Vincent e Theo o Amor Fraterno Irene Gaeta
Vincent e Theo o Amor Fraterno Irene Gaeta
Vincent e Theo o Amor Fraterno Irene Gaeta
➜Cartas
➜Encontro
➜Individualidade
➜Projeção
Irene Gaeta Arcuri <iarcuri@uol.com.br>
■ Psicóloga
■ Doutora em psicologia clínica - PUC/SP
■ Especialista em Práxis Artística Interface com Saúde - USP
■ Coordenadora do curso especialização em Psicoterapia Junguiana - UNIP
■ Coordenadora do curso Corpo e Arte - PUC/Cogeae
■ Membro trainee - IJUSP
Vincent e Théo:
O Amor Fraterno
24 – Hermes17
“... em vez de reproduzir exatamente o que veem meus olhos, uso a cor por
conta própria para me expressar com vigor” (Van Gogh, 2006, p.20). Através
desta frase, vemos que ele tenta expressar uma imagem interior, a impressão
que o objeto causou dentro dele. O pensamento parece ser a função auxiliar,
observa-se em suas cartas, sua argumentação e racionalidade. O sentimento
parece expressar-se através do trabalho artístico: “Não sei se poderei pintar
o carteiro como o sinto”
(Van Gogh, 2006, p.250 – (521)).Théo parece ter um lado mais pragmático:
além de sua própria, família sustenta o irmão e, mais tarde, sua mãe, já viúva. É
um atento observador e avaliador de arte: podemos inferir que Théo se aproxime
mais de um funcionamento de sensação extrovertida, sendo que o sentimento
parece ser outra função importante em seu caráter. Chama-nos a atenção que
logo após a morte de Vincent, Théo agrava muito seu estado, vindo a falecer.
Levantamos a hipótese de uma relação simbiótica e complementar, em que um
não pode sobreviver ao outro.
A temática de irmãos muito ligados aparece em mitos e histórias como Cosme
e Damião, que é a versão católica do mito de Cástor e Polux. Ainda na mitolo-
gia grega, temos Apolo e Artemis, Idas e Linceu. Rômulo e Remo na mitologia
romana, Osíris, Set, Ísis e Neftis na mitologia Egípcia, Caim e Abel e Esaú e Jacó
na história bíblica, os Ibeji na mitologia Yorubá, que são divindades gêmeas, Gil-
gamesh e Enkidu na mitologia suméria, entre tantos outros.
Para amplificarmos, gostaríamos de lembrar o mito dos gêmeos Castor e Po-
lux, que é uma história de amizade e cumplicidade. Zeus, apaixonado por Leda,
rainha de Esparta, transforma-se em um cisne para conquistá-la. A rainha já
estava grávida de seu marido, Tíntaro. Leda põe dois ovos e de um deles nascem
Helena e Pólux, que são imortais, e do outro nascem Castor e Climnestra, que são
mortais. Castor e Pólux nunca se separavam, eram soldados e dados a confrontos.
Quando lutaram com outro par de gêmeos, Idas e Linceu, Castor foi morto por
Idas e Pólux matou Linceu e Zeus matou Idas. Pólux, não conseguindo ficar sem
o irmão, pede a Zeus que o mate. Zeus, então, concede a eles a possibilidade de
passarem um dia no reino do Hades e um dia no Olimpo.
Quando a relação complementar e simbiótica é rompida, a premente neces-
sidade de assimilar os conteúdos projetados pode gerar uma crise. Segundo Von
Franz (1988), Jung define a projeção como a transferência inconsciente de um
conteúdo psíquico para um objeto exterior. Este fato psíquico é percebido fora
e depositado no objeto. O conteúdo projetado é tido como parte da identidade
do receptor da projeção. Quando a projeção é recolhida amplia-se a consciência,
mas nem sempre se trata de um processo fácil.
A separação do conteúdo projetado no objeto e seu retorno à origem só se
efetiva se este conteúdo for ligado a seu significado. Passamos a reconhecer algo
que estava sendo visto fora como pertencente a nós: com isto há uma alteração
da dinâmica psíquica, pois agora a energia ligada à projeção está à disposição do
ego. A projeção ligada a aspectos da sombra requer que o indivíduo tenha hu-
mildade para reconhecer determinadas características em si mesmo e a projeção
positiva, na sua reintrojeção, pode causar uma inflação. A retirada das projeções
nos faz ser responsáveis pelas agruras ou talentos antes depositados no objeto.
O reconhecimento do conteúdo projetado nos faz sair da condição de plateia e
nos coloca como protagonistas.
No caso de Théo, com a morte do irmão parece ter havido uma impossibilida-
de de realizar esta reintrojeção. Debilitado pela dor da perda, sua doença avança,
levando-o à morte.
Segundo Sharp (1991), perda da alma é um termo derivado da antropologia,
que diz respeito a uma desorientação. Nas sociedades primitivas, cabe ao xamã
trazer a alma de volta; para o homem civilizado, esta perda corresponde a um
Hermes17 – 25
rebaixamento do nível mental. Théo parece ter vivido uma literal perda da alma,
fica desorientado e perde a sequência de sua própria vida.
Outro mito – que o episódio da mutilação da orelha, por parte de Vincent, nos
faz lembrar – é o do orixá Obá. Xangô tinha três esposas: Oxum, Iansã e Obá.
Obá pergunta a Oxum como e porquê Xangô lhe dá amor. Oxum conta uma
história sobre preparar a comida de Xangô com parte da sua orelha, tendo a ca-
beça coberta por um turbante. Obá corta sua própria orelha para servir a Xangô,
que fica horrorizado quando sabe de toda a história. Oxum tira o turbante para
desmentir Obá e precipita-se uma briga entre as duas. Xangô, então, transforma
as duas em rios. O mito de Obá nos conta sobre a necessidade de ser amado e os
sacrifícios empenhados para que isso aconteça.
Para Barcelos (2009), “a experiência do arquétipo do irmão, e da função fra-
ternal em nossas vidas, faz parte da atividade mitologizante da psique: mesmo
sem a vivência literal de um laço de sangue, buscamos pelo irmão e construímos
histórias fraternas (p. 39).
No irmão nós buscamos referências, nos diferenciamos. Criamos através da
imagem do irmão uma para nós, construída de semelhanças e diferenças.
De acordo com Konig (1995) e Barcelos (2009), a ordem de nascimento pode
estabelecer um modus operandi na vida adulta. Não é à toa que o primogênito,
de modo geral, encontra mais dificuldade de fugir das expectativas parentais e
tem que formar uma imagem em relação à sua identidade, ainda que não tenha
referências para isso.
Vincent é o filho mais velho e tenta levar adiante as expectativas da família
em relação a seu futuro, trabalhando como negociador de arte e, posteriormen-
te, tentando seguir a profissão do pai, mas não conseguiu levar seus projetos
em frente. Nutriu, durante toda sua vida, o desejo de criar uma comunidade de
artistas onde encontraria um sentimento de pertença e identidade.
Os filhos do meio, ou aqueles que estão na zona intermediária, também apre-
sentam sua dinâmica característica. Já nascem dividindo, não conhecem a exclu-
sividade e tendem a ser melhores mediadores.
Théo é o terceiro filho entre seis. Ele cumpre a tradição familiar como mar-
chand, mas acreditamos que através de seu desejo de ajudar e apoiar Vincent,
Théo vivenciava a liberdade e a criatividade.
A experiência fraterna tem um impacto estruturante na constituição da in-
dividualidade. O relacionamento fraterno é fonte e referência para todos os re-
lacionamentos onde se tenha um encontro entre iguais. A imagem do irmão tem
profundo impacto na alma.
Gostaríamos de destacar alguns trechos da correspondência entre Vincent e
Théo que sugerem as hipóteses por nós levantadas. É importante lembrar que as
cartas nos oferecem uma maior compreensão da vida, da obra e do momento
cultural em que Vincent e Théo viveram. A leitura das cartas redimensiona o
entendimento do artista, suas emoções e motivações, e elucida a personalidade
de Théo, sua ligação e preocupação com Vincent.
Luciana Godoy (2002), Walther e Metzger, organizadores das obras comple-
tas, veem nas cartas uma outra face da obra do artista, e que tem no irmão o
depositário desta expressão.
As correspondências mostram todo um processo de elaboração de cada um
deles, e nos fazem pensar como esse debruçar-se para escrever era uma maneira
de tratar a alma.
Johannavan Gogh-Bonger (2004), em seu livro que narra a vida do cunhado,
mostra sua preocupação com a publicação das cartas, pois não achava justo que
a personalidade dele chamasse mais a atenção que suas obras, para as quais de-
dicou sua vida. De modo que, ter passado 24 anos desde a morte de Théo até a
publicação da correspondência, pode ter assegurado este cuidado.
26 – Hermes17
Correspondência
Sobre as características intuitivas de Vincent:
“Não posso fazer nada se meus quadros não vendem. Contudo dia virá em
que veremos que eles valem mais do que o preço que nos custaram em cores
1
e minha vida, afinal bem pobre”. (V 557)
“Parece-me sempre que sou um viajante, que está indo a algum lugar, que
tem um destino.”
“Se digo a mim mesmo que este lugar, este destino, simplesmente não existe,
isso me parece bem razoável e verídico.” (V 518)
“Muitas vezes ainda quebro a cabeça para começar, mas assim mesmo as
cores se sucedem como que sozinhas, e ao tomar uma cor como ponto de
partida, me vem claramente à cabeça o que deduzir e como chegar a dar-lhe
vida.” (V 429)
“Só que muitas vezes o trabalho me absorve tanto que eu acho que conti-
nuarei sempre abstraído demais e desajeitado para me virar também com o
resto da vida.” (V 591)
“Você está com toda a razão, quando diz que eu chegaria a melhor resultado
se fizesse bons quadros ao invés de discutir questões revolucionárias.” (V 384)
“Meu querido Théo, começo por te dizer que a carta que você não recebeu
foi mal endereçada por mim, e me chegou de volta tal qual. Num momento
de abstração bem característico, eu a enderecei à rua Laval, em lugar da rua
Lepic.” (V 479)
Hermes17 – 27
te no momento em que os pintava. Em todos eles há um vigor em colorir
que você não tinha alcançado anteriormente – somente isto já é uma rara
qualidade – mas você chegou ainda mais além e, se existem algumas pessoas
que tentam encontrar o simbólico através da tortura deliberada das formas,
eu observo esta mesma atitude em muitas de suas telas, especialmente na
expressão do epítome de seus pensamentos sobre a natureza e as criaturas
vivas, essas qualidades que você acredita serem tão fortemente inerentes a
elas. Mas como seu cérebro deve ter mourejado e como você arriscou tudo,
até chegar ao próprio limite em que a vertigem é inevitável!
Por este motivo, meu caro irmão, quando você me contou que estava traba-
lhando novamente, fiquei feliz e preocupado ao mesmo tempo. Feliz porque
ao entregar-se ao trabalho, você evita entrar no estado de espírito a que su-
cumbem muitos dos pobres infelizes que aí estão. E preocupado, porque acho
que você não deveria jogar-se nestas regiões misteriosas de onde, com certe-
za, não se sai impunemente. Evite estas experiências mais radicais, enquanto
não estiver plenamente recuperado, não se incomode mais que o necessário,
porque, se você não fizer nada mais além de simplesmente contar o que viu,
já haverá suficientes qualidades na tela para fazer com que sua pintura se
torne permanente no tempo...” (T 10)
“... pegue o que mais lhe agradar, (gravuras), tenho certeza de que cada vez
mais temos o mesmo gosto.” (V 630)
“Se você dissesse a Rivet que está tão preocupado comigo, certamente ele o
tranquilizaria dizendo-lhe que, porque há tanta simpatia e comunhão de ideias
28 – Hermes17
entre nós, você sente um pouco a mesma coisa. Não pense tanto em mim,
como uma ideia fixa, aliás, sabendo-o calmo, eu me viraria melhor...” (V 578)
“Quanto a você, você descobriu seu caminho, meu velho camarada, sua car-
ruagem tem rodas firmes e fortes, e também estou começando a descobrir o
meu graças a minha boa esposa. Porém vá com calma, refreie seus cavalos um
pouco, para que não sofra nenhum acidente: quanto a mim, uma ou outra
chicotada ocasional, não me faria mal.” (T39)
Conclusão
O relacionamento de cumplicidade, amor e aceitação que Vincent e Théo ti-
veram, traz uma beleza que transcende qualquer tentativa de classificá-lo psico-
logicamente. Todos nós buscamos que nossos sonhos e caminhos sejam legitima-
dos pelo olhar do outro, no entanto Théo não se permitiu experimentar-se como
artista e Vincent, com toda sua dificuldade de adaptação e tomado pelo processo
criativo, deixa para Théo sua ligação com o mundo, permanecendo ambos com
parte de suas almas depositadas no outro.
Notas
Referências bibliográficas
Hermes17 – 29