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16-Psicanálise e Religião

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INTRODUÇÃO

Ao longo da história da humanidade, observa-se a religião como um aspecto que sempre


esteve presente nas relações, propiciando trocas fecundas e revitalizando questões antigas e
atuais, que ao desenvolver-se assumiu diferentes formas nas mais variadas culturas.
Atualmente, religiões que colocam a ênfase na crença, enquanto outras destacam a prática;
há aquelas que focam em uma experiência subjetiva, enquanto outras propõem como
importante, o desenvolvimento de atividades na comunidade; algumas religiões se
apresentam como universais, afirmando suas leis e cosmologia como válidas ou
obrigatórias à todas as pessoas, outras ainda se colocam como prática a um grupo definido ou
localizado.
Além disso, as relações religiosas estão associadas a várias instituições públicas, como
escolas, hospitais, famílias, governos e hierarquias políticas. Por sua vez, a origem da
psicanálise, está na medicina elaborada por Sigmund Freud (1856-1939)1 , um médico
neurologista austríaco, formado em 1881, que através do campo clínico e de investigação
teórica estudou a psique humana.
Freud propôs este método, a fim de compreender e analisar o homem, enquanto sujeito do
inconsciente,a partir de três áreas: método de investigação do psiquismo e seu
funcionamento; sistema teórico sobre a vivência e o comportamento humano; método de
tratamento caracterizado pela aplicação da técnica da Associação Livre .
Atenta ao dinamismo cultural, a psicanálise oferece suas perspectivas a respeito da
religiosidade. Paralelamente, a religião sendo observada na perspectiva do “ser” e não do
“fazer”, ressurge como uma aliada a psicanálise, na intenção de levar o ser humano,
enquanto sujeito do inconsciente, a “cura”.
Para melhor compreensão das relações entre religião e psicanálise e para ter uma
concepção mais fiel ao que se propõe este artigo, faz-se necessário apresentar,
primeiramente e individualmente, alguns dos pressupostos de cada uma destas áreas.
Observando os diferentes caminhos para os quais cada uma se atem, ao mesmo tempo em
que estão sendo passíveis de uma análise conjunta diante das importantes contribuições na
formação psíquica do ser humano, propõe-se uma reflexão: Seria possível estabelecer um
diálogo entre religião e psicanálise? O quanto isso se relaciona com a prática psicanalítica?
Até que ponto a psique pode ser afetada pelas crenças ou pela falta de fé?
Para tentar responder a estas perguntas discorreremos sobre os temas: a religião e a
psicanálise – aspectos antigos e contemporâneos-Freud e a religião, e, por fim, o possível
diálogo na constituição do sujeito.

1
A RELIGIÃO
A religião apresenta-se sob as mais variadas formas, das mais primitivas às mais
elaboradas, dificultando ao longo da história da humanidade uma única definição.
Uma abordagem disciplinar com base em estudos científicos e analisada por diversas
disciplinas das ciências sociais e humanas, dentre elas, a história das religiões3 – nascida na
segunda metade do século XIX e que não só estuda a religião recorrendo aos métodos da
investigação histórica, mas também estuda o contexto cultural e político em que
determinada tradição religiosa emergiu – definiu um modelo padrão de religião, proposto
por Clifford Geertz (1962-2006)4 , considerandoa um "sistema cultural" (GEERTZ,
1973).Para Geertz(1989, p. 15): “o homem é um animal amarrado a teias de significados
que ele mesmo teceu”.
De modo que a cultura é vista como as teias e a análise à procura de significados.
Compreendendo que a religião e os religiosos são construídos historicamente na trama
social, pode dizer, conforme a interpretação de Fucner (2012, p. 165), que o conceito de
cultura é “semiótico” 5 , ou seja, uma cultura que busca entender como o ser humano
consegue interpretar as coisas, principalmente o ambiente que o envolve.
Desta forma, estuda como o indivíduo atribui significado a tudo o que está ao seu redor.
Este modelo, usado em cursos de estudos religiosos conhecidos também por “Ciência da
Religião”6 – foi criticado por Talal Asad7 que definiu a religião como "uma categoria
antropológica” (ASAD, 2010).
Considerando a categorização de Asad(2010) e o conceito de antropologia da religião como
aquela que “envolve o estudo de instituições religiosas em relação a outras instituições
sociais e a comparação de crenças e práticas religiosas entre culturas” (CASSIRER, 1944)–
pode-se dizer que a partir também da religião procede a moralidade e a ética, e mais
especificamente dela as leis religiosas ou um estilo de vida eleito pelas ideias sobre osmose
natureza humana, de forma que a religião tem sido uma forma de compreender o mundo,
embora tenha várias feições, conforme cada momento histórico.
Desta forma, o mundo, em sua totalidade, tal como descoberto na experiência, não tem
valor imediato para a fenomenologia, “deve-se pô-lo entre parênteses sem atestá-lo, mas
também sem contestá-lo”, conclui rapidamente Husserl (1991, p.104). Já para o
cristianismo, a religião tem como base os contextos bíblicos para destacar a humanidade e
divindade de Jesus Cristo, conforme escreve João: “No princípio era o Verbo, e o Verbo
estava com Deus, e o Verbo era Deus (JOÃO 1:1); (BÍBLIA, 1994).E o Verbo se fez carne,
e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai, cheio de graça
e de verdade” (JOÃO1:14); (BÍBLIA, 1994).
O próprio Cristo, como ser humano, enfatizando sua divindade, disse: “Você não me
conhece, Filipe, mesmo depois de Eu ter estado com vocês durante tanto tempo? Quem me
vê, vê o Pai. Como você pode dizer: „Mostra-nos o Pai‟?”(JOÃO 14:9); (BÍBLIA, 1994).
A visão religiosa de um Deus ao mesmo tempo divino e humano traz a ideia de um ser

2
relacional, que procura restabelecer com o homem um vínculo rompido pelo pecado, a fim
de restaurar nele à sua imagem e semelhança, como descrita no livro de Gênesis: “E disse
Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança” (GÊNESIS
1:26); (BÍBLIA, 1994). Na visão da religião cristã, essa aproximação torna-se possível
mediante à aceitação do amor oferecido por Deus, demonstrado no sacrifício de Jesus
Cristo, para salvação do homem, assim definido por João: “Porque Deus amou o mundo de
tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça,
mas tenha a vida eternal” (JOÃO 3:16); (BÍBLIA, 1994). Nessa aceitação, os seguidores
da religião cristã sentem-se parte de Deus, conforme define Paulo: “Pois nele vivemos nos
movimentamos e existimos‟, como declararam alguns de vossos poetas: „Porquanto dele
também somos descendentes‟” (ATOS 17:28); (BÍBLIA, 1994).
Dessa forma, a religião cristã reconhece o homem como sujeito relacional, em primeira
instância para com Deus, ao sentir na sua existência a presença de um Deus que o criou e o
salvou; em segunda instância, a fim de revelar o caráter desse Deus de amor,na relação de
uns para com os outros.

A PSICANÁLISE
A psicanálise, por sua vez, caminha de mãos dadas com a filosofia descortinando os
enigmas da vida cotidiana. Desenvolvida por Sigmund Freud e existente a mais um século
como a ciência do inconsciente, a psicanálise é entendida como um método de tratamento
dos transtornos psíquicos e, inclusive, um método de pesquisa que tem como objetivo a
investigação e compreensão do inconsciente. É considerada como uma forma de
tratamento das psiconeuroses que acometem os seres humanos.
Conforme Nasio (1995,p. 48 e 49), “A psicanálise é um procedimento, um método e a
teoria daí derivada”, apresentando três linhas de pesquisa, para assim defini-la: Psicanálise
é o nome: 1) de um método de investigação dos processos psíquicos que, de outro modo,
são praticamente inacessíveis; 2) de um método de tratamento dos distúrbios neuróticos que
se fundamenta nessa investigação; 3) de uma série de concepções psicológicas adquiridas
por esse meio (...). Nasio (1995, p. 48 e 49), também busca compreender “Quais são os
conteúdos da teoria psicanalítica”, agrupando os fatores que a constituem: São eles: a
ênfase colocada na vida pulsional (afetividade), na dinâmica psíquica, na significância e no
determinismo gerais, inclusive dos fenômenos psíquicos aparentemente mais obscuros e
mais arbitrários; a doutrina do conflito psíquico e da natureza patogênica do recalcamento,
a concepção dos sintomas mórbidos como satisfação substitutiva, e o reconhecimento da
importância etiológica da vida sexual, em particular a dos primórdios da sexualidade
infantil.

3
O site A mente é maravilhosa (2018) apresenta o método de tratamento da Psicanálise
como livre associação de ideias, interpretação dos sonhos e análise dos atos falhos, sendo
destes, o principal método da psicanálise, a interpretação da transferência e da resistência
com análise da livre associação.

Para Novais (2017, p. 388), a base da Psicanálise é a Neuropatologia, onde todo o edifício
da psicanálise busca na teoria da repressão o material empírico sobre o qual ela repousa a
observação da repressão, a resistência e o conflito na vida humana. De acordo com Vale
(2018), não se pode negar as contribuições de Freud por meio da psicanálise para o
conhecimento humano e para os estudos mentais, de forma que o verdadeiro choque moral
provocado por essas ideias serviu para que a humanidade rompesse seus tabus e
preconceitos na compreensão da sexualidade.

A Ordem Nacional dos Psicanalistas (2018) percebe a sexualidade humana, como o berço
da vida e do amor, podendo apresentar-se como o início das neuroses, psicoses, desvios
narcisistas de personalidades e também a nascente da Psicanálise, já que na visão psicanalista
a sexualidade deve ser entendida em seu sentido amplo e não restrito,ou seja, a sexualidade
como manifestação do prazer no organismo. Para Nasio (1995, p. 33), as tendências em
busca da satisfação sexual nascem na zona erógena do corpo, mas esbarram no
recalcamento, permitindo a exteriorização de atos que substituem o ato incestuoso,
tendências chamadas de pulsões sexuais.

E continua (NASIO, 1995, p. 33): As pulsões sexuais são múltiplas, povoam o território do
inconsciente, e sua existência remonta a um ponto longínquo de nossa história, desde o
estado embrionário, só vindo a cessar com a morte. Suas manifestações mais marcantes
aparecem durante os primeiros cinco anos de nossa infância. Freud decompõe a pulsão
sexual em quatro elementos. Deixando de lado a fonte de onde ela brota (zona erógena), a
força que a move e o objetivo que a atrai, a pulsão serve-se de um objeto por meio do qual
tenta chegar a seu objetivo ideal. Esse objeto pode ser uma coisa ou uma pessoa, ora a
própria pessoa, ora uma outra, mas é sempre um objeto fantasiado, e nãoreal.

Isso é importante para compreender que os atos substitutivos através dos quais as pulsões
sexuais se exprimem (uma palavra inesperada, um gesto involuntário, ou laços afetivos que
não escolhemos) são atos moldados em fantasias e organizados em torno de um objeto
fantasiado .

A visão da psicanálise de Sigmund Freud trouxe avanços importantes para os estudos mais
atuais. É possível observar isso na aprendizagem, na cura de fobias e nos traumas, medos,
estado emocional e outras contribuições de problemas originados no processo emocional.
De acordo com Novais (2017, p. 333), Freud (FREUD, volume XII, p. 175) nos esclarece
qual o interesse da psicanálise: A psicanálise é um procedimento médico que visa à cura de
certas formas de doenças nervosas (as neuroses) através de uma técnica psicológica. Num

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volume publicado em 1910, descreve a evolução da psicanálise a partir do procedimento
catártico de Josef Breuer e de sua relação com as teorias de Charcot e Pierre Janet. Sob a
perspectiva freudiana, quando a sexualidade é reprimida gera as neuroses. Reafirmando
Freud, Novais (2017, p.388), diz: [...] “a doença é gerada pelo próprio ser humano. [...] em
termos mais genéricos, a essência da repressão consiste na recusa do ser humano em admitir
as realidades de sua natureza humana”.

FREUD E A RELIGIÃO
A visão corrente dos psicanalistas se apoiou muitas vezes na concepção do criador da
psicanálise, segundo a qual existe um conflito insuperável entre razão e fé, conflito ainda
mais evidente com o avanço das ciências da natureza apoiadas no rigor metodológico e no
ideal da comprovação intersubjetiva. Alguns textos de Freud parecem bem claros a esse
respeito, como na célebre passagem de “O futuro de uma ilusão”, quando, após louvar a
modéstia realista do “nosso Deus logos”, ele define a religião como ilusão e afirma
enfaticamente, com base nos numerosos resultados obtidos pela ciência: “não, nossa
ciência não é uma ilusão” (Freud, 1927/1999, p. 380).
Certamente a compreensão freudiana da religião não pode se liminar nem a essa obra e
nem a essa passagem. Aqui visamos tão simplesmente recortar, sem generalizar, um
elemento filosófico significativo: o de legitimar epistemologicamente o novo
empreendimento teórico, mostrando o seu alinhamento com establishment científico da
época. Por outro lado, a psicanálise, considerada como uma “nova disciplina científica” de
caráter empírico (als empirische Wissenschaft), semelhante à Física e à Química, se
singulariza por estudar a dinâmica e o desenvolvimento dos processos psíquicos
inconscientes e não poderia deixar de lado a investigação da gênese das crenças religiosas
(Freud, 1923/1999).
Desse modo a Psicanálise enquanto ciência do psiquismo deve abordar a experiência, a
crença e a prática religiosas como aspectos não negligenciáveis de seu objeto de estudo. De
fato, de 1907 a 1939, Freud publica uma série de textos sobre o assunto: desde “Atos
obsessivos e práticas religiosas” (1907), passando por “Totem e tabu” (1913), “O futuro de
uma ilusão” (1927), “Sobre uma visão de mundo” (1933), até “O homem Moisés e a
religião monoteísta” (1939). Neles, como mostram os autores acima citados (Morano,
2003; Araújo, 2014), emergem dois modelos hermenêuticos na análise crítica da religião: o
primeiro é o da neurose, cuja referência exemplar é a neurose obsessiva e o sentimento de
culpa em relação ao pai, sentimento exorcizado por seus cerimoniais de expiação, e o
segundo é o do sonho ou da ilusão acerca da proteção e do consolo proporcionados pelo
pai onipotente. Em ambos os casos, a gênese da religião, assim como a sua natureza e a sua
função, se enraízam no complexo paterno (Araújo, 2014).
Não é nosso objetivo retomar por extenso a interpretação freudiana da religião, trabalho já

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feito por outros e com a devida competência. Retomamos tão somente alguns pontos
apenas para integrá- los no desenvolvimento do nosso argumento. Relembramos os
seguintes: 1º. Em sua natureza, a religião é uma defesa inconsciente, coletivamente vivida,
cuja compreensão pode ser feita por analogia com a neurose obsessiva. Os inúmeros
escrúpulos e obsessões, bem como os rituais compulsivos dos neuróticos visando afastar a
angústia e a culpa, reaparecem nas práticas religiosas realizadas num empenho sempre
reiterado de exorcizar o desamparo humano.
O segredo da analogia entre a religião privada do neurótico e a religião pública do crente
não se encontra em seu conteúdo, mas em sua forma, ou seja, no modo como em ambos os
casos os sujeitos se empenham na solução do conflito psíquico em torno da figura paterna
atravessada pela sexualidade infantil e pelo desejo de morte (Morano, 1991). 2º. Em sua
origem, e aqui a analogia pode ser reiterada como indica o subtítulo de “Totem e tabu”, a
religião deriva do assassinato do pai originário e violento (der gewalttätige Urvater) e a
identificação dos irmãos assassinos com ele por meio do banquete totêmico: eventos
míticos a compor o quadro da tragédia e da celebração fundadoras, a serem para sempre
rememoradas como o início da organização social, das restrições morais e da religião
(Freud, 1913/1999).
Assim, como enfatiza a fenomenologia da religião, Deus e o sagrado suscitam fascínio e
temor, conjunção afetiva a expressar a ambivalência estrutural suscitada pelo pai originário,
pois, como nos lembra um comentador, “não é o medo de morrer que dá início à religião, é
o medo de matar a quem se odeia e ama ao mesmo tempo, o pai” (Costa, 1988, p. 88). 3º.
Em sua função, a religião protege e consola o ser humano continuamente acossado pela
morte, pela doença, pela fragilidade do corpo, pela hostilidade dos outros e pelo peso da
civilização.
Porém, assim como a proteção e o consolo do pai são ilusórios, pois não resolvem, mas
apenas mitigam e encobrem o desamparo da criança, também a religião simplesmente
engana e oculta os males do mundo. A visão religiosa do mundo, qualificada por Freud
como “visão de mundo totalmente não científica” (ganz unwissenschaftliche
Weltanschauung), pretende ser exaustiva e completa, enquanto a visão científica do mundo
(wissenschaftliche Weltanschauung), à qual a psicanálise adere e da qual faz parte, se
caracteriza por ser sempre passível de revisão e estruturalmente incompleta.
A distinção entre ambas não se limita à questão da utilidade – embora a religião apenas
compense nossa impotência recorrendo ilusoriamente à onipotência divina, enquanto a
tecnociência avança de modo lento e seguro na dominação da natureza – mas também diz
respeito á questão da verdade. Afinal de contas, a realização (Erfüllung) de nossos desejos
só é possível se eles puderem convergir com a realidade, e somente a ciência,
independentemente de sua aplicação, pode apreender a realidade que “subsiste fora e
independente de nós”, e a verdade consiste justamente nessa concordância com a realidade.
Nesse sentido, como afirma Freud de modo um tanto taxativo, “nós acreditamos que o
conteúdo de verdade da religião em geral pode ser desprezado” (Freud, 1932/1999, p. 181).

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A retomada desses três pontos acerca da natureza, da origem e da função da religião não
visa esgotar a abordagem freudiana e muito menos simplificá-la para mais comodamente
refutá-la. Assim, no pós-escrito de 1935 à sua exposição autobiográfica de 1925, Freud quis
assinalar o entrelaçamento entre o seu destino de vida e a história da psicanálise. Ao fazê-lo
ele afirmou “ter julgado a religião de modo essencialmente negativo” e reconhecendo:
“mais tarde encontrei a fórmula que a ela concedia melhor justiça: o seu poder repousa
certamente em seu conteúdo de verdade (Wahrheitsgehalt), porém esta verdade não é
material, mas sim histórica” (Freud, 1935/1999, p. 33).
Tal afirmação, como observa o editor inglês, remete às últimas seções da terceira parte de
“Moisés e a religião monoteísta”. Nelas “o conteúdo de verdade da religião” (der
Wahrheitsgehalt der Religion) é reconhecido, todavia, ao contrário da pretensão dos
crentes religiosos, não se trata de verdade transcendente ou, nas palavras de Freud, “de um
fragmento da verdade eterna”, mas antes, diz ele, “nós também cremos que a solução dos
crentes contém a verdade, mas não a verdade material e sim a verdade histórica” (Freud,
1939/1999, p. 238).
A contraposição entre verdade material (materielle Wahrheit) e verdade histórica
(historische Wahrheit) é feita no contexto do exame crítico do argumento piedoso (das
fromme Argument), claramente aproximado por Freud à inclinação de nosso intelecto às
ilusões de desejo (Wunschillusionen). Estaríamos condenados a tais ilusões? Certamente
não, pois se o fôssemos não seria possível distinguir entre os dois tipos de verdade, a
material e a histórica.
Não há como reconstruir a exposição freudiana, mas nela podemos perceber, de um lado, a
contribuição específica da psicanálise, ao investigar o lugar da religião na constituição
subjetiva e, de outro, certas pressuposições filosóficas típicas de sua formação. Como
veremos, também Feuerbach em sua obra mais conhecida A essência do cristianismo, de
inegável influência sobre Freud, não rejeitou simplesmente a religião, mas afirmou a sua
essência verdadeira, ou seja, a sua verdade antropológica (Mezan, 1986).

RELIGIÃO X PSICANÁLISE
Para Freud uma das grandes responsáveis por desencadear as neuroses é a religião, de
forma que o seu primeiro escrito sobre a religião foi o ensaio Atos obsessivos e práticas
religiosas, em 1907(FREUD, 1906, p. 109ss).O título do ensaio, assim como o texto
abordado, traça um paralelo entre as cerimônias e rituais presentes na neurose, deixando
evidente que se trata de uma abordagem sobre as similaridades entre a obsessão e a
religião.
Dessa forma, para Freud as pessoas que praticam atos obsessivos ou cerimoniais pertencem
à mesma classe das que sofrem de pensamento obsessivo, ideias obsessivas, impulsos
obsessivos e afins. Isso, em conjunto, constitui uma entidade clínica especial, que
comumente se denomina de “neurose obsessiva”(FREUD, 1906, p. 110s).

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Além dessa visão, é possível encontrar diversas abordagens sobre religião nas demais
obras escritas por Freud. Freud também relaciona as doutrinas religiosas com um caráter
ilusório e que não podem ser comprovadas, aproximando-as de um delírio e colocando o
conhecimento científico como a “única estrada que nos pode levar a um conhecimento da
realidade externa a nós mesmos” (FREUD, 1927, p. 45).
Afirmações como essas, difundiram a ideia entre o meio psicanalítico de que para Freud não
há “casamento” entre a psicanálise e a religião, mas observa-se que a crítica de Freud em
relação à religião, conforme suas próprias palavras, parece ir contra a seguinte resposta
dada a Oskar Pfister9 (FREUD apud ROUDIESCO; PLON, 1998, p. 589): “A psicanálise,
em si, não é nem religiosa nem irreligiosa. É um instrumento sem partido, do qual podem
servir-se religiosos e leigos, desde que o façam unicamente a serviço do alívio dos seres
que sofrem”.
Dessa forma, a visão religiosa parece amena, no entanto, diante de outras posições mais
radicais, conforme Flecha (2016),Freud era um homem que não necessitava
emocionalmente do amparo de um ser superior, pois para ele, o que bastava para lidar com
a vida, era aquilo que se oferecia de forma evidente no mundo da natureza. Flecha (2016),
sobre Freud, pondera que: Sua atenção voltava-se com maior intensidade para as fontes da
religião judaica e cristã, pois estas lhe eram mais próximas.
Em relação ao Judaísmo sua posição era de intolerância com os rituais e práticas, no
entanto, valorizava seus ensinamentos éticos. Com relação ao Cristianismo, que segundo a
sua visão era marcado por um sincretismo com as religiões pagãs, Freud julgava um
retrocesso quando comparada ao Judaísmo. Na condição de judeu, seria natural de sua
parte uma atitude marcada pelo preconceito, dada a história de perseguições promovidas
pelo Cristianismo; no entanto, sua posição era de tolerância.
A psicanalista Rizzuto (2001) interpreta alguns elementos contidos na teoria de Freud e em
seu desenvolvimento pessoal para mostrar as razões que o levaram a se opor à religião e
suas instituições. Ao ser entrevistada sobre “Por que Freud rejeitou a Deus”, pela revista
IHU On-Line(2006), Rizzuto diz que: Circunstâncias pessoais da vida de Freud, durante
seu crescimento, não lhe permitiram a experiência da sensação de proteção. Seus primeiros
anos de vida foram marcados por mortes significativas: seu avô paterno, seu tio e seu irmão
Julius. A última morte marcou a experiência psíquica de Freud para toda a vida. Ele teve
outras perdas: sua babá, a quem foi superapegado, desapareceu de sua vida sem dar notícia.
Freud, quando era pequeno, saiu de sua cidade natal, e seu pai perdeu o emprego.
Depois, entrou para a escola pública, e pegaram seu tio favorito contrabandeando,
prenderam-no e julgaram-no. Em suma, nenhum dos adultos com os quais Freud precisou
contar foram capazes de oferecer-lhe proteção e segurança. Eles falharam com Freud de
uma maneira ou de outra. Meus estudos mostram que crianças precisam de modelos de
confiança e figuras adultas para dar forma a uma representação de Deus que seja
acreditável. Freud não teve essa experiência. Ele sentiu que tinha que tomar conta dele
mesmo, sozinho.

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Para ele, em suas palavras, “não há nenhuma Providência” para prestar atenção nele. Como
cientista, ele acreditou apenas nos métodos científicos que implica que tudo que não é
provado cientificamente não existe. Esse segundo fator contribuiu para consolidar sua
descrença na existência divina. E ao ser questionada sobre a imagem que Freud tinha de
Deus, Rizzuto responde à revista IHU On-Line(2006): [...] Minha resposta não vem da
exploração de sua mente, mas dos acessos indiretos que tive a seus escritos. De sua
experiência, Freud concluiu que Deus descrito pela religião como uma divindade que nos
protege, não existe.
Na consciência dele, a representação de Deus clamava por um aspecto de proteção. A
experiência emocional de Freud indicava para ele que nenhuma das figuras paternas nem os
adultos de sua vida foram capazes de protegê-lo das perdas profundas e do sofrimento. Ele
não teve experiências para formar sua crença na representação da providência e proteção de
Deus.
Além de Freud, é possível destacar outros dois nomes da história psicanalítica que
abordaram temas sobre a religião, a partir de suas origens familiares, mas que obstinados
com a ciência de seu tempo e desejando abordar a questão por uma perspectiva cientifica,
foram críticos da religião institucionalizada. São eles: Carl Gustav Jung10era filho de um
pastor protestante e Jacques Émile Lacan11que pertencia a uma família extremamente
católica – um de seus irmãos foi um monge beneditino.
Jung compreende a religião como relegere12(AZEVEDO, 2010, p. 91)um termo que se
remete às raízes do paganismo, onde está vinculado à prática correta dos ritos, exigindo
uma postura de escuta, observação e submissão por parte do ser humano ao desejo ou à
vontade dos deuses. É interessante observar que Jung nunca utiliza o termo
religare13 ,(DUBUISSON, 1998, p. 44), já que o seu entendimento para a religião é
fundamentado exclusivamente por relegere.
Não há como atribuir o termo religare à compreensão de Jung, pois fere a noção de um ser
humano que possui um “pressuposto” religioso, ou seja, a religião, na perspectiva de Jung é
inata, sentida internamente na psique. Conforme Portela (2018), “em outras palavras, o que
interessa a Jung é a religião enquanto manifestação psicológica, enquanto experiência
psíquica e sua característica simbólica”.
Para Lacan (2018), as relações entre psicanálise e religião “não são muito amigáveis”.
Cunha (2018) contribui observando que inicialmente, Lacan propõe uma retomada da
interpretação freudiana sobre a religião e assim como Freud ele se tornou uma espécie de
crítico da cultura religiosa de seu tempo. Mas, diferentemente de Freud, Lacan deu uma
nova interpretação e um novo papel a essa instituição. Askofaré (2008, p. 14), afirma que
para Lacan, a religião não é um tema qualquer em seu ensino, mesmo não ocupando o
mesmo lugar e o mesmo status, que Freud (1988, p. 176), auto intitulado de judeu
incrédulo.
Conforme a visão de Freud a religião se relaciona com as neuroses obsessivas, enquanto no

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pensamento de Lacan sua qualificação é muito mais valorizada, mesmo tratando-a como
esquizofrenia coletiva (LACAN, 2005, p. 76). Dessa forma Lacan percebe a religião como
uma neurose coletiva. Assim destacado por Askofaré (2008, p. 15): “[...] todo o ensino de
Lacan [a cerca da religião] pode ser lido como uma obra de registro (eliminação) da
psicanálise na religião e, em seguida, de emancipação (separação), a psicanálise da
religião”, reconstruindo a finalidade e o propósito da religião sem sentido, de forma que
desligada uma da outra, a psicanálise da religião e a religião da psicanálise, devem ocupar
os seus lugares de direito e cumprir o seu papel.
Não há no ensino de Lacan nenhuma teoria religiosa que tenha sido tão bem formulada
como as que foram estabelecidas por Freud em Totem e tabu (1999), O futuro de uma
ilusão (1988) ou Moisés e o monoteísmo (1996), no entanto, Lacan não foi indiferente ao
assunto, pelo contrário, no que diz respeito a Deus e à religião, Lacan apresenta como obra
O triunfo da religião, que traz uma visão amadurecida das leituras de Freud, sendo
considerada por Cunha (2018, p. 142) como bojo da edificação conceitual lacaniana.
Nesse sentido, conforme Cunha (2018, p. 151) para Lacan, a religião e a psicanálise são
bem diferentes, pois enquanto a psicanálise é um sintoma do malestar, a religião é a cura
deste, onde apenas a religião verdadeira pode dar sentido ao mundo, conforme ele afirma no
início de sua entrevista (LACAN, 2011): Se a religião triunfar, como é o mais provável –
falo da verdadeira religião, não há senão uma verdadeira – se a religião triunfar, isso será
sinal de que a psicanálise fracassou.
É muito normal que ela fracasse, porque aquilo ao qual se consagra é muito difícil. No
contexto histórico da psicanálise é possível encontrar outros nomes que defendiam e
praticavam a religião em sua vida pessoal. Dentre estes, está a psicanalista francesa
Françoise Dolto14 e o psicanalista inglês Donald Woods Winnicott15, que fez parte da
Sociedade Britânica de Psicanálise, sendo muito influenciado por Melaine Klein16em seus
primeiros anos de estudos em psicanálise.

UM DIÁLOGO NA CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO


Como médico pediatra, Winnicott se interessou pelo desenvolvimento dos bebês e
principalmente a figura materna (WINNICOTT, 1983, p. 81). Percorreu as sendas das
primeiras relações humanas procurando atender a demanda da saúde mental. Como
psicanalista Winnicott procurou formar uma concepção de saúde mental, começando pelo
desenvolvimento emocional primitivo(WINNICOTT, 1986, p. 77), ao mesmo tempo em
que tratava a religião como um possível espaço de saúde mental e
criatividade(WINNICOTT, 1986, p. 33).
Chauvet (1995, p.52) citando Winnicott explica a relação entre estes campos na vida
humana, observa que: Winnicott se esforça para mostrar como o objeto transicional da

10
criança constitui o ponto de partida de um processo que subsiste ao longo de toda a vida no
modo de experimentação interna que caracteriza as artes, a religião, a vida imaginária e o
trabalho científico-criativo: o conjunto dos fenômenos culturais deve, pois ser
compreendido como um processo de “fenômenos transicionais”.
Entre a área psíquica de dentro e a área do real de fora existe, portanto, uma terceira área...
onde se situa a experiência cultural ou o jogo criativo, chamado pelo autor “espaço
potencial”, onde se negocia, através do jogo, a criação artística ou ritualidade religiosa, a
relação com o real.
Percebe-se neste contexto que muitas formações acontecem no primeiro ano de vida de
uma criança, onde o desenvolvimento emocional tem lugar desde o princípio, já que num
estudo da construção da personalidade e do caráter é impossível ignorar as ocorrências dos
primeiros dias e horas de vida e até mesmo do último estágio da vida pré-natal até a
experiência do nascimento, sendo que cada momento pode ser significativo.
Para Winnicott (1958, p. 4): [...] a despeito de nossa ignorância no que toca a este assunto,
há algo na mãe de um bebê que a torna particularmente qualificada para proteger seu filho
nesta fase de vulnerabilidade, e que a torna capaz de contribuir positivamente com as claras
necessidades da criança. A mãe é capaz de desempenhar esse papel se se sentir segura; se
se sentir amada em sua relação com o pai da criança e com a própria família; e ao sentir-se
aceita nos círculos cada vez mais amplos que circundam a família e constituem a
sociedade.
Assim, é possível perceber que a biografia de cada ser humano começa nos primeiros
contatos com outras histórias humanas, construídas na relação com as imagens e conceitos
humanos intrínsecos aos olhares e dependências. Desta forma, é nesse espaço potencial da
construção das relações que a religião tem seu diálogo com a psicanálise. Autores cristãos
têm em seus escritos, estudos que dialogam com os que são apresentados pela psicanálise, no
que diz respeito à constituição do sujeito.White (1910, p. 171) afirma que: Os sentimentos
da mãe moldam a disposição da criança antes de nascer.
Os pensamentos e sentimentos da mãe terão poderosa influência no legado que ela faz a
seu filho. Se ela permite que os próprios pensamentos se demorem em seus sentimentos, se
condescende com o egoísmo, se é irritadiça e exigente, a disposição de seu filho testificará
desse fato... Para Winnicott (1958), como para os autores que estudam sua constituição, o
ser humano traz em si uma tendência inata a se desenvolver e a se unificar. Essa tendência
atualiza- se no funcionamento dos processos de maturação.
No plano psíquico, a expressão “processo de maturação” aplica-se à formação e à evolução
do eu, do isso e do supereu, bem como ao estabelecimento dos mecanismos de defesa
elaborados pelo eu num indivíduo sadio (NASIO, 1995, p.183). A saúde psíquica, portanto,
repousaria no livre desenrolar desses processos de maturação.
Entretanto, é o ambiente, inicialmente representado pela mãe ou por um de seus
substitutos, que permite ou entrava o livre desenrolar desses processos. Dessa forma,

11
Giovacchini (1995, p. 34) afirma que a concepção de Winnicott a respeito da religião foi
de alguma importância.
Por ter sido criado em uma fé conformista, manteve a capacidade de surpreender e
distinguir-se de tantos autores psicanalíticos. White (2014, p. 64 e 194) reafirma o
pensamento de Winnicott, orientando sobre a importância dos três primeiros anos de vida:
Mães, estai certas de que disciplinais17 devidamente vossos filhos durante os seus três
primeiros anos de vida. [...] A mãe deve ser mente para os filhos. Os três primeiros anos são
o tempo para vergar o pequenino rebento. As mães devem compreender a importância
desse período. É ai que é posto o fundamento.
Ainda sobre o desenrolar do processo de maturação, White (1905, p. 371) pondera que: Os
pais provêm o equipamento vital dos filhos. O que são os pais, em grande parte hão de ser
os filhos. As condições físicas dos pais, suas disposições e apetites, suas tendências morais
e mentais são, em maior ou menor grau, reproduzidas em seus filhos.
Assim como White e de acordo com Paula (2001),ao fazer uma leitura do ser humano,
Winnicott soube interligar o mundo adulto com o mundo infantil. Indo mais
adiante(WINNICOTT, 1986, p. 11): O que a psicanálise nos diz de mais importante a
respeito das pessoas? Ela nos fala a respeito do inconsciente, da vida profunda e oculta de
cada indivíduo humano que tem raízes na vida real e imaginária da infância mais precoce.
No início, o real e o imaginário são uma única coisa,pois a criança não apreende o mundo
de modo objetivo, mas vive num estado subjetivo em que é criadora de todas as coisas.
Gradualmente, a criança saudável torna- se capaz de perceber o mundo do não-eu; para
alcançar esse estado precisa ser cuidada de modo satisfatório durante a época de
dependência absoluta.
Esse pensamento de Winnicott de que “a vida inconsciente” das pessoas está
profundamente ligada à relação satisfatória – ou não satisfatória – da primeira infância é
enfatizado por Nasio (1999, p. 80 e 81) no processo de identificação. Ela corresponde à
forma reflexiva do verbo “identificar”, isto é, “identificarse”. Diremos que um sujeito se
identifica com alguém ou alguma coisa quando ele se confunde com esse alguém ou essa
coisa, quando ele vai até o outro para assimilá-lo e assimilar-se a ele, até tornar-se idêntico.
[...] E chegamos então à psicanálise. [...] a qual “identificar-se” é um movimento em
direção ao outro, uma necessidade de absorvê-lo, de comê-lo ou até de devorá-lo. Nasio
(1999, p. 81 e 82) ainda esclarece que há duas formas de identificação: Ora, uma pessoa
pode identificar-se com alguém ou alguma coisa de duas maneiras diferentes.
Vamos tomar o caso simples de um filho que se identifica com o pai. Ele pode fazê-lo de
duas maneiras. A primeira é uma vontade consciente de ser como o pai. É o caso do
menino de sete anos que sonha ser tão forte quanto o pai e faz tudo para imitá-lo.
[...]Entretanto, há uma segunda maneira de identificar-se com o outro, na qual o processo
não é consciente. Sem dúvida, estamos no mesmo movimento ativo de ir em direção ao
outro para assimilá-lo e deixar-se assimilar por ele, mas trata-se de um impulso

12
espontâneo, irrefletido,de identificação. “Quero ser o outro e quero ser no outro, mas não
tenho consciência dessa vontade”. Ora, na psicanálise essa vontade não se chama vontade,
mas desejo. Mais exatamente: desejo inconsciente de ser o outro. Também se pode chamar
esse desejo inconsciente de “identificação inconsciente”.
Assim, conforme Nasio (1999), ao pensar na constituição do sujeito é preciso abordar o
fenômeno da identificação, construído por Freud, a partir da demarcação do eu como
instância identificatória e estabelecido, principalmente em Lacan e revisto por Melanie
Klein e Winnicott.
Ainda sobre a identificação na constituição do sujeito, Kleintraz uma visão mais ampliada,
do que a apresentada por Freud, ao ter como foco de sua prática psicanalítica as fases da
primeira infância, chamadas por ela de posições. Dupas (2007, p.41) observa que: Segundo
Klein, a base da estabilidade mental está na capacidade para “negociar” a passagem da
posição esquizoparanóide18 para a posição depressiva19. Na posição depressiva o
indivíduo é capaz de suportar a dor psíquica, a mágoa, a culpa e a vergonha, em vez de se
livrar dela.
A ideia de que a dor mental é sofrida e promove crescimento não está em Freud. Pode-se
dizer que para Klein, é necessário solucionar a fase esquizoparanóide para poder alcançar a
posição depressiva. Essa transição remete-se a teoria do Complexo de Édipo , que para
Klein começa bem antes do determinado por Freud, ressaltando que, na concepção
Kleiniana da problemática do Édipo, o lugar conferido à mãe é central. De acordo com
Nasio (1995, p. 152 e 153): Primeiramente, a mãe kleiniana aparece como a metáfora, a
imagem da Outra Cena, para empregarmos uma noção freudiana, ou seja, como o lugar
onde se encenarão, para o sujeito, suas fantasias e seus desejos inconscientes, e, portanto, a
simbolização e a constituição do eu, entendida como constituição do princípio de prazer. [...]
Há uma diferença entre a mãe freudiana e a mãe kleiniana, pois o grande trauma, para
Melanie Klein, não é, justamente, a visão da castração da mãe, não é a castração
representada pela possível privação do pênis; é o trauma do desmame ou seja, do fato de
que o sujeito depende, em sua vida animal, do seio que satisfaz, e, em sua vida humana, do
seio que cria uma falta quando se faz ausente ou presente.
Dessa forma, como cada temática é vencida de modo mais ou menos satisfatório, elas
deixam de certa maneira cicatrizes e déficits, pois as primeiras crises influenciam as
posteriores, sendo que a crescente maturidade das funções cerebrais e o crescente volume
de experiências do mundo levam sempre a novos desequilíbrios e obrigam a restabelecer o
equilíbrio.
Nesse sentido, o ser humano precisa através das relações pessoais, desenvolver a expressão
dos pensamentos que visam à formação psíquica, no nível de instrução socialmente ligado à
religiosidade e a psicanálise, onde cada aspecto do ser humano pode ser desenvolvido
cognitivamente, estabelecendo um diálogo para a constituição do sujeito.

13
A RELIGIÃO COMO PROBLEMA
A palavra religião constitui um campo semântico muito abrangente e seus significados se
inserem em contextos históricos e sociais diversificados. Para o objetivo por nós proposto, é
especialmente importante distinguir a vertente objetiva do fenômeno religioso, que é a
religião em sentido institucional, com seus ritos, normas e dogmas, e a vertente subjetiva do
fenômeno religioso, como uma experiência afetiva e pessoal em relação ao sagrado.
Embora possam existir atravessamentos entre as duas vertentes, nos interessa mais de perto
a dimensão da religiosidade. Esta, todavia, pode se limitar a um sentimento vago de matiz
exclusivamente emocional e psicológico, ou pode se adensar numa experiência muito mais
consistente que poderia ser designada como espiritualidade.
Esta também pode estar ou não vinculada a religiões institucionalizadas ou a tradições
religiosas bem delimitadas, mas sempre vai além dos elementos mais imediatos e afetivos e
se traduz em escolhas axiológicas fundamentais e em compromissos existenciais,
profissionais e sociais bem mais duradouros.
O fato de vivermos em uma cultura predominantemente cristã nos faz perceber que a
passagem de uma religiosidade vaga para uma espiritualidade mais consistente geralmente
está associada a uma resposta acerca da Revelação Bíblica, nem sempre acompanhada de
alguma revelação teológica (Libânio, 2001).
O refluxo da presença pública da religião como fonte de legitimação da vida social e política
e a sua interdição epistemológica como modelo de explicação do mundo têm profundo
impacto na experiência religiosa, pois esta passa a ser considerada como sobrevivência
meramente emocional de crenças arcaicas e pueris racionalmente insustentáveis. Esse
processo de transformação cultural, normalmente descrito como o surgimento de uma era
secular exige uma ampla e complexa reconstrução histórica impossível de ser aqui
resumida (Taylor, 2010).
A questão de fundo a se ressaltar é a seguinte: a experiência religiosa num mundo
inteiramente naturalizado pode ser considerada como algo da ordem da privacidade
individual ou de alguma vivência psíquica, porém como devemos interpretá-la? Ou em
termos filosóficos: quais seriam o lugar e o estatuto da mente num universo explicado nos
termos das ciências da natureza e, por conseguinte, completamente desprovido de algo
como mente? Ou deveríamos eliminar não somente a experiência religiosa, mas também
todas outras experiências consideradas como mentais, como a fruição estética ou o enlevo
amoroso, por considerá- las como incompatíveis com o atual desenvolvimento científico?
Ou, pelo contrário, deveríamos recusar a cisão mente e mundo repensando o mundo como
cultura e a mente como sujeito? (Mc Dowell, 2005; Drawin, & Moreira, 2016).
Nesse caso uma teoria do sujeito implica necessariamente uma teoria da cultura e esta não
pode ser concebida senão pela pressuposição de um secularismo irrefletido, sem levarmos
em consideração a originária e multissecular experiência religiosa da humanidade. Freud
bem o viu e, por isso, as suas elaborações teóricas sobre o psiquismo, mesmo não usando o

14
termo sujeito, não podem ser desvinculadas de suas teorias culturais e de seu persistente
interesse pela experiência religiosa. Não obstante, o interesse teórico desse tipo de
problemática pode ser obscurecido tanto pela apologética religiosa e a reação de repulsa
por ela provocada, quanto pela reiteração da posição crítica freudiana a testemunhar a
hostilidade insanável entre psicanálise e religião.
Os representantes das comunidades religiosas sempre rechaçaram o suposto pansexualismo
freudiano, enquanto os psicanalistas quase sempre desconheceram soberanamente a longa
tradição filosófica e teológica vinculada à religião (Morano, 2003; Araújo, 2014).

À CONCEPÇÃO FREUDIANA
Não é de surpreender, portanto, a enorme influência exercida pela concepção freudiana
acerca da religião e a desconfiança generalizada por ela suscitada no campo psicanalítico.
Todavia, a sua aceitação sem maiores cuidados deve ser questionada, e há muitas e
diferentes razões para submetê-la a um exame mais detido, de modo a abrir outras
perspectivas hermenêuticas.
Podemos apontar rapidamente duas dessas razões, ainda que este não seja o lugar para
explorá-las de modo mais detalhado e aprofundado. A primeira razão possui um caráter
epistemológico. Não se deve estabelecer uma relação imediata entre a concepção freudiana
da religião e a densa rede conceitual da metapsicologia. Freud não era e jamais pretendeu
ser um filósofo.
Não obstante, as suas convicções mais genéricas e básicas foram nitidamente marcadas por
doutrinas filosóficas específicas e condicionadas pelo clima intelectual de sua época. Não
só pelas correntes de pensamento que se entrecruzavam no efervescente mundo centro-
europeu, como também pelas ideias então prevalecentes no específico meio científico
vienense.
A medicina alemã professava desde meados do século XIX crenças materialistas bastante
toscas, e os seus arautos não hesitavam em adotar o mais grosseiro reducionismo. Essa
confrontação simplista entre ciência e filosofia tornou-se um pouco mais sofisticada, seja
com a adoção de uma posição agnóstica em relação aos problemas metafísicos fundamentais,
de modo a liberar a ciência para o enfrentamento de problemas bem circunscritos e passíveis
de resolução empírica, como fez a Escola Fisicalista de Berlim, seja com a adoção de uma
espécie de fusão entre ciência e metafísica, como foi o caso do monismo naturalista de
Ernst Haeckel (Assoun, 1983).
De qualquer forma, Freud rejeitou a metafísica, fortemente identificada com o idealismo
alemão, e era hostil à mistura de filosofia e ciência. Porém, apesar de sua ambivalência
para com a filosofia, ele sempre ambicionou ser um pensador (Denker) e, enquanto tal, as
suas ideias foram profundamente influenciadas por todas essas correntes da filosofia alemã
e, sobretudo, pela contraposição de extração positivista entre ciência e filosofia (Assoun,

15
1978; Rocha, 2004). Ora, no decorrer do século XX, a investigação epistemológica
enfraqueceu muito a concepção empirista da ciência, não só mostrando como a teoria não
decorre indutivamente dos dados observacionais, e sim os precede, mas a tese da
independência dos fatos empíricos em relação à interpretação teórica foi problematizada,
indicando a subdeterminação estrutural da teoria pelos dados observacionais.
Ou seja, as evidências empíricas não parecem ser suficientes como critérios de
discernimento entre duas teorias incompatíveis (Papineau, 2002). Não se trata apenas das
críticas, como Karl Popper as fez desde os anos trinta do século passado, ao método
indutivo, às formas mais difundidas de positivismo ou à verificação como critério de
significado de um enunciado (Popper, 1975).
Mesmo a tentativa de demarcação entre ciência e não ciência com base no critério de
falsificação foi sendo largamente questionada, propiciando uma nova imagem da ciência e
a consciência da íntima dependência histórica e cultural de todo conhecimento, inclusive
do conhecimento científico, dificultando em muito a proposição de algo como uma visão
científica do mundo (Brown, 1988; Feyerabend, 2005).
A questão é intrincada e a bibliografia infindável, mas foi aqui trazida apenas para indicar
como se tornou problemática a crença freudiana no progresso da ciência. Esse não é,
certamente, um argumento a favor da religião, todavia mostra a ciência como uma
atividade cultural inserida num sistema de crenças e com isso torna menos nítida a
fronteira entre ciência e não ciência.
No caso da Psicanálise, a sua pretensão de cientificidade e, sobretudo, o empenho
freudiano em incluí-la como uma das Ciências da Natureza têm sido duramente
questionados. Um filósofo da ciência de tão larga influência como Karl Popper rejeita a
cientificidade da Psicanálise simplesmente porque seus enunciados não são passíveis de
refutação e o seu estatuto seria comparável ao da astrologia (Popper, 1975, 1982).
Aqui não nos interessa discutir a pertinência ou não das considerações de Popper,
insustentáveis em nossa opinião, mas apenas assinalar as imensas dificuldades em
assimilar a Psicanálise aos cânones hegemônicos utilizados na definição da normalidade
científica. Talvez, no entanto, a fecundidade hermenêutica e a força crítica da Psicanálise
residam justamente em sua “impossibilidade” epistemológica, em seu “fracasso” como
ciência (Dor, 1993; Drawin, 1998).
Seja como for, o antagonismo entre o avanço triunfante da ciência na explicação e domínio
da realidade e a ingenuidade infantil da crença religiosa não parece mais se sustentar como
antes. A segunda razão possui um caráter antropológico. Em meados do século XIX, após
a morte de Hegel em 1831, uma considerável parcela de seus antigos discípulos se voltou
para o humanismo ateu.
Dentre eles o mais célebre foi Ludwig Feuerbach, ao postular a antropologia como sendo o
segredo da teologia e ao inverter a relação entre Deus e o homem: Deus não é o criador do
homem, mas este é o criador de Deus, cuja realidade é apenas a projeção dos desejos

16
humanos, de suas aspirações e tendências naturais. Ao assumir o lugar de Deus, o homem
se liberta do jugo religioso, para afirmar a sua soberania e fazer da história o processo de
realização de sua própria essência (Schulz, 1957, p. 93-96).
Podemos ver nessas teses as bases do chamado humanismo ateu, cujo cerne encontrava-se
na aposta de um futuro promissor para a humanidade, cuja efetivação dependia, em grande
parte, da dominação da natureza e da construção de uma sociedade livre da hipoteca
divina. Ciência e humanismo deveriam convergir para o mesmo ponto histórico, o da
emancipação da humanidade.
Essa convicção foi amplamente difundida no século XIX no contexto da luta pela
modernização da sociedade e da cultura europeias, apesar da oposição de grandes
pensadores solitários como Kierkegaard e Schopenhauer, somente mais tarde reconhecidos
em sua envergadura (Löwith, 2014).
Essa convicção está claramente presente em Freud, sobretudo no primeiro
desenvolvimento de sua obra. Assim, no último capítulo de “Psicopatologia da vida
cotidiana”, ao defender o determinismo psíquico, ele endossa a ideia feuerbachiana da
religião como projeção imaginária, ao afirmar a “concepção mitológica do mundo”
(mythologische Weltauffassung), presente ainda nas mais modernas religiões, como
“psicologia projetada no mundo exterior” (in die AussenweltprojiziertePsychologie). Por
conseguinte, as crenças religiosas (Deus, imortalidade, etc) e metafísicas (subsistência da
realidade suprassensível) poderiam ser convertidas, por meio da ciência, em “psicologia do
inconsciente”, em metapsicologia.
A proximidade de Freud (1901/1999) com as formulações de Feuerbach (1841/1960) é
impressionante, pois ambos partilham da mesma tese fundamental segundo a qual o
segredo da teologia é a antropologia, e sua decifração consiste na reconversão do além da
essência divina num aquém atualizado,determinado, realizado e, portanto, “o homem é o
início, o meio e o fim da religião” (Freud, 1901/1999, p. 222), como quando o filósofo
alemão (Feuerbach 1842/1959, p. 222-223) define a religião como “um sonho no qual as
nossas próprias representações surgem como seres fora de nós”.
Acontece que o redirecionamento da ilusão projetiva religiosa em realidade exige como
condição de possibilidade um terceiro termo capaz de fornecer o critério para a sua
realização.
Para Feuerbach, esse terceiro termo seria a natureza tal como concebida pelas ciências da
natureza, e para Freud seria a metapsicologia ou a teoria psicanalítica enquanto ciência do
inconsciente, também incluída no domínio daquelas mesmas ciências. A realidade seria
entendida basicamente como natureza, e o acesso à natureza seria monopolizado pela
ciência.
Contudo, como foi acima afirmado, o estatuto científico da Psicanálise é muito
problemático e, por conseguinte, a tese da projeção dos sonhos e fantasias na realidade ou
num mundo exterior fora de nós fica muito fragilizada (Drawin, 2015). Além disso, o

17
próprio vínculo entre ciência e humanismo tornou-se objeto de intensa contestação, com o
esmaecimento das expectativas acerca de progresso da civilização da razão. O século XX
desde o seu alvorecer mergulhou num ciclo de inaudita violência, e o esperado sol da
libertação humana foi encoberto pelas trevas da desesperança, pelo fumo dos campos de
batalha.
À luz dos acontecimentos do século, a balança pareceu inclinarse decisivamente na direção
do pessimismo cultural e dar certa razão ao instigante título do ensaio de Oskar Pfister: a
perspectiva de um futuro sem ilusão iria se revelando aos poucos como ilusão de um
futuro, aquele confiantemente aguardado como de uma humanidade desnecessitada de
sonhos vãos após ter alcançado a sua viável realização (Pfister, 1928/2003).
Para efeito da nossa exposição focalizamos, sobretudo, a influência de Feuerbach e do
cientificismo alemão no modo como Freud interpretava a religião. Essas influências podem
ser facilmente constatadas quando Freud assume explicitamente suas opiniões e crenças. Há
na obra de Freud, porém, outra presença filosófica não menos marcante: a de
Schopenhauer.
O filósofo alemão somente saiu do anonimato e adquiriu notoriedade a partir dos anos
cinquenta do século XIX. A partir daí a sua difusão foi rápida e especialmente penetrante na
atmosfera cultural vienense (Schorske, 1988). Schopenhauer procurou mostrar a
compatibilidade de sua filosofia com os avanços da ciência e, sobretudo, com as
investigações anatômicas e fisiológicas das ainda incipientes neurociências.
Freud mesmo, apesar de certa relutância, reconhece a ampla coincidência de suas ideias
com as de Schopenhauer, como, por exemplo, no caso do mecanismo do recalque e na
importância atribuída à sexualidade. Essas e outras aproximações impressionantes podem
ser rastreadas com alguma facilidade (Freud, 1925/1999; Moreira, 1998).
Todavia, alguns obstáculos se interpõem na aceitação de Schopenhauer pelos meios
científicos da época, como a sua severa rejeição do materialismo, a sua teoria idealista do
conhecimento e a sua posição explicitamente metafísica. Para ele a realidade em si mesma
se identificava com a vontade, ou seja, com um querer viver cego e inteiramente sem outra
finalidade além de sua perpétua afirmação.
O teísmo bíblico com sua doutrina de um mundo bom, porque criado por Deus, devia ser
rejeitado como a fonte por excelência do otimismo ocidental. Nem por isso a sociedade
secularizada e pretensamente livre dos dogmas religiosos escapava de sua persistente
presença. Para o filósofo alemão, ao falarmos em progresso científico e racional como quer
o humanismo ilustrado, ao apostarmos na emancipação da humanidade, não caminhamos
para a dissipação das ilusões, apenas as aprofundamos e com isso suscitamos novos
motivos de sofrimento. Schopenhauer, mesmo sem citá-lo diretamente, conhecia o
pensamento de Feuerbach, considerado como herdeiro do otimismo hegeliano, e o
repudiava vigorosamente (Schopenhauer, 1844/1990).
Se for verdade, escreveu o filósofo, que a religião ilude o povo e o torna mais dócil para ser

18
subjugado pelo Estado, e nisso ele está próximo dos filósofos ilustrados, mais perniciosa
ainda é a crença ilusória no advento de um mundo novo pacificado e reconciliado consigo
mesmo.
O pessimismo antropológico freudiano converge com essa tese da metafísica
schopenhauriana, matizando a sua crença cientificista e o aproximando do iluminismo
sombrio típico da modernidade vienense (Roudinesco, 2016; Le Rider, 1993). Ao propor a
sua hipótese da pulsão de morte, ele afirmou ser impossível dissimular essa convergência,
pois com ela a sua teoria “inesperadamente entrava no porto da filosofia de Schopenhauer”.
(Freud, 1920/1999, p. 53) Tal reconhecimento, feito no momento crucial da postulação da
pulsão de morte, alimentou muita controvérsia entre os comentadores (Zentner, 1995;
Raikovic, 1996).
Para efeito de nossa argumentação, queremos tão simplesmente assinalar outro caminho de
entendimento da interpretação freudiana da religião. Uma vertente mais distante das
proposições do freudismo ilustrado e talvez mais relevantes na contribuição da psicanálise
para a construção de uma teoria crítica da sociedade numa época de triunfo da ciência e
difusão da mentalidade secular.

O FENÔMENO RELIGIOSO SOB A LEITURA DA PSICANÁLISE FREUDIANA


Freud, em seu percurso de construção da Psicanálise, além de propor algumas teorias sobre
a constituição do sujeito do inconsciente, interessou-se pela relação do sujeito com os
objetos do mundo externo, isto é, pelo modo como o sujeito se relaciona no campo social,
incluindo as práticas religiosas.
Desta maneira, o autor abriu caminho para um amplo debate entre psicanálise e religião,
psicanálise e antropologia, à medida em que mostra semelhanças e diferenças entre os
mitos fundadores, os sistemas religiosos e o modo como o sujeito toma para si uma posição
na estrutura subjetiva.
Mesmo declarando- se publicamente como um ateu convicto, Freud manifestou grande
interesse pelo estudo do fenômeno religioso e empenhou-se seriamente em empregar
elementos-chave da teoria psicanalítica para interpretar as origens e a natureza da religião.
Seu posicionamento, porém, diante da religião, é freqüentemente divulgado em sua forma
exclusivamente crítica e negativa.
Na leitura dos principais textos de Freud sobre a religião observa-se que, além da crítica
presente, neles se encontram novas perspectivas para um possível diálogo entre a
psicanálise e a religião. Em Totem e Tabu (1913/1996) é possível encontrar
esclarecimentos sobre a origem do totem e as diferentes formas de tabu.
O totem (representado por plantas, animais ou fenômeno) pode ser compreendido como
instituição primitiva que deixou vestígios nas religiões, ritos e costumes dos povos

19
civilizados contemporâneos e o tabu corresponde a prescrições rigorosas cuja violação traz
sérias consequências e castigos para os membros de um grupo. No que é possível perceber,
o totem define uma consanguinidade na qual se inscreve uma lei para deter o indivíduo ante
o incesto. Por isso Freud (1913/1996) considera a renúncia como a base para o tabu.
Além da definição do sistema totêmico e da descrição das diversas formas de tabus, Freud,
baseado em hipóteses científicas apresentadas por grandes etnólogos de seu tempo,
reconstrói o mito da morte do pai primitivo e vê neste mito as origens da mais antiga
forma de religião (o totemismo), bem como da moral e da vida social.

Partindo da observação da refeição totêmica, Freud (1913/1996) lança a hipótese da


existência de umpai primitivo. O mito do pai primevo descreve uma situação mítica em
que os filhos mataram e devoraram o pai tirânico colocando fim à horda patriarcal. Após o
assassinato, os filhos rejeitaram sua ação e, logo em seguida, deram origem a uma nova
ordem social na qual se configura a exogamia, renúncia à posse das mulheres da tribo, e a
proibição do assassinato do substituto do pai, figura representada pelo totem.

Em outras palavras, a morte do pai da horda fez surgir um ideal que corporificava o poder
ilimitado do pai primevo contra quem os filhos haviam lutado, assim como a disposição de
submeter-se a ele. Freud pôde constatar que este ideal seria encontrado nas religiões, em
que a idéia de Deus representaria a de um pai glorificado e também afetaria as organizações
sociais. Freud (1913/ 1996) diz que: Embora o totem possa ser a primeira forma de
representante paterno, o deus será uma forma posterior, na qual o pai reconquistou sua
aparência humana.

Uma nova criação como esta, derivada do que constitui a raiz de toda forma de religião — a
saudade do pai — poderia ocorrer se, no decurso do tempo, alguma mudança fundamental se
houvesse efetuado na relação do homem com o pai [...]. (p. 151) Em O Eu e o Isso
(1923/1996), este mito reaparece na constituição do sujeito da seguinte maneira: a criança,
do sexo masculino especificamente, em idade precoce, desenvolve um investimento objetal
pela mãe, relacionado ao seio materno, e que é o protótipo de uma escolha de objeto, o
menino trata o pai identificando-se com este. Por algum tempo, estes dois relacionamentos
avançam lado a lado, até o momento em que os desejos sexuais do menino em relação à mãe
aumentam e o pai passa a ser percebido como um obstáculo entre eles, fazendo surgir o
complexo de Édipo.

Em linhas gerais, o Édipo designa o conjunto de relações que a criança estabelece com as
figuras parentais e que constituem uma rede em grande parte inconsciente de
representações e afetos (KAUFMANN, 1996). Se a morte do pai primevo faz surgir um
ideal que norteia o fenômeno religioso e se atualiza na constituição do sujeito, de que
maneira este mito se reflete nas organizações sociais? A teorização proposta por Freud

20
encontra-se no texto Psicologia de Grupo e Análise do Eu (1921/1996), aonde o autor nos
diz que existe algo mais nos agrupamentos humanos e que forças psíquicas mais poderosas
atuam no sentido de manterem as pessoas unidas.
Na análise da Igreja, Freud (1921/1996) cita o líder como figura idealizada pelo grupo,
tendo capacidade de proteger e castigar. Os membros do grupo o colocam no lugar de ideal
do eu, possibilitando a identificação entre si através do ideal que é comum a todos.

O ideal do eu se desenvolve como uma instância de referência. Freud (1921/1996) a observa


como uma formação separada do eu, que torna possível a fascinação amorosa e a
submissão à figura de um líder, quando este é colocado pelo sujeito no lugar de ideal de eu.
Sendo assim, é o líder-herói que dá ao grupo a sua identidade e suas feições, imprimindo a
sua referência, assemelhando-se, também, à figura paterna.

Considerando que o fenômeno religioso se organiza de forma tal a possibilitar um


agrupamento de pessoas, permitindo, assim, relacionamentos entre os homens, Freud
(1929/1996), no texto O Mal-Estar na Civilização, apresenta sua concepção da condição
humana, que busca felicidade e prazer ainda que esteja em contradição com as restrições
impostas pela cultura, partindo de uma análise acerca da religiosidade. Neste sentido, Freud
(1929/1996, p.74-75) elabora uma hipótese de que o sentimento religioso seja derivado de
um sentimento primário de eu, que “aparece como algo autônomo e unitário, distintamente
demarcado de tudo o mais”. Entretanto, essa aparência do eu é enganadora, pois o eu é
continuado para dentro, sem qualquer delimitação clara, por uma instância mental
inconsciente que é denominada de Isso, a qual o eu serve de fachada.

Como Freud (1929/1996, p.77) retoma, “originalmente o eu inclui tudo; posteriormente,


separa, de si mesmo, um mundo externo”. O sentimento primário do eu permanece em
maior ou menor intensidade, co-existindo com um eu que consegue se separar do mundo
externo. Sendo assim, o sentimento oceânico, de ilimitabilidade, que tudo abrange,
proporcionado pela religião, pode ter sua origem nesse eu primário.

O sentimento, segundo Freud (1929/1996), só pode ser fonte de energia caso ele mesmo
seja a expressão de uma intensa necessidade. Reforça, então, a sua hipótese de que a religião
seria oriunda da necessidade do indivíduo em se relacionar com o pai, ou seja, seria uma
reedição do sentimento de desamparo infantil. A religião seria explicitada pela necessidade
inconsciente de uma proteção e balizamento das ações e procedimentos pessoais contra o
destino que é desconhecido.

O autor defende que as idéias religiosas seriam uma espécie de defesa para o eu diante dos
perigos que o mundo externo pode oferecer. No que se refere às idéias religiosas, Freud
investigou sua natureza no texto O Futuro de uma Ilusão (1927/1996), com o objetivo de

21
compreender a função das crenças religiosas no psíquico humano e de que modo as
religiões são capazes de apreender a realidade.

Nesta obra, Freud ressalta a natureza da religião, bem como mostra o que ela pretende fazer
pelos seres humanos: oferecer informações sobre a origem e a existência do universo,
garantir proteção e felicidade nos diversos momentos da vida e dirigir os pensamentos e
ações dos humanos, que se estabelecem com toda sua autoridade.

Para o ser humano, a vida é difícil de suportar, pois o sofrimento, segundo Freud
(1929[1930] /1996), ameaça os homens a partir de três direções: do próprio corpo, do
mundo externo e, por último, dos relacionamentos com os outros homens. Para tornar o
desamparo tolerável, o ser falante criou um conjunto de idéias construídas com o auxílio
das lembranças do desamparo da infância.

Essas idéias o protegem em duas direções: contra os perigos da natureza e do Destino; e


contra os danos que o ameaçam por parte da sociedade. Tudo que acontece aos homens,
neste mundo, vai se configurar como manifestação da inteligência de um ser superior;
inteligência esta que ordena tudo para melhor.

Sobre cada humano existe uma Providência bondosa que só aparentemente é severa e que
não irá consentir que o humano se torne um brinquedo para as forças poderosas e
impiedosas da natureza. Dentre essas forças, podemos destacar a própria morte, que não é
percebida como uma extinção, mas sim como o começo de uma nova espécie de existência
que se acha no caminho da evolução.

Freud declara que estas idéias religiosas passaram por um longo processo de maturação e
se configuram como uma necessidade de defesa psíquica por serem da ordem das ilusões,
“realizações dos mais antigos, fortes e prementes desejos da humanidade” (FREUD,
1927/1996, p. 39). O autor ressalva, contudo, que a religião é apenas mais uma etapa do
processo evolutivo humano, mas não descarta as vantagens que a doutrina religiosa traz
para vida comunal do homem, como a possibilidade de refinamento e sublimação das
idéias que tornam possível para ele livrar-se da maioria dos resíduos oriundos do
pensamento primitivo e infantil.

Ele afirma que o homem, quando exposto a situações de perigo ou quando se percebe
apenas um joguete das forças da natureza ou do destino, tende a se amparar na busca de uma
proteção divina e, nesse sentido, paterna. Constituindo ilusões, as idéias religiosas são
indiferentes à efetividade. É função da religião impedir o caos e exercer um rigoroso
controle social mediante normas, regras e hierarquias. Estes mecanismos estabelecem
estruturas rígidas de proibição e intolerância.

22
Baseia-se na sacralização de um objeto, utilizando-se da necessidade de proteção do
homem. É enquanto regulação e controle que as interdições sociais são sacralizadas
adquirindo mais força. Verifica-se na leitura de determinadas obras da psicanálise freudiana
que este autor compreende a religião, a civilização e a moralidade como advindas do
complexo paterno, de uma reedição do sentimento de desamparo infantil. Para tanto, uma
espécie de defesa do eu opera e resiste à exigência do mundo externo pela renúncia de
satisfação pulsional, fazendo com que o humano reaja ao desamparo que ele tem que
reconhecer; esta reação é, justamente, a formação da religião. Para Freud, é à semelhança
do pai que os homens constroem para si os seus deuses, dotados de um poder superior e
extremamente benevolentes.

RELIGIÃO É PARA OS DESAMPARADOS,INSINUA FREUD

De maneira sintética, Juliens enumera razões e sentimentos que despertaram a atenção dos
três pensadores para um tema tão fechado - e obscuro - dada a época em que viveram. O
autor também destaca para a formação religiosa de um: Freud (judia), Jung (protestante) e
Lacan (católica).
Na primeira parte do livro, que resgata os escritos de Freud a respeito do tema, Julien
lembra que o primeiro texto do psicanalista sobre a religião data de 1907, intitulado "Atos
obsessivos e práticas religiosas". A partir dele, de uma forma ou de outra, voltaria a tocar no
assunto em 1910, no ensaio sobre "Leonardo Da Vinci" e posteriormente em 1927, com o
famoso "O Futuro de uma Ilusão". Como pode nascer (a religião) um dia no ser humano?
Cedo ou tarde, todo o sujeito passa pela experiência do que Freud chama de
Hilflosigkeit, ou seja, um estado de desamparo, de ausência de ajuda, de carência de
recursos, de derrelição, de abandono. Essa experiência não é primeira.
De fato, habitualmente, a criança vive sob proteção desde o nascimento. Deitada de costas,
ela grita e chora e a mãe ou o pai intervêm para satisfazer alguma necessidade sua.
Mais tarde, também, a criança aprenderá a falar e a exprimir sua demanda disto ou daquilo,
fazendo com que algum conhecido apareça. Mas eis que um belo dia vem a ausência de
resposta. A mãe ou o pai se ausentam; é o vazio, o abismo: Hilflosigkeit. A proteção contra
os riscos, as vicissitudes e as infelicidades a que se está irredutivelmente submetido é cada
vez menos garantida.
É esse, de fato, o primeiro trauma da existência humana - choque inevitável como condição
do nascimento do sujeito que se indaga: como será que isso é possível? Será que vem do
ódio do outro? Ou de sua indiferença? Por que essa alternância entre presença e ausência,
esse vaivém sem restrições? Não há resposta certa para essas perguntas. O enigma do
desejo do outro permanece.
A partir disso é que Freud constata que certo dia algo novo surge: a saudade do passado
em que a mãe ou o pai intervinham, saudade de um estado de felicidade em que o recurso a
uma proteção estava garantido. É esse o móbil da religião. Esta sobrevém pouco depois, a

23
partir dessa mesma experiência de Hilflosigkeit perante o caráter aleatório dos rumos da
vida.
Há, então, diz Freud, saudade do pai, não da mãe, mas daquele a quem se atribuiu a
onipotência, ou seja, o Pai com maiúscula, o Pai divino. A psicanálise descobre, assim, a
razão do nascimento da crença num Deus ao mesmo tempo senhor e pai; a questão é
superar angústia de desproteção pela fé numa onipotência protetora.

A RELIGIÃO COMO ILUSÃO EM FREUD

O diálogo entre psicanálise e religião nunca foi uma tarefa simples. Os preconceitos, o
medo e, quem sabe, também mecanismos inconscientes, impossibilitaram encarar o tema
com coragem para escutar aquilo que a outra parte dizia. Os devotos de alguma religião
muitas vezes se sentem constrangidos e ameaçados diante da psicanálise. Embora
afirmemos que houve um grande avanço nesse diálogo, ainda há receio e surdez.
Universidades e templos em algumas ocasiões se furtam de conversar sobre a temática
(Morano, 2008).

A religião e a experiência religiosa sempre ocuparam um espaço considerável no


pensamento freudiano. Entre 1914 e 1939, Freud dedicou uma parte significativa de seu
trabalho a questões ligadas à religião. E ainda hoje as posições freudianas sobre a religião
têm sido palco de inúmeras discussões.

Em sua interpretação do fato religioso, Freud utilizará de dois modelos hermenêuticos


tirados da clínica psicanalítica: a Neurose e o Sonho. Como neurose, a religião é concebida
como a neurose universal da humanidade e relacionada ao remorso pelo assassinato do pai
primevo, ou seja, ela, a religião, é uma tentativa de resolver o problema do sentimento de
culpa decorrente da ambivalência afetiva em relação ao pai. Como sonho, a religião, é
definida como ilusão e tem a ver com a nostalgia do pai protetor. Contudo, seja religião
uma neurose, uma ilusão, o seu cerne tem a ver com o pai. Com isso, podemos afirmar que
o complexo paterno é o polo unificador da interpretação freudiana do fato religioso
(Araújo, 2014).

Expor um breve pensamento de Freud, mostrando seus efeitos e impasses acerca da


psicanálise e religião como ilusão é o que tentaremos desenvolver neste artigo. Nossa
intenção não é dar um veredito final sobre esse assunto tão delicado e profundo, mas
apontar uma possível direção, abrir novas possibilidades de leitura e construções teóricas na
área da psicanálise e religião. A primeira teorização de Freud acerca da crença religiosa
aparece em 1910 em seu ensaio Leonardo da Vinci e uma Lembrança de sua Infância.

A psicanálise tornou conhecida a íntima conexão existente entre o complexo do pai e a


crença em Deus. Fez ver que um Deus pessoal nada mais é, psicologicamente, do que uma
exaltação do pai, e diariamente podemos observar jovens que abandonam suas crenças
religiosas logo que a autoridade paterna se desmorona para eles. Reconhecemos,

24
pois, no complexo parental a raiz da necessidade religiosa; o Deus justo e todo-poderoso e
a natureza bondosa se nos afiguram como sublimações grandiosas do pai e da mãe, ou
melhor, como restabelecimentos e restaurações das representações que se tinha de um e de
outra na primeira infância.

Biologicamente, a religiosidade remete ao duradouro desamparo e necessidade de ajuda da


criança, que, mais tarde, quando reconhece sua impotência e sua fraqueza efetivas diante
das grandes potências da vida, volta a sentir-se como na infância e procura negar seu estado
de abandono reeditando regressivamente as potências protetoras da infância. Essa proteção
que a religião oferece aos crentes, evitando que eles caiam doentes de neurose, se explica
facilmente pelo fato de que ela os desembaraça do complexo parental, ao qual está ligada a
consciência de culpabilidade, seja do individuo, seja da humanidade inteira, liquidando
para eles esse complexo, ao passo que o descrente tem que cumprir esta tarefa sozinho.
(Freud, 1910/1996, p. 110)

Esta ideia de Freud vai reaparecer em Totem e Tabu (1913/1996), no qual diz que "O Deus
nada mais é que o pai glorificado" (Freud, 1913/1996, p. 176). Freud, em sua interpretação
do fenômeno religioso, não deixa de mencionar que a construção psíquica da ideia de Deus,
em muitos aspectos, se assemelha com a ideia originária do pai primevo.

Em seu texto de 1914 chamado Algumas reflexões sobre a psicologia escolar, Freud
novamente diz que "O próprio Deus, em última análise, é apenas uma exaltação dessa
imagem do pai, tal como é representado na mente durante a mais tenra infância" (Freud,
1914/1996 p. 257). Acreditamos que ao longo de sua obra Freud irá constantemente
colocar a figura de Deus como o protótipo do pai da primeira infância. Em seu O Futuro de
uma Ilusão (1927/1996), que veremos mais adiante, Freud articulará a figura do pai
idealizado com a temática da ilusão. Ilusão que, para Freud, não é a mesma coisa que
engano ou erro, mas, sim, uma produção psíquica oriunda do mundo dos desejos. E será a
força do desejo que mantém engendrada a produção de ilusões.

Podemos dizer que Totem e Tabu (1913/1996) é o texto freudiano que melhor representa a
problemática da religião de acordo com o modelo da neurose. O Futuro de uma Ilusão
(1927/1996), outro texto freudiano, é o que melhor ilustra o problema da religião com o
modelo da ilusão, texto no qual iremos nos ater neste artigo, assim como outra obra de Freud
que consideramos essencial para se discutir a religião sob o prisma da ilusão: A Questão de
uma Weltanschauung (1933/1996).

Podemos dizer que ilusão e crença apresentam estruturas fundamentais para o psiquismo
humano. A crença, a ilusão, e a realização de desejos estão implicados, na maioria das
vezes, em nossas escolhas e opções de vida.

Partindo da hermenêutica do sonho, podemos afirmar que Freud, desde o início, acreditava
que os mitos e lendas poderiam elucidar as variadas formações culturais. Podemos dizer
que em A interpretação dos sonhos (1900/1996), por exemplo, são constantes as citações

25
dos mais diversos mitos e lendas. Contudo, podemos constatar que em seu texto As Novas
Conferências Introdutórias sobre Psicanálise (1933/1996), mais precisamente em a
Revisão da Teoria dos Sonhos, o sonho também aparece como um importante elemento
para elucidar nossa mitologia, pois para Freud "No conteúdo manifesto dos sonhos, com
muita frequência, encontramos quadros e situações que lembram temas familiares em
contos de fadas, lendas e mitos" (Freud, 1933[1932]/1996,
p. 34). Morano (2003) relata que Freud sempre que fala sobre os sonhos, lendas e
mitologias afloram em suas reflexões. Em um outro texto, que é importante citarmos,
chamado Esboço de Psicanálise (1940^938^1996), Freud nos diz que podemos encontrar no
sonho uma fonte para o entendimento da pré-história humana, pois

os sonhos trazem à luz material que não pode ter-se originado nem da vida adulta de quem
sonha nem de sua infância esquecida. Somos obrigados a considerá-lo parte da herança
arcaica que uma criança traz consigo ao mundo, antes de qualquer experiência própria,
influenciada pelas experiências de seus antepassados. Descobrimos a contrapartida desse
material filogenético nas lendas humanas mais antigas e em costumes que sobreviveram.
Dessa maneira, os sonhos constituem uma fonte da pré-história humana que não deve ser
menosprezada. (Freud, 1940[1938]/1996, p. 178)

Portanto, podemos dizer que, para Freud, os sonhos representam uma fonte rica para
elucidarmos as atuações psíquicas inconscientes (Morano, 2003).

O sonho é uma realização de desejos, já dizia Freud (1900/1996), porém uma realização
que nem sempre se demonstra cristalina, mas que sofre inúmeras deformações pelo
trabalho do sonho, assim como ocorre na construção da nossa mitologia. Em seu texto
intitulado A Aquisição e o Controle do Fogo (1932[1931]/1996), existe uma evidente
deformação dos "fatos ao conteúdo de um mito. Essas distorções são da mesma espécie, e
não piores, que aquelas que reconhecemos diariamente, quando reconstruímos a partir dos
sonhos dos pacientes as experiências de sua infância reprimidas" (Freud, 1932[1931]/1996,
p. 195).

Morano (2003) nos diz que essa mesma elaboração do pensamento freudiano, no que diz
respeito aos sonhos, Freud fará de um modo análogo com os textos culturais, religiosos,
artísticos e filosóficos. Podemos questionar por meio do seu conteúdo manifesto, isto é,
aquilo que nos aparece de imediato o seu conteúdo latente, ou seja, conteúdos recalcados,
embora ambos, assim como no sonho, se encarregam de deformar a verdade do desejo do
sujeito. Portanto, podemos dizer que a linguagem da cultura, assim como no sonho,
manifesta a voz do desejo inconsciente. De uma forma parecida podemos dizer a respeito da
leitura religiosa. Deus, ou melhor, a imagem de Deus nos remete a questionar e a
interpretar de uma forma igual à do sonho.

Como dissemos, para Freud, a ideia de Deus tem sua origem no complexo paterno imbuída
da dupla polaridade amor-ódio. Contudo, essa polaridade não é totalmente perceptível na
imagem do Deus monoteísta engrandecida. A ambivalência pelo pai foi reprimida
transformando-o numa vertente completamente positiva. Apenas de um modo latente é que

26
podemos observar que esse conflito se encontra de uma forma deslocada e subterrânea.

A ambivalência é mostrada em seu artigo intitulado Uma neurose demoníaca do século


XVII (1923[1922]/1996), no qual Freud analisará alguns quadros de Christoph Haizmann
que diz ter feito um pacto com o diabo. Freud tenta explicar a figura demoníaca sob a luz da
psicanálise com um substituto da figura paterna. A criança em sua terna idade ama e odeia
o pai ao mesmo tempo. Tem para com ele sentimentos de amor e admiração devido sua
proteção e igualmente ódio por representar um entrave para a posse exclusiva de seu objeto
de amor. Freud nos ensina que as primeiras experiências infantis terão uma marca em nossa
organização psíquica que sempre nos acompanhará. "Podemos apenas prender- nos ao fato
de ser antes regra, e não exceção, o passado achar-se preservado na vida mental" (Freud,
1923[1922]1996 p. 90). Sendo assim, do mesmo modo que Deus é uma
representação idealizada da figura do pai para o adulto, o diabo seria a representação do
ódio infantil por esse mesmo pai.

Se o Deus benevolente e justo é um substituto do pai, não é de admirar que também sua
atitude hostil para com o pai, que é uma atitude de odiá-lo, temê-lo e fazer queixas contra
ele, ganhe expressão na criação de Satã. Assim, o pai, segundo parece, é o protótipo
individual tanto de Deus quanto do Demônio. (Freud, 1923[1922], p. 110)

Assim, Deus nada mais é que o representante do pai que um dia amou e protegeu seu filho,
enquanto o diabo é a figura paterna que a criança odiou por proibir que ficasse comseu
objeto amado. De todas as formas, para Freud, "a religião se originou do desamparo da
criança prolongado na idade adulta. No lugar do pai protetor da infância, o homem adulto
põe o Deus, Pai, Todo-Poderoso, a quem se deveria louvar e dar graças em todo o tempo e
lugar" (DAVID, 2003, p. 14).

Podemos pensar que a intervenção do desejo transformou a imagem de Deus ambivalente


em algo mais confortável e menos ameaçador. Sendo desejo, a crença, uma forma de
escamotear a realidade ameaçadora, Freud chamou essas crenças de ilusões.

ILUSÃO NA OBRA FREUDIANA

Ceccarelli, em seu artigo "A mentira como organizador social" (2013), cita Enriquez
(1968/2013) em seu texto "Immuable et changeante illusion: l'illusion nécessaire", que nos
diz que o termo ilusão, criado por Freud em sua obra O Futuro de uma Ilusão
(1927/1996), tem despertado pouco interesse nos psicanalistas. Tão pouco interesse que o
vocábulo ilusão não é citado no célebre Dicionário de Psicanálise de Laplanche Pontalis,
como se ele não fosse importante estar ali ao lado de outros conceitos clássicos. "A ilusão é
uma noção-chave (senão um conceito) na arquitetura do pensamento freudiano sobre o
social" (Enriquez apud Ceccarelli, 2012, p. 100).

Em Reflexões para os tempos de Guerra e Morte (1915/1996), a ilusão está ligada ao


conceito de desilusão, que seria uma falsa percepção do homem diante de sua realidade

27
moral e ética. Percepção criada pela paleta do nosso desejo. Pensamos, diz Freud,
erroneamente em achar que o homem domou seu mundo instintivo pela razão. A guerra é
uma avalanche brutal sobre as nossas ilusões. Portanto, Freud diz que "acolhemos as
ilusões porque nos poupam sentimentos desagradáveis, permitindo-nos gozar satisfações.
Portanto, não devemos reclamar se, repetidas vezes, essas ilusões entrarem em choque com
alguma parcela da realidade e se despedaçarem contra ela" (Freud, 1915/1996, p. 290).

Aqui, já podemos observar que Freud já tem os elementos sobre o conceito de ilusão que
utilizará posteriormente: Uma busca de alento que desconsidera a realidade. Nessa obra o
autor também diz que a religião conseguiu, por meio da ilusão, reduzir a morte numa
simples preparação para uma vida futura, sustentando o nosso desejo da imortalidade.

Entretanto, é importante salientar que a ilusão na literatura freudiana não se apresenta


como monopólio da religião, como veremos mais adiante. Podemos afirmar que a
ocorrência da palavra ilusão aparece em muitos dos seus textos, mas, com uma conotação
mais negativa, ou seja, como algo equivocado, não verdadeiro (Araújo, 2014).

Em Leonardo da Vinci e uma Lembrança de sua Infância (1910/1926), Freud faz uma
crítica a biógrafos que idealizam seus biografados, transformando-os em heróis e lastima- se
que fazendo desse modo os autores sacrifiquem a verdade a uma ilusão.

Na sua obra Uma Dificuldade no Caminho da Psicanálise (1917/1996), Freud diz que
nossa ilusão narcisista é destruída por Copérnico com o seu "golpe cosmológico" (araújo,
2014).

Em Sonhos e Telepatia (1922/1996), Freud utiliza o termo ilusões de memória em tentativa


de transformar a realidade psíquica em realidade material.

Já em Por Que a Guerra? (1933 [1932/1996), qualifica ilusão como a expectativa dos
bolchevistas de fazer desaparecer a agressividade entre os homens "mediante a garantia de
satisfação de todas as necessidades materiais e o estabelecimento da igualdade".

Por fim, em Psicologia de grupo e análise do ego, quando (1921/1996) diz que o que
preside o nascimento de um grupo e o mantém unido é o discurso de amor e a garantia de
proteção por uma pessoa (ou instituição), que ama seus membros de forma igualitária sem
privilegiar ninguém. Esse líder introjetado como ideal do Eu traz a certeza, graças à
promessa de amor, da consolidação do grupo, ao mesmo tempo em que projeta no exterior a
agressividade que deve ser abolida do grupo (Ceccarelli, 2013).

Como podemos constatar, a ilusão aparecerá nas obras de Freud sempre como algo que
provém do desejo humano, porém, essa ilusão nunca é verdadeira. Freud mudará um pouco
essa posição acerca da ilusão em sua obra O FUTURO de uma Ilusão.

28
Breve conjectura do Futuro de uma Ilusão

Esta obra de Freud foi publicada em 1927 sob o título em alemão Die Zukunft einer
Illusion. Em 1928, foi traduzida para o inglês como The future of an Illusion, por W. D.
Robson-Scott e retomada, sem alterações, por James Strachey, em 1961. Marie Bonaparte,
em 1932, traduziu a obra de Freud para o francês com o nome L'Avenir d'une illusion e, por
fim, em 1994, por Anne Balseinte, Jean-Gilbert Delarbre e Daniel Hartmann, sem
mudança em relação ao título da obra. Apresentaremos esse trabalho de Freud utilizando a
obra traduzida na língua portuguesa conforme a primeira tradução da língua inglesa. A
tradução inglesa foi baseada na publicação de 1928 e não houve modificação em relação ao
título (Roudinesco & Plon, 1998).

O título dessa obra foi "pego" por empréstimo de uma peça teatral de Romain Rolland
(1866-1944) intitulada Liluli, novelista, biógrafo e músico francês pelo qual Freud nutria
uma grande admiração. Em fevereiro de 1923, quando surgiram os primeiros sintomas de
câncer em Rolland, Freud escreveu uma carta ao decorador Édouard Monod-Herzen, que
frequentava os meios psicanalíticos parisienses, e expressou com uma humildade bastante
surpreendente o seu desejo de entrar em contato com Rolland: "Já que você é amigo de
Romain Rolland, escreveu Freud, posso lhe pedir que transmita a ele a admiração
respeitosa de um desconhecido?" (Roudinesco, 1998, p. 522).

Esse cumprimento anunciava uma relação cujo calor e afeição foram incomuns. Rolland
respondeu dizendo ser daqueles que, com seus escritos literários, introduziu Freud na
França. Emocionado, Freud responde a Rolland expressando seus sentimentos bem como
sua opinião a respeito de sua visão de mundo e do conceito de ilusão.

“até o fim da minha vida, eu me lembrarei da alegria de poder entrar em contato com o Sr.,
pois o seu nome está ligado para mim à mais preciosa de todas as belas ilusões: a reunião, no
mesmo amor, de todos os filhos dos homens. Pertenço certamente a uma raça que a Idade
Média tornou responsável por todas as epidemias nacionais e que o mundo moderno acusa de
ter conduzido o império austríaco à decadência e a Alemanha à derrota. Essas experiências
nos decepcionam e nos tornam pouco inclinados a acreditar nas ilusões. Além disso, ao
longo de minha vida (sou dez anos mais velho que o Sr.), uma parte importante do meu
trabalho consistiu em destruir as minhas próprias ilusões e as da humanidade. (Freud citado
por Roudinesco & Plon, p. 667)

Para o pastor Pfister, Freud anunciou a publicação de O Futuro de uma Ilusão em 16 de


outubro de 1927 em de uma carta direcionada a ele. Como podemos verificar a seguir.

Nas próximas semanas sairá uma brochura de minha autoria, que tem muito a ver com o
senhor. Eu já a teria escrito há tempo, mas adiei-a em consideração ao senhor, até que a
pressão ficou forte demais. Ela trata - fácil de adivinhar - da minha posição totalmente
contrária à religião - em todas as formas e diluições, e, mesmo que isso não seja novidade
para o senhor, eu temia e ainda temo que uma declaração pública lhe seja constrangedora. O
senhor me fará saber, então, que medida de compreensão e tolerância ainda consegue ter

29
com este herege incurável. (Freud citado por Morano, 2008, pp. 129-130)

Pfister reagiu dizendo que preferia ler o trabalho de um descrente como Freud a ler o de
mil crentes sem valor. Todavia, ainda que o trabalho de Freud constrangesse Pfister, Freud
não abandonaria seu plano. Sempre quando uma ideia surgia e o pressionava, a forma
como Freud se aliviava era escrevendo. E de acordo com Gay (2010), O Futuro de uma
Ilusão era talvez a sua mais inevitável e previsível obra.

De acordo com Gay (2010), Freud, com seu ensaio a respeito da religião, cumpriu aquilo
que se prometera há anos: destruir a religião com armas psicanalíticas. Porém, insistiu com
Pfister que sua análise sobre a religião era uma atitude pessoal que não era compartilhada
por outros analistas de valor. Era uma forma de poupar seu amigo com quem mantinha
uma rixa cordial sobre teologia há duas décadas.

De acordo com Gay (2010), o estilo combatente, agressivo e provocador em sua obra
causou um grande alvoroço por parte dos seus críticos, gerando réplicas e contestações.
Podemos dizer que certamente O Futuro de uma Ilusão foi uma das suas maiores
polêmicas. Porém, Freud já esperava por isso desde o começo: "Serei obrigado a ouvir as
mais desagradáveis censuras por causa de minha superficialidade, estreiteza de espírito e
falta de idealismo ou compreensão dos mais altos interesses da humanidade" (Freud,
1927/1996, p.)
É importante salientar que em O Futuro de uma Ilusão (1927/1996) Freud elucidou a
forma como o homem entende a religião, como ele se relaciona com ela, bem como ela
explica por meio dos seus ritos e doutrinas todo o funcionamento do cosmos e sua proteção
que lhe é outorgada por meio de um pai engrandecido e divino diante os percalços da
natureza. Freud, diferentemente do que fez em Totem e Tabu, não abordou a questão da
gênese religiosa. Como dissemos, a questão da religião na obra de Freud de 1927 apresenta
um caráter estritamente pessoal e faz sua análise pensando no sistema religioso que
conhece melhor e que vivenciou (Morano, 2008)

Sabemos que do ponto de vista do estudo da religião que Freud realizou em suas obras,
Totem e Tabu é a sua mais contundente obra. Podemos dizer que foi a partir dessa obra que
o tema da religião ganhou força na obra freudiana (Fuks, 2011).

O Futuro de uma Ilusão: um breve resumo

O Futuro de uma Ilusão (1927/1996) é indiscutivelmente o melhor texto de Freud no que


tange à relação da religião com a ilusão. A atenção dada pelo autor desloca-se para o
problema das crenças religiosas de uma maneira geral. As funções sociais das crenças, o
seu caráter ilusório, o problema de sua origem e uma estimativa quanto ao seu futuro são
temas principais nessa obra.

De acordo com Freud (1927/1996), a principal função das crenças religiosas é ajudar a
cultura a cumprir seu papel. Por falar em cultura, Freud não faz uma distinção entre cultura

30
e civilização. Por cultura ele defende como aquilo que difere a vida humana da vida dos
animais, sobrepondo essa última. Isso inclui todo saber acumulado e toda tecnologia
adquirida com a função de controlar a natureza e extrair dela o necessário para a satisfação
das necessidades humanas. Por outro lado, inclui também um conjunto de regulamentos
que ajustam as relações dos homens entre si.

Freud (1927/1996) considera a natureza como uma realidade hostil e ameaçadora. Diante
dessa força o homem sente-se fraco e desamparado a tal ponto que se vivêssemos
isoladamente dificilmente conseguiríamos sobreviver. Exatamente para fazer face aos
perigos com que a natureza os ameaça, os homens se uniram, multiplicaram as suas forças e
fundaram a cultura. A primeira tarefa da civilização será defender o homem contra a
natureza violenta.

Contudo, a sociedade humana não consegue cumprir essa missão com total êxito, embora
com o progresso da ciência o controle da natureza é cada vez maior. Porém, é uma ilusão
acreditar que o homem conseguirá domá-la por completo (Freud, 1927/1996).

Entretanto, a civilização cobra dos indivíduos um encargo muito alto em troca dos
benefícios que lhes proporciona, pois os homens não são seres naturalmente voltados para o
trabalho e existe em cada um de nós tendências antissociais. Portanto, a cultura se funda na
renúncia pulsional. Essa pesada renúncia faz com que os homens sejam virtualmente
inimigos da civilização e esta necessita ser defendida por todos nós. Essa defesa se faz por
medidas de coerção, regulamentos, instituições e ordens destinadas a reconciliar o homem
com a cultura, oferecendo-lhes uma compensação pelos sacrifícios que lhe impõe (Freud,
1927/1996).

Entre as compensações, Freud (1927/1996) menciona os ideais culturais, a arte e as crenças


religiosas. Estas prestam três serviços: "Exorcizar os terrores da natureza, reconciliar os
homens com a crueldade do Destino, particularmente a que é demonstrada na morte, e
compensá-los pelos sofrimentos e privações que uma vida civilizada em comum lhes
impôs" (Freud 1927/1996, p. 27). A essa terceira missão acrescente-se ainda a legitimidade
dos preceitos culturais, o que se consegue por meio da atribuição de uma origem divina aos
regulamentos de que depende a vida em sociedade.

As ideias de Freud (1927/1996) podem ser assim resumidas: a vida presente está orientada
para um objetivo elevado, a elevação da alma. Neste mundo, tudo o que acontece é devido à
vontade de uma inteligência superior que tudo encaminha para o melhor. Uma providência
bondosa e amorosa vela sobre cada um de nós, nos protegendo das forças da natureza hostil.
A morte não é o fim, mas o começo de uma nova existência. Os ensinamentos religiosos
mostram a vontade de Deus e por isso devem ser observados. No fim, todo bem é
compensado e o mal é punido. Por fim, todos os sofrimentos estão destinados a
desaparecer.

Porém, qual a natureza dessas crenças? Segundo Freud (1927/1996), elas são ilusões,
porque além de servir aos interesses da cultura, elas realizam uma série de desejos

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humanos. Além de ter um caráter neurótico no qual Freud (1927/1996) afirma em Atos
Obsessivos e Praticas Religiosas, a religião tem uma natureza ilusória.

Para Freud (1927/1996), a ilusão não é a mesma coisa que um erro. Crer que os insetos se
desenvolvem das fezes, como pensava Aristóteles (384-322 a. C.), não é uma ilusão, e sim
um erro. Já a crença de Colombo (1451-1506) de que havia descoberto um novo caminho
marítimo para as Índias é uma ilusão. Mas, por quê? Porque Colombo desejava encontrar
uma nova rota para as Índias. O singular da ilusão é o fato de ela derivar dos desejos
humanos. Uma crença ilusória é uma crença motivada pelo desejo: "Podemos chamar de
ilusão quando uma realização de desejo constitui fator proeminente em sua motivação e,
assim procedendo, desprezamos suas relações com a realidade, tal como a própria ilusão
não dá valor à verificação" (Freud,1927/1996, p. 40).

A crença em Deus pai, bem como a sua onipotência, onisciência, onipresença e sua
benevolência capaz de proteger o homem, pode ser encontrada em sua origem no
sentimento de desamparo infantil e no desejo de proteção que ele oferece. Todo humano em
sua meninice sente-se desamparado. Percebendo-se assim tão impotente, tão incapaz de
desbravar os desafios com que se defronta, é compreensível que a criança deseje encontrar
alguém que a proteja. A mãe costuma ocupar primeiramente esse lugar.

Porém, para Freud (1927/1996), essa função que a mãe ocupa é logo substituída pelo pai,
que é mais forte. O pai é idealizado pela criança, que com o tempo percebe que na verdade
o pai não é tão forte quanto pensava e quando adulto percebe que está condenado a
permanecer como uma criança desamparada para sempre. Incapaz de dispensar a proteção
desfrutada, o homem abraça a crença na existência de Deus, que trará alívio ao seu
sentimento de desamparo e debilidade diante da vida.

A religião para Freud (1927/1996) é comparada a uma neurose infantil e o autor acredita
que a humanidade superará essa fase assim como muitas crianças que, ao crescerem,
superam suas neuroses.

Porém, se no futuro, a religião deixar de existir, quem desempenhará suas funções? Para
Freud (1927/1996), num futuro sem religião, a ciência assumiria as suas funções. Para o
autor, algumas tarefas que a religião propõe cumprir estariam destinadas a ficar sem quem
pudesse assumir, por exemplo, compensar os homens pelos sofrimentos da vida presente
com a promessa de uma felicidade futura, que o mal é punido e o bem recompensado etc.

NEUROSE OBSESSIVA E RELIGIÃO

Falar em neurose obsessiva hoje em dia pode parecer ultrapassado, uma vez que esse modo
de subjetivação foi conceituado por Freud em 1894, isso faz com que muitos pensem que
este assunto está esgotado, que não existe mais neurose obsessiva. Gazzola (2005) nos diz
que a neurose obsessiva ainda existe e trata-se de uma neurose contemporânea por

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excelência. Ou seja, não só devemos lançar mão de toda teoria construída acerca da
neurose obsessiva, como devemos contribuir para que esta construção continue se
elevando. Quando estudamos a neurose obsessiva ou escutamos um paciente obsessivo,
não é difícil perceber que os cerimoniais fazem parte de sua vida cotidiana e que nesses
cerimoniais existe algo que se assemelha aos cerimoniais religiosos. Numa tentativa de
evitar que algo de ruim lhe aconteça ou até mesmo a um de seus afetos, o obsessivo tende a
realizar suas atividades rigorosamente e muitas vezes na mesma ordem.

Mesmo parecendo meras formalidades privadas de sentidos, o paciente “é incapaz de


renunciar a elas, pois a qualquer afastamento do cerimonial manifesta-se uma intolerável
ansiedade, que o obriga a retificar sua omissão” (FREUD, 1907/2006, p.109). Algo parecido
acontece com os religiosos, que tendem a sentir uma ansiedade por não estarem realizando
seus rituais frequentemente, são tomados por um sentimento de culpa e um medo de um
castigo divino que os obrigam a cumprirem suas tarefas religiosas cotidianamente. A
religião serve ao sujeito como um curativo, como algo que recobre sua ferida. Lacan (2005)
diz que “a religião é feita para isso, para curar os homens, isto é, para que não percebam o
que não funciona” (LACAN, 2005, p.72). Contudo, entre as semelhanças da neurose
obsessiva com a religião, a relação do sujeito com o pai glorificado é a que mais nos
interessa no momento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os conceitos de religião apresentados neste estudo têm como objetivo mostrar que, com
suas variadas formas de ver e entender o ser humano ao longo da história do mundo, cada
uma traz sua contribuição na constituição do sujeito. Porém, este artigo propõe-se a
construir um diálogo entre a psicanálise e a religião, enfatizando a visão cristã, por
entender que esta traz aspectos fundamentais ligados às primeiras concepções da infância,
permitindo assim uma relação mais profunda com o processo de identificação e
constituição do sujeito, conforme proposto pela psicanálise.

Vale ressaltar, que neste estudo, não há nenhuma pretensão de exaltar um determinado
conceito religioso ou de uma religião, em detrimento de outros e nem da religião em
detrimento da psicanálise, ou vice e versa; pois não se trata de uma ou outra, mas, de uma e
outra, juntas na busca daquilo a que cada uma se propõe, a “cura”, que por sua vez, está
intensamente ligada à constituição do sujeito.

Assim, ao retomar o tema proposto, para que a constituição do sujeito seja compreendida,
entende-se que o sujeito precisa ser definido como o próprio homem enquanto fundamento
de seus próprios pensamentos e atos, onde a essência da subjetividade humana é universal
e singular, como percebido por Dupas (2007, p. 84): Nascemos com a disposição inata e
com um potencial herdado para o desenvolvimento que avança conforme o ambiente seja

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ou não favorecedor.

O ser humano se estrutura a partir de um encontro entre uma mãe, um pai e um bebê. A
mãe é o primeiro intérprete do bebê; ela lhe ensina tempo e espaço e a diferenciação entre
realidade interna e externa. Ele vai aprendendo a distinguir o seio interno alucinado do seio
externo, especialmente porque o seio alucinado não alimenta. Por sua dependência
essencial, o ser humano não sobrevive sem as funções materna e paterna. [...] Esse ser
humano necessita da presença de um outro ser, tão estruturado e pensante quanto possível,
porque são os pais que vão construir sua vida mental.

Nessa dependência própria do sujeito para o conhecimento, o direito e a consciência, seja


essa consciência empírica, transcendental ou fenomênica, e analisando a religião em suas
mais variadas formas, vê-se a ligação entre a religião cristã e a psicanálise, que Hohnberger
(2003, p. 13) assim descreve: “Desde que fui formado no ventre materno, Deus em Sua
infinita sabedoria, tinha posto em ação um plano individual para mim, para me despertar o
desejo e a necessidade de ter o próprio Deus em meu coração”. White (1865, p. 426 e
1897, p. 194) dá a sua contribuição no pensamento religioso, dizendo que é:
Responsabilidade dos pais quanto a influência pré-natal. O primeiro grande objetivo a ser
atingido na educação dos filhos e uma são constituição, que prepare em grande maneira o
caminho para a educação mental e moral. A saúde física e moral se acham estreitamente
unidas.

Que enorme peso de responsabilidade repousa sobre os pais, quando consideramos que a
direção por eles seguida, antes do nascimento dos filhos, tem muito que ver com o
desenvolvimento do caráter deles depois do nascimento. E ainda acrescenta White (1897,
p. 194): “As primeiras lições impressas na criança, raras vezes são esquecidas. As
impressões feitas no coração, no princípio da vida, são vistas em anos posteriores. Podem
estar sepultadas, mas raras vezes serão obliteradas”.

É ao pensar nessa capacidade de acolher e transformar as angústias da criança proposta por


Dupas, reafirmada por White, explicada por Nasio e perfeitamente teorizada por Klein e
Winnicott, tão essencial à constituição do sujeito, que é possível estabelecer um diálogo
entre a psicanálise e a religião, pois é na relação com os pais que a criança encontra
recursos para inserir-se na cultura e, por meio dela, humanizar-se adequadamente,
constituindo-se num sujeito.

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