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Fenomenologia e Psicologia Da Religião No Brasil: Fundamentos, Desafios e Perspectivas

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http://dx.doi.org/10.7213/2175-1838.09.001.

DS06

ISSN 2175-1838
Licenciado sob uma Licença Creative Commons

[T]

Fenomenologia e psicologia da religião no Brasil:


fundamentos, desafios e perspectivas

Phenomenology of Religion in Brazil: principles,


challenges and Perspectives

Adriano Furtado Holanda*

Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil

Resumo

Falar de religião é, fundamentalmente, falar de experiência religiosa, dado que a re-


ligião só existe porque há sujeitos que a manifestam de uma forma intencional. Esta
é a posição da Fenomenologia, cuja tradição, inaugurada pelos estudos de Edmund
Husserl, replica em parte o projeto de fundamentação radical das ciências e da filo-
sofia que encontramos em Descartes, e faz com que o edifício fenomenológico venha
a se erguer sobre múltiplas perspectivas: como epistemologia (ponto de partida), mé-
todo (caminho), filosofia (construção) e ciência (intenção). A intenção deste trabalho é
apresentar as raízes que desembocam no desenvolvimento de uma Fenomenologia da

AFH: Doutor em Psicologia, e-mail: aholanda@yahoo.com


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Religião, bem como suas premissas e autores fundamentais. Em seguida, pretende-se


traçar breve panorama dos debates ora em pauta, sob a égide do pensamento feno-
menológico, no contexto dos estudos sobre religião, religiosidade e espiritualidade,
no Brasil. Pesquisas recentes são apresentadas, como ilustração dos desafios e pers-
pectivas do campo. Por fim, vale destacar que fazer uma “fenomenologia” da religião
passa por um olhar amplo para o fenômeno religioso, incluindo a análise do significado
dos movimentos em religiões – trânsito religioso, migrações, etc. – além da interpre-
tação de signos e sinais particulares. Conclui-se pela necessidade de se ampliar o de-
bate e o desenvolvimento de pesquisas no campo, bem como estabelecer uma melhor
compreensão do sentido de se fazer uma “fenomenologia”.

Palavras-chave: Fenomenologia. Fenomenologia da Religião. Pesquisa. Saúde.

Abstract

Talking about religion implies talking about a religious experience. Religion exists only
because there are individduals who intentionally manifest it. This is the classic position
of Phenomenology, a tradition founded by Edmund Husserl, that replicates in some
way the radical foundation project of science and philosophy found in Descartes, and
which makes the phenomenological structure rise over multiple perspectives, such as
epistemology, method, philosophy and science to name a few. This paper aims to dis-
cuss the roots that lead to a Phenomenology of Religion, as well as its assumptions
and key authors. It also intends to draw an overview of current discussions within the
aegis of the phenomenological thought in which studies about religion, religiosity and
spirituality are concerned in Brazil. Recent researches are presented to illustrate the
challenges and perspectives of the field. To finish, it is relevant to point out that a re-
ligious “phenomenology” goes through a broader view of the religious phenomenon,
which includes the analysis of movements in religion and its meaning (migration, reli-
gious traffic) besides the interpretation of signs and specific symbols. It concludes to
a need for more research and dialogues, and a better understanding of what is to be
considered “phenomenology”.

Keywords: Phenomenology. Phenomenology of Religion. Research. Health.

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Fenomenologia e psicologia da religião no Brasil 133

Introdução

Falar de Religião é falar de “experiência religiosa”, reconstituindo


o objeto religioso em interação com um sujeito concreto. Neste contexto
relacional, a Fenomenologia se coloca em contínuo diálogo com as demais
ciências. O objetivo aqui é traçar um panorama e um entendimento do
que seja uma Fenomenologia da Religião (FR) no campo da Psicologia
da Religião, buscando compreender seus espaços de desenvolvimento
no Brasil. Parte-se da ideia de Fenomenologia como a ciência dos funda-
mentos (HUSSERL, [1910] 1965, [1913], 1985, [1929], 1992), para um
olhar ao fenômeno religioso; mantendo — por eleição — o sujeito por
foco. Importa destacar aqui que a Fenomenologia não identifica o sujeito
fenomenológico — como subjetividade transcendental e como intersub-
jetividade contextualizada — com o “sujeito psicológico”, como também
não o identifica com os demais “sujeitos” da ciência.
Principiaremos por uma narrativa dos diversos modos de com-
preensão de uma FR, para recompor o campo e dialogar com o cenário
brasileiro ainda incipiente. As dificuldades do campo são inerentes a uma
Fenomenologia, dado que a análise fenomenológica demanda uma mu-
dança de posição, uma mudança de perspectiva. As análises fenomenológi-
cas sobre “Deus” — entre aspas, para salvaguardar os diversos modos de
articulação e os diversos modos de relacionamento com o sujeito humano
— se dão por várias vias, como a filosófica (ou teorética), a religiosa ou
a mística (e, no que nos diz respeito mais diretamente, igualmente pela
via psicológica), e aparecem em toda sua complexidade (BELLO, 2016),
convocando o estudioso ao enfrentamento da questão, numa direção —
quase que “necessária” — interdisciplinar, não prescindindo dos olhares
da história, da cultura, da antropologia, da sociologia, dentre tantas ou-
tras. Como veremos, é sobre este rico solo da diversidade que se alicerça a
análise fenomenológica da experiência religiosa.

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A Tradição da Fenomenologia da Religião

A posição fenomenológica é de que a religião somente se dá na


manifestação, como experiência religiosa (vivência) frente ao mistério, ao
sagrado e ao inexplicável. Nesta premissa constitui-se a dialética do exer-
cício fenomenológico do olhar para a religião: é da essência do fenômeno
religioso se mostrar e se mostrar a alguém, e é em relação a este “alguém”
que aparece como (relativamente) oculto, se revelando progressivamente
e (relativamente) transparente (VAN DER LEEUW, [1933] 1948). O “fato
religioso” é tomado como realidade existencial, como fato histórico e tam-
bém como objetividade passível de pesquisa empírica.
Rudolf Otto, contemporâneo de Husserl, é nome de destaque nes-
ta tradição, por sua análise hermenêutico-fenomenológica da experiên-
cia religiosa, e sua descrição do Sagrado, como o mysterium tremendum et
fascinans, e estabelece um vínculo antropológico às ciências da religião.
É sua defesa do numinoso como essência universal que torna Otto um
fenomenólogo. Mas é com Gerardus Van der Leeuw que a FR se constitui
como um campo destacado de estudos, a partir da colocação da compreen-
são como arché e télos de seu método. O estudioso teria como tarefa pri-
mordial entrar em sintonia no plano afetivo com seu objeto.

[...] podemos considerar a religião como experiência vivida compreensí-


vel [...]; ou a fazer valer como revelação não-compreensível. A experiência
vivida (na sua “reconstrução”) é um fenômeno. A revelação não o é; mas
a resposta que o homem dá à revelação, o que ele diz do que é revelado,
isto também é um fenômeno, permitindo concluir indiretamente que há a
revelação (per viam negationis)” (VAN DER LEEUW, [1933] 1948, p. 662).

O sentido religioso é o sentido do todo; é uma experiência vivida


no limite, uma revelação que permanece oculta. Neste caso, “como cul-
tivar a fenomenologia onde não há um fenômeno?” (VAN DER LEEUW,
[1933] 1948, p.665). É exatamente esta antinomia – que diz respeito às
religiões e à compreensão – que torna possível uma “ciência” da experiên-
cia religiosa. A fé não exclui a époche, nem a époche exclui a fé. É a duplex
ordo agostiniana. Mas como compreender algo que escapa ao intelecto, e
mesmo escapa à apreensão? Toda compreensão “até o fundo” cessa de ser

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uma, antes de haver alcançado o fundo: ela se reconhece como sendo com-
preendida, no lugar do compreender. Em outros termos, toda compreen-
são, não importa qual objeto à qual se dirige, é finalmente religiosa (VAN
DER LEEUW, [1933] 1948, p.666). O campo da FR se põe num processo
incessante de elucidação da experiência religiosa, cabendo-lhe a prerroga-
tiva de acessar este sentido vivencial, e redescobrir o significado em sua
totalidade; pressupõe aquele télos intencional, do qual falava Husserl, e
a époche, que permite o acesso à intuição. Nesta direção, a FR encontra o
existir como fundamento, enquanto “experiência originária da religiosi-
dade” (HEIDEGGER, 2006).

Concepções de Fenomenologia da Religião

Tradicionalmente, portanto, a expressão FR remete a uma perspec-


tiva de “olhar”, a uma “fenomenologia religiosa”. É pela via da Erlebnis
– da experiência vivida, da vivência – que se dá o encontro da fenomeno-
logia com a psicologia da religião. Essa experiência provoca no homem a
sensação de estar defronte de uma experiência misteriosa, fascinante e
temível (Otto), e apresenta uma faceta racional e outra irracional, “irre-
dutível às categorias humanas e intraduzível na linguagem da analogia,
correspondente à natureza misteriosa do ‘inteiramente outro’ que se ma-
nifesta na experiência religiosa” (PIAZZA, 1976, p. 11). Uma FR é, pois,
uma tentativa de se compreender o significado do “fato religioso”, como
experiência (fato humano), tomado em “suas manifestações e expressões
sensíveis, com a finalidade de apreender seu significado último” (p. 15).
Assim, constitui-se numa pesquisa histórica, numa interpretação existencial
e situa-se no campo da objetividade.
Numa perspectiva antropológica, é – nas palavras de Malinowski –
um fato universal, dado que não há povo, por mais primitivo que seja, sem
religião. E como tal, deve ser estudado enquanto experiência vivida; e como
fato objetivo, é passível de estudos empíricos e positivos, no sentido atri-
buído pelo próprio Husserl. Nesta perspectiva, somente a fenomenologia
pode dar o conhecimento das realidades existenciais, pois o fenômeno
tem um aspecto “transcendente” por estar alicerçado na compreensão de

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seu significado, que remete à consciência humana, e que remete ao movi-


mento desta consciência voltada para o mundo.

A Ideia de uma Fenomenologia da Religião

Heidegger nos dá excelentes exemplos das possibilidades de


uma FR. Em curso sobre “Os Fundamentos Filosóficos da Mística
Medieval” (1918-1919), fornece uma elucidação fenomenológica da ex-
periência mística. Já no inverno de 1920-1921, Heidegger escreve uma
“Introdução à Fenomenologia da Religião”, onde afirma que é preciso
estabelecer o objeto da religião, devendo-se, primeiro, delimitar a expe-
riência religiosa genuína e examinar o acesso adequado a ela. Heidegger
elege como experiência religiosa autêntica a do cristianismo primitivo,
e parte para a análise dos escritos paulinos. No verão de 1921, escre-
ve a lição “Agostinho e o Neoplatonismo” — baseando-se no Livro X
das Confissões. Esses textos apontam caminhos possíveis que uma FR
pode trilhar, mesmo que em disputa com o método husserliano, mar-
cando diferenças com os demais “fenomenólogos da religião”, como
Reinach, Scheler, Stavenhagen, e Van der Leeuw (USCATESCU, 2006).
Essas distinções conceituais, devem-se, em parte, à relevância que a teo-
logia ocupa “na proveniência e no porvir de seu [Heidegger] pensar”
(FERNANDES, 2015, p. 95), e envolve a questão do ser e da linguagem,
levando Heidegger a definir a Fenomenologia como:

[...] a via de acesso e o modo de comprovação para se determinar o que deve


constituir tema da ontologia. Ontologia só é possível como fenomenologia. [...]
Em seu conteúdo, a fenomenologia é a ciência do ser dos entes – é ontologia
[...] Da própria investigação resulta que o sentido metodológico da descri-
ção fenomenológica é interpretação. O logos da fenomenologia da presença
possui o caráter de hermeneuein (apud FERNANDES, 2015, p. 96).

A época na qual Heidegger discute essas questões já havia co-


nhecido importantes trabalhos na História das Religiões: em 1890,
Codrington comunica o conceito de “mana”; entre 1900-1920, Wundt
produz sua Völkerpsychologie, apontando o totemismo como a primeira

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forma de religião; Otto, em 1917, aponta o sagrado como o princi-


pal objeto da religião. Nesse solo fértil se desenvolve a questão fe-
nomenológica, mas Heidegger não é o primeiro a se ocupar do tema
na Fenomenologia: Husserl, nas Ideen, em 1913, aponta Deus como
o princípio teleológico (BELLO, 2016); igualmente Scheler, com sua
Vom Ewigen im Menschen, de 1921, além de Reinach, que escreve esbo-
ços de uma FR entre 1915 e 1917.
Qual é a fenomenologia da religião de Heidegger? Heidegger não
mira a religião na sua totalidade, nem a experiência de Deus, mas se
centra na “experiência originária da religiosidade”, e centra sua aten-
ção sobre a vida fáctica que têm Paulo e Agostinho. Ao analisar a vida
de Paulo — como experiência vital de um crente —, Heidegger põe em
relevo sua situação articulada no seu mundo próprio (Selbstewelt), no seu
mundo partilhado ou co-mundo (Mitwelt) e em seu mundo circundante
(Umwelt); ressalta a proclamação evangélica no que se proclama (no seu
sentido de conteúdo), no Gehaltssinn; num sentido referencial da pro-
clamação (Bezugssinn); no a quem se proclama e donde se proclama, im-
portando, sobretudo, o como da proclamação, que é o sentido executivo
(Vollzugssinn). O sentido referencial da vida fáctica cristã, que não é senão
a expectativa ou a esperança da vinda do Cristo — é a (“pa-
rousía”) — e está determinada por dois modos: o servir ( )eo
aguardar ( ). Heidegger ainda aponta para a referência da vida
fáctica cristã, como um “peculiar estar diante de Deus”, como expecta-
tiva de vinda no futuro, no “final dos tempos”, o que designa a peculiar
temporalidade da vida cristã como um “ainda não”.

As Escolas Fenomenológicas da Religião

A expressão FR foi criada por Pierre Daniel Chantepie de la


Saussaye (1848-1920), a partir da primeira edição de seu Lehrbuch der
Religionsgeschichte (SAUSSAYE, [1887] 1940), introduzindo o momen-
to sistemático da disciplina. A história das religiões — além de estudar a
unidade da religião em sua multiplicidade — deveria igualmente eviden-
ciar os aspectos permanentes da religião, o que poderia ser obtido por

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meio do método comparativo, permitindo classificar e organizar grupos


de manifestações religiosas, em suas diversas facetas (objeto, natureza,
tipos de mitos, etc.). Nova denominação para as “religiões comparadas”,
numa direção semelhante à tomada pelos estudos de Lineu. Chantepie de
la Saussaye propõe nova palavra de ordem para um modo de pesquisas
sistemático das religiões.

Desse modo, a Comparative Religion de caráter evolucionista, como ensi-


nam os casos exemplares de Tylor ou de Frazer, propunha-se evidenciar
os tipos recorrentes de crenças e rituais religiosos, estabelecer sua ordem
evolutiva, de modo que permite que se respondesse à pergunta funda-
mental, que dominava todas as pesquisas da época: qual é a origem da
religião (FILORAMO; PRANDI, 1999, p. 28).

A Virada Fenomenológica

Num primeiro momento, a FR é uma “análise descritiva e sistemá-


tica” dos fenômenos religiosos. A virada se dá com Husserl, num esfor-
ço anti-metafísico, realista, de “voltar às coisas-mesmas”, no esteio das
reflexões de Dilthey sobre a autonomia das ciências do espírito, quando
este afirma a necessidade da adequação do método para a apreensão do
“mundo das produções culturais”. A Erlebnis não pode ser definida, mas
pode ser experimentada e descrita; a virada se dá na construção não ape-
nas de uma abordagem descritiva, mas hermeneuticamente orientada
(DILTHEY, [1894] 2002); e se apresenta, em sua mais conhecida expres-
são, na obra de Van der Leeuw.

A Fenomenologia de Van der Leeuw

O nome de Gerardus Van der Leeuw (1890-1950) melhor se dá


a conhecer através de sua obra de 1933, Phanomenologie der Religion —
como um manifesto da fenomenologia compreensiva. “A compreensão
(Verstehen) é o arché e o telos do seu método fenomenológico. A primeira

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função do estudioso, de fato, é entrar em sintonia, no plano afetivo, com o


objeto (Einfühlung)” (FILORAMO, PRANDI, 1999, p. 32). Nesse caminho,
Van der Leeuw afirma: “o que as ciências da religião chamam ‘objeto’ da
religião é para a religião mesma seu ‘sujeito’” (VAN DER LEEUW, [1933]
1948, p. 9).

A fenomenologia busca o fenômeno. O que é o fenômeno? É o que se mos-


tra. Isto comporta uma tripla afirmação: 1o Há qualquer coisa; 2o esta coisa
se mostra; 3o é um fenômeno pelo fato mesmo que se mostra. Ora, o fato
de se mostrar diz respeito tanto ao que se mostra, quanto àquele a quem
isto se mostra. O fenômeno, por conseguinte, não é um simples objeto;
ele não é nem mesmo o objeto, a realidade verdadeira, cuja essência seria
somente recoberta pela aparência das coisas vistas. Isto ressalta uma certa
metafísica. Por “fenômeno” não se entende mais qualquer coisa de pu-
ramente subjetivo, uma “vida” do sujeito, que estuda uma parte distinta
da psicologia – por mais que haja a possibilidade. Mas o fenômeno é, ao
mesmo tempo, um objeto que se reporta ao sujeito e um sujeito que se
refere ao objeto. [...] Toda sua essência consiste em se mostrar, se mostrar
a “alguém”. Tão logo esse “alguém” comece a falar do que se mostra, faz-se
a fenomenologia (VAN DER LEEUW, [1933] 1948, p. 654).

A Tradição Fenomenológica Alemã: A “Escola de Marburg”

A FR de Van der Leeuw aponta para a autonomia da religião, recor-


rendo às “correntes culturais alemãs”, desde a fenomenologia de Husserl
e Scheler, a hermenêutica de Dilthey, a filosofia da vida de Simmel, a psi-
copatologia de Jaspers e a psiquiatria existencial de Binswanger “que me-
lhor se prestavam a evidenciar o dado existencial da religião, a sua natureza
de experiência consubstancial à natureza mesma do homem. Nessa pers-
pectiva, o homem é naturaliter religioso” (FILORAMO, PRANDI, 1999,
p. 36). Após Van der Leeuw, surgiram críticas ao modelo da fenomenolo-
gia compreensiva, particularmente entre os representantes da Escola de
Marburg — iniciada por Rudolf Otto – que oferecem um “modelo de aná-
lise hermenêutica fenomenológica da experiência religiosa” (FILORAMO
& PRANDI, 1999, p. 37).

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Rudolf Otto (1869-1937), teólogo protestante e grande conhece-


dor de religiões comparadas, publica em 1917 um texto que viria a ser
central no estudo das religiões: Das Heilige (“O Sagrado”), um dos mais
importantes tratados em língua alemã do século XX, no qual cunha o
termo numinoso, para designar o caráter da experiência religiosa “para
além” do racional, superior, e que inspira terror e temor, além de fascínio
e maravilha. “O numinoso singulariza-se como qualquer coisa de ganz an-
dere, radical e totalmente diferente” (ELIADE, [1957], 1965, p. 16), algo
de “Totalmente Outro”, de radicalmente “alter” ao homem. Nesta obra,
estuda a “experiência religiosa”, sobretudo por seu lado irracional, “[...]
pois tinha lido Lutero e compreendera o que quer dizer, para um crente,
o ‘Deus vivo’. Não era o Deus dos filósofos, [...]; não era uma idéia, uma
noção abstrata, uma simples alegoria moral. Era, pelo contrário, um poder
terrível, manifestado na ‘cólera’ divina” (ELIADE, [1978] 1983, p.15).
Foram diversos seus alunos que se dispuseram a pesquisar o méto-
do para compreender a essência do fenômeno religioso. Um nome a desta-
car é o de Friedrich Heiler (1892-1967), teólogo e historiador alemão, que
foi professor em Marburg, e que publica um texto sobre a essência da re-
ligião, em 1961 (Erscheinungsformen und Wesen der Religion), dizendo que
“os fenômenos são apenas investigados pelo conhecimento da essência
que está na sua base e que tem de ser focada. Nunca se deve parar nas suas
cascas internas, mas tem-se de penetrar através delas para chegar ao seu
núcleo, que é a experiência religiosa” (HEILER, apud GRESCHAT, 2005, p.
139). Como fundamento verdadeiramente fenomenológico da perspecti-
va de Heiler, o que se destaca é que a Religião é, antes de tudo, Handlung ou
ação, e Erlebnis, experiência vivida. Outros autores da Escola de Marburg
deixaram importantes contribuições ao campo, como Gustav Mensching
(1901-1978), autor de numerosas monografias fenomenológicas, que
aponta para a pesquisa fenomenológica em dois níveis: uma função de
comparação das religiões (com o intuito de evidenciar suas afinidades ti-
pológicas e estruturais), e uma função de compreensão de sua essência,
que é a experiência do encontro com o Sagrado. Além de Kurt Goldammer
e de Günter Lanczkowski, para quem a FR é uma Religionwissenschaft.

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Fenomenologia e psicologia da religião no Brasil 141

Fenomenologia da Religião na Holanda

A escola fenomenológica holandesa representa o estudo sistemá-


tico dos fatos religiosos (desde suas origens). Termina por confundir-se,
enquanto FR, com a história das religiões. No campo dos estudos de psi-
cologia da religião, as universidades holandesas representam parcela sig-
nificativa na produção acadêmica contemporânea (PAIVA, 2004). Um dos
mais importantes nomes desta escola é Carl Bleeker, para quem a FR é uma
ciência empírico-indutiva, sem objetivos filosóficos. “Para alcançar esse
objetivo final, ela persegue três objetivos: desenvolver a theoria dos fenô-
menos, procurar o logos, interrogar-se sobre sua entelechia” (FILORAMO,
PRANDI, 1999, p. 46). Bleeker ilustra as dificuldades e as contradições do
método fenomenológico que, não querendo se isolar no puramente des-
critivo, busca interrogações de cunho existencial, experiencial e essencial.

Fenomenologia na obra de Mircea Eliade

Um derradeiro destaque ao qual não podemos nos furtar é a apresen-


tação de Mircea Eliade: historiador, “mitólogo”, filósofo e romancista, nasceu
em Bucareste, Romênia, em 1907, e faleceu em Chicago, em 1986. Chegou a
viver na Índia entre 1928 e 1932, quando preparou sua tese sobre yoga. Foi
adido cultural em Londres e Lisboa, passando a lecionar na École des Hautes
Études em Paris, a partir de 1945. De 1957 até sua morte, ocupou a cadeira de
titular de História das Religiões em Chicago (ELIADE, [1957] 1965).
Além de erudito, era versado em diversas línguas, como o alemão, o
italiano, o hebreu, o persa e o sânscrito, Eliade pode ser considerado um dos
fundadores da moderna História das Religiões. A partir de seus estudos so-
bre os mitos, elabora uma concepção de religiões comparadas, buscando as
relações de proximidade entre as culturas e os momentos históricos. Tal qual
Otto aponta que o centro da experiência religiosa do homem é a ideia de
sagrado, e um dos conceitos que se destaca de sua obra é o de Hierofania,
ou a manifestação do transcendente num objeto ou fenômeno ou, simples-
mente, o aparecimento ou manifestação reveladora do sagrado. Na tradição
grega, “hierofante” era aquele que dava a conhecer o sagrado, ou seja, o

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encarregado de instruir os iniciantes nos mistérios, no oráculo e no culto.


Era especialmente o nome dado ao sacerdote que presidia a iniciação nos
mistérios de Elêusis.
O tema do “sagrado” é trabalhado em uma de suas mais importantes
obras: O Sagrado e o Profano, que define como uma “introdução geral ao
estudo fenomenológico e histórico dos fatos religiosos” (ELIADE, [1957]
1965, p. 9). Outra importante obra é o seu Tratado de História das Religiões
(de 1949), na qual traça um estudo de morfologia religiosa. Compilador
de tradições, talvez sua obra mais conhecida seja História das Crenças e das
Ideias Religiosas, publicado já na década de 1970.
Sua FR está associada a três princípios metodológicos fundamentais
(MENDONÇA, 2012): a irredutibilidade do fenômeno religioso (que postu-
la a necessidade de se estudar esse fenômeno no seu próprio plano de sig-
nificação); a dialética do sagrado e do profano (que conduz o pesquisador a
apreender a intencionalidade do fenômeno religioso), e; a teoria do simbolis-
mo religioso (que é o instrumento que permite a compreensão do fenômeno
religioso). Sua “virada hermenêutica” guarda proximidade com a tradição
compreensiva da fenomenologia religiosa. O sagrado, em Eliade, é não ape-
nas o objeto do conhecimento, mas igualmente o sujeito e o meio do seu co-
nhecimento. “Para o historiador das religiões, toda manifestação do sagrado
é importante; todo rito, mito, crença ou figura divina reflete a experiência
do sagrado, e por conseguinte, implica as noções de ser de significação e de
verdade” (ELIADE, [1978] 1983, p. 13).
Embora seja um caminho não exaustivo, há outros debates e corre-
lações possíveis entre Ciências da Religião e a FR, bastando, para tal, ob-
servarmos as “pontes” com o pensamento de Paul Tillich (GOTO, 2011). É
importante reconhecermos que o que “marca” ou representa o “espírito” da
fenomenologia é a questão do sentido ou da significação.

Fenomenologia da Religião no Panorama Atual

Retomemos Van der Leeuw, no que “fazer fenomenologia, é falar


do que se mostra”:

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Fenomenologia e psicologia da religião no Brasil 143

Consequentemente, em relação ao “alguém” a quem ele se mostra, o fenô-


meno comporta três características fenomenais superpostas: 1o ele é (rela-
tivamente) oculto; 2o ele se revela progressivamente; 3o ele é (relativamen-
te) transparente. Essas etapas superpostas não são iguais, mas correlativas
àquelas da vida: 1o experiência experimentada, vivida; 2o compreensão, 3o
testemunho. Os dois últimos tópicos, cientificamente tratados, constituem
o trabalho da fenomenologia (VAN DER LEEUW, [1933] 1948, p. 654).

Ora, uma das dimensões da FR é “buscar a Deus e buscar saber o


que é Deus” (BELLO, 2016), numa reflexão intelectual. Embora partamos
da premissa que a fenomenologia é uma só, há, evidentemente, diferentes
apropriações por parte das várias modalidades científicas, como Teologia,
Sociologia, Psicologia, dentre outras. Assim, há que se notar perspecti-
vas distintas sobre o mesmo escopo, e reconhecer que o discurso filosó-
fico, bem como seu objeto, é diferente da apropriação da Teologia ou da
Psicologia, por exemplo. Nesta direção, o debate provocado pela análise
das diferenças de apropriações da FR no Brasil e Alemanha, como são per-
cebidas e avaliadas distintamente, é relevante (BRANDT, 2006).
Por meio de um olhar sobre os manuais de ciências da religião —
que, na Alemanha representam uma longa realidade, e no Brasil não são
mais do que “intenções” — Brandt (2006) mostra como que a FR foi “des-
pachada” para o rol das perspectivas históricas ultrapassadas, vista como
mera pesquisa no contexto da história das religiões (HR); mas aponta
para a FR como “a origem genuína das ciências da religião mais recentes;
[...] como principium da ciência da religião. Mas pode significar também
que o início da ciência da religião na FR está ultrapassado pelos acessos
posteriores” (BRANDT, 2006, p. 126).
Num primeiro aporte, a identificação em FR e HR aponta para sig-
nificativas limitações de apropriação; afinal, tanto a HR como a História
Comparada das Religiões serviram (e servem) como importantes recursos
de conhecimento, análise e interlocução entre as diferentes manifestações
religiosas, auxiliando sobremaneira no diálogo interdisciplinar. Desta fei-
ta, uma leitura das manifestações religiosas se configura em verdadeira
e concreta possibilidade de superação de pressupostos que o acesso ao
conhecimento privilegia; auxilia no diálogo, na medida em que busca en-
contrar tanto paralelos quanto dissonâncias que certificam a realidade do

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144 HOLANDA, A. F.

acesso ao fenômeno religioso como manifestação humana e mundana.


Noutra direção, esta identificação a que nos reportamos aqui ainda apon-
ta para críticas de “aspectos” — muitos deles distintivos — relacionados
a autores tradicionais da FR e não à totalidade do sentido de suas contri-
buições (USARSKI, 2004; BRANDT, 2006).
Outra das críticas importantes repousa sobre a posição de relevân-
cia que sistematicamente um conceito toma, quando se analisa particular-
mente o rol de autores associados à FR. Assim, “contra Söderblom, Otto e
Van der Leeuw se objeta que eles postulam uma categoria específica — a
do sagrado ou a do poder — e as respectivas experiências religiosas para
descrever a essência da religião com base nesse fundamento” (BRANDT,
2006, p. 127); o mesmo valendo para Eliade quando entende que todas
as religiões remetem a um ser em si. Brandt (2006) aponta ainda para
a interpretação da FR como uma “ciência atemporal da religião”, o que
equivaleria a desconectá-la dos múltiplos sentidos mutantes da realidade,
além de suas múltiplas conexões com o tempo, cultura, etc. Há, aqui, uma
crítica ao “genérico” ou à “generalidade” (associada à noção de “essên-
cia”?!), apontando que se ontologiza o transcendente — ou seja, quando
Otto fala do numinoso, quando Eliade fala da irrupção do sagrado no pro-
fano, ou mesmo quando Jung estabelece um conjunto de símbolos arque-
típicos, eles estariam numa linha de ontologização que desconsideraria o
elemento narrativo e os contextos sociais das religiões.
A partir dessa linha, toma-se a proposição geral de um FR por sim-
plificação positiva, associando-a a repertórios estanques de análise que
descontextualizam a história (e sua história). Não apenas a FR não é uma
disciplina a-histórica (ou a-teórica ou a-social, etc.), como é exatamente
sobre esta dinamicidade de apresentações que o seu objeto se constitui. O
fenômeno (religioso) não é o “aparecer” de um objeto (ou de um algo), mas
o “aparecendo”, o “acontecimento” que se dá no entrelaçamento, na mul-
tiplicidade das apresentações de um ser (sujeito), que igualmente não pode
ser confundido com uma “entidade” autônoma ou isolada. Em boa parte
dessas críticas encontramos eco da própria questão de Merleau-Ponty,
quando anuncia aos incautos que se apropriam da Fenomenologia numa
perspectiva meramente positivista (como “fenomenologismo”), que não
se pode confundir o objeto percebido com o próprio ato perceptivo, bem

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Fenomenologia e psicologia da religião no Brasil 145

como não se pode confundir o sujeito fenomênico com um suposto “su-


jeito” psicológico. Na direção contrária, propõem-se uma FR reflexiva em
diálogo multidimensional (com ciências afins). Ora, mas este sempre foi
o caráter primário da Fenomenologia: o diálogo, a múltipla consideração,
os múltiplos aportes. Fenomenologia é abertura, despojamento, desalo-
jamento, disposição.
No contexto alemão, pois, a avaliação da FR se dá num espectro
que varia de uma “rejeição decidida até uma refundamentação cautelosa
sob determinadas condições” (BRANDT, 2006, p. 130), ao passo que no
Brasil, o cenário é totalmente outro, cenário que a coloca como “porta-
dora de esperança das ciências da religião”, visto seu discurso se apre-
sentar disseminado de forma ampla, sendo o termo utilizado, por vezes,
sem nenhuma reflexão metodológica especial. Além disso, depreende-se
que, pelo fato do discurso filosófico ter significativa influência sobre as
Ciências Humanas, passa-se a usar o termo “fenomenologia” de forma de-
corativa, num uso irrefletido que pressupõe a colocação da fenomenologia
como “um termo de conhecimento geral” (p. 131).
Reconhecendo a realidade de um uso “irrefletido” do termo — que
muitas vezes banaliza a proposta fenomenológica — há que se ressaltar,
por outro lado, que nos parece um erro comum (particularmente no con-
texto da psicologia) a identificação da Fenomenologia com uma prática ou
modelo metodológico (invariavelmente associado a um ou mais modelos
de “método” de coleta e análise de dados empíricos de caráter qualitativo).
Tornar a fenomenologia uma instrumentalidade é limitante e contraditó-
ria a sua própria crítica. Não há como se fazer fenomenologia sem uma re-
flexão epistemológica diretamente associada. Mesmo assim há constante
identificação da Fenomenologia com uma metodologia. Como ciência dos
fundamentos, a Fenomenologia serviria de estrutura para estabelecer a
autonomia das ciências da religião. Mas, no cenário brasileiro — e, devido
à irreflexão de seu uso — ela é tomada positivamente como um finalis-
mo que beira a simplificação de todo um campo de estudos em seu esco-
po, como o “coroamento” e a consumação de todas as ciências da religião
(BRANDT, 2006).
Observe-se que a positividade da tomada da FR no Brasil a coloca
em situação de grande fragilidade, por sua irreflexão, e de não poder se

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146 HOLANDA, A. F.

aprofundar nas particularidades de sua contribuição, uma delas — fun-


damental — que seria o estudo sistemático dos grandes textos e autores
filosóficos, o que tornaria a FR no Brasil num “centro vital” das ciências da
religião (BRANDT, 2006), mesmo que no Brasil não se tenha dado um tra-
tamento detalhado e aprofundado à disciplina (DREHER, 2003). Coloca-
se, assim, a FR na condição de um “elo de ligação” entre as ciências, fragi-
lizando suas contribuições e colocando-a na posição de uma “alternativa”
não autônoma da qual não pode comportar.

Desafios de uma Fenomenologia e de uma Psicologia


da Religião no Brasil

Um dos desafios em comum entre FR e PR no Brasil e na Alemanha


é o fato de haver excessiva dependência, tanto de outras ciências, como
de espaços de pesquisa e interlocução; além da dependência das próprias
religiões e igrejas cristãs (BRANDT, 2006). É o caso particular do Brasil,
onde não encontramos grande destaque (ou mesmo espaço) para estu-
dos e pesquisas no contexto acadêmico. Basta, para tal, observarmos
que no âmbito da Psicologia brasileira não há nenhum programa de gra-
duação que, em seu cúrriculo, contemple uma disciplina sobre o tema da
Psicologia da Religião. Quando muito a encontramos no rol das optativas
das universidades públicas, mas que nem sempre conseguem vir à luz.
“No que diz respeito ao Brasil, o lugar mais seguro da ciência da religião
parece ser (ainda?) sob o teto da teologia cristã” (BRANDT, 2006, p. 141).
Entretanto, o cenário da PR no Brasil é de grande produção e de ampliação
de debates, com perspectivas positivas, em particular graças ao Grupo de
Trabalho “Psicologia & Religião” da ANPEPP, constituído em 1998, con-
gregando pesquisadores de diversos programas de Pós-Graduação do país
e, que realiza bianualmente um Seminário em torno de suas pesquisas
(ESPERANDIO; MARQUES, 2015).
Mesmo assim, os desafios são múltiplos. Retomando Brandt (2006),
dois deles são particularmente importantes: a ausência de grandes com-
pilações — sejam manuais ou compêndios — que toquem em questões
teóricas, metodológicas e conceituais relativas às Ciências da Religião e à

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Fenomenologia e psicologia da religião no Brasil 147

Psicologia da Religião, e a igual ausência de tradução dos grandes clássi-


cos. A polêmica em torno da tradução do texto de Otto, O Sagrado, ilus-
tra bem essa questão. Mesmo assim, há que se destacar outros proble-
mas. No caso específico da PR, o clássico de William James, Variedades da
Experiência Religiosa, encontra-se esgotado há décadas; Edwin Starbuck
é praticamente desconhecido; bem como Leuba, Stanley Hall, Allport,
Argyle, Fowler e outros. A própria contribuição de Wundt fica limitada ao
formalismo sob o qual é apresentado nos livros de história da psicologia.
Desta forma, não é de se espantar que o discurso “religioso” se con-
funda com o discurso científico ou filosófico sobre a religião, a religiosi-
dade e a espiritualidade. E, com isto, se alienem as discussões no próprio
seio da formação e da profissão no Brasil, como podemos observar clara-
mente a partir da polêmica recente em torno da “laicidade” da profissão.
Esta questão é importante — não apenas por considerarmos incoerente
uma perspectiva “psicológica” que exclui o fato concreto da constituição
das subjetividades, como é o caso da religiosidade — mas para trazermos
a ideia do espírito da cooperação — da “hospitalidade” no sentido der-
ridariano, do diálogo, do respeito e consideração pela diversidade, pelo
apelo ao concreto, sem esquecer seu fundamento último, qual seja, o de
um sujeito em intrínseca relação contextualizado, delimitado e aberto ao
mundo. Quando se aliena o debate no seio de uma profissão, aliena-se o
próprio fundamento da liberdade de pensar de seus sujeitos. O silencia-
mento ou a invisibilidade da religiosidade num determinado contexto,
está a serviço de que ou de quem? Afinal, colocar a laicidade como pau-
ta definida, numa defesa intransigente, já induz o caminho do debate.
Bastaria apontar a posição de Habermas (2007), quando fala da dialética
da razão comunicativa e defende que a legitimação do espaço democrático
e do direito requer a participação de todos no debate público na tomada
de decisões, numa “solidariedade respeitosa”.
Um grande desafio da FR é reconhecer as próprias palavras de
Husserl, quando define sua Fenomenologia Pura como a ciência dos fun-
damentos ou ciência fundamental (HUSSERL, [1913], 1985), como uma
ciência dos fenômenos (de todas as ciências), em todas as suas manifes-
tações. Portanto, poderíamos designar a Fenomenologia como a ciência
da inclusão; pautada sobre a Einstellung, como uma (nova) orientação,

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148 HOLANDA, A. F.

uma atitude, um modo de ver aberto, distinto do modo naturalista. Em


outras palavras, num (novo) modo de se pensar o diferente. A questão
da radicalização da laicidade no contexto da PR brasileira escamoteia o
“fenômeno” religioso que brota em múltiplas manifestações, e aliena uma
realidade existencial profundamente arraigada do povo brasileiro. Desta
feita, não há estudo da subjetividade e de seus processos de subjetivação
que possa persistir sem considerar a dimensão essencialmente religiosa
do brasileiro.
Por fim, convém assinalar os desafios empíricos e metodológicos
da FR no Brasil. E um desses é exatamente a reconstituição do caráter do
“empírico” no contexto da Fenomenologia, em seu sentido original — ex-
periência — que tanto pode implicar numa pesquisa experiencial quanto
experimental. Encontramos poucos estudos em PR que se apropriam do
olhar fenomenológico. A expressão “FR” é pouco utilizada no contexto da
Psicologia, bem como no próprio contexto das disciplinas de saúde em
geral. Numa busca em bases de dados abertas — SCIELO e PePSIC — de
publicações brasileiras, utilizando múltiplas associações entre descrito-
res (“fenomenologia”, “religião”, “religiosidade”, “experiência religiosa”,
“vivência religiosa”, “espiritualidade”), o número de produções foi bem
pouco expressivo, apenas 23 artigos, sendo que a maioria das produções
se apoia em debates teóricos ou conceituais. A perspectiva de pesquisa fe-
nomenológica exige a consideração de todas as manifestações do sujeito,
como apresentações de um sujeito em sua íntima relação com o mundo.
Assim, não há conflito entre o empírico, o experiencial e o subjetivo.
Na prática, o foco das pesquisas com o vivido do fenômeno religio-
so, a partir de seus diversos modos de apresentação podem ganhar con-
tornos variados. Pode-se ouvir tanto fiéis e crentes, numa direção (ou
sujeitos comuns, sem vínculo especial com religiosidades particulares), e
profissionais, noutra direção (como sacerdotes e psicólogos), com o intui-
to de compreender como lidam com as dimensões do sagrado e do “profa-
no”, do espiritual e do secular. Isto significa acolher o fenômeno religioso
em suas múltiplas manifestações, o que abre nosso “objeto” de estudo
em várias perspectivas. Em recente pesquisa sobre a utilização do Coping
Religioso/Espiritual por profissionais atuantes no contexto da Rede de
Atenção Psicossocial (CORRÊA, HOLANDA, 2015), constatou-se sua alta

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Fenomenologia e psicologia da religião no Brasil 149

utilização — tanto no âmbito pessoal, como no do trabalho, a partir das


falas dos colaboradores — e uma pontuação baixa de fatores negativos do
coping, apontando a esfera religiosa como relevante.
A leitura desses dados, bem como de outros dados derivados de
pesquisas, nos faz refletir cada vez mais sobre a relevância do debate em
torno do reconhecimento da experiência religiosa como uma manifesta-
ção autêntica do existente em seu contínuo diálogo com o mundo. Mesmo
assim, o campo da Psicologia aliena cada vez mais essa experiência, não
a reconhecendo como manifestação autêntica — social, individual ou an-
tropológica — posicionando-se, assim, numa incoerência digna de nota:
afinal, aquela disciplina que deveria privilegiar um olhar ampliado e isen-
to para o sujeito humano é exatamente a que o retira de seu mundo e que
o isola em perspectivas ideológicas alheias a si mesmo.
Por fim, vale destacar que fazer uma Fenomenologia da religião passa
por um olhar amplo para o fenômeno religioso, incluindo a análise do sig-
nificado dos movimentos em religiões — trânsito religioso, migrações, etc.
— além da interpretação de signos e sinais particulares. Parece-nos que o
que falta, para que se desenvolvam mais pesquisas em FR, seja exatamente
uma melhor compreensão do sentido de se fazer uma “fenomenologia”.

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Recebido: 03/11/2016
Received: 11/03/2017

Aprovado: 25/02/2017
Approved: 02/25/2017

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