Dissertacao Allan Daniel M Terra ANALISE PDF
Dissertacao Allan Daniel M Terra ANALISE PDF
Dissertacao Allan Daniel M Terra ANALISE PDF
DISSERTAÇÃO
_________________________________________________
PALAVRAS CHAVE
“Paul Ricoeur; hermenêutica filosófica; “Mundo do Texto”; hermenêutica bíblica”;
discurso religioso; relação entre hermenêutica filosófica e hermenêutica bíblica.
ABSTRACT
Contemporary hermeneutics is divided into three perspectives: the first is oriented
towards the author; the second is oriented towards the reader; and the third is
oriented towards the text. It is in perfect harmony with this last perspective that
Paul Ricoeur develops his reflection about hermeneutics. Following the parameters
of the heuristic and the critic, the present research intends to analyze the ricoeurian
hermeneutics. Therefore, the first chapter analyzes the ricoeurian philosophical
hermeneutics, especially his comprehension of “World of Text”. The second
chapter analyzes the ricoeurian biblical hermeneutics, especially his search for the
meaning of the religious speech. The third and last chapter analyzes the
influences of the comprehension of “World of Text” upon the search for t h e
meaning of the religious speech.
KEYWORDS
Paul Ricoeur; philosophical hermeneutics; “World of Text”; biblical hermeneutics;
religious speech; relation between philosophical hermeneutics and biblical
hermeneutics.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 14
CAPÍTULO 1........................................................................................................... 19
CAPÍTULO 2........................................................................................................... 69
2 HERMENÊUTICA BÍBLICA................................................................................ 69
16
No mesmo contexto que René Descartes propõe a certeza objetiva, o
sujeito pensante e o método, em 1654, J. C. Dannhauer propõe, pela primeira vez,
a palavra hermenêutica, como a arte da interpretação. Então, a palavra
hermenêutica é proposta no século do método. Contudo, ela surge e logo é
preterida. Isso porque, no século XVIII, com o surgimento do ethos moderno, a
revolução epistemológica já se encontra consolidada. Em meio às propostas de
princípios auto-regulatório – como Estado, comunidade e mercado – Immanuel
Kant propõe uma ética universal fundamentada no Imperativo Categórico. Segundo
Kant, a modernidade marca o período da maioridade, da utilização pública da
razão.
Entretanto, paralelamente, a Revolução Francesa está se iniciando.
Conseqüentemente, G. W. Friedrich Hegel propõe a filosofia dialética ou da
contradição. À moralidade kantiana ele contrapõe a eticidade, uma referência ao
ethos moderno que é marcado por cisão. Friedrich Schleiermacher é
contemporâneo de Hegel. Ambos percebem que a modernidade não é maioridade,
mas fadiga. Portanto, é Schleiermacher que retoma a idéia de hermenêutica.
Segundo ele, a religião é o sentimento de dependência em relação ao Absoluto.
Com Schleiermacher também, a hermenêutica passa a ter um alcance universal.
De acordo com ele toda obra é expressão de um espírito que será lida por outro
espírito, ou seja, ela faz mediação entre um autor e um leitor. Logo,
negativamente, a hermenêutica não é mais filológica e, positivamente, ela se torna
psicológica, pois é um espírito que interpreta outro espírito.
Em seqüência, Wilhelm Dilthey sugere que quando o sujeito epistêmico
encontra seu objeto existe um distanciamento entre eles. No entanto, quando um
investigador das ciências humanas confronta seu objeto ele se vê nesse objeto.
Assim, com Dilthey, a hermenêutica passa a ser o método das ciências humanas
ou das ciências do espírito. Mas, frente ao perigo da hermenêutica – do
psicologismo para o relativismo ou historicismo – Edmund Husserl propõe cautela.
Conforme ele, toda consciência é consciência de algo. Assim sendo, o objeto está
para além da consciência e na consciência. Porém, num primeiro momento, ele
está distante da tradição hermenêutica.
17
Tendo lido Schleiermacher, Dilthey e Husserl, Martin Heidegger introduz
a noção de facticidade, de estar no mundo. Com isso, ele inverte a concepção de
hermenêutica. Em Dilthey, ela está no contexto da metodologia e proporciona a
compreensão pela auto-gnose, auto-compreensão do sujeito no objeto. Todavia,
em Heidegger, a experiência é resgatada. Não é possível aniquilar o mundo, pois
o homem pertence ao mundo. O homem compreende o mundo porque cuida das
coisas do mundo. Então, a compreensão é prévia, não é produto do método. Ela é
estrutura ante-predicativa, é pré-compreensão. Isto é, o homem é dasein, ente
cujo modo de ser interroga o ser, o que corresponde ao compreender.
Conseqüentemente, Heidegger coloca um ponto final na modernidade. Isso
porque, para ele, o homem não é sujeito, mas dasein. Ele é ontologicamente
compreensão. É aqui que acontece a virada hermenêutica do plano
epistemológico, do método, para o plano ontológico, da interpretação. Mais ainda,
é aqui que a hermenêutica se torna filosófica e que o pensamento de Paul Ricoeur
se insere.
Tendo em vista essa contextualização da hermenêutica, algumas
questões surgem como balizas para essa pesquisa: Como Ricoeur define a
hermenêutica? Em que consiste sua hermenêutica filosófica? Em que consiste sua
hermenêutica bíblica? Como sua hermenêutica filosófica se relaciona com sua
hermenêutica bíblica? Existiria um elemento unificador entre ambas? Se sim, qual
seria e esse elemento e por que ele é unificador?
Para responder essas perguntas, o pesquisador faz hermenêutica dos
principais textos de Ricoeur sobre hermenêutica. Sua pesquisa segue os
parâmetros estabelecidos pela heurística e pela crítica. Seu primeiro passo
consiste na seleção dos textos, seu segundo passo consiste na análise desses
textos e seu terceiro e último passo consiste na apresentação dos resultados
dessa análise. É válido ressaltar que o tema da pesquisa está delimitado tanto em
seu aspecto material quanto em seu aspecto formal. Em seu aspecto material, ele
trata da hermenêutica. Em seu aspecto formal, ele trata da hermenêutica filosófica
e da hermenêutica bíblica de Ricoeur, bem como da relação entre ambas.
18
Considerando o todo da obra de Ricoeur, a pesquisa se concentra
apenas em uma parte, a hermenêutica do texto. Isso significa que temas como
antropologia, ética e política estão de fora ou são mencionados apenas de
passagem. Por um lado, a seleção dos artigos analisados se dá por uma opção do
pesquisador em diálogo com seu orientador. Por outro lado, as referências aos
demais artigos de Ricoeur sobre o tema pesquisado são apresentadas em notas
de rodapé. Quando é necessário, essas notas aprofundam algum detalhe ou
desenvolvem alguma conseqüência.
O primeiro capítulo analisa a hermenêutica filosófica ricoeuriana,
especialmente a sua compreensão de “Mundo do Texto”. Ele está dividido em
quatro partes. A primeira parte apresenta a definição de Ricoeur para
hermenêutica. Dentre quatro possíveis definições, uma é adotada. A segunda
parte apresenta os pressupostos característicos da tradição filosófica de Ricoeur.
Esses pressupostos são a filosofia reflexiva, a fenomenologia husserliana e a
variante hermenêutica da fenomenologia. A terceira parte apresenta a tarefa da
hermenêutica para Ricoeur. Para expor tal tarefa, ele vai das hermenêuticas
regionais à hermenêutica geral (focando Schleiermacher e Dilthey) e da
epistemologia à ontologia (focando Heidegger e Gadamer). A quarta parte
apresenta o itinerário de Ricoeur até o “Mundo do Texto”. Esse itinerário passa
pela efetuação da linguagem como discurso, pela efetuação do discurso como
obra estruturada, pela relação da fala com a escrita no discurso e nas obras de
discurso, e pela obra de discurso como projeção de um mundo, o “Mundo do
Texto”. Ele vai além, chegando ao discurso e a obra de discurso como mediação
da compreensão de si.
O segundo capítulo analisa a hermenêutica bíblica ricoeuriana,
especialmente a sua busca pelo sentido do discurso religioso. Esse capítulo está
divido em três partes. A primeira parte apresenta o nomear Deus, com destaque
especial para a noção de poética. A segunda parte apresenta a hermenêutica da
idéia da revelação, com destaque especial para os diferentes tipos de discursos
presentes na Bíblica, tais como o discurso profético, o discurso narrativo, o
discurso prescritivo ou instrutivo, o discurso de sabedoria e o discurso hínico. A
19
terceira parte apresenta a especificidade da linguagem religiosa, com destaque
especial para as expressões-limite, para as experiências-limite e para os conceitos-
limite.
O terceiro e último capítulo analisa as influências da compreensão de
Mundo do Texto sobre a busca pelo sentido do discurso religioso. Esse capítulo
está dividido em três partes. A primeira parte apresenta a relação entre a
hermenêutica filosófica e a hermenêutica bíblica. A hermenêutica centrada no
texto é aplicada nas “formas” do discurso bíblico, na fala e na escrita, no ser novo
e na coisa do texto, e na constituição hermenêutica da fé bíblica. A segunda parte
apresenta a filosofia hermenêutica. A ênfase recai sobre o espaço de
manifestação das coisas e sobre a consciência do sujeito pensante e falante. A
terceira parte apresenta a relação entre hermenêutica filosófica e hermenêutica
bíblica de Ricoeur no pensamento de outros autores. Três são os autores
analisados: François Xavier Amherdt, Kevin Vanhoozer e Grant R. Osborne.
20
CAPÍTULO 1
1 HERMENÊUTICA FILOSÓFICA
A definição de hermenêutica
1
RICOEUR, 1978, p. 18.
21
teoria das operações da compreensão em sua relação com a interpretação dos
textos.”2.
No artigo intitulado Da interpretação, de 19833, situado na obra Do texto
à acção, por duas vezes, Ricoeur novamente define hermenêutica. Na primeira
vez ele afirma: “Compreender-se é compreender-se em face do texto e receber
dele as condições de um si diferente do eu que brota do texto.”4. Na segunda vez,
ele diz: “A questão já não é definir a hermenêutica como uma investigação das
intenções psicológicas escondidas no texto, mas como explicitação do ser-no-
mundo revelado pelo texto.”5.
Mas, no Prefácio a Bultmann, de 1968, situado na obra Ensaios sobre
interpretação bíblica, Ricoeur apresenta aquela que ficou conhecida como a sua
Definição mais clara de hermenêutica. Ele afirma: “A hermenêutica é a decifração
da vida no espelho do texto.”6. Ou seja, para Ricoeur a vida humana está cifrada.
A sua decifração não é imediata, porém, mediada pelo texto. Isto é, o leitor só
decifra a sua própria vida à medida que lê o texto. Logo, segundo Ricoeur, o que
interessa à hermenêutica é a vida. É por essa razão que a hermenêutica se torna
filosófica. Ela busca o sentido da vida.
É válido destacar que, ao longo de toda a pesquisa, a hermenêutica será
compreendida como Ricoeur a compreendia, como “decifração da vida no
espelho do texto”. Assim, uma vez definida a hermenêutica é possível dar um
passo adiante em direção aos pressupostos característicos da tradição filosófica
ricoeuriana.
2
RICOEUR, 1977, p. 17.
3
Cf. RICOUER, [s.d.], p. 401.
4
RICOEUR, [s.d.], p. 42-43.
5
Idem, p. 62.
6
RICOEUR, 2004, p. 49.
22
Demonstra aqueles que seriam os pressupostos característicos da tradição
filosófica na qual se reconhece inserido. Antes de discorrer sobre cada um dos
pressupostos, ele os sintetiza da seguinte maneira:
(...) gostaria de caracterizar a tradição filosófica de que me
reclamo, por meio de três traços: ela está na linha de uma filosofia
reflexiva; permanece na esfera de influência da fenomenologia
husserliana; deseja ver uma variante hermenêutica desta
fenomenologia.7
7
RICOEUR, [s.d.], p. 36.
8
Idem, p. 37.
9
Ibidem.
23
Ricoeur começa a sua apresentação da fenomenologia10 husserliana
com uma questão relacionada à fórmula pela qual todas as filosofias reflexivas são
conhecidas: como o “eu penso” se conhece ou se reconhece a si mesmo? Para
ele, é a partir dessa questão que a fenomenologia (e, sobretudo, a hermenêutica)
representa, simultaneamente, uma realização e uma transformação radical do
próprio programa de filosofia reflexiva.
Para Ricoeur, com a idéia de reflexão, restringe-se o desejo de uma
transparência absoluta, de uma perfeita coincidência de si consigo mesmo, que
faria da consciência de si um saber indubitável e mais fundamental que todos os
saberes positivos. Todavia, é esse desejo que a fenomenologia e a hermenêutica,
sucessivamente, transferem para um horizonte cada vez mais distante. Assim,
segundo Ricoeur, Husserl
(...) concebe a fenomenologia não apenas como um método de
descrição essencial das articulações fundamentais da experiência
(perceptiva, imaginativa, intelectiva, volitiva, axiológica, etc.), mas
como auto-fundação radical na mais completa clareza intelectual. 11
10
A fenomenologia é uma pura descrição do que se mostra por si mesmo, de acordo com “o
princípio dos princípios”: reconhecer que toda intuição primordial é uma fonte legítima de
conhecimento, que tudo o que se apresenta por si mesmo ‘na intuição’ (e, por assim dizer, ‘em
pessoa’) deve ser aceito simplesmente como o que se oferece e tal como se oferece, embora
somente dentro dos limites nos quais se apresenta (FERRATER MORA, 2000, p. 1019.).
11
RICOEUR, [s.d.], p. 37.
12
Ibidem.
24
Intencionalidade é o primado da consciência de alguma coisa sobre a consciência
de si. Num sentido estrito, intencionalidade significa que o ato de visar alguma
coisa não se atinge, ele próprio, senão através de sua unidade identificável e re-
identificável do sentido visado, a que Husserl chama o “noema” ou correlato
intencional da mira “noética”. 13 Além disso, sobre esse noema deposita-se, em
camadas sobrepostas, o resultado das atividades sintéticas a que Husserl chama
“constituição” (da coisa, do espaço, do tempo, etc.).14
Para Ricoeur, o trabalho concreto da fenomenologia, especialmente no
estudo consagrado à constituição das coisas, revela, por via regressiva, camadas
sempre mais fundamentais onde as sínteses ativas remetem, sem parar, a
sínteses passivas sempre mais radicais. Conseqüentemente, a fenomenologia é
tomada num movimento infinito de “questão ao inverso”, no qual se desvanece o
seu projeto de auto-fundação. Sobre isso, Ricoeur conclui:
A Lebenswelt [mundo da vida] nunca é dada, mas sempre
pressuposta. É o paraíso perdido da fenomenologia. É nesse
sentido que a fenomenologia subverteu a sua própria idéia
directriz, ao tentar realizá-la. É isso que faz a grandiosidade trágica
da obra de Husserl.15
13
Na atividade intencional podem ser distinguidos, segundo Husserl, dois pólos: o noético (...) e o
noemático. (...) dois extremos de um simples e puro “fluxo intencional”; a atenção dada ao
noemático é característica da intuição das essências. A atenção dada ao noético é característica
da reversão da consciência em direção a si mesma (FERRATER MORA, 2000, p. 1020.).
14
Assim considerada, a fenomenologia é um ponto de vista estritamente diferente do ponto de
vista que Husserl chama de “atitude natural”: é o ponto de vista por meio do qual se vê tudo o que
revela a atitude natural enquanto “suspenso” ou “posto entre parênteses”. Mas isso significa que a
fenomenologia não é uma ciência junto às outras, nem sequer uma “ciência básica”, ela é o
fundamento de toda ciência e de todo saber. Pode ser chamada, por isso, de “filosofia primeira”,
que não tem nenhum objeto próprio, ao contrário de todas as possíveis “filosofias segundas”. Na
descrição fenomenológica, e especialmente na que torna possível a chamada “redução eidética”,
deparamos com um “fluxo puro” (intencional) do vivido, no qual podem-se destacar o aspecto
noético e o aspecto noemático. Trata-se, é claro, de aspectos de um mesmo “fluxo” (...) Mas com
isso ainda não se chega a uma camada suficientemente básica, fundamental ou “radical” – é
preciso proceder à redução transcendental na qual o único “objeto” de “visão fenomenológica” é o
“próprio ego”. Aparece então o que se chamou de “concepção egológica da consciência”, ou seja,
a idéia do “eu [ou ego] transcendental”. Esse “ego” já não é, então, um mero aspecto, ou apenas
um em um único “fluxo do vivido”: é o fundamento de todos os atos intencionais. Por ser o
fundamento desses atos o eu é, como diz Husserl, “constitutivo” (FERRATER MORA, 2000, p.
1405 – 1406.).
15
RICOEUR, [s.d.], p. 38.
25
A partir dessa conclusão, Ricoeur expressa o enxerto da hermenêutica
na fenomenologia. Após mencionar o “nascimento” ou “ressurreição” da
hermenêutica16, ele afirma que o famoso círculo hermenêutico entre o sujeito
“objetivo” de um texto e sua pré-compreensão por um leitor singular aparece como
um caso particular da conexão a que Husserl chamava correlação noético-
noemática. Contudo, segundo Ricoeur, o enraizamento fenomenológico da
hermenêutica não se limita a esse parentesco muito geral entre a compreensão
dos textos e a ligação intencional de uma consciência a um sentido que lhe faz
frente. Portanto, o tema da Lebenswelt (mundo da vida), reencontrado, contra a
sua vontade, pela fenomenologia, é assumido pela hermenêutica pós-
heideggeriana como algo preliminar. Ricoeur explica:
É, em princípio, porque estamos no mundo e lhe pertencemos por
uma pertença participativa irrecusável que podemos, num segundo
momento, opor a nós mesmos objectos que pretendemos constituir
e dominar intelectualmente. O Verstehen [compreensão], para
Heidegger, tem uma significação ontológica. É a resposta de um
ser lançado no mundo, que nele se orienta, projetando os seus
possíveis mais próximos. A interpretação, no sentido técnico da
interpretação dos textos, não é mais do que o desenvolvimento, a
explicação deste compreender ontológico, sempre solidário a um
ser antecipadamente lançado. Assim, a relação sujeito-objecto, da
qual Husserl é tributário, está subordinada à confirmação de um
elo ontológico mais primitivo que qualquer relação de
conhecimento.17
16
A presente pesquisa tratará do “nascimento” ou “ressurreição” da hermenêutica adiante.
17
RICOEUR, [s.d.], p. 39.
26
– a que condição um sujeito cognoscente pode compreender um
texto ou a história? – pode ser substituída pela questão: o que é
um ser cujo ser consiste em compreender? O problema
hermenêutico torna-se, assim, um domínio da analítica desse ser,
o Dasein [“eis aí o ser”, ser humano, homem], que existe
compreendendo. (...) Portanto, o que precisamos considerar, em
toda a sua radicalidade, é a inversão da própria questão, a
inversão que, ao invés de uma epistemologia da interpretação,
introduz uma ontologia da compreensão.18
18
RICOEUR, 1978, p. 9-10.
19
RICOEUR, [s.d.], p. 40.
20
Ibidem.
27
Fases de emancipação da hermenêutica
21
Ibidem.
22
“Chamo de símbolo toda estrutura de significação em que um sentido direto, primário, literal,
designa, por acréscimo, outro sentido indireto, secundário, figurado, que só pode ser apreendido
através do primeiro. Essa circunscrição das expressões de duplo sentido constitui, propriamente, o
campo hermenêutico.” (RICOEUR, 1978, p. 15).
23
Cf. tb. Hermenêutica dos símbolos e reflexão filosófica (I), na obra O conflito das interpretações:
ensaios de hermenêutica.
24
RICOEUR, [s.d.], p. 41.
28
A princípio, pareceu-me, que um simbolismo tradicional ou privado
só revela os seus recursos de plurivocidade em contextos
apropriados, ou seja, à escala de um texto integral, por exemplo,
um poema. Em seguida, o mesmo simbolismo dá lugar a
interpretações concorrentes, mesmo polarmente opostas, conforme
a interpretação visa reduzir o simbolismo à sua base literal, às suas
origens inconscientes ou às suas motivações sociais, ou
amplificá-lo segundo a sua maior potência de sentido múltiplo.
Num caso, a hermenêutica visa desmistificar o simbolismo,
desmascarando as forças inconfessadas que nele se dissimulam;
no outro, a hermenêutica visa uma síntese do sentido mais rico,
mas elevado, mais espiritual. Ora, esse conflito das
interpretações desenvolve-se igualmente a uma escala textual.25
25
Ibidem.
26
Cf. RICOEUR, [s.d.], p. 41-42.
29
Discurso. Cabe à hermenêutica explorar as conseqüências deste
tornar-se texto pelo trabalho da interpretação.27
Ricoeur continua:
Quanto à outra subjetividade, a do leitor, ela é tanto a obra da
leitura e o dom do texto como é o portador das expectativas com
que este leitor aborda e recebe o texto. Já não se trata, pois, de
definir hermenêutica pelo primado da subjetividade que lê no texto,
portanto, por uma estética da recepção. Não serviria nada
substituir uma intentional fallacy [falácia intencional] por uma
affective fallacy [falácia afetiva].29
27
RICOEUR, [s.d.], p. 42.
28
Ibidem.
29
Ibidem.
30
Idem, p. 42-43.
30
Primeira tarefa da hermenêutica
A tarefa da hermenêutica
31
Cinco parágrafos adiante, Ricoeur reafirma: “O papel da hermenêutica, dissemos nós, é duplo:
reconstruir a dinâmica interna do texto e restituir a capacidade de a obra se projectar para fora na
representação de um mundo que eu poderia habitar.” (RICOEUR, [s.d.], p. 43)
32
RICOEUR, [s.d.], p. 43.
33
Ibidem.
31
Ricoeur começa tal artigo demonstrando uma definição de hermenêutica
(também já citada acima). Ele afirma: “Adotarei a seguinte definição de trabalho: a
hermenêutica é a teoria das operações da compreensão em sua relação com a
interpretação dos textos.”34. Para Ricoeur, a idéia diretriz é a da efetuação do
discurso como texto. Conseqüentemente, a aporia expressa na dissociação entre
explicar e compreender tenta ser resolvida pela busca de complementaridade
entre ambas as atitudes. No plano epistemológico, essa
busca exprime a reorientação exigida da hermenêutica pela noção do texto.
32
O primeiro “lugar” da interpretação
36
Idem, 1977, p. 18-19.
37
Idem, 1977, p. 19.
38
Confirma 1.3.5. Primeira tarefa da hermenêutica.
39
RICOEUR, 1977, p. 19.
33
De acordo com Ricoeur, é no interior desse círculo bastante amplo de
mensagens trocadas que a escrita demarca um domínio limitado, chamado por
Dilthey de expressões da vida fixadas pela escrita. Conforme Ricoeur, são essas
expressões da vida fixadas pela escrita que exigem um trabalho específico de
interpretação. Antes de seguir adiante em sua argumentação, ele faz uma
importante afirmação:
(...) com a escrita, não se preenchem mais as condições da
interpretação direta mediante o jogo da questão e da resposta, por
conseguinte, através do diálogo. São necessárias, então, técnicas
específicas para se elevar ao nível do discurso a cadeia dos sinais
escritos e discernir a mensagem através das codificações
superpostas, próprias à efetuação do discurso como texto.40
F. Schleiermacher
40
Ibidem.
41
Cf. RICOEUR, 1977, p. 20.
34
das regras, das receitas, entre as quais se dilui a arte de compreender. Então,
conforme Ricoeur, a “hermenêutica nasceu desse esforço para se elevar a
exegese e a filologia ao nível de uma Kunstlehre, vale dizer, de uma “tecnologia”
que não se limita mais a uma simples coleção de operações desarticuladas.”42. Ou
seja, a hermenêutica se origina, de fato, com a subordinação das regras
particulares da filologia e da exegese à problemática geral do compreender.43
Conseqüentemente, para Ricoeur, essa subordinação constitui uma
reviravolta análoga à operada pela filosofia kantiana com referência às ciências da
natureza. Portanto, ele conclui que o kantismo constitui o horizonte filosófico mais
próximo da hermenêutica. Segundo Ricoeur:
É compreensível que o clima kantiano tenha sido adequado à
formação do projeto de referir as regras da interpretação, não à
diversidade dos textos e das coisas ditas nesses textos, mas à
operação central que unifica a diversidade da interpretação. Se
Schleiermacher não está pessoalmente consciente de operar na
ordem exegética e filológica o tipo de revolução copérnica operada
por Kant na ordem da filosofia da natureza, Dilthey estará
perfeitamente consciente disso, no clima neo-kantiano do fim do
século XIX.44
42
RICOEUR, 1977, p. 20.
43
Cf. RICOEUR, 1977, p. 20.
44
RICOEUR, 1977, p. 20.
45
Cf. RICOEUR, 1977, p. 20-21.
35
Schleiermacher era portador de uma marca dupla: romântica e crítica. Acerca
dessa marca dupla, Ricoeur afirma:
Romântica por seu apelo a uma relação viva com o processo de
criação e crítica por seu desejo de elaborar regras universalmente
válidas da compreensão. Talvez, toda hermenêutica fique sempre
marcada por essa dupla filiação romântica e crítica, crítica e
romântica. Crítica é o propósito de lutar contra a não-compreensão
em nome do famoso adágio: “há hermenêutica, onde houver não-
compreensão”(...); romântica é o intuito de “compreender um autor
tão bem, e mesmo melhor do que ele mesmo se compreendeu”.46
46
RICOEUR, 1977, p. 21.
47
RICOEUR, 1977, p. 22.
36
da individualidade. Essa interpretação é positiva, pois atinge o ato de pensamento
que produz o discurso.48
Além de a interpretação gramatical excluir a interpretação técnica,
segundo Ricoeur, cada uma delas exige habilidades distintas. Isso pode ser
constatado pelos excessos de ambas. Por um lado, o excesso da interpretação
gramatical gera o pedantismo. Por outro lado, o excesso da interpretação técnica
gera a nebulosidade.49
De acordo com Ricoeur, apenas nos últimos escritos de Schleiermacher
a interpretação técnica ganha um primado sobre a interpretação gramatical e o
caráter adivinhatório da interpretação enfatiza seu caráter psicológico. Ricoeur
esclarece que nesses últimos escritos de Schleiermacher a expressão
“interpretação psicológica” substitui a expressão “interpretação técnica”. Todavia,
é importante deixar claro que a interpretação psicológica jamais se limita a uma
afinidade com o autor. Antes, ela implica motivos críticos na atividade de
comparação, pois uma individualidade só pode ser apreendida por comparação e
por contraste.50
Conforme Ricoeur, a interpretação psicológica de Schleiermacher
também comporta elementos técnicos e discursivos. Isso porque, como fora dito,
uma individualidade jamais pode ser apreendida diretamente, contudo, apenas
sua diferença com relação à outra e a si mesma. Então, Ricoeur constata que:
Complica-se (...) a dificuldade de se demarcar as duas
hermenêuticas pela superposição, ao primeiro par de opostos, o
gramatical e o técnico, de um segundo par de opostos, a
adivinhação e a comparação.51
48
Cf. RICOEUR, 1977, p. 22.
49
Ibidem.
50
Ibidem.
51
RICOEUR, 1977, p. 22.
37
deslocar a ênfase da busca patética das subjetividades subterrâneas em direção
ao sentido e à referência da própria obra.52
Entretanto, antes de desenvolver essas duas atitudes, Ricoeur considera
necessário levar adiante a aporia central da hermenêutica, que se expressa na
dissociação entre explicar e compreender. Isso ele o fará considerando a aplicação
decisiva pela qual Dilthey a fez passar subordinando a problemática filológica e
exegética à problemática histórica. Ricoeur diz que é “essa ampliação, no sentido
de uma maior universidade [chamada anteriormente
de revolução copérnica], que prepara o deslocamento da epistemologia em
direção à ontologia, no sentido de uma maior radicalidade”53.
Uma vez apresentado o pensamento de Schleiermacher, através do
qual se inicia o processo de desregionalização, Ricoeur segue em sua
argumentação expondo o pensamento de Dilthey, através do qual a
desregionalização será preparada para ser conduzida à radicalização, que
consiste no deslocamento da epistemologia em direção à ontologia.
W. Dilthey
52
Essas duas atitudes serão desenvolvidas por Ricoeur no artigo intitulado A função hermenêutica
do distanciamento, que será analisado adiante nesse mesmo capítulo.
53
RICOEUR, 1977, p. 23.
54
Cf. RICOEUR, 1977, p. 23.
38
do passado, deve-se colocar uma questão prévia de como conceber um
encadeamento histórico. Isto é, antes da coerência de um texto, vem a coerência
da história, considerada como o grande documento do homem, como a mais
fundamental expressão de vida. Portanto, conforme Ricoeur, Dilthey é o intérprete
do pacto entre hermenêutica e história. O que hoje é pejorativamente chamado de
historicismo exprime inicialmente um fato da cultura, a saber, a transferência de
interesse das obras primas da humanidade sobre o encadeamento histórico que
as transportou.55
Para Ricoeur, o segundo fato cultural que influencia o pensamento de
Dilthey consiste em procurar a chave da solução do problema da inteligibilidade do
histórico na reforma da epistemologia e não na ontologia. O que está por trás
desse segundo fato cultural é a ascensão do positivismo enquanto filosofia. A
filosofia positivista se caracteriza pela exigência do espírito de manter como
modelo de toda inteligibilidade o tipo de explicação empírica próprio das ciências
naturais. Em outras palavras, segundo Ricoeur, o tempo de Dilthey é o da recusa
do hegelianismo e o da defesa do conhecimento experimental. Logo, a única
maneira de se fazer justiça ao conhecimento histórico é conferir-lhe uma dimensão
científica, comparável à que as ciências da natureza haviam conquistado. Assim,
de acordo com Ricoeur, para replicar ao positivismo, Dilthey tentou dotar as
ciências do espírito de uma metodologia e de uma epistemologia tão respeitáveis
quanto as das ciências da natureza.56
Conforme Ricoeur, é sobre o fundo desses dois grandes fatos culturais
que Dilthey coloca sua pergunta básica. Essa pergunta se manifesta, de modo
mais específico, sobre a possibilidade do conhecimento histórico e, de modo mais
geral, sobre a possibilidade das ciências do espírito. Para Ricoeur:
Essa questão nos conduz ao limiar da grande oposição, que
atravessa toda a obra de Dilthey, entre a explicação da natureza e
a compreensão da história. Essa questão é repleta de
conseqüências para a hermenêutica, que se vê, assim, cortada da
explicação naturalista e relegada do lado da intuição psicológica.57
55
Ibidem.
56
Idem, p. 24.
57
RICOEUR, 1977, p. 24.
39
Segundo Ricoeur, é do lado da psicologia que Dilthey procura o traço
distintivo do compreender. Assim sendo, toda ciência do espírito pressupõe uma
capacidade primordial de se transpor na vida psíquica de outrem. Se no
conhecimento natural o homem só atinge fenômenos distintos dele, cuja coisidade
fundamental lhe escapa, na ordem humana, no entanto, o homem conhece o
homem. Por mais estranho que um homem seja a outro homem, não o é no
sentido em que pode sê-lo a coisa física incognoscível. Então, Ricoeur afirma:
A diferença de estatuto entre a coisa natural e o espírito comanda,
pois, a diferença de estatuto entre explicar e compreender. O
homem não é radicalmente um estranho para o homem, porque
fornece sinais de sua própria existência. Compreender esses
sinais é compreender o homem. Eis o que a escola positivista
ignora por completo: a diferença de princípio entre o mundo
psíquico e o mundo físico.58
58
Idem, p. 25.
59
RICOEUR, 1977, p. 25.
40
Conforme Ricoeur, de 1900 em diante, Dilthey baseia-se em Husserl
para dar mais densidade à sua noção de encadeamento. Durante esse período,
Husserl estabelece que o psiquismo se caracteriza pela intencionalidade, ou seja,
pela capacidade de visar um sentido passível de ser identificado. É válido ressaltar
que, em si mesmo, o psiquismo não pode ser atingido. Porém, é possível captar
aquilo que ele visa, isto é, o correlato objetivo e idêntico no qual o psiquismo se
ultrapassa. Logo, para Ricoeur, essa idéia da intencionalidade e do caráter
idêntico do objeto intencional permite a Dilthey reforçar seu conceito de estrutura
psíquica pela noção de significação.
Agora, segundo Ricoeur, a passagem da compreensão (definida
amplamente pela capacidade de transpor-se em outrem) à interpretação (no
sentido preciso da compreensão das expressões da vida fixadas pela escrita)
demonstra um duplo problema:
Por um lado, a hermenêutica completava a psicologia
compreensiva, acrescentando-lhe um estágio suplementar; por
outro, a psicologia compreensiva infletia [modificava] a
60
hermenêutica num sentido psicológico.
De acordo com Ricoeur, esse duplo problema explica por que Dilthey
conserva de Schleiermacher o lado psicológico da hermenêutica, exatamente
onde reconhece seu próprio problema, o da compreensão por transferência a
outrem. Acerca isso, Ricoeur diz:
Considerada desse primeiro ponto de vista, a hermenêutica
comporta algo de específico: visa reproduzir um encadeamento,
um conjunto estruturado, apoiando-se numa categoria de signos,
os que foram fixados pela escrita ou por qualquer outro
procedimento de inscrição equivalente à escrita. Torna-se
impossível, pois, apreender a vida psíquica de outrem em suas
expressões imediatas; deve-se reproduzi-la, reconstruí-la,
interpretando os signos objetivados. (...) Como em
Schleiermacher, é a filologia, isto é, a explicação dos textos, que
fornece a etapa científica da compreensão.61
60
Idem, p. 26.
61
Ibidem.
41
Ricoeur reconhece que, tanto em Schleiermacher quanto em Dilthey, o
papel essencial da hermenêutica consiste em estabelecer teoricamente, contra a
intromissão constante da arbitrariedade romântica e do subjetivismo cético, a
validade universal da interpretação, base de toda certeza em história. Assim, a
hermenêutica constitui a camada objetivada da compreensão, graças às
estruturas essenciais dos textos.62
Todavia, conforme Ricoeur, a fragilidade de uma teoria hermenêutica
fundada sobre a psicologia é o fato dela continuar sendo sua justificação última. É
por isso que, para ele, a questão da objetividade, em Dilthey, permanece um
problema, simultaneamente, inelutável e insolúvel. Contudo, essa subordinação do
problema hermenêutico ao problema propriamente psicológico do conhecimento
de outrem o condena a procurar fora do campo próprio da interpretação a fonte de
toda objetivação. Ricoeur destaca que, segundo Dilthey, a objetivação começa
desde a interpretação de si. O que o homem é para si mesmo somente pode ser
atingido através das objetivações da sua própria vida. Assim sendo, o
conhecimento de si já é uma interpretação que não é mais fácil que a
interpretação dos outros. Ao contrário, parece ser mais difícil, pois o homem só se
compreende a si mesmo através dos sinais que dá da sua própria vida e que lhe
são enviados pelos outros. Isso implica que todo conhecimento de si é mediato
pelos sinais e pelas obras.63
De acordo com Ricoeur, a Lebensphilosophie (filosofia da vida) era
muito influente na época de Dilthey. Entretanto, a sua relação com ela dupla. Por
um lado, Dilthey concorda com a convicção de que a vida é essencialmente um
dinamismo criador. Por outro lado, em desacordo com a filosofia de vida, afirma
categoricamente que o dinamismo criador não se conhece a si mesmo nem pode
se interpretar, senão através dos sinais e das obras. Conforme Ricoeur, dessa
maneira, Dilthey operou uma fusão entre o conceito de dinamismo e o conceito de
estrutura. Então, a vida aparece como um dinamismo que estrutura a si mesmo.
Sobre as implicações disso, Ricoeur diz:
62
Cf. RICOEUR, 1977, p. 26-27.
63
Idem, p. 27.
42
Foi assim que Dilthey se viu tentado a generalizar o conceito de
hermenêutica, inserindo-o sempre mais profundamente na
teleologia da vida. Significações adquiridas, valores presentes, fins
longínquos estruturam constantemente a dinâmica da vida,
segundo as três dimensões temporais do passado, do presente e
do futuro. O homem se instrui apenas por seu atos, pela
exteriorização de sua vida e pelos efeitos que ela produz sobre os
outros. Só aprende a conhecer-se pelo desvio da compreensão
que é, desde sempre, uma interpretação.64
64
RICOEUR, 1977, p. 27-28.
65
Idem, p. 28.
66
Ibidem.
67
Cf. RICOEUR, 1977, p. 28-29.
43
Mas Ricoeur reconhece que Dilthey percebeu que o âmago do
problema, a saber, que a vida só apreende a vida pela mediação das unidades de
sentido que se elevam acima do fluxo histórico. Porém, segundo Ricoeur:
(...) para levar adiante essa descoberta, será preciso que se
renuncie a vincular o destino da hermenêutica à noção puramente
psicológica de transferência numa vida psíquica estranha, e que se
desvende o texto, não mais em direção a seu autor, mas em
direção ao sentido imanente e a este tipo de mundo que ele abre e
descobre.68
Da epistemologia à ontologia
68
RICOEUR, 1977, p. 29.
69
Cf. RICOEUR, 1977, p. 29-30.
44
o objetivo de elucidar suas condições ontológicas. Ricoeur resume assim o trajeto
da hermenêutica:
Se pudermos situar o primeiro trajeto, das hermenêuticas regionais
à hermenêutica geral, sob o signo da revolução copérnica,
devemos situar o segundo, que empreendemos agora, sob o signo
de uma segunda revolução copérnica, que recolocaria as
condições de método sob o controle de uma ontologia prévia.70
Segundo Ricoeur, nesse ponto surge uma questão nova: “ao invés de
nos perguntarmos como sabemos, perguntaremos qual é o modo de ser desse ser
que só existe compreendendo.”71. Com essa questão está aberto o caminho que o
conduzirá ao pensamento de Heidegger.
M. Heidegger
70
RICOEUR, 1977, p. 30.
71
Ibidem.
72
Idem, p. 30-31.
45
questão epistemológica se o problema fosse o dos conceitos de base que regem
regiões de objetos particulares, como região-natureza, região-vida, região-
linguagem e região-história. No entanto, a tarefa filosófica de fundação é algo
distinto. Ela visa a extrair os conceitos fundamentais que determinam a
compreensão prévia da região, fornecendo a base de todos os objetos temáticos
de uma ciência e que orientam a pesquisa positiva. Para Ricoeur:
O desafio da filosofia hermenêutica consistirá, pois, na
“explicitação desse ente relativamente à sua constituição de ser”.
Essa explicitação nada acrescentará à metodologia das ciências
do espírito; antes, cavará sob essa metodologia para manifestar
seus fundamentos. (...) A hermenêutica [para Heidegger] não é
uma reflexão sobre as ciências do espírito, mas uma explicitação
do solo ontológico sobre o qual essas ciências podem edificar-se.73
73
Idem, p. 31.
74
Cf. RICOEUR, 1977, p. 31-32.
46
toma o lugar da questão outrem. Ao mundanizar, assim, o
compreender, Heidegger o despsicologiza.75
75
RICOEUR, 1977, p. 32.
76
Cf. RICOEUR, 1977, p. 32-33.
77
RICOEUR, 1977, p. 33.
78
Ibidem.
47
então... não é primeiro, mas derivado da estrutura do projeto-
lançado.79
79
Ibidem.
80
Idem, p. 33-34.
81
Idem, p. 34.
48
sabe, doravante, que “o elemento decisivo não consiste em sair do
círculo, mas em penetrá-lo corretamente”.82
82
Idem, p. 34-35.
83
Idem, p. 35.
84
Idem, p. 35-36.
49
bloco, não na epistemologia, entre duas modalidades de conhecer. Ricoeur
conclui sua apresentação do pensamento de Heidegger afirmando que a
preocupação em se fundamentar mais profundamente o círculo hermenêutico que
toda epistemologia impede que se repita a questão epistemológica após a
ontologia. De acordo com ele, essa afirmação demonstra, novamente, a aporia.85
Assim, uma vez apresentado o pensamento de Heidegger, Ricoeur dá
continuidade à sua argumentação expondo o pensamento de Gadamer.
H. G. Gadamer
85
Cf. RICOEUR, 1977, p. 36-37.
86
Idem, p. 37-38.
50
disponível, e toda pretensão de se dominar, por técnicas objetivas,
as estruturas do texto de nossa cultura. Assim, uma única e
mesma tese está presente nas três partes de Wahrheit und
Methode [Verdade e Método].87
87
RICOEUR, 1977, p. 38.
88
Idem, p. 39.
89
Cf. RICOEUR, 1977, p. 39.
51
seja, ela é devida à reconquista da dimensão histórica sobre a filosofia reflexiva.
Isso quer dizer que, em outras palavras, a história precede o homem e se antecipa
à sua reflexão, ele pertence à história antes de pertencer a si mesmo. Sobre o
avanço de Gadamer em relação a Dilthey, Ricoeur afirma:
Ora, Dilthey não pode compreender isso, porque sua revolução
permaneceu epistemológica, e porque seu critério reflexivo prima
sobre sua consciência histórica. Nesse ponto, Gadamer é herdeiro
de Heidegger. É dele que recebe a convicção segunda a qual
aquilo que chamamos de preconceito exprime a estrutura de
antecipação da experiência humana. Ao mesmo tempo, a
interpretação filológica deve permanecer um modo derivado do
compreender fundamental.90
90
RICOEUR, 1977, p. 39.
91
GADAMER apud RICOEUR, 1977, p. 40.
52
distanciamento, mas de forma a também empenhar-se em assumi-
lo.92
92
RICOEUR, 1977, p. 40.
93
Idem, p. 40-41.
94
Idem, p. 41.
53
oferecem à decifração as heranças culturais. De acordo com Ricoeur, não resta
dúvida de que todo o pensamento de Gadamer sobre a linguagem está voltado
contra a redução do mundo dos signos a instrumentos manipuláveis. Acerca disso,
Ricoeur diz:
Toda a terceira parte de Wahrheit und Methode [Verdade e
Método] é uma apologia apaixonada do diálogo que somos e da
concórdia prévia que nos impulsiona. Mas a experiência
“linguageira” só exerce sua função mediadora porque os
interlocutores do diálogo anulam-se reciprocamente diante das
coisas ditas que, de certo modo, conduzem o diálogo. Ora, onde
esse reino da coisa dita sobre os interlocutores seria mais
aparente senão (...) quando a mediação pela linguagem se
converte em mediação pelo texto? Assim, o que nos faz comunicar
à distância, é a coisa do texto que não pertence mais nem ao seu
autor nem ao seu leitor.95
95
Idem, p. 41-42.
96
Para compreender melhor todo esse tópico, cf. “Quadro” sobre a “Função hermenêutica do
distanciamento”, na p. 183.
97
Cf. tb. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação. Lisboa: Edições 70, 1987.
54
fundamental e primordial que faz o homem pertencer à realidade histórica que
pretende erigir em objeto. Portanto, Ricoeur afirma estar diante da:
(...) alternativa subjacente ao título mesmo da obra de Gadamer,
Verdade e método: ou praticamos a atitude metodológica, mas
perdemos a densidade ontológica da realidade estudada, ou então
praticamos a atitude de verdade, e somos forçados a renunciar à
objetividade das ciências humanas.98
Mas, Ricoeur recusa e tenta ultrapassar tal alternativa. Para isso, ele
escolhe uma problemática que parece escapar à alternativa entre distanciamento
e pertença. Essa problemática é a do texto. Ricoeur atenta para o fato de que ele
é mais que um caso particular de comunicação inter-humana. O texto é o
paradigma do distanciamento na comunicação. Logo, ele revela um caráter
fundamental da própria historicidade da experiência humana, experiência que é
comunicação na e pela distância.99
O que Ricoeur faz desse ponto a diante é expor a sua noção de texto.
Assim, ele mesmo propõe que essa problemática seja organizada em torno de
cinco temas que, tomados juntos, constituem os critérios da textualidade. São
eles: 1) A efetuação da linguagem como discurso; 2) A efetuação do discurso
como obra estruturada; 3) A relação da fala com a escrita no discurso e nas obras
de discurso; 4) A obra de discurso como projeção de um mundo, o “Mundo do
Texto”; 5) O discurso e a obra de discurso como mediação da compreensão de
si.100
De antemão, Ricoeur deixa claro que a questão da escrita não constitui
a problemática única do texto. Assim sendo, não seria possível a identificação
pura e simples do texto com a escrita. Para Ricoeur, tal impossibilidade se deve a
três razões. Primeiro, porque é a dialética entre fala e escrita, e não somente a
escrita, que suscita um problema hermenêutico. Segundo, porque essa dialética
entre fala e escrita se constrói sobre uma dialética de distanciamento mais
primitiva. Então, é no próprio discurso que se deve procurar a raiz de todas as
dialéticas ulteriores. Terceiro, porque entre a efetuação da linguagem como
98
Idem, p. 43.
99
Cf. RICOEUR, 1977, p. 43-44.
100
Idem, p. 44.
55
discurso e a dialética da fala e da escrita parece se intercalar a noção fundamental
da efetuação do discurso como obra estruturada.101
Conseqüentemente, segundo Ricoeur, a objetivação da linguagem nas
obras de discurso constitui a condição mais próxima da inscrição do discurso na
escrita. Por conseguinte, a literatura é constituída de obras escrita, porém, antes
de tudo, de obras. Nesse ponto, Ricoeur faz uma importante consideração:
Mas isso não é tudo: a tríade discurso-obra-escrita ainda não
constitui senão o tripé que suporta a problemática decisiva, a do
projeto de um mundo, que eu chamo de o mundo da obra, e onde
vejo o centro de gravidade da questão hermenêutica. Toda
discussão anterior servirá apenas para preparar o deslocamento
do problema do texto em direção ao do mundo que ele abre. Ao
mesmo tempo, a questão da compreensão de si, que, na
hermenêutica romântica, ocupara um lugar de destaque, vê-se
transferida para o fim, como fator terminal, e não como fator
introdutório ou, menos ainda, como centro de gravidade.102
56
dualidade. (...) Foi o lingüista francês Emile Benveniste quem mais
se aprofundou nessa direção. Para ele, a lingüística do discurso
[ou fala] e a lingüística da língua se constroem sobre unidades
diferentes. Se o “signo” (fonológico e léxico) é a unidade de base
da língua, a “frase” é a unidade de base do discurso [ou fala]. É a
lingüística da frase que suporta a dialética do evento e do sentido,
de onde parte a nossa teoria do texto.103
103
RICOEUR, 1977, p. 45-46.
104
Cf. RICOEUR, 1977, p. 46.
105
Ibidem.
106
Ibidem.
57
Conseqüentemente, o evento é o fenômeno temporal da troca, o estabelecimento
do diálogo. Esse diálogo pode travar-se, prolongar-se ou interromper-se.107
Portanto, Ricoeur diz que todos esses traços, juntos, constituem o
discurso como evento. Segundo ele é “interessante notar como eles só aparecem
no movimento de efetuação da língua em discurso, na atualização de nossa
competência lingüística em performance.”108.
Aqui Ricoeur passa ao segundo pólo que constitui o discurso. Tal pólo
corresponde ao entendimento do discurso como significação. De acordo com
Ricoeur, é da tensão entre o discurso como evento e o discurso como significação
que surgem a produção do discurso como obra, a dialética da fala e da escrita e
todos os outros traços do texto que enriquecem a noção de distanciamento.
Embora o pólo do discurso como significação não seja tão desenvolvido como o
pólo do discurso como evento, ele afirma: “Para introduzir essa dialética do evento
e do sentido, proponho que se diga que, se todo discurso é efetuado como evento,
todo discurso é compreendido como significação.”109.
Fica evidente que, conforme Ricoeur, o que se pretende compreender é
a significação do evento, não e evento em si, pois o mesmo é fugido. Logo, é na
lingüística do discurso que o evento e o sentido se articulam um sobre o outro. Tal
articulação é considerada por Ricoeur como o núcleo de todo o problema
hermenêutico. Esse pensamento é sintetizado por ele da seguinte maneira:
Assim como a língua, ao articular-se sobre o discurso, ultrapassa-
se como sistema e realiza-se como evento, da mesma forma, ao
ingressar no processo da compreensão, o discurso se ultrapassa,
enquanto evento, na significação. Essa ultrapassagem do evento
na significação é típica do discurso enquanto tal. Revela a
intencionalidade mesma da linguagem, a relação, nela, do noema
com a noese. Se a linguagem é um meinen, uma visada
significante, é precisamente em virtude dessa ultrapassagem do
evento na significação.110
107
Ibidem.
108
RICOEUR, 1977, p. 46.
109
Idem, p. 47.
110
Ibidem.
58
elucidar o que é o dito, ele considera que a hermenêutica deve recorrer à teoria do
Speech-Act, tal como é demonstrada por J. L. Austin e J. R. Searle. Sobre isso,
Ricoeur diz:
O ato de discurso, segundo esses autores, é constituído por uma
hierarquia de atos subordinados, distribuídos em três níveis: nível
do ato locucionário ou proposicional: ato de dizer;
nível do ato (ou
da força) ilocucionário: aquilo que fazemos ao dizer; nível do ato
perlocucionário: aquilo que fazemos pelo fato de falar.111
Com a intenção de lançar luz sobre a definição dos três níveis do ato de
discurso, Ricoeur expõe três exemplos, um para cada nível. No ato de dizer a
alguém para fechar a porta estão implícitos três aspectos. Primeiro, o predicado
da ação (fechar) refere-se a dois argumentos (o alguém e a porta). Esse é o ato
de dizer. Segundo, o que é dito, o é com força de uma ordem. Esse é o ato
ilocucionário. Terceiro, a ordem expressa pode provocar efeitos, como o medo.
Esses efeitos transformam o discurso em estímulo que gera resultados. Esse é o
ato perlocucionário.112
Nesse ponto, Ricoeur se pergunta acerca das implicações dessas
distinções para o problema da exteriorização intencional pela qual o evento se
ultrapassa na significação. Novamente, o que ele faz é apresentar uma implicação
para cada nível do discurso. A primeira implicação refere-se ao ato locucionário.
Para Ricoeur, tal ato se apresenta nas frases como proposição. Assim sendo, é
como essa proposição que a frase pode ser identificada e reidentificada como a
mesma frase. Ricoeur afirma:
Uma frase se apresenta assim como uma enunciação (...),
susceptível de ser transferida a outras, com esse ou aquele
sentido. O que aqui é identificado é a própria estrutura predicativa.
(...) Assim, uma frase de ação deixa-se identificar por seu
predicado específico (tal ação) e por seus dois argumentos (o
agente e o paciente).113
111
Idem, p. 47-48.
112
Cf. RICOEUR, 1977, p. 48.
113
RICOEUR, 1977, p. 48.
59
modos: indicativo, imperativo, interrogativo, etc.) e outros procedimentos que
acentuam a força ilocucionária de uma frase. Dessa maneira, então, a frase pode
ser identificada e reidentificada. Ricoeur diz que “as marcas propriamente
sintáticas constituem um sistema de inscrição que torna possível, por princípio, a
fixação, pela escrita, dessas marcas de força ilocucionária.”114.
A terceira implicação refere-se ao ato perlocucionário. De acordo com
Ricoeur, tal ato constitui o aspecto menos inscritível do discurso e caracteriza,
principalmente, o discurso oral. Entretanto, a ação perlocucionária é aquilo que no
discurso é menos discurso. Referindo-se ao ato perlocucionário, Ricoeur afirma:
É o discurso enquanto estímulo. Nesse caso, o discurso age, não
pela trucagem do reconhecimento, por meu interlocutor, de minha
intenção, mas, de certa forma, de um modo energético, por
influência direta sobre as emoções e as disposições afetivas do
interlocutor.115
114
Ibidem.
115
Idem, p. 48-49.
116
Cf. RICOEUR, 1977, p. 49.
60
Segundo Ricoeur, a noção de obra possui três traços distintos: 1)
Composição ou totalidade finita e fechada; 2) Codificação ou gênero literário; 3)
Configuração única ou estilo. Acerca desses três traços distintos, ele diz:
Em primeiro lugar, uma obra é uma seqüência mais longa que a
frase, e que suscita um problema novo de compreensão, relativo à
totalidade finita e fechada constituída pela obra enquanto tal. Em
seguida, a obra é submetida a uma forma de codificação que se
aplica à própria composição e faz com que o discurso seja um
relato, um poema, um ensaio, etc. [Sic!] É essa codificação que é
conhecida pelo nome de gênero literário. Enfim, uma obra recebe
uma configuração única, que a assimila a um indivíduo e que se
chama de estilo. Composição, pertença a um gênero, estilo
individual caracterizam o discurso como obra.117
117
RICOEUR, 1977, p. 49.
118
Cf. RICOEUR, 1977, p. 49-50.
119
RICOEUR, 1977, p. 50.
61
Após relembrar o paradoxo do evento e do sentido, isto é, de que o
discurso é efetuado como evento, no entanto, compreendido como sentido,
Ricoeur relaciona a noção de obra com tal paradoxo. Segundo ele, ao introduzir
na dimensão do discurso categorias próprias à ordem da produção e do trabalho,
a noção de obra aparece como uma mediação prática entre a irracionalidade do
evento e a racionalidade do sentido. Conseqüentemente, o evento é a própria
estilização. De acordo com Ricoeur, essa estilização surge no seio de uma
experiência já estruturada, mas comportando aberturas, possibilidades de jogo e
indeterminações. Portanto, “apreender uma obra como evento é captar a relação
entre a situação e o projeto no processo de reestruturação.”120.
Desenvolvendo um pouco mais essa idéia, Ricoeur pondera que a obra
de estilização toma a forma de um acordo. Tal acordo se dá entre uma situação
anterior desfeita e uma conduta que reorganiza os resíduos deixados. Aqui,
Ricoeur reitera que o paradoxo do evento fugido, e do sentido identificável e
repetível encontra uma mediação na noção de obra, pois o estilo acumula tanto o
evento quanto o significado. Ele surge temporalmente como um indivíduo único.
Acerca disso, Ricoeur diz:
O estilo é a promoção de um parti pris [pré-juízo ou pré-conceito]
legível numa obra que, por sua singularidade, ilustra e enaltece o
caráter acontecimental do discurso. Mas esse acontecimento não
deve ser não deve ser procurado alhures, mas na forma mesma da
obra. Se o indivíduo é inapreensível teoricamente, pode ser
reconhecido como a singularidade de um processo, de uma
construção, em resposta a uma situação determinada.121
120
RICOEUR, 1977, p. 51.
121
Ibidem.
62
modelo abstrato dos fenômenos, que faz parte do processo de estruturação, traz
um nome próprio. Isso porque a estruturação necessariamente apresenta o
escolhido, em detrimento do outro. Assim sendo, Ricoeur considera que o estilo é
um trabalho que individualiza e que designa seu autor. Sobre isso ele afirma:
Assim, o termo autor pertence à estilística. Autor diz mais que
locutor: é o artesão em obra de linguagem. Ao mesmo tempo,
porém, a categoria do autor é uma categoria da interpretação, no
sentido em que é contemporânea da significação da obra como um
todo. A configuração singular da obra e a configuração singular do
autor são estritamente correlativas. O homem se individua
produzindo obras individuais. A assinatura é a marca dessa
relação.122
122
RICOEUR, 1977, p. 52.
123
Ibidem.
63
distanciamento fundamental constituído pela objetivação do
homem em suas obras de discurso.124
124
Ibidem.
125
Idem, p. 53.
64
quanto do psicológico, descontextualizar-se de maneira a deixar-se
recontextualizar-se numa nova situação: é o que justamente faz o ato de ler.”126.
Segundo Ricoeur, essa libertação em relação ao autor possui seu
equivalente em relação ao leitor, pois o discurso escrito suscita para si um público
que, virtualmente, se estende a todo aquele que sabe ler. Nesse ponto a escrita
encontra seu efeito mais notável, a saber, a libertação da coisa escrita
relativamente à condição dialogal do discurso. O resultado é que a relação entre
escrever e ler não é mais um caso particular da relação entre falar e ouvir.127
Portanto, de acordo com Ricoeur, fica claro que o distanciamento é
constitutivo do fenômeno do texto como escrita. Simultaneamente, ele é também a
condição da interpretação. Isto é, a alienação não é somente aquilo que a
compreensão deve vencer, todavia, é aquilo que a condiciona. Embora não seja
explicito no texto, parece que o segundo distanciamento que a experiência
hermenêutica deve incorporar é o distanciamento da fala na escrita. Logo,
conforme Ricoeur, a relação entre objetivação e interpretação parece menos
dicotômica e mais complementar. Isso porque, com a passagem da fala à escrita,
a referência passa a ser o “Mundo do Texto”.128
126
Ibidem.
127
Cf. RICOEUR, 1977, p. 53.
128
Idem, p. 54.
65
Essa noção [de “Mundo do Texto”] prolonga o que acima
chamamos de a referência ou denotação do discurso: em toda
proposição podemos distinguir, com Frege, seu sentido e sua
referência (...). Seu sentido é o objeto real que visa; este sentido é
puramente imanente ao discurso. Sua referência é seu valor de
verdade, sua pretensão de atingir a realidade. Por esse caráter, o
discurso se opõe à língua, que não possui relação com a
realidade, as palavras remetendo a outras palavras na ronda
infindável do dicionário. Somente o discurso, dizíamos, visa às
coisas, aplica-se à realidade, exprime o mundo.129
Aqui, Ricoeur se propõe uma nova questão acerca do que ocorre com a
referência quando o discurso se torna texto. Para ele, a escrita e a estrutura da
obra alteram tanto a referência que ela se torna problemática. No discurso oral o
problema se resolve na função ostensiva ou mostrativa do discurso. É o aqui e
agora, determinados pela situação comum, que conferem a referência última a
todo discurso. Entretanto, com a escrita, acontece uma mudança, pois não há
mais a situação comum ao escritor e ao leitor. Assim, no fenômeno chamado por
Ricoeur de literatura, está abolida a função ostensiva ou mostrativa do discurso.
Acerca disso, afirma:
Esse é, me parece, o papel da maior parte da nossa literatura:
destruir o mundo. Isto é uma verdade da literatura de ficção –
conto, mito, romance, teatro –, bem como de toda literatura
denominada poética, onde a linguagem parece glorificada em si
mesma, em detrimento da função referencial do discurso ordinário.
No entanto, não há discurso de tal forma fictício que não vá ao
encontro da realidade, embora em outro nível, mais fundamental
que aquele que atinge o discurso descritivo, constatativo, didático,
que chamamos de linguagem ordinária.130
129
RICOEUR, 1977, p. 55.
130
Idem, p. 55-56.
131
Idem, p. 56.
66
Tendo proposto essa tese, Ricoeur define o interpretar como explicitar o
tipo de ser-no-mundo manifestado diante do texto. Isso porque não é mais
possível procurar um outro e suas intenções psicológicas por detrás do texto
(como pretendida a hermenêutica romântica) nem desmontar as estruturas do
texto (como pretendia a hermenêutica estruturalista).132
Nesse ponto, Ricoeur recorre à idéia heideggeriana de compreensão.
Ele lembra que na obra intitulada Ser e tempo, de Heidegger, a idéia de
compreensão torna-se uma estrutura do ser-no-mundo e não está mais vinculada
à compreensão de outrem. O exame de tal estrutura do ser-no-mundo vem após o
exame do humor. Em outras palavras, o momento do compreender responde
dialeticamente ao ser em situação, como sendo a projeção dos possíveis mais
adequados ao cerne mesmo das situações onde o mesmo se encontra. Sobre
isso, Ricoeur diz:
Dessa análise, retenho a idéia de “projeção dos possíveis mais
próximos” para aplicá-la à teoria do texto. De fato, o que deve ser
interpretado, num texto, é a proposição de mundo, de um mundo
tal como posso habitá-lo para nele projetar um de meus possíveis
mais próprios. É o que chamo de o mundo do texto, o mundo
próprio a este texto único.133
132
Cf. RICOEUR, 1977, p. 56.
133
RICOEUR, 1977, p. 56.
67
ser, mais especificamente, ao poder-ser, não ao ser-dado. Acerca disso, Ricoeur
afirma:
Sendo assim, a realidade quotidiana se metamorfoseia em favor
daquilo que poderíamos chamar de variações imaginativas que a
literatura opera sobre o real. (...) tomando o exemplo da linguagem
metafórica (...) a ficção é o caminho privilegiado da descrição da
realidade, e a linguagem poética é aquela que, por excelência,
opera o que Aristóteles (...) chamava de a mimesis [imitação] da
realidade.134
134
Idem, p. 57.
135
No corpo do texto, Ricoeur pondera que essa é a “quarta e última dimensão” ou o “quarto tema”
(p. 57). Mas, anteriormente, ele a considera como quinto tema ou dimensão (cf. p. 44).
136
RICOEUR, 1977, p. 57.
68
forma que ele também o compreende. Todavia, analisado nesse contexto, esse
problema é completamente transformado. Isso se deve a três razões que ele
passa a expressar daqui a diante.137
Em primeiro lugar, segundo Ricoeur, a apropriação está dialeticamente
ligada ao distanciamento típico da escrita. Graças a tal distanciamento, a
apropriação não possui mais nenhum dos caracteres da afinidade afetiva com a
intenção de um autor. Contudo, ela é “exatamente o contrário da
contemporaneidade e da congenitalidade: é compreensão pela distância,
compreensão a distância.”138.
Em segundo lugar, de acordo com Ricoeur, a apropriação está
dialeticamente ligada à objetivação típica da obra. Ela perpassa todas as
objetivações estruturais do texto, respondendo ao sentido, não ao autor. Conforme
Ricoeur, é aqui que a mediação pelo texto talvez se deixe compreender melhor.
Ele explica o que quer dizer com isso da seguinte maneira:
Contrariamente à tradição do cogito e à pretensão do sujeito de
conhecer-se a si mesmo por intuição imediata, devemos dizer que
só nos compreendemos pelo grande atalho dos sinais de
humanidade depositados nas obras de cultura. O que saberíamos
do amor e do ódio, dos sentimentos éticos e, em geral, de tudo
que chamamos de o si, caso isso não fosse referido à linguagem e
articulado pela literatura? O que parece mais contrário à
subjetividade, e que a análise estrutural faz aparecer como a
textura mesma do texto, é o próprio medium no qual, apenas,
podemos nos compreender.139
137
Cf. RICOEUR, 1977, p. 57.
138
RICOEUR, 1977, p. 58.
139
Ibidem.
69
compreensão torna-se, então, o contrário de uma constituição de
que o sujeito teria a chave. A esse respeito, seria mais justo dizer
que o si é constituído pela “coisa” do texto.140
140
Ibidem.
141
Cf. RICOEUR, 1977, p. 58-59.
142
RICOEUR, 1977, p. 59.
143
Na obra Interpretação e ideologias, Ricoeur segue analisando a Ciência e ideologia, e Crítica
das ideologias.
70
CAPÍTULO 2
2 HERMENÊUTICA BÍBLICA
Considerações introdutórias
71
Leituras 3: Nas fronteiras da filosofia. A escolha do mesmo como primeiro a ser
analisado se deve ao seu caráter sintético. Alguns temas introduzidos por ele
serão aprofundados nos demais.
144
RICOEUR, 1996, p. 181.
145
Cf. RICOEUR, 1996, p. 181-182.
146
RICOEUR, 1996, p. 182.
72
não se deixa reduzir à fala e à escrita. Logo, “esse ato representa o limite de toda
hermenêutica, porque ele é a origem de toda interpretação.”147.
De acordo com Ricoeur, a “experiência religiosa” sempre se articula em
uma linguagem, quer seja ela entendida em sentido cognitivo, prático ou
emocional. Ele esclarece ainda mais o que pretende:
Com maior precisão ainda, o que é pressuposto é que a fé,
enquanto experiência vivida, é instruída – no sentido de formada,
esclarecida, educada – na rede de textos que a pregação
reconduz cada vez para a fala viva. Esta pressuposição da
textualidade da fé distingue a fé bíblica (Bíblia querendo dizer
Livro) de qualquer outra. Em um sentido, pois, os textos precedem
a vida. Posso nomear Deus em minha fé porque os textos que
foram pregados já o nomearam.148
147
Ibidem.
148
Idem, p. 183.
149
Cf. RICOEUR, 1996, p. 183-184.
73
citam ou transformam. Com isso, o jogo da intertextualidade fica mais separado e
mais fechado do lado do que ele chama de vida. Completando esse pensamento,
Ricoeur diz: “O que chamo de “abordagem hermenêutica” (ou simplesmente
“teoria da interpretação”) é exatamente a recusa dessa hipótese “literária” do texto,
simplesmente substituída à da palavra dialogal.”150.
Contra a hipótese “literária” do texto, simplesmente substituída à da
palavra dialogal, Ricoeur expõe dois argumentos. O primeiro argumento é descrito
da seguinte maneira:
Um texto é primeiramente um anel em uma corrente comunicativa:
em primeiro lugar, uma experiência de vida é levada à linguagem,
torna-se discurso; depois, o discurso se diferencia em fala e em
escrita, com os privilégios e vantagens (...); a escrita, por sua vez,
é restituída à fala viva por meio dos diversos atos do discurso que
reatualizam o texto. A leitura e a pregação são atualizações desse
tipo na fala da escrita. Um texto é, sob esse ponto de vista, como
uma partitura musical que pede para ser executada. (...) Arrancado
do tornar-se-escrita da fala e do tornar-se-fala da escrita, o texto
não é mais que um artefato do método crítico. Esse artefato pode,
por sua vez, ser colocado em uma série com outros artefatos,
como se arruma um livro ao lado de outro em uma biblioteca. A
intertextualidade é no sentido próprio da palavra tal biblioteca.151
150
RICOEUR, 1996, p.184.
151
Idem, p. 184-185.
74
de alguns códigos exteriores ao texto considerada na relação de
intertextualidade evocada acima.152
152
Idem, p. 185.
153
Idem, p. 185.
154
Idem, p. 186.
155
Ibidem.
75
A noção de poética
156
Idem, p. 187.
157
Idem, p. 188.
76
Segundo Ricoeur, essa função referencial do discurso poético contém
uma primeira aproximação do que pode significar a Revelação no sentido bíblico.
Assim sendo:
Revelar é descobrir o que até então permanecia oculto. Ora, os
objetos de nossa manipulação dissimulam o mundo de nosso
enraizamento originário. A despeito do fechamento da experiência
ordinária, e através da ruína dos objetos intramundanos da
realidade cotidiana e da ciência, as modalidades de nosso
pertencimento ao mundo abrem o seu caminho. “Revelação”,
nesse sentido, designa a emergência de um conceito de verdade
diverso da verdade-equação, regrada pelos critérios de verificação
e falsificação: um conceito de verdade-manifestação, no sentido
de deixar ser o que se mostra. O que se mostra é cada vez a
proposição de um mundo, de um mundo tal que eu possa projetar
nele os meus possíveis mais próximos.158
158
Ibidem.
159
Cf. RICOEUR, 1996, p. 188-189.
160
Ontoteologia, no sentido heideggeriano que Ricoeur dá a essa palavra, é diferente de ontologia.
Na ontoteologia, Deus seria o ente supremo, embora pareça um ente desse mundo.
161
RICOEUR, 1996, p. 189.
77
Conforme Ricoeur, é também na ordem das pressuposições que se
mantém a escuta da pregação cristã. Contudo, num sentido de que a
pressuposição não é mais autofundação, começo de si e por si. Antes, é assunção
de um sentido antecedente, que precede o sujeito desde sempre.
Conseqüentemente, o escutar exclui o fundar e o movimento rumo à escuta requer
uma segunda renúncia. Essa renúncia é do si humano, em sua vontade de
domínio, de suficiência e de autonomia. A ela se aplica o verso da mensagem de
Jesus que diz: “Pois quem quiser salvar a sua vida, a perderá (...)” (Lucas 9:24
NVI)”.162
Para Ricoeur, essa dupla renúncia, ao objeto absoluto e ao sujeito
absoluto, é o preço a ser pago para entrar na modalidade de linguagem
radicalmente não-especulativa e pré-filosófica. Portanto, é tarefa de uma
hermenêutica filosófica reconduzir do duplo absoluto da especulação
ontoteológica e da reflexão transcendental para as modalidades mais originárias
da linguagem. Por meio de tais modalidades os membros da comunidade de fé
interpretam a sua experiência por si mesmos e pelos outros. Nesse ato, Deus é
nomeado.163
A segunda observação de Ricoeur é a seguinte:
A nominação de Deus nas expressões originárias da fé não é
simples, mas múltipla. Ou antes, ela não é monocórdia, mas
polifônica. As expressões originárias da fé são formas complexas
de discurso tão diversas quanto narrações, profecias, legislações,
provérbios, preces, hinos, fórmulas litúrgicas, escritos sapienciais.
Essas formas de discurso nomeiam Deus todas juntas. Mas elas o
nomeiam diversamente.164
162
Cf. RICOEUR, 1996, p. 190.
163
Ibidem.
164
RICOEUR, 1996, p. 190.
165
Cf. RICOEUR, 1996, p. 190-191.
78
Avançando um pouco mais, Ricoeur atenta para a nominação de Deus
na narrativa, na profecia, na prescrição, na sabedoria e no hino. No que se refere
à narrativa, ele diz:
(...) é preciso dizer que nomear Deus é em primeiro lugar um
momento da confissão narrativa. É na coisa contada que Deus é
nomeado. (...) Na medida em que o gênero narrativo é primeiro, a
marca de Deus está na história antes de estar na palavra. A
palavra é segunda, na medida em que confessa o traço de Deus
no acontecimento.166
166
RICOEUR, 1996, p.191.
167
Idem, p.192.
168
Idem, p.193.
169
Idem, p.194.
79
homem que é um “tu” para Deus, como no envio profético ou no
mandamento ético, é Deus que se torna um “tu” para o tu humano.
Esse movimento para a dupla segunda pessoa se completa no
salmo de reconhecimento, assim como o movimento para a dupla
primeira pessoa culminava na voz profética como voz do Outro.170
A existência de expressões-limite
170
Ibidem.
171
Idem, p.194-195.
172
Idem, p.195.
80
que o nome de Deus é inomeável. Sobre isso, Ricoeur diz: “Na medida em que
conhecer o nome do deus era ter poder sobre ele, o nome confiado a Moisés é o
do Ser que o homem não pode realmente nomear, isto é, manter à mercê de sua
linguagem.”173.174
Conforme Ricoeur, a fuga ao infinito do referente “Deus” é sugerida pela
estrutura particular de algumas formas do discurso da fé que ainda não foram
abordadas. Essas formas parecem ser próprias do Novo Testamento, mais
especificamente, dos discursos de Jesus acerca do Reino de Deus. Em tais
discursos, Deus é nomeado simultaneamente ao Reino. Entretanto, o Reino é
significado somente por parábolas, provérbios e paradoxos. Isso quer dizer que
nenhuma tradução literal é capaz de esgotar o seu sentido.175 Aqui também é
válido ressaltar que esse assunto será retomado na análise do artigo Paul Ricoeur
e a hermenêutica bíblica, publicado em 1976. Por enquanto, basta o que está
apresentado.
No entanto, antes de seguir adiante, é importante apresentar a
definição de Ricoeur para expressões-limite. Ele afirma:
Se agora aproximarmos o que foi dito do Nome inomeável
significado no episódio da Sarça ardente e essa espécie de
transgressão das formas usuais da parábola, do provérbio, da
proclamação escatológica pelo uso concertado da extravagância,
da hipérbole, do paradoxo, desenha-se uma nova categoria que
pode ser chamada de expressões-limite. Não é uma forma de
discurso suplementar, ainda que a parábola enquanto tal constitua
uma modalidade autônoma de expressão de fé. Trata-se antes de
um indício, de uma modificação, que pode sem dúvida afetar todas
as formas de discurso, por uma espécie de passagem para o
limite. Se o caso da parábola é exemplar, é porque ela acumula
estrutura narrativa, processo metafórico e expressão-limite. Por
isso ela constitui um resumo da nominação de Deus.176
173
Ibidem.
174
Na obra Pensando biblicamente, Ricoeur parece recuar em sua crítica à ontoteologia. Cf.
RICOEUR, 2001, p. 353-384.
175
Cf. RICOEUR, 1996, p. 196.
176
RICOEUR, 1996, p. 197.
81
Cristo, que equivaleria a substituir uma nominação por outra. Antes, Ricoeur
considera que entre o Antigo e o Novo Testamento, existe uma relação de
continuidade. Em outras palavras, o que Jesus prega é o Reino de Deus, o que se
inscreve na nominação de Deus pelos profetas, pelos escatólogos e pelos
apocalípticos. Logo, para Ricoeur, uma cristologia sem Deus parece tão
impensável quanto Israel sem Iahweh. Acerca disso, ele afirma:
Se se diz que o Deus a que devemos renunciar de conhecer se fez
conhecer em Jesus Cristo, esta idéia só tem sentido se, ao
confessar a iniciativa da palavra de Jesus, nomearmos ao mesmo
tempo o Deus de Jesus. O ser humano de Jesus não é pensável
como diferente de sua união com Deus. Jesus de Nazaré não é
compreendido sem Deus, sem o seu Deus, que também é o de
Moisés e dos profetas. (...) Jesus é significado e compreendido
pela comunidade confessante como o “homem determinado em
sua existência pelo Deus que ele proclamou.” (Pannenberg). (...)
Assim, talvez seja a tarefa da cristologia manter, no interior do
mesmo espaço de sentido, como as duas tendências antagônicas
da mesma nominação, a celebração da potência, que parece
dominar o Antigo Testamento, e a confissão da fraqueza, que
parece declarada pelo Novo Testamento.177
177
Idem, p. 198-199.
178
Idem, p. 200.
82
abre um novo mundo, que é a coisa do texto, o mundo do poema.
3) O mundo do texto é o que incita o leitor, o ouvinte, a
compreender a si mesmo diante do texto e a desenvolver,
imaginativa e simpaticamente, o si suscetível de habitar esse
mundo desdobrando os seus possíveis mais próximos. Nesse
sentido, a linguagem religiosa é uma linguagem poética. Aqui, a
palavra “poética” não designa um “gênero literário” (...), mas o
funcionamento global de todos esses gêneros enquanto sítio da
inovação semântica, da proposição de um mundo, da suscitação
de uma nova compreensão de si.179
83
divino, mas para figurar-se o companheirismo de Deus com o seu
povo, com os homens, todos os homens. Esses esquemas, esses
modelos permanecem muito diversificados, heterogêneos, e são
incapazes por si mesmos de constituir um sistema.181
Ricoeur continua:
Além disso, não há um sistema que não seja conceitual. Mas a
sua inclinação é a da representação antropomórfica, do ídolo. É
preciso então substituir o funcionamento do modelo na dialética no
Nome e do Ídolo. O Nome trabalha o esquema, o modelo, fazendo-
o mexer-se, dinamizando-o, invertendo-o em uma imagem oposta
(assim Deus assume todas as posições da figura familiar: pai,
mãe, marido, irmão e finalmente Filho do homem). Do mesmo
modo que a Idéia segundo Kant exige que se supere não apenas
a imagem, mas o conceito, ao pedir que se “pense mais”, o Nome
subverte todos os modelos, mas apoiando-se neles.182
181
RICOEUR, 1996, p. 201.
182
RICOEUR, 1996, p. 201-202.
183
Cf. RICOEUR, 1996, p. 202.
184
RICOEUR, 1996, p. 202.
84
Contudo, eles visam a um mundo que pode ser habitado. Assim, o “refazer” o
mundo segundo a visada essencial do poema faz parte da essência da poética.
Acerca disso, Ricoeur afirma:
Nesse sentido, a aplicação de que falava a antiga hermenêutica é
o momento terminal da compreensão. Prefiro empregar aqui a
outra linguagem, mas que considero rigorosamente sinônima:
compreender-se diante do texto. Por sua vez, compreender-se
diante do texto não é algo que se passe apenas na cabeça ou na
linguagem. Isso é o que o Evangelho chama de “pôr a Palavra em
prática”. Sob esse ponto de vista, compreender o mundo e mudá-
lo são fundamentalmente a mesma coisa.185
85
poética bíblica: cósmico, ético e político. Então, a amplitude do “Mundo do Texto”
requer igual amplitude da aplicação. Essa aplicação é tanto práxis política quanto
trabalho de pensamento e linguagem.189
De acordo com Ricoeur:
Outra razão para não substituir uma teologia política a uma
teologia hermenêutica: se uma teologia hermenêutica desemboca
deste modo em uma prática política, como sobre uma das
dimensões de aplicação que completa a compreensão, em
contrapartida ela não é absorvida nela, na medida em que ela é
precisamente em primeiro lugar e fundamentalmente uma poética.
Se insisti tanto em preservar a qualificação poética da nominação
de Deus foi para preservar a preciosa dialética do poético e do
político. Certamente a existência humana é existência política.
Mas os textos nos quais a existência cristã compreende a si
mesma não são políticos senão na medida em que são poéticos.
Assim, os modelos para um companheirismo entre Deus e o seu
povo e o resto dos homens constituem antes o que eu chamarei
de uma “poética da política” que, para receber essa qualificação
propriamente política, exige ser articulada sobre análises, saberes,
interesses, organizações, etc.190
86
Ricoeur começa seu artigo atentando para a relevância da questão da
revelação. Além disso, ele deixa claro o seu ponto de partida: “(...) minha
apresentação irá batalhar em duas frentes: buscar recuperar um conceito de
revelação, e um conceito de razão que, sem jamais coincidir, pode ao menos
entrar numa dialética viva e juntos engendrar algo como entendimento de fé.”192.
Antes de apresentar sua compreensão do conceito de revelação,
Ricoeur discorre sobre o que considera ser um conceito opaco de revelação. Esse
conceito opaco de revelação reúne três níveis de linguagem numa forma de
ensino tradicional. O primeiro nível é o da confissão de fé, onde a lex credendi
está próxima à lex orandi. O segundo nível é o do dogma eclesial, onde o a
comunidade histórica interpreta para si mesma e para outros o entendimento da fé
específica a sua tradição. O terceiro e último nível é o corpo de doutrinas imposto
pelo magisterium como regra de ortodoxia. Sobre isso, Ricoeur diz:
A amálgama particular que deploro e procuro combater é sempre
feita em termos do terceiro nível, que é a razão de não ser apenas
opaco, mas também autoritário. Porque é nesse nível que o
magistério eclesiástico é exercido e coloca sua marca de
autoridade em assuntos relativos à fé. Portanto, é a regra que
devemos considerar os níveis que nomeamos em ordem
ascendente como contaminado numa ordem descendente. (...) É
dessa amálgama e dessa contaminação que o conceito massivo e
impenetrável da “verdade revelada” surge. Além disso, é
geralmente expressa no plural “verdades reveladas”, para enfatizar
o caráter discursivo das proposições dogmáticas que são tomadas
para serem idênticas à fé fundamental.193
87
diferentes de discurso em proposições, encontramos, assim, um
conceito de revelação que é pluralístico, polissêmico, e na maioria
das vezes, análogo na forma. O termo revelação, como veremos,
é emprestado de uma destas formas de discurso.194
O discurso profético
O discurso narrativo
194
Idem, p. 71.
195
Idem, p. 71.
196
Cf. RICOEUR, 2004, p. 71-73.
88
Introduzindo a apresentação do discurso narrativo, Ricoeur faz uma
pergunta: Qual o significado de revelação em relação aos textos narrativos?. Sua
resposta é a seguinte:
Devemos dizer que, assim como os textos proféticos, esses textos
têm um duplo autor, o escritor e o espírito que o guia. Teóricos do
discurso narrativo têm percebido que na narração o autor
normalmente desaparece e é como se os eventos contassem a si
mesmos.197
197
RICOEUR, 2004, p. 73.
198
Cf. RICOEUR, 2004, p. 73-74.
199
RICOEUR, 2004, p. 74.
89
medida que essa história é trazida à linguagem no ato-fala da narração. Segundo
Ricoeur:
Aqui, um momento “subjetivo” comparável à inspiração profética
vem à tona, mas somente após o fato. Esse momento subjetivo
não é mais a narração enquanto os eventos recontam a si
mesmos, mas o evento de narração enquanto apresentado por um
narrador à comunidade. A palavra evento é assim enfatizada às
custas da primeira intencionalidade da confissão narrativa, ou
antes da narrativa de confissão. A última não se distingue das
coisas recontadas e dos eventos que se apresentam a si mesmos
na história. É para uma segunda ordem de reflexão que as
questões “quem está falando? e quem está contando a história?”
são apartadas do que é narrado e dito. Para essa reflexão o autor
da narração vem à tona e surge para ser relacionado ao seu
escrito como o profeta é às suas palavras. O narrador, por sua
vez, pode, por analogia, ser dito como quem fala em nome de..., e
então ele é um profeta e o Espírito fala através dele. Mas esta
absorção de narração na profecia corre o risco de invalidar a
característica específica da confissão narrativa, seu alvo nas
marcas de Deus no evento.200
200
Idem, p. 75.
201
Cf. RICOEUR, 2004, p. 75-76.
90
aplica a ela a idéia estóica de providência e quando se tenta suavizá-la em alguma
representação teológica do curso da história. No entanto, tanto essa idéia de
providência quanto esse deslize na teologia são incontidos quando o discurso
narrativo e o discurso profético da história se encontram frente a frente. Reduzida
a essa polaridade, a idéia de revelação tende a ser identificada com a idéia do
desígnio de Deus, isto é, um plano decretado que Deus revelou aos seus servos e
profetas.202
Antes de passar ao discurso prescritivo, Ricoeur diz:
Mas a polissemia e a polifonia da revelação ainda não foi esgotada
[sic!] por essa união de narração e profecia. Há pelo menos outros
três modos de discurso religioso bíblico que não podem ser
registrados sem esta polaridade de narração e profecia. A primeira
dessas é a Tora [sic!], ou instrução, dirigida a Israel.203
202
Idem, p. 76-77.
203
RICOEUR, 2004, p. 77.
204
Cf. RICOEUR, 2004, p. 77.
205
Ibidem.
91
Assim, dentro do proposto, Ricoeur coloca sob suspeita a idéia de
heteronomia.206 Conforme ele afirma, essa idéia é inadequada para fazer sentido
ao que o termo Torá tem significado na experiência judaica. Isso porque a
experiência judaica concebe a Torá como divina. Todavia, para se fazer justiça à
idéia de Torá divina, é preciso ir além do reconhecimento de sua extensão a todos
os domínios da vida da comunidade e dos indivíduos (incluindo as dimensões
moral, civil e cerimonial) e discernir sua natureza específica. Aqui Ricoeur enfatiza
três pontos.207
O primeiro ponto é o seguinte:
Não é sem importância que os textos legislativos do Antigo
Testamento sejam colocados na boca de Moisés e com a estrutura
narrativa da residência provisória no Sinai. Isso significa que essa
instrução é conectada organicamente aos eventos fundamentais
simbolizados pelo Êxodo do Egito. E a esse respeito, a fórmula
introdutória do Decálogo constitui um elo essencial da história do
Êxodo e da proclamação da Lei (...). Em termos de gênero
literário, isso significa que o gênero legislativo é de alguma
maneira incluído no gênero narrativo. E iso [sic!] por sua vez
significa que a memória da libertação qualifica a instrução de um
modo íntimo. O Decálogo é a Lei de um povo redimido. Tal idéia é
estranha a qualquer conceito simples de heteronomia208.
206
Embora dê a entender que fará o mesmo com a idéia de autonomia, isso não acontece
efetivamente.
207
Cf. RICOEUR, 2004, p. 77-78.
208
RICOEUR, 2004, p. 78.
209
Ibidem.
92
A despeito do caráter aparentemente invariável e apodíctico do
Decálogo, a Tora [sic!] desvela com dinamismo que podemos
caracterizar como histórico. Com isso não queremos dizer apenas
o desenvolvimento temporal que a crítica histórica compreende na
redação desses códigos (...) mais importante que esse
desenvolvimento do conteúdo da Lei é a transformação no
relacionamento entre o crente fiel e a Lei. Sem cair na velha rotina
de opor o legalista ao profético, podemos descobrir no ensino da
Torá uma pulsação crescente que, de vez por outra, dispõe a Lei
em termos de prescrições múltiplas infindáveis e depois coloca
tudo junto, no sentido forte da palavra, somando isso ao grupo de
mandamentos que somente retém seu ser dirigido para a
santidade.210
O discurso de sabedoria
210
Idem, p. 78-79.
211
Idem, p. 80.
93
tipo de lucidez sem qualquer ilusão acerca da maldade humana ao
ensino da Lei. Mas por trás dessa fachada pobre, precisamos
discernir o grande impulso de um reflexão da existência que
intenciona o indivíduo por trás do povo da Aliança, e através dele,
cada ser humano.212
212
Ibidem.
213
Cf. RICOEUR, 2004, p. 81.
214
RICOEUR, 2004, p. 81.
215
Cf. RICOEUR, 2004, p. 81.
216
Na página 83, Ricoeur esclarece um pouco mais a noção de revelação no discurso de
sabedoria: “Sabedoria, como vimos, reconhece Deus oculto e que o curso não humano e anônimo
dos eventos o encobre.”.
217
RICOEUR, 2004, p. 82.
94
profeta reivindica inspiração divina como garantia do que diz, o sábio não o faz.
Esse último não declara que o seu discurso é fala de outro. Antes, está certo que
a sabedoria o precede e que através da participação nela é possível falar
sabiamente. Portanto, nada está mais longe do sábio que a idéia de autonomia do
pensamento, de humanismo da vida boa. Isso porque a sabedoria é tida como um
dom de Deus, ao contrário do “conhecimento do bem e do mal” que é tido como
promessa da serpente. Tal compreensão é ainda mais radical no sábio pós-exílico,
para quem a sabedoria recebe status de divindade.218
Ainda acerca da relação entre profecia e sabedoria, Ricoeur afirma:
Por esse retorno da sabedoria, restitui-se a profecia. A
objetividade da sabedoria significa a mesma coisa que a
subjetividade da inspiração profética. É por isso que por tradição o
sábio é reconhecido como inspirado por Deus, à semelhança do
profeta. Por essa mesma razão, entenderíamos como profecia e
sabedoria podiam convergir em literatura apocalíptica, na qual,
como se sabe bem, a noção de uma revelação dos segredos
divinos é aplicada aos “últimos dias”.
O discurso hínico
218
Cf. RICOEUR, 2004, p. 82-83.
219
RICOEUR, 2004, p. 84.
95
expressão mais desinteressada. Isso acontece quando a súplica é convertida em
reconhecimento. Acerca disso, Ricoeur afirma:
Assim sob as três figuras: louvor, suplicas e ações de graças o
discurso humano torna-se invocação. É dirigido a Deus na
segunda pessoa, sem limitar-se a si mesma designar a ele na
terceira pessoa como uma narração, ou falando na primeira
pessoa em seu nome como em profecia.220
220
Ibidem.
221
Idem, p. 85.
222
Ibidem.
96
revelação deve ter prioridade sobre as modalidades de discurso que são de
acordo com a linguagem da comunidade de fé.
A segunda conclusão de Ricoeur é a seguinte: “Essas expressões
originárias são alcançadas em forma de discurso tão diverso [sic!] quanto
narração, profecia, textos legislativos, ditos de sabedoria, hinos, súplicas, e ação
de graças.”223. Tratar essas formas de discurso como simples gêneros literários,
que devem ser neutralizados de modo que se possa extrair seu conteúdo
teológico, é um equívoco. Tal equívoco acontece quando se reduz a expressão
originária da revelação a seu conteúdo proposicional. Conseqüentemente, Ricoeur
diz:
Não iremos além de preconceito até que possuamos um poema
que seja para as grandes obras de composição literária o que a
gramática é para a produção de sentenças, seguindo as
características da obra em certa linguagem. (...) Para ser breve,
direi que a confissão de fé expressa nos documentos bíblicos é
diretamente modulada pelas formas de discurso onde é expressa.
(...) O que anuncia a si mesmo existe em cada ocorrência
qualificada pela forma do anúncio. O “dito” religioso somente é
constituído na recíproca entre história e profecia, história e
legislação, legislação e sabedoria, e finalmente sabedoria e
poema.224
223
Ibidem.
224
Idem, p. 86.
225
Idem, p. 86-87.
97
uma pessoa que é levada por Deus a falar. Essa fala é dirigida ao povo, seu
conteúdo é o nome de Deus e seu ato é em nome de Deus.226
Entretanto, Ricoeur faz um alerta acerca do perigo de se estender o
conceito de inspiração, próprio do discurso profético, aos demais tipos de
discurso. Ao que parece, a inspiração é apenas o meio pelo qual a revelação vem
à linguagem. Em outras palavras, a inspiração é relativa ao tipo de discurso.
Assim, segundo Ricoeur, descobrir a dimensão objetiva da revelação, em cada
tipo de discurso, é contribuir, indiretamente, para que a teologia não reduza a
revelação a um processo psíquico do Espírito Santo.227
A quarta e última conclusão de Ricoeur é a seguinte:
Se algo pode ser dito de modo inequívoco acerca de toda forma
análoga da revelação, é que, em nenhuma de suas modalidades,
ela é incluída, ou dominada pelo conhecimento. Indicação de algo
secreto, como o limite da revelação. A idéia de revelação é dupla.
O Deus que revela a si mesmo é um Deus oculto e que coisas
ocultas pertencem a ele. A confissão que Deus está infinitamente
acima da fala e dos pensamentos humanos; que ele nos guia sem
nossa compreensão de seus caminhos; que o fato de os seres
humanos serem um enigma a si próprios, até mesmo obscuros em
relação ao que Deus comunica a eles; essa confissão pertence ao
conceito de revelação. Aquele que revela a si mesmo é também
aquele que se oculta.228
98
um corpo de verdades no qual uma instituição possa dela se
ostentar ou se orgulhar em possuí-la. Assim, dissipar a
obscuridade massiva do conceito de revelação é também, ao
mesmo tempo, por fim a toda forma totalitária de autoridade que
possa reivindicar reter a verdade revelada.229
229
Idem, p. 89.
230
Cf. RICOEUR, 2006, p. 192.
99
já o que Ramsey designa por “qualificadores” no nível do discurso
teológico, em um alto nível conceitual, e que vê aplicar-se a
diferentes expressões pelas quais a linguagem religiosa funciona
como um “modelo” em relação ao conjunto da experiência
humana.231
Ricoeur continua:
Essa relação entre modelo e qualificador vai levar-me, na segunda
parte desta seção, a examinar como a relação entre ficção e
redescrição funciona no nível da linguagem propriamente religiosa.
Proponho mostrar que as expressões-limite da linguagem religiosa
são adaptadas à redescrição do que poderíamos correlativamente
chamar as experiências-limite do homem, e que essas experiências-
limite, redescritas pelas expressões-limite da linguagem religiosa,
constituem o referente apropriado dessa linguagem. Finalmente,
examinarei qual linguagem conceitual poderia ser adaptada a essa
relação entre expressões-limite e experiências-limite. Proporei que
só conceitos-limite podemassumir essa função de mediação.232
As expressões-limite
100
enquanto referente das parábolas?. De acordo com Ricoeur, não é possível
determiná-lo antes de colocar as parábolas em relação com os outros tipos de
enunciados nos quais o “Reino de Deus” serve também como ponto de
convergência. Portanto, ele propõe que a expressão “Reino de Deus” é uma
expressão-limite. Em virtude dessa expressão-limite os diferentes discursos
empregados pela linguagem religiosa são modificados e convergem para um
ponto último que se torna seu ponto de encontro com o infinito.234
234
Idem, p. 194.
235
Ibidem.
236
RICOEUR, 2006, p. 194.
101
Um pouco mais adiante, Ricoeur acrescenta:
Na realidade, é desse modo que o discurso apocalíptico funciona.
Põe em jogo os grandes símbolos do “Senhor”, do “Reino” e do
“Poder” que falam do que Norman Perrin chama a “atividade régia”
de Deus. Afeta igualmente o símbolo da redenção (...). Mas esses
símbolos funcionam num tempo mítico que, embora não sendo o
tempo das origens (...), não é menos simétrico em relação ao
tempo do fim, um tempo mítico em que o símbolo desenvolve
todas as suas potencialidades temporais, embora dissimulando-as
em representações que objetivam a temporalidade fundamental
significada pelo mito.237
237
Idem, p. 193.
238
Cf. RICOEUR, 2006, p. 195-196.
102
que acontece nos dizeres proverbiais, que Beardslee chama “intensificação”.
Como base comum para essa aproximação, Ricoeur pressupõe e utiliza as
palavras de sabedoria. Diferentemente das palavras proclamatórias, que visam
singularizar a tradição judaica, as palavras de sabedoria visam estabelecer uma
ponte entre a experiência humana no círculo da fé e a experiência humana fora do
círculo da fé. Entretanto, a forma do discurso é ao mesmo tempo retomada,
transgredida e aniquilada. Esse é o traço decisivo.239
Em sua forma usual, de acordo com Ricoeur, o provérbio é um
enunciado a respeito de um tipo particular de circunstância ou situação, uma
seqüência ordinária de experiências que, eventualmente, pode ser repetida.
Assim, o provérbio apresenta certa analogia com a parábola. Acerca de tal
analogia, Ricoeur comenta:
Sem ser uma “narrativa”, o provérbio implica (...) uma história, algo
que acontece (...). Encontramos aqui o começo de uma
generalização, mas em um nível (...) pré-discursivo (...). A arte de
utilizar essa forma consiste em discernir em cada caso que
pequena história lhe convém. É esse jogo entre “generalização” e
“confronto” que a palavra proverbial de Jesus subverte pelo
processo que designamos por “intensificação”. Com isso,
Beardslee entende a utilização do paradoxo e da hipérbole, que
faz manifestar a intenção do provérbio.240
239
Idem, p. 196.
240
RICOEUR, 2006, p. 196-197.
241
Cf. RICOEUR, 2006, p. 197.
103
lançar o ouvinte para fora do projeto de fazer de sua vida uma continuidade. No
entanto, a hipérbole reconduz ao coração da existência. Então, o desafio da
sabedoria convencional é, simultaneamente, um modo de vida.242
Antes de passar à extravagância das parábolas, Ricoeur conclui:
Essa intensificação pelo paradoxo e pela hipérbole nos fornecerá
(...) uma chave importante para a interpretação das parábolas
como poemas da fé, (...) A transmutação da existência terrestre,
de que fala Robert Funk (...) a propósito das parábolas, é realizada
no provérbio por uma estranha estratégia que chamarei “re-
orientação pela des-orientação”. (...) Talvez seja também
necessário dizer da parábola o que dissemos aqui do provérbio, a
saber, que dele mesmo não fornece nem uma via prática, pela
qual seria possível re-inserir o modelo impossível no curso da
existência, nem uma via de incorporação dessa ruptura em uma
visão unificante.243
Retorno às parábolas
242
Idem, p. 197.
243
RICOEUR, 2006, p. 197.
244
Idem, p. 198.
104
realismo das situações, personagens e intrigas que justamente
acentua a excentricidade dos modos de comportamento aos quais
o Reino dos céus é comparado. O extraordinário no ordinário: é o
que me impressiona no desfecho das parábolas.245
245
Idem, p. 198.
246
Cf. RICOEUR, 2006, p. 198-201.
247
RICOEUR, 2006, p. 201.
105
Que entende Ramsey por qualificador? Tira seu primeiro grupo de
exemplos da teologia negativa, como quando Deus é nomeado
“imutável” ou “impassível”. Esses atributos dizem uma coisa: “tudo
muda”. Porém, a seguir acrescentam: “mas não tudo”. O modelo
“muda”, ele diz de repente algo mais sob influência do operador
negativo. Os exemplos do segundo grupo – unidade, simplicidade,
perfeição – põem em caminho o mesmo processo. Aproximamo-
nos de sua significação a partir dos contrários: pluralidade,
complexidade [sic!] ambigüidade, da experiência humana etc.
Quando tentamos extrair o que essas expressões significam,
utilizando um método de contraste, o atributo intervém para levar a
seu limite o que o contraste sugere no contexto da linguagem
ordinária. É então aquilo pelo qual a palavra “Deus” preside o resto
da linguagem e aquilo em que “a completa”.248
Ricoeur continua:
O terceiro grupo considerado por Ramsey consiste em expressões
tais como “causa primeira” [sic!] “infinitamente sábio e bom”,
“criação ex nihilo”, “plano eterno” etc. A palavra “causa”, por
exemplo, constitui um modelo para a explicação e a palavra
“primeira” modifica o modelo, prescrevendo uma maneira especial
de desenvolver as situações típicas, e fazendo jorrar o “algo mais”
correspondente a situações em que alguma coisa é vista... e,
depois, alguns. A palavra “Deus” completa em seguida as histórias
causais, ela é “logicamente anterior” a tais histórias, é sua primeira
palavra (...) A análise do qualificador infinito revela a mesma
estrutura lógica (...) Reivindica para Deus uma localização lógica
distinta, uma posição de presidência sobre o conjunto da linha da
linguagem (...). Convida-nos a desenvolver as histórias que
pudemos forjar sobre os homens sábios e bons, na direção do
“algo mais” que o qualificador impõe a partir do modelo, até ao
ponto em que a significação lógica dá passagem a uma revelação.
O qualificador ex nihilo força-nos a re-trabalhar da mesma maneira
toda nossa experiência de criação, sobretudo artística e poética,
até ao ponto em que a expressão sinaliza para a experiência de
um “discernimento cósmico”.249
248
Ibidem.
249
Idem, p. 201-202.
250
Cf. RICOEUR, 2006, p. 202.
106
Conforme Ricoeur, por um lado, a aplicação do modelo se dá na re-
descrição que está ligada à ficção, ou, na linguagem de Aristóteles, na relação
eminentemente poética que une mythos e mimésis. Por outro lado, a aplicação do
qualificador se dá no ato de lançar luz sobre o que pode ser chamado de
escândalo lógico. Porém, Ricoeur faz um alerta contra uma redução do papel do
qualificador àquilo que completa a imagem da realidade e da experiência. Essa foi
a redução da tradição metafísica ocidental. Nela, o termo “Deus” serviu apenas
para completar e fechar o discurso. Para Ricoeur, todavia, o qualificador também
pode ter a função de re-orientar des-orientando. Nesse sentido, ele deve exprimir
e preservar algo da função limite, que opera na transgressão das três formas de
discurso expressadas acima.251
Logo, Ricoeur conclui sua análise das expressões-limite com três
afirmações:
1. As diversas formas de discurso religioso – pelo menos as que
os sinópticos atribuem a Jesus – apresentam uma similitude de
função, a saber, o tipo de abuso que arruína a própria forma do
discurso empregado. Tentei atrair a atenção sobre isso, chamando-
as “expressões-limite”. 2. O símbolo “Reino de Deus” pode ser
designado como o referente comum desses diferentes tipos de
discurso e, portanto, igualmente a seu funcionamento como
expressões-limite que preside aos que chamarei as expressões-
limite, que a linguagem religiosa tenta re-descrever, na segunda
parte desta seção. 3. O funcionamento das expressões- limite e
do símbolo “Reino de Deus” prefigura a estrutura modelo-
qualificador que caracteriza não só a linguagem religiosa, mas
também a linguagem propriamente teológica. Podemos fazer a
hipótese dessa constituição paradoxal da linguagem teológica na
sua fonte – i.é., ao mesmo tempo seu estímulo e sua estrutura pré-
conceitual – no funcionamento das expressões-limite da linguagem
religiosa.252
As experiências-limite
251
Idem, p. 202-203.
252
RICOEUR, 2006, p. 203.
107
ele pode ser chamado de uma metáfora-limite. Assim, é necessário saber que
poder de re-descrição está ligado à linguagem religiosa, na medida em que ela é o
lugar das metáforas-limite e de todas as outras expressões-limite. Em outras
palavras, é preciso saber qual é o uso e qual é a função da ficção quando é levada
ao extremo pela adição de qualificadores.253
Frente a essas questões, Ricoeur propõe: “O funcionamento da
linguagem religiosa como expressão limite, parece-me, orienta nossa pesquisa
para uma característica correspondente da experiência humana que podemos
chamar experiência-limite.”254. Assim sendo, a força lógica das palavras de Jesus
se encontra no servir-se de uma linguagem já constituída para levá-la a seu limite,
não no recomendar um tipo de conduta. Isso implica que a distinção entre
descrição e ação desaparece na presença de uma distinção mais importante entre
a experiência ordinária, considerada globalmente, e o discernimento operado por
essa linguagem no coração dessa experiência ordinária.255
Segundo Ricoeur, Ramsey tem razão em juntar as duas experiências
de “discernimento bizarro” e de “engajamento total”. Ricoeur diz: “O discernimento
que a linguagem religiosa provoca é “bizarro” porque o engajamento é “total”. É
total no duplo sentido de que engaja o todo de minha vida e porque, como
linguagem religiosa, visa ao todo de minha vida.”256. Além disso, ele considera que
essa junção entre “discernimento bizarro” e “engajamento total” possui um
“alcance universal”.257
Entretanto, apesar da dar razão à declaração de Ramsey, Ricoeur
sugere uma dupla correção:
(...) primeiro, que a lógica dessa linguagem convida-nos a ir desde
os traços distintos que são próprios (parábolas, provérbios,
proclamações, etc.) para os traços correspondentes da
experiência, e não ao contrário; e em segundo lugar, ir do que é
mais característico entre todos esses traços distintivos – a saber, o
que já põe em jogo os qualificadores destacados por Ramsey no
253
Cf. RICOEUR, 2006, p. 204.
254
RICOEUR, 2006, p. 204.
255
Cf. RICOEUR, 2006, p. 204-205.
256
RICOEUR, 2006, p. 205.
257
Cf. RICOEUR, 2006, p. 205.
108
nível dos enunciados especialmente teológicos – para o que
chamo agora de experiências-limite.258
Ricoeur continua:
Por conseguinte, devemos concentrar toda nossa atenção sobre o
poder revelador do qualificador. Penso que Ramsey o fez
implicitamente, ao ligar o “discernimento bizarro” ao “engajamento
total” e ao “alcance universal”. Mas é talvez possível ir mais longe
do que ele, se examinarmos a função do qualificador no caso da
linguagem pré-teológica, como se fosse presente menos para
presidir e completar nosso discurso e nossa ação do que para
desorientá-los, subvertê-los em suma, introduzir neles paradoxo e
escândalo. Com efeito, é nesse ponto que a linguagem religiosa
merece mais plenamente ser tratada em termos de “modelo de
revelação”.259
258
RICOEUR, 2006, p. 205.
259
Ibidem.
260
Cf. RICOEUR, 2006, p. 206.
261
RICOEUR, 2006, p. 206.
109
Conforme Ricoeur, duas objeções a esse “extremismo” professado em
duas ocasiões, uma vez no plano da linguagem e outra vez no plano da
experiência, certamente serão levantadas. A primeira objeção vem travestida de
acusação. A acusação de reduzir a leitura cristã da existência ao aspecto do
paradoxo. Mas, para Ricoeur, é um erro interpretar a análise realizada como uma
apologia do paradoxo vivido na solidão e na impotência. Ele diz que há paradoxo
por duas razões. Primeiro, porque a distância da ironia e do ceticismo é excluída.
Segundo, porque o paradoxo só desorienta para re-orientar. Além disso, o
qualificador característico de cada forma de discurso religioso modifica também
cada expressão, seja especulativa, prática, ética ou política. Nenhuma é
privilegiada. Ricoeur conclui sua primeira defesa dizendo:
Também estou disposto a falar do evangelho como o projeto de
uma humanidade libertada e a desenvolver as implicações
políticas desse projeto. O que quero dizer é que o momento
propriamente religioso de todo discurso (...) é o “sempre mais” que
ele insinua em toda parte, intensificando todo projeto da mesma
maneira. (...) O paradoxo não atinge a práxis menos do que a
théorie (...). Impede-nos simplesmente de converter inteiramente o
discurso religioso em um discurso político.262
262
Idem, p. 207.
110
linguagem poética, no sentido mais forte do termo, redescreve a
experiência humana.263
Os conceitos-limite
111
ocidental, a linguagem parece obrigada a tomar a estrada do conceito. Isso
porque, nessa cultua, a linguagem religiosa esteve sempre exposta a uma outra
linguagem, a da filosofia, que é a linguagem conceitual por excelência. O
cristianismo, por exemplo, tirou do helenismo parte de sua forma de argumentação
lógica e parte de sua semântica fundamental. Logo, Ricoeur afirma:
Se é verdade que um vocabulário religioso só se compreende no
seio de uma comunidade de interpretação e segundo uma tradição
de interpretação, é também verdade que não existe tradição de
interpretação que não seja “mediatizada” por alguma concepção
filosófica. Assim, a palavra “Deus”, que nos textos bíblicos recebe
sua significação da convergência de muitos modos de discurso
(narrativas e profecias, textos legislativos e literatura sapiencial,
provérbios e hinos) – enquanto simultaneamente ponto de
interseção e horizonte que escapa a cada uma dessas formas –,
teve de ser absorvida no espaço conceitual para ser reinterpretada
em termos do Absoluto filosófico (...). Daí vem que nosso conceito
de Deus pertence a uma ontologia na qual continua a organizar a
constelação inteira das palavras chaves da semântica teológica,
mas no interior de um quadro de significações prescritas pela
metafísica.267
267
Ibidem.
268
Cf. RICOEUR, 2006, p. 210-211.
112
problema é olhar a própria linguagem religiosa e esclarecer suas
potencialidades conceituais, ou, se preferem, sua capacidade de
ser articulada conceptualmente no espaço de confronto de nossa
cultura atual. Nosso método regressivo nos levou de um encontro
puramente extrínseco entre a linguagem religiosa e os conceitos
filosóficos, através da noção de correlação, para um exame direto
da linguagem religiosa, do ponto de vista de suas potencialidades
conceptuais. Estamos preparados para assumir essa nova
abordagem pelo que dissemos acima sobre os gêneros literários
específicos da linguagem religiosa. (...) Da mesma maneira,
somos levados a examinar os traços desses modos de discurso
que necessitam de um esclarecimento conceptual.269
269
RICOEUR, 2006, p. 211-212.
270
Idem, p. 213.
113
dogmática, donde surgiu a teologia, em conjunção com as filosofias gregas.”271.
Ele deixa claro que as primeiras cristologias pertencem a esse grupo. Ricoeur
chama a linguagem dos discursos semi-conceituais de tradução. Nela, o conteúdo
significante é explorado como a base de conceitos e de noções pertencentes a
uma corrente de pensamento distinto da base simbólica. Então, referindo-se a
Fred Streng, Ricoeur afirma:
Segundo esse pesquisador, é um traço fundamental do
cristianismo poder transmitir sua linguagem criando uma série de
linguagens de translação, i.é., linguagens capazes de uma dupla
história, a da linguagem de onde vêm e da linguagem em que são
traduzidas. (...) A cada etapa do processo de translação, a
linguagem religiosa recolhe novas metáforas, novos instrumentos
retóricos e, também, novas dimensões conceituais, que tornam a
linguagem original apta, ou pelo menos não demasiado
inadequada, para tratar com outras religiões, com as culturas
estrangeiras e com a própria filosofia.272
271
Ibidem.
272
Idem, p. 213-214.
273
Cf. RICOEUR, 2006, p. 214-216.
274
RICOEUR, 2006, p. 216.
114
com ele, essa expressão “conceitos-limite” é fruto da relação entre “expressões-
limite” e “experiências-limite”. O problema, conforme Ricoeur, é determinar se não
há um certo uso de pensamento que preserve a tensão entre figura e significação,
porque prolonga o papel dos qualificadores no nível conceitual. Logo, ele afirma
que essa proposição o conduz em direção a Kant ou, mais precisamente, o
conduz a um retorno pós-hegeliano a Kant.275
O que Ricoeur faz é expor três temas pertencentes à filosofia da religião
e à especulação religiosa de Kant. Quanto ao primeiro tema, ele diz:
A teologia especulativa está morta, dizíamos. E é essa a
conclusão negativa da primeira crítica em relação à noção de
“ilusão transcendental”. Mas essa destruição da teologia
especulativa como ciência dos “objetos” não implica que o próprio
saber objetivo seja absoluto. Ao contrário, saber objetivo é o
trabalho do “entendimento” (Verstand) e o “entendimento” não
esgota o poder da “razão” (Vernunft) que permanece a função do
Incondicionado. Essa distância, essa tensão entre a “razão” como
Incondicionado e o “entendimento” como a função do saber
condicionado encontra sua expressão na noção de “limite”
(Grenze) que Kant não identifica com a da “fronteira” (Schranke).
O conceito de “limite” não implica só – nem mesmo
originariamente – que nosso saber seja limitado, tenha fronteiras,
mas que a busca do incondicionado ponha limites à reivindicação
do saber objetivo de tornar-se absoluto. O limite não é um fato,
mas um ato.276
275
Cf. RICOEUR, 2006, p. 216.
276
RICOEUR, 2006, p. 219.
115
figurativo. Em outras palavras, ele tira sua força do seu potencial hermenêutico,
que não é objetivo.277
Assim sendo, de acordo com Ricoeur, o “limite” funciona aqui como
uma advertência contra uma nova escolástica, lembrando que “é como” implica
“não é”. Por essa razão, Ricoeur deixa claro que não abandona o vocabulário
kantiano do limite imposto pela razão às reivindicações do saber objetivo.
Conforme ele, assim como a tensão entre as interpretações literal e metafórica é
essencial à significação da metáfora, a tensão entre a reivindicação objetiva do
saber e a apresentação poética do Incondicionado é preservada na nova
linguagem de advento, restauração e resolução. Essa linguagem é,
simultaneamente, a dos conceitos-limite e das apresentações figurativas do
Incondicionado.278
Quanto ao segundo tema, Ricoeur diz:
Conforme a Segunda Crítica, a única “extensão” (Ausweitung) de
nosso conhecimento é prática, isso é, concerne à relação entre a
liberdade e a lei. Este contraste entre limitação teórica e extensão
prática pode tornar-se mais frutuoso se damos um alcance à
estreiteza moral. (...) Se a ética cobre todo o percurso da
escravidão à liberdade (...), então uma interpretação ética do
discurso poético e religioso não tem efeitos redutores. Abre, ao
contrário, um diálogo frutuoso entre ética e hermenêutica.279
277
Cf. RICOEUR, 2006, p. 219-220.
278
Idem, p. 220.
279
RICOEUR, 2006, p. 220.
280
Para uma melhor compreensão da ética filosófica no pensamento de Ricoeur, cf. a Pequena
Ética. A Pequena Ética é um tratado, equivalente a três capítulos, situado no interior da obra O si-
mesmo como um outro. Nele, Ricoeur propõe uma espécie de ética sapiencial, que se situa entre
os dois principais paradigmas éticos: o teleológico, de Aristóteles, e o deontológico, de Kant. De
acordo com ele, os três capítulos (ou três estudos) acrescentam às dimensões da linguagem
prática e narrativa da ipseidade (identidade que se constitui pela mediação do outro) uma
dimensão nova que é, ao mesmo tempo, ética e moral. Ricoeur se propõe a estabelecer, sem
preocupação com a ortodoxia aristotélica ou kantiana, mas não sem uma grande atenção aos
textos fundadores dessas duas tradições,1) o primado da ética sobre a moral, 2) a necessidade,
para a perspectiva ética, de passar pelo crivo da norma, e 3) a legitimidade de um recurso da
norma à perspectiva, quando a norma conduz a impasses práticos que lembrarão nesse novo
estádio da meditação as diversas situações aporéticas que a mesma teve de enfrentar sobre a
ipseidade.
116
esses conceitos são vazios sem sua apresentação indireta em símbolos,
parábolas e mitos. Segundo Ricoeur é “a tarefa da hermenêutica destacar do
“mundo” dos textos seu “projeto” implícito de existência, sua “proposição” indireta
de novos modos de ser.”281. Conseqüentemente, as instituições são cegas na
medida em que os conceitos éticos são vazios. De acordo com Ricoeur, a
hermenêutica terminou o seu trabalho quando abriu os olhos e os ouvidos. Ou
seja, quando apresentou diante da imaginação humana as figuras da existência
autêntica. Portanto, é a tarefa da ética articular seu discurso coerente, entendendo
o que os poetas dizem.282
Quanto ao terceiro tema, Ricoeur afirma:
Na Religião nos limites da simples razão, Kant estabeleceu as
regras de uma hermenêutica filosófica que pode colocar-se sob o
título de uma pesquisa transcendental sobre a imaginação e a
esperança. A tarefa atribuída por Kant a essa pesquisa
transcendental poderia aparecer menos estreita, não só se damos
à ética um alcance mais vasto do que Kant lhe designava, mas de
damos à terceira questão – Que tenho o direito de esperar? – uma
real autonomia em relação á [sic!] segunda questão: Que devemos
fazer?283
281
RICOEUR, 2006, p. 220.
282
Cf. RICOEUR, 2006, p. 220.
283
RICOEUR, 2006, p. 220-221.
117
fronteira. Só a tomada de consciência de seu estatuto paradoxal
pode impedir os símbolos de tornarem-se ídolos.284
284
Idem, p. 221.
118
CAPÍTULO 3
Considerações introdutórias
119
O primeiro passo desse terceiro capítulo consiste na análise do artigo
intitulado Hermenêutica filosófica e hermenêutica bíblica, de 1975, situado na
obra, Do texto a acção. Nele, Ricoeur apresenta a relação entre a hermenêutica
filosófica e a hermenêutica bíblica. Ele o faz destacando quatro aplicações da
hermenêutica centrada no texto.
Ricoeur começa esse artigo dizendo que o seu objetivo é explorar a
contribuição da hermenêutica filosófica à exegese bíblica. Objetivo apresentado,
ele expõe a metade da sua hipótese, a saber, que a hermenêutica bíblica é uma
das possíveis aplicações da hermenêutica filosófica a uma categoria de textos.
Mas, para Ricoeur, a relação entre as duas hermenêuticas é mais complexa,
implicando uma mútua inclusão. Embora admita que o primeiro movimento de tal
inclusão seja do pólo filosófico ao pólo bíblico, ele ressalta que as mesmas
categorias de obra, de escrita, de “Mundo do Texto”, de distanciação e de
apropriação regulam ambas as interpretações.285
Acerca da relação entre as duas hermenêuticas, Ricoeur afirma: “Neste
sentido, a hermenêutica bíblica é uma hermenêutica regional em relação à
hermenêutica filosófica, constituída em hermenêutica geral.”286. Aqui surge uma
questão: Estaria a hermenêutica bíblica, como hermenêutica aplicada,
subordinada à hermenêutica filosófica?. Segundo Ricoeur, é exatamente porque a
hermenêutica bíblica é aplicada aos textos bíblicos que essa relação é inversa.287
O que ele faz a partir daqui, é tentar decifrar esse jogo de relação inversa. Para
tal, ele retoma a ordem das categorias da hermenêutica centrada na noção de
texto. Ou seja, ele aplica as categorias gerais da hermenêutica filosófica à
hermenêutica bíblica.
285
Cf. RICOEUR, [s.d.], p. 125.
286
RICOEUR, [s.d.], p. 125.
287
Aqui, Del texto a la acción, em espanhol, é esclarecedor: “Pero precisamente al tratar la
hermenêutica teológica como una hermenéutica aplicada a una clase de textos – los textos bíblicos
– aparece una ralación inversa entre las dos. La hermenéutica teológica presenta características
tan originales que la relación se invierte progresivamente: la hermenéutica teológica subordina
finalmente a la hermenéutica filosófica como su propio órganon. Este juego de relaciones inversas
es el que me propongo ahora descifrar, retomando el orden de las categorías de la hermenéutica
centrada em la noción de texto; nada hará aparecer mejor el carácter “excéntrico” de la teología
que el esfuerzo mismo por “aplicarle” las categorías generales de la hermenéutica.” (RICOEUR,
2001, p.111).
120
Primeira aplicação da hermenêutica centrada
no texto: as “formas” do discurso bíblico
288
Cf. RICOEUR, [s.d.], p. 125-126.
289
RICOEUR, [s.d.], p. 126.
121
conjunto. Nesse ponto, Ricoeur faz questão de ressaltar que deve a Gerhard von
Rad a compreensão dessa relação entre forma de discurso e conteúdo
teológico.290
Das diferentes formas de discurso, Ricoeur seleciona a narração para
análise. Essa análise, uma vez desenvolvida, já não permite edificar teologias do
Antigo ou do Novo Testamento que considerem a categoria narrativa como um
processo retórico estranho ao conteúdo que ele veicula. Antes, o que é dito sobre
Deus e sua relação com a criação, o é de forma narrativa. Segundo Ricoeur, tal
forma de discurso conta os acontecimentos de libertação do passado e gravita ao
redor de um acontecimento-núcleo, que tem, ao mesmo tempo, um alcance
histórico e uma dimensão kerigmática. Ele afirma:
Por um lado, efectivamente, o tomar em consideração a estrutura
narrativa permite estender ao domínio da exegese os métodos
estruturais; (...) Por outro lado, a relação entre as duas
hermenêuticas começa a alterar-se a partir do momento em que
se considera a outra face da narração, ou seja, a confissão de fé.
Mas essa outra dimensão permanece inseparável da estrutura da
narrativa; não era qualquer teologia que podia estar ligada à forma
narrativa; mas apenas uma teologia que anuncie Javé como o
grande Actante duma história de libertação.291
290
Cf. RICOEUR, [s.d.], p. 126.
291
RICOEUR, [s.d.], p. 127-128.
292
Cf. RICOEUR, [s.d.], p. 128.
122
narrativa) e o oráculo (da profecia) estende-se quer pela percepção do tempo que
uma consolida e a outra desloca, quer pelo sentido do divino que ora é
apresentado como o Deus da aliança, ora é apresentado como o temível juiz.293
Ricoeur também reconhece que o mesmo confronto deve acontecer
entre outras estruturas. Por exemplo, deve acontecer entre a legislação e a
sabedoria, entre o hino e o provérbio, uma vez que é através das diferentes
formas de discurso que Deus é apresentado de diferentes maneiras. Sobre isso,
ele diz:
Talvez uma investigação exaustiva, se ela fosse possível,
revelasse que todas as formas de discurso constituem em
conjunto um sistema circular e que o conteúdo teológico de cada
uma delas recebe a sua significação da constelação total das
formas de discurso. A linguagem religiosa apareceria, então, como
uma linguagem polifônica sustentada pela circularidade das
formas. (...) Pelo menos esta hipótese é coerente com o tema
central da presente análise, ou seja, que a obra acabada a que
chamamos Bíblia é um espaço limitado para a interpretação, no
qual as significações teológicas são correlativas das formas de
discurso. A partir daí, não é possível interpretar as significações
sem percorrer o longo trajecto de uma explicação estrutural das
formas.294
293
Idem, p. 128.
294
RICOEUR, [s.d.], p. 128-129.
295
Idem, p. 129.
123
Logo, todos esses aspectos da fala se tornam um único “acontecimento de
fala”296.
Contudo, Ricoeur deixa claro que se a relação fala-escrita não é
colocada na própria origem de todo o problema de interpretação, falta o que
constitui a situação hermenêutica primária da pregação cristã. Isso porque, em
todos esses estágios, a fala mantém uma relação com a escrita. Ele diz:
(...) em primeiro lugar, ela [a fala] refere-se a uma escrita anterior
que a interpreta; (...) Parece, pois, que uma escrita deve preceder
a fala, se a fala não tiver que permanecer um grito; a própria
novidade do acontecimento pede para ser transmitida por meio de
uma interpretação de significações preliminares – já inscritas – e
disponíveis na comunidade de cultura. Nesse sentido, o
cristianismo é desde o início, uma exegese. (...) Mas não é tudo: a
nova pregação, por sua vez, não está apenas ligada a uma escrita
anterior que a interpreta. Ela torna-se, por sua vez, uma nova
escrita. (...) doravante, toda pregação que tomar as escrituras por
guia da sua palavra ser[a chamada cristã; ela não terá na sua
frente uma escritura – a Bíblia hebraica –, mas duas escrituras, o
Antigo e o Novo Testamento.297
296
Cf. RICOEUR, [s.d.], p. 129.
297
RICOEUR, [s.d.], p. 129-130.
124
transmissão duma mensagem; antes de ser acrescentada à escrita
como uma fonte suplementar, a tradição é a dimensão histórica do
processo que encadeia, uma na outra, a fala e a escrita – a escrita
e a fala. O que a escrita traz é a distanciação que liberta a
mensagem do seu locutor, da situação inicial e do seu destinatário
primitivo. Graças à escrita, a fala estende-se até nós e atinge-nos
pelo seu “sentido” e pela “coisa” de que se trata nela e já não pela
“voz” do seu proclamador. Perguntar-se-á o que constitui a
especificidade da fala e da escrita bíblicas, entre as outras falas e
as outras escritas. Nós responderemos: ainda nada que tenha a
ver com a relação da fala e da escrita enquanto tais. É na “coisa”
do texto que deve consistir a sua originalidade.298
298
Idem, p. 130-131.
299
Idem, p. 131.
125
existenciais (existentielles)300 de compreensão, como para
contrabalançar eventuais excessos da análise estrutural. A nossa
hermenêutica geral convida-nos a dizer que a etapa necessária,
entre a explicação estrutural e a compreensão de si, é a
explanação do mundo do texto; é ele, finalmente, que forma e
transforma, segundo a sua intenção, o ser-si (l’être-soi) do leitor.301
300
Aqui, a distinção é entre “existencial” e “existenciário”.
301
Idem, p. 131-132.
302
Cf. RICOEUR, [s.d.], p. 132.
303
RICOEUR, [s.d.], p. 132.
304
Cf. RICOEUR, [s.d.], p. 132.
126
individual e, em geral, não há privilégio para os aspectos
personalistas da forma Eu-Tu, na relação do homem com Deus.305
305
RICOEUR, [s.d.], p. 132.
306
Cf. RICOEUR, [s.d.], p. 132-133.
307
RICOEUR, [s.d.], p. 133.
308
Ibidem.
127
significação desse referente está implicada nas múltiplas significações solidárias
presentes nas expressões originárias de revelação. Logo, o “God-Talk”309 procede
da concorrência e da convergência desses discursos parciais. Já o referente
“Deus” é, simultaneamente, o coordenador e o ponto de afastamento, a marca de
incompletude, desses discursos.310
Ricoeur segue demonstrando como a palavra “Deus” e a palavra
“Cristo” devem ser compreendidas. Mais que um conceito filosófico, como o de
“ser”, o termo “Deus” pressupõe o contexto total das expressões originárias de
revelação. Assim, compreender a palavra “Deus” é seguir sua seta de sentido.
Essa seta de sentido tem um duplo poder: juntar as significações oriundas dos
discursos parciais e abrir um horizonte que escapa à prisão do discurso.311
Ricoeur diz o mesmo da palavra “Cristo”. À dupla função atribuída à
palavra “Deus”, a palavra “Cristo” adiciona o poder de encarnar todas as
significações religiosas num símbolo fundamental, o símbolo de um amor
sacrificial mais forte que a morte. Assim sendo, a pregação da cruz e da
ressurreição de Cristo tem a função de dar à palavra “Deus” uma densidade que a
palavra “ser” não possui312. Em sua significação está contida a noção de sua
relação coma a humanidade, como afável, e da relação da humanidade com ele,
como intimamente relacionada e plenamente reconhecida.313
Então, conforme Ricoeur, a tarefa da hermenêutica bíblica seria a de
explicitar todas as implicações dessa constituição e dessa articulação do God-
Talk. Sobre isso, ele diz:
Vê-se, agora, em que sentido esta hermenêutica bíblica é, ao
mesmo tempo, um caso particular da espécie de hermenêutica
geral (...), e um caso único. Um caso particular, porque o ser novo
de que fala a Bíblia não se pode procurar fora do mundo deste
texto, que é um texto entre outros. Um caso único, porque todos
os discursos parciais são referidos a um Nome, que é o ponto de
intersecção e o indício de incompletude de todos os nossos
discursos sobre Deus e porque este Nome se tornou solidário do
309
Expressão-título de uma obra de J. McQuarrie, publicada em Londres, em 1967. Nessa obra ele
faz um exame da linguagem e da lógica teológica.
310
Cf. RICOEUR, [s.d.], p. 133-134.
311
Idem, p. 134.
312
Cf. referências à ontoteologia no capítulo anterior.
313
Cf. RICOEUR, [s.d.], p. 134.
128
acontecimento-sentido pregado como Ressurreição. Mas a
hermenêutica bíblica só pode pretender dizer uma coisa única se
esta única falar como o mundo do texto que se dirige a nós, como
a coisa do texto. É o ponto essencial no qual eu queria insistir, ao
colocar a hermenêutica teológica sob a terceira categoria da
hermenêutica geral, a saber, o mundo da obra.314
314
RICOEUR, [s.d.], p. 134-135.
315
Cf. RICOEUR, [s.d.], p. 135.
316
RICOEUR, [s.d.], p. 135-136.
129
Mas, segundo Ricoeur, a hermenêutica lembra que a fé bíblica não
pode estar separada do movimento de interpretação que a eleva ao nível da
linguagem. Ele diz que a “preocupação última” permaneceria muda, se não
recebesse o poder da fala de uma interpretação sempre recomeçada dos signos e
dos símbolos que têm educado e formado essa preocupação ao longo dos
séculos; o “sentimento de dependência absoluta” se tornaria frágil e desarticulado,
se não fosse a resposta à proposta de um ser novo que abre novas possibilidades
de existir e agir; a “confiança incondicional” seria vazia, se não fosse apoiada na
interpretação sempre renovada dos acontecimentos-signos referidos pelas
Escrituras. De acordo com Ricoeur, essa é a constituição propriamente
hermenêutica da fé. Além disso, é a primeira conseqüência teológica da
indissociável correlação que descobrimos entre o “Mundo do Texto” e a
apropriação.317
A segunda conseqüência sublinhada por Ricoeur é a seguinte:
Uma segunda conseqüência resulta do tipo de distanciação que a
reflexão hermenêutica fez aparecer no centro da compreensão de
si, uma vez que esta compreensão é um “compreender-se face ao
texto”. A partir do momento em que esta se submete à (...)
“apresentação por si” (...) da “coisa” do texto, uma crítica das
ilusões do sujeito parece incluída no próprio acto de “compreender-
se face ao texto”.318
317
Cf. RICOEUR, [s.d.], p. 136.
318
RICOEUR, [s.d.], p. 136.
319
Cf. RICOEUR, [s.d.], p. 136-137.
130
sujeito é apenas o aspecto negativo daquilo a que é preciso, em
rigor, chamar a “imaginação”.320
Filosofia hermenêutica
320
RICOEUR, [s.d.], p. 137.
321
Cf. RICOEUR, [s.d.], p. 136-137.
322
RICOEUR, [s.d.], p. 137-138.
131
mesmo ocultando-se? Ou, qual é a tarefa da filosofia em resposta à idéia de
revelação de um Deus ao qual pertencem coisas ocultas?. Ricoeur responde à
questão inicial com uma palavra: Reivindicar. Segundo ele, essa palavra tem dois
significados. O primeiro se refere a uma pretensão exagerada e inaceitável. O
segundo se refere a um apelo que não exige de ninguém aceitação da sua
mensagem. Logo, Ricoeur afirma que utiliza a palavra reivindicar com esse
segundo significado.323
Antes de demonstrar, positivamente, o caminho que irá trilhar, Ricoeur
expõe, negativamente, o caminho que não irá trilhar. Em primeiro lugar, ele diz:
“Está fora de minha proposta, o projeto de uma teologia racional que outros
filósofos a quem respeito crêem ser possível na prática.”324. Porém, Ricoeur
pretende transmitir a idéia de revelação no nível originário, no nível do seu
discurso fundamental. Esse discurso é estabelecido próximo à experiência
humana. Ele se insere numa experiência mais fundamental do que qualquer
articulação ontoteológica. Assim, de acordo com Ricoeur, a palavra Deus pertence
apenas às expressões pré-teológicas da fé. Deus é aquele que é proclamado,
invocado, questionado, suplicado e agradecido. Embora esteja presente em todos
esses modos de discurso, a palavra Deus transcende a cada um deles.325
Em segundo lugar, Ricoeur afirma: “Há uma outra maneira que também
não vou seguir: O caminho de um existencialismo baseado na infelicidade da
condição humana, onde a filosofia fornece a questão e a religião a resposta.”326.
Ele diz que o caráter apologético desse existencialismo é suspeito na medida em
que é apologético. Todavia, se Deus fala pelo profeta, o filósofo não precisa
justificar sua palavra. Antes, deve buscar o horizonte onde seu significado possa
ser ouvido.327
Tendo expressado os não caminhos, Ricoeur passa a considerar o
caminho. Ele afirma:
323
Cf. RICOEUR, 2004, p. 90.
324
RICOEUR, 2004, p. 90.
325
Cf. RICOEUR, 2004, p. 90-91.
326
RICOEUR, 2004, p. 91.
327
Cf. RICOEUR, 2004, p. 91.
132
É por isso que prefiro voltar-me para algumas estruturas da
interpretação da experiência humana, para discernir ali aqueles
traços através dos quais algumas coisas sempre têm sido
compreendidas sob a idéia da revelação, compreendida em um
sentido religioso do termo. É essa compreensão que pode entrar
em consonância com o apelo não violento da revelação bíblica.
Minha análise constituirá de duas partes, correspondendo ao
reclamo duplo do discurso filosófico à objetividade transparente e
autonomia subjetiva. A primeira observação será dirigida ao
espaço da manifestação de coisas, a segunda para a
compreensão que os humanos ganham de si mesmos quando
permitem serem governados pelo que é manifestado e dito.328
133
328
RICOEUR, 2004, p. 92.
339
Ibidem.
133
pretende investigar a função reveladora particular ligada a certas modalidades da
Escritura, modalidades são colocadas sob a categoria “Poemas”. Ele afirma que
sob tal categoria a análise filosófica encontra traços de revelação que podem
corresponder ou responder ao apelo não violento da revelação bíblica.330
Como introdução a essa idéia de uma função reveladora do discurso
poético, Ricoeur retoma três conceitos. O primeiro conceito que ele retoma é o da
escrita:
Subestimamos o fenômeno da escrita se a reduzimos a uma
simples fixação material da fala viva. A escrita mantém-se em uma
relação específica com o que é dito. Produz uma forma de
discurso que é imediatamente autônoma com respeito a sua
intenção do autor. (...) graças à escrita, o mundo do texto pode
brotar no mundo do autor. Essa emancipação em respeito ao autor
tem seu paralelo do lado de quem recebe o texto. A autonomia do
texto também remove esse leitor do horizonte finito de sua
audiência original.331
O segundo conceito que Ricoeur retoma é o da obra:
Com isso quero dizer a forma do discurso através da operação dos
gêneros literários tais como narração, ficção, ensaio, etc. [sic!] (...)
Essa forma da obra [estilo] concorre com o fenômeno da escrita na
exteriorização e na objetivação do texto no que um crítico literário
chamou de “ícone verbal”.332
Ricoeur atenta para fato de que é sobre essa base tríplice (autonomia
através da escrita, exteriorização por meio da obra e referência ao mundo) que
330
Cf. RICOEUR, 2004, p. 93.
331
RICOEUR, 2004, p. 93-94.
332
Idem, p. 94.
333
Ibidem.
134
edificará sua análise da função reveladora do discurso poético. Entretanto, resta-
lhe definir o que entende por função poética do discurso. É exatamente isso que
ele faz. Ricoeur a designa como a totalidade dos gêneros literários e não como um
gênero literário específico, o poético. Tomados juntos, esses gêneros literários
exercem uma função referencial diferente da função referencial descritiva da
linguagem normal e, principalmente, da linguagem científica. Então, para ele, a
função poética indica o desaparecimento da função referencial normal, identificada
com a capacidade de descrever objetos familiares da percepção ou objetos que
somente a ciência determina por meio de seus padrões de medida.334
Conseqüentemente, segundo Ricoeur, a função poética não aumenta o
conhecimento dos objetos. Sobre isso, ele diz:
Minha convicção mais profunda é que a linguagem poética só
restaura-nos aquela “participação-em” ou “pertencente-a” uma
ordem de coisas que precede nossa capacidade de nos opor a
coisas tidas como objetos opostos a um sujeito. A função do
discurso poético, portanto, é produzir esta emergência de uma
estrutura de profundidade de “pertencer-a” no meio das ruínas do
discurso descritivo. (...) Primeiramente estou definindo a função
poética de maneira negativa (...), como o inverso da função
referencial compreendido [sic!] num sentido descritivo, e depois de
um modo positivo o que (...) chamo de referência metafórica. (...)
Ou para falar como Aristóteles e seus Poéticos, o mito é o
caminho para a verdadeira mimese, a qual não é imitação
desprezível (...), mas uma transposição ou metamorfose ou, como
sugiro, uma nova descrição.335
334
Cf. RICOEUR, 2004, p. 94-95.
335
RICOEUR, 2004, p. 95-96.
135
acrescenta a essas três características uma referencia rompida
por meio da qual emerge a “Atlântida” [ilha] submersa na rede dos
objetos submetidos ao domínio de nossas preocupações. É esse
território primordial de nossa existência, do horizonte originário de
nosso “ser-ali”, que a função reveladora é de igual duração com a
função poética.336
336
Idem, p. 96-97.
337
Cf. RICOEUR, 2004, p. 97.
338
RICOEUR, 2004, p. 97.
339
Cf. RICOEUR, 2004, p. 97-98.
136
mesma forma que o mundo dos textos poéticos abrem [sic!] seus
caminhos através das ruínas dos objetos intramateriais da
existência cotidiana e da ciência, assim também o novo ser
projetado pelo texto bíblico abre o seu caminho através do mundo
de experiência normal apesar da natureza exclusiva dessa
experiência. O poder de projetar esse novo mundo é o poder de
um avanço e de uma abertura.340
340
RICOEUR, 2004, p. 98.
341
Ibidem.
342
Idem, p. 99.
137
a questão da autonomia da consciência em sentido mais geral,
tentarei manter o foco do debate no conceito central da
autoconsciência que é capaz de corresponder a um dos maiores
traços da idéia de revelação trazida à luz por nossa análise do
discurso bíblico. Esta categoria central ocupará um lugar
comparado ao do discurso poético em relação ao aspecto objetivo
do discurso filosófico. Essa categoria que para mim significa
melhor a auto-implicação do assunto em seu discurso é o [sic!] do
testemunho. Além de ter um termo correspondente ao lado da
idéia de revelação, é o conceito mais apropriado para nos fazer
entender o que um assunto refletido, conformado e formado pelo
discurso profético pode ser.343
343
Ibidem.
344
Na Simbólica do Mal, Ricoeur analisa os símbolos da mancha, do desvio e do peso. Em
primeiro lugar, à luz da relação puro-impuro, observa-se o caráter exterior do mal. Em segundo
lugar, à luz da relação perfeito-imperfeito, observa-se o caráter ético do mal. Em terceiro e último
lugar, à luz da relação justo-injusto, observa-se o caráter ontológico do mal.
345
Cf. RICOEUR, 2004, p. 100.
346
Para uma melhor compreensão do assunto, cf. Hermenêutica e Psicanálise, no interior da obra
O conflito das interpretações.
347
Ibidem.
138
de nosso esforço por existir e de nosso desejo de ser através de
obras que trazem à luz esse esforço e desejo”. (...) Dessa
maneira, incluí o testemunho na estrutura da reflexão sem por
enquanto ter determinado a importância dessa implicação. Pelo
menos vi que “o posicionar ou emergir desse esforço ou desejo
não é apenas desprovido de toda intuição, mas é evidenciada
somente pelas obras cujos significados permanecem dúbios e
revogáveis”. (...) Por isso que a reflexão tinha que incluir a
interpretação, isto é, “os resultados, métodos e pressuposições de
todas as ciências que tentam decifrar e interpretar os sinais do
homem.” (...)348
348
RICOEUR, 2004, p. 100-101.
349
Cf. RICOEUR, 2004, p. 101.
350
RICOEUR, 2004, p. 101-102.
139
compreender a si mesmo diante do texto. Ao que parece, no pensamento de
Ricoeur, apropriação e hermenêutica são conceitos sinônimos.351
Acerca disso, Ricoeur afirma:
O terceiro conceito preparatório marca a derrota final da pretensão
da consciência para estabelecer-se a si mesma como o padrão do
significado. Compreender-se a si mesmo diante do texto não é
impor a capacidade de compreensão finita própria de alguém
sobre ele, mas expô-lo a receber dele um vasto ego, o qual seria a
maneira proposta de existir que mais apropriadamente responde
ao mundo do texto proposto. O entendimento, então, é o oposto
completo de uma constituição para a qual o sujeito teria a chave.
Seria melhor a este respeito dizer que o ego é constituído pelo
assunto do texto.352
351
Cf. RICOEUR, 2004, p. 102.
352
RICOEUR, 2004, p. 102.
353
Idem, p. 103-104.
140
Ricoeur constata que poucos filósofos têm tentado integrar a categoria
do testemunho na reflexão filosófica e que muitos a tem ignorado ou abandonado
aos domínios da fé. Mas, conforme ele, Jean Nabert é uma exceção. Logo,
Ricoeur lança mão da contribuição de Nabert para mostrar como a categoria do
testemunho governa o abandono ou a permissão do reclamo absoluto à
autoconsciência. Além disso, como tal categoria ocupa, no lado subjetivo de uma
hermenêutica da revelação, um lugar estratégico semelhante ao da categoria dos
poéticos, no lado objetivo.354
Assim, Ricoeur discorre sobre a sua tese:
Ocorre recurso ao testemunho numa filosofia de reflexão no
momento em que tal filosofia renuncia a pretensão de consciência
para constituir-se a si mesma. Assim, Jean Nabert, por exemplo,
reconhece o lugar do testemunho naquele ponto de seu caminho
onde a reflexão concreta esforça-se ela mesma para restituir o que
ele chama de afirmação originária que constitui o ser mais do que
o ser a constitui. Essa afirmação originária tem todas as
características de uma afirmação absoluta do absoluto, mas está
impossibilitada de ir além de um ato puramente interno que é
incapaz de expressar-se exteriormente ou mesmo manter-se
internamente. A afirmação originária tem algo acerca disso que é
indefinidamente inaugural, e que somente preocupa a idéia que o
ego faz de si mesmo. Para uma filosofia da reflexão, essa
afirmação originária não é de forma alguma uma de nossas
experiências. Embora numericamente idêntica a cada consciência
(reelle) real da pessoa, é o ato que efetua a negação daquelas
limitações que afetam o destino do indivíduo, é a permissão de ir
(depoullement) de si.355
354
Cf. RICOEUR, 2004, p. 104.
355
RICOEUR, 2004, p. 104.
356
Cf. RICOEUR, 2004, p. 104-105.
141
Somente aqueles eventos, atos e pessoas que declaram que o
injustificável é vencido aqui e agora pode [sic!] reabrir o caminho
para a afirmação originária. (...) Somente o testemunho que é
singular em cada ocorrência confere a sanção da realidade às
idéias, ideais e caminhos do ser que o símbolo nos descreve e que
nós descobrimos como nossas próprias possibilidades. Portanto, o
testemunho melhor que um exemplo ou símbolo coloca a reflexão
antes do paradoxo o qual a pretensão da consciência faz um
escândalo, quer dizer, que um momento da história é investido
com caráter absoluto. Esse paradoxo deixa de ser um escândalo
tão logo o movimento interno completo de permissão de ir, de
abandono do reclamo para encontrar consciência, aceita ser
orientado e regido pela interpretação dos sinais externos que o
absoluto dá de si.357
357
RICOEUR, 2004, p. 105-106.
358
Cf. RICOEUR, 2004, p. 106.
359
RICOEUR, 2004, p. 106.
142
plano da reflexão. (...) Precisamos sempre decidir entre a
testemunha falsa e a verdadeira. (...) Essa função para o
julgamento encontrará sua contraparte num momento de
movimento por meio do qual a reflexão responde à crítica do
testemunho, o que Nabert chama de criteriologia do divino.360
360
Ibidem.
361
Idem, p. 106-107.
362
Idem, p.107.
143
imanente. Ricoeur afirma que o ser humano existe porque está ligado aos
eventos que acontecem. Sobre isso, ele comenta:
A tarefa de entendermos a nós mesmos através deles é a tarefa
de transformar o acidental em nosso destino. O acontecimento é o
nosso mestre. Cada uma de nossas existências separadas é como
aquelas comunidades que pertencemos, somos absolutamente
dependentes a certos acontecimentos fundamentais. Eles (...) são
eventos (...) que perduram. Em si são “sinais-eventos”. Entender a
nós mesmos é continuar a declará-los e testificá-los.363
363
Idem, p.108.
364
Ibidem.
144
estéticas” (...). No momento de considerar as produções estéticas
do gênio, ele invoca o poder da imaginação “para apresentar” (...)
aquelas idéias da razão para as quais não temos conceito. Por
meio de tais representações, a imaginação “produz muito [sic!]
pensamentos (...) sem, no entanto, qualquer pensamento definido,
isto é, qualquer conceito capaz de se adequar a ele;
conseqüentemente, não pode ser percebido completamente e se
[sic!] tornado inteligível pela linguagem.” (...) Então o que a
imaginação confere ao pensamento é a capacidade de pensar
mais adiante.365
365
Idem, p.109-110.
366
Idem, p.110.
367
Idem, p.111.
145
3.4 A relação entre hermenêutica filosófica e hermenêutica bíblica
de Ricoeur no pensamento de outros autores
368
Cf. AMHERDT in RICOEUR, 2006, p. 13-15.
146
de Ricoeur, entre a argumentação filosófica racional e as convicções religiosas
cristãs, não há nem confusão nem separação. Elas fazem eco uma à outra e
entram em diálogo uma com a outra, sem se confundirem e sem se sobreporem.
Todavia, Ricoeur fala ainda de uma relação polar entre crítica e convicção. Essa
polaridade existe porque a filosofia não é privada de convicções e porque a
dimensão religiosa abrange também uma parte de crítica interna. Amherdt destaca
o fato de Ricoeur consagrar centenas de ensaios à problemática da fé bíblica e de
sua obra ser perpassada pela questão religiosa.369
De acordo com Amherdt, no que tange à filosofia reflexiva do sujeito, o
procedimento de Ricoeur parte da intuição fundamental de que a existência
humana é portadora de sentido. Devido a isso, Ricoeur tenta buscar traços de
sentido em todas as obras humanas que testemunham o esforço por existir e o
desejo de ser. Ele não aceita dogmatismos e pondera que dificuldade encontrada
pela Palavra de Deus em atingir o homem moderno se deve ao fato de que a
sensibilidade à linguagem simbólica degradou-se profundamente sob a influência
da dicotomia entre a consciência soberana e o mundo objetivo manipulável. Além
disso, a heteronomia da revelação vem, aparentemente, ameaçar a autonomia do
indivíduo. Amherdt afirma:
De seu lado, Ricoeur faz a aposta da fé. Parte do pressuposto de
que os textos da pregação cristã são autênticos testemunhos da
presença do absoluto na história (...) e que o discurso religioso (...)
não é privado de sentido, que vale a pena ser examinado porque
nele se diz algo que não é dito nas outras modalidades do
discurso (...). No entanto, para Ricoeur, nenhuma articulação
autêntica da fé cristã pode prescindir da crítica impiedosa dos
“mestres da suspeita” (...).370
147
discurso bíblico, sublinhando sua especificidade. Amherdt ressalta que, mesmo
preservando sua determinação de salvaguardar a autônima de seu pensamento
filosófico, Ricoeur dedicou-se a estudar os textos bíblicos em que o homem põe a
nu sua finitude, choca-se com o mistério do mal, encontra a transcendência e gera
a esperança. Amherdt afirma:
Particularmente cuidadoso com a autonomia semântica do sentido
textual (...), Paul Ricoeur demorou-se menos na gênese e nas
condições de produção dos textos dos dois Testamentos (...) do
que na sua capacidade “poiética” (...) de produzir significações
novas e a seu valor de “revelação”. (...) os textos da Escritura têm
condição para mudar a realidade porque lhe conferem uma
configuração nova e a reescrevem através de seus modos de
discursos contrastados. (...) Ricoeur soube destacar a
intransponível especificidade da linguagem da Escritura: sua
referencia última – Deus-Cristo-o Reino –, o jogo polifônico dos
gêneros literários irredutíveis um ao outro, e a extravagância de
seu modo discursivo (...), o que nenhum discurso especulativo
pode exprimir de maneira satisfatória.371
371
Idem, p. 21-22.
148
apropriação. Melhor, a interpretação, segundo ele, só está
acabada se dá origem a experiências “segundo as Escrituras” (...)
julgamos que Paul Ricoeur pode ser um dos pensadores graças
aos quais, no coração da modernidade corrosiva, o homem é
chamado de novo pelo poder transformador dos textos da
Revelação, suscitando nele um ato criativo de interpretação e um
testemunho novo.372
372
Idem, p. 22-23.
373
Cf. AMHERDT in RICOEUR, 2006, p. 25.
374
Idem, p. 26.
149
hermenêuticas. Para Ricoeur a hermenêutica bíblica é (...) um
caso único porque todos os discursos parciais são referidos a um
Nome, que é o ponto de interseção e o indício de incompletude de
nossos discursos parciais sobre Deus e porque esse Nome tornou-
se solidário de “acontecimento-sentido” pregado como
Ressurreição. Mas a hermenêutica bíblica não pode pretender
dizer uma coisa única a não ser que essa coisa única fale como o
mundo do texto se dirige a nós, como a coisa do texto (...).375
375
AMHERDT in RICOEUR, 2006, p. 26.
376
Idem, p. 27.
150
de Kant. De uma parte, na esteira de Hegel, a razão aspira a
apreender a totalidade do sentido e a regeneração da vontade
prometida pela pregação pascal. Mas, de outra parte, na
perspectiva kantiana, é levada a constatar que é incapaz por si
mesma de realizar essa reconciliação em plenitude: (...) Uma
filosofia dos ‘limites’ que é ao mesmo tempo uma exigência prática
de totalização, sem ser fechada sobre um saber absoluto (...), tal é
a estrutura do acolhimento filosófico capaz de entrar o mais longe
possível em consonância com o dado da Revelação. É o que
Ricoeur chama de aproximação filosófica da liberdade segundo a
esperança cristã (...).377
151
primeira e a segunda existe uma relação dialética complexa. Logo, Amherdt
retoma os principais componentes dessa relação. Ele o faz demonstrando os dez
mais importantes.
Para Amherdt, o primeiro componente da complexa relação dialética
entre a hermenêutica filosófica e a hermenêutica bíblica de Ricoeur é o seguinte:
Uma dupla referência: filosófica (crítica) e religiosa (convicção). Por um lado,
Ricoeur faz filosofia, utiliza a linguagem comum da razão crítica. Por outro lado,
ele reconhece pertencer à comunidade cristã protestante, fazendo parte da
tradição judaico-cristã. No entanto, “essa polaridade não significa que a filosofia
não seja igualmente da ordem da convicção, nem que a convicção religiosa deixe
de revestir uma dimensão crítica interna”379.
Segundo Amherdt, o segundo componente da complexa relação
dialética entre a hermenêutica filosófica e a hermenêutica bíblica de Ricoeur é o
seguinte: A constituição hermenêutica da filosofia e da fé. Em ambos os campos
de investigação, privilegia-se a mediação da linguagem e do texto. Assim, é de
textualidade para textualidade que se estabelece a relação entre o duplo registro.
Ambos possuem uma constituição hermenêutica e ambos são confrontados com o
problema da atividade da leitura dos textos. Mas, “não se referem ao mesmo
corpus: a lista dos textos filosóficos fundamentais difere do corpus religioso das
Escrituras canônicas, patrísticas e teológicas mesmo se certos textos ocupam um
lugar intermediário”380.
De acordo com Amherdt, o terceiro componente da complexa relação
dialética entre a hermenêutica filosófica e a hermenêutica bíblica de Ricoeur é o
seguinte: A leitura crítica e a leitura confessante. A polaridade entre crítica e
convicção conduz à distinção entre o tipo de abordagem dos textos. Cada um
deve ser abordado com pressupostos e objetivos diferentes. Assim sendo:
(...) a hermenêutica filosófica e a hermenêutica bíblica (...)
distinguem-se por sua atitude de leitura: à atitude crítica da leitura
livre dos textos filosóficos opõe-se a atitude crente da leitura
“querigmática” que confessa sua dependência para com uma
379
Idem, p. 61.
380
Idem, p. 62.
152
Palavra anterior cuja autoridade é reconhecida pela comunidade
em que se situa (...).381
381
Ibidem.
382
Idem, p. 63-64.
153
sentido de propor uma espécie de armistício entre a fé e a razão. Acerca disso,
Amherdt afirma:
No nível de sua inspiração (...), Ricoeur em nenhum caso contesta
a linguagem bíblica, constituindo-se seus símbolos, seus relatos e
suas figuras discursivas em uma das fontes mais importantes de
seu gosto pela filosofia, um dos pressupostos essenciais donde se
eleva seu empreendimento filosófico, uma das principais – mas
não a única – (...) fontes não filosóficas de sua filosofia (...). Ao
falar de fonte, Ricoeur designa algo que o precede e que ele não
domina. É o que remete tanto à antecedência do dizer poético
sobre a palavra pessoal, quanto ao primado da Palavra de Deus
sobre o ser do homem.383
383
Idem, p. 65.
384
Idem, p. 66.
154
filosofia e a teologia. Para o pensamento filosófico, esses problemas constituem,
ao mesmo tempo, uma fonte e um tema. Amherdt afirma: “Entre eles, há dois aos
quais [Ricoeur] deu uma atenção particular através de toda a sua obra: o desafio
do mal e a esperança.”385.
Conforme Amherdt, o oitavo componente da complexa relação dialética
entre a hermenêutica filosófica e a hermenêutica bíblica de Ricoeur é o seguinte:
As aproximações filosóficas de noções teológicas. Em outras palavras, a
compreensão de que a filosofia leva à fonte da teologia. Amherdt ressalta que a
reflexão sobre a esperança se torna o ponto de partida de Ricoeur para a
renovação do problema da relação entre filosofia e teologia (ou entre razão e fé).
Conseqüentemente, o que ele busca é o esquema racional inteligível da
esperança bíblica, o que chama de aproximação filosófica da virtude teologal da
esperança nos limites somente da razão.386
Amherdt deixa claro que, por esperança, Ricoeur entende o ponto de
funga e o horizonte de cumprimento tanto da filosofia quanto da teologia. Portanto,
a hermenêutica bíblica tem suas próprias fontes. Ela procede do querigma da fé e
tem como função desenvolver uma conceituação específica. Essa conceituação
precisa ser fiel à sua origem bíblica e apta a ligar a proclamação da Escritura
sobre a ressurreição de Jesus aos domínios da experiência humana. Sobre a
compreensão da pregação da esperança em Ricoeur, Amherdt diz:
A teologia concebe pois a pregação da esperança como
antecipação, na história, da ressurreição dos mortos. (...) Nesse
sentido, o querigma da esperança é ao mesmo tempo racional e
irracional. É irracional porque anuncia a irrupção inesperada de um
acontecimento que escapa à razão, sendo um desmentido à
realidade da morte, um jorrar inaudito de sentido, para além do
desespero. Rompe a ordem antiga, inaugura uma criação nova,
abre uma “carreira de existência e de história” (...) Mas, ao mesmo
tempo, essa novidade irracional dá a pensar à inteligência (...).
Desvela-se em signos que podem ser decifrados. Estabelece uma
lógica nova que faz sentido e história, a lógica da munificência
[liberalidade] e da generosidade superabundante, que se opõe a
todas as leis econômicas habituais (...).387
385
Idem, p. 67.
386
Cf. AMHERDT in RICOEUR, 2006, p. 68.
387
AMHERDT in RICOEUR, 2006, p. 68.
155
Amherdt dá continuidade à sua exposição afirmando que Ricoeur busca
um equivalente filosófico ao querigma da esperança e pensa encontrá-lo na
dialética não fechada de Kant. Isso porque, à luz do pensamento de Kant, a
esperança não se deixa englobar pela dialética do conhecimento absoluto. Diante
do mal radical que afeta a liberdade humana existe um chamado a postular sua
regeneração. Logo, a liberdade humana “real” só é efetiva como uma esperança
para além desse sacrifício especulativo (do saber) e prático (do poder).388
Amherdt descreve a relação que Ricoeur estabelece entre a teologia da
esperança e a dialética quebrada de Kant em termos de homologia e de
aproximação, essa última entendida como o esforço do pensamento para
aproximar-se cada vez mais do acontecimento escatológico que constitui o centro
de uma teologia da esperança. Assim, a via autônoma da abordagem filosófica
não é nem de abstração nem de capitulação frente à teologia bíblica.389
Para Amherdt, o nono e mais importante componente da complexa
relação dialética entre a hermenêutica filosófica (aqui, sinônima de hermenêutica
geral) e a hermenêutica bíblica de Ricoeur é o seguinte: Uma relação de inclusão
mútua. Essa inclusão mútua se dá no plano metodológico da interpretação dos
textos. Sobre isso, Amherdt diz:
De um lado, a hermenêutica bíblica subordina-se à hermenêutica
geral enquanto hermenêutica regional, porque a primeira incorpora
necessariamente conceitos, argumentos e métodos oriundos da
segunda. Vimos tudo o que a medição do estudo filosófico da
linguagem fornece para o uso da hermenêutica querigmática: a
reflexão sobre as categorias do texto e de sua interpretação, sobre
a dialética da explicação e da compreensão, sobre o papel do
leitor sobre a historicidade do sentido, (...) serve de organon à
hermenêutica bíblica (...). Mas, inversamente, a especificidade da
linguagem bíblica, i. é., a originalidade “absoluta” de seu referente
central (o nome de Deus e de Cristo) e seu mundo (o Reino)
subverte a relação e faz da hermenêutica bíblica um caso único da
hermenêutica geral. É seu objeto que dá à linguagem das
Sagradas Escrituras um lugar à parte no seio da linguagem
poética em geral. O próprio da Bíblia e da teologia é dar um nome
próprio a essa experiência (de ser percebida por uma palavra), o
nome de Deus, de Jesus Cristo, e de cristalizar essa experiência
em torno de um acontecimento fundador (...).390
388
Cf. AMHERDT in RICOEUR, 2006, p. 68.
389
Idem, p. 68-69.
390
Cf. AMHERDT in RICOEUR, 2006, p. 69.
156
Amherdt sintetiza a relação entre hermenêutica filosófica e
hermenêutica bíblica e expressa a especificidade da hermenêutica bíblica:
Então, a hermenêutica bíblica subordina-se a seu “organon”
filosófico e serve de invólucro à hermenêutica geral. Há relação de
mútua inclusão, porque cada um, por seu turno, engloba o outro
(...). A especificidade da hermenêutica bíblica confessante situa-
se, pois, para Ricoeur, no nível do círculo que se estabelece entre
a comunidade crente e as Escrituras que ela tem por inspiradas.
Confessar sua pertença à comunidade eclesial é reconhecer que
os textos sagrados canônicos nomeiam verdadeiramente a Deus,
é aceitar deixar-se interpretar por eles e tomar o risco de ver sua
existência completamente transtornada por esse ato de leitura.391
Kevin Vanhoozer
391
AMHERDT in RICOEUR, 2006, p. 70.
392
Cf. AMHERDT in RICOEUR, 2006, p. 71.
393
AMHERDT in RICOEUR, 2006, p. 71.
157
considera a teoria da interpretação de Ricoeur, enfatizando o texto como discurso
escrito e o texto como ação significativa.
De acordo com Vanhoozer, o primeiro aspecto da teoria da
interpretação de Ricoeur é o texto como discurso escrito. Vanhoozer pondera que
Ricoeur se recusa a reduzir a semântica à semiótica, uma vez que focalizar as
orações é focalizar a linguagem como discurso e discurso implica em alguma
coisa dita a alguém sobre alguma coisa. Assim sendo, o texto não é apenas um
fenômeno lingüístico, um objeto desprovido de mundo e de autor que pode ser
explicado simplesmente pelas suas relações estruturais. Tal compreensão é
reducionista e incompleta, pois oculta o discurso propriamente dito.394
Então, sobre a compreensão de texto no pensamento de Ricoeur,
Vanhoozer diz:
Quando a linguagem constitui seu próprio mundo, ela não mais
surge como mediação entre a mente e o mundo. Vale a pena notar
que Ricoeur define o texto como (...) qualquer discurso fixado pela
escrita (...). Os textos são capazes de comunicar à distância
porque a escrita preserva seu discurso. Em outras palavras, a
escrita não aliena os autores de seus leitores, mas torna possível
o significado partilhado. Na verdade, ela é o principal recurso da
humanidade para superar as distâncias espaciais, temporais e
culturais.395
394
Cf. VANHOOZER, 2005, p. 252-253.
395
VANHOOZER, 2005, p. 253.
158
sentido (alguma coisa dita), uma referência (sobre alguma coisa),
e um destino (para alguém). Para Derrida, um autor não é a causa
de um texto, mas seu efeito – um subproduto da escrita. Ricoeur,
por sua vez, confirma a ênfase da filosofia dos atos de fala: a
linguagem como prática social comunicativa. Por um lado, Ricoeur
separa o significado dos autores. O texto escrito é autônomo em
relação a seu autor; ele se lança em uma carreira própria. Por
outro lado, ele afirma o texto como discurso.396
396
Idem, p. 253.
397
Ibidem.
159
interessa mais do que o que o autor quis dizer ao escrevê-lo. (...)
O que é comunicado não é a experiência vivida do autor, mas seu
sentido. O discurso pode ser identificado repetidamente e ser
partilhado porque preserva uma identidade própria: o (...) dito
como tal (...).398
398
Idem, p. 254.
399
Ibidem.
160
texto ainda possui uma “intenção”: o mundo projetado que ele
propõe para a nossa consideração e realização. (...) A questão
que permanece é a de podermos ou não descobrir esse mundo
sem recorrer à noção do autor.400
400
Idem, p. 255.
401
Cf. VANHOOZER, 2005, p. 255.
402
VANHOOZER, 2005, p. 255.
161
De maneira intrigante, Ricoeur explora o aspecto de significado da
ação com distinções emprestadas da filosofia dos atos de fala. (1)
A ação possui a estrutura de um ato locucionário: possui um
conteúdo proposicional (...). (2) A ação também possui
características ilocucionárias (...). Então, assim como um ato de
fala, uma ação pode ser identificada segundo sua força
ilocucionária (...). Por fim, as ações, assim como as perlocuções
causam certos resultados (...). Os humanos fazem coisas que
deixam “traços”, que, juntos, constituem uma espécie de
“documento” da ação humana que pode ser “lido” e
403
reidentificado.
Grant R. Osborne
403
Idem, p. 256.
404
Ibidem.
162
Assim como Vanhoozer, Osborne diz que Ricoeur é uma figura central
para os empreendimentos pós-estruturais. Em seguida, Osborne expõe o
desenvolvimento do pensamento de Ricoeur da seguinte maneira:
(...) ele [Ricoeur] foi da eidética (Liberdade e natureza) para a
fenomenologia (Homem falível) para sua preocupação com a
hermenêutica (A simbólica do mal, Ensaios sobre Freud, O conflito
das interpretações) e semântica (A metáfora viva). Recentemente,
ele se moveu também em direção à crítica narrativa e a essa
tarefa aplicou todas essas áreas (...)405
163
torna-se uma barreira entre leitor e autor, mas no texto os mundos
ou horizontes se encontram. Portanto, a interpretação é centrada
no texto, não no autor. Mesmo que a relação falante-ouvinte esteja
ausente nas obras escritas, pode-se ainda compartilhar o mundo
do texto. Assim, embora a determinação objetiva da intenção do
autor permaneça sempre um constructo teórico, o mundo
referencial, criado pelo autor, prende o leitor (...).407
407
Idem, p. 631.
408
Ibidem.
409
Cf. OSBORNE, 2009, p. 631.
164
prioridade sobre o leitor. Esse último é atraído para dentro do seu mundo de
signos e, pela reflexão crítica, alcança o entendimento. Osborne completa:
Dessa forma, a interpretação é uma dialética entre dois níveis de
entendimento: um entendimento ingênuo e preliminar e uma
compreensão aprofundada. A decomposição dos segmentos do
texto (...) leva à observação de seu arranjo sinfônico. Isso leva ao
autoentendimento, quando um novo evento de crítica literária e
autocrítica se desenvolve e se funde (...). (...) ele sustenta que o
texto é um mundo autorreferencial que atrai o leitor para a sua
realidade literária e o guia na interpretação, gerando possibilidade
de entendimento. O texto é autônomo quanto ao autor [sic!] mas
ainda referencial em um sentido de segunda ordem por revelar sua
própria realidade e dar ao leitor uma nova forma de ver o
mundo.410
410
OSBORNE, 2009, p. 632.
165
CONCLUSÃO
166
hermenêutica de Ricoeur se constata uma dupla importância. Por um lado, a
importância da hermenêutica para a filosofia, pois o que interessa à hermenêutica
é o sentido da vida, razão pela qual ela se torna filosófica. Por outro lado, a
importância da filosofia para a hermenêutica, porque é mediante a filosofia que a
hermenêutica transcende aos limites impostos pela exegese.
O primeiro capítulo apresentou a hermenêutica filosófica de Ricoeur.
Para ele, a hermenêutica é a decifração da vida no espelho do texto. Como
Ricoeur mesmo afirma, três são os pressupostos característicos da sua tradição
filosófica. O primeiro é a filosofia reflexiva, entendida como o modo de
pensamento proveniente do Cogito cartesiano, através de Kant e da filosofia pós-
kantiana francesa da qual Jean Nabert foi o pensador mais marcante. O segundo
é a fenomenologia husserliana para a qual o mundo da vida nunca é dado, mas
sempre pressuposto. E o terceiro é a variante hermenêutica da fenomenologia ou
o enxerto hermenêutico sobre a fenomenologia. Aqui, a questão “a que condição
um sujeito cognoscente pode compreender um texto ou a história?” é substituída
pela questão: “o que é um ser cujo ser consiste em compreender?”. Ou seja, ao
invés de uma epistemologia da interpretação, se introduz uma ontologia da
compreensão.
Segundo Ricoeur, essa substituição implica que toda distanciação
pressupõe uma pertença participante. Tal pertença é o gesto filosófico primeiro, ao
passo que a distanciação é o gesto filosófico segundo. Conseqüentemente, toda
interpretação de si é mediada por signos, símbolos e, finalmente, textos. A
conseqüência mais importante da mediação pelos textos é o fim do ideal de
transparência do sujeito a si mesmo. Portanto, nem a subjetividade do autor nem a
do leitor é primeira no sentido de uma presença originária de si para si mesmo.
Libertada do primado da subjetividade, a primeira tarefa da hermenêutica é
procurar, no próprio texto, por um lado, a dinâmica interna que preside à
estruturação da obra, por outro lado, o poder da obra se projetar para fora de si
mesma e engendrar um mundo que seria, verdadeiramente, a “coisa do texto”.
Antes de aprofundar a tarefa da hermenêutica, Ricoeur faz uma
definição e uma apresentação. Primeiro, ele define filosofia hermenêutica como
167
uma filosofia que assume todas as exigências desse longo trajeto – que parte da
filosofia como reflexão, passa pela filosofia como fenomenologia e chega à
mediação pelos textos – e que renuncia ao sonho de uma mediação total, no
termo da qual a reflexão se igualaria novamente à intuição intelectual na
transparência para si de um sujeito absoluto. Depois ele apresenta o estado do
problema hermenêutico lançando mão de dois movimentos: o primeiro movimento
é de desregionalização, que consiste em ampliar, progressivamente, a visada da
hermenêutica, de tal maneira que todas as hermenêuticas regionais sejam
incluídas numa hermenêutica geral; o segundo movimento é de radicalização, pelo
qual a hermenêutica se torna, não somente geral, porém, fundamental.
De acordo com Ricoeur, o movimento de desregionalização começa
com o esforço de encontrar uma questão comum na interpretação dos textos
diferentes. O primeiro a empreender tal esforço é Schleiermacher. Seu programa
hermenêutico é portador de uma marca dupla: romântica e crítica. Romântica por
seu apelo a uma relação viva com o processo de criação e crítica por seu desejo
de elaborar regras universalmente válidas de compreensão.
O segundo a empreender esse esforço é Dilthey. Num primeiro
momento, é do lado da psicologia que ele procura o traço distintivo do
compreender. Logo, toda ciência do espírito pressupõe uma capacidade primordial
de se transpor na vida psíquica de outrem. Num segundo momento, acontece a
passagem da compreensão psicológica para a compreensão histórica. Assim,
conforme Dilthey, a hermenêutica é o acesso do indivíduo ao saber da história
universal, é a universalização do indivíduo. Ricoeur reconhece que Dilthey
percebe o âmago do problema, a saber, que a vida só apreende a vida pela
mediação das unidades de sentido que se elevam acima do fluxo histórico.
Todavia, Ricoeur considera ser preciso desvincular o destino da hermenêutica de
uma noção puramente psicológica e vinculá-lo ao desvendar de um sentido
imanente ao texto.
Para Ricoeur, o movimento de radicalização se inicia com o
questionamento do postulado básico decorrente do pensamento de Dilthey,
segundo o qual as ciências do espírito podem rivalizar com as ciências da
168
natureza com as armas de uma metodologia própria. Esse postulado implica que a
hermenêutica seja uma modalidade de teoria do conhecimento e que o debate
entre explicar e compreender seja mantido nos limites do debate sobre os
métodos. Tal implicação é questionada tanto por Heidegger quanto por Gadamer.
Por um lado, em seu questionamento, Heidegger diz que, desde o início, a teoria
do conhecimento é transformada por uma interrogação que a precede e que versa
sobre o modo como um ser encontra o ser, antes mesmo de opô-lo como um
objeto a um sujeito. Além disso, ele afirma que os fundamentos do problema
ontológico devem ser procurados do lado da relação do ser com o mundo e não
da relação com outrem. Assim sendo, ao mundanizar o compreender Heidegger o
despsicologiza. De acordo com ele, é a partir da condição do sujeito como
habitante desse mundo que se expressa a tríade situação (necessidade anterior à
compreensão), compreensão (descoberta descrita em termos de possibilidade) e
interpretação (compreensão explicitada). Conforme Ricoeur, à medida que o
pensamento de Heidegger avança, ele abandona o Dasein e enfatiza o poder de
manifestação da linguagem. Contudo, a epistemologia se mantém subordinada à
ontologia.
Por outro lado, em seu questionamento, Gadamer propõe a
revitalização do debate das ciências do espírito. A experiência nuclear da sua obra
consiste no escândalo provocado pelo tipo de distanciamento alienante que
parece ser a pressuposição dessas ciências do espírito. Esse debate entre
distanciamento alienante e experiência de pertença é desenvolvido por Gadamer
nas três esferas entre as quais se reparte a experiência hermenêutica: primeira,
estética, onde a experiência de ser apreendido pelo objeto precede e torna
possível o exercício crítico do juízo; segunda, histórica, onde a consciência de ser
carregado por tradições precedentes é o que torna possível todo exercício de uma
metodologia histórica no nível das ciências humanas e sociais; e terceira, da
linguagem, onde a co-pertença às coisas ditas pelas grandes vozes dos criadores
de discurso, precede e torna possível todo tratamento científico da linguagem,
como um instrumento disponível, e toda pretensão de se dominar, por técnicas
objetivas, as estruturas do texto da própria cultura. Então, a filosofia de Gadamer
169
expressa uma síntese dos dois movimentos citados anteriormente. É a partir
dessas influências que ele elabora sua teoria da consciência histórica. Tal teoria
representa o ponto mais alto da sua reflexão sobre a fundação das ciências do
espírito e depende apenas da consciência de ser exposto à história e à sua ação.
Assim, não é possível objetivar essa ação histórica sobre si mesmo, pois a mesma
faz parte do próprio fenômeno histórico.
Ricoeur adota três sugestões da hermenêutica de Gadamer como ponto
de partida para sua própria hermenêutica. A primeira é que a consciência histórica
eficiente contém, em si mesma, um elemento de distância. A segunda é o conceito
de fusão dos horizontes. Isto é, a comunicação a distância entre duas
consciências diferentemente situadas faz-se em favor da fusão de horizontes. A
terceira é a filosofia da linguagem. Em outras palavras, o caráter universalmente
linguageiro da experiência humana significa que a pertença do homem a uma
tradição ou a tradições passa pela interpretação dos signos, das obras e dos
textos. Isso porque é neles que se inscrevem e se oferecem à decifração as
heranças culturais. Conseqüentemente, o que possibilita a comunicação à
distância é a “coisa do texto” ou o “Mundo do Texto”, que não pertence mais nem
ao seu autor nem ao seu leitor.
Ricoeur começa seu itinerário até o “Mundo do Texto” dizendo que,
diante da alternativa entre distanciamento e pertença, escolhe a problemática do
texto, pois esse último é o paradigma do distanciamento na comunicação.
Entretanto, antes de expor a sua noção de texto ele faz duas importantes
afirmações: primeira, que o “Mundo do Texto” é o centro gravitacional da questão
hermenêutica; segunda, que ele é sustentado pelo tripé: discurso-obra-escrita.
O primeiro critério de textualidade é a efetuação da linguagem como
discurso. Ele afirma que a lingüística da língua e a lingüística do discurso (ou fala)
se constroem sobre unidades diferentes. Se o “signo” (fonológico e léxico) é a
unidade de base da língua, a “frase” é a unidade de base do discurso (ou fala). É a
lingüística da frase que suporta a dialética do evento e da significação (ou
sentido), que caracteriza a efetuação da linguagem como discurso. O discurso, por
sua vez, se constitui em dois pólos: o do evento e o da significação. O pólo do
170
evento é subdividido em quatro outros: o primeiro indica que o discurso é realizado
temporalmente no presente; o segundo indica que o discurso é auto-referencial
(locutor); o terceiro indica que o discurso é a respeito de algo (Mundo); e o quarto
indica que o discurso é o fenômeno temporal da troca (diálogo, que pode travar-
se, prolongar-se ou interromper-se). O pólo da significação é a condição de
possibilidade da compreensão do evento. Portanto, se todo discurso é efetuado
como evento, todo discurso é compreendido como significação.
O segundo critério de textualidade é a efetuação do discurso como obra
estruturada. Ele diz que a noção de obra possui três traços distintos: primeiro,
composição ou totalidade finita e fechada; segundo, codificação ou gênero
literário; e terceiro, configuração única ou estilo. Logo, são esses três traços
caracterizam o discurso como obra. Ricoeur considera que a conseqüência mais
importante da introdução da noção de obra remete à idéia de composição. À luz
de tal idéia, a hermenêutica permanece sendo a arte de discernir o discurso na
obra.
O terceiro critério de textualidade é a relação da fala com a escrita no
discurso e nas obras de discurso. Ele diz ser essencial que uma obra literária
transcenda suas próprias condições psico-sociais de produção e se abra a uma
seqüência ilimitada de leituras, cada uma delas situada em um contexto sócio-
cultural diferente. Assim, o texto deve poder, tanto do ponto de vista psicológico
quanto do sociológico, descontextualizar-se de maneira a deixar-se
recontextualizar-se numa nova situação. E exatamente isso que faz o ato de ler.
O quarto critério de textualidade é a obra de discurso como projeção de
um mundo, o “Mundo do Texto”. Ele afirma que a tarefa hermenêutica fundamental
escapa tanto à alternativa da genialidade (relacionada ao romantismo) quanto à
alternativa da estrutura (relacionada ao estruturalismo). No entanto, Ricoeur
vincula essa tarefa hermenêutica fundamental à noção de “Mundo do Texto”.
Recorrendo à categoria heideggeriana de compreensão, Ricoeur diz que o “Mundo
do Texto” é um mundo proposto pelo texto, um mundo que o leitor pode habitar,
um mundo a partir do qual ele pode projetar os seus possíveis mais próprios.
171
O quinto e último critério de textualidade é o discurso e a obra de
discurso como mediação da compreensão de si. Ele afirma que o texto é a
mediação pela qual o leitor compreende a si mesmo. Essa compreensão equivale
ao que a hermenêutica tradicional é chama apropriação (ou aplicação). Mas, aqui
a apropriação (ou aplicação) é transformada. Tal transformação se deve a três
razões: primeira, porque a apropriação está dialeticamente ligada ao
distanciamento típico da escrita; segunda, porque a apropriação está
dialeticamente ligada à objetivação típica da obra; e terceira, porque a apropriação
possui por cara a cara o “Mundo do Texto”.
O segundo capítulo apresentou a hermenêutica bíblica de Ricoeur.
Analisando a nomeação de Deus nos textos, ele diz que há uma promoção do
discurso ao passar da fala para a escrita. Essa promoção é evidenciada por uma
tripla independência do texto: em relação ao autor (intenção), em relação ao
contexto (situação) e em relação ao destinatário primeiro (público). Assim sendo,
para Ricoeur, os textos estão abertos para incontáveis recontextualizações pela
leitura e pela escuta, em resposta à descontextualização contida potencialmente
no próprio ato de escrever ou, mais exatamente, de publicar. Ele afirma que o
discurso consiste em alguém dizer algo para alguém sobre algo. Segundo
Ricoeur, é nesse sobre algo que se encontra a função referencial do discurso.
Então, a escrita não a abole, porém, a transforma, porque somente a escrita pode
referir-se a um mundo que não está aí entre os interlocutores, a um mundo que é
“Mundo do Texto” e que, todavia, não está no texto.
Ricoeur assume a assimilação dos textos bíblicos a textos poéticos e da
Bíblia a um poema. Esses textos poéticos possuem uma função referencial de
segunda ordem. Tal função se aproxima da noção bíblica de Revelação. De
acordo com Ricoeur, a noção bíblica de Revelação designa um conceito de
verdade-manifestação, no sentido de deixar ser o que se mostra. O que se mostra
é cada vez a proposição de um mundo, de um mundo tal que eu possa projetar
nele os meus possíveis mais próximos.
Ricoeur propõe a tese de que é a nominação de Deus pelos textos
bíblicos que especifica o religioso no interior do poético. Isso implica que a própria
172
palavra “Deus” pertence, primeiramente, a um nível de discurso intitulado
originário e que a nominação de Deus nas expressões originárias da fé é múltipla,
não simples. Ricoeur considera que cada uma dessas formas de discurso envolve
um estilo particular de confissão de fé, no qual Deus é nomeado de maneira
original. Conseqüentemente, Deus é nomeado diversamente na narração que o
conta, na profecia que fala o seu nome, na prescrição que o designa como fonte
do imperativo, na sabedoria que o procura como sentido do sentido, no hino que o
invoca na segunda pessoa. Na profecia, a Revelação é a fala de um outro atrás da
fala do profeta. Na narração, a marca de Deus está na história antes de estar no
discurso. Na prescrição, o desígnio de Deus constitui a dimensão ética da
Revelação. Na sabedoria, o que é revelado é a possibilidade da esperança apesar
de. No hino, o louvor, as suplicas e as ações de graças do discurso tornam-se
invocações dirigidas a Deus.
Conforme Ricoeur, o referente “Deus” não é apenas o indicador do
pertencimento mútuo das formas originárias do discurso de fé, ele também é o seu
inacabamento. Aqui são introduzidas as expressões-limite. Trata-se de um indício,
de uma modificação que pode afetar todas as formas de discurso por uma espécie
de passagem para o limite. Essas expressões-limite são encontradas na parábola,
no provérbio e na proclamação escatológica, pelo uso da extravagância, da
hipérbole e do paradoxo.
Para Ricoeur, o funcionamento da linguagem religiosa como expressão-
limite conduz a uma característica correspondente da experiência humana,
denominada experiência-limite. Portanto, a força lógica das palavras de Jesus, por
exemplo, se encontra no servir-se de uma linguagem já constituída para levá-la a
seu limite, não no recomendar um tipo de conduta. Isso implica que a distinção
entre descrição e ação desaparece na presença de uma distinção mais importante
entre a experiência ordinária, considerada globalmente, e o discernimento operado
por essa linguagem no coração dessa experiência ordinária.
Segundo Ricoeur, três são as implicações da compreensão de
expressões-limite e de experiências-limite. Essas implicações se referem aos
conceitos-limite. A primeira é que a própria linguagem religiosa requer a
173
Transposição das imagens, ou antes, dos modos figurativos para os modos
conceituais de expressão. A segunda é que um segundo degrau intermediário
entre o discurso figurativo e o conceitual pode encontrar-se em uma série de
modos de discurso semi-conceituais típicos da literatura didática, apologética e
dogmática, donde surgiu a teologia, em conjunção com as filosofias gregas. A
terceira é que a terceira etapa de uma pesquisa sobre a relação entre o discurso
“figurativo” e o “conceitual” leva a discutir o papel dos conceitos-limite no quadro
conceitual. Logo, a tensão entre a reivindicação objetiva do saber e a
apresentação poética do Incondicionado é preservada na nova linguagem de
advento, restauração e resolução. Essa linguagem é, simultaneamente, a dos
conceitos-limite e das apresentações figurativas do Incondicionado. Assim, é a
tarefa da hermenêutica destacar do mundo dos textos seu projeto implícito de
existência, sua proposição indireta de novos modos de ser.
O terceiro capítulo apresentou as influências da hermenêutica filosófica
de Ricoeur sobre a sua hermenêutica bíblica. De acordo com ele, a hermenêutica
bíblica é uma das possíveis aplicações da hermenêutica filosófica a uma categoria
de textos. Todavia, a relação entre as duas hermenêuticas é mais complexa,
implicando uma mútua inclusão. Embora admita que o primeiro movimento de tal
inclusão seja do pólo filosófico ao pólo bíblico, Ricoeur ressalta que as mesmas
categorias de obra, de escrita, de mundo do texto, de distanciação e de
apropriação regulam ambas as interpretações. Assim sendo, a hermenêutica
bíblica é uma hermenêutica regional em relação à hermenêutica filosófica,
constituída em hermenêutica geral.
Conforme Ricoeur, a primeira aplicação da hermenêutica centrada no
texto aponta para as “formas” do discurso bíblico. Ou seja, a “confissão de fé” que
se exprime nos documentos bíblicos é inseparável das formas de discurso. A
segunda aplicação da hermenêutica centrada no texto aponta para a fala e para a
escrita. Isto é, a relação entre fala e escrita é constitutiva da proclamação,
Kerigma ou pregação cristã.
A terceira aplicação da hermenêutica centrada no texto aponta para o
ser novo e a coisa do texto. Aqui, Ricoeur destaca algo muito importante: a “coisa
174
do texto” ou o “Mundo do Texto” é a categoria central, tanto para a hermenêutica
filosófica como para a hermenêutica bíblica, pois todas as outras categorias se
articulam nela. Então, a primeira tarefa da hermenêutica é abrir ao leitor o mundo
de ser, que é a “coisa” do texto bíblico. Em linguagem bíblica, esse mudo de ser
recebe variados nomes como, por exemplo, mundo novo, nova aliança, reino de
Deus e novo nascimento. Nisso consiste a objetividade do ser novo projetado pelo
texto. Digno de nota é que, para Ricoeur, esse mundo é trazido mediante as
estruturas da obra. O mundo bíblico possui aspectos cósmicos, trata-se de uma
criação, aspectos comunitários, trata-se de um povo, aspectos histórico-culturais,
trata-se de Israel e do reino de Deus, e aspectos pessoais, trata-se da relação de
Deus com pessoas. Ricoeur ressalta também o lugar central que ocupa o
referente “Deus” é um dos traços que confere especificidade ao discurso bíblico.
Conseqüentemente, é possível ver em que sentido esta hermenêutica bíblica é, ao
mesmo tempo, um caso particular e um caso único da espécie de hermenêutica
geral. É um caso particular, porque o ser novo de que fala a Bíblia não se pode
procurar fora do mundo deste texto, que é um texto entre outros. É um caso único,
porque todos os discursos parciais são referidos a um Nome, que é o ponto de
intersecção e o indício de incompletude de todos os discursos sobre Deus e
porque este Nome se tornou solidário do acontecimento-sentido pregado como
ressurreição.
A quarta aplicação da hermenêutica centrada no texto aponta para a
constituição hermenêutica da fé bíblica ou apropriação. Segundo Ricoeur, a
apropriação é a categoria existencial por excelência. Portanto, ele sublinha três
conseqüências para a hermenêutica bíblica da relação estabelecida entre o
mundo da obra e a compreensão que o leitor tem de si mesmo diante do texto:
primeira: o que, na linguagem teológica, se chama fé é constituído pelo novo que
é a “coisa” do texto; segunda: uma vez que o sujeito se insere no texto e que a
“estrutura de compreensão” não pode ser eliminada, a crítica de si faz parte
integrante da compreensão de si diante do texto; e terceira: é na imaginação, não
na vontade, que, em primeiro lugar, o ser novo se forma no leitor.
175
De acordo com Amherdt, a relação entre hermenêutica filosófica e
hermenêutica bíblica constitui uma das inspirações centrais do pensamento de
Ricoeur. Sua hermenêutica filosófica articula-se em dois pólos, o do texto e o da
interpretação do texto. Por um lado, o trabalho efetivado no texto exige como
contraparte um trabalho de interpretação. Por outro lado, a dinâmica da
interpretação consiste em esclarecer e em acompanhar a dinâmica que já está
efetivada no texto. Logo, conforme Amherdt, é dessa forma que Ricoeur faz o
cruzamento entre o “mundo do texto” e o “mundo do leitor”, a tese central de sua
hermenêutica filosófica.
Paralelamente, para Amherdt, a hermenêutica bíblica de Ricoeur pode
ser organizada em torno das mesmas categorias filosóficas. Primeiro, para o pólo
do texto da Escritura. Esse pólo tem como referência as quatro categorias
textuais, a saber, a categoria de instância de discurso, a categoria de obra e de
gêneros literários, a categoria de escrita e a categoria de mundo do texto. Depois,
para o pólo da interpretação escriturística. Tal pólo tem como referência os três
segmentos do arco hermenêutico, sendo eles, a pré-compreensão, a dialética
entre explicação e compreensão, e o ato de leitura e apropriação.
Assim, no pensamento de Ricoeur, a hermenêutica filosófica e a
hermenêutica bíblica se relacionam de forma mutuamente inclusiva. De um lado, a
hermenêutica bíblica subordina-se à hermenêutica geral enquanto hermenêutica
regional, porque a primeira incorpora necessariamente conceitos, argumentos e
métodos oriundos da segunda. Contudo, inversamente, a especificidade da
linguagem bíblica, tendo Deus como seu referente central e o Reino como seu
mundo, subverte a relação e faz da hermenêutica bíblica um caso único da
hermenêutica geral.
Por fim, de maneira alguma essa pesquisa se propõe exaustiva. Ela
representa apenas uma lente pela qual é possível analisar a hermenêutica
filosófica e a hermenêutica bíblica de Ricoeur, bem como a relação entre ambas.
Sem dúvida existem outras lentes que também podem ser utilizadas e cujos
resultados podem ser de grande valia para a compreensão e desenvolvimento
desse assunto. Se pelo menos um pouco mais de luz foi lançada sobre o
176
entendimento da hermenêutica ricoeurinana, pode-se dizer que a pesquisa
cumpriu seu objetivo.
177
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Primária
Livros411
411
Nesse tópico, as referências bibliográficas se encontram listadas em ordem alfabética.
178
_. Les incidences theologiques des recherches actuelles concernant le
langage. [S.l.] : Institut d'Etudes Oecumeniques, [19--].
_. Les metamorphoses de la raison hermeneutique. Paris: Cerf, 1991.
_. Leituras 1 : em torno do político. São Paulo: Loyola, 1995.
_. Leituras 2: a região dos filósofos. São Paulo: Loyola, 1996.
_. Leituras 3: nas fronteiras da filosofia. São Paulo: Loyola, 1996.
_. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro:
Imago, 1978.
_. O mal: um desafio à filosofia e à teologia. Campinas: Papirus, 1988.
_. O si-mesmo como um outro. São Paulo: Papirus, 1991.
_. O único e o singular. São Paulo: Unesp, 2002.
_ ; LACOCQUE, André. Pensando biblicamente. Bauru: EDUSC, 2001.
_. Percurso do reconhecimento. São Paulo: Loyola, 2006.
_. Reflexion faite : autobiographie intellectuelle. Paris: Esprit, 1995.
_. Tempo e narrativa. Vol. 1. Campinas: Papirus, 1994.
_. Tempo e narrativa. Vol. 2. Campinas: Papirus, 1995.
_. Tempo e narrativa. Vol. 3. Campinas: Papirus, 1997.
_. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação. Lisboa:
Edições 70, 1987.
Artigos412
RICOEUR, Paul. La structure, le mot, l’événement. Paris: Revue Esprit, 1967. Vol.
5.
. Problèmes actuels de l’interprétation (d’aprés Paul Ricoeur). Paris: Centre
Protestant d’Études et de Documentation, 1970. N.º 148.
. Evénement et sens dans le discours. In M. Philibert (ed). Paul Ricoeur ou
la liberté selon l’espérance. Paris: Seghers, 1971.
. La métaphore et le problème central de l’herméneutique. Louvain: Revue
philosophique de Louvain, 1972. Vol. 5.
412
Nesse tópico, as referências bibliográficas se encontram listadas em ordem cronológica.
179
. Discours et communication. Montreal: Montmorency, 1973.
. Creativity in language. London: Philosophy Today 17, 1973.
. Conflicto: ¿signo de conttradiccion y de unidad? Selecciones de Teologia,
Barcelona, v. 13, n. 51, p. 243-252, jul./sep. 1974.
. Parole et symbole. Strasbourg: Revue des sciences religieuses, 1975.
Vols. 1–2.
. History and hermeneutics. New York: The journal of philosophy, 1976.
Vol. LXXIII, n.º 19, November 4.
. La semantique de l’action. Paris: Centre National de la Recherche
Scientifique, 1977.
. Expliquer et comprendre – sur quelques connexions remarquables entre
la théorie du texte, la théorie de l’action et la théorie de l’histoire. Louvain: Revue
Philosophique de Louvain. Tome 75, 1977.
. La structure symbolique de l’action. Lille: Secrétariat C.I.S.R., 1977.
. Writing as a Problem for Literary Criticism and Philosophy Hermeneutics.
Philosophic Exchange 2, 1977. N.º 3.
. Philosophy of History and action. Dordrecht; Boston; London; Jerusalem;
Reidel, The Magnes Press, 1978.
. Philosophie et langage. Paris: Revue philosophique de la France, 1978.
Vol. 4.
. The Human Experience of Time and Narrativite. Research in
Phenomenology (papers presented at the international Colloquium on
Phenomenology and the Human Sciences at Duquesne University, 1978) 9 (1979).
. La fonction narrative. Montpellier: Études théologiques et religieuses,
1979. Vol. 2.
. La fonction narrative et l’experience humaine du temps. Pisa: Archivio di
Filosofia 80, 1980. N.º 1.
. La narrativité (Phénomenologie et herméneutique). Paris: Centre National
de Recherche Scientifique, 1980.
. Logica de Jesus. Romanos, 5. Selecciones de Teologia, Barcelona, v.
21, n. 82, p. 130-132, abr./jun. 1982.
180
. Mimésis et représentation. Strasbourg: Université des Sciences Humaines
de Strasburg – Faculté de Philosophie, 1982.
. La histoire commune des hommes: la question du sens de l’histoire.
Rennes: Cahiers du Centre Protetant de de l’Ouest, 1983.
. Le temps raconté. Paris: Revue de Metaphysique et de Morale, 1984. Vol.
4.
. Expliquer/comprendre (suivi d’une discussion). Paris: Groupe de
Sociologie de l”Étique – Centre d”Études des Mouvements Sociaux, 1986.
. L’identité narrative. Paris: Revue Esprit, 1988.
. O discurso da acção. Portugal: Edições 70, 1988.
. La naissance du texte. Texts reunis para L. Hay. Paris: José Corti, 1989.
. Éloge de la lecture et de l’écriture. Montpellier: Études théologiques et
religieuses, 1989. Vol. 3.
. Mimèsis, référence et refiguration dans Temps et Récit. Louvain: Études
Phénomènologiques 6, 1990. N.º 11.
. Entre mémoire et histoire. Paris: Projet, 1997. Vol. 248.
_ ; AREVALO, Eduardo Silva. Escritos 1 : Poética de Ricoeur I E1 (01-261).
[S.l.]: [s.n.], [19--]. 12v.
_ ; AREVALO, Eduardo Silva. Escritos 2 : Poetica del relato I E2 (01-53).
[S.l.]: [s.n.], [19--]. 3v.
_ ; AREVALO, Eduardo Silva. Escritos 3 : Poética teológica I E3 (01-100).
[S.l.]: [s.n.], [19--]. 6v.
Secundária
181
CHAPELLE, Albert. Paul Ricoeur une poetique de la morale : aux fondaments
d'une ethique hermeneutique et narrative dans une perspective chretienne.
Nouvelle Revue Theologique, Paris, n. 2, 120, p. 329-331, avr.-juin 1998.
COSTA, Miguel Dias. Logica do sentido na filosofia hermeneutica de Paul Ricoeur.
Revista Portuguesa de Filosofia, Braga, v. 46, n. 1, p. 143-168, jan.-mar. 1990.
D’AGOSTINO, Francesco. Conflito delle interpretazioni. Rivista di Teologia Morale,
Bolonha, v. 11, n. 44, p. 623-624, ott.-dic. 1979.
FINK, Peter E.. Paul Ricoeur: his life and work. Theological Studies,
Washington, v. 58, n. 3, p. 581, sep. 1997.
GAMA, Jose. Hermeneutica da cultura e ontologia em Paul Ricoeur. Revista
Portuguesa de Filosofia, Braga, v. 52, n. 1-4, p. 381-392, jan.-dez. 1996.
GILBERT, Paul. Cammino della liberta: fenomenologia, ermeneutica, ontologia
della lbierta nella ricerca filosofica di Paul Ricouer. Nouvelle Revue Theologique,
Paris, n. 3, 117, p. 461-462, mai-juin 1995.
. Paul Ricoeur, les metamorphoses de la raison hermeneutique. Nouvelle
Revue Theologique, Paris, n. 3, 117, p. 463-464, mai-juin 1995.
GROSS, Eduardo. Hermenêutica e religião a partir de Paul Ricoeur. Numen:
Revista de Estudos e Pesquisa da Religiao, Juiz de Fora, v. 2, n. 1, p. 33-
49, jan./jun. 1999.
HAKER, Hille. Narrativa e identidade moral na obra de Paul Ricoeur. Concilium,
Petrópolis, n. 2, 285, p. 67-78, 2000.
HARRINGTON, Daniel J. Constitucion hermeneutica de la fe y la revelacion
biblicas segun Paul Ricoeur. New Testament Abstracts, Cambridge, v. 43, n. 1, p.
4, 1999.
. Paul Ricoeur, lecteur de la Bible. New Testament Abstracts,
Cambridge, v. 43, n. 2, p. 220, 1999.
JOHNSTONE, Brian V. Paul Ricoeur, une poetique de la morale : aux fondaments
d'une ethique hermeneutique et narrative dans une perspective chretienne. Studia
Moralia, Roma, v. 35, n. 2, p. 552-555, 1997.
182
KERBS, Raul. Parabolas biblicas en la hermeneutica filosofica de Paul Ricouer.
Ydeas y Valores: Revista Colombiana de Filosofia, Bogota, n. 113, p. 3-
27, ago. 2000.
KOPFENSTEINER, Thomas R. Paul Ricoeur : une poetique de la morale. Aux
fondements d'une ethique hermeneutique et narrative dans une perspective
chretienne. Theological Studies, Washington, v. 58, n. 4, p. 767-768, dec. 1997.
LORENZON, Alino. Segesse pratique: autour de l'oeuvre de Paul Ricoeur. Ethica
Cadernos Acadêmicos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 200-210, 2000.
MAGALHAES, Theresa Calvet. De. Tempo e narração: a proposta de uma poética
da narração em Ricoeur. Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 14, n. 39, p. 25-
36, jan.-abr. 1987.
MATTHEWS, Christopher R. Penser la Bible. New Testament Abstracts,
Cambridge, v. 44, n. 3, p. 446, 2000.
. "From phenomenology, to scripture?: Paul Ricoeur's hermeneutical
philosophy of religion". New Testament Abstracts, Cambridge, v. 45, n. 1, p. 12-
13, 2001.
MOURAO, A. Hermeneutics and the human sciences: essay on language, action
and interpretation. Revista Portuguesa de Filosofia, Braga, v. 39, n. 3, p. 342,
jul./set. 1983.
ROCHA, Acilio da Silva Estanqueiro. Hermeneutica e estruturalismo. Revista
Portuguesa de Filosofia, Braga, v. 46, n. 1, p. 87-124, jan./mar. 1990.
RENAUD, Michael. Fenomenologia e hermeneutica: o projecto filosofico de Paul
Ricoeur. Revista Portuguesa de Filosofia, Braga, v. 41, n. 4, p. 405-
442, out./dez. 1985.
. Discurso filosofico e a unidade da verdade nas primeiras obras de P.
Ricoeur. Revista Portuguesa de Filosofia, Braga, v. 46, n. 1, p. 19-
48, jan./mar. 1990.
SUMARES, Manuel. História e verdade. Revista Portuguesa de Filosofia, Braga, v.
35, n. 3, p. 334-335, jul./set. 1979.
183
SIEBENEICHLER, Flávio Beno. Existência humana a luz dos textos e dos
símbolos: a hermenêutica fenomenológica de Paul Ricoeur. Ethica: Cadernos
Acadêmicos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 120-139, 1998.
SILVA, Isidro Ribeiro da. Sens et existence: en hommage a Paul Ricoeur. Broteria,
Lisboa, v. 117, n. 1, p. 103, jul. 1983.
. Paul Ricoeur. Broteria, Lisboa, v. 122, n. 5-6, p. 579, maio-jun. 1986.
. Teoria da interpretação. Broteria, Lisboa, v. 129, n. 6, p. 583-
584, dez. 1989.
. Paul Ricoeur: les metamorphoses de la raison hermeneutique. Broteria,
Lisboa, v. 152, n. 5-6, p. 524-525, maio-jun. 2001.
THOMASSET, Alain. Paul Ricoeur une poetique de la morale : aux fondements
d'une ethique hermeneutique et narrative dans une perpective chretienne. Leuven:
University Press, 1996.
VANSINA. Paul Ricoeur bibliography 1935-2000. Louven: University Press, 2000.
VILA-CHA, João J. M.. Paul Ricoeur: bibiographie systematique de ses ecrits et
des publications consacres a sa pensee (1935-1984). Revista Portuguesa de
Filosofia, Braga, v. 41, n. 4, p. 509-510, out.-dez. 1985.
VILLELA-PETIT, Maria da Penha. Perspectiva ética e busca do sentido em Paul
Ricoeur. Síntese: Revista de Filosofia, Belo Horizonte, v. 34, n. 108, p. 5-22, jan.-
abr. 2007.
Complementar
184
FEE, Gordon D.; STUART, Douglas. Entendes o que lês? São Paulo: Vida Nova,
1998.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma
hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes, 2003.
HEGEL, George Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes,
1992.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 2003.
HUSSERL, Edmund. A idéia da fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 1986.
_. Meditações cartesianas: introdução à fenomenologia. São Paulo: Madras,
2001.
_. Investigações lógicas; Sexta investigação: elementos de uma elucidação
fenomenológica do conhecimento. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
KAISER JR, Walter C; SILVA, Moisés. Introdução à hermenêutica bíblica. São
Paulo: Cultura Cristã, 2002.
LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.
LEVINAS, Emmanuel. De Deus que vem a idéia. Petrópolis: Vozes, 2002.
LOPES, Augustus Nicodemus. A Bíblia e seus intérpretes. São Paulo: Cultura
Cristã, 2004.
OSBORNE, Grant R. A Espiral Hermenêutica: uma nova abordagem à
interpretação bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2009.
FERRATER MORA, Jose. Dicionário de filosofia. São Paulo: Loyola, 2000. 4v.
SAGRADA, Bíblia. Nova Versão Internacional.
VANHOOZER, Kevin. Há significado neste texto? Interpretação bíblica: os
enfoques contemporâneos. São Paulo: Editora Vida, 2005.
185
QUADRO
186