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Tese Doutorado - Antonio Leonan A. Ferreira - Versão Final
Tese Doutorado - Antonio Leonan A. Ferreira - Versão Final
Tese Doutorado - Antonio Leonan A. Ferreira - Versão Final
Salvador
2015
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Salvador
2015
SIBI/UFBA/Faculdade de Educao - Biblioteca Ansio Teixeira
Tese apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Doutor em Educao,
Faculdade de Educao, da Universidade Federal da Bahia.
Dedicatria
Agradecimentos
minha famlia, minha me, Belria, meu pai, Manoel, e minha irm Luznia pelo apoio
incondicional e compreenso nas ausncias. Aos meus primos Cesar e Binho pelos dilogos e
apoio. Aos meus tios Julio e Mara (Dinha) pelos ensinamentos, aos carinhos desde pequenino.
Silvana pelo apoio, dilogos e companheirismo.
Aos amigos Junior e Cesar pelo dilogo sempre respeitoso, aberto, franco e profcuo.
Aos docentes do curso de Educao Fsica da UESB por ter nos ensinado a questionar, a duvidar,
a pensar para alm do imediato, em especial ao professor Manoel Gomes, primeiro orientador na
iniciao cientfica, que, a seu modo, em condies determinadas, contribuiu direta e
intencionalmente para produzir em cada um de ns o sentido profundamente vital e altamente
dramtico da existncia humana atrelado nossa atividade profissional.
Aos professores Ftima Garcia e Lauro Xavier pela aproximao junto aos Movimentos de
Trabalhadores Rurais, possibilidade de ampliao da concepo de mundo.
Ao Mauro Castelo Branco pelas orientaes nas disciplinas Leituras sobre O Capital de Marx I e
II, no Programa de Ps-graduao em Filosofia da UFBA e pelos esclarecimentos em curso
ministrado na Universidade Federal de Uberlndia-MG.
profa. Elza Peixoto, uma grande intelectual marxista, pelo aceite em realizar o trabalho orientado,
pelas suas contribuies na disciplina Marxismo, teoria do conhecimento e educao no
PPGE/FACED/UFBA, pelas contribuies em minha banca de qualificao e pelo respeito
pessoa humana.
Carolina Pichetti pelos dilogos profcuos, pela colaborao com material bibliogrfico, desde
os idos de 2010. Carol, muito obrigado!
profa. Celi Taffarel por ter aceitado orientar o projeto de tese e por ter me oportunizado estudar
com duas das maiores referncias no Brasil no campo da Educao Escolar e da Psicologia da
Educao, Newton Duarte e Lgia Martins. Por isso serei infinitamente grato.
Ao Elson, Ivson, Cristina, David, Joseane, Wiliam, Linnesh, Clara, rika, Flvio e demais
membros do Lepel.
Profa Nair Casagrande, membro da banca de minha dissertao e tese, acompanhando o meu
processo de elaborao intelectual.
Profa Lygia Vigas pelo aceite em participar da banca de defesa de tese e pelos materiais
socializados.
Agradeo a Milca, ex-aluna de graduao do IF Baiano em Senhor do Bonfim, que em seu estgio
do Programa Cincias Sem Fronteiras em Roma, conseguiu entrar em contato com o editor da
Revista Lancillotto e Nausica: critica e storia dello sport, a fim de adquirir alguns textos clssicos
de M. A. Manacorda sobre o Esporte publicados e no disponveis online. Ao editor Paolo Ogliotti
muito obrigado.
Ao prof. Newton pelas aulas brilhantes na disciplina Teorias pedaggicas, trabalho educativo e
sociedade no Programa de Ps-graduao em Educao Escolar da UNESP, Campus Araraquara-
SP, possibilidade mais avanada de articulao da relao dialtica contedo-forma no ensino
luz da Pedagogia histrico-crtica que tive oportunidade de experienciar, bem como pelos dois
encontros de dilogo/orientaes sobre a tese que me possibilitaram apreender o sentido da
passagem clssica de Marx quando afirma que [...] No existe uma estrada real para a cincia
[...], e ainda pelos encontros no grupo de estudos marxistas em educao juntamente com seus
orientandos. Serei infinitamente grato.
profa. Lgia Martins por ter colaborado com o projeto desde o incio, quando no ano de 2010
ministrando curso aqui na Bahia a mesma colaborava com a superao de minhas necessidades,
lacunas, que foram levadas ao doutorado, bem como pelas contribuies no exame de qualificao
e pelas imprescindveis contribuies na defesa da tese. Agradeo tambm pelas aulas brilhantes
na disciplina O desenvolvimento integral dos indivduos e a educao escolar no Programa de
Ps-graduao em Educao Escolar da UNESP, Campus Araraquara-SP, quando estive sob sua
superviso no estgio doutoral sanduche nesta mesma Universidade, financiado pelo CNPq,
possibilidade mais avanada de apropriao dos fundamentos da Psicologia histrico-cultural, bem
como de apreender o rigor necessrio ao desenvolvimento do conhecimento cientfico. Agradeo
pela orientao precisa na definio do escopo da tese, que juntamente com as contribuies do
Newton foram essencial e fundamental. Serei infinitamente grato. Agradeo ainda pelas boas
vindas em Araraquara-SP, pela gentileza dos seus orientandos, que se tornaram amigos como Celha
(Celhinha) e Vanessa, pela recepo, companheirismo e dilogos tericos durante todo o perodo
em Araraquara, a Gisele (Gi) pelo carinho e dilogo sobre o projeto de pesquisa ps-aulas na
UNESP, ao Saulo pela sua capacidade de dilogo sempre muito respeitoso, uma grande fora
intelectual da classe, ao Marcelo pelas contribuies importantes no estgio final e pelo dilogo
8
amistoso, sempre respeitoso, ao Ricardo pelas contribuies com material bibliogrfico, ao Efrain
e Mariana pela ateno dispensada.
Agradeo ao Robson pelos dilogos respeitosos e profcuos, aos demais colegas do PPGE/UNESP
que tive oportunidade de conhecer.
Agradeo ao camarada Izac pelo companheirismo nas idas UNESP, pela orientao sobre
questes administrativas, pelos dilogos, pelos estudos que costumvamos chamar de maratona
Vygotski, pelas tradues de importantes fontes em Ingls. Ao Izac os meus mais sinceros
agradecimentos.
Agradeo a Angelina Pandita, que em seu estgio doutoral sanduche na Inglaterra, colaborou com
os companheiros de forma essencial com a disponibilizao de bibliografia especializada de
estudos no campo da psicologia histrico-cultural do Journal of Russian and East European
Psychology e da Voprosy psikhologii. Angelina meu especial agradecimento por se disponibilizar
a socializar o que a humanidade produziu de mais desenvolvido.
Agradeo ao prof. Roberto Zaidan pelas tradues do Italiano dos textos de Manacorda.
Agradeo aos novos companheiros Afonso e Mel pela recepo e abertura ao dilogo.
No existe uma estrada real para a cincia, e somente aqueles que no temem a fadiga de
galgar suas trilhas escarpadas tm chance de atingir seus cumes luminosos (MARX, 2013, p. 93,
prefcio da edio francesa (1872) do volume um de O capital).
10
Resumo:
Esta pesquisa tem como objeto de estudo a prtica de ensino na educao fsica. A preponderncia
da lgica das formas em detrimento lgica dos contedos na prtica de ensino na educao fsica
tem comprometido o desenvolvimento do pensamento conceitual dos alunos, pois a abordagem dos
contedos fica no limite do pensamento subjugado captao sensorial. Para a anlise do problema,
definimos dois objetivos: primeiro, destacar o papel dos contedos de ensino da educao fsica no
desenvolvimento do pensamento conceitual nos alunos; segundo, elucidar a relao dialtica entre
forma e contedo no ensino da educao fsica. O mtodo de investigao constitui-se na
caracterizao geral da estrutura da atividade engendrada por condies histricas concretas, para
depois, a partir desta estrutura, pr em evidncia as particularidades psicolgicas do processo de
interiorizao da estrutura na conscincia dos homens. Na atividade de ensino na educao fsica,
a apropriao pelos indivduos do contedo das formas mais complexas do desenvolvimento
histrico-social da corporalidade, a atividade esportiva, determinada pelas leis da natureza e da
sociedade, objetivada no autodomnio da corporalidade; o procedimento de formao de hbitos
motores pela via da adaptao s condies existentes durante a realizao da ao substitudo
pela formao de habilidades motoras desde as formas mais desenvolvidas do contedo da
atividade, pela via da transformao de aes conscientes autnomas em operaes motoras
auxiliares, o que s poder se realizar pela formao e realizao do movimento voluntrio nos
alunos nas aulas de educao fsica. A forma mais desenvolvida da experincia scio-histrica e
ontogentica da corporalidade humana acumulada em objetos sociais a atividade esportiva
complexa culturalmente formada. A sua estrutura condensa atividade humano-genrica com graus
elevados de complexidade. Sua gnese a atividade produtiva e o jogo, a sua forma embrionria
quando os fins das aes passaram a motivo da atividade, dando origem a novas necessidades.
Assim, a atividade esportiva uma expresso universal do desenvolvimento da corporalidade
humana, uma relao ativa, consciente e intencional, porm indireta, entre o indivduo e seu corpo,
do indivduo consigo mesmo e com os outros homens, produzida na histria do gnero humano,
portanto, a expresso mais geral deste tipo particular de atividade. A transformao de aes
conscientes autnomas, que tem por base o contedo acumulado na atividade, em operaes
motoras auxiliares, possibilitar aos alunos a superao do pensamento subjugado captao
sensorial em direo ao pensamento conceitual, pelo desenvolvimento da percepo, ateno,
memria, linguagem e pensamento na esteira deste tipo particular de atividade complexa, requisito
ao autodomnio da corporalidade, quando a imagem, que subjetivao do objetivado
historicamente, realiza-se, necessariamente, na corporalidade dos indivduos.
Abstract:
This research has teaching practice in physical education as object of study. The superiority of the
formal logic over dialectical logic in teaching practice of physical education has compromised the
development of the conceptual thought of pupils, because contents within this approach is limited
to sensory assimilation. To examine this problem more closely we have defined two objectives:
first, stressing the role of physical educations teaching contents in the development of the
conceptual thought of pupils; second, elucidating the dialectical dynamic between form and content
in physical educational teaching. The research method consists of characterizing activitys structure
produced by concrete historical conditions, then after this analysis, evidencing the psychological
particularities processes of internalization such structure in human consciousness. On teaching
activity in physical education, the persons appropriation of the most complex forms of corporal
development social-historical, that is, the sport activity, determined by natural and social laws, is
objectified in the corporal self-control; the formation of motor habits through adaptation to existing
conditions during an action performance must be replaced by the formation of motor abilities based
on the most complex forms of activity, trailing the path of transforming independent actions into
auxiliary motor skills. Such fact will only become possible upon the formation and performance of
voluntary movements in the physical education classes. The most developed form of historical-
social and ontogeny human corporal experience accumulated in social objects is complex sport
activity culturally formed. Its structure condenses high levels of complex generical-activity. Its
genesis is productive activity, and game its embrionary form - when action purpose has turned into
the reason of the activity, giving origin to new necessities. Thus, the sport activity is a universal
expression of corporal development, an active and intentional, however indirect relation between
a person and his body, the person himself and with other human beings, that took place in
mankinds history, therefore, it is the most extended expression of this specific type of activity. By
making conscious actions, which basis stand over the content accumulated in activity, into auxiliary
motor skills the transition between sensory to conceptual thought becomes real. In such course,
perception, attention, memory, language and thought are required for the corporal self-control,
considering that the ideal image, as reality incorporated to human subjectivity, manifest itself in
mans corporal actions.
SUMRIO
INTRODUO................................................................................................................................13
1. A PRTICA DE ENSINO NA EDUCAO FSICA ESCOLAR: contribuies e avanos
necessrios a partir da obra Coletivo de Autores.........................................................................30
2. ATIVIDADE E DESENVOLVIMENTO HUMANO..............................................................72
2.1 Sobre a concepo de riqueza humana universal.........................................................................72
2.2 Sobre o conceito de necessidade humana....................................................................................77
2.3 Sobre o conceito de atividade mediadora....................................................................................87
3. O DESENVOLVIMENTO HISTRICO-SOCIAL DA CORPORALIDADE HUMANA.96
3.1 O desenvolvimento da corporalidade humana..........................................................................102
3.1.1 O trabalho e a produo de instrumentos: o aparecimento da conscincia............................112
3.1.2 Linguagem, pensamento e desenvolvimento humano............................................................117
3.1.3 A diviso social do trabalho e a conscincia na sociedade de classes....................................120
3.2 Breve nota sobre a gnese histrico-social da atividade esportiva............................................124
3.3Formas de manifestao da atividade esportiva e motivos atribudos na Roma Imperial.............126
4. O DESENVOLVIMENTO DO AUTODOMNIO DA CORPORALIDADE NA
ONTOGNESE HUMANA..........................................................................................................135
4.1 Forma geral do desenvolvimento da corporalidade humana.....................................................135
4.2 Relaes entre sensao, percepo e a corporalidade..............................................................138
4.3 O desenvolvimento da ateno e a estrutura da atividade.........................................................148
4.4 Registro, conservao e reproduo dos vestgios da experincia anterior..............................156
4.5 O desenvolvimento do comportamento intelectual..................................................................171
4.5.1 Palavra, conceito e a formao das aes intelectuais...........................................................176
4.5.2 O papel dos conceitos cientficos no desenvolvimento do pensamento conceitual dos
indivduos........................................................................................................................................187
5. A ATIVIDADE DE ENSINO NA EDUCAO FSICA: A IMAGEM, SUBJETIVAO
DO OBJETIVADO HISTORICAMENTE, REALIZA-SE NA CORPORALIDADE...............195
5.1 Sobre o conceito de atividade dominante do desenvolvimento humano...................................196
5.2 Origem e desenvolvimento do controle consciente dos movimentos no homem......................207
5.3 Estrutura e funo social da atividade esportiva e o processo de apropriao da cultura.........223
5.4 A atividade de ensino na educao fsica com fundamento na pedagogia histrico-crtica......228
5.5 Riqueza humana universal, misria material e, humana da atividade esportiva na sociedade
capitalista, educao escolar e luta de classes.................................................................................240
6. CONSIDERAES FINAIS....................................................................................................245
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.........................................................................................251
13
INTRODUO
Esta pesquisa tem como objeto de estudo a prtica de ensino na educao fsica escolar.
A preponderncia da lgica das formas em detrimento lgica dos contedos na prtica de
ensino na educao fsica tem comprometido o desenvolvimento do pensamento conceitual dos
alunos, pois a abordagem dos contedos fica no limite do pensamento subjugado captao
sensorial.
Para o exame do problema, partimos da anlise histrico-crtica1 da prtica de ensino na
educao fsica a partir da obra Coletivo de Autores (1992) com destaque para trs aspectos
intimamente articulados: 1) a concepo de realidade: a no radicalizao da categoria trabalho
como atividade humana; 2) a formalizao do papel do conhecimento na formao dos indivduos;
3) a formalizao das concepes da relao aprendizagem-desenvolvimento e ensino-
aprendizagem.
Dois objetivos orientam a pesquisa: primeiro, destacar o papel dos contedos de ensino da
educao fsica no desenvolvimento do pensamento conceitual nos alunos; segundo, elucidar a
relao dialtica entre forma e contedo no ensino na educao fsica.
A elaborao da hiptese desta pesquisa seguiu dois movimentos dialeticamente
articulados: no primeiro, buscamos em duas teses sistematizadas por Martins (2013) sobre as
relaes entre atividade e desenvolvimento humano luz da psicologia histrico-cultural
(VIGOTSKI, 2004; LURIA, 1979; SECHENOV apud LEONTIEV, 2004; LEONTIEV, 2004) e da
pedagogia histrico-crtica (SAVIANI, 2008, 2012a; DUARTE, 2013; MARTINS, 2013),
interiormente articuladas, a referncia necessria para trabalhar a nossa hiptese; o segundo
movimento, estando de posse deste instrumental, e com base nos achados da pesquisa,
sistematizamos quatro supostos2 a fim de organizar formalmente a exposio da resposta cientfica,
a nova tese.
1 Segundo Saviani (2004, apud Taffarel, 2011), a reflexo rigorosa do homem sobre os problemas da realidade deve
atender principalmente a trs requisitos: i) ser radical, o que significa dizer que a reflexo deva ir at as razes da
questo, at seus fundamentos; ii) ser rigorosa, sobretudo para garantir a primeira exigncia, logo, deve-se proceder
com rigor, ou seja, sistematicamente, segundo mtodos determinados; e iii) ser de conjunto, logo, a reflexo deve
relacionar o aspecto em questo com os demais aspectos do contexto em que est inserido (SAVIANI, 2004, p. 17).
2 O sentido de suposto aqui se refere ao contedo subordinado tese ora exposta.
14
3 importante ressaltar que o conceito de motricidade utilizado por Vygotski tem como referncia a atividade prtica
em Marx. No decorrer do texto realizamos anlises que demarcam tais diferenciaes com relao ao seu uso no campo
da educao fsica no Brasil.
4 Diferenciao funcional.
15
Na mesma linha de raciocnio, Vigotski (2004, p. 109) afirma que [...] outras investigaes
evidenciaram com toda clareza que o desenvolvimento posterior da percepo consiste em
estabelecer uma complicada sntese com outras funes, concretamente com a linguagem; e
segundo Luria (1979 apud Martins, 2013), a fuso entre percepo, linguagem e pensamento leva
a primeira a um patamar qualitativamente superior do desenvolvimento humano se comparada com
as suas formas embrionrias.
Estas complexas relaes entre as funes, na esteira da atividade complexa, vai produzindo
nveis cada vez mais elevados de conscincia da realidade, tais como o autocontrole da conduta, a
personalidade e a concepo de mundo dos indivduos.
Portanto, a condio para a superao do pensamento subjugado captao sensorial
(sensomotricidade) o desenvolvimento do autodomnio da conduta, que no pode ser institudo
sem a formao de funes psquicas superiores, pois estas vo promover um reflexo cada vez mais
consciente da realidade para respaldar a conduta cultural.
Por isso que a fuso entre percepo, linguagem e pensamento to importante para o
rompimento da relao absoluta entre sensorialidade e motricidade (adaptao), bem como para a
realizao de formas mais complexas culturalmente institudas do desenvolvimento da
corporalidade humana, entendida aqui como uma relao ativa, consciente, intencional e crtica,
porm indireta, entre o indivduo e seu corpo, do indivduo consigo mesmo e com os outros
homens, engendrada por condies histricas determinadas, em direo ao autodomnio da
corporalidade, forma superior de conduta produzida na esteira da atividade complexa.
Aqui cabe uma pequena pausa para esclarecimento: o conceito de motricidade utilizado
neste trabalho tem como fundamento a concepo do desenvolvimento histrico-social e
ontogentico da corporalidade humana, produto da complexificao da atividade prtica. Assim,
se diferencia do conceito veiculado no campo da educao fsica no Brasil na chamada cincia da
motricidade ou motricidade humana. A diferena se d na concepo de homem, sociedade,
conhecimento e desenvolvimento, portanto, na concepo de realidade assumida por esta
proposio. A concepo de realidade assumida nesta tese tem sua expresso no campo
epistemolgico do materialismo histrico-dialtico. O conceito de desenvolvimento da
corporalidade humana foi elaborado com fundamento na atividade prtico-histrica que constitui
o processo de sua produo na realidade, luz do pensamento de Marx (2007, 2010, 2013),
16
Vygotski (1996, 2000), Luria (1979a, 1979b, 1979c, 1979d), Leontiev (1978, 2004), Zaporozhets
(1957, 1967, 1997, 1987, 2009a, 2009b), Duarte (2013), Martins (2007, 2013).
Realizado o esclarecimento, a nossa hiptese ficou assim organizada: se para a psicologia
histrico-cultural e para a pedagogia histrico-crtica a natureza dos contedos e das atividades
escolares varivel interveniente na qualidade do desenvolvimento psquico dos indivduos, o que
radica a afirmao do ensino sistematicamente orientado transmisso dos conceitos cientficos,
na prtica de ensino na educao fsica numa concepo histrico-crtica a relao dialtica entre
forma e contedo varivel interveniente na qualidade do desenvolvimento do pensamento
conceitual dos alunos para alm do pensamento subjugado a captao sensorial (sensomotricidade),
na medida em que a interiorizao da lgica da ao/operao que constitui o contedo das formas
de objetivao do desenvolvimento histrico-social da corporalidade humana, em seus fins
especficos, tendo em vista o atendimento aos motivos da atividade, compe o requisito ao
desenvolvimento do autodomnio da corporalidade, quando a imagem, que subjetivao do
objetivado historicamente, realiza-se5, necessariamente, na corporalidade dos indivduos.
Assim, com base nas teses gerais sistematizadas pelos autores, a exposio do contedo
interno de nossa hiptese trabalha com quatro supostos:
O primeiro suposto: a relao dialtica entre contedo e forma na atividade de ensino na
educao fsica implica a relao sujeito-objeto; o objeto constitui-se da estrutura, gnese e formas
do desenvolvimento histrico-social da corporalidade humana, que tem na atividade esportiva a
sua forma de ser mais complexa, e o sujeito refere-se estrutura, gnese e formas de
desenvolvimento do autodomnio da corporalidade.
A palavra corporalidade vem do latim corpo-ralitas, atis, que significa natureza material,
materialidade (HOUAISS, 2008, p. 844). O mesmo que corporeidade, que significa qualidade,
propriedade, atributo do que corporal, portanto, qualidade do que material, uma forma de
desenvolvimento da matria. Da dizer que o corpo do homem tem sua gnese no desenvolvimento
da atividade prtica (MARX, 2007, 2010, 2013), uma condio e resultado da experincia
especfica, da experincia scio-histrica e ontogentica humana (VYGOTSKI, 2000;
LEONTIEV, 2004; LURIA, 1979a). Quando falamos que o homem desenvolve movimentos
voluntrios estamos afirmando uma qualidade da atividade humana, produto da atividade prtico-
5 Aqui tomo a referncia da concepo de trabalho em Marx (2013), o trabalho til que produzido e realizado ao
alcanar a sua finalidade. Tambm tomo a referncia do Saviani (2012a) sobre a realizao em cada indivduo singular
do que o gnero produziu histrica e coletivamente.
17
6 A terminologia automatizao usada no mesmo sentido que Saviani a aborda na obra Pedagogia histrico-crtica:
primeiras aproximaes, que na psicologia histrico-cultural definida como operaes conscientes, no se tratando,
portanto, de um ato mecnico, mas resultado de aprendizagem ativa, consciente e intencional.
18
7 Esta a terminologia no original em russo usada por Zaporozhets para designar os movimentos voluntrios, que
pressupem atividade intencional. O autor tambm usa para referir-se a
desenvolvimento dos movimentos voluntrios. No captulo 05 abordaremos a origem e desenvolvimento dos
movimentos voluntrios segundo o autor russo. Alexander Vladimirovich Zaporozhets, ou, como escrito em russo,
, nasceu em 30.08.1905, corresponde a 12 de setembro pelo calendrio antigo,
e faleceu em 07.10.1981, mas a sua produo intelectual continua viva. Era psiclogo sovitico do desenvolvimento,
um estudante de Lev S. Vigotski e Alexei Nikolaevich Leontiev. Zaporozhets estudou os mecanismos psicolgicos de
movimentos voluntrios, percepo e ao, assim como o desenvolvimento do pensamento em crianas. Um dos
principais representantes da escola de Kharkov de Psicologia.
8 Ver MELLO, Suely Amaral. Prefcio. IN: ROJAS, Luis Quintanar; SOLOVIEVA, Yulia. Avaliao das
neoformaes psicolgicas. Traduo de Caio Morais E Jamile Chastinet. Uberlndia: EDUFU, 2013.
19
uma relao entre a atividade esportiva (atividade humana universal) e as suas formas de ser
singulares (jogo, luta, dana, ginstica etc.).
Como terceiro suposto, inferimos que no desenvolvimento histrico-social da corporalidade
humana na relao ativa e indireta entre o indivduo e seu corpo se interpem as atividades
dominantes no desenvolvimento da corporalidade na ontognese humana que, segundo Leontiev
(2004), so aquelas atividades cujo desenvolvimento condiciona as principais mudanas nos
processos psquicos da criana e as particularidades psicolgicas da sua personalidade num dado
estgio do seu desenvolvimento e que, portanto, possibilitam aos indivduos a apropriao da
experincia scio-histrica acumulada nos objetos sociais (ZAPOROZHETS, 2009a; LISINA &
NEVEROVICH, 1974) em patamares qualitativos superiores.
Nesta anlise, destacamos duas atividades dominantes para a formao e realizao dos
movimentos voluntrios: a atividade orientadora, que envolve a comunicao emocional direta
adulto-beb, as aes com objetos, tendo nfase na imitao e na forma embrionria da palavra,
portanto exterior, e a atividade orientadora-investigativa (ZAPOROZHETS, 1967, 2009), que se
realiza no jogo, com nfase na imagem, palavra, linguagem, conceitos primitivos.
Na anlise sobre a origem e desenvolvimento do controle consciente dos movimentos no
homem, explicitamos como a imagem, que subjetivao do objetivado historicamente, realiza-
se, necessariamente, na corporalidade dos indivduos, e quais as vias para que este processo se
desenvolva.
Desse processo participam dois sistemas interfuncionais em unidade dialtica na atividade:
o primeiro refere-se ao desenvolvimento histrico-social da corporalidade as operaes motoras,
o hbito motor, a habilidade motora ou operaes conscientes, que contribuem para formar
capacidades gerais e especficas, tal como a capacidade corporal ou esportiva , e o segundo refere-
se ao desenvolvimento interfuncional do psiquismo sensao, percepo, ateno, memria,
linguagem, pensamento etc. Ambos se realizam na esteira da atividade prtica pela apropriao do
contedo acumulado nas formas de ser singulares da atividade esportiva jogo, ginstica, dana,
luta, etc.
A realizao dessas funes expressa graus de desenvolvimento dos movimentos
voluntrios, que, segundo Zaporozhets, na ontognese humana comeam a ser desenvolvidos nos
primeiros seis meses a partir de atos involuntrios, depois dos seis meses na forma de atos
voluntrios, que j so reaes condicionadas. Isto significa que, nesta idade, a criana j responde
21
que a atividade esportiva, forma objetivada da atividade prtico-histrica dos seres humanos,
tambm possui este atributo em seu processo de produo e realizao pelo conjunto dos homens.
A sua realizao no se d na forma intelectualizada, como uma objetivao interior,
subjetivao do objetivado historicamente, mas a imagem fundamental e essencial produzida nesse
processo realiza-se em sua forma fsica, ativa, consciente e intencional, porm indireta, na
corporalidade dos indivduos. Isto significa que, nesse plano, a generalizao (imagem) precisa
realizar-se na corporalidade dos indivduos como forma de objetivao particular.
No esteio do que defendeu Zaporozhets (1987, p. 73), entendemos que o procedimento de
formao de hbitos do mais simples ao mais complexo, pela via da adaptao s condies
existentes durante a realizao da ao, substitudo pela formao de habilidades motoras desde
a atividade mais desenvolvida, pela via da transformao das aes conscientes autnomas em
operaes motoras auxiliares, em direo ao desenvolvimento de capacidades gerais e especficas,
e assim contribuir com o desenvolvimento do pensamento conceitual nos alunos, para alm do
pensamento subjugado captao sensorial, requisito ao desenvolvimento do autodomnio da
corporalidade.
Para a realizao desta pesquisa, na esteira do que defende Leontiev (2004) e Vygotski11
(2000) com base em Marx, o mtodo de investigao constituiu-se na caracterizao geral da
estrutura da atividade engendrada por condies histricas concretas, para depois, a partir desta
estrutura, pr em evidncia as particularidades psicolgicas do processo de interiorizao da
estrutura na conscincia dos homens.
A anlise de objetos sociais no constitui tarefa fcil, pois so relaes sociais histricas,
portanto, determinadas pelas condies de produo da existncia dos homens no tempo. Como
afirmou Marx (2007, p. 32-33), Mesmo que o mundo sensvel [...] seja reduzido a um cajado, a
um mnimo, ele pressupe a atividade de produo desse cajado. Desse modo, A primeira coisa
a fazer em qualquer concepo histrica , portanto, observar esse fato fundamental em toda a sua
significao e em todo o seu alcance e a ele fazer justia (MARX, 2007, p. 32-33).
Lukcs (1966, p. 223), refletindo em sua Esttica sobre o mtodo para anlise de
objetivaes sociais arte, filosofia e cincia , realizou a seguinte explicao:
Para apreender o movimento essencial e fundamental dos objetos da realidade, Marx (2011)
sistematizou trs princpios lgicos, de difcil compreenso e operacionalizao, mas que
entendemos ser pertinentes para melhor expressar o movimento analtico da tese em exposio.
Antes, faamos uma ressalva: quando realizamos este tipo de exposio corremos o risco de cair
num esquematismo lgico-formal, que, em vez de colaborar, pode confundir, pois, segundo Vieira
Pinto (1985, p. 64), na perspectiva do formalismo lgico [...] torna-se possvel construir um
mundo de ideias harmoniosamente organizadas, relacionadas umas com as outras segundo
oposies e contradies ntidas, incomunicveis e inconciliveis (VIEIRA PINTO, 1985, p. 64).
Continuamos. Segundo Marx (2013, p. 90),
De modo semelhante, Marx escrevera a Kugelmann, em 1868: Ele [Dhring] sabe muito bem que meu mtodo de
desenvolvimento no o hegeliano, pois sou materialista, e Hegel, idealista. A dialtica de Hegel a forma
fundamental de toda dialtica, mas apenas depois de despida de sua forma mstica, e exatamente isso que distingue
o meu mtodo. (N. E. A. Mega) (MARX, 2013, p. 90). Mais frente observa Marx: Critiquei o lado mistificador da
dialtica hegeliana h quase trinta anos, quando ela ainda estava na moda. Mas quando eu elaborava o primeiro volume
de O capital, os enfadonhos, presunosos e medocres epgonos que hoje pontificam na Alemanha culta acharam-se
no direito de tratar Hegel como o bom Moses Mendelssohn tratava Espinosa na poca de Lessing: como um cachorro
morto. Por essa razo, declarei-me publicamente como discpulo daquele grande pensador e, no captulo sobre a teoria
do valor, cheguei at a coquetear aqui e ali com seus modos peculiares de expresso. A mistificao que a dialtica
sofre nas mos de Hegel no impede em absoluto que ele tenha sido o primeiro a expor, de modo amplo e consciente,
suas formas gerais de movimento. Nele, ela se encontra de cabea para baixo. preciso desvir-la, a fim de descobrir
o cerne racional dentro do invlucro mstico (MARX, 2013, p. 91).
24
Assim, importante ressaltar que esta estrutura lgica deixada por Marx, nas poucas linhas
de seus escritos sobre o mtodo, no sem razo, tem sido ponto de referncia para novos estudos;
afinal de contas foi Marx (2013, p. 93) quem afirmou no prefcio da edio francesa (1872) do
volume um de O capital que No existe uma estrada real para a cincia, e somente aqueles que
no temem a fadiga de galgar suas trilhas escarpadas tm chance de atingir seus cumes luminosos.
Estvamos tratando de mtodo num sentido mais stricto. Afirmvamos que Marx elaborou
trs princpios lgicos de difcil compreenso e operacionalizao que podem nos ajudar a
aprofundar a explicitao do mtodo geral da pesquisa. Porm, este esquema no representa o
ponto de partida de Marx, mas um novo ponto essencial e fundamental de chegada que o orientou
em suas anlises12. Assim, os trs princpios lgicos so:
Segundo Saviani (2012b, p. 130), [...] o que est em causa o entendimento do processo
de produo social como uma totalidade, cuja unidade se expressa nos momentos especficos de
12 Para provar esta afirmao basta acessar o texto dos Manuscritos de 1844 do autor alemo e comparar com o volume
01 de O Capital: crtica da economia poltica o processo de produo do capital. Apesar de ser uma obra de
maturidade do autor possvel identificar a unidade na concepo de realidade.
25
E mais: afirma Marx que a relao social entre produtor e consumidor, quando esta se
considera acabada, uma relao exterior, e o retorno do produto ao sujeito depende das relaes
destes com os outros indivduos. Com esta afirmao fica clara a ontologia e gnosiologia marxiana,
as quais tm na prtica seu critrio de verdade; bem como a contradio entre a produo da riqueza
humana universal e o acesso a esta riqueza como motor do movimento do real. Assim, segundo
Marx (2013, p. 91), a dialtica
Para Kosik (2011, p. 250), A dialtica trata da coisa em si. Mas a coisa em si no uma
coisa qualquer e, na verdade, no nem mesmo uma coisa: a coisa em si, de que trata a filosofia,
o homem e o seu lugar no universo [...], quer dizer, a totalidade do mundo revelada pelo homem
na histria e o homem que existe na totalidade do mundo (KOSIK, 2011, p. 250).
Analisando as relaes entre o homem e as coisas ou a natureza da economia, Kosik
(2011, p. 191) afirma que a economia [...] a totalidade do processo de produo e reproduo do
homem como ser humano-social. A economia no apenas a produo dos bens materiais, , ao
mesmo tempo, produo das relaes sociais dentro das quais esta produo se realiza, quer dizer,
A economia o mundo dos homens e dos seus produtos sociais, e no o mundo objetivado do
26
movimento social das coisas13 (grifos do autor). Aqui est a ruptura histrico-ontolgica e
gnosiolgica que fundamenta a lgica e a teoria do conhecimento elaborada por Marx & Engels e
que a distingue da concepo que apreende o real como se ele existisse como mundo objetivado
do movimento social das coisas, como se houvesse uma ruptura entre os homens e as coisas14; e
mais, como se as coisas no fossem a expresso material da existncia humana, objetivaes das
relaes entre os sujeitos e o que lhes aparece como a objetividade do mundo, para usar uma
expresso de Sader (2007).
De acordo com Kosik (2011, p. 192),
O movimento social das coisas, que mascara as relaes sociais dos homens e dos
seus produtos, uma determinada forma de economia, historicamente, transitria.
Enquanto existe tal forma histrica da economia, ou seja, enquanto a forma social
do trabalho cria o valor de troca, existe tambm a mistificao real, prosaica, pela
qual determinadas relaes nas quais entram os indivduos no curso do processo
produtivo da sua vida social se mostram sob um aspecto subvertido, como
qualidades sociais das coisas (KOSIK, 2011, p. 192).
As categorias econmicas, que num dos seus aspectos so a fixao das relaes
sociais das coisas, contm em si os homens como portadores das relaes
econmicas. A anlise das categorias econmicas uma crtica de duplo gnero:
em primeiro lugar demonstra a insuficincia das anlises feitas at ento pela
economia clssica: elimina as discordncias e os defeitos da economia clssica e
apresenta anlises mais profundas e universais. Em segundo lugar e sob este
aspecto o marxismo uma crtica da economia no sentido prprio do termo o
movimento real das categorias econmicas mostra-se como forma reificada do
movimento social dos homens. Em tal critica se descobre que as categorias do
movimento social das coisas so formas existenciais necessrias e
historicamente transitrias do movimento social dos homens. A economia
marxista surge, portanto, como uma dupla crtica das categorias econmicas, ou
melhor para lhe dar uma expresso positiva como anlise da dialtica histrica
dos homens e das coisas na produo, a qual concebida como produo
Diante disso, reafirmamos que a relao dialtica entre contedo e forma na prtica de
ensino na educao fsica implica uma relao fundamental entre ser e conscincia, que pode ser
assim explicitada:
imediatamente o outro, nem apenas intermedirio do outro: cada um, ao realizar-se, cria o
outro; cria-se sob a forma do outro.
nossa ateno plena neste trabalho, apenas fizemos indicaes como hipteses a serem
investigadas na continuidade dos estudos.
Com esta nova conceituao, a autora prope uma reelaborao do conceito de cultura
corporal com relao ao que foi elaborado pelo Coletivo publicado em 1992. Vimos que a autora
fez aqui um esforo terico, se utilizando dos princpios lgicos mais gerais do mtodo da
33
economia poltica (MARX, 2008) para superar o formalismo lgico e propor uma perspectiva
histrica ao novo conceito15.
No entanto, a categoria atividade humana ainda no est sendo totalmente radicalizada na
anlise do contedo da atividade, como j afirmamos na introduo deste trabalho com Marx (2007,
p. 32-33), quando observou que Mesmo que o mundo sensvel [...] seja reduzido a um cajado, a
um mnimo, ele pressupe a atividade de produo desse cajado. Deste modo, A primeira coisa
a fazer em qualquer concepo histrica , portanto, observar esse fato fundamental em toda a sua
significao e em todo o seu alcance e a ele fazer justia. [...].
Isto significa que ainda preciso ascender ao concreto na anlise deste tipo particular de
atividade, e tal movimento em busca do concreto s poder ser feito na medida em que nos
debruarmos na anlise da estrutura, gnese e formas de desenvolvimento da atividade condensada
nos contedos da educao fsica, em condies determinadas, pois so formas objetivadas de um
tipo particular de atividade, em especial a partir das relaes sociais fundamental e essencial que
constituem o contedo da atividade esportiva em geral.
Diante disso, assinalamos que o prprio conceito de cultura corporal no expressa a essncia
dos achados desta pesquisa numa concepo materialista e dialtica da histria, na medida em que
o mesmo no explica, na particularidade, como se constitui o singular-universal deste tipo de
atividade humana, quer dizer, quando Escobar afirma que o singular dessas atividades [...] que
o seu produto no material nem separvel do ato de sua produo, a autora identifica uma
qualidade de determinadas formas da prtica social em geral, mas no elucida as particularidades
desse contedo. E logo mais frente no mesmo excerto, observa:
Apesar de entendermos com Marx (2007, p. 86) que Ns s conhecemos uma cincia, a
cincia da histria [...], ao defender que o objetivo de estudar os contedos da cultura corporal
15 Usamos a expresso novo conceito porque entendemos que h diferenas em termos de pressupostos
fundamentais na ltima conceituao.
34
saber: o desenvolvimento da corporalidade humana. Esta tem sua forma mais complexa na
atividade esportiva, forma mais desenvolvida da relao entre o indivduo e seu corpo produzida
na histria do gnero humano. A complexificao dessa relao social foi a condio e resultado
para o processo de desenvolvimento das formas singulares da atividade esportiva jogo, luta, dana
etc.
Assim, na atividade de ensino na educao fsica, para que os estudantes se apropriem direta
e intencionalmente do que o gnero humano produziu histrica e coletivamente, devero estudar
as significaes objetivas que constituem este tipo particular de atividade, pois estas carregam todo
um complexo sistema de signos, essencial ao desenvolvimento do autodomnio da corporalidade.
Vou me ater mais a esta nova noo nos demais captulos da tese. No entanto, entendo a
necessidade de realizar algumas explicaes sobre o porqu da proposio de superao por
incorporao do conceito de cultura corporal em nossa tese. Para alm da questo da expresso
grfica, apesar de ser importante em termos formais, faremos uma observao breve sobre como
os autores explicam a cultura corporal. Para tanto, pedimos licena para trazer um conjunto de
citaes que elucida o que estamos afirmando. Para os autores,
Uma breve reflexo sobre este ltimo aspecto destacado. Atividade e movimento so
conceitos diferentes, porm, para que os seres humanos pudessem realizar a sua organizao
corporal foi necessrio o desenvolvimento de movimentos involuntrios, voluntrios (sensorial,
condicionados), at o estgio em que se rompe a conexo sensorialidade-motricidade, quando a
estrutura psquica primitiva se modifica na relao percepo-emoo-ao, tendo a linguagem um
papel essencial. A mudana na estrutura psquica altera a forma e contedo do desenvolvimento,
agora o desenvolvimento da corporalidade passa a ser resultado da atividade, e no mais
condicionante para que a atividade se realize. O movimento voluntrio, intencional, componente
da estrutura deste tipo particular de atividade complexa, a atividade esportiva, constitui-se como
um meio que carrega um conjunto de significados acumulados nas formas de objetivao que
precisam ser acessados pelos seres humanos para que eles se tornem cada vez mais humanos. Estou
afirmando que as formas de objetivao jogo, ginstica, dana, luta etc. contm atividade humana
condensada em estado latente, portanto, um complexo de aes/operaes que precisa ser
acessadas pelos estudantes nas aulas de educao fsica, e a via de acesso a estes contedos no
poder ser outra seno pela via da transformao de aes conscientes autnomas em operaes
motoras auxiliares, o que s poder se realizar pela formao e realizao do movimento voluntrio
nos alunos nas aulas de educao fsica, quando a imagem, subjetivao do objetivado
historicamente, realiza-se na corporalidade.
A base que tem orientado este exerccio vem da concepo de cultura em Marx. Porm,
fato que tais aspectos no esto claramente explicados na produo dos autores, entretanto,
identificamos esforos a fim de explicit-los. Entendemos que o limite explicativo do conceito
advm do deslocamento realizado na abordagem do problema, como foi sinalizado anteriormente:
o no aprofundamento analtico no contedo do particular, que a unidade do singular e do
universal. Isto limita a possibilidade de generalizaes.
As implicaes desse problema na materializao da ao pedaggica constituem limites
vitais para o desenvolvimento da prtica de ensino na educao fsica, pois os professores nas
escolas enfrentam dificuldades sobre o qu ensinar, por qu ensinar, para qu ensinar e como
ensinar na educao fsica escolar.
39
Na medida em que as autoras afirmam que para toda interpretao, deve prevalecer a
conceituao materialista histrico-dialtica de cultura, buscamos trilhar este caminho com rigor
no sentido de contribuir com o desenvolvimento da metodologia crtico-superadora.
Assim, com base no conceito de cultura em Marx, Lukacs, Vigotski, Leontiev, Luria etc.,
bem como orientados pelo que defendeu Saviani (2012a) como tarefas para a pedagogia histrico-
crtica na educao escolar, estamos deslocando a abordagem do problema, quer dizer, tomamos o
que entendemos ser a materialidade da corporalidade como uma qualidade tanto da vida animal
como da vida humana, que, ao se produzir, vai constituindo, na esteira de uma base material
concreta, e no abstrata, formas culturais complexas, produto da atividade humana em sua
dinmica de objetivao e apropriao.
Para corroborar esta perspectiva de anlise do problema, afirmamos com Duarte (2013) que
o gnero humano nunca teria se realizado sem o desenvolvimento da sua base biofsica, portanto,
de sua materialidade objetiva, e aqui est o fundamento ontolgico da filosofia da prxis. Isto
corrobora o que encontramos em Marx (2007, 2010), em Vigotski (1996), Luria (1979a, 1979b,
1979c, 1979d) e Leontiev (1984, 2004), em Martins (2013), Duarte (2013) e Saviani (2012a) sobre
a concepo de homem e desenvolvimento para filosofia marxista, para a psicologia histrico-
cultural e para a pedagogia histrico-crtica.
Portanto, no desenvolvimento da corporalidade humana, o processo de objetivao-
apropriao no se realizou isolado de sua base biofsica, mas como aes sustentadas por uma
base material que vai se requalificando como unidade entre a experincia especfica, scio-
histrica e ontogentica humana, fundada na materialidade do desenvolvimento da atividade
humano-genrica (LEONTIEV, 2004). O seu produto a forma humanizada da corporalidade
humana, que tem sua expresso mais complexa na atividade esportiva.
Estamos afirmando que falta ao conceito de cultura corporal a objetividade necessria
exigida pela ontologia e gnosiologia marxiana, ou seja, pela prpria realidade. E isto o que
estamos nos propondo a contribuir com a elaborao deste trabalho, que deve ser obra de um grande
coletivo com unidade metodolgica em torno da concepo materialista e dialtica da histria,
tendo em conta a natureza do problema posto.
40
16 O homem no se faz perguntas para as quais eles j no tenham a possibilidade de respond-las. importante
sinalizar a necessidade objetiva de avano da metodologia crtico-superadora diante das contradies que esto
postas na sociedade atual em geral e no campo da educao fsica, no cho da escola. A crtica radical, rigorosa e de
conjunto se faz necessria para o avano do campo numa perspectiva epistemolgica e pedagogica.
41
sociedade e homem-conhecimento. Peo licena para expor uma longa citao na qual podemos
verificar o problema destacado em nossa crtica. Com base nesta citao analisaremos tambm que
a vastido de motivos atrelados ao ensino na educao fsica compromete ainda mais a
universalidade e objetividade enunciada pelo Coletivo, o que o leva por vezes a destacar o acessrio
em detrimento do essencial, bem como limitando as suas possibilidades de interveno na escola
na perspectiva da formao do pensamento conceitual:
Nesse sentido, o conhecimento tratado de forma a ser retraado desde sua origem
ou gnese, a fim de possibilitar ao aluno a viso de historicidade, permitindo-lhe
compreender-se enquanto sujeito histrico, capaz de interferir nos rumos de sua
vida privada e da atividade social sistematizada. [...]. O contedo do ensino,
obviamente, configurado pelas atividades corporais institucionalizadas. No
entanto, essa viso de historicidade tem um objetivo: a compreenso de que a
produo humana histrica, inesgotvel e provisria. Essa compreenso deve
instigar o aluno a assumir a postura de produtor de outras atividades corporais
que, no decorrer da histria, podero ser institucionalizadas. [...]. O ensino da
educao fsica tem tambm um sentido ldico que busca instigar a criatividade
humana adoo de uma postura produtiva e criadora de cultura, tanto no mundo
do trabalho como no do lazer. [...]. O conhecimento tratado metodologicamente
de forma a favorecer a compreenso dos princpios da lgica dialtica materialista:
totalidade, movimento, mudana qualitativa e contradio. organizado de modo
a ser compreendido como provisrio, produzido historicamente e de forma
espiralada vai ampliando a referncia do pensamento do aluno atravs dos ciclos.
[...]. Esta forma de organizar o conhecimento no desconsidera a necessidade do
domnio dos elementos tcnicos e tticos, todavia no os coloca como exclusivos
e nicos contedos da aprendizagem. [...]. Pode-se explicar ao aluno que um jogo
de voleibol, por exemplo, s ocorre porque existe a contradio erro-acerto,
fazendo-o constatar o quanto seria montono e desprazeroso uma partida em que
a bola no casse. [...]. O erro, judicativamente, deixaria de fortalecer o sentimento
de fracasso para se tornar um ato educativo e o acerto no teria a sua conotao
exclusiva de vitria, disputa, dominao sobre o adversrio. O saque bem
colocado resulta de uma quantidade de exercitao em determinadas condies e
permite o aperfeioamento da tcnica que abre possibilidades para o "salto
qualitativo" de superao dos erros da execuo. (COLETIVO DE AUTORES,
2009, p. 39-40).
O homem se apropria da cultura corporal dispondo sua intencionalidade para o
ldico, o artstico, o agonstico, o esttico ou outros, que so representaes,
idias, conceitos produzidos pela conscincia social e que chamaremos de
"significaes objetivas". Em face delas, ele desenvolve um "sentido pessoal" que
exprime sua subjetividade e relaciona as significaes objetivas com a realidade
da sua prpria vida, do seu mundo e das suas motivaes (COLETIVO DE
AUTORES, 2009, p. 62).
Outro aspecto a ser destacado na obra Coletivo, ainda no excerto citado, e merecedor de
igual ateno, : 2) O saque bem colocado resulta de uma quantidade de exercitao em
determinadas condies e permite o aperfeioamento da tcnica que abre possibilidades para o
salto qualitativo de superao dos erros da execuo (COLETIVO, 1992). Apesar de a repetio
ser um componente para o desenvolvimento da tcnica bem apurada, sem o contedo interposto a
fim de orientar a realizao ativa, consciente e intencional do sujeito no saque (aes/operaes
acumuladas no contedo da atividade), este apenas repetiria o movimento (movimento imediato)
limitando o desenvolvimento do contedo apenas ao nvel da sensomotricidade, quer dizer, a ao
do professor no instrumentalizaria a elaborao de uma operao consciente pelo aluno, e a
imagem, subjetivao da realidade objetivada historicamente, se realizaria na corporalidade do
aluno apenas numa dimenso formal, no expressando os graus mais elevados do domnio de seu
contedo interno (movimento voluntrio), o que compromete a elevao do seu pensamento
conceitual. Tal abordagem compromete a concepo de historicidade indicada como princpio do
ensino pelo Coletivo, configurando-se como uma contradio entre a concepo de historicidade,
de ensino-aprendizagem e ensino-desenvolvimento defendida pela obra.
Um terceiro aspecto a ser analisado que a vastido de motivos atrelados educao
fsica escolar na obra dificulta a compreenso da natureza da atividade a ser estudada e das suas
finalidades na educao escolar, o que limita a explicao do seu sentido social e das significaes
objetivas que a constitui, como pode ser identificado nas passagens extradas do Coletivo:
Nesse sentido, [a)] o conhecimento tratado de forma a ser retraado desde sua
origem ou gnese, a fim de possibilitar ao aluno a viso de historicidade,
permitindo-lhe compreender-se enquanto sujeito histrico, capaz de interferir
nos rumos de sua vida privada e da atividade social sistematizada. [...]. O
contedo do ensino, obviamente, configurado pelas atividades corporais
institucionalizadas. No entanto, essa viso de historicidade tem um objetivo: a
compreenso de que a produo humana histrica, inesgotvel e provisria.
Essa compreenso deve [b)] instigar o aluno a assumir a postura de produtor de
outras atividades corporais que, no decorrer da histria, podero ser
institucionalizadas.
[c)] O ensino da educao fsica tem tambm um sentido ldico que busca
instigar a criatividade humana adoo de uma postura produtiva e criadora de
cultura, tanto no mundo do trabalho como no do lazer (grifo do autor). [...].
[d)] O conhecimento tratado metodologicamente de forma a favorecer a
compreenso dos princpios da lgica dialtica materialista: totalidade,
movimento, mudana qualitativa e contradio.
45
Analisando o sentido social da arte, Vigotski (2001, p. 315) afirma que A arte o social
em ns, e se o seu efeito se processa em um indivduo isolado, isto no significa, de maneira
nenhuma, que as suas razes e essncia sejam individuais. Assim, segundo Vigotski, A arte
introduz cada vez mais a ao da paixo, rompe o equilbrio interno, modifica a vontade em um
sentido novo, formula para a mente e revive para o sentimento aquelas emoes, paixes e vcios
que sem ela teriam permanecido indeterminadas e imveis (VIGOTSKI, 2001, p. 16). Portanto,
Seria mais correto dizer que o sentimento no se torna social, ao contrrio, torna-se pessoal,
quando cada um de ns vivencia uma obra de arte, converte-se em pessoal sem com isso deixar de
continuar social (VIGOTSKI, 2001, p. 16).
Na atividade esportiva, aquilo que o homem acumulou pela sua atividade no contedo no
processo de produo social, assumido pelos indivduos em suas formas gerais ou amplas, e
pessoais, atreladas a dimenses cotidianas ou no cotidianas. Como exemplo, tem-se um escolar
que inicia na atividade esportiva nas aulas de educao fsica escolar para impressionar as garotas
e, com o passar do tempo, ao se apropriar dos significados sociais atrelados atividade, realizando
suas finalidades, o seu sentido pessoal pode passar da dimenso puramente cotidiana, heterognea,
a dimenses no cotidianas, portanto, mais elaboradas, ligadas particularidade da atividade. Mas
fato que o sentido pessoal tambm pode vir atrelado a dimenses cotidianas e no-cotidianas
numa mesma atividade. Isto significa que, com a apropriao das significaes da atividade e de
suas finalidades, tais sentidos vo se reelaborando e assumindo dimenses cada vez menos
cotidianas, em direo aos motivos mais gerais ou amplos da atividade.
46
Diante disso, podemos afirmar que o processo de apropriao das significaes objetivas
que vai produzir motivos nos indivduos, que os levam ao fim consciente, constituindo a dinmica
da produo do sentido para os mesmos. Do ponto de vista ontolgico, se no h significados, no
h necessidade histrico-social sendo produzida e, como consequncia, no h novas formas de
objetivao. Leontiev (2004, p. 103) afirma que [...] O sentido consciente traduz a relao do
motivo ao fim. [...]; ele designa aquilo em que a necessidade se concretiza de objetivo nas
condies consideradas e para as quais a atividade se orienta, o que a estimula.
Mas interessante analisar que os motivos ldico, competitivo, agonstico esto mais
prximos vida das pessoas, j foram incorporados s suas vidas. No entanto, contraditoriamente,
os contedos sociais que produzem tais significados na vida imediata esto carregados de
alienao. Por isso que tais motivos so importantes na educao escolar nas aulas de educao
fsica, na medida em que a aula possa criar as condies para o enfrentamento dessas contradies
pela apropriao do que o gnero humano produziu de mais desenvolvido.
Todos esses motivos, na atividade de ensino, tambm colaboraro com o desenvolvimento
do autodomnio da corporalidade, pois, no processo de ensino, os indivduos se apropriam da
atividade condensada em contedos sociais no desenvolvimento histrico-social. Vamos explicar
melhor. Tais contedos so carregados de atividade humana em estado latente e, ao colocarem
em movimento a atividade que est em estado latente no contedo, objetivam-se nela. Ao se
objetivarem, vo reproduzindo os traos essenciais do contedo da atividade humana realizado
pelas geraes anteriores, agora reunindo condio para a reproduo e produo de novas
objetivaes, processualmente, a depender das necessidades postas pela prtica social e dos graus
alcanados no processo de objetivao dos contedos sociais. Nesse processo, as significaes
objetivas da atividade vo sendo interiorizadas ativamente pelos indivduos pela via das
aes/operaes, tendo em vista os motivos da atividade, no sentido do autodomnio da
corporalidade humana. Tais aspectos sero mais bem analisados no captulo 5 (cinco) desta tese.
Continuando a nossa anlise sobre os limites e avanos necessrios obra Coletivo de
Autores, destacamos que os dois primeiro nveis de problema, o da no radicalizao da categoria
trabalho como atividade, e o da formalizao do papel do conhecimento na formao dos
indivduos, bem como a no radicalizao da crtica s concepes mecanicistas, levou a obra
Coletivo de Autores, na esteira do que j foi enunciado acima, formalizao da relao
aprendizagem-desenvolvimento, e mais, formalizao da relao ensino-aprendizagem. Nestas
48
17 Sobre o Escolanovismo, observa Saviani (2008): Compreende-se, ento, que essa maneira de entender a educao,
por referncia pedagogia tradicional tenha deslocado o eixo da questo pedaggica do intelecto para o sentimento;
do aspecto lgico para o psicolgico; dos contedos cognitivos para os mtodos ou processos pedaggicos; do
professor para o aluno; do esforo para o interesse; da disciplina para a espontaneidade; do diretivismo para o no-
diretivismo; da quantidade para a qualidade; de uma pedagogia de inspirao filosfica centrada na cincia da lgica
para uma pedagogia de inspirao experimental baseada principalmente nas contribuies da biologia e da psicologia.
18 Mais abaixo Taffarel nos ajudar a compreender alguns motivos dessas lacunas na abordagem crtico-superadora
quando enunciava a necessidade do ensino na educao fsica contribuir para um projeto de escolarizao e um projeto
histrico para alm da sociedade capitalista.
49
Passados vinte e um anos dessa crtica, apesar das muitas experincias desenvolvidas e em
desenvolvimento no pas, o que evidenciamos, ainda, no interior da escola, especialmente com
relao metodologia situada pelo autor como a mais avanada naquele momento histrico
metodologia crtico-superadora , o lento alcance desta proposio no processo efetivo de
escolarizao de crianas, adolescentes e jovens.
Para corroborar o que estamos analisando, Taffarel (2013), em entrevista19, ao destacar a
importncia da criatividade nas aulas de educao fsica (um atributo da funo psicolgica
imaginao20), remete-nos sua dissertao de mestrado defendida h 33 anos, na Universidade
Federal de Santa Maria, e afirma:
19 Entrevista sobre a obra criatividade nas aulas de educao fsica, concedida por Celi Taffarel a aluna, hoje
professora, Maria Leiliana Turma UFPA - Educao Fsica/2009. Publicada por TAFFAREL, Celi N. Z. Mega
eventos e criatividade. Contagem regressiva para os jogos olmpicos de 2016 no Brasil. Rascunho digital. Crnicas
esportivas. N. 151, de 10 de janeiro de 2013.
20 Ver Martins (2013, p. 179-191). Segundo a autora, Como dado instituinte da atividade humana, a imaginao
possui um amplo carter, em relao ao qual Rubinstein (1967, p. 361) afirmou: As imagens com as quais o ser
humano opera no se limitam reproduo do diretamente percebido. O ser humano pode tambm ver diante de si em
imagens o que no tem percebido diretamente. Tambm pode ver algo que no existe em absoluto, e tambm algo que
no existe na realidade concreta. Assim, no se pode entender como atividade de reproduo todo processo que
transcorre por imagens. Na realidade, toda imagem, em qualquer medida, tanto reproduo ainda que distante,
mediata e modificada quanto tambm transformao do real. Estas duas tendncias, que sempre existem em certa
unidade, divergem simultaneamente. Enquanto a reproduo o trao fundamental da memria, caracterstica da
imaginao a transformao do reproduzido. Imaginar algo quer dizer transform-lo (MARTINS, 2013, p. 180-181).
Ver Tambm a dissertao de Saccomani (2014) intitulada A Criatividade na Arte e na Educao Escolar: uma
contribuio pedagogia histrico-crtica luz de Georg Lukcs e Lev Vigotski. Programa de Ps-Graduao em
Educao Escolar. UNESP-Araraquara.
50
80, samos do regime militar que proibiu, limitou a entrada no Brasil dos livros
vindos do leste europeu. Com isto somente tnhamos acesso a literatura marxista
que entrava com muita dificuldade atravs de Cuba, que havia realizado a sua
revoluo h vinte anos [...]. A maioria da literatura era norte americana e europeia
e muito ligada ao escolonovismo. Agora estamos superando com muita fora
todas estas abordagens que nos afastam do processo revolucionrio.
uma espcie de estrutura mxima de generalizao que deve orientar a atividade de ensino na
educao fsica. O problema que, sem analisar como a criana aprende e se desenvolve, com base
numa concepo de realidade, de saber objetivo, portanto, numa concepo de homem, sociedade
e conhecimento concretas, fica impossvel que tal proposio atenda concepo da prtica social
como critrio de verdade, defendida pela lgica e teoria do conhecimento materialista histrico-
dialtica. Vamos aprofundar mais.
Segundo o Coletivo de Autores (2009, p. 65), os ciclos de escolarizao so [...] uma das
formas possveis de distribuio do contedo nos diversos ciclos do processo de ensino-
aprendizagem [...]. Com base nesta afirmao, os ciclos expressam formas de ser da relao
ensino (objeto)aprendizagem (sujeito). No entanto, em nossa anlise, identificamos que as
explicaes sobre os graus de desenvolvimento do pensamento propostos pelos ciclos conflitam
com 1) as etapas da periodizao da aprendizagem-desenvolvimento segundo as teses da psicologia
histrico-cultural, bem como, 2) com a lgica do ensino proposta pela pedagogia histrico-crtica,
no correspondendo ao que foi elaborado como seu Mtodo Pedaggico, e ainda 3) com o que
defende Martins (2013) em sua tese sobre a unidade entre a psicologia histrico-cultural e a
pedagogia histrico-crtica, ambas com base no mtodo da economia poltica (MARX, 2008).
Assim, tais proposies terico-metodolgicas, reconhecidas como as expresses mais avanados
no campo da teoria pedaggica histrico-crtica fundadas no marxismo no Brasil, no corroboram
tal concepo de organizao do conhecimento e de ensino-aprendizagem proposta pelos ciclos de
escolarizao na concepo crtico-superadora. O que estamos afirmando que houve um
problema em termos de anlise, que tem relao com a concepo de realidade, com a ausncia de
unidade metodolgica. Mas que precisa ser superado.
Numa anlise da relao aprendizagem-desenvolvimento, com base na psicologia histrico-
cultural, Leontiev (2004) sintetiza o que chamou de atividades dominantes: so aquelas atividades
que devem orientar a aprendizagem-desenvolvimento dos indivduos, seguindo uma dada
periodizao, que constituem uma contribuio para o desenvolvimento de estudos sobre o
processo ensino-aprendizagem das crianas. De acordo com o autor, tais atividades so aquelas
cujo desenvolvimento condiciona as principais mudanas nos processos psquicos da criana e as
particularidades psicolgicas da sua personalidade num dado estgio do seu desenvolvimento, e
que, portanto, possibilitam aos indivduos a apropriao da experincia scio-histrica acumulada
nos objetos sociais (sobre este aspecto nos detivemos no item 5.1 da tese). Mas isto no significa
53
que a lgica do ensino esteja dada nas atividades dominantes. Esta uma concepo errnea da
relao ensino-aprendizagem. As atividades dominantes so graus do desenvolvimento do
conhecimento e da prtica social, portanto, configuram-se como expresses universais das relaes
entre os indivduos consigo mesmo, com as formas objetivadas da realidade e com os outros
homens, na esteira da atividade, como unidade do diverso.
Na verdade, o Coletivo de Autores fez um exerccio de elaborao dos ciclos de
escolarizao como uma proposio que buscasse expressar as formas de ser produzidas como
unidade do diverso entre ensino e aprendizagem, tendo por base a concepo de que a realidade
que determina a conscincia. Porm, sem teoria da aprendizagem e do desenvolvimento, e sem a
radicalizao da concepo de realidade ficou difcil elaborar explicaes sobre as formas de ser
da relao ensino-aprendizagem, conflitando com o que explicitou, mais recentemente, Martins
(2013), quando analisou as relaes entre a psicologia histrico-cultural e a pedagogia histrico-
crtica na esteira do mtodo da economia poltica.
O que estamos afirmando que o Coletivo de Autores tentou vincular formalmente a teoria
geral do conhecimento materialista histrico-dialtica com uma suposta explicao sobre a relao
aprendizagem-desenvolvimento, e isto pode ser verificado quando analisa o conceito de currculo
ampliado, a saber: Trata-se de vincular a teoria geral do conhecimento com a psicologia
cognitiva, de forma a fundamentar cientificamente a reflexo e a prtica pedaggica desenvolvidas
no processo de escolarizao (COLETIVO DE AUTORES, 2009, p. 28). Com base nesta
proposio, elaborou os ciclos de escolarizao. Aqui se evidencia a falta de clareza sobre a
concepo de realidade nesta produo datada, e isto teve implicaes sobre a formalizao do
papel do conhecimento no ensino de educao fsica na escola, na medida em que vinculou
explicaes precrias sobre a aprendizagem-desenvolvimento, numa concepo de base emprica
(mecanicista) sobre o processo de apropriao dos contedos da realidade pelo pensamento, o que
um equvoco quando confrontamos tal proposio com a lei gentica geral de desenvolvimento
cultural do psiquismo elaborada por Vygotski.
Os ciclos propostos pelo Coletivo afirma que deve-se partir da identificao dos dados da
realidade (pr-escolar at a 3 srie) e chegar at a ampliao da sistematizao do conhecimento
sobre o contedo em estudo. Esta proposio no Coletivo constitui uma espcie de periodizao do
desenvolvimento do conhecimento nas sries. Diante disso, perguntamos: qual a referncia para
esta periodizao? Como foi citado anteriormente, a referncia foi a teoria do conhecimento, numa
54
vinculao com a psicologia cognitiva. Assim, desse ponto de vista usou-se o formalismo lgico
para definir a proposio, o que a tornou incoerente internamente.
Isto evidencia que h um conflito entre a concepo de ensino-aprendizagem (formalista,
abstrata) e a concepo de conhecimento que orientou a elaborao dos ciclos. No entanto, esta
mesma concepo de conhecimento que orientou a elaborao dos ciclos, no mbito da obra, no
mantm a coerncia. Por isso sinalizamos o ecletismo na proposio. Mas, preciso reafirmar,
como o fiz com Vieira Pinto em momento anterior, que a lgica formal no significa ausncia de
explicao sobre o real, mas um nvel superficial de explicao sobre a realidade, pois fica limitado
superfcie do fenmeno, a um movimento lento, o que limita a captao da sua lgica interna, a
lgica dos contedos (SAVIANI, 2002, p. 05). Vieira Pinto (1978, p. 64) afirma que na perspectiva
do formalismo lgico [...] torna-se possvel construir um mundo de ideias harmoniosamente
organizadas, relacionadas umas com as outras segundo oposies e contradies ntidas,
incomunicveis e inconciliveis. Assim,
Chega-se a criar uma lgica que atende aos requisitos, por ela mesma
promulgados, de clareza e exatido, necessrios para explicar a pretenso de
representar a estrutura da razo humana, para assegurar-lhe xitos prticos na
pesquisa das propriedades imediatas da matria, ou na penetrao dos estratos
mais superficiais do mundo dos fenmenos, e ainda lhe d poder de propor teorias
interpretativas da realidade em geral e de certa ordem de fatos em particular
(VIEIRA PINTO, 1978, p. 64-65).
No entanto, sem explicar sobre como se aprende e como se desenvolve ficar difcil realizar
o ensino, tendo em vista que o destinatrio, o aluno, um sujeito que ainda no se emancipou. O
que Martins est afirmando que este formalismo no colabora com o avano das explicaes no
campo pedaggico, fazendo-se necessrio a sua superao pela lgica da contradio (lgica dos
contedos). como a mesma afirmou, repito: se a lgica da aprendizagem atende ordem de
baixo para cima, a lgica do ensino atende ordem de cima para baixo. Trata-se, portanto, da
afirmao da contradio como mvel propulsor das transformaes a serem promovidas pela
aprendizagem, portanto, no se trata de um processo de adaptao, mas de um processo de assuno
subjetiva da realidade objetiva pela mediao dos contedos.
Analisando a proposio de ensino do Coletivo de Autores orientado pela lgica da
constatao, interpretao, compreenso e explicao da realidade complexa e contraditria,
diante do que sinalizamos acima, fica explcito o conflito com a proposio sistematizada pela
psicologia histrico-cultural e pedagogia histrico-crtica sobre a aprendizagem e ensino,
respectivamente. Analisamos que a proposio do Coletivo est mais relacionada com a lgica da
pesquisa de base materialista histrica-dialtica do que com o ensino luz desta concepo. E mais:
verifico que esta lgica constatao, interpretao, compreenso e explicao da realidade
complexa e contraditria a expresso mais evidente da formalizao do ensino na obra; afirmo
isto perguntando: como o aluno vai constatar sem instrumentos para tal? Aqui fica mais explcito
o conflito entre esta proposio e o conceito de trabalho educativo defendido por Saviani, Duarte,
Martins, Taffarel etc.
Portanto, se a sistematizao dos ciclos significou a tentativa de articular a lgica do
desenvolvimento do conhecimento cientfico aos nveis de desenvolvimento intelectual dos
indivduos e se, na perspectiva dialtica, o contedo da atividade dominante refere-se unidade do
diverso entre o indivduo e a sociedade, a abordagem errnea do problema do ensino-aprendizagem
levou o Coletivo ao formalismo lgico.
56
Este aspecto fica evidente na medida em que cada ciclo de escolarizao proposto explicita
uma forma de ser lgica, porm formal, que, apenas na aparncia, expressa a unidade entre ensino
e aprendizagem. Na verdade, os ciclos expressam graus de generalizao em escala ascendente,
quer dizer, do menor nvel de captao do real ao maior nvel de sistematizao da realidade, do
emprico ao abstrato, e do abstrato ao concreto, processo lgico da pesquisa segundo o mtodo
elaborado por Marx e Engels, que se diferencia plenamente do mtodo de ensino da pedagogia
histrico-crtica e da concepo de aprendizagem defendida pela psicologia histrico-cultural, em
unidade (MARTINS, 2013). Quero dizer que h especificidades.
Todos os aspectos analisados podem ser evidenciados na passagem logo abaixo, que
expressa os quatro ciclos de escolarizao.
metodolgico de Marx que afirma que a anatomia do homem a chave para a anatomia do
macaco. Continuamos a explicitao do contedo dos ciclos com a ginstica.
Nas linhas abaixo, destacamos a anlise realizada pelo Coletivo sobre o problema do ensino
da tcnica, uma forma generalizada de significao objetiva que foi produzida pelos homens na
experincia histrica e que constitui uma particularidade do contedo das atividades esportivas a
ser aprendido nas aulas de educao fsica.
Para verificar o atual impacto desta concepo em produes recentes sobre o ensino na
educao fsica no Brasil, realizaremos um breve dilogo com Lorenzini (2013) para, nos
utilizando de concluses do seu trabalho, no aspecto relativo aos ciclos, aprofundarmos a crtica
necessria na direo da construo coletiva de uma nova sntese crtico-superadora.
Abaixo trarei alguns longos excertos da tese de doutorado de Lorenzini (2013) numa
sequncia que expe 1) Quadro demonstrativo dos nveis de qualidade cclica do contedo, nas
sries e no tempo de trabalho em hora / aula; 2) Os ciclos de aprendizagem e os resultados do
trato com a ginstica; 3) Sntese sobre o mtodo de ensino que estruturou o contedo em 120
aulas de Educao Fsica; e 4) Quadro demonstrativo da estrutura dinmica das 120 aulas
(LORENZINI, 2013, p. 199-203).
1) Quadro demonstrativo dos nveis de qualidade cclica do contedo, nas sries e no tempo
de trabalho em hora / aula:
Saltar ficar um pouquinho no ar e cair sem se machucar; Girar dar voltas com
o corpo; Equilibrar no cair; Balanar o vai e vem... (grifos do autor).
63
[...]
Como resultado, os aprendizes da 2 e da 3 sries do ensino fundamental
demonstraram a formao de representaes prprias ao Ciclo de Organizao da
Identidade da Realidade. As representaes so formas de conhecimento que
possibilitam encontrar no contedo os traos afins, coincidentes, identificando
dados da realidade, mas que ainda so sensoriais, aparentes e, por isto no
permitem chegar abstrao, as snteses necessrias para estabelecer nexos
internos, as propriedades gerais, particulares e singulares do objeto de estudo.
[...]
[...]
[...]
3) Sntese sobre o mtodo de ensino que estruturou o contedo em 120 aulas de Educao
Fsica, e 4) Quadro demonstrativo da estrutura dinmica das 120 aulas.
Atuao na organizao - 02 01 01 04
festival
Pesquisa escolar em Ginstica; 01 01 03 02 07
22 Esta expresso uma apropriao de Martins (2013, p. 232). Ao usar contedo-forma-destinatrio a ponho em
ordem diferente no texto para dar mais nfase relao objeto-sujeito.
66
Exercitao inovada p/ 02 02 02 03 09
comunidade
TOTAL DE OCORRNCIAS 103 133 114 90 440
O outro destaque que temos a fazer com relao aos aspectos da tese de Lorenzini (2013)
est na sua capacidade de sistematizao, no esforo para elucidao do real, do acompanhamento
das experincias, dos registros, e mais: com relao sistematizao do conhecimento em si
mesmo, o destaque no quadro que evidencia a superao da burla do tempo pela ampliao do
tempo pedaggico da vivncia, um aspecto sem dvida altamente relevante no citado estudo, e
tambm neste, pois, a nossa tese prope este deslocamento a fim de reafirmar a rica necessidade
desse tipo particular de atividade humana na educao escolar de crianas, jovens e adultos.
Nessa mesma linha, com a inteno de aprofundar estudos sobre o ensino na disciplina
curricular Educao Fsica, Escobar (1997), em sua tese de doutorado, investiga a Transformao
da didtica: construo da teoria pedaggica como categorias da prtica pedaggica
experincia na disciplina escolar educao fsica. Nesse trabalho, a autora utiliza como referncia
terico-metodolgica o materialismo histrico dialtico e tem como hiptese de trabalho que, nas
67
Ento, o que seria estabelecer uma relao adequada com o conhecimento a ser
apreendido na disciplina escolar Educao Fsica, tendo em vista que a questo do mtodo refere-
69
pensamento conceitual dos estudantes nas aulas de Educao Fsica? No decorrer da tese, ao nos
debruarmos sobre a anlise da dialtica entre contedo e forma na prtica de ensino na educao
fsica escolar buscaremos dar conta de tais questes. Por hora, continuamos situando o estudo de
Escobar, a fim de problematizar a necessidade que deu origem a esta tese.
Segundo Escobar, o principal problema didtico, numa perspectiva superadora, no
transmitir conhecimento para ser assimilado, mas a partir de uma determinada prtica pedaggica,
[...] reduzir o movimento visvel que s aparece no fenmeno ao verdadeiro movimento interno
[...] (MARX apud DAVYDOV, 1982, p. 307), pois, segundo a autora, o pensamento de um
homem o movimento de formas de atividade da sociedade historicamente constitudas e
apropriadas pelo homem. Isso significa que na escola se trabalha com o conhecimento j assimilado
pelos homens (ESCOBAR, 1997, p. 138). Para o desenvolvimento de nossa tese, esta posio de
Escobar foi importantssima, pois confluiu com o que vinha estudando a partir de Duarte (1999;
2001) sobre o contedo da atividade humana acumulada em objetos sociais, o que nos levou a
Vygotski (2000) sobre o processo de formao de conceitos na criana, as diferenas entre os
conhecimentos cotidianos e cientficos etc., bem como em Martins (2013) e Saviani.
Tais questes postas por Escobar em sua tese de doutorado contribuem com o debate sobre
a prtica de ensino na educao fsica. Ao afirmar a ideia de Marx (apud DAVYDOV, 1982) sobre
reduzir o movimento visvel que s aparece no fenmeno ao verdadeiro movimento interno [...]
como uma sada possvel para o problema do ensino na educao fsica, a autora demonstra que
estava realizando o movimento de volta ao mtodo da economia poltica, com todos os limites da
bibliografia disponvel at ento. Portanto, a contribuio da autora significou um esforo
altamente relevante para a educao fsica brasileira, deixando pistas para ns, jovens
pesquisadores, seguirmos as trilhas do aprofundamento do conhecimento a fim de responder os
problemas ainda postos.
Para um ltimo destaque: analisando a produo do conhecimento na educao fsica
brasileira a partir de dissertaes (1982-1992) e da literatura especializada acerca de questes
didticas, especialmente com relao ao trato como conhecimento, Escobar (1997, p. 76) faz duas
crticas salutares que resistem ao tempo, pois os seus fundamentos esto enraizados na prtica
social. A primeira:
A segunda: com relao aos mtodos didticos, Escobar (1997, p. 138) faz a seguinte
considerao:
Diante disso, a autora conclui afirmando que se faz necessria a reconstruo da didtica a
partir de categorias da prtica pedaggica, no entanto,
[...] a opo revolucionria de uma nova didtica por uma metodologia calcada
na teoria do conhecimento materialista histrico-dialtica exige, tambm, a
coerente escolha de uma teoria psicolgica da mesma raiz, pois o professor dever
encontrar as operaes que possam promover nos alunos a apreenso das
abstraes, generalizao e conceitos constitutivos do diferente conhecimento das
diferentes disciplinas. A teoria pedaggica superadora da didtica no ser um
corpo de regras prontas para o professor aplicar. Ela deve se delinear como um
conjunto de princpios norteadores e de categorias advindas da prtica
pedaggica, cuja evoluo histrica, bem como suas formas de superao,
constituem-se em objetivos dessa teoria (ESCOBAR, 1997, p. 139).
23 A autora ainda afirma que, na esfera das problemticas da organizao do trabalho pedaggico e do trato com o
conhecimento, a contribuio da produo do conhecimento da educao fsica no Brasil pequena. Apesar de alguns
reconhecimentos formais, essas questes no so incorporadas significativamente s suas formulaes didticas (ver
referncia das produes cientficas em Escobar, 1997, p.78). Outro aspecto sobre esta passagem de Escobar que a
mesma refora a crtica realizada por ns sobre a dificuldade que o Coletivo de Autores teve na diferenciao entre
mtodo de pesquisa e mtodo de ensino.
72
de ensino na educao fsica escolar em patamares cada vez mais elaborados. Para dar sustentao
a este caminho elaboramos esta tese, com uma hiptese de trabalho e no como a hiptese de
trabalho, pois, como sinalizamos, apontamos caminhos...
Portanto, estamos entendendo que todo este complexo de lacunas, evidenciadas tanto na e
pela proposio crtico-superadora no Coletivo de Autores (1992), quanto nas e pelas teses de
Lorenzini (2013) e Escobar (1997) sobre o ensino na educao fsica, s refora o problema
analisado em nossa tese.
Por fim, destacamos que nesse caminho, alm da tese de Lorenzini (2013) e Escobar (1997),
mais relacionadas concepo crtico-superadora, tambm destacamos a tese de Miranda (2013),
mais relacionada ao ensino desenvolvimental (DAVIDOV, 1982, 1988), e Nascimento (2014),
na linha do que vem defendendo a atividade pedaggica na teoria histrico-cultural (MOURA,
2010), que tem contribudo na medida em que em ambas h o claro deslocamento aos contedos,
na linha do que tem defendido a pedagogia histrico-crtica (SAVIANI, 2012; DUARTE, 2013;
MARTINS, 2013). Destes trabalhos, destacamos a tese de Nascimento (2014) como uma referncia
importante na educao fsica brasileira acerca do exerccio de elaborao de um mtodo de anlise
do que chamou de objetos de ensino da educao fsica, a fim de colaborar com a organizao
do currculo, para o desenvolvimento do pensamento terico. Apesar de algumas objees, em
nossa tese no realizamos um dilogo explcito com a tese de Nascimento, mas destacamos que a
mesma foi importante na organizao de uma posio cientfica sobre a gnese, estrutura e formas
de desenvolvimento da corporalidade humana em direo elucidao do motivo mais geral e
amplo deste tipo particular de atividade. Urge o desenvolvimento de um trabalho coletivo
necessrio a fim de fazer avanar o campo cientfico da educao fsica escolar.
73
Este captulo sistematiza uma estrutura de generalizao para orientar as nossas anlises na
tese. Destaca o contedo interno das relaes fundamental (necessidade-objeto) e essencial
(aes/operaes-objetivo) que constitui a atividade humana. Do ponto de vista psicolgico, a
relao fundamental se expressa nos motivos da atividade (intervinculaes entre necessidades e
objetos capazes de atend-las), e a relao essencial manifesta-se na articulao interna entre as
aes, em seus fins especficos, tendo em vista os motivos da atividade. So estes conceitos prtico-
histricos que movem as relaes entre atividade e desenvolvimento humano.
Os conceitos enunciados por Martins e Vieira Pinto, anteriormente por Leontiev e Kosik,
com base em Marx, enfrentam o problema mais essencial da filosofia: a relao entre ser e
conscincia.
Para ilustrar o que estou inferindo, trago a afirmao de Lukacs (1966, p. 19) que corrobora
com a clarificao do nosso ponto de partida, um aspecto essencial para a compreenso das relaes
entre sujeito e objeto com base no materialismo histrico dialtico: Para o materialismo, a
prioridade do ser antes de tudo uma questo de fato: h ser sem conscincia, mas no conscincia
sem ser. Ontogeneticamente, se pensarmos no desenvolvimento de um beb, possvel afirmar
que este ser tem conscincia? Na verdade, este ser vai conquistando a conscincia na medida em
que inserido em sociedade, por exemplo, nas relaes me-beb, me-objeto-beb, relaes
mediadas pela cultura, que vo produzindo a distino do Eu/No Eu da criana. Este processo tem
sua expresso cultural de mxima complexidade no trabalho, referncia para o desenvolvimento
do ser humano e atividade guia da idade adulta.
sabido que na relao entre produo e consumo que a cultura produzida. Se
analisarmos a "gnese da ideia" como objeto, entenderemos que, por um lado, esta o resultado da
ao produtiva do homem sobre a natureza, desde os seus primrdios, quando comea a emergir
da etapa do instinto. Nesse sentido, a ideia um bem de consumo, quer dizer, quando o homem
age sobre a natureza ele est manipulando objetos naturais a fim de conhec-los, extrair deles as
suas propriedades, que constituem o contedo da ideia. Aqui ele sente, percebe, fica atento, e com
isso vai desenvolvendo a capacidade de registro, aspecto essencial para o posterior
desenvolvimento da comunicao, da organizao corporal, linguagem e pensamento, conduta,
para alm das formas superiores dos animais. De outro modo, podemos afirmar que, quando o
homem age sobre a natureza, ele est se apropriando do que se apresenta nela em estado de repouso
e ao se apropriar ele pe em movimento o seu contedo. Na ao de transformao na natureza
para satisfazer necessidades, ele consome as propriedades dos objetos.
Por outro lado, esse processo, ainda instintivo, se requalifica e se inverte na medida em que
o homem em processo de hominizao salta qualitativamente quando passa a realizar essa prtica
ou produo como ao consciente (humanizada), orientada a finalidades, portanto, como trabalho,
uma atividade prtica num patamar superior, quer dizer: na medida em que a atuao criadora que
o homem exerce na natureza dirigida pela ideia que j foi capaz de formar a respeito dela, dos
objetos, foras e fenmenos que a compem, a ideia aparece como bem de produo" (VIEIRA
75
PINTO, 1984, p. 48). A atividade orientada a finalidades constitui o contedo da ideao e, nesse
ato de produzir, consome, realizando uma prtica orientada ao objeto da necessidade, a saber: o
critrio de verdade.
Assim, a gnese dos contedos da atividade esportiva no seria possvel sem a
complexificao da corporalidade humana na atividade produtiva, condio para o
desenvolvimento de operaes motoras auxiliares, resultado do processo de converso de hbitos
motores em operaes conscientes e intencionais. A autonomizao das aes/operaes motoras
auxiliares na atividade vai produzindo novas necessidades. Este fato extremamente importante
para entendermos a gnese das atividades humanas em geral e das formas de desenvolvimento da
corporalidade humana. Analisaremos mais detidamente este aspecto no captulo 03.
Assim, o nosso ponto de partida para a anlise do desenvolvimento histrico-social da
corporalidade humana segue a orientao metodolgica proposta por Marx (2013, p. 256) em O
capital, quando afirmou: Os momentos simples do processo de trabalho so, em primeiro lugar, a
atividade orientada a um fim, ou o trabalho propriamente dito; em segundo lugar, seu objeto e, em
terceiro lugar, seus meios.
Segundo Marx (2007, p. 33) [...] o primeiro pressuposto de toda existncia humana e
tambm, portanto, de toda a histria, a saber, que os homens tm de estar em condies de viver
para poder fazer histria, quer dizer, precisam produzir a sua existncia apropriando-se de
comida, bebida, moradia, vestimenta etc. O segundo ponto importante a ser considerado numa
concepo histrica que a satisfao dessa primeira necessidade, a ao de satisfaz-la e o
instrumento de satisfao j adquiridos conduzem a novas necessidades, e essa produo de
novas necessidades que constitui o primeiro ato histrico, quer dizer, [...] a produo dos meios
para a satisfao dessas necessidades, a produo da prpria vida material [...] (MARX, 2007, p.
33).
Orientado por finalidades prticas, nesse processo o homem age sobre o objeto natural e
condensa atividade, dando-o forma til, quer dizer, transforma o objeto natural em instrumento de
satisfao de necessidades. Este objeto til, produzido pela atividade humana, portanto, carregado
de operaes fsicas e mentais, se complexifica, se transforma pela ao dos homens devido ao
surgimento de novas necessidades, as chamadas necessidades de novo tipo. Tais necessidades
impulsionam a produo de novos instrumentos a partir dos j elaborados pelas geraes anteriores.
Os instrumentos, carregados de atividade, de operaes humanas, passam de produtos do trabalho
76
24 De acordo com FRAGA (2006, p. 19), justo registrar que Solange Mercier-Josa teve o mrito de chamar a ateno
para o conceito de necessidades em Hegel [Cf. MERCIER-JOSA, S. La notion de besoin chez Hegel. La pense, n.
162, p. 74-100. Autora de vrias obras sobre Hegel e/ou Marx, Mercier-Josa tambm assina o verbete Besoin no
Dictionnaire critique du marxisme, dirigido por Georges Labica e Grard Bensussan.], e que pertence a gnes Heller
o de destac-lo quanto obra de Marx [Cf. HELLER, A. Teora de las necesidades en Marx. 1974/1986]. O propsito
de seus textos deixa consideravelmente em aberto o exame da relao economistas/HegelFeuerbach
Marx/economistas no que se refere a tal temtica, o que, no entanto, algo importante para a compreenso do assunto
no pensamento de Marx, que o ltimo nessa trade reflexa. Uma dcada aps essa obra (de 1974), por volta de
meados dos anos 1980, na seqncia da crtica do Leste Europeu, inicialmente ainda de vis socialista, Heller viria a
abandonar o marxismo e a perspectiva comunista, esvaziando completamente a potncia revolucionria de sua teoria
das necessidades radicais, que colhera de Marx. Sobre a evoluo de seu pensamento, ver RIVERO, . De la utopa
radical a la sociedad insatisfecha. In: HELLER, . Una revisin de la teora de las necesidades, p. 9-55. Cabe situar
que este estudo valoriza vrios aspectos da contribuio da primeira Heller teoria das necessidades. No
acompanha, porm, o corte kantiano (pelos valores morais ou pelo imperativo categrico) que ela opera sobre essa
teoria j em obras como HELLER, . A filosofia radical s vezes atribuindo-o ao prprio Marx. Em grande medida,
isso se deve a que, por um lado, a autora minora a importncia de Hegel para esse tema e, por outro, descarta o trato
da dimenso ontolgica das necessidades.
77
Utilizando o critrio da atividade prtica, Heller (1986, p. 28) afirma que o conceito de
necessidade em Marx aparece em trs dimenses: 1) necessidades naturais; 2) necessidades
naturais socialmente determinadas; 3) necessidades socialmente determinadas. As necessidades
socialmente determinadas se desdobram em duas formas: as necessidades necessrias e as
necessidades radicais. A primeira dimenso do conceito de necessidade no constitui um conjunto
de necessidades, seno um conceito limite: limite diferenciado segundo as sociedades superado
devido a vida humana j no ser reproduzvel como tal; dito em outras palavras, o limite da simples
existncia25 (HELLER, 1986, p. 28). A segunda e terceira se constituem como unidade no humano,
e isso que possibilita o tornar-se homem.
De acordo com Heller (1986), as necessidades naturais socialmente determinadas so
aquelas dirigidas conservao das meras condies vitais e a estas Marx atribui um contedo
humano-social radicalmente novo, quando considera a reduo das necessidades humanas s
necessidades de contedo social, inclusive as de natureza psicofsica, abrindo a condio de
possibilidade para o desenvolvimento da rica necessidade humana (HELLER, 1986). Heller
afirma que, em O Capital, o conceito de necessidade socialmente determinada radicalizado por
Marx, tratando-as como necessidades necessrias aquelas surgidas historicamente e no
dirigidas mera sobrevivncia, nas quais o elemento cultural, o moral e o costume so decisivos e
cuja satisfao parte constitutiva da vida normal dos homens pertencentes a uma determinada
classe de uma determinada sociedade". (HELLER, 1986, p. 33).
25 Em edies brasileiras mais recentes das obras de Marx, as necessidades naturais so traduzidas pela expresso
carncias. Ver Marx, K. Manuscritos de 1844. Traduo Jesus Ranieri. Boitempo editorial. 2010.
79
Mas, segundo Vygotski, esse comportamento novo que tem surgido no perodo histrico,
denominado convencionalmente por comportamento cultural superior, em especial para diferenci-
lo das formas que se tem desenvolvido biologicamente, tem de ter forosamente um processo de
desenvolvimento prprio e diferenciado, em suas vias e razes29 (VYGOSKI, 2000, p. 35). Isso
significa que o desenvolvimento do comportamento cultural faz surgir novas necessidades
aquelas determinadas socialmente que extrapolam a mera sobrevivncia, nas quais, como j
afirmamos com base em Marx (apud Heller), o elemento cultural, o moral e o costume so
decisivos.
Segundo Heller (1986), a dimenso e contedo das necessidades necessrias podem, por
conseguinte, ser distintas segundo as pocas histricas e as classes, como explicita na comparao
entre sociedades, classes e tempos histricos diferenciados: Para um trabalhador dos EUA h
necessidades necessrias distintas das de um trabalhador ingls do tempo de Marx ou das prprias
de um trabalhador ndio contemporneo. Segundo a autora, em a Misria da filosofia, Marx
registra a contradio entre as necessidades e as possibilidades do trabalhador quando afirma que
as necessidades necessrias dos trabalhadores no podem ser satisfeitas, posto que no esto
cobertas pela sua renda (HELLER, 1986, p. 34).
Por outro lado, o conceito de necessidades necessrias pode ter a forma de necessidades
radicais, que so as necessidades que devem ser satisfeitas para que os membros de uma
sociedade ou classe tenham a sensao de que sua vida normal diz respeito a um determinado
nvel da diviso do trabalho. Assim, Heller afirma que as necessidades radicais so as
necessidades que impem limites entre uma determinada forma de produo e outra, quer dizer,
tais necessidades so a expresso mais radical da contradio entre as condies de produo e as
foras produtivas numa dada sociedade, portanto, a expresso contraditria que pode impulsionar
a revoluo social.
Vimos que, para Heller, com base em Marx, as necessidades socialmente determinadas, a
depender do estgio de desenvolvimento das foras produtivas e das condies de produo,
29Traduo minha. Es difcil suponer de antemano que la sociedad no cree formas supraorgnicas de conducta.
Resulta improbable que el empleo de herramientas, que se distingue esencialmente de la adaptacin orgnica, no
conduzca a la formacin de funciones nuevas, a un comportamiento nuevo. Pero ese comportamiento nuevo, que ha
surgido en el perodo histrico de la humanidad y al que denominamos convencionalmente conducta superior para
diferenciarlo de las formas que se han desarrollado biolgicamente ha de tener forzosamente un proceso de desarrollo
propio y diferenciado, vas y races.
81
possuem duas formas de ser: as necessidades necessrias e as necessidades radicais. Mas, segundo
Heller (1986), Marx, ao tratar das necessidades necessrias dos trabalhadores, realiza uma distino
entre as necessidades materiais e no materiais. Assim, afirma a autora que Aquelas necessidades
para cuja satisfao devem ser produzidos e reproduzidos continuamente objetos e meios
(utilizados no consumo e no consumo produtivo) so classificadas como necessidades materiais
(HELLER, 1986, p. 119). J aquelas necessidades para cuja satisfao no so necessrios objetos
produzidos mediante o intercmbio orgnico com a natureza, ou em geral produtos so
classificadas como necessidades no materiais (HELLER, 1986, p. 119). Segundo a autora, a
distino entre os aspectos descritos no arbitrria, esta tem como base uma distino realizada
por Marx, a saber: A esfera da produo , em seu critrio, o mbito que permanecer como reino
da necessidade; sobre ele se fundamenta o reino da liberdade que subordina a produo a seus
prprios objetivos (HELLER, 1986, p. 118). Esta relao a expresso contraditria da diviso
do trabalho na sociedade capitalista, porm, se no analisarmos esta afirmao com o devido
cuidado poderemos chegar a uma concluso no dialtica. Por isso que a autora observa que
ambos os conjuntos de necessidades no so puros. Para a satisfao das necessidades da arte
tambm de algum modo necessrio a produo: as casas devem ser construdas, os livros
impressos. E conclui a autora: Mas a necessidade da arte enquanto tal no satisfeita nem pela
casa nem pelos livros, seno pela obra de arte que como objetivao no pertence esfera da
produo (HELLER, 1986, p. 119).
Vimos que a distino da autora est correta. O seu movimento analtico busca a natureza
do objeto e, para tanto, utiliza corretamente, em acordo com Marx, o critrio da necessidade. Assim,
toda objetivao particular, mas a expresso do modo de produo da existncia e da luta de
classes em um determinado tempo histrico. Porm, segundo Kosik (2011, p. 207-208), A diviso
do agir humano em trabalho (esfera da necessidade) e arte (esfera da liberdade) capta a
problemtica do trabalho e do no-trabalho apenas aproximadamente e apenas sob certos
aspectos. De acordo com o autor,
Um parntese para analisar a contradio entre utilidade e valor na sociedade capitalista e suas
relaes com o sentido e significado da atividade humana.
Seguindo aqui as palavras de Marx (2007, p. 36), na sociedade capitalista, [...] com a
diviso do trabalho esta dada a possibilidade, e at a realidade, de que as atividades espiritual e
material de que a fruio e o trabalho, a produo e o consumo caibam a indivduos diferentes
[...]. Esta forma social ganhou o seu impulso supremo com o esgotamento do modo de produo
feudal.
Em sua crtica da economia poltica, Marx entendeu que o trabalho uma necessidade, que,
em dadas condies, produz a riqueza humana. Na sociedade capitalista, esta relao social se
duplica, constituindo uma necessidade que pode se expressar tanto na forma de utilidade como na
forma valor. O que ir determinar a sua forma de expresso o modo de produo, quer dizer, as
condies de produo da atividade humana em geral; isto significa que, se o modo de produo
no produz outra coisa seno a existncia social dos homens no tempo, o modo de produo o
prprio ser dos homens. Assim, a produo pode se orientar tanto a finalidades teis como
finalidade de valorizao de capital. Quando orientada pela utilidade, tem-se como resultado o
desenvolvimento da rica necessidade humana, um valor-de-uso social, mas, contraditoriamente, o
83
valor pode conter em sua estrutura ricas necessidades humanas, porm, fetichizadas; quer dizer,
por um lado, o reino da liberdade subordina a produo, por outro lado, quando o trabalho
orientado valorizao de valor tem-se como expresso contraditria nos objetos produzidos a
relao entre rica necessidade humana e riqueza material e misria humana. Nesta, o reino da
necessidade subordina a esfera da produo, que produz uma alterao no objeto da necessidade, a
alienao.
Na sociedade capitalista expresso social mais complexa e contraditria do
desenvolvimento da luta de classes , o processo de alienao gerou alteraes substanciais nos
significados e sentidos das atividades humanas. A mudana nas condies de produo
(aes/operaes) gerou uma alterao na necessidade-finalidade da atividade produtiva antes em
desenvolvimento. Tomemos como exemplo o arteso que produzia uma mesa para satisfazer suas
necessidades humanas teis. Esta atividade tinha propriedades qualitativas, objetivas, continha
trabalho concreto, o produtor e o consumidor era o prprio arteso, portanto, servia para o homem
de forma til. Na sociedade capitalista, a atividade produtiva sofre uma alterao em seu processo
produtivo. Agora, o produtor no se confunde com o consumidor, como afirma Marx nos
Manuscritos de 1844: o objeto se torna estranho ao seu produtor. As suas propriedades se alteram,
perdem o seu carter qualitativo, passam a se expressar apenas como quantidade de valor,
caracterizando-se como trabalho humano abstrato, porm, mantm-se com a propriedade de ser
til, uma utilidade. A esta forma especial de valor chamou-se mercadoria. Foi assim que a atividade
produtiva na sociedade capitalista perdeu o seu sentido como um objeto socialmente til, suas
qualidades, sua propriedades objetivas, consubstanciado por trabalho humano concreto, passando
a ser desenvolvida como trabalho humano alienado, como riqueza material e misria humana 30.
Retomando a anlise da necessidade. Segundo Heller (1986, p. 43), A necessidade e seu
objeto so dois momentos, lados de um mesmo conjunto, e Se em vez de analisar um modelo
esttico analisarmos a dinmica de um corpo social [...], ento a primazia corresponde ao momento
da produo: a produo que cria novas necessidades. Mas esta se encontra em correlao com
as necessidades j desenvolvidas.
Para Marx (apud HELLER, 1986, p. 43), a diversa conformao da vida material depende
em cada caso, naturalmente, das necessidades j desenvolvidas, e tanto a criao como a satisfao
30 Esta contradio aparece tambm na atividade esportiva, uma rica necessidade humana, que na sociedade capitalista
aparece como riqueza material e misria humana. Este aspecto iremos analisar no captulo cinco.
84
31 Traduo minha. Se denomina motivo de la actividad aquello que reflejndose en el cerebro del hombre excita a
actuar y dirige esta actuacin a satisfacer una necesidad determinada (SMIRNOV, 1978, p. 346, itlico do autor).
85
relao. Mas o sentido consciente no homem altera radicalmente esta relao, como afirma o
autor:
Sublinha Leontiev que no utiliza o termo motivo para designar o sentimento de uma
necessidade; ele designa aquilo em que a necessidade se concretiza de objetivo nas condies
consideradas e para as quais a atividade se orienta, o que a estimula (Idem, ibidem). A necessidade
um estado carencial e o motivo se produz quando a carncia encontra o objeto de sua satisfao,
mas, como no temos necessidade do que no conhecemos, e os objetos que satisfazem carncias
so produes histrico-culturais da humanidade, portanto, produtos histricos e coletivos
elaborados pelo conjunto dos homens, o motivo ser sempre social. Por sermos seres gregrios, a
nossa condio de produo essencial est na relao entre o homem e as formas objetivadas da
realidade, o que nos produz como gnero humano.
De acordo com Smirnov (1978, p. 348), os motivos se caracterizam por sua variedade.
Se diferenciam uns dos outros pelo tipo de necessidade a que correspondem. Tambm podem ser
divididos em naturais e superiores, e entre estes h os materiais e os espirituais. Tambm podem
se diferenciar pela forma em que se manifesta o seu contedo imagem, conceito, pensamento,
ideal etc. Mais frente veremos que o contedo do motivo tambm pode se realizar na forma da
corporalidade.
Segundo Smirnov,
32 Traduo minha. Los motivos de la actividad humana se caracterizan por su variedad. Se diferencian unos de
otros, en primer lugar, por el tipo de necesidad a que corresponden. Igual que las necesidades, los motivos se dividen
en naturales y superiores y, entre stos, hay los materiales y los espirituales. Tambin se pueden diferenciar por la
forma en que se manifiesta su contenido: pueden tener forma de imagen, de concepto, de pensamiento, de ideal, etc.
Los motivos pueden tener distinta relacin con la posibilidad de realizar la actividad que los origina. Para que un
motivo cause realmente una actividad tienen que existir condiciones que permitan al sujeto plantearse el fin
correspondiente y actuar para alcanzarlo. Solamente en este caso el motivo resulta efectivo. Cuando no se dan estas
condiciones y no se plantea el fin correspondiente al motivo, aunque sea el prximo, tal motivo no es efectivo y no
desarrolla la actividad que conduce a satisfacer la necesidad. Su accin se manifiesta nicamente en que aparece una
reaccin de orientacin en el medio ambiente y, algunas veces, origina una actividad imaginativa en forma de ilusin
(SRMIRNOV, 1978, p. 348).
33Traduo minha. Un gnero de motivos de la actividad para estudiar son los generales y amplios (por ejemplo,
adquirir formacin cultural, prepararse para el trabajo futuro, etc.). Otro tipo de motivos- son los particulares y
estrechos (por ejemplo, recibir premios, no tener castigos). Los primeros son ms constantes, actan durante mucho
tiempo y no dependen de situaciones casuales. Los del segundo tipo actan durante poco tiempo y segn circunstancias
directas (por ejemplo, la actitud del maestro). Cuando unos u otros motivos actan simultneamente forman una
especie de sistema nico en el que cada uno de ellos tiene distinto papel; los motivos generales y amplios dan al estudio
del escolar un sentido determinado y los del segundo grupo estimulan a la. accin inmediata (SMIRNOV, 1978, p.
349).
87
possurem, agora, maior densidade terica, ou seja, graus mais elevados de atividade humana
condensada. Isto acontece quando os fins das aes passam a motivo da atividade, produzindo
novas necessidades.
De acordo com Smirnov (1978, p. 227), A atividade que no possui um motivo geral e
amplo carece de sentido para o indivduo que a realiza. Esta atividade, no pode somente enriquecer
e melhorar seu contedo, seno que ademais uma carga para o sujeito. Segundo Leontiev (2004,
p. 104),
34 O problema da inverso tem orientado fortemente as teorias ps-modernas, pois na medida em que os significados
forem expressos nos sentidos, relativiza-se fortemente a realidade, pois o sentido depender do contexto e dos sujeitos,
e a esta a ideia de que existem vrios sujeitos epistmicos. Este problema apreendido dessa forma cria a ideia de que
no h objetividade na realidade, que no h leis gerais, que no h formas absolutas do real, relativizando fortemente
o contedo da realidade. Ou o modo de produo capitalista no absoluto, objetivo? Ele historicamente transitrio,
mas uma realidade objetiva.
88
35 Excerto do original da traduo da edio espanhola. se refiere a la similitud y a los puntos de contacto entre
ambas formas de actividad; la segunda tesis esclarece los puntos fundamentales de divergencia y la tercera intenta
sealar la relacin psicolgica real entre una y otra o, al menos, hacer una alusin (VYGOTSKI, 2000, p. 93).
36 Logo retomamos a reflexo sobre a ferramenta e o signo.
89
Mas, para Hegel, a relao entre os objetos existe numa determinada forma ser, precria,
mundana, quer dizer, apenas como efetividade. Assim, afirma Inwood (1997, p. 107-108):
37Traduo minha. Hegel atribua con toda razn un significado ms general al concepto de mediacin,
considerndolo como la propiedad ms caracterstica de la razn. La razn, dice Hegel, es tan astuta como poderosa.
La astucia consiste en general en que la actividad mediadora al permitir a los objetos actuar recprocamente unos sobre
otros en concordancia con su naturaleza y consumirse en dicho proceso, no toma parte directa en l, pero lleva a cabo,
sin embargo, su propio objetivo. Marx cita esas palabras al hablar de las herramientas de trabajo y dice: El hombre
utiliza las propiedades mecnicas, fsicas y qumicas de las cosas que emplea como herramientas para actuar sobre
otras cosas de acuerdo con su objetivo. (C. Marx, E. Engels, tomo 23, edicin rusa.) (VYGOTSKI, 2000, p. 93-94).
90
mesmo tempo, pois est em constante mudana. Mas, como o ser pode ser e no ser ao mesmo
tempo? Entendo que possvel perceber isso se analisarmos o ser como uma produo histrica.
Por isso que, ao se afirmar ele se nega, pois no mais o mesmo ser; quer dizer, o ser se afirma e
se nega no movimento de sua transformao, pois a prpria afirmao do ser (efetividade) cria as
condies de possibilidade para a sua negao (ser em si) e ser para si (segunda negao), o que
possibilita a nova sntese. Mas, para Hegel, estas duas negaes s pode se dar no conceito e no
na "efetividade" da realidade, porm tem seu incio nesta. E a aparece o seu conceito de
realidade. Essa a condio de possibilidade para Marx saltar qualitativamente ao apreender,
inversamente, esse movimento na prpria vida material. Assim, abandona a ontologia de Hegel,
mas mantm a sua lgica. Isto significa que a inverso ontolgica realizada por Marx no
despreza a dialtica de Hegel, pois Marx compreende, assim como Hegel, que h reciprocidade de
ao entre os objetos.
Segundo Martins (2013, p. 45), o conceito de mediao ultrapassa a relao aparente entre
coisas, penetrando na esfera das intervinculaes entre as propriedades essenciais das coisas. Para
clarificar, retomamos parte da passagem em que Vygotski cita Marx em momento anterior quando
distingue duas concepes de mediao, uma idealista e outra materialista: O homem utiliza as
propiedades mecnicas, fsicas e qumicas das coisas que emprega como ferramentas para atuar
sobre outras coisas de acordo com seu objetivo (MARX e ENGELS, Tomo 23, edio russa apud
VYGOTSKI, 2000, p. 93-94). Diante disso, observa Martins:
Contudo, de acordo com Vigotski (2000, p. 62), Este desenvolvimento no se esgota com
a simples complexidade das relaes entre estmulos e respostas, que j conhecemos na psicologia
animal e Tampouco se d pelo caminho do aumento quantitativo e o incremento de suas relaes.
H em seu centro um salto dialtico que modifica qualitativamente a prpria relao entre o
estmulo e a resposta. Vamos entender como Vygotski explica este fato:
38 Excerto traduzido da edio espanhola. Este desarrollo no se agota con la simple complejidad de las relaciones
entre estmulos y reacciones, que ya conocemos en la psicologa animal. Tampoco va por el camino del aumento
cuantitativo y el incremento de sus relaciones. Hay en su centro un salto dialctico que modifica cualitativamente la
propia relacin entre el estmulo y la reaccin. Podramos formular nuestra deduccin principal, diciendo que la
conducta humana se distingue por la misma peculiaridad cualitativa comparada con la conducta del animal que
diferencia el carcter de la adaptacin y del desarrollo histrico del hombre comparado con la adaptacin y el desarrollo
de los animales, ya que el proceso del desarrollo psquico del hombre es una parte del proceso general del desarrollo
histrico de la humanidade. (VYGOTSKI, 2000, p. 62).
92
De acordo com nossa definio, todo estmulo condicional criado pelo homem
artificialmente e que se utiliza como meio para dominar a conduta prpria ou
alheia um signo. Dois momentos, portanto, so essenciais para o conceito de
signo: sua origem e funo 39 (VIGOTSKI, 2000, p. 83).
No entanto, segundo Pavlov (apud VYGOTSKI, 2000, p. 84), a atividade bsica e mais
geral dos grandes hemisfrios a sinalizao40, com sua incontvel quantidade de sinais e sua
alternncia. Com base nisso, Vygotski afirmou que O fundamento mais geral da conduta, idntica
nos animais e no ser humano a sinalizao e conclui: Como se sabe, se trata de uma formulao
mais geral da ideia dos reflexos condicionados em que se baseia a fisiologia da atividade nervosa
superior. Assim, como j afirmamos com base em Vygotski, o comportamento humano se
distingue pelo fato de que o homem que cria os estmulos artificiais de sinais e, em primeiro
lugar, o grandioso sistema de sinais da linguagem, dominando assim a atividade de sinais dos
grandes hemisfrios. Portanto,
39 Excerto traduzido da edio espanhola. Llamamos signos a los estmulos-medios artificiales introducidos por el
hombre en la situacin psicolgica que cumplen la funcin de autoestimulacin; adjudicando a este trmino un sentido
ms amplio y, al mismo tiempo, ms exacto del que se da habitualmente a esa palabra. De acuerdo con nuestra
definicin, todo estmulo condicional creado por el hombre artificialmente y que se utiliza como medio para dominar
la conducta propia o ajena es un signo. Dos momentos, por lo tanto, son esenciales para el concepto de signo: su
origen y funcin (VYGOTSKI, 2000, p. 83).
40 Pode ser entendido tambm como orientao.
93
41 Excerto traduzido da edio espanhola. Si la actividad fundamental y ms general de los grandes hemisferios en
los animales y en el hombre es la sealizacin, la actividad ms general y fundamental del ser humano, la que diferencia
en primer lugar al hombre de los animales desde el punto de vista psicolgico es la significacin, es decir, la creacin
y el empleo de los signos. Tomamos esa palabra en su sentido ms literal y exacto. La significacin es la creacin y el
empleo de los signos, es decir, de seales artificiales (VYGOTSKI, 2000, p. 83).
42 Examinemos ms cerca este nuevo principio de actividad que no se puede anteponer en ningn sentido al principio
de sealizacin. La sealizacin variable que lleva a la formacin de vnculos provisionales, condicionados y
especiales entre el organismo y el medio, es la premisa biolgica imprescindible de aquella actividad superior que
llamamos convencionalmente significacin y que constituye su base. El sistema de conexiones que se estructuran en
el cerebro del animal es la copia, o el reflejo de las conexiones entre toda suerte de agentes de la naturaleza que
sealan la presencia prxima de fenmenos inmediatamente favorables o destructivos.
43 Resulta claro que la sealizacin semejante el reflejo de la conexin natural de los fenmenos creada
enteramente por las condiciones naturales no puede ser una base adecuada de la conducta humana. Para la adaptacin
del hombre tiene esencial importancia la transformacin activa de la naturaleza del hombre, que constituye la base de
toda la historia humana y presupone 84 tambin un imprescindible cambio activo de la conducta del hombre. Al
actuar sobre la naturaleza externa mediante ese movimiento, al modificarla, el hombre modifica al mismo tiempo su
propia naturaleza dice Marx-.;-. Despierta las fuerzas que dormitan en ella y subordina la dinmica de esas fuerzas
a su propio poder (C. Marx, F. Engels, Obras, tomo 23, pgs. 188- 189, Ed. russa).
94
Segundo Vygotski (2000, p, 85), A cada etapa determinada no domnio das foras da
natureza corresponde sempre uma determinada etapa no domnio do comportamento, na
subordinao dos processos psquicos ao poder do homem. Portanto,
44 A cada etapa determinada en el dominio de las fuerzas de la naturaleza corresponde siempre una determinada etapa
en el dominio de la conducta, en la supeditacin de los procesos psquicos al poder del hombre. La adaptacin activa
del hombre al medio, la transformacin de la naturaleza por el ser humano no puede estar basada en la sealizacin
que refleja pasivamente los vnculos naturales de toda suerte de agentes. La adaptacin activa exige el cierre activo de
aquel tipo de vnculos, que son imposibles cuando la conducta es puramente natural es decir, basada en la
combinacin natural de los agentes. El hombre introduce estmulos artificiales, confiere significado a su conducta y
crea con ayuda de los signos, actuando desde fuera, nuevas conexiones en el cerebro. Partiendo de esta tesis,
introducimos como supuesto en nuestra investigacin un nuevo principio regulador de la conducta, una nueva idea
sobre la determinacin de las reacciones humanas el principio de la significacin, segn el cual es el hombre
quien forma desde fuera conexiones en el cerebro, lo dirige y a travs de l, gobierna su propio cuerpo.
95
histrico-social, tem sua forma embrionria no jogo quando os fins das aes passaram a motivo
da atividade. Isto significa que, no desenvolvimento histrico-social da corporalidade humana, a
necessidade condio para a atividade, porm quanto mais a atividade se complexifica mais esta
relao se inverte e a necessidade passa a resultado, portanto, o mvel da relao. Do ponto de vista
de suas funes, significa que a formao de hbitos motores pela vida da adaptao substitudo
pela formao de habilidades motoras pela via da converso de aes conscientes autnomas em
operaes motoras auxiliares. daqui que se desenvolvem as formas especializadas de habilidades
motoras ( ) na esteira do que Zaporozhets chamou de desenvolvimento
dos movimentos voluntrios ( 45) , no processo cada vez mais
ativo e complexo de automatizao de aes conscientes e intencionais. Abordaremos tais
aspectos nos captulos 03, 04 e 05.
45 Esta a terminologia no original em russo usada por Zaporozhets para designar os movimentos voluntrios ou aes
voluntrias, que pressupe atividade intencional.
97
Antes de iniciar a nossa anlise, faz-se necessrio realizar alguns esclarecimentos sobre o
que significa a experincia scio-histrica, a experincia individual ou ontogentica, e a
experincia especfica, no que se refere s diferenas entre o homem e o animal, pois, para a
psicologia histrico-cultural, estas experincias se realizam no humano como unidade do diverso,
quer dizer, tudo que o nos rodeia que foi objetivado pelo homem, inclusive os prprios homens,
so produtos da relao entre estas trs experincias. Por outro lado, nos animais, o seu
comportamento individual depende de uma dupla experincia: a experincia especfica, fixada
nos mecanismos do comportamento reflexo incondicional instintivo, e a experincia individual,
formada ontogeneticamente46. A sua funo fundamental consiste numa adaptao do
comportamento especfico aos elementos mutveis do meio exterior (LEONTIEV, 2004, p. 190).
Segundo Leontiev (2004, p. 204), no homem, a experincia scio-histrica produto do
desenvolvimento de numerosas geraes e se transmite de uma gerao a outra, portanto, no
fixada pela hereditariedade. Esta experincia especfica no sentido em que no se forma na vida
dos diferentes indivduos, mas produto do desenvolvimento histrico-social. Assim, se difere da
experincia especfica e da experincia individual ou adaptativa dos animais. A experincia scio-
histrica [...] distingue-se, por um lado, pelo seu contedo, o que evidente, e por outro, pelo
princpio do seu mecanismo de aquisio e de apropriao (LEONTIEV, 2004, p. 190). Afirma o
autor que
Como exemplo, Leontiev toma a aprendizagem da criana da ao de beber gua num copo
para ilustrar o fato acima. Neste processo h uma relao entre a experincia especfica, a
experincia individual e a experincia scio-histrica. Todavia, o contedo da experincia scio-
histrica condensada no copo que a criana ir se apropriar em sua experincia individual na
ontognese. Porm, para tanto, precisa desenvolver um novo sistema funcional para realizar esta
ao. Nesse caso, o adulto tem um papel fundamental. O adulto constri na criana um novo
sistema motor funcional (LEONTIEV, 2004, p. 191), como esclarece o autor:
47 As aes dos animais respondem a necessidades biolgicas, portanto, esto orientadas a um sentido biolgico.
99
atribuem imitao, nada tm deste mecanismo. As reaes vocais das aves, por
exemplo, podem aparecer sem qualquer imitao do que quer que seja [...].
(LEONTIEV, 2004, p. 193).
Por outro lado, afirma o autor que a imitao no smio um problema mais complexo.
Todavia, a principal fonte de divergncias de debates no campo no se deve s contradies dos
fatos, mas aos diferentes contedos que os autores do ao conceito de imitao (LEONTIEV, 2004,
p. 194).
Leontiev afirma que Na criana a imitao tem um carter totalmente diferente quando a
mesma atinge os dois anos, a saber: a criana manifesta simultaneamente reaes de imitao
especificamente humanas; esta imitao dita intelectual ou imitao segundo o modelo
apresentado (LEONTIEV, 2004, p. 194). Para melhor clarificar esta distino, Leontiev apresenta
o exemplo do experimento realizado por A. V. Zaporozhets, A. G. Poliakova e S. A. Kirillova:
[...] na formao das aes de imitao segundo o modelo apresentado, o papel do reforador
desempenhado, no por um estmulo qualquer que age como resultado da sua realizao, mas pela
coincidncia da ao com a representao do modelo oferecido (LEONTIEV, 2004, p. 195, grifo
nosso). Assim, se a ao pressupe atividade orientada a finalidades, portanto, consciente e
intencional, diferentemente do que acontece nos animais, a criana pequena (2 anos) j relacionava
embrionariamente o motivo (estmulo) e o objeto da necessidade, o que a possibilitava agir;
diferentemente do que acontece nos animais, pois estes no se apropriam da lgica objetiva da
ao.
Assim, preliminarmente, esto postas as diferenas entre a experincia especfica,
individual e scio-histrica no homem e no animal, o que tem grande importncia para a anlise
do desenvolvimento da corporalidade nos animais e nos homens. sobre este aspecto que nos
deteremos agora.
Na investigao sobre o desenvolvimento da corporalidade, identificamos e analisamos a
corporalidade animal e a corporalidade humana. A corporalidade animal orientada por
determinaes biolgicas, j a corporalidade humana reflete a experincia especfica, scio-
histrica e ontogentica como unidade de natureza e cultura no humano, seus sentidos e
significados so engendrados pelas relaes sociais concretas. Esta distino ser essencial para
identificarmos a estrutura, gnese, e formas de desenvolvimento desde a corporalidade animal a
formao de rgos motores, elementos motores, operaes motoras, hbito motor s formas do
100
[...] o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha que ele figura na mente
sua construo antes de transform-la em realidade. No fim do processo do
trabalho aparece um resultado que j existia antes idealmente na imaginao do
trabalhador. Ele no transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime
ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei
determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade. E
essa subordinao no um ato fortuito. Alm do esforo dos rgos que
trabalham, mister a vontade adequada que se manifesta atravs da ateno
durante todo o curso do trabalho (grifos nossos). (MARX, 2003: 211-212).
Esta relao entre o animal e o objeto48 da necessidade tambm definida por Leontiev
como obstculo, que geram uma espcie de orientao biolgica. So estes obstculos que
produzem o nexo entre desenvolvimento fsico e desenvolvimento psquico nestes indivduos. O
desenvolvimento da corporalidade uma forma de ser do animal. O aparecimento dos rgos
motores e sua complexificao evidencia este fato.
So vrias as formas de desenvolvimento da corporalidade animal: rgos motores,
elementos motores, operaes motoras, hbito motor. Tais formas esto diretamente relacionadas
ao desenvolvimento das formas do psiquismo sensorial elementar, psiquismo sensorial, psiquismo
perceptual, memria, at o estgio do intelecto animal, no qual consegue desenvolver a aptido
para formar hbitos motores na base de operaes motoras fixadas, isto devido o desenvolvimento
da memria figurada primitiva e o consequente desenvolvimento da capacidade de diferenciao e
generalizao da imagem das coisas. Este processo passa do estgio do reflexo incondicionado ao
reflexo condicionado e, na medida em que os animais vo encontrando obstculos naturais, com
os quais precisam se relacionar para satisfazer necessidades naturais, novas formas de sua
corporalidade vo sendo produzidas, orientadas por significados e sentidos biolgicos, portanto,
que vo constituindo a sua individualidade e ao mesmo tempo requalificando a sua corporalidade.
Segundo Duarte (2013, p. 165), em sua contribuio a uma teoria histrico-social da
formao do indivduo49, Antes de tudo, preciso distinguir a individualidade biolgica, isto ,
animal, da individualidade especificamente humana, como elucida abaixo:
[...] Luria (1979, pp.50-70) mostrou que a individualidade, como fato biolgico,
pode ser constatada no comportamento dos vertebrados superiores. Analisando o
que denomina comportamento individualmente varivel dos vertebrados, o
autor mostra que esses animais, em virtude de um sistema nervoso ter neles
atingido, na evoluo biolgica, certo nvel de desenvolvimento, podem
apresentar complexas variaes comportamentais, o que lhes assegura grande
capacidade de adaptao a condies ambientais variveis. Ou seja, na interao
adaptativa com o meio ambiente, esses animais formam uma individualidade, um
conjunto singular de comportamentos que lhes garante a sobrevivncia nas
condies ambientais dadas. Logicamente, o animal forma essa singularidade
comportamental a partir dos mecanismos inatos que lhe so transmitidos por
48 O significado aqui atribudo ao termo mediatizao em Leontiev no corresponde ao suposto por Vigotski, sobre o
qual dissertamos anteriormente nessa pesquisa.
49 DUARTE, Newton. A individualidade para-si. Por uma teoria histrico-social da formao do indivduo. (Tese de
doutorado - Faculdade de Educao), UNICAMP. 1993.
102
Para corroborar o que estamos analisando, Leontiev (2004, p. 115) afirma que, nos animais,
O domnio dos motivos possveis est estritamente limitado aos objetos naturais concretos que
respondem s necessidades biolgicas do animal, e toda a evoluo das necessidades est
condicionada por uma mudana da organizao fsica dos animais. Isto possibilita afirmar que o
desenvolvimento fsico do animal amplia dinamicamente o seu campo sensorial, aspecto essencial
do desenvolvimento de formas mais complexas deste tipo particular de psiquismo.
Por outro lado, no psiquismo humano, em determinada fase do desenvolvimento, pela
objetivao e apropriao da cultura, resultado do desenvolvimento scio-histrico das geraes
anteriores, esse processo de desenvolvimento se inverte e as objetivaes produzidas pelo trabalho
humano assumem a direo do seu desenvolvimento, como veremos no prximo item, quando
passaremos anlise do desenvolvimento da organizao corporal como uma forma essencial para
a complexificao da atividade produtiva, o que fez surgir formas complexas do desenvolvimento
da corporalidade humana, devido ao processo de autonomizao das aes/operaes na atividade.
52 Segundo Kosik (2011, p. 203-204), Na histria do pensamento essa linha representada pelos filsofos que
afirmam o significado da mo do homem e a sua conexo com a racionalidade humana. Anaxgoras diz que o homem
o mais racional de todos os viventes porque tem as mos. Aristteles, e depois dele Giordano Bruno, chamam a mo
o instrumento dos instrumentos. Hegel leva a termo tal linha....
105
fsica. No processo de produo desse tipo de atividade humana particular, a atividade do sujeito
orientada ao objeto sobre o qual age a fim de objetivar o seu contedo e o faz pela mediao de
instrumentos. No processo de apropriao dos resultados da atividade, h uma inverso. Agora o
sujeito age para se apropriar do contedo da atividade produzida pelas geraes anteriores, mas o
faz por meio de uma relao cada vez mais ativa, consciente, intencional e crtica, porm indireta,
quer dizer, mediada por signos, entre o indivduo e seu corpo, na direo do autodomnio da
corporalidade humana. preciso notar que apesar da inverso da posio ocupada pela necessidade
no processo de objetivao e apropriao, quer dizer, da necessidade como condio necessidade
como resultado, a relao social que constitui a atividade permanece a mesma, a relao entre
indivduo e corpo/corporalidade, o ltimo, o objeto para o qual se dirige a ao mediada. Por isso
que o corpo/corporalidade o objeto deste tipo de atividade humana.
Na histria da espcie humana, o processo de aquisio das operaes motoras condensadas
no instrumento possibilitou ao homem alcanar a sensomotricidade extenso dinmica do seu
campo sensorial , criando condies para a hominizao de sua esfera motriz. Ao se apropriar
do contedo-forma das operaes motoras condensadas no instrumento, o homem, em vez de
adaptar o instrumento a seus movimentos naturais, adapta seus movimentos naturais ao
instrumento. Esse processo impulsionou/impulsiona (at hoje na ontognese humana) a
requalificao de seus movimentos naturais instintivos em faculdades motoras superiores,
possibilitando, por consequncia, a requalificao da atividade. Segundo Leontiev (2004, p. 287-
288),
[...] os hbitos motrizes dos animais se formam a partir dos elementos motores da
transposio de um obstculo, que o carter do prprio obstculo que determina
o contedo dos hbitos e que o prprio estmulo (isto , o agente excitante
107
Isto significa que, nos animais, o obstculo (meio) medeia a formao dos elementos
motores, que determina o contedo dos hbitos motores (operaes fixadas), enquanto o excitante
principal tem apenas uma influncia dinmica (sobre a rapidez e a estabilidade do hbito), pois o
animal no acumula experincia histrica nos objetos, s adquire a experincia acumulada pela
adaptao e mudana na forma da hereditariedade. A experincia natural incorporada ao seu
desenvolvimento biolgico por uma necessidade de sobrevivncia, em determinadas condies. Os
animais adaptam o instrumento a seus hbitos e seus hbitos no acumulam atividade nos
instrumentos, eles se relacionam de forma puramente natural.
importante destacar, segundo Leontiev, que os smios conseguem desenvolver a
experincia individual e a fixao das operaes no mais que o acmulo dessas experincias,
em especial quando o mesmo realiza diferenciaes e generaliza as ligaes e relaes entre os
objetos a fim de resolver problemas mais complexos, que exigem mais de uma fase para alcanar
a finalidade53 (sentido biolgico).
J os homens, como vimos, desenvolveram a capacidade de adaptar os seus hbitos motores
aos instrumentos, que j contm atividade acumulada pela experincia do gnero. Este processo,
mediado por aes, gerou formas mais complexas do hbito motor, a saber, a habilidade motora,
uma forma automatizada de movimentos que j exige aprendizagem consciente54.
Se todo este complexo processo de formao dos hbitos motores ocorre nos animais por
meio de reflexos condicionados, no homem ocorre uma alterao na relao dos sujeitos com os
estmulos. Essa alterao tem sua gnese na prtica social e na necessidade de sua transmisso,
portanto, no ensino, posto que os estmulos de primeira ordem (naturais), graas natureza da
atividade, se firmam como estmulos de segunda ordem, a saber, como signos, que carecem de
transmisso! O homem domina conscientemente novas formas de movimento, quer dizer, os
homens alcanam um desenvolvimento capaz de assumir a responsabilidade sobre as suas
aes/operaes na medida em que, ao se apropriarem do contedo complexo culturalmente
53 Para entender mais o contedos das operaes desenvolvidas pelos smios na resoluo de tarefas bifsicas ver
Leontiev (2004) ou a fonte originria nos estudos de K. Bhler na obra Bases do desenvolvimento do psiquismo (1924,
apud LEONTIEV, 2004, p. 59).
54 O estudo que d origem ao texto Estudio psicolgico del desarrollo de la motricidade em el nio pr-escolar,
publicado na obra organizada por Davdov e Shuare La psicologia evolutiva e pedaggica em la URSS Antologia,
1987, foi escrito por Leontiev e Zaporzhets na obra Cuestiones de psicologia del nio pr-escolar, 1984.
108
formado da atividade, passam a autodominar a sua conduta. Esse domnio da conduta possibilitou
ao homem criar formas sociais de produo extremamente complexas, que passaram a orientar o
seu desenvolvimento. O autodomnio da conduta uma forma de conscincia mais elaborada,
complexa, somente produzida na esteira da atividade complexa, que j exige graus mais elaborados
de desenvolvimento das funes psicolgicas superiores, preponderantemente a linguagem e o
pensamento.
Segundo Martins, (2004, p. 87),
Segundo Saviani (2012, p. 13), o que no garantido pela natureza tem que ser produzido
historicamente pelos homens, como uma segunda natureza, e a se incluem os prprios homens.
Isto significa que a natureza humana no dada ao homem, mas por ele produzida sobre a base
da natureza biofsica, quer dizer, sem a humanizao da natureza biofsica nunca seria possvel a
produo do instrumento, a produo dos prprios homens e, portanto, a complexificao de sua
55 Esse processo de inverso na lgica do desenvolvimento pode ser entendido no item sobre o conceito de
necessidade, analisando em momento anterior na tese.
109
56 importante destacar que, a rigor, os animais no significam nem conferem sentidos, posto que no operam com
signos, outrossim, atuam na base de comportamentos reflexos!
57 Ver exemplo das experincias de K. Bhler (1924, apud LEONTIEV, 2004, p. 59).
110
ligava uma dada operao, mas tambm segundo o princpio de analogia das
relaes, das ligaes entre os objetos aos quais ela responde (ramo-fruto, por
exemplo). Agora o animal generaliza as relaes e ligaes entre os objetos. Estas
generalizaes forma-se evidentemente, da mesma maneira que o reflexo
generalizado das coisas, isto , no prprio processo da atividade animal 58.
Porm, questiona Leontiev (2004, p. 83): Como pode nascer uma ao, isto , a separao
do objeto da atividade do seu motivo [...], um atributo essencial da atividade humana? Segundo o
autor,
58 Apesar de no ser possvel neste estudo abordar as dimenses psicofisiolgicas do desenvolvimento animal e
humano, importante sinalizar que O aparecimento e desenvolvimento do intelecto animal tem por base anatomo-
fisiolgica o desenvolvimento do crtex cerebral e das suas funes. [...]. O elemento novo que diferencia o crebro
dos mamferos superiores do dos animais menos evoludos o lugar relativamente mais importante que ocupa o crtex
frontal, cujo desenvolvimento se faz pela diferenciao das reas pr-frontais. Os estudos experimentais de Jackobsen
mostram que a ablao da parte anterior dos lobos frontais nos animais superiores que antes da ablao eram capazes
de resolver um certo nmero de problemas complexos, os torna incapazes de resolver problemas bifsicos, ao passo
que a operao j estabelecida de apanha um engodo com a ajuda de um pau conservada. Uma vez que a ablao dos
outros campos do crtex cerebral no produz o mesmo efeito, podemos concluir daqui que estes novos campos esto
especificamente ligados realizao da atividade bifsica. (LEONTIEV, 2004).
111
Segundo ao autor, Historicamente, pelo seu modo de apario, a ligao entre o motivo e
o objeto de uma ao no reflete relaes e ligaes naturais, mas ligaes e relaes objetivas
sociais (LEONTIEV, 2004, p. 84).
Assim, o reflexo das relaes entre coisas na atividade dos animais superiores, que
possibilita a diferenciao e generalizao, produz tambm o desenvolvimento da memria das
situaes, na base de significados e sentidos biolgicos, que, no homem, transforma-se numa
atividade submetida a relaes sociais desde sua origem. Como afirmou Leontiev, Esta a causa
imediata que d origem forma especificamente humana do reflexo da realidade, a conscincia
humana (LEONTIEV, 2004, p. 85). Vamos entender melhor:
Segundo o autor (2004, p. 85), [...] Com a ao, esta unidade principal da atividade
humana, surge assim, a unidade fundamental, social por natureza, do psiquismo humano, o
sentido racional para o homem daquilo para que a sua atividade se orienta. Isto significa que [...]
preciso que o sentido de suas aes se descubra, que ele tenha conscincia dele. A conscincia
do significado de uma ao realiza-se sob a forma de reflexo do seu objeto enquanto fim
consciente (LEONTIEV, 2004, p. 86).
Leontiev (2004, p. 116) afirma que o fato psicolgico decisivo consiste no deslocamento
dos motivos de uma ao para os fins que precisamente no respondem diretamente s necessidades
biolgicas naturais. especialmente o caso dos motivos de cognio que aparecem ulteriormente.
O autor traz um exemplo bastante esclarecedor para ilustrar este processo: O conhecimento, como
fim consciente de uma ao, pode ser estimulado por um motivo que responde necessidade natural
de qualquer coisa, quer dizer, responde necessidade imediata de alimentao, de se proteger do
frio ou de um animal selvagem etc., e todas estas necessidades naturais podem estimular um fim
consciente de uma ao. Mas, afirma Leontiev, ainda na mesma pgina, [...] a transformao deste
fim em motivo tambm a criao de uma necessidade nova, neste caso de uma necessidade de
conhecimento.
112
Aqui o movimento analtico realizado por Leontiev o mesmo realizado por Marx, e j
explicitado por ns neste texto em momento anterior, quando o autor analisa: o primeiro
pressuposto de toda existncia humana e tambm, portanto, de toda a histria, a saber, o
pressuposto de que os homens tm de estar em condies de viver para poder fazer histria, quer
dizer, precisam produzir a sua existncia apropriando-se de comida, bebida, moradia, vestimenta,
etc. (LEONTIEV, 2004, p. 116). A satisfao dessa primeira necessidade, afirma Marx, a ao de
satisfaz-la e o instrumento de satisfao j adquirido conduzem a novas necessidades, sendo essa
produo de novas necessidades que constitui o primeiro ato histrico (MARX, 2007, p. 33). O
fato de o homem ter a capacidade de transformar um fim de uma ao em motivo da atividade
um fato histrico de imensa grandeza. Foi neste sentido que Marx explicou o fundamento
histrico-ontolgico do trabalho como a exteriorizao do prprio ser do homem em sua relao
com as formas objetivadas da realidade.
Segundo Marx (2007, p. 35),
Doravante, est presente ao sujeito a ligao que existe entre o objeto de uma ao (o seu
fim) e o gerador da atividade (o seu motivo). Ela surge-lhe na sua forma imediatamente
sensvel, sob a forma da atividade de trabalho na coletividade humana. Esta atividade,
reflete-se agora na cabea do homem no j em fuso subjetiva com o objeto, mas como
relao prtico-objetiva do sujeito para com o objeto (LEONTIEV, 2004, p. 86).
Isto significa que A conscincia humana far doravante a distino entre a atividade e os
objetos, que, segundo o autor, [...] pode ser distinguido, entre outros objetos de atividade, no
113
apenas praticamente, mas tambm teoricamente, isto quer dizer que ele pode ser conservado na
conscincia e tornar-se ideia (LEONTIEV, 2004, p. 87).
Portanto, nesse processo de desenvolvimento da ao/operao em geral, no qual a ideia
tem um papel essencial para a sua complexificao, como veremos mais frente, a organizao
corporal humana para a produo dos meios de existncia passa de operaes fixadas (hbito
motor) ao/operaes conscientes, a habilidade motora. Quando os fins das aes/operaes
conscientes (fsicas e mentais) se transformam em motivo, devido complexificao da atividade
produtiva como um todo, nascem os embries de uma nova necessidade, que parece ter dado
origem a novas atividades, tais como a linguagem, a arte, o esporte em sua forma embrionria (o
jogo) etc.
Mas esse processo de surgimento de novas necessidades complexo. Como observa Marx,
vai depender do desenvolvimento e aperfeioamento da conscincia por meio da produtividade
aumentada, do incremento das necessidades e do aumento da populao, que a base dos dois
primeiros. Com isso desenvolve-se a diviso do trabalho, que originariamente nada mais era do
que a diviso do trabalho no ato sexual e, em seguida, diviso do trabalho que, em consequncia
de disposies naturais [...], necessidades, casualidades etc., desenvolve-se naturalmente (MARX,
2007, p. 35). Estes aspectos analisaremos nos prximos itens.
impulsionado a agir sobre a realidade e sobre outros sujeitos para satisfazer necessidades, esta
realidade, alterada pela atividade, influencia o sujeito, produzindo nele marcas sensoriais. Quando
se pode, porm, falar em relao sujeito-objeto? Segundo Lukcs (1966, p. 89), s no intercmbio
mediado, no processo de trabalho, aparece uma autntica relao sujeito-objeto [...], e a rigorosa
separao entre o eu e o no-eu uma forma sumamente tardia da conscincia humana. Na
ontognese, esta separao s se dar no entorno de 24 meses, quando a criana j articula
pensamento e fala mediada pela relao entre palavra e conceito59.
A introduo da categoria prxis na teoria do conhecimento elaborada por Marx constitui o
ponto fundamental da linha divisria entre a concepo dialtica materialista do conhecimento e a
existente no materialismo pr-marxista, por uma parte, e na filosofia idealista, por outra. A
concepo existente no materialismo metafsico, de acordo com Leontiev, consistia em conceber
a sensorialidade somente como uma forma de contemplao e no como atividade humana, como
prxis. Dessa forma, em oposio ao materialismo, o lado ativo foi desenvolvido pelo idealismo,
em que, no obstante, o concebia de modo abstrato, e no como verdadeira atividade sensorial do
homem (LEONTIEV, 1984, p. 60).
Assim, [...] ou bem adotamos a posio de que a conscincia determinada por objetos,
por fenmenos circundantes; ou bem a que afirma que a conscincia determinada pela existncia
social dos homens que, segundo a definio de Marx e Engels em a Ideologia Alem, no mais
do que o processo real de sua vida, e o critrio de verdade a prtica social. (LEONTIEV, 1984,
p. 66).
De acordo com Vieira Pinto (1984, p. 215),
Assim, na esteira da atividade prtica histrica que produz a conscincia humana, Leontiev
afirma que a vida humana nesta acepo [...] um sistema de atividades que se substituem umas
as outras. na atividade onde se produz a transio do objeto a sua forma subjetiva, a imagem; por
sua vez, na atividade se opera tambm a transio da atividade a seus [...] produtos. Conclui ainda
o autor: Tomada deste ngulo a atividade aparece como um processo no qual se concretizam as
transies recprocas entre os polos sujeito-objeto. Na produo se objetiva a personalidade; no
consumo se subjetiva o objeto [...]. O sujeito age, produz e, ao produzir, incorpora-se ao objeto
sobre o qual age, altera a sua forma e contedo, quer dizer, altera as suas propriedades exteriores e
interiores; portanto, ao produzir, consome, e esta ao de consumo produtivo promove uma
alterao no prprio sujeito, num processo em que sujeito e objeto se constituem como identidade
de contrrios. Mas, como se d a ao de transferncia da atividade do sujeito para o objeto, e por
sua vez, da atividade condensada no objeto para o sujeito, dito de outro modo, de subjetivao do
objetivo?
Como afirma Leontiev (1984, p. 100-101), A atividade laboral vai deixando sua marca em
seu produto. Se opera [...] a transio da atividade a uma propriedade em repouso. A atividade
leva o homem a nveis mais elaborados de reflexo da realidade, no entanto, esta relao com o
objeto no faz brotar do homem a imagem cognoscvel do objeto. De acordo com Leontiev (1984,
p. 103), para que este processo se desenvolva, no basta ter encarnado as propriedades do sujeito
no objeto e este lhe aparecer como imagem ao sujeito. Se assim entendssemos estaramos caindo
num idealismo, pois seria como se a conscincia estivesse pronta, s aguardando a imagem do
produto, resultado da atividade humana, para se desenvolver como ideia suprema.
Segundo Leontiev (1984, p. 103), Por isso, a conscincia individual como forma
especificamente humana de reflexo subjetivo da realidade objetiva s pode ser compreendida como
produto das relaes e mediaes que aparecem durante a formao e desenvolvimento da
sociedade. E conclui categoricamente o autor: Fora do sistema dessas relaes (e fora da
116
chamou de significado ou signo. Agora possvel entender que entre o motivo e a finalidade se
interpem aes/operaes e, na medida em que se altera o contedo desta relao (aes /
operaes), altera-se toda a atividade, pois a alterao nas condies de produo da atividade
impulsiona a produo de novas necessidades/finalidades e esta produz novas motivaes no
sujeito.
A alterao nas condies de produo da atividade no significa a sua fragmentao. Pelo
contrrio, o movimento que estamos tratando aqui se refere ao processo complexo de
desenvolvimento das relaes entre atividade e conscincia e seu processo de complexificao na
base do modo de produo e da luta de classes e suas implicaes na produo da cultura em geral.
Isto significa que o modo de produo da existncia vai gerando alteraes nas atividades
humanas na medida em que determina o contedo objetivo de suas operaes e aes concretas,
que, no processo histrico, devido a alterao nas condies, vai gerar crises, que faz surgir novas
necessidades, dando origem a novas atividades, quer dizer, as aes j elaboradas vo se
transformando em operaes, que, por sua vez, colaboram no desenvolvimento das aes
qualitativamente mais desenvolvidas; e a sua autonomizao, devido complexificao, vai
produzir novas atividades, em outras palavras, quando os fins da ao passam a motivo tem-se a
produo de novas necessidades, portanto, novas atividades humanas.
No podemos deixar de ressaltar que tal processo na histria da humanidade pode aparecer
como avano ou retrocesso, a depender das foras que direcionam o processo social, chegando at
a involuo, a depender das condies e das relaes postas entre o motivo e a finalidade das
atividades humanas. Trato dessa questo porque, diante do processo de desenvolvimento no modo
de produo capitalista na atualidade, a involuo da atividade humana no uma questo a ser
descartada das anlises. Portanto, a atividade humana, nessa acepo, no uma pura abstrao ou
um processo lgico ausente de contedo da realidade, pelo contrrio, ela produto, uma sntese
contraditria das relaes entre as necessidades humanas-finalidades postas pela humanidade.
Todo esse processo de desenvolvimento no mais do que a produo da riqueza humana
e riqueza material e misria humana em todas as formas sociais, uma contradio das relaes
sociais na atualidade.
Exposta a anlise sobre as relaes entre o desenvolvimento do trabalho e o aparecimento
da conscincia, esteira para a criao de novas formas de atividade, tais como a linguagem, a arte,
o esporte, passamos a analisar as relaes entre o aparecimento do signo, o desenvolvimento do
118
enquanto que, no homem, foi a sua atividade instrumental que criou as particularidades especficas
da mo (LEONTIEV, 2004, p. 89-90). Continua o autor:
Sabemos que esta forma mais complexa do reflexo psquico a conscincia, uma forma de
ser complexa do psiquismo humano produzida na unidade entre linguagem e pensamento na esteira
da atividade produtiva. Segundo Marx (2007, p. 35), a conscincia
De acordo com Luria (1979a), a linguagem tem uma importncia central para a formao
dos processos psquicos. A linguagem penetra em todos os campos conscientes da atividade do
homem, elevando-a a um novo nvel. De acordo com o autor,
[...] seria incorreto pensar que os sons, que assumiriam paulatinamente a funo
de transmitir certa informao, eram palavras capazes de designar com
independncia os objetos, suas qualidades, aes ou relaes. Os sons, que
comeavam a indicar determinados objetos, ainda no tinham existncia
autnoma. Estavam entrelaados na atividade prtica, eram acompanhados de
gestos e entonaes expressivas, razo por que s era possvel interpretar o seu
significado conhecendo a situao evidente em que eles surgiram. Alm do mais,
nesse complexo de meios de expresso parece que, a princpio, coube posio
determinante aos atos e gestos; estes, segundo muitos autores, constituam os
fundamentos de uma original linguagem ativa ou linear e s bem mais tarde o
papel determinante passou a ser desempenhado pelos sons, que propiciaram a base
para a evoluo paulatina de uma linguagem de sons independente. [...].
De acordo com o autor, Por isso, a conscincia individual como forma especificamente
humana de reflexo subjetivo da realidade objetiva s pode ser compreendida como produto das
relaes e mediaes que aparecem durante a formao e desenvolvimento da sociedade
(LEONTIEV, 2004, p. 103). E conclui categoricamente o autor: Fora do sistema dessas relaes
(e fora da conscincia social) no possvel a existncia da psique individual em forma de reflexo
consciente, de imagens conscientes. Assim,
Segundo Leontiev (2004, p. 123), as aes verbais internas, depois em conformidade com
a lei geral do desenvolvimento dos motivos (a ao passa a motivo da atividade), a formao de
uma atividade lingustica, interior pela sua forma, e de operaes interiores, manifestam-se agora
como puramente cognitivas (processos de pensamento verbal ou talvez de memorizao ativa),
formam um conjunto particular de processos internos intelectuais que s so verbais na medida em
que os so as significaes lingusticas aptas para se deslocarem da ao direta do significado que
constituem o seu tecido. Todavia, segundo o autor,
Assim, foi possvel apreender que a diviso social do trabalho leva a que a atividade
espiritual e a atividade material sejam incumbidas a pessoas diferentes62. Segundo Leontiev, s a
diviso do trabalho poderia criar condies tais que viessem a permitir ao homem que a
representao como uma forma absolutamente diferente dos processos de atividade exterior, os
processos de atividade interior, existindo entre os dois processos uma contradio original e eterna,
pois, como afirmou Marx (2007, p. 36), a possibilidade de que a atividade espiritual e material, a
fruio e o trabalho, a produo e o consumo no entrem em contradio reside somente em que a
diviso do trabalho seja novamente suprassumida.
Portanto, segundo Leontiev, quanto mais rpida a separao do trabalho intelectual do
trabalho fsico, a atividade espiritual da atividade material, menos capaz o homem de reconhecer,
no primeiro, a marca do segundo e perceber a comunidade das estruturas e das leis psicolgicas
das duas atividades (LEONTIEV, 2004, p. 125). Afirma o autor que na atividade psicolgica foi
possvel mostrar que a atividade interior terica possui a mesma estrutura que a atividade prtica.
Por consequncia, devemos, tambm no pensamento, distinguir entre a atividade propriamente dita,
as aes e as operaes e as funes cerebrais que as possibilitam (LEONTEIV, 2004, p. 126).
Segundo o autor,
62 Ver MARX, K. Ideologia Alem. So Paulo: Boitempo, 2007; MARX, k. Grundrisse. So Paulo: Boitempo, 2011.
Ver ainda o estudo de Ostrovitianov e Leontiev. Modos de produo pr-capitalistas. s/d.
124
J entendemos que a complexificao das aes gera alteraes na atividade, o que pode
impulsionar, em determinadas condies, novos sistemas de atividade devido a autonomizao das
aes. Foi isso que Leontiev quis dizer quando observou: [...] a palavra e a linguagem se separam
da atividade prtica imediata, as significaes verbais so abstradas do objeto real e s podem
portanto existir como fato de conscincia, como pensamento, constituindo um sistema de
atividade novo, determinado por significados sociais.
Em nossa anlise, estamos afirmando que as formas da corporalidade humana so
resultados da complexificao da organizao corporal humana no processo de produo dos meios
de trabalho, o que evidencia que as aes/operaes a empregadas j apresentam formas mais
elaboradas de desenvolvimento do hbito motor, sua forma superior. J evidenciam, portanto, o
desenvolvimento de operaes fsicas e mentais conscientes, tal como a habilidade motora, logo
uma forma que evidencia a humanizao da esfera motriz humana, um produto social.
Assim, do ponto de vista histrico-social, a complexificao das aes na atividade criou
as condies para o surgimento de novas necessidades, que deu origem a novas atividades, tais
como a linguagem, a arte, a poltica etc., e tambm a atividade esportiva, que uma forma de
objetivao que contm atividade humana condensada, portanto constitui a sua estrutura uma
complexa relao entre o indivduo e seu corpo, que extrapola as formas funcionais, mas isto no
nega o fato de que estas so determinantes para a realizao desse tipo de atividade.
Diante disso, nos dois prximos itens trataremos da atividade esportiva a fim de evidenciar
a sua complexificao no processo histrico. Para tanto, no primeiro item realizamos uma breve
nota sobre a gnese e estrutura da atividade esportiva, para ento no segundo item, explicitar
algumas das formas de manifestao da atividade esportiva e sentidos atribudos na Roma
Imperial, com base nos estudos de Manacorda (1996, 2003, s/d).
125
63 Em primeiro lugar.
64 Primeiro.
126
sua forma embrionria, so atividades humanas, pois so significados que deram origem a motivos
particulares, que so universais, tais como o ldico, o artstico, o agonstico, o competitivo etc. E
mais: estas formas de ser possuem propriedades especficas, quer dizer, cada forma singular da
atividade esportiva tem as suas particularidades, suas caractersticas. Porm, no necessariamente
todas as suas categorizaes, por exemplo, o jogo de movimentos e o jogo intelectual, os jogos
virtuais ou game, conduzem forma universal da atividade esportiva que temos assumido neste
estudo uma relao ativa e indireta entre o indivduo e seu corpo, do indivduo com os outros
indivduos e consigo mesmo, em condies determinadas. Isto significa que a complexificao
deste tipo particular de atividade deu origem a novas estruturas e relaes sociais, que no esto
ligadas especificidade do que estamos definindo neste estudo como o objeto da educao fsica,
a saber, a corporalidade humana; se constituiu como atividade particular.
Na anlise da estrutura e gnese e desenvolvimento desse tipo particular de atividade, a
saber, a atividade esportiva, ao tomar por referncia o mtodo que afirma que a anatomia do
homem a chave para a anatomia do macaco (MARX apud DUARTE, 2000), entendemos que
esta a forma mais desenvolvida da experincia scio-histrica da corporalidade humana
acumulada em objetos sociais. A sua estrutura condensa atividade humano-genrica com graus
elevados de complexidade. Sua gnese a atividade produtiva e o jogo a sua forma embrionria
quando os fins das aes passaram a motivo da atividade, dando origem a novas necessidades.
Assim, a atividade esportiva uma expresso universal do desenvolvimento histrico-social da
corporalidade humana, uma relao ativa e indireta entre o indivduo e seu corpo, do indivduo
consigo mesmo e com os outros homens, produzida na histria do gnero humano, portanto a forma
universal do desenvolvimento da corporalidade humana.
Como j vimos, parece que o desenvolvimento cada vez mais complexo da relao entre o
indivduo e seu corpo, na esteira da atividade produtiva, provocou a autonomizao de aes
conscientes em operaes motoras auxiliares de novo tipo, produzindo embrionariamente um novo
sistema de atividade as formas embrionrias de jogos com motivos particulares, mas ento ainda
ligados ao motivo mais geral da atividade produtiva.
Na atividade esportiva, possvel a convivncia de vrios motivos particulares, havendo a
predominncia de um ou outro ou at mesmo dois motivos particulares num mesmo objeto, a
depender da atividade e do sentido que o contedo destas tem para os indivduos.
127
65 Segundo Nosella (2013, p. 26), O ltimo grande trabalho de Manacorda, de 1.200 pginas, em fase de reviso,
Diana e le muse: tre millenni di sport nella letteratura antologia ragionata da Omero a noi (Diana e as musas: trs
milnios de esportes na literatura antologia comentada de Homero aos nossos dias). Ele faleceu sem poder ver o
livro: Esse trabalho sobre o esporte decidi dividi-lo numa antologia esportiva onde tem Homero, tem Pndaro, tem
Virglio; mas tem tambm Dante, Petrarca, Erasmo de Rotherdam, tem Goete, tem at Shakespeare porque a literatura
est cheia de referncias ao esporte que as histrias literrias pem num canto. Os intelectuais se envergonham de
serem tambm esportivos, ou talvez no o sejam, talvez sejam apenas torcedores. (DVD, livreto, 2007, p. 18). Algum
poderia pensar que Manacorda estava esquecendo o marxismo e pagando tributo desmerecido corrente terica
chamada Nova Histria. Nada disso. Ele, sem negar a importante contribuio na historiografia dos Annales Franceses,
com essa obra objetiva criticar a separao entre o fsico e o cultural, herana da filosofia espiritualista e idealista:
No se move o corpo sem um trabalho da inteligncia, nem a inteligncia sem um trabalho do corpo, do crebro, da
voz, da caneta, do computador (Diana e le muse, 2008, p. 10). No h, costumava dizer, um corpo e uma alma, h um
corpo animado ou uma alma encarnada. Com efeito, essas pginas representam uma atenta costura de textos clssicos,
comentados, feita com o filo rosso caracterstico do mtodo marxista. Fonte: NOSELLA, Paolo. Mario Alighiero
Manacorda: um marxista a servio da liberdade plena e para todos Srie-Estudos... Campo Grande, MS, n. 36, p. 15-
30, jul./dez. 2013.
128
do homem, algo tido com de menor valor diante das atividades do esprito. O objetivo de sua
pesquisa foi testemunhar a impossibilidade de separar esses dois aspectos da histria humana, seja
quando esto solidamente entrelaados na prtica de vida e na literatura, seja quando so estudados
separadamente pela historiografia (MANACORDA, p. 17, s.d.) e conclui:
Para o incio de sua pesquisa foi escolhido Plato, pois, segundo o autor italiano [...] foi o
primeiro a enfrentar racionalmente o problema dessa unidade [...].
Na anlise das relaes entre vida fsica e vida psquica na Grcia clssica e,
particularmente, na Roma Imperial, Manacorda (s/d) afirma que a dualidade mais caracterstica
expressa na dicotomia entre corpo e alma.
Sabemos que tal dicotomia expressa o problema mais essencial da filosofia, a saber: as
relaes entre materialismo e idealismo. Porm, sabemos que os problemas gnosiolgicos so em
sua essncia problemas ontolgicos. Sabemos tambm que Manacorda traz em suas bases
metodolgicas a prioridade do ser e fez um esforo para analisar um contedo particular da cultura
humana, sem perder de vista a contradio. Assim, para Manacorda, no h vida psquica sem vida
fsica e, por outro lado, tambm no h vida fsica efetiva sem vida psquica, com primazia para a
primeira.
Em sua introduo obra citada, numa anlise da produo literria no tempo histrico, o
autor Italiano reflete sobre como a vida fsica influenciou o esprito humano na histria, como as
atividades esportivas interferiram na vida cultural dos povos nos trs milnios passados, sendo o
contrrio tambm verdadeiro.
No ingressamos ao contedo integral da obra, foi-nos disponibilizada uma introduo Al
lettore66, que j expe contedo extremamente significativo, bem como expressa a preocupao
desse intelectual italiano como o futuro da humanidade, com a liberdade humana; mas tambm,
pesquisando a produo internacional sobre o esporte, encontramos dois artigos do autor italiano
publicados nos anos de 1996 e 2003 na revista italiana Lancillotto e Nausika que realizam anlises
das relaes entre vida fsica e vida cultural na primeira metade do primeiro milnio do Imprio
Romano, onde as relaes entre perodos de guerra e de paz se alternam, influenciando a produo
da vida fsica e da vida cultural, que medeiam a formao de posies polticas, intelectuais, sociais,
anunciando em sua estrutura de significados uma pluralidade de motivos que orientavam este tipo
de prtica.
Na anlise de Manacorda no artigo intitulado O Imprio dos jogos: decadncia e queda
dos jogos romanos67 (1996), no qual expe a sua anlise sobre as relaes entre pagos e cristos,
particularmente com relao a questes como a atividade fsica, o esporte e os espetculos,
em meio milnio da Roma Imperial, afirma que Sobre a vida real dos povos antigos formam-se e
consolidam-se, por vezes, alguns lugares-comuns, sobre os quais acaba por se fundar uma
reconstruo errnea ou, para dizer o mnimo, simplificada (MANACORDA, 1996, p. 08).
Continua o autor:
p. 08). Apesar de no ser nosso foco a posio dos intelectuais sobre os jogos, estas expressam
significados e sentidos atribudos a este tipo de prtica nesta sociedade, o que interessa para a nossa
anlise.
Segundo o autor, no [...] primeiro sculo do imprio e um pouco alm, quando a paixo
pelos circenses, pelos munera gladiatoria68, pela venationes69, torna-se cada vez mais desenfreada,
com o favor de um poder autocrtico, que precisa manter a plebe subjugada, afirma Manacorda
que [...] a mimese de guerra, inata em todo o esporte, no mais preparao para a guerra, mas
somente uma lembrana da prpria fora blica (MANACORDA, 1996, p. 08).
Percebemos que o motivo da atividade ligado atividade guerreira vai se transformando e
comea a assumir o sentido de manuteno da plebe subjugada, portanto um sentido poltico. Mas,
nesse perodo, aparecem outros motivos atrelados aos jogos, como observa o autor logo abaixo.
Antes cabe uma observao: para manter o rigor e explicitar os motivos atrelados a este tipo
particular de atividade em Roma Imperial, realizaremos uma sequncia de citaes longas, porm
necessrias para situar a magnitude desse fenmeno da cultura que vem sendo produzido em trs
mil anos de histria70. Afirma Manacorda que
68 Esta palavra em latim significa espetculos de gladiadores (apud MANACORDA, 1996, p. 08).
69 Competies entre animais ou entre homens e animais realizadas na Roma antiga.
70 As citaes abaixo na forma em que foram expostas tornam-se de difcil compreenso, pois trata-se de parte de uma
pesquisa densa, de uma elaborado e erudito sistema analtico de base histrico-social que problematizou as relaes
entre vida fsica e vida espiritual em Roma Imperial. Com isso, o autor pode explicar as relaes entre materialismo e
idealismo nesse perodo histrico tendo por base a anlise dessa relao. Para o nosso objetivo, peo ao leitor que se
atenha aos significados e sentidos atrelados a estas atividades. As notas abaixo foram deixadas para indicar as fontes
primrias analisadas pelo autor. Ao lado eu as remeto ao texto original de minha pesquisa.
71 Sneca, Epistulae ad Lucilium 6,4 (56), 1. (Apud MANACORDA, 1996, p. 08).
72 Do Grego , uma espcie de boxe em que os combatentes tinham bolas de ferro amarrado a suas
mos.
73 Ivi 9, 6 (80), 2. (Apud MANACORDA, 1996, p. 08).
74 Sneca, De brevitate vitae 1,3. (Apud MANACORDA, 1996, p. 08).
131
Tais motivos, de acordo com o autor, eram nada comuns em Roma e ainda menos comum
era a referncia clemncia nos munera gladiatoria:
O homem, algo sagrado para o homem, agora mata-se por divertimento. E ainda:
Considerou-se um novo gnero de espetculos assassinar homens. Combatem
at a morte? pouco! So esquartejados? pouco! Que sejam esmagados como
bestas de dimenses colossais! Em outro momento, contando ter comparecido a
um espetculo esperando jogos, brincadeiras e um pouco de relaxamento,
encontra-se, no entanto, diante de meros homicdios: os gladiadores no tm
nada para se proteger e, expostos como esto inteiramente aos golpes, no se
enfrentam nunca em vo, sendo toda proteo para eles nada alm de um
adiamento da morte. Pela manh, os homens so expostos aos lees e aos ursos;
tarde, a seus prprios espectadores. E so exibies mortais, realizadas inclusive,
por vezes, com a arena vazia, s para ocupar os intervalos: Matem-se homens
para evitar que fique sem acontecer algo. E faz seguir um dilogo imaginrio
com um interlocutor favorvel aos munera: Mas cometeu um latrocnio, matou
um homem E da? Uma vez que matou, mereceu morrer, mas tu, desgraado, o
que fizeste para merecer v-lo...? Os maus exemplos abundam naqueles que os
do76. E ainda: Todas essas artes pelas quais a cidade vai urrar no circo se
constituem de trabalhos do corpo, ao qual, um tempo, tudo se dava como a um
escravo e agora apresentado como a um senhor...; s faltava um homem matar
outro sem estar enfurecido, sem tem-lo, somente para ficar vendo77. Essa sua
voz ainda bastante isolada, mas ser recuperada mais tarde pelos autores cristos
(MANACORDA, 1996, p. 08-09).
Outros motivos podem ser observados. Segundo Manacorda (1996, p. 09), nem em Sneca
se encontrar uma recusa severa de toda atividade fsica, pois seria ainda impensvel no mundo
romano. Dirigindo-se sempre a Luclio, o adverte assim:
Assim, Manacorda afirma que estes so conselhos que revelam um interesse e uma
experincia que ele reencontra em suas anlises nos tratados de medicina: nem mesmo o estoico
Sneca, portanto ignorava ou desprezava esses princpios (MANACORDA, 1996, p. 09). Mas,
outros motivos retornam em outros autores, como afirma Manacorda:
78 Ivi 2, 3 (15), 2.
79 Plnio, o Velho, Historiarum mundi 36, 24, 9.
80 Juvenal, Saturae 10, 81-82.
81 Ivi 11, 195-196
82 Luciano, Dilogos, Anacrsis.
83 Floro, Epitome 12.
133
Diante disso, o autor conclui que, no coro dessas vozes de intelectuais romanos e de tantas
outras que poderiam ser citadas, fica evidente uma pluralidade de motivos atrelados s atividades
esportivas nem sempre conciliveis entre si (MANACORDA, 1996, p. 11). Observa o autor que
E mais, afirma que o [...] fato mais novo que em toda essa oposio, qualquer que fosse
a motivao, faltou totalmente a conscincia do antigo sentido religioso dos jogos; essa uma
oposio laica, assim como eram laicos os jogos, apesar da suntuosa pompa que substituiu a antiga
religiosidade.Ao momento de mxima expanso dos jogos corresponde um evidente rompimento
com seus significados originais e uma primeira sensao de crise. Quanto mais os jogos se
expandem e se intensificam, mais seus antigos motivos ideais se enfraquecem: e ento novos ideais
sero propostos (MANACORDA, 1996, p. 11). Assim, este processo evidencia a luta histrica de
todas as sociedades humanas entre o velho, que insiste em se manter, e o novo, que peleja nascer.
Feito este breve apontamento sobre os significados atrelados aos jogos em Roma Imperial,
percebemos que, para alm dos seus motivos poltico-sociais mais amplos, sobre este tipo particular
de atividade sempre se coloca o aspecto do corpo e da mente orientado pela dualidade aparente
caracterstica, ainda presente na sociedade atual, dualidade que demarca as atividades ligadas ao
pensamento e as atividades ligadas prtica, como se o pensamento no fosse o real transposto na
cabea dos homens. Como afirmou Manacorda, tal dualidade tratada por Plato como indivisvel,
e presente tambm em Roma Imperial, o reflexo das condies objetivas de produo destas
sociedades. Esta ideia produto da diviso do trabalho, que, apesar deste ter criado as condies
objetivas para produzir as mximas formas de desenvolvimento da atividade humana, essencial no
134
Tendo por base a anlise sobre o desenvolvimento da corporalidade humana, que tem na
atividade esportiva a sua forma mais desenvolvida, passamos a anlise sobre o desenvolvimento
do autodomnio da corporalidade, a fim de elucidar como o contedo deste tipo particular de
atividade humana interiorizado pelos indivduos, ou seja, como a imagem, subjetivao do
objetivado historicamente, vai se realizando na corporalidade do indivduo na ontognese humana,
em direo ao autodomnio da corporalidade humana.
Para expor a anlise, partimos de um plano mximo de generalizao, definido como a
forma geral do desenvolvimento da corporalidade humana. Em seguida, analisaremos os nexos
entre o desenvolvimento das funes psicolgicas elementares e superiores e o autodomnio da
corporalidade humana.
complexa culturalmente formada acumulada no jogo, ginstica, dana, luta etc., que tem sua forma
mais desenvolvida na atividade esportiva.
Quer dizer, no processo de apropriao e objetivao da atividade esportiva, os indivduos
estabelecem relaes necessrias com os objetos da realidade jogo, ginstica, dana, luta etc. ,
mas o fazem de forma ativa e indireta, mediada pela relao essencial (movimento voluntrio) e
fundamental (desenvolvimento histrico-social da corporalidade humana-autodomnio da
corporalidade), sua estrutura geral.
A dialtica objetivao e apropriao do contedo da atividade esportiva em suas relaes
essencial e fundamental na atividade de ensino na educao fsica contribui para a formao de
capacidades gerais e especficas nos indivduos, um dos requisitos ao desenvolvimento integral de
sua personalidade.
Assim, o processo de ensino-aprendizagem-desenvolvimento dos contedos da
corporalidade humana nas crianas se realiza das aes concretizadas no exterior, tendo por base
o contedo da atividade, s aes situadas no plano verbal, depois a uma interiorizao progressiva
destas ltimas; o resultado no plano do pensamento que estas aes adquirem o carter de aes
intelectuais estreitas de atos intelectuais; o resultado no plano da corporalidade a formao de
operaes motoras, hbitos motores, depois habilidades motoras pela via da converso das aes
conscientes autnomas (intelectuais) em operaes motoras auxiliares, objetivando a produo de
capacidades gerais e especficas no sentido do autodomnio da corporalidade, o que contribui para
o desenvolvimento da personalidade dos indivduos.
No desenvolvimento do beb na ontognese humana a relao que o mesmo estabelece com
o mundo exterior, quer dizer, a relao entre necessidade e objeto direta e imediata, e seria uma
relao puramente natural se no houvesse o adulto disponibilizando os instrumentos culturais ao
beb, uma condio para o desenvolvimento complexo de sua atividade.
Com o processo de desenvolvimento, em especial, com o desenvolvimento da percepo,
ateno, memria, linguagem e pensamento, como um sistema interfuncional, na esteira do
processo de apropriao da cultura pela atividade, comea a haver uma inverso nessa relao,
pois, depois de um longo processo de apropriao da cultura, a criana passa a realizar, de forma
mais elaborada, uma atividade interior, quer dizer, passa a elaborar a imagem subjetiva da realidade
objetiva de forma qualitativamente superior, devido ao desenvolvimento do processo de
137
apropriao do contedo da atividade humana, e o faz pela mediao da relao me-beb e depois
a relao me-objeto-beb.
Apesar deste processo de inverso, a criana ainda no desenvolveu formas complexas de
conscincia que a possibilite discernir e orientar a sua autoatividade. Assim, o adulto essencial
para orientar o desenvolvimento da atividade da criana.
Nesse processo h predominncia das funes da corporalidade sobre as demais funes,
pois so estas que possibilitam ao beb o contato prtico sensorial com o mundo, uma relao que
passa de atos involuntrios a atos voluntrios quando a criana atinge em torno de seis meses de
idade.
S agora esto dadas as condies bsicas para que a imagem subjetiva da realidade objetiva
realizar-se- na corporalidade para alm de formas elementares de domnio da corporalidade
humana (me refiro s formas adaptativas).
Passamos agora a expor todo este complexo processo de desenvolvimento do autodomnio
da corporalidade humana a partir da anlise das relaes entre o que estamos chamando de sistema
interfuncional do desenvolvimento da corporalidade e o sistema interfuncional do
desenvolvimento do psiquismo84, na esteira do comportamento complexo culturalmente institudo.
Nesta seo, explicamos porque a corporalidade uma condio para a atividade em dada
fase do desenvolvimento do indivduo, bem como, destacamos a influncia que a percepo exerce,
com a colaborao da linguagem, para que se rompa a estrutura psquica primitiva sensorialidade-
motricidade, condio para o desenvolvimento das funes psquicas superiores, requisito ao
desenvolvimento do autodomnio da corporalidade.
Segundo Sechenov (apud LEONTIEV, 2004, p. 223), no primeiro ano da ontognese, o
pensamento sensorial, quer dizer, a relao da criana com as formas objetivadas da realidade,
84 Para alm de uma concepo localizacionista das funes psicolgicas, afirma Vygotski (1997 apud MARTINS,
2013, 49-50) que [...] uma funo especfica no est ligada nunca a um centro determinado e sempre produto da
atividade integrada de diversos centros, rigorosamente diferenciados e relacionados hierarquicamente entre si [...] to
pouco a funo global do crebro, que serve para criar o fundo, resulta da atividade conjunta, indivisvel e
funcionalmente homognea de cada um dos centros, mas produto da atividade integrada das funes correspondentes
a reas especficas do crebro separadas, diferenciadas e unidas de novo entre si hierarquicamente, que no participam
diretamente da formao de figuras. Tanto na funo global quanto na parcial se do a diviso e a unidade, a atividade
integradora dos centros e sua diferenciao funcional. E mais: O essencial nesse tipo de anlise que obtm como
resultado, produtos de natureza distinta a do conjunto analisado, elementos privados das propriedades inerentes ao
conjunto, mas dotados de outras novas e insuspeitveis naquele. Ao investigador que em seu desejo de resolver o
problema do pensamento e da linguagem o decompe em um e outro, lhe sucede o mesmo que sucederia a quem,
buscando a explicao de quaisquer das propriedades da gua, por exemplo, por que ela apaga o fogo [...] recorresse a
decomp-la em hidrognio e oxignio como recurso para explicar essa propriedade. Descobria espantado que o
hidrognio queima por si e o oxignio mantm a combusto e nunca poderia explicar, a partir das propriedades dos
elementos, as propriedades que identificam o conjunto [...]. Durante o processo de anlise se haveriam evaporado,
volatizado, e ao investigador no restaria outro remdio se no buscar a interao mecnica externa entre elementos
para recompor, seguindo procedimentos meramente especulativos, as propriedades desaparecidas durante o processo
de anlise, mas pendentes de explicao (VYGOTSKI, 2001 apud MARTINS, 2013, 54).
139
nas quais a criana vai tendo os primeiros contatos pela comunicao emocional-direta adulto-
beb, cria a sensao enquanto fenmeno psquico. O autor afirma que
[...] uma vez que [...] todas as atividades procederam do reflexo e conservaram-lhe
a estrutura fundamental, a sensao devia ser portanto igualmente considerada
como um fenmeno que s pode surgir na composio de um ato reflexo com as
suas consequncias motrizes quer manifestadas exteriormente, quer escondidas,
inibidas. Considerava aqui como primeiros atos pelos quais um encadeamento
motor externo realiza um contato direto com os objetos circundantes, uma
adaptao realidade (SECHENOV, apud LEONTIEV, 2004, p. 223).
Afirma Leontiev (2004, p. 224) que Este o ponto mais importante de Sechenov sobre a
natureza do conhecimento sensvel. Nesta mesma linha, Luria (1979b, p. 01) afirma que
Assim, corroborando a tese de Sechenov, Luria (1979b, p. 08) analisa que a sensao no
absolutamente um processo passivo, ela tem carter ativo e a participao de componentes motores
na sensao pode ser efetuada em nvel variado, ocorrendo s vezes, como processo refletor
elementar (por exemplo, na reduo dos vasos ou das tenses musculares que surgem em resposta
a cada excitao sentida) e atividade receptora intensa (por exemplo, durante a palpao ativa do
objeto ou a contemplao de uma imagem complexa).
140
Com tal afirmao, Leontiev incorpora as teses de Sechenov sobre os sistemas de sinais,
tambm j corroboradas por Vygotski (2000). Por consequncia, afirma que a sensao no a
reproduo das propriedades do objeto de forma isolada, mas sim a unidade das relaes entre o
indivduo e a realidade (S-O); isto significa que a sensao uma unidade do diverso, uma forma
141
[...] as propriedades do objeto so convertidas por ele num desenho sucessivo que
em seguida desenvolvido um fenmeno de reflexo sensvel simultneo. O
mecanismo do tato caracteriza-se, portanto, por identificar a dinmica do processo
no sistema receptor s propriedades da ao exterior (LEONTIEV, 2004, p. 239).
Quer dizer: [...] por outras palavras, produz-se na dinmica deste processo uma
identificao com as propriedades do objeto que se trata de refletir (LEONTIEV, 2004, p. 239).
Assim, o tato no , portanto, nada mais que um saber-fazer: o domnio dos procedimentos ou
operaes especficas desta identificao. Contudo, uma das portas de entrada do contedo da
realidade, da cultura, no caso das crianas pequenas (0-2 anos), a forma essencial de captao da
realidade. Para ilustrar as diferenas entre as formas sensoriais da imagem e a imagem complexa
do real, trago uma sntese de Martins (2013, p. 56) que elucida o salto qualitativo que a humanidade
deu em direo ao desenvolvimento de formas qualitativamente mais desenvolvidas do psiquismo:
Neste processo, se interpem uma srie de relaes, que na sequncia estaremos buscando
explicitar algumas das mais importantes para colaborar com a nossa anlise, sem a inteno de
abarcar toda a complexidade do fenmeno, o que fugiria ao objetivo desta tese.
Ao distinguir os grupos maiores e mais importantes das sensaes, pode-se dividi-las em
trs tipos principais: sensaes interoceptivas, propioceptivas e extraceptivas. As primeiras
renem os sinais que nos chegam do interior do organismo e garantem a regulao das inclinaes
elementares; as proprioceptivas garantem a informao sobre o corpo no espao e a posio do
aparelho de apoio e movimento, assegurando a regulao dos nossos movimentos. Elas
142
De acordo com Luria, V-se facilmente que a sensao o processo complexo e ativo que
s vezes requer um considervel trabalho de anlise e sntese (LURIA, 1979b, p. 40). Assim, o
processo da informao que chega atravs dos analisadores no de modo algum o resultado da
simples excitao dos rgos dos sentidos e da simples chegada ao crtex cerebral das excitaes
que surgem nos receptores perifricos (a pele, os olhos). No processo de percepo esto sempre
includos componentes motores em forma de apalpao do objeto, de movimentos dos olhos que
distingue os pontos mais informativos; como exemplo, existem as formas mais complexas de
percepo ttil, na qual o homem pode determinar por apalpamento e s vezes at identificar o
prprio objeto (LURIA, 1979b, p. 49). Por isso mais correto considerar o processo de percepo
como atividade receptora do sujeito (LURIA, 1979b, p. 40).
Outro aspecto extremamente relevante destacado por Luria que o processo de percepo
est intimamente ligado reanimao dos remanescentes da experincia anterior, comparao
da informao que chega ao sujeito com as concepes anteriores, ao cotejo das aes atuais com
as concepes do passado, com a discriminao dos indcios, com a criao de hipteses (LURIA,
1979b, p. 40, grifo nosso), quer dizer, a atividade receptora do sujeito se assemelha aos processos
de pensamento direto85 e essa semelhana ser tanto maior quanto mais novo e mais complexo for
o objeto perceptvel (LURIA, 1979b, p. 41). Porm, nada disso seria possvel sem a ateno
embrionria, pois esta que determina o foco, como veremos mais a frente.
Por isso que a atividade perceptiva sempre resultado do trabalho conjunto dos vrios
rgos dos sentidos em cujo processo formam-se as concepes do sujeito (LURIA, 1979b, p. 41).
85 O pensamento direto refere-se ao pensamento que capta o real de forma imediata (LURIA, 1979d, p. 04-13).
144
Portanto, [...] isso torna a confirmar a tese segundo a qual a atividade receptora do sujeito
pode, pela estrutura psicolgica, aproximar-se do pensamento direto, imediato (LURIA, 1979b,
p. 41).
Mas o carter complexo e ativo da atividade perceptiva possui alguns traos peculiares. A
primeira peculiaridade o seu carter ativo e imediato: [...] a percepo do homem mediada
pelos seus conhecimentos anteriores, [...] e constitui uma complexa atividade de anlise e sntese
que compreende a criao da hiptese do carter do objeto perceptvel e a deciso acerca da
correspondncia do objeto perceptvel a essa hiptese (LURIA, 1979b, p. 41); a segunda
peculiaridade o seu carter material e genrico: afirma o autor que o homem percebe no s o
145
conjunto dos indcios que lhe chegam mas tambm analisa esse conjunto como um objeto
determinado, no se limitando a estabelecer os traos indicadores desse objeto mas sempre
atribuindo-o a certa categoria, considerando-o relgio, mesa, [...]. Segundo o autor, na relao
com a realidade, o carter generalizado da percepo evolui com a idade e o desenvolvimento
mental, tornando-se cada vez mais ntido e refletindo o objeto perceptvel com profundidade cada
vez maior, englobando todo o grande nmero de traos essenciais que caracterizam o objeto e as
suas conexes e relaes (LURIA, 1979b, p. 41).
Outra peculiaridade a sua constncia e correo (ortoscopicidade), como observa Luria:
sabemos que o prato redondo, que a caixa de fsforo retangular, que o lrio branco [...], quer
dizer, Esse conhecimento anterior do objeto incorpora-se sua percepo direta e torna esta mais
constante e mais correta (ortoscpica); [portanto] compreende certa correo s peculiaridades que
a percepo do objeto pode adquirir em condies variveis (LURIA, 1979b, p. 42).
A ltima peculiaridade, segundo Luria, o seu carter mvel e dirigvel:
Por outro lado, de acordo com o autor, tudo isso distingue a atividade receptora do homem
da percepo animal, que, apesar de toda a sua mobilidade, carece das qualidades dirigveis e
arbitrrias que caracterizam a atividade perceptiva consciente do homem (LURIA, 1979b, p. 42).
146
No o nosso objetivo realizar uma anlise exaustiva das relaes essenciais e gerais da
percepo. Faremos os esclarecimentos sempre que julgarmos necessrio ao melhor entendimento
das ideias aqui expostas. Realizamos a explicitao de algumas propriedades da percepo devido
sua importncia para esclarecer a tese de Vigotski, que utilizamos como suposto, a que afirma
que a percepo rompe a conexo direta entre sensorialidade e motricidade e que esta (motricidade)
se desenvolve na relao com as outras funes, portanto no determinada pelas suas formas
iniciais.
Esta tese fundamenta o problema posto para a anlise em nosso estudo, pois, na prtica de
ensino da educao fsica, a preponderncia da lgica das formas em detrimento lgica dos
contedos mantm o pensamento subjugado captao sensorial, estabelecendo uma relao
imediata com o contedo da atividade. Porm, com o desenvolvimento da percepo, ateno,
memria, linguagem e pensamento na esteira da atividade complexa, e isto pressupe ensino-
aprendizagem de contedos, as relaes entre as funes produzem nveis cada vez mais elevados
de conscincia da realidade, tais como o autodomnio da conduta, a personalidade e a concepo
de mundo dos indivduos. O autodomnio da conduta o objetivo e condio para o
desenvolvimento das funes psquicas superiores e, por conseguinte, da personalidade
desenvolvida sntese de todas as funes psquicas, o que significa que essas funes assumem
objetividade na maneira de ser do indivduo, isto , em sua personalidade (MARTINS, 2013, p.
08).
Assim, observa Martins (2013, p. 101) que, para Vigotski,
A ateno tem importncia porque os sistemas de sinais comeam a exercer uma influncia
preponderante no desenvolvimento do indivduo. Vamos entender algumas particularidades da
ateno.
Segundo Luria (1979c, p. 02), pode-se distinguir pelo menos dois grupos de fatores que
determinam a ateno, quer dizer, o carter seletivo dos processos psquicos do homem; e este
determina tanto a orientao como o volume e a estabilidade da atividade consciente. Situam-se no
primeiro grupo os fatores que caracterizam a estrutura dos estmulos externos que chegam ao
homem (ou a estrutura do campo exterior); e o segundo grupo os fatores referentes atividade do
prprio sujeito (estrutura do campo interno). O primeiro grupo constitudo pelos fatores dos
estmulos exteriormente perceptveis ao sujeito e estes determinam o sentido, o objeto e a
estabilidade da ateno, aproximando-se dos fatores da estrutura da percepo (LURIA, 1979c, p.
02).
149
Diante disso, possvel distinguir a ateno animal e a humana pelo fato de que as
necessidade e interesses que caracterizam a segunda no tm, em sua grande maioria, carter de
instintos e inclinaes biolgicas mas carter de fatores motivacionais complexos que se formaram
no processo histrico social (LURIA, 1979c, p. 04-05). Portanto, A organizao estrutural da
atividade humana de importncia essencial para a compreenso dos fatores que dirigem a ateno
do homem (LURIA, 1979c, p. 05, grifo do autor), como esclarece Luria:
150
Assim, Tudo isso mostra que o sentido da ateno determinado pela estrutura
psicolgica da atividade e depende essencialmente do grau de sua automatizao (LURIA,
1979c, p. 05), ou seja, o desenvolvimento da ateno j pressupe a interposio de tarefas
orientadoras e as suas formas mais desenvolvidas dependero da natureza dos contedos e das
atividades disponibilizadas criana.
Segundo Martins (2013, p. 117), dialogando com Luria sobre o excerto posto acima, afirma:
Segundo Martins (2013, p. 119), a ateno em unidade com o campo perceptivo faz surgir
o campo simblico e este um fato histrico de primeira magnitude no desenvolvimento humano.
152
Mediado pela palavra e fala na esteira da atividade, a criana desenvolve formas mais complexas
da ateno, como esclarece a autora:
Segundo Martins (2013, p. 119), Vigotski, ao localizar a gnese da ateno complexa nas
experincias culturais, descartou a possibilidade de sua formao como consequncia natural de
dispositivos orgnicos, como produto da ateno elementar. Deixou claro que o desenvolvimento
cultural da ateno principia na mais tenra idade, a par com os contatos sociais entre a criana e os
adultos de seu entorno. Portanto, o desenvolvimento da ateno acompanha todo o
desenvolvimento do indivduo (MARTINS, 2013, p. 119).
Analisando as formas complexas da ateno, Luria (1979c, p. 35) afirma que o
desenvolvimento da ateno tem como fonte as formas de comunicao da criana com o adulto,
sendo a fala o fator fundamental que assegura a formao da ateno arbitrria, que inicialmente
reforada por uma ampla atividade prtica da criana e em seguida diminui paulatinamente e
adquire o carter de ao interior, que medeia o comportamento da criana e assegura a regulao
e o controle deste. A formao da ateno arbitrria abre caminho para a compreenso dos
mecanismos interiores dessa complexssima forma de organizao de atividade consciente do
homem, que desempenha papel decisivo em toda a sua vida psquica.
De acordo com o autor,
O desenvolvimento da ateno essencial para que este processo se realize. Vejam que
pela ateno que a sensao e a percepo comeam a ser organizadas no pensamento da criana
em direo s formas racionais da atividade. Nesse processo, como j sinalizamos, a palavra ter
um papel preponderante no desenvolvimento das aes intelectuais. Segundo Martins (2013, p.
120-121),
Diante disso, Luria observa que Pode-se afirmar com todo fundamento que os primeiros
reflexos condicionados comeam a formar-se no recm-nascido com base no reflexo orientado,
noutros termos, somente se a criana presta ateno no estmulo, discrimina-o e se concentra nele
(LURIA, 1979c, p. 29). E mais: s mais tarde a ateno involuntria da criana adquire formas
mais complexas e base dela comea a se formar a atividade orientada de pesquisa em forma de
manipulao dos objetos. Porm, nos primeiros tempos ainda muito instveis, basta outro objeto
para cessar a manipulao do primeiro objeto (LURIA, 1979c, p. 30).
154
Mas seria incorreto afirmar que a ateno orientadora surge imediatamente na criana, pois
os fatos mostram que a instruo verbal provoca apenas uma reao genrica na criana e s atua
sobre ela se for acompanhada pela ao real do adulto. Segundo o autor,
Contudo,
[...] a continuao das descargas eltricas, que surgem depois de uma excitao
nica, mostra que os neurnios no so apenas aparelhos que recebem os sinais e
reagem a estes com respostas correspondentes mas tambm que conservam os
vestgios do estmulo, continuando a dar respostas rtmicas negligenciadas por
esse estmulo muito tempo aps ter este cessado a sua influncia. Esse efeito das
influncias do estmulo o que representa a manifestao mais elementar da
memria fisiolgica, que pode ser observada tanto num neurnio isolado como no
trabalho de todo o sistema nervoso.
Como afirmou Luria (LURIA, 1979, p. 44), algumas pesquisas mostraram que a longa
repetio de um mesmo sinal leva a habituao a este, a qual se manifesta no desaparecimento dos
reflexos orientados para este estmulo que se tornou hbito, quer dizer, se automatizou.
Este fenmeno de extrema importncia para desvendarmos os caminhos fisiolgicos das
relaes entre a formao do hbito e o desenvolvimento das operaes motoras auxiliares ou
operaes conscientes. fato que a fixao de operaes motoras produz hbitos, que so aes
em processo de desenvolvimento, e o hbito requalifica as operaes motoras, elevando-as ao nvel
de habilidade motora, mas este processo s ocorre na esteira da atividade consciente, que j
pressupe graus de desenvolvimento da linguagem (fala) e do pensamento (conceito). Isto significa
que este processo pressupe atividade desenvolvida.
Todavia, o psicolgico sovitico E. N. Sokolov mostrou que
vezes, porm, o mais caracterstico o fato de que, com uma pequena mudana
da intensidade ou do carter do estmulo, os indcios de reflexos orientados tornam
a surgir (SOKOLOV apud LURIA, 1979, p. 45).
Com base nisso, Luria (1979c, p. 45) afirma que Os dados obtidos por Sokolov e seus
colaboradores mostraram que o fenmeno da reanimao de um reflexo orientado antes extinto
podia ser observado no s imediatamente aps a mudana do carter do estmulo mas tambm
dentro de alguns espaos de tempo s vezes bastante longos, como observa:
Segundo Luria (1979c, p. 45), sabido que quanto mais frequente o sinal determinado
quanto mais o sujeito se acostuma a ele e tanto mais rapidamente ele apresenta reao motora diante
do sinal (e tanto mais breve o perodo latente dessa reao). E ainda um outro fato de grande
importncia: O estudo minucioso mostrou que nas condies mais simples essa lei permanece e a
rapidez da reao ao sinal diretamente proporcional frequncia com que ele se apresenta.
Porm, o crebro no registra apenas o prprio fato da apresentao do sinal mas tambm a
frequncia com que este se apresenta e a regulao da rapidez da resposta ao grau de
probabilidade do aparecimento do sinal uma das funes essenciais do funcionamento do
crebro. (LURIA, 1979c p. 45-46, grifo do autor).
Fatos e pesquisas posteriores mostraram que o sistema nervoso do homem pode manter
vestgios de sinais isolados com grau muito elevado de preciso e conserv-los durante muito
tempo. Segundo Luria, isto torna o crebro humano o instrumento mais sutil no apenas para
captar os estmulos e distingui-los entre os outros que lhe chegam mas tambm para conservar na
158
memria os vestgios das influncias antes percebidas por ele (LURIA, 1979c, p. 47, grifo do
autor).
Outra propriedade importante da memria a fixao dos vestgios. De acordo com Luria
(1979c, p. 49), pesquisas [...] mostraram que a consolidao de um vestgio requer certo tempo
que pode ser medido, existindo diversos agentes que atuam com intensidade diferente sobre o
processo de consolidao dos vestgios. Assim, a formao de um determinado vestgio ainda
no significa que este esteja consolidado, e para a consolidao necessrio certo tempo, que
depende de uma srie de fatores (inclusive das peculiaridades individuais) e que pode ser medido
(LURIA, 1979c, p. 50).
Vamos dar um exemplo sistematizado por Luria para elucidar os aspectos postos acima: de
acordo com os testes psicofisiolgicos do Sovitico F. D. Gorbov (apud LURIA, 1979c, p. 48),
Os dados indicados nos demais experimentos com animais sugerem que com um choque de
10-15 minutos, antes ou depois da experincia de memorizao, o vestgio desaparecia. As
experincias tambm com animais em que se aplicava o choque, antes ou aps 30-45 minutos,
evidenciaram que este no comprometia a memorizao do vestgio. Houve tambm experimentos
que concluram sobre a existncia de memria rpida e lenta em ratos de espcies diferentes
(LURIA, 1979c, 47-50).
O estudo da consolidao dos vestgios86 uma das importantes conquistas da
psicofisiologia, segundo Luria. Ele permitiu separar dois estgios do processo de formao da
86 Segundo Luria (LURIA, 1979c, p. 51), [...] no sistema nervoso existem aparelhos complexos de redes de
neurnios que realizam crculos reverberatrios estveis de excitao. Esses aparelhos so os complexos funcionais
de neurnios, unidos ente si por neurnios postios ou neurnios com axnios curtos cuja funo, ao que parece,
consiste em transmitir a excitao de um neurnio a outro, assegurando a passagem longa da excitao pelas redes
mais complexas ou crculos reverberatrios. Alguns estudiosos consideram que os crculos reverberatrios da
159
memria, que posteriormente passaram a ser designados pelos termos memria breve
(subentendendo-se por esta o estgio em que os vestgios se formavam mas ainda no se
consolidavam) e a memria longa (subentendendo-se por esta o estgio em que os vestgios no s
excitao so a base neurofisiolgica da memria breve. Segundo essas hipteses, um mecanismo essencial de
conservao dos vestgios o mecanismo de transmisso sinptica da excitao, o que assegura a passagem da excitao
de um neurnio para outro e permite uma conservao longa da excitao que passa pelos crculos reverberatrios
(LURIA, 1979c, p. 51). De acordo com essa teoria, o choque destri a passagem da excitao pelos crculos
reverberatrios e leva ao desaparecimento daqueles vestgios que se conservaram graas a essa passagem da excitao.
Com relao a consolidao dos vestgios, Luria afirma que, como se sabe, a composio dos ncleos das formaes
subcorticais e a composio do crtex so integradas, alm dos neurnios, tambm pela glia, que reveste as clulas
nervosas com uma densa massa esponjosa. Durante muito tempo a glia foi considerada um simples tecido de apoio do
crebro; mas ultimamente ficou claro que ela tem outras funes bem mais complexas, participando tanto dos processos
de troca como da regulao dos processos de excitao que ocorrem nos aparelhos nervosos e, provavelmente, do
processo de conservao dos vestgios das excitaes que surgem no tecido nervoso do crebro. sabido, ainda, que
o nmero de clulas nervosas da glia dez vezes superior ao nmero de clulas nervosas; diferentemente das clulas
nervosas, que so indivisveis durante a vida, as clulas da glia continuam a dividir-se e seu nmero aumenta na
ontognese. caracterstico que, na medida do desenvolvimento, cresce substancialmente a relao da massa das
clulas nervosas com toda a massa da substncia parda a que pertencem as clulas da glia (LURIA, 1979c, p. 54-55).
As clulas da glia revestem densamente as clulas nervosas e, segundo expresso de Hyden, ocupam posio
estratgica entre as clulas nervosas e os capilares sanguneos (LURIA, 1979c, p. 54-55). Conforme Luria, Os
potenciais eltricos surgem nelas com uma lentido centenas de vezes maior do que as clulas nervosas, enquanto as
mudanas bioqumicas que nelas se processam sob a influncia das excitaes encontra-se em relaes inversas com
as mudanas bioqumicas que se processam nas clulas nervosas. No incio da excitao, aumenta nas clulas nervosas
(neurnios) a quantidade do RNA diminuindo na glia circunvizinha; ao contrrio, ao trmino da ao do estmulo,
diminui rapidamente a quantidade de RNA na clula nervosa, aumentando nas clulas da glia circunvizinha. Por isso,
o surgimento de potenciais lentos, aos quais a neurofisiologia d importncia sobretudo grande, hoje relacionado no
s ao trabalho dos neurnios como tambm da prpria glia (LURIA, 1979c, p. 55). Tudo isso leva a supor que a glia
d estabilidade aos processos que surgem na clula nervosa, exerce influncia moduladora na ocorrncia das excitaes
e, provavelmente, participa diretamente da conservao dos vestgios das excitaes que surgem nos neurnios
(LURIA, 1979c, p. 55). Assim, A circulao das excitaes nos crculos reverberatrios e as indicaes das mudanas
bioqumicas que surgem sob a influncia das excitaes que chegam ao tecido nervoso so suficientes para explicar os
mecanismos que servem de base memria longa. Por isto alguns estudiosos consideram necessrio procurar os
mecanismos da memria longa em algumas mudanas morfolgicas, que surgem no aparelho sinptico dos neurnios
e suscitam a hiptese de que so justamente essas novas formaes morfolgicas que constituem o substrato da
memria longa. O conhecido morfofisiologista Ariens Kappers j indicara anteriormente que o crescimento dos
axnios e dentritos no casual e os apndices do neurnio se orientam no sentido da excitao ocorrente. Esse
fenmeno, que Kappers denominou neurobitico, foi confirmado em observaes posteriores. Atualmente os
cientistas admitem que a orientao do crescimento dos apndices dos neurnios at certo ponto determinada pelo
funcionamento destes e pelos programas que dependem do cdigo de excitao e servem de base atividade dos
neurnios (LURIA, 1979c, p. 55-56). O crescimento do sistema sinptico-dendrtico de uma srie de neurnios
ocorre tambm durante a vida, sendo estimulado em grande medida pelo exerccio e abstendo-se do emprego desse
ou daquele sistema. O exerccio faz aumentar consideravelmente o nmero de sinapses, aumenta o nmero de empolas
(vesculas) que conduzem excitao dos neurnios, e o nmero daqueles apndices mnimos localizados nos axnios,
que hoje so considerados o principal aparelho neuroqumico, que assegura a transmisso da excitao nas sinapses.
Essas mesmas reaes do movimento e do crescimento surgem na excitao no s dos apndices dos neurnios mas
tambm na glia (A. I. Rewtback) e, segundo alguns autores, justamente esse efeito da formao de novas sinapses
que constitui o substrato da memria longa (LURIA, p. 1979c, p. 56). Se a memria breve se baseia no movimento
que surgiu no crculo reverberatrio e a memria longa no crescimento do aparelho sinapso-dendrtico da glia, a
formao de novas sinapses ainda no se pode considerar demonstrvel embora muitas das tentativas atuais de
encontrar a base fisiolgica dos eventos da memria sigam nessa direo. Depois algumas destas teses de Luria foram
comprovadas pelos estudos da neurocincia.
160
se haviam formado mas estavam de tal forma consolidados que podiam existir durante muito tempo
e resistir ao efeito destruidor das aes de fora, tais como um choque, um trauma, um
medicamento) (LURIA, 1979c, p. 47-50). No iremos aprofundar estes aspectos psicofisiolgicos
e bioqumicos da memria neste momento, mas em nota de rodap (com incio na pgina anterior)
expusemos as explicaes de Luria sobre tais aspectos, conquistas fantsticas diante dos limites
dos instrumentos cientficos existentes no perodo.
Continuando. Quais so os tipos principais de memria?
Dentre os vrios tipos, vamos destacar as imagens sucessivas, imagens diretas eidtica,
imagens de representao e a memria verbal (LURIA, 1979c). As imagens diretas constituem um
tipo mais complexo de memria sensorial (imagens sucessivas). A diferena entre as imagens
eidticas e sucessivas consiste em que aquelas permanecem sem qualquer mudana de nitidez, no
apresentam nenhuma ocorrncia de disperso e flutuao, podem ser provocadas arbitrariamente a
qualquer momento, inclusive num lapso de tempo muito grande aps terem sido fixadas, como, por
exemplo, uma pessoa que observou um quadro seria capaz de descrever detalhadamente vrios dos
elementos que o compem, tais como quantas pessoas havia no quadro, o que havia na paisagem
etc., quer dizer, mesmo que o quadro no estivesse mais em sua frente, a pessoa seria capaz de
descrever os seus elementos; isto se diferencia do que acontece com as imagens sucessivas, que
refletem uma imagem sensorial mais passageira. J as imagens de representao tratam-se da
captao de uma expresso generalizada do que se observa, portanto exigem graus mais complexos
de desenvolvimento e da atividade psquica e por isso so imensamente mais ricas do que as
imagens diretas (LURIA, 1979c, p. 64), como vamos explicar densamente nos utilizando das
snteses de Luria (1979c).
O primeiro trao que distingue as imagens das representaes das imagens diretas consiste
em que as primeiras so sempre polimodais, noutros termos, sempre incluem entre seus
componentes elementos dos vestgios tanto visuais quanto tteis, auditivos e motores; elas no so
vestgios de um tipo de percepo mas vestgios de uma complexa atividade prtica com objetos
(LURIA, 1979c, p. 64). Segundo Luria,
Vejamos o que observa Luria sobre o processo de construo dessa imagem do real:
Portanto, As imagens das representaes so tipos bem mais complexos de vestgios da memria
e justamente a sua semelhana com os processos intelectuais que faz delas um dos mais
importantes componentes da atividade cognitiva do homem (LURIA, 1979c, p. 66-67).
At o momento, apenas tratamos da memria sucessiva, memria direta eidtica, e a mais
importante para ns, a memria de representaes ou icnica. Agora destacaremos uma outra forma
da memria, a memria verbal. Diferente da memria icnica, a memria verbal a modalidade
mais complexa e mais elevada de memria especificamente humana (LURIA, 1979c, p. 67). O
homem recebe o maior volume de conhecimentos por meio do sistema verbal, recebendo
informao verbal, lendo livros e conservando em sua memria o resultado dos dados obtidos
atravs do discurso. Assim, A memria visual em grau ainda menor uma fixao imediata das
palavras e uma conservao passiva das imagens por estas provocadas do que uma fixao e
conservao dos resultados da experincia direta que se forma sob o aspecto de concepes
(LURIA, 1979c, p. 67). Segundo o autor, ao receber uma informao verbal, o homem grava menos
as palavras e conserva a impresso que lhe chega textualmente. Segundo o autor,
exemplo, forem alterados radicalmente os dados da estrutura. Isso implica em afirmar que este tipo
de aprendizagem que se utiliza da memorizao mecnica, mesmo que seja em campos semnticos
particulares, compromete profundamente o desenvolvimento do pensamento das crianas.
Outro exemplo no ensino da educao fsica: se, em vez de trabalharmos as operaes que
constituem a ao de saltar no atletismo, ou as operaes que constituem o golpe no voleibol etc.,
apenas ensinarmos aos estudantes a reproduzir a ao mecanicamente de saltar e de golpear a bola,
as crianas e jovens tero dificuldade para desenvolver o seu pensamento conceitual sobre, por
exemplo, o que significa saltar e, ainda, reunir instrumentos para realizar os movimentos
voluntrios acumulados nos saltos, pois no se apropriaram do contedo que possibilita apreender
as operaes que os estruturam. fato que as crianas at conseguiro reproduzir a ao numa
situao de jogo, porm no desenvolvero a capacidade de pensar sobre as diversas formas de
golpear a bola numa determinada situao inesperada do jogo por no ter apreendido a lgica da
ao/operao do golpe, uma capacidade to importante para a formao onilateral dos indivduos.
Estamos analisando a formao de capacidades que levem o estudante a dominar as
operaes do contedo no sentido do autodomnio de sua corporalidade, como j indicamos, um
requisito superao do pensamento subjugado captao sensorial. O desenvolvimento de
capacidades tem uma influncia preponderante do desenvolvimento da personalidade e da
concepo de mundo dos indivduos. Vamos explicar melhor a partir das relaes entre hbitos e
habilidades, capacidades e aptides.
Segundo Smirnov et al. (1960, apud MARTINS, 2007, p. 100), por hbitos temos as
maneiras de atuar resultantes de treinamentos, que, uma vez instalados se fixam, dispensando um
planejamento prvio em sua execuo, ou seja, quando j formados, as aes que os constituem
no necessitam de diferenciao em distintas operaes, isto porque as operaes e os nexos entre
elas se encontram automatizados pelo treino. Quer dizer, as aes conscientes foram se
transformando em operaes auxiliares, dando origem aos hbitos, em nosso caso, hbitos motores.
s formas complexas de desenvolvimento do hbito motor chamaram-se habilidades motoras.
Segundo Martins (2007, p. 100), os hbitos so indispensveis em todos os tipos de
atividade, pois interferem em sua rapidez, qualidade e constncia, eliminando algumas operaes
auxiliares ou isoladas que se realizam quando os hbitos ainda no esto formados. Os hbitos se
produzem na fixao das operaes motoras e a memria tem papel importante em sua fixao. No
desenvolvimento do animal e do homem, a memria jogou um papel fundamental, pois, pela via
166
de uma memria figurada primitiva, fixou operaes motoras, desenvolvendo a aptido para formar
hbitos motores. No desenvolvimento do indivduo, os hbitos torna possvel pessoa realizar ao
mesmo tempo vrias operaes, facilitando a execuo de aes complexas, para as quais se diz
ter desenvolvido habilidades (MARTINS, 2007, p. 100).
O exemplo de Leontiev (2004, p. 110) com o atirador pode ajudar no entendimento desses
conceitos:
Tomemos o exemplo do atirador: quando ele atinge o alvo, efetua uma ao bem
determinada. Como caracteriza esta ao? Em primeiro lugar, evidentemente, pela
atividade em que se insere, pelo seu motivo e, portanto, pelo sentido que ela tem
para o indivduo que a efetua. Mas ela caracteriza-se tambm pelos processos e
operaes atravs dos quais se realiza. Um tiro justado requer numerosas
operaes, cada uma respondendo s condies determinadas da ao dada:
necessrio assumir uma certa pose, apontar, determinar corretamente a mira,
encostar ao ombro, reter a respirao e premir corretamente o gatinho.
A coisa absolutamente diferente naquele que se inicia no tiro. Deve primeiro ter
por fim agarrar a espingarda; nisso que reside a sua ao; em seguida, a sua ao
consciente consiste em visar etc. Ao estudar a aprendizagem do tiro ou qualquer
outra ao complexa, vemos portanto, que os elos que a compem se formam
inicialmente como aes separadas e s se transforma em operaes
ulteriormente.
estrutura da personalidade do sujeito, ou seja, uma forma cultural complexa que se produz e se
desenvolve junto personalidade do sujeito. s vezes erroneamente se fala que uma criana tem
talento para tal atividade como sinnimo de capacidade, mesmo antes de ter dominado os hbitos
e habilidades desta atividade. Entretanto, o chamado talento est ligado ideia de aptido, que
envolve determinadas condies biolgicas do sujeito. Portanto, aptido e capacidade so coisas
bem diferentes. Um sujeito pode desenvolver capacidades sem ter aptido para tal, assim como
pode ter aptido e no desenvolver a capacidade. Estes aspectos sero esclarecidos logo frente
aps concluirmos o exemplo do atirador.
Leontiev continua o exemplo do atirador para realizar a crtica s concepes idealistas do
desenvolvimento humano, bem como para destacar que, quando h aes automatizadas que no
so realizadas na atividade sem o controle consciente das mesmas, basta haver algo errado para o
atirador voltar-se a elas, como segue:
Estas operaes distinguem-se todavia, das que aparecem por simples adaptao
da ao s condies da sua realizao. As experincias mostram que estas
operaes se caracterizam sobretudo objetivamente pela sua flexibilidade e
aptido para serem dirigidas. Elas distinguem-se igualmente por toda uma outra
realizao com a conscincia.
Entretanto, segundo Martins (2007, p. 100-101), preciso destacar que [...] nem os hbitos,
nem as habilidades podem ser identificadas com as capacidades, existindo entre eles complexas
relaes, como esclarece:
Considerando-se que toda capacidade capacidade para algo, o fato de ela existir
no determina que hbitos e habilidades lhe sejam correspondentes; por exemplo,
possvel que um indivduo tenha a capacidade para ler sem, necessariamente, ter
hbito para tanto. Em contrapartida, toda capacidade se refora e aperfeioa
medida que acompanhada por hbitos e habilidades. Portanto, o alto nvel de
capacidades demanda o desenvolvimento de hbitos bem como a possibilidade de
168
sociais vivenciadas neste modo de produo, a conquista de tais capacidades se produz numa luta
acirrada pelo domnio das condies que possibilitam tal desenvolvimento.
Retomando a anlise da memria. Vimos que a fixao de hbitos no seria possvel sem a
memria, que joga a sua importncia para o pleno desenvolvimento deste processo. A memria
lgica, um tipo de memria complexa, que j depende da estrutura da atividade, do pensamento, e
pressupe formas mais complexas de atividade psquica, uma forma mais desenvolvida de
atividade psquica e acompanha todo o desenvolvimento das demais funes psquicas e motoras.
Analisando o desenvolvimento cultural da memria, Martins (2013, p. 127) afirmou que
as diferenas qualitativas entre as expresses involuntrias (naturais) e voluntrias (culturais) da
memria, bem como o curso do desenvolvimento das segundas foram objetos de especial ateno
de Vygotski. Segundo Vygotski (apud MARTINS, 2013, p. 129), quando se memoriza algo
diretamente ou com o apoio de qualquer estmulo complementar, encontram-se em curso duas
operaes psicolgicas completamente distintas.
Fazendo aluso aos estmulos de primeira e de segunda sinalizao, Vygotski afirma que,
no primeiro caso, quando se memoriza algo diretamente, o produto mnmico resulta meramente
das propriedades naturais da memria em relao ao estmulo, todavia com a interposio de meios
auxiliares, isto , de signos ou estmulos-meios, outras conexes funcionais passam a ser requeridas
da memria. Com isso, a exigncia que, na memorizao imediata, recai exclusivamente sobre a
memria, passa a incidir tambm sobre outras funes, que, de partida, pouco teriam a ver com o
ato mnsico. Assim, segundo Vygotski (apud MARTINS, 2013, p. 130),
Por outro lado, segundo Martins (2013, p. 130), com base nos seus estudos realizados sobre
a adolescncia Vygotski afirmou:
170
Com esta constatao, Vygotski resolve o problema das expresses involuntrias (naturais)
e voluntrias (culturais) da memria.
Diante disso, Martins (2013, p. 132) conclui observando que Vygotski alertou que, para a
maior efetividade da memorizao, no basta apenas o seu planejamento, uma vez que esse
processo exige a organizao intencional da atividade, de tal forma que o objetivo mnemnico se
insira como ao que a integra. Isto significa que a boa memria produto de uma atividade
psquica mais complexa, que envolve o pensamento. Isso vai na direo do que estaremos
analisando sobre a formao das aes intelectuais. No prximo item, trataremos das
particularidades deste tipo de formao, aspecto central para entendermos, na esteira da atividade,
as formas mais complexas do processo de formao da imagem subjetiva da realidade objetiva e,
posteriormente, essencial para explicar como esta imagem (conceitos) realiza-se na corporalidade
pela via do desenvolvimento da relao aes-operaes-atividade na atividade de ensino na
educao fsica, com a transformao das aes conscientes em operaes motoras auxiliares. Todo
esse processo no seria possvel sem a mediao do movimento voluntrio, qualidade da atividade
humana, produto da atividade prtica histrica, acumulado nas formas objetivadas da realidade
(significaes objetivas), que desde as sua forma embrionria j exige atividade consciente e
intencional.
fase de transio para o trabalho social, com o surgimento das ferramentas e da linguagem, esse
carter direto do comportamento intelectual cede lugar a novas formas (LURIA, 1979d, p. 03).
De acordo com o autor,
Como corroborado por Luria, neste processo, a atividade prtica altera drasticamente a
lgica do desenvolvimento. Enquanto no primeiro momento o homem em processo de formao
se adapta ao meio e, com isso, vai superando obstculos surgidos, saltando qualitativamente de um
estgio a outro segundo leis biolgicas, com a atividade social produtiva, tem-se a unidade de
natureza e cultura expressa pela capacidade da razo, que, num primeiro momento prtica, mas
que vai se separando desta e se tornando abstrao, ideia, ou seja, uma noo, um juzo, um
conceito, uma categoria, no necessitando o indivduo estar diante de determinado objeto para
represent-lo como ideia no pensamento. A esse processo Luria chamou desenvolvimento do
comportamento intelectual, que existe no animal apenas em formas embrionrias, tornando-se
quase forma bsica de atividade consciente (LURIA, 1979d, p. 03). Vamos explicar mais. Segundo
o autor,
ao intelectual interna. Isto significa que a criana j consegue agir segundo uma orientao, ou,
como afirma Luria, j h uma base orientadora da ao mais elaborada. Por isto que, nesse perodo,
ela j est com os instrumentos necessrios para se desenvolver na atividade escolar, atividade
dominante que determina a sua prxima fase de desenvolvimento.
Todavia, afirma Luria que achar que o desenvolvimento de formas complexas do
comportamento intelectual da criana ocorre pela via simples de transio paulatina de testes
amplos diretos para a discriminao da fase de orientao prvia nas condies da tarefa, graas
anlise interna desta, um grande erro (LURIA, 1979d, p. 06-07). Luria vai afirmar que este
aspecto est mais relacionado ao desenvolvimento da linguagem e pensamento da criana em suas
relaes sociais, em especial com os adultos. Em sua anlise, exemplifica esse aspecto com
experimentos de Lewin et al (apud LURIA, 1979d, p. 06):
[...] ao tentar inutilmente alcanar um objeto que lhe atrai a ateno, a criana, no
segundo ano de vida, interrompe amide as suas tentativas diretas e se volta para
o adulto que presenteia o teste, tentando atrair-lhe a ateno e conseguir sua ajuda
para obter o objeto que a atrai. J muito cedo a ao da criana se converte em
ao social. Essa vida de domnio de uma situao atravs do contato com o adulto
se torna mais expressa e comea a predominar quando a criana passa a exercer o
domnio da linguagem.
Segundo Luria (1979d, p. 07), Vigotsky j observara que, na criana de 3-4 anos, a
dificuldade na soluo de uma tarefa prtica provocava uma exploso de reaes verbais, que eram
consideradas pelos psiclogos (sobretudo por Piaget) como fala egocntrica 87, que, segundo este
autor, no tem importncia prtica e revela apenas desejos da criana. No entanto,
Vigotski mostrou que essa fala egocntrica (isto , no dirigida a ningum) tem,
desde o incio, carter realmente social. Ela est dirigida de fato ao adulto, nela a
criana formula inicialmente um pedido ou uma solicitao de ajuda na soluo
de uma tarefa e em seguida seu discurso comea a refletir uma situao real, como
se tirasse uma cpia dessa situao, analisando-a e planejando uma possvel
soluo. Deste modo, a linguagem da criana, inicialmente dirigida ao adulto,
converte-se paulatinamente em meio de orientao de uma situao (de traar as
vias de soluo de uma tarefa, de criar um plano de atividade) ( LURIA, 1979d,
p. 07).
Diante disso, pode-se afirmar que [...] o desenvolvimento da atividade intelectual prtica
da criana ocorre com a participao da linguagem ativa da criana, que tem inicialmente o
carter de comunicao da criana com as pessoas, assumindo posteriormente o carter de meio
que a ajuda a orientar-se na situao direta e planejar a sua atividade (LURIA, 1979d, p. 08, grifo
do autor). preciso, no entanto, ressaltar que [...] a linguagem tem inicialmente carter
desdobrado externo, restringindo-se posteriormente, transformando-se em linguagem murmurada
e, por ltimo, desaparece quase inteiramente entre os 7 e 8 anos, assumindo a forma de linguagem
interna inaudvel, que constitui a base do ato intelectual interno" (LURIA, 1979d, p. 08, grifo do
autor).
Assim, os fatos mostram que a atividade intelectual direta percorre um complexo caminho
de desenvolvimento e incorpora aos seus componentes vrios elementos, comeando por amplos
testes motores e orientao visual na situao e terminando pela anlise verbal das condies da
tarefa sugerida (LURIA, 1979d, p. 08).
Voltando atividade prtica, Luria afirma que esta separao entre atividade prtico-
concreta e atividade terica ops um tipo de pensamento ao outro, dando margem dualidade entre
pensamento prtico concreto e pensamento verbal abstrato. No entanto, como estamos buscando
demonstrar em nossa tese, e veremos mais frente com Zaporozhets (1967), sobre a origem e
desenvolvimento do controle consciente dos movimentos voluntrios, o pensamento prtico
concreto no se realiza, absolutamente, atravs de simples testes motores e imagens diretas, ele
compreende tambm a anlise da situao concreta com o auxilio da linguagem, que permite ao
homem distinguir nessa situao os elos mais importantes, analisar as condies da tarefa e compor
um plano para resolv-la. Neste sentido, o pensamento prtico concreto se aproxima do pensamento
lgico-verbal abstrato, com a nica diferena de que o processo de soluo das tarefas est aqui
voltado para as correntes diretas dos objetos perceptveis (LURIA, 1979d, p. 09). Como exemplo,
Luria compara o pensamento de um construtor, que resolve a tarefa prtica de construo, com o
pensamento de um fsico ou lgico que resolve uma complexa tarefa abstrata. Ele afirma que ambas
processam-se com a mesma orientao interna na condio da tarefa, com a mesma discriminao
dos componentes mais importantes e construo do plano (estratgia) de ao e conclui: [...] o
programa de soluo intelectual da tarefa no surge sob a influncia da percepo imediata direta
mas como resultado da superao da impresso imediata e subordinao da ao ao esquema que
se cria como produto da recodificao do campo perceptvel (LURIA, 1979d, p. 11). Portanto,
176
a soluo da tarefa construtiva direta apresenta um complexo carter mediado. Este processo,
apesar de ter diferenas em termos de particularidade da atividade, pode ser comparado ao processo
de apropriao dos contedos da atividade esportiva, tendo em conta a sua dimenso exterior e
aparentemente direta e imediata. por isso que estamos defendendo que os contedos das
atividades esportivas contribuem com o desenvolvimento do pensamento, pois esses contedos so
formas objetivadas da atividade humana, que j possuem graus de desenvolvimento complexo da
atividade humana. Nos desdobramentos desta anlise aprofundaremos cada vez mais este
argumento.
Para retomar a anlise sobre o desenvolvimento do comportamento intelectual, duas
particularidades so essenciais para explicar o contedo do processo de formao da imagem
subjetiva da realidade objetiva, agora com graus mais elaborados de desenvolvimento da atividade:
a palavra e o conceito.
O que significa a palavra? Luria afirma que a palavra tem duas funes bsicas: 1)
representao material dos objetos, que se trata da capacidade da palavra para significar objetos
correspondentes com um sinal convencional, de suscitar as suas imagens; 2) analisar os objetos,
distinguir nestes as propriedades essenciais e relacion-los determinada categoria. Ela meio de
abstrao e generalizao, quer dizer, reflete as profundas ligaes e relaes que os objetos do
mundo exterior encobrem. Essa segunda funo costuma ser designada pelo termo significado da
palavra (LURIA, 1979d, p. 19).
A palavra o signo universal, o signo dos signos como afirma Martins (2013). Ao
dominar a palavra, o homem domina automaticamente um complexo sistema de associaes e
relaes em que um dado objeto se encontra e que se formaram na histria multissecular da
humanidade (LURIA, 1979d, p. 20, grifo do autor). Luria afirma que a essa capacidade de
analisar o objeto, distinguir nele as propriedades essenciais e relacion-lo a determinadas categorias
que se chama significado da palavra.
Do ponto de vista da evoluo complexa da palavra, Luria realiza uma anlise
extremamente importante sobre as relaes entre sentido e significado histricos das objetivaes
da atividade humana que pode nos ajudar a apreender estas relaes no desenvolvimento da
atividade esportiva, quer dizer, constitui uma estrutura de generalizao importantssima para a
anlise das atividades humanas em geral. Segundo o autor,
Durante muito tempo, quando a palavra era entendida como uma simples
associao do sinal sonoro condicional com a imagem direta, os estudiosos
estiveram convencidos de que o significado continuava imutvel em todas as fases
do desenvolvimento e que a evoluo da lngua reduzia-se ao simples
enriquecimento do vocabulrio e ampliao do crculo de noes designados por
palavras isoladas. Essa concepo profundamente errnea. Em realidade, o
significado da palavra passa por uma complexa evoluo, e se a representao
material da palavra continua a mesma, desenvolve-se o seu significado, ou seja, o
sistema de relaes e ligaes que ele implica, o sistema de generalizaes
realizado pela palavra. Por isto, a palavra no apenas muda de estrutura em etapas
diferentes da evoluo, como passa a basear-se em novas correlaes de processos
psicolgicos (LURIA, 1979d, p. 29).
Afirma Luria que entre o fim do primeiro ano de vida e comeo do segundo, a criana
comea a assimilar as palavras do adulto em resposta s palavras onde est a xcara?, onde est
a boneca?, pronunciadas pela me, vira a cabea e olha para os objetos mencionados (LURIA,
1979d, p. 31).
Portanto, corroborando o que afirmou Luria, isto no significa que a criana domina de
imediato a relao objeto-imagem-palavra.
Segundo Leontiev,
e generaliza um objeto, um meio de formao de conceitos, noutros ternos, deduz esse objeto do
campo das imagens sensoriais e o inclui no sistema de categorias lgicas que permitem refletir o
mundo com mais profundidade do que o faz a nossa percepo. Eis porque a palavra no apenas
significa uma imagem mas tambm inclui o objeto no riqussimo sistema de ligaes e relaes em
que ela se encontra (1979d, p. 35).
De acordo com o autor, essa tese explicita a teoria do conceito concreto fundada na
filosofia materialista, que indica que a transio de significaes mais diretas (objeto-imagem-
palavra) para conceitos mais genricos (objeto-imagem-palavra-conceito) no apenas no
empobrece como enriquece substancialmente as nossas concepes. Vamos dar um exemplo: ao
dizermos chute, defesa, ataque, indicamos esses objetos pela sua significao direta; mas quando
dissemos fundamentos do futebol, esporte, que so conceitos mais genricos, enriquece as nossas
concepes. Ao dizermos fundamentos do futebol inclumos nesse conceito uma rede de ligaes
mais ricas do que chute, defesa, ataque. Esse termo genrico encobre uma diferenciao entre
fundamentos do futebol e fundamentos do voleibol, por exemplo, e ambos podem ser categorizados
de forma ainda mais geral se pensarmos na relao social que constitui a atividade esportiva: uma
relao ativa, consciente, intencional e crtica, porm indireta, entre o indivduo e seu corpo, e
com os outros indivduos etc.
Por isto, Luria afirma que o conceito genrico, representado pela palavra que, pelo seu grau
de concreticidade, pode se afigurar pobre, isto devido ao sistema de ligaes que ela implica ser
incomparavelmente mais rico do que a representao concreta do objeto individual (LURIA,
1979d, p. 35). Assim, Luria conclui que, na transio da significao material do objeto para a
significao do conceito abstrato, no h um processo de empobrecimento ou ascenso ao abstrato,
mas um processo de enriquecimento ou ascenso autntica ao concreto, se por concreticidade
entendermos a riqueza das ligaes em cujo sistema o conceito inclui o referido objeto (LURIA,
1979d, p. 35-36).
Diante disso, Luria analisa que em Psicologia distinguem-se dois tipos de conceitos, que
so diferentes tanto pela origem quanto pela estrutura psicolgica. So os conceitos comuns,
tambm chamados de cotidianos ou espontneos, e cientficos. O primeiro a rigor mais pobre
que o ltimo, pois tem por caracterstica ser produto de uma captao direta e imediata dos objetos
da realidade. O segundo grupo de conceitos, os cientficos, pela capacidade de expressar formas
generalizadas do real possuem um sistema de ligaes mais rico.
180
Luria (1979d, p. 36), com base nas teses de Vigotski sobre o processo de formao de
conceitos, explica que a palavra um meio essencial para a realizao plena desse processo, como
observa o autor:
Tomemos outro exemplo que pode ser bem ilustrativo quanto a este aspecto: uma
determinada criana de 2-2,5 anos, ao ver um bode numa viagem de frias ao interior, afirmou:
olha, me, um cachorro! Notemos que a criana afirmou um cachorro pela representao que
tinha do objeto (rabo, quatro patas, orelhas etc.), diante do que havia construdo em seu universo
simblico. No entanto, no estamos afirmando que esta representao trata-se de uma
representao imediata, pois, ao inserir-se na cultura a criana j est realizando sistemas
conceituais de forma mediada. Notemos que a criana est elaborando a sua capacidade de
discriminar os objetos pelos seus traos essenciais e tambm j realiza graus determinados de
generalizao. Nesta idade a relao objeto-imagem-palavra comea a se constituir como unidade
para o desenvolvimento do seu pensamento, que tem como unidade mnima o conceito. Mas
preciso destacar que neste processo ainda se tem predominncia da relao direta do sujeito com
o objeto.
Assim, dando seguimento anlise do seu exemplo lanado na citao acima e colaborando
com a anlise do nosso exemplo, Luria explica esse fenmeno:
Diante disso, podemos entender que o contedo composto por vrios sistemas
psicolgicos (conceitos), unidade do interior e exterior do fenmeno, um complexo sistema de
instrumentos artificiais produzidos pela atividade prtica que impulsionam mudanas no
comportamento humano. Os instrumentos psicolgicos
Entretanto, afirma Leontiev que, para que a criana reflita os fenmenos na sua qualidade
especfica, essencial, sua significao, deve efetuar em relao a ela uma atividade conforme
atividade humana, que eles concretizam, que eles objetivam. Por outro lado, em relao aos
fenmenos espirituais, por exemplo, a um conceito, que a criana encontra pela primeira vez, ela
deve manifestar uma atividade intelectual, uma atividade do pensamento que lhe corresponda
(LEONTIEV, 2004, p. 197).
Diante desta concepo de interiorizao, Leontiev elaborou duas duras crticas ao que
considera concepes idealistas sobre a relao ensino-aprendizagem-desenvolvimento: a crtica
ao inatismo e ao empirismo.
Segundo o autor, deve-se rejeitar a convico ingnua e desprovida de qualquer fundamento
que caracteriza a velha psicologia idealista, segundo a qual a criana possuiria por natureza a
faculdade de efetuar processos mentais interiores, que os fenmenos que agem sobre a criana
apenas fariam provocar estes processos e enriquec-los com um contedo cada vez mais complexo
e que o seu desenvolvimento se reduziria a isso (LEONTIEV, 2004, 197). Por outro lado, o
empirismo, ao criticar o inatismo afirmou que A soluo possvel do problema do
desenvolvimento da atividade mental interior na criana parte justamente de que esta atividade no
inata, como afirma o autor:
Este processo forma na criana determinados modos de ao, porm, com grandes limites,
pois subjuga o pensamento captao sensorial do objeto, cuja aprendizagem-desenvolvimento se
confunde com a reproduo das propriedades exteriores, superficiais dos fenmenos,
184
Com efeito, a formao dos processos mentais por via de acumulao progressiva
das ligaes suscitadas pela ao do material educativo, por natureza, s poderia
ser muito lento, pois devia apoiar-se num material qualitativamente considervel.
Mas, na realidade, os processos mentais formam-se rapidamente a partir de
material relativamente pouco importante; muito mais limitado que o mnimo
requerido para a formao, pela criana, das ligaes adequadas para a sua
diferenciao e generalizao. Basta mencionar para este respeito o fato,
estabelecido por A. G. Rouzskaia, de mesmo uma criana em idade pr-escolar
ser capaz, na prtica, de aprender, imediatamente e literalmente a partir de
alguns exemplos isolados, a analisar e a generalizar corretamente figuras
geomtricas, por pouco que nela se crie o processo de orientao em relao s
suas formas, graas aos sinais que o experimentador coloca de certa maneira entre
as suas mos (LEONTIEV, 2004, p. 198).
A segunda dificuldade com que choca esta concepo de desenvolvimento dos processos
mentais, fundamentalmente maior que a primeira, deve-se a que o processo de criao e atualizao
das ligaes associativas estveis na criana, tais como 2+3=5 ou 3+4=7 etc. no de modo algum
idntico ao processo de atividade intelectual que no seno uma das condies e um dos
mecanismos da sua realizao. Isto significa que a lgica das aes/operaes no criada na
criana por estas ligaes (LEONTIEV, 2004); estas aparecem apenas como representaes
formais do fenmeno, como esclarece:
fcil de ver atravs de fatos muito simples e bem conhecidos. No difcil, por
exemplo, criar numa criana as ligaes associativas estveis do tipo 2+3=5;
3+4=7; 4+5=9 etc. Se bem que estas ligaes possam facilmente ser atualizadas,
a criana pode todavia no saber adicionar as grandezas correspondentes,
independentemente do fato dos elementos destas ligaes estarem associados ou
no nela s quantidades discretas visveis correspondentes. A ao aritmtica da
adio no criada por estas ligaes, ela precede a sua formao. Razo porque,
para aprender a contar, nunca se comea a tabuada da adio de cor. Antes de dar
a tabuada criana, ensina-se-lhe obrigatoriamente como efetuar a ao de adio
com a ajuda de objetos concretos; em seguida, transforma-se progressivamente
esta ao da criana reduzindo-a sua forma contrata, sob a qual fixada nas
expresses aritmticas do tipo 2+3=5 etc. Apenas neste momento a criana
adquire a possibilidade de utilizar uma tabuada da adio para contar; isso
185
Todavia, Naturalmente [...] este processo no passa sempre obrigatoriamente por todas
estas etapas e no engloba necessariamente todos os encadeamentos da ao intelectual novamente
adquirida (LEONTIEV, 2004, p. 201). Entretanto, evidente que as aes intelectuais j
formadas se manifestem quando da aquisio de uma nova ao, como faculdades mentais j
formadas que so simplesmente postas em ao. Segundo o autor, compreende-se que, A este
propsito, importante notar que este fato cria por vezes a iluso de que a interiorizao das aes
exteriores no seno um caso particular, que se observa principalmente nas primeiras etapas do
desenvolvimento intelectual (LEONTIEV, 2004, p. 201). Desta forma,
88 O cotidiano do qual falamos trata-se da heterogeneidade da vida cotidiana, prtica social experienciada pelos
homens em suas relaes sincrticas; e o no-cotidiano refere-se esferas mais ampliadas de entendimento da realidade
produzidas pelo homem na histria, como a filosofia, a arte, a cincia, a poltica, a moral (HELLER, 2004; PAULO
NETO, 1994; DUARTE, 2001). Segundo Duarte (2001, p. 31), a partir de Heller, vida cotidiana constitui-se como um
conjunto de atividades que caracterizam a reproduo dos homens singulares. Duarte observa que o critrio da
autora para distinguir as atividades que fazem parte da vida cotidiana, das atividades no-cotidianas, tem como
referncia a dialtica entre reproduo da sociedade e reproduo do indivduo. E continua o autor: As atividades
diretamente voltadas para a reproduo do indivduo, atravs da qual, indiretamente, contribuem para a reproduo da
sociedade, so consideradas atividades cotidianas. Aquelas atividades que esto diretamente voltadas para a
reproduo da sociedade, ainda que indiretamente contribuam para a reproduo do indivduo, so consideradas no-
cotidianas (Idem, ibidem). Diante do que foi exposto at aqui, para darmos seguimento s nossas anlises, faz-se
188
necessrio uma observao: segundo Duarte (Idem, ibidem), no existe a possibilidade de uma separao rgida entre
as atividades cotidianas de um lado e as atividades no-cotidianas de outro, pois algumas atividades da vida cotidiana
se caracterizam como objetivaes genricas ao mesmo tempo em-si e para-si, no entanto, o critrio utilizado para a
diferenciao de tais atividades centra-se na referncia reproduo do indivduo ou da sociedade, como esclarecido
anteriormente.
189
Estes sistemas psicolgicos podem ser entendidos como o aparecimento dessas novas e
mutveis relaes nas quais se situam as funes. Os nexos demarcam o aparecimento das novas
formaes. Mas este processo no se desenvolve no interior da criana. De acordo com Vygotski,
o contedo da cultura que interiorizado pela criana, o contedo que produto da atividade
humana, posto e movimento na medida em que os indivduos se apropriam deste e, assim
objetivados, interiorizadas no psiquismo da criana.
Este processo s foi possvel por a atividade humana ter produzido formas especiais de
produtos culturais, a saber, os signos. As funes psicolgicas superiores so formas de ser da
atividade psquica elaboradas pela atividade prtica humana, historicamente determinadas.
Portanto, o signo tem um papel fundamental na histria cultural do homem. De acordo com
Vigotski, os signos so produtos da atividade prtica humana, que, em sua origem, so meios de
comunicao elaborados por necessidades humanas para o desenvolvimento da sua atividade
prtica de relao com a natureza e com os outros homens. O signo une o exterior e o interior da
coisa no indivduo. ele que possibilita a produo e conexo das funes psicolgicas. Segundo
Vygotski, reforo, [...] sem esse signo o crebro e suas conexes iniciais no poderiam se
190
transformar nas complexas relaes, o que ocorre graas linguagem (VIGOTSKI, 2004a, p.
114), como pudemos verificar em nossa anlise sobre o desenvolvimento do comportamento
intelectual.
O signo o nexo essencial ou nova formao que impulsiona o desenvolvimento das
funes psicolgicas elementares em superiores. Portanto, o signo, ao ser conduzido pelas aes
verbais, vai se transformando em conceitos na medida em que a atividade humana se complexifica,
constituindo o que Vygotski definiu como sistemas psicolgicos, pois o conceito conhecido em
suas relaes e vinculaes, um sistema de apreciaes, reduzidas a uma determinada forma
regular, quer dizer, uma forma generalizada do real (2004a, p. 122). Todo conceito um sistema
de conceitos, mas todo conceito produzido pela formao de noes, juzos, at os conceitos
embrionrios, conceitos mais elaborados, categorias etc.
Assim, o conceito produzido como unidade inter e intrafuncional na esteira da atividade,
quer dizer, na relao entre as funes que aparecem os novos agrupamentos desconhecidos do
nvel anterior. O que muda para que surjam estas novas formaes so as relaes sociais acessadas
pelos indivduos, o que possibilita uma espcie de reorganizao das funes, pois, ao surgir um
novo sistema psicolgico, este se converte no centro do foco estrutural, na medida em que
determina funcionalmente todos os processos que do lugar ao ato instrumental. Neste processo,
os conceitos cientficos tem um papel essencial. Estes impactam diretamente no desenvolvimento
das funes psicolgicas superiores porque exigem graus mais elaborados da atividade humana
para se desenvolverem. A realizao da atividade em suas formas complexas possibilita a produo
no psiquismo do sujeito de operaes, aes at as formas mais complexas da atividade humana,
como um processo sem fim, pois o desenvolvimento est aberto. O no acesso s formas mais
elaboradas das atividades humanas limita as capacidades dos sujeitos, o desenvolvimento do seu
pensamento conceitual e concomitamente o autocontrole da conduta, a personalidade e a formao
de sua concepo de mundo, um limite que precisamos superar para fazer avanar as condies
subjetivas a fim de fazer avanar o processo de transio para uma oura forma social. Por isso que
a escola tem um papel preponderante para a formao da classe trabalhadora.
O contedo composto por vrios sistemas psicolgicos, um complexo sistema de
instrumentos artificiais que impulsiona a mudana no comportamento humano, na esteira de
sistemas de atividades complexas culturalmente formadas, que, para o autor bielorrusso, [...]
somente na idade de transio se formaliza definitivamente e a criana passa a pensar a partir de
191
Assim, segundo Martins [...] o autor conduziu suas concluses na direo da afirmao
das diferenas, tanto em relao ao processo de desenvolvimento quanto em relao aos
procedimentos de funcionamento existentes entre os conceitos cientficos e espontneos [...], pois,
como observou Kopnin (1978, p. 121), o pensamento o reflexo da realidade sob a forma de
abstraes. O pensamento um modo de conhecimento da realidade objetiva pelo homem. Assim,
As leis e categorias da lgica dialtica materialista se constituem em mtodo de interpretao da
realidade objetiva, situada fora da conscincia do homem, ou do prprio pensamento enquanto
atividade subjetiva voltada para o conhecimento das coisas, processos, relaes e leis. Por isto,
afirma o autor, o que caracterstico do conhecimento em geral tambm prprio do
pensamento. E mais, segundo Kopnin,
192
Assim, o pensamento no pode ser outra coisa seno uma imagem subjetiva do
mundo objetivo. Ele no pode ultrapassar os limites da subjetividade no sentido
de que pertence sempre ao sujeito, ao homem social e cria apenas a imagem e no
a prpria coisa objetiva, com todas as suas propriedades. Ao mesmo tempo, o
pensamento objetivo porquanto se desenvolve pela via da criao de uma
imagem ideal que reflete o objeto com plenitude e preciso; por contedo, procura
ser adequado coisa objetiva, descobrir as propriedades do objeto tais como elas
existem independentes do pensamento (KOPNIN, 1978, p. 127).
89 Para uma compreenso sistemtica sobre as Etapas do desenvolvimento do pensamento pensamento efetivo ou
motor vvido, pensamento figurativo e pensamento abstrato ou lgico-discursivo ver Martins (2013, p. 204-225).
193
Diante do que foi exposto, levantamos a seguintes questes: como na atividade de ensino
na educao fsica escolar a imagem, subjetivao do objetivado historicamente, realiza-se na
corporalidade dos indivduos, na direo do autodomnio da corporalidade, aspecto fundamental
para contribuir no desenvolvimento do pensamento conceitual dos estudantes? Do ponto de vista
dos estudos da psicologia histrico-cultural sobre a aprendizagem-desenvolvimento do controle
consciente dos movimentos no indivduo, quais significaes objetivas contribuem para a produo
do autodomnio da corporalidade? Quais as vias que constituem o processo de generalizao de
conceitos da corporalidade humana? Como realizar este processo na atividade de ensino na
educao fsica tendo por base os seus contedos, formas singulares da atividade esportiva em
geral?
A estas questes nos propomos realizar explicaes no prximo captulo.
194
2004), Bernstein (2006), Zaporozhets (1967) e Lisina & Neverovich (1974). Feito isso, passamos
para a anlise da estrutura e funo social da atividade esportiva e o processo de apropriao da
cultura, e ainda a anlise da atividade de ensino na educao fsica com fundamento na pedagogia
histrico-crtica, sem perder de vista a relao contraditria da riqueza humana universal, misria
material e, humana da atividade esportiva na sociedade capitalista, educao escolar e luta de
classes. Assim, a atividade de ensino na educao fsica em suas relaes sociais fundamental e
essencial aparece como base para a dialtica contedo-forma na prtica de ensino na educao
fsica escolar.
ao seu redor, falando consigo mesma por meio da fala exterior, falando com as coisas, reclama da
boneca agindo como se fosse sua me, reproduzindo papis sociais etc. Nesse processo, a criana
est apreendendo o mundo que a cerca e, ao realizar as aes e operaes da atividade qual se
relaciona na realidade, aprende, e desenvolve. preciso destacar que esta atividade, no incio
exterior, comea a produzir um contedo simblico, portanto, interior, desenvolvendo a atividade
psquica da criana por meio da interiorizao de sistemas de referncia (signos).
De acordo com Leontiev (2004, p. 311), uma segunda caracterstica da atividade dominante
[...] aquela na qual se formam ou se reorganizam os seus processos psquicos particulares. no
jogo, por exemplo, que se formam inicialmente processos de imaginao ativa, e no estudo os
processos de raciocnio abstrato (LEONTIEV, 2004, p. 311). Os processos psicolgicos
particulares so aqueles que, na relao do indivduo com a realidade, so subjetivados no
psiquismo da criana. Estas operaes comeam a se desenvolver no interior da criana, ampliando
seu universo simblico, instrumentalizando-a a agir. A imaginao ativa possui caractersticas
particulares que a determina e, seguindo a orientao acima exposta na primeira caracterstica,
conseguimos identific-la pela forma sob a qual a atividade se expressa, tendo em conta que a
atividade dessa criana que comea a jogar ainda exterior. Vejam que a imaginao aparece aqui
de forma embrionria pela reproduo em seu interior da realidade em que a mesma est inserida,
mas no como uma relao mecnica e sim como sntese. Isso comea no final do segundo ano de
vida, a depender das condies do desenvolvimento da atividade da criana.
O destaque para os processos de raciocnio extremamente importante nesta fase, pois, ao
comear a articular linguagem e pensamento, mediados pelos signos, as formas lgicas do
raciocnio comeam a se desenvolver, ou seja, as aes exteriores, resultado da atividade humana
condensada nos objetos sociais apropriados pela criana, comeam a assumir a forma verbal e
depois a forma de aes intelectuais estreitas de atos intelectuais, como vimos no captulo anterior.
Por fim, a terceira caracterstica da atividade dominante aquela de que depende o mais
estreitamente as mudanas psicolgicas fundamentais da personalidade da criana observadas
numa dada etapa do seu desenvolvimento. no jogo, por exemplo, que a criana de idade pr-
escolar se aproxima das funes sociais e das normas de comportamento que correspondem a certas
pessoas e isto constitui um elemento muito importante da formao da sua personalidade
(LEONTIEV, 2004, p. 311).
197
Ento, as trs caractersticas da atividade dominante segundo Leontiev so: primeiro, uma
atividade que condensa em sua estrutura e gnese novas formas de desenvolvimento da atividade
humana; segundo, uma atividade que produza graus de desenvolvimento da atividade intelectual;
e, terceiro, uma atividade que esteja direcionada ao autodomnio da conduta. A todas estas
caractersticas esto atreladas as dimenses afetivas, emocionais dos sujeitos como uma totalidade
concreta. Assim, segundo Leontiev (2004, p. 312), A atividade dominante , portanto, aquela cujo
desenvolvimento condiciona as principais mudanas nos processos psquicos da criana e as
particularidades psicolgicas da sua personalidade num dado estgio do seu desenvolvimento
(LEONTIEV, 2004, p. 312).
Diante disso, Leontiev afirma que
Estas mesmas condies determinam, por outro lado, qual a atividade que se torna
dominante para a criana num dado estgio do seu desenvolvimento. A
apropriao da realidade material que circunda imediatamente a criana, o jogo
atravs do qual a criana toma posse de uma esfera mais larga de fenmenos e
relaes humanas, a formao sistemtica na escola, finalmente a sua formao
especializada ou a atividade de trabalho, tal a sucesso das atividades
dominantes, das relaes dominantes que podemos constatar na nossa poca e nas
nossas condies (LEONTIEV, 2004, p. 313).
198
Isto tem implicaes tericas importantes, pois, se a criana retoma a sua atividade sem
dificuldade no rendimento aps a crise, mas num patamar qualitativamente superior do ponto de
vista de sua relao com a realidade, fica evidente o que afirmou Vygotski sobre a lgica interna
do seu processo de desenvolvimento ser o aspecto que provoca a necessidade desses perodos
crticos, de viragem, na vida da criana, e no a presena ou ausncia de condies especficas
exteriores. Mas com isso no estamos afirmando que estas no interferem, pelo contrrio, a
personalidade do indivduo produto de uma relao da criana consigo mesma, da criana com
os outros e com a realidade. Porm, as mudanas no comportamento de que trata Vygotski so
201
muito condizentes com a relao do indivduo consigo mesmo, como uma mudana pessoal do
indivduo diante de suas relaes com as formas objetivadas da realidade.
Segundo Vygotski (1996), A terceira peculiaridade das idades crticas, talvez a mais
importante em sentido terico, mas a menos clara, a que mais dificulta o correto entendimento da
natureza do desenvolvimento infantil nos perodos mencionados a ndole negativa do
desenvolvimento, como analisa o autor:
Mais tarde se descobriu a crise dos treze anos [...]. Este perodo, limitado por um
breve lapso de tempo, a personalidade da criana passa por mudanas bruscas e
inesperadas. difcil domin-lo, se manifesta com teimosia, voluntarioso,
obstinado, caprichoso. um perodo de conflitos internos e externos
(VYGOTSKY, 1996, p. 258).
202
Vygotski observa que, com o estudo posterior sobre a crise dos treze anos, descrita como
fase negativa da idade de maturao sexual, o contedo negativo deste perodo ocupa o primeiro
plano e visto superficialmente parece esgotar todo o sentido do desenvolvimento desta etapa, como
segue:
resultante da relao entre dois aspectos da sociedade, sendo um deles de natureza objetiva e o
outro, de natureza subjetiva, portanto, aspectos em princpios opostos. Dessa forma, O curso do
seu desenvolvimento assenta-se exatamente no processo dinmico pelo qual o primeiro se converte
no segundo e vice-versa, como observa Martins:
Com base nisto, segundo Leontiev (apud MARTINS, 2007, p. 88) [...] a personalidade no
nasce, a personalidade se faz [...,] por isso [...] tampouco falamos sobre a personalidade de um
neonato ou um lactante, ainda que os traos da individualidade se coloquem de manifesto nos
estgios iniciais da ontognese em clareza no menor que em etapas mais tardias (grifo nosso).
Diante do que vimos em Leontiev, Vygotski e brilhantemente na sntese realizada por
Martins sobre a distino entre personalidade e individualidade, a unidade terica expressa nas
teses dos autores que explica o conceito de crise da idade e de atividade dominante est na
personalidade, uma categoria histrico-social particular, produzida na relao contraditria entre
indivduo e sociedade, mas que universal, pois, diferente do que se afirma cotidianamente, no
h pessoa sem personalidade. A personalidade um processo de formao integral de um tipo
especial. Cada indivduo possui a sua personalidade. Portanto, segundo Rubinstein (apud
MARTINS, 2007, p. 92),
Com base nisso, possvel afirmar que a crise da idade constitui um perodo de
transformao na personalidade da criana, no qual influem as condies externas e internas do
desenvolvimento (base biolgica e subjetividade).
Com base nisto, Vygotski categorizou cinco perodos de crise da idade no desenvolvimento
da criana:
A crise dos treze anos coincide com uma viragem em seu desenvolvimento,
quando a criana passa da idade escolar puberdade.
Puberdade (catorze anos dezoito anos)90.
Crise dos dezessete anos91.
Temos, portanto, um quadro lgico, regulado por determinadas leis (VYGOTSKI,
1996, p. 258-261).
De acordo com Vygotski (1996, p. 258), [...] Os perodos de crise que se intercalam entre
os estveis, configuram os pontos crticos, de viradas, no desenvolvimento, confirmando uma vez
mais que o desenvolvimento da criana um processo dialtico onde o passo de um estgio a outro
no se realiza por via evolutiva, seno revolucionria. E mais, segundo o autor, Nos perodos de
viragem relativamente difcil educar a criana porque o sistema pedaggico utilizado para tal fim
no consegue seguir as rpidas mudanas de sua personalidade. [...] (VYGOTSKI, 1996, p. 259).
Assim, como afirmou Leontiev, a crise sinal de uma ruptura, de um salto que no foi efetuado no
devido tempo. Ressalto ento a afirmao do autor: Pode perfeitamente no haver crise se o
desenvolvimento psquico da criana no se efetuar espontaneamente, mas como um processo
racionalmente conduzido, da educao dirigida. a que podemos destacar uma das relaes entre
a educao escolar e o desenvolvimento da personalidade das crianas. Aqui as atividades
dominantes so um meio de realizar o desenvolvimento das mximas capacidades das crianas,
pois estas orientam o desenvolvimento humano. Assim, Nos casos normais, a mudana no tipo
dominante de atividade da criana e a sua passagem de um estgio a outro respondem a uma
necessidade interior nova e esto ligadas a novas tarefas postas criana pela educao e
correspondem s suas possibilidades novas, sua nova conscincia (LEONTIEV, 2004, p. 314-
315).
Diante desses esclarecimentos, passamos a anlise da origem e desenvolvimento do
controle consciente dos movimentos nos indivduos, destacando as atividades dominantes que
90 A incluso da puberdade entre as estveis uma deduo necessria e lgica de todo o processo de tudo o que
sabemos dessa idade. Se trata de uma etapa de grande auge vital e pessoal, de snteses superiores da personalidade.
Nossa postura nesse sentido uma deduo lgica, inevitvel, da crtica feita pelos cientistas soviticos s teorias que
reduziam o perodo de maturao sexual a uma patologia normal e a uma profundssima crise interna (VYGOTSKI,
1996, p. 261).
91 Vygotski (1996, p. 261) explica da seguinte forma o motivo de no ter inserido no quadro lgico a etapa da
juventude: No inclumos a etapa da juventude nos esquemas da idade porque tanto as investigaes tericas como
as empricas nos obrigam a recusar o excessivo prolongamento do desenvolvimento infantil e a no incluir nesta os
primeiros vinte e cinco anos do ser humano. Se nos guiamos pelo significado geral e leis fundamentais, a idade
compreendida entre os dezoito e vinte e cinco anos constitui bem mais o elo de inicial na cadeia das idades maduras
que o elo final na cadeia dos perodos do desenvolvimento infantil.
206
Segundo Bernstein (2006, p. 14), de todas as formas de interao do ser vivo com o mundo
em torno dele, os movimentos tm um significado especial, excepcional para ele. De fato, por meio
de movimentos do ser vivo, ele no s toma parte no curso de fenmenos do mundo ao seu redor,
mas tambm, de forma dirigida e prpria para produzir fenmenos no mundo exterior.
207
precisamente movimentos e atos motores que na maioria dos casos compem o meio pelo qual o
ser vivo luta pela sua segurana, por suas necessidades, por tudo o que vitalmente necessrio para
ele. Por meio de movimentos ele se esfora para superar a ao agregada do ambiente externo na
direo que est de acordo com as suas necessidades.
Isto significa que, determinado por leis biolgicas, cada movimento, contanto que haja
algum significado real e vantagem para um ser vivo, invariavelmente supera as foras externas de
qualquer tipo em seu caminho; toda a sua essncia consiste na sua luta dirigida com essas foras.
Se este ser est nadando atravs de um fluxo turbulento, ou escalando uma encosta ou rvore, ou
lutando em um combate mortal com um rival ou predador, ou deitado, ou correndo, ou quando sai
em busca de alimento para si e seus descendentes, sempre, e em toda parte, ele supera atravs de
seus esforos musculares as foras externas da gravidade, atrito, resistncia hidrodinmica, a ao
dos msculos do adversrio, e assim por diante. Aqui cada meio-orientado, cada movimento
direcionado a uma meta (seja de uma guia, uma carpa, um babuno, ou um ser humano, no faz
diferena) resolve uma tarefa motora de algum tipo que tenha surgido para este ser, uma tarefa para
a soluo de que dispe de certos meios adequados. Tanto esta tarefa motora, quanto as foras que
tm que ser superadas para resolver a tarefa pertencem ao mundo exterior, fora do ser vivo em si,
e no esto diretamente sob seu controle. Ele pode, por meio de um esforo de sua vontade,
tensionar um ou outro dos seus msculos como quiser, mas no pode, atravs de um tal esforo
eliminar a fora da gravidade ou qualquer daquelas resistncias externas que ele tem de superar
(BERNSTEIN, 2006, p.16).
A estes movimentos adaptativos do corpo I. P. Pavlov (apud ZAPOROZHETS, 2009, p.
128) os denominou posteriormente como reflexos de orientao ou investigativos. O reflexo
orientador surge por qualquer troca do meio, pela apario de qualquer irritador e se manifesta em
reaes perifricas dos aparatos receptores, assim como de todo o corpo, com objetivo de obter
uma melhor percepo e conhecimento do irritador.
No entanto, os movimentos voluntrios do homem so movimentos conscientes. Sua
determinao pelas condies de existncia se realiza atravs do reflexo da imagem dessas
condies (ZAPOROZHETS, 2009, p. 120). Assim, segundo o autor, O desenvolvimento do
controle consciente dos movimentos evocado por uma necessidade vital e determinado por uma
extraordinria variabilidade complexa e constante das condies externas e internas da atividade
humana (ZAPOROZHETS, 1967, p. 304). Em outras palavras, A necessidade da direo
208
Dessa forma, segundo Zaporozhets (2009, p. 120), com base nas pesquisas de Ujtomsky
(1952) e posteriormente de N. A. Bernstein (1957) sobre a anlise biomecnica dos movimentos
manuais e posicionais do homem, em consequncia do grau mltiplo de liberdade das cadeias
cinemticas esquelticas, da forma das relaes musculares entre os seus elos, da participao
significativa e, ao mesmo tempo, da troca constante nos movimentos (as foras externas e reativas),
nenhuma medida exata de impulsos iniciais eferentes92 pode garantir por si mesma as mudanas
92 Observao sobre a Teoria receptora e reflectora das sensaes: segundo Luria, Formou-se na psicologia clssica
a concepo segundo a qual um rgo dos sentidos (receptor) reage passivamente influncias dos estmulos sendo
essa reao passiva constituda pelas sensaes correspondentes. Chamava-se a essa concepo teoria receptora das
sensaes, segundo a qual a sensao enquanto processo passivo se opunha ao movimento que era visto como processo
ativo. Hoje essa teoria considerada inconsistente e refutada pela maioria dos estudiosos, que a ela opem a concepo
209
dos movimentos executores da direo dada, no pode garantir o xito do efeito adaptativo
necessrio.
Em outras palavras, Bernstein (apud ZAPOROZHETS, 1967, p. 303) afirma, com base em
seus estudos sobre o transporte e os movimentos manuais do homem (especialmente com
ferramentas), que nem mesmo a mais exata dosagem de impulsos efetivos iniciais pode por si
mesma assegurar a execuo do ato motor requerido de acordo com as condies impostas pela
tarefa, devido multiplicidade dos graus de liberdade nos sistemas motores do corpo humano, a
elasticidade das conexes musculares entre seus encadeamentos e a enorme e sempre variada
participao das foras reativas "extra-musculares" (externas e que se desenvolvem no mesmo
sistema motor) na dinmica dos movimentos deste tipo. Assim, o controle proposital destes
movimentos complexos s se efetua atravs de uma aferncia de retorno (P. K. Anojin), por
meio do qual se lhe informa continuamente ao sistema nervoso do rumo de um movimento
planejado e de todos os desvios do rumo necessrio (ZAPOROZHETS, 1967, p. 303). Isto significa
que o movimento voluntrio s possvel com a ajuda de uma correo no ato motor.
No obstante, como afirmou Zaporozhets (1967, p. 303), s a fonte de informao no pode
lograr um controle sobre a conduta motriz. Para que o indivduo possa avaliar corretamente a
informao que entra e convert-la, de modo adequado, em informao executora, convert-la
em um sistema de impulsos aferentes adequados, tem que saber tambm, ainda que seja s
aproximadamente, o que que tem de fazer: tem que ter algum programa de aes a ser
empreendido, pois a informao necessria no capaz de corrigir por si mesma a correo dos
movimentos realizados.
Para avaliar corretamente a informao a ser executada, em um sistema de impulsos
aferentes, o organismo deve ter um modelo, um programa conhecido sobre o que e como deve ser
feito (ZAPOROZHETS, 2009, p. 121), quer dizer, segundo o autor, a anlise biomecnica dos
movimentos do homem tem demonstrado que estes no se podem efetivar sobre o sistema
comportamentalista simplificado (estmulo-resposta) e que, para control-los, o sujeito tem que ter
da sensao como processo ativo. Essa concepo serve de base a outra teoria, denominada teoria reflectora das
sensaes (LURIA, 1979b, p. 06-07). [...] isto significa que as sensaes no so absolutamente processos passivos,
que elas tm carter ativo e a participao de componentes motores na sensao pode ser efetuada em nvel variado,
ocorrendo, s vezes, como processo reflector elementar (por exemplo, na reduo dos vasos ou das tenses musculares
que surgem em resposta a cada excitao sentida), s vezes como um complicado processo de atividade receptora
intensa (por exemplo, durante a palpao ativa do objeto ou a contemplao de uma imagem complexa) (LURIA,
1979b, p. 08).
210
93 De tempora.
212
confirmam esta suposio, afirma o autor (ZAPOROZHETS, 2009, p. 122). O que se observa que,
depois da orientao prvia, o sistema motor elaborado no est assimilado e requer uma srie de
exerccios adicionais para formar o hbito final. Assim, poderamos afirmar que [...] no processo
da orientao se forma, no os sistemas mesmo das reaes executoras, seno a imagem, sob cujo
controle funciona todo o sistema. Para elucidar a gnese desta imagem necessrio estudar as
mudanas na atividade orientadora-investigativa da criana quando este observa as condies da
tarefa (ZAPOROZHETS, 2009, p. 122, grifo nosso).
Segundo Puentes (2013, p. 188), Zaporozhets e equipe pesquisaram o papel determinante
da parte orientadora na formao e execuo da ao. Eles concluram que o processo de aquisio
de conhecimentos e de habilidades por parte da criana est condicionado pela organizao
adequada da ao objetal que responde a exigncias da tarefa. Nestas aes, eles distinguem duas
etapas: a) de orientao (prev tambm o controle) e; b) de execuo. A primeira, porque preciso
que a criana que aprende disponha de modelos que expliquem ou orientem o que h por fazer e
como fazer; a segunda, porque necessrio que realizem aes em condies objetais (manuseando
objetos concretos). Na anlise da atividade orientadora-investigativa da criana, diante da tarefa,
passa-se por uma srie de etapas:
Vamos analisar logo abaixo, com base em Zaporozhets (2009), cada uma destas etapas, que
vo desde a primeira infncia at a idade pr-escolar, destacando o papel da atividade no
desenvolvimento dos movimentos voluntrios.
Notem que a tarefa no exerce uma influncia na criana de forma a possibilitar que a
mesma articule as informaes recebidas. Ela recebe as informaes, mas ainda no consegue
organiz-las. Isto significa que a relao sensao-motricidade ainda dominante neste tipo de
atividade da criana. Porm, preciso notar que, para a superao desta relao, a conexo absoluta
da sensomotricidade deve ser substituda por uma conexo relativa. Como vimos, a
especializao das funes (sobretudo da linguagem), na esteira da estrutura da atividade que
possibilitar a superao desta relao. Todo este processo se d com o desenvolvimento da
organizao do campo perceptual, que tem como resultado a transformao das sensaes isoladas
numa percepo integral, passando do reflexo de indcios isolados ao reflexo de objetos ou
situaes inteiras, ou seja, comeam a formar sistemas. Esta fase de desenvolvimento gira em torno
de 0-2anos.
Nesta, a criana passa de atos involuntrios (primeiros 6 meses de vida) a atos voluntrios
(de 6 meses a 1 ano). A relao predominante da atividade orientadora tem sua base no adulto, em
especial na relao me-beb, me-objeto-beb. A partir do primeiro ano a criana passa a se
relacionar de forma cada vez mais ativa com a realidade, apesar dos limites do seu
desenvolvimento, e neste perodo a sua atividade orientadora se requalifica, pois ao se relacionar
com os objetos, numa relao ainda preponderantemente exterior, comea a identificar as formas
das coisas, comea a identificar sensaes e os seus analisadores exercem uma funo essencial
neste perodo. Por a podemos ter uma noo do que significa uma criana cega, surda etc. e seus
limites de captao sensorial nesta fase, quando a viso, o tato e a audio, que so profundamente
vitais para o desenvolvimento do reflexo consciente da realidade, esto comprometidos. Por isto
que os estudos sobre as vias colaterais do desenvolvimento so altamente relevantes (VYGOTSKI,
2000).
Com o desenvolvimento das aes com objetos, a imagem vai sendo representada pelos
indivduos de forma cada vez mais complexa. Na base deste processo est a ampliao do campo
perceptual, que contribuiu com a transformao de sensaes isoladas em uma percepo mais
integrada. Mas no s. J est atuando aqui fortemente a capacidade de selecionar, organizar, focar,
o que vai possibilitar criana desenvolver uma atividade cada vez mais consciente. Estamos
falando da ateno e sua relao com o desenvolvimento da estrutura da atividade. Isto nos
possibilita afirmar que o empobrecimento da atividade nesta fase de desenvolvimento (0-2 anos)
214
compromete imensamente o desenvolvimento futuro da criana, pois a sua atividade ainda muito
dependente do adulto e, sem a ampliao em larga escala do campo perceptual, o seu
desenvolvimento fica num limiar bem abaixo do socialmente necessrio. Com o desenvolvimento
da ateno, este processo avana e se complexifica, quando a fala passa a exercer um papel
essencial na organizao do universo simblico da criana. importante ressaltar que sem a
capacidade de registrar os dados da realidade, fixar operaes, seria impossvel o desenvolvimento
da fala.
Na fase posterior, veremos que todo este complexo processo salta qualitativamente, pois o
desenvolvimento da fala abre a possibilidade de verificarmos objetivamente como a cultura vai se
tornando parte da natureza humana pela via do processo de interiorizao. Este fato to
importante que segundo Zaporozhets (2009, p. 123) h uma mudana de todo o carter da atividade
investigativa da criana, ou seja, a sua relao com os objetos da realidade se altera radicalmente.
Isto significa que a mesma comea a agir agora a partir de um segundo sistema de sinais mais
complexos, a saber: a palavra. No entanto, estes sinais ainda so formas embrionrias, estando
ligados captao da palavra em sua representao material, ainda catica. Ressalto que nesta fase
a criana comea a desenvolver uma atividade orientadora influenciada pela palavra, mas a palavra
na sua relao direta com os objetos, portanto como uma atividade ainda exterior.
Assim, na segunda etapa do desenvolvimento da atividade, As reaes orientadoras para
os irritadores alheios desaparecem e a ateno da criana se centra na situao experimental e nas
palavras e aes do investigador. Segundo Zaporozhets (2009, p. 123),
relao mais ativa com a realidade. Mas, como se desenvolve este sistema de orientao em suas
relaes com os movimentos na criana? Segundo o autor,
Isto significa que nesta fase final a criana j consegue representar a imagem sem
necessariamente estar diante do objeto, pois a palavra passa a exercer uma influncia na formao
da imagem que a criana tem do objeto real. Mas importante destacar o papel do tato na conduo
da formao da imagem na criana.
Entendemos que na terceira etapa da atividade orientadora, devido maior exigncia das
atividades da vida da criana, a palavra passa a exercer uma influncia maior no processo da
aprendizagem consciente e de formao das generalizaes, uma condio essencial para a
requalificao do desenvolvimento dos seus movimentos. Segundo Zaporozhets (2009, p. 124),
A terceira etapa nem sempre se identifica como uma etapa especfica, entretanto,
no ensino de hbitos mais complexos (por exemplo, no ensino para utilizar
corretamente os objetos da vida cotidiana nos experimentos de Z. M.
Boguslavskaya ou na formao de hbitos complexos do tipo de aes intelectuais
prticas nos experimentos de G. I. Minskaya), esta etapa adquire um significado
independente. Sabe que a atividade orientativo-investigativa da criana se
relaciona estreitamente com a linguagem e j na primeira etapa de observao da
situao acompanhada por diferentes reaes verbais. Entretanto, estas reaes
possuem frequentemente um carter isolado, espordico, e nem tudo o que sucede
nem tudo o que se identifica com a ajuda da orientao se reflete no segundo
sistema de sinais. Como resultado, a experincia acumulada pela criana no se
generaliza e com muitas dificuldades passa a condies novas, modificadas.
Como mostrou a investigao de Z. M. Boguslavskaya e G. M. Minskaya, a
ativao da comunicao verbal da criana quando se lhe pede que expresse
216
partir da imagem generalizada do labirinto, segundo a tarefa proposta. Isto implica em afirmar a
lgica do processo de interiorizao: relao objeto-imagem-palavra-conceito primitivo-
movimento voluntrio.
Segundo Zaporozhets (2009, p. 125),
Quando se cria a imagem da situao e das aes que se tem que realizar, se
produzem mudanas notveis na conduta. Antes da apario da imagem o meio
correto da ao se encontra de maneira "cega" e as reaes corretas se fixavam
e as reaes errneas se inibiam somente na medida do xito ou fracasso de um
efeito adaptativo, s de acordo com a obteno de um reforador negativo ou
positivo; mas com a apario da imagem a situao muda: os movimentos corretos
se fixam de imediato, enquanto que os movimentos errneos se inibem desde o
incio, mesmo antes de produzir um efeito negativo. Em outras palavras, a
coincidncia (ou no coincidncia) da conduta com a imagem existente comea a
realizar a funo de reforador condicional, e o resultado que a rapidez e a
efetividade do ensino se incrementam notavelmente (grifo nosso).
Assim, [...] apesar de que nas primeiras etapas (ou no primeiro momento de sua mudana)
a orientao realiza sua funo bsica de assimilar o movimento, posteriormente no perde seu
significado, pois, De forma regular, em um ato de conduta motora fixada existe uma parte
218
orientadora que regula seu transcurso (ZAPOROZHETS, 2009, p.125). O ensino orientado a partir
das formas mais desenvolvidas de objetivao do gnero humano, pode constituir um ponto de
referncia, se elaborado pela via de uma estrutura de generalizao (imagem), essencial para
orientar o processo de interiorizao do contedo da atividade at apropriao plena desta pelo
indivduo, quando este se liberta. Tal estrutura de generalizao, base orientadora do ensino, vai
se interiorizando pela transformao das aes realizadas no exterior, que tem por base o contedo
da atividade esportiva, s aes situadas no plano verbal, depois a uma interiorizao progressiva
destas ltimas; o resultado que estas aes adquirem o carter de aes intelectuais estreitas de
atos intelectuais, quando constituem uma referncia (imagem) para a fixao de operaes motoras
nos sujeitos na atividade. Se os reforadores (significados) continuam produzindo reaes
orientadoras ativas, o desenvolvimento dos movimentos voluntrios est aberto, pois, com o
ensino, tais reforadores condensam-se cada vez mais de sistemas conceituais, ampliando as
referncias dos sujeitos.
Todo este processo complexo se desenvolve na esteira da atividade de ensino orientada no
currculo escolar e o contedo das atividades orientadoras se altera na medida em que os indivduos
vo se relacionando com os objetos culturais, consigo mesmo e com os outros homens.
Mas, como afirmou o autor, h tipos e nveis de orientao no desenvolvimento, como
observa:
Uma coisa a orientao com base num primeiro sistema de sinalizao, que pode ser tanto
condicionado como incondicionado. Outra coisa a atividade orientadora, em cujo processo se
forma [e se realiza] o sistema de reaes orientadas como os reflexos condicionados. Este sistema
constitui uma reproduo do objeto que se estuda (ZAPOROZHETS, 2009, p. 125), quer dizer:
A imagem que se forma sobre a base desta orientao guia o movimento posterior,
regula sua execuo e facilita a assimilao de novas formas de conduta. A
219
possvel observar mais claramente isto quando a criana comea a assumir posies sobre
as suas relaes com os objetos, deixa de receber passivamente o que os pais fornecem sem
questionar, comeam a levantar perguntas buscando explicaes sobre as coisas. O que est se
dando a organizao do seu universo simblico, o que corroborar para que esta seja mais
autnoma na sua atividade na realidade, pois, como afirma Zaporozhets (2009, p. 129), Com o
desenvolvimento da criana, o segundo sistema de sinais comea a participar significativamente
na atividade orientadora-investigativa, o que cria a possibilidade de refletir a realidade no s em
forma de imagens sensoriais, seno de conceitos abstratos, pois os traos particulares da atividade
orientadora-investigativa influem na rapidez da aprendizagem e na qualidade do hbito quando este
se elabora.
Ainda com Zaporozhets (1967), as investigaes de Ya. Z. Neverovich [...] demonstraram
que os sistemas complexos dos movimentos manuais (trabalho com ferramentas), elaborados com
crianas que mostravam distintas formas de orientao, adquiram distintas estruturas internas e se
caracterizavam por distintas normas de execuo. Zaporozhets (1967) observou que Se sabe
muito bem que o domnio dos sistemas motores complexos que tem a ver com o uso de ferramentas
(por exemplo, a destreza de bater com um martelo em um prego) apresenta bastante dificuldade s
crianas de 3-7 anos de idade. Com base nisto, afirma o autor:
Neverovich descobriu que uma das causas de tais dificuldades era que no mtodo
de ensino, a atividade orientadora da criana se dirigia principalmente ao resultado
da ao. Os mesmos mtodos que se empregavam para sua realizao e, em
especial, os movimentos manuais associados com ela, estavam na periferia da
ateno, e por conseguinte, se tornava extraordinariamente difcil para analisar os
sinais que partiam destes, e estabelecer as conexes correspondentes
(ZAPOROZHETS, 1967, p. 308, grifo nosso).
A transferncia de habilidades, fixadas por meio das operaes em hbito motor pela via de
aes, um fato importante para a nossa anlise. Se o hbito uma operao fixada uma ao
em processo de desenvolvimento , a habilidade a operao consciente. Afirmamos isto com base
no experimento de Polyakova (apud ZAPOROZHETS, 1967), quando afirma que houve
transferncia de habilidade para a resoluo do mesmo problema, mas em condies diferenciadas,
o que exigiu a utilizao do segundo sistema de sinais. Isto evidencia que a formao de habilidade
pressupe atividade consciente e que a habilidade motora se forma na esteira do hbito motor e j
exige graus de desenvolvimento do pensamento conceitual, requisito ao autodomnio da
corporalidade.
Assim, a todo este complexo processo analisado acima que definimos como a relao
social mais geral e essencial que constitui a dialtica entre o desenvolvimento da corporalidade
humana e autodomnio da corporalidade. Como vimos, para a realizao deste processo faz-se
necessria a superao do pensamento sensorial em direo ao pensamento conceitual (abstrato),
utilizando-se do segundo sistema de sinais, requisito ao desenvolvimento de uma relao cada vez
mais ativa, consciente, intencional e crtica, porm indireta, entre o indivduo e seu corpo.
221
humana, um objeto cultural? no intuito de elucidar tais questes que realizamos o item 5.3 logo
abaixo.
Assim, Duarte (2012, p. 3964) afirma com base em Lukcs, que a arte antropomrfica,
pois se volta ao domnio do humano, j a cincia desantropomorfica, pois, os conhecimentos
cientficos se situam no domnio da universalidade e buscam a desantropomorfizao, no sentido
de que buscam restringir a influncia dos aspectos subjetivos, humanos na compreenso dos
fenmenos, continua o autor:
que passam pela mediao da linguagem, como afirmou Duarte. A produo de imagens artsticas
pode se constituir como aes na atividade esportiva, atreladas a motivos particulares, mas no
constitui a sua finalidade mais geral. At mesmo em uma competio que envolva o critrio
artstico, como o caso da patinao artstica, apesar de conter o critrio da beleza, plasticidade
dos movimentos, construo de uma imagem artstica, aproximando-nos ao campo da arte, a sua
finalidade mais geral ser a realizao do autodomnio da corporalidade pelo indivduo na relao
ativa e indireta, mediada, com seu corpo e com os outros indivduos. Portanto, o seu resultado
no preponderantemente uma imagem artstica, pois, nesta forma particular de atividade
humana, a imagem, subjetivao do objetivado historicamente, realiza-se na corporalidade dos
indivduos, que, pela via da apropriao das aes/operaes acumuladas nos contedos da
atividade esportiva, exterioriza-se na forma de movimentos voluntrios, em direo ao
autodomnio da corporalidade, sua forma objetivada.
Assim, na atividade esportiva as aes em seus fins especficos so orientadas ao domnio
cada vez mais ativo, consciente e intencional do indivduo sobre seu corpo, perspectivando atingir
determinado objetivo particular, por exemplo, saltar o mais alto ou mais distante possvel, correr o
mais rpido possvel, executar a ao corporal com preciso a fim de marcar o ponto e assim atingir
o objetivo imediato do jogo, executar determinada ao com plasticidade, controlar o corpo no
espao etc. Para tanto, o faz na base de operaes que colaboram para atingir o resultado da ao.
A ao, portanto, carrega significados (conceitos) com maior grau de complexidade, ou,
poderamos dizer, maior grau de atividade humana acumulada. As operaes, apesar de serem
essenciais para o desenvolvimento de aes mais complexas, carregam menor grau de
complexidade, mas constituem a base, a gnese, a condio para a realizao das aes, pois sem
estas as aes no poderiam sequer ser realizadas, por exemplo, o equilbrio, a orientao espacial
e temporal, a lateralidade, a fora, a velocidade, todas so operaes que consubstanciam a
elaborao de novas aes na atividade esportiva complexa, porm se estivermos desejando formar
no estudante, por exemplo, o equilbrio, este seria o objeto da ao, portanto a ao mesma.
Estamos afirmando isto para explicar que h uma dinmica de transformao nesse processo de
formao de novas aes, em que um conceito vai sendo incorporado ao outro, dando fundamento
para que o mais elaborado se desenvolva, mas sempre tomando como referncia a relao todo-
anlise-novo todo. Portanto, atingir o objetivo imediato do jogo no esgota o contedo dessa
atividade, tendo em vista a pluralidade de motivos particulares que a constitui, bem como seu
225
94 Segundo Kosik (2011, p. 204), Neste ponto fundamental, em que a problemtica do tempo humano associada
atividade objetiva do homem, a filosofia materialista se diferencia essencialmente da concepo existencialista da
temporalidade.
226
a receber a bola com a manchete, a defender a bola, a bloquear a bola, a olhar o bloqueio, a girar o
corpo no ar a fim de mudar a rota da bola e conseguir espao aberto no bloqueio etc., claro, todo
este processo se realizar num perodo de estudo do contedo. Ao analisar a aprendizagem do
voleibol ou qualquer outra atividade complexa, vimos que os elos que a compe se formam
inicialmente como aes separadas e s se transformam em operaes ulteriormente.
Na conscincia do jogador de voleibol experiente, por exemplo, as operaes que consistem
em ajustar o golpe ou definir a direo para onde seguir a bola (paralela, diagonal, centro, fundo,
atrs do bloqueio etc.) podem no estar presentes. Parafraseando Leontiev (2004), basta, todavia,
o menor desvio em relao execuo normal da operao para que esta ltima, bem como as suas
condies materiais, apaream nitidamente conscincia. Mas, por ser o jogo de voleibol um
contedo bastante dinmico, muitas operaes aparecem com certa frequncia, at mesmo para o
jogador experiente; mas a diferena que este j possui contedo para agir de forma a superar
algumas das condies inesperadas na atividade.
Assim, no processo de apropriao dos contedos da atividade esportiva, cada ao
consciente vai fixando operaes motoras auxiliares e vo constituindo as condies para o
desenvolvimento de novas aes na atividade, em condies determinadas. Quando o fim de uma
ao entra numa segunda ao, enquanto condio de sua realizao, ela se transforma em meio de
realizao da segunda ao, quer dizer, tornou-se operao consciente e s por isso foi possvel
esta relao. Este processo realizado no ensino cria as condies para o desenvolvimento da
conscincia dos indivduos para alm das formas imediatas da realidade, pois exige atividade
consciente.
A atividade de ensino pressupe uma relao ativa e direta entre professor e aluno, sempre
mediada pelo conhecimento, que trabalho humano acumulado em objetos sociais, produto do que
a humanidade elaborou histrica e coletivamente.
228
Para a anlise desta relao, tomaremos de Saviani (2004) a distino realizada sobre os
conceitos de aluno emprico e aluno concreto, bem como a sua anlise sobre o papel do professor
nesta relao.
Para a teoria pedaggica histrico-crtica o aluno emprico e concreto tem a ver com a
concepo de homem, de sociedade, de aprendizagem, da relao professor-aluno, da relao
escola-sociedade e de conhecimento que fundamenta a pedagogia histrico-crtica.
A base terico-filosfica vem do mtodo da economia poltica elaborado por Marx e
Engels. Este mtodo entende que o processo de conhecimento deve se deslocar do emprico ao
concreto pela mediao da teoria (anlise). O primeiro momento de contato do aluno com a
realidade emprico. preciso, no entanto, avanar do emprico ao concreto, fazendo-se
necessrias as mediaes tericas, os conceitos que daro base para analisar o real luz da cincia95.
Por outro lado, no ensino, pelo professor, esta operao se inverte. O professor no dever
partir do emprico, mas sempre do concreto, quer dizer, do domnio da totalidade do conhecimento
sobre o objeto da aprendizagem pois isto o que o torna professor desta ou daquela disciplina.
Mas sabido que apesar do aluno ter uma viso emprica da realidade, a viso que o
professor ter dele, segundo a pedagogia histrico-crtica, dever ser sempre concreta, apesar de
ser uma sntese precria, pois para o professor o aluno mais do que aluno, um sujeito histrico
que se humanizar no processo de trabalho educativo, quer dizer, se constitui como ser humano,
porque, como j foi observado anteriormente, de acordo com Saviani, o que no garantido pela
natureza tem que ser produzido historicamente pelos homens, e a se incluem os prprios homens.
Isto significa, como demonstramos com as nossas anlises sobre o desenvolvimento histrico-
social e ontogentico da corporalidade, que a natureza humana no dada ao homem, mas por
ele produzida sobre a base da natureza biofsica (SAVIANI, 2012, p. 13). Com base nisso, Saviani
defende o conceito de trabalho educativo como uma segunda natureza 96, quer dizer, o ato de
produzir, direta e intencionalmente, em cada indivduo singular a humanidade que foi produzida
histrica e coletivamente pelo conjunto dos homens (SAVIANI, 2012, p. 13). Assim, afirma o
autor: [...] o objeto da educao diz respeito, de um lado, identificao dos elementos culturais
que precisam ser assimilados pelos indivduos para que eles se tornem humanos e
concomitantemente, descoberta das formas mais adequadas para atingir esse objetivo
95 importante sinalizar que estes conceitos so de formao operacional e de formao terica. Depois retomaremos
esta questo.
96 Utilizaremos neste trabalho o termo imediatez para fazer referncia segunda natureza.
229
(SAVIANI, 2012, p. 13). Porm, o aluno no sabe disso ou no tem clareza suficiente disso. O
professor precisa ter!!
Quando Saviani afirma que o professor deve olhar o aluno concreto e no o aluno emprico,
est defendendo que na prtica de ensino o professor deve estar sempre para alm do aluno, pois
de outra forma este deixaria de ser aluno e poderia ser at mesmo o professor, no necessitando
mais ficar nos bancos escolares, pois j dominaria o objeto da aprendizagem e, ao dominar o objeto
da aprendizagem, se liberta.
A ideia do professor conceber o aluno como sujeito concreto se d com base na clareza que
possui/deveria possuir do horizonte histrico, clareza esta que o aluno ainda no construiu, por isso
aluno. Este apreende a realidade de forma espontnea, sensorial e vai sucessivamente
desenvolvendo o pensamento abstrato (emprico e terico) ao se apropriar das formas mais
desenvolvidas dos contedos que a humanidade produziu.
Na dialtica contedo-forma da atividade de ensino na educao fsica, o desafio alterar
a lgica do ensino subjugado captao sensorial, mas, para tal, necessrio o domnio dos
contedos da atividade esportiva, sua gnese, estrutura e formas de desenvolvimento. Com o
desenvolvimento da dialtica no ensino, o sujeito entra no processo de sada da empiria e comea
a elevar-se ao pensamento elaborado, conceitual, em direo ao que Marx definiu como concreto,
que tem na prxis a sua forma mais desenvolvida. Isso no significa desvalorizar os saberes
cotidianos que o aluno possui, mas, definitivamente, no so estes saberes que faro com que este
sujeito salte qualitativamente para alm de sua forma de ser atual. Por isso a crtica s pedagogias
do aprender a aprender pertinente, pois, ao conceberem a relao escola-sociedade de forma no
crtica, isolando a escola da sociedade, ou a tomando como equalizadora da sociedade, para
tomar um conceito analisado por Saviani, desvaloriza a objetividade e universalidade do
conhecimento, priorizando o cotidiano, o contexto, o imediato, a experincia e o sentimento do
aluno, a sua subjetividade e no o desenvolvimento da subjetividade do aluno na relao ensino-
aprendizagem-desenvolvimento numa unidade dialtica. Assim, hipervaloriza os conhecimentos
cotidianos, que, segundo Vigotski (2000), Leontiev (2004) e Martins (2013), no prezam pelo
desenvolvimento qualitativo das funes psquicas superiores, o que compromete o pensamento
conceitual dos alunos e, por consequncia, o domnio da conduta, a formao da personalidade e
concepo de mundo, essenciais formao de um sujeito emancipado. Diante da distino entre
as concepes de aluno emprico e aluno concreto realizada por Saviani, percebemos o quo
230
[...] dizer que determinado conhecimento universal significa dizer que ele
objetivo, isto , se ele expressa as leis que regem a existncia de determinado
fenmeno, trata-se de algo cuja validade universal. E isso se aplica tanto a
fenmenos naturais como sociais. Assim, o conhecimento das leis que regem a
natureza tem carter universal, portanto, sua validade ultrapassa os interesses
particulares de pessoas, classes, pocas e lugar, embora tal conhecimento seja
sempre histrico, isto , seu surgimento e desenvolvimento so condicionados
historicamente.
pois a obra de arte expressa a sua universalidade pela forma do objeto. No processo de apropriao
da obra de arte, os indivduos vo se deslocando s suas relaes essenciais, se relacionando com
a expresso universal dada pelo artista a determinado fenmeno da realidade que captou e
explicitou na forma de obra de arte. Na educao fsica, os indivduos se apropriam do contedo
tambm pela forma, mas, neste caso, a forma do contedo no expressa a dimenso universal do
fenmeno, mas o indivduo comea a se apropriar deste pela sua forma, na medida em que assiste
a um jogo de futebol, por exemplo, na medida em que joga uma pelada com os seus amigos num
campinho de vrzea, na medida em que se insere na atividade a fim de realiz-la. Assim, para se
apropriar da essncia do contedo da educao fsica os indivduos precisam jogar. No h outra
alternativa, pois a sua especificidade, o seu contedo interno e externo produto do
desenvolvimento complexo da atividade que realizou estes objetos culturais, em determinadas
condies. Para a apropriao deste contedo faz-se necessria a apropriao dos traos essenciais
corporificados na atividade, sua gnese, estrutura e formas de desenvolvimento.
De outro modo, no processo de apropriao dos contedos da educao fsica os indivduos
estabelecem relaes ativas e indiretas com o seu corpo, mediadas por objetivaes. Porm, o
contato do indivduo com tais objetivaes ainda aparente, quer dizer, inicialmente o sujeito se
relaciona, no jogo, com a forma imediata do objeto e, na medida em que age, vai se apropriando
do seu contedo pela mediao dos conceitos, que vo se realizando em sua corporalidade na
medida em que os sujeitos vo se relacionando de forma cada vez ativa, consciente, intencional e
crtica, porm indireta, com seu corpo, consigo mesmo e com os outros indivduos, sempre
mediados pelo conhecimento.
O ensino-aprendizagem dos contedos da atividade esportiva se realizar na relao
dialtica entre forma e contedo unidade no conceito na prtica de ensino na educao fsica e
deve levar em considerao a atividade dominante da criana no perodo de desenvolvimento.
Reafirmamos que Martins (2013, p. 293-294), entretanto, preocupada com as apropriaes
indevidas dos conceitos de ensino e aprendizagem, destaca:
[...] qual o curso lgico do processo de ensino que, respeitando o percurso lgico
da aprendizagem possa, de fato, conduzir catarse. Ou seja, a ao pedaggica,
isto , o tratamento dispensado pelo professor aos contedos de ensino, pode ou
deve ser guiado pela lgica interna da aprendizagem do aluno? Instrumentalizados
pela psicologia histrico-cultural e pela pedagogia histrico-crtica, seguramente,
no.
233
Segundo a autora,
Do todo (sntese precria) parte e da parte ao todo (sntese concreta), no ensino, pelo
professor: o todo (o jogo como sntese, porm precria) parte (interposio de aes-
operaes em direo ao desenvolvimento dos movimentos voluntrios acumulados no
contedo da atividade jogo); e da parte ao todo sinttico (domnio da atividade concreta o
jogo , no sentido do autodomnio da corporalidade pelo aluno).
parte ao todo sinttico (domnio da atividade concreta jogo pelo aluno, no sentido do
autodomnio da corporalidade).
Em relao ao aluno, a prtica social sincrtica uma vez que, tambm do ponto
de partida, inexistem para ele as articulaes entre a experincia escolar produzida
pela prtica pedaggica e suas experincias sociais para alm dela. Nessa direo,
o educando ainda no dispe de elementos que lhe possibilitem a identificao
das articulaes entre a sua escolarizao e a decodificao concreta do real. Tais
articulaes, por sua vez, impem-se como objetivos da prtica pedaggica, o que
as coloca sob decisiva dependncia da qualidade com a qual essa prtica se realiza
(MARTINS, 2013, p. 289).
consciente proposta pelo professor para tratar o contedo estar contribuindo para o
desenvolvimento de operaes auxiliares na criana e, na medida em que estas aes sejam
sistematicamente realizadas nas aulas, vai se interiorizando uma nova estrutura de generalizao
que orienta a ao da criana, quer dizer, o contedo interpsquico, que tem por base a atividade
esportiva, vai sendo interiorizado (VYGOTSKI, 1996), como afirmou Zaporozhets (1987): as
aes conscientes autnomas de cima para baixo vo se transformando em operaes motoras
auxiliares, tendo como significao o desenvolvimento dos movimentos voluntrios, quando a
imagem, subjetivao do objetivado historicamente, realiza-se na corporalidade. Assim, o processo
de generalizao vai sendo realizado pela criana na dinmica de interiorizao na medida em que
esta vai acumulando os conceitos e formando sistemas psicolgicos. Estes sistemas psicolgicos
vo se constituindo como parmetros para o desenvolvimento autnomo da atividade da criana, o
que vai possibilitar que ela realize seus movimentos voluntrios na base da imagem formada,
sempre tendo esta como parmetro para regular a sua atividade. Aqui as tarefas tem um papel
importantssimo para o desenvolvimento qualitativo da imagem pela via da possibilidade de
comparar a imagem realizada no fazer da tarefa na sala ou em casa (que pode aparecer inicialmente,
e geralmente aparece, como imagem fragmentada) com a imagem mais fidedigna possvel
produzida no ensino das aes/operaes pelo professor. O confronto de imagens cria a
possibilidade do desenvolvimento de uma foram superior de entendimento do real objetivado,
tendo em vista que a comparao coloca a possibilidade o desenvolvimento da anlise e sntese.
Segundo Vygotski (apud MARTINS, 2013, p. 284),
E mais: todas as vezes em que a criana for realizar uma nova ao, recorrer quela base
orientadora ou estrutura de generalizao interiorizada na atividade de ensino na educao fsica
escolar. Para que esta base orientadora seja realizada, faz-se necessrio o professor ter domnio do
contedo no ponto de partida do ensino, tendo em conta, como j afirmamos, que este todo ser
sempre precrio, pois o professor no ter no ponto de partida uma sntese sobre o grau de
desenvolvimento real dos seus alunos.
236
Estas operaes distinguem, todavia, das que aparecem por simples adaptao da
ao s condies da sua realizao. As experincias mostram que estas operaes
se caracterizam sobretudo objetivamente pela sua flexibilidade e aptido para serem
dirigidas. Elas distinguem-se igualmente por toda uma outra realizao com a
conscincia. Ao e seu fim, quando entram na composio de outra ao, no se
apresentam diretamente na conscincia. Isto no significa que deixem de ser
conscientes. Ocupam apenas outro lugar na conscincia; so iguais, por assim dizer,
controlados, conscientemente, o que significa que, em certas condies podem ser
conscientes.
Afirma Leontiev que, apesar das relaes descritas estarem estabelecidas para uma
conscincia inteiramente desenvolvida, elas permitem compreender a origem histrica da
possibilidade de uma tomada de conscincia no apenas do contedo que ocupa o lugar de fim na
estrutura da atividade, mas tambm uma tomada de conscincia dos modos de atividade, das
condies em que se efetua a atividade (LEONTIEV, 2004, p. 120).
De acordo com Leontiev (2004),
Ainda segundo a autora, o balano que vem sendo realizado sobre o esporte no Brasil
indica escolas desequipadas, sem espaos, sem instalaes, sem professores de Educao Fsica
em numero suficiente desde a educao infantil, sem carreira estimulante, mas com carga horria
elevadssima, sem programas e projetos para educar esportivamente as crianas e jovens de nosso
pas, altura das necessidades prementes (TAFFAREL, 2012).
Segundo Taffarel (2012), com relao aos praticantes das atividades esportivas, as
contradies passam pela formao esportiva incentivada pelos meios de comunicao de massa e
seus valores narcisistas individualistas, competitivistas, pela indstria cultural esportiva
consumista, pela subsuno de inmeras prticas que compe a cultura esportiva. Com relao ao
financiamento, so indicadores de contradies os baixssimos investimentos do oramento geral
da Unio em polticas pblicas esportivas educativas e de lazer. Menos de 0,04% do oramento da
Unio executado destinado ao esporte, mas, por outro lado, 48% do oramento da Unio, em
2014 cerca de 43%, segundo dados do DIEESE (Departamento intersindical de Estatstica e Estudo
Socioeconmicos), para o setor rentista, especulativo, para pagamentos de juros da dvida
impagvel. O impacto disso na classe trabalhadora assustador, como observa a autora:
culturalmente complexa acumulada. Entretanto, como j indicamos, nesta sociedade nem todos
tem acesso ao que o homem tem produzido de mais desenvolvido.
Isto significa que o acesso rica necessidade humana da atividade esportiva no pode ser
realizado plenamente na sociedade e na escola capitalista, pois, como afirmou Saviani (2008), a
educao escolar perpassada por uma contradio fundamental: por um lado, a escola tem o papel
de socializao do saber sistematizado cincia, arte, filosofia , mas, por outro lado, a plena
socializao do saber no pode ser realizada na sociedade capitalista.
Para melhor elucidar esta contradio, vamos explicitar sinteticamente os argumentos mais
essenciais da pedagogia histrico-crtica sobre o papel do conhecimento na formao dos
indivduos nas relaes entre educao escolar e luta de classes.
De acordo com Duarte (2013, p. 243), a socializao, pela escola, das objetivaes
genricas para si [(arte, cincia, filosofia)] condio sine qua non para que [o] [...] vir a ser da
individualidade para-si se torne um processo presente na vida de todos os seres humanos. Com
base neste entendimento o autor afirma que a escola contribuir de forma decisiva para a revoluo
socialista por meio do ensino dos contedos escolares (DUARTE, 2013, p. 243). Segundo Duarte,
aqui se coloca a questo da relao entre educao escolar e revoluo socialista. No entanto, para
evitar cair numa anlise metafsica, levanta trs questionamentos essenciais para elucidar o
problema:
Segundo o autor,
De acordo com Gramsci (1995), o problema que a escola colocada pela burguesia nas
mos dos burocratas; assim, no o contedo da cultura burguesa que tem sido acessado na escola
e isto tem implicaes extremamente importantes no que se refere ao acesso ao saber
historicamente construdo pelo homem98. Com base nesta tese de Gramsci, Duarte afirma que
06 CONSIDERAES FINAIS
99 Aqui tomo a referncia da concepo de trabalho em Marx (2013), o trabalho til que produzido e realizado ao
alcanar a sua finalidade. Tambm tomo a referncia do Saviani (2012a) sobre a realizao em cada indivduo singular
do que o gnero produziu histrica e coletivamente.
247
movimento voluntrio nos alunos nas aulas de educao fsica. 5) Assim, a transformao de aes
conscientes autnomas, que tem por base o contedo da atividade (significaes objetivas) jogo,
ginstica, dana, luta etc., em operaes motoras auxiliares, possibilitar aos alunos a superao
do pensamento subjugado captao sensorial em direo ao pensamento conceitual, pelo
desenvolvimento da percepo, ateno, memria, linguagem, pensamento etc. na esteira deste tipo
particular de atividade complexa (a atividade esportiva). importante reforar que o autodomnio
da corporalidade resultado de um processo integrado de desenvolvimento do indivduo na
educao escolar, portanto, exige graus de desenvolvimento do pensamento conceitual, objeto do
currculo na educao escolar.
Com o desenvolvimento das funes psicolgicas em suas formas complexas, na esteira da
atividade prtica, e isto pressupe ensino-aprendizagem de contedo, as relaes entre as funes
produzem nveis cada vez mais elevados de conscincia da realidade, tais como o autodomnio da
conduta, a personalidade e a concepo de mundo dos indivduos. O autodomnio da conduta o
objetivo e condio para o desenvolvimento das funes psquicas superiores, e, por conseguinte,
da personalidade desenvolvida sntese de todas as funes psquicas, quer dizer, essas funes
assumem objetividade na maneira de ser do indivduo, isto , em sua personalidade. (MARTINS,
2013, p. 08). preciso levar este fato com radicalidade se quisermos superar a preponderncia da
lgica das formas em detrimento lgica dos contedos na educao escolar e no ensino na
educao fsica, a fim de reorientar o processo de ensino-aprendizagem-desenvolvimento do
pensamento conceitual das crianas.
Assim, avaliamos que esta tese prope um terreno frtil para o desenvolvimento de novos
estudos, na medida em que, tendo por base a categoria Atividade de ensino na educao fsica, seu
objeto, e suas relaes fundamental e essencial, luz da teoria da atividade de Leontiev, da
psicologia histrico-cultural de Vygotski, Luria, Leontiev, Zaporozhets, Lisina & Neverovich,
Davydov e equipes, da pedagogia histrico-crtica de Saviani, Duarte, Martins, etc., bem como do
esforo de Escobar, Taffarel, Lorenzini, Nascimento e outros pesquisadores em seus estudos sobre
o ensino na educao fsica, identificamos amplas possibilidades de investigao tanto sobre as
formas de objetivao jogo, ginstica, dana, luta etc., a fim de ao explicitar o contedo da atividade
condensada nas formas de ser singulares da atividade esportiva, contribuir com o desenvolvimento
da categoria atividade de ensino na educao fsica, bem como, num momento posterior,
aprofundar anlises sobre com pesquisas experimentais, a fim de contribuir com o ensino na
248
educao fsica escolar numa concepo omnilateral. Investigaes sobre as relaes entre
educao escolar, saber objetivo e sociedade tomando por objeto a prtica de ensino na educao
fsica, luz da atividade de ensino em geral e da atividade de ensino na educao fsica tambm
comportam ncleos problemticos significativos para fazer avanar o campo, alm de
investigaes sobre as relaes entre o desenvolvimento da corporalidade humana, a realizao dos
movimentos voluntrios tendo por base a atividade acumulada nos objetos jogo, luta, dana,
ginstica etc. em direo ao autodomnio da corporalidade humana constituem importantes
proposies para estudos posteriores.
Com base nos objetivos desta tese, analisamos a prtica de ensino na educao fsica a fim
de pensar alternativas para que a mesma, dando conta de sua especificidade o desenvolvimento
da corporalidade humana , produza em cada indivduo singular o gnero humano, contribuindo,
assim, para elevar o pensamento conceitual dos estudantes na educao escolar, o que significa a
contribuio na construo de uma concepo de realidade que, ao enfrentar as contradies na
sociedade capitalista, se oriente para alm do Capital. No entanto, os contedos da educao fsica,
pela sua especificidade, no realizaro sozinhos esta tarefa, assim como nenhum outro contedo
poderia realizar na escola este processo isoladamente, mas somente a produo em cada indivduo
singular do que o conjunto da prtica social produziu em suas formas mais desenvolvidas.
Assim, almejamos que esta contribuio possa colaborar com a radicalizao da
problemtica sobre o ensino na educao fsica na educao escolar, e dessa forma, contribuir para
superar as concepes dualistas das relaes entre natureza e cultura, biolgico e social,
objetividade e subjetividade, que em nosso campo tem sua mxima expresso na dualidade corpo
e mente, um produto do desenvolvimento da atividade prtico-histrica das sociedades humanas
(MANACORDA, 1996), que tem sua origem na diviso do trabalho necessria ao desenvolvimento
de formas mais complexas de atividade, que na sociedade capitalista toma propores que tem
destrudo as capacidades humanas devido a alienao dos indivduos, do produto da atividade e da
atividade mesma, limitando as suas potencialidades. Este outro aspecto que precisa ser
aprofundado com estudos em nosso campo. Esta dualidade se reflete nas aulas de educao fsica
nas escolas bsicas e superiores, comprometendo a formao dos estudantes, um impasse que
precisa ser superado, enfrentado, no limite, na aula e na escola. Para tanto, faz-se necessria a
construo de condies objetivas e subjetivas.
249
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