educadores demandavam-lhes orientações e fórmulas mágicas para o “Mielo”
(criança com mielomeningocele), o “P.C.” (criança com paralisia cerebral), o
“Hiperativo”, o “Cadeirante”, a “Surdinha”, o “Ceguinho” e assim por diante. Havia
muito ainda o que avançar: várias crianças com deficiência já frequentavam o
ensino infantil; contudo, os educadores ainda não se referiam a elas pelo nome
próprio, mas as identificavam por seus quadros clínicos.
Começamos então, enquanto equipes de EP/PI, criadas nas quatro escolas
especiais do Município de Porto Alegre, a propor espaços de formação e escuta
dos cuidadores-educadores. O intuito era desmistificar os diagnósticos das
crianças, falando, então, da Maria, do João e dos outros alunos pelo nome
próprio, e também de suas histórias. Com isso, os quadros passaram a ocupar
uma posição secundária, possibilitando que os educadores pensassem nas
questões individuais das crianças e incluíssem atividades subjetivantes no
planejamento escolar.
É preciso ressaltar, no que diz respeito às crianças pequenas, que não
as tomamos de forma segmentada, a partir de seu sintoma: contamos com uma
rede interdisciplinar de profissionais na SMED, a qual é articulada e desarticulada
conforme cada caso. Identificamos a criança que esteja apresentando um
transtorno psíquico e ou atraso instrumental na escola infantil, encaminhamo-la
aos serviços de saúde (psicologia, fonoaudiologia, neurologia, etc.), e propomos
os atendimentos terapêuticos em EP ou PI. Além disso, realizamos interconsultas
com profissionais de saúde, escutamos os pais dos alunos e construímos
intervenções e estratégias com as equipes dos berçários7, maternais8 e jardins9
que atendem essas crianças na escola infantil.
7
Berçário: B1 (de 0 a 1ano e 5 meses) e B2 (de 1ano e 6 meses a 2 anos e 4 meses) com 15
crianças.
8
Maternal: M1 (de 2 anos e 5meses a 2 anos e 11meses) e M2 (de 3 anos a 3 anos e 11 meses)
com 20 crianças
9
Jardim: JA (de 4 anos a 4 anos e 11 meses) e JB (de 5 anos a 5 anos e 11 meses) com 25
crianças.
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Dorisnei Jornada da Rosa
Tal rede foi criada pela SMED porque também nós, os profissionais de
EP/PI, precisávamos de formações, assessorias e interconsultas com várias
especialidades. Ao chegarmos às creches e escolas para observar as rotinas e
as crianças, víamo-nos tomados pelas demandas dos educadores e pela
urgência em responder e intervir em diversos campos. Nesse contexto,
identificávamos algumas posições mais frequentemente assumidas pelos
educadores:
1. Impotência e paralisação
pequeninos, lhes dizem coisas sobre a mamãe não estar ali, mas elas estão ali,
brincam então com as suas imagens e as das crianças. Elas simbolizam a
ausência das mamães dos bebês em enunciados: “Tua mamãe virá ao final do
dia te buscar” ou “A mamãe está trabalhando para dar coisas ao nenê (sic)”.
O segundo jogo estruturante é o brincar de “cai, não cai”. Na série dos
jogos de borda (ou de queda), Jerusalinsky inclui: jogar brinquedos fora do berço,
empurrar objetos lentamente em direção à beira da mesa até sua precipitação,
espiar pelas frestas, mexer nos buracos e pequenas aberturas, andar pelas
beiradas e por todo lugar que ofereça risco de queda, brincar de cair, saltar,
tocar o que não pode, entrar onde não se entra, etc. O que essas brincadeiras
têm em comum é a construção do espaço e do outro, que fazem limite ao corpo
da criança, instituindo as bordas entre o eu e o não eu. Também entra em causa
aqui uma relação dialética com o olhar materno: ele unifica o corpo da criança,
a ponto de permitir-lhe apropriar-se de seu domínio motor, ao mesmo tempo em
que o aprisiona a uma existência imaginária. “O ‘andar pela borda’ remete à
indagação constante sobre a extensão e a aplicabilidade da ruptura que a palavra
introduz na motricidade e no olhar” (Jerusalinsky, 1999, p. 158); afinal, os
especialistas em brincar com as bordas sabem muito bem carregar consigo o
olhar do Outro em suas aventuras.
O terceiro tipo de brinquedo estruturante é o brincar de “este é o outro”,
compondo o que Jerusalnsky chama de jogos transicionais. A condição de
transicional, particularizada por Winnicott (1975), alude à substituição do objeto
de desejo: ao invés do seio materno, a criança carrega o bico e/ou o cheirinho,
etc. Na escola infantil, na fase de adaptação da criança, é importante acolher os
objetos transicionais, a fim de que ela encontre amparo para fazer a passagem
do âmbito materno para o âmbito social que a escola representa. Por essa
razão, também é importante manter o “dia do brinquedo” – dia de trazer um
brinquedo de casa – ou o “dia de criar” – levar o trabalho para casa.
Não raramente, a presença desses objetos transicionais provoca certo
ímpeto interditor nas educadoras, pois o que se destaca deles é seu traço de
apego à figura materna ou sua face de objeto de gozo. Porém, é importante
lembrar a sua face de separação: eles também são o significante da falta materna,
e, como tal, um elemento mediador entre a mãe e seu filho. Graças a eles se
torna possível suportar a ausência materna sem correr o risco de desaparecer.
Não podemos esquecer a importância da intermediação e da palavra do
educador, pois esses brinquedos estruturantes não são uma atividade ou
brincadeira pedagógica. Eles só terão efeito estruturante se for algo registrado,
falado e intermediado pelos educadores. Mariotto (2009) ressalta que a creche é
um elemento de subjetivação para as crianças pequenas, dependendo do laço
106
A educação estruturante...
REFERÊNCIAS
FREUD, S. Mais além do princípio do prazer [1920]. In: ______. Obras completas. 3.
ed. Rio de Janeiro: Imago,1973. v. III.
______. O mal-estar na civilização [1930]. In: ______. ______.v. XXI.
JERUSALINSKY, Alfredo. Psicanálise e desenvolvimento infantil. 2. ed. Porto Alegre:
Artes e Ofícios, 1999.
LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise
[1964]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979.
MARIOTTO, Rosa Maria Marini. Cuidar, educar e prevenir: as funções da creche na
subjetivação dos bebês. São Paulo: Escuta, 2009.
WINNICOTT, D. W. O Brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
Recebido em 09/11/2011
Aceito em 23/04/2012
Revisado por Maria Ângela Bulhões
108
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 109-118, jan./jun. 2011
TEXTOS
CAMINHOS DE OFICINA NO
ENCONTRO COM O OUTRO1
Ieda Prates da Silva2
Abstract: The present text brings a psychoanalytic view of the work in therapeutic
workshops with adolescents in a Center of Psychosocial Attention, proposing
that the workshop constitute itself as a clinic device when oriented by the listening
of the subject. Points the effects of the collective bond sustained in transference,
by doing with the other, constituting an addressing to the Other of the language.
By using clinic fragments, exposes and analyses the structuring effects of this
workshops.
Keywords: workshops, listening of the subject, transference, Other, adolescents.
1
Trabalho apresentado na II Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e Intervenções Sociais,
realizada em Porto Alegre, 30 de setembro e 01 de outubro de 2011.
2
Psicanalista; Membro da APPOA; Coordenadora de Ensino e Pesquisa do CAPSi de Novo
Hamburgo. E-mail: iedaps@uol.com.br
109
109
Ieda Prates da Silva
3
Centro de Atenção Psicossocial Infantil é um serviço de saúde aberto e comunitário do Sistema
Único de Saúde (SUS) para atendimento diário a crianças e adolescentes com transtornos
mentais.
4
Na interessante expressão de S. Zabalza (2011), que propõe as oficinas como “notas de
rodapé”, no sentido que Lacan lhes outorga: um fora que não é um não-dentro. Dispositivo que
permite ao sujeito expressar, com o seu corpo, e o seu fazer algo que não aparece diretamente
na fala, mas vem como lateral, uma abertura ou uma escansão que retira a linearidade, interrompe
a continuidade e traz o novo que já estava ali, mas que não se dava a ver. Acrescenta algo e faz
furo, ao mesmo tempo.
110
Caminhos de oficina no encontro com o outro
Agora, as oficinas terapêuticas nos mostram ainda outra via: que essa
experiência no coletivo, de fazer com o outro, de fazer para o Outro – que é o
Outro do social, o Outro do discurso –, de reconhecer algo de si nesse produto
que sai de suas mãos e que é reconhecido pelo semelhante, essa experiência
ela é produtora de pensamento e de subjetividade.
A Oficina de Escrita com adolescentes, que realizo no CAPSi em parceria
com uma colega da equipe, é composta por adolescentes com questões
psíquicas graves e significativas restrições no processo de escolarização, na
circulação e nos laços sociais. A entrada nessa Oficina (que eles intitularam
Dando Letra) se faz por um desejo expresso do adolescente, ou por percebermos
nele interesse pela escrita, ou, ainda, por indicação da equipe, naqueles casos
em que se aposta que a escrita possa vir a se constituir como uma via de
acesso a significantes que possam alçá-los a um lugar de enunciação e a uma
posição no social não tão restritiva. Refiro-me àqueles adolescentes para os
quais a entrada na linguagem não se deu sem percalços, e a utilização da
escrita pode “transmitir uma história de exílio em relação à comunicação”, nas
palavras de Leda Bernardino (2011)5:
5
Gentilmente cedido pela autora.
111
Ieda Prates da Silva
6
Como aponta Chemama: “O desenho não seria sempre marca, tendo que fazer função de traço,
inscrição de um sujeito que precisa fazer, ao mesmo tempo, separação em relação ao Outro?”
(Chemama, 1991, p.23).
112
Caminhos de oficina no encontro com o outro
minha vaga do serviço. O Ieda eu gostei a casa da B. O Ieda eu não quero morar
mais a minha casa, mais nunca mais porque a minha mãe não deixa sair algum
lugar. A minha mãe não deixa fazer amigo. Eu to combinado eu vou morar a
casa da B. É sério eu vou embora. Eu to falando muito sério. Eu to falando
verdade. Eu to falando ideia. (E termina, colocando seu nome completo e a
data.)
2) Eu fiquei triste, minha mãe não deixou ir no passeio. Não sei qual
motivo? Tem que ajuntar papelão? (Sua mãe é catadora.)
3 ) O J. (colega da oficina) tu pode fazer pergunta para mim.
A) Você tem namorada (Sim) ou (Não)
B) Você já beijou a boca das guria (Sim) ou (Não)
C) Você foi a cama a tua namorada (Sim) ou (Não)
D) Você gosta das guria mais bonita (Sim) ou (Não)
E) Você quer ir no cinema (Sim) ou (Não)
F) Você quer namorar as guria (Sim) ou (Não)
4) Eu sonhei a B. Eu tava com medo eu tremi tremi eu sonhei eu queria
morar a casa da B. Eu sonhei a mãe da B. me dando carona eu mixei nas cueca
eu acordei mixo das cueca. Eu sonhei eu tava andando mão dada das guria.
Outro ponto que quero destacar é a particular relação com o tempo que
se dá nas oficinas. Trata-se de outro tempo, que não o cronológico, embora, é
claro, não estejamos totalmente alheios à marcação do relógio. Nesse sentido,
vamos na contramão daquilo que Foucault (1987) denuncia como tempo
disciplinar:
114
Caminhos de oficina no encontro com o outro
Numa saída ao centro, Beto quis levar o mapa de Novo Hamburgo com
ele. Neste, estão localizados os principais pontos turísticos do município.
Havíamos trabalhado com o mapa, localizando a rua do CAPSi e o endereço de
cada um deles ou, pelo menos, o bairro em que moram. Nesse dia, Beto quis
levar o mapa e foi abrindo-o e identificando, ao passar por elas, as coisas que
localizara no mapa. Mas se mostrava surpreso quando encontrava, na realidade
da cidade, o que estava representado no papel. Frente a uma grande escadaria
do centro, olhava-a, e ria, apontando ora para o desenho no papel, ora para a
concretude da escada: “Olha a escadaria, olha!, Tá aqui a escadaria!” (no mapa);
“Tá ali a escadaria!” (apontava para ela), surpreso de encontrá-la sob duas formas
diferentes (a escada no real e sua representação gráfica).
Esse mesmo adolescente, numa ida à praça para jogarem futebol, se
recusou a jogar, de início, dando voltas e voltas ao redor do campo em que se
divertiam meninos da oficina e outros que estavam pela praça. Até que ele
conseguiu se aproximar e entrar no jogo (pacientemente estimulado pelo
Residente e Professor de Educação Física, que acompanhou um tempo essa
oficina). É um adolescente que apresenta uma estrutura paranoica. No caminho
de volta, se posicionou ao meu lado, e começou a falar:
B – “Tá louco... aqueles caras... tá louco!....”
I – “Tu jogaste com eles”.
116
Caminhos de oficina no encontro com o outro
REFERÊNCIAS
ARENDT, H. A condição humana. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
BERNARDINO, L. Pulsão, letra, significante e gozo na clínica do autismo. Trabalho
apresentado no Congresso Internacional sobre Autismo, da Associação Psicanalítica
de Curitiba. Curitiba, de 24 a 27 de agosto de 2011. (não publicado)
CHEMAMA, R. O ato de desenhar. In: TEIXEIRA, A. B. do R. (Org.) O mundo, a gente
traça: considerações psicanalíticas acerca do desenho infantil. Coleção Psicanálise
da Criança. Salvador: Ágalma, 1991, p.11-26.
COSTA, A. Uma clínica aberta. In: APPOA. Psicose: Aberturas da Clínica. Comissão
de Aperiódicos da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (org.). Porto Alegre: APPOA/
Libretos, 2007, p.147-54.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir. 25. ed. Petrópolis: Vozes, 1987.
LACAN, J. O Seminário: o ato psicanalítico [1967-1968]. Publicação da Escola de
Estudos Psicanalíticos, para circulação interna. São Leopoldo: Ed. Oikos, s. d.
PALOMBINI, A. Acompanhamento terapêutico: dispositivo clínico-político. Trabalho
apresentado no Fórum sobre Acompanhamento Terapêutico, UFRGS. Porto Alegre,
17 de novembro de 2005.
PORGE, E. A transferência para os bastidores. In: Littoral: A criança e o psicanalista.
Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1998.
ZABALZA, S. Nota ao pie: una perspectiva topológica del Hospital de Día. Revista
Imago Agenda, nº 156, dezembro de 2011. Disponível em: http//
www.imagoagenda.com/articulo.asp. Acesso em 26.02.2012.
Recebido em 08/12/2011
Aceito em 07/01/2012
Revisado por Deborah Nagel Pinho
118
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 119-132, jan./jun. 2011
TEXTOS
IMPLICÂNCIA OU BULLYING?1
PEEVE OR BULLYING
Abstract: Through the notion of fantasy construccion, the text questions about
the act of bullying and its relation with puberty and adolescence. The remake of
part of the school history – and the discourse that circumscribes it – contributes
to interpret the teasing between the subjects and their implications.
Keywords: bullying, adolescence, fantasy.
1
Este texto é a versão modificada do publicado pela Revista da Associação Psicanalítica de
Curitiba, nº 24: Abusos na infância, em 2012.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). E-mail:
lmees@portoweb.com.br
119
119
Lúcia Alves Mees
U ma jovem analisante fala sobre uma cena, entre ela e o irmão, que faz coro
com a indagação do título. O irmão coloca o pé sobre o colo dela. A analisante
reclama do odor dos pés. Ele insiste. Ela se levanta e faz menção de fotografá-
lo para expor no Facebook. Ele diz que não, ela persiste. Ele joga as meias
sujas sobre ela e as esfrega no rosto da analisante, machucando-a. Ela chora,
vai para o quarto e eles ficam sem se falar por um tempo.
Preocupada com o futuro da relação entre ela e o irmão, a analisante se
pergunta se essas brincadeiras entre irmãos ajudam a construir uma relação de
parceria e se, consequentemente, contribuiriam para eles seguirem sendo amigos
pela vida afora, ou se elas significam ruptura e prenunciam o afastamento entre eles.
Na cena específica, é claro que a violência que incide sobre o corpo,
infligindo dor, põe fim ao jogo fraterno. Por ora, apenas sublinharemos o corpo e
a dor como balizas para o dentro e fora da relação fraterna.
A chamada implicância entre irmãos se apresenta na cena em suas
características principais, sobretudo naquilo que indaga a implicação de cada
um. O verbo implicar contempla três empregos: o de “ter implicância com” (“o
diretor implica com aquele funcionário”), o de comprometer ou envolver (“o agente
implicou o chefe no escândalo) e produzir como consequência (“autonomia implica
responsabilidade”). Pois a polissemia do verbo implicar nos leva a imbricar o
zoar, com o envolvimento e a produção de uma responsabilidade. São esses
três aspectos que as cenas de implicância trazem consigo.
A reciprocidade da implicância permite que ambos dirijam um ao outro a
pergunta sobre a implicação de cada irmão na existência do outro. A possibilidade
de jogar/brincar com a rivalidade pode ser elaborativa, assim como impeditiva,
do laço. Quando um dos envolvidos deixa de ocupar o lugar de implicante/
implicado, introduzindo a ruptura que interrompe o “entre dois”, a implicância
talvez não mereça mais esse nome. Algo se excluiu da cena. A possibilidade de
implicação se esvazia.
Seja diante dos pais ou não, a cena da implicância se dirige ao desejo
parental, implica-o, indagando o amor ou o reconhecimento. A pergunta sobre
quem tem razão parece perpassar os jogos dos irmãos ou, ainda, “quem é o
escolhido?” Ou mais ainda: “como situas teu desejo diante disso?” O terceiro
para o qual a cena se endereça é decisivo no desfecho dela. Pois a intervenção
do terceiro (Freud e Lacan demonstraram sobre o pai e seu Nome) requer o
corte com o imaginário da escolha binária, assinalando o lugar singular de cada
um a partir do desejo que o caracteriza. A rivalidade que supõe um “ou eu ou
ele(a)” pode se elaborar quando a resposta não atende ao registro imaginário da
escolha que exclui o outro, mas aponta para o registro simbólico que supõe o
lugar no qual cada um precisará se ocupar, ou seja, implicar-se.
120
Implicância ou bullying?
3
Sobre o texto e seu contexto histórico e conceitual veja também Mees (2011).
121
Lúcia Alves Mees
122
Implicância ou bullying?
123
Lúcia Alves Mees
125
Lúcia Alves Mees
4
Observe-se que o autor se refere às instituições de ensino superior, entretanto, parece-nos
que sua tese principal pode ser transposta para a educação de modo geral. O texto de Lyotard
foi encomendado pelo Conselho das Universidades do Quebec, portanto, por isso a ênfase no
terceiro grau.
126
Implicância ou bullying?
Isso porque,
127
Lúcia Alves Mees
5
Disponível em: www. bullying.com.br/BConceituacao21.htm#inicio. Ultimo acesso em 15/02/
2012.
128
Implicância ou bullying?
6
“[...]aqueles que possuem dificuldades de relacionamento com as garotas, que são tímidos
demais, ou desajeitados; os que já tentaram, mas foram rechaçados por não serem ‘desejáveis’,
estes todos são chamados de ‘veados’, bichinhas’, ‘baitolas’. Não é necessário, para isso, que
possuam trejeitos, hábitos ou um estilo especial; basta que não ‘fiquem’ com as meninas [...]”
(Rolim, 2010, p.103).
7
“uma das ofensas mais graves praticadas entre as alunas consiste em qualificar uma delas de
‘vagabunda’ [...] a que ‘dá para qualquer um’, que é uma ‘puta’. O impressionante, no caso, é que
aquelas que empregam termos do tipo, em sua grande maioria, ainda não se iniciaram sexualmente”
(idem, p.106).
129
Lúcia Alves Mees
8
Sobre o bullying veja também Pinho (2011) e Ribeiro (2011).
130
Implicância ou bullying?
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo:
Ed. 34, 2009.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.
Fenômeno bullying e a educação física escolar. In: http//www. bullying.com.br/
BConceituacao21.htm#inicio. Último acesso em 15/02/2012.
FREUD, Sigmund. Uma criança é espancada – uma contribuição ao estudo da
origem das perversões sexuais. [1919] In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro:
Imago, 1976. v. XVII.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 4: a relação de objeto e as estruturas freudianas.
Publicação para circulação interna da APPOA, 1956-1957.
_____. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente [1957-1958]. Rio de
Janeiro: J. Zahar Ed., 1999.
_____. El saber del psicoanalista. Publicação para circulação interna da ENAPSI,
1971-1972.
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio,
2008.
MEES, Lúcia. Abuso sexual: trauma infantil e fantasias femininas. Porto Alegre: Artes
e Ofícios, 2001.
_____. Freud e Annas. Correio da APPOA, n. 203, julho 2011.
PINHO, Gerson. O sujeito do bullying. In: Autoridade e violência. Porto Alegre: APPOA,
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RASSIAL, Jean-Jacques. A adolescência como conceito da teoria psicanalítica. In:
Adolescência:entre o passado e o futuro. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1997.
RIBEIRO, Eduardo M. Bullying: uma violência em busca de sentido. In: Autoridade e
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ROLIM, Marcos. Bullying: o pesadelo da escola. Porto Alegre: Ed. Dom Quixote, 2010.
SANTIAGO, Silviano. Posfácio. In: A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2008.
Recebido em 13/04/2012
Aceito em 11/05/2012
Revisado por Beatriz Kauri dos Reis
132
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 133-145, jan./jun. 2011
DO BRINQUEDO
TEXTOS AO TRABALHO:
os avatares na passagem
da infância à adolescência
Carmen Backes1
1
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Psicóloga do
Instituto de Psicologia (UFRGS); Doutora em Educação (UFRGS). Autora do livro: O que é ser
brasileiro? (Escuta, 2000) e organizadora do livro: A clínica psicanalítica na contemporaneidade
(Editora da UFRGS, 2008). E-mail: cbackes@cpovo.net.
133
133
Carmen Backes
***
2
Colocaríamos a palavra cultural entre aspas, pois o desmame, ou a passagem de uma fase da
libido a outra está na relação direta a um reviramento na demanda do Outro originário.
136
Do brinquedo ao trabalho...
o jeito dela mas, pensando bem, ela fecha com meus sonhos como ninguém...”.
Depois de findo o namoro, logo se apaixona por outra garota, mas são os
pensamentos em torno da namorada anterior que insistem, algo que, para ele, é
novo, pois facilmente se desprende de um relacionamento e vincula-se a outro,
da mesma forma apaixonada de sempre.
Irritado com pensamentos que não consegue controlar, vai a uma festa e
“toma um porre”. No dia seguinte, da amnésia alcoólica lhe restam um cupom
fiscal no bolso e uma lembrança da infância: picolé Chicabom (chocolate e leite)
que desfrutava nas madrugadas, depois das festas com Fernanda, o mesmo
que lembra ter conhecido com a mãe, em idade bastante precoce. Por associação
e não com toda a certeza, julga ter saído da tal festa e ido ao mesmo posto de
gasolina, comprado novamente o picolé, porém desta vez sem a companhia de
Fernanda.
Esse recorte clínico sugere pensar nos paradoxos (amor e ódio) associa-
dos ao objeto, apontando para a dificuldade de substituição, pois, se nenhum é
suficientemente adequado, poderíamos perguntar sobre aquele insituável, que
teria dado origem à série. Nesse sentido, o fragmento clínico coloca em relevo a
insistência da imago do objeto primeiro e permite lançar a hipótese de certa
recusa em ceder o objeto, operando uma substituição que seja efetiva e duradoura
– se é que a substituição efetiva seria possível. Ao mesmo tempo, Gustavo
denota a ambivalência primordial, dando a ver os índices da imago materna e
revelando o papel psíquico que representa a imagem da mulher forte, que ele
“detesta”, mas que o acompanha em seus sonhos diurnos. Renovando
incansavelmente a exclusão, é sempre ele que põe um final nas relações, pois
não suportaria “levar um pé na bunda”. Triunfa agora, colocando-se ativo na
reedição do abandono, ativando a agressividade que os restos infantis dos
complexos familiares colocam em ação.
Rassial (1997), em seu livro A passagem adolescente, afirma que o sujeito
necessita, a posteriori, realizar novamente uma série de operações fundadoras.
Primeiramente, se na fase do espelho eram o olhar e a voz maternos que lhe
138
Do brinquedo ao trabalho...
3
Era o estagiário (não remunerado) de fisioterapia nas categorias de base de um time de futebol.
4
Inspirado no criador da marca Mormaii, cuja história o fascina, pois trata-se de um médico que
abandona a profissão, lança a marca, consegue fazer fortuna e manter-se morando à beira do
mar, tendo como atividade principal a administração da marca e a prática do surf.
141
Carmen Backes
5
Expressão utilizada por Penot (2005).
143
Carmen Backes
REFERÊNCIAS
CABISTANI, Roséli. A economia da angústia na adolescência. Revista da Associação
Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, n. 36, p. 85-92, jan./jun. 2009.
FREUD, Sigmund. Tres ensayos para una teoria sexual [1905]. In: ______. Obras
completas. 4. ed. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. v. 2.
______. El poeta y los suenõs diurnos. [1908] In: ______.______. v. 2.
______. Los instintos y sus destinos. [1915] In: ______.______. v. 2.
______. La represion. [1915] In: ______.______. v. 2.
______. Mas allá del principio del placer. [1920] In: ______.______. v. 3.
144
Do brinquedo ao trabalho...
Recebido em 17/10/2011
Aceito em 06/01/2012
Revisado por Deborah Nagel Pinho
145
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 146-154, jan./jun. 2011
1
Agradecemos a Ana Maria Gageiro por ter escrito a apresentação do entrevistado deste
número.
146
História da psicanálise infantil...
demissão por “atividades subversivas”. Foi nesse mesmo ano que recebeu um
convite do reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Dr. Zeferino
Vaz, para organizar o Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da
Faculdade de Ciências Médicas e ficar no Brasil por dois anos. Acabou
permanecendo definitivamente, até a morte, em 22 de janeiro de 2008, aos 85
anos.
Naturalizado brasileiro, desde 1985, foi presidente do Departamento de
Psiquiatria da Sociedade de Medicina e Cirurgia de Campinas, da Regional
Campinas da Sociedade de Medicina Psicossomática, da Sociedade de
Neurologia, Psiquiatria e Higiene Mental do Brasil e da Comissão Assessora de
Saúde Mental do Estado de São Paulo.
Entre diversos outros cargos, ocupou a vice-presidência da Associação
Mundial de Psiquiatria Dinâmica e da Federação Internacional de Psicoterapia
Médica, foi consultor da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa
do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e membro da comissão científica da
Universidade de Londrina. Idealizou e dirigiu o Centro de Prevenção ao Suicídio
em Campinas.”2
Teve mais de 300 trabalhos científicos publicados, além de haver escrito
52 capítulos de livros e 12 livros, entre os quais Adolescência e família (1971),
Adolescência normal (1973), com Arminda Aberastury, Psiquiatria infantil
psicodinâmica (1977), A adolescência e a família atual (1981), Psicoterapia
breve (1986) e Orientação familiar (1992).
Podemos situar Knobel como um psicanalista vinculado à IPA, voltado à
escola inglesa – um pós-kleiniano que teve em sua formação, forte influência de
seus professores, entre eles, Pichon-Riviére, Jose Bleger, Arminda Aberastury,
Angel Garma, Arnaldo Rascovisk, Leon Grimberg.
Sem dúvida, sua contribuição mais marcante à psicanálise e à psicologia
foi a publicação, em parceria com Arminda Aberastury, de Adolescência normal
(1971), em que trabalha o conceito de síndrome normal da adolescência para
ajudar a ompreender os conflitos vividos pelo adolescente.
2
Vizzotto, Marília Martins. A Psicologia e a Psiquiatria perdem um de seus maiores expoentes:
uma homenagem ao Dr. Maurício Knobel. In: Scielo Estudos de Psicologia (Campinas), v. 25, n. 1
Campinas Jan/Mar. 2008.
147
Maurício Knobel
2
A entrevista foi realizada em Buenos Aires, em 1993, por Silvia Fendrik.
148
148
148
História da psicanálise infantil...
Por que Telma Reca teve tanto sucesso? Bem, ela se formou nos Estados
Unidos e trouxe a mentalidade de lá, e estudou a psicanálise que muitos leem,
tanto aqui quanto lá. Fez por um tempo um grupo de estudos, para se familiarizar
com a terminologia. Escutei isso muitas vezes: “Eu sou psicóloga lacaniana e
faço análise de crianças.” – “Com quem se formou?” – “Bom... li Mannoni, algumas
coisas de Lacan.” Ou um rapaz que queria fazer a residência em psiquiatria e se
apresentou dizendo que tinha lido as obras completas de Freud. – As obras
completas de Freud? Está seguro? Eu ainda não terminei de ler Freud, e faz
quarenta anos que estou nisso. Confundem leitura com formação.
FENDRIK: Creio que isso que o Sr. diz efetivamente toca um ponto de
muito interesse, porque pode-se dizer que Telma Reca era uma “leitora” crítica
da psicanálise e Arminda Aberastury, por sua vez, era totalmente representativa
da psicanálise de crianças e, no entanto, trabalha com critérios evolutivos muito
lineares; a própria noção de trauma não é psicanalítica. Trauma pode ser uma
mudança, a morte de um avô, os enganos – isso não é nem muito psicanalítico,
nem muito kleiniano...
KNOBEL: Claro, o pensamento bem elaborado em todos os seus detalhes.
Arminda pensava isso, e às vezes pecava, se posso dizê-lo assim, “quebrando”
as normas da técnica psicanalítica. Por exemplo, na análise de crianças, ela
obviamente usava jogos não figurativos, porque, claro, se se põe um velhinho
com barba e outro bonequinho que representa um menino, o menino vai falar do
avô, ou do pai, ou do menino. Agora, se se põem dois caminhõezinhos, aí vai a
imaginação do garoto, e aí se pode trabalhar com o simbólico. Agora, ela tinha
uma coisa, por exemplo, acabava o giz que o menino usava para desenhar na
lousa e ela abria a porta do consultório e chamava a empregada para que fosse
comprar giz. O menino tinha que ter o giz, e isso não está em Klein,
imediatamente suprir a necessidade da criança, e tampouco está nos livros de
Arminda. Eu fiz supervisão com Arminda e, em situações assim, dizia: mas por
que não mandaste comprar plastilina? Eu não estava de acordo, me parecia que
isso era estimular muito a onipotência da criança – quero tal coisa; bem, aí a
tens, aí está. Essa era uma característica de Arminda. Ela também trabalhava
muito com a parte teórica, mas fazia muitas coisas que não se encaixavam com
a teoria. Mas creio que ela tinha muito respeito pela figura do psicanalista, cada
um é o psicanalista que pode ser, não o que deveria ser, se não, somos caricaturas,
não psicanalistas.
FENDRIK: Que fazia quando alguém não estava de acordo com uma
coisa que, para ela, era tão importante como isso, das suplências?
KNOBEL: Ela respeitava o que cada analista sentia a necessidade de
fazer. Era muito respeitosa nesse sentido. Tinha, isso sim, uma visão muito
clínica, não só de seus analisandos, como dos que se supervisionavam com
ela. Quando via falhas grosseiras, as denunciava, internamente. Nesse sentido,
era muito respeitosa da instituição psicanalítica. Eu um pouco a comparo com
um militar: é um militar, e vai pensar como um militar, as ordens devem ser
cumpridas, as sessões têm que durar tanto, tem de se fazer isso ou aquilo, mas
ela mesma as quebrava em seu trabalho e, evidentemente, não o publicava.
FENDRIK: O Sr. crê que ela não se dava conta das diferenças com o
pensamento kleiniano, a entrevista evolutiva, o diagnóstico, a devolução, etc.?
KNOBEL: Eu creio que não, não esqueça que ela se fez kleiniana, mas
ao lado de Pichon Rivière, e tudo o que você menciona é a clássica anamnese
psiquiátrica, o que Pichon fazia no hospital. Ela incorporou isso de Pichon; por
isso, isto não está em nenhum livro de psicanálise.
3
Os grupos Plataforma e Documento se cindiram da Associação Psicanalítica Argentina por
razões fundamentalmente políticas, com fortes questionamentos à rigidez e ao elitismo da
instituição, à qual, entre muitas outras coisas, naquela época não podiam ingressar os psicólogos.
153
Maurício Knobel
coisas novas. Eu o vejo assim, para mim está claríssimo. Mas ela não podia se
dar conta disso, tinha que negá-lo.
154
154
154
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 155-169, jan./jun. 2011
RECORDAR, FANTASIAS DE
REPETIR, ESPANCAMENTO
ELABORAR E DEVANEIOS
1
Esse texto é uma tradução do inglês realizada por Maria Alice Maciel Alves.
2
Agradecemos a Lúcia Alves Mees por ter escrito a apresentação deste texto da seção Recordar,
repetir, elaborar.
155155
Anna Freud
3
“Je bats un enfant – quelque remarques sur Le cas d’Anna G”. In: Mon analyse avec Le
professeur Freud. Paris: Ed. Aubier, 2010.
156
156
156
Fantasias de espancamento e devaneios
E m seu artigo Uma criança está sendo espancada, Freud lida com uma
fantasia que, segundo ele, é encontrada em surpreendente número de
pessoas que procuram tratamento analítico por conta de uma história ou de
uma neurose obsessiva. Ele pensa que ocorra, muito provavelmente, ainda mais
seguido, em outras pessoas que não foram forçadas a tomar essa decisão por
causa de uma doença manifesta. Essa “fantasia de espancamento” está
invariavelmente investida de alto grau de prazer e é descarregada num ato de
prazerosa gratificação autoerótica. Vou supor que vocês estejam familiarizados
com o conteúdo do artigo de Freud – a descrição da fantasia, a reconstrução
das fases que a precederam e sua derivação do complexo de Édipo. No decorrer
de meu ensaio, voltarei a ele frequentemente.
Em seu artigo, Freud diz:
158
158
158
Fantasias de espancamento e devaneios
II
quanto ao falar sobre eles, em sua análise. Contudo, ela não era, de maneira
nenhuma, uma menina pouco inteligente e era, de fato, bastante crítica e exata
na escolha de seu material de leitura. Mas as várias cenas do conto do cavaleiro,
despojadas de seus detalhes acessórios, que, à primeira vista, pareciam dar-
lhes uma vívida e individualizada aparência, são, em cada caso, construídas
sobre o mesmo andaime: antagonismo entre a pessoa forte e a fraca; uma má
ação – a maioria não intencional – por parte do fraco, que o coloca à mercê do
outro; a atitude ameaçadora do último, a qual justifica as mais graves apreensões;
uma ansiedade crescente, geralmente descrita com meios requintados, até que
a tensão torna-se quase insuportável; e finalmente, como clímax prazeroso, a
solução do conflito, o perdão do pecador, reconciliação e, por um momento,
completa harmonia entre os antigos antagonistas. Cada uma das cenas individuais
das outras denominadas “histórias agradáveis” tinha, com somente algumas
variações, a mesma estrutura.
Mas essa estrutura também contém a importante analogia entre as histórias
agradáveis e a fantasia de espancamento, do que nossa devaneadora não
suspeitava. Na fantasia de espancamento, também, os protagonistas são pessoas
fortes e fracas que, em seu delineamento mais claro, se opõem, como adultos
e crianças. Aí, também, é regularmente uma questão de má ação, muito embora
a última seja deixada tão indefinida quanto aos protagonistas. Também
encontramos um período de crescente medo e tensão. A decisiva diferença entre
os dois permanece em sua solução, a qual, na fantasia, é trazida à tona pelo
espancamento, e no devaneio, por perdão e reconciliação. Quando, na análise,
a atenção da menina era atraída para essas surpreendentes semelhanças na
estrutura, ela não podia mais rejeitar a crescente percepção de uma conexão
entre os dois, externamente produtos de fantasias tão diferentes. Uma vez aceita
a probabilidade de sua relação, ela imediatamente foi surpreendida por uma
série de outras conexões.
Mas, apesar do reconhecimento de sua estrutura semelhante, o conteúdo
da fantasia de espancamento parecia não ter algo em comum com as histórias
agradáveis. A asserção de que seu conteúdo diferia, contudo, não podia realmente
ser mantida. A observação mais aproximada mostrou que, em vários lugares, as
histórias agradáveis continham mais ou menos traços claros do velho tema do
espancamento tentando irromper. O melhor exemplo disso pode ser encontrado
no devaneio do cavaleiro, com o qual já temos familiaridade: a tortura que é
ameaçada, embora não levada a efeito, constitui o pano de fundo de um grande
número de cenas, que lhes emprestava uma distinta coloração de ansiedade.
Essa tortura ameaçadora, contudo, é reminiscente de sua velha cena de
espancamento, cuja execução permanece proibida em suas histórias agradáveis.
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164
Fantasias de espancamento e devaneios
III
Uma segunda motivação para escrever a história pode ser derivada das
observações de Bernfeld, sobre as tentativas criativas dos adolescentes. Ele
observa que o motivo de escrever devaneios não é encontrado no devaneio em
si, mas é extrínseco a ele. Ele sustenta que tais esforços criativos são instigados
por certas tendências ambiciosas que se originam no ego; por exemplo, o desejo
do adolescente de influenciar outros com a poesia ou ganhar o respeito e amor
de outros por esses meios. Se aplicarmos essa teoria à história do cavaleiro da
menina, o desenvolvimento do devaneio até a história escrita pode ter sido
conforme a seguir.
A serviço de tais esforços ambiciosos, como foram recém mencionados,
a fantasia privada transforma-se numa comunicação dirigida a outros. No curso
dessa transformação, a atenção pelas necessidades pessoais do devaneio é
substituída pela atenção ao leitor prospectivo. O prazer derivado diretamente no
conteúdo da história pode ser dispensado, porque o processo de escrever para
satisfazer os esforços ambiciosos indiretamente produz prazer no autor. Essa
renúncia do ganho direto do prazer, contudo, também previne a necessidade de
dedicar tratamento especial a determinadas partes da história – o clímax dos
devaneios –, que estavam especialmente adequadas ao propósito de obter prazer.
Igualmente, a história escrita (como a inclusão da cena de tortura demonstra)
pode descartar as restrições impostas ao devaneio, no qual a realização das
situações emergentes da fantasia de espancamento tinha sido banida.
A história escrita trata todas as partes do conteúdo do devaneio como
material igualmente objetivo, sendo a seleção guiada unicamente com relação à
sua adequabilidade para representação. Quanto mais êxito ela tiver em apresentar
seu material, maior será o efeito sobre os outros e, portanto, também ganhará
seu próprio prazer individual. Renunciando ao seu prazer particular em favor de
causar impressão sobre os outros, o autor realizou um importante passo de
desenvolvimento: a transformação de um autismo numa atividade social.
Poderíamos dizer: ela encontrou a estrada que leva a sua vida de fantasia de
volta à realidade.
169
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 170-191, jan./jun. 2011
1
Trabalho apresentado no evento Relendo Freud: Uma criança é espancada, realizado em
Gramado, maio de 2011.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Doutorando no
Programa de Psicologia Social e Institucional da UFRGS; Bolsista Capes; Autor e organizador dos
livros A interpretação dos sonhos várias leituras – publicação comemorativa aos cem anos da
Traumdeutung (São Leopoldo, Editora Unisinos, 2001); Violências e contemporaneidade (Porto
Alegre, Artes e Ofícios, 2005). E-mail: nortonjr@brturbo.com.br
170
Alcova sadiana...
171
Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr
Logo no início do texto Kant com Sade, o autor retoma essa questão,
dizendo que depois de ter visto que A filosofia na alcova é compatível com a
Crítica da razão prática, “diremos que ela a completa, que ela fornece a verdade
da crítica” (Lacan, [1966] 1998, p. 777). Os respingos de Kant em Sade serão
pensados a partir de uma máxima universal da ação: o direito de gozar de outrem,
como instrumento de prazer. Trata-se de um princípio ao qual nada deve fazer
obstáculo ao gozo:
3
Ao leitor que desejar aprofundar a relação de Lacan com Kant, sugerimos a leitura do livro de
Safatle (2006): A paixão do negativo, em especial, o capítulo que irá abordar o texto de Lacan
“Kant com Sade”, tomando-o “como ponto de viragem do pensamento Lacaniano”. Estamos de
acordo com a oportuna observação do autor de que é a partir desse texto que “Lacan verá a
psicanálise não exatamente como uma terapêutica, mas como uma ética com consequências
clínicas” (SAFATLE, 2006, p. 166).
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Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr
A filosofia na alcova
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autores de seus dias” (Sade, [1795] 2008, p.186). Assim que a senhora Mistival
adentra a alcova, todos fazem questão de deixar evidente que ela não possui
mais qualquer autoridade sobre a filha. Quanto a Eugénie, só lhe resta mostrar
ao seu mestre que apreendeu muito bem as lições que lhe foram dadas e,
assim, diante dos apelos da mãe para sair daquele lugar promíscuo, a filha lhe
oferece a genitália.
Eugénie, através da aberração de seu ato, aponta que na perversão,
diferentemente da neurose, o gozar se sobrepõe às possibilidades de amar.
Isso nos faz resgatar a distinção proposta por Jorge (2010) entre a lógica que
ordena a fantasia na neurose e na perversão. Para esse autor, na neurose, a
fantasia é uma fantasia de completude amorosa. Nesse sentido, o neurótico
deseja resgatar a completude perdida pelo viés do amor. Desse modo, ele estaria
fixado numa demanda amorosa, como tentativa de preencher o vazio que lhe
concerne enquanto sujeito, elidindo, assim, o polo do gozo da fantasia. Em
contrapartida, na perversão a fixação é no polo do gozo.
Seguindo as pistas de Lacan, o autor irá dizer que a fantasia é fantasia de
relação sexual possível, e atravessá-la é deparar-se com o impossível em jogo
na relação sexual. Nesse caso, se de um lado existe um excesso de demanda
amorosa, de demanda de reconhecimento no campo das neuroses, o que de
certa forma singulariza o seu padecimento, de outro, haveria também, um excesso
diante da busca de um gozo transbordante que captura o perverso, abolindo
assim, as suas possibilidades de amar. Nesse caso, o fim da análise, enquanto
travessia da fantasia, é uma travessia da fantasia amorosa, para o neurótico, e
uma travessia da fantasia de gozo, para o perverso. Entretanto, o autor refere
que o fim da análise não implicaria somente dar acesso ao neurótico ao polo do
gozo do qual ele tanto se defende, e, no caso da perversão, dar o acesso à
dimensão do amor, do qual ele também se defende. Ou seja, o que irá importar
nessa travessia será a possibilidade de desejar, desejar enquanto verbo
intransitivo:
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Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr
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Antes de ser expulsa aos pontapés da alcova, mais uma sentença será
cruelmente executada: a senhora Mistival deverá ser contaminada com sífilis, e
a Eugenie caberá a tarefa de instrumentalizá-la, costurando os orifícios da mãe:
“afastai as coxas, mamãe; vou coser–vos para que não me deis mais irmãos ou
irmãs” (Sade, [1795] 2008, p.195). Millot (2004) situa a dimensão do triunfo
perverso que está em causa quando o sujeito goza diante do horror da erotização
da pulsão de morte:
fará uma breve síntese, porém precisa, sobre seu propósito ao escrever Kant
com Sade. Vejamos:
“É por isso que escrevi Kant com Sade” (Lacan, [1964] 1998, p.260).
187
Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr
REFERÊNCIAS
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CHEMAMA, R. Elementos lacanianos para uma psicanálise no cotidiano. Porto Alegre:
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______. O seminário, livro 16: de um Outro ao Outro [1968-1969]. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed, 2008.
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Alcova sadiana...
Recebido em 27/01/2012
Aceito em 16/03/2012
Revisado por Sandra D. Torossian
191
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 192-203, jan./jun. 2011
VARIAÇÕES
QUANDO O SINTOMA
É D A E N A LINGUAGEM
Luiza Milano Surreaux1
1
Fonoaudióloga e professora do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas do Instituto de
Letras da UFRGS. E-mail: surreaux@uol.com.br
2
Ao utilizar a expressão clínica de linguagem estou delimitando uma área específica da
fonoaudiologia, a saber, a clínica que trabalha com sujeitos que apresentam distúrbios de linguagem.
192
Quando o sintoma é...
3
Conto de Edgar Alan Poe, A carta roubada. In: Histórias Extraordinárias, São Paulo, Abril
Cultural, 1981.
4
O minucioso estudo de Garcia-Roza (2001) disseca o texto das afasias de Freud buscando
também um texto-documento fundador. Garcia-Roza encontra no trabalho sobre as afasias os
primórdios da construção freudiana que serve como alicerce para a elaboração da noção de
“aparelho psíquico”, tão cara à psicanálise.
5
Personagem do conto A carta roubada, o detetive Dupan.
194
194
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Quando o sintoma é...
195
Luiza Milano Surreaux
histérico por Freud, optarei por, a partir de agora, abordar a concepção de sintoma
na psicanálise e suas possíveis implicações sobre o conceito de sintoma para a
clínica de linguagem.
O sintoma, para a psicanálise, é uma formação do inconsciente. Segundo
Freud, entre as formações do inconsciente encontram-se o sonho, o lapso, o
chiste e o sintoma. Portanto, as mesmas regras que valem para o lapso, para o
sonho e para o chiste valem também para o sintoma. São todos formações do
inconsciente. E as formações do inconsciente têm simultaneamente duas
implicações: se por um lado, elas estabelecem sentido, por outro lado, elas
denunciam a emergência da falta.
Ao referir-se ao lapsus linguae (equívocos orais ou simplesmente lapsos),
Freud ([1901]1981, p. 788) diz que esses lapsos, observados no homem normal,
dão a mesma impressão que os primeiros sintomas daquelas parafasias que se
manifestam “sob condições patológicas”. Ou seja, a instância do “erro” é inerente
ao fato de o ser humano falar.
Freud, como se vê, já desde seus primeiros trabalhos enfatiza o quanto
são próprios do humano a imperfeição e o desassossego. No campo da linguagem
– que como se está podendo constatar – não anda longe do funcionamento do
inconsciente, a falha não é simplesmente necessária, ela é condição para seu
funcionamento. Partindo-se dessa consideração, a abordagem do sintoma na
clínica de linguagem passa a ser redimensionada.
Chama a atenção que Lacan, ao retornar aos textos freudianos das
formações do inconsciente, o faz pela via de Saussure, de Jakobson e,
indiretamente, de Benveniste. É já desde o início do Seminário 5, As formações
do inconsciente (Lacan [1957-58] 1999) que ele apresenta uma relação estreita
entre a psicanálise e os estudos linguísticos desses autores. Lacan aponta que
substituição e combinação são processos, movimentos da linguagem, que se
articulam de modo semelhante às formações do inconsciente. Ou seja, encontra-
se na estruturação sintática, na “escolha” lexical que realizamos na fala cotidiana,
um movimento semelhante ao movimento estrutural que se pode observar no
lapso, no chiste, no sonho, no ato falho e no sintoma de fala.
Ainda no seminário das Formações do inconsciente, ao discutir a questão
da relação do sujeito com a língua (que ali é chamada de “código”), Lacan lembra
do constitutivo que é para o sujeito e para a língua a noção de espaço, de falta.
A incompletude do sujeito pode também ser encontrada na língua em aspectos
bem primordiais, como o fato de um fonema definir-se por pura oposição a todos os
outros fonemas do sistema (um som é o que todos os outros não são). Essa é a lei
fundante da teoria do valor em Saussure, que abrange desde a relação de
diferenciação mínima entre os fonemas até a constituição de um enunciado longo.
197
Luiza Milano Surreaux
6
Frente ao chiste do familionário, Lacan, assim como Freud, pergunta-se: será um neologismo,
um lapso, um chiste? Lacan aponta que o simples fato de se formular essa pergunta já introduz
uma ambiguidade do significante no inconsciente.
198
198
198
Quando o sintoma é...
7
Lembro-me de uma colega fonoaudióloga que relatava o caso de uma paciente que teve rápidos
progressos na recuperação de uma afonia, mas logo após cai num quadro depressivo ao não se
reconhecer na “nova voz”.
199
Luiza Milano Surreaux
recai sobre o real. Se ambos evocam a falta, pode-se dizer que a falta evocada
pelo chiste convoca uma leitura que opera no terreno do simbólico. Já na esfera
do sintoma de linguagem, a falta evoca uma não leitura por conta do
estranhamento que vem à tona. Essa não leitura recai sobre o real que o sintoma
evoca. Ou seja, ela atualiza o mal-estar da fala sintomática como pura coisa,
um resto que “cai” quando o outro escuta guiado somente pelo estranhamento
(“isso não pertence ao código”).
Na clínica, pode-se pensar que o terapeuta de linguagem imprime a leitura
(escuta/leitura) do sintoma como tentativa de abordar o real através do simbólico.
Esse papel de leitor que cabe ao terapeuta de linguagem implica poder movimentar
algo que desde sua repetição não tem possibilidades de deslocamento. É
justamente uma leitura que propicia a construção de novas redes de significação
para um dizer que soa como “não-comunicante” que pode provocar uma ruptura
na insistência do sintoma. E essa possibilidade de escapar da repetição
sintomática necessariamente passa pela brecha da enunciação.
Dizemos que o ato implica um começo. Essa característica dá ao ato a
impressão de criação, de algo novo. É também nesse sentido que proponho
pensar o sintoma de linguagem como ato, como ato criativo. Se a clínica de
linguagem se permitir tomar o sintoma pelo viés dessa impressão de criação, na
qual o sintoma aproxima-se da estrutura de funcionamento de outras subversões
da linguagem (como o chiste ou o ato falho), acredito que o encaminhamento do
trabalho clínico nesse campo possa se desenvolver de forma bem mais próxima
daquela do dia-a-dia ou da fala cotidiana dos pacientes, que também estão por
aí produzindo seus atos falhos sem terem a chance de serem tomados como
produções bem sucedidas. O que irrompe de novo na fala do paciente tem lógica
própria, que merece ser analisada e abordada por um viés que considere esse
material discursivo como combinação singular bastante peculiar, aquela que
está sendo possível para aquele sujeito, naquele momento, mesmo tendo como
pano de fundo a regularidade do funcionamento da língua. O que se está a
propor aqui é a tomada do sintoma de linguagem como uma combinação singular,
que se considerada como ato criativo (e não como puro “erro”), pode proporcionar
alternativas bastante originais para a fala dos pacientes em atendimento.
Qual então o papel do terapeuta de linguagem? Também será na via freudo-
lacaniana que inicio uma resposta. Como tentei ilustrar, Freud (e Lacan, em sua
releitura), em Interpretação dos sonhos ([1900] 1981) Psicopatologia da vida
cotidiana (1901[1981]) e O chiste e sua relação com o inconsciente (1905 [1981]),
apresenta múltiplos exemplos em que o lapso e o chiste passam a ter uma
leitura possível através do Outro, que escuta e reconhece aquela formação
linguageira como tendo um sentido possível. Possível, apesar de infringir, violar
201
Luiza Milano Surreaux
a ordem prevista pelo código. Acredito que é de um lugar semelhante a esse que
se trata a posição de escuta do terapeuta de linguagem. Ele seria aquele que
escuta a produção criativa de seu paciente desde um lugar de suporte. Mas aqui
entra em cena uma especificidade da escuta na clínica de linguagem. A noção
de suporte é por mim aqui sugerida nas suas duas conotações, muito próprias
à clínica de linguagem. Por um lado, o terapeuta sustenta aquela fala subversiva
para reconhecer em seu paciente um falante, ou seja, imaginariza um lugar de
falante para aquele que vem sendo considerado não falante (ou mau falante),
criando um contexto em que se considera o paciente como um par em posição
de enunciação. Nesse sentido, a noção de suporte está fortemente ancorada no
respaldo linguístico que o clínico deve ter. Para que ouse atribuir a uma massa
amorfa de sons e sentidos a possbilidade de constituir signo linguístico, o
terapeuta de linguagem precisará mobilizar seu conhecimento acerca da estrutura
e do funcionamento da língua. A segunda conotação do termo aponta para o fato
de que o terapeuta de linguagem ao mesmo tempo suporta8, às vezes por muito
tempo, a repetição de uma fala sintomática até o momento em que o sujeito
dela conseguir se apropriar e produzir deslocamentos, fazendo uso criativo de
seu sintoma, ou seja, se permitir falar. E é dessa possibilidade de tomar o
sintoma como uma combinação singular, efetuando uma escuta que reconheça
e suporte o novo que brota na singularidade dessa fala que se ocupa o terapeuta
de linguagem.
REFERÊNCIAS
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GARCIA-ROZA, Alfredo. Introdução à metapsicologia freudiana – 1, Rio de Janeiro:
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LACAN, Jacques. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente [1957-1958].
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
______.Seminário 23 – O sinthoma (1975-1976). Mimeo.
8
O terapeuta de linguagem suporta o real que essa fala atualiza, ele suporta sua angústia.
202
202
202
Quando o sintoma é...
______ El seminario sobre La carta robada. In: ______. Escritos 2. Buenos Aires:
Siglo Veintiuno Ed, 1987.
POE, E.A. A carta roubada. In: ______. Histórias extraordinárias. São Paulo: Abril
Cultural, 1981.
QUINET, A. A descoberta do inconsciente – do desejo ao sintoma. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2000.
Recebido em 22/03/2012
Aceito em 06/05/2012
Revisado por Sandra D. Torossian
203
NORMAS PARA PUBLICAÇÃO
II DIREITOS AUTORAIS
A aprovação dos textos implica a permissão de publicação, sem ônus,
nesta Revista. O autor continuará a deter os direitos autorais para futuras publi-
cações.
IV REFERÊNCIAS E CITAÇÕES
No corpo do texto, a referência a autores deverá ser feita somente menci-
onando o sobrenome (em caixa baixa), acrescido do ano da obra. No caso de
autores cujo ano do texto é relevante, colocá-lo antes do ano da edição utiliza-
da.
Ex: Freud ([1914] 1981).
As citações textuais serão indicadas pelo uso de aspas duplas, acresci-
das dos seguintes dados, entre parênteses: autor, ano da edição, página.
V REFERÊNCIAS
Lista das obras referidas ou citadas no texto. Deve vir no final, em ordem
alfabética pelo último nome do autor, conforme os modelos abaixo:
OBRA NA TOTALIDADE
BLEICHMAR, Hugo. O narcisismo; estudo sobre a enunciação e a gra-
mática inconsciente. 2. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente
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PARTE DE OBRA
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CHAUI, Marilena. Laços do desejo. In: NOVAES, Adauto (Org). O desejo.
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FREUD, Sigmund. El “Moises” de Miguel Angel [1914]. In: ______. Obras
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ARTIGO DE PERIÓDICO
CHEMAMA, Roland. Onde se inventa o Brasil? Cadernos da APPOA,
Porto Alegre, n. 71, p. 12-20, ago. 1999.
HASSOUN, J. Os três tempos da constituição do inconsciente. Revista
da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, n. 14, p. 43-53, mar.
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ARTIGO DE JORNAL
CARLE, Ricardo. O homem inventou a identidade feminina. Entrevista
com Maria Rita Kehl. Zero Hora, Porto Alegre, 5 dez. 1998. Caderno Cultura,
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DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
KARAM, Henriete. Sensorialidade e liminaridade em “Ensaio sobre a
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DOCUMENTO ELETRÔNICO
VALENTE, Rubens. Governo reforça controle de psicocirurgias. Disponí-
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em: 25 fev. 2003.
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Data: ______/_____/2012
* O pagamento pode ser feito via depósito bancário no Banco Itaú, Bco. 341,
Ag. 0604, C/C 32910-2. O comprovante deve ser enviado por fax, juntamente
com o cupom, ou via correio, com cheque nominal à APPOA.