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BOUCHERON, Patrick - Por Uma História-Mundo PDF

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Coleçôo

HISTÓRIA & HISTORIOGRAFIA

Coordenação
Eliana de FreitasDutra

Patrick Boucheron
Nicolas Delalande

Por uma história-mundo

Tradução
Fernando Scheibe

Revisão técnica
Vera Chacham

autêntica
de France
0 2013 fresses Unhersitaires
SUMÁRIO
CÇyTSht 0 20tS Autêntica

Titub «Sinal: um

pela Autêntka Editora. Nenhuma parte desta publicaçao


Todos os óreitos
seja por meios mecânicos. eletrônicos, seja via cópia
poderá ser reproduzida.
preia da Editora.
xerográfica, sem a autorizaç&o

E
O entreter do mundo .
D' caECAo
h•ScflaJustina Patrick Boucheron
Lúcia Assumpçáo

Dás
Carol Oliveira A história redescoberta?
Wrrins Jacques Revel
Jairo Ahvarenga Fonseca
mzTO
D•oschi Um mundo de impérios. . . 29
Jane Burbanke FrederickCooper

A Inglaterra,a China e a Ra•oluçõoIndustrial . 39


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) ÉricMonnet
(Câmara Brasileira do Livro, SP. Brasil)

Patra O gosto pelo arquivo é poliglota


Pü uma história-mundo / Patrick Boucheron, Nicolas Delalande :
— 1. ed. —Belo Horizonte : Autentka Eútcya. 2015. Entrevistacorn Saniay Subrahmanyam
Titub «Sinal: AnneJulie Etter e Thomas Grillot
SBN 978-85-8217-512-2
1. rrnderna 2. HStoriografia - Euma - 1990- 3. Relaç6es culturais l. Holandeses e iavaneses, história de um enconfroincerto............55
Delalar±. II. Titub.
hilippe Minard
15.-02451 CDD-907

[r-dces para cathbgo sisternático: O tesouro dos Ephrussi


1. HStória e historiografia 907.2
Literaturae história conectada . .. 63
IvanJablonka

Bibliografia selecionada .. 72

GRUPOAUTÊNTICA Os autores. .. 79
Belo Horizonte São Paulo
Rua 981.80 andar . Funcmários Av. Paulista. 2.073, Conjunto Nacional,
30140-071 . Belo Horizonte . MG Horsa I . 230 andar. Conj. 2301 . Cerqueira
Tel.:(55 31) 3214 5700 César . 01311-940 . SSO Paulo . sp
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Televendas:0800 283 13 22
vw.w.grupcgutentKa.com.br
O entreter'do mundo
Patrick Boucheron

Que palavra mais bela emfrancês, mas tão modesta,


ou que recursomais belo de nossa língua, precisamente,
este verbo: "entre-ta". Ter o entre, ter pelo entre,
ter um pouco de entrenas mãos. O entreter
do mundo:
finalmente nos metemosaí.
FrançoisJullien, L'écart et l'entre. Leçon
inaugurale de Ia Chaire sur I'alterité
[O desvio e o entre. Aula inaugural
da Cátedra sobre alteridade],
Paris, Galilée, 2012, p. 65.

Metemo-nos aí finalmente? Essa é a fibula que tentam nos


vender hoje. Como todos os produtos do storytellinghistoriográfico,
ela é a um só tempo convincente e inexata. Resumindo o argu-
mento: os historiadores franceses teriam perdido a virada global
impulsionada por pioneiros americanos no início dos anos 1980,
no momento em que se reformulava a ordem do mundo. Atolados
nas querelas de herança suscitadas pelo embaraçoso legado braude-
liano, extraviados pelas sereias da microstoriaque fazia a história em
migalhas, incapazes de se dar conta do quanto a França encolhera,
transformada em potência mediana da historiografia, exportando
sua Frendi Theory como outros exportam conhaque ou bolsas (ou
seja, como um produto dé luxo para elites mundializadas),deixa-
vam, tolamente, de responder ao chamado da WorldHistory.Daí
o encadeamento habitual das reações que seguem toda abstenção

Em francês. entretien:manutenção.
conservação. mas também conversa. entrevista... Optei pela
substantivação do verbo "entreter" para manter o jogo com o prefixo "entre". IN.T.I

7
09*"-"••

—tive•nostoda a razio cni resistir


volnntstia:pritneiro a denegaçao fingem às vezes, por hábito ou cálculo, referir-se polidamente aos
historiográfica hegetnónica que, depois
coni valentia a essa onda historiadores da velha Europa, decerto rúo é com que querem
continuidade à Guerra Fria por outros
dos AtlanticStudies,dava travar os debates decisivos, e sim com seus interlocutores asiáticos
recuperc•nos logo o tClnpo perdido c
nw•ios;a seguir, o reni0tso: c, em breve, latino-americanos —o desafio sendo. claro está, o de
uvrld historiadores, conl a
sejantos todos, total e itnediatatnente, aplicar ao mundo inteiro as classificaçõesda dominação económica,
convertidos.
jovial energia dos novos partilhando a liderança entre grandes potências e emergentes. E caso
Há várias tnaneiras de nuançar, c até de refutar, essa Inaneira se trate —terceiro argumento —de se interessar, apesar de tudo, pela
evidentctnentc nutna visão
de apresentaras coisas, que repousa historiografia de língua francesa (o que faremosaqui. sem ilusão
fantasiosadas relaçàes de força historiográficas entre os dois la- excessivanem complexo de inferioridade).poderíamosmuito bem
dos do Atlântico. Contentetno-nos aqui cotn três arguntcntos. O produzir ulna contranarrativa tio convincente, mas tambémtão
primeiro consiste enl recordar que, por utna ignorância que foi itnprecisa, quanto aquela que se impõe hoje. Mostraríamos então
inicialtnente militante, antes de se tornar consentida, atribui-se à que, desde a fundação em 1953,por Lucien Febvre,sob a égide da
IVorIdHistoryutna coerência, utna influência e utna inventividade UNESCO, dos Cahiersd'HistoireMondiale[Cadernosde História
que ela provaveltnente não possui nas universidades atnericanas. Mundial), até hoje, passando pelo esforço contínuo. obstinado e,
Coerência: convém dizer, de unia vez por todas, que a Global etn grande parte, ignorado dos especialistasdas áreasculturais.a
Hisrorye as Connetred Histories,por exenlplo, não têtn quase nada historiografia francesa nunca deixou de lidar com o mundo —como
em cotnum do ponto de vista metodolÓgico ou epistetnológico; a escala de compreensão ou como objeto dc análise.
primeira costutna propor uma grande narrativa, de longa duração e Os textos que compõem este pequeno volume contam, por-
cobrindovastosespaços,sobrefenôtnenosmuito gerais,agenciando tanto, tuna história (o surgimento da WorldHistoryna historiografia
informações heterogéneas, ao passo que as "histórias conectadas" re- francesa como uma divina surpresa),ao mesmo tempo em que
pousam na ex•ploraçãointensiva de çecursos arquivísticos locais para sugeretn alguns meios de superá-la. Não proporemos nesta breve
abordarde perto as interações sociais. Influência: se, ao contrário introdução um balanço historiográfico sobre a história mundial:
do que acontece na França e em boa parte da Europa, existem nos já existem muitos deles, eruditos e exaustivos.'É. aliás. uma das
EstadosUnidos programas,cursos e cátedras de história mundial, especificidadesda recepção francesada WorldHistorya de ter se
estasrepresentam apenas uma ínfima parcela da história lá ensina- colocado logo de saída no terreno epistemológico. Esse género
da.l Inventividade:ela constitui ulna corrente de estudo bastante florescente está longe de se esgotar, afinal, nada mais lisonjeiro para
consensual,em todo caso mais convencional do que se imagina, a corporação historiadora do que se deliciasdas suti-
e que só concerne marginalmente aos historiadores—já que seus lezas classificatórias: os historiadores continuarão ainda por muito
primeiros promotores foram principalmente os cientistas políticos, tempo dissertando sobre as etiquetas, perguntando-se o que está
os economistas ou os demógrafos.2 0 segundo argumento fere o mais para global ou para mundial, para conectado ou para com—
orgulho nacional: se os especialistas nessas disciplinas mundializadas parado, subalterno ou pós-colonial —para nio falar da Big History
(CHRISTIAN, 2004) e da Deep History (SHYROCX: SMAU, 2012) dos
campiamericanos. sempre na frente na corrida para a generalização.
p, 14). dos de professores de
transnacionais- O zutM um balat80
s.iru.çio emxu artigo. cita", Ver,
2 Ver. Bertrand (2010).
e e

8 9
arte de execuçao, que nio pode se
No entanto, a história é uma bastantecorriqueiro do ponto de vista do método histórico —
progratnas e procl;unaçóes. do
satisfazerpor Inuito teniP0 cotn descentratncnto do olhar e da necessidadede abordara história do
Pode'nos aliás nos perguntar, coni Serge Gruzinski (2011). a lnundo variando os pontos dc vista c sc desfazendodo eurocentris-
experilnentaçao historiográfi.
reflexio episteinológicanao encobriu a que pretende senipre subsujni-los implicitamente,encontrava
acontecido seria hoje paradoxal.
ca, Prossegui-lacotuo se nada tivesse
coisa aconteceu nos óltúnos três ou
pois é bem verdade que algutna N;io é Inuito dificil reconstituir as razões pelas quais essa
quarto anos, graçasà coincidência—enl grande parte casual—dc "inquietude de estar no Inundo", cotno poetisa Catnillc de Toledo
experituentaçbeshistoriográficas.iniciativas editoriais e traduçóes, (2012, p. '15), podia ser— c é ainda —sentida com canta intensidade."
tendo esse cotliunto encontrado, ao que tudo indica, certo sucesso de Í', que essa inquietude é dc natureza essencialtnentcpolítica. Por
públicoe crítica.a Sem ter pretneditado neto teorizado isso. o autor isso só pode suscitar, colljunta e contraditoriamente,um duplo
dessaslinhas contribuiu ni0destamentc para tanto. Assitn sendo, cnovitnento dc regressão c dc evasJo. primeiro remete os histo-
nio se encontraetn posiçaoadequada para ser o analista Inais lúcido riadorcs a seu papel social acadctnicamente instituído. que consiste
desseprocesso. Ele o tentará de qualquer jeito. coni objetivos beni tranquilizar aqueles que os lectn e os escutam quanto solidez
designaro tempo breve da conjuntura historiográfica
delitnitados,i e a perenidade de suas tradiçbcs, dc suas raizcs, cm suma, de suas
que, desde 2009. aproxitnadatnente, parece propor ao póblico tuna pequenas parcelas dc identidade. O segundo sc recusa a sc satisfazer
novanuncira de se entreterconi o Inundo. cotn isso, considerando, ao contrário, que a história deve scr hoje o
saber da indetenninaç.io dos tctnpos, que consiste etn desestabilizar
Brovo história do uma iniunçào moral pacienteinetitc todas as nossascertezas, l)csse "entretempo" em que
vivctnos, pode-se dizer, dependendo do hutnor. que é desesperado
"A grande descoberta das 'Grandes Descobertas' poderia tnuito e alegre. l)cpcndendo do hutnor, ou das cscalas:a história global o
bem ser essesentitnento paradoxal. alojado no coração da consciên- julgaria, de tnuito longe, medonhamente convencional, e cle dc fato
cia ocidental:o de que os próprios ocidentais são os bárbaros do o é. globabnente;as histórias conectadas descobririam a crepitação
mundo":atribuindo por engano essacitação de L'histoiredl' 'nonde dos curtos-circuitos que, discreta, local c fugazmente,fazem-no,
dli XI"' siêcleIA história do Inundo no século XVI ao historiador apesar dc tudo, tão inventivo.'
bengaliDipesh Chakrabarty, cujo vigoroso tnanifesto Pmvincializar E ainda que seja custoso voltar hoje a debates cuja principal ca-
a Europaas Edições Arnsterdam acabavatn dc traduzir, o jornalista racterísticaé a de ter feito tanta gente perder tanto tempo, devemos
que estavaresenhando a publicação simultânea de anibos os livros Ictnbrarque 2009 foio ano em que os historiadoresforamintimados
na revistaScicncesH:onaincs(2010), sob o título geral "Décentrcr Ic pelo governo a tnontar guarda na fronteiraa fim de consolidara
regard" [Descentrar o olhar], cometia uni divertido lapso, muito "identidade nacional", fazendo penetrar ali cada vez mais fundo
reveladordas condições de recepção cotnuns a esses dois livros essas famosas "raízes" que se desejavam cristãs. Alguns sentiram
que, precisamente.nada têm em comum, afora a coincidência dc tamanha aversão a isso que chegaram a colocar em dúvida a própria
terem sido publicados eni Outubro de 2009. 5 0 tema —na verdade
"Ê nesc pé que estamos. depois do século vinte. A Europa se gaba de ter vergonha. / Tanto
begaba / que 'e indigna dc
no finaldestrvolumeumabibliografiacomentadadasobrasrecentementepubli-
Encontra-se po.&r, ainda uma vez, universalizar sua vergonha."
adas em lingua francesa discutidas aqui. É também disso que se trata em Patrick Boucheron (2012a; 2012b). que. nata perspectiva. pode
para esclarecerque essacitaçio. extraída da introduçio geral da obra
Aproveitamos ser lido como o livrinho companheiro daquele de Camille Toledo. citado na nota precedente.
(BOUCHERON. 2009. p. 29) remete a seu epílogo, da lavra dc Jean -Frédéric Schaub (2009). Ma. ver. sobretudo. George. Didi-Hubertnan (2009).

10
decerto, era
legitimidade um método, esse livro só podia ser recebido como o método de uma
sabe, um dos efeitos mais perniciosos das
excesswo,mas, como se moral: a de um comércio historiográfico equitativo. Provavelmente
em falsos preceitos costuma ser o de
pólêmicasinúteis fundadas foi daí que surgiram novos mal-entendidos: acusava-se (ou louva-
são atacados a defenderem posições igualmente
obrigar aqueles que va-se) seu autor de ter tomado o partido do estrangeiroquando
clima geral de exasperação social, a ir- ele
absurdas:Em suma, nesse apenas apostara na estranheza. Uma aposta essencialmente
abertas, que deslocavam os horizontes e narrativa,
rupçãô de histórias mais consistindo em tentar uma experiência de escrita da qual se
acadêmicas, podia ser vista, senão como esperam
desentravavamas tradições ganhos de conhecimento, e não uma reparação moral qualquer
face
uma_oportunaguinada, ao menos como um bem-vindo refresco. a sociedades humanas às quais foi por tanto tempo negado o direito
Já era alguma coisa: finalmente alguém nos falava um pouco de de ter acesso à sua própria historicidade.
(e, afinal, benéfico) que o alcance
outras coisas.Assim, era inevitável Por todas essas razões, o livro de Romain Bertrand poderia
de algumas dessas experimentações historiográficas ultrapassasse as entrar na categoria americana dosfeel-goodbooks.Mas, se ele fez
intençõesde seuspromotores. E que textos inicialmente motivados bem a muitos de seus leitores, foi decerto menos pela veemência de
apenaspor um desejo de saber, um impulso de curiosidade, uma sede suas declarações teóricas do que pela sutileza de seus procedimen-
de leituras e de narrativas, o simples prazer de ir lá ver, fossem lidos tos narrativos. Sutilezaa que se opõe o caráterberrantedo título,
como manifestospolíticos mais fortemente engajados do que realmente espalhafatosocomo um slogan. Um slogan e, em pouco tempo,
eram. Foi decerto pelas mesmas razões que se atribuíram uma unidade um remorso para todos aqueles que não teriam nem os meios lin-
e uma coerência factícias a atitudes distintas, concedendo generosa- guísticos,nem o tempo disponível,nem simplesmentea ambição
mente atestadosde desocidentalização do olhar a histórias globais que, ou a vontade de se consagrar a um programa de pesquisa de ta-
como ocorre muitas vezes, satisfazem-se muito bem com uma sólida manha exigência. Esse é o reverso das medalhas historiográficas,
narrativa europeia de robustez bem confirmada. Midiaticamente, sobretudo quando recompensam méritosque somos logo tentados
portanto, organizou-se, durante os anos 2010 e 2()11, um debate entre a traduzir em termos éticos. Elas designam êxitos individuais que,
obras que-o acasoxelativodas traduções e das iniciativas editoriais fazia
se não tomamos cuidado, rapidamente suscitam o temor de fra-
cassos coletivos. "Seria razoável acreditar-se sozinho no
aparecerao mesmo tempo, e cuja diversidade de métodos e abordagens
Obvio que não. Então, como escapardisso? A WorldHistory seria,
cobria o amplo espectro historiográfico que vai da história global mais
portanto, a história de que o mundo precisa hoje —um mundo
altaneiraàs histórias conectadas mais sutilmente situadas, passando por
mais aberto e mais tolerante, que os historiadores devem contribuir
toda a gama da história que se pode simplesmente chamar mundial. E
para tornar mais habitável. Se não o fazem, recusando-se a oferecer
foi evidentemente em pleno conhecimento dos termos desse debate
a globalização como horizonte e como esperança,obstinando-se
que Romain Bertrand intitulou, em 2()11, L'histoireà parts égales[A
laboriosamente em suas pequenas velharias obsoletas —digamos,
história em partes iguais], sua história dos primeiros contatos entre as histórias nacionais —então devem ao menos explicar por quê.9
holandesese javaneses no fim do século XVI.
É dificil não entender semelhante título como uma injunção
ética. Ele conclamava a sair do ponto de vista colonial e a aplicar às Trata-seda primeira fraseda introduçãogeralde PhilippeNorcl, LaurentTestote Vincent
sociedadesnão europeias uma igualdade de tratamento documental, Capdepuy."Pourquoi le monde a besoind'histoiresglobales••[Por que o mundo precisade
histórias globais) ao livro que recentemente coordenaram, Une histoimdu mondeglobal [Uma
a romper com a história masturbatória das conquistas e das agências história do mundo globall. 2012. p. 5-10.
comerciaismetropolitanas que projeta ao longe as tranquilizadoras Ver Martine van Ittersum e Jaap Jacobs (2012). Agradeço a Marguerite Martin, Zacharie
Mochtaride Pierrepont.Céline Paillcttee PhilippePétriat,organizadoresdo encontroda
similitudes de uma Europa sempre igual a si mesma. Narrativa de

13
12
O oagrt• DO

intimação provém das autoridades académicas causasjustas, Ora, a ideologia liberal mais comumente globalizada
Quando semelhante
caso, David Armitage, professor da Universidade faz do objcto "mundo conectado" —ou seja, do fato de que o globo
mais legítimas (no
explicita, no mínimo, o fato dc que a WorldHistory terrestre se tornou o espaço de transaçio da humanidade inteira e ao
de Harvard), ela universitário anglo-americano (tnas também
se tornou, no mundo mesmo tempo uma comunidade de destino e de perigo —uma de
no Japão) uma das correntes historiográficas
na índia, na China e suas justas causas mais aptas a provocar emoçócs políticas. Sc a World
mais solidamente
estabelecidas. History—ou a história conectada que constitui uma de suas expressões
meio paradoxal o fato
Compreende-se melhor então que seja mais facilmente assimiláveis pela historiografia francesa—atribui-se
a utilizarem, especialmente na frança por objeto unicamente o desenclausuramento do mundo, sem levar
de alguns franco-atiradorcs em breve
Alemanha, na Itália e na América La- cm conta aquilo que Sanjay Subrahmanyam nomeia as formas de
(mas também na
instrumento crítico e necessariamente niinoritário comensurabilidade que complicam e tornam seu curso conflituoso,
tina), como um
Ora, é precisamente esse paradoxo que ela acabadando continuidade, de certa maneira, ao sonho de uma
da inovação historiográfica,
Assim, devemos cuidar para que, de história universal. Pois esta sempre heroiciza a aventura global de
carrega uma energia criativa.
tácito, a história conectada não apareça um grande princípio indiscutido (POMIAN,2009).
um modo mais discreto e
obrigação moral para historiadores que Orientando de maneira unívoca a grande narrativa da abertura
daqui em diante como uma
não praticarem a história em partes iguais, do mundo e escolhendo se interessar apenas pelas trocas e cone-
teriam de se desculpar por
competências. Tudo muito corriqueiro, no xóes, corre-se o risco de produzir um discurso que provavelmente
por falta de fontes ou de
historiográficas liberam aqueles que parecerá aos olhos dos historiadores futuros tio ideológico (pois
final das contas: se as inovações
académicos de que esperavam se desfazer, tão teleológico) quanto aquele da invenção das tradições nacionais
as inventam dos pesos destinadas a fortificar o espírito patriótico —ou da defesa e ilustra-
sempre mais rápido do que se
elas podem também facilmente, e ção de uma história europeia capaz de construir o sentimento de
tacanhas, assim que seu sucesso
itnagina, coagular-se em nortnas pertencimento comunitário.10A mundialização não diz tudo do
necessárias —à grande maioria.
as torna desejáveis—portanto, mundo: por isso é que a história das antimundializaçóes faz parte
do programa da WorldHistory.seja lá como se queira chamá-la: ela
Uma históriaglobal não globalizante consiste em compreender como as sociedades humanas produzem
só tempo um processohis-
A mundialização, sabe-se. é a um alteridade com a distância, hostilidade com a alteridade e identidade
justifica. Mas esse discurso,
tórico e o discurso que o acompanha e com a hostilidade. É por isso também que trabalhos recentes. ver-
sob os véusde uma sando, por exemplo, sobre as diásporas mercantis na época moderna,
justificando o processo, o oculta em grande parte
pode sc iludir quanto a isto: o trabalho forçado no século XIX ou o estatuto dos migrantes e
ideologia dctnasiado lisonjeira. Ninguéni
cm sua direção com a dos refugiados políticos no século XX, ao mesmo tempo em que
o historiador se apossade objetos que avançam
e, a partir daí, estarásem- dão voz aos "subalternos", conseguem propor uma história global
auréola das condições morais de seu tempo pelas
do método com o amor não globalizante." Inovações historiográficas minoritárias que, vale
pre inclinado a confundir as exigências
repetir, situam-se na contracorrente da mainstreamacadêmica, que.

de Sorbonnedi
Panthéon
de 1a Ver • esse respeito Schaub (2008).
de. em 17de novembrode2012, "À do peso
I que.na referida permitiram-metomar Vet. reggctivamcnte. Francesca TtivcllitO (2009); Alessandro Suntuni (2010); Sabine Dullin
da e Pierre (2012).
historiográficos
da. esperançasc entusiasmosque essesnovos horizontes
15
massivamente a propor a narrativa vaga e
por suavez, continua intangíveis pela santíssima divisão dos quatro períodos históricos,
longo curso, que, vista muito de cima e
docutnentadade trocasde resistiatnali ainda mais do que no ensino médio.
demais. nada pode ensinar sobre a verdadeira
em períodos longos Recentetncnte, algutnas tímidas incursõesdosprogramas
essa corrente dominante, defendendo uma esco-
vidadassociedades.Pois laresnutnahistórianão exclusivamente europeiaprovocaramuma
do mundo, que a historiografia há
visãoestritamenteeconotnicista campanha de opinião barulhenta e coordenadacuja agressividade
utna história com letra maiúscula,
muito temporefutou. produz ideológica surpreendeu aquelesque acreditavam. imprudentemente,
no
em que o devir humano é apreendido "mais ou tnenos isso" viver num mundo felizmenteconectado.Contrapor-sea ela é uma
majestoso das grandes categorias intangíveis. Acima de tudo, ela se necessidade, menos para exagerar o alcance epistetnológico desses
contrapõeà maior parte das exigências metodológicas de uma his- ataques do que para denunciar a ignorância absoluta, e absolutamen-
seus procedimentos,
tória hoje preocupadaem exibir suas dúvidas e te voluntária, das realidades humanas da escola, que ela exprime e
pelo menos no domínio da administração da prova, impossível de corrobora. As crianças das escolasda França ficariam desorientadas
estabelecerem semelhante nível de generalidade. por lhes ensinaretn a glória de Monomotapaem vez da gesta de
Nio há dúvida:os bons sentimentos nem sempre fazem os bons Clovis? Pura paranoia, decerto, que não se tornará verdadesó por
livros de História. Mas tampouco se pode ignorar completamente ser repetida. mas que vale a pena escutar por aquilo que revela:a
o fato de que maus pensamentos também inspiram maus livros. afirmação descarada de uma ideologia aberta, simples e propria-
Decerto,os historiadores têm todo direito de criticar as impreci- mente xenófoba. E que não se tome por um malfadadoacasoo
sõesda grande narrativa irenista proposta por Jerry Brotton em seu fato de que os turiferários de uma história da França reconduzida à
Bazar do Renascimento,recentemente traduzido para o francês; ou pureza de suas origens tornem sistematicamente na Africa negra os
exemplos dos (tão raros) contrapontos pedagógicos que extraviam
de se perguntarem se é realmente pertinente ir como Jack Goody
nossasqueridas cabecinhas loiras longe demais da linhagem dos
procurar"Renascenças"no Irã safivida ou na India mugal, posto
reis: o que causa problema não é nem Pequim. nem Angkor, nem
que o termo "Renascença" não designa nada além do exorbitante
Tenochtidán, mas Tombuctu.12
privilégio da Europa quando ela pretende reservar para si seu uso
Acreditar que a mestiçagem é um valor positivo aceito por
exclusivo (BROTTON,2002; GOODY,2010). Resta que as apostas todos pelo motivo de que muitos pesquisadoresem ciências hu-
politicasda promoção de uma história de horizontes ampliados se manas utilizam-na generosa e repetidamenteé se deixar vitimar
situamclaramenteno domínio pedagógiço. A criação em 1990do pelo enclausuramentoescolástico.Quem não vê, pelo contrário,
do
Joumal of WorldHistoryjá se inscrevia no horizonte profissional que a narrativa huntingtoniana sobre o-choque das civilizações
ensinomédio e, se a história mundial faz parte hoje do ciclo bási- tem um futuro promissor,inclusiveno mundo acadêmico?Afinal,
co de disciplinasde muitas universidades americanas, isso se deve Jean-Michel Sallmann (2011)apoia-se explicitamente nela em seu
talvezà persistênciade certa ambição imperial de assumir, a partir A Grandeaberturado mlittdo,atribuindo-se também explicitamente
do seu centro, a totalidade da história do mundo, mas, sobretudo,
ensino
provavelmente,à preocupação de adaptar os conteúdos de Luísdesapareceuda narrativada históriada frança. tranquilos:cm
Desse
à internacionalizaçãocada vez maior do público estudantil. lugar. o' alunos poderio descobnr quem era Kanku Mussi. imperador do Mali¯ (BRO-
universi- CARD. 2012).Serápreciso que se trutade um muçulmano?Esse do
ponto de vista, a obstinação conservadora do mundo Mali (nomeadoem reatuhde no AriasCat"n com
tário francêsé admirável —ela já tinha sido, aliás, precocemente os da w-beranu(coroa,cetroe dc ouro a. mio) ficoucélebreporsuaviagemao
apon-
denunciadapor Catherine Coquery-Vidrovitch (1999),que
Cairo, no camiNw dc sua pcrrgnn.çio aos lugares santos e congruir numcr-mas

tornados mesquitasem Tombuctu.Ver 3).


tavao quanto os velhos quadros das histórias nacionais,
17
desculpabilização do Ocidentc.13 Ao
por objetivo trabalhar para a
inodernidadc e de itnpério, como o faz, por exemplo, Alessandro
menos as intenções ideológicas são aqui expostas com clareza. em-
Stanziani, quando descentra sua narrativa situando-a no coraçãoda
bora se possapensar que a questio printordial nessa historiografia Mongólia onde, etn 3 dc setetnbro de 1689.durante a batalhade
da ocidentalização do mundo no século XVI é Inenos tuna tomada Ulan Butong, etn que os exércitosmanchusdo imperadorKangxi
de posição política que uma linha de defesa historiográfica. Pois o enfrentatn os dzungars do Kan Galdan. decide-seo destino dos três
que é preciso acima de tudo defender, do ponto de vista de muitos impérios eurasiáticos: chinês, russo e indiano. O "modelo europeu".
historiadoresque têm dificuldade de se desfazer dos feitiços obs- nesse caso, nio constitui unt termo pertinente da comparaçãodos
tinados das "Grandes descobertas" que dão à luz a modernidade "estepes como laboratórios políticos" (STANZIANI,2012).
ocidental, é a dignidade do império e, mais particularmente, a Esse tipo de experitnentaçio historiográfica tem o mérito dc
dignidade do império ibérico, e, mais particularmente ainda, a perturbar o cara a cara obstinado da comparaçãocivilizacional
dignidade do império ibérico moderno. China/ Europa. que foi uma das grandes obsessões da historiografia
francesa nos tempos heroicos de Fernand Braudel e Pierre Chaunu,
Mundo, modemidade: o império desconcertado e que as inquietudes contemporâneas suscitadas pelo crescimento
económicoda China como grandeoficinado mundonaturahnente
Modernidade: a palavra é vaga. Num dos artigos fundadores do reativatn hoje. Por que a Revolução Industrial fez o sul da Inglaterra
método da história conectada, em que tentava categorizar o Early decolar c não o delta do Yangzi? Pergunta-seKenneth Pomeranz
ModemPeriod[início do período moderno] na escala do continen- em The Great Divergente [A grandedivcrgéncia,20131traduzido eni
te eurasiático, Sanjay Subrahmanyam (1997) apontava claramente francês em 2010, demonstrando de passage:no quanto a história
para a relação estreita que a historiografia estabeleceentre a ideia contrafatual (no sentido da IV/tatifHistory) é u:na das expressões da
de modernidade e a de império de vocação universal. Romper hoje busca por cientificidade de uma história económica modelizadaque
em
com a necessidadedesse nó não é tão fácil, enquanto se observa manipula as variáveis dc suas equações. E por que os conquistadores
algunspesquisadoresuma perturbadoracrispaçãoidentitáriaem torno de Hernán Cortês conseguiram conquistaro itnpério asteca cm
desse recorte do tempo cujo artificio académico não precisa mais 1520, enquanto os portugueses de Tonté Pires fracassava:n,no ano
acepção seguinte, a partir de Malaca, em vencer o império chinês? O que se
ser demonstrado, mas que se coagula mesmo assim numa
Prodi (2012, decide aí nio é nada menos do que a invenção do Ocidente, já que
do moderno compreendida, por exemplo, por Paolo
p. 24) "como característicada civilização do Ocidente
considerada "a i:nensidio incontrolável do Pacífico, a impossibilidade de tomar
Decerto, posse da China e de colonizar a Ásia obrigarão a se concentrar no
como uma mutação e como uma revolução continuada".t4
faz-se necessário então deslocar, no mesmo impulso. as noções de Novo Mundo e a separá-lo do resto das índias" (GRUZINSKI. 2012,
p. 412). Resta que, aí também. semelhante fibula acarreta o risco
de desviar o olhar do essencial:pois, no século XVI, é o império
"O ocidente n'O precisa corar por seus *tos nem apresentar
desculpas 'o mundo inteiro pelos
neces"ria
otomano que constitui a grande potência da rnodernidadc—e se a
de analisá-lo' com
errosque pôde cometerao longo de sua história. Ele é
da parte daqueles cuja historiografia ainda tem tanta dificuldade cm admiti-lo é porque
lucidei. Mas n 10 deve dar l•çóes de rnoral, t unpmK0 deve
história n.d. tem dc mii' edificante. Deve simplesmente sc render evidência de que o mundo o que está etn jogo aí não é outra coisa$•nãoa dificuldadecres-
agoramudou de considerar
nuncaserái suaimageme dc que arrogánciadc que foi unta. veres cente e inconfessável, para as sociedades ocidentais,
do Inundo
o islã como uma potência histórica de Inodernização
ampo" (p. 651).
por Pierre
NSimétrica.nus igualmentesurpreendente,é. por exemplo.ena definiçaoarriscada relação com a
Serna: "O periodo moderno é hi'tbria de uma Revoluçlo permanente tanto quanto história
(BOTTGEN, 2009). Deslocar, tornar estranha. nossa
d. do. Estado,"(CHAPPEY .1..2012. p. 27).
19
18
mas também desconcertá—la.deúsarxb sua crono-
bgia e cmn a variabilida& suas temporalidades. Foi
esx um autores de L'histoiredu mon&
[A kistáü do m.un4 sáulo XI•I, cuja arquitetura
no A hisbria redescoberta?)
ccx$unto inspirava numa tripla renúncia: à separação clara
us civihações. à long duração e à grande narrativa- Semelhante JaquesRoel
escrita decerto se revelava adequada ao histórico
que se tratava focar —para sua modernidade- Mas não
po&ri.a ser xm exclusiva nem prescritiva- Alguns se apoderarão
da Woru para reativar o sonho braudeliano da personali—
em longuissima duração,1Soutros, ao contrário,
verão aia cportunidade de se aproximar dos rostos e das paisagens Como se pode pensar,como se pode escreverbc8e
l' Quer uma higória
de hiórias singulares, aceitando o desafio da miaostoria. à escab do mundo? A questão foi colocada com
insistência desde os
dizer enEo gue tudo é permitido? Certamente não, e, decerto, anos 1980,e o foi, é claro, sobre um fundo de mundializção
(ou
há de vir o temp ern que essa proliferação de experimentações de globalização).Bem no momento em que o programa de
uma
contraditórias, na qual convivem lado a lado o mais convencional história global se inscrevia na ordem do dia, tornavam-seclaras
e o mais aventuroso, deverá ser podada, ou ao menos disciplinada. as dificuldades de sua execução. Por certo, não se esFrou essa
Mas qual seria, no frndo, o interesse de uma história mundial ocasiãopara denunciaros limites de uma história escritadentro
ou seja, fixada num território específico de do quadro tradicional do Estado-na#o. Sem maior3 dificuldades.
peguisa? Afinal. o mundo não é um objeto tão grande assim —pois, podia-se chegar também a um acordo sobre a necessidadede uma
se ele &signa não o que engloba abstratamente a história abordagem comparativa (que, deve—sereconhecer, permanece mais
humana em sua totalidade, e sim o mais alto grau de espaço parti— reivindicada do que praticada)- Também não era dificil chegar a um
lhado pelas sociedades humanas num dado momento, ele concerne entendimento sobre a necessidadede reunir e colocar à disposição
apenas, à exceção do ultracontemporãneo, a um pequeno mundo de dos pesquisadores informações que permitissem uma perspectiva
atores- Afinal, para a maioria dos seres humanos da Terra, por muito "transnacional", "global" ou "mundial": revistas,sitese redes foram
tempo, pouco importava que o mundo existisse. Ele existe hoje, e criados e não pararam de se multiplicar nos últimos trinta anos.
é por que coloca à prova a história inteira, em sua capacidade Mas a coisa não parou por aí Em sintonia com essa "mudança de
de narrativizar as texturas do tempo —ou seja, fundamentalmente, escala historiográfica", foram formuladas proposições sobre quadros
ern sua dimensão literária. Mas nada de pânico: a história-mundo de análise e maneiras de fizer: ConnectedHistory,SharedHistory,
não será uma história-monstro, voraz e devoradora. Pois só terá histoirescroisées.Ainda que essas abordagens tenham em comum a
valor se desdenhar a ilusão do todo e, pelo contrário, abrir todo insistência sobre as circulações, os contatos e suas modalidades. elas
um mundo de histórias. Ela saberá se manter, no entrelugar das não são idênticas nem em seus pressupostosnem em seus prgecos
línguas, manter-se para interagir com o mundo.
Uma Fimeira dege artigo pH'c.d.ana rc•vtgaL' luo IAVu das
em26 abril 2011. a uma da"a
a (2010). A
Va o COI2).
Va e Triven.*o D.

21
umas às outras.
—evitaremos,portanto, reduzi-las abusivamente rnaioresnomes, e precisamenteaquelescujos vastostrabalhosde-
proposições
Aindamais que a multiplicaçãorecente das remete em
veriam colocar ao abrigo de semelhante questionamento: Fernand
grande parte às nossas próprias incertezas sobre os contornos e a Braudel,o historiadordo Mediterrâneoe do capitalismomundial;
significaçãoda mundialização contemporânea. o sociólogo Norbert Elias (e, no plano de fundo de sua leitura do
É, de certamaneira,a montante e ao lado dos debatesatuais "processocivilizatório", Max Weber);o historiador da ciência
que devemossituar o último livro de Jack Goody traduzido para chinesaJoseph Needham; o historiador da Antiguidade Moses
o francês.O decano dos antropólogosbritânicos está longe de ser Finley, ou ainda o teórico Perry Anderson —para citar apenas os
um desconhecidopara os historiadores, com os quais nunca ces- mais notáveis. O que Goody censura nesseshomens cujo trabalho
sou de estabelecerlaços e colaborações nos últimos quarenta anos. reconheceadmirar e que partilham com ele o gosto pelas pers-
Professorem Cambridge, ele é o autor de uma obra imponente e, pectivas amplas e pelas comparações em grande escala? Terem, de
em grande parte, traduzida para o francês. Depois de seus primei- uma maneira ou de outra, colaborado para a grande narrativa que
ros trabalhosde campo como africanista,nos anos 1950, deixou faz da experiência histórica da Europa a uma só vez uma exceção
clara sua preferência por vastos empreendimentos comparatistas e a medida da história do resto do mundo —e terem, no mesmo
em grande escala,consagrados,entre outros temas, à análise das gesto, privado o resto do mundo de sua própria história. Essa é a
consequênciascognitivasda incorporaçãoda escrita e das formasde tese central, incessantemente martelada, do livro.
racionalidade,ao estudodos sistemasfamiliarese de suasdinâmicas, Não entraremos aqui no detalhe de uma demonstração apoia-
mas tambémà culinária e ao cultivo das flores. Seu itinerário é da sobre imensasleiturasde todosos tipos.Vamosnos concentrar
balizadopor diversoslivros,entre os quaismuitos se tornaram clás- apenas na argumentação em torno da qual ela se organiza. Podemos
sicos.Goody é um amante da grande-angular. Sem jamais perder ser tentadosa não ver aí, de partida, maisque uma retomadade um
de vista suas primeiras referências africanas (os LoDagaa do norte gênero já bem conhecido, a crítica ao eurocentrismo e aos efeitos
de Gana continuam a ser evocadosde maneira recorrente em suas que ele continua a produzir. Os estudos pós-coloniais, os Subaltern
análises),deslocou-se para a Asia, principalmente para a China e Studiese outros ainda nos intimaram a "provincializara Europa",
para a Índia e, em menor grau, para o Japão. E é essencialmente a a deslocar, descentrar o olhar que lançamos ao mundo, de maneira
a fazer jus à multiplicidade de histórias que se inscreveram nele.2
partir da Asia, e de uma comparaçãoentre a Asia e a Europa, que
Mas, ao passo que essascorrentes historiográficas costumam colocar
denuncia aquilo que chama de "roubo da história", fórmula-choque
o acento na "diferença histórica" e na radical heterogeneidadedo
de queo subtítulofrancêsdo livro explicitao conteúdo:"Como
mundo, a posição de Goody é diametralmente inversa.Ele defende
a Europa impôsa narrativa de seu passadoao resto do mundo".
a tese de uma unidade fundamental das civilizações —pelo menos
aquelasdo conjunto eurasiático —a partir de uma base comum que
A unidadedas civilizações ele situa na idade do bronze, apoiando-seprincipalmentenos tra-
São, portanto, os historiadores e, por trás deles, uma poderosa balhos, recorrentemente evocados,do arqueólogo Gordon Childe,
tradição historiográfica ocidental na qual eles se inscrevem e que unidade mantida a longo prazo por um jogo de trocas que jamais
prolongam muitas vezes sem ter plena consciência disso, o objeto se interrompeu. A partir dessaexperiência partilhada, ocorreram,
da crítica cerrada e por vezes veemente de Jack Goody. E não foi
qualquerum que ele escolheucomo alvo de suas críticas: em vez Numa bibliografia que se tornou superabundante, a refcrência central aqui a de
de atacar o grosso da corporação, Goody escolheu alguns de seus Chakrabarty. psttolonialt et Ia historiqge (2000).

22 23
seio desse conjunto. Mas,
sem dúvida alguma, diferenciaçõesno perspectiva teleológica, ela a relê ao avesso. Ela escolheu
escandi-la
apesarde nada terem de unívocas—o Ocidente
conheceu severos
em função dos valores e das realizações que se tornaram as nossas
das civilizações
recuosem momentos de excepcionalflorescimento bastante tarde, e nas quais é ficil para ela identificar as promessas
orientais,existiramvários renascimentosnaquele e nestas essas daquilo que reivindica como seu destino particular. A crítica se
historiografia
diferençassempre foram lidas num só sentido por uma desdobra nesse ponto num nível duplo. O primeiro, que já en-
que se consagrou a demonstrar a excepcionalidade do Ocidente contramos, é o dos dados empíricos: para cada uma das aquisições
eurasiático.
em detrimento dos elementoscomuns ao conjunto que o Ocidente se compraz em considerarcomo propriedadesua,
Ora, para Goody, esseselementos constituem o essencial. Toda Goody dá um jeito de encontrar equivalências"orientais",ao menos
uma parte de sua análiseé, portanto, consagradaa mostrar que os aproximativas, para concluir daí que nada justifica as pretensões
traços e as aquisiçõessupostamente distintivos da experiência oci- europeias. Não entraremos aqui num debate que requer as compe-
dentaltiveramseusequivalentesno mundo oriental. O antropólogo tências de um especialista e que desejamosque ocorra —na verdade,
prolonga aí uma reflexãoque já encetara em várias de suas obras ele já começou a ser travado em diversas frentes. O segundo nível
precedentes, em particular em The East in the West [O Oriente no da crítica se situa em outro lugar: ele coloca em causa a própria
Ocidente],livro em que demonstravaque, em se tratando das formas natureza e a própria função da narrativahistórica que o Ocidente
da racionalidade, da organização das trocas ou da família, a Europa se esforçou por produzir e conseguiu impor ao resto do mundo: a
não podia reivindicar nenhuma diferença essencial em relação às narrativa de sua própria história e, inseparavelmente,de todas as
sociedadesorientais. A demonstração é retomada na última parte de outras. Contudo, a verdadeira diferenciação da história da Europa e
O rouboda históriae estendida a outros objetos: a cidade e as funções das extensões europeias é tardia: para o autor, ela só começou com
urbanas, as instituições de saber, a produção dos valores e mesmo aquilo que ele continua a chamar de "Renascimento", e prosseguiu
a dos afetos. Nem sempre essa demonstração é convincente. Mas a com a revolução científica do século XVII, as Luzes e a Revolução
linha geral é claramente traçada: durante muito tempo, a experiência Industrial. Foi então, e somente então, que o Ocidente garantiu sua
europeia nada produziu que justificasse a reivindicação para ela de supremacia e sua (provisória) dominação sobre o mundo. Mas esse
um estatuto à parte. Ela não poderia ser pensada nos termos de uma domínio foi redobrado e justificado pela invenção de uma narrativa
diferença radical. Ela propõe apenas variantes que podem e devem da modernidade triunfante, identificadacom sua própria história
ser colocadasem relaçãocom outras variantes. Logo identificamos recomposta com a aparência de uma necessidade.
aí o partido do antropólogo, que Goody opõe ao do historiador:
ele pretende restituir "o desenvolvimento das sociedades humanas,
Excepcionalidade e continuidades
desde a idade do bronze, de uma forma diferente, aquela de uma
elaboraçãocontínuade uma cultura urbana e mercantil" que o Fssa construção historiográfica se apoia, segundo Goody, em mo-
Oriente e o Ocidente partilharam por muito tempo. mentos oportunamente destacados do continuumhistórico, aos quais ele
Ora, é a escolha exatamente inversa que foi feita por uma consagra a segunda parte de seu livro. Como é o caso da Antiguidade
tradição historiográfica secular e cujos efeitos se fizeram sentir, se greco-romana e, mais particularmente, do "milagre grego", erigido
acompanhamos o autor, muito além do círculo dos historiadores, em começo absoluto na ordem da razão e da política. Ele poderá
Essa tradição dá crédito, de fato, à tese de uma excepcionalidade então ser duradouramentereivindicado como o momento fundador
europeia, de uma diferenciação absoluta que poderia ser notada da excepcionalidade europeia, desconsiderando-se o ambiente próxi-
numa longuíssimaduração.Inscrevendoa história da Europa numa mo-oriental em contato com o qual, no entanto, ele se desenvolveu.

24 25
o autor, do "feudalismo"
Corno é o aso tambân, sempre que, até o fim do século XVI, os resultadosda ciência chinesaforam
medievalistasconcordem com a imagem
Po&mosduvidarque muitos comparáveis e muitas vezes superiores aos dos cientistas europeus.
pintam de seu período de eleição,
que Goody afirma ser a que eles No entanto, foi no Ocidente que teve lugar a revoluçãocientífica
momento de "transição
privilegiando a interpretação deste como um moderna. Esse é o "problema de Needham", aquele que, segundo
do Estado moderno. Mas
pra o capitalisrno"e para o nascimento o próprio grande sinólogo, norteou seu imenso empreendimento.
não é isso. Frequentementerecordada, a tese central
o Ora, esse problema encontra uma solução, sopra-nos Goody, se
autor é a de que, desde o início do século XIX (na verdade bem aceitamos pensar essas evoluções em termos de continuidade em
da história mumiial"
antes), "a Europa pasou a dominar a construção vez de tentar marcar na história rupturas e começos.Além do ato
e azendo com que fossepensada como uma história li- de que a "ciência europaa não nasceu no meio de um deserto"
nar, feitadc encadeamentosnecesários: a história de um progresso (entenda—se:que ela também foi alimentada por incessantescircu—
contínuo,cumulati%)e reservadoa uma única parte do mundo. lações exógenas), "as distinções sobre as quais Needham se funda
Corxqção concepçãou*tigpara retomar os termos do —entre ciência moderna e ciencia antiga, entre tecnologia e ciência
pr$io Goody, e que teve por consequência mecânica jogar o resto procedem da tendência persistente a considerar as aquisições
mundo pan fira da história que conta, ou, no melhor dos casos, do período pós-renascentista europeu como o suprassumo do pro—
A.:asmargens gesto ilLÑradono livro por uma gresso, e visam a justificar uma preferência que, sem isso, poderia
cerrada corzeito de despotismo asiático e dos efeitos que causou. parecer arbitrária" (GOODY,1999, p. 62). Mais valeria, portanto,
Ao que teria "inventado a inven#o", na tarrnula diversas comparar os elementos comuns aos desenvolvimentos científicos
citadade David Landes,teria sido assim reservado o privilégio do que exacerbar sua divergência apelando para categorias que
da continuidade,cumulatividade:com- são, a uma só vez, simplificadoras e deformantes. Uma análise do
-se assimque a fimção da narrativa histórica do Ocidente foi mesmo tipo é consagrada à trilogia de Fernand Braudel (1979)sobre
in±ialrnente a de dar crédito à ideia de uma antiquíssima divisão e o capitalismo- Goody mostra que, apesar de sua potência analítica,
órnecer Alasprovas e no ternpo. ela continua a usar critérios normativos, pelo Ocidente,
Essas representaçõesainda são as nossas?Sim, decerto, se nos para pensar a particularidade europeia e opô-la ao que difere dela-
referimosao malúdado discurso pronunciado por Nicolas Sarkozi
em Dakar, em julho de 2007. Mas, certamente, não é nesse nível Uma crítica global demais
que Jack Goody pretende se situar- A primeira parte de seu livro,
Tudo isso justifica afinal o título da obra?Deve-se mesmofilar
sob muitos aspectos a mais interessante— em muitos momentos
de um "roubo da história" praticado por aqueles que, por alguns sé-
a mais discutível também —pretende mostrar que esses esquemas
culos, pensaram ser seus donos e legítimos beneficiários? A resposta
continuam a informar o pensamento daqueles que, poderíamos
pensar,tomaram resolutamenteo partido de um descentramento não é tão óbvia assim. Primeiro porque, para acompanharGoody
do olhar lançado sobre a história do mundo. Exemplo: Joseph no detalhe de seus numerosíssimos desenvolvimentos,seria preaso
Needham consagrou sua vida de pesquisador ao monumental em— reabrir um a um os dossiês que ele expõe e sobre os quais se apoia
preendimento de Ciénziae civilizaçãona China.' Ele demonstrou ali em sua demonstração. Provavelmente são raros os historiadores
que assumirão esse risco. Decerto, eles se sentirão pobres, ou no
mínimo intimidados, diante do virtuosismo com que o autor se
07=0 desloca em tantos campos diferentes. Talvez se interroguan também
1954-
A
sobre a tomada de distância que permite decidir soberanamente

26 27
as implicações
forrnas democráticas ou sobre
sobre a emergência das responderá, com razão,
que Goody
históricas do feudalismo. Ao
e que o que busca é produzir, a partir
que ele não é um historiador Um mundo de impérios]
considerável, os elementos de uma
de uma informação histórica
A atitude do antropólogo, que ele
comparaçãoem grande escala. Jane Burbank e Frederitk Cooper
a se desfazer das categorias
recomenda e ilustra, visa precisamente
quais se fundaram por muito tempo,
e dos encadeamentos sobre os
ele, as construções dos historiadores.
e ainda se fundam, segundo
vontade se não tivéssemos às
Nós o acompanharíamoscom mais
de vista olímpico que escolheu
vezes o sentimento de que o ponto
opor julgamentos globais aos jul-
o levou em alguns momentos a
perspectiva que ele escolheu, faz
gamentos globais que recusa. Na
muitas vezes monográficos, sobre A origem de nosso livro Empiresremonta a 1999, quando
sentido decidir, a partir de dados
civilização em seu conjunto? criamos,na Universidadede Michigan,um semináriointitulado
o nível ou as performancesde uma "Impérios, Estados e imaginação política". A criação desse curso
de semelhante operação?
Que beneficio heurístico pode-se esperar foi motivada por nossa insatisfação diante da grande narrativa
Ocidente produziu
É, portanto, a crítica da narrativa que o
reteremos desse livro. da históriamundialcomo movimentoinevitávelde um mundo
da história do mundo que, acima de tudo, de impérios rumo a um mundo de Estados-nação.A ideia dessa
A análisedessanarrativaseria mais convincente ainda se o autor se transição necessáriaera uma constanteda historiografiaquando
desse, mais do que se deu, ao trabalho de mostrar através de que éramos estudantes nos anos 1960.Mais tarde, nossosalunos foram
etapas esse modelo historiográfico conseguiu se impor. Como os muito influenciadospelo livro de Benedict Anderson, publicado
critérios e alguns dos valores que a Europa produziu para fazer em 1983, hnagined Communities; eles aceitavam, em geral, a ideia
valer suaprópria modernidade foram convertidos em instrumentos segundo a qual a imaginaçãopolítica nos séculosXIX e XX era
objetivos de avaliação dos êxitos e dos atrasos? Como eles se di- necessariamentenacional —segundo o tríptico: um povo, um go-
fundiram? Por que e como, finalmente, essa história foi com tanta verno, um território —uma perspectiva que, em nossa opinião, não
frequência retomada por aqueles mesmos que ela excluía ou votava corresponde à realidade histórica.
à marginalização? As evoluções contemporâneas sugerem que os Queríamos também superar outra perspectiva, mais recente,
simples efeitos de dominação não oferecem aqui uma explicação aquela da história colonial e dos ColonialStudies.Esse tipo de in-
suficiente. Que essanarrativa tenha por muito tempo corroborado terpretação —baseada em grande parte na crítica das abordagens
a convicção de uma eleição e da existência de uma hierarquia na— eurocêntricas —reproduz esse mesmo eurocentrismo invertendo
tural entre as partes do mundo está, evidentemente, fora de dúvida. seus valores. Nessa perspectiva, a Europa não é mais a fonte do
Mas, no momento em que essa ordem se vê recolocada em causa, progresso do mundo, mas é sempre ela que dirige —para o pior —
gostaríamos de ver Jack Goody prosseguir sua crítica analisando as
reutilizações feitas hoje dos elementos da velha narrativa ocidental
Este artigo é apresentaçào que Jane Burbank e Frederick Cooper fizeram de seu livro Empirrs
em novos contextos, inesperados, paradoxais. in [Irnp¿rios na história-mundol (201 t) em 2 dejunho de 2010 no projeto La "e
des O artigo. publicado em 9 dc Novembro dc 2010. está disponivel no seguinte endereço:
<bttp://www.taviede'idees.fr/Perma html>.

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